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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Guerra e política nas relações internacionais
Thiago Moreira de Souza Rodrigues
Doutorado em Ciências Sociais
(Relações Internacionais)
São Paulo
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Guerra e política nas relações internacionais
Thiago Moreira de Souza Rodrigues
Doutorado em Ciências Sociais
(Relações Internacionais)
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do
título de Doutor em Ciências Sociais (Relações Internacionais), sob
a orientação do Prof. Dr. Edson Passetti.
São Paulo
2008
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Resumo
O tema da guerra é a questão central da área acadêmica
das Relações Internacionais, tendo articulado as mais
significativas escolas teóricas desse campo: liberalismo e
realismo. Essas teorias são apresentadas regularmente
como antagonistas, pois os liberais acreditariam na
possibilidade de paz e cooperação duradouras nas relações
internacionais, ao passo que os realistas apostariam
somente em períodos de paz abalados por inevitáveis
guerras entre Estados. No entanto, o estudo genealógico
das procedências das teorias liberal a partir da obra de
Immanuel Kant e realista a partir das reflexões de
Thomas Hobbes evidenciaria a convergência de ambas
na defesa do Estado, da ordem civil e da noção de política
como paz. De inimigas, as teorias de Relações
Internacionais passariam a ser notadas como adversárias,
disputando espaços de influência, mas partilhando
princípios e intenções políticas. Essa pesquisa pretende, no
entanto, experimentar outra perspectiva de análise das
relações internacionais exterior ao campo jurídico-político
das teorias liberal e realista. Para tanto, procura ativar um
estudo da guerra, da política e das relações internacionais,
a partir de leituras de Pierre-Joseph Proudhon e Michel
Foucault. Esse deslocamento permitiria observar a política
não como paz civil, mas como a continuação da guerra por
meio das instituições e das relações de poder. Por esse
prisma, é possível pensar outra análise das relações
internacionais que repara na formação do sistema
internacional e nas suas transformações contemporâneas
fora do referencial jurídico-político estatal ou
cosmopolita e sem a pretensão de constituir nova teoria
adversária das tradicionais. Ao contrário, esboça-se uma
analítica das relações internacionais em aberta batalha ao
monopólio das teorias de Relações Internacionais e que
problematiza o imperativo de aderir a uma das duas
escolas, ensaiando um método libertário de estudo da
política internacional interessado nas resistências às
autoridades teóricas e à lógica da soberania vinculada aos
poderes políticos centralizados.
Palavras-chave: guerra, política, relações internacionais,
analítica foucaultiana, libertarismo.
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Abstract
The issue of war is the central question in the academic
field of International Relations, which articulates the most
significant theoretical perspectives in the area: liberalism
and realism. These theories have been presented as
antagonists. Liberals would believe in the possibility of
lasting peace and cooperation in international relations,
while realists would emphasize periods of peace disturbed
by inevitable war between states. However, the
genealogical study of the provenance of the liberal
theories based on the work of Immanuel Kant and
realist theories based on the thought of Thomas Hobbes
would shed light on the convergence of both in the
defense of state, civil order and the notion of politics as
peace. Instead of enemies, the theories of International
Relations would become opponents, struggling for space
of influence, but sharing principles and political
intentions. This research seeks, though, to experiment
other analytical perspectives of international relations,
apart from the legal-political field of liberal and realist
theories. Toward this, it aims to activate a study on war, of
politics and international relations, based on the
contributions of Pierre-Joseph Proudhon and Michel
Foucault. This shift would enable us to observe politics
not as civil peace, but as the continuation of war through
institutions and relations of power. Hence, a different
approach which would take the focus on the development
of the international system and its contemporary
transformations away from the legal-juridical references
both state-centered or cosmopolitan opens new
possibilities for the analysis of international relations,
without creating a new contending theory to the traditional
ones. On the contrary, an analytics of International
Relations turns the tables on the monopoly of the existing
theories, and challenges the imperative of adhering to one
of the traditional conceptual frameworks. It attempts to
develop a libertarian approach to the study of international
relations, interested in the resistances to theoretical
authorities and to the idea of sovereignty attached to
centralized political powers.
Key words: war, politics, international relations,
foucaultian analytics, libertarism.
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Agradecimentos
Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)
pelo auxílio fundamental à realização dessa pesquisa. Em primeiro lugar, pela Bolsa
Capes II oferecida ao longo dos anos de investigação; depois, pela bolsa conferida pelo
Programa Colégio Doutoral Franco-brasileiro que permitiu o cumprimento de um
estágio doutoral, no período de fevereiro a julho de 2007, junto ao Institut des Hautes
Études de l’Amérique Latine (IHEAL) da Université de la Sorbonne Nouvelle (Paris
III).
Gostaria de agradecer àqueles que na França ajudaram diretamente na pesquisa,
tornando mais especial e produtiva minha estada em Paris. Um agradecimento à Profa.
Dra. Renée Fregosi, do IHEAL, pela generosa acolhida, pela atenção e sugestões. Muito
obrigado, também, a Alain Labrousse pelas indicações e conversas. Um abraço aos
meus amigos da Maison du Brésil: Matheus Hidalgo, Rodrigo Czajka, Mili Garcia, Ana
Malfitano e Mariana Barreto Lima. Ainda em Paris, obrigado a Sophie Boyriven
Moreira de Souza, Françoise Boyriven, Alexis Paseyro e Sylvie Massat. Meus
agradecimentos a Evelyne Maury e a Claire Guttinger, arquivistas do Services des
Archives do Collège de France, pela atenção e acesso às fitas de áudio dos cursos de
Michel Foucault.
No Brasil, um agradecimento sincero à Faculdade Santa Marcelina, à sua diretora Ir.
Ângela Rivero e à pro-diretora acadêmica Vera Ligia P. Gibert, pela confiança e apoio.
Um abraço especial a Flávio Rocha de Oliveira, Gilberto M. A. Rodrigues, Walter
Mesquita Hupsel e, principalmente, a Wagner de Melo Romão pela força constante no
trabalhar junto.
Aos meus amigos Alexandre Braga, Guilherme Ranoya, Paulo J. Guludjian e Renata de
Barros Pereira abraços enormes de quem sabe que os tem ao lado sempre.
Àqueles únicos que vivem, pensam e se reviram intensamente no Núcleo de
Sociabilidade Libertária (Nu-Sol) da PUC-SP, um beijo forte. Beijos e abraços ainda
7
maiores para aqueles que mais diretamente combateram comigo o bom combate dos
amigos: Acácio Augusto, Andre Degenszajn e Salete Oliveira.
Por fim, agradecimentos mais que demais a
Edson Passetti, amigo-guerreiro de fibra, que luta junto, fortalece e excita coragem;
Cândida e Sidney; Nelly e Cecília, André e toda a família, trupe alegre plena de vida;
Ana Bourse, mi Ani, presencia linda en toda palabra: sol nuevo a cada día.
Dedico essa tese a Altair e José que travaram com honra seus combates.
8
Sumário
A perspectiva da guerra
10
Política como paz
22
Primeiro Capítulo
A política dos pacificadores: as teorias das Relações Internacionais
contra as marcas da guerra
23
A paz pelas baionetas 23
Liberais, realistas e a disputa pelas Relações Internacionais 31
Em nome da paz civil: procedências liberais e realistas 48
A urgente paz de Thomas Hobbes 49
A urgente paz de Immanuel Kant 56
Elogios à paz e ao Estado 65
Segundo Capítulo
Realistas, liberais e a guerra exterior à política
79
2.1 A guerra aos extremos
79
Guerra e política em Clausewitz 84
Clausewitz, um apologista da paz? 91
Clausewitz e Aron: pela guerra a serviço da paz 108
2.2 Política, paz e criminalização da guerra entre os liberais
114
A legalização contemporânea da guerra 114
As procedências do conceito contemporâneo de guerra justa 123
Cosmopolitismo e a criminalização da guerra 148
2.3 A guerra na ausência da política
162
9
Política como guerra
167
Terceiro Capítulo
Proudhon: a vida e a política como incessante combate
168
O combate sem fim 168
A guerra, condição do homem 178
O direto da força: a guerra como julgamento supremo 187
Hobbes, filósofo da paz 194
A “guerra capturada” contra a honra do guerreiro 197
Penúria, a causa da guerra brutal 202
A federação e a política como luta 207
A perspectiva da luta permanente 224
Quarto Capítulo
Foucault e o agonismo do poder nas relações internacionais
230
A guerra como cifra do poder 230
A infindável história das lutas 255
Quinto Capítulo
História-política e política internacional
273
O discurso histórico-político contra a alegoria da paz 273
Thomas Hobbes contra a guerra das raças 282
A “guerra das raças”, discurso polivalente 298
A guerra no Estado e entre os Estados 311
A política internacional como guerra 337
Fluxos 01010101
352
Libertarismo nas Relações Internacionais
353
Uma outra história-política
353
Método, atitude, guerra 368
Anarquia e parrésia: destemor na batalha 379
Analítica das relações internacionais, uma atitude de combate
385
Bibliografia
403
10
A perspectiva da guerra
As marcas de uma guerra impulsionaram a formação de um novo ramo das
ciências sociais, um desdobramento da ciência política que recebeu o nome de Relações
Internacionais. O impacto da Primeira Guerra Mundial abriu espaço para uma reação
pacifista que permitiu a um conjunto de intelectuais, juristas e políticos propor a
constituição de um campo de estudos destinado a compreender as causas da guerra de
modo a criar instrumentos para evitá-la. Essa nova área procurou destacar-se de suas
procedências jurídicas e filosóficas afirmando a especificidade de seu objeto de estudos:
as relações entre Estados. Procurou, também, defender um projeto de organização
política do mundo baseado no princípio da cooperação entre Estados, no reforço do
direito internacional e na superação da prática da guerra pelo conceito de solução
pacífica de controvérsias. Essa ciência social com sua intelligentsia pacifista foi
introduzida nos salões diplomáticos durante as negociações de paz em Paris, entre 1918
e 1919. Seu mais importante advogado foi o presidente dos Estados Unidos, Thomas
Woodrow Wilson, que conseguiu incluir na pauta e aprovar a criação de uma
associação, a Liga das Nações, destinada a efetivar tal projeto. A vitória de Wilson,
contudo, conviveu com a decepção provocada pela não adesão dos EUA à Liga diante
do veto do Congresso estadunidense. Apesar disso, Wilson e sua proposta liberal
influenciaram não só a Liga, como as primeiras cátedras universitárias dedicadas às
Relações Internacionais, na Europa e nos Estados Unidos. Esses centros, orientados
pelo liberalismo wilsoniano, atualizavam, por sua vez, uma leitura da política
internacional cuja voz mais audível era a de Immanuel Kant e seu projeto para a paz
perpétua.
11
O liberalismo internacionalista, com sua utopia da paz perpétua, não fez cessar a
guerra. Nos anos 1920 e 1930, os Estados seguiram com suas políticas de interesse
nacional pela expansão territorial a Alemanha na Europa centro-oriental, a Itália na
África, o Japão na China ou pela complacência interessada das democracias inglesa e
francesa com o fascismo italiano, o franquismo espanhol e o nazismo alemão. Desse
modo, a política internacional parecia estar muito afastada do modelo com que os
Estados formalmente se comprometeram em Versalhes. Surgiram assim, autores que
denunciavam o projeto liberal cristalizado na Liga das Nações como uma
perigosa utopia porque, ao defender idealisticamente a paz, abria flancos para a
recorrência da guerra. O primeiro autor de destaque nessa vertente crítica foi o
historiador britânico Edward Carr, ainda nos anos 1930, seguido por Hans Morgenthau,
judeu alemão que produziu nos EUA do pós-Segunda Guerra. A reação ao liberalismo
internacionalista foi chamada por seus autores iniciais de realismo e evocava um
panteão próprio de autores clássicos Tucídides, Nicolau Maquiavel e Thomas
Hobbes a fim de amparar uma visão da política internacional como um estado de
guerra, impossível de ser perpetuamente pacificado, mas passível de pacificações
temporárias a partir de equilíbrios de poder entre os Estados.
Ainda na primeira metade do século XX armou-se, entre liberais e realistas, essa
disputa fundadora da área das Relações Internacionais que passou a ser tratada na
literatura especializada como “primeiro grande debate”. A competição entre realistas e
liberais tomaria as cátedras, os corredores e salões dos ministérios dedicados aos
assuntos diplomático-militares, os centros e fundações de pesquisa, os livros sobre
política internacional, os modelos de novas organizações internacionais. Essas teorias
tiveram, desde o princípio, um caráter militante e instrumental: pretenderam formular
visões de mundo a serem ofertadas aos estadistas de modo a contribuir para uma
12
determinada organização das relações internacionais que pudesse garantir o adiamento
da guerra e, conseqüentemente, o prolongamento mais amplo possível da paz. Os
liberais, atualizando Kant, vislumbravam essa paz prolongada por meio das instituições,
do direito e da renúncia à guerra; os realistas, fiados nas noções de interesse nacional e
de “anarquia” internacional, buscavam encontrar fórmulas de equilíbrio de poder entre
os Estados que desestimulassem a guerra. De um lado ou de outro, a conquista da paz e
a segurança do Estado pareciam ser as questões centrais a mobilizar, por ângulos
distintos, realistas e liberais. Para ambas as escolas, a guerra deveria ser retardada ao
máximo para a saúde do Estado e a preservação do sistema de Estados.
Realistas e liberais estavam de acordo que a guerra havia sido banida do interior
dos Estados pelo processo de centralização política iniciado no final da Idade Média. O
monopólio da violência pelo Estado teria feito parar as guerras internas, empurrando-as
para seus limites, suas fronteiras. As guerras passariam a ser acontecimentos exteriores
à política, possíveis de eclodir apenas no espaço extra-político das relações
internacionais. Liberalismo e realismo, ainda que em competição, estariam de acordo
com o princípio de que a política é paz e que as relações internacionais, possibilidade de
guerra. Seria nessa “anarquia” internacional que a guerra encontraria seu exílio.
Com tal premissa comum, realismo e liberalismo definiram o campo teórico das
Relações Internacionais e se firmaram como as grandes alternativas à quais deveriam
filiar-se os estudiosos da política internacional. Os internacionalistas realistas e liberais
interessavam ao Estado porque auxiliavam na reflexão sobre como defender seus
interesses políticos e estratégicos em época na qual o sistema interestatal organizava-se
de forma nova a bipolaridade entre Estados Unidos e União Soviética enfrentando
questões novas, como o aumento da dinâmica comercial e financeira e o despontar de
guerras civis, revoluções políticas e guerras de libertação nacional no então Terceiro
13
Mundo. Desse modo, as teorias eram úteis instrumentos às necessidades de ajuste e
inovação dentro do campo das práticas diplomático-militares dos Estados; e ganharam
destaque não apenas junto às instâncias governamentais, como também, definiram a
orientação dos centros de investigação e departamentos universitários de Relações
Internacionais. O ambiente universitário estadunidense e europeu, na área das Relações
Internacionais, converteu-se em um duopólio que expressava a disputa entre realistas e
liberais. Gerações de estudantes foram formadas a partir da opção entre uma ou outra
corrente teórica e seus desdobramentos e atualizações. Quando o ensino das Relações
Internacionais lentamente se difundiu por outras regiões, como a América Latina, a
escolha entre realismo ou liberalismo continuou a determinar as diretrizes curriculares e
as perspectivas de pesquisa.
No entanto, ao ter em mente as procedências destas teorias internacionalistas,
seus inícios, intencionalidades políticas, motivações e vínculos com os aparatos de
Estado dos países mais poderosos política e economicamente no século XX, seria
possível colocar uma questão: as teorias das Relações Internacionais seriam as únicas
possibilidades de estudo da política internacional? Dariam elas conta de um campo tão
dinâmico e em transformação veloz como o da política internacional? Ao
internacionalista não caberia outro destino que o de ser realista ou liberal? Ao lado
dessas perguntas, poderia ainda haver outras: realismo e liberalismo poderiam ser
compreendidos como escolas inimigas e inconciliáveis tendo ambas a paz como divisa e
como meta? Não seriam, ao contrário, teorias adversárias dentro de um mesmo campo
conceitual e político disputando espaço junto às instâncias de poder e procurando
defender suas visões particulares como os melhores caminhos para atingir a situação de
paz que garantisse a sobrevivência dos Estados e a ordem internacional? Ofereceriam,
liberalismo e realismo, referenciais ampliados para a análise das relações internacionais
14
em tempos de transformação do conceito de soberania, de formação de blocos políticos
e econômicos, de globalização da economia, de fragmentações e reconfigurações de
territórios nacionais e, no plano das guerras, de diminuição das guerras interestatais e da
emergência das guerras transterritoriais nas quais conglomerados de Estados combatem
em várias partes do globo forças não-estatais como o terrorismo fundamentalista e o
narcotráfico? Produzidas a partir da lógica jurídico-política, vinculadas às teorias da
soberania e de justificação do poder estatal, talvez as escolas tradicionais não sejam
mais instrumentos exclusivos de análise convincentes para compreender uma situação
mundial na qual a soberania se redimensiona e, pelos fluxos transterritoriais, atravessam
produtos, informações, dados eletrônicos, ilegalismos, terrorismos, guerras, resistências.
As teorias de relações internacionais operam a partir da premissa de que há um
dentro e um fora: um espaço político pacificado contraposto à “anarquia” exterior. A
compreensão das relações de poder dessa época chamada por Gilles Deleuze de
sociedade de controle passa pela impossibilidade de separar de forma estanque a
política doméstica da internacional. Os fluxos atravessam as fronteiras, produzem ações
políticas que não se fixam aos territórios nacionais, anunciam uma planetarização
econômica e política na qual a distinção entre política (o dentro) e não-política (a
“anarquia” do fora) não corresponde às correlações de força entre conglomerados de
Estados, coalizões militares, fluxos financeiros, grupos terroristas, tráficos, resistências
ativas e reativas. Assim, com a intenção de compreender as relações internacionais no
presente, propõe-se aqui problematizar os princípios partilhados entre realistas e liberais
de política como paz e relações internacionais como guerra. Uma problematização que
se dá na perspectiva da anarquia contra a dicotomia paz/“anarquia” das teorias
internacionalistas, e se formula a partir de um anarquista, Pierre-Joseph Proudhon que,
no século XIX, se contra-posicionou em relação a Kant, afirmando que a política era
15
fundada e mantida pela guerra incessante, não havendo separação entre Estados
pacificados e relações interestatais em guerra, nem possibilidade de uma pacificação
perpétua por meio de uma federação centralizadora universal. Proudhon borrou a
distinção entre guerra e paz chamando a atenção para a política como petite guerre,
guerra continuada e insuperável na política: a guerra como situação do homem. Com
especial atenção ao tema em A guerra e a paz, livro de 1861, Proudhon confrontou a
tradição da filosofia política e dos juristas do direito das gentes exatamente as séries
nas quais se inscrevem as teorias internacionalistas para mostrar que tanto Kant
quanto Thomas Hobbes e Hugo Grotius se esforçaram para demonstrar que o amálgama
social somente seria garantido se um poder político centralizado instaurasse a paz. A
ausência de política, desse modo, seria sinônimo de caos, desordem, guerra. Esse
esforço, sustenta Proudhon, visava apagar da história o fato de que todo direito era
derivado da força, da violência do mais forte que determinava o justo e o injusto, o legal
e o ilegal. Sob a grandiloqüência dos discursos jurídicos e políticos produzidos por
magistrados e soberanos, operaria, para Proudhon, o direito da força que fazia da guerra
seu meio de efetivação: “direito” inadmissível para aqueles que buscavam as formas de
legitimar e justificar a existência benévola, incontornável e necessária do Estado. Para
Proudhon, a política não seria paz, mas uma guerra permanente que nem a superação do
Estado por ele defendida poderia eliminar. O fim da propriedade privada e estatal e o
despontar das federações agrícola-industriais indicadas por Proudhon não implicariam
na abolição das tensões entre os homens, das divergências de opinião e de posições
políticas e éticas que fazem da vida uma batalha constante.
Um século depois de Proudhon, Michel Foucault afirmou que a história da
política era a história da guerra continuada por outros meios e não a de sua superação.
Sendo a política conformada por infindáveis correlações de força, não haveria
16
possibilidade de pensar uma sociedade sem relações de poder, a vida fora da política ou
a vida fora da guerra. A hipótese de Foucault para compreender a política é a hipótese
da guerra. Hipótese oposta à de Clausewitz, como propõe Michel Foucault em seu
curso no Collège de France de 1976, por meio da qual o filósofo se perguntava se a
guerra, o fato da batalha, a luta e as resistências, não poderiam ser maneiras de analisar
as relações de poder. Caso pudessem, haveria que abandonar a lógica da soberania
jurídica e do poder de Estado, operando um deslocamento para a análise dos
dispositivos, técnicas e tecnologias de poder atuantes pelo aparato de Estado, mas não
exclusivamente a partir dele. Para Foucault, as teorias tradicionais do poder estavam
vinculadas à preocupação de explicar o poder a partir do Estado, do direito, de sua
legitimidade, limites e origem. Tal prisma, para o filósofo, não permitiria compreender
como as relações de poder se exerciam efetivamente nas sociedades ocidentais. A
perspectiva da guerra, no entanto, permitia pensar as relações de poder a partir da lógica
do enfrentamento. Assim, contra a lógica do soberano, uma perspectiva do agonismo
das relações de poder noção desenvolvida por Foucault a partir do princípio grego de
combate. Tomando as relações de poder como combate, a política passaria a ser vista
como um campo de batalhas incessantes, continuadas por meio das instituições e
exercidas nas relações cotidianas entre homens com seus embates de interesses,
vontades de governo e resistências ao comando superior. A política como agonismo se
afastaria, desse modo, da tradição jurídico-política que define a política como paz o
espaço pacificado criado pelo contrato social e mantido pela autoridade superior do
Estado. Nessa tese, procura-se experimentar essa hipótese da guerra no campo das
relações internacionais, a fim não de deslocar seu estudo das teorias realista e liberal
para a perspectiva da política como guerra, mas ensaiar outra analítica que ao penetrar
na luta entre discursos de verdades provoque conexões entre fluxos de resistências.
17
O campo teórico das Relações Internacionais, fazendo parte dessa série da teoria
da soberania, partilha pelo viés realista ou pelo prisma liberal o princípio de que a
política está isenta de guerra. Assumindo a perspectiva proudhoniana da petite guerre e
a hipótese foucaultiana da urgência em compreender a política pelo agonismo, seria
possível notar como as teorias internacionalistas transitam pelo mesmo trajeto que, para
Foucault, não daria conta de compreender como acontecem outras dimensões das
relações de poder, como se exerce e se resiste ao poder, como se dá a política. Assim, a
pergunta que aqui se faz é: não seria possível problematizar as teorias de Relações
Internacionais a partir de uma perspectiva agonística que permitisse esboçar outra forma
de estudar as relações internacionais? Uma forma de estudo que tomasse efetivamente a
guerra tema central e fundador da área acadêmica das RI como instrumento de
análise da política internacional, sem a pretensão de anulá-la sob o comando do Estado
ou isolá-la na “anarquia internacional”, mas, ao contrário, tomá-la desvencilhada da
utopia da paz que atravessa tanto liberais quanto realistas? Uma analítica das relações
internacionais que não buscasse reformar as teorias em vigor ou apresentar uma teoria
alternativa, mas ensaiar um método de análise, voltado ao combate e interessado em um
saber sobre as relações internacionais liberado da obrigação de filiar-se às teorias
tradicionais? E, por meio de tal liberação, constituir-se como instrumento interessante
para o estudo da política internacional contemporânea?
Tratar-se-ia, ao menos, de indicar uma virada metodológica sem pretensão de
formular conceitos universais; virada que seria mais uma atitude de investigação
interessada numa história política das relações internacionais do que o estudo das
Relações Internacionais como história do poder de Estado, do poder soberano, da lógica
do Príncipe. Uma história dedicada à análise do presente, buscando para tanto as
procedências dos saberes e práticas no campo das Relações Internacionais de modo a
18
problematizá-los, destacando a luta permanente não só da política, como a dos saberes e
teorias produzidos para tentar compreender a política internacional. Para ensaiar essa
analítica, escolheu-se caminhar ao lado de Proudhon e Foucault, dois autores que, em
momentos diferentes e com intenções distintas, afirmaram a perspectiva de estudo da
política como guerra. As noções de Proudhon e Foucault servem como armas na
problematização das teorias de Relações Internacionais; são instrumentos analíticos no
campo de uma história política que confronta a universalidade pretensamente
desinteressada das teorias políticas por meio de estudos locais, perspectivistas e
comprometidos com lutas pontuais. O método de Foucault interessa-se exatamente
pelos saberes que foram sujeitados, derrotados e desqualificados por outros que não são
nem mais verdadeiros ou científicos, mas apenas circunstancialmente vitoriosos. Esses
saberes sujeitados, no entanto, podem provocar abalos e insurgências; podem ressurgir
do soterramento a que foram submetidos. Por isso, a analítica foucaultiana assume uma
perspectiva de luta, rechaçando vivamente a pretensão de constituir-se em teoria. Ela é,
assim, uma atitude analítica contra os saberes que sujeitam e buscam afirmar discursos
de verdade sobre os corpos sujeitados de inúmeras outras práticas e saberes. Trata-se de
uma corajosa decisão de interpelar os saberes aliados ao poder político central,
provocando-os ao combate de modo a explicitar que também são parciais, também
defendem interesses, vontades e posições políticas. Uma analítica das relações
internacionais pretenderia estar ao lado desse Foucault libertário, que fala franca e
destemidamente aos saberes hegemônicos não para denunciá-los como hipócritas, mas
para lutar por espaços de liberdade para outras formas de compreender as relações de
poder. A analítica de Foucault combate pela insurgência de saberes. Uma possível
analítica das relações internacionais ensaiaria uma insurgência no campo de estudos da
política internacional; uma atitude metodológica voltada para a análise do presente, e
19
inimiga das adversárias teorias internacionalistas. E, como inimiga, reconhecendo a
força das teorias e a impossibilidade de superar a guerra permanente contra elas. Uma
analítica interessada em perscrutar como se dão as relações de poder na política
internacional no início do século XXI; como se busca prolongar a paz numa época em
que o sistema westfaliano cede rapidamente lugar a novas formas de organização
política que não são nacionais, mas regionais e transterritoriais e como se transforma e
se conduz a guerra quando ela age em fluxos sem respeito às fronteiras estatais.
***
Essa tese propõe uma analítica em três movimentos. Em Política como paz,
elabora-se uma problematização das teorias liberal e realista interessada em analisar
suas procedências na filosofia política, com destaque para as leituras que os liberais
fazem de escritos de Immanuel Kant e que realistas empreendem da obra de Thomas
Hobbes. Interessa investigar como num ramo teórico ou noutro, a premissa fundamental
é de que o Estado institui a política como espaço de paz em contraposição à “anarquia”
tomada como guerra: “anarquia” existente antes do contrato social e que, depois dele,
teria sido expulsa para as relações internacionais. Assim, a guerra sujeitada pelo
Estado restaria além-fronteiras, apenas como instrumento de política externa. As
teorias liberal e realista não seriam, assim, antagônicas em seus princípios e interesses,
mas convergentes e adversárias, transitando no campo do discurso jurídico-político
preocupado com a defesa do Estado, sua justificativa e legitimidade. Esse movimento
dedica-se à lógica do soberano, do território, do posicionamento: ao pensamento fixado
em fronteiras e na utopia da paz.
20
Contra esse movimento, outro em que se procura ativar leituras de combate às da
lógica da soberania e da pacificação da política. Em Política como guerra, busca-se a
companhia de Proudhon em sua afronta direta aos juristas e filósofos políticos que
procuraram evitar a guerra, não reconhecendo nela o acontecimento elementar da vida
humana e das sociedades. As noções de Proudhon levam à genealogia da história
política exercitada por Foucault que se interessa em mostrar como é possível
experimentar uma análise das relações de poder a partir da lógica da guerra, do
agonismo. O agonismo é um ataque direto à lógica jurídico-política, aos saberes que
visam justificar o poder de Estado a partir da afirmação de que a política faz cessar a
guerra. É, portanto, um ataque frontal à posição na qual se perfilam as teorias realista e
liberal. A partir da perspectiva agonística esboça-se uma analítica das relações
internacionais que procura afirmar outro ângulo de estudo sem pretensões teóricas, mas
que, ao contrário, se assume perspectivista, local, voltado ao combate e as resistências.
Nesse movimento, a partir de um contra-posicionamento à lógica jurídico-política,
opera-se um deslocamento de perspectiva que sugere uma analítica desvencilhada da
fixação e fixidez territorial das teorias internacionalistas sem ficar restrita a outra
posição estanque: uma atitude metodológica voltada para as relações de poder que se
dão nos fluxos e na velocidade incessante de uma política contemporânea que
redimensiona espaços de poder, abala as fronteiras modernas e anuncia uma política
propriamente planetária, sem distinção entre dentro e fora, atravessada por relações de
força em incontáveis fluxos.
Essa analítica, interessada no presente, ensaia em Fluxos 01010101 sua
pertinência para o estudo das relações internacionais na sociedade de controle, com sua
política, economia e guerras em fluxo. Época de desterritorializações e nova
territorializações para além e aquém do Estado nacional; período em que novos projetos
21
de pacificação são construídos a partir de unidades políticas ampliadas como a União
Européia e projetos para um direito global que atualiza o cosmopolitismo anunciando
reformas no direito internacional que ainda se reporta à lógica do Estado; tempos de
uma política planetária na qual os poderes políticos visam controlar os fluxos de
resistências que, de forma reativa, ambicionam criar Estados teocráticos e, de forma
ativa, desafiam os poderes centrais e a convocação a participar como fluxo inteligente
no capitalismo globalizado e na democracia que se universaliza como regime político.
Esse ensaio analítico procura indicar a possibilidade de um estudo das relações
internacionais atento ao que não mais se restringe ao território do Estado-nação,
exercitando uma perspectiva de resistência contra o duopólio das teorias
internacionalistas e, também, às formas contemporâneas de pacificação política que não
mais se confinam ao Estado, transformando-se em projeto planetário. As teorias realista
e liberal operam pela distinção entre dentro e fora, entre paz e guerra, como absolutos
inconciliáveis; a analítica, na perspectiva genealógica, atua na indistinção entre o dentro
o e o fora, entre guerra e política e na dissolução das dicotomias. A analítica das
relações internacionais se pretende uma metodologia em combate nos fluxos e não um
contra-posicionamento fixo; modo de problematizar as relações de poder nas relações
internacionais que deixam de ser inter-nacionais e inter-estatais para tornaram-se
globais ou planetárias; uma analítica voltada para o presente e que compreende a guerra
não como força domesticada pelo Estado, mas como princípio das relações de poder,
sendo assim uma perspectiva plena de potências para o estudo de uma política
internacional que esgarça os limites do jurídico-político, abrindo fendas pelas quais se
pode ousar outras miradas.
Política como paz
“Como alguém escaparia diante do que nunca se põe?”
Heráclito
23
Primeiro Capítulo
A política dos pacificadores: as teorias das Relações
Internacionais contra as marcas da guerra
A paz pelas baionetas
Uma multidão acompanhava a carruagem pelas avenidas parisienses, lançando
vivas e aclamações. Pelos postes, faixas de boas-vindas e de agradecimento eram
ladeadas por bandeiras em azul, branco e vermelho. Principiava o mês de dezembro de
1918. Admirado, Thomas Woodrow Wilson deleitava-se com a calorosa acolhida que
recebia dos franceses, gratos que estavam pela decisiva intervenção dos Estados Unidos
na Grande Guerra. Quatro anos antes, auelas mesmas ruas, de modo similar ao de outras
nas principais cidades da Europa, foram tomadas por diferente onda de entusiasmo que
comemorava o início de uma guerra que para a maioria parecia ser uma aventura
patriótica necessária e redentora. Passados os anos de trincheiras, epidemias, gases
tóxicos, destruição e fome, com seus milhões de mortos, toda disposição perecia ser,
então, a de celebrar a paz. Paz conquistada pelo auxílio das baionetas da mais nova
potência mundial, que trouxe seus exércitos do Novo Mundo com o intuito declarado de
pacificar o Velho. Wilson, presidente que rompe o isolamento de seu país levando-o à
Europa, em 1917, estava pronto para participar da conferência de paz que se seguiria à
guerra que, em suas palavras, teria colocado fim a todas as guerras. Mais do que um
representante da pujança militar e industrial, Wilson se auto-declarava o portador da
24
esperança de um novo ordenamento do mundo em termos pacíficos. Chegava à Europa
não apenas como líder do país determinante na vitória dos Aliados, mas como o porta-
voz de um novo mundo, de uma nova e duradoura paz.
É interessante notar como foi possível que se associasse de modo tão intenso a
imagem de pacifista a um chefe de Estado que rompeu os obstáculos políticos
domésticos à entrada do seu país na guerra. No entanto, a aparente contradição se
dissolve quando se repara que a plataforma a partir da qual Wilson constrói seu discurso
residia num liberalismo interpretado à maneira do messianismo estadunidense. Wilson
defendera a entrada de seu país na guerra com o argumento de que era urgente levar aos
europeus, e por extensão ao mundo, valores que estavam consolidados nos EUA, mas
que não lhes eram exclusivos. Segundo MacMillan, Wilson “julgava falar pela
humanidade” entendendo “seu governo e sociedade como modelos para todos” (2004:
23). O presidente, eleito em 1912 e reeleito em 1916, era cientista político renomado e
presbiteriano de formação. Filho de um pastor conhecido no Sul dos Estados Unidos,
Wilson foi educado com base na fé de que a salvação individual dependeria da devoção
e obediência irrestritas à lei divina. Essa carga moral foi fundamental para cristalizar em
Wilson, desde jovem, a idéia de que ele era um homem que “Deus havia designado para
guiar, direta ou indiretamente, a nação americana na missão sagrada que ele atribuía a
ela (...): dar o exemplo ao mundo” (Aunchincloss, 2003: 11). A confiança na própria
capacidade estava de acordo com a crença difundida entre os estadunidenses do destino
manifesto da nação, concepção moral e política, surgida no século XIX, que atribuía aos
Estados Unidos o dever de defender a liberdade no mundo e a inevitabilidade da
expansão territorial do país.
Esse homem, talhado no messianismo, governou um país que emergia no cenário
internacional, despontando como potência econômica e militar num concerto mundial
25
ainda dominado por Estados europeus. Em seus mandatos, Woodrow Wilson
desenvolveu diretrizes de política externa que os Estados Unidos praticavam desde o
final do século XIX, principalmente a partir da guerra hispano-americana, de 1898,
quando a vitória sobre a Espanha garantiu aos EUA territórios (Porto Rico, Filipinas,
Guantánamo, Guam) e uma posição de destaque diante do restrito clube europeu de
nações. A mais bem acabada tradução desse período de ativo intervencionismo
estadunidense, continuado por Wilson, foi o Corolário Roosevelt, de 1904, doutrina de
política externa que inaugurou a época das intervenções militares estadunidenses no
continente americano e que ficou conhecida como política das canhoneiras ou do big
stick
1
. Durante o governo do democrata Woodrow Wilson, os Estados Unidos levaram
adiante a política intervencionista iniciada pelo governo republicano de Theodore
Roosevelt, mantendo a presença na América Central, as pressões sobre o México e a
América do Sul e invadindo o Haiti, em 1915.
O despontar dos Estados Unidos como uma potência com pretensões extra-
americanas esbarrou, no entanto, nos interesses coloniais europeus, principalmente na
Ásia, e em resistências domésticas. No momento em que os EUA decidem conquistar
posições vantajosas do ponto de vista estratégico e comercial naquele continente, a Ásia
estava já esquadrinhada, divida entre Estados europeus que gerenciavam protetorados,
colônias ou tutelavam países formalmente independentes como a China. A tática
estadunidense no oriente foi a da aproximação comercial, aliada às pressões
diplomático-militares diretas sobre países como o Japão e o apoio a regimes débeis
1
O Corolário Roosevelt é considerado como um complemento da Doutrina Monroe, delineada em 1823, e
que estabelecia o continente americano como zona de influência dos Estados Unidos, devendo, portanto,
ser defendida contra a presença européia para que permanecesse sob a órbita estadunidense. Os EUA do
início do século XX, no entanto, fortalecidos econômica e militarmente no processo de modernização
com centralização do poder de Estado aprofundado com a vitória dos unionistas na Guerra de Secessão
(1861-65), passam a intervir militarmente, ocupando países ou pressionando governos no Caribe,
América Central e do Sul sob a justificativa de defender os interesses estratégicos e de particulares
estadunidenses nessas regiões.
26
como o chinês em suas querelas com os Estados ocidentais
2
. Por outro lado, havia
grande oposição nos EUA, por parte de grupos sociais e forças políticas isolacionistas,
quando o tema era o da atuação militar e ingerência em regiões fora das Américas;
posição que estendeu quando colocada em questão a pertinência ou não dos Estados
Unidos mandarem forças militares à guerra em curso na Europa. Apenas após uma série
de torpedeamentos de navios mercantes estadunidenses por submarinos alemães, em
1916, que o cenário tornou-se mais propício às propostas de envolvimento na Grande
Guerra. Wilson passou a defender a intervenção na guerra, alegando a necessidade de
defesa do país e de seus interesses. A declaração de guerra às potências centrais
(Alemanha, Áustria-Hungria, Bulgária, Império Otomano) marcaria não apenas um
desequilíbrio no confronto que transcorria na Europa em favor dos Aliados, como
também, apontaria a ascensão dos Estados Unidos como uma potência internacional,
com capacidade de ação diplomática e militar em escala mundial. Segundo Döpcke, “a
entrada dos Estados Unidos na guerra foi decisiva”, pois desequilibrou o estancado
conflito nas trincheiras do front ocidental, abalando em definitivo o Império alemão
que, com isso, e já depois de deflagrada a revolução liberal em Berlim, em novembro de
1918, foi levado a “aceitar as condições do cessar-fogo e, com isso, sua derrota” (1997:
156).
A nova configuração das relações de poder no mundo pós-guerra, passado o
armistício, deveria ser definida na conferência de paz à qual acorreram Wilson e líderes
de outros vinte e seis Estados que declaram guerra às potências centrais (Taylor, 1966).
No entanto, havia um problema de fundo colocado justamente pela tensão que se
estabelecera entre os Estados Unidos e seus enfraquecidos aliados europeus. O debate
2
Exemplo dessa abordagem foi o apoio que os Estados Unidos ofereceram à China em sua demanda por
um maior controle sobre o comércio do ópio contra os interesses de ingleses, franceses, holandeses e
portugueses. Como resultado desse suporte, foi realizada a Conferência de Xangai, em 1907, primeiro
encontro internacional destinado a restringir a produção e circulação de uma droga psicoativa que reuniu
as potências coloniais européias, China e os Estados Unidos (McAllister, 2000).
27
surge, à primeira vista, como uma incompatibilidade entre visões de mundo que
colocariam em lados opostos a realpolitik dos europeus e a “nova ordem mundial”
estadunidense. Em contraposição às práticas da diplomacia secreta e do equilíbrio de
poder alimentadas pelos Estados europeus, Wilson postulava “a possibilidade de uma
revolução nas concepções e nas práticas da política internacional e da diplomacia, com
o intuito de inaugurar uma nova era de entendimento e paz entre as nações” (Cervo,
1997: 166). As balizas da posição da delegação estadunidense em Versalhes haviam
sido apresentadas em 09 de janeiro de 1918 quando Wilson, em discurso no Congresso,
defendeu metas para uma reconfiguração voltada para a paz mundial que ficaram
conhecidas como Os 14 Pontos. Em linhas gerais, os catorze pontos versavam sobre: a
necessidade em abandonar a diplomacia secreta, abrindo as negociações entre Estados
ao controle da opinião pública; a urgência em controlar a produção de armamentos,
limitando as forças militares às exigências mínimas para manutenção da ordem e da
segurança do Estado; o valor de assegurar o direito de independência e
autodeterminação aos povos que as reclamassem (na Europa, isso significava atender
demandas nacionalistas que poriam fim aos grandes impérios multinacionais, como o
Império Otomano e o Austro-Húngaro); a relevância em defender o livre fluxo
comercial em todo o mundo, garantindo a passagem constante das frotas mercantes em
regiões estratégicas como os estreitos de Bósforo e Dardanelos e, por fim, a importância
de uma mudança na “arquitetura” das relações de poder entre os Estados que
substituísse a lógica do equilíbrio de poder por outra baseada no conceito de segurança
coletiva (Henig, 1991).
Esse último imperativo postulado por Wilson significava o deslocamento da
busca pela segurança nacional calcada na autonomia plena (econômica, política e
militar) e nos jogos voláteis de alianças defensivas e ofensivas por uma outra disposição
28
na qual todos os Estados buscassem sua segurança (em termos de bem-estar e
sobrevivência nacional) apostando na recusa à guerra de agressão e na solução pacífica
de controvérsias. Para tanto, Wilson defendia a criação de uma associação de nações,
reunidas formalmente e sob um estatuto jurídico comum que pudesse se firmar como
uma assembléia permanente dedicada a equacionar litígios entre os Estados a partir da
regra fundamental da abdicação do recurso à guerra como instrumento de política
externa. Seria uma liga de povos livres irmanados no objetivo de alcançar a paz
mundial.
As posições defendidas pelo presidente estadunidense acabaram por pressionar
pela abertura de um fórum paralelo às negociações de paz em Versalhes, que se
dedicaria a pensar essa associação de nações. Assim, o documento fundador da Liga das
Nações, apresentado em 1919, deve sua existência, em grande medida, à pressão da
delegação estadunidense (Taylor, 1991). O texto final do tratado responde às demandas
de Wilson delineadas nos 14 Pontos, principalmente no que diz respeito ao
compromisso que deveria ser assumido entre os Estados signatários de não recorrer à
guerra de agressão, mas à arbitragem da própria Liga por meio de “solução judicial ou
investigação pelo Conselho” da organização (Dinstein, 2004: 112). O tratado trazia,
ainda, as premissas defendidas por Wilson referentes à autodeterminação dos povos,
(Art. 10), redução de armamentos nacionais “ao mínimo compatível com a segurança
nacional e com a execução das obrigações internacionais impostas por uma ação
comum” (Art. 08, par. 1º)
3
, publicidade dos tratados (Art. 18) e o princípio da segurança
coletiva (Art. 16), segundo o qual o recurso à guerra por um dos membros da Liga seria
“considerado como (...) um ato de guerra contra todos os outros membros”, o que
3
O texto do Pacto da Liga das Nações utilizado aqui como referência é o que se encontra publicado em
Seitenfus (1997), pp. 258-269.
29
implicaria em sanções diplomáticas, comerciais e até mesmo militares (a mencionada
“ação comum” descrita no Art. 10).
A importância e o peso político das posições de Woodrow Wilson não devem,
no entanto, sugerir que o presidente estadunidense fosse um enunciador original. Wilson
dava expressão a discursos amplamente divulgados na década de 1910 e que foram
potencializados pela reação pacifista à Grande Guerra. Já em princípios dessa década,
organizou-se um difuso “movimento idealista pela paz que tentou atacar a
irracionalidade dos gastos com armamentos e que alcançou certa notoriedade nas
conferências de paz de Haia” (Krippendorff, 1985: 28). Proliferaram, a partir dos anos
1910, sociedades sem fins lucrativos e institutos de pesquisa dedicados a decifrar as
causas da guerra e encontrar caminhos para o estabelecimento de um concerto
duradouro entre os Estados. A primeira cadeira de Relações Internacionais foi criada,
em 1917, na Universidade do País de Gales e foi denominada, sintomaticamente,
Cadeira Woodrow Wilson de Política Internacional (Sarfati, 2005; Nogueira e Messari,
2005). Os próprios governos de Estados envolvidos na Primeira Guerra Mundial
promoveram fundações como a inglesa Royal Institute of International Affairs, a
estadunidense Council of Foreing Relations e a alemã Deutsche Hochschule fuer
Politik, todas criadas em 1920 (Krippendorff, 1985).
As primeiras iniciativas para a formação de uma área exclusiva de estudos das
relações internacionais nascem, assim, embebidas em uma perspectiva pacifista que
investia no pressuposto que era necessário constituir uma ciência da política
internacional que pudesse apontar os meios para evitar uma nova guerra como a iniciada
em 1914. Segundo Bonanate, “seria possível dizer que a disciplina acadêmica das
relações internacionais nasceu no final da Primeira Guerra Mundial, justamente para
abordar de forma científica apenas este problema: por que a guerra na política
30
internacional? As duas têm a mesma essência?” (2001: 148). Portanto, a disciplina das
Relações Internacionais toma forma num contexto de crítica à realpolitik — os cálculos
de força, alianças estratégicas e equilíbrios de poder — tão fortemente identificadas
com os Estados continentais europeus, e que era atravessado pela emergência de uma
nova potência internacional, os Estados Unidos — que trazia um outro discurso e novas
maneiras abordar a projeção de poder político, diplomático, econômico e militar.
Apesar da frustração de Wilson em não conseguir a ratificação do Tratado de
Versalhes (e, com ele, do Pacto da Liga das Nações) por um oposicionista Congresso
dos Estados Unidos (Renouvin e Duroselle, 2001), a demarcação de um campo
específico de estudos da política internacional acompanha o final da Primeira Guerra. O
despontar da iniciativa teorizadora das relações internacionais — que configuraria uma
nova ciência social com sua vontade de verdade e vocação normativa — teve o tema da
guerra como grande e primeiro motivador. A guerra, nesses movimentos iniciais da
disciplina acadêmica, foi tratada como um “grande flagelo” a ser controlado por
organizações internacionais, pela construção de normas internacionais e conseqüente
renúncia de soberania por parte dos Estados. A emergência das Relações Internacionais
se deu, portanto, num contexto bastante específico, de corte liberal como se verá abaixo.
No entanto, a predominância do liberalismo e dos discursos pacifistas, nesses momentos
iniciais, seria circunstancial, anunciando disputas visando a supremacia cognitiva sobre
os “fatos internacionais”, a conquista de nichos acadêmicos e a influência sobre os
centros de decisão diplomático-militares dos Estados Unidos, Inglaterra e França, as
principais potências militares de então.
31
Liberais, realistas e a disputa pelas Relações Internacionais
A Liga das Nações nascera enfraquecida pela ausência dos Estados Unidos. No
entanto, o discurso pacifista centrado na idéia de que regras e instituições
supranacionais seriam a senha para a superação das guerras não arrefeceu. A Liga
manteve a estrutura delineada pela delegação estadunidense, com apoio inglês, e que
criava uma estrutura voltada para a segurança coletiva e não uma associação militar de
defesa anti-alemã como pretendiam os franceses. Segundo Taylor, “haveria aumentado
o prestígio da Liga das Nações se os Estado Unidos dela fossem membros, no entanto, a
política britânica em Genebra indicava que a participação de uma segunda potência
anglo-saxônica não teria necessariamente transformado a Liga no instrumento de defesa
pretendido pelos franceses” (1991: 56). Ao contrário, a Liga permaneceu atravessada
pelos propósitos pacifistas que, na década de 1910, eram projetados nos institutos e
centros de pesquisa dedicados ao tema da política internacional. Ganhavam repercussão
autores críticos aos jogos de alianças, à corrida armamentista, ao recurso à guerra, ou
seja, ao conjunto de práticas diplomático-militares destinado a aumentar o poder dos
Estados consagrado sob o nome de política do poder. Um dos autores mais importantes
desse período e perspectiva foi o jornalista inglês Norman Angell (1872-1967), que
publicou seu mais influente escrito, o livro A grande ilusão, em 1910. Em suma, o
argumento de Angell era que os europeus permaneciam enredados na percepção de que
a conquista de bem-estar, riqueza e grandeza para os Estados viriam com políticas
calcadas no isolamento e protecionismo econômico, na expansão colonial, na corrida
armamentista e nas eventuais guerras de agressão destinadas a manter zonas
estratégicas, fontes de matérias-primas e rotas comerciais. Angell previa que a era da
mobilização total de forças nacionais em nome da autonomia e supremacia dos Estados
32
europeus conduziria a uma guerra catastrófica a opor nacionalismos radicais. No
entanto, para Angell, tais concepções expansionistas eram como uma “ilusão de ótica”
(2002: 22) em tempos de interdependência financeira e econômica entre economias e de
interesses transnacionais; época na qual, agentes privados de diversas procedências
borravam fronteiras nacionais deixando consolidar um capitalismo propriamente
mundial. Assim, a maioria dos estadistas, políticos, intelectuais, estrategistas e cidadãos
estariam iludidos.
Para Angell, “a idéia de que é possível eliminar a competição dos rivais
conquistando-os é uma das manifestações da curiosa ilusão” (2002: 24) que acometia
seus contemporâneos. Tal idéia, para ele, era falsa pelo simples fato que ao incorporar
um outro território, o Estado vencedor incluiria necessariamente em suas fronteiras
agentes econômicos do país anexado, gerando competição para seus nacionais (ao
menos que toda a população conquistada fosse eliminada). Do mesmo modo, a tese da
riqueza nacional pela posse de colônias era equivocada já que o colonialismo era uma
prática afinada à economia mercantilista e, portanto, pré-industrial e não-
interdependente. As colônias, em pleno século XX, só trariam despesas às metrópoles,
uma vez que não seriam mercados consumidores interessantes se presas a um pacto
colonial que apenas as espoliasse. Para que fossem lucrativos mercados, as colônias
deveriam ser tratadas como se fossem países independentes, com uma diversificação das
atividades econômicas locais e com a permissão de acumular dinheiro, gerando
consumo. Angell sustentava que não seria viável manter uma colônia à força porque
essa decisão era “do ponto de vista econômico (...) ineficaz e pueril” (2002: 93). Assim
teriam percebido os britânicos ao criarem sua Commonwealth, dando autonomia em
diversos aspectos aos territórios que, formal e politicamente permaneciam sob o
Império. Por fim, o poder político (medido em território, população e capacidade
33
militar) não seria sinônimo de riqueza material, como atestaria a “prosperidade
mercantil e o bem-estar social das pequenas nações [européias], desprovidas de poder
político” (2002: 24). Sem deter-se em críticas aos argumentos do autor, pretende-se aqui
apontar como ele alinhava um discurso que mantinha a clara intencionalidade de
comprovar que as políticas expansionistas (do ponto de vista político-militar) e
protecionistas (do ponto de vista econômico) eram contrárias à paz e, portanto, ao bem-
estar dos povos. Angell não se considerava um utópico, já que estaria apenas indicando
fatos de integração e dinamismo econômicos mundiais que, segundo ele, poderiam ser
percebidos nas relações internacionais.
O que é possível notar, no entanto, é que os elementos levantados e a tese
defendida pelo autor estão em um terreno liberal que associa liberdade de trânsito,
interdependência econômica, autodeterminação dos povos, livre iniciativa e contenção
dos gastos militares com sucesso econômico e bem-estar social. No que diz respeito ao
tema da guerra, a abordagem de Angell é clara: protecionismo, nacionalismo e
expansionismo levam à guerra; e com ela, viria a penúria dos povos. A tese de que a
soma de nacionalismo e imperialismo conduziria à guerra já havia sido trabalhada pelos
socialistas desde o século XIX e, à época em que Angell publica, despontava em
reflexões de socialistas como Vladmir Lenin e Rosa Luxemburg. A diferença
substancial entre a abordagem de Angell e a dos socialistas está no fato de que para o
primeiro a conduta nacionalista e protecionista poderia ser corrigida pela melhor
aplicação das lições do capitalismo liberal, evitando, pelo desenvolvimento da livre
iniciativa e da economia de mercado, o choque entre Estados em competição; já para os
socialistas, a fricção inevitável entre Estados imperialistas seria parte fundamental da
crise do capitalismo, levando a guerras de grandes proporções que marcariam o passo
34
para verdadeira superação da guerra que viria após a tomada e conversão dos Estados
em ditaduras do proletariado.
A ênfase que Angell dá às forças econômicas não significa que, para o autor, a
questão da segurança do Estado tivesse deixado de ser central. Segundo Paradiso,
Angell “admitia que a defesa era um fator predominante no comportamento externo dos
Estados [e] que a auto-preservação era a primeira e última de suas exigências” (2002:
XXXV). O tema de fundo para Angell, conforme aponta Paradiso, é a necessidade de
evitar a “anarquia” no cenário internacional: a ausência de ordem ou autoridade que
conferisse previsibilidade ou segurança aos Estados. Essa “anarquia” só poderia ser
superada eficazmente se fossem abandonados os jogos de alianças entre Estados,
sempre efêmeros e prenhes de guerras futuras, pela lógica da segurança coletiva, mais
adiante defendida publicamente por Woodrow Wilson e que seria a pedra de toque do
projeto de Liga das Nações. A combinação de liberdade comercial, renúncia à guerra de
agressão, confiança na sua própria segurança por meio de um acordo coletivo e do
respeito a normas comuns seria uma combinação não “ilusória”, mas “concreta”, para
evitar as guerras no futuro. Junto ao espectro da Primeira Grande Guerra, referencia
fundamental para o pacifismo desse momento, havia o assombro causado pela revolução
bolchevista na Rússia, em outubro de 1917, e que atravessava, de modo silencioso, as
preocupações dos liberais e de Wilson em particular relativas ao re-ordenamento das
relações internacionais. Em outras palavras, o pacifismo liberal atentava para a criação
de dispositivos e normas que evitassem a guerra entre Estados capitalistas e que,
simultaneamente, pudessem criar condições para evitar a proliferação de sublevações
socialistas em Estados já constituídos ou a combinação perigosa entre nacionalismo (nas
colônias e nos Estados multi-étnicos europeus) e socialismo bolchevista. Tão importante
quanto criar uma nova ordem liberal era evitar a difusão do socialismo russo que, já
35
então, afirmava-se como modelo inimigo do capitalismo liberal. Projetos para a paz
internacional, para a formação de uma Liga das Nações, para a criação de um sistema de
segurança coletiva, com a defesa da autodeterminação dos povos e o fortalecimento do
direito internacional de matriz ocidental não podem ser entendidos, portanto, sem
considerar a Revolução Russa e as novas correlações de força por ela introduzidas.
Em tal contexto, a argumentação de Angell conquistou ampla audiência,
notadamente no período pós-Primeira Guerra Mundial. Sua popularidade e influência
nos círculos internacionalistas impulsionaram sua candidatura vitoriosa ao Prêmio
Nobel da Paz após a reedição de seu livro, em 1933. As posturas defendidas por
Norman Angell, assim como a instrumentalização de idéias similares propostas por
Wilson, são amostras bastante significativas do conjunto de conceitos e pressupostos
que forjaram a disciplina acadêmica das Relações Internacionais em sua emergência
(Arraes, 2005). O pacifismo liberal deu o tom do despontar dessa área e foi
predominante no campo de estudos da política internacional nos anos 1920 e 1930, até
começar a ser castigado por críticas que acompanharam os sucessivos fracassos da Liga
das Nações, quando ela foi chamada a lidar com crises de segurança internacional
4
. O
predomínio da realpolitik no estudo da política internacional, presente no século XIX e
até a Primeira Guerra Mundial, foi interrompido no período entre-guerras, mas ensaiou
sua volta antes mesmo do início da Segunda Grande Guerra (Bedin, 2004).
O autor mais significativo da onda crítica que se agiganta sobre o
internacionalismo liberal é outro inglês, o historiador Edward Hallet Carr (1892-1982),
apontado pela literatura dedicada ao estudo das Relações Internacionais como o
primeiro a evocar a necessidade de uma análise da política internacional que não fosse
4
Taylor (1991) aponta que os principais fracassos da Liga das Nações foram justamente aqueles
relacionados aos Estados que comporiam o Eixo Berlim-Roma-Tóquio durante a Segunda Guerra
Mundial. A Liga foi impotente para impedir as anexações territoriais da Alemanha nazista na Europa
central e do leste ao longo dos anos 1930, reticente no caso da invasão japonesa à Manchúria, em 1933, e
omissa quando da invasão da Etiópia, em 1936, pela Itália fascista.
36
moldada por preceitos morais e normativos que desconsideram a realidade dos fatos,
em nome da projeção de um “dever ser” (Braillard, 1990; Dougherty e Pfaltzgraff Jr,
2001; Nogueira e Messari, 2005; Roche, 2006). Diplomata entre 1916 e 1936, Carr
participou da Conferência de Paz de Versalhes, fez parte da delegação britânica na Liga
das Nações nos anos 1920 e serviu na embaixada inglesa em Riga, Letônia. Abandonou
o serviço diplomático para assumir a Cátedra Woodrow Wilson de Política
Internacional, na Universidade do País de Gales, batizada ironicamente com o nome do
principal representante das idéias sobre política internacional que tanto criticaria. Carr
foi, também, um simpatizante da Revolução Russa e um dos mais importantes
historiadores do socialismo, publicando obras que se tornaram referências, com
destaque para as biografias de Karl Marx (publicada em 1934), Mikhail Bakunin (1937)
e História da Rússia Soviética, em 14 volumes, publicada entre 1950 e 1978 (Griffiths,
2004).
No entanto, o livro pelo qual é lembrado pelos estudiosos das relações
internacionais, e que marca uma posição francamente contrária ao internacionalismo
liberal que qualifica como “utopismo”, é o Vinte anos de crise 1919-1939, editado em
1939. Na obra, Carr dedica-se a criticar a crença na possibilidade de um ordenamento
das relações internacionais baseado no compromisso livre e espontâneo dos Estados
com valores universais pacifistas regulados pelo direito internacional. Segundo
Griffiths, Carr via a jovem ciência social das RI como “um tanto prescritiva,
subordinando a análise dos fatos ao desejo reformador do mundo” (2004: 19). Para
Carr, essa ciência da política internacional desenvolvida pelos liberais desde os anos
1910 vivia uma espécie de “infância utópica” caracterizada pela aposta na conquista de
uma “harmonia geral de interesses que via no comércio internacional o melhor meio de
alcançar a paz” (Roche, 2006: 31). Haveria um a priori — a crença na paz universal —
37
que seria efetivada, inevitavelmente, como o resultado da evolução da razão (contra a
bestialidade e irracionalidade da guerra). A fim de reforçar essa percepção, Carr lembra
uma passagem na qual Woodrow Wilson, que estava a caminho da Conferência de Paz
de Paris, responde à questão se seu plano de uma Liga das Nações tinha chances de
vingar com um lacônico: “se não funcionar, teremos que fazê-lo funcionar” (2001: 12).
Essa postura de um dos ícones do liberalismo do entre-guerras era a constatação, para
Carr, de que os estudos internacionais estavam presos a um “utopismo” paralisante, uma
vez que “nenhuma ciência merece tal nome até que tenha adquirido humildade
suficiente para não se considerar onipotente, e para distinguir a análise do que é, da
aspiração do que deveria ser” (2001: 13).
A fé no direito internacional e na Liga das Nações, portanto, teria levado o
estudioso da política internacional para longe da realidade que é conformada pela
interminável correlação de forças e interesses dos Estados nacionais. Os Estados, essas
entidades políticas que convivem com uma questão incontornável e que define todo seu
comportamento na relação com os pares: a urgência em sobreviver num mundo em que
não há um poder político-militar regulador que seja superior aos Estados e efetivo na
aplicação de qualquer norma. Desse modo, para o autor inglês, o projeto wilsoniano
assentado na Liga das Nações fracassou não porque tivesse tido algum problema de
execução. Sua falha era genética, pois deitava raízes na decisão em não reconhecer as
relações de poder e de interesse como as que de fato moldariam as relações interestatais:
“o colapso da década de trinta foi contundente demais para ser explicado meramente em
termos de ações ou omissões individuais. Sua ruína envolveu a falência dos postulados
em que estava baseada” (Carr, 2001: 55). Exemplo maior desse descolamento com a
realidade da política internacional seria a pretensão dos liberais “utópicos” de que a
regra do pacta sunt servanda — a de que os signatários devem cumprir os tratados que
38
assinaram sem questioná-los — fosse para sempre observada sendo que nunca havia
sido (desde a formação do Estado moderno) porque o que rege as movimentações dos
Estados teria sido sempre a dupla urgência em sobreviver e aumentar a quantidade de
situações vantajosas para o exercício do poder sobre outros Estados (entendendo-se
“exercer poder” como a capacidade de moldar o comportamento de outrem, gerando
uma relação de mando e obediência). Desse modo, e diante da ausência de um Estado
mundial, os tratados seriam apenas intenções morais sujeitas ao cumprimento ou
descumprimento segundo as vontades e capacidades de cada Estado.
Carr discorda, no entanto, do realismo de tipo realpolitik que desconsidera toda
e qualquer forma de valor ou moral nas relações entre Estados. Para o historiador, os
Estados não são desprovidos de moral, mas, ao contrário, tem uma moral própria porque
são entidades distintas dos indivíduos que os compõem. Se sobreviver é uma
necessidade de cada Estado, a realização de acordos ou o seguimento de regras que
auxiliem na busca dessa meta tem o seu porquê e se efetivam em acertos pontuais, não
em projetos utópicos. O direito internacional, então, seria o conjunto de códigos morais
voláteis, traçados por entidades — os Estados — que os negociam e assinam dentro de
sua luta primordial pela sobrevivência. Carr alinhava essa reflexão com um elogio ao
Estado afirmando que “está claro que a sociedade humana terá de sofrer uma
transformação substancial antes de descobrir alguma outra ficção igualmente
conveniente para substituir a personificação da unidade política [o Estado]” (2001: 196).
Ser realista na perspectiva de Carr significa, portanto, evitar o “utopismo liberal” da era
wilsoniana e também a política amoral à moda de Richelieu ou Bismarck, reconhecendo
que a realidade da política internacional compreende competição, mas também
cooperação, e que ambas tem que ver com egoísmo e necessidade de sobrevivência em
um mundo de relações de mando e submissão.
39
O livro de Edward Carr foi o primeiro grande golpe a iniciar um período de
desqualificação sistemática do internacionalismo liberal das primeiras décadas do
século XX. A crise do cosmopolitismo liberal, no entanto, não deve ser entendida
apenas como uma decorrência dos sistemáticos fracassos da Liga das Nações em sua
pretensão de arbitrar os conflitos entre Estados. Há que se reparar como o ressurgimento
da realpolitik, transformada naquilo que seria conhecido como teoria realista das
relações internacionais, foi um recurso de análise interessante para a academia e os
centros de decisão diplomático-militares dos Estados capitalistas europeus e também
dos Estados Unidos diante do crescimento político, militar e econômico da União
Soviética e dos movimentos socialistas no mundo. Apoiados diretamente por Moscou,
como no caso dos partidos comunistas criados na vaga da III Internacional, ou com
intensas nuances e especificidades, como na Guerra Civil Espanhola, os movimentos
socialistas ganhavam fôlego atrelados a um Estado-matriz, a URSS, que despontava
como modelo alternativo ao Estado democrático-liberal. Assim, é preciso investigar até
que ponto a emergência do realismo não se limita ao campo de uma resposta ao
internacionalismo liberal, sendo também, uma produção de saber voltada à capacitação
conceitual e estratégica de Estados democrático-capitalistas dispostos a enfrentar o
socialismo de Estado em ascensão. O acontecimento crucial a marcar o fortalecimento
da interpretação realista da política internacional, levando em consideração tanto a
hipótese da resposta ao liberalismo quanto ao socialismo, foi a Segunda Guerra
Mundial.
Ao acontecer, a Segunda Guerra parecia demonstrar, para os primeiros críticos
realistas, que uma ordem mundial baseada nos conceitos de segurança coletiva, de
confiança no direito internacional e na observância escrupulosa dos deveres e normas
por parte dos Estados era impossível e irrealizável diante da natureza das unidades
40
soberanas e do sistema interestatal. Os Estados eram ciosos de sua sobrevivência e não
poderiam efetivamente contar com outro apoio para assegurar sua continuidade que suas
próprias forças. Essa era sua natureza: entidades políticas autônomas, irredutíveis umas
às outras, zelosas de sua soberania inquestionável (celebrada desde o Tratado de
Vestfália, de 1648). A inexistência de uma entidade política mundial ou supranacional
com poder militar que garantisse eficácia como governo seria a característica
fundamental, para os realistas, do sistema internacional. Essa situação foi classificada
pelos realistas de “anarquia internacional”, a partir da lógica contratualista que alimenta
suas reflexões e que será analisada na próxima seção. Essa “anarquia” em sentido
contratualista, e nessa leitura realista, significaria simplesmente a ausência de um poder
central supranacional que, na prática, faz com os Estados sejam unidades sem qualquer
constrangimento para buscar suas aspirações e metas. Esse cenário leva à preocupação
maior dos Estados — a sobrevivência em um mundo inseguro — que os realistas
batizaram de dilema da segurança (Nogueira e Messari, 2005). Com a Segunda Guerra
Mundial e com o novo arranjo geopolítico com os Estados Unidos e a União Soviética
despontando como líderes mundiais, os realistas pareciam encorajados a avançar na
destruição dos pressupostos liberais e na construção de um arcabouço teórico que, na
sua avaliação, seria mais qualificado para compreender a dinâmica mundial. Esse passo,
mais amplo e pretensioso em termos teóricos ao já esboçado por Carr, foi dado por
Hans Morgenthau (1904-80).
Judeu alemão exilado nos Estados Unidos, nos anos 1930, para escapar à
perseguição nazista, Morgenthau estudara direito e diplomacia e se formara admirando a
obra de seu conterrâneo Max Weber. Nos EUA, foi professor na Universidade de
Chicago, entre 1943 e 1971, e colaborou diretamente com o governo estadunidense em
duas oportunidades: no final dos anos quarenta foi consultor da equipe de Planejamento
41
Político do Departamento de Estado e, no começo dos anos 1960, foi conselheiro do
Pentágono. Data da época em que trabalhava para o Departamento de Estado seu livro
mais influente na área das Relações Internacionais: A política entre as nações: a luta
pelo poder e pela paz, editado em 1948. A obra refletia a crença de Morgenthau no
papel dos Estados Unidos como país-chave para a manutenção da ordem internacional;
fato que fez com que a intenção de aconselhar e instruir as instâncias estadunidenses
formuladoras de política externa atravessasse o texto. Essa intenção foi acompanhada de
uma crítica à falta de racionalidade que Morgenthau enxergava nas ações diplomático-
militares dos EUA, permeadas, segundo ele, por valores morais, crença no poder do
direito e na harmonia de interesses entre as nações. Enfim, a política externa
estadunidense estaria, ainda, embebida no “utopismo” wilsoniano (Griffiths, 2004).
Para Morgenthau, as metas fundamentais a serem perseguidas pelos Estados só
poderiam ser alcançadas por meio de práticas de política externa racionais, balizadas
por uma teoria extensiva que pudesse conferir sentido “à massa de fenômenos (...)
desconexos e incompreensíveis” (2003: 03) que conformam as relações internacionais.
O dever ser do internacionalismo liberal não só desconheceria a realidade dos fatos e
dos concretos interesses dos Estados, como também seria perigoso para a manutenção
da ordem internacional (entendida como ausência de guerra e equilíbrio de poder entre
os Estados), pois indicaria caminhos para a organização das relações internacionais que,
ao não serem factíveis, impediriam a efetivação de modos possíveis para a manutenção
da paz. Para Morgenthau, uma “política externa racional é uma boa política externa,
visto que somente uma política externa racional minimiza riscos e maximiza vantagens”
(2003: 16). Assim, para o alemão, seria necessário apresentar uma teoria que observasse
e procurasse compreender o real, estando atenta “mais a precedentes históricos do que a
princípios abstratos” e que tivesse “por objetivo a realização do mal menor em vez do
42
bem absoluto” (2003: 04). Logo, havia que se formular uma teoria realista da política
internacional que se opusesse à escola liberal, com sua crença na cooperação, na lei
internacional e na importância das instituições supranacionais.
O conceito básico apresentado pelo autor é o de “interesse traduzido em termos
de poder” (2003: 06). Na visão utilitarista de Morgenthau, todos os Estados buscam o
mesmo: maximizar ganhos e minimizar perdas, que são medidos na quantidade de
relações de poder favoráveis produzidas e desfavoráveis evitadas. O interesse nacional,
portanto, é o conceito que põe em marcha toda e qualquer estratégia de política exterior.
Ele se resume aos temas já mencionados da sobrevivência nacional e da expansão de
influência política. Se interesse nacional e poder são conceitos intrinsecamente ligados,
suas potencialidades conceituais viriam pelo fato de serem universalmente válidos:
todos os Estados, independente do tamanho e força política, econômica e militar,
enfrentariam esses mesmos problemas. Todo Estado tem sua pauta de interesses
nacionais e todos exercem poder e sofrem efeitos do poder exercidos por outros. Para
Morgenthau, esse poder significa “tudo que estabeleça e mantenha o controle do homem
sobre o homem” (2003: 18). Portanto, as relações de poder entre os Estados se
circunscrevem à situação de mando e obediência e ao estabelecimento (e sustentação)
de variados níveis de hierarquia que são correlatos às relações de poder que se dão entre
homens. Os “homens artificiais” que são os Estados emulam os embates e situações de
dominação que ocorrem entre os homens reais. Em suma, poder e exercício do poder
são entendidos, exclusivamente, como forças negativas, supressivas, instauradoras de
submissões e modeladoras do comportamento dos entes sujeitados. As relações de
poder, em Morgenthau, pressupõem uma fonte da qual emana poder sobre um alvo a ele
sujeitado. Trata-se de um modo de pensar as relações de poder a partir da lógica da
soberania do Estado, com efeitos de poder sobre os súditos ou cidadãos.
43
Além dessa onipresença dos interesses e do conceito de poder, todos os Estados
estariam submetidos a uma mesma situação, a um mesmo ambiente: a condição de
existirem em um mundo sem autoridade central, o que faria do sistema internacional um
espaço caracterizado pela “instabilidade extrema e pela ameaça sempre presente de
violência em larga escala” (Morgenthau, 2003: 19). Desse modo, o tema da segurança
nacional (da sobrevivência do Estado) era crucial, uma vez que nenhum poder superior
poderia assegurar a vida de uma unidade soberana. A ausência de freios em um cenário
sem autoridade geraria tanto o dilema da segurança (que acometia a todos os Estados),
como a possibilidade de alcançar ganhos (aumentar suas condições de exercício de
poder) por vias violentas. Desse modo, a guerra seria sempre uma possibilidade na
relação entre Estados. Sua ocorrência não poderia ser evitada para sempre. Morgenthau,
no entanto, sustenta que o “realismo político não parte da premissa de que não podem
ser modificadas as condições contemporâneas sob as quais opera a política externa”
(2003: 19), que são, precisamente, essas oportunidades constantes de guerras
interestatais. Para ele há um caminho para que a guerra seja, senão definitivamente
abolida, ao menos controlada e adiada. Essa anulação parcial da guerra viria com o que
o autor chama de equilíbrio de poder. O sentido mais preciso que Morgenthau dá a esse
conceito é o de um “estado de coisas real, em que o poder é distribuído entre várias
nações com uma igualdade aproximada” (2003: 321). Em outras palavras, seria a
situação na qual a existência de potências com capacidades de poder aproximadas
levaria à formação de alianças defensivas e à prudência na condução da política externa,
desencorajando aventuras militares que poderiam expor, de modo fatal, o Estado que a
elas se arrojasse. Em seu tempo, Morgenthau presenciava a formação de dois grandes
blocos de Estados, um em torno dos Estados Unidos e outro ao redor da União
Soviética, que, para ele, teriam o potencial de produzir um equilíbrio de poder bastante
44
estável. Equilíbrio que não significaria o fim das guerras, mas o armistício entre os
Estados líderes de cada bloco, com o conseqüente deslocamento dos choques violentos,
civis e interestatais, para as regiões periféricas do mundo, notadamente África e Ásia.
Morgenthau, todavia, não cria o conceito de equilíbrio de poder, mas antes, o
recupera das análises da realpolitik do século XIX, justificadoras do equilíbrio entre as
potências européias após a derrota de Napoleão e o rearranjo político do Congresso de
Viena, em 1815 (Roche, 2006). Ademais, Morgenthau retrocede à Tucídides (471-400
a.C.), em passagem de sua História da guerra do Peloponeso, escrita no século V a.C.,
na qual o general e historiador ateniense louva a “identidade de interesses” como o mais
seguro vínculo entre Estados e entre indivíduos (Morgenthau, 2003: 17). Essa menção a
Tucídides inauguraria uma das mais recorrentes referências clássicas do realismo em
Relações Internacionais. Consagra-se, no realismo subseqüente a Morgenthau, uma
certa interpretação de Tucídides que o coloca no panteão realista como o primeiro
grande autor a descrever a importância do equilíbrio de poder como conceito analítico e
como fator de estabilidade internacional, ainda que o historiador grego tivesse se
dedicado à narrativa de uma guerra entre cidades-estado que se deu dois mil anos antes
da emergência do sistema moderno de Estados. Os realistas vêem na descrição da guerra
que opôs as ligas de Delos (chefiada por Atenas) e a do Peloponeso (chefiada por
Esparta) uma sistematização universalmente válida da centralidade do conceito de
equilíbrio de poder. Segundo essa leitura, Tucídides teria apontado o que acontece
quando um Estado (no caso, a cidade-estado Atenas) procura construir uma hegemonia
sobre todo o conjunto de outras unidades políticas independentes, abalando o equilíbrio
pré-existente: diante da pretensão hegemônica de um Estado os demais tenderiam a se
aliar, naquilo que o realismo chamaria de aliança contra-hegemônica (Bedin, 2004;
Nogueira e Messari, 2005). A insistência do Estado instigador levaria a uma guerra que,
45
ao final, restabeleceria uma outra ordem internacional e um novo equilíbrio de poder.
Essa chave explicativa seria um dos ângulos não apenas da reflexão de Morgenthau,
mas também, de todo realismo que se segue, com suas subdivisões e readequações
5
.
Morgenthau, e realistas contemporâneos a ele como Raymond Aron (1986),
investiriam na tese de que o equilíbrio de poder estabelecido entre os blocos socialista e
capitalista em finais dos anos 1940 teria a virtude de evitar uma guerra apocalíptica pela
equiparação de forças — no caso, do poderio nuclear — das potências, fato que
produziria uma paz global que Aron qualificou de “equilíbrio do terror” e que seria a
característica central da Guerra Fria: guerras menores e regionais e paz entre as
potências. Essa paz, é importante frisar, não seria a paz positiva dos liberais, escolhida
espontaneamente pelos Estados diante da recusa racional do recurso à guerra. Ao
contrário, a paz do equilíbrio de poder seria sempre efêmera, tensa, armada. Seria um
interregno entre duas guerras, uma paz como ausência de guerra, um armistício. No
entanto, e tal posição é bastante clara em Morgenthau, essa seria a única paz possível.
Portanto, perseguir a ordem internacional — entendida como ausência de guerra diante
de uma situação hierárquica definida — só seria viável pela combinação entre prudência
e racionalidade na condução da política externa e da busca de situações mais ou menos
estáveis de equilíbrio de poder.
Com a obra de Morgenthau, consolida-se a disputa central entre as escolas
liberal e realista que ficou conhecida na literatura dedicada às Relações Internacionais
como primeiro debate (Jackson e Sørensen, 2007; Dougherty e Pfaltzgraff Jr., 2001;
Braillard, 1990; Walker, 2001; Weber, 2005). Nos limites que interessam a essa
5
O conceito de equilíbrio de poder permaneceria central na argumentação realista. Podemos encontrá-lo
em posição de destaque tanto em Kenneth Walz (2002), em seu Teoria das Relações Internacionais
(Theory of International Politics), publicado em 1979 — e que abriria as portas para o neorealismo, a
mais significativa renovação do realismo nas últimas décadas do século XX — quanto em Samuel
Huntington (1994; 1997) e sua tese de um novo equilíbrio de poder a se constituir no final do século XX,
não mais entre blocos ideologicamente antagônicos, mas por civilizações em competição.
46
investigação, não é necessário reconstituir os desdobramentos dos debates que se deram
entre reformuladores das escolas liberal e realista ou também, ao menos por ora, aquele
postulado pelas novas escolas críticas às mais antigas. Basta, tão-somente, apresentar as
linhas gerais do embate entre os fundamentos realistas e liberais que são as abordagens
teóricas que ainda exercem “uma influência incontestável sobre a maioria dos
estudiosos de RI” (Nogueira e Messari, 2005: 14), que marcam presença nos discursos
de política externa dos Estados mais poderosos (política, militar e economicamente) e
que seguem sendo os parâmetros a formatar currículos dos cursos de graduação e pós-
graduação na área das Relações Internacionais em muitos países e no Brasil em
particular.
A disputa pela supremacia na produção de verdade na área das Relações
Internacionais conhece seus primeiros choques no embate entre o internacionalismo
liberal das primeiras décadas do século XX e a reação realista a ele, esboçada a partir
dos anos 1930. Prevalecendo nos anos iniciais da disciplina acadêmica das RI, a visão
liberal investiu na idéia de que uma paz duradoura no cenário internacional seria
possível pela combinação de abdicação do recurso à guerra por parte dos Estados,
adoção de um sistema de segurança coletiva e de solução pacífica de controvérsias que
substituiria a necessidade de autodefesa de cada Estado, o estabelecimento de normas
internacionais que regulariam o comportamento dos Estados e a liberalização dos fluxos
comerciais (que aproximaria povos e economias). O realismo rebate as teses do
internacionalismo liberal a partir da premissa de que não é viável supor a superação em
definitivo da guerra entre Estados, uma vez que ela não pode deixar de ser um recurso
fundamental em um mundo no qual cada unidade soberana deve manter-se por sua
própria conta. A natureza de cada Estado, emulando uma natureza humana egoísta e
que busca sua preservação, seria, incontornável e, diante da variável internacional (o
47
fato de não haver um poder central superior aos Estados), não caberia outro caminho
que não a prontidão permanente e o uso eventual da força militar. A paz possível seria
apenas aquela descrita por Morgenthau como equilíbrio de poder (justamente o tipo de
paz que Wilson tanto recriminava por sua precariedade). Desse modo, o primeiro debate
entre escolas teóricas das Relações Internacionais parece consolidar um antagonismo
irredutível entre realistas e liberais. As concepções sobre ordem internacional,
cooperação, competição, direito internacional, paz e guerra parecem inconciliáveis e
diametralmente opostas. Em torno dessa incompatibilidade é que se constituiu
contemporaneamente a área acadêmica das RI. Todavia, cabe aqui um exame que
procure reparar em pequenos detalhes, ranhuras quase imperceptíveis aos olhos de
teóricos e estudiosos da política internacional. Marcas que atravessam ambas as escolas
e que estabelecem uma inusitada aproximação entre posturas apresentadas sempre como
repulsivas uma à outra. Para tanto, é necessário um retorno às principais procedências
que alimentam, do ponto de vista conceitual, as teorias realista e liberal. Procedências e
autores que são identificados por comentaristas de cada escola compondo seu repertório
básico de referências, seu panteão. Tal percurso poderia ser trilhado de modos bastante
distintos. O que proponho é uma perspectiva que repare nas leituras que realistas fazem
de Thomas Hobbes, e que liberais fazem de Immanuel Kant. Trata-se de uma tentativa
de passar pela luta entre teorias que buscam afirmar uma verdade sobre a política
internacional com a intenção de problematizar as escolas, expondo suas estruturas,
intencionalidades políticas e lógicas internas.
48
Em nome da paz civil: procedências liberais e realistas
A filosofia política, nas vozes dos mais notórios contratualistas, destacou-se por
festejar o advento do Estado como o fiat lux pelo qual os homens deixaram a violência
fratricida na celebração da concórdia. A renúncia à liberdade absoluta do estado de
natureza, uma “liberdade grotesca” para Kant (2004: 13), poria fim à “guerra perpétua
de cada homem contra seu vizinho” (Hobbes, 1979: 131) instaurando um mundo com
senhorio, ordem e — o bem supremo — a paz civil. O ímpeto da auto-preservação,
impulsionado pelo medo hobbesiano da morte violenta ou pela racionalidade kantiana,
produziria uma maquinaria nova, forte, pujante, capaz de defender a propriedade
privada e a vida (a propriedade sobre si), banindo a guerra pela regulação e coerção
estatais. Obediente ao Soberano-Leviatã, em Hobbes, ou à Soberana-Lei, em Kant, o
súdito hobbesiano — servo do rei — ou cidadão kantiano — servo da lei — desfrutaria
em ambos os casos do banimento da guerra. Do caldo da guerra civil primordial
brotaria a paz, consolidação de cada Estado como uma unidade política pacificada em
si.
Os contatos entre os Estados, esses bolsões de paz, se dariam, no entanto, de
modo diferente para Kant e Hobbes. Essa diferença relativa às relações internacionais é
fundamental para compreender porque as escolas liberal e realista escolheram suas
filiações em Kant e Hobbes, respectivamente. É importante frisar que realistas e liberais
não estabeleceram apenas esses dois autores da filosofia política moderna como
parâmetros. A literatura que sistematiza o debate entre realistas e liberais não deixa de
mencionar o interesse dos internacionalistas do século XX por autores como Marsílio de
Pádua (1285-1343), Francisco de Vitoria (1480-1549), Thomas More (1478-1535),
Francisco Suárez (1548-1617), Hugo Grotius (1583-1645), Abade de Saint-Pierre
49
(1658-1743), Emmerich de Vattel (1714-1767), Jean-Jacques Rousseau (1722-1778),
além de Immanuel Kant (1724-1804) — pelo lado liberal — e por Tucídides, Baruch
Spinoza (1632-1677), Nicolau Maquiavel (1469-1527) e Thomas Hobbes (1588-1679)
— pelo lado realista (Ramel e Cumin, 2002; Jackson e Sørensen, 2007; Dougherty e
Pfaltzgraff Jr, 2001; Bedin, 2004; Pecequilo, 2004; Seitenfus, 2004; Braillard, 1990).
Pensamos que a escolha pela análise mais pormenorizada de Hobbes e Kant se justifica
confrontada à apresentação geral das características das escolas teóricas realizada na
seção anterior. Desse modo, cabe investigar quais os pontos desses filósofos políticos
são os mais destacados nas leituras internacionalistas e, por que motivo, eles interessam
a uma problematização das teorias das Relações Internacionais.
A urgente paz de Thomas Hobbes
Thomas Hobbes viveu sob uma sombra: o medo da guerra civil. Foi testemunha
de um período conturbado na Inglaterra que se seguiu à morte de Elizabeth I, em 1603,
e que culminou na guerra civil deflagrada em 1642, por meio da qual facções
nobiliárquicas disputaram o trono. Antes disso, em 1640, vivera exilado na França,
fugindo da perseguição sofrida após a publicação de Elementos da Lei, naquele mesmo
ano. No livro, Hobbes elaborou os primeiros traços de sua tese sobre a urgência do
Estado e as características da paz civil que encontrariam forma definitiva n’O Leviatã,
sua obra máxima, editada em 1651. O Leviatã foi escrito na esteira do fim da Guerra
dos Trinta Anos, em 1648, que trouxe a elaboração do Tratado de Vestfália, da
execução de Carlos I, em 1649, e da proclamação da república na Inglaterra (que traria a
consolidação da ditadura de Oliver Cromwell, em 1653). Hobbes é considerado o
principal pensador do absolutismo na filosofia política moderna, desenvolvendo a noção
50
de soberania absoluta já trabalhada nos séculos XVI e início do XVII por autores como
Jean Bodin (1530-96) (Cueva, 1995). Assim, com o intuito de defender a forma
monárquica absolutista e a existência do Estado, Hobbes torna-se o primeiro importante
filósofo político a trabalhar com a noção de contrato social, que pressupõe a superação,
por meio de um acordo entre todos os homens, de uma situação primitiva (o estado de
natureza) na qual todos eram completamente livres e iguais pela ausência de um poder
coercitivo superior ou de leis civis que pudessem regrar e coagir os indivíduos. Esse
estado de natureza, uma “anarquia” como caracteriza o autor, é um tempo miserável, no
qual todos pagam o preço da liberdade absoluta com o medo constante da morte
violenta. Como, para Hobbes, os homens são vis, egoístas e desejosos de satisfazer
todas suas paixões, a combinação de uma tal natureza humana com a ausência de um
poder político-jurídico superior produziria uma condição de extrema insegurança e “o
fato de podermos supor, numa situação de igualdade, que os homens se comportem de
maneira a procurar cada vez mais poder para si próprios” (Limongi, 2002: 22).
A igualdade entre os homens leva a uma condição de guerra permanente, “uma
guerra que é de todos os homens contra todos os homens” (Hobbes, 1979: 75). Esse
estado de guerra, no entanto, “não consiste na luta real, mas na conhecida disposição
para tal, durante todo o tempo em que não há garantia do contrário” (idem: 76). Nessa
época remota e brutal da existência humana, a insegurança levava à urgência em
defender-se cotidianamente diante do “constante temor e perigo de morte violenta”
(idem: idem). O medo onipresente e opressor não poderia ser, então, um efeito
suportável da liberdade absoluta. Os homens, assim, dotados tanto de paixões como de
razão ponderariam sobre os benefícios da saída desse estado bárbaro para que a paz e
segurança pudessem ser alcançadas. Esse deslocamento exigiria um acordo voluntário
de todos os homens que implicasse numa “transferência mútua de direitos” (Hobbes,
51
1979: 80) que significaria uma renúncia sincrônica e coletiva da liberdade absoluta. No
entanto, a paz civil não seria assentada apenas sobre as palavras ou o compromisso. Era
necessário estabelecer uma forma de poder coercitivo mais forte que cada indivíduo e
investido de autoridade por eles próprios para executar as regras geradas pelo pacto.
Nesse sentido, a obediência às leis e a manutenção da paz só poderiam advir, para
Hobbes, do medo da punição representado por um poder político estável e
inquestionável. Não há garantias de obediência a leis civis em estado de natureza, “mas
num Estado civil, onde foi estabelecido um poder para coagir aqueles que de outra
maneira violariam sua fé, esse temor [da punição pela desobediência às leis civis] deixa
de ser razoável” (Hobbes, 1979: 82). Para escapar de tal situação bárbara, os homens
acordam livremente deixá-la; fato que, para Hobbes, tornaria equivocado pensar no
abandono do estado natural como uma passagem à escravidão porque “do nosso ato de
submissão fazem parte tanto nossa obrigação quanto nossa liberdade (...), pois ninguém
tem obrigação que não derive de algum de seus próprios atos, visto que todos os
homens são, por natureza, igualmente livres” (idem: 133). Por isso, é possível a Janine
Ribeiro afirmar que “não há totalitarismo hobbesiano, mas conversão dos indivíduos —
para manter o seu fim, que é preservar-se, cada um abre mão do meio, que está na razão
e juízo individuais” (2004: 210).
Para evitar a guerra de todos contra todos, portanto, seria necessário produzir
uma desigualdade, uma assimetria incontornável de poder físico: seria preciso a
constituição de um Estado forte, comandado por um rei ou assembléia, mas
incontestável em sua autoridade e força física. Hobbes resgata a imagem de um monstro
bíblico, o Leviatã, para descrever essa instituição política poderosa que garantiria a paz.
Trata-se da construção de um discurso que defende a urgência de um poder soberano
que somente realizaria seu objetivo se fosse, uma vez instituído, inquestionavelmente
52
obedecido: o preço da garantia da vida seria, portanto, a obediência ao soberano e o
oferecimento da própria vida, que pode ou não ser cobrada pelo monarca. O Estado
formado pela reunião dos poderes individuais seria forte o suficiente para dar forma e
estabilidade à multidão amorfa do estado natural, evitando a desordem e a luta, o medo
e a insegurança. Em suma, a paz, entendida por Hobbes como conservação da vida, só
poderia ser alcançada com o estabelecimento do Estado. É explícita em Hobbes a noção
de que só há paz civil sob o Estado (absoluto, em particular), entidade que fizesse valer
a lei, punindo as desobediências. A ausência do Estado, o estado de natureza, a
“anarquia”, seriam a guerra, o caos, o descaminho. A política, portanto, seria sinônimo
de paz, sinônimo de superação da guerra que toma tudo quando há o vazio da política.
Hobbes pondera que talvez se pudesse pensar “que nunca existiu um tal tempo,
nem uma tal condição de guerra como esta, e acredito que jamais tenha sido geralmente
assim, no mundo inteiro; mas há muitos lugares onde atualmente se vive assim” (1979:
76). O inglês faz referência aos “povos selvagens” da América, “embrutecidos” e sem
governo como em sua descrição do estado de natureza. Todavia, a sombra do estado de
natureza pode ser sentida entre os “povos civilizados” quando há a ameaça da fissão do
Estado pela guerra civil. Essa preocupação, central em Hobbes, articula sua reflexão
sobre a passagem do estado natural para o estado de sociedade e é a pedra angular de
sua defesa e elogio ao Estado. Mesmo que um estado de natureza “histórico” jamais
tenha existido, suas nefastas qualidades poderiam brotar na Europa dos Estados
modernos emergentes caso eles sucumbissem às disputas intestinas e às lutas de
facções. Hobbes defende uma posição política afinada com seu tempo e expressa seu
partido pela manutenção da monarquia como senha para o bem-estar e a paz civil.
A possibilidade de um despontar do estado de natureza assombra Hobbes. A
guerra o atemoriza. Não tanto a guerra como o fato militar exterior, a opor os Estados
53
soberanos. A guerra que o atormenta é a que nega o pacto, a que dissolve o contrato, a
que nega o Estado. Segundo Hobbes, “embora a soberania [a alma do Estado] seja
imortal, na intenção daqueles que a criaram, não apenas ela se encontra, por sua própria
natureza, sujeita à morte violenta através da guerra exterior, mas encerra também em si
mesma, devido à ignorância e às paixões dos homens (...) grande número de sementes
de mortalidade natural, através da discórdia intestina” (1979: 135). A morte da
soberania que possa ser trazida pela derrota diante de um Estado perante outro significa
a ruína de um soberano e a submissão de um povo a outro. Entretanto, não equivale à
morte conceitual da soberania. O antigo súdito do soberano derrotado passaria, então, a
ser súdito do monarca vencedor. Toda humilhação que pudesse estar implicada nessa
mudança de obediências não seria pior, todavia, que a morte absoluta do conceito de
soberania: essa morte que vem com a guerra civil, o negativo do contrato, o anti-pacto.
No momento em que reflete sobre a morte parcial e completa da soberania,
Hobbes dedica-se, em uma breve passagem, a pensar como ficariam as relações entre
cada um dos Estados que, em si, superaram seu estado de natureza primordial. Esse
trecho d’O Leviatã, contido no Capítulo XXI intitulado “Da liberdade dos súditos”, é
reclamado pelo realismo em Relações Internacionais como fundamental para descrever
e justificar sua visão da política internacional. Cabe, portanto, reproduzi-lo
integralmente:
“A liberdade à qual se encontram tantas e tão honrosas referências nas
obras de história e filosofia dos antigos gregos e romanos, assim como
nos escritos e discursos dos que deles receberam todo o seu saber em
matéria de política, não é a liberdade dos indivíduos, mas a liberdade do
Estado; a qual é a mesma que todo homem deveria ter, se não houvesse
leis civis nem qualquer espécie de Estado. E os efeitos daí decorrentes
também são os mesmos. Porque tal como entre homens sem senhor existe
uma guerra perpétua de cada homem contra seu vizinho, sem que haja
herança a transmitir ao filho nem a esperar do pai, nem propriedade de
bens ou terras, nem segurança, mas uma plena e absoluta liberdade de
cada indivíduo; assim também, nos Estados que não dependem uns dos
outros, cada Estado (não cada indivíduo) tem absoluta liberdade de fazer
tudo o que considerar (isto é, aquilo que o homem ou assembléia que os
54
representa considerar) mais favorável aos seus interesses. Além disso,
vivem numa condição de guerra perpétua, e sempre na iminência da
batalha, com as fronteiras em armas e canhões apontados contra seus
vizinhos a toda volta.” (Hobbes, 1979: 131-132)
É possível notar como Hobbes caracteriza as relações entre Estados como uma
projeção da situação doméstica, substituindo os indivíduos-homens do estado de
natureza primitivo pelos indivíduos-Estados desse segundo estado de natureza formado
pela interação livre entre unidades soberanas. Essas unidades soberanas superaram o
estado de natureza e tornaram-se bolsões de paz civil. No entanto, cada alvéolo de paz
civil relaciona-se com outro sem qualquer restrição aos seus movimentos. Fica evidente,
portanto, como que, para Hobbes, cada Leviatã herda a natureza e o caráter dos homens
que o formaram e o autorizaram a existir: são, também, vis, egoístas e perseguem suas
paixões. Paixões que, então, passaram a ser traduzidas pelo nome de Razão de Estado
ou, mais tarde, de interesse nacional. O monarca ou a assembléia definem as metas e
movimentações do Estado que não encontra limites que não sejam sua própria força e
astúcia e a força e astúcia dos seus pares. No entanto, essa reprodução do estado de
natureza primordial em estado de natureza internacional não tem conseqüências tão
perniciosas quanto o primeiro porque se os Estados mantêm “seus fortes, guarnições e
canhões guardando as fronteiras de seus reinos, e constantemente com espiões no
território de seus vizinhos, o que constitui uma atitude de guerra” o fazem para
“proteger a indústria de seus súditos” o que não permite que advenha “aquela miséria
que acompanha a liberdade dos indivíduos isolados” (Hobbes, 1979: 77). Com a paz
civil garantida dentro de cada Estado, o estado de natureza internacional não é ameaça
ao conceito de soberania. Ao contrário, ao invés de abalar a noção hobbesiana de
soberania como alma do Estado, a guerra exterior reafirma o conceito ao reforçar o
Estado e o sistema de Estados.
55
Evans e Newnham, ao apontarem o tamanho da influência que essa noção de
estado de natureza tem sobre os realistas, surpreendem-se pelo fato de que “o próprio
Hobbes não era preocupado com as relações interestatais; suas observações sobre elas
eram acessórias, partes subordinadas de sua exposição sobre a política doméstica e sua
justificação do governo” (1998: 227). Apesar disso, um dos pontos de apoio mais
importantes para as teses realistas encontra-se no empréstimo que fazem de Hobbes da
noção de estado de natureza projetado no plano internacional. Com isso, o realismo
tenta fundamentar a idéia de que os Estados vivem numa situação análoga ao estado
natural descrito por Hobbes, com as mesmas preocupações de base, ou seja, o medo da
morte violenta e a necessidade imperativa de zelar por sua segurança. Ademais, a guerra
entre Estados seria um acontecimento inevitável num mundo sem um poder coercitivo
supra-estatal. Desse modo, num decalque direto da reflexão hobbesiana, o realismo
aponta as relações entre Estados como uma “anarquia internacional” que não é sinônimo
de batalhas ininterruptas, mas de iminência constante do confronto. Essa insegurança é
o traço marcante do sistema internacional e molda o comportamento dos Estados. Por
fim, ao encampar o conceito de natureza humana hobbesiano, o realismo constrói a
idéia de que todos os Estados possuem o mesmo ímpeto e as mesmas motivações,
emulando a natureza dos indivíduos que os compõem. Em um espaço internacional sem
freios coercitivos, o que pode um Estado dependerá da sua competência no
planejamento e execução da política externa e nos recursos de poder que venha a
manejar.
O realismo sistematizado pelos autores iniciais como Edward Carr e,
principalmente, Hans Morgenthau, busca em Hobbes amparo para justificar sua visão de
um mundo que não dispõe de uma força coercitiva global e que é ocupado por Estados
que buscam seus interesses traduzidos em termos de poder (sobreviver, coagir e moldar
56
o comportamento de outros). Mais do isso, no entanto, lançam suas raízes e argumentos
na reflexão de Hobbes acerca da natureza humana e na identidade que o autor inglês
constrói entre política e paz. Política entendida como Estado, vida institucional regida
por um aparato coercitivo e legislador; e paz compreendida como ausência de guerra,
segurança contra a morte violenta e preservação da propriedade. Esses traços
permanecem na base dos argumentos realistas e são cruciais para compreender tanto
seus desdobramentos e atualizações quanto suas insuspeitadas afinidades com a rival
teoria liberal.
