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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Cynthia Moreira Marcucci
Caminhos do conhecimento: reflexões sobre o pensamento complexo, a temporalidade e uma
experiência budista.
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
SÃO PAULO
2007
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Cynthia Moreira Marcucci
Caminhos do conhecimento: reflexões sobre o pensamento complexo, a temporalidade e uma
experiência budista.
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
SÃO PAULO
2007
Tese apresentada à Banca
Examinadora como exigência
parcial para obtenção do título de
Doutor em Ciências Sociais –
Antropologia pela Pontifícia
Universidade Católica de São
Paulo, sob a orientação da Profa.
Doutora Lucia Helena Vitalli
Ran
g
el
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Banca Examinadora
_______________________________
_______________________________
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_______________________________
Agradecimentos
Meus sinceros agradecimentos ao grupo do Jardim do Dharma, em especial ao
Professor Roque Severino e às companheiras de ngondro: Alice, Leide, Marina,
Maria Laura, Sandra, Rosângela e Maristela, minha paciente revisora.
À Nina, minha mãe, que mais uma vez apoiou, deu força e se mostrou uma
grande psicóloga diante das crises de desânimo que me acometeram no
caminho.
À Paula Sacrini, minha afilhada. É sempre bom ouvir que tudo vai dar certo.
Aos meus alunos da FASM e do Pós-graduação em tai chi chuan que durante
esses anos foram importantes interlocutores e me auxiliaram com suas questões,
dúvidas e interesses.
Aos professores do Programa de Ciências Sociais da PUC-SP e especialmente
ao Professor Edgard de Assis Carvalho pelas sugestões que deram a tonalidade
desse trabalho e à Professora Lucia Helena Vitalli Rangel pela orientação e
confiança na minha proposta.
Que a pesquisa científica e o método experimental
não impeçam que se ouçam outras maneiras de pensar,
provenientes da filosofia e das mais antigas tradições.
Henri Atlan
Só porque algo não foi identificado
não significa que não exista.
Yongey Mingyur
O que há de mais singular a respeito do tempo é
certamente que tenhamos, de algum modo, tal conceito.
Edmund Leach
Se uma pedra cai, essa pedra existe,
houve uma força que fez com que ela caísse,
um lugar onde ela caiu, um lugar por onde ela caiu
– acho que nada escapou à natureza do fato,
a não ser o próprio mistério do fato.
Clarice Lispector
Temos estado aqui, e nunca estivemos aqui.
Estivemos a caminho até o lugar onde começamos,
e estivemos perdidos.
Paul Auster
Cynthia Moreira Marcucci
Caminhos do Conhecimento: reflexões sobre o pensamento complexo, a temporalidade e uma
experiência budista
RESUMO
Esta tese tem como principal objetivo empreender uma reflexão sobre a antropologia diante
das grandes transformações paradigmáticas ocorridas no núcleo duro das ciências. Para tanto,
relacionei o estabelecimento das ciências sociais ao contexto iluminista, que lhe imprimiu as
principais características quanto ao modelo de realidade, metodologia e princípios. Em
seguida, esclareci a respeito das principais novidades introduzidas pelo pensamento complexo
tanto na área das ciências sociais como na biologia e na físico-química, para apresentar os
principais conceitos com os quais trabalhamos: o anel tetralógico ordem-desordem-
organização-interação; a dialógica cultura-natureza, o anel trinitário
indivíduo/espécie/sociedade; e o tempo complexo através das estruturas dissipativas. Para
finalizar a primeira parte, introduzimos o pensamento budista como uma ponte entre a ciência
e a tradição. Num segundo momento, apresentamos considerações a respeito da temporalidade
linear e simplificadora que engendrou três idéias que precisam ser repensadas pela
antropologia: a existência de um caminho plano pelo qual se vai do mais simples ao mais
complexo; a exclusão mútua dos termos continuidade e ruptura; e a visão de que a história
instaura a universalidade humana. Para esse fim estudamos os poemas da Grécia arcaica,
levantamos aspectos do mito e de seu tempo e discutimos o papel da história nas ciências
sociais. Por fim, retomamos a redescoberta do tempo prigoginiano e o relacionamos com o
determinismo, a liberdade e a ética. Esta, complexificada, leva a uma retomada da
necessidade de mudança na antropologia, para ela que venha a ser verdadeiramente a 'ciência
do homem'.
Palavras-chave: temporalidade – complexidade – budismo – história – ética.
Cynthia Moreira Marcucci
Paths of knowledge: reflections upon the complex thought, temporality and a Buddhist
experience.
ABSTRACT
The main purpose of this thesis is to invite to a reflection on anthropology in light of the
major paradigm shifts that have taken place in the hard-science core. I begin by relating the
establishment of social sciences as from the Illuminist context, which imprinted their main
characteristics concerning reality model, methodology and principles. I subsequently clarify
the most important news brought in by the complex thought in both social sciences and
biology, physics and chemistry in order to introduce the major concepts we work with: the
order/disorder/organization/interaction tetralogical ring; the culture/nature dialogism, the
individual/species/society trinitary ring, and complex time through dissipative structures. To
end the first part I present the Buddhist thought as a bridge between science and tradition. The
second chapter brings some considerations regarding linear and simplifying temporality,
which raised three ideas that anthropology must reassess: the existence of a flat path through
which one goes from the simpler to the most complex thinking; the mutual exclusion of the
terms 'continuity' and 'rupture', and the vision that history establishes human universality. To
support same, I studied archaic Greece's poems, evaluated some aspects of their myth and
time and discussed the role of history in social science. In the third and last part I resume the
rediscovery of Prigogine's time and relate it to determinism, freedom and ethics. When
complexified, ethics leads to the resumption of anthropology's need for change, so that it truly
becomes 'the science of man'.
Key words: temporality, complexity, Buddhism, history, ethics
SUMÁRIO
Introdução.................................................................................. p. 09
1. Mudar o mundo...................................................................... p. 18
1.1. O espírito do tempo (Origens)........................................ p. 21
1.1.1. O estigma da evolução.......................................... p. 30
1.2. O pensamento complexo..................................................p. 43
1.2.1. A cultura e as culturas............................................ p. 52
1.2.2. O tempo herdado................................................... p. 62
1.2.3. O tempo reencontrado........................................... p. 66
1.2.4. As estruturas dissipativas...................................... p. 69
1.3. O quarto olhar................................................................. p. 74
1.3.1. Diálogo.................................................................. p. 84
1.3.2. Para além do mais além........................................ p. 90
2. Temporalidades.................................................................... p. 110
2.1. O pensamento arcaico.................................................. p. 114
2.1.1. A filha da cidade.............................................. p. 131
2.1.2. Tempo sagrado e profano................................. p. 144
2.2. O tecido dos tempos................................................... p. 157
2.2.1. A sedimentação das idéias............................... p. 166
2.2.2. Os rios ocultos do imaginário.......................... p. 175
2.3. A história nos faz diferentes...................................... p.184
2.3.1. A liqüidez da ordem......................................... p.185
2.3.2. Qual história?................................................... p. 194
2.3.3. A complexidade na história............................. p. 205
3. Devires............................................................................... p. 222
3.1. O tempo como operador de mudanças...................... p. 229
3.2. Determinismo e liberdade.......................................... p. 235
3.3. A ética da complexidade........................................... p. 257
3.4. Por uma antropologia complexa................................ p. 275
Considerações Finais............................................................. p. 289
Referências Bibliográficas..................................................... p. 299
9
Na década de 1990, entrei em contato com o budismo e iniciei meus estudos sobre ele
por intermédio de um grupo de praticantes da escola tibetana Kagyu Dak Shang Choling,
representante em São Paulo da linhagem Karma Kagyu
1
, para desenvolver minha dissertação
de mestrado, procurando elementos sincréticos na prática religiosa dos freqüentadores do
Jardim do Dharma (MARCUCCI, 2000). Naquele período, entendi que o budismo, embora
possa ser estudado sob o ponto de vista religioso, não se reduz a esse aspecto. À medida que
estudava os textos compatíveis com meu nível, passei a compreendê-lo como uma filosofia.
Com o fim da pesquisa, encantada com os ensinamentos e já um tanto confortável com as
práticas de meditação, continuei freqüentando a escola. Concomitantemente, em minha vida
acadêmica, entrei em contato com o pensamento complexo e, muitas vezes, transportei
ensinamentos e textos deste para a filosofia budista e vice-versa. Para mim, esse trânsito foi
decisivo e confirmou o budismo como um conhecimento profundo dos fenômenos humanos,
um método introspectivo e subjetivo para a exploração das experiências, ações e
pensamentos, isto é, uma complementação importante para a “objetividade” científica. O
budismo pode dar uma explicação de mundo bem mais próxima das mais recentes teorias
científicas que a própria mecânica clássica.
1
Dentre as quatro escolas originais que surgiram da tradição Dakpo Kagyu (linha de ensinamentos transmitidos
por Gampopa, 1079-1153) é a mais popular e difundida entre os tibetanos. O nome brasileiro deste centro de
difusão do budismo tibetano é Jardim do Dharma, fundado em 1993 pelo Ven. Lama Trinle Drubpa e pelo Prof.
Roque E. Severino, representantes das linhagens Karma e Shangpa Kagyu. Situa-se em Cotia, à R. das Cerejas,
333, bairro de Caputera, São Paulo. O diretor é o prof. Roque Severino (Naljorpa Karma Zopa Norbu), sob a
direção espiritual do Mui Ven. Kalu Rimpoche, o principal mestre da linhagem e do Mui Ven. Bokar Tulku
Rimpoche, falecido em 2004. Há também um local para estudos, práticas e meditações em São Paulo, à R. José
Maria Lisboa, 577, apto. 2. Em junho de 1996, foi inaugurada a Primeira Grande Stupa Dharmakaya da América
Latina, onde estão guardadas as relíquias dos maiores mestres de meditação e do próprio Buda. Foi consagrada
pelo Mui Ven. Lama Bokar Tulku Rinpoche. Em junho de 2007, o Mui Ven. Yongey Mingyur Rinpoche, que
desenvolve um trabalho importante em conjunto com cientistas ocidentais, consagrou mais oito stupas em Cotia,
que também levam as relíquias de muitos mestres e do próprio Mui Venerável Bokar Tulku Rinpoche. Os
interessados poderão obter mais informações e atualizações sobre a linhagem e o Jardim do Dharma no site
www.jardimdharma.org.br.
10
O budismo foi uma via de mão dupla que percorri nos últimos dez anos. As
conseqüências desses estudos foram uma revisão/transformação radical na minha maneira de
enxergar o mundo, o homem e suas marcas (ciência, religião, filosofia). Do diálogo entre
pensamento complexo e budismo emergiram questões acerca das ciências sociais e o
sentimento de que algumas coisas precisam mudar, ou seja, é necessário ir além das
aparências, dos mitemas, das classes sociais, das revoluções, do sincretismo, e dar lugar ao
diálogo entre culturas para encontrar o ponto de mudança: da reflexão sobre si mesmo e da
reintegração da reflexão filosófica ao centro do pensamento científico – o reencontro do ser
humano com sua mente construída/determinada, seja ele médico, antropólogo, engenheiro ou
ator, e com suas responsabilidades de reflexão e mudança.
Este trabalho também atende às angústias de uma graduada em história e iniciante em
ciências sociais que, sofreu o primeiro choque com a afirmação do budismo Vajrayana de que
"a história é um conhecimento que vale pouco para o desenvolvimento do ser humano porque
o prende ao passado, através de uma corrente de ilusões”. Interiormente convicta de que o
conhecimento do passado pode contribuir para a realização de um novo homem, uma nova
ciência, a solução para tamanho estremecimento conceitual pode estar se perfilando agora:
como budismo e história podem, juntos, abrir janelas e ultrapassar fronteiras no campo vasto,
forte, substancioso e desconfiado das Ciências Sociais, seus nichos, recantos, esconderijos e
passagens? Como transpor-se discretamente pelos guardas da fronteira, pelas fortalezas que
guardam o conhecimento? Não há como evitar o risco e o medo que este movimento atrevido
e quase inconseqüente repercute.
11
Era necessário um eixo, um termo que se transformasse em chave para as portas que
eu pretendia abrir: “tempo”. Academicamente, esta escolha está ancorada, em primeiro lugar,
nas leituras das obras de Edgar Morin, porta de entrada para os meus estudos em antropologia.
A seguir, Cornelius Castoriadis, que abalou o edifício que construí durante minha graduação
em história na década de 80. Por fim, e de forma apaixonante, meu contato com Ilya
Prigogine, que recuperou em mim o tempo que perdi procurando não ser livre. Os três,
comprometidos com o surgimento das ciências da complexidade, são meu mentores –
cientistas e intelectuais cujas obras e idéias peregrinaram pela minha experiência acadêmica,
educacional e budista.
Esta tese se propõe a iniciar uma reflexão sobre o tempo e seu papel nas ciências
sociais. Nós, humanos, nem passamos pelo tempo, nem o tempo passa por nós. Somos seus
filhos, biológica, social e culturalmente. Não há sociedade que permaneça igual a si mesma;
nem conceitos como dominantes-dominados conseguem superar essa evidência. O que está
por trás disso é a dialógica entre determinismo e liberdade. Para entendê-la, é necessário
aceitar a assimetria temporal; para aceitar a assimetria temporal, é necessário compreender e
refletir sobre a experiência do tempo tanto do pesquisador como do pesquisado.
Ciência e filosofia pensam, discutem e classificam o tempo. No entanto, não há
definição que contemple com justiça esta “dimensão esquecida” (PRIGOGINE, 1992).
Matéria-prima da história quando nos referimos ao tempo passado, sua relevância aqueceu
discussões e criou famosas polêmicas
2
. Na literatura, é o tempero das narrativas. No campo da
física, não existe consenso em relação ao tempo; tendências diversas se cruzam e se debatem.
2
Estou pensando em Lévi-Strauss e Sartre ou Henri Bergson e Gaston Bachelard.
12
Entretanto, algumas vertentes podem ser claramente percebidas: o tempo é carregado de
sentido pendular, oscilatório, seguindo a imagem do relógio mecânico que definiu o perfil
mais comum da experiência temporal moderna. Em outras palavras, o instrumento de medição
é confundido com o próprio fenômeno; isso, por si, é suficiente para que o tempo seja,
também, elemento importante nas ciências sociais. Minhas razões para pensar desta maneira
estão expostas no capítulo 2.
O tempo tem uma história. Estamos cansados de repetir a crianças impacientes as
diferentes formas de medir o tempo: do relógio de sol ao relógio atômico, passando pela
clepsidra e pelo relógio mecânico, o grande nivelador de todos os tempos de todos os homens,
de todas as sociedades. Mas essa narrativa não é tão simples assim. É somente uma forma,
entre outras negligenciadas, com que uma parte da humanidade organiza, justifica e impõe
seus valores às demais. Esta história do tempo é tributária de certa forma de ver o mundo, que
teve seu momento e sua genialidade, dividindo o palco com a ciência, suas pretensões e seus
benefícios.
Todas as sociedades vivenciam seu tempo. Essas vivências particulares/sociais do
tempo são o arcabouço do conhecimento, imprimem os elementos envolvidos na sua
organização e dão-lhe sentido. O tempo faz parte do conjunto de construtores da realidade
social e da cosmovisão. Não há como ignorar sua importância nas interpretações da realidade,
seja ela social ou histórica. O mais importante é que esta reflexão também se aplica ao tempo
pressuposto pelo antropólogo, que analisa o tempo do outro.
13
A antropologia também tem uma história, com uma sucessão de modelos de intelecção
que tornam possível, conciliatórias e apaziguadas a vivência com as diferenças. Essa história é
pouco questionada e muito valorizada, pois mostra sempre uma aproximação com uma
realidade absoluta, com uma verdade, com um modelo por excelência. É dessa forma que o
particular se pretende universal, e isso deve ser tema de reflexão antropológica.
Tempo, antropologia e história formam um arranjo cujos acordes estão em dissonância
desde que as ciências da natureza refletiu sobre si mesma e reformularam seus fundamentos e
sua eficácia. Iniciou-se uma abertura das ciências, que procura evitar os caminhos redutores
que obrigam escolher entre o materialismo e o idealismo, entre o funcionalismo e o
estruturalismo, entre o universalismo e o particularismo. Minha principal motivação foi
mostrar como o esforço das ciências naturais deve ser seguido pelas ciências sociais e, em
especial, pela antropologia. Ele tem início na retomada e na crítica da sua trajetória histórica,
mas deve ser acompanhado de uma ventilação das idéias, uma abertura de perspectiva, para
que as teorias não se transformem num instrumento que denote o poder do pesquisador sobre
o pesquisado, ou que desqualifique esse último como pensador de sua própria cultura.
O tempo é uma categoria filosófica relevante para uma visão ampla dos fenômenos
sociais e ponto crucial para analisar as diferentes fases do conhecimento antropológico;
contudo ele não pode ser tomado indiscriminadamente. Para que a antropologia saia do
círculo vicioso em que se encontra, e que a impede de se tornar uma “verdadeira” ciência do
homem e não uma ciência “do outro”, para uma antropologia não comprometida com as
correntes relativas ao paradigma redutor, simplificador e dualista da ciência clássica. minha
14
proposta é pensar o tempo e a temporalidade sob o ponto de vista do pensamento complexo,
capaz de recolocar questões polêmicas e cruciais a respeito da cultura
Revejamos a importância do tempo para além do historicismo, da ideologia do
progresso e da teleologia. Qual a importância e os limites do passado para o ser humano?
Qual a importância do futuro, desse tempo que traz a novidade? Qual a importância dos
estudos das origens no conhecimento antropológico? Qual a importância do passado para a
compreensão de fenômenos sociais atuais? O passado está presente nesses fenômenos?
Passado e presente coexistem? Quando as formas antepassadas emergem na prática social,
estamos observando novos fenômenos ou estamos lidando com subsistências e resistências? A
história é um ponto de vista relevante?
Quanto ao budismo, não tenho a pretensão de ensiná-lo. Somente um Lama
3
com
várias décadas de treinamento, estudo e autorização de seus superiores pode fazê-lo. O que
transmito aqui é o conhecimento que adquiri em minha experiência de pesquisadora, depois
com a meditação e as leituras de apoio. No budismo, utiliza-se a realidade física, o corpo ou a
existência biológica como suporte à meditação e à reflexão, mas o meditante não é, em última
instância, o corpo, nem seus pensamentos, nem suas palavras, nem a imagem que tem sobre si
mesmo. Também se utilizam nossa experiência do dia-a-dia, fraquezas, idiossincrasias,
neuroses, ambiente e trabalho como objetos de prática. A meditação budista abalou meu ponto
de vista cartesiano, mecanicista, cientificista, apegado às definições clássicas. Isso não
significa que ignorei os ensinamentos ou descartei os conhecimentos adquiridos pela ciência
3
Mestre espiritual ou guia de grande conhecimento e realizações.
15
nesses séculos, mas procuro observá-los sob outros ângulos, sem apego a teorias, não
aderindo a dogmas e mantendo a mente aberta para as surpresas da realidade empírica.
Hoje, em virtude do falecimento de Bokar Rinpoche e estando o Mui Ven. Kalu
Rinpoche em retiro longo, o Jardim do Dharma está sob a proteção espiritual de Yongey
Mingyur Rinpoche, jovem Lama cujo pai, Tulku Urgyen Rinpoche, ensinou e orientou o
neurocientista Francisco Varela nos caminhos budistas, quem, por sua vez, introduziu
Mingyur, ainda menino, nos meandros da ciência ocidental. As experiências de um mestre
budista em direção ao conhecimento científico e o movimento do neurocientista ao encontro
da prática budista foram experiências preciosas para a aproximação entre a ciência e o
budismo. Os métodos budistas e o conhecimento científico adquirido se correspondem e
podem trabalhar juntos, dialogar em favor da humanidade.
O budismo, grosso modo, é um caminho que utiliza a prática e a reflexão sobre as
coisas que mudam para alcançar uma realidade imutável. O interesse de Prigogine é sobre as
coisas que mudam. O pensamento complexo tem como objetivo, entre outros, estabelecer um
conhecimento apesar das coisas que mudam e por intermédio delas; entender por que mudam,
entender a mudança, qual a causa de toda transformação e as leis que a determinam é o
objetivo da ciência. Para compreender as transformações que ocorreram no universo e
resultaram no aparecimento da vida e do homo sapiens sapiens, Prigogine sugere que se
comece pelo tempo.
O primeiro capítulo tem como objetivo mostrar o as inovações no campo das ciências
naturais, que levou à inumeravelmente decantada crise dos paradigmas e ao enraizamento das
16
ciências sociais no âmbito científico e iluminista e suas conseqüências para a nascente
antropologia. A seguir, procuro esclarecer aspectos do pensamento complexo e, nele, a
posição do conceito de cultura e a nova compreensão do tempo, os limites do pensamento
herdado para essa compreensão e como ela abre novas perspectivas para o conhecimento,
mostrando as dificuldades do pensamento determinista em lidar com transformações e como o
ponto de vista cartesiano chegou a impasses teóricos nas explicações sobre as culturas e
ignorou a universalidade da cultura. Apresento uma visão alternativa da realidade, ligada a
uma grande tradição – o budismo – colaborador na abertura que a mim viabilizou
compreender o que é um mundo complexo.
No segundo capítulo, esclareço o que entendo por entraves às ciências sociais e
apresento modelos de interpretação de mudanças que procuram ir além dos modelos dualista,
mecanicista e iluminista. Nesse momento, entram em cena, como estrela de primeira ordem,
as temporalidades e os tempos: o pensamento grego “pré-filosófico”, para mostrar que o
pensamento humano sempre foi duplo, racional e mitológico, filosófico e religioso. Não é
necessário escolher, o pensamento humano transita entre esses termos; por isso, podemos
falar de pontos de confluência entre o mito e a história. Faço, também, um breve relato sobre
a expansão e o cultivo das ciências históricas no início do século XX até suas novas
interpretações. Por fim, faço um paralelo com a história – área que precisa ser arejada em
conjunto com a antropologia, na tentativa de que diferentes saberes se religuem. O termo
“arejado” pode parecer vago, mas é o clima de ambigüidade, incertezas e mudanças que não
estão direcionadas a um fim específico que o pensamento complexo quer introduzir nas
ciências.
17
No último capítulo, a química de Prigogine abre uma brecha para a aceitação da
história e do devir na realidade/natureza/sociedade. Discuto o papel do determinismo
científico e da liberdade e volto a buscar fundamentos no budismo para o estabelecimento de
uma ética complexa, que faz a ponte entre os saberes e abre a discussão para a importância da
antropologia.
Nunca se falou tanto de mudança de paradigma, mas enquanto estivermos vinculados
ao pensamento herdado, estaremos diante de um obstáculo mental. Esse desligamento não
deve, nem pode, ser feito repentinamente. Se assim o fizermos, estaremos correndo o perigo
de criar novas ilusões, ancoradas ainda no mecanicismo e no cartesianismo. O budismo indica
que o descondicionamento deve ser gradual. Afinal, aquilo que levou três séculos para se
estabelecer não pode ser dissolvido em poucos minutos ou a partir de uma simples decisão
repentina. A consciência dos perigos, da dificuldade, o conhecimento sobre si mesmo; a
percepção dos equívocos, as críticas benfazejas levaram-me a retomar constantemente o
caminho após uma decepção. “Mas um coração partido é um coração aberto” (YONGEY
MINGYUR, 2007, p. 184), é necessária uma abertura para o novo, e é esta experiência que
aqui apresento. Meu parecer é que a reflexão e a prática budistas podem colaborar para
transformar a mente de um pesquisador em algo mais desobstruído.
18
1. Mudar o mundo
A Razão, ou o rácio de tudo o que já conhecemos,
não é a mesma que há-de ser quando conhecermos mais.
William Blake
Somos nós mesmos que determinamos as influências a que nos submetemos;
nossos ancestrais intelectuais não são de modo algum dados a nós;
nós é que os escolhemos, livremente. Pelo menos em grande parte.
Alexandre Koyré
Sempre que questionamos aquilo que nos é familiar,
abrimos as portas para o conhecimento,
e podemos captar vislumbres de vastos horizontes.
Tarthang Tulku
Os dois pilares do conhecimento científico – o modelo newtoniano de simetria
temporal e o dualismo cartesiano (matéria e espírito) não se limitaram às ciências exatas e
biológicas. Entranharam-se também, nas ciências humanas e nas ciências sociais, justamente
onde se tornaram desvantajosos (CAPRA, 1992) devido à sua inadequação metodológica em
relação ao objeto. A despeito de suas antigas e profundas raízes, as ciências sociais são um
empreendimento moderno e emergem com a separação entre a cultura científica e a cultura
filosófica estabelecidas. Deixou-lhes como legado uma dupla postura: de um lado, a busca
quase doentia por organizar-se (métodos, objeto, objetivos) em conformidade com os
fundamentos das ciências naturais; de outro, a aplicação dos ideais iluministas de
universalidade, racionalidade e progresso.
19
Esse duplo comprometimento marcou o significado e a importância dos conceitos de
evolução e cultura que, tomados como processos lineares são os principais entraves a uma
“ciência do homem” no sentido estrito do termo. Primeiro, porque faz uma ciência do homem
na sua ausência, desligando-o da natureza que indaga e do conhecimento que produz. Em
seguida, por delegar à sociedade o poder de criar e condicionar o ser humano à existência da
cultura, como delimitadora da linha imaginária entre a animalidade e a humanidade. Em
ambos os casos, o papel do homem para a produção de cultura que o funda e a sociedade que
o determina é ignorado. O homem permaneceu fruto inquestionável, senão da potencialidade
divina que o cria, agora da sociedade que toma sua guarda. Mas pensadas de forma complexa,
as questões relativas ao homem são capazes de inseri-lo na natureza e na ciência que produz,
abrindo o debate para uma definição de cultura que inclua a universalidade e a diversidade.
É necessário uma ciência do homem que o enraíze na natureza e um método capaz de
dar conta da complexidade (MORIN, 2003). Por isso faz-se necessária a auto-reflexão da
ciência do homem que instaure reformas profundas do pensamento, fazendo circular o
observador, apresentando uma nova face do objeto, mostrando a limitação do pensamento
dualista. A mudança está além da descoberta de uma nova teoria, ou da busca de um remédio
definitivo para os males da humanidade, ou de uma panacéia universal. Um novo ponto de
vista está atrelado a uma reflexão sobre quem olha, como olha, por que olha. Antes, é
necessário reconstruir o percurso das ciências do homem e as dificuldades que enfrentam.
20
A ciência foi uma grande transformação na maneira de pensar que surgiu na Europa do
século XVII apresentando-se como oposição à concepção medieval do universo, embora
mantendo estreitas ligações com as concepções da época. O resultado dessa transformação é
inegável, o sucesso que apresentou durante os últimos 300 anos foi extraordinário, mas é
importante que destaquemos suas limitações e sonhemos com outra forma, mais humana, de
fazer ciência. É necessário redesenhar suas fronteiras, torná-las fluídas, repensar sua
universalidade, sua visão homogênea do mundo, sua abstração ao extremo, a validade de suas
predições e os caminhos alternativos que se abrem a ela.
A partir das primeiras décadas do século XX, os conceitos estabelecidos pela física
clássica tornam-se insuficientes para descrever a realidade subatômica. Esse momento pode
ser caracterizado como uma “crise de percepção”, que deixou evidente que o mecanicismo, a
simplificação e o reducionismo se restringem a descrever somente parte do real. A realidade
das partículas e ondas nos desconcerta, somos incapazes de explicar, reverter, modificar,
prever. Isso é resultado do encarceramento em velhos paradigmas cunhados nos sistemas
newtoniano e cartesiano, que chegaram ao seu limite (CAPRA, 1992). Esses modelos de
interpretação da realidade material esgotaram sua capacidade de perceber os níveis sutis da
matéria (HEISENBERG, 1996).
Isso não significa que as ciências devam ser colocadas de lado, seus pressupostos,
desacreditados, seus avanços e benefícios, negados. Não se trata de um retorno a outras
formas de conhecimento ou uma rejeição do saber científico, mas de uma mudança
significativa de perspectiva, de novos olhares e aberturas. Se a revolução científica dos
21
séculos XVII e XVIII serviram para o desencanto do mundo, é chegada a hora de outras
profundas mudanças e de um novo reencantamento do mundo (PRIGOGINE, 1997).
1.1. O espírito do tempo (Origens)
Como forma de conhecimento, a ciência é um esforço em direção à maior
aproximação com a realidade – constrói teorias que organizam o saber e o fazem corresponder
ao real, definem a natureza, decidem os procedimentos e os focos de sua atenção. No entanto,
a realidade pode se sobrepõe à teoria: desconcerta o espírito cheio de certezas, aponta para o
inesperado, quando a monotonia é a regra. Em nome do conhecimento, a ciência clássica
partiu, dividiu, dissecou, isolou seu objeto. Esse processo analítico não foi em vão. Os
métodos para a explicação dos fenômenos naturais estabelecidos pelas descobertas de
Newton, por exemplo, foram aplicados a outras áreas de conhecimento, trazendo vantagens
em alguns aspectos das condições de vida contemporânea, mas sofreram as limitações que as
explicações centradas no funcionamento não são capazes de superar, pois nunca questionam a
relação entre os fenômenos além da causa-efeito linear. As ciências sociais, procurando se
estabelecer no campo epistemológico, enfatizou a busca das leis que regiam a sociedade e
colocou o homem como o efeito determinado das mesmas . Em conformidade à linearidade do
tempo da física newtoniana, elas buscaram as variáveis que determinariam as condições de
existência da humanidade.
A revolução científica, que culminou com a física newtoniana, iniciou algumas
cristalizações importantes, intimamente ligadas ao pensamento universalista, à hegemonia da
22
cultura ocidental e à hipervalorização da tecnologia, que acabaram demonstrando a vocação
etnocêntrica, elitista, teleológica e progressista nos séculos subseqüentes. Com essas
novidades extraídas da observação sistemática e matematizável da natureza, emergem novas
idéias filosóficas e novos filósofos, entre eles René Descartes (1596-1650), para o qual a
matemática era um caminho para a verdade. Por método, ele separou a substância que pensa
(res cogitans) e a substância extensa (res extensa) e intentou impor as leis mecânicas às duas
esferas: natureza e alma. A partir desse princípio, construiu a concepção filosófica de
dualidade corpo-espírito, base da visão moderna da natureza e da separação nevrálgica
sujeito-objeto.
O século XVIII marcou sua importância pelo estabelecimento de muitos dos
princípios, conceitos e questões que formaram a base das ciências humanas de maneira geral,
das ciências sociais em particular e, especificamente, da antropologia, dentre os quais: o
conceito de cultura, o progresso como um princípio científico capaz de dar conta das mais
diferentes demandas sociais e as “histórias universais”, que despontam como ordenadoras do
desenvolvimento linear humano. As questões centrais da antropologia são tributárias do
Iluminismo (CARVALHO, 2003a, p. 8), que conviveu com o universalismo e com as
experiências com culturas diferentes nas colônias, impactando todo o edifício teórico dessas
disciplinas e formatando as diferentes áreas das ciências sociais (HARRIS, 2002).
Os intelectuais iluministas refugiaram-se nas realizações da ciência, da tecnologia e da
indústria para validar a idéia de progresso da sociedade que, traduzido em leis científicas,
deveria ser instrumento para acabar com desigualdades e arbitrariedades. O tempo, conforme
inferido da mecânica newtoniana, está de acordo com uma determinada idéia de progresso
23
que se estabelece a partir do século XVIII. Centrada no apelo ao futuro, coloca-se como
antítese da tradição, superioridade dos modernos em relação aos antigos, por conta do
desenvolvimento do gênero humano, e cristaliza-se como convicção de uma sociedade:
O lento acumular-se da experiência é a fonte e a garantia do progresso do gênero
humano. Com base numa nova imagem da ciência como construção progressiva
uma realidade nunca finita mas cada vez mais perfectível – foi formando-se também
um modo novo de considerar a história humana. Esta podia agora aparecer como o
resultado do esforço de muitas gerações, cada uma delas utilizando os trabalhos das
gerações anteriores, como o lento acumular-se de experiências sucessivamente
perfectíveis.
(ROSSI, 2000, p. 73).
O estudo e a ordenação do passado eram capazes de mostrar o movimento progressivo
da humanidade rumo à chamada “civilização” baseada no modelo europeu. Alguns caminhos
traçados nesse momento estão relacionados à ênfase na razão histórica, geográfica e racial, e à
procura de modelos de interpretação que unificassem os fenômenos sociais sob uma única
explicação. Isso significa que estavam direcionados à busca de leis, métodos, princípios e
teorias para explicar as diferenças humanas. Antropologia e história compartilhavam o mesmo
contexto em suas raízes e, portanto, conceitos, pressupostos e modelos transitaram livremente.
No século XVIII, surge uma versão da evolução cultural como parte de um processo
cósmico amplo que explicaria, por meio da existência de etapas sucessivas, a trajetória
humana até a civilização. É o caso da história universal de Turgot (1727-1781) e Condorcet
(1743-1794), que fala de estágios de evolução da humanidade e introduzem os termos
“selvageria”, “barbárie” e “civilização”. Segundo esse modelo, em algum momento do
passado, todos os povos tiveram uma vida social simples – próximo ao estado de natureza –, a
24
partir da qual foram aprimorando seu modo de ser. Esses foram os primeiros passos de uma
explicação científica para os fenômenos sociais; porém, nesses modelos das ciências
humanas, faltava um conceito de “homem” e de “natureza”. Desde esse momento, o homem é
ausentado das ciências humanas e determinado pela sociedade, um ser sem autonomia, efeito
eterno de causas outras, constantemente reduzido aos dois extremos: um objeto simplesmente
ou um deus encarnado, dependendo do lado do microscópio em que se encontrasse; modelo
ou modelador, educador ou educando, ser racional ou o outro. Negou sua posição de sujeito
produtor de conhecimento, mas se definiu pela exclusividade da razão. Não refletindo sobre si
mesmo, deu-se por fundamento de toda a positividade (FOUCAULT, 1987).
O novo pensamento econômico na Europa garantiu as modificações necessárias para a
aceitação de novos valores que, por sua vez, serviram para a revolução do comércio e para o
surgimento do mercado do bem-estar e ampliação das necessidades de consumo (CAPRA,
1992). Na história, as novas idéias afirmaram o confronto com a tradição e com a concepção
de que a humanidade empreendia uma caminhada eterna em direção ao seu aprimoramento.
Seu destino seria o pleno desenvolvimento e uso da razão, fronteira entre homem e natureza.
A política foi responsável por duas concepções fundamentais da cultura moderna: tolerância
religiosa, com o intuito de impedir a interferência religiosa no governo, e o progresso,
relacionado com melhorias tecnológicas e incentivo à busca de conhecimento científico.
Baseado na idéia de “educação”, o Estado promoveu a transformação tecnológica que a
ciência proporcionou, inculcando um conjunto de valores e posturas para subjugar,
domesticar, dominar, separar, culpar. Claro, mesmo à época, houve educadores que
propuseram justamente o contrário, mas foi o papel nivelar do Estado que predominou no
conceito de educação.
25
A racionalidade européia do século XVII estabeleceu uma íntima relação entre a
economia, a organização da sociedade, a valorização de atitudes baseadas da medida e não
mais em valores tradicionais, a oposição às verdades religiosas, o surgimento de um tempo
mensurável, que podia ser homogêneo e instrumento de controle e a incômoda convivência
entre sociedades que pouco se reconheciam como semelhantes, formando um misto de
curiosidade, medo, imaginário, realidade e ambição que tornavam o diálogo um jogo de erros,
fez emergir, entre os pensadores da época, a idéia de que a mente humana avançava,
aperfeiçoando-se cada vez mais, através do tempo. Esse aperfeiçoamento libertaria os homens
do despotismo, da irracionalidade e da bestialidade. Para a liberdade ou para o poder, a idéia
do progresso percorre, explicitamente ou nos bastidores, o espírito iluminista e está imbricada
em suas origens com a história linear e direcionada para um futuro previsível, determinado,
necessário, obrigatório, universal, decorrência do conceito de tempo linear e absolutizado que
se extraiu da mecânica clássica.
Diversas teorias sobre o progresso surgiram nesse período em várias áreas do
conhecimento. O caminho pode ser pela economia, como fez Adam Smith (1723-1790), para
quem o progresso humano é resultante do esforço individual rumo às melhores condições de
existência e riqueza e, portanto, à liberdade, ou ao aprimoramento da razão, como afiançava
Condorcet, que considerava o progresso como uma lei que estabelecia rumos ao
conhecimento e capacitava o homem a prever o futuro, acautelando-se contra os perigos e
dominando a escuridão. Rousseau (1712-1778) deu primazia à igualdade, ao invés da
liberdade. A teoria do progresso humano implícita em sua obra explica como, no decorrer da
história, a humanidade afastou-se da idéia de progresso geral ao instituir a desigualdade entre
os homens (NISBET, 1985, p. 252). As diferenças estabelecidas entre os grupos humanos
26
seriam decorrentes do afastamento da ordem natural, colocando natureza e cultura em pólos
opostos. As sociedades primitivas estariam mais próximas da natureza, e a sociedade
européia, mais afastada desta, à medida que evoluía culturalmente. Para Rousseau, a
proximidade com a natureza seria a vivência valorizada.
De maneira geral, o iluminismo viveu a tensão entre a avaliação das diferenças
evidentes entre as sociedades humanas e o ajuste à universalidade que apregoou. No entanto,
os parâmetros para esses valores são desenvolvidos em sua própria sociedade e típicos à sua
expansão econômica e social, estendida como modelo a toda a humanidade. Ou seja, a razão
ocidental quer ser hegemônica, alcançar todos os homens e, a partir daí, “poderia com o
tempo levar o homem, em qualquer lugar, às mesmas instituições sociais, às mesmas crenças
morais, às mesmas verdades técnicas e científicas” (HARRIS, 2002, p.11, tradução nossa)
4
.
Essa idéia também é responsável pelo processo de universalização da história e pelo esforço
em estabelecer, à força, um processo único, linear e exclusivista por meio da educação e da
aculturação, bandeiras especialmente alçadas por Helvetius e Turgot (HARRIS, 2002), que
proclamavam em uma história universal a proporcionalidade entre razão, organização e
liberdade.
Para a antropologia, a influência dos métodos das ciências naturais e do pensamento
iluminista toma um aspecto muito específico com a inclusão, desde o século XVI, de outros
espaços e tempos sociais além do europeu, e à medida que entram em cena as questões
relativas à diversidade humana e à reflexão decorrente desse choque, sofrido tanto pelo
4
Do original: “podría com el tiempo llevar al hombre, en cualquier lugar, a las mismas instituiciones sociales, a
las mismas creencias morales, a las mismas verdades técnicas y científicas”.
27
europeu como pelos povos colonizados, embora em intensidades desiguais. Evidenciada a
existência de inéditas e inimagináveis formas de organização da sociedade, os sábios da época
se depararam com a necessidade fremente de organizar o conhecimento existente.
A observação, a busca de uma explicação para a diferença em meio à igualdade
humana e um método (indutivo) organizado em conformidade com as ciências naturais foram
as bases da nascente antropologia, que passou a desenhar fronteiras entre natureza e
civilização, entre selvageria e razão. Tudo o que é diferente e desconcertante na humanidade,
segundo a lógica setecentista, pode e deve participar dos progressos da sociedade européia,
desde que se acomodem na situação caracterizada pelos seus valores – progresso, pleno
desenvolvimento da razão e do conhecimento racional, distanciamento da natureza –, que se
traduziam em vestimentas, conversão ao cristianismo e abandono de suas tradições, entre
outros. Naturalmente, sempre existiram vozes discordantes. Ainda no século XVI, Montaigne
discorreu sobre os chamados “bárbaros”, apontando para o fato de que o europeu não é isento
da barbárie apesar do uso da razão. Tal visão valorizava a pressuposta inocência e
ingenuidade desses bárbaros, por estarem mais próximos da natureza, do paraíso.
Entre o século XVIII e a primeira metade século XIX, a história humana foi
apresentada como o aprimoramento da política pelo desenvolvimento da razão, recolocando
em cena uma antiga doutrina evolucionista ainda relacionada preferencialmente aos costumes,
instituições e história: “uma característica do século XVIII foi que nele elaborou-se uma
versão concreta do processo evolucionista superorgânico que influenciou não somente todas
28
as doutrinas subseqüentes do evolucionismo cultural como também canalizou o
evolucionismo biológico para a idéia de finalidade” (HARRIS, 2002, p. 23, tradução nossa)
5
.
Porém, o primeiro esboço de uma explicação de evolução relacionada com a natureza sofreu
as conseqüências da dicotomia homem-natureza, que separou os fenômenos evolutivos em
duas vias, a biológica e a social, enquanto o universo pronto e acabado continuava seu
movimento perpétuo e estável. No decorrer dos séculos seguintes, muitas mudanças se
apresentaram na história
6
e especialmente na biologia, mas essa marca de afastamento entre
evolução biológica e social continuaria indelével e ainda se faz presente.
Indiscutivelmente, é uma mudança de perspectiva e uma valorização de outro tempo: o
melhor deixa de estar no passado para ser meta para o futuro; o tempo mágico-hermético dá
lugar ao tempo científico-tecnológico e às razões da história e das condições físicas do
ambiente. A ciência, o saber e o conhecimento são resultados da história humana que se
constrói progressivamente na direção do progresso tecnológico e do racionalismo europeu e
que ocorre também individualmente por isso a idéia da existência da infância da humanidade,
o crescimento em busca de um amadurecimento e a idade da razão. O passado passa a
significar o momento da origem e perde o valor de perfeição. A história sofre uma bifurcação
radical: num sentido está o contínuo fluir do tempo, sem rupturas, dentro de uma natureza
harmônica e perfeita desde o princípio; no outro, estão a mudança e a evolução direcionadas
para uma meta preestabelecida.
5
Do original: “lo proprio del seglo XVIII fue que en él se elaboró uma versión concreta del processo
evolucionista superorgánico que no sólo influyó a todas las doctrinas subsiguientes del evolucionismo cultural,
sino que además iba a canalizar al evolucionismo biológico cuando al fin, tardíamente, surgiera, orientándolo
por rutas enteramente inadecuadas”.
6
As principais transformações do conhecimento histórico: Annales, Nova História e História dos Vencidos serão
colocadas no Capítulo 2.
29
O momento era de escolha: preservar a sabedoria antiga e mais próxima do princípio e
da verdade ou dar lugar à acumulação de conhecimento, invertendo a atenção para o futuro. O
futuro deixa de estar marcado pelo retorno às antigas condições de perfeição e passa a
significar a possibilidade de estocagem de experiência: quanto mais tempo, maior a
possibilidade de saberes. Para os pensadores do progresso, o antigo se torna a imagem da
juventude da humanidade, mas a nova ciência é superior, pois implica em mais conhecimento.
A maior proximidade com a perfeição é jogada indefinidamente para frente.
É nesta direção que desponta a idéia de “progresso” decantada pelos iluministas, e que
persistiu nos séculos subseqüentes, que deveria se apoiar no conhecimento e domínio sobre a
natureza (NISBET, 1985, p.189). O termo “progresso”, sinônimo de crescimento,
melhoramento, passou a ser aplicado universalmente até ser substituído por
“desenvolvimento”, termo que significa principalmente “crescimento econômico” e
“consumo”, isto é, quanto maior foi a capacidade da sociedade de consumir bens, mais
próximas do desenvolvimento econômico ela estará. Quando a vocação civilizadora européia
perdeu a força diante da crise de valores estabelecida no período entreguerras, ganhou vez a
disposição ocidental de levar todos às vantagens da riqueza econômica, a nova niveladora
universal. Independente do significado econômico do termo desenvolvimento, o que nos
chama atenção é a permanência da sociedade ocidental como modelo para todas as outras e a
conservação de seu papel como condutora de toda a humanidade até esse fim naturalizado. As
principais referências para o termo “desenvolvimento” são as transformações ocorridas em
vários níveis e aspectos na Europa entre o século XIV e XVIII e tomaram uma significação
forte no imaginário social (CASTORIADIS, 1987b).
30
1.1.1. O estigma da evolução.
No século XIX, a divisão entre ciência e filosofia tomou “o aspecto de uma hierarquia:
o conhecimento tido como certo (ciência), por oposição ao conhecimento imaginado e mesmo
imaginário (a não ciência)” (COMISSÃO GULBENKIAN, 1996, p.18). Aos filósofos, restava
cogitar, enquanto que o conhecimento exato e isento de preferências pessoais, baseado em leis
deterministas, de tendência niveladora e, portanto, ideal para o exercício do poder sobre as
pessoas e a legitimação do controle do Estado nos movimentos espontâneos das populações
sob sua custódia, cabia à ciência. Esta, em nome do progresso e a serviço do Estado moderno,
deveria construir o modelo ideal de sociedade – uma forma de exercer seu domínio e legitimar
suas ações.
Observando esse cenário, não é difícil relacionar a antropologia à situação de
dominação infringida às populações colonizadas, nem imaginar porque as ciências se
disciplinaram e se aperfeiçoaram nos principais países imperialistas. Primeiro, conhecer,
levantar dados empíricos, minuciosos e precisos para, em seguida, agir, com “as melhores
intenções”, sobre a realidade e direcioná-la para o futuro já previsto. Foi estabelecido pela
comunidade científica, então, um processo de disciplinarização e profissionalização do
conhecimento ancorado na premissa de que a racionalização, a separação e a observação dos
menores pedaços da mais simples realidade continham a chave para o entendimento do
funcionamento do mundo com precisão infinitesimal. No entanto, na segunda metade do
século XIX, a idéia de evolução advinda das ciências biológicas modificou o ideal de
progresso.
31
A caminhada epistemológica das ciências sociais, do iluminismo ao evolucionismo, se
deu concomitante à confirmação do domínio europeu no mundo. Essa presença massiva nos
territórios descobertos e conquistados veio carregada do sentido da sobrevivência do mais
apto, expressão que abarca uma gama de interpretações livres da teoria da evolução e que
legitimou cientificamente a idéia de que o progresso seria uma longa caminhada até ao
modelo superior da sociedade européia contemporânea:
Esta preocupação com o modo como a Europa se tinha expandido até dominar o
mundo coincidiu com a transição intelectual darwiniana. A secularização do
conhecimento promovida pelo Iluminismo foi confirmada pela teoria evolucionista,
as teses de Darwin alastraram muito para além das suas origens biológicas. [...]
Assistiu-se, assim, à utilização de interpretações demasiado livres da teoria da
evolução para dar legitimidade científica ao pressuposto de que o progresso
culminava nessa auto-evidência que era a superioridade da sociedade européia
contemporânea.
(COMISSÃO GULBENKIAN, 1996, p. 48-9).
À tradição universalizante da história e da antropologia foi acrescentada uma visão
evolucionista. No período entreguerras surgiram as principais objeções aos primeiros modelos
explicativos da antropologia – rejeitados em bloco e com autoridade, mas sem as
considerações às especificidades de cada autor e atribuindo ao espírito da época uma visão
que, como veremos, nunca foi homogênea.
Enquanto a idéia de progresso amalgamada à de evolução tomava espaço e tornava-se
comum, embora não necessariamente uniforme, no nível cósmico, a mecânica newtoniana
predominava. Desse modo, a ciência do século XIX legou-nos dois modelos de realidade: um,
evolutivo, e o outro, imutável; um, relacionado à vida e o outro, relacionado ao cosmo. De
32
cuja confluência resultou o entendimento da vida como evolução dentro de uma eternidade
física (SHELDRAKE, 1996). Assim, mesmo não reduzindo o evolucionismo à justificativa de
uma ação pontual, isto é, levando-se em conta que a idéia de evolução não foi extraída do
contexto colonial, nem das necessidades de submeter populações em nome da acumulação de
riquezas, mas com certeza encontrou um campo fértil para se propagar e se respaldar em
evidências retiradas do cotidiano. Devemos admitir que o evolucionismo em geral partilhou
com a visão mecanicista, o espaço nas produções científicas e que está subjacente nas teorias
das ciências sociais, preenchendo, em alguns momentos, um papel mítico para substituir com
sua prepotência, onipotência e onisciência, a vontade divina. Portanto, o mecanicismo pode
ser encontrado tanto no pensamento evolucionista como nas críticas a ele feitas
posteriormente.
O vínculo entre o surgimento da antropologia, o evolucionismo, a filosofia do
progresso e a história universalizante pode ser notado na forma como a maioria das obras que
se propõem a apresentar uma história da antropologia o faz: uma sucessão de prioridades e
pontos de vista que se colocam sempre como mais adequados que os anteriores. A
antropologia surgiu no século XIX como uma ciência, isto é, com métodos e objetos
definidos, tendo como princípio norteador o evolucionismo, considerado a primeira escola, o
início dos estudos antropológicos, os primeiros ensaios de explicação das fundações da
humanidade, das diferenças físicas e culturais, a primeira tentativa de se falar de um antropos
homem universal cujo problema está na perspectiva ocidental da análise.
A metodologia comparativa teve como referência a sociedade européia que se
industrializava e desenvolvia sua tecnologia, sob cuja ideologia se estabeleceram todas as
33
chamadas “escolas antropológicas” – evolucionismo, difusionismo e funcionalismo. Por
usarem o mesmo método e estarem dentro dos padrões cognitivos da época, Morgan (1818-
1881), Spencer (1820-1903), Tylor (1832-1917), Frazer (1854-1941) e Lévy-Bruhl (1857-
1939), foram classificados como similares e rechaçados em bloco pelo culturalismo dos
seguidores de Boas. Os pais fundadores da antropologia – Morgan, Tylor e Frazer –
representaram o pensamento evolucionista e hegemônico no período entre 1871-1908, em que
foram produzidas suas obras mais importantes, respectivamente: Ancient Society (A
Sociedade Antiga), Primitive Culture (A Cultura Primitiva) e The Golden Bough (O Ramo de
Ouro).
As teorias sociais que os críticos reuniram no termo “evolucionismo” foram
consideradas justificadoras das relações colonialistas, com um tratamento assimétrico entre as
culturas, e suas bases – as da ótica etnocêntrica, de diferenças tecnológicas, sociais e culturais,
analisadas sob o prisma da história universal, ou seja, com a visão “ocidental, branca, cristã e
européia” –, foram chamadas de equivocadas. “Na segunda metade do século XIX e início do
século XX, [as] teorias sociais evolucionistas forneceram a classificação e a explicação então
predominantes das instituições sociais e dos tipos de sociedade” (HIRST, 1977, p. 8).
Entretanto, um olhar mais atento leva-nos a perceber que essa associação superficial esconde
um emaranhado de linhas de influências, contribuições e interpretações que devem ser,
mesmo que brevemente, apresentadas.
O termo “evolucionismo” fez a ciência tomar conhecimento da antigüidade do
homem, enquanto rebatia a velha cronologia bíblica e instaurava definitivamente o ateísmo no
núcleo da ciência. A ciência evolucionista, utilizando o método comparativo, abre o campo
34
para as principais críticas e restrições a seus estudos: as populações indígenas ajudavam a
construir uma pré-história, a partir de uma operação lógica e dedutiva de que o mais simples
antecede o complexo e que essa direção leva infalivelmente a formas técnicas, morais e
raciais mais perfeitas. Além disso, o terreno pantanoso que o pensamento evolucionista do
século XIX percorreu criou armadilhas e as principais críticas aos evolucionistas:
subestimavam o alcance da diversidade, julgavam as outras culturas a partir das suas,
buscavam a origem remota de um costume ou instituição e alcançavam o controle da
sociedade pelo estudo de seus agentes, com o objetivo de melhorar as qualidades raciais das
populações.
Existem três formas de teoria evolucionista que são exemplares para a história da
antropologia. A primeira avalia as espécies seguindo um padrão hierárquico e concebe
evolução como progresso biológico. Essa lógica implica não somente arbitrariedade, visto que
inclui as diferenças físicas entre seres humanos, mas também uma visão teleológica associada
à concepção de natureza finita/concluída e à realização de um plano pré-concebido. Em
seguida, temos a história da sucessão das formas, comprometida com a reconstrução do
passado de modo arqueológico e com o estabelecimento das relações de sucessão. É o que
encontramos em Morgan, conforme mostraremos a seguir. Por fim, há uma “teoria geral
abstrata aplicável a todos os tempos e condições” (HIRST, 1977, p. 16), formulada por
Darwin, para explicar a formação e a variedade das espécies.
Cada teoria evolucionista está alicerçada por um conceito de evolução diferente que
reduzidas a razões diversas: geográfica, temporais, históricas, biológicas ou raciais entre
outras, compartilham o mesmo tempo linear, absoluto e universalizado da ciência clássica.
35
Além disso, o movimento do ideal de evolução e o de progresso não embora tenham chegado
ao século XIX com o mesmo impulso, suas origens, objetivos, objetos e símbolos não se
confundem. A analogia entre progresso e evolução teve como conseqüência a perda da
complexidade contida no termo evolução, que foi reduzido a seus aspectos tecnológicos,
enquanto o tempo se reduziu a aspectos quantitativos. O fato de terem se encontrado num
determinado contexto histórico não implica que “evolução” e “progresso” sejam idéias que
necessariamente tenham de andar juntas
Entendemos que essas três formas são expressas a partir de uma mesma compreensão
da categoria tempo: linear, absoluto, reversível, isto é, passível de ter sua trajetória invertida
com a certeza de alcançar a origem, e principalmente mecânico, baseado na reversão dos
valores do tempo, imaginando que sua reconstrução dependesse tão somente da coleta de
dados variáveis suficientes e da posterior equação matemática deles obtida. Mas é
principalmente a terceira teoria que chega num impasse teórico suficientemente complexo
para preparar o salto no entendimento da vida.
Não pretendo neste trabalho discorrer sobre a complexidade do conceito “evolução”.
Limito-me a ressaltar, sem invalidar as referidas obras, como foram equivocadas as
interpretações culturalistas e relativistas dessas três teorias evolucionistas, formidáveis se
forem devidamente apresentadas como significativas para uma época crucial de construção
das ciências sociais, mas cujo único problema foi terem considerado – já que então não havia
outra alternativa – o tempo linear da mecânica clássica e a fidelidade ao espírito cientificista
da época. O evolucionismo de Darwin merece uma análise atenta e exclusiva, que considere a
perspectiva da complexidade. Sob esse prisma, também a obra de Marx adquire outra
36
conotação: não há erros, e sim limitações impostas pela linearidade do tempo que levava à
construção de leis históricas, mesmo que dialéticas.
Fica evidente para o observador de hoje que o tempo partilhado por essas visões
sofreria processos ou de supervalorização ou de total abandono. Por um lado, a partir dos
estudos dos fósseis, o tempo foi ampliado, abrindo espaço para o pensamento evolucionista
invadir a ciência. “Evolução” é um termo muito antigo, que remete a Lucrécio (c. 98-55 a.C.),
e os esboços do evolucionismo social já haviam despontado com o Iluminismo, antes de ter se
introduzido e se colocado muito bem na biologia do século XIX. O movimento, a mudança e
as transformações que ocorrem no tempo mexeram com a visão do cosmo, do mundo e do
homem. Por outro lado, a física newtoniana enfatizou seu valor absoluto, universal e
reversível, ignorando-o como operador, isto é, como elemento acionante de processos e
modificações. Conseqüentemente, tanto o chamado “evolucionismo antropológico” conforme
se concebia, quanto as críticas feitas a ele, se atrelavam a uma forma particular e padronizada
de considerar o tempo: linearidade.
Para os críticos de Morgan, a importância de sua obra reside na atenção que Marx e
Engels lhe deram em A Origem da família, da propriedade privada e do Estado. Esse fato
serviu para encarcerá-lo nas origens escusas da antropologia unida ao colonialismo e às
necessidades políticas do Estado nacional. Outro ponto fundamental é a questão da
generalização e como se consideram as diferenças. “A generalização histórica constitui a
essência e o método da obra de Morgan. Ancient Society é generalização extraída de uma
história – é a divisão desta em períodos sucessivos e é a generalização de uma história – a
demonstração da sua universalidade” (HIRST, 1977, p. 32), o que nos aponta para uma pista
37
no estabelecimento da relação intrincada entre a história e o tempo na antropologia: “apesar
de conhecerem o bronze, os homens [os aborígenes da América] não podiam avançar na via
do progresso [passar para a barbárie superior] sem possuírem utensílios metálicos eficazes e
sem que dispusessem de um metal dotado de suficiente dureza e resistência para com ele
fabricarem máquinas” (MORGAN, 1976-78, v.II, p. 295). As diferenças entre os grupos
humanos são determinadas pelas condições tecnológicas que se modificam no decorrer da
história.
A universalidade da história impõe, sim, um tempo dominante, que traz consigo uma
lógica classificatória que, por sua vez, resulta numa sistematização da trajetória da
humanidade, enfatizando as mudanças tecnológicas, os prismas interpretativos da ciência
antropológica e a uniformidade dos processos que ocorrem em situações similares:
Dada a influência considerável que as artes de subsistência, aparecidas
sucessivamente com longos intervalos de tempo, devem ter exercido sobre a
condição da raça humana, é provável que elas possam fornecer as bases mais
satisfatórias para distinguir esses diferentes períodos. Mas as pesquisas neste sentido
não foram ainda levadas suficientemente longe para que possamos dispor de todas as
informações necessárias. No estado actual dos nossos conhecimentos, é a escolha de
determinada invenção ou descoberta susceptível de fornecer suficientes indícios de
progresso que melhor permitirá delimitar o início de cada período étnico.
(MORGAN, 1976-78, v. I, p. 19).
Assim, por meio dos desenvolvimentos técnicos, as diferentes etapas do progresso da
humanidade se apresentam atreladas às potencialidades mentais e se relacionam às diferentes
formas de organização das instituições. Morgan não fez evolucionismo social: sua proposta é
bem diferente da de H. Spencer. Sua classificação dos períodos étnicos não pressupõe uma
38
meta à qual a humanidade deveria chegar, pois não existe uma lei histórica que determine tal
fim, e sim um caminho de desenvolvimento mental que, desembocando na linguagem
articulada, condições semelhantes entre os seres humanos, deverá levar ao estado de
civilização: “com a linguagem articulada entre as invenções, a raça humana lançava-se, então,
com possibilidade de êxito, no longo caminho que leva à civilização, meta que, desde essa
época estava praticamente assegurada” (MORGAN, 1976-78, V.II, p. 281). Morgan fez
história, partindo dos exemplos vivos, as ditas sociedades primitivas, de como as sociedades
do passado viveram e não prognosticou: o estado de civilização é uma evidência em sua
sociedade. Trata-se de um passado determinado, mas não de uma lei inexorável que trace o
futuro. Não há em seu pensamento previsões ou destino humano preestabelecido; seu
evolucionismo, embora linear, corre em paralelo nas diferentes sociedades; não é unilinear,
mas multilinear. A evolução é um processo comum à humanidade, portanto está ligada à
história universal e eurocêntrica. Assim, é importante para compreender a sociedade industrial
de sua época, buscar as origens, a forma mais primitiva de organização da sociedade que
chegou aos patamares a sociedade científica européia do século XIX.
O trabalho de Morgan apresenta um esquema que relaciona instituições sociais,
progresso técnico e desenvolvimento da mente humana. Esta é determinante na história da
humanidade que ele sistematiza, “o cérebro cresceu com as invenções e as instituições que
engendrou” (HIRST, 1977, p. 33). A história das invenções e das descobertas, das formas
institucionais, das expressões culturais é a tônica do pensamento de Morgan, que não
construiu uma hipótese histórica materialista, nem cogitou a determinação de uma estrutura
sobre a outra, mas deve ser entendida simultaneamente a partir e além de seus aspectos
biológicos, pois diz respeito também a transformações institucionais.
39
Esse tipo de reconstrução do passado em que a história funciona como um princípio
retro-explicativo (HARRIS, 2002) oferece alguns instrumentos importantes para a
compreensão da natureza humana, mas também exige alguma cautela. Descarta a ruptura e
enfatiza a continuidade, porém numa linha absoluta e universal. Dessa forma,
paradoxalmente, esse pensamento enfatiza a ruptura da mudança, porque precisa explicar as
diferenças entre os povos primitivos a partir da moderna sociedade européia, mas, ao analisar
os aspectos persistentes nas organizações sociais, ignora as transformações. Em outras
palavras, ou se referem a similaridades ou a diferenças profundas. Essa dicotomia, no entanto,
está presente inclusive nos alicerces das teorias que se construíram a partir das críticas ao
evolucionismo, que se apropriaram de marcos perigosos que dividem as sociedades em tipos
opostos. A importância da escrita, a instituição do Estado, o conhecimento científico,
estabeleceram a divisão entre sociedades históricas e não-históricas, sociedades com ou sem
Estado, sociedades tradicionais ou modernas.
A obra de Morgan seria totalmente descartável para as questões atuais, se pensarmos
sob a ótica da ausência de “leis evolucionistas” e da importância de se estudar as origens de
instituições comuns às sociedades. Contudo, se procurarmos ultrapassar as barreiras
construídas entre a natureza e a cultura, poderemos resgatar idéias importantes presentes em
Ancient Society, mas que sofreram os limites impostos pelo paradigma científico
cartesiano/newtoniano: a universalidade humana, a importância da reconstrução histórica e a
transformação das instituições.
Em parte como efeito negativo da difusão do evolucionismo de Darwin num campo
marcado pela ideologia liberal-econômica fortalecida pelo triunfo da burguesia industrial e
40
comprovada pela dificuldade de outras sociedades em “acompanhar” o ritmo desenfreado que
o capitalismo tomava, ocorreu uma biologização da história, que se enraizou na forma mais
grosseira, relacionando ‘raça’ e cultura, bem diferente da relação ‘biologia’ e cultura. A
introdução de fatores raciais nas explicações históricas desembocou na ojeriza da proximidade
entre as ciências sociais e as biológicas, que foi denominada “biologismo social”, responsável
pela indistinção entre racismo, evolucionismo e toda a política do progresso engendrada pelo
Estado, de onde saiu a linhagem Gobineau, que prevaleceu até o nazismo (HARRIS, 2002).
O evolucionismo darwiniano contém três princípios fundamentais – a variabilidade, a
hereditariedade e a seleção natural – e combina “uma teoria dos efeitos da herança com uma
teoria ecológica sobre a fonte da pressão de seleção” (HIRST, 1977, p. 19). Ao desenvolver
sua teoria, Charles Darwin teve como principal preocupação eliminar a idéia de plano e meta
– herança da participação divina na criação – por meio da evolução da vida e da variação dos
organismos de acordo com as operações mecanicistas de forças inanimadas. Esforçou-se para
encaixar as duas visões de universo das ciências do século XIX e acabou por reservar à
seleção natural o papel de lei cega na natureza. O evolucionismo social encontrou, no
evolucionismo biológico, a explicação definitiva, científica, comprovada e irredutível das leis
que determinavam a evolução da sociedade, mas tratava-se de explicações que tomam o
conceito de evolução, delimitam a aplicação e objetivam resultados de maneira diferente e
não se confundem.
O método estatístico e a genética da população desenvolvidos posteriormente tornaram
perceptíveis a relação inversa entre o tamanho da população e o grau de mutação e trouxeram
modificações ao darwinismo, visto que colocaram em discussão a supervalorização da pressão
41
da seleção natural em detrimento das pressões da mutação que, provavelmente, mostrando
que esse aspecto da teoria darwiniana é parte da tendência determinista da ciência da época
propensa à redução causal. Em outras palavras, a partir do advento desses métodos, a ênfase
passou da seleção natural para a pressão interna da mutação, que, na teoria de Darwin, exercia
uma influência mais marcante, o que despertou novas investigações a respeito do ritmo, da
velocidade e da direção da evolução, descolando-a do sentido de progresso (MERLEAU-
PONTY, 2000).
As escolas antropológicas que criticaram e sucederam a visão evolucionista, tomaram
a posição oposta: negaram a importância do tempo e exaltaram seu congelamento como forma
de preservação das culturas antigas. Ou seja, as mudanças no tempo foram interpretadas como
fator degenerativo das tradições, porque num tempo linear não há lugar para elementos novos
e criatividade, mas somente para um desenrolar de atividades eternamente iguais a si mesmas,
que só se transformariam a partir de um fator introduzido de fora. A informação que vem de
fora foi valorizada pelo pesquisador comprometido com o desenvolvimentismo, ou
desvalorizada quando este se outorgou o papel de protetor das tradições. Em ambos os casos,
o modelo iluminista, progressista, newtoniano, cartesiano constituiu o palco, o cenário e os
personagens que compõem as ciências do século XIX que hoje nos leva a um impasse: não há
uma nova antropologia no interior desse pensamento linear. O pensamento não será liberado
enquanto não for reencontrado o tempo em sua complexidade.
