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Marcelo José Doro
A VERDADE EM SER E TEMPO
Florianópolis
2006
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2
Marcelo José Doro
A VERDADE EM SER E TEMPO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Filosofia da Universidade
Federal de Santa Catarina como requisito
final para a obtenção do título de Mestre em
Filosofia, sob orientação do Professor Dr.
Luiz Hebeche.
Florianópolis
2006
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3
AGRADECIMENTOS
Muitas pessoas contribuíram com a realização deste trabalho. Algumas com
idéias, sugestões, esclarecimentos – nisso sou grato aos professores do Departamento de
Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina, em especial ao Professor Luiz
Hebeche, diretamente envolvido na orientação das idéias aqui apresentadas. Outras com
apoio, incentivo, companheirismo – aqui minha gratidão a meus pais, Itacir e Clarice, a
minha irmã, Denise, e a todas as pessoas do meu círculo de amizades. Muito obrigado a
todos, de verdade!
Também agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) pelo suporte financeiro concedido durante boa parte do
desenvolvimento deste estudo. Foi uma ajuda significativa, que deu estímulo e condição
para o bom andamento da pesquisa.
4
…the end of all our exploring
Will be to arrive where we started
And know the place for the first time.
T. S. Eliot
5
RESUMO
Trata-se de um estudo sobre o caráter e a abrangência da crítica heideggeriana ao conceito
tradicional de verdade. Num primeiro momento, nos capítulos I e II, são levantados os
aspectos gerais que indicam uma mudança no lugar onde é posta a questão da verdade.
Depois, no capítulo III e também na conclusão, são trabalhadas as implicações de tal
mudança para a questão da verdade em geral e para a própria filosofia. A pretensão é
mostrar que as considerações de Heidegger não têm por objetivo a produção de um novo
conceito de verdade, que venha rivalizar com os já existentes; o que está em jogo é uma
problematização mais ampla da verdade, enquanto um fenômeno de bases existenciais e,
portanto, não apenas como conceito lógico-semântico. Transpondo os limites da lógica,
Heidegger se pergunta pelas condições ontológico-existenciais da verdade. Então, ele
desenterra a concepção grega de alétheia para assinalar o modo fundamental da verdade
como descoberta e, valendo-se das conquistas de sua Analítica Existencial, liga essa
descoberta ao modo de ser do ser-aí. Disso se segue a afirmação de que toda verdade é
relativa ao ser-aí e a conseqüente negação da possibilidade de verdades absolutas.
Palavras-chave: verdade, não-verdade, ser-no-mundo, fenomenologia.
ABSTRACT
This is a study about the character and about the reach of Heidegger’s critique to the
traditional conception of truth. Firstly, at chapters I and II, there are given the general
features which indicate a kind of change in the place where the question of truth is
situated. Secondly, at chapter III and also at the conclusion, there are worked out the
implications of this change for the general question of truth and for philosophy itself. The
intention is to show that Heidegger’s considerations doesn’t aim the production of a new
conception of truth which could compete with those already existent; what’s at stake is a
wider inquiry about the truth as a phenomenon of existential basis and, therefore, not only
as a logical-semantic concept. Going beyond the limits of logic, Heidegger asks for the
ontological-existential conditions of truth. He then brings to light the greek conception of
alétheia in order to mark the fundamental way of truth as discovery and, making use of the
conquests of his Existential Analytic, he links it to the way of being of the being-here.
From there it follows the statement that all truth is relative to the being-here and the
consequent negation of the possibility of absolut truhts.
Key-words: truth, non-truth, being-in-the-world, phenomenology.
6
ÍNDICE
INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 7
I - VERDADE FUNDANTE E VERDADE FUNDADA .................................................. 12
1.1 - O ser-no-mundo ..................................................................................................... 20
1.2 - A abertura do mundo e o fenômeno originário da verdade .................................... 30
a) disposição ............................................................................................................... 32
b) compreensão ........................................................................................................... 35
1.3 - Ser-no-mundo e linguagem .................................................................................... 39
1.3.1 – Proposição e verdade ...................................................................................... 44
1.3.2 – A verdade como “concordância” .................................................................... 62
II - A VERDADE FUNDANTE É VERDADE EXISTENCIAL ...................................... 67
2.1 - O ser-no-mundo como ser-com .............................................................................. 68
2.2 – A abertura do impessoal e a decadência do ser-aí ................................................. 80
2.3 – Verdade e não-verdade: a verdade existencial ...................................................... 93
III - DA FINITUDE DA VERDADE ................................................................................. 99
3.1 – O modo de ser da verdade e sua dependência em relação ao ser-aí .................... 101
3.2 – A idéia de verdade finita ...................................................................................... 114
3.3 – A pressuposição da verdade ................................................................................ 119
CONCLUSÃO .................................................................................................................. 127
BIBLIOGRAFIA .............................................................................................................. 133
7
INTRODUÇÃO
A intenção aqui é levantar alguns aspectos acerca da verdade, assim como ela
é trabalhada por Heidegger em Ser e Tempo.
Ser e Tempo é um tratado sobre o ser, sobre o sentido do ser. Todas as outras
questões, ali também confrontadas, têm como fundo o desenvolvimento e clarificação
dessa questão que é a mais básica e fundamental. Tal é a situação da discussão em torno
da verdade, que, mesmo não sendo o foco principal da investigação, ganha relevância e se
torna pertinente em função das conquistas alcançadas com o desenrolar da questão
ontológica em termos de uma analítica existencial.
Toda a radicalidade que aparece na nova abordagem do problema da verdade
desenvolvido no § 44 é conseqüência direta daquela radicalidade prévia com que o
filósofo coloca a pergunta pelo ser, deixando evidente, desde o início, uma mudança
fundamental no modo de fazer filosofia, no estilo argumentativo e, acima de tudo, no jeito
de encarar os problemas da metafísica tradicional. O confronto com a tradição se dá de
modo incisivo; tão incisivo que dele acaba surgindo uma nova linguagem filosófica, com
novos conceitos, especialmente construída para prevenir possíveis confusões entre a
abordagem emergente e o velho modo de pensar.
O foco desse confronto com o modelo filosófico tradicional reside na
problematização da idéia de “ser”, pensado em termos de uma “realidade” evidente,
simplesmente dada. Ao pensar o ser deste modo, a tradição teria deixado de percebê-lo em
seu aspecto mais fundamental, enquanto condição da determinação dos entes. Em vez
disso, quer dizer, em vez de pensar o ser desde essa diferença ontológica fundamental, a
tradição tratou do ser ao nível dos entes. A pergunta pelo ser assumiu a forma da pergunta
pela essência dos entes e o ser mesmo, como aquilo que determina o ente como ente, caiu
no esquecimento.
8
Esse movimento de esquecimento e o conseqüente desenvolvimento daquilo
que se pode chamar de “metafísica dos entes” produziu grande parte das dificuldades
teóricas que ocuparam o pensamento filosófico desde a sua origem, com os gregos, até a
contemporaneidade. Tais dificuldades, que surgem, sobretudo, no momento em que é
preciso pensar o modo da relação com os entes no conhecimento, só poderão, no entender
de Heidegger, ser resolvidas por meio de uma destruição desse modelo metafísico que, ao
tomar o ser em termos de realidade, perdeu de vista a diferença ontológica fundamental
entre o ser e o ente. Seu esforço consiste, então, em mostrar as bases de uma experiência
mais fundamental, na qual o ser constitui a condição de toda e qualquer relação com o
real.
O primeiro passo nessa direção é dado na eleição do método a ser utilizado. E
aqui vai aparecer fortemente a influência da fenomenologia desenvolvida por Husserl.
Tomando a tese central dessa fenomenologia, de que a consciência é constituidora de
objetividade (intencionalidade), Heidegger se propõe a investigar as condições de
possibilidade de tal objetivação. Assim, se, enquanto investigação da constituição da
objetividade, a fenomenologia tinha feito da filosofia uma teoria do sentido, resta
investigar o sentido dos sentidos, ou seja, o sentido fundamental a partir do qual se institui
qualquer outro sentido, a saber: o sentido do ser. E na medida em que a fenomenologia é a
pesquisa daquilo que se mostra a partir de si mesmo, ela só vai ser possível, efetivamente,
enquanto “ontologia fundamental”, já que, em última análise, o que se mostra como fonte
última de todo mostrar-se é o ser.
Procurando pela melhor maneira de acessar o universo do sentido originário
em que se dá a questão acerca do sentido do ser, o filósofo conclui que a chave do
problema está no próprio ente para o qual o ser se converte em questão, pois para este ente
o ser já está sempre de algum modo compreendido. O universo do sentido fundamental
deixa-se tematizar pela mediação do ente que cada um de nós é: o Dasein, o ser-aí. Então
surge a proposta de uma “analítica” do ser-aí. A palavra analítica é tirada da leitura de
Kant. Heidegger é herdeiro da filosofia transcendental kantiana. Também ele busca as
condições de possibilidade das nossas relações com o mundo e com nós mesmos. E, no
entanto, sua transcendentalidade é de caráter existencial. Sua analítica é denominada de
existencial. E isso para firmar a diferença em relação à transcendentalidade da analítica
kantiana, ligada às teorias da representação, às teorias da subjetividade.
9
A analítica existencial não é mais nada do que a explicitação das condições de
possibilidade a partir das quais é possível pensar o problema da fundamentação para além
da subjetividade. Afinal, mesmo esta precisa ser entendida em função daquela situação
mais originária da existência, na qual o ser-aí já está desde sempre junto aos entes e
envolvido com eles de algum modo. Trata-se da situação indicada pela expressão ser-no-
mundo, que como o próprio Heidegger assegura, diz muito mais que a mera ocorrência
passiva de um ente (ser-aí) dentro de outro (mundo). Em seu cotidiano, o ser-aí não se
comporta como um ser auto-suficiente com relação ao mundo e nem como um ser
indiferente, que recebe impressões perceptivas, devido às quais sua consciência torna-se
espelho do mundo exterior – assim como pensavam os teóricos do psicologismo. Ao
contrário, o ser-aí se adianta no mundo e, como ser ativo, não compreende as coisas que o
cercam como objetos de contemplação, mas de “uso”.
Em função disso, a relação do ser-aí com o mundo recebe uma conotação toda
especial. O mundo está dado de maneira tão imediata quanto a própria existência, de modo
que não é mais preciso supor a transposição dos limites de um sujeito ou de um “eu”
inicialmente isolado para entrar em contato com o mundo (exterior); em tudo o que o ser-
aí faz e deixa de fazer em seus cuidados, em suas ocupações, em seu conhecimento e até
em seu esquecimento, já se encontra (“lá fora”) no mundo. Nisso reside, precisamente, o
sentido da expressão ser-no-mundo: o “no” comporta a complexidade da existência
concreta no mundo das ocupações cotidianas. Nele está implícita a tríplice estrutura
constitutiva do ser do ser-aí: o ser-adiante-de-si-mesmo, por já-ser-em um mundo junto-
aos-entes, que remete às três dimensões do tempo (futuro, passado e presente,
respectivamente) desde as quais é pensada a temporalidade originária.
Concebido desse modo, o conceito ser-no-mundo constitui o fundamento
intransponível da filosofia heideggeriana. Mas um fundamento histórico, temporal,
contingente. Um fundamento flutuante, do qual não se extraem categorias, mas
existenciais, modos de ser. E os existenciais são co-originários, quer dizer, nenhum deles
prevalece sobre os outros. Por isso que, ao mesmo tempo que o ser-aí é marcado pela
abertura, pela compreensão de ser, ele também comporta, pela decadência, um fechamento
dessa abertura. Por isso, também, que a verdade não pode ser meramente tratada em
termos de abertura, precisando comportar simultaneamente o aspecto do fechamento: no
nível existencial de fundamentação, verdade e não-verdade andam juntas.
10
Há uma íntima conexão entre a explicitação dos existenciais e a caracterização
da verdade fundamental. Claro que, nesse sentido, alguns existenciais são, para o
esclarecimento da questão, mais relevantes que outros. Daí o privilégio que esta
investigação concede ao fenômeno da abertura, por exemplo. No mais, não seria possível,
por motivos de delimitação, contemplar todas as minúcias implicadas na discussão da
verdade. Muitos aspectos são simplesmente deixados de lado e outros são abordados
apenas indiretamente, como é o caso da temporalidade, que embora não se converta em
assunto direto da análise, mantém-se como pano de fundo latente ao longo de todo o
trabalho. É uma questão de escolher um dentre os vários caminhos possíveis para a
abordagem. Optou-se pela abordagem da verdade desde uma reconstrução dos existenciais
revelados pela analítica existencial. Segue-se, assim, os passos decisivos da argumentação
heideggeriana em Ser e Tempo.
E o decisivo na argumentação de Heidegger acerca da verdade é, justamente, a
conexão que ele promove entre verdade e ser-no-mundo, entre verdade e existência. Nessa
conexão se dá a mudança do nível de abordagem do problema: a verdade deixa de ser
pensada meramente como um conceito da lógica, como uma propriedade de proposições, e
passa a ser investigada em seu nível mais fundamental, enquanto um existencial. E, nesse
sentido, se ergue o objetivo principal deste trabalho: mostrar que a discussão promovida
por Heidegger acerca da verdade não visa à produção de um novo conceito, que vem
rivalizar com os conceitos de verdade já existentes. A crítica ao conceito tradicional de
verdade não implica seu abandono, mas sua revisão enquanto conceito derivado. Em
outras palavras, o que precisa ficar claro é que Heidegger quer pensar a verdade antes dela
se converter num conceito lógico-semântico; ele quer pensar a verdade ao nível das
condições existenciais de possibilidade.
Pensar a verdade junto à existência é o momento extremo da radicalização
heideggeriana dos modelos filosóficos tradicionais, sempre zelosos pela transparência e
pela pureza de seus conceitos. Heidegger joga para dentro da filosofia, e no âmbito da
fundamentação, tudo aquilo que a tradição havia desde o princípio rejeitado: o tempo, a
história, a contingência do existir fático. Não há mais um fundamento seguro desde onde
se possa pensar os conceitos filosóficos. Mesmo a pressuposição (fantasmagórica) de um
sujeito ideal, ou de uma consciência absoluta, mesmo estes artifícios não podem prescindir
da base existencial que os sustenta. A partir do momento em que isso é revelado pela
11
análise preparatória dos fundamentos do ser-aí, o filósofo apresenta as conseqüências, daí
decorrentes, para o conceito de verdade. O § 44 constitui-se, assim, numa espécie de
vitrine onde a radicalidade da investigação existencial é exposta em termos conclusivos.
Na questão da verdade, a radicalidade da analítica existencial se traduz pela
distinção promovida entre verdade fundante (verdade existencial) e verdade fundada
(verdade proposicional). Mas “fundante” e “fundada” usados no sentido que há um tipo
mais originário de verdade no qual (todas) as outras verdades se fundam; afinal, como já
foi sugerido, Heidegger rejeita, através do conceito de ser-no-mundo, a idéia de um
fundamento último, seguro e transparente. Em virtude dessa rejeição da imediata indicação
do caráter existencial e flutuante da verdade fundante surgem mudanças no status da
verdade fundada. E, então, tem-se a afirmação da relatividade de toda verdade em relação
ao ser-aí e, ligado a isso, a negação das verdades absolutas.
A distinção entre verdade fundante e verdade fundada constitui o assunto do
primeiro capítulo; o segundo capítulo contempla o caráter existencial da verdade fundante;
e, por fim, o terceiro capítulo discute a finitude da verdade.
12
I - VERDADE FUNDANTE E VERDADE FUNDADA
A publicação das obras completas de Heidegger trouxe à tona o contexto dos
anos 20 que preparou a chegada de Ser e Tempo. Nele podemos visualizar, agora, a pré-
história do famoso § 44: um período de intensa investigação filosófica, na qual a tônica é,
desde o início, o confronto crítico com a tradição. Já cedo o filósofo percebera que o
modelo filosófico tradicional apresentava limitações. No que tange a questão da verdade,
mais especificamente, tais limitações coincidiam com o entendimento corrente de que a
verdade só pode ser concebida em termos proposicionais. Trata-se daquilo que Daniel
Dahlstrom, no livro Heidegger’s concept of truth, chamou de “preconceito lógico”.
1
Tal
preconceito acabou restringindo a definição da essência da verdade à concordância entre o
juízo e o seu objeto, sendo que a grande maioria das principais teorias acerca da verdade
não passam, no fundo, de diferentes expressões dessa resolução geral. (Até mesmo
correntes extremas do pensamento ocidental, como é o caso do empirismo e do idealismo,
estão de acordo acerca desse caráter essencial da verdade como concordância, muito
embora, para o primeiro, esta se dê entre o pensamento e a realidade e, para o segundo, no
acordo do pensamento com ele mesmo.) A concordância, em sentido amplo, tornou-se o
lugar comum desde onde a questão da verdade é, em cada caso, pensada e discutida.
Contudo, essa posição, que para a tradição parece clara e evidente, é, para o filósofo de
Ser e tempo, “por demais universal e vazia”
2
. Ele quer ir para além desse “lugar comum”;
quer conduzir o questionamento ao nível da fundamentação, ao nível que sustenta o todo
relacional sempre pressuposto na noção de concordância, mas nunca devidamente
problematizado. Sua proposta não é, de modo algum, o abandono do conceito de verdade
como concordância, mas o reconhecimento de seu caráter derivado. Pode-se falar em
concordância como um dos modos como a verdade ocorre, mas ele não é o único e nem o
mais originário deles.
1
DAHLSTROM, Daniel O. Heidegger’s concept of truth. Cambridge University Press, 2001.
2
HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. 16. Aufl. Tübingen, Max Niemeyer Verlag, 1986, p. 215. Doravante
indicada apenas pela abreviatura “SZ”.
13
Foram precisamente os estudos em Aristóteles guiados pela fenomenologia
que clarearam, para Heidegger, o modo como o “preconceito lógico”, e a noção de
verdade como concordância a ele ligada, mantêm-se desde uma “abreviada” compreensão
do modo de ser do juízo e do conhecimento como um todo. A esse respeito, duas
orientações principais são extraídas do pensador grego. A primeira refere-se ao caráter
intencional do juízo, no sentido de que todo juízo visa diretamente seu objeto, sem
intermédio de imagens ou representações; e a segunda, que no fundo é uma decorrência da
primeira, diz respeito ao modo de ser da verdade como descoberta.
Tudo depende de se resgatar a significação básica do conceito de logos que
acabou encoberta pela história posterior do significado da palavra e, sobretudo, pelas
diversas e arbitrárias interpretações filosóficas que se seguiram desenfreadamente. Por trás
das traduções/interpretações
3
de logos por razão, juízo, conceito, definição, fundamento,
relação, proporção deve-se apreender o conteúdo primordial de sua significação básica
enquanto discurso. E dizer que o significado básico do logos é discurso significa dizer que
todas as diferentes “faces” assumidas pela palavra tem uma ligação originária com o
discurso.
Mas falta determinar o que é um discurso – como se deve entender, o que quer
dizer, afinal, esse sentido básico do logos? Heidegger explica, então, que o logos,
enquanto discurso, tem o caráter de revelação: ele torna patente aquilo de que trata.
4
Em
seguida, para mais bem explicar esta função do discurso, ele resgata a determinação
aristotélica do logos como apophantikós. Para Heidegger, o adjetivo apophantikós – usado
por Aristóteles para distinguir o logos capaz de ser verdadeiro ou falso – significa “deixar
e fazer ver” (Sehenlassen
5
). O discurso deixa e faz ver a partir daquilo sobre o que
discorre. Longe de se referir a imagens ou cópias mentais, o discurso aponta sempre para a
coisa mesma de que trata, mesmo quando ela não está presente “em pessoa”. “O discurso
(apóphansis), quando autêntico, tem de permitir que se extraia dele o que se diz daquilo
3
Heidegger toma cada tradução do logos como uma diferente interpretação: “...se “traduz”, o que sempre
quer dizer, interpreta-se, logos por razão, juízo, conceito...”(SZ, p. 32).
4
SZ, p. 32.
5
O verbo alemão “lassen”, quando ligado a um outro verbo, indica a ação de fazer com que alguma coisa
aconteça ou seja feita, comportando tanto o sentido de “permissão” (permitir, deixar, autorizar, não impedir:
Die Kinder spielen lassen/Deixar as crianças brincar) quanto o sentido de “ordem” (mandar fazer: Das Auto
waschen lassen/Mandar lavar o carro). Para conservar esse duplo sentido de deixar” e “fazer” com que algo
aconteça, optamos aqui, seguindo Márcia de Sá Cavalcante (tradutora de Ser e Tempo para o português),
pela utilização da expressão “deixar e fazer ver” como tradução de “Sehenlassen”.
14
sobre o que ele discorre, de modo que sua comunicação revele e, assim, torne acessível
aos outros, aquilo sobre o que discorre”
6
. Deixar e fazer ver tem, portanto, o sentido de
mostrar. O discurso deixa e faz ver o ente mostrando-o. Embora outros tipos de discurso
(uma reivindicação, por exemplo) também revelem algo, somente ao discurso apofântico
(proposicional) pertence este modo próprio de revelar no sentido de um deixar e fazer ver
que mostra.
Esta leitura heideggeriana do caráter intencional e revelador do logos figura
também no entendimento do sentido central do logos como síntese. Somente porque a
função do logos como apóphansis reside no deixar e fazer ver algo mostrando-o, pode ele
ter a forma estrutural de sýnthesis
7
. A síntese faz parte da estrutura do fazer e deixar ver,
na medida em que aquilo que é visado no discurso (no juízo) apenas pode ser mostrado em
conjunto com outro. A forma estrutural de síntese indica tão somente o fato de que o
deixar e fazer ver do juízo é um deixar e fazer ver algo como algo. Síntese não diz aqui,
enfatiza Heidegger numa alusão aos problemas da cisão entre sujeito e objeto, “ligação e
associação de representações, manipulação de ocorrências psíquicas; combinações a
respeito das quais surgiria, posteriormente, o ‘problema’ de como, sendo algo interno,
poderiam concordar com os dados físicos externos”
8
. A base da síntese não está, portanto,
na combinação mental de palavras ou conceitos, mas naquilo sobre o que ela se refere, o
“objeto” do discurso, ou, mais precisamente, o modo como ele é revelado, mostrado.
É essa reinterpretação do logos e do modo de ser da síntese que vai dar o
impulso e a sustentação para revisão do conceito tradicional de verdade. Ela representa o
ponto desde o qual devem partir os esclarecimentos acerca da possibilidade da verdade e
da falsidade nos juízos. Pois, de acordo com a leitura heideggeriana, “somente porque o
logos é um deixar e fazer ver, pode ele ser verdadeiro ou falso”
9
. A verdade não ocorre no
juízo primariamente como concordância; esta não é, de forma alguma, a idéia primária no
conceito grego de alétheia. Verdade entendida como alétheia quer dizer descoberta,
desocultação. O juízo é verdadeiro significa: ele deixa e faz ver o ente por ele visado assim
como ele é e se mostra sendo em si. E, do mesmo modo, o “ser falso” do juízo tem de ser
6
SZ, p. 32.
7
SZ, p. 33.
8
SZ, p. 33.
9
SZ, p. 33.
15
entendido como “ser encobridor”, que diz, precisamente, deixar e fazer ver (propor) algo
como algo que ele não é.
A tradução para o latim de alétheia como veritas negligenciou o entendimento
grego do logos como apophantikós e com ele o sentido primário da verdade como
descoberta, desocultação (a-létheia), favorecendo assim a elaboração posterior do
preconceito lógico e da noção de verdade como concordância a ele ligado. Noção essa
que, equivocadamente, segundo Heidegger, a tradição faz depender de Aristóteles.
Heidegger esforça-se em absolver o filósofo grego do cargo de ter indicado o juízo como o
lugar originário da verdade e colocado em voga a definição de verdade como
concordância, pois, de certo modo, a confirmação de sua interpretação depende disso. Se
realmente Aristóteles dispunha do entendimento fenomenológico do caráter intencional do
juízo, enquanto um deixar e fazer ver, ele não poderia tê-lo apontado como o “lugar”
primário da verdade. O caráter intencional do juízo pressupõe uma descoberta dos entes
anterior àquela realizada pelo juízo. Não é, por assim dizer, o juízo que estabelece o
encontro originário com as coisas. O ser descobridor da proposição tem o sentido de tornar
manifesto, “deixar ver” aquilo que de algum modo já é sabido, mesmo que de forma tácita.