A urgente paz de Immanuel Kant
Dos filósofos políticos que trabalharam com a noção de contrato social,
Immanuel Kant foi aquele que mais explicitamente preocupou-se em lidar com o tema
das relações entre Estados e de como elas estavam diretamente vinculadas à superação
do estado de barbárie e à conseqüente conquista de um estado de paz civil. Ainda que a
questão tenha também atravessado as obras mais extensas do filósofo alemão, a
discussão sobre as relações internacionais está concentrada em dois breves textos: Idéia
de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, de 1784, e, principalmente,
no influente opúsculo de 1795, Para a paz perpétua: um esboço filosófico. Esses
escritos seriam muito importantes na constituição dos movimentos pacifistas no século
XIX que procuraram retirar a discussão sobre o fim da guerra do campo religioso
marcando a “idéia de paz vinculada ao direito” (Nour, 2004: 111) e estão diretamente
relacionados à emergência da escola liberal das Relações Internacionais (Roche, 2006).
Nesse contexto, intelectuais, juristas e associações pacifistas desde a segunda metade do
século XIX, que se dedicaram a pensar a garantia da paz pelo direito, enxergaram em
57
Kant um dos principais autores a lidar com o problema da paz por meio da defesa da
institucionalização internacional e da produção de normas universais (Le Bras-Chopard,
1994: 59-62).
A influência do cosmopolitismo kantiano, bastante clara em autores como
Norman Angell e nas propostas de Woodrow Wilson, pode ser percebida na
preocupação dos autores da escola liberal em defender uma nova configuração nas
relações internacionais na qual os Estados deixassem de ser unidades plenamente
autônomas e ensimesmadas, passando a tratar as questões de segurança de modo
compartilhado, além de dar passagem à livre circulação de produtos e pessoas — o que
auxiliaria na produção de um mundo integrado e cooperativo, gerido por leis
elementares globais. Essas questões estão, de fato, no cerne da reflexão de Kant nos
textos acima apontados.
No primeiro deles, Idéia de uma história universal..., Kant principia sua
argumentação rememorando a necessidade que os homens sentiram em superar o estado
de natureza primordial, construindo um estado de sociedade sob leis civis. Essa
mudança de estado foi fruto de um esforço, já que o homem, por natureza, seria não-
sociável, egoísta e mesquinho. Segundo Kant, “é a necessidade que força o homem,
normalmente tão afeito à liberdade sem vínculos, a entrar neste estado de coerção”
(2003: 10). É a necessidade que os compele porque a vida em plena liberdade, no estado
natural, cobra um alto preço: a preocupação constante com a auto-preservação e a
defesa dos próprios bens gera um cenário de exercício desmesurado da violência que
drena todas as atenções dos homens embotando o desenvolvimento das artes e da
cultura. O estado de barbárie original seria, portanto, um estado de liberdade grotesca
que deveria ser superado para sempre. É a razão humana que indica a urgência em
deixar essa etapa violenta e degradante. No entanto, é preciso um sacrifício, uma
58
disposição moral para dobrar a natureza humana. Esse exercício implica na produção
consentida de um “senhor que quebre sua vontade particular [do homem] e o obrigue à
vontade universalmente válida, de modo que todos possam ser livres” (Kant, 2003: 11).
Portanto, o estado de sociedade só se efetiva com a formação de um poder coercitivo ao
qual todos se submetam. E só serão livres os homens sob a liberdade limitada de um
estado de sociedade. No entanto, o titular desse poder coercitivo, homem ou assembléia,
também é ou são membros da espécie humana e, logo, precisam de limites, freios, de
um senhor. Esse senhor absoluto é a lei, a constituição civil que traria em si os direitos
naturais do homem: à vida, à propriedade, à liberdade de trânsito, à liberdade de
pensamento e culto. A Lei Soberana regeria, assim, uma sociedade de homens cujo
amálgama seria a obediência à constituição; submissão que selaria a saída do estado
natural, consagrando a paz civil.
O estado natural superado em cada nova república persistiria no plano
internacional apesar dessa conquista local. Os Estados, pacificados em si mesmos,
seguiriam, num primeiro momento, em uma situação análoga à vivida pelos homens
antes da celebração do pacto civil. “A mesma insociabilidade”, diz Kant, “que obrigou
os homens a esta tarefa [celebrar o pacto] é novamente causa de que cada república, em
suas relações externas — ou seja, como um Estado em relação a outros Estados —,
esteja numa liberdade irrestrita, e conseqüentemente deva esperar do outro os mesmos
males que oprimiam o indivíduo e os obrigavam a entrar num estado civil conforme
leis” (2003: 13). Existiria assim, para Kant, uma reprodução imediata no plano
internacional do estado natural que flagelava os homens antes do pacto. Nesse ponto, é
possível encontrar uma distinção importante se compararmos o argumento de Kant ao
de Hobbes, exposto na seção anterior. Hobbes também localizou um segundo estado de
natureza existente entre os Estados e foi essa identificação uma das passagens da obra
59
hobbesiana que mais interessou ao realismo em suas formulações teóricas. A diferença é
que Kant faria o vínculo direto entre superação doméstica do estado de natureza e
superação do estado de natureza internacional. Em outras palavras, a paz interna
desenhada com a formação do Estado constitucional não estaria garantida se não
houvesse uma correlata paz entre as repúblicas. A “liberdade bárbara dos Estados
constituídos” (Kant, 2003: 15) precisaria ser suplantada, pondo fim ao estado de guerra
ou à “anarquia”, sinônimos de estado natural, entre as unidades políticas uma vez que o
dispêndio de energia e recursos necessários para o preparo constante para a batalha
(além da própria destruição causada pelas guerras quando ocorrem) impediria o pleno
desenvolvimento dos povos (situação paralela, portanto, à que afligia aos homens
isoladamente antes da formação do Estado). Não haveria como contornar, desse modo,
um imperativo: “sair do estado sem leis dos selvagens para entrar numa federação de
nações em que todo Estado, mesmo o menor deles, pudesse esperar sua segurança e
direito não da própria força ou do próprio juízo legal, mas somente desta grande
confederação de nações (Foedus Amphictyonum) de um poder unificado e da decisão
segundo leis de uma vontade unificada” (idem: 13). A necessidade que enfrentam os
Estados é a mesma que enfrentaram os indivíduos: “abdicar de sua liberdade brutal e
buscar tranqüilidade e segurança numa constituição conforme leis” (idem: 14). O
caminho da federação para a garantia do estado de paz civil (simultânea e
necessariamente doméstico e internacional) foi, assim, esboçado nesse texto e, depois,
desenvolvido e revisado na obra mais conhecida, Para a paz perpétua, produzida onze
anos depois e que, segundo Roche, “é a obra de Kant mais conhecida entre os
internacionalistas” (2006: 88).
A reflexão elementar desenvolvida em Idéia de uma história universal... é
mantida pelo filósofo, que aprofunda a descrição da natureza e da necessidade da
60
federação entre Estados. Segundo Kant, já em Para a paz perpétua, “a razão, do alto de
seu trono de supremo poder legislativo moral, simplesmente condena a guerra como via
do direito e faz, em contrapartida, um dever imediato do estado de paz, o qual não pode
contudo ser instituído ou garantido sem um pacto dos povos entre si” (2004: 48). Seria
urgente abandonar a guerra como prática e como fonte do direito (a vontade do
vencedor imposta como norma) para a construção de um direito anterior aos litígios e
superior aos Estados. Um direito que, basicamente, estivesse lastreado na renúncia da
guerra e na liberdade de visita ou trânsito. O direito cosmopolita que Kant defende
como primordial para a definitiva superação do estado de natureza baseia-se na noção
de hospitalidade universal por meio da qual todo homem e todos os bens produzidos
pelo homem teriam o direito de circular livremente e de serem acolhidos por toda Terra,
entendida como patrimônio comum da espécie humana. Esse direito cosmopolita
operaria como base de uma constituição civil universal que garantiria, com sua
existência e pela observância de todos os Estados, a sobrevida de cada experiência
doméstica de estado de sociedade. Sua celebração exigiria, de cada Estado, um
renovado esforço de negação da liberdade plena e de aceitação de limites à livre
perseguição das vontades. Exigiria, por fim, uma outra aliança, versão potencializada do
pacto social entre homens: um acordo novo, nunca antes celebrado que estabelecesse
uma “espécie particular de liga [bund, aliança, federação], que se pode chamar de
aliança da paz (foedus pacificum), a qual se distinguiria do pacto de paz (pactum pacis)
pelo fato de que este procura acabar apenas com uma guerra, enquanto aquela procura
acabar com todas as guerras” (Kant, 2004: 48).
Kant prevê que esse pacto cosmopolita não seguiria plenamente o modelo levado
a cabo em cada Estado porque seria muito pretensioso esperar que cada país
abandonasse de todo suas prerrogativas e independência fundindo-se numa “república
61
mundial”. Por isso, era apenas factível prever “um sucedâneo negativo de uma aliança
que evite a guerra” (idem: 50) e que viesse solucionar pacificamente problemas e
disputas entre os Estados. Esse sucedâneo, no entanto, não operaria, ou sequer poderia
formar-se, se os Estados não possuíssem uma determinada forma de organização
política interna: a republicana. Kant é explícito em afirmar que apenas repúblicas,
Estados livres, seriam capazes de federação. Isso porque, apenas em sociedades
governadas por leis civis produzidas pelos cidadãos (para garantir seus direitos e
liberdades) e veladas por um poder executivo sujeito aos controles da lei, seria possível
supor a existência de um governo justo que zelasse pelo bem-estar de cada indivíduo.
Em Estados assim, os homens seriam os legisladores, regulando suas próprias
liberdades. Em Estados assim, formados para a proteção dos próprios indivíduos, a
guerra externa, pelas misérias que traz quando acontece e pelas penúrias que provoca
em tempos de paz (pelo esgotamento das riquezas nacionais), seria rechaçada. Assim,
repúblicas seriam menos propensas à guerra por causa do controle político e legislativo
exercitado pelos cidadãos. Legislando em causa própria, cada indivíduo advogaria
sempre, acreditava Kant, pela paz.
Para Kant, “o republicanismo é o princípio político da separação do poder
executivo (governo) do legislativo”; forma de governo oposta ao despotismo que é “a
execução arbitrária pelo Estado das leis que ele próprio deu” (2004: 43). Dentre as
formas de despotismo (autocracia, aristocracia e democracia) Kant não vacila em
apontar a última como a mais nefasta porque “funda um poder executivo em que todos
decidem sobre cada um e, se necessário, contra um (que, por conseguinte não está de
acordo), portanto todos decidem que no entanto não são todos, — o que é uma
contradição da vontade pública consigo mesma e com a liberdade” (idem). Nesse
sentido, o filósofo louva a monarquia constitucional à moda de Frederico II da Prússia,
62
aquele que encarna um governo verdadeiramente representativo de todos na medida em
que esse monarca recusa o absolutismo e se coloca como “o mais alto servidor do
Estado” (2004: 44), o que significa estar submisso à constituição (e, com isso, ao povo).
É importante reparar nessa distinção entre republicanismo e democracia porque
uma leitura liberal em Relações Internacionais da obra kantiana, que remonta a Wilson,
mas que se fortalece a partir das reformulações neoliberais a partir do final dos anos
1970, investirá na idéia de que democracias são menos propensas à guerra — pelos
controles políticos, pelos direitos políticos e pela lógica da soberania popular — que
regimes autoritários. Essa corrente é tributária de uma “redescoberta de Kant por parte
de acadêmicos liberais [que] tem no artigo de Michael Doyle
6
, de 1983, uma data inicial
simbólica” (Nogueira e Messari, 2005: 100). Nesse artigo, Doyle “interpretou o
conceito de repúblicas usado por Kant como democracias” (idem). É possível
compreender tal interpretação se tivermos em mente que o modelo de república
vitorioso ao longo do século XX é o estadunidense, que vincula forma republicana e
regime democrático. Se a revolução americana consagra esse vínculo, isso não significa
que ele fosse unânime no liberalismo clássico dos séculos XVII, XVIII e XIX, como
atestam as reflexões de autores de perspectivas tão distintas como John Locke, John
Stuart Mill, Alexis de Tocqueville, Henry David Thoreau, o próprio Kant, entre outros.
O internacionalismo liberal revisto nas últimas décadas do século XX, todavia,
desenvolveu essa noção que ficou conhecida como teoria da paz democrática
7
, e que
6
O artigo de Michael Doyle a que se referem os autores é “Kant, Liberal Legacies, and Foreign Affairs
Part I”. Philosophy and Public Affairs vol. 12, n. 03, verão de 1983, pp. 205-235 e “Kant, Liberal
Legacies, and Foreign Affairs Part II”. Philosophy and Public Affairs, vol. 12, n. 04, outono de 1983, p.
323-353.
7
Segundo Roche (2006: 89-90), são três os argumentos da teoria da paz democrática: o primeiro, é que
“democracias não combatem entre si”; o segundo, que democracias tendem a “definir seus interesses de
uma maneira tal que a cooperação com outras democracias é indispensável” e, por fim, que “democracias
são relativamente pouco inclinadas a entrar em guerra com outros tipos de regimes políticos”. A
elaboração dessa perspectiva de análise das relações internacionais estaria, a partir dos anos 1980,
estreitamente relacionada ao aparato de Estado norte-americano e a instituições acadêmicas colaboradoras
63
encontra ecos em trabalhos de liberais influentes, como os de Francis Fukuyama
8
. A
falta de atenção à crítica de Kant ao regime democrático faz com que comentaristas
contemporâneos e autores de manuais de Relações Internacionais, instruídos apenas na
teoria da paz democrática ou em outros manuais, repitam de forma inadvertida um
bordão que sustenta Kant como defensor de uma “federação entre democracias”, ou
ainda, de uma “democracia universal”. O que Kant postula explicitamente é a
concretização de uma “federação de Estados livres” (Kant, 2004: 45), o que no contexto
de sua reflexão significa um conjunto de repúblicas, preferencialmente organizadas na
forma de monarquias constitucionais. É o liberalismo contemporâneo em Relações
Internacionais que interpreta a defesa da democracia de corte estadunidense e, para
tanto, adapta o discurso kantiano em termos de regimes democráticos.
O pacifismo que dá forma à escola liberal, no início do século XX, se inscreve,
portanto, numa série que remonta a Kant. Nos limites desse capítulo, foi possível
apresentar os argumentos e postulações centrais de autores-chave desse período, como
Angell e Wilson, e em ambos, os ecos kantianos se fazem ouvir. O ponto mais evidente
é, sem dúvida, a proposta de Wilson para a criação de uma “associação de nações
livres” formando uma liga para a paz. O projeto da Liga das Nações deve muito, desse
modo, à prescrição kantiana para uma federação de repúblicas livres que viabilizasse a
das instâncias diplomático-militares estadunidenses. As intencionalidades políticas que atravessam a
teoria da paz democrática serão analisadas adiante; por ora, basta destacar como a matriz kantiana se
desdobra historicamente no internacionalismo liberal dos anos 1910 aos anos 1930 e de como ela é
redimensionada a partir dos anos 1980, com repercussões na atuação internacional no pós-Guerra Fria dos
Estados da aliança ocidental (Estados Unidos e Reino Unido, principalmente).
8
Em obra recente, Construção de Estados (2005), Fukuyama desenvolve a tese de que a maior ameaça à
segurança internacional no século XXI são os “Estados falidos”, unidades políticas formalmente
independentes, mas que não dispõem de um poder estatal com controle efetivo das funções
administrativas, jurídicas e coercitivas em seu território; o que daria espaço para a proliferação de zonas
livres nas quais brotariam atividades ilícitas como tráfico de drogas e células do terrorismo transnacional.
A solução, segundo o autor, viria com um esforço da comunidade internacional no sentido dotar esses
“Estados falidos” de capacidades mínimas de governo. Esses Estados deveriam receber apoio financeiro e
político dos Estados consolidados e um incentivo especial para tornarem-se democracias, condição sine
qua non para garantir a governança interna e o equacionamento das lutas intestinas. Conseqüência
virtuosa dessa democratização, seria a melhora significativa do nível de cooperação entre Estados,
levando a uma sensível pacificação das relações internacionais.
64
paz perpétua. Outras passagens do opúsculo de Kant encontram-se quase que
literalmente nos 14 Pontos de Wilson, como por exemplo, a recomendação do filósofo
para que os “exércitos permanentes [fossem] com o tempo abolidos” (Kant, 2004: 33)
que se reflete no quarto ponto wilsoniano (“Garantias apropriadas, dadas e assumidas,
de que os armamentos nacionais serão reduzidos ao ponto mais baixo consistente com a
segurança nacional”
9
); ou a indicação do primeiro artigo preliminar para paz perpétua
— “não deve ser considerado válido nenhum tratado de paz que possa ser convertido,
com uma ressalva secreta, na matéria de uma guerra futura” (Kant, 2004: 32) — que
remete ao primeiro ponto de Wilson acerca do acompanhamento público das
negociações diplomáticas (“Convenções de paz abertas, a que se chegue de maneira
aberta, após as quais não deverá haver qualquer entendimento internacional privado de
qualquer espécie”).
A escola liberal tece uma relação direta entre paz internacional e as noções de
liberdade comercial, direito dos povos à autodeterminação, crença no poder regulador
do direito internacional, renúncia à guerra, adoção de um sistema de solução pacífica de
controvérsias entre os Estados, desenvolvimento do conceito de segurança coletiva,
institucionalização das relações internacionais por meio de organizações interestatais,
adoção da república democrática como modo para gerir as políticas domésticas. São
prescrições que remontam às de Kant sobre como evitar as guerras e que encontraram,
no contexto do final da Primeira Guerra Mundial, um ambiente propício para serem
trabalhadas e difundidas. A obra de Kant, nesse sentido, foi recuperada e relida de modo
a ser um dos principais pontos de apoio de uma forma de enxergar a política
internacional; forma que tinha como intencionalidade política a construção de uma
determinada modalidade de relação entre Estados soberanos, sem questionar sua
9
As transcrições dos pontos de Woodrow Wilson estão em Henig (1991: 75-77).
65
existência, mas afirmando a urgência de instrumentos supranacionais que minimizassem
o vácuo de poder que seria a natureza do sistema internacional. Assim, o elogio da paz
normativa e estável, baliza da escola liberal, não deixa de ser um elogio ao Estado, do
direito e da obediência ao soberano, ainda que esses elementos tenham sido
potencializados à escala mundial. Reconhecer a procedência kantiana na escola liberal é
importante para que se possa problematizar o debate entre realistas e liberais no que
trazem como seu aparente maior antagonismo: a possibilidade ou não de construir uma
paz duradoura entre os povos, uma calmaria definitiva a aplacar, por meio de recursos
políticos e jurídicos, a sanha de poder de homens e Estados.
Elogios à paz e ao Estado
Soraya Nour afirma, em seu estudo sobre a Paz Perpétua de Kant, que a opção
republicana do filósofo foi uma tentativa de corrigir ou reparar, em sua reflexão, a
origem violenta dos Estados. Segundo ela, para Kant “os Estados surgem na história por
meio da violência, que se opõe à Idéia de um contrato social. Mas, ao ter como critério
de legitimidade a República, Kant nega não apenas as formas tradicionais de
legitimação de poder como também a contradição entre República racional e poder
histórico” (2004: 44). Apesar do nascimento violento, da forja brutal de inúmeras
conquistas, o Estado poderia ser redimido ao adotar a forma republicana, limitando o
poder executivo e consagrando a Constituição Civil como poder máximo. A alegoria do
contrato social, desse modo, menos que uma descrição histórica do surgimento do
Estado, apareceria como uma fábula moral para justificar uma determinada forma de
Estado; a forma que Kant defendia como ideal. Assim, quando o filósofo sustenta a
urgência que os homens tenham um senhor, e que seus senhores tenham também um
66
senhor (a Lei), ele acaba por tecer um profundo elogio da obediência, das relações
hierárquicas, da necessária submissão. Obediência que, de forma alguma, seria uma
escravidão, na medida em que os homens formulariam as leis a que se submeteriam
tendo como objetivo maior garantir seus interesses, sua segurança, sua vida em paz. A
servidão à lei é, para Kant, um modo de ser livre permitindo que todos o sejam pela
renúncia à liberdade absoluta. Na liberdade limitada e regulada da vida republicana os
homens encontrariam o ambiente para o melhor gozo de seus direitos.
Hobbes, antes que Kant, já afirmara que o pacto criador do Estado não poderia
ser entendido como um ato de escravidão voluntária. Servir ao Leviatã seria um ato de
liberdade: os homens, em estado natural teriam escolhido livremente conceber esse
Homem Artificial que, para cumprir seus desígnios, deveria ser poderoso e
inquestionável. Ademais, ficariam vedadas apenas as ações criminalizadas pelo
Soberano, restando margens para atos não-sancionáveis. Haveria, também, o campo das
atividades permitidas pelo Soberano, que seriam aquelas circunscritas à esfera privada.
Em todo caso, a construção do Leviatã não significaria um ato de penitência ou uma
auto-mutilação inconseqüente realizada pelos homens. O abandono da liberdade
absoluta trataria a recompensa do estado civil, da segurança, da garantia da vida e dos
bens, da manutenção da paz. Para Hobbes, o momento superior do exercício da
liberdade seria a decisão em obedecer.
Em um percurso liberal, Kant se opõe à fórmula absolutista destilada por autores
como Hobbes. Seria preciso, para Kant, livrar-se não apenas da ausência de poder
político, como também do poder político despótico. No entanto, é importante reparar
como tanto Hobbes quanto Kant preocupam-se em justificar as formas políticas que
defendem como modos indicados e necessários para garantir os bens mais valiosos: a
vida, a propriedade, a segurança. A obediência, portanto, seria uma atitude saudável e
67
incontornável para se atingir o pleno gozo dessas metas. Para tanto, havia uma
inevitabilidade: superar o estado de liberdade total; o estado de natureza. A realização
mais completa das vontades humanas se concretizaria apenas com a criação do Estado,
do juiz superior, dotado de armas para pacificar não só guerra primordial como qualquer
tentativa de reeditá-la por indivíduos transgressores. A liberdade sem limites do estado
de natureza significa, tanto para o absolutista Hobbes quanto para o liberal Kant, uma
maldição que gera uma vida torpe, curta e miserável. Assim, apesar da divergência na
forma de governo que deveria ser produzido pelos homens, Hobbes e Kant partilham de
um mesmo diagnóstico — a crueldade do estado de natureza — e uma mesma
indicação: a construção do Estado como senha para a paz. Ambos buscam a paz civil, a
fuga da guerra, quer tenha sido ela descrita como “a guerra de todos contra todos” de
Hobbes ou como a “liberdade grotesca” de Kant. Os filósofos alinham-se, portanto, na
ojeriza ao estado de guerra que significa a vida sem Estado, sem poder político
centralizado, sem leis a serem aplicadas por esse Estado, sem obediência. A repulsa ao
que ambos qualificam como “anarquia”.
A “anarquia” em Hobbes e em Kant é sinônimo de guerra, violência, falta de
garantias, caos. A paz, desse modo, seria um conquista proveniente da submissão ao
Estado e às leis (que tivessem sido impostas ou redigidas por representantes). O estado
de natureza é, para ambos, um mundo sem relações institucionais, sem leis, sem
confiança. Numa palavra, o estado natural é uma situação sem política. O pacto
produziria a política. A sociedade, desse modo, só poderia ser moldada na fôrma das
instituições políticas forjadas pelo contrato social. O amálgama social só seria possível
quando sustentado pelas cordas do Estado. Então, haveria um direito anterior aos atos,
haveria previsibilidade na transmissão das posses, haveria segurança para a vida
cotidiana. Haveria, finalmente, paz.
68
Ao lançarem suas bases e afirmarem filiações em Hobbes ou Kant, as escolas
teóricas centrais das Relações Internacionais herdam as mesmas reflexões e o mesmo
solo comum. Não é auto-evidente afirmar que realistas e liberais partilham de uma
mesma base quando o debate entre ambos é usualmente qualificado como insolúvel.
Comentaristas e estudiosos das Relações Internacionais apontam a irredutibilidade do
antagonismo entre as escolas tendo como parâmetro a discordância fundamental sobre a
possibilidade ou não de um concerto duradouro entre Estados nos plano internacional.
Os liberais, com sua crença nas instituições domésticas e supranacionais, na cooperação
e integração econômicas e no direito internacional, poderiam vislumbrar um mundo
fortemente normatizado e pacífico, em que a guerra interestatal poderia ser
positivamente superada em nome dos interesses dos próprios Estados, das forças
econômicas e de todos os cidadãos de cada país. Já para os realistas, com sua fé na
natureza egoísta e amedrontada dos Estados, que buscam sempre garantir sua
sobrevivência e potencializar relações de poder favoráveis, seria impossível a
construção de um mundo para sempre harmônico, no qual os Estados renunciassem à
guerra, confiando em seus pares. A paz, quando acontecesse, seria apenas um intervalo,
um respiro entre a guerra que passou e a que inevitavelmente virá.
Pensando a ultrapassagem do estado de natureza para o estado de sociedade,
seria possível afirmar que os liberais acreditam na viabilidade de levar, para o plano
internacional, a lógica organizativa interna das repúblicas de modo a produzir uma
espécie de estado de sociedade mundial ou um estado de paz civil global. Já para os
realistas o plano internacional continuaria sendo, indefinidamente, um estado de
natureza mundial, a “anarquia internacional”, no qual a paz seria derivada de balanças
de poder sempre temporárias. Aí estão, em suma, as leituras que liberais e realistas
fazem, respectivamente, de Kant e Hobbes. Aí estaria, supostamente, a
69
incompatibilidade incontornável entre as escolas teóricas. No entanto, o que se quer
aqui destacar é uma cumplicidade aparentemente insuspeita entre essas escolas. Essa
aproximação não estaria apenas como se esperaria na filiação comum à tradição
contratualista. Destacar o solo comum contratualista não deveria ser um exercício
esgotado em si mesmo. Além dele, essa genealogia das escolas teóricas liberal e realista
teria como interesse destacar que a busca de filiação em Hobbes ou em Kant termina
por fazê-las convergir no elogio e na defesa da paz; na compreensão comum de que o
desejável é a superação da guerra e que tal superação seria possível apenas com
formação do Estado e das instituições legais. Nesse sentido, a guerra para liberais ou
realistas é a negação da política; a política, a superação da guerra. Para ambas as
escolas, guerra e política seriam elementos antitéticos e inconciliáveis. Entre realistas e
liberais a política é sinônimo de paz. Conseqüentemente, na ausência de paz, na
“anarquia”, reinaria a guerra. Sob esse nível de aproximação entre realistas e liberais
derivariam outros: a identificação comum de que o Estado é fundamental traz consigo a
aceitação e defesa do regime de propriedade privada e estatal, na medida em que um dos
principais ganhos trazidos pelo contrato social seria, justamente, a preservação da
propriedade sobre os bens. Realismo e liberalismo, nesse sentido, convergiriam não só
na defesa da paz, como na defesa do Estado, na preservação do regime de propriedade e
da ordem econômica.
Apesar da discordância sobre a paz internacional, liberais e realistas partem de
um a priori: os Estados, republicanos ou não, estão pacificados em si; são bolhas de paz
civil. Cada Estado teria resolvido internamente a questão da guerra primordial, com suas
instituições e leis. Cada Estado estaria, dentro de suas fronteiras, livre da guerra. Desse
modo, a guerra passa a ser um fato exterior, o embate entre unidades políticas
pacificadas em si mesmas e que podem ir ao campo de batalha para enfrentar uma outra
70
unidade política também pacificada em si. As guerras, assim, teriam sido abolidas de
cada Estado, restando como um fato militar externo, um acontecimento restrito às
relações internacionais. Esse tipo de guerra seria compreensível — e, até mesmo,
assimilável — pelos Estados porque não poria em xeque os conceitos de Estado e de
soberania (como já pensava Hobbes). A guerra perigosa, de fato, seria a civil, aquela
que nega o pacto e que traz a “anarquia”, antes expulsa pelo contrato para o plano
internacional, de volta para dentro das fronteiras. A guerra que se pode abolir para os
liberais é, portanto, a interestatal. A guerra que apenas se pode controlar com equilíbrios
de poder, para os realistas, é a mesma guerra interestatal. A guerra civil deveria ser
evitada, a fim de manter a ordem jurídica e política que permitisse outra “anarquia”, a
capitalista, garantida pela regulamentação do Estado responsável pela proteção à
propriedade, manutenção da ordem pública e o respeito às leis e contratos. Liberais e
realistas lidam com o mesmo tipo de guerra: aquela que para uns pode ser contida e para
outros não, mas que é sempre exterior. Isso reforça a noção de que ambas as escolas
partilham da mesma noção de que a política realiza o estado de paz. O ponto de
discórdia, portanto, fica restrito à crença de que essa paz possa ser ou não estendida às
relações internacionais. No entanto, as noções de política, paz e guerra são partilhadas.
Partilha interessante de ser notada, principalmente durante a Guerra Fria, época que as
escolas se digladiaram sem descanso pela supremacia na área acadêmica, uma vez que
as noções de guerra externa e de guerra civil eram entendidas por ambas em termos de
guerra contra o socialismo — não é possível esquecer que os ramos teóricos têm
origem nos países ocidentais democrático-liberais e que suas perspectivas de estudo
sobre os conflitos internacionais convergiram para o estudo da tensão entre os blocos
socialista e capitalista.
71
Deriva dessa constatação que liberais e realistas transitam por um espaço comum
de elogio ao Estado e de ojeriza à guerra. O fato de realistas afirmarem que a guerra é
inevitável — a guerra interestatal — não deve supor que eles sejam apologistas dos
conflitos violentos. Ao contrário, como atesta a preocupação de Morgenthau relativa ao
equilíbrio de poder, os realistas visam a produção de situações de paz internacional
efêmeras, mas desejáveis. Buscam uma forma de paz que para eles é a única possível.
Então, acusam os liberais de utópicos não pelo fato de almejarem a paz, mas porque o
fazem de um modo incorreto (e que tornaria impossível a concretização de qualquer
paz). Liberais e realistas têm, assim, uma base comum, que pode ser flagrada nas
escolhas teóricas e filiações que estabelecem, e que celebra a política como paz.
Liberais e realistas herdam, desse modo, a alegoria contratualista e, como ela, a
apologia ao Estado, à obediência, ao monopólio da violência, à paz civil.
Antes de serem tidas como inimigos inconciliáveis do ponto de vista conceitual
ou filosófico, as escolas liberal e realista podem ser entendidas como siamesas que
desenvolvem, desde os anos 1930, uma batalha que não é simplesmente “intelectual”,
mas que visa uma meta política: a supremacia na Academia, nos centros de estudos
influentes, nas instâncias diplomático-militares dos Estados mais fortes econômica e
militarmente. São parceiras na celebração da paz como ausência de guerra; paz
garantida pela força física de um ente político superior. São, assim, partidárias da paz
como pacificação, pois admitem, de modo constrangido e velado, que a paz civil, apesar
da alegoria contratualista, não brota espontaneamente de homens decididos a obedecer
para melhor viver. Desse modo, são cúmplices ao defender que a pacificação — que é
impor e garantir pela força uma situação de “paz” entendida como ausência de guerra —
é a melhor situação a que podem almejar os homens em todo mundo: o melhor possível
seria a vida em sociedade, sob um Estado com monopólio da violência, com hierarquias
72
claramente estabelecidas e tendo a obediência como valor máximo. Seria possível,
então, compreender que realismo e liberalismo sejam como aponta a literatura acerca
das Relações Internacionais perspectivas teóricas antagônicas? Seriam escolas
inimigas como indicam a literatura e o ensino das Relações Internacionais?
Na ciência política contemporânea, a reflexão do jurista alemão Carl Schmitt
sobre os conceitos de amigo, inimigo e adversário ganhou significativa relevância e
influência, com um particular interesse na área das Relações Internacionais (Monod,
2006; Fernández Pardo, 2007). Segundo Schmitt (2001), seria possível identificar um
campo específico do político, autônomo com referência a outros como o moral, o
estético e o econômico. Esses campos do “pensamento e da ação humana” (Schmitt,
2001: 177) seriam definidos por oposições particulares: bem e mal para a moral; feio e
belo para a estética; útil e danoso, ou rentável e não-rentável, para a economia. A esfera
do político, por sua vez, seria demarcada pelo enfrentamento particular entre amigo e
inimigo. Para Schmitt, “os conceitos de amigo e inimigo devem ser tomados em seu
significado concreto, existencial, e não como metáforas ou símbolos”, tampouco
deveriam ser “mesclados e debilitados por concepções econômicas, morais ou de outro
tipo, e ainda menos ser entendidos no sentido individualista-privado, como expressão
psicológica de sentimentos e tendências privadas” (idem: 178). Essa oposição não seria
metafórica porque os povos, nas palavras de Schmitt, continuariam, nos dias de hoje,
“agrupando-se com base no critério de amigo e inimigo” (idem: 179), de modo que essa
contraposição “subsiste realmente como possibilidade concreta para todo povo dotado
de existência política” (idem: idem). O inimigo não precisaria ser mal moralmente, ou
feio esteticamente; ele seria,
73
“simplesmente o outro, o estrangeiro (der Fremde) e basta a sua essência
que seja existencialmente, num sentido em particular intensivo, algo outro
ou estrangeiro, de modo que no caso extremo seja possível com ele
conflitos que não possam ser decididos nem através de um sistema de
normas pré-estabelecidas nem mediante a intervenção de um
‘descomprometido’ e por isso ‘imparcial’” (Schmitt, 2001: 177).
O inimigo seria esse outro, irredutível e estranho, contra o qual se poderia chegar
ao extremo da violência, a guerra, para resolver um conflito. O inimigo é aquele com
quem se guerreira. Por esse motivo, o inimigo “é apenas um conjunto de homens que
combate, ao menos virtualmente, ou seja, sobre uma possibilidade real, e que se
contrapõe a outro agrupamento humano do mesmo gênero.” (idem: 179, grifos do
autor). O inimigo, assim, é um grupo político situado em oposição e em relação de
exterioridade irredutível que pode levar à guerra. Assim, continua Schmitt, “o inimigo é
apenas o inimigo público, posto que se refere a semelhante agrupamento, e em
particular a um povo íntegro, por isso mesmo faz-se público” (idem: idem, grifos do
autor). Esse inimigo público é chamado por Schmitt de hostis a fim de diferenciá-lo de
inimicus, o inimigo privado que o jurista denomina “adversário” (idem: 180). O
adversário é, lembra Schmitt, o “inimigo” a que se referem os evangelistas Mateus e
Lucas ao pregaram “amem vossos inimigos” (“diligite inimicus vestros”) que não
deveriam ser confundidos com os muçulmanos ocupantes da Terra Santa na Idade
Média, contra os quais a Igreja de Roma autorizou e incentivou as cruzadas: esses eram
inimigos públicos, hostis (Schmitt, 2001: 179-180). Adversários/inimicus seriam,
também, aqueles que, segundo o autor, são classificados pelo liberalismo como
competidores no mercado ou oponentes, no campo das opiniões e idéias:
“o liberalismo tratou de resolver, num dilema típico do espírito e da
economia (...), a figura do inimigo, referindo-se a ela como um
competidor, do ponto de vista comercial, e a um adversário de discussão,
do ponto de vista espiritual. No campo econômico não há inimigos, mas
apenas competidores; no mundo completamente moralizado e ético só
existem adversários de discussão” (Schmitt, idem: 179-180).
74
Desse modo, nos campos privados da moral e no mercado não haveria inimigo,
mas adversários, o que implica a não-existência, nesses domínios, de uma hostilidade
profunda e irrevogável entre dois povos que os oporia indefinidamente podendo levar à
guerra. Amigos são, assim, os iguais que se organizam politicamente em um singular
agrupamento social que se contrapõe a outro grupo, também formado por relações de
amizade interna e em contraposição pela inimizade com outros agrupamentos.
Para Schmitt, “o antagonismo político é o mais intenso e extremo de todos e qualquer
outra contraposição concreta é tanto mais política quanto mais se aproxima ao ponto
extremo” (2001: 180): esse ponto extremo é a guerra. Em suma, apenas haveria política
onde houvesse a possibilidade de polarização amigos unidos versus inimigos (por sua
vez, unidos como amigos). Para Schmitt, essa situação extrema da guerra
propriamente política aconteceria primordialmente entre os agrupamentos, ou seja,
entre os Estados. Nesse sentido, haveria uma distinção fundamental entre a política
interna de um Estado e a política exterior de um Estado. No interior do Estado haveria
disputas político partidárias entre grupos de opinião e diferentes posições políticas que
produziriam “uma contradição ou antagonismo (...) ainda que isto resulte relativizado
pela existência da unidade política do próprio Estado, que compreende todas as demais
oposições” (idem: idem). A contradição entre grupos dentro do Estado não conduziria à
guerra porque o aparato estatal existiria justamente para ser a instância político-jurídica
superior a dar ordem e evitar o confronto físico entre partidos e associações de homens,
disciplinando as disputas e convertendo os possíveis inimigos em adversários. A forma
de antagonismo que se dá dentro do Estado não é, para Schmitt, uma luta, uma guerra:
“luta não significa competição, não se trata da luta ‘puramente espiritual’ da discussão,
nem do simbólico ‘lutar’ que em última instância todo homem de algum modo realiza
sempre” (2001: 182). No interior do Estado, o espaço “político” conformado pelas
75
instituições e garantido pelo aparato coercitivo estatal, não seria um campo de lutas, um
campo de batalha: haveria apenas competição e debate entre antagonistas pacificados
pelo Estado na forma de adversários.
A guerra, efetivamente, só poderia acontecer no plano internacional. Para
Schmitt, é o Estado “enquanto unidade política organizada (...) reserva para si a decisão
sobre a relação amigo-inimigo” (idem: 180). Amigos e inimigos seriam escolhidos
principalmente seguindo interesses políticos conjunturais que determinariam as alianças
e os enfrentamentos hostis. Se o que define o político é o antagonismo amigo-inimigo e
esse apenas acontece plenamente nas relações internacionais, a política interna não seria
propriamente política, mas uma ordem civil garantida pelo Estado e atravessada por
relações de competição entre adversários. Essas relações não teriam como horizonte o
assassínio do oponente, acontecimento sempre possível numa relação de inimizade: “os
conceitos de amigo, inimigo e luta adquirem seu significado real pelo fato de que se
referem de modo específico à possibilidade real da eliminação física [do inimigo]”
(Schmitt, 2001: 183). “A guerra”, continua Schmitt, “é somente a realização extrema da
hostilidade. Não tem necessidade de ser algo cotidiano e normal, e nem sequer de ser
vista como algo ideal o desejável; deve, não obstante, existir como possibilidade real
para que o conceito de inimigo possa manter seu significado” (idem: idem). A política,
assim, realiza-se pelo antagonismo entre amigo-inimigo que pode efetivar-se no plano
internacional: para Schmitt amigos e inimigos deveriam ser, primordialmente, os
Estados e o campo da política, as relações internacionais. Em conseqüência, o ambiente
interno que ele chama de “político-partidário” (idem: 182) não seria propriamente
político, pois não presenciaria a luta entre inimigos, mas a disputa entre adversários.
O jogo entre os adversários pode, no entanto, transformar-se excepcionalmente
em campo de batalha. Isso passaria, segundo Schmitt, quando o Estado perde a
76
capacidade controlar “todos os partidos políticos em seu interior e em sua
conflitividade”, fazendo como que, em decorrência disso, “as contraposições internas ao
Estado [adquirissem] maior intensidade que a comum contraposição de política exterior
no enfrentamento com outro Estado” (2001: 182). Em outras palavras, quando o Estado
não mais pudesse conter a competição entre os adversários, a disputa entre eles poderia
radicalizar-se em violência aberta e a guerra, normalmente restrita ao âmbito
internacional, invadiria o espaço doméstico. Quando o “político-partidário” se confunde
com o político é a guerra civil. Em todo caso, essa reflexão de Schmitt apenas reforçaria
sua noção de que o que caracteriza o político a oposição amigo-inimigo é própria
das relações entre Estados, ocorrendo excepcionalmente dentro de uma unidade política
soberana na forma extrema de guerra civil.
Pensando nas teorias de Relações Internacionais a partir dos princípios de
inimigo e adversário seria possível perguntar-se se, diante das afinidades conceituais
existentes entre liberais e realistas, haveria como sustentar a avaliação de que tais
escolas sejam antagônicas e inconciliáveis, ou seja, inimigas. Ambas convergem para a
defesa do Estado ou, em termos mais gerais, do poder político centralizado. Ambas não
questionam e, direta ou indiretamente, dão suporte e naturalidade ao regime da
propriedade estatal ou privada. Ambas afirmam a política como paz e a guerra como
fato exterior à política. E ambas disputam a posição de melhor perspectiva teórica a
explicar as relações internacionais o que implica numa competição pelos postos de
conselheiros dos aparatos de Estado dos países mais poderosos econômica e
militarmente, pelas cátedras nas universidades mais prestigiosas do mundo, pela
influência nas pautas das editoras de livros acadêmicos e pela hegemonia nos programas
curriculares nos cursos de graduação em Relações Internacionais e áreas afins
espalhados pelo mundo. Se o realismo formou-se no movimento que foi do ensaio de
77
Edward Carr à primeira teorização explícita com Hans Morgenthau como proposta
teórica reativa ao cosmopolitismo wilsoniano, isso não significaria necessariamente
uma declaração de guerra ao liberalismo. As afinidades e premissas comuns talvez
fossem muitas para tanto. Nessa hipótese, liberalismo e realismo seriam mais escolas
adversárias do que teorias inimigas, podendo ser até mesmo amigas quando o que
estava em questão era aconselhar os chefes de Estado, as autoridades militares e os altos
diplomatas dos Estados Unidos e dos países da Europa ocidental na época da política de
contenção ao socialismo, de finais dos anos 1940 até a década de 1980. Escolas teóricas
adversárias nas disputas acadêmicas e políticas, com alianças de amizade motivadas
pela guerra ao inimigo comum o socialismo: essa poderia ser uma possibilidade de
análise da história de tensão entre realistas e liberais; uma história do chamado primeiro
debate em Relações Internacionais. O próprio realismo, como instrumento teórico para
a conservação do Estado, pôde também servir aos Estados socialistas na formulação de
política externa durante a Guerra Fria, deslocando-se, então, do campo da disputa como
adversário do liberalismo entre as democracias capitalistas, para o das estratégias
globais do inimigo soviético. E se Carl Schmitt pode ser aproximado do realismo pela
crítica ao liberalismo do período entre guerras (Fernández Pardo, 2007: 16-18), pela
defesa do Estado, pela afirmação do primado estatal nas relações internacionais e pela
influência que exerceu sobre o pensamento de Hans Morgenthau (Söllner, 1987), seria
possível perguntar-se se ele também não seria mais um adversário no campo das teorias
internacionalistas, não estando na posição de exterioridade e antagonismo irredutíveis
que, segundo ele próprio, seriam fundamentais para estabelecer uma relação amigo-
inimigo.
Com o fim da Guerra Fria, o limiar entre o internacionalismo liberal e o realismo
ficou ainda mais tênue, deixando entrever que o fortalecimento da crença na democracia
78
como regime de paz e as contemporâneas predições sobre o fim da guerra ou sobre a
manutenção da segurança internacional anunciam uma interessante analogia entre o
elogio da democracia e a crença no rei constitucional e cosmopolita encontrada em
Kant. Teorias adversárias anunciando uma nova e circunstancial amizade?
A guerra, tema que instigou a formação da disciplina acadêmica das Relações
Internacionais, e que motiva a aparente incompatibilidade entre realistas e liberais,
acaba por ser tratada de forma unidimensional pelas escolas teóricas: ela é, para elas,
sinônimo de “anarquia”, tanto dentro quanto fora dos Estados, além de ser um
acontecimento reduzido ao embate entre forças militares constituídas pelos Estados.
Pensar a guerra a partir dos referenciais liberais ou realistas conduz a caminhos
semelhantes e a naturalizam como uma prática exclusiva do Estado moderno. Pensar a
guerra pelos referenciais teóricos liberal ou realista é, antes de mais nada, uma tomada
de posição política: de defesa da paz civil, do Estado, das obediências. Para
experimentar uma perspectiva distinta é preciso um deslocamento que invista
justamente nas noções de guerra e de política. É preciso atacar esses conceitos. É
preciso abrir um campo de batalha onde a luta seja cruel e não auto-reforçadora como o
debate entre liberais e realistas. Uma luta sem buscar a conciliação na disputa entre
adversários. Problematizar a guerra significa avançar sobre a política. Significa uma
declaração de guerra liberta, de início, da vontade de armistício. Significa, portanto,
uma atitude política, uma decisão estratégica e uma postura de combate.
79
Segundo Capítulo
Realistas, liberais e a guerra exterior à política
2.1 A guerra aos extremos
“Para nenhum homem a terra é tão importante quanto para um soldado.
Quando ele se comprime contra ela, com violência, quando nela enterra
profundamente o rosto e os membros, na angústia mortal do fogo, ela é seu
único amigo, seu irmão, sua mãe. Nela ele abafa o seu pavor e grita no seu
silêncio e na sua segurança; ela o acolhe e o libera para mais dez segundos
de corrida e de vida, e volta a abrigá-lo: às vezes para sempre!”
Erich Maria Remarque, Nada de novo no front.
O trecho acima é um fragmento das memórias de Paul, protagonista do romance
de Remarque, publicado em 1929, e que conta, a partir do relato da personagem, a
experiência de jovens soldados alemães nas trincheiras da frente ocidental (na fronteira
com a França), durante a Primeira Guerra Mundial. Os olhos e a voz de Paul são aqueles
do próprio autor, que lutou nessa mesma região e deu expressão, por meio desse livro, à
guerra que lhe atravessou. Nele, aparecem o medo, a coragem, as dilacerações físicas e
emocionais que marcaram milhões de soldados que combateram nos quatro anos do
conflitos. Foram jovens russos, alemães, ingleses, italianos, estadunidenses, franceses,
otomanos, húngaros, belgas, austríacos, búlgaros, sérvios, romenos. Em ambos os lados
das trincheiras ou dos campos de batalha, enfrentaram-se aqueles que foram chamados
de “juventude de ferro” em seus países e que ainda que não tivessem “mais que vinte
anos” passaram a ser, na lama do front, “velhos” (Remarque, 2004: 22). A maioria deles
juntou-se a seus exércitos com grande excitação; um frenesi nacionalista atravessou os
Estados envolvidos na guerra e foi significativo o número de voluntários aos grandes
exércitos que foram formados (Taylor, 1966).
80
Esse entusiasmo e confiança no êxito também foram sentidos no alto-comando
militar dos beligerantes. Esperava-se que a guerra fosse rápida diante da disponibilidade
de recursos tecnológicos que conferiam uma mobilidade jamais alcançada pelos
exércitos. Na Primeira Guerra Mundial, “a estrada de ferro e a telegrafia sem fio,
presentes na Guerra de Secessão [nos EUA, entre 1861-65] e na Guerra Franco-
Prussiana [1870-71] são extensivamente utilizadas (...), permitindo transportar,
controlar e abastecer grandes massas de homens” (Araripe, 2006: 326). Em adição, as
novas armas usadas em combate pela primeira vez — como o avião, o tanque de guerra,
os gases tóxicos e as metralhadoras automáticas — geraram a avaliação de que uma
“campanha decisiva” (Taylor, 1966: 25) aconteceria no oeste, no choque,
principalmente, entre alemães, franceses e ingleses. O ímpeto nacionalista, desse modo,
era alimentado pela crença na possibilidade de uma vitória definitiva, a ser conquistada
com uma exigência pequena em vidas e recursos materiais. A guerra seria, assim, uma
aventura patriótica, decidida após alguns precisos e poderosos golpes desferidos pelos
exércitos de massa (Taylor, 1991).
Segundo Michael Howard (2002), essa coincidência de perspectivas sobre a
condução e desfecho da guerra era influenciada pela difusão e popularidade entre
oficiais europeus da obra de Carl von Clausewitz (1780-1831), em especial seu tratado
Da guerra, publicado, em 1833. Reflexões sacadas da obra de Clausewitz, como a
relação entre ataque e defesa, a idéia de que cada exército teria seu centro de gravidade
(ponto que deveria ser visado para se alcançar a vitória militar) e os conceitos de guerra
real e guerra absoluta passaram a fazer parte do jargão dos estrategistas europeus por
meio de interpretações da obra clausewitziana realizadas a partir da segunda metade do
século XIX, principalmente “pela leitura de Helmult von Moltke e seus discípulos”
(Howard, 2002: 69). Moltke foi chefe do Estado-Maior prussiano durante as campanhas
81
vitoriosas de 1864, contra a Dinamarca, de 1866, contra a Áustria e na de 1870-1871
contra a França — que foi o ápice do processo de unificação da Alemanha sob comando
da Prússia. Após o sucesso contra os franceses, Moltke declarou que “além da Bíblia e
de Homero, Clausewitz havia sido o autor que mais o influenciara” (Howard, 2002: 62).
Apesar de Moltke ter estudado na Escola de Guerra prussiana na época em que
Clausewitz foi seu diretor “há poucas evidências em seus diários e cartas de que tenha
estudado profundamente seu trabalho” (idem: 63), ainda que parte considerável dos
textos que compuseram Da guerra tivesse sido publicada pelo autor na forma de artigos
em revistas especializadas (Howard, 2002: 20-21). Howard vai além e afirma que
“Moltke apenas absorveu de Clausewitz (...) as idéias que coincidiam com suas
próprias” (idem: idem). O estudo do impacto real ou não de Clausewitz no alto-
comando prussiano não é, no entanto, o alvo em questão. O que interessa notar é que a
difusão da obra de Clausewitz ocorreu acompanhando o sucesso da máquina de guerra
prussiana e a “aparente confirmação [das previsões de Clausewitz] pelo acontecido nos
conflitos armados desde sua composição” (Keegan: 2002: 37). Essas previsões giravam
em torno da questão da guerra nacional, ou seja, do envolvimento cada vez maior das
populações nas guerras futuras, o que para Clausewitz, como veremos a seguir, era
motivo de perplexidade, admiração e temor. Envolvimento este que se daria em número
(pelos exércitos de massa) e pela força valores, devido à combinação de demandas
nacionalistas e maior participação popular pela disseminação do modelo republicano
que emergira, no século XVIII, das estruturas do Antigo Regime. Clausewitz teria
percebido como “a intervenção massiva do povo nos conflitos, engendrava uma
radicalização da guerra [e] foi essa visão da guerra do futuro” (Le Bras-Chopard, 1994:
97), que exerceria importante influência entre os estrategistas europeus.
82
Clausewitz faleceu aos cinqüenta e um anos, vítima de cólera, sem ter alcançado
a posição de destaque no Estado-Maior prussiano que sempre desejou. Sequer pôde
concluir seu tratado como pretendia, deixando trechos ainda na forma de esboços. No
entanto, “Da guerra revelou-se um livro de efeito retardado” (Keegan: idem). Quarenta
anos após sua morte, o sucesso do modelo militar prussiano foi associado à sua obra. A
percepção de que Clausewitz era uma referência fundamental na condução das forças
prussianas, produziu a onda de interesse por Da guerra no alto-oficialato dos demais
Estados europeus. O estudo minucioso das leituras e interpretações de Clausewitz
relacionadas ao desenrolar dos conflitos europeus até a convulsão da Primeira Grande
Guerra é um esforço que não cabe à análise que aqui se propõe. Importa destacar, no
entanto, que as declarações de filiação ou de rechaço às teses de Clausewitz não se
encerram com a Guerra de 1914, tampouco produziram um debate restrito ao campo
estratégico-militar. A influência de Clausewitz ultrapassou as escolas militares e foi
absorvida pela área acadêmica das Relações Internacionais, alimentando argumentos e
posturas teóricas de um outro combate: o que opôs, já a partir dos anos 1930, as escolas
internacionalistas do liberalismo e do realismo. A recuperação de Clausewitz pelos
autores vinculados ao realismo não foi fortuita e tem relação direta com o lugar que essa
escola reserva à noção de guerra na interpretação das relações internacionais. Mais
precisamente, o interesse que Da guerra suscita entre realistas diz respeito muito mais à
tentativa de Clausewitz em forjar uma filosofia da guerra que propriamente em sua
teoria estratégica. A prática da guerra se transformou muito desde que o prussiano
observou o avanço irresistível das tropas de Napoleão para o leste, na década de 1810.
Todavia, a busca de Clausewitz pelas regras fundamentais e invariáveis da guerra
realizou a síntese de uma maneira de pensar a relação entre guerra e política, entre ação
militar e Estado, que interessou aos realistas no século XX.
83
Entre os autores centrais do realismo, é na obra de Raymond Aron onde a
influência de Clausewitz é mais nitidamente notada. Além de artigos e conferências
publicadas, Aron dedicou todo um livro ao prussiano (Pensar a guerra: Clausewitz,
dois volumes publicados em 1976) e baseou-se na noção de guerra e política de
Clausewitz em sua tentativa de construir uma teoria das relações internacionais em Paz
e guerra entre as nações, livro de 1962. Aqui interessa perscrutar como a filosofia da
guerra clausewitziana é trabalhada no campo das Relações Internacionais a fim de
verificar a hipótese de que essa filosofia reforça uma visão particular da política que
articula o campo teórico das RI e que tem relação direta com as procedências
contratualistas da área acadêmica das Relações Internacionais discutidas no Primeiro
Capítulo. Desse modo, é importante procurar reconstituir o argumento central de
Clausewitz — no que diz respeito à definição de guerra —, buscando explicitar como as
fundações do realismo estão firmadas em uma análise da guerra que, pela via
clausewitziana, é, de fato, uma negação da guerra e uma glorificação da política como
paz. A explicitação desse ponto visa complementar o estudo dos fundamentos comuns
aos campos teóricos das Relações Internacionais, iniciado no capítulo anterior, a fim de
abrir espaço para a introdução de uma nova perspectiva, lastreada não na noção de
política como paz (e guerra como exceção), mas de política como guerra. Por essa outra
mirada, a política passa a ser entendida como espaço de combate, forjado nas lutas e que
se mantém por elas; assim, pode-se experimentar um modo de entender a política como
situação de guerra permanente na vida de homens, mas também existência de
instituições, grupos sociais, posições políticas, organizações internacionais, Estados e os
novos conglomerados de Estados que se formam contemporaneamente.
Para tanto, essa sistematização do trajeto de Clausewitz na busca de uma
definição da natureza da guerra se limitará a uma leitura mais detida do primeiro
84
capítulo de Da guerra, intitulado “O que é a guerra?”. Esse capítulo, segundo Aron é o
mais “perfeito” e bem acabado da obra (Aron, 1986a: 166). Percepção corroborada por
Howard, que sustenta que esse foi “provavelmente o último capítulo concluído por
Clausewitz e certamente o único que ele manifestou estar satisfeito” (2002: 51). Os
autores fiam-se nas suas próprias interpretações sobre a importância do Capítulo 1 no
tratado, e também, nas próprias palavras de Clausewitz que apontou, em nota deixada
entre os manuscritos, que “o capítulo I do livro I é o único que considero como acabado.
Terá pelo menos a vantagem de indicar a orientação que teria desejado imprimir ao
conjunto” (2003: XCV). O Capítulo 1 nos interessa na medida em que concentra a
reflexão de Clausewitz sobre a relação entre guerra e política; definição que necessita
atenção pela leitura que recebe no campo das Relações Internacionais.
Guerra e política em Clausewitz
A definição inicial que Clausewitz dá à guerra vem pela imagem do duelo.
Segundo ele, “a guerra nada mais é que um duelo em larga escala” (2003: 07). Pela
idéia de duelo seria possível identificar, ao menos, duas questões centrais na prática da
guerra. Em primeiro lugar, que há sempre um ódio, uma animosidade que é o leit motiv
fundamental que leva os dois lutadores ao confronto. Sem esse impulso, que Clausewitz
chama de “intenção hostil” (idem: 09), as forças não se mobilizam para o
enfrentamento; os inimigos não duelam. Em segundo lugar, no duelo “cada um tenta,
por meio da força física, submeter o outro à sua vontade [sendo que] seu objetivo
imediato é abater o adversário a fim de torná-lo incapaz de toda e qualquer resistência”
(idem: 07, grifos do autor). Do mesmo modo, os Estados não chegam ao ponto de
digladiarem-se se não há uma “intenção hostil” que acenda os ódios entre os povos e
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entre governantes e, uma vez em combate, visam sujeitar o inimigo. Por isso, conclui
Clausewitz, a guerra é, antes de tudo, “um ato de violência destinado a forçar o
adversário a submeter-se à nossa vontade” (idem: idem).
Sendo o ímpeto que leva à guerra moldado no ódio e na vontade de sujeição do
outro, há nela uma “tendência para destruir o inimigo” e, portanto, a violência dessa
empreitada tende a ser levada “aos extremos” (Clausewitz, 2003: 10). Se o objetivo
militar da guerra é desarmar o inimigo, evitando seu revide ou insubordinação, a guerra,
em seu sentido mais profundo, visaria a destruição do oponente na forma mais
definitiva de derrota: a morte. Essa virulência da “intenção hostil” era, para Clausewitz,
uma constante em todo impulso à guerra, e “mesmo as nações mais civilizadas podem
ser arrebatas por um ódio feroz” (2003: 09). Sem essa vontade de extermínio, portanto,
não haveria guerra. A guerra se definiria por essa tendência ao extremo; e a paixão
inflamada que levaria os homens a buscar o extermínio do inimigo moldaria a idéia
mais elementar da guerra. Essa idéia de base é entendida, por Clausewitz, no campo do
“puro conceito”: “no domínio do puro conceito, a reflexão jamais descansa antes de ter
atingido seu extremo, porque é com um extremo que ela trava combate — o conflito de
forças entregues a si próprias e não obedecendo senão às suas próprias leis” (idem: 12).
Em seu princípio abstrato, a guerra seria uma ação entregue livremente às energias do
ódio e buscaria o aniquilamento do inimigo por meio de um esforço total, irrefreável e
que não mediria os sacrifícios físicos necessários para atingir o sucesso completo. Como
num duelo, portanto, a guerra em seu princípio elementar, seria um ato de violência
excitado por um ódio que levaria a derrota completa do oponente (chegando até a
possibilidade de assassínio). Essa é a noção abstrata de guerra, que Clausewitz
considera sua essência mesma e que denomina de guerra absoluta (2003: 23).
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No entanto, a guerra absoluta, apesar de constituir a prática guerreira que se
desenrolaria se as paixões humanas (e, por extensão, dos Estados) não tivessem freio,
não ocorrem de fato, ficando circunscritas ao plano abstrato. Na prática, a guerra não é
um duelo porque “não é um ato completamente isolado, que [surge] bruscamente e sem
conexão com a vida anterior do Estado” e, tampouco, consiste “numa decisão única ou
em várias decisões simultâneas” (Clausewitz, 2003: 12). A guerra não é um ato isolado
nem de imediata resolução porque ela “nunca se deflagra subitamente” e desponta
sempre de uma “situação política [da qual] resulta e [sobre a qual] reage” (idem: 13).
Ou seja, ela não se encerra em um único golpe (como pode ser em um duelo) e não se
relaciona apenas à animosidade que opõe os lutadores. Há uma série de limites impostos
pela realidade que impedem, segundo Clausewitz, que a guerra alcance o destino que
seu puro conceito indicava, sua solução absoluta. Esses constrangimentos ao livre
desenvolvimento da violência são de ordem estratégico-militar e política.
Do ponto de vista estratégico-militar, um Estado tem que dar conta da
mobilização das forças para a campanha militar e esse esforço é impossível de ser
cumprido em um único movimento, já que num território, com uma dada população, e
tendo diante da necessidade em formar um exército de massa, a reunião das forças
demandará, sem alternativa, um período de tempo considerável. Assim, segundo
Clausewitz, “a reunião perfeita de todas as forças num mesmo momento é contrária à
natureza da guerra” (idem: 15, grifo do autor) — o que indica que as limitações
exteriores impostas à guerra absoluta terminam por produzir uma guerra real que
responde às condicionantes colocadas pelo “mundo real” (idem: 16). Ainda no campo
estratégico, a busca pelo ataque definitivo tende a não ser realizada, na medida em que
os comandantes da ação militar tenderão a não despender um esforço concentrado na
tentativa de desferir um golpe mortal porque essa decisão contraria a precaução
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necessária a fim de evitar o esgotamento das energias numa iniciativa que pode não ser
bem-sucedida e, com isso, abrir a possibilidade a um contra-ataque fatal (idem: 15). Em
uma palavra, os recursos fundamentais para a campanha militar — uso do território,
mobilização da população, preparo e deslocamento das forças militares e articulação
com os Estados aliados — não podem, concretamente, ser coordenados
simultaneamente e num único movimento.
No entanto, o campo mais importante de constrangimento ao livre desenrolar da
violência na guerra reside na política ou, mais precisamente, se dá pela existência de um
objetivo político comandando a prática da guerra. De início, afirma Clausewitz, é o
“objetivo político como móbil inicial da guerra [que] fornece a dimensão do fim a
atingir pela ação militar, assim como os esforços necessários” (2003: 17). A partir desse
ponto de sua argumentação, Clausewitz começa a tratar explicitamente da relação entre
guerra e política. Principia ao afirmar que a guerra real, aquela que de fato existe na
vida dos Estados, pode ser impulsionada pela “intenção hostil” e alimentada pelo ódio,
mas só se efetiva a partir de uma decisão política. Essa subserviência prática da
“intenção hostil” à avaliação racional ditada pela política é, segundo o autor, uma
invariável, ainda que possa provocar “em diferentes nações, e numa mesma nação,
reações diferentes em épocas diferentes” (idem: idem). A relação, portanto, entre os
ódios que atravessam as massas e as avaliações dos Estados é tensa e constante. E é a
partir dela que se produzirá decisões políticas que nortearão a ação militar. Se a
susceptibilidade dos governantes ao ódio popular for grande, as diretrizes políticas da
guerra podem tender ao extremo que a aproxime do puro conceito. Em caso de pouco
ódio ou de pouca influência popular nas decisões políticas, a guerra pode ser conduzida
de forma mais contida, visando objetivos limitados. Por isso e como resultante dessa
tensão entre “intenção hostil” e decisão política que poderia haver, segundo Clausewitz,
88
“guerras de todo o tipo e de vários graus de intensidade, desde a guerra de extermínio ao
simples reconhecimento militar” (2003: 18). O general prussiano entende encontrar,
com essa descrição, um conceito universalmente válido para explicar a prática da
guerra, uma vez que acredita identificar uma constante (a relação tensa mencionada)
que pode ser compreendida em todas as suas variantes (num cálculo em que se deve
considerar as diferenças de intensidade na relação entre “intenção hostil” e “decisão
política”).
A guerra, apesar de sua forja nessa espécie de duelo que se estabelece entre os
ódios e a condução política, é, para Clausewitz, um assunto muito “perigoso” demais
(2003: 08) para ser tratado como “um passatempo [ou] uma pura e simples paixão do
triunfo e do risco [ou ainda] obra de um entusiasmo desenfreado” (idem: 26). Ao
contrário, a guerra é um “meio sério para alcançar um fim sério” (idem: idem). E nessa
discussão sobre meios e fins é que a relação entre política e guerra toma contornos mais
claros. O “meio sério” é a força militar; o “fim sério” é o objetivo político traçado pelo
governo civil e que deve estar em consonância com os interesses políticos do Estado: “a
intenção política é o fim, enquanto a guerra é o meio, e não se pode conceber o meio
independentemente do fim” (Clausewitz, 2003: 27). Dessa relação de dependência
deduz-se que “a guerra surge sempre de uma situação política e só resulta de um motivo
político”, por isso, ela deveria ser tomada como um “ato político” (idem: 26) e não
expressão de fúria incontida. Portanto, a guerra é, para Clausewitz, uma ação de origem
política, que é conduzida pela política, visando fins políticos. Ela não é, desse modo,
uma finalidade em si mesma, nem se esgota nos efeitos de sua própria violência. “Se
fosse um ato completamente autônomo”, continua o autor, “a guerra tomaria o lugar da
política” (idem: idem), mesmo que o estopim tivesse sido aceso por uma decisão
política. E é precisamente esse tipo de abordagem — de que a guerra obedece a uma
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lógica própria uma vez iniciada — que, segundo Clausewitz, tem sido o modo
preponderante de analisar o contato entre política e guerra: apesar dela, “a verdade é que
não é assim, e esta concepção é radicalmente falsa” (idem). E o perigo dessa crença é
que a guerra seja conduzida num sentido puramente militar, elevando a um nível
extremo a violência e fazendo-a aproximar-se do conceito de guerra absoluta.
No “mundo real a guerra não é um tal extremo” objeta Clausewitz (2003: 26). O
que a realidade demonstraria, conforme pensa o prussiano, é que a guerra é “uma pulsão
regular de violência, mais ou menos pronta a abrandar suas tensões e esgotar as suas
forças” desde que sua finalidade seja alcançada (idem). Os atos de guerra prosseguem
enquanto as metas traçadas pela política, pelo poder político, não foram atingidas;
assim, a guerra dura apenas “o tempo suficiente para permanecer submetida à vontade
de uma inteligência condutora” (2003: 27), ou seja, o gabinete civil ou soberano que
comanda o Estado. É a política, “como inteligência do Estado personificado” (idem:
29), que estabelece os objetivos da guerra que são sempre traduzidos em fins políticos.
Lembrando da definição mínima dos objetivos da guerra — desarmar o inimigo,
submetendo-o à vontade do vencedor — o objetivo político da guerra deve sempre
observar a urgência em trazer vantagens políticas ao Estado. Esses objetivos podem ser
muitos e variar conforme a época ou a situação das relações de força internas ao Estado
e internacionais; no entanto, terão como horizonte elementar defender a existência
política do Estado e como meta adicional, melhorar a situação relativa frente ao outros
Estados, produzindo relações de subserviência (diretamente pela conquista territorial ou
pela imposição de obediência).
Uma vez apresentados esses conceitos e distinções, Clausewitz encontra espaço
para realizar sua famosa síntese da relação entre política e guerra: “a guerra é uma
simples continuação da política por outros meios” (2003: 27). Ao apontar essa
90
continuidade entre guerra e política, Clausewitz faz mais que reforçar a idéia de que há
uma dependência da guerra com relação à política. O autor vai além, ao explicitar que a
guerra é um “instrumento político” e nesse sentido, “uma continuação das relações
políticas, uma realização destas por outros meios” (Clausewitz, 2003: 27). A guerra, em
uma palavra, é um modo que o Estado dispõe para atingir seus objetivos políticos
(sobrevivência nacional e expansão territorial ou de influência). Ela por si só não tem
validade, sendo apenas um recurso à disposição do Estado. Se a guerra tem uma lógica
própria, e exige, portanto, o desenvolvimento de uma ciência militar que ajude a
produzir as mais completas estratégias e as mais eficientes táticas de combate, todo esse
campo de conhecimento não faz dela uma atividade autônoma, descolada da realidade
política que a fez surgir como alternativa na condução das relações exteriores de um
Estado. Trata-se de uma alternativa porque as relações políticas entre os Estados podem
ser construídas pela negociação e pelo jogo de alianças — pela diplomacia — ou pela
imposição da vontade por meio do uso da guerra. Por isso, pela sua origem (em resposta
a decisões e intencionalidades políticas) e finalidade (estabelecer relações políticas de
mando e obediência) a guerra é, para Clausewitz, um recurso, um instrumento, um
artifício da política.
Para se construir uma teoria da guerra, admite Clausewitz, seria preciso aceitar
que ela é “um verdadeiro camaleão que modifica um pouco sua natureza em cada caso
concreto” (idem: 30). Ou seja, a guerra sendo um instrumento da política pode variar
muito em sua forma, dependendo dos recursos materiais disponíveis em uma época, da
correlação de forças entre os Estado e da tensão entre “intenção hostil” e a fixação dos
objetivos políticos. Além dessas variáveis, Clausewitz acrescenta uma outra dimensão:
a do acaso, do imprevisto. Segundo o autor, “o acidental e a sorte desempenham, pois,
com o acaso, um grande papel na guerra” (2003: 24). Assim, “o jogo das probabilidades
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e o acaso” (idem: 30) podem exercer um papel fundamental durante a condução da
guerra, podendo mudar o destino do conflito. Desse modo, o teórico da guerra deve
admitir traços do imponderável em seu estudo, representado pelo plano do acaso e pelo
maior ou menor grau de interferência das paixões e dos ódios na definição, pelo Estado,
dos objetivos políticos da violência. Essa impossibilidade de construir uma teoria
acabada, que desconsiderasse o imprevisível e o variável, não deveria impedir, sustenta
Clausewitz, que se construísse uma teoria da guerra. Ela nasceria exatamente do
equilíbrio entre os elementos que compõe a intrincada natureza da guerra. Em todo
caso, o general prussiano pensou alcançar o mínimo necessário para prosseguir na
jornada: encontrar uma definição mínima e válida universalmente para a guerra. Essa
definição, base para todo o desenvolvimento subseqüente de seu raciocínio é a relação
instrumental que identifica entre a guerra e a política. Esse é o ponto central e ele nos
interessa, na medida em que a definição de guerra como instrumento da política
explicita, também, tanto um conceito determinado de política e uma idéia de paz. A
partir da análise dessa tríade paz/guerra/política é possível vislumbrar o que na reflexão
de Clausewitz atrai tão diretamente o interesse da área acadêmica das Relações
Internacionais.
Clausewitz, um apologista da paz?
Durante a Primeira Guerra Mundial difundiu-se a expressão terra-de-ninguém
para designar o território sem posse definida existente entre as duas linhas de
combatentes. Pensando a reflexão de Clausewitz partir dessa imagem, seria possível
percebê-la como uma espécie de terra-de-ninguém: ainda que não tivesse uma
“formação filosófica formal” (Keegan, 2002: 33), Clausewitz entrou em contato com as
92
idéias de seu tempo desde, ao menos, sua chegada à Escola de Guerra, na década de
1790. No campo filosófico, havia o predomínio do idealismo racionalista cujo maior
expoente era Immanuel Kant que, segundo Howard, dava expressão a uma leitura da
política que só via possibilidade de uma paz duradoura entre os povos quando “os
interesses do Estado estivessem em mãos racionais” (2002: 13). De outro lado, ainda
segundo Howard, havia os especialistas militares que interpretavam a racionalidade do
Século das Luzes de outro modo: acreditavam que a busca por “princípios racionais
baseados em sólida e quantificável informação poderiam reduzir a condução da guerra a
um ramo das ciências naturais, uma atividade racional da qual o papel do acaso e da
incerteza estariam inteiramente eliminados” (idem: idem). Nesse ambiente, de
pacifismo racionalista e de racionalismo militarista, formou-se Clausewitz. No entanto,
ele “não foi um militar de carrière [mas] um militar altamente profissional e patriota
prussiano que se preocupou ao longo de toda sua vida com a eficiência do Exército e o
poder [de seu] país” (Howard, 1988: 01). E foi como militar que Clausewitz teve a
experiência que definiu sua tentativa de apresentar uma nova teoria da guerra (Guineret,
1999: 08-09).
Como oficial do exército prussiano, Clausewitz presenciou o avanço irresistível
das forças de Napoleão, em 1806. O modelo prussiano de exército enxuto e de
composição mista (profissional e de convocação compulsória) foi varrido por uma nova
máquina de guerra baseada num exército numeroso e motivado de forma inédita.
Segundo Keegan, “os exércitos da Revolução Francesa eram bombardeados por
propaganda sobre a igualdade dos franceses como cidadãos da República e sobre o
dever de todos os cidadãos de empunhar armas” (2002: 32). O ímpeto republicano foi
um impulsionador, no plano do discurso, da idéia de que as guerras contra as
monarquias européias tinham sua razão de ser “não apenas para que a Revolução
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pudesse ser defendida na França, mas também para que seus princípios libertadores
pudessem ser implantados onde os homens ainda não eram livres” (Keegan: idem). Essa
guerra simultaneamente nacional e de “libertação dos povos” teve, como uma de suas
principais características a conscrição em massa, ou seja, a convocação ampla dos
cidadãos para a guerra. A fórmula da mobilização total na França tem sua procedência
mais antiga em 1793 quando o governo da Convenção publica o decreto de 23 de agosto
que estipulou: “Desse momento até quando os inimigos sejam eliminados do território
da República, todos os franceses serão requisitados permanentemente para o serviço das
armas” (Decreto da Convenção Nacional apud Crépin e Boulanger, 2001: 21). A
mobilização de todos significa que jovens, homens maduros, mulheres, crianças e
velhos têm papéis a cumprir na guerra pela República
10
. Ademais, o Decreto determina
que todas as propriedades privadas (casas, estabelecimentos comerciais, fazendas etc.)
estariam à disposição da República na luta contra a coalizão de Estados inimigos
11
.
Emerge, assim, a noção de mobilização total que, conforme apontam Crépin e
Boulanger, inaugurou “a era das guerras nacionais, que são também as guerras totais”
(2001: 03), ou seja, as guerras de reunião ampla das forças físicas e morais de um
Estado convergindo para o esforço de guerra.
Das transformações na ordem política e social introduzidas pela Revolução
Francesa despontou o projeto do Estado-nação e a idéia do nacionalismo que seria a
marca das demandas e guerras de um largo período que, a partir do século XIX,
marcaria, com suas particularidades, a vida de europeus, americanos e, mais
10
O Artigo I do Decreto determina: “Os jovens irão ao combate; os homens casados produzirão armas e
transportarão os suprimentos; as mulheres farão tendas e roupas e servirão nos hospitais; as crianças farão
dos trapos, ataduras; os velhos irão aos locais públicos para incentivar a coragem dos guerreiros, predicar
pelo ódio aos reis e pela unidade da República” (Decreto da Convenção Nacional apud Crépin e
Boulanger, 2001: 21). Duroselle faz, também, menção ao Decreto como o documento que simbolicamente
“expõe pela primeira vez o que deve ser a guerra total em escala nacional” (2000: 332).
11
Diz o Artigo II: “As casas nacionais serão convertidas em casernas, os lugares públicos em ateliês de
armas, o solo dos porões serão escavados para extrair o salitre” (Decreto da Convenção Nacional: idem).
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tardiamente, africanos e asiáticos. Sobreleva-se uma forma de guerra que não mais
aparta os militares dos demais, atribuindo a todos um papel no conflito. Esse é o
momento em que a guerra deixou de ser um assunto dos soberanos absolutos — em que
os interesses do Estado são os interesses do monarca — e passou a ser tratada como
uma questão do povo, da “nação” (Duroselle, 2000). Essa guerra que mobiliza a todos
atualiza a noção de soldado-cidadão grega a partir do momento em que a ampliação do
estatuto da cidadania (com o igualitarismo formal trazido pela Revolução Francesa)
celebra a luta de todos como, ao mesmo tempo, a saúde da pátria (a independência da
grande polis moderna) e a liberdade de cada cidadão.
Foi esse exército de massa e de caráter nacional que derrotou o prussiano. A
experiência de enfrentar essa nova máquina de guerra marcou profundamente a reflexão
de Clausewitz sobre a relação entre guerra e política. Segundo Le Bras-Chopard,
Clausewitz entendeu, a partir do avanço francês, que “somente o Estado no qual o
governo não é separado do povo, que não conhece, portanto, o perigo interior, é capaz
por meio de seu exército popular de suscitar um espírito de sacrifício desconhecido nas
milícias anteriores porque todos lutam como que por si próprios quando se batem por
sua pátria ameaçada ou conquistadora” (1994: 97). Assim, Clausewitz teria deduzido,
segundo Howard, que “o Exército francês [devia] seus sucessos, parcialmente pelo
menos, a fatores que escapavam às avaliações dos primeiros pensadores militares e [por
isso] nenhum manual de estratégia conseguiu explicá-los”, fato que lhe indicava haver
“uma dimensão da guerra que foi ignorada, tanto por aqueles que escreveram sobre a
arte da guerra, abordando principalmente questões técnicas, como pelos estrategistas
analíticos que tentaram, no fim do século XVIII, transformá-la em ciência exata” (1988:
01). Desse modo, pode-se compreender mais precisamente a importância que
Clausewitz dá para uma definição da guerra que, como visto acima, leva em
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consideração não apenas as questões técnicas (meios militares) e objetivas (avaliações
racionais dos interesses políticos do Estado), como também intervenientes difíceis de
serem catalogados ou previstos, como o acaso na campanha militar e a força dos ódios
traduzida na idéia de “intenção hostil”.
Ao apontar a intervenção de fatores não técnicos e não racionais na prática da
guerra, Clausewitz se indispôs com os autores militares contemporâneos seus. Raymond
Aron aponta, em Pensar a guerra: Clausewitz, que a percepção do prussiano de que a
guerra obedeceria a uma diversidade de fatores (racionais e não-racionais) vai contra “a
maioria dos escritores militares, [pois] se recusa a reconhecer a sua autonomia” (1986a:
163). Ainda segundo Aron, Clausewitz “nunca se responsabilizou pela doutrina que
todos os seus chefes de guerra alemães teriam preferido: a liberdade de ação entre o
primeiro tiro de canhão e as negociações de paz” (idem: 165). No Capítulo I de Da
guerra, Clausewitz nega explicitamente que a guerra fosse um ato descolado da
realidade e da condução políticas, uma ação iniciada pela política e que depois ganharia
vida e ritmo próprios até consumar-se com a destruição do inimigo. A guerra, para
Clausewitz, não tem autonomia com relação à política que a permita descolar-se dela
para depois retornar a ela. O autor procura defender exatamente o contrário: que a
guerra é, todo o tempo, um “ato político”, um “instrumento da política” (Clausewitz,
2003: 27). Por isso, como uma força selvagem domada pelo Estado, a guerra é uma ação
violenta que pode ser utilizada pelo Estado como meio para atingir metas políticas. Daí,
como apresentado acima, deriva-se a idéia de que a guerra é mera continuação da
política: não é autônoma e a ela (à política) deveria toda obediência e determinação. E é
na subserviência da guerra à política que Clausewitz encontra sua natureza: “a guerra
sai da política e é esta última, a política, que determina a intensidade, que cria um
96
motivo, que traça as grandes linhas, que fixa os limites e, ao mesmo tempo, os objetivos
militares” (Aron, 1986a: 163).
A preocupação de Clausewitz com o controle dos gabinetes sobre os generais
está diretamente relacionada à sua percepção da transformação da guerra em seu tempo.
Se ela, a guerra, tem esse traço essencial de estar a serviço do poder político, na medida
em que há uma transformação significativa desse poder político com a Revolução
Francesa e o início dos governos populares despontaria a possibilidade um novo
equilíbrio de forças na tensão entre “intenção hostil” e definição dos objetivos políticos.
Em outras palavras, se a guerra é conduzida a partir dos objetivos estabelecidos pelo
poder político, na medida em que esse governo político seja mais suscetível às
“paixões” populares, quanto mais próximo for do povo, maior será a tendência para que
a guerra real galgue os degraus que a podem converter em um confronto próximo ao
“puro conceito”, próximo à guerra absoluta. Segundo Howard, o temor de Clausewitz
era o de que a nova forma dessa tensão “intenção hostil”/poder político, em épocas de
governos populares, pudesse levar a guerra real ao paroxismo de “incrementar [seu]
caráter totalizador [...] fazendo-a próxima da idéia da ‘guerra absoluta’” (2002: 68).
Sendo conduzida pela política, a guerra poderia atingir graus de destruição massivos
sem que isso fosse responsabilidade de militares pensando apenas em termos
estratégicos e técnicos. A própria servidão da guerra à política poderia fazer dos
conflitos situações de violência extremada na medida em que os ódios populares
tomassem, por assim dizer, o poder político.
Esse temor de Clausewitz interessa à análise que aqui se propõe. Interessa
porque sublinha a preocupação do prussiano com os limites da guerra ou, em outros
termos, seu temor de que a guerra chegue ao plano do extermínio total. Segundo Aron,
em Clausewitz, “o fato da guerra servir de meio à política, implica que ela serve de
97
meio à restauração da paz” (1986a: 159). Assim, identificar a guerra como instrumento
da política — servindo, portanto, a metas estabelecidas pelo poder político — indicaria
mais claramente o que Clausewitz entende como função da guerra. Para tanto, é preciso
relembrar que a guerra, para o general, é conduzida pelo poder político visando a
conquista de “objetivos políticos” Esses objetivos, sendo políticos, visam estabelecer ou
restabelecer relações de poder entre Estados. Na lógica de Clausewitz, essas relações
seriam as clássicas relações políticas de mando e obediência, sustentadas por um
desarmamento tal do inimigo que garantisse a sua submissão à vontade do vencedor
(Clausewitz, 2003: 07-10). Assim, o extermínio não produziria propriamente uma
relação de poder, na medida em que não restaria uma população ou um governo
estrangeiro a serem submetidos. Por isso, Clausewitz se esforça para distinguir as
vitórias militares da vitória política. Se a guerra é um meio para alcançar a vitória
política, as vitórias em cada batalha são triunfos que só fazem sentido se contribuem
para a vitória militar mais ampla: forçar o inimigo à desistência. Por sua vez, obrigar o
oponente à admissão da derrota não tem sentido em si só, mas tem valor porque
recoloca uma relação de poder nos termos acima descritos. A vitória política, portanto,
significa o reencontro com o fim da guerra; a produção de uma outra relação de força,
de um outro patamar nas relações políticas entre os beligerantes. Em suma, desde que a
guerra “deixe de ser uma ‘coisa independente’, ela só tem como fim último a paz”
(Aron, 1986a: 159).
Esboça-se, assim, uma possibilidade de analisar a defesa que Clausewitz faz da
submissão da guerra à política: para que haja paz, é preciso um controle estrito dos
meios de violência pelo Estado em suas relações exteriores e a aceitação de que o
recurso à força física não é um fim em si mesmo, tampouco visa o aniquilamento do
outro lutador, mas a constituição de novas relações de poder favoráveis ao vencedor.
98
Daí que, como afirmara Clausewitz em passagem citada na seção anterior, a guerra não
deva durar mais tempo do que o necessário para que a meta política que lhe motivou
seja conquistada (2003: 26-27). O perigo dos governos populares é a geração de guerras
populares que ameacem, por sua natureza irracional e irrefreável, o estabelecimento de
qualquer paz duradoura. A guerra nacional ou popular seria, então, a conseqüência
funesta da emergência dos governos populares. Em suma, se a política se tornasse
dominada pelas paixões e ódios, a guerra — que para Clausewitz é sempre comandada
pela política — atingiria os extremos da violência. A guerra absoluta, desse modo,
poderia deixar de ser uma abstração para realizar-se.
Clausewitz, desse modo, era um militar perturbado pelo temor com o
descontrole da guerra, com o que de nela há de selvagem e brutal. Segundo Le Bras-
Chopard, “Clausewitz não é um belicista” (1994: 95), mas um pensador preocupado
com a garantia de limites à prática da guerra. Aron caminha no mesmo sentido e afirma
que é equivocado pensar que a famosa fórmula de Clausewitz — “a guerra é a mera
continuação da política por outros meios” — seja a expressão de uma “filosofia
militarista das relações interestatais” (1986a: 159). Ao contrário, ainda conforme Aron,
Clausewitz não teria pretendido ser “um filósofo da guerra”: “ele não condena nem
aprova a guerra, mas a considera como um dado fundamental” (idem: 159-160) que
pode ser controlado. Acredita que “reduzindo o ato de violência, a guerra, a um meio da
política, [ela teria] como fim não a vitória, mas o retorno à paz” (idem: 160). Clausewitz
não seria um pacifista nos moldes de Kant, segue Aron; todavia, isso não faria dele um
apologista da guerra. Há a admissão em Clausewitz de que a guerra é incontornável na
relação entre os Estados; entretanto, sua inevitabilidade não implica que seja desejável
como um fim em si mesma.
99
Na busca pela definição da guerra, pela determinação de sua natureza,
Clausewitz também dá uma indicação de qual seria sua concepção de política. A guerra
descrita por Clausewitz é sempre a que acontece entre Estados; e ainda que o autor
reconheça sua existência entre povos primitivos, a manifestação da guerra que lhe
interessa é a existente entre as “nações civilizadas” (2003:09). A guerra, assim, seria
sempre um acontecimento exterior às unidades soberanas, ou seja, um encontro violento
entre forças armadas de dois ou mais Estados. Se a guerra é um “ato político”, seria
possível acrescentar que ela é um ato de política exterior de Estados Modernos. A
guerra clausewitziana, força domada pelo Estado, seria apenas um recurso de política
exterior; recurso adicional aos contatos político-diplomáticos que não cessariam
completamente durante as hostilidades (Aron, 1986: 73). A guerra seria uma situação
excepcional que dividiria dois momentos de paz e, mais que isso, um instrumento
manipulado por unidades políticas, os Estados, que em si mesmos são espaços de paz
civil. Se a guerra é um recurso da política, ela não é a própria política. Ela é um
apêndice, uma ferramenta, um elemento que pertence ao Estado. Nas relações entre os
Estados pode haver a alternância entre momentos de paz e momentos de guerra. No
entanto, essa guerra é sempre, em Clausewitz, circunscrita aos interesses das unidades
soberanas entendidas como alvéolos de paz civil. Nessa ótica, portanto, a guerra é um
fato militar exterior ao Estado, submetido à sua lógica e orientada para o
restabelecimento de relações políticas entendidas como relações em paz.
O general Clausewitz que desponta dessa leitura de Da guerra, com sua defesa
explícita do controle político da ação militar, parece estar longe de ser um “belicista”.
Essa discussão pode ser importante dentro do campo de estudos estratégicos, na medida
em que apresenta Clausewitz como um militar que reconheceria a necessidade de
controle civil das forças armadas e da prática da guerra. É possível, também, que a
100
preocupação de Clausewitz com a perda de limites na guerra sirva aos historiadores
militares preocupados em demonstrar ou refutar sua influência na condução dos
embates interestatais ao longo do século XIX até o ápice das guerras totais nos dois
grandes conflitos do século XX. Essas, entretanto, não são as questões que interessam a
essa análise. Notar Clausewitz como uma espécie de venerador da paz significa
observar que, em sua reflexão, o espaço da política é um espaço de paz e que o Estado,
como instituição, demarca esse espaço político e controla a violência física de modo a
aplicá-la contra outros Estados visando “objetivos políticos” entendidos como novas
relações de paz. A política, portanto, definida e moldada pelo Estado, é um ambiente de
paz. Essa noção de política como paz faz com que Clausewitz possa ser entendido com
um pensador que opera dentro da série da filosofia política de matriz contratualista,
estudada no capítulo anterior. Destacar esse ponto implica reconhecer em Clausewitz
um apologista do Estado na medida em que a guerra absoluta anuncia o fim da política
resultante da radicalização da própria política. Dominado pelas paixões e ódios, o
governo político pode relaxar as rédeas que contém a bestialidade da guerra, trazendo
com isso a possibilidade de aniquilação, ou seja, de morte da política. Então, Clausewitz
pode ser entendido como um pensador militar que predica a contenção da guerra em
nome da saúde do Estado, da ordem política e da paz civil. A lição que Clausewitz
procura deixar é que deve haver o primado da política sobre a guerra para a salvação das
“nações civilizadas”. A guerra extremada é o ápice da política que nega a própria
política e anuncia sua morte. Assim, Clausewitz se posiciona nessa terra-de-ninguém
entre o militarismo racionalista de seus contemporâneos, sem aderir ao pacifismo liberal
de corte kantiano. Angustia-se com a transformação da prática da guerra apresentada
pela Revolução Francesa, mas insiste na inevitabilidade das guerras entre Estados.
Procura encontrar com a sua máxima não apenas a lei universal que revela a essência da
101
guerra, como também a regra ou a fórmula que deve ser seguida para a preservação do
Estado e da política como campo de pacificação.
Essa terra-de-ninguém, no entanto, guarda ao menos uma característica em
comum com as duas trincheiras entre as quais está: a defesa do Estado, o desejo de
conservação do poder centralizado e o entendimento de que política se confunde com
Estado e de que só há paz se há Estado. Em Clausewitz, a guerra é um caminho
violento, mas idealmente sob controle do Estado para reencontrar uma nova situação de
paz; por isso Aron pode sustentar que, em Clausewitz, a paz é a meta e a guerra, um
meio para o retorno à paz (1986a: 160-161). A crença de Clausewitz na inevitabilidade
da guerra interestatal que não se converte em elogia à guerra, mas ao contrário, em uma
defesa ainda mais apaixonada da paz garantida pela ordem estatal está muito afinada às
premissas do realismo em Relações Internacionais. Como foi visto no Primeiro
Capítulo, a fixação das bases realistas no campo contratualista — pelo viés hobbesiano
— indica que a política é entendida como paz na medida em que representa a saída do
estado de natureza e que, portanto, sob o Estado não haveria mais a guerra de todos
contra todos.
O estado de guerra teria sido exportado para o sistema internacional dada a
inexistência de um poder coercitivo mundial capaz emular o Estado Moderno em sua
capacidade de formular e aplicar leis. Desse modo, no realismo, as relações
internacionais seriam algo como um “segundo estado de natureza” — agora entre
Estados — produzido automaticamente a partir da saída dos homens do estado de
natureza primordial. Esse estado de natureza internacional, no entanto, não seria uma
guerra permanente, mas como no estado natural hobbesiano, uma situação de iminência
constante da violência. Assim, os Estados não se enfrentariam todo o tempo, mas
deveriam estar preparados constantemente para a guerra já que não poderiam depender
102
de nenhum poder político-coercitivo exterior que os defendesse. Além dessa aplicação
do conceito de estado de natureza hobbesiano às relações internacionais, os realistas
agregaram a também comentada noção de equilíbrio de poder para indicar a tensão
ideal encontrada na equivalência das forças entre os Estados que levaria à paz como
ausência de guerra. Pela exposição dessas procedências hobbesianas e seus efeitos na
escola realista, foi possível apresentar como os realistas não são propriamente
entusiastas da guerra, mas celebrantes da paz: de uma paz positiva garantida pelo Estado
dentro de um território e de uma paz negativa garantida pelo equilíbrio de poder no
sistema internacional. Nesse sentido, pode-se compreender a grande identificação que o
pensamento clausewitziano tem com o realismo, em especial com a reflexão de
Raymond Aron.
Em Paz e guerra entre as Nações, Aron procurou desenvolver as bases para uma
teoria realista que superasse o que chama de “esquematismo racional”, vinculado à obra
do realista Hans Morgenthau, e que entende ser possível isolar as relações
internacionais de outros campos da vida social, de modo a encontrar um objeto de
estudo submetido a “cálculos de força” racionais e ao conceito de “interesse nacional”
(Aron, 1986: 50). Segundo Aron, era necessário produzir um “método de análise”
(idem) que incorporasse aos elementos racionais todo o campo dos elementos não-
racionais já que “as ‘relações internacionais’ não têm fronteiras reais; não podem ser
separadas materialmente dos outros fenômenos sociais” (idem: 51). Essa postura levaria
a uma análise sociológica das relações internacionais que admitiria a impossibilidade de
definir de modo totalmente objetivo seu alvo de estudo, o que não implicaria a
inviabilidade de uma teoria das RI. Apesar da intervenção de diversos fatores que
escapam à lógica do cálculo político, Aron sustenta haver, mesmo assim, um objeto de
estudos demarcável: “as relações entre os Estados — as relações propriamente
103
interestatais — constituem o campo por excelência das relações internacionais” (1986:
51). Eis a premissa elementar do realismo clássico que vê no Estado o agente — ou ator
— determinante das relações internacionais.
Essas relações internacionais são caracterizadas pela iminência permanente da
guerra e, em contraposição, os Estados são espaços de paz civil. Por esse motivo, Aron
afirma que “enquanto a humanidade não se tiver unido num Estado universal, haverá
uma diferença essencial entre política interna e política externa” (1986: 53). Essa
diferença diz respeito, justamente, à posição do autor de que haja uma ordem política
dentro dos Estados que se contrapõe à ausência de ordem política das relações
internacionais. Sendo assim, os Estados se relacionam por meio de dois canais ou
veículos: a diplomacia e a guerra (que Aron trata por estratégia)
12
. Para o realista, “o
diplomata e o soldado vivem e simbolizam as relações internacionais que, enquanto
interestatais, levam à diplomacia e à guerra” (1986: 52). Os Estados lidam com o
problema fundamental de manter sua existência num mundo em estado de natureza
utilizando os recursos da violência física e da negociação. Esses recursos são, ambos,
instrumentos na política exterior dos Estados e equivalentes como recursos à disposição
do poder político: “a diplomacia”, diz Aron, “pode ser definida como a arte de
convencer sem usar a força, e a estratégia [a guerra] como a arte de vencer de um modo
mais direto. Mas impor-se é também um modo de convencer” (1986: 73). Assim,
equiparáveis, guerra/estratégia e diplomacia são os dois meios pelos quais os Estados
estabelecem contatos e buscam seus objetivos políticos nas relações internacionais.
Aron dedica todo o primeiro capítulo do livro — intitulado “Estratégia e diplomacia ou
a unidade da política externa” — para apresentar sua perspectiva, na qual as ações
diplomáticas e estratégicas (militares) formam uma dupla complementar.
12
Aron sugere que “chamemos de estratégia o comportamento relacionado com o conjunto das operações
militares, e de diplomacia a condução do intercâmbio com outras unidades políticas” (1986: 72, grifos do
autor).
104
Aron busca reconstituir os argumentos de Clausewitz, sintetizados no Capítulo I
de Da guerra, e assume a definição do prussiano acerca da natureza da guerra. Isso
significa dizer que Aron aceita a definição de guerra como um “ato político que surge
de uma situação política e resulta de uma razão política” (1986: 71). Sendo submetida à
política, “a guerra não é um fim em si mesma, a vitória não é por si um objetivo”
(idem). A guerra é, admite Aron seguindo Clausewitz, um instrumento da política.
Instrumento que tem a mesma intencionalidade da diplomacia, já que “os dois termos
[estratégia e diplomacia] denotam aspectos complementares da arte única da política —
a arte de dirigir o intercâmbio com outros Estados em benefício dos ‘interesses
nacionais’” (Aron, 1986: 73). Aron aceita o conceito clausewitziano de guerra como
continuação da política e sublinha o papel complementar e equivalente da diplomacia
como que para afirmar que a diplomacia — como ato de política externa — é, também,
a política continuada por outros meios. Ambas servem ao Estado e são postas em
marcha coordenadamente para a saúde do Estado. A necessidade de que coexistam
estratégia e diplomacia — revela a percepção de Aron de que ambas são igualmente
importantes para a defesa do Estado num mundo que oscila entre a guerra e a paz. As
relações internacionais seriam, desse modo, uma seqüência infindável de conflitos de
grandes e pequenas proporções entre os Estados e incontáveis aproximações
cooperativas entre esses mesmos Estados. Mais do que uma sucessão de situações de
paz e de guerra, haveria uma simultaneidade entre diversos vínculos cooperativos e
conflituosos que cada Estado manteria nas suas relações exteriores. O que importa
frisar, nos limites dessa análise, é a aceitação de Aron do princípio clausewitziano da
“guerra como continuação da política” (ao qual agrega o de diplomacia) que indica não
só uma declaração explícita de filiação a Clausewitz por parte do realista, como a
105
evidência de que partilham o solo comum da filosofia política que entende política
como paz.
Aron se interessa especialmente pela idéia clausewitziana de que a guerra é um
instrumento da política e que seu manejo deve sempre levar em consideração o controle
do Estado sobre as ações militares. Para Aron, o um sistema internacional do Pós-
Segunda Guerra era constituído por Estados independentes, “centros autônomos de
decisão” (1986: 57), não submetidos formalmente a nenhuma autoridade superiora, mas
que viviam sob a polarização dos blocos políticos liderados por Estados Unidos e União
Soviética. Essa situação fazia com que um novo tipo de equilíbrio de poder se formasse
diferente daquele experimentado pelos Estados europeus entre 1815, com a Restauração
após a derrota de Napoleão, e 1914 com a eclosão da Primeira Guerra Mundial (Doyle,
1997: 305). “As mudanças na sociedade de Estados desde a época em que Clausewitz
escreveu Vom Kriege”, diz Aron, “poderiam ser resumidas a duas: as inovações técnicas
e, em particular, as armas nucleares, [e] a extensão planetária da sociedade de Estados,
em lugar de sua localização apenas européia” (2005: 105). De um lado, a lógica estatal
teria se universalizado e, com ela, o princípio da política externa moldada na
combinação entre guerra e diplomacia. De outro lado, essa “sociedade de Estados”
estaria submetida a uma organização bipolar que teria estabelecido um novo equilíbrio
de poder. Aron se dedica a estudar esse equilíbrio, assumindo a originalidade de um
equilíbrio baseado na capacidade de destruição mútua representada pela posse de armas
nucleares pelas superpotências (Aron, 1986: 509-516).