Certamente, a história responsável pela multiplicidade das culturas não é aquela saída
do pensamento iluminista e universalista, ávido pela explicação rápida das diferenças para
justificar as ações colonizadoras européias e, principalmente, marcado pelo tempo linear
42
apresentado pela física newtoniana. Pensada dessa forma, a história e suas leis só serviram
para menosprezar as experiências particulares em nome de uma universalização tirana. Diante
da diversidade, e entre elas a das próprias instituições temporais, é necessário refletir,
abandonando essas premissas etnocêntricas e universalistas e buscar um universal humano nas
experiências do tempo para construirmos uma sociedade planetária de fato e para que a ética
seja aplicada a todos e por todos. Isso significa que a solução relativista ainda é fraca e
incompetente para a complexidade do real.
Não importa o quanto as novas tendências da antropologia insistam em fazer a crítica
simplista do conhecimento adquirido durante os séculos XIX e XX. Centrar o foco no exame
de uma idéia generalizada de evolução e associá-la às suas ramificações mais perversas,
colocando numa única prateleira universalismo e imperialismo, o reconhecimento de uma
universalidade humana e a negação da diversidade cultural, só prestam um desserviço ao
objetivo da antropologia de se colocar como uma verdadeira ciência do homem. O
evolucionismo antropológico sofreu do mal comum da racionalidade: classificar, ordenar,
estabelecer diferenças e cronologia, chaves das ciências. Mas não menosprezou as
semelhanças e atentou às analogias, utilizando o método comparativo e realizando grandes
generalizações que despertaram a ira dos defensores das particularidades.
Há ainda, contudo, uma questão da temporalidade extraída da ciência mecanicista que
a crítica ao conhecimento antropológico sacramentado deve colocar. As principais
dificuldades em compreender o que é o humano e como natureza e cultura se imbricam, de
como preservar a idéia de universalidade humana, sem, com isso, ignorar a diversidade
cultura, não residem no fato de que a idéia de evolução tenha gerado mecanismos de
43
dominação ou que ao pesquisador era necessário um mergulho radical na cultura estudada ao
ponto de quase se transformar num indivíduo que dela participasse. É na compreensão linear
do tempo e na aceitação de que as coisas se transformam automática e sucessivamente,
teleologicamente ou não, mas obedecendo a leis determinísticas, que encontramos os
principais entraves para a compreensão das transformações e diferenciações que ocorreram,
ocorrem e continuarão a ocorrer nas culturas humanas. Esse tempo é partilhado também pelos
críticos e opositores da visão universalista.
1.2. O pensamento complexo
Vozes divergentes questionam o mito de um mundo harmônico que permeia a visão
científica clássica, isto é, refletem sobre uma ciência complexa, sobre as fundações do
conhecimento e a importância da temporalidade. Essas vozes, cujo objetivo é estabelecer uma
nova ciência, rejeitam aquilo que mutila o conhecimento: a concepção de um universo
linearmente determinado, a simplificação da realidade e a ignorância do acaso.
Na ciência newtoniana, tudo é comprovado em termos de trajetória individual, um
exemplo sendo a reversibilidade do tempo. O sistema concebido pela ciência clássica era
fechado e em estado de equilíbrio, refletindo a idéia de ordem e harmonia que fundamenta a
visão da natureza que o homem dos séculos XVII-XVIII tinha da natureza e do cosmo. Como
vimos, essa idéia repercutiu na filosofia iluminista e em todos os projetos universalistas da
época (MORIN, 2003). No entanto, a teoria dos sistemas veio solapar o terreno plano e
protegido no qual a trajetória solitária traçada por Newton se apoiava, porque, quando os
44
princípios da mecânica são aplicados a um grupo, um conjunto de átomos, por exemplo, e
mesmo a homens e sociedade, a ciência clássica perde o poder prognóstico e sua vocação
determinista, pois o acaso, o ruído e a incerteza inserem-se nas teorias dos sistemas.
Na física, a idéia abertura ao acaso, ruído penetrou através da termodinâmica com o
conceito de sistema aberto, isto é, aquele que faz trocas com o ambiente e diminui a entropia
7
.
Abriu-se, nesse momento uma janela através da qual a física pôde divisar o ser vivo, e –
colocou-se entre a termodinâmica e a ciência dos seres vivos, uma ponte – o conceito de
organização - cuja peculiaridade reconhecemos quando o relacionamos com o meio interno e
externo, formados por outros sistemas. A partir da teoria dos sistemas, três direções possíveis
podem ser tomadas para a compreensão da realidade redução, holismo e complexidade
(MORIN, 2003, p. 30). As duas primeiras levam ao sistemismo, uma continuidade do
paradigma de disjunção, isolamento e simplificação. O holismo enxerga as relações entre os
sistemas de maneira linear, e o reducionismo se fecha na determinação exclusiva e encarcera
as causas numa dada área do conhecimento. A terceira direção é criativa e inesgotável, diz
respeito aos sistemas complexos e ao conceito de auto-organização: simultaneamente aberto
para as informações que retira do ambiente e fechado no para si.
Enquanto a estrela encontra o seu alimento em si própria e o turbilhão é alimentado
pelo fluxo onde se forma, o ser vivo, mesmo o mis passivo, alimenta-se a partir de
mecanismos de captação e transformação da energia exterior, e o animal desenvolve
estratégias e actividades inúmeras para procurar o seu alimento e apropriar-se dele.
Enquanto a distinção entre os seres físicos e o seu ambiente se estabelece por um
limite de facto, os seres celulares mais humildes produzem e organizam de modo
7
O segundo princípio da termodinâmica apontava para o esgotamento do sistema e a tendência para a desordem
– entropia –, mas notou-se que, de acordo com a quantidade de informações que o sistema fosse capaz de
absorver, o processo de desgaste era revertido, reorganizando-se.
45
permanente uma membrana-fronteira, de constituição particular, que filtra as trocas
materiais com o ambiente, seleciona o assimilável, opõe-se ao inintegrável ou ao
desintegrador.
(MORIN, 1989, 146).
Foi na biologia, a partir da década de 1920, que o pensamento sistêmico se implantou,
apresentando uma concepção dos organismos como totalidades integradas, conexas,
relacionais e contextuais. O todo possui propriedades que não podem ser isoladas ou pertencer
às partes separadamente; o organismo não é uma simples soma de peças; portanto, o método
analítico é improdutivo para a compreensão dos sistemas vivos. Assim, o pensamento
sistêmico trouxe mudanças significativas para a ciência: focou sua atenção na totalidade e nos
diferentes níveis que ela apresenta, isto é, considerou os sistemas dentro de sistemas e as
propriedades de cada um dos níveis como emergências. Nas décadas de 1950 e 1960, essa
abordagem sofreu uma recessão por conta do empenho no mapeamento genético num retorno
do pensamento mecanicista (CAPRA, 2006).
O termo “sistema” pode ser entendido como “organização de partes diferentes num
todo, estabelecendo injunções sobre partes e produzindo qualidades próprias ou emergências”
(MORIN, 2002, p. 163). É A auto-organização é um processo de aumento de complexidade
estrutural e funcional que resulta de uma série de desorganizações (informação, ruído,
ambigüidade, conflitos, incoerências, crises) e são acompanhadas por maior nível de
variedade e menor redundância (repetição) da organização anterior. Sistema e auto-
organização mostraram que não há simplicidade na ordem do vivo (seja uma bactéria ou o
homo sapiens) e introduzem nas ciências o conceito de complexidade, que fomentou reflexões
e uma série de questões: “A porta está, desde então, aberta para uma teoria dos sistemas auto-
eco-organizador” (MORIN, 2003, p. 33). A teoria dos sistemas biológicos entende que o todo
46
não é a soma das partes, mas uma noção ambígua – nem real, nem formal – de causalidade
não linear e transdiciplinar, capaz de transpor barreiras levantadas entre as áreas do
conhecimento.
Há diferenças marcantes e facilmente detectáveis entre sistemas artificiais e sistemas
naturais. Nestes há uma relação intrínseca entre ordem e significação e a inter-relação dos
diferentes sistemas permeados por ruídos. Nos sistemas artificiais, a desordem e o ruído
podem levar ao esgotamento do sistema, mas os sistemas naturais respondem às crises com
auto-organização e reorganização do sistema. Com isso, ganham em complexidade, que está
para os sistemas naturais na mesma proporção que complicação está para os sistemas
artificiais. Complexidade é uma desordem aparente ou “uma ordem cujo código não
conhecemos” (ATLAN, 1992, p. 67), relacionada ao aumento de informação e à passagem de
nível do elementar ao englobante no modo da reorganização. Assim, a complexidade pode
também ser definida pela capacidade do sistema de trocar e aumentar informações, de
absorver crises, ruídos
8
, contradições do ambiente, de integrar o novo e de realizar processos
de auto-organização.
É necessário incluir nas ciências sociais o conceito de complexidade, a partir do que as
eternas questões que o homem faz à natureza poderão ser formuladas em novos termos, sob
outros pontos de vista. O termo complexidade gera equívocos, paixões e ódios que
escamoteiam sua importância. Antes de aderir à idéia de pensamento complexo, é preciso ter
claro seu significado e possibilidades de uso, evitando a falácia, a falta de sentido, os maus
entendimentos, as mutilações, os equívocos e a transformação desse modo de pensar em uma
8
Termo cunhado em teoria da comunicação que denota perturbações aleatórias que interferem na mensagem,
desorganizando-a.
47
panacéia que carregue os mesmos vícios e auto-enganos do modelo paradigmático anterior.
Não se pretende firmar um novo dogma, uma nova teoria, uma nova cegueira. Complexidade
não é um conceito-solução, mas um conceito-problema, que apresenta, antes de mais nada,
um desafio ao pensamento (MORIN, 2003), visto que é um conceito multidimencional, um
tecido, religações de conhecimento, uma polifonia de idéias.
O pensar complexo associa o objeto ao ambiente, ao observador/sujeito; o objeto é um
sistema que desintegra o simples e, por incluir a contradição, abala as bases seguras e
protetoras do ser do cientista; mexe com sua posição cômoda e “neutra”, interfere em sua
auto-imagem, coloca-o como produtor e produto de um conhecimento, de uma cosmologia, de
uma história que não são únicas, nem eternas, nem melhores, nem definitivas. Mas
complexidade não é completude, pois o conhecimento não estará jamais completo; não há
onisciência,; é a compreensão de que a contradição intrínseca de todas as coisas não significa
que sejam irreais; ao contrário, essa contradição é sua realidade mesma.
Complexidade não é uma teoria ou qualquer tipo de dogmatismo, também não é uma
técnica que, a qualquer custo, força o fenômeno na fôrma e, caso seja impossível fazê-lo,
prefere eliminar o incômodo desqualificando-o como fenômeno científico. Foi assim que as
explicações do imaginário perderam força, dividiram-se em partes, detalhes e áreas,
solapando sua força auto-explicativa. A complexidade inclui ordem, desordem, organização e
desorganização no segundo princípio da termodinâmica. A partícula, de acordo com a
mecânica quântica, não é simples, a vida não pode ser explicada pela simplicidade, nem pela
trajetória linear da física newtoniana; supõe a confusão, o caos, a incerteza, a contradição, a
dialógica, unitas multiplex. Complexo não é oposto de simples – a palavra traz uma idéia
48
equivocada de oposição à simplicidade, são aparentemente contraditórias, mas na verdade são
complementares, pois a complexidade inclui o simples.
Complementaridade e ligação de extremos não significa que um lado esteja errado e
outro certo; eles se unem para dizer alguma coisa, exprimir um paradoxo
9
. O medo do
antropólogo, decorrência de seu apego aos saberes institucionalizados, à sua “tradição”
científica, à sua onipotência e ao poder que lhe foi atribuído pelo modelo cartesiano, pela
herança das certezas da ciência clássica, do mito do progresso, está expresso nas escolhas do
método – os critérios de seleção e coleta de dados –, da literatura, dos marcos teóricos, no
comprometimento do olhar. A exclusão da reflexão filosófica do centro da ciência resultou na
ausência de conhecimento sobre si mesmo, seja como indivíduo ou instituição. Quem não se
reconhece como produtor foge da responsabilidade sobre a produção. Essa “neutralidade” é
justificada por uma racionalidade cega, fundamentalista e intempestiva, que prefere descrever
a interpretar, apontar a compreender. A seqüela é a banalização da diferença triturada nos
detalhes infindáveis que encobrem as similaridades. As escolhas antropológicas privilegiam o
exótico e incentivam a estranheza
10
. O universal dilui-se, a compreensão afasta-se na
generalidade, a antropologia se hiper-especializa, se fixa nas particularidades e reafirma o
relativismo, estabelecendo-se como ciência do outro e não como ciência do homem.
Quando o pensamento complexo evoca a religação dos saberes, chama para o centro
da ciência a reflexão filosófica e as disciplinas ou objetos. Reintroduz o produtor do saber
como o representante de um ponto de vista entre outros e, por isso, se faz necessário o auto-
conhecimento, isto é, o “levantamento”, o conhecimento, a consciência do contexto em que
9
Uma redundância que não diz nada.
10
Isso ocorre também com a história? Discutiremos no capítulo seguinte.
49
esse conhecimento foi produzido e sobre que bases se estabeleceu. “Psicanalisar” o cientista
incomoda, é um enfrentamento das limitações, mas pode colocar à superfície o fato de que as
dificuldades da antropologia estão na postura do antropólogo, porque ele utiliza as teorias que
não são imparciais e tendem à redução desajeitada.
A ciência é redutora, mas pode ser animada por uma razão aberta ou fechada
(MORIN, [198?]), pode ser incentivada por uma guerra pela hegemonia do pensamento ou
pela religação dos saberes. A escolha por uma dessas vias parece ser a questão primordial das
ciências sociais, dificuldade agravada pela característica interpretativa de seus saberes. A
hegemonia do pensamento impede a apresentação de pontos de vista diferentes. As áreas do
conhecimento perdem a criatividade, se não abrirem o diálogo entre si ou se não confluírem
com outros saberes, práticas científicas ou tradições. Correm o risco da verborragia,
estrangulam os conceitos até que percam a significância. O cientista funciona como máquina
de pensar, não sendo sua reflexão autêntica, mas uma correspondência neurótica entre aquilo
que observa e os quadros teóricos que adota. O pesquisador não reconhece a contradição,
vítima da racionalidade mecânica que o cega, não se percebe como sujeito e objeto do
conhecimento; a categoria cientista se sobrepõe à categoria humana que interpreta. Essa
infantilização do pensamento científico leva ao sectarismo e à luta, antecipadamente perdida,
contra o “erro”, que pode se transformar em luta contra o dominador, a exploração, a favor do
elo mais fraco do conhecimento, numa busca romântica que esconde uma postura perigosa,
irrefletida. A postura romantizada no cientista pode operar contra aqueles que ele pretende
proteger. Ecos da idéia de progresso que discutimos podem estar presentes hoje, quando o
pesquisador desclassifica o conhecimento do povo que estuda, privilegiando o saber
50
científico. O problema é transferido pelo foco de interesse da sociedade que impõe seu saber,
mas a hierarquia permanece, o saber privilegiado do ocidente se mantém como único e
verdadeiro. De uma forma ou de outra, o ponto de referência é a sociedade do antropólogo.
A organização dos saberes científicos, a racionalidade cega e o descontrole no
conhecimento são as marcas do pensamento advindos dos princípios paradigmáticos
simplificadores do ocidente: generalidade, redução e disjunção. Além disso, destaco a
eliminação da irreversibilidade temporal, do acontecimento histórico, a causalidade linear, o
princípio exclusivista de ordem e o de disjunção, que levam ao isolamento do objeto, do
sujeito e dos saberes e à eliminação do ser, que é privado de autonomia e de contradições.
A lógica da complexidade é uma simbiose/associação/combinação de duas lógicas. A
dialógica evoca a dialética hegeliana, mas vai além desta, uma vez que não é monista, não
elimina o caos. Pelo contrário, une, junta o que está separado: razão e mito, identidade e
mudança, imagem e analogia, metáfora e metonímia; não se submetem à mecânica
determinista. A lógica dialética contribuiu com a relação entre o contraditório e a geração
sintética da transformação. Apesar de mais complexa que a lógica formal, ainda assim é uma
lógica ternária (MORIN, [198?], p. 231) que reduz o papel do negativo no processo. A
recursão, por sua vez, evoca a ausência de linearidade na relação causa–efeito e faz emergir
novas propriedades. A causa é simultaneamente o efeito, e este pode se tornar causa. A
recorrência é um processo que requer seus produtos para acontecer. Veremos mais adiante
como o tempo complexo é capaz de esclarecer a relação recursiva causa–efeito e como este
fenômeno está presente em todos os níveis da realidade. O holograma está associado à
indissociabilidade entre a parte e o todo.
51
Dessa tríade decorrem as máximas do pensamento complexo, afirmações-guias,
ponteiros da reflexão: o conceito de universal não é suficiente. São necessários seu
contraponto e sua diversidade para enriquecê-lo. A irreversibilidade não pode ser um
epifenômeno; nas ciências sociais, deve ser o conceito integrador, que faz da história o
componente básico de todas as descrições e explicações. Objeto e sujeito devem estar unidos,
inclusive em relação de causalidade mútua, isto é, inter-relação; reconhecer a noção de
autonomia e compreender que, junto, vem a noção de dependência, por isso a necessidade de
uma teoria do sujeito. Por fim, e não menos importante, a noção de organização como
princípio fundador da dialógica ordem–desordem–interação–organização.
Enquanto para as relações lineares de causa e efeito os princípios binários são
compatíveis e eficazes, na complexidade não há lugar para as dicotomias. Não se trata, porém,
de uma escolha entre ordem e desordem, nem significa que um termo elimina o outro. A
importância da desordem aumenta, mas a ordem não é eliminada. Em contrapartida, há o
elemento de trânsito, movimento, ligação: a organização. A explicação de um fenômeno não
pode ser reduzida à ordem ou à desordem, mas faz interagir ordem–desordem–reorganização.
Isso é negar o pensamento aristotélico ou é apenas estabelecer os contornos dos diversos
níveis de ocorrências dos fenômenos? Não se trata de trabalhar com os opostos antagônicos
ordem–desordem: pensar complexidade significa cogitar os fenômenos como sistemas
abertos, em que acaso e determinação atuam simultaneamente circunscrever as classificações
definitivas e a causalidade linear em casos específicos. Na complexidade há lugar para as
incertezas, os sistemas se comunicam em todos os níveis – genético, químico e informacional
–, e esse intercâmbio compreende ruído e interferências. Portanto, o trajeto entre emissor e
52
receptor não linear, nem previsível. O objeto científico deixou de ser uma coisa e passou a ser
uma relação entre coisas às quais as concepções da ciência se reúnem na forma de
macroconceitos que incorporem a contradição.
1.2.1. A cultura e as culturas
A crítica do conhecimento como produto cultural de uma sociedade, isto é, inserido
num contexto, com objetivos e circunstâncias delimitados, incorporação das tensões internas e
crises, leva em conta que a ciência não vai dar conta de tudo, mas pode captar, em algum
instante, algum aspecto da realidade. A nova antropologia não será encontrada atualizando
teorias, dando outra forma a velhas teorias, apresentando novas explicações, nem fazendo
novas perguntas, mas abrindo para novos olhares, que vejam a complexidade onde só havia
determinações.
Tomemos o termo “cultura”, cindido desde suas raízes em uma dupla implicação. A
primeira, originária do contexto iluminista e revolucionário francês, atribui-lhe proximidade
com o pensamento universalista. A segunda, afinada com os primórdios do nacionalismo
alemão, tem uma tonalidade particularista. Na etnologia nascente no final do século XIX e
início do XX, essa cisão tomou uma importância fundadora: o termo cultura e sua acepção
universalista ou particularista – a cultura e as culturas – desenharam o contorno das
polêmicas, discussões, contradições e refutações das escolas antropológicas e foram reduzidos
à dicotomia evolucionismo x culturalismo. Essa bipolarização, com seus eventuais defensores,
trouxeram menos vantagens para a antropologia, uma vez que cortou a troca de informações e
53
evitou a conciliação entre as posturas que aparentemente se opunham. Um injustiçado dessa
polêmica foi Lévi-Bhrul (1852-1950), cuja proposta, mais próxima da complexidade cultural
e humana que a de seus contemporâneos, foi colocada à margem e desvanecida, porque não só
foi construída sob um prisma linear e sucessivo como continua a ser interpretada assim.
O sentido particularista da cultura teve seus mais apropriados representantes surgidos
da antropologia americana, dita “culturalista”
11
: trocas culturais, aculturação, enculturação,
funcionalidade, atendimento às necessidades básicas, ordenação da vida social, padronização
do comportamento individual e modelo educacional. Em todas essas concepções a cultura é
considerada irredutível à natureza e a ela se contrapõe, pois esse conceito nasce e se impregna
dos conteúdos, visões e crenças que o século XVIII, ou seja, nesse contexto a cultura
relaciona-se com ações empreendidas pelos detentores do saber, com o objetivo de trazer os
outros (nomeadamente aqueles que não partilham desse repertório específico da cultura
européia) para o terreno firme da civilização e do abandono da barbárie. Isso se refere aos
negros, índios, camponeses, orientais, enfim, as outras culturas que deveriam ser submetidas à
razão para a construção de um mundo melhor. Portanto, educação e socialização eram
palavras de ordem para exprimir a vocação civilizatória da sociedade européia, que cunhou o
conceito de cultura como “fábricas de ordem” (BAUMAN, 1998), apoiadas na previsibilidade
e no controle.
A justificativa para tal empreendimento baseava-se na procura inquestionável da
universalidade pelo humanismo europeu através da eliminação das diferenças. Muitos pontos
referentes a essa ação – a história universal, as etapas obrigatórias pelas quais a humanidade
11
Dentro do culturalismo, encontram-se várias linhas de pensamento e diferentes definições de cultura.
54
chegaria aos patamares mais elevados do progresso, e a hierarquia – sucumbiram ao tempo,
enquanto outros permanecem implícitos na definição de cultura e reaparecem em diferentes
momentos do passado da antropologia. A cultura estabelece uma ordem em contraposição ao
caos; em outras palavras, dá coerência e sentido a aspectos contraditórios e conflituosos da
realidade, reproduz a si mesma de maneira uniforme e nomotética, podendo, assim,
desempenhar um papel determinado pelas necessidades humanas e apresentar uma estrutura
ordenadora. Por esse critério, a cultura entendida como “ordenador da sociedade e fabricante
de indivíduos afinados com sua organização” não dá lugar para o acaso, as dissidências, o
caos e a mudança. Quando esses aparecem, discute-se a desagregação da sociedade, a perda
da identidade, o conflito entre culturas, a crise cultural – todos referências a mudanças
degenerativas.
Por outro lado, as definições de cultura das escolas americanas, já adentrando o século
XX, têm em comum a visão particularista e, como vocação, o reforço do relativismo cultural e
a confirmação da existência de infinitas formas de viver. Franz Boas (1858-1942) considerava
tanto as diferenças individuais como as características universais da natureza humana, mas
seus seguidores tomaram a verdade de uma proposição como eliminadora da outra. É o
pensamento dualista, acorrentado na redução a um termo ou a outro, manifestando-se
sorrateiramente no pensamento científico. Nessa linha, se a cultura é um dado marcante das
sociedades e dos indivíduos, a natureza deve ser eliminada como componente do humano,
cujos fundamentos devem ser buscados: trabalho, sociedade, representação e linguagem
passam a ter seus defensores e opositores. O resultado é o esfacelamento da totalidade do
homem nas diferentes áreas do conhecimento e sua compreensão refém de teorias eternizadas.
55
Na França não mobilizada com a antropologia cultural, Claude Lévi-Strauss apresenta
um sério, refletido e pertinente contraponto às particularidades das culturas. De vocação
universalista, o estruturalismo busca os invariantes culturais dos quais se estabelecem os
modelos universais da cultura como produção humana. Lévi-Strauss se rebelou contra essa
acepção de cultura, mas, conforme aponta Carvalho (2003a), é uma das três reduções mal
compreendidas da antropologia. O estruturalismo de Lévi-Strauss colocou a cultura como
uma não-totalidade em processo constante de estruturação impulsionado pela capacidade
humana de separar, classificar e opor, por meio da qual manipula possibilidades de realidade,
explicação, representação e que não tem nenhuma função, nem necessidade básica nenhuma a
atender. Junto com o marxismo, que pressupõe amplos processos históricos, são as duas
reduções que jogaram a antropologia sob o domínio da descrição densa.
O relativismo despontou nas duas primeiras décadas da segunda metade do século XX,
privilegiando as culturas e o detalhamento de suas formas, enquanto a cultura foi colocada em
segundo plano. Um exemplo do enclausuramento do pensamento antropológico nesse tipo de
círculo vicioso é o visivelmente elevado número de teses e dissertações que tomam a obra de
Clifford Geertz como principal referência teórica (ALMEIDA, 2001). Esse autor privilegia a
idéia de cultura como um “sistema autônomo de idéias e valores hegemônicos implícitos em
todos os indivíduos do grupo” e que deve ser aplicado à análise/interpretação de caso
(KUPER, 2002).
Mas ainda há uma terceira redução, representada por Morin e o pensamento complexo,
que busca a universalidade sem excluir a diversidade. Ela ocorre a partir da retomada da
56
dimensão humana na antropologia. De caráter anti-relativista, procura recuperar a
universalidade humana sem negar a diversidade:
A antropologia, depois de ter crido que o espírito ocidental era a realização de toda a
racionalidade que podia servir de medida ao atraso das mentalidades e das culturas
‘primitivas’, empenhou-se num auto-exame e numa autocrítica onde o antropólogo é
levado a relativizar o seu próprio ponto de vista para tentar conhecer o
antropologizado e, mais largamente, o antropos.
(MORIN, [198?], p. 237).
O que nos torna humanos? Ou, de acordo com os preceitos da filogenia, quando os
ancestrais humanos se divergiram dos nossos parentes mais próximos? Pergunta fácil de fazer
e difícil de responder. Quantos ossos ainda são necessários para uma resposta e, ainda, quais
seriam os critérios de proximidade morfológica? O evolucionismo biológico apresentou duas
perspectivas: a longa, darwiniana, que se apóia em grandes diferenças, e a curta, centrada nas
similaridades, defendida por T. H. Huxley (1825-1895) (FOLEY, 2003, p. 74). Na verdade, o
que importa é destacar que os registros fósseis dependem das características enfatizadas para a
sua interpretação: a fala, os sepultamentos, o andar ereto, os utensílios de trabalho, o tamanho
do cérebro. A unidade humana verificada geneticamente hoje comporta uma diversidade do
tornar-se humano: os neanderthalenses, que teriam vivido contemporaneamente ao homem
moderno, tinham grandes cérebros. Esses dados conflitantes fazem com que a evolução linear
seja difícil de ser defendida. Os cinco milhões de anos que ligam os grandes macacos aos
humanos modernos não são lineares. Entre eles encontramos os hominídeos – homo erectus,
homo ergaster –, que nos falam dos vários caminhos tomados pela espécie até chegar ao
homem moderno. A discussão sobre o mais apto, o mais evoluído, o elo perdido, o antecessor,
o descendente é vazia.
57
Qual o fundamento, se é que há algum, que nos torna o único animal capaz de
transmitir conhecimento de geração em geração e preservar, mas também modificar e
transformar a cultura? A resposta a essa pergunta não é simples e pode ser colocada com o
fim de nos desvencilhar tanto do reducionismo genético como do relativismo cultural. Pela
etologia, pode-se perceber como a linha demarcatória que separa a natureza da cultura é uma
abstração que pode ser demonstrada pela dificuldade de encontrar o elo perdido, mesmo
tomando-se como critério um rigoroso determinismo genético. Porém, se não somos os únicos
espécimes a desenvolver sociedade e produzir cultura, somos ao menos os mais flexíveis e
com maior plasticidade cerebral, pois não há limites para a capacidade humana, a não ser o
nosso próprio fim: “só nos deteremos frente ao imutável”, escreveu Bergson (2005, p.8), e
caminhamos construindo nosso caminho, por isso o conhecimento é inesgotável.
Há seis milhões de anos, desde que se separou da via de hominização, o chimpanzé
não sofreu nenhum tipo de mutação, enquanto o homem percorreu um longo percurso. Um
longo processo evolutivo separou humanos e chimpanzés que apresentam, de acordo com as
análises de DNA, 99,4% de semelhança. Uma pequena diferença genética que significa uma
grande diferença se levarmos em conta a aparência, linguagem, capacidade cognitiva,
adaptabilidade e desenvolvimento da cultura. Esse abismo evidencia a dificuldade que o
conhecimento fragmentado, a simplificação, o isolamento do objeto e a linearidade causa-
efeito não pode absorver. As disparidades entre homens e chimpanzés são difíceis de ser
explicadas pelo paradigma de oposição natureza–cultura. A diversidade cultural humana é
grande e merece ser conhecida e catalogada, mas não é tudo e não pode ter precedência à
universalidade. Não é saudável o apego ao primado da cultura, pois ela não pode ser reduzida
58
a nenhum dos seus elementos materiais ou ideais. É impossível determinar o ponto crítico em
que a cultura humana se distancia da biocultura dos chimpanzés. Não há um ponto demarcado
em uma trajetória isolada linear que possa ser identificado como o marco de separação entre
natureza e cultura. O homo sapiens é 100% natureza “e” 100% cultura.
As diferenças culturais não podem ser motivo para apagar a irmandade humana. A
humanidade pode ser definida por sua capacidade de variar culturalmente? O que é válido
para a diferenciação das espécies pode ser aplicado às diferenças culturais? “O tema central
da evolução não é o progresso, mas a diversificação” (FOLEY 2003, p. 134), e a compreensão
da natureza humana não é refém dos dualismos e fragmentações. Se as diferenças entre
humanos – decorrentes de fatores ambientais, escolhas coletivas e individuais, catástrofes,
flagelos, erros e acertos de seus líderes, reis, generais e sacerdotes – não apagam o universal
humano. Então, é imprescindível um novo olhar a esse afastamento ontológico. A cultura é
um dado de suma importância para a compreensão do humano, mas o seu primado sobre o
homem oculta a complexidade dessa relação.
A ciência se funda na explicação dos fenômenos via suas causas. As ciências sociais
apresentam dois modelos de explicações “causalistas” (CASTORIADIS, 1982). O primeiro é
aquele que reduz os fundamentos da sociedade e do indivíduo à biologia mecanicista, à
genética e às necessidades básicas, levando a uma cegueira, a um encilhamento do
pensamento, a uma prisão dogmática e doutrinária enrijecida pelo determinismo simplista. O
segundo modelo – o logicista – atribui às operações lógicas inerentes ao pensamento humano
as explicações para a diversidade das culturas. Ele postula que as sociedades são diferentes
porque são iguais, uma vez que cada uma toma seu meio para criar coisas diferentes a partir
59
de um patrimônio comum, seja ele genético, estrutural ou comportamental da espécie. Esse
modelo é importante quando possibilita a aproximação de áreas sucessivas da ciência, mas
ainda deixa dúvidas sobre de que forma “a questão das sociedades e da história é
essencialmente questão da natureza e da origem das diferenças” (CASTORIADIS, 1982, p.
206), e é incômodo pensar que são irrelevantes as modificações e produções das sociedades
ocorridas no tempo, que se pode dispensar qualquer operador de mudança, pois significa que
as sociedades que estudamos estão condenadas a repetição de si mesmas, sem escolhas, sem
caminhos alternativos, sem participação em seu próprio destino.
As causas existem, mas não podem ser reduzidas ao indivíduo, à sociedade, à
natureza, à cultura. As ciências sociais preferiram ignorar como a hiperestrutura lógico-
racional que estudam é um produto da história (como acontecimento social) e do tempo
(como circunstância geral), já que o aparelho físico-biológico-químico do humano permite o
desenvolvimento da capacidade de produzir e reproduzir sua realidade, enraizada no
complexo corporal e na emergência do “social-histórico” (CASTORIADIS, 1982). Existe
uma história cósmica, biológica e cultural, mas essas mudanças de estado não são
compreendidas na sucessão dos acontecimentos, nem se dirigem a uma meta predeterminada.
A causalidade que fez surgir o efeito homo sapiens não é linear, e nenhum reducionismo
alcança os fundamentos do humano.
A cultura não é epifenômeno nem superestrutura e pode retroagir, isto é, construir o
homem que a produz. A linguagem toma seu sentido no interior de um sistema cultural, ao
mesmo tempo em que arquiteta esse sentido; é um sistema simultaneamente aberto e fechado;
submete e dá autonomia ao indivíduo: “a cultura é, no seu princípio, a fonte
60
geradora/regeneradora da complexidade das sociedades humanas. Integra os indivíduos na
complexidade social e condiciona o desenvolvimento da complexidade individual” (MORIN,
2002, p. 166).
A cultura é a grande emergência da sociedade humana. Retirado da física, o termo
“emergência” designa a propriedade ou qualidade superior da complexidade organizadora
resultante da reorganização dos elementos de um todo que não pode ser reduzida às
qualidades ou propriedades dos elementos isolados. A idéia de emergência é fundamental para
a compreensão da evolução não linear e, com uma nova visão do tempo, pode-se esclarecer
como isso se dá. Emergência e retroação estão ligadas ao tempo e à história, entendida como a
interação indivíduo – sociedade – espécie, a partir da qual acaso e determinação exercem a
mesma pressão em direção à evolução. Varela (2003, p. 102) define “propriedades
emergentes” como a capacidade de auto-organização dos sistemas, ou sinergética, e realiza
um belíssimo trabalho fazendo a ciência ouvir uma antiga tradição.
A referência a relações não lineares muda o campo epistemológico e abre fissuras
entre as áreas do conhecimento. Física, biologia e sociologia são áreas não sucessivas; no
entanto, o pensamento complexo possibilita compreender o processo evolutivo que atravessa
essas áreas para constituir um metassistema no qual o objeto está inserido de forma aberta,
contatado às diferentes disciplinas. Assim, o humano não é somente objeto da sociologia, mas
também da biologia e tem raízes na físico-química. O choro, a amizade, a guerra e a
organização social são multifiliados, demonstrando porque o tempo linear dos cálculos
matemáticos dificulta a compreensão dos fenômenos sociais e antropológicos.
61
As sociedades arcaicas
12
, homogêneas entre continentes, inclusive, eram organizadas
em bioclasses. Somente em cinco partes do globo essas sociedades enfrentaram contradições e
conjunções de acasos suficientes para transformarem-nas em sociedades de um novo tipo,
com um novo grau de complexidade, o qual corresponderia ao surgimento das sociedades
históricas que, no entanto, mantêm um núcleo arcaico de papel gerador/regenerador da
cultura. Os indivíduos dessas sociedades eram policompetentes. As sociedades históricas,
mais complexas com a instituição do Estado, a divisão social do trabalho e a apropriação dos
bens, se organizam em outro nível. Como um organismo vivo, a sociedade humana se auto-
organiza e se regenera a partir das trocas e comunicações entre indivíduos evoluídos, isto é,
complexos. A aptidão genética favorável do sapiens se encontra na sua plasticidade cerebral,
ser não-especializado que pode transgredir a especialização. A cultura é, portanto, aquilo que
traz desordem à ordem biológica. Não somente a genética, a adaptação ou a aptidão podem
explicar isoladamente as grandes mudanças de estado ocorridas a partir de pequenas
diferenças, assim como a diversidade cultural é produto emergente da interação sociedade,
ambiente, indivíduo, subjetividade, mediado não só pelo tempo dos acontecimentos
singulares, mas também pelas repetições. Isso significa que a sociedade humana é uma
unidade complexa com qualidades emergentes, entre elas a cultura, que retroagem sobre suas
partes individuais triúnicas, isto é, que comportam uma trindade humana sociedade – espécie
– indivíduo, em que cada elemento interage sobre o outro na forma de um anel recorrente, do
qual surgem organizações cada vez mais complexas.
12
Edgard Morin utiliza o termo arke – princípio, fundamento, origem – para denominar a sociedade da pré-
história sapiental, a arqui-sociedade, diferenciando-a da paleossociedade que se constituiu antes do sapiens.
62
É necessário “ultrapassar a alternativa simplória acaso–necessidade, ordem–
desordem” (MORIN, [198?], p. 88) e pensar o mundo como algo que emerge da interação de
elementos diversos, opostos, antagônicos, que não se eliminam, mas se relacionam. Cultura é
patrimônio gerador e regenerador e se diferencia em grau, e não em qualidade, da natureza.
Entre essas duas categorias não incorrem fronteiras, limites e linhas demarcatórias.
1.2.2. O tempo herdado
De Newton a Einstein, a ciência sofreu grandes transformações (PRIGOGINE, 1997)
e, por isso, não pode ser considerada a mesma que se desenhou no século XVII. Embora ainda
lhe restasse um ranço determinista e mecanicista, uma causalidade linear rigorosamente
submetida a leis, um caráter experimental ao extremo e racionalista, a noção de tempo estava
sofrendo um profundo abalo por causa das inovações científicas do século XX. Ainda que
tenham significado um importante passo na compreensão do cosmo e da natureza, a mecânica
quântica e a relatividade geral são teorias encilhadas pelo modo clássico e, portanto, ignoram
o tempo, seja pela instabilidade das partículas elementares, seja pela subjetividade do
observador. Em ambos os casos, o tempo é caracterizado pela reversibilidade (onda–partícula)
e pela determinação (da subjetividade, ignorância ou imprecisão do cientista).
É impossível discutir o tempo em geral, pois somos enredados num retroalimentador
da ilusão básica do pensamento herdado e da confirmação da lógica conjuntista-identitária
(CASTORIADIS, 1982): ou se nega a história como ação do tempo ou se cai na determinação
radical. Mas é possível analisar a forma como uma dada sociedade institui o seu tempo, como
63
interpreta, institui, convencionaliza, percebe e valoriza um dado natural. Pensamos
principalmente na nossa sociedade que funda a ciência, a antropologia e a história.
Em toda e qualquer sociedade, a instituição do tempo é fundamental para que ela se
coloque no e para o mundo. Dá-se de formas infinitamente diferentes e nenhuma delas é
detentora de seu sentido final e único. No entanto, na abertura das ciências, o tempo pode
tornar-se o conceito complexo por excelência. Pretender definir o tempo seria cair na
armadilha da lógica conjuntista-identitária, e seria impossível fazê-lo sem lançar mão das
categorias consagradas e confinadas do pensamento herdado. Mas a reflexão sobre o tempo
está presente em praticamente toda a história da filosofia e do pensamento científico. “O
tempo é auto-alteração daquilo que é, que só é na medida em que está por-ser”
(CASTORIADIS, 1982, p. 226), e a história deve ser pensada por esse tempo, que o espaço
possibilita ser plural.
Não há lugar único para o tempo, mas diferentes temporalidades, por isso é preciso
recuperá-lo como complexidade. Não se trata de evocar o retorno de algo vivido, mas incluir
sua virtude criativa e regeneradora e sua multiplicidade. Pretendemos mostrá-lo como uma
dimensão que não se confunde com o espaço – é mais que um modo do lugar, é uma vivência
partilhada pela humanidade, que o institui de acordo com suas próprias fundações. A
descoberta da América, por exemplo, foi mais que a amplitude do espaço planetário, foi o
cruzamento de tempos e temporalidades diversas do qual ninguém saiu ileso. As
transformações ocorridas no mundo após e como efeito da exploração colonial, as relações de
dominação das populações autóctones, a interferência da cultura européia no modo de vida
desses povos e vice-versa, as indagações que circularam pela elite pensante européia a
64
respeito da universalidade humana, da liberdade e da escravidão, é exemplo de como as
relações são complexas e difíceis de serem explicadas de maneira linear.
O determinismo cego demonstra que o tempo não está sendo considerado na ciência.
Isto porque somente na atemporalidade alguma coisa é, foi e será sempre o mesmo, desde
sempre, a despeito das mudanças. A lógica identitária-conjuntista insiste em reduzi-lo à
espacialização, fazendo por perder sua magnitude engenhosa. Para que venha à tona a
criatividade do tempo, é necessário complexificá-lo (MORIN, 1987a) e liberá-lo da
espacialização. Se não for entendido como auto-engendramento da alteridade absoluta,
criação ontológica, o tempo é um nada, nulo, supérfluo, ilusório, repetição (CASTORIADIS,
1982).
No pensamento herdado, o espaço é mais importante, pois permite à pluralidade
ocorrer ao mesmo tempo: as determinações são diferentes e, portanto, iguais a si mesmas para
sempre. O lugar diferencia, o tempo é um incômodo. Assim, “só pode haver tempo se há
emergência do outro” (CASTORIADIS, 1982, p. 228) e “o tempo é emergência de figuras
outras” (CASTORIADIS, 1982, p. 228). No pensamento herdado, isso significa mudança no
topos. O tempo como linha apresenta o outro como pontos identificados pelo lugar que
ocupam no espaço, ou tempo universalizado (neste caso, o tempo é também outro lugar), e
não pela modificação interna, pelo surgimento de uma identidade outra à ação do tempo.
Nesse sentido o ser e o vir-a-ser é uma contradição, pois diz respeito a uma mudança ocorrida
no mesmo topos. Um eu, o ser, é abalado pela possibilidade de não ter uma imagem fixa á
qual se agarrar, pois aquele que reconheço como sendo eu mesmo, impulsionado pelo tempo
desespacializado é um outro.
65
Nos meandros do pensamento complexo, o tempo é um agente criativo que exerce
pressão interna e externa: cada elemento, objeto, vivencia seu tempo próprio e sofre a ação do
tempo do sistema de maior grau hierárquico. A presente referência ao cruzamento de tempos
como artífice de figuras novas se dá porque podem elas ser recompostas a partir das velhas
(determinação), com suas qualidades inéditas, criativas e emergentes, o que permite
reconhecer a simultaneidade das continuidades e das rupturas. O tempo que Castoriadis
(1982) define tem o sentido de alteridade e alteração, trata de figuras outras, sendo que outro
não pode provir de nada. A Divina Comédia é outra que não a Odisséia, a sociedade feudal é
outra que não a capitalista, embora outro advenha de um – criação que a filosofia já advertira
não poder vir do nada.
Trocando em miúdos, não há nada novo para o pensamento herdado. A sua intelecção
é marcada pelas experiências do passado, o homem só pode criar a partir daquilo que já
existe, a partir de alguma coisa existente. Isso cai em contradição com o fato de que as
verdadeiras formas sejam imutáveis, incorruptíveis, daí a tensão entre o totalmente novo e a
repetição. O objetivo deste trabalho é mostrar como o novo emerge da interação de elementos
“velhos”, em outras disposições, a partir de outras atitudes, comportamentos: “a ‘finitude’ do
homem significa isso e unicamente isso; que ele não pode fazer existir um elétron a partir do
nada (...) todo o resto, que ele faz ser a partir do nada, não conta; a norma de ser, para esses
filósofos não materialistas, é um grão de areia” (CASTORIADIS, 1982, p. 236).
66
1.2.3. O tempo reencontrado
A mecânica clássica descreve trajetórias deterministas, reversíveis e estáticas, um
sistema onde a relação causa e efeito é estabelecida de maneira linear, descreve um mundo em
que as transformações se reduzem ao movimento da matéria no espaço e que, a partir do
conhecimento das variáveis (tempo, espaço, velocidade, aceleração, atrito) implicadas num
dado momento, é possível reconhecer de um objeto qualquer localização na trajetória, para
trás ou para frente. Isso significa uma lei de reversibilidade e determinação, com passado e
futuro se equivalendo e desempenhando “o mesmo papel, isto é, absolutamente nenhum”
(PRIGOGINE, 1997, p. 149). Uma continuidade infinita do mesmo para o mesmo ser, ou seja,
um universo marcado pela eternidade
13
.
No entanto, se ela é válida até hoje para uma considerável parte dos fenômenos, sofreu
abalos a partir dos caminhos traçados pela termodinâmica clássica e pela teoria da evolução
de Darwin. Ambas são áreas do conhecimento em que o tempo é um dado fundamental, e por
intermédio das quais a complexidade é introduzida no pensamento científico. Na primeira, o
tempo é associado com perda e desperdício; a flecha do tempo leva para o fim e a desordem.
A evolução darwiniana introduz a mudança que ocorre no tempo, mas é incapaz de considerá-
lo um operador de mudança – apenas uma medida do período de mudanças, até alcançar a
forma que se pretende estudar no presente. As mudanças seriam decorrência de operadores
externos, tais como modificações no ambiente.
13
Conforme a ciência do século XVIII, também o vivo é estudado por intermédio desse modelo mecânico,
reduzindo o corpo à engrenagem e funcionamento de suas partes.
67
Apesar de a sucessão de estados no tempo como seqüência de pontos equivalentes até
o infinito ter correspondido muito bem com a física de movimentos simples e invariáveis dos
engenhos, da indústria, das máquinas, dos sistemas estáveis, ela era limitada. A realidade
apresentava aspectos não alcançados pela previsibilidade desses sistemas. A biologia não era
capaz de explicar o que é a vida (CAPRA, 1992), embora tivesse apresentado muitos modelos
reducionistas de surgimento da vida. Tinha início a crise da concepção mecânica-materialista.
Impulsionada pela Revolução Industrial, a termodinâmica, a ciência do calor, trouxe
para a física a irreversibilidade do tempo e um objeto complexo, pois a questão da propagação
do calor não se reduz às interações dinâmicas: “o fluxo de calor entre dois corpos é
proporcional ao gradiente de temperatura entre esses dois corpos” (PRIGOGINE, 1997, p.
84). Surgia, então, um novo ramo da ciência que não partilhava do cálculo linear das equações
newtoniana. À lei universal da gravitação foi acrescida a variável “calor”. Enquanto a
gravitação age sobre a massa inerte, o calor a transforma. Não se tratava, pois, apenas de
mudança de posição, mas de estado, do surgimento de novas propriedades da matéria. Ao
equilíbrio dinâmico, juntava-se o equilíbrio térmico.
A dinâmica considerava os corpos isolados; a propagação do calor inserida como
variável para o estado da matéria surgia como dificuldade de coerência teórica nos moldes
newtonianos. A ciência do calor envolvia uma realidade mais complexa inserida num sistema
onde interagem 10
23
moléculas. O motor térmico não sofre o movimento, mas o produz
enquanto sofre uma perda de energia que só pode ser compensada com um segundo processo
(resfriamento), e não com a simples reversão da operação.
68
É dessa forma que a irreversibilidade do tempo se insere na física e leva os
pesquisadores a se concentrarem na conservação da energia dissipada no momento em que o
calor é transformado em movimento. A termodinâmica introduziu e universalizou a
transformação numa ciência marcada pelo movimento, embora fossem mantidos alguns
aspectos da concepção anterior, pois a transformação da energia era entendida numa relação
causal linear. Para responder às questões da complexidade da natureza a termodinâmica
formulou a hipótese da dissipação de energia e evolução para a desordem. Foi esse ponto de
vista sobre o tempo - degradação e morte – que a termodinâmica de equilíbrio legou para a
ciência do século XIX (PRIGOGINE, 1996).
A irreversibilidade da termodinâmica clássica estava associada a perda, desperdício,
desordem, dissolução, mas deu um passo ao considerar seus estudos sob um objeto complexo:
grandes populações (moléculas) reunidas num sistema que sofre transformações térmicas de
estado, que se traduzem em movimento e geram um estado de não-equilíbrio, o qual, por sua
vez, evolui para um estado de equilíbrio, quando, então, cessa o movimento no esgotamento
da energia que se transforma até certo valor (entropia). Além disso, ela recoloca o tempo
como categoria fundamental de explicação, embora ainda restasse uma ação voltada para os
arquétipos antigos da homogeneidade, do equilíbrio e da morte.
69
1.2.4. As estruturas dissipativas
Os interesses científicos de Ilya Prigogine (1917-2003) sempre estiveram voltados ao
estudo dos fenômenos irreversíveis, que culminou na sua tese em 1945 – primeiro passo para
uma investigação iniciada em 1947 e que resultou na formulação do conceito de “estrutura
dissipativa” em 1967
14
. As condições que contribuíram para essa descoberta foram os avanços
da termodinâmica de não-equilíbrio, as equações evolutivas não lineares, os efeitos catalíticos
e a percepção de sistemas longe do ponto de equilíbrio.
Existem as estruturas clássicas de equilíbrio, que podem ser descritas em trajetórias
lineares de um objeto simples, cujos efeitos podem ser determinados por leis que traduzem a
perda de rendimento, a evolução para a desordem e para a degeneração. Contudo, existem,
também, longe do equilíbrio, estruturas que sugerem ordem e desperdício/dissipação de
matéria simultaneamente e, por isso, foram denominadas “estruturas dissipativas”. Não
correspondem ao tempo linear; quebram a simetria temporal e espacial, atuando para criar
novos sistemas, e são explicáveis por leis específicas.
14
Prigogine foi diretor dos Institutos Sovay de Física e Química em Bruxelas; Diretor do Centro Ilya Prigogine
de Mecânica Estatística, Termodinânica e Sistemas Complexos, em Austin, Texas. Autor de vários livros
acessíveis ao público em geral utilizados neste trabalho, além de outros dedicados aos especialistas da física e da
química. Recebeu o prêmio Nobel de Química em 1977 por suas contribuições à termodinâmica de não-
equilíbrio e pela descrição das estruturas dissipativas numa comunicação intitulada Structure Dissipation and
Life, tratada a fundo no trabalho Structure, Stabilité et Fluctuations, escrito em 1971 junto com Paul Glansdorf.
70
Essa teoria relaciona não-equilíbrio e não-linearidade com estabilidade e ordem, e
descreve sistemas abertos e auto-organizativos, que, desta forma, compreendem estabilidade e
fluidez, estrutura e mudança. Esse novo prisma utiliza-se dos conceitos de “flutuação” e
“bifurcação”. “Flutuações” são aberturas do sistema ocorridas a um nível infinitamente
pequeno, como ruídos ou interferências ligadas a acasos, que introduzem a incerteza, a
imprevisibilidade e a indeterminação. Esses eventos aleatórios resultam em “microescolhas”
de comportamento por parte dos elementos de um sistema, que apontam para um novo centro
atrativo. Esse fato se estabelece em sistemas após situação adversa, a partir da qual o nível
microscópico faz emergir uma transformação macroscópica ordenada; por isso, é também
chamado de “ordem por flutuações”. “Bifurcação” é a ocorrência dada num ponto de
afastamento do equilíbrio – pontos críticos de movimento retroativos das moléculas nos quais
as flutuações permitem escolhas, abrem janelas para a emergência de novos estados da
matéria (PRIGOGINE, 1990, 1992, 1996, 2001, 2002a; PRIGOGINE e STENGERS, 1997).
Levando-se em consideração, articulando e relacionando, os diferentes níveis de
descrição, as estruturas dissipativas são engendradas pelas flutuações externas e internas, as
quais ampliam, constituindo-se, assim, “a tradução singular dos fluxos que a nutrem
(PRIGOGINE, 1997, p. 134). Antes da degeneração do sistema num ponto de bifurcação, isto
é, num ponto onde muitas possibilidades se abrem, ocorre um momento de “escolha”
individual de cada elemento implicado (flutuação). Como essa “escolha” não pode ser feita
pelo conjunto, ela se estabelece numa região crítica do sistema (abertura, ruptura, desordem)
e, caso seja de tamanho propício para fazer emergir uma nova situação, invadirá o sistema,
criando uma nova organização, um novo estado da matéria. Isso é o que Prigogine denomina
“estruturas dissipativas”, uma ordem mais elevada que surge a partir da desordem, isto é,
fazendo emergir um novo “arranjo” coerente a partir de um momento especial de desordem
71
surgido no ponto de bifurcação afastado do equilíbrio. Decorre dessa “escolha”, que tanto
pode ser determinada quanto ao acaso, a não-linearidade do trajeto, uma novidade, supõe uma
história, mas não uma determinação histórica, uma lei que determine os rumos do sistema a
partir desse ponto.
Prigogine mostrou a existência de uma ligação física entre história e estrutura, pois o
novo estado de matéria decorrente das bifurcações caracteriza a passagem não linear das
macromoléculas para os sistemas vivos: é uma forma de organização supramolecular, não
derivada das propriedades de cada molécula, mas das forças de interação, retroação,
realimentação que se estabelecem entre elas, refletindo “intrinsecamente a situação global de
não-equilíbrio que lhes deu origem” (PRIGOGINE, 1997, p. 114). A importância da história e
a introdução das flutuações nos processos auto-organizativos longe do equilíbrio significam
que é entre o acaso e a necessidade que o novo chega; é entre flutuações e determinismo que
ocorrem situações imprevistas. Isso denota uma sensibilidade às estruturas dissipativas, “e, a
seguir, movimentos coerentes de grande alcance; possibilidade de estados múltiplos e, a
seguir, historicidade das ‘escolhas’ adoptadas pelos sistemas” (PRIGOGINE, 1990, p. 26). As
estruturas dissipativas implicam novas propriedades para o tempo: irreversibilidade, direção,
assimetria, criatividade.
As conseqüências da termodinâmica de não-equilíbrio e da descoberta das estruturas
dissipativas ultrapassam o campo da físico-química. Evolução, cosmo, vida, humanidade são
vistos sob novos ângulos, a partir de interpretações mais adequadas à complexidade dos
fenômenos e incluindo os rejeitados pelas ciências, aqueles que foram descartados pela
72
inconsistência que apresentavam diante das leis. São muitos os exemplos de ocorrência de
estruturas dissipativas no universo físico-químico, na hidrodinâmica, na biologia.
Este conceito/modelo permite compreender as transformações de uma macromolécula
responsável pela vida. O DNA contém toda a informação para sintetizar as diferentes
proteínas que compõem a estrutura celular e, através de uma reação em cadeia, ele “traduz” as
informações sob a forma de proteínas sintetizadas. Algumas enzimas retroagem para ativar e
regular, não somente a tradução, mas também o mecanismo de réplica do DNA, ou seja, causa
e efeito não se relacionam de modo linear.
A vida deve ter surgido na terra no contexto de uma rica mistura de ácidos aminados,
alcoóis, açúcares, lipídios, entre outros, submetidas a descargas elétricas. Entretanto, para que
isso fosse possível, os lipídios, por exemplo, deveriam estar fechados num invólucro. De
forma bem simplificada, isso significa que teria existido vida antes do código genético, antes
do aparecimento de células reprodutivas. No pensamento linear, apoiado na simetria temporal
e na oposição entre ruptura e continuidade, esse fenômeno tomaria a forma de um grande
vazio, uma região insondável, cuja explicação só seria possível com a descoberta de algum
elemento desse processo que daria a “resposta final”, um elo perdido.
Como o conhecimento usual, a ciência retém das coisas apenas o aspecto repetição.
Se o todo é original, arranja-se de modo a analisá-lo em elementos ou em aspectos
que sejam aproximadamente a reprodução do passado. Só pode operar sobre aquilo
que, por hipótese, está subtraído à ação da duração. Escapa-lhe o que há de
irredutível e de irreversível nos momentos sucessivos de uma história.
(BERGSON, 2005, p.32).
73
Um conjunto de moléculas, um sistema molecular, reconhece o tempo e a ação
entrópica, os nomes dados à distinção do antes e depois que sempre aumenta num sistema
isolado, mas estes são minoria no universo. As diferenças entre passado e futuro são
objetivas, evidentes e, desde sempre, perceptíveis ao senso comum. A dinâmica newtoniana,
entretanto, ignora, e “é por isso que, por mais que a vida evolua diante de nossos olhos como
uma criação contínua de imprevisível forma, sempre permanece a idéia de que forma,
imprevisibilidade e continuidade são puras aparências, nas quais se refletem ignorâncias
correlativas” (BERGSON, 2005, p. 33).
Embora existam leis físicas, o vivo é um estado que ocorre dentro de um ambiente de
instabilidade interna e externa. A determinação física e a dupla determinação biológica
explicam por que a matéria evolui rapidamente no universo nos primeiros instantes, e a vida,
lentamente: a instabilidade vinda de fora age diretamente, exige respostas imediatas; a
instabilidade que ocorre por dentro do sistema e simultaneamente na troca entre sistemas pode
resultar numa mudança de estado/qualidade/propriedade que emergirá lentamente. A questão
é que, diferente da máquina artificial, a vida permanece, trazendo novidades, soluções
criativas e regeneradoras, marcadas pela flecha do tempo, em meio à sua reprodução.
Novidade e coerência são palavras preciosas e é relativo a elas que o tempo da
complexidade, capaz de explicar fenômenos para além do determinismo das leis científicas,
pode ser colocado como um instrumento sensível nas análises sociais. A multiplicidade dos
tempos já foi introduzida nas ciências físicas (PRIGOGINE e STENGERS, 1997, p. 210);
74
agora, é necessário ser afirmada nas ciências sociais, por meio da história, da diversidade
cultural, da evolução. O tempo pode ser reafirmado também pela experiência do senso comum
e reconhecido como irreversível, reintroduzindo-se, assim, a importância do passado e
realizando-se a abertura para o devir. Dito de outra forma, o tempo é uma categoria complexa
que possibilita a discussão a respeito do determinismo, da liberdade humana e das incertezas
(PRIGOGINE, 1996).
Física e biologia se abriram para a complexidade do real, superando a dicotomia
ordem-desordem, pousaram um novo olhar sobre os fenômenos que estudam e romperam
parte das barreiras entre as ciências. O tempo linear e mecanicista construiu uma antropologia
apegada às culturas em detrimento da cultura e sua relação complexa com os homens. O
esforço de Ilya Prigogine para reaproximar ciência e filosofia mostrou que num tempo
complexo não há lugar para elo perdido, porque, a partir do ponto de bifurcação, quando são
realizadas as estruturas dissipativas, o sistema muda de estado. O tempo se introduz como um
operador cognitivo capaz de explicar a complexidade contida nas mudanças, na intervenção
do acaso, no irromper do novo.
1.3. O quarto olhar
Segundo a tradição budista, por volta do século VI a.C., num reino do norte da Índia
governado pelo clã Shakia (hoje parte do Nepal), um jovem que vivia no luxo e na riqueza,
totalmente poupado por seu pai, Suddhodana, de todos os males mundanos, cansado da vida
restrita do palácio, tomou contato pela primeira vez com as questões relacionadas com a
75
finitude e as fontes de grande angústia humana: doença, velhice e morte. Chocado com a
descoberta de que tanto homens ricos e poderosos quanto os mais humildes estavam
condenados a esse fim degradante, o príncipe Sidarta fez o voto de procurar, via intenso
treinamento, uma maneira de melhorar a condição de vida de todos os seres. Assim, auxiliado
por seu pajem, saiu de madrugada do palácio, deixando para trás o reino, a esposa e o filho
recém-nascido para viver com os ascetas e iogues das florestas, no afã de encontrar um
caminho para libertar a humanidade do sofrimento.
Chamou minha atenção nessa narrativa o fato de estarmos lidando com a existência de
um fundador humano para o budismo. Sidarta não foi um deus encarnado, embora existam
narrativas que se ancorem em elementos mitológicos e atribuem ao jovem príncipe um
nascimento extraordinário (AS TRÊS JÓIAS, 1994). A base do ensinamento budista está
atrelada à humanidade de seu fundador, que alcançou o estado de iluminação
15
por meio da
experiência individual e sistematizou seu conhecimento para transferir a técnica a seus
discípulos. Depois de passar vários anos meditando na floresta, alimentando-se dos frutos que
caíam no chão, das fezes de animais e bebendo água da chuva, ou seja, em extremo ascetismo,
o príncipe compreendeu que, para uma prática meditativa eficaz, tanto a austeridade
exagerada como o extremo oposto da luxúria e dos prazeres mundanos eram dispensáveis. O
caminho para alcançar a grande sabedoria estava no “meio termo”, experiência metaforizada
na tensão da corda de um instrumento musical: se for muito frouxa, não pode produzir um
som agradável ou não pode ser tocada; se estiver muito esticada, arrebenta. Essa experiência
nos indica que as antigas formas de conhecimento milenar da Índia haviam sido
transcendidas. O contexto histórico e social da região apontava para o surgimento de nova
15
Completa eliminação dos aspectos negativos da mente e realização de todos os seus aspectos perfeitos. É
também designada pela palavra “despertar”. Estado do ser em que se transcende a dualidade e se alcança a
unidade absoluta.
76
maneira de ser no mundo. Esse movimento inovador ocorreu em outros locais do planeta, mas
nenhum deles teve a organização, sistematização e expansão do budismo.
Sob uma figueira, Sidarta Gautama sentou-se na postura de meditação e, decidido,
prometeu a si mesmo não se levantar enquanto não alcançasse a iluminação. Várias vezes foi
tentado por todos os meios: lindas mulheres, demônios terríveis, exércitos agressivos. Nada,
nem o desejo, o prazer, o mal-estar, o medo, a raiva ou a soberba, demoveram-no de seu
objetivo. Beleza e feiúra, felicidade e tristeza, encanto e desencanto eram somente ilusão,
meras aparências produzida pelo ego. A verdade que ele buscava, e encontrou, estava além
dessas manifestações passageiras.
Girar a Roda do Dharma
16
é o termo empregado pelos organizadores para definir os
três ciclos de ensinamentos orais que o então Buda, isto é, o Desperto, o Iluminado, transmitiu
a seus ouvintes e seguidores. No primeiro giro da roda do dharma, também conhecida como A
verdade como ela é, que, segundo a narrativa, ocorreu no Parque dos Cervos em Varanasi
(Benares, Índia), uma cidade situada perto do rio Ganges, o Buda promulgou as Quatro
Nobres Verdades, O Caminho Óctuplo e os textos Vinaya
17
.
As quatro nobres verdades, base do ensinamento budista, são: a verdade do sofrimento
(duhkha), da origem do sofrimento, que o sofrimento pode ser cessado e que existe um
caminho para a cessação do sofrimento. A libertação do sofrimento acontece quando se segue
16
“Dharma” (sânscrito) significa “lei”, “ensinamento” e “proteção”, “verdade”, “como as coisas são.
17
Do sânscrito, escrituras que contêm as regras disciplinares do Hinayana.
77
o caminho óctuplo – absorção correta, disciplina correta, esforço correto, intenção correta,
subsistência correta, fala correta, visão correta o caminho das medidas justas. Entenda-se que
o termo “correto” aqui não significa o oposto de “errado”, mas a tradução do termo sânscrito
samyak, que significa completo (TRUNGPA, 1995, p. 103), isto é, sem subterfúgios ou
desculpas. O budismo inicia sua proposta apresentando um caminho ético como primeiro
patamar para alcançar um conhecimento verdadeiro. O estudo da temporalidade descoberta
por Prigogine, por outro lado, deságua na necessidade de uma postura ética, desde que sejam
compreendidas as implicações do tempo como operador de mudanças.
O inesperado num mundo determinado é a especialidade do budismo. A determinação
histórica ou social é provedora desses subterfúgios ou desculpas. Não há lei histórica,
condições sociais ou econômicas que apontem para um final determinado. Claro, existe sim
uma relação de causa e efeito, mas, em última instância, ela não pode ser determinista, visto
que inclui o inesperado, as escolhas verdadeiras, isto é, aquela pela qual nenhuma
possibilidade é privilegiada; a verdadeira escolha é livre, indeterminada, aberta para o futuro.
No budismo não há promessa de salvação; não há um deus separado dos homens, por
meio do qual a humanidade se liga com pedidos e esperanças; portanto, é um caminho para o
reencontro entre nós e nós mesmos, independente das circunstâncias satisfatórias ou não de
nossa vida. O budismo é um caminho de conhecimento que não dispensa a prática – ao
contrário, ele parte dessa experiência individual. É um caminho dos atos justos, sem a
78
interferência de nossos dissabores ou expectativas, é um caminho de escolhas e atitudes,
sendo, portanto, altamente ético.
