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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
Fabíola Freire Saraiva de Melo
Cartas:
uma possibilidade para o ensino do pensamento
fenomenológico
DOUTORADO EM
EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO
São Paulo
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
Fabíola Freire Saraiva de Melo
Cartas:
uma possibilidade para o ensino do pensamento
fenomenológico
DOUTORADO EM
EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO
Tese apresentada à Banca Examinadora como
exigência parcial para obtenção do título de
Doutor em Psicologia da Educação pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Heloisa
Szymanski.
São Paulo
2008
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Banca Examinadora
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__________________________________
AGRADECIMENTOS
À Profª Heloisa, pelas orientações e por sua confiança.
Às professoras da banca Henriette Morato, Laurinda Almeida, Mitsuko Antunes e
Christina Cupertino pelas sugestões e contribuições que enriqueceram esse trabalho.
Ao Rafael, pelo amor e amparo constante que são fundamentais para me ensinar a
encontrar simplicidade em coisas tão complicadas.
À minha mãe, por ter me educado com amor e por continuar sendo zelosa.
Aos meus irmãos, pelo carinho e aceitação de meu modo de ser.
À Marina, que me co-orientou nesse trabalho, por sua generosidade, amizade e
conhecimento. Nossas conversas foram cruciais para o amadurecimento das questões aqui
abordadas e continuam ressoando em mim.
Aos meus professores, por terem me iniciado no olhar fenomenológico.
À Luciana, por compartilhar essa experiência de ensino comigo.
À Adriana e à Simone, amigas sempre presentes e companhia essencial em diversos
momentos deste doutoramento.
À Paty, pelo help com o abstract e em outros diversos momentos de minha vida.
Às filhas da cuca e demais amigos, por entenderem minha ausência.
À Maria Inês, pelo apoio terapêutico.
E, principalmente, aos meus alunos, pela paciência no exercício do pensamento
fenomenológico, pelos testemunhos relatados, pela boa-vontade e pelo esforço em serem
melhores estudantes, psicólogos e educadores, ao mesmo tempo, que me ensinam a procurar
ser melhor professora, psicóloga, educadora e mãe.
À CAPES, pela bolsa flexibilizada, que me propiciou estudar e viver esta experiência
de trabalho.
Para o meu filho, a quem espero com amorosa
disposição e expectativa para ensinar e aprender.
A ciência pode classificar e nomear os
órgãos de um sabiá, mas não pode medir
seus encantos (...) Quem acumula muita
informação perde o condão de adivinhar:
divinare. Os sabiás divinam.
Manuel de Barros
RESUMO
Esta tese discute uma experiência de estágio supervisionado em Psicologia
Fenomenológica, realizada no curso de Psicologia de uma Universidade em São Paulo. Pais e
educadores escreveram suas dúvidas referentes à infância e à educação em uma urna colocada
na recepção da Clínica-escola desta instituição.
O trabalho com os alunos consistiu em ensiná-los a responderem, por meio da
linguagem escrita, às perguntas recebidas, de modo a desenvolver uma linguagem descritiva e
sem julgamentos. Procurou-se que exercitassem o pensamento fenomenológico fundamentado
na atitude de abertura, conforme a proposta de suspensão fenomenológica, e que construíssem
um modo próprio de se comunicar aproximando-se da linguagem denominada por Merleau-
Ponty de falante.
O diálogo por meio de cartas revelou-se como uma situação privilegiada para o
ensino-aprendizado do pensamento fenomenológico: observou-se que por meio das cartas, os
alunos estabelecem uma experiência com o outro que os convoca e os mobiliza para a
reflexão e, em sua elaboração, exercitam a atitude fenomenológica em uma ação. O processo
de construção textual requisita paciência, esforço e dedicação para refletir, amadurecer e
construir a carta que será enviada.
As cartas proporcionaram a oportunidade de discutir, no contexto da sala de aula,
situações e conflitos vividos, criando um espaço que possibilita ao aluno iniciante uma ação,
sem que seja necessário ocorrerem encontros presenciais entre eles e pais/educadores. Abriu-
se, portanto, um espaço potencializador para o aprendizado: formação e vivência de um novo
modo de olhar. O projeto também se mostrou como um espaço de diálogo entre
pais/educadores e estudantes de psicologia, e possibilitou reflexão sobre as questões
apresentadas por aqueles que o utilizaram.
Palavras chave: fenomenologia, psicologia, ensino-aprendizado em estágio, cartas.
ABSTRACT
This dissertation explores a supervised training experience fulfilled at a São Paulo
University psychological course. Parents and tutors wrote their doubts related to childhood
and educational process into an urn located at the reception room of the refered institution´s
clinic.
The work with the students comprised teaching them to answer the questions
received through letters (written language), intending to develop a descriptive language
without judgments. The aim of this project was to exercise the phenomenological thought
based on an opening attitude, in conformity with the phenomenological reduction proposal.
Thus, the students could build their own way of comunication, approaching Merleau Ponty´s
concept of speaking language.
The dialogue by the means of letters became a privileged situation to teach and learn
the phenomenological thought. Through letters students have an experience with others that
summon and mobilize them to reflection, and during the elaboration process, they exercise
phenomenological attitude. The writing process request patience, effort and dedication to
make possible the reflection, the maturity and the composing process of the sending letter.
The letters provide the opportunity to debate, in the context of school class, the
conflicts and situations experienced in life, giving the students the possibility to act, without
the necessity of the real meeting between the parents/tutors and them. Thus, it has opened a
mighty space of learning: formation and experience of a new way of looking things. The
project was also a space of dialogue between parents/tutors and psychology students,
opening the reflection about the questions made by those who participated of it.
Key words: Phenomenology, psychology, teaching-learning in supervised trainee,
letters.
SUMÁRIO
CARTA AO LEITOR 1
CAPÍTULO 1 - EM BUSCA DE UMA METODOLOGIA PARA O ENSINO DE
PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA 4
1.1 O ensino de Psicologia Fenomenológica: correspondências com minha formação 5
1.2 O contexto da experiência vivida 9
1.3 Breve apresentação da Psicologia Fenomenológica: uma interpretação 12
1.4 Experiências vividas nos Estágios Básicos 19
1.5 A criação de uma ferramenta metodológica para o ensino de Fenomenologia nos
Estágios Básicos 31
1.6 Cartas como possibilidade 33
CAPÍTULO 2 - CARTAS: UM MODO DE COMUNICAR 39
2.1 Alquimia das cartas 39
2.2 Relação entre o modo de comunicação através de carta e a comunicação verbal 43
2.3 Relação Carta-temporalidade 47
2.4 Relação carta-espacialidade: materialidade versus virtualidade 49
2.5 Carta e linguagem: panorama atual 52
2.6 Cartas: narrativas do e para o mundo 55
2.7 A carta em diferentes contextos 56
2.8 Relação carta e reflexividade 61
CAPÍTULO 3 - CARTAS VIVAS / A EXPERIÊNCIA VIVIDA 62
3.1 Construção de uma metodologia 62
3.2 Cenários de um projeto 63
3.3 A chegada das cartas 67
3.4 Procedimentos das aulas 68
CAPÍTULO 4 - FENOMENOLOGIA DO PROCESSO DE ENSINO-
APRENDIZADO VIVIDO PELOS ALUNOS 87
4.1 Reflexões sobre o ensino-aprendizado de Psicologia Fenomenológica: o processo
vivido por uma aluna 92
4.2 Cartas: Situação para o ensino-aprendizado de Psicologia Fenomenológica 118
CAPÍTULO 5 - O RECADO DAS CARTAS: ESBOÇO DE UMA
FENOMENOLOGIA DA EXPERIÊNCIA DOS PAIS 123
5.1 As cartas mesmas: experiências vividas pelos pais e educadores 125
5.2 Em busca de um novo sentido para a educação 136
CONSIDERAÇÕES FINAIS - OLHAR DE PROFESSOR, OLHAR DE ALUNO,
OLHAR DE LEITOR DE CARTAS E DESTA TESE 138
Retomada do projeto 141
Desdobramentos e projetos de futuro 143
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 146
Referências bibliográficas utilizadas nos outros estágios 152
ANEXOS
1
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
CARTA AO LEITOR
São Paulo, Fevereiro de 2008.
Caro leitor,
O trabalho que encontrará nas próximas páginas narra a criação e implantação de uma
proposta de estágio para alunos do 5º e 6º semestres do curso de Psicologia, em uma
Universidade em São Paulo, que, para sua realização, se fundamentou no método
fenomenológico.
Procurei refletir sobre o ensino de Psicologia Fenomenológica com base em minha
experiência como supervisora desse projeto que utilizou cartas como situação de ensino-
aprendizado para este modo de pensar. Uma urna foi colocada na recepção desta Clínica-
escola e perguntas, dúvidas e outras solicitações eram deixadas por pais, parentes ou
responsáveis por educar. Sob minha supervisão, foram elaboradas as cartas-resposta pelos
alunos.
Imagino como interlocutor desta tese um professor que, como eu, busca pensar sobre o
ensino do pensamento fenomenológico e as possibilidades de exercício desse modo de olhar.
Este trabalho também pode interessar a outros psicólogos ou profissionais da área da saúde ou
da educação que procurem conhecer modos de oferecer cuidado, atenção e auxílio que
possam aliviar o sofrimento de quem os procura. Poderia também ser um leitor desta tese um
aluno iniciante na Psicologia Fenomenológica que procura se familiarizar com esse modo de
olhar. Embora não tenha sido o foco deste trabalho trazer uma exposição do pensamento
fenomenológico para as questões da infância e da educação, foi inevitável que, em
determinados momentos, essa discussão fosse apresentada. Nesses trechos, o aluno, ou até
mesmo um pai ou educador que procura lapidar sua prática, poderá encontrar algo que
contribua com seus questionamentos.
Organizei este trabalho em cinco capítulos:
No primeiro, o leitor encontrará o meu percurso sobre o pensamento fenomenológico,
desde a minha formação até o ensino de Psicologia Fenomenológica e a supervisão de práticas
psicológicas nos estágios. É aqui que revelo o percurso de minhas indagações sobre este modo
de pensar e de ensiná-lo que me possibilitaram a construção desta prática de estágio: cartas
como possibilidade para o ensino de Psicologia Fenomenológica.
2
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
No segundo capítulo, apresento o esboço de uma fenomenologia sobre o modo de se
comunicar por cartas. Aqui está a minha rede de remetimentos, ou seja, conhecimentos que
construí acerca dessa expressividade da linguagem. Caso o leitor queira conhecer alguns
estudos sobre epistolografia de modo a ampliar seu conhecimento sobre os usos e
particularidades desta linguagem, esse capítulo lhe terá serventia. Para mim e para meu aluno
esses estudos foram importantes para refletirmos sobre os usos, possibilidades,
especificidades e limites desse modo de comunicação.
No terceiro capítulo, narro o processo de introdução desse projeto na Clínica-escola da
instituição em que trabalho, os procedimentos e as referências bibliográficas por mim
escolhidas para comporem a metodologia utilizada com o aluno para o ensino do pensamento
fenomenológico. Construção, desconstruções, inquietações e angústias fizeram parte de todo
esse percurso.
No quarto capítulo, procurei refletir sobre o processo de ensino-aprendizado vivido
pelos alunos nessa experiência. Escolhi para tal deter-me mais especificamente no percurso de
uma aluna para conhecer o sentido da experiência vivida por ela. É também onde me detenho
de modo mais intenso para expor sobre a utilização de cartas para o ensino-aprendizado de
Psicologia Fenomenológica, embora tal questão seja discutida ao longo da tese. Todos os
capítulos e discussões anteriores ou posteriores a esse capítulo, de diferentes formas,
retomam, discutem, aprofundam ou complementam a discussão. Procurei uma circularidade
no modo de abordar e pensar acerca dessa questão.
No quinto capítulo, procurei mostrar o sentido dado pelos pais e educadores que
utilizaram o projeto e, assim, refletir sobre os significados que a educação tem para eles,
procurando novos modos de compreender essa prática.
Finalmente, apresento minhas considerações finais a respeito do olhar de professor, de
aluno e do leitor desta tese, uma vez que tentei encontrar novas formas de ensinar e de
aprender a Psicologia Fenomenológica.
Portanto, convido o leitor a conhecer um recurso metodológico que criei para que
pudesse propor naquela instituição uma forma de exercitar o pensamento fenomenológico e,
ao mesmo tempo, semear um olhar para a infância e para a educação que se apoiasse na
memória, na imaginação e na narração. O uso de cartas com os alunos, pais e educadores
revelou-se como um terreno fértil, pois esse modo de comunicar possibilita que se expresse
entre remetente e destinatário, entre aluno e professor, a linguagem que Merleau-Ponty (1999,
2000) denominou de falante: expressividade pessoal e autêntica que mobiliza e repercute.
3
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
Vale ainda acrescentar que as cartas-pergunta recebidas bem como as cartas-resposta
elaboradas pelos alunos, encontram-se na íntegra, anexadas a este trabalho. Trata-se de
material imprescindível para a compreensão desta proposta.
Desejo-lhe uma boa leitura!
4
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
CAPÍTULO 1
Em busca de uma metodologia para o ensino de Psicologia Fenomenológica
Sempre compreendo o que faço depois que já fiz. O
que sempre faço nem seja uma aplicação de
estudos. É sempre uma descoberta. Não é nada
procurado. É achado mesmo. Como se andasse num
brejo e desse no sapo. Acho que é defeito de
nascença isso.
Manuel de Barros
A proposta deste doutoramento é refletir sobre o ensino de Psicologia
Fenomenológica, com base em minha experiência como supervisora de Estágio em uma
Universidade em São Paulo, ao implantar um projeto de “orientação psicológica”
1
por meio
de cartas. Uma urna foi colocada na recepção da Clínica-escola da instituição em que trabalho
e perguntas poderiam ser deixadas por pais, parentes ou responsáveis por educar
2
. Sob minha
supervisão, foram elaboradas as cartas-resposta pelos alunos. Serão considerados material
para esta investigação as cartas-pergunta enviadas pelos pais/educadores, o processo de
ensino-aprendizado desenvolvido por mim com os alunos e as cartas-resposta produzidas por
eles.
Procurei descrever essa experiência em um estilo autobiográfico, ou seja, de forma a
revelar nesta narrativa quem eu sou, como vivi tal experiência, como observei o outro em sua
experiência e como o processo de ensino-aprendizado foi vivido por mim e pelo aluno. Este
modo de narrar possibilitará ao leitor desta tese conhecer e se aproximar também das
entrelinhas desse processo: minhas angústias, inquietações, conflitos e, até mesmo, deslizes
em meu próprio modo de educar.
Antes de iniciar a narração da história desse projeto de estágio, gostaria de voltar ao
início de meu percurso. Penso que contar sobre a minha formação e o modo como comecei
minha prática de ensino de Psicologia Fenomenológica na Universidade é relevante para que
se compreenda meu percurso, minhas escolhas, projetos, enfim, o meu modo de educar.
1
Neste primeiro momento, chamarei esse projeto apenas de orientação psicológica, entretanto é também uma das
propostas deste trabalho refletir sobre essa proposta e tentar encontrar as características e especificidades desse
modo de atuação em Psicologia.
2
A construção da metodologia desta atividade também será descrita detalhadamente ao longo dos próximos
capítulos.
5
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
1.1 O ensino de Psicologia Fenomenológica: correspondências com minha formação
Em 2004, quando iniciava minha prática de ensino na instituição, tinha acabado de
terminar meu mestrado, experiência que descreverei adiante. Era muito jovem, recém
formada, o que, por um lado, significava estar repleta de sonhos e, por outro, muita
idealização, imaturidade e ingenuidade para o que ia enfrentar no ensino universitário.
O percurso acadêmico faz parte de minha história, desde o início da graduação: dos
cinco anos de formação, quatro anos foram dedicados a atividades de iniciação científica, pois
a prática de pesquisa sempre me atraiu. Desde muito cedo, foi esse meu modo de “atuar”, isto
é, investigar e aprender fora do contexto da sala de aula, desejo que sempre tive. Em uma das
pesquisas de que fiz parte, estudei o fenômeno religioso em uma feira mística enquanto em
outra estudava a respeito do uso de drogas em uma escola pública de São Paulo. Portanto,
atividades sociais e educativas sempre fizeram parte de minha história. Também não posso
deixar de considerar que esse era um modo de ter um trabalho remunerado que me ajudasse a
arcar com os altos custos de minha graduação.
Também vale dizer que venho de uma família grande e com muitas crianças, e minhas
tias e primas viam em mim, desde quando eu tinha por volta de 13 anos, a habilidade para
lidar com as crianças. Naquela época já me deixavam cuidar de meus primos bem pequenos.
Essa sempre foi uma atividade que desempenhei com prazer, contudo, ao ingressar no curso
de Psicologia, inclusive pelo desejo de ser “psicóloga de crianças”, vi minhas práticas tão
distantes das teorias que eram ensinadas, que acabei me afastando dos trabalhos com crianças.
Decepcionei-me com as teorias que conheci a respeito das crianças, porquanto no curso de
Psicologia não tive uma formação fenomenológica que estudasse as questões da infância,
razões pela qual me afastei das práticas com crianças. Contudo, não me distanciei dos
trabalhos psicológicos na área social – embora, no princípio, eles também não tivessem
relação com o conhecimento da Psicologia Fenomenológica, com a qual me identifiquei.
Recordo-me que, no meu último ano de graduação, fui desafiada por uma amiga a
encontrar na Psicologia Fenomenológica apoio para nossas práticas comunitárias. Ela,
“filiada” à chamada Psicologia Sócio-histórica, defendia que o olhar fenomenológico não se
estendia às práticas exercidas fora do âmbito do consultório. Foi na construção de meu
Trabalho de Conclusão de Curso
3
que procurei exercer, pela primeira vez, um olhar
fenomenológico para questões existenciais que não se restringissem às práticas clínicas
3
Refiro-me ao trabalho: Um olhar fenomenológico para os modelos de prevenção ao uso de drogas: críticas,
possibilidades e desafios. Trabalho de Conclusão como exigência parcial para formação no Curso de Psicologia,
PUC/SP, 2001.
6
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
desempenhadas em consultório, qual seja, refleti sobre os modelos de prevenção ao uso de
drogas freqüentemente utilizados nas propostas educativas e apresentei um olhar crítico a
respeito dessas propostas.
Ao terminar a graduação, recebi a sugestão de minha orientadora de iniciação
científica e de TCC, a profª.drª. Hilda Regina Dalla Déa, a procurar o Programa de Estudos
Pós-graduados em Educação da PUC/SP para dar continuidade à minha formação. Foi assim
que conheci o trabalho da profª. drª. Heloisa Szymanski, que utilizava a Psicologia
Fenomenológica em suas práticas educativas em comunidade, e me tornei integrante de seu
grupo de pesquisa ECOFAM – Grupo de Pesquisa em Práticas Educativas e Atenção
Psicoeducacional à Família, Escola e Comunidade. Este grupo é coordenado pela profª.drª.
Heloisa Szymanski desde 1992 com a proposta de desenvolver, em uma comunidade da
periferia de São Paulo, práticas psicoeducativas com pais e educadores de uma creche que
atende crianças de um a seis anos.
Foi, então, em meu mestrado e, principalmente, ao iniciar dois anos depois minha
prática como professora de Psicologia Fenomenológica, que encontrei subsídios para o
exercício do pensamento fenomenológico em práticas fora do âmbito do consultório. Para que
pudesse ensinar, procurei aprimorar a minha formação e fui muito feliz nos encontros que
tive: conheci de modo mais próximo a fenomenologia de Merleau-Ponty e fui apresentada ao
seu olhar para as questões da infância. Além disso, encontrei fundamentação para “velhos”
dilemas que eu tinha com a Psicologia Fenomenológica e me reaproximei de antigos sonhos,
agora renovados.
Refletir aqui sobre minha atividade de ensino é um dos desafios deste trabalho, pois é
árduo o processo de tornar-se consciente sobre o ato de ensinar concomitantemente a ele
mesmo. Durante todo esse percurso, procurei compreender a prática de ensino do professor e
o aprendizado dos alunos
4
como elementos que não só se relacionam, mas que interdependem
um do outro. Quem ensina, ensina algo a alguém. Quem aprende, ensina algo a quem ensina.
Preparar uma aula é ter a possibilidade de estar constantemente aprendendo; lidar com o aluno
pode ser uma oportunidade para abrir-se à criação. Ao longo deste texto, uso em algumas
situações apenas a expressão “ensino”, entretanto tenha sempre procurado não desempenhar a
4
Atribui-se duas significações diferentes para a origem da palavra aluno. Para uma das concepções, o termo
deriva da palavra latina alumnus que deriva do verbo alere “fazer aumentar, crescer, desenvolver, nutrir”
Houaiss, 2001, o que daria o sentido para a palavra aluno de criança de peito, lactente, discípulo. Contudo, a
outra compreensão relaciona o prefixo a à negação, ausência e luno teria a origem em lumni (que significa luz),
portanto, o termo significaria “sem-luz”. Aqui escolhi adotar o termo aluno por ser um termo comum e familiar,
e ao longo do texto o leitor poderá observar que não o considerei a partir desta concepção e sim como alguém
que, na condição de estudante, aprende e ensina. Essa escolha também coincide com a proposta de Gomes
(2006) em seu trabalho realizado na mesma instituição.
7
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
minha prática de ensino como algo separado do aprendizado, seja aquele que ocorre em mim,
seja o do aluno. Neste sentido, Arendt (2001, p.246-247) afirma que não é possível “educar
sem ao mesmo tempo ensinar”, embora seja possível “e mais fácil ensinar sem educar”, bem
como se pode “aprender o dia todo sem ser educado”, mas uma “educação sem aprendizado
torna-se vazia”.
Vou narrar daqui em diante sobre o ensino da Psicologia Fenomenológica, sem muitas
vezes me referir a esta correlação de ensino-aprendizado. Porém, em todos os momentos, tal
prática de ensino deve ser entendida sob esse princípio.
O surgimento da proposta de ensino da Psicologia Fenomenológica por meio de cartas
não foi uma construção que se deu a partir de uma pesquisa a priori por trabalhos em
Clínicas-escola, ou da busca por outras experiências de ensino de Fenomenologia. Foi
posteriormente, isto é, à medida que fui construindo este trabalho, encontrei respaldo,
referências e aprimoramento para esse projeto. Entretanto, atividades psicológicas no contexto
educacional já faziam parte da minha experiência profissional.
Percebo que esse estágio tem uma história, fontes que o inspiraram e que vieram ao
encontro de outras práticas que eu já havia realizado. Seu “fio” inicial pode ser encontrado em
2002, quando ingressei no curso de mestrado e no grupo de pesquisa ECOFAM, já citado. No
mestrado, refleti sobre o sentido de minha experiência no processo de implantação de um
“plantão psicoeducativo”
5
para as famílias daquela comunidade: uma prática de atendimento
fundamentada no olhar fenomenológico que atendia a questões de urgência relacionadas à
educação. Nesta mesma época, realizava encontros de formação para os educadores da creche
que atendia essas famílias. Muitas das reflexões que fizemos eram motivadas por questões e
por dificuldades que surgiam nos plantões. Além disso, participava dos encontros mensais de
orientação em grupo com os pais, coordenando um dos grupos.
Minha experiência em trabalhos de educação comunitária contribuiu, ao longo de
quatro anos de ensino, para todas as minhas propostas de estágio. O ensino do exercício do
olhar fenomenológico com base em cartas surgiu depois de três anos e de muitas outras
tentativas de estágio válidas, porém nenhuma tão bem sucedida quanto a que relato.
Outra interface encontrei na origem desta história, em 2003, quando realizei o plantão
para pais, citado em minha trajetória inicial. Recordo-me de que atendi uma mãe que trouxe o
filho para o plantão, por conta de um pedido da escola, por ele ser “hiperativo”. Após alguns
5
Para conhecer mais a respeito desta prática: Melo, F.F.S. Plantão psicoeducativo: Espaço de reflexão e
mudança oferecido às famílias de uma comunidade de baixa renda. Mestrado em Educação: Psicologia da
Educação. PUC/SP, 2004.
8
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
atendimentos, percebi que se tratava de uma criança muito questionadora e sua esperteza é
que parecia incomodar as professoras. Conversei com a mãe no sentido de que ela pudesse
questionar o diagnóstico da escola e olhar para as qualidades e defeitos do filho, e não só para
aquilo que a escola esperava dele.
Ela, então, começou a questionar o comportamento das professoras e da diretora da
escola. Quando recebia reclamações, perguntava o que tinha acontecido, antes de brigar com
o filho. Já não as via mais como “detentoras da verdade” de seu filho, uma vez que a
psicóloga lhe dissera que “ele era muito inteligente”. Foi, então, que a professora resolveu me
mandar uma carta, contando-me quem era, sob sua ótica, aquele menino e o modo como se
comportava na escola. De um modo genérico, apresentava-o como um menino bagunceiro,
briguento e com dificuldades para se concentrar nas atividades propostas.
Eu respondi com uma outra carta, relatando todos os aspectos positivos que eu havia
percebido em minha relação com ele: a curiosidade aguçada, a capacidade de observação
atenta e até mesmo seu jeito questionador e desafiador que, se bem aproveitados, poderiam
ser muito úteis ao aprendizado dele. Pedi também para que ela explicitasse o que chamava de
bagunça, como as brigas começavam e lhe propus um olhar mais tolerante aos
questionamentos das crianças, embora soubesse que havia muitas dificuldades e limites para
se fazer isso com mais de 30 crianças ao mesmo tempo. Indiquei algumas leituras, me
disponibilizei para outros encontros e propus que atuasse com o garoto de forma a aproveitar
mais sua liderança. Antes de enviá-la, li para a mãe e para o menino, pedindo sua autorização.
A mãe consentiu e a entregou à professora que não voltou mais a me escrever.
Hoje, percebo ali a semente desse trabalho. Fiquei marcada por esse olhar atento às
necessidades e sofrimentos dos educadores e ao uso das cartas como possibilidade de diálogo.
Também não posso deixar de mencionar que um semestre antes de eu iniciar a
proposta das cartas, a professora Marina Marcondes Machado, na época docente de
Fenomenologia da instituição, compartilhou comigo sua bem sucedida experiência com os
alunos: criaram um “Caderno de conversas” direcionado aos alunos da área da saúde, os quais
se deparam com temas conflituosos vividos na infância, como a separação dos pais, a chegada
de um irmão, a doença, os medos, o luto, etc. Os textos foram escritos pelos alunos, sob sua
supervisão, de forma a propor uma conversa sincera e acolhedora entre adultos e crianças.
Ao pensar na proposta das cartas, eu não tinha a intenção de criar uma proposta
próxima a essa, mas vejo que se tornaram semelhantes. Ao idealizar o estágio, também não
pretendia inicialmente focar nas experiências da infância, mas, ao longo do projeto, tal
configuração surgiu, em virtude da temática das cartas, todas relacionadas à infância. Além
9
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
disso, por causa da necessidade de instrumentalizar o aluno para responder às cartas em tão
pouco tempo, precisei escolher um foco de estudo para a formação dos alunos.
Também já havia escutado o relato de algumas alunas sobre uma experiência de
correspondências que elas mantinham com crianças abrigadas. Procurei conhecer a atividade
e descobri que é um projeto denominado “Correspondente do Bem”, de uma OSCIP
(Organização da Sociedade Civil de Utilidade Pública) com sede em São Paulo, chamada
InPrós (Instituto de Projetos Sociais), que se propõe a mediar, lendo e enviando
correspondências por um ano entre crianças, que moram ou freqüentam abrigos ou núcleos
socioeducativos, e voluntários. É um dos princípios do projeto estabelecer “um vínculo
afetivo, recíproco, além de um exercício constante de reflexão que auxilia na construção e
reconstrução da história de vida dos participantes”
6
. Entretanto, os correspondentes não
poderão jamais se conhecer nem manter correspondência após esse período. Essa era a única
“atividade” baseada em cartas, relacionada à Psicologia, que eu conhecia.
Desde o início, assustavam-me as correlações que poderiam ser feitas entre este
trabalho e aqueles realizados freqüentemente nas sessões de perguntas em revistas de bancas
de jornal, em que psicólogos apresentam explicações simplistas e prescrição de soluções.
Coube-me o desafio de explicitar a especificidade e as diferenças da proposta que estava
sendo gerada.
A idéia de uma ação psicológica por meio de cartas, fundamentada no olhar da
Psicologia Fenomenológica, não é algo para o qual busco uma explicação causal. Surgiu
como um modo próprio de solucionar um conflito entre a minha metodologia e as exigências
institucionais, entre meu desejo de ensinar e as dificuldades do aluno para compreender o
olhar fenomenológico e entre a necessidade de formação e de exercício desse olhar. Hoje, eu a
entendo como algo que surgiu de modo intuitivo e que se aproxima daquilo que Merleau-
Ponty denominou de “experiência pré-reflexiva”, um modo de apreender a realidade de
maneira sensível e espontânea.
1.2 O contexto da experiência vivida
O curso de Psicologia da referida Universidade, em São Paulo, quando iniciou em
2003, procurou em sua grade curricular contemplar a diversidade das maneiras de praticar
Psicologia. Dentre as disciplinas obrigatórias do primeiro e segundo anos do curso, do
6
Disponível em: http://www.inpros.org.br/correspondentes/index.asp, acessado em 4/1/2008.
10
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
chamado núcleo comum, estava a Fenomenologia, com carga horária equivalente às
disciplinas da Psicanálise e da Análise do Comportamento, ministradas por quatro semestres.
A estruturação do curso de Psicologia na instituição foi pensada por um corpo de
professores formado por ex-alunos de instituições nas quais se ensina a Psicologia
Fenomenológica, mesmo tendo carga horária menor. Para se conhecer mais sobre essa
experiência e sobre o sentido do ensino de fenomenologia no curso de graduação de
Psicologia, sugiro a tese de doutoramento da profª.drª. Luciana Szymanski Gomes (2006),
que, juntamente com a profª.drª. Marina Marcondes Machado, ex-professoras da referida
instituição, elaboraram o ementário das disciplinas de fenomenologia do curso de Psicologia e
iniciaram o ensino delas, nos primeiros anos do curso.
De acordo com as diretrizes nacionais para o curso de Psicologia
7
, a formação do
aluno deve comportar uma variedade de atividades acadêmicas de cunho teórico-prático. Por
isso, o curso se estruturou visando oferecer uma formação pluralista, articulando
constantemente teoria e prática. Assim, foram criadas as disciplinas de Estágio Básico para
serem oferecidas aos alunos, a partir do segundo ano, terceiro semestre do curso, mantendo-se
até o sexto semestre, com o Estágio Básico IV. Essa disciplina tem como objetivo, do estágio
I ao IV, progressivamente, aproximar e preparar o aluno para uma intervenção. Para o Estágio
Básico I e II, as atitudes que devem ser ensinadas, com base na temática proposta, são as de
observação e descrição da realidade. Já para os estágios básicos III e IV, a orientação é que o
aluno aprenda a interpretar a realidade, relacionando a teoria e a prática
8
, de forma a propor
uma intervenção para a realidade estudada, mesmo que ainda não possa executá-la.
Até o segundo semestre de 2006, o Estágio Básico era uma disciplina anual, o que
significava a possibilidade de se chegar a um aprofundamento das idéias ensinadas. Mas,
depois desse período, se tornou semestral.
Nessa disciplina, temas diversos, contemplando os diferentes modos de praticar
Psicologia pela Psicanálise, a saber, Análise do comportamento, Psicologia Social e
Psicologia Fenomenológica, são apresentados aos alunos que optam por um deles. As
temáticas propostas pelos professores variam de acordo com o semestre e com as
especificidades de cada abordagem. Em geral, o aluno é contemplado com sua primeira ou
segunda opção, eventualmente isso não ocorre.
7
Parecer NºCNE/CES 1.314/2001, aprovado em 7/11/2001, Parecer CNE/CES 072/2002, aprovado em
20/2/2002 e Parecer Nº CNE/CES 0062/2004, aprovado em 19/2/2004.
8
Para a Fenomenologia, toda observação descrita já é interpretativa, embora a interpretação se constitua como
um momento diferente ao do exercício da observação e descrição. Da mesma forma, também não é possível
separar teoria de prática, visto que o método fenomenológico não se propõe a formular uma teoria.
11
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
Os Estágios Básicos têm sido, até o momento, um diferencial na formação do aluno da
instituição, pois as turmas são formadas por até dez alunos, o que possibilita ao professor estar
mais próximo do aprendizado desses alunos, conhecer o que e como eles estão entendendo o
que lhes é ensinado e acompanhar suas dificuldades, propondo tarefas específicas que
correspondam a cada necessidade. Percebo maior qualidade no ensino dessa disciplina,
principalmente quando comparado ao ensino das demais, em que o professor chega a ter em
sala mais de 50 alunos.
Essa experiência tem sido muito rica, tanto para os professores, quanto para os alunos,
que podem ampliar o estudo de uma temática e se aproximar do modo de pensar de cada
abordagem do curso. Contudo, são nítidas as transformações nas orientações institucionais
para essa disciplina desde 2004, quando foi pela primeira vez oferecida, até o ano de 2008.
Inicialmente, não havia uma padronização no modo de ensinar o aluno a pesquisar, nos
modelos de relatórios exigidos, enquanto, atualmente, se exige ensinar a realizar pesquisas a
partir do que entendem por “modelo tradicional”. Tal exigência implica, inclusive, em um
outro modo de realizar o processo de estágio, que deve ensinar a realizar tais atividades e,
assim, dificulta que se expresse a especificidade de cada modo de pesquisar e exercer a
Psicologia. A padronização também visa garantir uma maior quantidade de “produtos”
resultantes dos estágios, mesmo que isso muitas vezes signifique perda na qualidade do que é
ensinado.
Desde 2006 recebemos a orientação explícita de que os estágios deveriam priorizar o
ensino de habilidades da prática profissional, isto é, atividades específicas de atuação do
psicólogo, como o uso de técnicas, entrevistas, questionários, elaboração de materiais
informativos, manuais, cartilhas, etc.
Meu desafio como professora do curso era, então, propor a cada semestre um estágio
na perspectiva da Psicologia Fenomenológica, que cumprisse as exigências institucionais e, ao
mesmo tempo, me possibilitassem ensinar o modo fenomenológico (de pensar e exercer a
Psicologia). Esta maneira de pensar é filosófica e não é seu objetivo esse pragmatismo
solicitado pelo espírito positivista da Psicologia. O modo de a Psicologia Fenomenológica
compreender o que é uma intervenção é outro, pois não separa teoria de prática nem reflexão
de atuação. Portanto, não produzíamos cartilhas, não ensinávamos técnicas de intervenção,
enfim, os relatórios produzidos pelos alunos não ofereciam soluções e respostas; ao contrário,
eram repletos de questionamentos. Muitas vezes, era quase impossível conciliar as exigências
desse modo de praticar Psicologia com os princípios do método fenomenológico – e para
podermos exercê-lo, tínhamos e temos que continuamente apresentar justificativas sobre a
12
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
pertinência de nosso trabalho e, principalmente, sermos muito criativos. Nossos saberes e,
conseqüentemente, nossos projetos de estágio, ao longo dos anos, tornaram-se cada vez mais
questionados; aquilo que oferecíamos como resultado de nosso processo de ensino-
aprendizado não era suficiente como “produto” esperado. Constantemente me questionava: o
que poderia ser oferecido aos alunos do terceiro ano como “prática psicológica”
fundamentada no olhar da Psicologia Fenomenológica?
Vale ainda acrescentar que, desde o início da elaboração do ementário, do momento de
abertura do curso em 2003 até o ano de 2007, o pensamento fenomenológico permeava toda a
formação do aluno. A partir de 2008, houve uma reformulação do currículo, que excluiu da
grade curricular as disciplinas de Fenomenologia. Para os egressos neste ano, a
fenomenologia poderá ser conhecida apenas pelas disciplinas de Estágios. Tal decisão leva-
me a refletir sobre o sentido e a pertinência de um pensamento mais filosófico nesse contexto
acadêmico. Contudo, tal reflexão não acontecerá aqui, pois foge da proposta deste
doutoramento.
Antes de continuar a detalhar a experiência de criação da proposta de estágio,
considero ser imprescindível apresentar, mesmo que resumidamente, a Psicologia
Fenomenológica.
1.3 Breve apresentação da Psicologia Fenomenológica: uma interpretação
Para que o leitor se situe no pensamento fenomenológico é necessário antes explicitar,
ainda que sinteticamente, o que estamos compreendendo por Psicologia Fenomenológica.
Buscarei contextualizar o surgimento do método fenomenológico e o modo como foi sendo
incorporado por psicólogos e psiquiatras europeus para o âmbito da Psicologia. Pretendo
explicar, sinteticamente, alguns aspectos da Fenomenologia e de princípios formulados que
foram fundamentais para autores como Jaspers, Heidegger, Merleau-Ponty, Sartre, dentre
outros, que posteriormente também construíram sua própria Fenomenologia e influenciaram
decisivamente a Psicologia e a Psiquiatria. Procurarei apresentar algumas noções das quais a
Psicologia Existencial se apropriou e que estão presentes no pensamento de autores que
permearam discussões realizadas nesta tese.
O pensamento fenomenológico inicia-se com Edmund Husserl (1859 – 1938), na
Alemanha, no início do século XX, com a pretensão de superar a “crise” das ciências do
homem e da filosofia em que estas se encontravam, ou seja, aquilo que Merleau-Ponty (1973)
denominou de “problema do século”: a antiga oposição entre “objetividade e subjetividade”.
Tal separação origina uma distinção radical entre a filosofia e as ciências, como se à ciência
13
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
coubesse o “objetivo” e à filosofia, o “subjetivo”, ou seja, a cada conhecimento
corresponderia a exclusividade de um dos pólos. Estava posto o dilema a uma ciência cujo
“objeto” de estudo é o “sujeito”. Já a filosofia deveria “perecer na contradição interna de um
ceticismo absoluto, ou reduzir-se a uma teorização dogmática, vazia e utópica a respeito de
um ‘sujeito’ irreal. (...) Crise interna das ciências humanas, crise interna da filosofia e crise
recíproca entre ambas (...)” (idem, p. 10).
Era preciso demonstrar que a filosofia e as ciências do homem eram possíveis e
romper com essa divergência entre filosofia e ciências. Para isso, Husserl propôs uma revisão
e reorganização radical das categorias “sujeito” e “objeto”, pretendendo encontrar um novo
fundamento que pudesse conduzir as ciências e a filosofia para caminhos seguros, autônomos
e independentes. Contrapunha-se à tendência dominante de utilizar, nas ciências humanas, o
mesmo método utilizado nas ciências matemáticas, pois somente a estas se atribuía
legitimidade. Husserl questionou o próprio racionalismo das ciências e sua pretensa
“objetividade” e procurou redefinir o verdadeiro sentido da filosofia e as condições de uma
ciência rigorosa. Propôs, então, Merleau-Ponty que “A fenomenologia é o estudo das
essências, e todos os problemas, segundo ela, resumem-se em definir essências (...)
(Merleau-Ponty, 1999, p.1). Assim, o que Husserl propôs a partir da Fenomenologia foi
realizar uma importante distinção entre as essências das coisas em exatas ou quantitativas – a
aquelas em que é possível a precisão e definição unívoca – e as inexatas ou qualitativas – que,
não por imperfeição, mas por sua própria especificidade, são inexatas e só podem ser
descritas. (Ribeiro Junior, 2003). Tal distinção, embora aparentemente simples, foi
revolucionária e teve desdobramentos diversos, inclusive para as metodologias de pesquisa,
trazendo um impulso considerável para o desenvolvimento das metodologias qualitativas e
para o desenvolvimento da própria psicologia (Turato, 2003, Chauí, 2001 e Martins &
Bicudo, 1989).
Assim, essa propositiva apresenta um novo fundamento para os eventos humanos: a
intencionalidade. Esse será um ensinamento nuclear da fenomenologia. Aqui o sentido de
intencionalidade vai contra o sentido da palavra no senso comum que se refere a uma ação ou
intenção prática. Na fenomenologia significa a relação que a consciência tem com os objetos:
“toda consciência é consciência de algo”, o que quer dizer que toda consciência visa a algo,
tem uma intenção que se dirige às coisas. A relação entre a consciência e as coisas é de tal
modo que a consciência não existe fora dessa relação. Assim, a consciência deixa de ser uma
substância passiva para ser um modo de olhar que se projeta para conhecer. A esta relação da
consciência com as coisas é que Husserl nomeou de intencionalidade.
14
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
Nesta correlação da consciência com o mundo, as coisas não são tragadas pela
consciência, elas permanecem com autonomia própria, pois a consciência e o mundo surgem
simultaneamente. Aqui, conhecer não é dissolver as coisas na consciência e nem ser passivo à
sua constituição. Desse modo, para Husserl, o sujeito e objeto não se anulam mais um ao
outro. A superação desta dicotomia só foi possível pela criação do conceito de
intencionalidade (Leopoldo e Silva, 2007).
Sokolowski (2004) explica que para entendermos a profundidade de tal proposição e
os conseqüentes “rebuliços” que ela trouxe, precisamos rever que, na história da filosofia (nas
tradições cartesiana, hobbseniana e lockiana), a consciência e a experiência humana foram
compreendidas de um modo muito diferente. A profundidade de tais questionamentos não
poderá ser detalhada aqui, pois não é o propósito deste trabalho. Todavia, o que deverá ficar
evidente é que o fundamento da dicotomia “sujeito e objeto”, “mente e corpo”, “homem e
mundo” estão sendo questionados e redimensionados. Como afirma o autor: “Discutindo a
intencionalidade, a fenomenologia ajuda-nos a reivindicar um sentido público do pensamento,
do raciocínio e da percepção. Ajuda-nos a reassumir a nossa condição humana como agentes
da verdade” (idem, p.21). E continua:
A fenomenologia nos permite reconhecer e restaurar o mundo que pareceu
perdido enquanto estávamos bloqueados em nosso próprio mundo interno por
confusões filosóficas. As coisas que tinham sido declaradas ser meramente
psicológicas são agora declaras ônticas, parte do ser das coisas. (...) Ela não
apenas remove impedimentos céticos; também dispõe a possibilidade de
diferenças de compreensão, identidades e formas como os filósofos classicamente
as entenderam. (...) Ela valida a filosofia como um acontecimento humano
culminante. A fenomenologia não só cura nossa angústia intelectual; também abre
a porta para a exploração filosófica àqueles que desejam praticá-la (ibidem, p.24).
A noção de intencionalidade repõe a existência do homem no mundo, já que só é
possível descrever a experiência humana inserida na trama de significados do mundo. Mundo
e homem, corpo e mente, coexistem em uma unidade indissolúvel. A intencionalidade, isto é,
o fato de o homem doar sentido ao mundo, é agora uma condição do real:
(...) Mas a fenomenologia é também uma filosofia que repõe as essências na
existência, e não pensa que se possa compreender o homem e o mundo de outra
maneira senão a partir de sua “facticidade”. É uma filosofia transcendental que
coloca em suspenso, para compreendê-las, as afirmações da atitude natural, mas é
também uma filosofia para a qual o mundo já está sempre “ali”, antes da reflexão,
como uma presença inalienável, e cujo esforço todo consiste em reencontrar este
contato ingênuo com o mundo, para dar-lhe enfim um estatuto filosófico. É a
ambição de uma filosofia que seja uma “ciência exata”, mas é também um relato
do espaço, do tempo, do mundo “vividos”. É a tentativa de uma descrição direta
de nossa experiência tal como ela é, sem nenhuma deferência à sua gênese
15
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
psicológica e às explicações causais que o cientista, o historiador ou o sociólogo
dela possam fornecer (...) (Merleau-Ponty, 1999, p 1-2).
De acordo com a Fenomenologia, os eventos humanos não poderão ser explicados ou
analisados segundo os procedimentos da matemática ou da física, pois sua ciência terá um
outro rigor, qual seja, a descrição que parte do “retorno às coisas mesmas”. Todavia,
conforme explicita Merleau-Ponty é a essa atitude a desaprovação da ciência:
(...) Eu não sou o entrecruzamento de múltiplas causalidades que determinam meu
corpo ou meu “psiquismo”, eu não posso pensar-me como uma parte do mundo,
como o simples objeto da biologia, da psicologia e da sociologia, nem fechar
sobre mim o universo da ciência. Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por
ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo
sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada. Todo o universo da
ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência
com rigor, apreciar exatamente seu sentido e alcance, precisamos primeiramente
despertar essa experiência do mundo da qual ela é a expressa segunda (ibidem,
p.3).
Aqui, podemos perceber que não há negação ou renúncia à ciência, mas uma
recolocação do conhecimento científico em um outro patamar. A relação sujeito e objeto,
compreendida como uma unidade inerente à condição humana, trouxe diversas implicações
importantes nos fundamentos da filosofia. A noção de uma verdade única dá lugar a uma
concepção de verdade relativa a alguém ou a algo, a um modo de olhar que não permite a
generalização. Assim, a realidade só poderá ser apreendida em perspectivas e perfis, sendo
próprio da essência dos objetos (e não um erro metodológico) se mostrarem parcialmente,
pensamento que vai trabalhar na chave da particularidade, da compreensão e da descrição.
O método fenomenológico rompe com a dicotomia sujeito-objeto e sua maior
contribuição é unir o “extremo subjetivismo ao extremo objetivismo” (Merleau-Ponty,
1973:18), numa dura crítica ao pensamento científico hegemônico que questiona o princípio
tecnicista, causalista e explicativo, pressupostos importantes para a ciência positivista.
Todavia, a fenomenologia não surge como uma nova teoria do conhecimento, mas como um
método que “se deixa praticar e reconhecer como maneira ou como estilo (...)” (Merleau-
Ponty, 1999, p.2; grifos do autor).
Sobretudo, é necessário acrescentar que não só o pensamento fenomenológico de
Husserl, mas também o Existencialismo exerceram uma forte influência sobre diversos
psiquiatras na Europa.
Não será possível desenvolver, mesmo que sinteticamente, o que é o existencialismo e
as suas origens, pois seria simplificar algo que se deu de modo complexo. Muito
16
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
genericamente, podemos dizer que é “toda a filosofia que trata diretamente da existência
humana, visando elucidar, ao vivo, o enigma que é o homem para si” (Beaufret, 1976, p. 12).
O Existencialismo foi um movimento que nasceu em um tempo de crise cultural e que
expressa as profundas transformações do pensamento moderno do século XX, cujas idéias se
manifestaram não só na psicologia e psiquiatria, mas também nas artes, com Van Gogh,
Cézanne e Picasso, e ainda na literatura, com Dostoieviski, Kafka, Camus e Rilke (May,
1977). Para os existencialistas, é possível estabelecer uma ciência do homem em sua
realidade, em seu cotidiano, em sua forma viva e não em abstrações sobre Deus ou sobre as
leis da natureza. O existencialismo é um modo de compreender os seres humanos a partir do
esforço de eliminar a dicotomia entre sujeito e objeto que torturou o pensamento e a ciência
ocidental. (idem, p. 29).
Em sua obra Ser e Tempo, Heidegger trouxe importantes contribuições para o
pensamento existencialista, embora o autor repudiasse esta qualificação e sua identificação
com a obra de Sartre. Foi sua analítica da existência que levou Binswanger, Boss e outros
psiquiatras a uma compreensão de homem em que não se aplicavam os clichês teóricos,
mecanicistas, biológicos ou psicológicos, freqüentemente utilizados nas explicações
psiquiátricas. Essa “nova” compreensão de homem provocou-lhes um novo modo de praticar
a Psiquiatria.
Autores como Husserl, Heidegger, Sartre e Merleau-Ponty afetaram, sob perspectivas
distintas, o modo como alguns psicólogos e psiquiatras alemães, entre eles Erwin Strauss,
Eugene Minkowski, Von Gebsattel, dentre outros pesquisadores do campo da psiquiatria,
exerciam suas práticas. Foi depois da insatisfação desses psiquiatras e psicanalistas com as
teorias de que dispunham para compreender o homem e seus conflitos que se deu início, na
primeira metade do século XX, em diversas partes da Europa, ao movimento existencial em
psicologia (May, 1977 e 1980).
É um erro considerar esse movimento como mais uma escola de psicoterapia, pois, em
primeiro lugar, não é fruto do pensamento de um único líder, e sim, de diversos psiquiatras e
psicólogos que não se contentaram em recorrer às teorias e técnicas oferecidas para suprir as
brechas de seu conhecimento sobre o humano (idem). Em muitos casos, essa busca ocorreu
sem que um ou outro se conhecessem e só posteriormente conheceram os trabalhos
notavelmente parecidos de seus colegas. E, principalmente, por não se tratar de uma
psicologia que visa fundar uma nova escola ou estabelecer novas técnicas terapêuticas:
17
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
Em psicologia e psiquiatria, o termo demarca uma atitude, um acercamento aos
seres humanos, mais exatamente do que um grupo ou uma escola especial. (...)
Existencialismo não é um sistema de terapia, mas uma atitude para com a terapia.
Muito embora tenha conduzido a avanços na técnica, não é um conjunto de
técnicas por si mesmas, mas é um interesse pela compreensão da estrutura do ser
humano e sua experiência (idem, p. 17-18, grifos do autor).
Esse pensamento exerceu uma forte crítica sobre alguns psicoterapeutas que se
lançaram em um
(...) esforço disciplinado para aclarar a mente das suposições que tão
freqüentemente nos leva a ver no paciente tão somente nossas próprias teorias, ou
os dogmas de nossos próprios sistemas. É o esforço para experimentar, em vez
disso, os fenômenos em sua inteira realidade, como eles se apresentam. Isto
requer uma atitude de abertura e boa vontade para ouvir – aspectos da arte de
escutar em psicoterapia, que são geralmente tidos como certos e parecem muito
fáceis, mas que são realmente extremamente difíceis (ibidem, p.24-25).
Um dos grandes aprendizados destes estudiosos da filosofia alemã é, por um lado, o
questionamento ao dogma técnico que protege o psicólogo e o psiquiatra da própria
ansiedade, mas, por outro lado, pode impedir que um encontro entre terapeuta e paciente
ocorra. A importante lição ensinada, com base nos princípios do método fenomenológico,
refere-se ao lugar que a técnica e os arcabouços teóricos devem ocupar, pois, na medida em
que se tornam inquestionáveis, não permitem que a própria pessoa se revele. Na nova postura
que procuravam transmitir, propunham olhar para o que se manifesta como uma realidade
vivida por alguém, de uma determinada maneira, em algum momento, na sua particularidade.
Além disso, segundo o referido autor, alertava-se para o dever do psicólogo de
“continuamente analisar e esclarecer suas próprias pressuposições” (p.29, grifos do autor),
pois estas sempre limitam e estreitam o que podemos perceber em um experimento ou em
uma situação terapêutica. Entretanto, este limite é próprio do modo de olhar humano:
(...) A única maneira em que nós podemos evitar que as pressuposições, que
suportam nosso método particular desviem indevidamente nossos esforços, é
conhecer conscientemente quais são eles e assim não absolutizá-los ou dogmatiza-
los. Por isso, nós temos ao menos uma chance de abstermo-nos de forçar nossos
sujeitos ou pacientes em nossos “divãs procustianos” e cortar, ou recusar ver, o
que não convém (May, 1980, p. 30).
Essa atitude foi denominada por Husserl de suspensão ou redução fenomenológica, ou
ainda epoché. É esta atitude que caracteriza e distingue a Psicologia Fenomenológica de
outros modos de exercer Psicologia, fundamentadas em teorias ou concepções a priori acerca
do fenômeno estudado.
18
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
Merleau-Ponty (1999, p.10) afirma que a melhor explicação dada para a redução foi a
dada por Eugen Fink, assistente de Husserl, ao falar de uma “admiração diante do mundo” e,
complementa o autor, o maior ensinamento da redução fenomenológica é a impossibilidade
total da redução, pois tudo quanto sabemos do mundo é a partir de nossa experiência. Esta
recolocação do homem em sua “facticidade”, em sua existência, aponta para uma dimensão
do humano inserido e situado em um contexto histórico e cultural. Praticar a redução seria
realizar uma profunda reflexão que revela nossos preconceitos para que deles estejamos
conscientes:
(...) O maior ensinamento da redução é a impossibilidade de uma redução
completa. Eis por que Husserl sempre volta a se interrogar sobre a possibilidade
de redução. Se fôssemos o espírito absoluto, a redução não seria problemática.
Mas, porque, ao contrário, nós estamos no mundo, já que mesmo que nossas
reflexões têm lugar no fluxo temporal que elas procuram captar (...), não existe
pensamento que abarque todo nosso pensamento. (idem, p.10-11)
Assim, é nessa atitude em que me apoio e me coloco, respaldando-me principalmente
nas indicações de Merleau-Ponty, algo que procurei ensinar aos alunos como o modo de olhar
da Psicologia Fenomenológica.
Portanto, quando menciono o uso e o ensino do método fenomenológico, estou me
referindo a essa atitude, a epoché, visando ao movimento que Husserl denominou de “volta às
coisas mesmas”. Essa proposta que se tornou o lema da Fenomenologia refere-se a esse modo
de olhar o fenômeno procurando deixar que ele se revele sem que as teorias, valores, juízos e
preconceitos impeçam a sua manifestação. Dito de outro modo, uma postura de investigação
dos fenômenos estudados em sua particularidade, em seu modo próprio de se manifestar. Esse
modo de olhar rompe com a busca por conceitos, leis, explicação, exatidão ou previsão dos
fenômenos e propõe descrever a experiência humana apreendida por um pesquisador que
explicita um ponto de vista possível sobre o fenômeno estudado.
Se este pensamento se contrapõe ao modo predominante de exercer psicologia, é por
se fundamentar nessa atitude de abertura para o outro, a qual permite descrever
fenomenologicamente a experiência vivida. Não se trata de uma oposição à ciência ou às
teorias psicológicas, muito menos negá-las ou descartá-las; mas, como afirma Merleau-Ponty
(2004, p.8), tratava-se de combater o “dogmatismo de uma ciência que se considerasse o saber
absoluto e total”.
Não pretendi aqui esgotar a discussão sobre o método fenomenológico e seus
princípios, ou apresentar uma definição do que é a fenomenologia, o que não seria possível, já
19
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
que se trata de um pensamento complexo e fazer isso seria incorrer em uma simplificação.
Ademais, não poderíamos falar em uma única fenomenologia tampouco em um único método
fenomenológico (Cirigliano, 1972; Besora, 1990 e Moreira, 2004). Apenas iniciei uma
apresentação para que fosse possível ao leitor se familiarizar com essa proposta. Algumas
discussões serão retomadas, à medida que eu apresentar, nos capítulos seguintes, como foram
ensinados alguns desses princípios aos alunos.
1.4 Experiências vividas nos Estágios Básicos
Conforme explicitei anteriormente, os estágios básicos constituem o primeiro contato
do aluno com uma ação, em alguns casos com a pesquisa, em outros, conforme o professor e
sua abordagem, com técnicas de atuação psicológica, como testes e entrevistas.
Nessa disciplina, o aluno exercitou o olhar fenomenológico, praticando ações relativas
ao seguinte processo: observação, descrição e interpretação. Embora as ações não ocorram de
forma dissociada, por causa da complexidade desse modo de olhar e das dificuldades que já
vivemos com os alunos, optamos por priorizar o ensino de cada uma das ações em estágios
distintos. No pensamento fenomenológico, a observação e a descrição terão como atitude
fundamental a redução fenomenológica, modo de olhar para o fenômeno que caracteriza e
distingue esse modo de observar, e descrever, de uma outra descrição do senso comum ou de
descrições “puramente” objetivas. Em nossos estágios, tais observações se deram no cotidiano
do aluno, ou a partir de filmes, de modo a ensiná-los a praticar o que Merleau-Ponty chamou
de “reaprender a ver o mundo” (2000, p.16), procurando observar sem noções a priori,
preconceitos ou teorias explicativas. Ensinar e instrumentalizar esse olhar é um processo
longo e que será explicitado aqui, à medida que descrever a metodologia por mim utilizada
em cada um dos Estágios Básicos.
De modo geral, os alunos gostam muito dos Estágios Básicos, porque essa experiência
é uma oportunidade para aprenderem e se aprofundarem no exercício do olhar
fenomenológico. É comum o aluno dizer que foram as experiências vividas nos estágios que o
ajudaram a entender “um pouco mais de Fenomenologia”, motivo pelo qual vale fazer, a
seguir, uma consideração a respeito do contato inicial do aluno com a Fenomenologia.
O primeiro semestre em que apresentamos a disciplina Fenomenologia I é, sem
dúvida, o mais difícil, tanto para o professor quanto para o aluno. A expectativa do aluno por
encontrar na Psicologia teorias que tragam respostas para a existência humana é significativa.
Entretanto, a Psicologia Fenomenológica vai apresentar um contraponto ao modo de olhar
explicativo e, lentamente, buscará ensinar uma postura que valoriza a reflexão filosófica. É
20
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
necessária muita paciência para lidarmos com a discrepância entre a expectativa do aluno por
um pensamento mais pragmático e a nossa proposição de um pensamento inacabado e
provisório. Geralmente, nas experiências de estágios, no terceiro semestre do curso, quando já
estão cursando a disciplina Fenomenologia III, é que muitos dos alunos relatam que estão
começando a entender esse modo de olhar.
Desde 2004, trabalho em projetos de Estágio Básico. Já propus temáticas muito
diferentes, para os alunos do 3
o
ao 6
o
semestres. A tabela abaixo apresenta, sinteticamente, as
disciplinas oferecidas em cada semestre. Em seguida, detalharei cada uma das experiências.
1º/2004 E. B. I: Ansiedade como modo de ser
2º/2004 E. B. II: Ansiedade como modo de ser
1º/2005 E. B.I: Ansiedade como modo de ser
2º/2005 E. B. II: Ansiedade como modo de ser
1º/2006
E. B. I: Fenomenologia das histórias
E. B. III: Fenomenologia das narrativas
2º/2006
E. B. II: Fenomenologia das histórias de Clarice Lispector
E.B.IV: Memorial autobiográfico
1º/2007
E.B. I: Fenomenologia do Amor
E.B. III: Cartas: uma proposta fenomenológica sobre educação
2º/2007
E. B.I: A criança e o mundo
E. B. III: Correio Psicoeducativo
A primeira vez em que ofereci uma proposta de Estágio Básico, em 2004, no meu
primeiro semestre de trabalho na instituição, a temática escolhida para ser trabalhada foi a
ansiedade
9
(“Ansiedade como modo de ser”) e a bibliografia principal do curso foi a obra O
significado de ansiedade, de Rollo May (1980b)
10
. Neste livro, o autor realiza uma cuidadosa
pesquisa sobre a ansiedade, redigida em 1950 no contexto da Segunda Guerra, em que
desdobra as diversas faces desse fenômeno: introduz a maneira como o tema aparece na
literatura, como é visto na cena política, na sociologia, na filosofia e na teologia e a partir da
compreensão psicológica ou biológica, para desvelar diversos significados para a ansiedade.
Ao realizarmos a experiência de leitura da obra citada, procuramos iniciar o aluno na
pesquisa fenomenológica, algo complexo por perseguir a interpretação hermenêutica (busca
de significações pela multiplicidade de sentido e significados) das várias facetas de um
fenômeno, filiando-se à noção de “relatividade da verdade”. Nesse estágio, ensinar o exercício
da Psicologia Fenomenológica foi buscar a ampliação do modo de olhar para o fenômeno da
9
A proposta de estágio foi elaborada pela professora Marina Marcondes Machado, citada anteriormente na
elaboração do ementário de todas as disciplinas de fenomenologia do curso.
10
As referências bibliográficas que foram utilizadas com os alunos nos estágios anteriores ao projeto do
“Correio” estão separadas, ao final do trabalho, das referências bibliográficas citadas na tese.
21
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
ansiedade, propondo uma maneira de compreender a problemática estudada em termos de
pontos de vista, isto é, a procurar diferentes perspectivas de entendimento para a ansiedade,
seja em termos dos aspectos biológicos, sociais, culturais, entre outros.
Os relatos dos alunos, após a leitura, evidenciavam surpresa em conhecer um olhar
para a ansiedade que não a compreendia como algo necessariamente prejudicial e a priori
negativo; um modo de compreender a ansiedade que não priorizava a explicação biologicista
ou psicológica, como supunham encontrar. Pelo posicionamento do autor, puderam apreender
a noção de ser-em-relação, um importante fundamento do olhar fenomenológico que busca
conhecer qualquer fenômeno na relação com o seu contexto e a reconhecer a particularidade.
Assim, a ansiedade deixou de ser vista como uma definição única e generalizável, para ser
compreendida como algo que é vivido por alguém, em determinada situação, em algum
momento, enfim, como uma experiência que se manifesta de modo pessoal.
Outro princípio fenomenológico apreendido e destacado pelos alunos em seus
depoimentos foi o respeito pela pessoa que puderam perceber na proposta do autor, uma
postura humanizadora, compreensiva e generosa com quem vivencia a ansiedade, em
detrimento de um olhar julgador e condenatório, como esperavam, já que tal sentimento era
visto como algo necessariamente ruim e a ser eliminado. Esse, talvez, seja o aspecto que mais
se evidenciava nos relatos dos alunos e que me parece ser o princípio da Psicologia
Fenomenológica com que os alunos mais se identificavam (e se identificam).
Trabalhei com essa proposta no ano de 2004 e 2005, nos estágios básicos I e II. Em
2006, escolhi estudar as histórias e as narrativas humanas. Para o Estágio Básico I, com os
alunos do terceiro semestre, propus uma “Fenomenologia das histórias” em que, por
intermédio das histórias, contos e narrativas, buscava a reflexão e o conhecimento sobre a
existência humana em seus diversos modos de ser. Procurei sensibilizar os alunos para
perceber nas histórias, tanto para o leitor como para o ouvinte, uma oportunidade para
desenvolver a imaginação e o vocabulário, transmitir valores ou saberes, confortar, divertir,
preparar para determinadas situações ou despertar sentimentos. Propus um modo de olhar para
as histórias de modo que elas pudessem ser utilizadas pelo psicólogo para trazer luz à
compreensão da existência humana, pois, além de nos permitirem conhecer modos de ser do
humano, podem possibilitar a elaboração de aspectos afetivos. Busquei, ainda, despertar no
aluno a reflexão acerca dos modos de percepção das histórias em seus âmbitos culturais,
lúdicos, psicológicos, pedagógicos, terapêuticos, etc.
Nesse estágio, realizamos a leitura de contos de fadas clássicos, na versão dos Irmãos
Grimm (2002), de alguns contos orientais e de contos contemporâneos. Fizemos também a
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Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
leitura da dissertação de mestrado de Gawendo (2001) que se propõe a realizar uma
fenomenologia da existência, apoiando-se em histórias, dentre outros textos que abordavam a
importância das narrativas (Matos, 2005 e Costa & Baganha, 1989). Percebo que já havia ali a
intenção de propiciar conhecimento e reflexão sobre as diversas formas de se trabalhar com a
linguagem.
Evidenciou-se nesse estágio a dificuldade dos alunos em perceberem a importância da
linguagem e reconhecerem o valor da palavra, que eu insistia em apresentar como a “matéria
prima” de toda ação do psicólogo. Freqüentemente, questionavam o efeito e a fragilidade que
as palavras podem ter para “propiciar cura”, e demonstravam expectativa por um instrumento
mais eficiente. Muitos manifestavam frustração diante do que eu oferecia e daquilo que
esperavam da atuação do psicólogo. Algumas expectativas eram claramente fundamentadas
em idéias do senso comum ou na repercussão midiática do trabalho dos psicólogos. Mas
percebia também que algumas dessas expectativas eram mais elaboradas pelas promessas de
teorias que aprendiam no próprio curso. Trabalhar com a linguagem descritiva e reflexiva era
propor uma prática frágil, imprevisível e pouco eficiente, que não agradava aqueles que
buscavam uma atuação psicológica pragmática stricto sensu.
Ao longo do estágio, os alunos tornaram-se melhores leitores e ouvintes de histórias.
Aos poucos, alguns puderam perceber nas histórias a possibilidade de atuação psicológica e
uma maneira de conhecer modos de ser do humano. Buscava, por intermédio das histórias,
aproximá-los de uma postura de abertura e disponibilidade para o outro, por meio da escuta
ou de qualquer outra forma de acolhimento que se realiza pela palavra.
Ainda no primeiro semestre de 2006, mas para os alunos do quinto semestre, propus
na disciplina de Estágio Básico III a proposta: Um olhar fenomenológico para as narrativas,
um estudo sobre a historicidade humana, argumentando que as histórias contadas e ouvidas
em nosso cotidiano revelam um modo pessoal, único e poético de dar significados à nossa
vivência, bem como retoma o sentido de ações passadas.
Iniciamos com a leitura do artigo de Dutra (2002) que apresenta a narrativa como uma
técnica de pesquisa para o pesquisador em fenomenologia. Em seguida, estudamos alguns
capítulos da dissertação de mestrado de Gawendo (2001), ressaltando as histórias como um
modo de conhecer e refletir sobre o humano. Realizamos também a leitura do texto O
Narrador, de Walter Benjamin (1994) que enfatiza a importância da narrativa e suas
transformações na sociedade contemporânea e, por último, a leitura do livro Histórias que
curam, de Rachel Renem (1998), médica e terapeuta norte-americana que relata diversas
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Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
histórias de atendimentos a pacientes com doenças crônicas e o modo como o uso da palavra
terapêutica se tornava curativo.
Nessa experiência também se observou a dificuldade dos alunos para trabalharem com
a linguagem, mas, diferentemente dos alunos do terceiro semestre, já reconheciam o valor da
palavra e da escuta. Penso que isso pode ser por já estarem no terceiro ano do curso, mas
também por haver, nas turmas daquele semestre, alunos que conhecem e apreciam mais a
fenomenologia, ou seja, que já estão mais familiarizados com esse pensamento e com suas
proposições. Nos Estágios I, os alunos se arriscam mais em cursar um estágio em uma
abordagem com a qual não se identificam. Depois de terem passado pela experiência dos
estágios e perceberem o grau de dedicação necessário, não procuram mais realizar um estágio
com o qual não tenham afinidade.
O compartilhar de experiências relatadas pelos alunos, e principalmente as leituras do
livro Histórias que curam, deu a esse estágio um caráter de intimidade, uma vez que as aulas
eram permeadas de relatos emocionados, de histórias relembradas e, ao longo do estágio, os
alunos desenvolveram uma postura de respeito e atenção à escuta das narrativas dos outros.
Cumpre realçar que foram freqüentes os depoimentos dos alunos de que se tornaram mais
tolerantes, respeitosos, atentos e sensíveis às histórias dos outros e que perceberam que as
narrativas podiam oferecer a quem as conta ou as escuta, uma multiplicidade de sentido e
possibilidades.
É por essas vivências nos estágios, nas quais os alunos percebem mais explicitamente
a proximidade do método fenomenológico com os aspectos da vida cotidiana, como um
conhecimento contextualizado e inserido no cotidiano, que a fenomenologia se mostra como
“retorno às coisas mesmas”.
No segundo semestre de 2006, a princípio, os professores iam dar continuidade aos
projetos iniciados. Contudo, foi nessa ocasião que o estágio deixou de ser uma disciplina
anual
11
. Por isso, os alunos não precisavam manter-se nos estágios em que estavam, mas
podiam escolher ir para outro grupo ou não, isto é, se o professor do estágio anterior estivesse
alocado novamente em sua turma. Eu mesma não fui mantida em algumas das salas em que
havia iniciado o estágio no semestre anterior. Portanto, em meus grupos do Estágio Básico II
e IV, havia alunos que tinham realizado o estágio anterior comigo ou com outros professores
11
Foi neste período em que ocorreu a troca de coordenação do curso de Psicologia e a orientação para os
Estágios Básicos serem mais voltados para o desenvolvimento de práticas psicológicas científicas, tornou-se
explícita, bem como a exigência de produtos, tais como manuais ou cartilhas, em cada estágio.
24
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
em outra abordagem. Isso significou ter que retomar princípios e noções anteriormente
ensinados, em muitos momentos.
No Estágio Básico II, mantendo a temática iniciada, porém não mais uma
continuidade, propus uma fenomenologia das histórias de cinco obras escritas para crianças
por Clarice Lispector (1999): O mistério do coelho pensante, A mulher que matou os peixes, A
vida íntima de Laura, Quase de verdade e Como nasceram as estrelas: doze lendas
brasileiras. Os alunos entraram em contato com um universo cultural (as histórias escritas
para crianças) a partir de uma renomada escritora brasileira. Suas histórias se centram em
temas e conflitos da existência humana, como a questão de nossa origem, a morte, o perdão, a
inveja, a amizade, dentre muitos outros aspectos afetivos relevantes para a Psicologia
Fenomenológica. As histórias foram lidas e discutidas em sala de aula e, como produto final
do estágio, os alunos organizaram-se em dupla e escolheram um dos contos para redigir uma
espécie de “convite” a pais ou educadores, com a finalidade de instigá-los a “ler com o
coração” as referidas histórias com as crianças. Construímos com base em todos os textos
elaborados pelos alunos, um pequeno material que procurava sensibilizar o leitor a perceber
na narrativa a possibilidade de iniciar uma conversa com a criança sobre “coelhos, cachorros,
peixes ou árvores encantadas”, reaprendendo a ler nas histórias a linguagem imaginativa,
própria da infância.