Essa situação daria uma dimensão inédita não só ao conceito de equilíbrio de
poder — retraduzido como equilíbrio do terror — como, também, à relação entre
guerra e política. Isso porque, segundo o autor, “a guerra nuclear não seria mais a
continuação da política por outros meios [...]; uma tal guerra destruiria a significação de
106
política na medida em que ela exige que os fins visados sejam esperados sem gerar
perdas fora de proporção com relação aos interesses em jogo” (Aron, 2005: 106). Em
uma palavra, na perspectiva de Aron, uma guerra nuclear exporia os dois lados —
soviéticos e estadunidenses — à aniquilação e, portanto, ao fim da política (a destruição
do Estado). Assim, para que se cumpra a máxima de Clausewitz e a guerra permaneça
submissa ao Estado, servindo-o e fortalecendo-o, o enfrentamento direto e nuclear entre
as superpotências nunca poderia ocorrer. A capacidade de destruição conquistada pelos
EUA e URSS tornaria, desse modo, ainda mais obrigatória a escolha “entre os dois
princípios clausewitzianos: o da destruição, aniquilamento de uma parte [ou] o da
supremacia da política, de outra.” (Aron, 2005: 106). Para que a paz fosse mantida entre
as superpotências, seria necessária uma adesão consciente à lição de Clausewitz. E
assim recomenda Aron. No artigo publicado em 1975, mais de uma década após a
edição de Paz e guerra entre as nações, Aron rejubila-se ao apontar que “em todas as
guerras conduzidas pelos Estados dotados de armas nucleares, nos últimos vinte e cinco
anos, a razão política manteve em todos os momentos o controle sobre o instrumento
militar” (2005: 106-107). O realista francês se referia às guerras nas quais soviéticos e
estadunidenses se envolveram — conflitos civis e/ou guerras de libertação nacional no
então Terceiro Mundo — sem nunca enfrentarem-se diretamente e sem nunca fazerem
uso de armamentos nucleares. As guerras revolucionárias, nacionalistas ou civis eram
guerras localizadas que não abalavam o equilíbrio do poder da bipolaridade (Aron,
1986: 82-86). E isso era a prova, comemorava o autor, de que a guerra permanecia um
instrumento da política. Uma guerra nuclear, ao contrário, seria a efetivação mais
completa da guerra absoluta; a negação máxima da política numa escala que
Clausewitz jamais pudera imaginar.
107
Assim, a adesão de Aron a Clausewitz não parece ser de cunho técnico ou
militar, mas antes, conceitual. Aron está interessado na filosofia da guerra apresentada
por Clausewitz que é, ao mesmo tempo, uma conceituação de política. Aron busca em
Clausewitz, mais precisamente, sua concepção da relação entre política e guerra;
compartilha com o prussiano a idéia de que a guerra deva ser um instrumento da política
e de que, portanto, a política — espaço demarcado pelo Estado — é um campo de paz.
Já a política internacional, pela ausência de um “Estado universal” — como se refere
Aron à idéia de um poder político supranacional — vive num estado de insegurança no
qual a guerra é sempre um elemento a ser considerado pelos Estados. O equilíbrio do
terror não evitava a ocorrência da guerra, mas continha aquela que Aron pensava ser a
mais catastrófica de todas. E essa era a paz possível de ser alcançada. Por fim, a adesão
de Aron aos princípios de Clausewitz fica claro na passagem com que encerra o referido
artigo de 1975:
“Clausewitz usa a palavra estratégia unicamente no sentido militar. Ele
definiu a guerra pelo meio empregado — a saber, a violência — e derivou,
desse fato, uma distinção radical entre paz e guerra, entre a política
conduzida tão-somente por meios não violentos, e a política conduzida
também por meios violentos. A política visa, talvez, os mesmos fins na paz
ou na guerra; ela não pode ser a continuação da guerra por outros meios,
porque a guerra não se caracteriza que pela especificidade de seu meio, a
violência” (2005: 119).
O trecho sintetiza com clareza não apenas a influência de Clausewitz na reflexão
de Aron, mas a noção de política como paz que atravessa os autores. Para Aron, as
relações políticas — existentes dentro de um Estado constituído — não são relações de
violência, mas relações organizadas e limitadas pelos meios institucionais representados
pelo Estado. A guerra, assim, é um ato que só poderia acontecer fora do espaço da
política, fora do campo institucional, além das fronteiras dos Estados, apenas nas
relações internacionais. Isso não significa assumir que internamente não haja qualquer
exercício da violência, mas que esse exercício quando ocorre é tido como legítimo
108
porque aplicado pelo Estado. Valeria, portanto, a fórmula expressa por Max Weber de
que a o Estado detém “o monopólio do uso legítimo da violência física” (1993: 56).
Esse monopólio da violência inclui a estratégia, ou seja, o manejo das forças militares
destinadas a defender o país de ataques de outros Estados ou de levar adiante uma
campanha de agressão externa. Nesse sentido, a guerra — a que é instrumento da
política — é a outra face da legitimidade do monopólio da violência do Estado, só que
voltado ao plano internacional. As guerras reais, conduzidas pelo Estado e sujeitas aos
jogos de probabilidades indicados por Clausewitz, são recursos dos Estados em suas
relações exteriores. A violência interna, entretanto, não é uma guerra, mas a aplicação
da ordem legal que garante a paz civil, o estado de sociedade. No plano internacional, a
guerra não poderia ser pensada como exercício legítimo da violência porque não há
ordem legal a ser defendida. Ela é, apenas, uma forma pela qual os Estados buscam
realizar seus objetivos políticos enquanto dentro das fronteiras reinaria a paz.
Clausewitz e Aron: pela guerra a serviço da paz
A análise da obra de Clausewitz aqui proposta procurou mostrar como se pode
deduzir da sua definição de guerra uma definição da política como paz. Se as relações
políticas interestatais — de cunho político — podem ser entrecortadas por momentos de
guerra, essa violência nunca deixaria de ser um recurso do próprio poder de Estado na
intenção de estabelecer relações políticas em outras bases. O Estado que ataca outro
Estado procuraria, por meio dessa ofensa, conquistar uma posição mais vantajosa nas
relações políticas que despontariam com o final da guerra. Identificar essa noção
política em Clausewitz é um exercício importante, mas seria algo estéril e hermético se
tivesse como fim apenas apontar que o prussiano entendia a política dentro da tradição
109
da filosofia política de corte contratualista. Nos marcos desse trabalho, interessa de
imediato apontar como que essa definição de guerra é aceita pelas bases do realismo em
Relações Internacionais, representado principalmente pela centralidade de Clausewitz
nos textos fundamentais de Raymond Aron; fato que reforça o argumento exposto no
Primeiro Capítulo de que o realismo não é uma espécie de teoria celebradora da
guerra, ainda que seja uma corrente teórica que identifica a inevitabilidade da guerra no
sistema internacional.
Clausewitz, assim como os realistas, reconhecia a inevitabilidade da guerra, mas
diante disso, procurou pensar como ela poderia ser um meio para o reforço e saúde do
Estado. Para tanto, recomendou que ela fosse mantida sob controle do governo civil ou
do soberano, ficando à disposição como um instrumento a serviço do Estado, posto em
marcha de modo buscar a realização os objetivos políticos desse Estado que podem ser
traduzidos em dois níveis simultâneos e interdependentes: a sobrevivência nacional
(conservação da independência e integridade territorial do Estado) e a expansão
internacional do poder do Estado (por meio de conquistas territoriais ou imposição de
liderança). Clausewitz entendia a guerra como uma força, a um só tempo, necessária e
perigosa, na medida em que o poder político poderia ser tomado pelas paixões das
massas. Assim, há uma tensão permanente em sua reflexão: é impossível evitar a guerra,
já que ela é um dado na vida humana e é, ademais, um recurso fundamental para o
Estado; entretanto, a “intenção hostil” que a infla e nutre é da ordem do instinto e, para
Clausewitz, as massas tendiam a entregar-se à irracionalidade trazida pelo ódio ao
inimigo. Por isso, o controle político da prática da guerra é o tema central quando o
prussiano procura definir sua natureza. Sendo um prolongamento da política, a guerra é
uma fera domada. O risco está justamente na possibilidade de que os instintos ferozes
tomem o Estado de assalto de modo a liberar seu ímpeto destruidor. Clausewitz pensou
110
a guerra, portanto, como arma que deveria fortalecer o Estado e, por esse motivo, se
preocupou em denunciar qual seria a conseqüência (terrível para a continuidade do
Estado) de uma possessão pelo ódio que levasse à temeridade da guerra absoluta. O
militar prussiano pode ser entendido, desse modo, mais como um defensor contumaz do
Estado que como um entusiasta incondicional da guerra. A boa guerra seria aquela para
o Estado, pelo Estado e sob o comando do Estado. A guerra que escapasse ao seu
controle seria ameaçadora porque poderia levar à morte da política, à destruição do
próprio Estado. Raymond Aron, na leitura e atualização que faz dos princípios de
Clausewitz, afirmou o mesmo, pensando a guerra como instrumento do Estado e
identificando seu limite apenas na possibilidade de uma guerra nuclear. A guerra em
Clausewitz e em Aron é a favor do Estado e deve ser controlada por ele de modo a
cultivar esse recurso de poder. A preocupação de Aron com o controle da guerra de
sua força destruidora estava diretamente vinculada à sua reflexão sobre o equilíbrio
do terror entre Estados Unidos e União Soviética, pois se ele oferecia um cenário de
estabilidade, não haveria como ignorar que as potências tinham regimes políticos muito
diferenciados que poderiam condicionar suas relações no campo diplomático-militar: a
democracia entre os estadunidenses e totalitarismo entre os soviéticos. Para Aron, a
dimensão totalitária na URSS não deveria ser entendida como uma gradual degradação
de um princípio político inicialmente não-totalitário, mas de “uma intenção original: a
vontade de transformar fundamentalmente a ordem existente em função de uma
ideologia. Os traços comuns aos partidos revolucionários que chegaram ao totalitarismo
são a amplitude das ambições, o radicalismo das atitudes e o extremismo dos meios”
(1966: 296). A radicalidade do projeto revolucionário justificaria, para Aron, a
centralização político-administrativa no Estado, o unipartidarismo, a censura, a
estatização da economia e os grandes expurgos e extermínios. Para o realista francês,
111
tais características presentes na União Soviética não teriam sido corrupções de um
projeto nobre e humanitário (Aron, 1966: 292), mas decorrências próprias do processo
revolucionário. Por esse motivo, ainda que guardando muitas semelhanças com os
regimes nazista e fascista, haveria uma peculiaridade no processo soviético, ligada à sua
própria natureza e intenções políticas, que explicaria os ápices de “terror policial”
(idem: 291) promovidos por Stalin nos períodos entre 1934-38 e 1949-52. Segundo
Aron, o “fenômeno terrorista” conduzido pelo nazismo o extermínio de seis milhões
de judeus durante a Segunda Guerra foi uma ação “tão irracional relativamente aos
objetivos da guerra como o é a grande purga relativamente aos objetivos do regime
soviético” (idem: 307). No entanto, apesar de seu grande impacto, o terror nazista não
alcançou, para Aron, a mesma magnitude do soviético, em parte porque ficou limitado
no tempo, em parte porque se vinculava a um programa restrito “o de refazer o mapa
racial da Europa” (idem: idem) ao passo que a meta revolucionária seria, em tese, a
transformação profunda de todas as sociedades no globo. Aron observa um perigo mais
duradouro e de longo alcance no totalitarismo soviético que no alemão, tratado quase
como uma horrenda exceção. Um totalitarismo como o da URSS, com objetivos
absolutos a revolução mundial, o Estado total, a economia total seria um inimigo
mais desafiador para as democracias. E nesse caso, como a URSS detinha armas
nucleares, seria possível antever na preocupação de Aron com o totalitarismo soviético,
a chance de efetivação de uma guerra absoluta. O regime de Kruschev e a distensão
entre EUA e URSS seriam, ao contrário, fatores de estabilidade que, a partir da lógica
de Aron, poderiam ser traduzidas como a realização da política externa em termos
realistas com o primado dos interesses do Estado em sobreviver e expandir com
segurança , o que não recomendaria a guerra absoluta.
112
Ao acompanhar como Aron incorpora a premissa clausewitziana da guerra como
instrumento da política, torna-se possível perceber como os fundamentos do campo
teórico realista a entendem: uma ação militar, conduzida pelos Estados visando
objetivos políticos na esfera internacional. Essa esfera essa é um espaço extra-político
porque não é demarcado ou regido por um poder político centralizado capaz de formular
e aplicar leis. Espaço que é para o realismo uma “anarquia” no sentido hobbesiano, um
estado de violência sempre iminente. Desse modo, a guerra não deveria ser confundida
com a própria política. Ao contrário, a política seria o extremo oposto da guerra: a
existência do espaço político, demarcada pela presença do Estado, garantiria a paz civil
— entendida em seus termos mínimos como preservação da vida e da propriedade
privada ou estatal — e afastaria a guerra de todos contra todos que caracterizaria a
ausência de poder político central. A guerra, nesses termos, é o negativo da política: é a
marca da vida humana anterior à formação do Estado e, depois do contrato, é aquela
violência que se realiza entre os Estados no plano internacional que, ao carecer de
autoridade política central, seria desprovido de política. A perspectiva realista em Aron
admite a impossibilidade de abolir a guerra; no entanto, incorpora a indicação de
Clausewitz de que ela deva ser monopolizada pelo Estado visando metas definidas pelo
poder político. Se a guerra é um instrumento que a política — entendida como sinônimo
de Estado — utiliza no campo onde não há política, a guerra é uma prática exclusiva
dessa instituição que se realiza além-fronteiras, ou seja, além da política. Dessa forma,
só existiria guerra na ausência da política: antes do contrato ou na “anarquia
internacional”. Essa noção da política como paz que relega às relações internacionais
o estado de guerra seria abalada, a partir da mesma época em que Aron produz sua
proposta teórica pela deflagração das guerras de libertação nacionais continuadas como
guerras civis. Aron nota o problema que as guerras a partir da Segunda Guerra Mundial
113
geram para uma teoria realista centrada no princípio da guerra monopolizada pelo
Estado. Segundo o realista francês,
“as guerras que chamamos hoje subversivas por exemplo, aquela feita
por uma população submetida a um regime colonial contra uma potência
européia são intermediárias entre a guerra civil e a guerra externa. Se o
território em questão foi integrado juridicamente com o da metrópole
(como no caso da Argélia) o direito internacional considerará o conflito
como sendo uma guerra civil (a soberania da França sobre a Argélia era
universalmente reconhecida), embora os rebeldes a considerem uma
guerra externa, ou internacional, na medida mesma em que pretendem
constituir uma unidade política independente” (1986: 83).
Desse modo, Aron procurou abordar a emergência de modos de guerrear que
passavam a questionar o monopólio da violência estatal. Na tradição hobbesiana, a
guerra civil é a perigosa possibilidade de ressurgimento da guerra intestina que anuncia
o fim do contrato e a volta ao estado natural. A questão notada por Aron traria certo
abalo ao conceito de monopólio da coerção; no entanto, tal abalo seria minimizado pelo
fato de que cada colônia que conseguisse alcançar o status de Estado soberano
procuraria reproduzir o mesmo modelo do confisco da guerra pela política. O conceito
de guerra como instrumento da política estaria, com isso, garantido. Todavia, à
proliferação das guerras civis, o final da Guerra Fria adicionou o despontar de formas de
conflito transnacionais, dentre os quais se destaca o terrorismo fundamentalista, que
atua sem limites territoriais fazendo com que a guerra atravesse múltiplos espaços
políticos nacionais. O terrorismo contemporâneo confronta o realismo com o problema
da guerra que se imiscuí nas relações políticas intra-estatais. Ao mesmo tempo, o
combate ao terror motiva declarações de guerra que modificam constituições nacionais,
minimizam direitos civis, ampliam o aparato repressor dos Estados e alteram as normas
internacionais investindo contra pilares do direito internacional (como o conceito da
inviolabilidade da soberania estatal) em nome de uma guerra continuada na política.
114
De todo modo, nas bases do realismo e a partir da leitura que Aron faz da
definição de guerra de Clausewitz , é possível notar a partilha de uma noção de
política que reserva à guerra um lugar de exterioridade: o lado de fora, o que está para
além das fronteiras dos Estados, esses bolsões de paz civil. Assim, se há violência no
plano internacional, ela se dá porque não há nesse nível um estado de sociedade
constituído. Apenas na “anarquia” a guerra se realiza e, para os realistas, sendo a
política a superação do estado de natureza, a “anarquia” restante é a das relações
interestatais. Se somente há guerra onde se ausenta a política, só existe guerra entre os
Estados. Assim, ao perscrutar as bases do realismo é possível identificar que nele a
guerra é um fato exterior à política.
2.2 Política, paz e criminalização da guerra entre os liberais
A legalização contemporânea da guerra
A proposta de Woodrow Wilson de criar uma associação de Estados acabou
acatada pelos vencedores da Grande Guerra resultando na formação, em 1919, da Liga
das Nações. Um dos tópicos centrais dessa proposta era a tentativa de estruturar uma
nova modalidade de gestão das disputas entre os Estados, centrada na arbitragem e na
renúncia à guerra como forma de resolução de conflitos. A organização seria, portanto,
o foro destinado a manter a paz a partir da “idéia central que [repousava] no princípio
da segurança coletiva” (Seitenfus, 1997: 90). Os Estados-membros estariam
comprometidos com o “processo de arbitragem ou a uma solução judiciária” (Pacto da
Liga das Nações, Art. 12, § 1º) que implicava a promessa de “em caso algum recorrer à
guerra antes da expiração do prazo de três meses após a decisão arbitral ou judiciária, ou
115
o relatório do Conselho” (idem). Ao Conselho, órgão executivo da Liga, caberia a
função de assumir a investigação dos fatos envolvendo dois ou mais Estados em
disputa, emitir pareceres e servir de espaço para negociação. No entanto, o documento
previa a possibilidade de um dos Estados associados à Liga descumprir o acordo de não
apelar à guerra e, com isso, infringir a regra básica do respeito à independência e
integridade territorial de todos os Estados. Cada associado deveria assumir que “se
algum Membro da Sociedade recorrer à guerra (...) ele seipso facto considerado como
tendo cometido um ato de guerra contra todos os outros Membros da Sociedade” (Art.
16). Essa passagem marcaria, segundo Herz e Hoffmann, “a primeira formulação
jurídica da idéia de segurança coletiva [que foi] a pedra lapidar da proposta de
administração do sistema internacional, gerado em 1919” (Herz e Hoffmann, 2004: 90).
Por esse princípio, cada um dos Estados se sentiria atingido por um ataque militar de
outro, ainda que o alvo da ação tivesse sido um terceiro Estado coligado. Estipulava-se
um acordo de solidariedade e apoio entre cada um dos Estados diante da agressão de um
dos membros da associação.
A aceitação do conceito de segurança coletiva implicava “a ocorrência de uma
agressão deveria [que] gerar uma resposta automática por parte de uma coalizão de
Estados” (idem: idem). Para tanto, o Artigo 16 do documento estipulava que “os
Estados-membros tinham a obrigação de aplicar medidas comerciais e financeiras
contra o agressor, mas — no que dizia respeito à ação militar — o Conselho da Liga
tinha apenas o direito de fazer recomendações (não impositivas)” (Dinstein, 2004: 380-
381). A ação militar reparadora era prevista pelo Pacto como iniciativa limite, destinada
a restituir a ordem anterior caso as sanções econômicas (embargo, boicote, confisco de
bens e ativos financeiros) não surtissem efeito. Assim, o Conselho teria o “dever de
recomendar aos diversos governos interessados os efetivos militares, navais ou aéreos,
116
pelos quais os Membros da Sociedade” contribuiriam para fazer “respeitar os
compromissos da Sociedade” (Art. 16: idem). Autores como Dinstein (2004), Seitenfus
(1997), Herz e Hoffmann (2004) e Byers (2007) destacam que a falta de obrigatoriedade
na resposta militar coletiva foi um dos grandes limitadores formais para que o princípio
da segurança coletiva pudesse ser efetivamente colocado em marcha durante o período
em que a Liga das Nações foi ativa (1920-1939). Essa limitação estaria diretamente
relacionada à inoperância da Liga e seu fracasso como instância destinada a evitar a
guerra interestatal no período entre-guerras. Nos marcos dessa reflexão, não interessa
explorar esses vínculos entre a estrutura formal da Liga e sua ação concreta nas relações
internacionais, mas deter-se nas implicações conceituais sobre a guerra diante do projeto
de construir um sistema de segurança coletiva.
Esse sistema, como havia postulado Woodrow Wilson, visava substituir uma
forma de organização das relações internacionais baseada no equilíbrio de poder entre
os Estados por outra traduzida no conceito de segurança coletiva. Isso implicaria a
superação de uma lógica das relações de poder centrada na soberania absoluta dos
Estados pela admissão de uma nova fórmula orientada pela submissão voluntária dos
Estados ao direito internacional e às suas instituições e a abdicação do direito de
recorrer à guerra como recurso de política exterior. Na visão de Wilson e dos liberais
internacionalistas do final da década de 1910, a paz negativa construída pelo equilíbrio
de poder havia tido como desfecho trágico a Grande Guerra. Desse modo, o único
encaminhamento possível seria a adesão a um projeto de paz positiva fundado na
renúncia à guerra e na cooperação internacional inspiradas no ideário kantiano
(Auchincloss, 2003). Nesse modelo, o abandono do recurso à guerra era a questão-
chave. Por isso, Wilson propunha em seu quarto ponto a “redução das armas nacionais
ao mínimo necessário para a segurança interna” (Griffiths, 2004: 148) ecoando a
117
indicação de Kant de que os exércitos permanentes deveriam ser gradativamente
abolidos “pois ameaçam incessantemente outros Estados com a guerra, por sua
disposição de estar sempre preparados para tanto” (2004: 33). Era a admissão de que as
forças armadas visariam apenas a guerra e sua existência chegaria a induzir os Estado a
ela
13
. Esse modo de encarar a manutenção de forças militares terminou por plasmar-se
no Pacto, no Artigo 08, quando determina que Estados-membros precisavam reconhecer
“que a manutenção da paz exige a redução dos armamentos nacionais ao mínimo
compatível com a segurança nacional e com a execução das obrigações internacionais
impostas por uma ação comum” (Art. 08).
O abandono da guerra, no entanto, não significava — em Kant ou nos
internacionalistas liberais — uma desconsideração a respeito da segurança do Estado.
Tratava-se, ao contrário, de um deslocamento. Ao invés de apostar na capacidade
autônoma de cada Estado em defender-se, a perspectiva kantiano-liberal fiava a
segurança de cada um na aceitação do pacto. Isso implicava que, no limite, o acordo de
proteção mútua serviria de garantia da própria segurança a partir do momento em que se
confiava na reciprocidade do sistema de segurança coletiva: os Estados associados iriam
ao auxílio do Estado agredido. O fundamento dessa confiança na ação dos outros
Estados, seguindo a lógica kantiana, não estaria numa atitude moral superior, mas na
esperança egoísta de que a reciprocidade valesse, de modo que a ajuda a um Estado
poderia ser recompensada com um apoio futuro. Segundo Kant, “a violação dos direitos
em um só lugar da Terra é sentida em todos os outros”, por isso a “idéia de um direito
cosmopolítico não é nenhuma espécie de representação fantástica e excêntrica do
direito, porém um necessário complemento (...) para a paz perpétua” (2004: 54). Assim,
13
No 3º Artigo Preliminar para a paz perpétua, Kant afirma que “os custos em tempos de paz a eles
relacionados [aos homens armados pelo Estado visando superar a força dos outros Estados] tornam-se
ainda mais opressivos do que uma guerra de curta duração, de modo que se convertem por si mesmos em
causa de guerras ofensivas a fim de que os Estados se livrem desse fardo” (2004: 33).
118
os internacionalistas liberais procuraram, a partir do conceito de segurança coletiva,
encontrar uma fórmula que pudesse equacionar a renúncia à guerra de agressão (e
diminuição das forças armadas) com a preservação do Estado, sua soberania e
integridade territorial. De modo distinto da lógica do equilíbrio de poder, o sistema de
segurança coletiva teria a capacidade de produzir um efeito de dissuasão — a inibir uma
decisão de recurso à guerra — pelo “pressuposto (...) de que nenhum dos membros do
sistema era tão poderoso que o conjunto das unidades independentes não [pudesse] se
opor a esse” (Herz e Hoffmann, 2004: 92). A possibilidade de uma reação coletiva
constrangeria os Estados que ambicionassem romper a promessa de não recorrer à
guerra. Ainda assim, caso houvesse um rompimento da paz interestatal, a expectativa de
da vinda de apoio traria tranqüilidade a cada um dos Estados comprometidos com o
Pacto. O tema da segurança individual de cada Estado passaria, desse modo, para o
âmbito da gestão coletiva na Liga das Nações. Portanto, a garantia da saúde e
sobrevivência dos Estados não deixava de ser, entre os liberais, o tema central das
relações internacionais, ainda que a questão tivesse sido posicionada fora da lógica da
autodefesa — existente num mundo sem normas e compromissos cosmopolitas. Tema
central porque, como afirmara Kant, a motivação para que os Estados criassem e se
submetessem voluntariamente às “prescrições do direito” tinha como meta “promover e
assegurar não só a paz interna quanto a externa” (2004: 63), duplicidade fundamental
para garantir a conservação de cada República.
A segurança dos Estados vinculada a um sistema de segurança coletiva
implicava numa forma específica de lidar com o fato da guerra: de um lado, recriminar
explicitamente a guerra como recurso de política externa dos Estados e, de outro lado,
prever ao menos uma modalidade de guerra, a coletiva, destinada a reparar as possíveis
transgressões à paz interestatal. Afirmar que a guerra como recurso de política exterior
119
dos Estados deveria ser renunciada “não aboliu o direito dos Estados de recorrer à
guerra” (Dinstein, 2004: 114). A idéia era a de que cada Estado não mais buscasse
solucionar suas disputas com outros Estados por meio da guerra, tomando a iniciativa
de ir ao combate. Em outras palavras, que a guerra não fosse mais aquele instrumento
de política exterior identificado — e defendido — por Clausewitz na prática
internacional dos Estados Modernos.
O Pacto indicava que o tipo de guerra a ser proscrito era a guerra ofensiva ou de
agressão; a modalidade de guerra entendida como recurso de política externa dos
Estados. No entanto, o documento não definia explicitamente as características de uma
guerra ofensiva e, além disso, deixava em aberto exceções que davam liberdade aos
Estados para recorrer a ela (Dinstein, 2004). Em geral, essas exceções estavam previstas
caso o Conselho, ou mesmo por vezes a Assembléia, não dessem conta, num
determinado período de tempo, de solucionar de forma negociada um conflito ou não
pudessem articular uma força militar para fazer valer o princípio da segurança coletiva.
Se a Liga não oferecesse uma solução “os governos em confronto tinham liberdade para
tomar as medidas que considerassem necessárias” (Byers, 2007: 73); ou seja, frente à
inoperância da Liga, os Estados teriam o direito de tentar encaminhar a resolução do
conflito pela via militar. O compromisso com a recusa à guerra, portanto, não implicava
na inviabilidade da guerra ofensiva e, também, não significava que uma outra
modalidade de guerra — a conduzida pela coalizão de Estados sob a bandeira da Liga
— pudesse ser praticada. Permaneciam em vigor a autorização para a guerra numa
brecha legal — as exceções para a guerra ofensiva previstas no Pacto — e numa
recomendação legal para um novo certo tipo de guerra — a coletiva, em nome da paz
internacional.
120
O Pacto da Liga das Nações não chega a consumar a proibição da guerra
ofensiva, mas indica a emergência de um discurso que visou legalizar a guerra, ou seja,
trazê-la para o campo jurídico, contrariando a prática aceita pelo direito costumeiro
internacional que reconhecia o direito dos Estados em usar o recurso militar quando lhes
aprouvesse. Esse discurso, inserido numa série que será apresentada a seguir, apontava
para uma meta: a criminalização da guerra, sua proscrição efetiva. Para tanto, seria
necessário incorporar ao direito internacional restrições claras ao livre recurso à guerra,
partindo da reflexão de que se “a guerra [fosse] extralegal, ela nunca [poderia] tornar-se
ilegal” (Dinstein, 2004: 105). O processo de legalização da guerra remontava às
Conferências de Paz de Haia de 1899 e de 1907: dentre outros temas, a primeira
estabeleceu normas para proteção de combatentes militares e não-militares na guerra em
terra firme, ao passo que a segunda estendeu essa proteção à guerra naval e, em adição,
regulamentou os procedimentos para declaração formal de guerra entre Estados (Best,
1994: 268). As Convenções procuraram regular aspectos da condução da guerra e dos
procedimentos legais envolvendo o início e conclusão de hostilidades dentro do campo
demarcado pelo enfrentamento exclusivo entre Estados. Por esse motivo, como aponta
Enzensberger, a guerra civil passa a ser tratada como “uma exceção à regra, uma forma
irregular de conflito” (2002: 10). Pelo desenvolvimento do direito internacional da
guerra, os Estados procuraram construir um conjunto de regras que servissem de
sistema de segurança para eles próprios, limitando a violência das guerras, sua
amplitude e os questionamentos ao monopólio da violência do Estado. Acordos como os
de Haia que sofisticaram as regulações da guerra provenientes do século XIX
reforçavam o princípio de que ela deveria ser um recurso manejado apenas pelos
Estados, segundo regras bastante claras que disciplinassem as ações, por meio de
prescrições rígidas para a declaração e encerramento de hostilidades e para a conduta
121
dos exércitos durante a guerra. Nesse sentido, pode-se compreender a unanimidade na
condenação da guerra civil, forma de conflito que nega, desde dentro do território, o
monopólio da coerção física e a exclusiva autoridade política, jurídica e militar do
Estado. Os tratados de 1899 e 1907 foram os que estabeleceram as normas de regulação
dos combates entre Estados em vigor até a Segunda Guerra Mundial (Best, 1994).
Ao demandar o comprometimento com a renúncia à guerra, o Pacto da Liga das
Nações não a proibia efetivamente, mas avançava nesse processo de legalização da
prática da guerra, indo além do direito de guerra proveniente do século XIX que se
caracterizou pelo estabelecimento de parâmetros e limites às ações militares. Apenas em
1928, em Paris, uma conferência específica para tratar do tema da renúncia à guerra foi
organizada, sob o incentivo dos governos francês e estadunidense. O documento
produzido intitulou-se Tratado Geral para a Renúncia à Guerra como Instrumento de
Política Nacional, mas tornou-se mais conhecido como Pacto Briand-Kellogg — em
referência ao ministro das relações exteriores francês, Aristide Briand e ao secretário de
Estado estadunidense Frank B. Kellogg, principais promotores do acordo. Além do
objetivo de reforçar a postura contra a guerra ofensiva expressa no Pacto da Liga das
Nações, o tratado marcava a tentativa dos Estados Unidos em voltar para as discussões
multilaterais sobre a paz — já que o país não havia ingressado formalmente na Liga
diante da recusa do Senado estadunidense em ratificar o tratado. Em linhas gerais, o
documento condenou “o recurso à guerra para a solução das controvérsias
internacionais” e endossou o compromisso dos Estados signatários em renunciar à
guerra “como instrumento de política nacional nas suas mútuas relações” (Pacto Briand-
Kellogg, Art. 1º). Autores como Herz e Hoffmann (2004), Evans e Newnham (1998) e
Byers (2007) apontam que o tratado era muito genérico, não contornava o problema da
falta de clareza sobre a definição de guerra de agressão ou ofensiva, e não fazia
122
distinção entre o que poderia ser entendido como uma guerra de legítima defesa e uma
guerra de agressão. No entanto, nos limites desse trabalho, interessa sublinhar um dos
pontos destacados por Dinstein (2004) que diz respeito à autorização e legitimação
indiretas que o Pacto Briand-Kellogg conferia à guerra de segurança coletiva.
Segundo Dinstein, “o Pacto [Briand-Kellogg] proibia a guerra apenas como
instrumento de política nacional” o que fazia com que ela permanecesse “legal como
instrumento de política internacional” (2004: 119, grifos meus). Assim, o Artigo 16 do
Pacto da Liga das Nações era reforçado de modo a defender a guerra patrocinada pelos
Estados coligados na Liga como uma forma legal de ação militar destinada reconstituir
uma ordem pregressa abalada por uma guerra de agressão: “isso fez”, continua Dinstein,
“com que o recurso à guerra fosse legítimo, primariamente, dentro do âmbito da Liga
das Nações” (idem). Portanto, a guerra em geral não era proibida, mas legalizada
incorporada à lei internacional — e separada em dois campos: o lícito — relacionado à
guerra destinada a restabelecer a paz — e o ilícito — da guerra que rompe a paz
internacional. Em suma, com o Pacto de 1928, autorizou-se a guerra coletiva —
definida como em nome da paz — e aprofundou-se a proibição à guerra individual —
vista como contra a paz —, ou seja, a que rompe o acordo baseado no respeito à
soberania dos Estados e na observância do direito internacional.
O tema da autorização para uma modalidade determinada de guerra e,
conseqüentemente, da proibição de outra não era, no entanto, um assunto novo no
campo do direito internacional e da reflexão internacionalista. O que se viu no período
da Primeira Guerra Mundial foi a ressurgência do tema do jus ad bellum (o direito à
guerra) e o jus in bello (as regras para a condução da guerra), cuja procedência mais
importante vem da sistematização das leis de guerra da Antigüidade realizada pelos
teólogos cristãos medievais. Esse debate sobre quais são os direitos e limites para os
123
Estados recorrerem à guerra, e qual conduta devem ter uma vez iniciado os combates,
remonta, por sua vez, à discussão sobre como definir quais guerras seriam justas e quais
seriam injustas. O movimento demarcado pela noção de segurança coletiva do Pacto da
Liga das Nações, complementado pelo Pacto Briand-Kellogg, atualizou a questão da
guerra justa, apontando no sentido de uma nova definição de quais ações militares
seriam legítimas e quais seriam ilegítimas. A nova forma do conceito de guerra justa é
postulado pelo liberalismo internacionalista em seu esforço de estipular um
ordenamento internacional que combinasse a preservação do Estado com o fim da
guerra interestatal. Para investigar a face dessa nova noção de guerra justa — esforço
importante para compreender a noção de guerra e política internacional para o
liberalismo — é preciso perscrutar, mesmo que de forma breve, as procedências do
debate sobre o jus ad bellum e do jus in bello e sua atualização a partir do direito de
guerra contemporâneo, construído a partir do século XIX.
As procedências do conceito contemporâneo de guerra justa
Uma lança afiada a fogo, fincada no território inimigo indicava a declaração de
guerra. Um porco sacrificado com uma faca de pedra selava um tratado. Práticas assim
foram prescritas pelos feciais, “clero especial [na antiga Roma] para a guerra e a
diplomacia” (Dawson, 1999: 197) que, por volta do século IV a.C., firmou-se como a
instituição entre os povos latinos da Itália central destinada a regular o início das
hostilidades, a conduta durante os combates e os modos de celebrar a paz entre os
oponentes. Não havia guerra considerada justa sem a avaliação e chancela dos
sacerdotes feciais. Segundo Dawson, “o código fecial tanto incluía o jus in bello quanto
o jus ad bellum, pois os feciais presidiam não só a todos os tratados como também a
124
todos os juramentos com cidades estrangeiras e embaixadores” (idem: 197-198). Esse
código — o jus feciales — sistematizou “a distinção entre ‘guerra justa’ (bellum justum)
e ‘guerra injusta’ (bellum injustum)” (Dinstein, 2004: 87) já em prática em outros povos
da Antiguidade ocidental, principalmente entre os gregos.
Segundo Dawson (1999), o problema central regulamentado pelos feciais já fora
tratado pelos gregos a partir de uma fórmula que pode ser sintetizada na recomendação
que o retórico ateniense Isócrates fez ao rei cipriota Nicocles, em 372 a.C.: “não travar
guerras injustas, honrar os tratados, não pretender dominar os homens” (1999: 118). Era
preciso que a polis mantivesse sempre uma dupla atitude, sendo simultaneamente,
polemikos, [‘guerreira’], no sentido de estar sempre preparado para a guerra, mas
também eirenikos, [‘pacífica’], no sentido de nunca ir à guerra sem uma causa justa”
(idem: 118-119). O cuidado em estabelecer a causa justa para ir à guerra não era
desacompanhada das recomendações sobre a conduta na guerra. Como aponta Garlan,
na Grécia clássica, “travava-se, com efeito, na maioria dos casos, não um
desencadeamento cego de violência, mas de práticas reguladas, institucionalizadas,
obedecendo mais ou menos a certos acordos oficialmente concluídos, ou de costumes
tacitamente admitidos” (1991: 13). Assim, entre os gregos era possível notar uma
atenção à justificativa dos motivos para ir à guerra e, uma vez desencadeado o embate,
às regras para limitar sua violência seguindo costumes e uma ética guerreira que
remontava aos mitos homéricos (Garlan,1991; Dawson, 1999; Adcock, 1997).
As justificativas aceitas pelos gregos eram de ordem divina (os ódios dos deuses,
as previsões dos oráculos) ou como a resposta — tida como justa — a uma ofensa
anterior. A regra da justa resposta à ofensa seguiu existindo entre os romanos, sendo
reformulada de modo a encampar moral e juridicamente o direito à guerra ofensiva,
uma vez que Roma fez “da expansão (...) um objetivo político e religioso” (Dawson,
125
1999: 198, grifo do autor). De todo modo, interessa destacar que gregos e romanos
sentiam a necessidade de fundamentar suas ações guerreiras com parâmetros jurídico-
religiosos claros e codificados, especificando que tipo de guerra era condizente com os
padrões de justiça e moralidade que podiam determinar o sucesso ou não de uma
campanha militar. Esses limites tinham que ver com a precisa identificação de uma
ameaça exterior ou a iminência de uma ofensa, uma adequada regulação do começo da
guerra, o respeito às ações tidas como honradas durante as batalhas e a formalização do
final da guerra com os acordos derivados entre vencedores e derrotados (Dinstein,
2004).
A decadência de Roma, no entanto, não extinguiu a discussão sobre a guerra
justa. Ao contrário, quando o império ocidental cai em definitivo, no século V, o tema já
havia sido incorporado pela Igreja católica. O pacifismo da Igreja primitiva,
caracterizado pela resistência ao militarismo e expansionismo do império romano
pagão, cedeu espaço à preocupação dos teólogos cristãos com a guerra justa a partir da
elevação do cristianismo ao status de religião de Estado, pelo imperador Teodósio I, em
380. A conversão do cristianismo em religião oficial fez com que o discurso da Igreja
transitasse do “pacifismo para a crença no direito ou dever de lutar por uma justa causa”
(Evans e Newnham, 1994: 288). A condenação da guerra como ato pecaminoso foi
revista diante da necessidade em justificar as guerras para a saúde do império e da
própria religião cristã, fundidos a partir de então. O legado da não-violência impresso
no Novo Testamento foi matizado pelos argumentos em favor da guerra justa contidos
no Antigo Testamento. Assim, “os inimigos bárbaros de Roma confundiam-se com os
inimigos pagãos e heréticos da Igreja, e o serviço militar, para proteger o Império
cristão de ambos os inimigos, tornava-se um dever de piedade cristã” (Dawson, 1999:
287). Para a defesa da fé e do Estado houve uma “substituição do rechaço radical dos
126
pacifistas cristãos pelo ministério ativo do soldado cristão” (Walzer, 2004: 25). A
dificuldade em compatibilizar a guerra com a moralidade cristã ativou uma forma
particular de pensar a guerra justa, o direito de recorrer à guerra e a forma reta de
conduzir-se na guerra. Essa forma particular foi estabelecida a partir da releitura cristã
da doutrina da guerra justa romana, acomodando o uso político da violência à prática da
fé a partir da fusão entre Estado e cristianismo. Tratou-se, portanto, da urgência em
tornar a guerra aceitável ou, ao menos, que alguma forma de guerra pudesse ser
justificável. Por isso, segundo Walzer, consagra-se a posição de que “os fiéis cristão
podiam lutar em defesa da cidade terrena, pela paz imperial (nesse caso, literalmente, a
Pax romana), mas tinham que lutar com justiça, só pela paz e sempre, insistia
Agostinho, (...) sem ira ou luxúria” (2004: 25). A guerra seria justificada se fosse
livrada em nome da fé, pela defesa da fé, com comedimento da violência e visando
sempre o restabelecimento da paz. Uma guerra, desse modo, em nome da paz e do
Estado romano.
Foi Santo Agostinho (354-430), em A cidade de Deus, obra escrita entre 413 e
427, o principal autor a sistematizar a nova idéia cristã de guerra justa. Para Dinstein,
“Santo Agostinho reviveu a doutrina do bellum justum como dogma moral (...)
[anunciando] o princípio de que toda guerra era um fenômeno lamentável, mas que os
erros provocados pelas mãos dos adversários” (2004: 89) justificavam o uso de uma
violência redentora. Para Santo Agostinho, “a injustiça do inimigo é a causa de o sábio
declarar guerras justas. Semelhante injustiça, embora não acompanhada de guerra,
simplesmente por ser tara humana, deve deplorá-la o homem” (1990: 396). Havia,
portanto, a aceitação da guerra quase como um fardo, uma provação a que os cristãos
seriam lançados pela infelicidade das situações provocadas pelos inimigos da fé. Assim,
a guerra só poderia ser prescrita com constrangimento e reservas. Segundo Dawson,
127
“para Agostinho uma guerra justa só era permissível se fosse empreendida por motivos
de caridade” (1999: 290). A guerra justa deveria ser travada a partir de motivos justos
entendidos como “motivos puros” (idem: 291) — ativados pela defesa da fé. Desse
modo, ainda segundo Dawson, “Agostinho definiu uma guerra justa simplesmente como
uma guerra para vingar injúrias, uma definição que iria entrar para a lei canônica
medieval e tornar-se a expressão clássica desse ponto de vista” (idem: idem). Santo
Agostinho não circunscreveu seu princípio de guerra justa à guerra defensiva, o que
abriu a possibilidade de pensar que a defesa da fé pudesse demandar guerras de
agressão. No entanto, no que interessa a essa reflexão, cabe destacar que o tema da
guerra justa emerge no pensamento cristão de modo a reforçar a justificativa moral às
guerras de vingança de uma ofensa prévia, argumento presente nas doutrinas grega e
romana sobre o jus ad bellum e que viria a se firmar como a base da reflexão moderna e
contemporânea sobre a justiça e injustiça das guerras (Walzer, 2003; Dawson, 1999).
Os termos da discussão medieval sobre a guerra justa foram colocados a partir
da leitura cristã realizada por Santo Agostinho do direito romano à ação militar. No
campo do direito canônico, o Decretum, obra de Graciano (morto no início do século
XIII) publicada em 1140, compilou as leis da Igreja sobre a guerra dando corpo à
síntese romano-cristã que entendia a guerra justa como aquela que é “declarara por um
édito oficial para vingar injúrias” (Graciano, Decretum, Causa 23 apud Dawson, 1999:
292). Além do direito canônico, a discussão medieval sobre a guerra justa foi marcada
pela preocupação de Santo Tomás de Aquino (1225-1274) de tratar do tema, em sua
Súmula Teológica, concluída em 1273. Aquino recuperou os pontos discutidos por
Santo Agostinho e Graciano, distinguindo três elementos que confeririam justiça a uma
guerra: ela não deveria “ser conduzida particularmente, mas sob a autoridade de um
príncipe (auctoritas principis); deveria haver uma ‘causa justa’ para a guerra; não
128
bastaria ter uma causa justa (...), mas seria necessário ter a intenção correta (intentio
recta) para promover o bem e evitar o mal” (Dinstein, 2004: 89). Em uma palavra, seria
justa a guerra que apresentasse “causa justa, intenção justa e autoridade justa” (Dawson,
1999: 292). Para que o cristão fosse autorizado a guerrear seria “necessária”, diz Santo
Tomás, “uma causa justa; isto é, que os atacados mereçam sê-lo por alguma culpa”
(1956: 533); e, nesse sentido, justas seriam as guerras, lembrando Santo Agostinho, que
“vingam injúrias” (idem: idem) definidas como ataques prévios ou o roubo de bens
públicos ou privados.
A perspectiva medieval cristã sobre a guerra fundou-se no reforço à lógica
greco-romana da identificação de uma causa justa (a ofensa prévia), entendida não
apenas como ataque à fé cristã, mas também como um ataque aos príncipes cristãos (a
autoridade justa), o que preservou a dimensão política da doutrina da guerra justa e o
esforço moral e jurídico para justificá-la em nome, simultaneamente, da religião e do
Estado. Ao relacionar a justiça de uma guerra à uma ofensa prévia, a doutrina cristã
pôde produzir um argumento que compatibilizou as virtudes cristãs da caridade e da
bondade com a prática da guerra. O guerreiro cristão, desse modo, seria um homem
destinado a carregar uma espécie de cruz porque seria levado à guerra por uma ofensa
injustamente cometida. A guerra justa cristã, então, seria um martírio, um dever e uma
provação. Ainda que preparados para a resignação e passividade, os cristãos deveriam,
por vezes, agir “por causa do bem comum ou mesmo para bem daqueles com quem
lutamos” (Santo Tomás de Aquino, 1956: 535).
Nesses termos colocou-se o problema de como justificar as cruzadas contra os
muçulmanos, começadas em 1096, e a formação das ordens militares monásticas
destinadas à reconquista da Terra Santa, ao apoio dos cruzados nessa empreitada e à
manutenção das regiões reconquistadas aos maometanos, como os templários e
129
hospitalários (Fernandes, 2006; Demurger, 2002). O problema central da discussão
sobre as cruzadas era definir se elas eram guerras ofensivas — o que seria reprovável
moralmente — ou guerras legítimas, pois de defesa ou resposta a uma ofensa pregressa.
O tema de fundo era se os não-cristãos poderiam ser “atacados em virtude simplesmente
de sua infidelidade” (Dawson, 1999: 293) ou se a guerra apenas se justificava pela
retomada da Terra Santa. Essa preocupação em encontrar uma causa justa para as
cruzadas conviveu com outro problema: o das boas intenções durante a guerra.
Os princípios da caridade na guerra e da ausência de ódio pregados por Santo
Agostinho “impeliu os canonistas e teólogos a prestarem mais atenção ao jus in bello ou
às regras para a conduta da guerra, como nunca se fizera na Antiguidade” (Dawson,
1999: 293). A conduta piedosa durante a guerra implicava na aceitação de limites à
violência nos combates e ao estabelecimento de grupos de pessoas que não poderiam ser
atingidas nas batalhas. Segundo Santo Tomás de Aquino, mais uma vez fiado em Santo
Agostinho, “o desejo de danificar, a crueldade no vingar-se, o ânimo encolerizado e
implacável, a fereza na revolta, a ânsia em dominar e coisas semelhantes sãos as que,
nas guerras, são condenadas pelo direito” (1956: 534). No mesmo sentido, Aquino
relembra as Escrituras “o que vós quereis que vos façam os homens fazei-o também
vós a eles” (idem: 544) para observar que também os “inimigos são próximos”
(idem: idem), devendo ser tratados com caridade e piedade. Essa preocupação em
distinguir quais os alvos materiais e humanos que poderiam ser legitimamente visados
numa guerra tinha procedências remotas no direito judeu, presente no Antigo
Testamento (Deuterônimo), que “insistia sobre a interdição de matar mulheres e
crianças e indicava que se deixasse uma saída para os fugitivos das cidades sitiadas” (Le
Bras-Chopard, 1994: 51). Os autores cristãos atualizaram essas restrições tendo como
meta amparar, pelo viés da piedade, uma doutrina cristã da guerra justa. Como aponta
130
Dawson, “o Direito Canônico reconhecia uma extensa lista de pessoas consideradas
isentas de violência em tempo de guerra — clérigos, monges, mulheres, camponeses,
comerciantes; na verdade, quase todo mundo com exceção da classe combatente de
cavaleiros e soldados” (1999: 293). Essa demarcação entre combatentes e não-
combatentes, baseada na noção de que homens desarmados, mulheres e idosos não são
alvos justos porque não podem defender-se, marca uma importante procedência da
discussão sobre a proteção a civis e militares que viria a ser, a partir do século XIX, um
dos temas fundamentais do direito internacional humanitário. Essa delimitação cristã da
conduta na guerra redimensiona o jus in bello da Antiguidade de modo a incluir o tema
das “boas intenções” indicado por Santo Tomás de Aquino e da caridade piedosa no
combate prescrita por Santo Agostinho. Para Dawson, “tais preocupações eram
desconhecidas no mundo clássico e constituem o principal elemento cristão e
agostiniano na moderna teoria da guerra justa” (idem).
A necessidade em definir a guerra justa foi retomada pelos juristas da
Universidade de Salamanca, em princípios do século XVI, tendo como motivação a
descoberta da América e a legitimação de sua conquista. O principal autor dessa escola,
que chegou a condenar a conquista da América como uma “guerra injusta que violava o
direito natural” (Walzer, 2004: 26), foi o frade dominicano Francisco de Vitoria. (1483-
1546). Vitoria não foi contrário à conquista espanhola da América, mas discordava dos
argumentos do direito à posse privada pela conquista e da justiça da guerra pelo fato dos
nativos americanos serem infiéis (Ferrajoli, 2002). Voltava-se, assim, aos argumentos
tomistas de que apenas haveria guerra justa — e conquista justificável — se houvesse a
determinação de uma causa justa, ou seja, de uma ofensa anterior. Sua argumentação
não traria novidade significativa à discussão da guerra justa se não fosse pelo esforço
que fez para legitimar o domínio espanhol sobre as terras e povos americanos. Para
131
tanto, foi necessário encontrar uma ofensa perpetrada pelos nativos de além-mar. E,
para tanto, Vitoria elaborou uma reflexão que entendia os índios americanos como
iguais aos povos europeus e, portanto, sujeitos às mesmas regras que deveriam reger as
relações entre os povos, o direito das gentes (jus gentium).
A noção de direito das gentes emerge na reflexão dos juristas europeus na
medida em que uma nova forma de organização jurídico-política, o Estado moderno, se
afirma na Europa a partir da concentração de poder militar, político e jurídico que
consagra a fórmula do ejus regio, ejus religio — em cada Estado, a lei desse Estado —,
base da lógica do sistema de Estados soberanos, impressa no Tratado de Westfália
(1648) a ser comentada mais detalhadamente no próximo capítulo (Soares, 2002). No
ambiente formado pelos Estados haveria um conjunto de regras comuns que seriam
seguidas pelos Estados em benefício próprio. O direito das gentes seriam as regras que
organizariam o que Vitoria chamou de comunidade mundial (communitas orbis),
fundadas nos costumes e numa pauta mínima de princípios de convivência entre os
povos politicamente organizados. Os principais direitos das gentes indicados por Vitoria
foram o “ius peregrinandi (direito de viajar) e o degendi (direito de permanecer) (...), o
ius commercii (direito de comércio) (...) e o ius occupationis (direito de ocupação)”
(Ferrajoli, 2002: 11). Os americanos, não sendo povos menos obrigados ao direito das
gentes que os europeus, teriam ofendido, segundo Vitoria, o direito dos espanhóis de
viajar e permanecer em solo americano. Para o dominicano espanhol, “os índios tinham
violado direitos fundamentais dos hispânicos de circular livremente entre eles, de
praticar o comércio e propagar o cristianismo” (Dinstein, 2004: 90). Essa violação
constituía uma ofensa prévia que legitimaria a conquista e a guerra contra os
americanos. Vitoria encontrou, portanto, o argumento a justificar a conquista espanhola
adequando-o à lógica da guerra justa proveniente do pensamento medieval.
132
Sua reflexão, no entanto, apresentava uma novidade porque considerava justas
as guerras travadas em resposta a afrontas ao direito das gentes. Em outras palavras, o
desrespeito de um ou mais direitos da comunidade mundial seria um ultraje a um ou
mais Estados e, no limite a toda a comunidade de Estados; fato que justificaria ações
militares como reação à ofensa sofrida. O recurso à força seria uma forma de defender-
se e fazer valer o direito das gentes num mundo sem uma autoridade político-militar
superior aos Estados. Assim, a guerra seria um instrumento lícito “justamente porque os
Estados estão submetidos ao direito das gentes e, na falta de um tribunal superior, seus
argumentos não podem ser impostos senão com a guerra” (Ferrajoli, 2002: 13). Essa
tensão entre a busca de causas justas a legitimar a guerra e a admissão de que num
sistema de Estados soberanos ela é inevitável — e mesmo legítima — expressa um
momento de clivagem marcado pelo despontar do Estado moderno. Ao pensar o direito
das gentes, Vitoria legitimava ou admitia como um dado a existência dos Estados
soberanos. Reconhecia, também, a validade de um conjunto de regras comuns que
deveriam ordenar as relações entre essas unidades soberanas. Nesse campo, continuaria
havendo guerras justas e injustas que deveriam ser julgadas a partir de uma doutrina do
jus ad bellum redimensionada à nova realidade política do sistema de Estados europeu.
A regra fundamental do sistema de Estados modernos foi o reconhecimento
mútuo de que cada príncipe era o soberano máximo e inquestionável em seus domínios;
ou seja, o reconhecimento do valor absoluto da soberania estatal (De la Cueva, 1995).
Cada Estado passava a ser uma unidade político-jurídica independente e com uma
lógica própria voltada para sua perpetuação e expansão. Os príncipes, na lição de
Maquiavel, deveriam estar, nesse ambiente, sempre preocupados com duas coisas:
“uma, interna — seus súditos; a outra, externa — as potências estrangeiras” (1999: 51).
A preservação do poder pelo príncipe e a sobrevivência do Estado dependeriam, desse
133
modo, do controle dos súditos — garantindo a obediência e desarticulando as
insurreições e conspirações — e o enfrentar a cobiça e as pretensões de conquista de
outros Estados. Tratava-se, portanto, de uma guerra em duas frentes. E diante dessa
necessidade, o príncipe deveria manejar uma força militar própria e fiel —
preferencialmente, para Maquiavel (1999), nacional e não mercenária — para a
imposição da sua vontade aos súditos e para a defesa — e eventual expansão — de seus
domínios. A guerra, nesses termos, passa a ser vista como um recurso do príncipe para a
preservação do Estado, para o aumento de poder com relação a outros Estados e para a
sustentação de seu próprio poder.
A aceitação da guerra como um instrumento do Estado em suas relações
exteriores abala a discussão sobre o jus ad bellum, na medida em que a causa justa para
a guerra passa a ser relativizada pelo interesse do príncipe traduzido como Razão de
Estado. No entanto, o tema não se extingue, permanecendo como questão central na
obra dos juristas do século XVII e XVIII, na qual se opera um deslocamento para
valorizar o jus in bello diante da aceitação da guerra como um fato incontornável na
prática dos Estados. O principal autor a recuperar a discussão sobre a guerra justa nesse
contexto foi o protestante holandês Hugo Grotius (1583-1645) que concentrou sua
reflexão sobre a guerra e a conduta na guerra em sua obra mais importante, Direito da
guerra e da paz, publicado em 1625. No livro, e no que concerne especialmente ao tema
da guerra justa, Grotius defende, segundo Le Bras-Chopard, a necessidade em
“temperar a violência da guerra pela doçura e humanidade” (1994: 44). Portanto,
Grotius admite a existência da guerra, sua prática e mesmo sua validade em
determinados casos; e, a partir dessa aceitação, seria preciso minimizar os efeitos
destrutivos da guerra, seus exageros e abusos. Grotius pensou sobre a justiça da guerra
em um ambiente político de afirmação das soberanias estatais e da conseqüente
134
superação da crença na unicidade dos povos na fé em Cristo. A doutrina do direito das
gentes proveniente do século XVI, como em Vitoria, baseava-se ainda na idéia de uma
união dos Estados sob os valores da cristandade. Após a afirmação dos Estados
modernos, da noção de soberania moderna e das guerras de religião, Grotius pensou a
partir do conceito de “jus inter gentes [direito entre os povos] que admite a divisão
religiosa introduzida nessa comunidade e a divisão política da sociedade internacional
entre Estados soberanos” (Le Bras-Chopard, 1994: 41-42).
Nessa “sociedade de Estados” a guerra era um dos recursos para a solução de
contendas e para a realização dos interesses políticos de cada uma das unidades. Grotius
aceitava a guerra como um dado celebrado desde as Sagradas Escrituras como uma ação
permitida em caso de urgência ou necessidade. Pensar a guerra justa seria, assim, um
exercício de identificação dessas situações de necessidade. Grotius, na tradição do
direito romano, traçou um paralelo entre as relações Estado/Estado e
indivíduo/indivíduo; entre pessoas públicas e privadas. Desse modo, “pessoas, bens,
contratos e ações corresponderiam respectivamente em termos internacionais, aos
Estados, aos territórios sobre os quais se exerce a soberania, aos tratados e aos meios de
coerção dentre os quais se encontra a guerra” (idem: 38). Assim, a necessidade ou
urgência em recorrer à guerra estariam relacionadas à defesa do território, dos súditos,
das riquezas de um determinado Estado. O jurista estabeleceu motivos injustos para
recorrer à guerra, como, dentre outros, “uma demanda de matrimônio recusada, o desejo
de se estabelecer em um país mais fértil, um alegado direito de descoberta, uma
tentativa de dominação motivada por uma auto-declarada superioridade do agressor,
etc.” (idem: 42). No entanto, haveria ao menos uma causa que obrigaria moralmente um
Estado a recorrer à guerra: “ir em auxílio não apenas aos aliados, mas mais amplamente
a todo povo que sofre por causa de um usurpador, a todas as vítimas da injustiça” (Le
135
Bras-Chopard, 1994: 43). A injustiça tinha que ver com a violação dos direitos de
existência independente dos Estados, do direito natural e dos direitos das gentes, com
especial atenção ao direito de comércio e livre navegação pelos mares que foi tema
central da reflexão de Grotius (Ferrajoli, 2002; Seitenfus, 2004).
Desse modo, a resposta à injustiça a terceiros foi somada, por Grotius, como um
item complementar à legitimidade da guerra em reação à uma ofensa direta (Evans e
Newnham, 1998). Essa ampliação do conceito de guerra justa significa pensar a
possibilidade de intervenções em questões bilaterais em nome da saúde e segurança não
apenas dos Estados diretamente envolvidos — ou frontalmente atacados —, mas
também da preservação de todo o sistema de Estados. Assim, é possível fazer uma
leitura que destaque como o direito internacional que emergia no século XVII apontava
para uma dimensão de supranacionalidade — a produção de regras às quais os Estados
deveriam comprometer-se, com maior ou menor grau de limitação do exercício pleno da
soberania — sem necessariamente enfraquecer a centralidade do Estado. Ao contrário, o
direito internacional é produzido a partir da reflexão sobre o direito de guerra — jus ad
bellum, jus in bello e guerra justa — e veio a reforçar a lógica do Estado como ente
político central no plano internacional e ponto de referência fundamental para as noções
de política e guerra. Essa noção de direito internacional seria fundamental para a
formação do sistema de Estados e esteve diretamente relacionada ao desenvolvimento
das relações internacionais até os documentos internacionais cujo ápice é a Carta de
São Francisco que visam organizar a política mundial contemporânea. Nesse sentido,
Le Bras-Chopard pode afirmar que “a reflexão jurídica sobre a guerra [nos tempos de
Grotius] não faz, portanto, parte de um setor do direito internacional, então inexistente”,
ao contrário, “ela se inscreve numa corrente doutrinária autônoma que tem o jus belli
por objeto e que, por extensão, daria nascimento ao direito internacional” (1994: 38).
136
Se no campo do jus ad bellum Grotius acresceu a possibilidade de uma guerra
justa em nome do direito das gentes, no campo do jus in bello, o jurista defendeu que
apesar da guerra não ter, em princípio, limites na busca pela vitória, era preciso pensar
reservas à violência. Assim, as ações militares seriam justas apenas se a guerra fosse
justa e, mesmo que ela fosse tida como tal, a temperança e o bom senso deveriam
imperar para que se evitasse toda destruição e morte que fossem além do considerado
necessário para alcançar a vitória. Grotius, no entanto, admitia que os vencedores
tinham direitos totais sobre os vencidos, “fazendo assim uma ampla concessão às
práticas usuais em seu tempo” (Le Bras-Chopard, 1994: 43). O mais importante era
mitigar a violência pela caridade e pelo bom senso, reduzindo ao mínimo o impacto das
guerras sobre crianças, mulheres, velhos e trabalhadores — preocupação que evocava o
tema da proteção aos não-combatentes proveniente das discussões medievais sobre a
guerra justa.
Hugo Grotius é considerado não apenas o fundador do direito internacional,
como o principal responsável pelo deslocamento da discussão sobre o direito das gentes
e, particularmente, do direito de guerra para o campo do “laicismo e da racionalidade”
(Seitenfus, 2004: 32). Segundo Evans e Newnham, sua principal contribuição ao
desenvolvimento da teoria da guerra justa seria o fato de “ter colocado em uma base
secular e pragmática o que antes era considerado um assunto teológico” (1998: 288). No
mesmo sentido, Le Bras-Chopard afirma que se pode considerar a Grotius como o
“laicizador do direito internacional, ainda que ele mesmo repudiasse o ateísmo” (1994:
41). Segundo a autora, Grotius “sustentou que sua filosofia do direito podia acolher
igualmente ateus e crentes e que isso liberaria o direito das gentes das ligações com um
dogma religioso” (idem). É possível reconhecer que Grotius pensa a guerra e o direito
internacional a partir da lógica do sistema de Estados, o que implica na admissão de que
137
cada unidade soberana age com base em cálculos que visam a sobrevivência do Estado e
sua expansão. Esses objetivos, alvos principais da Razão de Estado, passaram a ser
tratados, na chave do realismo político maquiaveliano, como questões desvinculadas
dos critérios de correção moral. São conhecidas as passagens de O príncipe, obra mais
célebre de Maquiavel, publicada em 1532, na qual o florentino recomendava ao príncipe
que “os fins justificam os meios” ainda que o soberano devesse aparentar ser pleno de
“piedade, fé, integridade e religião” para legitimar seu poder (Maquiavel, 1999: 50). A
mesma perda de vínculo entre valores religiosos e prática política poderia ser apontada
na condução da política exterior do Cardeal Richelieu que, durante seu período como
chanceler francês promoveu alianças com Estados protestantes e esforçou-se para
sobrepujar potências católicas como a Espanha e o Império Habsburgo.
Grotius foi um jurista que observou a prática dos Estados pautada na Razão de
Estado e por isso pensou um jus inter gentes como regulador das relações entre essas
unidades políticas autônomas. No entanto, do mesmo modo que não se pode ignorar a
permanência do lastro religioso na legitimação dos Estados absolutistas europeus
regidos pela Razão de Estado, não se pode desprezar o fato de que os valores da
caridade e da piedade — balizas dos ensinamentos cristãos e pedras de toque da
doutrina cristã da guerra justa — permaneceram na reflexão sobre o jus in bello em
Grotius. A identificação desse processo de “laicização” da política coincide com a
afirmação de um discurso que objetivou afirmar o poder do Estado e a legitimidade do
exercício de poder pelo soberano. Segundo Foucault, “desde a Idade Média, a
elaboração do pensamento jurídico se fez essencialmente em torno do poder régio”; “foi
a pedido do poder régio”, continua o autor, “foi igualmente em seu proveito, foi para
servir-lhe de instrumento ou de justificação que se elaborou o edifício jurídico das
nossas sociedades” (2002: 30). O papel central da teoria do direito, reativando as
138
premissas do direito romano, foi fixar a legitimidade do poder de modo a estabelecer
“de um lado, os direitos legítimos da soberania, o outro, a obrigação legal da
obediência” (idem: 31). Nesse percurso, o rompimento com o papado foi extensamente
tratado pela teoria do direito a fim de justificar o poder do soberano a partir do conceito
de imperator in regno suo — imperador em seu próprio reino — e, portanto, sem dever
obediência ao Papa, ao Sacro Imperador ou a qualquer outro soberano (Soares, 2002).
Ainda que autores centrais dessa afirmação do Estado frente ao papado, no campo do
direito e na filosofia política, tenham sido hostilizados pela Igreja católica, como
Thomas Hobbes e o próprio Grotius, não os fez menos próximos das questões religiosas
e morais.
Para Foucault, “a arte de governar encontra, no final do século XVI e início do
século XVII, uma primeira forma de cristalização, ao se organizar em torno do tema de
uma razão de Estado [entendida] no seu sentido pleno e positivo: o Estado se governa
segundo as regras racionais que lhe são próprias, que não se deduzem nem das leis
naturais ou divinas, nem dos preceitos da sabedoria ou prudência” (1998: 285-286).
Essa arte de governar não era, assim, simplesmente baseada na habilidade do príncipe
em preservar seu poder (como em Maquiavel) e tampouco atrelada à chancela divina ao
soberano. Estava em marcha um modo de organizar novo de organizar o poder sobre a
estrutura das monarquias burocráticas com seu desafio de estabelecer e manter o
exercício do poder político sobre Estados territorialmente amplos e populações
crescentemente numerosas. As implicações dessa transformação da forma de exercício
do poder centrada no discurso jurídico — no edifício jurídico-político (Foucault, 1998)
— para uma outra arte de governar que emerge no século XVIII serão discutidas mais
detidamente no capítulo seguinte. Nos limites dessa reflexão sobre a guerra justa,
interessa destacar que a “laicização da política” trazida pela lógica da Razão de Estado
139
não eliminou as questões morais do debate sobre a justiça ou não das guerras. É certo
que o despontar do sistema de Estados modernos provocou um quase desaparecimento
da questão na medida em que “os conflitos armados se emancipam da religião [fim das
guerras de religião] e se afirma a soberania dos Estados” (Le Bras-Chopard, 1994: 37).
E isso se deve ao fato de que, se o tema da guerra justa é composto pela dupla noção de
jus ad bellum e jus in bello, a liberdade dos Estados em declarar guerra seguindo os
ditames de sua Razão de Estado anunciava o esmorecimento do debate sobre o direito
de recorrer à guerra, centrado no conceito de resposta à ofensa anterior.
Antes de pensar em termos de desaparecimento do tema da guerra justa, é
possível pensar que houve algo como um bloqueio parcial da discussão, já que diante da
limitação para conter o jus ad bellum, a preocupação com a justiça da guerra
concentrou-se no campo do direito na guerra, o jus in bello. Esse movimento já pode ser
notado em Grotius e não era desprovido de um conjunto de valores morais de
procedência cristã e referentes à reta conduta na guerra. Diante da inevitabilidade da
guerra entre Estados independentes, o direito de guerra passa a preocupar-se com a
diminuição dos efeitos destrutivos causados pelos combates. Tratou-se de pensar em
como reduzir os danos de um acontecimento que não poderia ser evitado. E, para tanto,
os parâmetros foram em larga medida fundados na idéia de solidariedade e
humanitarismo que, mesmo sem se fiarem em argumentos religiosos, reportavam-se aos
valores do jus in bello cristão. Nesses termos, é possível acompanhar a construção, no
século XIX, do contemporâneo direito de guerra e o despontar do direito internacional
humanitário como simultâneas e complementares atualizações do jus in bello.
A discussão sobre o jus in bello no século XIX foi impulsionada
simultaneamente a partir de demandas de associações humanitárias e a ação de alguns
Estados que mostraram interesse em atualizar as normas sobre a conduta na guerra a
140
partir da emergência da guerra nacional. Dentre os grupos da sociedade civil, o principal
foi o que se organizou em torno de Henri Dunant (1828-1910), homem de negócios
suíço que após presenciar a batalha de Solferino, em 1859, na qual o exército francês
enfrentou os austríacos, decidiu incentivar a formação de grupos nacionais de auxílio
humanitário aos combatentes feridos. Em 1863, ele fundou a Cruz Vermelha,
organização não-governamental que deveria justamente tratar de soldados doentes e
feridos, gozando de imunidade e salvaguardas. A Cruz Vermelha foi oficializada no ano
seguinte, durante um encontro diplomático realizado em Genebra e que produziu um
tratado que, além de conferir as garantias para o funcionamento da organização,
instituiu um compromisso de respeitar o tratamento e ajuda humanitária aos
combatentes durante as guerras
14
. A reunião é considerada como o marco inicial do
Direito Internacional Humanitário, que acompanharia, pelas Convenções que
continuariam a ser realizadas em Genebra, as discussões interestatais sobre o direito de
guerra em outros foros.
O encontro em Genebra aconteceu um ano após a publicação, em 1863, pelo
exército dos Estados Unidos, das Instruções para o comando dos exércitos dos EUA em
campo de batalha, considerado “o primeiro exemplo de manual para a conduta na
guerra terrestre amplamente atento à lei costumeira e aos parâmetros que os [auto-
denominados] Estados civilizados deveriam seguir” (Best, 1994: 266). O texto
sistematizava as recomendações das leis costumeiras sobre o jus in bello e procurava
atualizá-las tendo em vista os novos recursos tecnológicos e o novo potencial destrutivo
das armas modernas. As Instruções constituíram, ainda segundo Best, “a base para todas
as discussões subseqüentes e formulações [sobre o jus in bello] pelos seguintes
cinqüenta anos” (idem: idem). As discussões a que se refere o autor foram as levadas a
14
Foram signatários do tratado os seguintes países: Bélgica, Ducado de Baden, Dinamarca, Espanha,
França, Ducado de Hesse, Itália, Países Baixos, Portugal, Prússia, Suíça e Reino de Wurtermberg.
141
cabo nas conferências de São Petersburgo
15
, de 1868, nas Conferências de Haia de 1899
e 1907 — comentadas no início desse capítulo — e na segunda Conferência de Genebra
de 1906 (que antecipou as disposições da Conferência de Haia, de 1907, sobre proteção
a feridos e doentes na guerra naval). Os documentos firmados em Haia tinham como
principal objetivo a “regulação dos direitos e deveres dos Estados beligerantes” (Evans
e Newnham, 1994: 97) ao passo que os tratados celebrados em Genebra visaram
garantir o direito e a proteção aos combatentes feridos e adoentados. O chamado Direito
de Haia foi o esforço de codificação e regulação da guerra por parte dos próprios
Estados diante do impacto da guerra total, que rompera os limites tecnológicos da
guerra antes da era industrial. Já o Direito de Genebra, complementava o ímpeto
regulador estatal, introduzindo a proteção de cunho solidário e humanitário aos soldados
lastimados em combate. Os tratados que compõem o Direito de Haia conformam o
direito de guerra contemporâneo, enquanto os do Direito de Genebra inauguraram o
campo do Direito Internacional Humanitário. Ambos, em direta relação e
complementaridade, procuraram atualizar a questão do direito na guerra (jus in bello),
sem tocar no tema do jus ad bellum, que continuava orientado pela idéia de que os
Estados mantinham o direito de manejar a guerra como um instrumento de política
exterior.
A iniciativa dos Estados em dar atenção às normas de conduta na guerra foi, em
parte, resposta às demandas sociais expressadas por grupos como o formado em torno
de Henri Dunant e, em parte, uma tentativa de regular e delimitar a prática da guerra de
modo a estabelecer parâmetros limitadores em tempos de grande desenvolvimento da
indústria bélica. O clima da época, segundo Best, comportava “o movimento pacifista
15
O documento assinado em São Petersburgo visou limitar o uso de alguns tipos de projéteis, regulando
seu diâmetro de modo a evitar que causassem ferimentos graves, produzindo sofrimento, mas sem levar à
morte imediata. Assim, procurou restringir o uso de armas com projéteis inferiores a 400g, projéteis
explosivos e armas incendiárias. A lógica era que os projéteis que provocassem morte instantânea eram
mais humanitários que os que apenas feriam ou dilaceravam.
142
[que] se orgulhava da divulgação do humanitarismo, ao mesmo tempo em que
militaristas, nacionalistas e imperialistas se engajavam na primeira grande corrida
armamentista” (1994: 268). A segunda metade do século XIX, na Europa, foi tempo de
glorificação das virtudes militares e nacionalistas, da recuperação e releitura de
Clausewitz, de crença no caráter civilizador da formação dos impérios coloniais, de
afirmação do Estado nacional (incluindo as unificações alemã e italiana), de aposta em
novas tecnologias militares e de fé na qualidade da guerra como recurso de política
externa e como juíza da força e potência dos Estados. No entanto, essa época também
viu emergir discursos voltados à limitação da violência que, forjados nos círculos
racionalistas e religiosos, pleiteavam a diminuição, ao menos, do sofrimento dos
combatentes e o estabelecimentos de regras que, ao transformarem a guerra em uma
ação controlada, pudessem justificar ser a Europa o centro da cultura e civilização.
Assim, conviveram o discurso da realpolitik, interessado na corrida
armamentista, na modernização dos exércitos, na convocação em massa, no tema da
guerra absoluta clausewitziana e o fortalecimento do direito internacional a partir da
discussão sobre o jus in bello pelo lado humanitarista e pelo lado do direito de guerra. O
direito internacional moderno emergira, no século XVII, a partir da discussão sobre a
guerra justa exatamente no momento em que a afirmação do discurso jurídico
justificador do Estado, da soberania e da Razão de Estado lançava o item do jus ad
bellum para o campo particular de cada Estado — seu foro privado. Restava, assim, a
discussão sobre o jus in bello, ou seja, sobre como minimizar os efeitos considerados
deletérios da guerra interestatal vista como inevitável. A discussão sobre o jus ad
bellum foi para o fundo de cena, na medida em que pelo discurso jurídico da soberania
cada Estado tinha o direito de fazer uso da guerra quando seus interesses políticos assim
o indicassem. A produção de um direito de guerra, desde Grotius, trouxe, assim, a
143
marca de um conjunto de medidas compensatórias ou paliativas, voltadas para dois
objetivos: o de aliviar as conseqüências destrutivas da guerra (ou, ao menos, aquelas
consideradas excessivas) e o de criar regras que, no limite, a convertessem em um quase
jogo, com regras fixas e espaços delimitados. Havia, portanto, uma atualização da
piedade cristã que se moldava à racionalidade de Estado porque respondia
simultaneamente aos critérios de justiça da guerra provenientes das reflexões moralistas
e teológicas cristãs e à necessidade dos Estados em resguardar-se e proteger sua
soberania e integridade territorial. Santo Agostinho, e depois dele Santo Tomás de
Aquino, recomendavam que as guerras justas fossem tratadas como atos tristemente
necessários, ações em nome da fé a serem conduzidas sem nenhum gozo, como um
martírio, uma penitência. A obrigação em ser piedoso com os inimigos retirava toda
glória da atitude guerreira: ela deveria ser apenas um remédio amargo, pontualmente
ministrado, e com o mais alto comedimento. O homem, filho de Deus convertido
temporariamente em soldado, deveria seguir temente às leis divinas e, ao reconhecer no
inimigo uma criatura de Deus, o ódio deveria ceder à compaixão. Esse soldado não
deveria ver honra na batalha, matando o oponente sem crueldade, a contragosto. Essa
guerra penosa, apresentada como pesadelo por vezes incontornável para o cristão, seria
compatível com a racionalidade de Estado que despontou no final da Idade Média na
medida em que estava de acordo com o uso instrumental que o Estado ambicionou fazer
da guerra, controlando-a sob seu manto para a utilização segundo seus interesses no
plano externo. A piedade cristã atualizada no jus in bello moderno foi útil aos Estados
ao auxiliar na produção de uma lógica limitadora da violência na guerra que beneficiaria
os próprios Estados, expondo-o menos aos riscos de uma guerra de brutalidade
incontrolada.
144
A ênfase no jus in bello interessava aos Estados, pelo fato de produzir um
conjunto de normas que limitavam o potencial destruidor de uma ação militar (que no
limite poderia levar à morte do Estado vencido) e, ao mesmo tempo, que não impactava
diretamente no direito de cada Estado em recorrer à guerra — o jus ad bellum
praticamente recuava ao ponto de ser uma decisão da Razão de Estado de cada unidade
soberana. Em adição, o jus in bello auxiliava na limitação da violência durante os
combates respondendo ao sentimento cristão laicizado em humanismo — solidariedade,
piedade, caridade. O tema da guerra justa não se extinguira; ao contrário, havia se
reformulado em tempos de afirmação do Estado moderno visando, uma vez mais, a
saúde na preservação dos poderes políticos constituídos.
Desse modo, o desenvolvimento do jus in bello no século XIX, pela articulação
do direito de guerra e do direito humanitário emergente, foi coerente com a
predominância do discurso da realpolitik e do equilíbrio de poder. A construção de
limites e constrangimentos à violência na guerra pode ser lida como um reforço à
preocupação de Clausewitz em evitar a guerra absoluta, pois a produção de um jus in
bello atualizado seria como um complemento normativo à necessidade de controle
político da guerra prescrita pelo prussiano. Assim, o jus in bello marcadamente
humanista do século XIX não foi em particular um contra-discurso ao da Razão de
Estado (com seu jus ad bellum liberado de amarras). Ele, ao contrário, permaneceu
formando um duplo com o jus ad bellum, em benefício da guerra real clausewitziana e,
portanto, como contribuição à vitalidade, força e preservação dos Estados. É importante
notar, no entanto, que o ímpeto pacifista que deu fôlego a essa atualização do jus in
bello auxiliou no desbloqueio da discussão sobre o jus ad bellum fazendo retornar o
debate sobre a justiça ou legitimidade das guerras de agressão. Ou, num sentido mais
amplo, radicalizando a contenda sobre a legitimidade da guerra como instrumento de
145
política exterior dos Estados, na esteira das reflexões cosmopolitas de corte kantiano.
Tratava-se, nesse sentido, de um passo a mais na discussão da guerra justa, apontando
para além do jus in bello e questionando a validade geral do jus ad bellum.
Segundo Le Bras-Chopard (1994), o grupo mais ativo em finais do século XIX a
contestar a guerra como recurso lícito dos Estados foram os solidaristas. O formulador
do solidarismo foi Léon Bourgeois (1851-1925), político francês que ocupou as pastas
ministeriais de Assuntos Estrangeiros e do Trabalho e Previdência social na passagem
do século XIX para o XX e foi o delegado francês a presidir os trabalhos de criação da
Liga das Nações, em 1919. A tese central de Bourgeois era a de que os homens são
unidos por um laço de solidariedade necessário dado pela natureza que assim os obriga
e pelo contrato que faz regular essas relações incontornáveis. O homem não poderia,
assim, viver fora de uma associação que lhe exige uma conduta cooperativa e, em troca,
lhe oferece os recursos materiais e subjetivos para sua vida. Essa solidariedade, no
entanto, necessitava ser positivada, transformada em lei, em contrato como expressão da
racionalidade e da escolha dos indivíduos pela convivência pacífica e regulada. Por isso,
no plano internacional, os Estados deveriam regulamentar uma “solidariedade fundada
no direito” (Le Bras-Chopard, 1994: 48). Mais do que a fé numa solidariedade natural
entre os Estados, os solidaristas defendiam “um tipo de contrato voluntário entre os
Estados: concretizados por uma série de acordos sucessivos, livremente consentidos,
[que] de ajuste em ajuste, viriam a criar as condições de uma regulamentação da
atividade internacional que não passaria mais pela guerra [mas pela qual, os Estados] se
comprometeriam a submeter suas disputas à arbitragem” (Le Bras-Chopard, 1994: 48).
O solidarismo, muito influente nas Conferências de Haia de 1899 e 1907, expressou
uma forma de pensar a ilegitimidade da guerra como recurso para resolução de
conflitos, que ganharia maior repercussão com a Primeira Guerra Mundial e a oposição
146
a violência da guerra manifestada por “grupos como a Liga para impor a paz (League to
Enforce Peace) nos Estados Unidos ou a Liga da Sociedade das Nações (League of
Nations Society) no Reino Unido [que] mobilizaram cidadãos influentes para discutir e
pressionar governos no sentido de lidar com o problema da paz e da guerra de uma
forma totalmente nova” (Herz e Hoffmann, 2004: 85-86). Essa “forma nova” de tratar o
tema da guerra e da paz implicava na revisão do jus ad bellum. Implicava discutir se
haveria algum tipo de guerra justa; se restava, no mundo contemporâneo, alguma forma
de guerra justificável. A revisão do tema da guerra justa gerou a avaliação, no
internacionalismo liberal e pacifista dos anos 1910, de que a guerra ofensiva ou de
agressão — o recurso de política exterior dos Estados — não poderia continuar sendo
aceita como uma forma justa de guerra. Isso porque, a guerra de agressão passou a ser
vista como diretamente responsável pela desordem internacional, pela impossibilidade
de uma paz duradoura nas relações entre os Estados.
Assim, na tradição kantiana, o internacionalismo liberal identificou a urgência
em alterar a regra de organização do sistema internacional a partir de uma
transformação nos meios para garantir a segurança dos Estados — e, por conseguinte, a
segurança internacional. Essa transformação significava a mencionada passagem da
lógica da autodefesa (cada Estado como único garantidor de sua integridade territorial e
soberania) para a da segurança coletiva; e foi a tentativa de estabelecer esse novo marco
que definiu o esforço de criação da Liga das Nações. Esse movimento implicou na
legalização da guerra que, por sua vez, apontava para a proibição da guerra ofensiva e,
mais que isso, para a produção do que Dinstein chama de um “jus contra bellum” (2004:
118), ou seja, um direito contra a guerra em substituição ao direito à guerra. A
elaboração de um direito contra a guerra pressupunha a criminalização da guerra de
agressão ou, em outras palavras, de uma proibição da guerra ofensiva que fosse
147
amparada legal e efetivamente por sanções e sistemas coercitivos. Essa busca do jus
contra bellum, no entanto, não significou a disposição em abolir toda e qualquer forma
de guerra. O sistema de segurança coletiva apresentado com o Pacto da Liga das Nações
indicava, ainda que sem precisar mais detalhadamente, a permanência da guerra de
legítima defesa e a ação militar coletiva para restituir a ordem. Essas seriam duas
modalidades de guerra legais e tidas como legítimas; ao passo que a guerra de agressão
foi proscrita por sua ilegitimidade; posição reforçada pelo Pacto Briand-Kellogg, em
1928.
No campo de discussão sobre o tema da guerra justa, interessa destacar como o
internacionalismo liberal atualizou a noção de justiça na guerra a partir do momento em
que o sistema de segurança coletiva proposto pela Liga das Nações não defendeu o fim
total e absoluto da guerra, mas re-valorou quais modalidades de guerra seriam
justificáveis ou não. Portanto, tratou-se de uma atualização da definição de guerra justa
que passou pela nova fórmula defendida para o jus ad bellum: no novo sistema os
Estados teriam direito de recorrer à guerra para defender-se e em nome da paz
internacional em ação coligada com outros membros da associação. Nesses termos seria
possível perguntar-se se seguia havendo lugar para a justificativa que desde a
Antigüidade pautou a legitimação para a guerra justa: a resposta à ofensa prévia. Então,
sem dificuldades haveria como identificar que “ofensa prévia” no sistema de segurança
coletiva continuava a ser o item ativador da guerra justa. A diferença estaria no fato de
que, agora, a guerra seria justa na reação individual pontual (na defesa emergencial
frente a um ataque militar) e na guerra coletiva de reparação da ordem internacional. O
projeto de sistema de segurança coletiva formula, portanto, uma nova versão do
conceito de guerra justa.
148
Perceber que o sistema de segurança coletiva implica atualizar do princípio de
guerra justa tem o potencial de apontar não apenas os novos termos em que se colocou a
questão no século XX, mas, no que interessa a essa problematização, possibilita avançar
na investigação sobre a noção de guerra e política para o internacionalismo liberal. Para
a compreensão de como o liberalismo em Relações Internacionais pensa a questão da
política é preciso analisar como que o conceito de guerra justa levou a discussão da
justiça da guerra ao limite da criminalização da guerra de agressão e, simultaneamente,
da legitimação de novas modalidades de guerra justa. Tais modalidades encontram na
noção de segurança coletiva sua formulação mais ampla e completa, aceitando como
formas intermediárias de guerra justa as reações militares classificadas como legítima
defesa individual e legítima defesa coletiva. A fim de concluir esse percurso que busca
apreender as noções de política e guerra entre o internacionalismo liberal, propõe-se
uma breve exposição das chamadas “exceções ao uso da força” (Dinstein, 2004)
presentes na Carta das Nações Unidas, de 1945, e, na seqüência, as implicações da
criminalização da guerra ofensiva no sistema internacional.
Cosmopolitismo e a criminalização da guerra
A Carta das Nações Unidas, assinada em São Francisco, em 26 de junho de
1945, traz já em seu objetivo mais geral: “preservar as gerações vindouras do flagelo da
guerra, que por duas vezes, no espaço de nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à
humanidade” (Carta das Nações Unidas, Preâmbulo). Logo depois, em seu artigo
primeiro, tal objetivo é detalhado quando o texto apresenta como primeiro propósito da
organização “manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim reprimir os atos
de agressão ou outra qualquer ruptura da paz” (idem: idem). Por fim, para
149
complementar o tratamento geral ao tema da guerra, o Art. 2º expõe, no seu parágrafo 4º
que “todos os Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o
uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer
Estado” (idem: 271).
Segundo Dinstein, essa passagem do Art. 2º contém a “essência do jus ad bellum
atual” (2004: 120), pois explicita a obrigação dos Estados em evitar o recurso à
violência em suas relações exteriores. A ausência da palavra “guerra”, substituída por
“uso da força”, ainda segundo Dinstein (2004), provocou discussões sobre a amplitude
das ações que passariam a ser proibidas, no entanto, a interpretação preponderante do
trecho aceitou que “‘força’ denota força armada ou militar” (Dinstein, 2004: 121). Em
suma, a idéia geral da Carta, no que se refere à guerra, consiste que o uso da força
contra qualquer Estado — sua integridade territorial e independência — “está proscrita
e (...) que disputas devem ser resolvidas pacificamente” (Herz e Hoffmann, 2004: 98). A
proibição da guerra de agressão, portanto, seguiu a diretriz traçada no Pacto da Liga das
Nações, reforçando a determinação contida no Pacto Briand-Kellogg. Reafirmava-se,
assim, o princípio da recusa à guerra de agressão.
A proibição da guerra de agressão foi acompanhada da formulação do princípio
da segurança coletiva, tratado no Capítulo VII do documento. Nele ficou estabelecido
que o Conselho de Segurança era a instância responsável por determinar quando e que
tipo de ação configuraria uma “ameaça à paz” ou concreta “ruptura da paz ou ato de
agressão” (Art. 39) e que sanções — de cumprimento obrigatório — poderiam ser
autorizadas. Essas sanções poderiam ser não-militares — interrupção das relações
econômicas, diplomáticas e das comunicações (Art. 41) — e militares (Art. 42). Nesse
caso, os Estados membros forneceriam os efetivos militares para a formação da força de
imposição da paz (Art. 43). Assim a Carta estabelecia a forma de guerra autorizada
150
frente ao rompimento compromisso firmado entre os Estados-membros de não recorrer
à guerra como instrumento de política exterior. De modo distinto ao Pacto da Liga das
Nações, a Carta de São Francisco detalhava o modo pelo qual, diante da quebra do
acordo assumido entre Estados, haveria a aplicação da força para restituir a ordem
anterior — o status quo ante —, entendida como estado no qual vigoravam os tratados
internacionais e, portanto, no qual reinava a paz internacional.
Como indicado acima, a Carta determinava, além da ação de segurança coletiva,
que as guerras de legítima defesa — individual ou coletiva — seriam igualmente
legítimas. Essa permissão para que os Estados recorram à guerra para defender-se “tem
base”, aponta Dinstein, “no direito fundamental dos Estados à sobrevivência” (2004:
243). A noção de legítima defesa está relacionada ao argumento da justiça em recorrer à
guerra após uma ofensa sofrida e, portanto, remete-se ao campo de justificação mais
tradicional da guerra justa. Ademais, o tema da autodefesa associou-se ao direito
privado dos homens defenderem a própria vida (Dinstein, 2004: 245). Assim, não causa
surpresa que a Carta de São Francisco tenha preservado o direito a autodefesa, uma vez
que a preservação e saúde do Estado seguiram sendo as metas primordiais impressas no
tratado. A novidade foi a previsão da legítima defesa coletiva por meio de associações
militares de autodefesa. Assim, o Art. 52 autoriza a existência de formação de
associações regionais dedicadas ao tema da segurança e paz nos seus espaços
respectivos
16
. O fato de serem de autodefesa, e não ofensivas, não as colocaria em
contradição com princípios maiores da Carta
17
.
16
É possível ler no Artigo 52, § 1º que “Nada na presente Carta impede a existência de acordos ou de
entidades regionais, destinadas a tratar dos assuntos relativos à manutenção da paz e da segurança
internacionais que forem suscetíveis de uma ação regional, desde que tais acordos ou entidades regionais
e suas atividades sejam compatíveis com os Propósitos e Princípios das Nações Unidas”.
17
O tratado que instituiu a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em 1949, dedica um dos
seus artigos para justificar que a formação da coalizão militar ocidental se destinava à autodefesa contra
um possível ataque do bloco soviético, não constituindo, portanto, uma afronta à Carta de S. Francisco.
Esse artigo é o 5º, onde se lê: “As partes acordam que um ataque armado contra um ou mais deles na
151
A incorporação do tradicional direito de autodefesa individual e sua ampliação
com o direito de autodefesa coletiva tinham como objetivo resguardar espaços legítimos
para que os Estados pudessem garantir sua sobrevivência. Nesse esforço de visar a
preservação do Estado, a aceitação dos direitos de autodefesa aparece como a admissão
de que o sistema de segurança coletiva era uma meta ainda não plenamente realizável na
realidade do sistema de Estados que despontava da Segunda Guerra Mundial. Isso não
significa que o sistema de segurança coletiva tivesse perdido a importância como
conceito orientador da noção de segurança internacional. E isso fica explícito no mesmo
Art. 51 que autoriza as ações de autodefesa quando se afirma que a reação ao ataque é
válida até que o Conselho de Segurança
18
possa tomar as medidas necessárias para
restituir a ordem anterior
19
. Em outras palavras, o direito à autodefesa é reconhecido
formalmente como uma ação de emergência, destinada a preservar o Estado, até que a
ONU, a partir das decisões do Conselho de Segurança, possa colocar em marcha as
medidas de segurança coletiva.
Europa e na América do Norte deve ser considerado um ataque contra todos, e consequentemente
concordam que, se esse ataque armado aconteça, cada um, no exercício do direito de autodefesa
individual e coletiva reconhecido no Artigo 51 da Carta das Nações Unidas, irá assistir a Parte ou às
Partes atacadas realizando, individualmente e em acordo com as outras Partes, toda ação tida como
necessária, incluindo o uso de força armada, a fim de restaurar e manter a segurança na zona do Atlântico
norte”. http>//www.yale.edu/lawweb/avalon/nato.htm, acessado em 23 de dezembro de 2007, às 10h36.
18
O Conselho de Segurança é o órgão executivo da ONU, responsável pelos temas políticos centrais
tratados pela organização. Todos os principais problemas referentes aos conflitos, à segurança
internacional e à manutenção da paz entre os Estados-membros devem ser analisados e julgados pelo
Conselho que tem poder para emitir resoluções e decisões (sobre embargos, boicotes, missões de paz,
intervenções armadas etc.). O Conselho é composto por dez membros rotativos (eleitos entre todos os
Estados-membros para um mandato de 2 anos) e cinco permanentes Estados Unidos, Reino Unido,
China, França e Rússia que têm poder de veto sobre as decisões a serem tomadas. A estrutura do
Conselho reflete a composição do jogo de forças no cenário internacional ao final da Segunda Guerra
Mundial, de modo a conferir um papel de destaque e comando aos Estados vencedores do conflito. (Cf.
Seitenfus, 1997: 122-125).
19
Pode-se ler no Artigo 51 que “as medidas tomadas pelos Membros no exercício desse direito de
legítima defesa serão comunicadas imediatamente ao Conselho de Segurança e não deverão, de modo
algum, atingir a autoridade e a responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho para levar a
efeito, em qualquer tempo, a ação que julgar necessária à manutenção ou ao restabelecimento da paz e da
segurança internacionais”.
152
É importante lembrar que a estrutura da ONU foi marcada pela mescla de
princípios liberais — expressos na própria noção de segurança coletiva, na finalidade de
manter a paz com base no direito internacional etc. — e realistas — visíveis na
conformação do Conselho de Segurança, com seus cinco membros permanentes com
poder de veto sobre as questões centrais previstas na Carta, e que espelhavam a
configuração das relações de poder entre os Estados vencedores da Segunda Grande
Guerra (Guilhon Albuquerque, 2005; Oliveira, 2006; Herz e Hoffmann, 2004;
Seitenfus, 1997). As implicações dessa dupla filiação são fundamentais para
compreender as relações internacionais contemporâneas, com os choques de interesse
das superpotências durante a Guerra Fria, a ação — ou inação da ONU — até 1989, os
limites para a efetiva aplicação do conceito de segurança coletiva durante e depois do
final da bipolaridade, entre outras questões. Uma análise histórica da ação da ONU
apontaria que o princípio da segurança coletiva, em sua fórmula completa, nunca foi
posto em funcionamento. Autores como Dinstein (2004) e Oliveira (2006) apontam que
o mais próximo da ativação do sistema aconteceu quando da autorização que o
Conselho de Segurança fez para que coalizões de Estados-membros agissem, sob o aval
da ONU, na Guerra da Coréia (1950-53) e na Guerra do Golfo (1991); mas em ambos
os casos a chancela baseou-se na premissa da legítima defesa coletiva. Não é possível
ignorar os debates jurídicos e as alegadas dificuldades políticas e práticas para efetivar o
princípio da segurança coletiva previsto na Carta de São Francisco. No entanto, nos
marcos dessa reflexão, interessa apontar um outro percurso que mire nas implicações
conceituais do conceito de segurança coletiva relacionadas ao tema da política e guerra
para o internacionalismo liberal. E, para tanto, é preciso retornar à questão da
criminalização da guerra.
153
Se a proibição efetiva da guerra de agressão, esboçada no Pacto Briand-Kellogg,
se dá com a Carta de São Francisco, havia uma discussão contemporânea à celebração
desse tratado que é importante para compreender os termos da criminalização da guerra
ofensiva. Pouco após a assinatura da Carta, em 08 de agosto de 1945, foi aprovado em
Londres o tratado que instituía o Tribunal Militar Internacional, que estabeleceria as
regras para os julgamentos dos oficiais alemães em Nuremberg. O art. 6 da Carta do
Tribunal fixava que a participação no preparo ou condução de uma guerra de agressão
seria considerada “crimes contra a paz”
20
. Essa categoria, segundo Dinstein (2004),
vinha a complementar e reforçar as de “crime de guerra”, “criminoso de guerra” e de
“crime contra a humanidade” que a Carta do Tribunal previa na seqüência. Às alegações
dos advogados de defesa dos réus em Nuremberg, de que o julgamento não seria válido
porque as regras teriam sido formuladas ad hoc, o Tribunal respondeu que o Pacto
Briand-Kellogg já havia estabelecido “a ilegalidade da guerra” (Dinstein, 2004: 164) o
que já justificaria a infração criminal daqueles que tivessem se envolvido, após 1928, na
promoção de guerras ofensivas. Uma novidade nesse campo da criminalização da
guerra, foi a responsabilidade atribuída a pessoas e não mais aos Estados, o que marcava
uma diferença com a Paz de Versalhes, que culpou o Estado alemão, e seus aliados, pela
Primeira Guerra Mundial. Em Nuremberg, os oficiais do Eixo foram entendidos como
responsáveis individuais pelos crimes contra a paz, crimes de guerra e contra a
humanidade, mesmo que estivessem obedecendo a ordens (Carta do Tribunal Militar,
Art. 8).
É interessante notar a simultaneidade do reconhecimento do Homem como
sujeito de direito internacional — com a própria Carta da ONU e, posteriormente, com a
20
Nuremberg Trial Proceedings Vol. 1 — Charter of International Military Tribunal, disponível em
http://www.yale.edu./lawweb/avalon/imt/proc/imtconst.htm, acessado em 20 de
setembro de 2007, às 10h02.