O segundo giro da roda do dharma ocorreu no Pico dos Abutres, nos arredores de
Rajagrh. Entre os ouvintes desses ensinamentos, encontravam-se muitos bodhisattvas, seres
em avançado estágio no caminho à iluminação que abrem mão de sua passagem para o
nirvana e se comprometem a auxiliar a humanidade a sair do sofrimento. Esse ato compassivo
e autêntico é fruto do reconhecimento da verdadeira natureza da mente. Assim, enquanto
houver um ser na ignorância e na escuridão, os bodhisattvas renunciarão à grande dissolução
no absoluto. Entendemos, portanto, que esses ensinamentos foram de grau mais complexo,
pois foram dirigidos a discípulos com uma profunda capacidade de investigação e com grande
experiência meditativa. Nesse ciclo de ensinamentos, foi transmitido o Sutra
18
do Coração
(Prajnaparamita), que trata da vacuidade, shunyata em sânscrito, um dos termos de mais
difícil compreensão tanto para budistas como para não budistas, e que causou muitos
equívocos no ocidente por ter sido traduzido como “vazio”.
Os ensinamentos da terceira volta da roda do dharma, em Vaisali, Rajagrha, são
considerados infinitamente profundos, amplos, e apresentam a realidade como um todo
interligado. Foram apresentados a um grupo de seres realizados, que podiam conciliar as
contradições e cujas habilidades eram afinadas com os estados sutis da mente (AS TRÊS
JÓIAS, 1994). Essa parte da história do budismo pode ser considerada como mitológica, uma
vez que são ensinamentos dados a seres sobrenaturais ou, o que parece mais plausível, como
18
Ensinamentos proferidos pelo próprio Buda.
79
uma representação dos processos cognitivos não lineares, com diferentes graus de maturação
e capacidade.
As explicações budistas nos confundem quando se tenta colocá-las numa seqüência
linear dirigida a patamares de maior conhecimento ou precisão. A seqüência cronológica dos
ensinamentos budistas, iniciando com as quatro nobres verdades até aqueles transmitidos na
terceira volta da roda do dharma, é apenas uma convenção para a organização dos
ensinamentos. Estes não necessitam seguir rigorosamente essa ordem, embora existam
restrições quanto às condições do praticante para o entendimento e, desse modo, alguns
exercícios e lições são evitados. Há restrições a certos ensinamentos que estão de acordo com
o meditante, suas capacidades intelectuais, sua experiência de vida, sua motivação e não com
a seqüência da promulgação dos ensinamentos pelo fundador. E também existem
ensinamentos que aparentemente entram em conflito com outros. Para Fremantle (2005, p.
392), as interpretações “deveriam todas ser mantidas na mente ao mesmo tempo. Juntas,
constroem um retrato da transformação completa da confusão, negatividade e maldade no
estado desperto”. As interpretações feitas separadamente não podem falar sobre a realidade,
as interpretações têm um limite para sua preeminência; elas não são o conhecimento, que só
pode ser definido como o conjunto das interpretações concomitantes e simultâneas, inclusive
quando forem excludentes, conflitantes ou opostas.
Após a morte de Buda, em 483 a.C., seus seguidores se reuniram em conselhos para
discutir a forma e os meios de iniciar a organização dos ensinamentos, das técnicas de
memorização, dos discursos e regras do mestre, e criaram fórmulas de repetição. Um deles foi
realizado cerca de 100 anos depois, quando os textos já estavam na forma do cânone páli, isto
80
é, o conhecimento budista livre de ingredientes posteriores, não hindus, conhecido como
Tripitaka (Três Cestas)
19
, ou três recipientes diferentes): o Sutra Pitaka, com as primeiras
pregações, uma coletânea de versos e relatos de sua vida; o Vinaya Pitaka, que contém os
códigos de regras monásticas e suas origens; e o Abhidharma Pitaka, um tratado de psicologia
e filosofia. Diferentes intérpretes e seguidores se especializaram em determinados
ensinamentos ainda na Índia, acrescentando comentários e experiências, criando ramificações
e escolas.
As chamadas Escolas da Índia – Hinayana, Mahayana e Vajrayana – apresentam
especialidades e são consideradas veículos (yanas) para percorrer o caminho rumo à
iluminação e estão de acordo com cada fase de desenvolvimento do budismo. O primeiro, o
Hinayana, ou “pequeno veículo”, está baseado nos primeiros discursos de Buda e é hoje
representado pelo budismo theravada, principalmente no Sudeste da Ásia e Sri Lanka. O
segundo yana, chamado também de “o grande caminho” (maha = grande), surgiu por volta do
século I a.C. e inaugurou uma visão diferente da iluminação, visto que enfatiza a inter-relação
de todos os seres e procura despertar em seus seguidores a aspiração de levar todos os seres à
iluminação como uma meta maior do “apostolado”. Entre os representantes dessa vertente
encontram-se o budismo Zen do Japão e as escolas Ch’an e Terra Pura do budismo chinês que
permanecem fortes até hoje.
Por fim, o budismo vajrayana (vajra = diamante), chamado “caminho indestrutível”. O
budismo vajrayana é conhecido como “budismo tântrico”, e foi revelado “pelo Buda não
como um ser humano, mas em seu aspecto transcendente” (FREMANTLE, 2005, p.34). Não
19
São chamados “cestas” porque escritos em folhas de palmeira.
81
está separado dos anteriores, mas corresponde a ensinamentos secretos que só podem ser
transmitidos aos praticantes avançados diretamente por seu mestre espiritual (guru), com o
qual mantêm uma relação direta. Esse conjunto de ensinamentos foi preservado e é praticado
até hoje pelo budismo tibetano. Na prática do budismo vajrayana do Tibete, o ensinamento
intelectual, a erudição e o conhecimento enciclopédico das tramas dos textos sagrados pode
ser prejudicial ao aluno, caso não venha acompanhado da prática de exercícios cuja demanda
corporal é marcante, e das primorosas e detalhadas mentalizações e visualizações.
Existem duas características importantes dos ensinamentos budistas que tenho como
os facilitadores de sua aceitação pela sociedade ocidental e que independem de que seja
definido como religião, filosofia ou método. A primeira é extraída do fato que os três giros da
roda do dharma e as técnicas elaboradas pelas três escolas (Hinayana, Mahayana e Vajrayana)
são direcionados a diferentes tipos de alunos, apresentando diferentes níveis de “didática” e,
portanto, se adaptam às mais variadas expectativas do público ocidental, visto que utiliza as
capacidades pessoais dos alunos de formas diferenciadas. A segunda é a ênfase na
experimentação individual desses métodos e na responsabilidade de cada um por sua jornada
de vivências, o que cria uma independência em relação às autoridades e uma imparcialidade
na proposta budista, pois não há que se converter ninguém. O budismo não é sectário, e por
esse motivo adapta-se bem às diferentes culturas, permitindo que elementos e sistemas
mitológicos diversos se entrelacem.
Por fim, o reconhecimento do outro (indiferenciado do eu na realidade absoluta) como
igual na vivência do sofrimento desperta no praticante a compaixão, um conceito que, para ser
entendido, deve ser descolado do significado impingido pelo catolicismo. A universalidade
82
humana é baseada na experiência do sofrimento – este é seu cativeiro e ao mesmo tempo a
chave das portas da prisão. Independente da cultura, local e período da existência, os seres
humanos compartilham o sofrimento; compartilham a experiência da finitude da vida e da
repetição dos hábitos e padrões, ambos baseados na experiência corporal e na complexidade
cerebral da espécie.
O budismo procura, através de seu método, recondicionar nossos padrões mentais,
“desfazer nossos jogos neuróticos, nossas auto-ilusões, nossos temores e esperanças ocultos”
(TRUNGPA, 1988, p. 20), tudo a partir de uma disciplina (Hinayana), uma motivação
(Mahayana) e a união da prática com o conhecimento (Vajrayana), supervisionada
obrigatoriamente por um mestre. Atribuir valor exclusivamente aos treinamentos pode fazer o
praticante incidir no fanatismo e no fundamentalismo, numa forma mecanicista de pensar que
somente o ato, miraculosamente, pode dar conta da prática. Os gestos, visualizações, e
palavras que fazem parte dos rituais e práticas, devem ser bem realizados e os símbolos bem
compreendidos, O conhecimento intelectual deve vir acompanhado de compaixão para que a
prática não se torne uma forma de poder sobre os demais.
O dharma, isto é, o conjunto de ensinamentos de Buda, difundiu-se para outros reinos,
como Caxemira, Himalaia, Sri Lanka e Birmânia, graças à conversão do rei Asoka, que
expandiu o Império Maurya por volta do século III a.C. e apoiou o grupo de seguidores (a
sangha) budista. Chegou à China em meados do século I, por onde atingiu a Coréia e o Japão
no século IV, e o Tibete, nos séculos VII-VIII. O budismo apropriou-se dos elementos da
cultura local e aplicou os textos clássicos às necessidades de cada região, aperfeiçoando e
dando tonalidades diferentes à prática meditativa. Na Índia, o budismo declinou a partir do
83
século XIII, depois da invasão muçulmana, mas permaneceu vivo e conta hoje com adeptos
em todo o mundo.
O budismo chegou ao Tibete no século VII com a conversão do rei Song Tseng
Gampo, que mandou trazer da Índia uma vasta biblioteca de textos budistas. Manteve-se
como uma religião restrita aos intelectuais até o século VIII, quando o rei de Tri Song Detsen
convidou proeminentes estudiosos hindus, entre eles Padmasambhava, que consagrou o
primeiro monastério em Samye, perto de Lhasa e foi o transmissor dos ensinamentos
Vajrayana nesse país, em cuja organização social se integrou e onde ganhou características
diferenciadas, com forte influência da cultura local.
Existem diferentes ordens ou linhagens do budismo tibetano, que se diferenciam pela
ênfase dada a determinados aspectos da vasta doutrina original atribuída ao Buda Shakiamuni,
pelos diferentes tradutores dessas obras para o tibetano, e pela interpretação de estudiosos e
divulgadores. Quatro escolas ou tradições mais importantes se estabeleceram no Tibete:
Nyingma, Kagyu, Sakya e Gelupa, diferenciadas também pela época em que se
desenvolveram. Pode-se afirmar, de modo bem simplificado, que cada uma delas enfatiza um
método e ressalta alguns ensinamentos do budismo. A tradição Nyingma manteve-se fiel aos
sutras e mantras
20
das primeiras traduções. A partir do século X, com a criação de um novo
cânone técnico de tradução que se debruçou sobre a precisão etimológica, surgiram as
chamadas escolas da “Nova Tradução” (AS TRÊS JÓIAS, 1994). No século XI, foi a vez das
tradições Sakya e Kagyu e, três séculos depois, a Gelupa, fundada por Tsong-Ka-pa (1357-
1419).
20
Palavras de poder, geralmente em sânscrito, recitadas durante as práticas.
84
1.3.1. Diálogo
A despeito do contraste entre o organicismo oriental e o mecanicismo e o dualismo
ocidental, as similaridades entre a compreensão do mundo da física moderna e das tradições
místicas do oriente são reconhecidas (CAPRA, 1986). Apesar das mudanças ocorridas na
física moderna, o dualismo cartesiano ainda exerce influência no pensamento científico.
Arejando as ciências cognitivas, tirando-as do círculo restrito estabelecido pelo pensamento
cartesiano, Varela, Thompson e Rosch (2003) propõem um diálogo entre ciência e budismo.
O conhecimento para o budismo não é decorrência do exame de objetos apenas como coisas,
mas da relação entre eles, da relação entre o sujeito e o objeto. O conhecimento absoluto não é
intelectual, mas está relacionado à experiência direta do corpo/espírito integrados e inclui a
experiência mística, que foi banida no ocidente num longo processo de priorização do
racionalismo.
O budismo, herdeiro do pensamento mitológico e ritualístico hindu, desponta como
prática de psicologia profunda, e seus ensinamentos têm como objetivo levar o praticante à
iluminação. Não há conhecimento verdadeiro que venha da separação entre sujeito e objeto;
por isso, a sugestão de Francisco Varela, Evan Thompson e Eleanor Rosch é empreender uma
mudança profunda na experiência da reflexão. Esta deixa de ser uma “atividade abstrata” para
enraizar-se numa “mente incorporada”, atenta à corporalidade e aos processos de cognição.
85
O que essa formulação pretende veicular é que a reflexão é apenas sobre a
experiência, mas ela própria é uma forma de experiência – e a forma reflexiva de
experiência pode ser desempenhada com atenção/consciência. Quando a reflexão é
feita dessa forma, ela pode interromper a cadeia de padrões de pensamentos
habituais e preconcepções, de forma a ser uma reflexão aberta – aberta a
possibilidades diferentes daquelas contidas nas representações comuns que uma
pessoa tem do espaço da vida.
(VARELA; THOMPSON; ROSCH, 2003, p.
43).
O objetivo da meditação budista se sintetiza como sendo um método para compreender a
natureza e o funcionamento da mente por meio de sua exploração reflexiva e pelo trabalho
corporal. Ciência, filosofia e cotidiano podem ser pensados de maneira conjunta pelo ato de
meditar. O que o príncipe Sidarta compreendeu e sistematizou “é um complexo mecanismo de
sobrevivência profundamente enraizado na estrutura e no funcionamento do cérebro – que,
como outros mecanismos, pode ser alterado pela experiência” (YONGEY MINGYUR, 2007,
p. 16-17). O que hoje a ciência tem mostrado a respeito do funcionamento do cérebro se
assemelha a um ensinamento que surgiu há mais de 2500 anos na Índia: em vários momentos
o conhecimento científico e o budista convergem, principalmente no que diz respeito à
relação sujeito e objeto. Para a antropologia essa relação é crucial e está na base das
transformações na postura do pesquisador diante de seus interlocutores.
O corpo humano é precioso no budismo, porque a mente/cérebro é capaz de modificar
sua forma de ver as coisas, o que nos possibilita mudar o mundo sem revoluções, guerras, sem
tomar o poder. A mente não é uma coisa, não pode ser facilmente identificada com o cérebro,
ou com o pensamento; não localizável, pode ser descrita pelos mais variados pontos de vista.
O cérebro é um suporte físico da mente, mas não pode ser confundido com ela, que não pode
ser experimentada diretamente pelos cinco sentidos. Reconhecemos a dor - ela existe, mas não
86
a localizamos facilmente. A mente (sems) na tradição é definida como “aquela que se projeta
em outro” ou “aquilo que sabe”, a capacidade de reconhecer a experiência e refletir sobre ela;
pode ser definida em termos budistas como “uma experiência em eterna mutação” (YONGEY
MINGYUR, 2007, p. 40-1) resultante de hábitos, informações, vivências; uma emergência
que se representa no titereiro que controla corpo e fala e, portanto, é entendida como
diretamente relacionada à existência de um self– ego – eu.
A idéia de que existe no cérebro um local onde o eu existe é herança da visão
mecanicista, cartesiana, e hoje a física questiona sua existência material. Mente não é cérebro,
mas uma propriedade emergente das atividades neuronais, das sinapses. O cérebro não é um
supercomputador com áreas definidas (programas) de armazenamento; por isso, as ciências
que privilegiam as idéias computacionais, ou seja, conforme as quais o conhecimento, o real,
ocorre a partir do acorde binário sim-não, 1-0, em detrimento de outras formas de intelecção,
perdem sua amplitude explicativa.
Diferentemente do ser de Descartes, tensionado entre o corpo e o espírito, para o
budismo, o que podemos chamar de ego, mesmo que fugidio, não está no corpo ou na mente,
mas na interação irredutível corpo–mente. Não existe uma unidade do self. Os elementos que
participam de sua construção não se realizam de uma forma linear, por computação. “A
tensão entre o sentido contínuo de self na experiência comum e o insucesso em encontrá-lo na
reflexão é de importância central no budismo – a origem do sofrimento humano é exatamente
essa tendência para apegar-se a e para construir um sentido de self, um ego onde não
nenhum.” (VARELA, THOMPSOM, ROSCH, 2003, p. 75). Todas as nossas ações e
pensamentos estão para preservar e proteger esse self. E ressentimo-nos com a frustração de
87
não conseguirmos apreendê-lo. Para o budismo, a distinção entre mente e self é fundamental,
e nada tem a ver com a separação espírito–matéria ou corpo–mente do método cartesiano. Ao
contrário, o método budista parte do pressuposto (neste caso, o pressuposto é somente a
experiência e a transmissão da experiência realizada de Buda) que a mente verdadeira é uma
realidade absoluta (paramartha), enquanto o self–ego–eu é um fenômeno da realidade relativa
(samvrti,). Para o budismo, fenômeno é tudo e qualquer coisa que ocorra.
Para a prática correta da meditação, é imprescindível uma postura totalmente aberta,
sem idéias preconcebidas ou expectativas do que poderá ocorrer. Caso contrário, a
experiência pode ser tornar difícil, pois todos os elementos constitutivos da auto-imagem
equivocada sairão de seus esconderijos e impelirão o meditante a encontrar as desculpas
ideais para o encerramento da cessão. Contra esse perigo, somente a persistência ou uma
motivação justa pode segurar o praticante na postura de meditação. A plena atenção sobre si
mesmo em busca de algo que esteja além daquilo percebido de imediato pode ser um método
para que a ciência passe a questionar suas verdades e, assim, perceber que vive,
contrariamente à sua vontade, um conflito entre a realidade que descreve e os prognósticos
que dessa descrição decorrem, que existe limite bem definido para a sua eficácia e, por fim,
que sua separação da reflexão filosófica e do aspecto humano (ATLAN, 2004). Quando as
certezas desmoronam, então estamos chegando naquilo que o budismo considera ser o
caminho para o conhecimento.
Em outras palavras, podemos afirmar que a incerteza faz parte do conhecimento. No
entanto, ela não é a dúvida cartesiana, nem um método científico, e sim o início da percepção
das coisas como elas são. Embora elas tenham uma existência material, pois o budismo não
88
nega a realidade dos fenômenos, a experiência/percepção que temos delas são construções
mentais elaboradas por antigas vivências, que geram hábitos e determinações. A herança
determinista, reforçada pela postura científica dominante até os séculos XIX nas ciências
naturais, e que ainda persiste nas ciências sociais, impede-nos de lançar um novo olhar para os
fenômenos e o mundo e de construir um mundo diferente.
A natureza da mente não pode ser definida por palavras ou conceitos, ela é
indescritível, irreduzível, não pode ser conceitualizada, é “verdadeira” porque é incriada
(CHANDRAKIRTI apud YONGEY MINGYUR, 2007, p. 47), A natureza fundamental da
mente é chamada de tathagatagarbha, do sânscrito, que significa “a natureza daqueles que
foram naquela direção”. A direção é a iluminação, a retomada da “natureza búdica” que, para
um ser humano comum, é obscurecida pelos padrões mentais, pelos hábitos, pelo
adestramento social que ocorre por toda a vida e, para o budismo, isso se dá em outras
encarnações. O mecanismo que cria o carma é análogo ao determinismo. Apesar desses
padrões, a verdadeira natureza da mente permanece, é um invariante, e pode ser resgatada,
desde que o trabalho de desconstrução das determinações seja realizado para fazer emergir
suas qualidades de simplesmente ser, sem passado, sem futuro – um eterno presente, intocável
por qualquer contexto, condições, valores, circunstâncias. É necessário refletir que a busca
universal pela felicidade e os movimentos humanos em fuga de circunstâncias infelizes são,
segundo o budismo, a prova da presença atemporal de uma mente natural, porque ela é
invariavelmente liberta do sofrimento.
O budismo considera a base física dos fenômenos, mas não reduz a realidade a essa
esfera; atribui realidade aos significados das palavras e conceitos, mas não considera a sua
89
realidade absoluta, mas tão somente a construção mental e padronizada de uma realidade
relativa. Ou seja, acolhe a realidade física da experiência comum, mas não reduz o universo a
isso; considera o imaginário e atribui a ele importância fundamental, mas não afirma em
última instância que a realidade não passa de imaginação humana. O budismo concebe as
percepções sensoriais como condicionamentos mentais e não reduz a realidade a esses
padrões – baseia-se na não-conceitualização como condição para uma experiência de total
abertura, o conhecimento total.
A mente condicionada pelo passado, a mente que ignora sua verdadeira natureza, cria
ilusões que, por hábito, aceita como realidade. Os fenômenos que percebemos com os
sentidos são circunstâncias breves, fugidias e, para eternizá-las, costumamos agarrá-las com
anzóis, isto é, as fixamos em nossa mente através do hábito, dos padrões de pensamento. Essa
reflexão cabe também à ciência, que se entende definitiva, que não pode abrir mão de seu
imperialismo, que se impõe como universal e conserva um menosprezo tácito a outras formas
de conhecimento. No entanto, “tudo o que você considera como ‘outro’ é, na verdade, a
expressão espontânea de sua própria mente. Isso significa abandonar idéias sobre a realidade
e, em vez disso, vivenciar o fluxo da realidade como ela é” (YONGEY MINGYUR, 2007, p.
102). As outras formas de conhecimento são fragmentos de um conhecimento absoluto que
nunca será alcançado dentro do universo científico e, mesmo este, com todas as suas teorias, é
uma expressão diminuta daquilo que pode ser compreendido. Nas ciências sociais, é
necessário estabelecer os limites desse conhecimento à própria mente do pesquisador e
teórico, uma descrição da realidade, e não a realidade em si.
90
A relação causa e efeito é primordial para o budismo, mas ela não é simples, linear e
redutora, como aquela que encontramos na ciência mecanicista, e a ela se acrescenta a noção
de interdependência entre todos os seres. A visão clara dessas relações infinitas e múltiplas só
pode ser alcançada com a budeidade
21
.
1.3.2. Para além do mais além
Para o budismo, desde o ego até os fenômenos materiais, estamos lidando com algo
que existe e não existe ao mesmo tempo, uma realidade constantemente criada. Aquilo que
reconhecemos como sendo os fenômenos e o eu que os vivencia é o fluxo aparentemente
contínuo da experiência, uma consciência temporal. É aparente porque, na realidade, essa
experiência não é contínua. A despeito disso, mantemos certa coerência em nossa vida e nos
fiamos plenamente na existência de uma identidade, de um ser que permanece em meio ao
fluxo dos acontecimentos, à experiência de uma realidade material separada do eu que a
experimenta e a conhece.
Para entender a idéia de uma mente sem ego e concomitantemente do apego da mente
condicionada ao ego – descontínuo, construído e desconstruído ininterruptamente,
apresentando a cada instante um ser diferente e igual a si mesmo –, é necessário recorrer aos
ensinamentos do Abhidharma Pitaka. A idéia da existência de um eu separado, independente,
é uma emergência da relação dos cinco agregados e do movimento cíclico do samsara,
sempre nova e igual a cada aparição: igual porque se utiliza das informações, lembranças,
21
Despertar pleno ou iluminação.
91
hábitos, dispositivos de segurança, conceitualizações e cristalizações da mente condicionada;
nova porque ocorre em um outro tempo relativo, em circunstâncias nas quais minúsculos
detalhes podem variar, porque a experiência presente agrega novos valores.
Retomando algumas definições budistas importantes, ressaltamos que o samsara, de
forma bem resumida, é o círculo de morte e renascimento, a experiência da realidade relativa,
um estado de sofrimento. Sua origem são os três venenos: ignorância (avidya), desejo (trsna)
e raiva (pratigha), também descritos como “aflições mentais” primárias, porque são os
principais fatores para a nossa percepção deturpada. Dos três, a ignorância é básica, porque o
que se ignora é a verdadeira natureza da mente, e isso gera a visão turva e distorcida dos
fenômenos, nossa incapacidade de ver as coisas como realmente são. A ignorância é também
chamada de a raiz do samsara, pois dela provém o apego e a aversão
22
. Esse ciclo de morte e
renascimento é ininterrupto e, enquanto estamos presos a ele, não existe liberdade, nem
controle, nem escolhas.
Existem modos mais profundos de explicar o samsara; porém, isto requer a
compreensão de outros elementos do conhecimento budista. Chögyam Trungpa apresenta-o
para seus discípulos como “um círculo vicioso através do qual os seres humanos buscam a
confirmação de sua existência”. Dessa forma, pode ser também definido como o conjunto dos
agregados de um ser. Como se fosse um erro após o outro, através dos três venenos, vamos
criando um mundo de ilusões, de sentimentos mal compreendidos, emoções reprimidas, que
confirma nossa existência de uma forma muito dolorosa, sempre desejando mais, se
esquivando das circunstâncias desagradáveis e se baseando na existência de um eu
22
Esses termos podem ser também: apego e ódio; apego, aversão e indiferença.
92
independente. Yongey Mingyur apresenta o samsara como a luta dos seres humanos para
manter o sentido de um eu separado dos outros. Esse modo dualista de pensar advém da
ignorância básica, e dela emergem as duas reações que geram todo o sofrimento: aversão e
apego. Nossa existência se reduz à busca daquilo que nos dá prazer e à fuga do que nos causa
desconforto – e ambas as atitudes geram sofrimento.
Há uma tanka
23
da roda da vida que mostra todo o ambiente do samsara, revelando
sua natureza, os caminhos que levam até o renascimento e como o ser humano se mantém
nesse círculo vicioso. No centro dela há três animais: um porco, um pombo e uma serpente.
Da boca do porco sai o pombo; deste, sai a serpente, que está ligada ao rabo do porco, ou o
pombo e a serpente saem da boca do porco. O porco representa a ignorância; o pombo, o
apego desejoso; a serpente, o ódio. Em volta desse centro há um círculo, dividido em uma
parte branca e outra, preta, que indica os caminhos seguidos após a morte: o virtuoso leva a
um bom renascimento, ou seja, em ”reinos superiores”, e o não virtuoso conduz aos reinos
inferiores” do samsara. Ao redor do círculo branco e preto há outro, representando os seis
reinos de existência. Finalmente, na borda há dose divisões, cada uma contendo um desenho
representativo dos doze elos de interdependência.
O conhecimento do Abhidharma conta com vários conjuntos de categorias, entre eles,
os cinco agregados, ou skandas, em sânscrito: (1) forma, (2) sentimentos/sensações, (3)
percepções (discernimentos/impulsos), (4) formações disposicionais (5) consciência. Os dois
primeiros estão baseados no mundo material e os demais são mentais. A forma refere-se aos
órgãos e objetos dos sentidos – que no budismo são seis: visão, audição, olfato, paladar e
23
Representação pictórica.
93
consciência –, ao corpo diretamente e ao padrão formado ao longo do tempo. O sentimento e
as sensações referem-se à definição da experiência como agradável, desagradável, ou neutra.
As percepções e os impulsos referem-se ao reconhecimento de uma situação e à imediata
reação por meio dos três venenos, ou seja, apego, aversão e indiferença. As formações
disposicionais referem-se aos padrões de pensamento, às sinapses e ao aprendizado. A
consciência inclui todos os anteriores; é a experiência simultânea de todos os cinco agregados,
a combinação que forma o caráter da experiência.
Esses agregados se manifestam como seqüências e simultaneidade.
Mesmo quando alguém toma como objeto de investigação o problema se os
agregados são seqüenciais ou simultâneos, para a maior parte das pessoas eles
parecem, em termos fenomenológicos, surgir muito rapidamente para chegarem a
ser descritos. Em consonância com as observações neurofisiológicas da breve
duração de tempo de uma unidade de experiência, os agregados parecem surgir
como um pacote.
(VARELA, THOMPSON, ROSCH, 2003, p. 90).
Uma caixa embrulhada em papel e presa por um laço, é um único presente, mas só
pode ser colocado à mostra cronologicamente. Primeiro desamarramos o laço, tiramos o papel
e abrimos a caixa. Assim, o que identificamos como nosso self–ego–eu são nosso corpo,
nossos sentimentos, nossas reações, nossos hábitos, nossa consciência de unidade e
continuidade em interação, que se manifestam com tanta rapidez que parecem uma oscilação.
As mentes atentas e treinadas dos mestres budistas puderam apreender o que as neurociências
podem comprovar com muita tecnologia e que hoje nos possibilita considerar o “equipamento
perceptivo” não só como neurossensorial, ligado à forma, mas como algo que não é dado
94
definitivamente. “Não há um modo eterno da percepção pertencente a um homem eterno, o
ser assim da percepção é social-historicamente instituído em algum dos seus componentes
indissociáveis dos outros.” (CASTORIADIS, 1987, p. 21)
Como e por que essa individualidade encontra “apoio” para manter-se, como se fosse
contínua? É através da vivência dos doze elos de interdependência, também denominada
“roda do carma”, que pode ser explicada como “roda da eterna frustração”. Esses elos estão
relacionados com o funcionamento do carma, que, para o budismo, não é destino, mas o
conjunto de impulsos que subjazem no inconsciente e emergem como atos compulsivos que,
ao se repetirem, transformam nosso caráter e, por conseqüência, nosso destino. Pode ser
definido também como antigos hábitos, adquiridos e sedimentados por inúmeras encarnações,
sendo que estas não se referem a uma individualidade, mas a um continuum mental. De
qualquer forma, o carma é amparado pela lei da causalidade. Em Varela (2003, p. 126) é
definido como a formação histórica dos padrões, hábitos, tendências, idéia também presente
em muitas áreas do conhecimento, da biologia evolutiva à construção do social-histórico
(CASTORIADIS, 1982). Os padrões de comportamento e a memória são construídos através
de um sistema cerebral que tem camadas sucessivas e ao mesmo tempo simultâneas: cérebro
reptiliano, sistema límbico e neocórtex, acionados para a proteção e defesa, manutenção da
espécie e adaptação, que podem, tamm, “tornar nebulosas ou distorcer as percepções de
experiências mais comuns” (YONGEY MINGYUR, 2007, p. 38).
Entendo que uma parte dessa visão alterada por experiências passadas,
independentemente de ser boa ou má, útil ou não, está na raiz daquilo que as ciências sociais,
a psicologia, e a psiquiatria vieram a chamar de determinação: experiências do passado,
95
vividas individual ou socialmente, que dão a tonalidade e a textura do presente. Seria esse
caminho uma lei inviolável? O resultado seria obrigatório e inalterável? Pensar dessa maneira
destrói qualquer possibilidade de liberdade. Para o budismo, essa determinação existe. É a
base daquilo que chamamos de carma e que tem um significado diferente daquele definido
pelo espiritismo. Não podemos esquecer que a doutrina espírita é a leitura do ocidental do
século XIX, com todo seu cientificismo e tendo como arcabouço a ciência clássica.
São doze os elos (nidanas) dessa cadeia de renascimentos, de causa–efeito, de
temporalidade, de circularidade: (1) ignorância – base do carma, causa da existência no
samsara, anexada a condições anteriores ao nascimento; (2) vontade – por ignorar a
inexistência de um eu, surge o impulso em agir como de hábito (carma); portanto, ela também
está, como o primeiro elo, relacionada ao passado, uma repetição com o intuito de manter a
ilusão da existência de um eu; (3) consciência – estado dualístico baseado na existência de um
eu em contraposição a tudo o que está fora. (Tudo o que foi dito sobre o quinto agregado cabe
também nesse elo); (4) complexo psicofísico, isto é, união corpo–mente; (5) seis sentidos – ou
a existência de um corpo subentende os agregados; (6) contato – a partir do qual os sentidos
(que no budismo são seis, pois inclui-se a mente–consciência) nos relacionam com o mundo;
(7) sensação – agradável, desagradável e neutra; (8) desejo, ou seja, querer o que é agradável,
fugir do que é desagradável; (9) apego – ou agarrar-se às coisas, aos sentimentos, às emoções,
às duas alternativas do desejo, como se tudo dependesse disso, incondicionalmente; (10)
transformação – quando criamos novas tendências ou reforçamos as antigas e criamos
padrões; (11) nascimento – ou surgimento de uma nova circunstância, totalmente amarrada,
dependente, determinada pelo passado; e (12) decadência e morte – aquilo que surgir, seja o
que for, cedo ou tarde decaíra e morrerá.
96
Se ainda houver ignorância, esse círculo se repetirá indefinidamente. Ignorância, na
definição budista, significa não reconhecer a nossa própria mente iluminada, isto é,
desprovida de toda neurose e compulsividade. Romper essa cadeia ininterrupta é a
iluminação, que pode ocorrer em qualquer momento da corrente. Caso contrário, “os padrões
repetitivos de ações habituais emergem da ação conjunta dos doze elos” (VARELA, 2003, p.
126), isto é, o carma condiciona um novo nascimento.
A iluminação – libertação almejada pelas práticas budistas – é exatamente o
cancelamento desses hábitos, antigos caminhos de interpretação da realidade, que, partilhados
pelos demais seres humanos, é parte do que chamam de “realidade relativa” ou samsara; sair
definitivamente desse ciclo de morte e renascimento. No budismo, liberdade é, portanto, o
definitivo rompimento com o determinismo. Isso é possível pela desconstrução daquilo que,
por ignorância, acreditamos ser a realidade. Não pretendo, aqui, declarar a irrealidade do
cotidiano, a inexistência de tudo o que reconhecemos como real através do senso comum, mas
apenas destacar que, para o budismo, existe uma realidade absoluta, na qual não existe tempo,
e sim onisciência e vacuidade, da qual uma quantidade infinita de eventos pode emergir
(criando um universo) ou não (a experiência da plenitude).
O objetivo da prática da meditação é buscar o reencontro do ser humano com a
verdadeira natureza da mente, ilimitada e imperturbável; é libertar-se da roda do samsara;
alcançar a iluminação, que não é um mero estado momentâneo. Podemos até ter repentinos
clarões de consciência, insights, momentos em que parece que todo o universo se desvenda.
97
Esses momentos, captados pela arte, poesia, pintura, música, não são, no entanto, a
iluminação, porque, em seguida a eles, vêm a mente racionalista, as avaliações, os
julgamentos, os distanciamentos entre observador e observado. Procurar segurá-los a qualquer
preço, sentir constantemente a nostalgia deles é forma de apego, que se transforma em
“materialismo espiritual”, no caso do praticante budista, e a experiência torna-se um
conhecimento exclusivamente intelectual (TRUNGPA, 2002).
No entanto, iluminação é alcançar, compreender o shunyata – termo mais
polêmico do budismo e que mais controvérsia provocou entre os analistas ocidentais por conta
da dificuldade de traduzi-lo. Base do Mahayana e Vajrayana, mas não do Hinayana, sua
tradução é “vacuidade, vazio, ausência de conceitos e de dualismo” (TRUNGPA, 2002), mas
significa “senso de abertura”, experimentado quando a mente está em repouso (YONGEY
MINGYUR, 2007, p. 59); é a natureza da mente. Isso não significa que a mente seja vazia,
oca, nem estamos lidando com o niilismo. Fremantle (2005, p. 229) comenta que Chögyam
Trungpa utiliza o termo “vazio grávido”, e deixa bem claro que estamos nos referindo ao
momento anterior à pronúncia das palavras, um momento em que causa e efeito estão
simultâneos, não separados por qualquer julgamento – uma espontaneidade radical, o
pensamento que abraça todos os tempos.
Qualquer compreensão intelectual da vacuidade é apenas uma parte limitada de seu
verdadeira significado. Shunyata é um termo que deve ser vivenciado, mais que explicado por
palavras; não há compreensão ou racionalidade que dê conta desse conceito; está além de
todos os aspectos que conhecemos da realidade: é aberto, arejado, ventilado. O que podemos
definir através de conceitos simples como o da ciência cartesiana fazem parte da realidade
98
relativa. Os conceitos complexos de Morin, os macroconceitos, são uma estratégia para se
chegar um pouco mais perto, via ciência ocidental, dessa impossibilidade conceitual que é a
vacuidade.
O termo tibetano para a vacuidade é tong-pa-nyi. Tongpa significa “vazio” no sentido
de “algo que está além da percepção sensorial e das definições dos conceitos”; adicionando o
vocábulo nyi, encontramos o sentido de “possibilidade”. Chögyam Trungpa na introdução de
O livro tibetano dos mortos utiliza a expressão “the absence of what is false” (1992, p. XIX)
24
para definir o termo “vazio”. Assim, a vacuidade refere-se a “um potencial ilimitado que algo
tem de surgir, mudar ou desaparecer” (YONGEY MINGYUR, 2007, p. 60). Um aspecto
interessante é a consciência que os praticantes budistas mais experientes têm de que, mesmo o
que tentamos transmitir em palavras para deixar mais palatável e o entendimento do termo
mais próximo possível do que seria a vacuidade é, ainda, insuficiente. Daí a necessidade de
vivenciar-se individualmente a vacuidade, o que significa praticar, praticar, praticar, como
têm repetido incansavelmente os mestres das diferentes linhagens.
Ao contrário do que um primeiro olhar possa transmitir para o ocidental, a vacuidade é
tudo, todas as possibilidades se apresentando simultaneamente, abertura incomensurável para
um tempo que não existe – o futuro. É a abertura total que determina a possibilidade de todos
os caminhos e não privilegia nenhum, indeterminado ao mesmo tempo, que Prigogine
demonstra com sua teoria das estruturas dissipativas. Para facilitar o entendimento,
estudiosos budistas fazem uma analogia da vacuidade com o espaço, no qual
surgem/emergem e se transformam/movimentam todos os fenômenos. Isso é sistematizado na
24
Nossa tradução: “vazio do que é falso”.
99
idéia da existência da realidade absoluta e da verdade relativa. A vacuidade é uma realidade
absoluta, e os fenômenos, todos mutantes e passageiros, têm existência; não são uma simples
ilusão como uma interpretação mais grosseira faz transparecer; estão diante de nós, infringem
resistência, causam transtornos, impõem necessidades.
Apesar de o mundo dos fenômenos ser uma ilusão (maya) e de vivermos no samsara,
um estado de onde só sairemos se alcançarmos o sublime conhecimento, não podemos
atravessar paredes; os touros não saem das lojas de louças enquanto xícaras e pratos são
colados, revertendo-se o tempo. A mensagem que encontramos, similar ao que Prigogine
propõe, é que o tempo é, sim, irreversível. É nele que o carma se manifesta. A saída do
samsara é uma abertura para a realidade absoluta, para o estado de vacuidade e ocorre por
meio de escolhas verdadeiras, livres dos determinismos. As aberturas são dadas nas estruturas
dissipativas, na assimetria temporal, na abertura do futuro, nas bifurcações.
O texto budista que disserta sobre esse estado de vacuidade é o Prajnaparamita, termo
sânscrito que pode ser traduzido por “golpe cortante” no pensamento que conceitualiza,
separa, reduz; ir além da especulação intelectual ou crença. Prajna é indistinção, não-fixação,
não-interpretação e não-análise (TRUNGPA, 1988, pp. 84 e 179). Segundo a tradição, esse
ensinamento, composto de 25.000 slokas (versos), foi passado pelo Buda da Compaixão,
Avalokitesvara, em sânscrito (Chenrezi, em tibetano), a Shariputra, um discípulo ordenado,
famoso por sua inteligência, selecionado para receber a transmissão do prajnaparamita,
porque “representa a pessoa de espírito científico ou conhecimento preciso” (TRUNGPA,
2002, p. 177). Esse sutra compreende os skandas como nada mais que vazio:
100
Oh! Shariputra! Os fenômenos não são diferentes do Vazio.
O Vazio não é diferente dos fenômenos.
Os fenômenos são Vazio. O Vazio é fenômeno.
O corpo–matéria–forma, a percepção–sensação, o pensamento, a atividade e a
consciência são igualmente Vazio.
Oh! Shariputra! Todas as existências são Vazio.
Não há nascimento nem morte. Não há pureza nem impureza.
Não há crescimento nem diminuição.
No Vazio não há corpo–matéria–forma, nem percepção–sensação, nem pensamento,
nem atividade, nem consciência.
Não há olhos nem ouvidos, nem nariz, nem língua, nem corpo, nem mente.
Não há cor–forma, nem som, nem odor, nem sabor, nem tato nem pensamento.
Não há consciência visual, nem consciência auditiva, nem consciência olfativa, nem
consciência gustativa, nem consciência tátil, nem consciência da consciência.
Não há ignorância nem extinção da ignorância.
Não há nem velhice nem morte, nem extinção da velhice e da morte.
Não há sofrimento, nem causa do sofrimento, nem liberação do sofrimento, nem
caminho que conduza à liberação do sofrimento.
Não há sabedoria nem obtenção de sabedoria.
O único que há é shunyata: Nada que obter.
(EL SUTRA...,1987, P. 27-8).
Encerra-se com o mantra Gate gate, paragate, parasangate, bodhi soha, que, embora
não tenha tradução literal, pode ser interpretado como: “Sigam, sigam, sigam juntos, sigam
juntos mais além do mais além, até a realização última”.
101
Os sutras do prajnaparamita foram a principal influência da escola Mahayana e
exigiram mestres dotados de conhecimentos filosóficos, espíritos visionários e vocação
poética para compreenderem-nos, praticarem-nos e ensiná-los. Os mestres Rahulabhadra,
abade de Nalanda, Kamalagarba e Chanasa foram os difusores dos ensinamentos da Escola
Madhyamika – o caminho do meio –, assim como Nagarjuna, o grande mestre que os
sistematizou e compôs seus principais argumentos filosóficos, explicando-o sob o ponto de
vista da segunda volta da roda do dharma. A Escola Madhyamika enfatizou o método
dialético para esclarecer os ensinamentos prajanaparamita. Refutando toda e qualquer idéia
de substância, demonstra que palavras e conceitos são derivados de palavras e conceitos e não
expressam qualquer tipo de verdade, senão um intrincado sistema tautológico, e que são
inadequados para expressar a verdade. Seu princípio fundamental é a vacuidade, ou
inexistência de fundamentos para o que chamamos de aspecto relativo da realidade.
Asanga e Vasubandhu eram irmãos que viveram entre os séculos IV e V (período
Gupta) e revelaram aspectos Mahayana. Vasubandhu estudou e sistematizou os ensinamentos
Abhidharma, sendo deles seu maior mestre. Influenciado pela obra de seu irmão, praticou o
Mahayana, esclarecendo a natureza da consciência humana. Asanga explicou o
prajanaparamita sob o ponto de vista da terceira volta da roda do dharma.
Os sastras ou textos filosóficos do prajnaparamita de Nagarjuna se perderam. Então,
no budismo tibetano, deu-se início a uma nova e longa tradição desses ensinamentos.
Existem, segundo a tradição tibetana, três perspectivas de interpretação de shunyata: uma
102
relacionada à interdependência; uma, à compaixão, e uma, à natureza dos fenômenos. A
respeito da primeira perspectiva, lança-se o primeiro desafio: de onde inferimos a realidade de
alguma coisa? Da qualidade da coisa, do sujeito que a percebe, ou do órgão corporal da
percepção? Em outras palavras, do sujeito–objeto, da coisa–atributo ou da causa–efeito? De
nenhum dos três separadamente, mas da interação dos três. “A questão de Nagarjuna não é
dizer que as coisas não existem de forma absoluta nem dizer que elas existem. Elas são
geradas co-dependentes, são completamente sem fundação” (VARELA, THOMPSON,
ROSCH, 2003, p. 228).
Não existe nada que não seja shunyata. Os fenômenos são vazios de qualquer natureza
intrínseca independente. Os fenômenos são irredutíveis às causas materiais ou ideais; sua
existência não está condicionada ao idealismo nem ao materialismo – visões limitadas de uma
realidade complexa. Matéria, mente e ego circulam em anel retroativo para criar a ilusão da
experiência, mas em nenhum desses termos podemos encontrar a realidade última. O budismo
é chamado de “o caminho do meio” porque evita os extremos do objetivismo, subjetivismo,
absolutismo e niilismo, materialismo e idealismo.
Os fenômenos não existem de forma independente; são efeitos de uma causa e, por
isso, são impermanentes, mudam, findam. A vacuidade, no entanto, é uma causa final;
significa, em última instância, aquilo que não muda e que pode se manifestar sob qualquer
forma. A realidade em termos budistas, portanto, pode ser sintetizada da seguinte forma:
apesar de ser algo tolo fingir que não vivenciamos coisas como as mesas, a água, os
pensamentos e os planetas, ao mesmo tempo não podemos dizer que qualquer uma
103
dessas coisas exista inerentemente de forma independente, auto-suficiente e
completa. Por definição, qualquer coisa que inerentemente exista deve ser
permanente e imutável, não pode ser desmembrada em partes menores ou afetada
por mudanças nas causa e condições.
(YONGEY MINGYUR, 2007, p. 64).
A relação entre existência, não-existência e tempo; entre ser, vir-a-ser e transformação,
entre estar, não-estar e movimento é claramente intuída nesta afirmação de Fremantle (2005,
p. 124): “o vazio é a noção de que nada tem uma existência permanente, substancial e
independente por si só. Já que isso é verdade, já que nada é fixo e estático, existe a infinita
potencialidade e a transformação dinâmica. É isso apenas que torna possível a sempre
mutável apresentação da vida se manifestando em toda a sua multiplicidade”.
De acordo com a visão budista do mundo, eventos, fenômenos, objetos, coisas, sendo
matéria ou pensamento, como têm existência dependente de uma causa, estão sujeitos a
mudanças de acordo com as circunstâncias. Em última instância, somente o que não muda
pode ser considerado verdadeiro. “A sensação de continuidade e solidez do eu é uma ilusão
(...) o que gera o ego é uma seqüência de confusões (...). Uma vez que não podemos reter o
momento presente, também não conseguimos nos ater ao eu e ao meu, nem convertê-lo em
coisas concretas” (TRUNGPA, 1988 p. 29). A realidade relativa é aquela das mudanças, da
impermanência; a realidade absoluta é aquela da mente imutável, da vacuidade. Esta só pode
ser compreendida pela experiência, mas uma experiência onde não há separação entre sujeito
e objeto, embora o sujeito seja o objeto, e vice-versa, simultaneamente. Nas ciências, diríamos
que é necessário incluir o sujeito no ato do conhecimento, mas esse sujeito precisa se
conhecer para poder apresentar uma visão o mais clara possível do fenômeno.
104
Para finalizar, existe ainda um termo budista com forte apelo para o público ocidental.
É muito interessante que o estudemos sob o ponto de vista da temporalidade e da
ambigüidade que existem entre dois conceitos. Trata-se de bardo, que significa literalmente
“entre (bar) dois (do)”, ou “estado intermediário”, entre a morte e o renascimento; o estado
intermediário do qual se pode renascer em qualquer um dos reinos de existência do samsara
ou atingir a “verdadeira meta”, a iluminação. De acordo com as concepções budistas, porém,
nascimento e morte ocorrem também várias vezes na vida humana. São as pequenas mortes:
sono–sonho, mudanças, crises. Portanto, existem diferentes bardos, cada qual com seu estado
de consciência: skyes-nas bar-do é a consciência de ter nascido no mundo humano; rmi-lam
bar-do, a consciência no estado de sonho; bsam-gtan bar-do, a consciência no estado de
profunda meditação/contemplação); kchhi-kha bar-do, a experiência da morte; chhos-nyid
bar-do, a experiência da percepção da verdade primordial que está entre o instante em que a
mente se desliga do corpo e antes que nosso carma comece a determinar nosso próximo
nascimento; e srid-pa bar-do, a consciência no estado de renascimento.
Esses ensinamentos constam do Bardo-Thödol (Livro Tibetano dos Mortos), obra que
se dedica a esclarecer os acontecimentos logo após a morte, e terminam com o novo
renascimento, ou seja, com os três últimos bardos enumerados acima, os quais consistem em
três etapas ocorridas nos 49 dias subseqüentes à morte. Quando estamos no bardo,
vivenciamos de maneira potencializada nossas emoções mais constantes durante a vida.
Nosso futuro local de nascimento já está praticamente determinado em virtude das nossas
tendências cármicas ou hábitos. Qualquer mínima alteração em nossa percepção, como, por
exemplo, uma explosão de raiva ou o sentimento compassivo por alguma das visões que
estamos experimentando, pode alterar esse “destino”. Isso eu chamo de “determinação sem
determinismo”: existem instantes nos quais é possível alterar radicalmente qualquer
105
tendência. Qualquer destino é transmutável, não há destino inexorável. Há um momento de
escolha verdadeira que, para o budismo, é a porta que se abre para a libertação do samsara.
De certa maneira, as escolhas livres são portas abertas para o novo, que não
correspondem às expectativas que criamos – ao contrário, estas são os maiores obstáculos
para a experiência da liberdade. As escolhas livres se contrapõem às leis históricas e ao
congelamento das comunidades no refrigerador das teorias. A liberdade, assim, não está na
busca do passado, nem em sua negação, porque isso é impossível na realidade relativa. A
liberdade reside na mudança de atitude, na escolha indeterminada, na decisão não respaldada
em desculpas ou subterfúgios. A liberdade é uma abertura para um futuro amplo de
possibilidades. Voltaremos a esta discussão no capítulo 3.
Por enquanto, basta destacar que, no budismo, o indivíduo é o ponto de partida da
verdadeira mudança, quando não se conforma com a condição de “determinado pela história,
pela sociedade, pela genética”. O indivíduo é o ponto de confluência de todas as
temporalidades: cósmicas, biológicas e sociais e, assim, é capaz de refletir sobre si mesmo.
Doença, velhice e morte são as principais determinações que vêm do futuro e, para enfrentá-
las, os homens se organizam, se colocam no mundo, produzem cultura. A identidade homo
sapiens não é marcada pela cultura, mas pela consciência da morte, que explode na criação
das técnicas, mitos, costumes; na criação de um mundo real e imaginário ao mesmo tempo.
Os homens fizeram ciência, criaram deuses, subjugaram os outros e engrandeceram a si
mesmos, fizeram-se únicos herdeiros e detentores do conhecimento. Abriram abismos entre
eles e se esqueceram da condição igualitária que os uniam.
106
“Complexidade” é um termo em cuja raiz significa “reassociar, religar”; diz respeito
àquilo que é tecido em conjunto e à indissociabilidade dos fenômenos. Essa idéia está
presente na Lei da Causalidade, da Interdependência e nos conhecimentos Abhiddharma e
Prajanaparamita. O budismo demonstra a transitoriedade de todas as coisas, a lei da
impermanência: nada e ninguém permanecem iguais a si mesmo. Na realidade relativa,
estamos sempre “preparando” um ego que lide com as transformações. Nossa vivência da
realidade é um trânsito entre estados intermediários que nos desconcertam, nos causam medo,
angústia e detonam mecanismos de defesa. Viver bem nessa incerteza é uma arte.
A definição de shunyata elimina a existência de fenômenos a serem estudados como a
coisa em si, mas mostra que os objetos da ciência, por exemplo, são sistemas de relação entre
elementos constitutivos. A coisa em si não importa; o que importa são as relações entre as
diversas partes constituintes dessa coisa, sejam elas causas ou condições, as quais, se forem
modificadas, mesmo que infimamente, farão emergir um novo fenômeno. O budismo é uma
voz que está de acordo com a biologia dos sistemas, com o objetivo de Edgard Morin de ligar
razão e imaginação, liberdade e determinismo e com as estruturas dissipativas, uma vez que
concebe um mundo sem fundação, constantemente emergindo da inter-relação ordem,
desordem e organização, redimencionando elementos extraídos do passado e abrindo o futuro
para o totalmente novo.
107
Existem e já foram decantadas as semelhanças entre os princípios da mecânica
quântica e a explicação budista a respeito da vacuidade e da aparência dos fenômenos
25
. Em
termos budistas, a física clássica do século XVII é adequada para a realidade relativa e,
convenhamos, mostrou que funciona muito bem para uma série de fenômenos, para o
desenvolvimento tecnológico, para a melhoria das condições de vida, etc. Contudo, ao que se
refere à realidade absoluta, seus conceitos, fundamentos e princípios apresentam-se
insuficientes para descrever uma realidade sem fundações.
. . .
Os “estados aflitivos” do conhecimento antropológico são muitos. Não reconhecer
uma definição de homem suficiente para contrapor à determinação linear da sociedade, da
cultura, ao reducionismo genético é um desses. A antropologia sofre os efeitos da separação e
do isolamento: (1) a contraposição natureza e cultura é a principal delas; (2) a crença de que
existe um sujeito, o cientista, que, separado do universo, da vida, da realidade dos grupos e
dos indivíduos (definidos pela diferença) que estuda, isto é, sobre os quais recolhe dados
sobre costumes, economia, organização social; (3) a ausência da reflexão filosófica pela qual
o homem é incluído na ciência como produtor e produto; (4) a relação entre os antropólogos e
seus “observados”, sem interlocutores, sem diálogo, sem reconhecimento da universalidade.
E, por fim, o encarceramento em um tempo linear e mecanicista.
25
Como é o caso do livro O Tao da física de autoria do físico Fritjof Capra.
108
A crise da antropologia parece permanente (CASTORIADIS, 1987) e periodicamente
encontra-se uma nova chave para a explicação de todos os problemas colocados pela
disciplina. Se a busca do universal e da generalização foi a marca do evolucionismo, e se os
pressupostos do evolucionismo do século XIX foram caindo pouco a pouco, a reação é
mecânica: o particularismo é colocado como resposta definitiva para as questões do humano.
Vimos como o pensamento complexo busca os dois, e como o budismo procura ir além deles.
Sob a perspectiva da complexidade, muita coisa muda: a ciência perde parte
considerável de sua propriedade, ou seja, as certezas, precisões, previsões, infalibilidade; a
relação sujeito– objeto reincorpora, na objetividade da ciência, a subjetividade do cientista e a
compreensão de que não existe objeto sem sujeito que lhe signifique. É rompida a barreira
cartesiana que separou a res extensa e o cogito, transformou a subjetividade em ruído e o
objeto em instrumento, separou o determinismo do objeto do indeterminismo do sujeito
(MORIN, 2003, p. 63).
O ser humano pousou seu olhar sobre o mundo, primeiro enfatizando o mistério, o
inominável, os tempos primordiais. Na sociedade ocidental esse olhar encantado foi
substituído pela razão científica e causalista, linear e simplificadora. Com o avanço da própria
ciência e a visão ampliada pelas descobertas das ciências naturais, foi possível contemplar a
complexidade dos fenômenos. O budismo, por sua vez, se apresenta como uma alternativa
que engloba esses diferentes olhares, respeita a tradição e reflete analiticamente sobre os
fenômenos, enquanto procura manter seus múltiplos enraizamentos e o vazio inerente a todos
os fenômenos.
109
Segundo a tradição budista, a visão que temos da realidade é deturpada. Primeiro,
percebemos alguma coisa para, depois, olharmos e tomarmos consciência dela. Damos-lhe um
nome e a associamos com experiências passadas, mas ver verdadeiramente alguma coisa é
aceitá-la como ela é, sem referência a nenhuma experiência passada ou conceito. Religião,
filosofia, ciência são estratégias para tornar palatáveis as experiências no samsara, mas não
podem fornecer uma verdade última. Sobre o samsara, só podemos afirmar a impermanência,
a partir da qual entendemos continuidade e descontinuidade. Por sua vez, a complexidade não
nega a razão, mas evita cair na cegueira do racionalismo rasteiro. Está fundamentada na
racionalidade, entendida como diálogo entre nossa estrutura mental, nosso patrimônio social e
a realidade que se nos apresenta, que não é imóvel nem monótona, mas dinâmica e mutante. A
complexidade enfatiza o diálogo, inclui imperfeição, está para considerar o mundo, e não para
revelar sua essência.
110
2. Temporalidades
A mudança é a única constante da realidade relativa.
Lama Yongey Mingyur
As coisas que se vão não voltam nunca,
Todo mundo sabe disso,
E entre o claro gentio dos ventos
É inútil queixar-se.
Federico Garcia Lorca
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir
Senão no seu tempo?
Alberto Caeiro
Laymert Garcia dos Santos comenta em artigo (1992) o encontro de duas culturas
representadas pelos pajés e antropólogos, que vivem planos de realidade diferentes e
impossíveis de serem conciliados, porque se trata de sociedades que vivenciam tempos
diferentes: o tempo do mito por um lado e, de outro, o tempo da história. Tudo isso é correto,
mas podemos ir além e perguntarmos se esses planos são realmente inconciliáveis, se não
existe um ponto intermédio que possibilite o diálogo. Para isso, é necessário exorcizar a
linearidade simplificadora, extrair das entranhas do pensamento três idéias: 1) que existe um
caminho plano pelo qual se vai do mais simples ao mais complexo; 2) que “continuidade” e
“ruptura” são termos que se excluem; e 3) que a universalidade humana pode ser inferida pela
111
história. Essas três idéias amalgamadas resultam na rigidez dos valores científicos, na
ausência de uma reflexão sobre nós mesmos, produtores de ciência e no julgamento dos
valores do outro baseado nos valores da ciência ocidental entre os quais é peça fundamental a
concepção mecânica, tecnológica e linear do tempo.
Pensado de forma linear, o tempo está fadado se tornar um entrave para as ciências
sociais. Os estudos em que a dimensão temporal da experiência humana encontra espaço têm
se caracterizado por uma forma bilateral, em pólos opostos, de um movimento que encarna a
imagem do tempo do relógio mecânico. O resultado disso é o encilhamento das diferentes
experiências temporais aos pares de opostos pendulares: o tempo é profano ou sagrado, do
mito ou da história, moderno ou arcaico, fluir ou medida, circular ou linear, reversível ou
irreversível. Desse modelo são reproduzidas outras idéias paralisantes: a sociedade é arcaica
ou moderna, é histórica ou a-histórica, possui Estado ou é sem Estado, embora os cientistas
sociais se recusem a fazer comparações. Não existe problema em fazer comparações, desde
que sejam conscientes e com limites estabelecidos. O uso e a produção do conhecimento daí
decorrente é resultado de uma sociedade que, como as demais, pensa o tempo e vive sua
temporalidade própria. O discurso do intérprete também está atrelado às formas particulares
de ver o tempo e a temporalidade.
Existem vários exemplos em que o simples é colocado como oposição e anterioridade
ao complexo. Podemos reconhecer essa idéia nas visões retrospectivas, para as quais a
percepção do tempo entre os gregos sofreu uma evolução no sentido de aguçamento, melhoria
e afinação com a realidade. Whitrow (1993) apresentou uma história das medidas de tempo
inspirado no desenvolvimento de técnicas de medição que se apresentam par a par com a
112
capacidade de apreensão do tempo. Essa aptidão foi relacionada ao aperfeiçoamento da
percepção humana e ao desenvolvimento de uma racionalidade cada vez maior, que pode,
também, significar a passagem do pensamento mitológico para o pensamento filosófico.
Segundo esse ponto de vista, o tempo do mito é progressivamente substituído pelo
tempo da filosofia, racional. Essa transformação seria resultado do desenvolvimento das
técnicas de medição. Em outras palavras, conforme vão surgindo necessidades de controle do
tempo, em vista da agricultura, da produção de excedente, do comércio e do contato com
outras sociedades, as soluções da tecnologia permitem um aprimoramento da percepção do
tempo. Aqui há um modelo de interpretação que relaciona o mundo das idéias ao mundo dos
fenômenos e da ação humana. A organização social e econômica reflete-se no modo de
pensar. O reflexo é uma forma mecânica e de mão única de interpretar relações complexas
entre diferentes planos de organização da sociedade e vivência individual.
Para mostrar que não existe um caminho plano pelo qual se vai do mais simples ao
mais complexo, é necessário retomar os fundamentos do pensamento científico ocidental. Isso
possibilita colocar em evidência as inúmeras conexões e correlações, presenças e apropriações
de temporalidades diversas que se agregam, se associam e se integram até emergir o tempo
domesticado, encilhado na medição, estrangulado entre o trabalho, o lazer e a experiência
religiosa; racionalizado pela ciência mecanicista e dualista. Existem três motivos para iniciar
um levantamento da concepção de tempo a partir dos gregos: a) a fundação grega de boa parte
do pensamento ocidental; b) o grande passo dado pelo pensamento grego da mitologia para a
filosofia; e c) o crédito de terem elaborado as principais indagações filosóficas a respeito do
tempo (LLOYD, 1975).
113
Essas três afirmativas carecem de algumas observações. Quanto à primeira, não
podemos esquecer as contribuições do pensamento judaico-cristão, as novas formas de
trabalhar com a vida cívica e privada instaurada pela cultura cosmopolita romana e,
principalmente, a persistência do pensamento pagão da Europa romanizada, que não foi
submetido com a mesma eficácia com a qual as legiões conquistaram os territórios. As
explorações do pensamento grego sobre o tempo, mais do que demonstrar a existência de uma
única concepção, apontam para o fato de que, pelo uso de diferentes termos para designar o
tempo, os gregos da antigüidade possuíam o entendimento de diversas temporalidades
(D’AMARAL, 2003). Isso pode ser visto tanto na arte dos aedos
26
, como na filosofia, que
não apresenta uma uniformidade nas definições de tempos, ora inclinada às imagens lineares,
ora às cíclicas, tornando impossível referirmo-nos a uma única idéia grega de tempo. Por fim,
a passagem do pensamento mitológico para o pensamento filosófico, que é o objeto desta
parte do estudo.
Para a maioria dos autores consultados, é possível traçar uma linha divisória entre as
concepções filosóficas e não filosóficas. Essa divisão cria a ilusão de que esses momentos são
determinados e seus limites são facilmente marcados, além de promover a idéia de
progressão. O que se percebe é que em muitos casos eles nem podem ser chamados de
divergentes. O desenvolvimento dentro das antigas concepções, no sentido da “velha”
evolução, deve ser ultrapassado. É preciso levar em conta as interações, destacar o novo, o
ruído, as alterações que surgem no interior das ordens estabelecidas – elementos capazes de
abrir opções de caminhos e, portanto, possibilidades de mudança.
26
Poetas do período arcaico que cantavam os mitos em ocasiões propícias e tinham por missão trazer à
lembrança de todos o início dos tempos e evocar os deuses.
114
2.1. O Pensamento Arcaico
Quando nos referimos à Grécia antiga, subentendemos uma longuíssima duração,
cerca de mil e setecentos anos, dividida pelos historiadores em cinco períodos: Pré-Homérico
(séculos XX-XII a.C.); Homérico (séculos XII-VIII a.C.); Arcaico (séculos VIII-VI a.C.);
Clássico (séculos V-IV a.C.); e Helenístico (século IV a.C. até a incorporação ao Império
Romano). Mesmo que reduzamos esse período e consideremos relevante o período Homérico
em diante, ainda restam 900 anos, dos quais somente os 200 últimos foram contemplados por
uma reflexão filosófica. Além disso, a formação da população da Grécia antiga compõe-se de
vários povos de origem indo-européia, que chegaram à península em momentos diferentes
27
.
Isso torna improvável explicar fenômenos pela simples narração linear ou descrição, mesmo
exaustiva, dos acontecimentos.
As concepções não filosóficas referem-se àquelas dos poetas Homero e Hesíodo, que
têm em comum a forma épica do verso e a ligação com a tradição oral, fundamental para
assentar num mesmo patamar a forma como esses dois poetas estabelecem o tempo
(RICOEUR, 1975). A poesia arcaica apresenta a vida humana como transitória apontando
para uma consciência da finitude; os deuses são imortais, mas não há uma clara idéia de
eternidade, nesse campo as noções abstratas de tempo são caracterizadas como
“rudimentares” (LLOYD, 1975, p. 139). A diferença entre mortais e imortais reside na
experiência da velhice e da morte que os primeiros protagonizam e que revela as mudanças no
27
Os aqueus devem ter chegado por volta do ano 2000 a.C. no Peloponeso; jônios e eólios chegaram em
aproximadamente 1700 a.C.; e dórios penetraram na Grécia por volta de 1200 a.C.Há, ainda, outras datações que
colocam os jônios chegando por volta de 1950 a.C., aqueus e eólios em 1580a. C.
115
decorrer da vida. Quanto à postura diante do papel do poeta e o público ao qual se dirigem,
estão em posições bem diferentes, Homero dirige-se à sociedade letrada e Hesíodo à
sociedade agrícola analfabeta, mas ambos fazem referência a um passado indeterminado,
mitológico, identificado com o tempo das sociedades arcaicas.
A Ilíada é um poema épico, surgido em cerca de 725 a.C., que descreve a civilização
micênica que floresceu antes da invasão dória, por volta de 1200 a.C.; evoca uma sociedade
que viveu entre a queda de Micenas e a época de Homero, apontando para a tese de que a
Ilíada e a Odisséia foram obras resultantes da fusão de poemas de vários autores
desconhecidos predecessores de Homero, que relataram o período após a queda de Micenas e
a invasão dória, marcado por profundas transformações no modo de vida grego: a organização
por gens, pouca atividade comercial e artística e concentração na agricultura.
Os mitos gregos são conhecidos através de Homero e Hesíodo em sua forma escrita,
não têm a característica do mito vivo, do sagrado e do numinoso, não sustentam nenhum rito.