Tal experiência me propiciou observar a descoberta e o encantamento dos alunos pelas
histórias. Praticamente todos os alunos desconheciam a escritora, pois nunca haviam lido seus
contos. Foi evidente a ampliação do repertório cultural deles, porquanto muitos adquiriram
todas as obras estudadas, algo raro de ser feito pelos alunos, deram-nas de presente para os
filhos ou sobrinhos e lamentavam por não terem tido a oportunidade, quando crianças, de
conhecerem tais histórias. O aspecto mais difícil de ser alcançado, sem dúvida, foi a
realização de uma pequena hermenêutica das histórias. Avalio que a maior riqueza desse
estágio para o aluno foi descobrir a riqueza da linguagem poética, o valor da imaginação, das
narrativas, além das possibilidades de reflexão que uma história pode conter.
Ainda no mesmo semestre, mas para os alunos de Estágio Básico IV, do sexto
semestre, na perspectiva iniciada do Estágio Básico III, propus outro modo de trabalhar com a
narrativa: o relato autobiográfico, cuja construção se deu a partir da elaboração de um
memorial acadêmico sobre o aprendizado de fenomenologia no curso de Psicologia. O aluno
entrou em contato com a memória e o conhecimento da própria história como aspectos
importantes do seu processo de aprendizado e formação e, conseqüentemente, em sua prática
profissional. Saber refletir sobre uma história vivida, buscar desvelar novos significados,
25
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
aprender a ouvir e conhecer a si mesmo são tarefas essenciais do psicólogo fenomenólogo.
Continuar a ensinar a importância das narrativas como modo de partilhar ou conhecer
aspectos da existência humana foi objetivo desse estágio.
Centramo-nos na narrativa comum a todos os participantes do grupo: a autobiografia
do processo vivido pelos alunos nos primeiros dois anos do curso, no estudo de
Fenomenologia. A elaboração de um memorial construído pelo aluno relatando
detalhadamente seu processo de aprendizado em Fenomenologia no curso de Psicologia
inseriu-o em um importante aspecto da vida acadêmica, além de contribuir para o registro
histórico da biografia acadêmica do seu aprendizado na instituição.
Vale ressaltar como foi interessante ouvir os relatos dos alunos que, ao realizarem o
levantamento de todo o material utilizado nos cursos, reliam espontaneamente textos dos
semestres anteriores e se surpreendiam com as mudanças no modo como os compreendiam. O
registro e o compartilhar da memória entre os alunos dos grupos propiciaram o desvelamento
de novos significados sobre o ensino e aprendizado de Fenomenologia que, no momento em
que foram vivenciados, passaram despercebidos.
No final do semestre, os alunos transmitiram essa experiência em uma apresentação
para os alunos iniciantes em Fenomenologia (alunos do primeiro ano do curso), que viviam
muitas das dificuldades por eles relatadas. Procuravam fazer com que os alunos se
identificassem com suas dificuldades e também com seus relatos de que as haviam superado.
Propunham, ainda, que os alunos reconhecessem a complexidade desse modo de pensar não
como um impedimento, mas como algo inerente ao modo de compreender o humano, além de
ressaltarem a importância do tempo, da dedicação e da paciência, como elementos comuns
levantados nas experiências vividas pelos alunos no aprendizado de Fenomenologia.
Considero que o maior aprendizado dos alunos nesse projeto foi a valorização da
narrativa, o enriquecimento da linguagem e o início de um modo próprio de narrar a
experiência. A reflexão realizada para a construção do memorial sobre o seu próprio modo de
aprender e as experiências compartilhadas entre eles também enriqueceram a relação do aluno
com o conhecimento, pois lhes permitiram aprender sobre seu modo de apreender.
Em 2007, propus para o Estágio Básico I um estágio que tematizou o amor e seus
diversos modos de se revelar nas relações com o outro. Apoiando-se na leitura do livro O
amor segundo os filósofos, de Schoepflin (2004), os alunos conheceram o pensamento sobre o
amor de Edith Stein, Sartre, Buber e Maritain. Transitamos por concepções que iam desde
uma visão divina para o amor, um olhar que se aproxima da visão romântica de um amor
eterno, até o olhar de que o amor não pode existir, pela inerente contradição entre amor e
26
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
liberdade. Busquei alcançar com os alunos uma ampliação da rede de significados para o
fenômeno amoroso nas relações humanas. Além disso, propus a observação de situações
cotidianas relacionadas ao tema e refletimos sobre diferentes expressões da cultura que tem o
amor como assunto: filmes, música popular brasileira e trechos da Bíblia. Esses materiais
foram escolhidos visando ampliar o repertório cultural do aluno, bem como proporcionar-lhes
uma visão crítica sobre aqueles que lhes eram mais familiares. A religiosidade é fundamental
para esses alunos e se estende para diversos aspectos da vida, por isso, a concepção divina de
amor precisou ser tematizada.
Um aspecto que notei foi a rígida concepção prévia sobre o amor que os alunos
apresentavam, e a dificuldade em suspenderem esse olhar para que pudessem conhecer outros.
Concebiam o amor como um sentimento permeado de idealizações e romantismos que não
podia ser observado nas situações cotidianas, porém podiam ser verificados em alguns filmes,
novelas e comerciais da “família Doriana”
12
. Além disso, as crenças religiosas se misturavam
às concepções e expectativas em torno da temática. O amor divino, incondicional e eterno, tal
como encontrado na Bíblia (I Corínthios, 13) era esperado e transposto para as demais
relações amorosas. Muitos alunos tinham dificuldade para aceitar questionamentos que se
contrapunham às suas crenças e foi visível a ansiedade gerada ao verem muitas delas
questionadas.
As leituras eram consideradas muito difíceis, mas aos poucos, com os estudos, as
observações e relatos de situações cotidianas, que não deveriam ser confundidos com
experiências pessoais, embora muitas vezes ocorresse, percebi que alguns alunos tinham
compreendido a diversidade dos modos de amar. Passaram a aceitar melhor a idéia de que o
modo como as pessoas amam ou se sentem amadas é muito diferentes de uma pessoa para a
outra e a serem mais tolerantes quando a “verdade” do outro difere da sua. Assim, notei que
ampliaram sua rede de significações a respeito da temática estudada, tornaram-se mais abertos
e menos preconceituosos em relação a esse fenômeno. Alguns dos alunos puderam se
apropriar da importância da reflexão filosófica para uma ação psicológica.
Foi também nesse mesmo semestre que propus pela primeira vez o projeto das cartas
para os alunos do Estágio Básico III, experiência que detalharei no capítulo seguinte e sobre a
qual me detive para pensar nas semelhanças e diferenças desse com os demais projetos.
12
Comercial que ficou famoso por apresentar uma família extremamente feliz tomando um requintado café da
manhã, sem pressa ou qualquer preocupação. Este comercial deu origem à expressão “família Doriana” para se
referir a uma família imaginada e perfeita.
27
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
No segundo semestre de 2007, para o Estágio Básico II, apresentei a proposta de
realizar uma fenomenologia da criança, em que buscamos refletir sobre seu modo de ser e as
relações que ela estabelece com o mundo. Os alunos foram introduzidos no olhar
fenomenológico da infância pela tese de doutorado de Marina Marcondes Machado (2007)
que apresenta, em uma linguagem mais acessível, o pensamento de Merleau-Ponty
fundamentado nos seus Cursos na Sorbonne, obra póstuma do autor, publicada pela editora
Papirus (1990a e 1990b). Além disso, visando ampliar as referências culturais dos alunos e
aproximá-los do modo de ser da criança, propus a discussão de filmes e a leitura de histórias
escritas para crianças. Os filmes a que assistimos foram “Liam” e “Labirinto do Fauno”, os
quais apresentam sob o ponto de vista da criança o seu sofrimento e angústias no período da
guerra e a maneira como elas compreendem a realidade. Duas obras da Clarice Lispector
também foram trabalhadas: O mistério do coelho pensante (1976) e Como nasceram as
estrelas: Doze lendas brasileiras (2000).Com a leitura dessas obras, os alunos entraram em
contato com a linguagem imaginativa, própria do pensamento das crianças.
Os alunos tinham que observar cenas do cotidiano vividas pela criança. As situações
observadas se centravam na compreensão das relações existenciais da criança com o mundo,
com o outro, com o tempo, com o espaço e com a linguagem: assim buscavam correlacionar
os textos lidos às situações observadas. Alcançar esse modo de olhar se mostrou uma tarefa
difícil para os alunos que não conseguiam “olhar as crianças com os olhos”, pois estavam
permeados de teorias e conhecimentos prévios acerca da infância e de suas fases.
Freqüentemente, nomeavam ou rotulavam muitas expressões da criança, tomando-as como
“naturais”, óbvias, típicas da faixa etária, ou transpondo significações dadas pelos adultos,
sendo difícil entenderem o significado de um olhar para cada criança como uma pessoalidade,
isto é, como um ser único.
Se, por um lado, os preconceitos se mostravam o tempo todo no exercício de observar
as crianças e nas leituras dos textos, por outro, esse também foi o aspecto mais interessante do
estágio, pois a desconstrução e surpresa do aluno diante de um outro modo de olhar foram
para mim gratificantes. Pessoalmente, por meu encantamento pela infância, foi
recompensador perceber que os alunos se tornavam mais sensíveis e permeáveis às crianças.
Algumas alunas eram mães ou educadoras de escolas e ONGs, já trabalhavam com crianças
ou pretendiam futuramente trabalhar e foi bonito ver o modo como repensaram sua atuação.
Aqui, talvez mais do que em qualquer outro estágio, os alunos chegaram impregnados por
teorias acerca da infância e ensinar-lhes outra postura, para que pudessem deixar que a criança
28
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
se revelasse por ela mesma e não mediante nossas expectativas e formulações conceituais foi
uma tarefa árdua.
Um importante instrumento utilizado em todas as propostas de estágio foi o uso do
“diário de bordo”, recurso fundamental para o pesquisador em fenomenologia. Trata-se de
uma caderneta em que o aluno anota todos os seus pensamentos, sentimentos, dúvidas e
angústias relacionadas ao tema pesquisado, além de observações cotidianas acerca do
fenômeno estudado. Por permitir “uma espécie de observação fenomenológica de si mesmo”,
e por traduzir “a experiência pré-reflexiva da pesquisa, é que podemos chamá-lo de
ferramenta fenomenológica” (Machado, 2002:261).
O uso do “diário” está em concordância com o modo de pensar que busca ser
antropológico, isto é, que procura familiarizar-se com o fenômeno estudado. Incentivava um
modo de observar que focasse o fenômeno estudado e não uma mera auto-observação, o que
não implica, de modo algum, em uma impessoalidade. Contudo, não posso deixar de
mencionar que poucos eram os alunos que efetivamente o realizavam. Penso que isto se deve,
principalmente, ao fato de não perceberem sua utilidade e significação, visto que não era
cobrado como tarefa que valesse diretamente uma nota, mas também por conta da dificuldade
em conseguirem refletir sobre si mesmos.
Um outro aspecto interessante é que somente nos estágios conseguimos avaliar o aluno
de um modo propriamente fenomenológico. Nas demais disciplinas, obrigatoriamente, a nota
do aluno corresponde à média de quatro avaliações que realiza, modo institucionalizado para
medir o “grau de qualificação geral”
13
do aluno. No estágio, temos a liberdade para avaliar o
aluno continuamente, de modo processual e não somente pelo seu produto final, mas por todo
o seu percurso e por seu desempenho em relação a si mesmo, isto é, do ponto de partida de
seu conhecimento no início do curso até onde chega.
É necessário também considerar o perfil do aluno que tenho acompanhado nesta
Universidade. São pessoas de camadas populares, quase todos cursaram escolas públicas,
quando muito, colégios particulares em que realizaram o supletivo. Muitos chegam à
faculdade após anos sem se dedicarem ao estudo formal e se esforçam para conciliar trabalho
e estudos. Sua escolaridade é precária e, muitas vezes, insuficiente para acompanhar o nível
de leituras exigidas no ensino superior. As dificuldades que apresentam para a leitura e escrita
são consideráveis. Muitos são os relatos de alunos que nunca haviam lido um único livro
antes de entrar na faculdade. A situação de vida da maior parte deles é extremamente
13
O conceito refere-se ao termo institucional referente ao desempenho dos alunos a cada semestre.
29
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
exaustiva, portanto, não lhes “sobra tempo” para estudar. Por outro lado, vêem-se a decepção
e o sofrimento do aluno ao descobrir que não consegue corresponder às exigências
estabelecidas. Não posso também deixar de mencionar a desilusão que nós, professores,
vivemos, por sermos aqueles que revelamos tais aspectos e porque, freqüentemente, não é
possível alcançarmos o aprendizado que almejamos.
De maneira geral, ao longo de todas essas experiências no ensino de Psicologia
Fenomenológica nos estágios, percebo que ocorreu nos alunos maior familiarização com o
modo fenomenológico de pensar. A disciplina, que para muitos alunos, antes era vista como
algo muito difícil e “excêntrico”, tornou-se mais concreta e compreensível ao longo das
experiências de estágio. Certamente, o fato de muitos alunos nunca terem tido contato com o
pensamento filosófico é algo que dificulta a familiarização com os termos, autores e
princípios. Além disso, o perfil do aluno da instituição, já mencionado, compromete seu
desempenho em muitas disciplinas. Todavia, particularmente com a Fenomenologia, há um
incômodo maior, talvez pela especificidade de seu modo de pensar que propõe uma crítica ao
pensamento da ciência cartesiana. Percebemos que os alunos chegam à faculdade com um
olhar impregnado por aquela concepção de ciência que busca encontrar na Psicologia a
“solução” para todos os conflitos humanos.
Percepção semelhante encontramos na análise apresentada por Luciana Szymanski
Gomes (2006) sobre suas experiências vividas no ensino de Psicologia Fenomenológica na
mesma instituição:
Via de regra, esse momento inicial [referindo-se ao ensino de fenomenologia I] é
bastante desconfortável; no final dessa etapa é muito comum ouvir dos alunos que
eles “já sabem como fazer” intervenções psicológicas a partir de todos os olhares,
exceto o da fenomenologia (...) Evidentemente, no final do primeiro semestre ainda
se sabe muito pouco de qualquer abordagem, e ainda não se sabe “fazer
intervenções psicológicas”, mas é interessante notar o desconforto que aparece no
que diz respeito mais especificamente à disciplina “Fenomenologia”. Tal sensação
só vai se amenizar mais adiante, o que requer do professor e do aluno uma certa
paciência com o processo de ensino e aprendizado. (2006, p. 87- 88)
Não raramente vivi manifestações de descobertas e de dúvidas por parte dos alunos:
vi, muitas vezes, estampada em seus rostos uma expressão de iluminação (quando
se sentiam intrigados) e também de desespero (“o que é isso, a fenomenologia?”,
“por que aprender isso aqui?”), (...) Não raramente esse desespero se transformava
em agressividade. Mas aí é que se aprende o exercício de tolerar o tempo do outro,
tolerar a impermeabilidade de alguns, a nossa própria dificuldade de comunicação e
nossas próprias limitações. É no exercício do ensino que se aprende realmente a
enfrentar a difícil tarefa de aproximar o outro desse modo de pensar que, embora tão
próximo às coisas, é percebido não raramente como difícil, árido, distante da
psicologia, do conhecimento cotidiano e por demais “filosófico”(idem, p.171).
30
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
E ainda, nos relatos sobre suas experiências vividas nos Estágios Básicos de Marina
Marcondes Machado (2006) e Luciana Szymanski Gomes (2006) na mesma instituição:
Mas, com perseverança e boa vontade, muitos alunos conseguem resultados
interessantes. No Estágio Básico sobre o desenho [da criança], por exemplo, os
alunos descrevem seu processo de conhecimento nos relatórios semestrais, de modo
a exercitar textos de ‘relatos de experiência’. Lembram de suas infâncias, falam do
ato de desenhar, observam crianças ou situações cotidianas, colhem desenhos em
parques públicos, e aprofundam-se na noção fenomenológica de ‘espacialidade’
(Machado, 2006, p.174).
Quando o aluno permite uma abertura para o desconhecido, como ocorreu com
nossos entrevistados (dentre muitos outros), imediatamente torna-se crítico e pensa
cautelosamente sobre as questões humanas. (...) o pensamento fenomenológico
investe nesse modo de ser psicólogo. Investe na tolerância, no exercício de suportar
a diferença, a fragilidade, a interrogação, tal como coloca uma das alunas
entrevistadas, quando diz que aprendeu a esperar e, para falar de sua espera, lança
mão da imagem da água turva cuja areia lentamente se assenta na base, no seu
tempo (...) (Gomes, 2006, p.170).
Portanto, é também nos estágios que percebemos um “salto” no aprendizado do aluno.
É nessa disciplina que se tem a possibilidade de aprender a realizar fichamentos, aprimorar a
capacidade de leitura e escrita, praticar interpretação de textos, ampliar a rede de
significações, conhecer ou ampliar as referências culturais. E até mesmo a aprender a olhar
em termos de perspectiva, isto é, a perceber que uma interpretação é sempre um ponto de
vista possível. Penso que desenvolver tais habilidades é um grande ganho para os alunos,
sejam eles futuros psicólogos fenomenólogos ou não.
Entretanto, nessas experiências de estágios relatadas, o pedido dos alunos por uma
atuação fenomenológica ainda se mantinha; continuavam a relatar dificuldade para
conseguirem perceber a “transposição” desses princípios para uma ação psicológica.
Aqui vale distinguir que a dificuldade do aluno em perceber a “transposição” desse
pensamento para uma atuação da Psicologia Fenomenológica é diferente da ânsia por
conhecerem a “utilidade” desse método. Os Estágios Básicos citados pareciam atingir a
necessidade do aluno de encontrar uma “serventia” para o pensamento fenomenológico;
contudo não supriam os pedidos por ações, isto é, não saciavam o desejo do aluno de intervir,
de aproximarem-se da prática do psicólogo, tal como idealizam, de “ajudar o outro”. Além
disso, nem um dos estágios anteriores à proposta das cartas atendia às exigências
institucionais de um produto final.
O método fenomenológico é filosófico, descritivo e reflexivo e não separa pensamento
de prática, ação de reflexão, portanto, a rigor, para esse modo de pensar, ensinar sobre uma
31
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
temática já é atuar sobre o mundo. Mas, em certo sentido, o projeto de estágio das cartas sobre
educação se diferencia dos demais por oferecer uma ação e contato com uma experiência
“real”, um conflito “verdadeiro” exposto por alguém. Quando apresentei pela primeira vez a
proposta de uma orientação psicológica para educadores por meio de cartas, ela foi, desde o
início, muito bem recebida, tanto pelos alunos quanto pela instituição, que viam nesse estágio
uma “atuação prática”.
Na construção dessa metodologia também se revelaram minha transformação e
aprendizado como professora, pois aprendi a escutar quem era o meu aluno e onde eu estava
ensinando.
1.5 A criação de uma ferramenta metodológica para o ensino de Fenomenologia nos
Estágios Básicos
Perdurou em mim por muito tempo a questão: o que poderia ser oferecido a alunos do
terceiro ano como “prática psicológica” fundamentada no olhar da Psicologia
Fenomenológica? Vale acrescentar que aquilo que a instituição compreendia por prática
psicológica era algo muito mais próximo à realização de atendimentos ou psicodiagnósticos.
Visitas a instituições, que poderiam servir a discussões e instrumentalizações de uma análise
crítica da realidade, geralmente não são permitidas e, quando o são, devem ter como
“resultado” a proposta de uma intervenção.
Alunos do terceiro ano não estão habilitados para realizar atendimentos psicológicos.
Por isso, diversos professores lhes oferecem a possibilidade de observarem seus atendimentos
psicoterapêuticos, para que os alunos possam ser iniciados nesta prática, com base em um
“bom modelo”, para que conheçam uma experiência prática nesta teoria e para “perceberem a
relação entre a teoria e a prática”. Além disso, com a finalidade de, aos poucos, em algumas
dessas linhas, poderem ir se incluindo nos atendimentos. As observações são realizadas pelo
espelho
14
ou dentro da própria sala, a fim de que, dependendo da orientação do professor, se
constituam como “observadores-participantes”. Muitos professores, de diferentes teorias
psicológicas, oferecem aos alunos nos estágios a prática de aplicação de testes, treino de
entrevistas ou realização de diagnósticos.
O método fenomenológico, conforme já explicitado, não é um pensamento que possa
ser ensinado ao aluno de forma programada, manipulado ou controlado pelo professor. Antes,
14
O espelho unidirecional é uma técnica freqüentemente utilizada em clínicas-escola, pois permite aos alunos
assistirem um atendimento sem serem vistos pelos pacientes que nada vêem além de um espelho, embora na
maioria das vezes saibam que ali há estudantes.
32
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
é uma atitude vivida no cotidiano das aulas, nos exercícios feitos nas ruas, no modo como o
aluno exercita a escuta, em seu modo de olhar o outro, de se comunicar e compartilhar suas
experiências de aprendizado. Uma atitude alicerçada pelo método fenomenológico, um
conjunto de princípios que orientam e fundamentam esse modo de conhecer.
Além do que, a Psicologia Fenomenológica não separa teoria de prática e nessa
postura, os fenômenos se revelam diante de uma reflexão filosófica. Portanto, não
corresponder às exigências institucionais não é fraqueza ou incapacidade, mas uma
impossibilidade inerente a essa atitude de abertura e disponibilidade diante da multiplicidade
de sentido dos fenômenos que se revelam. Uma postura explícita de oposição às explicações
técnicas, abstratas, conceituais e distantes da realidade vivida.
Entretanto, as exigências institucionais impuseram mudanças no nosso modo de
ensinar a Psicologia Fenomenológica e questionavam as contribuições de um saber mais
filosófico e reflexivo. Visto que se buscava eficácia e resultados, havia o pedido constante
pela produção de manuais ou cartilhas que demonstrassem o aprendizado dos alunos a cada
semestre para cada temática estudada.
Como eu poderia realizar um trabalho, fundamentado na Psicologia Fenomenológica,
que resultasse em um “produto”? Refletindo sobre esta questão e com base nas experiências
anteriores vividas nos estágios, é que criei a proposta de um estágio com cartas.
Se por um lado tais exigências resultaram na criação desse projeto, por outro,
perdemos muito da liberdade em nosso modo de comunicar, avaliar e ensinar uma atitude que
não pode ser programada como meta de chegada. Penso que o processo de ensino-
aprendizado passa pela espera, por um amadurecimento e por um tempo próprio em cada
aluno. Não condiz com o método fenomenológico uma posição que já pressuponha um
produto genérico – mesmo que a produção de cartas. Portanto, mesmo nessa ação, procurei
manter um movimento de resistência ao pragmatismo, apesar de ele se mostrar “camuflado”
pela produção de cartas. A minha maior preocupação não era com a produção das cartas, mas
com o que poderia ser ensinado a partir e por meio delas. E, se ao final do processo, os alunos
estivessem aptos a respondê-las, seria excelente. Não desconsiderei em momento algum o
compromisso também com quem escrevia a carta, pois seriam respondidas; caso não
pudessem ser pelo aluno, seriam por mim. A idéia de proporcionar um espaço de diálogo
escrito entre educadores e estudantes de Psicologia pareceu-me uma proposta relevante e
necessária.
A proposta de ensino do pensamento fenomenológico a partir de cartas surgiu, após
três anos, como um “abre-te Sésamo” que veio responder às minhas constantes angústias e
33
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
interrogações, tanto as de não poder corresponder ao pragmatismo exigido pela instituição,
como a de expor o aluno, o paciente e, até a mim mesma, a uma situação de sofrimento
humano sem que pudéssemos oferecer o devido cuidado. A idéia surgiu da possibilidade de
lapidar no aluno um aspecto da condição humana e único recurso da Psicologia
Fenomenológica: a linguagem. Uma linguagem que procurasse ser comunicativa em seu
modo de dialogar, que buscasse criar, ao invés de repetir ou teorizar; aproximar e não afastar;
questionar, refletir, pensar e não apenas responder; iniciar, provocar e não de encerrar;
compreender ao invés de explicar.
Além disso, essa proposta me permitia ensinar e trabalhar com a linguagem em forma
de escrita e, assim, aperfeiçoar uma habilidade extremamente necessária na prática do
psicólogo e que se mostrava no aluno de modo muito precário. Vi nessa oportunidade uma
maneira de resgatar uma forma de comunicação: as cartas - palavra escrita, registro que
permanece.
Nascia uma prática proveniente do incômodo e da possibilidade de transformar a
impotência em ação. Busca por subverter o mundo pela palavra, como sugere o poeta:
É preciso transver o mundo.
Isto seja:
Deus deu a forma. Os artistas desformam.
É preciso desformar o mundo:
Tirar da natureza as naturalidades.
Fazer cavalo verde, por exemplo.
Fazer noiva camponesa voar – como em
Chagall.
Agora é só puxar o alarme do silêncio que eu
saio por aí a desformar (...)
(Manuel de Barros, 2004)
1.6 Cartas como possibilidade
Esta tese vai narrar minha experiência no ensino do pensamento fenomenológico e
demonstrar o sentido da utilização de cartas para o ensino da Psicologia Fenomenológica.
Minha pergunta se centra nesta situação de aprendizado utilizada para o ensino deste modo de
olhar: as cartas. Isto é: quais as perspectivas para o ensino-aprendizado de Psicologia
Fenomenologia que este recurso revela?
34
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
Esta pergunta se desdobrou em outros questionamentos, como: Como pode facilitar,
ou não, o exercício da atitude fenomenológica diante das questões da infância e da educação?
É possível exercer o olhar fenomenológico através da escrita epistolar? Qual seria a diferença
entre este modo de “praticar” a Psicologia Fenomenológica e outras tantas formas de ensino já
propostas, inclusive por mim?
Portanto, minha metodologia de ensino utilizada para a formação do aluno é também
meu foco de análise nesta pesquisa, o que evidencia uma dupla investigação a ser realizada.
Para buscar responder a essas perguntas, procurei respaldo no método
fenomenológico. Mas, como alerta Moreira (2004), a complexidade que cerca o movimento
fenomenológico com suas variantes e ramificações faz com que a compreensão por
Fenomenologia seja muito imprecisa. O que há de mais característico na Fenomenologia é
que esse método se pauta em uma atitude que perpassa diferentes tendências, autores e obras.
Caracteriza-se por ser um modo de olhar que busca conhecer o fenômeno estudado sem
pressupostos, de modo descritivo e visando alcançar um conhecimento particular,
contextualizado e não generalizável. É nesta atitude que me coloco.
Busquei especial interlocução para compreender a linguagem no pensamento de
Merleau-Ponty (1999, 2000 e 2002). Dialoguei também com Walter Benjamin (1994a, 1994b
e 1995) que teceu críticas às descobertas tecnológicas do século XX, pelas transformações
que impuseram ao nosso modo de nos comunicar, e com Ciro Marcondes Filho (1998),
estudioso do impacto das novas tecnologias à subjetividade humana.
Para concretizar meu projeto, recorri à minha experiência de ensino de fenomenologia
por quatro anos e, especialmente, à minha experiência de um ano como supervisora de estágio
na implantação desse serviço de orientação por meio de cartas para pais e educadores. Para
me debruçar sobre tal experiência, selecionei algumas das cartas enviadas pelos pais e
algumas respostas realizadas pelos alunos. Além disso, utilizei os relatórios
15
semanais e
finais apresentados pelos alunos para conhecer a experiência de aprendizado deles “por eles
mesmos”, isto é, a partir dos registros que faziam nos relatórios, conforme os modelos e
exigências institucionais, busquei apreender o modo como viam e reconheciam a experiência
que estavam vivendo.
Uma importante discussão sobre educação e infância tornou-se necessária com os
alunos para que a proposta da escrita de cartas se concretizasse. Romper com uma educação
15
Esses relatórios fazem parte da exigência institucional do curso de Psicologia da instituição em que trabalho e,
somente após o término do estágio, para que não fosse feito especialmente para minha tese, é que solicitei aos
alunos o consentimento para o uso. Vale ressaltar que o modelo dos relatórios é padronizado para todos os
estágios.
35
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
prescritiva, com a crença em uma pedagogia explicativa e determinista para as questões da
infância foi um desafio. São constantes os pedidos dos alunos por uma Psicologia que saiba as
respostas e “fórmulas” para os problemas humanos e é nítida a decepção do aluno diante de
uma concepção de educação que admite a imprevisibilidade e mistérios da condição humana.
O que buscam na educação é a transmissão de conhecimentos técnicos, conceitos e
informações que possam assegurar interesses particulares. Educação de qualidade é tida como
aquela que pode preparar para uma profissão e garantir a ascensão econômica. Ensinar, nesse
sentido, para o aluno, seria a habilidade do educador de inserir suas técnicas e alcançar os
resultados esperados.
Em contraposição a essas concepções, procurei discutir a proposta de educação
apoiando-me em importantes autores contemporâneos. Foram eles: Hannah Arendt (1999),
Guimarães Lopes (1993), Maria Aparecida Bicudo (2004), Gustavo Cirigliano (1972) e Paulo
Freire (2000, 2002). Muitos deles foram referências ensinadas na disciplina de
“Fenomenologia IV”, entretanto, foi necessário retomá-los e discuti-los mais rigorosamente.
Hannah Arendt é considerada uma importante intelectual do mundo contemporâneo,
apesar de não ter sido reconhecida enquanto viva. Em suas obras buscou entendimento para
diversas problemáticas do mundo contemporâneo, inclusive para a educação. Hoje essa
situação se alterou radicalmente e “pode-se dizer que ela está se convertendo em um
‘clássico’ do mundo contemporâneo, posto que sua obra, (....) provoca constantes leituras e
releituras e nos oferece categorias de que nos valemos para compreender a realidade que nos
cerca” (Lafer, 2000, p.122). A autora, aluna de Jaspers e Heidegger, complementa Lafer
(2000), calcou sua formação filosófica no complexo fenomenologia e existencialismo. Sobre
educação, escreveu um único artigo (Sobre a crise da Educação, In: Entre o Passado e o
Futuro) que, no entanto, tem se tornado uma crescente referência. Para Carvalho, tal êxito
conquistado, pode ser entendido pela perspectiva adotada pela autora que por ser “exterior ao
campo crescentemente tecnicizado da pedagogia, volta-se para a compreensão das condições
que imprimiam um significado público para a educação” (2007, p.17, grifos do autor). Ao
pensar a crise da educação moderna como um valor privado e a conseqüente desvalorização
do mundo público, Arendt (2001) propõe que se resgate a essência do educar como um modo
de iniciar os novos num mundo comum e público de heranças simbólicas e materiais, um
processo de iniciação das crianças e jovens que zele pela permanência de uma herança pública
e sua renovação pelos que dela se apoderam. Para a autora, o que se tem feito com a educação
é utilizá-la como forma de coerção sem o uso da força em prol de interesses particulares, o
que está muito longe de ser a essência do educar.
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Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
Sua crítica à concepção tecnicista da educação moderna e sua valorização pelas
narrativas e histórias (ela mesma foi uma storyteller/contadora de histórias de seu tempo)
inspirou todo este trabalho. A autora, no mesmo artigo citado, relembra que a perda da
tradição, o fio que nos guia com segurança ao passado, nos priva da dimensão de
profundidade do pensamento, a qual não pode ser alcançada sem a recordação. Nela também
busquei fundamento para um outro modo de olhar as questões da infância que se apóiam no
eixo: memória, imaginação e narrativa.
Para ensinar ao aluno um olhar crítico sobre a educação, propus a leitura de um texto
do professor português Guimarães Lopes (1993, p.57) que busca construir, numa perspectiva
da antropologia fenomenológica e existencial, uma aproximação da fenomenologia à clínica
psicopedagógica. Para ele, educar é assunto humano, possibilidade para o espanto e para a
espera (1993, p.58). A aprendizagem nunca é mecânica, ao contrário, deve ser intencional,
pois aprender é relacionar-se, incluir-se na situação. Ressalta ainda que a educação não se
limita a um tempo, espaço, ou a um período de maturação biológica, ao contrário, é parte do
modo de se relacionar do humano.
Gustavo Cirigliano (1972), professor de Filosofia da Educação da Universidade de
Buenos Aires, realiza uma análise das teorias da educação utilizando o método
fenomenológico, a fim de propor uma filosofia da educação. Seu questionamento parte das
referidas teorias e do quanto elas se distanciaram do contexto social do processo de educar.
Sua obra também me serviu de apoio, porém, por sua complexidade não foi utilizada
diretamente com os alunos.
Paulo Freire (2001), baseando-se em suas experiências educativas com trabalhadores
rurais do Rio Grande do Norte, propôs a educação como uma prática libertadora, um modo de
um povo oprimido recuperar sua dignidade, humanidade e transformar sua realidade. Tal idéia
também foi pensada com os alunos no sentido de questionar as concepções prévias e sugerir
uma nova postura.
Maria Aparecida Bicudo (1999 e 2003) é estudiosa de Husserl e tem se dedicado a
pensar a educação e a formação de educadores por meio do olhar fenomenológico. Coelho
(1999), em um dos livros organizados pela autora, propõe uma reflexão sobre as contribuições
da Fenomenologia para a educação e afirma que os princípios do próprio método já são por si
sós muito “úteis” à educação:
A fenomenologia nos educa para a contínua insatisfação com as conclusões
alcançadas, a busca incessante da verdade, a preocupação quase obsessiva com o
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Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
rigor e a evidência, a fidelidade ao que no texto está dito. Sabendo de antemão que
há sempre mais a revelar e a dizer, a compreensão se retoma a cada instante, sem
jamais se dar por acabada, Não dá tréguas à superficialidade e banalização do poder,
à falta de rigor, aos “pré-conceitos”, à acomodação e à preguiça mental sem cair no
dogmatismo (1999, p.88).
Ainda segundo o autor, os sistemas educativos, em geral, mantêm muitas de suas
práticas “ingênuas e absurdas”, cristalizadas por não serem questionadas e repensadas, tarefa
a que se propõe a fenomenologia: questionar, pensar, criar.
Em relação ao olhar para a infância, os alunos já chegavam ao estágio com uma
concepção desenvolvimentista da criança que são as teorias que lhes são ensinadas no curso.
É muito forte a crença em uma natureza infantil prévia, em modos típicos da identidade
infantil e de determinadas etapas. Para repensar tais aspectos, apresentei a desconstrução
sobre a infância proposta por Merleau-Ponty (1990a e 1990b) para a Psicologia clássica, em
seus Cursos na Sorbonne de 1949 a 1952. O livro do autor, editado em dois volumes pela
editora Papirus, é o resultado das aulas do filósofo de Psicologia da criança e da pedagogia.
Os resumos foram realizados pelos ouvintes e aprovados pelo próprio autor.
Nesse sentido, também utilizei para leitura em sala de aula com os alunos a obra de
Marina Marcondes Machado (2004 e 2007) que, conforme já mencionei, apresenta, a partir
das idéias de Merleau-Ponty, uma fenomenologia da pequena infância.
Em busca de ampliar as referências culturais do aluno, necessárias para o
enriquecimento da linguagem, utilizei recorrentemente a literatura, a poesia, as histórias
escritas para crianças e o cinema. Acredito também que mediante a linguagem poética posso
aproximá-los dos modos de ser da criança e de um pensamento que busca ser antropológico,
isto é, que procure se familiarizar com o fenômeno estudado. Desse modo, a literatura poética
tinha e tem o importante papel de sensibilizar e mobilizar o aluno para a diversidade de
significados que as palavras podem expressar e, conseqüentemente aprimorar-lhes o uso.
Privilegiei uma formação humanista ao aluno muito mais do que tecnicista ou
conteudística, e utilizando a poesia, a música, o cinema, entre outras expressões artísticas,
procurava apresentar-lhe um outro modo de pensar questões humanas. Assim, busquei uma
metodologia que o ensinasse a “desamadurecer”, termo que tomo emprestado do filósofo
Bachelard (1996): uma proposta para que o aluno abrisse seu olhar para enxergar o invisível
da imaginação criadora da criança. Caminho que se assemelha ao estilo do poeta Manuel de
Barros que, em sua poética da reinvenção, visa em sua obra “chegar ao criançamento das
palavras” (2001, p.31). A criação de um modo próprio que fosse se constituindo em cada
aluno, fundamentado na memória, imaginação e narrativa. Uma postura que está de acordo
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Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
com o método fenomenológico e que deve ser continuamente buscada, desenvolvida e
lapidada.
Nisso se constituiu o desafio que será aqui apresentado. A ousadia do projeto levou-
me a rir e a chorar muitas vezes de mim mesma e da difícil tarefa a que havia me proposto. Se
nesse resultado houver algum mérito, deve-se à capacidade do aluno de aprender e ensinar, de
se transformar e me transformar.
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Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
CAPÍTULO 2
Cartas: um modo de comunicar
Não é nada, ou quase nada, e, contudo um pedaço
do mundo e da alma, transmitido como que por
milagre, tão leve na mão, tão profundo no coração,
tão próximo na grande distância.
Comte-Sponville
Que é uma carta? Para o autor Comte-Sponville (1997), uma carta é esse paradoxo da
comunicação: ser “nada” e, ao mesmo tempo, um “pedaço do mundo e da alma”. O
substantivo ‘carta’ vem do grego chártes, pelo latim charta, que significa papel que se fazia
da entrecasca do junco – o papiro. Depois, no sentido figurado, passou a designar o que se
encontrava escrito no papiro ou pergaminho, significando o escrito enviado por uma pessoa à
outra, no mesmo lugar ou em lugares diferentes (Santos, 1994, p. 22).
Compreenderemos aqui como carta toda comunicação que seja escrita por alguém e
endereçada a um outro, todo pedaço de papel que se transforma em recado, informação,
pedido, “prova de amor”, amizade, orientação, enfim, um modo pessoal de se comunicar.
Neste doutoramento, as cartas estudadas foram aquelas deixadas na urna, referida
anteriormente, endereçadas ao “Correio Psicoeducativo”.
Porque o uso das cartas se constitui o núcleo deste trabalho, ou como situação de
aprendizado e recurso utilizado com o aluno para o ensino de Psicologia Fenomenológica, ou
ainda como meio de comunicação entre os alunos e os pais/educadores, considerei
fundamental realizar alguns estudos sobre epistolografia de modo a ampliar o conhecimento
sobre os usos e particularidades desse modo de comunicar. Além disso, comunicar-se por
cartas não é algo próprio da cultura desses alunos envolvidos no estágio, portanto, pareceu-me
fundamental familiarizá-los com outras cartas, mesmo que boa parte delas fosse literária.
2.1 Alquimia das cartas
Diversos autores já buscaram compreender o que é a escrita via cartas, como e por que
ela ocorre. Os primeiros teóricos da epistolografia de que se tem notícia datam do século I
a.C. ao século IV d.C. (Bolonha, 2005), a saber, Demétrio, Cícero, Sêneca, dentre outros.
Alguns tratados expunham regras teóricas sobra a epistolografia, outros expunham regras
sobre a estrutura da cara, estilo da escrita ou traziam modelos para saudações ou modos de
utilizar as palavras visando influenciar, com eficácia, o destinatário.
40
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
Segundo Galvão (1998), a despeito do estatuto da carta, ela pode ter: “1) elementos
preciosos para a reconstituição de percursos de vida; 2) Fontes de idéias e de teorias não
comprometidas pela forma estética; 3) em certos casos (...) um estatuto exclusivo devido à
qualidade impecável da escrita” (1998, p.156).
A escrita epistolar é uma das formas mais antigas de comunicação interpessoal. De
acordo com Santos:
Uma carta sempre foi um objeto de respeito, quase diria: um objeto sagrado. Desde
os romanos conhecem-se textos que resguardam o seu segredo, a sua
inviolabilidade. Ela sempre foi acompanhada de um mistério quase religioso:
quando se percebe que determinado documento é uma carta alheia, evitamos lê-lo;
quando alguém abre uma carta, discretamente nos afastamos. Sabemos que ela
contém algo de intimidade, grande ou pequena, mas sempre existe um lado que
devemos respeitar. O meio – também aqui – é a mensagem (1994, p. 23).
Uma missiva estabelece um diálogo entre destinatário e remetente. Os motivos que já
levaram as pessoas a escrever uma carta são muitos: para um prisioneiro, as cartas cumprem o
objetivo de abolir distâncias que, muitas vezes, não poderiam ser percorridas de outra forma.
As correspondências do Marquês de Sade na prisão com a esposa e amigos eram tão intensas
que acabavam por convocar fisicamente o leitor, buscando com eles cumplicidade. Entre 1777
e 1790, período em que esteve confinado nas celas solitárias das prisões, esse foi o seu único
modo de comunicação com o mundo (Moraes, 2000).
Durante muitos séculos a carta foi o único meio de dirigir-se aos ausentes,
(...) de levar o pensamento aonde o corpo não podia ir, aonde a voz não podia ir, e
talvez esse seja o mais belo presente que a escrita deu aos viventes: permitir-lhes
vencer o espaço, vencer a separação, sair da prisão do corpo, ao menos um pouco,
ao menos pela linguagem, por esses pequenos traços de tinta sobre o papel (Comte-
Sponville, 1997, p. 35).
Importantes filósofos, poetas e cientistas, como Darwin, Platão, Marx, Agostinho,
Freud, Mario de Andrade, entre outros, fizeram uso de cartas para transmitir ensinamentos,
compartilhar descobertas, disseminar informações e provocar a repercussão de suas idéias. As
correspondências sempre tiveram um importante papel histórico. No Brasil, no período de
colonização, por exemplo, as cartas que foram preservadas se tornaram evidência histórica de
um cenário que só podemos conhecer por meio delas, a exemplo do relato de Pero Vaz de
Caminha ao rei de Portugal a respeito das terras que havia encontrado.
Nesse mesmo sentido, são famosas as correspondências de Madame de Sévigné, cerca
de 1.155 cartas para sua filha, escritas semanalmente durante 23 anos, de 1671 a 1694, na
França; pela riqueza de descrições da época, são consideradas um clássico da literatura
francesa, servindo, inclusive, como fonte para manuais escolares. A escrita peculiar da autora
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Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
mistura fatos públicos com episódios da vida privada, reflexões a respeito da guerra e
demonstração de amor pela filha com quem buscou travar um diálogo intenso, mesmo estando
ausente (Amaral, 2000 e Galvão, 1998).
Segundo Moraes (1993), foi Gilberto Freire o primeiro no Brasil a descobrir, sob a
aparência “frívola e insignificante” do postal, importantes dados de nossa historiografia. O
sociólogo pernambucano percorria as feiras de Lisboa adquirindo exemplares que
contemplavam a época do esplendor da exploração da borracha no Norte do Brasil e que
continham ricas descrições dos portugueses aos familiares, quando aqueles buscavam riqueza
na Amazônia. Continua Moraes: historiadores com olhos mais aguçados podem “colocar
lentes de aumento sobre este material” e perceber que neles há mais do que a história
iconográfica, pois ali se fundem histórias de vida.
Tiago Miranda (2000), estudioso da epistolografia portuguesa do século XVII, explica
que naquele período as cartas eram o meio de comunicação entre os reis e seus vassalos. Com
o tempo, iniciaram-se “fórmulas expressivas” detalhadas para a escrita oficial. Tal aspecto
não só legitimou a coroa, como afastou as camadas populares dos órgãos do poder central. Ao
longo desse século, a corte exacerbou o controle sobre gestos e comportamento, que tinha
como objetivo recordar os lugares ocupados pelos indivíduos. A escrita foi uma prática em
que se estabeleceu um conjunto de regras para os cabeçalhos, frases de despedidas, e “em
vários países, até a maneira de segurar a pluma, de forma a, com determinados gestos, obter
os efeitos mais interessantes, era ensinada nas escolas através de tratados, e cultivada com
absoluta propriedade pelos chamados ‘mestres escrivães’ ” (Miranda, 2000, p.44).
Os registros mais antigos da epistolografia ocidental se devem a um pequeno grupo de
filósofos, dentre eles, Epicuro, Isócrates e Platão. Muitos dos textos que ora conhecemos
foram originalmente “cartas” destinadas ao ensino, mas por abordarem temas de interesse
para toda a comunidade, inauguravam a prática das “cartas abertas”. É o caso do belíssimo
texto de Epicuro, Carta sobre a felicidade, dirigido a Meneceu.
Além das “cartas abertas”, muitas outras cartas foram escritas visando ao caráter
reservado e de intimidade que se pode estabelecer por meio de uma correspondência. As
cartas de Platão endereçadas aos amigos, por exemplo, evidenciam aspectos relevantes do
ponto de vista da história política e filosófica.
Nesse sentido, podemos citar também as correspondências entre Hannah Arendt e sua
amiga Mary McCarthy, que revelam a condição feminina de duas renomadas escritoras do
século XX e permitem conhecer um pouco mais de uma pessoa tão excepcional e fascinante
como Arendt (Lafer, 2000).
42
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
Muitos outros exemplos de cartas que deixaram transparecer a intimidade do autor
poderiam ser citados, como as de Guimarães Rosa (2003) com sua neta, as de Mário de
Andrade com Henriqueta Lisboa (Souza, 2000) ou as cartas de amor de Fernando Pessoa. São
publicações que, além de revelarem aspectos pessoais dos autores, mostram a época em que
viveram, suas idéias e compartilham um mundo de sentimentos e histórias.
Sob essa perspectiva, merecem destaque as correspondências publicadas de Mário de
Andrade (1999 e 2001) e Vinícius de Moraes (2003). Mário de Andrade escreveu mais de 10
mil cartas que reúnem mais de 1.400 remetentes, entre os quais estão, além de Vinicius de
Moraes, figuras como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Oswald de Andrade,
Tarsila do Amaral, Brecheret, Anita Malfatti, Villa-Lobos, Sérgio Buarque de Holanda,
Carlos Lacerda e muitos outros artistas, compositores, musicólogos, escritores e pessoas
comuns. Mário de Andrade manteve diálogo epistolar com os nomes mais importantes do
campo intelectual brasileiro das décadas de 1920 a 1940 (Lopez, 2000). Além de cultivar
amizades, debater idéias relevantes para o movimento modernista, Mário de Andrade
orientava, ou desaconselhava, o trabalho de jovens escritores que pretendiam seguir carreira.
Sobre as correspondências de Vinícius de Moraes, encontramos publicadas em
Querido poeta (2003) mais de 200 cartas que ele enviou e recebeu durante meio século, de
1932 a 1980. Elas divulgam uma faceta desconhecida pela maior parte das pessoas de um dos
representantes mais significativos da vida cultural brasileira. Podemos conhecer mais sobre a
vida desse artista, em suas diferentes idades, casas, paixões, projetos, em seus momentos de
coragem e medo, humores e amores, além de podermos conhecer de um modo muito especial
a transição da poesia e da diplomacia para a música popular brasileira. Entre os destinatários e
remetentes, além de familiares estão outras figuras de destaque da cultura brasileira e
estrangeira, como Manuel Bandeira, Cândido Portinari, Carlos Drummond de Andrade,
Rubem Braga, Ferreira Gullar, Charles Chaplin, Chico Buarque, Antônio Carlos Jobim,
dentre muitos outros.
As cartas podem ser de amor, de trabalho, escritas por amigos, parentes, contendo
notícias felizes ou tristes; revelam cenários, épocas, afetos, debate de idéias. Adentrar o
mundo das correspondências, como enfatizam Galvão e Gotlib (2000), constitui uma janela
magnífica para o desvendamento dos mundos privados e públicos, uma rara oportunidade de
transitar pela história de diferentes territórios de intimidade, por experiências singulares de
sociabilidade.
Mas, por que as pessoas se interessam em ler as cartas endereçadas a outrem? Canetti
explica a respeito das cartas de Kafka, publicadas após sua morte:
43
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
Conheço pessoas cujo constrangimento crescia durante a leitura [das cartas
publicadas] e que não conseguiam livrar-se da sensação de estarem irrompendo em
regiões onde justamente não lhes cabia penetrar. Respeito-as muito por essa atitude,
porém não faço parte delas. Li aquelas cartas com uma emoção tamanha como havia
anos nenhuma obra literária me causara. Elas figuram agora nessa série de
inconfundíveis memórias, autobiografias e epistolários que nutriam o próprio Kafka.
Ele, cuja máxima qualidade era o respeito, não tinha receios de ler e reler as
correspondências de Kleist, de Flaubert, de Hebbel.(...) Sendo assim, cumpre-nos
realmente agradecer a Felice Bauer, porque guardou e pôs a salvo as cartas de
Kafka, mesmo que tenha sido capaz de vendê-las (1988, p. 7-8).
A justificativa de Canetti se pauta tanto na emoção que a leitura lhe causara como no
fato de o próprio Kafka, quando no lugar de leitor, não teve receios de ler e reler as
correspondências de outros. Agiria ele assim, caso pensasse na possibilidade de publicação de
suas cartas? Nunca saberemos!
Durante o período do estágio, procurei expor aos alunos as diferentes funções que as
correspondências podem ter, mergulhá-los na riqueza proveniente dessas literaturas e, ao
mesmo tempo, enriquecer o estilo e o vocabulário para a escrita de suas missivas. Ler
atentamente as correspondências de diferentes autores tornou possível ao grupo vislumbrar
realidades vividas e modos distintos de expressão.
2.2 Relação entre o modo de comunicação através de carta e a comunicação verbal
José Mindlin, um dos mais célebres bibliófilos brasileiros, membro desde 2006 da
Academia Brasileira de Letras, conhecido pelo acervo de mais de 40 mil livros que coleciona
em sua biblioteca particular, ressalta um outro aspecto das correspondências, a saber, a
possibilidade do registro permanente que possibilitam. Relata a troca de cartas que
estabeleceu com Carlos Drummond de Andrade, com quem falava muito ao telefone, mas
com quem também se relacionou por cartas e desse modo preservou conversas que “seria
lastimável se não tivessem sido registradas” (2000, p.35). Lamenta a quantidade de textos de
grande interesse que se perdeu com a “infernal invenção do telefone”, pois as conversas
telefônicas, efêmeras, não registram as informações ou pensamentos que, defende o autor,
poderiam ser fonte preciosa de conhecimento. As cartas que sua biblioteca reuniu ao longo
dos anos vão desde algumas cartas do século XIX, de D. Pedro I, D. Pedro II, Dª Maria, José
de Alencar, Joaquim Nabuco, até muitas outras do século XX, “quando já existia telefone,
mas mesmo assim muita gente boa preferia escrever cartas” (ibidem, p.38). Dentre os
clássicos destinatários estão Rubens Borba de Moraes, Yan de Almeida Prado, Paulo Duarte,
Tarsila do Amaral, Villa-Lobos e, principalmente, Mario de Andrade.
Ainda sobre o uso do telefone, Comte-Sponville acrescenta que
44
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
(...) é inoportuno, indiscreto, tagarela. Também sobretudo, porque há certas coisas
que não podem ser ditas, ou mal, que apenas a escrita pode levar. A escrita nasce da
impossibilidade da fala, de sua dificuldade de seus limites, de seu fracasso. Disso
que não se pode dizer, ou que não se ousa, ou que não se sabe. Esse impossível que
trazemos em nós. (...) Depois aquelas que a ultrapassam, que com isso tocam no
silêncio. Estas nada substituem, e são insubstituíveis. O que não se pode falar, há
que escrevê-lo. (1997, p. 37)
E complementa o autor, questionando-se sobre a função das cartas:
Por que se escreve uma carta? Porque não se pode falar nem calar. A
correspondência nasce dessa dupla impossibilidade, que ela supera e da qual se
nutre. Entre fala e silêncio. Entre comunicação e solidão. É como que uma literatura
íntima, privada, secreta – e talvez o segredo da literatura. (ibidem, p. 35)
Eis aqui alguns importantes sentidos das cartas que se desvelam para além da
possibilidade de suplantar distâncias. Nem tudo pode ser falado e, até mesmo, como
complementa o autor,
(...) a fala pode criar obstáculos para a comunicação, por vezes, ou condena-la a
tagarelice, porque é preciso tempo para ficar sozinho, porque é doce pensar no outro
em nosso coração, em nossa solidão, e é isso que a fala jamais poderá fazer, uma
vez que ela a suprime A fala não nos aproxima de outrem, com muita freqüência,
senão nos separando de nós mesmos, e assim nos aproxima do outro apenas
ficticiamente, apenas em superfície ou pela vitrina. Numa carta, ao contrário, só
atingimos o outro ficando o mais próximo de nós. Mas a atingimos, pelo menos isso
acontece, e numa profundidade que as falas só alcançam raramente. A escrita é mais
próxima da solidão, mais próxima da verdade. Ao menos pode sê-lo, e é isso que a
justifica (...) Escreve-se porque não se pode calar, ou porque não se quer (...).
(ibidem, p. 38).
Uma carta requisita nossa atenção de uma maneira especial, sua leitura permite a
pausa, a repetição, a introspecção ou a expressão, enfim, permite que seja estabelecido um
ritmo dado pelo leitor em que a mensagem transmitida ganha uma moldura diferente daquela
que tivesse sido ouvida. Podemos escolher o momento em que a lemos, onde, como, com
quem e por quantas vezes desejar.
A carta permite uma comunicação silenciosa, ao mesmo tempo em que rompe o
silêncio “mas sem o quebrar realmente, como faria a fala, sem sair dele, sem o renegar.
Escreve-se no âmago do silêncio, aonde a fala quase não vai” (idem).
Nesse sentido, vejo aqui uma lição relevante a respeito da linguagem que podemos
aprender com as cartas: a importância de uma linguagem silenciosa, o valor de cada palavra
que se escolhe usar, a reflexão que elas possibilitam.
Trabalhar com a escrita foi um modo de o aluno perceber as dificuldades cotidianas de
redigir, pois era extremamente custoso “passar para o papel” suas idéias, o que evidenciava o
quanto não as entendia com clareza. É como se a comunicação falada permitisse mais
45
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
facilmente falar “sem comunicar”. A comunicação “sem sentido”
16
e por ansiedade parece
estar mais presente na fala. Não que nas cartas isso também não possa ocorrer, mas o fato de
uma correspondência requisitar uma pausa àquele que pretende escrever, institui um rigor
maior à linguagem que está sendo utilizada. Aqui se revela um importante aspecto do uso de
cartas como recurso para o ensino-aprendizado do aluno: o uso das cartas requisita uma
postura de maior atenção e reflexão no uso das palavras – aspecto sobre o qual me
aprofundarei no Capítulo 4.
Merleau-Ponty em suas obras A Fenomenologia da Percepção e A Prosa do mundo
debruçou-se sobre a questão da linguagem e chamou de linguagem falada ou fala comum a
relação que se estabelece com a linguagem de forma mecânica e vazia, em contraposição à
linguagem falante, ou fala autêntica, que provoca um novo sentido. Podíamos questionar se a
linguagem escrita seria potencialmente uma linguagem falante. Entretanto, para o autor não é
o fato de ser oral ou escrita que define se a comunicação é falada ou falante. Isso se deve a
uma relação muito mais complexa, que depende de quem fala, do que se fala e de quem
escuta. Diz o autor:
(...) poderíamos distinguir uma fala falante e uma fala falada. A primeira é aquela
na qual a intenção significativa se encontra em estado nascente. Aqui, a existência
se polariza em um certo “sentido” que não pode ser definido por nenhum objetivo
natural; é para além do ser que ela procura alcançar a si mesma e é por isso que
ela cria a palavra como apoio empírico de seu próprio não-ser. A palavra é o
excesso de nossa existência sobre o ser natural. Mas o ato de expressão constitui
um mundo lingüístico e um mundo cultural. Ele fez cair novamente no ser aquilo
que ainda tendia ao além. Daí a fala falada, que frui significados disponíveis como
se frui uma fortuna adquirida (1999, p.266-267, grifos do autor).
Para ele, a linguagem humana contém um mistério: não se trata da tradução de um
pensamento, ao contrário, ela sempre transcende o que inicialmente tencionávamos dizer, ela
se agrupa e reagrupa numa “lógica própria”. Haveria, portanto, na linguagem uma
comunicação e sentidos que existem para além do som das palavras ou de seus signos, que se
dá por meio dos gestos, da tonalidade da voz, do corpo, do olhar, do silêncio, etc. Em nenhum
momento encontramos em Merleau-Ponty um julgamento de valor em relação a esses dois
modos de expressão da linguagem, pois ambos são modos humanos de apreender a
linguagem.
Ciro Marcondes Filho, sociólogo, jornalista e estudioso da comunicação, em um de
seus livros, lança a pergunta, título inclusive de uma de suas obras: Até que ponto, de fato, nos
16
A palavra “sentido” não está sendo utilizada com o mesmo significado dado por Merleau-Ponty, pois segundo
este autor toda comunicação tem sentido. Não é a ausência desse sentido a que estou me referindo e sim à
comunicação vazia.
46
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
comunicamos? O autor defende a idéia de que nunca tivemos tantos equipamentos, meios de
comunicação que visam facilitar a nossa comunicação e, paradoxalmente, nunca nos
comunicamos tão pouco.
Uma comunidade de pessoas que simplesmente habitam o mesmo espaço, visitam
os mesmos supermercados, andam pelas mesmas auto-estradas, assistem aos
mesmos programas de TV, vibram com as mesmas festividades e nos finais de ano
saem em compras automáticas e obrigatórias de Natal. (...) Essas pessoas que somos
todos nós, que são nossos vizinhos, nossos parentes, nossos colegas de trabalho,
estão fechadas, mesmo dentro de casa, com seu cônjuge, com seus filhos (...)
Fechados em si mesmos; cada um como uma mônada isolada, trancada, só (2004 ,p.
9).
O paradoxo, completa o autor, estaria justamente na ilusão que esses instrumentos
tecnológicos criam visando encenar, substituir ou preencher o distanciamento, a separação
que erguemos entre as pessoas. O que o autor entende por comunicação não é essa linguagem
objetiva, estéril, pobre ou permeada de formalismos. Comunicar-se é forma de interação
humana na qual se vai além dos signos, onde consciências partilham criando algo novo, algo
que nem um nem outro tinham antes; misturaram-se, efetua-se uma mudança qualitativa
(idem, p.90).
Durante o estágio procurei aproximar o aluno da linguagem proposta por Merleau-
Ponty e de sua compreensão para comunicação como uma troca intersubjetiva, um âmbito
relacional de diálogo humano:
(...) Na experiência do diálogo, constitui-se um terreno comum entre outrem e
mim, meu pensamento e o seu formam um só tecido, meus ditos e aqueles do
interlocutor são reclamados pelo estado da discussão, eles se inserem em uma
operação comum da qual nenhum de nós é o criador. Existe ali um ser em dois, e
agora outrem não é mais para mim um simples comportamento em meu campo
transcendental, aliás nem eu no seu, nós somos, um para o outro, colaboradores
em uma reciprocidade perfeita, nossas perspectivas escorregam uma na outra, nós
coexistimos através de um mesmo mundo. No diálogo presente, estou liberado de
mim mesmo, os pensamentos de outrem certamente são pensamentos seus, não
sou eu quem os forma, embora eu os apreenda assim que nasçam ou que eu os
antecipe, e mesmo a objeção que o interlocutor me faz me arranca pensamentos
que eu nem sabia possuir, de forma que, se eu lhe empresto pensamentos, em
troca ele me faz pensar. (1999, p.474-475).
A escrita de cartas foi utilizada como situação de aprendizado para ensinar e favorecer
uma comunicação falante. Desenvolver no aluno uma linguagem descritiva, sem julgamentos
e reflexiva foi o caminho para que uma carta pudesse se comunicar com o “coração” de seu
leitor; linguagem que libera para o sentido, como explicita Merleau-Ponty:
(...) ela [linguagem] não é um simples convite, para aquele que escuta ou que lê, a
descobrir nele mesmo significações que já estão aí. É o artifício pelo qual o
escritor ou orador, tocando em nós essas significações, faz com que emitam sons
estranhos, que parecem a princípio falsos ou dissonantes, e depois nos alia tão
47
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
bem a seu sistema de harmonia que doravante o consideramos como nosso. Então,
dele a nós, não haverá mais que puras relações de espírito a espírito. Mas tudo
isso começou pela cumplicidade entre a fala e seu eco, ou, para usar o termo
enérgico que Husserl aplica à percepção de outrem, pelo “acasalamento” da
linguagem. (2002, p.35)
Segundo Marcondes Filho, referindo-se à linguagem proposta por Merleau-Ponty,
captar essa fala seria um trabalho que exige maturação “é antes uma capacidade, certa
sensibilidade que não pode ser suposta automaticamente em todos. Exige certo refinamento
(...)” (2004, p.96).
Penso que exercitar a escrita por meio das cartas, foi uma oportunidade de o aluno
lapidar e refinar sua linguagem, ajudá-lo a perceber a variedade de vocábulos e os diversos
sentidos que podem suscitar, enfim, exercer um cuidado com as palavras que desconheciam.
A escrita requer um tempo de solidão e introspecção, precisamos pensar no outro, e o que
dizer a ele, em sua ausência. A escrita não garante tal relação com a linguagem, mas parece
potencializá-la.
Enquanto a fala pode ser efêmera e instantânea, a escrita constitui-se pela duração,
pela possibilidade que oferece ao leitor de reler, retransmitir e guardar. Adentramo-nos, pois,
em mais uma das particularidades das cartas, ou seja, sua relação com o tempo.
2.3 Relação Carta-temporalidade
As cartas perduram muito mais do que seus conteúdos e mensagens. Quantas cartas de
amor não duraram muito mais do que o próprio amor? Comte-Sponville (1997) afirma que,
muitas vezes, se interessa mais pela leitura da correspondência de determinados escritores do
que por sua obra, como é o caso da correspondência entre Abelardo e Heloísa
17
, que
sobreviveram muito mais do que os tratados de Abelardo.
Uma missiva pode permanecer viva, depois da morte de quem a escreve ou a recebe.
Para Comte-Sponville isso significa: “uma apreciação mais justa de sua fragilidade, de sua
importância um para o outro, um pelo outro, também do peso de cada palavra” (1997, p.42).
O autor utiliza uma interessante metáfora:
(...) uma pirâmide é um envelope, se quiserem, cuja múmia seria a carta, cujos
hieróglifos seriam o texto. Alguma coisa se diz aí, comunica-se aí. Uma mensagem,
mas sem outro mensageiro além de si. Mas imóvel. Mas que antes percorre os
séculos do que os quilômetros. Tratava-se de vencer não a ausência mas a morte,
17
Piérre Abélard e Héloïse são os protagonistas de um dos romances mais famosos da história medieval do
século XII. Abelardo era um teólogo e filósofo francês, importante intelectual da época, que se tornara tutor de
Heloísa. Eles se apaixonaram, casaram-se às escondidas, mas, ao serem descobertos pelo tio da moça, foram
separados e a Abelardo castigou castrando-o. Passaram o resto da vida separados, mas foram enterrados juntos
no cemitério Pérre Lachase, na França. As cartas de amor entre os dois estão publicadas pela Martins Fontes.
48
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
não a separação mas o esquecimento, não a distância mas o tempo. Não de trocar,
mas de manter (...) Escrevemos nossas cartas, não para vencer a morte, não para
vencer o tempo, mas para habitarmos juntos, tanto quanto pudermos, apesar da
separação, apesar do espaço, do pouco tempo que nos é dado em comum (...) para
compartilhar alguma coisa, algum acontecimento ou um pensamento, uma emoção
ou um sorriso, muitas vezes quase nada e esse é o essencial de nossas vidas, para
compartilhar essa pobreza que somos, que vivemos, que nos faz e desfaz, antes que
a morte nos pegue, para não renunciar, enquanto respiramos e sejam quais forem os
quilômetros que nos separam, à doçura de viver juntos (...) (ibidem, p.36).
Antônio Cícero (1996) em seu poema “Guardar” apresenta de modo belo e sensível
um sentido poético para o ato de guardar, para aquilo que se busca preservar – aspecto que
podemos estender às cartas:
GUARDAR
Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser
por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é,
estar acordado por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro do que um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.
O tempo da carta é de permanência, é também muitas vezes o de atraso. Neste sentido,
relata Mindlin:
Odeio cartas (...) É que entre o receber cartas e o lê-las há, para mim, um hiato de
angústia que não depende nem da natureza nem do conteúdo das cartas. É mais uma
espécie de hesitação indefinida, uma quase vontade de não ler, de não tomar
conhecimento, de dispensar a informação emocional ou meramente referencial que as
cartas veiculam com o seu inevitável recuar no tempo, porque mesmo trazendo
possíveis novidades ou informações até aí desconhecidas, as cartas chegam sempre
depois... chegam sempre atrasadas... O hoje da recepção e da leitura vem sempre
depois da escrita e do envio, que agora já é um ontem, e esses dois hojes, sendo
defasados no tempo, contém a possibilidade quase certa e angustiante de aquilo que
nas cartas se lê já não corresponder ao que está acontecendo. No amor esta dúvida,
esta incerteza podem ser fatais... O hoje que leio é já um ontem do que foi escrito... É
isso que me desagrada e ao mesmo tempo me atrai desagradavelmente... essa
intromissão do passado que as cartas me trazem no presente que estou vivendo,
enquanto fico sem nada saber do presente simultâneo de quem me escreveu... (2000,
p.15)
49
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
A imprevisibilidade e mutabilidade do tempo que a carta parece revelar talvez sejam
os aspectos mais angustiantes aos quais as correspondências nos remetem. Explicitar nosso
descontrole, inclusive sobre o tempo, é incômodo às pessoas em geral. Sempre na busca por
suprimir e controlar o tempo e o espaço é que são desenvolvidas nossas tecnologias.
O telefone, o fax e os e-mails tornaram-se as grandes invenções tecnológicas do século
XX. A impossibilidade de “perder tempo”, a necessidade da velocidade para transmissão
instantânea da mensagem fez com que a carta se tornasse para muitos um instrumento
obsoleto. Não que um e-mail não possa demorar em ser escrito, enviado ou lido, mas nesse
caso, a velocidade da informação torna-se uma opção, não se está submetido à espera do
tempo de percurso da carta. É certo também que os provedores, websites ou aparelhos de fax
podem nos surpreender e não enviarem a mensagem, mas trata-se de erros e imprevistos, e
não de uma condição própria desse modo de se comunicar.
Nos e-mails, em geral, predominam os diálogos curtos e rápidos, além de já ser
possível perceber nesse modo de comunicação uma linguagem própria, marcada por
abreviações, ícones “emoticons”
18
, ausência ou simbologia específica para as pontuações e
acentos. Um meio de comunicação em que, até pela quantidade de informações que se recebe,
as mensagens podem ser facilmente suprimidas, apenas com um toque de uma única tecla,
sem precisar se dar ao trabalho de rasgar, cortar, amassar, retirar o lixo, etc.
Entretanto, apesar das recentes invenções, as cartas continuam a ser escritas, mesmo
por aqueles que têm acesso à internet. E por quê? O que diferencia uma carta de um e-mail?
Penso que aqui nos reportamos a outra especificidade da carta: sua materialidade.
2.4 Relação carta-espacialidade: materialidade versus virtualidade
Ciro Marcondes Filho (1998, 2004), ao estudar o impacto das novas tecnologias em
nossa sociedade, apresenta uma leitura radical e extremamente crítica ao uso das tecnologias
eletrônicas e seu impacto na subjetividade humana. Ele aponta para um caráter importante da
virtualidade do mundo: a supressão do corpo e do espaço, isto é, uma espécie de eterização
das coisas que “desaparecem” na fluidez da tela. A informatização possibilita que se
administre o mundo à distância e, se quiser, também isoladamente. Adverte o autor que isto
provocaria um “desprendimento do solo”, uma espécie de desenraizamento e perda da
18
“Forma de comunicação paralingüística, um emoticon, palavra derivada de emotion (emoção) + icon (ícone)
(em alguns casos chamado smiley) é uma seqüência de caracteres tipográficos, tais como: :), ou ^-^ e :-);
ou, também, uma imagem (usualmente, pequena), que traduz ou quer transmitir o estado psicológico, emotivo de
quem os emprega, por meio de ícones ilustrativos de uma expressão facial”. In:
www.wikipedia.org/wiki/Emoticon
, acessado em 10/1/2008.
50
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
sensação de pertencer. Tal desenraizamento, para ele, nos leva progressivamente à alienação
dos espaços físicos e à sensação de que somos “seres que perderam sua necessidade física e
transformaram-se em nuvens” (1998, p.66).
O aspecto que o autor ressalta é a transformação das relações espaciais e temporais
que a era cibernética traz. Questões que nos remetem a antigas discussões sobre o que é real e
o que é ilusão, o que é concreto e o que é imaginado, voltam a ser suscitadas. Passamos de um
espaço-tempo concreto para um espaço-tempo sem limites, onde verdadeiro e falso, real e
virtual se misturam, onde a compreensão que temos para espaço, tempo e materialidade
ganham novos significados.