154
Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948 — e a penalização de indivíduos
por crimes de guerra ou contra a paz. Ao mesmo tempo em que os Estados deixam de
ser os únicos sujeitos de direito internacional — com o reconhecimento da categoria
Homem e, também das organizações internacionais —, eles perdem a primazia na
responsabilização por atos internacionais. Em outras palavras, não se tratava mais de
encontrar apenas um Estado culpado pelo início da guerra, mas de identificar indivíduos
que, na posição de governantes ou agentes do Estado, tivessem a responsabilidade de
haver levado seus países e sociedades à guerra
21
. A produção de direitos e proteções ao
Homem foi acompanhada, portanto — num paralelo à lógica jurídica doméstica —, da
fixação de crimes e de penas. E foi possível penalizar a incitação e condução da guerra
de agressão porque a ordem política e jurídica vitoriosa na Segunda Guerra Mundial
estabeleceu que não haveria qualquer benefício possível numa guerra ofensiva e de que
ela deveria ser considerada “não apenas um crime [contra a paz], mas o crime
internacional supremo sob o direito internacional” (Dinstein, 2004: 167).
Assim, a definição de guerra ofensiva como crime contra a paz complementou a
proibição fixada na Carta de São Francisco que, por sua vez, ampliava e detalhava
aquela já presente no Pacto Briand-Kellogg. Desse modo, a redefinição do jus ad bellum
toma corpo na medida em que a Carta da ONU, complementada pela Carta do Tribunal
Militar Internacional, não apenas recomenda as vias pacíficas para solução de
controvérsias, como propriamente criminaliza a guerra de agressão e determina três
modalidades de guerras legais — as duas de legítima defesa e a de segurança coletiva. A
nova guerra justa fiou-se, desse modo, na produção de um crime: o contra a paz. E essa
21
Na sua aula no Collège de France, de 12 de março de 2007, Mireille Delmas-Marty dedicou-se a pensar
a novidade introduzida pelos Tribunais Militares da Segunda Guerra (de Nuremberg e Tóquio), com o
julgamento de indivíduos e seu paralelo com a formação de um corpo normativo de proteção aos direitos
humanos. Cf. Aula “Punir/pardonner: trois débats – Responsabilité et impunité”: a) Vers une conception
universelle de la responsabilité ; b) Motifs d’impunité et contexte national. O áudio da aula pode ser
consultado em http://www.college-de-france.fr/audio/delmasmarty/mdelmasmarty4.mp3.
155
produção se baseia numa mudança de perspectiva com relação à guerra. Enquanto ela
foi considerada pelo direito internacional como um recurso à disposição do Estado havia
a aceitação de os beligerantes gozavam de uma igualdade de condições — estavam
ambos, atacante e atacado, tratando de sobreviver num mundo sem regulação da
violência que lhes fosse superior. A partir do momento em que a guerra de agressão
deixa de ser legítima, e passa a ser um crime, estabeleceu-se uma diferença entre
atacante (agora, criminoso) e atacado (vítima). Pelo princípio da segurança coletiva, a
comunidade de Estado deveria zelar pela vítima, reunindo até mesmo forças armadas
para preservar a soberania o Estado lesado. A proteção da soberania de um dos
membros da associação significaria, então, a proteção da “paz e segurança
internacionais” que, em outras palavras, seria a garantia da preservação de cada um dos
Estados sócios. Esse é o princípio que justificaria a realização de um comprometimento
supranacional, seguindo a recomendação de Kant: uma limitação relativa da soberania
— pela aceitação de normas supranacionais e pela renúncia à guerra — em nome de
uma mais eficaz proteção da soberania e do bem-estar das Repúblicas — advindo do
apoio coletivo e da garantia da paz. A defesa da soberania, portanto, resta como pedra
de toque do internacionalismo liberal, tema que se projeta na discussão contemporânea
sobre a guerra justa.
A partir da procedência kantiana da idéia de um direito cosmopolita regendo
uma federação de povos reunidos para evitar a guerra e estabelecer relações duradouras
de cooperação, o tema da guerra justa é redimensionado. Se, no limite, a ordem
constitucional mundial proposta por Kant produziria um estado de sociedade universal,
poderíamos compreender que, na lógica kantiana, isso significaria que a política — o
negativo do estado de natureza — recobriria toda a Terra. Não haveria, portanto, espaço
no globo em estado de “liberdade grotesca”, e a política — com suas instituições, leis e
156
garantias — haveria preenchido o vazio das relações internacionais, expulsando para
sempre o estado de natureza das relações humanas. A universalização do estado de
sociedade, da política, teria como efeito benéfico o fim da guerra, a paz perpétua. As
guerras, então, ficariam restritas às ações punitivas que os membros da federação
universal poderiam ser forçados a tomar caso algum deles desrespeitasse a regra básica
da renúncia à guerra. Essa guerra reparadora seria, então, a guerra justa que viria a
combate a injusta, a de agressão.
A guerra justa, nesses termos, seria similar a uma ação policial, já que haveria
um paralelo entre a lógica político-jurídica doméstica e essa nova ordem cosmopolita:
dentro de um Estado, o criminoso é aquele que infringe a lei, aquele que rompe o pacto
e que, por esse motivo, deve ser sancionado pelo poder coercitivo central de modo a
restabelecer a ordem e dissuadir outros indivíduos que poderiam vir a cometer crimes; a
ação policial, a aplicação da lei, é, desse modo, o uso legal da violência em nome da
sociedade, da ordem legal, dos direitos individuais, da propriedade privada e do Estado.
De modo análogo, seguindo o argumento kantiano, a ação militar coletiva das
Repúblicas livres seria o meio legítimo de exercício da violência destinado a proteger o
Estado que foi vítima de um ataque, punindo o atacante e dissuadindo outras possíveis
violações.
O argumento liberal levado ao seu extremo pressuporia, portanto, a
transformação de toda guerra em uma medida coletiva de aplicação da lei: uma ação
policial. Antonio Negri é um autor contemporâneo que nota, nesse início de século
XXI, a emergência de uma mutação da guerra que a teria convertido precisamente numa
“ação policial contínua, realizada sobre a polis globalizada sob a jurisdição excepcional
de uma guerra infinita” (2006a: 74, grifos do autor). A jurisdição excepcional seria
aquela imposta pela guerra ao terrorismo, decretada pelos Estados Unidos após os
157
atentados terroristas do 11 de setembro de 2001. Tal doutrina de política exterior
haveria instrumentalizado a nova guerra global em tempos nos quais a universalização
do capitalismo e a proclamação da democracia como única via política para as
sociedades teria inaugurado a era do Império, não definido pela dominação mundial de
um só Estado, mas pelo exercício de um poder envolvente, nos planos político e
econômico, capitaneados por alguns Estados, mas que caminha para a formulação de
uma política e economia efetivamente globais (Negri e Hardt, 2001). A política do
Império recobriria todo o planeta, transformando as resistências à ordem imperial em
crimes contra valores universais paz, humanidade, democracia, tolerância. A era
imperial seria, assim, a de uma ordem legal, política e de valores que atravessaria
fronteiras, abalando, com isso, os fundamentos do sistema de Estados. Segundo Negri e
Hardt,
“enquanto a antiga lei internacional se baseava no reconhecimento da soberania
nacional e dos direitos dos povos, a nova justiça imperial, para a qual a
concepção de crimes contra a humanidade e as atividades das cortes
internacionais são elementos, visa a destruição dos direitos e soberania dos
povos e nações por meio de práticas jurisdicionais supranacionais” (2004: 28-
29).
Nesse planeta regido por um poder difuso, operado a partir da hiper-potência
estadunidense, de seus aliados mais poderosos, e de todo um conjunto de Estados e
coalizões de Estados fundindo-se em uniões federalizadas, a noção de guerra sofreria
uma importante transformação que assume sua forma atual com a guerra ao terrorismo.
No entanto, essa nova guerra global não teria sido criada como reação ao ataque a Nova
Iorque e Washington, guardando procedências mais antigas na Guerra Fria. Para Negri e
Hardt (2004), os teóricos da Guerra Fria pelo lado ocidental como George Keenan e
Henry Kissinger reelaboraram o princípio da guerra justa em termos de combate ao
comunismo: seria justo travar guerras diretamente, financiar regimes autoritários amigos
158
ou patrocinar forças militares em luta em todo o planeta se o objetivo fosse conter o
comunismo. O interessante, destacam Negri e Hardt, é que o objetivo das iniciativas
militares na Guerra Fria não teria sido derrotar o socialismo, mas justamente contê-lo:
“a guerra justa, nesse caso não é mais uma justificativa moral para atos de violência e
destruição limitados temporalmente (...), mas ao contrário, a manutenção da estática
permanente da ordem global. A idéia de justiça e contenção da Guerra Fria oferece a
chave tanto para a indefinida duração quanto para as funções reguladoras e ordenadoras
que a guerra imperial pode ter hoje” (2004: 24). Assim, a doutrina da contenção na
Guerra Fria teria produzido uma noção de guerra global e continuada que, a partir dos
anos 1990, foi potencializada pela nova política imperial. Ainda segundo os autores
(idem: idem), a constituição de uma guerra global acompanhando a formação do
Império poderia ser identificada desde a Guerra do Golfo, em 1991, passando pelas
intervenções humanitárias nos Bálcãs ao longo dos anos 1990 até sua agudização com a
guerra ao terrorismo, a partir de 2001.
A guerra contra o Iraque, empreendida por uma coalizão liderada pelos Estados
Unidos em 2003, seria, para Negri, uma “operação policial internacional” (2006: 33)
que se caracterizaria por três traços: em primeiro lugar, “o inimigo não está constituído
por um Estado, mas por figuras internas à organização do Império: ‘inimigos públicos’,
delinqüentes; não sendo casual que a Convenção de Genebra não possa valer para eles”
(idem: 34). Uma segunda característica dessa guerra policial, seria a reorganização dos
exércitos que devem ser hoje “pequenas unidades móveis, aerotransportadas, integradas
na informação e na assistência; soldadesca, missionários, polícia e bombeiros, marines e
ajuda humanitária” (idem: idem). Por fim, segundo Negri, o objetivo da guerra policial
não é “abater a um inimigo e reorganizar a hierarquia das relações internacionais (ou
seja, entre Estados-nação), mas construir nações democráticas mais ou menos
159
democráticas, mas que, em todo caso, estejam dentro da ordem imperial , uma ordem
contínua, pura, capitalista” (idem).
A guerra policial, como ápice do processo cosmopolítico, levaria à formação de
um direito propriamente global, não internacional em nome de uma ordem política e
econômica transnacional. As ações repressivas para proteger essa ordem poderiam ser
vistas, então, como análogas às empreendidas por cada Estado dentro de suas fronteiras
visando a paz civil e a defesa da lei. Seria interessante notar como a universalização da
política, pela via do Império, poderia ser o anúncio da consumação de uma forma de paz
perpétua. Situação que talvez pudesse ser entendida pelos liberais como paz efetiva
um império da lei mundializado , mas que é compreendida por Negri como “um
estado de exceção permanente” (2006a: 74). Quem sabe mais próximas de certo
kantismo que da permanência da “anarquia” hobbesiana, as relações internacionais
poderiam estar efetivamente convertendo-se em política mundial. Para os liberais, esse
fato significaria a paz civil mundializada e a conversão das guerras em coletivas ações
de polícia destinadas à manutenção da lei e da ordem em escala planetária.
A guerra justa reinterpretada pelo internacionalismo liberal e sua influência na
formulação do direito internacional no pós-Primeira Guerra Mundial guarda relação
direta com a reflexão kantiana e seus desdobramentos lógicos. Dinstein chama a atenção
para o fato de ser exagerado perceber na Carta da ONU, tal como foi produzida, a
inauguração de uma efetiva força policial cosmopolita, pois “a atuação da polícia
genuína pressupõe condições de subordinação a restrições sociais que são estranhas à
comunidade internacional da maneira como são compostas atualmente” (2004: 213).
Pressuporia, também, uma superação mais acentuada da regra da soberania dos Estados,
sobre a qual ainda se funda a organização do sistema internacional. Além disso, nos
moldes contemporâneos, o tema da ação policial poderia produzir demandas — por
160
parte dos Estados mais poderosos militar, econômica e politicamente — de liderança ou
condução do julgamento de quais Estados seriam criminosos ou não. Esses problemas
estão relacionados exatamente à mescla de princípios liberais e realistas que formatam o
direito internacional contemporâneo.
No entanto, interessa aqui destacar como a noção de guerra justa registrada na
Carta de São Francisco e nos demais documentos mencionados, auxilia a pensar a noção
de política e guerra na esteira da tradição kantiano-liberal. Seguindo essa indicação,
seria possível notar como que a guerra entendida como justa seria, para os liberais, no
limite, apenas aquela levada a cabo pelo poder legítimo a fim de defender a ordem, os
direitos, a paz. A legítima defesa seria, então, apenas um recurso emergencial
subordinado à grande e coletiva reação da associação de Estados. Em paralelo à lógica
jurídica doméstica, a guerra justa seria um tipo de ação policial, pois colocada em ação
para punir a transgressão e fazer valer a lei. Num mundo recoberto pelo direito
cosmopolita, todo ato de guerra ofensiva seria um ato criminoso e, portanto, passível de
punição. A preocupação dos legisladores — do Pacto da Liga das Nações e do Pacto
Briand-Kellogg até a Carta de São Francisco e a Carta do Tribunal Militar Internacional
— foi a de afirmar a ilegalidade da guerra de agressão e sua conseqüente
criminalização. Nesses termos, previa-se a guerra coletiva para a reparação e restituição
da ordem ou, como registra a Carta da ONU, da “paz e segurança internacionais”.
Assim, há como perceber que a influência kantiano-liberal na produção desses textos
formadores do direito internacional contemporâneo. E mais, é possível notar como
nesses documentos se mostra a percepção kantiano-liberal de que a guerra é um ato do
estado de natureza, portanto, uma ação contrária à política. No mundo da federação
universal recomendada por Kant, não haveria mais guerras, mas apenas crimes (a guerra
de agressão) e ações policiais (a guerra pelo princípio da segurança coletiva). Se, pela
161
reflexão kantiano-liberal, não há guerra onde vigora a política, o contrato universal
aboliria definitivamente a guerra; ainda que não pudesse fazer o mesmo para a violência
— já que transgressões poderiam acontecer e as devidas sanções deveriam acompanhá-
las. Esse seria o mundo em paz perpétua, como os Estados são, internamente, bolsões de
paz civil.
Assim, é possível ver que no internacionalismo liberal, marcado pela influência
kantiana, existe a aceitação de que a guerra é um acontecimento exterior à política, ou
seja, que somente é possível haver guerra onde não há ordem jurídica e poder político
constituídos. Em Kant, se há guerra é porque não há política. No liberalismo em
Relações Internacionais, pelo que se pode acompanhar de sua influência na formulação
do direito internacional após 1919, a mesma lógica se repete. No limite, portanto, não
haveria mais guerras caso a ordem cosmopolita ganhasse efetiva universalidade. Se a
ONU pudesse conformar-se como uma federação completa a partir do molde kantiano,
os Estados viveriam em um estado de sociedade, no qual as guerras seriam
transgressões punidas pela ação coletiva. O importante aqui não é avaliar se a ONU
poderá ou não alcançar essa meta, mas enfatizar a noção de política para o liberalismo
que se pode deduzir do modo como tratam o tema da guerra. Para o internacionalismo
liberal, a guerra deve servir ao Estado, mas não como recurso de política externa: ao
recusar esse recurso, os Estados passam a usufruir de outra modalidade de guerra, que
reúne as de autodefesa e de segurança coletiva. Desse modo, a ação bélica não
desaparece do horizonte, mas se transforma. No pragmatismo da Carta da ONU, a
guerra do sistema de segurança coletiva permanece como um norte, enquanto as guerras
de autodefesa individual e coletiva abririam caminho para a superação da — agora
criminalizada — guerra de agressão. A guerra, portanto, segue sendo em benefício do
Estado, mesmo que esse benefício seja vinculado à manutenção da ordem internacional.
162
Essa relação entre “paz internacional” e “saúde dos Estados” já havia sido traçada por
Kant. Desse modo, é importante notar que os liberais veiculam um pacifismo que se
restringe à condenação da guerra de agressão e que reconhece a legitimidade das
guerras em nome da lei, em nome da paz, em nome da preservação do Estado.
O pacifismo liberal, tão forte e presente na atualização do direito internacional e
no direito de guerra no século XX, admite que há uma forma de violência legítima que é
a exercida pelo Estado, dentro de um território, e a conduzida pela comunidade de
Estados sujeita aos tratados internacionais. No campo normativo doméstico, a existência
do Estado, que demarca a existência da política, significaria a superação do estado
natural e de guerra. No plano internacional, a existência do estado de natureza seria
atacada pela celebração dos tratados que avançavam para se contraporem à regra da
soberania absoluta, tendo como meta a produção gradativa de um estado de sociedade
internacional: a extensão para todo o globo da política e, portanto, da paz. No limite,
portanto, seguindo a lógica kantiana, não haveria mais guerras no momento em que toda
ação violenta fosse convertida em crime ou sanção. Num mundo em paz perpétua não
haveria espaço para a guerra, pois a política — a extrema negação da guerra pelo
raciocínio contratualista — teria recoberto todo o planeta.
2.3 A guerra na ausência da política
Quando se acompanha a formação dos discursos realista e liberal em Relações
Internacionais é possível perceber, a partir de uma análise das procedências na filosofia
política de cada um desses ramos teóricos, como se forma entre eles uma zona de
afinidades no que se refere à concepção de política. Há em ambos a partilha de uma
base contratualista, quer seja pela leitura que privilegia o legado hobbesiano — o
163
realismo — quer seja a que se apóia no legado kantiano — o liberalismo. Tal
característica faz com que as escolas teóricas coincidam na avaliação de que a formação
e manutenção do Estado são as senhas para garantir a paz civil. Isso porque, a ausência
de Estado, a “anarquia”, significa falta de restrições aos desejos de poder e materiais dos
homens, o que conduziria a um estado de guerra permanente. Nas duas correntes
teóricas, a paz só adviria da superação da “desordem”, da constituição de um poder
político centralizado. Em um regime absolutista ou republicano, pelo viés hobbesiano
ou kantiano, a celebração do contrato social significa a criação da política e, com isso, a
negação da guerra. Além desse movimento de aproximação entre as escolas, o Primeiro
Capítulo apontou como os conceitos de política e guerra entre realistas e liberais
confluíam para a celebração do Estado e do regime dos direitos, em especial o direito à
vida e à propriedade privada. No entanto, para complementar a análise sobre as
afinidades entre as escolas adversárias, faltava mostrar mais detalhadamente como o
conceito de guerra era trabalhado nos fundamentos das escolas realista e liberal.
De um lado, investiu-se na importância da leitura de Clausewitz por Raymond
Aron na formulação do pensamento realista em Relações Internacionais. De outro lado,
atentou-se à centralidade do debate sobre a guerra justa e a criminalização da guerra no
campo liberal. Acompanhando a reflexão de Clausewitz, pôde-se notar como o
prussiano percebia a guerra como um recurso da política e que a ela deveria permanecer
submetida para a própria preservação do Estado. Por sua vez, Aron, ao incorporar a
noção de clausewitziana de guerra como continuação da política, introduziu-a nos
fundamentos da teoria realista das relações internacionais que procurou elaborar. Sua
preocupação foi a de sublinhar a importância do controle político do recurso militar em
uma época na qual a capacidade de destruição termo-nuclear tornava viável pensar na
realização da guerra absoluta que, em Clausewitz, era apenas uma abstração. A guerra,
164
sob controle do Estado — da política — era um recurso necessário, mas perigoso caso
fosse conduzida pelo ódio das massas ou enveredasse pela guerra termo-nuclear. Nessas
duas situações, ou em outras de descontrole, a guerra ameaçaria de morte não só a
política como a humanidade; e essa não deveria ser sua função. Ao contrário, a guerra
deveria servir de meio para a preservação e fortalecimento do Estado e da humanidade.
A reflexão liberal sobre a guerra é marcada, por sua vez, pelo pacifismo que
emergiu no século XIX entre grupos e associações voltados para a defesa da paz e que
encontrou, gradativamente, maior ressonância entre Estados também interessados em
estabelecer limites à prática da guerra moderna. Esse pacifismo defendeu, em linhas
gerais, a formulação de um sistema internacional para solução pacífica de controvérsias
que implicaria na proibição da guerra de agressão. As celebrações do Pacto da Liga das
Nações, do Pacto Briand-Kellogg e, finalmente, da Carta de São Francisco — com o
complemento da Carta do Tribunal Militar Internacional — trouxeram as demandas do
pacifismo liberal para o campo do direito internacional, explicitando as influências do
cosmopolitismo kantiano. Essa incorporação das noções liberais teve como resultado
uma atualização do conceito de guerra justa que passou a ser entendida como as guerras
autorizadas pela lógica da segurança coletiva. Ao mesmo tempo, essa nova concepção
instituiu a criminalização da guerra ofensiva. A noção de guerra justa impulsionada pelo
liberalismo vinculou-se aos princípios morais que, desde ao menos as formulações
medievais da reflexão sobre a justiça ou injustiça das guerras, definiram a legitimidade
ou não de uma ação militar. Esse juízo moral se atualizou pela leitura liberal, com a
incorporação do princípio kantiano da paz perpétua. Ao identificar essas relações,
procurou-se mostrar como que, para o internacionalismo liberal, a guerra também é um
acontecimento que nega a política e que por isso, quando acontece, lhe é exterior.
165
Tanto pelo viés realista — que define a guerra como um instrumento da política
— quanto pelo liberal — que, no limite, admite como válida apenas a guerra
transformada em ação “policial” reparadora do direito — a guerra é um fato exterior à
política. Entre os realistas ela pode acontecer no plano internacional, como recurso de
política exterior dos Estados. Para os liberais, ela deve ser negada como recurso e
admitida apenas como a guerra justa restauradora da paz internacional. Em ambos os
casos, no entanto, as argumentações diferentes convergem para uma percepção comum:
a guerra não existe se há política. Ela somente acontece no estado de natureza. Para os
realistas, esse estado de natureza define a natureza do próprio plano internacional; já
para os liberais, há a possibilidade de que a construção de uma malha de tratados e
compromissos marque a renúncia à guerra e celebre a cooperação entre os Estados
levando, como ápice do processo, a um estado de sociedade mundial no qual não
haveria mais guerras. E para ambas as escolas, a guerra civil é uma perigosa anomalia
porque nega o contrato, destrói o direito, questiona a centralização do poder político e
anuncia o retorno ao estado de natureza.
Assim, realistas e liberais, por meios diferentes, coincidem na avaliação de que a
guerra é um acontecimento exterior à política. Exterior e que pode servir à política,
como pensam Clausewitz e Aron. Exterior e que também pode servir à política quando
convertida em guerra justa no sistema de segurança coletiva, na visão kantiano-liberal.
O Estado — sua soberania e a preservação da independência — e os bens jurídicos que
ele protege — minimamente, os direitos à vida e à propriedade privada — são as
preocupações centrais tanto pelo prisma realista, quanto pelo liberal. Ainda que por
premissas distintas, liberais e realistas desenvolvem uma noção de guerra que conduz à
defesa e preservação do Estado. E que, nesse caminho, percebe a política como espaço
de paz, no qual se pode pensar um exercício legítimo da coerção física que não se
166
confundiria com a guerra. Ela, a guerra, apenas existiria apenas onde não há poder
político centralizado, onde não há direito, onde não há violência chancelada pelo
contrato. Para realistas e liberais, tudo que não seja Estado e obediência — à lei, ao
regime de propriedade e às hierarquias políticas e sociais — significa “anarquia” e
guerra.
167
Política como guerra
“É necessário saber que a guerra é comum e a justiça, discórdia, e que
todas as coisas vêm a ser segundo discórdia e necessidade.”
Heráclito
168
Terceiro Capítulo
Proudhon: a vida e a política como incessante combate
O combate sem fim
Na agitação política e social que convulsionou a Europa, em meados do século
XIX, na qual se batiam nacionalismos, conservadorismos monarquistas, reformismos
republicanos e sublevações socialistas, poucos eram os autores com maior repercussão
que Pierre-Joseph Proudhon. O pensador francês, nascido em Besançon, em 1809, foi
um autodidata de infância camponesa e modesta, que se transformaria no mais influente
autor do pensamento radical entre as décadas de 1840 e 1860. Segundo Nettlau,
“Proudhon, desde 1840, impressionou fortemente socialistas alemães [como, M. Hess,
Karl Marx e Max Stirner], (...) os russos Bakunin, Alexander Herzen, N. V. Scholoff e
outros” (1978: 50), incluindo italianos, espanhóis e mexicanos. Mesmo após sua morte,
na Paris de 1865, Proudhon e sua vasta obra seguiram como referências e ajudaram a
dar forma ao movimento revolucionário na Europa e nas Américas. A presença das
idéias proudhonianas, provocando adesões e críticas ferozes, foi tão marcante que, para
Colson, “é impossível compreender o que quer que seja dos movimentos
revolucionários ocorridos a partir da segunda metade do século XIX sem conhecer a
obra de Proudhon” (2006: 24).
O texto que iniciou essa jornada foi O que é a propriedade?, publicado por
Proudhon aos trinta e um anos de idade e que o apresentaria imediatamente na
“condição de pensador turbulento e demolidor” (Passetti e Resende, 1986: 09). O livro
169
provocou uma grande controvérsia e se celebrizou pela máxima a propriedade é um
roubo. Nele, Proudhon atualizou e começou a dar nova forma à palavra anarquia e ao
adjetivo anarquista, no sentido de uma afirmação de si diante do governo sobre si. Em
uma conhecida passagem de seu livro Idée générale de la révolution au XIXe siècle,
publicado em 1851, Proudhon situa o que, para ele, é ser governado:
“Ser governado significa ser vigiado, inspecionado, espiado,
dirigido, valorado, pesado, censurado, por pessoas que não têm o
título, nem a ciência, nem a virtude. Ser governado significa, por
cada operação, cada movimento, cada transação, ser anotado,
registrado, listado, tarifado, carimbado, apontado, coisificado,
patenteado, licenciado, autorizado, apostrofado, castigado,
impedido, reformado, alinhado, corrigido. Significa, sob o pretexto
da autoridade pública, e sob o pretexto do interesse geral, ser
amestrado, esquadrinhado, explorado, mistificado, roubado; ao
menor sinal de resistência, ou a primeira palavra de protesto, ser
preso, multado, mutilado, vilipendiado, humilhado, golpeado,
reduzido ao mínimo sopro de vida, desarmado, encarcerado,
fuzilado, metralhado, condenado, deportado, vendido, traído e
como se isso não fosse suficiente, desarmado, ridicularizado,
ultrajado, burlado. Isto é o governo, esta é a sua justiça, esta é a sua
moral” (Proudhon, 2003: 10).
Proudhon foi “o primeiro a utilizar o termo anarquismo no sentido de
consolidação da liberdade e da igualdade a partir da dissolução dos governos” (Passetti
e Resende, 1986: 13). Segundo Horowitz, a expressão anarquia foi positivada em
Proudhon, numa afronta à acepção a ela vinculada desde os autores contratualistas: “o
anarquismo positivo, a anarquia como afirmação, significa, a ‘internalização’ de normas
de conduta em grau tão elevado que elimina por completo a necessidade de coação
externa” (1990: 14). O autor destaca que o tema da “conduta” remete à questão do
autogoverno ou da autogestão, da resistência a todo governo exterior — heterogestão
— pela afirmação da liberdade que se conquista pelo governo de si e pela livre
associação entre indivíduos. Com isso, Proudhon conferiu ao termo anarquia
composto a partir do grego pelo prefixo de negação an acompanhado de arkhé, governo,
170
autoridade — a idéia de uma outra ordem que prescindisse de um governo central.
Portanto, tratava-se de uma perspectiva diametralmente oposta à do contratualismo, cuja
marca maior nesse sentido encontra-se em Hobbes, que utiliza o termo anarquia também
como ausência de governo, mas num sentido negativo, sendo ela a característica central
e deletéria do estado de natureza, e fazendo com que a palavra ganhasse “conotações
seculares que a tornaram sinônimo de desordem, caos, bagunça e desorganização”
(Cubero, 2004: 267). Proudhon propôs, segundo Colson, uma “anarquia positiva”
(2006: 27).
Desse modo, a postura anarquista inaugurada por Proudhon pressupunha a
formação de uma nova sociedade a partir de uma luta contra a “trindade absolutista”
formada pelo capital, governo e religião (Nettlau, 1978: 46) que não levaria ao caos,
mas à anarquia entendida como outro arranjo social, capaz de realizar a Justiça, pela
conquista da equidade econômica e pelo fim da sujeição a qualquer heterogestão. Essa
luta parte da afirmação de que “o governo do homem pelo homem, sob qualquer nome
que ele se dissimule, é opressão; a maior perfeição da sociedade se encontra na união da
ordem com a anarquia” (Proudhon, 1986: 67). Assim, a autogestão não implicaria em
uma luta de todos contra todos, mas, ao contrário, numa nova organização que seria a
única capaz de produzir uma verdadeira ordem econômica, política, social e moral.
Para a construção dessa anarquia como nova ordem, seria preciso enfrentar, e
superar, a base econômica que sustentava o regime de opressão: a propriedade quer
fosse privada, estatal ou comunal. Ao afirmar que a propriedade é um roubo, Proudhon
apresenta uma forma de pensar a produção como ato coletivo, já que ninguém produz
algo isoladamente ou se basta sozinho, fato que faz dela uma ação coletiva e que se
realiza e completa nas trocas. Desse modo, toda produção é social e a apropriação de
parte dela, por meio da propriedade sobre o trabalho e a terra, imposta por um indivíduo
171
ou por uma coletividade representada no Estado, é um ato de violência similar ao roubo.
Passetti e Resende apontam que, em Proudhon, “o capital não é, espontaneamente —
isto é, pela ordem natural das coisas —, produto acumulado. É produto apropriado
através de uma determinada relação de força. A noção de roubo, nesse sentido, quer
designar a relação real entre duas classes antagônicas, mais do que simples provocação
polêmica” (1986: 14, grifo dos autores). Aceitar esse princípio, no entanto, não seria tão
simples, em uma sociedade fundada no regime da propriedade privada, da apropriação
do trabalho pelo capitalista e da centralização do poder político na forma do Estado. Por
isso, para Proudhon, seria mais compreensível — na era burguesa em que vivia — que
as pessoas entendessem que a escravidão equivalesse ao assassinato — porque “suprime
do homem o pensamento, a vontade, a personalidade” (1986: 32) — de que a
propriedade ao roubo. No entanto, o regime da propriedade era um ataque simultâneo
contra a “Justiça, a eqüidade e a liberdade” (idem: 34) e, sobre ela construiu-se toda
uma história de agressões, dores e violências.
A idéia de que a iniqüidade entre os homens não era natural, mas o produto de
uma relação de força é fundamental para entender não apenas a crítica que Proudhon faz
à ordem econômica, política e moral de seu tempo, mas também para acompanhar as
propostas de transformação social que elaborou. Para Proudhon, “em vez de sociedades
baseadas na acumulação e na circulação de capital e no exercício de um poder
governamental central, era o trabalho, o verdadeiro trabalho realizado, por um homem,
que deveria estar na base de toda a organização social” (Joll, 1977: 73). Portanto, essa
transformação social seria possível por meio de uma mudança que visasse
simultaneamente o regime econômico centrado na propriedade privada e político,
lastreado no poder unitário e burocrático. Isso implicaria, como aponta Maitron, em
uma batalha articulada em torno de dois princípios: um “negativo, [de] luta contra a
172
autoridade sob sua tripla forma política, econômica e moral; [e outro] positivo, [de] luta
pela liberdade e pelo bem-estar” (1992: 34). Essa luta não seria propriamente uma
insurreição armada contra os poderes constituídos — marca da maior parte dos
discursos socialistas estatizantes e mesmo anarquistas —, mas pela gradual
transformação das relações econômicas, que se refletiria numa outra conformação das
relações políticas. O regime da propriedade seria substituído pelo sistema mutualista e
os governos baseados na centralidade do poder, pelo sistema federativo.
O fim da propriedade privada, e sua não substituição por um regime de
propriedade estatal — como propunham os marxistas — inauguraria uma maneira
inédita de lidar com a produção, na qual os trabalhadores assumiriam as funções de
planejamento e execução de tarefas em suas unidades produtivas (fábricas, oficinas,
campos de cultivo), assumindo coletivamente o trabalho e dividindo equitativamente
lucros e prejuízos. Essa autogestão das unidades de produção estaria conectada por um
conjunto de acordos de intercâmbio entre as empresas coletivizadas que, por meio de
um Banco do Povo — idéia que Proudhon chegou a lançar quando deputado da 2ª
República em 1848
22
— superaria gradativamente o uso do dinheiro pela
complementação direta entre demanda e produção. O mutualismo, princípio de
solidariedade e de complementaridade na produção, produziria uma “democracia
industrial”, vista como “a máxima realização [da] força coletiva, exatamente no sentido
de que ela envolve não apenas uma multidão de trabalhadores, mas uma comunidade
organizada em cada unidade de produção, segundo regras de divisão mutualista do
trabalho, que expressam o revigoramento das autonomias e a superação do isolamento”
22
Segundo Woodcock, “Proudhon também tentou organizar economicamente os trabalhadores no Banco
do Povo, que era um tipo de União de Crédito onde os produtos e serviços seriam trocados a preço de
custo. Ele esperava que isto fosse o início de uma rede de relações livres entre produtores, como
camponeses, artesãos e oficinas cooperativas, que substituiriam as relações comuns de mercado e
libertariam o trabalhador da dependência econômica. O Banco do Povo, que foi, provavelmente, a
primeira organização de massa anarquista, tinha 27 mil membros quando Proudhon foi preso, em 1849,
por suas críticas ao presidente recém-eleito, Luís Napoleão Bonaparte, que mais tarde tornou-se
imperador com o nome de Napoleão III” (1998: 37).
173
(Passetti e Resende, 1986: 26). Essa nova forma de produção e circulação visaria não o
rebaixamento das condições de vida a um nível camponês ou bucólico, mas seria
pensada como uma “forma de acesso coletivo à riqueza social, onde o luxo deve ser
pensado não como supérfluo ou como um privilégio, mas como o mais avançado
estágio do progresso social (...) [que] deve ser compartilhado por todos” (Passetti e
Resende, 1986: 22). Partilha que deve ser simultânea no plano do consumo e da
produção como um dos elementos para o exercício da liberdade: “há a necessidade de
socializar pelo alto, pois se os comandos mais avançados tecnologicamente de uma
sociedade como a nossa são acessíveis a uma minoria, o acesso a este conhecimento
pelas sociedades com base na liberdade é que evita uma ditadura dos cientistas”
(Passetti, 2003: 232).
Se, como aponta Maitron, o mutualismo econômico “liberta o produtor e o
consumidor”, o federalismo seria o correlato político a “libertar o cidadão” (1992: 38).
“No plano das instituições políticas”, indica Jourdain, “era o caso de passar das
representações centralizadas, hierarquizadas e subordinadas, à representações
autônomas, coordenadas e federadas entre si” (2006: 56). As federações de produtores
seriam, desse modo, acompanhadas de federações políticas que substituiriam a lógica da
centralização do poder no Estado. Pela importância do tema do federalismo no
pensamento proudhoniano sobre a guerra, será dedicada uma seção adiante para tratar
especificamente da questão e de suas implicações políticas. Importa por ora frisar que
tal transformação econômico-política seria, a um só tempo, profunda e sempre
inconclusa. Ao se afastar da idéia de superação violenta da ordem vigente, Proudhon
assumia o temor de que “a revolução acarretasse consigo o perigo de uma nova tirania”
(Joll, 1977: 78). No entanto, essa espécie de pacifismo não significava uma tendência ao
reformismo, ainda que essa acusação tenha sido recorrente contra Proudhon, por parte
174
de seus opositores e dos marxistas já dentro da Associação Internacional dos
Trabalhadores, a AIT, fundada no ano de sua morte. O que Proudhon defendeu, segundo
Passetti e Resende, foi “uma outra revolução, capaz de gerar um regime econômico e
industrial (...) no qual os vencedores não se tornem a classe dominante” (idem: 19).
Uma revolução sempre inconclusa, que não exclui a possibilidade de revolta contra o
governo e que não significa uma pacificação ou a ressurreição de uma era dourada com
a chegada ao fim da história, a um idílio permanente. As relações humanas, em seus
níveis pessoais, produtivos e econômicos implicariam, para Proudhon, numa tensão
permanente, num conflito constante e, essa é uma noção fundamental para compreender
sua visão da revolução e seus conceitos de política e guerra, focos dessa reflexão. Essa
tensão será tratada por Proudhon como uma forma de guerra. Segundo Jourdain, para o
anarquista francês “a guerra é o fundamento do estado social; compreendê-la é
compreender o homem em todas suas dimensões, religiosas, jurídicas, políticas e
econômicas” (2006: 33). O mesmo Jourdain (2006) aposta no conceito de guerra e,
como será visto adiante, de combate, como chaves-explicativas para a compreensão de
toda obra proudhoniana; e indica a importância da leitura do livro em que Proudhon se
dedicou a estudar aquilo que ele considerava o fato fundamental e a marca particular e
distintiva dos homens: a guerra.
O livro em questão é A guerra e paz (La guerre et la paix)
23
escrito e publicado
em 1861, durante seu período de exílio na Bélgica
24
. A obra recebeu uma acolhida
tempestuosa, sendo amplamente condenada pela maioria dos socialistas como uma
despropositada apologia à guerra. Segundo Jourdain, “seus apoiadores e simpatizantes
23
Em trecho de correspondência de 1861, coligido por Bernard Voyenne, Proudhon aponta um subtítulo
em seu livro que não consta nas edições posteriores: “La Guerre et la Paix, étude sur le droits de gens” [A
Guerra e a Paz, estudo sobre o direito das gentes] (Proudhon, 1987: 216).
24
Em 1858, Proudhon publica De la justice dans la révolution et dans la Église que é confiscado e lhe
rende uma condenação a três anos de prisão por “ultraje à religião e à moral” (Passetti e Resende, 1986:
12). Para evitar a prisão, exila-se na Bélgica para voltar a Paris, no final de 1861, após anistia dada por
Napoleão III.
175
se escandalizaram e seus inimigos se rejubilaram crendo que tamanha balbúrdia [em
torno do livro] anunciava o fim de sua carreira de escritor” (2006: 25). Nem todas as
críticas, no entanto, foram negativas. O exemplo mais conhecido é o do escritor
anarquista russo Leon Tolstoi que, de tão impressionado com o livro de Proudhon, deu
o mesmo título a um de seus mais importantes romances, publicado em 1869
25
. A
polêmica em torno de A guerra e a paz pode ser entendida, em parte, pela radicalidade
de suas idéias que, em certo sentido, anteciparam o elogio da força e da honra do
guerreiro em Nietzsche (também muito criticadas em seu tempo); em parte, pela
incompreensão dos leitores acerca do modo como Proudhon construiu a obra. Dividida
em cinco livros, os três primeiros dedicam-se a investigar as mais remotas origens da
guerra, não só para concluir que ela é um fato inerente ao homem e à sociabilidade
humana, mas também para afirmar que ela é um acontecimento fundamental e
necessário para a instauração do direito, para a organização social e para a determinação
da justiça. Nesse trecho da obra, Proudhon trata de apresentar seu conceito de direito da
força, energia elementar a partir da qual todo direito é construído e tem sobrevida,
sendo a guerra o meio pelo qual esse direito se manifesta e se impõe. Nesse caminho, o
autor dedica-se a criticar a incapacidade ou falta intencional de vontade dos juristas
26
do
direito internacional — em especial Hugo Grotius — e da lógica contratualista —
particularmente em Thomas Hobbes e Immanuel Kant —, em notar a importância
25
Tolstoi encontrou-se com Proudhon, pela primeira vez, em março de 1861, durante o exílio do francês
em Bruxelas. No entanto, segundo Jean Bancal (apud Proudhon, 1987: 226), o russo já era bastante
influenciado pelas idéias de Proudhon que eram, ademais, muito conhecidas e debatidas na Rússia de
então. Tolstoi, amigo de Alexander Herzen, teria lido textos do anarquista francês apresentados por ele.
Nesse encontro, Tostoi, admirado com o percurso de Proudhon em A guerra e a paz, teria pedido sua
autorização para dar o mesmo título ao romance que escrevia.
26
Proudhon denomina genericamente como juristas os autores do direito das gentes, em especial Hugo
Grotius e alguns de seus seguidores, como os alemães Samuel Pufendorf (1632-1694) e Jean-Chretien
Wolf (1679-1754), o suíço Emer (ou Emmerich) de Vattel (1714-1767) e o português Silvestre Pinheiro-
Ferreira (1769-1846). Nesse conjunto dos juristas, Proudhon dá mais atenção a Grotius, sem deixar de
apontar uma semelhança muito grande entre todos eles. Depois de uma passagem onde os cita
alternadamente, Proudhon afirma: “inútil continuar com as citações: os autores se copiam todos” (1998:
95).
176
seminal da força e sua primazia sobre os outros direitos. Esses três livros, que na edição
consultada estão reunidos no primeiro tomo, foram os causadores principais da
polêmica que excitou a sensibilidade de pacifistas, socialistas e humanitaristas.
No entanto, Proudhon indica no final do terceiro livro que seu elogio se
destinava a uma forma de guerra, ou melhor, à guerra em seu princípio de honradez,
franqueza e coragem e que essa guerra deixou de existir na História, sendo substituída
por uma guerra vil, atroz e mesquinha conduzida por Estados nacionais. Essa guerra
restante na História deveria ser superada, defende Proudhon, com a emergência de uma
nova ordem social, relacionada à transformação dos regimes produtivo e político, e que
marcaria o início de outra era. Uma era sem a guerra das atrocidades, mas que não seria
uma época de paz no sentido contratualista, mas de um estado muito particular que
Jourdain (2006) chamou de “paz belicista”, e que, como será visto, está distante do
conceito de paz entre os juristas, porque se dá por um equilíbrio de forças ativas e
dinâmicas que não cessa. Portanto, no que diz respeito ao estilo de exposição, os “mal-
entendidos” sobre a obra se devem a esse estilo “ditirâmbico” e provocador que fez com
que Proudhon tenha-se feito passar, ao longo do texto, por “um apologista incondicional
da guerra, para finalmente recusar-se a justificar não importa que guerra e [chegando]
mesmo a colocar as condições para uma paz futura” (Le Bras-Chopard, 1994: 65).
27
No percurso proposto em esse estudo, interessa notar como a noção de força em
Proudhon possibilita uma percepção do que sejam a política e a guerra em termos
diferentes daqueles apresentados pela tradição contratualista encampada pelas duas
principais escolas das Relações Internacionais. Os princípios de força e guerra em
Proudhon afirmam uma outra perspectiva que entende as relações humanas e as entre
27
Proudhon já havia experimentado um modo similar de exposição no livro Sistema das contradições
econômicas ou filosofia da miséria Filosofia da miséria, de 1846. Nele, Proudhon apresenta argumentos
favoráveis, por exemplo, à introdução das máquinas nas indústrias ou ao papel da concorrência
econômica, para na seqüência refutá-los. Cf. Proudhon (2003a).
177
unidades políticas como uma tensão permanente sem possibilidade de pacificação
completa, ainda que a guerra praticada pelo Estado devesse ser criticada, combatida e
superada com o próprio fim do Estado. Assim, é importante acompanhar a crítica que
Proudhon endereçou tanto às leituras jurídico-internacionalistas da guerra (a Grotius e
ao direito das gentes e, também, ao cosmopolitismo kantiano) quanto à proposta
hobbesiana de pacificação permanente garantida pelo Estado. Assim, será possível
adensar a linha de problematização das escolas internacionalistas iniciada nos capítulos
anteriores. Essa compreensão do argumento proudhoniano, com as noções de direito de
força e guerra em destaque, apontará para o encaminhamento que o anarquista francês
sugere para a organização social futura: as federações agrícola-industriais mutualistas e
as federações políticas.
Interessa, nesse ponto, reparar como Proudhon valoriza uma noção positiva de
guerra, entendida como elemento articulador da sociedade organizada nessas
associações livres de tipo federativo. Então, será analisado como a última grande
reflexão de Proudhon publicada em vida, Do princípio federativo (1863), se relaciona
diretamente ao princípio de guerra desenvolvido anteriormente já que é nesse texto que
“diante da crítica radical ao Estado em suas obras anteriores, Proudhon se coloca diante
do horizonte mais amplo das relações entre povos” (Resende, 2002: 260-261). Essa
obra, na seqüência de A guerra e a paz, é produto de um momento de maturidade no
qual Proudhon, “mais consciente das relações políticas internacionais (...) prossegue na
crítica ao Estado centralizado” (Trindade, 2001: 09) propondo o sistema federativo.
Esse sistema dá uma dimensão internacional ao argumento político proudhoniano,
estabelecendo uma tensão direta com a proposta kantiana de paz perpétua que será,
também, explorada.
178
Ao expor esses aspectos de A guerra e a paz e seus vínculos com Do princípio
federativo, procura-se sublinhar itens que possibilitem começar a pensar uma outra
perspectiva de análise das relações internacionais distinta das teorias internacionalistas
— realista ou liberal — a partir, exatamente, da questão central sobre a qual se
estruturam e que é objeto primeiro dessa ciência social: o tema da guerra e da paz. Uma
perspectiva que abre espaço para notar a política não como campo de paz civil e a
guerra como energia forjadora e perpetuadora das relações políticas e econômicas, no
plano doméstico e internacional, e não um mero instrumento da política, ou
simplesmente o avesso da ordem social.
A guerra, condição do homem
Ao longo dos séculos, juristas, homens de Estado, religiosos, filantropos de
todos os gêneros têm considerado a guerra, afirma Proudhon, como “um fato de pura
bestialidade” (1998: 37). Suas violências, suas atrocidades e destruições seriam
expressões do grito animal nos escapa, daquilo que nossa moralidade não pode dar
conta de sublimar ou represar; uma manifestação da fúria, do ódio, da desrazão. Na
guerra, os homens, tais como “cães disputando uma fêmea ou um osso” (idem: idem),
abandonariam o que lhes distingue das feras, rastejando na mais baixa imundície que os
faz recordar de sua decrepitude moral e de sua faceta mundana. A guerra seria o traço
da barbárie que nos habita, mais forte e intensa nos homens antigos e que, em tese,
deveria ser ofuscada para sempre pelas luzes da razão ou, ao menos, controlada,
limitada, domesticada a serviço do Estado e com o menor dano possível aos corpos, à
propriedade e às sensibilidades dos homens civilizados. Comportamento de selvagens
ou de homens decaídos, a guerra seria, no mínimo, uma lamentável realidade que o
179
direito, a política e acordo entre Estados — o direito das gentes — deveria tratar de
minimizar.
Proudhon, no entanto, discorda dessa perspectiva. Para ele, ao contrário, “se a
natureza tivesse feito o homem como um animal exclusivamente industrioso e sociável,
em nada guerreiro, ele cairia no primeiro dia ao nível das bestas para as quais a
associação forma todo seu destino”. E continua, “vivendo em comunidade pura, nossa
civilização seria um estábulo” (1998: 41). De modo oposto à visão que Proudhon atribui
aos juristas e homens de Estado e religião, o caso do homem ser um animal social não
pressuporia relações de perfeita — ou exclusiva — cooperação. O que distinguiria os
homens dos animais seria, justamente, o fato de guerrearem entre si. A guerra, portanto,
é um fato humano: os animais caçam, demarcam territórios, disputam fêmeas, mas não
por isso guerreiam. E não o fazem porque não constroem símbolos guerreiros, não
relacionam o ato de guerrear aos mais altos princípios morais e de sociabilidade, não
fazem da guerra uma ação a um só tempo racional e divina; intencional e extraordinária.
A experiência do incrível e do espetacular na guerra, o gozo e o medo provocados por
sua face grandiosa e terrível e a realização de suas intenções que mesclam interesses
materiais — como riquezas, territórios, escravos — e interesses subjetivos — como
honra e glória — só podem ser vivenciados pelos homens. Segundo Proudhon, se a
guerra “não fosse um conflito de forças, de paixões, de interesses, ela não se distinguiria
dos combates a que se entregam as bestas, ela se restringiria à categoria das
manifestações animais” (1998: 39). Seria apenas uma eclosão animal que
provavelmente desapareceria com “o passar dos séculos (...) pela ação combinada de
razão e consciência” (idem: idem). Mas se ela permanece é porque evidencia algo de
imanente ao homem. Assim, Proudhon sarcasticamente adverte: “filantropo, vós falais
em abolir a guerra; prestai atenção para não degradar o gênero humano...” (1998: 41).
180
O pensador francês afirma que, antes de ser uma ação militar, a guerra é “a
manifestação de um ato de nossa vida interior” (idem: 37), ou seja, uma expressão da
psicologia dos homens e de suas necessidades subjetivas. “A guerra”, continua
Proudhon, “como o tempo e o espaço, como o belo, o justo e o útil, é uma forma de
nossa razão, uma lei de nossa alma, uma condição de nossa existência” (idem: idem).
Portanto, em seu nível mais fundamental, a guerra é “um elemento moral que a faz [ser]
a manifestação mais esplêndida e ao mesmo tempo a mais horrível de nossa espécie”
(idem: 39). A experiência intensa da guerra, entre o sublime e o terrível, tem a mesma
natureza, para Proudhon, da experiência religiosa; e ambas nascem concomitantemente,
moldando as sociedades humanas desde o início. Os deuses antigos foram à guerra e
presidiram a guerra dos mortais, podendo inclusive fazer a guerra contra os homens. A
guerra, nas religiões antigas, era inesgotável e existia pela e para a glória, fúria e
interesses dos homens e dos deuses. O sangue, desse modo, teria sido sempre um
elemento-chave em todas as religiões, quer fossem elas religiões que buscassem
prisioneiros para o sacrifício ou que sublimassem a morte na guerra por meio de
sacrifícios animais ou pela eucaristia do Cristo-cordeiro auto-imolado (Proudhon, 1998:
42). Com isso, Proudhon afirma que as religiões são todas fundadas sobre a guerra,
independente da sua maior ou menor benevolência aparente: “a ação de graças”, diz o
autor, “é mesma coisa que o canto de guerra [porque] a graça, ou a segurança acordada
do alto, implica na miséria natural e social, na discórdia dos elementos, na divisão de
consciências: sempre a guerra.” (1998: 46). Entre as antigas “raças nobres”, sustenta
Proudhon, “guerra e religião se davam as mãos” (idem: 42).
Essa identidade entre guerra e religião implica, no raciocínio de Proudhon, numa
questão de grande importância: a relação entre a guerra e a formulação da verdade, o
estabelecimento da justo e a aplicação da justiça. Segundo Jourdain, para Proudhon, “a
181
primeira declaração de guerra da humanidade permitiu [ao homem] provar o que era a
liberdade e adquirir senso moral, sabendo o que é o bem e o que é o mal” (2006: 28-29).
Na relação de força entre homens, grupos e povos, as verdades foram sendo forjadas
pela vitória na guerra. E a primeira verdade, a divina, foi estabelecida pela força: a
crença dos mais fortes se impôs. Assim, “Deus e a espada” caminham juntos, ao ponto
que “o direito divino não seja outra coisa que a figura do direito humano, ou melhor, ele
é seu introdutor, seu iniciador” (Proudhon, 1998: 47). Nas palavras de Proudhon, “o
direito divino, que nós imaginávamos ter abolido, olhando de mais perto, é o mesmo
que ainda nos governa” (idem: idem). É pela guerra que o mais forte afirma sua
vontade, seus valores, sua religião, sua justiça. E é por ela que esse mais forte, o
conquistador, exerce seu poder, impõe sua religião, aplica sua lei. A mescla entre
direito divino e direito humano se revela, para Proudhon, na reivindicação dupla que o
vencedor realiza, legitimando sua sorte, simultaneamente, pelo favorecimento dos
deuses e pela força das armas. Assim, segundo Proudhon, a guerra firma e enraíza a
religião, alimenta-se dela como força propulsora e legitima o estabelecimento do povo
vencedor como senhor, e de seu príncipe, como soberano. É pela conquista, em suma,
que o direito divino se realiza e que sua versão mundana, o direito humano, é forjada. É
por ela que o soberano se afirma como tal e por ela exerce seu direito que se converteu,
pela força, no direito de todos, vencedores e vencidos.
Assim, para Proudhon, o direito e o poder político por ele legitimado são
produzidos e mantidos pela guerra. Desse modo, para o pensador, “isso que chamamos
de direito político não é outra coisa, em seu princípio, que o direito das armas” (1998:
49); e “a conquista, ao mesmo tempo em que estabelece e expande o Estado, cria o
soberano” (idem: 48). A originalidade de Proudhon, nesse ponto, não está tanto em
identificar a origem violenta dos Estados, mas em apontar como que eles são fundados e
182
mantidos pela guerra e como ela é a produtora e aplicadora do direito. Se o vínculo
entre direito divino e direito das armas era mais explícito na época dos reis investidos
por Deus, o papel da guerra como instauradora e operadora do direito não seria menos
evidente nas democracias: “como serve de base para a realeza, a guerra serve de base
para a democracia” (idem: 49). Seria possível, nesses termos, identificar uma trindade
soberania/direito (lei civil)/guerra como características elementares da constituição do
Estado. No entanto, a relação guerra/direito não estabelece apenas o poder soberano.
Proudhon aponta como em sincronia ao estabelecimento do poder político, a conquista
também determinaria o estatuto da propriedade; ou seja, do mesmo modo que é o mais
forte que determina a lei, a crença verdadeira e a hierarquia; é o mais forte que se
apropria do comum — ou do alheio — e torna seu aquilo que não era. Haveria, assim,
uma afinidade entre a justiça (ou direito civil), o poder político e a ordem econômica
que faz com que Proudhon se pergunte: “a oposição do trabalho e do capital, da oferta e
da demanda, do credor e do devedor, dos privilégios dos autores, inventores (...) as
penas contra (...) os falsificadores e plagiadores, tudo isso não indicaria a guerra?”
(1998: 51). Ou seja, as relações de produção, consumo e propriedade não seriam
expressões da guerra? De uma violência instauradora, cotidianamente renovada?
Desse modo, o Estado, a justiça — ou o império da lei civil — e, também, a
ordem econômica — a relação entre proprietários e não-proprietários — seriam, para
Proudhon, construídos e mantidos pela guerra constante, transmutada em violência
estatal, que encontraria sua legitimação pelo exercício da força, indiferentemente do
regime político (monárquico, republicano ou democrático). É por estabelecer essa
relação que Proudhon afirma que “o estado social é desse modo, sempre, de fato e de
direito, um estado de guerra” (idem: 50). Em oposição franca à lógica contratualista e a
dos juristas, Proudhon afirma que o “estado social”, tratado por eles como “paz civil”
183
— ou fuga do “estado de guerra” — é, na verdade, o próprio “estado de guerra”. O
estado de organização dos homens orientado pelo princípio da centralização do poder
político e da defesa da propriedade é uma forma de ordem social produzida e
reproduzida pela guerra. Não haveria, portanto, saída de um estado de guerra primitivo,
superada pela paz imposta pelo alto. Isso que chamamos paz, sustenta Proudhon, é a
guerra sob outro aspecto: não é a luta aberta dos campos de batalha, com os exércitos
postados frente a frente, mas é uma outra manifestação da guerra. A paz civil não é
apenas criada pela violência, mas amparada cotidianamente por ela, numa tensão sem
fim necessária para que o Estado se mantenha uno, para que o soberano se mantenha
príncipe, para que o proprietário preserve suas posses. “A guerra e a paz, que
vulgarmente são representadas como dois estados de coisas que se excluem”, afirma
Proudhon, “são as condições alternantes da vida dos povos” (1998: 73). A “vida dos
povos” é uma alternância entre o que se poderia chamar de guerra aberta — os
enfrentamentos militares entre Estados — e a guerra silenciosa — a que se dá
ininterruptamente no “estado social”. Para Proudhon, guerra e paz “se chamam
mutuamente, se definem reciprocamente, se completam e se sustentam, como termos
inversos, mas adequados e inseparáveis, de uma antinomia. A paz demonstra e confirma
a guerra, a guerra por sua vez, é uma reivindicação da paz (...): o pacificador é um
conquistador, cujo reino se estabelece pelo triunfo” (idem: 73-74, grifos meus).
Ao identificar conquistador a pacificador, Proudhon explicita a noção de que o
vencedor que faz cessar a guerra — o fato militar — é o inaugurador da paz — “estado
social” ou a paz civil — não porque seja o melhor, o mais pio ou o mais justo a priori,
tampouco porque seja necessariamente amado por seu povo, mas, no nível mais
elementar, o conquistador se torna artífice da paz porque é o mais forte. E a paz que
instaura é em seu benefício, ainda que o discurso jurídico proclame o bem-estar geral.
184
Para Proudhon, “enquanto dure a paz, ela é exercida pelo manejo das armas, ela é feita
como uma pequena guerra [petite guerre]” (idem: 79, grifo do autor). E quando vem a
guerra exterior ela não é a negação da paz, mas um momento de fissura, de sismo que
leva a outra situação de paz como pequena guerra. Essa pequena guerra seria cotidiana,
exercida pelos instrumentos legais e pelas forças coercitivas do Estado, mantida pelos
que detém o poder político e econômico contra os que nada têm, e travada sob o manto
da legalidade e em nome da paz civil: a guerra dos vencedores sobre os vencidos na
qual os conquistadores sustentariam a batalha travestidos de legítimos magistrados. Tal
guerra não aconteceria com as pompas e os efeitos dramáticos dos grandes combates,
mas seria permanente e sem grandiloqüência, por isso “pequena”. Em Proudhon, “a paz
é então ainda a guerra, e a guerra é a paz: é pueril imaginar que elas se excluam” (idem:
77). E o Estado faz a guerra sempre em nome da paz, sob a justificativa de preservar-se
e de proteger seus súditos e suas propriedades. Essa guerra em nome da paz é, de fato,
uma guerra em nome de sua paz; e, assim, “o Estado continua a fazer a guerra em vista
de estabelecer uma paz civil isenta de todo conflito” (Jourdain, 2006: 45). As guerras
grandes, realizadas pelos Estados contra outros Estados, visam fundar a paz e são
justificadas como momentos de sangue que se destinam à superação da violência.
Proudhon relembra algumas das, segundo ele, incontáveis e sucessivas tentativas de
colocar um fim às guerras: quando o cristianismo torna-se religião oficial em Roma,
quando o papa e Carlos Magno selam seu pacto, quando a Reforma protestante pretende
moralizar o mundo, quando a Revolução Francesa busca afirmar suas luzes (Proudhon,
1998: 75). Todas tentativas foram “[promessas] de paz que anunciaram o fim das lutas e
das catástrofes” (idem: 83) e que redundaram em períodos de paz — de pequenas
guerras — mais cedo ou mais tarde, abalados por grandes guerras. O desejo de paz em
meio à guerra — “a paz é o sonho da guerra” (idem: 78) — é visto por Proudhon como
185
uma constante: “a idéia de uma paz universal, perpétua, é tão antiga na consciência das
nações, tão categórica como a de guerra” (idem: 73). Em suma, para Proudhon, “o
Estado, organizado para a paz, se funda na carnificina” (idem: 41).
Desse modo, guerra e paz formam um duplo, pólos em tensão constante, que se
interpenetram e que moldam a vida humana e a forma das sociedades. O que é chamado
de “paz” é uma forma da “guerra”, e a “guerra” é a determinadora de novos estados
dessa “paz”. É pela guerra que se constrói a ordem social, que se legitima o poder do
soberano, que se conquista e garante a propriedade. Em adição, é pelo movimento
constante entre guerra e paz que novas ordens sociais são erguidas sobre os escombros
de outras anteriores, derrotadas e, por isso, submetidas. Ao identificar essa relação
indissociável, Proudhon pode afirmar que “a guerra e a paz, correlativas uma à outra,
afirmando igualmente sua realidade e sua necessidade, são duas funções capitais do
gênero humano” (idem: 77). Segundo o pensador francês, “a guerra é nossa história,
nossa vida, nossa alma inteira; é a legislação, a política, o Estado, a pátria, a hierarquia
social, o direito das gentes, a poesia, a teologia; em suma, a guerra é tudo” (idem: 81).
Motor da vida humana, a guerra, em sua alternância com a paz, “dão ritmo à vida do
homem como o dia e a noite, a vigília e o sono” (Jourdain, 2006: 48). Essa concepção
da guerra como energia formadora de tudo — inclusive da paz — remete à concepção
de mundo e guerra em Heráclito de Éfeso (544-474 a.C.), filósofo pré-socrático que
produziu um único livro dedicado a Ártemis, a deusa caçadora, do qual restaram
fragmentos. Neles é possível ver uma concepção de mundo baseada na “relação entre
elementos antitéticos” (Costa, 2002: 23) que têm na guerra sua relação primordial e
organizadora do mundo. As passagens acima de Proudhon fazem com que se possa
lembrar de fragmentos importantes de Heráclito como, por exemplo: “de todos a guerra
é pai, de todos é rei; uns indica deuses, outros homens; de uns faz escravos, de outros,
186
livres” (Heráclito, 2002: 200; fragmento XXI); ou “é necessário saber que a guerra é
comum e a justiça, discórdia, e que todas as coisas vêm a ser segundo discórdia e
necessidade” (idem: idem; fragmento XX); ou ainda, “Deus: dia-noite, inverno-verão,
guerra-paz, saciedade-fome, mas se altera como o fogo quando se confunde com a
fumaça, recebendo um nome conforme o gosto de cada um”(idem, fragmento XXIII).
A guerra é vista por Proudhon como uma força fundamental para a vida humana
que, mais do que o fato militar — o momento da batalha entre exércitos —, se
manifesta na fundação mesma dos Estados e na sua organização e preservação, bem
como, nas relações sociais, de produção e propriedade
28
que são construídas em sua
forja. Desse modo, a política, ou seja, a ordem institucional do Estado e as relações de
poder por ele engendradas são relações de guerra, relações de força que produzem o
direito e o executam, que estabelecem as hierarquias sociais e políticas e as defendem.
A política, para Proudhon, é essa pequena guerra, que nada mais é do que outro nome
para a paz. O “estado social” longe de ser um espaço de paz como ausência de violência
é um ambiente de exercício da força e continuação da guerra fundadora. Pela guerra os
valores humanos se firmam e afirmam, o direito se proclama, a ordem econômica se
constitui, as nações nascem e desaparecem. A guerra, afirma Proudhon, “é inerente à
humanidade e deve durar tanto quanto ela; ela faz parte de sua moral,
independentemente de seu modo de manifestação, das regras que regem o combate, da
28
O regime de propriedade para Proudhon, segundo Passetti e Resende, teria sido a segunda fase da
civilização, sucedendo a do regime da comunidade. No plano da comunidade, “bens, pessoas e vontades
estão dispostos para o trabalho por imposição da natureza. Tal nivelamento não realiza a igualdade, antes
garante a exploração do fraco pelo forte” (1986: 16). Esta forma de desigualdade, contudo, seria diferente
daquela imposta pela propriedade “que se define pela exploração do fraco pelo forte a partir de um
dispositivo de força” (idem: idem). Em ambos os regimes, o da comunidade e o da propriedade, a
igualdade não existe, mas apenas formas de exploração e iniqüidade. Por isso, o comunismo seria um
regime autoritário na medida em que submeteria o indivíduo ao coletivo: o forte sujeito ao conjunto dos
mais fracos. No regime de propriedade, a desigualdade seria mantida pela força: regime da apropriação e
do roubo que sujeita os mais fracos aos mais fortes. Se a propriedade fosse privada, significaria a
exploração da classe burguesa mais forte sobre a maioria trabalhadora; se a propriedade fosse
estatal, implicaria no domínio de uma elite dirigente sobre a maioria sujeitada, ainda que tal regime
como o socialismo comunista defendesse a necessidade dessa apropriação como fase transitória para
um novo regime comunal.
187
determinação dos direitos do vencedor e das obrigações do vencido” (1998: 65). Por
isso, em Proudhon, a guerra é tudo, está em tudo e tudo faz mover-se.
O direto da força: a guerra como julgamento supremo
Para Proudhon, no senso comum, na crença dos povos, não haveria qualquer
contradição entre guerra e direito, guerra e justiça. Os mitos mais antigos, a história dos
heróis, confirmariam a percepção geral de que “existe um direito da guerra, a guerra é
ela mesma um julgamento, [e] esse julgamento é aplicado em nome e em virtude da
força” (idem: 86). Segundo Proudhon, “todos os povos afirmam um direito da guerra,
ou seja, um direito resultante da superioridade da força, direito que a vitória declara e
sanciona e que [por isso] se torna legítimo em seu exercício, tão respeitável nos seus
resultados como talvez todo outro direito, como por exemplo, a liberdade e a
propriedade” (idem: idem). Em outras palavras, os povos admitiriam como válido o
direito do mais forte em governar, a legitimidade do rei conquistador, a justiça em
obedecer ao mais capaz, viril e poderoso. Nesse sentido, a guerra seria instauradora de
um direito legítimo porque sancionado pela força; de modo que houvesse propriamente
um direito da guerra entendido como um direito resultante da guerra e que não seria
outra coisa que um direito da força. A justiça, como ordem legal, seria fixada por esse
direito da força, na medida em que o legislador é o conquistador, aquele que tem a força
de tornar seus valores em leis universais. Por esse motivo, como aponta Jourdain,
“Proudhon relembra que os aristocratas, ou seja, os homens fortes, os melhores,
tomaram o poder de legislar e tornaram-se soberanos, o que mostra a identidade das
noções de direito e força” (2006: 38). Os mais fortes legislam; todo direito emana da
força. No entanto, Proudhon destaca que tal avaliação causa, nos juristas, a mais
188
profunda repugnância. Os “sábios jurisconsultos” (Proudhon, 1998: 87) não admitem
que o conjunto de normas que entendem como expressão da justiça possa ser visto
como originário de uma barbaridade, de uma selvageria. O que Proudhon afirma é que o
conjunto de normas que rege uma sociedade é mesmo a expressão da justiça; todavia,
essa justiça não é revelada pela clarividência do legislador ou por uma suposta
iluminação ou inspiração divinas. Ao contrário, a justiça é sim revelada, só que pela
força. Segundo Le Bras-Chopard, a guerra para Proudhon, mais do que “criadora ela é
reveladora [do direito e da justiça]: é a vitória que indica aquilo que o vencedor tem
direito, em virtude de sua força, de obter” (1994: 66). Pela vitória, o justo se manifesta.
Portanto, não há uma noção transcendental de justiça, mas apenas o de que é
considerado justo por aquele que vence. Haveria, assim, um direito da guerra (droit de
la guerre) definidor da justiça.
Para os juristas, sustenta Proudhon, é impossível aceitar essa noção de direito da
guerra já que para eles a proclamação do direito significa, justamente, a saída do estado
de barbárie, a negação da guerra, seu contrário. Não haveria, portanto, meio de conciliar
“guerra” e “direito” uma vez que ambos seriam excludentes: só existiria guerra onde
não houvesse direito. A guerra, para os juristas, é o estado dos homens antes da
celebração da paz civil ou “a suspensão violenta e injuriosa” (Proudhon, 1998: 88) do
direito fundado pelo pacto. Por esse motivo, entre juristas como Grotius e seus
seguidores, o termo “direito da guerra” não seria “outra coisa que um tipo de ficção
legal, sugerida pela infelicidade das épocas, a fim de colocar um termo à luta das
paixões e dos interesses, e de prevenir, pela moderação do vencedor e a resignação do
vencido, a destruição total destes, ou de ambos” (idem: idem). Pelo fato da guerra não
poder ser legisladora, expressões como “direito da guerra” ou “leis da guerra” (lois de la
guerre) seriam apenas conceitos falhos e aproximativos que, concretamente, estariam
189
resumidos a “certas reservas humanitárias que a prática comum dos povos introduziu no
jogo sangrento das batalhas (...) unicamente para colocar um freio às sevícias, reduzir a
carnificina, se pudermos dizer assim, ao estritamente necessário” (idem: 88-89). O
“direito da guerra” defendido por juristas como Grotius seria, assim, um conjunto de
medidas paliativas, sacadas do direito costumeiro, e que acatam a validade da guerra
entre Estados, preocupando-se apenas em limitar suas atrocidades.
A combinação entre não-aceitação da guerra como força legisladora e admissão
do fato da guerra entre os Estados, levou os juristas a preocuparem-se em definir quais
guerras seriam justas ou não. O critério elementar seria a definição de injúria traduzida
como agressão: a guerra justa seria a praticada pelo Estado anteriormente desonrado por
uma ação violenta de outro Estado. Por isso, “na opinião dos juristas (...) a justiça da
guerra é essencialmente unilateral” (Proudhon, 1998: 88), ou seja, se ela é justa para um
Estado é porque o outro cometeu uma injustiça. Essa discussão sobre a justiça ou não da
guerra parece a Proudhon como um grande equívoco, na medida em que ignora que a
guerra “é um fato dualista, que implica ao mesmo tempo em reivindicação e denegação
sem prejulgar mais tendenciosamente para um lado ou para outro” (1998a: 14). Colocar-
se na posição de quem julga uma guerra seria postar-se no lugar de intérprete de um
transcendente — da Justiça — que, segundo Proudhon, não existe anteriormente à
vitória de um dos lados. Dito de outra forma, ambos os antagonistas consideram sua
ação militar justa, tanto aquele que ataca quanto o que se defende. No esforço dos
juristas em buscar tal definição, Proudhon lembra que Grotius considera justa a guerra
que protege o indivíduo, o Estado e a propriedade. Nesse sentido, e ao aceitar a defesa
como argumento de justiça, Grotius teria trabalhado com a idéia de que a guerra é uma
forma inevitável pela qual os Estados buscam solução para seus litígios e que, do
mesmo modo que entre particulares “existem regras de direito e formalidades de justiça
190
para [conduzir] as contendas”, seria possível “determinar obrigações recíprocas entre os
Estados, e até certo ponto, formalidades a observar para o regramento de seus litígios”
(Proudhon, 1998a: 13). Esse seria o limite do “direito da guerra” para os juristas, uma
vez que para eles “não há direito das batalhas; a vitória não prova nada” (Proudhon,
1998: 95). Por isso, “considerar a guerra como uma forma de julgamento seria um
ultraje à justiça” (idem: idem). O “direito da guerra”, desse modo, seria um conjunto
negativo de regras pertencentes ao direito internacional e, nunca, um direito “positivo”,
instaurador do direito. Para Grotius, afirma Proudhon, “o direito da guerra é o respeito
da humanidade na guerra” e nada mais (idem: 105, grifo do autor).
Proudhon afirma que os juristas esforçaram-se por demarcar uma fronteira
estanque entre a ordem jurídica interna, definidora da paz civil, e a ausência de ordem
similar no plano internacional, reconhecendo no “direito da guerra” algo como um
paliativo humanitarista. No entanto, seria exatamente essa “incerteza do direito
internacional” que faria da guerra, da “decisão das armas” (1998: 95), a forma por
excelência para a realização da justiça na relação entre Estados. Segundo Proudhon, a
guerra “é uma espécie de ordália
29
ou, como se dizia na Idade Média, um julgamento de
Deus” (idem: idem). Na ausência de um soberano universal, que tivesse a força para
estabelecer a justiça e determinar culpados e inocentes, a guerra agiria como a juíza
suprema, como se “a justiça humana, reconhecendo sua impotência, suplicasse à Justiça
divina que fizesse conhecer pela batalha de que lado está ou estará o direito” (idem: 96).
29
Em nota, Proudhon explica que “ordália” era uma espécie de tortura que “provava” a culpa do réu caso
ele não fosse salvo pela intervenção divina. Na sua terceira conferência apresentada em 1973 no Rio de
Janeiro, cujo conjunto foi publicado sob o título de A verdade e as formas jurídicas, Michel Foucault faz
menção a esse tipo de prova que consistia “em submeter uma pessoa a uma espécie de jogo, de luta com
seu próprio corpo, para constatar se venceria ou fracassaria” (1999b: 60). Uma dessas situações “consistia
em amarrar a mão direita ao pé esquerdo de uma pessoa e atirá-la na água. Se ela não se afogasse, perdia
o processo, porque a própria água não a recebia bem e, se ela se afogasse, teria ganho o processo visto
que a água não a teria rejeitado” (idem: idem). Para Foucault, “todos esses afrontamentos do indivíduo ou
de seu corpo com elementos naturais são uma transposição simbólica, cuja semântica deveria ser
estudada, da própria luta dos indivíduos entre si. No fundo, trata-se sempre de uma batalha, trata-se
sempre de saber quem é o mais forte” (idem).
191
Do ponto de vista dos povos, do senso comum das “massas” como chama Proudhon, “a
vitória é produtora do direito, o resultado da guerra vem a fazer precisamente com que o
vencedor obtenha aquilo que demandava, não apenas porque, antes do combate, ele
tinha o direito, em razão de uma força presumida, mas porque a vitória provou que ele
era realmente digno” (idem: idem). Essa percepção, reconhece Proudhon, soa como uma
“blasfêmia” aos ouvidos dos juristas (idem: 97). No entanto, o que fazem os juristas ao
negar a força como produtora do direito? Para Proudhon, esse rechaço à noção de
direito da força termina por encobrir a origem sangrenta de toda ordem jurídica. Em
outras palavras, ocultaria o fato da conquista. A retórica e os arabescos da doutrina
jurídica não fariam mais que tentar esconder o começo vil, mesquinho, violento do
direito. A idéia de que a ordem jurídica na paz civil é sinônimo de ausência de guerra
serviria apenas para acobertar a base violenta de todo direito, da existência do Estado e
do regime da propriedade, num esforço por fazer “desaparecer os vestígios da antiga
discórdia, amortizar as causas e prevenir seu retorno” (Proudhon, 1998: 95). A guerra,
nesse sentido, ficaria restrita apenas ao plano internacional, na contenda entre Estados, e
deveria ser controlada e civilizada por um “direito da guerra” negativo. Nas relações
internacionais, desprovidas de uma ordem jurídica supranacional, o embate das forças
define, como também o faz constantemente dentro de cada Estado, qual é o mais forte e,
portanto, o mais justo, o mais correto, o enunciador do direito, o merecedor das
benesses da vitória. A guerra, desse modo, é a juíza suprema, definidora do reto, do
justo e verdadeiro, tanto no plano doméstico quanto no internacional.
Se a força é fonte de todo direito, a guerra é o instrumento pela qual ela se
realiza. Contudo, aceitar esse princípio significaria, para os juristas, “que todo poder é
tirania, toda propriedade é usurpação, e que a sociedade deveria ser totalmente
reconstruída” (idem: 102). Significaria admitir o fato da conquista e, por conseguinte,
192
que a paz civil não passa de uma fantasia lastreada na alegoria do contrato social. O
edifício jurídico-político do Estado e a ordem econômica da propriedade seriam
expostos, assim, à sua natureza de força, o que para os juristas implicaria em aceitar sua
vileza e violência. Para Proudhon, “o grande erro dos juristas foi acreditar que força se
opunha ao direito, que ela não era uma herança honrosa de uma época primitiva”
(Jourdain, 2006: 41). Antes de ser voltada para o caos e a barbárie, a força, para
Proudhon é uma energia que garante a coesão social. Ainda segundo Jourdain,
Proudhon sustenta que “reconhecer o direito da força é reconhecer a soberania de cada
ser coletivo (indivíduo, família, associação, cidade...) no seio da sociedade que é, sem
ela, ameaçada de dissolução permanente ou de absolutismo” (idem: idem). A força gera
a luta constante entre os “seres coletivos” o que produz coesão, operando como um
amálgama social. Trata-se de uma visão diametralmente oposta à dos juristas, pois vê no
exercício da luta, na pequena guerra, o elemento de coesão social e não de dissolução e
retorno a um hipotético caos primordial.
O exercício da força, antes de ser signo de fragmentação, é o fundamento para o
equilíbrio e a justiça: é pela luta que os indivíduos resistem à heterogestão, afirmando-
se em sua dignidade e singularidade. “O direito da força consiste precisamente”, aponta
Jourdain, “em lutar contra o abuso da força e em garantir o desenvolvimento das
faculdades [individuais]” (idem: 43). Se há um exercício da força que busca consolidar
a justiça, a soberania do Um (o monarca, a aristocracia ou a maioria) e a propriedade de
alguns em detrimento de muitos, essas ações encontram resistências, lutas e
contraposições. Por isso, existe efetivamente uma guerra constante, na medida em que
não há passividade total do lado dos “vencidos”. A guerra estabeleceu vencedores e
vencidos, mas é pela sua continuidade após o armistício, que são garantidos os direitos
conquistados pelas armas. E a pequena guerra gera uma tensão centrípeta, que
193
amalgama e mantém a sociedade. Essa manutenção, no entanto, não é plácida. Pelo
contrário, trata-se de um esforço de conservação de um lado — dos vencedores — que
se contrapõe a outro de revolução, pelo lado dos vencidos. E essa guerra existe sem uma
definição transcendental de que lado é mais justo: o mais forte impõe sua ordem e busca
defendê-la, ao passo que o vencido que não se sujeite ao jugo resistirá para afirmar sua
vontade, sua liberdade.
Nos marcos dessa reflexão, seria possível indicar que a crítica de Proudhon aos
juristas se conecta à problematização realizada da série liberal em Relações
Internacionais, por meio de suas procedências no direito das gentes e na discussão sobre
a guerra justa que emergiu novamente no século XX, sob a forma de pacifismo liberal.
Assim, se pode notar como os juristas, representados na figura de Grotius, construíram
um “direito da guerra” que não reconhece a existência de um direito da força na medida
em que seria impossível conciliar a noção de paz civil com a de estado social em guerra
permanente. Para aos juristas, o conceito de pequena guerra seria repugnante e falso, já
que seu reconhecimento minaria toda a lógica do contrato social e da identificação de
guerra a estado de natureza. A paz civil é entendida nessa série do liberalismo
internacionalista como a ausência total de guerra, garantida pelo monopólio da violência
e pelo respeito à lei, aceita como justa, pois produzida em nome do direito de todos
dentro de uma lógica republicana. Proudhon afirma o contrário: que a origem do direito
não é idílica, o que não a faz menos justa. No entanto, a noção de justiça advém de
outro lugar: ela se impõe pela força e dela se alimenta. Foi pela guerra que se
estabeleceram os reinos, confirmaram-se os soberanos, definiram-se os direitos de
propriedade. Ela emite uma justiça, que não é a dos juristas; ela proclama uma moral,
que também não é a expressa por Grotius e seus seguidores. Mas, para Proudhon, é
inútil negar a guerra e o direito da força do qual é operadora porque ela é “tão antiga
194
quanto o homem” (1998: 105) e “fez tudo o que somos” (idem: 106). Para
complementar a problematização da série do internacionalismo liberal, resta apresentar
o ataque que Proudhon realiza a Kant e à noção de paz perpétua, indicando sua
complementaridade à tese da incompatibilidade entre guerra e direito presente nos
juristas. Pela importância desse ponto, reserva-se uma seção especial mais adiante. Por
ora, sugere-se acompanhar o argumento de Proudhon no exame que faz da obra de
Hobbes que interessa particularmente a esse estudo, pois o autor inglês é uma das
principais influências do pensamento realista em Relações Internacionais.
Hobbes, filósofo da paz
Proudhon se reporta a Hobbes em diversas passagens de A guerra e paz, e dedica
um capítulo — o sexto, do livro segundo — exclusivamente ao que chama de “exame
crítico do sistema” hobbesiano. O pensador francês começa sua exposição
reconhecendo a originalidade e valor da obra de Hobbes, que teria sido “um dos
primeiros [a buscar] os princípios da ordem social na pura e reta razão, e fora de
qualquer fé ou revelação religiosa” (1998: 121, grifos do autor). O esforço de Hobbes
em localizar a origem do poder político e do direito num contrato entre os homens teve
o valor de negar os discursos aceitos em sua época da investidura divina dos soberanos,
trazendo para o plano das relações humanas a definição da política, da sociedade e do
direito. Essa postura intelectual, no entanto, não teria significado a superação da base
religiosa do argumento de Hobbes, pois, segundo Proudhon, “os mesmos que
conservaram as crenças religiosas, são os primeiros a reconhecer a necessidade de
separar religião da razão” (1998: 123). Desse modo, Hobbes seria como um “ateu
especulativo” (idem: idem), que por toda sua vida buscou “pelas forças da razão (...), os
195
princípios da moral e do direito” (idem: 122); fato que não retiraria a base religiosa de
sua reflexão sobre a natureza humana e a organização da sociedade. Prova dessa
permanência da lógica cristã seria a própria noção de estado de natureza como uma
espécie de interregno entre a expulsão do paraíso e a celebração do pacto: “no estado de
natureza (...) o homem (Adão pecador) é colocado sob a lei (...) do egoísmo [e],
consequentemente, por não obedecer a nada mais que seus apetites, não havendo lei que
não sua vontade, ele é naturalmente um inimigo do seu semelhante, uma besta feroz
homo homini lupus” (idem: 124).
Segundo Proudhon, Hobbes não reconheceria qualquer direito em roubar e
matar; ao contrário, essas ações seriam um “não-direito” (idem: 125) executados no
estado de natureza diante do imperativo da auto-conservação. Por isso, seria necessário
aos homens buscar um meio para preservar-se que não exigisse o uso da força. A força,
portanto, não era, em Hobbes, expressão do direito, não se constituía num direito e não
era geradora do direito. A ordem jurídico-política adviria justamente da negação da
guerra, que para Hobbes era “má conservadora do gênero humano” (idem: 127). O
raciocínio de Hobbes, conforme o sintetiza Proudhon, seria que “o estado primordial do
homem é o estado de guerra. Nesse estado, o homem tem o direito de tudo fazer contra
o homem para sua conservação. Mas, a humanidade não pode querer sua própria
destruição: por isso sua lei é sair de seu estado de natureza para chegar à paz” (idem:
128). A paz, contrário absoluto à guerra, seria a característica do estado de sociedade,
situação regida pelo direito e presidida pelo soberano. Por esse motivo, para Proudhon,
Hobbes “não é de modo algum um partidário da guerra e da violência; ao contrário, ele
deseja a paz, e procura o direito. Decidido a não pedir nada à teologia, mas a sacar tudo
do senso comum, da lógica rigorosa, do egoísmo, ele se coloca voluntariamente na
hipótese do mais desfavorecido” (Proudhon, 1998: 128). Em outras palavras, Hobbes,
196
na perspectiva de Proudhon, concebe o pacto como um modo de anular o juízo da força,
favorecendo o mais fraco diante da sujeição dos indivíduos mais fortes ao poder
descomunal do Leviatã. Procurou formular um meio para suspender para sempre a
guerra. Hobbes não “reconhece [a força] como uma forma do direito; é contra ela,
contra seu exercício bárbaro, anárquico, imoral, que ele dirige a instituição social,
formada pelo contrato” (idem: 131). E, conclui Proudhon: “fazer de Hobbes o teórico ou
o apologista do direto da força, do direito do mais forte, é simplesmente tomar o
contrário de seu pensamento, uma pura calúnia [a seu sistema]” (idem). Com seu elogio
ao poder absoluto do Leviatã, Hobbes não teria feito nada mais que celebrar a paz.
A busca da paz pelo Leviatã, todavia, revelaria uma involuntária aceitação, em
Hobbes, de que a força é o único meio para o exercício do direito: a consciência da
vantagem do estado social não seria suficiente para mantê-lo. Seria necessário haver um
poder coercivo que obrigasse a obediência à lei e à autoridade política: “a força era para
ele um meio de garantia, um agente ou órgão de certificação [da obediência]” (idem:
131-132). Então, nesse ponto, há um item interessante a se destacar: a admissão da força
como agente da ordem não significa, propriamente, que a força instaure essa ordem. E
assim parece ser a avaliação que Hobbes faz da importância da coerção, e que Proudhon
entende como o único valor positivo que o filósofo inglês nota no uso da força. Esse uso
não seria, portanto, uma guerra do Estado contra determinados indivíduos ou grupos
sociais — ou mesmo toda a sociedade —, mas o elemento fundamental para a
manutenção do estado social, que impedisse o retorno à barbárie. Pensando a partir da
reflexão contida nos capítulos anteriores, poder-se-ia ver como na série realista se
encontra a defesa aberta do monopólio da coerção entendida como uma domesticação
da guerra, um aprisionamento das forças brutais e primitivas sob as rédeas do Estado.
Essa sujeição da guerra, essa domesticação da força, seria fundamental para que o
197
Estado contivesse a desobediência e os ímpetos de secessão internos e preservasse a
independência política na relação com seus pares. A força — e sua expressão, a guerra
— estaria, como defendia Clausewitz, a serviço do Estado, sob o mando da política,
entendida como espaço de paz. A perspectiva proudhoniana é clara no que se refere a
Hobbes: atribuir ao inglês qualquer pecha de imoral ou de apologista da guerra é
desconsiderar totalmente a vontade de pacificação e o horror à guerra que expressou em
sua obra.
A “guerra capturada” contra a honra do guerreiro
Proudhon discordava da avaliação dos juristas de que o direito de guerra fosse
uma “ficção formando um artigo particular, excepcional, anormal, do direito das gentes”
(1998: 161). Ao contrário, Proudhon entende que o direito da guerra era um conjunto de
regras estabelecidas entre os povos, com base nos costumes, que visavam não apenas
ser o paliativo humanista indicado pelos juristas, mas determinar quais seriam as
situações que o direito da força agiria legitimamente nas relações internacionais. O
direito da guerra, assim, regularia a prática e os efeitos da guerra a partir da aceitação de
que ela seria a expressão do direito da força, a revelação da Justiça por meio da força.
Os parâmetros dessa regulação seriam os conceitos guerreiros de honra, coragem,
franqueza, hombridade (Proudhon, 1998: 226-227). A manifestação da Justiça pela
guerra seria mais clara e verdadeira se os Estados recorressem à guerra entendendo-a
como o tribunal supremo pelo qual a luta aberta revelaria o melhor, o mais forte, o mais
justo. “Sim”, diz Proudhon, “a guerra, como toda ação jurídica, é submissa a regras: ela
tem suas formalidades, fora das quais tudo que se produz entre os combatentes pode ser
alegado como nulo” (1998: 229). Essas regras não seriam as do “direito da guerra” dos
198
juristas, fato que possibilita pensar outra noção de jus in bello em Proudhon, baseada
nos valores guerreiros e no incontestável juízo proferido pela força. A guerra, para
Proudhon, não seria, portanto, um vale tudo: haveria uma “guerra legítima” quando ela
fosse “uma ação que reivindica” o direito da força como meio para solucionar um
“litígio internacional” (idem: 152), sendo travada com respeito aos códigos de honra
guerreira.
Nesses termos, tal forma de guerra poderia acontecer em quatro casos: a) fusão
de nações e povos; b) reconstituição de nacionalidades; c) incompatibilidade religiosa;
d) para delimitar os Estados e manter o equilíbrio internacional. Para tratar do primeiro
caso, Proudhon relembra que “todos os Estados modernos, ainda que sua população se
restrinja a um ou dois milhões de almas, são o produto, mais ou menos legítimo, da
guerra, do direito da força” (idem: idem). Assim, todos os Estados se formam pela fusão
de povos ou, como indica ao segundo item, pela secessão de nacionalidades que, antes
dominadas por outros povos puderam manter suas características identitárias e
alcançaram força suficiente para desmembrarem-se do antigo senhor. Uma outra forma
de secessão poderia resultar de um reclamo de autonomia pela impossibilidade de
conversão ou imposição da religião do vencedor ao vencido. Ao abordar esses dois
casos de fissão — por nacionalismo ou cisma religioso—, Proudhon destaca que só a
força não seria suficiente para manter as conquistas: elas apenas se completariam na
medida em que a força do vencedor pudesse haver criado uma fusão que apagasse da
memória dos vencidos a lembrança de liberdade. Do contrário, a conquista seria sempre
incompleta e instável, mantida ao custo de uma violência terrível (1998: 169). Por isso,
desdenha de Hobbes quando recorda que para o autor inglês cada povo teria seu direito
a ser um corpo autônomo, politicamente independente. Para Proudhon não se tratava de
um mero direito, mas uma conquista que poderia gerar o direito de ser independente. O
199
mais forte conquistaria o direito de ser livre. Do mesmo modo, não haveria uma religião
mais justa ou sagrada que outra; a mais sacra seria sempre a religião do vencedor.
O quarto tópico, o do equilíbrio internacional, merece uma atenção especial,
porque nos remete, por um outro prisma, a um dos temas centrais do realismo em
Relações Internacionais. Proudhon analisa de forma positiva o arranjo de poder
acordado no Congresso de Viena, em 1815, pelos Estados europeus da coalizão que
venceu Napoleão. Segundo Proudhon, a fórmula da distribuição dos territórios e dos
recursos naturais e humanos de modo eqüitativo entre os Estados recuperava uma idéia
antiga — referência à reflexão de Tucídides — atualizando-a como “o objeto mesmo do
direito das gentes europeu” (1998: 156). Seria um progresso do direito das gentes, pois
implicava no reconhecimento de que haveria um direito da força e que em caso de
balanço entre as potências, diminuíam as possibilidades de guerra, pela temeridade em
lançar-se a uma aventura de conquista. Desse modo, “a formação de aglomerados e
alianças [entre os Estados] asseguram cada vez mais o equilíbrio” (Proudhon, 1998a:
181). Como visto nos capítulos anteriores, o conceito de equilíbrio de poder foi
recuperado e utilizado pela escola realista justamente para definir a única possibilidade
da “anarquia internacional” encontrar momentos de trégua. No entanto, o elogio que
Proudhon faz ao equilíbrio de poder não deve ser entendido como uma aproximação sua
ao realismo, já que as perspectivas se diferem muito em questões-chave, como os
conceitos de política doméstica — a paz civil contratualista dos realistas contraposta à
pequena guerra de Proudhon —, de guerra — o instrumento da política no Realismo, e
a expressão do direito da força em Proudhon —, e de paz — a paz civil interna e o
armistício temporário externo entre os realistas e o antagonismo entre forças, em
Proudhon, que será detalhado a seguir. Desse modo, o elogio ao equilíbrio europeu do
século XIX pode ser entendido como uma provocação aos juristas, já que indicaria que
200
o momento tido como de maior estabilidade na história dos Estados modernos europeus
era produto, justamente, daquilo que eles não reconheciam: o direito da força como
instaurador de uma ordem, um equilíbrio, um direito.
A preocupação de Proudhon em pensar um conceito legítimo de guerra o levou a
não reconhecer a legitimidade daquelas que usassem subterfúgios e estratagemas tais
como “surpreender o inimigo dormindo, queimá-lo no seu campo, esmagá-lo durante a
fuga” (1998: 235). Toda guerra que não fosse o franco enfrentamento entre dois Estados
valendo a sobrevivência do vencedor, perderia validade, estando corrompida em sua
essência. Para Proudhon, “a justiça natural da força não deveria se transformar em
abuso como violações, roubos, carnificinas, pilhagens” (Le Bras-Chopard, 1994: 66). O
problema apontado por Proudhon era que “desde os tempos de Homero” (Proudhon,
1998: 235), vinha sendo assim a prática da guerra; com uma perda gradativa dos valores
de honra, que redundavam em vitórias vergonhosas. A história das nações demonstrava
um afastamento paulatino entre o conceito de guerra — valoroso e que glorificava o
guerreiro — e a condução dos combates pelos reis, governantes ou classes militares;
marcada por trapaças, estratagemas e um desejo de alcançar a vitória a todo custo.
Haveria, assim, uma degeneração da guerra: “sua meta [que] deveria ser assegurar, pela
lealdade e sinceridade do combate, a integridade do julgamento da força, se reduziu na
prática a um método de destruição exagerado, a uma coleção de receitas homicidas”
(Proudhon, 1998: 313). O não-reconhecimento da capacidade legisladora e julgadora do
direito da força, sustenta Proudhon, teria levado a guerra ao campo da bestialidade e da
perda de seu sentido positivo, criador: “a guerra em si, manifestação primordial e
suprema da justiça, sanção de todo direito, constantemente piorou, pelo obscurecimento
de sua idéia, pelo progresso de sua potência destrutiva, pela hipocrisia de seus pretextos,
e pela mesquinharia de seus resultados” (idem: 314). É possível, assim, notar em
201
Proudhon uma cisão entre um princípio da guerra e sua realidade histórica. Em seu
princípio, a guerra é instrumento da justiça e um elemento de luta tanto externa — entre
povos e dentro de uma sociedade — quanto interna — a organização subjetiva e o valor
moral de cada indivíduo — que dá sentido à vida e que é a própria força motora da vida
humana. Na prática, converteu-se em violência desmesurada, em atroz bestialidade.
Seguindo a indicação de Jourdain (2006), poder-se-ia falar em uma guerra imanente
o princípio que move a vida humana e as sociedades — sendo fustigada pela guerra
material — a movimentação dos exércitos, os planos estratégicos e sua efetivação
histórica. A guerra deixou historicamente de ser uma forma de juízo porque, capturada
pelo Estado, tornou-se veículo para a concretização de interesses particulares (de
governantes e proprietários), perdendo seu sentido propriamente “público” e coletivo.
Os Estados, conduzindo essa guerra material, teriam passado a visar apenas o
estabelecimento de situações de abuso e tirania, de assassinato e pilhagem, de
conquistas espúrias porque não visaram a produção de novos povos, mas a mera
sujeição e exploração dos vencidos. Essa guerra é uma negação do direito da força, na
medida em que despe o conceito de guerra de sua moralidade, de seu valor,
transformando-a em um recurso atroz para o estabelecimento de situações de paz civil,
ou seja, estados de pacificação que ocultam a origem violenta do direito, do poder
político e do regime de propriedade. A guerra material, ao negar o direito da força,
provocou uma degradação do princípio da guerra que Proudhon reprova como um
“abuso da força, uma imoralidade” (Jourdain, 2006: 46). Para Proudhon, houve uma
discrepância entre o princípio e a prática da guerra que precisaria ter seu motivo
investigado. Para tanto, o anarquista francês dedicou os dois últimos livros de A guerra
e a paz para investigar as causas desse afastamento entre o princípio honroso da guerra
e sua prática corrompida. O elemento explicativo da dissociação entre guerra imanente e
202
guerra material, Proudhon iria encontrar não apenas na “instrumentalização da guerra
pelo Estado” (Jourdain: idem), mas na existência de um desequilíbrio econômico de
base que seria o impulso primordial para a execução das “guerras capturadas” pelo
Estado. Assim, Proudhon “explica essa perversão [a degeneração do princípio da
guerra] pelo fato de que o Estado não faz a guerra [tão-somente] para defender sua
potência ou soberania, ou seja, pelas razões políticas que corresponderiam a sua
essência, mas para remediar a penúria, ou dito de outro modo, por causas econômicas”
(Le Bras-Chopard, 1994: 67). Haveria uma motivação fundamental de ordem
econômica a motivar essa prática desvirtuada da guerra e, a partir de sua identificação,
seria possível indicar o fim da guerra material e a permanência fortificada da guerra
imanente num mundo libertado do poder político unitário, da heterogestão e do regime
da propriedade.
O elogio à guerra que toma praticamente os três primeiros livros da obra — e
que rendeu a Proudhon a comentada pecha de apologista da violência e da brutalidade
— não se trata, portanto, de um elogio a qualquer tipo guerra. Ao contrário, Proudhon
termina o livro terceiro condenando explicitamente a guerra de barbárie conduzida pelos
Estados, reclamando a defesa do princípio da guerra, tema que retomaria adiante a fim
de dar forma a sua análise da guerra incessante, formadora da ordem social e que seria o
traço fundamental da sociedade em anarquia.