Mas essa não é uma regra, pois há culturas que, apesar de terem feito o registro de seus mitos,
sustentaram com eles um ritual, como é o caso do Livro tibetano dos mortos. A religião grega
se ancorou no aspecto cívico e oficial; cada deus era o protetor de uma cidade que lhe erigia
um templo e lhe rendia homenagens. Coube às religiões de mistérios vindas do oriente ocupar
o lugar destinado ao sagrado.
Em Homero, encontra-se um amplo leque de termos para designar o tempo em suas
mais sutis diferenças. Esse tempo é carregado de afetividade e não apresenta a conotação de
um continuum, nem expõe de forma clara qualquer concepção a respeito da temporalidade:
116
“O tempo em Homero é essencialmente isto: algo que não existe, a experiência do vazio puro
e simples” (BORNHEIM, 2003, p. 97). Personificado, é pensado sempre em longos períodos
e experimentado de forma negativa, isto é, degenerativa. Como Penélope é a espera, uma
duração; tempo repleto de subjetividade; sem traço de cronologia. A pertinência ou não de
uma ação está relacionada com sua adequação aos fenômenos naturais. Assim, as tentativas
do pensamento moderno de encontrar nessa obra o embrião do que viria a ser o tempo na
posteridade são infrutíferas.
Durante os três séculos subseqüentes, a estrutura das gens entrou em colapso; os
alimentos escassearam, e a propriedade privada substituiu a propriedade comunal. Somente
por volta do século VIII a.C., verificou-se o renascimento do comércio e da moeda e o
ressurgimento das cidades. A insistência em colocar e esclarecer datas e períodos tem como
objetivo mostrar que a ordenação cronológica dos grandes fatos não é suficiente para a
compreensão dos acontecimentos ou do presente. Há uma consciência da sucessão, existe uma
seqüência de acontecimentos, alguns datados com maior ou menor precisão, mas é nos
meandros, nas entrelinhas, que a simultaneidade e os cruzamentos dos diferentes tempos se
apresentam com vigor.
Os trabalhos e os dias, poema que Hesíodo (séc. VIII – VII a.C.) dedica a seu irmão
Perses, com o qual está em litígio pela divisão dos bens paternos, foi concebido num
momento de crise agrícola, social e religiosa. A cultura grega, até então organizada em torno
de atividades agrícolas, passa por um período de transição para a centralização espacial e
administrativa da pólis. A escassez de terras para os pequenos agricultores contrasta com o
florescimento da moeda, do alfabeto e do comércio. Mesmo após as reformas de Clístenes
117
(arconte em 506 a.C.), tais como a unificação do calendário, a relação com os fenômenos
naturais ainda marcava a passagem do tempo e a periodização das atividades (VERNANT,
1990). Novo e velho coabitavam no contexto socioeconômico da Grécia hesiódica; por isso,
de acordo com Eliade (1989), ocorre uma sistematização desses mitos pré-históricos em
paralelo à ocorrência de princípios racionais.
Diante desse quadro social e histórico, é mais cômodo considerar, não de modo errado,
mas de forma superficial, que, para Hesíodo e seus contemporâneos, a passagem do tempo
está marcada por fenômenos naturais e cíclicos. Pode-se afirmar que essa é a imagem mais
antiga do tempo? A questão do círculo como imagem do tempo é controversa. Para Ricoeur
(1975) e Leach (1974), isso não existe na fase arcaica; somente com a filosofia de Platão e
suas órbitas perfeitas de um mundo ideal é que essa concepção foi introduzida no pensamento
grego. Entretanto, Eliade (1989, p. 47) afirma que o tempo cósmico é circular e, em algumas
culturas, se confunde com o ano. Por enquanto, a proposta aqui é mostrar que em Hesíodo
estão implicadas outras temporalidades, que mostram uma complexidade.
Entre outras categorias, o tempo reflete e molda a prática social, constrói um modelo
de mundo; no indivíduo, o sentimento do tempo delineia sua personalidade. Assim, cada
sociedade constrói e representa seu tempo e, através dele, percebe seu mundo. As diferentes
formas de entender, explicar, incorporar, representar o tempo e viver a temporalidade “são
componentes essenciais da consciência social, cuja estrutura reflete os ritmos e as cadências
que marcam a evolução da sociedade e da cultura. “O modo de percepção e de apercepção do
tempo revela inúmeras tendências fundamentais da sociedade e das classes, grupos e
118
indivíduos que a compõem. O tempo ocupa um lugar de primeira plana (sic!) no ‘modelo do
mundo’ que caracteriza esta ou aquela cultura” (GOUREVITCH, 1975, p. 263).
No poema Os trabalhos e os dias, após evocar as musas, Hesíodo clama a Zeus para
estabelecer a justiça e a medida adequada para o tempo. Os primeiros versos, “o forte
enfraquece” (v. 5), “o brilhante obscurece e o obscuro abrilhanta” (v. 6) expõem a forma
como o tempo é percebido pelas qualidades que se alternam num movimento pendular.
Apresentam-se como fases que se alternam como dia e noite, nascimento e morte, juventude e
velhice, marcando ciclos tais como as estações do ano.
Ao homem cabe, para ser favorecido pelas forças divinas, discernir a ação pertinente a
cada situação. Essa adequação das ações humanas às qualidades do tempo é a mensagem que
Hesíodo passa a Perses, que deveria compreendê-la para travar a boa luta: “Não há origem
única de Lutas, mas sobre a terra duas são! Uma louvaria quem a compreendesse, condenável
a outra é, em ânimo diferem ambas” (v. 11-13). É característica do homem arcaico dar
significado real à vida conforme revive os arquétipos e respeita as leis cósmicas (ELIADE,
1992, p. 89). Dessa forma, “o tempo não decorre segundo uma sucessão cronológica, mas
conforme as relações dialéticas de um sistema de antinomias do qual nos resta marcar a
correspondência com certas estruturas permanentes da sociedade humana e do mundo divino”
(VERNANT, 1990, p. 32). O cosmo é um tecido cujas células são teofanias, múltiplos centros
gerados por si mesmo e limitados pelas Môirai (constituição e limite), que definem o que o
ser é e pode ser e negam o que não é e não pode ser (TORRANO, 1991).
119
O passado surge como um valor em oposição ao presente de degeneração, deterioração
da existência humana. Porém, afirmar que a noção de tempo é dada pelas relações dessas duas
escalas e decorre de suas relações dialéticas é somente uma pequena parte daquilo que
chamaremos “concepção hesiódica do tempo”. O tempo arcaico ou mitológico é complexo.
Os poemas de Homero e Hesíodo desenvolvem temas muito antigos, e é difícil precisar onde
inicia sua concepção de tempo e terminam aquelas que se perdem no passado mais remoto.
Para Eliade (1989, p. 10), o mito é um fenômeno humano, cultural, criativo e está presente em
todas as religiões, mas nas sociedades arcaicas está em estado primordial, é vivo; por isso vale
a pena priorizar seu estudo.
O tempo da degeneração é induzido da decadência social, política e econômica do
período de Homero e Hesíodo em relação ao passado de Micenas. Para as sociedades
tradicionais, os atos mais importantes da vida ocorrem no início do mundo, e o homem deve
repeti-los infinitamente para mantê-los na memória e, assim, vivos. O tempo profano leva
para longe os estados de perfeição relacionados com a origem de alguma realidade (ELIADE,
1989, P. 50). Podemos exemplificar com o mito das raças de Ouro, Prata, Bronze, Heróis e
Ferro, em Os trabalhos e os dias, Hesíodo sugere que a ordem em que passam a existir e
desaparecem, isto é, degeneram, diz respeito a uma hierarquia que tem como vértice o ponto
mais próximo da perfeição.
Hesíodo enfatiza os perigos do excesso, do descontrole, assim como relaciona a
justiça a uma adequação temporal; afirma que a probidade das ações está circunscrita à sua
afinidade com o tempo: “Tu, ó Perses, escuta a Justiça e o Excesso não amplies! O Excesso é
mal ao homem fraco e nem o poderoso facilmente pode sustentá-lo e sob seu peso desmorona
quando em desgraça cai” (v. 213-215). O tempo assim apresentado é “um aspecto da
120
disposição moral do universo” (LLOYD, 1975, p. 142) e qualifica as ações humanas. Hubris e
diké são propriedades que emanam de acordo com sua disposição no tempo
28
.
A Teogonia, “o texto pré-filosófico mais importante do ponto de vista da evolução do
pensamento cosmológico” (LOYD, 1975, p.140), trata especificamente de uma experiência
temporal marcada pela oralidade. “Em Hesíodo as palavras são forças divinas” (TORRANO,
1991, p. 18), que transformavam em realidade fatos do início do tempo que se repetem,
restauram a vida, fazem retornar aos estados primordiais o tempo e o mundo. Essa obra é o
foco de nossa atenção porque as palavras são cantadas com força numinosa, que traz de volta
os seres e os tempos do princípio à realidade.
O poema inicia com a evocação das musas, que ensinam a arte do canto, da palavra e
da memória e concedem ao aedo o direito e o poder de recitar o mito. Enquanto as musas
trazem o seu canto à ordem temporal ontológica (TORRANO, 1991), o ato do poeta ao
recordar a origem dos deuses e do mundo é um fator essencial para a manutenção e
perpetuação do Cosmo e da divindade, invocados através da palavra sagrada e poderosa do
poeta. Trata-se, sem dúvida, de um retorno simbólico ao passado como fonte do presente e
origem de tudo o que existe. Esse retorno é proporcionado pela força numinosa da palavra-
nome, a força de nomear, ligando-se linguagem e tempo:
28
No I Ching, livro chinês de oráculos, há concepções similares, como o hexagrama Tui, Alegria. A Alegria é
uma coisa muito boa, mas, passado o seu limite, o seu tempo, ela se transforma em simples euforia. A euforia é,
por si só, uma desmedida.
121
Para a percepção mítica e arcaica, o que na presença se dá como presente opõe-se, à
uma, ao passado e ao futuro, os quais, enquanto ausência, estão igualmente excluídos
da presença. Assim, passado e futuro pertencem do mesmo modo ao reino noturno do
Esquecimento até que a Memória de lá os recolha e faça-os presentes pelas vozes das
Musas.
(TORRANO, 1991, p. 27).
O mito narra como uma realidade passou a existir, sendo sempre a narrativa de uma
criação, uma história sagrada que é periodicamente ritualizada e reatualizada, com o objetivo
de reverter o tempo e retroceder os processos degenerativos: “embora diferentes em suas
fórmulas, todos esses instrumentos de regeneração [os ritos] tendem a caminhar para um
mesmo propósito: anular o tempo passado, abolir a história por meio de um contínuo retorno
in illo tempore, pela repetição do ato cosmogônico” (ELIADE, 1992, p. 74).
Após a evocação das musas, encontramos no poema a apresentação dos deuses
primordiais, as forças criativas e primevas:
Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também
Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,
dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado
e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,
e Eros: o mais belo entre Deuses imortais,
solta-membros dos Deuses todos e dos homem todos
ele doma no peito o espírito e a prudente vontade
(v. 116-122).
122
Caos, o primeiro momento, é uma totalidade completa e andrógina em estado de
unidade primordial, até que um impulso faz com que se rompa e se desmembre. A totalidade,
o uno, de onde saíram Géia (Terra), Tártaro e Eros (o elemento que liga), parte material,
imaterial e o trânsito que correspondem ao manifesto, ao imanifesto e ao movimento entre as
duas realidades, ao mundo objetivo e subjetivo, lugar dos vivos e dos mortos,
respectivamente. Aqui se entra numa parte do domínio que se convencionou chamar de
“pensamento mítico”, para o qual o real implica duas categorias: a manifesta e a não-
manifesta. Mas o pensamento mitológico não considera essa divisão como uma ruptura. Nesse
nível da realidade, as duas categorias estão simultaneamente presentes. Todas as coisas,
sentimentos, acontecimentos vão se alternando; não existe uma divisão definitiva, nem
contradição entre elas, são uma e duas simultaneamente.
Três grandes soberanos dominam o Cosmo: Urano, Cronos e Zeus. Urano,
personificação do céu, é filho e esposo de Géia. Unidos em casamento sagrado (hierogamia),
geraram os titãs (Ocenao, Geos, Crio, Hipérion, Jápeto e Crono) e as titãnidas (Téia, Réia,
Têmis, Mnemosine, Febe, Tétis), ciclopes e hecatonquiros. Sua descendência corresponde aos
deuses primordiais e reina num mundo em estado de violência telúrica e escura.
Quantos da Terra e do Céu nasceram,
filhos os mais temíveis, detestava-os o pai
dês o começo: tão logo cada um deles nascia
a todos ocultava, à luz não os permitindo,
na cova da Terra. Alegrava-se na maligna obra
o Céu. Por dentro gemia a Terra prodigiosa
123
atulhada, e urdiu dolosa e maligna arte (v.154-160)
Assim, entre os filhos de Urano, Cronos, o mais novo, odiava o pai e atendeu ao
chamado da mãe Terra, que não tolerava receber novamente em suas entranhas os filhos que
Urano negava à luz. Aquilo que deveria se manifestar era impedido, o tempo permanecia
latente, as potencialidades não se revelavam.
Assim falou. Exultou nas entranhas Terra prodigiosa,
colocou-o oculto em tocaia, pôs-lhe nas mãos
a foice dentada e inculcou-lhe todo o ardil
(v. 173-175).
Munido de uma foice e com o pensamento sinuoso, pleno de voltas, Cronos espreitou
até que Urano deitasse novamente com Géia e cortou-lhe os testículos, vingando a mãe e
libertando os irmãos. Do sangue do ferimento, nasceram as Erínias, os Gigantes e as Ninfas
Mélias ; dos testículos lançados ao mar, surgiu Afrodite. Alijado de sua potência, Urano
destronado é substituído por Cronos, que, com Réia (outra manifestação da mãe-terra) teve
muitos filhos. Mas a prole, Héstia, Hera, Deméter, Hades, Posídon, era engolida tão logo
nascia.
E engolia-os o grande Cronos tão logo cada um
do ventre sagrado da mãe descia aos joelhos,
tramando-o para que outro dos magníficos Uranidas
não tivesse entre os imortais a honra de rei.
124
Pois soube da Terra e do Céu constelado
que lhe era destino por um filho ser submetido
apesar de poderoso, por desígnios do grande Zeus
(v. 459-465).
Mais uma vez conspira-se contra o soberano. Atendendo às súplicas da filha, Terra e
Céu Constelado levaram Zeus, que já havia sido apontado como o destronador do pai, logo
após o parto, para seu criado na região de Lictos, onde seria alimentado por uma cabra.
Novamente o momento da queda do rei se apresentava. Apesar das diferenças, os fins e os
meios assemelham-se: uma armadilha para a substituição do soberano que obscurece aquilo
que ele mesmo engendra para perpetuar seu domínio. Libertando também seus irmãos, Zeus
passa a reinar entre eles. Desposando deusas e mortais, estabeleceu seu domínio e gerou os
deuses Olímpicos, Atenas, Apolo, Artemis, Perséfone, entre outros, e os heróis, como
Hércules.
Rápido o vigor e os brilhantes membros
do príncipe cresciam. E com o girar do ano,
enganado por repetidas instigações da Terra,
soltou a prole o grande Cronos de curvo pensar,
vencido pelas artes e violência do filho.
Primeiro vomitou a pedra por último engolida.
Zeus cravou-a sobre a terra de amplas vias
em Delfos divino, nos vales ao pé do Parnaso,
signos ao porvir e espanto aos perecíveis mortais
(v. 492-500).
125
O predomínio de Urano, Cronos e Zeus são circunscritos pelas partilhas das honras e
não devem ser vistos exclusivamente como três momentos diferentes e dependentes entre si, e
sim como três níveis diferentes, antagônicos, mas simultâneos e complementares, que são
encontrados na formação do universo e na unidade do próprio homem. Representam o Cosmo
em sua totalidade e diversidade, que, em contraposição ao Caos primordial, possui uma ordem
presente no movimento dos astros e planetas, nas estações climáticas, mas um ou outro pode
emergir a qualquer momento.
O tempo uraniano corresponde a manifestações das forças primordiais. São os
movimentos de divisão, reprodução, geração e união. O tempo de Cronos diz respeito às
manifestações de forças telúricas, às estações do ano, ao ciclo de vida–morte–renascimento na
natureza, e o de Zeus tende para a ordem social. O mundo, para o homem arcaico, é o
conjunto de manifestações teofânicas sucessivas e simultâneas, onde os domínios de cada
potestade (timai) estão sendo eternamente defendidos em conflitos e lutas entre elas. A
manifestação do deus é temporalidade e existência. Esses três tempos, no entanto, não estão
ligados numa ordem linear, nem há no poema nenhum indício dessa representação – eles
ocorrem simultaneamente. Os reinados anteriores não são aniquilados; permanecem
dissimulados, em estado latente, até que sejam lembrados, isto é, evocados no canto do poeta.
A interseção tempo–espaço, o real–presente é a presença de cada deus; o conjunto dessas
presenças teofânicas é o próprio mundo, onde cada deus é o predicado. Não há nas
concepções hesíodicas um tempo abstrato que inter-relacione as divindades em sentido único,
do passado para o futuro. Na aparente ordem cronológica de Caos a Zeus, há graus de
importância vinculados às cadeias de poderes, que se tornam mais fortes, violentos e
incomensuráveis à medida que se aproximam do princípio do universo.
126
O universo é continuamente criado, mas não é um presente eterno, pois se trata de um
mito de criação do mundo. Embora sejam narradas ou escritas em uma ordem, as fórmulas
temporais usadas por Hesíodo representam bem mais graus de importância e complexidade
que a cronologia propriamente dita: “o tempo não flui num único e irreversível sentido, mas
cada acontecimento, grande ou pequeno, tem o tempo que qualitativamente lhe é próprio”
(TORRANO, 1991, p. 57). Elas determinam níveis de profundidade, proximidade com a
origem, e não extensão e movimento linear. Na Teogonia, o tempo não existe como categoria
ou experiência cronológica, nem é sucessivo. Não é organizado por relações de anterioridade
e posterioridade. Essas nem mesmo se excluem para o pensamento arcaico.
O tempo são presenças evocadas que se contrapõem em pares complementares e
opostos. Assim, ao Tártaro se contrapõe o Mundo Ordenado de Zeus; Cronos continua
reinando no além-mundo, na época imperecível, no tempo opulento (TORRANO, 1991),
mostrando como os três reinos são irredutíveis à linearidade que ancora a percepção do
cientista social. A presença da divindade relaciona-se a uma experiência, e não propriamente a
uma crença (VEYNE, 1984). Antes e depois, em Hesíodo, indica “prioridade meôntica”, isto
é, do não ser sobre o ser, refere-se à envergadura da divindade. O nome da divindade é um
atributo substantivado, é uma qualidade que define a existência (DURAND, 2001). Existir
importa mais do que pertencer a algum conjunto. Desse modo, não causa espanto a
contemporaneidade de várias entidades, a menção de uma mesma deidade em diferentes
partes do poema.
Para Hesíodo, o mundo é um conjunto não enumerável de teofanias, séries sucessivas e
simultâneas de presenças divinas [...]. O Deus não é senão a sua superabundante
127
presença e está todo ele presente em todas as suas manifestações, já que a presença não
é senão manifestação, negação do esquecimento, verdade, a–léthea.
(TORRANO,
1991, p. 51).
A temporalidade de Hesíodo não é linear nem irreversível (VERNANT, 1990, p. 54),
mas nota-se que, no instante em que a primeira existência surge – a teofania –, desencadeia-se
o tempo, e, a cada evocação, novos tempos apresentam-se, cada um em sua forma justa, isto é,
de acordo com suas potencialidades e limitados pela potencialidade de outros deuses. Nesse
sentido, tempo é existência e manifestação, que, uma vez ocorridas, são irreversíveis. No
entanto, se repetem sem se repetirem, isto é, apresentando-se em momentos diferentes,
experimentada em ocasiões diversas pelos seres humanos. A potestade se repete, mas sua
manifestação é outra. Mais que sucessão de momentos, ela descreve camadas de idades que se
sobrepõem e que, quando são evocadas, emergem. Por isso, antes de cronológica ela é
genealógica.
O tempo é uma manifestação do ser divino, e sua percepção é uma experiência; uma
presença sentida, pressentida, convocada pelo poder da palavra, da dança e do ritual. O tempo,
dessa forma, não é a síntese de uma relação de causa–efeito, nem síntese dialética. Mais que
subseqüentes, os deuses devem ser vistos como contemporâneos. A base da existência divina
não é uma descendência linear, mas a própria teofania. “Na Teogonia, portanto, o tempo e a
temporalidade se subordinam ao exercício dos poderes divinos e à ação e presença das
potestades divinas” (TORRANO, 1991, p. 92). Mesmo o tempo na natureza, dos movimentos
sazonais, é a manifestação de deuses primordiais como forças telúricas ou cósmicas.
128
Não há, entre os seres divinos, uma seqüência de ordem temporal. O tempo sendo
manifestação divina não pode transcendê-la para hierarquizá-la. “Não há um antes ou depois
que inter-relacione as Divindades e as hierarquize segundo uma ordenação temporal, porque
não há um tempo único que as transcenda e possa assim reuni-las” (TORRANO, 1991, p. 89).
Toda fórmula cronológica usada no poema tem como objetivo definir a envergadura, a
importância de cada ser em relação ao outro, tendo bem mais um sentido valorativo, de
filiação e origem, do que propriamente cronológico. O tempo, não existindo como categoria
independente, mas vinculado à presença divina, não pode ser único, tampouco homogêneo,
tendo em vista a diversidade das manifestações. Somente quando se dá como manifestação do
divino, o tempo pode ser considerado existência concreta. Dá-se multiplamente tanto quanto
são múltiplas as manifestações e qualidades divinas, seus atributos e atribuições. A ordem de
aparecimento expressa a força da presença de cada divindade, a pujança de sua presença
revela sua existência ontológica e ontofânica (TORRANO, 1991).
Os tempos antigos, em que existiam as raças antigas, permanecem abrigados num
mundo imanifesto, latente; num instante numinoso, elas se manifestam das entranhas da
massa disforme do passado resgatado pela memória – sem marcos – feito de acontecimentos
desordenados, que se colocam em evidência, são inequívocos. A separação entre o mundo
profano e o sagrado não é medida em distância, mas na relação binária presença-ausência. A
qualidade numinosa dos deuses aproxima esses dois mundos. Imaginemos uma tela escura,
negra, a tal ponto que percamos a noção de distância, profundidade ou densidade. Em alguns
momentos, diferentes regiões dessa tela são iluminadas e, dessa forma, podemos distinguir a
imagem que se revela. Somente neles podemos deduzir se essa imagem é grande ou pequena,
se se encontra próxima ou distante. É a revelação dos deuses que surgem do indeterminado
que define as qualidades de sua aparição e, portanto, do momento.
129
Os poetas têm como missão sagrada trazer para o presente o passado valoroso,
redimindo a distância entre os homens e a perfeição divina do início da criação. É um
movimento de retorno curativo e regenerador do tempo, um trabalho de xamã. O passado dá
sentido para o presente numa conotação diferente daquela que a história oferecerá mais tarde,
porque está ancorada numa experiência individual, subjetiva e também corporal. Nos aedos o
passado determina o presente, mas é difuso, é o tempo das sociedades arcaicas, regulado pelo
mito. O passado evocado no ritual é diferente daquele que relacionamos com a história. Nem
mesmo Tucídides apresentaria uma história cronológica, que é criação bem posterior. “O
tempo é formado de uma seqüência de estações nitidamente separadas umas das outras por
‘cortes’ marcados por pontos temporais singulares servindo de referência no quadro de um
calendário anual” (VERNANT, 1990, p. 77). No entanto, essa temporalidade não é simples:
comporta características que contradizem a lógica formal e coloca, em um mesmo patamar,
significados conflitantes.
O pensamento mitológico apresenta-se com uma complexidade que nada fica a dever
ao pensamento científico, sem que isso signifique a existência, entre eles, de relação
indicando posterioridade e anterioridade. Assim, o que é válido para a sociedade grega arcaica
é adequado também para uma avaliação das concepções de tempo de outras sociedades não
ocidentais quanto à elaboração e à complexidade. Nem a tecnologia nem a ciência são as
responsáveis, causadoras ou pré-requisitos para se obter uma apurada vivência do tempo e
uma elaborada explicação dessa concepção. Como não há tempo único, cada presença
numinosa de cada deus instaura sua própria ordem temporal, a realidade é manifesta no
cruzamento de todos esses tempos, uma unidade complexa, múltipla e una, pluralidade que
130
perpetua a singularidade da cosmogênese. Essa singular e apurada forma de conceber o tempo
se dá, sem que se encontre uma palavra que o designe.
A percepção do tempo no ser humano não se desenvolveu até chegar a níveis
complexos. Ela começou complexa. Não foi o cruzamento de idéias mais ou menos
elaboradas que engendraram a teia do que seria uma concepção de tempo apurada, nítida ou
mais próxima da realidade. Não há uma concepção de tempo pura ou mais desenvolvida, mas
diferentes e infinitas combinações de elementos que se transformam e ocorrem em seu
contexto próprio. Também não há uma percepção do tempo mais simples em contraposição a
uma mais elaborada. A passagem do mythos ao logos não corresponde à passagem do simples
para o complexo. Mesmo as chamadas formas primitivas e arcaicas podem revelar um
elevado nível de elaboração e co-elaboração. A seqüência de modos de representar o tempo,
as reorganizações de suas representações podem conter elementos extraídos do contato entre
culturas, mas estão além da existência de difusão cultural. Vimos como o tempo de Hesíodo
se apresenta. A incompreensão da riqueza encontrada no pensamento mítico, no pensamento
arcaico, ou no pensamento oriental é decorrência da distância (RICOEUR, 1975) que se abre
à medida que a civilização ocidental foi se apoiando na racionalidade. A lógica conjuntista-
identitária (CASTORIADIS, 1982) é uma das formas de se observar, pensar e representar o
tempo. Além de colocar em evidência os limites do paradigma redutor, simplificador,
disjuntivo, mecanicista, em suma, ao paradigma do ocidente, a ênfase aqui é mostrar que essa
ordem é arbitrária.
131
2.1.1. A filha da cidade
No início do século VI a.C., na rica cidade de Mileto, localizada na Jônia, Ásia Menor,
o mundo dos poetas deu lugar ao mundo dos físicos, iniciando-se o processo que culminaria
no surgimento da filosofia grega. Os físicos da Jônia
29
eliminaram toda antropomorfia das
explicações cósmicas, excluindo os deuses da organização do universo e atribuindo às
afinidades da matéria a existência do mundo, isto é, realizaram uma abstração dos elementos
naturais: divindade e natureza se separam, e os diferentes planos de existência já não se
misturam. O poeta/xamã dá lugar ao sábio professor; o mistério da evocação do passado dá
lugar à palavra e ao ensino dirigido ao público; a argumentação toma o lugar da inspiração
divina, e o segredo é substituído pela doutrina. A partir de então, era apresentada uma theoria
para explicar o mundo, que não dispensava as imagens míticas, “as cosmologias dos filósofos
retomam e prolongam os mitos cosmogônicos” (VERNANT, 1990, p. 351), mas ancorava-se
em outros princípios de inteligibilidade.
Assim teria acontecido a passagem do mito à filosofia, relacionada com o
aparecimento da civilização urbana e participativa, da estrutura da pólis e da ordem política
que toma o papel ocupado pela ordem cósmica. Entretanto, a presença do divino está
indiferentemente no texto filosófico ou não filosófico. A explicação do mundo desses homens
de Mileto herdou a estrutura das explicações de mundo mitológicas e que se encontram em
Hesíodo. A nascente filosofia grega recebeu uma herança oriental (PEREIRA, 2006),
conjetura reforçada pelo fato de que a Escola de Mileto foi fundada por Tales, de origem
fenícia, que teria trazido a sabedoria dos mistérios egípcios para o pensamento filosófico
29
Vernant (1990) esclarece que os milésios eram físicos; o primeiro pensador a ser chamado de filósofo foi
Heráclito, mas o termo se torna justo somente para Platão e Aristóteles.
132
(BURNET, 1994). Além disso, existe um significado em ser essa cidade um ponto de
confluência, um local onde se reuniam grandes engenheiros e pensadores a serviço de reis
orientais.
Tales (624/625-556/558 a.C.), Anaximandro (609/610-546 a.C.) e Anaximenes (585-
528 a.C.), os físicos jônios, tinham uma relação mestre–discípulo; buscaram a permanência
em meio às mudanças verificadas no dia-a-dia, a unidade da matéria-prima do universo, que
poderia ultrapassar sua degeneração/decadência inevitável. Para Anaximandro, que floresceu
por volta de 565 a.C., por exemplo, os mundos surgem de um eterno movimento onde as
coisas lutam umas contra as outras. Esses opostos são derivados de uma realidade anterior que
continha os dois, e da qual surgem e à qual retornam por fim. “Todas as coisas se dissipam
onde tiveram a sua gênese, conforme a necessidade; pois pagam umas às outras, castigo e
expiação pela justiça, conforme a determinação do tempo.” (Fragmento 1, in: BORNHEIM,
1989, p. 25) Para ele, o princípio da physis é o ápeiron – indeterminado ou ilimitado – que
está em constante movimento, do qual resultam os pares opostos que constituem o mundo,
remetendo às colocações do poeta Hesíodo, quando evoca o Caos indiferenciado. A novidade
é que, nos físicos, a relação de antecedência e filiação adquire o sentido de causa–efeito.
Anaximandro ainda denomina o céu e os outros mundos de deuses e relaciona o movimento
da natureza à luta dos contrários e com o antagonismo divino, que resulta num processo
cíclico em que todas as coisas criadas perecem, como bem provava a observação simples dos
ciclos sazonais Como na manutenção da timai, cada um dos contrários estabelece sua luta
para manter o poder e ciclicamente se alternarem. Ainda é uma forma de relacionar o tempo à
ordem e à justiça cósmica, como ocorria na concepção arcaica dos aedos, só que não é mais
mitológica, e sim teórica; não mais divina, e sim natural.
133
O nascimento de um mundo ordenado a partir do caos é ainda a principal explicação
do surgimento dos fenômenos tanto para Hesíodo como para Anaximandro. As estruturas do
pensamento se correspondem até no pormenor. Em outras palavras, os filósofos encontraram
pronto um sistema de explicação do mundo que foi ajustado à uma nova realidade: a estrutura
da pólis, a troca intensa de informações através da complexa rede comercial e a ênfase na
razão, “que permite agir de modo positivo, refletido, metódico sobre os homens, mas não
transformar a natureza. Nesses limites, como nas suas inovações, ela é bem filha da Cidade”
(VERNANT, 1990, p. 374).
Seria uma tarefa impossível para este trabalho enumerar aqui todos os filósofos da
Grécia Por isso, foram selecionados aqueles que melhor ilustram aquilo que gostaria de
mostrar a respeito da complexidade do pensamento humano e de como ele não rompeu
totalmente com o mito. A filosofia não substituiu o pensamento religioso e mítico, o mistério
não foi banido do pensamento. Crenças, mitos e mistérios permaneceram nos cantões,
esconderijos, curvas e turbulências do caminho. A filosofia não rompeu com o pensamento
arcaico, foi capaz de trazê-lo para a modernidade; não guardou o apego à antiga tradição,
deixou a porta aberta para a experimentação. De maneira contraditória, veio como
continuação, mas instaurou novidades. Ao mesmo tempo diferente e semelhante à
organização mágico-mitológica, ela foi se desdobrando ininterruptamente, se afastando desse
ponto inicial e a ele se opondo, mantendo alguns elementos. Ao contrário do que ocorreu na
Índia, aproximadamente no mesmo período, a filosofia grega desvencilhou-se da religião, dos
mistérios e dos mitos, mas os reencontrou alguns passos adiante, na persistência de imagens,
símbolos e representações. Compreender esse movimento só é possível evitando as
134
armadilhas do pensamento redutor, simplista, fazendo um estudo que considere a
complexidade.
A contraposição entre mythos e logos pode ser colocada na forma de duas maneiras
básicas de se enviar uma mensagem: imagens e argumentos, o que não significava grande
diferença para os gregos da época arcaica. A eloqüência do poeta inspirado pelas musas
encerra qualquer discussão sobre a veracidade daquilo que canta. No entanto, o processo de
racionalização do mundo, sua transformação em um acontecimento natural realizaram uma
ruptura no enunciado do conhecimento. A linguagem poética, onde a sincronia da imagem era
capaz de transmitir a mensagem de maneira total e imediata, deu lugar ao discurso organizado
de forma diacrônica, fundamentado numa ordem de anterioridade e posterioridade. Então, não
são os elementos do discurso que determinam uma temporalidade, mas a forma como estão
dispostos. Isso explica como, apesar de diferentes, os fragmentos dos primeiros filósofos
contêm pressupostos herdados da cosmogonia poética: o início do mundo e do tempo; o
cosmo como resultado de separações e diferenciações de estados, que resultam em um mundo
formado de pares de opostos antagônicos e complementares que se atraem.
Entre Hesíodo e Tales não é possível encontrar exclusivamente uma ruptura, mesmo
construindo uma arqueologia do pensamento, retornando o mais longe possível no tempo.
Sempre haverá uma continuidade, uma ligação. Ir até a civilização de Micenas, ou antes,
buscar suas fontes primárias orientais, mesopotâmicas ou indianas não esclarece nada a
respeito da origem de um costume, de uma imagem, de um mito. A reconstrução histórica tem
limites, não é uma máquina do tempo capaz de fazer o pesquisador viajar pelo tempo e
reencontrar a origem absoluta de alguma coisa. A separação mythos e logos é uma tradição
135
dos manuais de história da filosofia. Nem existiu quebra entre as mensagens imagética e
discursiva, nem o discurso foi um milagre surgido do nada como Burnet (1994) considerou,
nem uma continuidade simples, tendência interpretativa conforme encontrada em Cornford
(1981). O pensamento humano é unidual; comporta tanto o empírico/técnico/racional, como o
simbólico/mitológico/mágico. Mythos e logos fazem parte da mesma realidade; são aspectos
concomitantes, simultâneos, complementares e antagônicos do espírito humano que nem as
sociedades históricas conseguiram separar (MORIN, 1987). No ocidente, a ciência distinguiu-
os, mas não erradicou o pensamento mitológico. A física moderna precisou retomar a imagem
para descrever a realidade subatômica: “a razão e a ciência só superficialmente se
desembaraçaram do pensamento mitológico e religioso, que voltou a introduzir-se
subterraneamente para constituir os ideos-mitos providenciais do racionalismo e do
cientificismo” (MORIN, 1992, p. 195). Há uma disputa entre dois universos em nosso
pensamento. Ambos vivem uma relação de complementaridade simplista: se um é positivo, o
outro só pode ser negativo; se um é real, o outro só pode ser irreal, mas sua conciliação pode
fortalecer nossas mentes.
Apesar das diferenças, que estão de acordo com o contexto social, econômico e
polótico, a reflexão sobre o théos está sempre presente. O sagrado, o mistério e o inalcançável
são centrais no pensamento humano (PEREIRA, 2006). “Irracional” é palavra indigna para
explicar o pensamento mítico e justificar seu desinteresse pelas provas, argumentos e
demonstrações. Mesmo esses termos são bem relativos, datados e específicos. É comum
inferir que o pensamento dos filósofos caracteriza-se pela complexidade de suas discussões,
pois a natureza do tempo é um tema freqüente em suas especulações, espalhando-se em um
leque de opções que se abre das mais próximas às contemporâneas, passando pelas influências
orientais, até as mais opostas. Com a filosofia, o tempo começa a ser analisado de forma
136
racional, interpretado, pensado como uma medida e cronologia (BORNHEIM, 2003, p. 99),
passando a falsa impressão de que as antigas concepções teriam sido suprimidas.
Um olhar atento deixa transparecer que o tempo, formalmente similar ao do poeta,
continua a ser visto como a própria justiça (inclusive em Platão muito mais tarde). Isso
sinaliza para que essa “antigüidade” não se apaga; que não há sobreposição de definições,
vivências ou entendimentos, visto que essas não são superações definitivas. Não obstante, não
são as mesmas; não se apresentam da mesma forma, nem se confundem.
É possível, e até mesmo desejável, que se estabeleça uma relação entre o surgimento
das cidades e o nascimento do filósofo. “Na verdade, a cidade realiza no plano das formas
sociais esta separação da natureza e da sociedade que pressupõe, no plano das formas mentais,
o exercício de um pensamento racional.” (VERNANT, 1990, p. 365) A ordem política tomou
o lugar da ordem cósmica, trazendo a idéia de lei universal na organização. Houve uma
retração do fascínio do mistério tenebroso, que está mais incisivo no pensamento relacionado
com experiências profundas (OTTO, 1992). A inteligência foi mobilizada para a explicação
dos fenômenos, mas a visão de mundo agora está estruturalmente relacionada às formas
institucionais e às estruturas mentais da pólis (VERNANT, 1990). Houve novidades,
conceitos e teorias, mas essas não eliminaram o velho, não havia etapas a serem superadas.
Outra inovação estava na fala em prosa, cujo objetivo era expor uma teoria explicativa, e não
narrar a partir de uma memória evocativa. A razão de um fenômeno não podia ser dada a
partir das linhagens divinas, mas através das regularidades e das leis. A filosofia racionalizou
o mito, isto é, colocou-o no vetor causa–efeito unilinear.
137
O desenvolvimento da filosofia na Grécia foi realizado com a colaboração de vários
pensamentos, acréscimos de outras concepções que lhe imprimiram nuanças, pequenas e
quase despercebidas modificações. Mas as transformações internas da sociedade grega
fizeram a diferença e introduziram a novidade e criatividade no pensamento grego. Esse
resultado emergente da reorganização de velhos modelos, novas informações e novíssimos
acontecimentos a história linear não é capaz de descrever. Existem brechas por onde se
infiltram vários aspectos culturais exteriores à geografia da Grécia e grandes bifurcações,
momentos de escolhas e decisões em que múltiplos caminhos se anunciam, mas somente um é
tomado. Um deles, profundo e importante, se infiltrou por toda a filosofia e teologia medieval,
marcando posteriormente a ciência, o iluminismo, o evolucionismo e o tempo. Sem que
possamos dizer que se alternam, se anulam ou se contrapõem, as filosofias de Platão (c. 428 –
347 ou 8 a.C.) e de Aristóteles (384 – 322 a.C.) estão presentes até hoje.
Platão sistematizou a filosofia existente até então, tanto a tradição eleática quanto a
heráclica, colocando o conhecimento em novos termos, sistematizando-o e organizando-o
como teoria. O método platônico para alcançar o conhecimento é a dialética, isto é, através de
afirmações e objeções. Objetivava alcançar a verdade por meio de um consenso na discussão
e utilizando argumentos de premissas verdadeiras. Isso é diferente da dialética empregada
pelos sofistas, que estabeleceram critérios de sustentação do argumento, independentemente
da falsidade das premissas. Foi por intermédio da síntese platônica que vários temas antigos
referentes ao tempo retornam à discussão: temas mitológicos e a idéia de tempos cíclicos que
marcam as gerações humanas e recomeçam em sentido inverso (VERNANT, 1990, p. 77),
todos adaptados à sua filosofia política e ética. Podemos citar, ainda, os ciclos de crescimento
e declínio, o futuro como o retorno a uma perfeição ideal e eterna. O tempo em Platão surge
138
com o universo criado, conforme Timeu, e refere-se ao movimento ordenado e regular
astronômico que coloca ordem no caos primordial.
O mito, em Platão, faz o papel de metáfora. Ao mesmo tempo em que se perpetua, se
transforma (VERNANT, 1990). Em relação ao tempo, Platão manteve a função equacionada
pelo mito, ou seja, era mais importante ultrapassar do que organizar o passado e transformá-lo
em conhecimento. Garantir a preponderância da eternidade sobre o tempo, preservar o
imutável, primordial e essencial era o objetivo dos exercícios místicos de memória:
Onde a memória é objeto de veneração, exalta-se nela ou a fonte do saber em geral,
da onisciência, ou o instrumento de uma liberação em relação ao tempo. Em nenhum
lugar ela aparece ligada à elaboração de uma perspectiva propriamente temporal (...)
mas para uma ascese purificadora que transfigura o indivíduo e o eleva ao nível dos
deuses.
(VERNANT, 1990, p. 127).
A filosofia se sobrepôs ao mito como forma de entendimento do mundo, de
organização e multiplicação dos valores de uma sociedade e, como o mito, preservava uma
verdade. Tanto no pensamento mítico como na teoria platônica da anámnesis, encontra-se o
tema da saída do tempo e da união com a divindade, mas em Platão a lembrança do passado
primordial está relacionada com a verdade, que constitui o real em oposição ao irreal, do
racional em contraposição ao irracional, do compreensível em relação ao incompreensível, o
mito como fábula e a verdade do filósofo. A ascese mística dá lugar à busca da verdade, que
deve estar contida desde as premissas do pensamento.
139
Outra novidade instaurada pelo pensamento de Platão foi o interesse pela política,
afinado com o seu tempo e no contexto da cidade-Estado grega. Sob o governo de Péricles
(460-430 a.C.), Atenas viveu sua fase áurea, expandiu seus domínios e refinou a democracia,
a participação dos cidadãos e a palavra na Assembléia. No entanto, apesar de qualquer
cidadão ter direito à palavra, essa democracia tinha limites, pois a cidadania excluía mulheres,
escravos e comerciantes e dependia da correta expressão. Daí o importante papel do filósofo
como educador, da filosofia como caminho para o exercício da política e da ética e a
particular relação com a cidade.
As explicações racionais da natureza e do tempo necessitavam, ainda, para se
consolidar, da coerência, da ausência de contradição, da clareza transparente de ser igual a si
mesmo e do princípio da identidade. Essas características de maneira articulada se
encontraram em Aristóteles, o ápice da suposta caminhada do mythos ao logos. A partir de
então, a ambigüidade do mito e do tempo de Hesíodo foi, se não erradicada, ao menos
combatida pelo pensamento ocidental e considerada parte da infância da humanidade.
Contrapondo-se a Platão, que considerou o tempo como mudança do imperfeito para a
perfeição existente na eternidade, Aristóteles entendeu o tempo como a medida do
movimento. Sua perspectiva era racionalista e causal. A retenção ou a abolição do tempo
estava relacionada ao estado de vigília, à consciência, ao despertar – quando se percebe a
passagem do tempo – e o sono, quando sem consciência do antes e depois, retemos o tempo
ou o abolimos. Aristóteles, com seu rigor racional, foi o primeiro grande intérprete do tempo
como uma das doze grandes categorias de pensamento. Ele desenvolveu “a primeira análise
filosófica exaustiva e sistemática do tempo” (LLOYD, 1975, p. 165). Em Física, passou em
140
revista as teses anteriores: tudo tem sua causa, o movimento supõe uma causa, e a causa de
todas as causas, a causa primeira, não causada por nada, inamovível; o motor imóvel. O
movimento é a passagem da potência ao ato. A noção de tempo é inferida do movimento, que
aponta para a existência de um estado anterior e um posterior. O tempo permite a passagem da
potência ao ato, realiza o movimento como passagem do antes para o depois, remetendo ao
encadeamento lógico de causa e efeito.
Movimento, tempo e ação se articulam de forma racional, sem contradição e a partir
de uma perspectiva causal, ancorada na existência de um motor imóvel, que engendra o
movimento como o eixo da roda, de onde saem os raios que criam o movimento circular. Da
continuidade do movimento, decorre a continuidade do tempo. De acordo com as colocações
de Aristóteles, percebe-se o tempo a partir de um fluxo de “agoras”. O tempo é uma medida
numérica de movimento que decorre da consciência do anterior e do posterior, da percepção
da mudança.
A questão levantada a respeito do rompimento entre o pensamento mítico e o
pensamento filosófico não é definitivo, porque não existe no espírito humano uma separação
categórica entre os dois. As distâncias entre arcaicos e modernos, entre tradição e ciência,
entre religião e filosofia podem ser reduzidas, e abre-se a possibilidade de diálogo entre elas
se reconhecemos a questão antropossocial fundamental contida na relação entre os dois
pensamentos. A estreita ligação entre eles se perde no espírito que só concebe a realidade
linear.
141
O surgimento do novo, do logos, da filosofia como um pensamento singular, porque
foi sistematizada de maneira racional é o resultado da confluência das mais variadas
microtransformações sociais Apesar do determinismo dos paradigmas, as idéias mudam, o
pensamento pode se libertar, as revoluções do espírito acontecem, o imprinting enfraquece e
aproveita as falhas, brechas, contradições, as certezas e dúvidas, os dogmas, cegueiras e
contestações. Essas bifurcações, essas aberturas para o futuro emergem da efervescência
cultural, na vida intelectual dialógica, quando a troca e as provocações colocam em diálogo as
idéias antagônicas, as diversidades do pensamento, a autonomia dos espíritos, que abrem
espaço para as múltiplas “pertenças”. A emergência do novo, resultado híbrido da agitação e
da estabilidade, da movimentação e do aquecimento cultural, se dá graças à permissividade
que abre portas e janelas para a expressão dos desvios, as corrosões das doutrinas, a reversão
das normas. Nos momentos revolucionários, como o foi o do período de urbanização, os
desviantes ocupam os veios de escoamento de suas idéias e apresentam as novas tendências,
um novo imprinting, uma nova possibilidade de institucionalização que trabalha em círculo
recursivo.
Sem ignorar as explicações de Jean-Pierre Vernant, que são bem pertinentes, é preciso
reafirmar as relações existentes entre comércio econômico e intelectual e o surgimento do
ponto de confluência e aquecimento dessas trocas – a cidade – como resultado de uma
trajetória não linear. A relação causa efeito, anterioridade e posterioridade não é simples. O
surgimento das metrópoles, concomitantes ao da escrita, incentiva um novo desenvolvimento
noológico
30
, liberto da tradição e que fazia surgir “em alguns homens aquilo que dormitava
no cérebro de toda a espécie Homo sapiens: a filosofia” (MORIN, 1988, p. 178). Essas
30
Termo cunhado por Teilhard de Chardin para designar o mundo constituído pelos fenômenos do espírito:
cultura, linguagens, idéias.
142
condições circulavam no espaço–tempo grego, que criou, mas também emprestou, modificou
e adaptou diferentes culturas com as quais teve contato. Assim, os movimentos colonizadores
e até os conflitos foram contribuintes para o surgimento da filosofia na forma como se
apresentou na Grécia do século V. O novo imprinting surge do rompimento da velha aliança e
apresenta muitos níveis de profundidade: comportamento, linguagem, até as transformações
paradigmáticas e a ocorrência de novas explicações.
Esse rompimento não significa que o pensamento mitológico tenha sido eliminado:
“uma nova e formidável concretização mitológica/religiosa acompanhou a constituição dos
Estados/nações modernos” e ainda podemos sentir “a presença oculta do mito no âmago do
nosso mundo contemporâneo” (MORIN, 1987, p. 145). Eliade (1992b) foi sagaz e apropriado
quando especificou a existência de duas formas de ser no mundo, mas o que se sinaliza aqui é
que essas maneiras de ser no mundo, de pensar o mundo, não são subseqüentes, nem
alternadas, nem agregadas – elas têm origem comum, fazem parte do pensamento humano. O
pensamento racional e o mitológico se combinam nas sociedades arcaicas e originam-se em
comum no espírito-cérebro sapiens. O Arqui-Espírito é o momento em que os dois estavam
associados, imagem e palavra, o prosaico e o poético, e compartilhavam a origem num único
circuito, do qual emergiram a linguagem e as representações (MORIN, 1987).
Se nos é permitido afirmar que as sociedades ditas históricas são mais suscetíveis às
transformações, é no sentido de que podem comportar uma pluralidade interna, uma
democrática abertura ao diálogo, que beneficia a mudança (MORIN, 1992). Porém, é
impossível afirmar se os conflitos, as agitações, as crises sociais trarão progresso ou
regressão, e mesmo esses conceitos são discutíveis. A complexidade não comporta regras
143
estáticas; portanto, o que serve de modelo interpretativo para um caso não funciona para
outro. A razão das peculiaridades está no funcionamento do anel retroativo ordem – desordem
– organização, na interação de sistemas e na emergência do novo.
Observado por outros ângulos e levando-se em consideração informações
negligenciadas pela lógica formal, que recusa, abomina, se incomoda e se angustia com todas
as afirmações paradoxais, pode-se perceber que o espírito humano perde instrumentos quando
privilegia um caminho ou outro, quando tem de escolher entre o simbólico e o instrumental. É
necessário não só reunir ciência e filosofia, mas recuperar o pensamento mítico, abrindo
possibilidades de transformá-lo em palavras e, assim, transmitir um conhecimento cada vez
mais distante das fronteiras que a lógica conjuntista-identitária (CASTORIADIS, 1982, p.
212) demarcou.
Olhar sob esse ângulo permite a conscientização sobre a importância da
individualidade, dos elementos microscópicos da sociedade. Os indivíduos são variavelmente
dispostos a resistir, transgredir, imaginar, conceber, negar. As condições permissivas se dão
quando os indivíduos são beneficiados pelo acaso, pelas probabilidades, pela dupla origem do
pensamento, as fissuras na identidade, os pertencimentos movediços. Desse modo, as idéias
desviantes surgem no no man’s land, à margem do imprinting (MORIN, 1992). Tratamos de
condições específicas que potencializam, mas não produzem necessariamente as condições
necessárias para o surgimento das novidades que subvertem a ordem. Pode-se ver o
aparecimento da filosofia grega como se vê a expansão marítima e as colônias, a vitória sobre
os persas, a democracia de Péricles: uma feliz conjunção de condições para a livre expressão
dos pensadores. A condenação de Sócrates aprofundou a reflexão, que só foi “polinizada” sob
144
o domínio romano e novamente marginalizada pelo cristianismo do Estado. “Assim, o fim do
pluralismo cultural, o regresso hegemônico do Sagrado, a Unificação do teológico e do
político, vão determinar um regresso geral do imprinting e da normalização, que inibirão
qualquer pensamento que não se inscreve no seu quadro” (MORIN, 1992, p.49).
2.1.2. Tempo Sagrado e Profano
De forma recorrente em suas obras, Mircea Eliade afirma que o tempo sagrado se
caracteriza por algumas qualidades: regenerável, recuperável, imutável e inesgotável e, nesse
sentido, se identifica e se materializa no âmbito dos mitos e dos ritos, que buscam repetir os
atos do início da criação. Assim, os rituais atualizam o tempo cósmico por meio do retorno
simbólico ao começo da existência, ao momento da criação, ao início do tempo (ELIADE,
1989). A narrativa do início da criação revela como uma realidade veio à tona. A experiência
do rito, o tempo forte fazem parte de um mecanismo maior, que diz respeito à suspensão dos
efeitos degeneradores do tempo vivido. Essa correspondência cósmico-temporal é de natureza
religiosa e é a marca do homem arcaico que teria desenvolvido uma revolta contra o tempo
concreto e depreciado a histórica (ELIADE, 1992a).
Sem abandonar totalmente a pertinência da afirmação, mas inclinada a supor que esse
tipo de vivência não é uma prerrogativa do “homem arcaico” e que a interpretação de muitos
fenômenos religiosos pode ser enriquecida com a revalorização o tempo, acredito que, para
definir uma nova temporalidade que dê conta desses enigmas, é necessário um entendimento
145
complexo do tempo. Fazer uma história da concepção de tempo, do tempo socialmente
concebido restringe este trabalho, pois limita suas principais indagações.
O objetivo é mostrar que, assim como a complexidade não elimina o simples, a
historicidade não elimina o mito. Não se passa do tempo mítico para o tempo da
racionalização histórica. A proposta não é negar a existência de um tempo que se opõe ao
profano, mas mostrar que esses tempos não se excluem, mas se entrelaçam, porque estão de
acordo com a dupla filiação do pensamento humano: o mágico/religioso e o
racional/tecnológico. O homem arcaico soube bem conviver com eles. O homem moderno
somente camuflou-o, transferiu-o para a esfera do privado. Nesse sentido, a dessacralização
da vida tem alcance limitado, nem o tempo capitalista é único e homogêneo, mas comporta
vários níveis de compromisso, como trabalho, lazer, vida privada, espiritualidade, entre
outros.
O homem arcaico recusa a história? Para Eliade (1992b), sim. Ele tem uma
necessidade de ser diferente daquilo que é na dimensão profana. O homem religioso foi
forjado na história divina, sagrada e no mito como história verdadeira, porque conta como
uma realidade veio à existência. Apesar de conhecer duas esferas de tempo heterogêneas e
descontínuas, o homem religioso privilegia o tempo sagrado, que se caracteriza pela
circularidade, reversibilidade e recuperabilidade. O outro, o tempo profano, é insignificante,
por isso esse homem religioso se recusa a viver no “presente histórico” (ELIADE, 1992b, p.
64). Nessa concepção, mito e história se excluem, expressam, respectivamente, aspectos
irracionais e racionais do pensamento humano.
146
A religião é necessidade humana ou intervém para compensar uma necessidade
humana – ideal – de compreender o mundo material e vencer a mortalidade? Para Durkheim
(1989, p. 29), a compreensão da natureza religiosa do ser humano revela um “aspecto
essencial e permanente da humanidade”; a religião é uma necessidade humana que só difere
das outras pelas “funções mentais mais elevadas”, pela “riqueza de idéias e sentimentos”. O
método durkheimiano fundamenta-se no suposto que, para entender um fenômeno, é
necessário remontar à sua origem, ao seu estado mais primitivo e recuperar a trajetória de seu
desenvolvimento. Assim, a busca dos aspectos comuns existente em todas as religiões aponta
para a mesma funcionalidade, tem o mesmo objetivo: “são esses elementos permanentes que
constituem o que existe de eterno e de humano na religião” (DURKHEIM, 1989, p. 33).
Origem e causas de um fenômeno se confundem e são observáveis com mais clareza
nos casos mais simples, que apresentam menor interferência da história e menor
desenvolvimento econômico e técnico, cultural e mental. As instituições sociais primitivas
funcionariam melhor como reveladoras das relações causa–efeito, porque envolveriam poucos
elementos, mas não seriam modelos, pois são “rudimentares” e “grosseiras”. A interpretação
dos fenômenos religiosos como apaziguadores de necessidades tem o mérito de incluí-los nos
estudos das sociedades e distingui-los das patologias e equívocos, mas ainda se ressente da
relação de sucessão entre religião, filosofia e ciência.
A conclusão geral deste livro é que a religião é coisa eminentemente social. As
representações religiosas são representações coletivas que exprimem realidades
coletivas: os ritos são maneiras de agir que surgem unicamente no seio dos grupos
reunidos e que se destinam a suscitar, a manter, ou a refazer certos estados mentais
147
desses grupos. Mas então, se as categorias são de origem religiosa, devem participar
da natureza comum a todos os fatos religiosos: também elas seriam coisas sociais,
produtos do pensamento coletivo.
(DURKHEIM, 1989, p. 38).
O simples aqui é considerado mais rústico, primitivo, todavia puro, ainda sem
interferências externas. As religiões históricas, por sua vez, seriam um emaranhado de
influências, acréscimos, empréstimos e apropriações que fariam perder-se o original, enquanto
que as primitivas, mais próximas da origem, ainda preservariam a originalidade revelada. As
formas modificadas pela história e pelas interpretações parecem afastar-se cada vez mais do
sentido e da função original. Mas o que vejo são redes de sistemas que se reorganizam diante
de necessidades especiais, deslocamentos de território, interferências de acontecimentos
externos, ruídos, contatos por lutas ou comércio ou trocas. Diante desses cruzamentos de
temporalidades, os sistemas culturais evoluem, absorvem os elementos externos, se
reorganizam e se transformam. Impossível detectar com antecedência o que fica, o que é
eliminado. Nesse jogo interativo não há prognósticos irrefutáveis.
A cultura ocidental, por exemplo, não é somente greco-romana, ela é também judaico-
cristã. As concepções gregas de tempo, sejam elas designadas circulares, paradoxais,
movimento, opostas à eternidade, teofanias ou pendulares, num certo momento ligam-se à
linearidade judaica. As duas se entrelaçam e marcam profundamente o pensamento cristão e
medieval. A racionalidade grega une-se às idéias de criação, à luta do bem contra o mal e a
um fim definitivo. Assim, a história da concepção de tempo no ocidente contempla algumas
idéias contidas na Bíblia judaico-cristã, que por sua vez e emprestou de Zoroastro a idéia de
acontecimentos singulares que não podem se repetir. A visão teleológica do pensamento
judaico se deve à influência mesopotâmica zoroastrista, “uma doutrina de ‘coisas finais’, a
148
primeira escatologia sistematizada na história da religião” (WHITROW, 1993, p. 48). Mais
uma vez, caminhamos para uma visão complexa em que se entrelaçam história e cultura,
mediadas por diferentes concepções de tempo. Foi por intermédio da acomodação da idéia
zoroastrista na religião judaica que se instaurou um tempo com dimensões históricas, o qual
chegou a nós via cristianismo. Dessa forma, a consciência temporal ocidental teria iniciado
sua trajetória e ultrapassado as formas mais simples, originais.
É no campo da história que o pensamento grego e o hebraico apresentam suas
principais diferenças. Por conta de seu passado pleno de lutas para o estabelecimento do
território, os semitas logo se conscientizaram da função divergente do tempo e do espaço.
Único entre todos os pensamentos antigos, o pensamento hebraico soube triunfar
integralmente sobre o espaço e erigir o tempo do homem numa história única, fecunda,
riquíssima de significado e que coloca em discussão o destino humano (NEHER, 1975, p.
178). A existência desse povo é constituída de migração, conquista e expansão; a história é
um majestoso inventário de dinastias que buscam o estabelecimento definitivo no território
prometido desde o início do mundo. Para os gregos, diferentemente, nuanças do pensamento
mítico permanecem na forma de centelhas de idéias ou metáforas encontradas nas exposições
dos filósofos, interferindo na concepção de tempo e dando um colorido específico para a
história grega. Menos aventureiros, os gregos consideraram a história uma curiosidade
intelectual, um inquérito ou um exercício de retórica.
Para o pensamento hebraico, a história, com seu sentido e inteligência, imprime uma
característica especial a seus relatos bíblicos. Enfatizando-a e reforçando-a pelo mito,
mantém-se o vínculo entre Deus e o mundo. O gênese se realiza no tempo da história, ele é o
149
seu início, refere-se ao duplo nascimento do cosmo e do tempo. “A exterioridade de Deus em
relação à sua Criação é verdadeiramente absoluta, e esse absoluto se encontra no final dos
tempos. Cessando a história, desaparece a Criação: resta somente Deus e seu não-tempo. É o
esquema do ‘fim’ que constitui, enquanto escatologia, a réplica da cosmologia da ‘origem’”
(NEHER, 1975, p. 180). O devir do mundo é uma resposta à “Palavra” de Deus. Mas isso não
quer dizer que houve uma ultrapassagem de etapa, não significa que o povo hebreu realizou
uma etapa fixa do desenvolvimento do pensamento. Mito e história compartilham o espaço da
narrativa bíblica, mostrando mais uma vez a interpenetração dessas formas de ver o mundo.
O forte da influência judaica para o pensamento ocidental, seu diferencial é sua íntima
relação com o tempo profano, intercalado com intervenções sagradas. A religião e a
cosmologia hebraica estão alicerçadas na ação de Deus no mundo dos homens, relação que
segue até o final dos tempos, da criação e do mundo, adquirindo um significado escatológico.
No tempo profano, o homem bíblico procura a união com o sagrado, busca uma finalidade
para a vida, projetando-a em um futuro teleológico. Para retornar à sua origem, o homem não
precisa transcender sua história e chegar a uma dimensão mítica; porém, aceitando seu destino
e entregando-se a ele, encontra a união eterna com a divindade do princípio, pois seu futuro
estava traçado desde o início dos tempos. As relações entre Deus e homem, criação e
expansão geográfica, meta e finalidade da vida ocorrem na história, tempo privilegiado de
interferência de Deus no âmbito humano.
A discussão colocada não diz respeito à existência, mas à simultaneidade desses
diferentes tempos na construção de uma realidade, na experiência individual e na vivência
social. Não ocorre uma separação entre eles, mas cada um conflui para a construção de uma
150
realidade complexa, cujo confinamento em classificações simples, que obrigatoriamente
identifica-se com um significado ou outro, não pode, em hipótese alguma, acolher a
contradição. Não há um tempo sagrado ou um tempo profano, mas um tempo sagrado e
profano que permeia as ações humanas. Mircea Eliade vê uma negação onde existe uma
escolha pontual na maneira de vivenciar o tempo, o resultado de uma junção de fatores, nos
quais estão inseridos vários níveis de realidade (social, biológica, tecnológica, econômica). A
relação de oposição e a forma como esses termos se relacionam nos trabalhos científicos
infundem uma primeira dificuldade, quando se trata de “resquícios” e “retornos” de
comportamentos e valores das sociedades; ou se está dentro da história linear, única e
universal, na qual a ancestralidade, as experiências arcaicas do tempo são desvalorizadas; ou a
importância da história de maneira geral é negada.
Estabelecer diferenças rígidas e limites intransponíveis entre mito e história, entre
sagrado e profano levam à simplificação destes termos. São perdidas as relações entre eles,
seus vínculos, sua face dúbia – as imprecisões contidas nas conceitualizações e parte da
riqueza das criações humanas se vão. Afirmações como “horror da história” criam imagens
depreciativas do potencial cognitivo do homem arcaico e distanciam o antropólogo das
sociedades que estuda. Não há lugar nas ciências sociais para essa neutralidade impossível. Os
termos arcaico e moderno são discutíveis e denotam a permanência da antiga periodização da
trajetória humana baseada nas técnicas de subsistência. A decomposição do duplo pensamento
imprime a idéia de que arcaico, moderno, religioso e laico, tradicional e progressista não
compartilham o espírito humano.
151
Existem dois tipos básicos de experiência com o tempo que apresentam lógicas
distintas e contraditórias, as quais, por sua vez, se desdobram em seus outros aspectos como
derivações: repetição e mudança. Alguns fenômenos se repetem. Simultaneamente, as
mudanças da vida são irreversíveis. Para confirmar a primeira e negar a segunda, a fim de
superar a repugnância da finitude e atribuir um sentido para a brevidade da vida, as
sociedades seguem o modelo existente na natureza e organizam seus ritos e mitos religiosos,
os quais englobam as duas visões (LEACH, 1974). Quando se fala em mito, trata-se de um
tempo que é descontínuo, que repete inversões criando uma seqüência que oscila entre
opostos, entre maneiras de viver no mundo, e não é necessariamente cíclico. A metáfora
geométrica, círculo ou linha são atribuições da ciência newtoniana. Assim, se quisermos
apresentar uma forma mais primitiva e elementar de representar o tempo, esta seria uma
oscilação entre passado e presente.
Essa oscilação não tem absolutamente nada de simples; ao contrário, surge como
fenômeno–efeito da divisão de uma totalidade em dois opostos que se alternam
indefinidamente: o sagrado e o profano. Identificados pela religião, realizam o movimento
oscilatório entre o repetitivo e o não repetitivo, entre o que tem importância e o que é
passageiro. Uma terceira entidade, a alma nas mitologias de reencarnação, o xamã entre o
mundo dos seres sobrenaturais, os mensageiros entre deuses e mortais, os heróis civilizadores,
faz o trânsito entre essas duas dimensões da vida.
Não experimentamos o tempo com os sentidos, mas reconhecemos a repetição através
da memória e percebemos que aquilo que se repete não é, necessariamente, o mesmo, porque
contabilizamos, de uma forma ou de outra, os intervalos de tempo. Admitimos como certo o
152
envelhecimento e a morte e deduzimos dos ciclos naturais a existência de um intervalo entre a
morte e o nascimento. Percebemos, também, diferentes velocidades do tempo. Todos os
indivíduos são capazes de detectar fluxos irregulares de tempo e suas instâncias (biológicas,
psicológicas). Assim, o tempo pode parar, acelerar, diminuir a velocidade, retornar, ser
projetado, e o ser humano organizou suas representações, seus símbolos, tendo em vista esse
conjunto de experiências individuais e sociais.
