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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Antonio Roberto Chiachiri Filho
O sabor das imagens
DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
Tese apresentada à Banca Examinadora
como exigência parcial para obtenção
do título de Doutor em Comunicação e
Semiótica pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, sob a orientação
da Professora Doutora Maria Lucia San-
taella Braga.
SÃO PAULO
2008
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Banca Examinadora
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À Dona Alzira,
que me mostrou o mundo dos sabores
AGRADECIMENTOS
À Rita, ao Rafael e à Luiza, a amada tríade da minha vida, que me comple-
ta, que me nutre, que me dá força, coragem e motivo para seguir.
À minha muito querida orientadora, Lucia Santaella, que cuida da gente
com grande carinho e dedicação, e que não deixa apagar, nunca, o bri-
lho que emana de seus olhos, pelos quais nos transmite toda sua sabedoria.
Minha eterna gratidão.
À professora Ana Zilocchi e ao professor Winfried Nöth pela importante con-
tribuição no exame de qualicação.
À Banca Examinadora composta pelos professores Edson do Prado Pfüt-
zenreuter, Ana Maria Domingues Zilocchi, Sérgio Roclaw Basbaum e Laan
Mendes de Barros, pelo interesse na minha pesquisa e pela contribuição
intelectual.
Aos fotógrafos Diego Rousseaux, Humberto Medeiros, Sheila de Oliveira e
à produtora (food stylist) Maria Luiza Ferrari que com toda presteza e aco-
lhimento me concederam as entrevistas que são parte fundamental deste
trabalho de pesquisa.
A todos os professores, amigos e colegas do programa de pós-graduação,
em especial à Priscila Borges, leitora incansável de meus ensaios.
Aos amigos do Centro Internacional de Estudos Peirceanos, pelos momen-
tos de discussão e de trocas.
À Edna e à Cida, que sempre estão lá para nos suportar.
Aos meus queridos amigos (são muitos) da Faculdade Cásper Líbero, pelo
apoio, estímulo e paciência para me ouvirem. Hamilton, obrigado pela dia-
gramação.
À PUC-SP e à CAPES que custearam a maior parte desta minha pesquisa.
RESUMO
No contexto da comunicação e cultura, esta pesquisa está voltada para
os recursos utilizados pelos fotógrafos especializados na fotograa gastro-
nômica, recursos estes responsáveis pelos efeitos de sugestão sinestésica
produzidos no receptor, a ponto de excitar-lhe o apetite por vezes de modo
mais intenso do que um prato o faria. Pretendemos mostrar como um signo
chapado, bidimensional, pode dar conta disso.
Sabemos que o cenário fotográco, neste domínio, na realidade, envolve
uma série de recursos e de poderes simuladores capazes de insinuar delí-
cias, engatilhar e mesmo intensicar efeitos psicofísicos como o despertar
do apetite, aguçar os sentidos desencadeando num intérprete, também,
reações siológicas (biofísicas, neurossensoriais, comportamentais etc), tais
como salivar ou empreender imaginativamente o sabor peculiar daque-
le alimento segundo seu prévio repertório sígnico gustativo. Por meio de
entrevistas realizadas com prossionais de produção e elaboração foto-
gráca gastronômica, análises de três reproduções fotográcas de mídias
impressas especializadas em gastronomia e estudos bibliográcos, cremos
que esta pesquisa, elaborada à luz da semiótica de Charles Sanders Peirce,
apoiada em uma metodologia de análise extraída da obra de Lucia Santa-
ella e em estudos sobre o fenômeno da sinestesia, poderá contribuir para a
compreensão de um aspecto ainda pouco explorado da arte da comuni-
cação fotográca, a saber, o de tentar perceber como se estrutura e age a
linguagem deste tipo de signo, por meio do qual os prazeres gustativos são
evocados pela mensagem visual.
Palavras chave: fotograa, gastronomia, comunicação, semiótica, sineste-
sia, mensagem visual.
ABSTRACT
In the context of communication and culture, this study is focused on the
resources used by photographers specialized in gastronomic photography.
The so mentioned resources are responsible for the effects of synesthetic su-
ggestion produced in the message recipient, to the extent of exciting their
appetite at times more strongly than a real dish would do. The aim of this
work is to show how a at and bidimentional sign can be able to do this. We
are aware that, in this domain, photographic scenario actually concerns a
number of simulating resources and powers capable of insinuating delights,
triggering and even intensifying psychophysical effects, such as whetting the
appetite and stimulating the senses, also causing in an interpreter physical
reactions (biophysical, neurosensory, behavioral, etc), such as salivating or
imaginably tasting the unique avor of a certain food according to their
previous gustatory background. Based on interviews carried out with profes-
sionals working in the production and preparation of gastronomic photogra-
phy, on analyses of three photographic reproductions from press media spe-
cialized in gastronomy and also on bibliographical studies, we believe that
this research, carried out under the perspective of Charles Sanders Peirce’s
semiotics, based on an analysis method taken from Lucia Santaella’s work
and studies on synesthesia phenomenon, can contribute to the comprehen-
sion of a still unexplored aspect of the art of photographic communication,
namely, trying to understand how the language of this type of sign, through
which gustatory pleasures are evoked by visual message, is structured and
works.
Keywords: photography, gastronomy, communication, semiotics, synesthe-
sia, visual message.
SUMÁRIO
Resumo.................................................................................................................... 5
Abstract................................................................................................................... 6
Índice....................................................................................................................... 8
Introdução............................................................................................................ 10
Capítulo I............................................................................................................... 22
Capítulo II.............................................................................................................. 68
Capítulo III........................................................................................................... 122
Considerações nais.......................................................................................... 139
Referências......................................................................................................... 141
ÍNDICE
Introdução............................................................................................................. 10
Cap. I – Como eles fazem.................................................................................... 22
Diego Rousseaux.............................................................................................. 22
Humberto Medeiros......................................................................................... 27
Sheila de Oliveira.............................................................................................. 40
Maria Luiza Ferrari............................................................................................. 47
Cap. II – A Matriz Visual na fotograa gastronômica.........................................68
1. Formas não-representativas................................................................. 70
1.1 A qualidade reduzida a si mesma: a talidade................................... 71
1.1.1 A qualidade como possibilidade......................................................... 71
1.1.2 A qualidade materializada................................................................... 71
1.1.3 As leis naturais da qualidade............................................................... 72
1.2 A qualidade como acontecimento singular: a marca do gesto.....72
1.2.1 A marca qualitativa do gesto.............................................................. 72
1.2.2 O gesto em ato...................................................................................... 73
1.2.3 As leis físicas e siológicas do gesto..................................................... 73
1.3 A qualidade como lei: a invariância................................................... 73
1.3.1 As leis do acaso..................................................................................... 74
1.3.2 As réplicas como instância da lei........................................................ 74
1.3.3 As abstrações das leis........................................................................... 74
2. Formas gurativas.................................................................................. 75
2.1 A gura como qualidade..................................................................... 75
2.1.1 A gura sui generis................................................................................. 75
2.1.2 Asguras do gesto................................................................................ 75
2.1.3 A gura como tipo de estereótipo...................................................... 76
2.2 A gura como registro: a conexão dinâmica.................................... 76
2.2.1 Registro imitativo.................................................................................... 76
2.2.2 Registro físico.......................................................................................... 77
2.2.3 Registro por convenção....................................................................... 77
2.3 A gura como convenção: a codicação........................................ 77
2.3.1 A codicação qualitativa do espaço pictórico................................. 77
2.3.2 A singularização da convenções: o estilo.......................................... 78
2.3.3 A codicação racionalista do espaço pictórico............................... 78
3. Formas representativas......................................................................... 78
3.1 Representão por analogia: a semelhança.................................... 79
3.1.1 Representação imitativa...................................................................... 79
3.1.2 Representação gurada...................................................................... 79
3.1.3 Representação ideativa....................................................................... 80
3.2 Representão por guração: a cifra................................................. 80
3.2.1 Cifra por analogia................................................................................. 80
3.2.2 Cifra de relações existenciais............................................................... 80
3.2.3 Cifra por codicação............................................................................ 81
3.3 Representão por convenção: o sistema........................................ 81
3.3.1 Sistemas convencionais analógicos.................................................... 81
3.3.2 Sistemas convencionais indiciais......................................................... .81
3.3.3 Sistemas convencionais arbitrários...................................................... 82
Análises das reproduções fotográcas......................................................... .87
Cap. III – O que se fala sobre sinestesia........................................................... 122
1. Alguns tipos de sinestesia.................................................................... 129
2. Somos, de alguma maneira, sinestetas?........................................... 132
3. A sinestesia e a semiótica................................................................... 135
Considerações nais........................................................................................... 139
Referências.......................................................................................................... 141
Introdução
Manger est une pratique éminemment culturelle. Elle révèle profon-
dément un pays, le fonctionnement de sa société, son histoire, sa
géographie, sa vision du monde. […] Les échanges entre la sphère
de la cuisine et celle de l’art ont été incessantes. […] Art et cuisine
sont une même gourmandise, une même jubilation des sens et de
l’esprit. Ils sont témoins de la vie, ils la célèbrent. (Nathalie Demichel
/ www.plumart.com)
Nada melhor do que o cheirinho de uma cebola refogada, de um
café sendo coado. O calor do forno, do fogão à lenha, o som da fritura,
da água fervente... Vozes e vida daquela cozinha aconchegante das boas
conversas. Mas, às vezes, esse cheirinho, esse calor, esse som, trazem muito
mais à nossa mente do que somente o próprio paladar do prato que está
sendo preparado. Isso tudo nos traz recordações da infância, da nossa avó,
da nossa mãe, da nossa família, da nossa casa, da nossa vida. São, talvez,
essas fortes experiências - “o inteiro resultado cognitivo do viver” (IBRI, 1992,
p.9) que fazem com que o sabor dos alimentos se torne para nós muito
mais signicativo e palatável.
O olfato pode ser o sentido que mais prepara nosso sistema diges-
tório para receber os alimentos, ele é forte e ativa nossa memória gusta-
tiva de uma maneira ímpar. O paladar tem de ser complementado pelo
olfato, pois só está apto para sentir o salgado, o doce e o amargo. Porém,
um outro sentido, talvez, nos fa chegar bem próximos desse resgate
de memória gustativa, o sentido da visão. Uma “viagem”, então, por um
livro ou revista ilustrada de receitas culinárias, e mesmo em certas pas
publicitárias de gastronomia, nos faz penetrar num mundo de sonhos, sen-
sações e sabores que resgatam toda uma memória empreendendo ima-
ginativamente prazeres gustativos. Quando dizemos prazeres gastronômi-
cos ou gustativos nos referimos não somente ao gosto, mas a tudo aquilo
que possa, diante de um signo visual, despertar num intérprete, sejam re-
ações siogicas como “água na boca”, sejam reações de vontade, de
despertar o apetite, de sosticação entre tantos outros.
Instigados por esse motivo e tentando entender melhor a nossa per-
cepção visual nesse terreno da gastronomia, fomos impulsionados a realizar
essa pesquisa.
O cenário fotográco, em especial o da fotograa gastronômica,
embora pareça e deva parecer verossímil, está, na realidade, envolto em
uma série de recursos e de poderes simuladores capazes de insinuar delí-
cias, engatilhar e mesmo intensicar a vontade de comer ou beber algo
naquele momento. E na composição desse signo visual, gerar hábitos inter-
pretativos capazes de desencadear e intensicar prazeres gustativos numa
mente interpretadora, sabendo que esta mente traz consigo um repertório
cultural, intelectual, enm, uma experiência colateral que lhe é peculiar.
Pois bem, no modo como representa ou simula seu objeto, consegue agu-
çar tais sentidos.
Como é possível que uma imagem, xa, chapada, enm, bidimen-
sional seja capaz de produzir no seu receptor reações sinestésicas quase ou
tão mais fortes do que a percepção que o próprio fenômeno produziria?
Melhor explicando, como e por que as imagens fotográcas da
gastronomia podem desencadear reações gustativas tão ecazes quanto
aquelas que são produzidas quando estamos diante de um prato no ato da
refeição, mesmo levando em consideração estarmos, neste ato, muito mais
próximos do fenômeno com todas as características perceptuais de aroma
e temperatura que lhe são próprias?
Essa preocupação também está relacionada com o percurso de
pesquisa de mestrado no qual se buscou revelar o modo como as estraté-
gias de sugestão da mensagem publicitária operam por meio do emprego
de signos icônicos e das associações mentais que estes são capazes de
provocar no receptor. Tratamos de evidenciar a noção de ícone e as asso-
ciações mentais que um receptor é levado a realizar por meio destes signos.
Vimos ainda que o conceito de signo icônico, especicamente por meio
das estratégias da montagem, consegue tecer uma malha sígnica capaz
de produzir o efeito de persuasão pretendido pela mensagem publicitária.
Procuraremos agora, neste trabalho de doutorado, tendo como
objeto a fotograa gastronômica, avançar nossa pesquisa no estudo dos
efeitos interpretativos gerados pelos recursos utilizados na composição des-
se signo visual capazes de desencadear e intensicar prazeres gustativos
numa mente receptora.
certo consenso, na comunidade cientíca da comunicação,
que todo processo produtor de sentido é efetivado por uma mente inter-
pretadora. É aceito também que cada mente interpretadora traz consigo
um repertório cultural, intelectual, enm, uma experiência colateral. Admi-
te-se ainda que, segundo a teoria semiótica peirceana, uma imagem fo-
tográca se caracteriza por ser um sin-signo indicial dicente. Todo sin-signo
traz embutido em si seus quali-signos peculiares, exercendo também uma
função icônica. Ora, a fotograa gastronômica tende a exacerbar esses
aspectos quali-sígnicos icônicos em detrimento do aspecto que deveria ser
dominante na fotograa, o indicial.
No âmbito desta pesquisa, o foco será dirigido à predominância
da composição, dos recursos e dos artifícios que levam o artista fotógrafo
à elaboração do aspecto icônico existente no cerne da dimensão indicial.
Daí optarmos pela teoria peirceana, particularmente sua teoria dos signos,
como embasamento metodológico deste estudo. Esse embasamento será
empregado com o auxílio da teoria das modalidades da linguagem visual
desenvolvida por Lucia Santaella em seu livro Matrizes da linguagem e pen-
samento (2001) e, apoiados em autores que tratam o fenômeno da sineste-
sia, tentaremos complementar nosso raciocínio no intuito de vericar como
se processa a tradução de um sentido, no nosso caso o visual, em outros
sentidos, como o paladar, por exemplo.
O recorte do corpus de análise compreenderá somente dois veí-
culos da mídia impressa: a revista e o livro - nacionais e internacionais - es-
pecializados em gastronomia. Deste modo elencamos exemplares destas
mídias no Brasil e nos países que se destacam por sua rica variedade gas-
tronômica e hábitos culturais, e por aqueles que fazem da sua gastronomia
uma verdadeira art de vivre.
Uma das fontes que inspiraram nosso trabalho, além da paixão pelo
“mundo” da gastronomia, vem de um momento vivido alguns anos
numa noite de m de outono, começo de inverno, na cidade de Roanne,
na região da Borgonha, na França. Tivemos, nesta noite, o privilégio de po-
der desfrutar os prazeres gastronômicos num templo da gastronomia fran-
cesa, a Maison Troisgross – Restaurant Gastronomique. Privilégio, pois fomos
recebidos pelo seu proprietário, o Chef Pierre Troisgross, um dos criadores
da Nouvelle Cuisine, que nos mostrou os “bastidores” deste templo, sua co-
zinha. Como um maestro, Monsieur Troisgross regia sua equipe com peque-
nos toques de verdadeira magia gustativa. Lá, em sua cozinha, tivemos a
oportunidade de conhecer em detalhes todo o processo da criação desta
arte culinária. Nos cortes dos alimentos, na alquimia do entrelaçar de sabo-
res, na beleza plástica da composição dos pratos. Isso tudo foi seguido, evi-
dentemente, por um magníco jantar aos moldes da grande gastronomie
française. Vivenciamos in loco uma experiência ímpar. Mas como compar-
tilhar uma experiência deste tipo? Como fazer com que mais pessoas pos-
sam viver momentos de prazer, pelo menos num cenário da imaginação?
Pensando no aproveitamento do estudo elaborado quando de nos-
sa dissertação de mestrado em que, como citado, trabalhamos com os
signos icônicos, acreditamos que criar cenários imagéticos através de re-
produções fotográcas em revistas e livros é um meio que pode aproximar
esses ícones às formas de sentimentos visuais, gustativos, olfativos, viscerais.
Porém, supomos que oferecer uma imagem atraente de um prato, de uma
bebida, de alimentos in natura, de um “ritual” gastronômico, não seja uma
tarefa muito fácil. Às vezes alguns alimentos, alguns ingredientes de uma
receita e mesmo algumas prontas para o consumo não conseguem por si
atrair nosso olhar. Cabe aqui, então, a um outro artista criar recursos para
que consigamos uma maior aproximação destas imagens (destes signos)
com o universo sensorial que pretendemos estudar. Este artista é o fotógrafo
especializado em fotos gastronômicas. E a nós caberá esmiuçar os mean-
dros destes recursos utilizados pelo fotógrafo. Este é, pois, o trabalho que
aqui propomos e que cremos de suma importância para o avanço do co-
nhecimento de nosso objeto, pois é nesta urdidura, neste caminho produtor
que surgirá la matière première de nossa pesquisa.
Embora não sejamos os únicos a nos preocupar com essa questão
da comunicação por meio de um signo visual - muitos são os trabalhos nes-
sa área - acreditamos que nossa pesquisa se propõe a estudar um aspecto
ainda pouco ou não explorado que focalize a construção do signo visual e
os efeitos sinestésicos que este pode produzir numa mente interpretadora.
Em nossa procura pelo Estado da Arte sobre temas ligados à imagem
e gastronomia, poucas obras foram encontradas. Comer com os Olhos: Es-
tudo das imagens da cozinha brasileira a partir da revista Claudia Cozinha
é o título da dissertação de mestrado de autoria de Helena Maria Afonso
Jacob. A autora trabalha a questão da imagem da cozinha brasileira re-
tratada pelas “imagens criadas pela narrativa” de Gylberto Freyre em suas
obras Casa Grande&Senzala e Açúcar. Ela trata, em sua dissertação, da
importância de um sistema cultural gerado pela alimentação. Seu objetivo
com a pesquisa é explicar como se dá a construção da imagem da comi-
da e sua relação de representação com a cultura brasileira. A parte de seu
trabalho que mais se aproxima do nosso, seja, talvez, quando a autora pro-
cura mostrar como o processo de representação da comida é elaborado e
apresentado na mídia impressa e como se processa, em suas palavras, “a
troca comunicacional entre a cozinha e a mídia”.
Uma outra pesquisa, ainda em curso, da qual tomamos conheci-
mento recentemente, é a de Renata Raposo, que estuda como se a
mediação do sabor em diferentes mídias como TV, revista e jornais. No en-
tanto, sua preocupação é com a mediação, ou melhor dizendo, segundo
a autora, com a “redução do código no processo de mediação”, e para
isso recorre a autores como Martín Barbero, Norval Baitello Jr., Harry Pross e
Vilen Flusser.
Podemos, também, citar alguns trabalhos que caminham pelo viés
do discurso narrativo, que é o caso, por exemplo, do trabalho do Prof. Ja-
cques Fontanille da Université de Limoges França intitulado: À déguster
des yeux. Notes sémiotiques sur la ‘mise em assiette’. À propos de la cuisine
de Michel Bras. Em seu trabalho, por meio de fotograas dos pratos, procura
nos mostrar, no entrelaçamento de cores, formas e materialidade dos ele-
mentos, a elaboração cuidadosa do chef francês Michel Bras na produção
de um encaminhamento narrativo concernente à composição de cada
prato de seu cardápio. Como se pode perceber, professor Fontanille segue
a linha da semiótica discursiva.
No que diz respeito aos recursos de iluminação na preparação da
fotograa culinária encontramos um excelente trabalho em Hicks & Schultz
(1995), na edição francesa da obra Photo Culinaire, em que nos apresentam
58 fotos com todos os detalhes desta técnica. Podemos observar todo apa-
rato técnico, luzes, mesas, telas, aparelhos fotográcos entre outros, tentan-
do colocar o signo mais próximo possível do objeto fotografado. Nada mais
exemplar para ilustrar esta idéia do que um comentário feito por um destes
fotógrafos: “La salade devaid sembler appétissante et d’une incomparable
fraîcheur” (p.70). Este livro nos brinda com as técnicas de iluminação da fo-
tograa gastronômica em suas 151 páginas, percorrendo um universo culi-
nário que começa por um glossário do campo da iluminação fotográca e
destina a maioria dos outros capítulos para uma vasta temática da cozinha.
São capítulos que detalham em técnicas as fotos de petiscos e entradas,
sopas, legumes, ingredientes, peixes e frutos do mar, mesas preparadas e
sobremesas.
Outras referências encontradas, que tratam das técnicas fotográ-
cas em gastronomia, são alguns sítios eletrônicos internacionais que pouco
puderam nos auxiliar, pois, como citado, são referências muito técnicas
para contribuir com nossa pesquisa.
Por o termos encontrado, embora tivéssemos procurado, um
material signicativo para podermos subsidiar nosso trabalho, concluímos
que esse é o Estado da Arte até o momento e, por isso, o adicionamos
nesta introdução. Para preencher essa lacuna, realizamos entrevistas com
aqueles que produzem fotos de gastronomia, como se apresentado
mais à frente.
Não podemos, entretanto, deixar de falar de gastronomia e de fo-
tograa, mesmo que resumidamente, pois, nesse caso a literatura é muito
vasta. Por isso, selecionamos apenas o que julgamos mais pertinente.
Feliz o homem que come comida, bebe bebida, e por isso tem alegria.
(Fernando Pessoa)
Falar sobre gastronomia nos leva a um mundo de sabores e de sa-
beres. Talvez não dê para separar a história da gastronomia com a própria
história do homem. Desde que o homem se apóia em dois pés e tem suas
mãos livres para colher frutos em árvores, criar instrumentos de caça e pes-
ca, - e estamos aqui falando do homem pré-histórico seu modo de se
alimentar toma rumos diferentes. A descoberta do fogo, a domesticação
de animais e a agricultura fazem com que aquele homem nômade busque
xar sua morada, pois é nessa permanência em um lugar determinado que
vai descobrir e desenvolver diversas maneiras para preparar seu alimento.
O homem aprende a cozinhar, fato que o diferencia dos outros animais.
Lembramos, aqui, na obra de Claude Lévi-Strauss O cru e o cozido(1964)
– que trata do mito da origem da culinária, do fogo para cozer, das plantas
cultivadas para alimentação, da carne de caça. O homem também cria
novos hábitos, faz nascerem as aldeias, o comércio e as cidades.
Surgiram os utensílios de cerâmica para armazenar e conservar os
alimentos. Com isso, a alimentação humana cou bem mais va-
riada, pois as vasilhas possibilitavam ferver os líquidos e manter os
sólidos em temperatura constante. O homem, então, pôde iniciar-
se na culinária propriamente dita, cozinhando os alimentos e con-
dimentando-os com ervas e sementes aromáticas, para melhorar e
ativar o gosto. (LEAL, 2004, p.19)
De fato, a invenção desses utensílios vem dar início à arte culi-
nária. O homem, então, deixa de se alimentar somente de raízes e de
frutas e passa a utilizar os utensílios para cozinhar os alimentos - prin-
cipalmente as carnes - tornando-os mais digeríveis, mais palatáveis e
mais saborosos. Passa a viver em sociedade e a partilhar os alimentos.
A essa partilha foi dado o nome de refeição, que é repleta de símbolos.
É uma ritualização. ACKERMAN (1992, p.64) nos oferece um trecho que
ilustra bem o que queremos dizer:
Nosso amigo oferece-nos, em primeiro lugar, comida e bebida. É
ato simbólico, gesto que signica: este alimento nutrirá seu corpo
como nutrirei sua alma.
Da mesma forma nos diz Franco (2004, p.26):
O homem é cerimonioso no comer. Tem com relação ao alimento
atitude complexa. Não come somente para saciar a fome. Para
ele, o alimento se reveste também de valor simbólico e, eventual-
mente, se transforma em objeto ritual.
Ritos que se fazem presentes à mesa. Essa passagem nos remete,
também, a um outro livro de Claude Lévi-Strauss intitulado A origem dos
modos à mesa (1968), que faz um percurso na culinária incluindo, aí, não
somente o ato de comer, mas o modo de viver em sociedade.