Penúria, a causa da guerra brutal
Para Proudhon, todos os homens têm uma mesma e incontornável urgência:
encontrar ou produzir o suficiente para a sobrevivência. “A necessidade de subsistir”,
afirma o autor, “nos leva à indústria e ao trabalho” (1998a: 17, grifos do autor). O
203
trabalho é o exercício que nos conforma física e intelectualmente: “o trabalho não é
somente necessário à conservação de nosso corpo, como é indispensável ao
desenvolvimento de nosso espírito” (idem: 18). Assim, na sua condição natural, o
homem busca a fortaleza de corpo e espírito na luta constante marcada pela relação
produção/consumo. Essa relação é tensa na medida em que o homem teria uma
capacidade de consumo ilimitada que se confrontaria com uma capacidade limitada de
produção. Desse modo, seria indispensável controlar os desejos de consumo,
restringindo-os ao necessário para atender as demandas básicas. Para que houvesse tal
equilíbrio, a condição econômica do homem deveria ser o que Proudhon chama de
“pobreza”: “a condição do homem sobre a terra é o trabalho e a pobreza; sua vocação, a
ciência e a justiça; a primeira de suas virtudes, a temperança” (idem: 22). Virtudes como
a temperança e comedimento garantiriam “a distribuição mais igualitária do saber, dos
serviços e dos produtos” que, segundo Proudhon, é a lei do equilíbrio, “a única lei da
economia política” (idem: 23).
Essa vida frugal, mas devidamente abastecida e confortável, é a “pobreza” para
Proudhon. No entanto, se a razão recomenda uma frugalidade que toca o ascetismo, os
homens são acometidos pelo que o pensador qualifica como “ilusão da riqueza” (1998a:
29). Essa ilusão consistiria na crença de que é possível ir mais além da satisfação
mínima das necessidades por meio da acumulação de recursos e, com isso, conquistar
uma posição de abundância e fartura: a riqueza. Segundo Proudhon, tratar-se-ia de uma
“ilusão” já que quanto mais um homem acumula, menos o outro tem condições de
acumular numa realidade material de recursos finitos e limitações à capacidade de
produção. Por esse motivo, o único meio de satisfazer minimamente tais parâmetros
ilusórios seria por meio de uma violência constante, já que para acumular seria preciso
usurpar, roubar, possuir pela força o que outro reclama também como seu. Nesse ponto,
204
Proudhon estabelece um vínculo com sua tese a respeito do regime de propriedade,
anunciado ainda em 1840, e comentado no início desse capítulo. A busca pela riqueza
individual geraria, portanto, uma grande iniqüidade na repartição dos produtos da
riqueza social. Essa iniqüidade, mantida pela força, levaria a uma decepção dupla: do
lado de quem possui, o desejo de acumular mais é infindável (o que o faria ampliar suas
propriedades); entre os que não possuem, tanto o ressentimento quanto a mais premente
urgência material conduziriam ao crime
30
. Diferente da pobreza, situação de equilíbrio
na frugalidade, a ilusão da riqueza faria despontar o pauperismo, que “consiste na falha
do equilíbrio entre o produto do homem e sua renda, entre sua despesa e sua
necessidade, entre o sonho de sua ambição e a potência de suas capacidades, e assim,
entre as condições dos cidadãos” (1998a: 35). A pobreza, assim, é uma condição natural
e o pauperismo uma “pobreza anormal” (idem: idem) que leva à insatisfação geral e à
violência entre proprietários e não-proprietários
31
.
A cobiça, que leva à busca interminável por uma riqueza impossível, se
transferiria, também, à lógica dos Estados em suas relações internacionais. É o
pauperismo que acomete os soberanos e as classes ricas representadas pelo poder
político que levaria à guerra de conquista; e o Estado, instrumento político-jurídico e
militar nas mãos dos mais fortes, serviria de meio para a acumulação por meio da
conquista que, nesses termos, não passaria, se poderia dizer, de um roubo hiper-
dimensionado. Nesse sentido, as guerras historicamente teriam como motivação uma
causa econômica — o pauperismo —, ainda que revestidas das mais nobres e
sofisticadas justificativas. Proudhon afirma que “as considerações do direito
30
“A marcha do pauperismo”, afirma Proudhon, “[é] endêmica na humanidade e comum a todas as
categorias sociais” (1998a: 39).
31
Proudhon afirma que é “a fome lenta [gerada pelo pauperismo] que alimenta a raiva surda das classes
trabalhadoras contra as classes abastadas, que em tempos de revolução se revela pelos traços de
ferocidade que longamente atemorizam as classes pacíficas, que suscita a tirania, e que em tempos
comuns sustentam sem cessar o poder sobre o que vive” (1998a: 38).
205
internacional sobre as quais se apóiam quase exclusivamente as declarações de guerra,
se conectam pelas relações mais íntimas a considerações de ordem econômica; de modo
que, se os motivos políticos podem ser vistos como a causa aparente da guerra, as
necessidades econômicas são a causa secreta e primeira [da guerra]” (1998a: 47). As
razões políticas ou religiosas seriam importantes, mas secundárias; e as guerras não
existiriam se, além da defesa do próprio território (como propriedade da soberania) e da
propriedade dos seus particulares, não houvesse o desejo avaro de conquistar a
propriedade do estrangeiro. Haveria, portanto, uma cobiça gerada pela “auto-estima
exagerada” e por um excessivo “amor próprio” (1998a: 34) que fariam com que o
homem julgasse sempre necessário e justo adquirir mais e conservar mais. Essa guerra é
a guerra material, aquela que usa todos os recursos escusos porque ambiciona a
propriedade alheia e não o juízo da força medido na batalha. Sendo a meta material e
não moral, todo tipo de atitude sorrateira se justificaria, tendo em mente o fim desejado.
Tal guerra se afastou do princípio de honradez do direito da força e degenerou nas
guerras historicamente identificáveis, com suas barbáries e vilanias.
A guerra motivada pelo pauperismo seria a causa de todas as violências bestiais,
nos planos inter-pessoal (os crimes), inter-grupal ou inter-classes (as revoluções e
guerras civis) e internacionais (a guerra). E tal guerra seria interminável enquanto as
condições para sua existência continuassem a existir. Em outras palavras, a manutenção
do regime de propriedade e da centralização do poder político dariam prosseguimento à
“guerra depravada” (1998a: 30) e a negação do direito da força. No entanto, Proudhon
via a possibilidade de que tal guerra fosse superada, e uma forma inédita de paz viesse a
substituí-la. Nesse momento de sua reflexão, Proudhon foi além da suposta “apologia” à
guerra, para afirmar que a guerra material era perniciosa e demandava um esforço para a
construção da paz. Todavia, essa noção paz é muito particular e necessita ser estudada
206
com atenção. Jourdain chama essa paz em Proudhon de “paz belicista” (2006: 27): é
uma paz entendida como suspensão da violência brutal visando a acumulação e não uma
pacificação no regime de propriedade — desdobrando-se em paz civil no plano interno e
paz perpétua no plano externo. Seria “belicista” porque estaria baseada na idéia do
enfrentamento permanente entre indivíduos; aquilo que Proudhon chamou de “lei do
antagonismo” (1998a: 163). Antagonismo é o princípio do choque interminável de
vontades, do enfrentamento cotidiano e irrefreável dos homens em suas relações
produtivas, políticas e afetivas. É no embate das forças individuais que os homens se
formariam física e moralmente, numa luta que não seria necessariamente violenta,
muito menos de extermínio ou sujeição, mas uma tensão criadora de subjetividade e
produtos materiais e simbólicos. “A visão de sociedades harmoniosas”, explica
Jourdain, “liberadas de todo conflito, [são para Proudhon] uma utopia, uma mentira”
(2006: 27). A supressão das lutas significaria “suprimir a liberdade do homem e
diminuí-lo em sua força, inteligência, e mesmo em sua espiritualidade; [seria] fazer dele
uma simples peça de um mecanismo totalitário no qual a afirmação da individualidade
seria impossível” (idem: idem).
Para Proudhon, “é impossível que duas criaturas, em que a ciência e a
consciência são progressivas, mas que não caminham no mesmo passo; que, sobre todas
as coisas, partem de um ponto de vista diferente; que têm interesses opostos, (...)
estejam sempre inteiramente de acordo” (1998: 64). Na diversidade de sensações,
posições e opiniões, “pelo antagonismo que ela engendra, que se cria (...) um mundo
novo, o mundo das transações sociais, mundo do direito e da liberdade, mundo político,
mundo moral. Mas, antes da transação há necessariamente a luta; antes do tratado de
paz, a guerra, e assim o é, a cada instante da existência” (Proudhon, 1998: 64). É a essa
guerra, a guerra imanente, moldadora de cada indivíduo, formadora da vida social, juíza
207
suprema na vida de indivíduos e Estados, que Proudhon enaltece. Uma guerra
infindável que não se confunde com a guerra interestatal motivada pelo pauperismo.
Um combate incessante que é o amálgama social e não o perigo de dissolução visto
pelos contratualistas em todo embate de vontades. Essa luta, princípio da vida humana,
esteve sufocada pelo desejo de pacificação perpetrado por meio do Estado que nada
mais é do que uma violência constante travestida de paz. Em suma, para Proudhon não
há paz de fato em se negando o direito da força e sua potência organizadora; não há paz
se é mantida a iniqüidade e o regime da propriedade; não há paz preservando-se a
heterogestão e o poder unitário no Estado. Ao identificar essas condicionantes,
Proudhon indicar crer na possibilidade de transformação desse quadro, com o advento
de uma outra forma de organização econômica e política que faça emergir a guerra
imanente e respeite o direito da força e, em contrapartida, faça minguar as violências do
regime da propriedade e do Estado e suas guerras de extermínio.
A federação e a política como luta
Proudhon encerra A guerra e a paz afirmando que a “a humanidade não quer
mais a guerra” (1998a: 189). A guerra decorrente do pauperismo, e esse desejo de
superação poderia ser percebido pelos avanços políticos e econômicos que o século em
que viveu lhe apresentava: o fim do absolutismo pela combinação entre as idéia da
Revolução Francesa e a espada de Napoleão; o arranjo de forças entre os Estados com o
Congresso de Viena que produzia uma paz precária, mas que indiretamente reconhecia
o direito da força; a velocidade com que as relações econômicas produziam redes de
comunicação e interesses interligados entre as regiões, respeitando cada vez menos as
fronteiras nacionais; a produção de uma classe trabalhadora com capacidade
208
revolucionária e potência para assumir a produção a partir da perspectiva da autogestão.
Para Proudhon, “os tratados de comércio, as uniões aduaneiras tendem a substituir as
incorporações [territoriais] e as alianças [militares]: (...) a política, hoje, é a economia
política: que pensarias que pode a guerra fazer nessa situação?” (1998a: 161-162). A
resposta seria: a guerra material nada pode fazer quando os interesses já não passam
mais pela conquista territorial e o dinamismo econômico faz com que as questões
políticas fiquem, claramente, a reboque das mudanças econômicas. A guerra que
emergiria seria o combate positivo entre os trabalhadores e as unidades produtivas, o
antagonismo sem termo das tensões que excitam a indústria humana e dão liga às
relações sociais.
Gradativamente haveria uma interconexão e complementaridade, cada vez
maiores entre os indivíduos e as unidades produtivas: “eu diria que no trabalho como na
guerra a matéria primeira do combate, seu principal custo, é sempre o sangue humano.
Em um sentido que nada tem de metafórico, nós vivemos de nossa própria substância e,
pelo intercâmbio de nossos produtos, da substância de nossos irmãos” (Proudhon, idem:
164). Essa tensão é sempre produtiva, já que “no trabalho, a produção segue a
destruição; as forças consumidas ressuscitam de sua dissolução, sempre mais vigorosas”
(idem). A paz, nesse sentido, — a “paz belicista” de que fala Jourdain — é “o fim do
massacre, o fim do consumo improdutivo dos homens e das riquezas” (Proudhon,
1998a: 167) e não o fim do antagonismo, da luta, do combate. Como indicado no início
desse capítulo, tal complementaridade entre unidades produtivas autogestionárias, o
mutualismo, ergueria desde o solo da vida produtiva uma nova forma de articulação
econômica e, por conseguinte, de vida social. Essa dimensão econômica seria
acompanhada pela também gradual dissolução do poder político unitário — do Estado
— por meio do sistema federativo. No final de A guerra e a paz, Proudhon indica que
209
tal sistema, inicialmente, “seria aplicável entre pequenos Estados, reunidos para sua
defesa mútua contra ataques dos maiores [mas sem] uma hierarquia universal que
resultasse em uma compressão universal, o que implicaria sempre no fim do
antagonismo, e por conseqüência à morte” (1998a: 177). No entanto, esse “equilíbrio
geral dos Estados” ainda estaria próximo da noção de equilíbrio europeu, sendo uma
“paz, todavia, negativa” (idem), mas que indicaria o esvaziamento do poder político
centrado no Estado, sinalizando a emergência uma federação sem Estados, sem governo
central, organizada a partir de associações políticas locais que acompanhariam as
associações econômicas impulsionadas pela lógica mutualista. Restrito ao mero elogio
do equilíbrio de poder, Proudhon não se afastaria muito do conceito realista de paz
negativa; do mesmo modo, ficando aferrado a essa noção de federação como defesa
mútua entre Estados, Proudhon não se distanciaria significativamente da noção de
segurança coletiva defendida pelo internacionalismo liberal e anunciada por Immanuel
Kant. O contraponto fundamental tanto à visão realista quanto à liberal viria a ser
detalhado em seu livro seguinte, Do princípio federativo. Editado dois anos depois de A
guerra e a paz, o livro veio como complemento e continuação do anterior e provoca o
analista a reportar-se a ele com freqüência, principalmente no que diz respeito à crítica
de Proudhon ao contratualismo e ao federalismo liberal, tanto o estadunidense
32
quanto
— e principalmente, nos limites dessa tese — o kantiano.
Ainda que, em 1861, Proudhon não tenha descrito o sistema federalista de modo
pormenorizado, é importante notar que ele sinalizou a solução para a guerra material na
32
Proudhon, em nota no capítulo VII de Do princípio federativo (“Emergência da idéia de federação”),
dedica-se a criticar o federalismo estadunidense a partir de uma análise de Guerra de Secessão, então em
curso. Segundo o pensador, os Estados sulistas teriam o direito de reclamar a separação da União porque
essa decisão seria fundamental para o exercício da liberdade em federar-se ou não. Todavia, Proudhon
não via como conciliar o princípio federativo, que visava manter a liberdade do indivíduo acima de tudo,
com a prática da escravidão: “a escravatura de uma parte da nação seria mesmo a negação do princípio
federativo” (2001: 94). Proudhon é mais otimista com relação ao federalismo suíço, principalmente a
partir da autonomia conferida aos cantões pela Constituição suíça de 1848, notando nessa experiência
uma aproximação mais clara dos princípios por ele defendidos.
210
superação gradual da ordem baseada no regime da propriedade e da centralização do
poder por uma outra, federativa e mutualista, alimentada pelo princípio da guerra
imanente, da guerra afirmativa e produtiva, da tensão insuperável entre os homens.
Tensão que significaria coesão e não dispersão e que indicaria que a vida social é uma
luta constante, expressa de modos distintos, tanto sob um regime — o da iniqüidade —
quanto sob outro, o da anarquia. Proudhon vê uma tendência na história humana ao
equacionamento da guerra na anarquia das federações agrícola-industriais: a superação
da guerra para o livre desenvolvimento da luta.
O ponto de partida da reflexão de Proudhon sobre o federalismo está na
retomada da lei do antagonismo incessante, o motor do combate sem trégua que move a
vida humana. Para o pensador francês, todos os regimes políticos existentes na história
foram moldados a partir do enfrentamento e da preponderância circunstancial de uma
das duas energias que determinam tais regimes: os princípios da autoridade e da
liberdade. Segundo Proudhon, “esses princípios formam, por assim dizer, um par cujos
termos, indissociavelmente ligados um ao outro, são contudo irredutíveis um ao outro e
permanecem, independentemente do que façamos, em luta perpétua” (2001: 46). Isso
porque, “a Autoridade supõe necessariamente uma Liberdade que a reconheça ou negue;
a liberdade por seu lado, no sentido político do termo, supõe igualmente uma autoridade
que lide com ela, a reprima ou a tolere” (idem). Nesse sentido, as formas políticas de
organização das sociedades foram sempre tributárias de um determinado arranjo de
forças, ora mais propenso à liberdade ora mais inclinado à autoridade. No entanto, esses
princípios não se anulariam jamais, de modo que “em toda a sociedade, mesmo a mais
autoritária, uma parte é necessariamente deixada à liberdade; igualmente em toda a
sociedade, mesmo a mais liberal, uma parte é reservada à autoridade” (Proudhon, 2001:
47). Essa tensão permanente, segundo Proudhon é infindável, não aceita um termo, uma
211
síntese. Existem duas séries, uma impulsionada pelo princípio da liberdade, outra pelo
da autoridade, que não podem se anular numa fórmula definitiva. Trata-se de “uma
posição antitética, diametral e contraditória [na qual] um terceiro termo é impossível”
(idem: 55); trata-se, portanto, de uma dialética, mas sem síntese, sem equação final. O
choque entre os princípios antagônicos autoridade e liberdade tem produzido, ao longo
da história, formas de governo que são, como apontam Passetti e Resende (1986),
reversíveis na série. De acordo com Passetti, “liberdade e autoridade não estão
dissociadas, não estabelecem regimes puros, e tampouco expressam mais do que a
preponderância de uma sobre a outra. Elas somente podem ser entendidas no limite das
séries, vistas como realizações ampliadoras ou redutoras” (2003: 237).
Assim, a série autoridade propicia formas de governo marcadas pela
indivisibilidade do poder, enquanto a série liberdade outros pela divisão dos poderes
(Passetti e Resende, 1986: 27). No primeiro grupo — da série dos regimes de autoridade
— estão a monarquia ou patriarcado — “governo de todos por um só” (Proudhon,
2001: 49) e a panarquia ou comunismo — “governo de todos por todos” (idem). Na
outra série, estão a democracia — “governo de todos por cada um” (idem) — e a
anarquia ou self-government — “governo de cada um por cada um” (idem). Como os
princípios não se anulam, não havendo formas de governo puras, autoridade e liberdade
“estão condenadas, dentro de seus estabelecimentos respectivos, a fazerem-se perpétuos
e mútuos empréstimos” (idem: 79). Teria havido sempre um equilíbrio precário entre os
princípios, determinando uma forma de governo híbrida também temporária. Por esse
motivo, pelo enfrentamento dos princípios impulsionado pelo combate permanente
entre os homens, seus interesses e composições de força, a vida política da humanidade
teria sido essa sucessão de lutas, conquistas e reveses políticos, num percurso “sem
repouso nem tréguas, pela rampa sem fim das revoluções” (idem: 80). Segundo
212
Proudhon, “as raças mais vigorosas e mais inteligentes cansaram-se nesta tarefa” (idem:
idem) de sublevar-se contra uma determinada forma de governo, para a implantação de
outra, na esperança sempre frustrada de uma solução definitiva.
Todavia, Proudhon percebe uma tendência histórica que aponta à
preponderância do regime de liberdade. No “jogo dos princípios, a autoridade [deve]
estar em recuo e a liberdade a avançar sobre ela”, de modo que “a constituição da
sociedade é essencialmente progressiva, o que significa cada vez mais liberal, e que este
destino não pode se concretizar, senão por um sistema onde a hierarquia governamental,
em lugar de assentar sobre o topo, seja estabelecida francamente sobre a sua base, quer
dizer, no sistema federativo” (idem: 101-102). Como apontam Passetti e Resende, “a
solução [para o interminável curso das revoluções] está no contrato federativo, na
descentralização e no restabelecimento da autonomia das províncias e municípios”
(1986: 27). O contrato federativo estabeleceria uma outra forma de governo, a anarquia,
na qual a heterogestão daria lugar à autogestão local, garantindo a liberdade de cada
indivíduo. Esse pacto seria uma modalidade muito especial de contrato político,
diferente da idéia tradicional de obrigações e deveres na qual “o súdito é mais obrigado
relativamente ao príncipe do que este com relação ao súdito” (Proudhon, 2001: 88).
Algo similar aconteceria numa “democracia representativa e centralizadora, em uma
monarquia constitucional e censorial, ainda mais em uma república comunista, à
maneira de Platão” (idem: 89). Nelas, o contrato é “exorbitante, oneroso, pois que ele é,
para uma parte mais ou menos considerável, sem compensação; e aleatório, pois que a
vantagem prometida, de início insuficiente, nem sequer é assegurada” (idem: idem,
grifos do autor).
Para que um contrato político fosse digno e moral (Proudhon, 2001: 89),
respeitando efetivamente o princípio da democracia, ele precisaria, primeiro, garantir
213
que o cidadão tivesse “a receber do Estado [tanto quanto] o que lhe sacrifica; segundo,
[fazer com que ele conservasse] toda a sua liberdade, soberania e iniciativa, menos no
que é relativo ao objeto especial para o qual o contrato foi feito e para o qual se pede a
garantia do Estado” (idem: 89-90). Para tanto, esse contrato deveria ser sinalagmático e
comutativo. Como indica Proudhon (2001), sinalagmático é o contrato no qual as partes
obrigam-se mutuamente, sendo esse acordo também comutativo na medida em que o
que um se compromete a fazer com relação ao outro seja de valor equivalente. O
contrato nesses termos é chamado por Proudhon de federação: “uma convenção pela
qual um ou mais chefes de família, uma ou mais comunas, um ou mais grupos de
comunas ou Estado, obrigam-se recíproca e igualmente uns em relação aos outros para
um ou mais objetos particulares, cuja carga incumbe especial e exclusivamente aos
delegados da federação” (idem: 90).
Esse contrato não seria uma alegoria para justificar a formação do Estado a partir
de uma suposta decisão ancestral dos indivíduos. “No sistema federativo”, afirma
Proudhon, “o contrato social é mais do que uma ficção: é um pacto positivo, efetivo,
que foi proposto realmente, discutido, votado, adotado e que se modifica regularmente à
vontade dos contratantes. Entre o contrato federativo e o de Rousseau (...) existe toda a
distância entre a realidade e a hipótese” (idem: 93). Não haveria a alienação do
indivíduo à coletividade, uma cessão de direitos que submetesse o homem ao poder de
um governo pretensamente universal, representativo de todas as vontades. Ao contrário,
o contrato federativo deve ser de tal modo que ao ser celebrado reserve a cada um mais
liberdades e direitos do que abandonam. Assim, o contrato teria o objetivo de “garantir
aos Estados confederados a sua soberania, o seu território, a liberdade dos seus
cidadãos; regular os seus diferendos; prover, através de medidas gerais, a tudo o que
interesse à segurança e à prosperidade comum” (Proudhon, 2001: 90-91). De caráter
214
restrito, o contrato federativo produziria uma autoridade ou governo federal responsável
apenas para lidar com os temas estabelecidos no acordo. Não se trataria, portanto, de um
Estado unificado, com poder político central, mas uma agência com funções técnicas
precisas, composta por delegados eleitos pelos Estados, comunas ou municípios
participantes. A federação proudhoniana “não centraliza, pois não é um ponto de partida
da unidade, da articulação das províncias, das comunas, mas um ponto de chegada; [sua
vida] está na diversidade e na autonomia das unidades federadas” (Passetti e Resende,
1986: 26). Por esse motivo, a “autoridade federal (...) carece de poder político, pelo
menos no sentido clássico, embora seja chamada ao exercício de determinadas funções
no lugar em que se articulam os múltiplos interesses coletivos” (idem: idem). Na lógica
de importância dos poderes e autonomias, a autoridade federal é a mais restrita e fraca,
nunca devendo sobrepor-se às competências das unidades que a compõem, essas, por
sua vez, tampouco podem ir além das atribuições determinadas indivíduos que a
celebraram. A autonomia dos indivíduos, base do princípio federativo, permitiria com
que homens, associações, comunas e Estados federados se desligassem e se federassem
com liberdade, seguindo seus interesses e a conveniência dos outros parceiros
envolvidos. O direito de secessão, desse modo, seria inerente ao princípio da federação,
o que indicaria uma lógica oposta à do Estado que não pode aceitar reclamos
particulares ou demandas de soberania que ameacem sua unidade e soberania autoritária
(Proudhon, 2001: 95).
O objetivo primordial da federação é produzir uma organização política que,
acompanhando as associações econômicas de cunho mutualista, possa lidar com temas
comuns e necessários à vida econômica e social, como o estabelecimento de pesos e
medidas, emissão de moeda, instauração de alguns serviços públicos, supervisão ou
inspeção de outros. Essa autoridade federal jamais poderia intervir na condução das
215
indústrias, na vida autogestionária das empresas e na liberdade de autogoverno dos
indivíduos. Efetivamente, não seria um “Estado”, mas um órgão contrário a toda
centralização de poder ou “fusão do particular no universal” (Passetti e Resende, 1986:
27). Por isso, Estados unitários poderiam dedicar-se a fazer “tratados de aliança ou de
comércio [mas nunca] se federalizarem (...) porque o seu princípio a isso é contrário, e
os poria em oposição com o pacto federal” (Proudhon, 2001: 92). Nesse ponto,
Proudhon retoma o tema do equilíbrio de poder europeu, estabelecido pelos vencedores
da Santa Aliança contra Napoleão, afirmando que eram “aliados” e não “confederados”,
pois “o absolutismo do seu poder proibia-os de tomar esse título” (idem: idem). Assim,
retornando à questão apenas esboçada em A guerra e a paz, Proudhon retira qualquer
dúvida a respeito de sua posição quanto ao equilíbrio europeu; complementando sua
leitura de que tal arranjo de forças seria um avanço no campo do direito das gentes já
que reconhecia o direito da força, mas que essa configuração de poderes estava distante
de ser aquela da sociedade igualitária por ele pensada, pois preservava a unicidade do
poder político, lastreado pelo princípio da propriedade privada. Portanto, fica mais claro
que a apreciação de Proudhon com respeito ao equilíbrio de poder não deve ser
confundida com a mesma entre os realistas em Relações Internacionais.
Como indicam Passetti e Resende, “o processo de federalização só [teria]
sentido se [assumisse] proporções abrangentes a nível internacional” (1986: 28). Assim,
a dissolução da hierarquia e unitarismo políticos seria completa na medida em que as
federações se espalhassem pela Terra, indicando que a proposta de Proudhon tinha,
também, um caráter global. Caráter que não deveria ser confundido com uma prescrição
para uma única federação universal. Para Proudhon não seria viável uma confederação
ou federação
33
de grandes proporções porque, como elas seriam formadas em torno de
33
Em Do princípio federativo, Proudhon utiliza as expressões “federação” e “federações” como
sinônimos de “confederação” e “confederações”. Por vezes, há a sugestão de que uma confederação
216
objetivos comuns, seus temas compartilhados estariam concentrados em regiões
geográficas mais ou menos delimitadas e não muito extensas. A própria idéia de uma
confederação européia já seria excessiva, mesmo que os grandes Estados unitários do
continente cedessem passo às unidades políticas locais. “A Europa”, sustenta Proudhon,
“seria ainda demasiado grande para uma confederação única: ela não poderia formar
senão uma confederação de confederações” (2001: 110). As federações seriam,
portanto, unidades político-produtivas basicamente locais, com conexões mais amplas
na medida em que seus interesses tocassem áreas mais distantes do seu entorno. O
princípio federalista, com sua vocação local, seria ao mesmo tempo adaptável a cada
uma das coletividades humanas devido à suas possibilidades de responder às urgências
dos indivíduos diretamente envolvidos nos problemas da produção, consumo e
circulação de bens.
Ao mesmo tempo, seria possível, para Proudhon, pensar em confederações de
confederações que recobrissem o planeta, mas sem um desenho definitivo, já que às
autonomias e necessidades se encarregariam de perpetuamente reconfigurar o mapa
político mundial. Um mapa sem Estados unitários, “anexionistas” por natureza (2001:
109), mas com um sem-número de federações e confederações de confederações
destinadas a potencializar as trocas comerciais e a garantir mutuamente a independência
e autonomia locai. Nesse sentido, o “Estado” federado que rompesse o contrato,
atacando outra unidade,
“não somente não poderá contar com o apoio da confederação, que
responderá que o pacto foi formado exclusivamente com o fim de
defesa mútua, não de expansão particular; ele ver-se-á impedido do
seu empreendimento pela solidariedade federal, que não quer que
todos se exponham à guerra pela ambição de um só. De modo que
uma confederação é ao mesmo tempo uma garantia para os seus
próprios membros e para os seus vizinhos não confederados”
(Proudhon, 2001: 110).
poderia ser o resultado da federalização de federações, mas não há um esclarecimento preciso disso no
texto.
217
As confederações, portanto, não seriam expansionistas, garantindo que o
princípio federativo fosse “a exclusão da guerra” (Passetti e Resende, 1986: 27).
Exclusão da guerra material, aquela que em A paz e a guerra Proudhon havia
identificado como o modo atroz e vil dos Estados unitários entrarem em confronto. As
federações políticas, voltadas à defesa e aos temas que exigissem gerenciamento
comum, seriam complementares às federações agrícola-industriais, acordos
associativos entre unidades de produção autogestionárias destinados à “proteção
recíproca do comércio e da indústria, o que se chama união alfandegária; [à] construção
e manutenção de vias de comunicação, estradas, canais, ferrovias, para a organização do
crédito e dos seguros etc.” (idem: 129). Essas aproximações e acordos produziriam uma
forma de conexão entre as unidades produtivas que as liberaria “da exploração
capitalista e bancocrática” (idem). Assim, o princípio federativo, articulação entre o
plano econômico (mutualismo) e político (federação política), teria como fundamento
três elementos: o da “independência administrativa das localidades reunidas, [o da]
separação dos poderes dentro de cada Estado soberano, [e] a federação agrícola-
industrial” (idem: 131).
Nessa nova configuração, com os dois planos de federalizações interligados, o
pauperismo seria superado e, com ele, o que Proudhon identificara no livro de 1861
como a “causa secreta e primeira” da guerra material. Num mundo repleto de
associações e federações, com o regime da propriedade privada ou estatal ultrapassado,
não haveria, para Proudhon, mais as motivações para a guerra brutal e que vilipendiava
o princípio do direito da força. A chegada à anarquia — entendida como um
“federalismo integral” (Jourdain, 2006: 216) mutualista e descentralizado — colocaria
fim à guerra perpetrada pelos Estados unitários, cruel e atroz. No entanto, seria possível
pensar, a partir dessa superação da guerra material, numa paz definitiva em Proudhon?
218
O fim do pauperismo significaria algo similar à paz perpétua? Nesse caso, seria viável
comparar a federação proudhoniana à federação kantiana? O próprio Proudhon
preocupou-se em defender que sua proposta não poderia ser confundida com a de Kant.
Segundo Proudhon, “Kant sustenta que não deveria haver qualquer guerra, nem entre
indivíduos, nem entre povos; que a guerra é um estado extralegal e que o verdadeiro
direito das gentes deve colocar fim a essas lutas execráveis, trabalhando para criar e
consolidar uma paz perpétua” (1998: 114, grifos do autor). A guerra, para Kant, seria a
negação do direito e não a afirmação do mais primordial dos direitos, o da força. Na
série em que estão os juristas e pensadores que entendem a guerra como o negativo da
justiça e da paz, Kant não veria qualquer validade na guerra, negando-a como um todo:
“esse fenômeno terrível (...), a guerra, inquieta no mais alto grau a razão metódica,
pacata, do filósofo de Koenigsberg [Kant]: ela é incômodo de seu sistema” (1998: 113).
Para Proudhon, Kant havia pensado numa pacificação que viria de uma “unidade
política do gênero humano” que consistiria numa “hierarquia de Estados” que no limite
levaria a uma “monarquia universal” (idem: 166): nada mais contrário à sua proposta de
federação libertária. Como lembra Jourdain, a federação proudhoniana não poderia ser
“confundida com uma confederação de Estados unitários ou com um governo mundial
que monopolize a potência pública da humanidade” (2006: 225).
A paz perpétua em Kant pressuporia, em primeiro lugar, como aponta Proudhon,
que a guerra fosse um fato extralegal, ou seja, que quando houvesse ordem jurídica e
política ela não estaria presente. A noção de pequena guerra de Proudhon, como
estudada anteriormente, vai no sentido contrário, afirmando que a formação dos Estados
é um ato contínuo de guerra — tanto na sua constituição quanto na manutenção das
iniqüidades políticas e econômicas. Em segundo lugar, o princípio contratualista de
Kant pressupõe uma federação formada a partir de Estados unitários que supostamente
219
teriam sido formados por um pacto social amplo e republicano; crença que Proudhon
rechaça como se pôde notar no comentário que fez ao contrato em Rousseau (Proudhon,
2001: 93) e que poderia ser transportado para a crítica ao pacto kantiano. Ao contrário, a
federação proudhoniana reivindicaria a característica de ser celebrada efetivamente
pelos indivíduos — formando as unidades políticas e produtivas — e depois por essas
unidades formando federações ou confederações. Além disso, as federações poderiam
dissolver-se ou reformular-se não assumindo a dimensão definitiva e acabada da “liga
da paz” kantiana. A negação explícita de Proudhon à centralidade do poder político
deixa evidente sua oposição a um Estado universal, quanto mais a uma monarquia
universal. Esta seria, na escala das formas de governo produzidas pelos princípios de
autoridade e liberdade, a forma mais autoritária e ampla possível, extremo oposto da
anarquia constituída como federações de federações.
O contrato kantiano e seu conceito de paz perpétua são idéias, princípios
transcendentais que procuram afirmar absolutos: a Guerra absoluta na ausência do
Estado, a Paz absoluta na sua presença. A reflexão de Proudhon, articulada a partir da
noção de choque de antagonismo, do embate perpétuo das forças antagônicas, procura
negar os absolutos, afastando-se da síntese e da solução derradeira. Ao afirmar que não
há termo na luta entre autoridade e liberdade, Proudhon se afasta da Idéia, repele a
metafísica e sustenta que só existem regimes híbridos, impuros, produzidos no calor das
lutas e interesses dos indivíduos e grupos diretamente em fricção. A aproximação dessa
noção de luta constante entre os princípios tornaria impossível pensar uma paz perpétua
em termos kantianos; paz que seria para Proudhon o “imobilismo”, a “morte”
(Proudhon, 1998a; Jourdain, 2006). A paz em Kant significa a ausência de conflito e um
temor do conflito — que fez com que o filósofo não abrisse mão do monopólio da
violência pelos Estados republicanos para a garantia da paz civil, mesmo defendendo a
220
abolição gradual dos exércitos (Kant, 2004: 33). Proudhon satiriza o medo do conflito
presente nos juristas, em Kant e também em Hobbes, apontando que o reconhecimento
da urgência do Estado em manter o monopólio da coerção indicaria uma postura
hipócrita que nega a força como princípio do direito, mas que não concebe viver sem a
mesma força para fazer valer esse direito teoricamente produzido pelo livre acordo dos
indivíduos. Ao contrário de Kant — e dos juristas e de Hobbes — Proudhon enxerga no
equilíbrio constante das forças a senha para a ordem social. No plano internacional, do
mesmo modo que Kant exportou a noção transcendental de contrato para conceber seu
cosmopolitismo, Proudhon projetou seu conceito de imanência da força, de realidade do
contrato, para dar forma a seu princípio federativo. A tensão permanente entre as
unidades políticas e econômicas federadas seria o meio para a organização da vida
social e a superação da guerra destruidora, atributo do Estado unitário.
Já a noção de defesa mútua, presente na proposta da paz perpétua kantiana e
também no federalismo proudhoniano, guardam semelhanças na medida em que
prescrevem que as unidades federadas esperariam o apoio de seus pares em caso de
ataque de outro Estado. Essa expectativa, complementada pela renúncia à guerra de
agressão, tornaria segura a existência de cada unidade federada. O fim do estímulo à
guerra, em Kant, viria, ademais, da natureza republicana dos Estados que representaria a
vontade de ordem e paz de todos os cidadãos. Em Proudhon, seria o fim do pauperismo
a mudança substancial que minaria o impulso à guerra. A proximidade da fórmula da
defesa mútua entre os pensadores não deve ocultar a diferença fundamental de que, em
Kant, esse acordo seria realizado entre Estados unitários e, em Proudhon, entre unidades
federadas sem redimensionamento do poder político central. No primeiro caso, o mapa
político mundial seria estanque e no segundo, uma cartografia sempre mutável,
dependendo das configurações econômico-políticas dos membros federados. O conceito
221
de defesa mútua em Kant serviria, portanto, para a conservação de um acordo entre
Estados unitários aglutinados por uma idéia e um poder universais enquanto, para
Proudhon, ele colaboraria na preservação do princípio descentralizado e dinâmico de
seu sistema federativo.
Desse modo, é possível dizer que Kant propôs um pacto federativo entre
repúblicas unitárias fundadas pela lógica do contrato transcendental, que por sua vez
geraria uma harmonia permanente entre os Estados baseada numa paz negativa (a
ausência da guerra e a pacificação dos conflitos garantidas pelo monopólio da violência
pelo Estado). Proudhon, ao contrário, elaborou um contrato comutativo e sinalagmático
entre unidades políticas produtivas, baseado nos princípios da descentralização política
e do mutualismo econômico, que produziria uma composição dinâmica de federações de
federações, cujo efeito seria a paz entendida como superação da guerra material, mas
cujo amálgama seria o antagonismo perpétuo da guerra imanente.
Proudhon notou na federação libertária o meio para a superação da guerra entre
Estados. Contudo, seria essa paz equivalente ou aproximada da idéia de paz permanente
em Kant? Aceitando que a lei do antagonismo, em Proudhon, não seria anulada com a
anarquia, haveria a possibilidade de imaginar que, apesar da tendência à
preponderância a liberdade, o advento das federações libertárias não definiria o fim da
história ou a paz perpétua, como a síntese do processo de lutas sociais. Na luta
infindável entre os princípios de Liberdade e Autoridade, regimes com maior
preponderância do segundo poderiam voltar a existir, mesmo após a experiência da
anarquia. Segundo o próprio Proudhon, existiria, com a anarquia, “uma hipótese de
pacificação, senão absoluta, ao menos ilimitada” (1998a: 159), ou seja, um tipo de
trégua ilimitada da guerra destrutiva, na medida em que, para o autor, essa forma de
guerra aconteceria apenas como conseqüência dos mencionados pauperismo e
222
centralização do poder político. Na federação libertária, sem Estado unitário e sem
propriedade privada, com o equilíbrio econômico estabelecido, não haveria condições
para a guerra destrutiva, tampouco espaço para a pequena guerra representada pela
dominação do Estado sobre os indivíduos. Todavia, o combate entre indivíduos e
grupos seguiria, na forma de competição transferida para a esfera da produção e para o
enfrentamento não-exterminador entre vontades, opiniões, valores. Assim, na anarquia
não haveria mais a guerra, mas um combate permanente que seria a expressão do direito
da força, da afirmação guerreira em embates abertos, honrados, positivos, pois não
destrutivos. Haveria a “paz belicista” como aponta Jourdain (2006). Como Proudhon, na
passagem acima, reconhece a impossibilidade de uma pacificação, mas admite algo
como uma trégua prolongada, seria possível deduzir que a guerra destrutiva, a guerra
material, poderia retornar em caso de reversão da série autoridade-liberdade — uma
alternativa sempre a se tomar em conta na dialética sem síntese de Proudhon. No final
de Do princípio federativo, Proudhon manifesta sua confiança de que “o século vinte
abrirá a era das federações, ou a humanidade recomeçará um purgatório de mil anos”
(2001: 128). Desse modo expressava sua crença na tendência histórica rumo à liberdade
e, também, a possibilidade de estagnação ou mesmo reversão da série que levaria à
permanência da guerra material. O século XX não foi o da concretização da federação
libertária, mas da vitória da democracia contra o comunismo, fato que propiciou
processos de federação centralizadores, como o da União Européia. No entanto,
pensando a partir da perspectiva proudhoniana, seria possível notar que esse
federalismo, mais próximo de Kant, significaria na série autoridade-liberdade a
constituição de um regime com maior presença do princípio da Liberdade, o que
permitiria mais oportunidades para práticas libertárias que em um regime com
preponderância do princípio da Autoridade, como o comunista. Pela análise serial
223
proudhoniana, a vitória da democracia sobre o socialismo de Estado, no final do século
XX, poderia ser vista como produtora de mais espaços para experiências de liberdade
que teriam a potência de impulsionar relações não-hierárquicas e a construção de
federações libertárias.
Assim, a partir dessa leitura particular do conjunto formado por A paz e a guerra
e Do princípio federativo, pode-se notar que a federação proudhoniana seria uma
solução de equilíbrio a evitar duradouramente a guerra material, a imoral guerra das
atrocidades. Contudo, esse estado seria de suspensão da guerra e não de sua abolição
definitiva, já que poderia haver o retorno do pauperismo relacionado a uma forma de
governo com mais Autoridade — como a democracia ou a monarquia — que
reconduziria a guerra de destruição e conquista ao cotidiano dos homens. Em todo caso,
a paz advinda dessa suspensão da guerra material não significaria ausência de relações
de força e de uma forma não destrutiva de combate (algo não admitido por Kant, pelos
juristas ou por Hobbes). A federação de Proudhon, nesse sentido, visaria uma paz em
equilíbrio de forças e com possibilidade de reversão, diferentemente da paz kantiana,
fundada num princípio transcendental, estabelecida de cima para baixo de modo a
instaurar um poder unificado universal e que indicaria uma situação perene de paz na
qual as tensões seriam mediadas e coibidas pelo Estado monopolizador da violência
física. É importante ter em conta que a revolução, para Proudhon, “não tem fim, [é]
permanente” (Passetti e Resende, 1986: 19); é uma revolução “cuja dinâmica é a de
fortificar-se e ampliar-se na proporção da resistência encontrada” (idem: idem). Tal
revolução não faz uso necessariamente de violência, sendo construída cotidianamente,
na superação das relações econômicas de exploração e políticas de opressão,
impulsionando uma nova economia e novos arranjos políticos não centralizados. O
mutualismo e a federação libertária seriam práticas, obras sempre inacabadas
224
resultantes de uma luta constante e mantidos por uma tensão diferente das coerções e
iniqüidades perpetradas pelo Estado e pelo regime da propriedade. A luta dos guerreiros
da anarquia proudhoniana é uma guerra permanente não-destrutiva; não é a guerra de
todos contra todos da tradição hobbesiana, tampouco a paz perpétua do legado kantiano.
Essa paz belicista seria, assim, uma forma de guerra continuada não nas instituições e
destinada a sujeitar os indivíduos, mas uma guerra como próprio exercício da liberdade,
manifesta nas diferenças sempre inesperadas, inéditas e inventivas; nas divergências,
nos estímulos mútuos, nas complementaridades econômicas e no fortalecimento comum
pela atividade guerreira.
A perspectiva da luta permanente
Proudhon, na sua crítica ao sistema estatista e ao regime da propriedade, levou
sua reflexão ao campo da política internacional, numa afirmação de que não seria
possível pensar política sem pensar, simultaneamente, a guerra e as relações
internacionais. O tema-chave das Relações Internacionais, o binômio guerra/paz,
assumiu, desse modo, o cerne da avaliação proudhoniana sobre a forma de organização
econômico-política que combatia e da nova forma que defendia para o futuro da
humanidade. Sua solução federalista foi posicionada em direto enfrentamento aos
modelos federalistas liberais, em especial ao estadunidense e o kantiano — que nos
interessa mais diretamente nessa reflexão. Ao contrário da premissa contratualista que
entende o pacto social como a fuga do estado de guerra permanente, julgando a guerra
fator de dispersão e miséria, Proudhon faz uma distinção importante entre a guerra que
considera incontornável e propulsora da vida humana, expressão do direito da força, e a
guerra degradada e degradante, expressão da iniqüidade que é a base do regime de
225
propriedade e de centralização política no Estado. Essa distinção, no entanto, não
deveria ser tomada como uma separação entre uma “guerra ideal” e uma “guerra real”,
num exercício similar ao realizado por Carl von Clausewitz. O general prussiano
acreditava na existência de um puro conceito, exteriorização do ódio, que conduziria os
povos à guerra ilimitada movida pela vontade de extermínio do inimigo. Essa seria a
guerra absoluta que, na prática dos Estados, não viria a se realizar devido a limitações
materiais e, principalmente, pelo controle político da ação militar. Proudhon, em outro
sentido, não concebeu um conceito ideal, ao qual teria rendido homenagens, e outro
real, alvo de críticas. A guerra que é a juíza suprema, impulsionadora das relações
humanas e entre Estados, energia que implementa e dá corpo ao direito da força, não é
uma idéia; ela existe e é tão antiga quanto o homem. Essa guerra, antes de tudo uma
potência imanente ao homem, não é um conceito abstrato, mas a realidade mesma na
qual o homem se desenvolve, produz, consome, vive e morre. A guerra material, a
decorrente do pauperismo, não seria, por sua vez, uma manifestação degenerada de uma
idéia, mas uma outra prática da guerra considerada injusta por Proudhon porque
derivada do regime de iniqüidade em que os homens são mantidos violentamente. Essa
guerra é sua inimiga, como é inimigo todo aquele que pretenda governá-lo. A guerra
libertária é o combate incessante da vida humana, que não se assemelha à guerra de
destruição praticada pelos Estados unitários que visam apenas a sujeição, a pilhagem, a
miséria do outro em nome da riqueza do vencedor. É justamente a luta das tensões, o
antagonismo entre indivíduos e seus princípios e vontades que gera o amálgama social e
não sua ausência. A paz dos juristas, de Hobbes ou de Kant seria, para Proudhon, aquela
dos cemitérios, da falta completa de vigor. Contra a estática da pacificação, a dinâmica
da guerra constante. Guerra que não é etéreo conceito e que, quando se transforma em
instrumento da política, como queria Clausewitz, converte-se na odiosa guerra material.
226
Guerra que tampouco, como afirmara Clausewitz, seria similar ao duelo, já que essa
prática para Proudhon, não se afirmaria como uma ação judiciária, não implementaria o
direito, “não provaria nada” (1998: 225), pois implicaria no extermínio de um dos
oponentes.
A crítica de Proudhon a partir do estudo da guerra e da paz aponta para a
vontade de pacificação das principais procedências das escolas realista e liberal em
Relações Internacionais. Suas noções de guerra e paz entram em conflito tanto com
Thomas Hobbes — uma das centrais procedências realistas — quanto com os juristas
(como Hugo Grotius) e Immanuel Kant — influências fundamentais da escola liberal.
Afirma, assim, outra perspectiva, que pela postura libertária evidencia as intenções
conservadoras presentes nas vertentes que vieram a alimentar realismo e liberalismo.
Desse modo, a aparente filosofia da força em Hobbes se apresenta como uma filosofia
do medo da força, ou em outras palavras, uma filosofia para anular a força, apaziguá-la
ao sacá-la das faculdades humanas, concentrando-a no Leviatã. De modo similar, a
preocupação com o “direito da guerra” entre os juristas revela-se um paliativo que em
nada altera as causas da violência da guerra que procuraria minimizar: o direito das
gentes surge, assim, como um recurso do Estado voltado para seu vigor e saúde, na
medida em que não ataca as bases da violência da guerra — a iniqüidade, o pauperismo
e sua própria existência — e se contenta em limitar os abusos que, em última instância,
apesar da roupagem humanitária, na verdade terminariam por prejudicar a integridade
do próprio Estado caso as hostilidades não conhecessem freio. Ao apresentar sua
proposta federativa, Proudhon estende sua reflexão ao plano internacional marcando
uma distinção fundamental à proposta universalista de Kant. A federação de repúblicas
livres em Kant traria a paz perpétua pela projeção mundial da lógica contratualista. Já as
federações de federações proudhonianas trariam uma trégua ilimitada para a guerra
227
material e para a pequena guerra do Estado e dos grupos econômica e politicamente
prevalecentes contra os indivíduos, mas nunca o fim da tensão, o fim dos conflitos, o
término da luta. “Numa verdadeira organização federalista”, comenta Trinquier, “há
logicamente e necessariamente uma guerra permanente e essa guerra faz sua riqueza”
(1998: 15).
Desse modo, a visada proudhoniana oferece um duplo interesse para uma leitura
das Relações Internacionais que procure afirmar outra perspectiva fora do eixo
liberalismo-realismo. De um lado, reforça a percepção de que há duas séries, a liberal e
a realista, que mais do que inimigas são adversárias dentro de um mesmo campo
convergente de conceitos, valores e intencionalidades políticas, defendendo o edifício
jurídico da soberania — estatal ou redimensionado no cosmopolitismo —, preservando
o regime da propriedade e o capitalismo e esforçando-se para legitimar apenas o uso da
violência pelo poder político centralizador — nacional ou supranacional — reputando
toda outra forma de uso da força — “crimes” e guerra — como afrontas à paz que
devem ser coibidas ou domesticadas em benefício da ordem estatal e capitalista. De
outro lado, a noção luta constante oferece elementos para pensar a política como uma
forma de combate incessante; o que tem a potência de abrir outra visão sobre o campo
da política internacional que vislumbre uma chave de análise que não aceite a
possibilidade de pacificações. Proudhon é literal ao afirmar que os Estados são
formados pela guerra, mantidos pela guerra e articuladores de uma forma determinada
de guerra que é infindável se mantidas estiverem as condições para ela — derivadas do
pauperismo e da existência do Estado. Nesse sentido, as relações entre Estados estariam
marcadas pela busca interminável de acumulação de riqueza e recursos de poder
material; o que nos levaria à conclusão de que não haveria jamais uma paz, entendida
como fim das guerras atrozes, enquanto não houvesse uma transformação profunda nos
228
costumes e nas formas de organização econômica e política das coletividades. Todas as
propostas de paz — temporária pelo equilíbrio de poder realista ou perpétua pelo
cosmopolitismo kantiano-liberal—, seriam, assim, sucedâneas de uma paz positiva que
não poderia emergir da iniqüidade. A política internacional, desse modo, seria uma
guerra constante, uma tensão permanente tanto na ausência de instituições — a
“anarquia internacional” dos realistas — quanto na presença delas — a pacificação
pelas organizações e pelo direito internacional desejada pelos liberais. Só haveria,
portanto, a guerra: no equilíbrio de poder e no cosmopolitismo. E, aceitando a
impossibilidade, apontada por Proudhon, de que existissem regimes puros
consubstanciando o Absoluto, poder-se-ia reparar como as relações internacionais,
mescla de guerra aberta militar e guerra silenciosa nas instituições, são uma guerra
infindável. Proudhon, é fato, acredita na possibilidade de uma trégua ilimitada
proveniente da superação do pauperismo, pela descentralização do poder político e pelo
advento das federações agrícola-industriais. Esse foi seu projeto político, econômico e
social que, apesar da aceitação de que a série pudesse ser revertida, aparecia no
horizonte como uma tendência desejada. Há nele um desejo de paz, ainda que ela não
significasse imobilismo. Essa tensão, provocada no próprio pensamento proudhoniano,
interessa porque pode, com seus limites, abalar os lastros pacificadores e conservadores
das escolas teóricas internacionalistas, produzindo uma fissura pela qual há como passar
uma problematização ainda mais direta que explicite a noção de política como guerra.
Proudhon interessa ao estudo das relações internacionais porque é inimigo tanto de
Hobbes quanto de Kant; tanto da paz pela superação da “anarquia”, quanto da paz
perpétua derivada das instituições cosmopolitas. A noção de guerra permanente em
Proudhon, o combate infindável dos guerreiros, abala as procedências liberais e
realistas em Relações Internacionais, abrindo espaço para outra perspectiva que repare
229
na guerra menos como conceito apaziguado no estudo teórico das relações
internacionais e mais como instrumento que atua no reverso e pelo reverso, procurando
condições para emergências de federações libertárias existentes no campo, diria Michel
Foucault, das resistências.
230
Quarto Capítulo
Foucault e o agonismo do poder nas relações internacionais
A guerra como cifra do poder
No início de seu curso Em defesa da sociedade, apresentado no Collège de
France em 1976, Michel Foucault colocava que o tema-chave que o mobilizaria nas
aulas seguintes era “em que medida o esquema binário da guerra, da luta, do
enfrentamento das forças [poderia] ser efetivamente identificado como o fundamento da
sociedade civil, a um só tempo o princípio e o motor do exercício de poder político”
(2002: 26). Em outras palavras, se o princípio da guerra, do combate entre duas forças
poderia ser um observatório para a compreensão do poder como energia constituinte das
sociedades e como o próprio impulsionador das relações políticas. Se a guerra, em
suma, seria uma perspectiva de análise para a política e um princípio de inteligibilidade
da vida social. Sua pergunta e seu posicionamento não eram óbvios, na medida em que
o filósofo enfrentava, no percurso de suas pesquisas, a dificuldade em encontrar
instrumentos de análise do poder que não se resumissem aos modelos legal ou
institucional; ou seja, formas de análise que não se circunscrevessem à busca pelo que
legitimaria o exercício do poder, vinculando-o à existência e ao monopólio do Estado.
Segundo Foucault, “enquanto o sujeito humano é colocado em relações de
produção e de significação, é igualmente colocado em relações de poder muito
complexas” (1995: 232); no entanto, se havia instrumentos importantes para a
compreensão das dimensões produtiva — história e teoria econômica — e de
231
significação — lingüística e semiótica —, o mesmo não aconteceria com o plano do
poder, limitado às leituras jurídico-políticas preocupadas em fixar a lei e o Estado como
fontes únicas e legítimas do exercício do poder. Essa dimensão jurídico-política seria
insuficiente para dar conta daquilo que foi objetivo de Foucault nos anos de trabalho
que se seguiram à publicação de As palavras e as coisas, em 1966: o de “criar uma
história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-
se sujeitos” (1995: 231). Como explica Fonseca, o interesse de Foucault “foi estudar as
formas de constituição do indivíduo moderno” (2002: 24) por meio da investigação
sobre os simultâneos processos de objetivação — transformação de cada um em ser útil
para o trabalho e dócil para ser governado — e subjetivação — atrelar um homem “a
uma identidade que lhe é atribuída como própria” (idem: 25). Esses processos seriam
efetivados, tramados, forjados nas relações de poder que constituiriam esse sujeito como
ente sujeitado, ou seja, como alguém produzido para ser alguém; e sê-lo de forma
pacata, obediente e produtiva economicamente. Por isso, ainda que a meta principal do
filósofo francês não fosse estudar “o poder nem elaborar os fundamentos de tal análise”
(Foucault, 1995: 231), o estudo da constituição do sujeito moderno exigia “estender as
dimensões de uma definição de poder” (idem: 232) para além dos marcos jurídico-
políticos.
Para Foucault, a predominância desse pensamento político-jurídico que
monopolizava, no Ocidente, os modos de interpretar o poder devia-se a questões
históricas e táticas. Do ponto de vista histórico, o discurso jurídico foi um instrumento a
cargo da monarquia e do Estado moderno que “tomaram impulso sobre um fundo de
multiplicidade de poderes preexistentes e, até certo ponto, contra eles: poderes densos,
intrincados, conflituosos, ligados à dominação direta ou indireta sobre a terra, à posse
de armas, à servidão, aos laços de suzerania e vassalagem” (Foucault, 1999: 84). As
232
monarquias territoriais puderam impor-se pela força física que sujeitou grupos culturais
e poderes locais arredios, mas também pela capacidade de oferecerem-se como
“instâncias de regulação, de arbitragem, de delimitação, como maneira de introduzir
ordem entre esses poderes (...) e distribuí-los de acordo com fronteiras e hierarquia
estabelecidas” (idem: idem). Esse poder monárquico afirmava, a um só tempo, a
unidade do poder — a única fonte legítima de poder seria o Estado —, a potência
arbitral incontestável da lei emitida pelo soberano e a necessidade de instrumentos
exclusivos para o exercício do poder sempre entendidos de modo negativo como
“mecanismos de interdição e sanção” (1999: 84). O soberano manteria uma ordem —
sua ordem — sobre a antiga multiplicidade de poderes descentralizados com base numa
legitimidade oferecida pelo direito, quer fosse revestida pela lógica da investidura
divina quer pela do contrato social, convergindo ambas para a justificação do poder
político central. Conforme afirma Foucault, o direito foi “um dos instrumentos técnicos
constitutivos do poder monárquico, autoritário, administrativo e, finalmente, absoluto”
(2002: 30). Foi em proveito do rei, para justificar sua existência e operacionalizar seu
governo que “se elaborou o edifício jurídico de nossas sociedades” (idem: idem). Por
isso, a dimensão jurídico-política do poder tem como personagem central o rei: “é do rei
que se trata, é do rei, de seus direitos, de seu poder, e dos eventuais limites de seu poder,
é disso que trata fundamentalmente (...) [o] sistema jurídico ocidental”. Mesmo quando
o contratualismo liberal se colocou contra o absolutismo monárquico, foi do mesmo
edifício da soberania que se serviu para pleitear uma discussão sobre o poder: os
argumentos de justificação do exercício do poder foram transformados, mas o modo de
conceituá-lo não. O governo constituído pela vontade geral ou pelo pacto social ainda se
remetia a uma centralidade e se fiava no princípio do direito como o grande articulador
da ordem social.
233
Se o papel da teoria do direito é o de “fixar a legitimidade do poder” (Foucault,
2002: 31), ou seja, justificar a necessidade e correção do poder soberano, da soberania,
“o discurso e a técnica do direito tiveram (...) como função dissolver, no interior do
poder, o fato da dominação, para fazer que aparecessem no lugar dessa dominação, que
se queria reduzir ou mascarar, duas coisas: de um lado, os direitos legítimos da
soberania, do outro, a obrigação legal da obediência” (idem: idem, grifo meu). Eis o
plano tático do discurso jurídico da soberania: tornar suportável o poder soberano pela
aceitação de sua existência fundamental, de sua origem imaculada e de sua permanência
justa. Torná-lo tolerável como instância necessária para limitar a liberdade de cada um a
fim de manter a ordem, preservar a vida, garantir a propriedade: “o poder, como puro
limite traçado à liberdade, pelo menos em nossa sociedade, é a forma geral de sua
aceitabilidade” (1999: 83). A violência do estabelecimento do poder monárquico, seus
começos pouco gloriosos ficariam ocultos pelo discurso grandiloqüente do direito e seu
esforço em demonstrar a força e justiça do soberano. O fato da conquista indicado por
Foucault, os princípios violentos do Estado, da lei e da própria determinação do que é
“legítimo” ficariam dissolvidos, esfumaçados frente ao edifício jurídico-político e seu
discurso. O lema encarnado pelo Estado moderno, “pax et justitia”, serviria de fórmula
a indicar a fixação da “paz como proibição das guerras feudais ou privadas e a justiça
como maneira de suspender o acerto de contas privado nos litígios” (Foucault, 1999:
84). O discurso jurídico definiria, portanto, o Estado como mediador dos conflitos e o
aplicador de uma justiça que faria parar a guerra, a discórdia intestina, inaugurando
uma era de paz civil. Desse modo, o discurso jurídico-político foi construído como o
legitimador do poder monárquico e de sua consagração como a força que poderia impor
a paz e garanti-la, instaurando o espaço político como um ambiente de paz: “o sistema
234
do direito é inteiramente centrado no rei, o que quer dizer que é, em última análise, a
evicção do fato da dominação e de suas conseqüências” (Foucault, 2002: 31).
Para Foucault, “a história da monarquia e o recobrimento, pelo discurso jurídico-
político, dos processos e efeitos de poder, vieram de par” (1999: 85), marcando a
reativação do direito romano para a afirmação do Estado moderno frente ao modelo
político medieval. No entanto, a teoria jurídico-política da soberania não ficou restrita às
cortes reais, sendo, mais que isso, “o grande instrumento da luta política e teórica em
torno dos sistemas de poder dos séculos XVI e XVII” (Foucault, 2002: 41) servindo
tanto a monarquistas quanto a antimonarquistas, a católicos e a protestantes e, mesmo,
aos defensores do “modelo alternativo [às monarquias absolutas] das democracias
parlamentares” (idem: 42). Essas posições políticas antagônicas, no entanto, não
colocaram “em questão o princípio de que o direito deve ser a própria forma do poder e
de que o poder deveria ser sempre exercido na forma do direito” (Foucault, 1999: 85).
Assim, o modelo do exercício do poder deduzido do Estado e articulado pela lei
sedimentou-se no final da Idade Média como uma forma de pensar as relações de poder
que se reportava ao principal tema político daquela época: o enfrentamento entre a
descentralização das monarquias feudais e a emergência do projeto de centralização das
monarquias modernas. Apesar dessa particularidade, o modelo jurídico-político seguiu
sendo reivindicado por grupos e interesses em luta desde então.
No entanto, no período demarcado entre os séculos XVII e XVIII, Foucault
identificou o despontar de uma “nova mecânica do poder [com] procedimentos bem
particulares, instrumentos totalmente novos, uma aparelhagem muito diferente” (2002:
42) das relações de soberania. Tratava-se de outra forma de governar os homens — uma
nova governamentalidade — que vinha a responder a novas urgências colocadas para o
exercício do poder e que não podiam apoiar-se apenas na relação soberano/súdito, na
235
relação política clássica de mando e obediência na qual um conjunto de homens
obedecem ao Um, ao monarca. Era a emergência daquilo que Foucault chamou de
sociedade disciplinar, tema que atravessava suas investigações nos anos 1970, como
indica a publicação de Vigiar e punir, em 1975, livro no qual “examina os tipos de
técnicas através dos quais os nossos corpos foram disciplinados de modo a fazer com
que [parecesse] natural que a alma individual lhes [fosse] atribuída — técnicas que
desse modo ‘fabricaram’ a alma como uma ‘prisão do corpo’” (Rajchman, 1987: 48).
Estava em jogo, desse modo, o interesse de Michel Foucault na relação entre exercício
do poder e constituição do sujeito que apontava para uma outra maneira de governar os
homens. A teoria da soberania, segundo Foucault, é o “que permite fundamentar o poder
absoluto no dispêndio absoluto do poder, e não calcular o poder com o mínimo de
dispêndio e o máximo de eficácia” (2002: 43). A nova mecânica do poder disciplinar
não poderia, para Foucault, ser compreendida a partir da lógica jurídico-política, o que
não significava dizer que a teoria da soberania desaparecera, mas que houve uma
readaptação do edifício jurídico-político ao poder disciplinar fazendo com que, a partir
de então, o exercício do poder fosse praticado entre os limites de “um direito da
soberania e uma mecânica da disciplina” (idem: 43). Em todo caso, afirma Foucault, é
dessa teoria da soberania que “devemos nos desligar se quisermos analisar o poder”
(idem: 41) tal qual se exerce a partir do século XVIII.
Antes de avançar sobre a análise das novas mecânicas do poder e das novas
governamentalidades para além da teoria da soberania, no entanto, é importante não
perder o foco da problematização que Foucault faz da noção de poder. Foucault afirma,
em A vontade de saber, primeiro volume de sua História da sexualidade, publicado em
1976, que era preciso abandonar o estudo do poder em termos “de repressão ou de lei”
(1999: 88) como impunha a lógica jurídico-política. De início, o filósofo sustenta que ao
236
falar em poder, não se referia ao “‘Poder’, como conjunto de instituições e aparelhos
garantidores da sujeição dos cidadãos em um Estado determinado” (idem: idem). Ou
seja, esse poder não seria vinculado estritamente ao poder legítimo exercido pelo Estado
nos moldes da teoria da soberania. Foucault não entende o poder “como um sistema
geral de dominação exercida por um elemento ou grupo sobre outro e cujos efeitos, por
derivações sucessivas, atravessam todo o corpo social” (idem). O poder, portanto, não
teria um ponto central, um “foco único de soberania de onde partiriam formas derivadas
e descendentes [de exercício do poder]” (idem: 89). Ao contrário, para Foucault, seria
necessário compreender o poder como uma “multiplicidade de correlações de força
imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização” (idem: 88);
entender essas correlações de força como um jogo “que, através de lutas e
enfrentamentos incessantes as transforma, reforça, inverte” (idem: idem) e que tem nos
aparelhos estatais ou instituições não suas fontes, mas espaços nos quais se cristalizam,
consolidando vitórias e derrotas, calando revoltas e gerando insubmissões. As relações
de poder, nesse sentido, formariam reações em cadeia a se espalhar em rede por todo o
corpo social, sem um centro. Por isso, segundo Foucault, seria possível entender o poder
como onipresente, não porque ele agrupasse todas as relações sobre uma única vontade
— como pretendia a teoria da soberania — “mas porque [ele] se produz a cada instante,
em todos os pontos, ou melhor, em toda relação entre um ponto e outro” (1999: 89). O
poder estaria em toda parte porque seria relacional, existindo no embate constante entre
os indivíduos, grupos e vontades. Não se resumiria ao Estado que, antes de monopolizá-
lo, seria ele próprio um efeito global de lutas e estratégias de poder que se disseminam
pelos infindáveis pontos de combate que são as relações de força. O poder, em suma,
seria uma relação de força que não se fixaria em um ponto, mesmo que pudesse
cristalizar nódulos, como o Estado.
237
Em todo caso, Foucault alerta que “o poder não é uma instituição e nem uma
estrutura, não é uma certa potência que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma
situação estratégica numa sociedade determinada” (idem: idem). O poder não seria
nunca sinônimo do Estado, tampouco um monopólio do Estado, de um grupo ou de
alguém. O poder não era, para Foucault, um bem, mas uma relação estratégica. Por isso,
Foucault defendia a urgência em deixar de pensar o poder como algo que se detivesse,
que alguém acumulasse em detrimento de outros despossuídos. Seria necessário
abandonar a forma de conceituação do poder fiada na lógica econômica, tal como se
encontrava na reflexão contratualista: nela, haveria uma analogia entre o poder e os bens
e trocas comerciais, na medida em que os indivíduos seriam donos de uma parcela de
poder que cederiam ao Estado visando a constituição de uma ordem civil. Esse poder só
poderia ser oferecido a partir do momento em que ele fosse entendido como uma
substância que “se possui, que se adquire, que se cede por contrato ou por força, que se
aliena ou recupera” (Foucault, 2002: 21). Segundo essa perspectiva, haveria um vínculo
ou submissão do poder à racionalidade econômica, também perceptível na
“funcionalidade econômica” (idem: 20) que o marxismo enxergaria no poder político,
ao entendê-lo como mantenedor das relações de dominação de classes e de produção.
Foucault defende, então, uma análise do poder que não se prendesse a tal “modelo
econômico”, admitindo que ele “não se dá, nem se troca, nem se retoma, mas que ele se
exerce e só existe em ato” (idem: 21). O poder não seria nem uma abstração nem uma
coisa, mas uma ação que se “exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações
desiguais e móveis” (1999: 90). O poder, ademais, não seria uma energia que se
dissipasse ou se perdesse na infinidade das relações sem sentido ou intencionalidade,
mas antes, as relações de poder seriam “ações sobre ações” (Foucault, 1995: 243),
aplicações de força que visariam “o comportamento dos sujeitos ativos” (idem: idem),
238
ou seja, viriam com a intenção de condicionar “condutas”, mudar o sentido em que
caminha um homem, para alterar seu curso, impor direções. Como explica Deleuze, as
relações de poder visariam efeitos de “governo”: “o poder de afetar sob todos os
aspectos” a conduta dos homens (2005: 84). Ou, segundo o próprio Foucault, “governar
(...) é estruturar o eventual campo de ação dos outros” (1995: 244). Assim, o exercício
do poder “consiste em ‘conduzir condutas’ e em ordenar a probabilidade [delas]” (idem:
idem). O exercício do poder visaria, portanto, “governar” no sentido lato de conduzir
condutas.
Ao pensar as relações de poder como correlações de força visando a conduzir
condutas, Foucault pôde afirmar que “não há poder que se exerça sem uma série de
miras e objetivos” (1999: 90); ou seja, que haveria uma intencionalidade no exercício
do poder. Essa intencionalidade não deveria ser confundida com um planejamento
onisciente e central, visando deliberadamente uma dominação global ou outro efeito
massivo qualquer. Caso se desse nesse campo, o exercício do poder permaneceria
vinculado a uma fonte — Estado, classe ou grupo dominante — que o aplicaria em
nome de interesses claramente identificados e sempre sob o signo da exclusiva
submissão. A racionalidade do poder, explica Foucault, não é da ordem da ideologia ou
da hipocrisia, mas “das táticas muitas vezes bem explícitas no nível limitado em que se
inscrevem — cinismo local do poder — que, encadeando-se entre si, invocando-se e se
propagando (...) esboçam finalmente dispositivos de conjunto” (1999: 91). Em outras
palavras, as conformações globais, as grandes estratégias de dominação seriam
expressões de relações microscópicas que poderiam ser colonizadas pelas instituições,
sendo guindadas à posição de mecanismos mais amplos de governo. No entanto, as
intencionalidades locais seriam as mais palpáveis, as mais sensíveis, pois declarariam
239
diretamente seus objetivos inscritos na concretude das lutas, sem abstração e sem
distanciamento.
Por esse motivo, as relações de poder não poderiam ser tomadas como
estratégias gerais de dominação concebidas no Estado e simplesmente aplicadas sobre
os indivíduos e a sociedade. Ao contrário, afirma Foucault, “o poder vem de baixo”
(idem: 90), e não de uma divisão absoluta entre dominantes e dominados. Seria preciso,
para compreender o exercício do poder, buscar “as correlações de força múltiplas que se
formam e atuam nos aparelhos de produção, nas famílias, nos grupos restritos e
instituições [e que] servem de suporte a amplos efeitos de clivagem que atravessam o
conjunto do corpo social” (idem: idem). Isso quer dizer que nas relações imediatas de
exercício de poder, nas lutas rasteiras e pontuais, o embate das forças pode não portar os
signos da política — os da lei e da soberania —, mas é a partir desses incontáveis
pontos de ação do poder que as grandes configurações da política podem montar-se. A
perspectiva de Foucault não negou a existência do Estado e das “grandes dominações”,
mas afirmou que elas seriam “efeitos hegemônicos continuamente sustentados pela
intensidade de todos [os] afrontamentos” (1999: 90) e não expressão de um poder de
classe ou emanando do soberano. Roberto Machado sustenta que “o que aparece como
evidente [em Foucault] é a existência de formas de exercício do poder diferentes do
Estado, a ele articuladas de maneiras variadas e que são indispensáveis inclusive para
sua sustentação e atuação eficaz” (1998: XI). Rechaçando definitivamente o vínculo
entre exercício do poder e a lógica jurídico-política, Foucault afirma que “o poder não
está localizado no aparelho de Estado e que nada mudará na sociedade se os
mecanismos de poder que funcionam fora, abaixo, ao lado dos aparelhos de Estado a um
nível muito mais elementar, quotidiano, não forem modificados” (1998a: 149-150).
Com isso, Foucault respondia às posições políticas que desde o século XVI, de um
240
modo ou de outro, não abandonaram a teoria da soberania e a fé no Estado e no direito
como vias para a transformação social, a conquista e/ou a garantia de direitos: para os
amigos ou inimigos do rei que seguiram pensando com a lógica monárquica.
Do mesmo modo que o poder não é propriedade do Estado, ou de indivíduos que
dele abririam mão ou seriam forçados a fazê-lo, as resistências, as insubmissões sobre
as ações de governo dirigidas contra si ou contra um grupo também não conheceriam
um espaço único a partir do qual disparariam contra o soberano. As situações de
exercício do poder, existentes como múltiplas correlações de força distribuídas pelo
corpo social, gerariam o mesmo número de resistências, de contra-posicionamentos. As
relações de força, segundo Foucault, “não podem existir senão em função de uma
multiplicidade de pontos de resistência que representam (...) o papel de adversário, de
alvo, de apoio, de saliência que permite a preensão” (1999: 91). Esses pontos, portanto,
estariam distribuídos por toda “rede de poder” fazendo com que não houvesse, “com
respeito ao poder, um lugar da grande Resistência — alma da revolta, foco de todas as
rebeliões, lei pura do revolucionário” (idem: idem). Ao contrário, as resistências só
poderiam existir assim, no plural, respondendo como casos únicos a ações singulares de
poder. Elas poderiam ser muitos tipos, de muitas formas — “possíveis, necessárias,
improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violentas,
irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício” (idem)
—, mas nunca exteriores à malha das relações de poder.
Não existiria poder sem resistências: eis o “caráter estritamente relacional das
correlações de poder” (idem). Segundo Deleuze, para Foucault “um diagrama de forças
apresenta, ao lado das (ou antes ‘face às’) singularidades de poder que correspondem às
suas relações, singularidades de resistências” (2005: 96). O fato de não haver um final,
uma vitória que selasse o sucesso de uma resistência não seria a prova de que elas não
241
passariam de ilusórias, ou ainda, de sublevações destinadas ao fracasso. Ao contrário,
elas seriam “o outro termo nas relações de poder; [inscrevendo-se] nelas como o
interlocutor irredutível [do poder]” (1999: 91-92). As grandes revoluções, quando
acontecem, são similares à própria existência do Estado, “que repousa sobre a
integração institucional das relações de poder” (idem: 92). A confluência e articulação
de pontos de resistência podem gerar efeitos transformadores globais do mesmo modo
que o Estado pode cristalizar feixes de exercício do poder em uma estratégia geral de
governo ou dominação. Mas, geralmente, afirma Foucault, os pontos de resistência
seriam “móveis e transitórios” (idem: 92) como as relações de poder que as instigam.
Para o filósofo francês, “da mesma forma que a rede das relações de poder acaba
formando um tecido espesso que atravessa os aparelhos e as instituições, sem se
localizar exatamente neles, também a pulverização dos pontos de resistências atravessa
as estratificações sociais e as unidades individuais” (idem: idem).
Não haveria, portanto, resistência exterior ao poder o que, sem fatalismos ou
determinismos, deveria significar não haver um “fora com relação ao poder”: a
definição de exercício de poder como “ação sobre ações” faria possível notar que as
“relações de poder se enraízam profundamente no nexo social; e que elas
não reconstituem acima da ‘sociedade’ uma estrutura suplementar com
cuja obliteração radical pudéssemos talvez sonhar. Viver em sociedade é,
de qualquer maneira, viver de modo que seja possível a alguns agirem
sobre a ação dos outros. Uma sociedade ‘sem relações de poder’ só pode
ser uma abstração” (Foucault, 1995: 245-246).
A sociedade, desse modo, seria constituída por uma rede de relações de poder,
de correlações de força, que sempre instigariam resistências, produzindo uma infinidade
de lutas, sujeições e liberações que seriam o próprio amálgama da vida humana e social.
Não haveria, dessa feita, “nexo social” sem a batalha ininterrupta das relações de poder.
As relações de poder produzem outras ações, produzem indivíduos, produzem idéias e
242
verdades, produzem as relações humanas e as instituições. Essas relações não seriam,
por isso, meramente negativas, ou repressivas, como indica a teoria da soberania: o
poder com função exclusiva de submeter, impor, calar, proibir. O poder também produz
e não apenas faz parar, cessar, extinguir. O poder gera reações em cadeia e com isso
instiga novas relações, instiga a formação de discursos, a produção de saberes, a
articulação de resistências, enfim todo um campo de produtividades, que contesta a
hipótese meramente repressiva do poder segundo a teoria da soberania. Por isso, para
Foucault, deveria ser “nesse campo das correlações de força que se [deveria] analisar os
mecanismos de poder” (1999: 92), seria esse o espaço adequado para notar as relações
de poder em seus momentos de efetivação, de realização e de produção. A própria
identificação das resistências seria uma senha para a análise do poder, na medida em
que indicaria um momento de exercício do poder: ver o mecanismo agindo, na
localidade e concretude da aplicação de força e geração de resistência, abriria as portas
para o estudo não apenas desse mecanismo, mas das estratégias mais globais de
dominação, já que esses exercícios locais ascenderiam no corpo social, sendo cooptados
e cooptando instituições e ajudando a compor as estruturais mais gerais de governo dos
homens (Foucault, 1995).
Para compreender, assim, o modo como que as relações de força se efetivariam e
como atuariam os mecanismos de poder seria necessário deixar o “esquema
interpretativo que vê, no poder, uma instância apenas negativa — de repressão e
inibição — que age a partir de cima” (Guareschi: 2005: 485); seria urgente abandonar o
modelo de estudo do poder decalcado da teoria da soberania e que Foucault chama de
repressivo, ou a “hipótese de Reich” (2002: 24). Esse modelo, encontrado nos filósofos
do século XVIII, e baseado na idéia de cessão de direitos para a soberania, poderia ser
designado pela fórmula contrato-opressão, na medida em que a “opressão” seria o
243
abuso, por parte do soberano, do poder ofertado pelos indivíduos. Esse poder da teoria
da soberania — meramente negativo — só teria
“a potência do ‘não’ incapacitado para produzir, apto apenas a colocar
limites, seria essencialmente anti-energia; esse seria o paradoxo de sua
eficácia: nada poder, a não ser levar aquele que sujeita a não fazer senão o
que lhe permite. Enfim, porque é um poder cujo modelo seria
essencialmente jurídico, centrado exclusivamente no enunciado da lei e
no funcionamento da interdição. Todos os modos de dominação,
submissão, sujeição se reduziriam, finalmente, ao efeito de obediência”
(Foucault, 1999: 83).
Outro sistema de análise do poder teria como ser contraposto a esse “esquema
guerra-repressão” (2002: 24); diferente do modelo jurídico-político, que opõem o
legítimo ao ilegítimo, seria aquele voltado ao entendimento das relações de poder como
batalha incessante, como a oposição permanente se dá entre luta e submissão (idem).
Esse segundo esquema entende as relações de poder como um “enfrentamento belicoso
das forças”, numa perspectiva que Foucault chama de “hipótese de Nietzsche” (idem).
Nessa hipótese, o poder é uma energia concreta, politicamente intencionada, aplicada
incessantemente nas relações entre os homens, que não se possui ou represa e que
produz infindáveis pontos de resistência onde se queira conduzir condutas. Esse
esquema baseado na noção de poder produtivo não percebe a possibilidade de uma
pacificação vinda de cima, do Estado e da lei; uma suspensão das batalhas e da guerra
pela instauração do direito. Ao contrário, implica numa noção de relações de poder
como guerra, enfrentamento, disputa. O jogo permanente entre poder e resistências faz
da vida social um combate infindável, que atravessa todo o corpo social, das
infinitesimais capilaridades dos mecanismos de poder aos dispositivos globais de
governamentalidade. Nas marcas que deixa nas instituições ou na vida imediata dos
indivíduos, as relações de força são apresentadas por Foucault como lutas, tentativas de
governar e insubmissões contra tais intenções.
244
Essas relações de força não seriam, portanto, uma simples relação de violência
que age “sobre um corpo, sobre as coisas; [que] força; [que] submete, [que] quebra;
[que] destrói; [que] fecha todas as possibilidades [de reação]” (1995: 243). A relação de
violência imporia uma vitória ou derrota absolutas. Para haver relações de poder é
preciso que a força exercida encontre um indivíduo com potência para responder, agir,
reagir: só com essa diferença, com essa dissimetria ativa que pressupõe potência e
liberdade nos dois pólos da ação, é que se pode produzir uma relação de força. Segundo
Foucault, há a necessidade de que “‘o outro’ (aquele sobre o qual ela [a relação de
poder]) se exerce seja inteiramente reconhecido e mantido até o fim como o sujeito de
ação; e que se abra, diante da relação de poder, todo um campo de respostas, reações,
efeitos, invenções possíveis” (idem: idem). Conforme afirma Foucault, “o poder só se
exerce sobre ‘sujeitos livres’, enquanto ‘livres’ — entendendo-se por isso sujeitos
individuais ou coletivos que têm diante de si um campo de possibilidades onde diversas
condutas, diversas reações e diversos modos de comportamento podem acontecer”
(idem: 244). Se o objetivo numa relação de confronto é governar, no sentido de
conduzir condutas, “desde que não se trate de uma luta de morte, a fixação de uma
relação de poder constitui um alvo” (Foucault, 1995: 248). No entanto, as ações
intencionadas de “governo” geram resistências, de modo que existe uma “relação entre
relações de poder e estratégias de confronto” (idem: idem, grifos meus) entendendo por
“estratégias de confronto” as insubmissões e resistências múltiplas, mais ou menos
articuladas, que se insurgem frente às ações de força. Sem essa luta, não haveria
propriamente uma relação de poder, mas apenas violências brutais tendendo ao
extermínio físico, à vitória completa ou à escravidão mais vil.
É pelo motivo imperioso da luta, do combate pela liberdade e por si, ou pelo
objetivo de conduzir a conduta do outro, que as relações de força poderiam ser
245
entendidas como situações de combate, situações estratégicas. Foucault destaca três
sentidos para a palavra estratégia que precisariam ser tomados em conta ao lidar com a
noção de relações de poder como batalha: em primeiro lugar, estratégia entendida como
a “racionalidade empregada para atingirmos um objetivo” (1995: 247), que implica na
escolha dos meios para alcançar uma meta; depois, o ato de pensar ou adiantar o
pensamento e ação do oponente de modo a obter uma “vantagem sobre o outro” (1995:
247); por fim, o “conjunto dos procedimentos utilizados num confronto para privar o
adversário dos seus meios de combate e reduzi-lo a renunciar à luta” (idem: idem).
Esses três significados se mesclam em “situações de confronto — guerra ou jogo —
onde o objetivo é agir sobre um adversário de tal modo que a luta lhe seja impossível”
(idem: 248). Assim, para Foucault, seria possível chamar de “estratégias de poder” o
conjunto “dos meios operados para fazer funcionar ou para manter um dispositivo de
poder” (idem); do mesmo modo, as resistências seriam “estratégias de confronto”
(idem) contrapostas às tentativas de sujeição e condução de condutas. A intenção da
estratégia de poder é impor uma vitória — a incapacidade total de reação, o desarme
completo, a obediência máxima — ao passo que o objetivo da estratégia de confronto é
oposto: excitar a relação de poder, impedir que se cristalize a vitória, que se consolide
sua sujeição. As estratégias de poder encontram seu limite e medida nas reações das
estratégias de confronto, numa luta incessante que constitui as relações de poder ou as
correlações de força.
Foucault, na aula inaugural do curso Em defesa da sociedade, não só apresenta a
contraposição entre os esquemas de análise do poder sintetizados nos pares contrato-
opressão — de “Reich” — e guerra-repressão — de “Nietzsche” —, como afirma que
sua perspectiva de investigação esteve ao lado desse último. No entanto, seu percurso de
pesquisa o levou a desconfiar crescentemente da noção de repressão e da negatividade
246
que ela traz consigo: “a propósito das genealogias (...), a propósito da história do direito
penal, do poder psiquiátrico, do controle da sexualidade infantil, etc., (...) [os]
mecanismos empregados nessas formações de poder eram algo muito diferente da
repressão; em todo caso, eram bem mais que ela” (Foucault, 2002: 25). Haveria uma
insuficiência analítica na hipótese da repressão similar àquela da teoria da soberania,
pois a partir dessa perspectiva não seria possível notar a produtividade das relações de
poder e a geração infindável de resistências, perpetuando lutas. Por isso, Foucault teria
inclinado-se a pensar as relações de poder em termos estratégicos, em termos de
batalhas irredutíveis, em termos de guerra. O estudo das relações de poder, nesse
sentido, deveria caminhar para a análise das relações de força e de como se articulam
táticas e estratégias nesse enfrentamento interminável que se dá em torno da questão do
governo dos homens. Para Foucault, o estudo das relações de poder permanece limitado
ao esquema da teoria da soberania:
“permanecemos presos a uma certa imagem do poder-lei, do poder-
soberania que os teóricos do direito e a instituição monárquica tão bem
traçaram. E é desta imagem que precisamos liberar-nos, isto é, do
privilégio teórico da lei e da soberania, se quisermos fazer uma análise do
poder nos meandros concretos e históricos de seus procedimentos. É
preciso construir uma analítica do poder que não tome mais o direito
como modelo e código” (1999: 86-87).
Se o poder não é apenas energia repressiva, tampouco uma essência, mas uma
relação de força, esse deslocamento proposto por Foucault leva a analisá-lo como
situação estratégica, sempre precária e instável, sempre tensa e em alerta, sempre
passível de reviravoltas e desfechos inusitados. Como um combate. Essa perspectiva da
luta constante sugeriria uma análise do poder não “em termos de cessão, contrato,
alienação (...) [mas] antes e acima de tudo em termos de combate, de enfrentamento ou
de guerra” (Foucault, 2002: 22). Se poder não é mera negação e repressão, ele é “a
guerra, é a guerra continuada por outros meios” (idem: idem). E se a política é o próprio
247
“nexo social”— conjunto de relações de poder que não se circunscreve ao Estado, mas
atravessa cada minúcia e cada grande estratégia de governo —, Foucault encontra-se em
posição de inverter a proposição de Clausewitz afirmando que “a política é a guerra
continuada por outros meios” (idem). Assumir a política como guerra, segundo
Foucault, traria algumas implicações. Em primeiro lugar, seria admitir que o poder
político não seria sinônimo de paz, mas o prolongamento das relações de força
manifestadas na guerra: “se é verdade que o poder político pára a guerra, faz reinar ou
tenta fazer reinar a paz na sociedade civil, não é de modo algum para suspender os
efeitos da guerra ou para neutralizar o desequilíbrio que se manifestou na batalha final
da guerra” (idem 23). O poder político além de ser constituído pela guerra — e não pela
ficção do contrato — não seria o poder arbitral a suspender a guerra como descrevia a
doutrina jurídica. Ao contrário, o poder político seria a expressão institucional do fato
da conquista, da vitória final de uma guerra que cristalizou um determinado arranjo de
forças e que mobilizou dispositivos de poder que se destinaram a manter essa situação,
contendo os vencidos sob a máscara da lei universal e da legitimidade do poder
soberano. Para Foucault, o poder político “teria como função reinserir perpetuamente
essa relação de força, mediante uma espécie de guerra silenciosa e de reinseri-la nas
instituições, nas desigualdades econômicas, na linguagem, até nos corpos de uns e de
outros” (2002: 23). A política ao ser instaurada não significa a suspensão da guerra e
seus efeitos, mas a “sanção e a recondução do desequilíbrio das forças manifestado na
guerra” (idem: idem).
A constatação de que a guerra não é suspensa ou evitada pela política, mas
reconduzida por outros meios, implicaria na noção de que as lutas políticas, “os
enfrentamentos a propósito do poder, com o poder, pelo poder, as modificações nas
relações de força (...), tudo isso, num sistema político, deveria ser interpretado apenas
248
como continuações da guerra” (Foucault, 2002: 23). Cada momento de luta seria como
“episódios, fragmentações, deslocamentos da própria guerra”, de modo que, quando se
escrevesse a história da “paz civil” não se trataria de outra coisa que a continuação da
“história dessa mesma guerra” (idem: idem). A história da paz seria sempre a
continuação da história da guerra. Por fim, tomar a política como guerra significaria,
para Foucault, aceitar que “a decisão final só pode vir da guerra, ou seja, de uma prova
de força em que as armas, finalmente, deverão ser juízes” (idem). A política, suas
instituições e leis seriam efeitos da guerra e de uma situação estratégica que, pela força,
determinaria — ainda que temporariamente — a parte vitoriosa, impondo seu governo.
Nesse ponto, a perspectiva de Foucault poderia remeter diretamente à noção de direito
da força em Proudhon, por meio da qual se entende a guerra como o instrumento
legislador primordial, seguindo a lógica da ordália medieval, que derivava a justiça e a
legitimidade para governar da verdade expressa pelas armas. A política, sendo a
continuação da guerra, faz das armas seu instrumento instaurador e de manutenção, já
que são pelas relações de força tomadas como relações estratégicas, relações de guerra,
que se busca governar e, simultaneamente, se excita resistir. “O exercício do poder”,
conclui Foucault, é a “guerra continuada” (2002: 23). Para o filósofo, é nesse campo do
poder como relações belicosas, da política como guerra, que seria necessário deslocar-se
para uma compreensão dos mecanismos concretos de relações de poder. Se relações de
poder são relações de força, de guerra, seria preciso passar de uma noção jurídico-
política fundamentalmente pacificadora, para um “modelo estratégico” (Foucault, 1999:
97), que levasse à guerra como instrumento de análise, de leitura e intelecção das
relações políticas. Por esse prisma, o conceito de política como mediação e
encaminhamento pacífico de controvérsias — pela presença do soberano, grande juiz —
cederia lugar à perspectiva da guerra constante, sem possibilidade de uma cessação dos
249
combates: não seria, portanto, uma situação de antagonismo anterior ao Estado e que,
pela sua presença, seria contida ou redirecionada aos instrumentos jurídicos por ele
determinados. Tampouco seria um antagonismo com síntese final representada por uma
vitória global cujo correlato seria a sujeição total e permanente dos derrotados.
Para Foucault, “mais que um ‘antagonismo’ essencial, seria melhor falar de um
‘agonismo’ — de uma relação que é, ao mesmo tempo, de incitação recíproca e de luta;
trata-se, portanto, menos de uma oposição de termos que se bloqueiam mutuamente do
que uma provocação permanente” (1995: 245). Rabinow e Dreyfus, organizadores do
livro que contém o texto acima de Foucault, explicam em nota que agonismo é um
“neologismo usado por Foucault (...) baseado na palavra grega αγωυισμα que significa
‘um combate’. O termo sugeriria”, seguem os autores, “um combate físico no qual os
opositores desenvolvem uma estratégia de reação e de injúrias mútuas, como se
estivessem em uma sessão de luta” (idem: idem, nota 5). Assim, Foucault pensa uma
análise do poder como uma agonística e não como uma pacificação: é no combate, na
guerra, que se encontra a senha para o estudo do poder. Essa agonística orientadora do
estudo sobre o poder deveria produzir, para Foucault, um método de análise e não uma
teoria do poder. Foucault propõe algumas precauções de método que tinham como meta
produzir uma analítica do poder e não uma teoria global do poder, fato que seria
contrário à sua própria noção de poder, uma vez que não haveria redutor, síntese ou
protagonista do “Poder”, seu exercício não seria deduzido do aparelho estatal ou de
outras instituições e seus efeitos seriam tão múltiplos quantas incontáveis fossem as
situações concretas de exercício da força. Conforme aponta Machado, “não existe em
Foucault uma teoria geral do poder”, já que “não existe algo unitário e global chamado
poder, mas unicamente formas díspares, heterogêneas, em constante transformação”
(1998: X). Além da não-universalidade do objeto, o poder, a ausência de pretensão a
250
uma teoria do poder em Foucault se deve ao fato de que para o filósofo “toda teoria é
provisória, acidental, dependente de um estado de desenvolvimento da pesquisa que
aceita seus limites” (Machado, 1998: XI). Como em Foucault a produção de saberes é
inseparável do exercício do poder, que produzem verdades, apresentam os discursos
tidos como verdadeiros e condenam os mais débeis — em força e não em cientificidade
ou eficácia explicativa — os saberes são todos interessados, todos respondendo a
posições políticas, todos atravessados pelo posicionamento na guerra, no enfrentamento,
na vontade de afirmar uma verdade vencedora frente aos vencidos. “Entre técnicas de
saber e estratégias de poder”, afirma Foucault, “nenhuma exterioridade; mesmo que
cada um tenha seu papel específico e que se articulem entre si a partir de suas
diferenças” (1999: 93-94). Por isso, não seria pertinente para uma analítica fazer “a
distinção entre ciência e ideologia” (Machado, 1998: XXI), como se “ciência” fosse
indicativo de uma verdade verdadeira e “ideologia”, de conhecimento comprometido e,
portanto, parcial e falseado. Isso porque, “todo conhecimento, seja ele científico ou
ideológico, só pode existir a partir de condições políticas que são as condições para que
se formem tanto o sujeito quando os domínios de saber” (idem: idem). Em suma, a
relação poder-saber em Foucault explicita que “não há poder neutro; todo saber é
político” (idem).
Do mesmo modo que não há uma neutralidade na produção de qualquer saber,
tampouco haveria uma ontologia do poder, ou seja, não há uma essência única e
invariável do poder que o torne algo possível de ser universalmente “identificado,
localizado, manipulado e, por fim, nomeado” (Fonseca, 2003: 31). A tarefa teórica,
portanto, destinada isolar e hierarquizar objetos, catalogar fatos e encontrar fórmulas
explicativas válidas para decifrações globais, não se prestaria a uma noção de poder
como a desenvolvida por Foucault. Uma analítica, ao contrário, procuraria notar nas
251
relações de poder em sua concretude e localidade históricas, levando em consideração
os saberes em jogo, as forças políticas em disputa, as vontades de poder em combate.
Seria uma explicação sempre local e voltada para o embate das lutas, reconhecendo que
tanto o exercício do poder como a produção de saber não são unidirecionais ou neutras,
sendo, ao contrário, atravessados por intencionalidades. No entanto, tal perspectiva que
se coloca próxima ao acontecimento, à vista do exercício de força que se efetiva e das
resistências que suscita, não poderia ser mais que uma chave de leitura circunscrita.
Assim, para Foucault, “uma vez que uma teoria assume uma objetivação prévia,
ela não pode ser afirmada como uma base para um trabalho analítico” (1995: 232).
Contudo, para o filósofo, “este trabalho analítico não pode proceder sem uma
conceituação dos problemas tratados, conceituação esta que implica um pensamento
crítico — uma verificação constante” (idem: idem). Para tanto, tal conceituação deve
levar em consideração as condições históricas que a motivam: “necessitamos de uma
consciência histórica da situação presente” (Foucault, 1995: 232). Nesse sentido, a
identificação dos limites do modelo jurídico-político para o estudo do poder — que fez
com que Foucault buscasse outra noção de poder — não o poderia encaminhar para a
construção de uma teoria global, e sim para a formulação dessa analítica:
“uma teoria do poder supõe, de algum modo, a identificação de um objeto. Seu
ponto de partida seria a determinação de algo como o ‘ser’ do poder, a partir do
que, seria possível uma série de descrições de sua estrutura, suas regras de
funcionamento, seus efeitos. Uma analítica do poder, por outro lado, não parte da
pressuposição de uma essência, não procura definir ‘o’ poder, mas se limita a
perceber diferentes situações estratégicas a que se chama ‘poder’” (Fonseca,
2002: 95-96).
Por não reconhecer um objeto propriamente, mas situações estratégicas como
alvo de estudo, a analítica do poder não foi formulada por Foucault para responder à
questão “o que é o poder?”, mas sim a outra “como se exerce o poder?” (1995: 240). Se
não há essência do pode a ser flagrada, isolada e decifrada, então a pergunta “o que é?”
252
torna-se irrelevante. Por isso, para Foucault, o que interessa é o “como do poder”, ou
seja, “tentar apreender seus mecanismos entre dois pontos de referência ou dois limites:
de um lado, as regras de direito que delimitam formalmente o poder, de outro (...)
seriam os efeitos de verdade que esse poder produz, que esse poder conduz e que, por
sua vez, reconduzem esse poder” (2002: 28, grifo meu). Não se trataria, portanto, de
pensar como a filosofia política — de que modo o discurso da verdade pode limitar o
poder pelo direito — mas pesquisar “quais são as regras de direito de que lançam mão
as relações de poder para produzir discursos de verdade” (idem: idem) e, ao produzi-los,
elaborar dispositivos e práticas de governo. Isso porque, afirma Foucault, “só podemos
exercer poder mediante a produção de verdade”, o que estabelece o triângulo
poder/direito/verdade. Quatro anos depois, no curso Do governo dos vivos, Foucault
acrescentaria à necessidade de produzir verdade, a importância de manifestá-la, fazendo
“emergir o verdadeiro sobre o fundo do desconhecido, do invisível, sobre o fundo do
imprevisível” (2007: 275). Foucault chamou de alêthourgia esse conjunto de
“procedimentos possíveis, verbais ou não” (idem: 277) que conformam rituais de
manifestação do poder sem os quais não se governa. O exercício do poder, entrevisto na
articulação entre as regras de direito, os dispositivos de poder e os efeitos de verdade
sem os quais não se governa, não poderia ser perscrutado, segundo Foucault, por uma
teoria e sim por essa noção de analítica. A observação criteriosa dos jogos de força, dos
mecanismos de poder e dos discursos de verdade produzidos sobre o poder que se dá na
proximidade, no calor da batalha. Uma analítica que toma, portanto, a guerra como
instrumento de acesso para o estudo das relações de poder, na medida em que as
compreende como relações de força de tipo estratégico, com oponentes em constante
luta. A analítica do poder seria uma agonística das relações de força, a tomada de
posição numa perspectiva que nota as relações entre os homens como uma batalha
253
constante, fundadora e demolidora de idéias, práticas, instituições e subjetividades. Essa
perspectiva da política como luta, da vida social como batalha — que não se cala frente
ao Estado ou aos discursos do direito que pretendem ocultar o fato da conquista e o
cotidiano dos enfrentamentos — é, com precisão, chamada por Foucault de “hipótese de
Nietzsche”, mas poderia também ser chamada de “hipótese de Heráclito”, ou mesmo,
“hipótese de Proudhon”. Em todo caso, não se trata de estabelecer paternidades a esse
tipo de mirada — e não foi com esse intuito que Foucault se lembra de Nietzsche —,
mas sim de destacar que há uma perspectiva, uma série, que percebe a política não
como o negativo da guerra, como o momento de superação dos combates, ou como a
fuga da luta de todos contra todos. Uma série que responde a urgência que Foucault via
em “estudar o poder fora do modelo do Leviatã, fora do campo delimitado pela
soberania jurídica e pela instituição do Estado” (2002: 40). Tratava-se de afirmar outro
olhar, outra leitura da política que a tomasse em seus embates e a entendesse como
guerra permanente. Assim, o filósofo escolhe essa posição de combate para suas
investigações; considera que essa atitude metodológica é a que melhor lhe respondia às
urgências de sua pesquisa, de seus interesses. Mas não é só: tal posição foi, também,
uma declaração de guerra contra o discurso jurídico-político e a teoria da soberania,
uma deflagração de combate contra a filosofia política e as teorias contratualistas,
contra o princípio de “paz civil” em oposição à guerra como fato exterior e anterior à
política. Trata-se, enfim, de uma afronta analítica contra o solo comum, em termos
teóricos e metodológicos, no qual se desenvolveram as escolas liberal e realista das
Relações Internacionais.