Todavia, apesar de ter se ampliado muito o uso da internet no Brasil, se pensarmos
proporcionalmente à população geral do país, ainda é pequeno o número de pessoas que têm
acesso a ela. Segundo dados do Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação
(CETIC), até 2006 o número de pessoas do território nacional que nunca tinham utilizado a
internet chegava a 67% da população entrevistada
19
, enquanto em 2007 este número foi
reduzido para 59%. O número de pessoas com acesso à internet de seus domicílios em 2007
foi de 17%, sendo as lanhouses o local mais utilizado para o acesso à internet no país: o uso
desses centros públicos de acesso pago saltou de 30% em 2006 para 49% em 2007. Estes,
bem como os demais dados levantados pela pesquisa, evidenciam que “houve um forte
aumento da posse e o uso das tecnologias da informação e comunicação entre os
brasileiros”
20
, mas não podemos desconsiderar que grande parte da população não tem acesso
ou não acessa com freqüência este meio de comunicação. Nesta pesquisa, o número de
internautas (pessoas que acessaram a rede nos últimos três meses) chegou a 34%, o que
significou um aumento de seis pontos percentuais em relação ao ano de 2006 (28%), mas
ainda um número reduzido da população. Portanto, para muitas pessoas, as cartas ainda
desempenham um importante papel como meio de comunicação.
Para os migrantes, as missivas durante anos exerceram uma função fundamental,
especialmente por serem o “fio” que os liga e os mantém identificados com sua origem.
(Ferreira, apud Gorrese e Jablonski, 2002). Entretanto, o uso da internet tende a aumentar e
ainda não temos a dimensão dos impactos deste meio de comunicação
21
sobre essa população
e demais.
19
Base: 17.000 domicílios em áreas urbanas.
20
Disponível em: http://www.cetic.br/usuarios/tic/2007/destaques-tic-2007.pdf. Acessado em 1/3/2008.
21
Busquei refletir mais sobre o aspecto das transformações atuais dos meios de comunicação e da linguagem
neste mesmo capítulo, no item “Carta e linguagem: panorama atual”.
51
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
Nas cartas há uma dimensão diferente à materialidade
22
do telefone, dos e-mails e de
outras formas de comunicação virtuais, pois nestas necessariamente encontramos uma
materialidade concreta. Interessa-nos pensar na materialidade que as cartas podem conter em
seus envelopes coloridos, nos seus diversos tipos de papéis ornados: “Quantas obras de arte
em miniaturas!” (Comte-Sponville, 1997). Sem falar nas possibilidades de cheiros que podem
se materializar em um papel.
Maria Rosa Camargo (2000) se debruçou na análise de 223 correspondências escritas
por duas adolescentes durante seis anos. As cartas e envelopes eram marcados por cores, às
vezes quatro cores de caneta em uma mesma missiva, além de uma imensa variedade de
“papéis de carta” e folhas de cadernos escolares, que evidenciam a presença das cartas no
cotidiano das autoras. Para Camargo, o colorido do papel, as mensagens, os fragmentos
marcados nos envelopes, tornam-se verdadeiras cerimônias de antecipação da leitura que está
por vir. As autoras das missivas relataram, tanto nas cartas como em entrevista à autora, que a
amizade delas não teria perdurado por tanto tempo se não fossem as correspondências que
permitiam compartilhar e estreitar os laços. Amizade materializada que acompanhava uma e
outra na distância.
As cartas parecem concretizar uma relação, parecem ser pedaços de um e de outro que
são oferecidos:
Nossas cartas se parecem conosco, desde que o queiramos um pouco, e mesmo, às
vezes, quando não o queremos. Frágeis como nós. Irrisórias como nós. Belas, por
vezes. Pobres e preciosas, corriqueiras e singulares, quase sempre. Um pouco de
nossa alma introduziu-se ali, na pouca espessura de um envelope (Comte-Sponville,
1997, p. 43).
E aquilo que me parece mais bonito na materialidade da carta é, contraditoriamente,
esta capacidade de passar despercebida:
(...) milhões de cartas que circulam todos os dias, em todos os países, como um
gigantesco zunzum silencioso, como um formidável e imperceptível murmúrio,
todos esses pequenos riachos de papel e de tinta, que foram como que um mar, que
arrastam nossos segredos, nossas confidências, nossas lágrimas (...) (o que é mais
simples do que uma carta?) (idem, p. 41-42).
Outro aspecto que percebo na materialidade da carta é a relação que pode estabelecer
com uma pessoa em sua corporeidade, questão a que Merleau-Ponty se dedicou em suas
obras (1999, 2000, 2002): “meio que possuo para chegar ao âmago das coisas, fazendo-me
mundo e fazendo-as carne” (2000, p.132).
22
Vale ressaltar que há uma dimensão material presente no telefone, nos e-mails ou em outras formas de
comunicação virtual, pois o som, a imagem ou a palavra também são consideradas formas materiais do signo.
52
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
Com Merleau-Ponty, a Fenomenologia husserliana foi trazida para a existência
concreta, pois o autor procurou restituir o caráter mundano do homem e a radicalização dessa
concepção fez com que se chegasse ao conceito de carne
23
. Partindo da visão de corpo
sensível e da crítica à dicotomia sujeito-objeto, homem-mundo, externo-interno, propõe uma
relação de mútua constituição entre corpo e mundo. O homem estaria de tal forma envolvido
pelo mundo que este seria sua extensão: corpo como sensível ao mundo, que nos une às
coisas.
Assim, percebo que uma pessoa em sua corporeidade pode se expressar nas cartas: no
movimento de escrever e registrar sua letra, ao providenciar seu encaminhamento,
acompanhar seu recebimento, realizar sua leitura. Muitos sentidos trabalham juntos e de
diferentes formas no processo de escrever ou ler uma carta. Corporeidade que toca, sente,
cheira e vê cada correspondência. Aspectos que ainda diferenciam as cartas da comunicação
falada e da eletrônica. O papel, o envelope e a caneta funcionam como um espaço delimitante
e delimitador, um contorno próprio.
De que modo as relações virtuais transformaram nossa corporeidade? A era cibernética
alterou nossa percepção do tempo e do espaço transformando a virtualidade em experiências
concretas, contudo, se são concretas, pergunto-me em que medida são corpóreas? Estas e
muitas outras questões ainda são recentes e a cada dia se mostram mais urgentes. É preciso
que a Psicologia comece a refletir criticamente sobre as implicações da tecnologia eletrônica
nas relações humanas.
2.5 Carta e linguagem: panorama atual
Quantos de nós escrevemos ou recebemos uma carta nos últimos meses? As formas
atuais de comunicação buscam ser eficientes em sua transmissão dos dados. Isso significa que
hoje o melhor recurso é o que emite a informação no menor espaço de tempo. Portanto, após a
invenção do telefone, celulares, e-mails, orkut, o modo de se comunicar por cartas ficou
arcaico, fora de moda. Um meio de comunicação que parece se destinar apenas aos “boletos
de cobrança” ou ao envio de propagandas.
A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos registrou nos últimos cinco anos um
crescente aumento no envio de objetos, o que se deve, principalmente, ao comércio eletrônico
23
Segundo Merleau-Ponty (2000) não há nome na filosofia tradicional para designar este termo. Em francês, a
palavra que ele escolheu foi chair. A tradução para o português empobrece o termo francês original e mais ainda
o sentido dado pelo autor, que não se restringe só à referência “exterior” do corpo que o termo “carne” sugere.
53
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
(e-commerce) que se amplia vertiginosamente a cada ano
24
. Ocorreu, portanto, uma mudança
no conteúdo daquilo que é enviado por aquele serviço que, se antes propiciava
predominantemente a comunicação por meio das cartas, passou a favorecer o comércio, por
meio da entrega de objetos de consumo.
Walnice Nogueira Galvão (1998) afirma que a eletrônica transformou a carta em um
meio de comunicação obsoleto, apesar de ela vir demonstrando uma “vitalidade”
impressionante. Todavia, complementa a autora, as missivas têm passado por uma importante
transformação: “de algo a ser lido para algo a ser visto” (idem,p.161, grifos da autora). Uma
espécie de “deslocamento do eixo da prosa enquanto forma contínua, para o eixo não-linear e
simultaneísta do audiovisual” (ibidem, p.160-161). Essa mudança poderia fazer com que as
correspondências subsistissem, porém se alterando: “Talvez, então a epistolografia não esteja
propriamente desaparecendo, mas meramente efetuando uma transferência de suporte e de
visualidade, enquanto mantém sua função de comunicação interpessoal” (ibidem, p.162).
É certo que os e-mails também são lidos, mas penso que o aspecto para o qual a autora
está querendo chamar atenção é para a transformação cultural de nossa percepção em
visualidade, que para muitos pensadores afetaria também (e muito) nosso modo de
comunicação interpessoal. Baudrillard (1993 e 2006), Baitello Junior (2000 e 2005 ) e Sartori
(2000), dentre outros filósofos estudiosos dos meios de comunicação, ressaltam a visualidade
da imagem como uma das principais características de nosso tempo. Esse fenômeno iniciado
no início do século XX foi acentuado após 1945 com as técnicas refinadas de propaganda e
marketing que buscam a visibilidade. O número de imagens a que somos submetidos
diariamente, são principalmente visuais, mas não só, pois temos as acústicas e aquelas que
formamos em nosso imaginário, que também provocariam um estado de tensão e alerta
permanente. Tal opressão a que nos submete a imagem leva os referidos autores a
estabelecerem uma estreita relação entre a visualidade das imagens e a violência física e
simbólica em que vivemos.
Baitello Junior (2005) criou o conceito de iconofagia para se referir a essa dimensão
da imagem, à sua capacidade de nos remeter à outra imagem, que nos transportaria para outra
e outra, em uma dimensão abismal, caracterizando um chamado permanente, uma absorção
pela imagem que nos “devora”, nos “engole”, em uma metáfora bastante significativa.
24
A informação foi transmitida a mim por telefone por um funcionário da Empresa de Correios, do setor de
Assessoria da Comunicação, a partir de dados oficiais dos quais dispunha. Ele ficou de enviar, por e-mail, os
dados estatísticos, mas não o fez. Procurei-o algumas vezes e ele continuou prometendo o envio, que seria feito
por uma outra funcionária responsável para tal, mas não os recebi.
54
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
Esta visibilidade atual, explica Sartori (2000), está relacionada à televisão (como o
próprio nome indica – ver de longe) e à hipertrofia do sentido da visão, isto é, à super
valorização do sentido da visão, prevalecendo sobre os demais. Em outros termos, seria um
desequilíbrio entre os sentidos. A “tele-visão” dispensa o corpo e a proximidade, pois vemos
de longe, não precisamos tocar ou nos aproximarmos para haver a comunicação.
Principalmente, defende o autor, provocaria uma mudança significativa na cognição.
Em relação às transformações na linguagem que os meios eletrônicos provocam, o
escritor João Ubaldo Ribeiro (2005) declara de modo indignado sua percepção de que a língua
portuguesa está empobrecendo, degradando-se, perdendo expressividade e riqueza vocabular.
Cita como exemplos a palavra “cujo”, o verbo “haver” e as contrações nominais, como “mo”
e “lho” que deixaram de ser utilizadas.
De certa forma, a televisão e a internet têm contribuído para o empobrecimento da
linguagem e já se fala em uma nova linguagem, o internetês, surgida no ambiente da Internet
que é
(...) baseada na simplificação informal da escrita, com o objetivo principal de
tornar mais ágil, rápida, a comunicação, fazendo dela uma linguagem taquigráfica,
fonética e visual. Abreviações, simplificações, símbolos criados por combinação
de caracteres, símbolos gráficos próprios e uma grande diversidade de recursos de
comunicação por imagens utilizados na internet são as principais características
encontradas nas mensagens que utilizam esta linguagem.
25
Nítidas mudanças em nosso modo de nos comunicarmos e nos relacionarmos vêm
ocorrendo. As cartas deixaram de ser o meio de comunicação à distância mais utilizado e,
para muitos autores, os principais responsáveis por isso estar acontecendo são o uso do
telefone, da internet, dos e-mails, da videoconferência, dos chats, etc. Entretanto, se por um
lado temos de permanecer questionando o uso das novas tecnologias, não podemos ter uma
postura rígida e contrária a tais mudanças, pois elas são transformações inevitáveis e às quais
teremos que nos adaptar.
Os autores citados, estudiosos das transformações tecnológicas, são radicais em suas
análises e parecem apontar para um determinismo no modo como as pessoas estariam sendo
afetadas e transformadas pelos novos meios de comunicação. Ao buscarmos um olhar
fenomenológico para tais questões, essas teorias (e outras) podem ser consideradas, embora
não possam ser tomadas como a única forma de compreender o fenômeno. Um importante
aspecto que os autores parecem desconsiderar (ou minimizar) é o fato de que há uma pessoa
se relacionando com tais meios e isso significa diferentes modos de se relacionar com eles.
25
Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Internet%C3%Aas. Acessado em: 08/01/08.
55
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
Do ponto de vista fenomenológico, não poderíamos buscar compreender uma relação
potencializando ou considerando como uma variável determinante um dos aspectos dessa
relação. É preciso levar em conta os diferentes modos como o homem pode “humanizar”, por
exemplo, seus e-mails, e estabelecer uma relação pessoal e particular com elas.
Cabe refletirmos se o uso da comunicação virtual impede ou dificulta a linguagem
falante, isto é, impede que uma comunicação interpessoal aconteça e que duas pessoas se
aproximem e se comuniquem. Não me parece que possamos afirmar que os novos meios de
comunicação sejam suficientemente impossibilitadores de tal expressão. O uso que pode ser
feito da internet (ou de outras mídias eletrônicas) não é necessariamente o da linguagem
mecânica, apesar de o meio eletrônico potencializar a banalização da comunicação, até pelo
excesso de informação que proporciona. Contudo, por todos os motivos apontados, penso que
a internet e demais meios eletrônicos dificultam a comunicação falante. Entretanto, não seria
a carta e sim o texto narrativo que nos propiciaria estabelecer o modo de nos comunicarmos
um com o outro. Todavia, o que até agora tenho percebido em meus trabalhos com os alunos é
que é a experiência de escrita de cartas que viabiliza o ensino da construção de um texto
narrativo e não o telefone ou os e-mails.
2.6 Cartas: narrativas do e para o mundo
Walter Benjamin ressaltou o perigo das mudanças provocadas pela era industrial nas
narrativas. Alertou para um declínio da experiência da partilha, para a extinção do narrador,
aquele que contava histórias e dava conselhos fundamentados em sua experiência:
Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser
contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser
transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por
um provérbio oportuno? Quem tentará sequer, lidar com a juventude invocando
sua experiência? (1994b, p.114)
Para o autor, a modernidade trouxe um novo modo de comunicação que tornou rara a
arte da narrativa, que é a informação. Esta tem sempre uma dimensão utilitária, pode ser
verificada, é imediata e precisa ser plausível.
Cada manhã recebemos notícias de todo mundo. E, no entanto, somos pobres em
histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de
explicações (...) Metade da arte da narrativa está em evitar explicações. (...)
(Benjamin, 1994, p.203).
Desde o início do século XX, vivemos em uma época de mudanças históricas
aceleradas, em que o ideal de progresso evidencia o velho como “ultrapassado”, defasado, e
todo sentimento de continuidade ou de tradição é descartado. Constatamos com facilidade o
56
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
desprezo em nossa sociedade por tudo aquilo que é velho. É possível observar, sem surpresas
e diariamente, o esfacelamento da tradição, o desprezo pela sabedoria, a recusa pelo “velho” e
a necessidade do novo. Baniu-se o velho, o guardião do passado, aquele que poderia lembrar
ou ensinar sobre a nossa história e nosso passado. Sem memória o que narramos? A arte de
narrar, segundo Benjamim, está definhando, porque a sabedoria está em extinção.
As cartas, que também são um modo de narrar, estão se tornando uma prática
ultrapassada, algo talvez nunca realizado por muitos adolescentes e adultos jovens, como era
o caso dos meus alunos que, em geral, nunca tinham escrito uma carta antes do estágio
26
.
Assim, a escrita de cartas pode se configurar como uma resistência
27
às tecnologias
modernas que se “comunicam”, descartam e “deletam” com o apertar de uma tecla. A defesa é
por uma comunicação que envolve um ritual: desde a escrita, o papel, a caneta, a letra, o selo,
o envio, a espera, a chegada, a leitura, enfim um registro ritualizado que se difere dos demais
por exigir uma ruptura com as práticas cotidianas. Uma linguagem que permanece, que
preserva, que valoriza a memória, que pode eternizar uma experiência.
Narrar-se, narrar o outro e narrar o mundo (para si mesmo, para o outro e para o
mundo) é restabelecer a trama do tempo. Neste sentido, as cartas podem abrir caminho para
uma resistência ao que Benjamim chamou de informação, tornando o humano mais próximo
da experiência do compartilhar, da expressão e expressividade, da imaginação e criatividade.
A narração se constitui como possibilidade de apropriar-se de sua história, das
histórias dos outros e do mundo. Tal como as cartas que só têm sentido pelo que enviam, um
meio transmissível para o compartilhar de experiência.
2.7 A carta em diferentes contextos
Realizando um levantamento acerca dos estudos sobre cartas, notei que este modo de
comunicação recebeu destaque apenas por seu valor literário, sendo prioritariamente estudada
no âmbito da lingüística.
A literatura epistolar situa-se na zona intermediária entre o documento e a ficção, o
literário e o histórico, o prosaico e o poético. Esse caráter mestiço da carta fascinou-me por
permitir em meu projeto de estágio transitar entre o pensamento e o sentimento, a informação
e a poesia, por possibilitar o ensino e, ao mesmo tempo, o aprendizado de um olhar
fenomenológico para a infância. A carta tinha como objetivo para o professor ser um meio,
26
O fato de os alunos nunca terem escrito uma carta, certamente não revela apenas que as cartas se tornaram um
meio ultrapassado, mas também a precariedade na educação: cartas são muitas vezes utilizadas como exercício
pedagógico nas escolas ou ensinadas como um gênero narrativo.
27
Deve ficar claro que não há aqui uma defesa pela não-utilização das tecnologias ou uma apologia por seu fim.
57
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
uma situação para formação do aluno, para que este, por sua vez, expressasse seus
conhecimentos aos pais/educadores. Portanto, um modo de permitir uma formação que
também é formadora, no sentido de que algo começa em si para que possa ser transmitido ao
outro.
Percebo nas missivas também um importante aspecto de interesse à Psicologia, sua
capacidade de poder estar com o outro, e consigo mesmo, de um modo peculiar. Para que uma
carta cumpra seu destino, ela precisa de quem a escreva e a leia. Ela busca a cumplicidade do
outro. Ao escrever, organizo idéias, sentimentos, emoções, comunico, compartilho e revivo
uma história. Muitas vezes, transfiro um pedaço meu para que, por meio de um papel, vá até o
outro, que recebe algo em que toquei, a expressão da caneta com a qual estive e um outro
recebe a visita de minha caligrafia. Correspondências: um estar com, junto, que responde.
Um dos poucos projetos que encontrei que une cartas a uma atividade psicológica visa
propiciar a comunicação entre crianças e adolescentes institucionalizados e correspondentes
voluntários, citados no Capítulo I, cabendo aos psicólogos a mediação entre os
correspondentes através de leitura sigilosa das cartas que são recebidas e enviadas. Diversas
teorias da Psicologia, de modo geral, parecem ainda não ter atentado para o poder que as
cartas podem ter. Percebo que muitos trabalhos psicoterapêuticos podem se beneficiar dessa
linguagem, portanto poderiam explorar mais esse recurso.
Os pacientes, clientes ou usuários dos serviços de Psicologia e Psiquiatria percebem
mais do que os terapeutas a potencialidade das cartas e da escrita. L. F. Barros, autor de
Memórias de um esquizofrênico, Anjo carteiro: correspondências da psicose, Vinte e seis
pérolas e outras fantasias, dentre outras obras, anuncia em seus livros a importância da
escrita em sua própria vida e na de muitas outras pessoas que sofriam com as crises
psicóticas
28
. O autor fora internado diversas vezes em surtos, sob o diagnóstico de
esquizofrenia e pela dependência de álcool e outras drogas. Narra em seus livros que após ver
sua vida inteira ruir e sua identidade em colapso total, foi um livro que o ajudou: o livro que
ele mesmo escreveu sobre sua história: “(...) depois de tudo e tanto, eu tinha uma história para
contar para mim mesmo e com isso a iniciativa voltava a estar comigo (...)” (Barros, 1996,
p.30).
O autor chama de “grafoterapia” o que lhe aconteceu ao escrever o primeiro livro,
Memórias de um esquizofrênico (1993): reconstruir sua história por meio da escrita foi sua
28
Os termos em itálicos são adaptações minhas feitas a partir de relatos em sua obra.
58
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
terapia. Difícil, avisa o autor, “é a gente se propor a esta recuperação do passado e, às vezes,
suportar a dor das revelações que o lápis tece no papel (...)” (idem, 1996, p.31).
Desde 1993, o autor passou a se corresponder com muitos leitores do livro Memórias
do delírio: confissões de um esquizofrênico: “chegavam várias no mesmo dia, de todas as
partes do Brasil, de norte a sul, provenientes dos mais variados tipos de leitores, destacando-
se entre elas as de outros doentes mentais, as de parentes de doentes, as de médicos e
terapeutas, as de religiosos, sendo as outras de pessoas diversas oferecendo apoio,
comentários ou congratulações” (ibidem, p.43). Estas correspondências resultaram em uma
compilação publicada pela Editora Imago com o título de Anjo Carteiro: correspondências da
psicose (1996).
Tal foi o grau de intimidade dessas correspondências que alguns dos correspondentes
se tornaram seus amigos, com outros apenas se correspondeu durante anos (até 1996, data de
publicação do livro, tendo algumas correspondências durado cerca de dois anos). As cartas,
segundo o próprio autor, não têm o propósito de revelar suas intimidades, e sim ser “um gesto
de amor e desprendimento dirigido aos nossos irmãos no sofrimento” (ibidem, p. 38). Elas
tiveram a importante função de serem “mais um grande momento de reflexão e discussão dos
problemas ligados à minha doença” (p. 44) e, por perceber em algumas delas depoimentos de
valor inestimável, iniciou o projeto de publicá-las. Em diversas cartas encontramos o
reconhecimento dos benefícios do diálogo estabelecido com o autor.
Nas palavras do autor, os objetivos principais de publicar suas cartas:
(...) continuar com meu trabalho de desmistificação dos psicóticos. Assim como
se verá cartas de certa forma confusas ou excessivamente ansiosas, escritas em
estado de crise, poder-se-á constatar o nível de sensibilidade e acuidade mental
em que atuamos quando estamos bem. Da mesma forma se verá que, a despeito de
todas as dificuldades, seguimos nossos caminhos, batalhamos, trabalhamos,
namoramos, vamos nos casar, criamos filhos, somos estudantes, datilógrafas,
secretárias, pesquisadores. Um dia, de tanto lutar, seremos terapeutas, quem sabe
(...) (ibidem, p. 45).
Podemos perceber neste propósito do autor o caráter cotidiano que as cartas revelam, a
força e o alcance que elas propiciam. L. F. Barros tornou-se educador, mestre e doutor em
Filosofia da Educação pela Faculdade de Educação da USP e fundador da Associação Fênix
(1997), instituição que criou com o objetivo de “dar apoio a grupos de auto-ajuda de
portadores de transtornos mentais e a seus familiares
29
. Para ele, as correspondências foram,
durante um período de sua vida, a única atividade que o mantinha sentindo-se vivo, de onde
tirava força e companhia para vencer a solidão.
29
Para saber mais, consultar: www.fenix.org.br
59
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
Um importante aspecto que destacou em seu livro Anjo Carteiro foi o valor educativo
que as correspondências desempenharam, aspecto sobre o qual dissertou em seu mestrado
apresentado à Faculdade de Educação da USP (1995), publicado posteriormente. O autor
realça que sua escrita, nas cartas ou em seus outros livros, tem um importante papel por
“difundir uma mensagem de desmistificação da doença mental” (Barros, 1996, p. 353), em
uma linguagem clara, acessível e sob a percepção de quem a viveu.
Outro aspecto educativo que o autor distingue é que as cartas tiveram sentido
revelador não só para quem as escreveu, como provocou revelações na outra pessoa e, nesse
sentido, trouxe seu próprio testemunho para confirmar. L. F. Barros utiliza a expressão
“diálogos escritos” para ressaltar a função “maiêutica” das cartas, ao provocarem descobertas
e a possibilidade de “re-educação”.
Ainda no âmbito da educação encontramos as cartas escritas por Paulo Freire (2000).
Seu propósito foi o de escrever cartas pedagógicas em um estilo leve, cuja leitura pudesse
interessar a jovens pais e mães, filhos adolescentes, professores, enfim todos aqueles que
fossem chamados a desafios em suas vidas e que pudessem encontrar nessas missivas
elementos capazes de ajudá-los na elaboração de suas respostas. O educador preocupava-se
em proteger as cartas do simplismo, da arrogância e do cientificismo e esperava “que no
processo da experiência da leitura das cartas, o leitor ou leitora pudesse ir percebendo que a
possibilidade do diálogo com seu autor se acha nelas mesmas, na maneira curiosa com que o
autor as escreve, aberto à dúvida e à crítica (...)”(p.39). Seu sonho ao escrever as cartas
pedagógicas era de desafiar pais e mães, professoras e professores, operários e estudantes a
refletirem sobre o papel que têm e a responsabilidade de assumi-lo na construção e
aperfeiçoamento da democracia.
Essas cartas foram o último projeto do autor: morreu deixando-o inacabado. As três
cartas, sendo a última inacabada, foram publicadas com outros artigos do educador, sob o
título de Pedagogia da indignação (Freire, 2000). Tais cartas expressavam mais um momento
de sua luta, em que se empenhava “como educador, como político também, com raiva, com
amor, com esperança em favor de um sonho de Brasil mais justo” (idem, p.49).
Outro autor que também reconheceu e defendeu o poder da linguagem escrita foi
Marc-Alain Ouaknin, rabino e doutor em filosofia, que se dedicou a estudar o valor do
“livro”. Seu livro Biblioterapia defende a idéia da “terapia por meio de livros”, que “nasce do
encontro entre a ‘força’ da língua – que evocamos e que não é mais reservada aos mágicos,
aos padres e aos charlatões – e o local de expressão primordial e primeiro dessa ‘força’: o
livro”(1996, p.16). O autor não apresenta tal proposta como novidade, mas ele mesmo nos
60
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
relembra que encontramos em épocas remotas da história essa intuição da virtude terapêutica
do livro e da narrativa. Quando lemos, interpretamos um texto, e a interpretação seria em si
mesma uma terapia, por abrir inúmeras possibilidades e sentidos, oferecendo novas
perspectivas sobre o mundo: descobrir, apropriar-se, projetar-se no passado ou no futuro,
reparar, explorar, identificar, dentre outras.
O sentido da palavra terapia, para o autor, também precisa ser explicitado, pois são
muitas as compreensões para esta expressão. O cuidado propiciado por essa terapia
diferencia-se daquele oferecido pela medicina, que cuida do corpo; esta vai “cuidar do ser”.
Isto seria cuidar da liberdade e da abertura que provoca uma linguagem em movimento,
desfaz os “nós da linguagem”, das palavras encerradas em um único sentido, que “restitui a
vida, o movimento e o tempo no coração das palavras” (idem, p.21).
A proposta do autor de uma biblioterapia hermenêutica é a de que cuidar do ser é
cuidar do tempo, de seu equilíbrio na temporalidade da existência, e apóia-se na tese de Paul
Ricouer de que acessamos o tempo humano através da narrativa. Ouaknin é enfático em
defender que “a leitura não faz somente com que se saia da depressão, mas poderá, segundo
diferentes modalidades, tornar possível uma reinserção em uma temporalidade harmônica na
qual o futuro extrai sua força do passado e na qual a memória dá asas à esperança” (ibidem,
p.46).
Nessa esperança é que nos apoiamos em nosso trabalho: que tenhamos alcançado com
nossas narrativas essa experiência com os pais e com os alunos, embora se deva ter clareza de
que não podemos garantir nada sobre o que e como o outro pode interpretar a linguagem das
cartas.
Para encerrar esta apresentação das cartas em diferentes contextos, vale mencionar o
Livro dos porquês, de Rodari (1996) que conheci quando já realizava o meu trabalho do
“Correio”. Ele apresenta uma interessante coletânea de perguntas que reuniu a partir de uma
coluna de um jornal italiano em que respondia às dúvidas das crianças. As questões variavam
desde seus questionamentos acerca de atividades cotidianas, por exemplo, por que “comer,
estudar ou tomar banho”; passando por conflitos mais inusitados: “Por que sonhamos? Por
que meus pais prometem e não cumprem? Por que meus pais não ganham na loteria?”; até
profundas questões acerca dos dilemas humanos: “de onde viemos? Por que nascemos,
adoecemos ou morremos?”. Esse material é utilizado como preciosa referência em minhas
aulas para que os alunos possam conhecer um pouco mais da infância com base nas perguntas
que as próprias crianças fornecem. Além do que, o modo de responder do autor, que ora
escreve em “versinhos” poéticos e ora oferece informações ou explicações científicas,
61
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
conforme a temática abordada ou a idade da criança, é extremamente sensível, desprovido de
julgamentos e preconceitos e pertinente ao modo de comunicação falante que desejo ensinar.
2.8 Relação carta e reflexividade
São muitas as particularidades e as “alquimias” que eu poderia evidenciar sobre o uso
de cartas. Não busquei aqui esgotá-las, mas ressaltar alguns aspectos que considerei
relevantes para a reflexão sobre o projeto do “Correio” que realizei. Um último aspecto que
gostaria de enfatizar é a experiência que nomeei de reflexividade. Ou seja, a escrita das
missivas possibilita ao seu escritor voltar seu olhar para si mesmo, assim como receber uma
correspondência provoca no leitor um encontro consigo mesmo. Desse modo, o remetente se
transforma pelo gesto da escrita e o destinatário, pela leitura, pelo processo de reflexão que as
cartas potencializam.
Uma carta é capaz de mudar o dia de uma pessoa, de torná-lo agradável ou
insuportável; pode trazer uma informação, despertar sentimentos, provocar pensamentos e
pode modificar o modo como um pai se relaciona com seu filho, como pretendíamos em
nosso projeto.
Essa capacidade de transformação também já foi explicitada quando citei neste mesmo
capítulo a experiência de L. F. Barros e o seu processo de “perda e reconstrução de sua
identidade” por meio da escrita de sua autobiografia e das correspondências com outros
pacientes psicóticos, aquilo que nomeou de maiêutica das cartas. Ou ainda na obra de Paulo
Freire que, com suas Cartas pedagógicas, visava divulgar princípios e promover uma
educação libertadora.
As cartas, conforme já explicado por Comte-Sponville, facilitam a comunicação
silenciosa, caráter fundamental para a abertura à transformação e auto-reflexão que elas
possibilitam.
Ainda sob essa ótica, vale a pena retomar a tese defendida pelo rabino Ouaknin (1996)
da biblioterapia hermenêutica. Para ele, a leitura e a escrita são potencialmente terapêuticas
pelas possibilidades de interpretações que trazem, isto é, a possibilidade de encontro com
sentidos antes desconhecidos.
Esse foi um aspecto visível no processo de aprendizado dos alunos, pois as cartas
levavam a uma reflexão sobre si mesmos constantemente, aspecto que pretendo apresentar na
descrição do percurso de uma aluna.
62
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
CAPÍTULO 3
Cartas Vivas / A Experiência Vivida
Desinventar objetos. O pente, por exemplo. Dar ao pente
funções de não pentear. Até que ele fique à disposição de ser
uma begônia. Ou uma gravanha. Usar algumas palavras que
ainda não tenham idioma.
Manuel de Barros.
Ofereci pela primeira vez o estágio do “Correio”, a que me referi nos capítulos
anteriores, no primeiro semestre letivo de 2007. Imaginei uma forma de comunicação por
meio de cartas entre estudantes de Psicologia e pais/educadores que se iniciaria na recepção
da sala de espera da clínica de Psicologia, onde haveria uma urna que pudesse receber
perguntas de pais e educadores sobre questões relacionadas à educação. Propus-me a criar
com os alunos do quinto
semestre todos os procedimentos necessários para a concretização
dessa proposta: nome, divulgação do trabalho, instruções de funcionamento, enfim, todo o
processo necessário para que os alunos conhecessem as implicações da criação de uma ação
psicológica.
O estágio se realizou, na primeira experiência, em duas turmas de quinto semestre. Foi
interessante para perceber a diversidade dos dois grupos: nos interesses, na disposição, no
aprendizado e em todo o modo como se envolveram com a proposta. No segundo semestre de
2007, dei continuidade ao estágio com uma turma de alunos do sexto semestre, na disciplina
de Estágio Básico IV.
Ao longo desse ano, criamos e pensamos sobre algo que não existia na referida
instituição, algo que eu não tinha clareza do que era ou como se constituiria: estava em
processo de construção, tanto a atividade de orientação por meio de cartas quanto meu modo
de ensinar Psicologia Fenomenológica a partir desse recurso metodológico.
A seguir, relato como vivi essa experiência, o modo como se deu o estágio e descrevo
o meu procedimento nas aulas com os alunos de forma a explicitar minha metodologia de
ensino.
3.1 Construção de uma metodologia
Como exposto, dei início ao estágio do “Correio” no primeiro semestre de 2007 em
duas turmas do quinto semestre na disciplina de Estágio Básico III. Nesse semestre, fiquei
muito doente logo no início das aulas. Estive presente nas primeiras semanas de aula, mas em
63
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
seguida fiquei afastada por quase um mês. Este é um dado importante, em primeiro lugar,
porque no tempo em que eu estive de licença eles não tiveram aulas, o que provocou não só
desânimo nos alunos porque tinham expectativas em relação ao estágio, mas também revolta
com a coordenação que não providenciou um professor substituto. Quando retornei me
receberam com uma “quase” antipatia, principalmente em uma das turmas, que nunca tinha
tido aula comigo. Deu-se de modo muito interessante a desconstrução desse desânimo. À
medida que foram se envolvendo com as atividades propostas houve uma transformação na
afetividade deles comigo e no modo como se envolviam com o projeto.
Além disso, a licença médica é dado relevante porque significou uma experiência no
primeiro semestre com um tempo muito curto – apenas três meses para a realização do
estágio. Esse aspecto prejudicou o processo vivido pelo aluno no estágio, o que ficou claro no
final do semestre, pois exigiu deles uma intensa dedicação para que conseguissem terminar de
responder a todas as cartas que haviam chegado.
Foi muito interessante observar as mudanças na disposição e interesse dos alunos ao
longo do estágio, principalmente na relação que eles tinham com a disciplina de
Fenomenologia. Um encantamento surgia! Eu ainda não sabia identificar como e por que isso
ocorria.
3.2 Cenários de um projeto
A primeira tarefa que dei aos grupos foi pensar o modo como apresentaríamos o
projeto, ou seja, como o divulgaríamos, qual seria o nome, o que estaria escrito no cartaz de
apresentação, o que diriam as instruções, e, principalmente, como faríamos para preservar a
identidade de quem escrevia e, ao mesmo tempo, enviar uma resposta para a carta. Todos os
procedimentos deveriam ser criados e pensados à luz do pensamento fenomenológico,
buscando afinação aos princípios desse pensamento.
Orientei os alunos para que preparassem os textos, mostrassem a diferentes pessoas,
inclusive a possíveis usuários do projeto, isto é, a seus colegas de classe, parentes ou amigos e
companheiros de trabalho, para que recebessem críticas e sugestões sobre o que escreviam, e
como poderiam criar uma forma atraente e clara de apresentar o estágio. Nesse momento,
ensinava-lhes o princípio fenomenológico de “volta às coisas mesmas”, isto é, a atitude de
aproximar-se do cotidiano, da experiência vivida, para que esta se revele em suas
particularidades e necessidades. A importância dessa noção, ensinada desde o primeiro
semestre do curso, parecia não estar clara, não por terem faltado explicações e tentativas de
ensiná-la nas disciplinas do curso, mas, eu arriscaria dizer, por não terem exercitado ainda
64
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
esse modo de olhar. Procurava nessa atividade transmitir-lhes que estivessem abertos e
disponíveis para que o fenômeno se revelasse sem partirem de uma concepção prévia,
abstrata.
Não sabíamos como nos comunicaríamos com as pessoas, pois não poderíamos nos
corresponder com um grupo de pessoas sem ouvi-las, isto é, sem saber se o que estávamos
escrevendo fazia-lhes sentido. Procurava fazer com que eles se desprendessem dos “jargões
psicológicos” para que a comunicação se efetivasse de outro modo.
Nesse primeiro movimento, percebi o quanto imaginavam saber o que escreveriam, e
só foram pesquisar e perguntar às pessoas, porque eu insisti. Tínhamos feito em aula um
primeiro esboço das instruções do projeto com algumas sugestões para nomeá-lo. A partir daí
é que foram mostrar às pessoas e solicitar sugestões. Dois alunos, um em cada turma,
trouxeram relatos muito interessantes. Uma aluna contou a experiência de ter mostrado a
proposta a todos os funcionários da empresa em que trabalha, desde a faxineira até o chefe,
um engenheiro. Percebeu diferenças no modo de as pessoas compreenderem o projeto e
trouxe importantes sugestões para o trabalho e para a linguagem utilizada nas instruções para
que os alunos repensassem as instruções e pudessem criar o banner de divulgação. Assim,
criamos as instruções do projeto
30
, procurando uma linguagem simples, clara e coerente com
o método fenomenológico.
O outro aluno, cuja esposa era educadora de escola pública, também trouxe
comentários interessantes sobre a importância dessa prática, pois ela lhe disse que eram
fundamentais trabalhos para apoiarem os educadores, pois eles precisavam muito de
orientações.
Foram os próprios alunos que escolheram o nome para o projeto, depois de terem
discutido sobre vários: “correio psicológico”, “correspondências sobre educação”, “cartas
educativas”, “cartas de apoio educativo”, dentre outros. Após refletirmos em sala de aula
sobre o sentido de cada uma das palavras sugeridas e realizarem uma “enquete” com amigos e
parentes, a denominação escolhida foi “Correio Psicoeducativo”.
O contato dos alunos com as pessoas, ao exporem a proposta de uma atividade
psicológica via cartas foi animador. Eles perceberam a relevância do trabalho e se
entusiasmaram ao pensar que poderiam contribuir para a vida das pessoas.
Esse foi o primeiro movimento nítido de mudança que observei nas atitudes dos
alunos que esboçavam perceber a importância de uma atitude que busca desprender-se de
30
Ver anexo 01
65
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
conceitos a priori, para ir ao encontro “das coisas mesmas” como se revelam. Iniciava-se uma
atitude mais fenomenológica, pois rompiam com certezas prévias e tornavam-se mais
receptivos para a particularidade do que se revelava.
Pensar no modo como íamos devolver as cartas-pergunta foi um dilema. Para receber
as cartas de modo a preservar a identidade do remetente, colocamos a urna na sala de espera,
deixando os envelopes também ali para que os interessados pudessem usá-los. Contudo, como
devolver a carta e, ao mesmo tempo, preservar a identificação de quem nos escrevia? Como
avisar que a carta-resposta já poderia ser retirada ou como enviá-la de modo a preservar a
identidade do emissor? Ao mesmo tempo, para que as cartas pudessem ser utilizadas em uma
pesquisa ou para fins didáticos, seria necessário incluir uma autorização em que constasse o
nome e alguns dados dos remetentes. Como, então, manter a possibilidade do sigilo e a
necessidade de identificação?
Desse modo, disponibilizamos duas possibilidades de entrega, a ser escolhida por
quem escrevia: receber pelo correio ou deixar o telefone para receber o aviso de que poderia
retirar sua resposta com a secretária, na recepção da clínica. Apenas um dos remetentes
solicitou a retirada da carta na clínica, mas ao ser informado por telefone que poderia retirá-la,
solicitou que fosse enviada pelo correio, pois já não estava mais freqüentando a clínica. O
termo de consentimento
31
criado para autorizar a realização de pesquisas acadêmicas oferece
a possibilidade de não autorizar a divulgação, caso não se deseje. Para o aviso ou a entrega da
resposta, não seria necessária a identificação e, em caso de manter anonimato, sugerimos a
criação de um codinome. Todas as cartas que recebemos assinalaram a autorização para
realização da pesquisa.
Optamos também por deixar as instruções do projeto, bem como o termo de
consentimento e folhas de sulfite, dentro de envelopes ao lado da urna, junto a uma caneta,
acessíveis ao público que circulasse pela recepção da clínica.
Certa vez uma aluna, que já havia feito estágio sob minha orientação , me procurou
para dizer que tinha uma amiga que queria escrever uma carta, mas não poderia se identificar
e nem colocar seu endereço, pois os demais estagiários iam identificá-la. Orientei a não
escrever seu nome e criar um codinome e a não assinar o termo de consentimento. E como sua
amiga não queria receber a carta em casa, nem ir até a clínica para buscá-la, sugeri que
oferecesse seu próprio endereço. Percebi, mais uma vez, o quanto era fundamental para
algumas pessoas manter o seu anonimato, por mais que garantíssemos manter a identidade
31
O termo se encontra no anexo 02.
66
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
preservada. O termo de consentimento, de certo modo, impedia isso, mesmo que estivesse
escrito que não era necessário preenchê-lo, caso não desejasse.
No segundo semestre de 2007, ofereci pela segunda vez esse estágio e o grupo de
alunos ingressados, ao conhecer o projeto, questionou muito sua estética, isto é, a forma como
era apresentado e divulgado. A urna colocada na sala de espera era de madeira e sem
destaque. O cartaz para divulgação do “Correio” era escrito em letras de cor preta e branca.
As instruções eram longas e não chamavam atenção dos pacientes. Para eles, o modo de
anunciar o “Correio” não era visualmente atrativo. Assim, iniciamos o estágio revendo o
projeto e discutindo como reformulá-lo.
Vale dizer que esse grupo se configurava de modo misto, o que significa alunos
muitos interessados no estágio até aqueles que foram alocados sem que o tivessem escolhido;
alunos muito favoráveis ao olhar fenomenológico, até aqueles que discordavam radicalmente;
alguns já tinham muita familiaridade com esse modo de olhar, enquanto havia uma aluna que
nunca havia nem ao menos “ouvido falar” sobre essa metodologia, pois acabara de ser
transferida de outra faculdade
32
. Além disso, três alunas haviam sido estagiárias nesse mesmo
projeto no semestre anterior e escolheram dar continuidade ao aprendizado. Portanto, as
discussões para a reformulação do projeto traziam opiniões muito diversas e exigiam
paciência e tolerância, pois cada um pensava de maneira distinta sobre o que deveria estar
escrito no cartaz, que cores deveriam ser usadas, como deveriam pintar a caixa, enfim foi
muito difícil chegar a um consenso. Não foi fácil mediar tantas diferenças nos estilos de
apresentar o projeto e, em alguns momentos, tive de intervir limitando algumas sugestões. Por
exemplo, não condiz com nossa proposta de educação propor esse trabalho, como sugeriam
alguns alunos, como a “solução” ou “respostas para seus conflitos”, bem como realizar a
pintura da caixa com personagens de desenhos animados. A minha intervenção sempre se deu
de maneira a convidar o aluno a refletir sobre sua proposta, para que ele mesmo pudesse se
aproximar de uma atitude mais fenomenológica. Era apenas o início de uma postura reflexiva
que procurava ensinar.
No final, o resultado das discussões para reformulação do projeto foi satisfatório.
Decidiram pintar a urna de forma a deixá-la semelhante a um envelope, isto é, pintando-a
inteira de branco e realizando ao redor de toda a caixa uma moldura verde e amarela tal qual a
do “clássico” modelo de envelope. Escreveram na cor preta “Correio Psicoeducativo” e
32
O aluno que vem transferido de outro curso superior tem que fazer as “adaptações” para o currículo da
instituição para onde se transfere, mas cabe esclarecer que não há, nessa instituição em que trabalho, pré-
requisitos para as disciplinas e nem para os estágios, portanto o aluno pode cursar um Estágio Básico III sem ter
cursado nenhum anteriormente; o mesmo ocorre com as disciplinas de Fenomenologia I, II, III ou IV.
67
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
confeccionaram um novo banner
33
. Os dizeres foram definidos pelos próprios alunos e, para a
diagramação e impressão colorida, contaram com a ajuda de um publicitário, amigo de uma
das alunas.
3.3 A chegada das cartas
Após colocarmos a urna na sala de espera da recepção da clínica, demorou cerca de
um mês para que as primeiras cartas chegassem. Contudo, estas primeiras não foram
depositadas “espontaneamente” na urna, mas levadas pelos próprios alunos do estágio, que
retiravam os envelopes e entregavam para colegas, parentes ou amigos. Minha orientação era
de que o aluno “carteiro” daquela carta não poderia respondê-la e não participava da
discussão, mesmo quando as cartas eram apenas de “conhecidos” do trabalho
34
. Contavam-
me que, ao comentarem a respeito do estágio que realizavam, muitas pessoas se interessavam,
perguntavam sobre o funcionamento e até solicitavam o envelope para escreverem acerca de
suas dúvidas. Entretanto, muitos envelopes não voltavam. Esse também é um aspecto que
podia ser percebido na recepção da clínica, pois o número de envelopes colocados
semanalmente na sala de espera, destoava radicalmente do número de cartas recebidas.
Além das cartas depositadas pelos alunos, outras começaram, aos poucos, a chegar.
Foi um total de sete correspondências enviadas ao longo desses primeiros dois meses (maio e
junho), sendo quatro trazidas pelos alunos. Das demais, algumas eram de pacientes da clínica,
muitas vezes, de mães que estavam com seus filhos em atendimento. Soubemos isso por
“acaso”, ao ouvirmos estagiários e, até mesmo professores mencionando em sala sobre os
atendimentos realizados, coincidentemente, na mesma turma em que meus estagiários
estudavam. A questão ética foi muito discutida com os alunos, considerando-se as orientações
do código de ética dos psicólogos, para que as cartas fossem consideradas sigilosas.
No segundo semestre praticamente todas as cartas foram depositadas na urna por mães
ou por alunos da instituição, muitos das salas em que eu divulguei a proposta. Também houve
no grupo dois “alunos-carteiros” que espontaneamente levavam as cartas.
No total, recebemos 14 cartas ao longo dos dois semestres. O tempo de exposição da
urna na sala de espera da clínica, durante todo o ano, foi de aproximadamente seis meses. No
primeiro semestre, pelos motivos já expostos, a caixa ficou disponível cerca de dois meses.
No segundo semestre, ficamos um mês repensando o projeto para que fosse reativado e, em
33
O material pode ser encontrado no anexo 03.
34
Esta orientação foi dada por questões éticas e está melhor justificada no capítulo IV quando apresento de modo
detalhado o processo de ensino-aprendizado de uma aluna.
68
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
seguida, ficou disponível ininterruptamente até quase o final do ano letivo, portanto por três
meses.
Importa acrescentar que não me esforcei para que houvesse uma divulgação “em
massa” que gerasse maior procura pelo “Correio” – algo que a própria instituição queria
incluir em propagandas como parte de suas atividades sociais. Ao contrário, preocupava-me
bastante com a qualidade da escrita de cada carta e sabia do esforço e dedicação necessários
para responderem a cada uma delas. Temia pelo despreparo do aluno e não desejava receber
grande quantidade de cartas, até porque os alunos só tinham aula uma vez por semana e o
tempo era insuficiente para preparar o material. Nosso modo de divulgar foi propositalmente
através do cartaz colocado na sala de espera e pelos próprios alunos que participavam dos
estágios.
3.4 Procedimentos das aulas
Em síntese, os procedimentos metodológicos utilizados nas aulas nesses dois
semestres de supervisão dos estágios foram:
leitura das cartas e proposição aos alunos de estudo da questão apresentada, a
partir de pesquisa bibliográfica na internet, biblioteca ou demais recursos
midiáticos, por exemplo, em filmes. Nesse momento, eles podiam trazer “tudo” o
que encontrassem sobre o assunto, para em seguida iniciarmos uma discussão
crítica;
discussão e supervisão do entendimento dos alunos, buscando realizar uma
fenomenologia do conflito apresentado;
leitura de textos fenomenológicos de referência realizada ao logo do semestre;
procurava a cada aula ler trechos de textos ou livros adotados no curso;
supervisão constante das missivas em elaboração;
instrumentalização para o uso do “diário de bordo”;
ampliação do repertório cultural do aluno, aproximando-os de literatura escrita
para crianças, como os livros de Rubem Alves, Clarice Lispector, Ruth Rocha,
dentre outros, além da indicação e discussão de filmes. Sugeria ao aluno que
visitasse bibliotecas e livrarias, bem como eu mesma lia em sala de aula alguns
contos e histórias. A partir disso, estabeleci também como procedimento de
resposta, que cada correspondência deveria enviar uma sugestão sobre a questão
estudada, espaço na carta que denominamos de “Para saber mais”;
69
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
produção do “livro das cartas”
35
, ao final de cada semestre, em que eu juntava
todas as cartas recebidas e produzidas ao longo do semestre, como forma de
compartilhar entre todos os alunos do grupo de estágio, ou com os demais que se
interessavam, todo o material construído. O “livro” também se tornou um rico
material didático para as aulas de estágio, bem como um recurso “informativo”
para pais e educadores;
ensino da atitude fenomenológica que permeou todas as reflexões e
procedimentos do estágio.
Ao mesmo tempo em que os alunos pensavam sobre o funcionamento do projeto e
aguardavam a chegada das cartas, estudavam a infância e a educação, sob a perspectiva
fenomenológica. Na primeira vez em que ofereci o estágio, eu não tinha ainda a clareza a
respeito das questões que chegariam ao “Correio”, ou seja, se elas abordariam a infância,
embora já tivesse esta intuição. Entretanto, deixei em aberto a proposta para “questões
relacionadas à educação”, pois queria conhecer o que viria.
Aos poucos, fui percebendo que além das questões recebidas nas missivas serem todas
relacionadas à educação de crianças, não seria possível trabalhar com os alunos, por uma
questão de tempo, as diversas idades da condição humana, desde a infância até a juventude.
Portanto, foi também por uma questão didática que acabei delimitando o projeto para as
questões da infância, pois não conseguiria dar toda a formação necessária ao aluno para que
desenvolvesse um olhar crítico.
Quando uma das cartas chegava à nossa urna, eu a levava para a sala de aula e a lia
com os alunos. Aqueles que se interessavam por ela, voluntariamente formavam uma dupla,
ou no máximo um trio, e seria responsável por respondê-la. Interessar-se pela carta significava
estudar a respeito da questão abordada, realizar quantas versões fossem necessárias até que a
carta estivesse pronta e encaminhá-la, pelo correio, ao seu destinatário.
Após a leitura, levantávamos as temáticas principais da carta e, para a aula seguinte, o
grupo deveria iniciar uma pesquisa bibliográfica sobre a “problemática”. Essa pesquisa, que
realizavam na internet ou nas bibliotecas, visava fazer com que pudessem conhecer diversos
pontos de vista sobre o assunto e só, em seguida, realizávamos juntos uma análise crítica
sobre as propostas.
Em alguns momentos, em virtude da falta de tempo disponível para respondermos a
todas as cartas que chegavam, ou pelo modo como a discussão se encaminhava já na primeira
35
Os livros encontram-se no anexo 04 e 05.
70
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
leitura, muitas vezes marcada por preconceitos e julgamentos, antes mesmo de os alunos
realizarem a pesquisa bibliográfica em busca das diferentes compreensões para a questão eu já
realizava uma discussão apresentando um modo crítico de abordá-la. Procurava aproximá-los
de um olhar fenomenológico, o que significava estar disponível para o que se manifesta do
fenômeno em sua especificidade e mais consciente de seus preconceitos e julgamentos. A
supervisão deveria abrir um espaço para que pudessem questionar suas próprias atitudes e
pensamentos.
Ao longo dos estágios, percebi que, quando esse primeiro movimento de pesquisa
bibliográfica era feito sem nenhuma orientação, os alunos imediatamente recorriam a teorias
ou explicações causais e me apresentavam uma “solução”, uma “receita” para o que deveria
ser feito, em geral buscando excluir o sintoma mencionado como “problema” na carta. Ao
reconhecerem tais atitudes, a sensação de terem “perdido tempo”, em geral, os frustrou e os
deixou desapontados consigo e, muitas vezes, desmotivados em continuar a elaboração da
resposta. Exercitar o olhar fenomenológico exige o questionamento constante e um
amadurecimento que leva tempo e, muitas vezes, gera sofrimento nos alunos.
Ao longo do semestre, à proporção que eu refletia sobre a experiência que estava
vivendo, me pareceu que o melhor procedimento seria, desde a primeira leitura, realizar uma
breve discussão com os alunos sobre as questões abordadas nas cartas, já em busca de nos
aproximar do olhar fenomenológico. O texto que se segue vai detalhar os procedimentos
metodológicos utilizados nas supervisões para realizar as discussões das cartas e para iniciá-
los no olhar fenomenológico.
Iniciava a reflexão, baseando-me em experiências vividas por eles, das concepções a
priori que tinham sobre os conflitos, das teorias ou explicações que conheciam para que,
então, pudessem suspendê-las e “olhar com os olhos”, isto é, se aproximarem dos fenômenos
tal qual se revelam. Perceber a diversidade de sentimentos e vivências que surgiam somente
ali naquela pequena discussão entre eles ao apresentarem seus relatos, memórias ou teorias
conhecidas, já nos fornecia uma multiplicidade de opiniões que lhes provocava estranhamento
e incômodo. A angústia diante da impossibilidade de respostas às questões humanas era
visivelmente difícil de suportar, mas por estarem no 5º ou 6º semestres do curso e já estarem
mais familiarizados com o fato de não haver a Psicologia, aceitavam (melhor que os alunos
dos semestres iniciais) a idéia de não existir uma verdade única para as questões humanas.
Questioná-los em suas explicações causais ou no modo de olhar que prioriza um
sintoma ou uma teoria desenvolvimentista, é também deixar em suspenso a formação do
próprio curso e provocá-los a um outro modo de pensar as questões humanas. Partir de uma
71
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
postura mais aberta, que coloca entre parênteses as noções teóricas e entra em contato com a
vivência apresentada na carta, implicava em um modo diferente de pesquisar: deveriam
interessar-se por diversos modos de olhar, até mesmo por outras teorias, contextualizadas,
relativizadas, com seus contrapontos e na multiplicidade de modos de olhar para o tema
pesquisado.
Outro recurso utilizado foi a discussão a partir de perguntas feitas por pais em revistas
de bancas de jornal, especialmente a revista “Supernanny”
36
. Propunha discussão sobre as
respostas sugeridas pelas psicólogas, psicopedagogas ou educadoras da revista e, em seguida,
procurava exercitar o olhar fenomenológico àquela pergunta. Essas cartas foram utilizadas
como exercícios para sensibilizá-los e prepará-los para o estudo de temáticas relacionadas à
infância, como forma de iniciar os alunos para a escrita de missivas ou, ainda, como atividade
para aqueles que estavam mais despreparados.
Uma atividade que propiciou uma discussão muito interessante foi uma resposta
elaborada pela “Supernanny” (2006, ano 1, nº 7) à pergunta de uma mãe:
Mãe: – Admiro muito seu trabalho, e gostaria de uma ajuda. Meu filho Matheus tem
3 anos e 8 meses, e morre de medo de ficar sozinho em todos os lugares (sala,
quarto, banheiro...). Eu já fiz de tudo que achava viável: rezei, conversei, briguei,
expliquei. Enfim, cansei! O que posso fazer?
Supernanny: – As crianças passam por várias fases durante o crescimento, e uma
delas é o medo. É necessário observar do que ele tem medo e porque não gosta de
ficar sozinho. Um método interessante que eu levei para uma família foi o “Fiquem
ali”. Pedi que as crianças desenhassem em diversas folhas de papel, as coisas das
quais elas tinham medo, impedindo que ficassem sozinhas nos cômodos da casa.
Depois, peguei uma caixa e as fiz colocar os papéis nela. Levamos a caixa para fora
da casa e falamos para os medos: “Fiquem ali, e não venham mais nos incomodar”.
Foi uma brincadeira bastante divertida, e deu muito certo. Ou seja, acabaram-se os
medos. Vale a pena tentar com seu filho.
Depois de feita a leitura, provocava os alunos para interpretarem a proposta ali
apresentada: como a viam e o que nela percebiam. Em geral, até pela explícita postura
pragmática da educadora, os alunos conseguiam perceber a radical discrepância com o olhar
fenomenológico. Muitas outras cartas ou reportagens dessas revistas foram utilizadas como
36
Refiro-me à personagem da pedagoga Cris Poli que se tornou famosa na mídia pelo programa de televisão
denominado por “Supernanny”, cuja estréia ocorreu em Abril de 2006, dirigido pelo diretor Eduardo Perez e
apresentado pela emissora SBT (Sistema Brasileiro de Televisão). O objetivo do programa, inspirado na série
americana “Supernanny”, é “resolver o problema de pais despreparados e confusos com a educação”, conforme
informações no site www.sbt.com.br/supernanny/programa
. O reality show mostra as visitas que a educadora faz
à casa de pessoas que se inscrevem em busca de ajuda para a indisciplina das crianças. O programa tem
audiência altíssima e o sucesso é tanto que a personagem também já ganhou uma revista mensal na qual oferece
soluções para acabar com o estresse de atividades cotidianas como escovar os dentes das crianças. Além disso, a
educadora já lançou dois livros sobre educação infantil que se tornaram best seller em vendas.
72
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
exercício para ensiná-los a construir uma pequena “análise do discurso” sobre a carta. Muitas
diferenças são ressaltadas pelos alunos: em primeiro lugar, o tom e as expressões verbais
usadas sempre no imperativo diferenciam-se radicalmente do modo questionador, acolhedor e
não-valorativo presentes no discurso fenomenológico. Entretanto, apesar de explicitarem
críticas à solução “rápida e eficaz” apresentada pela psicopedagoga, de maneira geral, não
conseguiam justificar por que rejeitavam a ação praticada e nem propor um outro olhar. Esse
foi um importante aspecto trabalhado na formação dos alunos para que pudessem construir
um olhar crítico consistente.
Na discussão das cartas, orientações ou “dicas” trazidas pela “Supernanny” eu
procurava abrir um espaço de reflexão sobre sua proposta sem que a julgássemos a priori. Em
seguida, procurava explicitar os princípios nas quais a atitude dela se apoiava. Na discussão
especificamente dessa carta, a noção de causalidade ficou evidente ao propor à mãe que
procurasse saber por que ele não gosta de ficar sozinho e do que teria medo. Detectar a
“causa” do problema seria o meio de evitar e prevenir o resultado “medo”. Trata-se de um
olhar explicativo causal, que foca a ação para a extinção do sintoma, sem que a criança seja
olhada como uma totalidade, e que permeia o olhar de um adulto “realista estrito senso”, isto
é, extremamente “objetivo” em seu modo de conceber a situação. Além de este ser um olhar
que exclui a “subjetividade” da situação vivida, recusa-se também a perceber o modo próprio
da criança de olhar para o mundo, permeando-o de fantasia, imaginação e afetividade. O que,
aliás, é um paradoxo na resposta proposta pela apresentadora, pois ao mesmo tempo em que é
realista no modo de crer na resolução da questão, utiliza-se de um recurso imaginativo próprio
da criança, que abre margem para que, por exemplo, ela questione a solução dizendo que os
seus medos não ficarão lá fora, pois são desobedientes, espertos, tem “super poderes”,
conhecem estratégias para voltarem, dentre muitas outras inteligentes respostas que
poderíamos imaginar serem ditas pelas crianças.
A compreensão que a “Supernanny” demonstra para o medo é de que ele é parte de
uma fase do desenvolvimento da criança, o que denuncia uma concepção da criança em
termos de fases e faixas etárias que devem ser superadas em um sentido progressivo, como se
crescer, ou tornar-se adulto, fosse alcançar uma condição melhor do que a da fase anterior. O
tempo da criança, seus medos e atitudes são vistos como uma preparação para algo (uma
condição melhor) que ainda deve ser atingido. Além disso, evidencia uma interpretação
equivocada das próprias teorias desenvolvimentistas que não propõem o medo como uma
fase, pois o concebem como um aspecto do humano. Muitas teorias psicológicas propõem que
as crianças têm medos imaginários, como os de fantasmas ou do escuro, e seriam esses os que
73
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
desapareceriam na idade adulta. Do ponto de vista fenomenológico, o medo deve ser
compreendido como um sentimento do humano, uma expressão ou manifestação de quem se
sente ameaçado, frágil, indefeso, enfim, muitas possibilidades estão sendo expressas. Acima
de tudo, medo é um sentimento que faz parte da infância tanto quanto a alegria, o choro, as
brincadeiras, etc. Conversar e procurar fazer com que a criança se sinta segura, certamente
seria uma proposta fenomenológica, mas isso significa dizer que um modo pessoal terá que
ser encontrado para que se possa cuidar e conversar com aquela criança especificamente.
Embora a proposta exercida pela “Supernanny” seja oposta ao modo fenomenológico,
é importante ressaltar que não procurava realizar uma análise valorativa de suas atitudes. Não
nos cabe dizer se é certo ou errado o que ela propõe ou condenar o seu trabalho; não sabemos
como os pais podem fazer uso das orientações. Não seria fenomenológico cairmos em uma
postura maniqueísta de qualificar como “bom” o olhar fenomenológico, versus “mau” as
propostas da “Supernanny”. Portanto, exercer a atitude fenomenológica é, mesmo diante
daquilo que podem nos parecer orientações incorretas, como mentir para uma criança, por
exemplo, procurarmos exercer um olhar de forma a suspender nossos julgamentos. Isto não
significa concordar com a proposta da “Supernanny”, ou com qualquer outra formulação
teórica, e sim perceber que se trata de um ponto de vista parcial, incompleto, questionável,
porém possível.
Não posso deixar de dizer que esse era um desafio constante a ser alcançado com os
alunos, e inclusive comigo mesma, que tinha que me controlar para não “torcer o nariz” e
julgar pessoas ou afirmações, enfim, exercer a atitude fenomenológica, me despir dos
preconceitos para conseguir me aproximar da correspondência enviada que já indicava
preocupação com uma criança, busca por ajuda e, em geral, revelava sofrimento.
Outro instrumento que sugeri para aproximar o aluno do fenômeno estudado foi o uso
do “diário de bordo”, recurso utilizado pelos antropólogos em estudos etnográficos. Numa
caderneta, os alunos deveriam anotar suas observações cotidianas a respeito da temática
estudada, impressões, sentimentos, dúvidas, angústias, enfim, tudo aquilo sobre o qual iam se
debruçar. Conforme explicitei no capítulo anterior, raramente o aluno fez uso desse
instrumento, pois como não era algo que eu “fiscalizava”, não se tornou prioridade nas
atividades. Em alguns outros estágios em que utilizei tal recurso, iniciava as aulas solicitando
a leitura de uma descrição fenomenológica de uma situação observada, relacionada à temática
estudada. Mas neste estágio “das cartas”, o tempo era sempre tão mais curto do que o que
precisávamos, apenas um encontro semanal com cerca de três horas de duração, que eu
74
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
mesma não conseguia encontrar espaço, pois pareciam ser necessidades menos urgentes do
que as de responder às cartas e estudar as temáticas que nos eram sugeridas.
Referências metodológicas utilizadas no ensino-aprendizado dos alunos
Um dos primeiros textos que li com os alunos no estágio tratava da questão da
linguagem a partir da concepção proposta por Merleau-Ponty, escrita em um pequeno livro
introdutório ao pensamento deste autor por Paulo S. do Carmo (2000).
Estudar a linguagem como modo de nos comunicarmos e o valor das palavras para a
linguagem foram aspectos centrais do curso e, por isso, buscados continuamente, ou seja, todo
trabalho que realizamos se dá por meio dela.
Discutia as noções de Merleau-Ponty para a linguagem falada, em contraposição à
linguagem falante. A linguagem falada é repetitiva e repleta de clichês, uma linguagem
abstrata, em que as palavras muitas vezes são conceitos genéricos; é a linguagem utilizada
para formular os arcabouços teóricos, a linguagem do “nós”. A linguagem falante é a
linguagem do “eu”, aquela que propicia a criação de um novo sentido, que toca, desestabiliza,
enfim, uma linguagem em que as palavras ganham múltiplos significados, cujos sentidos são
polidos à exaustão para que possam “provocar” aquele que com ela se comunica.
A linguagem poética aproxima-se da linguagem falante; na poesia, as palavras ganham
novos significados, tal como nos apresenta José Paulo Paes (2000):
Poesia
É brincar com palavras
Como se brinca
Com bola, papagaio, pião...
Como a água do rio
Que é água sempre nova
Como cada dia
Que é sempre um novo dia
Vamos brincar de poesia?
Nas cartas, buscávamos alcançar a linguagem falante para provocar no leitor uma
reflexão diferente: a valorização de uma atitude questionadora em detrimento de uma
linguagem prescritiva e genérica.
Embora isto não significasse que a poesia propriamente dita estava presente nas cartas,
ensinar o aluno a escrever poeticamente era propor uma linguagem e, conseqüentemente, uma
compreensão que se opunha às respostas “prontas”, às abstrações, mas que se propunha a uma
75
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
reflexão imaginativa e criativa em oposição à genérica “ciência da criação dos filhos”
37
. Por
isso, muitas vezes a poesia, a música, uma obra de arte, o cinema e outras expressões
artísticas, foram utilizadas como modo de apresentar um outro modo de conhecimento acerca
da experiência humana, bem como para enriquecer o repertório cultural deles e familiarizá-los
com essas linguagens. Tais recursos, em geral, tocam e sensibilizam os alunos de modo
peculiar e se mostraram como um importante recurso,, se bem utilizado.
A poesia, afirma o escritor Affonso Romano de Sant’anna
38
, é uma atividade vital,
presente em todas as culturas, um modo de comunicação pela qual, por meio de metáforas se
explodem o significado das palavras e seus sentidos cotidianos.
Criar essa linguagem, buscar esse modo de narrativa nas cartas escritas pelos alunos
foi meu desafio. A linguagem fenomenológica utilizada nas correspondências, descritiva e
sem julgamentos, deveria ser simples e acessível, abrindo mão de conceitos ou jargões da
Psicologia, pois precisava se comunicar com o público remetente.Em suma, uma linguagem
escrita que quer ser oral, um diálogo que busque romper com a dicotomia fala e escrita. As
cartas seriam uma forma de exercitar essa narrativa com os alunos e, ao mesmo tempo, essa
atitude. Entretanto, ensiná-los a escrever fenomenologicamente, de modo descritivo e
compreensivo, mostrou-se uma tarefa árdua que exigia tempo, dedicação, paciência,
tolerância e persistência, tanto do aluno, como do professor.
Escrever para o outro é ao mesmo tempo pensar e exercer este olhar de que o que
podemos oferecer aos pais é uma atitude diferente em relação aos seus questionamentos: uma
atitude de observação mais detalhada da situação ou comportamento que questiona, maior
disponibilidade e tolerância para se adaptar às necessidades das crianças e para deixar que ela
se revele em seu modo pessoal de ser; um esforço disciplinado para se afastar de preconceitos
que não deixam que a situação seja vista de outro modo. Mas, esta é também a atitude a ser
ensinada ao aluno, que muitas vezes quer ser “eficiente” e não suporta que a Psicologia possa
não responder aos apelos daquele que sofre.
Isto quer dizer que há muito trabalho pela frente para ser construído com os alunos, ou
ainda, “desconstruído”; suas crenças e informações prévias a respeito da infância e educação,
além de expectativas a respeito da Psicologia, para que possam se tornar mais acessíveis para
exercitar o pensamento fenomenológico.
37
Empresto esta expressão de Winnicott (1999) que fez severas críticas à Psicologia e psiquiatria que ensinavam
e fundamentavam “cientificamente” o que deveria ser feito pelos pais, propondo também um olhar que se
voltasse para o “auxílio individualizado” no cuidado com os filhos.
38
Refiro-me à entrevista concedida pelo poeta à psicóloga Bia do Lago no programa “Umas Palavras” do Canal
Futura.
76
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
Sobre a concepção fenomenológica de educação revi com os alunos alguns aspectos já
discutidos no decorrer do curso, na disciplina de Fenomenologia IV, um dos quais se refere à
essência da educação que está na possibilidade de relacionar-se, tornar-se consciente de seu
próprio modo de aprender, ou seja, buscar o sentido de nossas ações.
Um dos primeiros textos lidos com os alunos a respeito da infância foi um capítulo do
livro Cacos de infância, de Marina Marcondes Machado (2004), que apresenta o modo
fenomenológico de olhar a infância, fundamentado em Merleau-Ponty. A autora trabalha de
modo mais acessível ao aluno as concepções merleau-pontianas para o estudo da infância,
tomando por base os dois volumes dos resumos dos cursos na Sorbonne (Merleau-Ponty,
1990a e 1990b), escritos a partir das aulas do autor sobre Psicologia e Pedagogia infantil.