Gastronomia , ao contrário do que se possa deixar entender, não é
sinônimo de culinária - que dela é parte integrante - mas vai muito além. É
todo um conjunto de fatores que se entrelaçam (preparo da refeição, pes-
soas, lugares, arrumação, decoração, ambiente etc.) para fazer daquele
momento da refeição, um momento muito especial, pois os prazeres da
mesa convidam outros prazeres. Não os prazeres do gosto, mais os pra-
zeres da vida. Faz-se do ato de comer, um ato de celebração, de come-
moração.
Diane Ackerman (idem, p.164), nos deixa também um interessante
depoimento sobre gastronomia:
Dizemos comida, como se fosse algo simples, absoluto, como a pe-
dra ou a chuva, que temos como certeza. Mas, para muitas vidas,
é grande fonte de prazer, um mundo complexo de satisfação tanto
siológica quanto emocional, que guarda grande parte das lem-
branças de nossa infância.
Não se deve confundir gastronomia somente com requinte, nobre-
za, festas, enm, algo de tão especial que se distancia da grande maio-
ria. Pelo contrário, gastronomia “é a boa comida, aquela que é bem-feita,
com ingredientes frescos e da estação” (BRAUNE e FRANCO, 2004, p.79). É
aquela que deve estar ao alcance de todos.
Decidimos, então, pensar um pouco nesses prazeres da refeição
por meio de um signo visual que sga muito facilmente a nossa atenção. A
fotograa.
Folle ou sage? La photographie peut être l’un ou l’autre : sage si
son réalisme reste relatif, temperé par de habitudes esthétiques ou
empiriques (feuilleter une revue chez le coiffeur, le dentiste) ; folle,
si ce réalisme est absolu, et, si l’on peut dire, originel, faisant revenir
à la conscience amoureuse et effrayée la lettre même du Temps:
mouvement proprement révulsif, qui retorune le cours de la cho-
se, et que j’appellerai pour nir l’extase photographique. (BARTHES,
1980, p.183)
Talvez, devêssemos pensar a fotograa como os efeitos que este
signo pode vir a produzir no seu receptor. O poder mágico da imagem
fotográca. A foto é uma imagem em trabalho, e como diz Dubois (1990,
p.15),
…é um verdadeiro ato icônico [...] uma imagem-ato, estando
compreendido que esse ‘ato’ não se limita trivialmente apenas ao
gesto da produção [...], mas inclui também o ato de sua recepção
e sua contemplação.
Juntando a gastronomia com a fotograa, entrando nesse mundo
da representação gastronômica por meio deste signo visual, acreditamos
que possamos percorrer um caminho para melhor compreendermos essa
produção de sentidos, ou melhor, essa transformação de um estímulo visual
num outro sentido, o palatável.
No capítulo I desta tese de doutorado procuraremos, por meio de
entrevistas que realizamos com prossionais da fotograa, mostrar o seu
“modo de fazer”. Para isso, entrevistamos 3 fotógrafos especializados em
culinária e uma produtora fotográca de alimentos (food stylist). Nesse per-
curso poderemos vericar o grau de envolvimento de cada um dos pros-
sionais, os recursos por eles utilizados na construção de um signo visual e
a inuência da sua história de vida transportada de maneira agrante na
realização de cada “clique” efetuado. Relatos que nos mostrarão o nível
de complexidade, que varia das mais simples interferências aos mais ela-
borados atos do pensar, do agir e da decisão do fazer. Resolvemos, então,
intitular esse primeiro capítulo de Como eles fazem.
No capítulo II, A Matriz Visual na fotograa gastronômica, partiremos
para análises minuciosas de 3 peças fotográcas gastronômicas – a primei-
ra de uma Entrada, a segunda de um Prato Principal e a terceira, de uma
Sobremesa -, baseando-nos em algumas modalidades e sub-modalidades
da Matriz Visual extraída da obra de Lucia Santaella Matrizes da Linguagem
e Pensamento: sonora, visual, verbal, matrizes essas derivadas da teoria se-
miótica de Charles Sanders Peirce. Evidentemente, apresentaremos um bre-
ve percurso nas 9 modalidades e 27 sub-modalidades, que nos apresenta
Santaella, para podermos melhor entender o trabalho analítico por nós efe-
tuado, o qual se utilizará apenas daquelas modalidades e submodalidades
que julgamos pertinentes às análises. Estas procuram sustentar nossas hipó-
teses e, principalmente a hipótese primária, que é aquela em que supomos
que são os recursos semióticos de produção da fotograa gastronômica os
responsáveis por desencadear e intensicar prazeres gustativos numa men-
te interpretadora.
Sinestesia será o assunto tratado no capítulo III. Da mesma forma
que no capítulo II, num breve e sucinto relato, tentaremos apresentar este
fenômeno e qual a sua relação no processo da semiose (ação do signo).
Queremos entender como um estímulo sensorial pode despertar ou mesmo
aguçar outro(s) sentido(s). Certamente a questão da sinestesia não vai es-
gotar o assunto tamanha a complexidade do estudo deste fenômeno, mas,
talvez saiamos, depois da leitura desta tese, um pouco mais conhecedores
desse mundo tão intricado que envolve nossa percepção e nossa mente.
22
Capítulo 1
Capítulo I
Como eles fazem
O que se pode extrair a partir do depoimento dos produtores e fo-
tógrafos por nós entrevistados são inferências, índices de como uma lingua-
gem fotográca pode ser elaborada.
Nesta parte vamos poder observar, por meio de depoimentos de fo-
tógrafos especializados em fotos gastronômicas e prossionais de produção
fotográca para gastronomia food stylist -, os modos de executar esse tra-
balho de fotografar que requer uma complexidade no pensar, no agir, para
compor um signo, ou seja, no processo de criação de um signo, que visa a
despertar no receptor da imagem/mensagem efeitos por vezes sinestésicos,
seja resgatando memórias, aguçando sabores ou despertando prazeres.
Para iniciar, acreditamos ser bem ilustrativo o depoimento a nós con-
cedido, em 2006, por Diego Rousseaux, fotógrafo argentino radicado no Bra-
sil, colunista da revista Fotógraphos e professor de fotograa em São Paulo:
Vejo a fotograa em seu entorno. Fotografar, para mim, não é apenas
focar ou enquadrar o objeto e clicar naquela delimitação. Componho
a fotograa mesmo antes do clique. O cerio é criado em minha
mente, cerio este prenhe de memórias de experiências vividas. Se
for a luz das 10 horas que tem de compor um ambiente fotográco, já
sei com é esta luz, já conheço as qualidades que comem esta luz, já
sei em que orientação encontro esta luz. Cada fotógrafo vê diferente
o objeto fotografado (ou a fotografar). Busco sempre enriquecer meu
repertório com fontes que m do passado e com a atualização diária
dos acontecimentos, das leituras... o fotografo para mim mesmo,
isto é muito raro, fotografo porque essa é a minha prossão, eno,
nunca paro de trabalhar, pois a todo momento, o mundo ao meu re-
dor é matéria prima para as minhas fotograas. Nunca fui à Grécia ou
à França, mas daquilo que conheço sobre esses países, daquilo que
vi ou ouvi falar deles, componho o cenário para a fotograa.
Na revista Fotógraphos, na sua edição de número 09 (outubro de
23
Capítulo 1
2006), Diego nos mostra como fotografou um prato de Penne Mediterrâneo
(g.1). Como dito em seu depoimento, nunca esteve na Grécia, mas procu-
ra representar as imagens do Mediterrâneo por meio de informações adquiri-
das naquilo que pesquisou ou de que ouviu falar. A gura 1, abaixo, é uma
cópia da reprodução publicada na revista.
Figura 1: Foto Penne Mediterrâneo
24
Capítulo 1
Essa gura 2, ao lado, nos
mostra todo o aparato e como
foi montada a prodão da foto,
o que procuraremos descrever a
seguir.
De acordo com Rousse-
aux, o espaço para a compo-
sição da foto era bem restrito
essa foto foi feita em seu apar-
tamento então, soluções criati-
vas e práticas tiveram de ser en-
contradas para que o resultado
fosse satisfatório. O primeiro pas-
so era criar um clima que traduzisse as cores, os tons e sabores do Medi-
terrâneo. Para isso, a luz é a protagonista dessa linguagem. O clima des-
sa imagem requer uma iluminação mais discreta e bem cuidada, pois,
para ele, o excesso de claridade pode gerar interferências indesejáveis.
As portas e as janelas são vedadas com pano escuro e, então, a luz é
controlada somente pelas posições de seus reetores. A mesa, sobre a
qual se assenta o prato com a massa, é constituída por dois pedos
de madeira rústica; o céu, que foi colado na parede de seu aparta-
mento, é representado por uma cartolina branca pintada com algumas
pinceladas de tinta azul num tom aproximado ao que lhe parece o céu
do Mediterrâneo. Inspirado nas paisagens das Ilhas gregas, Rousseaux
simulou um muro de concreto mal acabado com cimento e cal com um
lençol branco estendido sobre um cano e apoiado em duas cadeiras. E,
para quebrar um pouco o espaço entre o céu” e o “muro”, presos por
umas garrinhas conhecidas como jacaré, alguns galhos de arbustos fo-
ram pendurados. Com jacaré também foi preso o garfo que sustenta o
Figura 2: Montagem para a foto Penne Mediterrâneo
25
Capítulo 1
penne como se estivesse sustentado por uma o. Uma garrafa e uma
taça com vinho branco também ali foram colocadas. A massa, o penne,
com um leve cozimento e guarnecida com pedaços de tomates e chei-
ro verde, são a essência da razão da foto.
Todas as artimanhas lançadas pelo fotógrafo na montagem do
objeto a ser fotografado constituem um caminho criador de linguagens
e um envolvimento profundo do fotógrafo para tentar aproximar o es-
pectador de uma realidade que se quer mostrar. É compor a foto antes
do clique nal. Mas, para o registro desse cenário não se pode esquecer
de um elemento, talvez o mais importante, que é a câmera fotográca.
É através desse equipamento que se congelam as imagens de uma re-
alidade que se cria, ou melhor, que se pretende criar. Segundo Arlindo
Machado (1984, p. 54) “... a imagem que nos dá a mera é sempre
essa cção petricada na pose...”, no caso de uma foto como essa que
estamos tratando, talvez o melhor seja substituir a palavra pose, citada
por Machado, e em seu lugar utilizarmos composição cênica (não que-
rendo dizer que isto não ocorra em outros tipos de fotograas, mas para
nós, pose está mais relacionada com a postura, no fotografar, da gu-
ra humana), composição essa que é sempre tratada em seus detalhes.
Melhor explicando, é a inserção de elementos e ajustes de luz que vão
compondo o imaginário do fotógrafo para que, através de seu olhar
pela mera, possa simular uma determinada cena que chegue mais
próximo de um real que se quer representar. “... a câmera tem um poder
transgurador do mundo visível que chega a ser devastador nas suas
conseqüências” (MACHADO, idem). De fato, os objetos ali colocados
são articulados para constituírem uma representação que pode ser simu-
lada pelo ato fotográco. E ainda citando Machado (1984, p.56):
Ninguém melhor que os fotógrafos que trabalham com publici-
dade conhecem essa cnica de transgurar o referente para
26
Capítulo 1
aumentar o poder de convicção de sua imagem. Os produtos
vistosos e sensuais que a publicidade forja em seus painéis icono-
grácos [...] constituem verdadeiras reconstruções, às vezes até
mesmo distintas dos objetos a que visam aludir.
O lençol vira uma gura desfocada remetendo seu signicado a
um muro; a cartolina, ao céu; pedaços de tábua, a uma mesa rústica; a
luz, ao ambiente mediterrâneo. No entanto, a percepção dessas ima-
gens fotográcas requer um repertório cultural para sua ecácia inter-
pretativa.
E, por m, repetindo Rousseaux, ele xa a câmera num tripé para,
na hora do clique, não tremer de fome. E parece ser esse mesmo o
sentido de fotografar. No caso de foto de gastronomia, o envolvimento
do fotógrafo é tamanho que ele deve estar mergulhado, imerso naquela
realidade que está por produzir.
Nosso próximo relato será a entrevista que zemos com um outro
fotógrafo, este de Niterói, com grande experiência em fotos de gastro-
nomia.
27
Capítulo 1
Em 2007, tivemos a oportunidade de conversar com Humberto Me-
deiros, um fotógrafo uminense, que, entre outros, foi um dos responsáveis
pelas belas fotos que ilustram a coleção de livros da gastronomia regional
produzida pela editora SENAC. Coleção com belos títulos, tais como: Pan-
tanal, sintonia de sabores e cores; Sabores e cores de Minas Gerais; Dos co-
mes e bebes do Espírito Santo; A doçaria tradicional de Pelotas. Nessa nossa
conversa, que durou bons momentos, cou ainda mais claro para nós que a
tarefa de fotografar exige não somente habilidade técnica, conhecimento
dos equipamentos, como também, e muito importante, um repertório cul-
tural, uma sensibilidade e gozo por aquilo que se faz. É se nutrir, numa busca
constante e incessante, de inuências e referências culturais. Vejamos um
trecho de seu depoimento:
É. Qualquer pessoa ligada à uma área cultural, tem conhecimento
de ler, de buscar inuências, de buscar referências visuais, ? En-
tão isso acontece com fotograa, todo mundo é assim, ? A gen-
te, a gente quando passa a gostar do assunto, passa a ver, a gente
passa ver o que é que as pessoas fazem para descobrir soluções,
e isso não é de fotograa,... É, como é que vem acontecendo
com a história do visual no mundo, não é? Então a gente é meio
inserido nessa coisa, nessa... então todas essas referências, de cor,
do que interessa disso, do que funciona melhor assim, são coisas
que são da história da cultura, são, história da arte. Já esse aí é um
assunto que já foi discutido e pensado há milênios...
Medeiros evidencia também, em sua fala, que o fotógrafo é um
praticante de uma arte que não é apenas a arte fotográca, mas uma arte
visual, uma estética que existe e está pronta para ser trabalhada que
“está aí pra gente pegar. Nós somos leitores dessa coisa”. E leitores “dessa
coisa” é sinônimo de ver a fotograa como uma forma de expressão orga-
nizada em linguagem, em elementos de linguagem cujo domínio possibili-
ta a escolha de determinadas soluções que melhor expressam aquilo que
se queira passar como mensagem. Uma forma de linguagem, explicada
por Medeiros, é a composição. Ressalta, ainda, que as cores formam uma
composição, uma linguagem. De fato, a cor, que não tem uma existência
28
Capítulo 1
material, que é pura qualidade, que é rica em possibilidades qualitativas,
quando posta em cena, quando manejada para compor signicados, tor-
na-se um formidável meio de projeção de “sentimentos, conhecimentos,
magia e encantamento” (Pedrosa, 2003, p.21). Também, para Barros (2006,
p. 15):
Todos aqueles que trabalham com imagem, criação de cenários e
comunicação visual sabem disso. A cor representa uma ferramen-
ta poderosa para transmissão de idéias, atmosferas e emoções, e
pode captar a atenção do público de forma forte e direta, sutil ou
progressiva, seja no projeto arquitetônico, industrial (design), grá-
co, virtual (digital), cenográco, fotográco ou cinematográco,
seja nas artes plásticas.
As cores, retomando Medeiros, comunicam e ajudam a criar e orga-
nizar espaços. “Somos, na verdade, criadores de espaço”, diz o fotógrafo.
Em verdade, se pensarmos na fotograa de maneira geral, pode-se perce-
ber que os elementos que ali estão sendo arranjados para a composição do
cenário fotográco, incluindo as cores e os jogos de luzes, além de objetos
mais tangíveis, criam e recriam espacialidades construindo e reconstruindo
signicados. Ou seja, criando uma representação. E a fotograa culinária,
que em tese não tem nada a ver com a foto jornalística, por exemplo – que
também é uma forma de representação -, é essencialmente construção.
Constroem-se espaços mentalmente e depois se ajeita na prática. Esses es-
paços são produtos da nossa própria cultura. É evidente que essa própria
cultura é nutrida pela incessante busca de repertório, de trocas de informa-
ções e de aquisição de competências nos mais diversos campos, relacio-
nados ou não com o trabalho que se pretende realizar. O que queremos
dizer é que, no caso da fotograa de gastronomia, que é o nosso objeto de
análise, não basta ter conhecimentos apenas das técnicas fotográcas, do
universo culinário, mas, a integração com os costumes, com os hábitos e
com o próprio conjunto cultural de uma dada população, por exemplo. A
representação fotográca de uma bela feijoada, que, para nós brasileiros,
29
Capítulo 1
pode provocar “água na boca”, talvez para um chinês, que não tenha tido
contato com essa iguaria brasileira, possa despertar certo repúdio ou mes-
mo não provocar nada; já, uma foto de um cérebro cru de um certo tipo
de macaco, prato apreciado pelos chineses, pode nos causar asco.
A elaboração de um livro de gastronomia regional é um bom exem-
plo de como a inuência cultural é condição primordial para uma ecácia
dessa tarefa. Como nos conta Medeiros, organizar tal livro requer uma es-
trutura e um trabalho de equipe que começa com a denição do projeto,
discussões a respeito do tema e uma série de reuniões para acerto dos
detalhes, que sempre são revistos. A equipe reúne-se em torno desse pro-
jeto, divide os papéis de cada um, começa um trabalho de pesquisas e,
no caso do fotógrafo, e do diretor de arte, a tarefa é aquela de organizar
a visualidade. Evidentemente essa organização não nasce do nada. Esses
prossionais possuem bagagem técnica e cultural que lhes confere aptidão
para tal realização. São experiências que vêm de diversas áreas, que não
são somente da fotograa culinária, mas que se interligam para compor as
soluções criativas daquele trabalho. E dessa forma, vão produzindo situa-
ções e cenários para a construção do livro. Observemos mais um trecho do
depoimento de Medeiros:
A gente sabe que um livro é um conjunto de muitas fotos. E nesse
livro a gente tem de ter a noção do que está fazendo no individual
e também no conjunto. Nós precisamos ter um repertório que nos
permita fazer esse conjunto atrativo e não todo igual. Então, a gen-
te tem de ter elementos de variedade. Saber que a gente tem
determinadas coisas e repeti-las não vale a pena. Então, o traba-
lho da gente é lidar com um repertório muito grande. A gente tem
de ter muitas opções para não ser cansativo, não ser sempre igual.
E, quando você está trabalhando com fotos que vão ser vistas em
conjunto, você tem de trabalhar com diversidade.
30
Capítulo 1
Ainda nos relata Medeiros que uma técnica comum que utiliza-
va quando trabalhava com fotos analógicas era a de, paralelamente,
fotografar com Polaroid (fotos instantâneas), pois isso facilitava na hora
de escolher as fotos para a revelação. “... a gente ia fazendo o livro
nessas viagens e ia botando as Polaroidsorganizadas na parede [...]
então, a gente tinha uma noção do que estava acontecendo”. Esse,
em verdade, já era um caminho criador de uma narrativa visual em au-
xílio às futuras escolhas. Isso possibilitava saber, por exemplo, que tipo de
abordagem já havia sido utilizada, que tipo era mais indicada e assim
por diante. Hoje, com a fotografia digital, tudo ficou mais rápido e mais
prático. A parede cedeu lugar à tela do microcomputador, ou até mes-
mo do visor da câmera fotográfica. As fotos que não servem são quase
que de imediato descartadas. E ainda conta-se com a facilidade de
certos softwares para trabalhar o resultado mais próximo do desejado.
Figura 3: O fotógrafo Humberto Medeiros em seu escritório
31
Capítulo 1
O conjunto do livro, no entanto, é sempre discutido por antecipação
com o diretor de arte. A abordagem utilizada na elaboração do livro
sobre a Amazônia, por exemplo, que é uma região na qual, quanto mais
se penetra, mais se descobre sua riqueza, foi a sua diversidade que leva
a todo um conjunto harmônico. Conjunto harmônico, porém com uma
infinita variedade de coisas com as quais se deve prestar uma enorme
atenção para não deixar escapar os seus detalhes. E se “meter” com
muitas coisas é trabalho de saber como organizá-las. De acordo com
Medeiros, saber organizar a confusão é parte do seu trabalho. Então,
nós perguntamos a ele: - O que é a organização da confusão? Vejamos
o que nos disse:
... eu quero que fique confuso, mas não quero que fique incom-
preensível, embaralhado. A gente faz intervenções na confu-
são, no caos. Às vezes são intervenções sutis, que não se per-
cebe. Essa intervenção, porém, é a guia para se compreender
o caos. Compreender a confusão. Não é fugir da confusão; é
saber organizar a confusão sem deixar de ser confusão, já que
existe um interesse que se mostre muita coisa, muita coisa,?
Essa confusão relatada por Medeiros, como podemos perceber,
não é sinônimo de bagunça ou de objetos espalhados por todo lado;
é, se bem compreendemos o que disse, a organização do caos provo-
cado pela enorme diversidade de possibilidades que aquela temática
oferece. É o interesse que muita coisa seja mostrada e conectada para
gerar significados. Essa organização do caos requer um trabalho ex-
tremamente reflexivo e cansativo. Cansativo, sobretudo mentalmente,
pois o tempo todo tem de ser dedicado à busca de soluções que este-
jam integradas e que sejam, de certo modo, inéditas ou, pelo menos,
não tenham sido muito utilizadas. “Isso você imagina com 50, 60 fotos,
começa a ficar muito importante, mas você vai atrás dos caminhos, vai
atrás dos caminhos...”, palavras do nosso fotógrafo.
32
Capítulo 1
E como se vai atrás desses caminhos? Como se “arrumam” essas
soluções? Essa foi a indagação que fizemos a ele. “Bom, com nossa ex-
periência”, responde. E ainda continua:
Com o saber ver as coisas e com a capacidade de organizar
essas coisas. São várias reuniões, antes de iniciarmos a viagem,
para determinar um plano de trabalho. Depois são tantas fotos,
tantos lugares e várias conversas com o pessoal local. Então,
a gente organiza uma produção e decide que, por exemplo,
X fotos serão feitas num restaurante local, outras tantas ao ar
livre ou até mesmo num estúdio reservado que a gente vai lá e
monta. A gente quando viaja, viaja com um estúdio. São, apro-
ximadamente, 100 kg de equipamentos. É bastante coisa, ?
Um outro profissional importante para o bom andamento do tra-
balho é aquele responsável por toda a produção da foto. No caso da
foto de gastronomia é aquele que hoje chamamos de Food Stylist (que
veremos com mais detalhes depois dos depoimentos dos fotógrafos).
Esse profissional está sempre uns passos à frente do restante da equipe.
Na elaboração de um livro regional, por exemplo, ele viaja 3 ou 4 dias
antes do restante da equipe, reúne as pessoas do lugar, visita casas,
museus, igrejas, associações, clubes, entre outros, e procura recolher
todo tipo de “tralha”. Às vezes são três ou quatro cômodos cheios de
objetos emprestados. A primeira coisa que a equipe faz quando che-
ga ao local é olhar tudo que foi recolhido e tentar separar o que pode
servir para compor os cenários a serem fotografados. É, na realidade,
“uma selva de objetos culturais, portanto de objetos que contêm in-
tenções determinadas”, como aponta bem Vilém Flusser em A Filosofia
da Caixa Preta (2002, p. 29). São realmente intenções determinadas,
pois, cada objeto escolhido traz uma ligação, por mínima que seja,
com aquilo que se quer fotografar. Melhor explicando, tudo ali está
para contribuir na construção do significado. As fotos são feitas, classi-
ficadas, numeradas e depois passam por um processo de escolha de
acordo com a abordagem que se quer dar. Isso é um trabalho de classi-
33
Capítulo 1
ficação prévia. Embora uma foto tenha de ser bem esmiuçada, pois,
nesse ato, percebe-se o que está faltando, o que está em excesso, não
se pensa mais tão somente nela individualmente, mas no conjunto que
vai compor a temática do livro. Medeiros ainda nos conta:
Existe, por exemplo, em alguns lugares uma foto de estúdio
-, como fizemos várias vezes, a gente fica num hotel, reúne
as coisas nesse hotel, normalmente num quarto, e começa a
trabalhar nisso. As comidas chegam - é muito comum a gente
trabalhar, no SENAC, por exemplo, que tem um restaurante e
um chef ligado ao assunto. Então, é muito comum, a gente pre-
parar tudo e chamar o chef para discutir a melhor maneira de
fotografar o prato, ou seja, o melhor momento, o melhor ângulo
etc. A discussão com o chef é essencial para a boa qualidade
da foto.
Um outro caminho para esse tipo de foto é executar o trabalho
fora do estúdio. Embora o local escolhido já tenha sido, em alguns
casos, previamente visitado, sempre ocorrem surpresas. Às vezes agra-
dáveis, às vezes nem tanto, como relata Medeiros. Quando se vai foto-
grafar na Natureza, por exemplo, as idéias pré-estabelecidas ganham
uma outra dimensão. As coisas, que se encontram na Natureza, e que
fazem parte daquele ambiente, são elementos que se inter-relacionam
e aderem ao próprio significado daquela representação fotográfica.