O realismo e o liberalismo internacionalista partilham da noção de poder como
substância que se pode deter, represar, transferir. Por isso, estão na lógica “econômica”
de que fala Foucault, tratando o poder como uma coisa, um bem, que se pode possuir ou
254
alienar. Mais do que isso, ambas estão no campo da teoria da soberania que deduz o
poder do Estado e da lei e que neles vê a legitimidade e justiça do exercício da força,
entendida sempre como energia negativa, repressora, proibidora. Mesmo com suas
diferenças sobre quando e como a guerra poderia ser legitimamente utilizada, realistas e
liberais dividem a percepção de que o Estado não apenas faz parar a guerra como a
domestica perpetuamente — por isso, a guerra civil não poderia ser nada mais que uma
perigosa anomalia, a doença fatal do corpo civil apontada por Thomas Hobbes
34
. A
guerra fora do controle estatal, apartada dos limites da lei, significaria a possibilidade de
morte do Estado e, no limite, da humanidade. Portanto, a guerra é o alvo, a inimiga das
teorias internacionalistas que, por argumentos distintos, celebram a política como paz.
A perspectiva trabalhada por Foucault, ao contrário, investe na noção de que a política é
uma malha de relações de poder que se dão como nos embates e enfrentamentos de uma
guerra. Isso aconteceria porque o “poder” não seria algo, mas uma situação estratégica
— o embate infindável entre uma vontade de sujeitar e a resistência à sujeição —; e
pelo fato de que as relações de poder, que atravessam indivíduos e instituições, seriam
reconduções permanentes das guerras abertas; ou seja, os acontecimentos militares
produziriam — quando calam os canhões — situações estratégicas, vencedores e
vencidos em equilíbrio precário, em tensão constante, em guerra continuada. Tomar
metodologicamente essa postura significa assumir a política como guerra sem
possibilidade de pacificações; significa postar-se no campo de uma analítica que
percebe as teorias como efeitos de poder, efeitos da produção de verdade e, portanto,
parciais, distantes da neutralidade e sempre intencionadas politicamente. Implica, desse
modo, experimentar a mirada da guerra, a perspectiva dos combates, da agonística, e
34
Na célebre passagem da “Introdução” do Leviatã, em que faz uma analogia direta entre as partes do
“animal artificial” — o Estado — e as propriedades físicas e morais dos homens, Hobbes afirma que:
“(...) Salus Populi (a segurança do povo) é seu objetivo [do Leviatã], os conselheiros, (...) são sua
memória, a justiça e as leis, uma razão e uma vontade artificiais; a concórdia é a saúde; a sedição é a
doença; e a guerra civil é a morte” (1979: 05, grifos do autor).
255
não a da teoria e da pacificação. Incita a acompanhar Foucault quando dizia: “no
pensamento e na análise política ainda não cortaram a cabeça do rei” (1999: 86). As
teorias de Relações Internacionais não prescindem dessa cabeça. Fazem dela sua
referência e ponto de chegada. Aqui, ao contrário, pela perspectiva da política como
guerra e do poder como correlações de força, trata-se de ensaiar cortá-la, não para repô-
la com outra verdade de pretensão universal, mas para caminhar mais baixo, perto dos
combates, num mergulho que leve ao furor da batalha.
A infindável história das lutas
Os anos 1960 haviam produzido uma atitude, um modo de combate no campo
das práticas e dos saberes que, para Michel Foucault era algo importante, digno de ser
notado como uma verdadeira insurreição. Uma forma de visceralidade crítica que se
afastara da idéia de Revolução, do lugar da grande revolta, expressando-se por meio de
“ofensivas dispersas e descontínuas” (2002: 08). As rachaduras que minavam a
produção de verdades universais no campo da crítica — o marxismo do pós-Segunda
Guerra, em particular — foram invadidas, trespassadas, violadas por revoltas sem centro
e sem conversão a um novo centro, que tiveram sua mais significativa emergência nos
protestos estudantis que se desdobraram em contestações variadas e que acabaram
compondo o acontecimento Maio de 1968. Esse momento marcara o despontar de lutas
locais, visando alvos precisos e não o Estado ou o sistema econômico e de exploração
como um todo. Foram sublevações contra, entre outros, o discurso e as instituições
psiquiátricas, “a moral e a hierarquia sexual tradicional (...) o aparelho judiciário e
penal” (idem: 09) que, com “estranha eficácia” (idem: 08), abalaram seus adversários,
abriram brechas para exercícios de liberdade, afrouxaram dominações e apontaram para
256
a inutilidade e obsolescência não só dos lugares que tentavam unificar lutas — partidos,
sindicatos — como o esgotamento do próprio projeto de transformação global que
colocava frente ao poder soberano uma alternativa igualmente calcada no princípio do
poder soberano — a Revolução, o Estado proletário ou o reformismo democrático. Tais
ações e discursos, sem “nenhuma sistematização de conjunto” (idem: idem), não foram,
por isso, menos efetivos, menos contundentes. Para Foucault, essas lutas, pela declarada
vontade de não centralizar-se e pelo caráter libertário da crítica, afirmavam uma
“temática anarquista” (2002: 09) contra o “efeito inibidor próprio das teorias
totalitárias” (idem: 10).
As “teorias totalitárias”, como “o marxismo [e a] psicanálise” (idem), foram
confrontadas por uma “imensa e prolífera criticabilidade” (idem) que encontrou espaço
para emergir frente à incapacidade dos grandes marcos teóricos em oferecer
instrumentos de luta para os temas específicos e delimitados que foram sentidos como
alvos importantes por diversos segmentos sociais. Houve, assim, a afirmação da
validade, ou das inúmeras reivindicações de validade, do “caráter local da crítica” que,
nem por isso, deveriam ser confundidas com um “empirismo obtuso, ingênuo ou
simplório” ou ainda “ao ecletismo frouxo, oportunismo, permeabilidade a um
empreendimento teórico qualquer” (idem). Longe disso, a crítica local indicaria “uma
espécie de produção teórica autônoma, não centralizada, ou seja, que, para estabelecer
sua validade, não necessita da chancela de um regime comum” (idem: 11). Essa invasão
de saberes descentralizados era, para Foucault, efeito de “reviravoltas de saber”, da
ressurgência de saberes por meio de uma “insurreição de ‘saberes sujeitados’” (idem:
idem). Esses “saberes sujeitados” seriam duas coisas: em primeiro lugar, “conteúdos
históricos que foram sepultados, mascarados em coerências funcionais ou em
sistematizações formais” (idem); seriam também, “uma série de saberes que estavam
257
desqualificados como saberes não conceituais, como saberes insuficientemente
elaborados: saberes ingênuos, saberes hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do
nível do conhecimento ou da cientificidade requeridos” (idem: 12).
O interessante, no entanto, seria notar que essa posição de inferioridade não foi
impingida a tais saberes devido a uma “falha genética”, uma incapacidade explicativa,
uma má elaboração geral dos pressupostos, métodos e conceitos. Saberes seriam
sujeitados justamente porque assim foram colocados, pela violência particular de um
momento histórico, que os lançou para o fundo do palco, enquanto a boca de cena era
ocupada por saberes produzidos e manejados pelos vitoriosos numa dada relação de
forças e, por esse motivo, fixados como os verdadeiros, como os dotados de real
cientificidade. A debilidade do solo teórico dos anos 1960 tornou possível a emergência
de saberes sujeitados, explicitando uma história de infinitas batalhas, nas quais estava
em jogo a afirmação de saberes, de verdades e de discursos e a conseqüente sujeição de
tantos outros. Esses saberes sujeitados seriam, para Foucault, de duas ordens: de um
lado, “um conhecimento histórico meticuloso, erudito, exato, técnico” (2002: 12); de
outro lado, “saberes locais, singulares, (...) [saberes] das pessoas que são saberes sem
senso comum e que foram de certo modo colocados em repouso, quando não foram
efetiva e explicitamente mantidos sob tutela” (idem: idem). Segundo Foucault, as
condições histórico-políticas dos anos 1960 possibilitaram a entrada em cena desses
saberes sujeitados que, ao ressurgirem, tornaram visível uma história de combates,
explicitaram o que se tratava do “saber histórico das lutas” (idem: 13), faziam recordar
uma “memória dos combates” (idem) que os havia submetido, calado, feito retroceder.
Com sua existência, tais saberes insurretos afirmavam sua força não a partir de qualquer
“unanimidade” (idem: 12) ou valor de verdade mais correto ou transcendental, mas
apenas pela “contundência [com] que opõem a todos que [os] rodeiam” (idem: idem).
258
Apresentavam sem máscaras os efeitos de uma história de lutas e ganhavam eficácia
justamente pelo reconhecimento de que somente podiam valer-se de sua força,
potencializada por uma conjuntura histórica intrincada e múltipla, que tornou possível
novos arranjos de poder e equilíbrios precários.
A genealogia é, para Foucault, o método capaz de compreender o
reaparecimento desses saberes sujeitados. Um método e, por isso, não um princípio
unitário, mas um conjunto de “pesquisas genealógicas múltiplas”, possíveis pelo
“acoplamento dos conhecimentos eruditos e das memórias locais [que permitiu] a
constituição de um saber histórico das lutas e a utilização desse saber nas táticas atuais”
(2002: 13). Essa genealogia, portanto, seria um instrumento pelo qual os saberes
sujeitados poderiam recuperar vigor, aproveitando fendas conjunturais, de modo a
afrontar os saberes que os haviam proscrito ou emudecido. Ainda que desnudasse a
pretensa neutralidade e a suposta validade das teorias unitárias e globais, investindo nos
saberes quase esquecidos e nos alvos locais, o fazer genealógico não era, para Foucault,
“um empirismo (...); tampouco um positivismo, no sentido comum do
termo, que o segue. Trata-se, na verdade, de fazer que intervenham
saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a
instância teórica unitária que pretende filtrá-los, hierarquizá-los, ordená-
los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome de uma ciência
que seria possuída por alguns” (Foucault, 2002: 13).
As genealogias, no plural, seriam uma anticiência, não no sentido da falta de
método ou rigor, ou no elogio da ignorância, mas enquanto rechaço veemente às
ciências que se afirmam universais, filiadas ao rei, à lei e aos efeitos globais de governo.
As genealogias seriam uma anticiência porque se colocariam como insurreições contra
os “efeitos centralizadores de poder que são vinculados à instituição e ao funcionamento
de um discurso científico organizado em uma sociedade como a nossa” (idem: 14).
Tratar-se-ia, então, de assumir uma posição de combate que significaria um esforço para
259
“dessujeitar os saberes históricos e torná-los livres, isto é, capazes de oposição e de luta
contra a coerção de um discurso teórico unitário, formal e científico” (idem: 15). A
tarefa de genealogia seria a de reativar os saberes sujeitados para que pudessem seguir
seus percursos de afrontas. Não implicaria, portanto, em um projeto de ressuscitar
saberes, ordenando-os em torno de um novo programa global. O fazer genealógico não
reivindicaria um status teórico, mas instigaria saberes que são conscientes de sua
localidade e parcialidade, ou seja, que se reconhecem como efeitos de batalhas e que
expressam uma vontade de combate nessa batalha. Esses saberes, no entanto, não
seriam “puros” ou “incorruptíveis” por terem sido derrotados em épocas anteriores: não
são vítimas, mas discursos que se embrenham na luta e que podem, inclusive, ser
“recodificados, recolonizados por esses discursos unitários” a quem declaram guerra e
que, depois de desqualificá-los poderiam, diante de seu retorno, “anexá-los e (...)
retomá-los em seu próprio discurso e em seus próprios efeitos de saber e poder” (2002:
17).
Foucault interessava-se em destacar essa vitalidade dos saberes sujeitados, sua
ressurgência insurreta, porque ele próprio vinha dedicando-se a um projeto genealógico
referente ao poder: uma genealogia do poder que, segundo Machado, “surgiu em um
determinado momento de suas pesquisas, assinalando uma reformulação de objetivos
teóricos e políticos que, se não estavam ausentes dos primeiros livros, ao menos não
eram explicitamente colocados” (1998: VII) em suas investigações anteriores. Esse
momento foi o início dos anos 1970, quando Foucault ingressou como professor no
Collège de France, ao mesmo tempo em que se envolveu diretamente em questões
relacionadas às lutas locais a que viria se referir, com destaque para seu protagonismo
no Grupo de Informação sobre as Prisões (GIP), ação de 1971 que reuniu intelectuais e
ativistas que buscaram ir além da mera denúncia das condições carcerárias na França,
260
colaborando para que os próprios presos pudessem tomar a palavra e manifestar suas
reivindicações e demandas (Foucault, 2003: 01-03).
O interesse de Foucault em estudar como as relações de poder se constituíam
efetivamente, fora do discurso jurídico-político, levou-o a procurar um método de
estudo dos enfrentamentos, das batalhas e não da alegoria de pacificação presente na
teoria da soberania. Um método que reconhecesse a natureza relacional do poder, sua
realidade agonística; um método que tomasse o princípio da luta de modo a embasar
uma perspectiva que viria a ser sua analítica do poder pela ótica da guerra. E não foi
aleatório o fato de Foucault haver nomeado sua perspectiva de análise como “hipótese
de Nietzsche”: seu método, que é também uma tática de luta, foi elaborado a partir da
noção nietzschiana de genealogia que o filósofo francês sistematizou no artigo
“Nietzsche, a genealogia e a história”, publicado em 1971. Nele, Foucault recorre a
Nietzsche, interessado em encontrar uma forma de fazer com que o saber histórico não
se circunscrevesse à História laudatória dos poderes constituídos, à “história
monumental” (1998b: 34), teleológica e de pretensão universal, que tanto o filósofo
alemão havia combatido. Foucault sublinha o que Nietzsche havia chamado de “história
efetiva”, aquela construída pelo genealogista e não pelo grande historiador. Essa
“história efetiva” seria aquela que, diferentemente da História, não se apoiaria em
nenhum absoluto, nenhuma verdade universal e não pretenderia reconstruir um passado
que, sem descontinuidade alguma, fosse o caminho que inevitavelmente — e sem
percalços — teria constituído o presente. E, a partir disso, poder pensar uma história que
levasse em consideração os jogos de força, as batalhas, as conquistas que fizeram de
alguns protagonistas e de outros sujeitos sujeitados, que afirmaram certos discursos de
verdade enquanto lançavam outros à sombra.
261
Segundo Foucault, Nietzsche reprovava os historiadores de sua época pelo afã
em encontrar origens definidas para os valores humanos, começos claramente
identificáveis para os povos e raças, momentos de fundação solenes e que neles próprios
já contivessem toda a verdade sobre um valor, sobre um princípio ou idéia, sobre um
povo, raça ou dinastia; de modo que o passar dos séculos fosse uma mera continuidade
a ligar, sem sobressaltos, o passado distante ao presente. Essa história, a grande
História, se esforçaria para encontrar na origem “a essência exata da coisa, sua mais
pura possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma
imóvel e anterior a tudo o que é externo, acidental, sucessivo” (Foucault, 1998b: 17). Os
historiadores dessa História estariam preocupados apenas em identificar absolutos e leis
invariáveis, ignorando todas as ações que modificam as coisas, tomando cada senão
como um mero acidente casual. No entanto, para Nietzsche, não haveria uma verdade
pura escondida em um início demarcável e que ainda hoje seria visível. Os começos na
história não seriam supremos anúncios de algo que nasce em sua forma soberba, mas ao
contrário, estariam envoltos em vilanias, acasos, erros: “o começo histórico é baixo.
Não no sentido de modesto ou discreto (...) mas de derrisório, de irônico, próprio a
desfazer todas as enfatuações” (Foucault, 1998b: 18). Seria preciso, então, refutar essas
três imposições da metafísica: considerar que há uma origem única para as coisas, os
valores, conhecimentos, povos; acreditar que nessa origem estaria a verdade absoluta à
espera para ser decifrada; e que os começos de tudo são altos instantes de celebração e
não momentos mesquinhos banhados a sangue em lutas e sujeições. Foucault lembra
passagem de Nietzsche em A genealogia da moral na qual o filósofo alemão lembra os
começos belicosos, inglórios de tudo que hoje é mais comemorado em sua grandeza: “é
nesta esfera que têm origem os conceitos morais de ‘falta’, ‘consciência’, ‘dever’,
‘santidade do dever’. Estas idéias, como tudo o que é grande sobre a terra, foram
262
regadas com sangue. E não poderíamos dizer que este mundo nunca perdeu de todo
certo cheiro a sangue e a tormentos?” (1998: 63, II § VI). Nietzsche rechaça, portanto, a
noção de origem, reconhecendo uma diversidade incontável de origens, sempre mais ou
menos violentas e vergonhosas. Buscar a glória na origem é uma tolice que merece, no
máximo, a ironia: “antigamente buscava-se chegar ao sentimento de grandeza do
homem apontando para a sua procedência divina: isso agora é um caminho interditado,
pois à sua porta se acha o macaco” (2004: 43, § 49, grifo do autor).
O genealogista, para “conjurar a quimera da origem” (Foucault, 1998b: 19) não
repetiria o historiador metafísico, visando a origem das coisas, “negligenciando como
inacessíveis todos os episódios da história” (idem: idem). Ao contrário, o fazer
genealógico procuraria “se demorar nas meticulosidades e nos acasos dos começos;
prestar uma atenção escrupulosa à sua derrisória maldade; esperar vê-los surgir,
máscaras enfim retiradas, com o rosto do outro; não ter pudor de ir procurá-las lá onde
elas estão, escavando os basfond” (Foucault 1998b: idem). O genealogista deve
mergulhar no desprezível, no esquecido, no apagado.
Conforme Foucault, essa origem essencialista é tratada na obra de Nietzsche
pelo termo Ursprung, no sentido de “fundamento originário” (1998b: 16). Contra ela, o
filósofo alemão contraporia duas outras noções: Herkunft — proveniência — e
Entestehung — emergência (idem: 20). Em seu sentido mais antigo, Herkunft estaria
relacionado ao pertencimento a um grupo — raça ou tradição — mas, ao invés de
significar um conjunto de características que individualizassem um sujeito, “longe de
ser uma categoria de semelhança” (idem: idem), ela indicaria “todas as marcas
diferentes” (idem) que nele se cruzaram deixando sinais. Diferente da história
metafísica, a noção de Herkunft suporia uma história plena de descontinuidades, de
rupturas, de obstáculos. Acompanhar uma procedência implicaria “demarcar os
263
acidentes, os ínfimos desvios — ou ao contrário as inversões completas — os erros, as
falhas de apreciação, os maus cálculos que deram nascimento ao que existe e em valor
para nós” (idem: 21). A investigação da proveniência, continua Foucault, “não funda,
muito pelo contrário: ela agita o que se percebia imóvel, ela fragmenta o que se pensava
unido; ela mostra a heterogeneidade do que se imagina em conformidade consigo
mesmo” (idem: idem). Essa história, capturada pela observação das proveniências,
estaria escrita diretamente no corpo dos indivíduos, entendidos não apenas como seres
fisiológicos, já que os gestos, os hábitos e, por vezes, as marcas físicas seriam inscrições
de um sem-número de ações de força pelas quais esse homem e seus antecessores
passaram: “o tornar-se arrasta atrás de si o haver sido” (Nietzsche, 2004: 44, § 49). Por
isso, afirma Foucault, “a genealogia, como análise da proveniência, está portanto no
ponto de articulação do corpo com a história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente
marcado de história e a história arruinando o corpo” (1998b: 22).
A análise da Herkunft deveria mostrar o jogo entre as forças ao longo da história,
mostrando o perpétuo círculo das lutas, vitórias e sujeições. Mostrando, enfim, a
descontinuidade da história dos povos e valores dada pelos cortes, rasgos, interrupções,
desvios e reativações determinados pelos combates entre vontades de governo, verdades
produzidas, resistências, insurreições. Cada uma dessas batalhas indicaria um desses
infindáveis começos; cada um desses começos seria uma emergência singular, um
Entestehung, formado por um particular arranjo de forças: os dominantes ao passarem
por uma debilidade qualquer abrem espaço para contra-ataques, que vêm pela violência,
pela formulação ou ressurgência de discursos calados, por uma inversão das relações de
força. A emergência é a “entrada em cena das forças, é sua interrupção, o salto pela qual
elas passam dos bastidores para o teatro, cada uma com seu vigor e sua própria
juventude” (Foucault, idem: 24). A Herkunft serviria como instrumento de observação
264
dos momentos de debilidade de uns e fortaleza de outros, que precipitariam uma
Entestehung particular, entendida não como um lugar definido para a luta, mas “um
‘não-lugar’, uma pura distância, [a explicitação do] fato que os adversários não
pertencem ao mesmo espaço” (idem: idem). Nesse ponto, é importante notar o esquema
binário de enfrentamento — os oponentes — que é a base do prinpio genealógico: há
uma afronta, um combate; por isso a genealogia é um pensamento guerreiro, uma
metodologia que toma a guerra como fato elementar a conferir inteligibilidade às
relações humanas. Por isso, a analítica do poder em Foucault pode ser entendida como
uma agonística, como o esquema luta/insubmissão ou como a “hipótese de Nietzsche”.
A tensão entre as forças, proveniente de outros espaços e tempos e cristalizada
precariamente em um Entestehung, estabelece regras, “impõem obrigações e direitos,
(...) constitui cuidadosos procedimentos” (Foucault, 1998b: 25). Cada conjunto de
regras fixado é a manifestação de uma vitória e, por isso, seria “um erro acreditar,
segundo o esquema tradicional, que a guerra geral, se esgotando em suas próprias
contradições, acaba por renunciar à violência e aceita sua própria supressão nas leis da
paz civil” (idem: idem). A regra, a lei civil, “permite reativar sem cessar o jogo da
dominação; ela põe em cena uma violência meticulosamente repetida” (idem). As regras
não substituem, portanto, a guerra; ao contrário, cada sistema de regras é uma
emergência que configura uma determinada correlação de forças que faz calar a grande
batalha reconduzindo-a nas leis e instituições. E seria a própria perspectiva do sujeitado
que poderia a um novo revés da história, promovido por novos combates, outras
insurreições que apresentariam outro Entestehung com a imposição de novas leis. Por
isso, as regras não teriam qualquer valor em si mesmas: “elas são feitas para servir a isto
ou àquilo”, e “o grande jogo da história será de quem se apoderar das regras, de quem
tomar o lugar daqueles que as utilizam, de quem se disfarçar para pervertê-las, utilizá-
265
las ao inverso e voltá-las contra aqueles que as tinham imposto” (idem). Assim, a
genealogia seria a história dessa infindável sucessão de apreensões violentas de regras,
de dominações reversíveis, de saberes e forças subjugadas que se levantam pelas
brechas e vulnerabilidade de quem governa.
Por introduzir esse descontínuo na história, advindo das lutas incessantes, a
genealogia operaria como uma “história efetiva”, livre da metafísica e reconhecendo na
guerra o motor da história. A “história efetiva” buscaria, numa leitura longitudinal,
apreender as descontinuidades da Herkunft, ao passo que por meio de incontáveis cortes
verticais poderia estancar — para fins de análise — as emergências com seus
acontecimentos. Um acontecimento seria “uma relação de forças que se inverte, um
poder confiscado, um vocabulário retomado voltado contra seus utilizadores, uma
dominação que se enfraquece, se distende, se envenena e outra que faz sua entrada,
mascarada” (Foucault, 1998b: 28). Cada emergência com seus acontecimentos seria
apenas a situação presente de uma guerra sem fim — sem finalidade e sem termo. As
finalidades, sempre no plural, seriam locais, respondendo aos interesses das forças em
luta. Por esse motivo, o saber genealógico deve estar perto de seu objeto, perto das
relações de poder que lhe mobilizam, deve olhar para cada emergência com interesse
prospectivo: “a história ‘efetiva’ (...) lança seus olhares ao que está próximo: ao corpo, o
sistema nervoso, os alimentos, a digestão, as energias; ela perscruta as decadências; e se
afronta outras épocas é com a suspeita — não rancorosa, mas alegre — de uma agitação
bárbara e inconfessável” (idem: 29). Em suma, a genealogia tem como alvo os
momentos em que a luta se apresenta; visa compreender as forças em luta, entender seus
motivos, suas violências, suas intencionalidades, o vigor de suas resistências.
No entanto, a genealogia não visa apenas observar e compreender as forças em
luta em um determinado acontecimento. Segundo Fonseca, “as genealogias realizariam,
266
propriamente, a insurreição dos saberes sujeitados como parte de uma estratégia de
poder. Longe de ser apenas um procedimento teórico-metodológico, seria também uma
estratégia engajada de poder” (2002: 100-101). O fazer genealógico, assim, ativaria
saberes sujeitados, não como mera curiosidade erudita, mas com a intenção de fazê-los
avançar contra os saberes e práticas dominantes. Trata-se, assim, de uma história do
presente, interessada não no passado como fornecedor de caracteres para a formação
integral do tempo presente, mas no passado como espaço descontínuo que revela as
lutas no presente. Por esse motivo a genealogia é um “saber histórico das lutas”, como
afirma Foucault. Ela é um saber interessado no presente, nos vestígios de guerras
passadas e nas atuais relações de poder que têm a potência para fazer antigos combates
emergirem sob novas formas, com novos conteúdos, com novas e antigas armas. Assim,
a genealogia não é apenas um método de leitura das relações de força, mas também uma
“tática que faz intervir, a partir dessas discursividades locais assim descritas, os saberes
dessujeitados que daí se desprendem” (Foucault, 2002: 16). O fazer genealógico, desse
modo, um método-arma voltado para o combate, um instrumento para que saberes
sujeitados tomem espaços, revertam situações de poder, constituam “estratégias de
confronto” (Foucault, 1995: 248).
Por ser local e imiscuída no combate, a genealogia é o que Foucault chama de
um saber perspectivo. Enquanto os historiadores — os vinculados à História — se
esforçam para anularem-se como sujeitos interessados, aparentando portar uma
“consciência histórica (...) neutra, despojada de toda paixão, apenas obstinada com a
verdade” (Foucault, 1998b: 35), o genealogista admite sua parcialidade e envolvimento,
ainda que isso não signifique, como comentado anteriormente, falta de critério ou
lassidão. O genealogista não oculta que todo conhecimento “repousa sobre uma
injustiça” (idem: idem), que decorre de uma violência e da sujeição de outros saberes. Já
267
um saber perspectivo, como o indicado por Nietzsche, olharia, segundo Foucault, “de
um determinado ângulo, com o propósito deliberado de apreciar, de dizer sim ou não, de
seguir os traços do veneno, de encontrar o melhor antídoto” (idem: 30).
A perspectiva genealógica em Foucault lhe permite pensar uma analítica do
poder como saber local, uma antiteoria ou uma anticiência, um método de estudo das
relações de força baseado na lógica binária da guerra: no enfrentamento, nas sujeições e
resistências. No entanto, seria uma lógica binária multidimensional, uma vez que não
haveria apenas uma oposição estanque entre dois blocos — dominantes e dominados —
pensados exclusivamente a partir do referencial jurídico-político. Se, de fato, há as
grandes configurações de poder, elas estariam montadas sobre — e atravessadas por —
uma infinidade de lutas locais. Uma vez que o poder não venha apenas de um centro —
o Estado ou outra fonte — e seja produtivo e não apenas repressivo, haveria toda uma
malha de relações de força que configurariam um determinado momento, com um
determinado equilíbrio ou desequilíbrio de forças. Nesses momentos, o genealogista,
próximo dos dispositivos de poder que lhe interessam, poderia encontrar as forças em
conflito, no exato momento em que as ações de governo encontram resistências. O saber
genealógico, nesse contexto, poderia ser apropriado por muitos combatentes, que
buscariam justificar suas posições, reivindicar suas verdades, tentar reverter sujeições.
O genealogista, próximo ao embate e assumindo uma perspectiva, não poderia
reivindicar inocência ou imparcialidade por reconhecer que o campo no qual adentra é
um campo de batalha e, no nível do combate, não há neutralidade.
A genealogia, ativadora de uma analítica do poder, é um método em combate e
que problematiza as intencionalidades de poder das teorias, da ciência. Segundo
Foucault, seria preciso “se interrogar sobre a ambição de poder que a pretensão de ser
uma ciência traz consigo” (2002: 15), ou seja, lançar um desafio às teorias que se filiam
268
aos transcendentais e à busca pelo absoluto e pelo Universal para que exibam suas
marcas, assumam suas perspectivas, tenham a coragem de combater sem máscaras.
Quando se está num projeto de problematização de uma área teórica com a das Relações
Internacionais, a tarefa pode aparentar ser mais simples, na medida em que são
conhecidas as proximidades entre os principais teóricos — tanto na série realista quanto
liberal — com os aparatos de governo, think tanks, empresas trasnacionais. Aparência
enganosa, já que os mais destacados teóricos não explicitaram claramente suas
intencionalidades e continuaram ambicionando construir teorias globais baseadas em
conceitos absolutos, como os de poder, Estado e política (entendida como paz civil).
Nesse sentido, o exemplo de Hans Morgenthau é interessante: apesar de ter sido
colaborador ativo do governo estadunidense, entre finais dos anos 1940 e começos dos
anos 1960, e ter afirmado a importância dos EUA como garantes de um equilíbrio de
poder mundial, o realista alemão apresentou sua “teoria realista da política
internacional” como um conjunto de conceitos que viesse a “enfatizar elementos
racionais da realidade política, pois são esses mesmos elementos racionais que tornam a
realidade inteligível para a teoria” (2003: 15).
Morgenthau considerava que seu conceito de “interesse definido como poder
constitui uma categoria objetiva que é universalmente válida” (idem: 16). O que
conferiria validade teórica ao conceito de interesse seria sua onipresença na
preocupação dos Estados: todos eles, independente do tamanho e da época, visariam sua
própria sobrevivência e uma possível expansão. O teórico poderia acessar as bases da
formulação de política exterior de um país observando seus movimentos e, com a chave
do “interesse”, poderia avaliar quais seriam as intenções desse Estado. Segundo
Morgenthau, “raciocinando em termos de interesse definido como poder, passamos a
pensar como ele [o estadista]. Na qualidade de observadores desinteressados,
269
compreendemos seus pensamentos e ações talvez melhor até mesmo do que ele próprio,
que é ator na cena política” (2003: 07, grifos meus). Essa capacidade assombrosa de
decifração seria possível, em suma, porque “a noção de interesse faz parte realmente da
essência da política, motivo por que não se vê afetada pelas circunstâncias de tempo de
lugar” (idem: 16-17, grifos meus). Morgenthau acreditou ter descoberto um instrumento
de leitura com validade universal que possibilitaria ao aplicador definir a realidade da
política internacional com o máximo de precisão possível, o que lhe daria capacidade de
compreender as relações internacionais e autoridade para aconselhar os tomadores de
decisão. Nessa reflexão de Morgenthau estão os elementos de invariância e
universalidade contra os quais a genealogia se opõe. Em seu realismo, há conceitos
transcendentais de poder, de interesse e de Estado que permitiriam ver,
anacronicamente, uma proximidade entre as relações exteriores dos EUA na Guerra Fria
ou de Atenas durante a Guerra do Peloponeso.
Morgenthau fala em validade universal, essência, realidade política, ou seja, em
todos os transcendentais que a “história efetiva” enfrenta a fim de exibir a concretude
das lutas. O realismo de Morgenthau é uma teoria filiada à lógica da soberania e que se
apresenta como neutra apesar de seus vínculos e de sua racionalidade. Não é apenas
porque Morgenthau esteve ligado ao aparelho de Estado estadunidense que seu realismo
é interessado politicamente. Ele o é, principalmente, pela filiação ao campo jurídico-
político e por apresentar uma evidente pretensão de ciência que, tal como apresentada
por Foucault, explicita uma “ambição de poder” (2002: 15). Seu realismo está próximo
do rei e a serviço dele, ainda que se apresente como um instrumento de leitura imparcial
da realidade. Com essa suposta imparcialidade, Morgenthau naturaliza a existência do
Estado, apresentando-o como um dado e não como um efeito heterogêneo de lutas. Ao
mostrá-lo nessa forma, Morgenthau alinha-se ao pensamento do direito/soberano que
270
busca apagar o fato da conquista, exibindo a ordem política e social como uma paz
civil; como uma domesticação das violências pelo monopólio da coerção pelo Estado,
como a negação da guerra — vista apenas como a forma de violência que se pode dar na
ausência do Estado ou por intermédio dele.
Uma analítica do poder se propõe a outros percursos, a uma outra mirada, a da
guerra permanente, sem possibilidade de pacificação no Estado ou em uma ordem
superior. Por isso, tal analítica, ativada pela perspectiva genealógica, não pode ser
entendida como uma “espécie de realismo” pelo fato de afirmar seu observatório na
guerra. Ao contrário, o realismo funda sua perspectiva na paz, entendendo a guerra
como instrumento de Estado destinado à preservação do próprio e para o
estabelecimento de uma “paz negativa” internacional por meio do equilíbrio de poder. A
política não é guerra para o realismo, mas uma situação de paz civil, que poderia ser
chamada aqui de uma “paz armada” na medida em que seria mantida pelo exercício de
um poder meramente descendente e repressivo — vindo do Estado sobre a sociedade e
os indivíduos — que garantiria o respeito à lei. A perspectiva da guerra é essa que
considera as relações de poder como correlações de força, segundo o esquema binário
do enfrentamento. Nesse plano do agonismo das relações de poder, não caberiam
transcendentais, como a própria idéia de paz — perpétua ou efêmera. No entanto, uma
noção de guerra perpétua tampouco seria outro transcendental pelo fato de que não
haveria um essencialismo nesses atos de guerra, mas apenas os embates, sempre
concretos e singulares, locais e não-universalizáveis. Essa guerra não seria algo, uma
coisa, um objeto claramente isolável. Ela seria uma quantidade infindável de situações
estratégicas que fariam sentido apenas nos acontecimentos nos quais se enredassem.
Pensar o campo das relações internacionais pela perspectiva genealógica seria a
tentativa de esboçar uma analítica das relações internacionais, que não alimentaria uma
271
vontade de ciência, mas, ao contrário, aconteceria no plano das insurreições contra a
coerção do discurso teórico unitário, contra os grandes esquemas transcendentais no
prisma realista ou liberal. Seria uma experimentação de análise no nível das forças, dos
embates, das batalhas: um interesse em perscrutar o exercício do poder livre dos
referenciais da teoria da soberania que norteiam as abordagens internacionalistas
tradicionais. Se as relações que se dão no campo internacional são variadas relações de
poder, tal analítica buscaria a multiplicidade de forças em luta, as intencionalidades
motoras nos discursos grandiloqüentes, os efeitos globais de ações locais, os
desdobramentos locais de grandes arranjos macroscópicos. Nesse campo da agonística
haveria uma vitalidade outra no estudo das relações internacionais, desvencilhada do
elogio ao Estado e do compromisso mascarado com posições de poder. Por que apenas
o caminho único das teorias derivadas da lógica do direito e da soberania para estudar as
relações internacionais? Por que não poderia haver estudo crítico, sério e meticuloso
apartado das teorias consagradas? Por que a coerção dessas teorias é inquestionável?
Sendo o poder um nome precário que se dá a situações estratégicas — e a política essa
malha de correlações de força —, a política internacional não seria um campo possível
de ser rastreado por uma analítica do poder? Se a política é guerra, a política
internacional — como campo que não pode ser isolado dos feixes de poder que
atravessam Estados, conglomerados de Estados, organizações internacionais, alianças,
etc. — não poderia ser interpelada pela lógica binária do combate? Uma lógica da
guerra que não visasse equilíbrios de poder ou pacificações perpétuas?
Nietzsche afirmou que “a força do agressor tem na oposição de que precisa uma
espécie de medida; todo crescimento se revela na procura de um poderoso adversário —
ou problema: pois um filósofo guerreiro provoca também os problemas ao duelo”
(2004a: 32, grifo do autor). Numa dimensão muito mais local, uma possível analítica
272
das relações internacionais provocaria as teorias de Relações Internacionais ao duelo,
não para substituí-las, mas para liberar um espaço de estudos, um espaço de
problematização não sujeitado a elas; encontraria nelas seu inimigo, a medida de sua
força, para experimentar uma perspectiva que não é compromissada com o
transcendental, o universal, o Estado, o direito, o soberano ou a neutralidade, mas que
assume outro comprometimento que é com a luta, com a análise sempre inacabada e
sujeita às relações de guerra em que se imiscui. Uma analítica das relações
internacionais estaria em movimento constante, sempre inacabada e tensionada pelas
relações de força que procura compreender. Tal analítica, em revolta permanente,
viveria no calor da batalha, revolvendo o que se crê inerte, pacificado, vitorioso e
imóvel.
273
Quinto Capítulo
História-política e política internacional
O discurso histórico-político contra a alegoria da paz
Pela analítica do poder, Foucault pôde apresentar uma perspectiva distinta
daquela oferecida pelas leituras tradicionais do poder, vinculadas à teoria da soberania;
uma visada que tomou a guerra como princípio de análise das relações de poder tanto
em suas incontáveis dimensões locais — as ações sobre ações —, quanto em seus
efeitos mais globais e institucionais de governo. Por esse ângulo, seria possível pensar
as relações de força como situações estratégicas e, portanto, como relações de guerra.
Foucault se perguntava, no curso Em defesa da sociedade, se “sob a paz, a ordem, a
riqueza, a autoridade, sob a ordem calma das subordinações, sob o Estado, sob os
aparelhos de Estado, sob as leis, etc., devemos entender e redescobrir uma espécie de
guerra primitiva e permanente?” (2002: 53). Ou seja, se sob isso que o discurso
jurídico-político, que a filosofia política e as teses contratualistas, consagraram como
paz civil, não haveria uma guerra inesgotável entre grupos, entre indivíduos e entre o
Estado e o conjunto de pessoas que buscava governar. Em outras palavras, se a guerra
não seria a força aglutinadora disso que se chama sociedade civil, a energia que teria
dado coesão ao Estado, à ordem político-jurídica e às relações de produção? Foucault se
questionava se os elementos tratados pela arte da guerra, nos séculos XVIII e XIX, — a
tática e a estratégia — não poderiam ser convertidos em instrumentos de leitura das
relações de sociais como um todo e não apenas como recursos aplicáveis às
movimentações de exércitos nas batalhas entre Estados. Em suma, se a guerra não
274
poderia ser um modelo analítico para as relações de poder. Admitindo que sim, Foucault
passou a outra questão: “desde quando, como, por que se imaginou que uma espécie de
combate ininterrupto perturba a paz e que, finalmente, a ordem civil (...) é uma ordem
de batalha?” (idem: 54). “Quem enxergou a guerra”, perguntou-se Foucault, “como
filigrana da paz; quem procurou, no barulho da confusão da guerra, quem procurou na
lama das batalhas, o princípio de inteligibilidade da ordem, do Estado, de suas
instituições e sua história?” (idem: idem). Em que momento, e por quais vozes,
manifestou-se essa dimensão da batalha como via de acesso à compreensão da vida
social, da política? Seria possível, enfim, demarcar a emergência desse discurso na
época moderna?
Segundo Foucault, quase simultaneamente à afirmação do discurso jurídico-
político que deu substrato e buscou construir a verdade, a unidade e a legitimidade do
poder monárquico frente à multiplicidade de poderes locais medievais, emergiu na
Europa ocidental uma forma de discurso que o filósofo chama de histórico-político e
que seria “um discurso sobre a guerra entendida como relação social permanente, como
fundamento indelével de todas as relações e de todas as instituões de poder” (2002:
56). Esse discurso histórico-político, segundo Foucault, foi formulado, inicialmente, por
volta do século XVII, na Inglaterra e na França, após o encerramento das guerras civis e
de religião que marcaram a Europa ocidental no século XVI. Ele desponta na época da
revolução burguesa inglesa, no século XVII, e “no fim do reinado de Luís XIV [na
França], noutras lutas políticas — digamos, as lutas da retaguarda da aristocracia
francesa contra o restabelecimento da grande monarquia absoluta e administrativa”
(idem: 56-57). Esse discurso teria sido muito heterogêneo e ambíguo, sendo manejado
por grupos e posicionamentos políticos de diferentes matizes e objetivos: “na Inglaterra,
ele foi um dos instrumentos de luta, de polêmica e de organização política dos grupos
275
políticos burgueses, pequeno-burgueses e eventualmente mesmo populares, contra a
monarquia absoluta” (idem: 57). Na França, foi usado pela aristocracia colocada sob
tutela da monarquia absoluta contra o soberano, em defesa de antigos privilégios
perdidos. Além deles, o discurso histórico-político seria utilizado, também, pelos
“biólogos racistas e eugenistas” (idem: 58) europeus no século XIX na identificação de
sub-raças e degenerescências como ameaças à vida social. Portanto, esse discurso
histórico-político serviu como arma polivalente, manejada em diversas lutas e com
propósitos distintos.
No entanto, qual seria seu denominador comum? Segundo Foucault, o elemento
fundamental desse discurso seria o de que a política era, tão-somente, outra forma de
guerra, uma guerra permanente com vitoriosos e sujeitados: para os partidários dessa
perspectiva e “contrariamente ao que diz a teoria filosófico-jurídica, o poder político
não começa quando cessa a guerra. A organização, a estrutura jurídica do poder, dos
Estados, das monarquias, das sociedades, não têm seu princípio no ponto em que cessa
o ruído das armas” (idem: idem). Na dimensão histórico-política, a guerra seria a
parteira do Estado e, mais que isso, teria permanecido inscrita nele, nas suas leis e
instituições: “o direito, a paz, as leis nasceram no sangue e na lama das batalhas”
(Foucault, 2002: 58). Essas batalhas fundadoras do Estado e das leis não teriam sido
combates ideais, alegóricos, fictícios, mas concretas e históricas guerras que definiram
vencedores que, por sua vez, formularam suas leis como as regras gerais de
ordenamento desse novo arranjo de forças emerso das batalhas. As leis não teriam
nascido do livre acordo entre os homens que decidiram sair de um estado natural. Ao
contrário, para o discurso histórico-político, “a lei nasce das batalhas reais, das vitórias,
dos massacres, das conquistas (...); a lei nasce das cidades incendiadas, das terras
devastadas” (idem: idem). Por isso, a formação do Estado com suas leis e da sociedade
276
civil com sua organização não seriam “o armistício dessas guerras, ou a sanção
definitiva das vitórias” (idem: 59). A lei, em tal leitura, não seria a pacificação pregada
pelos juristas, mas a recondução do fato da conquista nas instituições e relações de
poder produzidas pela guerra. Depois da guerra, portanto, a continuação da guerra.
Segundo Foucault, os partidários do discurso histórico-político entediam que a guerra
era
“o motor das instituições e da ordem: a paz, na menor de suas
engrenagens, faz surdamente a guerra. Em outras palavras, cumpre
decifrar a guerra sob a paz: a guerra é a cifra mesma da paz. Portanto,
estamos em guerra uns contra os outros; uma frente de batalha perpassa a
sociedade inteira, contínua e permanentemente, e é essa frente de batalha
que coloca cada um de nós num campo ou no outro. Não há sujeito
neutro. Somos forçosamente adversários de alguém” (Foucault, 2002: 59,
grifos meus).
A dimensão histórico-política introduz uma forma de interpretar a sociedade que
é muito diferente daquela apresentada pelo discurso jurídico-político. Não é a Natureza,
nem a vontade dos homens, livremente acordada, que teria estabelecido a ordem política
e social em que se vive. Ela seria, ao contrário, produto de uma guerra que subsistiria
após o fim da violência explícita do campo de batalha, de uma guerra que restaria ativa
apesar das leis e dos juristas terem dito o contrário. No lugar de uma imagem pacificada
da sociedade civil, da imagem orgânica veiculada com tanta clareza por Hobbes e seu
Leviatã como homem artificial, haveria sempre duas forças em duelo: “dois grupos,
duas categorias de indivíduos, dois exércitos em confronto” (Foucault, 2002: 59).
Conforme Foucault, esse discurso ativa uma lógica binária que “perpassa a sociedade”
(idem). E a lógica binária é, justamente, a do enfrentamento, a lógica da guerra. Guerra
que seria inconclusa, que ainda estaria por ver outras batalhas, outros desfechos.
Haveria, assim, um inconformismo nos partidários do discurso histórico-político, uma
insubmissão: ainda estando do lado derrotado, sujeitado, seguiriam de algum modo,
277
livres, no sentido dado por Foucault que considera fundamental que o alvo do poder
mantivesse a liberdade de ação para tentar uma virada, uma mudança de curso, uma
reversão na série que o havia relegado à sujeição.
O indivíduo que assume o discurso histórico-político está na batalha, não é
neutro ou reclama neutralidade: admite sua perspectiva e assim necessita fazê-lo de
modo a mostrar que a ordem social não é natural, mas uma imposição. Se ela foi-lhe
imposta, é porque existiriam outras verdades. A sua não é a única, mas é a que lhe
interessa; e por ela decide reativar a guerra que o atual vencedor procurou silenciar para
sempre sob os ferros do discurso jurídico-político. Seu discurso, desse modo, seria “a
um só tempo arraigado numa história e descentralizado em relação a uma universalidade
jurídica” (Foucault, 2002: 60-61). Em outras palavras, esse discurso seria, antes de tudo,
local, particular, parcial. Assumidamente parcial. Designaria um ponto de vista, uma
perspectiva que seria histórica porque somente ganharia sentido pela história: a história
da própria sujeição, da guerra mesma que colocou uma parte em desvantagem frente a
outra — circunstancialmente — vencedora. Esse discurso seria sempre um “discurso
de perspectiva”, enunciando “seu ponto de vista próprio” (idem: 61). A verdade por ele
defendida seria uma verdade declaradamente local, que buscaria impor um direito
próprio e não que se assumisse universalmente justo e legítimo. O discurso histórico-
político procuraria, dessa maneira, “impor um direito marcado pela dissimetria,
[fundando] uma verdade vinculada a uma relação de força, uma verdade-arma e um
direito singular” (idem: 63). Assim, tal discurso seria histórico porque articulado a
partir da memória viva da história das lutas e, ao mesmo tempo, politicamente
descentralizado, porque local, parcial, sem a pretensão universalista da lógica jurídico-
política. A um só tempo parcial e explicitamente intencionada, a perspectiva histórico-
política afirmaria um viés de explicação da sociedade vindo daqueles envolvidos numa
278
batalha infinda. Tal princípio de decifração das relações de força se daria, portanto, pelo
prisma da “confusão da violência, das paixões, dos ódios, das cóleras, dos rancores, dos
amargores; (...) [da] obscuridade dos acasos, das contingências, de todas as
circunstâncias miúdas que produzem as derrotas e garantem as vitórias” (idem: 63-64).
A origem do Estado e das leis, da ordem social, portanto, teria que ser explicada por
seus começos baixos e violentos. Contra a magnificência do discurso soberano, a lógica
histórico-política contraporia a vilania dos inícios, exporia o sangue derramado para
impor e manter tal ordem. Assim, desse modo, poderia apresentar o atual momento
como efeito de uma injustiça, de um crime, de uma usurpação; evocando, assim, toda a
justiça, força e moralidade para seu lado da luta. Se o status quo foi imposto, se foi
forjado pela violência, uma outra violência seria justificável de modo a reverter tal
iniqüidade. A insubmissão não seria mais que uma reação e uma afirmação justas. Seria,
nesse sentido, uma guerra justa argumentada a partir da admissão de que toda ordem
política e social responde a uma guerra e redunda de vitórias e derrotas. Uma guerra
justa parcial e não ancorada em qualquer argumento de validade universal; uma guerra
justa sem cinismo, sem piedade e sem hipocrisia.
O discurso histórico-político propôs-se, segundo Foucault, a apresentar uma
contra-história, uma afronta aos vencedores da batalha mais recente dessa guerra
ininterrupta que seria a história. Nessa declaração de guerra, seus partidários
apresentaram outra história que não aquela contada pelo soberano. Esta história da
soberania teria como função “mostrar o caráter ininterrupto do direito do soberano e,
por conseguinte, mostrar com isso a força inextirpável que ele ainda possui no presente”
(Foucault, 2002: 77). Essa história vinculada ao discurso jurídico-político, a grande
História oficial, teria como objetivo buscar a origem monumental que conferiria a
legitimidade de toda a dinastia à qual pertenceria o presente monarca. Tal história teria,
279
ainda, um segundo papel: o de coletar os menores gestos do monarca para engrandecê-
los, a fim de provar como a grandeza cotidiana do rei seria a marca inquestionável da
legitimidade de sua coroa. Por fim, essa história seria uma forma de “pôr em circulação
exemplos” (idem: 78) deduzidos da conduta do soberano e que confirmariam sua
majestade, estabelecendo modelos de conduta. A história da soberania, pela perspectiva
histórico-política, seria aquela História metafísica, contra a qual se insurgiu Nietzsche e
que, conforme apontado por Foucault, seria o oposto da análise genealógica. A história
da soberania seria uma narrativa teleológica e monumentalista que justificaria o poder
do monarca como “fundador e fiador da ordem” (idem: 79).
O discurso histórico-político dedicou-se a expor o que entendia como o cinismo
e a mentira da história da soberania por meio de uma contra-história, uma história
própria que reconstituiria um passado de lutas e sujeições, que exibiria a vilania da
origem do soberano, a suposta imundície dos episódios que levaram seus antepassados
ao trono. Uma história interessada em mostrar que a “soberania tem uma função
particular: ela não une, ela subjuga” (Foucault, 2002: 80-81); ou seja, ela não seria o
grande árbitro pacificador, mas a forma do poder do conquistador perpetuando-se por
meio da conquista diariamente reeditada sob a aparência da paz civil. A contra-história
seria genealógica na medida em que procuraria revolver uma história aparentemente
harmoniosa exibindo suas marcas e cicatrizes. No entanto, não seria uma história
verdadeira a denunciar uma falsa: seria tão falsa ou tão verdadeira quanto a história do
soberano; seria, de fato, outra história: uma história inimiga da História, uma arma
destinada à sublevação dos sujeitados. Todavia, essa contra-história, diferente daquela
do soberano, seria voltada para a guerra: para mostrar que a situação presente derivara
de uma série de guerras, para exibir que essa própria situação presente era uma guerra e
para anunciar a verdade daqueles que se sublevavam.
280
O discurso histórico-político, segundo Foucault, produziu sua contra-história
como uma arma, uma forma de expor a injustiça do soberano e, conseqüentemente, a
honradez e o brilho que estariam ao lado daqueles que pela violência e pelas
circunstâncias foram colocados em inferioridade. Esses subjugados não seriam,
portanto, essencialmente inferiores, do mesmo modo que o soberano não seria
naturalmente glorioso. O discurso histórico-político teria construído, assim, uma
verdade interessada, uma posição em perspectiva e que operava pela lógica binária da
guerra: luta deles contra os impostores, contra os conquistadores, ou ainda, deles contra
os invasores, os corpos estranhos. Historicamente, esse discurso binário tomou uma
forma, que Foucault identificou como a da guerra das raças: “o discurso histórico não
vai ser mais o discurso da soberania, nem sequer da raça, mas [será] o discurso das
raças, do enfrentamento das raças, da luta das raças através das nações e das leis” (2002:
80). O discurso histórico-político revestiu sua lógica binária como uma guerra entre dois
blocos antitéticos e que não se mesclavam: um que impôs uma derrota militar ao outro;
uma raça invasora outra invadida, uma raça oportunista e outra vilipendiada. Esse
discurso, segundo Foucault, fez desaparecer “a identificação implícita entre o povo e
seu monarca, entre a nação e seu soberano, que a história da soberania, das soberanias,
fazia aparecer” (idem: idem). A nação, longe de ser uma unidade harmônica, seria um
conjunto tenso, mantido pela força de uma raça que triunfou no campo de batalha e que
se impôs. Esse discurso da guerra de raças forçaria que os circunstanciais dominantes
assumissem que governavam por um direito de conquista. Caso o fizessem, eles
reconheceriam, ao menos, que a fonte de todo seu direito teria sido a vitória militar, o
fato da conquista que procuraram esconder sob as camadas de discurso jurídico. Teriam
admitido que sua autoridade derivava daquilo que Proudhon tratou como o direito da
força — instaurador de todos os direitos — e que teria sido insistentemente ocultado
281
pelos juristas a serviço do Estado. A ordem jurídica, portanto, teria sido aquela criada e
imposta pela raça vencedora e não a expressão da Justiça ou da comunhão dos súditos
em uma mesma nação.
No discurso da guerra das raças, o termo “raça” não surgiu definindo um estado
biológico preciso. Tratou-se, ao contrário, de um modo de explicitar uma divisão mais
ou menos estanque entre dois grupos que não teriam a mesma origem, não partilhariam
a mesma língua e muitas vezes sequer a mesma religião; seria, desse modo, uma
designação para marcar uma diferença fundamental e irreconciliável de modo a deixar
bem claro que esses dois grupos “só formaram uma unidade e um todo político à custa
de guerras, de invasões, de conquistas, de batalhas, de vitórias e de derrotas, em suma,
de violências” (Foucault, 2002: 90). Quando emerge a noção de guerra de raças, o
sentido que “raça” assume estava relacionado a uma história de enfrentamentos entre
dois blocos estranhos um ao outro e que culminaram em uma situação de dominação.
Essa consciência do fato da conquista só poderia manifestar-se, portanto, a partir do
momento em que fosse evidente a sujeição imposta por uma força de fora. Assim, o
saber histórico que serviria de base para ativar a resistência e sublevação deveria
destacar a alteridade absoluta do outro, identificado como inimigo, pois usurpador.
A fim de apresentar como esse discurso histórico da guerra de raças se articula,
Foucault apresenta, na seqüência de seu curso de 1976, como que a lógica foi utilizada
pelas forças em luta na Inglaterra dos séculos XVI e XVII. Nos limites dessa pesquisa,
interessa acompanhar essa discussão pelo fato problematizar a obra de Thomas Hobbes
que sublinha e dá outro destaque à preocupação do filósofo inglês com a defesa da paz e
a conjuração da guerra.
282
Thomas Hobbes contra a guerra das raças
A Inglaterra, segundo Foucault, foi um lugar privilegiado para rastrear as
proveniências do discurso da guerra das raças pela combinação de dois motivos: em
primeiro lugar, pela “precocidade da luta política da burguesia contra a monarquia
absoluta, de um lado, e a aristocracia, do outro; e depois, (...) [pela] consciência, que era
muito viva fazia séculos e até nas camadas populares mais amplas, do fato histórico da
velha clivagem da conquista” (2002: 114-115). Até a conquista da Inglaterra pelos
normandos, comandados por Guilherme I, no ano de 1066, a Grã-Bretanha já havia sido
palco de sucessivas invasões desde o início da era cristã, primeiro com os romanos, que
submeteram os celtas/bretões no século I d.C., depois — diante do recuo romano no
século V — pelos saxões vindos do noroeste da Europa. No entanto, como afirma
Foucault, o fato da conquista normanda, após a vitória sobre os saxões do rei Haroldo
na batalha de Hastings, deixou marcas duradouras “nas instituições, e na experiência
histórica dos súditos políticos na Inglaterra” (idem: 115). O traço mais importante, e
presente até princípios do século XVI, foi o modo explícito com que os monarcas
governaram afirmando sua autoridade no direito que a conquista lhes teria conferido.
Não era velada a origem normanda da nobreza governante, nem a procedência de sua
majestade: a alcunha de Guilherme I era “o Conquistador”.
O direito e as fórmulas jurídicas estabelecidos pelos conquistadores eram tão
estranhos aos subjugados que, até o reinado de Henrique VII (1457-1509), eles eram
preferencialmente editados em francês, idioma que os normandos — provenientes da
costa norte a atual França — haviam adotado antes da invasão do século XII. Até as
transformações que marcaram a emergência do Estado moderno inglês, justamente com
Henrique VII e o início da dinastia Tudor, não havia pudores em explicitar que os
283
soberanos eram legítimos porque a guerra e a conquista eram entendidas como juízas
supremas, sendo o direito de governar decorrente do direito da força. Todavia, se o fato
da conquista era evidente, a prática de governo não foi, por isso, passivamente aceita.
Segundo Foucault, “desde muito cedo na Idade Média inglesa” (2002: 115) se
encontram reivindicações para a formulação de um direito baseado nas tradições
saxônicas. Essa tensão manifestou-se, também, conforme Foucault, por meio da
ativação de discursos legendários baseados em mitos saxões que foram confrontados
por um conjunto de lendas ativadas pela aristocracia inglesa que não eram propriamente
normandas, mas célticas — ou seja, não-saxãs — dentre as quais se destacariam aquelas
em torno de Rei Artur, monarca bretão que teria resistido às invasões saxãs no século V.
Contudo, Foucault destaca que o mais relevante dessa ativação de discursos que
evocavam histórias raciais distintas foi o modo como as revoltas contra o poder absoluto
da monarquia normanda acionaram ações anti-raça. A própria Magna Carta, assinada
em 1215, foi em parte efeito de uma revolta da nobreza de extração saxã contra João
Sem-Terra (1166-1216), que impôs limites ao governo dos soberanos, mas também
incluiu demandas de um certo “direito do povo inglês (...) vinculado à necessidade de
expulsar estrangeiros” (idem: 117). As questões econômicas — o direito à propriedade
— e políticas passaram a ser traduzidas e mescladas em termos de “oposição das raças”
(2002: 118), numa espécie de partilha de um “vocabulário da luta racial” (idem: idem)
que foi utilizado, já no século XVII, pelos grupos em luta: monarquistas,
parlamentaristas e, também, o radicalismo popular de Levellers e Diggers.
Do lado monarquista, o discurso jurídico-político inglês teve a particularidade,
como comentado acima, de ser montado explicitamente sobre o direito de conquista. O
soberano seria o proprietário da Inglaterra porque era, antes de tudo, seu conquistador.
E, nesse sentido, o direito era efetivamente parcial, intencionado e voltado à defesa do
284
povo vencedor, os normandos. A conquista chancelava tal dissimetria. Contra o
absolutismo normando formulado nesses termos, a burguesia emergente e a baixa
nobreza de corte saxã colocaram em marcha uma resistência em torno da idéia do
Parlamento como foro legítimo do povo saxão. Segundo Foucault, o discurso
parlamentarista “exumava certo número de fatos históricos, verdadeiros ou falsos”
(idem: 121) para tentar comprovar que Guilherme não se tornara rei pela vitória em
Hastings, mas porque, por uma série de relações dinásticas, Haroldo já teria se
comprometido com a idéia de que Guilherme seria o legítimo rei inglês. Sendo herdeiro
do trono, Guilherme foi obrigado, como defendiam os parlamentaristas, a jurar as leis
saxãs, reinando em conformidade a elas. Daí derivava sua legitimidade: Guilherme teria
sido convertido em inglês e não o trono em normando. Se houve violência e abusos por
parte da monarquia, foi por conta de uma deturpação do comprometimento de
Guilherme por parte de seus sucessores; e contra esse despropósito, se colocavam os
parlamentares.
A lógica binária da guerra das raças, afirma Foucault, também foi apropriada
pelas lutas radicais populares dos Levellers e Diggers. No conturbado século XVII
inglês, os Levellers — “niveladores” — exigiam a formação de um governo parlamentar
no qual vigorasse uma igualdade de direitos políticos, abolindo o direito censitário ao
voto. Já os Diggers, radicalizam tal demanda, exigindo além do nivelamento do direito
ao voto, outro sistema de propriedade rural que retirasse os privilégios do rei e da
nobreza, permitindo uma organização comunal do uso da terra. Segundo Foucault, os
Levellers reconheciam o fato da conquista, o acontecimento histórico que sujeitara seus
antepassados; e assim o faziam de modo a evidenciar a origem sangrenta da monarquia
normanda. Admitiam sua própria derrota a fim de sustentar que a conquista não era de
“modo algum o ponto inicial do direito — do direito absoluto — mas sim de um estado
285
de não-direito que [invalidava] todas as leis e todas as diferenças sociais que marcam a
aristocracia, o regime da propriedade, etc.” (Foucault, 2002: 127). Todas as leis seriam a
mera expressão do “jugo normando” (idem: 128) e o regime de propriedade seria a
continuação do “regime guerreiro da ocupação, do confisco e da pilhagem” (idem:
idem). O discurso radical inglês afirmava que a prova do fato da dominação seria a
história ininterrupta de revoltas dos sujeitados, inconformados com a dominação, o
roubo, a dilapidação praticada pelos normandos. A revolta constante teria sido, desse
modo, a rememoração insistente da guerra continuada pela e na política normanda. A
revolta, para os Diggers, afirma Foucault, seria “o reverso de uma guerra que o governo
não pára de travar” (idem: 129). Uma guerra mantida para a preservação das
desigualdades fixadas pela conquista e amparadas pela força e pela traição dos ricos
saxões e da Igreja que teriam se aliado aos invasores, beneficiando-se da dominação
global. Por esse motivo, a revolta seria um imperativo, e “[cumpriria] travar uma guerra
civil até o fim contra o poder normando” (idem: 130).
De acordo com Foucault, o discurso da guerra das raças empunhado por
Levellers e Diggers se reportava, em geral, às leis saxãs, exigindo seu retorno. No
entanto, houve espaço para uma formulação mais radical, que segundo Foucault,
permaneceu periférica, e que postulou que toda lei, soberania ou poder, não importasse
a procedência, deveria ser analisada “não nos termos do direito natural e da constituição
da soberania, mas como o movimento indefinido — e indefinidamente histórico — das
relações de dominação de uns sobre os outros” (2002: 131). Sem eficácia tática na
época em que foi esboçada, essa posição mais extremada influenciaria os movimentos
revolucionários a partir de finais do século XVIII. Em todo caso, o exercício de
Foucault, ao mostrar as várias articulações do discurso da guerra das raças na Inglaterra
do século XVII, teve como intenção expor como essa perspectiva binária pôde ser
286
utilizada como uma arma polivalente, manejada por grupos com intencionalidades
distintas e que fizeram, cada um a seu modo, uma leitura histórica sob o prisma da
guerra de modo a reforçar posições e legitimar suas demandas.
Como assinala Foucault, “esse discurso inglês em torno da guerra das raças (...)
[foi] a primeira vez [que] no modo político e no modo histórico, ao mesmo tempo como
programa de ação política e como busca de saber histórico, [funcionou] o esquema
binário” (idem: idem). Pela primeira vez apresentava-se uma possibilidade de
decifração da sociedade — do direito, do poder político, das relações econômicas e de
propriedade, das questões culturais e religiosas — a partir da luta entre dois grupos
inconciliáveis, opostos permanentemente pela guerra, pela vontade de dominação de uns
e pela sublevação incessante de outros. Um esquema que se baseava numa noção de
guerra perpétua para entender a história, as instituições, os valores etc. E, por fim, uma
lógica que fazia da revolta algo incontível, já que a imposição do jugo não deixaria de
suscitar resistências. Com isso, “a necessidade lógica e histórica da revolta vem inserir-
se no interior de toda uma análise histórica que põe a nu a guerra como traço
permanente das relações sociais, como trama e segredo das instituições e dos sistemas
de poder” (idem: 132). Na Inglaterra convulsionada do século XVII, as forças em luta
teriam lançado mão de um mesmo discurso tático, apontando para direções diferentes,
mas enfatizando de modo comum que a política seria uma guerra permanente, sem
possibilidade de uma paz. Os momentos de “paz” não passariam de tensa calmaria
mantida pelo desequilíbrio de forças fixado com a última batalha em campo aberto. No
entanto, a última batalha aberta seria sempre a penúltima batalha. Por isso, a monarquia
normanda, os parlamentares burgueses ou os radicais não se fiariam na utopia da paz
civil: somente haveria a guerra e o problema para cada grupo consistiria, basicamente,
em fazer com que o enfrentamento fizesse com que a vitória pendesse para o seu lado.
287
As guerras civis inglesas do século XVII teriam sido alimentadas, portanto, por esse
tipo de saber histórico. As mesmas guerras civis que, segundo Foucault, atormentaram
Thomas Hobbes e o motivaram a produzir a sua reflexão sobre o Leviatã. Para Foucault,
Hobbes dirigiu sua “análise do nascimento da soberania” (2002: 132) exatamente contra
esse discurso que atiçava sem cessar a guerra, a memória dos combates e,
principalmente, a impossibilidade do final definitivo da guerra civil. A alegoria do
Leviatã teria sido construída, desse modo, para fazer calar o discurso histórico-político
como um todo, articulado por monarquistas ou revoltosos. Ao defender o direito e o
Estado como as forças capazes de garantir a paz, Hobbes teria declarado sua guerra
particular contra aqueles que, ao contrário, afirmavam que sob o direto e sob o Estado
desenrolava-se sempre a guerra. A intenção de Hobbes teria sido, portanto, conjurar o
discurso da guerra permanente, desvinculando soberania e guerra.
Nas palavras de Foucault, quando se pensa na relação entre guerra e poder
político — nos momentos iniciais do Estado moderno — é geralmente “Hobbes que
aparece como, à primeira vista, quem pôs a relação de guerra no fundamento e no
princípio das relações de poder” (2002: 102). As famosas máximas do filósofo inglês —
o estado de natureza como “a guerra de todos contra todos” ou “o homem como o lobo
do homem” — indicariam uma centralidade da guerra na reflexão de Hobbes. O próprio
filósofo, segundo Foucault, teria se preocupado em mostrar como a guerra permaneceria
presente, de algum modo, mesmo após “a celebração do Estado, em seus interstícios,
nos limites e nas fronteiras do Estado” (idem: idem). Admitir a continuidade da guerra,
de uma certa guerra, em seus interstícios significava assumir que havia uma tensão
constante entre “ladrões e roubados” (idem), uma luta entre o proprietário e o que
visava apropriar-se do alheio. Por outro lado, pensar na continuidade da guerra para
além das fronteiras do Estado equivaleria a duas coisas: primeiro, à permanência “nas
288
florestas da América” (idem) de selvagens vivendo em estado natural e, na Europa, da
relação tensa e sempre na iminência da batalha entre os Estados constituídos — tema
resgatado pelos realistas em Relações Internacionais a fim de amparar seu conceito de
“anarquia do sistema internacional”
35
.
Foucault, no entanto, se pergunta sobre o que seria, mais precisamente, esse
conceito de guerra em Hobbes — a guerra primitiva e essa que, de algum modo,
permanecia após a formação do Estado. Seria “a guerra de todos contra todos”, o
enfrentamento entre fortes e fracos diante da ausência de um poder superior? Seria essa
guerra a expressão dessa desigualdade de força que estaria livre para manifestar-se em
sua brutalidade ante a inexistência do Estado? Para Foucault, a guerra primitiva em
Hobbes não seria derivada de uma desigualdade primordial entre fracos e fortes, mas, ao
contrário, da ausência de desigualdades significativas entre os homens em estado
natural. Se houvesse tal distância entre fortes e fracos não haveria uma guerra
permanente porque os fortes teriam se imposto aos fracos em uma única e definitiva
guerra ou, os fracos, avaliando sua inferioridade, capitulariam de antemão a fim de
evitar o massacre. O que faria da guerra uma constante, segundo a leitura de Foucault,
seria justamente a igualdade, a falta de diferença significativa entre os mais fracos e os
mais fortes. Assim, “se houvesse diferença, não haveria guerra. A diferença pacifica”
(2002: 104). A competição entre os homens seria um dos motivos de tensão, segundo
Hobbes, justamente pela igualdade geral de condições físicas e espirituais entre os
indivíduos. Segundo o filósofo inglês,
“a natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do
espírito que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente
mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim,
quando se considera tudo isto em seu conjunto, a diferença entre um e
outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um
35
As passagens mencionadas por Foucault estão no Capítulo XIII do Leviatã, intitulado “Da condição
natural da humanidade relativamente à sua felicidade e miséria” (1979: 76-77).
289
possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa
também aspirar, tal como ele” (1979: 74).
Seria por essa “anarquia das pequenas diferenças” (Foucault, 2002: 104)
presente na reflexão de Hobbes, que o fraco jamais renunciaria à batalha — sentiria a
oportunidade de vencer — e o forte nunca baixaria a guarda — frente à possibilidade de
ser atacado pelo mais fraco que usasse da astúcia ou de alianças para compensar essa
pequena distância que o separava da potência do forte. Nesse ambiente, no qual todos
estariam aptos à guerra, em condições praticamente iguais, seria precavido evitá-la. Para
tanto, ainda segundo Foucault, cada indivíduo procuraria mostrar estar sempre “pronto
para fazer a guerra” (idem: 105). Estaria acionada, então, uma lógica similar àquela
sintetizada na fórmula do estrategista romano Vegécio “se quereis paz, prepara-te para a
guerra”.
36
O princípio seria, então, o da intimidação mútua, lastreado em uma vontade
secreta de que isso bastasse para impedir a guerra. Assim, mais do que uma relação de
força efetiva, o estado natural hobbesiano seria, para Foucault, um “teatro de
representações trocadas” (idem: 106), um jogo de “representações, manifestações sinais,
expressões enfáticas, astuciosas, mentirosas” (idem: idem) que teria como meta gerar
uma aparência de força e determinação que constrangesse o outro desconsiderar a
possibilidade do ataque: uma prática geral de dissuasão.
Esse jogo de representações estaria no lugar da violência sistemática e
desenfreada, de modo que o estado de natureza, antes de ser uma efetiva “guerra”
sangrenta, seria mais bem caracterizado como um “estado de guerra” (Foucault, 2002:
36
Si vis pacem, para bellum”, máxima de Públio Flávio Vegécio Renato (entre fins do século IV e
começos do V d.C.), burocrata cristão do Império Romano que publicou uma crítica à organização militar
chamada Epítome de Assuntos Militares (Epitome rei militaris), no início do século V, na qual defendia
uma reforma do exército com base no antigo modelo da república romana — centrado em soldados-
cidadãos —, pois via com preocupação o alistamento de mercenários bárbaros nas fileiras imperiais.
Segundo Dawson (1999), sua obra foi muito influente por toda Idade Média e Renascença e teria
inspirado Maquiavel em suas reflexões sobre o exército e o perigo da contratação de mercenários,
presentes em O príncipe, publicado postumamente em 1532 e n’Arte da guerra, editado em 1521. Sobre
Vegécio Cf. Dawson (1999: 276-281).
290
106), a iminência da batalha de que fala Hobbes e não a batalha concretamente. Como
afirma Hobbes, “enquanto cada homem detiver seu direito de fazer tudo quanto queira
todos os homens se encontrarão numa condição de guerra” (1979: 79). Haveria uma
“condição de guerra” e não numa guerra aberta. Nesse sentido, as relações entre os
homens no estado de natureza estariam orientadas não pelo choque de forças — a
guerra —, mas por uma forma de diplomacia das aparências e representações, uma
negociação tensa baseada na perpétua “desconfiança” (Hobbes, 1979: 75) entre os
indivíduos. O estado de natureza seria uma condição de guerra povoada de fantasmas e
medos, que os homens procurariam ocultar em sua aparência, já que no seu íntimo
“cada um se [imaginaria] (com razão ou sem) poderoso, perseguido, traído” (Ribeiro,
2005: 59). Como analisa Foucault, o estado de guerra seria a situação do relacionamento
entre os homens sempre que não houvesse algo que “[desse] segurança, [fixasse] a
diferença e não [colocasse] a força, enfim, de um certo lado” (2002: 107). No início,
portanto, não haveria efetivamente uma guerra, mas uma “diplomacia primária” (idem:
106). Ainda assim, a indefinição desse estado tenso pareceria a Hobbes excessivamente
mesquinho e violento para que os homens o tolerassem. A fundação da soberania, assim
sendo, seria o modo de superar em definitivo não a guerra, mas a “guerra de todos
contra todos” entendida como um estado de medo e miséria que obrigaria os homens a
um esforço cotidiano de preparo para uma possível guerra e a projeção constante de
representações sobre sua força.
Foucault lembra, então, que para Hobbes essa fuga do estado de natureza — pela
fundação do Estado — poderia ser alcançada de dois modos: pelo aparecimento de
soberanias por instituição ou por aquisição. As repúblicas instituídas, segundo
Foucault, foram as valorizadas nas leituras da obra hobbesiana, mas precisariam ser
observadas por esse prisma que aponta a inexistência da guerra efetiva na origem do
291
Estado. Se não havia guerra, mas uma diplomacia de representações de poder
entrecruzadas, a saída do estado natural não implicaria propriamente na renúncia da
capacidade de fazer a guerra, mas na cessão de um direito de representação. A
instituição do Estado não seria, dessa feita, “uma relação de cessão ou de delegação de
algo pertencente aos indivíduos, mas uma representação dos próprios indivíduos”
(Foucault, 2002: 108). O Leviatã não contaria apenas como “uma parte do direito [dos
homens], [mas estaria] verdadeiramente no lugar deles, com a totalidade do poder
deles” (idem: idem). Não haveria propriamente uma fuga da guerra, mas a combinação
de um jogo de vontades — a vontade de deixar um estado de insegurança quanto à
preservação vida e à manutenção da propriedade —, viabilizado por um pacto, que
determinaria uma transferência total de personalidade — um direito de representação
— dos indivíduos para o Estado, grande individualidade artificial (Foucault, 2002: 108).
A outra modalidade de instauração da soberania, a por aquisição, pareceria
anunciar, segundo Foucault, aquilo que no estudo das repúblicas por instituição estaria
ausente: o fato da conquista. Isso porque, na exposição de Hobbes, a aquisição
pressuporia uma vitória militar empreendida por uma república soberana contra outra
igualmente autônoma. Desse modo, haveria vencedores e vencidos após uma guerra
historicamente realizada e não alegórica. O vencedor teria duas opções: exterminar o
inimigo — liquidando com a soberania derrotada — ou incorporá-lo à sua soberania.
Nesse caso, a absorção dos antigos oponentes poderia redundar em duas situações:
insubordinação dos vencidos que não admitissem a derrota ou aceitação do jugo
redundando na obediência ao novo soberano. No primeiro caso, haveria a presença de
um problema fundamental: a guerra exterior seria convertida em guerra civil, perigo dos
perigos a ameaçar de morte o Estado. Na segunda hipótese, o antigo súdito do monarca
derrotado ganharia o status de novo súdito do soberano vencedor, sem maiores
292
conseqüências para o Estado vencedor e para os conceitos de soberania e paz civil. No
entanto, para Hobbes, mesmo com a conquista não seria firmada uma relação de
dominação. E isso, segundo Foucault, porque ao aceitar o novo soberano, os derrotados
realizariam uma espécie de novo pacto que faria dos “vencedores [seus] novos
representantes, [restaurando] um soberano no lugar daquele que a guerra havia
derrubado” (Foucault, 2002: 109). “A vontade de preferir à vida à morte” (idem: 110)
seguiria sendo tão central para os indivíduos derrotados na guerra, que a opção em re-
transferir o direito de representação para o soberano vitorioso se justificaria, produzindo
uma nova soberania “tão jurídica e tão legítima quanto aquela que foi constituída a
partir do modo da instituição e do acordo mútuo” (idem: idem). Enfim, mesmo quando
houvesse guerra, a soberania continuaria não sendo fundada por ela.
A soberania não seria nunca, em Hobbes, produto da violência da guerra, mas de
uma necessidade imperiosa: preservar a vida e, na seqüência, garantir a propriedade.
Essa urgência seria correlata à dependência que uma criança tem dos pais — e da mãe,
em particular
37
— sem os quais, desde o nascer até uma idade bastante avançada, não
poderia sobreviver. Segundo Hobbes, no estado de natureza “o domínio sobre a criança
pertence em primeiro lugar àquele que primeiro a tem em seu poder. Ora, é manifesto
que o recém-nascido está em poder da mãe antes de quaisquer outros, na medida em que
ela tem o direito, se assim o quiser, de nutri-lo ou de largá-lo à sua fortuna” (2002: 144).
Essa dependência produziria uma obediência espontânea, o reconhecimento natural da
soberania materna ditado pela necessidade. Tal relação de soberania não ficaria restrita
ao período da infância, mas instauraria uma obediência definitiva, pois “já que, por
necessidade natural, todos nós desejamos o que nos parece bom, não se pode entender
37
Como afirma Hobbes em Do cidadão, livro de 1642, “no estado de natureza, não se pode saber quem é
o pai, a não ser pelo testemunho da mãe; a criança é portanto daquele que a mãe quiser, e portanto é dela.
Por conseguinte, pertence à mãe o domínio original sobre os filhos — e entre os homens, como entre as
demais criaturas, o nascimento segue o ventre” (2002: 145).
293
que qualquer homem conceda a vida a outrem em termos tais que este ganhe força com
a idade e ao mesmo tempo se torne seu inimigo” (Hobbes, 2002: 144). O soberano,
portanto, esperaria para sempre a obediência incondicional. Ao relacionar o nível mais
elementar de soberania — da mãe sobre o filho — à necessidade de sobrevivência,
Hobbes teria procurado mostrar, nas palavras de Foucault, “que o que é decisivo na
constituição da soberania não é a qualidade da vontade, nem mesmo sua forma de
expressão (...) é preciso e basta (...) que esteja efetivamente uma certa vontade radical
que faz que se queira viver mesmo quando não se pode viver sem a vontade do outro”
(Foucault, 2002: 111). Daí seria possível entender que, em Hobbes, a soberania “se
forma sempre de baixo, pela vontade daqueles que têm medo” (idem: idem). A vontade
de viver — mesmo sob o preço da obediência total —, alimentada pelo medo constante
da morte violenta, seria o impulso criador da soberania. Esse impulso, desse modo, não
seria nunca a guerra.
Para Foucault, “tudo se passa como se Hobbes, longe de ser o teórico das
relações entre a guerra e o poder político, tivesse desejado eliminar a guerra como
realidade histórica, como se ele tivesse desejado eliminar a gênese da soberania” (idem).
O raciocínio de Hobbes teria sido um esforço para afirmar que a soberania seria
formada de todo modo, mesmo que tivesse acontecido uma batalha, uma sujeição
como no caso das repúblicas por aquisição. Em suma, segundo Foucault,
“Hobbes torna a guerra, o fato da guerra, a relação de força efetivamente
manifestada na batalha, indiferentes à constituição da soberania. (...) O
discurso de Hobbes é um certo ‘não’ à guerra: não é ela realmente que
engendra o Estado, não é ela que se vê transcrita nas relações de
soberania ou que reconduz ao poder civil — e às suas desigualdades
dissimetrias anteriores de uma relação de força que teriam sido
manifestadas no próprio fato da batalha” (2002: 112).
294
Hobbes teria procurado, portanto, afirmar um início invariável da soberania que
se contrapusesse ao discurso histórico-político de sua época, articulador exatamente do
princípio de que a guerra era não só instauradora do Estado como nele permanecia
inscrita. Hobbes teria buscado, assim, negar ambos os argumentos, sustentando que
seria indiferente saber se houve ou não guerra no início da soberania e que, de todo
modo, não haveria definitivamente guerra uma vez o Estado estivesse fundado. Na
análise de Foucault, Hobbes não teria procurado refutar um conjunto teórico acabado,
mas antes um “jogo discursivo, certa estratégia teórica e política” (idem: 112-113) que
seria esse saber histórico das lutas. A luta de Hobbes, mais do que um debate teórico,
teria sido um embate político: “não refutar, mas tornar impossível” (idem: 113) o
discurso histórico-político, impedindo-o de “funcionar na luta política (idem: idem).
Seu interesse era o de calar esses discursos históricos por causa da utilização tática que
deles se fazia. O perigo não estaria, assim, na validade teórica de tais discursos, mas na
arma política que se constituíam. Parlamentaristas, monarquistas, Diggers ou Levellers
tinham em comum o fato de colocar em circulação um discurso voltado à luta e que se
nutria, justamente, da evocação de um passado de violências, roubos, apropriações,
conquistas, derrotas, vitórias. Fundavam a ordem social e política sobre a guerra e
Hobbes estava interessado em fundá-la na paz e para a paz. O filósofo inglês teria, desse
modo, todo interesse em interceptar o discurso histórico-político de modo que o Estado
e a soberania pudessem ser glorificados como sinônimos de paz. Essa era, mais do que
uma posição teórica, a bandeira política de Hobbes: afirmar o Estado e defendê-lo como
força inevitável para a garantia da vida. Os discursos histórico-políticos surgiam, assim,
como seus adversários táticos primordiais. Para Foucault, “o que Hobbes quer eliminar
é a conquista, ou ainda a utilização, no discurso histórico e na prática política, desse
problema que é a conquista” (2002: 113). Nesse sentido, Hobbes lutou para conjurar a
295
conquista, afirmando o Leviatã como o defensor da paz que existiria pela necessidade
natural da presença de um poder central e absoluto — e da devida obediência a ele —
para a proteção da vida.
Ao parecer identificar a guerra por todos os lados, Hobbes teria se esforçado
para apagá-la dos fundamentos da soberania. Por mais que o absolutismo do Leviatã
tenha provocado reações negativas na filosofia política e no discurso jurídico
posteriores, Hobbes, segundo Foucault, mais tranqüiliza que escandaliza esse conjunto
de práticas e saberes jurídico-políticos, já que “enuncia sempre o discurso do contrato e
da soberania, ou seja, o discurso do Estado” (idem: 114). Isso porque, ainda segundo
Foucault, “para o discurso filosófico-jurídico [seria preferível] dar demais ao Estado a
não lhe dar o suficiente” (idem: idem). Em suma, o autoritarismo excessivo de Hobbes
seguiria sendo, para a teoria da soberania, melhor que a cizânia, a guerra civil, a
memória dos combates ou — levando a lógica binária da guerra a um extremo de
radicalidade — à contestação de todo poder político. Ao tentar eliminar o discurso “da
guerra civil permanente” (Foucault, 2002: 114), Hobbes justificaria o “título senatorial
de pai da filosofia política” (idem: idem) que lhe foi atribuído a posteriori. O combate
de Hobbes contra o discurso da guerra desmontaria, para Foucault, uma “falsa
paternidade” (idem: 26): o filósofo inglês não teria sido um dos instaurados da lógica da
guerra como fundadora da sociedade civil. Ao contrário, a preocupação de Hobbes teria
sido exatamente o contrário disso, buscando conjurar a guerra para afirmar a paz como
elemento ordenador da vida social. O discurso histórico-político na Inglaterra do século
XVII teria sido a primeira emergência dessa noção de política como guerra permanente
por meio da lógica da guerra das raças. Hobbes a ele se opôs, tentando “repor o contrato
atrás de toda guerra e de toda conquista e salvando assim a teoria do Estado” (Foucault,
2002: 114). Assim, Hobbes não seria o filósofo da guerra, mas o apologista da paz. Na
296
seqüência de tal problematização da obra de Hobbes, e nos termos dessa investigação,
seria possível reforçar a análise de que o realismo, no campo das Relações
Internacionais, ao filiar-se a Hobbes, também parece anunciar a guerra onipresente
enquanto exclui a guerra da política, lançando-a para as mesmas fronteiras exteriores
que Hobbes havia apontado — as relações entre os Estados — ou para seu interior na
forma da guerra civil. Ao insistir, portanto, na guerra, no equilíbrio de poder, nos temas
estratégicos, na centralidade do conceito de interesse ou na amoralidade das decisões
em política externa, o realismo não buscaria a afirmação da guerra como princípio de
decifração da política, mas a entenderia como seu negativo, seu anátema, sua negação.
O realismo não se articula a partir da lógica binária da guerra ainda que enuncie a guerra
entre Estados como fato inevitável, um acontecimento impossível de ser contido
eternamente, mas que poderia ser controlado eficazmente pelo equilíbrio de poder,
espécie de reinterpretação — ou exportação para o plano internacional — da diplomacia
primária que haveria entre os homens, para Hobbes, no estado de natureza. O equilíbrio
de poder realista seria, portanto, uma versão ampliada à escala mundial do choque de
representações que teria sido a tônica do estado de natureza em Hobbes. Representações
de potência tentando ocultar o medo da morte violenta da soberania. Por isso, as guerras
— quando acontecessem — não poderiam visar o extermínio da própria política; não
poderiam tender para a guerra absoluta clausewitziana. Daí o interesse de Hans
Morgenthau na balança de poder e o de Raymond Aron no equilíbrio do terror: a paz,
entendida como a ausência da guerra, é a meta em ambos. E essa paz é a situação que
salva o Estado, salva a política e a sociedade, salva o regime legal e o regime de
propriedade. É a paz que tranqüiliza, como apontou Foucault em referência a Hobbes; a
paz que é sempre conservadora.
297
O discurso histórico-político, articulado em torno da lógica binária da guerra, é
um saber de combate e em combate contra o princípio da pacificação, contra a série
jurídico-política à qual pertencem as teorias de Relações Internacionais. É importante,
desse modo, destacar que a “falsa paternidade” a Hobbes deveria ser um parâmetro para
a problematização de tais teorias, particularmente do realismo, já que esse ramo teórico
afirma a estudo da guerra ou uma suposta primazia da guerra nas relações
internacionais. A proveniência hobbesiana se cristaliza no realismo pelo elogio ao
Estado e pela visão da guerra como fato exterior à política. Portanto, dessa perspectiva,
o realismo seria fiel ao legado de Hobbes. Sendo a teoria da soberania o campo no qual
está o realismo, a paz seria a senha para compreender a sociedade, a meta a ser
alcançada apara a ordem social e não a guerra permanente como observatório de análise.
Conjurar a guerra permanente está no centro das preocupações realistas; e isso seria
possível, no plano local, pela existência do Estado — poder central com monopólio da
coerção física — e, no internacional, pelo equilíbrio de poder existente entre Estados —
unidades já pacificadas em si mesmas. Ao se deter na guerra entre Estados — de fato,
um tema constante entre realistas —, o realismo não põe em marcha uma análise das
relações políticas a partir da noção de guerra ou de enfrentamento das forças. O
realismo não é uma análise agonística da política. Nesse sentido, uma analítica das
relações internacionais, que pretendesse esboçar-se a partir do agonismo e da lógica da
guerra, não poderia ser confundida com o realismo. O tema da guerra seria tratado de
modo muito distinto: no realismo, a guerra estaria resumida à condição de instrumento
do Estado, existente no suposto vácuo de poder político que seriam as relações
internacionais, depois que cada um dos Estados tivesse se constituído como uma
unidade pacificada; já numa analítica do agonismo, as relações de força seriam
entendidas como relações de guerra, a política interna como continuação da guerra e
298
reinscrição permanente da guerra, e as relações internacionais não como um vácuo ou
espaço exterior à política, mas como espaço político e, portanto, de continuação da
guerra. A guerra no realismo é subordinada à política como um animal feroz
domesticado pelo Estado e que assim deveria permanecer para que houvesse política,
ordem social, paz civil. Pela perspectiva agonística a “paz civil” é a continuação da
guerra, de modo que ela não se restringe à ação militar que um Estado pode mover
contra outro. A guerra seria, então, um princípio de leitura das relações políticas,
econômicas, sociais, enfim, das relações entre homens e das unidades políticas
constituídas por eles e não uma propriedade do Estado. Mesmo no seu princípio mais
elementar — a lógica binária da guerra — e sem desenvolvimentos maiores, estando
apenas sugerida, uma analítica das relações internacionais não poderia estar no mesmo
campo realista. O realismo está com Hobbes e, com isso, com o elogio ao Estado e à
ordem política garantida por um poder central, com o conceito de guerra como negativo
da paz e com o medo constante do abalo que a guerra, solta das amarras do soberano,
pode trazer para o próprio estado de que ele faz a apologia e pretende conservar.
A “guerra das raças”, discurso polivalente
Um dos traços mais importantes da forma como o discurso da guerra das raças
foi acionado politicamente na Inglaterra do século XVII é sua plasticidade que permitiu
com que fosse empunhado por grupos inimigos, a fim de dar sentido a demandas que
não só eram distintas como em confronto direto. Segundo Foucault, tal discurso nunca
teria sido pertencente exclusivamente “aos oprimidos (...) [aos] subjugados, o discurso
do povo, uma história reivindicada e falada pelo povo” (2002: 89). Ao contrário, o caso
inglês daria mostras de como a lógica binária, opondo os auto-intitulados herdeiros dos
299
normandos e saxões, foi utilizado tanto pelos conquistados quanto pelos conquistadores.
Antes de ser uma forma de análise da história das lutas dos derrotados, o discurso da
luta das raças teria a potência de ser utilizado em mais de um sentido dentro do embate
político. A intenção de destacar que a política é uma guerra entre posições de força
serviria tanto aos sujeitados quanto aos vitoriosos, tanto à insubmissão quanto à vontade
de governo. Desse modo, o discurso histórico-político, antes de ser do oprimido,
firmou-se como um discurso “das oposições, dos diferentes grupos em oposição” (idem:
idem). Isso indicaria como ele foi, desde suas primeiras utilizações, “dotado de um
grande poder de circulação, de uma grande aptidão para a metamorfose, de uma espécie
de polivalência tática” (idem: idem).
Para Michel Foucault, a produção de discursos era uma prática de luta, que
somente fazia sentido se compreendida dentro dos campos de força nos quais se forjava
de modo intencional e perspectivo. Seria justamente “no discurso que vêm a se articular
poder e saber” (Foucault, 1999: 95). E essa articulação se daria no calor dos combates,
orientada pelas necessidades locais, especiais de cada luta. Desse modo, ainda segundo
Foucault, não se deveria “imaginar um mundo do discurso dividido entre o discurso
admitido e o discurso excluído, ou entre o discurso dominante e o dominado; mas, ao
contrário, como uma multiplicidade de elementos discursivos que podem entrar em
estratégias diferentes” (1999: 95). Haveria uma distribuição dos discursos que
ganhariam direção e intencionalidade “segundo quem fala, sua posição de poder, o
contexto institucional em que se encontra” (Foucault, 1999: 96). Essas posições
variantes comportariam, no plano dos discursos, “deslocamentos e (...) reutilizações de
fórmulas idênticas para objetivos opostos” (idem: idem). Para Foucault, os discursos
não são, a priori, discursos de oposição ao poder — ao poder central, do Estado ou de
outra autoridade — nem de afirmação dele. Desse modo, um “discurso pode ser, ao
300
mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo, escora, ponto de
resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta” (idem). Os discursos podem ser
utilizados pelos dispositivos de poder, visando governar, e pelas estratégias de
confronto, prontas a resistir. Nas palavras de Foucault,
“não existe um discurso do poder de um lado e, em face dele, um outro
contraposto. Os discursos são elementos ou blocos táticos no campo das
correlações de força; podem existir discursos diferentes e mesmo
contraditórios dentro de uma mesma estratégia; podem, ao contrário,
circular sem mudar de forma entre estratégias opostas” (1999: 97).
Ao invés de perguntar-se qual seria a intenção ou direção únicas de um discurso,
sua filiação exclusiva, uma analítica do poder reconheceria a capacidade de
apropriações múltiplas dos discursos condicionadas pela eficácia tática que eles podem
ter nas lutas políticas concretas. Quando se abandona o modelo de estudo do poder
baseado no direito — na lógica jurídico-política — e experimenta-se o modelo
estratégico, o do agonismo, seria preciso entender os discursos como peças de artilharia
manuseadas por inimigos em seus combates; armas que podem ser usadas em sentidos
opostos, terem seus pressupostos remexidos, revertidos, transtornados. É a essa
possibilidade de conversão e utilização que Foucault chama de “polivalência tática dos
discursos” (1999: 95). Os discursos encontrariam usos polivalentes na medida em que
são mobilizados não a partir de uma definição exclusiva e essencial — que os
vinculasse a uma posição também essencial e absoluta ao lado do Poder ou da
Resistência —, mas das urgências táticas que são sentidas pelas forças em luta. Assim,
retornando ao caso inglês, o discurso da luta de raças foi sentido pelas forças opositoras
de então como uma lógica que articulava suas demandas, expunha com eficácia suas
perspectivas e auxiliava na luta, fortalecendo suas posições ao passo em que minavam
as do inimigo. Entre monarquistas, parlamentaristas e radicais, a história da conquista
301
normanda e da sujeição saxã, de modos distintos e com propósitos opostos, serviu como
argumento combativo para todos.
A polivalência do discurso da guerra das raças foi tamanha que, no século XIX,
teria motivado uma utilização tática de tipo diferente daquela dada entre os ingleses em
seu século de guerras civis: emergiram, segundo Foucault, os discursos da luta de
classes e do racismo de Estado. Essa utilização tática caminharia no sentido oposto da
descentralização característica do discurso histórico-político entre os ingleses, ou seja,
em percurso diferente do rompimento com a lógica soberana, o discurso do Estado e do
direito que fizeram as forças em luta na Inglaterra do século XVII. Nas formulações
assumidas no século XIX, o discurso da guerra das raças seria “recentralizado
[tornando-se] justamente o discurso do poder, de um poder centrado, centralizado e
centralizador” (Foucault, 2002: 72). Com o intuito de indicar como a lógica binária é
polivalente do ponto de vista tático interessa mostrar, em linhas gerais, como a luta de
raças se reformulou nesses movimentos de recentralização. Em primeiro lugar, aquele
discurso surgido na passagem do século XVIII para o XIX e que tem como traço geral o
tema da revolução.
Se a polivalência tática do discurso da guerra das raças impediria identificá-lo
como um recurso de saber dos oprimidos, isso não significa que sua potência de luta
não o fizesse estar num campo que Foucault chama de “história-reivindicação [ou]
história-insurreição” (2002: 91). Isso porque, ao reativar a memória das batalhas e
conquistas, o discurso histórico-político firmou-se como o instrumento de um pleito, de
uma demanda, de objetivo político. Essa contra-história, que vinha para afrontar e
desmascarar a história do soberano, teria, no entanto, uma proveniência na forma bíblica
de expressar a revolta do sujeitado. Segundo Foucault, “a Bíblia foi uma arma da
miséria e da insurreição, foi a palavra que subleva contra a lei e contra a glória; contra a
302
lei injusta dos reis e contra a bela glória da Igreja” (idem: 83). O poder de revolta que a
Reforma protestante encontrou na Bíblia estaria lastreado na própria história de luta do
povo de Deus, os judeus num primeiro momento, contra toda injustiça e toda a
opressão, simbolizadas pela escravidão e os cativeiros na Babilônia e no Egito. Uma
luta que guardava, também, um esquema binário, similar ao discurso das raças, ainda
que espiritualizado: o povo de Deus contra os poder mundano sem fé. A Bíblia teria
sido, nas palavras de Foucault, “a grande forma na qual se articularam as objeções
religiosas, morais, políticas [na segunda metade da Idade Média] ao poder dos reis e ao
despotismo da Igreja” (idem: idem). A Bíblia, assim, fora reclamada como base para
justificar “rebeliões específicas de conduta (...) cujo objetivo [foi o estabelecimento] de
outra conduta, ou seja, querer ser conduzido de outra maneira, por outros condutores e
outros pastores” (Foucault, 2006: 225). Desse modo, movimentos medievais de contra-
conduta, das heresias místicas à Reforma protestante, perceberam o discurso bíblico
como uma arma, notando algo de revolucionário no modo como os judeus direcionaram
seu ódio aos dominadores e procuraram afirmar seus valores e sua verdade, opostas aos
do poder constituído.