O caráter intencional do juízo pressupõe, portanto, que o ente por ele visado já tenha sido
previamente descoberto. E essa descoberta primeira dos entes, pressuposta em todo juízo,
tem de ser considerada verdadeira em um sentido ainda mais originário. De acordo com a
interpretação de Heidegger, exposta brevemente no § 7 de Ser e Tempo, em sentido grego,
o que é “verdadeiro” de modo ainda mais originário do que o juízo é “a simples percepção
sensível de alguma coisa”
10
.
O juízo (logos apophantikós) descobre o ente ao mostrá-lo por meio de
combinações (síntese). Em termos aristotélicos, isso equivale a dizer que o juízo deixa e
faz ver (mostra) as coisas enquanto compostos. O juízo “Sócrates é branco”, por exemplo,
deixa e faz ver a coisa “Sócrates” de um modo determinado, ou seja, como branco. Já com
relação às coisas não compostas – aquelas que não podem ser associadas a outras coisas
diferentes delas mesmas – não há como mostrá-las através de juízos, justamente por não
comportarem combinações. O juízo não pode mostrar o “branco”, por exemplo. E,
10
SZ, p. 33. Essa interpretação de que, em sentido grego, a mais originária verdade está na simples
percepção sensível de algo não reflete a posição heideggeriana, propriamente dita, acerca da verdade. Ela foi
introduzida pelo filósofo para dar evidência à tese de que os gregos (ao seu modo!) já haviam pensado a
verdade desvinculada do juízo e, principalmente, da noção de concordância.
16
contudo, o juízo em toda e qualquer síntese pressupõe isso que não é apto a mostrar, isso
que Aristóteles chama de não-compostos e que Heidegger interpreta como “as
determinações mais simples do ser dos entes”
11
. Estas são descobertas originalmente e
exclusivamente pela percepção. Assim é com a visão descobrindo as cores, com a audição
captando os sons, com o tato percebendo as texturas, etc. Essas descobertas perceptivas,
pressupostas em todo e qualquer discurso enquanto base para a composição dos juízos,
têm de ser consideradas verdadeiras em um sentido ainda mais originário do que aquela
verdade que ocorre nos juízos. Além de mais originária, a verdade que ocorre na
percepção é também mais pura, uma vez que, tendo ela a estrutura de um puro descobrir,
que não recorre ao artifício da descoberta de “algo como algo”, não lhe pertence a
possibilidade de falsear. A falsidade tem lugar quando não é possível o puro exercício de
um deixar e fazer ver, sendo necessário, para mostrar, recorrer a uma outra coisa e assim
deixar e fazer ver algo como algo. Junto a esta estrutura sintética do “algo como algo” dá-
se a possibilidade do encobrimento (falsidade). Já que a percepção não apresenta esta
estrutura de descoberta fica justificado, para Heidegger, o fato de que “a percepção é
sempre verdadeira”
12
. Além disso, o próprio exercício perceptivo inviabiliza a
possibilidade da falsidade na medida em que a percepção visa sempre e exclusivamente o
ente que se torna genuinamente acessível nela e para ela (a visão sempre descobre cores, a
audição descobre sempre sons...).
Essa releitura de Aristóteles significou, sem dúvida, um grande impulso no
projeto heideggeriano de crítica à metafísica tradicional e a noção de verdade por ela
mantida. E o filósofo grego não é apenas a fonte inspiradora de Heidegger, ele é também,
em certo sentido, o ponto de apoio para as suas inusitadas interpretações
13
. É a ele que
Heidegger recorre para confirmar o suposto resgate do sentido original de conceitos como
logos e alétheia, que teria se perdido no uso posterior que a tradição fez deles. Mas nem
11
SZ, p. 33.
12
SZ, p. 33.
13
Claro que há muita controvérsia em torno dessas interpretações, inclusive e principalmente acerca da
tradução de alétheia por descoberta. Aos olhos da tradição que sempre privilegiou uma leitura lógica dos
textos aristotélicos, o ponto de vista heideggeriano, que, se não exclui a perspectiva lógica, vai muito além
dela, produz, com certeza, grande estranheza. Mas não se quer promover aqui uma defesa da posição
heideggeriana. Até porque, talvez, muitas das críticas dirigidas ao filósofo sejam realmente justas; talvez ele
tenha realmente se equivocado em suas interpretações. O que não se pode, porém, é, em função disso, negar
os méritos cabíveis à iniciativa de propor uma nova abordagem para as velhas questões já tão problemáticas
quanto antigas. Heidegger trouxe novos ares à filosofia, suscitou problemas, desencadeou revisões e, acima
de tudo, sacudiu a inércia de uma tradição acostumada a ver as coisas sempre de uma mesma perspectiva.
17
tudo são flores nessa relação. Heidegger identifica os gregos clássicos como os grandes
precursores do modelo ontológico que conduziu posteriormente ao encobrimento do
sentido primário de seus conceitos. Aristóteles, tanto quanto Platão, tem, assim, sua
parcela de responsabilidade pelo rumo tomado pela filosofia ocidental.
A relação de Heidegger com a tradição dá-se, portanto, por duas vias bem
distintas. Por um lado, o filósofo esforça-se em trazer de volta elementos que, segundo seu
entendimento, já haviam sido pressentidos e mesmo compreendidos de modo pré-
fenomenológico pela mais antiga tradição e, por outro, ele combate com fortes críticas o
modelo filosófico posto em marcha por essa mesma tradição, que, supostamente, conduziu
ao encobrimento daquela compreensão ontológica mais originária, conquistada (pré-
fenomenologicamente) em seu início.
Desse modo, embora Heidegger argumente que Aristóteles já dispunha de uma
compreensão originária da verdade como descoberta (alétheia) e que ele por isso mesmo
“jamais defendeu a tese de que o ‘lugar’ originário da verdade fosse o juízo”
14
, o filósofo
grego não é absorvido do encargo de ter contribuído para a edificação da tradição que
negligenciou esse entendimento. Mesmo porque, embora Heidegger reconheça, em
Aristóteles, dois níveis distintos de abordagem da verdade, é evidente, mesmo para ele, o
maior interesse, por parte do filósofo grego, na discussão da verdade ao nível lingüístico,
ou seja, enquanto propriedade dos juízos. Seria muito difícil, impossível talvez, negar que
Aristóteles tenha desenvolvido a idéia de verdade proposicional, por assim dizer. Do
mesmo modo como seria muito difícil, também, não reconhecer nos textos do filósofo
grego o desenvolvimento da idéia de verdade como “concordância”, apesar de ela não
aparecer explicitamente formulada nesses termos
15
. Heidegger tem consciência disso,
tanto que ele não diz, em momento algum, que Aristóteles ou os gregos não pensaram a
verdade como concordância.
14
SZ, p. 226.
15
Em vários momentos de sua obra Aristóteles aborda a questão da verdade ligada ao enunciado (juízo) de
modo muito próximo à formulação clássica da teoria da concordância. Em Metafísica IV 7 (1011b 26s) ele
dá uma definição dos enunciados verdadeiro e falso nos seguintes termos: “Dizer que o que é, não é, ou que
o que não é, é, é falso; por outro lado, dizer que o que é, é, ou, que o que não é, não é, é verdadeiro”. Está
definição aparece em outros lugares (Met. VI, 4 e IX, 10) mais ou menos assim: um enunciado é verdadeiro
quando afirma o unido e nega o separado, enquanto que o enunciado falso faz o contrário com respeito a esta
divisão.
18
Sem negar o fato de que os gregos realmente pensaram a verdade como
concordância, o que Heidegger pretende é mostrar que eles também pensaram a verdade
de um outro modo, enquanto descoberta primeira dos entes. A falha da tradição foi se
deter única e exclusivamente na noção de verdade como concordância, esquecendo
completamente o outro sentido em que a verdade acontece de modo ainda mais originário.
O termo grego alétheia, que Heidegger lê como descoberta, mantia latente o sentido
originário da verdade mesmo sendo usado também para indicar a verdade dos juízos, que,
no entender de Heidegger, não deixa de ser uma descoberta, embora de outro nível. No
entanto, esse profundo entendimento da verdade, já pouco desenvolvido entre os gregos,
caiu em total esquecimento por ocasião da tradução latina que substituiu alétheia por
veritas, termo que não preservou em nada o sentido etimológico do termo grego como
descoberta. Veritas passou a designar apenas uma idéia de concordância. E assim
manteve-se, com algumas variações, até os dias atuais.
Diante disso, a proposta de Ser e Tempo é justamente demonstrar
fenomenologicamente essa compreensão que os gregos já dispunham, de que mais
originária que a verdade temática do juízo é a descoberta primeira dos entes.
16
Para tal é
preciso, no entanto, muito mais que uma reinterpretação etimológica, é preciso confrontar
uma tradição de equívocos que se arrasta por mais de dois milênios. Nesse sentido, torna-
se útil a proposta fenomenológica da “volta às coisas mesmas”, procedimento
metodológico que exclui, em princípio, toda e qualquer concepção metafísica previamente
estabelecida. A mais combatida dentre estas concepções metafísicas – a que é mais
fatídica aos olhos de Heidegger – é a orientação face ao ser como “substância”
(Substanzt), como aquilo que “fica por baixo” (sub-stantia) e se mantém continuamente
presente através de todas as mudanças.
17
Essa “ontologia da substância” torna-se um
16
Embora Ser e Tempo siga essa orientação grega (aristotélica) na direção de uma verdade mais originária,
que coincide com a primeira descoberta dos entes, a seqüência deste trabalho revelará uma diferença gritante
entre o modo como os gregos descreveram essa descoberta originária e o modo como Heidegger a descreve.
Como vimos acima, para os gregos, a descoberta primeira dos entes é cumprida pela simples percepção
sensível das coisas; o que é um posicionamento coerente com seu modelo ontológico que toma o ser como
algo subsistente e evidente. Já Heidegger, como ainda veremos, ao mesmo tempo que combate o modelo
ontológico inaugurado pelos gregos, e que acabou determinando posteriormente todo o desenrolar da
filosofia ocidental, também busca mostrar, através das conquistas de sua analítica existencial, que até mesmo
as percepções sensíveis só são possíveis desde a estrutura ontológica fundamental do ser-no-mundo.
17
Devido a esse enfoque no que é continuamente presente, a ontologia tradicional é chamada também de
“metafísica da presença”. Em traços gerais, pode ser facilmente identificada, por exemplo, “na noção das
formas de Platão, nas substâncias primárias de Aristóteles, no Criador da crença cristã, na res extensa e res
19
problema na medida em que concebe os entes como “substâncias” ou “coisas”
independentes e faz do mundo a soma final de todas elas. Essa é, para Heidegger, a fonte
de muitas das dificuldades que já ocupavam os gregos clássicos e que, apesar das várias
mudanças sofridas pela filosofia, arrastam-se sem solução efetiva até nossos dias. Pois, se
os entes são tomados como coisas independentes em seu ser, não há como fugir da questão
de como se dá o contato entre eles – num caso específico: entre aquela classe de entes que
nós mesmos somos e os demais, não dotados do nosso caráter. Fazendo uso da
terminologia cartesiano-kantiana, trata-se do problema da relação sujeito-objeto: como
dois entes que, mesmo ocorrendo lado a lado num mundo, são de início separados e
independentes, podem estabelecer contato entre si? E se essa questão permanece um
problema, o que dizer, então, acerca da noção de verdade como concordância que dela
deriva?
Por tudo isso, Heidegger considera imprescindível o abandono da perspectiva
tradicional em prol de um novo modelo filosófico que evite já em seu ponto de partida
toda essa trama indissolúvel em que a tradição mergulhou. Tal empresa demanda uma
linguagem filosófica original, útil também para prevenir qualquer confusão da nova
abordagem com as linhas tradicionais de pensamento que quer combater. Daí Ser e Tempo
não fazer uso de pares conceituais como sujeito-objeto, consciência-mundo.
18
Seu enfoque
é justamente a crítica às teorias da consciência e da subjetividade, já em princípio
comprometidas com esse tipo de cisão. A discussão é conduzida ao nível que sustenta o
todo da relação sujeito-objeto/consciência-mundo: o nível da existência fática. Em seu
modo mais fundamental, a existência ainda não é dualista, quer dizer, ela não opera desde
uma separação entre sujeito e objeto ou entre o que é interno ou externo, senão que, nesse
nível, o ente existente e o mundo em que ele, por assim dizer, existe se confundem. O ser-
aí já está sempre fora, junto aos entes. Ele é fundamentalmente ser-no-mundo.
E é desde esse conceito de ser-no-mundo que a descoberta originária dos entes
pressuposta pelo modo de ser da verdade proposicional, bem como o ser-descobridor da
cogitans de Descartes, no númeno de Kant e na matéria física pressuposta no naturalismo científico” (Cf.
GUIGNON, Charles B. Poliedro Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, p. 23).
18
Quando o uso da terminologia tradicional torna-se necessário, até mesmo para demarcar sua diferença com
relação à linguagem de Ser e Tempo, os termos aparecem quase sempre entre aspas para chamar atenção
contra possíveis confusões.
20
proposição e o modo derivado da “concordância”, podem receber uma verificação
fenomenal.
1.1 - O ser-no-mundo
Como bem observa Ernildo Stein, em Seminário sobre a verdade, Heidegger
“não poderia ter atingido com tanta dureza e violência a tradição metafísica, se não tivesse
introduzido, desde o começo, uma questão essencial que é definir o homem, enquanto
Dasein, como ser-no-mundo”
19
. É esse conceito que permite ao filósofo uma alternativa
aos modelos metafísicos das teorias da consciência e da representação, fundadas no
modelo da relação sujeito-objeto.
Enquanto elemento estrutural, o conceito “ser-no-mundo” sugere um
envolvimento originário do ser-aí com seu mundo-ambiente.
20
Um envolvimento que não
deve ser interpretado, meramente, como uma possibilidade que o ser-aí pode ou não
realizar, ou, então, como uma peculiaridade que ele às vezes apresenta e às vezes não,
podendo ser, igualmente, com ou sem ela; a relação com o mundo não é algo que possa ser
acrescentado ou removido em algum momento qualquer. O ser-aí, diz Heidegger, “nunca é
‘primeiro’ um ente, por assim dizer, livre de ser-em que, algumas vezes, tem gana de
assumir uma ‘relação’ com o mundo”
21
. É próprio desse ente já estar desde sempre
envolvido com o mundo. E, sendo assim, já não faz sentido o postulado da relação sujeito-
objeto que até então só serviu para atravancar o debate acerca da natureza e possibilidade
do conhecimento.
22
O ser-aí não precisa transpor os limites de seu eu ou de sua
consciência para entrar em contato com o mundo exterior; em tudo o que faz ou deixa de
fazer já está desde sempre “fora”, junto aos entes e ocupado com eles.
19
STEIN, Ernildo. Seminário sobre a verdade: lições preliminares sobre o parágrafo 44 de Sein und Zeit.
Petrópolis: Vozes, 1993, p. 19.
20
Fica excluída, assim, qualquer interpretação do ser-no-mundo face a mera espacialidade do encontrar-se
de um ente dentro de outro. O ser-aí não está no mundo do mesmo modo como a água está no copo ou a
roupa no armário, ou seja, como um ente simplesmente dado dentro de outro ente simplesmente dado.
21
SZ, p. 57.
22
O problema se origina na medida em que ao assumir, como ponto de partida, a separação entre sujeito e
objeto, cria-se um fosso intransponível entre eles que acaba desembocando, de um modo ou de outro, numa
solução de cunho subjetivista. Uma importante forma de subjetivismo é o representacionismo, ou teoria da
representação. Consiste na idéia de que o sujeito torna o mundo disponível para si através de representações
mentais. Sendo que estas representações são, inevitavelmente, obra do próprio sujeito, surge a dúvida se tais
representações espelham o mundo de uma forma verdadeira, ou se são meras “ficções” úteis. Esse problema
é amplamente desenvolvido por Richard Rorty em A filosofia e o espelho da natureza (RORTY, Richard.
Philosophy and the Mirror of Nature. Oxford: Basil Blackwell, 1980).
21
Antes de qualquer apreensão teórica, os entes são encontrados e liberados
pelas atividades cotidianas, indicadas por Heidegger com o termo genérico “ocupação”
(Besorgen). A expressão apanha os diferentes modos de envolvimento prático do ser-aí
com o mundo: ter o que fazer com alguma coisa, produzir alguma coisa, tratar e cuidar de
alguma coisa, empreender, impor, pesquisar, interrogar, considerar, discutir,
determinar...
23
. A ocupação é, em complemento ao que foi exposto acima, a forma do
envolvimento do ser-aí com o mundo. Por ela se cumpre a mais imediata relação com os
entes.
Então Heidegger constata que aquilo que a ocupação confronta em suas
atividades não são “coisas” meramente dadas, assim como pensava a tradição metafísica,
mas instrumentos (Zeug). No modo de lidar cotidiano encontramos instrumentos de
escrever, de medição, de costura, de locomoção e não entes meramente dados, que apenas
posteriormente se descobre serem úteis para tais e tais funções. Constitui-se um engano
pensar que primeiramente os entes são conhecidos em suas propriedades para depois
adquirirem valor – de utilidade, por exemplo. Heidegger quer evidenciar justamente o
contrário, ou seja, que os entes precisam ser primeiramente encontrados como
instrumentos, para depois poderem se converter em objetos de observação.
O mundo doméstico em que o ser-aí se arranja no dia-a-dia, o mundo de suas
ocupações cotidianas, é um mundo repleto de instrumentos. São desde o início
instrumentos e não outra coisa, meras “coisas”. Trata-se, enfim, de uma enorme trama
instrumental, onde cada instrumento se define em função de sua referência a outros
instrumentos. Rigorosamente, diz Heidegger, “um instrumento nunca ‘é’. Ele só pode ser o
que é num todo instrumental que pertence ao seu ser”
24
. Esse todo instrumental
compreende os diversos modos de “ser-para” (serventia, contribuição, aplicabilidade,
manuseio), em cuja estrutura dá-se uma referência de “algo para algo”. O martelo é “para”
pregar pregos, que servem “para” unir as tábuas, que são “para” constituir a mesa, que é,
por fim, “para” o proveito do ser-aí. Nota-se aqui que junto ao seu ser-para, junto a sua
utilidade, o instrumento carrega também uma multiplicidade de referências à outros
instrumentos. São referências de pertinência. Nelas e por elas que o instrumento cumpre a
sua instrumentalidade. O martelo é o que é na referência com as tábuas, com os pregos,
23
SZ, p. 56.
24
SZ, p. 68.
22
etc. Em última instância, é o contexto geral da obra que sustenta a totalidade das
referências na qual o instrumento vem ao encontro em seu para-que específico. É ela, a
obra (Werk), que vai determinar, em vista da sua realização, a utilização dos diferentes
instrumentos. Isso porque, enquanto produção, a obra já sempre implica a utilização de
algo para produzir algo. Mas não apenas isso. Numa obra também se dá o emprego de
algo em algo, o que constitui uma referência aos “materiais” manipulados. Na produção da
mesa, por exemplo, as tábuas remetem à madeira, os pregos ao aço e assim por diante. Por
seu turno, a madeira faz referência às arvores, que remetem ao campo onde foram
cultivadas ou, então, à floresta onde cresceram espontaneamente; o aço remete às minas
onde é encontrado sempre à mão – disponível. Nisso desdobra-se, no mundo circundante,
o revelar-se da “natureza” à luz dos produtos naturais (matérias-primas)
25
. A natureza vem
ao encontro junto à trama referencial que caracteriza a ocupação cotidiana.
26
Sendo desse modo, o mundo das ocupações cotidianas constitui-se, citando
Dahlstrom
27
, numa “rede”, que, como se evidenciará mais adiante, tem no ser-aí o seu
termo último. Afinal, é em função dos empreendimentos e projetos desse ente especial que
cada instrumento alcança, na pertinência com outros, o seu “ser-para” específico.
Essa constatação acerca dos instrumentos não é tão evidente quanto se poderia
esperar que fosse porque, de acordo com Heidegger, no nosso envolvimento com eles,
raramente os notamos (explicitamente!) naquilo que são, na sua instrumentalidade.
Quando, por exemplo, utilizamos a maçaneta da porta para ter acesso a um outro
compartimento, geralmente não estamos com nossa atenção voltada para a maçaneta, mas
para onde estamos nos dirigindo e para aquilo que estamos fazendo. O uso da maçaneta,
numa dada situação do cotidiano, se dá de modo tão automático que ela se esquiva da
nossa atenção, cumprindo sua função instrumental de modo invisível. Como o próprio
Heidegger enfatiza, trata-se de uma peculiaridade dos instrumentos apagarem-se em sua
funcionalidade: o que está à mão, diz ele, “nem se apreende teoricamente nem se torna
25
SZ, p. 70.
26
É importante frisar a observação de Heidegger de que a natureza não deve ser tomada, aqui, como algo
simplesmente dado e nem tampouco como força natural. No mundo circundante, no mundo das ocupações
cotidianas, a natureza é um manancial manipulável, solícito e prestativo. “A mata é reserva florestal, a
montanha é pedreira, o rio é represa, o vento é vento ‘nas velas’” (SZ, p. 70). Claro que Heidegger
reconhece que a natureza pode também ser descoberta e determinada (apenas) em seu modo de ser
simplesmente dado. Nesse modo de descobrir, porém, “a natureza se vela enquanto aquilo que ‘tece e
acontece’, que se precipita sobre nós, que nos fascina com sua paisagem. As plantas do botânico não são
flores no campo, o ‘jorrar’ de um rio, constatado geograficamente, não é ‘fonte no solo’” (SZ, p. 70).
27
Op. cit., p. 258.
23
diretamente tema da circunvisão; o que está imediatamente à mão se caracteriza por
recolher-se em sua manualidade para, justamente assim, ficar a mão”
28
. O modo de lidar
cotidiano não se detém diretamente nos instrumentos como tais; aquilo que interessa,
fundamentalmente, é a obra a ser cumprida.
A constatação de que não prestamos atenção aos instrumentos ao fazer uso
deles, não significa que sejam “desconhecidos” para nós; pelo contrário, a familiaridade,
demonstrada no uso desatento que deles se faz, revela que já dispomos de uma
compreensão a respeito de seu ser. Ao usar a maçaneta da porta, por exemplo, já sempre
sabemos que se trata de um instrumento de prender e desprender portas, mesmo que isso
não seja para nós mesmos explícito. A ocupação possui um modo próprio de
“conhecimento” que descobre os entes em sua manualidade instrumental antes mesmo que
qualquer apreensão teórica para eles se volte. Nisso evidencia-se um importante
contraposto à pretensão de auto-suficiência da atitude contemplativa enquanto modo de
acesso ao mundo. A atitude mais originária em relação aos entes e ao mundo não é a
contemplação, mas a ocupação; o que vem ao encontro, muna primeira aproximação, não
são coisas independentes e suas propriedades perceptíveis, mas instrumentos disponíveis
para a utilização em algum tipo de ocupação prática. Obviamente que o famoso martelo de
Ser e Tempo tem as suas propriedades perceptivas, Heidegger não está negando isso.
Entretanto, ele ressalta que tais propriedades não são o que primeiro é percebido quando o
martelo está sendo utilizado, por exemplo, na execução cotidiana das tarefas de um
carpinteiro. Num tal contexto o martelo é usado para pregar os pregos para construir uma
casa que é para o abrigo de alguém que, retribuindo o esforço do carpinteiro, faz com que
ele possa prover o sustento de sua família. A atenção explícita é, notadamente, dirigida
para os objetivos que envolvem o todo da obra (pregar os pregos, construir a casa, prover a
família) e não para as propriedades dos instrumentos utilizados para a sua execução, no
caso, para as propriedades do martelo. É nesse emprego corriqueiro e desatento das coisas
que elas silenciosamente se revelam naquilo que são. Por isso, Heidegger assegura que
quanto menos nos limitarmos a olhar a coisa-martelo e mais formos impelidos a agarrá-lo
e usá-lo, mais primordial se torna a nossa relação com ele e mais claramente ele se nos
28
SZ, p. 69.