Tudo que ali está pode gerar para o fotógrafo novas idéias, novos cami-
nhos. Uma gota d’água, um pedaço de galho de árvore, uma folhinha
verde, uma pedra, enfim, fenômenos da Natureza compondo o todo
fotográfico. Vejamos abaixo (Fig. 4) uma foto feita com recursos, princi-
palmente os cromáticos, que a Natureza oferece:
34
Capítulo 1
Quando o ambiente escolhido é um restaurante, a abordagem
já é um tanto quanto diferente. A tendência é trabalhar com o que o
estabelecimento oferece. Às vezes, o restaurante é cheio de detalhes
que fazem parte da cultura local. Neste caso, o fotografar ganha com
a riqueza dos objetos ali dispostos. As coisas tornam-se mais fáceis. As
idéias se harmonizam e o trabalho rende bastante. O chef, quando
se interessa, ajuda muito e trabalha também com muito afinco. Em
pouco tempo muitas fotos são executadas. A esse respeito, Medeiros
relata:
...existem lugares onde a gente já foi [...] um excelente exem-
plo desse e o de um restaurante em Olinda. Um chef maravi-
lhoso! Um dos mais famosos do Brasil. O restaurante dele em
Olinda é belíssimo. Cheio de detalhes [...] ele, o chef, com uma
compreensão muito boa do que é o trabalho da gente [...] foi
assim, fizemos muitas fotos e rapidamente. Em quatro horas de
trabalho fizemos dez fotos. Isso é um resultado e tanto!
Figura 4: Vatapá na vegetação regional
35
Capítulo 1
Mas, às vezes, o trabalho não flui como se espera. Vejamos
mais um trecho de Medeiros:
No dia anterior a gente tinha ido num outro restaurante, co-
mercial... um bom comercial, mas mais comum em termos de
decoração. Não tinha grandes objetos. Naquele dia, o tra-
balho foi bem curioso. Deu um trabalho enorme, pois a gente
tinha de criar imagens a partir do nada. Tínhamos de sair para
arrumar uma flor, por exemplo, para criar um clima [...] Deu
muito mais trabalho porque a gente tinha menos coisas à mão
[...] rendeu pouco. Num dia de trabalho de doze horas, a gen-
te só conseguiu fazer sete fotos. É complicado. Não quer dizer
que vocêo possa fazer, até porque você tem de extrair uma
imagem e você não tem muito de onde extrair. É tirar leite de
pedra. O ideal pra gente é trabalhar com muitas opções.
Trabalhar com muitas opções é poder escolher aquilo que ser-
ve para o momento mais conveniente. Grosso modo, na composição
de uma foto culinária, segundo Medeiros, acontecem dois momentos,
porém dois momentos interligados. Melhor dizendo, acontece o que
está dentro do prato e acontece o que está fora do prato. São duas
composições diferentes, porém, repetindo, interligadas. Não se “pen-
sa” uma coisa e depois a outra. Não se abandona a idéia geral, mas
se pensam as coisas com funções diferentes. A composição dentro do
prato tem o intuito de “chamar” para o prato; a composição fora do
prato tem o intuito de localizar o prato, ou seja, localizar culturalmen-
te, resgatar uma memória. São referências. Referências de qualquer
coisa que se ligue à temática daquela foto. Tem a ver com o projeto
de um livro de gastronomia, tem a ver com a origem do prato, tem a
ver, então, com a história que aquela foto quer contar. A foto abaixo
(fig.5), de uma delícia típica do Sul do Brasil, ilustra bem o que acaba-
mos de relatar.
36
Capítulo 1
Um outro exemplo de composição fotográca, que nos mostra Me-
deiros, é o que ele chama de foto esquemática. Para ele, este termo refere-
se à foto simplicada. Ou seja, com poucos elementos, ela pode remeter
a uma culinária comum a qualquer parte. O que se destaca é a receita,
o prato. Os adereços, o cenário, contribuem com um valor menor nessa
composição. A foto que vemos abaixo (g.6) é uma foto de um doce típico
com recheio de nozes oferecido em festas de casamentos e que pode ser
encontrado em qualquer parte do país. Chama-se camafeu. É símbolo de
casamento.
O cultural/regional apresenta-se com menor força nessa foto; o que
fala mais alto é a própria essência dessa guloseima, típica sim, de festas de
enlaces matrimoniais.
Figura 5: Pudim típico da região Sul do Brasil
37
Capítulo 1
A foto que vem abaixo (g. 7) é o que Medeiros denomina de foto
ambiente. Foi feita no próprio ambiente de origem, ou melhor, numa área
externa “transformada” em estúdio.
Você vendo, aqui, nesse caso em particular dessa foto? Essa é
uma foto num ambiente, vendo? Existe o prato e esse prato é
iluminado como num estúdio, mas a foto é no ambiente. Então a
gente faz uma integração, em determinadas situações... Com luz
mesmo. Mas, estamos no local, né? É, é uma área externa transfor-
mada em estúdio, ? Bloqueado pra fazer a luz não interferir mui-
to, mas deixa o fundo com a luz dele, tal, ? ... e a gente procura
não interferir muito.
Figura 6: Doces de nozes – “camafeus”
38
Capítulo 1
De tudo isso que nos mostrou Humberto Medeiros nesse percurso de
seu depoimento, o que faz questão de ressaltar é que os recursos primor-
diais para o sucesso de sua foto, evidentemente, aqui ele trata do seu olhar
como fotógrafo, são luz e composição.
O recurso maior é a luz sem dúvida nenhuma. Luz e composição.
É... eu nem gosto muito de usar essas coisas de efeito de brilhinho...
Eu prero uma comida que você vê e acredita tão natural que faz
com que se tenha vontade de comê-la.
Para fecharmos esta parte de nossa leitura do depoimento de Me-
deiros deixaremos mais algumas de suas fotos que tanto representam aqui-
lo que nos disse.
Figura 7: Foto de uma guloseima de Pernambuco (Bolo Souza Leão)
39
Capítulo 1
Figura 8: Marmelada
de Minas Gerais
Figura 9: Bolinho de arroz dos
Pampas gaúchos
Figura 10: Maxixada
do Centro-Oeste
Figura 11: Rabada do Agreste
40
Capítulo 1
Entrevistamos também, em seu estúdio em São Paulo, chamado Em-
pório Fotográco, a fotógrafa Sheila de Oliveira. Sheila exerce essa prossão
desde 1995 e vem se especializando em fotos culinárias, still life e outras mo-
dalidades. Evidentemente, falamos sobre o assunto que mais nos interessa-
va para a pesquisa, seu savoir faire em fotos de gastronomia. Não diferente
dos outros fotógrafos que havíamos entrevistado, Sheila procura entrar
em suas produções fotográcas de corpo e alma: “... eu procuro trazer na
minha fotograa essa coisa da qualidade de vida, do bem estar. Acho que
isso é que é bacana [...] que, o essencial na hora de comer é estar feliz”.
Fotógrafa de estúdio, nos conta como todos os detalhes são impor-
tantes para a realização de um trabalho bem feito. Recolhe tudo que pen-
sa ser útil para a elaboração de uma foto. Nos disse que pega coisas do lixo,
que freqüenta “Brechós” e feiras de antigüidade. Por trabalhar essencial-
mente em estúdio, tudo tem de estar à mão para não perder muito tempo
na hora da produção. Seu “arsenal” tem de ser também bastante variado
porque na hora do clique sempre um elemento, por menor que seja, pode
fazer toda a diferença.
Figura 12 – Estúdio Empório Fotográco – São Paulo
Figura 13–
Detalhe do
Estúdio
Figura 14
– Parte do
“arsenal”
41
Capítulo 1
O ato de fotografar, para Sheila, é comparado ao ato de cozinhar,
pois, “o prazer em fazer as duas coisas acaba se materializando, seja no
prato que será servido e saboreado, seja na foto que será vista e também
saboreada”. Ou seja, o envolvimento e a dedicação, a alquimia na escolha
dos ingredientes, nas dosagens dos temperos e no arranjo dos alimentos, no
ato de cozinhar para tornar um prato apetitoso, gostoso, bonito e atraente
é equivalente ao arranjo, à composição, escolha da luz e dos materiais no
ato de fotografar para tornar a foto igualmente apetitosa, gostosa, bonita
e atraente. O prato se come com a boca, as fotos, com os olhos.
Bastante inuenciada pelas artes plásticas, a fotógrafa relata que,
na maioria das vezes, os pratos a serem fotografados com uma verdadei-
ra obra de arte: “tem pratos que são verdadeiras esculturas”. O que acon-
tece, às vezes, é que tem muitos alimentos que funcionam, para a fotogra-
a, melhor que outros. Muitas vezes o prato em si não “apetece”, enquanto
que, quando fotografado, chama bastante a atenção. Um exemplo, que
nos coloca Sheila, é de um prato que se chama Azul Marinho, feito com
peixe e banana verde. É um prato que visualmente não é bonito, tem a es-
tranheza de ser azul. O papel, então, da fotograa neste caso, é aquele de
despertar a curiosidade e a vontade de comer. cabe à equipe de produ-
ção e ao fotógrafo a tarefa de tornar o prato apetitoso através de um signo
visual. Os recursos são basicamente luz e composição cênica. A oxidação
da banana verde a torna externamente azul, então, parte-se a banana ao
meio e aproveita o contraste da cor amarelada do interior da fruta; o peixe,
por conseqüência, ca também azulado externamente, então, parte-o em
pedaços para contrastar com o seu branco da parte interna; acrescenta-
se uma farofa de tom amarelado, acrescentam-se temperos frescos como
cheiro verde, por exemplo, trabalha a luz para criar um clima de dia en-
solarado de praia, enm, cria condições favoráveis ao despertar de uma
curiosidade gustativa. Vejamos a foto do Azul Marinho, logo a seguir.
42
Capítulo 1
Como podemos observar, os elementos que compõem o cenário
fotográco são de extrema relevância, pois, tentemos imaginar os pedaços
de banana, ou mesmo os do peixe, separadamente. A aparência, talvez,
não fosse nada agradável aos olhos; não teria a força de despertar um
apetite ou um desejo gustativo.
O que contribui muito para o sucesso representativo de uma foto-
graa, e isso não é nenhuma novidade, é a sua capacidade de atrair e
tocar o seu receptor. Para isso, no caso das fotograas de gastronomia,
os ingredientes são coadjuvantes com a importância de protagonistas, ou
Figura 15 – Foto Azul Marinho
43
Capítulo 1
seja: têm valor na composição cênica equivalente ao assunto principal.
Observemos a foto abaixo (g. 16):
Nesta foto, em que os tomates são os protagonistas (aliás, como diz
Sheila: “... o tomate é um fruto privilegiado pelo seu desenho e por suas co-
res”) ocupam a posição central na fotograa, no entanto, estão circunda-
dos de ingredientes (temperos) que ajudam a resgatar sabores e as inúme-
ras variações que se podem efetuar na preparação desse fruto no universo
culinário.
Outra foto que retrata bem o que nos disse Sheila: “fotografar er-
vas, especiarias, é tentar fazer exalar o cheiro desses ingredientes”, é a que
veremos abaixo. Esta foto foi realizada para um catálogo especial de tem-
Figura 16 –Tomates – Foto para o restaurante Viena Delicatessen
44
Capítulo 1
peros. Não cabe aqui, neste momento, fazermos uma análise semiótica da
foto, porém podemos vericar que os elementos ali colocados - a tábua de
carne em madeira, o papel amassado, a colher de pau e as próprias quali-
dades cromáticas deste tempero, que para quem o conhece apresentam
todas as características do Curry (tempero de origem indiana composto
por 11 ingredientes de sabor e cheiro marcantes como pimentas, canela,
cravo, coentro entre outros), no intuito de completar, por meio dessas quali-
dades e desses índices, o resgate de cheiro e de sabor “rústico” e “quente”
dessa especiaria.
Figura 17 – Curry
45
Capítulo 1
Cada elemento na fotograa tem sua simbologia. Não somente o
conjunto forma a simbologia, mas cada elemento tem sua própria compe-
tência simbólica. Cada peça tem o poder de produzir um signicado. Tem
o poder de criar um espaço, de criar uma narrativa visual. Na gura que ve-
remos a seguir (g. 18) Sheila nos conta que, sendo uma foto encomenda-
da por uma restaurante de culinária japonesa, sua realização, levando em
conta todo o processo fotográco de produção etc., foi de fácil solução.
O prato é camarão, porém camarão não é comida típica japonesa (dela
faz parte). O que vai “contar” para o receptor que esse é um prato japonês
são os “adereços” que formam toda a composição desse cenário. O dis-
creto posicionamento do Hachi (palitos que servem de instrumentos para os
orientais no ato da ali-
mentação, como os
talheres, para os oci-
dentais), a “barqui-
nha” feita de bambu
que abriga os cama-
rões, o nabo ralado
(este sim, típico da
culinária japonesa) e
mesmo a cor averme-
lhada do guardanapo
sob o prato. Tudo lem-
bra Japão. Tudo, aqui,
tenta resgatar o sabor
peculiar da cozinha
japonesa por meio
desse signo visual.
Figura 18: Foto para o restau-
rante Nakombi
46
Capítulo 1
O que também foi falado, comum a todos os outros fotógrafos, é a
questão da iluminação. Sem luz, é obvio, não fotograa. Sheila prefere
a luz natural, no entanto, como fotografa basicamente em estúdio, tem de
simular esse efeito de luz natural por meio de recursos de lâmpadas, ltros,
rebatedores e outros instrumentos do aparato fotográco. “Pra mim, a co-
mida tem de ter luz natural; a não ser que você esteja em um momento
romântico e você tem uma luz mais quente”. A luz traz o “clima” que
também tem grande inuência na interpretação da foto. Para fotografar
uma xícara de café, por exemplo, Sheila nos diz que procura fazer uma
luz que salientar a sensação de vapor saindo, ou seja, a sensação do
quente. “Não tem como fotografar um café frio e fazer como se estivesse
quente.” O recurso, então, é fazer com que a própria luz consiga ressaltar o
vapor da fumaça do café. “Aí vem o café quentinho, aí eu clico”.
Como já comentado anteriormente, não é o fotógrafo sozinho, em-
bora exerça talvez a maior inuência, o grande responsável pelos efeitos
interpretativos que uma fotograa possa despertar. toda uma equipe de
pesquisa e produção que age ativamente para a realização desse traba-
lho fotográco.
Após termos percorrido os depoimentos desses fotógrafos que nos
ilustraram o seu fazer simulador em imagens por meio de seu olhar, de sua vi-
vência e, é claro, de seu clique, conheceremos agora o fazer de uma outra
gura, uma gura não menos importante para o resultado que se quer com
a elaboração e ecácia representativa desse signo fotográco. É o pro-
dutor culinário. Um produtor que deve trabalhar em consonância com o
fotógrafo e que tenha o mesmo gosto e o mesmo prazer pela gastronomia.
E é a esse produtor culinário food stylist - que vamos dedicar as próximas
páginas.
47
Capítulo 1
Por exemplo, a feijoada normalmente, pra você fazer uma foto
de feijoada, a gente tem que ter assim, não tem que usar orelha,
aquelas coisas feias, não, você parte pra lingüiça, pro paio, pra
um pedaço de costela, que são assim, mais, mais gostosos, e o
feijão, por exemplo, que é cozido, depois tem um, você separa
os grãos todos, tem um outro que é cozido até dar um creminho,
que normalmente o feijão dá. E isso a gente côa tudo e na hora de
montar, vai montando o feijão e vai colocando esse creminho, vai
pondo depois por cima, até você, normalmente se você tiver uma
vasilha muito grande, você põe um isopor assim na parte de cima,
pra poder ver que tá cheio e para evitar fazer uma panela inteira,
né? Aí vem colocando pra poder também o caldo não ir embora,
ele tem que ter um apoio na parte de baixo, ? Aí você vai pon-
do, vai colocando aquilo ali. Depois na hora da foto a gente vem
com o pincel, ou pincela com o caldo ou com óleo, depende do
que o fotografo quer ? Mas é tudo, oh, você, você que, não é
bem arrumado, é uma coisa que é arrumada e desarrumada. Mas
a receita, é a receita mesmo.
O trecho acima se refere ao início de uma conversa que tivemos,
no nal de 2006, com Maria Luiza Ferrari, mineira radicada no Rio de Janeiro
e que possui uma vasta experiência em produções de fotos culinárias para
livros, publicidade e revistas.
Figura 19: Feijoada preparada para ser fotografada
48
Capítulo 1
Nessa nossa conversa, Maria Luiza nos falou de alguns “truques” -
como ela gosta de dizer -, na tentativa de fazer com que a fotograa se
aproxime daquilo que os fotógrafos pretendem simular como real. Iremos,
então, mostrar nas páginas que se seguem, alguns desses truques e, para
tal, pedimos a paciência do leitor para nos acompanhar nesses relatos que
tentaremos descrever, ora com as próprias palavras de Maria Luiza, ora con-
tando com nossa interpretação.
Em verdade, como dizem Hicks e Shultz (1995, p.13) sobre o objeti-
vo da foto gastronômica: A la base, c’est avant tout de donner aux gens
l’envie de consommer la nourriture”. base é, antes de tudo, fazer com
que as pessoas tenham vontade de consumir o alimento).
Alguns alimentos necessitam de um cozimento diferente do que se
faz habitualmente para ingeri-los. O tempo de cozimento, dos legumes prin-
cipalmente, tem de ser controlado (tem de cozinhá-los um pouco menos
do que o habitual). A cenoura, por exemplo, nos conta Maria Luiza, tem de
passar pelo processo de branqueamento, que consiste em jogar essa raiz
em água fervendo e logo em seguida, em água bem gelada. Isso vai fazer
com que a cenoura que com consistência e aparência bem vistosa, o que
é fundamental para uma boa foto. O mesmo ocorre com o macarrão. Tem
de ser cozido “antes” do al dente e seu processo de cozimento deve ser
interrompido mergulhando-o também em água gelada. Ela também acon-
selha preparar tudo de véspera, pois as improvisações de último minuto são
bem mais laboriosas e, às vezes, podem não dar certo.
Ih, eu sofri muito quando a gente foi fazer um livro de um diretor
de arte famoso. Ele me fez cozinhar tudo na hora. Era um lugar em
que o fogão era pequeno e que inferno! Aquela água não fervia,
não cozinhava. Maior bobagem. Eu cozinho tudo de véspera, po-
nho óleo e ca tudo perfeito.
49
Capítulo 1
Conta também, que, alguns anos, numa ocasião em que tinha
de preparar uma mesa de natal para ser fotografada para um comercial
da Coca-Cola, quando estudava os elementos que iriam compor a foto,
percebeu que o panetone não se encontrava facilmente para ser compra-
do naquela época do ano em que a foto estava sendo feita, então tinha
de improvisar de alguma forma; uma improvisação “pensada”, pois ainda
se tratava do estudo do projeto da fotograa:
E na foto de Natal, não tinha panetone naquela época para com-
prar, como tem o ano inteiro hoje. Eu, mineira que sou, peguei uma
lata assim, dessas de mantimento e z uma rosca dura. Ficou igual.
Foi assim que simulamos um panetone. E são coisas, como essa,
que faço de minha cabeça. Da minha experiência.
Fotografar sorvete, por exemplo, requer um trabalho todo especial.
Na realidade, o que se está fotografando é uma mistura de banha hidro-
genada (alguns preferem manteiga, margarina) com corantes e açúcar e
mais um outro segredo que Maria Luiza preferiu não nos revelar.
Faço com fórmula falsa. Consigo fazer bem igual ao produto. Uma
bola de sorvete sabor mamão com papaia, um produto novo da
Kibon, que é todo manchado eu faço igual, eu consigo fazer igual,
eu mancho ele todo com anilinas especiais e sai igualzinho. O de
pistache é perfeito... você jura que é de pistache mesmo.
Mas, às vezes, somente essa manipulação não cumpre um papel
suciente para sugerir aquele efeito de verossimilhança. A simulação de
um sorvete de chocolate, nos relata, é de extrema diculdade. A mistura
embaça a manteiga, a margarina, a banha, seja o que estiver usando,
“então ela não aquele brilho que imprime vida ao produto [...] se você
tem uma calda pra jogar, ou uma castanha, ele uma segurada. Você
olha e dá vontade de comer”.
Quanto a preparar as carnes para foto, Maria Luiza continua
50
Capítulo 1
com suas dicas. Um steak ou um bife pode ser preparado normalmente
algumas horas antes de ser fotografado, pois na hora do clique, bastam
algumas pinceladas de óleo ou melado de cana, por exemplo, que a
aparência de “fresquinho” volta a ressaltar. Pode-se utilizar, também, o
maçarico utilizado para crème brulée (uma deliciosa sobremesa fran-
cesa feita com creme de leite, ovos, açúcar e baunilha, com uma cros-
ta de açúcar queimado por um maçarico) para dourar a carne, dando
a ela uma aparência de carne na brasa. Ou ainda, utiliza-se uma es-
pécie de serpentina de metal e amianto que, quando muito aquecida,
vai imprimir no steak ou no bife aquelas listras características de carne
grelhada. Para se fotografar hambúrgueres, prefere, ela mesma fazê-
los, e os faz maior do que um tamanho habitual para adequá-los ao
tamanho do pão e isso é feito, fora do fogo, com a ajuda de um maça-
rico. “... faço maior do que o tamanho e vou com o maçarico diminuin-
do cada um deles, fora do fogo, porque desta forma eu os ponho do
tamanho do pão”. Por falar em pão (pão de hambúrguer), o que nos
disse Maria Luiza é que nele ela não mexe. O pão, segundo ela, tem de
manter o aspecto de pão fresco, portanto tem de estar fresco. O máxi-
mo que se pode fazer é guardá-los bem fechados, por algumas horas,
para não perderem aquele aspecto de pão fresquinho. Ele é fosco e
deve manter-se fosco nenhum brilhinho artificial pode ser colocado.
Tem de ser pão comprado de uma fábrica ou de padaria, pois, nesse
tipo de pão ... a única coisa que faço é cortar e aparar a beiradinha.
Ninguém consegue fazer aquele pão em casa igualzinho ao que se uti-
liza em hambúrgueres.”
E para preparar as aves? Isso pareceu-nos uma pouco mais difí-
cil, então, vamos tentar entender com as palavras de Maria Luiza:
51
Capítulo 1
...uma das coisas mais importantes pra mim foi ter ido aos Estados
Unidos e aprender a fazer aves. Porque você vai fazer, nessa
história, um peru muito grande, que ele tem que ficar bonito,
por mais, mesmo que você o pincele, com açúcar de um lado,
porque você tem um problema que a asa doura primeiro e o
outro não tá bonito. Ou senão o peito fica, como ele ta na
frente, tem que ficar sempre passando laminado e tudo, e era
um problema, porque não ficava aquela coisa bonita que, que
não é a realidade mesmo.( A propaganda da Sadia, da Per-
digão, aquela coisa toda dourada). E lá a gente aprende de
outra maneira. Eu aprendi lá que você coloca a ave no forno,
toda já recheada com papel, tem uns grampos especiais, pra
poder esticar a pele, pra ajeitar, botar a asinha toda no lugar,
e a perninha ou pra cima ou pra baixo, dobrada enfim, e aí vai
ao forno. E quando ele vai ao forno você vê que ele deu aque-
la cor assim, que ele, você que parece que ele cozido,
retira e pincela com um produto que eu também trouxe dos
Estados Unidos. São produtos até ligados à gastronomia, molho
não sei do que, você vai pintando e tem que ter, é sério isso,
porque se pintar demais ele escurece, porque como tá quente,
então tem que fazer ele bem clarinho e na hora da foto, o fotó-
grafo fez a primeira foto, iluminou, ah, mas ainda muito claro,
aí tem como retocar... Que em fotografia, do escuro pra claro
é difícil. Claro pra escuro é mais fácil, ? Pra poder retocar
ou com computador, ? Pega um pedacinho que ta colorido
aqui, ta bonitinho lá.
Depois de nos ter passado algumas dicas na preparação dos ali-
mentos para fotograa, Maria Luiza começa a nos mostrar algumas fotos
já realizadas em livros e por ela produzidas, nos contando as etapas para a
elaboração dos projetos desses livros.