As reflexões fenomenológicas acerca da infância surpreendiam os alunos, já
condicionados pelo olhar desenvolvimentista, pelo ensino da psicanálise, pelos princípios da
análise do comportamento e permeados pelas crenças e saberes arraigados no imaginário do
senso comum: a “natureza” infantil dividida em etapas, o complexo de Édipo, a concepção de
desenvolvimento infantil como uma fase precária inferior que ainda vai evoluir para o
desenvolvimento do adulto. Vale acrescentar que, ao longo do curso de Psicologia, nas
disciplinas do núcleo comum, em nem um momento, o olhar fenomenológico para as questões
da infância foi anteriormente trabalhado. Tais concepções se explicitavam nas discussões
realizadas em sala, mas também nas primeiras versões das cartas escritas pelos alunos aos pais
e educadores:
(...) grande demonstração de sentimentos que possivelmente sua filha deve
expressar nestes desenhos (...) sendo que crianças, em grande maioria, não sabem
se expressar através de palavras e muitas delas buscam formas pessoais para
expressar sentimentos como carência, medo, sofrimento, alegria e tristeza.(...).
*
(...) E considerando esta idade em que ela se encontra, é um período difícil e de
grandes confusões de sentimentos e dúvidas; então uma conversa o fará
compreender o que se passa em sua mente e o porquê de suas atitudes e estas
distrações que tanto te incomodam. (...)
Também utilizei como referência para o estágio o livro Conversando com os pais, de
Winnicott (1999) que, em muitos trechos, aproxima-se do modo fenomenológico de pensar.
Vê-se isso nos objetivos de sua proposta de realizar conferências para pais pelo rádio:
“desintoxicar a ciência da criação dos filhos, incutir-lhes confiança quanto ao que estão
fazendo e permitir que dispensassem auxílio individualizado ao depararem com um obstáculo
na cuidado com os filhos” (1999:X).
77
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
Entretanto, em certos momentos, a bibliografia indicada também foi questionada, por
exemplo, no modo como o autor propunha a estruturação do sentimento de segurança ou a
constituição do “eu”, concepções que serviam de contraponto para nossa reflexão e
construção de um modo fenomenológico de pensar.
Os objetivos propostos por Winnicott se assemelham à proposta do “Correio” que não
visa ser uma Psicologia prescritiva, ou uma psicopedagogia que ofereça um manual aos pais,
e sim um trabalho que procura oferecer reflexão sobre a educação, na medida em que tenta
torná-los mais permeáveis e sensíveis aos modos de ser da criança. Pretendi ensinar um modo
de olhar que reconhecesse a criança, e mesmo o bebê, como pessoa que deve ser cuidada e
respeitada em sua singularidade.
Assim, à medida que procurava iniciar os alunos nesse modo de olhar, por meio das
leituras, estudos, exercícios e discussões, acreditava prepará-los para responder as cartas-
pergunta.
Continuamente, como já referi, busquei ampliar o repertório cultural do aluno,
apresentando-lhes algumas obras clássicas da literatura escrita para crianças de excelentes
autores, a saber, Clarice Lispector, Rubem Alves, José Paulo Paes, Mário Quintana, dentre
outros. Meu objetivo era sensibilizá-los à criança, por meio da linguagem literária e da poesia,
e oferecer a eles, aos pais e educadores, um recurso metodológico que se aproximasse do
modo de ser da criança.
Para pensarmos sobre o modo de ser da criança, e a maneira de construirmos uma
Psicologia fenomenológica da infância, precisamos atentar para o que ensina Merleau-Ponty
(1990a e 1990b). Primeiramente, precisamos esclarecer dois pressupostos que, segundo o
filósofo, são erros daquilo que nomeou como “psicologia clássica”: o de que existe uma
“natureza infantil” e de que elas vivem em um “mundo próprio”. Segundo o autor, o objetivo
de uma “nova psicologia” é “reintegrar a criança ao conjunto do meio social e histórico no
qual ela vive” (1990b, p.221). Portanto, crianças e adultos habitam o mesmo mundo, embora
o percebam e o apreendam de modos diferentes. Para entendermos tais diferenças, Merleau-
Ponty esclarece que a criança deve ser compreendida como polimorfa, característica que
permite na criança a coexistência de possibilidades, pois está entrando em contato com sua
formação cultural e desde o início já está em relação com seus semelhantes.
Outra precaução importante para a qual o autor aponta é para a noção de realismo,
pois o adulto se encontra nesta perspectiva e, erroneamente, parte deste pressuposto para
compreender a vivência das crianças. Apresenta o autor que a criança vive um corpo
78
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
fenomênico, indiviso, anterior à unidade intelectual e ao realismo. Ela está “aquém do lógico”,
em uma experiência pré-objetiva que se refere a uma primeira organização do mundo.
Para nos aproximarmos da maneira como a criança percebe o mundo, um dos
caminhos possíveis, conforme propõe Machado (1998, 2007), pode ser buscado na poesia, já
que os poetas procuram criar novos mundos e mergulhar em experiências inusitadas, nas
quais a imaginação ganha espaço. Manuel de Barros (2006) afirma que em suas poesias
procura alcançar o “criançamento das palavras”. Muitos são os poetas que declaram aprender
com as crianças sobre a poesia: Carlos Drumonnd de Andrade, Clarice Lispector, José Paulo
Paes, dentre outros.
Assim, com esse intuito foi que busquei a literatura, a poesia e o cinema. Todavia,
realizar uma leitura crítica da literatura poética foi necessário. A cada aula lia uma história
com eles, para ajudá-los a refletir sobre os autores e suas diferenças em relação a outras
vertentes da bibliografia infantil, dentre as quais podemos mencionar: temas existenciais
abordados nestas histórias em oposição à visão “protetora” de fragilidade da criança; nítida
postura de respeito pela criança e sua não-infantilização; a criatividade e a fantasia
valorizadas como modos de ser da criança; o inacabável das histórias permite que cada um
crie seu final ou que ocorra um novo início da história; enfim, busca-se o diálogo, um modo
de comunicação que repercuta.
O mesmo também ocorreu com os filmes autorais e de circuitos alternativos que foram
sugeridos aos alunos, como “A maçã”, “Ser e ter”, “Liam”, “Minha vida de cachorro”, “Billy
Elliot”, dentre outros. Trata-se de filmes que discutem conflitos existenciais a respeito do
nascimento, vida e morte. Em alguns momentos, principalmente nas indicações que serviriam
também aos pais, fizemos uso de filmes mais hollywoodianos que poderiam ser mais
facilmente encontrados. Era necessária uma análise criteriosa para a escolha dos filmes, visto
que procurávamos aqueles que se assemelhassem à nossa proposta de reflexão e
questionamento sobre a educação e os dilemas da vida.
Acabei por inserir em todas as cartas, como um procedimento no modo de respondê-
las, indicações e sugestões de filmes ou livros a respeito do conflito explicitado. Contou-me
certa vez uma aluna, cuja amiga utilizou por duas vezes o nosso “Correio”, que ela teria lhe
dito que as indicações tinham sido o aspecto mais interessante das missivas que recebera.
Neste sentido, evidenciou-se como conseqüência de nosso trabalho a importância de irmos
criando uma rede de encaminhamento para outras áreas e serviços de atendimento à saúde ou
educação, indicações de referências bibliográficas para leituras, bem como de filmes, espaços
de lazer e convivência.
79
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
Para tal, além de fazer uso do pequeno banco de dados sobre serviços públicos da
cidade de São Paulo, disponível em nosso Centro de Formação, propus aos alunos que
iniciassem um levantamento acerca de histórias e filmes para que fôssemos montando uma
espécie de “acervo” ao qual pudéssemos recorrer e indicar. Apesar de tê-los incentivado
muito para que fizessem isso, não foi suficiente, pois a maior parte deles não realizou
nenhuma leitura extracurricular sobre o assunto e só realizavam suas pesquisas bibliográficas
quando necessitavam, ou seja, para a elaboração de suas próprias cartas-resposta. Por outro
lado, também entendo que isso evidencia que eles mesmos não tinham ainda recursos
suficientes para saírem em busca de construir e selecionar as próprias bagagens que
colocariam em nosso baú. É necessário maturidade para realizar uma seleção e eles ainda
estavam sendo apresentados às histórias e a um outro estilo de filmes que tinha que lhes serem
oferecidos nas próprias aulas.
Contudo, vale a pena citar o desempenho de uma aluna, em especial, que se dedicou
de forma diferenciada e que se propôs, espontaneamente, em todos os seus finais de semana, a
visitar uma biblioteca ou livraria e resumir uma história, algo que me apresentava em seus
relatórios semanais; ou ainda, a assistir a um filme, ir visitar seus sobrinhos ou ir a espaços
públicos freqüentados geralmente por crianças, como parques ou praças públicas, buscando
dessa forma se aproximar do e se familiarizar com o contexto vivido pelas crianças na cidade
de São Paulo.
Tempo disponível, tempo necessário e tempo vivido no projeto
A maior parte das cartas-resposta levava cerca de um a dois meses para serem
elaboradas e enviadas. Isso significa que o tempo para a escrita das cartas era muito maior do
que considero adequado para atender à pergunta do remetente, que muitas vezes, mostrava
urgência em ser atendido. O tempo disponível em sala de aula era muito menor do que o
tempo necessário para a realização do trabalho. As aulas têm freqüência semanal, porém
muitas vezes os alunos ainda são iniciantes no estudo da temática proposta, que requer
investimento e dedicação para que possam se introduzir no pensamento fenomenológico.
Muitas vezes a escrita do aluno é demasiado rudimentar e requer muitas correções. O
aluno, em geral, não se dedica a pensar aquela questão em nenhum outro momento além do
período da sala de aula, não apenas por falta de interesse ou dedicação, mas, principalmente,
pelo modo de vida que levam, uma vez que muitos trabalham mais de oito horas por dia,
estudam à noite, moram muito longe de onde estudam e, em geral, ainda cuidam das tarefas
domésticas e dos filhos.
80
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
Se a lentidão para responderem às cartas, por um lado me preocupava pela expectativa
gerada no remetente, além de ser inevitável pelos dos motivos já citados, por outro lado, isto
demarcou para o aluno a necessidade de uma postura reflexiva e meditativa diante das
questões humanas, em contraposição à atitude de prontidão e pragmatismo tão valorizados
pelo pensamento tecnocrata.
Refletindo posteriormente sobre tal questão, encontramos
39
uma maneira criativa para
lidarmos com o tempo necessário à preparação da carta e com a espera dos educadores por
ela. Desde o momento em que a recebíamos, o aluno responsável por desenvolver a carta-
resposta já enviava uma primeira correspondência para o remetente, avisando que a missiva
tinha sido recebida e que estava refletindo sobre as questões e que, em breve, receberia um
retorno para sua pergunta. As cartas enviadas durante o período de preparação poderiam
servir não apenas para aliviar a ansiedade pela resposta, como para buscar mais informações
acerca da questão e provocar a continuidade da troca de correspondências. Esta sugestão está
sendo introduzida no estágio que se iniciou no primeiro semestre de 2008, experiência que
não incluí aqui porque neste período já estarei finalizando a escrita deste doutoramento.
Valor da comunicação por cartas
A última carta do primeiro semestre que recebemos foi trazida por uma aluna, minha
supervisionanda em outro estágio a qual, quando eu divulguei a proposta, imediatamente se
interessou e procurou saber como funcionava o “Correio”. Ela depositou a carta na urna,
inclusive sem que eu soubesse, e não conversamos sobre isso em nenhum dos encontros que
tivemos ao longo do tempo em que ela ficou aguardando a resposta. Somente após ter
recebido a sua carta-resposta, me procurou para agradecer, dizendo que “a carta trouxera
muita emoção à sua família” (sic).
Também para mim e para os alunos, a carta a que a aluna mencionada nos enviou foi
especial pela particularidade da pergunta. Das sete cartas que recebemos nesse primeiro
semestre, foi a que mais me ajudou a perceber a especificidade da proposta. A carta narra a
situação seguinte: uma moça teve um envolvimento rápido com um rapaz, “apenas ficaram
(sic), e por engravidar, chegou a procurar o rapaz, mas ele se “evaporou” (sic). Teve o bebê, e
sua família a apoiou. Depois do nascimento da criança, como arranjasse um trabalho próximo
39
Refiro-me a uma sugestão feita pela minha orientadora, profª drª Heloisa Szymanski, em orientação ao meu
trabalho.
81
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
à casa de uma tia, foi morar com ela. Todos na casa se apegaram muito à criança e ela ficou
morando com eles por mais de um ano. O trecho a seguir foi extraído dessa carta
40
:
Hoje, essa criança está com 2 anos e 6 meses, e ela e sua mãe voltaram a morar na
casa de seus avós. Faz uns 3 meses que ela passou a chamar um de seus primos
(que morava no seu antigo lar) de pai. Este rapaz tem 31 anos e é solteiro e não se
incomoda com isso, já que sente muito carinho por ela. Sua avó fica com medo
que isso futuramente gere algum problema para esta criança, visto que seu primo
não é o legitimo pai e quando a criança o chama de pai ela lhe diz que ele não é
seu pai e sim primo/tio.
A criança chora quando isso acontece. Sua mãe está sem saber o que fazer, deixa
essa criança continuar chamando de pai ou não?
Note-se que essa carta trouxe uma pergunta muito mais delimitada que todas as
demais que recebemos. De maneira geral, as dúvidas
41
diziam respeito a aspectos muito
complexos da educação e da infância. No entanto, essa questão nos levou a uma reflexão: será
que tal dúvida faria com que a mãe (ou a parente que escreve) procurasse uma clínica
psicológica? Observo que a aluna não procurou os demais serviços oferecidos pela clínica e
sim a nossa urna. A questão é uma dúvida pontual e talvez, por isso, do meu ponto de vista,
não justificasse psicoterapia. Mas, evidencia uma situação de sofrimento e diz respeito a
relações fundamentais da criança com seus pais.
Nossa resposta para a carta buscou questionar o sentido da palavra “pai” e o que é “ser
pai”, mais do que responder com uma instrução afirmativa ou negativa. A questão envolve
crenças a respeito do que entendemos por ser pai e diz respeito a questões complexas de nossa
origem. Perguntamos, então, o que se estava considerando como um “verdadeiro e legítimo
pai”? Explicitamos a concepção de que pai, do ponto de vista biológico, é aquele de quem
“herdamos” nossa carga genética e parecia ser esta a que estava sendo priorizada por elas.
Mas, por que será que estariam considerando mais legítimo o pai consangüíneo do que o
escolhido pelo coração da criança?
Partimos do princípio de que a criança tem direito à verdade, portanto, é fundamental
que saiba que seu primo não é o seu pai-biológico; a criança já sabe disso e, mesmo assim,
deseja chamá-lo de pai – portanto, já o tem simbolicamente como pai: será que estavam se
dando conta disso?
Apresentamos alguns questionamentos sobre o que estariam concebendo por pai: pai
também não é aquele que ama, se dedica, cuida e assume a responsabilidade por outro ser que
depende em muitos aspectos dele? Não era nosso intuito desconsiderar que a criança tem um
40
A carta pode ser encontrada na íntegra no anexo 4, carta nº7.
41
Descreverei de modo mais aprofundado as dúvidas apresentadas pelos pais no Capítulo V.
82
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
pai que a gerou, mas procurar mostrar que ela parecia já ter escolhido como pai alguém que
lhe dá atenção, carinho e que, principalmente, tem uma relação de afeto com ela. E que, se
olhássemos para o que a criança estava mostrando, perceberíamos que ela demonstrava a
necessidade de ter um pai e não parecia se importar se é um “pai consangüíneo” ou um “pai
do coração”.
A carta caminhou nesta direção, buscando questionar crenças prévias que tinham a
respeito do que seria ser pai, o que seria o “certo” a ser falado, de modo a propor um caminho
reflexivo sobre a questão apresentada, enfatizando um olhar menos pragmático à
complexidade das questões humanas, e uma atitude de maior abertura e disponibilidade para
aquela criança, naquela situação, enfim, em sua pessoalidade
42
.
Esta correspondência evidencia um caráter diferente das demais que recebemos, visto
que a maioria continha perguntas sobre questões amplas que não poderiam ser esgotadas em
uma carta e para as quais, em geral, não existem respostas, pois se referem aos mistérios da
complexidade humana. Entretanto, vejo nessa carta algo que justifica a existência dessa forma
de comunicação e a diferencia de outras práticas psicológicas e educativas. A pergunta que foi
feita não chegou a nenhuma outra modalidade de atendimento psicológico da clínica, o que
me suscita duas hipóteses: a primeira de que a pessoa poderia não querer se expor, ou até
mesmo não ter tempo para tal, e nesse sentido, o “Correio” mostra-se relevante por sua
possibilidade de estar disponível a qualquer momento e por poder preservar o anonimato, mas
o segundo motivo poderia ser em decorrência do julgamento dado à pergunta, de que poderia
ser insignificante, “boba” ou pouco importante.
Sobre o segundo aspecto mencionado gostaria de fazer algumas considerações.
Percebo, de forma geral, em minha prática profissional de atendimento comunitário ou de
atendimento em consultório, que, quando uma pessoa, uma mãe ou educador procura um
psicólogo, especialmente da população de baixa renda, é por considerar que algo muito grave
está ocorrendo. E de modo geral, as questões já estão provocando grande sofrimento quando
se procura o atendimento psicológico, quase como o “último recurso”. Certamente este é um
dado complexo e está relacionado a múltiplos aspectos, dentre eles, a compreensão midiática
que se tem do psicólogo, bem como a questões históricas, quando a Psicologia tinha suas
ações prioritariamente voltadas para a loucura. Apesar das práticas psicológicas terem se
“popularizado”, no sentido de estarem mais próximas do cotidiano das pessoas, ainda há
42
A carta e as propostas feitas aos adultos podem ser conhecidas na íntegra no anexo 4. Esta, bem como as
demais cartas anexadas, são fundamentais para a compreensão de diversos aspectos apresentados nesta tese.
Portanto, tais anexos não tratam de algo secundário ou dispensável para a compreensão deste trabalho.
83
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
muitas fantasias em torno da atuação do psicólogo e, por isso, muitas vezes, as pessoas
relatam vergonha de procurar um profissional ou de contar que estão freqüentando tais
serviços.
Se tal avaliação acerca do psicólogo ainda é presente, considero também ser mais
difícil que as pessoas procurem a Psicologia para orientações que consideram simples, ou que
qualifiquem como banais, por mais que na prática do psicólogo tais julgamentos não caibam.
Se a vergonha em torno das questões psicológicas ainda parece gerar tanto incômodo, a
proposta das cartas ganha relevância por esse espaço que possibilitam.
Nesse sentido, é uma prática que contribui para que a Psicologia esteja inserida no
cotidiano, próxima à realidade vivida pelas pessoas em seu dia-a-dia, exercendo de modo vivo
ao que se propuseram os primeiros fenomenólogos da existência, Sartre e Merleau-Ponty, no
início do século XX, uma filosofia “de carne e osso”: de volta às coisas mesmas.
Perspectiva de educação vivida
O caráter educativo desta proposta deve-se não somente pelo foco das questões
abordadas nas correspondências serem relacionados à educação, mas por tratar de uma prática
que busca amparar, oferecer apoio, orientação e um espaço de acolhimento aos educadores e
também, por seu modo de olhar e compreender ser educativo, ou seja, busca acompanhar de
modo próximo o desenrolar de uma situação, procurando favorecer que o aprendizado ocorra.
Esse modo de olhar aproxima-se da atitude proposta por Kierkegaard de nobre reserva
(Lopes, 1993), em que se busca proteger o outro em sua espacialidade existencial tentando
“estar sempre lá sem parecer e deixar a criança desenvolver-se por si própria sob esta
vigilância atenta. O cúmulo da arte é abandonar o mais possível a si mesma e, nesta aparente
liberdade, segui-la passo a passo sem que ela o note” (Kierkegaard apud Lopes, 1993, p.63).
A atitude de nobreza, atrelada à reserva, sugere um atributo do espírito que permite a
expansão da liberdade. A educação existencial é a arte de co-estar.
A educação a que nos propusemos nas missivas procura oferecer cuidado, mas na
medida em que muitas vezes devolve a pergunta ao seu remetente, propondo-lhe uma nova
atitude diante da questão, exerce um papel educativo que difere da concepção pedagógica
usual de uma educação prescritiva. Embora a expectativa de quem procura um educador tenda
a ser encontrar uma resposta ou um programa de condicionamento eficiente que atinja o
resultado esperado, aqui estamos partindo de uma outra concepção de educação. Algo que se
aproximaria da expressão criada por Juliano Pessanha (2002) para referir-se à obra
heideggeriana: a proposta de uma “pedagogia” da perfuração.
84
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
Segundo Pessanha, a “britadeira-Heidegger” vem questionar todo o pensamento
ocidental, de Parmênides até Heidegger, por ter permanecido “preso ao modelo do ver
teorético” (2002:124). E complementa acerca da proposta heideggeriana:
É o próprio pensamento, portanto, que sofre uma metamorfose, pois ele, longe de
ser a busca de um fundamento inabalável, implica agora num poder permanecer
em trânsito constante pela linha de fronteira. E é preciso, talvez, uma espécie de
pulmão-anfíbio a fim de interrogar que trânsito e que movimento é esse que faz a
passagem do abismo a casa e que, bifurcando, vincula as possibilitações ao
impossível (2002, p.129).
É uma postura “pedagógica”, portanto, que visa implodir e perfurar conceitos e idéias
arraigadas, no caso de Heidegger refere-se à metafísica ocidental, em nosso caso, às práticas e
sistemas educacionais previamente estabelecidos. Nossa proposta “pedagógica” também
buscou não sugerir um “fundamento inabalável” e a, como propôs o autor, “transitar
constantemente” pelos conflitos e “abismos” do processo educativo.
Não posso deixar de mencionar a angústia que provoca tal atitude, pois a proposição
de um olhar questionador e inacabado traz a impossibilidade de oferecer uma resposta que
acalme ou solucione, ao contrário, muitas vezes suscita mais dúvidas. Freqüentemente, vi o
desconforto transformar-se rapidamente em agressividade ou em outras reações que
evidenciavam o incômodo diante da impossibilidade de se encontrar alívio para os conflitos;
aspectos que apresento como inerentes à condição humana.
É o momento em que cabe exercitar também a disponibilidade, a tolerância ao tempo
do outro e de respeitar, inclusive, o seu direito de querer encontrar certezas que possam
satisfazer suas necessidades e fragilidades de nossa existência. Entretanto, quando não
forneço uma “receita” ou solução aos pais, estou afinada com a perspectiva fenomenológica
que não parte de um olhar para a criança em função de uma expectativa geral que ela
“deveria” ter atingido; busca conhecê-la em sua particularidade; ao invés de buscar controlar,
aceita a imprevisibilidade; ao invés de propor uma explicação, busca mergulhar em seu modo
de ser; ao invés de dizer o que ela não faz ou não é, procura observar o que faz e quem é.
Enfim, se a educação tal como muitas teorias a concebem funda-se no princípio da
causalidade, linearidade e possibilidade de controlar os comportamentos humanos, temos um
outro trabalho a semear, uma outra possibilidade a oferecer: a da educação como prática para
reflexão. Uma perspectiva que está em acordo também com a proposta educativa dialógica de
Paulo Freire (2002): uma educação que visa libertar o educando para o diálogo.
85
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
Recentemente, em um simpósio
43
no qual apresentei este trabalho, um dos
participantes me questionou se esta atuação não geraria muita angústia
44
nos pais e se eu não
considerava isso ruim. Respondi que a proposta não é gerar angústia, e sim, reflexão, mesmo
que uma das conseqüências seja que a angústia permaneça (angústia inclusive que já existe), e
que provocar o questionamento não significa gerar insegurança ou sentimento de
incapacidade aos pais. Ao contrário, não apresentar uma “solução” pronta, por outro lado, é
empatizar com seu sofrimento, é lhes dizer que sabemos que não é fácil e que o “melhor” que
poderão fazer, em última instância, é cuidar de seus filhos, algo que se dá de um modo muito
particular e próprio a cada um deles e que exigirá muita tolerância, paciência e dedicação.
Penso que o vazio suspensivo da narração pode ser criador, pois a espera pode ser
criadora. Como propõe Ouaknin (1996:55): “o vazio narrativo deve tornar-se o local do
Acontecimento, emergência radical do novo, fraturando a imobilidade do ser e do presente
(...) como que um apelo por ar, sopro de novidades, apelo de apelos: apelo ao jogo, apelo ao
sonho, apelo ao pensamento, apelo ao tempo (...) língua e identidade em movimentos”.
Se conseguirmos nos aproximar do “vazio suspensivo-narrativo”, estaremos nos
permitindo o acolhimento, a receptividade e a abertura para lidarmos com os conflitos
educativos.
Vale novamente retomar a proposta de Hannah Arendt, brevemente apresentada no
Capítulo I, que se contrapõe à concepção moderna dada à educação de ser um instrumento de
profissionalização ou de instrução individual, pois sua essência é o ato de iniciar os novos
num mundo comum e público de heranças simbólicas e materiais, um processo de iniciação
das crianças e jovens que zela pela permanência de uma herança pública e, ao mesmo tempo,
por sua renovação.
Para a autora, e está em acordo com nossa proposta de orientação educativa: "a
educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-
las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos" (Arendt, 2001, p. 247). Há aqui,
portanto, explicitamente a proposição de que a relação a ser estabelecida entre adultos e
crianças é uma relação assimétrica, do ponto de vista dos saberes e responsabilidades, em que
aos adultos cabem deveres perante as crianças, posto que são seres com pouca experiência,
43
Refiro-me ao VII Simpósio Nacional de Práticas Psicológicas em Instituição/ Fronteiras da ação psicológica:
entre saúde e educação. PUC/SP, Outubro, 2007.
44
O termo angústia tem um sentido muito diferente do usual no pensamento fenomenológico, especialmente para
Heidegger. O participante aqui, provavelmente, utiliza o termo com o significado de ansiedade. Eu respondi
mantendo o mesmo sentido, embora aqui também me refira ao sentido existencial de angústia, a que temos como
condição.
86
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
novas no mundo, como propõe Arendt. Todavia, é uma relação que, pelo ponto de vista ético,
aponta para a horizontalidade na relação adulto-criança.
Desse modo, embora ainda esteja cedo para buscar compreender as especificidades
desta proposta e deste modo de se comunicar entre estudantes de Psicologia e educadores,
posso dizer que seu intuito era constituir-se como um modo de oferecer o olhar da Psicologia
Fenomenológica para as questões da educação aos pais e educadores, de forma a configurar
um espaço de “escuta”, acolhimento, atenção e orientação, ciente de sua especificidade e
limites.
A proposta das cartas não visa substituir outras formas de atenção psicológica, como a
triagem, a psicoterapia, os grupos de orientação, as palestras, etc. Apenas é mais um modo de
comunicação que pode ocorrer entre psicólogos e pacientes, neste caso especificamente entre
estudantes de Psicologia e educadores, marcado pela particularidade de ser através de cartas.
Nos capítulos seguintes, vou refletir sobre a experiência vivida pelos alunos que fizeram o
estágio e pelos pais que utilizaram o projeto, de forma a pensar as especificidades das
experiências às quais me propus.
87
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
CAPÍTULO 4
Fenomenologia do processo de ensino-aprendizado vivido pelos alunos
(...) uma história narrada pode significar o mundo
com tanta “profundidade” quanto um tratado de
filosofia. Nós tomamos em nossas mãos o nosso
destino, tornamo-nos responsáveis, pela reflexão,
por nossa história, mas também graças a uma
decisão em que empenhamos nossa vida (...)
Merleau-Ponty
Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece
que são inventadas.
Manuel de Barros
Nos capítulos anteriores, procurei apresentar a fenomenologia da criação deste projeto
de estágio. Pretendo neste capítulo descrever a fenomenologia do processo de ensino-
aprendizado de Psicologia Fenomenológica vivido pelos alunos, assim como a história
vivenciada por eles, ou seja, conhecer, como propõe Merleau-Ponty, a essência das
experiências vividas por eles e refletir sobre o uso de cartas como perspectiva metodológica
para o ensino de Psicologia Fenomenológica.
Buscar a essência de uma experiência é:
(...) uma maneira tal de apreendê-las que estas experiências adquirem
uma significação universal, intersubjetiva e absoluta. É necessário apenas
que eu não me limite a viver estas experiências, mas também lhes distinga
o sentido ou significação (...). De modo que, se eu conseguir destacar de
minha experiência tudo o que ela implica, tematizar minha vivência deste
momento, alcanço alguma coisa que não é singular nem contingente, mas
que é (...) sua essência. (...). (Merleau-Ponty, 1973, p. 28, grifos meus).
E completa o autor: “(...) A visão das essências ou ‘Wesenchau’ é, para Husserl
justamente a explicitação do sentido ou da essência a que a consciência visa e para a qual se
acha orientada. (...)” (idem, p.28, grifos meus).
Compreender uma situação fenomenologicamente é buscar um sentido que pertence,
em parte, ao próprio mundo objetivado e, em parte, a alguém que procura compreendê-lo.
“Ele [sentido] é, ao mesmo tempo, compreensão (alguém que o compreende) e
compreensibilidade (algo que pode ser compreendido), em um nexo indivisível, vivido”
(Solymos, 2002, p.2, grifos da autora).
88
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
Portanto, conhecer a estrutura da experiência vivida é buscar olhar para como os
alunos percebem, compreendem, interagem e experimentam o mundo, como significam suas
experiências. O significado está relacionado ao peso, valor, ao sentido que é dado pela pessoa
aos acontecimentos em sua vida, seu modo de compreender. Aquilo a que Merleau-Ponty
apontou como condição do homem: “estamos condenados ao sentido” (1994, p.18, grifos do
autor).
Para conhecer o sentido dessas experiências, respaldei-me na atitude fenomenológica:
conhecer essa realidade em uma abertura, procurando me despir de noções a priori sobre o
fenômeno estudado.
*
Uma das experiências mais interessantes que testemunhei nos semestres em que
supervisionei os estágios, foram os sentimentos suscitados nos alunos ao se depararem com
um pedido do outro, no caso mães, pais, educadores, parentes, etc. A surpresa, angústia e
aflição diante do início de uma atuação, mais propriamente psicológica, e aos deveres e
responsabilidades desta ação, os mobilizaram muito. Tais sentimentos podem ser uma
experiência transformadora, se o aluno se abrir para o contato com o outro.
Nesta experiência, percebi que ante a responsabilidade de terem de se posicionar como
estudantes de psicologia para a elaboração de uma “resposta” para os educadores, sentiam-se
angustiados e impotentes. Há aqui uma mudança muito visível naquilo que, como professora,
pude observar em relação a todas as demais experiências de estágios anteriores. Talvez pela
primeira vez, tenha aparecido tão nitidamente, em alguns alunos, a percepção de que não
sabem o que dizer. De maneira geral, os alunos se mostraram como pessoas muito sensíveis
ao sofrimento do outro e interessadas em ajudá-los. Alguns, inclusive, já iniciam o curso
considerando-se psicólogos “prontos”, seja pela crença em um dom inato, ou pela experiência
com algo que já exerçam, por exemplo, por serem pastores de igrejas.
O reconhecimento de suas próprias limitações versus a percepção da complexidade das
questões humanas, pode ter um efeito importante no profissional em formação, quando bem
trabalhada. Uma das orientações que recebiam é para que estudassem mais e, em geral, o
fazem, pois sentem a necessidade. Muitas vezes, vejo alunos pela primeira vez, até aquele
momento do curso, dedicando-se aos estudos e à pesquisa. Eles pediam indicações de textos,
buscavam na Internet e nas bibliotecas material para enriquecer seus trabalhos com outras
fontes de referências: a angústia e a impotência, acompanhada pela vontade de ajudar,
acabavam mobilizando o aluno, e um de seus movimentos era a busca pelo conhecimento.
89
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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Portanto, um dos aspectos mais gratificante desta proposta de estágio foi ter a
oportunidade de refletir com o aluno aspectos da prática profissional do psicólogo que
transcende o conhecimento estudado, isto é, as necessidades e habilidades pessoais de cada
um e o modo como isso pode nos afetar, e afetar o outro. A biografia de cada um, suas
crenças, seus valores, preconceitos e recursos pessoais, são aspectos que se relacionam à sua
capacidade de compreender o pedido feito pelos educadores nas cartas e de elaborar as
respostas.
Cupertino (2001) em sua experiência com formação de estudantes de psicologia a
partir de oficinas de criatividade, também ressaltou a necessidade de se trabalhar esse aspecto
na formação do aluno: “O psicólogo tem apenas a si mesmo, sua capacidade de
descentramento, de estranhamento, de paciência (...)” (2001, p. 17). E continua a autora: “Não
é uma mera aplicação linear do conhecimento adquirido (...) exige, acima de tudo, a
mobilização de uma variedade de recursos pessoais (...)” (idem)
Descentramento, estranhamento e paciência são atitudes importantes para que se possa
exercitar o olhar fenomenológico que busca “voltar às coisas mesmas”. A abertura, a
disponibilidade para o espanto e a capacidade de suspender crenças, teorias e valores prévios
são experiências fundamentais para que possam se aproximar do outro, de quem ele é e do
que procura, para além daquilo que esperamos ou do que podemos oferecer. O conhecimento
acadêmico, os afetos, emoções e sentimentos pessoais precisam ser redimensionados para que
possam facilitar e permitir o encontro com o outro. Cupertino ressalta enfaticamente: “Nossa
prática depende, em grande medida, daquilo que somos, além daquilo que sabemos” (ibidem,
p.16).
Nesse sentido, o estágio do “Correio” mostrou-se um momento em que podíamos
refletir sobre as experiências e necessidades particulares para que os alunos se dessem conta
de tais aspectos. O contato com o conflito do outro e com os seus, vividos e trabalhados no
contexto da supervisão, constituiu-se como um espaço fértil de diálogo, reflexão e
transformação com os alunos. O caminho do autoconhecimento e da valorização das
habilidades pessoais pôde ser discutido e explorado nas supervisões, de forma a que pudessem
incorporar essas percepções ao seu aprendizado, e conseqüentemente, às suas ações.
Ainda sobre o valor da supervisão, Morato (et al) propõe que seja um espaço para
promover encontros onde experiências podem ser compartilhadas e interrogações
possam ser formuladas ou reformuladas. (....) a ocasião para elaborar a experiência
vivida na prática de um ofício cria aberturas para ajudar o profissional para, a partir
daquilo que faz e como faz, compreender sua atividade de inserção em contexto de
mundo mais amplo (1999, p. 223).
90
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
Os autores apontam para a necessidade de se discutir o sentido de supervisão
45
visto
que esta se tornou uma atividade institucionalizada para garantir o controle de práticas e o
poder de um ofício. Tentei, em acordo com suas propostas, abrir um espaço nas supervisões
para o diálogo, questionamento e transformação, aproximando-o do “jogo de espelhos”
apontado pelos autores.
Percebi também nos sentimentos suscitados nas supervisões mais uma diferença em
relação aos demais estágios por mim realizados: a angústia, impotência e responsabilidade do
contato com o outro, para o aluno, provocavam uma “desorganização” muito maior do que o
contato com as reflexões incitadas pelos textos ou reflexões filosóficas. O questionamento, a
sensação de incapacidade e impotência, quando bem lapidadas, podem ser um rico material
potencializador de habilidades importantes no psicólogo. O contato com um pedido do outro,
com seu sofrimento e com o fato de se verem, às vezes, pela primeira vez em todo o curso,
sendo solicitados para que contribuam com seus “saberes psicológicos”, teve um poder de
convocar o aluno para a responsabilidade e para o estudo que foi algo impressionante e
surpreendente. E ainda, mobilizou seus recursos pessoais e a necessidade de compreendê-los e
explorá-los diante do pedido do outro. Trabalhar com as cartas mesmas, ao invés de lidar com
questionamentos hipotéticos, propiciou um interesse no aluno como nunca antes eu havia
visto.
De maneira geral, as expectativas dos alunos no início do estágio eram as mesmas dos
pais, qual seja, esperavam encontrar todas as respostas para a “boa” educação. Foi um
processo lento e gradual alcançar um outro modo de pensar e refletir sobre tais questões. Para
se aproximarem do pensamento fenomenológico é necessário um lento processo de
questionamento do modo causal e mecanicista de pensar que, conforme já mencionado,
estamos impregnados. Além do que, exercitar e se apropriar desse modo de olhar é algo que
se mostrou muito complexo aos nossos alunos. Foram muitas as tentativas e formas que
procurei para facilitar e potencializar essa atitude e sobre elas vou discorrer a seguir.
*
Procurei lapidar no aluno, ao longo do estágio, a linguagem que Merleau-Ponty (2002)
denominou de linguagem falante, buscando que exercitassem uma linguagem que passa dos
“signos” da linguagem adquirida “ao sentido” (2002, p.32). Na linguagem falante, as palavras
ganham significados e significações que as alteram e as transfiguram para dar uma
45
Ainda sobre o sentido do trabalho desenvolvido em supervisão com alunos, é interessante também o trabalho
de Morato (1989).
91
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
significação nova capaz de me transformar. Segundo o autor, esta linguagem rompe a relação
cotidiana que temos com as palavras, tocando-nos de modo diferente, um convite para
(...) aquele que escuta ou que lê, a descobrir nele mesmo significações que já
estão aí. É o artifício pelo qual o escritor ou o orador, tocando em nós essas
significações, faz que emitam sons estranhos, que parecem a princípio falsos ou
dissonantes, e depois nos alia tão bem a seu sistema de harmonia que doravante o
consideramos como nosso. Então, dele a nós, não haverá mais que puras relações de
espírito a espírito. Mas tudo isso começou pela cumplicidade entre a fala e seu eco,
ou, para usar o termo enérgico que Husserl aplica à percepção de outrem pelo
“acasalamento” da linguagem.
Nas cartas buscávamos a possibilidade de como expressão da linguagem alcançar com
os leitores uma relação de “cumplicidade” e “acasalamento”. Uma relação em que esta
missiva interpelasse o leitor “desprevenido” dirigindo-o para alterar as significações já
disponíveis a uma significação nova de modo a estabelecer no espírito do leitor “a ilusão de
tê-la compreendido por [si] mesmo: é que ela [o] transformou e tornou-[o] capaz de
compreendê-la” (Merleau-Ponty, 2002, p.35).
Meu trabalho com os alunos para exercitarem tal expressividade se deu por meio da
linguagem poética, da imaginação e da memória, de modo a favorecer ao aluno tornar-se
narrador de sua própria experiência ou do que estudava.
Nesse sentido, apresentar outros modos de escrita que não fossem estritamente
informativo, jornalístico ou cientificista, mas que valorizassem outros aspectos de descrever a
experiência humana fez-se necessário. Trabalhar com poesias, histórias, contos ou demais
literaturas foi um recurso freqüente para ampliar seus modos de escrita e buscar que se
aproximassem da linguagem falante.
Fazer isto era, ao mesmo tempo, ensinar a habilidade de compreender e descrever uma
situação para além do julgamento ou da teorização psicológica. Ao escreverem, por exemplo,
a pais que perguntavam sobre a “agressividade” de seu filho, manter-se em uma atitude
descritiva e numa linguagem falante seria estabelecer uma experiência de expressão com os
pais que procurasse não julgá-los, mas refletir sobre a situação, procurando se aproximar de
todo o contexto vivido e da experiência da criança. Um modo de olhar que buscasse descrever
e compreender a situação de forma a levar o outro a refletir e encontrar um sentido novo para
a experiência que tem, muitas vezes de modo cristalizado.
A linguagem que deveriam buscar exercitar nas cartas, a qual procurei ensinar, era
uma linguagem descritiva e sem julgamentos; linguagem acessível ao outro, sem teorizações
ou abstrações, afastando-se do “psicologuês” para comunicarem-se com o “coração” do outro.
92
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
Melhores iam se tornando as cartas dos alunos quanto mais eles conseguiam se aproximar
desta linguagem.
4.1 Reflexões sobre o ensino-aprendizado de Psicologia Fenomenológica: o processo
vivido por uma aluna
Refletir sobre o processo de ensino-aprendizado dos alunos não é tarefa simples. A
experiência vivida por mim e por eles é muito mais rica do que a minha compreensão, e mais
ainda do que esta narrativa. Todavia, há algumas questões que podem ser mencionadas para
dar luz a esta indagação e contribuir com esta reflexão.
Para isso, escolhi pensar o percurso de aprendizado de um dos alunos, de forma a
apresentar, desde o início até o final do projeto, a sua trajetória, caminho que possibilitou me
aprofundar no estudo desse processo de aprender. Elegi uma aluna específica, por ter tido o
privilégio de acompanhar de forma próxima sua aprendizagem, devido a dedicação com que
realizou o estágio por dois semestres. Utilizei como material para esta análise seus relatórios
semanais
46
, seus dois relatórios finais, as cartas-resposta elaboradas por ela e sua atitude,
reflexões e diálogos estabelecidos comigo, e com seu grupo de estágio, ao longo desse
processo.
Poderia ter escolhido outros alunos, pois muitos foram aqueles em que pude observar
o aprendizado e cujas mudanças de atitude foram significativas. Contudo, a aluna, que aqui
chamarei de Sara
47
, destacava-se dos demais por sua dedicação e esforço para realizar com
qualidade todas as atividades (tarefa difícil de ser cumprida, em geral, pois, conforme já
detalhado, há alunos que trabalham mais de oito horas por dia antes de chegarem à
Universidade) e por ter se mostrado extremamente envolvida com o trabalho. Evidenciava
prazer pelo aprendizado, paciência pela elaboração (e reelaboração) constante de suas
atividades, assiduidade e participação em todas as aulas, além de evidenciar “paixão” pelas
ações do estágio.
46
Os relatórios semanais são uma exigência institucional no qual o aluno apresenta a cada aula uma síntese
descritiva da atividade de estágio realizada naquela semana. O relatório final deverá incluir todos os relatórios
semanais, os fichamentos dos textos lidos além da elaboração da experiência de estágio em um formato
semelhante ao de um projeto de pesquisa (segundo o modelo acadêmico estrito senso), incluindo introdução,
objetivos, metodologia, discussão e conclusão.
47
A aluna, bem como todos os demais alunos do estágio, já haviam autorizado o uso deste material para a
pesquisa. Todavia, ao encerrar a escrita deste capítulo, eu o entreguei a ela para que comentasse e verificasse se
estava de acordo com minhas observações e análises. Ela não quis acrescentar ou retirar nada ao capítulo e
modestamente disse-me que eu deveria também ter falado do aprendizado de outros alunos, pois teria
enriquecido mais o trabalho.
93
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
Quando Sara iniciou o primeiro estágio supervisionado por mim, na disciplina de
Estágio Básico III, já havia realizado um estágio fundamentado na teoria da Análise do
Comportamento e um outro na perspectiva da Psicologia Fenomenológica
48
. A experiência no
estágio em Fenomenologia a tinha “emocionado muito”
49
. Interessava-se pelo olhar
fenomenológico desde as disciplinas iniciais, mas, em seu relato, deixou claro que as aulas de
estágio é que foram fundamentais para seu “encantamento” pela Psicologia Fenomenológica.
Ressaltou a oportunidade de ter conhecido a “entrevista reflexiva” (Szymanski, 2004) como
um instrumento de pesquisa e como um modo de “perceber a importância da narrativa como
forma de acessar a história do outro”. Sua vivência no estágio anterior em Psicologia
Fenomenológica sensibilizou-a para o “olhar poético dado à mãe”, pelo “respeito” e valor à
singularidade dada à experiência humana.
Sua escolha pelo meu projeto se deu, então, por sua mobilização anterior em conhecer
e se aprofundar no pensamento fenomenológico, bem como por ter assistido a uma palestra
que proferi, em que discuti o filme “Janela da alma”
50
. Dessa experiência, vivida mais de um
ano antes do estágio, ela tinha memorizado “empatia” por minha postura e “vontade em
conhecer mais” o meu trabalho. Posteriormente, revelou que, desde que entrou na faculdade,
havia se interessado pela área da educação e de projetos sociais, pois é extremamente
engajada em trabalhos comunitários em um bairro da periferia.
Assim, escolhi a referida aluna, pois percebia nela um perfil comum ao dos demais
alunos da instituição, mas, ao mesmo tempo, uma sensibilidade e dedicação raras de serem
vistas.
Na experiência de implantação do projeto, mobilizou-se para conhecer a opinião de
outras pessoas, apresentando e divulgando o “Correio”, em acordo com o princípio de ir de
“volta às coisas mesmas”, em movimento de abertura e questionamento constante para poder
ir ao encontro do modo de olhar das pessoas e procurou se despir de preconceitos e idéias
prévias, para se aproximar de outras experiências. Suas sugestões e contribuições foram
essenciais para pensarmos nosso projeto, conforme já relatei no capítulo anterior.
Foi ela também a aluna a trazer nossa primeira carta, enviada por uma amiga do
trabalho. Uma das primeiras discussões que fizemos foi sobre a impossibilidade de ela mesma
participar da discussão e elaboração da carta, pois envolvia uma questão ética. Sua amiga já
48
Refiro-me ao estágio oferecido pela profª Luciana Szymanski Gomes: “A voz da mãe: fenomenologia da
gestação e do nascimento”. Não conheço em profundidade esse projeto de estágio e nem a experiência vivida
pela aluna. O que interpreto foi pelas poucas falas da aluna a respeito desta vivência.
49
As palavras aqui entre aspas são expressões dela que reproduzo.
50
Direção de João Jardim e Walter Carvalho, distribuído por Europa Filmes, 2002.
94
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
tinha lhe dado a carta para que ela lesse antes, então conversamos sobre a importância dela
poder oferecer à amiga um espaço de sigilo, diferente das conversas que tinham: ali
buscávamos um outro modo de olhar e abordar a questão, um olhar profissional, psicológico,
fundamentado na Psicologia Fenomenológica. Desse modo, deixaria a amiga mais à vontade,
e a ela também, e se separaria desse papel de ser a “amiga estudante de psicologia” que tinha
as “respostas”. Foi nítida sua compreensão. A carta seguinte que depositou na urna, ainda
nesse semestre, era de um colega de trabalho, e ela me avisou que era de um amigo e que não
poderia participar da discussão. No semestre seguinte, trouxe novamente uma
correspondência desta amiga e, dessa vez, fez questão de não ler antes, apesar de a amiga
insistir que “não teria problema”.
Um relato interessante que Sara trouxe foi sobre o retorno que recebeu a respeito das
cartas de seus amigos. Contou-nos que a primeira amiga, assim que leu a carta-resposta
agradeceu, “adorou” e disse que ia mostrar ao pai de seu filho e à mãe dela. Entretanto, com o
amigo conviveu por meses e ele nunca lhe falou sobre o assunto. Relatou-nos que tinha que se
“segurar” quando o via para não perguntar nada. Sabia que a postura ética seria não perguntar
a opinião dele sobre a carta, mas desejava imensamente, e esforçou-se para nunca fazê-lo. Um
dia, já no estágio do segundo semestre, chegou muito feliz narrando que o amigo tinha ido
espontaneamente agradecer pela carta que tinha recebido e que a carta o tinha ajudado muito.
Essa experiência foi fundamental para ela e para o grupo de estágio, que compreendeu
a importância de uma atitude de respeito pelo outro, pois foi essa postura que deu ao outro a
possibilidade de poder escolher falar, ou não, sobre isso.
Uma reflexão muito interessante que a aluna escreveu em seu relatório, ainda no
primeiro semestre, que evidencia como ela estava sendo mobilizada pelo estágio e como
minhas reflexões ecoavam nela, foi um questionamento muito íntimo que descreveu de seu
contato com as crianças:
(...) o que é que eu sei da realidade infantil? Teorias? O que é que eu sei? Não tenho
irmão mais novo, não tenho filhos... Meus sobrinhos, por questões do próprio
cotidiano, da vida mesmo, não cresceram perto de mim. Nunca trabalhei com
criança, não tenho contato com crianças... Não que não gosto delas, mas é que sei lá
por que, elas não apareceram na minha vida, não fizeram parte da minha existência
de forma concreta. O que eu sei sobre elas é somente por teorias, metodologias e
nada mais: Desenvolvimento Humano I e II, Psicanálise Infantil, Neuropsicologia,
Estágio em Fenomenologia da Gestação, Teoria sobre o comportamento infantil na
perspectiva da Análise do Comportamento (...). Teorias são tudo o que eu sei sobre
as crianças. Pergunto-me então: como é que eu vou desenvolver e responder estas
cartinhas se eu não me deparei com a realidade? O que eu sei são somente teorias,
excelentes notas em provas e trabalhos. Mas, e a prática? Como é que eu utilizo
95
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
estes conhecimentos adquiridos? Como é que eu entro em contato com esta
realidade?
51
Preocupações, crises, dúvidas, questionamentos, conversas e muitas reflexões foram
geradas, comigo, com o grupo e com ela mesma a partir do que vivia no estágio. No segundo
semestre, a aluna relatou que estava seguindo minha sugestão de “aproximar-se
antropologicamente do fenômeno estudado”: buscaria conhecer cada vez mais as crianças,
seus brinquedos, objetos e situações que vivenciavam. Por iniciativa sua, pois não era uma
atividade obrigatória, e sim sugerida, ficaria mais com seus sobrinhos e procuraria toda
semana ler um livro ou assistir a um filme relacionado à infância. Registrou em seu relatório
que sempre achou que não tinha “afinidade suficiente” e que tinha muita dificuldade para “ser
tia”, mas que agora estava aprendendo muito com eles e percebia seu crescimento.
Sua atitude revelou a saída de uma postura prévia de fechamento, idealização, medo,
para uma postura de abertura, consigo mesma e com o outro. Cresceram, puderam e poderão
aproveitar mais desse encontro: ela, seus sobrinhos, pais, educadores e crianças.
Mostrava-se estar de acordo com aquilo que líamos nos textos trabalhados em aula,
com a postura que eu procurava semear:
O que é um bebê? O que é um menino de dez anos? Já fomos bebês e crianças, mas
não sabemos mais responder – somos adultos; resta a observação cuidadosa,
generosa, um olhar atento e palavras que possam ser modos de expressar o que se
viu... e o que não se vê (...) (Machado, 2004, p.32)
Ao final do primeiro semestre, relatou-me sua experiência de trabalho comunitário e
sua percepção de ter sentido maior necessidade de fundamentar esses trabalhos. Sentia que
estavam “superficiais” e que precisava de maior embasamento. Escreveu-me, então, um e-
mail no período de suas férias escolares, solicitando-me que lhe indicasse referências
bibliográficas fenomenológicas em práticas comunitárias. Mais uma vez, sua atitude
demonstrava interesse, envolvimento, comprometimento e reconhecimento da necessidade de
se “aperfeiçoar”. Em suas narrativas revelou que o contato com o estágio a tornou mais
“consciente” de sua responsabilidade profissional, levando-a a perceber a “seriedade” e a
“grandeza” desta profissão.
Outra atividade que a aluna realizou ao longo do estágio foi a participação em dois
congressos, apresentando nosso projeto do “Correio”. Foram as primeiras apresentações da
51
O trecho é uma passagem retirada do relatório do 1º semestre da aluna. Realizei algumas pequenas correções
gramaticais procurando manter o texto o mais próximo possível do original, mas evitando deixar aqui registrados
alguns erros gramaticais cometidos pela aluna. O mesmo será feito nos demais trechos dela e dos alunos que vou
usar neste trabalho.
96
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
aluna, e de outros do grupo, em congressos acadêmicos
52
. Participou ativamente de todo o
processo: o planejamento e escrita do texto, inscrição e apresentação do trabalho, assumindo,
espontaneamente, um papel de liderança e porta-voz do grupo. Ela demonstrou segurança e
contou-me em seus relatórios que se apoiava na confiança de seu aprendizado: sabia ter sido
bem preparada para isso.
Nosso trabalho, no primeiro evento citado, foi apresentado junto aos de alunos do 5º
ano e para muitos professores da instituição. Ao término, foi muito elogiado e outros alunos
lhe solicitaram o e-mail para contato. No outro evento, eu acompanhei a apresentação e já a
relatei, brevemente, no Capítulo 3.
Sobre esse segundo encontro vale registrar a alegria com que a aluna descreveu, em
seu relatório, sua experiência. Ressaltou ter sido uma oportunidade de encontrar com autoras
que ela só conhecia pelos textos, como as professoras Heloisa Szymanski e Elza Dutra.
Narrou que “jamais poderia imaginar um dia vivenciar uma situação privilegiada”.
Complementou: “é muita emoção para uma pequena aluna”. E, ressaltou sentir-se “percebida
e escutada de maneira igual”.
Certo dia, encontrei com a aluna nos corredores da instituição e ela, em tom de
indignação, contou-me que a Psicologia Fenomenológica tinha sido criticada por alguns
colegas. A crítica era de que ela “não resolvia nada”. Isso a incomodou muito e ela reagiu
falando de nosso trabalho. Daí, concluiu que tínhamos que divulgar mais o trabalho do
“Correio” e era isso que me propunha, pois “ele funciona e as pessoas têm que saber!”.
Procurei acalmá-la dizendo que não devia levar falas como essa tão a sério, pois
evidenciavam desconhecimento sobre o assunto. Ela não se contentou e disse-me que ela não
conseguia pensar assim, que ainda não estava nesta “fase” de aceitação e que queria mostrar
às pessoas que nosso trabalho era “bom”. Trocamos mais meia dúzia de palavras e só depois
me dei conta da importância daquilo que ela me dissera.
Lembrei-me de que ela se parecia comigo, alguns anos antes, ao me indignar,
querendo “comprovar” a relevância do meu método. Na realidade, o que o tempo me ensinou,
e que não pude lhe ensinar naquele momento, mas retomei depois, é que não é pela via da
racionalidade, da argumentação e da comprovação que vamos assegurar nosso lugar. Nosso
conhecimento e nossa postura se revelam com o tempo em nossos trabalhos e com ética em
nossas ações. E acima de tudo, nunca poderemos (e nem queremos) convencer todos de que a
52
Refiro-me aos eventos: 15º Encontro dos Serviços-Escola de Psicologia do Estado de São Paulo,
Unipaulistana, 2007 e ao VII Simpósio Nacional de Práticas Psicológicas em Instituição/ Fronteiras da ação
psicológica: entre saúde e educação. PUC/SP, Outubro, 2007.
97
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
Psicologia Fenomenológica pode contribuir em suas reflexões sobre o sentido da experiência
humana. Nossa atitude, nossas respostas, nossos procedimentos e modo de atuar jamais
poderão ser um consenso, aliás, como nenhuma outra teoria psicológica é. Cada estudante se
identifica e se satisfaz com as “explicações” dadas por uma vertente da Psicologia, que por ser
uma ciência humana sempre deverá ter como uma de suas principais características esta
diversidade.
Um outro aspecto interessante que se revelou nos relatórios da aluna é que eles não se
restringiam a descrever as aulas, mas utilizava-os quase como um “diário” em que escrevia
suas angústias, dúvidas e reflexões. Trazia questionamentos sobre o aprendizado em outras
teorias, sobre sua formação, sobre a postura e o compromisso dos seus colegas com o curso,
enfim, seu modo de perceber e refletir sobre si mesma e acerca de seu processo de
aprendizado. A diferença da atividade que realizava em seus relatórios para a minha proposta
de construção de um “diário de bordo” é que, diferentemente do “diário de bordo” que seria
algo íntimo e pessoal, eu lia os seus relatórios e, algumas vezes, comentava suas questões.
Portanto, estabeleceu-se ali um modo de mantermos um diálogo escrito, entre mim e a aluna,
um registro de como eu procurava lhe ensinar a conversar com os pais. Aqui fica visível o
movimento circular entre as atitudes de educadora e educando, pois à medida que eu a
educava, ela educava outros, ao mesmo tempo em que eu aprendia com quem eu ensinava.
Em muitos trechos de seus relatórios explicitou o quanto a experiência do estágio
transcendia os limites dos “muros da instituição”. O conhecimento que relatava estar
adquirindo não era apenas aquele que seria importante à sua prática profissional, mas aquele
que a fazia “crescer e madurecer”. Muitos sentimentos sobre si mesma eram despertados e
questionava-se freqüentemente sobre quem era, quem gostaria de ser, o que estava ali
aprendido e ensinado, enfim, muitas indagações sobre a profissão que se projetava. Assim
como dela, pude ouvir de outros alunos o quanto estavam sendo “tocados” pelo projeto.
Percebiam-se diferentes no modo como olhavam as crianças, aproximando-se atentos ao
modo como se posicionavam perante elas, de forma a permitirem que elas se expressassem,
respeitadas em seu modo de ser.
Outra repercussão que os alunos relatavam e que procurei trabalhar para esse
aprendizado era o quanto procuravam lembrar-se ou buscar mais referências sobre as próprias
infâncias. Interessaram-se mais por suas memórias e alguns alunos emocionavam-se nas
aulas, ao repensarem as práticas de seus pais ou as suas próprias como pais. Muitas vezes, os
relatos eram tristes e angustiantes, mas havia espaço nas supervisões para pensar sobre elas e
para buscar um processo de amadurecimento. Aqui cabe destacar que o espaço de supervisão
98
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
não se propunha a ser um espaço para psicoterapia, por isso busquei delimitar tais instâncias,
embora em alguns momentos, a discussão da supervisora tenha tido um efeito terapêutico para
alguns.
Penso que enfatizar a importância de conhecer a si mesmo e partir para a experiência
com a criança sem teorias prévias ou colocando-as entre parênteses, procurando estar aberto a
conhecê-la, é educá-lo para a sensibilidade de uma relação adulto-criança implicada em um
modo de educar que permite e respeita a expressão do outro. Extrapolar e procurar com que o
conhecimento transmitido respingue e ecoe para outras dimensões pessoais do aluno era algo
que procurava transmitir.
A Psicologia Fenomenológica não quer ensinar uma teoria acerca de uma educação
fenomenológica a ser dada às crianças, mas ensina uma atitude que, inevitavelmente, afeta o
modo pessoal de cada um ser e estar com a criança e de pensar a educação para além da “sala
de aula”. Uma educação que deve ser contextualizada e relacionada à cultura de cada família.
Se para os educandos a experiência de ensino-aprendizado transcendeu o período das
aulas, comigo ocorreu o mesmo. Minhas preocupações, indagações e buscas por meios,
textos, atividades ou tarefas que pudessem facilitar o aprendizado do aluno, enriquecer sua
formação ou ampliar seu modo de compreender a tarefa educativa de elaboração das cartas,
me acompanhavam diariamente. Dedicava-me intensamente à prática de ensino e, se fiquei
devendo muito à elaboração desta tese, não sinto o mesmo em relação ao meu desempenho
como professora com o aluno. Em muitos momentos tinha que optar por ser uma boa
“doutoranda” ou uma professora dedicada. Escolhi dedicar-me aos alunos e não poupei
esforços para oferecer-lhes o melhor, embora perceba hoje que muitos aspectos de minhas
práticas precisam ser repensados.
Outra experiência interessante Sara relatou-me ao final do segundo semestre do
estágio. Ia mudar de emprego, pois seu chefe teria lhe dito que perdera a excelente auxiliar de
escritório que ela havia sido por quatro anos, pois havia se transformado em “uma estudante
de Psicologia”. Narrou-me essa história com felicidade, porque explicitava o quanto ela havia
mudado: já não conseguia mais fazer aquele trabalho, queria envolver-se mais com a
Psicologia – até o seu chefe percebia isso. A prática do estágio se desdobrou na iniciativa de
procurar um emprego como estagiária de Psicologia na área da educação. Após alguns meses,
foi selecionada para um trabalho com adolescentes em liberdade assistida, com o qual sente-
se realizada e reconhecida, inclusive pela boa remuneração. Segundo ela o bom êxito da
seleção só foi possível por seus trabalhos nos estágios com educação.
99
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
Desse modo, vejo que para essa aluna e para muitos outros alunos, até o momento,
essa experiência revelou-se como uma vivência potencialmente transformadora e
enriquecedora. As cartas finais, se comparadas às cartas iniciais que produziam, revelam um
salto enorme em relação não somente ao modo de escrita inicial, como também a respeito do
entendimento das questões, embora muitas vezes não alcançassem a compreensão
fenomenológica que eu esperava. Trago, adiante, uma carta-resposta elaborada pela Sara em
sua versão inicial e em sua versão final. Antes ainda gostaria de ressaltar que seu processo de
aprendizado, bem como o dos demais alunos, não pode ser avaliado apenas pelas cartas que
produziram, pois, conforme ela mesma explicita, suas mudanças foram percebidas pelas
atitudes cotidianas e não apenas naquilo que foi capaz de expressar por meio da escrita.
Ao final do estágio, solicitava aos alunos que eles escrevessem uma auto-avaliação
53
em forma de “carta-testemunho” sobre o processo vivido ao longo do estágio. Acima de
qualquer análise que eu possa fazer a respeito do aprendizado da aluna, sua própria avaliação
deve ser considerada. Visando continuar a apresentação do processo de ensino-aprendizado
vivido pela Sara, transcrevo
54
aqui sua “carta-testemunho”.
O que é isto “Correio Psicoeducativo”?
Reflexões da prática em Psicologia Fenomenológica existencial: O
ponto de vista do aluno.
Profª Fabíola, durante todo o projeto de estágio, você foi me
preparando para redigir cartas-resposta que pudessem auxiliar nos
sofrimentos e conflitos vivenciados por muitas pessoas na tarefa de educar.
Agora, de modo privilegiado, tenho a oportunidade de redigir uma carta
para descrever todo meu processo pessoal vivenciado no decorrer do
desenvolvimento deste estágio.
É um prazer poder falar de uma oportunidade tão valiosa que me
possibilitou a abertura para os muitos significados envolvidos em diversas
relações.
Para falar desta minha experiência, penso ser impossível fazer uma
divisão do meu processo de aprendizado vivenciado na disciplina de Estágio
Básico III e IV por isto, vou retratar tudo.
Considero-me uma pessoa de muita sorte por ter tido a oportunidade
de fazer parte da primeira turma de estágio do 5º semestre que implantou,
juntamente com você, este serviço no Centro de Formação de Psicólogos
53
Criei um pequeno roteiro (que se encontra no anexo 6) com perguntas sobre aquilo que o aluno deveria abarcar
em sua narrativa. Não havia rigidez ou exigência para que cumprissem tal roteiro, apenas foi criado visando
ajudar o aluno a se orientar naquilo que ele poderia relatar. E apesar de avisar que não valeria nota e que,
portanto, não precisariam preocupar-se com o “certo” e o “errado”, tais aspectos se mostram inevitáveis nas
respostas dos alunos.
54
Sua carta-testemunho foi transcrita literalmente, mas alguns pequenos erros de ortografia e pontuação foram
alterados sem indicação das modificações.
100
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
desta universidade
55
pela possibilidade de poder dar continuidade a este
projeto com a turma do 6º semestre.
A minha escolha pela continuidade no desenvolvimento deste projeto
é facilmente justificada por todas as conquistas vivenciadas na primeira
etapa.
Desde o dia em que decidi fazer uma faculdade de Psicologia sempre
tive o objetivo de desenvolver trabalhos voltados à educação, informação,
orientação e que pudessem realmente alcançar pessoas cujos sofrimentos
muitos vezes são chamados de “frescuras” ou “falta do que fazer”.
Sempre tive por objetivo percorrer uma prática psicológica voltada
para uma psicologia de cunho social e o olhar fenomenológico, diante
destas questões, contribuiu de maneira grandiosa para a confirmação da
minha escolha.
Em nenhum momento tive dúvidas em escolher este projeto, desde a
primeira fase, antes mesmo da apresentação da proposta, pelo fato de
saber que você, Profª Fabíola, seria a responsável por ministrar esta aula. Eu já
tinha feito a minha opção, pois no primeiro semestre da graduação, tive a
oportunidade de participar de um evento na própria Universidade, no qual
você discutia algumas questões sobre o filme Janela da Alma juntamente
com um professor
56
. Naquele momento, o seu modo de falar me encantou e
mesmo sem nenhum contato pessoal, eu já sabia que, quando me fosse
dada a oportunidade de desenvolver qualquer atividade junto com você eu
não teria dúvidas em me posicionar, pois de imediato já me identifiquei com
a sua forma de pensar, falar e encontrar possíveis compreensões para as
questões que se apresentam.
O primeiro contato direto, na disciplina de Estágio Básico III, veio a
confirmar e superar todas as minhas expectativas em relação à sua postura
enquanto professora. No momento, o meu único movimento é agradecer o
que você fez, conseguindo tirar de mim aquilo que nem eu mesma sabia que
seria capaz de fazer e realizar. As exigências que fazem parte do seu estágio,
como leituras e redes diversas de conhecimentos, só me fizeram crescer.
Do meu ponto de vista, tudo foi um grande desafio no
desenvolvimento deste estágio, principalmente o modo como você se
propôs a orientar as pessoas. Muitos acharam que você tinha por objetivo
ensinar os alunos a descrever receitas que pudessem auxiliar os pais,
responsáveis ou educadores nos seus conflitos diários. Eu mesma me
questionava sobre o que e como faríamos para “responder” as cartas-
resposta.
No início, parecia ser impossível fazer tudo que você nos pedia:
construir um novo olhar para as questões da infância, compreender o olhar
fenomenológico, aproximar das particularidades do modo de ser criança,
entre tantos outros. Depois, percebi que bastava força de vontade e
potencial para não sermos simplesmente mais um aluno graduado em
Psicologia.
Em todas as aulas me sinto privilegiada pela oportunidade de estar
vivenciando grandes momentos de troca de saberes entre alunos e
Professora, pois é desta forma que você nos torna pessoas críticas, reflexivas
e produtivas; pessoas com a bagagem necessária para fazerem diferença. A
responsabilidade do estágio, aliada à responsabilidade da própria prática ao
55
Aqui retirei o nome da instituição, pois no original ela o mencionou.
56
Retirei o nome do professor mencionado.
101
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
desenvolver cartas-resposta, me faz perceber o quanto é grande e sério o
campo de trabalho do psicólogo.
Quanto à fenomenologia, o que posso dizer é que foi um dos melhores
encontros que poderiam acontecer na minha vida, pois é sempre um
aprendizado. Sempre uma construção do saber.
As cartas-resposta produzidas são o resultado de muitos
questionamentos que vou fazendo a mim mesma ao longo do semestre.
Reflexões, às vezes solitárias, que envolvem valores pessoais, conceitos
previamente adquiridos e sobre a experiência única que se apresenta.
Trabalhar com as cartas foi uma excelente oportunidade de me
aproximar dos conflitos vivenciados por muitos pais quando seus filhos não
satisfazem os critérios exigidos pela sociedade, ou seja, o modelo “criança –
padrão”, aquela criança estudiosa, alegre, esperta e comunicativa. Sofre o
filho por simplesmente ser o que é, passa a ser rotulado pela espontaneidade
do seu modo de ser, pela sua particularidade de sofrer, se alegrar e vivenciar
tantos momentos da vida. Sofrem os pais, porque são julgados pelo outro
como incapazes de educar seus filhos e fazê-los felizes.
A solução, então, passa a ser levar o “caso” para o psicólogo,
profissional que ficará responsável por dar as respostas sobre o que está
acontecendo com aquela família. E, então, o que fazem os “especialistas da
psicologia”?
Longe de julgar a atividade desenvolvida por muitos destes
profissionais e ensinada a muitos alunos de psicologia, o que eu aprendi com
você, professora, foi de alguma forma tentar dizer aos pais que nem um
deles recebe o manual da “boa” conduta quando seus filhos nascem. Então,
não existe caminho certo nem errado, eles fizeram o que acharam melhor e,
se estão procurando ajuda, é porque têm interesse em entender o que está
acontecendo e querem encontrar a “melhor” forma e maneira de lidar com
a atual situação e com as que poderão surgir em suas vidas e na vida dos
seus filhos.
Para dizer essas coisas aos pais, você me ensinou a resgatar palavras
como amor, ternura, carinho, doçura, paciência, compreensão, entre outras,
que parecem ter desaparecido das nossas falas e das nossas práticas diárias,
palavras que por si só já mudam o contexto de uma situação.
Realmente, educar é uma tarefa obrigatória dos pais e isto você nos
fez repetir muitas vezes em cada cartinha. Porém, mesmo obrigatória, em
momento algum, você nos fez dizer aos pais que esta era uma tarefa fácil,
pelo contrário, nos ensinou a lhes dizer que é sim, uma tarefa difícil, e que
temos muitos caminhos a seguir, basta encontrar aquele que combine com o
nosso modo familiar de ser.
Nesta prática, aprendi que as pessoas são diferentes e cada uma tem
seu modo particular de vivenciar determinadas situações, por isto existe a
impossibilidade da construção de um manual sobre a boa educação.
Aprendi que as pessoas são únicas em suas experiências e merecem e
precisam ser acolhidas de modo especial. Tanto as crianças como os
adultos, cada um revela o seu modo particular de ser e vivenciar as situações
cotidianas.
Muitas coisas aconteceram comigo após minha chegada neste
estágio e estas transformações podem ser percebidas não somente no
resultado das cartas, mas em situações comuns do cotidiano. Quantas vezes
me peguei surpreendida com minha própria fala?
102
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
Tantas foram às transformações que, em alguns momentos, tive a
sensação de estar vivenciando algumas “crises existenciais”. Ser crítico e
reflexivo não é uma atitude fácil, pois implica numa atitude de sair do
conformismo e do fatalismo tão presente em nossa realidade.