Para confirmar a repetitividade dos fenômenos naturais, negar a reversibilidade e as
mudanças na vida do homem que o angustiam e driblar a repugnância da morte, temos as
religiões. (LEACH, 1974, p. 194). O funcionamento da sociedade deve-se ao esforço coletivo
de atuar contra a morte, pela morte e com a morte. Apesar de negligenciada pela antropologia,
a sua presença espectral durante a vida recorta as fronteiras da animalidade e da humanidade,
visto que extrapola todas as metáforas biológicas de forma bem mais marcante que o utensílio
ou a linguagem. Assim, acima de toda diferença cultural, a humanidade compartilha apenas
dois mitos de morte fundamentais: morte–renascimento e o duplo que faz a ligação direta
entre a cultura e o sistema bioantropológico (MORIN, 1988).
Essa interpretação, em alguns pontos, não se distancia da proposta durkheimiana, que
apresenta as mudanças temporárias da ordem normal ou profana para a ordem “anormal” ou
sagrada. O tempo socialmente criado é uma acomodação das vivências temporais individuais,
subjetivas e erráticas, a concretude do mundo do entorno e a necessidade de organização dos
grupos. Os exemplos de marcas festivas no calendário, que se apresentam como inversões de
comportamentos, ritos de passagens, e que interagem com o tempo subjetivo e biológico
153
individual são inumeráveis. Essa é uma parte inegável da questão, mas nos reaproxima, e até
que ponto isso ocorre, dos tempos inconciliáveis do xamã e do antropólogo?
Esse modo de ver a experiência temporal como duas maneiras que se invertem por
ação do rito marca um ponto em comum entre as interpretações de Edmund Leach e Mircea
Eliade. Contudo, há uma grande distinção: o primeiro opta pela explicação estrutural, que
introduz um terceiro elemento mediador, aquele que oscila relacionando os opostos, inclui
aquele que transita, um ponto de vista, uma motivação, um sentido que coloca o homem
agente de indeterminação, que ultrapassa as definições e fixações que o sistema cultural
estabelece. As denominações “homem arcaico”, “homem religioso”, “sagrado” e “profano”,
“dessacralização”, “modernidade” e “tradição” são corrompidas se estiverem embasadas num
tempo histórico linear e nos princípios do racionalismo aristotélico: não-contradição,
identidade e terceiro excluído. O ser humano, arcaico ou moderno, oscila entre essas
temporalidades, a forma como ele o representa, como ele valoriza um ou outro é o que muda e
se diversifica com o passar do tempo.
O texto budista Prajnaparamita traz não só a estrutura binária como sua superação, e
o mediador – o bodhisattva. O aspirante ao estado de Buda pretende adquirir um
conhecimento que lhe permita transitar livremente entre esses pares, não se fixando em
nenhum deles, considerando-os uma e a mesma coisa, não se identificando com nenhum dos
lados. Aqui, o trânsito é fora do comum, não pode ser definido por nenhum dos termos;
portanto, é sagrado. Pertence ao plano divino, mas simultaneamente está no plano do profano.
Os conceitos não têm consistência em si, mas são nominados pelos homens baseados única e
exclusivamente em suas experiências, seus medos, traumas, desejos, ansiedade e angústia e
154
nas afirmações de seu grupo, que avaliza ou ignora o passado. Nesse sentido, mito e história
têm as mesmas funções. Há relações íntimas entre mito e história, que não se excluem e
sublinham a importância do pensamento judaico-cristão no pensamento ocidental. O mito,
apesar de não seguir o modo racional e cronológico, manda uma mensagem consistente, que é
reafirmada e acentuada pela estrutura binária “intrínseca ao processo do pensamento humano”
(LEACH, 1983, p. 59) e pela redundância.
Através de fenômenos observáveis, o mito expressa realidades não observáveis. Por
intermédio da repetição em pares de opostos, sugere a importância da relação acima da
individualidade de cada um deles. A repetição à exaustão da relação enfatiza o terceiro
elemento – o trânsito que dá destaque à mensagem, à existência de uma realidade não
observável, uma verdade transcendente. No caso do mito, essa realidade foi engendrada pelos
deuses e seres sobrenaturais, acima de nossa concepção mortal ilimitada. A história também
faz isso quando busca, através da observação, a repetição das variáveis e a generalização. No
lugar dos deuses, colocamos as leis deterministas da história. Contudo, ambos apresentam
uma estrutura comum e podem dialogar, como ocorre no texto bíblico. Não são duas
realidades apartadas e estanques, mas aspectos do real que se interpenetram. Não há entre
mito e história uma relação de anterioridade e posterioridade. Sua compreensão não está
relacionada ao desenvolvimento do aparelho cognitivo humano; mas o aparelho cognitivo, ao
alcançar patamares do humano, possibilita essa compreensão ambígua, líquida, evanescente.
O texto bíblico media duas contradições intrínsecas da trajetória judaica, fazendo
exceção àquilo que em Eliade (1992a) se mostrava regra: horror da história dos povos cujo
mito é um modelo exemplar. De um lado, temos um território herdado de Deus desde o início
155
do mundo, e ele é sagrado, pois encontra-se no princípio. De outro lado, existe uma luta
travada na esfera do profano para a posse desse território contra as demais populações que
habitam a região. Assim, o reinado de Salomão sobre a totalidade da terra de Israel deve ser
legitimada de acordo com costumes e valores próprios (LEACH, 1983). A prescrição da
endogamia e as alianças políticas são as bases da sobrevivência da tribo numa área ocupada
por diferentes grupos – alguns genealogicamente ligados –, expondo a coexistência de dois
tempos considerados excludentes e incompatíveis: mitológico e histórico. Na narrativa
bíblica, mitos antigos e acontecimentos históricos dialogam e são registrados. A repetição de
relações binárias demonstra a estrutura mítica da narrativa, enquanto a pertença histórica, a
ligação genealógica é testemunhada pela forma diacrônica do relato. Mito e tradição histórica
se confundem; o tempo do mito e o tempo da história se reforçam e podem se conciliar,
porque participam da mesma estrutura, da mesma vivência oscilatória: repetição e
singularidade. Os mitos do Velho Testamento formam uma história única, sagrada, mas
irreversível, que destaca os padrões e permanecem apesar dos intérpretes, das interpretações
da hermenêutica
31
. Até mesmo as estórias posteriores a Davi, consideradas pertencentes a
uma fase histórica propriamente dita, apresentam acréscimos legendários (LEACH, 1983b).
A história e o mito têm a mesma função: justificar no campo do invisível, em um caso,
e no campo do passado, em outro, um acontecimento visível; justificar idéias “trans-
temporais” por meio de acontecimentos temporais. Essa característica do Velho Testamento
está presente também no relato budista sobre a vida e os ensinamentos de Sidarta Gautama.
As duas narrativas também passaram por diversas traduções, editores e compiladores e
mantiveram a mesma função. O mito procura, nos fundamentos sagrados, a explicação para os
31
Os livros do Velho Testamento são uma catalogação de narrativas mais antigas, que se tornaram canônicas por
volta de 100 a.C
156
acontecimentos do mundo profano, mas a reconstrução da história também é, como veremos
adiante, uma forma de justificar, no plano das idéias – razão histórica –, um acontecimento no
plano material – o fato histórico.
A metodologia durkheimiana considerou a existência de um fluxo histórico que ia do
simples ao complexo; pensou em uma única trajetória humana. Mircea Eliade introduziu as
duas maneiras de ser no mundo, mas separou as temporalidades. As duas maneiras de
vivenciar o tempo Edmund Leach atribuiu a um universal humano: a classificação binária, os
opostos binários que oscilam, e o terceiro elemento, aquele que oscila. Esse trânsito é
fundamental para a questão que aqui se coloca: a história faz o papel de um mito sem rito?
As grandes metrópoles hoje vivem o pensamento ritual de forma peculiar,
ultrapassando as divisões tradição–história, primitivo–civilizado. Entendemos essa realidade a
partir dos conceitos de trânsito, simulacro e rito sem mito. Os dois primeiros correspondem,
de uma forma mais afinada, com a complexidade do real, com as idéias de opostos pendulares
e com a questão da originalidade. “O trânsito é um ‘movimento do mesmo para o mesmo’,
onde, porém, ‘mesmo’ não quer dizer ‘igual’, porque implica a introdução de uma diferença,
de uma mudança, que é tanto mais profunda quanto menos chamativa” (PERNIOLA, 2000,
pp.28-9). Uma “repetição diferente”, a reiteração do idêntico está enraizada em questões e
problemas, necessidades e circunstâncias do presente. Podemos verificar esse trânsito no
trabalho psicanalítico, na história pessoal, pois “o novo não nasce senão através de
imperceptíveis transformações do velho, mínimos desvios do conhecido” (PERNIOLA, 2000,
p. 34). A principal implicação do trânsito é o conceito de simulacro. Antes de cópia, o
simulacro é uma alternativa entre o original e a cópia, entre o acontecimento e sua repetição,
157
como é o caso do ritual. Para a sociedade moderna, o rito acontece sem o mito, porque, para
ela, há a história, que cumpre bem esse papel. Emancipando a cópia, encontramos um produto
original e repetido simultaneamente. No caso das sociedades tradicionais, a ocorrência desse
trânsito entre o passado sancionado pelo mito e o presente confirmado pelo cotidiano, os
problemas do dia-a-dia, as questões imediatas de organização da sociedade e sua permanência
enquanto tal fazem o novo emergir da manipulação pragmática do próprio mito. Este, vivo, é
o que transita, o próprio mediador, o mensageiro, que só pode ser compreendido fora do
tempo linear.
2.2. O tecido dos tempos
Para complexificar o pensamento, “mudança e permanência, ruptura e continuidade”
são termos que ganham um status de complementaridade e simultaneidade; além da oposição
e do antagonismo, nos sistemas culturais eles se interpenetram. O conhecimento científico,
por exemplo, foi uma novidade e uma continuidade. Se, por um lado, rompeu com boa parte
das idéias que imperavam na Europa medieval, por outro, algumas haviam sido cunhadas e
progrediram desde a antigüidade clássica; outras foram contribuições judaico-cristãs, sem
contar com os aspectos da cultura local, mesmo romanizada. Não foi homogêneo: assim como
todo pensamento, partilhou espaço e tempo com suas dissidências, seus ramos e caminhos
possíveis. A progressão das idéias não ocorre por somatórios simples, nem as mudanças
acontecem exclusivamente por ruptura. Essa relação intrincada é compreensível, se tomarmos
como modelo o anel tetralógico ordem–desordem–organização–interação. A equação que gera
o novo não é simples. As associações de idéias podem satisfazer à lógica, mas nem sempre
correspondem ao real; a realidade pode, em alguns casos, desafiar a lógica. O novo sempre
158
traz sua cota de espanto, o inusitado e desconcertante sempre surgem e o velho pode,
sorrateiramente, voltar à cena.
Essa relação complexa entre o novo, o antigo e o inesperado pode ser apreendida nos
momentos em que surge de suas profundezas algo perturbador, por seu caráter inédito ou
incômodo, por sua persistência. O antigo que se pensava erradicado, o novo que transtorna,
confunde e embaraça o pensamento acomodado na repetição. Inicialmente, o espírito humano
busca as ancoragens nos elementos conhecidos. O reconhecimento do passado como algo que
permanece dá ao ser que busca seu lugar no mundo uma falsa sensação de segurança, mas
justamente por isso pode também encarcerá-lo na reprodução neurótica. Reconhecer o novo
como aquilo que já foi digerido pelo espírito pode apaziguar as angústias humanas; porém,
torna o homem prisioneiro de um passado que não existe mais. Assim, aquilo que se apresenta
como nunca visto pode ocultar elementos primitivos em disposição criativa, singular e única,
marcado pelas necessidades e conveniências dos atores do presente, e as soluções
“tradicionais” podem estar fazendo a abertura para a liberdade do espírito.
O surgimento da ciência foi uma ruptura no pensamento, um divisor de águas entre o
conhecimento tradicional, que valoriza a sabedoria dos antigos, e o conhecimento moderno,
baseado na progressão ilimitada em direção ao aperfeiçoamento. A ciência moderna pode ser
também caracterizada pela união que estabeleceu com a técnica, marca da civilização
ocidental. Foi no século XVI que esse pensamento singular fincou suas raízes, quando
apareceram as primeiras manifestações em defesa da técnica e da engenharia, que
engendraram uma nova consideração do trabalho (ROSSI, 2001).
159
A ciência não foi uma novidade que surge do nada, nem uma idéia que nasce pronta e
acabada e invade a mente de um Newton ou de um Copérnico. Paradoxalmente, essa inovação
conserva conexões com o pensamento mágico-religioso da Renascença, herdeiro da tradição
platônica e hermética e de sua linguagem metafórica, do emprego de analogias e das alusões a
significados profundos. Newton, por exemplo, estudava a Cabala. O nascimento da ciência
acontece também em meio à imagem medieval da natureza, isto é, uma criação divina, e que o
mundo material, objeto das investigações, não existia sem a interferência de Deus.
(HEISENBERG, [195?], p. 7).
Mais que uma contestação de todos os conteúdos e métodos do conhecimento
tradicional, a ciência também, e principalmente reutilizou imagens antigas, atualizando-as e
inserindo-as em um novo contexto. O pensamento mágico-mitológico-simbólico do
Renascimento é diferente do pensamento técnico-racional em que o saber moderno se assenta,
mas este pode (e de fato o faz) utilizar as mesmas matrizes imaginárias, as mesmas imagens
para explicar ou solucionar problemas de outra ordem. No caso específico da ciência, as
imagens disponíveis são reorganizadas em função de um novo tipo saber e de um novo perfil
de sábio. Essa reorganização não obedeceu a alguma lei determinista; todas as possibilidades
foram abertas, todos os caminhos se descortinaram e vários deles foram traçados. Dessa
forma, aquilo que hoje pode parecer óbvio no conhecimento científico, a tal ponto que é até
sustentado no nível do senso comum, não significa que assim tenha sido no período europeu
pré-científico.
160
Vemos o surgimento das ciências nos desvios da ordem religiosa e estamental da
Idade Média, incentivadas pelas inovações que avançavam na Europa: burguesia nascente,
ligas comerciais e produtivas, bancos, renascimento da cultura grega, contato com o
conhecimento islâmico. Mas a mesma ciência surgiu trazendo, em seus cantos, dobras e
gavetas, a visão onisciente, a postura onipresente e o controle absoluto tomados da imagem da
divindade judaico-cristã. Mito e razão orbitaram, simultaneamente, o universo desses homens,
fazendo emergir novas combinações de imagens profundas da psique humana, que se
concretizaram em novíssimas teses e teorias a respeito da natureza, do homem e do universo.
A ciência foi criada não só com racionalidade, mas também com muita imaginação. O saber
medieval preservado pela Igreja era algo a ser mantido em segredo e acessível a poucos – os
iniciados. Seguindo a tradição dos xamãs, de todas as religiões dos mistérios, da filosofia e
suas escolas, a transmissão do saber dava-se em linha direta entre mestre e discípulo. Inserido
num quadro platônico-hermético, o conhecimento, durante esse período e pelo menos até o
século XVII, foi acumulado sob a forma de segredo, e para tanto usava-se a analogia, a
linguagem metafórica e alusiva (ROSSI, 2001). O fato de que algumas imagens e analogias
mais tarde se mostraram incorretas não desmerece essa utilização.
No entanto, o pensamento científico não era homogêneo. Enquanto Copérnico
(14731543) apresentava uma nova concepção de mundo, ainda como finito e fechado,
Giordano Bruno (1548-1600) afirmava sua infinitude, a mudança, o vivo; um mundo pronto e
acabado de um lado; de outro, perfeição, coincidindo com o devir e infinitas transformações.
Ou seja, não existe um pensamento monoparadigmático (ROSSI, 2001); há diferenças cruciais
entre os filósofos. Newton (1643-1727) perpetuou a visão tradicional da natureza em estado
de estabilidade; Leibnz afirmou que a matéria pode assumir diferentes formas – não é fixa – e
que o mecanicismo, embora útil, não deveria ser o arcabouço das investigações sobre o
161
universo. Seus caminhos se distanciariam cada vez mais. No entanto, um caminho foi
privilegiado: “acaso e mudança assumem um papel subordinado na estrutura do mundo”
(ROSSI, 2000, p. 88) e foi legada a Darwin, dois séculos adiante, a tarefa ingrata de pensar a
evolução biológica dentro de um sistema mecânico (SHELDRAKE, 1996).
Nos precursores da ciência, há combinação original de hermetismo, cabala, nova
cosmologia e utilização de tecnologia – conhecimentos que abriram várias frentes de
pensamento e fomentaram outros pontos de vista para as questões do universo e do cosmo.
Sua efervescência deixou bem claro que não se tratava mais de um respeito cego pelo
conhecimento vindo da tradição, do passado. O ponto não era difundir a sabedoria dos antigos
para poucos iniciados, mas difundir e aumentar esse saber por intermédio da pesquisa, da
busca de respostas que os textos canônicos não podiam fornecer. O tempo privilegiado do
saber deslocou-se do passado para o futuro, motivação central da filosofia do século XVII,
recorrentemente gerando a ânsia em livrar-se da tradição. O conservadorismo das grandes
tradições foi substituído pelo caráter acumulativo de saber universal e acessível que se
desenvolvia na contramão da mitologia do segredo, do mistério, dos iniciados na sabedoria
dos antigos.
Manteve-se, no entanto, o critério de autoridade. Esta, reconhecida, transfere-se do
quesito antigüidade (avalizada pelo passado) para o da razão, da busca pela perfeição
projetada no futuro. No grupo da autoridade por antigüidade ficaram os seguintes
conhecimentos: história, geografia, jurisprudência, teologia; no grupo do aperfeiçoamento da
razão, ficam o crescimento e o progresso: geometria, aritmética, música, física, medicina,
arquitetura. Assim, antes de ser considerada errada, a sabedoria antiga torna-se inicial, jovem
162
e, por isso, imperfeita. Os modernos, por sua vez, são classificados como superiores pela
maior quantidade de experiências e pela perspectiva de crescimento e acúmulo de saber. A
proximidade com a perfeição foi jogada indefinidamente para frente. A melhoria das
condições do conhecimento e sua aplicação realizaram-se por meio do tempo decorrido e pelo
trabalho executado. Para capacitar a humanidade com esses saberes era obrigatória a
constante e infinita busca. Desse tecido, surge a idéia de progresso decantada pelos
iluministas e que ainda hoje irradia derivações.
Da contribuição progressiva da melhoria do conhecimento e do avanço do saber
(ROSSI, 2000), procedeu a idéia de que o saber cresce em escala de somatório infinito e de
que o conhecimento total está reservado para o futuro. Nessa mudança de ponto de vista,
voltado para a expectativa dos acontecimentos vindouros, o qual considero bem judaico-
cristão, não há lugar para o segredo, mas para a revelação; não há lugar para ritos secretos de
iniciação, mas para a universalização do conhecimento (ROSSI, 2000); a mitologia do
progresso encontra um novo espaço e se desenvolve.
As idéias reunidas em sistemas não são, evidentemente, nem partículas nem
moléculas; podem ser consideradas unidades informacionais/simbólicas que se
juntam umas às outras em função de afinidades próprias ou de princípios
organizacionais (lógicos, paradigmáticos). Uma idéia isolada não tem praticamente
existência; só adquire consistência em relação a um sistema que a integra.
(MORIN, 1992, p. 115).
Um sistema de idéias é auto-organizativo, fechado e aberto; tanto se protege como se
alimenta do exterior. Por exemplo: as teorias podem se transformar, ampliar seu campo de
163
explicabilidade, aprimoram-se pelo fato de serem mais abertas que as doutrinas. Estas, quando
rigorosamente fechadas, tendem a se quebrar definitivamente, não suportam a pressão
desviante e contestadora e desaparecem da cena cultural. O pensamento humano, racional e
imaginário não pode ser enquadrado em modelos fixos, no qual os limites entre o que é
rompido e o que permanece se mostram bem definidos.
A interpretação linear dualista oculta os silêncios estratégicos, a dialética dos fatos, a
emergência de um novo, ao mesmo tempo velho, que se incrusta na imagem de ciência como
uma construção coletiva, mas também inclui contribuições individuais através do tempo. Os
humanistas não repetiram pura e simplesmente a filosofia clássica. O Renascimento foi um
processo dinâmico que misturou elementos modernos e antigos. Não é pura repetição da
antigüidade clássica – há o novo. Não é somente repetição e imitação, mas repetição e
originalidade. Os discursos da antigüidade tinham objetivos diferentes daqueles dos filósofos
do Renascimento e do início da modernidade. Ressalta-se que objetivos diferentes não são o
mesmo que erro e que não cabe a discussão entre modernos e antigos para ver quem está certo
ou errado. Se os problemas são novos, caminhos novos são abertos.
É a insistência em ordenar os acontecimentos de forma diacrônica que impede a
observação das ocorrências sincrônicas, “em nome de uma história da pura filosofia ou de
uma não melhor qualificada ‘história das teorias’, fomos muitas vezes impedidos de perceber
os vínculos que ocorrem entre as teorias e as idéias e as convicções que operavam no
passado” (ROSSI, 2000, p. 93). Nesse sentido, a diacronia é somente uma escolha posterior
de uma ordem determinada pela subjetividade do tempo do observador. Palavras como
“retorno”, “sobrevivência”, “resistência” são associadas à manutenção e, portanto, à
164
continuidade de uma dada visão do homem sobre si mesmo, sobre o universo e a natureza, e
só têm sentido se polarizadas com uma dada ruptura, que, nesse caso, pode adquire um valor
negativo ou positivo. Quando a ruptura tem valor negativo, tais palavras soam como a
retomada de um passado melhor, o posicionamento contra as reversões da ordem moral, os
malefícios que o novo traz, a nostalgia, os fundamentalismos, o retorno ao paraíso perdido.
Quando a ruptura tem valor positivo, qualquer aproximação com o passado significa atraso,
retrocesso, persistência infeliz.
Para o pensamento científico, a salvação está no futuro, como no tempo cristão, só que
o vindouro não é mais a confirmação do passado, das profecias messiânicas, mas o acúmulo
de saber, conhecimento e técnica. Em matéria de entendimento e valorização do tempo, a
ciência moderna se contrapõe ao hermetismo mágico, núcleo forte do conhecimento medieval
de valorização do passado e conexão de várias tradições, entre elas o neoplatonismo e o
cristianismo, e acrescenta uma nova fórmula de projeção para o futuro das esperanças
messiânicas: o progresso. Diante da impossibilidade de monoparadigmatismo, confundem-se
as visões, que se sobrepõem de modo não uniforme e de forma difícil de ser classificada em
todos os autores. A salvação divina pode permanecer como salvação mediante o saber dos
homens; a onipotência da razão divina passa a residir na razão humana; a criação divina
transmuta-se na tecnologia humana.
Num exercício de auto-reflexão, é necessário olhar para sua própria temporalidade e
perceber o que nela está implícito, os diferentes veios, os caminhos subterrâneos, as crenças e
os medos antigos. A dificuldade em conseguir olhar para si mesmo de forma livre diz respeito
a uma determinada lógica: a do terceiro excluído, que não concebe continuidade “e” rupturas.
165
Rossi (2001) se concentra na união técnica e ciência e atribui a ruptura do conhecimento à
nova imagem do sábio. Foi necessário abandonar muitas concepções, obviedades e conclusões
extraídas da experiência cotidiana, para romper com a cadeia do conhecimento vigente. Sua
tese é de que a ciência moderna não nasce da experiência, mas da matematização que
desconstrói o velho mundo da tradição e rompe com a teologia católica. O que Paolo Rossi
denomina “ruptura do conhecimento” está ancorado na capacidade humana de imaginar um
novo sábio, isto é, está instalada num campo de continuidade: a presença do sábio, na
importância e no poder do conhecimento. “Assim, podemos chegar ao reconhecimento da
continuidade e da ruptura entre o racionalismo complexo e as formas clássicas de
racionalidade. Deveríamos, a partir daí, dar nascimento à nova geração de sistemas racionais,
que serão necessariamente abertos e complexos” (MORIN, 1992, p. 185).
A partir do século XVI, o trabalho do técnico, do mecânico, do engenheiro deixou de
ser considerado de segunda categoria e passou a se relacionar com o conhecimento do sábio,
do filósofo. Arcaico e novo compartilham um mesmo momento; romper com a tradição
significa unir técnica e sabedoria e desfazer os laços com o saber secreto dos monastérios,
mas, ao mesmo tempo, valorizou o conhecimento. Podem-se perceber idas e vindas de alguns
temas, retomadas que não apresentam o mesmo sentido; portanto, não é vestígio, nem
obstinação ou resistência, tampouco sobrevivência. Para conceber uma realidade alimentada
de continuidades, rupturas e emergência do novo, é necessário complexificar a relação entre
os diversos temas que se aglutinam, se anulam ou se adaptam a partir de um operador
temporal, um tempo complexo que se compõe de diversas linhas ancoradas em diferentes
sistemas culturais, períodos e pensamentos.
166
2.2.1. A sedimentação das idéias
O detalhamento do patrimônio cultural oculta aspectos importantes da vida real das
sociedades, seus movimentos, suas transformações. A história pode ser um enfoque para a
compreensão das sociedades, embora a ênfase no movimento e na mudança leve ao risco de
perdemos contato com aquilo que nelas é vivo. Importa ver como as imagens se movimentam.
Em certa medida, devido à dificuldade de trabalhar com temas, pensamentos e concepções
susceptíveis aos mais variados contextos, aquisições, necessidades, estímulos internos e
externos, quando trabalhamos com temas muito antigos, nosso espaço geográfico de pesquisa
vai se ampliando, de tal forma que a retrospectiva histórica se torna delirante e a busca pela
analogia dos mitos desanda em associações infinitas. Para alguns cientistas sociais, a única
saída é o apego ao limite preciso e inviolável dos sistemas culturais como unidades fechadas.
Para outros, existe sempre a possibilidade de novos arranjos e a abertura cuidadosa das
fronteiras entre áreas adjacentes.
Outro fenômeno que coloca em evidência as tessituras temporais é a sedimentação do
sabá, que Carlo Ginzburg descreve em História noturna (1991). Essa obra destaca-se pelo
fato de mostrar, apesar das variantes locais e da variedade dos termos, que as descrições do
sabá constantes nos autos dos julgamentos do Santo Ofício apresentavam uniformidade e
repetições de elementos mitológicos muito antigos e distantes no tempo e no espaço das
pessoas que os relatavam. Para os inquisidores, essa uniformidade era uma prova da
existência de tais rituais e fundamentavam as perseguições. A literatura especializada tratou as
questões referentes ao conjunto do imaginário contido nos processos inquisitórios de modo
bastante superficial, ora enfatizando os interesses econômicos dos acusadores e as ameaças de
167
tortura, ora atribuindo aos acusados a execução real dos rituais relatados e o caráter
alucinatório dessas confissões. As explicações por interesses econômicos é uma característica
da racionalidade do século XVIII, que não reconhece o fator humano das relações e das
construções mentais, pois é refém de uma lógica que se ocupou do trabalho, da transformação
do tempo em dinheiro, e se tornou ditatorial e enlouquecida, dominadora e impositiva como
instrumento de poder (MORIN, [198?]). Poucos estudiosos questionaram os motivos pelos
quais uma sociedade culta, como a dos juízes, filósofos e doutores da Igreja Católica, foi
levada a se envolver com superstições de origem camponesa.
Os historiadores encontravam-se diante de temas que os aproximava dos antropólogos,
mas não cogitaram a possibilidade de utilizar a antropologia em suas reflexões. Preocupados
em descrever detalhadamente o contexto socioeconômico, esqueceram-se de se perguntar
como a imagem do rito do sabá, a mitologia das bruxas e deusas puderam se acomodar na
sociedade culta dos séculos XV a XVII e se propagar, fazendo coincidir o imaginário popular
e o erudito? Trata-se de questionar a origem da eficácia, da potencialidade, da acessibilidade
de uma imagem, como ela adere a um contexto, como ela se difunde e se acomoda. Nenhuma
dessas perguntas pode ser respondida com a descrição, mesmo exaustiva, do conteúdo, dos
elementos, das unidades dessa imagem, porque essas respostas demandam a inclusão da
dimensão temporal.
Ao deparar-se com essa realidade multifacetada, Ginzburg (1991, p. 14) vislumbrou a
perspectiva de realizar um trabalho que envolvesse a “dimensão simbólica das crenças”. O
imaginário do sabá esteve presente em todas as camadas da sociedade européia do período.
Como e por que se cristalizou a imagem sabá tanto na imaginação dos homens cultos da
168
época como nos estratos populares? Nas confissões aos juízes, os acusados tornavam evidente
“uma riqueza simbólica” dificilmente explicável pela redução psicológica e pelo
funcionalismo sociológico. A maioria dos estudos “partem de uma constatação hoje óbvia: ou
seja, que nos testemunhos sobre bruxaria européia foram sobrepostos estratos culturais
heterogêneos, cultos e populares” (GINZBURG, 1991, p. 15), sendo os estratos populares
considerados sobrevivência de crenças antigas. A imagem do sabá não foi elaborada somente
pelos perseguidores. N. Cohn (apud GINZBURG, 1991, pp.16-17) coloca que a imagem do
sabá é uma retomada de um estereótipo milenar, que expressa antigos e persistentes medos.
O mecanismo que sedimentou a imagem do sabá compartilhada por réus e juízes tem
outra explicação. Não deve ser reduzido às necessidades, nem ao domínio de um grupo sobre
outro, nem foram induzidos por drogas ou torturas, embora esses fatores tenham tido
importância. À explicação de que seriam medos ancestrais deve ser acrescentada a forma
como eles podem ressurgir em contextos diferentes. A resposta para esta questão deve ser
buscada não só nos acontecimentos que constroem o cenário propício – o contexto –, mas na
confluência dos diversos tempos que compõem a realidade.
A discussão a respeito da ocorrência de cultos pré-cristãos durante esse período da
história européia e a procura de dados e documentos que comprovassem a existência de ritos
pagãos ocultaram a evidência da presença dos mitos vivos. De onde eles teriam emergido?
Para os iluministas, seriam projeções das crenças dos inquisidores sobre os acusados. Em
parte, isso deve ter ocorrido, mas essa explicação racionalista não pode dar conta de toda a
complexidade da questão. Como satisfazer-se com a redução de confissões detalhadas a
insinuações cometidas em interrogatórios? As ameaças de tortura não apagaram a riqueza da
169
mitologia que trafegava pela população européia, os trânsitos de idéias que abrangiam um
vasto território e um período de tempo inimaginável.
Parte herança romana, parte influenciada pela cultura das hordas bárbaras vindas do
leste, o imaginário emergente na Europa dos séculos V-XVI foi o resultado de uma ampliação
geográfica do campo de contribuição simbólica, que se estendeu da Eurásia ao Atlântico. Ao
fim das Guerras Púnicas, Roma passa a dominar um vasto e significativo território, que
abrangia o entorno do Mediterrâneo e expandiu-se por parte da Europa, Ásia e África. Dos
confins de seus domínios, chegavam mercadorias, imigrantes e culturas. O Império não só
conquistou povos como foi conquistado por seus diferentes costumes. Várias religiões
orientais floresceram no interior da Roma Imperial, como o culto de Mitra, por exemplo. A
contribuição romana não deve ser subestimada e reduzida à instrumentalidade do calendário, à
organização do direito, à oficialização do cristianismo. O cosmopolitismo romano é sinal de
um momento de efervescência cultural que Morin (1992) aponta como fator de grandes
modificações no pensamento. Assim, não é a suposta superstição romana que atravessa o
período pré-científico da Europa, mas a riqueza de tradições diversas incorporadas e,
manipuladas no bom sentido, reorganizadas, articuladas em conformidade com as novas
necessidades de uma sociedade mais diversificada.
Se por um lado, a atividade intelectual romana careceu de originalidade, seja pelo
caráter pouco abstrato dos romanos ou pelo fato de terem uma filosofia pobre (Russel, 2004) -
com o que não concordo -, por “sincretizarem” ou sintetizarem as mais diferentes correntes do
pensamento da época de forma homogênea, por outro, a filosofia romana compensou essa
alegada limitação, visto que viabilizou o diálogo entre várias correntes. As atividades romanas
170
não pretendiam ir além dos aspectos militares, econômicos e políticos. Nos domínios dessa
potência militar centrada na exploração das províncias, a prática religiosa e o pensamento
filosófico encontrariam campo aberto para a circulação de diferentes mitologias. A tolerância
com os cultos de todos os sítios do Império permitiu que passassem a barreira de seu nicho,
perpetuando-os e enriquecendo a cultura ocidental com vários matizes. O que alguns autores
chamam de decadência filosófica em decorrência da influência do misticismo oriental é, na
verdade, uma grande experiência de convívio e ampliação do patrimônio cultural.
Assim, no período da inquisição, nas brechas entre as falas dos acusados e os
estereótipos construídos pelos juízes, encontramos profundos estratos mitológicos vividos
intensamente, os quais, pouco a pouco, recebendo acréscimos e novas configurações, se
transformaram no sabá, “resultado híbrido de um conflito entre cultura folclórica e cultura
erudita” (GINZBURG, 1991, p. 22) que circulava no espaço europeu – objeto heterogêneo
cuja totalidade requer diferentes abordagens e tempos para ser acessada. Para o surgimento da
imagem inquisitorial, é necessário trabalhar com o tempo breve, dos acontecimentos que
deflagram mecanismos imprevisíveis, como, por exemplo, a insegurança gerada por crises
econômicas, sociais e políticas, acrescidas de velhas hostilidades com os grupos marginais,
tais como leprosos e judeus, e a busca do bode expiatório. Em seguida, para não paralisar na
explicação simplista da conspiração, que é somente uma parcela da realidade contida nesse
fenômeno, há de se levar em conta os elementos folclóricos estranhos à camada culta, mas
que fazem parte de um profundo estrato mítico das camadas populares. Há alguns elementos
mitológicos nas descrições dos rituais dos acusados identificáveis com o xamanismo euro-
asiático.
171
O xamã é curandeiro e psicopompo porque conhece as técnicas do êxtase, isto é,
porque sua alma pode abandonar impunemente o corpo e vagar por enormes
distâncias, entrar nos Infernos e subir ao Céu. Ele conhece, por experiência extática
pessoal, os itinerários das regiões extraterrenas. Pode descer aos Infernos e subir ao
Céu porque já esteve lá. O risco de perder-se nessas regiões proibidas é sempre
grande, mas santificado pela iniciação e munido de seus espíritos guardiães, o xamã
é o único ser humano que pode correr esse risco e aventurar-se numa geografia
mística.
(ELIADE, 1998, p. 208).
Como esses mitos e ritos se dispersam no tempo e no espaço? Quais os caminhos que
esses elementos mitológicos seguem até encontrarem as condições para seu ressurgimento?
Qualquer resposta imposta pela cronologia sucumbe aos padrões das resistências,
sobrevivências, dominações. É necessário abrir mão do tempo linear e uniforme para
introduzir no estudo o cruzamento de diversos tempos sociais, o tempo do acontecimento e o
tempo das estruturas dissipativas que reordenam os elementos que sempre estiveram presentes
para fazer emergir o novo, um pensamento inédito. A coleta antropológica ou histórica de
dados não é suficiente para compreender a complexidade dessa transformação, mas são assim
discutidas as principais opções de explicação para o imaginário do sabá: violência cultural e
psicológica dos inquisidores e seus interesses, ignorando-se a dimensão temporal longa.
O reaparecimento de formas simbólicas separadas no tempo e no espaço pode ser
analisado de forma exclusivamente histórica. Há uma demanda para a investigação
morfológica, mas esta não substitui a reconstrução do contexto histórico, nem são únicas. O
contexto de crise detém parte das motivações que explicam a retomada de elementos
mitológicos situados em camadas tão profundas do espírito humano. Mas as transformações e
os abalos sofridos pela sociedade européia dos séculos XIII-XIV não colocam sozinhas em
evidência a trama atemporal desses modelos simbólicos.
172
Para além do simples e óbvio motivo econômico centrado no confisco dos bens de
judeus envolvidos em complôs, aos quais logo se agregaram outros “bodes expiatórios”, como
leprosos e muçulmanos, da crença na existência de má-fé generalizada entre os acusadores,
encontra-se um fenômeno complexo em que podemos reconhecer vários tempos e seus
medos, mitologias e crenças, já que as condições favoreciam sua emergência. Nos relatos de
acusados e interrogatórios dos juízes, existem camadas sobrepostas de mitos cuja origem
remonta a vastas áreas. Estas se referem, inclusive, a temas estranhos uns aos outros: gregos,
romanos, celtas e estratos culturais ainda mais antigos.
O fato de que “estruturas imutáveis da mente humana, na realidade, implicam
constrições formais inatas” (GINZBURG, 1991, p. 30) nos sugere um possível enraizamento
corporal para certas recorrências simbólicas. Isso é bem mais denso que atribuir esse
fenômeno a uma transmissão de caracteres culturais por intermédio de um vago conceito de
arquétipo, ou mesmo de contato entre sociedades. Esse último modelo de explicação, por
conta da distância geográfica extensa, deixa de fora várias culturas que, apesar disso, mostram
semelhanças em seus patrimônios simbólicos. Essas explicações, isoladas, não são suficientes
para a manutenção das representações por tão longo tempo e espaço, mas se cogitarmos,
também, um movimento do interior, baseado na mais íntima experiência corporal
universalizada pela espécie, a transmissão das imagens arquetípicas deixa de ser uma etérea
proposta teórica para se tornar um alicerce para o enraizamento corporal da subjetividade.
173
O corpo é aquilo que compartilhamos com toda a humanidade, independente da região
e do momento. Campbell (1997, p.68-78) considera o enfoque biológico, mais que o histórico,
fundamental para compreender o funcionamento da mitologia. O corpo humano carrega em si
toda a história da humanidade. Nasce incompleto e busca indefinidamente sua completude,
que transcende a maturidade física. Nesse âmbito, pode-se reconhecer a raiz corporal dos ritos
de iniciação, as profundas experiências de quase morte e o segundo nascimento, que são
recorrentes em todos os sistemas culturais. É o isomorfismo que cria a identidade, a matriz, o
símbolo ou, se preferir, o arquétipo, e não o contrário. Esse ensinamento está contido no
Abhiddharma.
Partindo do pressuposto que “originalidade não é sinônimo de autoctonia”
(GINZBURG, 1991, p. 32), podemos atribuir ao pensamento grego uma originalidade, sem
descartar as apropriações do pensamento oriental e conjeturar que as religiões de mistérios da
Grécia, ancoradas no êxtase, estejam carregadas de temas provenientes dos xamanismo euro-
asiático. Acrescentamos a isso a apropriação romana de ritos e mitos gregos, que tornam a
contatar a matriz oriental. Essa conexão implica uma perspectiva muito ampla, que não pode
ser examinada somente pelo ponto de vista histórico, embora não duvidamos que existisse
esse contato sincrônico estabelecendo a trama entre mitos e os ritos de diferentes
procedências. Ginzburg percebeu que “os testemunhos folclóricos têm raízes num tempo
muito mais distante e possuem uma difusão no espaço bem mais ampla do que se imaginava”
(GINZBURG, 1991, p. 34). Em todo presente estão incrustados muitos passados provenientes
de vastos contextos espaciais.
174
A cultura é capaz de produzir, reproduzir, manter e modificar a sociedade, porque é
um sistema aberto que se desorganiza, reorganiza e interage com outros sistemas, abrindo
brechas e fissuras na realidade social. Uma realidade tênue, ambígua, nada compacta, mas que
é agarrada, tanto social como individualmente, e assim é capaz de determinar passado,
presente e futuro. As confluências dos tempos – grego, romano, pagão, cristão –, as aquisições
e os movimentos das idéias vivas, a busca de sentido da racionalidade, mas também a
plasticidade imaginativa do pensamento mítico, que não encontra dificuldade em unir os
opostos, conciliar o inconciliável, retroagem para estabelecer a mitologia do sabá, tanto em
seu lado culto como no popular.
O tempo social é uma pluralidade de tempos, onde o tempo breve, da história política,
dos acontecimentos se confronta com o tempo da estrutura, a longa duração (BRAUDEL,
1972). Não é necessário contrapor os tempos de maneira que tenhamos de escolher entre eles.
Da mesma maneira que o tempo da história é mais que o relato simplista e linear de
acontecimentos, também é superficial interpretar a opção sincrônica de Lévi-Strauss como
anti-histórica. O dilema básico entre história e antropologia adquire novas proporções quando
confrontamos mitos homólogos de culturas não conectadas. As visões simplificadoras dos
fenômenos do imaginário ocultam aquilo que eles têm de mais rico: sua plasticidade. Não
estamos tratando com “objetos” científicos de segunda ordem, nem de fatos que não se dão
muito a conhecer pelos métodos tradicionais de conhecimento.
Teorias, doutrinas, filosofias, ideologias, não têm de ser julgadas apenas como erros
e verdades na tradução que fazem da realidade; elas não têm de ser concebidas
apenas como produtos de uma cultura, de uma classe, de uma sociedade. São
também seres noológicos, alimentando-se de substância mental e cultural, e algumas
175
delas, carregadas de fortes substâncias mítico-religiosas, podem desenvolver um
poder extraordinário de subjugação e posse.
(MORIN, 1992, p. 134).
Os seres noológicos persistem por intermédio de pessoas de carne, ossos e
subjetividade. Sua presença é independente da consciência. Desse modo, é necessário que a
dimensão temporal esteja presente nos fundamentos da análise. A história pode ajudar a
antropologia a resolver problemas, e vice-versa, por meio da dialógica entre o tempo breve e a
longuíssima duração. A reconstrução sincrônica, designativa, local deve se unir à comparação
retrospectiva e arqueológica em busca do significado primário, o mais antigo possível. A
maior aproximação com o “núcleo mítico” revela como este se funde com estratos mais
recentes, colaborando para a cristalização de uma imagem amplamente compartilhada. Essa é
a proposta de Carlo Ginzburg, que demonstra como os mitos são vivos, mesmos os mais
antigos, e devemos realizar um levantamento em nível sincrônico e diacrônico para recuperar
sua trajetória. Resta sistematizar como isso aconteceria.
2.2.2. Os rios ocultos do imaginário
Os principais modelos de interpretação colocados em discussão por Ginzburg (1991)
são extraídos da teoria junguiana dos arquétipos, da leitura sincrônica realizada por Jean-
Pierre Vernant e Marcel Detienne, da proposta estruturalista que sugere uma jamais verificada
origem paleolítica para a organização do pensamento humano, e, por fim, a resposta que
pressupõe a propagação no espaço de temas mitológicos de origem proto-histórica. Essas
opções, respectivamente arquetípica, estruturalista e difusionista, examinadas com
proficiência pelo autor, introduzem idéias produtivas para nossa proposta, mas é com Gilbert
176
Durand que encontramos o melhor modelo, pois ele comporta os tempos em diversos estados
possíveis entre ruptura e continuidade.
Quando nos referimos ao imaginário, estamos considerando, em conformidade com
Durand (2001, pp. 5-6), o patrimônio de imagens passadas, possíveis, produzidas e a serem
produzidas. Essas imagens estão sempre presentes, inclusive nas sociedades dominadas pela
escrita, pois o imaginário é próprio do homem. O ocidente desqualificou a imagem, ao mesmo
tempo em que desenvolveu ao limite sua reprodução e comunicação. Apesar de ser veículo
prioritário de mensagens, a imagem perdeu terreno na comunicação científica, ficando restrita
à arte e à literatura. No entanto, permaneceu além do esmagamento dos meios de
comunicação de massa e ainda derrota o iconoclasmo ocidental
32
. A execração do imaginário
impulsionou o progresso técnico e material que veio a ser imposto às demais civilizações
(DURAND, 2001). Mas a vocação iconoclasta do ocidente não é prerrogativa da sociedade
tecnológica, o que pudemos verificar com a breve apresentação dos filósofos gregos e no
nascimento da ciência.
É reconhecível uma ideologia da superioridade, da objetividade, da manipulação, do
domínio e da instrumentalização do ocidente e a eclosão da idéia de que existiam estágios
evolutivos do pensamento: pré-lógico e lógico, primitivo e moderno. O pensamento humano,
mediante seu crescente desenvolvimento, necessitava cada vez menos dos recursos imagéticos
para a comunicação. Mas a ciência é feita de imagens. Não estamos somente falando da
criatividade do cientista no laboratório, mas também de seu desempenho no processo
cognitivo. O imaginário sobrevive no meio cientificista racionalista através do romantismo,
32
Como exemplo do iconoclasmo ocidental, podemos citar a lógica aristotélica, a escolástica medieval, o
expurgo de Galileu e Descartes e o empirismo factual do século XVIII.
177
do simbolismo e do surrealismo; transparece na descoberta do inconsciente e demonstra o
funcionamento do duplo pensamento humano nas imagens diurnas e noturnas (DURAND,
1997). A imagem sai do ostracismo quando media a realidade externa e a interna. Provando
que é uma ilusão aspirar a um pensamento sem imagem, a cada fase de eliminação da
imagem, surge uma resistência nos nichos do imaginário, lutando para permanecer como
manancial de transmissão de experiência, sabedoria e informação. Isso ocorreu na herança
platônica, na arte barroca, no neoclassicismo e no romantismo. Existe sempre um filão pelo
qual escoa a potência imaginária.
O imaginário é instrumento importante no conhecimento, na explicação do mundo, e a
imagem é parte integrante da ciência. Durand não hesita em conjeturar sobre os fundamentos
físicos do imaginário a partir das confirmações anatomofisiológicas e etológicas, mas
centraliza essa possibilidade no cérebro, que, por sua plasticidade e lenta formação (neotenia),
permite que o ambiente desempenhe um fator capital no aprendizado e no desempenho do
cérebro.
O estudo demonstrou a singularidade anatômica do ‘cérebro humano volumoso’,
segundo o termo usado [por] H.Laborit. Podemos afirmar tratar-se aqui de um
‘volume’ ao ‘quadrado’. Ele capitaliza sob o ‘cérebro pré-frontal’ (ou ‘terceiro
cérebro’) os dois outros cérebros: o palencéfalo (centro da agressividade ‘reptiliana’)
e o mesencéfalo (centro da emotividade ‘mamífera’). Este ‘terceiro cérebro’ ocupa
dois terços de massa cerebral e controla todas as informações filtradas pelas outras
esferas do sistema nervoso por meio de suas ligações neurológicas (as fibras de
mielina).
(DURAND, 2001, p. 40).
Essa rede sensível, unida por inúmeras articulações, permite vários graus de ligação
simbólica e é ilimitada no homo sapiens, cujo pensamento é, portanto, representação. Em
178
outras palavras, o imaginário está fundamentado nessas articulações neurológicas que,
dependendo da zona cerebral onde ocorrem, se denominariam noturnas ou diurnas
(DURAND, 1997). Desse modo, “todo símbolo necessita das estruturas dominantes do
comportamento cognitivo inato do sapiens” (DURAND, 2001, p. 91). Encontramos, dessa
forma, um patrimônio comum à humanidade, confirmado pelas descobertas da neurologia e
pela etologia, que revela a existência de imagens primordiais próximas aos arquétipos
junguianos, os quais, neste caso, poderiam ser interpretados como sendo de fundo corporal.
As antigas teorias do imaginário, impregnadas de eurocentrismo, levaram os
antropólogos a revelar os seres humanos por meio de suas atividades, habilidades e postura
corporal, ignorando, porém, sua criatividade. Quando as ciências humanas se dão conta da
existência do homo symbolicus desde os primeiros estágios de hominização, implodiram-se as
remotas teorias do pensamento pré-lógico (LÉVY-BRÜHL, 1922), da progressão linear, do
pensamento rudimentar em direção a uma crescente sofisticação, da transformação do
pensamento mitológico em pensamento filosófico e histórico. A terminologia das ciências do
imaginário cai por terra em pouco mais de 20 anos (DURAND, 2001, p. 48), convertendo-se
de pejorativa em uma solene acolhida desse patrimônio selvagem em cada ser humano (LÉVI-
STRAUSS, 1989). A partir desse momento, foi instituída uma ciência do imaginário válida e
importante, que, entretanto, recaiu ainda prisioneira “na velha lógica binária obcecada pelo
silogismo” (DURAND, 2001, p. 59). Equivale a dizer que ela estava encilhada pela lógica
aristotélica do terceiro excluído manifestado pela construção dualista, que, além de
empobrecer os conceitos, fecha as fronteiras entre as ciências pertinentes às produções e à
evolução do humano.
179
O processo de dessacralização é efetivo, e as ciências do sagrado, ou aquelas que mais
próximas dele se encontravam, terminaram por sentir a dificuldade de encontrar um modelo
de interpretação convincente que não recaísse nas teses, hoje claramente absurdas, de
infantilidade, patologias e incapacidade intelectual. Quando lidamos com o imaginário, as
explicações históricas parecem frágeis, pois encontramos alguns pontos obscuros, algumas
zonas nebulosas. As imagens insistem em desobedecer à linearidade do tempo, uma vez que
os diferentes tempos se entrelaçam, realizam movimentos fortuitos, permanecem latentes e
manifestam-se, desaparecem e ressurgem inesperadamente, corroborando a constatação de
que na esfera do imaginário nunca houve dessacralização o suficiente.
O imaginário tem sua dinâmica temporal específica, bem demonstrado por Mircea
Eliade, que não apresenta nenhuma correspondência com a sucessão mecânica newtoniana.
Cada disciplina constrói separadamente sua explicação do imaginário e sua metodologia para
estudá-lo, perdendo, com isso, a extensão temporal que poderia ligar os diferentes estratos de
proveniência das imagens. A discussão, dessa forma, fica encarcerada em modelos fixos e
distintos, como, por exemplo, o da existência institucional de um homo religiosus e de um
homo symbolicus. As disciplinas vivem cada uma seu exílio, suas ilusões; não se comunicam,
não amadurecem e permanecem prisioneiras do pensamento autocentrado. Apesar de
existirem diferentes métodos de abordagem do mito, nenhuma disciplina é capaz,
isoladamente, de lidar com ele ou com qualquer outra representação, acompanhar suas
imprecisões, contradições, movimentos, fluidez e dar conta das temporalidades que se
conjugam em cada fenômeno. Nem a história, nem a antropologia, nem as ciências da
religião, nem a psicologia, todas com vocação redutora, fazem jus à riqueza e às incertezas
180
que o estudo do imaginário traz. Olhando sob uma perspectiva complexa, o homem é
religiosus, symbolicus, faber, erectus, sapiens e demens simultânea e contemporaneamente.
O objeto imaginário é ambíguo, a direção de seu movimento é incerta, seus trajetos,
estranhos. Daí a metáfora, a metonímia, a analogia, as associações, a incoerência e o absurdo
do sonho e a eficácia dos mitos. “O mito não raciocina nem descreve: ele tenta convencer pela
repetição de uma relação ao longo de todas as nuanças (as ‘derivações’, como diria um
sociólogo) possíveis” (DURAND, 2001, p. 86). Correspondendo a essa especialidade do mito,
cada mitema e cada ato ritual operam como um holograma que depende do legado sapiens. As
questões levantadas nas ciências duras por Fritjof Capra ou Werner Heinsenberg são
manifestações desse lado quase imperativo do pensamento humano que é o fascínio pelo
inimaginável, pelo incompreensível e o respeito pelos mistérios. O terror diante da surpresa é
também o deleite sapiens.
Os pesquisadores não tardaram a perceber que as mudanças na sociedade sempre
ocorrem de forma regrada, com longos períodos e momentos breves permeados por certa
estabilidade, decorrendo daí as periodizações empreendidas pelos principais teóricos das
ciências sociais. Eles se inspiraram pelo modelo, quase um mito, progressista: divisão em
eras, etapas, ciclos e períodos marcados por certas organizações sociais, forma de organização
política ou econômica, tendências e estilos. Mas esses estudos sucumbiram à cronologia e
desconsideraram os conteúdos e as diferenças; dividiram em fases a totalidade desconhecida
do imaginário humano e estabeleceram as teorias de retornos, resistências, sobrevivências.
Esqueceram-se de que “sempre existe na sociedade não um tempo qualquer, único e
181
‘monolítico’, mas uma gama de ritmos sociais condicionados pelas leis dos diversos
processos e pela natureza dos diversos grupos humanos” (GOUREVITCH, 1975, p. 277).
Todos os pesquisadores que se debruçaram sobre a história sempre constataram que as
mudanças numa determinada sociedade nunca se efetuavam de modo amorfo e anômico
(sem forma nem regra), mas que entre os eventos instantâneos e os ‘tempos muito longos’
(Fernand Braudel) há períodos médios e homogêneos quanto aos estilos, as modas e os
meios de expressão. Daí, a partir da existência de uma ciência histórica, a divisão
tradicional da história de uma sociedade, da nossa sociedade ocidental, em ‘Antigüidade’,
‘Idade Média’ e ‘Tempos Modernos’
. (DURAND, 2001, p. 100).
Baseado nas pesquisas dos embriologistas Waddington e Sheldrake, que propõem o
modelo da dinâmica dos creódos, isto é, uma via de mudança dentro de um campo mórfico
33
e de Pitirim Sorokin, que elaborou uma classificação da dinâmica sociocultural
34
e utilizando
metáforas potamológicas apropriadas para o trabalho com a fluidez, dinâmica e movimento do
imaginário social, Durand apresenta o conceito de “bacia semântica”. Ela permite o estudo
mais amplo dos mitos e inclui as mudanças, o que significa que é menos limitada e rígida que
o conceito de estrutura.
Todo sistema sociocultural imaginário sempre tem ascendentes e descendentes. A
aplicação desse modelo, portanto, exige cautela quanto ao campo e amostragem a serem
estudados: suas pesquisas compreenderam as sociedades européias e suas extensões coloniais,
ou seja, não extrapolaram a relação de filiação. Ginzburg (1991) já observara o risco de
33
Esse modelo inclui campos morfogenéticos, comportamentais, sociais, culturais e mentais para demonstrar
como se encaminha a maturação do embrião e estabelecer uma diretriz não linear para a causa formativa que
chamaram de “bacia fluvial”.
34
Essa se apresenta em três fases de duração e conteúdos vagos que, esgotadas as suas possibilidades, voltam a
ocorrer, sem, no entanto, obedecer a uma linearidade.
182
ampliar o campo espaço-temporal dos estudos a respeito do imaginário, o que torna a análise
extensa e inútil. O sistema de bacias semânticas compõe-se de seis fases: escoamento, divisão
das águas, confluências, nome do rio, organização dos rios, deltas e meandros, que podem
ocorrer num período entre 150 e 180 anos. Primeiro, um setor marginalizado ou dissidente
passa a solapar as bases do imaginário imobilizado pelos códigos, regras e convenções e
surgem como uma oposição velada. Um exemplo seria a filosofia surgindo no meio do corpus
mitológico e dissentindo dele. Em seguida, alguns escoamentos se juntam formando uma
oposição acirrada, criando as querelas entre escolas, como as de Heráclito (540-470 a.C.) e
Parmênides (530-460 a.C.). No movimento seguinte, uma corrente é institucionalizada,
reconhecida e apoiada pela autoridade, como a síntese de Platão, inspirada em Sócrates (470-
399 a.C.), e o reconhecimento de uma profunda mudança no pensamento, dividindo as águas
em “antes” e “depois”. Na quarta fase, a corrente ganha um nome, tem reconhecida sua
paternidade, como o papel que Aristóteles cumpre para o ocidente. Em seguida, observam-se
os exageros e há um endurecimento ou uma cristalização da idéia: seus seguidores atuam de
forma intransigente e estabelecem o dogma, como foi a Escolástica. Por fim, o imaginário
saturado e enrijecido é invadido por vias de escoamento de idéias, novas brechas se abrem: o
pensamento científico nasce dentro das universidades monásticas e cresce distanciando-se
delas.
No meio do caminho entre a ruptura e a continuidade de costumes, idéias, imprintings,
culturas, mitos, ritos, paradigmas e conhecimento, da reunião de pensamentos conflitantes,
convergentes, opositores ou análogos, encontramos simultaneamente, num único modelo
organizativo e explicativo, diferentes elementos da cultura, que um inventário exaustivo é
incapaz de apreender ou compreender, pois os reduziria a reflexos da vida econômica, a
183
mecanismos de apaziguamento das crises sociais, à relação desigual entre culturas mais e
menos evoluídas. Todas essas relações podem estar presentes, mas somente novos
fundamentos científicos são adequados para expor tamanha complexidade. Elas inviabilizam a
elaboração de uma história linear que contemple as mudanças, pois resultam da visão
monocular, de uma figuração plana da realidade. O percurso de uma idéia, de uma imagem
não é retilíneo, como pudemos observar pelo conceito de “bacias semânticas” de Durand
(2001), nem obedece cegamente à cronologia do tempo breve, conforme mostrou Ginzburg
(1991). Uma idéia herda, transforma, se opõe e se associa a outras; por isso é difícil
desvencilhar-se dos conceitos gêmeos de ruptura e continuidade (ROSSI, 2001).
Mas é possível ir além, considerar o mundo das idéias vivas, isto é, que crescem, se
reproduzem, guerreiam, fazem a paz, envelhecem, rejuvenescem, morrem e renascem. Não
são formas a priori, mas imagens virtuais primordiais que controlam nossos sonhos e mitos,
das quais dependemos e que ainda não tiveram sua proveniência demonstrada. Para o
estruturalismo, a noosfera é uma fabricante de sentidos. Seus produtos – símbolos, mitos e
linguagem – fazem o homem, e não o inverso. Os mitos pensam-se a si mesmos, mas foram
imaginados pelos homens antes de se descolaram deles e criarem vida própria. Os homens
criam os deuses e depois são dominados por eles. Mas existem pontos a serem esclarecidos.
Os mitos, como produtos humanos, foram por muito tempo classificados como ilusão,
loucura, demência, infantilidade, primitividade: “vemos que o mundo das idéias oscila entre o
absoluto e o epifenómeno, a sobre-realidade e a sub-realidade. Que idéia devemos ter da
idéia? Que estatuto lhe devemos atribuir?” (MORIN, 1992, p. 96). O ser humano engendra as
idéias, os mitos, os sonhos, a matemática, o simbolismo, a religião, a arte. Mas esse produto
tem vida e se apropria de seu demiurgo “porque, como vírus, dispõem, num meio
(cultural/cerebral) favorável, da capacidade de autonutrição e auto-reprodução” (MORIN,
184
1992, p. 98) e, de acordo com a definição do vivente feita por Monod (2006), como seres de
caráter teleonômico produzem a si mesmos.
As idéias, como a vida, evoluem de forma não linear. As idéias se multiplicam, se
conservam em nichos isolados, se transformam em ambientes de abertura e troca intelectual.
O estudo morfológico das idéias sempre traz um quê de incerteza. “Em que circunstâncias.
ocorreram?”, “como retornaram?”, “por que permanecem iguais a si mesmas ou sofrem
alterações profundas?” e “como se comportarão no futuro?” são questões impossíveis de se
responder. Se não podemos apreendê-las por todos os ângulos possíveis, se o trabalho de
busca arqueológica das idéias pode nos transportar para períodos amplos e regiões vastas,
impossibilitando a criação de uma teoria definitiva, isso não significa que devemos abrir mão
dos estudos. Devemos, sim, começar a olhá-los sob outro prisma. É necessário agregar a
dimensão temporal a esses estudos, o que não significa retornar ao determinismo histórico. É
necessário complexificar também a história.
2.3. A história nos faz diferentes
Entendidas as limitações dos estudos lineares e somatórios e compreendendo que os
eventos singulares, objetos da história, são simultaneamente continuidades e rupturas dos
sistemas sociais, econômicos e políticos, resta apresentar como o novo pode surgir da
perspectiva histórica independente do esquema determinista das leis históricas. Qual o papel
da história para a crença de que existe um caminho plano do simples ao complexo? O tempo
cronológico, não pela cronologia em si, mas por sua tendência simplificadora, pode ser
185
substituído por um tempo complexo, fundado na experiência corporal humana e simbolizado
pela experiência histórica. O que a história nos fala sobre a diversidade humana? Ao contrário
do que a herança iluminista pretendeu, a universalidade humana não pode ser extraída da
história, pois aquela instaura a diferença e abre possibilidades para caminhos diferentes.
Para introduzir a abordagem histórica, iniciarei com a pesquisa realizada por Leach
(1996), que aponta para as necessidades de organização social diante dos processos de
mudança desencadeados tanto por fatores externos, entre eles o ambiente e a interferência
estrangeira, como por internos, ou seja, os desejos dos indivíduos e os próprios recursos
culturais adaptados. Esses dados conduzem à aceitação da existência de mudanças sociais, das
quais os modelos dos antropólogos são insuficientes como instrumentos de interpretação. A
seguir, apresentarei uma discussão sobre os objetos, métodos e paradigmas envolvidos no
conhecimento histórico; apresentaremos a hermenêutica de Paul Ricoeur, sua importância e
amplitude para aproximar história e antropologia e, por fim, duas experiências com o tempo
complexo, de acordo com a sugestão de Ilya Prigogine.
2.3.1. A liqüidez da ordem
De outubro de 1940 até 1942, durante o período em que serviu ao exército e percorreu
a região em missão de recrutamento e inteligência, Edmund Leach pôde de maneira
sistemática, coletar dados sobre as populações kachin que vivem na região nordeste da
Birmânia, a região das colinas de kachin. Assim, de acordo com material empírico e fontes
documentais, ele nos introduz no universo kachin e chan, mostrando como se organizam. Os
186
chan, camponeses sedentários que cultivam arroz e comercializam o excedente, apresentam
certa urbanização. Contrariamente, os kachin praticam uma agricultura itinerante com raro
excedente, sendo um povo composto por vários subgrupos que dividem o espaço e se
relacionam com o grupo chan. Ambos possuem história, língua, cultura, aspectos raciais,
econômicos e políticos diversos e, apesar disso, mantêm estreitas relações entre si.
A organização dos diferentes grupos kachin está baseada na lingüística, na base
territorial e na política diversificada. Entre os subgrupos, podemos destacar os tipos gumlao e
gumsa, que apresentam uma clara oposição na organização política, se revezam no exercício
do poder e comumente utilizam o termo “inimigos tradicionais”, quando se referem uns aos
outros. Para Leach (1996), esse tratamento foi intrigante, pois contrastou com o fato de ambos
se apoiarem na cultura kachin. Os primeiros apresentam um republicanismo anárquico e uma
divisão lingüística obstinada, análoga à generalidade kachin, e os segundos, uma hierarquia
nos moldes feudais, com assimilação da língua do grupo superior, isto é, de acordo com o
modelo político chan. Portanto, a organização social encontrada no território não pode ser
descrita como totalidade. Embora possa até existir uma integração política, não ocorre
integração cultural.
O grupo pode optar, dependendo das circunstâncias, por uma organização gumlao ou
por uma gumsa. Podemos verificar um trânsito constante: os tipos gumlao tendem a
desenvolver características gumsa, e estes se fragmentam em pequenos subgrupos de tipo
gumlao. Essa opção pela organização gumlao ou gumsa é uma escolha que, no entanto, não
surge no cotidiano dos grupos como uma grande ruptura ou uma modificação nas suas
tradições, pois está apoiada, ancorada no mito e confirmada pelo rito.
187
O trabalho de Leach mostra que a organização social não está baseada no equilíbrio
social, mas em contradições. Estas são geradoras de mudanças e, assim, as sociedades, mesmo
aquelas consideradas “sem história”, transformam-se, “a despeito de suas tradições”, que não
são imutáveis e, ainda assim, “em respeito às suas tradições”. Quando levou em consideração
dados históricos, Leach (1996) percebeu estar lidando com uma realidade que ultrapassava a
resposta-padrão dos antropólogos sociais ingleses, que apostavam na estabilidade dos
sistemas sociais analisados e sentiam dificuldade em enxergar as mudanças sociais. Os
instrumentos conceituais dessa antropologia eram: a estrutura social, a estabilidade e a
construção de modelos de equilíbrio impõem limites e levam à cegueira; impedem de divisar
que as sociedades reais nunca estão em equilíbrio e apresentam inúmeras inconsistências, ou
situações que decifram as mudanças que os modelos não alcançam.
Para o objetivo deste trabalho, esse estudo aponta para três discussões fundamentais. A
primeira diz respeito à pertinência da construção de uma teoria sobre processos históricos e
mudança social. A segunda concerne a necessidade de um novo conceito para rito e mito. Por
fim, o estabelecimento de diferenças entre estrutura e cultura.