24
revela tal como é – como instrumento
29
. O instrumento se revela por si mesmo no uso que
dele se faz.
Mas, em função da peculiaridade da nossa relação com os instrumentos, na
qual estes tendem a se manter invisíveis em sua funcionalidade, fica difícil perceber
explicitamente o que eles são sem os fazer passar de objetos instrumentais para simples
objetos perceptivos. E, por isso, somente na ocasião do rompimento dessa tendência auto-
ocultante dos instrumentos é que se pode vê-los explicitamente tal como são. Isso ocorre,
excepcionalmente, quando o instrumento por algum motivo (quebra, ausência...) deixa de
desempenhar a sua função. Aí então a rede de relações na qual ele estava encaixado se
revela e a sua instrumentalidade salta aos olhos. Quando a maçaneta fica na nossa mão, ou
a cabeça sai do martelo, o funcionamento até então transparente desses instrumentos cessa
e isso traz à tona a relação desse funcionamento com o conjunto de instrumentos (trincos,
portas, entrada e saída ou pregos, madeira e o resto das ferramentas e materiais do
carpinteiro) e com os objetivos e projetos que estavam em desenvolvimento (chegar até a
cozinha para fazer um lanche ou pregar as tábuas para construir uma mesa). Só então, pela
impertinência desses acontecimentos extremos, a nossa atenção se volta para os
instrumentos e os vê explicitamente.
Tomemos outro exemplo para ilustrar. Vamos considerar agora a experiência
cotidiana de dirigir até o trabalho
30
. Contanto que o motor do carro esteja funcionando
suavemente e a rodovia esteja com tráfego fluente, ambos permanecerão tão discretos
quanto o próprio ato de dirigir ou as árvores e edifícios espalhados ao longo do caminho.
Mas se, repentinamente, o motor do carro parar de funcionar ou a rodovia for bloqueada
por algum motivo, então, eles já não se refugiam mais em sua manualidade e,
prontamente, nos tornamos conscientes do que eles são, de sua serventia enquanto
instrumentos. É necessário, portanto, que algo dê errado, que não funcione de acordo, para
que o instrumento seja confrontado como tal. Mas não é só isso. A impossibilidade de uso
do instrumento perturba, também, a estrutura funcional na qual ele estava inserido e a
revela para a circunvisão, que ao deparar-se com o dano do instrumento visualiza, então, o
conjunto referencial em que ele era empregado, não como algo nunca visto, mas como um
29
SZ, p.69.
30
Esse exemplo é fornecido por Dahlstrom, op. cit., p. 259.
25
todo já sempre visto antecipadamente na circunvisão
31
. Nesse todo que ressalta quando as
nossas atividades cotidianas são interrompidas, quando as coisas que estamos utilizando se
tornam problemáticas, anuncia-se o mundo circundante, o mundo da atividade prática.
Este mundo é a rede de relações na qual se encaixam os sistemas de totalidades de
equipamentos com as suas relações internas (referências) com outros instrumentos e
externas (serventia) com relação aos propósitos de quem os emprega. As coisas
manuseáveis, os instrumentos, são apenas o lugar que ocupam nesse mundo.
Heidegger argumenta que esse mundo prático
32
, ou mundo circundante, em
que nos movimentamos no dia-a-dia, e o sentido que as coisas têm para nós no seu
interior, são mais fundamentais do que aquela idéia tradicional de mundo como um
continente onde as coisas estão postas independentemente lado a lado. Harrison Hall
ressalta dois aspectos desde onde se pode vislumbrar o caráter fundamental do mundo
prático frente ao teórico:
1) O mundo prático é o que nós habitamos primeiro, antes de filosofarmos ou
nos empenharmos numa investigação científica – nas palavras de Heidegger, é
onde nós nos encontramos “próximos e na maior parte”;
31
A circunvisão (Unsicht) é o tipo e visão própria da ocupação cotidiana. Trata-se de uma visão orientada
pelo contexto amplo das atividades práticas. O carpinteiro olha para confirmar a direção certeira do prego,
ou perscruta as partes da oficina a procura de um pedaço de madeira para substituir aquele que se rompeu ao
ser martelado. Nesses casos, o olhar do carpinteiro não é, de modo algum, uma simples contemplação
desinteressada das propriedades objetivas do que está em torno. É antes uma atividade mundana, tão prática
em suas relações estruturais quanto às demais atividades do carpinteiro.
32
O adjetivo “prático” é usado para reforçar o caráter funcional do existir cotidiano. Fica excluída, de
princípio, qualquer ligação imediata com outros sentidos anexados ao termo ao longo da história. Acima de
tudo, o uso que aqui se faz do termo “prático” não deve ser ligado ao sentido que ele adquiriu enquanto
oposição ao teórico. E mesmo que surja, por vezes, em nossa explanação da teoria heideggeriana, uma
relação entre aquilo que designamos de mundo prático e mundo teórico, isso nada tem a ver com aquela
oposição moderna entre teórico e prático configurada, principalmente, pela filosofia marxista. Quando Marx
voltou-se contra a atitude meramente contemplativa da filosofia clássica, reivindicando a urgência de uma
ação transformadora do mundo, a atividade prática (a práxis), grande artífice dessa transformação, coincidia
com a atividade produtiva. Foi pensando a práxis enquanto atividade produtiva, enquanto força
transformadora (trabalho), que Marx a indicou como geradora de teoria. Como isso as diferenças começam a
se tornar claras: em Marx (e no marxismo, também) “teoria” e “prática” tem um sentido bastante específico,
ligado à idéia filosófica da transformação do mundo, da luta de classes, da revolução do proletariado; já em
Heidegger, o uso que por ventura se faz desses conceitos tem uma abrangência muito mais ampla e
fundamental – o teórico diz respeito ao comportamento teórico em relação ao mundo e o prático diz respeito
ao comportamento existencial mais básico de lidar com as coisas, se ocupar, se relacionar efetivamente com
elas. Assim, ao se falar em mundo teórico faz-se referência ao mundo da atividade teórica (contemplativa) e
quando se falar em mundo prático o que ser quer indicar é a esfera da vida fática, com suas ocupações e
preocupações. A vida é fundamentalmente prática, genuinamente prática sob o ponto de vista heideggeriano.
Afinal, viver é se arranjar, é se adaptar, é resolver problemas, é procurar alternativas, é cumprir tarefas.
26
2) O mundo no sentido tradicional do termo como derivando do mundo
prático, mas não no sentido oposto – quer dizer, começando pela concepção de
Heidegger do mundo prático, nós podemos aperceber-nos de como o
significado tradicional do mundo surge, enquanto qualquer tentativa de tomar
como base a percepção e a cognição objetivas para construir o mundo prático
sem os recursos tradicionalmente disponíveis está votada ao fracasso.
33
Na interpretação tradicional se passa por cima desse fenômeno do mundo
prático, que é o mundo mais originário e mais próximo de nós. O que prevalece para a
tradição é uma idéia de mundo enquanto realidade substancial independente, acessível
através das representações mentais que dele se obtém. O objetivo da filosofia e da ciência
nessa tradição é aprender essa realidade assim como ela é em si mesma, encontrando
modos que garantam a precisão de nossas representações mentais. Mas para apreender as
coisas tal como elas são, independentemente dos nossos objetivos e projetos, é preciso
abandonar a atitude prática, que marca o envolvimento originário com o mundo onde
vivemos, e adotar uma perspectiva puramente teórica. Trata-se, em outras palavras, de
adotar uma atitude contemplativa do mundo, motivada apenas pela pura curiosidade
acerca da essência das coisas. Para o modelo ontológico que assim procede, as essências
apreendidas pela atividade cognitiva constituem o que há de mais básico, são os blocos de
construção do mundo.
A crítica de Heidegger a essa visão se dá basicamente em duas linhas. Em
primeiro lugar, ele sustenta, como já mencionamos acima, que essa perspectiva ontológica
conduz a uma separação irremediável entre sujeito e objeto, causa dos problemas
tradicionais da teoria conhecimento. Em segundo lugar ele considera insuficiente a
explicação que a tradição fornece acerca do modo como as coisas, nesse sistema, adquirem
valor. Tendo como base coisas meramente dadas e independentes de nós, não fica claro
como essas coisas adquirem, em determinado momento, predicados de valor que parecem
depender da nossa relação para com elas.
34
A dificuldade se deve à impossibilidade de se
33
HALL, Harrison. Intencionalidade e mundo: divisão I de Ser e Tempo. In: Guignon, Charles (Org.).
Poliedro Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, p. 146.
34
“Na opinião de Heidegger, a tentativa de explicação de Husserl de como nós adicionamos camadas de
significado às nossas representações mentais de forma a evoluir de simples coisas para objetos culturalmente
úteis e valiosos do mundo da vida cotidiana, é o melhor que pode ser feito dado o enquadramento
tradicional, e é um óbvio e completo falhaço” (Hall, op. cit., p. 147). Em Ser e Tempo a crítica ao modelo
tradicional de mundo aparece mais concentrada no item B do Terceiro Capítulo (Contraposição da análise da
mundaneidade à interpretação de mundo de Descartes) §§ 19, 20 e 21. Sendo que neste último, o § 21, é
onde aparece mais diretamente o confronto com as teorias tradicionais do “valor”.
27
seguir o caminho inverso à ordem ontológica dos fenômenos – quer dizer, explicar o
mundo prático (mais originário) partindo de uma perspectiva teórica do mundo (posterior)
– pois o máximo que se obtém com isso é a idéia de que o mundo prático é o mesmo
mundo da perspectiva teórica mais algumas relações e predicados de valor colados
posteriormente nele.
Em contraste com a dificuldade da tradição em passar do mundo teórico para o
prático, o inverso é plenamente inteligível. Podemos, por exemplo, passar do instrumento
à mão ao objeto simplesmente dado por algo como a subtração de interesse e
envolvimento da atividade prática normal. Se o carpinteiro não puder encontrar nada para
substituir o martelo partido e abandonar os seus esforços para prosseguir com o trabalho,
pode, eventualmente, atingir o ponto de apenas olhar à volta, para as coisas da sua oficina.
Nesse caso, aparte das redes de relações práticas que definem o encontro normal com os
instrumentos na oficina, o carpinteiro pode perceber, então, objetos simplesmente dados
num determinado espaço objetivo.
Marcada essa diferença entre mundo prático e mundo teórico e o modo como
se dá a passagem do primeiro para o segundo, há de se considerar agora o fenômeno da
mundaneidade (Weltlichkeit).
35
O esclarecimento do fenômeno exige que retomemos
novamente as considerações acerca do mundo prático, o mundo circundante de que fala
Ser e Tempo. Vimos acima que aquilo que encontramos primariamente no mundo prático,
em que estamos envolvidos de início e na maioria das vezes, não são coisas, mas
instrumentos, e que estes são o que são em função da sua pertinência à um todo
instrumental e da sua viabilidade em relação aos projetos humanos. São essas relações que
definem o “ser” daquilo que encontramos de imediato no mundo. Mas os instrumentos não
trazem essas relações essenciais presas a eles como propriedades que pudessem ser
apanhadas por um observador qualquer. Tais relações remetem à estrutura do mundo de
quem cotidianamente está envolvido (ocupado) com tais instrumentos. O martelo só é
aquilo que é enquanto instrumento – um manual com relações e aplicabilidade próprias –
para aqueles, e somente para aqueles, que estiverem familiarizados com ele, ou seja, para
aqueles que convivem habilmente com as tarefas e ferramentas do (de um) carpinteiro. Já
35
Segundo Hall (op. cit., p. 141), o mal entendido mais comum em relação ao pensamento de Heidegger,
nesse ponto, é abandonar à pressa esta compreensão mais radical do mundo (mundaneidade) e vê-lo como
simplesmente chamando a atenção para e afirmando a importância especial do mundo da atividade prática
com os seus sujeitos hábeis e objetos úteis.
28
para quem está alheio aos instrumentos e à atividade do (de um) carpinteiro, o martelo se
constitui, quando muito, num mero objeto simplesmente dado.
O que ressalta nisso é que o “ser” daquilo que confrontamos no mundo
depende da familiaridade a ambientes práticos específicos. Familiaridade indica, aqui, a
posse (compreensão) prévia da perspectiva desde a qual o instrumento pode surgir em sua
manualidade – como algo que é para, a fim de, em proveito de. Ao falar da mundaneidade
do mundo, Heidegger está chamando atenção para a existência de uma perspectiva mais
ampla e mais básica daquelas associadas aos mundos práticos específicos. Assim como
temos familiaridade com perspectivas mundanas específicas que nos permite, por
exemplo, quando carpinteiros, encarar o martelo como um martelo, tamm temos
familiaridade com uma perspectiva mais geral que forma o substrato necessário para o
nosso contato com toda e qualquer coisa. O mundo da atividade prática, assim como o
mundo da perspectiva teórica, são apenas casos particulares desta mundaneidade geral.
Essa perspectiva mais geral, na familiaridade da qual compreendemos não só
aquilo que confrontamos mas também a nós mesmos de um determinado modo, é ainda
mais invisível que as perspectivas relativas ao mundo das atividades práticas específicas.
Conforme Hall, “não só normalmente não as notamos (porque assistimos a atividades nas
quais estamos envolvidos), mas a própria noção de lhes dar atenção desaparece perante a
concepção de Heidegger do ser humano e do mundo”
36
. Na continuação, Hall explica que
se partimos da idéia central de que as coisas nos surgem como são apenas contra uma dada
perspectiva (ele chama de “substrato de familiaridade, competência e preocupação”), que
permite a elaboração de um sistema de papéis relacionados no qual as coisas se encaixam,
então, nesse caso, as quebras na atividade prática até podem nos dar uma oportunidade de
captar a perspectiva que orienta os sistemas específicos da atividade prática (os para-que,
em-que, em-proveito-de); podemos ter uma idéia, por exemplo, da perspectiva que orienta
a atividade do carpinteiro e o modo como as coisas se revelam para ele. Mas o mundo do
carpinteiro não abrange todo o mundo do ser-aí, assim como, também, ser um carpinteiro
não diz tudo o que é o ser-aí. Há uma perspectiva mais ampla e mais básica que delineia
não apenas o sentido daquilo que nos vem ao encontro nos diversos ambientes práticos,
mas também o modo como nos comportamos em cada um deles – como nos posicionamos,
como nos movemos, o que dizemos, e assim por diante. Tudo o que fazemos, e aqui
36
Op. cit., p.150.
29
incluímos “prestar atenção” e “captar algo explicitamente”, pressupõe essa perspectiva
mais básica que Heidegger denomina de mundaneidade. Daí que, quando chegamos ao
sentido mais amplo e mais básico das coisas, ao nosso sentido e ao sentido do mundo, não
temos um contexto ainda mais amplo desde o qual possamos tematizá-lo. Não podemos
abandonar aquela perspectiva mais básica e geral de lidar com as coisas de modo a fazê-la
mostrar-se do mesmo modo como podemos fazer com as capacidades do carpinteiro.
Mesmo não sendo possível uma apreensão explícita da perspectiva em que nos
movemos desde sempre e em função da qual já nos compreendemos de um modo ou de
outro, podemos, graças às reflexões acerca do mundo prático, obter uma compreensão de
sua estrutura. Os manuais são confrontados na ocupação sempre em função de um
determinado contexto instrumental e funcional, ou seja, em função de sua pertinência a
outros instrumentos e aos projetos práticos do ser-aí. A totalidade dessas relações constitui
a perspectiva desde a qual os entes podem estar à mão em sua instrumentalidade. Isso
fornece a chave para a compreensão da estrutura geral do mundo (a mundaneidade) em
termos de uma totalidade referencial mais ampla e básica, que Heidegger vai chamar de
significância (Bedeutsamkeit). “É ela o que constitui a estrutura do mundo em que o ser-aí
já é sempre como é”
37
. Com base nessa significância que o ser-aí significa para si o que
encontra, ou, dizendo de outro modo, é com base nessa significância que os entes podem
surgir como importantes ou significantes de alguma maneira.
A pretensão de Heidegger ao desenvolver o conceito de mundaneidade é
chamar atenção para a interdependência entre o ser-aí e o mundo, já indicada na cunhagem
da expressão ser-no-mundo. Enquanto constituição essencial do ser-aí, o mundo é aquilo
“em que” todos os entes encontram significação e é, também, ao mesmo tempo, o habitat
do ser-aí, a sua morada. Do ponto de vista ontológico, o mundo é sempre o mundo do ser-
aí e o ser-aí é sempre o seu mundo. Tanto quanto não se dá um mundo sem o ser-aí,
também não se dá um ser-aí sem mundo. Nesse sentido não é nem correto falar que o ser-
aí estabelece relações com o mundo, pois mundo é antes aquilo que possibilita relações.
Nada vem ao encontro que não seja pela estrutura do mundo. Também os outros entes com
o caráter de ser-aí vêm ao encontro e se fazem companheiros através da estrutura
significativa do mundo. Dizer que o mundo é uma propriedade ontológica do ser-aí ou,
então, que o mundo é sempre o mundo do ser-aí, não implica na sua caracterização como
37
SZ, p. 87.
30
particular ou inacessível. O mundo do ser-aí é compartilhado. O ser-no-mundo diz
também ser-com-outros. Não vale pensar o ser-aí como um ente isolado, independente. Ele
é fundamentalmente um ser-com (Mitsein); e isso vai respingar decisivamente na
tematização da verdade. Mas não cabe tratar disso aqui, já que esse constituirá o tema do
capítulo II. Por ora, partindo da constatação de que a estrutura geral do mundo precede e
acompanha todo e qualquer encontro dos entes (tenham eles ou não o caráter de ser-aí),
interessa investigar a elaboração da abertura prévia do mundo como fundamento
ontológico da descoberta dos entes. Trata-se, portanto, de um ponto central na
caracterização do fenômeno originário da verdade.
1.2 - A abertura do mundo e o fenômeno originário da verdade
Até aqui, a exposição procurou focar a constatação de Heidegger, inspirada
nas leituras de Aristóteles, de que há um contato prévio com os entes que os libera para
serem apanhados em juízos. Esse contato já está sempre em curso na ocupação, ou seja, no
envolvimento prático do ser-aí com o que lhe vem ao encontro. “Vir ao encontro” é um
evento apenas possível dentro de um contexto referencial – indicado como estrutura
ontológica do mundo – que fornece a perspectiva para o encontro. Em outras palavras, isso
quer dizer que toda descoberta dos entes pressupõe a prévia abertura da estrutura
“mundo”. Nela tem de se evidenciar os fundamentos ontológicos do descobrir, que
Heidegger indica como fenômeno originário da verdade.
O esclarecimento da questão é alcançado através da caracterização fenomenal
do ser-em, enquanto momento estrutural do ser-no-mundo.
38
Voltando-se para o ser-em
como tal, o que a interpretação aborda é o ser da própria existência, o “aí” do ser-aí. A
expressão “aí” refere-se ao modo de ser-em como abertura, Erschlossenheit.
39
Embora
traduzido por abertura, de acordo com erschliessen, abrir, tornar acessível, o vocábulo
38
Heidegger definiu desde o início o ser-aí como ser-no-mundo e ressaltou que não se tratava de uma
determinação ôntica, de sentido meramente espacial de um ente dentro de outro. O ser-aí nunca é “no”
mundo de modo direto, senão que ele é no mundo por estar em algumas circunstâncias específicas. É isso
que se investiga na análise do ser-em.
39
Uma vez que Heidegger rejeita a concepção tradicional do homem enquanto mente racional (sujeito
pensante) o ser-aí é considerado estritamente a partir de sua existência. O que define o ser-aí é aquilo que ele
faz, ou seja, o seu modo específico de envolvimento com o mundo. Por isso, ao dizer que o ser-aí é o seu
“aí”, o que Heidegger quer mostrar é que esse ente é essencialmente determinado pela situação formada em
volta de suas atividades mundanas – essa situação é o aí onde o ser-aí já sempre é e se compreende sendo.
31
Erschlossenheit também comporta a conotação de luminosidade, de clareira. Daí a
constatação de que,
a expressão ôntica e figurada de um lumen naturale no homem, não significa
outra coisa que a estrutura ontológico-existencial deste ente, ou seja, o fato de
que ele é no modo de ser do seu aí. É “iluminado” (erleuchtet) quer dizer: estar
em si mesmo iluminado (gelichtet) como ser-no-mundo, não através de um
outro ente, mas, de tal modo, que ele mesmo é a claridade (Lichtung). Só para
um ente existencialmente iluminado desse modo que um ser simplesmente
dado faz-se acessível na luz e inacessível no escuro. O ser-aí sempre traz
consigo o seu aí, e, desprovido dele, ele não apenas deixa de ser de fato, como
deixa de ser o ente dessa essência. O ser-aí é a sua abertura
40
.
Quando a metafísica clássica referia-se a luminosidade inerente ao homem,
esta sempre advinha de sua racionalidade. A radicalidade de Heidegger é propor o
entendimento dessa luminosidade desde o nível existencial: o ser-aí é iluminado na
medida em que, como ser-no-mundo, ele é essencialmente o seu “aí”, ou seja, na medida
em que ele interage com o mundo. São dois os modos essenciais em que o ser-aí constitui-
se como abertura: a disposição (Befindlichkeit
41
) e a compreensão (Verstehen). Pela
consideração desses existenciais, explicitar-se-á a constituição existencial do ser do aí,
onde radica a abertura originária do mundo, fundamento ontológico da descoberta dos
entes.
40
SZ, p. 133. Ao comentar esta passagem de Ser e Tempo Hubert L. Dreyfus (Being-in-the-world: a
commentary on Heidegger’s Being and Time, division I. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1991, p. 164)
ressalta o fato de que Heidegger fala que o ser-aí é o “seu” aí, a “sua” abertura, mas não que é a “sua”
clareira. Heidegger usa a expressão “ser o seu aí” para expressar o modo essencial em que o ser-aí é “na”
clareira. Ou seja, o ser-aí não é a clareira, senão que está na clareira.
41
É um dos conceitos de Ser e Tempo mais difíceis de traduzir. Befindlichkeit não é uma palavra muito usual
na língua alemã, sendo que consiste numa construção que Heidegger elabora a partir do verbo befinden, que
aparece frequentemente na formulação da saudação cotidiana Wie befinden Sie sich?, que literalmente
pergunta “Como você se encontra? e que corresponde mais ou menos ao nosso “Como você está?”. Em
contextos clínicos Befinden é usado também para designar algo como os sintomas de alguém: o médico
pergunta ao paciente “Wie ist Ihr Befinden” (Como são seus sintomas), querendo saber o que ele está
sentindo. Em ambos os casos, tanto na saudação quanto no contexto clínico, befinden indica, portanto, o
modo como a pessoa se sente a si mesma, como ela se encontra aos seus próprios olhos. E isso tanto vale
para o aspecto físico (saúde), tanto para o aspecto emocional (“estado de espírito”). É em harmonia com
estes sentidos usuais do termo em alemão que procuramos traduzir Befindlichkeit por “disposição”, uma vez
que sempre nos encontramos a nós mesmos dispostos de algum modo no mundo, seja fisicamente ( num
ambiente determinado), ou emocionalmente (em determinado humor).
32
a) disposição
O que ontologicamente designamos com o termo disposição, diz Heidegger, é
onticamente o mais conhecido e mais cotidiano, a saber, o humor, o estado de humor
42
. A
constatação ôntica de que o ser-aí em sua cotidianidade está sempre de humor constitui um
indício para a caracterização desse fenômeno como um existencial. O ser-aí sempre está
em um determinado humor. E o fato dos humores poderem se deteriorar e se transformar
no curso das vivências cotidianas é a principal evidência disso. Humores transformam-se e
deterioram-se sempre em outros humores. Do mesmo modo, também o fato de que o ser-aí
possa, deva e tenha de controlar seus humores em certas ocasiões existenciais, não deve
levar à negação ontológica do humor enquanto modo originário desse ente. Afinal, “nunca
nos assenhoramos do humor sem humor (stimmungslos), mas sempre a partir de um humor
contrário”
43
.