Dediquei-me muito na prática deste projeto, criei expectativas
diversas, assumi a bandeira do compromisso social levantada pela
Psicologia. Mas, quando fui para a realidade do mundo, querendo levar
minha prática e, enquanto estudante, contribuir e aprender com os
profissionais de psicologia que desenvolvem seus trabalhos voltados para o
acolhimento daqueles que por tantas vezes foram excluídos, não encontrei o
que estava desenhado nos meus sonhos de estudante. A realidade que se
apresentou me fez deparar com decepções, desilusões, solidão, falta de
oportunidades ou oportunidades irreais para alunos que precisam trabalhar o
dia inteiro para ter condições de manter seus estudos. Sofri muito, mas estou
aqui junto com você, Profª, caminhando e acreditando nos caminhos
preciosos da psicologia na área social junto a práticas educativas.
Termino esta carta agradecendo todas estas oportunidades, mas
confesso também estar apreensiva com o modo que acontecerá a
continuidade do nosso projeto. O tempo das aulas de estágio é insuficiente
para que ele aconteça, é preciso um espaço mais privilegiado para esta
prática. Além disso, fico pensando se os próximos estagiários terão
responsabilidade para desenvolver esta tarefa.
Penso que preciso me dar a oportunidade de conhecer outras
atividades e outros trabalhos desenvolvidos por Psicólogos, porém não quero
e não posso abandonar este projeto que me levou a tantas novas
experiências que descrevi detalhadamente ao longo dos meus relatórios
semanais de estágio.
Profª Fabíola, como aluna dedicada que me esforcei em ser, peço,
por favor, que encontre uma maneira que me permita continuar
desenvolvendo este projeto junto com você.
Obrigada por tudo que até aqui vivenciei e com toda certeza posso
dizer que você é quem foi, um “maravilhoso presente para mim”.
(...)
A carta da aluna sobre sua experiência de aprender é para mim significativa na medida
em que fala do que pude observar em seu aprendizado ao longo de dois semestres. Seu
percurso ao longo do estágio revela amadurecimento e transformação. Em hipótese alguma,
estou sugerindo que a experiência com o projeto do “Correio” foi determinante ou a única
responsável por todo o crescimento da aluna. Muitos foram os alunos que tiveram contato
com o mesmo projeto e não passaram perto do que ela pôde apreender sobre a Psicologia
Fenomenológica. Portanto, sei que todo processo de ensino-aprendizado que experienciou
está absolutamente relacionado a quem ela é e ao que se permitiu viver.
Essa e as demais cartas-testemunho que foram escritas não podem ser consideradas
descontextualizadas do percurso do aluno ao longo do estágio. Predominam em muitas delas
uma avaliação superficial que tem muito mais o intuito de corresponderem às minhas
103
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
expectativas do que de se auto-avaliarem. Mas, considero esta uma tarefa importante, pois é o
momento em que o aluno pode parar para refletir sobre seu processo de aprendizado e, se bem
aproveitado, poderá resultar em momentos importantes da formação do aluno e, para o
professor, pode ser um modo de procurar rever a metodologia utilizada.
A carta da Sara revela seu ponto de vista sobre a experiência vivida: é a expressão de
sua transformação, sonhos, desejos e idealizações. Certamente, não posso corresponder às
suas expectativas sobre mim, sobre si mesma ou sobre a Psicologia, e precisará de tempo para
vivenciá-las e reavaliá-las. Todavia, testemunho com ela que seu processo vivido transcendeu
o contexto da sala de aula. Era isso que almejava com este projeto e fico satisfeita em saber
que, de diferentes formas, ele contribuirá para que estudantes de Psicologia estejam mais
sensíveis às questões da infância e da educação.
Antes ainda de atentarmos para as cartas que ela elaborou, é interessante percorrermos
as várias compreensões que trouxe em seus relatórios semanais acerca do projeto:
É necessário lembrar que o correio psicoeducativo não é simplesmente um serviço
de perguntas e respostas, mas uma oportunidade para refletir sobre as questões
educativas, e esta posição faz deste serviço, um projeto de intervenção possível e
confiável. (....) – Trecho de um de seus relatórios semanais de Estágio Básico III.
(...) considero sua proposta de intervenção eficaz e inteligente, porque ela não tem
como princípios colocar um ponto final, pelo contrário, abre possibilidades para
novos olhares que tendem a se adequar ao contexto existente em cada relação, ou
seja, refletir sempre. – Trecho de um de seus relatórios semanais de Estágio Básico
III.
(...) é possível “responder sem responder”, ou seja, criar as condições para que
dentro da sua realidade o outro possa encontrar as suas próprias respostas. (...) –
Trecho de um de seus relatórios semanais de Estágio Básico IV.
(...) uma atividade de “orientação”, onde um dos objetivos principais é levar a
pessoa interessada a refletir e pensar sobre formas e compreensões diferentes sobre
a situação questionada e através das suas próprias condições de realidade poder,
então, decidir qual o melhor caminho a seguir. – Trecho de um de seus relatórios
semanais de Estágio Básico IV.
Os trechos evidenciam a proximidade àquilo que era ensinado como proposta do
estágio. Entretanto, muitas vezes não foi isso que presenciei nas supervisões de suas cartas-
resposta. Ela, bem como outros alunos, apesar de mais próximos ao pensamento
fenomenológico, ainda demonstravam muita dificuldade para exercitarem esse modo de olhar
e, principalmente, em escrever, o que podemos perceber em inúmeras missivas elaboradas
pelos alunos.
Quando comparo a carta “final” elaborada pelos alunos à versão inicial, por mais que
verifique que deixam muito a desejar ao olhar fenomenológico, percebo que do ponto de onde
104
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
partiram, há um aprendizado significativo, um salto qualitativo muito grande. Escolhi para
fazer parte deste estudo uma das correspondências de Sara para revelar o seu processo de
ensino-aprendizado.
Inicio apresentando a carta-pergunta recebida:
Sou educadora há 18 anos. Atualmente, trabalho na escola pública,
com crianças, de Fundamental I e II (4ª, 6ª e 7ª séries). As dúvidas são muitas
e, a cada instante, surgem outras. Educar é assim: uma eterna busca de
respostas. Então, algumas seriam interessantes e importantes, para mim,
serem respondidas:
Como tratar, com uma criança, a chegada de um “irmãozinho”?
Desejo este de muitas, mas problema para “muitas”, também.
Como abordar sexualidade, para crianças de 10 anos, de forma a
tratar o assunto com naturalidade e não de forma “brutal”, como muitos
acabam “enxergando”?
A violência na família, na comunidade com que trabalho, é muito
grande. Como mostrar à criança a importância e o compromisso família se,
para “ele”, esta não é referência para sua vida?
? ? ? ?
Muitas dúvidas! Agradeço por tentarem “solucionar”, pelo menos,
essas!
Esta carta-resposta, por abordar muitas temáticas, foi respondida em três momentos.
Na primeira carta, as alunas focaram a temática da sexualidade, na segunda abordaram a
questão da chegada de um irmãozinho e, na terceira, a questão da violência apresentada pela
educadora
57
. Escolhi a segunda carta redigida pela aluna Sara, com a ajuda de mais duas
alunas do curso, já no seu segundo semestre no Estágio.
Antes de os alunos iniciarem a elaboração da carta-resposta, realizava uma discussão
com eles, procurando aproximá-los do olhar fenomenológico. Vale recordar a metodologia
que eu utilizava nas aulas. Continuamente, trabalhava em aula textos de referência na
perspectiva fenomenológica que visavam à construção no aluno de uma perspectiva
fenomenológica para a infância. A cada carta, eles buscavam textos e referências específicas
sobre o tema que pudessem ajudá-los nas reflexões. Muitos são os textos e sites
58
57
Esta carta e as demais, estão nos anexos e são, respectivamente a carta nº 2 do anexo 04, a nº 1 do anexo 05 e
nº 2 do anexo 05.
58
O uso da Internet pelo aluno foi incentivado para que aprendessem a pesquisar e selecionar sites, portanto a
serem críticos quanto aos materiais encontrados.
105
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
encontrados, mas poucos são utilizados após uma leitura crítica sobre eles. Nesta carta,
especificamente, um dos textos que auxiliou muito as alunas foi o texto “Ciúmes?” de
Winnicott (1999). O autor discute o tema, procurando apresentar o ciúme como “um
sentimento saudável” que decorre “do fato de que as crianças amam” (1999, p.49). Para ele,
esse sentimento envolve questões complexas, e a criança estaria em um estado de conflito
agudo, principalmente por sentir que seu relacionamento com a mãe fora perturbado e
ameaçado. Procurando aprender com o ponto de vista do autor, mas não apresentá-lo como a
“verdade” sobre o ciúme da criança a ponto de fazer com que a verdade da própria criança
desaparecesse, procuraram escrever sua carta.
Apresento apenas alguns trechos da versão inicial da carta elaborada pelas alunas
59
e,
em seguida, a versão final completa, procurando destacar as principais idéias e o modo de
compreensão das alunas, o qual se modificou ao longo do processo.
Versão inicial:
Cara educadora,
Falar sobre a chegada do irmão mais novo não é tarefa exclusiva dos
pais e, cada vez mais, este trabalho vem sendo realizado por educadores e
profissionais preparados para tais funções.
Compreendemos que enfrentar essa situação com franqueza e
seriedade, utilizando-se sempre da fala verdadeira, é a melhor forma de
adquirir a confiança da criança. Assim, de uma forma sutil, permitimos que
aos poucos ela possa revelar os sentimentos que envolvem o seu pequeno
coraçãozinho. Entendemos ser muito mais saudável para todos ter a
oportunidade de conversar tanto sobre os sentimentos de amor, quanto
sobre os sentimentos de hostilidades.
(...)
A insegurança e o medo da criança não estão relacionados
diretamente com a chegada do irmão mais novo, e sim, com a relação que
se desenvolverá após a sua chegada. O medo de não ser mais amada e
querida e o sentimento de insegurança que a leva a pensar que não será
mais importante para os pais é que faz com que a criança tenha
determinadas reações, como as crises intensas de ciúme.
Quando expresso, o ciúme tem a função importante de dizer o quanto
temos medo de perder algo que amamos demais, e é exatamente isso que
acontece com a criança, pois antes de refletir sobre a possibilidade de dividir
os pais com o irmãozinho, ela imediatamente percebe a relação ao seu
modo e, quando não obtém informações adequadas, por estar em uma
idade de grande imaginação e criatividade acaba desenvolvendo suas
próprias fantasias que só servem para aumentar o sofrimento e, então,se
sentem sozinhas, agridem, regridem, fazem tudo isto, simplesmente para
chamar atenção e ter a certeza de que ainda estão sendo vistas por
alguém; afinal, ele foi o primeiro filho a ser amado e a receber todo o carinho
59
A versão na íntegra está no anexo 7.
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Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
dos pais e, de repente, se encontra na condição de perder toda esta
conquista para alguém que ainda nem nasceu.
Sabemos o quanto é dolorido para muitas crianças pensar sobre a
chegada do primeiro irmão, mas sabemos também que esta relação pode
ser a felicidade plena para outras crianças.Por isso, pensamos que criar
condições para tornar esse sentimento triste em uma oportunidade de
aprender compartilhar suas experiências com um outro alguém, sem contar
que este alguém poderá ser seu melhor amigo, e juntos poderão realizar as
mais diferentes brincadeiras, é sim, uma tarefa possível e difícil, porém muito
prazerosa e gratificante e, certamente, também faz parte das tarefas do
educador. Lembrar a criança que ao contrário de perder as pessoas que
ama ela estará ganhando mais alguém que vai amá-la tanto quanto os pais
a amam, pode ser uma atitude muito produtiva.
(...)
Versão final:
São Paulo, 1º de novembro de 2007.
Cara educadora,
Estamos retomando nosso contato com o intuito de ajudá-la a pensar
em seus questionamentos.
Sobre sua pergunta “como tratar, com uma criança, a chegada de
um irmãozinho”, essa nova situação pode despertar diferentes tipos de
sentimentos na criança. Desde os mais amorosos até aqueles de maior
sofrimento, o que nos possibilita compreender que cada indivíduo é único e
vai expressar seus sentimentos de formas diferenciadas.
Uma das maneiras de ajudar a criança é estar sensível às suas
mudanças de comportamento. Precisamos sempre escutá-los, buscando
estar próximos, percebendo qual o significado que está sendo dado à
chegada de um irmãozinho. Esta sensibilidade a aproximará do que
realmente está acontecendo com a criança e pode, por exemplo, impedir
que elas sejam “rotuladas” por agressivas ou por outras formas simplistas de
olhar para a questão. Enquanto educadora, preocupada como nos parece
ser, você poderá lhes dar a oportunidade de serem vistas como alguém que
está passando por uma significativa mudança.
Como você mesma falou, muitas vezes, a chegada do irmãozinho foi
solicitada pela própria criança, porém o bebê que chega sempre é diferente
do bebê idealizado e isso pode gerar uma série de conflitos de sentimento
na vida desta criança.
Muitos pais tendem a dizer que nada vai mudar quando o bebê
chegar, entretanto, nada mais será igual, pois, se antes a mãe se dedicava a
uma única criança, agora ela terá que dividir o tempo com duas e,
provavelmente, o bebê terá prioridade, já que é, ao menos no início,
totalmente dependente da mãe.
Esse momento traz grandes mudanças para toda a família, por isso
enfatizamos que o diálogo verdadeiro é fundamental e, quando não ocorre,
a criança se sente incompreendida, o que só acarretará mais confusão.
107
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
É comum, nessas ocasiões, surgirem sentimentos como o ciúme, a
inveja, a insegurança, a raiva, entre outros que fazem parte da vida. Ignorá-
los na criança em nada contribuirá para seu desenvolvimento.
Freqüentemente, ela se sente ameaçada com a chegada de um irmão e o
sentimento de que será trocada por outra pode fazer com que ela se sinta
abandonada e rejeitada. Algumas sofrem tanto que é comum fazerem
questionamentos: “Se eles estavam felizes comigo, por que tinham de ter
outro filho? Será que ainda vão gostar de mim, depois que o bebê nascer e
vier para esta casa?”.
Para que a criança se sinta compreendida, ela precisa saber que
estamos percebendo seus sentimentos, de modo que ela possa dizer o que
sente, sem recriminações e julgamentos dos adultos. Durante a conversa,
também podemos dizer que é comum ter sentimentos “ruins” em relação ao
irmãozinho que está para chegar ou que já chegou. Entretanto, é papel
fundamental do adulto proteger a criança pequena, zelar pelo seu bem-
estar e cuidar para que nenhuma atitude do irmão a prejudique.
Uma relação sincera é primordial. Na relação adulto e criança, a
confiança e o afeto são bases desse relacionamento. O principal valor que
deve ser transmitido e assegurado é que ela é única e não será substituída.
O papel dos pais e educadores é criar condições favoráveis ao bom
desenvolvimento da criança, portanto vale lembrar o quanto é decisivo
ajudá-las a vivenciar, da melhor maneira possível, as novas situações,
assegurando-lhes sempre o amor por elas.
A chegada de um irmão pode também proporcionar momentos de
felicidade às crianças, se conseguirem, por exemplo, imaginar o futuro,
quando puderem brincar juntos, viajar, conversar, se divertir, dividir alegrias
ou tristezas.
Que tal preparar uma discussão em que o tema fosse a chegada de
um novo irmão? Nas aulas, você poderá realizar diversas atividades, por
exemplo, assistirem a filmes que ilustrem a temática, contar uma história ou
propor uma conversa afetuosa e aberta sobre o assunto. Pode ser uma
oportunidade para conhecer esses sentimentos, a partir do ponto de vista da
criança. Por que não?
Mesmo as crianças que não estejam vivenciando essa situação de
forma direta, teriam a possibilidade de falarem e pensarem nas relações
vividas com os primos ou outros amiguinhos mais próximos.
Uma outra sugestão seria você produzir junto com as crianças uma
peça teatral, em que cada um pudesse viver o papel escolhido, até mesmo
com textos desenvolvidos por elas, assim, poderiam expressar os seus
sentimentos mais preciosos: de amor, sofrimento ou os de mais dura revolta.
Além disso, você ainda pode utilizar a já sugerida “caixinha de
perguntas” e atender às necessidades propostas pelos alunos mais tímidos.
Porém, ainda assim, se perceber que o sofrimento da criança está
sendo vivido de forma muito dolorosa, não tenha receio em indicar ajuda
especializada.
Contudo, Carla
60,
lembramos a você de que não existem regras ou
teorias prontas para lidar com novas situações, pois cada criança é única e
educar será sempre um novo desafio.
60
Todos os nomes que aparecem nesta ou em outras cartas são fictícios.
108
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
Esperamos ter auxiliado em sua trajetória na busca de mais
conhecimento. Voltaremos a lhe escrever sobre outro tema solicitado em sua
carta.
Gostaríamos também de indicar algumas bibliografias:
Rubem Alves. Coleção Estórias para Pequenos e Grandes, da Editora
Loyola. Em especial, nesta coleção, a história intitulada A pipa e a flor.
Ainda do mesmo autor, há diversos livros escritos para educadores,
como: Conversas com Quem Gosta de Ensinar, Entre a Ciência e a
Sapiência, dentre outros.
Colocamos-nos à disposição.
Atenciosamente,
Estagiárias do Centro de Formação de Psicólogos
.
No início da carta em sua 1ª versão, as alunas explicitam a necessidade de a educadora
se habilitar para tarefas como essa: preparar a criança para a chegada de um irmão. Ao que
lhes indaguei: o que seria estar preparado para educar? Seria isso possível? Questionando-as
sobre o que escreveram, perceberam-se impregnadas por uma concepção educativa onipotente
em sua capacidade de solucionar os dilemas humanos. A crença na salvação pedagógica foi
algo que continuamente abordei com os alunos em inúmeros textos e cartas, ou seja, aquela
que se relaciona à concepção educativa predominante que defende ser possível programar e
determinar um resultado específico, desde que empregada a técnica ou instrumento correto. É
esta mesma concepção que leva à defesa pela generalização de um procedimento que possa
ser usado com todas as crianças, aspecto que também aparece na primeira versão da carta. Ao
procurarmos educar em conexão com a atitude fenomenológica, não podemos incorrer em um
pensamento determinista e causal, ao contrário, devemos estar abertos para vivermos a
especificidade de cada situação, em seus mistérios e dilemas.
Contraditoriamente, em outros trechos da carta, as alunas defendiam que a educadora
buscasse se aproximar da criança, procurasse “olhar com os olhos dela” e atentasse para o
modo particular como a criança vive essa situação. O processo de aprendizado do pensamento
fenomenológico não é algo linear que, após ser alcançado, não se perde mais, tal como
quando se aprende uma habilidade técnica. Ao contrário, o olhar fenomenológico é um
exercício constante e sem fim. É um modo de perceber o fenômeno que requer uma abertura
que o permita se revelar. Atitude que permitimos em uma situação, mas não em outra, em um
dia e não em outro, enfim, disponibilidade que se relaciona com nossa própria experiência e
conseqüente capacidade para colocarmos de lado nossas concepções prévias; com nossa
disposição, com nossa afetividade, enfim, aspectos particulares de cada um de nós e do
109
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
próprio modo de aparecer do fenômeno: parcialmente e em perspectiva. Ao buscarmos
compreender um fenômeno, nunca esgotaremos suas possibilidades de interpretação, pois ele
tem múltiplos sentidos e o nosso olhar sempre será um ponto de vista possível, por mais
disponíveis que estejamos.
Em um outro momento da correspondência, em sua primeira versão, as alunas presas a
uma concepção prévia sobre o que consideravam atitudes de ciúmes da criança perante o
irmãozinho, incorreram, inclusive, em um julgamento dessas ações, como exemplifica o
trecho em que escreveram sobre as crianças que “agridem, regridem, fazem tudo,
simplesmente para chamar atenção e ter a certeza de que estão sendo vistas por alguém”.
Nesse modo de olhar, parecem se fechar naquilo que, muitas vezes, é a interpretação do
adulto sobre tais atos, mas que estão longe de ser aquilo que a criança sente. Mais uma vez, a
escrita se mostrou reveladora de uma postura que tinha sido muitas vezes ensinada e que fazia
parte do discurso delas. Mostrou-se como mais uma oportunidade para discutirmos o quanto
estamos “fechados” em nossas concepções prévias, a ponto de não conseguirmos perceber o
outro em um modo diferente daquele que esperamos, que concebemos de antemão.
Uma situação muito interessante proposta por uma das alunas e que foi exemplar, foi
uma experiência observada entre sua irmã e o sobrinho. A aluna relatou que sua irmã teria
visto o filho enrolar uma folha sulfite, fazendo-a como um canudo e levando-a à boca. Ao ver
o filho fazer isso, ela imediatamente o repreendeu, batendo e tirando dele a folha dizendo-lhe
que não era certo aquilo e que, portanto, não poderia fazê-lo. Minha aluna foi, então,
conversar com o sobrinho, que lhe explicou que sua mãe “não entendeu nada”, pois o que ele
estava fazendo era uma corneta! A mãe havia retirado dele aquilo que ela compreendeu como
um cigarro e, sob seu ponto de vista, estava protegendo o filho de um futuro mau. O exemplo
acabou se mostrando como um excelente recurso didático, até por seu modo radical de
denunciar o quanto já estamos previamente repletos de expectativas, as quais muitas vezes
nada mais são do que a vontade dos pais em acertar e fazer o que consideram correto, mas
acabam por restringir e limitar a criatividade das crianças.
Nesse mesmo sentido, uma outra carta que recebemos indagava pela
homossexualidade de uma criança, em razão dos brinquedos de que gostava. Essa pergunta
também levou o grupo a uma reflexão muito interessante, até porque ela tocava em assuntos
sobre a sexualidade, tabu para muitas pessoas e que envolve muitas crenças e valores, em
geral, rigidamente estabelecidos. Desconstruir padrões já estabelecidos, por exemplo, de que
existem brinquedos que são de menina e outros de menino, não foi algo fácil, pois implica em
110
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
uma série de concepções a serem questionadas. Essa carta também provocou questionamentos
e angústia nos alunos.
Permitir às crianças brincarem com cornetas, usarem os sapatos da mãe, visitarem
outros planetas ou representarem personagens, sem que isso seja visto como erro, doença ou
loucura, é algo que procuro semear, mas para tal precisamos ter no mundo, adultos mais
sensíveis aos modos de ser das crianças.
Retomando a discussão a respeito da carta realizada por Sara e suas colegas sobre a
chegada de um irmão, um outro aspecto que percebo na primeira versão da carta é uma
compreensão linear para a situação vivida, uma explicação permeada por relações de causa e
efeito (princípios mecanicistas), em que com a chegada do irmão, a criança conseqüentemente
sentiria ciúme, medo e insegurança. A relação direta entre um determinado acontecimento, de
forma a generalizar esse efeito e desconsiderar toda a rede de relações que envolvem essa
situação, mostra um modo de olhar muito distante do pensamento fenomenológico.
Além disto, tal compreensão foca o conflito vivido no “sintoma”, isto é, a questão não
é olhada como algo que faz parte de um contexto, por exemplo, no contexto familiar de lidar
com a criança e com essas questões. Esse foi um dos aspectos que se mostrou mais
impregnado no olhar dos alunos, e também um dos mais difíceis de eles se libertarem.
Atentam para aquilo que os pais e educadores se queixam, mas não conseguem olhar para
além do “sintoma” ou “queixa”. Essa maneira é ensinada em algumas teorias psicológicas que
focam em tais aspectos, contudo são reducionistas, na medida em que desconsideram a
multiplicidade de sentido e significados que se revelam em um pedido. Deve ficar claro que
eu não estou defendendo que a Psicologia Fenomenológica pode oferecer um olhar melhor do
que os demais, porém que essa metodologia procura olhar para aspectos que são, em geral,
desconsiderados em outros modos de pensar, pois nestes se priorizam outros princípios, por
exemplo, a necessidade de explicar e generalizar tal entendimento.
Percebia nos alunos que o fato de poderem oferecer uma orientação ou uma
informação relacionava-se à necessidade de serem úteis e, ao mesmo tempo, à dificuldade de
lidarem com seus próprios limites (ou os da Psicologia), com a impotência e frustração.
Relaciona-se, inclusive, à compreensão que têm de Psicologia, pois acreditam que deva
oferecer respostas. Há um desejo explícito de que possam interferir na subjetividade do outro
e de que a Psicologia possa lhe dar ferramentas para tal.
Nesse sentido, certa vez, um aluno me questionou por que é que eu não dizia aos pais
o que eles deviam fazer, já que eu sabia o que era melhor para a criança. Respondi afirmando
que não o fazia, pois eu realmente não sabia. Estávamos aqui abordando uma questão que é
111
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
bem importante e relevante para o olhar fenomenológico: não temos de antemão uma
educação fenomenológica a ser ensinada aos pais e às crianças.
O aluno argumentou com o exemplo de que eu sabia que as crianças deveriam ser
incentivadas (e não punidas) em seu modo imaginativo de ser, que as crianças não deviam
apanhar dos pais, enfim, que eu tinha princípios e um modo de olhar as crianças e que eu
deveria ensiná-los. O aluno estava correto em sua percepção de que tenho mesmo uma
concepção acerca da infância, mas isto está longe de ser algo que eu possa impor (ou usar da
autoridade do discurso psicológico) aos pais. Sei, por exemplo, que, em algumas famílias, o
ato de bater e punir é visto como um modo de cuidado. Embora eu discorde de tal atitude, não
descontextualizo a dinâmica e os valores dessas famílias, simplesmente informando-os sobre
o que deveriam fazer. Não sei o que é o melhor a ser feito para aquela criança dessa família,
embora eu busque orientá-la a estar sensível às necessidades da criança e não só às suas
concepções prévias de educação, por exemplo.
O mesmo princípio vale para pensarmos nas propostas dos modelos educacionais que
procuram generalizar suas orientações, a exemplo de adotarem como regra o incentivo à
amamentação. Mas será que a única forma de alimentar um bebê é dizer à mãe que ela terá
que amamentar o filho, mesmo quando para ela isso pode ser algo indesejado? Nesse sentido,
a orientação do aleitamento é transmitida muito mais como uma informação ou norma que
deva ser seguida de modo impessoal, e a qualquer custo. A orientação que procurava ensinar-
lhes é aquela que busca equacionar os diferentes valores e modos de olhar para uma criança
em relação com sua família e isto é muito diferente de defender o relativismo absoluto na
educação. Alguns modelos de orientação generalistas ou relativistas me parecem evidenciar
muito mais o despreparo de quem orienta ou um modo de poder se eximir de qualquer
responsabilidade.
Sob essa ótica, o que eu compreendo por uma ação psicológica de orientação busca
aproximá-los muito mais daquilo que Benjamin (1994a) propõe como o conselho a ser
transmitido no compartilhar de experiências, isto é, fazer uma sugestão sobre a continuação de
uma história em vez da compreensão atual que temos para aconselhar como modo de
responder ou solucionar um conflito. Segundo o autor, “se ‘dar conselhos’ parece hoje algo de
antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis” (1994a, p.200).
Se os alunos pudessem ter olhado para aquilo que as cartas revelam para além do
conteúdo explícito em cada uma delas, para além da linguagem falada, para o seu sentido,
perceberiam que apontam para a inquietação vivida pelos pais/educadores na tarefa da educar:
o peso próprio à realização de uma atividade sobre a qual não temos controle e não sabemos
112
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
de antemão o que é o correto a ser feito. Ou seja, perguntavam pelo sentido de educar: o que
é? Como se dá? Para que se educa?
Não há respostas prévias para todas as situações e dilemas que vamos viver com uma
criança! Assim como não há para o adulto a possibilidade de escolher seu futuro com a
garantia de que está fazendo a melhor opção. Aprende-se a lidar com as exigências e
dificuldades da tarefa de educar, bem como uma mãe aprende a deixar um filho crescer, sem
que tenha como se preparar/programar para tal. Mas, este não é um aprendizado
exclusivamente cognitivo, a ser orientado e ensinado de forma pontual.
O que procurava ensinar aos alunos como modo de exercitarem o olhar
fenomenológico era que procurassem a atitude de “desnaturalizar” conceitos e concepções
prévias sobre as crianças, para que pudessem olhar para o Tiago, a Isabel, o Carlos Eduardo, o
Igor, isto é, não mais olharem a criança teórica, idealizada, mas para cada como uma
pessoalidade em seus modos particulares de se relacionarem com as mães, pais, irmãos,
professores, amigos, etc. Portanto o que temos a ensinar, e é o que a Psicologia
Fenomenológica nos oferece, é uma atitude.
Nesse sentido, há um exemplo no livro Cacos de infância, de Machado (2004), em que
relata uma experiência vivida por ela em que se sentiu completamente incompreendida por
uma vendedora de uma loja de brinquedos que lhe ofereceu uma melancia voadora, por
considerar-lhe muito nova, provavelmente pela sua estatura. A autora conta que anos depois
encontrou no ensino e no teatro com e para crianças a possibilidade de ir à “guerra”
(metafórica) contra melancias aladas. Este exemplo se tornou algo cômico entre o grupo e
quando se percebiam sendo preconceituosos ou não conseguindo enxergar a criança ou o
conflito trazido pelo educador, esta fala funcionava como um “alerta” para se perceberem
“vendendo melancias”. Às vezes, também se reconheciam fazendo o mesmo que o sugerido
nas leituras da Super Nanny, o que também me servia para perceber a importância de ter
trabalhado com um contraponto extremo ao da Psicologia Fenomenológica.
Assim, o que procurei ensinar aos meus educandos que se tornavam educadores, era
que pudessem deixar aflorar sua sensibilidade e inteligência para perceberem a criança como
uma pessoalidade. Busquei valorizar a introspecção e a reflexão com eles como um modo de
se aproximarem dos mistérios da tarefa de educar e do modo de ser da criança, valorizando a
perplexidade e o espanto como algo a ser ensinado aos pais antes da procura por respostas
definitivas. Nesse processo de ensino, a que já me referi, mas reitero aqui, é que, de modo
muito nítido, à medida que eram ensinados aprendiam e ensinavam; eram educandos e
educadores. O mesmo também acontecia comigo nessa experiência; percebo, então, um
113
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
círculo que se completa em acordo com a atitude fenomenológica de educar e aprender como
movimentos que não se separam.
Entretanto, “nem tudo são flores” (já dizia o poeta) e ensinar nem sempre é um “mar
de rosas”. Nesse sentido, um dos exemplos mais marcantes que vivi, foi com alunas na
disciplina de Estágio Básico IV, portanto do sexto semestre. As alunas realizavam um
exercício de responder a uma carta-fictícia criada por mim, pois não as considerava ainda
suficientemente maduras para responder a uma carta deixada na urna do “Correio”. As alunas
não gostavam de Psicologia Fenomenológica (uma delas nunca havia tido contato com esse
modo de olhar até aquele semestre) e não haviam optado por aquele estágio, e sim, tinham
“ficado com o que ainda tinha vaga”.
Elaborei uma carta
61
baseada em uma correspondência enviada à Super Nanny, que
era mais direta na questão solicitada pela “mãe” do que as que freqüentemente recebíamos.
Na carta, a mãe perguntava o que poderia fazer para que sua filha parasse de chupar chupeta e
também o dedo.
Após discutir previamente sobre esta correspondência com as alunas, após ler com elas
e indicar que relessem o texto do Winnicott (1999) “O que sabemos a respeito de bebês que
chupam panos?”, recebi uma missiva que se distanciava muito de tudo o que eu já tinha
ensinado sobre o pensamento fenomenológico acerca da infância, e também do texto do
Winnicott acima citado e indicado a elas para estudo. Neste texto, Winnicott afirma a
importância dos panos e outros objetos “adotados pelos bebês”, por evidenciarem uma relação
de afeto e de cuidado da criança com algo do mundo. Alguns trechos da carta das alunas
seguem abaixo:
(...) talvez sua filhinha esteja passando por uma fase normal da
criança, em que a chupeta pode ser algo confortante para ela. A criança
nasce com o reflexo de sucção, mas precisa assimilar esse esquema ao seio
da mãe. Quando você acompanhou seu bebezinho aprendendo a mamar,
não sei se você pôde observar o processo, em que a primeira mamada é
muito difícil; depois o processo é mais rápido, porque ele assimila o seio ao
esquema reflexo de sucção. Assim, em um processo de adaptação, que
envolve assimilação e acomodação, o conhecimento se constitui pela
atividade da criança no mundo, onde ela necessita de algo confortante, no
caso a chupeta ou seu dedo. Nesse sentido, ao afirmar que não existe um
conhecimento que a criança já adquiriu ao nascer, então é preciso passar
por esta fase de adaptação ao seu organismo, capaz de reconhecer.
Quase toda mãe já viveu o dilema: o bebê não pára de chorar, e a
solução, tentadora, costuma estar ao alcance da mão. Item básico nos
61
Esta carta corresponde à carta nº 5, carta-resposta nº2 do anexo 05.
114
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
enxovais infantis, a chupeta é o recurso preferido de muitos pais que querem
deixar os filhos mais calmos, talvez esse seja o motivo pelo qual sua filhinha
começou a chupar a chupeta e logo mais adiante o dedinho.
Então, que tal tentar fazer uma troca da chupeta por algo que ela
goste? Ou algo que você faça com ela, por exemplo, pode ser um filme de
desenhos a que assistam juntas, brincadeiras em que você também participe
e faça sua participação ser mais importante do que o ato de chupar
chupeta ou mesmo o dedo. Tente de uma maneira sutil, ao mesmo tempo
brincando, retirar a chupeta ao longo do dia, por algumas horas, assim ela
não sentirá tanta falta no começo, após isso, coloque a chupeta somente na
hora de dormir. Mostre a ela que existem mais coisas interessantes do que
chupar a chupeta ou também faça com que ela a dê como se fosse um
presente a alguém de quem ela goste, por exemplo, ao Papai Noel.
Mas devemos ressaltar que a chupeta pode causar problemas, tanto
dentários como até na fala
.
Para esta mesma carta, sugeriram outra proposta que encontraram em um site
62
em que
a mãe deveria fazer um curativo no dedo da criança, enquanto ela estivesse dormindo, e,
quando ela acordasse, lhe diria que tinha machucado o dedo de tanto levá-lo à boca. Segundo
o relato da mãe, a criança assustou-se com o machucado e foi “infalível”: rapidamente parou
de chupar o dedo.
Em uma situação como essa, em que ocorre uma distância radical entre o que se ensina
e o que está sendo apreendido, penso que o professor deve, acima de qualquer coisa, ponderar
e buscar compreender o que está acontecendo. Nessa situação específica, apesar de as alunas
não gostarem, desconhecerem e não compreenderem o pensamento fenomenológico e só
estarem no estágio por não terem tido outra opção, elas estavam presentes em praticamente
todas as aulas. “Escutavam” o que estava sendo ensinado, “liam” os textos, durante o período
das aulas, enfim, como os demais alunos estavam sendo incluídas no processo de ensino-
aprendizado. Era perceptível que o modo como participavam das atividades evidenciava
pouco envolvimento, mas não esperava tal distanciamento do olhar fenomenológico.
Porém, ao discutir o que estavam propondo, a saber, uma ação que partia de uma
mentira, um modo de olhar que se preocupava principalmente em retirar o sintoma sem olhar
para o seu sentido, entre outros aspectos, foi muito interessante como perceberam, por elas
mesmas, que estavam “iguais à Super Nanny” (sic). Ao serem questionadas sobre as
orientações que indicavam e à medida que foram refletindo sobre as generalizações,
62
Novamente vale ressaltar que o uso da Internet era um instrumento metodológico que eu indicava, não como
única fonte de pesquisa, mas para que conhecessem diversos pontos de vista e inclusive para que pudessem
aprender a ter uma leitura crítica sobre eles. Nenhum material deveria ser visto a priori como mais verdadeiro
somente por estar escrito em um livro ou por estar na internet.
115
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
preconceitos, teorizações e impessoalidade das propostas que faziam, deram-se conta de que
estavam procurando “uma resposta, uma receita que solucionasse o problema”.
Foi muito significativo perceber que elas só se tornaram conscientes da proximidade
do que elas faziam com aquilo que, ao longo de todo o estágio, eu me contrapunha
constantemente, no momento em que vivenciaram a experiência de escrever e ao serem
questionadas sobre suas propostas. Observo que o pensamento fenomenológico é uma
compreensão que precisa ser vivenciada para que se possa aprender a exercitar esse modo de
olhar.
As alunas demonstraram-se surpresas ao se verem como a Super Nanny, mas, ao
mesmo tempo, inclusive porque partiu delas tal afirmação, foi fundamental esse caminho para
que se dessem conta da distância entre o modo como estavam olhando as crianças e o
pensamento fenomenológico. Foi impactante o processo de conscientização delas a respeito
do aprendizado; contudo, não sei como seria uma outra carta realizada por elas, pois não
houve tempo hábil para isso. A carta-testemunho que me escreveram incorre em outros
problemas, como por exemplo, a definição que uma delas sugeriu para a fenomenologia.
Outro ponto de vista que se evidenciou nas cartas, não só dessas alunas, mas também
nas de outros alunos, com exceção das correspondências elaboradas pela Sara, é o olhar
desenvolvimentista para determinados modos de as crianças agirem. Ou seja, algumas atitudes
das crianças eram consideradas próprias de uma etapa ou faixa etária que seria (ou deveria
ser) passageira. Apesar de a teoria desenvolvimentista ser ensinada em muitas disciplinas do
curso de Psicologia, por meio das teorias de diversos autores, o olhar fenomenológico para a
infância busca um modo de compreender a criança para além da etapa ou da idade em que
possa estar.
Por mais que a perspectiva desenvolvimentista já tivesse sido inúmeras vezes discutida
como um modo de compreender bastante distinto do pensamento fenomenológico, os alunos
recorriam a ela como modo de explicar aos pais o que estava acontecendo, evidenciando o
quanto estamos impregnados por esta concepção. Olhar a criança de um ano, de dois, três ou
de qualquer idade como uma fase que deve ser vivida de um modo comum a todos é criar uma
normatização das idades na qual nem todos vão se enquadrar. Isso nos distancia da criança
específica para propormos um modelo imaginado, teorizado e idealizado.
A experiência vivida parece revelar mais uma vez que é ao fazer (e ao poder lhe ser
mostrado isso) que o aluno percebe que, não raro, faz aquilo que ele mesmo critica. Vejo aqui
a importância do estágio na formação do aluno e a situação de aprendizado a partir da escrita
de cartas como uma forma privilegiada de permitir o exercício de um olhar. Constitui-se numa
116
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
forma de diálogo entre estudantes de psicologia e pais/educadores que possibilita ao aluno
refletir, pensar e rever seus equívocos sem que isso tenha um impacto sobre o outro, como se
fosse em uma orientação direta, aspecto que aprofundarei no próximo item.
Ainda me referindo ao sentido de perceber nos alunos um distanciamento entre o olhar
fenomenológico ensinado e o modo por eles praticado, seria interessante atentarmos à carta da
aluna do último ano do curso de psicologia.
63
Em sua correspondência nos apresentou os
dilemas que vivia em uma situação de estágio na área da educação, mas reproduziu a fala das
educadoras da instituição sobre as crianças ( “que se esfregam, se batem, mordem e brigam
umas com as outras”). A estudante demonstra interesse em conhecer o olhar fenomenológico
para “resolver” os conflitos da instituição em que estagia e foi o que a motivou a escrever a
carta. Todavia, estava distante da atitude fenomenológica ensinada em seu modo de olhar para
as crianças com os “olhos” do adulto.
Retornando à carta escrita pela Sara, um outro aspecto vivido por ela na elaboração do
texto sobre a “chegada de um irmão”, foi reconhecer que, de modo específico, aquela carta
mais que outras, lhe deu muito trabalho e teve uma dificuldade peculiar para realizá-la. Em
sua reflexão não soube dizer se isso se devia ao fato de já ter escrito e reescrito a carta muitas
vezes, o que a deixava desanimada, ou se isso estava relacionado ao tema sobre o qual
escrevia. Cogitou que poderia não ter gostado do tema, ou ter tido alguma questão particular
que poderia estar lhe incomodando. Percebo que a experiência do estágio é algo que repercute
em habilidades pessoais dos alunos e que a prática profissional do psicólogo não é uma mera
transposição de conhecimentos, pois depende em muitos aspectos de quem somos, de nosso
autoconhecimento e de como lidamos com nossas questões.
Todo o processo de elaboração das missivas era feito pelos alunos e isso significa que
era preciso reescreverem muitas vezes seus textos. A repetição era vista pelo aluno como algo
indesejado e como um fracasso em seu desempenho, contudo eu ressaltava constantemente
que era necessária e inerente ao processo de aprendizado da construção textual. Opto por
discutir com eles as questões que se apresentam e deixo que eles escrevam (e reescrevam)
para que possam aprender a se expressarem, além de ser um modo de eu poder perceber (e
eles também) o que estão compreendendo acerca de cada idéia trabalhada.
Mesmo para os alunos com mais facilidade e abertura para o pensamento
fenomenológico, as cartas-resposta eram muito difíceis de ser escritas. Algumas vezes, Sara,
bem como outros alunos, conseguiam mostrar ter compreendido as perguntas apresentadas
63
Anexo 05, carta 10.
117
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
nas missivas de um modo fenomenológico: suspendendo suas crenças e abrindo-se para
aquilo que aparecia, olhando para a questão como um todo e não apenas para o “sintoma”
trazido. Mas ainda assim, muitas vezes, não conseguiam expressar tal compreensão em uma
construção textual. A escrita é um modo de expressão que requer uma elaboração e
apropriação diferente da compreensão verbal. Não raro, a construção textual parece exigir
mais por ainda ter que ser incluída à compreensão, outra forma de se comunicar que é
permeada por regras de ortografia, pontuação e sintaxe. No falar temos o tom de voz, as
expressões faciais dentre muitos outros sinais que ajudam a decifrar o que está sendo dito. Na
construção textual, não. Ela precisa se comunicar de modo esclarecedor, sem o auxílio dessa
outra linguagem, o que se pretende transmitir.
Foram freqüentes os relatos dos alunos de que nunca tinham imaginado ser tão difícil
escrever uma carta. Tais dificuldades devem-se a diversas razões complexas, por exemplo, o
perfil do aluno da instituição, o empobrecimento de nosso modo de nos comunicar, entre
outros aspectos já abordados, especialmente no capítulo 2. Nesse sentido, é interessante o
relato de uma aluna que, ao final do estágio, “confessou-me” ter achado no início a proposta
de escrever “cartinhas” algo muito “bobo” e “fácil” (sic) e que, para sua surpresa, mostrou-se
algo “muito complexo e interessante” (sic).
A proposta de escrever cartas, inclusive, torna-se mais interessante pelo contexto em
que está inserida, isto é, nessa Universidade e com esses alunos, que têm o perfil já
mencionado. Não sei como seria trabalhar a proposta em uma outra instituição, ou com outros
alunos. De todo modo, penso que essa prática é pertinente não só pela situação de aprendizado
que possibilita, mas pelo espaço de diálogo que cria entre educadores e estudantes de
psicologia.
Em síntese, as cartas mostraram-se como um instrumento potencializador do
aprendizado da atitude fenomenológica, aspecto que aprofundarei no próximo item. Percebi
que os alunos puderam crescer muito, pois se observa nitidamente um salto no aprendizado do
aluno após o estágio e isso pôde ser verificado ao cotejar as versões inicias e finais das cartas
que realizavam e nas atitudes e compromissos com o trabalho, com os colegas e com os
outros que foram demonstrando em suas ações ao longo do projeto. Contudo, a experiência
vivida pela Sara, bem como a de alguns outros alunos, certamente foi muito mais rica do que
aquilo que puderam contemplar em suas cartas-resposta. O mesmo também afirmo em relação
a mim, pois a experiência descrita neste doutoramento certamente é menor do que a riqueza
vivida no processo mesmo. Reitero que há um “espelhamento” entre aquilo que os educadores
118
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
viviam com seus educandos e o que o aluno vivia ao tentar ajudá-los, bem como com o que eu
mesma vivia na elaboração deste doutorado.
Fico com as palavras da aluna:
Para mim, foi muito mais que uma oportunidade de trocas de saberes, foi uma
reflexão sobre o meu próprio existir, pois, às vezes, parece inacreditável este
percurso Vila Penteado – PUC
64
. Alguém, finalmente, parece entender o que eu
penso, falo e as coisas que eu quero fazer. Foi muito importante para mim, para os
meus amigos e para a minha família esta oportunidade. É muito importante para
mim ter a oportunidade de aprender junto com você e perceber que eu posso
acreditar em muitas coisas. Pode até ser que muitas não aconteçam, mas eu posso
sonhar e estes sonhos me mantêm viva.
4.2 Cartas: Situação para o ensino-aprendizado de Psicologia Fenomenológica
Procurei, até aqui, apresentar a formação e a criação de uma ação psicológica no
campo da educação. Agora, busco refletir sobre as particularidades desse processo
perscrutando-o com as demais experiências de estágio vividas por mim, nesta instituição. Tais
reflexões visam pensar nas perspectivas que o uso de cartas me proporcionou no ensino de
Psicologia Fenomenológica.
Assim como esse projeto favoreceu o interesse do aluno pelo estudo, o mesmo
aconteceu com o aprendizado do pensamento fenomenológico. Ao ensinar a atitude do
método fenomenológico e de seus princípios, de forma a buscar que experienciassem esse
modo de olhar, tornou-se mais acessível para o aluno compreender o que lhes era transmitido.
Isto não significa que necessariamente o aluno compreendesse tal atitude, porém se
aproximava do que era ensinado, entendia o que estava sendo solicitado, por mais que ainda
não conseguisse compreender completamente aquele modo de pensar.
Conforme já explicitei em diversos momentos do trabalho, dada a complexidade do
método fenomenológico, não é algo fácil para o aluno o exercício desse olhar. Entretanto, as
cartas que recebemos e a necessidade de que elaborassem cartas-resposta exigiam que
buscassem vivenciar essa atitude. Diferentemente de quando estão aprendendo sobre o
método fenomenológico a partir de um livro que disserte sobre o assunto, de um estudo de
caso ou de exemplos descritos pelos professores em sala de aula, onde “recebem” ou
“observam” esse pensamento, na elaboração das cartas, são eles mesmos que têm de
constantemente procurar exercitar e viver tal atitude. Portanto, há uma mudança radical no
aprendizado do aluno ao utilizar as cartas como situação de ensino.
64
Refere-se, neste momento, ao simpósio em que participou na PUC.
119
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
A diferença marcante entre este estágio e os demais que já tinha proposto é que
oferece a possibilidade de exercitarem o modo fenomenológico de pensar, em uma
experiência vivida, em ação.
O contato com o pedido do outro solicitava os alunos, os mobilizava de um modo
específico: viam-se sob a necessidade de oferecer um saber psicológico e eram tocados em
suas próprias questões. Sentimentos, angústias, impacto provocado pela experiência de viver,
o compartilhar “real” com a vivência e sofrimento do outro, são aspectos do aprendizado
desse estágio que chamo de aprender com.
65
A possibilidade de aprender com é viva e rica
naquilo que sugere e possibilita como questões provocadoras, muito além daquilo que
podemos planejar em situações de ensino. A vida em seus mistérios e solicitações é muito
mais surpreendente e desafiadora do que qualquer carta-fictícia que eu possa criar.
Todavia, não estou sugerindo que outras práticas de estágio, bem como os meus
demais estágios, não enriqueceram a formação dos alunos, ou que a proposta das cartas é um
aperfeiçoamento das minhas propostas de estágio anteriores. Em muitos outros, os alunos já
evidenciavam aprendizado e crescimento. O que enfatizo é a diferença no modo como o aluno
vivencia um estágio voltado para a ação, para a experiência que nomeei de aprender com.
Outro aspecto que essa situação de aprendizado proporciona aos alunos está
relacionado à linguagem epistolar. Conforme apresentado no Capítulo 2, a comunicação
epistolar solicita uma expressividade diferente daquela utilizada freqüentemente por meio da
linguagem verbal, ou da “linguagem eletrônica”
66
. Diferencia-se também pela temporalidade
que apresentam, pois se trata de um registro que permanece, que pode se eternizar, cartas que
podem ser “guardadas”
67
.
Além disso, é um modo de se comunicar que exige o esforço da construção textual,
um modo de trabalhar com a linguagem que requer um tempo para amadurecer, construir e
lapidar o que será enviado, como colocou Comte-Sponville (1997), “certo refinamento”.
Ainda no quesito da temporalidade, a própria realização da carta exigia tempo no processo de
ensinar aos alunos para que pudessem amadurecer as idéias discutidas. Mais uma vez esse
modo de comunicação evidencia a necessidade de que uma reflexão seja aos poucos
construída e se contrapõe ao modo pragmático de pensar. Explicitava-se para os alunos que
65
O termo também foi encontrado em Cupertino (2001). Em sua pesquisa sobre a criação e formação de uma
oficina, utilizou a expressão na análise fenomenológica desse processo. No referido trabalho o uso que a autora
fez tem um sentido diferente do que apresento aqui. Inspiro-me também no caráter relacional de ser-com-o-outro
proposto por Martin Heidegger como condição existencial humana.
66
Refiro-me à linguagem utilizada nos meios eletrônicos, como na internet, nos e-mails, nos torpedos, dentre
outros aparelhos.
67
Expressão utilizada no sentido proposto pelo poeta Antônio Cícero, apresentada no capítulo 2.
120
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
uma compreensão requer quietude, paciência, dedicação e envolvimento, algo que não se dá
de modo instantâneo.
A temporalidade é uma relação existencial do homem com o mundo, um modo
relacional de o homem estar com as coisas, consigo mesmo, com o outro, com seu corpo e
com seu espaço. Esta relação não se refere ao tempo cronológico (o do relógio) que
controlamos e sob o qual vivemos dominados, mas ao tempo vivido, percebido por cada um
de nós (tempo-atemporal), vivido de diferentes modos. Atualmente, vivemos como o coelho
criado por Lewis Carroll em sua obra Alice no país das maravilhas que está sempre atrasado
(“Estou atrasado, estou atrasado!”), mesmo quando não sabemos para o quê.
A escritura das cartas também se coloca na contramão da exigência da “sociedade
tecnológica” de não “perder tempo”. As mensagens não eram transmitidas de modo
instantâneo, ao contrário, exigiam do remetente e do destinatário a expectativa do envio, da
chegada, da entrega. Aspecto freqüentemente questionado pelo aluno que, em geral, nunca
tinha escrito, até aquele momento, uma carta. Perguntavam-me freqüentemente por que não
podíamos realizar o projeto por e-mail. Alias, não foi apenas um pedido do aluno, a
instituição também o fez. No já citado “Encontro dos Serviços das Clínicas-escolas” em que
participamos a questão também foi levantada por uma professora.
Não seria a mesma situação de aprendizado o trabalho com as cartas ou o trabalho por
e-mail. Isto não significa dizer, contudo, que a comunicação por cartas não possa se
transformar e nem que o uso de e-mails necessariamente implicará em perdas para o
aprendizado. A transformação nos meios de comunicação é inevitável, algo do qual não
poderemos permanecer distantes. Não conhecemos ainda todas as implicações desse modo de
nos expressarmos, mas certamente há diferenças entre algo que é lido e algo que é visto. A
carta expressa em um papel e dentro de um envelope é um meio delimitante e delimitador que
valoriza a noção de um espaço-próprio. Certamente, um projeto como este implicaria em
outros cuidados a serem praticados para que o ensino de Psicologia Fenomenológica pudesse
ser viabilizado sem incorrer no “rodamoinho” que massifica, um trabalho que buscasse
humanizar o modo de comunicar.
Há na utilização das cartas a defesa pela materialidade, bem como por um modo de
comunicação que valoriza a concretude, a corporeidade, a espacialidade e a temporalidade
vividas de modo singular.
No futuro, será que ainda se escreverão cartas? Mais do que isso, é possível uma carta
continuar a ser uma carta, com suas características e particularidades, se enviada por e-mail?
Será somente o meio que se transforma?
121
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
Algumas destas questões não podem ainda ser respondidas, mas penso que algo que
impossibilitaria este projeto seria propô-lo em forma de chats on line. Além de o aluno não
estar preparado para a rapidez nas respostas exigidas nesse modo de diálogo, não seria de
modo algum educativo, ou coerente com tudo o que defendi até o momento, incentivar uma
prática de ensino que não valoriza a reflexão, o amadurecimento, a quietude e a perplexidade
diante dos mistérios da vida humana. Ao contrário, que ensina e valoriza a prática da
prontidão e do pragmatismo, princípios questionáveis quando relacionados às questões
educativas. Todavia, há práticas psicológicas em sites, blogs e demais meios de comunicação
eletrônicos e não seria correto generalizar que todos eles necessariamente estariam a serviço
do pragmatismo. Contudo, penso que para que tal prática se viabilize sem se deixar levar pelo
pragmatismo e se mantenha refletindo criticamente sobre as questões educativas, é necessário
maturidade, experiência e domínio das questões discutidas. Além do que, tais profissionais
respondem a uma solicitação e necessidade atuais em que temos pessoas que buscam auxílio
profissional (psicológico ou educativo) nos meios de comunicação de massa.
A situação de aprendizado via cartas possibilita a liberdade para expressar nossa
compreensão diante dos pedidos dos pais e educadores. Isso me parece ser algo relevante,
pois dentro de uma instituição que faz uma série de exigências pragmáticas,
contraditoriamente, nos deu possibilidade de exercer uma atividade em que nos posicionamos
de um modo independente e em acordo com nossa visão de homem e de mundo.
Percebo que foi uma experiência que se revelou como excelente recurso pedagógico,
pois o professor tem a possibilidade de, em um contexto privilegiado (o da sala de aula),
formar o aluno, ao mesmo tempo em que possibilita que ele vivencie esta atitude. Considero
as cartas um recurso importante e percebo que os alunos puderam crescer muito ao elaborá-
las, especialmente em relação à construção de seus textos e ao modo como se comunicam. O
aspecto que ressalto aqui é a possibilidade de aprender em
68
um espaço que valoriza a
reflexão e não o julgamento: um contexto que permite o “erro” e a desconstrução dos
conceitos cristalizados em virtude da valorização no processo de conscientização do próprio
aprendizado. Além do que, o equívoco profissional não se dá diante da pessoa, no contato
“direto” com o outro, porém, quando cometidos no processo de formação dos alunos não
deixam de ser compreendidos como a orientação de uma “autoridade” e, por isso, têm
conseqüências. Portanto, trata-se de uma situação de ensino privilegiada para o aluno por lhe
68
Novamente, vale ressaltar que essa expressão também foi encontrada em Cupertino (2001), embora nesse
trabalho o uso que a autora fez tenha um sentido diferente do que apresento aqui. Inspiro-me também na
proposição de ser-no-mundo de Martin Heidegger como condição existencial humana.
122
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
permitir entrar em contato com o outro sem que isso signifique que ele ou o outro se exponha
às inabilidades, conflitos ou desconhecimentos inerentes às práticas de um aluno iniciante.
Na supervisão o aluno tem a possibilidade de expor suas dúvidas, idéias, sentimentos,
pensamentos; pode e permite-se errar, discutir e refletir, o que contribui muito para seu
aprendizado e crescimento pessoal e profissional.
Vale explicitar, ainda, a respeito de minha metodologia de ensino, que não se trata de
um modo de ensinar estruturado em procedimentos rigidamente estabelecidos, etapas ou
passos a serem seguidos. Ela foi (e é) criada e recriada a partir daquilo que os pais e
educadores nos propunham (e propõem) e conforme as necessidades dos alunos.
Desse modo, a escrita das cartas nessas experiências de estágio em Psicologia
Fenomenológica mostrou-se como uma rica estratégia metodológica para a situação de
ensino-aprendizado dessa disciplina. Muitos outros sentidos e significados da experiência
ainda estão por se desvelarem.
Para mim, tem sido uma oportunidade única ensinar esses alunos. Seus esforços e lutas
são, muitas vezes, exemplos de vida que merecem todo o meu respeito e dedicação. Eu
agradeço pelo presente que tem sido em minha vida a prática do ensino e, especialmente por
alunas como a Sara. É como água no deserto em meu árduo cotidiano de ensino. Obrigada a
vocês, alunos!
123
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
CAPÍTULO 5
O recado das cartas: Esboço de uma Fenomenologia da experiência dos pais
A gente diz uma coisa, o entrevistador entende
outra coisa, o leitor entende outra. Enquanto isto, a
coisa propriamente dita fica pensando que não foi
propriamente dita.
Mário Quintana
.
Não foi o intuito deste trabalho a análise das cartas que nos foram enviadas por pais e
educadores, e sim, conforme já apresentado, focar no ensino e aprendizado do aluno. Aqui
apenas procurei trazer de modo mais detalhado alguns aspectos das cartas a que me referi
constantemente e apreender, por meio dos questionamentos suscitados por essas cartas, o
sentido dado pelos educadores ao projeto do Correio psicoeducativo. Todavia, tais missivas se
tornaram um material muito rico e poderão ser utilizadas em outros trabalhos, se forem
analisadas mais detalhadamente.
Das 14 cartas recebidas, uma foi escrita por uma parente da família da criança, uma
pela tia, duas por educadoras que trabalham com crianças, sendo uma estudante de Psicologia
e a outra, professora do ensino público, sete, por mães e três, por pais. Duas
69
se aproximam
mais de bilhetes, textos bem curtos com praticamente uma única pergunta e que explicitam,
de modo bem pragmático, a dúvida a ser resolvida. Não continha nem um contexto sobre a
criança, seus pais ou seu mundo.
De modo oposto, algumas delas traziam tantas perguntas que, por uma questão
didática, eram divididas, para que os alunos fossem respondendo aos poucos e não
transformassem suas cartas-resposta em “tratados” extensos e cansativos. Quando na
correspondência se perguntava a respeito de mais de uma criança, escrevíamos uma carta
sobre cada uma, ou então, quando havia muitas perguntas diferentes, também optávamos por
responder em duas ou mais cartas.
De maneira geral, as missivas escritas pelos pais e educadores eram sucintas, embora
muitos tenham procurado nos fornecer algum dado sobre a criança ou adolescente (idade,
trejeitos e particularidades) ou sobre si mesmos (idade, trabalho, relação de parentesco com a
criança) que considerassem relevante para o entendimento da dúvida que formulavam.
Embora não houvesse somente a formulação da pergunta que requisitavam, os dados e o
contexto que relatavam eram muito genéricos e vagos. Poucas foram as correspondências que
69
Refiro-me às cartas 5 e 6 do anexo 04.
124
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
detalharam aspectos da criança que não se relacionavam diretamente à questão formulada – a
história da gravidez ou o cotidiano vivido pela criança, por exemplo. Os detalhamentos,
quando havia, se referiam a algum aspecto que os pais acreditavam estar relacionado ao
“problema” (falas como: “desde que o irmão nasceu isso se iniciou”, “ele só faz isso
quando...”, por exemplo).
Tais características no modo de escrever as cartas parecem se reportar ao modo
predominantemente causal de pensar, em que há uma linearidade que “explica” as ações e
comportamentos como resultantes de algum fator, ação ou estímulos. Conforme já abordado
anteriormente, somos constantemente bombardeados em nosso cotidiano por este modo de
pensar que é o pensamento hegemônico difundido (e defendido), sobretudo pela ciência.
Também, mediante o estilo como foram escritas as cartas (perguntas enfáticas, pedidos
explícitos), percebe-se que os pais e educadores esperavam que a “Psicologia” soubesse
responder sobre a agressividade (como se todas as formas de agressividade pudessem ser
compreendidas, explicadas e resolvidas da mesma forma), sobre o ciúme, as dificuldades na
escola, enfim, que pudéssemos ter uma resposta prévia para todos os conflitos e sofrimentos
vividos no processo educativo. Evidencia-se, portanto, que os pais buscam a possibilidade de
generalização sobre o modo como as pessoas se mostram e de como se deve agir. Pela
maneira como escreviam, deixavam bem explícito que acreditavam que pudesse existir (e
buscavam) “a” melhor forma de se educar e de lidar com os problemas enfrentados. Em
outros termos, uma “cartilha” que pudesse ser oferecida para acabar com a “desobediência”,
“problemas de atenção”, “dificuldades na escola”, a “educação em moldes massificados”,
como critica Winnicott (1999). Afinal, as cartilhas e os manuais para a educação existem; é
um modo de muitos educadores viverem e pensarem o mundo.
O modo de escrever denuncia também a visão de infância que permeia as ações e
pedidos dos educadores, aspectos que abordarei no próximo item, em que a criança é tida
como um ser passivo que deveria poder ser controlada e manipulada, conforme interessasse
aos pais/educadores.
Há, portanto, um contraste entre o que os educadores esperavam receber e o que pôde
ser oferecido pela Psicologia Fenomenológica: uma atitude de reflexão e questionamento
diante dos conflitos vividos e um olhar para a criança como uma pessoalidade.
Ainda sobre o estilo da escrita das cartas dos pais, sabemos que elas foram escritas
pelos pacientes que freqüentam a clínica de psicologia da instituição a que constantemente me
referi neste estudo (e que a procuram por ela oferecer atendimento gratuito), ou por parentes e
colegas de trabalho de nossos alunos. As missivas também apresentam diversos erros de
125
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
ortografia e concordância. A dificuldade que demonstram com a escrita, por existirem muitas
frases e trechos confusos, por um lado, evidencia inabilidade para expressarem aquilo que
gostariam de perguntar e, por outro, revela o esforço feito para escreverem aquela carta.
Portanto, todas as cartas têm o mérito de expressarem interesse pela criança.
5.1 As cartas mesmas: experiências vividas pelos pais e educadores
Um primeiro aspecto que pode ser pensado, a partir das missivas que recebemos são as
perguntas e pedidos feitos pelos pais/educadores. Os motivos relatados pelos pais como
dificuldades vividas em seu cotidiano e que os fazem procurar o “Correio” foram os mais
variados. São alguns deles: “como colocar limites?”; “modos de correção adequados”; “como
lidar com o nascimento de um irmão”; “sexualidade”; “violência da criança/adolescente ou de
seus pais”; “impaciência com o filho”; “doença vivida pela criança”; “amamentação e volta ao
trabalho”; “agressividade”; “desresponsabilização da família pela criança”; “problemas na
escola – dificuldades de aprendizado”; “xixi na cama”; “menino afeminado”;
“desobediência”; “mimos”; “adolescência”; “responsabilidades da criança/adolescente”;
“obesidade da criança”; “falta de tempo para cuidar da criança”.
As expressões e termos utilizados já evidenciam crenças e valores no modo como
compreendem a criança e se propõem a educá-los. Numa primeira leitura dos diversos
pedidos feitos nas missivas, percebo que predominam dois aspectos, absolutamente
interligados: em quase todas as cartas procura-se por uma “melhor” educação que possa ser
ensinada – ficou evidente que crêem que existe uma educação mais correta a ser oferecida; e o
segundo aspecto, conseqüentemente, é o pedido por instruções, procedimentos, soluções e
“receitas” que possam garantir a eficácia e os resultados esperados.
A busca por tais solicitações não surpreende, pois quando a pessoa se vê diante de
situações de sofrimento e impotência, deseja encontrar uma resposta que possa aliviá-la e, em
última instância, mudar sua própria condição humana, frágil, finita. Não haveria de ser
diferente com os pais e educadores. Quando se vêem diante de um conflito com uma criança
(que não pára de chorar, que não “larga” a chupeta, que faz birra e se joga no chão) procuram
alguém que possa lhes dar uma indicação do que podem ou como devem fazer.
A busca por orientações, conselhos, trocas de experiências é um aspecto humano de
quem convive em sociedade, de quem educa e transmite valores, leis, tradições, etc. No caso
dos educadores que nos escreveram, o próprio ato de recorrer ao “Correio” indica
preocupação e interesse em buscar um conhecimento “especializado”: o da Psicologia.
126
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
Somente o ato de organizarem uma questão e apresentá-la por escrito é dispor-se a “gastar”
tempo e realizar um esforço pouco usual.
Chamo atenção para o conteúdo solicitado nas cartas, nas crenças e valores implícitos
nos adultos que as missivas revelam: a imaginação é concebida como um problema a ser
superado; a decepção ou preocupação por acreditarem que a criança não está na fase esperada
ou agindo de um determinado modo que esperavam; sugestões de que a homossexualidade é
uma escolha “já” da criança; o modo como a sexualidade da criança é interpretada pelo olhar
sexualizado do adulto; brincadeiras, agressividades e fantasias proibidas ou interpretadas
como manifestações sobrenaturais, dentre muitas outras concepções que permeiam a visão de
infância e o modo como procuram educá-las.
Muitas teorias da Psicologia e da Pedagogia se propõem a oferecer explicações
científicas e procedimentos corretos a serem empregados, que poderiam prever e garantir a
“boa” educação, explicações e certezas sobre os comportamentos das crianças. São muitas
dessas teorias que fundamentam tais crenças e concepções que os educadores apresentam.
Parece-me que os pais e educadores já aderiram ao discurso psicológico, pedagógico e
científico. Ao mesmo tempo, se atentarmos para a cultura em que estamos inseridos,
encontramos uma sociedade organizada de modo cada vez mais tecnicista e que nos requisita
constantemente o pragmatismo. Desde o modo como nos alimentamos (“suco de caixinha”
acompanhado de refeição aquecida no forno de microondas ou fast foods,), até os objetos
tecnológicos que permeiam nosso cotidiano (celulares, laptop, fax, caixas eletrônicos, etc) já
se tornaram “inerentes” ao nosso dia-a-dia. Somos constantemente submetidos às novidades
eletrônicas, cada vez mais rápidas e velozes, pela modernização e transformação das cidades,
das casas, prédios, escolas. A todo o momento, somos rodeados por modelos explicativos
causais e relações mecânicas, que são “automaticamente” transpostas para o modo de olhar a
existência humana.
Ainda sobre as perguntas dos pais, um pedido comum em seis das cartas, que também
está implícito em outras, é a tentativa de dar limites aos filhos. Entretanto, todos diferem entre
si, seja pelo modo como solicitam ajuda ou pelo modo como compreendem a falta de limite
da criança, tal como pode se observar nos trechos das cartas:
(...) Como me disseram que é a partir de agora [referindo-se à idade da criança de 1
ano e 4 meses] que preciso educá-lo, como fazê-lo compreender que não deve fazer
determinadas coisas? (...) Meu filho está na fase do descobrimento, das brincadeiras,
mais qual é o limite que ele pode, por exemplo, mexer nos objetos de casa? (...) –
Trecho da Carta nº 1, que pode ser encontrada na íntegra no anexo 04.
*
127
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
Minha filha está prestes a completar dois anos e minha pergunta é bem simples, ela
é extremamente agitada e mesmo com atividades para fazer ela insiste em fazer,
pegar, brincar com objetos e locais que nós (eu e a mãe) não autorizamos (...)
mesmo já tendo levado broncas e broncas. O olhar dela nessas horas, deixa claro
que a vontade dela é provocar. Sei que é típico de criança este tom até
debochante(sic). (...) Devo reprimi-la de maneira mais severa? Sou contra violência
e não vou bater nela, mas quero saber se deixo ela fazer o que quer por ser pequena
e não entender, ou, reprimo-a antes que isso se torne cada vez pior. – Trecho da
carta nº 3, que pode ser encontrada na íntegra no anexo 04.
*
Em uma criança de 7 a 12 meses, qual é o limite para uma correção e a capacidade
da criança em entender que está sendo corrigida? – Este trecho equivale a toda a
carta, transcrita aqui na íntegra. – Carta nº 5, que pode ser encontrada também no
anexo 04.
*
(...) Como eu devo explicar ao Cristian sobre ter responsabilidades, e talvez fazer
suas obrigações (...) – Trecho da carta nº 3, que pode ser encontrada na íntegra no
anexo 05.
Portanto, o “mesmo” pedido por limite evidencia necessidades muito diferentes e
significa modos distintos de viver a “mesma” dificuldade. O pedido por limites de um pai
para um bebê é diferente daquele do pai de uma criança de dois anos ou da mãe de um
adolescente. Para um, limite pode significar o desejo de uma criança mais quieta, para outro,
um filho mais participativo, ou ainda, mais obediente. Procurei entender esses pedidos como
necessidades muito diferentes para cada um dos pais. Por exemplo, em um deles percebia a
necessidade do exercício de maior tolerância e paciência, para o outro a necessidade de
indagarmos por seu modo de olhar para a infância e com outros ainda, rever sua compreensão
de autoridade. De modo geral, a questão do limite parece deixar claro o desconforto para os
pais e traz uma questão que é deles (e não da criança). São os pais que devem ser responsáveis
por iniciar a criança no mundo público do adulto, conforme propõe Arendt (2001). Nesse
sentido, o adulto precisa se constituir como um modelo de autoridade para que possa, à
medida que acolhe e contribui para a constituição da singularidade da criança, zelar pela
durabilidade do mundo, sua herança simbólica, e permitir a renovação pelos “novos” que dela
se apoderam.