52
Capítulo 1
A reprodução fotográca que vemos acima é a ilustração de uma
receita de bacalhau com castanhas e batatas. Foi uma receita criada por
Maria Luiza na época do Natal. Essa receita foi criada devido à grande in-
uência portuguesa no Brasil. Ela nos conta que foi uma produção relativa-
Figura 20: Maria Luiza mostrando foto para livro de receita de bacalhau
53
Capítulo 1
mente fácil. O mais importante aqui foi a escolha criteriosa dos ingredientes,
sobretudo o bacalhau, que não podia ter a coluna torta “... não pode ter
escoliose [...]. Por isso é muito importante conhecer bem o seu fornecedor.
O peixeiro já sabe o que necessito, o que eu quero”. As castanhas e as ba-
tatas também foram escolhidas à dedo. Nem muito perfeitinhas, nem muito
deformadas. Nem tão perfeitinhas para não “tirar” a autenticidade do pra-
to, nem tão deformadas para não deixar o prato esteticamente feio. O pra-
to foi feito normalmente sem nenhum truque especial. Somente as batatas
e as castanhas foram carameladas, o que também fazia parte da receita
e, na hora de fotografar, bastaram algumas pinceladas de óleo para ressal-
tar o brilho que lhe devolveu a vida.
Um outro livro que produziu, em São Paulo, foi para o fotógrafo de
culinária, Sérgio Pagano, sobre sopas. Um livro, ela nos conta, que teve
um trabalho intenso, pois foram muitos utensílios utilizados na produção da
foto. Além de utilizar elementos do que possuía em seu “arsenal” pessoal,
teve de emprestar uma grande parte da louçaria de lojas especializadas
em utilidades domésticas, pois o que mais enriquecia o prato era todo o
ambiente que se criava em torno dele. “Então, a louçaria é quase a prota-
gonista nesta composição cênica.” Maria Luiza faz questão de ressaltar, (e
fazemos questão de registrar, pois estamos tentando mostrar o labor exigido
para a realização de uma produção fotográca em gastronomia), que um
belo resultado fotográco nessa área de culinária requer pesquisas e “mui-
to e muito trabalho braçal. [...] Nossa! foi uma doideira. Foi muito trabalho.
Fiquei dois dias devolvendo coisas em São Paulo”, ela relata.
Um dos trabalhos de que Maria Luiza nos fala com mais entusiasmo
e carinho - “... como, claro, sou mineira, todas as minhas mineirices coloquei
aí.” (a produção do livro de receitas culinárias regionais do SENAC intitulado
Sabores e Cores das Minas Gerais e cujo fotógrafo foi Humberto Medeiros).
54
Capítulo 1
Trata-se de um livro que mostra a cozinha mineira através do Hotel Senac
Grogotó. Situado em Barbacena, Minas Gerais, foi o primeiro hotel-escola
da América Latina. Daqui para a frente ela vai nos relatar muita coisa so-
bre esse livro, que vamos tentar reproduzir.
A gura baixo é uma reprodução da capa desse livro.
Como se tivesse saboreando cada uma das receitas retratadas no
livro, a cada página virada, Maria Luiza vai apontando essas delícias com
tamanho prazer que nos deixa realmente com água na boca.
Tudo começou em Betim. Uma das primeiras etapas foi tentar reunir
Figura 21: Foto da capa do livro Sabores& Cores das Minas Gerais
55
Capítulo 1
tudo que podia em termos de artesanato. Para isso, Maria Luiza começou
sua viagem uns dias antes do restante da equipe. Em Betim visitou o Palá-
cio das Artes e lá, com o auxílio de um historiador local, conseguiu um rico
material para a produção das fotos. “No Palácio das Artes peguei tudo de
Minas Gerais, de Minas inteiro, pra poder fazer o livro”.
Passou em seguida por uma fazenda em Borda do Campo, onde
hospedavam José Bonifácio e Dom Pedro II, para recolher mais alguns ob-
jetos e, sobretudo, para se inspirar e ganhar mais repertório com a história
e a beleza do local. Abaixo podemos ver uma montagem retratando um
pedaço da fazenda.
Continuando a folhear o livro, deparamo-nos com uma foto que
auxilia a contar um pouco da história das Minas Gerais no auge da lavra do
ouro. É uma foto de um tabuleiro de doces de leite enrolados na palha de
milho que eram vendidos pelas quituteiras negras e mulatas. Vejamos como
Medeiros conseguiu retratar esse tabuleiro e a produção feita por Maria
Luiza. Reparemos no detalhe da or feita em palha:
Figura 22: Montagem fotográca da fazenda em Borda da Mata MG para o
livro Sabores & Cores das Minas Gerais
56
Capítulo 1
“Eu gosto mesmo é da tradição de Minas. Não gosto da ‘moderni-
dade’ na comida mineira. Sou mesmo é da tradição. Às vezes o chef quer
fazer umas ‘modernidades’ que eu não gosto.” Maria Luiza se refere a uma
foto da receita de Tutu de Feijão Bêbado (g. 24), que ilustramos abaixo,
em que o chef quis imprimir um toque, segundo ela, “mais artístico, mais
moderno”. Em sua opinião, o que faz a fotograa trazer o gostinho mineiro
é o pedaço autêntico de Minas que a acompanha. Logo abaixo, também,
veremos mais duas reproduções fotográcas: uma de lingüiça feita pelo pai
de Maria Luiza (g. 25), que ela fez questão de incluir no livro, e a outra, de
uma “autêntica” feijoada mineira (g. 26), como ela gosta de dizer.
Figura 23: Doce de leite enrolado em palha. Foto para o livro
Sabores & Cores das Minas Gerais
Figura 24: Composição feita para foto do Tutu de Feijão Bêbado
57
Capítulo 1
vendo aqui. Eu adoro esta foto. Olha a feijoada. Ela colo-
cada... isso aqui é minha foto. Se você quiser pincelar com óleo,
você pincela, senão, não tanta necessidade assim. A feijoada
não com brilho, mas os pedaços, olha lá, a lingüiça que cozinhei
e cou preta [...] e eu botei, eu usei, em vez de usar barro, eu usei
essas vasilhas de alumínio, porque Minas também é alumínio. Não
com cara de que você acabou de botar na mesa?
Figura 25: Lingüiça típica caseira
Figura 26: Autêntica feijoada Mineira
58
Capítulo 1
Ora-pro-nóbis é o nome de um prato mineiro feito com carne bovi-
na, tomate e um tempero especial de Minas. É um prato de simples preparo
e por isso a composição para a foto (g. 27) foi pensada de uma maneira
bastante doméstica, com uma simples toalhinha de crochê, uma vasilha de
porcelana e “... essa Nossa Senhora olhando, como olha por nós, orando.
Essa foto é Minas, não é? Essa Nossa Senhora é uma riqueza”, nos fala Maria
Luiza com todo entusiasmo.
Uma homenagem ao Triângulo Mineiro foi retratada numa outra re-
ceita, a de Lombo de Porco. Utilizando um prato de vidro de forma triangular
e de cor verde (g. 28), a composição, segundo Maria Luiza, foi pensada para
resgatar e lembrar, de acordo com o título do livro, as cores e sabores do Triân-
gulo Mineiro. “...cou assim, mineiro. É verde igual ao nosso Trngulo”.
Figura 27: Composição fotográca do prato de carne bovina Ora-pro-nóbis
59
Capítulo 1
Veremos agora mais duas reproduções fotográcas que procuram
representar, por meio dos adornos e objetos ali arranjados, adornos e ob-
jetos típicos como os utensílios de barro, de pedra sabão, colher de pau,
esteira de palha, caminho de mesa tecido em barbante e até mesmo uma
pequena estatua de um anjo barroco, “porque Minas é tudo barroco” e ou-
tra também pequena, de uma galinha feita em Cataguaz, cidade mineira.
A primeira (g. 29) é uma receita de Frango ao Molho Pardo e a segunda
(g. 30), de Galinhada. Essas fotos foram feitas em Tiradentes MG e con-
taram com o auxílio de uma historiadora local.
Figura 28: Composição culinária fotográca representando
o Triângulo Mineiro
Figura 29: Cenário fotográco de receita de
Frango ao molho pardo.
Figura 30: Foto de Galinhada extraída do livro
Sabores & Cores das Minas Gerais
60
Capítulo 1
E como o assunto ainda é Minas Gerais, não podia faltar na edição
do livro, os famosos Pão de Queijo (g. 31), Broa de Fubá (g. 32), Pão de Mi-
lho (g. 33) e Rosca (g. 34). Todas as fotos, que serão mostradas a seguir, fo-
ram feitas numa fazenda típica mineira utilizando-se de recursos do próprio
local. Para o pão de queijo foram utilizadas a travessa e a toalha de crochê
da proprietária da fazenda no mais alto estilo tradicional de Minas Gerais;
tanto as broinhas de fubá quanto o pão de milho foram fotografados no
próprio moinho da fazenda, tendo como recursos cenográcos os utensílios
e apetrechos que ali são utilizados no trabalho diário. Quanto à rosca, ne-
nhum truque foi necessário, pois o brilho e textura que apresentou deram à
foto aquilo que realmente pretendia-se representar, “... a alma que o chef
colocou naquelas delícias”.
Figura 31: Pão de Queijo Figura 32: Broa de Fubá
Figura 33: Pão de Milho Figura 34: Rosca
61
Capítulo 1
Outra particularidade de Minas Gerais são seus doces famosos e tra-
dicionais. A cada dia do ano pode-se saborear um tipo de doce diferente
em Minas Gerais, sem contar o capricho, carinho e esmero colocados na
fabricação de cada um deles. O que se procurou mostrar na produção da
reprodução fotográca que veremos na gura. 35 foi a preocupação com
o aspecto artesanal dessa guloseima tão apreciada.
Muito maravilhoso. Doces da Terra ! Tudo talhado à mão. A gen-
te fez essa janela com a luz do dia; veja as ores do lado de fora,
[...] e as prateleiras, foram todas simuladas com pedaços de ma-
deiras rústicas para dar a sensação daquela coisa caseira,.
Realmente, se observarmos o brilho proporcionado pela luz que en-
tra pela janela e que aproveita a transparência dos potes e compoteiras
de vidro, podemos sentir toda a energia, vibração e alma que saltam de
cada recipiente numa mistura colorida dos sabores que a Natureza pode
nos oferecer. Cores que se traduzem em sabores e prazeres por intermédio
desse signo fotográco.
Figura 35: Doces artesanais de Minas
62
Capítulo 1
A próxima reprodução fotográca (g. 36) procura retratar a prepa-
ração de um doce de leite caseiro. Segundo nos conta Maria Luiza, o que
vemos, na realidade, é o conteúdo de uma lata de 20 quilos de doce de
leite industrializado que foi despejado num tacho de cobre sobre um fogão
à lenha para simular o aspecto artesanal desta guloseima. Em verdade, o
que importa mesmo é que parece que esta simulação surtiu efeito, pois
toda a composição da foto nos leva a um caminho produtor do sentido
pretendido.
O doce de leite, é claro, era de uma lata de 20 quilos cujo con-
teúdo foi colocado no tacho, porque ninguém é doido de car
fazendo doce no dia da foto e, ainda mais, debaixo de fogo alto!
Mas o doce de leite não podia faltar num livro que trata de Minas
Gerais, não é mesmo?
Figura 36: Reprodução da foto de receita de doce de leite do livro Sabores & Cores de Minas Gerais
63
Capítulo 1
No apartamento em que mora, Maria Luiza reserva dois quartos
onde reúne os mais variados objetos que utiliza em suas produções. São
objetos que vão auxiliar na composição do ambiente, do clima que se quer
construir para simular os mais diversos cenários para realização do projeto
fotográco. Objetos que são índices para criação de uma espacialidade e
que por meio das imagens fotográcas propiciam uma ação interpretativa
tentando representar aquele momento ali construído.
Vejamos, por meio das fotos a seguir, uma amostra desse “arsenal”
de nossa entrevistada.
Figura 37: Mostra do “arsenal” de produção de Maria Luiza
64
Capítulo 1
O que acabamos de ler e ver é uma pequena parte da história de
uma prossão que, para tentar extrair de um signo visual sabores e prazeres,
exige muito labor, conhecimento, o saber fazer e, sobretudo, muita paci-
ência e carinho para a elaboração da composição dos pratos, do cenário
e do clima que se cria para a fotograa de gastronomia. Escolhemos falar
mais aqui do livro sobre Minas Gerais por ser este tema mais próximo de nos-
sa entrevistada, pois, como já sabemos, ela é mineira e traz consigo, aquilo
que inuencia muito seu trabalho, toda sua “mineiridade”.
Maria Luiza participou, como citamos acima, de muitos outros
trabalhos de produção fotográca para culinária. Muito mais teríamos a
mostrar e a falar sobre o seu trabalho. São inúmeros livros, trabalhos para
publicidade, para embalagens e até mesmo para programas de televisão.
Levaríamos muito tempo e muitas páginas para contarmos tudo que pude-
mos ter aprendido com ela. Separamos um trecho de nossa entrevista que
julgamos bem ilustrativo para compreendermos um pouco mais do que
pode fazer uma food stylist.
... se eu não souber fazer a comida, pra poder arrumar os objetos
ca complicado. Acho que tem que unir uma pessoa que tem uma
habilidade muito grande de cozinhar e uma capacidade muito
boa para perceber o que se quer mostrar. Por exemplo, eu vou à
reunião com o historiador, no caso dos livros de gastronomia regio-
nal do Senac, aprendo tudo sobre aquela determinada região [...]
tem a montanha, tem o serrado, tem a mata [...] eu começo a
ver as coisas com o historiador e então, tenho uma boa noção
de que coisas, objetos, devo procurar. Chego lá e saio à cata das
coisas para poder fazer tudo acontecer. Quando o restante da
equipe chega, eu tenho de estar com quase tudo reunido.
65
Capítulo 1
Figura 38: Fotos de Maria Luiza
cozinhando e mostrando o resultado de
sua produção
66
Capítulo 1
Maria Luiza jamais fotografou. E até nos disse que não lhe agrada
muito fotografar, no entanto, fez um curso de fotograa para poder en-
tender e conversar com os fotógrafos com os quais trabalha. Não pode
deixar de vericar através do visor da câmera como es se compondo
o cenário que será fotografado. A única coisa que sei é olhar no visor,
car vendo se bom, se a gente deve pôr mais molho, seo põe mais
molho [...] é essa coisa de olhar ‘por dentro’”. E esse olhar por dentro é
perceber naquele momento que, aquele enquadramento tem de cum-
prir com o seu papel de atingir o receptor de forma mais ecaz possível. É
fazer com que ao se deparar com a foto, o espectador penetre naquele
signo e num momento de “abstração” seja levado pelos prazeres que
emanam daquela imagem. É preparar a imagem para levá-lo, o recep-
tor, a comer com os olhos.
O que procuramos mostrar nesse capítulo II foi o modo de fa-
zer dos tipos de prossionais responsáveis pelos efeitos fotográcos em
gastronomia. Esses depoimentos, dos quais tentamos extrair um pouco
da essência do construir sentidos por meio de fotograas, possibilitou-nos
entrar em contato e observar os recursos utilizados por essa equipe e
poder pontuar em cada passo, em cada elemento, em cada estratégia
da composição da cena fotografada, a elaboração imagética, seja na
construção do cerio, no jogo de luzes, no jogo cromático, no aparato
tecnológico e em quaisquer outros recursos empregados que levam o
objeto fotografado a provocar ou mesmo intensicar sensações de pra-
zer gustativo.
No capítulo que se segue iremos penetrar um pouco mais nesse
signo analisando três fotos de gastronomia tendo como processo me-
todológico as categorias da Matriz Visual, postulada por Lucia Santa-
ella, em sua obra Matrizes da Linguagem e Pensamento - sonora, visual,
67
Capítulo 1
verbal. Nessa análise poderemos, talvez, entender melhor os meandros
semióticos da construção dessa linguagem fotográca associada à tra-
dução de um sentido em outro(s).
68
Capítulo 2
Capítulo II
A Matriz Visual na fotografia gastronômica
Neste capítulo, como está indicado acima, adotaremos uma
metodologia de análise extraída da obra da Lucia Santaella, Matrizes
da Linguagem e Pensamento - sonora, visual, verbal, publicada, pela
primeira vez, pela editora Illuminuras, no ano de 2001. E, por ser ele qua-
se que totalmente pautado nesta obra, toda citação será somente
acompanhada, como referência, do número da gina de onde foi
extraída.
Em sua obra, Santaella nos apresenta as três matrizes que “...
constituem-se nas três grandes matrizes lógicas da linguagem e pensa-
mento” (p. 20) e que nos levam a compreender as linguagens que com-
põem nosso viver. Nas palavras da autora:
Postulo, portanto, que apenas três grandes matrizes de lin-
guagem e pensamento a partir das quais se originam todos os ti-
pos de linguagens e processos gnicos que os seres humanos, ao
longo de toda sua história, foram capazes de produzir. (idem)
Cada matriz é relacionada com uma categoria fenomenológica
proposta por Charles Sanders Peirce. A matriz sonora está relacionada à
primeiridade, que é o modo de ser tal como é, pura qualidade de senti-
mento; a matriz visual, com a categoria da secundidade que é o modo
de ser tal como é em relação a qualquer outra coisa consciência em
constante reagir como o mundo e a matriz verbal, à terceiridade, que
coloca em relação recíproca um primeiro com um segundo numa sínte-
se intelectual.
Nosso trabalho focará a matriz visual aplicada à fotografia gas-
69
Capítulo 2
tronômica. Peirce define o signo fotográfico com respeito à relação
com o objeto (a secundidade do signo), por um lado, como icônica;
por outro lado, como indicial. É assim que fotos são:
...de certo modo, exatamente como os objetos que elas represen-
tam e, portanto, icônicas. Por outro lado, elas mantêm uma ‘liga-
ção física’ com seu objeto, o que as torna indexicais, pois a ima-
gem fotográca é obrigada sicamente a corresponder ponto por
ponto à natureza (CP 2.281).
O questionamento de nossa pesquisa se pauta em entender
como é possível que uma imagem fixa, chapada, enfim, bidimensional
seja capaz de produzir no seu receptor reações sinestésicas quase tão
ou mais fortes do que a percepção que o próprio fenômeno produziria.
Melhor explicando, como e por que as imagens fotográficas da gastro-
nomia desencadeiam reações gustativas tão eficazes quanto aquelas
que são produzidas quando estamos diante de um prato no ato da re-
feição, por exemplo, mesmo levando em consideração estarmos, nes-
te ato, muito mais próximos do fenômeno com todas as características
perceptuais de visualidade e aroma que lhes são próprias.
Levantamos como hipótese primária que os recursos semióticos
de produção da fotografia gastronômica são responsáveis por desen-
cadear e intensificar prazeres gustativos numa mente interpretadora.
Para podermos trabalhar com esta hipótese pensamos em hipóteses se-
cundárias sobre as quais este capítulo se desenvolverá. Vejamos, então,
nossas hipóteses secundárias:
a) Os recursos empregados na produção fotográfica são pensados/pro-
jetados segundo o repertório signico do espectador a que a mensagem
se destina.
a1) As expectativas de hábitos interpretativos do espectador podem ser
reiteradas ou ressignicadas segundo a forma da composição fotográca.
70
Capítulo 2
a2) A composição fotográfica é capaz de ampliar o repertório de com-
binação gastronômica e assim capaz de introduzir novos hábitos inter-
pretativos de sabores.
b) A composição dos elementos visuais na fotografia gastronômica faz
parte dos recursos semióticos para despertar uma percepção gustativa
experienciada
b1) A combinação exata da cores pode colocar em destaque a recei-
ta-tema
b2) Luzes, filtros etc., são qualidades semióticas utilizadas para ressaltar
os efeitos pretendidos com a receita-tema.
b3) A inclusão de não comestíveis, utensílios da culinária, mobiliário, a
presença discreta dos ingredientes da receita-tema e produtos in natu-
ra na composição fotográfica reforçam o convite à tomada de hábito
interpretativo da imagem gastronômica e ao resgate de uma memória
gustativa.
Neste capítulo aplicaremos as categorias da matriz visual, suas
modalidades e submodalidades ao nosso objeto de estudo. Para isso,
um breve percurso nesse assunto se faz necessário para que possamos
entendê-las um pouco melhor. Obviamente será um percurso econô-
mico, pois sua completa definição encontra-se na obra de Santaella
acima citada. Daremos uma especial atenção às modalidades e sub-
modalidades selecionadas para nossa análise, e as apresentaremos no
contexto do nosso objeto de estudo. As demais, as trataremos de um
modo mais genérico.
1. Formas não-representativas
São aquelas que não trazem consigo conexão direta com aquilo
que lhe é externo, ou seja, não representam nenhum objeto identificá-
71
Capítulo 2
vel. Sugerem, convidam à interpretações pelo seu caráter puramente
qualitativo.
1.1 A qualidade reduzida a si mesma: a talidade (Suchness).
...qualidade tal qual é, em si mesma, sem relação a nenhuma
outra coisa.”(p. 210). Qualidades que podem sugerir formas e visões das
mais diversas naturezas numa mente interpretadora. “Nada lhes asse-
melha e, por isso mesmo, tudo pode se lhes assemelhar (p. 212). É uma
modalidade, segundo Santaella, tão tenra, tão monádica, que fica di-
fícil pensar em dividi-la, porém a autora as subdivide em três níveis bem
pertinentes para nossas análises.
1.1.1 A qualidade como possibilidade
Trata-se aqui da qualidade como mera possibilidade, aquilo que
ainda está por se realizar, sem definição, está a caminho de encontrar
um corpo para se encarnar, uma “...quase idéia, a quase–visão interior a
caminho de uma forma ainda não capturada...”(p. 213). Ícone puro.
1.1.2 A qualidade materializada
Se na submodalidade anterior dissemos que a qualidade está a
caminho de encontrar um corpo para se encarnar, nesta submodalida-
de é a qualidade encontrando esse corpo. É a qualidade que encontra
matéria para poder começar a significar.
Dentro da modalidade 1.1 (a qualidade reduzida a si mesma:
a talidade), todas as outras submodalidades descritas a seguir (nume-
radas de 1.1.3 até 1.3.3) não foram selecionadas para nossas análises,
72
Capítulo 2
porém delas vamos traçar algumas linhas também, visando a obtenção
de uma visão geral sobre o assunto.
1.1.3 As leis naturais da qualidade
As qualidades são regidas por leis naturais. Nas formas visuais isso
fica mais claro quando Santaella cita (p. 215) o exemplo amplamente
conhecido e aceito, de que “a cor de uma substância está relacionada
com o mecanismo com que a luz interage com a matéria e, da mesma
maneira, com os receptores visuais de que dispomos. Ou quando os
gestaltistas demonstram que as formas visuais se organizam na percep-
ção “...de acordo com leis definíveis que apresentam homologias com
a organização das formas no mundo puramente físico” (idem).
1.2 A qualidade como acontecimento singular: a marca do gesto
“Qualidades manifestadas são qualidades encarnadas em ob-
jetos singulares” (p. 216). Trata-se aqui da marca do gesto de quem a
criou. As marcas de como foram produzidas, os vestígios dos instrumen-
tos e meios utilizados. Os atos que permitem reconhecer seus autores.
Pollock, Duchamp, entre outros, são referências deixadas por Santaella
(p. 217) para ilustrar esta modalidade.
1.2.1 A marca qualitativa do gesto
A maneira, talvez, mais fácil para tentarmos entender esta sub-
modalidade, é citarmos mais uma vez Santaella (p. 218) quando deixa
as seguintes questões: De onde uma qualidade nasceu? Quais foram
os meios, instrumentos, suportes utilizados na feitura de uma forma vi-
sual?” Ou seja, qual a origem dessas qualidades. As diferentes textu-
73
Capítulo 2
ras, os diferentes meios de produção dessas qualidades, as pinceladas
de certos artistas. “Não como apagar por completo de uma quali-
dade visual [...] a marca do gesto através do qual essa qualidade foi
produzida.”(idem)
1.2.2 O gesto em ato
É dar status de arte a um gesto singular. É fazer da escolha de um
gesto uma manifestação de arte.
Inserem-se nessa modalidade do gesto em ato, todos os tipos de
intervenções artísticas, inclusive as urbanísticas, pois a intervenção
propositada do artista é fruto de um gesto imaginário-conceitual
de apropriação e transguração de todos os meios que a galá-
xia imagética, midiática e urbanística coloca à sua disposição
(p.219)
1.2.3 As leis físicas e fisiológicas do gesto
Todo gesto de dar forma a uma matéria está sob a influência
de leis físicas e fisiológicas. É na observação dos processos físicos dos
materiais utilizados, que os artistas, por exemplo, aprendem “... a desen-
volver um sentido instantâneo da configuração visual” (p. 220). E ainda,
citando Arheim (1954: 135-137 apud p. 220):
O olho e a mão são o pai e a mãe da atividade artística. [...]