É pelo humor que o ser-aí acessa originalmente sua condição de existente. O
humor revela “como alguém está e se torna”
44
, quer dizer, no estado de humor, o ser-aí
experimenta o sentimento de que ele existe. No entanto, na maior parte das vezes sua
existência revela-se como um peso. Ele experimenta a angústia de estar-lançado no mundo
sem saber de onde veio e para onde vai. “A expressão estar-lançado (Geworfenheit) deve
sugerir a facticidade de ser entregue à responsabilidade
45
. Em alerta contra possíveis
confusões, Heidegger ressalta que a facticidade do ser-aí aberta na disposição não deve ser
confundida com a fatualidade de um ente meramente dado dentro do mundo, que se faz
acessível pela constatação observadora. Ao contrário, a facticidade, enquanto caráter
ontológico do ser-aí, não pode jamais ser encontrada por uma observação ou uma intuição,
mas apenas pelo sentir privilegiado do humor, que nem de longe tem o caráter de
observação.
O que se abre na disposição, o “aí” do ser-aí em sua facticidade, é na maior
parte das situações ôntico-existenciárias, um peso. Por que motivo tal condição torna-se
um peso não se sabe, constata Heidegger
46
. Mas é notável a resistência cotidiana em
42
SZ, p. 134.
43
SZ, p. 136.
44
SZ, p. 136.
45
SZ, p. 135.
46
SZ, p. 134: “...o ser do aí mostra-se como peso. Por que, não se sabe (Warum, weiss man nicht). E o ser-aí
não pode saber algo desse tipo (dergleiche), visto que as possibilidades de abertura do conhecimento são
33
“ceder” aos humores que revelam essa condição. Tal é o nosso desconforto diante da
angústia
47
, por exemplo, a qual buscamos de imediato aliviar ou superar. É, contudo,
nesses humores que o ser-aí em sua cotidianidade faz pouco caso que sua responsabilidade
para com o próprio ser se revela. O que angustia é a própria facticidade que ali se
expressa. É dela que o ser-aí se esquiva e não de outra coisa. Esquivar-se não tem o caráter
de uma ação premeditada, antes trata-se de um modo de dispor-se. Ademais, antes que
uma prova contra o fato fenomenal de que o humor abre o ser-aí em seu ser, esse esquivar-
se cotidiano é um testemunho, visto que é de seu próprio ser que se abre no humor que o
ser-aí se esquiva. Com o exposto até aqui, evidenciamos o primeiro dos três caracteres
ontológicos da disposição enfatizados por Heidegger: ela abre e revela o ser-aí em sua
condição de estar-lançado no mundo e nisso se revela a responsabilidade para com o
próprio ser, que na maior parte das vezes e antes de tudo, lhe ocorre como uma carga da
qual ele prontamente tende a esquivar-se.
Enquanto um existencial do ser-aí, a disposição está bem longe de uma mera
apreensão reflexiva ou mesmo de uma constatação de um estado de alma. Os humores nos
assaltam; eles não vêm de fora nem de dentro; emergem como um modo de ser-no-
mundo
48
. Esse emergir carrega consigo a abertura do ser-no-mundo em sua constituição
básica. Trata-se do segundo caráter essencial da disposição: a abertura igualmente
originária do mundo, do ser-com-outros e da existência. Isso pode ser mais facilmente
visualizado a partir da descrição que o filósofo faz do temor (Furcht). Esse humor para ser
apanhado em sua totalidade tem de ser visto desde a perspectiva daquilo de que se teme e
o seu caráter ameaçador (o objeto e a possibilidade de vir ao encontro no mundo), do
temor por outrem (ter medo em lugar de alguém) e, por fim, da base do temor (o ser-aí).
restritas se comparadas com a abertura originária dos humores, em que o ser-aí se depara com seu ser
enquanto aí”.
47
No § 40 de Ser e Tempo – A disposição fundamental da angústia como abertura privilegiada do ser-aí –
Heidegger mostra como por esse humor o ser-aí desoculta o seu ser mais próprio. Diferentemente do temor
que se manifesta sempre por via de um ente intramundano determinado, de onde provém a ameaça, aquilo
com que a angústia se angustia não está em lugar algum. “Ela não sabe o que é aquilo com que se angustia”
(SZ, p. 186). A indeterminação daquilo que angústia suspende a significância do mundo familiar em que o
ser-aí encontra-se desde o início e na maior parte das vezes absorvido e revela a facticidade da existência. A
angústia abre o mundo como mundo, como o lugar onde o ser-aí já está desde sempre lançado e entregue à
própria responsabilidade. Isso significa que “a angústia se angustia com o próprio ser-no-mundo” (SZ, p.
187). Mas a condição de ser-no-mundo não é apenas o “com que” da angústia, senão que também o “por
quê” (SZ, p. 188); quer dizer, angustiar-se, enquanto disposição, constitui um modo fundamental de ser-no-
mundo.
48
SZ, p. 136.
34
Isso serve para mostrar que mesmo um humor pode sozinho articular uma abertura do ser-
no-mundo, em todos os seus aspectos.
O terceiro caráter essencial da disposição vem reforçar o entendimento acerca
do mundo originário das ocupações. Vimos acima, na caracterização do ser-no-mundo,
que antes de qualquer visão temática os entes são descobertos e vêm ao encontro no
interior de um mundo prático-funcional, previamente aberto. Mas nada vem ao encontro
na total indiferença. Os entes vêm ao encontro primeiramente como úteis ou inúteis,
disponíveis ou resistentes, fascinantes ou ameaçadores e assim por diante. Utilidade,
inutilidade, disponibilidade, resistência, fascínio, ameaça, são apenas possíveis, do ponto
de vista ontológico, porque o ser-aí se acha previamente disposto em sintonia com
humores que permitem que ele seja tocado dessa ou daquela maneira pelo que vem ao
encontro no mundo. Assim, por exemplo, apenas o que é na disposição do temor pode
descobrir algo como ameaça.
E só porque os “sentidos” são ontologicamente inerentes a um ente que possui
o modo de ser-no-mundo como disposição, podem eles ser “estimulados” e
“ter sensibilidade para”, de modo que aquilo que os estimula se mostre na
afecção. Por mais fortes que fossem a pressão e resistência, coisas como
afecção não ocorreriam se a resistência não se descobrisse de modo essencial,
se o ser disposto no mundo já não estabelecesse um liame com um ente
intramundano, trabalhado de modo privilegiado por humores. Na disposição
subsiste existencialmente um liame de abertura com o mundo, a partir do qual
algo que toca pode vir ao encontro. Do ponto de vista ontológico fundamental,
devemos em princípio deixar a descoberta primária do mundo ao “simples
humor”. Uma intuição pura, mesmo introduzida nas artérias mais interiores de
alguma coisa simplesmente dada, jamais chegaria a descobrir algo como
ameaça.
49
Também o espanto, indicado pelos gregos
50
como a origem do pensar é
possível apenas com base na disposição do ser-aí. Só um ente disposto em humores pode
49
SZ, p. 137-8.
50
Patão e Aristóteles indicaram o thauma (espanto, admiração) como a experiência que dá origem ao pensar
filosófico:
“Teeteto: – E, pelos deuses, Sócrates, meu espanto é inimaginável ao indagar-me o que isso significa; e, às
vezes, ao contemplar essas coisas, verdadeiramente sinto vertigem.
Sócrates: – Estou vendo, meu caro, que Teodoro não julgou mal tua natureza. É absolutamente de um
filósofo esse sentimento: espantar-se. A filosofia não tem outra origem [...]” (Platão, Teeteto, 155c8).
“Com efeito, foi pelo espanto que os homens começaram a filosofar tanto no principio como agora;
perplexos, de início, ante as dificuldades mais óbvias, avançaram pouco a pouco e enunciaram problemas a
respeito das maiores, como os fenômenos da Lua, do Sol e das estrelas, assim como da gênese do universo”
(Aristóteles, Metafísica, A 982b).
35
espantar-se ou admirar-se frente ao que vem ao encontro. E se com razão a origem do
pensar (filosófico) tem de ser creditado ao espanto, nisso tem-se mais uma evidência de
que, no que tange ao modo de acesso ao mundo, a razão chega sempre depois. Isso
constitui-se num grande baque para a tradição que, ao desenvolver-se à luz da lógica,
considerou os afetos e sentimentos – humores em geral – como característica inferior de
um ser essencialmente racional. Inferior por estar ligada a esfera subjetiva, representando
estados mentais meramente privados. Heidegger se opôs a esse tipo de posição,
concedendo aos sentimentos uma importância até então sem precedentes na história da
filosofia. E fê-lo, justamente, interpretando os sentimentos em termos de Stimmung, uma
palavra alemã extremamente rica, que significa estado de espírito e que tem, como faz
notar John Caputo, “um caráter fortemente intencional”
51
. Stimmung significa também
“sintonizar”, indicando, em Ser e Tempo, o modo como a vida fática está sintonizada com
o mundo. Ter um sentimento é, então, nesse sentido, reagir ao mundo de uma certa forma,
uma forma que, como foi visto, é determinada como o “encontrar-se a si mesmo” no
mundo para onde se foi lançado. O que significa, por sua vez, que esse estado de espírito
“desoculta” o mundo como aquilo que já está sempre lá. E sendo assim, longe de serem
meros estados privados, os estados de espírito revelam ao ser-aí o seu próprio ser, o ser do
mundo e o significado do mundo, gozando assim do mais alto prestígio fenomenológico.
52
Não obstante a originalidade e radicalidade de sua interpretação, o filósofo acaba
reconhecendo como um grande mérito a iniciativa da pesquisa fenomenológica de recriar
uma visão mais livre acerca dos fenômenos da esfera afetiva.
53
Mas enfatiza, no entanto,
que apenas agora, com a analítica do ser-aí por ele promovida, o caráter ontológico-
fundamental desses fenômenos pôde ser alcançado em sua plenitude – como constitutivo
da abertura de mundo.
b) compreensão
O segundo momento estrutural da abertura do ser-aí é a compreensão. Tanto
quanto a disposição, ela constitui o ser do “aí”. Isso significa dizer que toda compreensão
está sempre sintonizada com o humor. Não se trata, portanto, de um modo de
51
CAPUTO, John D. Desmistificando Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p. 105.
52
Cf. Caputo, op. cit., p. 105.
53
SZ, p. 139.
36
conhecimento, alcançado por um exercício racional. Compreensão é antes de tudo um
existencial, um modo fundamental de ser-aí.
54
Em sentido originário, a compreensão indica uma espécie de saber-como. Isso
ressalta, para Heidegger, quando, por vezes, num discurso ôntico, usamos a expressão
“compreender alguma coisa” com o sentido de “estar apto para manejar algo”, “estar a sua
altura”, “ser competente para fazer algo”.
55
Costumeiramente, dizemos que
compreendemos informática, significando simplesmente que sabemos-como lidar com
computadores. Compreender um computador não implica primordialmente, nesse caso, a
apreensão explícita de suas propriedades. Do mesmo modo, exemplifica Dreyfus,
“compreender um martelo não significa saber que martelos têm tais e tais propriedades e
que elas são usadas para certos propósitos – ou que para martelar segue-se um certo
procedimento, isto é, que se pega o martelo em uma das mãos, etc. Antes, compreender
um martelo de modo mais primordial significa saber como martelar”.
56
A compreensão se dá, portanto, na manualidade. Inicialmente,
compreendemos as coisas na medida em que sabemos o que fazer com elas, na medida em
que dispomos de um domínio para com elas. E isso não vale apenas para a relação com os
instrumentos, mas também para com nós mesmos. Assim como possuímos habilidades
especificas de lidar, por exemplo, com martelos – sabemos como martelar e a função do
martelar – também dispomos de uma habilidade para lidar com nosso próprio ser – cada
um de nós sabe como ser aquilo em função do que é (homem ou mulher, pai, mãe,
professor, etc). De modo geral, é esse tipo de saber prático (funcional) que marca a
compreensão que temos de nós e das coisas com que lidamos. Compreender implica saber-
como fazer, como manejar; implica, portanto, a aptidão para algo, o poder algo. É
justamente essa idéia do “poder algo” que Heidegger vai transportar para o conceito de
compreensão enquanto existencial.
Em sentido existencial, a compreensão também é revestida de um “poder” (no
sentido de aptidão, capacidade), mas o que aí se pode não é uma coisa, senão que o ser
enquanto existir. Pois na compreensão subsiste existencialmente o modo de ser do ser-aí
54
SZ, p. 336: “Com o termo compreender indicamos um existencial fundamental; nem uma determinada
forma de conhecer (Art von Erkennen), distinta, por exemplo, do explicar (Erklären) e do entender
(Begreifen), nem em geral um conhecer no sentido de um apreender temático”.
55
SZ, p. 143.
56
Dreyfus, op. cit., p. 184.
37
como poder-ser. Essa indicação sublinha o fato de que o ser-aí é, primariamente,
possibilidade de ser, a qual se deve distinguir tanto da possibilidade lógica quanto da
contingência de algo simplesmente dado em que pode acontecer isto ou aquilo. Heidegger
enfatiza que, como categoria modal de um ser simplesmente dado, a possibilidade designa
o que ainda não é real e que nunca será necessário; caracteriza o meramente possível, que,
do ponto de vista ontológico, é inferior à realidade e à necessidade. Ao passo que, como
existencial, “a possibilidade é a determinação ontológica mais originária e mais positiva
do ser-aí”
57
. Em seu modo de ser-no-mundo, esse ente já foi inteiramente lançado em
determinadas possibilidades, que, investido de sua liberdade para o poder-ser, o ser-aí já
assumiu ou recusou.
A liberdade do ser-aí com relação ao seu poder-ser apenas é possível porque,
em seu modo de ser, esse ente já sempre se mantém numa certa compreensão de suas
possibilidades. O ser-aí é de tal modo que ele sempre compreendeu ser dessa ou daquela
maneira. “Compreender é o ser existencial do próprio poder-ser do ser-aí de tal modo
que, em si mesmo, esse ser abre e mostra a quantas anda seu próprio ser
58
. Sendo um
existencial, a compreensão abarca toda a constituição fundamental do ser-no-mundo. As
possibilidades apreendidas na compreensão são em cada caso as possibilidades de ser-em
um mundo. Poder-ser diz, então, poder-ser-no-mundo. A compreensão das possibilidades
do ser-aí comporta a abertura da estrutura mundo. Isso porque, em si mesma, a
compreensão possui a estrutura existencial de “projeto” (Entwurf). Ao projetar o ser do
ser-aí para a sua destinação, a compreensão abre um campo de possibilidades, onde as
coisas podem surgir como importantes ou significantes. Em outras palavras, somente
porque o ser-aí, pela compreensão, toma posição em relação ao seu ser no mundo,
projetando possibilidades de envolvimento em contextos cotidianos, é que se abre o campo
de jogo, a estrutura significativa (mundaneidade) na qual os entes podem surgir –
salientarem-se como significativos de alguma maneira.
Na projeção do ser do ser-aí os entes encontram abrigo, no sentido de que são
pela primeira vez salientados. Esse é o sentido originário em que se pode falar do ser-aí
como clareira: ele é em seu “aí”, em seu modo de ser-em um mundo, o campo iluminado
em que os entes resplandecem. Em seu caráter existencial de projeto, a compreensão
57
SZ, p. 144.
58
SZ, p. 144; grifo do autor.
38
constitui como que a visão (Sicht) do ser-aí. “Ver”, ressalta Heidegger
59
, “significa não só
não perceber com os olhos do corpo como também não apreender, de modo puro e com os
olhos do espírito, algo simplesmente dado em seu ser simplesmente dado. Para o
significado existencial de visão, a única coisa a ser levada em conta é a particularidade do
ver em que o ente a ele acessível se deixa encontrar descoberto em si mesmo”. O que a
compreensão apanha em seu “ver” não são entes simplesmente dados e suas categorias,
senão que o ser desses entes. É o ser que se compreende na projeção e não outra coisa.
A breve descrição realizada até aqui buscou clarear o uso especial que
Heidegger faz do termo compreensão, distinguindo-o devidamente de um modo temático
de conhecimento. A compreensão, enquanto um conceito ontológico-existencial,
independe, em absoluto, de qualquer pensamento reflexivo. Bem como, não deve ser
confundida também com um processo intuitivo. “Intuição” e “pensamento”, enfatiza o
filósofo
60
, são derivados distantes da compreensão, uma vez que tanto um quanto o outro
visam o ente em seu caráter meramente dado, compreendido e liberado primariamente na
projeção. Compreender é, como vimos, um modo de ser-no-mundo. Já nos movemos
sempre em uma determinada compreensão do mundo e de nós mesmos que é espontânea,
no sentido de que independe de qualquer interesse ou esforço cognitivo. “Compreender já
sempre é fato, é vida”
61
.
Para o intuito do presente estudo, a análise da compreensão e da disposição
são particularmente importantes, na medida em que, de modo igualmente originário, elas
caracterizam a abertura do ser-no-mundo, a clareira pela qual os entes podem se
manifestar de um modo ou de outro. Disposição e compreensão constituem-se nos
fundamentos ontológicos-existenciais da descoberta dos entes intramundanos. Esses
existenciais mostram, portanto, o fenômeno mais originário da verdade. Esse fenômeno
será mais bem visualizado na medida em que se demonstrar seu caráter originário
(fundante) em relação à verdade proposicional. Perseguindo esse objetivo a análise volta-
se agora para o âmbito lingüístico.
59
SZ, p. 146-7.
60
SZ, p. 147.
61
STEIN, E. Introdução ao pensamento de Martin Heidegger. Porto Alegre: ITHACA, 1966, p. 34.
39
1.3 - Ser-no-mundo e linguagem
Apesar de ser um fenômeno amplamente investigado, o modo de ser da
linguagem permanece, ainda, no entender de Heidegger, obscuro
62
. Os conhecimentos
sobre a linguagem, fornecidos cada vez em maior quantidade pela lingüística, pela
filologia, pela psicologia e mesmo pela filosofia da linguagem não atingem a base
ontológica do fenômeno investigado. De um modo geral, estes diversos ramos do saber
encaram a linguagem como um instrumento disponível no mundo, a partir do qual o
homem exterioriza e comunica aos outros os conteúdos internos da consciência;
linguagem é concebida sempre em função de uma subjetividade que lhe confere valor e
significância. Guiados por esta perspectiva, os conhecimentos alcançados acerca da
linguagem mantém-se ainda muito distantes de apreender o fenômeno da linguagem em
sua amplitude. A linguagem não é apenas uma estrutura de signos e regras à mão dentro
do mundo e que, como tal, pode ser esgotada em categorias semânticas. Tomada em seu
modo mais fundamental, ela remete à articulação “significativa” da compreensibilidade do
ser-no-mundo, que Heidegger denomina de discurso (Rede), em acordo com sua
reinterpretação do logos grego.
O discurso é, do ponto de vista existencial, tão originário quanto disposição e
compreensão e, de certo modo, já estava presente na análise anterior desses existenciais.
Isso porque o ser-aí é, por excelência, articulador: enquanto projeto, ele articula suas
possibilidades, abrindo, com isso, um campo de jogo livre, uma estrutura referencial que
possibilita a emergência significativa daquilo que está à mão no mundo. O discurso é,
precisamente, essa articulação; quer dizer, é a articulação da compreensibilidade do ser-aí.
Toda compreensão já está sempre articulada antes mesmo de qualquer explicitação
reveladora.
Se, enquanto articulação significativa da compreensibilidade, o discurso é um
existencial constitutivo da abertura do ser-aí, constituído primordialmente pelo ser-no-
mundo, então, constata Heidegger, ele também deve possuir em sua essência um modo de
ser especificamente mundano. O modo de ser mundano do discurso é a linguagem,
definida, por Heidegger, como o pronunciamento do discurso. “A linguagem é o discurso
62
SZ, p. 166.
40
expresso em palavras”
63
. As palavras emergem das significações articuladas pelo discurso;
elas não possuem um sentido em si, seu sentido é mundano e, como tal, tem de ser
apreendido na totalidade das relações referenciais que constituem a significância do
mundo. A totalidade de palavras que, enquanto modo de pronunciamento, constitui o ser
mundano do discurso, torna-se um ente intramundano e, sendo assim, pode eventualmente
ser encontrada como um manual, podendo, também, nesse caso, ser estilhaçada em coisas-
palavras (Wörterdinge) simplesmente dadas
64
. Não é o caso de pensar, como a tradição,
que a linguagem é em princípio um grande conjunto de palavras dadas independentemente
e que depois adquirem significado
65
; que a linguagem possa ser interpretada assim é uma
possibilidade extrema que o discurso assume uma vez expressado, mas de modo algum
pode uma tal interpretação resumir a essência da linguagem, que, de acordo com
Heidegger, só se faz acessível com a clarificação do ser-no-mundo enquanto articulação da
significância. Isso se pode ler já no § 18 de Ser e Tempo quando o filósofo afirma que “a
própria significância, com a qual o ser-aí sempre está familiarizado, abriga em si a
condição ontológica da possibilidade de o ser-aí, em seus movimentos de compreensão e
interpretação, poder abrir ‘significados’ que, por sua vez, fundam a possibilidade da
palavra e da linguagem”
66
.
A concepção de linguagem como um manual intramundano, como algo que
vem ao encontro dentro do mundo, é, portanto, uma decorrência do modo de ser mundano
do discurso. O equívoco tradicional é, justamente, limitar o fenômeno da linguagem a esse
nível, negligenciando seu fundamento existencial. É pelo discurso que a linguagem
começa; ele é “o fundamento ontológico-existencial da linguagem”
67
. Ou, como podemos
dizer ainda, o discurso é o evento ontológico do qual a linguagem é a instância ôntico-
mundana.
63
SZ, p. 161.
64
SZ, p. 161.
65
Segundo Dreyfus (Op. cit., p. 218), a discussão que Heidegger conduz acerca do discurso opõe-se, desde o
início, às tradicionais concepções de linguagem fundadas em Husserl e Searle – que linguagem é o conjunto
de sons ou sinais aos quais é atribuído um significado, seja por mentes que são a origem do que Searle
chama de significado intrínseco ou, como no caso de Husserl, pela sua parelha com entes abstratos,
similarmente à teoria dos sentidos de Frege. Ainda segundo Dreyfus, Heidegger se oporia também à idéia de
que, dada uma interpretação holística em relação ao comportamento do locutor e aos objetos salientes na
vizinhança, a linguagem pode ser racionalmente reconstruída em termos de sons e sinais, tal como defende
Davidson. Para Heidegger, tais concepções sustentam um pseudo-problema, pois seu ponto de partida é
ontologicamente inadequado: partem da idéia de que a linguagem é experienciada como algo dado e, então,
a interpretam-na como tal.
66
SZ, p. 87.
67
SZ, p. 160.
41
A elaboração da estrutura do discurso como tal deve revelar mais bem o modo
como as possibilidades da linguagem cotidiana já são sempre expressão das possibilidades
originárias do discurso existencial.
Heidegger inicia a análise do discurso ressaltando que o ser-aí é, em seu modo
de ser, fundamentalmente discursivo; e que discurso não consiste em um modo
determinado de pronunciamento, senão que é o modo fundamental de toda e qualquer
forma de pronunciamento lingüístico. Ou seja, todo pronunciamento é em si discursivo,
seja ele uma declaração, uma interrogação, uma ordem, um aviso, ou mesmo um pedido.
Todo uso lingüístico cotidiano é discursivo, na medida em que é uma determinação
mundana da articulação da compreensibilidade do ser-no-mundo. Cada um dos distintos
modos de discurso abarca, portanto, a estrutura geral do discurso, que compreende três
aspectos essenciais: o referencial, a comunicação e o anúncio.
O referencial é aquilo “sobre que” o discurso discorre. O “sobre que” do
discurso, diz Heidegger
68
, não tem necessariamente, nem sequer regularmente, o caráter de
tema de uma proposição determinante. Também uma ordem se dá sobre; o desejo possui,
igualmente, aquilo sobre que é; nem uma intercessão se acha desprovida de seu sobre quê.
O discurso tem necessariamente este elemento estrutural porque é constitutivo da abertura
do ser-no-mundo, e sua própria estrutura é determinada por essa constituição fundamental
do ser-aí. O referencial (aquilo sobre que o discurso é) é sempre “interpelado” (angeredet)
numa determinada perspectiva e dentro de certos limites. Daí o discurso assumir a forma
de pergunta, desejo, pronunciamento, alerta.