Uma determinada leitura da bíblia poderia instrumentalizar a luta de forças
interessadas em acionar revoltas contra a sujeição. A revolta contra o jugo ímpio, no
campo da sublevação bíblica, levaria à superação escatológica da dominação celebrando
a “paz de Deus”. A defesa da sublevação contra o poderoso que injusta e violentamente
mantém o jugo — a revolta final dos injustiçados — foi um dos elementos e
proveniências principais do discurso histórico-político de caráter mais radical que
tomaria a forma, a partir do final do século XVIII, do discurso revolucionário
contemporâneo. Na análise de Foucault,o seria possível a formulação do discurso
revolucionário, desde a Revolução Francesa, sem que houvesse uma “decifração das
303
dissimetrias, dos desequilíbrios, das injustiças, e das violências que funcionam a apesar
da ordem das leis, sob a ordem das leis, através da ordem das leis e graças a ela” (2002:
92). A ordem social seria injusta na medida em que um grupo dominante formulasse as
leis de modo a manter sua posição e privilégios contra todo o resto da sociedade. Nesse
sentido, tal ordem seria sempre a da usurpação, da violência e da pilhagem. Por isso, o
discurso revolucionário também identificou uma luta binária que cindia o corpo social: a
nobreza proprietária ou a burguesia industrial de um lado — manejando o aparelho de
Estado — e, de outro lado, os sans-culottes ou o proletariado, subjugados, mas na
iminência da virada definitiva.
O discurso revolucionário, portanto, viria a reativar a lógica binária da guerra,
não entre duas raças, mas entre duas categorias sociais, entre dois grupos divididos pela
riqueza e pela miséria, pelo poder e pela sujeição. Segundo Foucault, o raciocínio
binário da luta de raças transformou-se, no discurso revolucionário, em luta de classes
(2002: 72). Se o discurso histórico-político inglês afrontava a tradição da história do
soberano com uma reativação das lutas, o discurso revolucionário reinterpretaria o
antagonismo entre os dois blocos táticos inconciliáveis definidos não pelas
proveniências raciais ou nacionais, mas pela diferença de classe — dissimetria na
distribuição da propriedade e do poder político. Uma distinção fundamental, no entanto,
marca essas duas maneiras de utilização tática da lógica binária da guerra: enquanto na
luta de raças a batalha é permanente e a ordem política é encarada sempre como uma
situação precária na qual o grupo governante se esforça para preservar seu poder e o
sujeitado mobiliza-se para reverter tal arranjo, a luta de classes encaminharia o
enfrentamento para uma solução definitiva com a vitória dos dominados sobre os
dominantes pela revolução. A oposição entre raças — permanente e irredutível — teria
sido convertida numa luta que anuncia seu termo, sua resolução. Essa conversão foi
304
possível, analisa Foucault, pela interveniência da dialética de tipo hegeliano, ou seja, do
enfrentamento entre dois pólos que encontra uma síntese.
A dialética poderia aparentar ser um discurso da guerra — pela noção de
choque entre tese e antítese —, no entanto, segundo Foucault, ela “codifica a luta, a
guerra e os enfrentamentos dentro de uma lógica, ou pretensa lógica da contradição; ela
os retoma no duplo processo da totalização e da atualização de uma racionalidade que é
a um só tempo final, mas fundamental, e em todo caso irreversível” (2002: 69). Com
sua contradição que resulta em síntese, a dialética pacificaria o discurso da guerra de
raças reconciliando-o com a totalidade e centralidade discurso jurídico-político: um
novo sujeito universal se constituiria e se levantaria a fim de afirmar sua soberania.
Desse modo, “a dialética hegeliana e todas aquelas (...) que a seguiram devem ser
compreendidas (...) como a colonização e a pacificação autoritária, pela filosofia e pelo
direito, de um discurso histórico-político que foi ao mesmo tempo uma constatação,
uma proclamação e uma prática da guerra social” (Foucault, 2002: 69). O discurso
revolucionário, então, estaria no cruzamento entre a lógica binária da guerra de raças e a
história profética e escatológica de tipo bíblico, sendo compatibilizado ao universalismo
jurídico-político. O resultado disso teria sido uma apropriação tática que reconhece a
“paz civil” como uma guerra entre dois blocos, mas que garantiria uma saída definitiva
de tal antagonismo, um fim para toda a guerra, uma pacificação eterna e irreversível
depois do combate final. Em suma, o discurso revolucionário se apropria da lógica
binária da guerra, mas a codifica, reduz e domestica diante do projeto político que visa o
fim das relações de força, o fim da guerra, o fim da política.
No momento em que o discurso da guerra das raças foi tomado taticamente por
iniciativas revolucionárias aconteceu algo de interessante: os grupos da ordem lançaram
mão de um discurso também de tipo histórico-político para, segundo Foucault, tentar
305
“recodificar em termos não de luta das classes, mas de luta das raças — das raças no
sentido biológico e médico do termo — essa velha contra-história” (idem: 94). Um
discurso sobre a pureza da raça viria a substituir o da luta das raças, servindo de
contraponto ao discurso revolucionário da luta de classes. Nesse sentido, a antiga lógica
da batalha incessante da vida política seria substituída pela “luta pela vida” (idem:
idem) em temos evolucionistas ou biológicos. O enfrentamento entre dois grupos, o
invasor/conquistador ou o nativo/conquistado, deixaria a cena, cedendo lugar para uma
sociedade majoritariamente uniforme, “biologicamente monística” (Foucault, idem: 95).
Mas por que “majoritariamente”? Porque persistiriam desvios, anomalias, “que não
dividem o corpo social, o corpo vivo da sociedade, em duas partes, mas que são de certo
modo acidentais” (idem: idem): seriam os transviados — comportamentais e genéticos
— e os estrangeiros — estranhos à raça que passava a se confundir com a Nação.
Seriam as deturpações ou degenerescências da própria raça: “a outra raça, no fundo,
não é aquela que veio de outro lugar, não é aquela que, por uns tempos, triunfou e
dominou, mas é aquela que, permanentemente e continuamente, se infiltra no corpo
social, ou melhor, se recria permanentemente no tecido social e a partir dele” (Foucault,
2002: 72, grifos meus). A luta binária não se daria, assim, entre duas raças distintas por
seus costumes, línguas e procedências, mas entre uma raça e uma sub-raça surgida em
suas entranhas, ameaçando corromper o corpo social com sua insidiosa subversão
biológica. Nesse sentido, a raça pura, a raça correta, deveria declarar guerra à sub-raça
de modo a salvar a boa vida, a proteger os normais. O sangue ruim deveria ser
eliminado em nome da Vida. Tratar-se-ia da guerra entre a “raça considerada como
sendo a verdadeira, aquela que detém o poder e aquela que é titular da norma, contra
aqueles que estão fora dessa norma, contra aqueles que constituem outros tantos perigos
para o patrimônio biológico” (idem: 72-73). Essa guerra seria articulada a partir de
306
“discursos biológico racistas sobre a degenerescência” (idem: 73) enunciados em nome
purificação da raça para a “normalização da sociedade” (idem: idem).
Nessa guerra, o Estado viria a ser valorado de forma oposta ao discurso
histórico-político anterior: ao invés de ser o aparelho de força utilizado pelo
conquistador, passaria ser “o protetor da integridade, da superioridade e da pureza da
raça” (Foucault, 2002: 95). Não seria mais o caso de lutar contra todo o conjunto de leis
e o próprio Estado, mas fazer desses instrumentos as armas para garantir a pureza da
raça. No lugar da palavra de ordem “‘temos que nos defender contra a sociedade
[emerge outra], ‘temos que defender a sociedade contra todos os perigos biológicos
dessa outra raça, dessa sub-raça, dessa contra-raça que estamos, sem querer,
constituindo” (idem: 73, grifos meus). Enfim, quando o “tema da pureza da raça toma o
lugar da luta das raças (...) nasce o racismo, ou está se operando a conversão da contra-
história em um racismo biológico” (idem: 95). O racismo converteu o discurso da luta
das raças em o “discurso da raça (no singular)” (idem: idem), invertendo a arma do
discurso histórico-político, com o intuito de “utilizar seu gume em proveito da soberania
conservada do Estado, de uma soberania cujo brilho e cujo vigor não são agora
assegurados por rituais mágico-jurídicos, mas por técnicas médico-normalizadoras”
(idem: 95-96). O racismo foi um modo de salvar a soberania por meio de uma
atualização importante: deslocar-se “da lei para a norma, do jurídico para o biológico”
(idem: 96). E como o racismo poderia salvar o Estado e a soberania mesmo provocando
tal deslocamento do jurídico para o biológico? Porque o Estado seria o agente das
medidas profiláticas e regeneradoras destinadas a combater a degenerescência, a
impureza, a sub-raça. Nesse contexto, as leis seriam o meio pelo qual a norma — o que
é normal, puro, direito — seria operacionalizada de modo a fazer com que a máquina
estatal agisse em sua tarefa purificadora. Assim, segundo Foucault, seria possível
307
identificar a emergência de um “racismo de Estado: racismo biológico e centralizado”
(idem).
O racismo de Estado teria pacificado a lógica binária da luta de raças não como
o discurso revolucionário — pela síntese —, mas pela sua estatização em nome da
pureza da raça. No século XX, segundo Foucault, o racismo de Estado teria dois
desdobramentos históricos de grande significado: o de tipo nazista e o de tipo soviético.
O caso nazista apresentou características muito particulares porque reutilizou “toda uma
mitologia popular, e quase medieval, para fazer o racismo de Estado funcionar numa
paisagem ideológico-mítica” (idem) muito próxima daquela que tornou possível o
discurso da guerra das raças no final da Idade Média. Estava presente no nazismo, além
do princípio da degenerescência interna — característico do racismo de Estado —, o
discurso da raça subjugada, próprio do discurso da luta das raças. Por isso seria possível
defender que os próprios arianos, injustiçados pelo Tratado de Versalhes, estariam numa
posição de conquistados, pois impedidos de usufruir de sua terra, de seu espaço vital.
Haveria também, conforme Foucault, “o tema da volta do herói” (idem: 97), o Führer
que conduziria a raça pura ao império dos últimos dias, o Terceiro Reich —
aproximação, portanto, com o discurso bíblico e sua utopia escatológica. Por meio do
discurso biológico-racista, o nazismo identificou uma impureza interna bastante ampla e
flexível a ser combatida: a degenerescência contemplava arianos decaídos pela doença
genética, mas também pelas ideologias — anarquistas, socialistas, liberais —, pelas
opções estéticas — artistas modernos — ou pelas preferências sexuais —
homossexuais. A isso se combinava a presença do estrangeiro e do antígeno racial: os
judeus, os ciganos, os eslavos. Haveria, desse modo, a urgência em purificar a sociedade
pela guerra de extermínio contra os inimigos internos que seria complementar à guerra
conduzida contra os inimigos externos. Nesse sentido, o racismo de Estado formava um
308
duplo com a guerra internacional desencadeada pelo Reich. Ambas conduzidas para a
purificação da raça e a preservação da vida pura ariana.
Na mesma época, o racismo de Estado de tipo soviético colocou em marcha uma
outra interpretação da luta binária marcando o corpo social: ele retomou “o discurso
revolucionário das lutas sociais (...) [fazendo-o] coincidir com a gestão de uma polícia
que [assegurasse] a higiene silenciosa de uma sociedade ordenada” (Foucault, 2002:
97). Assim, todo desvio ou dissonância com relação ao projeto unitário de sociedade
defendida pelo Estado seria tido como um inimigo da revolução, como o inimigo de
classe do discurso revolucionário, só que retraduzido como “uma espécie de perigo
biológico” (idem: idem). O inimigo de classe no modelo soviético seria “o doente, o
transviado, (...) o louco” (idem), aquele que só poderia padecer de uma enfermidade
degradante para não compreender a verdade da Revolução. A pureza da raça apareceria
na forma de pureza revolucionária, o inimigo da raça como inimigo de classe e a
polícia política como uma “polícia médica” (idem).
O discurso da luta de raças descreveu desde o século XVII um percurso que
permitiu diversas utilizações táticas para a lógica binária da guerra. Das lutas
entrecruzadas na Inglaterra, passando pela pacificação político-filosófica do discurso
revolucionário na forma de luta de classes, até sua conversão em recurso de
fortalecimento da soberania pelo racismo de Estado, as apropriações foram muitas e
paradoxais. E isso foi possível porque o discurso histórico-político não é dotado de uma
essência; não foi forjado para servir ao oprimido ou ao opressor, mas, ao contrário, foi
utilizado como uma arma moldada a interesses políticos e estratégicos locais. Discurso
polivalente, a lógica da guerra foi historicamente manejada com intencionalidades
múltiplas, mas que tinham em comum o fato de reconhecer sob o manto da soberania o
combate constante, a violência ininterrupta, a presença das batalhas. Cada aplicação
309
tática do discurso histórico-político tinha em comum uma oposição, ao menos de início,
ao discurso jurídico-político e ao princípio da paz civil. Admitia-se, assim, que a
política era a permanência da guerra, sua continuação ou, de todo modo, uma guerra
constante. Ao ser introduzido nos discursos do século XIX — o revolucionário e o
racista — o discurso da guerra das raças foi, por vias diferentes, pacificado,
domesticado, revertido, evidenciando o extremo no qual poderia chegar, sendo
imobilizado.
Michel Foucault, ao promover uma genealogia desse discurso da guerra das
raças tinha a intenção de ativá-lo, revolvendo-o como faz o genealogista com os
discursos sujeitados para acioná-los em batalhas pontuais, descentralizadas, localmente
ferozes. O discurso histórico-político, reativado pela metodologia genealógica de
Foucault, teria interesse exatamente na medida em que reconheceria as correlações de
força da política como uma guerra, como uma continuação permanente do combate.
Desse modo, por não apostar no modelo jurídico-político como um meio de análise das
relações de poder tais como elas se efetivariam, Foucault encontra no discurso da guerra
das raças a concretização histórica e tática do observatório guerreiro que lhe parece
necessário para compreender como o poder é exercido nas sociedades contemporâneas.
Para Foucault, tal análise do poder exigia que se substituísse “o privilégio da lei pelo
ponto de vista do objetivo [intencionalidade], o privilégio da interdição pelo ponto de
vista da eficácia tática, o privilégio da soberania pela análise de um campo múltiplo e
móvel de correlações de força” (1999: 97). Deslocamento que implicaria no abandono
do modelo do direito pelo “modelo estratégico” (idem: idem), o das lutas, do combate.
Tal movimento, explica o filósofo, não se daria “por escolha especulativa ou preferência
teórica; mas porque é efetivamente um dos traços fundamentais das sociedades
ocidentais o fato de as correlações de forças que, por muito tempo tinham encontrado
310
sua forma de expressão na guerra, em todas as formas de guerra, terem-se investido,
pouco a pouco, na ordem do poder político” (idem). Um modelo de análise das relações
de poder baseado na lógica da guerra seria necessário se a política é entendida como a
continuação da guerra, se as relações entre indivíduos, grupos e destes com as
instituições políticas é percebido como uma infinidade de situações estratégicas que
implicam em sujeições e sublevações, em exercício do poder e resistências. Com o
objetivo de encontrar um acesso analítico pela via da guerra, Foucault localizou as
diversas utilizações táticas do discurso da luta das raças na história moderna e
contemporânea. Localizou, então, um discurso-arma, produzido no combate e com
validade apenas na batalha; saber sem pretensão universal, sem essência, sem validade
que não seja para aquele que o maneja. Saber polivalente e que, por esse motivo, não
serve apenas ao revolucionário ou ao racista. Serve a ambos e a muitos mais, com as
remodelagens necessárias para fazê-lo funcionar nas lutas políticas. Nesse sentido,
Foucault indica que o discurso histórico-político estaria à disposição como arma contra
a lógica da soberania e para uma outra analítica das relações de poder desvencilhadas do
Estado e do direito. Se é possível pensar uma analítica das relações internacionais que
pretenda exercitar um percurso exterior ao jurídico-político, a perspectiva da guerra
pode ser tomada nesse sentido, como uma arma de fio cortante que adquire sentido
apenas quando desembainhada e não somente pelo fato de ser arma. Seria preciso,
portanto, ter em mente o caráter local e perspectivo de uma analítica que entende como
eficaz para o seu combate tomar a lógica da política como guerra. Interesse e
intencionalidade no lugar de neutralidade e universalidade, se o objetivo é declarar
guerra às teorias internacionalistas que se esforçam para domesticar a guerra, lançando-
a para fora da ordem social de modo que a política possa ser perpetuamente um campo
de paz.
311
A guerra no Estado e entre os Estados
Ao se interessar pela emergência do discurso histórico-político, Foucault
buscava construir uma genealogia da lógica binária da guerra, perscrutando sua
viabilidade e eficácia como princípio de análise das relações de poder. Assim, encontrou
um discurso polivalente voltado ao combate, aos enfrentamentos pontuais e
interessados; identificou a produção de um saber histórico das lutas de caráter
instrumental, um discurso-arma. Foucault interessou-se pela falta de cinismo de um
discurso que se admita local, parcial, envolvido na batalha; mas, mais do que isso, notou
que nessa história destinada à luta operava o princípio da guerra constante como
elemento a dar inteligibilidade à ordem social. A política, na perspectiva da lógica
binária, seria sempre uma guerra, uma continuação da guerra que o fim da conquista
teria apenas transformado em outras — institucionalizadas — formas de perpetuação do
desequilíbrio fixado pela vitória final da guerra aberta. No entanto, acompanhar esse
deslocamento da guerra aberta, entre os exércitos no campo de batalha, para as
instituições, para o aparelho de Estado e para as leis, implicaria em que movimento?
Qual seria a base para essa conversão do general vencedor em soberano, do comandante
militar em magistrado, do soldado em agente do Estado? Foucault, então, perguntou-se
se não seria preciso investigar se “as instituições militares e as práticas que as cercam
— e, de um modo geral, todos os procedimentos que foram empregados para travar a
guerra — são, de perto ou de longe, direta ou indiretamente, o núcleo das instituições
políticas?” (2002: 54). Ou seja, se as leis e o Estado não deveriam ser continuações das
instituições militares que fizeram a guerra? Ou ainda, em que medida, a máquina de
guerra vencedora não se reconfigurou em aparelho de Estado?
312
Para tentar encaminhar uma resposta a tais perguntas, Foucault considerava
importante analisar a forma de distribuição ou posse das armas em uma dada sociedade:
formular uma certa economia das armas. Esse tema teria, ao menos, duas implicações:
em primeiro lugar, levaria à pergunta de quem, numa dada ordem social, detém o
monopólio das armas? Uma questão econômica estaria em jogo: com quem estão as
armas, quem as pode usar ou permitir que se usem? Que tipo de circulação ou
concentração organiza as forças armadas em uma sociedade? O processo de formação
do Estado moderno implicou numa questão desse tipo econômico-militar na medida em
que os monarcas investiram em grandes exércitos, compostos de mercenários e
conscritos forçados — entre camponeses —, baseados na infantaria e nas armas de fogo
para enfrentar os exércitos feudais, limitados e centrados na figura do cavaleiro pesado,
com sua cara armadura e suas armas brancas (Keegan, 2002: 240-249). A pólvora e o
recurso aos soldados a pé tornaram possível às monarquias emergentes construir
exércitos numerosos e com capacidade significativa de destruição
38
. Segundo Foucault,
“um rei não pode pagar o exército tão dispendioso dos cavaleiros”, no entanto, com a
infantaria, “tem-se um exército numeroso, que os reis podem pagar; daí o crescimento
do poder monárquico, mas ao mesmo tempo aumento do fisco” (2002: 190). As grandes
monarquias territoriais que foram se construindo no período final da Idade Média
promoveram uma centralização político-administrativa que foi viável pelo uso da força
— que estabeleceu e manteve as novas instituições estatais — e pelo aparato coletor-
fiscal fixado pelo poder monárquico — dispositivo fundamental para fazer funcionar
essa máquina militar.
38
Segundo Bonanate, “a invenção da pólvora de disparo — a produzida por Roger Bacon (1212-1293), a
do monge alemão Schwarz (1310-1384), ou a dos cientistas de Gêngis Khan (1167-1227) — introduz na
guerra, paulatinamente, não apenas um instrumento capaz de provocar a morte a uma distância muito
maior do que a das flechas e ferimentos corporais mais graves, mas também uma revolucionária inovação
produtiva, o que talvez seja o mais importante” (2001: 49).
313
A formação dos Estados modernos pressupôs, desse modo, uma lógica da
distribuição das armas que teve como fim afirmar o monopólio da coerção física. A
partir desse movimento, emergiria um segundo tema: se a conquista estabeleceu o
governante e o governado, com que meios essa relação política pôde se fixar? Ou, em
outras palavras, o que teria operacionalizado o fato da conquista? Segundo Foucault,
não bastaria, portanto, localizar nesse fato o acontecimento que deixaria a marca da
guerra na política. Haveria que dar um outro passo para indicar que essa guerra
permaneceria inscrita na política porque os exércitos que a promoveram teriam se
metamorfoseado num instrumento central da paz civil: as instituições militares.
Conforme Foucault, “já não é como resultado da invasão que a guerra deixaria sua
marca num corpo social, mas (...), por intermédio das instituições militares, ela acaba
tendo efeitos gerais sobre a ordem civil” (2002: 190). De um lado, pensar a política
como guerra significaria não perder a dimensão de que as relações de poder seriam
correlações de força possíveis de ser analisadas em termos de combate. A guerra, desse
modo, não restaria no corpo social simplesmente como exercício aberto da brutalidade
dos conquistadores, mas seria rotinizada nas instituições, nas leis pelo discurso jurídico-
político em seu esforço de apagar os traços e discursos da guerra. De outro lado, para o
exercício concreto do poder político, a disputa dos recursos coercitivos foi de
fundamental importância para definir quem governava e quem era governado. Nesse
processo, nasceu a instituição militar, o organismo do Estado que deveria ser o
concentrador da força militar, o agente coercitivo do monarca e, por esse motivo,
realizador efetivo do direito de governar advindo da conquista: concentração urgente do
poder de guerra que não poderia mais obedecer a uma economia das armas
descentralizada, como a da Idade Média. Para a entronização do monarca como o juiz
supremo das causas particulares em seu reino, a capacidade de guerra deveria ser
314
confiscada, reposicionada definitivamente em suas mãos. Nas palavras de Foucault,
“pouco a pouco, sucedeu que, de fato e de direito, apenas os poderes estatais podiam
iniciar as guerras e manipular os instrumentos de guerra: estatização, em conseqüência,
da guerra” (2002: 55). A guerra, portanto, precisaria ser domesticada pelo soberano. Tal
trabalho de domesticação implicou em seu processamento como “instituição interna e
não mais como o fato bruto da batalha” (Foucault, 2002: 191). Uma instituição
exclusiva de preparo para a guerra composta por exército regular, rede de fortificações,
paióis reais etc.; uma instituição permanente e à disposição do soberano para a aplicação
da lei e salvação do Estado. Tratou-se, desse modo, de formatar a guerra — no plano
interno — com a determinação régia sobre a “distribuição das armas, natureza das
armas, técnicas de combate, recrutamento, retribuição dos soldados, impostos
destinados ao exército” (idem: idem). Havia a urgência de uma reconversão dos meios
da guerra em recurso perene nas mãos do monarca, o que implicava uma organização
econômica para sustentar esse aparato e para assegurar seu monopólio da violência: a
garantia de uma “economia dos homens armados e dos homens desarmados, num dado
Estado” (idem).
Seria possível afirmar que apropriação da guerra pelo Estado implicou num
processo de pacificação, ou seja, de imposição de uma determinada configuração de
forças definida pelo discurso jurídico-político como paz: a cessação da guerra pela
ordem imposta pelo soberano. Para tanto, a instituição militar como dispositivo interno
foi crucial. Pela estatização da guerra, buscou-se apagar do “corpo social, da relação de
homem com homem, de grupo com grupo, aquilo que se poderia chamar de guerra
cotidiana, aquela que se chamavam efetivamente de ‘guerra privada’” (Foucault, 2002:
55); esforçou-se para sedimentar o princípio da paz civil como ausência de guerra
garantida justamente pela pacificação das forças descentralizadas pelo poder superior
315
exercido pelo Estado. As justas, desafios, duelos e enfrentamentos diretos entre homens
foram proibidos e coibidos por um Estado buscava afirmar-se como único e legítimo
juiz. O esmagamento das milícias e exércitos privados medievais foi complementado
pela proibição da justiça privada, do acerto particular de contas e da vendetta. Apenas o
Estado, munido da lei e em nome da paz, poderia julgar, condenar e executar.
A forja de um espaço político e jurídico supostamente em paz exigiu do monarca
a eliminação ou a contenção das forças locais que pudessem lhe fazer frente. A
pacificação interna, pelo monopólio da violência na instituição militar, fez com que
“cada vez mais as guerras, as práticas da guerra, as instituições da guerra [tendessem] a
não existir, de certo modo, senão nas fronteiras, nos limites exteriores das grandes
unidades estatais, como uma relação de violência efetiva ou ameaçadora entre Estados”
(Foucault, idem: idem). O monarca necessitou pacificar todas as possíveis fontes de
contestação armada e, simultaneamente, manter o discurso de que a ordem civil
significava o oposto da guerra. As relações de soberania, nesse sentido, não poderiam
ser entendidas como relações de força ou sujeição, mas como legítima obediência do
súdito ao monarca para a salvaguarda da paz. Portanto, a guerra deveria ser apagada do
corpo social, sendo, para tanto, domesticada pelo Estado e reduzida ao fato militar do
choque os exércitos no plano internacional. A teoria da soberania legitimava assim o
monopólio sobre a coerção física — como senha para a ordem civil — confinando
duplamente a guerra: dentro dos quartéis e no espaço tido como extra-político das
relações internacionais. O Estado moderno, em suma, necessitou tanto da domesticação
efetiva da guerra — concentrar o poder coercitivo — quanto da sua domesticação
conceitual que opôs de modo inconciliável guerra e política — entendida como campo
de relações entre o soberano e seus súditos, demarcado por uma ordem jurídica que
eliminaria a guerra de todos contra todos.
316
A luta do discurso jurídico-político destinou-se a inviabilizar a associação entre
guerra e política, como se pôde notar pela leitura da obra hobbesiana feita por Foucault.
A guerra seria confinada ao aparato militar que só poderia fazer uso dela no âmbito
internacional. Por isso, a máxima de Clausewitz, ao declarar a guerra como mera
continuação da política, nada mais teria feito do que dar uma forma sintética ou
conceitual para essa apropriação da guerra pelo Estado, que implicava na sua
exteriorização e na negativa de que a ordem social fosse a sua continuação. A fórmula
de Clausewitz foi uma expressão do discurso jurídico-político, da afirmação do Estado e
do poder soberano, e da negação das relações de poder como correlações de força, como
situações estratégicas em luta perpétua. A fórmula de Clausewitz resume o esforço do
discurso jurídico-político em apagar os traços da guerra da vida cotidiana, empurrando-a
para o vácuo de política que seriam as relações internacionais. Em sentido oposto e
complementar, sua máxima concentraria, também, o trabalho de afirmar a política como
o campo da paz permanente assegurada pelo poder centralizado no Estado. A famosa
sentença de Clausewitz teria sido, então, a condensação sumária de uma prática
discursiva e política que, desde finais da Idade Média, havia se esforçado para
consolidar e justificar o poder do soberano e a necessidade do Estado, negando ou
fazendo ocultar a guerra sob a majestade do direito e do monarca. Clausewitz fez parte
de uma série jurídico-política que se preocupou em anular o discurso histórico-político,
a perspectiva da luta, da política como guerra. A sentença clausewitziana propôs uma
síntese ao problema que concernia aos filósofos-políticos e juristas desde Hobbes:
borrar o fato da conquista para deslegitimar o discurso histórico-político, empurrando-o
para as sombras, de modo a desarmar os opositores políticos da unidade do Estado. Por
isso, para Foucault, não seria tanto o caso de perguntar-se “quem, no fundo, teve a idéia
de inverter o princípio de Clausewitz?” (2002: 54), pois quem efetivamente inverteu
317
uma noção formulada anteriormente foi o próprio Clausewitz: “o princípio segundo o
qual a política é a guerra continuada por outros meios era (...) bem anterior a
Clausewitz, que simplesmente inverteu uma espécie de tese a um só tempo difusa e
precisa que circulava desde os séculos XVII e XVIII” (Foucault, idem: 54-55).
Foucault, ao inverter a máxima de Clausewitz, teria apenas ativado, por meio da análise
genealógica, um discurso anterior ao do prussiano e que havia sido soterrado pelos
séculos de guerra conceitual e política encabeçada pela teoria da soberania.
A solução de Clausewitz, no entanto, fez mais do que oferecer um aforismo-
chave para o discurso jurídico-político. Ao expressar a política como paz civil e a guerra
como instrumento do Estado existente apenas nos espaços extra-político e extra-
jurídico, o princípio da guerra como continuação da política enunciava uma prática
política introduzida justamente no momento em que o discurso histórico-político entrou
em combate com a teoria da soberania: a produção de uma nova razão governamental
com a emergência do Estado moderno. Foucault identificou essa época em que os
discursos entraram em choque e que as monarquias territoriais se formavam como o
período em que despontou uma nova forma de pensar o governo dos homens, um outro
modo de enfrentar as dificuldades de exercer o poder político com os processos de
centralização administrativa e governamental em grandes reinos: foi quando, no final do
século XVI, despontou uma racionalidade própria a dar forma a esses Estados
nascentes, uma ratio status, a razão de Estado. Essa razão de Estado foi, segundo
Foucault, uma forma inédita de pensar como “manter e conservar o Estado desde o
momento de sua fundação, em seu funcionamento cotidiano, a gestão de todos os dias”
(2006: 277). Um modo distinto das noções de governo medievais que se preocupou em
gerir não apenas um território, mas principalmente, em governar os povos vivendo sob a
autoridade do soberano.
318
A razão de Estado apartou-se da idéia de que o monarca deveria reinar como
Deus governa sobre os homens, seguindo a matemática imutável das leis da natureza.
Conforme Foucault, a razão de Estado pressupunha uma “racionalidade intrínseca à arte
de governar” (idem: 319) diferente da lógica do governo de Deus e dos modelos
pastorais ou das analogias com o governo das famílias pelos pais. Nas palavras de
Foucault, “a doutrina da razão de Estado tentou definir em que os princípios e métodos
do governo estatal diferiam, por exemplo, da maneira como Deus governava o mundo, o
pai, a sua família, ou um superior, sua comunidade” (2003: 373). A razão de Estado,
portanto, como nova arte de governo, como nova racionalidade da arte de governar,
como nova governamentalidade. Era a constatação de que a gestão dos novos reinos
centralizados que despontavam exigia um conjunto de estratégias e técnicas de governo
diferentes das que a Europa havia conhecido anteriormente. Se havia algo de comum
com o modelo centralizado romano — em termos jurídicos e políticos —, as novas
necessidades impostas por outra dinâmica econômica, populacional e política — dentro
dos novos Estados e entre os Estados em formação — demandava a produção de uma
arte específica de governo destinada a conservação e salvação do Estado (Foucault,
2006: 297). Se havia, em contrapartida, algo de similar às técnicas de governo dos
homens produzidas desde finais do Império Romano — e durante toda a Idade Média
— a razão de Estado pôde redimensioná-las dentro do campo de uma nova
governamentalidade. Houve todo um processo de incorporações de técnicas de governo
anteriores, recombinadas de modo inédito e potente.
Segundo Foucault, a razão de Estado incorporou e deu outra dimensão à noção
circulante no século XVI de que o bom soberano deveria ser como o bom pai, que sabe
“governar bem sua família, suas riquezas, seus bens, sua propriedade, e os indivíduos”
(2006: 119) sob sua responsabilidade. Por essa perspectiva, para ser um bom
319
governante, o príncipe deveria, antes de tudo, governar-se a si mesmo e, a partir daí,
governar sua família para, então, poder gerir a grande família ampliada de seus súditos.
Tratava-se de uma forma de pensar bastante diferente da noção meramente jurídico-
político da soberania, fixada no princípio de que haveria uma mera relação de
obediência entre os súditos e o monarca, sem que o rei necessitasse oferecer um modelo
de conduta moral ou preparar-se para um governo minucioso preocupado na satisfação
das urgências de cada governado e na economia geral de seu reino. Assim, governar
bem seria “colocar em ação (...) uma economia no nível de todo o Estado, ou seja,
exercer com relação aos habitantes, às riquezas, à conduta de todos e cada um, uma
forma de vigilância, de controle, não menos atento que o do pai de família sobre as
pessoas da casa e seus bens” (Foucault, 2006: 120). Essa noção de um governo
econômico introduzia uma importante e dupla dimensão, a uma só vez ascendente — o
modelo da família e da condução moral de si mesmo ascendendo ao príncipe — e
descendente — na medida em que um bom governante inspiraria a conduta dos pais
como unidades de governo submetidas ao soberano e delimitadas dentro do Estado. Para
além do formalismo da teoria da soberania, desenvolvia-se uma reflexão sobre uma arte
de governar, no sentido de gerir condutas e não apenas restrita a um resplandecer do
monarca na altura do trono, dispondo das coisas e esperando a sujeição dos indivíduos.
A dimensão econômica ou familiar para a constituição de uma arte de governar,
por sua vez, reportava-se a outra prática de condução de condutas desenvolvida pelo
cristianismo desde seus primeiros séculos: o pastorado. Como aponta Foucault, a noção
de organização da vida social a partir da imagem do pastor tem uma origem oriental,
sendo percebida nas tradições egípcias e bizantinas (2003: 358). No entanto, foram os
hebreus que introduziam uma nova significação ao princípio do pastor ao identificar
Deus como o único grande pastor, com a possibilidade de espelhar essa noção como
320
modelo para a gestão da comunidade de crentes. A imagem do pastor seria recorrente
porque ele é quem “reúne, guia e conduz seu rebanho” (idem: 359), zelando,
simultaneamente, pelas necessidades de cada um e pelas urgências do grupo de
indivíduos. Pela vigília incansável, o pastor seria “levado a conhecer seu rebanho no
conjunto, e em detalhe” (idem: 360), todos e cada um, numa forma de gestão
interessada na totalidade e na singularidade de cada ovelha/homem. No entanto, o
cristianismo sofisticou a prática pastoral judaica, com a introdução de duas técnicas
lastreadas por uma obrigação fundamental. As técnicas: o exame de consciência e a
confissão. A obrigação: a obediência total.
O cristianismo incorporou a técnica do exame de consciência existente entre os
gregos, mas com a novidade de que ela gerasse uma confissão a um diretor espiritual, o
pastor, ao qual o fiel deveria obedecer cegamente para alcançar a própria salvação.
Segundo Foucault, “a direção de consciência constituía um laço permanente: a ovelha
(...) se deixava conduzir a cada instante. Ser guiado era um estado, e você estava
fatalmente perdido se tentasse escapar” (2003: 369). O regime da confissão instituía a
obrigação do homem construir uma verdade sobre si pelo rastreamento constante de
seus pecados que seriam comunicados ao condutor para que sua absolvição fosse
possível. Segundo Foucault, o cristianismo primitivo introduziu um novo regime de
verdade que era “muito estranho [à] civilização greco-romana, quer dizer, a organização
de um laço entre obediência total, o conhecimento de si e a confissão a um outro”
(idem: idem). Essa nova técnica seria reintroduzida, em outra dimensão, no Estado
moderno servindo de base para as práticas governamentais sobre a população, como
conjunto, e sobre os indivíduos, em suas singularidades.
A preocupação a um só tempo totalizadora e singularizante, o cuidado com
todos e cada um, e a exigência em formular uma verdade sobre si, constituindo-se como
321
sujeito para ser governado, foram procedimentos de uma arte de governar que não ficou
restrita aos monastérios ou à esfera da salvação individual de cada cristão, sendo
incorporada aos procedimentos de governo introduzidos pelo Estado moderno. Segundo
Foucault, houve uma acoplagem entre as relações de poder político “operando no seio
do Estado como quadro jurídico da unidade, e um poder que podemos chamar de
‘pastoral’, cujo papel é velar permanentemente pela vida de todos e de cada um, ajudá-
los, melhorar seu destino” (2003: 366). As técnicas pastorais foram instrumentalizadas
como arte de governo mais geral no momento em que se colocou um problema concreto
para o intuito de governar as condutas dos homens: como gerir Estados extensos com
populações significativas, de modo a fortalecer o próprio Estado e conservá-lo? O que
significaria governar nesse novo contexto histórico? Como governar para salvar o
Estado? Essas respostas passavam pela necessidade de não apenas comandar um
território inerte, mas pessoas e suas capacidades produtivas. Havia a urgência, portanto,
de uma ação que visasse o governo das pessoas de modo a fortalecer o Estado, uma vez
que quanto mais produtivos fossem os indivíduos, mais riqueza seria produzida e,
conseqüentemente, mais vigoroso seria o Estado.
A razão de Estado, desse modo, foi uma forma de racionalidade que não visou
nada exterior à conservação do próprio Estado. Para tanto, foi preciso agregar às
preocupações típicas da lógica soberana outra forma de pensar, um modo de raciocinar
em termos de governo dos homens. Não se tratou de um abandono das estruturas da
soberania, mas ao contrário, do esforço em encontrar novas formas jurídicas que
acolhessem as técnicas e táticas necessárias para manter-se a prática de governo. Em
outras palavras, tratou-se de pensar em que “forma jurídica, em que forma institucional,
em que fundamento de direito poderia dar-se a soberania que caracteriza o Estado”
(Foucault, 2006: 133) quando mudaram as urgências para conservar o governo dos
322
vivos. Nesse sentido, pode-se pensar o surgimento do Estado a partir do prisma de uma
necessidade governamental. Em outras palavras, o problema central para o poder
político que se constituía nos finais da Idade Média era: como governar a partir de
agora? Como manter o poder do soberano em época de populações em crescimento e
territórios extensos? Que tipo de arte de governo deveria ser produzido para tornar
viável o ato de governar? Assim, dizer que a razão de Estado não se reportaria à Deus
ou à natureza, mas a uma lógica própria não significaria aceitar que houvesse uma
ontologia do Estado. Ao contrário, o Estado não é algo em si, mas uma maneira de
solucionar um problema de governo. Assim, não interessaria tanto fazer uma história da
origem do Estado, mas uma genealogia do Estado que visasse localizar a partir de
quando o tema-Estado passou a ser tratado pelos “governantes e [por] aqueles que
aconselhavam os governantes” (Foucault, 2006: 324) como uma questão fundamental
para preservar o poder político entendido como capacidade de governar condutas. Por
isso, para Foucault, não se poderia tratar o Estado como
“se fosse um ser que se desenvolve a partir de si mesmo e se impõe aos
indivíduos em virtude de uma mecânica espontânea, quase automática. O
Estado é uma prática. Não se pode dissociá-lo do conjunto de práticas que
fizeram que chegasse concretamente a ser uma maneira de governar, uma
maneira de fazer, uma maneira, também, de relacionar-se com o governo”
(2006: 324).
O Estado moderno teria sido a forma desenvolvida na Europa ocidental para dar
conta de um problema concreto de governo. E a razão de Estado, como uma modalidade
inédita de razão governamental, foi desenvolvida para fazer frente ao desafio de
governar uma nova realidade, sendo aplicada por meio das estruturas do Estado — o
edifício jurídico-político da soberania —, redimensionando-o e governamentalizando
suas práticas. O problema governamental que seria enfrentado pela razão de Estado teria
dois elementos: em primeiro lugar, o já mencionado problema de como governar um
323
território amplo, com uma população numerosa, garantindo a obediência e evitando a
sedição; depois, como conduzir a conduta dessas pessoas que compõe a população de
modo que produzissem muito, a fim de gerar riquezas excedentes para o soberano, mas
sem que esse crescimento levasse a desequilíbrios econômicos que resultassem em
penúria, contestação política e desordem social. Enfim, o problema de como fortalecer o
Estado em época de populações numerosas, territórios extensos e capacidade produtiva
ampliada. Para tanto, afirma Foucault, era necessário criar as condições para que os
homens pudessem não apenas sobreviver, mas “viver e mais que viver” (2006: 376), ou
seja, poderem satisfazer todas suas necessidades e ainda produzir excedentes que, por
sua vez, deveriam circular internamente e serem exportados para que o rei acumulasse
ouro. Garantir um “mais que sobreviver” para gerar riqueza, instigar o comércio e
fornecer, por meio do fisco, o abastecimento do tesouro real. Essa lógica do
fortalecimento do Estado foi traduzida, segundo Foucault, pelo discurso mercantilista
que prescrevia, justamente, que, primeiro, “cada país [tivesse] a população mais
numerosa possível, segundo, que essa população se [consagrasse] toda ao trabalho,
terceiro, que os salários por ela percebidos [fossem] os mais baixos possíveis a fim de
que, quarto, os preços de custo das mercadorias [fossem] igualmente baixos” (2006:
385), de modo a ganhar mercados no exterior, garantindo o afluxo de ouro para as
aduanas reais. Esse dinheiro acumulado serviria para sustentar os exércitos numerosos e
permanentes, bem como todo o aparato burocrático-administrativo que,
simultaneamente, deveria garantir o poder do monarca pela coerção e pelo incentivo à
essa sobrevida dos homens. Por isso, apenas dispositivos de violência não bastariam
para conservar o Estado: era preciso investir na vida dos indivíduos já que a força do
Estado passava a se articular à felicidade de cada um. Para Foucault, “a felicidade
enquanto ‘vida melhor que a mera vida’ dos indivíduos, deve de certo modo ser tomada
324
e constituída em utilidade estatal: fazer do destino dos homens a utilidade do Estado,
fazer de seu destino a força mesma do Estado” (idem: 377).
Para alcançar esse objetivo, o Estado deveria acionar mecanismos de intervenção
que garantissem tal felicidade dos indivíduos, visando sua própria fortaleza. O conjunto
de dispositivos, medidas e regulamentos criados nos séculos XVII e XVIII, segundo
Foucault, recebeu o nome de “polícia”, que então não tinha o mesmo significado atual,
mas que indicavam o “conjunto das intervenções e os meios que [garantiriam] que o
viver, mais que viver, coexistir, [seriam] efetivamente úteis à constituição, ao acréscimo
das forças do Estado” (2006: 376). A doutrina da “polícia definiu a natureza dos objetos
da atividade racional do Estado; ela definiu a natureza dos objetivos que ele persegue, a
forma geral dos instrumentos que ele emprega” (Foucault, 2003: 373). Esses
instrumentos visariam o aumento da população, o incremento de sua saúde, a garantia
das necessidades básicas de alimentação e a segurança dos caminhos e vias de
circulação para indivíduos e para o comércio. O Estado de polícia desenvolveu-se de
modo distinto na Europa ocidental, tendo como dois principais modelos o alemão e o
francês. Na Alemanha, a elaboração de uma ciência da polícia Polizeiwissenschaft
— esteve diretamente vinculada à formação de uma ciência do Estado
Staatswissenschaft — destinada a construir um conhecimento “não somente sobre os
recursos naturais de uma sociedade, nem do estado de sua população, mas também o
funcionamento geral de seu aparelho político” (Foucault, 1998c: 80-81). Na
fragmentação política da Alemanha dos séculos XVII e XVIII, a ciência da política foi
desenvolvida — antes de haver um grande Estado para aplicá-las — por
administradores formados nas universidades, ao passo que na França, já unificada
politicamente, houve menos teorização que na Alemanha e mais institucionalização da
325
polícia no âmbito da prática estatal por meio de “medidas, ordenanças, recopilações de
éditos” (Foucault, 2006: 364).
Com maior ou menor grau de teorização, as ações de polícia não teriam sido
possíveis sem o desenvolvimento de um saber específico voltado para a medição das
forças do Estado: a estatística. A estatística, por meio de levantamentos, medições e
tabulações, veio para construir um conhecimento das forças, potências e fraquezas dos
Estados, de modo a orientar as ações da razão de Estado. Por meio dela seria possível
saber, em cada país, “qual é a população, qual é o exército, quais são os recursos
naturais, qual é a produção, qual é o comércio, qual é a circulação monetária” (Foucault,
2006: 361). Assim, “a estatística é o saber do Estado sobre o Estado” (idem: 361-362),
compondo com a polícia um duplo indissociável: as intervenções para a maximização
da utilidade dos homens para o Estado dependem de uma acurada identificação de quais
os pontos devem ser, e em que medida, visados para serem incentivados ou coibidos,
excitados ou controlados. Nas palavras de Foucault, “o governo só é possível se a força
do Estado for conhecida: assim ela pode ser mantida” (2003: 376) A estatística
forneceria os elementos para a polícia; de modo que ela pudesse velar “por tudo o que
regulamenta a sociedade (as relações sociais) (...), [por tudo que é] vivo” (idem: 381,
grifo do autor). A atenção simultânea ao trajeto de cada homem — a preocupação com a
felicidade de cada um — e ao conjunto de homens — o aumento da força e da riqueza
do reino — torna possível notar o redimensionamento que a razão de Estado promoveu
das técnicas pastorais. Na forma ampliada da polícia, a tecnologia pastoral serviu ao
processo de governamentalização do Estado, ou seja, à transformação da máquina
jurídico-política estatal em uma agenciadora de técnicas para o governo dos homens.
A polícia é a dispositivo interno que a razão de Estado operacionaliza — por
meio do Estado e das leis — com a finalidade de governar os vivos para a saúde do
326
Estado e para a conservação das condições políticas e econômicas estabelecidas. Se, no
século XVII, a razão de Estado foi definida como a racionalidade governamental que
“permite manter o Estado em bom estado” (Foucault, 2006: 330), a ação de polícia foi o
dispositivo especial produzido para esse fim. No entanto, a preocupação em manter o
Estado não seria suficiente para sua conservação. E por qual motivo? Porque essas
unidades políticas inéditas, os Estados modernos, formavam-se num também inédito
“espaço de competição” (idem: 332). Segundo Foucault, “o Estado cuja única
preocupação [fosse] durar, acabaria muito certamente em catástrofe” (2003: 376),
porque o ambiente no qual emergiam os Estados os obrigava a “forçosamente resistir
durante um período histórico de duração indefinida, em uma área geográfica
contestada” (idem: idem). Esse ambiente era o das incipientes relações interestatais que
despontavam com a formação dos Estados a partir do duplo movimento da centralização
do poder político-jurídico e coercitivo pelo monarca em seu próprio reino e a negação
de toda e qualquer sujeição a poderes exteriores, quer fossem outros Estados ou as
forças universalistas do Sacro Império ou da Igreja. O marco dessa afirmação do Estado
moderno como unidade soberana foi a Paz de Westfália, uma série de tratados assinados
em 1648, que colocavam termo à Guerra dos Trinta Anos. Esse conflito foi, a um só
tempo, uma “guerra civil e internacional” (Gantet, 2003: 120), iniciada com uma
sublevação de Estados alemães protestantes — como a Boêmia — contra a pretensão de
fortalecimento do domínio imperial Habsburgo numa época em que o católico Sacro
Império Romano Germânico, com capital em Viena, era composto por diversos Estados
alemães, os Países Baixos, Suíça e os Estados italianos da Sabóia e Toscana (Gantet,
2003). Essa sublevação foi uma mescla de reivindicações por autonomia religiosa e
política que acabou por mobilizar outros Estados europeus. Acorreram em apoio ao rei
Fernando da Estíria e Áustria, eleito imperador do Sacro Império, os monarcas católicos
327
da Bavária, Maximiliano I, e o da maior potência européia de então, Felipe III, rei da
Espanha, ligado a Fernando por laços de parentesco. Em auxílio dos Estados
protestantes vieram a Suécia, em 1630 — também protestante — e a França católica, em
1635, cujo homem forte era Armand Jean du Plessis, cardeal-duque de Richelieu (1585-
1642).
A aliança entre a França católica e a Suécia protestante, do rei Gustavo Adolfo
(1594-1632), indica um traço importante dessa guerra que tomou a Europa ocidental:
apesar das motivações e interesses religiosos, a Guerra dos Trinta Anos não foi um
conflito exclusivamente baseado em divergências de confissão, pois se aliaram e
combateram lado a lado novas formas de organização política animadas pela razão de
Estado. Se a razão de Estado como racionalidade governamental se voltava para a força
e saúde do Estado, as alianças político-militares já não mais deveriam restringir-se a
questões de fé. A França de Richelieu buscava afirmar-se como maior força européia e,
para tanto, precisava suplantar a Espanha, também católica: os vínculos de fé cediam
espaço para os interesses de Estado. Os Países Baixos, por sua vez, perseguiam sua
independência com relação à Espanha e, para isso, o fato de serem protestantes não os
impediu de aliar-se à França. A Guerra dos Trinta Anos foi, em suma, a primeira guerra
propriamente internacional, o primeiro grande conflito no qual o princípio moderno da
razão de Estado operou como impulsionador das decisões estratégico-políticas. Isso não
significou uma superação ou abandono dos argumentos religiosos, mas sua absorção e
redirecionamento dentro da nova racionalidade governamental. A persistência do tema
religioso ajuda a compreender porque as negociações de paz, que duraram três anos,
foram realizadas em duas cidades diferentes da região de Westfália: as delegações dos
Estados católicos e protestantes negaram-se a partilhar a mesma mesa, de modo que os
primeiros reuniram-se em Münster e os segundos em Osnabrück (Gantet, 2003: 135).
328
Os documentos firmados estabeleceram um sistema de Estados independentes
sintetizado na fórmula “ujus regio, ejus religio”, que segundo Soares teria como
tradução literal “na região dele, a religião dele”, e significaria que “na região (...) sob
império de um príncipe, [estivesse] vigente unicamente uma ordem jurídica, sua ordem
jurídica” (2002: 29).
39
Se a Guerra dos Trinta Anos pode ser entendida como a primeira guerra
moderna, a Paz de Westfália teria sido, conseqüentemente, a primeira negociação
diplomática expressiva dessa lógica da razão de Estado, reunindo representantes
plenipotenciários para negociar não somente em nome do monarca, mas mais do que
isso, em nome do Estado. A afirmação do Estado como império local frente ao Império
universal e a cristalização da razão de Estado de cada unidade política podem ser
percebidas, por exemplo, no artigo LXXVI do Tratado de Münster, assinado em 24 de
outubro de 1648:
“Todos os vassalos, súditos, pessoas, cidades, municipalidades, castelos,
casas, fortalezas, florestas, bosques, minas de ouro e prata, minerais, rios,
riachos, pastos; numa palavra, todos os Direitos, Vantagens e Direitos de
propriedade, sem qualquer reserva, devem pertencer ao mais cristão dos
reis [o da França], e devem ser incorporados para sempre ao Reino da
França, em toda forma de Jurisdição e Soberania, sem qualquer
contestação por parte do Imperador [do Sacro Império Romano], da Casa
da Áustria, ou outro soberano: assim, nenhum Imperador ou Príncipe da
Casa da Áustria deverá usurpar ou pretender qualquer Direito ou Poder
sobre as mencionadas Regiões, nesse ou no outro lado do Reno.”
O artigo definiu que o direito sobre terras, pessoas, infra-estrutura e recursos
naturais da região fronteiriça da França com os Estados alemães passavam à soberania
do monarca francês. Pessoas e coisas parecem ser tratadas como propriedades do rei da
França, sem possibilidade de serem contestadas por qualquer outro príncipe ou poder
supraestatal. Entretanto, seria preciso entender esse direito de propriedade no campo da
39
Como afirma Soares,religio, segundo as discussões da época, quereria significar muito mais a
imposição de um ordenamento leigo e altamente operante, e menos uma visão religiosa das maneiras de
alguém salvar a própria alma” (2002: 29).
329
razão de Estado e não em termos personalistas, ou seja, o monarca não seria o
proprietário de seu reino — como um ser exterior que impusesse uma dominação —,
mas a própria encarnação do Estado. O exemplo mais conhecido dessa identificação
entre o rei e o Estado, na época da emergência da nova razão governamental, foi Luis
XIV (1638-1715), monarca francês que, conforme Foucault, “é precisamente o homem
que incorpora a razão de Estado, com sua especificidade, às formas gerais da soberania”
(2006: 289). Ainda segundo Foucault, quando Luis XIV afirma “o Estado sou eu”
destaca-se “justamente essa soldagem entre soberania e governo” (idem: 290), entre o
edifício jurídico-político da soberania e as novas técnicas governamentais. Os Tratados
de Westfália não mais teriam expressado as antigas rivalidades dinásticas provenientes
da Idade Média, nas quais o que estava em jogo era a riqueza pessoal do príncipe, a
extensão do reino como propriedade particular do rei e as alianças de sangue como
principal articulação externa. Ao contrário, o chamado “sistema westfaliano” (Evans e
Newnham, 1998: 573), cristalizado a partir dos tratados de paz, abria uma era de
competição entre os Estados, em que cada unidade estatal visava aumentar suas
riquezas; o que as fazia trabalhar pela maximização das forças e recursos do reino por
meio de ações de polícia interna e de alianças provisórias de interesse no plano externo.
Em suma, a série rivalidade/riqueza do príncipe/extensão do reino/alianças de sangue
seria sobreposta a outra competição/riqueza do Estado/recursos e força do
Estado/alianças internacionais de interesse.
A Europa que emerge da Guerra dos Trinta Anos, orientanda pela razão de
Estado, “esboça um mundo no qual [haveria] necessária, fatalmente e para sempre uma
pluralidade de Estados que apenas teriam a si mesmos sua lei e seu fim” (Foucault:
2006: 333). Época de uma temporalidade aberta, sem prever a reunião em um Império
universal e sem o presságio escatológico de um Império cristão dos últimos dias. O
330
sistema internacional que desponta entre os séculos XV e XVII, cujo registro
documental são os Tratados de Westfália, marcava o “fim do Império Romano” (idem:
334), no sentido que enterrava o princípio do poder universal transcrito na idéia de
Cristandade. Os Estados governamentalizados da razão de Estado não aceitavam mais a
possibilidade de uma fusão que diluísse sua lógica auto-referente e sua independência
política. Isso implicava num preparo para um estado de competição perpétuo, na medida
em que cada Estado, na busca pelo aumento de suas forças, entraria em atritos mais ou
menos importantes com os outros orientados pelo mesmo fim. Os tratados de 1648
procuraram, desse modo, instituir um sistema de segurança para a proteção dos Estados
desgarrados nesse sistema internacional no qual ninguém — salvo cada um — poderia,
em princípio, garantir sua integridade e independência. Esse sistema baseava-se no
reconhecimento mútuo do princípio da soberania e na produção de uma maneira
específica de relacionamento entre os Estado, de contrapeso de suas forças e potências,
que ficou conhecido como equilíbrio europeu. Os Tratados de Westfália, ao
recomendarem “de maneira explícita procurar novos traçados de fronteiras, novos
recortes dos Estados, as novas relações que deveriam se estabelecer entre [os Estados
envolvidos na Guerra]” (Foucault, 2006: 342), procuraram criar unidades políticas
equivalentes não apenas do ponto de vista formal — da soberania —, mas também, da
perspectiva das forças de cada um. Para tanto, a formatação dos tratados visou produzir
uma “balança européia” destinada à “limitação absoluta das forças dos mais poderosos,
nivelação destes, possibilidade de combinação dos mais fracos contra os mais fortes”
(idem: 342-343), enfim, um mecanismo de contrapesos que assegurasse que nenhum
dos Estados poderia lançar-se à aventura de retomar a idéia de Império.
Esse equilíbrio, portanto, aconteceria em uma situação dinâmica, na qual as
tensões entre as forças de cada Estado manteriam uma paz tensa, possível de ser
331
rompida: nunca uma paz perpétua no sentido do Império, mas um cabo de força
permanente entre todos os Estados desse sistema. Haveria uma dinâmica política e não
uma estática, tanto no plano interno a cada Estado — a urgência em lidar com as forças
para governar e crescer em poder e riqueza —, quanto externamente — na relação entre
cada um dos Estados num espaço competitivo. Assim, para que cada Estado pudesse
aumentar suas forças, haveria que se levar em conta a dinâmica das forças interna —
função reservada à “polícia” — e a internacional, uma vez que a sobrevivência de cada
Estado e a potencialização de seus recursos não se garantia somente pela conservação
interna, mas pela combinação entre conservação e expansão: “a teoria da manutenção
do Estado [a “polícia”] é insuficiente para englobar a prática real da política e a ativação
da razão de Estado” (Foucault, 2006: 332). O instrumento completar à polícia, voltado
às relações exteriores dos Estados, foi chamado por Foucault de dispositivo
diplomático-militar (idem: 341). À polícia caberia a conservação e maximização das
forças internas; ao dispositivo diplomático-militar a expansão das forças do Estado com
relação aos seus pares e o controle do aumento das forças de seus oponentes.
De um lado, esse dispositivo implicou na formação de uma rede de
representações diplomáticas permanentes destinada a gerar um canal de negociação
estável e um sistema de informações constante sobre as forças de cada país. Essa
diplomacia faria também uso da estatística para poder averiguar as capacidades e
potências dos Estados competidores de modo a informar seu governante. Sendo um
instrumento da razão de Estado, a diplomacia deixaria gradativamente o modelo das
embaixadas temporárias — que visavam negociar assuntos dinásticos — para ser esse
dispositivo voltado para o fortalecimento do Estado, não do príncipe. Como indica
Foucault, “o princípio fundador da nova diplomacia será uma física dos Estados e não
mais um direito dos soberanos” (idem: 349). Constituiu-se, desse modo, um conjunto de
332
técnicas de negociação e um mecanismo de pesquisa e processamento de informações
que passaram a operar num sistema de Estados no qual cada unidade procurava
expandir sua riqueza e poder, com a preocupação de manter o equilíbrio para sua
própria segurança. A necessidade em estabelecer esse dispositivo diplomático levou à
produção de um conjunto de regras que vieram para codificar os modos com que os
Estados deveriam relacionar-se, criando uma “espécie de sociedade dentro do espaço
europeu” (idem: 350). Esse esforço de codificação levou, nas palavras de Foucault, ao
desenvolvimento do
“direito das gentes, jus gentium, convertido em um dos aspectos
fundamentais, um dos focos de atividade do pensamento jurídico,
particularmente intenso porque se atribui a tarefa de definir quais serão as
relações jurídicas entre esses novos indivíduos coexistentes dentro de um
novo espaço, a saber, os Estados da Europa, os Estados de uma sociedade
de nações” (2006: 351).
A partir dessa afirmação de Foucault, seria possível notar o papel complementar
que o direito das gentes, depois renomeado direito internacional, teve como reforço à
razão de Estado e ao vigor dos próprios Estados. Com isso em mente, não seria
paradoxal o fato do direito internacional ter produzido regras que limitaram a liberdade
plena de ação de Estados ciosos de sua soberania e independência: toda contenção viria
a ser um pequeno constrangimento consensualmente aceito para que o dispositivo
diplomático e o princípio do equilíbrio — saudável a todos os Estados — pudessem ser
funcionais. Desse modo, um olhar sobre a emergência dos Estados pela perspectiva da
razão de Estado, ou seja, pelo prisma dos problemas de governo que instigaram a
formação do Estado moderno, apresentaria o direito internacional como um recurso
adicional dessa racionalidade governamental e não como uma energia contrária a ela.
Uma sociedade européia de Estados, nesse sentido, seria uma forma de fortalecer os
Estados como unidades independentes e não o ensaio de uma nova supranacionalidade
333
ou anúncio de um novo Império. O direito internacional não foi, desde então, elaborado
pelos Estados como uma automutilação — o que pareceria raro deduzir —, mas como
um instrumento para criar um espaço internacional propício para a preservação e
expansão dos Estados. Uma leitura por esse ângulo permitira fazer análises
diferenciadas das organizações internacionais contemporâneas — tanto as
universalistas, quanto a Liga das Nações ou a ONU, quanto as regionais de vários
matizes, como o Mercosul ou a União Européia — e do direito internacional em seus
aspectos transterritoriais. Análises, portanto, que não se prendessem à dicotomia do
cosmopolitismo versus a razão de Estado — expressa no antagonismo entre liberalismo
e realismo —, mas que perscrutassem as relações de complementaridade entre as duas
lógicas.
O outro elemento a compor, junto com a diplomacia, o dispositivo internacional
da razão de Estado é o militar. A manutenção do equilíbrio europeu exigia, também, a
sustentação, por cada Estado, de uma estrutura militar permanente, com quadros
profissionalizados, uma rede de fortalezas e sistemas de defesa sempre em alerta, uma
indústria bélica ativa e à disposição do Estado, um serviço de registro e conscrição de
soldados e “um saber, uma reflexão tática, tipos de manobras, planos de ataque e defesa;
em suma, toda uma reflexão própria e autônoma da coisa militar e das guerras
possíveis” (Foucault, 2006: 353). O poderio militar teria um efeito dissuasório na
medida em que fosse distribuído de modo mais ou menos equilibrado entre os Estados
membros dessa “sociedade européia”: um país sozinho não deteria capacidade militar
para conquistar os demais e possíveis alianças produziriam outras reativas. A igualdade
entre os Estados, antes de ser um fator de incentivo à guerra, conduziria a uma
estabilidade — sempre tensa — entre todas as unidades políticas. Desse modo, o
dispositivo militar seria “uma das peças fundamentais na competição dos Estados, em
334
que cada um busca, é claro, inverter a relação de força em seu benefício próprio, mas
que todos querem manter em seu conjunto” (idem: idem). Uma competição
conservadora, cautelosa, precavida, já que o valor maior seria a sobrevivência do Estado
e o crescimento de suas forças. Para tanto, o imprescindível seria permanecer vivo
politicamente, ou seja, independente e autônomo nos moldes estabelecidos em
Westfália.
Foi o dispositivo militar que promoveu a institucionalização da guerra, ou seja,
a domesticação da guerra cotidiana, da guerra privada, convertendo-a em recurso do
Estado, em instrumento da razão de Estado. Esse esforço de institucionalização da
guerra, de central importância para a formação, manutenção e expansão dos Estados
nesse espaço internacional competitivo, foi registrado por Clausewitz cerca de duzentos
anos depois de já estar plenamente em prática na Europa. Essa guerra serviçal da razão
de Estado “já não é a outra cara da atividade dos homens”, afirma Foucault: “será, em
um dado momento, a ativação de uma série de meios definidos pela política, na qual
uma de suas dimensões fundamentais e constitutivas é a militar” (Foucault, 2006: 353).
A guerra, nesses termos, foi incorporada como um dos recursos dos Estados para
cultivar e promover sua saúde, seu vigor, sua continuidade. A razão de Estado operou
um exercício de conversão da guerra em continuação da política. Assim, é possível
recordar e compreender porque o realismo de Raymond Aron (1986), equivalendo em
importância o soldado e o diplomata na política exterior dos Estados, opera na chave da
domesticação da guerra, da noção de política como paz civil e na celebração do Estado
por meio da aceitação e incorporação de sua racionalidade governamental.
A guerra da razão de Estado não necessitava de uma justificativa exterior à sua
própria lógica, diferentemente da guerra na Idade Média. Segundo Foucault, “na guerra
medieval não havia descontinuidade alguma entre o mundo do direito e o mundo da
335
guerra” (2006: 347). Isso se dava porque a guerra teria sido um modo público de
resolver problemas privados dos monarcas: questões dinásticas, desforras, interesses
materiais ou de poder. A vitória nessa forma de guerra era considerada como o juízo de
Deus indicando com que rei estava a justiça. Portanto, não haveria ruptura do direito,
mas sua afirmação pela prova de fogo da guerra. O direito era a expressão da vontade
do príncipe e a guerra seu instrumento pessoal. Essa noção de uma guerra judicial na
Idade Média remete à reflexão de Proudhon (1998) sobre a ordália medieval e a
capacidade legisladora da guerra, da existência efetiva de um direito de guerra. Já para
a guerra moderna bastaria uma justificativa diplomática: “o equilíbrio está em risco, é
necessário restabelecê-lo, há um excesso de poder de uma parte e não é possível tolerá-
lo” (Foucault, 2006: 347). Tal guerra não mais poderia ser encarada como instauradora
do direito, pois serviria para manter um equilíbrio baseado no princípio de que nenhum
soberano poderia impor-se a outro, de modo que cada Estado pudesse continuar sendo
um império em si mesmo. A guerra, quando acontecesse, seria apenas um meio para
restaurar o equilíbrio, preservando os Estados. A manutenção do equilíbrio europeu
poderia exigir o desencadeamento da guerra que deveria ir “até certo ponto e somente
até certo ponto, sem comprometer em demasia o equilíbrio, sistema de alianças etc.”
(idem: 347-348). Assim emergiu a guerra como instrumento da política, recurso
violento a ser usado como ultima ratio — último recurso —, mas com toda moderação
para que não escapasse ao limite de ser uma agente para a preservação do equilíbrio que
garantisse a conservação dos Estados. Entende-se, assim, a preocupação de Clausewitz
em fazer com a guerra ficasse confinada ao espaço que a razão de Estado lhe reservara,
evitando o descontrole que pudesse levar à guerra absoluta. A guerra real
clausewitziana é a guerra da razão de Estado, uma força sujeitada ao Estado a ser usada
para sua força e vigor. Tratou-se do estabelecimento de um dispositivo de segurança
336
(Foucault, 2006: 135), um recurso do sistema de Estado europeu para a preservação
desse próprio sistema. As guerras, como válvulas reguladoras, aconteceriam quando um
Estado ou um grupo deles violasse o pacto do equilíbrio, buscando impor-se aos outros.
Sempre que a sombra do Império se anunciasse, a guerra a baniria novamente, salvando
a articulação de Estados na temporalidade aberta da competição infinita consagrada em
Westfália.
A nova racionalidade governamental emergida na Europa dos séculos XVI e
XVII, a razão de Estado, foi uma resposta político-jurídica, mas principalmente, tática e
técnica, para encaminhar o problema do governo dos homens em época de Estados
territorialmente ampliados, capacidade produtiva crescente e de expansão demográfica.
Essa forma de governamentalidade foi desenvolvida como um meio de preservar o
Estado, manter as relações de poder em termos favoráveis a um ou mais grupos político-
econômicos e criar dispositivos para o fortalecimento e reprodução do modelo estatal.
Para tanto, o mecanismo produzido pelos Estados modernos foi concebido com duas
dimensões complementares e necessárias uma à outra: o Estado de polícia interno, e o
dispositivo diplomático-militar externo. Esse sistema, segundo Foucault, seria
caracterizado pela combinação de objetivos governamentais ilimitados no interior do
Estado e limitados no exterior: “objetivos ilimitados no interior por um mecanismo
mesmo que consiste no Estado de polícia, ou seja, uma governamentalidade cada vez
mais sustentada, mais acentuada, mais fina, mais tênue, uma regulamentação sem
limites fixados a priori” (2007a: 70). O outro elemento desse duplo, o dispositivo
diplomático-militar, perseguiria o objetivo limitado de estabelecer e gerenciar um
equilíbrio de poder, um sistema de compensações de força entre os Estado que
permitisse viabilizar a delicada situação na qual cada um pudesse se desenvolver sem
que seu crescimento provocasse um desequilíbrio tal que implodisse a paz tensa e útil
337
dessa sociedade européia. Esse controle do equilíbrio se daria de forma cotidiana
por meio das redes diplomáticas e seus sistemas de informação — e excepcional
pelas guerras submetidas à política, à razão de Estado, destinadas a somente corrigir o
equilíbrio entre Estados.
A genealogia foucaultiana buscou compreender a emergência do Estado
moderno com uma resposta estratégica e tática ao problema de como governar os
homens. Nesse sentido, as relações internacionais modernas despontam vinculadas a
uma discussão sobre a governamentalidade, e não à lógica jurídico-política, abrindo a
possibilidade de analisar a política internacional a partir de do prisma das relações de
força e de governo e não como desdobramento da formação dos Estados como unidades
derivadas do poder do monarca. A compreensão das relações internacionais na
articulação entre Estado de polícia e dispositivo diplomático-militar provoca um
deslocamento: não mais a formação do sistema internacional derivada de uma
perspectiva baseada na formação contratual dos Estados, mas uma análise de política
internacional como uma dinâmica das forças forjada simultaneamente à instauração dos
Estados como unidades que reconduzem a guerra perpetuamente em suas instituições.
Esse outro ângulo permite entender a política internacional como continuação da guerra,
borrando a separação entre o dentro e fora da política, fazendo-se notar uma
continuidade não linear entre os problemas de governo, a formação do Estado e as
relações internacionais como guerra perpétua.
A política internacional como guerra
A análise de Foucault do equilíbrio entre Estados vinculado ao despontar de uma
nova governamentalidade e, por sua vez, à formação do sistema internacional moderno
338
abre uma possibilidade de leitura da emergência do Estado e das relações internacionais
diferenciada das oferecidas pelo campo das teorias das Relações Internacionais. O
choque mais imediato seria contra o realismo, já que os conceitos de Estado, guerra e
equilíbrio de poder são centrais em tal ramo teórico. Em Foucault, o poder é tratado
como uma situação estratégica, uma correlação de forças sem centro e sem posse que
circula pelo corpo social provocando sujeições e resistências; a política é entendida
como a malha tecida pelas relações de poder, não se resumindo às instituições, mas
encadeando-as numa guerra perpétua de vontades de governo enfrentadas por
incontáveis estratégias de confronto; a guerra é notada como a chave de leitura para
todas as relações de poder e não apenas como o fato militar que se realiza fora da
política; o Estado é apresentado como efeito de necessidades de governo que
redirecionaram o aparelho institucional jurídico-político a novas funções,
governamentalizando-o. No realismo, como foi possível acompanhar pelo estudo dos
principais teóricos da formação da disciplina — Hans Morgenthau (2003) e Raymond
Aron (1986) —, os conceitos de poder, política, guerra e Estado foram formulados a
partir das perspectivas jurídico-política e da filosofia política, que entendem o poder
como uma substância que se delega e se exerce a partir de um centro; a política como o
espaço jurídico e institucional que pacifica a guerra e garante a paz civil; a guerra como
violência entre homens em estado natural ou entre Estados nas anárquicas relações
internacionais; e Estado como instituição incontornável e imprescindível para a
manutenção da ordem política, econômica e social.
A perspectiva genealógica de Foucault apresenta a formação do Estado moderno
e do sistema internacional apartada do modelo do contrato e da teoria da soberania. Essa
análise possibilita pensar as relações internacionais e seus temas — guerra, paz, poder,
Estado, organizações internacionais, sistema internacional, sociedade de Estados, direito
339
internacional, equilíbrio de poder — em outros termos e por outro ângulo. Assim, notar
a emergência das relações internacionais pelo prisma do dispositivo diplomático-militar
permitiria problematizar a própria noção de política internacional, a partir de uma
leitura diferenciada sugerida pelo estudo de Foucault sobre o equilíbrio entre Estados.
Os realistas apostam no equilíbrio de poder como a única possibilidade conquistar
alguma paz no sistema internacional, uma paz precária mantida pela equiparação de
forças entre os Estados que os conduziria à prudência nas ações de política externa. A
guerra, para os realistas seria uma decisão do Estado como recurso de política exterior,
compensada apenas pelo modelo de equilíbrio que buscam em Tucídides, por meio do
qual os Estados mais fracos se uniriam para evitar a hegemonia do mais forte. Restrita a
esses termos gerais, não haveria distinções importantes entre o conceito de balança de
poder Morgenthau e a noção de equilíbrio estudada por Foucault. No entanto, um olhar
mais atento começaria a notar algumas diferenças importantes. Em primeiro lugar, a
noção de sociedade européia descrita por Foucault apresenta uma visão do sistema
westfaliano como uma modalidade de ordenamento político e jurídico das relações entre
Estados que voluntariamente aceitaram sujeitar-se a regras comuns em nome de sua
própria segurança. Essa noção não se coaduna à de anarquia defendida pelos realistas, a
partir da proveniência hobbesiana. Ao invés de uma ausência de regras, ou melhor, da
construção de regras que de nada valeriam, já que seriam desobedecidas pelos Estados
quando lhes aprouvesse, passaríamos a uma noção de sistema internacional como
“sociedade” no sentido em que os Estados criariam regras e fomentariam o direito das
gentes porque eles lhes conviriam para a realização de seu objetivo maior: persistir no
tempo e expandir. Os Estados poderiam desobedecer as regras do equilíbrio europeu, já
que de imediato não haveria nenhum poder supranacional que os puniria pela
transgressão. No entanto, a lógica do equilíbrio prontamente se colocaria em marcha,
340
produzindo uma aliança entre os demais Estados que, pela guerra, tratariam de
restabelecer o status quo ante, ou um novo estado no qual o princípio da equidade entre
território, forças econômicas, população, recursos naturais e forças armadas fosse o
mais equitativo possível. Se o Estado transgressor fosse infinitamente mais forte que os
demais, de modo que a aliança opositora não pudesse fazer frente a ele, seu sucesso na
formação de um novo Império seria a prova de que o sistema de informações
diplomáticas, baseada na estatística e na espionagem, não teria funcionado
corretamente: o sucesso de um Estado indicaria a falha no sistema de equilíbrio que não
pôde limitar o crescimento desmesurado de uma de suas unidades pela expansão
proporcional e coordenada dos outros Estados. Por essa perspectiva, seria possível, por
exemplo, analisar a construção do império napoleônico, na passagem do século XVIII
ao XIX, como um colapso quase total do sistema de equilíbrio, que só não foi
definitivo, porque a guerra promovida pela Santa Aliança terminou por contê-lo
recolocando um novo equilíbrio com o Congresso de Viena, em 1815. As regras e o
novo mapa da Europa produzidos em 1815 seriam, assim, atualizações do modelo de
Westfália, que teriam reordenado e re-balanceado o continente após a tentativa de
Napoleão em recriar o Império. Haveria, portanto, regras no sistema internacional e um
sistema de ordenamento e constrangimento formulado pelos Estados para sua própria
saúde. Aos Estados, em suma, conviria obedecer ao direito internacional por eles
próprios escritos.
Os realistas, quando afirmam sua filiação hobbesiana, se interessam em mostrar
como o sistema internacional era anárquico — porque sem poder coercitivo e
legislativo superiores —, e como essa ausência de poder, esse vazio de política, seria a
característica determinante a condicionar a vida dos Estados. A leitura que Foucault faz
de Hobbes analisa como o conceito de estado de natureza — o estado de anarquia
341
para o filósofo inglês seria um estado de guerra — não a guerra propriamente —
existente pela inexpressiva diferença entre os homens em suas faculdades e capacidades.
O estado de guerra seria resultado da igualdade entre os homens e a sua superação
somente seria viável com a instituição de uma desigualdade profunda, de um poder
muito maior do que a soma de todos os demais, com a criação do Leviatã. O sistema do
equilíbrio europeu descrito por Foucault afirma que o que manteria a paz seria
justamente a proximidade entre as forças dos Estados, ou seja, quanto mais iguais
fossem os Estados, mais estável e duradouro seria o equilíbrio. A paz, como ausência da
guerra aberta, seria, nesse sentido, resultado da não-recriação de um soberano
supranacional. Um Leviatã internacional seria a re-fundação do Império e, para evitar
isso estariam coadunados os Estados modernos. Na lógica hobbesiana, tal igualdade do
sistema internacional seria um estado de guerra. Não sendo uma situação efetiva de
guerra, o estado natural seria antes o do duelo de representações: quando um homem se
preocupa constantemente em mostrar-se pronto para a guerra, de modo a desencorajar
agressões. Nesse sentido, não haveria guerra na anarquia hobbesiana. Em certa medida,
o sistema de equilíbrio europeu buscou construir um jogo de representações similar a
esse presente em Hobbes, um jogo de representações diplomáticas por meio do qual um
Estado saberia das forças dos outros, preparando-se para não ficar defasado. A
estatística e a espionagem aplicadas ao dispositivo diplomático fariam com que Estado
que não fosse realmente forte devesse ser muito hábil diplomaticamente de modo a
fazer com que os outros acreditassem que ele era tão forte quanto parecia. No entanto,
seria possível compreender esse enfrentamento constante, essa atenção tensa e vigilante,
esse olhar preocupado, como paz? O realismo não considera as relações internacionais
como um espaço de paz, mas como um espaço de guerra. Não obstante, a leitura
foucaultiana problematiza esse estado natural hobbesiano — matriz do raciocínio
342
realista — como um momento onde a guerra também não se efetivava. Foucault
desenvolve uma análise que termina por apontar que em Hobbes nunca há guerra
efetivamente: nem no estado natural, nem no momento de formação do Estado, nem
depois do Estado constituído. Haveria, então, guerra apenas entre os Estados?
Foi discutido como o realismo se interessa pelo conceito de anarquia em Hobbes
e suas sugestões de que no espaço entre os Estados haveria uma situação similar à do
estado natural. Mas e se o estado natural fosse, como afirma Foucault, apenas um
choque entre representações de força e não uma situação efetiva de correlações de
força? A aplicação imediata da lógica hobbesiana deveria fazer com que os realistas
entendessem as relações internacionais como um estado de guerra, um confronto de
representações, no qual não haveria concretamente a guerra? Como seria possível
explicar, então, as guerras da razão de Estado — as guerras interestatais que são um dos
focos principais do campo teórico realista? Para que a discussão não se torne hermética,
circular ou auto-referente, é preciso valorizar o deslocamento que a análise de Foucault
fez para fora do campo da filosofia política: uma demarcação, ainda que parcial, da
diferença entre a forma realista de encarar as relações internacionais e o modo como
Foucault analisa a emergência desse sistema internacional estaria nas concepções de
poder e política. Para Foucault, o equilíbrio europeu foi uma dinâmica de forças
interestatal diretamente conectada à dinâmica interna a cada Estado. Não haveria
separação entre o espaço doméstico e o internacional, entre um ambiente da política
versus outro extra-político. O filósofo francês afirma que a nova razão governamental
que deu forma ao Estado moderno constituiu-se a partir dois dispositivos— o de
“polícia” e o diplomático-militar — que não poderiam prescindir um do outro. A saúde
e conservação do Estado dependeriam de sua manutenção — por meio do governo
minucioso da “polícia” — e do gerenciamento de sua expansão — por meio dos
343
recursos diplomáticos e militares. Não haveria, portanto, descontinuidade entre o
ambiente interno e externo; não haveria uma cisão entre “política” e “extra-política”.
Foucault descreve a emergência de um sistema internacional como correlações
de força constantes entre Estados que, por vezes, poderiam dar vazão à guerra aberta da
razão de Estado, mas que seriam sempre um antagonismo de forças sem ruptura com as
práticas políticas internas a cada Estado. E tal estrutura da sociedade européia de
Estados universalizou-se com a universalização da própria Europa por meio da
expansão colonial e se cristalizou com o próprio processo de independência das
colônias que as levou a adotar o mesmo modelo jurídico-político das antigas
metrópoles. Essa sociedade nasceu como resposta a uma urgência de governo que
prolongou a política também para o emergente plano internacional. A articulação entre
os espaços políticos, nesse sentido, moldou-se em correlações de força como passara
internamente em cada um dos Estados. Talvez não fosse possível sequer estabelecer
uma ordem nos acontecimentos: a política moderna se forja em sintonia com a política
internacional e vice-versa. As dimensões da “polícia” e a do dispositivo diplomático-
militar são gêmeas e co-dependentes. Assim, seria viável pensar a política internacional
como uma continuação da política interna e esta como continuação daquela. Na lógica
binária da guerra, o dispositivo diplomático-militar seria a continuação e a
complementação da política interna de um Estado. Sendo a política, por esse prisma, a
guerra continuada por outros meios, a política internacional, conformada pelo
dispositivo diplomático-militar, com suas regras, instituições, tensões e negociações
seria, também, a continuação da guerra por outros meios. Haveria, portanto, guerra
constantemente porque a política internacional seria um espaço de correlações de força,
de ações e resistências, de continuidade da política interna a cada Estado — que seriam
em si continuações da guerra —; espaço no qual seriam expressas vontades de governo
344
e estratégias de luta contrárias a elas. Do mesmo modo que a pacificação após a última
batalha não fez cessar a guerra — mas a reconduziu nas instituições —, sua
domesticação pela razão de Estado não fez do sistema internacional nem um espaço de
paz, tampouco uma anarquia no sentido hobbesiano-realista: a política internacional
seria, de fato, política.
Para os realistas, o fato de não haver política no plano internacional, e sim
anarquia, não significaria um estado de violência permanente; ao contrário, coerentes
com o legado de Hobbes, haveria um estado de guerra, uma confrontação de
representações que, eventualmente, poderiam degenerar em guerra. No entanto, essa
guerra — instrumento da política — seria quase uma exceção, viria quase como um
constrangimento, porque sua existência seria a um só tempo fundamental e perigosa
para a sobrevivência dos Estados. A guerra, de todo modo — e reduzida ao seu aspecto
militar —, só poderia acontecer onde não houvesse política — as instituições, o direito,
o monopólio da violência. Nesse sentido, a expressão “política internacional” entre os
realistas teria um valor similar àquele que Proudhon atribuía ao termo direito de guerra
entre os juristas. Proudhon (1998) analisou como os juristas apenas usavam o conceito
de direito de guerra como um recurso quase impróprio para designar as regras de
conduta piedosa na guerra, na medida em que não considerariam possível qualquer
direito que fosse implementado pela guerra. Do mesmo modo, o realismo — ao admitir
guerra e política como expressões excludentes — não poderia usar a noção de “política
internacional” senão como um conceito mal-ajambrado, uma descrição aproximativa e
aceitável apenas como convenção. Pela perspectiva da política como guerra poder-se-ia
afirmar que entre realistas, sendo a guerra um fato exterior à política, não haveria
efetivamente “política internacional”.
345
No entanto, na perspectiva do agonismo das correlações de força, seria possível
pensar numa política internacional como guerra. Não haveria, desse modo, espaço
extra-político no mundo; não haveria a dualidade entre o espaço do político o do não-
político, entre a ordem e a anarquia. No ângulo que percebe a política como guerra, e
que não considera haver descontinuidade entre a prática do poder interna e exterior, as
relações internacionais poderiam ser entendidas concretamente como política
internacional. Essa constatação, contudo, não deveria conduzir à dedução de que uma
analítica das relações internacionais, afastando-se do realismo, se aproximaria do
liberalismo, uma vez que a noção de cosmopolitismo também apontaria para uma
universalização da política. A diferença entre essa analítica e o cosmopolitismo liberal
não seria difícil de destacar, porque também estaria no campo das noções de poder e
política. O cosmopolitismo consideraria, na tradição kantiana, que a paz perpétua seria
alcançada quando o contrato entre todas as Repúblicas estabelecesse um estado de
sociedade mundial, ou seja, quando todo o mundo fosse envolvido pela política, com
suas instituições, sua ordem jurídica, seus direitos e deveres. Em outras palavras, a
política mundial na série kantiana seria o sinônimo de universalização da noção de
política como paz. Não haveria, de fato, separação entre a qualidade do ambiente
interno e do internacional, mas ambos estariam nivelados pela paz. Ao buscar uma
analítica internacional pelo viés da política como guerra, seria a continuidade das
correlações de força que conectariam política doméstica e política internacional. E, por
esse prisma, política teria o significado de guerra continuada por outros meios, dentro e
fora dos Estados. Por essa mirada, a política internacional também seria a guerra sempre
continuada e atualizada nas relações entre Estados, entre organizações de Estados e
entre outros agentes políticos e de violência não-estatais circulando num espaço
transterritorial.
346
Do mesmo modo que uma analítica das relações internacionais não deveria ser
confundida com o realismo ou com o liberalismo, seria importante não pensá-la como
uma abordagem compatível com as reflexões de Carl Schmitt sobre a política
internacional. Ainda que essa pesquisa não se dedique ao estudo de Schmitt, é
importante destacar uma breve distinção entre sua perspectiva e a apresentada aqui.
Esse exercício se faz necessário pela influência contemporânea de Schmitt no estudo
das relações internacionais e pelo fato do jurista alemão lidar com questões que
interessam diretamente a essa investigação, como as de guerra, paz, política
internacional e Estado.
Carl Schmitt não se dedicou especialmente à teorização das relações
internacionais; não obstante, sua preocupação com a soberania e a afirmação do poder
do Estado o conduziu a uma crítica do direito internacional, da reformulação do sistema
internacional após a Primeira Guerra Mundial e das estruturas jurídico-políticas
supranacionais. Segundo Fernández Pardo, sua “teoria da política internacional teve
origem num diagnóstico severo e pessimista sobre o presente e o destino da comunidade
européia de Estados” (2007: 25). Schmitt ressentia-se do tratamento que os vencedores
da Grande Guerra haviam dispensado à Alemanha, penalizando-a de modo a fazer com
que a guerra continuasse de alguma forma, ainda que travestida em normas jurídicas de
um estado de paz: o período pós-Guerra, segundo o jurista, seria uma “situação
intermediária anômala entre a guerra e a paz, uma mescla de ambas” (2001a: 151). Uma
situação que já não era mais a guerra aberta ocorrida entre 1914 e 1918, mas que fazia
seguir a guerra pela combinação de três causas: “em primeiro lugar, os ditados da paz de
Paris; em segundo lugar, o sistema de prevenção da guerra surgido no pós-guerra com o
Pacto Kellogg e a Sociedade das Nações, e, em terceiro lugar, a extensão do conceito de
347
guerra também a atos não-militares de inimizade (econômicos, propagandísticos, etc.)”
(idem: idem).
Para Fernández Pardo, a força dos acontecimentos políticos envolvendo a
Alemanha instigou Schmitt a posicionar-se no debate público, o que fez de seus escritos
internacionais “trabalhos (...) diretamente políticos, concentrando sua crítica ao regime
da Sociedade das Nações de Genebra e à emergência do imperialismo estadunidense”
(2007: 27). Seus ataques à formação do sistema internacional liberal após 1919 foram
intensificadas após a ascensão de Adolf Hitler ao poder, em janeiro de 1933. Schmitt,
segundo Jean-Claude Monod, foi um apoiador do nazismo, principalmente até 1936,
quando passou a ser hostilizado pela Das Schwarze Korps, um órgão das SS que
compunha “uma fração mais radical do partido/movimento nazista” (2007: 48). Schmitt
publicou, antes disso, textos que poderiam ser tomados como defesa da política de
expansão territorial nazista, conhecida como política do espaço vital, da necessidade do
poder autocrático do Führer como condutor do Estado
40
, além de escritos tão
abertamente anti-semitas que fizeram com que se notasse, segundo Monod, a
importância de sua ojeriza aos judeus na formulação de seu pensamento sobre a
conversão do inimigo exterior em inimigo interior (2007: 47), o que inocularia a guerra
das relações internacionais no Estado, abrindo uma guerra civil contra o perigo interior.
40
Um dos textos abertamente pró-nazistas mencionados por Monod (2007) é intitulado “O Führer
protege o direito. Sobre o discurso de Adolf Hitler no Reichstag em 13 de julho de 1934”, escrito nesse
mesmo ano, onde é possível notar os elementos de ressentimento de Schmitt com a situação alemã, após a
derrota em 1918, e seu apoio ao nazismo e a Hitler contra o liberalismo, imposição exterior que sujeitava
e descaracterizava o Estado alemão. Diz Schmitt que “com coragem sem precedente e sob terríveis
sacrifícios o povo alemão resistiu quatro anos ao mundo inteiro. Mas as suas lideranças políticas
fracassaram tristemente na luta contra o envenenamento do povo e o solapamento do direito e do
sentimento da honra alemães. Penamos até os dias atuais pelas inibições e paralisias dos governos
alemães da guerra mundial. Toda a indignação ética diante da ignomínia de um tal colapso acumulou-se
em Adolf Hitler e tornou-se nele a força propulsora de uma ação política. Todas as experiências e
advertências da história do desastre alemão estão vivas nele. A maioria das pessoas teme a dureza dessas
advertências e prefere se refugiar em uma superficialidade que evita o confronto e busca a conciliação.
Mas o Führer leva as advertências da história alemã a sério. Isso lhe dá o direito e a força para fundar um
novo Estado e uma nova ordem” (Schmitt, 2001b: 220).
348
Nos limites dessa análise, que não se detém no estudo das noções de política e
relações internacionais em Carl Schmitt, bastaria indicar que sua noção de política como
enfrentamento amigo-inimigo não deveria ser confundida com o esboço dessa analítica
internacional que aqui se exercita. Schmitt afirma, em O conceito do político, texto de
1939, que o fator determinante a conformar o que é propriamente o político seria o
embate entre amigos e inimigos (Schmitt, 2001: 176-178). Os agrupamentos políticos
humanos, segundo o alemão, seriam formados por uma noção de amizade, e em
confronto permanente com grupo outros estrangeiros e inconciliáveis os inimigos.
Entre inimigos haveria propriamente uma relação política, definida como a
possibilidade constante de luta e de eliminação física entre os grupos humanos. A
guerra, nesse sentido, seria apenas “a realização extrema de uma hostilidade” (Schmitt,
idem: 183) pré-existente e determinada de antemão não só por fatores históricos,
religiosos ou culturais, mas principalmente, pelas decisões do Estado (os interesses do
Estado conduziriam à eleição dos inimigos e dos aliados). Nesse sentido, não haveria
guerra que não fosse política. Só existiria, portanto, o político diante da hostilidade
entre inimigos que poderia redundar em guerra (possibilidade que deveria estar sempre
no horizonte dos grupos inimigos). Essa guerra teria regras próprias e uma lógica
particular. Apesar da dependência de uma “decisão política anterior sobre quem é o
inimigo” (Schmitt, 2001: 184), a guerra não seria um mero instrumento do Estado,
tampouco poderia ser confundida com as relações entre indivíduos e grupos dentro do
Estado, espaço chamado por Schmitt de “político-partidário” (idem: 182). Por esse
motivo, a máxima de Clausewitz sobre a guerra como sendo continuação da política
seria, para Schmitt, “um modo extremamente incorreto” (idem: 183) de analisar a luta
militar.
349
A guerra, para Schmitt, aconteceria em condições normais apenas entre
Estados e, excepcionalmente, dentro de um Estado se as forças partidárias
radicalizassem suas posições diante de um poder coercitivo central fraco e incapaz de
conter a violência física dos particulares. Se é a relação de enfrentamento entre amigo-
inimigo aquela que pode levar à guerra, e sendo ela somente realizada no plano
internacional, para Schmitt só haveria política nas relações internacionais. De imediato,
essa reflexão mostraria como, para o jurista, o espaço interno ao Estado deveria ser
entendido como paz civil. Avaliação que o afinaria tanto a liberais quanto a realistas. A
guerra, por sua vez, seria um acontecimento exclusivamente salvo pela exceção da
guerra civil restrito ao plano internacional. Posição que o aproximaria do realismo.
No entanto, para o realismo a noção de “política internacional” seria imprecisa, na
medida em que o conceito de anarquia internacional se opõe ao de política como
espaço institucionalizado. Schmitt, ao contrário, denomina política justamente o campo
internacional o não institucionalizado e não aquele que é propriamente político
para o realismo. Essa distinção à primeira vista com o realismo poderia fazer com que
se confundisse a visão schmittiana com a da analítica das relações internacionais que
aqui se ensaia. Todavia, um olhar mais detido repararia que a noção de política
internacional como guerra continuada, indicada pela analítica, somente faz sentido
operando com a noção de política como guerra no plano interno: a perspectiva analítica,
caminhando junto à Foucault, nota o campo das correlações de força como guerra e a
guerra como política tanto no plano interno quanto no internacional. Schmitt
compreende as relações que se dão sob o Estado como disputas entre adversários e não
como guerra. Dentro do Estado reinaria, também para Schmitt, a paz civil. Então, não
seria possível confundir a política como guerra a partir da análise de Foucault
com o político como possibilidade de guerra entre amigos e inimigos exclusivamente no
350
plano internacional a tese de Schmitt. Ainda que esse confronto entre a Schmitt e a
analítica das relações internacionais não seja o foco dessa pesquisa, é importante marcar
essa distinção fundamental; que anuncia, por sua vez, a necessidade de estudos
posteriores. Contudo, para os propósitos essa investigação, seria suficiente afirmar que
uma analítica das relações internacionais não está ao lado de Carl Schmitt, assim como
não caminha junto ao realismo e ao liberalismo. Schmitt também está no campo da
lógica jurídico-política, da pacificação da política interna e do pensamento político
filiado ao soberano.
A experiência de cortar a cabeça do rei no campo das relações internacionais
instiga transitar pelo campo de risco de uma análise da guerra sem pacificações
definitivas. Ao afastar-se dos referenciais jurídico-políticos que orientam tanto realistas
quanto liberais, uma análise das relações internacionais poderia ganhar impulso a partir
da noção de política como guerra, entendendo os acontecimentos internacionais como
continuações da guerra, que deixaria suas marcas nas instituições e nas regras
elaboradas; guerra atualizada cotidianamente nas correlações de força entre Estados,
organizações interestatais e uma diversidade de agentes não-estatais que circulam no
mundo contemporâneo, desde grupos no campo do terrorismo fundamentalista até os
diversos tráficos e ilegalidades que, ao mesmo tempo, se nutrem e alimentam a
economia capitalista mundializada. A guerra foi experimentada por Foucault como um
método de análise das relações de poder. A guerra, tema tradicional das Relações
Internacionais, foi pacificada pelas teorias que nela não reconhecem um efetivo
instrumento analítico. Uma possível analítica das relações internacionais — local,
parcial e perspectiva — poderia ensaiar, assim, outras leituras do mundo e suas relações
de força para além e para aquém do modelo grandiloqüente da teoria da soberania,
fixado no Estado e no elogio da soberania, e da interceptação de resistências por meio
351
do discurso naturalizado da importância e inevitabilidade da obediência ao poder
centralizado.
352
Fluxos 01010101
“De todos a guerra é pai, de todos é rei; uns indica deuses, outros homens;
de uns faz escravos, de outros livres.”
Heráclito
353
Libertarismo nas Relações Internacionais
Uma outra história-política
Na França da década de 1830, persistia uma prática de punição que, segundo
Foucault, “remontava à época das galeras” (1997: 228), com seus carrascos,
condenados, correntes, algemas, gargantilhas de ferro. Era a cadeia, marcha de
prisioneiros acorrentados que saía da prisão de Bicêtre, ao sul de Paris, com destino a
outras prisões nas províncias francesas. No entanto, não se tratava de mero traslado de
prisioneiros. A cadeia era um espetáculo. Começava com uma sessão no pátio de
Bicêtre na qual cada condenado era preso a outro por meio de colares de ferro unidos
por grossas correntes. Tal como num ritual de tortura e execução, os detentos em fila
ficavam à mercê de um carrasco que, ao invés de decapitá-los, fixava com um grande
martelo a gargantilha que o manteria atado ao prisioneiro seguinte. Depois que a
cadeia estava preparada, os prisioneiros partiam em um trajeto que levaria dias para ser
concluído.
Ao longo do caminho, a passagem da estranha procissão gerava reações
extremadas: desde o ódio explícito, dirigido em especial contra alguns prisioneiros
famosos por seus crimes, até manifestações de apoio e solidariedade com os forçados.
Uma euforia tomava a multidão que se aglomerava não só para ver a parada, como para
interagir com ela por meio de insultos, acusações, saudações. Eram distribuídas folhas
volantes com a história de vida e crimes dos condenados mais conhecidos. As pessoas
buscavam identificá-los para agredi-los ou admirá-los como artistas de um circo
sinistro. Como rastro, a cadeia gerava algo como um desgoverno, um ambiente de
354
carnaval macabro que transtornava as cidades e vilarejos por onde passava: desordem
pública, saques, confrontos com a polícia. Os forçados, por sua vez, não marchavam
passivamente. Muitos respondiam aos insultos, outros ironizavam a multidão, alguns
assumiam com orgulho seus crimes e encenavam o papel de perigosos que o público
esperava que representassem. Segundo Foucault,
“nessa festa dos condenados que partem, há um pouco dos ritos do bode
expiatório que é surrado ao ser banido, um pouco das festas dos loucos
onde se pratica a inversão dos papéis, uma parte das velhas cerimônias de
cadafalso onde a verdade deve brilhar em plena luz do dia, uma parte
também daqueles espetáculos populares, onde se vêm reconhecer os
personagens famosos ou os tipos tradicionais: jogo da verdade e da
infâmia, desfile de notoriedade e da vergonha, invectivas contra os
culpados que se desmascaram, e, por outro lado, alegre confissão dos
crimes” (1997: 229).