Outro conflito que aparece em seis das cartas
70
, tanto escritas pelos pais como pelos
educadores, foram as dificuldades vividas com a escola. Desde a decisão de optar por colocar
70
Este é um dado interessante, pois no primeiro semestre, este pedido apareceu apenas em uma das sete cartas,
enquanto que nas sete cartas do segundo semestre, ocorreu em cinco delas. Penso que nos faltam elementos para
podermos compreender melhor este dado.
128
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
a criança na escola ou deixá-la em casa, até questões vividas no processo de ensino-
aprendizado: criança que não gosta de estudar, não faz a lição, vai mal na escola, etc (sic).
No caso das cartas das educadoras, a fala é de que a família prejudica, atrapalha ou
“estraga”(sic) o que elas fazem. Portanto, a “clássica” oposição entre a participação e
contribuição da escola e da família aparece como um aspecto relevante na experiência
educativa vivida pelas educadoras.
Já em relação ao relato dos pais, a escola aparece como um fator de dificuldade na
relação deles com os filhos, pois não sabem como ajudar a criança a estudar ou a não ir “mal”
na escola.
As dificuldades vividas na ou com a escola parecem aumentar a angústia vivida pelos
pais e seu sentimento de insegurança e insatisfação pessoal no processo educativo:
(...) Sua professora fala que ela nunca termina uma lição: e é verdade, pois sempre
olho seu caderno, e ela diz para mim é que não teve tempo.
Sua professora também fala como ela é muito discuidadosa (sic), e muito
desligada em sala de aula, só pensa em conversar e desenhar. (...)
Enfim, ela nunca termina uma lição, e nunca trouxe seu caderno para casa, que
está sempre com a professora.
O que posso fazer sobre isso? Porque não sei mais o que tentar para mudá-la (...) –
Trecho da carta nº 7, que pode ser encontrada na íntegra no anexo 05.
Um sentimento comum para o qual as cartas parecem apontar é a inquietação dos pais
em educar. Sentem-se aflitos e evidenciam uma espécie de desamparo por não saberem como
agir diante das dificuldades que enfrentam. Algumas cartas revelam o quanto educar pode se
tornar uma tarefa penosa:
Tenho 3 filhos, um de 12 anos (a Taís), o Bernardo 10 anos e a Iara 3 anos, estou
escrevendo porque confesso que estou um pouco atrapalhada na educação dos meus
filhos, estou muito atrapalhada. (...)
O Bernardo de 10 anos não enxerga, perdeu a visão o ano passado, e teve várias
cirurgias a partir dos 3 anos de idade. Então, por esse fato ocorrido o Bernardo ficou
muito agitado e um pouco agressivo.
A Taís está indo muito mal na escola, e também está um pouco acima do peso,
não sei mais o que conversar para melhorar. Também não tem muitos amigos, se
acha feia. (...)
Por favor, gostaria que me dessem uma orientação. – Carta nº 4, que pode ser
encontrada na íntegra no anexo 05.
Relacionado às dificuldades vividas pelos pais, em algumas cartas, está o sentimento
de insegurança, a falta de confiança em si mesmos e no que fazem. O sofrimento e o
sentimento de insegurança parecem contíguos, já que ao não se sentirem capazes de educar,
sofrem e vice-versa, num ciclo de mútua catalisação.
Alguns pais mostram a necessidade de amparo por não se sentirem confiantes no que
têm feito. Mesmo quando a pessoa parece saber o que deve, ou gostaria de fazer, ainda assim,
129
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
a insegurança prevalece e recorre ao saber psicológico para lhe dar orientação ou para buscar
confirmações sobre suas ações, como na carta abaixo:
(...) Devo reprimi-la de maneira mais severa? Sou contra violência e não vou bater
nela, mas quero saber se deixo ela fazer o que quer por ser pequena e não
entender, ou, reprimo-a antes que isso se torne cada vez pior. Não encontrei ainda
um “meio termo”. – Carta nº 3, que pode ser encontrada na íntegra no anexo 4.
Winnicott (1999) relata que é freqüente os pais se sentirem culpados e incompetentes
com os problemas que enfrentam, e recorrem a qualquer um que lhes fale com autoridade.
Para ele, a ciência abala a autoconfiança dos pais, que perdem a própria capacidade para agir.
Seu modo de trabalhar com pais procura ressaltar que, em suas atitudes, “algo apropriado
aconteceu”, pois não seria possível que eles consultassem especialistas diante de cada
circunstância que vivem. Ninguém poderia ter lhes dito algo melhor que pudesse ser feito,
pois aquelas circunstâncias não poderiam ter sido descritas de antemão. Sua proposta, e aqui
caminhamos com ele, é muito mais a de ajudá-las a compreender o que fazem ao educar, e por
que fazem, para que quando se vejam em dúvida possam “não procurarem conselho
71
mas
informação” (1999, p.4).
Outro aspecto que percebo nas cartas chamei de condições adversas: são todos os
problemas enfrentados ou relatados pelos pais/educadores que dificultam ou os prejudicam no
processo educativo. Quase todas as cartas contêm algum aspecto ou contexto que os
pais/educadores consideram desfavoráveis para o desenvolvimento da criança e para sua
educação. Os aspectos mais freqüentes foram: o trabalho (que os impossibilitam de estar por
mais tempo com a criança); a avó ou outros parentes com quem fica a criança, pois não existe
entre eles uma atitude comum (um adulto deixa a criança fazer algo e o outro não, por
exemplo); os ciúmes entre irmãos; doenças (cegueira, obesidade etc); uma gravidez não
planejada e as dificuldades com a escola, dentre outras.
Somente uma das correspondências fez menção à falta de recursos como um fator que
dificulta o processo educativo, o que pode indicar que os pais sabem que as questões
econômicas não podem ser solucionadas por psicólogos. Nossos remetentes são pessoas de
uma classe econômica desfavorecida e isso não apareceu como queixa explícita ou condição
adversa. No entanto, as dificuldades econômicas podem dificultar o processo educativo, seja
pela impossibilidade de se poder arcar com uma educação de qualidade ou em propiciar
melhores condições de saúde e habitação. Fica a questão: consciência de que nisto não
71
O sentido de conselho dado por Winnicott difere do sentido dado por Benjamin a este termo, o qual também
utilizamos e em quem nos apoiamos. Winnicott refere-se ao significado de conselho como uma resposta pronta,
o modo como a sociedade moderna se utiliza do conselho e que o próprio Benjamin critica.
130
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
poderíamos ajudar ou aceitação das dificuldades diante das quais sentem que pouco podem
fazer?
Não foi explicitado pelas mães como uma condição adversa a ausência de participação
dos pais, embora tenha aparecido de modo implícito em algumas cartas sentirem a falta de ter
com quem compartilhar suas questões. Ao mesmo tempo, e talvez por isso mesmo, as mães
tomam como tarefa sua a responsabilidade pelos filhos; e isso é freqüentemente relatado com
um grande peso.
Ainda como condições adversas vividas pelos educadores, foram relatadas
circunstâncias pessoais que dificultam a relação educativa. Diferentemente das primeiras
relatadas, tais condições estariam mais relacionadas a aspectos particulares do modo de ser de
cada um dos educadores, como a idade (às vezes, avançada), o jeito particular de lidar com a
criança (mais ou menos paciente), a intolerância consigo mesmo ou com a criança, a
dificuldade para lidar com a diferença, o acesso à informação, o repertório cultural que
possuem, a infância vivida e o próprio modelo de educação recebida.
As condições adversas, sejam elas pessoais ou mais particularmente relacionadas ao
mundo em que vivem, sejam percebidas ou não, existem e se apresentam como fatores que
dificultam o processo educativo. A intensidade dessas circunstâncias ou o modo como são
entendidas podem aumentar o desamparo vivido pelos educadores e contribuir para sua
autodesvalorização e sentimento de impotência diante da criança e da necessidade de educar.
Um sentimento que aparece de modo implícito em muitas cartas, e que acaba sendo
uma condição adversa ao processo educativo, é o cansaço vivido pelos educadores no
cotidiano. A maior parte das mães e educadores que nos escreveram, relataram trabalhar fora
de casa, característica freqüente em nossa sociedade atual que “incluiu” a mulher no mercado
de trabalho. Muitos trabalhos são desgastantes e mal remunerados, o que provoca insatisfação
nas pessoas que os realizam. Contudo, mesmo naqueles que realizam trabalhos mais
prazerosos, também se evidencia um alto grau de cansaço ao final de um dia de trabalho. A
experiência vivida no cansaço, desde a exaustão das capacidades físicas às diferentes
disposições de ânimo dos educadores, afeta o modo como eles encontram-se com as crianças.
Muitas vezes, a criança pode estar fazendo algo que, em determinado momento, irrite ou se
torne intolerável para a mãe e, em outra circunstância, a mesma atitude seria interpretada
como uma “gracinha” ou como uma necessidade própria das crianças.
A esse respeito, Winnicott (1999) afirma que as mães que vivem em condições
adversas de muita pobreza ou com “grandes dificuldades pessoais” estariam em uma “posição
desfavorável” a ponto de não conseguirem, muitas vezes, desempenhar suas responsabilidades
131
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
como mãe ou lidar com “problemas cotidianos com as crianças”. Para o autor, tais aspectos
“as impedem de ter uma visão mais ampla do que deveria ser o seu papel de mãe”, embora ele
reconheça que o que todas buscam é “realmente se sair bem” (1999, p.36-37). O aspecto que
Winnicott quer ressaltar é que muitas vezes por conta da própria infelicidade da mãe, ela pode
estar mais irritável, e portanto, menos tolerante com a criança. Ainda segundo o autor, haveria
ainda aquelas que podem procurar fazer o oposto, isto é, “exagerar no trato carinhoso” com a
criança, também em decorrência de uma situação que independe da criança (1999, p. 38).
Outra experiência vivida pelos pais que podemos apreender das cartas é a dificuldade
para lidar com a autonomia da criança. É o que podemos perceber nos relatos de muitos pais e
educadores, que se sentem perdidos ante a pessoalidade das crianças. De modo geral, parece
que não esperavam encontrar tanta disposição, inteligência e independência nas crianças. O
espanto diante das crianças parece colocar em questão crenças e expectativas anteriores: como
é a criança pensada versus a criança vivida? Talvez, estivessem pouco disponíveis para
adaptar-se à criança que vem e às suas necessidades, peculiaridades e vontades, aspecto que
está diretamente relacionado à dificuldade do adulto para colocar limites, a se constituírem
como autoridade e à visão de infância desses educadores que encontramos implícita nas
cartas, como podemos perceber nos trechos abaixo.
(...) Ele não obedece a mim e nem ao pai, finge que não entende continua a
aprontar a ‘arte dele’. – Trecho extraído da carta nº 2, que pode ser encontrada na
íntegra no anexo 5.
*
(...) O olhar dela nessas horas deixa claro que a vontade dela é provocar (...) –
Trecho extraído da carta nº 3, que pode ser encontrada na íntegra no anexo 4.
Existe certa inabilidade por parte dos pais e educadores para contornar os problemas
enfrentados no dia-a-dia com as crianças, em virtude de desconhecerem o modo de ser dessas
crianças e terem dificuldade de aceitar a autonomia que elas revelam, o que acarreta o
enfrentamento.
Com base no estudo dos textos produzidos nas cartas, observei que há uma visão
acerca da infância, um modo dos pais/educadores de conceberem a criança e suas expectativas
em relação a elas. O olhar desenvolvimentista, isto é, a maneira de olhar a criança a partir de
fases do desenvolvimento em que há uma série de comportamentos e atitudes da criança que
devem ocorrer em cada uma destas etapas, em geral, determinada pela idade, aparece como
algo muito presente no discurso dos pais/educadores:
(...) Devido a idade que tem, não sabe os limites que precisa ter (...) – Trecho
extraído da carta nº 1, que pode ser encontrada na íntegra no anexo 4.
132
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
*
(...) Uma criança com 3 anos (menino) está naquela fase “teimosa” (...) – Trecho
extraído da carta nº 7, que pode ser encontrada na íntegra no anexo 4.
A expectativa de que a criança deveria fazer algo que não faz, ou vice-versa, muitas
vezes preocupa os adultos que se sentem impossibilitados de olhar para aquela pessoalidade.
Por exemplo: o que significa para a “Maria” chupar chupeta até esta idade? O que isso fala
dela e de seu modo de estar lidando com o mundo? Ou, o que quer dizer uma criança que não
deixou de fazer xixi na cama?
Nestes casos, mais do que olhar para a idade da criança, e julgar que naquela etapa não
deveria estar fazendo “isto” ou “aquilo”, sugerimos uma visão menos impregnada pela
concepção desenvolvimentista e mais aberta para enxergar a criança por ela mesma, buscando
conhecer e compreender o sentido de seu modo de ser e deixando-a se revelar. Se pudermos
atentar para os atos da criança como algo que tem um sentido e questionar a compreensão
simplista de que aquele é um comportamento que não deveria ter, talvez, enxergássemos o
conflito e o sofrimento vivido por ela, a impossibilidade de poder deixar de fazer aquilo que o
adulto tanto insiste para que ela deixe de fazer. E ainda, propomos um olhar mais generoso do
adulto, isto é, que enxergue ali um sentido maior do que “mero” pedido por atenção.
De maneira geral, as correspondências revelam uma maneira de olhar a criança
extremamente rígida, com expectativas prévias e, portanto, pouco disponível para o
“espanto”, conforme propõe o professor Guimarães Lopes (1993), bem como para a
“novidade” que cada criança é, segundo a concepção de Hannah Arendt (2001). Aqui também
se mostram de modo muito evidente a idealização e expectativas prévias em torno da infância
que se dão de modo muito diferentes da realidade vivida com a criança.
A maneira de olhar a infância e as expectativas em relação a ela parecem provocar nos
educadores algo que chamei de velamento
72
. Trata-se de um fenômeno sutil que pode ser
entendido como um modo de conhecer/desconhecer a realidade como que por meio de um
“véu”, isto é, uma maneira de alcançar o mundo e as relações que estabelecemos com ele de
forma “embaçada” pelas concepções prévias que se tem, ou se espera, da criança. Desse
modo, o encontro com as crianças parece já ser atravessado por crenças e desejos
73
que
72
Tomo emprestada esta expressão de Solymos (2002) que se refere ao velamento das mães/responsáveis por
crianças desnutridas, embora aqui eu utilize com um sentido diferente. Inspiro-me também na condição de
velamento proposta por Martin Heidegger como condição existencial humana.
73
Vale ressaltar que não estou sugerindo que possa haver um encontro com o outro que possa ser “puro” ou
isento de todos os nossos valores e desejos. Não há, do ponto de vista fenomenológico, tal modo de olhar e a
133
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
p
ensamento fenomenológico
dificultam, quando não impedem, que a criança possa aparecer. Mas, qual relação não seria
“contaminada” por nossas expectativas prévias? A diferença que quero ressaltar aqui está no
modo como esta realidade aparece, ou o tipo de “véu” colocado para se lidar com esta
situação.
O uso desta cortina, mesmo que não seja feito de modo intencional pelos
pais/educadores, antecipa ou encobre o encontro com a criança e, de certa forma, acaba por
depositar nela a responsabilidade pelas dificuldades vividas. Percebemos em relatos que
perguntam por que a criança ainda faz xixi na cama se já tentaram de tudo, “inclusive dar
mais atenção a ela”; por que ela não obedece a ninguém e passou a bater nas pessoas; o que
fazer com a criança obesa que se sente feia, dentre outras indagações que desconsideram a
participação que o adulto/responsável tem nestes processos.
O velamento da realidade pode nascer de uma reação de autoproteção dos
pais/educadores diante das circunstâncias adversas em que se encontram, como se estas
condições lançassem o “véu” que as poupa, mesmo que parcialmente, de perceberem suas
próprias dificuldades e limitações e, por outro lado, sufocarem o modo de se revelar da
criança.
Embora, conforme já dito, o velamento nem sempre seja intencional, ele acontece e
torna-se existencial por realizar-se nos gestos do educador.
De maneira geral, todas as cartas demonstram expectativa de encontrar na educação
um modo de manipular ou controlar a criança. Muitas são as correspondências dos pais e
educadores que pedem literalmente uma sugestão ou orientação sobre como devem proceder.
Entretanto, o que procuram é um conceito de educação como forma de “coerção sem o uso da
força” (Arendt, 2001:225), conforme pode ser observado nos relatos abaixo:
(...) gostaria que vocês me ajudassem com sugestões de como educá-lo? Como
fazê-lo obedecer? – Trecho extraído da carta nº 2, que pode ser encontrada na
íntegra no anexo 5.
*
(...) O que posso fazer sobre isso? Porque não sei mais o que tentar para mudá-la
(...) – Trecho extraído da carta nº 7, que pode ser encontrada na íntegra no anexo
5.
A educação parece ser aqui entendida pelos pais como a disciplina necessária que deve
ser inserida na criança como instrumento para adaptá-la às necessidades sociais. Segundo
Goulart (2003), foi essa a tarefa atribuída às instituições escolares no Brasil desde o início do
“contaminação” de nossa perspectiva sob a realidade não seria um problema a ser resolvido e sim uma condição
do modo como o mundo nos aparece. Refiro-me aqui ao tipo de expectativa que se tem.
134
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
século XX e a Psicologia da Educação foi uma das principais ciências utilizadas para se
alcançar tais objetivos. Embora hoje já possamos encontrar na Psicologia da Educação
diversas críticas a esta tendência, ainda há em muitos teóricos a busca por um conhecimento
psicológico aplicado à educação que se reflita no aprimoramento de métodos e técnicas
utilizadas nas instituições escolares como modo de garantir maior eficácia no aprendizado.
Portanto, a educação ainda tem sido compreendida como um instrumento de
dominação, o que poderia contribuir para que seja vivida como um processo penoso aos pais
quando procuram utilizá-la para manipular e controlar. Conseqüentemente, para a criança é
sinônimo de algo desprazeroso. Essa convicção dos pais e educadores, até por não
conseguirem efetivar tal modelo educativo, parece aumentar ainda mais a frustração e o
sentimento de insegurança em relação a si mesmos.
Contudo, a busca pela educação não é necessariamente esta e não é apenas este
conhecimento que a Psicologia da Educação pode oferecer. Ela pode provocar uma maior
abertura nos educadores na maneira de olharem a criança, desde que a orientação que
encontrem o permita.
Outra experiência mostrada pelos educadores refere-se à temporalidade vivida pela
criança. Sob o olhar dos educadores, o tempo parece servir como uma “régua” que indica o
que ela deveria, ou não, estar fazendo. O tempo da criança é vivido sob a perspectiva
desenvolvimentista que indica o que é apropriado, ou não, para aquela idade.
As relações temporais parecem ser vividas como uma instância determinante que
enrijece e dificulta o processo educativo. A concepção de temporalidade que explicitam é
linear e progressiva, pois se referem à percepção cronológica do tempo, de forma a
compreenderem o passado, o presente e o futuro como tempos sucessivos e estagnados, como
evidenciam os trechos abaixo:
(...) Como me disseram que é a partir de agora que preciso educá-lo, como fazê-lo
compreender que não deve fazer determinadas coisas? – Trecho extraído da carta
nº 1, que pode ser encontrada na íntegra no anexo 04.
*
(...) O que percebi é que criar filho hoje é bem diferente do que duas décadas
atrás! – Trecho extraído da carta nº 4, que pode ser encontrada na íntegra no
anexo 04.
*
Sua avó fica com medo que isso futuramente gere algum problema para
esta criança (...) – Trecho extraído da carta nº 7, que pode ser encontrada na
íntegra no anexo 04.
*
135
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
Ele está entrando na adolescência e eu não sei o que fazer, dar limites a
esta altura é muito difícil (...) – Trecho extraído da carta nº 9, que pode ser
encontrada na íntegra no anexo 05.
A maneira de olhar para a infância afeta o modo como se compreende a criança e suas
relações existenciais. A relação da criança com o tempo é considerada pela Psicologia
Fenomenológica como uma relação fundamental que o humano estabelece com o mundo. A
temporalidade é o modo como nós vivenciamos nossas relações com o tempo presente,
passado e futuro; modo pessoal de cada um experienciar seu tempo, diverso do tempo
cronológico. Entretanto, tem sido vivida pelos pais como períodos de expectativa e/ou
frustração.
Em síntese:
A partir das cartas, perguntas e inquietações escritas ao “Correio” pelos
pais/educadores, procurei conhecer alguns aspectos de sua experiência vivida e que os
motivaram a nos escrever.
Utilizei o método fenomenológico para aproximar-me dos textos escritos procurando
fazer com que esse método subsidiasse meu encontro com a multiplicidade de sentidos que se
revelam nesta análise. Não pretendo esgotar a riqueza das experiências narradas, mas antes
poder contribuir com outras práticas psicológicas no âmbito da educação e do ensino de
Psicologia Fenomenológica.
De forma geral, todas as cartas questionam o sentido de educar e, conseqüentemente,
as dificuldades inerentes a este processo. As maneiras de os educadores olharem para a
infância, muitas vezes, implicam em experiências de enfrentamento com a criança, desgastes
cotidianos e decepções em relação ao que se espera dela. Conseqüentemente, a experiência de
desamparo e os sentimentos de incapacidade, insegurança e cansaço tornam-se freqüentes. A
temporalidade que observam nas crianças acentua a frustração dos pais e os distancia das
noções idealizadas e sonhadas para a infância. Situações cotidianas parecem ganhar um peso
muito maior, principalmente porque percebidas sob um modo de olhar (velamento) que
responsabiliza a criança pelas dificuldades enfrentadas, sem perceber como ou em que suas
atitudes poderiam enfrentar/melhorar tais vivências.
É o caso, por exemplo, de Alessandra
74
, mãe de um menino de um ano e oito meses
que nos escreveu duas vezes (o que evidencia sua nítida preocupação e interesse) e em suas
cartas observamos muito mais a necessidade de encontrar alívio para lidar com as situações
74
Refiro-me à carta nº 1 do anexo 04 e a carta nº 2 do anexo 05.
136
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
comuns do dia-a-dia de seu filho do que a explicitação de um problema ou sofrimento
específico. Pareceu-me que suas expectativas prévias acerca da infância, e do que é criar um
filho, distanciavam-se muito da realidade vivida no cotidiano.
Outro exemplo parece ser o de Laura
75
, mãe de três filhos, dos quais um deles ficou
cego. As condições adversas em que vive (intensa carga horária de trabalho, solidão,
“despreparo” etc) potencializam sua experiência de cansaço e sofrimento.
Nos modos de experienciar o cotidiano com as crianças, a educação parece surgir
como forma de manipular e controlar a criança, isto é, a “salvação” e “remédio” de que
necessitam. Por outro lado, também evidencia a preocupação e o interesse das mães e
educadores em busca de favorecer o desenvolvimento de seus filhos.
Penso que um trabalho psicológico que contribua para diminuir o sofrimento da
vivência dos educadores e das crianças deve buscar brechas para promover uma relação
existencial com a criança: atitude de abertura e maior disponibilidade para perceber a criança
como uma pessoalidade. Proponho o oferecimento da possibilidade de interlocução.
5.2 Em busca de um novo sentido para a educação
Para que os educadores atribuam um novo significado às experiências já vividas (de
impaciência, impermeabilidade, rótulos ou julgamentos destinados à criança, por exemplo) é
necessário que a atuação psicológica contribua, propondo uma nova atitude que modifique
crenças e hábitos arraigados. Para tal, propus-me à interlocução com os pais e na tarefa de
ensino-aprendizado com os alunos, apoiar-me em três atitudes condizentes com o método
fenomenológico: memória, imaginação e narrativa, o que significou realizar atividades e
oferecer subsídios que pudessem sensibilizá-los aos modos de ser da criança.
A memória da própria infância pode possibilitar retomar sonhos, ações e desejos,
muitas vezes condenados atualmente na criança, mas próprios da sua vivência. Até mesmo
quando a memória relatada é diferente da vivida pela criança, também aí surge a oportunidade
de questionar diferenças e particularidades vividas por cada um, e a possibilidade de rever sua
experiência educativa.
A ênfase na narrativa propõe a valorização da prática do diálogo sincero com a
criança, que pode aproximar e aliviar o sofrimento de todos e resultar em uma cooperação
mútua, em um dia-a-dia mais criativo e saudável para o crescimento.
75
Refiro-me à carta nº 4 do anexo 04
137
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
O incentivo à imaginação, além de apontar para um posicionamento de que é um
aspecto próprio e saudável ao modo de ser da criança, procura sugerir um instrumento que
aproxima os educadores da linguagem da criança. Em uma das missivas, a imaginação foi
relatada como impedimento ao desenvolvimento da criança, elemento a ser eliminado. Em
muitos depoimentos que já ouvi de pais em outras experiências profissionais, a imaginação é
um fator de preocupação, por não saberem qual o limite entre as fantasias da criança e a
“loucura” ou “manifestações sobrenaturais” (por exemplo, os pais freqüentemente se assustam
e nos questionam sobre os “amiguinhos imaginários” das crianças).
Aqui vale ressaltar que a preocupação com a imaginação vivida pela criança vem
atravessada por um “saber psicológico” que se difundiu no cotidiano. Alguns pais e
educadores relatam não deixar a criança viver “no mundo da fantasia” (por exemplo, deixar a
criança pensar que é a “branca de neve, o super homem”), pois isso poderia lhe trazer perigo e
gerar um transtorno de personalidade. Penso que fica a questão para refletirmos sobre o modo
como as teorias psicológicas têm sido levadas e disseminadas no cotidiano das pessoas e na
mídia. Muito do “conhecimento psicológico” propagado é decorrente da mistura de diversas
tendências e teorias que têm suas pressuposições mal compreendidas e reformuladas.
Nesta proposta, procuramos oferecer um conhecimento psicológico que pudesse
contribuir com a educação de forma a semear em cada educador a percepção da educação
como responsabilidade e cuidado à criança como uma pessoalidade. Para tal, os educadores
precisam estar mais sensíveis e permeáveis aos modos de ser da criança, aspectos que
buscamos cultivar.
Parece-me que o “Correio” se revelou como algo muito diferente daquilo que os pais
esperavam encontrar: talvez, “receitas” prontas, soluções e procedimentos específicos a
seguir. Contudo, mostrou-se uma forma de oferecer um espaço de diálogo e atenção, no qual
os educadores puderam refletir sobre seus questionamentos e se encontraram com seus
conflitos de uma forma livre de julgamentos e a partir de uma atitude de abertura.
138
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Olhar de professor, olhar de aluno, olhar de leitor de cartas e desta tese
O inacabamento da fenomenologia e o seu andar
incoativo não são o signo de um fracasso, eles eram
inevitáveis porque a fenomenologia tem como tarefa
revelar o mistério do mundo e o mistério da razão.
Merleau-Ponty.
Mire, veja: o mais importante e bonito do mundo, é isto:
Que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não
foram terminadas, mas que elas vão sempre mudando.
Afinam ou desafinam. Verdade maior.
Guimarães Rosa
(...) e o fim de vossa viagem será chegar ao lugar de
onde partimos. E conhecê-lo então pela primeira vez.
T. S. Eliot.
Por quatro anos, desenvolvi diferentes propostas de estágio com os alunos do curso de
Psicologia, procurando ensinar-lhes o exercício da atitude fenomenológica e tentarei agora
sintetizar os aspectos apreendidos na experiência vivida por eles nos Estágios Básicos.
É, em geral, nos estágios que os alunos percebem mais explicitamente a aproximação
do pensamento fenomenológico à vida cotidiana. Ao lecionarmos as disciplinas de
Fenomenologia, são constantes os pedidos dos alunos por conhecimentos que evidenciem a
utilidade desse método filosófico na prática do psicólogo, principalmente nos atendimentos
psicoterapêuticos. São muitos os pedidos por explicações causais e pragmáticas e é difícil
para o aluno iniciante nesse modo de olhar aceitar a atitude fenomenológica, seus
questionamentos e a angústia que provoca. Suas expectativas são, nitidamente, a de
encontrarem uma atuação em busca de uma cura definitiva para as questões humanas. Todo o
processo de ensino permeia a desconstrução dessa postura de objetividade, controle e
neutralidade.
De modo geral, pude observar nos alunos movimentos de transformação e mudança.
Dentre outras, percebi que, em todos os estágios, ocorreu uma ampliação no modo como
compreendem as temáticas estudadas, embora algumas sejam mais difíceis do que outras.
Normalmente, os temas que exigem maior abstração ou um olhar mais filosófico e reflexivo
sobre a questão estudada são mais difíceis para os alunos.
139
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
É visível também no aluno, ao longo dos estágios, o início de uma postura mais
compreensiva com o outro. O relato dos alunos de que o aprendizado de fenomenologia “os
humanizou” e que esse modo de olhar se estende para além da vida acadêmica, é um aspecto
vivido no processo de aprendizado deles, que considero gratificante. Revelam maior
generosidade na maneira como olham e lidam com os outros, narram terem se tornado mais
tolerantes e menos preconceituosos com as diferenças nos modos de ser de outras pessoas e,
de certa forma, mais abertos e sensíveis aos seus sofrimentos:
Eu posso afirmar que a compreensão da “fenô” mudou minha forma de olhar o
mundo, de olhar a pessoa ao meu lado, e também mudou a forma de olhar para mim
mesma. Aluna do Estágio Básico IV, 2/2006.
[o aprendizado] (...) não se limitou a somente alcançar as notas e passar para um
próximo semestre, mas sim, um aprendizado, um aproveitamento, uma nova
significação para minha futura profissão (...). Conhecer as pessoas pelo que elas são,
não tendo noção a priori, não ter julgamentos, ver como elas realmente são, não
julgando pelo que eu sei, (...) sendo apresentada a elas por elas mesmas. Aluna do
Estágio Básico II, 2/2005.
(...) aprendi a olhar o outro de uma forma que jamais enxerguei. Para conhecer uma
pessoa, tenho que mergulhar no seu mundo e colocar entre parênteses os meus
preconceitos e noções a priori. Aluna do Estágio Básico II, 2/2005.
É prazeroso observar que alunos, sejam aqueles em uma idade avançada, jovens
adolescentes ou até mesmo aqueles que têm como profissão um olhar mais pragmático, se
emocionam, modificam e revêem certezas e concepções. Relatam-me, freqüentemente,
depoimentos em que se perceberam mais compreensivos com seus familiares, parentes e
amigos, dizeres condizentes com o que procurava ensinar: uma atitude, um modo mais
disponível de estar com o outro.
Ensinar ao aluno a atitude fenomenológica, a prática da redução (epoché) e a “voltar à
coisa mesma” é muitas vezes ensiná-lo a se acalmar, a respeitar o tempo do fenômeno se
mostrar, a sossegar a pressa e a ansiedade, para que possa entender que não há cura fácil,
respostas prontas e que um pensamento reflexivo e descritivo pode contribuir ao dar
significações às vivências. É ensinar uma atitude ética, uma abertura para o que se mostra,
uma nova postura com o mundo.
Tal aspecto pôde ser notado no processo de aprendizado apresentado no capítulo IV, e
nos demais estágios, em outros alunos, também foi possível observar o exercício de tal
atitude:
Fui compreendendo sobre "voltar às coisas mesmas": a possibilidade de encontrar
novos significados e sentidos além daqueles teoricamente formulados sobre um
fenômeno. Aprendi sobre a suspensão fenomenológica que é sair da postura do
cotidiano de ter preconceitos, valores construídos. É a atitude de reaprender a ver o
140
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
mundo, descrevendo e desvelando os possíveis significados. Devo sempre partir do
mundo vivido e não de uma teoria, de um conhecimento, mas daquilo que vi, para
assim conhecer o outro. (...). Aluna do Estágio Básico II, 2/2005.
O conhecimento que essa disciplina me proporcionou incentivou minha busca por
informações, mas principalmente, provocou reflexão sobre as informações que eu já
tenho das minhas experiências, dos meus momentos vividos. Incentivou o exercício
do pensamento; da busca por sentidos; do respeito ao tempo do outro,
principalmente para aprender-ensinar. (...) Aluna do Estágio Básico II, 2/2005.
É também nos estágios que os alunos reconhecem suas dificuldades de leitura e
escrita. O conhecimento de suas limitações provoca decepção e sofrimento, visto que, por
terem alcançado a vida acadêmica, não se imaginam despreparados para ela. A necessidade de
ler muito e desenvolver a escrita, somada ao fato de que a maioria não tem tempo para estudar
e está em uma instituição privada, leva muitos a desistirem do curso. Portanto, não se pode
desconsiderar o perfil do aluno desta instituição.
Por outro lado, é nessa disciplina também que percebemos um “salto” no aprendizado
do aluno, conforme pode ser observado na experiência vivida por Sara. Nessas aulas, os
alunos têm a possibilidade de aprimorarem sua capacidade de leitura e escrita, praticarem a
interpretação de textos, ampliarem sua rede de significações, conhecer outras referências
culturais.
Notei ainda que começam a exercitar um princípio extremamente complexo do método
fenomenológico: o pensamento em termos de perspectiva. Iniciaram a compreensão de um
olhar que buscava conhecer a realidade a partir de diversos pontos de vista, a aceitarem que
“cada caso é um caso” e que a provisoriedade das verdades que se revelam em um fenômeno,
juntamente com a multiplicidade de sentidos que podem se manifestar, são procedimentos
metodológicos rigorosos.
Todavia, a cada semestre via-me diante das exigências institucionais de que
apresentássemos “produtos”, isto é, cartilhas, manuais, projetos sociais, etc. Mas,
principalmente, diante dos meus questionamentos sobre o ensino-aprendizado que oferecia
aos alunos, como eu poderia facilitá-lo? Que recursos utilizar? Como propiciar o exercício
desse modo de olhar? Que ações poderiam desenvolver, fundamentadas no olhar
fenomenológico, enquanto ainda estavam em formação?
Em cada experiência de estágio que vivia, a cada semestre, persistia tal inquietação. O
pedido dos alunos para que pudessem exercitar esse modo de olhar, também era constante.
Assim, após três anos de supervisão, encontrei na comunicação por cartas uma situação de
aprendizado que se diferenciou de minhas propostas anteriores, a qual não foi criada de modo
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Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
linear e evidencia minha transformação e amadurecimento como professora que aprendeu a
escutar quem era o meu aluno e onde eu estava ensinando.
Para concretizar meu projeto de formação do aluno no pensamento fenomenológico,
bem como para conhecer a dimensão da linguagem que se expressa nas cartas, foi necessário
um esforço para me desprender do que esperava, a priori de uma ação psicológica de
orientação a pais e educadores, do diálogo entre estudantes e educadores, do ensino e
aprendizado do aluno. Foi necessário em mim e no aluno o esforço de criação de uma nova
linguagem: um modo de comunicação existencial que buscasse unir sentimento e pensamento,
linguagem oral e escrita, Psicologia e Educação, professor e aluno, ensino e aprendizado,
imaginação e reflexão, poesia e ciência, dentre outros fenômenos freqüentemente
compreendidos separadamente.
Retomada do projeto
O diálogo com os pais/educadores por meio de cartas mostrou-se como um recurso
fértil para o ensino-aprendizado dos alunos. Conforme explicitei em diversos momentos deste
trabalho, dada a complexidade do método fenomenológico, não é algo fácil para o aluno o
exercício desse modo de olhar. Entretanto, a necessidade de que elaborassem cartas-resposta e
estabelecessem uma interlocução com pais/educadores, exigia que buscassem vivenciar essa
atitude. Para a elaboração das cartas são eles mesmos, sob supervisão, que têm de,
constantemente, procurar exercitar essa postura. Portanto, há uma mudança radical no
aprendizado do aluno, ao ter utilizado as cartas como situação de aprendizado, pois aqui se
oferece a possibilidade de praticarem o modo fenomenológico de pensar em ação, ao mesmo
tempo em que ainda estão em formação.
Outro diferencial da utilização das cartas nas situações de ensino-aprendizado foi o
poder de convocação que as cartas acabaram provocando nos alunos. O contato com o pedido
do outro os mobilizava de um modo específico, pois se viam sob a necessidade de oferecer
um saber psicológico. A possibilidade de aprender com o compartilhar “real”, com a vivência
e sofrimento do outro, é viva e rica naquilo que traz e possibilita como questões provocadoras.
Impactados pelas solicitações, de modo surpreendente, responsabilizavam-se pelas cartas e
buscavam aprimorar seus conhecimentos.
As cartas também provocavam no aluno uma “desorganização” muito maior do que o
contato com as reflexões incitadas pelos textos ou reflexões filoficas. A angústia, a
impotência, o questionamento e a sensação de incapacidade suscitadas pelo encontro com o
outro, quando bem lapidadas no contexto da supervisão, podem ser um valioso material
142
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
potencializador de habilidades importantes no psicólogo. A abertura, a disponibilidade para o
espanto e a capacidade de suspender teorias e valores prévios são experiências fundamentais
para que possam se aproximar do outro, de quem ele é e do que procura. O caminho do
autoconhecimento e da valorização das habilidades pessoais pôde ser discutido e explorado,
de forma a que pudessem incorporar essas percepções às suas ações. As supervisões de
estágio do projeto do “Correio” mostraram-se como um espaço fértil de diálogo, reflexão e
transformação, em que podíamos refletir sobre as experiências com os alunos.
O processo de construção textual, necessário na elaboração das cartas, requisitava
paciência, esforço e dedicação para refletir, amadurecer e construir a missiva que seria
enviada. Esse modo de trabalhar com a linguagem solicitava um tempo para amadurecer,
construir e lapidar uma reflexão. Explicitou-se, assim, para os alunos que uma compreensão
requer quietude, paciência, dedicação e envolvimento, algo que não se dá de modo
instantâneo. E ainda, possibilitou-me aperfeiçoar-lhes a escrita, a ensiná-los a se comunicarem
melhor, habilidade necessária ao psicólogo e, muitas vezes, precária nos alunos.
No projeto do “Correio” tive liberdade para expressar minha compreensão do olhar
fenomenológico diante dos pedidos dos pais e educadores. Isso me parece ser algo relevante,
pois dentro de uma instituição que faz uma série de exigências pragmáticas,
contraditoriamente, tornou-se possível exercer uma atividade em que nos posicionamos de um
modo independente, em acordo com nossa visão de homem, infância e educação.
Essa experiência se revelou como uma situação privilegiada, pois o professor tem a
possibilidade de, no contexto da sala de aula, formar o aluno, ao mesmo tempo em que
possibilita que ele exercite a atitude proposta. Permite que um aluno iniciante possa realizar
uma ação sem que seja necessário o contato presencial entre ele e o outro, ainda que possa
ocorrer um encontro pessoal e intenso entre eles.
Vale ressaltar, ainda, a respeito da minha metodologia de ensino utilizada nas aulas,
que não se trata de um modo de ensinar estruturado em procedimentos rigidamente
estabelecidos em etapas ou passos a serem seguidos. Ela foi (e é) criada e recriada a partir
daquilo que os pais e educadores nos propunham (e propõem) e conforme as necessidades dos
alunos.
Nessa proposta, procurei oferecer um modo de olhar fundamentado pela atitude
fenomenológica que pudesse contribuir com a educação de forma a semear em cada educador
a percepção do educar como responsabilidade e cuidado à criança. Todavia, o “Correio” se
revelou como algo muito diferente daquilo que os pais esperavam encontrar, ou seja,
“receitas” prontas, soluções e procedimentos específicos a seguirem. Mostrou-se como uma
143
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
forma de oferecer um espaço de diálogo e atenção, no qual os educadores puderam refletir
sobre seus questionamentos e encontraram-se com seus conflitos de uma forma livre de
julgamentos e baseados em uma atitude de abertura.
Procurei cultivar esse modo de comunicação e o exercício de um olhar que convide o
adulto a estar mais sensível às crianças: permitir-lhes tocar cornetas ou usar a bolsa e colares
da mãe; agachar-se ou tirar os sapatos para aproximar-se delas. Busquei exercer uma prática
educativa responsável, pessoal e instigada pelo desafio da criação de crianças, como sugere o
verbo criar: inventar, imaginar, produzir. Dessa forma, houve um esforço em libertar-se da
psicologia ou da pedagogia prescritiva para aproximar-se do Victor, da Beatriz, do Caio, da
Isabela, enfim, da criança mesma.
O psicólogo fenomenólogo deve resistir ao pragmatismo, aos rótulos, aos
diagnósticos, às práticas prescritivas dos manuais e às soluções mágicas, que, muitas vezes,
lhes são solicitadas para que possa encontrar a criança em sua pessoalidade. Propus-me a
ensinar e oferecer atenção e apoio psicológico, orientações, acolhimento, reflexão e, quando
necessário, fornecer informações, mas principalmente a me comunicar com meus alunos e
com os educadores com o desejo de que isso repercutisse nas crianças. Tive por meta que eles
pudessem construir sua própria fenomenologia e um modo próprio de educar que se pautasse
pelo diálogo e pela abertura necessária para encontrar o outro.
A proposta das cartas não substitui outras formas de atenção psicológica, como a
triagem, a psicoterapia, os grupos de orientação, as palestras, etc. Apenas é mais um modo de
comunicação que pode ocorrer entre psicólogos e educadores/pacientes, neste caso
especificamente entre estudantes de Psicologia e educadores, marcado pela particularidade de
ser através de cartas. As peculiaridades na forma de se comunicar desse projeto foram
apresentadas ao longo de todo o trabalho. Reitero duas delas: a possibilidade de estar
disponível a qualquer momento, já que se tem livre acesso a urna, e a de poder preservar o
anonimato entre remetente e destinatário, por não requisitar um encontro direto.
Desdobramentos e projetos de futuro
Minha narrativa está se encerrando, porém os projetos relacionados a esta tese, não.
Ao mesmo tempo em que a finalizo, estou iniciando mais um semestre como supervisora de
estágio na mesma instituição. Para este ano, o projeto será com os alunos da disciplina de
Estágio Profissionalizante, o que significa que os alunos estarão no 7º semestre do curso. Se
por um lado, há o ganho de ter alunos em um semestre mais avançado do curso, e
teoricamente, mais preparados para a realização dos trabalhos, por outro, esta disciplina só
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Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
tem duas horas de supervisão, em detrimento das antigas quatro horas com os alunos de
Estágio Básico. Além disso, o Estágio Profissionalizante deve ser realizado em um campo
externo ao da universidade. Das instituições possíveis, escolhi uma associação onde funciona
um centro educacional que oferece creche e ensino médio e fundamental a cerca de 150
crianças.
Neste momento, portanto, o projeto passa por um novo processo de implantação que
deverá estar mais próximo às necessidades desta instituição. Minha metodologia nas aulas
com os alunos também está sendo recriada, por causa da nova disponibilidade de tempo e
deverá ser ainda mais alterada, à medida que as questões se propuserem. Nestes primeiros
contatos com a instituição, o projeto foi considerado pela direção como “interessante e
pertinente”. Tem sido muito bem recebido pelos coordenadores e professores, mas ainda não
colocamos a urna para o recebimento das cartas. O projeto será oferecido tanto aos
professores como aos alunos e pais que utilizam a instituição. Não sei quais serão as
repercussões deste trabalho entre as crianças e os adolescentes, bem como com seus pais.
Instiga-me o desafio que se inicia.
Retornando à instituição em que trabalho, o projeto do “Correio” foi elogiado pela
coordenação e reconhecido pelas instâncias superiores da Universidade, que o incorporou
como uma “ação social” oferecida para a comunidade. Além disso, ganhou destaque na
página inicial do curso na internet, sendo apontado como um dos “diferencias do curso de
psicologia”. Contudo, não haverá mais disciplinas de Fenomenologia na grade curricular do
curso, embora a responsável pela coordenação do curso garanta que devam continuar a existir
os Estágios Básicos, Clínicos e Profissionalizantes supervisionados no olhar fenomenológico.
A pergunta que fica, então, é: serão possíveis estes estágios sem que os alunos tenham tido
contato, por meio da grade curricular, com o modo fenomenológico de pensar?
Com base em minhas experiências, penso que será muito difícil (se é que será
possível) iniciar os alunos em apenas um semestre no olhar fenomenológico e ainda
supervisionar-lhes uma ação. Os conhecimentos prévios sobre o método fenomenológico,
ensinados nas disciplinas anteriores aos estágios, foram fundamentais, ainda que para alguns
tenham sido insuficientes, para que o aluno mergulhasse e se aprofundasse no exercício desse
pensamento.
Vislumbro em meus projetos de futuro continuar ensinando o exercício desse olhar:
em outras instituições de ensino, em outros espaços em que possa continuar a estudar e a
desenvolver meus questionamentos a respeito das questões humanas. Lugares em que eu
possa pensar nas contribuições do pensamento fenomenológico para a psicologia e educação;
145
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
para as relações adulto-crianças, aluno-professor, ensino-aprendizado, dentre outras situações.
Talvez, retomar esta pesquisa em um projeto de pós-doutoramento ou em grupos de
pesquisas. Realizar novos estudos a respeito do exercício desse modo de olhar, da
expressividade que se efetua por meio de cartas e pensar nas especificidades da ação proposta
aqui. Pensar e propor outros modos de exercer esse olhar com os alunos, educadores ou pais,
em diferentes contextos educativos, em trabalhos comunitários ou clínicos, em outras
instituições. Por enquanto, trata-se de planos, sonhos e desejos.
Como jovem professora que ainda sou, preciso continuar a estudar (e muito) autores
como Merleau-Ponty, Bachelard, Heidegger, Hannah Arendt, dentre outros, que são
referências importantes para o exercício do pensamento fenomenológico. Tornar-me melhor
professora, educadora, psicóloga e mãe.
Convido também outros professores e alunos, leitores desta tese, desafiados a ensinar
ou a aprender o pensamento fenomenológico, a exercitarem sua própria fenomenologia. Como
afirmou Merleau-Ponty: “É em nós mesmos que encontramos a unidade da fenomenologia e
seu verdadeiro sentido” (1999:2). Este trabalho só se completa na medida em que o leitor
possa dar continuidade e novos sentidos para as propostas trazidas aqui.
Não procurei apresentar mais uma “fórmula didática” para o ensino-aprendizado desse
modo de olhar, ao contrário, gostaria de provocar novas experiências e novos modos de
comunicar. Em mim mesma, o fim da escrita desta tese provoca o que sugerem o filósofo
Merleau-Ponty e os poetas Guimarães Rosa e T. S. Eliot, citados na epígrafe deste capítulo.
146
Cartas: uma possibilidade para o ensino do
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ensamento fenomenológico
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SCHOEPFLIN, M. (ed.) O amor segundo os filósofos. Bauru, SP: EDUSC, 2004.
ANEXOS
ANEXO 1:
Instruções aos
usuários
Instruções gerais
O serviço de CORREIO PSICOEDUCATIVO é um apoio psicológico
para educadores, pais e todos os interessados em conhecer mais
sobre questões relacionadas à educação. Escreva na folha
sulfite as suas dúvidas, colocando o máximo de detalhes
possíveis sobre sua história e o que deseja perguntar. Não
existem perguntas “boas”, “ruins”, “imorais” ou “bobas”,
portanto você pode escrever tudo o que quiser saber. Ao final,
deposite-o na urna.
Você também precisa escolher aqui como quer receber sua
resposta, podendo ser enviada pelo correio ou retirada aqui na
clínica. Se desejar não se identificar, você pode criar um
“codinome”, um número ou escolher para onde ou a quem deseja
que a carta seja entregue.
( ) Via correio
Endereço:___________________________________,n°_____, apto___
Bairro:____________ Cidade:__________ Estado _______________
Cep: _____________________ Aos cuidados de:________________
( ) Via clínica - nessa opção você será avisado(a) por
telefone para vir retirá-la.
telefones: ________________________________________________
falar com:___________________________________
Aguarde! Em breve receberá sua carta!
ANEXO 2:
Termo de
consentimento/
autorização
TERMO DE CONSENTIMENTO
O serviço de CORREIO PSICOEDUCATIVO oferecido pelo Centro
de Formação de Psicólogos da Universidade [...]
76
é uma
atividade de estágio dos alunos do curso de Psicologia,
supervisionada por psicólogos, professores do curso.
As cartas recebidas ou enviadas poderão futuramente ser
utilizadas em pesquisa científica ou atividade de ensino no
curso de Psicologia. As pesquisas são desenvolvidas e
publicadas no meio científico por serem fonte de orientação
para outros pesquisadores. As cartas terão a garantia de
sigilo e cuidado ético. A identificação do destinatário é
mantida em sigilo, preservando sua identidade. O uso deste
serviço não é obrigatório e é gratuito. Não há prazo para a
resposta das cartas.
Declaro, portanto, ter lido ou tomado conhecimento das
instruções aqui mencionadas e declaro estar ciente das
informações prestadas.
( ) Autorizo a utilização das informações para produção
de trabalhos científicos e atividades de ensino.
( ) Não autorizo a utilização das informações para
produção de trabalhos científicos e atividades de ensino.
São Paulo,...... de ...................... de 200...
Nome: _______________________________________________
R. G. ______________________________________________
_______________________________________________
Assinatura
Psicóloga Responsável: Fabíola Freire Saraiva de Melo
Professora da Universidade [...]
76
O nome da instituição foi retirado por questões éticas.
ANEXO 3:
Banner de
divulgação do
projeto
ANEXO 4:
Livro das cartas –
resultado do processo de
ensino-aprendizado dos
alunos do 5º semestre na
disciplina de Estágio
Básico III
CORREIO PSICOEDUCATIVO:
CARTAS SOBRE EDUCAÇÃO
Resultado do processo de ensino e
aprendizagem em Psicologia Fenomenológica
dos alunos do Estágio Básico III
Professora Supervisora
Fabiola Freire
Curso de Graduação em Psicologia
Primeiro semestre, 2007.
2
SUMÁRIO
CARTA DE APRESENTAÇÃO 3
CARTA Nº 1: COMO COLOCAR LIMITES EM UMA CRIANÇA PEQUENA? 6
CARTA Nº 2: SEXUALIDADE E AS TAREFAS DE UMA EDUCADORA 10
CARTA Nº 3: COMO REPRIMIR A CRIANÇA PEQUENA? 15
CARTA Nº 4: AMAMENTAÇÃO E A VOLTA AO TRABALHO 19
CARTA Nº 5: MODOS DE CORREÇÃO À CRIANÇA MUITO PEQUENA 24
CARTA Nº 6: AGRESSIVIDADE 28
CARTA Nº 7: CHAMAR DE PAI PODE? 33
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 38
3
CARTA DE APRESENTAÇÃO
(...) Palavra boa
não de fazer literatura,
palavra
mas de habitar fundo
o coração do pensamento,
palavra.
Chico Buarque
Prezados leitores,
Este trabalho reúne a prática da Psicologia Fenomenológica
exercida por quinze alunos do curso de graduação em Psicologia
do Centro Universitário [...], na disciplina de Estágio Básico
III, durante o primeiro semestre de 2007.
Inauguramos, no Centro de Formação de Psicólogos desta
universidade, uma proposta psicológica ousada: responder,
através de cartas, às dúvidas de pais e educadores sobre
questões relacionadas à educação. As cartas-perguntas foram
depositadas em uma urna, instalada na recepção desta clínica,
e as cartas-respostas enviadas pelo correio ou retiradas na
recepção, conforme escolha do remetente.
Deixemos bem claro que não somos favoráveis às cartilhas
ou receitas sobre modos de educar; ao contrário, nosso intuito
é muito mais “desconstruir” tais modelos e propor uma reflexão
sobre o que os educadores fazem, como fazem e para que fazem
em seus modos de educar e, dessa forma, propiciarmos auxílio
individualizado aos conflitos trazidos.
Pais, padrastos ou madrastas, educadores, tios e avós
encontram-se freqüentemente assustados, solitários e/ou
desesperados com os conflitos que cotidianamente têm de
enfrentar na educação de crianças, jovens ou adultos. Muitas
são as questões que “martelam” seu dia-a-dia, desde como
realizar as práticas cotidianas de alimentar, trocar ou “dizer
não” à criança, até às questões de maior sofrimento
psicológico, como a dificuldade de falar sobre a separação dos
4
pais, sobre o luto, as doenças, enfim conflitos presentes nas
relações entre pais e filhos, educadores e educandos.
Partimos do princípio de que educar é muito mais do que
introduzir informações ou normas – é um modo de conduzir, de
estar ao lado e de propiciar boas condições para que a
criança, adolescente e alunos, se desenvolvam, cresçam,
amadureçam e criem algo novo a partir do que foi ensinado.
Isso demanda sensibilidade e inteligência por parte do
educador para suspender as respostas prontas e teorizadas para
se abrir à situação vivida ali de forma única.
Popusemo-nos a oferecer apoio psicológico, orientações,
acolhimento, segurança, reflexão e informações, quando
necessárias, mas principalmente a nos comunicarmos com o
“coração do pensamento” dos educadores, com o desejo de que
isso “respingue” nas crianças.
Nossa prática trata-se de uma ação social ética que busca
contribuir com uma atuação psicológica mais comprometida com a
saúde e educação.
Nesta tarefa, caminhamos a partir da obra de Maurice
Merleau-Ponty (1990, v.a e b) e de Marina Marcondes Machado
(2004, 2007), fenomenólogos estudiosos da infância, e de
Winnicott (1999), psicanalista, que também muito contribuiu na
educação de crianças.
Nosso desafio constitui-se em, através das palavras,
provocar os educadores a refletirem sobre suas práticas, a
buscarem mais do que seguir ordens e instruções, que se
transformam rapidamente em leis, apenas por terem sido
transmitidas com autoridade, a instigá-los ao desejo de
saberem mais e a construírem sua própria capacidade de pensar
e educar. Por meio de cartas, nos propusemos a ensinar aos
pais e educadores um modo de cuidado psicológico a ser
oferecido aos educandos: o diálogo acolhedor e sincero, que ao
mesmo tempo lhes oferecemos.
5
A linguagem fenomenológica utilizada nas cartas,
descritiva e sem julgamentos, busca ser também simples e
acessível, abrindo mão de conceitos ou jargões da Psicologia,
pois procurou se comunicar com o público remetente, em geral
usuários da clínica de psicologia, alunos desta instituição,
amigos ou parentes destes; enfim, pessoas que conhecemos
somente através da carta enviada.
Esta ação também demonstrou ser um excelente recurso
pedagógico com os alunos-estagiários, que tiveram a
oportunidade de discutir, no privilegiado contexto da sala de
aula, sob a supervisão do professor, uma verdadeira situação
psicológica, portanto, um recurso que teve a vantagem de unir
teoria e prática.
Por questões éticas, alteramos todos os nomes dos
remetentes e de seus filhos ou crianças citadas.
Profª Fabiola Freire
*******
6
Carta nº 1: Como colocar limites em uma criança pequena?
Boa Tarde!
Gostaria que vocês me orientassem à algumas questões que tenho referente a educação
do meu filho.
Eu tenho um menino de 1 ano e 4 meses. Ele é uma criança muito esperta e como
outras crianças bem peralta.
Devido a idade que tem, não sabe os limites que precisa ter. Minhas dúvidas são as
seguintes:
Ele até parece compreender o que é a palavra NÃO, mais isto não basta, pois ele
continua a aprontar. Como me disseram que é a partir de agora que preciso educá-lo, como
fazê-lo compreender que não deve fazer determinadas coisas? Eu sei que palmadas não
adiantam.
Meu filho está na fase do descobrimento, das brincadeiras, mais qual é o limite que ele
pode por exemplo mexer nos objetos de casa? Os brinquedos dele ainda não o atraem muito,
ele prefere telefones, celulares, panelas, sapatos, comer papéis, etc...
Obrigada,
Alessandra Gonçalvez
******
Prezada mãe,
Gostaríamos de parabenizá-la pela iniciativa de escrever
suas dúvidas sobre sua forma de educar. Esta curiosidade em
buscar melhoria e/ou aperfeiçoamento na educação de seu filho
traz grandes benefícios.
Você, como toda mãe, é a “melhor” pessoa para o ofício de
educar o seu filho.
Então, vamos a sua dúvida. A questão de como colocar
limites às crianças é algo que freqüentemente aflige as mães.
O limite que deve ser estabelecido à criança pequena é dizer
“não” a qualquer coisa que lhe ofereça perigo, qualquer coisa
que ameace machucá-la. Você deve sempre dizer “não” para
7
situações de “perigo”, de “ameaça” e em situações em que a
criança deseja objetos caros e importantes para os pais.
Toda criança pequena é curiosa, tem interesse pelas coisas
que estão no mundo e, principalmente, nas mãos dos pais.
Quando você diz que seu filho está na fase do descobrimento,
está coberta de razão e isto faz com que ele mexa em objetos
que “não deveria”, pois para a criança tudo o que está no
mundo é, a princípio, algo novo e interessante.
Você cita, como exemplo, o interesse do seu filho pelo
celular. A criança sente o desejo de pegar o objeto e, quando
o pega, fica difícil de tirá-lo da sua mão. No entanto, o
telefone é caro e importante para você. Nesse caso, cabe a
você estabelecer o limite e dizer “não”, que deve ser dito de
maneira clara e não se deve voltar atrás sobre isso em outros
momentos para não confundir a criança. Mas, você pode evitar
essas situações tirando os objetos caros ou perigosos do
alcance do seu filho. Para a criança, não ter nas mãos o
objeto desejado, pode fazer com que fique frustrada, mas
frustração, quando realmente necessária, faz parte do
desenvolvimento afetivo da criança. Ela necessita dessa
experiência e de, em alguns momentos, ter a sua necessidade
adiada, pois isso a ajuda a se tornar um adulto mais paciente
e tolerante.
Seu filho está com um ano e quatro meses e crianças dessa
idade começam a “entender” o porquê do não, principalmente se
você conseguir colocá-los numa base prática; por exemplo, você
diz “não” porque a comida está quente aproximando-o do quente,
ou se o bebê arrancar a planta do vaso, você ficará “chateada”
com ele.
Contudo, entendemos que a criança aprende pelo sentido das
coisas, então você não deve dizer “não” a tudo, aliás, a base
da educação deve ser o “sim” e quando o “não” for necessário,
deve haver um sentido para isso.
8
Se o “não” ocorre com freqüência talvez você possa
reservar um espaço para a criança brincar. Ela necessita do
“seu cantinho” e de brinquedos que sejam interessantes. Será
que os brinquedos do seu filho o atraem? Será que estão
adequados à sua idade? Muitas vezes, a indústria de brinquedos
os faz esteticamente interessantes para o consumidor, mas não
às crianças, que se interessam mais por uma garrafa de
refrigerantes do que por um ursinho de pelúcia. Você pode
também oferecer ao seu filho uma caixa de giz colorido, lápis
de cor e papéis sulfite para ele brincar e colorir, pois a
criança, mesmo pequena, quando desenha expressa seus
sentimentos.
É importante que você saiba que o modo da criança se
relacionar com as coisas é sempre afetivo. A experiência que a
criança tem com as coisas vai muito além da função ou da
utilidade que as coisas têm; ela é imaginativa e ali está se
estabelecendo uma relação de afeto especial e bastante
intensa.
Mesmo seu filho sendo muito pequeno converse bastante com
ele, pois o diálogo entre pais e filhos é muito importante,
fortalece o vínculo entre vocês e prepara a criança para que
se torne um adulto que saiba conversar e lidar com seus
conflitos. Os pais poderiam ser mais curiosos e observadores
para poderem aprender com a criança: como ela vê e se
relaciona com o mundo. Um bom exercício para “compreender” a
criança poderia ser você se imaginar voltando à sua infância e
quem sabe, por exemplo, se ver “estragando” a maquiagem da sua
mãe.
Gostaríamos de dar duas sugestões de livros: O primeiro
chama-se Conversando com os pais, de D. W. Winnicott, editora
Martins Fontes, e um outro livro também interessante é A
criança no mundo dos adultos, de P. Delahaie-Poderoux, editora
Augustus.
9
Foi muito gratificante responder à sua carta. Sinta-se à
vontade para escrever quando quiser.
A tarefa de educar exige muita paciência e dedicação –
qualidades fundamentais em uma “boa” mãe. E não se esqueça:
educar é um desafio e não há modelo perfeito, nem lições para
tal, portanto, só se aprende vivendo esse momento.
Estagiários do Centro de formação de psicólogos
77
Profª responsável: Fabíola Freire
******
77
Os nomes dos alunos foram retirados por questões éticas.
10
Carta nº 2: Sexualidade e as tarefas de uma educadora
Sou educadora há 18 anos. Atualmente, trabalho na escola pública, com crianças, de
Fundamental I e II (4a série, 6a e 7a série), as dúvidas são muitas e, a cada instante, surgem
outras. Educar é assim: uma eterna busca de respostas. Então, algumas seriam interessantes
e importantes, para mim, serem respondidas:
Como tratar, com uma criança, a chegada de um “irmãozinho”? Desejo este de muitas, mas
problema para “muitas”, também.
Como abordar sexualidade, para crianças de 10 anos, de forma a tratar o assunto com
naturalidade e não de forma “brutal”, como muitos acabam “enxergando”?
A violência na família, na comunidade com que trabalho, é muito grande. Como mostrar à
criança a importância e o compromisso família se, para “ele”, esta não é referência para sua
vida?
? ? ? ?
Muitas dúvidas! Agradeço por tentarem “solucionar”, pelo menos, essas!
******
São Paulo, 15 de junho 2007.
Cara educadora,
Ao lermos sua carta nos deparamos com questionamentos que
consideramos de grande valia e complexidade e que nos levaram
a algumas reflexões. Realmente, ser educadora é uma profissão
de muita responsabilidade e importância. Sabemos que o
trabalho do educador consiste em contribuir para o
desenvolvimento interpessoal, social e cognitivo da criança,
um papel difícil de ser cumprido e, quando exercitado de
maneira incorreta pode comprometer o desenvolvimento da
criança. É mesmo árdua a função do educador e, muitas vezes,
11
compartilhar e buscar orientações de outros profissionais nos
suscita outras visões, propiciando uma melhor compreensão.
Você, em sua prática, provavelmente percebe a dificuldade,
mas, ao mesmo tempo, o quanto é significativo o seu trabalho.
Principalmente se nos atentarmos à sua experiência
profissional, visto que uma das questões mencionadas em sua
carta é o fato de as crianças da escola onde trabalha não
poderem ter como fonte de referência pessoal suas próprias
famílias, o que nos leva a pensar que você tem um papel
fundamental, pois acaba se tornando referência para diversas
delas.
Entendemos que o educador tem um papel fundamental e que
deve estar preparado emocionalmente para tal função, com
momentos de reflexão que enfatizem o seu equilíbrio,
autoconhecimento e crescimento pessoal, ampliando, assim, a
percepção das próprias emoções, favorecendo envolvimentos mais
empáticos e sadios, o que só trará benefícios para você e seus
alunos.
Muitas vezes, passamos a ser vistos pela criança como
modelo a ser seguido, pois elas nos depositam confiança e
afetividade como se representássemos um “herói” que nunca
falha. Consideramos que um fator importante e crucial para
manter essa relação com a criança é a sinceridade, pois ao
priorizarmos a fala verdadeira, a criança sentirá segurança no
que é dito por nós, o que é fundamental para que se mantenha a
relação de confiança previamente estabelecida. Ao mentir, o
adulto rompe essa relação, e a criança, quando descobre que se
faltou com a verdade, pode perder a confiança ou ficar
extremamente frustrada.
Por conta da complexidade das dúvidas que você mencionou em
sua carta, enfatizamos aqui apenas o tema da sexualidade e
voltaremos a lhe escrever no mês de Agosto, em virtude das
férias escolares.
12
Historicamente em nossa sociedade, percebemos que o sexo
foi e freqüentemente ainda é visto de maneira mitificada,
considerado sinônimo de perigo. Em conseqüência disso, passa a
ser um assunto evitado e, muitas vezes, omitido para crianças.
Em geral, ao contrário do que se pensa, a sexualidade faz
parte da infância e, por isso, deve ser uma questão bem
esclarecida. A curiosidade da criança pelo sexo pode ser
vista, a princípio, como algo bom e saudável, e seu
entendimento vai depender da maneira como serão trabalhadas
essas dúvidas.
Entendemos que um fator importante para poder se falar
sobre a sexualidade é que os educadores precisam saber,
primeiramente, os próprios limites para poder orientar. Caso
não se sinta à vontade para falar de determinado assunto, deve
passar para outra pessoa que também priorize a fala
verdadeira. Ao conversar sobre sexo, não deve esquecer que
ninguém sabe de tudo e, se a pergunta for delicada, não se
envergonhe caso não saiba e diga que vai se informar e
responderá depois. Muitas vezes, pode-se também, recorrer a um
profissional capacitado na área que possa com responsabilidade
e coerência orientar a criança.
É essencial, também, compreender o que a criança está
perguntando, considerando que ela percebe as coisas de maneira
diferente do adulto e, portanto, sua percepção acerca da
sexualidade é completamente diferente. Por isso, lembramos
que, por ansiedade, algumas pessoas se põem a falar além da
necessidade. Então, antes de iniciar uma dissertação sobre
sexo com as crianças, é necessário ouvir exatamente o que ela
tem a nos dizer e questionar sobre o assunto em questão.
Você poderia nos questionar sobre o que é, então, utilizar
a fala verdadeira em sua prática. Responderemos com um
exemplo. Imagine que você fosse questionada por uma menina de
dez anos sobre a primeira menstruação. Não será necessário ler
um livro de medicina para conversar sobre as transformações
13
que começam a acontecer no corpo de uma menina nessa idade.
Provavelmente, ela estará assustada, precisando saber se é
“normal” e se está tudo bem com sua saúde. Dificilmente, ela
estará preocupada com a possibilidade de já poder engravidar.
Não podemos esquecer que a percepção da criança, sua
compreensão e a forma com que olha e estabelece relação com o
mundo é completamente diferente do adulto, pois está em fase
de descobertas e conhecimento.
Voltamos a ressaltar que, sempre que estiver se
relacionando com crianças, é fundamental o compromisso com a
verdade para que se estabeleça uma relação de confiança.
Quando o tema for sexualidade ou qualquer outro, o ideal é
nunca deixar a criança sem resposta, observar o que ela de
fato está questionando e sempre utilizar uma linguagem
acessível. Proporcionar brincadeiras que envolvem a temática
também é algo muito saudável. Uma ótima estratégia é a
aquisição de livros que abordem o tema, melhor ainda é que a
leitura do livro seja feita por você junto com as crianças.
Temos uma sugestão sobre uma atividade que poderia desenvolver
com seus alunos. O que acha de colocar uma caixa na sala de
aula, onde as crianças depositariam suas questões relacionadas
à sexualidade e você planejaria um dia para responder às
dúvidas e às curiosidades questionadas por elas? Desta forma,
poderia se preparar adequadamente para a atividade, além de
permitir que as crianças, inclusive as mais tímidas tenham a
possibilidade de expor seus pensamentos e fantasias sem o
constrangimento de fazer a pergunta na frente dos colegas.
Ademais, realçamos que nunca devemos repreender as crianças
quando elas perguntam, pois devemos evitar que ela desenvolva
a “fantasia” de que é feio, sujo, impuro ou proibido falar
sobre sexo, o que é prejudicial ao seu desenvolvimento
psicológico.
Esperamos ter ajudado e contribuído para reflexão sobre o
tema exposto. Incluiremos uma relação de sites e bibliografias
14
que esperamos que possam auxiliá-la ainda mais. Em breve,
voltaremos a escrever.
Atenciosamente,
Estagiárias do Centro de Formação de Psicólogos.
Profª responsável: Fabíola Freire
BIBLIOGRAFIAS, SITES E SERVIÇOS INDICADOS:
GTPOS: Grupo de Trabalho e Pesquisa em Orientação Sexual e
Sexo – (oferece cursos e envia material didático pelo
correio). Disponível em: www.gtpos.org.br
RIBEIRO, Marcos. Mamãe, como eu nasci?/educação sexual
para crianças. 8 ed. Rio de Janeiro: Salamandra, 1990.
******
15
Carta nº 3: Como reprimir a criança pequena?
São Paulo, 08 de Junho de 2007.
Minha filha está prestes a completar 2 anos e minha pergunta é bem simples, ela é
extremamente agitada e mesmo com atividades para fazer ela insiste em fazer, pegar, brincar
com objetos e locais que nós (eu e mãe) não autorizamos e mesmo assim ela insiste como se
desejasse nos desafiar, mesmo já tendo levado broncas e broncas. O olhar dela nessas horas,
deixa claro que a vontade dela é provocar. Sei que é típico de criança este tom até
debochante: mas minha pergunta entra agora:
Devo reprimi-la de maneira mais severa? Sou contra violência e não vou bater nela,
mas quero saber se deixo ela fazer o que quer por ser pequena e não entender, ou, reprimo-a
antes que isso se torne cada vez pior. Não encontrei ainda um “meio termo”.
******
Olá Pai...
Inicialmente gostaríamos de parabenizá-lo pela
preocupação e dedicação que demonstrou ter na educação de sua
filha.
A educação de uma criança é uma tarefa árdua que requer
dedicação e muita paciência. Sabemos que, nos dias de hoje,
parece ser mais difícil criar e educar um filho, pois os pais
precisam se “dividir em vários” para atender às necessidades
diárias da vida e da criança.
Sua filha tem dois anos e está em uma idade de
descobertas. A criança começa a conhecer o mundo a partir das
experiências que estabelece com ele. Então, tudo para ela é
atraente, é novidade, portanto cabe aos pais mostrar à criança
o que é, ou não, “brincável”.