Todo discurso tem, portanto, um referencial, que é aquilo sobre o que ele
discorre. Esse discorrer sobre algo tem também o caráter de comunicar. A comunicação
tem de ser entendida em sentido amplo como uma determinação ontológico-existencial
que, como tal, radica na abertura originária do mundo. “Ela cumpre a ‘partilha’ da
disposição e da compreensão. Comunicação nunca é algo como uma transposição de
vivências, de opiniões ou de desejos do interior de um sujeito para o interior de outro”
69
.
Comunicar não tem, portanto, o sentido de tornar público, jogar para fora conteúdos
imanentes. Essa é, precisamente, a perspectiva de quem vê o fenômeno desde o prisma das
teorias da subjetividade e da representação que partem da idéia de sujeitos originalmente
68
SZ, p. 161.
69
SZ, p. 162.
42
fechados em si. Heidegger, guiado pelas conquistas fenomenológicas da analítica
existencial, pretende mostrar que comunicar é uma possibilidade enraizada no ser-no-
mundo. Aquilo que se comunica não são conteúdos internos desconhecidos para os outros,
senão que é algo já sempre partilhado na disposição e compreensão, oriundas do
envolvimento com o mundo. Em outras palavras, a comunicação apenas torna explícita a
partilha da situação existencial.
Ao mesmo tempo que discorre “sobre” e nisso comunica, o discurso constitui-
se também num pronunciamento (Sichaussprechen). “Discorrendo, o ser-aí se pronuncia;
não porque ele se acha de início encapsulado num ‘interior’ que se opõe a um exterior,
mas porque, enquanto ser-no-mundo que compreende, ele já esta lá fora”
70
. É justamente
esse “estar fora” o que é em cada caso expressado, ou seja, o discurso expressa sempre o
ser-aí em sua disposição (humor). E o índice lingüístico (sprachliche Index) próprio do
discurso em que se anuncia o ser-em da disposição está, observa Heidegger, no tom, na
modulação, no ritmo, “no modo de falar”
71
. No modo da expressão, o discurso é também
um anúncio; nele anuncia-se o estado do humor no qual o ser-aí se encontra em cada caso.
Como momentos constitutivos do discurso, o referencial, a comunicação e o
anúncio estão na base de todo e qualquer pronunciamento mundano do discurso; portanto,
em todo uso lingüístico. Não devem ser confundidos por isso com propriedades reunidas
empiricamente na linguagem. Trata-se antes de caracteres existenciais arraigados na
constituição ontológica do ser-aí. Eles que tornam possível a estrutura ontológica da
linguagem. Mas Heidegger ressalta:
Na forma lingüística fática de um determinado discurso, alguns desses
momentos podem faltar ou passar despercebidos. O fato de, muitas vezes, não
se exprimirem “em palavras” indica apenas um determinado modo de discurso
que, enquanto é, jamais pode prescindir da totalidade dessas estruturas.
72
Na seqüência, o filósofo comenta que as tentativas de se apreender a “essência
da linguagem” sempre tomaram com base um desses momentos. Daí as concepções de
linguagem como “expressão”, “forma simbólica”, comunicação no sentido de
“proposição”, “anúncio” de vivências, ou mesmo como “configuração” da vida
70
SZ, p. 162.
71
SZ, p. 162.
72
SZ, p. 163.
43
(‘Gestaltung’ des Lebens)
73
. Mas mesmo que se juntasse sincreticamente todas essas
determinações numa única definição de linguagem, ainda assim nada se ganharia em favor
de uma plena definição da linguagem se o fenômeno ontológico-existencial do discurso,
condição transcendental das múltiplas possibilidades lingüísticas, permanecer oculto. Os
estudos que se orientam pelas determinações mundanas do discurso produzem,
inegavelmente, um determinado conhecimento da linguagem, mas não a apreendem em
seu caráter essencial. Este só pode ser alcançado mediante o esclarecimento da estrutura
existencial básica do ser-aí. Esse passo para trás conferido pela analítica existencial é
imprescindível para a superação da postura objetivante que concebe a linguagem
simplesmente como um manual intramundano. Orientada pela concepção grega do homem
como zóon lógon échon, como ser falante, mencionada na introdução de Ser e Tempo e
retomada depois no § 34, a analítica existencial toma o ser-aí já dentro da linguagem.
A constatação de que “o ser-aí tem linguagem” – Das Dasein hat sprache
74
que, do ponto de vista ôntico, pode ser interpretada como a mera posse de algo
simplesmente dado, do ponto de vista ontológico, indica um modo fundamental de ser-no-
mundo. O ser-aí é lingüístico de ponta a ponta. Ou melhor, ele é discursivo de ponta a
ponta, uma vez que Heidegger reserva o termo linguagem ao modo mundano do discurso,
ou seja, ao pronunciamento, à fala.
75
Num certo sentido, trata-se de um só fenômeno,
apenas tomado em níveis distintos. Os gregos não diferenciavam, sequer dispunham de
uma palavra própria para linguagem. O uso amplo do discurso (logos) compreendia
também a esfera da linguagem. Como destaca Benedito Nunes,
O discurso, como linguagem existentiva, e a linguagem, como discurso
pronunciado, são o verso e o reverso do logos, no qual os gregos enfeixaram a
essência do homem. O logos é esse elemento linguageiro (sprachlich) da
experiência – o falar uns com os outros sobre algo, a que Platão se referiu no
Crátilo. Pois “do momento em que somos um diálogo”, podendo compreender
de imediato as palavras de outrem, morando na compreensão do que
73
SZ, p. 163.
74
SZ, p. 165.
75
Tendo em vista a distinção que Ser e Tempo opera entre discurso e linguagem não se justifica falar que o
ser-aí é lingüístico de ponta a ponta, mas sim que ele é discursivo de ponta a ponta. O discurso, enquanto
articulação significativa do ser-em, constitui a estrutura do ser-aí (o ser-aí é articulador por excelência); já a
linguagem, fundada no discurso, é um dos modos de ser desse ente, e, como tal, não constitui sua estrutura.
44
significam, é no circuito da fala que as palavras brotam das significações
articuladas.
76
O amplo sentido em que era usado originalmente o logos grego, interpretado
por Heidegger como discurso, perdeu-se no uso predominante do termo como proposição,
que acabou orientando de forma decisiva o entendimento acerca da linguagem. “O acervo
básico das ‘categorias semânticas’, herdado pela lingüística e ainda hoje decisivo, orienta-
se pelo discurso entendido como proposição”
77
. Semelhantemente, também a gramática
buscou seus fundamentos na “lógica” desse logos assim entendido
78
. Contudo, o que
Heidegger põe em jogo no § 34 de sua analítica existencial não é, apenas, a mera correção
dos equívocos interpretativos da tradição por meio de um resgate etimológico, mas a
recondução da discussão lingüística ao nível da fundamentação que sustenta a esfera
lógico-semântica. “A proposição não paira no ar”
79
. Inserida no contexto geral da
linguagem, entendida como pronunciamento do discurso originário que perpassa a
abertura do ser-aí, a proposição já não pode negar a sua proveniência ontológica. Ela está
já sempre enraizada no ser-no-mundo.
A elaboração das conseqüências dessa nova abordagem da linguagem para o
âmbito proposicional é o ponto alto da investigação nesse capítulo. Com ela há de ficar
claro o modo como a verdade ocorre na proposição e, principalmente, o caráter derivado
dessa ocorrência. A distinção entre verdade fundante e verdade fundada tornar-se-á, com
isso, explícita.
1.3.1 – Proposição e verdade
O entendimento de que a proposição é o “lugar” próprio e primário da
verdade, há muito tido como evidente, repousa, no entender de Heidegger, sobre uma
parcial e, por isso, problemática compreensão tanto do modo de ser da verdade quanto da
proposição. Os equívocos ocorrem na medida em que se delimita a análise da proposição
apenas ao campo lingüístico (lógico-semântico), negligenciando com isso o âmbito
ontológico-existencial que a sustenta.
76
NUNES, B. Passagem para o poético: filosofia e poesia em Heidegger. São Paulo: Ática, 1986, p. 194.
77
SZ, p. 165.
78
SZ, p. 165.
79
SZ, p. 156.
45
Norteado pelos estudos sobre o sentido do logos nos textos gregos e,
principalmente, em Aristóteles, Ser e Tempo apresenta a proposição como um modo
derivado da ocupação originária do ser-aí com o mundo. O que de um modo geral
apresentamos acima acerca da linguagem tem de ser agora aplicado à proposição.
Proposição é um tipo de discurso. Mas, como notou Aristóteles
80
, há uma peculiaridade
inerente à proposição (lógos apophantikós) que a distingue dos outros modos de discurso,
a saber, a possibilidade de ser verdadeira ou falsa. De acordo com Dahlstrom, Heidegger
prontamente percebeu que o filósofo grego determina a proposição em vista da verdade e
não vice versa. Ou seja, o que uma proposição é só pode ser clareado na pressuposição do
que é o verdadeiro e o falso. Isso vem ao encontro da luta de Heidegger contra o
preconceito lógico que, como salientamos, concebe a verdade exclusivamente como
propriedade de proposições. Contudo, se por um lado a definição aristotélica da
proposição pressupõe uma concepção de verdade, por outro, ela também sugere uma
especial conexão entre proposição e verdade. A natureza dessa conexão, que não é
explicitada pelo filósofo grego e que tampouco é obvia, tem de ser esclarecida a fim de se
alcançar uma autêntica compreensão do modo de ser tanto da verdade quanto da
proposição. Para tanto iniciaremos elaborando a tematização da estrutura da proposição.
No § 33 de Ser e Tempo Heidegger analisa a proposição através de três
aspectos: mostração (Aufzeigung), predicação e comunicação. Essas três significações
abarcam em sua unidade a plena estrutura da proposição.
(Para uma melhor visualização do que Heidegger pretende com a descrição
destes aspectos da proposição é importante ter em mente que o filósofo está considerando
a proposição em seu modo mais fundamental de uso, no contexto da atividade prática.
81
Mesmo que, como veremos, a proposição venha depois a se afastar deste contexto prático,
em que surge primariamente, a ponto de ocultá-lo, ela já não pode mais negar a sua
procedência e o seu sentido originário.)
80
ARISTÓTELES. De interpretatione, 17a 1-3.
81
Para Heidegger, não importa, neste nível de consideração, o elemento do juízo enquanto ele fosse apenas
uma manifestação no nível da enunciação ou enquanto o juízo fosse algum tipo de manifestação que se
focalizaria com a proposição. O juízo, para Heidegger, passa a ser também objeto de uma torção que o
converte num objeto de análise, no sentido de analítica existencial. Daí ele dizer, com todas as letras, que o
enunciado, a proposição, assume uma vez pronunciado o caráter de um “manual intramundano” (SZ, p. 224).
Querendo dizer com isso que a proposição é da ordem dos elementos tidos como disponíveis. Ela faz parte
originalmente do universo dos artefatos, instrumentos dos quais dispomos e com os quais organizamos o
nosso mundo, significamos o nosso mundo. (Cf. Stein, Seminário sobre a verdade, op. cit., p. 259).
46
1. Mostração. Com a indicação da proposição como mostração, Heidegger
visa a resgatar o sentido originário de logos enquanto apóphansis, que, segundo sua
interpretação, significa “deixar e fazer ver os entes por si mesmos” ou, como já indicamos
no início do capítulo, “deixar e fazer ver os entes mostrando-os”. Trata-se de conservar o
caráter intencional da proposição, que, segundo a interpretação de Heidegger, já havia sido
reconhecida por Aristóteles. Assim, quando, por exemplo, no desenrolar da atividade do
carpinteiro, este proclama ao seu assistente que “o martelo é pesado demais”, o que está
em jogo, nesse caso, é o próprio martelo; o que se descobre à visão, diz Heidegger, “não é
um ‘sentido’, mas um ente no modo de sua manualidade”
82
. E acrescenta: “Mesmo nos
casos em que este ente não se acha numa proximidade da mão e da visão, a mostração visa
o ente mesmo e não uma mera representação dele, seja esta entendida como algo
simplesmente ‘representado’, seja como um estado psíquico de quem formula a
proposição, isto é, sua representação do ente”
83
.
2. Predicação. Ligada ao sentido da proposição como mostração é que pode
ser esclarecida a predicação. “Toda predicação só é o que é como mostração”
84
, pois trata-
se de uma restrição da mostração. Isso pode ser mais bem visualizado se resgatarmos
novamente o exemplo oferecido por Heidegger acerca do martelo. Enquanto mostração, o
que a proposição “o martelo é pesado demais” intenciona é o próprio martelo. Na
elaboração da estrutura do discurso, evidenciou-se que este sempre possui um “sobre que”;
que o “sobre que” do discurso é aquilo que ele mostra; e que o discurso mostra (deixa e
faz ver) aquilo sobre o que discorre na medida em que discorre. No caso da proposição
isso significa: ela deixa e faz ver na medida em que predica. Um predicado é proposto a
um sujeito e nisso o sujeito é mostrado. Contudo, o predicado é uma determinação, ou
seja, ele faz com que aquilo que é mostrado (o próprio martelo) sofra uma restrição em seu
conteúdo (ele é “pesado demais”). Há de se evitar o equívoco de pensar que é a
determinação que descobre primariamente o ente, pois não é esse o caso. A determinação,
enquanto modo de mostração, apenas restringe a visão inicial sobre o ente visado no
discurso – no caso, o martelo – e nisso torna patente a determinação do que mostra. A
posição de sujeito e predicado são, no sentido rigoroso do termo, inteiramente
“apofânticas”, quer dizer, fundam-se na primeira acepção da proposição enquanto deixar e
82
SZ, p. 154.
83
SZ, p. 154.
84
SZ, p. 155.
47
fazer ver (apóphansis) o ente mostrando-o. Sujeito e objeto tem lugar na estrutura do
próprio “mostrar”, na medida em que este depende do modelo do “algo como algo” – o
“martelo” (sujeito) é mostrado como “pesado demais” (predicado). Nesse sentido, fica
clara a inter-relação que há entre o aspecto mostrativo e o aspecto predicativo da
proposição: a predicação está sempre em função de uma mostração, e a mostração é
sempre predicativa, na medida em que está presa a estrutura do “algo como algo”.
3. Comunicação. O sentido da proposição enquanto comunicação está
diretamente relacionada à mostração e à predicação. “O deixar e fazer ver comunica aos
outros o ente mostrado em sua determinação”
85
. Em linha com o que indicamos acima
acerca do discurso, a comunicação da proposição tem de ser encarada como uma
manifestação existencial. Pela proposição, o ser-aí pronuncia-se sobre o que lhe vem ao
encontro no mundo. Este aspecto da proposição será mais bem elaborado abaixo, ao
mostrar-se a possibilidade da verdade enquanto concordância. Por ora, na posse desses três
aspectos do discurso proposicional, temos de escavar os fundamentos ontológicos que o
sustentam. Num certo sentido, as considerações feitas anteriormente acerca da linguagem
já indicaram o solo onde radica o discurso em geral e, com isso, adiantaram o ponto de
chegada dessa incursão: o ser-no-mundo. Cabe, agora, tornar isso claro desde a
perspectiva especifica da proposição.
Tomemos como ponto de partida o primeiro dos três aspectos da proposição
arrolados por Heidegger. Ali é apanhado a caráter intencional da proposição, que o
filósofo de Ser e Tempo acredita ter resgatado da antiga terminologia grega: o que está em
jogo no discurso apofântico (lógos apophantikós) não são representações, nem réplicas
mentais dos entes, mas os próprios entes. São os entes mesmos aquilo “sobre que” a
proposição é. Nisso está implícita a pressuposição de que os entes já estejam de algum
modo descobertos para poderem ser apanhados em proposições. Ninguém pode formular
proposições acerca daquilo que é inteiramente desconhecido. Enquanto um enunciado
sobre algo, o discurso proposicional não pode prescindir de um “contato” prévio com
aquilo acerca de que se manifesta.
Seria um equívoco fenomenológico acreditar que é a proposição que abre pela
primeira vez o ente como tal. Antes, ela tem de ser entendida como um produto da
85
SZ, p. 155.
48
familiaridade do ser-aí com o mundo. Nesse sentido, a proposição é sempre um
pronunciamento sobre algo que já se revelou ao ser-aí e que de algum modo ainda se faz
presente para ele. Em outras palavras, quer dizer que só nos pronunciamos sobre algo que
é para nós mais ou menos familiar. Isso nos remete à constatação de que a proposição só é
possível desde o já-ser-junto-ao-ente, indicado como um modo fundamental de ser-no-
mundo. Como ser-no-mundo, vimos acima, o ser-aí já se move desde sempre numa certa
familiaridade com o mundo e, conseqüentemente, com aquilo que lhe vem ao encontro
dentro do mundo. E embora esse mundo familiar, como também vimos, seja em princípio
e na maior parte das vezes tão envolvente e seguro a ponto de manter-se imperceptível, ele
já é de algum modo sabido, mesmo que não de modo temático. Trata-se, mais uma vez, do
fenômeno da compreensão. Dizíamos: compreender é um modo de ser do ser-aí. Ou seja,
este ente privilegiado move-se desde o início numa compreensão de si, dos entes que lhe
vem ao encontro, e do mundo enquanto estrutura que envolve ambos. A proposição é em
cada caso uma derivação distante do que é aí originalmente compreendido. Na medida em
que se refere a algo e o determina pela predicação, a proposição chama atenção para
determinado aspecto do ente e com isso o arranca da familiaridade envolvente que o
mantia imperceptível. Daí o sentido apofântico da proposição enquanto “deixar e fazer
ver”, no sentido de mostrar, indicar, apontar para o ente. Não é a proposição que primeiro
descobre o ente; ao contrário, é só porque o ente já foi descoberto que a proposição pode
para ele apontar.
Uma vez que se evidencia que proposições somente são possíveis porque
aquilo sobre que elas são já foi de algum modo descoberto, não mais se pode negar a
primazia da compreensão existencial frente às determinações temáticas. Essa dependência
ficará tanto mais clara quanto mais lograr-se mostrar como tal compreensão, sendo ela de
caráter existencial – pré-temático, portanto – transforma-se a ponto de ser expressada em
proposições.
Consideremos para isso o fenômeno da interpretação (Auslegung), analisado
por Heidegger no § 32 de Ser e Tempo, imediatamente após a elaboração do conceito de
compreensão. Não por acaso o título do referido parágrafo é “compreensão e
interpretação”, pois o filósofo concebe a interpretação como um desdobramento da
compreensão. Interpretar não é tomar conhecimento do que se compreendeu, mas elaborar
as possibilidades abertas na compreensão. Enquanto projeção das possibilidades do ser-aí,
49
a compreensão abre aquilo que designamos de campo de jogo livre, um horizonte de
possibilidades onde os entes podem vir ao encontro como significantes em referência a
outros entes e as atividades do ser-aí que projeta; quer dizer, desde este campo de jogo, o
ente pode ser visualizado pela circunvisão que guia a ocupação como algo-para, “como”
um instrumento determinado. O “como” é precisamente a estrutura da interpretação
surgida da elaboração das possibilidades abertas na compreensão. Veja-se Heidegger:
Todo preparar, acertar, colocar em condições, melhorar, completar, se realiza
de tal modo que o manual dado na circunvisão é interpretado em relação aos
outros em seu ser-para e vem a ser ocupado, segundo essa interpretação
recíproca. O que se interpreta reciprocamente na circunvisão de seu ser-para
como tal, ou seja, que se explicita na compreensão, possui a estrutura de algo
como algo. À questão da circunvisão que pergunta: o que é esse manual
determinado, a interpretação da circunvisão responde do seguinte modo: ele é
para... A indicação do para-quê não é simplesmente a denominação de algo,
mas o denominado é compreendido como isto, que se deve tomar como
estando em questão. O que se abre na compreensão, o compreendido, é sempre
de tal modo acessível que pode explicitar-se em si mesmo “como isto ou
aquilo”. O “como” constitui a estrutura da explicitação do compreendido; ele
constitui a interpretação
86
.
Heidegger quer mostrar com isso que o modo de apreensão e determinação de
“algo como algo” não é exclusivamente proposicional, tal como o concebia a tradição
filosófica. O “como” acontece, também e primeiramente, no comportar-se cotidiano do
ser-aí com o mundo. Mergulhado no mundo das ocupações, o ser-aí desde o início já
interpreta o que lhe vem ao encontro “como” isto ou aquilo. A interpretação é, portanto,
um acontecimento existencial.
Enquanto acontecimento existencial, a base da interpretação se encontra na
compreensão. É sempre a interpretação que se funda na compreensão e não vice-versa, diz
Heidegger
87
. Em seu modo de ser, ela opera um recorte na totalidade significativa aberta
pela compreensão e a expõe. Assim, por exemplo, movendo-se desde a totalidade das
relações referenciais aberta na compreensão, o ser-aí reenquadra o que vem ao encontro já
sempre desde uma possibilidade determinada de serventia, tomando-o originalmente
“como” algo que é para isto ou para aquilo. Como vimos acima, o ser-aí em sua ocupação
cotidiana não confronta entes simplesmente dados, no sentido de que primeiro se depara
86
SZ, p.149.
87
SZ, p.148.
50
com a coisa-martelo, com a coisa-porta, e depois lhes atribui uma serventia; ao contrário,
os entes são originariamente encontrados dentro de uma totalidade referencial na qual eles
têm já desde o início uma serventia específica: o martelo é encontrado “como” algo que é
“para” pregar, a porta “como” algo que serve “para” abrir e fechar e assim por diante. O
fato de, no modo de lidar cotidiano da ocupação, os entes serem tomados desde o início
“como” tal e tal, revela que, embora haja uma relação de fundamentação entre
compreensão e interpretação, esses fenômenos estão de tal modo conectados que não há,
por assim dizer, uma mera compreensão ou uma mera interpretação de algo, no sentido de
que alquilo que vem ao encontro no mundo possa ser somente compreendido ou somente
interpretado. Todo e qualquer instrumento à mão já está sempre compreendido e
interpretado. Ou, como escreve Heidegger, “todo simples ver pré-predicativo de algo à
mão é em si mesmo interpretativo-compreensivo (verstehend-auslegend)”
88
. Mesmo que a
estrutura-como da interpretação não apareça expressamente no modo de lidar cotidiano
com os entes, isso não constitui uma prova de que tal estrutura não esteja presente. Ocorre
que, assim como a compreensão, a interpretação é tão familiar que mantém-se na maior
parte das vezes não tematizada. A respeito comenta Dahlstrom:
Quando coisas são tomadas como tal e tal no contexto cotidiano do ocupar-se
com elas, não há, normalmente, necessidade de expressar qualquer aspecto ou
parte deste processo. Alguém está de tal modo familiarizado, por exemplo,
com a porta de acesso a um quarto que seria totalmente estranho manifestar
explicitamente esta familiaridade. Seria também igualmente esquisito para
alguém afirmar que “a porta do meu quarto abre e fecha”, ainda que a porta
seja familiar para essa pessoa precisamente porque abre e fecha para ela entrar
e sair.
89
O ser-no-mundo é, na relação ocupacional com aquilo que encontra,
hermenêutico por excelência. A simples visão das coisas mais próximas com as quais nos
confrontamos nos afazeres do cotidiano já traz consigo tão originalmente a estrutura da
interpretação, que uma mera apreensão de algo livre da estrutura-como necessita, por
assim dizer, de uma certa transposição (Umstellung) e, nesse caso, já não se dispõe de uma
compreensão. Heidegger está convencido de que as coisas já estão sempre compreendidas,
embora nós apenas subseqüentemente as vejamos explicitamente como tal. Por isso ele
88
SZ, p. 149.
89
Dahlstrom, op. cit., p. 187.
51
atesta que uma “apreensão livre da estrutura-como é uma privação do simples ver
compreensivo, não mais original que este, senão que derivado dele”
90
.
Sinalizando acerca de possíveis confusões, Heidegger adverte que a
constatação de que o mostrar-se de um instrumento à mão é ao mesmo tempo
compreensão e interpretação não deve ser entendida como um indício de que primeiro se
faz a experiência de algo simplesmente dado para depois interpretá-lo como tal e tal coisa.