O que pode interessar ao estudioso, o que lhe acrescenta na compreensão e,
conseqüentemente, no diálogo com outros povos, a descrição, o inventário exaustivo dos
elementos culturais? Esse tipo de exposição de dados tem como único interesse apontar para
escolhas arbitrárias cujo sentido só se apresenta depois de estabelecido o patrimônio, isto é, a
posteriori. A descrição exaustiva dos dados empíricos é uma aparência, uma ilusão que o
188
cientista social cria como se fosse o real, como se fosse fixo, como se qualquer transformação
nessa ordenação significasse um erro ou falta de conhecimento. Nesse caso, trabalha-se com
as relações entre conceitos, e não com relações existentes no campo da vivência dos
indivíduos. O pesquisador Faz de seu estudo o máximo da abstração e, atendendo às
necessidades de segurança, certeza e estabilidade, cristaliza seu conhecimento a respeito do
grupo e estabelece sua organização social como algo em permanente equilíbrio.
A dificuldade dos antropólogos ingleses de trabalhar com a história reside no
embaraço em ajustar o material histórico ao quadro conceitual, em conformar as mudanças
que ocorrem no cotidiano de todas as sociedades ao levantamento do patrimônio cultural
como algo estável. Trata-se, na verdade, da ilusão científica de considerar os modelos ideais
como representações exatas da realidade, desprezando as mudanças. Como integrar o
levantamento etnográfico ao processo histórico? Como ajustar um modelo fixo ao dinamismo
da realidade? Se a história se preocupa com as singularidades e mudanças, como pode ser
instrumento de compreensão das sociedades tradicionais ou das estruturas cristalizadas?
Os problemas da antropologia estão no fato de ela pensar as sociedades como
organizações em equilíbrio, nas quais as mudanças apontam para uma desintegração e perda
de identidade (LEACH, 1996). Assim, o trânsito kachin entre os princípios gumsa e gumlao
o fato – só pode interessar ao antropólogo se colocado no contexto de uma teoria sobre
processos históricos. Dessa forma, é possível desvendar as “forças” desestabilizadoras do
sistema que atuam sobre a sociedade. É diante dos momentos de instabilidade social que
ocorrem escolhas individuais, conforme o que se apresentar como mais vantajoso. Quando
189
define “forças”, o autor não está pensando na perspectiva determinista, pois esclarece que, ao
antropólogo, não cabe dizer nada sobre o futuro.
Os fatos etnológicos não interessam tanto quanto os princípios que os fundamentam:
“os dados da antropologia são antes de tudo incidentes históricos, intrinsecamente não-
repetitivos” (LEACH, 1996, p. 53). A insistência dos antropólogos em se preocupar mais com
as questões da sociologia, do patrimônio cultural e da estrutura de uma sociedade do que com
a história, isto é, com os fatos que antecederam ou foram importantes para o surgimento de tal
organização, sugere a existência de uma ordem imutável no aparente caos dos acontecimentos
históricos. Assim, Leach (1996, p. 275) se coloca como observador de mudanças. Tanto o
subgrupo gumlao como o gumsa são beneficiados com os mesmos recursos naturais,
desqualificando-se, assim, a determinação dos aspectos geográficos ou climáticos. Trata-se de
sociedades que estão além das determinações geográficas, climáticas, pois se encontravam
diante de grupos que compartilhavam um mesmo ambiente e escolhiam atividades com tons
diferentes. “Ao tentar desenvolver uma teoria da mudança social kachin, devo começar,
portanto, pela suposição (nitidamente falsa) de que os fatores ecológicos gerais contra os
quais os kachins tiveram de lutar no passado sempre foram os mesmos que são hoje”
(LEACH, 1996, p. 275).
A importância do conhecimento histórico para a compreensão antropológica não
significa atribuir-lhe valor determinista. O analista social pode conseguir chegar a um ponto
em que é capaz de ver o que provavelmente acontecerá em seguida, mas nunca poderá ter
certeza disso. O meio ambiente, em seu sentido mais amplo, cria o contexto em que se faz a
escolha, mas a escolha é feita por indivíduos. Nele podem-se inferir influências, contatos,
190
períodos de predominância e interferências externas. Fatos e períodos marcantes imprimem
seus sinais na cultura, no imaginário, no significado das normas e regras e também nas
relações entre os grupos, mesmo aqueles considerados “sem história”. Quais as
transformações ocorridas nos povos tupinambás e tupiniquins diante da, para eles
inimaginável e incompreensível, trama entre portugueses, franceses e holandeses que se
desenrolou no início da exploração colonial?
Na confluência das forças históricas e ambientais, revelam-se as alternativas possíveis
e afetivas, isto é, o elemento humano, considerado o mais complicado e o mais volátil dos
aspectos decisórios nas transformações. Indivíduos entram nesse jogo pela busca de prestígio,
reconhecimento e pertença (LEACH, 1992). Eles sãos os responsáveis pelas escolhas mais ou
menos vantajosas, mais ou menos adequadas, com diferentes porcentagens de possibilidades,
que se mostram mais ou menos ajustadas às necessidades e que encontram justificativa no
corpus normativo e regulador do grupo. Por isso, são peças-chave nas decisões e mudanças de
rumo num processo histórico e cultural. Tantos elementos, necessidades, obediências,
solidariedade, dissidência se aglutinam nesse elemento micro que ele se torna indeterminado e
carrega em si uma boa porção de álea, dada por informações imprevistas, crises de valores,
indecisões e pressões.
Para a maioria dos antropólogos britânicos, e segundo Malinowski, o mito
expressa/representa a estrutura social que o rito dramatiza. Mas o que pensar do mito e do rito
diante das mudanças que sobrevêm à sociedade? O rito, diferente do que pensam os
funcionalistas, não precisa estar necessariamente congruente com o mito. Para Leach (1996,
p. 308 e ss.), o mito traz em si, como parte integrante e inexorável, a contradição e a
191
incoerência. Não tem uma versão correta, pura ou original; não é uma história como no
entendimento do antropólogo, isto é, uma narrativa de fatos do passado. O mito que reconta,
no presente, as tradições fundadas num passado remoto, supõe a escolha do momento, o
motivo, o interesse de quem narra ou solicita a narrativa de que essa história venha à tona.
Sempre que um mito é lembrado e relatado, existe um interesse em justificar, validar uma
posição social, confirmar um direito, o que inclui adaptações, sutis alterações na ordem, nos
elementos, nas ênfases, omissões e acréscimos. Essas variações não são erros, nem perda de
identidade do grupo, tampouco esquecimento de costumes, perda de significado, dominação
colonial ou aculturação – elas integram o mito, fazem parte de sua essência, são sua natureza.
Nessa dinâmica, reconhecemos o vivo do mito. Além disso, como bem destacou,
técnica e ritual, profano e sagrado não denotam tipos de ação, mas aspectos de
virtualmente qualquer tipo de ação. A técnica tem conseqüências materiais
econômicas que são mensuráveis e predizíveis; o ritual, por outro lado, é uma
declaração simbólica que ‘diz’ alguma coisa sobre os indivíduos envolvidos na ação.
(LEACH, 1996, p. 76).
Não existe aqui uma realidade compreensível pela lógica, em oposição a uma
explicação irracional e contraditória. Explicação mitológica e realidade envolvem antinomias
e incongruências, e o esforço para que sejam eliminadas torna o sistema rígido, simplificado,
pobre, determinista, mecanicista, ou seja, inabilitado para dizer algo sobre a sociedade
estudada.
Se as incoerências mitológicas são eliminadas sob a alegação de que afinal, poderia
haver apenas um conjunto de fatos históricos, as incoerências na lei e no costume
tradicionais são também forçosamente eliminadas e o esquema inteiro torna-se
192
rígido e simples. Se, porém, consideremos a mitologia kachin a expressão de um
sistema de idéias e não um sistema de regras ou um conjunto de eventos históricos,
desaparece a necessidade de coerência formal nas várias tradições. As contradições
entre versões antagônicas da mesma história adquirem então um novo significado.
(LEACH, 1996, p. 310).
Se, porém, ouvimos as variações, destacamos os agentes da mudança, os fatos
singulares, os elementos novos que se aderem ao conjunto somos capazes de perceber
estrutura e cultura como duas coisas separadas, com características próprias, e que não
necessariamente compartilham significados. Trabalhar com modelos de interpretação não é
prerrogativa dos cientistas. Podemos encontrar versões diferentes do mito interpretadas pela
mesma estrutura, e uma mesma versão interpretada por estruturas diferentes. O mito,
enquanto “manipulável” pelos interesses de quem conta e dependendo de quando é contado, é
mais uma “linguagem de argumentação” (LEACH, 1996, p. 319) que um sistema rígido de
regras sócias.
Ocorre com toda sociedade, com ou sem escrita, com ou sem Estado, selvagem ou
domesticada, mitológica ou científica, arcaica ou moderna conviver com tensões e oposições
no interior de seu sistema social que têm grandes chances de desequilibrar a estrutura global
sancionada pelos mitos. Esse desequilíbrio leva a uma mudança fundamental no conceito
antropológico de estrutura social que decorre do estabelecimento de diferenças entre cultura e
estrutura. Enquanto as “estruturas particulares podem assumir várias interpretações culturais,
estruturas diferentes podem ser representadas pelo mesmo conjunto de símbolos culturais”
(LEACH, 1996, p. 321). Chegamos, então, à terceira e última implicação do trabalho de
Leach.
193
Nos pontos de bifurcação, quando um desequilíbrio na ordem social desencadeia a
reorganização de todo o sistema, é necessário fazer escolhas entre as alternativas conflitantes
que se apresentam. Abrem-se as portas que permitem as modificações na estrutura social ou
na política; é necessária uma saída transformadora da ordem que faz circular os elementos
entre eles, trazendo-lhes novos significados, por vezes divergentes daqueles registrados pelos
antropólogos, empregando-os em novas e inéditas combinações, fazendo-os aderir à
composição de outros grupos. Essas mudanças podem ou não ocorrer – não há lei determinista
que lhe imprima obrigatoriedade. Contudo, os aspectos oscilatórios, o equilíbrio sensível,
sempre beirando o desequilíbrio, são uma constante. Não há qualquer conotação de
automatismo nesses movimentos; agentes externos e internos interagem de forma somente
possível porque os sistemas são instáveis e as participações individuais manifestam interesses,
desejos e ambições.
O mito e o rito justificam e representam a estrutura social e sua mudança, reafirmando
essas relações. A instabilidade do ritual demonstra a instabilidade da estrutura social; as
tonalidades e interpretações dos mitos, que dependem do local, circunstância e narrador,
atuam como conservadores da mudança decorrente da instabilidade. Perpetuando um ao outro,
mais que uma dramatização do mito, o rito encena uma realidade em transformação que o
mito corrobora e, assim o fazendo, indica uma plasticidade que não se coaduna com a visão
funcionalista dos mitos, que os define como necessariamente congruentes em si e entre si. Daí
a idéia de existirem versões corretas e incorretas, puras e com elementos estrangeiros,
autênticas ou falsas. Essa conclusão é resultante da teoria de que, para cada povo, deve haver
uma cultura e um sistema estrutural necessariamente congruentes. Contradições e
194
incoerências são elementos intrínsecos e necessários para toda e qualquer dinâmica social;
fazem parte de sua existência; por isso, são mais significativas que as correspondências; as
situações confusas estão apontando para as qualidades de vivo da sociedade.
Ambigüidade, circunstâncias e movimento são elementos componentes da vida social.
As precisas descrições dos antropólogos não existem na realidade que os grupos
experimentam, a realidade encerra uma dinâmica que não pode ser captada pelos modelos
deterministas. “A ambigüidade das categorias nativas é absolutamente fundamental para o
funcionamento do sistema social” (LEACH, 1996, p. 163). As relações reais transformam-se e
são avalizadas pelo mito e pelo rito. O mito sanciona comportamentos, valida direitos e
critérios dentro de um sistema. O que não pode ser relegado é o fato de que esse sistema não é
fixo, já que não está morto, mas é instável, sofre mudanças. Encontra-se em um estado de
equilíbrio instável. Daí que a denominação estrutura não é sinônimo de equilíbrio, e as
permanências culturais não significam necessariamente uma imobilidade. É necessário um
olhar crítico à teoria do equilíbrio na antropologia. O antropólogo trata seu material como se
fosse estável, para tornar a descrição possível. É necessário reconhecer o teor desse como se
para assimilarmos o fato de que mudanças na cultura, vindas através do tempo, do contato
entre culturas e grupos adjacentes não são desagregadoras, mas construtoras e criativas.
2.3.2. Qual história?
A história é relevante para o entendimento da organização social, apesar de ser difícil
expressá-la por escrito (LEACH, 1996, p. 324). Sua utilização deve estar atrelada à visão de
195
estruturas sociais como sistemas em não-equilíbrio, pois não há como explicar as
incompatibilidades em equilíbrio. É necessário ter em mente qual história deve ser integrada
aos modelos de interpretação. Os homens constroem sua história de acordo com suas
concepções de mundo. Dessa maneira, as sociedades arcaicas privilegiavam a história
sagrada, que lhes falava a respeito dos primórdios, das origens das coisas e subestimavam a
história dos fatos cotidianos (ELIADE, 1992b,), mas a incoerência mitológica e a busca de
fatos históricos absolutos e verdadeiros são aspectos similares.
Sociólogos, antropólogos e historiadores partem do pressuposto de que as estruturas
sociais estão em equilíbrio, mesmo que isso inclua o conceito de fases, como foi o caso dos
evolucionistas e dos historiadores dos longos períodos, que se esqueceram de demonstrar
como ocorria a passagem de uma fase para outra e como integrar as rupturas diante de um
quadro de continuidades. Nesse caso, as sociedades se concentram em sustentar a ordem que
os acontecimentos vêm desestabilizar ou confirmar. Isso deixa perceptível o papel que a visão
eurocentrista, progressista, cientificista e imperialista do ocidente desempenhou, pois não há
como explicar relações históricas e sociedades independentemente dos padrões das operações
lógicas herdadas. É preciso percorrer os caminhos que a argumentação histórica empreendeu e
assentá-la em princípios de complexidade. As mudanças na história referem-se ao patrimônio
cultural, e não exclusivamente a transformações na estrutura. Para uma história complexa, a
interpretação, as confluências dos diferentes tempos culturais, as circunstâncias ambientais e
as decisões individuais estão presentes. Em outras palavras, é necessário retirar o ranço
determinista, a simplificação linear e abrir as fronteiras que separam as ciências.
196
A história situa no tempo o que é humano; é onde existimos e nos compreendemos
(MORIN, 2002). Isso se refere não somente ao sentido estrutural da longa duração como ao
sentido dos acontecimentos, das forças microscópicas e desestabilizadoras que podem mudar
o rumo de uma sociedade, reorganizando-a. O historiador como testemunha de um real
passado atribui-se o poder de ver o que está por trás das mudanças, seus motivos, mas até que
ponto pode perceber as permanências e qual o significado delas, já que seu discurso é sempre
sob a perspectiva de alguém que decide no presente as significações do passado?
O historiador diz: isto passou-se deste modo ou daquele. Ele compreende. Vê o que
está por detrás das aparências e diante ou sob o presente. Pelo menos, o seu discurso
dá a entender que assim é. ‘O real fala-vos’: eis a legenda inscrita debaixo das
representações produzidas pelo historiador
(Michel de Certeau, in: A NOVA
HISTÓRIA, p. 17).
Essa infalibilidade, essa dimensão confiante da história pode ser examinada sob os
pontos de vista de sua função, métodos e fundamentos. É chegado o momento de refletirmos
sobre os conceitos, métodos e validade da história e apropriarmo-nos de sua função de reunir
passado e devir. Isso pode ser realizado pela memória retrabalhada, pela saída do causalismo
mecânico e pela ênfase na interpretação do passado (DOSSE, 2003). Como função, a história
se coloca par a par com o mito. Ambas estão presente na busca das origens e fundações de
uma realidade, no estabelecimento dos deuses ou no culto aos heróis. No contexto
revolucionário francês do século XVIII, a história atendeu aos interesses de um segmento
social para a construção de uma nação, desempenhando o papel de narrativa fundadora e
instauradora do presente e assumindo uma abordagem imperialista em relação às demais
ciências (BURGUIÈRE, 2002). O historiador transformou-se num profeta.
197
Desde o término da Segunda Guerra Mundial, diferentes discussões a respeito das
funções e metodologia das ciências históricas tomaram espaço nos meios acadêmicos,
seguindo a herança epistemológica da Escola dos Annales fundada por Lucien Febre e Marc
Bloch, que coloca em cena a subjetividade do cientista em detrimento da objetividade dos atos
políticos e da racionalização do Estado (DOSSE, 2003). Rompendo com a idéia de evolução
única e linear, que impõe o modelo universalista da história e eurocentrista da sociedade, os
Annales trouxeram à tona uma pluralidade de culturas que se entrelaçam num mesmo recorte
e apontaram para a impossibilidade de reconstituir o passado em si mesmo a partir do
reconhecimento de que o passado é uma construção do presente. Os historiadores se deram
conta de que os princípios de inteligibilidade que edificam o conhecimento do passado e lhe
imprimem realidade são selecionados, organizados e interpretados por homens estranhos às
realidades que produziram os acontecimentos.
Como conseqüência das novas abordagens empreendidas pelos Annales, foi possível
aos historiadores perceber o futuro como alguma coisa além da seqüência linear do passado
reconstituído. Os estudos históricos passaram a ser reconhecidos como produto de seu tempo
e cultura e, por conta disso, ficaram impossibilitados de retomar o passado com a objetividade
almejada. Os historiadores encarnam o papel daqueles que compreendem e interpretam, mais
do que aqueles que explicam e fazem prognósticos. O passado também se modifica,
apresenta-se instável e a história é relativizada. Como ciência interpretativa, a história oscila
entre o porquê e o como, e é melhor para seu exercício deixar de lado a busca do imutável, do
invariável, do que reside nas leis, sem, no entanto, esquecer que a historicidade é “a
capacidade de extirpar-se dos condicionamentos da natureza” (DOSSE, 2003, p. 396).
198
A partir dos anos 60, os princípios de inteligibilidade tornaram-se mais importantes
que o colar de acontecimentos que se dirigem para uma finalidade. Podemos nos referir até a
uma estreita colaboração e fusão entre sociologia, história e antropologia. Colocam-se aqui os
estudos baseados na curta e na longa duração trabalhadas por Fernand Braudel, que permitiu a
análise das estruturas e dos processos de caráter mais anônimo dentro da história. Esta deixa
de ser política e passa a mostrar seus aspectos mais econômicos e sociais, auxiliada pelos
empréstimos dos instrumentos que as disciplinas vizinhas possuíam, e mostrou seu rosto
crítico: “levaram a sério os contextos históricos específicos, colocando as transformações
sociais no centro da história que tinham para contar” (COMISSÃO GULBENKIAN, 1996, p.
69).
Diante do olhar do pesquisador atento, cogitou-se a busca de estruturas profundas, a
despeito das modificações factuais e dos relatos políticos. Apesar de procurar explicar
fenômenos, e não mais testar leis, estando mais voltada para a leitura de um determinado fato
dentro, e em relação ao seu contexto socioeconômico e político, a história ainda sofreu
críticas por aplicar conceitos ocidentais à análise de fenômenos e de culturas muito diferentes.
Era necessário, ainda, passar da explicação à compreensão.
As trajetórias históricas se transformaram e se individualizaram, aglutinando-se em
grupos cujos interesses atravessavam o campo dos estudos históricos. Essa perspectiva teve
um preço: o relativismo histórico e a totalização enquanto agrupa os estudos abrangendo
grandes períodos e áreas extensas, procurando neles a permanência. À pluralidade de culturas,
199
associou-se a pluralidade de histórias, surgindo o que André Burguière (2002) chama de
“imperialismo da abordagem histórica” – a transformação do historiador numa espécie de
profeta e, portanto, em alguém incapaz de imprimir um caráter complexo à história e de se
aproximar dos sentidos dos outros.
Para ir além do cientificismo do século XIX, reabilitar e aproximar a história das
ciências sociais enriquecendo ambas, a hermenêutica de Paul Ricoeur é fundamental, pois
aponta para uma nova compreensão do papel do historiador, que o situa no centro tensionado
entre a explicação e a compreensão, entre a cientificidade dos modelos e a narrativa (DOSSE,
2003). Mesmo certificada por documentos, a reconstrução do passado é uma ficção. Mesmo
protegida pelas citações, notas e cronologia, que colocam essa ficção no plano dos ideais
científicos (Michel de Certeau in: NOVA HISTÓRIA, p. 39), ela ainda se trata de decifrar
realidades e mensagens, esclarecer os legados. Essa propensão da narrativa histórica é
indiscutivelmente carregada de subjetividade e estilo. A história, assim compreendida, é capaz
de realizar o diálogo entre os grupos, entre os tempos, entre as verdades estabelecidas por
cada um deles? Ou, ao contrário, fomenta esse sentimento de estranheza e mistério que resulta
no fechamento de cada um em seu casulo protegido, restringindo o contato com o exterior e
aumentando o abismo que separa esses grupos tão diferentes e semelhantes ao mesmo tempo
e impossibilitando o diálogo entre as culturas?
Ricoeur (1975, p. 15) já descobrira o segredo, “a história nos gerou múltiplos e
diversos” e apresenta uma alternativa enriquecedora, que abre e torna possível o diálogo. Essa
história que fundamenta as diferenças humanas é aquela onde o tempo é um operador de
mudanças. Irreversível, o tempo se encaminha a cada instante para o aumento da diversidade,
200
que se estabelece em forma de arbustos, de folhagens imbricadas, reentrâncias e também
afastamentos. Assim, torna-se impossível universalizar as experiências particulares das
culturas. No entanto, a compreensão mútua, mais que a explicação de cada uma delas, pode
estabelecer um diálogo entre essas singularidades, e é assim que entendo a importância da
hermenêutica.
Embora a língua não seja a base da diversidade, juntamente com a forma do discurso e
o emprego da palavra, constitui a tríade onde se estabelecem as diferenças entre as culturas.
Isso pode ser verificado, visto que estas imprimem ao tempo um significado prescritivo às
demais instâncias e que correspondem a três níveis de diversidade, que, juntos – jamais
separados –, permeiam e manifestam todo o patrimônio imaterial. Para nós, o mais pertinente
são as formas do discurso, por ser o veículo privilegiado por meio do qual falamos de nossos
medos, desejos, de nosso passado e explicamos o nosso presente. A história é uma forma de
discurso que diz respeito a “maneiras de recortar o tempo” que diferem da narrativa literária
ou cotidiana. Acontecimento, série repetitiva, época e estrutura são categorias temporais, que
permeiam modelos de interpretação impostos a fatos documentados. Encontramos, aqui,
critérios de inteligibilidade, seleção de fatos e documentos, comprovações científicas,
tecnológicas e quantitativas, moldados pelo cientificismo e ordenados pelo paradigma
ocidental de causalidade e racionalidade, isto é, encontramo-nos no nível da explicação
(RICOEUR, 2002).
Essa configuração explicativa da história remete constantemente à imagem de um
passado estrangeiro mais ou menos distante, com o qual temos vínculos insignificantes, pelo
qual sentimos estranheza e do qual nos percebemos totalmente dissociados, pois também na
201
interpretação e na compreensão existe a estranheza fundada no caráter retrospectivo, um
passado “que parece determinado” (RICOEUR, 2003, p. 373), condenável, culpável,
execrável. Tanto os fatos como as suas razões encontram-se num passado que o leitor, no
presente, só pode enxergar como absurdo ou incompreensível. Nesse momento, leis, regras,
modelos racionalistas são refúgios que obscurecem a subjetividade. O fato perde parte de seu
sentido, enquanto ganha o sentido do intérprete. De certo modo, essa estranheza é antídoto
para o relativismo, mas, se acrescentarmos a isso a autoridade do saber histórico como
provedor de verdades irrefutáveis, essa impressão desconfortável toma proporções
inimagináveis.
O que fazer para superar a estranheza? Alguns questionamentos sobre a forma de ver a
história podem ser feitos. História não se confunde com memória, que é anterior a ela na sua
forma individual e demanda a história quando engendra a idéia de retrospectiva – nossa
primeira abertura em relação ao passado com caráter testemunhal (RICOEUR, 2003). A
história igualmente não se confunde com a memória coletiva. A transmissão e a aquisição de
memória têm caráter complexo, pois se dão pelas diversidades de tempos vividos, no seu
cruzamento. Imprimem significado ao passado e ao presente através da memória individual e
do passado histórico sem relação causal, sem linearidade. Quando essa memória histórica é
imposta, desqualifica a memória pessoal e coletiva (DOSSE, 2002, p.401), como é o caso da
apropriação pelo Estado com o objetivo de impor sua presença sob uma aura de legitimidade.
Embora promotora de diferenças, é a semelhança que a história deve explorar para
diminuir as distâncias estabelecidas pelo exotismo das culturas. A compreensão do passado
pode ser a instauradora de uma proximidade vinda da dívida e do reconhecimento do
202
semelhante, possibilitando um diálogo. Não se trata de restabelecer o emprego universalista
da história. A diversidade das culturas é resultado de experiências particulares impossíveis de
serem universalizadas, mas é possível aprofundar nossas reflexões sobre a diversidade
(RICOEUR, 1975); é possível nos aproximarmos de seus complexos tecidos de semelhanças e
diferenças, continuidades e rupturas, trajetórias e emergências e traçarmos uma linha
mediadora, intérprete, tradutora, que possibilite a troca, o diálogo e a compreensão mútua.
A história entende o acontecimento como aquilo que sobrevém, o resultado de
diversas forças em ação, um efeito cuja causa se busca, a finalização de uma seqüência
cronológica. Isso evidencia o acontecimento histórico como um fenômeno forjado no modelo
das ciências naturais. Na contramão do fato singular, encontramos a série repetitiva que levou
as ciências naturais à formulação de leis. Ambas singularidade e generalização são abordadas
de acordo com os princípios da ciência clássica. A busca de documentação, dados,
informações exaustivas é uma maneira de procurar dominar todas as variáveis e ordenar, de
forma racional e linear, tanto as circunstâncias anteriores e causais como o conhecimento das
ocorrências regulares. Tais episódios e situações são as portadoras daquilo que pode ser
generalizado e aglutinado pelas leis históricas porquanto garantem a reconstrução de uma
realidade. Diferente do que se passa nas ciências naturais, o pesquisador não pode mais
manipular as variáveis.
A literatura, ao contrário, entende o acontecimento como a própria causa, aquilo que
faz a narrativa caminhar (RICOEUR, 2002). Essa perspectiva não descarta a ordem do tempo
histórico – crono-lógica –, mas permite a interação de diversos eventos, de variadas ordens,
complementares e antagônicas, individuais e coletivas, econômicas e imaginárias,
203
documentais e mitológicas. Tais ordens, enquanto isoladas, divididas em menores pedaços e
simplificadas, se contrapõem, se anulam, se excluem e geram discussões áridas e sectárias. Ao
percebermos como suas categorias temporais – acontecimentos, séries repetitivas e a estrutura
ou época – se inter-relacionam, podemos nos aproximar de uma visão complexa da história.
A estranheza estabelecida pela história dos acontecimentos exóticos, do passado
estranho, totalmente estrangeiro, com o qual temos vínculos difíceis de serem estabelecidos, é
fundada no caráter retrospectivo de um passado “que parece determinado” (RICOEUR, 2003,
p. 373) e irreparável, freqüentemente condenável, desesperador, por vezes, e facilmente
culpável. Independente de serem os gregos antigos, os servos de gleba, os revolucionários
francesas, os militares que engendraram o golpe militar de 64 ou os estudantes da UNE que
acorreram às ruas para manifestar sua indignação, somos e não somos semelhantes ao mesmo
tempo; traçamos caminhos diferentes, mas estivemos abertos aos mesmos tipos de forças
transformadoras. É difícil compreender como atitudes semelhantes geram situações
radicalmente opostas e como contextos diversos geram resultados muito próximos. A
incompreensão desse jogo levado entre a universalidade e a diversidade cria os monstros: o
senhor feudal é um absurdo que, “graças a Deus, acabou!”, mas absurda também foi a
guilhotina: não se compreende porque haveria necessidade de matar o rei ou os demais
revolucionários. O fato, as razões estão no passado, mas o leitor, intérprete, é incapaz de
compreendê-los. Sua leitura do contexto pré-revolucionário, por exemplo, é baseada na
construção revolucionária: existência de direitos humanos plenos garantidos pela ONU e cuja
violação é alvo de denúncia e relacionada com uma maldade subumana.
204
Não ignoramos a importância da indignação, da percepção do absurdo, da estranheza.
Sem elas, o relativismo pode se alojar. Mas o contrário também exige cautela: a estranheza, o
sentimento da ausência de vínculos e de comunidade, época e vivência comuns fecham as
portas para atitudes éticas, respeitos mútuos, escolhas compassivamente motivadas. Para
superar a estranheza sem cair no relativismo piegas, é necessário compreender que a memória
pessoal e grupal dos acontecimentos é minimizada em prol de sua redução a objeto histórico.
Assim, o fato adquire um valor absoluto e objetivado, é descolado das experiências que estão
imbricadas numa rede de outros acontecimentos, mais ou menos próximos. Em alguns casos,
o fato interpretado pelo historiador opõe-se à vivência do indivíduo ou do grupo; entre as duas
versões abre-se o campo do estranho, distante, incompreensível, sem referências.
A memória não é uma qualidade da história; ao contrário: “é nossa primeira abertura
em relação a ele [o passado]” (RICOEUR, 2003, p. 374). É ela que demanda uma construção
retrospectiva que transforma o visto em dito, em testemunho, por meio da linguagem. Com a
escrita, a ciência histórica tomou o caminho das certezas e da verdade absoluta e imutável,
tomadas do modelo das ciências naturais dos séculos XVII-XIX, mas que pode ser
considerada sob outra ordenação que não a trajetória linear. É preciso nunca esquecer o
caráter interpretativo da história e suas ligações com os tempos vividos do intérprete, que
pode ser ou não análogo ao do interpretado, questão que não impede o diálogo, porque estará
sempre envolta numa nuvem de incerteza que só as coisas mutáveis e reais podem
proporcionar.
Por fim, e complementando o que foi dito sobre história e memória, diferenças e
semelhanças, Paul Ricoeur coloca em discussão a continuidade e a ruptura nas ciências
205
históricas, encaminhando para a necessidade de refletirmos sobre seu caráter complexo, seus
vínculos profundos e arqueológicos com a antropologia. A interpretação que a hermenêutica
realiza entre o vivido e o conceito estabelece a comunicação e supera a distância, seja ela
lingüística, especial ou temporal, abrindo perspectivas de novos sentidos e outras
temporalidades (DOSSE, 2003). Dessa forma, interpretar pode ser uma relação entre
humanos.
2.3.3. A complexidade na história
A eficácia da interpretação não depende da coleta exaustiva de dados, tabelas e
índices, mas da observação e do tipo de relação que os elementos individuais e sociais,
políticos, econômicos e naturais estabelecem entre si – retroativa e em forma de anel
recorrente. Um conjunto interativo de fatores ambientais e humanos, sejam estes sociais ou
culturais, implica diversas temporalidades que se cruzam numa confluência desestabilizadora.
Esse momento abre possibilidades para reorganização dos sistemas, simultaneamente
determinados pelo variados fatores envolvidos e indeterminados, dada a dificuldade de se
fazer previsões a respeito do caminho a ser escolhido no ponto de bifurcação.
O impacto humano também interfere nos episódios climáticos. No século XI, a
população européia começou a crescer como resultado da diminuição das invasões bárbaras.
Esse aumento populacional gerou uma busca por novas tecnologias e terras para a produção
de alimentos. O desmatamento intensivo foi suficiente para engendrar um desequilíbrio
ecológico: frio e chuvas intensas prejudicaram as colheitas, encarecendo os alimentos e
206
gerando um quadro de insuficiência alimentar. A ação do clima contribuiu para mudanças
profundas: a fome agravou-se pelo renascimento do comércio e, conseqüentemente, grande
parte das terras européias passou a ser utilizada para a criação de ovelhas e vinhas destinadas
à produção de bens com valor comercial.
O uso da terra como fornecedora de produtos comercializáveis foi co-responsável pela
devastação populacional. No século XIV, dois terços da população européia, fragilizada pela
fome e diante de novas formas de relação de produção, sucumbiram à peste negra, que veio
do oriente nos mesmos navios que carregavam as mercadorias e matou mais que todas as
hordas bárbaras juntas. A escassez de mão-de-obra, juntamente com o interesse dos senhores
feudais pelo pagamento de obrigações em dinheiro, fomentou a migração para as cidades, a
instituições de feiras, a circulação de moedas e a entrada do dinheiro como mediador das
relações entre as pessoas.
Qual a causa precisa do renascimento urbano e comercial que transformou a cultura
européia a ponto de o período receber nomes como “crise do sistema feudal” ou “fim da idade
média”? O ponto inicial para a explicação de um dado evento é arbitrário. Daí a dificuldade
da mediação e da abertura do diálogo entre as ciências. Continuamos a acreditar que a história
tem leis, que causas semelhantes geram efeitos semelhantes e lutamos para manter a ordem?
Neste caso, para onde foi a singularidade dos fatos históricos? O determinismo histórico injeta
“uma ordem nos fatos [que] postula uma reversibilidade do tempo histórico análoga à
reversibilidade do tempo da física que era defendido pelo positivismo do século XIX”
(GRUZINSKI, 2002, p. 391). Dada a complexidade dos fenômenos, a busca da origem
definitiva é procedimento aristotélico improdutivo, pois retém apenas um tipo de causa. “O
207
historiador tem o costume de arrumar os fatos em envelopes que se transformaram em
entidades trans-históricas, em categorias temporais e universais: o social, o econômico, o
político, o religioso, o cultural...” (GRUZINSKI, 2002, p. 391), atém-se a uma delas e deixa
de lado tudo o que não se encaixa: o acidental, o incerto, o aleatório. A realidade nos
apresenta flutuações e novos dados que se colocam em cena como “efeitos não lineares de
processos lineares, sobre as margens de probabilidades e de irreversibilidade que
acompanham os fluxos históricos” (GRUZINSKI, 2002, p. 392).
Temos dificuldades para lidar com o incerto, com a impossibilidade de laborar com o
que pode ocorrer, e isso se dá também no momento de levar em conta comportamento,
entusiasmos repentinos, reviravoltas, álea, isto é, flutuações mínimas não perceptíveis que
provocam grandes e inesperados acontecimentos. São fatores individuais presentes nas
decisões e escolhas de um grupo como um todo que, por serem microscópicos escapam das
explicações deterministas.
A história que conhecemos está impregnada do modelo mecanicista cartesiano. O
tempo é considerado pela física clássica em valores, variáveis que apontam para o momento
do objeto, mas que são insuficientes para discernir as transformações do objeto. Indicam
movimento, deslocamento no espaço, mas não mudança, pressupondo um objeto sempre igual
a si mesmo. Isso está ligado a uma visão da natureza, do homem e do Cosmo equacionada
com a idéia de onipotência divina, fundamentada na existência da razão divina, imutável e
eterna, pois, segundo o modelo da mecânica newtoniana, o tempo e a duração são incapazes
de levar à compreensão ou ao significado dos fenômenos.
208
As ciências sociais são nomotéticas, isto é, não consideram as diferenças entre as
metodologias das ciências naturais e sociais, trabalham com leis universais, com
regularidades, repetições e relações lineares de causa e efeito; por isso o tempo e a história
têm pouca importância. Em oposição a essa ciência nomotética, há os historiadores
idiográficos, que reforçam a singularidade dos atos humanos e a impossibilidade de
generalizações em grande escala. Para eles, a história é uma grande narrativa de seqüências
diacrônicas. Não negam o tempo, mas o consideram exclusivamente como seqüência linear de
eventos singulares sucessivos, colocados numa ordem que ignora a simultaneidade e a
duração, a repetição e a continuidade. Essa análise mostra que história e ciências sociais, em
virtude da visão de seus produtores, ainda são prisioneiras da estratégia newtoniana de
matematizar a realidade e pressupor um tempo linear dos pressupostos cientificistas, para o
qual Wallerstein (2002, p. 162) utiliza o termo “cronosofia”.
A principal e mais eficaz crítica à história positivista surgiu em 1958 com o trabalho
de Braudel, que retoma os Annales em História e ciências sociais: a longa duração. Nesse
trabalho questionou a importância que as ciências históricas davam aos eventos. Os pequenos
detalhes factuais da história relacionados aos acontecimentos da política para ele são apenas
uma pequena parte da realidade que “assombra” as Ciências Sociais, uma poeira sem
importância que vai se acumulando no cenário dos grandes períodos, das organizações
estruturais. Chamada também de história factual, ou dos acontecimentos, ou episódica,
Braudel trata os eventos em sua forma mais pura e sistemática.
209
O autor relaciona o termo “estrutura”, que para os sociólogos é uma organização
coerente que prescinde do tempo, à longa duração, “uma realidade que o tempo demora
imenso a desgastar” (BRAUDEL, 1972, p. 21), que coloca em evidência a pluralidade de
tempos sociais que dela participam: “o tempo de hoje data simultaneamente de ontem, de
anteontem, de o antanho” (BRAUDEL, 1972, p.29). A existência de uma história baseada na
colocação cronológica de fatos pouco pode colaborar para a compreensão de uma
transformação ou processo. O acontecimento, sob essa ótica, é sem importância, e tanto as
ciências nomotéticas como as idiográficas são responsáveis por essa repulsa de eventos e pela
ênfase nas estruturas imutáveis. Cada uma, à sua maneira, despreza o tempo enquanto
multiplicidade e unidade. É preciso renegar os fatos em favor da estrutura? Vimos como
ruptura e continuidade podem compartilhar o mesmo processo histórico, o que nos leva a
questionar se essa indisposição aos pequenos eventos não está relacionada ao papel que eles
desempenharam no estabelecimento do poder dos Estados, nas necessidades do positivismo,
na maneira de fazer a história política.
Para a história factual, o tempo é ignorado como um operador de mudanças; sua
participação é a mesma que a de um tapete por onde desfilam ordenada e arbitrariamente os
eventos, a partir do imprinting do historiador. Desse modo, o tempo é uma convenção que não
atua sobre as sociedades, mas é “atuado” por elas, que o entendem, armazenam, reconhecem e
aprimoram. Destacando a longa duração e fazendo-a aderir ao trabalho do historiador,
Braudel apontava para o fato de que o pesquisador devia deixar de lado a primazia do
acontecimento singular, o colar de eventos, e dar atenção também às permanências, às
repetições e aos elementos que persistem:
210
reintroduzamos, na verdade, a duração. Disse que os modelos tinham duração
variável: são válidos, enquanto é válida a realidade que registram. E para o
observador do social, este tempo é primordial, posto que ainda mais significativos
que as estruturas profundas da vida são os seus pontos de ruptura, a sua brusca ou
lenta deteriorização, sob o efeito de pressões contraditórias.
(BRAUDEL, 1972,
p. 52-53)
O entendimento da realidade é mais que o desfilar de cenas – depende da construção
de um modelo que pode relacionar múltiplos tempos. Modelos, diz Braudel (1972), são como
barcos, e o momento do naufrágio é tão importante e significativo para a percepção da
realidade quanto o fato de navegar, como um tecido, engendrado por diversos fios e tempos.
Aquilo que parece eterno, permanente, também está sujeito a mudanças, só que não
notamos, pois pertence a acontecimento da ordem da longa duração e está “ao abrigo dos
acidentes, das conjunturas, das rupturas” (BRAUDEL, 1972, p.54). A questão se coloca na
oposição que fazemos entre o ponto de vista do historiador idiográfico, apegado aos
acontecimentos e aos grandes eventos, e a longuíssima duração dos sociólogos nomotéticos,
que se apegam às estruturas duráveis da ordem social. Esqueçamos a obrigatoriedade de
assumir uma postura ou outra. O que essa oposição nos mostra é que “existem tempos sociais
múltiplos interferindo entre si, que devem sua importância a uma espécie de dialética da
duração” (WALLERSTEIN, 2002, p. 165)
35
. Sozinhos, nenhum dos dois pode dar conta de
compreender o real, porque não se trata de reduzir o tempo a um desses dois termos, ao fato
ou à duração.
35
Do original: « il existe des temps sociaux multiples, qui interfèrent entre eux, et qui doivent leur importance à
une espèce de dialectique des durées. »
211
Tempo, eventos, duração e estrutura não devem ser contrapostos. Braudel considerava
que a história privilegiou o primeiro em detrimento do segundo, ao qual ele atribui o “estatuto
de instrumento epistemológico importante a serviço das ciências sociais” (WALLERSTEIN,
2002, p. 165)
36
. O que gostaria de salientar neste trabalho é que esse “instrumento
epistemológico” tornou-se equivocadamente uma cilada, uma vez que congelou as
organizações sociais, solidificando as fundações das sociedades, petrificando-as. Se as
fundações das sociedades são estruturas imutáveis, os pequenos acontecimentos do dia-a-dia
são insignificantes e desprezíveis; fazem parte de uma lógica relojoeira afinada com a
presença ofensiva da civilização européia sob os territórios explorados da América, África e
Ásia.
O passo fundamental de Fernand Braudel foi colocar a longa duração no centro das
preocupações históricas. Por sua vez, Ilya Prigogine volta-se para o papel fundamental dos
pequenos acontecimentos, a fim de construir a realidade que não é unifacetada, nem simples.
Ele atribui à flecha do tempo o estatuto de instrumento epistemológico decisivo e nos mostra
que o pensamento que prioriza o fato e aquele que prioriza a estrutura são ambos herdeiros da
física newtoniana, que ignora a operacionalidade do tempo, enquanto concebe-o como uma
linha na qual passado e presente são simétricos. Os sistemas estáveis relacionam-se com a
duração e determinam resultados em longo prazo, pois são garantidos pelo imprinting, e dão
continuidade e sentido de permanência e identidade à organização social. Por outro lado, a
instabilidade dos sistemas é correlata à curta duração e aos fatores de indeterminação
caracterizados pela efervescência cultural, pela presença dos desviantes, pela mudança como
ruptura.
36
Do original: « le statut d’instrument épistemologique crucial au service dês sciences sociales. »
212
Como em Braudel, a história factual descreve uma parte, mas uma pequena parte da
realidade histórica; assim como os sistemas estáveis, é apenas uma pequena parte da
realidade física. Nos sistemas instáveis, condições iniciais pouco diferentes são
suficientes para produzir resultados bem divergentes. O efeito dessa sensibilidade às
condições iniciais foi subestimado nos estudos de mecânica newtoniana clássica.
(WALLERSTEIN, 2002, p. 167, tradução nossa)
37
.
Conforme seu ponto de vista, eventos não são poeiras. Braudel evidencia os efeitos
macroscópicos da longa duração perceptíveis nas estruturas – as arquitetas das sociedades.
Mas tanto os sistemas estáveis quanto os eventos-poeira isolados descrevem apenas uma
pequena parte da realidade. Os sistemas instáveis, em condições iniciais minimamente
diferentes, são suficientes para produzir resultados díspares; portanto, não são poeira, e sim os
construtores “invisíveis” da realidade física macroscópica irreversível, isto é, imutáveis. As
leis universais se fazem mostrar na longuíssima duração por meio das repetições, da
permanência e fazendo pressupor um equilíbrio. Mas Prigogine (1996) nos mostra que, longe
do equilíbrio, as leis são específicas e dependem da irreversibilidade do tempo que criativo,
traz a novidade no interior da matéria. A estrutura sempre igual a si mesma é perceptível pela
longa duração; porém, os eventos têm importância fundamental; os fatos agem como unidades
de desequilíbrio que a sociedade deve contornar. Dessa forma, esse mesmo sempre igual
aproxima-se do conceito de trânsito do mesmo para o mesmo (PERNIOLA, 2000), conforme
o qual mesmo não significa igual, ou à idéia de estrutura articulável (LEACH, 1996).
37
Do original: « Comme chez Braudel l´histoire evénementielle décrit une part, mais une petite part, de La
réalité historique, de meme ici les systems dynamiques stables ne constituent qu’une petite part de La réalité
physique. Dans lês systèmes instables, dês conditions initiales um peu différrentes suffisent à produire des
résultats immensément divergents. L’effet de cette sensibilité aux conditions initiales a été sous étudié dans La
m´canique newtonienne classique ».
213
Braudel combateu a história que ignorou a estrutura; Prigogine combateu a física que
ignorou os sistemas de não-equilíbrio. Um evidenciou a importância da longa duração; o
outro, a da flecha do tempo, cuja reconhecível irreversibilidade se dá nos eventos. Entre esses
pontos de vista, o tempo irreversível da mudança e o tempo repetido da estrutura, existe uma
expressão, um novo ponto de vista para a ciência – “terceiro não excluído” (WALLERSTEIN
2002, p. 170), externo e interno à realidade que se procura compreender, presente na longa e
curta duração, no particular e no universal, fragmentado e contínuo, não redutível.. Essa
particularidade do tempo é que possibilita denominá-lo operador de mudanças, que pode
conter continuidades e rupturas, enquanto o tempo como um valor está reduzido a um dos
dois termos: pequenas unidades ou grandes períodos, sagrado ou profano, mitológico ou
histórico. De fato, esses tempos estão presentes, mas não de forma determinista, nem se
excluindo; encontram-se em forma criativa, produtores de realidade, mudança e movimento, e
não apenas como marcos, localização e continuidade.
Os acontecimentos, tanto quanto a estrutura, são fundamentais. Simultaneamente, os
sistemas estão longe e perto do equilíbrio. Longe do equilíbrio, nas flutuações, na agitação do
muito pequeno, no fato em si: o telefone que toca, a mãe que chora, um instante de medo e
escolha de um grande estadista. Os eventos são fundadores e criativos, trazem a novidade e o
inesperado. Perto do equilíbrio, na longa duração, temos a visão panorâmica de períodos
imensos que dão a entender, nos enganando, que as coisas são como sempre foram. O meio
termo é um movimento, um conceito complexo que abrange os dois opostos que se definem
pela transitoriedade, e não pela posição estática. Não se trata aqui de discutir o que é real e o
que é irreal, mas as múltiplas facetas, as infinitas possibilidades de esse real se manifestar. O
trânsito é intrínseco ao tempo - o ser, o devir, o self fugidio, a liquidez da realidade. Por isso,
214
o tempo de hoje pode ser o de ontem e também o da novidade. Caos determinista ou
determinação não linear (PRIGOGINE, 2002), esse novo ponto de vista ultrapassa os limites
demarcados pela lógica exclusivista aristotélica, vai além das classificações determinadas pela
fórmula “ou...., ou......”.
O anel retroativo formado pelos diferentes tipos de eventos que compõem a realidade
e as escolhas arbitrárias de pesquisadores e pesquisados colocam a possibilidade de pensar
também a história de maneira complexa. Esse novo ponto de vista para interpretar os
acontecimentos vem ao encontro do vazio deixado pela dificuldade da interpretação
determinista. Para estabelecer as relações de mão dupla entre os eventos, são necessários os
conceitos de não-equilíbrio tomados da física e cuidadosamente apresentados por Prigogine e
Stengers (1997), quando reencontram a questão do tempo nas ciências duras e sugerem sua
retomada nas ciências sociais. Na linguagem de Prigogine, são flutuações, instabilidades,
desequilíbrios, bifurcação, estruturas dissipativas.
A abordagem complexa explicita como é possível a emergência de novas
circunstâncias, totalmente diferentes das anteriores e ao mesmo tempo tributária delas. Assim
muitas populações indígenas sobreviveram ou se precipitaram diretamente para o extermínio.
Isso é bifurcação: dois caminhos possíveis, uma escolha inevitável, embora em alguns
aspectos ela seja “determinada”; não é determinista, é impossível predizê-la com total certeza,
pois há sempre a possibilidade do inédito. Numa bifurcação, como a que ocorreu no contato
entre as culturas indígenas e a européia durante a conquista e a exploração, é inevitável uma
mudança, uma reorganização do sistema. Esse eterno vir-a-ser ainda não é amplamente
reconhecido, devido ao fato de que “nossa concepção espontânea do tempo e da história
215
continua a ter como eixo a linearidade e o determinismo. Temos sempre a tendência a ler as
épocas passadas como o fruto de um movimento linear, de uma evolução, quando não até
mesmo como uma progressão ou um progresso” (GRUZINSKI, 2002, p. 390). Há uma
natureza humana que permanece através da história; é um pressuposto seu, visto que habilita
os seres humanos a produzir diferenças, e isso nos levou a pensar a ligação, desde as
entranhas, entre história e antropologia.
Reintroduzir o fato sem excluir a estrutura traz para a história diferentes tempos, que
se entrecruzam e transformam o pensar histórico em algo também auto-reflexivo, que inclui o
historiador e seus limites:
se estamos no presente, não dispomos do futuro para iluminá-lo, e encontramo-nos
na mesma situação que essas pessoas do passado que, elas também, não conheciam
seu próprio futuro. E temos necessidade do futuro para conhecermos nosso presente.
É evidente que a ausência de nosso futuro torna nosso presente frágil.
(MORIN,
2002, p. 437).
Reconhecer o caráter antropológico da história é uma forma de atualizar as
virtualidades humanas. Complementando a afirmação de Ricoeur de que a história nos faz
diferentes, é importante aceitar a história como a manifestação das potencialidades humanas;
por isso é singular e plural: vivemos nossas pequenas histórias, e estas ocorrem numa grande
história planetária. Essas histórias não se misturam, mas interagem. “É preciso mesmo
reintroduzir a história humana na história da Terra” (MORIN, 2002, p. 438). Determinações
216
acidentais, ações humanas, acasos, resultados em cadeia, ruídos, inesperados, assombros
fazem parte do tecido da história e do saber antropológico.
Hoje está bem aceito o caráter imprevisível e estocático das atitudes humanas. Porém,
ainda como herança da ciência dos séculos XVII e XVIII, por muito tempo se acreditou que
elas seguiam leis gerais e eram previsíveis. Isso se dá tanto no plano individual como em
grandes grupos (sociedade/massa). Desse modo, procuraram-se as leis que estabeleciam as
variações exteriores das sociedades. As variações culturais foram procuradas no clima, no
tamanho da população, nos aspectos físicos da região, nos contatos com outros grupos, etc.
Vários modelos de inteligibilidade das variações culturais humanas foram construídos para
explicar a variedade de tipos de comportamento e de valores entre os grupos humanos
(WILSON, 2002).
Os princípios de incerteza e indeterminação podem ser aplicados nas ciências sociais a
partir de alguns questionamentos. O surgimento das sociedades complexas é resultado de
grandes eventos? Esse surgimento era inevitável ou foi efeito de processos de coincidências e
acasos? A hipótese de Wilson (2002) é que, há cinco ou dez milhões de anos, surgiram várias
formas de sociedade complexa, e a maioria delas não existe mais. O termo “sociedade
complexa” é pouco claro porque todas as sociedades são complexas, até as de caçadores e
coletores. Neste caso, o termo “complexo” refere-se a um grupo de pessoas com instituições
sociais políticas sofisticadas, que possuem uma hierarquia estável não determinada pelos
saberes, idades ou sexo, mas por descendência e linhagem.
217
As semelhanças entre América, por um lado, e África, Europa e Ásia, por outro,
despertaram a imaginação e a criatividade de pesquisadores: a existência de contatos
transoceânicos, a necessidade de solucionar os mesmos tipos de problemas e, por fim,
organizações intrínsecas à natureza humana. Para o surgimento do Estado, as principais
explicações são as de Platão e Hobbes, que falam de um abandono dos desejos individuais
para o bem comum e se encontram nas etapas deterministas de Morgan, Marx e Engels, nas
explicações baseadas nas Revoluções Neolítica e Urbana de Gordon Childe (1977), entre
outros. Mas desde 1960-70, com a física quântica e a teoria dos sistemas, a postura
determinista passou a ser muito criticada. Os elementos que confluem nesses momentos de
fermentação e mudança, que podem ser enfatizados como etapas ou revoluções, abrangem,
como já mencionamos, desde o crescimento da população e o aparecimento de uma classe de
especialistas na sociedade até a necessidade de mão-de-obra, questões climáticas que
modificam os padrões de produção, a migração de espécies que serviam de alimento.
De qualquer forma, as condições iniciais desses processos são imprecisas, podem
implicar variações internas, externas ou ambas simultaneamente, fatos que a descrição
newtoniana (aplicação de leis gerais em forma de modelos, controle de variáveis) não
beneficiou, ignorou provas, ou colocou imaginação onde a realidade não correspondeu ao
modelo e o real desmentiu a teoria. A ordem em que se apresentam os diversos fatores
envolvidos em uma grande mudança depende quase que exclusivamente do modelo
construído para a sua interpretação. Insistir nesse modelo ou construir outro depende das
forças que a sociedade-intérprete (no caso, as ciências sociais, os antropólogos, os
historiadores) infringe a si mesma e ao interpretado. Falta o olhar sobre si mesmo, a visão da
218
complexidade do real e a subversão dos próprios princípios. Isto é abertura, liberdade e
lampejo de profunda compreensão.
Os fatores que intervêm nos processos de transformação ou revolução social são de
pequena escala. Fazendo-se uma analogia com as ciências naturais, são microscópicos. Os
eventos em grande escala, aquilo que podemos perceber claramente, são os efeitos desses
microfatores em interação recorrente/em anel retroativo, do qual emerge um novo estado, sem
que possamos separar definitivamente as ordens (social, cultural, política, econômica). Essa é
uma nova forma de abordagem, que permite uma avaliação melhor das condições iniciais,
mais próximas à realidade, e que atribui importante papel àquilo que Braudel considerou
poeira, mas que é retomado como crucial nas atitudes individuais que Leach (1996) já
considerara, como a busca de poder e vantagem, e do acaso.
Assim, de pequenas ou imperceptíveis variações das condições inicias, podem surgir
macroacontecimentos bem diferentes: uma revolução ou a aceitação de um domínio
estrangeiro; uma guerra ou a escravidão. De eventos similares, por outro lado, podem emergir
dois comportamentos sociais divergentes: um grande império ou uma sociedade submissa aos
vizinhos. Isso mostra como é vasto o campo ainda desconhecido pelas ciências sociais, o que
se agrava pela cegueira determinista dos pesquisadores, por suas limitações marcadas pelo
imprinting e pelo enclausuramento nos paradigmas. Segundo Castoriadis (1982, p. 220), “a
história não pode ser pensada dentro de nenhum dos esquemas tradicionais de sucessão”
porque é “emergência de alteridade radical”. Nos processos de transformação são construídas,
a cada vez, novas sociedades que engendram a si mesmas; uma autogênese a partir da qual é
possível pensar o tempo e a temporalidade, os “modos diferentes de historicidade”
219
(CASTORIADIS, 1982, p. 221) e a instituição do tempo sociohistórico. A mudança está
presente em todos os casos, diferenciando-se pelo ritmo e conteúdos, derrubando a separação
de sociedades históricas e a-históricas. A escolha entre ver um fenômeno como estável ou
instável, portanto, é uma convenção que se estabelece de acordo com a auto-imagem, com os
próprios valores e expectativas do grupo que interpreta a realidade. “O caráter ‘estático’,
‘repetitivo’, ‘a-histórico’ ou ‘atemporal’ desta classe de sociedade é somente sua maneira
própria de ter instituído sua própria temporalidade histórica” (CASTORIADIS, 1982, p. 222).
O combate se fecha contra a acomodação, e não contra a validade das explicações da
diversidade crescente, porque ela deixa de fora muitas semelhanças. Em nome da agitação das
idéias, podemos fazer uma analogia entre a evolução biológica e os processos de
transformação da sociedade e incluir as mudanças climáticas no planeta, que podem ter
dizimado muitas sociedades altamente organizadas de forma inusitada, ou outras variantes
quaisquer que orbitam um pequeno número de modelos sobreviventes, entre eles as
sociedades complexas primitivas que encontramos hoje. No início existiria mais variedade
que hoje e, caso nos defrontemos com os resquícios, não poderíamos reconhecê-los
(WILSON, 2002, p. 189).
O importante dessa abordagem é a abertura de janelas para a possibilidade de
existências totalmente diferentes, chamadas “alternativas não lineares”, deixando cair por
terra a obrigatoriedade de serem os fenômenos sociais determinados de tal forma que
reprimem as escolhas fora dos padrões. É possível sociedade sem Estado, nem primórdios de
Estado, nem Estados latentes. Essa proposta está intimamente ligada com a contestação sobre
a visão linear dos processos evolutivos, propondo a retomada da idéia de evolução sem
220
determinismo e linearidade, marca do evolucionismo do século XIX e sorrateiramente
escondidos em muitas posturas antievolucionistas.
As sociedades totalmente diferentes das nossas podem ter perecido porque não eram
agressivas o suficiente, não tinham condições de sobreviver ao ambiente ou se transformaram
radicalmente, foram conquistadas ou absorvidas por outras, por aquelas organizadas em torno
de um Estado, por exemplo. Isso retoma, sob o ponto de vista da importância do passado, a
questão da diversidade, das explicações das diferenças culturais. Para compreender e
interpretar as mudanças, as diferenças e as similitudes abrem-se três caminhos: as mudanças
do paradigma científico empreendido desde a física e que pode ecoar nas ciências sociais de
maneira geral e na história em particular; a incorporação dos elementos de incerteza e o
conceito de bifurcação em sistemas de não-equilíbrio, e cogitar que o surgimento de
sociedades complexas tenha se dado também a partir de decisões individuais (WILSON,
2002, p. 191).
Talvez só compreendamos das sociedades antigas aquilo que nos aproxima. As
sociedades que conhecemos hoje são, em todos os casos, as mais agressivas, sobrepondo-se às
demais, para sempre perdidas. É possível que as sociedades cujas estruturas eram
incompatíveis com as transformações do planeta tenham se tornado extintas. O que nos
importa nesse momento é aceitar a sugestão de Wilson (2001 p. 193) e assumir a idéia do
inacabado e do devir, levar em consideração as pesquisas dos primatas não-humanos e aceitar
a idéia de que não há como determinar momentos exatos de separação natureza e cultura,
porque não existem fronteiras definidas, não há um ponto determinado ao qual se remeter. O
autor assume a idéia, valiosa para nós, de que os fenômenos sociais podem, desde que com
221
cautela e sem dogmatismo, ser estudados através dos modelos e teorias físicas, pois os seres
humanos não estão separados do Universo, sua história não está separada das Cosmologias. A
incerteza já foi incluída na ordem do mundo e Wilson dá pistas de como ela pode ser incluída
na ordem do humano, na antropologia e na história, sem sucumbir ao negativismo científico.
222
3. Devires
Em meio à permanente instabilidade das coisas,
que ora sobem, ora descem,
se não esperas por tudo quanto pode suceder,
dás à diversidade forças contra ti,
a ela que só é vencida por quem,
adiantando-se no tempo, a vê.
Sêneca
O que vai acontecer agora agora agora?
E sempre no pingo de tempo que vinha
nada acontecia se ela continuava a esperar
o que ia acontecer, compreende?
Clarice Lispector
O homem, na sua frente, só se encontra a si próprio.
Werner Heisenberg
É preciso uma ciência do homem que dê conta de sua hipercomplexidade, seu
enraizamento biossociocultural, sua condição única na rede da vida como produto e produtor
de conhecimento, como sujeito e objeto do saber, pois “a interpretação antropológica não
consegue atingir um nível interpretativo consistente para a condição humana” (CARVALHO,
2003, p. 8). É necessário que os antropólogos assumam uma postura que vá além daquela
comparável ao colecionador de borboletas. Os mais belos espécimes são expostos, inertes,
223
numa moldura que pretende exaltar a graça e a perfeição, mas revela aquilo que já não é vivo.
A descrição, mesmo que exaustiva, de aspectos exóticos e amostras selecionadas de um
sistema cultural não é capaz de instaurar uma ciência do homem.
Para entender o que é o humano, é necessário abrir as fronteiras que separam as
ciências e reconhecê-lo como um ser privilegiado no mundo. Equivocados a respeito do lugar
do homem na natureza e ensimesmados quanto às suas características, os cientistas sociais
ainda podem, mesmo inconscientemente, insistir em descrever a cultura como “fábricas de
ordem” (BAUMAN, 1998), perpetuando uma antiga mitologia e impondo um arranjo
singular, datado, resultante de um processo único para todo o conjunto da humanidade. Para
tanto, e seguindo os principais autores da ciência do complexo, é fundamental destacar a
dimensão histórica do homem, buscando na construção de uma temporalidade mais afinada
com sua multidimensionalidade uma alternativa para o ciclo vicioso do conhecimento
antropológico.
Ilya Prigogine me apresentou um novo entendimento sobre as qualidades do tempo
que ele “redescobriu” e que trouxe de volta ao centro das ciências as reflexões filosóficas, as
discussões sobre a liberdade, o devir e a ética. Esse tempo “reencontrado” por Prigogine
(1997, p. 15) não é uma categoria de fácil apreensão. As mudanças não podem ofuscar aquilo
que se repete, resiste e permanece. Ao mesmo tempo, e recusando a exclusividade da lógica
formal, a repetição e a permanência, a estrutura, os resquícios dos estados anteriores não
predominam sobre as mudanças, nem anulam o fluxo do devir. Se, como Bourguignon (1990,
p. 161) afirmou, “as mudanças que balizaram a história do gênero Homo, desde o Homo
habilis, são tão fascinantes que ocultam a repetição aos nossos olhos”, isso não pode
224
significar que, em última instância, o passado não tenha nenhum significado para o homem
que conhecemos hoje.
O objetivo de Prigogine foi abrir as fronteiras que separaram filosofia e ciência e
apontar para o instante onde determinismo e indeterminismo se encontram. Não somos reféns
do acaso, mas ele está presente em momentos-chave para o devir. No seu fazer ciência, há um
otimismo, uma motivação que coloca o ser humano em primeiro lugar e a convicção de que o
desenvolvimento tecnológico contribuiu para a “regressão da noção de desigualdade”
(PRIGOGINE, 2002b, p. 72). Estava convencido de que, sem negar nenhuma conquista do
espírito humano, mas tendo em mente que nada é absolutamente ruim ou bom, o mundo pode
ser o melhor lugar para se viver, e a ciência é a facilitadora disso, desde que retome seus laços
com a reflexão filosófica. Para ele, reconhecer a existência da flecha do tempo, isto é, a
diferença entre o papel desempenhado pelo passado e pelo futuro em todos os níveis – micro e
macro, das partículas elementares ao Cosmos –, é a principal etapa para a realização de uma
grande transformação nas ciências que, por sua vez, pode mudar o mundo, pois o futuro não
está dado, o universo está em construção, e nós ocupamos uma posição privilegiada nele, pois
somos seus efeitos, interlocutores e intérpretes.
Se o futuro não é dado, mas aberto, vivemos o fim das certezas. A obra de Prigogine
proclama que isso não significa a derrota do espírito humano, pois “a imaginação dos
possíveis, a especulação sobre o que poderia ter sido é um dos traços fundamentais da
inteligência humana” (PRIGOGINE, 1996, p. 194). No entanto, a ciência construída em cima
de leis imutáveis acabou cedendo a um modelo de realidade simplista, isolado e idealizado.
Como explicar que a física negasse o tempo e a criatividade, coisas que parecem claras ao
225
senso comum? A busca de certezas deve ser compreendida no contexto histórico. Não
podemos escapar da visão repugnante de degradação humana, sofrimento, conflitos e guerras.
Independente de suas causas, esse horror é vivido diariamente por seres humanos que não
podem conceber de onde vem e por que esse inferno se instala em suas vidas. No entanto, o
que há de mais belo nisso é que essas pessoas são, ainda, capazes de sorrir e amar; preservam
sua vida e sonham com o dia seguinte.
Com todas as suas contradições e incertezas, o papel da ciência na construção do
futuro é fundamental. A mensagem de universalidade que a ciência clássica trouxe não deve
ser obscurecida pelo nivelamento rasteiro, pela homogeneização dos costumes, pela
equivalência das culturas. A diversidade é a maior demonstração de criatividade e força de
vida, tanto na esfera do vivo como do social. O culto à razão corrompeu o pensamento, visto
que desqualificou outras formas de conhecer a natureza; conseguiu aliviar o cotidiano de
muitas pessoas na área da saúde, nutrição, participação e reconhecimento, mas essa melhora
não foi indistinta, e o custo foi alto: miséria, preconceito, intolerância. Considerar todos os
resultados, enxergar soluções adiante e enfrentar os novos problemas que surgem com eles,
pensar o humano como um entroncamento de determidades, liberdade, potencialidades e
escolhas expressa um conhecimento que tem em seu núcleo a vivência do tempo.