Desenhar, pintar, modelar são partes do comportamento motor
humano. [...] A forma, o tamanho e a orientação da atividade
manual é determinada pela constrão mecânica do braço e
da mão.
1.3 A qualidade como lei: a invariância
As qualidades cor, ponto, linha, superfície, forma obedecem a
leis que lhes são particulares. “Leis definidas e precisas” (p. 220). As co-
74
Capítulo 2
res obedecem às leis do seu círculo cromático (tons, purezas, claridade,
comportamento); ponto, linha, superfície, podem determinar uma com-
posição pictórica; formas, como diz Santaella (idem): “... a teoria ges-
táltica já as desvendou com todas as minúcias, revelando que qualquer
padrão visual aparece como um todo organizado...”
1.3.1 As leis do acaso
Por mais previsíveis que sejam os resultados de um dado acon-
tecimento calculado com exatidão, sempre, um elemento do acaso,
...um elemento de variação fortuita, imperceptível...(p. 222) faz com
que o supostamente esperado apresente diferenças qualitativas neste
resultado.
1.3.2 As réplicas como instâncias da lei
Por mais abstratas que se apresentem as formas, estas não esca-
pam de serem réplicas “...das leis gerais e princípios ainda mais abstra-
tos que lhes são subjacentes...”(p. 225).
1.3.3 A abstração das leis
Para explicar esta submodalidade, Santaella (idem) cita o livro
de Mondrian intitulado Realidade natural e realidade abstrata em que
o autor tenta convencer seu interlocutor de que “...por trás de todas as
formas visíveis, uma estrutura elementar e radicalmente simples com-
posta de intersecções de linhas horizontais e verticais.”
75
Capítulo 2
2. Formas figurativas
O que vamos aqui considerar como figura é aquela que Santa-
ella (p. 227) denomina como:
...formas que dizem respeito às imagens que basicamente fun-
cionam como duplos, isto é, transportam para o plano bidimen-
sional ou criam no espaço tridimensional réplicas de objetos pre-
existentes e, o mais das vezes, viveis no mundo externo. São
formas indiciais.
2.1A figura como qualidade
Aqui é a figura que é colocada em destaque, porém no seu as-
pecto qualitativo. Ou seja, a qualidade da figura como figura. A qua-
lidade referencial, indicial, denotativa. A qualidade como identidade,
por exemplo, de quem as criou. ...os artistas tendem a criar figuras que
funcionam como suas marcas registradas.”(p. 228).
2.1.1 A figura sui generis
São formas referenciais que apontam para objetos fora do signo
de maneira ambígua. “...o objeto do signo não vale por sua realidade
natural ou existência no espaço externo. O signo apenas o sugere ou
alude[...]” (p. 229)
2.1.2 As figuras do gesto
A cada tipo de gesto, uma figura pode ser produzida. Por isso
mesmo, depende da energia e do movimento que ali foram impressos
no momento desta produção. Figuras que ... só o gesto pode criar,
pois nelas fica imprimido o traçado do ato motor. (p. 230). Há também,
76
Capítulo 2
como diz Santaella (idem), “...outros fatores que influenciam a qualida-
de das figuras do gesto, [...] o tipo de personalidade, o humor ou a ex-
periência naquele momento particular de quem traça as linhas....
2.1.3 A figura como tipo de estereótipo
As figuras são, neste caso, construídas a partir de um estereótipo
ou de estereótipos mentais próprios do autor. “Uma fórmula ou esque-
ma visual é adaptado e ajustado para dar conta de uma figura singular
que se quer registrar. (p. 231)
2.2 A figura como registro: a conexão dinâmica
Figura como registro: a conexão dinâmica é aquilo que mais pró-
ximo está da indexicalidade do signo. O signo e seu objeto estão liga-
dos intimamente constituindo “um duplo orgânico” (p. 231) que não exi-
ge um grande esforço interpretativo “...cabendo ao intérprete apenas
constatá-la como uma realidade já existente” (idem).
2.2.1 Registro imitativo
Aqui se classifica a figura como registro imitativo, pois a relação
entre o signo e seu objeto, embora seja iconicamente forte, exerce uma
função muito mais indicial. Um exemplo disso são alguns sinais de trânsi-
to como o da curva sinuosa, se constitui numa placa com um desenho
que se assemelha a uma curva sinuosa, no entanto, este traçado indica
a particularidade desta curva. Caricaturas ou as artes realistas consti-
tuem outros exemplos deste registro. São icônicos, porém indicativos da-
quilo que se está representando. O artista teve uma relação existencial
com o objeto do signo.
77
Capítulo 2
2.2.2 Registro físico
A fotografia.
A foto “...é um vestígio deixado sobre uma superfície especial
pela combinação de luz e ação química”. (METZ, 1985, p.82 apud p.
235)
2.2.3 Registro por convenção
Os mapas são exemplos bem significativos desta submodalida-
de. São registros que para se realizarem devem submeter-se a regras
convencionais conhecimento e aprendizado prévios “...não das con-
venções que regem o registro, mas também da natureza do próprio ob-
jeto indicado” (p. 237).
2.3 A figura como convenção: a codificação
Para se reproduzir uma figura (um visível), há que se dominar todo
um sistema de convenções gráficas.
Não se pode simplesmente imitar a forma exterior de um objeto
sem ter antes aprendido como construir tal forma, i.e., sem a aquisi-
ção de um vocabulário convencional de projeção gráca ou plás-
tica das imagens. (p. 237).
2.3.1 A codificação qualitativa do espaço pictórico
Neste caso, a construção figurativa caminha, cada vez mais,
para uma codificação qualitativa. Ou seja, depende da alternância rít-
mica de cores ou de tons criando uma unidade colorística e iluminísti-
cas. Quer dizer, há regras a serem seguidas, mas elas são ditadas pela
qualidade dos elementos pictóricos”.(p. 243)
78
Capítulo 2
2.3.2 A singularização das convenções: o estilo
Como cita Santaella (p. 244) “...o estilo não é uma marca ape-
nas histórica, mas também individual. Isso faz com que cada artista seja
um “tradutor” (idem) das regras convencionais deixadas por seus ante-
cessores, assumindo assim, seu próprio estilo.
2.3.3 A codificação racionalista do espaço pictórico
A perspectiva monocular é o que de mais racionalista num
sistema de codificação de um plano visual.
...com ele (o olho)
1
, logrou-se alcançar uma sistematização da
organização pictórica definitiva a um tal ponto que, quando se deseja
traduzir aquilo que é visto em uma superfície bidimensional, a geometria
da perspectiva tem de ser empregada por necessidade. (p. 245)
3. Formas representativas
De acordo com Santaella e Nöth (1998: 150-152, apud p. 246) “for-
mas visuais se tornam símbolos quando o significado de seus elementos
pode ser interpretado com ajuda do código de convenções cultu-
rais, que muitas vezes são gerados pela freqüência de uso de soluções
visuais representativas as quais eram, a princípio, predominantemente
icônicas. Daí se falar em representação, em formas representativas.
1
Grifos nossos
79
Capítulo 2
Estando em nível de terceiridade, as formas visuais representativas
ou simbólicas são muito instrutivas para se compreender o modo
como a terceiridade embute a secundidade e esta, a primeirida-
de. Por serem formas, muitas vezes gurativas, diagramáticas ou
até mesmo imagens, elas mantêm um nível acentuado de indexi-
calidade, quer dizer, as guras indicam algo do mundo visível, do
que depreende seu nível de secundidade, denotativo, referencial.
Mas essa referencialidade é possível porque uma similaridade
aparente, abstrata entre a forma e aquilo que ela denota, do que
se depreende seu nível de primeiridade, icônico, mimético. Entre-
tanto, mesmo mantendo a presença desses dois níveis, sobre eles,
as formas representativas ainda acrescentam um nível suplementar
de signicação que pode ser apreendido por aqueles que domi-
nam o sistema de convenções culturais a partir do qual as guras
se ordenam. (p. 247).
3.1 Representação por analogia: a semelhança
São formas simbólicas e ao mesmo tempo motivadas porque
mantêm vínculo de semelhança com aquilo que representam. Seme-
lhança “aparente ou diagramática” (p. 249), mas necessitando de con-
venções culturais para seu entendimento.
3.1.1 Representação imitativa
É uma representação em que a função mimética se faz so-
brestante. “...a forma visual está ligada ao seu objeto por uma con-
venção ou sistema de convenções...(p. 250), porém dando uma
sustentação quase que imperceptível, pois o que aí predomina é o
aspecto imitativo.
3.1.2 Representação figurada
A figura, aqui, deve indicar aquilo que denota, porém ela seria
um índice que indica seu objeto por semelhança. Um índice icônico.
Mas, quando aí é acrescentada uma função simbólica, cria-se uma es-
80
Capítulo 2
critura. Melhor dizendo, A figura, de fato, indica aquilo que denota.
Entretanto, aquilo que denota não é um singular, mas um geral.”(p. 251).
Os hieróglifos constituem exemplos de representação figurada.
3.1.3 Representação ideativa
A representação ideativa é aquela que se baseia em analogias
entre “...a representação figurativa e o referido”(p. 253). Há, na reali-
dade, uma combinação de caracteres motivando o significado de um
novo conceito ou idéia.
3.2 Representação por figuração: a cifra
No caso da representação por figuração, a cifra diz respeito à
formas visuais em que as figuras não têm uma relação existencial com
aquilo que indicam, mas sim à “idéias gerais enigmáticas (idem). Ou
seja, idéias que necessitam, para seu entendimento, serem decifradas.
3.2.1 Cifra por analogia
São figuras que necessitam de chaves para serem entendidas.
O observador tem de passar por um processo de aprendizagem para
poder ler certas imagens, mesmo estas imagens apresentando analogia
com o objeto referido.
3.2.2 Cifra de relações existenciais
Nesta submodalidade, o material de base está na própria vida e na
memória que ela deixa. Fragmentos, recortes visuais de situações
vividas são deslocadas de seu contexto habitual para fazerem par-
te de uma nova sintaxe engendrada ad hoc.(p. 255)
81
Capítulo 2
Uma nova sintaxe que vela ...os sentidos originais dos objetos e
situações...”(idem) trazendo um significado codificado, enigmático.
3.2.3 Cifra por codificação
É quando o código é representado por caracteres cifrados.
Quando a mensagem está velada, oculta ao olhar leigo.
3.3 Representação por convenção: o sistema
É aquela representação que não necessita de relações de simi-
laridade, figurativas e indicativas do objeto para ter o poder de repre-
sentar. A escrita alfabética é um exemplo desta modalidade.
3.3.1 Sistemas convencionais analógicos
O sentido de analogia, aqui, se fixa mais à semelhança com
aquilo que se quer designar. Um dos exemplos citados por Santaella (p.
257) são as partituras musicais.
As linhas ascendentes ou descendentes das notas na pauta, as hie-
rarquias dos sinais das notas brancas para as pretas e assim por
diante são hierarquias icônicas. Elas apresentam semelhanças com
aquilo que designa. (idem)
3.3.2 Sistemas convencionais indiciais
Aqui, o que se quer dizer com convenções indiciais é aquilo que
faz parte da representação do domínio do mercado (indústria, comér-
cio, publicidade etc.). São os logotipos, as logomarcas, as siglas.
Os logotipos e as marcas só têm sentido na medida em que são in-
82
Capítulo 2
dicadoras do objeto que representam. Mas o objeto representado
tem a sua existência a um tal ponto colocada à marca que esta
passa a funcionar como assinatura de um nome próprio. (p. 258)
3.3.3 Sistemas convencionais arbitrários
A representação visual dos sons produzidos na fala - “tradu-
ção visual em grafemas” (p. 258) – como também os símbolos da mate-
mática, da física, da química etc., os logografos - (...$,%, & etc.)(idem),
são todos parte de sistemas convencionais arbitrários.
Como prometido acima, tentamos, aqui, fazer um percurso mui-
to econômico sobre as modalidades e submodalidades da matriz visual
proposta por Santaella.
O que pretendemos, agora, é tentar conciliar cada um de nos-
sos questionamentos com as ferramentas mais adequadas para as
análises.
Das 9 modalidades e 27 submodalidades da matriz visual, sele-
cionamos aquelas que entendemos mais próximas para a aplicação em
nossas análises. Estas, as indicamos no quadro abaixo e vamos discorrer
um pouco mais sobre elas num contexto mais específico do nosso obje-
to de estudo.
83
Capítulo 2
(1) Formas (2) Formas (3) Formas
não-representativas figurativas representativas
1.1 A qualidade 2.1 A figura como 3.1 Representação
reduzida a si mesma: qualidade por analogia:
a talidade a semelhança
2.1.1 Figura suigeneris
1.1.1 A qualidade
como 2.1.2 As figuras do
possibilidade gesto
1.1.2 A qualidade 2.1.3 A figura como
materializada tipo e estereótipo
2.2 A figura como
registro: a conexão
dinâmica
2.2.2 O registro físico
Formas não-representativas:
... dizem respeito a redução da declaração visual a elementos pu-
ros: tons, cores, manchas, brilhos, contornos, formas, movimentos,
ritmos, concentração de energia, texturas, massas, proporções, di-
mensões, volumes etc. (p. 210)
São essas formas não-representativas que contribuirão na com-
posição da fotografia gastronômica para que ela seja capaz de ofe-
recer o tom, o sabor e o poder de despertar toda a imaginação, po-
dendo provocar reações gustativas numa mente interpretadora. São
aquelas que estão presentes em qualquer fotografia, que por ser um
signo predominantemente indicial, pois indica aquilo que está fora do
signo, mantém com o objeto representado uma conexão física, por isso
é indexical, e por isso que - “[...] a imagem fotográfica é obrigada fisi-
camente a corresponder ponto por ponto à natureza (CP 2.246) - está
84
Capítulo 2
prenhe de qualidades; qualidades que a ele são inerentes.
As formas não-representativas, como sua própria denominação
mostra, não têm poder de representar seu objeto, no entanto, por não
poder representar nada, pode vir a representar qualquer coisa; melhor
explicando, esse não-representar possui alto poder sugestivo, imagina-
tivo. “É esse poder que fisga a imaginação do observador, nele desen-
cadeando o demônio das similitudes” (p. 211). É isso que traz à mente
interpretadora uma infinidade de possibilidades interpretativas.
Sabemos que, como estamos lidando com a matriz visual, esta
está predominantemente ligada à segunda categoria fenomenológica
peirceana, a secundidade, ou seja, ao caráter indicial do signo, o que
não significa dizer que este signo não traga consigo qualidades, carac-
terística da primeiridade – se não as trouxesse não existiria – e um poder
interpretativo, característica da terceiridade.
Enquanto a referencialidade é dada pelo elemento de secundi-
dade, a faculdade imaginativa é dada pelo elemento de primei-
ridade. É por isso que, sem o índice, o símbolo perderia todo seu
poder de referência e, sem o ícone, perderia todo o seu poder de
imaginação. (SANTELLA e NÖTH, 1998).
No item (b) de nossas hipóteses propomos que a composição
dos elementos visuais na fotografia gastronômica faz parte dos recursos
semióticos para despertar uma memória gustativa e, destrinchando um
pouco mais, falamos que a combinação exata das cores pode colocar
em destaque a receita tema (b1), que os cenários, luzes, filtros etc. são
recursos utilizados para ressaltar os efeitos pretendidos com a receita-
tema (b2)
85
Capítulo 2
Para essas
hipóteses, na cate-
goria formas não-
representativas,
pensamos na mo-
dalidade: a quali-
dade reduzida a si
mesma: a talida-
de, mas é em sua
submodalidade a
qualidade como possibilidade que iremos encontrar mais subsídios para
nossa análise . Nesse caminho, ao falarmos da fotografia gastronômi-
ca, temos de nos ater mais nas qualidades que possam, por meio das
formas, das cores, do brilho sugerir, de imediato, uma aparência que
caracterize certo tipo de objeto que se quer representar; o vermelho
e as formas arredondadas de uma maçã, por exemplo. Mas isso antes
mesmo de podermos discernir este objeto como uma maçã; é a forma
germinal de percepção daquele objeto maçã. Nessa nossa hipótese
são as combinações das cores que podem ressaltar a receita-tema. É
na composição deste signo em que as cores devem realizar papel fun-
damental do despertar de uma memória gustativa. O mesmo pode ser
dito sobre nossa hipótese (b2) , a qualidade imprimida preparada por
recursos de luzes, brilhos e filtros. Nestas, essas qualidades podem ter a
propriedade de criar representações de ambientes mais quentes, mais
frios, mais aconchegantes, mais rústicos, mais naturais, mais românticos...
contribuindo para, numa gestalt, fazer aflorar à mente de um observa-
dor memórias que podem provocar prazeres gustativos. Pretendemos
ilustrar melhor essas afirmações quando de nossas análises.
86
Capítulo 2
Intimamen-
te ligada ao que
acabamos de ex-
planar, está a sub-
modalidade a
qualidade materia-
lizada, qualidades
que se encarnam.
A vermelhidão do
vermelho que en-
contra a maça, as formas arredondadas encarnadas nesta fruta, os
efeitos das luzes e filtros que contribuem para sugerir uma fruta mais
fresca, mais apetitosa. Se a submodalidade anterior a qualidade como
possibilidade “são formas em fase de nascimento” (p. 213), para a
submodalidade a qualidade materializada, talvez possamos falar em
formas recém nascidas, ou melhor, se na outra submodalidade pode-
mos pensar nas definições de ícones puros, nesta, pudéssemos, talvez,
pensarmos em ícone atual (ver SANTAELLA, 1998) a caminho, então, da
etapa final do processo perceptivo.
Para começarmos nossas análises vamos, num primeiro período,
observar três reproduções fotográficas da mídia impressa.o elas: uma
fotografia de um hors d’ouevre (entrada), uma de um prato principal e
a outra, de uma sobremesa. Para isso iremos tentar efetuar nossas aná-
lises dentro de cada categoria, suas modalidades e submodalidades.
No que diz respeito ao que Santaella denomina de formas não-
repesentativas podemos analisar:
87
Capítulo 2
88
Capítulo 2
Esta é uma peça de página dupla do livro Photo Culinaire Hicks
e Schultz p. 20-21 foto de autoria de Javier Sarda, intitulada Caviar,
feita para a revista espanhola Comer y Beber.
Existem os amantes dessa iguaria, aqueles que, por exemplo, ao
bater os olhos nessa reprodução fotográfica são tocados por sua com-
posição a ponto de provocar prazeres gustativos e assim, estimular uma
memória gastronômica particular. Outros percebem a nobreza do pra-
to – isso será mais notado em nossas análises – porém, não possuem um
repertório gustativo ou já o provaram e não gostaram. Há um terceiro
grupo que nunca viu e tampouco provou caviar. Para este último, a ta-
refa deste signo fotográfico exige mais labor.
Tentando, então, fazer uma relação com as modalidades e sub-
modalidades apresentadas anteriormente, iniciaremos a análise desta
peça pelas formas não-representativas, porém vale aqui ressaltar que
as formas não-representativas são formas mais próximas da abstração
(são formas abstratas), elas não representam, mas são elas que por-
tam as qualidades primeiras para dar fundamento ao signo. Para que
se possam verificar as potencialidades dessas puras qualidades, nesta
reprodução fotográfica, podemos observar, antes de tudo, o aspecto
do brilho, - a qualidade reduzida a si mesma: a talidade. Melhor expli-
cando, nessa submodalidade já se pode falar em qualissigno – qualida-
de que possui o poder de representação (um quase-signo) aquele
que se refere à aparência daquilo que se apresenta. Esse qualissigno
brilho encontra corpo e encarna-se nos utensílios pote para caviar,
tampa do pote, sous-plat, colher -, nas pedras de gelo, em cada ova de
esturjão; o qualissigno textura na toalha de mesa; o qualissigno cor, no
ocre-marrom-amarelada de toda a composição fotográfica. Esses qua-
lissignos sugerindo os aspectos de nobreza tanto refletido nos metais dos
89
Capítulo 2
utensílios quanto no material de que são compostos a toalha de mesa e
o guardanapo linho -; o frescor imprimido nas ovas, nas pedras de gelo
e nas gotículas de água no pote e sous-plat, e também do aspecto de
suculência que o brilho imprime nas ovas dentro do pote. Falamos aqui
na qualidade reduzida a si mesma: a talidade, mas é na submodalida-
de, a qualidade como possibilidade que podemos evidenciar aspectos
germinais que dão início à compreensão do objeto do signo que, nessa
foto pode-se observar por meio das qualidades, por exemplo, as quali-
dades cromáticas, nas qualidades de textura, nas qualidades do brilho.
Essas qualidades na medida em que vão encontrando um corpo, vão
ganhando formas. É o que diz a submodalidade: a qualidade mate-
rializada. Nessa reprodução fotográfica, fica bem claro o papel desta
submodalidade quando se observa o brilho nos utensílios, no gelo, nas
ovas; a textura da toalha de mesa e do guardanapo; a luz – cor - ocre-
marrom-amarelada em todo o ambiente.
90
Capítulo 2
Figura 40
91
Capítulo 2
Na mesma senda das formas não-representativas observaremos a
gura acima - uma reprodução fotográca que faz parte de uma reporta-
gem intitulada A Saudável Carne de Porco publicada na edição de núme-
ro 4 da revista Prazeres da Mesa da 4Capas Editora com matéria assinada
por Daniel Rizzo, com fotos de Dulla e produção de Camile Comandine e
prato preparado pelo chef Alain do Restaurante L’Assiete, de São Paulo.
Esta é a foto que elegemos como prato principal. Num primeiro mo-
mento, talvez, o para perceber que se trata de uma costela de porco;
isso nos é indicado pela legenda da foto: Costela de porco sabor Ásia. No en-
tanto, pode-se perceber que se trata de um prato de carne acompanhado de
legumes, cogumelos, molhos e um estilo particular de composição culinária.
Em suas formas não-representativas o que chama a atenção é a quali-
dade reduzida a si mesma: a talidade. Pode-se notar nitidamente, nessa foto, a
riqueza das qualidades cromáticas. Percebe-se um jogo entre cores frias, verde,
azul, e as quentes, ocre, marrom, cenoura, amarela. São qualidades que, so-
madas a outras como o brilho – esta iremos encontrar em todas as nossas aná-
lises, pois uma das qualidades primordiais de um signo fotogco é a do brilho,
é a luz reetida - a textura, as formas, dão vida ao signo fazendo com que ele
consiga se aproximar bem mais do seu objeto e com isso, tornar mais fácil a
tarefa do processo perceptivo numa mente interpretadora. Vejamos, eno,
como se comportam essas qualidades quando encontram uma materialidade:
a qualidade materializada. As cores frias, predominantemente na parte supe-
rior da foto – e aqui podemos vericar que esta parte superior constitui o plano
de fundo na foto e está um tanto quanto desfocada, com uma imagem ou
-, encontram corpo numa gura que nos sugere um guardanapo notemos
as variações do tom da cor verde que nos encaminha para uma percepção
das formas de um guardanapo, suas dobras (verde mais escuro), sua posição
à mesa – e tamm em outra gura que nos sugere um copo de vidro devido
92
Capítulo 2
seu aspecto transparente representado pelas qualidades de brilho e formas ge-
ométricas. Um vidro levemente azulado.
A foto é atravessada por uma faixa branca, sobre a qual o alimento
está apoiado. Esta faixa branca nos sugere a gura de um prato de louça ou
porcelana. Parece-nos mais um prato de louça, pois a espessura que nos é
mostrada lembra as qualidades pprias de uma pa de loa; porcelana
geralmente apresenta paredes bem mais nas do que as que a que podemos
perceber aqui. As cores quentes representam maior peso nessa composão
fotográca, pois colocam em destaque a receita tema. O tema predominante
é carne de porco, mais especicamente costela de porco. Aqui as cores de
tons marrons e a textura nos sugerem uma carne que pode ter sido assada ou
frita. As cores e formas características dos pedaços dos legumes, nos sugerin-
do cenouras cozidas e cogumelos refogados. No canto inferior direito da foto,
percebe-se uma discreta gura que, por suas qualidades de forma, cor e brilho,
nos remetem a uma gura de um garfo. Outra qualidade importante - voltamos
a insistir - é a do brilho. Notemos que esta qualidade, além de imprimir aspectos
de suculência e frescor ao alimento, também reforça seu destaque e importân-
cia como gura em primeiro plano. Nota-se, aqui, por meio do brilho, uma luz
que se direciona da esquerda para a direita, facilitando, assim, o processo de
leitura, o processo ocidental de leitura, que se da esquerda para a direita.