Isso seria um mal-entendido acerca da função específica da interpretação. Afinal, a
interpretação não lança “significações” e nem atribui valor a entes simplesmente dados; as
significações não surgem de um ato de concepção, elas emergem da significância aberta
pela projeção do compreender. Enquanto desdobramento existencial da compreensão, a
interpretação já sempre se move sobre o fundo da significância. Esta fornece a posição
prévia, a visão prévia e a concepção prévia que, justas, fundam a interpretação de algo
como algo
91
. “Posição prévia” (Vorhabe) remete ao modo de ser da interpretação que se
move desde uma totalidade remissiva (significância) já sempre compreendida, ou seja, é o
parâmetro em função do qual o compreendido é em cada caso interpretado. “Visão prévia”
(Vorsicht) é o que promove o “recorte” daquilo que foi tomado na posição prévia, de
acordo com uma determinada possibilidade de interpretação. E, por fim, “concepção
prévia” (Vorgriff) indica o fato de que a interpretação já sempre se vale de uma
determinada conceituação.
Esse tripé da posição, da visão e da concepção prévia é identificado também
como o fundamento da proposição:
A proposição precisa de uma posição prévia do que se abriu a fim de
demonstrá-lo segundo os modos de determinação. Ademais, já reside no ponto
de partida da determinação uma perspectiva orientada para o que se vai propor
na proposição. A perspectiva em função da qual se encara o ente
preliminarmente dado assume, no processo de determinação, a função de
determinante. A proposição necessita de uma visão prévia na qual se extraia,
por assim dizer, o predicado encerrado tacitamente no ente e que se trata de
destacar e atribuir. À proposição enquanto comunicação determinante é
inerente em todos os casos uma articulação significativa daquilo que
demonstra. Daí ela se mover numa determinada conceituação (Begrifflichkeit):
o martelo é pesado, o peso é do martelo, o martelo tem a propriedade do peso.
90
SZ, p. 149.
91
Nunes, op. cit., p. 172: “O tripé do ter, do ver, e do conceber prévios (Vorhabe, Vorsicht e Vorgriff) forma
o arcabouço projetivo do compreender, que nos abre os entes ao sabor dos nexos de referência na conduta do
trato, através dos quais se estende a rede da significabilidade”.
52
A concepção prévia, sempre presente em toda proposição, permanece, na
maior parte das vezes, sem surpresas, porque a linguagem, em cada caso, já
guarda em si uma conceituação elaborada.
92
A constatação de que também a proposição é o que é em função de uma
posição, visão e concepção prévia aponta para uma certa comunhão entre o âmbito
interpretativo (existencial) e o âmbito predicativo (apofântico), mas não é suficiente para
mostrar o modo como este se funda naquele. E, nesse sentido, também não basta, apenas,
indicar o dizer proposicional como o pronunciamento do que já é existencialmente
interpretado. Há de se mostrar o modo como a interpretação se modifica até assumir a
forma proposicional.
As considerações levantadas aqui sobre a interpretação buscaram mostrá-la em
seu caráter existencial, ou seja, como um modo de ser-no-mundo. O ser-aí é hermenêutico
significa: em seu envolvimento cotidiano com os entes ele já os toma desde o início
“como” algo determinado. O “como” é a estrutura pela qual os entes são acessados em
função de sua pertinência em relação ao projeto do ser-aí. Assim, por exemplo, antes que
qualquer visão temática apanhe o martelo em suas propriedades, o envolvimento cotidiano
com ele já o descobriu (compreendeu e interpretou) “como” algo que é para pregar;
portanto, como um manual. Mas o manusear não descobre apenas o martelo em sua
serventia, também descobre aquilo que, depois, em nível apofântico, é identificado como
suas propriedades. Na ocupação, o martelo é descoberto “como” algo pesado; a ocupação
descobre o “peso” do martelo. Claro que essa descoberta não precisa ser, e geralmente não
é, no ambiente das ocupações cotidianas, articulada no modo de juízos teóricos do tipo “o
martelo é pesado”. O que acontece, segundo Heidegger
93
, é a predominância de modos
específicos de interpretação que, no que se refere aos “juízos teóricos” mencionados,
podem pronunciar-se assim: “o martelo é pesado demais”, ou melhor, “pesado demais”, “o
outro martelo!”. Essas expressões, que não têm ainda o caráter definido de uma
proposição, já dispõem de uma compreensão daquilo que, num exercício predicativo, pode
ser atribuído como propriedade do martelo, no caso do exemplo oferecido, o “peso”. Com
isso Heidegger pretende evidenciar que “o exercício originário da interpretação não se
acha numa sentença teórica proposicional, mas na recusa e na troca do instrumento
92
SZ, p. 157.
93
SZ, p. 157.
53
inadequado dentro de uma circunvisão ocupacional, ‘sem perder uma palavra’”. E
acrescenta na seqüência que, “da falta das palavras não se pode inferir a falta da
interpretação”
94
. No entanto, para que essa interpretação existencial que já está sempre em
curso no desenrolar das atividades cotidianas seja articulada e expressa em proposições
temáticas, é preciso que ocorra uma mudança no modo primário da relação com os entes.
Heidegger começa descrevendo a mudança na posição prévia, que se processa quando o
manual torna-se “motivo” de uma proposição.
95
O ente sustentado na posição prévia, o martelo por exemplo, está à mão, de
início, como um instrumento. Ao tornar-se este ente “objeto” de uma
proposição, com a formulação desta se realiza de imediato uma mudança na
posição prévia. Aquilo com que lidava manualmente o fazer, a execução,
transforma-se no “sobre quê” da proposição indicadora. A visão prévia almeja
algo simplesmente dado no manual. Através da visualização (Hin-sicht) e para
ela fica encoberto o manual enquanto tal.
96
O instrumento é retirado do contexto da atividade prática em que era um
manual; desaparecendo a manualidade, o que resta é apenas o ente em seu caráter de ser
simplesmente dado. Isso abre a possibilidade para uma mudança ainda mais profunda, que
consiste no encontro dos entes enquanto “objetos” simplesmente dados, com suas
propriedades também simplesmente dadas:
Dentro desta descoberta do ser simplesmente dado que encobre a manualidade,
determina-se o encontro de tudo o que é simplesmente dado, em seu modo de
dar-se. Somente agora é que se abre o acesso às propriedades. O conteúdo
(das Was) com que a proposição determina algo simplesmente dado é haurido
do ser simplesmente dado enquanto tal.
97
94
SZ, p. 157.
95
Ao dizer que o manual se torna “motivo” de uma proposição, queremos com isso manter presente aquilo
que conquistamos anteriormente acerca da peculiaridade do modo de ser do manual, que tende a se apagar
em seu discreto funcionamento. Como vimos acima, é preciso que algo não vá de acordo para que o manual
seja percebido em sua instrumentalidade. E quando isso acontece ele pode, então, “motivar” uma
proposição. Se tudo funciona normalmente com o manejo do martelo – quer dizer, se o martelo desempenha
satisfatoriamente a sua função – então, o carpinteiro não volta sua atenção para ele e assim diminui
imensamente a possibilidade dele ser “objeto” de uma proposição. Por outro lado, se o martelo não
desempenha adequadamente sua função, se ele é, por exemplo, “pesado demais” para a execução de uma
determinada tarefa, aí sim, nesse caso, o carpinteiro pode expressar isso numa proposição – talvez para um
assistente, como justificativa para a troca do instrumento por outro menos pesado, e por isso mais adequado
a execução daquela atividade.
96
SZ, p. 157-158.
97
SZ, p. 158.
54
Os entes são recortados de seus contextos e as propriedades são recortadas
deles. O “como” já não mais se orienta desde uma totalidade conjuntural, tornado-se mera
estrutura apofântica ao nível do simplesmente dado. Veja-se Heidegger:
A estrutura-como da interpretação sofre uma modificação. Em sua função de
apropriação do compreendido, o “como” já não se move desde uma totalidade
conjuntural (Bewandtnisganzheit). No tocante às suas possibilidades de
articular relações de referência, o “como” fica separado da significância que
constitui o mundo circundante. O “como” é forçado a nivelar-se ao plano do
ser simplesmente dado. Desce ao nível da estrutura da mera visão que
determina o simplesmente dado. Neste nivelamento que transforma o “como”
originário da interpretação, guiada pela circunvisão, no “como” da
determinação do simplesmente dado consiste a vantagem (Vorzug) da
proposição; somente assim tem ela a possibilidade da pura visualização
demonstrativa.
98
É preciso, portanto, que ocorra uma mudança no comportamento originário do
ser-aí com o mundo para que os entes sejam tomados em sua pura objetividade e sejam
como tal almejados em proposições. O que, no § 13, o filósofo colocou acerca da
possibilidade do conhecimento temático vale para a proposição: somente abstendo-se de
todo produzir, manusear etc., a ocupação pode assumir o modo de um simples demorar-se
junto a... que permite, então, a visualização do ente em sua pura aparência (Aussehen).
Essa visualização é sempre um direcionamento para..., um encarar o ente simplesmente
dado. “Encarar o ente simplesmente dado” significa romper a familiaridade cotidiana que
já o compreende desde sempre a partir de um todo relacional e observá-lo em seu puro
isolamento enquanto um objeto independente. Nisso evidencia-se que o conhecimento se
funda num já-ser-junto-ao-mundo, no qual o ser do ser-aí se constitui de modo
fundamental. Não é o conhecimento que estabelece pela primeira vez o acesso aos entes;
estes já foram previamente descobertos – o que quer dizer, compreendidos e interpretados
– pela ocupação cotidiana que deles faz uso. Também o deixar e fazer ver da proposição se
dá com base nessa descoberta prévia dos entes. Em outras palavras, o que Heidegger
sustenta é que a elaboração de uma proposição pressupõe uma certa familiaridade com
aquilo sobre que ela é. O conteúdo proposicional (aquilo sobre o que se discorre e o
discorrido como tal) já é sempre, e anteriormente, um conteúdo existencial (aquilo com
que se lida na ocupação e seus “aspectos”); a estrutura-como da proposição (“como”
98
SZ, p. 158.
55
apofântico) deriva da estrutura-como da interpretação originária (“como” hermenêutico-
existencial)
99
. Dahlstrom
100
fornece um esquema explicativo dos estágios da estrutura
como:
Este esquema mostra o como apofântico no extremo de uma sucessão de
estágios que radicam na compreensão existencial, ou seja, na abertura originária do ser-no-
mundo. Nesse estágio a estrutura-como é ainda totalmente estranhada; dá-se aí a abertura
significativa da “porta” enquanto parte de uma totalidade referencial, em função da qual
ela surge em sua possibilidade de serventia (em seu para quê). As possibilidades abertas na
compreensão são, no trato direto com as coisas, elaboradas em formas: o relacionamento
cotidiano com a porta a toma como uma saída, ou seja, a porta é interpretada como uma
saída. Esse estágio não é ainda apofântico, a estrutura-como que aqui se identifica não está
em função de um mostrar, mas é um modo existenciário (isto é, referente ao
comportamento com os entes) de sempre tomar aquilo que encontra de um modo ou de
outro, em acordo com as possibilidades projetivas abertas na compreensão. O “como” está
ligado ao modo de utilização: a porta é utilizada “como” uma saída, sendo que isso não
precisa ser – e normalmente não é – pronunciado expressamente. Trata-se de um
entendimento tácito. No entanto, o que assim se compreende e interpreta pode também ser
objeto de uma demonstração explícita na forma de proposições. Isso exige, contudo, uma
mudança no comportamento ocupacional a fim de que ele seja visualizado, não mais como
99
SZ, p. 158: “Chamamos de “como” hermeneutico-existencial, o “como” originário da interpretação que
compreende numa circunvisão, em contraste ao “como” apofântico da proposição”.
100
Op. cit., p. 195.
56
um instrumento útil, mas como algo simplesmente dado. Somente agora juízos temáticos
têm lugar. Prendendo a atenção ao “instrumento porta” a relação com ela torna-se, então,
uma relação de conhecimento. O conhecido, aquilo que é apanhado da porta na
visualização observadora, pode ser comunicado: “Esta porta é uma saída”. A porta é
determinada “como” uma saída. Ou melhor, a porta é mostrada “como” uma saída.
Posto desse modo, “a proposição já não pode negar a sua proveniência
ontológica de uma interpretação compreensiva”
101
. O esquecimento, ou melhor, a
ignorância, da estrutura existencial pressuposta em toda tematização, conduziu à uma
limitada interpretação do modo de ser da proposição e conseqüentemente da verdade. Com
a elaboração do fenômeno da interpretação e seus estágios, Heidegger pôde então
confrontar o que ele chama de “teoria do juízo” meramente exterior, segundo a qual a
proposição não passa de uma combinação de conceitos e representações. O que está em
jogo na proposição é antes de tudo um pronunciar-se acerca dos entes já sempre
compreendidos e interpretados. O pronunciado pode ser verdadeiro ou falso. Tal
possibilidade tem também de ser entendida em função da estrutura primária do
compreender e do interpretar. O que qualifica, em última instância, uma proposição para
ser verdadeira ou falsa é a estrutura-como. Dissemos anteriormente: a proposição mostra o
ente. Esse mostrar é fundamentalmente um mostrar algo como algo. É isso que se constata
na predicação. Ao martelo é atribuído o predicado de peso. “O martelo é pesado” mostra o
martelo “como” algo pesado. “Esta porta é uma saída” mostra a porta “como” uma saída.
Tanto quanto a interpretação, a proposição expõe apenas um recorte acerca do ente já
compreendido. A indicação do martelo como algo pesado não diz tudo sobre o martelo,
assim como a indicação da porta como uma saída não diz tudo sobre a porta. E é
justamente porque concentra a visão em determinado aspecto do ente que a proposição
tem a propriedade de mostrá-lo. Mostrar tem o sentido de pôr o ente em relevo, rasgando a
compreensão originária que o absorve numa familiaridade silenciosa e discreta que o torna
praticamente imperceptível. Ao propor algo sobre o ente, a proposição o mostra assim
como ele é e se descobriu sendo de um determinado ponto de vista. Nisso reside, para
Heidegger, o caráter verdadeiro da proposição: “ela propõe, indica, ‘deixa ver’
(apóphansis) o ente em seu ser e estar descoberto”
102
. A proposição verdadeira põe o ente
101
SZ, p.158.
102
SZ, p. 218.
57
a descoberto; ela mostra o ente assim como ele é em si mesmo. Por seu turno, a falsidade
também ocorre na base do mostrar algo como algo, no entanto, nesse caso o ente é
mostrado como algo que ele não é.
Verdade e falsidade têm a ver com modo de ser da proposição enquanto
mostração. A verificação de uma proposição nada mais é que a constatação de que o ente é
ou não assim como foi mostrado na proposição. Confirmar a verdade de uma proposição
significa: verificar que o ente é em si mesmo assim como é indicado, mostrado pela
proposição. Mostrando o ente como ele é em si mesmo, a proposição cumpre uma
descoberta. “A proposição é verdadeira significa: ela descobre o ente em si mesmo”
103
.
O ser-verdadeiro da proposição tem de ser pensado, portanto, no sentido de
ser-descobridor. Contudo, como já foi explicitado, a proposição se move na base de uma
descoberta prévia dos entes sobre que se pronuncia, de modo que a descoberta que ela
efetua já é sempre em função de uma descoberta mais originária, que, como tal, tem de ser
considerada verdadeira num sentido ainda mais originário.
Uma rápida incursão pela argumentação exposta até aqui pode proporcionar
uma melhor visualização daquilo que se está a colocar. Ao abordar o modo de ser da
proposição, vimos que esta sempre se movimenta na base do já descoberto (quer dizer:
compreendido e interpretado). “Descoberta”, em nível apofântico, tem o sentido de pôr em
relevo, “explicitar”, tirar o véu do ente, arrancá-lo da familiaridade cotidiana que o faz
anular-se em sua funcionalidade e mostrá-lo em seus atributos; é o sentido de des-
velamento presente no termo grego alétheia. Descoberta, no sentido de abertura primeira
dos entes, é um modo de ser-no-mundo. O lidar cotidiano já descobriu, antes de qualquer
proposição temática, os entes em sua serventia. Como mostramos, os fundamentos desta
descoberta remetem ao fenômeno da abertura de mundo. Esta tem de ser considerada
verdadeira num sentido mais originário que a verdade proposicional, pois a ela pertence a
abertura primária dos entes. Só o que aí se abre pode, por diversas modificações, tornar-se
tema de uma mostração explícita. A verdade da abertura (descoberta primeira dos entes)
não apenas é mais originária como tamm tem de ser visualizada enquanto fundamento
da verdade proposicional. Num certo sentido, essa visualização já foi cumprida na
incursão aos fundamentos da proposição, que acabou por alcançar o fenômeno existencial
103
SZ, p. 218.
58
da compreensão, constitutivo da abertura originária do mundo, cooriginariamente com a
disposição. Daí o ataque de Heidegger ao “preconceito lógico”. A tese de que a verdade é
exclusivamente propriedade de uma proposição, mantém-se desde um desconhecimento da
estrutura da verdade.
A proposição não é o “lugar” primário da verdade, senão que, ao contrário, a
proposição, enquanto modo de apropriação do descoberto e enquanto modo de
ser-no-mundo, funda-se no descobrir, ou melhor dizendo, na abertura do ser-
aí. A “verdade” mais originária é o “lugar” da proposição e a condição
ontológica de possibilidade para que a proposição possa ser verdadeira ou falsa
(descobridora ou encobridora).
104
Heidegger não só nega as pretensões do preconceito lógico, sustentando que a
“a proposição não é o ‘lugar’ primário da verdade”, como também, ao afirmar que “a
‘verdade’ mais originária é o ‘lugar’ da proposição, ele sustenta o seu oposto. O caráter
inusitado dessas afirmações as torna, de início, aparentemente absurdas, principalmente se
não estiver suficientemente claro a distinção entre verdade enquanto propriedade de
proposições e aquilo que o filósofo chama de “verdade originária”.
Heidegger distingue em Ser e Tempo três tipos de “verdade”, ou, como
poderíamos dizer ainda, três modos como verdade pode ocorrer, que precisam ser
considerados para que se evite confusões. Dois deles se dão em nível apofântico, ou seja,
são verdades ligadas à proposição: a verdade expressa no caráter de ser-descobridor da
proposição, que conserva o sentido original do termo grego alétheia; e, a verdade no
sentido tradicional de veritas, que conserva o sentido da adaequatio intellectus et rei. O
outro tipo de verdade, que embora tenha o caráter de descoberta não deve ser confundido
com a descoberta que ocorre na proposição e muito menos com a verdade no sentido de
concordância, é desenvolvido em nível existencial. Esta é diferenciada das demais pelo
acréscimo de um adjetivo. Ela é a verdade originária (ursprünglichste Wahrheit). O
adjetivo ursprunglichste que traduzimos por originária – no sentido de inicial, primeira –
reforça a indicação de que o que está em jogo nessa caracterização é o problema da
fundamentação. Esse foi e mantém-se como um tema central dentro da filosofia. Se por
um lado a filosofia se ocupa de proposições e delas pretende-se um certo valor de verdade,
por outro é preciso perguntar pela validade dessas proposições, pelo que as sustenta em
104
SZ, p. 226.
59
sua inteligibilidade e sua capacidade de portar verdades. A verdade originária surge como
uma alternativa para essa questão; como um contraponto às tentativas de fundamentação
baseadas em critérios vindos de uma subjetividade pretensamente ideal, como pode ser
observado nitidamente nas filosofias de Descartes, Kant e Hegel, edificadas
respectivamente sobre a base segura do “penso, logo sou”, do “eu penso” e do “saber
absoluto”. Quando o filósofo diz que o “lugar” da proposição é a verdade originária, o
termo verdade é usado para designar aquela dimensão prática da existência que antecede
todo e qualquer posicionamento teórico descritivo em relação ao mundo. O que Heidegger
quer mesmo apontar quando remete a esta verdade mais originária é, segundo Stein, que o
modo concreto de o ser humano já sempre se compreender no mundo, sendo no mundo, é
por si mesmo revelador, isto é, é explicitador. Há um auto-explicitar-se anterior ao nível
da proposição que se dá desde que somos no mundo
105
. A inspiração para designar essa
dimensão reveladora da existência de verdade originária vem de alétheia interpretada por
Heidegger como descoberta, desocultação.
Claro que o filósofo poderia ter falado desse nível prático, revelador, e apontá-
lo como fundamento da proposição e, conseqüentemente, da verdade proposicional, sem
denominá-lo em termos de “verdade” originária. E isso evitaria inclusive uma série de mal
entendidos e confusões acerca do que ele pretende com sua reflexão sobre a verdade. Um
desses equívocos propiciados pelos vários usos do termo verdade em Ser e Tempo é o
entendimento de que Heidegger cai, em seu processo de fundamentação da verdade, numa
espécie de recurso ao infinito; visto que ele estaria justificando a verdade das proposições
numa verdade anterior e isso iniciaria um retrocesso infinito na busca dos critérios de
fundamentação da verdade proposicional que se quer validar. Esse não é o caso,
evidentemente. Nota-se isso quando se tem bem claro a diferença entre a verdade
fundante, e a verdade fundada que ocorre na proposição. Não se trata do mesmo tipo de
verdade. Essa diferença é assinalada por Heidegger, segundo Stein, no uso que o filósofo
faz das aspas ao indicar o que funda o que, no jogo entre proposição e verdade:
Quando então escutamos de novo a frase “a proposição não é o lugar da
verdade, mas a verdade é o lugar da proposição” sabemos que os dois termos
que aí se aproximam, “lugar” e “verdade”, estão entre aspas. Logo, o modo da
verdade se dar aí, não é proposicional e, o “lugar” entre aspas, quer marcar
esta diferença. E a verdade que se dá neste lugar não é a verdade que se opõe
105
Stein, Seminário sobre a verdade, op. cit., p. 173.
60
simplesmente à falsidade como propriedade de proposições. Logo, a verdade
que se dá neste lugar ou que é este lugar tem um sentido novo, inusitado, que
antes não havia sido explicitado desta maneira na filosofia.
106
Marcada essa diferença entre verdade como propriedade de proposições e
verdade originária como seu fundamento, já não vale pensar que a argumentação de
Heidegger apela para um retrocesso ad infinitum. Além do que, isso que o filósofo aponta
como fundamento da proposição, da verdade, enfim, do conhecimento em geral, e que ele
coloca ligado ao ser-aí, enquanto o modo fundamental desse ente ser o seu aí, articula de
tal modo o caráter de “fundo”, de instância última, que realmente não deslumbra a
possibilidade de pensar numa estrutura para além dele. A existência fática é o limite.
Outro aspecto a ser considerado em relação ao par de frases de Heidegger “a
proposição não é o lugar da verdade, mas a verdade (originária) é o lugar da proposição”,
diz respeito ao caráter transcendental da argumentação de Ser e Tempo. Heidegger, tanto
quanto Kant, busca, na obra de 1927, elaborar as condições de possibilidade do acesso ao
mundo. Mas ele radicaliza Kant, na medida em que a transcendentalidade por ele descrita
dispensa a esfera segura e transparente de uma subjetividade idealizada e se volta para o
modo concreto da existência. O ser-aí é posto no lugar da subjetividade e, embora esta
substituição mantenha a filosofia de Ser e Tempo ainda muito próxima do modelo
monocêntrico das filosofias da consciência, que Heidegger se propôs a superar, o
constructo ser-aí já não tem mais o estereótipo do sujeito transcendental idealizado. O ser-
aí é fundamentalmente ser-no-mundo, marcado pelas suas condições existenciais. É desde
o caráter existencial desse ente privilegiado que têm de ser pensadas as condições de
possibilidade da relação, já sempre posterior, entre homem e mundo. Elas são o
fundamento não apenas da proposição, da verdade proposicional, mas também, e acima de
tudo, da própria existência. São essas condições transcendentais de possibilidade que
Heidegger quer apanhar com a expressão “verdade originária”. É por isso que na parte C
do § 44 vai se falar em pressuposição da verdade: porque verdade originária tem esse
caráter transcendental, que não a põe apenas como fundamento da verdade proposicional,
106
Stein, Seminário sobre a verdade, op. cit., p. 172.