Não há noção nem concepção de tempo definitiva. As definições são, também e
inclusive, indefinições; os conceitos são voláteis. Mas é importante que se reflita sobre as
qualidades, continências e contingências de um tempo pensado de maneira complexa. Como
existência inegável, ele se apresenta a todo o universo, um operador compartilhado por todos
os seres animados e inanimados. É possível fazê-lo índice inefável de nossas realizações.
226
Negar o tempo atrela-se à necessidade humana de consolo, que a exime de culpas e
responsabilidades. Negar o tempo é o mesmo que recusar a mudança, a criatividade e
acomodar-se num determinismo complacente que nos joga, ora à mercê do acaso, ora sob as
forças das leis, sejam elas físicas, biológicas ou sociais.
O acaso puro é tanto uma negação da realidade e de nossa exigência de compreender
o mundo quanto o determinismo o é. O que procuramos construir é um caminho
estreito entre essas duas concepções que levam igualmente à alienação, a de um
mundo regido por leis que não deixam nenhum lugar para a novidade, e a de um
mundo absurdo, acausal, onde nada pode ser previsto nem descrito em termos
gerais.
(PRIGOGINE, 1996, p. 197-198).
Entre o acaso e a determinação, abre-se um caminho estreito, o caminho das escolhas,
da responsabilidade pelas escolhas, todas humanas e baseadas no conhecimento ou no
desconhecimento. Cabe a nós decidir de que forma nos encaminharemos para o futuro quando
decidirmos, ou não, refletir sobre o ser e o devir. Neste capítulo, discutirei as opções que ora
se apresentam à antropologia. Todas, em meu entendimento, ganham força com a inclusão da
dimensão temporal.
O tempo irreversível reafirma a experiência do senso comum, uma percepção que está
fincada numa experiência básica de toda sociedade homo sapiens: a simultaneidade da
finitude e a repetição cíclica da natureza. No entanto, o conhecimento científico, com sua
abstração matemática, nos envolveu em cálculos e trajetórias solitárias, alijando-nos da
discussão filosófica a respeito de nossas marcas no mundo. Pelos questionamentos nascidos
no núcleo duro das ciências, chegou-se ao paradoxo do tempo, isto é, a questão insolúvel de
227
como a flecha do tempo emerge de um mundo com simetria temporal e qual o papel da
liberdade nesse universo determinista, sempre-igual-a-si-mesmo (PRIGOGNE, 1996).
Perceber o profundo significado do tempo irreversível-complexo, cujos diferentes
aspectos entraram em cena no século XIX, tanto no que diz respeito à matéria física como à
vida, abre uma nova e mais profunda perspectiva para sairmos da obviedade das explicações
plenas de mecanismo de apaziguamento de nossas mais catastróficas crises. Se, ainda que
infiltradas e produtoras de nossa cegueira, degradação e evolução, fim e progresso,
degeneração e ascensão, tomam o sentido de opostos, antagônicos, divergentes, se tempo
biológico e tempo entrópico são excludentes em respeito à alternativa clássica, o tempo,
pensado de forma complexa, implica mudança e repetições, anéis e ciclos alimentados pela
irreversibilidade. Segundo Morin (1987a, p. 86), “o grande tempo do devir é sincrético”, os
tempos são misturas e não pólos opostos de uma síntese hegeliana. Nisso consiste sua
complexidade, que age no ser vivo e está inscrito “na hemorragia irreversível do cosmo...”.
Somente as qualidades antagônicas que podem conviver por, em e para um tempo irreversível
são capazes de descrever o que é o humano e refletir sobre como chegamos a ser o que somos
e quais os caminhos que se abrem para o nosso vir-a-ser.
O tempo que se quer compartilhado com a humanidade, entendido como fundamento
da liberdade, identificado com o devir, é diferente daquele que infringe a sucessão, visto que
impõe resultados determinados pelo passado. A diversidade de percepções do tempo não deve
confundir o cientista social sobre a universalidade da experiência humana do mesmo. Finitude
e repetição são instrumentos poderosos para a colocação de uma postura responsável nas
ciências em geral.
228
A dificuldade em compreender a realidade material, o mundo, a natureza, o homem, as
sociedades e a história não está por conta de nossa ignorância, mas da recusa em incluir o
incerto, o imprevisto, a novidade, pois os fenômenos, definitivamente, não são estáticos.
Assim, as teorias e explicações se congelam nas prateleiras das universidades, tornam-se
plenas de variações sobre o mesmo tema, enquanto o dia-a-dia, cheio de surpresas e
assombros, nos intimida, nos cega e nos transforma em seres resistentes ao novo. Consciente
ou inconscientemente apegadas às produções do século XIX e início do século XX, as
ciências sociais se enclausuraram numa imposição de normas e regulamentos autoprotetores.
Pretendem conter a realidade em modelos explicativos cuja fragilidade reside em sua natureza
estática. Os fenômenos que não se enquadram são excluídos da reflexão ou submetidos ao
racionalismo. Além disso, “a questão do tempo está na encruzilhada do problema da
existência do conhecimento” (PRIGOGINE, 1996, p.9), pois, sem a irreversibilidade do
tempo, o conhecimento seria impossível. Num mundo onde o tempo pode retroceder, nada
pode ser compreendido.
Para iniciar esta reflexão, voltarei a alguns conceitos e explicações a respeito do tempo
tomados dos estudos de Prigogine sobre o futuro aberto e o ser em devir, abrindo a discussão
para o campo do determinismo e da liberdade de escolha. Atlan (2004) coloca elementos de
caráter nevrálgico para considerarmos a relação entre determinismo e responsabilidade,
derrubando a crença de que a humanidade se diferencia dos demais seres por seu livre-
arbítrio. Se assim fosse, o determinismo confirmado pela ciência a tornaria inumana. A
aceitação da relação causa–efeito significa necessariamente a posição determinista? A
capacidade adaptativa do ser vivo é ilimitada. Como pensar bem, isto é, de maneira não
229
maniqueísta, os termos "determinação" e "mudança"? Os sistemas vivos, e entre eles
incluímos o indivíduo, a espécie e a sociedade, “ser de terceiro tipo” (MORIN, 2002)
enraizado nos fenômenos físico-químicos, biológicos e sociais, mostram que a vida é mais
que propriedades orgânicas e funcionalidade: “uma experiência indiscutível, mas apenas uma
experiência” (ATLAN, 2004, p.18). Aceitar o novo e viver plenamente a experiência é mais
que viver para si.
Meditar sobre esses fenômenos do viver humano nos direciona de maneira direta e
enfática a pensar sobre o papel das determinações, do acaso e da liberdade como uma forma
de humanizar as ciências sociais e como esse processo toca nas discussões a respeito das
ações humanas, principalmente aquelas ligadas aos métodos e à ética. Para auxiliar, colocarei
em cena aspectos do budismo e discutirei alguns de seus principais fundamentos.
3.1. O tempo como operador de mudanças
Conforme discutido no primeiro capítulo, as estruturas dissipativas são singularidades
cujo nome sinaliza a coexistência de significados antagônicos, complementares e recorrentes.
De um lado, o termo "estrutura" se relaciona a duração e constância. De outro, "dissipação"
conota volatibilidade, desaparecimento. “A expressão ‘estruturas dissipadoras’ enquadra estas
novas propriedades: sensibilidade e, a seguir, movimentos coerentes de grande alcance;
possibilidade de estados múltiplos e, a seguir, historicidade das ‘escolhas’ adoptadas pelos
sistemas” (PRIGOGINE, 1990, p. 26). As características do tempo deduzidas dessa
descoberta não se submetem ao paradigma redutor, simplificador e determinista; não é um
230
tempo qualquer, senão aquele irreversível, não linear e assimétrico, compartilhado por todos
os níveis de realidade.
Um tempo complexo é aquele que, por conter em si qualidades conflitantes,
antagônicas e complementares simultaneamente, cria o universo e o homem. Segundo
Prigogine (1992, p.147), “o tempo é o fio condutor que hoje nos permite articular nossas
descrições do Universo em todos os níveis”. A irreversibilidade deve estar em todos os níveis
da realidade, ligando-as. Por isso, é necessário reconhecer o papel da história social, biológica
e até mesmo cósmica na emergência do novo e reconhecer que este, independentemente do
valor que lhe é atribuído, deve ser compreendido como parte da realidade.
Das qualidades do tempo, a “irreversibilidade desempenha um papel construtivo na
natureza, já que permite processos de organização espontânea” (PRIGOGINE, 1997, p. 8) e a
reabilita como um sistema vivo, criador e interativo. Recoloca em discussão noções caras às
ciências sociais, tais como estrutura, função e história; é a causa e a conseqüência da
assimetria temporal, dos pontos de bifurcação das transformações químicas, da evolução
biológica e cultural enquanto fonte de ordem–desordem–organização. A novidade e o devir
são sua magnífica criação. Enquanto a reversibilidade é possível somente no nível individual
e subjetivo, como o caso das partículas subatômicas e do homem respectivamente, no nível
dos sistemas, dos conjuntos, a flecha do tempo é implacável. Cosmologia, mecânica quântica,
natureza, vida e sociedade carregam as marcas do tempo. A história, o passado de um sistema,
o tempo vivo, as mudanças ocorridas no tempo colocam em evidência a complexidade da
realidade que a ciência busca compreender. Ela mesma é filha do tempo. Seus aspectos
231
valorativos, isto é, o ponto determinado numa linha reta, uma medida, não podem ocultar sua
natureza de operador de mudanças, de princípio criativo.
A direção do tempo toma o sentido da criação e fundamentação da compreensão
humana sobre o mundo em que vivemos. Antes de estar associado à morte do universo, o
tempo relaciona-se ao seu surgimento. Não está direcionado à evolução ao estado inerte, mas
às sucessivas criações. É imprescindível refletir sobre as implicações que essa nova percepção
do tempo tem para as ciências sociais. Mudar o mundo significa uma ação, uma nova postura
e perspectiva. Esse novo olhar é científico e ético; investigativo, mas aberto ao novo, ao
surpreendente, àquilo que escapa das conceitualizações prévias. É preciso abraçar o
imprevisto, não descartá-lo, não menosprezá-lo, vê-lo como aquilo que ele é: uma surpresa, a
prova da existência de uma imprevisibilidade da realidade e como o conhecimento deve
incorporar essa ambivalência.
O capítulo anterior mostrou como a reconstrução do passado é feita também de
subjetividade, que não pode ser excluída da realidade que a ciência busca compreender e
explicar. Em contrapartida, o futuro é uma brecha a todas as possibilidades. Isso encaminha
para a assimetria do tempo, isto é, o passado não pode ser modificado, mas somente
reinterpretado. Diferentemente, o futuro é aberto a inúmeras possibilidades, nas quais acaso,
determinação e liberdade realizam uma dança majestosa. Nosso cotidiano é um fluir de
mudanças sem fim. A cada dia, as transformações se impõem aos nossos olhos, embora
desejemos a constância. A realidade se apresenta para nós como uma caixa de surpresas, pois
a mudança é uma constante. Épelo interesse pelas coisas que mudam que a ciência deve dar
seu próximo passo. As leis científicas, extraídas da regularidade dos fenômenos, não são
232
eternas, mas estão sujeitas às ações do tempo, evoluem, isto é reagem a circunstâncias
singulares.
Assim, se a realidade até certo ponto corresponde às construções teóricas, o mesmo
ocorre com a experiência humana em relação à determinação. No budismo dá-se o nome de
interdependência ao conjunto de causas e circunstâncias que fazem emergir realidades e
escolhas relativas. Isso é inevitável, faz parte da natureza do samsara, e a ciência ocidental já
demonstrou que tem condições para explicar e prever acontecimentos da realidade relativa
Esta é determinada por essas causas e circunstâncias. Isso se dá em todos os níveis da
realidade: quando estou vendo algum objeto ou vivenciando alguma experiência, é a
aparência relativa, é uma imagem mentalmente construída, uma descrição da realidade que
experimento e não a realidade absoluta. No entanto, essa possibilidade ainda é insatisfatória: a
ciência pode explicar muita coisa, mas os benefícios desse conhecimento não alcançam todos
os povos. A vida é ainda cheia de sofrimento.
A ciência busca as relações de causa–efeito e, a partir das regularidades dessas
relações, estabelece leis deterministas. Na biologia, cada vez mais são demonstrados os
organismos regidos por mecanismos físico-químicos, a continuidade entre o físico e o
biológico e a inseparabilidade corpo–espírito. Se fenômenos biológicos determinam
comportamentos e pensamentos, como falar em escolhas “livres”? Por que o ser humano se
outorga o livre-arbítrio e se considera acima das leis da natureza? Por que discute liberdade,
escolhas e ética?
233
A postura intransigente construída no ego dos especialistas é a responsável pelos
fracassos da ação universitária na comunidade. Nunca se falou tanto em respeito à diversidade
física e cultural em sala de aula, por exemplo. Ao mesmo tempo, o despreparo dos professores
do ensino básico frente às diferenças é o maior gerador de conflitos e inadequação do ensino.
Estamos preparados para tudo, menos para o inesperado, e ele sempre vem na criatividade
indomada do jovem, nas soluções inesperadas de grupos minoritários, nas dissidências e nas
rebeldias. Fazemos a ciência do ser e ignoramos o devir.
Prigogine (1992) evoca Platão para discutir as relações tensas entre o ser e o devir, nas
quais a ciência se insere por intermédio do conflito entre compreender o mundo, descrevê-lo,
construí-lo, transformá-lo e mudá-lo. Caso se mantenha fiel aos ideais de redutibilidade,
determinação e linearidade, a inteligibilidade é paralisada entre o ser o devir, o que tamm
significa negar a irreversibilidade e o fluxo ininterrupto que nos leva todos, da partícula ao
universo, para o futuro. Absorver a novidade tem como resultado tornar as ciências
complacentes, isto é, sem dogmas, disponíveis à dinâmica das sociedades e suas escolhas,
com menos certezas e ao mesmo tempo mais ética. Para isso, é imprescindível que a ciência
reencontre o tempo, no sentido que Prigogine considera, isto é, distante de retorno ao
passado, levando em consideração a história, o caminho percorrido pelos fenômenos até
chegarem a ser o que são, sem ignorar a criatividade do tempo. O que se quer colocar em
pauta é a possibilidade de utilizar o conhecimento em escolhas cada vez mais próximas do
ideal de liberdade humana. Acolher a flecha do tempo, a direção única do tempo para o futuro
é a única opção capaz de reconciliar os modelos explicativos, o conhecimento adquirido e a
existência real do outro, das sociedades e suas trajetórias não lineares. Prigogine, no conjunto
de sua obra, reabilitou a flecha do tempo desde os fundamentos da mecânica clássica e
234
mostrou como ela vai se tornando mais evidente à medida que alcança patamares mais
complexos de existência e designa o aspecto construtivo do tempo.
Estamos afirmando a importância do passado e da memória no contorno do futuro,
mas sem desprezar os elementos inefáveis das flutuações, dos ruídos e da consciência desses
infinitos ingredientes que nos permitem refletir sobre nossa prepotência ou sobre nossas
responsabilidades. Nosso afã de compreender, explicar e dominar a realidade nos deixa cegos
para a novidade e incapazes de abrir mão do passado. Somos determinados e, portanto,
paralisados pelos hábitos – só podemos ver crise, destruição, fim e perdas. As diferenças são
o resultado de escolhas microscópicas em pontos de bifurcação e, embora sejam resultados de
leis deterministas, eles abrem brechas de mudanças radicais, estabelecem-se em pontos
eqüidistantes do tudo igual e previsível e do inusitado.
Tudo é, mas está condenado ao devir. Enquanto o tempo como valor, baseado na
medida e no número, só pode corresponder a um agente transformador externo, dependente de
leis, de condições propícias, aconchegado no eterno e imutável ser, uma imagem refletida dos
nossos desejos de segurança, o tempo como operador impõe a mudança em todos os níveis de
existência, relacionando o ser e o devir. O tempo compartilhado é a essência da
irreversibilidade. A integração do que é interno e externo leva, ao devir, ao futuro. Nada pode
ser negado, mas tudo pode ser feito. Rupturas e continuidades são apenas pontos de vista
escolhidos retrospectivamente para se acomodar a transformação que não resulta da oposição,
nem nega o passado. O que a introdução do tempo complexo e irreversível nos mostra é que,
compartilhando com todo o universo o a flecha do tempo assimétrico, somos impelidos para o
vir-a-ser.
235
O círculo vicioso em que as ciências sociais podem cair é resultado da insistência
onipotente em acreditar que tudo pode ser controlado e, antes disso, previsto; de acreditar que
têm autonomia para decidir o que é bom ou ruim, o que é desenvolvimento ou resistência, o
que é dinâmica e o que é aculturação e, daí, continuar impondo seu ponto de vista
ilusoriamente neutro, ignorando as motivações de suas escolhas de objetos, métodos, modelos
interpretativos e o quando e onde dar voz a seus informantes. O que devemos incluir em
nossos estudos é o fato de que o ser que aparece nos atos espontâneos é verdadeiro, não há
perda de identidade quando existe um vir-a-ser. Espontaneidade e liberdade se confundem,
mas, para o pensamento apegado e enraizado na causalidade científica e no determinismo das
leis científicas, nenhum ato é espontâneo.
O tempo assimétrico pode reconstruir o passado, se considerarmos suas íntimas
relações com a subjetividade, ou seja, com o presente de necessidades e as expectativas
quanto ao futuro. Estou me referindo à escolha de caminhos retrospectivos, que são arbitrários
e determinados pelo presente, pelo espírito da época, e sob a perspectiva de quem olha o
passado de fora e com estranhamento. Ir do presente para o passado não garante a
reconstrução exata do caminho que se fez do passado para o presente. Isso não deve nos
desestimular.
3.2. Determinismo e liberdade
Aprendemos através do conhecimento da natureza, não aquela idealizada à vontade e
privilégio do homem, mas à sua forma criativa e evolutiva, da qual somos parte integrante e
236
com a qual devemos restabelecer a aliança através da ciência, que é possível alcançar a
liberdade que lega ao homem um papel participante no devir cultural e natural. O sonho de
um conhecimento libertador não está morto, mas é necessário refletir sobre suas causas, seus
efeitos e sobre a participação humana em tudo isso. É necessário um novo mundo, pois
está bem morto o mundo finalizado, estático e harmonioso que a revolução
copernicana destruiu quando lançou a Terra nos espaços infinitos. Mas nosso mundo
também não é o da ‘aliança moderna’. Não é o mundo silencioso e monótono,
abandonado pelos antigos encantamentos, nem o mundo relógio sobre o qual
recebêramos jurisdição. A natureza não foi feita para nós, e não foi entregue à nossa
vontade. Como Jacques Monod nos anunciava, chegou o tempo de assumir os riscos
da aventura dos homens.
(PRIGOGINE, 1997, p. 226).
Esse mundo transformado não é submisso às ideologias políticas e às ações bélicas.
Ele deve estar fundamentado em um novo conhecimento, ético e responsável, derivado de
ações inovadoras que estejam ancoradas em uma nova relação entre homem e natureza. O
mundo que pretendemos rompe com o dualismo natureza–cultura e inclui o homem na
realidade que ele observa. A entrada da subjetividade em cena recoloca o homem na natureza
que ele observa e da qual foi dissociado. A flecha do tempo deve ser ancorada como processo
natural, no qual o observador está subentendido. O homem expulso da natureza foi o resultado
da descrição clássica que apôs sujeito–objeto, dominante–dominado, conhecedor–conhecido.
Reconhecer a importância do tempo e sua irreversibilidade a partir de certo grau de
complexidade dos fenômenos é a base da nova aliança que deve ser estabelecida entre o
homem e a natureza. Fazer a aliança entre a história dos homens, da sociedade, dos saberes e
das tradições, da natureza, isto é, ligar ciência e filosofia, é um caminho sem resistência,
237
desde que se ultrapassem as cadeias da lógica formal e da dialética, para se pensar numa
dialógica. Os caminhos de mão dupla ampliam os horizontes conceituais e incluem nas
ciências fenômenos até então mutilados pelas teorias cristalizadas. Incorporar o novo, integrar
o mal, construir uma nova ética só é possível se compreendermos que as escolhas também
estão na raiz das mudanças. Estas não são apenas o resultado das determinações da natureza,
ou da existência da álea nas relações, nos sistemas. O papel do ser humano é bem mais ativo
do que o determinismo pode deixar subentender, ou que o acaso possa provocar. Esse papel
leva à mudança, encaminha o homem para o exercício da liberdade e a conseqüente
responsabilidade perante o mundo. . Um mundo exclusivamente determinista é sem alento,
sem esperança e sem futuro.
Qual o papel da novidade num mundo determinista? A novidade será sempre um
incômodo? A realidade desmente o determinismo? É impossível conhecer na totalidade as
condições iniciais? É preciso fundar nossas ações no conhecimento, mas é imprescindível que
tenhamos consciência dele como algo ilimitado, ou seja, o ato de saber não chegará jamais a
um termo. Entretanto, ele é também limitado, pois não há, e nunca haverá certeza de que
dominamos todas as variáveis e consideramos todos os elementos implicados, os fatores
determinantes e as coisas conhecidas na intelecção daquilo que chamamos de "real". Não há
ponto a ser alcançado, mas a ausência de pontos finais é o motor que empurra o conhecer para
patamares cada vez mais próximos da verdade e que cada vez mais pode nos auxiliar em
nossas deliberações. O nosso conhecimento, mesmo o conhecimento científico é parcial por
definição.
238
Não é o saber em si que nos torna livres, mas o reconhecimento dos limites do nosso
saber que nos confere liberdade. O conhecimento daquilo que determina nosso
comportamento, nossa razão, nosso costume, torna possível uma aproximação com a
liberdade. Por isso, o conhecimento do Abhidharma, a prática da meditação e as minuciosas
descrições das formas do sofrimento, dos venenos, de como reagimos ao mundo, nossos
pensamentos, nossas opiniões e estratégias estabelecem o ponto central e inicial dos processos
de transformação de um ser humano em um Buda. Os budistas diriam que a incompletude é
característica da verdade relativa; e a liberdade que se deseja a partir da ciência é ilusória.
Primeiro, a aceitação das determinações que nos fazem ser, em seguida a antevisão das
possibilidades infinitas de mudança, o vir-a-ser, até a indeterminação, a verdade absoluta, a
vacuidade, a compreensão da essência de todos os fenômenos: shunyata.
O exercício das pequenas liberdades e a vivência de breves momentos de consciência
podem resultar no domínio dos três tempos ou onisciência, a chamada clara visão. Esta ilustra
um dos múltiplos aspectos da budeidade: a possibilidade de enxergar o passado e todas as
complexas relações de um ponto privilegiado do presente – o conhecimento total – e poder
apreender todas as possibilidades apontadas pelo futuro. Essa é a livre escolha, aquela que
segundo Prigogine (1997) não privilegia nenhum caminho.
A relatividade das escolhas é análoga à relatividade do tempo: em nenhum desses
casos vivemos uma experiência completa. A inexistência de um tempo absoluto é fator
primordial para considerarmos mais importante a responsabilidade sobre as escolhas do que o
"ideal do livre-arbítrio", isto é, a possibilidade de escolha isenta de juízos e determinações. As
escolhas não devem se submeter às dimensões deterministas, pois o conhecimento abre
239
perspectivas de liberdade para o ser humano, a ciência demonstrou exaustivamente que “a
existência de causas não suprime a responsabilidade de seus autores” (ATLAN, 2004, p 50).
A liberdade, portanto, não é decorrente do livre-arbítrio, porque determinismo e escolha não
se excluem. Por isso, o budismo desvaloriza a história como relato do passado. De nada
adianta o conhecimento detalhado do passado para explicar o que somos no presente e
desculpar nossas ações, ou encontrar subterfúgios para elas, sem por elas nos
responsabilizarmos. Ao contrário, é sobre o devir, sobre o futuro, sobre o ser humano que nos
tornaremos que o budismo centra suas técnicas. Olhar o passado só tem significado se
contribuir para abrir os olhos às possibilidades de futuro. A percepção de que, a despeito da
trajetória que nos conduziu até o ponto em que estamos, sempre haverá bifurcações, pontos
nos quais caminhos novos são tomados, “passagens inesperadas” (PRIGOGINE, 2002b, p.
69), coloca diante de nossas vidas um misto de determinismo e imprevisibilidade. Assim,
quanto mais conhecimento, mais responsabilidade.
Apesar de baseada em relações de causa–efeito, de onde inferimos os determinismos
das leis, a ciência nos torna cada vez mais responsáveis, pois coloca às claras todos os
mecanismos que nos fazem ser o que somos. Diante do irreversível do tempo, nossas escolhas
são cada vez mais pesadas. Não temos um laboratório disponível para verificar os resultados
de nossas opções, ou seja, não saberemos se é melhor sermos determinados por nossa
genética, por nosso ambiente ou por nossos desejos mais secretos. A leveza das escolhas só
pode ser encontrada na responsabilidade sobre elas.
Para Henri Atlan determinismo e livre arbítrio são termos que precisam ser repensados
sob a perspectiva da responsabilidade, isto é, muito além da busca simplista e omissa dos
240
culpados. As responsabilidades existem mesmo diante do determinismo e a liberdade não é
um estado que dependa do livre-arbítrio. Existem duas formas de responsabilidade. A
primeira é ontológica, a priori, parte do pacote humano, absoluta e incondicional, a
responsabilidade é intrínseca à condição humana. A outra é subseqüente ao fato de sermos
humanos, determinados e autônomos. O ser humano tem consciência de si, decorrência do
cérebro hipercomplexo que juntamente com a postura ereta e a dupla articulação contribuíram
para a organização da sociedade e da cultura humana. A responsabilidade decorrente das
capacidades humanas envolve a questão da culpa quando as escolhas colocam o indivíduo
como causa do ocorrido. A responsabilidade e não a culpa está presente sempre que houver
um ser humano envolvido, esta última se estabelece quando as instituições humanas, normas,
justiça, regras de convivência e critérios de ação são ignoradas.
Os lamas tibetanos afirmam que, quer você acredite ou não, as leis do carma, da
causalidade e da interdependência atuam sobre você. Por isso, o discernimento é tão precioso
para o budismo: é uma maneira de fazer a abertura ao futuro, de incluir as relações de
causalidade que as ciências vêm apresentando ao conhecimento. Tendo ou não consciência
das pulsões que motivam nossas escolhas, somos responsáveis por elas.
Pela lei de interdependência, isto é, a “junção de diferentes causas” (YONGEY
MINGYUR, 2007, p. 78), todos os envolvidos são a priori responsáveis, numa teia de
relações, subjetividades, preferências e distanciamentos. Para ignorar essa rede em que cada
minúsculo papel é fundamental para o resultado final da situação, a busca do culpado leva à
necessidade de determinar onde, quem, quando foi cometido o erro original. É impossível
encontrar o culpado, já que todos são determinados pela ignorância básica e, portanto,
241
responsáveis. Em seguida, porque a causa última é shunyata, é confirmada a inexistência do
erro e do acerto. Tanto um como outro são interpretações feitas do mesmo material ilusório,
são dependentes de fatores externos, tais como costumes, cultura, vivência pessoal, e ocorrem
como variações sobre o mesmo tema, sem termo de comparação. Por isso, a precaução, por
conta do medo e do egoísmo, pode sair mais cara que o desenrolar da trama. Não foi esse o
grande achado das tragédias gregas?
Em Édipo Rei, Sófocles, Laio, rei de Tebas, pai de Édipo recebe o vaticínio: será
morto e destronado pelo filho. Assim, pretendendo eliminar a causa da sua morte, ordena que
o bebê seja levado ao monte Citerão para morrer exposto às feras, mas o servo responsável
pelo abandono da criança se compadece e a entrega a um pastor que a levou ao rei de Corinto,
Pólibo. Já adulto, Édipo consulta o oráculo de Delfos e rejeita a profecia que o faz assassino
do próprio pai e esposo da mãe, foge da desgraça e se encontra com ela no meio do caminho.
Numa encruzilhada entre Corinto e Tebas, encontra-se com Laio e sua comitiva. Tratado de
modo agressivo, reage e mata a todos. Chegando a Tebas, desposa Jocasta, sua mãe, e reina
sob a cidade como recompensa por ter eliminado a esfinge que assolava os tebanos. “Procura-
se sempre evitar o pior, mas quando o pior não pode ser previsto, há o risco de que a decisão
prescrita por esse princípio tenha conseqüências ainda piores do que as que teriam sido
imaginadas sem ele. O princípio de precaução impõe, então, que ele próprio não seja
aplicado! ‘Na dúvida, abstenha-se’, não evite sempre o pior” (ATLAN, 2004, p. 69).
Por sua complexidade, o corpo humano manifesta diferentes estados de consciência de
si. De acordo com a tradição budista, o samsara é dividido em seis reinos de existência. O
Reino do Inferno ou narakas é aquele em que o ser sofre experiências aterrorizantes,
242
suplícios, agressões, claustrofobia. Intensamente torturado, envolvido na dor, ele luta
desesperadamente contra sua experiência e não visualiza uma saída, pensa sua condição como
sendo eterna. No Reino dos Espectros Famintos ou preta loka, experimentamos uma sensação
de falta, ausência, empobrecimento, que nada é capaz de aliviar. Desejamos constantemente
situações mais agradáveis, que só podemos visualizar à distância, pois a fome e a sede que
sentimos são insaciáveis, sempre desejaremos mais. Estar no Reino Animal ou no reino da
estupidez, em sânscrito tiriaks, significa estar envolto em cegueira. Sem podermos enxergar o
que existe fora do pequeno mundo que nos cerca, apegados a referências bem conhecidas,
agarramo-nos a elas com unhas e dentes, grunhindo, mordendo, atacando quem ousar mexer
nessa estabilidade ilusória. Nesse mundo, não há perspectiva de escolhas. As experiências,
sejam elas agradáveis ou penosas, são vivenciadas sem possibilidades de mudança. O Reino
Humano ou reino da paixão discriminativa, chamado manushyas, é aquele em que se adquire
a capacidade de avaliar, discriminar e, portanto, de apegar-se ou recusar a experiência, sendo
que ambas causam grande sofrimento. Neste reino, a inteligência surge. As vivências são
agarradas, exploradas, os objetos são comparados, e o pensamento é direcionado para a busca
do prazer. Mas, como o ser humano é inteligente, logo percebe que o prazer não pode ser
perpetuado, decorrendo daí as dores das perdas, as frustrações, o desejo de controlar todas as
experiências que se lhe apresentam. O ser humano vive a ambição e o medo, têm dúvidas e
ambigüidades, vive à mercê de sentimentos conflitantes e tem consciência de que enfrenta
uma dura realidade, na qual todo objetivo alcançado é seguido por outro à sua frente. Com
esse sentimento de eterna competição e luta para manter seu status entra no reino dos semi-
deuses ou deuses invejosos, os assuras. Se alcança suas metas entra no reino dos deuses ou
deva loka onde a vida é isenta de preocupações terrenas e é levada em meio aos prazeres e à
satisfação dos desejos. Visões os alimentam, músicas maravilhosas são entoadas
constantemente, odores agradáveis emanam do ambiente, “uma espécie de auto-hipnose [...]
243
que expulsa da mente tudo o que possa parecer-lhe irritante ou indesejável” (TRUNGPA,
2002, p. 137). Nesse reino vivencia-se um prazer mental, ilimitado, já que não existe forma
que restrinja qualquer sensação agradável, e ultrapassam-se as fronteiras do tempo e do
espaço. Entretanto, essa consciência sem limites engendra um ego imperioso e imenso.
Desses seis reinos, somente no reino humano é possível a iluminação, a quebra da
cadeia cármica. Um grande mestre do budismo tibetano, Je Tsong Kapa (apud LAMA
YESHE e ZOPA RINPOCHE, 1994, pp. 80-1), enunciou a preciosidade, a grande
oportunidade de ter nascido como humano:
A forma humana perfeita, mais preciosa do que jóias,
Só pode ser adquirida no momento presente.
É muito difícil de encontrar, mas facilmente se deteriora,
Passando como um clarão de relâmpago no céu.
Pensando que tal é a natureza da vida,
É necessário capturar sua essência
Por todo o dia e noite.
Eu, o iogue, pratiquei assim.
Vocês que anseiam pela libertação, por favor,
Eduquem-se dessa mesma maneira.
Esse trecho é fundamental para compreendermos as diferenças entre a precaução e a
prudência. A precaução não é um princípio do qual se deduz o critério para a boa decisão, mas
uma luta desesperada e cega para fugir de suas responsabilidades. É o medo e o egoísmo que
244
move o homem que busca se precaver. Laio, determinado pela sentença do oráculo, opta pelo
extermínio de quem ele entende como “causa” de sua morte, evitou de forma ignorante o que
considerava o pior e não reconheceu sua responsabilidade e possibilidades. A prudência, por
sua vez é uma virtude na ação, atitude cautelosa que leva em conta o limite de nosso
conhecimento. Não caímos na arrogância de decidir baseados em uma visão perturbada e
adoecida pelo medo, mal-estar e poder de manipulação. Abster-se também é uma forma de
ação.
Inúmeras causas, relações e efeitos se organizaram para nos possibilitar o nascimento
sob a forma humana. Com ela, podemos experimentar os demais cinco reinos num único dia.
Com a forma humana, podemos tomar conhecimento do dharma e estamos providos de um
corpo adequado para a prática da meditação e com inteligência suficiente para
compreendermos os ensinamentos. Além disso, podemos ter consciência das dificuldades e
sofrimentos inerentes ao samsara. No reino humano, somos simultaneamente vermes e
deuses. Somos movidos pelo desejo, resistimos por preguiça, buscamos prazeres
transcendentais e sofremos o inferno da materialidade. Em um rasgo de tempo, podemos
vivenciar todos os reinos de existência do samsara.
Pensando a nossa experiência humana sob o ponto de vista do budismo que ora
apresentamos, podemos perceber que nenhuma filosofia do determinismo absoluto consegue
suprimir o sentimento de que houve uma escolha entre as diferentes atitudes possíveis e a
decorrente sensação de liberdade. Essas escolhas se nos apresentam cada vez mais racionais à
medida que desprendemos mais tempo para decidir (ATLAN, 2004, p. 62-4). Até mesmo as
ocasiões nas quais parece “não haver escolha”, é uma decisão deixar-se levar pelo fluxo dos
245
acontecimentos, é um ato egoísta que coloca todo o peso das decisões na mão do outro, para
poder, assim, culpá-lo, isto é responsabilizá-lo unicamente. Em Antígona, de Sófocles,
Creonte, rei de Tebas, reclama aos seus mais próximos funcionários não ter escolha diante da
situação delicada que Antígona lhe preparou. A filha de Édipo tinha dois irmãos, Etéocles e
Polinices, que lutaram em lados opostos na guerra entre Tebas e as sete cidades inimigas.
Apesar da proibição de enterrar os inimigos, ela não abriu mão de realizar os ritos fúnebres
aos dois irmãos, infringindo a lei imposta por Creonte e mais, deixou todos os sinais possíveis
para que todos soubessem que ela havia sido a autora da afronta. Creonte não suspendeu a
sentença de morte aplicada a Antígona, porque foi incapaz de reconhecer sua responsabilidade
no ocorrido: colocar o Estado em oposição à tradição. Ele ainda reclama da situação
constrangedora, já que seu filho, noivo de Antígona, certamente se ressentiria com a
penalidade imposta. Esse desenrolar de acontecimentos sem controle é fruto da chamada
ignorância básica, que nos faz delegar a outras instâncias, pessoas e circunstâncias a raiz de
nosso sofrimento. Quando chegamos nesse ponto, a responsabilidade desaparece em meio às
“desculpas” e “subterfúgios”.
Parece-me que tanto a ciência como os oráculos, embora cheguem a graus elevados de
previsões, estão condenados a perder algo da realidade, um detalhe, um microelemento, uma
decisão repentina e contrária a todos os determinismos, uma rebeldia diante do inevitável, a
presença silenciosa dos desviantes, dos rebeldes, dos outsiders. Isso pode ser chamado de
acaso para a ciência, mas para o budismo não há acaso, somente a impossibilidade de o ser
humano comum dar conta de todas essas variáveis. A previsão do futuro e a visão onipresente
podem ser habilidades humanas a serem desenvolvidas e, ainda assim, questões primordiais
deverão fazer parte das nossas reflexões: É necessário intervir sempre? Em que circunstâncias
devemos nos abster? Existe alguma coisa que não era para ser? Podemos nos acomodar com
246
os acontecimentos tais quais eles se dão? A predição é um instrumento a ser usado em prol da
humanidade? A previsão do futuro faz a ciência mais ética? É possível para o ser humano
estar e não fazer nada? Diante das visões do futuro, devemos interferir e mudar o rumo dos
acontecimentos? Somos capazes de viver a cada instante uma realidade sempre nova?
A irrupção do novo, do surpreendente decorre da irreversibilidade do tempo. Se a
prudência é ineficaz, porque joga com o destino que se concretiza a cada instante, somente a
prática da virtude e a postura ética podem remediar a insegurança de vivermos em um mundo
sem fundamento. A responsabilidade por nossas escolhas está além das causas que
determinam essas escolhas. A consciência da determinação, e não a insubordinação às leis da
natureza, é o ponto de partida rumo à liberdade humana: “poder-se-ia, então, conceber que
certas experiências de nossa vida cotidiana sejam ilusórias mesmo sem suprimi-las” (ATLAN,
2004, p. 27).
Desconcertando o pensamento iluminista, também não é a razão que nos abre as portas
para a liberdade. Ao contrário, a adesão apaixonada à razão vem carregada de loucura, delírio
e perda da própria razão.
Precisamos começar a aceitar o que encontramos todos os dias em nossa ciência dos
determinismos, saber que nossa consciência subjetiva da livre escolha é cada vez
mais desmentida por nosso conhecimento objetivo de causas e leis impessoais que
determinam tais escolhas e mostram com clareza que elas não são livres como
acreditávamos.
(ATLAN, 2004, p. 33).
247
Os seres humanos não estão condenados à ação determinada. O homem do
humanismo, um ser pronto e acabado, que atingiu sua plena potencialidade e está pronto para
desfrutar a liberdade que alcançou com conhecimento e racionalidade, não existe. Há apenas
indivíduos e sujeitos em devir, confrontados com um futuro feito de contingência de
incertezas.
É nesse cenário de instabilidades que a liberdade brota como resultado das
capacidades humanas. A definição de liberdade perpassa a livre necessidade, a natureza
infinita e autoprodutora, só determinada por sua própria lei. Liberdade e shunyata têm o
mesmo significado, a mesma ausência de causa, conciliam a mesma contradição: o homem
livre é determinado por sua natureza e o vazio é o indeterminado de onde tudo e nada provêm.
Por isso, “o conhecimento infinito do determinismo coincidiria com uma liberdade total”
(ATLAN, 2004, p. 34). Como no budismo, seu pensamento está baseado na existência de
causas e leis. Ele é cientista e não desmerece os fundamentos da ciência: muda o mundo
através da compreensão do próprio homem sobre o mundo. Assim, a autodeterminação é a
manifestação máxima da liberdade, como shunyata é um conceito complexo autodeterminado
– causa de si – uma determinação fundada na livre necessidade.
O livre-arbítrio, que foi o padrão de corte entre o humano e a animalidade, é uma
ilusão que nasce da separação entre homem e natureza e que se instituiu à medida que o
conhecimento se conformou com a relação linear entre as causas e os efeitos e viu as
diferenças de estado como apenas locais ocupados na trajetória newtoniana, que logrou
estabelecer a sucessão do simples ao complexo e se condensou na ausência de conhecimento
das verdadeiras causas das mudanças. Pelo viés budista, não temos consciência plena nem
248
vivemos intensamente a experiência atenta da causalidade e interdependência de nossos mais
insignificantes atos. Somos como folhas ao vento, mas, se observarmos as forças que nos
determinam e não nos identificarmos com elas, não seremos folhas que voam ao vento, e sim
o vento que carrega folhas. Somos mais livres quando reconhecemos os senhores que nos
acorrentam e compreendemos as cadeias que nos cingem. Isso é clareza de pensamentos, um
passo para a iluminação.
Se o futuro é simétrico ao passado, se tudo é determinado, por que escolho, penso em
liberdade e desenvolvo ética? O mundo de que precisamos e que desejamos compreender está
em contínua construção, impulsionado pelo passado e pelo acaso, pela partilha do tempo, e
nele o novo emerge ininterruptamente. A realidade relativa do budismo é um cruzamento de
tempos, de inúmeras vivências individuais que se encontram e constroem um único evento.
Cada um dos elementos implicados no fenômeno teve sua própria determinação, não veio do
nada, é efeito e resultante de alguma causa (lei da causalidade). Dessa forma, cada fenômeno
é a confluência de inumeráveis causas e efeitos em interação. Como esses fenômenos ocorrem
na realidade relativa, não existe garantia nenhuma de poderem ser previstos, evitados,
controlados e contornados pelo ser humano ordinário, incluindo o cientista, porque se referem
a uma realidade cuja principal característica é a impermanência. Assim, para o conhecimento
budista, os seres humanos são privilegiados, pois vivem simultaneamente a determinação e a
impermanência, vivem a imposição de um passado irreversível e a possibilidade de uma
transformação radical, o que pode ser definido como liberdade.
A interdependência significa também a ligação temporal de todos os seres e coisas, de
todo o universo, de forma que, embora tenha sempre uma causa, o efeito sofre de uma
249
indeterminação por conta de uma incapacidade humana de reconhecer todos os elementos
envolvidos no fenômeno. Somente um "Buda" poderia ter este conhecimento; então, não
estaríamos mais nos referindo à realidade relativa. "Buda" significa desperto e é atribuído
àquele que alcançou o pleno conhecimento, a iluminação. Esta é definida também como
libertação do samsara e consiste em sair definitivamente do ciclo de morte e renascimento à
medida que os hábitos, antigos caminhos de interpretação da realidade partilhados pelos
demais seres humanos, são neutralizados.
No budismo, liberdade é, portanto, o rompimento definitivo com o determinismo. Isso
é possível pela desconstrução daquilo que, por ignorância, acreditamos ser a realidade. É claro
que o cotidiano não é irreal ou inexistente. Não há pretensão alguma de declarar a irrealidade
do cotidiano, a inexistência de tudo que reconhecemos como real pelo senso comum. No
budismo, porém, existe uma realidade absoluta, na qual não existe tempo, mas onisciência e
vacuidade, da qual uma quantidade infinita de eventos pode emergir, criando um universo, ou
não, quando há a experiência da plenitude. “Tudo o que surge da vacuidade – estrelas,
galáxias, pessoas, mesas, lâmpadas, relógios e até mesmo sua percepção de tempo e espaço –
é uma expressão relativa da possibilidade infinita, uma aparência momentânea no contexto do
tempo e do espaço infinitos” (YONGEY MINGYUR, 2007, p. 63). A realidade relativa
corresponde ao mundo dos fenômenos materiais ou imateriais, que não existem de maneira
independente, têm causas, são interdependentes, determinados por leis, vivenciados pela
humanidade em meio à ignorância básica. “Qualquer coisa pode determinar a natureza da
experiência relativa sem alterar a qualidade absoluta de quem você é” (YONGEY
MINGYUR, 2007, p. 79). A realidade absoluta não pode ser expressa em palavras, mas
compreendida pela experiência, enquanto a realidade relativa é a experiência da eterna
mudança – impermanência – das imagens e dos conceitos, ambos construções mentais.
250
Ter consciência clara, global de como ocorrem os ciclos de dependência é o que o
budismo entende por "ações livres", o que é bem diferente de “fazer-se o que bem entende”.
Essa última definição pode ser mais determinista do que podemos entender, pois, nos atos que
consideramos livres, podemos estar somente projetando um desejo ou uma experiência antiga.
Quem faz o que bem entende? De onde vem essa vontade de fazer? Quais os resultados, para
nós e para os outros, das nossas ações? Por que desejamos realizar nossa vontade? Quem será
beneficiado? E se não faço o que anseio, qual o mal ou o bem que advirá? Das respostas
determinadas pelo imprinting, pelos paradigmas e modelos, surge a liberdade como um mito,
que encontra amplo campo de desenvolvimento na sociedade capitalista. A liberdade é
abertura, e não condicionamento; é indeterminação, e não determinismo; é a porta da
iluminação, isto é, calma e clara consciência atemporal, a experiência infinita da vacuidade. O
objetivo da meditação na atenção não é fuga do mundo, mas estar totalmente presente: “a
preocupação da pessoa que medita é romper a roda da origem condicionada e tornar-se
consciente” (VARELA, 2003, p. 128), inclusive de suas determinações.
Existe, entretanto, outro aspecto da concepção budista que merece destaque. Para o
budismo, o self–ego–eu é algo que existe e não existe ao mesmo tempo, uma realidade
constantemente criada. Aquilo que reconhecemos como sendo o self–ego–eu é o fluxo
aparentemente contínuo da experiência, uma consciência temporal. É aparente porque, na
realidade, essa experiência não é contínua. A despeito disso, mantemos certa coerência em
nossa vida e nos fiamos plenamente na existência de uma identidade, de um ser que
permanece em meio ao fluxo dos acontecimentos que nos chegam de fora. Pela meditação na
atenção, analisando corretamente as situações em que nos encontramos, os nossos sentimentos
251
e as nossas emoções e munidos do instrumental reunido pelos praticantes realizados do
passado, podemos vislumbrar portas de acesso para a realidade absoluta, na qual todo
dualismo é superado.
A ciência é feita com a matéria própria da realidade relativa; portanto, é determinista.
Para Prigogine, no entanto, a concepção linear e monista deve ser superada. A determinação
não é o resultado de uma trajetória linear, mas a realização de estados outros que já não
guardam identidade com o anterior. Foram forjados nas chamadas "brechas, fissuras ou
bifurcações", momentos em que a possibilidade de escolhas livres se descortina, sem que
qualquer cientista possa afirmar, com total certeza, o caminho que será seguido. Dessa
maneira, Atlan (2004) se refere à liberdade sem rompimento com o determinismo. Nesse
caso, a liberdade humana está fundamentada no conhecimento das determinações extraídas do
conhecimento científico e a partir das quais tomamos decisões. Nem certas nem erradas, mas
responsáveis. No presente, não temos nenhuma garantia dos resultados finais de nossas
atitudes, mas sabemos, por observação do passado e da história (social, biológica,
cosmológica), que somos (nós, seres vivos, ou matéria inerte) resultados de inúmeros fatores,
contingências, decisões mais ou menos conscientes; portanto, somos determinados. Para
angústia dos seres humanos, podemos conhecer essas determinações e nos refugiarmos nelas,
ou utilizarmos esse conhecimento. Daí o importante papel que a ciência tem para o destino
humano.
A prepotência humana em pensar que o mal pode ser sanado com o reparo do passado
deve ser abandonada em favor da idéia de que o “mal” é inerente à condição humana, é parte
da manifestação do homem no mundo; daí a responsabilidade pelas escolhas. Mas podemos ir
252
mais longe. Quando digo “o mal só pode ser superado pela sua absorção como parte do real”,
estou querendo dizer que o real é o real, nem bom nem mal. Esses valores e os critérios para
determiná-los fazem parte de uma convenção e não são existências absolutas. Claro, isso cai
num relativismo perigoso e, portanto, execrável. Para resolver esse impasse, afinal, se tudo é
relativo, tudo é permitido, somente a ética e a compaixão budista podem ser mediadoras das
relações humanas.
O que é uma escolha? Em que momento, nesse mundo explicado pela ciência, temos a
possibilidade de escolher? Para Prigogine, fazemos escolhas verdadeiras quando nenhum
caminho é privilegiado. Isso significa que uma escolha não beneficia o acaso ou o
determinismo; essa é a fórmula das grandes transformações (PRIGOGINE, 1997). Quando as
escolhas são livres, conscientes do determinismo, responsáveis pelo futuro, o benefício da
melhor possibilidade é direcionado à humanidade inteira. Esse é o voto do bodhisattva,
compassivo diante da situação de sofrimento profundo da humanidade, conhecedor das causas
e da forma de anular as causas do sofrimento, com pleno conhecimento da verdade última –
shunyata –, que se compromete a agir segundo a motivação correta, que é levar cada ser
humano, até o último, à realização da vacuidade.
A compaixão budista não compartilha o mesmo significado daquela praticada pelo
cristianismo. Primeiro, pelo fato de não estar baseada no maniqueísmo, na oposição binária
entre o bem e o mal. Em seguida, porque o cristianismo atribui à realidade última a qualidade
do vazio, e não de uma vontade externa e juíza das ações humanas. É análoga aos princípios
que Edgar Morin aponta como sendo aqueles de uma ética complexa, adequada a um universo
complexo: a interação de várias éticas que se relacionam de maneira complementar,
253
antagônica e contraditória. No budismo, enfatiza-se a motivação do gesto, da palavra e do
pensamento para fazer referência à ética que, obviamente, não significa eliminação do mal,
porque é parte da composição da realidade, mas recoloca as questões do bem e do mal, do
ponto de vista do sujeito, no centro das decisões individuais. Assim, as escolhas dirigidas por
uma ética são aquelas que justamente podem ser qualificadas como “livres”. A ética está
acima dos determinismos, mas só pode ocorrer quando há consciência dos motivos que nos
levam a esta ou aquela opção.
É preciso romper urgentemente com o dualismo, a dicotomia racional e irracional, e
perceber que as escolhas se dão em todos os níveis da matéria subatômica ao homo sapiens
sapiens, desde o momento de sair de casa pela manhã ao fechamento de um acordo na
Organização Mundial de Comércio (OMC). Se não podemos ser responsáveis pelas escolhas
das moléculas, sejamos, ao menos, pelas nossas. Esse é o mais importante ganho da religação
dos conceitos de liberdade e de determinismo decorrente da complexificação do tempo. O
futuro aberto ao devir está marcado pelas infinitas possibilidades de “escolhas”, de atitudes,
comportamentos, respostas, interações, ruídos. “Empurrado” pela irreversibilidade, o futuro
rompe com a dualidade entre tempo como fenômeno irreversível e eternidade como a
eternidade das leis. A única lei que pode ser extraída da flecha do tempo é a do eterno devir,
da fluidez do ser e da direção do tempo – o futuro. Diante desse reconhecimento, a déia de
singularidade é acompanhada pela de instabilidade, que penetra o sistema abrindo-lhe o devir.
A eternidade deixa de ser a-temporal e passa a significar recomeço, novidade, parte do
próprio tempo, deixa de ser a eternidade newtoniana, a eternidade de um Deus criador e passa
a ser semelhante à roda do samsara, sempre nova, mas repetida, o novo a partir do eterno
mesmo, abrindo a cada instante uma possibilidade de libertação.
254
Ultrapassar a tensão entre o determinismo científico e a liberdade nos encaminha para
a construção do futuro e do conhecimento. Responsabilizando-nos pelas escolhas e deixando
de nos esconder por trás da vontade divina, do determinismo científico e do acaso, seremos e
não seremos como folhas ao vento, porque fazemos e somos feitos pelo vento da
impermanência que nos leva.
Pensar o incerto é pensar a liberdade. Com efeito, como Sartre já havia dito, a
liberdade é fonte de ansiedade. Trata-se da ansiedade do homem livre relacionada à
segurança do escravo. A condição humana reside em abrir-se à possibilidade da
escolha. Nesse sentido, o futuro é incerto porque é aberto. Cabe a nós refletir sobre a
melhor maneira de realizar o futuro, a fim de que ele coincida com a idéia que
fazemos do progresso.
(PRIGOGINE, 2001, p. 41).
Esse foi o mais belo legado de Prigogine: fazer da reflexão sobre o tempo e a
eternidade, sobre o ser e o devir, um feliz encontro entre ciência e filosofia, um ponto em que
construção teórica e experiência humana dialogam: “a objetividade científica não tem sentido
se, por fim, torna ilusórias as relações que mantemos com o mundo, se condena como ‘apenas
subjetivo’, ‘apenas empíricos’ ou ‘apenas instrumentais’ os saberes que nos permitem tornar
inteligíveis os fenômenos que interrogamos”
38
(PRIGOGINE, 1992, p. 44, tradução nossa), o
desenvolvimento da ciência implica na retomada da reflexão filosófica no seu núcleo duro
como Heisenberg ([19??]) ensejava.
O duplo papel derruba a postura que contrapõe e separa observador e observado,
natureza e cultura, tempo objetivo e tempo vivido. Por distinguirmos o “antes” e o “depois”,
38
Do original: “L’objectivité scientifique n’a pas de sens si elle aboutit à rendre illusoires les rapports que nous
entretenons avec le monde, à condamner comme ‘seulement subjectifs’ , ‘seulement empiriques’ ou ‘seulement
instrumentaux’ les savoirs qui nous permettent de rendre intelligibles les phénomènes que nous interrogeons”.
255
por experimentarmos a irreversibilidade e o devir, somos capazes de observar as repetições, as
regularidades, as relações causa–efeito, bem como as novidades, o irromper das diferenças,
mas estas não estão inscritas em nosso espírito, nem são propriedades da natureza das quais
nos alijamos. Partilhamos com todo o universo da irreversibilidade do tempo; o devir está
implícito em todo o sistema longe do equilíbrio: “vivemos num universo aberto. O futuro é
incerto, mas podemos contribuir para sua construção” (PRIGOGINE, 2001, p. 66). Se o
homem que faz ciência esta incluído na realidade que explica, a ciência não é neutra. As
melhorias e os efeitos colaterais do conhecimento devem ser discutidos de forma mais ampla,
ou seja, não somente pelos especialistas, mas por toda a comunidade. Isso nos leva a pensar
na necessidade de formular uma nova ética complexa.
É possível sempre uma maior proximidade com a liberdade, mesmo que não
cheguemos jamais a exercê-la plenamente (não na realidade relativa, diriam os budistas, pois
o exercício da liberdade absoluta é iluminação). Seremos livres à medida que conheçamos as
determinações e possamos ampliar nosso leque de escolhas, percebendo a responsabilidade
que nelas reside. Liberdade em Morin ([198?]) localiza-se no meio do caminho entre
determinismo e indeterminação e efetiva-se através do hipercomplexo cérebro humano, isto é,
apresenta-se como uma emergência no homem em certos contextos favoráveis, sejam estes
internos ou externos. Portanto, somos livres e não livres ao mesmo tempo: respondemos às
determinações da natureza, da sociedade, do contexto, do conhecimento e somos, também,
capazes de reagir inusitadamente e elaborar estratégias novas diante das crises, da álea, dos
perigos. Dessa forma, liberdade e criatividade são emergências irmãs e têm “raízes muito
antigas [...e] profundas” (MORIN, [198?], p. 173), estão presentes desde a indeterminação
microfísica até a hominização e a evolução cultura.
256
A liberdade é uma idéia que associa em nós, humanos, determinismo e acaso. Somos
capazes de agir de maneira que ultrapasse o nosso ser máquina, nossa genética, os
imprintings, sem jamais deixarmos de ter esses aspectos impressos em nosso passado.
Reconhecendo nossos limites, percebendo que os compartilhamos com todos os demais seres,
podemos até motivar nossas escolhas por compaixão, e não por determinação. É dessa forma
que entendo como a realização da vacuidade gera compaixão, que nada mais é que a maior
atitude ética possível para um ser humano. Isso toca diretamente a questão do conhecimento.
Circunstâncias são determinantes – a ciência colocou isso à superfície. O contexto, então, não
é um mero cenário, não age somente na platéia, mas no ator como personagem, naquilo que
somos e pensamos não ser, naquilo que não somos e desejaríamos ser. Somente o Buda
perfeito que há em todos nós, mesmo no mais imperfeito dos seres, a verdade absoluta de
nosso ser, pode existir independente do contexto ou até mesmo sem contexto.
A ética, então, nasce de uma postura que aceita a ignorância como estratégia contra a
arrogância, como Laio, Édipo e Creonte, que ousaram acreditar que podiam vencer o destino,
pois tinham controle sobre o futuro. Talvez devêssemos ser mais Antígonas, que se
responsabilizam pelas escolhas, mesmos que essas sejam determinadas pelo apego à tradição,
pelo amor dos seus, pelo ódio inconsciente ao Estado opressor, enfim, responsabilizando-nos,
e não nos culpando pelo encaminhamento de nossos atos e palavras. Não há como ter acesso a
todos os detalhes, envolvimentos, variáveis e subjetividades que circulam pelos cenários das
decisões, por menores que elas sejam. O livre-arbítrio, neste caso é o filho e o pai da culpa.
Acreditar que somente um conhecimento onipotente, baseado no controle pode libertar o
humano que se delineia em nós é o mesmo que negar a condição de liberdade a toda a
257
humanidade. Conhecer a existência de limites e determinações é o primeiro passo à abertura
para o novo, é quando começamos a ser livres. O novo pode nem ser o inédito, mas com
certeza era o desconhecido, e o recebemos com soluções novas, saídas de um homem novo,
ciente de sua morte e dos antigos medos.
Por tudo isso, à antropologia, ciência do homem, cabe um papel nesse mundo que está
relacionado à reflexão sobre o seu passado e à aceitação de outras possibilidades para o seu
futuro. Entre essas duas dimensões de tempo, o homem é tanto o objeto como o sujeito desta
ciência. Pensar o outro é pensar a si mesmo, questionar seus princípios é abrir para o diálogo
com as culturas, com as tradições, com outras lógicas. Estamos condenados à ambigüidade;
então, tiremos proveito dela, pois estão mortas algumas “verdades absolutas”; desnivelou-se o
terreno plano e seguro em que os cientistas pisaram até agora. A ciência não é neutra, o tempo
é irreversível, estamos rodeados por incertezas e vivenciamos certa liberdade apesar dos
determinismos revelados.
3.3. A Ética da complexidade
O estudo da temporalidade descoberta por Prigogine deságua tamm na necessidade
de uma postura ética, desde que compreendidas as implicações desse tempo operador. As
profundas transformações epistemológicas e conceituais que emergem da reintrodução do
fator tempo no núcleo duro da ciência e, por irisação, no exame das ciências sociais, faz da
discussão a respeito da ética um exercício de humanização da antropologia. Aquilo que se
instala no nível teórico está relacionado de forma recorrente e interativa com a prática
258
cotidiana do pesquisador. A inserção da subjetividade como elemento integrante do fazer
ciência elimina de vez qualquer resquício do velho mito de neutralidade da ciência. Não há
lugar para a ingenuidade nas ciências, mas um engajamento na plataforma humana.
A ciência ou a razão em si não podem libertar o homem. Ao contrário, sem auto-
reflexão, a ciência perde a humanidade; sem o conluio do exercício filosófico, a ciência se
dogmatiza e as teorias se tornam instrumentos de manipulação. A razão se torna uma
desmedida se, ao permitir o conhecimento, limita-o quando se transforma em um dogma.
Assim, a ética possibilita compreender a incompreensão, e podemos ver como a razão se
transforma em auto-ilusão:
Todos os desvios éticos vêm certamente de uma insuficiência de senso crítico e de
uma dificuldade de obter conhecimento pertinente; essa insuficiência e essa
dificuldade em combater a ilusão são inseparáveis de uma propensão interior à
ilusão favorecida pelos nossos processos psíquicos de autocegueira, entre os quais a
sefl-deception ou mentiras para si mesmo.
(MORIN, 2005, p. 55).
A objetividade da ciência pretendeu descolá-la da ética: conhecer por conhecer,
conhecer por precaução. Entretanto, há uma ligação entre o saber e o dever que está nas mãos
das empresas, dos Estados e das universidades. Não há como separar os interesses que podem
circunscrever a ética. A disjunção não passa de um sonho megalomaníaco gerado pela
herança da onipotência divina que a ciência recebeu. A hiperespecialização disciplinar das
ciências humanas desintegra a noção de homem cujos direitos foram salvaguardados pelo
humanismo europeu e a religião, mas não tem sido suficientes para instaurar os
procedimentos éticos de que o planeta precisa.
259
A questão da diversidade cultural e as interações entre elas tomam outra amplitude
num mundo em que os contatos culturais se dão em todos os níveis: entre países e no interior
de uma mesma nação. Essas interações, levando-se em conta que muitas delas são minorias e
outros fatores como riqueza econômica, monopólio do saber e tecnologia, trazem à tona
questões importantes que colocam no centro da discussão a ética e o papel da antropologia.
Não há como ignorar os problemas éticos enfrentados pelos antropólogos, visto que suas
pesquisas e estudos produzem um conhecimento que resulta em políticas públicas, ações
sociais e na maior ou menor participação social dos grupos diferenciados. A democracia
participativa – o direito de voto – não é a única nem a forma em si de dar voz aos diferentes
grupos.
No cerne dessa confluência de questões antropológicas e éticas, ressurge o problema
da universalidade e da diversidade humana, cujo principal ponto de discórdia é o relativismo
cultural, uma vez que o conhecimento antropológico priorizou uma vertente ou outra. É
possível uma ética local ou a aceitação de princípios universais que transpassem as culturas
locais? Quais as perdas, ou ganhos, de uma homogeneização social? E, ainda, isso é possível?
Como integrar e garantir os direitos à individualidade cultural? A democracia política é
suficiente para garantir uma democracia social e cognitiva? A que ponto a busca de
homogeneização implica imposições que anulam os direitos de escolha e a desqualificação
das diferenças?
260
Em nosso trabalho de reflexionar a antropologia, não é qualquer ética que pode
cumprir esse papel. A ascendência religiosa da ética nos faz apostar que sua universalização
começará pelas religiões transculturais, como o budismo, mas será sempre ameaçada pela
interpretação fanática e neurótica. A ética, em sentido estrito, é uma criação ocidental que,
desde o século XIX e início do XX, sofreu diversos abalos diante da expansão do campo do
conhecimento sobre outras culturas. É preciso uma ética universal? Qual seria o seu perfil?
Como a antropologia pode colaborar para sua instauração? A ideologia do desenvolvimento e
do progresso deve suplantar as escolhas locais? Há, nessas questões, o retorno da tensão
inicial colocada no segundo capítulo deste trabalho, que dizia respeito à convivência entre o
mundo do pajé e do antropólogo.
No exemplo retirado da Grécia, vimos que, quando a filosofia se desenvolve como
regra de conduta, os mitos são laicizados e transformados em seres da poética ou da estética.
Nesse contexto, a ética nasce aliada com o costume, mas especifica uma atitude interna e se
diferencia do termo latino "moral", conforme o qual o costume está relacionado com atitudes
moldadas de fora. Portanto, é pertinente aos comportamentos diante de contraposição de
valores. Assim definida, a ética relaciona-se com responsabilidade e a moral, com a culpa.
Antígona, entre dois valores, o da tradição marcada pelo rito religioso de sepultamento dos
mortos e o da cidade-Estado em obediência às leis impostas por Creonte, opta por um
comportamento e assume a responsabilidade de seus atos.
Na esfera da ética, o valor é imposto de dentro, os valores se desenvolvem no
indivíduo, enquanto a moral impõe valores de fora. O autoconhecimento é fundamental para o
alargamento do conceito de ética. O ego mais estruturado, centralizado – que se conhece – é
261
ético e responsabiliza-se pelas escolhas. Mas, se estamos nos referindo a valores, convém
questionar sua mudança. A conexão entre ética e costumes e valores que cada sociedade
atribui aos componentes da cultura e a possibilidade de novos valores e outros valores trazem
a necessidade de reflexões profundas sobre a postura humana. Essas reflexões sem dúvida
comportam uma incerteza, que vem do fluxo de informações, das múltiplas pertenças, do
contato entre diferentes culturas, do conhecimento científico. “O problema ético surge quando
dois deveres antagônicos se impõem” (MORIN, 2005, p. 47).