Os condenados falavam, declamavam, cantavam; estabeleciam um combate
verbal e por vezes físico com os mais exaltados dos expectadores; enunciavam um
discurso que, ao provocar os não-condenados que os agrediam, operava uma afronta “ao
cerimonial da justiça com os faustos que inventava” invertendo, com isso, “os
esplendores, a ordem do poder e seus sinais” (Foucault, idem: 231). Pela exaltação de
seus atos, os condenados submetidos ao castigo da cadeia invertiam “o código moral a
que obedecia a maior parte das velhas queixas” (idem: idem) contra eles dirigidas. Os
cânticos dos forçados lançavam desafios não apenas ao público que os acompanhava,
mas ao sistema penal que os condenara e a sociedade que os rechaçava. Das canções
recolhidas por Foucault do jornal Gazette des tribunaux, publicadas em abril de 1836,
há duas que se destacam pela força com que articulam a posição do condenado frente à
daqueles que o condenaram. A primeira diz: “tão longe dos lares, às vezes, gememos.
Nossas frontes sempre severas farão empalidecer nossos juízes... Ávidos de desgraça,
vossos olhares em nosso meio procuram encontrar uma raça vencida que chora e se
355
humilha. Mas nossos olhares são orgulhosos” (idem: 231-232, grifos meus). A segunda
canta:
“A nós, forçados, o desprezo pelos homens. A nós também todo o ouro
que deificam. Esse ouro, um dia, passará a nossas mãos. Nós o
compramos pelo preço de nossa vida. Outros retomarão essas cadeias que
hoje vós nos fazeis levar; eles se tornarão escravos. Nós, rompendo os
entraves, o astro de liberdade terá reluzido para nós... Adeus, pois
desprezamos tanto vossos ferros quanto vossas leis” (apud Foucault,
1997: 232).
Os versos afirmam uma posição de honra e enfrentamento, na qual os
condenados se apresentam como um corpo distinto dos juízes que os condenaram (tanto
os magistrados quanto a boa sociedade), percebendo-se como outra raça, em direta e
inconciliável oposição à dos juízes. Outra raça que suporta os grilhões como efeito de
uma batalha que circunstancialmente os submeteu e que não seria, portanto, a última
nessa guerra constante entre os executores e os sentenciados. Nesse sentido, os
condenados estariam em tal situação não por efeito de uma natural inferioridade, ou
mesmo, em conseqüência de uma justa punição por seus crimes; ao contrário, a
desvantagem seria transitória e produzida pela força; do mesmo modo, seus crimes não
seriam agressões a um princípio invariável e universal de Justiça, mas atos que
questionaram “vossas leis”, as leis do grupo que domina e subjuga desde as altas
instâncias do poder político e econômico. O peso das cadeias seria, assim, a evidência
de uma derrota transitória e reversível, mas que exporia a guerra existente no corpo
social. Tais canções, entoadas com impertinência, afirma Foucault, faziam lembrar aos
ouvintes que “a ordem atual não [duraria] para sempre; não só os condenados serão
libertados e recobrarão seus direitos, mas seus acusadores virão tomar-lhes o lugar”
(idem: 232).
Uma insurreição se anunciava nos cânticos: a sublevação de um grupo que se
reconhece como uma raça não no sentido biológico, mas histórico-político, de modo
356
muito aproximado ao discurso que emergiu na Inglaterra do século XVII. Os criminosos
franceses do século XIX atualizavam, desde sua perspectiva, o discurso da luta das
raças, tal como fizeram, por exemplo, os Levellers e Diggers, entre os ingleses, e os
aristocratas franceses contra a monarquia absoluta no século XVIII (Foucault, 2002). Os
forçados afirmavam que a lei penal seria um instrumento, uma arma usada pelo grupo
social dominante para atacar, sujeitar, fazer calar outro sobre o qual exercia seu poder e
do qual extraía sua riqueza. O castigo da cadeia convertera-se, desse modo, em uma
manifestação política: os presos acorrentados vociferam sua posição de presos de
guerra, de presos políticos. A conotação política e subversiva da cadeia ajudaria a
explicar, segundo Foucault (1997: 232), a urgência que juristas da época viam em
colocar fim a essa prática. Não se tratava, portanto, apenas de piedade ou cuidado
humanitarista: colocar um fim à cadeia significava evitar que esse discurso da guerra
das raças literalmente circulasse pelas ruas e estradas francesas, acirrando ânimos e
expondo uma guerra civil que o discurso jurídico-político esforçava-se por soterrar.
A cadeia seria, na visão dos reformistas penais de então, a persistência
anacrônica dos suplícios que as Luzes do final do século XVIII vieram extirpar. Para
eles, não faria sentido manter um castigo tão desumano e contraproducente em tempos
nos quais o Estado deveria zelar para que toda a vida fosse potencializada e
utilitariamente direcionada para o incremento da força do Estado. A prática da polícia
fundamental na formação do Estado moderno anunciara, ainda no século XVII, a
importância em atentar para a vida de cada um e do conjunto dos homens vivendo sob
um determinado território soberano. Tal atenção seria imprescindível para incrementar o
poder político e econômico de um Estado que se formava a fim de responder a um
problema de governo: como gerenciar territórios e populações ampliadas. Essa
preocupação governamental foi potencializada pelo surgimento, ao longo do século
357
XVIII, do problema de uma população numerosa e crescentemente urbana que
contava com uma dinâmica própria (crescimento vegetativo, morbidade, necessidades,
potencialidades) que precisava ser conhecida, esquadrinhada e controlada para que
pudesse ser conduzida ou governada. O poder pastoral cristão que a razão de Estado do
século XVII redimensionara no dispositivo de polícia foi aperfeiçoado em seus planos
individualizante e totalizante. Para um indivíduo que necessitava ser convertido em um
corpo dotado de “utilidade e docilidade” (Foucault, 1999: 131), foi desenvolvido um
conjunto de técnicas que Foucault nomeou de disciplinas: “o processo técnico unitário
pelo qual a força do corpo é com o mínimo ônus reduzida como força ‘política’, e
maximizada como força útil” (1997: 194). Uma malha de instituições disciplinares
como a escola, o exército, a fábrica, a prisão, o asilo levariam adiante a tarefa similar
de moldar corpos e subjetividades de modo a adaptá-los ao trabalho do capitalismo
industrial emergente e à obediência a todo tipo de autoridade e hierarquia. A disciplina,
diz Foucault, “tenta reger a multiplicidade de homens na medida em que essa
multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados,
treinados, utilizados, eventualmente punidos” (2002: 289). O poder disciplinar poderia,
assim, ser descrito como uma “anátomo-política do corpo humano” (Foucault, 1999:
131), que se interessa pelo indivíduo como “corpo-máquina” (idem: idem).
No plano da população, os instrumentos de polícia que visavam controlar
exaustivamente a dinâmica do conjunto de súditos (Foucault, 2007) seriam
substituídos por uma técnica geral de regulação das condições de vida da população,
“uma nova tecnologia que (...) se dirige à multiplicidade de homens, não na medida em
que eles se resumem em corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário uma
massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são
processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença, etc.” (Foucault, 2002:
358
289). Esse poder de conjunto, que visa a vida, chamado por Foucault de “biopoder”
(1999: 133), conformaria uma estratégia global de governo que denominou “uma
biopolítica da população” (1999: 131), ou ainda, de uma “biopolítica da espécie
humana” (2002: 289). Assim, a dimensão de governo interna a um Estado se
transforma pela combinação entre uma anátomo-política do corpo humano e uma
“anátomo-política da espécie humana” (idem: idem). O poder do soberano de vida e
morte sobre o súdito, característica do Estado moderno em seus inícios, cedeu espaço
para o dever do Estado em propiciar vida. A tendência que despontava ainda no século
XVII de gerar uma “vida melhor que a mera vida” (Foucault, 2006: 337) se agudizou
diante dos novos desafios à prática do governo dos homens; mais do que nunca
compreendido como um governo dos vivos. Na sociedade que Foucault chama de
soberania o poder do monarca era o de “causar a morte ou deixar viver” (1999: 128,
grifos do autor); já na sociedade disciplinar e da biopolítica, o Estado deveria poder
causar a vida e devolver à morte” (idem: 130, grifos do autor). A saúde do Estado não
passaria mais apenas pelo poder de confiscar a vida dos súditos, mas em potencializá-la
com o cuidado de que o adicional de vida viesse acompanhado de uma carência de
potencial contestador. Os meios para garantir o tema central da prática de governo
fortalecer o Estado com segurança remodelaram-se, portanto, a partir da segunda
metade do século XVIII.
Em uma sociedade voltada à produção de vida útil e dócil, os suplícios da
sociedade disciplinar não geravam mais positividades: as fogueiras, esquartejamentos,
torturas em praças públicas eram práticas punitivas próprias do soberano que se vingava
daquele que havia desafiado o corpo do monarca por meio de um ato tido como
criminoso quando o rei é o Estado, o descumprimento de lei é um afronta direta ao
soberano. “A morte-suplício”, afirma Foucault, “é a arte de reter a vida no sofrimento,
359
subdividindo-a em ‘mil mortes’ e obtendo, antes de cessar a existência, de most
exquisite agonies” (1997: 34). Essa técnica punitiva não cabia mais numa sociedade na
qual o poder político deveria impulsionar a vida e moldar condutas. Uma nova arte de
punição, afeita aos novos tempos, deveria ser introduzida: a prisão. A “técnica
penitenciária” (Foucault, 1997: 237) como forma privilegiada para punir na sociedade
disciplinar surgiu no movimento de reforma penal humanista que proclamou, na
passagem do século XVIII para o XIX, o horror e barbaridade dos suplícios e a
necessidade de construir um espaço no qual o criminoso não mais um violador da
vontade do monarca, mas sim da Sociedade pudesse ser recuperado por meio do
isolamento, do trabalho, da educação, da religião, da moral (Foucault, idem: 237-239).
A prisão foi apresentada pelos reformistas penais não como uma punição, mas como
uma precisa e piedosa técnica para a salvação do indivíduo e da sociedade. A utopia da
prisão se inscreveu, assim, numa mudança de urgências governamentais que levou a
uma nova economia das penas e dos castigos. Nesse cenário, a cadeia com seus
cantos provocadores seria um resquício incômodo, perigoso e subversivo da
sociedade de soberania.
A chegada dos novos códigos reformistas colocou fim a um campo de
tolerâncias existente no Antigo Regime, pretendendo punir efetivamente um universo de
práticas ilegais conjunto de ilegalismos que apesar de condenadas pelas leis não
eram efetivamente coibidas em todos os níveis sociais. Apesar da severidade dos
códigos penais da sociedade de soberania, eram relativamente poucas as punições. No
entanto, a era disciplinar também a das constituições e declarações de igualdade
formal entre os homens , com sua utopia da transparência, universalidade e equidade
absolutas prometia uma sociedade “publicamente punitiva onde mecanismos penais
sempre em atividade funcionariam sem atraso nem mediação nem incerteza” (Foucault,
360
1997: 240). Apesar do discurso igualitário e em meio à reação política aos
radicalismos populares da Revolução Francesa não tardou em despontar uma
intencionalidade política nova que passou a dirigir seletivamente a aplicação da lei
penal. Segundo Foucault, o medo que passou a atravessar as sociedades burguesas foi o
dos ilegalismos populares, expressos “desde os anos 1780 até as revoluções de 1848,
[nos] conflitos sociais, [nas] lutas contra os regimes políticos, [na] resistência ao
movimento de industrialização, [nos] efeitos das crises econômicas” (1997: 240). As
resistências populares mais ameaçadoras à nova ordem política e econômica foram as
relacionadas aos movimentos de contestação operária com seus ilegalismos: “desde os
mais violentos, como as quebras de máquinas, ou os mais duráveis como a constituição
de associações, até os mais cotidianos como o absenteísmo, o abandono do serviço, a
vadiagem, as fraudes nas matérias-primas, na quantidade e qualidade do trabalho
terminado” (idem: 241). A difusa negação das imposições da sociedade disciplinar
mais ou menos violentas, mais ou menos organizadas passou a ser notada pela nova
moral burguesa como uma atitude fora-da-lei ameaçadora à ordem social, ainda que
proveniente de um grupo determinado: as classes populares. Conforme sustenta
Foucault, o grande medo das ilegalidades populares fez com que o crime fosse
apresentado não como “uma virtualidade que o interesse ou as paixões introduziram no
coração de todos os homens, mas [como] coisa quase exclusiva de uma certa classe
social” (idem: 242), a mais pobre. No discurso jurídico e político do século XIX
analisado por Foucault, houve a explícita identificação entre ilegalismos/crimes/classes
populares que, apesar da formal universalidade da lei, não faziam caso em apontar que
era preciso defender a sociedade atacando as fontes de instabilidade e contestação
provenientes de baixo.
361
Todavia não eram todos os pobres que se constituíam em ameaças à ordem
social. Foucault analisa como foi preciso distinguir no seio das classes laboriosas
aqueles que eram dóceis e úteis, respeitosos da lei, conformados e necessários para a
reprodução do capitalismo, daqueles que como se referiam autores da época eram
a “raça abastardada”, a “classe degradada pela miséria” (Foucault, 1997: 243), os
grupos criminosos. Uma dupla cisão, portanto: não apenas entre uma classe rica e uma
classe pobre, tomadas ambas globalmente, mas entre ricos e pobres honestos de um
lado e pobres criminosos do outro. Essa nova divisão binária do corpo social foi
operacionalizada pelo conceito de delinqüente, o criminoso apartado do conjunto dos
homens tementes à lei, um “sujeito patologizado” (idem: 244), construído e fixado em
sua existência criminal pela prisão. Esse conceito tornou possível que se organizasse,
recortasse e destacasse um determinado conjunto de ações e pessoas “ao qual deu um
papel instrumental, em relação às outras ilegalidades” (idem: idem). Na época da
disciplina, a delinqüência disciplinarizou as ilegalidades, estabeleceu quais seriam os
criminosos a serem pinçados do corpo social para serem isolados na prisão e, quando
devolvidos à sociedade, claramente identificáveis. Nessa nova lógica binária de
enfrentamento, a noção de delinqüência serviu para a produção de uma nova raça,
singular e perigosa, a se opor a outra que se poderia chamar de raça dos homens de bem
ricos ou pobres. Uma nova guerra das raças foi assim construída, por meio desse
novo corte irredutível entre o criminoso/delinqüente e o homem de bem.
O processo de moralização das classes pobres, visando a produção do pobre
trabalhador e honesto, não teria sido possível sem essa nova guerra das raças, uma
guerra moral. Nesse processo, conta-nos Foucault, “com muita freqüência as ações
operárias eram acusadas de serem animadas, senão manipuladas, por simples
criminosos” (idem: 251). Confundia-se propositalmente ativismo político operário,
362
contestação revolucionária e delinqüência de modo a firmar o princípio de que a
chamada questão social era um caso de polícia e de que os reclamos dos trabalhadores
eram ameaças criminosas e imorais à vida social. Tal discurso moralizante, segundo
Foucault, era produzido e difundido pelo noticiário policial e pela literatura sobre o
crime que passaram a ser muito populares em meados do século XIX. Tais escritos
“[contavam] dia a dia um espécie de batalha interna contra o inimigo sem rosto; nessa
guerra, [constituíram] o boletim cotidiano de alarme ou vitória” (Foucault, 1997: 251).
Uma guerra cindia o corpo social, “uma perpétua ameaça para a vida cotidiana, mas
extremamente longínqua por sua origem, pelo que a move, pelo meio onde se mostra,
cotidiana e exótica” (idem: 251-252). Haveria uma raça delinqüente, a um só tempo
diferente e familiar, distante e presente, mas definitivamente distinta da raça de bem. A
guerra contra o crime, que incluía a guerra contra o operariado e suas demandas
políticas e econômicas, foi, portanto, um redimensionamento tático do discurso da
guerra das raças, do conflito permanente interno, da batalha incessante abalando o corpo
social.
A polivalência do discurso histórico-político, porém, seria ativada também pelo
outro front. Contra a criminalização da pobreza e do ativismo político revolucionário,
articulou-se um discurso operário que, segundo Foucault, denunciava “a delinqüência de
cima, exemplo escandaloso, fonte de miséria e princípio de revolta para os pobres”
(idem: 252). Tal discurso apontava que todos os crimes e violências perpetrados pela
burguesia que condenava à morte e ao sofrimento a maioria pobre da população
não eram julgados pelos mesmos tribunais que sentenciavam os miseráveis que reagiam
à injustiça social. Com isso, procuravam evidenciar que o direito penal e o aparato
repressivo estatal eram instrumentos hipócritas utilizados pela classe burguesa para
fazer calar os mais pobres, sujeitando-os numa guerra continuada. Os crimes seriam
363
produtos da miséria da necessidade que, por sua vez, existia devido à exploração
pelas classes dominantes. O verdadeiro criminoso era o burguês, a verdadeira
delinqüência era a burguesa. Em contraposição ao noticiário policial dos jornais
burgueses, a imprensa socialista passou a publicar um “contranoticiário policial” que
“substitui os relatos de crimes cometidos por gente do povo pela descrição da miséria
em que caem os que os exploram e que, no sentido estrito, os deixam com fome e os
assassinam” (Foucault, 1997: 253). Do conjunto dos discursos antipenais socialistas,
Foucault destaca o que foi levado adiante pelos partidários de Charles Fourier
41
através
das páginas do jornal La Phalange, publicado entre 1836 e 1849. Além da mera
inversão moralista do discurso burguês, os fourieristas teriam desenvolvido uma “teoria
política que é ao mesmo tempo uma valorização positiva do crime” (idem: idem). Em
outras palavras, mais do que um ato derivado da miséria e da necessidade, o crime
constituiria um “instrumento político” (idem: 254) no processo revolucionário. O
contranoticiário policial do La Phalange apresentava “os grandes crimes não como
monstruosidades, mas como a volta fatal e a revolta do que é reprimido, as pequenas
ilegalidades não como as margens necessárias da sociedade, mas como o fulcro da
batalha que aí se desenrola” (idem: idem).
As ilegalidades explicitariam a guerra mantida pela burguesia contra as classes
trabalhadoras, seriam os momentos vívidos a mostrar que a ordem social não era
pacífica, mas fruto de uma violência constante. Todo crime realizado por uma pessoa
oriunda das classes pobres seria, desse modo, um ato político. As reações repressivas e
punitivas do Estado, por sua vez, seriam o meio da burguesia manter sua guerra
41
Charles Fourier (1772-1837) foi um dos mais importantes teóricos do socialismo na primeira metade do
século XIX. Fourier elaborou, em escritos como Le nouveau monde industriel, de 1830, uma utopia da
organização social baseada na satisfação das paixões humanas e no princípio de atração e
complementaridade dessas paixões representadas pelo falanstério, projeto arquitetônico que comprovaria
sua tese da nova harmonia da vida social. Sobre Fourier, La Phalange e a leitura de Foucault da
perspectiva fourierista crítica às penalidades cf. Vieira (2008: 175-180).
364
particular em nome de todos e da salvação de toda sociedade. As penalidades e os
regimes disciplinares visariam, nesse sentido, a sujeição das classes populares, sua
domesticação e subserviência. O conjunto das disciplinas, colocado em movimento
pelos códigos legais, foram apresentados como armas numa guerra permanente e
cotidiana marcando a suposta paz civil. O crime, nos textos de La Phalange, foi
apresentado como revolta e não imoralidade, já que as leis não seriam expressões da
Justiça e da Moral, mas instrumentos táticos da classe dominante. O crime traria
“consigo um vigor e um futuro” (Foucault, 1997: 254), uma afronta libertadora, uma
arma contra as armas da burguesia. Nos argumentos fourieristas soavam, também, as
canções provocativas dos forçados em marcha: o direito penal como efeito do direito da
força e não da Justiça , o crime como revolta de uma raça sujeitada, mas não
definitivamente submetida.
Segundo Foucault, a polêmica conduzida em La Phalange não se extinguiu com
o fim do jornal ou o esmorecimento do fourierismo. Ela foi continuada pelos
anarquistas quando
“na segunda metade do século XIX, eles, tomando como ponto de ataque
o aparelho penal, colocaram o problema político da delinqüência; quando
pensaram reconhecer nela a forma mais combativa de recusa da lei;
quando tentaram, não tanto heroicizar a revolta dos delinqüentes quanto
desligar a delinqüência em relação à legalidade e à ilegalidade burguesa
que a haviam colonizado; quando quiseram restabelecer ou constituir a
unidade política das ilegalidades populares” (1997: 256).
O anarquismo, no entanto, levou a dimensão ilegalista da prática revolucionária
a outro patamar. O texto inaugural do anarquismo, o opúsculo A propriedade é um
roubo publicado por Proudhon em 1840, já situava a importância do ilegalismo no
discurso anarquista: “a declaração de que a propriedade é um roubo trazia nela mesma
uma fórmula necessária: proprietário igual a ladrão” (Avelino, 2006: 127). A
365
propriedade seria a concretização de um ilegalismo das classes dominantes que
foi sacralizado como direito; do mesmo modo que os atentados contra a propriedade
foram demonizados como crimes de lesa sociedade. Segundo Avelino, “menos que uma
valorização positiva do crime, como queriam os partidários de Fourier, Proudhon
produz uma reversão do direito que colocou em evidência a propriedade como resultado
de uma espoliação e, ao fazê-lo reintroduz nas relações sociais a noção de força: sendo a
posse um produto da força o roubo! , o direito de propriedade é o direito do mais
forte” (idem: idem, grifos do autor). Na guerra da vida social, o direito da força seria o
instaurador de todos os direitos e, logicamente, de todas as ilegalidades. Mais do que
uma acusação de que a burguesia também era delinqüente, Proudhon explicitou a guerra
cotidiana que definiu o legal e o ilegal não a partir da noção de justo, mas como
resultado das vitórias e derrotas na batalha constante que caracterizaria a paz civil. A
perspectiva proudhoniana, que marcaria a prática anarquista, inscreve-se assim na lógica
binária da luta constante, no plano do discurso histórico-político evidenciando a política
como guerra.
A reflexão sobre o ilegalismo, no entanto, não estaria restrita à identificação da
origem violenta do direito e dos conceitos de legal e ilegal. A ação revolucionária
anarquista e o anarquismo mesmo é ilegalista, operando fora dos marcos da lei,
contra a lei e por sua abolição. As insurreições anarquistas, a partir da segunda metade
do século XIX, foram marcadas pelas lutas descentralizadas, articuladas ou não a outras
sublevações: foram greves, sabotagens, assassinatos, atentados, revoltas nas cidades e
no campo. Lutas levadas a cabo pela chamada propaganda pela ação ou propaganda
pelo fato forma de ação direta, sem o dirigismo de um partido ou associação, muitas
vezes conduzidas por indivíduos agindo sozinhos, que veria “nos atos violentos, e nos
roubos e sabotagens, uma dimensão política e revolucionária” (Augusto, 2006: 143). A
366
propaganda pela ação estava de acordo com o rechaço anarquista à representação
política, à delegação da vontade política a um condutor quer fosse o Estado ou o
líder revolucionário e, simultaneamente, afirmava a via ilegalista de modo a expor a
guerra constante que sujeitava a maioria pobre da população. A propaganda pela ação
não deviria ser necessariamente violenta, no entanto, os atos mais impactantes e que
suscitaram repressões mais virulentas por parte do Estado foram as mais francamente
agressivas. O uso da violência pelos anarquistas haveria de ser compreendido a partir da
noção de guerra permanente e do direito da força, como apresentados por Proudhon,
por meio do qual os anarquistas procuraram gerar, basicamente, dois efeitos: o de
excitar a revolta generalizada e o de explicitar a situação de guerra cotidiana em que se
encontravam (Augusto, 2006: 143; Avelino, 2006: 128).
Das ações diretas ilegalistas e violentas, as mais importantes foram as do
terrorismo anarquista, ativo principalmente entre as décadas de 1880 e 1910. Os
atentados terroristas realizados por anarquistas começaram em uma época de refluxo
nas atividades revolucionárias que se seguiu à derrota da experiência libertária da
Comuna de Paris, em 1871 acompanhada de grande repressão ao movimento
operário na França e na Europa ocidental ; do final da Associação Internacional dos
Trabalhadores (AIT), em 1876, em decorrência de dissidências internas (como atesta a
expulsão dos anarquistas pelos comunistas liderados por Karl Marx, em 1872) e da
repressão externa; e da força crescente dos princípios de organização sindical
contrários ao espontaneísmo entre os próprios anarquistas. Segundo Passetti, o
terrorismo anarquista apareceu por iniciativa
“de jovens insurgentes a-partidários ou articulados em organizações
políticas alvejando o Estado. Estas ações terroristas contra o Estado se
diferenciavam não somente porque os anarquistas pretendiam a abolição
do Estado e não sua ocupação, como objetivavam os socialistas e os
comunistas, mas principalmente por eles evitarem a conspiração
articulada a partir de uma sociedade secreta. O terrorismo anarquista foi
individualista, pessoal e de propaganda pela ação. Atuou voltado para o
367
regicídio e o assassinato de eminentes pessoas públicas ou privadas, e
seria abjurado por Proudhon, que o desconheceu, como por influentes
pensadores anarquistas, como Piotr Kropotkin e Errico Malatesta. A
exceção seria Mikhail Bakunin, que não só o conheceu como chegou a ter
simpatias a partir de sua aproximação com o militante russo Sergei
Nietcháiev, autor de um catecismo revolucionário que muitos analistas
conferem sua co-autoria a Bakunin, apesar deste renegá-la” (2006: 99).
Esses jovens fizeram soar, diante da mudez provocada pela repressão ou pela
excessiva organização do movimento revolucionário, aquilo que um dos mais
destacados anarco-terroristas, Émile Henry, chamou em seu julgamento, de “a voz da
dinamite” (Maitron, 2005: 31). Henry foi julgado e condenado à morte por dois
atentados a bomba, ambos em 1894: um contra a sede da companhia mineradora Société
des Mines de Carmaux
42
e outro contra um café, o Terminus, freqüentado pela
burguesia parisiense que terminou com “vinte pessoas feridas e uma que sucumbiu aos
ferimentos” (Maitron, 1992: 238). Os atentados de Henry aconteceram uma semana
após a execução do também anarquista August Vaillant que, em 1893, lançara uma
bomba na Assembléia Nacional francesa ferindo alguns parlamentares. Ainda que não
tivesse matado, Vaillant foi levado à guilhotina. Antes da lâmina cair teria gritado “viva
a anarquia! A minha morte será vingada” (Joll, 1970: 153). Antes dele, em 1892,
François-Claudius Koeningstein, conhecido como Ravachol, havia se tornado
conhecido pelos atentados a bomba contra juízes que tinham encabeçado processos
contra operários grevistas. A execução de Vaillant serviu de impulso para a ação de
Henry e sua própria morte pelo Estado encorajou o jovem italiano Santo Geronimo
Cesario a assassinar o presidente francês Sardi Carnot, ainda em 1894.
Essa série de atentados por terroristas não resumem todo o período do anarco-
terrorismo, mas são significativas mostras dessa atitude de declaração de guerra direta
ao Estado e à burguesia, por meio de atos violentos em espaços públicos ou públicos
42
A bomba colocada na sede da companhia foi recolhida por policiais antes da detonação. Levada à
chefatura mais próxima terminou por explodir matando cinco policiais (Degenszajn, 2006: 64).
368
privatizados (Passetti, 2006: 111), como o Café Terminus. Os ataques seqüenciais
descritos acima não deveriam ser encarados, no entanto, como meras vinganças pelas
execuções de companheiros. Foram insurgências no sentido mais amplo da revolta, da
explicitação da guerra, da insubordinação contra uma sociedade e uma justiça
consideradas criminosas. Émile Henry, também em passagem de seu julgamento,
afirmou: “tenham ao menos a coragem de vossos crimes, senhores burgueses, e
admitam que as nossas represálias são totalmente legítimas” (Maitron, 2005: 35); para
depois completar: “não imploramos a mínima piedade nesta guerra impiedosa que
declaramos à burguesia” (idem: 36). Os burgueses mortos seriam vítimas inocentes?
Henry responde ao juiz que o acusa de visar o assassínio de senhores e senhoras de bem
que “as minhas mãos estão cobertas de sangue, tal como a sua toga!” (idem: 20).
Tratava-se, portanto, de uma guerra; e por ser uma guerra, como havia afirmado
Ravachol em seu julgamento, “ninguém é inocente” (Augusto, 2006: 148). Seriam todos
ativos nos dois lados em luta; não haveria distinção entre soldados e civis. A política
como guerra transforma todos em combatentes.
Método, atitude, guerra
No anarquismo terrorista é possível notar uma radicalização da perspectiva
histórico-política que reativa a noção de política como guerra visando não a ocupação
ou reforma do Estado, mas sua destruição. Diferente do terrorismo em sua primeira
emergência histórica moderna no período do Terror na Revolução Francesa , do
terrorismo socialista russo visando o Estado, no século XIX, ou ainda do terror de
Estado conduzido pelos bolchevistas a partir de 1917, o terrorismo anarquista afirmou a
singularidade de declarar-se inimigo de qualquer forma de Estado (Degenszajn, 2006).
369
O anarquismo, ilegalista como meio e como fim, experimentou com o anarco-
terrorismo a manifestação mais explícita de afirmação da política como guerra
cotidiana, da política como a petite guerre analisada por Proudhon. O anarco-
terrorismo, radicalidade na radicalidade anarquista, expôs a vida social como guerra,
como cruel embate entre dois grupos que as pompas e togas do discurso jurídico-
político não poderiam ocultar. Foi a ponta mais extremada mais afiada da lógica
da luta das raças convertida em discurso da luta de classes no século XIX, como
estudado por Foucault (2002). Tão extremada que suscitou resistências dentro do
próprio anarquismo que condenaram a violência e o individualismo de homens como
Vaillant, Ravachol e Henry. A “nova orientação” do movimento anarquista, como
chama Maitron (1992: 265), apontou, a partir da última década do século XIX, para a
organização sindical o anarco-sindicalismo como forma ação revolucionária. Por
sua vez, anarquistas avessos ao movimento sindical, tentando contornar a repressão que
associava diretamente anarquia a terrorismo, articularam-se sob novas formas, como
indica a fundação do jornal Le Libertaire, por Sébastien Faure, em 1895, que recupera
estrategicamente o termo libertário associando-o a anarquista ou à anarquia (idem:
275).
O anarco-sindicalismo ganhou relevância como movimento na Europa e nas
Américas, alcançando seu apogeu na experiência coletivista anarquista durante a Guerra
Civil Espanhola (1936-1939). A derrota dos republicanos pelas forças fascistas do
general Francisco Franco serviu de justificativa para que muitos analistas
principalmente historiadores socialistas e comunistas vissem o fim do anarquismo
como força social e política (Woodcock, 2002). De fato, a desarticulação do anarco-
sindicalismo se deu sob os escombros da guerra na Espanha e da Segunda Guerra
Mundial, pela força da repressão estatal praticada por europeus, estadunidenses e latino-
370
americanos, pelo welfare state da social-democracia na Europa ocidental pós-1945 e, na
Europa centro-oriental, pelas ditaduras do socialismo de Estado comandadas pela União
Soviética. No entanto, tal desarticulação não significou a morte do anarquismo, uma vez
que não se poderia tratá-lo como um bloco unitário, e sim, no plural, como anarquismos
um conjunto heterogêneo de práticas. Segundo Passetti, “a vida dos anarquismos não
se pronuncia por continuidades. Eles reaparecem surpreendendo pela atualidade da
análise diante das eloqüentes formulações teóricas, os projetos políticos, o definitivo
conceito, movimentando pessoas com seu nomadismo” (2003: 21).
Essa capacidade de resistir, movendo-se nômade, fez dos anarquismos uma força
que manteve o fio cortante da crítica aos discursos e práticas políticas centralizadoras,
totalizantes, autoritárias. Não à toa, as letras “A” e as bandeiras negras reapareceram
com destaque nas revoltas estudantis do Maio de 1968. Era a época que Foucault
identificou como de “imensa e prolífera criticabilidade das coisas, das instituições, das
práticas, dos discursos; uma espécie de friabilidade geral dos solos” (2002: 10), que
abalou as certezas teóricas à esquerda e à direita por meio de uma “insurreição dos
‘saberes sujeitados’” (idem: 11). Essa insurreição levou a ataques descentralizados aos
cânones teóricos, às práticas moralistas (no sexo, na amizade, no trabalho, na vida
social) e às formas de representação política (partidos e sindicados): uma espécie de
guerrilha, atacando sem centro uma moral encastelada no Estado, nos partidos, nas
universidades, nos sindicatos. Época de experimentações com drogas, com a política,
com o corpo. Época de descentramentos. No acontecimento Maio de 68 ficou evidente
como caducaram as idéias e os movimentos com centro:
“não se resistia mais como antigamente, em lugares. Não havia porque
crer, assim pensavam os jovens ativistas, em socialismo como
ultrapassagem do capitalismo ou meio para o comunismo ou sociedade
igualitária. Tudo fora de ordem e de lugar. Era o espaço da rua, da
universidade, escola, fábrica, prisões para fazer liberdades alheias ao
mercado de consumo ou ao centro geofísico da consciência” (Passetti,
2003: 46).
371
Resistir e buscar liberdades, portanto, fora das instituições criadas para isso,
numa tentativa de inventar novas sociabilidades e modos de lutar politicamente sem
tutores, pastores ou condutores. Nas paredes das universidades parisienses, em 1968,
jovens estudantes que sequer haviam nascido ou que no máximo eram recém-
nascidos quando do fim da Guerra Civil na Espanha, escreveram frases como: “Não
contemos senão com nós mesmos. O socialismo sem a liberdade é a caserna
(Bakunin)”; “Não me libere, eu me viro!”; “A anarquia sou eu”; “Não fizemos nada
mais que a insurreição de nossa revolução”
43
. Os princípios anarquistas do autogoverno,
ação direta e, principalmente, de revolta diante dos poderes centrais e disciplinadores
atravessou ruas, barricadas, anfiteatros ocupados, paredes e muros pichados na Paris de
maio de 1968, ainda que tal emergência explícita do anarquismo não tivesse
necessariamente relação com o anarquismo histórico, surgido como movimento social
no século XIX. Afirmava-se, assim, a diversidade dos anarquismos diante do
denominador comum da sublevação contra a heterogestão e pela afirmação de si. Desse
modo, não é fortuito que para Foucault as insurreições de saberes a partir dos anos 1960
tivessem algo de uma “temática anarquista” (2002: 09): um ímpeto libertário animava
discursos como, por exemplo, o da antipsiquiatria, o feminista, o antimilitarista, o dos
direitos para homossexuais e o antiprisional. Dentre os saberes em revolta, as próprias
práticas históricas anarquistas se revolviam enfrentando seus limites e seus laços com o
humanismo libertador que marcara sua formação no século XIX. De todo modo, havia
uma atitude contestadora que, por não buscar o reposicionamento de estruturas de poder
vibrava num tom próximo à noção anarquista vinda desde Proudhon que as
revoluções visam ocupar os centros de poder e, com isso, apenas reconstituem tiranias.
43
As frases citadas foram recolhidas das paredes de universidades, ruas e teatros parisienses em maio de
1968 e editadas naquele mesmo ano por Claude Tchou (2007). As inscrições mencionadas acima todas
anônimas estão, na nova edição, respectivamente nas páginas 21, 46, 15 e 67.
372
Atento ao tema da insurreição dos saberes, Foucault comentaria explicitamente a
atitude de revolta anarquista em seu curso no Collège de France de 1979-1980,
intitulado Do governo dos vivos. No início do curso, ao tratar de sua perspectiva
analítica justificando porque operava um deslocamento das explicações sobre as
relações de poder e governo dos homens centradas na tese da ideologia , Foucault
afirmou que “a única possibilidade de trabalho teórico para mim, seria somente a de
deixar o desenho mais inteligível possível, o traço do movimento pelo qual eu não estou
mais no lugar onde estava agora há pouco” (2006: 291). Uma tática a um só tempo
firme e evasiva, a fim de atacar, causar impacto e evitar uma sacralização que
transformasse uma analítica em teoria. Tratava-se, continua Foucault, de “traçar não
edifícios teóricos, mas deslocamentos pelos quais as posições teóricas não cessam de se
transformar. Há teologias negativas, digamos que sou um ‘teórico negativo’” (idem:
292). Nas análises foucaultianas, tal negatividade teórica consistiria, justamente, em
alguns deslocamentos, mudanças de perspectiva possíveis de serem realizadas pelo
olhar genealógico que se interessa pela busca de “análises inversas” (idem: 293), ao
revolver os discursos sujeitados, excitando aquilo que contesta a lógica do poder
soberano e dos valores e conceitos universais, aquilo que foi soterrado, mas não
definitivamente calado, evidenciando a história dos combates. Essa analítica que visa as
análises inversas, segundo Foucault, seria “muito mais sobre uma atitude que sobre uma
tese” (idem: idem). “É uma atitude”, segue o filósofo, “que consiste, primeiramente, em
afirmar: nenhum poder é incontestável. Nenhum poder é evidente ou inevitável; nenhum
poder merece ser aceito no jogo por si só. Não há legitimidade intrínseca ao poder”
(idem).
Assim, se as relações de poder não estão fundadas “nem no direito e nem na
necessidade” (Foucault, 2007: 293), seria possível afirmar que “todo poder não repousa
373
senão na contingência e na fragilidade de uma história, a partir do momento em que o
contrato social é um blefe e a sociedade civil um conto para crianças; a partir do
momento em que não existe nenhum direito universal, imediato e evidente que possa,
em todo lugar e sempre, sustentar uma relação de poder qualquer que seja ela” (idem:
idem). A partir daí, Foucault sustenta que a grande postura filosófica consistiria em
ativar uma “dúvida metódica que suspende todas as certezas; então, a pequena postura
lateral e o contra-posicionamento que eu proponho consiste em jogar sistematicamente
não mais com a suspensão de todas essas certezas, mas com a não necessidade de poder,
qualquer que seja” (2006: 294). Essa sua posição metodológica combativa, de afronta à
naturalização do poder, fez com que Foucault se lembrasse das palavras anarquia e
anarquismo como interessantes nomes para a ação de “fazer funcionar e triunfar um
discurso crítico” (idem: idem).
Não obstante, Foucault fez questão de explicar que ao mencionar a anarquia ou o
anarquismo ele não pretendia ser confundido como um defensor de uma sociedade
utópica futura na qual “seriam abolidas, anuladas, todas as relações de poder” (idem);
tampouco afirmava que “todo poder é ruim” (idem), força apenas negativa que serviria
de obstáculo para que os homens pudessem gozar de suas plenas capacidades e talentos,
vivendo em liberdade. Assim, não seria o caso de pensar uma sociedade sem relações de
poder, mas de “colocar o não poder ou a não aceitabilidade do poder, não em termos de
empreendimento, mas ao contrário, no início do trabalho, relacionando às formas de
problematizar os modos pelos quais efetivamente se aceita o poder” (idem, grifos
meus). Do mesmo modo, não seria aceitar uma definição exclusivamente negativa do
poder, mas “de partir do ponto segundo o qual qualquer poder, qualquer que seja ele,
não é de pleno direito aceitável, ou não é absoluta e definitivamente inevitável” (idem).
A anarquia que Foucault evoca é uma “atitude teórica-prática concernente à não
374
necessidade do poder” (idem: 295); uma atitude contestadora à inevitabilidade das
relações de poder, como se elas não fossem possíveis de serem questionadas,
enfrentadas, invertidas.
Essa atitude de Foucault chamou a atenção, no final do século XX, de
intelectuais anarquistas, afeitos aos modos de luta descentralizados do Maio de 68, que
passaram a notar no trabalho analítico e genealógico do filósofo francês com sua
problematização das noções tradicionais de poder, resistência e subjetivação uma
potência libertária capaz de atualizar o anarquismo numa época que colocava novas
questões políticas e econômicas muito diferenciadas daquelas do século XIX. Os
escritos de anarquistas interessados na força atualizadora de Foucault para o
libertarismo foram conhecidos, principalmente, a partir do início dos anos 1990 com os
livros e artigos de alguns autores em especial, como o filósofo estadunidense Todd May
(1993, 1994, 1995, 1996), o sociólogo italiano Salvo Vaccaro (1996, 2005), o filósofo
alemão Wilhelm Schmid (1996, 2007), o cientista político australiano Saul Newman
(2005, 2006), o sociólogo francês Daniel Colson (2001) e, no Brasil, pelos artigos,
ensaios e livros do cientista político Edson Passetti (1996, 2002, 2002a, 2003, 2003d,
2007, 2007a) e da historiadora Margareth Rago (2000, 2001, 2005). A primeira reunião
importante de artigos em língua portuguesa sobre a relação entre anarquismo e Foucault
foi organizada por Edson Passetti para o quinto número da revista Margem, publicada
pela Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP, em 1996, com textos de May, Schmid,
Vaccaro e do próprio Passetti. A questão principal tratada nos artigos desse dossiê é,
justamente, a hipótese que uma leitura interessada da obra de Michel Foucault pudesse
impulsionar análises libertárias do e no presente. Os autores aceitavam o desafio de
confrontar as noções de Foucault às do anarquismo do século XIX; decisão ousada, pois
significava atacar o que de humanista e iluminista atravessava o libertarismo histórico.
375
Seria inevitável não enfrentar as diferenças no que diz respeito às questões do poder e
da subjetivação entre anarquistas e para Foucault. Não haveria como sustentar, a partir
das noções foucaultianas, o princípio, presente no anarquismo, de que o poder seria uma
força meramente repressiva vinda de cima para baixo com o objetivo de sujeitar os
indivíduos; no mesmo sentido, a noção anarquista de que cada homem e mulher seria
dotado de uma natureza sociável a ser libertada com a revolução não poderia ser
conciliada com a noção de subjetivação construída nas relações de poder, sem
essencialismo ou transcendentalismo, estudada por Foucault (May, 1994, 1996;
Vaccaro, 1996). No entanto, haveria uma proximidade entre a recusa de Foucault às
teorias totalizantes e ao intelectual universalista e o rechaço anarquista à representação
política, à delegação de autoridade política para um homem, assembléia ou partido e as
resistências no âmbito micropolítico. A defesa de Foucault da analítica como
perspectivismo, pelo envolvimento do intelectual nas lutas precisas e pontuais vibraria,
segundo May (idem) e Vaccaro (idem), em sintonia com as resistências descentralizadas
e destinadas a enfrentar situações opressivas concretas, como às que se dedicaram os
anarquistas desde o século XIX.
Esse “intelectual perito”, como chama Passetti (1996: 146), poderia ser pensado
a partir de Foucault como aquele que, desde sua perspectiva, desafia a soberania
da teoria lançando-se nos embates como algo que se poderia chamar de um analista em
combate, apagando a pretensa isenção ou condução do cientista perante seu objeto de
estudo. Cada noção e análise desse intelectual seria um instrumento que, para Foucault,
“é forçosamente um instrumento de combate” (Foucault, 1998d: 71). Esse intelectual
local estaria envolvido com as lutas fragmentárias, pontuais, descentralizadas, que para
Foucault justamente por essa descentralização e pela insurgência contra o
autoritarismo das teorias e das verdades consagradas mostravam-se como lutas de
376
temática anarquista. O que interessava e estava em jogo para Foucault, segundo
Passetti, seriam
“lutas transversais, não limitadas a um país; são lutas cujos objetivos são
efeitos de poder enquanto tal; são lutas imediatas e anárquicas contra o
inimigo imediato e contra soluções futuras (liberações, revoluções, fim da
luta de classes); questionam o estatuto de indivíduo, os privilégios de
saber e se posicionam, simultaneamente, contrárias ao segredo, o moto-
contínuo das burocracias modernas, negando o dogmatismo cientificista.
O principal objetivo destas lutas é atacar, ao mesmo tempo, as técnicas e
as formas de poder” (1996: 145).
As lutas sem centro e de resistência frontal aos poderes nos lugares mesmos
onde são exercidos, fariam das insurreições caras a Foucault modos de combate afeitos
também à prática libertária. Essas lutas, todavia, não estariam vinculadas a um
empreendimento totalizante de superação global das condições políticas, econômicas e
sociais: não seriam revoltas alinhavadas por um projeto de Revolução em busca de uma
utopia. As insurreições emergidas nos anos 1960 estariam mais conectadas com
afirmações de liberdades no presente, em liberações para o agora e não para o futuro.
Nesse sentido, Edson Passetti destaca a noção de heterotopia, indicada brevemente por
Michel Foucault ainda nos anos 1960, a fim de valorizar o que chama de heterotopia
anarquista (Passetti, 2002a, 2003, 2003b, 2003d, 2007). Para Foucault, heterotopia seria
uma “espécie de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais,
todos os outros posicionamentos reais que se podem encontrar no interior de uma
cultura estão ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, espécies de
lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis”
(2001: 415). “As utopias consolam”, ainda segundo Foucault, porque “se elas não têm
um lugar real, desabrocham, contudo, num espaço maravilhoso e liso; abrem cidades
com vastas avenidas, jardins bem plantados, regiões fáceis, ainda que o acesso seja
quimérico” (2000: XIII). As heterotopias, ao contrário, “inquietam” porque “solapam
377
secretamente a linguagem, porque impedem de nomear isto e aquilo, porque fracionam
nomes comuns ou os emaranham, porque arruínam de antemão a ‘sintaxe’” (idem:
idem). Essa noção interessa a Passetti na medida em que chama a atenção para o caráter
presente da luta libertária. Mesmo o anarquismo do século XIX, projetando utopias,
teria efetivado heterotopias, pois os libertários, ao não pretenderem tomar ou reformar o
Estado, mas aboli-lo violenta ou pacificamente, teriam experimentado maneiras de
viver, amar, lutar, educar as crianças, fazer arte, trabalhar sem reproduzir hierarquias,
autoridades, sujeições. “Para o anarquista”, afirma Passetti, “a consciência se ergue na
prática, nas mobilizações, na vida das associações. Experimenta-se a utopia. O espaço
para tal é a associação, e esta não depende de propriedade e de seu correlato, a
fronteira” (2007: 66). Viver a utopia é a realização heterotópica da liberdade no
presente, em meio às relações de poder, sem a necessidade de esperar por uma
transformação global da sociedade. Ainda segundo Passetti, “os anarquistas, pacifistas
ou revolucionários constroem heterotopias, lugares de contraposicionamento no interior
dos desvios insuportáveis para a sociedade” (2003b: 289).
As heterotopias seriam concretizações no agora, efeitos das lutas, realizações
imersas nas batalhas e nelas vivas e potentes. As incontáveis lutas locais, os inúmeros
pontos de resistência e combate poderiam produzir heterotopias que não esperariam a
superação de uma repressão global ou a transformação definitiva de toda ordem política
e econômica, para afirmar novos costumes em confronto com o Estado, com a moral
vigente, com os dispositivos de poder. Desse modo, a noção de heterotopia anarquista,
proposta por Passetti, afirma lutas libertárias no presente, sem apego às utopias
consoladoras e voltadas a invenções de liberdades, por meio de combates constantes, na
formação de associações federalizadas e sem a defesa de valores absolutos como
Revolução, Liberdade, Autonomia, Sociedade ou a crença na supressão das relações de
378
poder. Um libertarismo, assim, próximo da atitude combativa de Foucault, filósofo que,
segundo o próprio Passetti, é um “nocivo saudável” aos anarquismos porque os faz
“ranger” (2007: 67), afastando os transcendentais humanistas e, assim, atualizando-os
para as batalhas presentes, no século XXI. É nessa perspectiva de um “Foucault
libertário” (Passetti, 1996), experimentado pelos intelectuais mencionados e a partir
de seus ensaios , que se insere a analítica das relações internacionais aqui proposta:
atitude no campo da insurreição dos saberes, da luta contra a tirania e monopólio das
teorias e pela afirmação de um estudo interessado nas resistências e não domínio da
lógica jurídico-política, da racionalidade do Estado e do interesse em sua conservação.
Poderíamos compreender, então, que se Foucault cuidou para que sua atitude
contestadora não fosse diretamente tomada como anarquista, era porque não queria que
seu método fosse confundido com “uma certa filosofia libertária que crê em
necessidades fundamentais do homem” (1999a: 311-312). Não obstante, o que no
anarquismo parece haver interessado a Foucault e no anarquismo em especial, e não
no liberalismo ou socialismo foi a atitude de insurgência, de não localização ou
fixação pelo poder, de deslocamento, de afirmação da liberdade a cada instante frente às
múltiplas situações estratégicas e de luta com que se é confrontado. O ataque
descentralizado e contundente às técnicas e formas do poder em Foucault vibraria,
assim, em freqüência próxima às insurgências anarquistas na medida em que diria
respeito à resistência ao governo sobre si, à condução exterior, às hierarquias. Todavia,
uma afirmação de si que pretendesse estar acompanhada de Foucault não poderia pensar
o governo de si como autonomia plena ou uma autocracia de si já que isso implicaria
numa utópica crença na eliminação das relações de poder que apenas reposicionaria o
soberano: não mais no Estado, mas um soberano em cada um. Ao afirmar que sua
atitude teórico-prática é algo próxima ao anarquismo, Foucault, portanto, não se filiava
379
ao anarquismo do século XIX. Para marcar essa diferença, e destacar aquilo que lhe
parecia potente no anarquismo, Foucault afirmou que “melhor que empregar a palavra
anarquia (...) eu diria que isso que proponho é um tipo de anarqueologia” (2007: 295).
Se, para Foucault, “a arqueologia seria o método próprio da análise das discursividades
locais, e a genealogia, a tática que faz intervir, a partir dessas discursividades locais
assim descritas, os saberes dessujeitados que daí se desprendem” (2002: 16), a noção de
anarqueologia seria, para ele, um bom nome para explicitar que sua perspectiva
metodológica era alimentada pela intenção política de problematizar o exercício do
poder em suas múltiplas correlações de força, permitindo que os saberes e práticas
sujeitados se insurgissem. Uma atitude contestadora e não uma tese; uma tomada de
posição perspectivista assumindo sua frente de combate, suas intencionalidades e seus
inimigos; e não se ocultando por detrás da pretensa imparcialidade científica. Uma
atitude como desafio ao poder e aos saberes universalistas; uma atitude-método e, por
isso, uma agonística e não uma teoria. Uma atitude, portanto, afeita à revolta anarquista.
Anarquia e parrésia: destemor na batalha
No curso “O governo de si e dos outros”, apresentado no Collège de France no
início de 1983, Michel Foucault se dedicou a analisar as práticas que compunham, na
Antigüidade Clássica, os modos pelos quais os homens procuravam conhecer-se a fim
de poder governar-se e cuidar de si. Esse processo, segundo o filósofo, não poderia ser
desenvolvido solitariamente, demandando necessariamente uma relação com outra
pessoa. Esse outro com que um homem deveria relacionar-se para conhecer a si mesmo
precisaria ser dotado de, ao menos, três características: idade suficiente, boa reputação e
parrésia (Foucault, 2008: 44). Segundo Foucault, “um dos significados originários da
380
palavra grega parrésia é ‘tudo-dizer’, mas ela é traduzida, mais freqüentemente, como o
falar francamente, a liberdade de palavra” (idem: 42-43, grifos meus). Para que a
construção de si fosse efetiva, o interlocutor deveria ser capaz de falar francamente, não
poupar palavras, não temer a ofensa, dizer a verdade. Apenas evitando a adulação é que
um homem poderia confrontar-se com seus próprios defeitos e aperfeiçoar-se. Esse
combate com a verdade, ainda que duro, seria urgente para que cada um pudesse
conhecer e governar a si. A noção de parrésia teria tido, conforme Foucault, uma “longa
duração (...) e um prolongado uso durante a Antigüidade” (2008: 46), não apenas no
âmbito das relações entre dois homens na busca do conhecimento de si, mas também no
plano político, num tipo de relação muito específico entre o homem comum ou o
filósofo e o soberano.
No plano político, a parrésia significava o ato de “um homem apresentar-se ao
tirano e dizer-lhe a verdade” (Foucault, 2008: 49). O registro mais antigo dessa prática,
segundo Foucault citando Plutarco, teria sido o encontro entre Platão e Denis, tirano de
Siracusa, quando o filósofo afirma ao soberano que na Sicília não havia sequer um
homem de bem (idem: idem). Longe de adular o tirano, Platão teria sido franco, não
temendo as conseqüências de sua parrésia. A ira de Denis, de fato, veio e Platão foi
vendido como escravo em Egina. Essa história demonstraria que a parrésia não seria
apenas o ato de dizer a verdade, mas uma maneira de dizer essa verdade. Maneira não
em termos de estilo (se na forma de lição, aforismo, máximas ou poesia), mas em
termos de atitude: “a parrésia não está nem ao lado da estrutura interna do discurso,
nem ao lado da finalidade que o discurso verdadeiro busca provocar no interlocutor,
mas ao lado do locutor, ou, sobretudo, ao lado do risco que o dizer-a-verdade abre para
o próprio locutor” (idem: 56, grifo meu). O que constitui a parrésia, desse modo, “é o
abrir, para aquele que diz a verdade, de um certo espaço de risco, é provocar uma
381
ameaça, um perigo no qual a existência mesma do locutor estará em jogo” (idem: idem).
Esse que diz-a-verdade, o parresiasta (parrêsiazesthai), expõe-se à morte. O que define
a parrésia não seria, portanto, uma noção abstrata de dizer a verdade, mas o efeito letal
que esse dizer pode causar sobre aquele que disse. O risco é a medida da parrésia; e é
parresiasta aquele que sabe que sua franqueza pode lhe custar a vida.
No entanto, o exemplo da parrésia em Platão não teria sido o mais radical entre
os gregos. E isso se evidenciaria pelo fato de que Platão se dirigiu francamente ao tirano
de modo a provocar uma cumplicidade com ele, influenciá-lo de alguma maneira ou
fazê-lo notar a importância da filosofia para a definição de seu modo de ser e, quem
sabe, fazê-lo governar como um rei-filósofo (Foucault, 2008: 270-272). A parrésia
platônica se queria parceira do poder político, visando acomodar-se a ele, para melhorar
e aperfeiçoar o exercício do poder centralizado. Outra prática da parrésia muito distinta,
Foucault encontra entre os filósofos cínicos, em especial, nas atitudes de Diógenes, o
Cão. Diferente da parrésia palaciana de Platão, que ambicionava intervir sobre a
conduta do príncipe, os cínicos foram parresiastas no ágora, na praça pública, buscando
abalar o poder político e as verdades consagradas (idem: 269). A distância entre as
maneiras de arriscar-se e da liberdade de Diógenes frente à subserviência de Platão, são
lembradas por Foucault a partir de uma história narrada pelo romano Diógenes Laércio:
um dia, Platão encontrou Diógenes, o Cão, quando este ia lavar folhas para sua salada;
vendo a cena, Platão lhe provoca dizendo que se tivesse respondido aos convites de
Denis, o tirano, não precisaria lavar suas próprias verduras; Diógenes, então, teria
respondido que se Platão tivesse o hábito de lavar sua salada não seria escravo de Denis
(2008: 270).
A anedota, diz Foucault, é “muito importante e séria [porque] indica dois pólos
segundo os quais (...) esse problema do ponto de contato entre um dizer-a-verdade
382
filosófico e uma prática política encontraram dois lugares de inserção: a praça pública
ou a alma do Príncipe” (idem: idem). O cínico agia na praça pública contra o poder;
Platão na corte, influenciando o soberano. Segundo Foucault, Diógenes dizia-se o Cão
porque agradaria os que lhe agradassem, latiria contra os que o contrariassem e
morderia aqueles que lhe fossem maus (2008: 265). Essa postura o colocaria fora das
leis da cidade, mas não em isolamento: colocar-se fora das leis, fora do palácio real, mas
em confronto direto a eles: “a parrésia de Diógenes está, assim, no seu modo de vida,
ela se manifesta também no seu discurso de insulto, de denúncia com respeito ao poder”
(idem: idem). A parrésia cínica seria, então, pública e desafiadora do poder; o que faria
da filosofia uma prática não a serviço do rei, mas contra o rei; pela crítica constante e
impiedosa ao poder. Uma filosofia de ataque praticada como parrésia, como uma luta,
um embate: uma filosofia como agonismo. E se ela implicava em risco de morte era
porque o parresiasta enfrentava diretamente o mais poderoso, aquele que poderia matá-
lo. A guerra estabelecida pela parrésia, desse modo, é assimétrica: sem esse
desequilíbrio não haveria valor, desafio, perigo. O alvo é o poder político que é muito
mais forte em seu conjunto que o parresiasta, podendo fazê-lo calar momentânea ou
definitivamente. O parresiasta, contudo, não seria um suicida, mas um guerreiro que
sabe o risco de dizer a verdade contra o mais forte numa luta que não seria vã, mas
destinada a abalar o poder político, desafiá-lo a se mostrar e, ao enfrentá-lo, produzir
práticas e éticas livres.
Por esse motivo, mais importante talvez que o falar francamente de Diógenes a
Platão, seja a parrésia do primeiro contra Alexandre da Macedônia. Conta Diógenes
Laércio que certa vez, enquanto Diógenes, o Cão, “tomava sol no Cranêion, Alexandre,
o Grande, chegou, pôs-se à sua frente e falou: ‘Pede-me o que quiseres!’ Diógenes
respondeu: ‘Deixa-me o meu sol!’” (1987: 161-162). Significativo exercício de parrésia
383
porque Alexandre era o imperador, o conquistador, o general que além de suas próprias
armas portava as de todo seu exército. Diógenes, por sua vez, estava só, era só; e
permaneceu deitado, não reverenciando a figura do rei que, tendo sido discípulo de
Aristóteles, queria conhecer o ilustre filósofo. A virulenta resposta foi parrésia porque
insultava um tirano que poderia com facilidade irritar-se e matar o parresiasta. Foi,
também, parrésia porque Diógenes, ao negar o oferecimento de Alexandre, afirmava sua
posição de exterioridade e enfrentamento com relação ao poder político. Por fim, foi
uma lição parresiasta que mostrou ao imperador que ele, com sua majestade, não
poderia mais fazer que ocultar o sol, fazer sombra sobre a existência e nunca dar a vida.
Nesse dia de sol e parrésia, foi Diógenes contra Alexandre; o Cão contra o Grande.
A parrésia, portanto, não é um meio de demonstrar nada em específico, não é
retórica, tampouco uma pedagogia (Foucault, 2008: 53-54). Ela é uma atitude de
insubordinação e insurgência. É uma atitude libertária. Por esse motivo, Passetti
(2007a), interessado no ranger que Foucault provoca no anarquismo, reparou na análise
que o filósofo francês fez da parrésia de modo a frisar que o anarquista, assim como os
cínicos, é também um parresiasta que se coloca em relação de exterioridade guerreira
face aos poderes e hierarquias, afirmando sua vida livre diante do soberano e das
sujeições, interpelando-os com ousadia e risco. Há, para Passetti, uma parrésia
anarquista, já que o anarquista é pessoa que “não aprecia a retórica, é um parresiasta”
(2007a: 89); ele diz francamente e interpela a autoridade superior. O anarquista
“problematiza quem exerce a função de autoridade superior, seja ele o
filósofo, o professor, o rei, ou o chefe da organização. O parresiasta
profere a crítica sem medo, sem desconhecer que corre risco. Ele é um
perigo para o Estado, para o capital, para o chefete. Não pretende seduzir
as demais pessoas com seu discurso verdadeiro atingindo consensos ou
maiorias. Sabe que as minorias não são numéricas, inventa
singularidades, deixa de ter vontade de saber para querer. Não quer ser
organizado por ninguém; não respeita comandos, direções, policiamentos
e exigências. O anarquista parresiasta funciona no presente como o cínico
384
na antiguidade atuava diante do império macedônico” (Passetti, 2007a:
89).
Assim, é possível compreender a noção de anarqueologia em Foucault a partir
dessa noção de parrésia anarquista como uma atitude de enfrentamento ao poder no
presente, de questionamento do poder em sua existência, procurando o seu como, seus
dispositivos, seus mecanismos; de modo a mostrar como ele funciona o que permite
resistir, afrontar, inventar espaços de liberdade. Interessaria a parrésia e o que de
parrésia há no anarquismo: a filosofia como crítica e azougue do poder; a anarquia
como agonismo. Estes anarquistas seriam parresiastas porque não compactuam com o
poder político e o desafiam, desde baixo, sem almejar o lugar do soberano.
Diferentemente das outras práticas políticas provenientes do século XIX, os
anarquismos operam nas brechas e fissuras da ordem política e econômica, visando
miná-la. Esse processo de sabotagem pode ser feito de muitas maneiras, das bombas de
há mais de um século, aos desafios abertos à centralidade dos saberes e da ciência que
são, também, declarações de guerra às práticas políticas e de governo. Os anarquismos
ativaram uma forma singular de discurso histórico-político que não pretendia tomar ou
preservar o lugar do soberano, como outros discursos desde os parlamentaristas
ingleses, do século XVII, até o racismo de Estado ou a luta de classes comunista, ambos
contemporâneos do anarquismo no século XIX.
A filosofia de Foucault, sua genealogia ativadora de saberes sujeitados e sua
analítica do poder formaram-se como parrésia e conectam-se aos anarquismos
justamente na atitude de franco combate aos absolutos quer sejam políticos ou do
saber. A própria noção de poder-saber desenvolvida por Foucault indicou não haver
cisão entre o exercício do poder, a produção de saberes e verdades e a manifestação
política dessas verdades. Processos inter-relacionados na guerra constante da política.
Por isso não há teoria em Foucault, mas analítica e método. Por isso, não há tese, mas
385
uma atitude. Essa atitude é luta, enfrentamento, provocação, inconformismo; revolve e
explicita os jogos de poder e os desmarcara em suas sacralidades e rituais. Caminhar
com esse Foucault libertário implica evidenciar que não há poder necessário e
inquestionável, mas infinitas relações estratégicas chamadas poder, produzidas nas luta
constante da política, que procura sujeitar e liberar, governar aos outros e governar a si,
conduzir e resistir. Não há espaço, portanto, para uma paz compreendida como fim dos
embates, fim do agonismo. Caminhar com esse Foucault é uma atitude libertária e
parresiasta no e para o presente.
Analítica das relações internacionais, uma atitude de combate
A derrota dos republicanos, anarquistas e comunistas, na Guerra Civil
Espanhola, não foi assegurada apenas pelos exércitos de Franco. Outras três forças
foram fundamentais para sua vitória: o apoio direto do nazi-fascismo, a intervenção
soviética contra os próprios socialistas e libertários e o apoio tácito das democracias
européias (Inglaterra e França) que preferiam negociar com Estados totalitários a
permitir que experiências políticas radicais pudessem emergir da república espanhola. O
acordo de não-agressão entre Hitler e Stalin, em agosto de 1939, foi a explicitação de
que, no lado socialista, o discurso histórico-político baseado no conceito de luta de
classes começava a agonizar. A inicial falta de apoio soviético aos espanhóis, seguida
de aberta desarticulação da resistência de esquerda na Espanha realizada por agentes de
Moscou, acrescida pelo pacto com a Alemanha, mostraram que a União Soviética
passara a comportar-se abertamente como um Estado visando posições de poder no
plano internacional sem cuidar de sua posição de suposto berço da revolução mundial.
Essa definição soviética confirmou-se com sua adesão aos aliados democrático-
386
capitalistas contra o Eixo, pouco depois de assinado o contrato com os nazistas. O
discurso da luta de classes, é importante lembrar, já havia sido redimensionado na
URSS como guerra contra os inimigos da revolução, uma versão do racismo de Estado
que abria espaço para a diferenciação entre o discurso da luta revolucionária
proveniente do século XIX e uma prática de governo despótica no plano interno e de
realpolitik no plano externo. Do mesmo modo, os nazistas compuseram outra adaptação
da mesma lógica do racismo de Estado na forma de guerra contra as sub-raças. No
entanto, não seria apenas pelos arranjos entre soberanos que o discurso da luta de
classes teria erodido: a própria divisão binária das sociedades capitalistas entre
burguesia e proletariado ficaria, a partir do final da Segunda Guerra Mundial cada vez
menos perceptível devido a uma veloz transformação da economia e da política
internacionais. Transformação que diluiria o proletariado num capitalismo de novo tipo.
Segundo Gilles Deleuze, após 1945 houve uma “mutação do capitalismo” (1998:
223) que transformou rapidamente uma economia baseada na lógica da concentração,
produção e propriedade para outra de sobre-produção. Para Deleuze, o capitalismo do
século XIX, existente até meados do século XX,
“erige a fábrica como meio de confinamento, o capitalista sendo o
proprietário dos meios de produção, mas também eventualmente de
outros espaços concebidos por analogia (a casa familiar do operário, a
escola). Quanto ao mercado, é conquistado ora por especialização, ora por
colonização, ora por redução de custos de produção” (idem: idem).
Já o capitalismo do pós-Segunda Guerra não seria mais “dirigido à produção,
relegada com freqüência à periferia do Terceiro Mundo, mesmo sob as formas
complexas do têxtil, da metalurgia ou do petróleo” (idem). É um capitalismo que não
mais se divide em dois grandes grupos, o dos países industrializados e dos fornecedores
de matérias-primas, uma vez que a produção se descentraliza, assim como as fontes de
387
insumos. É um capitalismo, ao contrário, que “compra produtos acabados, ou monta
peças destacadas. O que ele quer vender são serviços, e o que quer comprar são ações.
Já não é um capitalismo dirigido para a produção, mas para o produto, isto é para o
mercado. Por isso ele é essencialmente dispersivo, e a fábrica cedeu lugar à empresa”
(idem: 223-224). As unidades de produção se descentralizam, buscando pelo mundo
lugares mais convenientes para instalar-se (onde haja legislação mais permissiva, mão-
de-obra mais barata, infra-estrutura suficiente, posicionamento geográfico conveniente
etc.). O antigo Terceiro Mundo se industrializa como parte do mesmo processo de
desindustrialização do Primeiro, onde restam as empresas, suas sedes, os centros
financeiros mais importantes, os centros de pesquisa de novas tecnologias e as plantas
produtivas sofisticadas, com trabalhadores treinados, robótica e alta especialização. As
indústrias sujas foram espalhando-se pelo mundo junto com o processo de criação de
zonas de livre comércio e acordos gerais para liberalização e regulação comerciais a fim
de garantir a circulação dos componentes, entre as unidades produtivas, e, depois, dos
produtos acabados pelos mercados consumidores.
A fábrica, afirma Deleuze, “constituía os indivíduos em um só corpo, para a
dupla vantagem do patronato que vigiava cada elemento na massa, e dos sindicatos que
mobilizavam uma massa de resistência” (1999: 221). A empresa, ao contrário, “introduz
o tempo todo uma rivalidade inexpiável como sã emulação, excelente motivação que
contrapõe os indivíduos entre si e atravessa a cada um, dividindo-o em si mesmo”
(idem: idem). A fábrica era a unidade de produção típica da sociedade disciplinar. Nela,
o trabalhador era treinado, moldado, domesticado para a tarefa específica. O sindicato,
como contrapeso da fábrica, também funcionava como instância disciplinadora dos
mesmos trabalhadores objetivando a mobilização para a luta revolucionária ou para
negociação com o capital. No entanto, esse novo capitalismo se desenvolvia num outro
388
arranjo global das relações econômicas e políticas que despontavam a partir da Segunda
Guerra e que Deleuze chamou de sociedade de controle que, em grandes linhas, poderia
ser identificada pelas “formas ultra-rápidas de controle ao ar livre, que substituem as
antigas disciplinas que operavam na duração de um sistema fechado” (idem: 220).
A noção de sociedade disciplinar foi desenvolvida por Foucault para
compreender como as sociedades ocidentais enfrentaram o problema de governar a
partir do século XVIII. Segundo o filósofo, o caminho para governar as populações da
era industrial foi encontrado na combinação entre disciplina e biopolítica. As
disciplinas buscavam formatar o indivíduo dócil e útil a partir uma ação modeladora
executada em espaços de confinamento a escola, o exército, a fábrica, a prisão , ao
passo que a biopolítica regulava a dinâmica do conjunto da população. Na sociedade de
controle, cuja emergência foi indicada por Deleuze, os traços da sociedade disciplinar
não foram apagados, mas sobrepostos e reorganizados em parte superados por
uma planetarização da economia que apresentou novos problemas políticos,
recolocando a questão do como governar? A sociedade de controle é uma “sociedade
eletrônica, pautada em fluxos que se atualizam, confirma a desterritorialização não só
do capital, já sobejamente conhecida, mas também dos trabalhadores, ou partes deles,
libertados do confinamento territorial que impunha o Estado-nação” (Passetti, 2003a:
30). É a sociedade que opera por “máquinas de informática e computadores, cujo perigo
passivo é a interferência, e, o ativo, a pirataria e a introdução de vírus” (Deleuze, 1999:
223). É a sociedade, também, do trabalho imaterial ou intelectual (Passetti, 2003c: 45) o
que faz com que as preocupações do Estado se direcionem não para o indivíduo que
deveria ser dócil e saudável para produzir mecanicamente na fábrica, mas para o homem
intelectualmente produtivo, conhecedor das técnicas informacionais, conectado aos
fluxos de comunicação e elaborador de produtos. Esse novo trabalhador pode transitar
389
fisicamente pelo mundo ou trabalha com flexibilidade no espaço virtual da internet e das
teleconferências. O poder político na sociedade de controle se interessa “pelo corpo
vivo na série: vivo, produtivo, são. É preciso controle contínuo e não mais
confinamento para a extração de energias econômicas e contenção das políticas”
(Passetti, idem: 44): da vigilância nos confinamentos disciplinares para a controle
constante a céu aberto.
As lutas políticas na sociedade de controle foram sendo gradualmente diluídas
pela participação política incentivada constantemente por meio dos recursos midiáticos,
processo que foi acelerado com o soçobrar do socialismo de Estado na passagem dos
anos 1980 para os 1990. Na sociedade de controle, de “democracia midiática”, “a
participação estimulada, reforçada e imperativa faz crer e faz produzir um indivíduo que
precisa mostrar que está vivo” (idem: idem). E ele mostra que está vivo participando
como produtivo se está nos fluxos do capitalismo global ou quando participa da
democracia midiática, opinando, denunciando, sendo sondado, votando. Para o
trabalhador intelectual, há a vida produtiva nos fluxos globais; para os “mortos
produtivos” (idem: 45) os que não pertencem aos fluxos inteligentes cosmopolitas
, a sociedade de controle reserva a combinação de grandes espaços de confinamento
as periferias e favelas , a prisão reformada desde sua implementação no século
XIX e uma “pletora de direitos que garante e faz crer na mobilidade” (Passetti, 2003b:
279). Na época em que as fronteiras nacionais são atravessadas pelos fluxos produtivos
e de informação, em que a riqueza é produzida e circula de forma desterritorializada, um
novo conjunto de técnicas precisaria ser desenvolvido para governar um mundo com tal
dinâmica. Um conjunto que substitua a biopolítica das populações preocupadas em
propiciar saúde para o corpo trabalhador por outro que Passetti chama de ecopolítica
do planeta:
390
“ocupação pela qual os Estados vão organizando a centralidade de poder
de modo federativo, diluindo nacionalidades e relacionando-se com
organizações não-governamentais, segundo os processos de privatização
de negócios e serviços. O objetivo principal deste governo para o corpo
são é garantir certa restauração do planeta diante do reconhecimento do
inevitável estrago proporcionado pelo capitalismo e o efêmero socialismo
estatal. É um investimento político-econômico em federar o planeta,
implicando compaixão pelos mais pobres, certa retórica relativista a
respeito das etnias e culturas, conexão planetária da economia,
comunicação e regimes de direitos e governo, no qual, em especial, a
figura da democracia midiática. A ecopolítica, parafraseando Foucault,
tem como alvo o planeta e os vivos dentro dele: os produtivos e os que a
legitimam politicamente” (Passetti, 2003c: 48).
A ecopolítica implica no abalo do sistema de Estados e na emergência de novas
configurações políticas, para além das associações entre Estados soberanos, como a
ONU. O maior exemplo desse processo é a União Européia que hoje se apresenta como
um consórcio de Estados que já anuncia uma nova unidade baseada na noção de direito
comunitário, distinta do direito internacional formulada a partir da lógica estatal em
termos westfalianos. A União Européia como Estado pós-nacional é a ponta de lança de
um processo de federalização que descentraliza administrativamente sem abrir mão da
concentração de poder político e econômico: mais próximo, portanto, do projeto
kantiano de federação, que anuncia a grande federação centralista mundial, que da
federação libertária proudhoniana. O abalo da noção de soberania também se faz notar
pela transformação da guerra na sociedade de controle. Cada vez mais as guerras
deixaram de ser interestatais para serem civis, transnacionais ou coletivas. Em 1991, foi
uma coalizão de Estados, autorizada pela ONU segundo o princípio da segurança
coletiva , que atacou o Iraque; em 1999, foi a Organização do Tratado do Atlântico
Norte (OTAN) que, com autorização da ONU, atacou a Sérvia em nome da ajuda
humanitária ao Kosovo; em 2003, apesar de ilegal por não ter sido autorizada pelo
Conselho de Segurança, a guerra e posterior ocupação do Iraque não foi feita sozinha
391
pelos Estados Unidos, mas por uma coalizão sob sua liderança; do mesmo modo, a
guerra incessante no Afeganistão é hoje mantida pela OTAN, apesar de iniciada pelos
Estados Unidos, em dezembro de 2001.
A erosão do sistema de Estados registrado pelos Tratados de Westfália se
explicita na própria redefinição do direito de recorrer à guerra que o direito
internacional pretendia ter confinado e domesticado com a proibição da guerra de
agressão e o redimensionamento da guerra justa na Carta de São Francisco. No entanto,
após os atentados terroristas de 11 de setembro, os Estados Unidos proclamaram a
chamada doutrina da guerra preventiva (Degenszajn, 2006a: 171), considerando-a
como uma justa interpretação do Art. 51 da Carta da ONU que autoriza os Estados a se
defenderem de um ataque externo. A diferença com o que previa o referido artigo é que
os EUA não foram atacados por outro Estado, mas por uma organização terrorista, ou
seja, um grupo ilegal sem status jurídico-político. Os Estados Unidos não tinham,
sequer, a quem enviar uma declaração de guerra como exigia o direito costumeiro: a Al-
Qaeda se escondia, vagava, não se deixava localizar. O artifício jurídico foi declarar
guerra ao Afeganistão, Estado que supostamente abrigava a cúpula do grupo terrorista,
incluindo seu líder Osama Bin Laden. Ainda assim, a guerra preventiva viola as leis
internacionais baseadas no respeito à soberania estatal porque se fia numa virtualidade:
a avaliação por parte de um Estado de que um possível ataque poderá partir de outro
Estado ou região onde quer que seja. A doutrina lançada pelos estadunidenses
anuncia a ultrapassagem do direito internacional do sistema de Estados por, talvez, um
novo direito da era do Império como indicam Negri e Hardt: os julgamentos de Augusto
Pinochet e Slobodan Milosevic, a instrumentalização do conceito de crimes contra a
humanidade pelos tribunais penais internacionais ad hoc para Ruanda (1993) e a
Iugoslávia (1994) e a instalação, em 2002, do Tribunal Penal Internacional permanente
392
indicariam a emergência de um direito global ou imperial que viria a superar o direito
internacional, ainda calcado no respeito à soberania estatal (2004: 28-29). O jus ad
bellum, debilitado pela proibição da guerra de agressão consagrada pela ONU parece ter
sido retomado pela doutrina da guerra preventiva de um modo muito peculiar, pois sob
a justificativa de autodefesa; ou seja, com o argumento que o direito internacional ainda
em vigor reconhece e autoriza a prática da guerra. No entanto, essa declaração de guerra
dificilmente pode ser acomodada ao direito internacional, pois o inimigo identificado
não é outro Estado, mas uma diversidade de grupos não-estatais agindo de forma
descentralizada.
O direito internacional não consegue dar conta da guerra da ecopolítica, pois esta
não é mais nacional ou monopólio do Estado: de um lado são tais grupos não-estatais
que desferem ataques às democracias em vias de federalização; de outro, são os
consórcios e alianças de Estados declarando uma guerra global contra esses grupos
desterritorializados. São guerras justificadas em nome da segurança do planeta e da
democracia, regime que se impôs ao socialismo de Estado proclamando-se como a
única alternativa política para todas as sociedades. São, também, guerras móveis e
rápidas que motivam a reformulação das forças militares dos Estados mais poderosos
a chamada de revolução nos assuntos militares que implica na elaboração de
unidades ágeis, com soldados altamente treinados e especializados e com intensiva
utilização de recursos cômputo-informacionais satélites, armas teleguiadas, veículos
não-tripulados (Negri e Hardt, 2004: 41-48; Sheehan, 2008: 217-219). Essa
descentralização visa combater grupos com motivações muito diferentes, mas que em
comum têm o fato de não serem Estados e de, portanto, não contarem com forças
regulares e bases operacionais fixas.
393
Desses grupos tidos como ameaçadores à nova ordem global democrática e
capitalista da sociedade de controle, o terrorismo fundamentalista islâmico é o mais
significativo. Um terrorismo da sociedade de controle, porque desterritorializado, não
respeitando fronteiras nacionais e não visando a formação de um Estado moderno, mas
de um Estado teocrático transnacional que ultrapasse as demarcações fronteiriças
estatais consideradas, por grupos como a Al-Qaeda, como efeitos artificiais da
colonização ocidental para a produção de uma nova centralidade político-religiosa a
unir a nação muçulmana. Degenszajn apresenta a guerra ao terror, declarada pelos
Estados Unidos após os atentados de 2001, como um choque de universais no qual “em
oposição à matriz racional-legal, fundada na democracia e na ciência, impõe-se uma
outra verdade calcada na razão religiosa, mas que não prescinde sequer dos seculares
saberes árabes. Diante do Estado universal iluminista, coloca-se o Estado islâmico
universal, em que, racionalidades à parte, preponderam aspectos transcendentais, não
mais filosóficos, mas teológicos” (2006a: 168). A cruzada estadunidense equivale à
jihad islâmica, fazendo com que não se possa pensar a política contemporânea sem
considerar a relação entre razão e religião. Passetti (2007b) se refere ao terrorismo
fundamentalista islâmico, emergido nos anos 1990, como terrorismo transterritorial,
justamente pela ação que não respeita os limites nacionais e que se dissemina como um
programa, disponível a ser aplicado e adaptado por grupos sem uma ligação umbilical
com a Al-Qaeda, mas afinados à suas premissas gerais. Esse terrorismo transterritorial
afirmaria assim sua singularidade com relação a outros movimentos terroristas no pós-
Segunda Guerra como os comunistas Baader-Meinhof na Alemanha, e as Brigadas
Vermelhas na Itália, entre os anos 1970 e 1980 , os irlandeses do norte do Exército
Republicano Irlandês (IRA), os palestinos da Organização para a Libertação da
Palestina (OLP), os nacionalistas bascos do Pátria Basca e Liberdade (ETA) ou dos
394
atuais terroristas nacionalistas tchetchenos ou do Hezbollah, no Líbano. Dos
mencionados acima, os quatro primeiros foram derrotados pelo Estado ou incorporados
ao jogo político-diplomático, ao passo que os outros bascos, palestinos do Hezbollah
e tchetchenos seguem ativos. Suas ações, no entanto, são locais, regionais ou,
quando muito, nacionais, e visam a formação de Estados nacionais. Trata-se de um
terrorismo residual e possível de ser acomodado aos projetos de uniões de Estado, nas
negociações diplomáticas e federalizações. O terrorismo transterritorial, contudo, age
nos fluxos da sociedade de controle, sendo um dos acionadores da presente guerra
global.
O termo transterritorial poderia ser utilizado, no entanto, para a análise não
apenas do terrorismo fundamentalista, mas de outros grupos, como as empresas
narcotraficantes que, sem bandeiras políticas, integram e reforçam a economia
mundializada. Essas empresas ilegais motivam também declarações de guerra
transfronteiriças desde os anos 1970 (Rodrigues, 2004) que foram reforçadas, desde
finais dos anos 1990, com a declarada associação notada pela pelos Estados Unidos,
União Européia e da maioria dos países da ONU entre os ilícitos trasnacionais e esse
terrorismo transterritorial, o que no discurso diplomático-militar contemporâneo
geraria um perigo de alcance global à paz democrática e ao mercado mundial; traduzido,
principalmente, pela existência de supostas redes internacionais narcoterroristas
(Labrousse, 2005; Rodrigues, 2006). Assim, a noção de transterritorial seria adequada
para a análise da guerra na sociedade de controle, “guerra desterritorializada como
guerrilhas ou ações letais de efeito imediato; a guerra [que] não é mais monopólio do
Estado” (Passetti, 2003b: 285).
Essa guerra é, não só, entre universais como, também, é universalizada: o
“teatro de operações” jargão da estratégia militar não é mais demarcável
395
claramente; ele poder ser em todos os lugares do mundo, implicando em combates
rápidos, fugidios, recorrentes. Não se trata de uma guerra aberta todo o tempo, mas uma
guerra continuada que, por vezes, irrompe em violência mais intensa, como no caso da
invasão do Iraque, em 2003, pela coalizão liderada pelos Estados Unidos, ou a
mencionada guerra humanitária de 1999 da OTAN em nome dos kosovares. Os
momentos de ação militar direta tendem, todavia, a serem sucedido pelo que Negri
chama “guerra de baixa intensidade” (2006: 33), persistentes após o final da guerra
aberta: os Estados Unidos precisaram de poucas semanas para depor o governo talibã
no Afeganistão, mas a ocupação da OTAN permanece até hoje em nome da caça aos
mesmos talibãs e à Al-Qaeda (motivo inicial para a guerra, em 2001); em 2003, a guerra
contra o Iraque durou dias e a ocupação persiste desde então; o bombardeio da OTAN
no Kosovo foi pontual, mas a missão de paz da ONU que lá foi estabelecida segue
presente, tutelando o processo de independência da antiga província iugoslava. Essa
forma de guerra intensa e “cirúrgica” em sua fase aberta e continuada como
ocupação e controle é aquela chamada por Negri de guerra policial (2006: 34). Uma
guerra “de baixa intensidade, mas polícia de altíssima intensidade” (idem: idem). Uma
guerra que objetiva combater inimigos da ordem internacional, qualquer que seja o
antagonista ou a forma de resistência, domesticando áreas turbulentas, contendo
massacres e transformando países inteiros ou regiões em campos de concentração: dos
campos de refugiados no Darfur ao Haiti sob controle das forças da ONU, a palavra de
ordem é estabilização e construção de Estados. Por isso, autores como Francis
Fukuyama afirmam que os ditos Estados falidos, vistos antes “como uma questão
humanitária ou de direitos humanos, [assumiram], de um momento para outro, uma
importante dimensão de segurança” (2005: 124). O argumento é que tais Estados
396
desgovernados, com instituições frágeis ou falidas, seriam incapazes de governar seus
territórios, criando, com isso, oásis para as novas ameaças transterritoriais.
A dimensão de segurança que Fukuyama aponta não viria, assim, em
contraposição à questão humanitária, mas como reforço a ela. A guerra da sociedade de
controle é policial, humanitária e de segurança. A própria noção de segurança se
redimensiona na sociedade de controle a partir dos termos analisados por Foucault
(2006) na emergência do sistema internacional: o dispositivo diplomático-militar era,
nos séculos XVI e XVII, a dimensão internacional que complementava o instrumento de
“polícia” interno e ambos tinham como meta tornar possível que os Estados crescessem
em suas forças mantendo a estabilidade a segurança , ou seja, sem que tal
crescimento provocasse abalos à ordem interna, à soberania dos Estados, à
sobrevivência nacional. O instrumento diplomático-militar na era da ecopolítica,
entretanto, não é mais nacional ou formado nas relações interestatais visando manter a
soberania de cada unidade política; ele torna-se, também, transterritorial e voltado à
saúde da política e da economia globais. A diplomacia caminha cada vez com mais
velocidade para ser efetivamente cosmopolita, assim como a guerra. A soberania na
sociedade de controle passa a ser federalizada e relativa: a soberania estadunidense
autoriza a violação de soberania iraquiana, por exemplo. O dispositivo diplomático-
militar da ecopolítica trabalha para a segurança e confiabilidade das relações políticas e
econômicas, elementos determinantes para o adequado fluxo dos capitais especulativos
e dos produtos e serviços vendidos mundialmente. Até a Segunda Guerra Mundial era
comum que os ministérios de Estado dedicados a lidar com a dimensão militar desse
dispositivo se chamassem “Ministério da Guerra”, sendo comandados por militares;
após 1945, diante da criminalização da guerra agressiva e em consonância com os
princípios de resolução de controvérsias da ONU, esses ministérios passaram
397
gradativamente a serem renomeados “Ministério da Defesa”, chefiados por civis. Hoje,
a tendência é passar da noção de defesa para a de segurança, efetivando princípio que já
se anunciava no preâmbulo da Carta de São Francisco: a manutenção da paz e segurança
internacionais.
Segundo Negri e Hardt, “a mudança [do princípio] de defesa para o de segurança
significa o movimento de uma atitude reativa e conservadora para outra ativa e
construtiva, ambas dentro e fora das fronteiras nacionais” (2004: 20). Uma perspectiva
de segurança implica numa ação organizadora, “policial” e positiva. O dispositivo
diplomático-militar no sistema westfaliano produziu o direito internacional como
instrumento complementar ao equilíbrio de poder a fim de manter a segurança dos
próprios Estados e, nesse movimento, a guerra monopolizada como recurso da razão
de Estado seria apenas um recurso de ajuste, utilizado pontualmente para preservar o
sistema. A guerra policial contemporânea visa produzir ajuste e segurança de outro
modo: perseguindo “ameaças” transterritoriais, construindo Estados, mantendo
ocupações por meio de coalizões, conduzindo guerras como ações de caça, captura e
punição dos que desafiam ou produzem obstáculos à livre circulação de produtos e
fluxos de inteligência. Por isso, o conceito de guerra preventiva parece estar de acordo
com uma guerra de polícia que tem como meta não apenas punir, mas produzir um
mundo: conceito ativo e não apenas reativo.
A ecopolítica é uma nova forma de governamentalidade, agora transterritorial,
que faz da guerra de alta ou baixa intensidade um instrumento de regulação,
modelagem e castigo para operacionalizar uma nova ordem política, jurídica e
econômica efetivamente mundial. Essa guerra se dá num campo de crescente indistinção
entre política doméstica e política internacional, “ela se aparenta cada vez mais com a
política, atuando nas invisibilidades” (Passetti, 2003b: 254). A política internacional, ou
398
a política transterritorial, são, assim, a guerra continuada e perpetuada por outros meios.
A guerra da ecopolítica a guerra da sociedade de controle é, portanto, global,
opondo Estados-federados e coalizões de Estados a grupos não-estatais transterritoriais;
é uma mescla entre ação de “polícia” no sentido antigo da razão de Estado e de polícia
no sentido repressivo contemporâneo; é calcada em princípios universais e atua
topicamente como guerra aberta e continuamente como ajuda humanitária, missões de
paz, projetos de construção ou reconstrução de Estados. É guerra de segurança,
agenciadora de positividades, e não apenas reativa, de defesa. É guerra em nome da
saúde e segurança do planeta, para a preservação de seus fluxos econômicos e de
inteligências, sendo travada contra outros fluxos que são reativos ao modelo universal
de capitalismo globalizado e democracia midiática mundial. Essa guerra torna evidente
sua continuação na política e explicita a força instauradora do direito da guerra,
analisado por Proudhon, com a emergência do direito global que abala o direito
internacional. A guerra da ecopolítica é uma guerra permanente: estridente nas crises
militares cada vez mais breves e silenciosa nas ações de contenção
cotidianamente sustentadas nas regiões-problema, nos Estados “frágeis” ou “falidos”.
Transterritorial, global, universalista e continuada: a guerra da sociedade de controle é
uma guerra-fluxo. Opera nos fluxos, contra inimigos que circulam nos fluxos, é
infindável e desterritorializada. É uma guerra pós-estatal que as teorias
internacionalistas baseadas na lógica do Estado realismo e liberalismo podem
contribuir pouco para sua compreensão.
Nessa época de sociedade de controle e ecopolítica, a lógica binária da guerra
articulada a partir da luta de classes ou da oposição entre dois blocos unitários parece
esgotada. Agora, haveria que perguntar-se o que significa assumir uma posição de luta,
de resistência diante da diluição dos lugares para resistir partidos, sindicatos,
399
movimentos políticos? O que implica resistir numa sociedade de controle que busca
consolidar a vitória da via única capitalista e democrática, que se fortalece frente à
derrota do socialismo de Estado? Nessa sociedade, “a civilidade capitalista visa
solidificar-se como democracia”; nela “dominam os fluxos, as inovações e as
restaurações visando suprimir as resistências” (Passetti, 2003b: 273). A sociedade de
controle, no entanto, não deixa de alimentar resistências reativas ao predomínio global
da democracia e do capitalismo; resistências essas que procuram rechaçar a ordem
global em nome de teocracias, novos nacionalismos, novas centralidades que anunciam
outros fascismos ou outras globalizações alternativas. A resistência da Al-Qaeda é
reativa, como a dos tchetchenos, assim como a dos demais terrorismos nacionalistas
remanescentes. E tais resistências retrógadas e violentas despontam e não cessam
porque a construção da democracia global não consegue inaugurar a anunciada paz
perpétua a paz perpétua como a paz democrática ou o fim da História de Fukuyama
(1992) , fazendo apenas com que a guerra se reinscreva na política por meio do
confronto incessante entre o terrorismo reativo e a guerra policial. A guerra ao terror,
afirma Degenszajn, “difundiu a ameaça terrorista a outros espaços de resistência (...)
que passam desde a associação do narcotráfico ou grupos paramilitares com o
terrorismo, até (...) [os] movimentos anti-globalização” (2000a: 170). A guerra global
nivela todas as resistências como inimigas. No entanto, as resistências não são todas
reativas. Existem, também, “resistências liberadoras” (Passetti, 2003b: 272), que não
têm como objetivo uma libertação geral, a conservação de uma determinada ordem
frente ao desenvolvimento da sociedade de controle ou a restauração de um arranjo de
poder qualquer. São resistências ativas que não mais operam como a resistência na
sociedade disciplinar, lançada a partir de lugares específicos atravessando a
estratificação social e as relações hierarquizadas (idem: idem). São resistências ativas
400
numa sociedade de controle que se esforça para anular revoltas e contestações, que são
apaziguadas com repressões ou com a cessão de direitos e inclusões; como aconteceu
com boa parte das insurreições dos anos 1960: a luta feminista redundou em direitos
para as mulheres, as demandas de negros foram revertidas em ações afirmativas, a
contestação homossexual converteu-se em uniões civis legalizadas.
Na velocidade da sociedade de controle, as lutas são rapidamente transmutadas
em conquistas legais e de direitos. As resistências que não se conformam são tidas
como anti-democráticas e, com isso, danosas. Há, todavia, um fluxo para as resistências
que não são reativas e tampouco pretendem conquistar espaços na ordem político-
jurídica e econômica. Um campo de resistências ativas libertárias porque em oposição
às relações de poder e porque procuram afirmar em meio aos fluxos da sociedade de
controle , outros “fluxo[s] intenso[s] de existências liberadoras” (idem). A resistência
de posições fixas da sociedade disciplinar foi esgotada, abrindo espaço para resistências
desterritorializadas, que não negam a sociedade de controle, mas que nos seus fluxos
procuram inventar novos costumes e práticas que dissolvam as hierarquias e sujeições.
Essas resistências arriscam “outras sociabilidades ou talvez associabilidades. Diante da
Idéia, o fato; da perfeição, o imperfeito; da utopia, a heterotopia; do futuro, o presente;
da fraternidade, a amizade” (Passetti, 2003b: 251). Essas resistências descentralizadas e
descentradas operam numa série de crítica e provocação constantes aos poderes
constituídos, às práticas de assujeitamento, às técnicas de governo exterior exercido
sobre si, e aos saberes universalistas. São resistências que podem formar-se como
heterotopias, negando transcendentais pela afirmação de práticas livres no presente; são
ações parresiastas interpelando os mais fortes, os soberanos difusos da sociedade de
controle, os universais, as verdades consagradas pelo direito da força. Os homens e
mulheres que se lançam em tais lutas compreendem-se imersos numa batalha e fazem
401
da vida um combate permanente e múltiplo. O agonismo na sociedade de controle não
pode operar mais por grandes blocos em confronto, mas por uma infinidade de lutas
incessantes que redundam em capturas e derrotas, mas também em vitórias, insurreições
e corajosas afirmações de práticas livres.
Uma analítica das relações internacionais procura se inscrever nessa série
agonística, libertária e parresiasta. Procura provocar ao combate as teorias unitárias e
universalistas das Relações Internacionais, excitando-as à batalha. É uma analítica
porque nega a pretensão ao status de teoria. É perspectivista e parcial no sentido tanto
de seu limite, quanto de sua explícita posição política de afronta às teorias e sua
hegemonia mantida pela violência de tantos soterramentos de saberes locais. Tal
analítica não é, portanto, uma mini-teoria ou uma aspirante à teoria. Ela se pretende, ao
contrário, um método e uma atitude. É, dessa maneira, anarqueológica como queria
Foucault. Sua falta de ambição teórica evidencia que sua proposta não é mero capricho
ou uma “preferência teórica”, como dizia Foucault a respeito de sua analítica do poder
(1999: 97). Foucault pensava ser necessário um deslocamento que levasse a análise das
relações de poder do campo do discurso jurídico-político para o do modelo estratégico
da guerra, do agonismo , a fim de que o pudessem ser efetivamente o como do
poder e as formas de subjetivação. Do mesmo modo, uma analítica das relações
internacionais seria necessária para compreender a política internacional e a guerra na
nossa época: a guerra da sociedade de controle e da ecopolítica, a guerra-fluxo. A
provocação que lança se dirige aos modelos teóricos centrados no Estado, às teorias das
Relações Internacionais que são convergentes na constatação de que a política é paz e
que a guerra é uma exceção submetida à política. Essa analítica, aqui esboçada em seus
elementos, teria a potência de apresentar outra perspectiva de estudo das relações
internacionais liberada da tirania das teorias consagradas. Sua impertinência parresiasta
402
está no desafio que lança ao realismo, ao liberalismo e a seus desdobramentos teóricos.
Sua coragem está em não se filiar ou conformar-se em ser liberal ou realista. Sua
parrésia libertária está na negação da autoridade e da sacralidade das teorias de Relações
Internacionais, numa batalha frontal que não visa sua anulação ou destruição. Não se
trata de uma guerra de extermínio essa declarada pela analítica das relações
internacionais: por isso ela está no campo da agonística, da luta perpétua, da petite
guerre proudhoniana. Todavia, como parresiasta, o analista das RI deve saber do risco
que acarreta sua atitude, preparando-se para um possível contra-ataque letal das teorias.
Esse ataque pode ser aberto e leal, o que seria honrado e afeito aos guerreiros, ou
sorrateiro e desonesto, fazendo calar pelo ostracismo, pelo desprezo, pelo banimento. O
analista parresiasta e libertário não pode ignorar que esse seu percurso é o de Diógenes,
o Cão, sem o fausto das cortes amadas por Platão. Se a analítica visa cortar a cabeça do
rei no plano do estudo da política internacional, não deve esperar complacência das
teorias palacianas. Trata-se de uma guerra que tem como meta ativar a guerra, fazê-la
vibrar concretamente no campo das Relações Internacionais, saindo do espaço
apaziguado das teorias internacionalistas. Essa analítica das relações internacionais é
uma experiência de liberdade, a abertura de uma brecha que, em meio aos monólitos
teóricos, ensaia um olhar de desafio, que vem de baixo, decidido, inconcluso e irritado
pela poeira do combate; próximo ao solo e aquecido pelo sol da batalha que, como dizia
Heráclito, é força que nunca se põe.
403
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