61
mas como o modo fundamental de ser do ser-aí. Mas não vamos abordar este aspecto
agora.
107
Se percebermos o caráter transcendental da argumentação de Ser e Tempo,
ficará claro que a questão da verdade não se limita ao § 44, senão que tem de ser pensada
no conjunto dos §§ que compõe a Analítica Existencial. Isso marca uma mudança no nível
em que deve ser elaborada a questão da verdade. Não é mais o caso de restringir a
discussão da verdade ao âmbito lógico-semântico, antes trata-se de deslocar essa discussão
para o nível das condições existenciais de possibilidade. Daí Heidegger ligar a verdade ao
fenômeno da abertura (Erschlossenheit) que não é meramente um dos existenciais básicos
do ser-aí, senão que é “o” existencial básico. “O ser-aí é sua abertura”, diz o filósofo
108
.
Somente porque o ser-aí é, em sua condição existencial, desde sempre uma abertura, uma
espécie de clareira onde os entes se dão, por assim dizer, espontaneamente
109
, pode ele,
familiarizado que está com o que em sua abertura se mostra, emitir proposições sobre os
entes. A pretensão temática de dizer o mundo tal como ele é, já não pode abrir mão dessa
pressuposição ontológica. Por isso, ao discutir o problema da verdade, Heidegger remete
107
A questão acerca da pressuposição da verdade será tema de análise do capítulo III. Por ora interessa
perceber o caráter geral da transcendentalidade em Ser e Tempo. O desenvolvimento dessa questão por
Ernildo Stein, em Seminário sobre a verdade, pode ajudar no entendimento. Stein situa Heidegger dentro da
tradição ontológica-trascendental, na qual também se situam Kant e Husserl. Tanto quanto a tradição
transcendental, Heidegger está interessado naquilo que está mais no fundo, que é condição de possibilidade
do comportamento humano no mundo – seja esse comportamento de ordem prática ou teórica. Mas há uma
grande e determinante diferença no modo como Kant, e mesmo Husserl, conceberam a transcendentalidade e
o modo como Heidegger a concebe em Ser e Tempo. Para aqueles, a questão da transcendentalidade estava
ligada à idéia de uma subjetividade a priori que garantisse uma fundamentação segura para o conhecimento,
para a realidade, para a verdade. Já para Heidegger – e esse é o ponto veementemente enfatizado por Stein –
“a transcendentalidade está ligada ao modo de ser-no-mundo, (...) ao modo concreto de ser-no-mundo. E a
idéia de fundamentação que está ligada a este modo de ser-no-mundo não é uma idéia de fundamentação
última, é uma fundamentação que renúncia ao caráter apodítico, de uma fundamentação como a queria Kant
ou como a queria Husserl. Trata-se de uma fundamentação onde, em lugar do sujeito auto-suficiente,
consciente de si, se põem os limites deste sujeito, que são as condições históricas, que são as condições
existenciais. Portanto, se trata de uma fundamentação de caráter flutuante. Mas não há dúvida nenhuma que
nesse tipo de fundamentação se afirma o caráter transcendental que é igual a todos os outros modos de
apresentação da transcendentalidade, quando dela se fala na tradição filosófica” (Stein, Seminário sobre a
verdade, op. cit., p. 170). Stein nos diz ainda que a transcendentalidade explicitada em Ser e Tempo tem
caráter administrativo: “É um caráter de transcendentalidade que tem, como tarefa, substituir as pretensões
de certeza última, de certeza definitiva e administrar, num espaço aberto no mundo prático, no modo de ser-
no-mundo, mais um certo tipo de incertezas que certamente não são incertezas no sentido de duvidosas ou de
ambíguas, mas incertezas no sentido de que são certezas que não se consegue nunca estabelecer
definitivamente” (Idem, 170-171).
108
SZ, p. 133.
109
No ensaio “Sobre a essência da verdade”, de 1930, o filósofo chama o fenômeno da abertura de liberdade,
reforçando com isso o modo espontâneo (livre) como as coisas aí se dão.
62
ao fenômeno da abertura e o sustenta como verdadeiro num sentido mais originário que a
verdade proposicional nele fundada.
Essa distinção entre verdade fundada e verdade fundante será decisiva no
desenvolvimento posterior deste trabalho, enquanto pano de fundo da discussão de outros
aspectos ligados ao problema da verdade como ele aparece em Ser e Tempo. Falta,
contudo, no que diz respeito a essa relação entre verdade fundada e verdade fundante,
considerar ainda a possibilidade da verdade como “concordância”.
1.3.2 – A verdade como “concordância”
A crítica heideggeriana ao conceito de verdade como “concordância” não
implica a necessidade de abandoná-lo, mas de apreendê-lo em seu caráter derivado. A
verdade enquanto abertura não é um novo conceito de verdade que deva ser posto ao lado
ou no lugar da definição de verdade como concordância. Com ele almeja-se a elaboração
dos pressupostos que já estão sempre presentes quando se toma a verdade em termos de
uma adaequatio intellectus et rei, de uma concordância do conhecimento com seu objeto.
O êxito dessa empresa depende de que se logre demonstrar que: “1. A verdade
compreendida como concordância tem sua origem na abertura e isso através de uma
modificação determinada. 2. O próprio modo de ser da abertura propicia que, primeiro, se
faça visível sua modificação derivada e que vigore a explicação teórica da estrutura da
verdade”
110
.
A análise até aqui desenvolvida cumpriu parte desta tarefa. Ela mostrou, como
resume Heidegger, que:
A proposição e sua estrutura, o como apofântico, fundam-se na interpretação e
em sua estrutura, o como hermenêutico, e, a seguir, na compreensão, a
abertura do ser-aí. A verdade, porém, vale como determinação privilegiada da
proposição assim derivada. Então, as raízes da verdade proposicional alcançam
novamente a abertura da compreensão.
111
Cabe, agora, explicitar o modo como essa verdade proposicional, caracterizada
inicialmente como descoberta dos entes, pode assumir a forma da “concordância”. Essa
tarefa nos remete mais uma vez ao âmbito proposicional. Vimos acima que Heidegger
110
SZ, p. 223.
111
SZ, p. 223.
63
inicia destacando três aspectos da estrutura unificada da proposição: a mostração, a
predicação e a comunicação. Por eles alcança-se a definição geral da proposição enquanto
uma mostração que determina através da comunicação. Vimos, também, o modo como
essa mostração feita pela proposição se dá com base no que já se abriu na compreensão e
elaborou na interpretação. A proposição não paira no ar, senão que necessita em cada caso
de uma posição prévia, visão prévia e concepção prévia, desde as quais a mostração se faz
possível. Isso quer dizer, em outras palavras, que a proposição se move inicialmente numa
totalidade conjuntural significativa, da qual ela constitui um recorte. Nesse recorte es
contida a descoberta dos entes. A proposição “o martelo é pesado demais” constitui um
recorte de um contexto mais amplo que abarca, no caso, todo o contexto da atividade
prática em que o martelo está sendo usado. Evidentemente, o martelo não é “pesado
demais” no isolamento, senão que é pesado demais para a execução de um trabalho
específico. É no uso específico do martelo nesse contexto que ele é descoberto como
excessivamente pesado. A proposição “o martelo é pesado demais” mostra o ente referido
na modalidade específica de sua descoberta.
A proposição é, por excelência, o meio pelo qual o ser-aí se exprime enquanto
ser-descobridor em relação aos entes. É na proposição, diz Heidegger, que o ser-aí “se
exprime como tal sobre o ente descoberto”
112
. Enquanto comunicação, o que a proposição
comunica é o ente no modo de sua descoberta. E, na percepção, o ser-aí que percebe essa
comunicação se põe a si mesmo como ser-descobridor em relação aos entes referidos. Isso
é possível porque a descoberta dos entes contida na proposição se preserva no que é
pronunciado, ficando, assim, acessível a outros. “O que se pronuncia torna-se, por assim
dizer, um manual intramundano”, ou seja, algo que vem ao encontro dentro do mundo e
que pode, como tal, ser “retomado e propagado”
113
. Nessa possibilidade da proposição
pronunciada de ser retomada e propagada reside também o ponto de partida de um gradual
desligamento da proposição em relação ao contexto significativo em que teve lugar
inicialmente (e do qual constitui um recorte). Quanto mais ela se afasta e se desliga do
fundo compreensivo de que emergiu originalmente, mais ela é vista, independentemente,
como algo simplesmente dado, que constitui o tipo de proposição considerada pela
ontologia tradicional – o tipo de proposição que se presta aos “cálculos” da lógica.
112
SZ, p. 224.
113
SZ, p. 224.
64
Contudo, mesmo com esse afastamento da proposição de seu contexto
originário ainda permanece nela uma remissão ao ente sobre o qual ela se pronuncia. Quer
dizer, mesmo depois de passar pelo progressivo processo de descontextualização e
“empobrecimento” que transforma a linguagem cotidiana de mostrar instrumentos e seus
aspectos em meras proposições de cálculo lógico, ainda assim a proposição conserva a
descoberta do ente. Uma proposição sempre será uma proposição sobre, sendo que, até na
repetição, o ser-aí que repete se põe numa certa relação com os entes de que trata a
proposição. Daí decorre, no entanto, que o ser-aí toma esse tipo de acesso ao ente,
mediado pelas proposições que confronta no cotidiano, como suficiente e se acredita
dispensado da realização originária do descobrimento. E, então, em larga escala, o acesso
aos entes já não se faz através de cada descobrimento próprio, senão que pela apropriação
da descoberta preservada no que é dito e propagado cotidianamente. Assim, mesmo sem se
colocar diante dos próprios entes numa experiência “originária”, o ser-aí permanece, de
modo correspondente, num ser para o ente
114
.
A proposição, enquanto modo de comunicação existencial, mantém-se,
portanto, sempre numa certa correspondência com os entes, ou seja, ela sempre traz em si
uma mostração determinada daquilo a que se refere. Contudo, aquilo que a proposição
mostra pode ou não ser apropriado pelo ser-aí. Isso depende de que se faça a verificação
do ser-descobridor da proposição. Somente agora a proposição é verificada em sua
possibilidade de concordância com aquilo que está mostrando; somente agora, portanto,
tem espaço uma noção de verdade enquanto concordância. Veja-se Heidegger:
Se, porém, o ser-aí deve apropriar-se dos entes assim como são mostrados na
proposição, isso implica que a proposição seja verificada enquanto proposição
descobridora. No entanto, a proposição pronunciada é um manual de tal modo
que, por preservar nela a descoberta, tem em si mesma uma remissão aos entes
descobertos. A comprovação de seu ser descobridor diz agora: comprovar a
remissão da proposição descobridora aos entes. A proposição é um manual. O
ente para o qual ela traz uma remissão descobridora é um manual
intramundano, ou seja, um ser simplesmente dado. A própria remissão se dá
como no modo de algo simplesmente dado. A remissão, no entanto, reside no
fato de que a descoberta, preservada na proposição, é sempre descoberta de...
O juízo “contém algo que vale para os objetos” (Kant). Mas a própria remissão
recebe agora, por transformar-se numa relação entre entes simplesmente
dados, o caráter de algo simplesmente dado. Descoberta de... transforma-se em
114
SZ, 224.
65
conformidade simplesmente dada entre coisas simplesmente dadas, a saber, a
proposição pronunciada e o ente por ela tematizado.
115
O fenômeno da “concordância” sobre o qual a tradição fez recair a definição
da essência da verdade surge em seu caráter derivado como uma possibilidade existencial
da proposição. A análise que Heidegger fez do problema procurou evidenciar que no
próprio confronto entre a proposição e seu objeto o que está em jogo, em última instância,
é a comprovação da verdade enquanto descoberta. Não é o caso de que aí se dê uma
verdade, senão que aí se comprova uma verdade. E mesmo isso só é possível porque o
fenômeno existencial da descoberta, fundado na abertura do ser-aí, transforma-se, devido
ao caráter comunicativo (declarativo) da proposição, em uma propriedade simplesmente
dada das proposições. A relação pressuposta na concordância só é possível enquanto
relação entre seres simplesmente dados. Seria ilusório supor uma relação entre intellectus
e res caso eles não se equiparassem de algum modo, pois, tendo por princípio que a
concordância implica uma relação do tipo “assim como”, só numa mesma perspectiva
podem os membros dessa relação, intellectus e res, ser confrontados.
O ser-descobridor (a verdade) da proposição transforma-se em verdade no
sentido de uma concordância entre coisas simplesmemte dadas dentro do mundo. Com
isso, atesta Heidegger, “fica demonstrado o caráter ontologicamente derivado do conceito
tradicional de verdade”
116
. O fato de ter vigorado ao longo da história da filosofia a
interpretação da verdade como concordância tem de ser pensado em função do próprio
modo de ser do ser-aí. Enquanto ocupação, este ente já está de tal modo tomado pelo
mundo, que ele passa a compreender a si mesmo a partir do mundo, ou melhor, a partir
daquilo que vem ao encontro dentro do mundo. O “vir ao encontro” tem de ser pensado
agora em nível ôntico. O que onticamente vem em primeiro lugar e aparece antes de tudo é
justamente aquilo que no ordenamento dos contextos de fundação ontológico-existenciais
ocupa o último lugar. Isso quer dizer que, em seu comportamento cotidiano, o que é
imediatamente percebido são os entes meramente dados; o ser desses entes, aquilo que
torna possível o seu encontro como tal, permanece oculto. Trata-se da diferença
ontológica: há o nível ôntico das relações com os entes e há, também, o nível ontológico-
existencial que sustenta e torna possível as relações em nível ôntico. O nível ontológico
115
SZ, p. 224.
116
SZ, p. 225.
66
responde pelo âmbito da fundamentação; o fundamento vem primeiro, mas como tal não
aparece, pelo menos imediatamente. O que aparece primeiramente é o fundamentado, o
nível ôntico, os entes. Uma vez que o fundamento permanece de início e na maior parte
das vezes oculto, a compreensão mundana tende a tomar o ente como algo dado. E não só
isso. Enquanto ser-no-mundo, envolvido e absorvido pelo mundo, o ser-aí estende para si
a compreensão que faz dos entes e passa a entender-se também como um ente
simplesmente dado dentro do mundo. Assim, “não é apenas a verdade que é encontrada
como algo simplesmente dado, senão que a compreensão do ser toma também, de início,
todo ente como algo simplesmente dado”
117
.
A interpretação da verdade como uma propriedade colada a uma proposição
simplesmente dada é, portanto, parte de uma tendência ontológica mais ampla, que
constitui o modo de ser mundano do ser-aí. Isso que aqui indicamos como tendência
ontológica mais ampla remete ao modo de ser cotidiano do ser-aí em que este é tomado
pelo mundo em que vive e passa a compreender-se a partir dele. Nessa condição, dirá
Heidegger, o ser-aí existe no modo da “decadência” (Verfallen); o seu ser-próprio é
dissimulado em função de um modo de ser impessoal, que o filósofo indica com a
expressão das Man (a gente). Desenvolveremos estes conceitos e sua implicação para com
a noção de verdade no capítulo seguinte.
117
SZ, p. 225.
67
II - A VERDADE FUNDANTE É VERDADE EXISTENCIAL
A expressão “verdade existencial” não é empregada por Heidegger em Ser e
Tempo, pelo menos não nesses termos. Ele chega a falar de verdade da existência
Wahrheit der Existenz
118
- se referindo justamente àquilo que em outras ocasiões ele
denomina de “fenômeno mais originário da verdade”, ou apenas “verdade mais
originária”. No fundo, estas diferentes expressões remetem todas ao fenômeno da abertura
(Erschlossenheit) do ser-aí, desde o qual se dá o acesso primeiro aos entes, ao mundo e ao
próprio ser-aí. Ser no modo da abertura não é, como vimos, uma possibilidade que o ser-aí
pode desenvolver ou não, senão que se trata de uma constituição essencial desse ente.
Enquanto ser-no-mundo, o ser-aí já é desde sempre a clareira do mundo; a existência
carrega consigo a abertura, ou melhor, a existência é essa abertura. E, uma vez que
Heidegger liga o conceito de verdade a esse existencial fundamental, fica justificado, com
isso, que se fale em verdade existencial.
Mas o uso do adjetivo “existencial” para marcar essa verdade, já abordada
anteriormente sob o rótulo de verdade fundante, não é sem propósito. Com isso queremos
marcar esse importante aspecto do conceito de verdade em Heidegger que é, precisamente,
o seu caráter existencial. No capítulo precedente, embora não tenha sido tematizado
diretamente, já se tornou visível o vínculo entre existência e verdade, na medida em que se
explicitou a descoberta originária enquanto um modo de ser-no-mundo marcado pela
ocupação cotidiana. Contudo, passamos por alto, na ocasião, pelo fenômeno do ser-com,
que responde pelo modo de ser do ser-aí na relação com os outros. A existência abarca de
modo igualmente originário tanto o comportamento com os entes intramundanos,
liberados enquanto objetos de ocupação (Besorgen), quanto o comportamento com outros
entes que possuem o modo do ser-aí, que não são, por sua vez, objetos de ocupação, mas
de preocupação (Fürsorge). E, sendo assim, a caracterização da verdade ao nível das
118
SZ, p. 221.
68
condições existenciais de possibilidade pretendida por Heidegger não poderia prescindir
dessa análise, assim como não poderia também ocultar as implicações por ela
apresentadas: pois, se por um lado a existência é marcada por uma luminosidade
reveladora dos entes, por outro, ela é, enquanto existência com-outros, obscurecedora. Isso
conduz à afirmação de que “o ser-aí está, de modo igualmente originário, na verdade e na
não verdade”
119
, que irá constituir o ponto alto de nossa discussão neste capítulo. A
primeira parte desta inusitada sentença, “o ser-aí está na verdade”, é facilmente resgatada
daquilo que expusemos anteriormente (capítulo 1): vimos que somente na abertura do ser-
aí se alcança o fenômeno mais originário da verdade e vimos, também, que o ser-aí é
essencialmente sua abertura. Disso podemos entender que, na medida em que o ser-aí é
essencialmente a sua abertura, ele é também, em decorrência, essencialmente
“verdadeiro”, o que diz, em outras palavras, que ele está “na verdade”. Há de se perseguir
agora o modo como o ser-aí está na não-verdade, que tem de ser buscado junto ao modo
cotidiano da existência com-os-outros.
2.1 - O ser-no-mundo como ser-com
Do mesmo modo como não se dá um ser-aí sem mundo, também não se dá, de
início, um ser-aí isolado dos outros. O mundo em que nos encontramos é desde sempre um
mundo compartilhado (Mitwelt). Os outros estão dados de modo tão imediato quanto nossa
própria existência, de modo que não há, de início, uma relação de alteridade entre mim e
os outros, que somente depois se modifica numa forma de conhecimento. O envolvimento
cotidiano já se deparou e também já compreendeu de algum modo a co-existência de
outros entes que, não tendo o caráter de um manual, mostram-se com o modo de ser do
ser-aí. O “deparar-se” com os outros não tem, contudo, o caráter da pura percepção de
algo simplesmente dado, senão que, assim como os entes intramundanos, os entes com o
modo de ser do ser-aí apenas podem vir ao encontro e se revelar no contexto significativo
de um mundo já previamente aberto, ou seja, os outros são encontrados também a partir da
rede de relações que compõe a significância do mundo circundante. Assim, por exemplo,
no contexto ocupacional de um artesão, diz Heidegger
120
, os outros vêm ao encontro
enquanto aqueles para quem se destina a obra produzida. Ao produzir subsiste também
119
SZ, p. 223.
120
SZ, p. 117-8.
69
uma referência essencial àqueles cuja obra se destina e sob a medida dos quais ela é
confeccionada. Do mesmo modo, junto com o material empregado na produção, também
vem ao encontro o seu produtor ou “fornecedor”, enquanto aquele que “serve” bem ou
mal. Os outros são, portanto, alcançados dentro da circunvisão da lida ocupacional.
A questão é conduzida de tal modo por Heidegger que já não faz sentido
colocar o problema da intersubjetividade. Assim como a elaboração do ser-no-mundo
como ocupação buscou superar a problemática da relação entre sujeito e objeto, mostrando
ser uma ilusão a suposição de que estes estejam inicialmente separados, a elaboração do
mundo enquanto “mundo compartilhado” e a indicação do ser-aí como ser-com-outros
inviabiliza a colocação do problema do acesso aos outros, uma vez que eles já sempre
fazem parte do nosso mundo. Em toda relação com o mundo a referência aos outros já é
presente.
O campo, por exemplo, onde “saímos” para passear, se apresenta como
pertencente a tal e tal pessoas, que o mantém bem cuidado; o livro usado foi
comprado de... foi presenteado por... e assim por diante. O barco ancorado na
praia refere, em seu ser-em-si, a um conhecido que o utiliza para fazer
excursões ou, então, mostra-se como um “barco desconhecido” que como tal
alude a outros. Os outros que desse modo “vêm ao encontro” no conjunto
instrumental à mão no mundo circundante, não são algo acrescentado pelo
pensamento a uma coisa já antes simplesmente dada.
121
Essa explicitação do modo como os outros vêm ao encontro comporta, num
determinado sentido, um paralelo com aquilo que anteriormente foi colocado acerca do
modo como os manuais vêm ao encontro e são descobertos no interior do mundo
circundante. Em ambos os casos, quer dizer, tanto na descoberta dos manuais quanto na
descoberta dos outros, dá-se originalmente uma compreensão tácita, no sentido de que a
relação inicial com esses entes não os confronta de imediato como objetos de tematização,
senão que os mantém absorvidos numa familiaridade tão discreta que os deixa
praticamente imperceptíveis. E, assim como a ausência ou quebra de um instrumento
próximo é o que faz com que ele se revele em sua utilidade e revele, ainda, o contexto
funcional em que está inserido, também a perda ou ausência dos outros é o que mostra
(dolorosamente) a originalidade de nosso ser-com. Por outro lado, há uma forte diferença
entre o modo de encontro com os manuais intramundanos e o modo de encontro com os
121
SZ, p. 118.
70
outros: o encontro com os primeiros é mediado pela ocupação cotidiana que deles faz uso,
ao passo que os outros são alcançados mediante uma forma diferente de intercâmbio que,
embora se entrecruze com a ocupação, dela tem de ser diferenciada. Trata-se da
preocupação (Fürsorge), conceito que responde em Ser e Tempo pelos diversos modos de
comportamento do ser-aí com os outros, abrangendo “tanto o intercurso indiferente quanto
as formas negativas (hostilidade, aversão) e positivas (dedicação, amor) de
relacionamento”
122
.
É desde esta indicação da preocupação como modo de ser com outros que tem
de ser entendida a afirmação de que o ser-no-mundo é simultaneamente ser-com. Com a
proposição fenomenológica “ao ser-aí pertence essencialmente o ser-com”, não se quer
meramente apontar para o fato ôntico de que realmente ocorrem outros de minha espécie
no mundo. Se a frase “o ser-no-mundo se constitui essencialmente pelo ser-com” quisesse
dizer isso, constata Heidegger
123
, então o ser-com não seria uma determinação existencial
que conviria ao ser-aí, segundo o seu modo próprio de ser; seria uma propriedade
introduzida a cada vez, de acordo com a ocorrência dos outros. Contudo, a indicação
fenomenológica do ser-com é empregada aqui em sentido ontológico-existencial. Com ela
se descreve um modo de ser fundamental desse ente que nós mesmos somos a cada vez.
Um indício disso é o fato de o ser-com nos determinar existencialmente, mesmo quando
não ocorre faticamente a presença ou a percepção dos outros. Até mesmo o estar só do ser-
aí se constitui num modo de ser-com no mundo, dirá Heidegger
124
. E ele explica:
“Somente em um ser-com e para um ser-com, pode o outro faltar. O estar-só é um modo
deficiente de ser-com e sua possibilidade é a prova deste último”
125
.