Num mundo onde os valores são constantemente questionados pelas transformações
dos costumes, pelo contato com outros costumes, com os avanços tecnológicos e com a
ampliação do conhecimento, a ética deve ser complexa, os conceitos devem ser repensados, as
definições não devem mais ser simples, mas evolutivas (ATLAN, 2004, p. 82). Não é ao
menor elemento, mas à interação de um maior número de elementos que a ciência deve
colocar seus olhos. Já não é mais a tribo distante e isolada que deve ser o lócus do
antropólogo, e sim esta tribo em meio à sociedade planetária, cujo conhecimento interage com
a ciência. Isso, entendo, é compreender a essência das diferenças, é conciliar o que parece
inconciliável. A inclusão de outras experiências, outras formas de interação com o mundo é
instrumento que protege o pesquisador do pensamento dogmático. Reconhecendo as
diferenças e as determinações que engendraram essas diferenças, as bifurcações que levaram
às escolhas e às determinações que contornam essas escolhas, as nossas e as dos outros,
podemos fazer uma ciência mais ética.
Mas é importante destacar que não é solução acomodar-se num relativismo
condescendente e de rasteira interpretação. Não é possível construir uma ciência do homem
262
entrincheirado na indecisão, no nivelamento inconseqüente. Não basta, para a antropologia,
pensar as diversas culturas como unidades auto-suficientes, fechadas e coerentes com uma
lógica interna que impõe ordem humana à ordem da natureza. Essa postura acomodada na
descrição do estranho pretende preservar a diversidade? É possível resistir a hibridações? É
possível congelar as organizações sociais produzidas por seres sujeitos? As reorganizações
das culturas dos diferentes grupos sociais devem ser consideradas pelo viés negativista de
perda de identidade? Vimos como o tempo e o contato, a troca de informações são operadores
de mudanças criativas, e não degenerativas. A dispersão dos nichos culturais é um mal? Não é
necessário dar dispositivos de escolhas àqueles aos quais pretendemos conhecer? Estamos
tomando nossos valores para conceitualizar e atribuir um sentido finalista e catastrófico àquilo
que é somente a manifestação da capacidade humana de criar, recriar-se e espontaneamente
manter viva sua cultura?
Que direito temos de opor ciência e arte, ciência e mito, mito e história, filosofia e
religião, mito e filosofia? Há uma busca muito humana de completude, possivelmente
estabelecida no nível corporal, que faz do desejo do físico nuclear e do aborígene australiano
de alcançar uma verdade acima do seu cotidiano um dado antropológico fundador. Desse élan
refazem-se, desfazem-se, compõem-se e recompõem-se elementos, resíduos, analogias,
transposições que resultam no inteiramente novo, e não no inteiramente destruído. A
antropologia relativista apega-se à objetividade neutra, isenta e de vocação autoritária,
colocada pelos privilegiados condutores do saber ocidental. Nesse sentido, antropólogos
descrevem, mas não compreendem os processos humanos envolvidos nas articulações
culturais.
263
Filosofia, mito, história têm de ser pensados conjuntamente. A transição mythos e
logos é complexa e não exclui o mito pela aquisição da razão. Ainda assim, é preciso levar em
consideração as diferenças entre o pensamento grego, o hindu e o budista. Os sentidos de
filiação e de precursores devem ser permutados pelo de diferenças e variações, mas estes não
podem ser privilegiados ao ponto de ignorarmos um remoto passado comum, uma natureza
humana, uma estrutura de pensamento. As possibilidades do cérebro sapiental são imensas e a
simultaneidade, mais que a hereditariedade, é seu ponto forte.
É urgente a consideração da universalidade humana na antropologia, e uma
considerável parte da discussão ética deve estar embasada nesse antropos. Essa
universalidade é anterior às bifurcações históricas, mas estas confirmam, pelas escolhas
pontuais das culturas, a existência das aberturas para o devir. A diversidade pode ser
considerada a maior demonstração da universalidade humana. Assim como a vida vem se
manifestando em um número infinito de formas desde seu surgimento há dois bilhões e meio
de anos, os grupos humanos fazem o mesmo desde o processo de hominização há dez milhões
de anos. Rompendo com organizações crísicas para continuar, modificando para permanecer o
mesmo, onde mesmo não significa igual a si mesmo (PERNIOLA, 2000).
Muitas vezes, há uma recusa dos antropólogos em trabalhar com processos históricos
mais abrangentes que incluam o simbólico por traz do econômico, do técnico, do político.
Vimos, com Carlo Ginzburg, como esse trabalho é possível sem abrir mão da cientificidade, e
como história e antropologia compartilham campos comuns. A dimensão simbólica é
imprescindível para a compreensão do humano. Esse campo específico a antropologia tomou
para si, mas pagou o preço da dissociação dos saberes. Há uma luta pelo estabelecimento de
264
exclusividade quanto ao objeto, o campo e os métodos dessas áreas das ciências sociais que
diluem a universalidade enquanto privilegiam a diversidade ou recusam a história como
agente nefasto de uma universalização doentia. A história comporta o imaginário enquanto
produção e produtora desse contingente imagético e não anula a importância das diferentes
aposições humanas.
Onde não é possível estabelecer valores absolutos, o questionamento ético se introduz.
No indivíduo, ele se apresenta como um movimento interno e crítico; incômodo, faz pensar,
filosofar, refletir. Questões como aborto, clonagem, utilização de embriões vivos, eutanásia,
envolvem os valores que decidem o que é vida e o que é morte; portanto, estão no centro da
discussão sobre a ética. A medicina é um caso exemplar: ao mesmo tempo luta contra a morte
e prolonga a agonia da morte e os padecimentos da vida. Contrariamente, a moral é simples,
estabelecida de uma relação binária ou/ou e vem de fora e impõe; não é para ser pensada, mas
obedecida cegamente.
Para a sociedade, emerge a exigência de uma ética complexa, isto é,
concomitantemente auto-ética, socioética e antropoética. Um pensamento complexo é capaz
de reconhecer simultaneamente o universal e o particular das culturas, sem renegar a
historicidade desses movimentos quando recoloca as determinações par a par com os
pequenos e inusitados comportamentos individuais. É urgente uma ética que dê conta do
universal e do particular das culturas, isto é, que não imponha uma perspectiva sobre outras,
não privilegie uma convicção religiosa, que abra o debate e se refira à natureza em sua
totalidade. Essas condições só podem ser atendidas através de uma ética complexa.
265
A auto-ética é uma qualidade que emerge da dissolução das éticas tradicionais. Estas
eram certas, isoladas, fechadas em nichos, binárias e simplificadas. Para Atlan (2004), o
reconhecimento da determinação – dado científico irremediável – e a atuação que daí decorre
são partes do conhecimento suficientes para começar a pensar em liberdade humana: não pode
existir uma ética simples que se sobreponha a todas as variações produzidas pelo passado
humano. Uma ética simples não cede lugar nem à tolerância. Todo mundo tem razão, ou
razões, movidas pelo motor do seu passado multifacetado. Essa possibilidade de abertura a
outras razões está vinculada com o pensar complexo e pela responsabilidade por nossos atos e
palavras.
O determinismo que reconhece o nível interpretativo é também pleno de
indeterminações causadas pelas bifurcações vivenciadas constantemente. O entendimento do
próprio observador, que é igualmente sujeito e produto de sua história no sentido mais amplo
do termo, que inclui a cosmologia, a físico-química, a biologia e a hominização, abre brechas
para o exercício da liberdade. Isso confirma a eficácia da meditação na atenção, do
conhecimento do Abhidharma e da prática da compaixão e da sabedoria como importante
contribuição do pensamento budista às reflexões sobre as ciências no ocidente, principalmente
para a ciência do homem – a antropologia. O budismo se apresenta como um método para a
autocompreensão transversalmente à compreensão do outro. Nessa prática, o conhecimento
absoluto não vem sozinho, pois seria sucumbir à prepotência absoluta, às tendências para a
manipulação, ao domínio e ao desprezo pelo outro. O conhecimento deve vir acompanhado
pela compaixão, pelo compromisso com todos os seres, pela aspiração à iluminação.
266
No budismo o termo “compaixão”, que inclui as realizações de um Buda compassivo,
não significa um amor piegas, um sentimento caridoso que busca no íntimo apaziguar as
culpas. A compaixão deve vir par a par com a “sabedoria”; são termos irmãos que se
retroalimentam, retroagem, se interpenetram, são co-dependentes. A profunda compaixão
nasce do pleno conhecimento do funcionamento do ciclo de renascimentos, das
interdependências e da verdade absoluta – a Profunda Perfeição da Sabedoria –, do apreender
perfeita e corretamente a vacuidade inerente dos cinco agregados. Em outras palavras, os
fenômenos são vazios, e o entendimento dessa verdade neutraliza os três venenos das ações
humanas: aversão, apego, indiferença. O conhecimento sem compaixão é falho, enlouquece; a
compaixão sem conhecimento é inoperante.
O Buda da Compaixão, Avaloktesvara em sânscrito, Tchenrezi em tibetano, traz em
seu nome a essência do amor incondicional e exprime a natureza da mente incondicionada
(YONGEY MINGYUR, 2007), aquele que olha para todos os seres com os olhos da
compaixão. A compreensão dos outros, de seus sofrimentos e de suas determinações é, por si
só, uma grande realização. Compreender a incompreensão, reconhecer a ignorância básica
que leva o ser humano ao principal obstáculo à compreensão é a indiferença ao sofrimento
alheio. Aquele que obedece ao imprinting está convencido da verdade de seus termos. As
entidades tomam forma, adquirem vida própria. Compreender é reconhecer a condição
humana do outro e é diferente de inocentar, absolver, mas inclui responsabilizar. É desse
movimento que vem a compaixão. A responsabilidade não é diluída na determinação, porque
para o pensamento complexo é capaz de associar o fato de sermos determinados e
indeterminados ao mesmo tempo, religando o contraditório. Junto com o determinismo vem a
autonomia do sujeito que alcança o “paradoxo da irresponsabilidade–responsabilidade
267
humana”; por isso, “se deve sempre salvar a compreensão, pois somente ela nos faz seres
lúcidos e éticos” (MORIN, 2005, p.122).
O conhecimento das causas que engendraram a realidade não é suficiente
sem equanimidade, que está além do reconhecimento das diferenças. A tetralógica amor –
compaixão – alegria – equanimidade é chamada de Bodhichitta e sem ela não há libertação:
estaremos condenados a obedecer cegamente as tendências, os hábitos e costumes que se
instalaram em nosso passado e, a partir deles, tomaremos juízo de valores absolutos. A
abertura para o futuro desloca o debate ético para as condições do devir (ATLAN, 2004, p.
82). Amor, solidariedade, amizade são forças decorrentes da complexidade humana.
Consciente dessa complexidade que pode libertar, o cânone budista estabelece a preciosidade
do corpo humano: o reino humano é privilegiado – é uma porta para a iluminação.
A sócio-ética – a ética da comunidade – tem raízes profundas no mundo dos seres
vivos. Emerge das sociedades arcaicas e complexifica-se nas sociedades históricas, com a
separação das atividades militares, sacerdotais e comerciais na instituição do Estado. “As
sociedades contemporâneas são mesclas diversas de sociedades/comunidades” (MORIN,
2005, p. 147), isto é, são complexas, o que significa o esgarçamento dos laços do imprinting,
que dá mais autonomia ao sujeito. Apesar do determinismo, e por ele, há rupturas no
imprinting que só podem ser observadas se colocarmos limites ao mecanicismo: a
abrangência desse modelo diminui quanto mais complexo for o sistema. O homo sapiens
possui um cérebro hipercomplexo cuja capacidade cognitiva é surpreendente, capaz de
produzir o conhecimento que o produz. Isso significa dizer que determinismo e liberdade
circulam pelos seus motivos, decisões e angústias feitas de dependência e autonomia.Não há
268
como negar as determinações socioculturais e históricas sobre os espíritos produtores de
conhecimento e participantes do sistema, mas estes não são autômatos, senão sujeitos
pensantes, que exercem autonomia e liberdade, rompem com o imprinting e tornam-se
desviantes. A dialógica determinismo– liberdade movimenta o campo cultural, gerando
transformações significativas que introduzem diferenças no núcleo do grupo.
Vale destacar aqui a importância da democracia como elemento primordial da sócio-
ética, enquanto está ligada com o civismo e o exercício da cidadania. Se a sócio-ética se
rompe, a democracia se rompe. Democracia aqui é entendida para além do cidadão-eleitor; é
inclusão econômica e cognitiva, principalmente. Está longe de ser o resultado das políticas
públicas que saem dos gabinetes. A democracia plena é conjunta com a interação entre sócio-
ética e auto-ética. Não é possível “conceber uma ética universalista que supere as éticas
comunitárias particulares” (MORIN, 2005, p. 151), mas esses diferentes aspectos devem
formar um circuito retroalimentado.
A democracia cognitiva, condição importante para a realização sócio-ética, investe na
possibilidade igualitária que sinaliza tanto a perspectiva universal como a particular do
conhecimento. A democracia política, por sua vez, neutraliza o poder do Estado, é um sistema
de alta complexidade, que dá voz à pluralidade e abre espaço para a troca de idéias, para o
conflito, mas também faz circular as idéias, as novidades, os pensamentos desviantes. Estes
fazem a singularidade das trajetórias históricas, instauram as transformações e a variância. A
história, assim, avança em direção ao futuro, plena de bifurcações e desvios, distante do plano
estreito e monótono da linearidade.
269
Por fim, a antropoética se relaciona com a recriação do humano, do planeta e inclui a
compreensão desses termos em sua complexidade; é uma postura que converte o processo
civilizador pela regeneração do humano. É necessário cuidado com as estratégias que
utilizamos para mudar o mundo. Não é uma revolução, nem extermínio, nem tecnologia. A
mudança do mundo deve ser decorrência do conhecimento, da responsabilidade, da visão
universalista do humano e também da consciência das trajetórias históricas que levam às
diferenças. A mudança do mundo está no ponto longe do equilíbrio em que reconhecemos
sensibilidade às flutuações motivadas por eventos internos e externos ao sistema, mas é regida
pelo princípio de incerteza e descrita por equações não lineares. Nesses pontos de bifurcação
onde os caminhos se abrem, onde as fissuras possibilitam as mudanças, há um lugar para a
experiência budista de autoconhecimento que pode ser entendido tanto no nível individual,
como no da espécie e da sociedade, pois promove a regeneração da ética (MORIN, 2005).
Pensada pela antropologia complexa, essa abertura relaciona-se com o destino
humano: “todo conhecimento pode ser posto a serviço da manipulação, mas o pensamento
complexo conduz a uma ética da solidariedade e da não-coerção” (MORIN, 2005, p. 64).
Inclui razão e paixão, porque o conhecimento recebe elementos dos dois pensamentos, e a
verdade não é propriedade de ninguém. O conhecimento humano instaura-se na emergência
do complexo cerebral. Assim, concomitante à evolução biológica – da primeira célula viva ao
homo sapiens –, temos a evolução cultural, numa trajetória não linear que perpetra tanto a
continuidade da evolução da espécie como a sua própria. A evolução biológica continua por e
para a evolução cultural, que se ativa por meio conhecimento também. Por conta da
humanidade do conhecimento, esse processo não tem fim; está na raiz da definição de
270
humanidade e, por isso, tem que ser considerado pela antropologia. O cérebro que hoje
conhecemos já estava presente há cerca de 100 mil anos, comum a arcaicos e civilizados, a
todas as compleições, a todos os rostos, aspectos físicos e culturas. O cérebro sapiens, essa
entidade físico-químico-psíquica, capaz de engendrar diferenças culturais, é um universal
antropológico.
O termo cultura tem múltiplas acepções, de refinamento e sofisticação, à soberba e
erudição. Se o conceito tivesse deixado de lado essas conotações e passasse a ser
identificado simplesmente com a práxis cognitiva planetária gerada por grupos
sociais múltiplos, a distinção entre cultura científica e humanista certamente cairia
por terra.
(CARVALHO, 2003b, p. 77).
Enfatizando as diferenças e apegando-se a descrições minuciosas que aglutinam e
privilegiam os aspectos “divergentes”, a antropologia afasta-se do humano. Como um
conhecimento do antropos pode ignorar aquilo que está no núcleo de sua preocupação? Como
desenvolver uma antropoética sem a dimensão humana? Isso é isolamento do objeto. A
reforma do saber antropológico passa pela transformação do antropólogo através da auto-
ética. A antropologia da cultura é vitoriosa, diz Kuper (2002), o que leva à abolição da
genética. Ótimo, se estivermos pensando nas loucuras do eugenismo, nas teorias das
diferenças raciais; péssimo, se deixarmos de lado as competências do cérebro sapiens. A
cultura é aprendida e evolui. Ótimo, se entendermos a evolução de maneira não linear;
péssimo, se nos conformarmos com certos historicismos que medem a cultura pela tecnologia
e submetem as idéias a juízos de valores estéticos, cronológicos ou simbólicos.
39
39
A respeito da natureza humana e das potencialidades cerebrais, Ridley (2004, p. 341) afirma que pensar a
linearidade da relação causa–efeito é um hábito ilusório do pensamento, que tem utilidade, mas não explica a
271
Os métodos de tratamento dos dados recolhidos relativizaram ao extremo e penetraram
em zona pantanosa. No entanto, é popular entre antropólogos e até fora das ciências sociais e,
se o objetivo é se acomodar nessa terra neutra, a definição de cultura termina por esquecer o
humano, o que não deixa de ter conseqüências políticas. Ética e política estão divorciadas
desde que Maquiavel separou-as para o bem do Estado. Em contrapartida, uma antropologia
que incorpore a complexidade humana é capaz de reconhecer a inter-relação universalidade e
diversidade, a incerteza inclusa na racionalidade e de investir no diálogo para a regeneração
planetária (CARVALHO, 2003a, p. 15). A complexidade não absorve o relativismo.
É preciso, também, cuidado quando as interpretações tendem a relacionar uma
antropologia complexa às experiências evolucionistas e ao biologismo social. Explicados pelo
contexto cientificista, progressista e ateísta do século XIX, eles prestaram um desserviço às
ciências do homem, visto que, encilhados pela visão linear, simétrica e mecanicista do tempo,
chegaram a uma universalidade estreita, extraída da história universal e, portanto,
autocêntrica, que hierarquizou o pensamento e privilegiou o ponto de vista ocidental. Na
contramão desse pensamento, as diferenças devem ser pensadas em seu contexto e são
inesgotavelmente instauradas por processos históricos diferenciados.
O homo sapiens não é o patamar último da evolução humana; a antropologia, portanto,
deve se abrir para o devir e para a mudança. Apesar dos profundos e arcaicos enraizamentos
intencionalidade das atitudes humanas. Para entender as escolhas embutidas no comportamento humano é
necessário pensar a relação causa–efeito de outra forma.
272
da cultura humana, ela ainda está evoluindo e interagindo com as perspectivas biológicas. A
dupla articulação cultura–natureza produz e é produzida pelo antropos, desmanchando a
separação cartesiana. As tentativas de religar o homem à sua dimensão biológica caíram na
armadilha do tempo linear; por isso, é preciso um tempo complexo para fazer da antropologia
uma ciência capaz de compreender o humano além da cultura e por ela, além da
corporalidade, da animalidade e por meio delas.
O homem como holograma deve se instalar no centro das ciências sociais a partir da
relação trinitária espécie–indivíduo–sociedade, que a ética complexa não dissocia. Ao
reconhecer os imprintings, ela inclui no humano tudo que o determina, mas abre também para
a autonomia individual. É possível ética com determinação, inclusive é por conta da
consciência da determinação que o pensamento abre a brecha para as decisões éticas. Não
somos autômatos. Na complexidade, a auto-ética leva a uma religação com a espécie, com a
humanidade inteira, e não somente com os mais íntimos.
A vida social busca uma simbólica natural, da qual emerge a cultura na longa e
complexa hominização, isto é que ativa de maneira recorrente, em circuito, os sistemas
biossocioculturais.
Assim, a questão da origem do homem e da cultura não diz unicamente respeito a
uma ignorância que é preciso reduzir, a única curiosidade a satisfazer. É uma
questão com um alcance teórico imenso, múltiplo e geral. É o nó górdio que sustém
a soldadura epistemológica entre natureza/cultura, animal/homem. É o local exacto
onde devemos procurar o fundamento da antropologia.
(MORIN, 1988b, p. 50).
273
A cultura trouxe desordem à ordem biológica, negando o biologismo que predominou
na antropologia no século XIX, que considerava a ordem atributo exclusivo da cultura. Como
um sistema de alta complexidade que exige reprodução em cada novo indivíduo para se
perpetuar, a cultura não substituiu o código genético, mas desorganizou-o. Essa mudança de
direção foi indispensável para produzir o homem. Claude Lévi-Strauss, Edgar Morin e
Maurice Godelier colocam a cultura como “práxis cognitiva planetária” (CARVALHO, 2003,
p. 17) e a antropologia, como a ciência do homem. A natureza humana é cultural, o que exige
da antiga ética uma reformulação em suas bases. Não é possível dissociar a evolução cultural
da biológica, a nova ética e a nova antropologia se fundamentam na dialógica biocultural, que
faz emergir a diversidade social no núcleo da unidade genética, instituindo o universal
humano, marcado pela inteligência e capacidade de conhecimento. A antropologia é a ciência
do outro que existe em nós mesmos, das possibilidades que não tomamos, daquelas que
assumimos e das que poderemos tomar.
Para Morin é necessário resistir à barbárie interior. Isso acontece quando
reconhecemos a atividade neurótica, o imprinting e percebemos o quanto a visão do outro está
impregnada por nossa própria loucura. Olhar para o verdadeiro rosto e conhecer as
determinações e com elas as brechas do devir que regenera a universalidade pela religação
com a espécie. Essa relação também é antropoética. O outro também está no interior do
indivíduo. O que lhe afirma a identidade é a vivência como o grupo social. Em O Coração
das trevas, Joseph Conrad mostrou que o isolamento do grupo detona a identificação com o
outro. A indiferenciação com a alteridade vem sempre acompanhada pelo horror. O sujeito
está inserido num todo sociológico e possui uma identidade social que se auto-produz pela
norma. Esta, com a instituição do Estado, se potencializou, até alcançar os patamares de
274
arrogância necessária para subjugar o outro, apoiando o indivíduo no todo social e
conjugando coerção, intimidação e pressão sobre o corpo.
A consciência ética, planetária religa interdependência com solidariedade. Surgiu nas
grandes religiões universalistas, mas foi parasitada pela pretensão monopolista. O budismo se
apresenta como uma exceção. Reconhecendo o humano com as Quatro Nobres Verdades,
universaliza-o por meio do reconhecimento do sofrimento comum. Tem um programa de
regeneração e transformação da sociedade que o se apóia na centralização, no racionalismo
ou no mecanicismo. Reforma os espíritos, acionando à sua maneira, o anel recorrente auto-
ética, sócio-ética, antropoética. Faz surgir uma nova consciência, sendo que "nova" não
significa "algo que nunca foi pensado", mas o arranjo original de tudo que compõe o humano.
O ocidente há muito intuiu essa vocação das tradições orientais, mas o exercício dessa
tradição ainda é obscurecido pela razão.
A proposta é regenerar a ética, reforçar sua aliança com a ciência, democratizar o
conhecimento, articular todos os caminhos de reforma de maneira solidária e se auto-
transformar. Essa transformação pensada pelos princípios da complexidade está longe
daqueles três modos de considerar o tempo: trajetória linear do simples ao complexo, a
existência de uma fronteira clara entre o mito e a história, a interpretação que não concilia
continuidade e ruptura, mas é próxima do reconhecimento da hipercomplexidade
biossocioecocultural. A interpretação está enraizada no duplo pensamento mythos–logos, e a
história que considera o tempo como operador pode contribuir para o saber antropológico
complexo.
275
Exortamos para o fato de que a ética complexa, una e múltipla, tem que estar apoiada
numa antropologia complexa. Esta necessita de uma reforma do espírito que suprima a
arrogância da moral e regenere o homem e o deixe vir a ser – não paralisar no ser, mas
colocar o devir. Reconhecer que as necessidades de mudança vêm das crises e abraçá-las,
compreender suas imperfeições e incorporá-las. A brecha que traz o devir e a novidade que
emana daquilo que convencionou-se chamar "catástrofes" na verdade são flutuações que
preparam as reorganizações entre ordem e desordem. Religação necessita da separação.
Assumir a identidade individual, social e antropológica é viver o sagrado também na esfera
humana.
3.4. Por uma antropologia complexa
Não há limite para o conhecimento científico; não há um ponto que deva ser
alcançado, nem trajetos corretos ou erros. A característica inesgotável do conhecimento
significa que não é recusando seus avanços ou abstendo-nos das melhorias tecnológicas que
transformaremos o mundo. Impõe-se a cada ser humano envolvido nessa ilimitada aquisição
de saber refletir sobre seus aspectos éticos. As explicações ancoradas na simplificação, na
fragmentação são frágeis e, portanto, irredutíveis: “nada, no pensamento herdado, nos permite
dizer o que são e de que maneira são” (CASTORIADIS, 1982, p. 215). Isso não pode ser
superado por novos métodos científicos, pelo aprimoramento da razão ou pelo aumento do
conhecimento ou da informação. As afirmações do que, como e porque as coisas acontecem
estão comprometidas com a criação e a separação dessas instâncias explicativas pela
276
sociedade. “A sociedade se institui” (CASTORIADIS, 1982, p. 216), cada uma a seu modo,
se articulam e se relacionam suas partes. Vimos como os kachins da Birmânia executam esse
trabalho diante dos olhos atentos de Leach. Nesse movimento, a possibilidade de surgir, ou
não, algo inteiramente novo, está ancorado no ponto de vista do analista; ele, também,
determinado pelos modelos de conduta, visão de mundo, paradigmas científicos e
conhecimento adquirido, pois a lógica identitária não permite nada além da repetição dos
mesmos elementos em locos diferenciados.
Edgar Morin usa um termo muito pertinente para essas situações: círculo vicioso e
círculo virtuoso. A descontinuidade da mente deve ser utilizada como uma chave para a
abertura da porta e saída do círculo vicioso, isto é, transformá-lo em um círculo virtuoso. A
prática da meditação budista, apoiada em toda a tradição dos ensinamentos, é um método para
essa realização, cujo resultado máximo é o exercício da liberdade, mas não qualquer
liberdade: “o resultado, nesta visão de mundo, é que a real liberdade não vem das decisões de
um ‘arbítrio’ do ego-self, mas da ação sem Self” (VARELA, THOMPSON, ROSCH, 2003, p.
138), isto é, não se nega em momento algum a existência da determinação. Isso não significa,
contudo, que as atitudes humanas estão condenadas ao determinismo que aciona o dispositivo
de segurança do pensamento científico: as leis, da natureza ou da história.
A liberdade baseada no determinismo, que se confunde com livre-arbítrio é falsa, é um
engodo, um trompe-l’oeil. Liberdade não é reprimir, nem exteriorizar desenfreadamente as
emoções, elas estão aí, fazem parte da nossa constituição (TRUNGPA, 2002). A liberdade
inclui a acolhida de todas as dimensões de nosso ser, sem rejeição ou hipervalorização, como
Ilya Prigogine disse a respeito das escolhas, sem beneficiar qualquer caminho, sem reduzir a
277
existência a qualquer um dos termos que a compõem. De acordo com a compreensão budista,
até a experiência muda; portanto, não é inteligente apegar-se a alguma experiência passada,
mesmo que prazeirosa. Ela não vai se repetir. “Não importa o quanto você tente fazer com
que dure – ela, aos poucos, se dissipa. Se tentar reproduzi-la mais tarde, você pode ter uma
amostra do que sentiu, mas ela será apenas uma memória, e não a própria experiência direta”
(YONGEY MINGYUR, 2007, p. 220). Essa consciência é de extrema importância para o
pensar antropológico; a consciência da impermanência e, simultaneamente, do apego dos
indivíduos, grupos e sociedades à imagem, às instituições e às identidades que se lhes atribui
está no centro das angústias humanas. Elas estão no núcleo das decisões, nas estratégias
escolhidas para lidar com os outros, nos valores, na cultura, nas crenças tanto dos grupos e
comunidades objetos de estudo como nas escolhas do pesquisador. Este não sabe mais nem
menos que os seres que estuda, mas defronta-se com experiências outras, e esse encontro de
vivências marca para sempre os dois saberes, conciliados em seus incômodos filosóficos.
De um lado como do outro, tanto a ciência como a tradição, tanto a experiência como
a reflexão filosófica estão marcados por atos que têm a potencialidade de serem livres. Para
que isso se realize, é necessário que entendamos nossas limitações. A liberdade não está na
busca do passado, nem em sua negação. A liberdade reside na mudança de atitude, na escolha
que não ignora a determinação, mas a leva em consideração, indeterminando-a. Conhecendo
todas as matérias, pensamentos e hábitos do qual nosso self–ego–eu, isto é, aquilo que
conhece, age, pensa e se autoproduz, é um resultado incontínuo e prófugo, podemos chegar
muito perto de uma decisão verdadeiramente livre e, assim, respeitar as escolhas livres do
outro.
278
A liberdade traz consigo um sentido de responsabilidade. No budismo isso está bem
claro. No pensamento ocidental, marcado pelo cientificismo do século XIX, a possibilidade de
liberdade causa muito medo. É mais cômodo, mais fácil, menos assustador atribuir as
responsabilidades dos nossos atos aos determinismos históricos, sociais, à vontade divina, ao
destino. A liberdade causa a vertigem do incondicionado, da abertura, de ver o chão sendo
tirado de sob nossos pés. Sartre afirmou que o ser humano está condenado à liberdade e que
seu destino trágico. As descobertas de Prigogine caminham para outro sentido: levam à
responsabilidade humana, ao fato de que somos responsáveis pelas nossas experiências.
O Lama Yongey Mingyur (2007, p. 225) afirma que “um capricho biológico na
estrutura de nossos cérebros nos permite suprimir muitas de nossas predisposições genéticas
(...). Esse capricho é, na verdade, o altamente desenvolvido neocórtex, a área do cérebro que
lida com a razão, a lógica e a conceitualização”, que nos trouxe vantagens e desvantagens.
Somos mais propensos, como Morin apontou (1988b), para a hubris, os delírios, as
alucinações, mas também para a criatividade, uma profunda capacidade de afeto e uma
habilidade de escolha, o que significa liberdade, desde que compreendamos a abertura
incomensurável que um tempo irreversível e um futuro incerto e aberto podem nos trazer. A
antropologia tem o dever de refletir sobre isso.
O budismo considera o poder da clarividência como uma capacidade que pode ocorrer
em duas circunstâncias bem delimitadas: a) após muita prática e experiências de meditação, a
mente do estudante é desobstruída de seus estados aflitivos. Liberado dessa névoa que altera a
percepção, o praticante pode simplesmente observar as disposições latentes dos seres e, assim,
ajudá-los a se superarem; b) para um bodhisattva ou o próprio Buda, a realização da mente em
279
seu estado original possibilita observar as disposições mais profundas de todos os seres.
Quando estamos no bardo, vivenciando de maneira potencializada nossas emoções mais
constantes durante a vida, praticamente o nosso futuro local de nascimento já está
determinado em virtude das tendências cármicas. Entretanto, qualquer mínima alteração em
nossa percepção, como, por exemplo, uma explosão de raiva ou o sentimento compassivo por
alguma das visões que estamos experimentando, pode alterar esse “destino” descrito pelo
hábito. Isso é determinação sem determinismo: existem instantes nos quais é possível alterar
radicalmente qualquer tendência, o que é próprio do vivo e mais profundamente do humano.
Qualquer destino é transmutável; não há destino inexorável, mas somente o conhecimento que
reconhece as determinações sem apegar-se a elas pode resultar em escolha verdadeira –
quanto mais consciente, mais próximo se está da liberdade. As escolhas livres são portas
abertas para o novo, o que não tem nada a ver com as expectativas que criamos; ao contrário,
essas são os maiores obstáculos para a experiência da liberdade. Não tem a ver com leis
históricas, nem com o congelamento das comunidades no refrigerador das teorias.
A proposta desta tese foi contribuir para complexificar o saber antropológico, sem
repelir os sistemas explicativos existentes, mas colocando uma perspectiva diferente e
utilizando as brechas, bifurcações e escolhas. O respeito ao outro, a abertura a outras formas
de conhecimento só é possível se o conhecimento antropológico for capaz de amadurecer e
sair da dicotomia universal–particular, se refletir sobre si mesmo como produto e produtor de
conhecimento, ou seja, se introduzir no centro dos debates o pensamento filosófico e se
colocar, acima dos interesses econômicos e políticos, os interesses humanos. É a partir do
homo sapiens complexo que poderemos inferir a existência de universais éticos, que poderão
transitar entre os opostos da homogeneização e do relativismo exacerbado.
280
A dialógica, mais que a dialética, entre o consentimento e a imposição que permeiam
toda escolha requer cuidados que só podem ser tomados por uma antropologia complexa.
Problematizar termos como consentimento, dominação, imposição está no campo da
temporalidade. Passam despercebidos à tradição etnológica os eventos que Luigi Zanzi aponta
como escolhas diante de eventos exteriores naturais ou culturais que demandam reorganização
do grupo: migração, adaptações a lugares agrestes, rupturas com o passado. “A adaptação
flexível a uma natureza instável não está de acordo, não é compatível com uma cultura que
assume uma estratégia de fidelidade à tradição” (ZANZI, 2001, p. 217, tradução nossa)
40
. O
que se apresenta claro é a existência de um ponto de bifurcação entre a adaptação num
ambiente adverso e a fidelidade à tradição. A esse, podemos acrescentar, também, contatos
transculturais em qualquer circunstância. Cada uma das possibilidades que se colocam aos
grupos abre um vasto leque de caminhos e estratégias, que poderão ser mais ou menos
determinadas, mais ou menos resultantes de livres escolhas, nas quais as esferas individuais,
sociais e biológicas se interpenetram e interagem.
Essa situação é ainda mais decisiva quando se refere às minorias dentro de uma nação,
e sua compreensão cresce paralelamente à renúncia do paradigma mecanicista de
temporalidade linear, presente nas escolas historiográficas e antropológicas. Há certos
fenômenos que se subtraem às leis da mecânica newtoniana, que, a cada ponto da trajetória,
são aptos para calcular linearmente o passado e o futuro do objeto e precisar leis próprias,
teorias e conceitos específicos. A termodinâmica do século XIX já havia considerado isso,
mas a irreversibilidade ainda se relacionava com o sentido de perda, fim e destruição. Ora, me
40
Do original : “l’adaptation flexible à une nature instable s’accorde mal au premier abord avec une culture qui
assume au contraire um stratégie de fidélité à la tradition”.
281
parece claro que esse pensamento, segundo o qual as transformações coligem para o fim, as
mudanças significam perda e distanciamento com o original, o autêntico. Para a antropologia
que cuida de estabelecer critérios fixos para determinar o grau de capacidade, competência e
racionalidade dos grupos envolvidos num projeto nacional de integração, homogeneização ou
tolerância, deformação e prejuízo são resultados privilegiados nos trabalhos de pesquisa.a .
Todo esse procedimento dá-se, também, a partir da oposição instaurada desde o
iluminismo entre os saberes tradicionais e a ciência. O antropólogo toma para si o papel de
legítimo e único detentor do conhecimento, que concebe como o conjunto estático e definitivo
dos dados recolhidos até então, sem considerar a relação preciosa entre ele e o tempo. O
autoconhecimento, a compreensão de suas próprias determinações, de seus desvios, de suas
rebeldias, de seus ajustes e conformações, a ponderação de seu próprio caminho trazem para o
conhecimento antropológico a complexificação adequada para instaurar a verdadeira ciência
do homem, que não paralise diante dos falsos dilemas, das decisões ideológicas, entre culturas
preferíveis, mais valiosas, pertinentes ou adequadas.
A fixação antropológica nas relações desiguais de dominação, que resultam em
resistências, apropriações e ajustes nas culturas dominadas, desqualificam as últimas,
enquanto atribuem um poder ilusório ao saber científico. Além do mais, é urgente sair das
oscilações maniqueístas, que ora se perdem em críticas amargas, ora se afundam na
justificativa tautológica, encilhando o pesquisador nas visões reducionistas e adotando
critérios arbitrários para definir conceitos importantes tais como autonomia, liberdade e
determinação. Como toda tradução, o trabalho antropológico está ancorado em frentes que
interagem: sua cultura, os imprinting, as determinações do pesquisador, os paradigmas da
282
ciência que pratica, a dinâmica do grupo pesquisado. Isso no indica, mais uma vez, que é a
complexificação do termo cultura que pode trazer à antropologia a superação dessas
“recomendações”, sempre comprometidas com trajetórias arbitrárias. A superação dessa
ilusão nascida da prepotência do pensamento científico está na retomada da universalização.
Para Villoro (1993), a cultura tem a função de expressar maneiras de ver e sentir o mundo, dá
sentido a comportamentos, permite e determina critérios de escolhas. Essa função da cultura é
universal e decorrente dos princípios de autonomia, autenticidade, sentido e eficácia.
Sem negar esses aspectos destacados, mas alargando a compreensão do conceito de
cultura, temos de considerar a antropologia como ciência do homem, isto é, que abre suas
fronteiras às dimensões biossocioculturais e insere a cultura como produto e produtora da
espécie. A antropologia que separa homem e natureza não é capaz de explicar o humano,
perde o sentido de universalidade quando é enfeitiçada pela redução ao social, ao econômico
ao psicológico. Humanizar o homo sapiens inclui a absorção de sua animalidade. “Nem a
comunicação, nem o símbolo, nem o rito, são exclusividades humanas” (MORIN, 1988b, p.
30). Compreender isso faz parte de um projeto maior do pensamento complexo de religar os
saberes que entendem a humanidade como o resultado da evolução cosmobiossociocultural.
Essa perspectiva inclui o conhecimento dos sistemas bioculturais dos primatas
chimpanzés, babuínos, bonomos –, que compartilham com o homo sapiens a origem das
características mais humanas: a solidariedade, o riso, a hubris, a guerra, a violência, o
destempero, a juvenilização, o desenvolvimento paralelo da inteligência e da afetividade e o
prolongamento da infância. O desenvolvimento do cérebro hominídio produziu cultura, mas é
certo, também, que seu desenvolvimento tenha sido estimulado pela produção de cultura.
283
Assim, a cultura e a linguagem, antes de serem produtos exclusivamente humanos,
precederam ao seu aparecimento. O processo de hominização ultrapassa a evolução biológica;
refere-se a mudanças de estado, isto é, resultado de trajetórias não lineares. Portanto, a busca
retrospectiva das origens ou a compreensão da história humana só pode se aproximar da
realidade à medida que concebemos o tempo não linear e irreversível deduzido das estruturas
dissipativas. Mudanças de ordem cósmicas, ecológicas, biológicas e culturais são elementos
co-produtores do homo sapiens.
Caça, sepultamento, bioclasses, imaginário não são, separadamente, fundadores do
homem, mas co-fundadores irredutíveis da espécie, cuja evolução desemboca na economia, na
sociedade, no mito. A antropologia só poderá denominar-se "ciência do homem" quando
aceitar os produtos irreversíveis do tempo operador de mudanças, simultaneamente
universalizante e diversificador, cuja continuidade é mantida pela linguagem e pela
aprendizagem. O conhecimento não é genético, mas a capacidade cognitiva, sim, e é comum à
espécie; a cultura não substitui o código genético, mas traz desordem à ordem biológica,
imprimindo a regressão dos instintos e abrindo as possibilidades da espécie à aptidão inata
para adquirir cultura.
Evolução biológica e evolução cultural são concomitantemente co-autoras do homo
sapiens e, somente por meio de uma temporalidade complexa, poderemos inferir o homem
como filho do tempo e que não existe oposição natureza-cultura, e colocar o cérebro como nó-
górdio da antropologia. A proposta é considerar um tempo não linear, assimétrico, criativo,
cunhado numa ciência que busca reconhecer a complexidade dos fenômenos, trazendo
consigo a possibilidade de escolhas próximas da liberdade, exercícios de liberdade e
284
reconhecimento das diferenças, que nada têm a ver com a proposta relativista, mas que
inaugura uma ética complexa. É chegado o momento de humanizar o sapiens.
É humana a idéia da morte que introduz o tempo na consciência sapiens e emerge
como percepção das transformações, das constâncias, suas liberdades e imposições. O
imaginário irrompe nas percepções do real e do mito na visão de mundo. Consciência objetiva
e consciência subjetiva compartilham o terreno e instauram a dualidade sujeito–objeto. O
homem, assim, dissocia-se do destino natural e instaura o imaginário da morte, abrindo a
brecha antropológica. Isso nos mostra que não há oposição entre razão e loucura. O sonho
humano, desligado das imposições do ambiente o carrega para mundos outros, mas o sono
vigilante ainda está lá, aguardando. Assim, a loucura, a desrazão está presente também nas
descendências da barbárie: as informações são ambíguas, os sinais, incertos, e o homem
procura mecanismos de apaziguamento, sendo a lógica um deles. A loucura, parte integrante
do humano, herança da hipercomplexidade cerebral, também é.
Sob essa perspectiva devem ser vistas a evolução cultural, o mito, o sagrado e a
irrupção das sociedades históricas. Para Edgar Morin, não há contradição interna na arqui-
sociedade que dialeticamente a levou à evolução, mas uma confluência de condições
ecossistêmicas, expansão demográfica, o estabelecimento em regiões férteis e a geração de
excedentes, riquezas e guerras que somente o tempo não linear e a relação recorrente causa–
efeito podem tornar coerentes. Tudo isso analisado com variáveis porcentagens de acaso; do
contrário, cairíamos no reducionismo simplificador.
285
A universalização está relacionada com o empreendimento humano de aplainar o
conflito entre culturas sem recorrer à homogeneização ou à imposição e só pode ser concebida
pelo enraizamento do homo sapiens nas dimensões biossocioculturais, sem deixar de respeitar
as singularidades decorrentes do longo processo histórico de diversificação. Os
questionamentos ao conhecimento antropológico, todos autênticos e necessários, estão no
âmbito dos questionamentos que a ciência, em seu conjunto, vem se colocando. Não é
suficiente nem consistente insistir na crítica à chamada "escola evolucionista". É certo que
seus métodos e suas teorias deram uma gradação ameaçadora às culturas que foram
catalogadas e ainda o são, como ecos de uma crença mal resolvida. Mas é preciso salientar
que mesmo tendo sido produzida num ambiente de dominação colonial, eurocentrismo,
cientificismo e ideologia do progresso, a idéia de universalidade humana não pode ser
afastada em prol de um relativismo compensatório. As questões mais profundas estão
relacionadas à compreensão da dialógica universalidade–diversidade, a partir de uma
temporalidade não-linear. Conceitos como tempo complexo, emergência, bifurcações podem
estabelecer as bases de uma natureza humana que se aplique à interpretação das culturas em
todas as suas manifestações, transformações e adaptações e coloque em evidência a
importância da reflexão filosófica.
Pensar um mundo sem fundamento parece impossível sob o cenário da busca das
razões históricas, científicas, políticas, ambientais, sejam lá quais forem, mas que estão
encravadas na lógica ocidental, no pensamento herdado. Não pretendemos definir o tempo e a
temporalidade; não temos nenhuma nova teoria para colocar no lugar dos velhos modelos da
antropologia. Mas apontamos para o fato de que há uma teoria a construir, eternamente aberta,
porque fala de um eternamente vir-a-ser. O homo sapiens demens não é o fim último da
evolução, e está em devir. Volto então, ao local de onde viemos: aponto para a importância
286
dessas reflexões no campo da ética, que foi o caminho que se abriu durante esses cinco anos
de transporte das visões budistas e do pensamento complexo, mediado pela descoberta das
estruturas dissipativas.
O treinamento da meditação envolve um comprometimento – samaya em sânscrito –
que consiste em fazer um voto de não utilizar os conhecimentos obtidos, se não para o bem de
todos. A libertação do sofrimento acontece ao seguir-se o caminho óctuplo, o caminho das
medidas justas, isto é sem desculpa e subterfúgio. Essa característica não está ancorada
somente nos regulamentos morais, mas na clara compreensão de shunyata. O caminho da
ética nos resguarda das sedutoras interpretações relativistas, das imposições enlouquecidas e
dos negativismos (não chegamos ao fim da história, nem à decrepitude da ciência, nem nos
limite do conhecimento). Para o budismo, o sofrimento é uma verdade, mas não é uma
condenação, pois a possibilidade de cessar o sofrimento também é uma verdade.
Entendo isso como o pressuposto da universalidade humana, a vulnerabilidade e a
exposição ao sofrimento partilhada por toda a humanidade. A capacidade de compreensão do
sofrimento é uma característica humana, independente da cultura; a criação de instrumentos e
estratégias que evitem, mesmo que temporariamente, o sofrimento é uma recorrência em toda
sociedade de todos os tempos e regiões. A percepção da finitude e a criação de explicações
para a origem dessa limitação estão presentes em todos os mitos, cosmologias, explicações
científicas. O tempo como repetição e irreversibilidade aponta para essas duas características
da lida com o sofrimento: o apego a uma sensação boa que causa a busca da repetição desse
estado e a sensação de que aquele momento não voltará.
287
A especialização radical do conhecimento legou ao cientista uma postura arrogante, a
partir da qual, em nome das especificidades, a dimensão humana se esvai. Uma antropologia
complexa tem de enraizar o homem no cosmopsicobioantropossocial e fazê-lo partilhar o
universo com todas as ordens. Original, sem ser o fim último da evolução. O precioso corpo
humano é a possibilidade de iluminação e vivência dos seis reinos de existência do samsara,
portas abertas para todas as indeterminações, para todas as possibilidades de futuro, e
concomitantemente é explicável por suas determinações e limites. Senhor e escravo de seu
próprio destino, o homem vive o conflito de estar condenado à liberdade.
A dimensão humana, o homem como sujeito endo e exo referente, autônomo auto-
organizado, totalmente bio e cultural, filho do tempo e dos processos históricos tanto quanto
do cosmo, da vida e produtor desse cosmo, dessa vida e da história, só pode ser concebido
pela evolução não linear. A humanidade é plausível se nos convencermos plenamente de que
o tempo não é linear, que passado e futuro são assimétricos, isto é, enquanto o passado está
determinado e não há retrocesso, somente interpretações são feitas no presente. O futuro,
fenômeno da flecha do tempo, é a direção única do tempo, é compartilhada por todo o
universo e está aberta. É considerável a determinação que o passado pode infringir aos
sistemas, mas, diante da complexidade humana, o determininado é simultaneamente
indeterminado. O indeterminado contém uma parte de determinação, ao mesmo tempo em que
está contido nas causas da determinação, porque estamos enraizados em várias frentes
simultâneas e expostos também ao acaso.
288
O futuro é aberto e o homem está em devir. Essas premissas podem se entranhar no
pensar antropológico e se transformar no ponto de partida para todos os estudos sobre cultura
e identidade cultural. Essa tensão entre o ser e o devir está impressa na história, e as
transformações dos sistemas econômicos, sociais e políticos obedecem a leis especiais e
irredutíveis às disciplinas isoladas. Associar termos irreconciliáveis, superar o paradigma
dualista (ou/ou) é abraçar as possibilidades abertas para o futuro como brechas fendidas nos
pontos de bifurcação, pontos onde todas as possibilidades se apresentam. Só uma pode ser
tomada para, no instante seguinte, se abrirem novamente outros caminhos. Uma florescência,
mais que uma linha, descreve o tempo que comporta a história, a evolução e a diversidade das
culturas.
É crucial perceber como a consciência da determinação abre uma brecha temporal à
indeterminação, à livre escolha, “abre o mundo vivido como um caminho, como um local de
realização” (VARELA, THOMPSON, ROSCH, 2003, p. 238). Um caminho para a liberdade
vivida aqui e agora, nem fuga, nem sonho, nem mercadoria. A liberdade que aprendi com
Prigogine e os mestres budistas é aquela que transforma a forma de viver, de compreender o
outro, de relacionar-se com ele, de fazer ciência. Estar no mundo sem se apegar ao mundo,
nem fugir dele, nem ignorá-lo. Compreender que nirvana é samsara e samsara é nirvana e
que ambos só se contrapõem como pontos de vista que imprimem realidade às experiências e
que se tornam absolutos por obra e afinco dos seres humanos.
289
Considerações Finais
A visão clássica entrou nas ciências sociais pela simetria entre passado e futuro e a
separação homem–natureza. Essa experiência linear que dominou a maioria dos trabalhos
científicos está repleta de armadilhas, entre elas a do determinismo e a do progresso. Assim, a
crise paradigmática que se estabeleceu no cerne das ciências duras trouxe também para o
campo das ciências sociais a necessidade de reflexão sobre seus princípios, objetivos,
metodologias e, principalmente, uma crítica aberta sobre suas teorias e conceitos.
Alguns pontos são cruciais para a reforma do pensamento: a inclusão do homem
sujeito e objeto na ciência que o estuda e que é feita por ele, o retorno da filosofia ao
pensamento científico, o rompimento da fronteira entre natureza e cultura, e a inserção do
tempo como um operador cognitivo capaz de dar conta das diferenças culturais e da
universalidade humana. Homem, natureza, matéria estão originalmente integrados, ligados
circularmente, impondo-nos a reflexão sobre o conhecimento, sobre o mundo, melhor
dizendo, sobre nosso olhar sobre o mundo. Refletir sobre o conhecimento é refletir sobre o
humano, suas produções, seus desejos, suas frustrações, suas idéias, suas ações, suas culturas.
Para realizar essa tarefa, parti de pontos de apoio estabelecidos em três frentes
diferentes. A primeira vinculou o pensamento antropológico à temporalidade linear, à
mecânica newtoniana e ao dualismo cartesiano predominantes no século XIX, influência que
permanece tácita nos obscuros caminhos da racionalidade. A dissociação dos termos
indivíduo/sociedade/espécie, que juntos formariam um conceito trinitário, um macroconceito,
290
um metaconceito, fez desaparecer a relação que existe entre eles e foi base do conhecimento
que isolou, separou e buscou o componente mais simples. É necessário rearticulá-los, o que
significa complexificar o pensamento, abrir as fronteiras do campo do conhecimento, que
artificialmente estabeleceu cantões, impôs especializações, gerou um saber pormenorizado,
mas também uma ignorância generalizada.
É possível colocar numa perspectiva cronológica e progressiva à experiência humana,
mas é preciso ter em mente que essa progressão não trata de uma depuração da consciência.
Esse tipo de abordagem teve conseqüências para as ciências sociais de modo geral, pois o
passado transformou-se em arbitrariedade, visto que as lacunas do percurso foram
preenchidas com imaginário, auto-engano e modelos cristalizados que levaram a antropologia
do século XIX considerar que os “selvagens” podem chegar a ser “civilizados”, pois os
“civilizados”, num dia remoto do paleolítico, já foram “selvagens”.
Em seguida, este trabalho trouxe à superfície alguns aspectos do paradigma da
complexidade, esclarecendo que este não tem a pretensão de se estabelecer como nova teoria,
mas aspira abrir perspectivas para uma nova racionalidade, que acolha outras estratégias do
pensamento. Nesta linha, a crítica de Castoriadis ao pensamento herdado, a recuperação do
tempo de Prigogine ancorada nas mudanças de estado da matéria e o trabalho de Morin
religando os campos dos saberes do ocidente – físico-química, biologia e ciências sociais e
humanas – foram os principais interlocutores do conhecimento budista, que une, de maneira
complexa, o saber filosófico e a prática meditativa.
291
Uma nova compreensão está na interação e na interdependência das idéias de ordem,
desordem e organização, sem oposição, sem primazia da geração: o mundo não veio de um ou
de outro, mas da interação ordem – desordem – organização, o chamado "anel tetralógico",
que, em movimento, cria, transforma, transmuta irreversivelmente o real. Não se trata de
substituir a ordem pela desordem, visto que elas não podem ser eliminadas do universo, mas
de incluir um terceiro elemento, capaz de fazer conhecer o vivo, as sociedades, o indivíduo, a
evolução, a mudança e a permanência. Os conceitos de ordem e desordem são revistos,
complexificados, relativizados. Nem um nem outro são soberanos. A ordem não é geral no
universo, embora existam cantões de ordem no universo; não é una, nem eterna; não é exterior
às coisas, é contextual, relativa, relacional. Não há síntese, nem meio termo, mas um terceiro
elemento incluído: ordem – desordem – organização interagem num circuito do qual emerge
algo inesperado – determinado e indeterminado, autônomo e dependente simultaneamente.
Entre elas há movimento, diálogo, mistério e inesperado; não são regidas por leis tal como as
concebemos pela ciência clássica. Intervém nesse movimento um princípio de incerteza
proveniente daquilo que ainda desconhecemos, do que não podemos compreender, mas
também do incalculável, do imprevisto, do totalmente novo.
Pensar complexo é pensar conjuntamente o uno e o múltipo, o incerto, o certo, o
lógico e o contraditório, observador e observado; simultaneamente no antagonismo e na
complementaridade; trabalhar com álea, incerteza, impreciso, indeterminado e com a
analogia, com o imaterial e a materialidade, com o imaginário e o logos, com a fumaça e
também com o cristal. O método do paradigma da complexidade é não esquecer nenhum
termo, é ver o maior número de aspectos possíveis e reunir todos na construção de
macroconceitos. Condição si ne qua non do pensar complexo é abrir mão da onisciência,
onipotência da ciência clássica, em prol de uma ciência humana, feita por sujeitos
292
determinados, mas que se reconhecem como tal, por isso o caráter transitório, aberto, avesso
aos dogmas. O complexo não pode ser doutrina, não pode recusar a informação conflitante ou
reformuladora.
Por conta das revoluções científicas do século XX, a noção de tempo passou por
profundas transformações, dada a consciência de que a natureza não é monótona e que a
evolução não é um fenômeno do passado. Um olhar complexo para os objetos das ciências
perpassa vários níveis de realidade e organização, cada um com seu tempo. Não é possível
privilegiar a estreita visão linear dos fatos, a realidade se apresenta como fios entrelaçados
unindo todos os níveis sem hierarquia, sem privilégios. O mundo não é somente regularidade
e repetições, não é explicado exclusivamente pelas leis, mas está também relacionado às
perturbações e aos acidentes. O que quis deixar claro aqui não é a adesão ao indeterminismo
total, mas a enxergar um novo determinismo, associado/incorporado ao acaso, fruto da
incerteza.
Estabelecidos os princípios necessários para a reforma do pensamento: a
irreversibilidade do tempo, a assimetria temporal, a não-linearidade dos processos evolutivos;
a ligação entre os diferentes níveis dos fenômenos, a dialógica; a hipercomplexidade dos
processos culturais humanos emergentes da interação espécie–indivíduo–sociedade; a
irredutibilidade da fundação do sujeito, da sociedade, da cultura aos diferentes aspectos que se
estabeleceram como áreas separadas do conhecimento, passei a olhar de perto algumas
disposições recorrentes nos modelos explicativos das ciências sociais, todos entrincheirados
no tempo das sucessões lineares, das dicotomias entre termos considerados opostos e
inconciliáveis pelo pensamento cujos princípios foram propostos pela lógica aristotélica.
293
A cultura, então, passa a ser uma afirmação auto-explicativa que o pesquisador se
exime de verificar como, por que, quando e onde passa a existir fazendo com que as
mudanças, presentes em todos os níveis da realidade, sejam observadas como perdas ou
progresso absoluto, trazendo a dicotomia do bem e do mal. Por conta da separação natureza e
cultura, as ciências sociais negaram a existência de uma natureza humana, elaborando um
homem autômato, produto determinado da cultura, a despeito das características biológicas da
espécie. Por falta de um conceito de cultura, os antropólogos foram possuídos pela idéia de
particularidade, entre a possibilidade de incluir os aspectos biológicos do humano, todos a
excluíram, ressaltando o caráter arbitrário da cultura e desenraizando o homem da natureza
que o fez. Investiram na ruptura e perderam as continuidades.
A meditação budista é um método para compreender a natureza e o funcionamento da
mente por sua exploração reflexiva e trabalho de treinamento, extraídos diretamente dos
ensinamentos de Buda. Ciência, filosofia e cotidiano podem ser pensados de maneira conjunta
através do ato de meditar. O que hoje a ciência tem mostrado a respeito do funcionamento do
cérebro está permeando um ensinamento que surgiu há mais de 2500 anos na Índia. O
conhecimento do Abhiddharma mostra como a inteligibilidade é prejudicada, se procuramos
as explicações nas alternativas e na exclusão. O Prajnaparamita faz pensar o conhecimento
como algo que está além, algo que surge além da continuidade e da ruptura remete à
necessidade de ser o tempo como algo que está tanto no campo da linearidade (sem estar lá
exclusivamente) quanto no campo da assimetria (compreendendo essa característica não como
uma nova imposição, mas como uma possibilidade de mudanças mais felizes).
294
Assim, procurei mostrar que não houve rompimento entre o pensamento mitológico e
o pensamento filosófico. Filosofia e não-filosofia têm de ser pensadas conjuntamente; a
relação entre mythos e logos é complexa, o mito não é excluído pela aquisição da razão.
Ainda assim, o pensamento grego é diferente do hindu e seu derivado, o budismo. Os sentidos
de filiação/precursores devem ser permutados por diferenças/mudanças, mas estes não podem
ser privilegiados ao ponto de ignorar um passado comum, uma natureza comum, uma
estrutura de pensamento forjada num passado distante, quando poucas diferenças se
estabeleciam. Simultaneidade, mas que hereditariedade, como o tempo hesíodico já havia
sugerido, é o que decorre dos inúmeros caminhos que as sociedades tomam espontaneamente.
Ancorados na duplicidade do pensamento, percebemos como a razão, a técnica, a
instrumentalização é enriquecida com a imagem, o símbolo, a metáfora; que as
transformações culturais não seguem a mão única do simples ao complexo, mas que
complexidade inclui o simples, e que o mito reaparece no homem moderno nas brechas e
fissuras abertas pelas crises e estabilidades. Os mitos e a história também não se opõem, mas
se desenvolvem a partir de interpretações, de traduções cujas referências são tão diversas
quanto as culturas. Por isso, é possível dizer que a história é o mito do homem moderno e que
seu papel é ingente na reflexão sobre a contemporaneidade e o vindouro.
O que ressalto é que esses desacertos teóricos podem ser compreendidos a partir da
adesão cega à temporalidade da ciência clássica, da sociedade industrial das medidas e dos
controles, e do esquecimento que cultura científica, a cultura moderna, laica, ocidental,
européia, branca ou capitalista, é mais uma entre os infinitos caminhos possíveis que se abrem
nos momentos de flutuação, nas brechas das quais surgem as novidades feitas de muitas
295
temporalidades. Por isso, o pensamento complexo não pretende impor uma nova teoria ou
metodologia, pois elas não podem ser camisa-de-força, mas caminhos, estratégias, itinerários
sempre provisórios, afinados com a incerteza e a ambigüidade do real.
Meu objetivo não foi definir o que é tempo, pois nenhuma área do conhecimento tem
resposta a essa pergunta, mas é sempre interessante verificar o que se esconde por trás de suas
variadas formas de entendimento e representação e, ainda, uma reflexão filosófica sobre ele,
preferencialmente para percebê-lo como múltiplo e complexo. Foi procurando pontos de
afluência, movimentos ainda reconhecíveis, e compreensões que podem nos ajudar a sair do
racionalismo doentio que encontrei apoio num conhecimento tradicional. À ciência carece
respeitar e aprender a ouvir as outras vozes, dos outros tempos, e reconhecer seu próprio
tempo, não como único, verdadeiro e irredutível, mas como resultado de uma história singular
e não exclusiva. Nesse sentido, entendo o tempo como um operador. Reconhecidamente
irreversível, o tempo não encaminha a humanidade necessariamente para a decadência, o fim
e a desordem, mas é urgente refletir sobre suas contingências.
A instituição de um novo tempo, emancipado e não determinado pela lógica
conjuntista-identitária, pode fazer emergir um novo mundo, ou mudar o mundo a partir de
novas pedras angulares e, ao mesmo tempo, fluidas; novas temporalidades que comportem
irreversibilidade, repetições, continuidades e rupturas, agregando outras significações e
estabelecendo inter-relações, retroativas, recorrentes com outras culturas. A coerência deste
mundo não é assegurada pela realidade dos dados, pelas analogias e semelhanças das
experiências individuais, mas pelo compartilhamento do tempo em que as experiências
296
ocorrem. Prigogine contribui com as bases do que seria um tempo complexo, operador
cognitivo imprescindível para incluir a complexidade no pensamento antropológico.
É urgente compreender as diferenças através da história, mas não a história como mito
fundador da humanidade, nem a história que seleciona os fatos ajustados à sua lógica
dominadora. A história a qual me refiro é tecida com os vários fios da vida, inclusive a vida
das idéias, e no homem confluem todos os tempos – universo, natureza, sociedade. A
irreversibilidade do tempo não apaga os ciclos, as repetições que ainda permanecem nos
sonhos, na poesia e no encanto ao qual o ser humano ainda é capaz de sucumbir, mas estão
também na loucura e na desmedida. Esses tempos não se excluem, nem se opõem, mas
compõem a trama de onde emergiram a cultura, as culturas e as estruturas profundas.
Historiadores e antropólogos têm a tarefa de se comportar como filósofos e pensadores da
universalidade e da diversidade humana, refletirem sobre o homem e seus prodígios, mais que
sobre o outro, distante no tempo e no espaço. Não há proveito nenhum em se entrincheirar
num desses campos, mas a mobilidade, o aproveitamento intenso do terreno que
compartilham é capaz de humanizar as duas disciplinas, sem ter que se optar por uma delas. O
homem que a história traz ao conhecimento já se foi, não está presente; a sociedade que o
antropólogo quer recompor já desapareceu no tempo; mas, para ambos, humanidade e
diversidade estão, aqui e agora, fazendo ainda supremo o oráculo de Delfos: conhece-te a ti
mesmo.
Todos os níveis da realidade comportam uma história e o compartilhamento dessa
história, o tecido desses inúmeros fios, une o ser humano aos seus, à natureza e ao universo,
mostrando que as concepções budistas extrapolam o teísmo cômodo e confortável para
297
apostar nas realizações e soberania possíveis por meio desse precioso corpo humano. Mas às
realizações humanas, e entre elas não descarto a ciência como um grande progresso, é preciso
acrescentar as considerações sobre a ética; levar a apreciar novamente as questões clássicas
sobre diversidade e universalidade humana, a rede planetária que se estabeleceu por
intermédio da tecnologia, o conhecimento, o determinismo e a liberdade.
Desta forma, acredito que este trabalho, antes de dar respostas a todas as questões
envolvendo o homem e seus sucessos, descobertas, escolhas e caminhos, mas tamm seus
fracassos, ilusões, cativeiro e patologias, procurou abrir janelas no pensamento encilhado,
acender algumas luzes e suscitar outras perguntas. O conhecimento nunca será completo, mas
devemos procurar respostas, como se um dia pudéssemos respondê-las todas. Este é o espírito
científico: assim como ao poeta cabe fazer poesia de toda alegria ou angústia, ao ser humano
como filósofo cabe refletir sobre tudo o que lhe impressiona os sentidos e, com
responsabilidade, construir o seu mundo.
Refletir sobre os limites e as possibilidades infinitas do humano, sobre suas
determinações e liberdades, sobre suas escolhas e sua cegueira pode fazer abertos nossos
corações e mentes e oxalá possamos aprender a conviver com as diferenças humanas sem
disfarces, sem falsa aceitação, sem conveniências, sem castigos ou recompensas. O homem
ocupa uma posição privilegiada, na qual programação genética e cultural, liberdade e
determinação, tempos cíclicos e lineares, memória e expectativas interagem
ininterruptamente, transitando entre a ordem e a desorganização que compõem os processos
conscientes e inconscientes da cognição. Por isso, Morin define o humano como "sistema
hipercomplexo", e o budismo o denomina precioso. Há de se respeitar e saber ouvir as outras
298
vozes, dos outros tempos e reconhecer seu próprio tempo não como único, verdadeiro e
irredutível, mas como resultado de uma história singular e não exclusiva.
Não cabe ao antropólogo eliminar as diferenças, nem congelá-las ou supervalorizá-las
Aceitar as diferenças é o primeiro passo para humanizar todo o planeta de forma homogênea,
mas a universalidade não pode ser esquecida, pois ela não apaga a trajetória histórica
individual, nem sua singularidade cultural, visto que insere o respeito nas brechas e aberturas
entre os caminhos escolhidos. O antropólogo deve se colocar como aquilo que é: um
observador construído por sua cultura. Mudar o mundo não é negar o passado da ciência, mas
incluir uma possibilidade mais ética de futuro, pleno de escolhas, cada vez mais conscientes e
com as vozes dos outros.
299
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