Pois bem, percorremos um pouco nesta peça as qualidades que encontram
matéria para contribuir no processo perceptivo.
Ainda sobre as formas não-representativas, analisaremos mais uma foto
que é uma peça que faz parte da capa e de um passo a passo de uma receita
da nossa sobremesa – Proterolesda revista Alta Gastronomia, da editora AW,
na sua edição de número 60. A receita é da chef Mariana Hatsue – Restauran-
te La Toque, em São Paulo , a produção é de Marly Arnaud e a fotograa, de
Artur Bragaa.
93
Capítulo 2
Figura 41
94
Capítulo 2
Muito popular na França, essa sobremesa vem se popularizando
cada vez mais em todo o mundo. Reza a lenda que essa iguaria foi um
presente de um chef italiano, no século XVI, para a soberana rainha da
França, Catarina de Médicis. É uma espécie de carolina recheada com
sorvete de baunilha e coberta por chocolate em calda.
Como deve, então, ter sido pensada toda a produção desta
foto? Vejamos nas formas não-representativas, a qualidade reduzida a
si mesma: a talidade, de início, se mostra muito presente na quase
totalidade da peça por sua cromaticidade achocolatada. Esta submo-
dalidade abre caminho para outras duas, a qualidade como possibi-
lidade e a qualidade materializada. A primeira vai imprimir no signo a
capacidade imaginativa para o resgate dos sabores e outras sensações
que devem exalar da foto. Melhor dizendo, o resgate das memórias
olfativa e gustativa do chocolate, da baunilha; do frescor do sorvete e
da hortelã e também de um ambiente ao ar livre (natureza). Pode se
perceber ao fundo, formas que sugerem galhos de arbustos, folhas em
movimento, pequenos frutos avermelhados, uma luz do dia. Essa quali-
dade como possibilidade tem de ganhar corpo para que o signo como
mediador entre seu objeto e o observador, possa cumprir seu papel de
representar. Ganhar corpo significa materializar-se. Isto fica, então, ao
encargo da qualidade materializada. Esta submodalidade se faz veri-
ficar - como não pode faltar numa fotografia - na qualidade do brilho
incorporada na representação da luz, da calda de chocolate, das folhi-
nhas de hortelã, no metal da colher e do garfo; nas texturas da toalhi-
nha entrelaçada sob o prato, nas fibras da fava de baunilha; nas cores
amareladas do sorvete sabor baunilha e na cor chocolate, na calda e
pedaço desta delícia.
95
Capítulo 2
Formas Figurativas
Como já citado acima, as formas figurativas são formas que fun-
cionam como um duplo.
São esses “duplos que na fotografia transportam para o plano
bidimensional as réplicas de objetos preexistentes. É evidente que para
que possamos obter o resultado interpretativo esperado, é de suma im-
portância que esse signo indicial a fotografia apresente uma seme-
lhança, a mais fiel possível, com aquilo que chamamos de referente,
o seu objeto dinâmico, seja na exacerbação das qualidades, seja na
apresentação de imagens próximas daquilo que o signo pode represen-
tar e que o intérprete é capaz de decodificar. O papel desempenhado
nas formas figurativas, diz Santaella (p. 227), é de grande importância
para sua identificação que pressupõe memória e a antecipação no pro-
cesso perceptivo. Nessas formas [...], os elementos visuais são postos a
serviço da vocação mimética, ou seja, produzir ilusão de que a imagem
figurada é igual ou semelhante ao objeto real”.
Nos é necessário aqui fazer uma observação mais aguçada so-
bre o(s) objeto(s) do signo. O que Peirce entende por Objeto? Vamos ler
um fragmento do manuscrito de uma carta (L.482 apud Santaella, 2000,
p. 33) em que diz:
96
Capítulo 2
Você me pergunta se ao falar de “um poder ativo para estabele-
cer relações entre objetos” eu estenderia esta armação também
para relações entre idéias e ações? Ora, por um objeto, sem espe-
cicar se é o objeto de um signo, ou da atenção, ou da visão etc.
[...] eu quero dizer qualquer coisa que chega à mente em qualquer
sentido; de modo que qualquer coisa que é mencionada ou sobre
a qual se pensa é um objeto. Em síntese: uso o termo no sentido
para o qual o substantivo objectum foi inventado no século XIII.
[...] Eu não uso comumente objeto para Gengestand [...]. Menos
ainda tomo, depois de Leibniz, sujeito e objeto como correlativos.
Penso que aí reside uma das piores falácias da metafísica.
Ainda aproveitando-nos das palavras de Peirce, na tradução de
Santaella de um outro manuscrito (MS 693, p. 60 apud idem):
...deve-se considerar que o uso comum da palavra “objeto” como
signicando uma coisa é também incorreto. O nome objectum en-
trou em uso no século XIII como um termo da psicologia. Ele signi-
ca primariamente aquela criação da mente na sua reação com
algo mais ou menos real, criação esta que se torna aquilo para o
qual a cognição se dirige; e secundariamente um objeto é aquilo
sobre o qual um esforço é desempenhado; também aquilo que
está acoplado a algo numa relação, e mais especialmente, está
representado como estando assim acoplado; também aquilo a
que qualquer signo corresponde.
Podemos, talvez, daí concluir que um signo possui um número
variável de objetos, tamanha a complexidade da noção de objeto. Este
pode ser “[...] uma coisa singular existente e conhecida ou coisa que se
acredita ter anteriormente existido ou coisa que se espera venha existir
ou uma coleção dessas coisas [...]” (CP 2.232).
Tentemos, então agora, entender a distinção entre Objeto Dinâ-
mico e Objeto Imediato.
O Objeto Dinâmico é aquele que está fora do signo é o Objeto
Real - , o Objeto Imediato está dentro do signo e é o modo como o Di-
nâmico está ali representado.
97
Capítulo 2
Vejamos o que diz Peirce (CP 4.536 apud Santaella, 2000, p. 38):
Resta observar que normalmente dois tipos de Objetos [...]. Isto
é, temos de distinguir o Objeto Imediato, que é o Objeto tal como
o próprio Signo o representa, e cujo Ser depende assim de sua re-
presentação no Signo, e o Objeto Dinâmico que é a Realidade
que, de alguma forma, realiza a atribuição do Signo à sua Repre-
sentação.
Vejamos também um trecho de um magnífico texto de RANSDEL
intitulado On the use and abuse of the immediate/dynamical object dis-
tinction (2004, p.1)
In Peircean semeiotic, the immediate object is the semeiotical ob-
ject as it appears within the semeiosis process, which is to say that it
is the object as representatively present therein, whereas the dyna-
mical object is the object as it really is regardless of how or what it is
represented to be in any given representation of it.
A foto gastronômica, nosso objeto de estudo, representa seu Ob-
jeto Dinâmico pelo seu Objeto Imediato, que é o modo como apresen-
ta, indica e representa.
Que pode estar expresso de três maneiras: a) objeto imediato
descritivo b) objeto imediato denominativo e c) objeto imediato copu-
lante. Aquilo que se apresenta como qualidades (brilho, cor, formas)
objeto imediato abstrativo descritivo. Ser o objeto real, aquele que será
representado por uma figura um prato, uma refeição, um ambiente
gastronômico, uma fruta etc. -, no seu aspecto indicial icônico, - objeto
imediato denominativo. E aquilo que é dado culturalmente, todo o jogo
cênico, por exemplo, no seu aspecto mais simbólico, objeto imediato
copulante.
98
Capítulo 2
III. In respect to the Nature of their Dynamical Objects, Signs I found
to be either
1. Signs of Possibles. That is Abstractives such as Color, Mass, White-
ness, etc.
2. Signs of Occurrences. That is Concretives such as Man, Charle-
magne.
3. Signs of Collections. That is Collectives such as Mankind, the Hu-
man Race, etc.(CP 8.366)
Melhor explicando, numa composição fotográfica de culinária,
o objeto dinâmico não é somente o objeto com ele realmente é, a coisa
em si mesma, como também o sabor, a memória e o prazer gustativo que
se quer despertar num intérprete. Um carré de cordeiro, por exemplo, é
um carré de cordeiro. Um carré de cordeiro quando preparado para
uma foto culinária, não é mais tão somente, como objeto dinâmico, um
carré de cordeiro (o corte da carne de cordeiro), é também o sabor, o
aroma por ele despertados, sobretudo em seus aspectos qualitativos.
Na nossa hipótese (a) na qual propomos que os recursos em-
pregados na produção fotográfica são pensados/projetados segundo
o repertório signico do espectador a que a mensagem se destina, cabe
pensarmos nas formas figurativas em duas de suas modalidades: a figu-
ra como qualidade e a figura como registro: a conexão dinâmica. Para
começarmos com a submodalidade: a figura suigeneris, tomemos mais
uma citação de Santaella (p. 229) que nos diz:
Esta submodalidade diz respeito às formas referenciais que apon-
tam para objetos ou situações existentes fora do signo. Ao invés de
buscar o traçado el de uma aparência visível externa no signo, es-
sas criam gurações que obedecem à determinações imanentes e
sui generis. A gura não visa reproduzir ilusoriamente uma realidade
externa, mas é um universo à parte com qualidades próprias.
99
Capítulo 2
É o caso em que
não se conta o objeto
do signo em sua reali-
dade natural ou existên-
cia no espaço externo,
o signo apenas sugere
ou alude, criando, para
ele, dentro do signo,
uma nova qualidade,
puramente plástica.”(p.
229).
Pois é, embora
Santaella dedique mais
essa submodalidade às
obras das artes plásti-
cas, como os quadros
de Cézanne, as figuras
de Bacon entre outras,
se pensarmos na foto-
grafia gastronômica po-
demos imaginar os elementos que compõem o cenário a ser fotogra-
fado, como por exemplo, um galho de alecrim ou de cheiro verde (fig.
42) compondo um prato culinário e o que importa aqui não é somente
a figura do alecrim ou do cheiro verde representado individualmente,
mas sim, nesta composição, a uma qualidade plástica que pode vir a
recuperar ou despertar uma memória do sabor destes condimentos na
mente do observador. É essa qualidade que poderá completar, numa
mente interpretadora repertoriada para isso, o despertar do prazer gus-
tativo naquele signo.
Figura 42: Condimentos
100
Capítulo 2
A outra submodalidade que acreditamos também ser eficaz
para a nossa análise é: as figuras do gesto.
São guras cuja qualidade não vale por si mesma, mas é, sobretu-
do, indicadora do gesto de quem as criou. (p. 230)
ainda, por certo, muitos outros fatores que inuenciam a quali-
dade das guras do gesto, como, por exemplo, o tipo de persona-
lidade, o humor ou a experiência naquele momento particular de
quem traça as linhas ou manuseia o pincel. (idem)
Parece-nos, que essa submodalidade diz respeito mais à produ-
ção fotográfica no sentido de gerar uma identificação de autoria, não
somente do fotógrafo, como, talvez o mais marcante aqui, a assinatura
do chef de cuisine. E aqui, mais intimamente ligada àquela fotografia
que é capaz de deixar índices que levam a identificar quem as criou.
Isso, talvez, ocorra mais em fotografias veiculadas em revistas e livros da
Figura 43: Food stylist
101
Capítulo 2
área gastronômica do que em fotos publicitárias, pois estas estão pre-
ocupadas mais em evidenciar o produto posto à venda. Naquele tipo
de composição, o fotógrafo pode contar com uma figura hoje bastante
conhecida na elaboração dessa arte culinária, que é a food stilyst - res-
ponsável não somente pela maior parte da produção geral, como mui-
tas vezes preparando, ela própria, os pratos que serão fotografados.
A figura como tipo e estereótipo é mais uma submodalidade que
vamos explorar. Se ao construir uma figura, o desenhista, gravurista, es-
cultor seleciona uma imagem tópica extraída de seus estereótipos men-
tais, como afirma Santaella (p. 230-231), podemos, então, pensar que ao
fotografar um prato, os estereótipos mentais podem estar presentes na
mente do fotógrafo, mas este deve tentar aproximar, oximo possível,
dos estereótipos presentes na mente do intérprete, do público destina-
do àquela foto. Como vimos em seu depoimento, no capítulo anterior, o
fotógrafo Diego Rousseaux nos disse que o cenário fotográfico, de um
determinado prato, por exemplo, começa a ser elaborado na mente
muito antes do clique final. Há um resgate de experiências já vividas e
uma busca constante de repertório que possam auxiliá-lo a aproximar
mais o objeto fotografado daquilo que se pretende como resultado de
interpretação. “Quando certos modos de adaptação de um estereó-
tipo mental em figuras singulares se repetem de um artista para o outro
tem-se o que se pode chamar de estilo de época...(p. 231). Figuras que
adquirem caráter de tipos. É isso que nos permite caracterizar certas
figuras como egípcias, gregas, barrocas etc.”(idem).
102
Capítulo 2
Emprestando esses conceitos para nosso objeto de estudo, po-
deremos ousar dizer em pratos típicos. Aqueles que quando, na medida
em que podemos interpretar, olhamos e dizemos: é comida portuguesa
com certeza; ah! isso é típico dos pampas gaúchos; ou então, que so-
bremesa de dar água na boca! São esses tipos que, talvez, nos capaci-
tem a diferenciar, por meio do signo fotográfico, a comida brasileira da
italiana ou a identificar um típico doce húngaro, a diferenciar um prato
salgado de uma sobremesa.
A modalidade que talvez requerer mais a nossa atenção, ain-
da nos itens em questão, é a figura como registro: a conexão dinâmica.
Trata-se, aqui, no segundo nível das formas figurativas, intimamente liga-
da à indexicalidade do signo.
O protótipo da gura como registro: a conexão dinâmica está na
fotograa e também na holograa, pois nestas a conexão entre
imagem e objeto é existencial, espacial, temporal, na medida em
que a imagem se origina de uma relação de causalidade a partir
das leis da ótica. (p. 231)
Dentro desta modalidade, o registro físico é a submodali-
dade, talvez mais marcante para nossas análises, pois, O protótipo do
registro físico é a fotografia” (p. 234). Se, como afirma Peirce (CP 2.251
Figura 44: Bacalhau Figura 45: Sobremesa de pera
103
Capítulo 2
apud p. 235), a iconicidade da fotografia deve-se ao fato de que sua
produção está fisicamente forçada a corresponder ponto a ponto à
natureza, o que pretendemos evidenciar é que, na foto gastronômica,
para que seus efeitos possam reiterar, fazer reinterpretar e mesmo intro-
duzir novos hábitos interpretativos, os aspectos icônicos, ou melhor, di-
zendo, os aspectos qualissignicos, aqueles que vão imprimir qualidades
ao signo indicial, devem ser tratados com toda atenção possível. Para
que, por meio deste signo indicial, possamos representar, por exemplo,
uma maçã apetitosa, as qualidades que imprimem aspectos de fres-
cor, de suculência etc., têm de ser pensados, com os recursos que os
fotógrafos desenvolvem, para chegar a um resultado que corresponde
realmente ponto a ponto à sua natureza. Quanto mais os fotógrafos
puderem aproximar esse signo daquilo que chamamos de real, quando
mais puderem aproximar, através desses recursos, o signo da capaci-
dade interpretativa do público-alvo, mais eficiente será a mensagem
que se quer transmitir, seja ela na venda pura e simplesmente de um
produto, no caso da foto publicitária, seja na transmissão de um desejo
e no resultado que esse desejo vai despertar no público-alvo. Tratar com
muita atenção os aspectos qualitativos da foto gastronômica é, talvez,
condição primordial para a eficiência do trabalho pretendido. A fo-
tografia, como já citado acima, é o protótipo dessa submodalidade – o
registro físico – será, então, nesses registros que nossa pesquisa ocupará
maior espaço. É, melhor dizendo, na maneira como esses registros físicos
se mostram, e aqui envolvendo todo o processo fotográfico, que nos-
sa pesquisa encontrará o campo necessário para seu desenvolvimento.
Pois, a maneira como se dão esses registros podem ser determinantes
para estudar que tipo de mensagem ela vai denotar e, talvez, o mais
importante para nós, qual a conotação dessa mensagem.
104
Capítulo 2
Na composição de
um cenário nossa hipóte-
se (b3) pensamos que as
modalidades que mais se
aproximam para nos auxiliar
em nossas análises são, nas
formas figurativas, a figura
como qualidade: o sui ge-
neris e a figura como regis-
tro: a conexão dinâmica.
Na gura como qualidade:
o sui generis, o mesmo aqui
vale dizer daquilo exposto
quando tratamos nossa hipó-
tese (a) acima. “Esta submo-
dalidade diz respeito às for-
mas referenciais que apontam para objetos ou situações existentes fora do
signo...”(p. 229). Embora, talvez aqui como anteriormente, não possamos
falar totalmente em “fora do signo”, pois, o que analisamos é um signo fo-
tográco no seu conjunto, o que pretendemos mostrar com essa submoda-
lidade é que os elementos que compõem este signo fotográco, sobretudo
na formação de um cenário gastronômico, muitas vezes estão para auxi-
liar no resgate de uma memória gustativa daquela receita-tema proposta.
Pode ser o caso, por exemplo, de um moinho de pimenta que fora co-
locado não somente para representar a si próprio é evidente que está
um moinho de pimenta como objeto dinâmico do signo mas também, e
acreditamos esta ser a razão maior, para recuperar, na mente de um ob-
servador, o sabor peculiar da pimenta do reino, que poderá não ser visível
nesta fotograa, mas seu sabor lembrado e aguçado por meio do moinho.
O moinho, pois, como um signo dos efeitos gustativos da pimenta.
105
Capítulo 2
Na figura como registro: a conexão dinâmica, temos que “... es-
sas formas correspondem, no universo da linguagem visual, às manifes-
tações mais próximas da indexicalidade. Isto é, registro de objetos ou
situações existentes.” (p. 221) Evidentemente, a composição de um ce-
nário fotográfico está prenhe de índices e são, então, esses índices que
comporão uma espacialidade que, por sua vez, caracterizará a mensa-
gem proposta desse signo visual. Nesse estágio, ainda não importa, em-
bora se esteja no caminho, como se dá a interpretação; o que importa
é chamar a atenção do observador, é mostrar-se presente. É mostrar a
existência de objetos que comporão a representação pretendida pelo
signo. E é na composição de um cenário fotográfico que se tenta criar
uma realidade colocada diante de uma lente, que se tenta registrar um
existente, ou melhor, uma coisa que lá está ou esteve.
Desta modalidade - a figura como registro: a conexão dinâmica
a importância da submodalidade registro físico deve ficar marcada.
Não se pode falar em fotografia sem falar desta submodalidade. É ela
a que mais se aproxima deste signo visual. Portanto, quando os objetos
são pensados e colocados em relação para comporem um cenário a
ser fotografado, no caso da foto gastronômica, são índices dentro do
paradigma da culinária com o objetivo de, nesta relação, resgatar a
memória e os prazeres gustativos de um observador. “A fotografiao é
a imagem [...] uma interpretação do real; é também uma marca, um
rastro direto do real, como uma pegada ou uma scara mortuária.
(Sontag 1986 apud p. 235).
106
Capítulo 2
Retomemos, então, a primeira peça proposta para análise - Ca-
viar para estudarmos as formas figurativas.
Basicamente, como citado anteriormente, as formas figurati-
vas funcionam como um duplo, transportando para um plano bidimen-
sional réplicas de objetos já existentes no mundo externo. Na imagem
que ora analisamos são essas formas figurativas que claramente com-
põem o objeto fotografado. Um intérprete pode perceber, nessa ima-
gem, todos os seus componentes e, de acordo com sua competência
interpretativa, identificar cada elemento colocado. Vamos elencá-
los: um pote de metal para caviar, um sous-plat de metal, uma colher
de metal, uma tampa de metal, uma toalha de linho, um guardanapo
de linho mostrando um pedaço de um monograma, bordados a crivo e
de alto-relevo na toalha, pedras de gelo, um amontoado de ovas de es-
turjão. Todos, signos indiciais que estão aptos a “[...] produzir a ilusão de
que a imagem figurada é igual ou semelhante ao objeto real. (p. 227).
Das formas figurativas, a submodalidade que talvez mereça mais aten-
ção nessa foto é a figura como qualidade: o suigeneris. Merece mais
atenção, pois, é na totalidade desse signo, na sua composição cênica,
107
Capítulo 2
que os elementos indiciais tentam criar uma nova qualidade plástica,
um universo à parte com qualidades próprias. Melhor explicando, é o
todo dessa foto que poderá resgatar uma memória, nesse caso, mais de
um ambiente requintado do que o próprio sabor do caviar, porém aliar
a sofisticação aos prazeres gastronômicos. Quanto às figuras do gesto,
o que talvez possamos falar dessa reprodução fotográfica, é o que diz
respeito à sua produção. Não dá, aqui, para identificar o gesto do autor
como índice de sua personalidade ou de seu humor na hora de fotogra-
far, porém percebe-se um cuidado especial na montagem do ambiente
a ser fotografado refletido na disposição dos utensílios, na angulação e
paginação da foto. Ou seja, a fotografia se dá a 45º do olhar de quem
a observa, aproximando, assim, da posição do ato de comer (sentado
à mesa, evidentemente), embora saibamos que isso já constitui regra,
mas não deixa de ter aí, um toque pessoal de quem compõe o cenário
fotográfico. Na figura como tipo e estereótipo, aqui volta a se destacar
claramente o caráter de requinte e sofisticação da iguaria fotografada.
O fotógrafo, e muito provavelmente a equipe que colaborou para a
realização dessa foto, foram buscar e selecionar em suas mentes uma
imagem tópica extraída de seus estereótipos e procurar adequar essas
imagens aos estereótipos do público que se quer atingir. Ora, sabe-se
que as ovas de esturjão são suculentas, úmidas, então porque não ex-
plorar as qualidades do brilho; que uma cor mais próxima do dourado
traz um ar de requinte ao ambiente ou lembra metais preciosos, então
porque não explorar a qualidade cromática, são esses qualissignos que
foram muito bem utilizados na composição dessa foto queo força ao
signo para agir como mediador entre seu objeto e seu interpretante. A
modalidade a figura como registro: a conexão dinâmica, segundo nível
das formas figurativas, está, como citado anteriormente, intimamente
ligada à indexicalidade do signo. É de uma relação de causalidade,
a partir de leis da ótica, que a imagem surge. E em vista disso, iremos,
108
Capítulo 2
agora, analisar o nosso objeto de estudo segundo a submodalidade: o
registro físico. Relembrando, o protótipo do registro físico é a fotografia.
Acreditamos que na fotografia gastronômica, os aspectos qualissigni-
cos são, no cerne desse signo indicial, os grandes responsáveis por sua
aproximação com os efeitos pretendidos numa mente interpretadora.
Talvez não valha a pena nos repetir, mas nessa foto de ovas de esturjão,
são sem dúvida, as qualidades aí imprimidas que dão potência par esse
signo indicial resgatar, introduzir e até mesmo modificar hábitos gusta-
tivos. A composição das qualidades faz ressaltar certa tangibilidade à
fotografia analisada.
Passemos agora, para
a foto do prato principal.
A figura como qua-
lidade: o suigeneris, nessa
foto, está bem caracteriza-
da. Além de toda compo-
sição cênica, como ex-
plicitado na análise da foto
anterior, encontra-se a figura
de um pequeno maço de
cebolinhas e alguns galhos
de salsinha (conjunto que
compõe o popular cheiro-
verde), que contribuem para
o resgate de seu sabor peculiar nessa receita. Nessa submodalidade, o
objeto dinâmico pode se apresentar de duas maneiras: o objeto dinâmi-
co salsinha e cebolinha como hortaliças e salsinha e cebolinha como o
cheiro e gosto peculiares destes condimentos. As figuras do gesto. Talvez
109
Capítulo 2
não para qualquerblico identificar de imediato a autoria do prato
e da fotografia, senão pela ficha técnica citada no início desta análise.
Exceção feita, provavelmente, para freqüentadores do restaurante em
que esse chef comanda a cozinha. No entanto, se observarmos a figura
abaixo, obra do mesmo chef e do mesmo fotógrafo, notaremos seme-
lhanças com a peça que ora analisamos.