Em sua carta, você pergunta se deve colocar limites a uma
criança tão pequena. Respondemos que sim. É desde pequeno que
começamos a ensinar o que pode e o que não pode, onde mexer e
onde não. Contudo, colocar limites não é dizer “não” para
tudo, na verdade a educação de uma criança deve ser baseada no
“sim” e os “nãos” têm de serem dotados de sentido: a criança
16
deve saber o porquê daquele “não”. Nessa idade, o limite é
dado para proteger a criança dos perigos e para preservar o
que é importante ou caro aos pais, portanto, sua filha não
deve brincar com os objetos que possam machucá-la ou que sejam
de valor para vocês. Quando for necessário dizer “não”, você
deve falar de forma firme, mostrando à criança que aquilo que
ela está fazendo não pode. Ela precisará aprender, aos poucos,
a lidar com suas próprias frustrações, assim estará se
desenvolvendo de forma saudável e, dessa forma, será educada
com base no diálogo.
É preciso que essa relação de pais e filhos seja baseada
na confiança. Sua filha precisa sentir-se segura, protegida e
amada, para que, posteriormente, possa se tornar um adulto que
saberá lidar com os conflitos que surgirão em sua vida.
Crianças nessa idade precisam de um espaço adequado e de
brinquedos que chamem a sua atenção. Não que isso a impeça de
querer mexer em outras coisas, pois nesta idade temos que nos
adaptar às suas necessidades. Nem sempre os brinquedos que
escolhemos são aqueles pelos quais a criança mais se
interesse, às vezes algo mais simples, como por exemplo, uma
garrafa Pet pode despertar a sua curiosidade. Tente propiciar
um lugar onde ela possa brincar à vontade, explorar sua
criatividade, descobrir e desenvolver sua imaginação.
Você nos disse também, que a sua filha tem um jeito de
olhar provocador. Será que esse jeito é intencional? Será que
não é um modo de ser dessa criança? Já observou se ela olha
dessa forma em outros momentos e para outras pessoas? Talvez
ela seja muito pequena para saber a hora de provocar ou
debochar de alguém, ou até mesmo, saber o que é debochar e
provocar. Pode ser que ela ache engraçado a forma como vocês
se comportam quando ela faz algo que não gostam, pode também
fazer isso por brincadeira ou para chamar a atenção. Procure
perceber se ela age assim só com vocês e se é somente nas
horas em que vocês a corrigem. Mas, se ela realmente for uma
17
criança desafiadora, isto não é a princípio ruim. Busque usar
isso a favor dela própria, ajudando-a a desafiar e questionar
nos momentos adequados.
Sabemos que é possível que os pais se frustrem com os
filhos, pois desde que a gravidez é anunciada, todos começam a
idealizar uma criança perfeita e, muitas vezes, o que se vive
não é aquilo que foi idealizado. Não dá para se exigir
perfeição ao educar uma criança e não temos uma regra, uma
“receita de bolo” para educar. Educação é um processo contínuo
no desenvolvimento da criança. E o modo de educar que é
adequado para uma criança, pode não ser para outra. Cada
criança é única e os pais devem a educar respeitando o que é
próprio de cada uma, para que isso no futuro seja a sua
diferença. Não seria bom criar uma criança que se torne um
adulto desafiador, destemido, questionador, criativo?
Quando nos pergunta se deveria reprimi-la de forma mais
severa, o que quer dizer com isto? Você diz saber que bater
não é a solução ideal. Nesse caso, reprimi-la mais severamente
seria dar-lhe um castigo? Na idade de sua filha, dificilmente
o castigo fará sentido, ela é muito “novinha” e ainda não
conseguirá entender que está de castigo porque fez algo de
errado. O importante nessa situação é que você e a mãe dela
transmitam o que sentem quando ela ultrapassa os limites,
quando faz alguma coisa que os desagradem. Diga que não
gostou, que ficou bravo e, desta forma, comecem a estabelecer
uma relação de diálogo com ela. Após certa idade, é importante
sim que a criança seja castigada, mas esse castigo precisa ser
pensado e adequado, pois dever servir para que ela aprenda
quais são as conseqüências de seus atos e não para puni-la,
pois só assim ela poderá refletir sobre o que fez.
Uma coisa muito importante na educação de uma criança é a
coerência dos pais, para que não ocorram conflitos que
prejudicam a todos, principalmente à criança. É muito
complicado quando há uma disputa entre os pais para determinar
18
quem manda mais, um dá uma ordem, o outro desacata, um fala
“não pode fazer isso” e o outro deixa. Os pais precisam entrar
em um acordo e respeitarem a autoridade do outro.
Pais não são cientistas e na medida em que ensinam seus
filhos também aprendem neste processo de educar. Impor limites
é uma forma de amar. Então, pai, troque ensinamentos com a sua
filha, eduque de uma forma prazerosa, aproveite esses anos em
que ela depende de você e faça o melhor que puder para
transformá-la em um adulto que fará diferença.
Esperamos ter ajudado nessa reflexão sobre a educação de
sua filha e ficamos felizes em saber que existem pais como
você que realmente se preocupam com a forma de educar. Sinta-
se à vontade para nos escrever sempre que quiser. Estamos à
disposição!
Estagiários do Centro de formação de psicólogos
Profª responsável: Fabíola Freire
Sugerimos, caso queira saber mais:
Limites sem Trauma, autora Tânia Zagury, editora Record, edição
2006.
A criança no mundo dos adultos, autora P. Delahaie-Poderoux, editora
Augustus, edição 1996.
******
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Carta nº 4: Amamentação e a volta ao trabalho
Osasco, 29 de Maio de 2007.
Olá
Tentarei me apresentar de forma breve. Meu nome é Sara, 39 anos, mãe de quatro
filhos: Vivian (22 anos), Denilson (21 anos), Leonardo (19 anos) e Isabel (8 meses). Exerço a
profissão de educadora e meu companheiro também possui a mesma profissão.
Em 2007 fui surpreendida com uma gravidez não planejada, mas muito amada.
Não preciso descrever que foi um grande susto, quando recebi a resposta positiva após
realizar o exame de gravidez. Mal o susto passou, em outro exame de rotina surgiu a
suspeita que a cç poderia possuir a Síndrome de Down, Essa suspeita foi levada até o nono
mês, já que me neguei a realizar o exame que daria a certeza de possuir ou não a síndrome.
Logo que a Isabel nasceu o médico deixou bem claro que a nenê era cç saudável e sem
síndrome, principalmente.
Ah! Não posso esquecer que após três meses do nascimento da Isabel, minha filha
anunciou que estava grávida de quatro meses.
Sustos à parte, hoje a Isabel com oito meses, a maior dificuldade que enfrento é o
retorno a atividades profissionais. Trabalho em dois empregos, na parte da manhã, e no
período noturno, a nenê ainda mama (leite materno), não pega mamadeira, aí está a
dificuldade não queria causar traumas, como devo agir?
Optei em manter a Isabel em casa com uma babá no período diurno e com minha irmã
no período noturno, será que fiz a melhor opção? Ou será melhor colocá-la em um berçário?
O que percebi é que criar filho hoje é bem diferente do que duas décadas atrás!
Obrigada.
******
Cara Sara,
20
Realmente você foi surpreendida com muitas novidades e
suas dúvidas são pertinentes, mesmo porque uma mãe que zela
por seus filhos tende a se preocupar com eles.
Percebemos, pelo que nos relatou, que seus outros filhos
estão crescidos, portanto, já faz tempo que você lidou com
amamentação, fraldas, mamadeiras e todo o cuidado que uma
criança pequena necessita. Certamente você ainda sabe o que é
“melhor” para seus filhos e educar é sempre um desafio, é
oferecer à criança um ambiente propício e esperar que ela se
desenvolva. A educação não é um processo linear e requer
atenção às necessidades da criança, sendo que o mais
importante é o amor e a segurança transmitidos a ela.
Você nos fez indagações sobre voltar ao trabalho e deixar
a Isabel com a babá, com sua irmã ou em um berçário.
Certamente, sua filha possui uma forma peculiar de se
comunicar com você, através dos gestos dela, de seus olhares,
do seu sorriso, de suas brincadeiras, de seu choro, dentre
outras atitudes, que são as linguagens utilizadas por ela para
mostrar a você como se sente. Sugerimos, então, que atente
para estes “pequenos” detalhes. Olhe para ela como uma
“pessoinha” única, que desse modo se comunica com você também
de forma única, e assim você poderá perceber como, onde e com
quem ela se sente melhor. Observe como a Isabel se sente
quando está com a babá e com a sua irmã. Ela se dá bem com
elas? O que você imagina que um berçário poderá oferecer à sua
filha que elas não podem oferecer? Chegará uma hora em que
será inevitável a ida da Isabel para a escola e esse momento é
quando já não podemos mais oferecer o mesmo que uma escola.
Antes disso, sua filha deverá estar com quem melhor possa lhe
propiciar segurança e confiança. Como mãe cuidadosa, que nos
parece ser, você saberá o que é mais adaptado às necessidades
da Isabel.
Sobre a sua preocupação em voltar ao trabalho e parar de
amamentar, gostaríamos de esclarecer que voltar ao trabalho
21
não significa necessariamente parar de amamentar. Você
poderia, por exemplo, amamentar a Isabel antes de ir ao
trabalho, ao voltar e antes do bebê dormir. Você pode também
fazer a “ordenha manual”, ou seja, guardar o leite materno
para que ele seja dado a Isabel no decorrer do dia. Vale
lembrar que é preferível que o leite materno seja oferecido no
copinho ou na colher e não na mamadeira, pois a força que o
bebê necessita fazer para sugar o leite na mamadeira, é muito
menor do que quando ele mama no peito, e esta facilidade pode
fazer com que ele não queira mais mamar no peito. Pode ser
difícil mesmo no começo, introduzir o leite no copinho, pois a
criança ainda não está acostumada e ela ainda não consegue
segurar a língua no “lugar certo” para facilitar a introdução
da colher ou do copinho.
Para que você mantenha o estímulo necessário para a
produção do leite, sugerimos que retire o leite de 3 em 3
horas ou pelo menos massageie as mamas ao longo do dia.
Como você deve saber, o leite materno é fonte de
vitaminas fundamentais para a criança e ajuda a desenvolver
seu sistema imunológico. Além disso, a amamentação é o
primeiro vínculo que a criança estabelece com a mãe e um
vínculo importante de modo que, caso deixe de amamentá-la; não
será só do leite materno que ela sentirá falta, mas de todo o
aconchego que a amamentação proporciona. Portanto, quando você
amamenta a Isabel, ela sente o seu corpo, seu calor, seu
cheiro, se sente segura nos seus braços e tudo isso é mais do
que se alimentar, é um modo de relação afetiva e muito
especial que está ocorrendo entre vocês. Contudo, esta relação
afetiva só fará bem para a Isabel se estiver fazendo bem para
você, assim cabe somente à você decidir qual é o momento de
parar de amamentar.
Em relação à introdução do leite na mamadeira, você está
preocupada, pois a Isabel não se adaptou. Isso é muito comum,
pois como a mamadeira não tem a mesma textura, calor e o
22
aconchego que o mamar no peito; realmente será difícil para
ela mudar, mesmo com todo o seu esforço e cuidado.
Talvez você possa verificar se o bico da mamadeira agrada
a Isabel. Pode ser que esteja saindo leite em excesso ou em
pouca quantidade; há também a possibilidade dela não gostar do
leite que lhe foi oferecido e trocar por outra marca; pode ser
uma boa opção. Ela pode, inclusive, não gostar de leite,
então, quem sabe alternar com derivados dele – iogurte,
queijos etc – seja uma boa sugestão, pois são bons
complementos alimentares e, em um outro momento, você pode
voltar a inserir o leite.
Outra boa sugestão seria incentivar o pai, ou outra
pessoa, a oferecer a mamadeira à Isabel, pois se for você a
oferecer, provavelmente ela não aceitará, já que está
acostumada a mamar no seu peito, além do que sentirá o cheiro
do seu leite. O pai poderia também aproveitar esta
oportunidade para estreitar seu vínculo com ela.
Sua experiência com seus outros três filhos, apesar de
tê-los criado em outros tempos, com certeza a ajudará nesta
difícil e “nova” tarefa de ser mãe. Claro que muita coisa
mudou desde então: nossos costumes, nossa forma de enxergar a
educação, e nós mesmos mudamos a cada dia, além do que, agora
você é mãe e avó.
Esperamos ter ajudado no esclarecimento de algumas
dúvidas pertinentes à educação. Contudo, não temos respostas
mágicas e prontas para educar, pois cada bebê é único e como
tal deve ser tratado em sua existência que lhe é peculiar. Sua
educação deve atentar às necessidades e peculiaridades da
própria Isabel, pois sendo sensível a ela é que você
encontrará o “melhor”. Vale ressaltar que a educação é um
processo que se constrói na relação entre a criança e os pais
e, portanto, não existem regras universais ou educação
perfeita; então não cobre isso de você ou de sua filha.
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Estamos enviando junto com esta carta, dois textos que
podem lhe ajudar nesta nova fase de adaptação da vida da
Isabel.
Colocamo-nos à sua disposição para novos esclarecimentos
e indicamos a você um site sobre dúvidas pertinentes à
amamentação, onde você poderá, inclusive, trocar experiências
com outras mães. Aproveite: www.amigasdopeito.com.br.
Estagiários do Centro de formação de psicólogos
Profª responsável: Fabíola Freire
******
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Carta nº 5: Modos de correção à criança muito pequena
Valter Silva, pai da Laís, 7 meses.
Em uma criança de 7 a 12 meses, qual é o limite para uma correção e a capacidade da
criança em entender que está sendo corrigida?
******
Prezado Valter,
Ficamos felizes em saber que você se preocupa com seu
bebê, pois sabemos o quanto é difícil educar e amar uma
criança pequena. Quando imaginamos um bebê, pensamos apenas em
como é lindo e gracioso aquele pequenino ser que chegou em
nossa casa. Porém, com o passar dos dias, a nossa vida, muitas
vezes estressante, faz com que fiquemos impacientes e
irritados a ponto de não olharmos mais com tanta doçura para
este bebê que faz birra, chora por qualquer motivo, não nos
deixa dormir e ocupa todo o nosso tempo livre.
Essa irritação é totalmente compreensível.
Entretanto, um bebê na idade da Laís não consegue
entender a linguagem racional do adulto. Não que ela seja
incapaz de entender o que lhe dissemos ou o mundo ao seu
redor; ela entende a nossa linguagem, mas de uma outra forma.
Porém, o que é dito para ela não é entendido racionalmente
como você gostaria que ela entendesse. A criança percebe a
nossa linguagem pelo corpo, gestos, olhares, cheiro, som e
pelas nossas expressões afetivas.
Ela tem apenas sete meses e isto quer dizer que a forma
como ela percebe o mundo também é diferente da forma como você
percebe. Tudo é novidade, ela está descobrindo o mundo. Neste
período, o bebê grita, ri alto, ensaia engatinhar e adora
pegar qualquer objeto, pois interage com eles de forma
totalmente afetiva e não somente funcional. O que isso quer
dizer? Queremos dizer que todos os objetos para os bebês têm
“vida própria” e ele cria com esses objetos uma relação
25
especial e afetiva, por isso são utilizados pelo bebê para
reconfortá-lo, como companhia ou como segurança e por isso não
tardam em nomear estes objetos. Portanto, ficam extremamente
ligados a eles, assim não se deve jogá-los fora ou separá-lo
da criança; deixe que se desintegrem “naturalmente” com o
tempo.
Vale ressaltar que os objetos que você não quer que sejam
manipulados pelo bebê devem ser mantidos fora do alcance dela,
inclusive de seu alcance visual, pois se eles ficarem expostos
despertará a sua curiosidade.
Com uma criança tão pequena, os pais devem estar bem
atentos às necessidades físicas e emocionais do bebê. Isto
quer dizer que, muitas vezes, a criança fica irritada e chora,
porque está com sono, fome, dor ou, até mesmo, porque sente
necessidade da atenção, do carinho, do afago e é tarefa dos
pais suprir da “melhor” maneira possível estas necessidades.
Com isso, não estamos querendo propor uma educação perfeita,
pois os erros também fazem parte de qualquer processo
educativo.
Nesta idade já se deve começar a dizer “não” para o bebê.
Este “não” tem a função de protegê-lo e pode-se começar a
ensiná-lo sobre os perigos dos quais você o está protegendo.
Aproximadamente dos 12 aos 14 meses, ela começará a entender o
sentido do “não”, do “sim” e dos perigos que estão à sua
volta. Aproximadamente dos 16 meses em diante, a criança
começará a questionar o “não” inserido pelos pais no sentido
de querer uma justificativa para o “não” e é neste período que
os valores morais, o que é certo e errado, são inseridos.
Essas fases, no entanto, não devem ser seguidas rigorosamente,
já que cada bebê é um ser único e você deverá descobrir quais
são as verdadeiras necessidades da Laís que é diferente dos
demais bebês.
Entretanto, a base da educação deve ser o “sim”. Você
precisa ter clareza do que ela pode fazer, pois o
26
desenvolvimento do bebê, está relacionado bem mais com o que
lhe é permitido do que com o que lhe é proibido. Não se
esqueça que é importante inserir um “não” de cada vez para que
a criança consiga absorver o que você realmente quer dizer
tente colocá-los numa base prática.
Sugerimos que você disponibilize um local dentro de sua
casa, onde a Laís possa interagir sem restrições, isto é, um
espaço só dela com os objetos de sua preferência.
Neste momento você é totalmente responsável pela proteção
e por proporcionar a Laís um ambiente saudável para o seu
desenvolvimento.
O que você quis dizer com “correção”? Entendemos que toda
educação deve ser dialógica, pois isso prepara a criança para
lidar com os conflitos da vida de forma madura. Os castigos
também são necessários, sim, mas são mais do que uma palmada,
pois devem ser muito bem pensados para que proporcionem a
criança encontrar o sentido da falta cometida. Contudo, nesta
idade, a criança é muito pequena para entender que está de
castigo.
Vale lembrar que uma criança em qualquer idade tem
necessidade de receber dos pais muito amor e carinho, mas
nesta fase o corpo da criança ainda está em formação, o que
significa dizer que qualquer correção física excessiva
cometida com uma criança pequena poderá causar danos
irreversíveis às suas estruturas físicas.
Muitas vezes precisamos voltar ao passado para lembrarmos
que passamos pelos mesmos processos que sua filha está
passando agora, tais como chorar para conseguir o que quer ou
simplesmente para chamar a atenção de quem estiver por perto.
Sabemos que você quer o melhor para o seu bebê, mas muitas
vezes a irritação causada pelo excesso de trabalho, trânsito,
chefe, entre outros problemas que a vida moderna acaba por
trazer, nos impedem de estar sensíveis e aproveitar este
27
período da infância que é tão rico e que apesar de tão
trabalhoso, nos traz períodos de muita alegria.
Ficamos agradecidos por depositar sua confiança em nosso
trabalho estamos à disposição caso você queira voltar a nos
escrever.
Estagiários do Centro de formação de psicólogos
Profª responsável: Fabíola Freire
******
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Carta nº 6: Agressividade
Gostaria de saber porque o Carlos Eduardo anda tão agressivo, não tem interesse nos
estudos, está muito rebelde, desanimado?
O motivo de todos esses problemas seria familiar ou algo a qual não temos
conhecimento.
Obrigada,
Maria Cristina
Mãe do Carlos Eduardo
******
São Paulo, 20 de Junho de 2007.
Olá Mãe...
ao lermos sua carta, tivemos a impressão de que você
imagina que nós conhecemos o seu filho Carlos Eduardo. Então,
primeiramente, gostaríamos de esclarecer que nós, do Correio
Psicoeducativo, não o conhecemos. Talvez, vocês já estejam
utilizando algum outro serviço da clínica, mas por questões
éticas, mantemos o sigilo de todos os atendimentos e serviços
oferecidos aos pacientes; portanto, não temos acesso a nenhum
outro dado além dos que você nos deu na carta. Por isso,
gostaríamos de receber mais informações para podermos tentar
responder à sua dúvida.
Qual é a idade de seu filho? Em que fase escolar ele se
encontra? Você notou em que época essa agressividade se
iniciou? Ocorreu após algum fato “marcante”? Ela é especifica
com alguém? Acontece em que tipo de situações e lugares? E o
que você chama de agressividade, ou seja, o que
especificamente o Carlos Eduardo faz: morde, chuta, grita etc?
29
Como não possuímos as informações acima, escreveremos de
uma maneira geral sobre as questões que nos perguntou,
principalmente, sobre porque uma criança pode ser tão
agressiva.
Agressividade não é algo necessariamente ruim; pelo
contrário, ela faz parte de nossa existência e muitas vezes é
uma forma de defesa. Todos nós sentimos raiva, ódio,
frustração ou outros sentimentos como esses. A grande questão
é a forma como lidamos com esses sentimentos. O perigo é
quando essa agressividade se torna destrutiva ou muito
desproporcional às situações que enfrenta. E é isso que
precisa ser observado nas atitudes de seu filho, pois ela tem
um sentido. O que será que a agressividade do Carlos Eduardo
nos revela sobre o que está acontecendo com ele?
Nossa primeira sugestão é que você converse muito com ele
para poder entender melhor o que está acontecendo. Nem sempre
conseguimos entender a linguagem da criança, então temos que
fazer um esforço e buscar outros meios, além da linguagem
falada, para conversarmos de forma verdadeira com ele. Você
pode, inclusive, falar sobre outros assuntos (por exemplo,
sobre a escola, os amigos, as atividades que ele mais gosta de
fazer etc.) e certamente essa questão também irá aparecer.
Mas, este pode ser um diálogo muito diferente, pois não deve
ser uma “bronca” para conversar sobre as agressões dele. Às
vezes, a gente já está tão esgotada que não consegue perceber
que só se fala sobre isso na hora de corrigir.
Conversar muito com as crianças é importante, pois é uma
forma de ensiná-los a lidar com seus problemas a partir do
diálogo, da conversa. Portanto, mais um motivo para que se
converse muito com o Carlos Eduardo, pois pode ser que ele
esteja agredindo por não conhecer uma outra linguagem para se
expressar.
Um bom recurso com as crianças costumam ser as histórias,
pois são próximas da linguagem delas e é ali que, muitas
30
vezes, elas podem ser muitos personagens e nos contar sobre
seus sentimentos falando ou sendo o ”coelho”, “cachorro” etc.
A agressividade exagerada é um sintoma de que algo não
vai bem. E isso pode ter algumas origens que precisamos tentar
identificar como, por exemplo, a insegurança.
Pode ser que seu filho faça coisas que você desaprove só
para ter um momento de sua atenção, já que você deve ser para
ele uma pessoa muito querida. Isso pode parecer estranho, mas
a agressividade pode ser um modo “ao avesso” da criança
demonstrar e pedir carinho.
Muitas vezes, a agressividade está relacionada ao
sentimento de rejeição. O Carlos Eduardo pode estar, por
exemplo, “quebrando” algo que é importante para você em busca
de sua atenção, mas ao invés disso, receberá uma bronca (ex:
“não faça isso..., fique quieto..., pare com isso...”) e
assim, ele voltará a ser agressivo em busca de sua atenção, o
que resulta em um círculo vicioso que precisa ser rompido. Ou
seja, chamar várias vezes à atenção da criança, pode torná-la
mais agressiva ainda porque isso confirma o sentimento de
rejeição e ela continuará buscando receber atenção e
tolerância. Porém, com toda razão, você deve já estar bem
cansada e esgotada com tudo isso, pois esse é um teste
“cruel”; mas muitas vezes nem a criança sabe que está fazendo.
Há realmente outros modos muito “melhores” de ganhar atenção e
amor da mãe, mas precisamos ensinar esses outros modos.
Sugerimos, inclusive, que você inicie esse processo doando
muito amor de forma gratuita ao seu filho. O melhor remédio,
que indicamos, é ser rigorosa e carinhosa!
É importante, sim, estabelecer limites claros ao Carlos
Eduardo. quando necessário, dizendo “não”, mas explicando o
sentido e o porque do “não”. Dessa forma, você estará
dialogando com ele, estabelecendo uma relação de afetividade,
demonstrando interesse pelos problemas dele e com isso ele
pode se sentir “importante”.
31
Procure observar um pouco mais no cotidiano dele em que
situações age agressivamente, por exemplo, por ciúmes, por
birra, por frustração, medo de perder etc. Inclusive, para
poder entender melhor esse desânimo que você menciona. Como
está o sono dele? E a alimentação? E os momentos de lazer?
Essas são necessidades básicas da criança, relações muito
especiais das quais precisam e quando, por algum motivo, estão
sendo prejudicadas, podem provocar mudanças ou irritações
nelas.
Em relação à situação escolar, cabe uma maior reflexão
sobre isso. A partir de quando, e como, ele perdeu o interesse
pela escola? Você já procurou conversar com as professoras
dele? Procure estreitar o diálogo com a escola, pois essa
parceria é fundamental para conhecermos melhor o Carlos
Eduardo e assim, podermos ajudá-lo.
A agressividade e “rebeldia” podem também ser uma forma
de defesa da criança quando sente que seu “espaço” está sendo
ameaçado, ou seja, às vezes, é um sinal de insegurança da
criança em relação a si mesma, ou ao amor de um outro. Talvez,
ele se sinta humilhado ou inferiorizado em algumas situações e
pode não estar respondendo de imediato a essa agressão, mas
isso pode refletir em casa em atitudes agressivas, como se
fosse uma resposta “atrasada” para algo que vem ocorrendo em
outro lugar, ou em outras situações...
Contudo, a agressividade pode ser apenas um momento do
Carlos Eduardo. O que ele é, além de agressivo? Muitas outras
coisas, não é mesmo? Mas, infelizmente, acabamos rotulando as
crianças e ele acaba carregando essa marca por toda a vida,
seja na família, na escola, no trabalho ou na relação com os
outros que sempre já o olham a partir desta perspectiva. Não é
verdade que acabamos nos tornando menos pacientes e tolerantes
só por já “sabermos” que isso foi feito por ele, a criança
agressiva, sendo que talvez se fosse uma outra criança,
poderíamos até mesmo achar engraçadinho.
32
Você nos perguntou também se isso estaria relacionado a
problemas na família ou algo do qual não temos conhecimento. O
que você quis dizer com “algo que não temos conhecimento?”
Seriam as situações que você não presencia? Procure estar o
mais atenta possível ao mundo vivido pelo Carlos Eduardo, pois
mesmo quando não estamos presentes, o que acontece com a
criança pode ser percebido se estivermos atentos à ela.
Entendemos que a agressividade, a rebeldia, o desânimo,
enfim, tudo o que está ocorrendo com seu filho está
relacionado ao mundo que ele habita, inclusive, mas não
somente, com a família. Caso perceba que está muito difícil
para você lidar com tudo isso, poderá buscar ajuda
especializada para a família e para a criança. Nessas horas,
um psicólogo pode ajudar muito, isto é, se já não o tiver
feito. Mas lembre-se que essas questões são muito delicadas
mesmo; por isso é preciso tempo e paciência para que as coisas
comecem a mudar.
Esperamos que algumas de nossas perguntas possam te
ajudar a pensar sobre essas dificuldades que nos trouxe e que
volte a nos escrever contando um pouco mais sobre quem é o
Carlos Eduardo e qual é a sua história.
Atenciosamente,
Estagiários do Centro de formação de psicólogos
Profª responsável: Fabíola Freire
******
33
Carta nº 7: Chamar de pai pode?
Uma pessoa teve um envolvimento rápido com um rapaz “apenas ficaram”, e esta
acabou ficando grávida. Foi atrás deste rapaz, mas este evaporou.
Ela teve o bebê e sua família a apoiou.
Depois do nascimento da bebê (menina) a mãe foi morar na casa de uma tia, pois
havia arrumado serviço próximo a essa casa. Todos na casa de sua tia se apegaram muito a
criança e ela ficou morando com eles mais de 1 ano.
Hoje essa criança está com 2 anos e 6 meses, e ela e sua mãe voltaram a morar na casa
de seus avós. Faz uns 3 meses que ela passou a chamar um de seus primos (que morava no
seu antigo lar) de pai. Este rapaz tem 31 anos e é solteiro e não se incomoda com isso, já que
sente muito carinho por ela.
Sua avó fica com medo que isso futuramente gere algum problema para esta criança,
visto que seu primo não é o legítimo pai e quando a criança o chama de pai ela diz a ela que
ele não é seu pai e sim primo/tio.
A criança chora quando isso acontece. Sua mãe está sem saber o que fazer, deixa essa
criança continuar chamando de pai ou não?
*
Uma criança com 3 anos (menino) está naquela fase “teimosa”. Dar umas palmadas
(não uma surra), ajuda na sua educação?
Colocar de castigo é uma alternativa?
********
Cara Luciana,
Nos sentimos felizes por receber sua carta, pois isso
mostra o quanto você se preocupa com esta criança de apenas
dois anos e seis meses e com o “peraltinha” de três anos.
Sabemos que educar é sempre muito difícil e, muitas vezes, as
dúvidas que nos afligem parecem que são tão grandes a ponto de
nos engolir.
34
Sua primeira pergunta é muita delicada e envolve temas
existenciais profundos, como a questão da origem de nossa
vida, de onde viemos, quem somos etc.
A família toda realmente tende a se preocupar muito com o
bem estar de uma criança pequena, por isso entendemos o “medo”
da avó e parabenizamos sua iniciativa de refletir sobre algo
tão importante para esta criança.
Você conta em sua carta que “a bebê” é fruto de uma
relação rápida e que o pai biológico “evaporou”. Porém, ela e
sua mãe receberam todo o apoio dos avós, primos, tia e que
eles deram a esta criança muito amor, carinho e afeto, o que
são essenciais para o desenvolvimento de um bebê. Parece-nos,
inclusive, que o período em que ela ficou com a família da
tia, eles não só se apegaram a ela, mas estabeleceram uma
relação afetiva tão grande que ela elegeu um de seus primos
para ser o seu “pai”.
Então, você nos pergunta se ela pode continuar chamando o
primo de pai, já que ele não é o legítimo pai dela. Essa
pergunta é difícil, pois envolve crenças a respeito do que
entendemos por ser pai. Nós te perguntamos, o que você
considera ser um “verdadeiro e legítimo pai”?
Consideramos importante, sim, falar sempre a verdade para
a criança e, portanto, é fundamental que ela cresça sabendo
que seu primo não é o seu pai-biológico, mas parece que ela já
“sabe” disso e mesmo assim deseja chamá-lo de pai, portanto,
já o tem simbolicamente como pai.
Pai, do ponto de vista biológico, é aquele de quem
“herdamos” nossa carga genética. Mas, porque será que
consideram mais legítimo o pai biológico do que o escolhido
pelo coração dela? Pai também não é aquele que nos leva para
passear ou tomar sorvete, vai às festas da escola, enfim quem
ama, se dedica, cuida e assume a responsabilidade por outro
“ser” que depende em muitos aspectos dele?
35
Esta criança escolheu como pai, alguém que lhe dá atenção,
carinho e que, principalmente, tem uma relação de afeto com
ela. Ela demonstra a necessidade de ter um pai e não importa
se é um “pai biológico” ou um “pai do coração”. Se esse rapaz
não se incomoda e a ama verdadeiramente, qual seria o
problema? Certamente, ele precisa estar ciente da
responsabilidade de ser chamado de “pai” por uma criança de
dois anos e seis meses, pois isto envolve muitas expectativas
da criança em um momento em que ela está em fase de
desenvolvimento.
A mãe e esse pai, a quem ela adotou, precisam saber que o
vínculo que a criança tem com eles é muito especial. O amor
que a criança recebe deles é fundamental para que ela cresça
se sentindo segura, confiante e para que continue se
desenvolvendo bem, é importante que os pais e/ou cuidadores se
atentem cada vez mais às necessidades dela e ela tem
demonstrado sentir que já tem pai. Portanto, sugerimos a esta
família que procure, inclusive, favorecer essa relação,
deixando que eles estreitem esse vínculo e desenvolvam uma
verdadeira relação de intimidade e amor entre pai e filha.
Compreendemos que a avó, por amar a sua neta, quer evitar
que no futuro ela venha a ter “problemas”, porém não se pode
adivinhar o que acontecerá no futuro com ela e com essa
relação paterna. E se, agora, esta criança sente a necessidade
de uma figura masculina que ela possa ter como seu pai, porque
não deixamos para no futuro vermos como ela vai lidar com essa
situação? Qual seria o medo da avó e o que ela está tentando
evitar? Seria a possível perda, separação ou frustração com
esse pai? Pode até ser que essa relação não “perdure”, mas
mesmo a de um pai biológico estaria sujeita a tudo isso, não é
mesmo? Contudo, deve ser feito o possível para que isso não
aconteça.
A respeito da sua segunda pergunta, sobre a “teimosia” de
um menino de três anos e sobre a forma de educá-lo, também
36
procuraremos aqui refletir junto com você sobre alguns
aspectos que consideramos importante.
Educar uma criança é realmente uma tarefa difícil, e que
requer que os cuidadores sejam tolerantes e compreensivos,
além de oferecerem um ambiente em que se possa
descobrir/perceber o mundo por si só, claro, sem que se corram
perigos. A curiosidade faz parte do desenvolvimento da criança
e a teimosia por sua vez, pode se tornar muito freqüente se
não houver diálogo entre a criança e o cuidador. Às vezes,
achamos que as coisas que as crianças fazem são erradas, mas,
muitas vezes, é isso mesmo o que elas deveriam fazer, pois
estão conhecendo o mundo e nós é que nos tornamos impacientes
com elas.
Nossa irritação e intolerância, causada pelo excesso de
trabalho, trânsito, contas, entre outros problemas que a vida
moderna acaba por trazer, podem nos impedir de estar sensíveis
e aproveitar este período da infância que é tão rico e que,
apesar de tão trabalhoso, nos traz muita alegria.
Com três anos a criança já começa a construir a partir das
relações com os adultos, os valores sobre o que é certo ou
errado, e o diálogo será uma ferramenta essencial para a base
da construção desses valores. Além disso, o diálogo fortalece
o vínculo afetivo entre a criança e o cuidador.
Os responsáveis pela educação da criança, não devem dizer
“não” a tudo, aliás, a base da educação deve ser o “sim” e
quando o “não” é necessário, deve haver um sentido para isso.
Quando o cuidador não oferece uma explicação convincente,
provavelmente a criança continuará teimando e irá fazer
quantas vezes entender que é certo. Então, bater ou apenas dar
umas palmadas, talvez não seja uma boa alternativa.
Em outras situações, a criança desobedece uma “regra” como
forma de testar o amor dos pais e/ou dos cuidadores. Por isso,
voltamos a ressaltar, a importância da criança se sentir
amada, para que desenvolva confiança e segurança, para que
37
assim, ela não sinta necessidade de testar o amor dos pais.
Entretanto, pode ser mesmo que ela seja uma criança
desafiadora, e isso não é a priori ruim. Vocês terão de
aprender a lidar com isso, para poder ensiná-lo a ser
futuramente um adulto questionador e curioso.
Quanto ao castigo, ele é necessário quando a criança faz
algo errado e que precisa ser corrigido. Neste caso, o castigo
tem que estar relacionado com a falta cometida, para que ela
possa entender e “consertar” o que fez. Portanto, cada castigo
é especifico a cada criança e à situação vivida e deverá ser
muito bem pensado. Castigar não deve ser um ato para punir à
criança e sim para ensina-la.
Esperamos ter contribuído e, quando considerar necessário,
sinta-se à vontade para voltar a nos escrever.
Atenciosamente,
Estagiários do Centro de formação de psicólogos
Profª responsável: Fabíola Freire
38
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MACHADO, M. M. Cacos de infância/ Teatro da solidão
compartilhada. São Paulo: Fapesp/Annablume, 2004.
_________________ A flor da vida/ Sementeira para a
fenomenologia da pequena infância. Tese de doutorado. PUC/SP,
2007.
MERLEAU-PONTY, M. Merleau-Ponty na Sorbonne/ Resumo de
Cursos/ Filosofia e Linguagem. Campinas: Papirus, 1990a.
__________________ Merleau-Ponty na Sorbonne/ Resumo de
Cursos/ Psicossociologia e Filosofia. Campinas: Papirus,
1990b.
WINNICOTT, D. W. Conversando com os pais. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
ANEXO 5:
Livro das cartas –
resultado do processo de
ensino-aprendizado dos
alunos do 6º semestre na
disciplina de Estágio
Básico IV
CORREIO PSICOEDUCATIVO:
CARTAS SOBRE EDUCAÇÃO
Resultado do processo de ensino e
aprendizagem em Psicologia Fenomenológica
dos alunos do Estágio Básico IV
Professora Supervisora
Fabiola Freire
Curso de Graduação em Psicologia
Segundo semestre, 2007.
2
SUMÁRIO
CARTA DE APRESENTAÇÃO 3
CARTA Nº 1: OS DILEMAS DE UMA EDUCADORA 6
CARTA Nº 2: SOBRE A CRIANÇA PEQUENA 14
CARTA Nº 3: DÚVIDAS DE UMA MÃE: NERVOSISMO, PROBLEMAS NA
ESCOLA, LIMITES, RESPONSABILIDADES, MIMOS ETC 20
CARTA Nº4: “ATRAPALHADA” NA EDUCAÇÃO DOS FILHOS? 25
CARTA Nº 5: CARTA-EXERCÍCIO: COMO TIRAR A CHUPETA? 36
CARTA Nº 6: COMO LIDAR COM A SEPARAÇÃO DOS PAIS? 40
CARTA Nº 7: ENURESE E HOMOSSEXUALISMO: UM OUTRO OLHAR 42
CARTA Nº8: NO MUNDO DA LUA? 47
CARTA Nº9: ADOLESCÊNCIA? 51
CARTA Nº 10: DÚVIDAS DE UMA ESTUDANTE DE PSICOLOGIA 55
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 59
3
CARTA DE APRESENTAÇÃO
(...) Palavra boa
não de fazer literatura,
palavra
mas de habitar fundo
o coração do pensamento,
palavra.
Chico Buarque
Prezados leitores,
Este trabalho reúne a prática da Psicologia Fenomenológica
exercida por onze alunos do curso de graduação em Psicologia
desta universidade, na disciplina de Estágio Básico IV,
durante o segundo semestre de 2007.
Neste semestre, demos continuidade ao trabalho iniciado no
semestre anterior: o projeto do Correio psicoeducativo. Uma
proposta de atendimento psicológico que se realiza através de
cartas, visando responder às dúvidas de pais e educadores
sobre questões relacionadas à educação. As cartas-perguntas
foram depositadas em uma urna, instalada na recepção desta
clínica, e as cartas-respostas enviadas pelo correio ou
retiradas na recepção, conforme escolha do remetente.
Como poderá ser percebido na leitura das cartas, este
projeto não visa oferecer receitas aos pais e educadores sobre
modos de educar, ao contrário, nosso intuito foi muito mais
“desconstruir” tais modelos e propor uma reflexão sobre o que
fazem, como fazem e para que fazem em seus modos de educar.
Buscamos, deste modo, propiciar um olhar para os conflitos
trazidos como sofrimentos vividos por pessoas únicas.
Pais, educadores, tios e avós encontram-se freqüentemente
assustados, solitários e/ou desesperados com os conflitos que
cotidianamente têm de enfrentar na educação de crianças.
Muitas são as questões que os preocupam em seu dia-a-dia,
desde como realizar as práticas cotidianas de alimentar,
4
trocar ou “dizer não” à criança, até como lidar com as
questões de maior sofrimento psicológico, como a dificuldade
de falar sobre a separação dos pais, sobre o luto, as doenças,
enfim conflitos presentes nas relações entre pais e filhos.
Partimos do princípio de que educar é muito mais do que
introduzir informações ou normas. Em nosso modo de olhar,
educar é um modo de conduzir, de estar ao lado e de propiciar
boas condições para que a criança se desenvolva, cresça,
amadureça e crie algo novo a partir do que lhe foi ensinado.
Isso demanda sensibilidade e inteligência por parte do
educador para suspender as respostas prontas e teorizadas para
se abrir à situação vivida ali de forma única.
Nos propusemos a oferecer apoio psicológico, orientações,
acolhimento, segurança, reflexão e informações, quando
necessárias, mas principalmente a nos comunicarmos com o
“coração do pensamento” dos educadores, com o desejo de que
isso “respingue” nas crianças.
Nossa prática trata-se de uma ação que busca contribuir
com uma atuação psicológica mais comprometida com o bem estar
das crianças.
Nesta tarefa, caminhamos a partir da obra de Maurice
Merleau-Ponty (1990, v.a e b) e de Marina Marcondes Machado
(2004, 2007), fenomenólogos estudiosos da infância, e de
Winnicott (1999), psicanalista, que também muito contribuiu na
educação de crianças.
Nosso desafio constituiu-se em, através das palavras,
provocar os educadores a refletirem sobre suas práticas, a
buscarem mais do que seguir ordens e instruções, a instiga-los
a vontade de saberem mais e a construírem sua própria
capacidade de pensar e educar. Por meio de cartas, nos
propusemos a ensinar ao educador um modo de cuidado
psicológico a ser oferecido às crianças: o diálogo acolhedor e
sincero, que ao mesmo tempo lhes oferecemos.
5
A linguagem fenomenológica utilizada nas cartas,
descritiva e sem julgamentos, busca ser também simples e
acessível, abrindo mão de conceitos ou jargões da psicologia,
pois procurou se comunicar com o público remetente, em geral
usuários da clínica de psicologia, alunos desta universidade,
amigos ou parentes destes; pessoas que conhecemos somente
através da carta enviada.
Esta ação também demonstrou ser um excelente recurso
pedagógico com os alunos-estagiários, que tiveram a
oportunidade de discutir, no privilegiado contexto da sala de
aula, sob a supervisão do professor, uma verdadeira situação
psicológica, portanto, um recurso que teve a vantagem de unir
teoria e prática. Tem sido uma experiência muito rica para o
aluno e para a professora.
Por questões éticas, alteramos todos os nomes dos
remetentes e de seus filhos ou demais crianças citadas.
Profª Fabiola Freire
*******
6
Carta nº 1: Os dilemas de uma educadora
78
Sou educadora há 18 anos. Atualmente, trabalho na escola pública, com crianças, de
Fundamental I e II (4ª série, 6ª e 7ª série) as dúvidas são muitas e, a cada instante, surgem
outras. Educar é assim: uma eterna busca de respostas. Então, algumas seriam interessantes
e importantes, para mim, serem respondidas:
Como tratar, com uma criança, a chegada de um “irmãozinho”? Desejo este de muitas, mas
problema para “muitas”, também.
Como abordar sexualidade, para crianças de 10 anos, de forma a tratar o assunto com
naturalidade e não de forma “brutal”, como muitos acabam “enxergando”?
A violência na família, na comunidade com que trabalho, é muito grande. Como mostrar à
criança a importância e o compromisso família se, para “ele”, esta não é referência para sua
vida?
? ? ? ?
Muitas dúvidas! Agradeço por tentarem “solucionar”, pelo menos, essas!
******
Carta-resposta Parte II:
São Paulo, 01 de novembro de 2007.
Cara educadora,
Estamos retomando nosso contato com o intuito de ajudá-la
a pensar em seus questionamentos.
Sobre sua pergunta “como tratar, com uma criança, a
chegada de um irmãozinho”, essa nova situação pode despertar
diferentes tipos de sentimentos na criança. Desde os mais
amorosos até aqueles de maior sofrimento, o que nos
78
Esta carta foi recebida no semestre passado e por abordar várias perguntas, escolheu-se respondê-la em três
momentos, de acordo com as temáticas trazidas. A temática I referente à sexualidade foi respondida no semestre
anterior. A carta-resposta II abordará a questão sobre a chegada de um irmãozinho e a carta-resposta III sobre a
questão da violência.
7
possibilita compreender que cada indivíduo é único e irá
expressar seus sentimentos de formas diferenciadas.
Uma das maneiras de ajudar a criança é estar sensível às
suas mudanças de comportamento. Precisamos sempre escutá-los,
buscando estar próximo, percebendo qual o significado que está
sendo dado à chegada de um irmãozinho. Esta sensibilidade, a
aproximará do que realmente está acontecendo com a criança e
pode, por exemplo, impedir que elas sejam “rotuladas” por
agressivas ou por outras formas simplistas de olhar para a
questão. Enquanto educadora, preocupada como nos parece ser,
você poderá dar a elas a oportunidade de serem vistas como
alguém que está passando por uma grande mudança.
Como você mesma falou, muitas vezes a chegada do
irmãozinho foi solicitado pela própria criança, porém o bebê
que chega sempre é diferente do bebê idealizado e isso pode
gerar uma série de conflitos de sentimento na vida desta
criança.
Muitos pais tendem a dizer que nada irá mudar quando o
bebê chegar, entretanto, nada mais será igual, pois se antes a
mãe dedicava-se a uma única criança, agora ela terá que
dividir o tempo com duas e provavelmente o bebê terá
prioridade, já que é, ao menos no início, totalmente
dependente da mãe.
Este momento traz grandes mudanças para toda a família,
por isso, enfatizamos que o diálogo verdadeiro é fundamental e
quando não ocorre, a criança se sente incompreendida, o que só
acarretará mais confusão.
É comum nesse momento, surgirem sentimentos tais como o
ciúme, a inveja, a insegurança, a raiva, entre outros que
fazem parte da vida. Ignorá-los na criança em nada contribuirá
para seu desenvolvimento. Freqüentemente, ela se sente
ameaçada com a chegada de um irmão e o sentimento de que será
trocada por outra pode fazer com que ela se sinta abandonada e
rejeitada. Algumas sofrem tanto que é comum trazerem
8
questionamentos tais como: “Se eles estavam felizes comigo,
porque tinham de ter outro filho? Será que ainda vão gostar de
mim, depois que o bebê nascer e vier para esta casa?”.
Para que a criança se sinta compreendida, ela precisa
saber que estamos percebendo seus sentimentos, de modo que,
ela possa dizer o que sente, sem recriminações e julgamentos
dos adultos. Durante a conversa, também podemos dizer que é
comum ter sentimentos “ruins” em relação ao irmãozinho que
está para chegar ou que já chegou. Entretanto, é papel
fundamental do adulto proteger a criança pequena, zelar pelo
seu bem estar e cuidar para que nenhuma atitude do irmão a
prejudique.
Uma relação sincera é primordial. Na relação adulto e
criança, a confiança e o afeto são bases deste relacionamento.
O principal valor que deve ser transmitido e assegurado, é que
ela é única e não será substituída.
O papel dos pais e educadores é criar condições favoráveis
ao bom desenvolvimento da criança, portanto vale lembrar o
quanto é decisivo ajudá-las a vivenciar, da melhor maneira
possível, estas novas situações, assegurando-lhes sempre o
amor por elas.
A chegada de um irmão pode também proporcionar momentos de
felicidade às crianças, se conseguirem, por exemplo, imaginar
o futuro, quando puderem brincar juntos, viajar, conversar, se
divertir, dividir alegrias ou tristezas.
Que tal, preparar uma discussão onde o tema fosse a
chegada de um novo irmão? Nesta aula, você poderá realizar
diversas atividades, como, por exemplo, assistirem a filmes
que ilustrem a temática, contar uma história ou propor uma
conversa afetuosa e aberta sobre o assunto. Pode ser uma
oportunidade para conhecer esses sentimentos a partir do ponto
de vista da criança. Por que não?
Mesmo as crianças que não estejam vivenciando esta
situação de forma direta, teriam a possibilidade de falarem e
9
pensarem nas relações vividas com os primos ou outros
amiguinhos mais próximos.
Uma outra sugestão, seria você produzir junto com as
crianças uma peça teatral, onde cada um pudesse viver o papel
escolhido, até mesmo com textos desenvolvidos por elas e,
assim, poderiam expressar os seus sentimentos mais preciosos:
de amor, sofrimento ou os de mais dura revolta.
Além disso, você ainda pode utilizar a já sugerida
“caixinha de perguntas” e atender as necessidades trazidas
pelos alunos mais tímidos.
Porém, ainda assim, se perceber que o sofrimento da
criança está sendo vivido de forma muito dolorosa, não tenha
receio em indicar ajuda especializada.
Contudo, Carla, lembramos a você, de que não existem
regras ou teorias prontas para lidar com novas situações, pois
cada criança é única e educar será sempre um novo desafio.
Esperamos ter auxiliado em sua trajetória na busca de mais
conhecimento. Voltaremos a lhe escrever sobre outro tema
solicitado em sua carta.
Gostaríamos também de indicar algumas bibliografias:
Rubem Alves. Coleção Estórias para Pequenos e Grandes, da
Editora Loyola. Em especial, nesta coleção a história
intitulada A pipa e a flor.
Ainda deste mesmo autor, há diversos livros escritos para
educadores, tais como: Conversas com Quem Gosta de Ensinar,
Entre a Ciência e a Sapiência, dentre outros.
Nos colocamos à disposição.
Atenciosamente,
Estagiários do Centro de formação de psicólogos
Profª responsável: Fabíola Freire
10
Carta-resposta Parte III:
São Paulo, 03 de Novembro de 2007.
Cara educadora,
Nesta oportunidade, gostaríamos de junto com você, pensar
sobre a tarefa do educador frente à violência na comunidade e
a questão trazida por você sobre a “inexistência da família
como referência de vida para as crianças com que você
trabalha”.
Educar é uma tarefa difícil e seria ótimo se realmente
existisse um manual com todas as soluções.
Questões como estas muitas vezes nos levam a pensar sobre
nossas próprias práticas e conhecimentos. Imaginamos que deve
ser difícil para você, em alguns momentos, saber o que é
prioridade dentro da sala de aula e qual, de fato, é a sua
função. Cumprir um cronograma estabelecido dentro de uma grade
curricular ou direcionar o seu olhar para os conflitos que se
apresentam em sala de aula?
O ideal seria o educador ter condições de realizar as
duas funções e, por isto, concordamos quando você nos afirma
que muitos são os questionamentos, sobre o que fazer e como
agir.
Gostaríamos de ajudá-la a pensar em outras possibilidades
que não são receitas práticas e objetivas, mas que podem
contribuir para a reflexão e em maneiras diferentes de olhar
para a situação.
Sugerimos que você esteja sensível às experiências
vividas pelos alunos, inclusive aquelas que ocorrem fora da
escola, considerando o que ele é, o que ele tem, e o que
carrega consigo como condição de sua existência. Busque
conhecer a sua história de vida, sua cultura e valores e
lembre-se que eles são seres humanos que sentem, sofrem,
sonham e desejam.
11
Quando você nos fala da sua preocupação sobre a
“inexistência da família como referencial de vida para as
crianças”, nos questionamos sobre o que você entende como
família?
Do nosso ponto de vista família significa algo muito
maior do que uma combinação de fatores biológicos específicos,
ainda que este possa ser o único significado para muitas
pessoas. Pensamos que, família é a existência de pessoas que,
de alguma forma, se esforçam e contribuem para o
desenvolvimento e o bem estar do outro, oferecendo aconchego,
carinho, conforto e momentos de alegrias. Pessoas nas quais
confiamos nossos segredos, choramos nossas dores e que
procuram nos ensinar valores e sentimentos.
Considerando este ponto de vista, nos perguntamos, será
que estes alunos não encontram referências em seus familiares?
O fato de estarem matriculados na escola, já não seria uma
indicação de que, em algum momento, alguém desta família olhou
por eles?
Cada pessoa só pode oferecer ao outro aquilo que “tem” e
será que estas famílias não oferecem o que tem? E o que você
pode oferecer para estes alunos enquanto educadora?
O mais importante é que você não se acomode diante das
situações de injustiça e sofrimento pelas quais passam as
crianças e faça sempre aquilo que estiver ao seu alcance.
Educadores não são mágicos e, portanto, não podem resolver
todos os problemas e desigualdades da humanidade, porém, podem
e devem de alguma forma, contribuir para uma educação que leve
o aluno à reflexão sobre o sentido da vida, fazendo-os pensar
em quem somos, por que agimos desta, ou de outra maneira, para
que fazemos tais coisas, quais objetivos queremos alcançar e o
que queremos ser.
Você pode aproveitar o ambiente escolar para propor
diálogos e reflexões, trazendo a realidade da comunidade para
a escola, discutindo seus aspectos positivos e negativos,
12
utilizando-se daquilo que os alunos vivenciam cotidianamente
como ferramenta de transformação.
Uma criança tem que ser conquistada pelo afeto e assim
ser despertada para o prazer de aprender para, então, ter
condições de escolher qual caminho irá seguir.
Não sabemos qual será o caminho que cada um dos seus
alunos irá seguir, pois todos nós temos liberdade para fazer
nossas opções. O que podemos fazer é realizar a nossa tarefa
da melhor forma possível, procurando desta forma influenciar
as escolhas de nossos alunos, mas lembrando que a escolha
sempre será algo particular.
Desse modo, é importante que o educador conheça a si
próprio, suas limitações e objetivos, para assim ter condições
de conhecer os seus alunos e por intermédio de uma conversa
franca conhecer suas angústias, aflições e realidade para,
então, poder ajudá-los de maneira adequada.
Esperamos ter contribuído em mais um dos seus
questionamentos.
Abaixo seguem indicação de alguns filmes que consideramos
que podem ser úteis para a sua prática.
Atenciosamente,
Estagiárias do Centro de Formação de Psicólogos.
Profª Responsável: Fabíola Freire
Sugestão de Filmes:
Documentário: Pro Dia Nascer Feliz (Brasil, 2005)
O documentário propõe um misto de sentimentos para o
professor, pois retrata o dia-a-dia das salas de aula e a
solidão de professores e alunos, que precisam ressignificar a
concepção de escola que carregam. Contudo, diante da falta de
valorização da escola, não sabem por onde começar.
Filme: Vem dançar (EUA, 2006)
13
Pierre Dulaine (Antonio Banderas) é um dançarino de salão
profissional, que se torna voluntário para dar aulas de dança
a alunos de castigo de uma escola pública de Nova York.
Dulaine tenta apresentar seus métodos clássicos, mas enfrenta
a resistência dos alunos, mais interessados em hip-hop. Para
levar a idéia adiante, ele precisa adaptar a sua metodologia.
Ao lado dos alunos, Dulaine cria um novo estilo de dança,
mesclando o clássico e o hip-hop. Quando, enfim, consegue a
confiança da turma, ele os motiva a aprimorar suas habilidades
para uma competição de dança de salão de muito prestígio da
cidade.
Filme: O Sorriso de Mona Lisa (EUA, 2003)
Em 1953, a recém-graduada Katherine Watson (Julia Roberts)
torna-se professora de História da Arte do respeitado e
conservador colégio Wellesley. Decidida a lutar contra normas
tradicionais que existem na sociedade e no próprio colégio, a
jovem professora inspira suas alunas, como Betty (Kirsten
Dunst) e Joan (Julia Stiles), a vencer seus desafios de vida.
Filme: A Voz do Coração (Les Choristes, França/ Suíça, 2004)
Ao receber a notícia do falecimento da mãe, o reconhecido
maestro Pierre Morhange (Jacques Perrin) volta para casa. Lá,
ele recorda sua infância por meio da leitura das páginas de um
diário mantido por seu antigo professor de música, Clément
Mathieu (Gérard Jugnot). Na década de 40, o pequeno Pierre
(Jean-Baptiste Maunier) é um menino rebelde, filho da mãe
solteira Violette (Marie Bunel). Ele freqüenta um internato
dirigido pelo inflexível Rachin (François Berléand), que
enfrenta dificuldades para manter a disciplina dos alunos
difíceis. Mas a chegada do professor Mathieu traz nova vida ao
lugar: ele organiza um coro que promove a descoberta do
talento musical de Pierre.
******
14
Carta nº 2: Sobre a criança pequena
Oi! Estou escrevendo ao Correio pois eu gostaria de algumas orientações sobre a
educação do meu filho.
Ele é um menino e tem 1 ano e 8 meses. É muito alegre, muito apegado a mim, canta,
brinca, gosta de música e dançar.
Tem muitos brinquedos, educativos, para idade dele e etc... Ele brinca com seus
brinquedos mais prefere brincar com objetos da casa que não são dele. Os brinquedos dele
perdem a graça logo. Ele não brinca sozinho, só na companhia de alguém, mais a preferência
dele se eu estiver por perto é de brincar comigo. Meu filho demonstra carinho com brinquedos
que representam animais como coelho, cachorrinho, bonecos, ele os carrega como bebês no
colo.
Meu filho começou a alguns dias a bater quando leva bronca, em mim, no pai, nos
avós e também quando brinca com outras crianças.
Ele não obedece a mim e nem ao pai, finge que não entende continua a aprontar a
“arte dele”.
Bom acho que consegui contar um pouquinho do meu filho e gostaria que vocês me
ajudassem com sugestões de como educá-lo? Como fazê-lo obedecer? E por que será que ele
está batendo nos outros?
Obrigado.
Setembro/07
Obs: Ele é filho único, eu trabalho e durante a semana ele fica com a minha mãe.
******
São Paulo, 14 de novembro de 2007.
Cara Mãe,
Você nos pede sugestões para educar seu filho. Educar
realmente é uma tarefa bem difícil. Aprendemos muito com as
15
experiências adquiridas, mas não existem regras pré-
estabelecidas para o sucesso deste processo.
Uma criança de 1 ano e 8 meses, como o seu filho,
freqüentemente vive um momento de bastante energia e
entusiasmo, e apreende por meio da exploração dos ambientes.
São seres ávidos por novidades e tudo é uma descoberta. É o
momento em que começam a andar e já podem se deslocar pela
casa, descobrindo um mundo, até então, não conhecido. Aprendem
a falar, começam a nos imitar e entendem o que falamos, mesmo
que nem sempre obedeçam.
Como uma mãe preocupada, que nos parece ser, você terá
sempre questionamentos, o que é saudável, afinal de contas,
você não é obrigada a saber tudo. Procurar orientações, nos
mostra o quanto busca ser uma boa mãe para seu filho. Contudo,
os conflitos fazem parte das dificuldades do processo que é
educar e crescer, portanto, você sempre terá “questões” com
seu filho nesse processo de criação. Cada criança é única e se
relaciona de um jeito único com o mundo e nesta descoberta do
mundo, agem das formas mais diversas.
Vamos fazer uma brincadeira com a palavra afeto para te
ajudar a entender o que queremos te dizer. Após o nascimento,
passamos de feto a afeto e a partir de então, somos afetados
por tudo o que há no mundo. Nas crianças, isso parece ficar
mais em evidência, pois querem saber tudo, tocar em tudo,
enfim conhecer o mundo, pois são seres em constantes
descobertas.
Parece que seu filho, ao brincar com bonecos, imita a
relação de vocês e evidencia afetividade. Na brincadeira a
criança descobre limites, expressa afetividade e também lida
com frustrações. O brincar é típico das crianças e através
dele podemos observar como elas expressam seus sentimentos.
O fato dele preferir sua presença nas brincadeiras também
nos mostra o quanto é forte a relação entre vocês. Que bom que
ele gosta de brincar com você, não é? Mas, é claro que você
16
não poderá fazer isso o tempo todo e, aos poucos, você
precisará explicar a ele que há momentos em que você pode e
momentos em que você não pode estar com ele. Lidar com a
frustração de não estar com a mãe o tempo todo a quem ele
tanto ama, também faz parte do processo de desenvolvimento
dele. Nada substitui o contato com a mãe, no entanto, o
convívio com outras crianças o ajudará a aprender a dividir,
entrar em contato com a diversidade etc. Favoreça as
brincadeiras com animais onde eles possam ser, inclusive
“companhia” para ele nas suas brincadeiras. A música também
não pode ser usada como um recurso para distraí-lo ou como
“companhia” para as brincadeiras? Já pensou também em colocá-
lo na escola?
As crianças entendem a linguagem das brincadeiras,
portanto é importante que existam espaço para tal e respeitar
o seu modo de brincar. Ao integrar-se nas brincadeiras com
ele, você pode se aproximar de suas vivências e experiências,
ensiná-lo algumas regras e mostrar a ele alguns limites
necessários que o faça entender que há momentos na brincadeira
que precisam ser interrompidos. Dessa forma, você poderá
ajudá-lo a lidar com suas frustrações. Afinal, nem sempre
fazemos todas as nossas vontades na vida, não é mesmo? Em
outras situações, a brincadeira pode ser utilizada como
recurso lúdico para ensiná-lo sobre seus deveres. Por exemplo,
chegou a hora de lhe dar banho, e é bem certo que ele não
queira naquele momento, afinal de contas tomar banho pode ser
menos prazeroso que brincar. Uma forma de ensiná-lo que chegou
a hora de tomar banho é vivenciar a brincadeira dele de maneira
que o banho também seja parte da brincadeira.
A educação é um processo longo e complexo. Até para nós
adultos é difícil obedecer o tempo todo, não é? Obedecer é,
muitas vezes, ter que fazer algo que não queremos no momento,
mas que nem sempre temos escolhas, seja por dever, respeito ou
obrigação. E é isso que a criança deve compreender o sentido
17
pelo qual ela deve obedecer. Ao explicarmos à criança, podemos
ganhar sua cooperação.
Qual o sentido que a autoridade dos pais deve ter para
ela? Afinal de contas, a criança precisa aprender a respeitar
o limite que os pais impõe. Ao longo deste processo, os pais e
cuidadores devem ser coerentes, sinceros, firmes e claros, o
tempo todo. A educação e os limites precisam fazer sentido
para que, aos poucos, a criança obedeça. Além disso, você
conta que é sua mãe que fica com ele enquanto você trabalha.
Neste aspecto, é importante que vocês estejam afinadas no modo
de educar, para serem coerentes nos limites que colocam, no
que permitem ou não que ele faça.
Você nos diz que os brinquedos dele “perdem a graça”
rapidamente, mas se olharmos de um outro modo podemos perceber
que o seu filho se interessa por coisas variáveis em um curto
espaço de tempo, pois é ávido por novidades. Quer dizer, será
que ele se desinteressa ou se interessa o tempo todo por algo
“novo”? A percepção da criança sobre o mundo, tempo, espaço,
corpo é muito diferente da dos adultos.
Algo que poderia ajudar, seria um rodízio de brinquedos a
disposição, isto é, guardar os brinquedos que “perderam a
graça” e após um tempo, oferecê-los novamente. Provavelmente
seu filho se interessará pelo brinquedo de novo.
Sobre seu questionamento a respeito da criança se
interessar por objetos que “não são seus”, preferindo os da
casa, provavelmente, seu filho ainda não consegue diferenciar
aquilo que é dele, do que é da casa. Imagine-se como uma
criança, observando as pessoas que ela mais ama, pegando com
frequência diversos objetos, tais como celular, vassoura, ou
panelas. Se você fosse criança, também não iria querer pegá-
los? É próprio das crianças se interessar por coisas do
cotidiano manuseadas pelos adultos, principalmente se forem
pelos adultos que elas amam e dos quais ela quer atenção e
carinho.
18
Às vezes, nós estamos tão cansados com o ritmo de vida que
levamos, que não conseguimos exercer a tolerância com as
crianças, que muitas vezes “erram” por fazer o que tem
vontade. Talvez, em outro momento, achássemos graça de suas
vontades. Educar é um exercício de paciência e muita
tolerância.
Será que você também não poderia deixá-lo brincar com
alguns objetos da casa, que não ofereçam riscos, tais como
utensílios domésticos ou até mesmo, providenciar brinquedos
que se assemelham com esses objetos, por exemplo, miniatura de
panelas, telefones de plástico, vassoura, vasilhas etc?
É verdade também que a criança pequena ainda não aceita
muitos “nãos”, então, sugerimos que os objetos que não se quer
que seu filho pegue, estejam fora do alcance da visão dele e
não apenas inacessíveis ao alcance dele. Assim, você terá que
dizer “não” menos vezes ao dia.
Em sua última pergunta, você questiona “porque será que
ele está batendo nos outros?”. Vamos imaginar uma cena: uma
criança bate em outra porque esta pegou o seu brinquedo. Às
vezes, o adulto pode olhar para esta situação e logo
repreender a criança e, até mesmo, fazer com que ela empreste,
mesmo que precise obrigá-la. Do ponto de vista da criança,
isto parecerá um absurdo, já que o brinquedo é dela. Mas do
ponto de vista do adulto, as crianças precisam aprender a
conviver e a dividir com outras crianças o mundo em que vivem.
Percebe que ambas as intenções são positivas? A criança bateu
na outra porque esta pegou seu brinquedo, pode ter batido por
querer proteger o brinquedo que tanto gosta ou para mostrar
que aquilo à desagradou. Mas, são os pais que devem mostrar-
lhe que bater não é correto e que precisam ensinar outra forma
de lidar com aquela situação que foi incômoda para a criança.
Quem sabe, ensinar a criança a dizer que não quer emprestar o
brinquedo ou a não deixar o brinquedo em qualquer lugar para
que outra criança pegue ou aprender também a pedir emprestado?
19
Para que você entenda o sentido de bater do seu filho é
preciso se aproximar do ponto de vista da criança. Para isso,
que tal observar a partir do ponto de vista dele quais os
motivos que o levam a bater? Qual é o significado deste
“bater” para seu filho? Você precisará compreender como ele
bate, o que ele quer quando bate e o que ele consegue quando
bate. Ele só bate “quando leva bronca”? Muitas vezes, o bater
é uma das possibilidades que a criança descobre quando percebe
que é eficaz para ela conseguir o que quer. É também um dos
primeiros atos da criança que lhe indica o seu poder. Por
isso, ela terá que, desde o início, ser orientada para
aprender a lidar com as questões referentes a sua potência e
seus limites. Mas, não se deve disputar força com seu filho;
com calma ajude-o a lidar com a frustração de não ter tudo o
que se quer.
Ao contrário do que se pensa sobre as crianças, elas são
muito espertas e inteligentes e logo conseguem identificar
“como” conseguir algo que tanto querem. Lembrando-se também
que pode ser que a criança possa ter visto ou assistido alguém
bater, pois elas aprendem rapidamente pela imitação e cabe aos
pais impor os limites que são difíceis da criança entender.
Por isso não se canse de repeti-los.
Esperamos ter ajudado na reflexão de seus questionamentos
e nos colocamos à disposição.
Estagiários do Centro de formação de psicólogos
Professora responsável: Fabíola Freire, CRP 06/65128.
20
Carta nº 3: Dúvidas de uma mãe: nervosismo, problemas na escola, limites,
responsabilidades, mimos etc
Tenho 2 filhos o Flávio de 10 anos, e a Mariana de 3 anos.
O Flávio ele anda nervoso, ele sempre foi um menino calmo, mas de uns dias para cá
ele anda agressivo.
Às vezes eu explico alguma coisa para ele, de repente ele está chorando.
E várias vezes ele chora porque ele acha que eu estou brigando com ele quero uma
ajuda para meu filho.
E também quero saber como educar melhor meus filhos, como falar com eles e o que
falar.
O Flávio tem notas baixas na escola como eu devo ajudar ele.
A Mariana é nervosa, como eu devo acalmá-la.
Como tirar o jeito mimado dela.
Como eu devo explicar ao Flávio sobre ter responsabilidades, e talvez fazer suas
obrigações, e muitas das vezes ele não obedece seus pais.
Obrigada pela ajuda, Nair.
******
Cara Nair,
A tarefa de educar filhos é mesmo difícil e, muitas
vezes, nos leva a pensar que estamos agindo de maneira errada.
Entretanto, só o fato de você ter nos enviado esta carta já
demonstra o quanto você ama e se preocupa com seus filhos e
que está buscando fazer o melhor para eles.
Na carta que nos enviou, você diz que o Flávio é um
menino calmo, entretanto, você nos diz que ultimamente tem se
mostrado "agressivo". O que a faz pensar assim? Esta
agressividade tem sido com todas as pessoas ou com alguém
específico? Em que situações o Flávio demonstra agressividade?
Onde ele está sendo agressivo, só em casa ou na escola e em
outros lugares também?
21
Procure observar com o que a agressividade dele está
relacionada. Você relata na carta que isto vem ocorrendo de
"uns dias para cá"; então, já perguntou a ele se algo mudou de
uns dias pra cá? Será que ele está passando por alguma
mudança?
Mudanças podem sinalizar que algo diferente está
acontecendo com ele. Uma atitude agressiva pode indicar que
algo não vai bem e é preciso tentar entender. São muitos os
motivos que podem estar relacionados a isso, a necessidade de
amor, carinho, atenção, ciúme dos irmãos, incompreensão,
dificuldades na escola, nos relacionamentos com amigos, entre
outros.
Pode ser que o Flávio esteja passando por um período
difícil ou pode estar tentando dizer algo que não consegue e
encontrou na agressividade uma forma de demonstrar isso.
Muitas vezes, atos agressivos, querem expressar outros
sentimentos como mágoa, insegurança ou tristeza.
Por isso, manter com ele conversas francas e sinceras
pode ser o melhor caminho para ajudá-lo.
Você nos diz na carta que o Flávio chora quando você
tenta lhe explicar algo, pois entende que você está brigando
com ele. Por que será que ele vê a conversa assim? Será que
ele entende como uma "briga" ou fica muito sensibilizado com o
que vocês conversam? Será que este choro já não é um modo de
ter os seus cuidados. De mobilizá-la? De dizer “preciso de
ajuda”?