Vejamos algumas semelhanças: galhos in natura de alecrim e
salsinhas nesta foto, com o maço de cebolinhas e os galhos de salsinha
da outra; prato de louça branca nas duas fotos; molhos de coloração
semelhante na decoração das duas receitas; a disposição da carne e
dos acompanhamentos (central e direcionando para cima); a luz, nas
duas fotos, da esquerda para a direta; a nítida caracterização de figura
e fundo, sendo a figura, como na foto anterior, composta pela receita-
tema e o fundo, com uma imagem flou, composta de um guardanapo
e uma taça de vinho, guardando semelhança da foto anterior com o
copo de vidro e o guardanapo. Predominam, nas duas fotos, as cores
110
Capítulo 2
quentes. Mas essas semelhanças caminham também para a outra sub-
modalidade, a figura como tipo e estereótipo. As cores quentes são um
fato comum em fotos de culinária quando se quer retratar, evidente-
mente, uma receita de um prato quente. Exceção feita, às vezes, em
receitas de peixes, pois trazer o ambiente aquático para estes pratos
resgata o frescor do produto e, para esse recurso, são utilizadas cores
frias. Na foto analisada a marcante presença das cores quentes fica evi-
denciada nos elementos comestíveis do prato apresentado causando,
assim, a impressão de um prato recém preparado, na temperatura ideal
para ser apreciado. Mas nesse caminho de construção da imagem, a
referencialidade se mostra pelo registro físico, que é aquilo que se faz
ver. Na foto analisada, tudo se vê. Esse índice cumpre sua função de in-
dicar o que está fora do signo, porém as qualidades acentuadas agu-
çam a faculdade imaginativa. A luminosidade na textura dos alimentos
da costela, da cenoura, do cogumelo sugere o aspecto suculento,
tenro e de frescor da receita apresentada.
Seguindo o caminho da
análise nas formas figurativas,
podemos perceber na foto da
sobremesa- Profiteroles que
aí ficam evidentes dois planos.
O plano de fundo, meio desfo-
cado e o plano de frente, com
resolução e foco bem mais -
tidos. Quanto ao primeiro, o
se pode falar em reais formas
figurativas, pois, a imagem ali
presente, está ainda no campo
das possibilidades, ou seja, mais
111
Capítulo 2
para formas não-representativas, como visto acima. No plano de fren-
te, pode-se observar claramente - e vale sempre lembrar que tal obser-
vação depende do repertório do observador – a presença de figuras do
mundo que chamamos de real, representadas por réplicas num mundo
bidimensional. o elas: a fava de baunilha, o pedaço de chocolate
introduzido sobre a calda de chocolate que, por sua vez encontra-se
sobre uma das carolinas, três carolinas recheadas com um aparente
sorvete de baunilha, um raminho de hortelã, um prato de louça branca,
calda de chocolate sobre o prato e sobre as carolinas, uma toalhinha
com aparência de algo entrelaçado (fibra vegetal ou sintética), parte
de uma colher de metal e de um garfo. São esses índices, criando uma
espacialidade, numa urdidura sígnica, responsáveis por uma represen-
tação cênica capaz de resgatar e mesmo aguçar prazeres e sensações
gustativas numa mente interpretadora preparada para isso. Aqui, então,
tratam-se das figuras como qualidade: o suigeneris. A fava de baunilha,
por exemplo, não se ingere, porém ali está para representar o sabor
peculiar, suigeneris, dessa especiaria. As figuras do gesto, como marca
impressa de um autor, aí não estão tão presentes, pois nos parece mais
próprio falarmos em figura como tipo e estereótipo. Estereótipo vindo
com as mentes de quem preparou todo o ambiente fotográfico, como
estereótipo indo ao encontro da mente interpretadora. Não foi preciso,
nessa foto, evidenciar seu aspecto de um prato doce (uma sobreme-
sa), os signos dispostos deram conta desta representação. Quanto
ao registro físico, a foto está aí. É a predominância da secundidade,
é o signo indicial que em sua composição tenta representar e pas-
sar a mensagem pretendida. É a fotografia, a testemunha daquilo que
se quer como real. Real na sua existência física as formas figurativas
como registro físico -, real que se cria na mente: evocação de sabores,
desejos e prazeres gustativos.
112
Capítulo 2
As Formas Representativas
Para nosso caso, na análise da fotografia gastronômica, essa
categoria da matriz visual é de extrema importância, pois, para des-
pertar os prazeres gustativos, esta fotografia deve criar todo um am-
biente, sobretudo a foto de publicidade, que possa excitar o repertório
do receptor. Na fotografia de gastronomia, a forma representativa é
sempre reforçada pelo seu entorno, pelo cenário criado, pelo arranjo
dos elementos de sua produção. Na foto de publicidade, a inserção
de marcas conhecidas e famosas, por meio de seus logotipos, logomar-
cas etc., contribuem para o despertar dos sabores, pois certas marcas
já se firmaram na mente dos consumidores como sinônimo de sabor e
de qualidade, as marcas como convenções culturais. Nossa proposta,
neste trabalho, é analisar somente as fotos de revistas ou livros de gas-
tronomia.
Nessa categoria da matriz visual, os objetos representados vão
tecendo uma estrutura de significados que vão além dos próprios obje-
tos; explicando melhor, uma taça de champagne, por exemplo, além
de seu aspecto denotativo de taça de champagne, com suas caracte-
rísticas peculiares o cristal, o brilho, abrigando um líquido espumante,
borbulhante e transparente pode despertar no receptor, além de seu
sabor característico, lembranças de prazer, de uma viagem, de uma
noite de paixão. É, sobretudo, nessa categoria que o objeto dinâmico
aparece em seus aspectos mais diversos.
Parafraseando Santaella (p.248), essas imagens simbólicas “...
são figurativas, indexicais, na medida em que se referem...” à receita-
tema que a fotografia quer elucidar “... cenário, mobiliário etc., fun-
cionam nessas imagens como indicadores... do ambiente e do sabor
113
Capítulo 2
dos pratos. “São também icônicas porque apresentam similaridade com
aquilo que denotam. Todavia, sobre esses dois níveis de semiotização,
erige-se um terceiro, o das convenções a partir das quais a imagem se
organiza.
Partimos da premissa de que os recursos semióticos de produção
da fotografia gastronômica são responsáveis por desencadear e inten-
sificar prazeres gustativos numa mente interpretadora.
No item (a) de nossas hipóteses propomos que os recursos foto-
gráficos são pensados/projetados segundo o repertório signico do -
blico-alvo, ou seja, para atingir seu espectador, a produção fotográfica
procura aproximar-se de um repertório já conhecido, facilitando assim,
a compreensão da mensagem. Seria, por exemplo, mais difícil que uma
população da Mongólia reconhecesse de imediato um prato de Tutu à
Mineira, enquanto para nós, brasileiros, bastaria inserir alguns elemen-
tos desta receita para que a interpretação se desse instantaneamente.
Nessa hipótese (a) pensamos nas formas representativas na sua moda-
lidade de representação por analogia: a semelhança. Pensamos igual-
mente nessas submodalidades para os itens (a1) e (a2) em que aventa-
mos a hipótese de que os hábitos interpretativos gastronômicos podem
ser reiterados, reinterpretados e mesmo adquiridos, queremos dizer que
a fotografia gastronômica é capaz de reforçar bitos e até mesmo
reformá-los. Despertar prazeres gustativos a ponto de levar o observa-
dor a aumentar o seu consumo de alimentos e/ou bebidas, convidá-lo
a ingerir, ou pelo menos provar, esses alimentos e/ou bebidas e mesmo
modificar seu julgamento a respeito daquilo ali representado.
114
Capítulo 2
Formas simbólicas que mantêm vínculo de semelhança com aquilo
que representam por meio de leis gerais que são estabelecidas por
hábito ou convenção [...] convenções culturais são necessárias ao
entendimento dessas formas, mas a arbitrariedade de seus símbo-
los associa-se a elementos de semelhança entre signo e objeto (p.
248-249)
Representação por analogia: a semelhança: criar uma espacia-
lidade é construir um ambiente em que os índices são a força deter-
minante. Esses índices, em suas relações, têm a função de compor um
espaço temático que possibilite a um observador reconhecer, dentro de
sua competência, o tema ali proposto. Melhor explicando: na tentativa
de resgate de uma memória gustativa, no caso da fotografia de gastro-
nomia, os elementos dispostos no cenário construído para ser fotografa-
do são pensados na relação combinatória desses elementos. Por exem-
plo, se a intenção é representar um ambiente culinário regional uma
especialidade culinária
qualquer os objetos foto-
grafados deverão ser com-
postos por utensílios, ingre-
dientes etc., tudo que possa
lembrar aquela região ou
aquela especialidade; se o
tema é uma pasta italiana,
um bom pedaço de queijo
e uma bela garrafa de vi-
nho podem ser ali inseridos
facilitando o resgate do sa-
bor peculiar desse prato.
Como podemos observar
na figura ao lado.
Figura 47: Pasta italiana
115
Capítulo 2
Pois é, esses índices, que apontam para o objeto fora do signo, e
que poderiam apenas representar meras figuras singulares, nessa com-
posiçãonica assumem um caráter referencial de uma dada situação
graças às convenções culturais estabelecidas o que podem conver-
ter ... o que seria uma mera figura em um símbolo (p. 251).
Voltemos ao Caviar.
Para observarmos as formas representativas nesta peça, temos
de apelar a códigos de convenções culturais. Vejamos, então, nessa
foto quais são esses códigos culturais. E quando falamos de convenções
culturais, falamos, na realidade, em símbolos. Como já dito acima, o
caviar é símbolo de luxo na culinária e esse luxo pode ser representado
nessa reprodução fotográfica que analisamos, por meio de uma com-
posição cênica em que cada índice se relaciona entre si para gerar
um outro signo representativo do luxo. É sabido que símbolos, segundo
a teoria semiótica de Peirce, só são símbolos se contido neles estiverem
ícones e índices. Então, o cenário nessa foto fica assim composto: a toa-
lha de linho com seus bordados a crivo e de alto-relevo, o guardanapo
116
Capítulo 2
como seu monograma, os utensílios que abrigam o caviar, o tom ocre-
marrom-alaranjado do ambiente, são todos signos que, de acordo com
a competência do intérprete, remetem à sofisticação e requinte de uma
entrée como as ovas de esturjão. Esses signos criam uma espacialidade
representativa do luxo, do bom gosto e de uma educação culinária re-
quintada. E aqui podemos dizer que é essa representação por analogia:
a semelhança, que traz o poder de simular naquilo que se , aquilo
que se pode perceber, ou melhor, figuras denotativas representando,
por meio desses signos, convenções culturalmente estabelecidas. E por
esse caminho levar a despertar, a aguçar, a insinuar prazeres gustativos
numa mente interpretadora. São figuras, sobretudo no caso da foto de
culinária, indicativas e prenhes de qualidades, ou numa linguagem mais
semiótica, são legissignos, sinssignos e qualissignos que dão fundamento
ao signo. Mas é na exacerbação desses qualissignos que o fotógrafo
pode fazer chegar bem mais próximo o objeto do signo à capacidade
interpretativa do seu espectador.
Na peça do prato princi-
pal, a composição do cenário
fotografado, a disposição das fi-
guras o copo, o guardanapo, o
maço de cebolinhas, o ramo de
salsinhas, os pedaços da costela,
as fatias de cenoura, os cogu-
melos, o prato de louça branca,
os molhos espalhados sobre este
prato, o pedaço de um garfo de
metal - constituem as formas re-
presentativas. É uma combina-
ção de figuras denotativas na
117
Capítulo 2
tentativa de resgatar uma representação de um momento culinário,
aqui, o momento da refeição. O copo e o guardanapo, no fundo flou,
representam as suas funções habituais, beber e limpar a boca, o maço
de cebolinhas e o ramo de salsinhas, tentam cumprir a função de res-
gatar o sabor peculiar destes temperos embutido no alimento, a costela
de porco, a tenra (assada ou frita) e suculenta carne - protagonista do
prato principal -, as fatias de cenoura e os cogumelos, os acompanha-
mentos coadjuvantes - do prato principal, os molhos, o aspecto cremo-
so que rega todo o alimento, o prato de louça, o suporte desta refeição
e o pedaço do garfo representando a parte de todo um utensílio que
cumprirá a função de levar esta refeição à boca daquele que ali está a
observar a foto. Ao traçarmos esse caminho das formas representativas,
descrevemos aqui a representação por analogia.
As formas repre-
sentativas por depende-
rem de uma convenção
cultural, simbólica, po-
dem evocar muito mais,
no caso da foto de culi-
nária, do que os sabores e
desejos gustativos. Podem
resgatar, por meio desse
signo fotográfico gastro-
nômico, uma história, uma
tradição, uma memória
além da gastronômica.
Uma sobremesa, como
essa de Profiteroles, pode
trazer à tona uma viagem à França, um jantar ou almoço inesquecível,
118
Capítulo 2
a casa da mãe, da avó, da tia... A representação por analogia: a se-
melhança traz não somente a semelhança com aquilo que se está ob-
servando, como também a lembrança de momentos vividos e saborea-
dos. No entanto, acreditamos que essas representações têm a força de
agir como signos de tudo isso, porque, na fotografia gastronômica, mais
imperativos que os índices, estão os qualissignos que, propositalmente
exacerbados pelos responsáveis da execução da foto, desempenham
o papel de ressaltar as qualidades e assim, aguçar toda memória, seja
ela do gosto, seja ela da alma.
Apresentamos, em nossas análises, como numa refeição tradicio-
nal, uma reprodução fotográfica de uma entrada (caviar), de um prato
principal (costela de porco), de uma sobremesa (profiteroles). E para
completar essa refeição deixamos aqui um cafezinho. Cabe agora ao
leitor exercitar seu processo imaginativo e tentar resgatar, sinestesica-
mente, o gostinho especial dessa bebida tão presente na nossa vida.
119
Capítulo 2
Após esse percurso que especificou cada modalidade de ima-
gem em cada uma das fotos escolhidas, somente para enfatizar o que
foi dito, podemos concluir resumidamente que as fotos gastronômicas
apresentam em comum a sua representatividade. De fato, uma repre-
sentatividade que se constrói na medida em que os elementos não-
representativos, figurativos e representativos procuram tecer uma malha
de significações respondendo aos arranjos, todos os arranjos, pensados
ou mesmo frutos do acaso, de toda uma equipe empenhada na ela-
boração de um signo que poderá causar num intérprete efeitos sines-
tésicos despertados por essa linguagem visual. Tais elementos desem-
penham papel fundamental na construção do sentido. Ao tratarmos
dos elementos não-representativos, estamos tentando demonstrar que
nesse seuo representar, nesse seu apresentar-se, abrem caminho, por
meio de um universo sugestivo, para futuras possibilidades interpretativas
do signo. Nas fotografias analisadas, os elementos não-representativos
lá estão para contribuir na composição seja do aspecto de frescor do
caviar, seja da suculência do prato de costela de porco, seja do sabor
provocativo do chocolate, para ficarmos apenas com alguns exemplos.
Dos elementos figurativos, podemos dizer que o a própria essência,
sobretudo nas fotografias, daquilo que se quer indicar. Melhor dizendo,
são imagens que trazem para um plano bidimensional a cópia fiel de
objetos que estão num mundo externo ao do signo. No processo per-
ceptivo, os elementos figurativos desempenham papel importantíssimo
no que diz respeito ao reconhecimento e à identificação do objeto re-
presentado. Para maior eficácia interpretativa do signo, estes elementos
- e isso é tarefa daqueles que contribuem na construção da fotografia
-, têm de se revelar de tal maneira que possa produzir a ilusão de que
a imagem ali exposta seja igual ou semelhante ao objeto real. Isto nos
parece, que tenha sido uma preocupação manifesta nas peças que
escolhemos para as análises. Os elementos representativos, que trazem
120
Capítulo 2
consigo elementos qualitativos (não-representativos) e indiciais (figura-
tivos), são encarregados, nesse signo fotográfico, de sua organização
simbólica interpretativa. Para melhor compreensão, recorremos às 3 fo-
tos analisadas: o nível de sofisticação foi dado à foto do caviar pela re-
presentação simbólica dos objetos em metal nobre, da toalha de linho
e da própria iguaria que já carrega uma carga de “nobreza”; os ingre-
dientes retratados na costela de porco, assim como a composição des-
te prato não fica apenas no plano denotativo das figuras, pode-se levar
a uma conotação de requinte; a foto dos profiteroles, sobremesa não
tão comum, pode resgatar momentos raros e particulares para alguém.
Não devemos esquecer, no entanto, que a eficácia interpretativa, so-
bretudo a simbólica, sempre dependerá do repertório do intérprete a
que se destina a mensagem.
Sabemos que fotos são signos indiciais. Pois bem, sabemos tam-
bém que elas estão prenhes de elementos de iconicidade dentro desse
signo indicial. Ou seja, há elementos desde o ícone mais puro até o seu
grau de similaridade com o objeto e ou com o cenário ali constituído. E
ainda um jogo de convenções culturais que permitem a produção
de uma representação mais fiel daquilo que se quer representar do real
e que, por sua vez, está articulado com a intenção do fotógrafo assim
como com as indicações de quem encomendou a fotografia. Essas con-
venções culturais se configuram como jogo, pois são dinâmicas e estão
em constantes mudanças. Isso, acreditamos ter conseguido evidenciar
quando demonstramos o papel dos elementos não-representativos, fi-
gurativos e representativos.
Tentamos, também, mostrar nessas análises, em uma linguagem
que utiliza os conceitos da semiótica, aquilo que os depoimentos dos
profissionais, de certa forma, já haviam pontuado: como se compõe um
121
Capítulo 2
caminho criador e tradutor de sentidos.
Esperamos ter conseguido tornar claro, como aventamos em nos-
sa hipótese primária, que são sim, os recursos semióticos de produção
da fotografia gastronômica os responsáveis por desencadear e intensi-
ficar prazeres gustativos numa mente interpretadora. Tais recursos aqui
apoiados numa linguagem visual fotográfica, porém pensados e trazidos
à tona por uma série de relações ligadas às qualidades e possibilidades
qualitativas, ao resgate de uma memória e a uma história cultural, a um
vasto repertório de vida de cada um dos personagens envolvidos na
construção dessa linguagem, ao jogo de cena do material fotografado,
aos gestos e jeitos dos construtores/elaboradores dos pratos, enfim,
a um processo criativo na elaboração de um signo visual no intuito de
levá-lo a um trabalho desencadeador e tradutor de sentidos. Desenca-
deador e tradutor, pois não poderíamos outorgar toda a responsabili-
dade das reações gustativas provocadas somente a um signo visual, no
nosso caso, a fotografia. Se esta consegue aguçar, despertar, provocar
outras sensações numa tradução de um sentido em outro, melhor expli-
cando, se a fotografia gastronômica consegue transformar um estímulo
visual num outro sentido, o palatável, por exemplo, talvez isso se deva
também a um outro fenômeno, que começa a ganhar corpo no mundo
científico, chamado sinestesia. Este fenômeno será objeto, do próximo
capítulo, no qual serão apresentadas algumas de suas tendências das
quais nos interessa a situação em que, por meio da visão de uma ima-
gem fotográfica, é gerado um interpretante que articula sensações ob-
tidas e traduzidas em outros órgãos dos sentidos.
122
Capítulo 3
Capítulo III
O que se fala sobre sinestesia
Denir profundamente sinestesia não é o objetivo primeiro deste
capítulo, pois se trata de um assunto muito complexo e especo. Seria
muita pretensão querer tratá-lo com a profundidade que merece e que,
até hoje, causa muita discuso.
Nossa pesquisa se propõe a indagar como um estímulo visual pode
desencadear num outro sentido os prazeres do gosto, prazeres gastronô-
micos. Uma sinestesia do gosto que ocorre a partir das lembranças destes
prazeres.
Essa mistura de sentidos traz a queso de quanto esse tipo de
comunicação - a fotograa gastronômica - está relacionado com a si-
nestesia. Por esse motivo, será vericado em que sentido o conceito de
sinestesia pode colaborar para o entendimento de como se estrutura a
linguagem desse tipo de signo, por meio do qual os prazeres gustativos
são evocados pela mensagem visual.
Vimos anteriormente, baseadas no estudo semiótico, em análises
de reproduções fotográcas culinárias, a composição das formas e ma-
neiras de produção destes signos. Nesta parte, vamos tentar observar o
envolvimento da sinestesia na produção de sentidos e como isso pode
interferir numa semiose, ou seja, partimos do principio de que, nesse caso,
existe uma linguagem que estimula o femeno da sinestesia.
Da pesquisa bibliográca e entrevistas que efetuamos no decor-
rer de nosso trabalho, pudemos, então, elaborar uma ntese daquilo que
cremos ter entendido por sinestesia e isso, evidentemente, poderá ajudar-
123
Capítulo 3
nos a melhor compreender o que se seguirá neste capítulo.
Na sua etimologia, sinestesia vem do grego syn (união) e aesthesis
(sensação). Eno, podemos falar, num primeiro instante, que sinestesia é
a união dos sentidos. Veremos mais adiante como se dá esta união, ou a
tradução de um sentido em outro.
O femeno da sinestesia, que o é novo, havia provocado o
interesse de pensadores como lósofos, psicólogos, psiquiatras e teólogos,
desde os anos 1880. Pesquisadores da Europa e Estados Unidos investiga-
vam tal fenômeno, porém com diculdades em provar e medir os resul-
tados das experiências e com o progresso do behaviorismo - (uma abor-
dagem da psicologia que estuda as interações do indivíduo com o meio,
concentrando este estudo no comportamento observável e o papel que
o ambiente determina no comportamento) -, o interesse pela sinestesia se
dilui nos anos 1930. Já nos anos 1980, o tema desperta de novo os cientis-
tas, principalmente aqueles preocupados em estudar a visão, cognição e
o cérebro, enm, a consciência. Leiamos Sérgio Basbaum (2002, p.25)
O estudo do fenômeno sinestesia tem chamado a atenção nova-
mente de cientistas de diversas áreas por aquilo que pode revelar
em termos da relação entre conhecimento objetivo/conhecimen-
to subjetivo, sobre os mecanismos perceptivos e cognitivos do ser
humano, sobre modelos de funcionamento do cérebro “A Difícil
Questão da Consciência” (GAY et al, 1997 apud BASBAUM, 2002,
p.25)
De acordo com alguns pesquisadores, entre eles, Larry Marks e Ri-
chard Cytowic, dos Estados Unidos e Simon Baron-Cohen e Jeffrey Gray,
da Inglaterra, sinestesia é uma condão neurogica pela qual dois ou
vários sentidos se associam. Associam-se quando um estímulo de um sen-
tido provoca uma percepção automática em um outro. CYTOWIC (200,
p.7) explica que a questão da sinestesia é um produto mais do cérebro,
124
Capítulo 3
“como toda sensação”, do que da imaginação. Isso foi estabelecido so-
mente no icio do séc. XX e seu entendimento ainda não é bem claro,
pois é muito dicil explicá-lo de forma denitiva. Deixa-nos, no entanto,
algumas indicações para explicar tal fenômeno. Em seu livro The man who
tasted shapes (2000), conta uma história real de um amigo que acreditava
que o frango, que preparara para um jantar, somente estaria pronto para
comer quando nele pudesse perceber algumas “pontas” (formas pontia-
gudas que ele conseguia imaginar) - There aren’t enough points on the
chicken!” . Esse é um tipo de sinestesia que trataremos com mais detalhes
à frente. Para elucidar fenômenos como o exemplicado, CYTOWIC (200,
p.18) começa a explicar, segundo sua teoria, como o cérebro funciona.
Diz que os impulsos nervosos são concebidos de forma linear da mesma
maneira que “uma correia transportadora atravessa uma fábrica” (idem).
“One piece is added on top of another until a nished product rolls off at
the end of the line.” As impressões sensórias que entram em ação saem
do cérebro da maneira em que foram concebidas. Vejamos ainda o
que escreve:
O primeiro passo é o dos órgãos do sentido para transformar seja
energia eletromagnética (visão), energia mecânica (audição e
tato) ou a energia química (paladar e olfato) em impulsos nervo-
sos.
2
(ibidem)
Na explanação de CYTOWIC (ibidem), tais impulsos viajam em dife-
rentes circuitos no brainstem (área parecida com uma haste existente na
parte inferior do cérebro ligando-o com a coluna vertebral) e no tálamo,
que é a parte do cérebro que processa a informação vinda dos óros
dos sentidos e que exerce algum controle sobre a atividade dos músculos.
De vai para umas estões progressivamente mais complexas do córtex
(camada exterior do cérebro formada de massa cinzenta), onde os as-
pectos diferentes do estímulo externo o extraídos seqüencialmente da
2
Tradução livre
125
Capítulo 3
corrente de impulsos nervosos. Tais aspectos o organizados de alguma
forma na extremidade da linha em uma experiência consciente de modo
que nós compreendamos o que nesse mundo externo provocou nossos
órgãos dos sentidos. rias outras referências Richard Cytowic faz sobre
sinestesia. Diz que sinestesia é involuntária “ I would use synesthesia to refer
to involuntary experiences”(2000, p.54), porém, arma que é involuntária,
mas pode ser produzida e que as percepções sinestésicas são duráveis,
discretas e genéricas. Sinestesia está também, segundo ele, ligada à me-
mória, ou seja, as sensações paralelas são fácil e vividamente recordadas
freentemente ao estímulo que as provocou.
She had a green name I forget, it was either Ethel or Vivian, says
a woman named Diane. She confuses the actual names because
they are both green, but she remembers the synesthetic greenness”
(idem, p.77)
Há, pois, ainda segundo CYTOWIC (ibidem), “uma forte ligação en-
tre a sinestesia e a memória fotográca (memória eidética)” e que muitos
sinestetas (pessoas que apresentam sinestesia de forma mais proeminen-
te) utilizam sua sinestesia como dispositivo mnemônico. Por m, arma que
sinestesia é emocional e noética, esta denida na fenomenologia como
“aspecto subjetivo da vivência, constitdo por todos os atos tendentes a
apreender o objeto: o pensamento, a percepção, a imaginação etc.”
3
.
Na visão de BARON-COHEN e HARRISON (1997), a sinestesia ocorre
quando o estímulo de uma modalidade sensível lança, automaticamen-
te, a percepção a uma segunda modalidade na ausência de qualquer
estímulo direto para esta. Por exemplo: um som pode automaticamente
e instantaneamente levar a percepção a uma cor viva ou vice-versa”
(idem, p.49). Ainda comentam que há casos em que se discute determi-
3
Moderno Dicionário da Língua Portuguesa 1998-2007 Editora Melhoramentos Ltda. - ed. Eletrônica
126
Capítulo 3
nar sinestesia como “mistura de sentidos” ou, um fenômeno da mente hu-
mana que se refere à tradução de atributos de sensações de um domínio
sensório para outro.
Quando tratam da mediação das corresponncias sinestésicas
(ibidem, p. 84-85), os autores expõem que na essência dessa teoria, tais
correspondências derivam da existência de propriedades comuns de res-
postas à estimulação sensorial. Vejamos o que diz FÉRÉ (apud BARON-CO-
HEN e HARRISON, 1997, p.84):
... o estímulo impingido em todos os sentidos produz reações sioló-
gicas gerais, tal como a mudança da tonicidade muscular e essas
respostas siológicas atuam como mediadoras no desenvolvimen-
to da sinestesia. Quando dois estímulos excitam diferentes sentidos,
mas produzem respostas siológicas que tenham propriedades
comuns, esses estímulos tendem a ser associados. Quanto maior
for o grau de resposta comum, mais próximo em sinestesia será o
estímulo.
4
BÖRSNSTEIN (apud BARON-COHEN e HARRISON, 1997, p.84), em seu
tratado sobre a origem da língua, Abhandlung über Ursprung Sprache, diz
que o som e a cor se inter-relacionam via sentimento e que a estimulação
sensória tem um efeito geral na tonicidade muscular “tecidos orgânicos
revelam energia ou vigor”servindo para unir os sentidos. E, ainda segundo
ele, “... a mais importante manifestação da unidade dos sentidos é o atributo
sensório do brilho, não obstante a particular modalidade do sentido que é
despertado”.
A idéia do autor apresenta o brilho como um resultado perceptivo; ao
contrário, o brilho na fotograa é um recurso que visa gerar associações, por
isso podemos compreender o porqda forte preocupação dos fotógrafos
com a luz. A luz que provoca o brilho, ou o oculta, pode ressaltar a qualidade
4
Tradução livre
127
Capítulo 3
de sentimento do objeto fotografado. Isso pode nos levar a uma questão co-
locada por BLAKE (2005, p.57): “... deve o sinesteta atender e estar ciente da
identidade do estímulo de indução antes que esse estímulo possa provocar
uma experiência sinestésica?” Para compreendermos melhor este questiona-
mento nos apoiamos na armação de MATTINGLEY et al (2002, apud SAGIV
e ROBERTSON, 2005, p.57), quando diz que as interações sinestésicas surgem
após o reconhecimento manifesto de estímulos induzidos: “synesthesia is elici-
ded by selectively attended stimuli that are available for coscious report”.
VAN CAMPEN (2008, p.155) cita Merleau-Ponty, quando diz que todas
as experiências humanas são baseadas no corpo humano, o que explica a
unidade de sentidos. “The body is not a physical thing but is also a subjecti-
ve sense organ for each person” E continua: “todos os tipos de estímulos do
corpo criam respostas que se unem em um uxo de impreses, antes mesmo
que nos demos conta delas”
5
Diz ainda VAN CAMPEN (idem, p.156) que, em geral, as pessoas ligam
suas percepções sensórias aos sentidos externos: “... colors perceptions to their
eyes or sound to theirs ears”. Para ele, sinestesia não está conectada com um
determinado óro do sentido externo, e que experncias sinestésicas o
entram no corpo por um determinado ponto de onde migram à consciên-
cia. Sinestesia atua em áreas entre os sentidos. The sense of synesthesia is not
observable at the exterior human body but lies hidden beneath the senses”
(idem). Em algumas pessoas, a sinestesia permanece de forma latente, em
outras, pode se manifestar de maneira mais proeminente. Esse autor ainda nos
deixa mais uma contribuição para o entendimento do fenômeno sinestesia,
quando diz que esta pode ser inuenciada pela cultura de onde se vive. Os
fatores culturais podem ser determinantes para as manifestações sinestésicas.
5
Tradução livre
128
Capítulo 3
Um outro autor, talvez o único brasileiro por ora a tratar com mais pro-
fundidade o fenômeno sinestesia, é Sérgio Basbaum. Em seu livro Sinestesia,
arte e tecnologia: fundamentos da cromossomia (Annablume, 2002), contribui
com o tema, de maneira muito proeminente, trazendo uma série de referên-
cias de autores de grande relevância para o estudo sobre sinestesia. Além de
trabalhar a questão do ponto de vista neurológico e do ponto de vista da arte,
propondo também, um estudo particular de uma linguagem das cores e do
som. Destacamos aqui um trecho de seu livro que colabora para a compreen-
são da importância desse estudo:
A idéia de sinestesia nos leva a reetir da maneira particular sobre
percepção. As diferentes modalidades perceptivas do ser huma-
no estão inter-relacionadas por uma série de fatores, e, do diálogo
entre estas modalidades depende, por exemplo, a construção de
uma representação consciente da realidade essencial à sobrevi-
vência. (BASBAUM, 2002, P.50)
Por m, talvez devêssemos encerrar esta parte com uma citação
de BARON-COHEN e HARRISON (1997, p.79) quando dizem: “Sinestesia es
envolvida em pensamento, em conhecimento, na maneira que o mundo
está representado na consciência.”
6
Esperamos ter conseguido deixar aqui, de uma maneira bem sin-
tética, uma contribuição para o entendimento desse fenômeno que re-
coma a provocar novos estudos e pesquisas para a compreensão de
como o mundo, os fenômenos, são por nós interpretados.
Literalmente, sinestesia signica perceber junto. Nosso próximo pas-
so é tentar mostrar alguns tipos de sinestesia: como se apresentam e como
se manifestam.
6
Tradução livre
129
Capítulo 3
1. Alguns tipos de sinestesia
How does it feel to hear music in color, or to see someone’s name in
color? These are examples of synesthesia, a neurological phenome-
non that occurs when a stimulus in one sense modality immediately
evokes a sensation in another sense modality. (VAN CAMPEN, 2008,
p.01)
Pessoas que associam letras ou algarismos com cores diferentes;
que “vêem” sons o vermelho como som de um trompete , sentem o
sabor das palavras, o sabor como formas, cheiro quando tocam objetos,
imagens quando ingerem alimentos.
diversas modalidades de sinestesia, diversas manifestações si-
nessicas. Nagina 131 de seu livro The hidden sense: synesthesia in art
and science, Cretien Van Campen, cientista social do Social and Cultural
Planning Ofce of the Netherlands, publica uma tabela de alguns tipos de
sinestesia em casos relatados por 871 sinestetas, os quais permitem perce-
ber que o associões que se cruzam numa tradução inter-sentidos.
Tipo de sinestesia % Tipo de sinestesia %
relatada relatada
Grafemas ------ cores 64,9 Cheiros ------temperaturas 0,1
Unidades de tempo ------ cores
23,1 Cheiros ------ Tato 0,6
Sons musicais ------ cores 19,5 Sons ------ cinéticas 0,5
Sons gerais ------ cores 14,9 Sons ------ cheiros 1,6
Fonemas ------ cores 9,2 Sons ------ gosto 6,1
Notas musicais ------ cores 9,0 Som ------ temperaturas 0,6
Cheiros ------ cores 6,8 Som ------ tato 3,9
Gostos ------ cores 6,3 Gostos ------ sons 0,1
Dores ------ cores 5,5 Gostos ------ temperaturas 0,1
Personalidades ------ cores 5,4 Gostos ------ tato 0,6
130
Capítulo 3
Tato ------ cores 4,0 Temperaturas ------ sons 0,1
Temperatura ------ cores 2,5 Tato ------ cheiro 0,3
Orgasmo ------ cores 2,1 Tato ------ sons 0,3
Emoção ------ cores 1,6 Tato ------ gostos 1,1
Emoção ------ cheiro 0,1 Tato ------ temperaturas 0,1
Emoção ------ gosto 0,1 Visão ------ cheiros 1,1
Cinéticas ------ sons 0,3 Visão ------ sons 2,6
Lexema ------ gosto 0,6 Visão ------ gostos 2,8
Notas musicais ------ gosto 0,2 Visão ------ temperaturas 0,2
Personalidades ------ cheiros 0,3 Visão ------ tato 1,5
Personalidades ------ tato 0,1 ------ ------
Cheiros ------ sons 0,5 ------ ------
Cheiros ------ gostos 0,1 ------ ------
Fonte: Sean Day, http://home.comcast.net/~sean.day/htm/Types.htm, acessado em fe-
vereiro de 2007 apud VAN CAMPEN, 2008, p.131
VAN CAMPEM (2008, p.02) conta também que, em pesquisas rea-
lizadas com sinestetas, estes relatavam casos de combinações sensoriais
tais como aqueles que percebiam formas ou texturas quando provavam
certos alimentos, outros ouviam sons vindos de cheiros ou fragrâncias. Do-
res coloridas, ouvir odores, sabores, sentir sons pela pele, ouvir imagens
e degustar” imagens, foram também casos de sinestesia relatados por
sinestetas.
A sinestesia se manifesta quando uma música consegue trazer um
gosto na boca, quando uma letra inspira a sensação de um toque, o som
evoca a imagem de uma cor, o gosto apresenta formas. Sean Day, sines-
teta, num artigo no Jornal do Brasil em 13 de janeiro de 2008, diz: “O gosto
do café expresso me faz ver uma piscina de uido oleoso verde escuro a
60 cm de distância”.
131
Capítulo 3
O que vimos tratando até agora são eventos e conceitos que di-
zem respeito àqueles em que a sinestesia se manifesta com mais freqüên-
cia e de uma maneira mais perceptível, mais identicável. São casos de
pessoas que conseguem demonstrar e relatar tais manifestações, as quais
são denominadas sinestetas, como, aliás, já citamos anteriormente.
De acordo com nossas investigações dois grandes grupos de
pessoas no que diz respeito ao fenômeno da sinestesia: os sinestetas e os
não sinestetas. Estes, ao contrário dos primeiros, são aqueles que não con-
seguem identicar esse fenômeno de forma acentuada, ou que nunca
puderam armar e sentir tal manifestação.
No sentido de elucidar essas duas manifestações sinestésicas po-
demos citar o lme Ratatouille (2007, animação dirigida por Brad Bird),
do ratinho Rémy que deseja ser um chef de um conceituado restaurante
em Paris. Quem assistiu ao lme de perceber logo no icio das cenas,
quando ele degusta alguns alimentos, uma sensação gustativa é mostra-
da no lme através da tradução em diferentes formas: quadradas, redon-
das, helicoidais, como se estivesse em estado de pura alucinação gastro-
nômica. No lme Festa de Babette (1987), do diretor Gabriel Axel, um ritual
gastronômico é preparado para os habitantes de um pacato e insosso
vilarejo, e também por meio do sentido do paladar, faz desabrochar pra-
zeres da alma quebrando certos tabus e levando os convivas a sensões
jamais por eles experimentadas ou sequer pensadas.
Observamos, no caso do ratinho, uma associação de esmulos
sensoriais. O sentido do paladar (do gosto) traduzindo-se em sentidos vi-
suais para expressar uma experiência sensória própria, e no lme Festa
de Babette, uma interferência transformadora de hábitos através da tra-
dução de um sentido (paladar) em sensações que libertam os prazeres
132
Capítulo 3
da alma. Esses podem ser considerados tamm exemplos de reações
sinestésicas.
Para o desenvolvimento do nosso trabalho, interessam não exclu-
sivamente as pessoas com maior sensibilidade para a sinestesia, mas sim
todos os intérpretes em que um signo visual, a fotograa de gastronomia,
possa despertar reações, sejam elas gustativas, de prazeres gastronômi-
cos ou de qualquer espécie de tradução deste sentido visual num outro
afetando uma mudança de estado. Assim nos interessam não somente
esses sinestetas, mas a capacidade sinestésica que qualquer interprete
pode ter.
2.Somos, de alguma maneira, sinestetas?
Segundo Sérgio Basbaum, em entrevista a nós concedida em abril
de 2008, citando Merleau-Ponty: “os sentidos se traduzem uns nos outros sem
a necessidade de conceito, o que nos torna a todos, em alguma medida,
sinestetas.” Preferimos, talvez, para melhor entender tal armação, mudar
um pouco sua frase para: “...o que nos torna a todos, de alguma forma”,
capazes de sentirmos reações sinestésicas. É essa capacidade sinestésica
que vai nos interessar para o que resta desenvolver neste trabalho.
Para colaborar com nossa armação, realizamos uma consulta
com 82 pessoas adultas, brasileiras, e pudemos constatar que todas elas
apresentaram algum tipo de reação, que podemos chamar de sinestési-
cas, pois articulam sentidos diferentes. Nessa consulta, apresentamos 4 fo-
tos de gastronomia, como veremos a seguir, e pedimos para descreverem
quais sensações instantâneas lhes vinham à cabeça” ao se depararem
com essas fotos, uma de cada vez. Todos, sem exceção, relataram algu-
ma reação. Vejamos o resultado, em porcentagem, a seguir:
133
Capítulo 3
Foto 1 %
fome 23,26
requinte/luxo 20,93
desejo/água na boca/saboroso 19,38
estranheza 12,40
riqueza 3,88
gosto doce/salgado 0,78
algo crocante/pontiagudo 0,78
carne macia 0,78
sentir cheiro 3,88
quente 2,31
sabor exótico 0,78
prazer 1,55
suculento 3,88
Não parece ser gostoso 2,31
decoração 3,10
Foto 2 %
lembrança da infância 2,17
chocolate amargo/meio amargo 2,90
água na boca 7,25
cheiro de chocolate 0,72
tardes agradáveis 0,72
calda de chocolate quente 2,17
sosticação 6,52
fome 10,15
delicia/apetitoso 13,06
Não gostei 3,62
desejo 19,57
medo de engordar 1,45
satisfação 0,72
felicidade 0,72
sabor 6,52
enjoativo 2,90
doce 5,80
mãe 2,17
natureza 1,45
gula 3,62
prazer 5,80
134
Capítulo 3
Foto 3 %
festa 23,58
lembra casamento 19,81
realeza 3,77
suavidade 1,89
gostoso 4,72
vontade de comer 7,55
pessoas mais velhas 7,55
festa chique 5,66
água na boca 2,83
família 1,89
doce 8,49
felicidade/alegria 2,83
seco 3,77
festa de 15 anos 2,83
lembra o passado 2,83
Foto 4 %
peso 3,43
gordura 1,14
delicia 5,71
Brasil 9,71
casa 1,14
m de semana 10,86
quarta-feira 5,71
não dá vontade 4,57
família 8,57
fome 12,57
comida para o inverno 2,29
saudade comida mãe/avó 2,86
quente 2,29
desejo/água na boca 8,57
amigos 2,29
bebidas alcoólicas 3,43
prazer 2,86
sabor 2,86
fartura 2,29
satisfação 5,71
suculento 1,14
135
Capítulo 3
O que se pode extrair destes resultados é que, de um modo ou de
outro, o signo visual, em especial estas reproduções fotográcas de igua-
rias diversas, provocaram e despertaram diferentes reações sinestésicas.
O mais interessante foi ter constatado que quanto mais próximo do reper-
tório do público pesquisado, mais rápida e intensa foi a resposta. Somente
para exemplicar e tornar mais clara nossa armação, tivemos como “ve-
dete” a foto da feijoada. Isto pode, talvez, reforçar a idéia da inuência
cultural na tradução desses sentidos.
Evidentemente, é de enorme importância para nós tudo que foi
lido e pesquisado sobre sinestesia, capacidade sinestésica, o fato de uma
pessoa ser ou não ser sinesteta, o funcionamento do cérebro e da nossa
consciência, pois sem esse embasamento não seríamos capazes de dis-
cutir a questão e levá-la para a linha trica por s adotada em nossa
pesquisa, a qual como foi armado desde o início, se pauta pela teoria de
Charles S. Peirce.
3. A sinestesia e a semiótica
Seguindo a linha adotada nesse trabalho de pesquisa, uma visão
semiótica desse fenômeno pode se mostrar de maneira que a capacida-
de sinestésica pode ser utilizada na produção e na recepção de men-
sagens. No caso dessa nossa pesquisa são as imagens fotográcas que
estão em queso.
Interessa para o fografo, através da linguagem especíca de
seu meio, explorar o potencial sinestésico, ou seja: a capacidade de um
estímulo sensorial visual evocar outros sentidos. Falamos aqui no apro-
veitamento dessa capacidade sinestésica na comunicação. O fotógra-
fo, supondo que as pessoas tendem a interpretar sinestesicamente, cria
136
Capítulo 3
imagens na esperança de que sua intencionalidade se efetive. Dizendo
de uma maneira semiótica, o artista fotográco e, evidentemente tudo
e todos que estão envolvidos no processo criativo de construção dessa
fotograa, tentam, de certa forma, construir uma imagem/mensagem.
Essa construção é regida por causação nal, um complexo conceito peir-
ceano - que tentaremos pontuar em poucas palavras - , em que, num
processo de criação, por exemplo, algo é guiado por um propósito e ao
mesmo tempo ca aberto a possibilidades de mudanças ou até mesmo a
interferências do acaso. PFUTZENREUTER (1992, p.29) nos traz, nas citações
que faz de RANSDELL (1983) e SALLES (1991, p.5), o seguinte:
... a causação nal implica na determinação do passado pelo fu-
turo que, representado no processo criativo pela intenção do artis-
ta, determina as suas ações - cada simples decisão que ele toma
através de todo o processo.
É, pois, uma tendência que, em verdade, conduz a atividade do
criador e que se identica com sua intenção, que nesse caso, envolve a
elaboração de uma mensagem visual que possa produzir uma reação si-
nessica, ou seja, um signo cujo interpretante articule mais de um sentido.
PFUTZENREUTER (1992, p.25) ainda diz o seguinte: “Na semiose, a causação
nal assume a forma de intenção. O pprio Peirce arma que ‘a idéia de
signicado deve envolver uma referência a uma intenção’”.
Essa postura só é possível porque, na elaboração dessa foto, leva-
se em conta que o seu intérprete tem uma tendência sinestésica para a
compreeno da mensagem e, por isso, procuram fazer do estímulo visual
a fonte para evocar e ou despertar outros sentidos, o gustativo, por exem-
plo. Vejamos mais uma citação de PFUTZENREUTER (1992, p.26): “A criação,
então, é um processo sígnico, uma semiose, regida por causação nal.
Esta representa, na crião, a inteão do artista.” E ainda referindo-se
a isto, PAREYSON (1989, p. 141apud PFUTZENREUTER, 1992, p.26) nos deixa
137
Capítulo 3
um importante comentário dizendo que: o artista reconhece durante a
produção aquilo que deve cancelar ou corrigir e aquilo que, ao contrário,
está bem conseguido e pode considerar-se como denitivo.”
De fato, na elaboração, no processo de construção desse signo
fotográco, a preocupação em “anar” os detalhes está presente em to-
dos os passos que o fotógrafo e sua equipe executam. A vontade de “pro-
duzir imagens” que provoquem os outros sentidos deve ser uma constante
nesse processo criativo.
É sabido que nossa cultura está imersa em imagens e mediada
por essas imagens que assumem caráter preponderante sobre os demais
sentidos. A visão, que é um sentido diretamente ligado às imagens, tem o
poder de transformar sua energia eletromagnética em impulsos nervosos,
como vimos na citação de CYTOWIC na página 125 desta pesquisa, e
que, sinestesicamente, pode evocar a lembrança, por exemplo, do gosto,
de prazeres gastronômicos.
Além disso, a questão da composição fotográca deve levar em
conta também os aspectos ligados à história pessoal e cultural, enm à
sua experiência colateral, ou seja, a seu particular repertório cultural e
intelectual. Podemos, talvez, aqui nos apoiarmos na armação de VAN
CAMPEN (2008, p.156), já citada neste trabalho, quando diz que os fatores
culturais podem ser determinantes para as manifestões sinestésicas.
Nossa idéia de que a sinestesia ocorre numa semiose pode ser
apoiada também na leitura que fazemos de MATTINGLEY et al, citado an-
teriormente, quando dizem que as interações sinestésicas surgem após o
reconhecimento manifesto de estímulos induzidos. Acreditamos que isso
nos permita armar que os prazeres provocados por uma fotograa de
138
Capítulo 3
um cenário gastronômico, ocorrem somente após o intérprete ter reco-
nhecido os esmulos induzidos por aquela representação, sem ignorar a
contribuão interpretativa dos elementos não-representativos.
Sendo sinestesia um tema complexo, cujo estudo ainda não per-
mite encerrá-lo com uma conclusão denitiva, se é que isto seja possível,
ao estudarmos as diversas manifestações desse fenômeno, pudemos per-
ceber as diferenças entre aqueles que são sinestetas e aqueles que, se-
gundo alguns autores, apesar de não o serem, apresentam a possibilidade
de uma percepção sinestésica. Nestes, nos interessa destacar o quanto
essa percepção pode ser provocada intencionalmente por um signo que
explore as memórias das sensações de um intérprete.
Concluindo essa parte e seguindo a lógica dos capítulos anterio-
res, as a refeição apresentada pelas imagens gastronômicas do prato
principal, da sobremesa e o cafezinho, ca, e esperamos que sim, uma
memória que possa permitir a manifestação de uma sinestesia dos praze-
res gustativos.
139
Considerações nais
Comer e beber são prazeres, não se pode negar, que alegram a
vida, alegram a alma. Este ato pode revelar também o modo de vida, os
costumes, enm, a cultura de um povo. Rne amigos e famílias em torno
de uma mesa, deixa lembranças, traz recordações.
O registro fotográco eterniza os momentos, e em os eternizando
torna-os vivos para sempre. Este efeito é possível pela tradução de um sig-
no visual em outros sentidos numa mente interpretadora.
A proposta desta pesquisa foi estudar um signo visual, a fotograa,
na sua relação com a gastronomia, por meio dos recursos utilizados na
composição deste signo e os efeitos que são capazes de desencadear
numa mente receptora. Percorremos, para isso, um caminho que envol-
veu um árduo, porém prazeroso estudo. Acreditamos ter sido acertada e
importante a escolha de trabalharmos com aqueles que estão imersos no
universo da fotograa e, em especial, da fotograa culinária. Por isso, fo-
mos atrás dos prossionais fotógrafos e da food stylist, o que nos propiciou
um impulso encadeador de idéias e descobertas. Recorremos à teoria
peirceana dos signos como embasamento metodológico auxiliados pela
teoria das modalidades da linguagem visual desenvolvida por Lucia San-
taella e, por m, para entendermos como este signo chapado, bidimen-
sional pode provocar efeitos sinestésicos num receptor, empenhamos-nos
em pesquisar uma dezena de livros sobre o assunto, além da entrevista,
muito enriquecedora, que zemos com o professor Sérgio Basbaum.
O resultado de nosso estudo nos levou a concluir que as fotograas
de gastronomia conseguem despertar, aguçar, intensicar prazeres gus-
tativos num intérprete repertoriado para tal. Entretanto, cou bem claro
140
para nós, e acreditamos ter podido demonstrar isso, que são, sim, os recur-
sos semticos da composição fotogca os grandes responveis pela
efetivação e ecácia desta mensagem visual.
Esperamos, com este trabalho, ter contribuído um pouco mais para
o entendimento de como os fenômenos nos chegam e como por nós são
interpretados.
Bon appétit à tous!
141
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