E será que o modo como você está conversando tem deixado
claro o que você quer lhe dizer? Como é o “tom” destas
conversas?
Sugerimos que nestas conversas evite usar frases como
"você já é bem grandinho", "homem não chora", pois elas
desvalorizam o que ele está sentindo. Busque um clima mais
descontraído para que essas conversas transformem-se em um
“bate-papo”.
22
Você pode aproveitar para nos momentos que estão juntos,
fazer algo que ele goste como, por exemplo, dar uma volta de
bicicleta, sair para tomar sorvete, ver um filme, deitarem
juntos para um bate papo. Lembre-se que são os adultos que
ensinam as crianças os modos de dizer o que querem e sentem.
O Flávio tem 10 anos e pode estar vivendo um período
muito delicado; já não é tão pequeno, mas ainda não é visto,
por muitas pessoas, como “gente grande”. Quais serão as
angústias que ele tem vivido? Será que está relacionado com o
fato de ele tirar notas baixas na escola?
Quanto à escola, você menciona na carta que o Flávio vai
mal. Em quais matérias? Quais as dificuldades que ele tem?
Você costuma ajudá-lo em seus deveres escolares? Sugerimos que
você se dedique e disponibilize um tempo para ajudá-lo.
Procure também conversar com os professores dele para saber o
que está acontecendo, interesse-se pelos estudos, acompanhe
seus cadernos e o ajude com a lição. Quanto mais próxima você
estiver, mais poderá ajudá-lo a fazer com que se interesse
pelos estudos. Tente tornar esses momentos prazerosos e
divertidos e procure também elogiá-lo depois da lição; pode,
inclusive, ao acabá-las, fazer algo gostoso juntos.
Sobre a questão da obediência, precisamos pensar por que
é tão difícil obedecer? Talvez seja porque a obediência
envolve frustrações e, até mesmo, abrir mão do que se deseja.
Pode ser que o Flávio não aceite o que você quer que ele faça.
Por isso, apenas dizer "não", não é suficiente; devemos
explicar o sentido desta proibição. A obediência não pode
estar vinculada ao medo da punição e sim no amor e respeito
que se tem pelos pais.
É importante fazer as crianças sentirem que não são
apenas “receptores” de ordens, pois também podem contribuir
com o que se espera deles. Por exemplo, quando você pede a uma
criança maior para ajudar a mais nova nas tarefas escolares,
você pode também prometer à criança mais velha que a ajudará
23
com o dever quando a criança menor estiver na cama e a casa
estiver mais quieta. Isso ensina à criança que um ajuda o
outro.
Se o Flávio for uma criança desafiadora, isto não é ruim,
a princípio. Procure utilizar esta qualidade; afinal pode ser
muito bom ser um indivíduo questionador, curioso e criativo,
mas você precisa incentivá-lo a ter responsabilidades.
Entretanto, ensinar uma criança de 10 anos a ter
responsabilidade não é fácil, mas é necessário. Dê a ele,
responsabilidades e tarefas pertinentes à sua idade e
maturidade, o que será um excelente exercício para a vida
adulta.
Quanto à Mariana, você diz que ela é mimada. Como ela tem
conseguido pedir e ganhar o que quer? Quem a mima?
Você pode inserir limites a ela, pois a criança precisa
ser ensinada sobre o que é “certo e errado”, o que pode e o
que não pode, onde mexer e onde não. Mas dar limites não é
dizer “não” a tudo o que a criança faz; devemos sempre dizer a
criança também o que ela pode fazer. E quando você disser
“não”, seja firme e procure não voltar atrás, mesmo que ela
chore, pois caso você diga “não” e depois mude de idéia, ela
poderá ficar confusa e usará este artifício sempre que quiser
fazer algo que é proibido.
Às vezes, a criança não quer mesmo obedecer porque se
sente frustrada ou impedida de fazer o que gosta. Aí, chora,
grita, faz birra e o papel do adulto é ajudá-lo a aprender a
lidar com a frustração.
Não podemos lhe dar um manual para que você possa educar
melhor seus filhos, mesmo porque a Mariana é diferente do
Flávio e os dois são diferentes das outras crianças e, por
esta razão, são únicos e insubstituíveis. Não existem filhos
iguais, por isso não há receitas para educá-los. Procure estar
atenta e sensível para que você possa encontrar neles e com
eles as respostas que você procura. Os pais não precisam saber
24
tudo para que possam criar bem seus filhos, mas buscar
condições para que eles se desenvolvam e cresçam. E do que as
crianças realmente precisam é de amor.
Se quiser, volte a nos escrever. Se julgar necessário,
também pode procurar ajuda especializada, como por exemplo, em
nossa clinica de Psicologia.
Sugerimos também o livro TERAPIA PARA PAIS E MÃES, de
Janet Geirz, da Editora PAULUS.
Escreva-nos quando quiser.
Estagiários do Centro de formação de psicólogos
Profª responsável: Fabíola Freire
25
Carta nº4: “Atrapalhada” na educação dos filhos?
Meu nome é Laura tenho 55 anos sou casa á 12 anos, e atualmente só estou
trabalhando.
Tenho 3 filhos 1 de 12 anos Taís, o Bernardo 10 anos e a Iara 3 anos, estou
escrevendo porque confesso que estou um pouco atrapalhada na educação dos meus filhos.
Estou muito atrapalhada.
Os três são extremamente agitados e inquietos. Eu trabalho da 08:00hs às 18:00hs e
chego em casa +/- às 19:00h. Não sei se pela fato de estar muito ausente isso venha implicar
na educação deles.
O Bernardo de 10 anos não enxerga; perdeu a visão o ano passado, e teve várias
cirurgias a partir dos 3 anos de idade. Então por esse fato ocorrido o Bernardo ficou muito
agitado e um pouco agressivo.
A Taís esta indo muito mal na escola, e também está um pouco acima do peso. Não
sei mais o que conversar para melhorar. Também não tem muitos amigos; se acha feia.
A Iara já é mais fácil de contornar porque ainda tem 3 anos, é mais doce e
compreensiva.
Por favor, gostaria que me dessem uma orientação. Obrigado Tchau.
******
São Paulo, 27 de novembro de 2007.
“As coisas mais belas da vida, não podem ser vistas ou tocadas.
Elas precisam ser sentidas com o coração”.
(Hellen Keller)
Cara Laura,
Educar é realmente um grande desafio. Uma prática em que
convivemos diariamente com angústias e conflitos. Por isso, os
momentos de diálogos e ternura devem ter espaços privilegiados
nessa relação.
Na tarefa de educar, nos deparamos com diversas
situações; algumas nos trazem alegrias e realizações, outras
nos trazem dificuldades, preocupações e inquietações e, ainda,
26
outras que parecem ser maiores do que aquilo que podemos
suportar.
De qualquer maneira, educar sempre será uma experiência
muito complexa e seria ótimo se existisse um manual que
pudesse nos dizer o que fazer e como agir em todos os
momentos. Porém, na ausência deste manual, quando a tarefa de
educar começa a ficar muita pesada, pode ser o momento de
pedir ajuda, assim como você fez.
Ao ler sua carta parece-nos que você está vivenciando uma
situação muito delicada e de sofrimento, tanto para você como
para seus filhos. Desta forma, os questionamentos trazidos
merecem ser discutidos na tentativa de juntos pensarmos em
maneiras diferentes de agir frente às situações expostas. Por
isto, nesta primeira carta vamos enfatizar a situação
vivenciada pelo Bruno e, em breve, voltaremos a lhe escrever
falando sobre as suas demais questões.
Atualmente, por diversos motivos, muitas mulheres têm a
necessidade de trabalhar fora de casa, situação que se por um
lado contribui, também implica em momentos desagradáveis, tais
como, ficar muito tempo longe dos filhos e não poder
acompanhar de forma mais próxima seu crescimento e educação.
Nutrir os filhos afetivamente é fundamental, mas é uma
tarefa que exige tempo para estar com eles, requer também
qualidade no carinho dispensado. Por isto, no período em que
você puder estar com seus filhos, brinque e realizem
atividades que possibilitem a proximidade, confiança e
afetividade entre vocês.
Você nos disse que o Bernardo ficou agitado e
agressivo com a perda da visão aos 9 anos, sem contar com as
diversas cirurgias que foi submetido desde os 3 anos. Que
difícil deve ser essa experiência, não? Não é à toa que ele
mudou tanto, não é mesmo? Essa agressividade que você, agora,
percebe nele, acontece em que momentos, e de que maneira?
Seria esta agressividade um comportamento capaz de machucar o
27
próximo e a ele mesmo ou são atitudes que acontecem com o
objetivo de conseguir alguma coisa? Existem muitas formas de
compreender a agressividade, e você precisa tentar perceber o
que o Bernardo quer dizer quando age assim.
Quer seja por meio de brincadeiras, conversas ou outras
relações, você precisará auxiliá-lo a encontrar uma melhor
forma de falar o que sente para, então, poder ajudá-lo.
Certamente, muitas mudanças estão acontecendo na vida
dele e deve estar sendo muito difícil para você compreender o
que significam todas estas mudanças na vida do seu filho e o
que ela acarreta na vida de vocês.
Imagine como deve estar sendo complicado, principalmente,
para uma criança que, até então, conhecia o mundo através dos
olhos, ter de lidar com a perda de algo que nos é tão
fundamental. E ainda terá que aprender a conhecer o mundo de
outra forma. Nossa, mudanças que não são nada fáceis...
De maneira geral, os filhos tem as mesmas necessidades
de, amor, carinho, disciplina, educação, brincadeiras,
compreensão e paciência. Isso não será diferente com o
Bernardo que, neste momento, precisará de muito afeto para
reaprender a perceber o mundo através dos “olhos do coração”.
Como mãe preocupada que parece ser, a sua contribuição é
fundamental para ajudar seu filho a compreender o que está
acontecendo com ele e para que isto aconteça é importante que
ele não seja impedido de relacionar-se com as outras crianças.
Estes contatos lhe darão a oportunidade de desenvolver outras
habilidades, tais como a sua audição, olfato e tato. E com
todo seu corpo, poderá aprender a relacionar-se com o outro e
com o mundo. Incentive seu filho a estar envolvido na relação
com crianças e adultos, transmitindo-lhe a todo momento
segurança, calma e paciência, pois estes afetos serão
habilidades fundamentais para o desenvolvimento do Bernando.
Busque se aproximar desta nova situação que ele está
enfrentando. Tente se colocar no lugar dele e imagine como é
28
não enxergar. Pense, por exemplo, como deve ser nesta nova
condição ter, por exemplo, que aprender uma nova brincadeira.
Difícil esta situação, não é? Angústias e frustrações podem
surgir e farão parte do processo de crescimento do Bernardo
que, aos poucos e com auxílio das pessoas, poderá superar as
barreiras e limites impostos por sua nova condição.
Sugerimos que você se aproxime o máximo possível do seu
filho, observando o que ele é além das limitações que tem,
percebendo o que ele já sabe fazer e como este saber pode
contribuir para a sua independência e desenvolvimento. Aprenda
junto com ele de que maneira as coisas precisam ser faladas,
indicadas e sinalizadas. Ajude-o a traduzir e compreender seus
sentimentos, emoções, interesses, buscas e necessidades.
Ser mãe é, assim, essa tarefa que exige muito amor,
compreensão e afetividade para compreender os conflitos e as
experiências vivenciadas pelos filhos. Dificuldades, sorrisos
e lágrimas, de alguma forma, também estão inseridas neste
processo. Por isso, é fundamental você estar sempre sensível e
constantemente se preparando para ser o socorro presente nos
momentos solicitados.
Ser mãe é um eterno aprendizado que acontece na tentativa
de sempre fazer o melhor para quem amamos – nossos filhos.
Muitas lutas, vitórias, derrotas e surpresas ainda virão. Por
isto, não economize amor e paciência e, principalmente se
desprenda dos medos e dos preconceitos.
Contudo, às vezes, essa tarefa torna-se pesada e quando
sentir que é necessário, não deixe de procurar ajuda em
instituições especializadas. Se quiser, também pode voltar a
nos escrever.
Em breve, voltaremos a lhe escrever para falar sobre a
Taís, a Iara e suas demais questões.
Encaminhamos, abaixo, uma listagem com indicações de
serviços, livros e filmes que podem contribuir com seus
questionamentos.
29
Atenciosamente,
Estagiários do Centro de formação de psicólogos
Profª responsável: Fabíola Freire
Caso queira procurar ajuda especializada:
Laramara - Associação Brasileira de Assistência ao
deficiente visual
Centro de referência nacional para habilitação,
reabilitação e inclusão da pessoa com deficiência visual
Rua Conselheiro Brotero 338 - CEP 01154-000 -São Paulo -
SP
Fone [11] 3660.6400 Fax[11] 3662.0551
Filmes:
A pessoa é para o que nasce - Três irmãs cegas. Unidas
por esta incomum peripécia do destino, Regina, Maria e
Conceição viveram toda sua vida cantando e tocando ganzá em
troca de esmolas nas cidades e feiras do Nordeste do Brasil. O
filme acompanha os afazeres cotidianos destas mulheres e
revela suas curiosas estratégias de sobrevivência, das quais
participam parentes e vizinhos. Acompanha também, numa
reviravolta inesperada, o efeito do cinema na vida destas
mulheres, transformando-as em celebridades.
Janelas da Alma: Dezenove pessoas com diferentes graus de
deficiência visual, da miopia discreta à cegueira total, falam
como se vêem, como vêem os outros e como percebem o mundo. O
escritor e prêmio Nobel José Saramago, o músico Hermeto
Paschoal, o cineasta Wim Wenders, o fotógrafo cego franco-
esloveno Evgen Bavcar, o neurologista Oliver Sacks, a atriz
Marieta Severo, o vereador cego Arnaldo Godoy, entre outros,
fazem revelações pessoais e inesperadas sobre vários aspectos
relativos à visão. Uma obra prima sobre a questão do olhar!
30
Hellen Keller - O Milagre Continua: Baseado na vida real
de Helen Keller, o filme conta a comovente história de Anne
Sullivan, uma persistente professora cuja maior luta foi a de
ajudar essa menina cega e surda a adaptar-se ao mundo que a
rodeava. O inevitável confronto com os pais de Helen, que
sempre sentiram pena da filha, mimando-a, sem nunca lhe terem
ensinado algo concreto, é abordado durante o filme.
Ray: Cinebiografia do músico Ray Charles, que morreu em
junho de 2004. Nascido em uma cidade pobre no Estado norte-
americano da Georgia, Ray Charles ficou cego na infância.
Inspirado pela mãe, que sempre o estimulou a ter uma vida
independente, Ray encontrou sua vocação atrás de um piano.
Durante sua vida, ficou marcado como um dos principais
artistas da música norte-americana.
Além dos Meus Olhos: Após alguns anos de casados, James e
Ethel, que são cegos, descobrem que não podem ter filhos.
Quando decidem adotar uma criança, eles têm que enfrentar uma
série de barreiras legais - e provar que são capazes de cuidar
de alguém.
Perfume de mulher: Um tenente-coronel cego viaja para
Nova York com um jovem acompanhante, com quem resolve ter um
final de semana inesquecível antes de morrer. Porém, na viagem
ele começa a se interessar pelos problemas do jovem,
esquecendo um pouco sua amarga infelicidade. É uma das
melhores interpretações de cegos já vistas no cinema. Porém,
não deve ser visto junto com crianças pequenas.
LIVROS:
KELLER, Hellen. A História de Minha Vida. Editora:
Antroposófica
31
Atingida por uma enfermidade aos dezenove meses de idade,
Helen Keller ficou cega, surda e muda para o resto da vida.
Com a inestimável ajuda educacional de Annie Sullivan, sua
professora particular, desde os sete anos, Helen chegou à
universidade e tornou-se um exemplo vivo de perseverança e
entusiasmo pela vida, passando a dar seu testemunho em prol
dos menos dotados dos sentidos.
LITERATURA PARA CRIANÇAS:
SECCO, Patrícia Engel A felicidade das borboletas - Série
Amigos Especiais. São Paulo: Melhoramentos, 2004, p.15.
Marcela é uma menina especial que a cada dia desenvolve
novas habilidades. Ela conta como é enxergar a felicidade com
o coração.
******
Parte II:
São Paulo, 5 de Dezembro de 2007.
Cara Laura,
Conforme combinado, estamos retomando nosso contato com o
objetivo de ajudá-la a pensar sobre as demais questões
trazidas em sua carta.
Vamos iniciar relembrando um pouco os seus
questionamentos. Em sua carta, você relata que os seus três
filhos são agitados e inquietos. De maneira geral, crianças
gostam de fazer muitas coisas ao mesmo tempo, parecendo um
brinquedo que nunca acaba a pilha, correm, pulam, dançam,
cantam, desenham, inventam, experimentam, observam e fazem
tantas outras coisas, ao mesmo tempo, solicitam, carinho,
amor, atenção, respeito e companhia dos pais. Com as
responsabilidades e obrigações do cotidiano será que muitas
vezes não somos nós adultos, que estamos tão cansados que não
conseguimos tolerar situações que são típicas das crianças?
32
Em sua carta, você nos diz que a Taís, que está com doze
anos, está indo mal na escola e que você percebe que ela está
acima do peso, não tem muitos amigos e se acha feia. Quanto
sofrimento, não é mesmo? É preciso se aproximar da Taís para
perceber o que está acontecendo. e assim poder ajudá-la. Nós
não temos uma receita pronta para te dar, pois cada criança é
diferente de outra e não há fórmulas que sirvam a todas. Por
isso, precisamos construir um caminho que reconheça sua
pessoalidade para tentarmos ajudá-la de maneira adequada.
Para isso, é preciso sensibilidade para buscar perceber e
sentir o mundo com os “olhos” da Taís. Nós, adultos em geral,
já nos esquecemos de como é ser criança, para isso é
necessário uma observação atenta ao modo de ser da Taís, além
de podermos recorrer às nossas memórias da infância. A
imaginação também nos ajuda a nos aproximarmos das crianças e
a perceber o modo como se relacionam com o mundo.
Mãe, como você percebe a relação da Taís com os esportes?
Será que ela não está tendo um estilo de vida com poucas
atividades físicas? Muitas crianças, nos dias atuais, deixam
de brincar e praticar esportes para fazer atividades que
exigem menos energia, como jogar vídeo game e assistir
televisão, atividades que acabam contribuindo para o aumento
do peso. Então, que tal descobrir com a Taís uma atividade que
a interesse? Ela pode praticar um esporte, artes marciais ou
uma dança. Essa pode ser uma forma, inclusive, de ajudá-la a
se relacionar com outras pessoas.
Uma outra questão em que pensamos é a situação exposta em
sua carta, sobre seu filho Bernardo. De que forma será, que a
Taís estará vivenciando toda esta mudança na relação familiar?
Como ela está compreendendo todo este processo que está
acontecendo com o Bernardo?
A Taís está com 12 anos, está crescendo, tendo novas
experiências e conhecendo o mundo. Por isso, sugerimos que
você estabeleça com ela uma conversa sincera, explique os
33
sentidos de algumas mudanças, converse sobre os desejos e
sonhos dela, enfim, compartilhe de suas questões e conflitos.
Você consegue lembrar desde quando a Taís começou a ganhar
peso? Converse sobre as mudanças corporais que podem estar
acontecendo com ela. Ganhar alguns quilos, junto com o
crescimento dos seios e das formas femininas, é esperado nas
mulheres e tudo isto faz parte do desenvolvimento que
transforma o corpo de uma menina.
Ajude a Taís a se cuidar, se sentir mais bonita e a
perceber as mudanças corporais de forma positiva, o que não a
impede de ir, desde já, aprendendo a se alimentar de modo
saudável e, se você achar necessário procure ajuda nutricional
para uma reeducação alimentar. A clínica de Nutrição desta
universidade oferece este serviço. É tarefa dos pais auxiliar
os filhos a desenvolver bons hábitos alimentares, incentivar a
prática de exercícios físicos e estar atento ao que lhes
acontece.
Nesta idade, algumas meninas costumam começar a se
preocupar com a beleza, tornam-se vaidosas e isto, às vezes,
gera muita angústia e sofrimento. É fundamental que você fique
atenta e perceba de que maneira a Taís está lidando com as
suas, emoções e frustrações, e para isto é preciso muita
sensibilidade para tentar conhecer e amenizar o sofrimento que
as novas emoções podem trazer. Muitas vezes, as questões
afetivas, as amizades, a paquera e, até mesmo, a descoberta de
novos sentimentos, podem ser responsáveis por modificar a
rotina de muitas meninas.
Mostre à Taís o quanto ela é especial para você e trate
toda esta situação de forma amorosa e carinhosa, procurando
orientá-la sem constrangimentos. Deixe claro o que é bom para
a saúde dela e o quanto se preocupa com ela, mas somente de
forma afetuosa terá condições de ajudá-la.
Como você pode perceber, muitas coisas podem estar
acontecendo com a Taís, por isto a melhor atitude é se
34
aproximar de sua filha, respeitando seu ritmo e deixando-a
tomar a iniciativa de conversar. Favoreça momentos e situações
acolhedoras para sua filha. Procure ter autoridade sem ser
autoritária, transmitindo valores, segurança e dedicando
respeito e cordialidade.
Quanto à Iara, você mesmo nos diz que ela é mais doce e
compreensiva, mas ressaltamos que independente do modo dela
ser é importante que você dê a ela também muito carinho e
atenção.
Esperamos ter contribuído com os seus questionamentos.
Abaixo, estamos encaminhando uma relação de serviços, filmes e
livros que poderão ajudar tanto você, como a Taís. E, se
sentir necessidade, poderá voltar a nos escrever, em qualquer
momento.
Atenciosamente,
Estagiários do Centro de formação de psicólogos
Profª responsável: Fabíola Freire
Clinica de Nutrição (a referência será omitida para não
identificar a instituição)
Dicas de Filme:
ABC do Amor: A cidade de Nova York é um local romântico, até
quando você tem 10 anos e está se apaixonando pela primeira
vez na vida. É isso que o jovem Gabe descobre ao lado de sua
colega de escola Rosemary. Nesta comédia romântica, o amor é
visto pelo olhar de duas crianças.
Meu Primeiro Amor: Uma garota de 11 anos é obcecada com a
morte, pois sua mãe morreu e seu pai é um agente funerário que
não lhe dá a devida atenção. Ela é apaixonada por seu
professor de inglês, e no verão faz parte de uma classe de
poesia só para impressioná-lo. Paralelamente, é muito amiga de
35
um garoto com quem viverá grandes aventuras. Um filme
emocionante marcado pelo amor, amizade, alegrias e tristezas
na vida de duas crianças.
Reflexos da Amizade: Para se acertar com a esposa e o filho de
13 anos, o artista plástico Tom Warshaw, que leva uma vida
boêmia em Paris, volta aos seus 13 anos no Greenwich Village,
em Nova York. Ele rememora a depressão da mãe, a amizade, o
primeiro amor e a tragédia que mudou sua vida. E lembra da
misteriosa presidiária da casa de detenção do bairro, que
usava um espelho e muita sensibilidade para orientá-lo em suas
decisões. Reflexos da Amizade é uma tocante e divertida viagem
de acerto de contas com o passado... e com o futuro.
O Diário de Bridget Jones: Bridget Jones tem 30 e poucos anos,
é solteira, mora em Londres, fuma e sempre acha que está acima
do peso. Para o novo ano, ela fez algumas resoluções. Uma
delas é escrever um diário, onde anotará suas aventuras e
desventuras cotidianas: trabalho, pais, amigos, homens, sexo.
Outra é tomar controle de sua vida. Uma terceira resolução é
encontrar o homem certo. Com seu gosto por aventuras e suas
opiniões sobre todo e qualquer assunto, seu diário se torna
divertido e provocante. Em meio ao caos, Bridget sobrevive de
forma divertida e romântica ao seu dilema amoroso entre Daniel
Cleaver (Hugh Grant) e Mark Darcy (Colin Firth).
Dica de Leitura:
O Planeta Eu: conversando sobre sexo, de Liliana Iacocca
e Michele Iacocca. Editora Àtica, 2002.
36
Carta nº 5: Carta-exercício: Como tirar a chupeta?
79
Minha filha tem 3 anos e ainda não parou de chupar chupeta, e ultimamente também
tem chupado seu dedo. Não sei mais o que fazer, pois já ameacei, dei presente, bati, pus de
castigo, conversei,, enfim, já fiz de tudo. O que mais devo fazer?
São Paulo, 21 de Novembro de 2007.
Prezada mãe,
Antes de começar a fazer reflexões ou até mesmo indicar
possibilidades, é primordial esclarecer alguns pontos que
passam desapercebidos e que vale a pena ressaltar. A chupeta,
assim como chupar os dedos, possuem significados e
simbolismos, ou seja, elas são as manifestações vivas da
existência de um ser que interage e se expressa no mundo.
Desta forma, será, então, que quando uma criança faz isso
não seria uma valiosa oportunidade para você tentar
compreender o que significa este ato, ou melhor, esta
manifestação?
O que estas atitudes perante a vida representam para a
criança? A chupeta em seus aspectos físicos e gerais foi
originalmente criada para ter a função de simular a sucção no
peito da mãe, mas será que o fato de chupar chupetas e dedos
só significa este ato meramente mecânico e instintivo de
sobrevivência? Nós gostaríamos de pensar e expor isto de uma
forma diferente para você.
Poderíamos dizer-lhe que esta atitude ou vivência da
criança no mundo pode significar muito mais do que isto; ela
pode, por exemplo, relembrar ou imaginar o seu afeto, calor,
seu cheiro, sua sensação de proteção, um reconforto na solidão
ou até mesmo um gesto para pedir sua atenção. Tudo isto é
possível, você não acha?
79
Esta carta-exercício foi respondida por dois grupos de alunos. As duas versões de cartas-respostas seguem
abaixo.
37
Peço-lhe que faça uma pequena reflexão sobre tirar a
chupeta. Se a chupeta simboliza tudo que dissemos acima, você
gostaria que quando estivesse com uma foto de uma pessoa que
lhe proporcionou muito afeto e carinho e quando estivesse
vivenciando isto, este objeto fosse arrancado, de repente, de
suas mãos? Imaginamos que não gostaria muito, não é verdade?
Talvez, você até mesmo começasse a chorar.
Todos nós temos objetos que nos remetem a coisas boas e
ruins, coisas que fazem parte de nossa vida. Além disto, mãe,
a vida pessoal começa imediatamente desde o nascimento, desta
maneira a chupeta já é parte da vida desta criança.
Só para se ter uma idéia um pouco afastada de nossa
realidade, mas que serve como reflexão. Os filhotinhos de cães
e gatos também chupam pedaços de panos e outros objetos e será
que podemos afirmar que isto não passa de meros reflexos e
apetites instintivos dos animais? Ou será que iguais a nós
seres humanos, racionais e inteligentes, estes objetos já não
significam algo na vida destes animais?
Chupeta para nós adultos, por estarmos já em outra
vivência distante da vivência infantil pode representar apenas
um simples objeto, mas insistimos em sugerir que, para
criança, a chupeta faz parte de seu mundo.
E não há um tempo pré-determinado para nos desfazermos
dos objetos que fazem parte da nossa vida, pelos quais temos
afetos, lembranças e que podem até nos proporcionar segurança,
distração e alegrias principalmente nas horas difíceis.
Crianças, ao contrário dos ditos populares, não são seres
desprovidos de imaginação, maldades, pouca inteligência etc.
Então, podemos afirmar que a chupeta não apareceu na vida dela
num ato mágico, e se para ela é um objeto tão precioso, ela
não largará de uma hora para outra.
Além disto pode até ser que quando você briga, chama-lhe
a atenção e a castigue, ela tente substituí-la com alguma
coisa, por exemplo, o dedo o qual você também cita, pois ele é
38
parte de nosso corpo e, portanto de nossa vida e imaginação.
Seria uma solução bastante fértil não acha? O dedo pode ser
colocado e retirado da boca rapidamente, e ele não tem como
retirá-lo!
Espero que estas palavras possam fazer com que reflita e
que entenda que cada ser é único, e que nem gêmeos
univitelinos possuem traços emocionais semelhantes, por isso
não há um tempo determinado para deixarmos certas formas de
agir no mundo. Tente então com amor e paciência entender qual
é para ela o significado da chupeta e do dedo na boca e talvez
olhando por este lado com muita paciência e afeto quando menos
esperar ela não esqueça a chupeta e o dedo na boca, pois a
paciência e o afeto são uma das melhores virtudes humanas.
Mesmo assim, como não se existem regras, é importante por
uma questão de cuidado materno verificar se estas atitudes não
estão prejudicando o desenvolvimento bucal, odontológico e até
mesmo possam originar alguma patologia, ou seja, uma doença.
Por isto, na dúvida procure um profissional da área de
odontologia ou pediatria e verifique até mesmo se esta chupeta
é a mais indicada para sua idade e compleição física.
Esperamos que com esta carta termos lhe fornecido
possibilidades de compreender sua dúvida.
Estagiário do Centro de Formação de Psicólogos
******
Prezada Mãe,
Freqüentemente percebemos que crianças chupam chupeta,
pois isto parece ser algo muito importante para elas.
A criança conhece o mundo pelas atividades que tem com
ele. E pode ser que a chupeta e o dedo sejam algo muito
reconfortante e, inclusive, similar ao seio da mãe. As
chupetas e as mamadeiras estão entre os acessórios mais
procurados pelos pais para as crianças: rosinhas, azuis,
amarelinhas, com bichinhos diversos ou modelos diferentes.
Eles percebem que há ali algo que a satisfaz. Porém, é preciso
39
cuidado na hora de adquirir estes itens, pois temos que
procurar o “melhor” material para a dentição da criança que
está em formação. Há alguns modelos que são indicados pelos
dentistas e outros que são prejudiciais ao desenvolvimento da
dentição da criança.
Em geral, os pais geralmente recorrem à chupeta, pois
isso é um modo de acalmá-la. Percebemos que é algo que ela
gosta. Mas o que será que essa chupeta significa para sua
filhinha? Então que tal tentar, se colocar no lugar dela? O
que está acontecendo com ela? Tente olhar com o olhar da
criança. Será que é o momento dela parar de chupar o dedo ou
mesmo a chupeta? Será que existe um tempo certo para largar a
chupeta? A criança tem um tempo próprio e precisamos respeitá-
lo para que, no momento, em que estiver preparada possa deixar
de usar a chupeta.
Espero que através desta carta, possamos ter lhe ajudado,
e que possa compreender que talvez, a sua filha ainda não
esteja no momento de retirar a chupeta, pois pode ser que ela
precise de um tempo próprio, e o fato de retirar a sua chupeta
possa até mesmo prejudicá-la mais do que retirá-la.
******
40
Carta nº 6: Como lidar com a separação dos pais?
Acabei de me separar e meu filho de 2 anos pergunta o tempo todo sobre o pai. Disse
que foi viajar. Não sei se é bom falar a verdade e até que ponto isso é prejudicial para ele.
Prezada mãe,
A separação é um momento que merece ser tratado com
cuidado, pois envolve sentimento e a sensação da perda.Sua
separação ainda está muito recente e a figura de seu marido
ainda está muito presente para seu filho, já que ele pergunta
o tempo todo pelo pai.
Embora na vida a gente trace planos, tais como casamento
a longo prazo, por exemplo, não há garantias que eles ocorram
conforme planejado. O casal pode separar-se, mas não deve se
separar dos filhos. O que acontece, em muitos casos, é que o
pai assuma a parte legal (pagamento de pensão alimentícia) e a
mãe fique com a incumbência de educar a criança e os
desdobramentos daí decorrentes, embora isso não seja uma
regra.
Para a criança, não importam as razões que levaram à
separação ou quem está certo ou errado. Assim que acontece uma
separação, leva algum tempo para a criança entender que não
perdeu os pais. O sentimento de seu filho deve ser respeitado
e, independente dos motivos que levaram à sua separação, seu
filho pergunta pelo pai. Veja que uma criança não vê as
situações com o olhar do adulto e para ele essa separação está
difícil.
Tanto a criança quanto o adulto passam por situações
imprevisíveis, conflitivas e de insegurança, que lhe trazem
sofrimentos. Diante dessa situação vivida é importante dizer a
verdade a ele. As crianças percebem quando as coisas não estão
indo bem, pois estão sempre atentas ao que se passa à sua
volta, além de serem muito curiosas.
41
Pela fala de seu filho, percebo que seu ex-marido é
importante para ele e isso independe se o casal está junto ou
separado. A forma como a criança vivenciará a separação dos
pais, dependerá de como a situação foi comunicada à ela,
ressaltando que a criança tem o direito de saber a verdade
sobre o que ocorreu, o que reforçará ainda mais os laços
afetivos entre você e seu filho, obtendo com isso uma relação
baseada em amor, verdade e confiança.
Sugiro que assista ao filme “Olha quem está falando”, que
ilustra essa situação de forma leve e bem humorada. Outro
filme interessante, que aborda o mesmo assunto é “Uma babá
quase perfeita”. Espero que possa ter ajudado você a refletir
sobre essa nova realidade de sua vida. Qualquer dúvida,
estamos à disposição.
42
Carta nº 7: Enurese e homossexualismo: um outro olhar
Meu nome é Mirela e gostaria de pedir uma orientação para ajudar na educação de 2
sobrinhos, filhos do meu irmão caçula. O meu irmão chama-se Lauro e tem 3 filhos: Vitor 14
anos/ Tiago 7 anos e Cláudio 3 anos.
O Tiago nos preocupa porque voltou a fazer xixi na cama, quando a mãe engravidou
do Cláudio; na época ele já tinha 3 anos. Já tentamos várias formas para solucionar o
problema, inclusive dando mais atenção a ele do que p/ o caçula e até agora não obtivemos
resultado. Ele fica algumas noites s/ fazer xixi e depois volta a fazer. Por isso gostaria de
uma orientação p/ poder ajudá-lo. O Cláudio nos preocupa porque se interessa por todos os
objetos que é feminino, bolsa, sapato, maquiagem, acessórios bijuterias, além de bonecas e
também rebola e adora fazer papel de mulher.
Será que isso é um reflexo da opção sexual dele futuramente?
******
São Paulo, 05 de dezembro de 2007.
Cara Tia,
Você nos pede orientação para ajudar na educação de seus
sobrinhos. Que bom que você se preocupa com eles! É
gratificante saber que um adulto se preocupa com as crianças.
Sua primeira pergunta é sobre seu sobrinho Tiago de 7
anos, a respeito dele fazer xixi na cama. Caso vocês ainda não
tenham procurado auxílio médico é importante obter uma
avaliação de um especialista, pois a incontinência urinária,
ou enurese com também é chamada, pode estar relacionada a
infecções urinárias ou a outros problemas da bexiga. No
entanto, também existem diversas pesquisas que dizem que este
fenômeno está intimamente relacionado a aspectos psicológicos.
Você nos relata que este comportamento parece estar
relacionado à chegada do irmão mais novo. Realmente, a chegada
de um irmãozinho pode ser muito difícil para uma criança, traz
muito sofrimento e medo. Pode ser que ele tenha se sentido
43
ameaçado de perder o afeto dos pais ou o lugar dele na casa;
por isso, é importante que se converse com os pais para que
eles possam se aproximar do Tiago de forma a lhe assegurar que
ele não será substituído. Esse não é um trabalho fácil e não
será “apenas” dando mais atenção que a situação se resolverá.
Será necessário tempo e todo um modo de cuidado afetuoso que,
aos poucos, ajudará a criança a se sentir segura novamente.
É certo que há muito sofrimento envolvendo o “molhar” a
cama. Quem já passou por esta experiência sabe o quanto é
constrangedor e sofre-se com as conseqüências disso. A criança
acorda molhada, os lençóis e colchão ficam com um cheiro ruim
e, normalmente, os pais perdem a paciência com o passar do
tempo, pois realmente é uma situação difícil que envolve a
mobilização e o trabalho de outros membros da família, como
por exemplo, para colocar o colchão ao sol, lavar os lençóis,
trocar as roupas de dormir da criança etc.
Crianças pequenas ainda não têm o completo
desenvolvimento da micção, ação responsável pela coordenação
dos órgãos do sistema urinário, ou seja, o controle de
estímulos que sentimos no corpo dependerão de um aprendizado.
O descontrole pode ocorrer na infância ou nos adultos, em
situações como por exemplo, quando sentimos medo ou quando
rimos muito. O medo ou o riso, muitas vezes, faz com que
percamos o controle da nossa musculatura, não é mesmo? Fazer
xixi na cama pode ser uma forma como o corpo percebe o medo.
Será que seu sobrinho tem sentido muito medo?
Portanto, para ajudá-lo, você e os pais deverão se
aproximar do problema e estar junto da criança para entender o
ponto de vista dela. Perguntem-se pelo sentido dele fazer xixi
na cama, pois isso nos diz algo dele. Seu sobrinho pode estar
passando por uma dificuldade e seu corpo pode estar
expressando esse descontrole. Inclusive, ajudar a criança que
não deixou de fazer xixi na cama a não se sentir mal consigo
mesma, auxilia no seu desenvolvimento, pois a criança tem
44
vergonha de fazer xixi na cama e, por isso, vai perdendo a
confiança em si mesma. Portanto, não deixem que isso aconteça!
Conversem francamente sobre o assunto com ele, sem julgá-
lo, criticá-lo ou puni-lo por isso. Evitem também tentar
encontrar explicações lógicas, como por exemplo, dizer que ele
só faz isso por causa da chegada do irmão mais novo, que está
com ciúmes etc. O xixi na cama não tem só o sentido de chamar
a atenção; ao contrário, é uma atitude que fala sobre a forma
como ele está enfrentando uma situação.
Os familiares precisam ter consciência de que a criança
não faz xixi na cama porque quer; ao contrário, sofre com isso
e precisa de ajuda. A família tem um papel importante na forma
com que a criança se relaciona com o mundo e devem saber que
as cobranças, humilhações, comparações e a perda da paciência,
o fazem se sentir culpado e só irão agravar e estender a sua
dificuldade.
A criança precisa ser protegida, cuidada, ensinada e
compreendida. Vocês já devem ter percebido que repreendê-la em
nada lhe auxilia, ao contrário, pode torná-la insegura,
medrosa e constantemente insatisfeita consigo mesma. O
importante em qualquer situação é assegurar-lhe o amor, para
que se sinta único e insubstituível. O papel do adulto é
ensinar a criança transmitindo-lhes as experiências que eles
já tem; assim se responsabilizam com amor pelos filhos e por
seus conflitos.
A sua outra questão é com relação ao Claúdio que você diz
se interessar por objetos femininos, tais como bolsa, sapato,
maquiagem, além de gostar de bonecas, adorar fazer papel de
mulher e também rebola. A sua pergunta é “será que isso é um
reflexo da opção sexual dele futuramente?”.
Essa é uma questão delicada, pois envolve nossas crenças
e valores acerca da sexualidade. Envolve o modo como fizemos a
escolha de nossa sexualidade, a educação que tivemos e as
nossas crenças pessoais. Entretanto, a psicologia acredita que
45
as escolhas que constituem nosso modo de ser são feitas ao
longo de toda a vida.
O Cláudio tem apenas três anos e está numa incrível
descoberta do mundo e das coisas. Primeiramente, precisamos
questionar o que é um brinquedo de menina e o que é brinquedo
de menino? Para as crianças, não existe essa separação de
brinquedos que são de meninos e ou de meninas. Essa
classificação é cultural e varia em cada sociedade. Muitas
vezes, os meninos, inclusive, preferem os “objetos femininos”
por serem mais detalhados, coloridos, perfumados e até mais
interessantes que os brinquedos “de menino” que ele possui.
Pode ser que ele esteja imitando a mãe ou as figuras femininas
com as quais ele tem contato e isto também é muito comum entre
as crianças. Às vezes, a criança tem curiosidade em saber como
é um determinado objeto e, ao manipula-lo, se desinteressa.
Proibir pode aumentar ainda mais a curiosidade da criança.
Em nossa sociedade, o gosto varia de acordo com os
hábitos e a religiosidade de cada família. Em geral, se
acredita que os meninos gostam de carrinhos, as meninas de
bonecas e ensina-se que o homem não chora e não brinca com as
mesmas coisas que as meninas. Nestas famílias, quem muda esta
“regra” recebe rótulos como “bixinha”, “mariquinha”, entre
outros. Contudo, em outras famílias, é permitido brincadeiras
com todos os tipos de objetos, inclusive os tidos como
“femininos” pelos meninos e os tidos como “masculinos” pelas
meninas e, nem por isso, essas crianças já estão fazendo sua
futura opção sexual. A afirmação de nossa sexualidade, seja da
masculinidade ou da feminilidade, não pode se restringir aos
brinquedos que temos.
Pode ser muito bom também se ele puder brincar com os
irmãos mais velhos ou com o pai. Essa pode ser uma tentativa
de mostrar a ele que existem outras brincadeiras interessantes
e divertidas. Mas, isto não quer dizer que ele não possa
brincar com meninas ou com a mãe e pode ser, inclusive, que
46
mesmo que ele goste mais da companhia das meninas, não esteja
escolhendo ser homossexual.
Ressaltamos ainda que não é bom ficar rotulando o C. como
“afeminado”, “gay”, entre outros apelidos que possam surgir,
pois isso pode magoá-lo ou se tornar uma espécie de “profecia
auto-realizadora”. A sexualidade é um aspecto importante na
vida de cada um e não será bom para ele se a sua já se iniciar
desta forma. Sugerimos que continuem dando muito amor e
carinho a ele e, principalmente, tenham diálogos francos e
sinceros. Mas, lembrem-se sempre que a criança percebe o mundo
de forma diferente do adulto; portanto, a linguagem dela é bem
diferente da nossa.
Esperamos ter ajudado na reflexão de seus
questionamentos. Nos colocamos à disposição se quiser voltar a
escrever.
Estagiários do Centro de formação de psicólogos
Profª responsável: Fabíola Freire
Outras sugestões:
Filme:
Billy Elliot: A vida do garoto de onze anos Billy Elliot,
filho de um mineiro de carvão do norte da Inglaterra, muda
para sempre quando ele tropeça em uma aula de ballet durante
sua lição semanal de boxe. Uma história comovente e que nos
faz repensar sobre nossos preconceitos.
******
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Carta nº8: No mundo da lua?
Eu gostaria de saber que devo fazer para trazer minha filha para o mundo real, pois
era parece que só vive no mundo da rua todos que conversa com ela fala que ela não leva em
conta à conversa.
Desde os 05 anos minha filha [...]
80
é uma criança desligada para tudo só pensa em
brincar o desenhar o tempo todo coisa sem importância, como florzinha por todo seu caderno,
o monte muito.
Mas isso não é de agora desde seu primeiro dia de aula ela é assim, ou seja, desde a
primeira série até a quinta série que está hoje com 11 anos, e o pior é que sempre deixa o
caderno na escola, assim fala que fica com a professora pra vê à lição, ou seja, corrigir, mas
para mim isso não é normal porque todos os dias é sempre a mesma coisa, e também era
nunca, nunca consegue ficar com um caderno, lápis, borracha e apontador por mais de uma
semana, perde tudo ou rasga.
Sua professora fala que ela nunca termina uma lição: e é verdade, pois sempre olho
seu caderno, e ela diz para mim é que não teve tempo.
Sua professora também fala como ela é muito discuidadosa (sic), e muito desligada em
sala de aula, só pensa em conversar e desenhar.
Fala sua professora que era não tem nenhum problema, é seu jeito que é assim.
Enfim, ela nunca termina uma lição, e nunca trouxe seu caderno para casa, que está
sempre com a professora.
O que posso fazer sobre isso? Por que não sei mais o que tentar para mudá-la, pois até
a roupa que usa era não tem cuidado onde troca deixa largada no chão ou onde era estiver,
pra mim isso tem um nome, mas não sei qual.
Quero que me ajude sobre esse caso, e o que devo fazer.
Lucio
******
Caro Pai,
80
Trecho ilegível.
48
Você nos pede ajuda para trazer sua filha do “mundo da
lua” para o “mundo real”. Mas o que você compreende como
“mundo da lua” e “mundo real”? Esta é mesmo uma percepção
freqüente dos adultos, olhar para a criança como se ela
vivesse em um “mundo da lua”, mas esse é o modo do ser da
criança e ela habita o mesmo mundo que o nosso.
Muitas vezes, nós adultos, nos esquecemos de como era ser
criança e não compreendemos que as crianças, mais do que os
adultos, estão abertas para perceberem o mundo de forma
imaginativa. A imaginação criadora da criança pode nos ensinar
a ver o invisível do mundo que já pode ter sido esquecido.
Fantasiar, imaginar e sonhar é bom! Tornam o mundo mais
colorido, mais confortável! Além disso, é um modo de se
relacionar, conhecer e explorar o mundo; de aprender sensações
novas, compreender sentimentos e descobrir “papéis” no mundo
em que vivem e que estão por vir. A brincadeira deve ser
respeitada e valorizada, pois é um dos modos da criança
conhecer e se relacionar com o mundo, expressar seus
sentimentos e ainda, aprender sobre regras e limites.
Contudo, se essa “desatenção” estiver interferindo em sua
vida escolar ou familiar, é importante que os pais orientem a
criança para um modo de ser mais atento às tarefas e deveres.
Procure perceber os motivos que podem influenciar para que as
tarefas escolares sejam interrompidas, converse com ela,
acompanhe suas tarefas e ajude-a a descobrir os benefícios da
organização. Procure ganhar a cooperação da criança, ao invés
de ter que ficar sempre se opondo.
Ensine-a organizar o seu tempo, por exemplo, a hora de
brincar e a hora de fazer a lição. Enfim, procure educá-la
ensinando o sentido dos atos no futuro, as conseqüências de
suas atitudes, isto é, se eu gosto de uma caneta e eu a
esqueço, eu fico sem ela, sou “eu” quem arco com a perda.
Procure perceber que sua filha não é desatenta porque quer,
mas, talvez, por fatores que nem mesmo ela compreenda. Se ela
49
não faz as lições como você nos diz, isso também deve ser
angustiante para ela, já que todos os seus amiguinhos
conseguem fazer as lições e ela não. Novamente, mostre o
sentido e os benefícios de aprender!
Você já tentou ajudá-la a fazer as lições de casa e a
organizar seus materiais escolares? Será que ela sabe como se
organizar? Será que não precisa de alguém que a acompanhe mais
de perto e a auxilie em suas tarefas? As crianças muitas vezes
precisam de modelos para aprender, copiar ou criar.
Você nos diz que ela desenha muito e isso pode até lhe
parecer uma atividade sem importância, mas do ponto de vista
da criança, é uma atividade muito importante, pois é assim que
começam a se expressar e a conhecer o mundo. Além disso, as
crianças muitas vezes não sabem expressar seus sentimentos
através de palavras e buscam outras formas e meios de
demonstrar suas emoções, que pode ser pelo desenho ou pela
brincadeira. Já pensou, inclusive, que o desenho pode ser uma
habilidade de sua filha?
É muito difícil mesmo ter que ser paciente e esperar que a
criança perceba que perder suas coisas lhe traz prejuízos, até
porque aí, ela já os perdeu e isso traz prejuízos. Mas,
procure explicar a importância destas coisas para ela e busque
estar junto, se aproximar dela, ganhar a sua cooperação.
Afinal, é o bem dela que você quer. Mas, às vezes, as crianças
não compreendem o que estamos querendo dizer, a comunicação
fica difícil e vira uma batalha...
Tente compreender o que sua filha está querendo dizer e a
melhor forma é buscar com ela essas respostas, uma conversa em
que você esteja aberto para ouvir, entender e se aproximar do
momento e da experiência que ela está vivendo. Sugerimos
abaixo alguns filmes para vocês assistirem juntos, assim
poderão ter mais momentos de aproximação e troca de
experiências.
50
Caso você ache necessário, poderá procurar ajuda
especializada em nossa clínica de Psicologia. E se quiser,
volte a nos escrever.
Para conhecer mais sobre as crianças e seu modo de olhar o
mundo:
Filmes: “Monstros S.A.”, “Toy Story”, “Em busca da terra
do nunca” e “Expresso Polar”.
Livro: TERAPIA PARA PAIS E MÃES, de Janet Geirz, Editora:
PAULUS.
51
Carta nº9: Adolescência?
Meu nome é Leandra, tenho 37 anos, sou casada, tem 2 filhos, Lucas de 15 anos e a
Lia de 10 anos Trabalho fora na parte da manhã e a tarde cuido da casa e dos filhos. Minha
maior dúvida, entre tantas é:
Como ajudar meu filho Lucas a estudar, pois ele não gosta de estudar, não sabe como
estudar para fazer uma prova, e eu não tenho paciência com ele. Ele só pensa em fazer o que
ele quer que é jogar videogame o tempo inteiro. Ele está entrando na adolescência e eu não sei
o que fazer; dar limites a esta altura é muito difícil e ele não reage bem quando eu falo com
ele alguma coisa para o seu bem. Preciso de ajuda para poder criá-lo com carinho e
principalmente com muita compreensão, pois ele precisa muito de mim.
******
São Paulo, 05 de dezembro de 2007.
Cara Leandra,
Educar os filhos realmente é uma tarefa muito delicada e
como você mesma diz em sua carta é necessário muito carinho e
compreensão para transmitir a eles tudo o que acreditamos ser
necessário e fundamental. Além disso, educar consiste numa
relação envolvida por muito amor, doçura, firmeza, decisão e,
principalmente, aquilo que você reconhece não ter: a
“PACIÊNCIA”.
A “Santa Paciência” que nos auxilia em tantos momentos da
vida, como no trabalho, no relacionamento com o marido, nas
tarefas de casa e como não poderia ser diferente, também é
necessária no cuidado com os nossos filhos.
Mesmo sabendo o quanto precisamos da paciência, muitas
vezes ela nos falta e parece que tudo está dando errado. Não
adianta falar, gritar, repetir mil vezes a mesma coisa porque
parece que as crianças não ouvem, não fazem as coisas certas e
ainda acham que você está errada, não é mesmo?
52
Mas, não tem outro jeito, educar os filhos é tarefa
obrigatória dos pais. Tarefa que às vezes é sofrida, difícil,
cansativa, mas que também pode ser gratificante, agradável e
suficientemente boa se não desistirmos, pois é no educar que
temos a oportunidade de transmitir nossos valores e dar os
limites como forma de demonstração do nosso afeto e
acolhimento perante os sofrimentos e decepções que queremos
evitar que eles passem. É ao educar que os pais ensinam aos
seus filhos o sentido da vida, orientam, mostram as
responsabilidades e apresentam o mundo e seus mistérios.
Na sua carta, você diz que a sua maior dúvida é “Como
ajudar seu filho Lucas a estudar?”.
Em seu relato você também nos diz que é preciso muito
carinho e compreensão e também sabe o quanto o Lucas precisa
de você, não só para esta atividade, mas também para as demais
experiências de sua vida. Porém, parece-nos que a sua maior
dificuldade é em saber “como” fazer para ajudar o seu filho e
capacitá-lo para a vida, de modo que ele compreenda que tudo o
que você faz é para o seu bem, não é?
Mãe, educar é uma “caixinha de surpresas”, tanto para os
pais como para os filhos. É como uma arte que não tem regras
que antecedem a experiência, porque cada pessoa é diferente,
cada caso é um caso, e, além disso, as pessoas mudam a todo
momento.
Como você nos disse, o Lucas tem quinze anos e nesta idade
realmente é muito difícil impor limites, se não tivermos feito
isso antes; por isto a melhor coisa a fazer é se aproximar do
seu filho, procurar conhecer as coisas que ele gosta de fazer,
perceber os seus interesses e assim encontrar um modo adequado
para que possa ensiná-lo a se dedicar em suas tarefas e em
seus estudos. O que estamos tentado te dizer é que é muito
mais fácil “aproveitar a onda para poder chegar até a praia,
do que ficar tentando lutar contra a maré”, ou seja, você
53
precisa ganhar a cooperação dele, se utilizar das coisas que
ele gosta de fazer ao seu favor.
Talvez, lembrar da época em que você tinha quinze anos,
resgatar as coisas que você fazia, o modo como pensava, o que
sentia, quais eram seus sonhos e desejos, seja um bom
exercício para se aproximar do que o Lucas está vivendo neste
momento.
Você disse que já tentou conversar com o Lucas e não deu
certo. Você já pensou em outros modos de se aproximar do seu
filho? Quem sabe se interessando um pouco mais pelas coisas
que ele faz, percebendo não somente as coisas que ele não
gosta de fazer, mas aquilo que são as qualidades no seu filho,
aquilo que faz dele uma pessoa especial e diferente das
outras, aquilo que faz dele o filho que você tanto ama e se
esforça muito em ajudar.
Leandra, sabemos o quanto é cansativo ensinar duas, dez,
vinte vezes a mesma coisa, mas não podemos desistir, afinal o
Lucas é seu filho e tudo que você quer é o bem dele. Não
desista, mesmo que, às vezes, pareça que ele não está ouvindo
o que você diz, pois futuramente ele se lembrará que sempre
teve alguém cuidando dele com todo amor e carinho; afinal você
bem sabe que seu filho depende muito de você e do seu amor
para ser alguém capaz de fazer suas próprias escolhas. Só
podemos ensinar a escolher, mas quem escolhe, é ele.
Quando você fala que o Lucas está entrando na
adolescência, o que você quer dizer com isso? Seria algo
relacionado a mudanças no modo de se relacionar com as
pessoas, com o mundo ou até mesmo com seu próprio corpo? É bom
lembrar que mudanças acontecem a todo o momento em nossas
vidas e por isto é necessário que, como mãe, você tenha
sensibilidade para perceber a forma com que o Lucas lida com
estas mudanças.
Aproxime-se mesmo do seu filho e tente perceber quais são
as necessidades dele, se é mesmo dificuldade em estudar ou uma
54
outra coisa que está acontecendo e ele não quer ou não
consegue falar para você. Converse com ele de uma forma que
possa perceber que você respeita a opinião dele, compartilhe
das suas angústias e desânimos. Afinal também sabemos que, às
vezes, é muito desanimador aprender todos aqueles símbolos e
regras, que ensinam na escola e que parecem não ter nenhuma
utilidade em nossas vidas, não é?
Uma sugestão é que você estabeleça com seu filho um
horário, um local ou até mesmo alguns momentos para estudar
com ele, assim você poderá perceber quais são as dificuldades
e as habilidades que ele tem.
Nesta idade, parece que o jovem compreende o futuro de um
modo muito diferente ao do adulto, por isto é importante que
os pais eduquem de forma a mostrar sempre o sentido do que
fazemos, as conseqüências que estas escolhas poderão ter no
futuro, e se este futuro pensado é o que ele realmente quer
para si.
A única coisa que podemos garantir a você é que seria
impossível educar sem amor e isto nos parece que você tem
bastante. Portanto, quando estiver aflita e sem saber o que
fazer, lembre-se que antes de tudo o Lucas é seu filho e a
melhor atitude é saber sempre lidar com a situação com muito
diálogo e aconselhar, sem criticar e sem julgar, mas
oferecendo um acolhimento necessário. Queremos e precisamos
ser próximos dos nossos filhos em todos os momentos e em
qualquer situação.
Ficamos felizes em receber sua carta e esperamos ter
contribuído com suas dúvidas. Se sentir necessidade, pode
voltar a nos escrever em a qualquer momento.
Encaminhamos abaixo, algumas indicações que esperamos que
contribuam com as questões trazidas.
Sugestões:
55
Revista Mente & Cérebro: O Olhar Adolescente. A coleção
pode ser comprada nas bancas de jornais e é composta de quatro
números. Indicamos à você, especialmente a número 02.
*
Carta nº 10: Dúvidas de uma estudante de Psicologia
Faço estágio em uma creche e lá conversamos com as educadoras. Elas trazem questões
diversas sobre os problemas que enfrentam dia-a-dia. Gostaria de obter informações sobre o
modo de proceder com as educadoras em uma outra abordagem (fenomenológica), por
exemplo.
Algumas questões:
As educadoras se sentem “jogadas”, falta orientação das supervisoras.
Em relação as crianças que trazem questões sexuais, por exemplo: “uma criança relatou que
viu uma mulher chupando o homem”.
Crianças que se esfregam
A violência também é citada (as crianças se batem, mordem umas as outras).
As educadoras relatam que ensinam as crianças e que parece que os pais estragam tudo o que
elas fazem.
Crianças não querem fazer atividades na sala de aula, querem brigar.
Há separação de grupos e já tem líder em diversos grupos, há os que fazem e os que obedecem.
Acredito que isto já me ajuda, desculpe acho que perguntei demais, né?
Agradeço desde já.
*
São Paulo, 18 de Dezembro de 2007.
Prezada Luíza,
Trabalhar com educação é sempre um desafio, pois não há
modelos prontos que sirvam a todas as pessoas. Quando estamos
neste âmbito, sempre estaremos nos questionando e refletindo
56
sobre nossa atuação e alcance; por isso considero importante
podermos sempre recorrer às pessoas mais sábias e experientes
para que possam nos orientar ou supervisionar.
Parece-me que sua inquietação é inerente às práticas
psicológicas e se soubermos aceitar o modo do humano ser, em
sua imprevisibilidade e em seus mistérios, seremos mais
críticos em nosso trabalho e, ao mesmo tempo, mais generosos
com o outro. Educar é assim mesmo, um caminho de desafios e
percalços em que ora vencemos os obstáculos e, ora nos
estagnamos, ora nos sentimos vencedores, e em outros momentos,
perdedores, ora nos empolgamos, depois desanimamos, enfim, um
caminhar cheio de lutas, conquistas e surpresas.
Você nos pergunta sobre como seria um modo fenomenológico
de proceder com as educadoras; então, lembre-se da primeira
grande lição da Fenomenologia: a atitude de suspender nossos
preconceitos e valores, crenças e teorias a respeito do
fenômeno para que ele possa se revelar por ele mesmo. Isto que
dizer, em seu estágio, que para que você possa “olhar com os
olhos” o que está acontecendo ali, você precisa se desprender
de idéias já pré-estabelecidas, mesmo que estas sejam as
afirmações e certezas das educadoras. Em sua carta, você
inclusive revela algumas, tais como, “que as crianças brigam,
se esfregam, pais que estragam as crianças” etc. Para que você
possa “exercitar” fenomenologia precisa deixar as crianças se
revelarem por elas mesmas, ou seja, procurar olhar do ponto de
vista delas, o que neste caso quer dizer: será que elas estão
brigando ou brincando? Se esfregando ou experimentando
regiões, movimentos e sensações prazerosas de sua corporeidade?
Muitas vezes, o sentido erótico e a conotação sexual está nos
“olhos” e “ouvidos” dos adultos. Volto a enfatizar que se as
educadoras as vêem assim; você não precisa ver.
As crianças estão descobrindo o mundo e tudo para elas é
uma novidade. Claro que isso, muitas vezes, torna-se
insuportável para o adulto que tem que cuidar de “trinta”, ao
57
mesmo tempo. Mas, se paramos para olhar em um dia que estamos
mais calmos, com mais tempo ou com outro humor, percebemos que
se tratam de atitudes freqüentes nas crianças e, podemos até
mesmo achar divertido o que estão fazendo. Deve-se procurar
tê-las como aliadas, cooperando conosco e não entrando em um
embate com elas. Proponho que o modo de educar do adulto seja
pelo sentido; isto significa uma atitude em que precisamos
constantemente dizer à criança como ou porque ela deve
obedecer, porque pode ou não pode fazer, estabelecer acordos,
regras e justificá-las.
Você nos diz que elas se sentem “jogadas” e temos que
entender isso como a verdade delas. Entretanto, um erro não
pode justificar o outro, isto é, elas não podem utilizar isso
como argumento ou justificativa para o modo como cuidam das
crianças.
As crianças são extremamente imaginativas, e por isso
muitas vezes rompem com sentidos previamente estabelecidos,
modificam regras, padrões e condutas cristalizadas e nem
sempre estamos preparados para sermos questionados e para
mudarmos. Neste sentido, vale lembrar do lema da campanha pela
infância realizada pelo Betinho e que é, inclusive, lema este
ano da campanha apoiada pelos psicólogos contra a redução da
maioridade penal: “Se não vejo na criança uma criança, é
porque alguém a violentou antes; e o que vejo é o que sobrou
de tudo o que lhe foi tirado”.
Por isso, o exercício que sugiro como ferramenta para um
trabalho com educadoras que trabalham com crianças,
fundamentado pelo olhar da fenomenologia, é “desamadurecer”
81
.
Isto quer dizer sensibilizar o adulto para estar perto da
criança como ela é, estar longe de teorias e perto de suas
brincadeiras, de sua linguagem, de sua família, de seus
interesses, de sua cultura, enfim, do modo como ela se
relaciona com o mundo.
81
Expressão emprestada de Bachelard que propõe a atitude poética para a compreensão da infância.
58
Como recurso, sugiro atividades em que você recupere as
memórias infantis destas educadoras. Você pode também utilizar
a poesia, pois as palavras não são utilizadas de modo
convencional, ela é criadora de sentidos. Como já dizia Manuel
de Barros, “poeta é o ente que lambe as palavras e depois
alucina”; seu grande objetivo era “chegar ao criançamento das
palavras”. Além disso, proponha atividades que favoreçam a
imaginação e o mergulho em experiências sensoriais. Enfim,
ajude as educadoras a criarem sua própria poética para que
possam cuidar e ensinar as crianças de modo que possam estar
sensíveis às crianças, em suas diferenças e pessoalidades.
Espero ter contribuído. Se precisar, volte a escrever.
Abaixo farei algumas indicações que podem aprofundar as idéias
aqui apresentadas.
Atenciosamente,
Profª Fabíola Freire S. Melo – CRP 06/65128.
Sugestões para saber mais:
As obras do Gaston Bachelard, especialmente A poética do devaneio,
Editora Martins Fontes.
Maurice Merleau-Ponty. Resumos dos cursos na Sorbonne, v.1 e 2. Editora
Papirus.
Marina Marcondes Machado. A flor da vida: sementeira para uma
fenomenologia da pequena infância. Tese de doutorado, Psicologia da
Educação, PUC/SP, 2007. Disponível na biblioteca da PUC/SP em versão
digital.
59
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MACHADO, M. M. Cacos de infância/ Teatro da solidão
compartilhada. São Paulo: Fapesp/Annablume, 2004.
_________________ A flor da vida/ Sementeira para a
fenomenologia da pequena infância. Tese de doutorado. PUC/SP,
2007.
MERLEAU-PONTY, M. Merleau-Ponty na Sorbonne/ Resumo de
Cursos/ Filosofia e Linguagem. Campinas: Papirus, 1990a.
__________________ Merleau-Ponty na Sorbonne/ Resumo de
Cursos/ Psicossociologia e Filosofia. Campinas: Papirus,
1990b.
WINNICOTT, D. W. Conversando com os pais. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
ANEXO 6:
Roteiro sugerido aos
alunos para elaboração da
carta-testemunho
CARTA-TESTEMUNHO
Esta carta deverá ser realizada de modo pessoal, de forma a explicitar seu
percurso e aprendizado realizado ao longo do estágio. A carta deve narrar:
- o motivo de escolha (ou não) do estágio, isto é, sua disposição inicial,
expectativas e desejos para o estágio;
- avaliar a metodologia utilizada nas aulas pela professora: a escolha
dos textos, o modo de ensinar e de conduzir as aulas;
- como a disciplina fenomenologia lhe aparecia até o início do estágio?
Houve alguma mudança em relação ao seu modo de compreende-la?
Se sim, no que e como você vê essa diferença?
- qual era a sua concepção/compreensão inicial para infância e
educação;
- ao olhar para suas cartas, que mudanças você identifica na versão
inicial e na versão final? Exemplifique;
- avalie também seu próprio desempenho ao longo do estágio, suas
faltas, seu modo de estar presente nas aulas, seu comprometimento,
sua postura e seu aprendizado;
ANEXO 7:
Versão integral da carta-
inicial escrita pelas
alunas à educadora.
Cara educadora,
Estamos retomando nosso contato com o intuito de poder ajudá-la a pensar
em mais um dos seus questionamentos.
Falar sobre a chegada do irmão mais novo, não é tarefa exclusiva dos pais e
cada vez mais este trabalho vem sendo realizado por educadores e profissionais
preparados para tais funções.
Compreendemos que enfrentar esta situação com franqueza e seriedade
utilizando-se sempre da fala verdadeira, é a melhor forma de adquirir a confiança
da criança. Assim, de uma forma sutil, permitimos que aos poucos ela possa
revelar os sentimentos que envolvem o seu pequeno coraçãozinho. Entendemos
ser muito mais saudável para todos ter a oportunidade de conversar tanto sobre
os sentimentos de amor, quanto sobre os sentimentos de hostilidades.
Com a chegada do irmão mais novo, alguns filhos sofrem muito e começam a
levantar questionamentos como: “Será que ainda vão gostar de mim depois que
o bebê nascer e vier para esta casa? Se eles estavam felizes comigo, por que
tinham de ter outro filho?”.
Compreender o que significa um novo irmão para um filho mais velho, é
fundamental para quem deseja ajudá-lo, por isso olhar para esta situação com os
olhos da criança é um exercício inesgotável para o desenvolvimento desta tarefa.
A insegurança e o medo da criança, não estão relacionados diretamente com
a chegada do irmão mais novo, e sim com a relação que se desenvolverá após a
sua chegada. O medo de não ser mais amada e querida e o sentimento de
insegurança que faz pensá-la que não será mais importante para os pais é quem
faz com que a criança tenha determinadas reações, como as crises intensas de
ciúmes.
Quando expresso, o ciúme tem a função importante de dizer o quanto temos
medo de perder algo que amamos demais, e é exatamente isto que acontece
com a criança, pois antes de refletir sobre a possibilidade de dividir os pais com o
irmãozinho, ela imediatamente percebe a relação ao seu modo e quando não
obtém informações adequadas, por estar em uma idade de grandes imaginação,
e criatividades acaba desenvolvendo suas próprias fantasias que em muitas
fazem só servem para aumentar o sofrimento e então sentem-se sozinhas,
agridem, regridem, fazem tudo isto, simplesmente para chamar a atenção e ter a
certeza que ainda estão sendo vistas por alguém, afinal, ele foi o primeiro filho a
ser amado e a receber todo carinho dos pais e de repente se encontra na
condição de perder toda esta conquista para alguém que ainda nem nasceu.
Sabemos o quanto é dolorido para muitas crianças pensar sobre a chegada
do primeiro irmão, mas sabemos também que esta relação pode ser a felicidade
plena para outras crianças, por isto pensamos que criar condições para tornar
este sentimento triste em uma oportunidade de aprender compartilhar suas
experiências com um outro alguém, sem contar que este alguém poderá ser seu
melhor amigo e juntos poderão realizar as mais diferentes brincadeiras, é sim
uma tarefa possível e difícil, porém muito prazerosa e gratificante e certamente
também faz parte das tarefas do educador. Lembrar a criança que ao contrário
de perder as pessoas que ama ela estará ganhando mais alguém que irá amá-la
tanto quanto os pais a amam, pode ser uma atitude muito produtiva.
Nesta carta também gostaríamos de poder sugerir uma atividade onde você
poderia ter uma noção mais ampla dos sentimentos que envolvem esta relação a
partir do ponto de vista das crianças e assim poder trabalhar estes
questionamentos de forma mais direcionada.
Que tal se você preparasse uma aula onde o tema discutido seria a chegada
do novo irmão? Nesta aula você poderia realizar varias atividades como trazer
filmes que ilustrem à temática, proporcionar brincadeiras com massinhas e
desenhos livres o que poderá dar a criança a oportunidade de expressar seus
sentimentos em relação a esta situação. Mesmo as crianças que não estejam
vivenciando esta situação de forma direta certamente teriam a possibilidade de
se identificarem quando pensarem nas relações vividas com os primos e outros
amiguinhos mais próximos Uma outra proposta seria produzir junto com as
crianças uma peça teatral com textos desenvolvidos por elas próprias, onde cada
uma poderia viver o papel escolhido e assim expor de forma dramática os seus
sentimentos mais preciosos, desde os benevolentes, os de sofrimentos até os de
mais dura revolta.
Atividades como estas permitem que as crianças falem sobre suas
experiências, além da oportunidade de dividir a sua dor mais intima ou a sua
extrema felicidade com os outros amigos da sala, o que será uma bela
oportunidade de compartilhar os sentimentos e um grande exercício de aprender
a lidar com a inevitável possibilidade de dividir o que é seu com outro.Além disso,
você ainda pode utilizar a famosa caixinha de perguntas e assim suprir as
necessidades trazidas pelos alunos mais tímidos.
Porém, ainda assim, lembramos que se achar necessário pedir ajuda para um
profissional mais preparado para tal função, ou se perceber que o sofrimento da
criança esta sendo vivido de forma muito dolorosa, não tenha receio em solicitar
ajuda especializada.
Junto a esta carta estaremos encaminhamos algumas dicas de sites e
bibliografias que certamente serão muito úteis no seu cotidiano.
Esperamos ter ajudado em mais uma oportunidade e em breve estaremos
retomando contato para finalizar os questionamentos trazidos em sua carta.
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