O ser-aí, enquanto ser-no-mundo, mantém constantemente e invariavelmente
algum modo de preocupação para com os outros. O ser para o outro, contra o outro, sem o
outro, o passar ao lado do outro, o não importar-se com outro são todos modos possíveis
de preocupação
126
. Destes, são precisamente os mencionados por último que caracterizam
a convivência cotidiana e mediana de um com o outro, o que quer dizer, em outras
palavras, que na maior parte das vezes e antes de tudo, o ser-aí se mantém em modos
122
Nunes, op. cit., p. 97.
123
Cf. SZ, p. 120.
124
SZ, p. 120.
125
SZ, p. 120.
126
SZ, p.121.
71
deficientes e indiferentes de preocupação. Heidegger não se detém muito no
aprofundamento dessas que poderíamos chamar, com todo cuidado, de tendências
comportamentais negativas do ser-aí. Ele apenas as apresenta brevemente e, em seguida, já
passa a considerar suas implicações para o entendimento do modo de ser dos outros,
constatando que a convivência guiada pelos modos da indiferença facilmente desvia a
interpretação ontológica para o plano do simplesmente dado. Isso também não é
satisfatoriamente desenvolvido pelo filósofo, mas pode ser compreendido desde o contexto
geral em que está inserido. Assim, pode-se presumir que a indiferença e o descaso que
regem as relações cotidianas, afastam de tal modo os outros em seu ser-aí-com que se tem
a impressão de que eles são, em seu modo de ser, assim como são confrontados no dia-a-
dia, ou seja, como uma mera ocorrência ao lado de outras igualmente dadas no mundo. Do
ponto de vista ontológico-existencial, porém, o fato de onticamente o ser-aí-com dos
outros ser ocultado pela interpretação que os toma, primeiramente e na maior parte das
vezes, como sujeitos simplesmente dados e inicialmente isolados, não deve ser entendida
como um indício contra o achado fenomenal de que o ser-com é um constitutivo
fundamental do ser-no-mundo. Há de se preservar, quanto a isso, a diferença que
ontologicamente subsiste entre a mera ocorrência de um ente qualquer, simplesmente
dado, e a indiferença que rege a convivência cotidiana do ser-aí com os outros. A
indiferença de mim para com os outros não implica de modo algum que eles sejam algo
simplesmente dado. Isso mostra tão somente que os outros, já previamente descobertos
sobre a base significativa de um mundo compartilhado, vêm ao encontro no modo da
insignificância, da estranheza.
Com a mesma brevidade com que tratou os modos deficientes (negativos) e
indiferentes da preocupação, o filósofo aborda também seus modos positivos. Quanto a
estes, ele se limita a elaborar as duas possibilidades extremas em que podem desembocar:
a substituição dominadora e a anteposição libertadora. No primeiro caso, a preocupação
para com o outro acaba por substituí-lo nas ocupações cotidianas que ele deveria realizar.
Esse tipo de comportamento para com o outro o desloca de sua posição e o retrai de tal
modo que ele pode tornar-se dependente e dominado, mesmo que esse domínio seja
silencioso e, como tal, permaneça oculto para o subjugado. A preocupação que assim
procede diz respeito à ocupação com o manual. Há, no entanto, em contraste a este modo
de preocupação que substitui e desloca o outro em sua ocupação mundana, a possibilidade
72
de um preocupar-se com o outro que não lhe substitui, senão que lhe antepõe
(vorauspringen) suas possibilidades existenciais, ajudando a clarear para ele suas próprias
possibilidades e nisso libertando-o para elas. Não mais se dá aqui, portanto, uma
dominação, senão que uma libertação. A “substituição dominadora” e a “anteposição
libertadora” são, como já dissemos, possibilidades extremas que pode alcançar a
preocupação positiva com os outros. Mas Heidegger observa que a convivência cotidiana
pode não alcançar esses extremos, mantendo-se em inúmeras formas mistas que podem
estabelecer-se entre eles. E, contudo, ele não fala delas.
A preocupação – compreendida tanto em seus modos positivos quanto nos
deficientes e indiferentes – caracteriza o modo de encontro com os outros. Assim como a
ocupação confronta e libera os manuais já sempre desde uma perspectiva determinada,
também a preocupação confronta e libera os outros desde uma perspectiva determinada, a
partir da qual a relação com eles pode ser positiva (dedicação, afeto, amor), negativa
(hostilidade, aversão) ou apenas indiferente. Essa perspectiva de que falamos aqui é
precisamente o mundo familiar das ocupações cotidianas em que o ser-aí já está desde
sempre envolvido de um modo ou de outro. O mundo, entendido neste sentido, não libera
apenas o manual intramundano, mas também o ser-aí, ou seja, os outros enquanto aqueles
que em seu ser-aí-com compartilham o mesmo mundo. Os outros não precisam ser
introduzidos no mundo via um processo qualquer de reconhecimento posterior, senão que
eles compõe, desde o princípio, a base do mundo onde o ser-aí se arranja. Na estrutura
significativa da mundaneidade, interpretada como totalidade referencial, os outros já estão
inseridos como parte dessa estrutura: a mesa a ser construída na oficina é para fulano; os
pregos usados em sua construção foram comprados de alguém ou na loja de alguém e
assim por diante. De tal modo inseridos na estrutura de nosso mundo, o ser-aí-com dos
outros perpassa nossa constituição existencial mesmo quando onticamente julgamos ser
independentes deles. De acordo com a argumentação de Heidegger, “mesmo quando cada
ser-aí de fato não se volta para os outros, quando acredita não precisar deles ou quando os
dispensa, ele ainda é no modo do ser-com”
127
. Enquanto um existencial fundamental, o
ser-com não apenas é anterior como também é o fundamento de toda e qualquer atitude
existenciária para com os outros. A recusa e o isolamento dos outros são o que são em
vista da constituição essencial do ser-com. Somente num mundo onde os outros já se
127
SZ, p. 123.
73
revelaram de algum modo podem eles ser recusados e afastados. Recusar e afastar são
modos possíveis de relação com os outros, de preocupação.
Fica claro, portanto, que o ser-aí está sempre numa dada consideração para
com os outros. Os outros lhe perpassam a existência de modo fundamental. O ser-com não
é uma opção, é uma constatação. Em certo sentido vale dizer que o ser-aí é,
essencialmente, em função dos outros (umwillen Anderer)
128
. Tomada em sentido
existencial, esta afirmação remete ao fato de que, na constituição fundamental do ser do
ser-aí, já subsiste uma compreensão dos outros em seu ser-aí-com, mesmo que esta seja de
início tácita e que acabe posteriormente por se perder num entendimento imediato dos
outros como sujeitos meramente dados dentro do mundo. Contudo, este “ser em função
dos outros” não é passivo, senão que se revela, em seu desdobrar cotidiano, como uma
intensa competição, descrita por Heidegger em termos de uma tentativa de nivelar a
diferença insuprimível que há entre uns e outros. Empenhado em eliminar esta diferença, o
ser-aí acaba absorvido pelos outros. Esse fenômeno cotidiano da convivência Heidegger
desenvolve sob o título de das Man, “a gente”, ou “o impessoal”, como pode também ser
traduzido.
Além daqueles problemas normalmente confrontados no momento da
transposição dos termos de uma língua para outra, há uma dificuldade particularmente
especial na tradução do vocábulo man. O sentido do termo man, tomado isoladamente
dentro da língua alemã, corresponde aproximadamente com o uso que em português
fazemos do termo “gente”, quando o empregamos para indicar um contingente
indeterminado de pessoas no qual já sempre nos incluímos indiretamente. A “gente” não
sou “eu”, não é “você”, não é “ele” e nem “eles” (os outros), a gente não é “ninguém”
determinado; é aquela entidade neutra sob a qual cada um se abriga. Essa descrição
conduzida desde a expressão “a gente” apanha satisfatoriamente o sentido alemão do das
Man. Ocorre que, e esse é o problema, na língua alemã o man é usado sobretudo na função
de pronome indefinido, em orações em que não se quer indicar um sujeito determinado.
Nesse caso, ele serve como agente imaginário (que não é ninguém em particular, mas que
pode ser qualquer um) de uma opinião pública, de uma regra pública, ou algo semelhante.
Tomemos como exemplo a asserção “Im Sommer trinkt man viel Bier” cuja tradução
correspondente pode ser “Bebe-se bastante cerveja no verão”. O man conserva, ainda
128
SZ, p. 123.
74
nesse uso que se faz dele, o sentido indeterminado e geral que encontramos, por exemplo,
na expressão portuguesa “a gente” e, contudo, na transposição para o português “a gente”
não aparece, ou aparece com outra roupagem, na forma de “se”. Embora o “se” conserve
mais ou menos o mesmo sentido que o man na formulação alemã, seu uso acarreta uma
descontinuidade terminológica que não há no alemão e que, por isso, compromete a
clareza e precisão da tradução. Uma opção seria substantivar o “se” como alternativa à
tradução de das Man, mas isso não se revela uma boa alternativa visto que o “se” não tem,
quando tomado isoladamente, o mesmo sentido. Enquanto elemento gramatical, o “se”
pode desempenhar uma gama tão vasta e variada de funções que o sentido específico, em
função do qual ele seria aqui destacado, acabaria inevitavelmente enfraquecido pelos
outros tantos sentidos por ele abarcados. Sua substantivação não conseguiria garantir, em
primeiro plano, o sentido neutral que o termo expressa, por exemplo, na frase “Bebe-se
bastante cerveja no verão”. E, assim, o problema apenas muda de lugar.
Márcia de Sá Cavalcante, tradutora de Ser e Tempo para o português, busca
amenizar tal dificuldade traduzindo Man por “impessoal”. Isso lhe dá a possibilidade de
introduzir o impessoal na forma adverbial. Assim, onde Heidegger diz
129
: “wir geniessen
und vergnügen uns, wie man geniesst; wir lesen, sehen und urteilen über Literatur und
Kunst, wie man sieht und urteilt; wir ziehen uns aber auch vom ‘grossen Haufen’ zurück,
wie man sich zurückzieht; wir finden ‘empörend’, was man empörend findet”, podemos
então traduzir: nós nos divertimos e nos entretemos como impessoalmente se faz; lemos,
vemos e julgamos sobre literatura e arte como impessoalmente se vê e se julga; também
nos retiramos das “grandes multidões” como impessoalmente se retira; achamos
“revoltante” o que impessoalmente se acha revoltante. Claro que esse emprego simultâneo
do advérbio “impessoalmente” e da partícula “se” marca uma redundância em face daquilo
que representam, mas trata-se, contudo, de uma redundância esclarecedora e por isso
pertinente.
Devido a maior flexibilidade gramatical do termo “impessoal” em relação à
expressão “a gente”, e também porque nele reside uma referência direta ao caráter
indeterminado do man que não aparece, por exemplo, no emprego isolado do “se”, ele será
mantido aqui como tradução preferencial da expressão das Man. Além do que, o termo
expressa com igual ou maior precisão o caráter geral e indeterminado que Heidegger
129
SZ, p. 126-7.
75
pretende apanhar sob título de das Man. Isso ficará mais claro na medida em que formos
desenvolvendo melhor o conceito.
Como o próprio termo já sugere, o impessoal não é ninguém determinado: não
sou eu, nem você, nem eles. Também não é uma entidade independente que possa ser
encontrada como um manual ou, então, como um ente simplesmente dado. Equivale, mais
precisamente, a um modo de ser-no-mundo, na medida em que ser-no-mundo implica,
originariamente, o ser-aí-com dos outros.
Estando desde o início absorvido na convivência, o ser-aí acaba sendo tomado
pelo modo de ser daqueles com que convive. O ser-aí não é mais ele mesmo, os outros lhe
tomam o ser. E embora nunca se possa identificar quem são os outros – pois, afinal,
qualquer um pode representá-los – isso não é o decisivo. Para Heidegger, o decisivo “é
apenas o domínio dos outros que, sem surpresa, é assumido pelo ser-aí sem que ele,
enquanto ser-com, se dê conta disso”
130
. Esse modo de comportar-se em função dos outros
é exatamente aquilo que se pretende apanhar com o termo impessoal. Não são os outros
propriamente que são o impessoal, mas o modo de ser que a eles pertence. Um modo de
ser marcado pela impessoalidade: “cada um é o outro e nenhum é ele mesmo”
131
. O modo
de ser próprio de cada um se dissolve num modo de ser comum a todos. Isso é notório, por
exemplo, na utilização dos meios de transporte público, no emprego dos meios de
comunicação e notícias (jornal), enfim, no modo de portar-se frente ao que é mais próximo
e familiar no mundo circundante público, em que cada um é igual ao outro
132
.
Existencialmente, o impessoal manifesta-se através de modos de ser que lhe
são próprios: o distanciamento, a medianidade, o nivelamento, a publicidade, o desencargo
de ser e a cooperação. O distanciamento (Abständigkeit), vimos anteriormente, é a
tendência constante em observar uma determinada diferença para com os outros. A ele
está ligada a medianidade (Durchschnittlichkeit). Somente porque a convivência cotidiana
já promoveu desde o início a medianidade é que algo como o empenho na observância das
diferenças tem lugar. O impessoal sempre coloca em jogo a medianidade enquanto aquilo
que mantém o ser-aí de fato numa “medianidade” em relação ao que é conveniente, ao que
se deve ou não admitir, ao que concede ou nega sucesso. Determinando o que se pode e
130
SZ, p. 126.
131
SZ, p. 128.
132
SZ, p. 126.
76
deve ousar, essa medianidade controla toda e qualquer exceção que por ventura venha a
ocorrer. “Toda primazia é silenciosamente esmagada. Tudo o que é originário se vê, da
noite para o dia, nivelado como algo de há muito conhecido. O que se conquista com
muita luta, torna-se banal. Todo segredo perde sua força”
133
. Desdobrando-se desse modo,
a medianidade desencadeia o nivelamento (Einebnung) de todas as possibilidades de ser,
ou seja, a padronização dos modos de ser possíveis ao ser-aí.
Os três modos de ser do impessoal vistos até aqui (distanciamento,
medianidade e nivelamento) constituem, para Heidegger, aquilo que ele chamou de
publicidade (Öffentlichkeit), ou, o modo do que é público, como poderíamos chamar
também. A publicidade designa a esfera daquilo que é aberto e acessível a todos. É ela que
regula a imediata interpretação do ser-aí e do mundo. Ela tem razão em tudo. Mas não por
possuir um especial e originário relacionamento com as “coisas” e nem por dispor de uma
transparência expressa e apropriada do ser-aí, mas porque, insensível e contrária a todas as
diferenças de nível e autenticidade, ela não penetra profundamente “nas coisas” e, mesmo
assim, simula uma segurança própria das compreensões mais profundas. O resultado é que
“a publicidade, tomando o que assim se encobre por conhecido, obscurece tudo”
134
.
Quanto aos modos impessoais do desencargo de ser (Seinsentlastung) e da
cooperação (Entgegenkommen) há de pensá-los em função da responsabilidade para com o
próprio ser, que originalmente acompanha o ser-aí. Ao prescrever com antecedência todo
julgamento e decisão, o impessoal livra cada ser-aí de sua responsabilidade. O impessoal
permite que se apele constantemente a ele, pois, não sendo ninguém determinado, pode
assumir tudo com a maior facilidade: “Aumentam-se os preços”, “Fazem-se
manifestações”, “Danificam-se os bens públicos”. Quem aumenta? Quem faz? Quem
danifica? São as pessoas, é a gente, enfim, é o impessoal. “‘Foi’ sempre o impessoal e, no
entanto, pode-se dizer que não foi ‘ninguém’. Na cotidianidade do ser-aí, a maioria das
coisas é feita por alguém de quem se deve dizer que não é ninguém”
135
. Livrando desse
modo o ser-aí de suas responsabilidades, o impessoal vem ao encontro desse ente no modo
da facilitação. Frente ao peso que o ser-aí sente diante da responsabilidade para consigo
mesmo, para com seus atos e escolhas, o impessoal, uma vez que dispensa o ser-aí de ser
133
SZ, p. 127.
134
SZ, p. 127.
135
SZ, p. 127.
77
ele mesmo e de assumir suas responsabilidades, tem o caráter da cooperação. Ele coopera
com o ser-aí lhe tirando o peso da responsabilidade para consigo mesmo.
Os caracteres existenciais, apresentados acima como modos de ser do
impessoal, não são meras possibilidades existenciais que podem ou não ocorrer em
determinado momento. Neles reside, para Heidegger
136
, a “constância” (Ständigkeit) mais
imediata do ser-aí. Esta constância, apressa-se Heidegger em afirmar na seqüência, “não
diz respeito à continuidade de algo simplesmente dado que se preserva, mas ao modo de
ser do ser-aí enquanto ser-com”
137
. Tratam-se dos modos cotidianos de ser guiados pelo
impessoal.
Com a afirmação de que os modos de ser impessoais constituem a constância
do ser-aí, Heidegger está respondendo a questão existencial sobre o “quem” do ser-aí.
Tendo em vista as considerações elaboradas pelo filósofo já no § 9 de Ser e Tempo, que
ressaltaram o caráter existencial desse ente, a resposta sobre o “quem” não poderia jamais
prescindir da análise de sua cotidianidade
138
; pois, uma vez que lá se mostrou que o ser-aí
é essencialmente marcado pela existência, a pergunta pelo seu quem só poderia ser
adequadamente respondida na consideração do existir cotidiano. E, nesse existir cotidiano,
desde o início marcado pela coexistência dos outros, ressalta que o ser-aí, antes de tudo e
136
SZ, p. 128.
137
SZ, p. 128.
138
No § 9 de Ser e Tempo são indicadas as duas determinações fundamentais do ser-aí que devem orientar
toda e qualquer análise ontológica desse ente, o ente que nós mesmos somos em cada caso. A primeira diz
respeito ao seu caráter essencialmente existencial: “a ‘essência’ do ser-aí está em sua existência” (SZ, p. 42).
Nisso Heidegger ressalta a diferença ontológica do ser-aí em relação aos entes meramente dados dentro do
mundo. Em contraste com esta última modalidade de entes, cuja essência é passível de ser apanhada em
categorias, a essência do ser-aí reside no fato de que ele tem de ser, de que ele existe. Não possuindo o
caráter de ente simplesmente dado, desse ente não podem ser extraídas categorias, senão que apenas modos
de ser, existenciais. A segunda determinação fundamental do ser-aí diz que “o ser que está em jogo no ser
desse ente é sempre meu” (SZ, p. 42). Ora, se o ser-aí é em cada caso o ente que eu sou e se sua “essência”
se decide na existência, então, nesse sentido, o ser-aí nunca poderá ser apreendido ontologicamente como
um caso exemplar de um gênero de entes simplesmente dados. O ser desse ente que eu mesmo sou é meu. E
só porque o ser do ser-aí a ele pertence, pode se estabelecer aí uma relação própria ou imprópria. Para os
entes com o caráter do ser simplesmente dado, o (seu) “ser” é indiferente, ou seja, eles são de tal maneira
que o seu ser não se lhes pode tornar nem indiferente nem não indiferente. O ser do ser-aí se decide enquanto
ele é, enquanto ele existe. Existindo o ser-aí se relaciona com o seu ser, como a sua possibilidade mais
própria. “O ser-aí é sempre sua possibilidade. Ele não ‘tem’ a possibilidade apenas como uma propriedade
simplesmente dada. E somente porque o ser-aí é sempre essencialmente sua possibilidade que ele pode, em
seu ser, isto é, sendo, ‘escolher-se’, ganhar-se ou perder-se ou ainda nunca ganhar-se ou só ganhar-se
‘aparentemente’. O ser-aí só pode perder-se ou ainda não se ter ganho porque, segundo seu modo de ser, ele
é uma possibilidade própria, ou seja, é chamado a apropriar-se de si mesmo” (SZ, p. 42). Disso vem a
necessidade de, na análise do ser-aí, não se passar por alto pela sua existência cotidiana, que revelou-se nos
modos da impessoalidade, e vem, também, a base para a elaboração do impessoal como uma possibilidade
essencial do ser-aí.
78
na maior parte das vezes, já não é mais ele mesmo. Seu poder-ser próprio é arrebatado por
aqueles com quem convive no dia-a-dia. Assim, estabilizada nesse modo fugaz de
arrebatamento, a convivência cotidiana determina “quem” é o ser-aí em si mesmo: nem
este nem aquele, nem alguém nem alguns, também não a soma de todos, mas o impessoal
– “entidade invasora e neutra, o si-mesmo do mundo circundante do cotidiano, que o
pronome ‘Eu’ recobre ou mascara”
139
.
Assim, a imediata indicação de que “o ser-aí é o ente que sempre eu mesmo
sou’
140
, sofre uma interpretação existencial que revela que este ente se mantém,
predominantemente, num modo de ser em que ele não é propriamente ele mesmo. Isso foi
o que nos revelou o impessoal: que, na maior parte das vezes, o ser-aí já se entregou numa
convivência cotidiana que lhe arrebata o seu ser mais próprio e o mantém sob a tutela
anônima e silenciosa dos outros. De um ponto de vista ôntico-ontológico, destituído de
preconceitos, é o impessoal que caracteriza o “sujeito mais real” da cotidianidade. Mas
Heidegger adverte, quanto a isso, para que não se confunda o impessoal com uma
propriedade simplesmente dada ou, então, com uma espécie de “sujeito universal” que
paira sobre cada ser-aí particular. Tal concepção só seria válida, segundo o filósofo
141
,
caso o ser desses “sujeitos” não tivesse o modo de ser do ser-aí, e caso se partisse da
suposição de que os sujeitos são casos fatuais simplesmente dados de um gênero. Contudo,
“o impessoal não é o gênero do ser-aí cotidiano, como também não pode ser encontrado
nesse ente como uma propriedade permanente”
142
. O impessoal é, já dissemos, um
existencial, um modo de ser fundamental daquele ente que nós mesmos somos a cada vez
e que possui, como determinação essencial, o caráter de ser desde o início em um mundo
compartilhado. É precisamente o envolvimento com esse mundo compartilhado já sempre
familiar e seguro, em que o ser-aí vive e se arranja de um modo ou de outro, que lhe
conduz à impessoalidade. O impessoal é uma possibilidade positiva, mesmo sendo
imprópria, dos entes que têm em sua constituição fundamental o caráter do ser-no-mundo.
Trata-se, portanto, de um fenômeno originário, ou seja, de um fenômeno enraizado nos
fundamentos ontológicos do ser-aí. Esse ente vive originalmente na familiaridade com o
impessoal. Seu ser mais próprio e imediato na cotidianidade é o próprio-impessoal (Man-
139
Nunes, op. cit., p. 98.
140
Essa afirmação aparece mais ou menos assim formulada em várias passagens de SZ: p. 42, 53, 114.
141
Cf. SZ, p. 128.
142
SZ, p. 128-9.
79
selbst). Isso produz conseqüências diretas para o que anteriormente expusemos acerca da
abertura originária de mundo e ao conceito de verdade a ela interligada, pois, como
escreve Heidegger,
o fato de o ser-aí estar familiarizado consigo enquanto o próprio-impessoal
significa, igualmente, que o impessoal prelineia a primeira interpretação do
mundo e do ser-no-mundo. O próprio impessoal, em função de que o ser-aí é
cotidianamente, articula o contexto referencial da significância. O mundo do
ser-aí libera o ente que vem ao encontro numa totalidade conjuntural, familiar
ao impessoal e nos limites estabelecidos pela medianidade.
143
Em outras palavras, significa que o ser-aí cotidiano possui um modo próprio
de acesso ao mundo, ou seja, uma abertura específica do impessoal. Os modos de ser
regidos pela impessoalidade condicionam a imediata compreensão e interpretação do
mundo como um todo e dos entes que nele vem ao encontro. Não se trata mais daquela
compreensão e interpretação vistas anteriormente (capítulo I) como oriundas de uma
experiência originária com os entes, senão que se trata agora de uma compreensão e
interpretação moldadas pela entrega à medianidade. Tal constatação torna-se tanto mais
significativa quanto mais se recorda que a existência nos modos de ser do impessoal
constitui a “constância” mais imediata do ser-aí. Como já dissemos, o impessoal responde
pelo “quem” do ser-aí em sua cotidianidade. Mas não é que o ser-aí atinja essa condição
ao longo de seu existir; enquanto ser lançado no mundo, ele já foi de saída jogado na
publicidade do impessoal. Perder-se na impessoalidade da convivência cotidiana não é
uma possibilidade que possa ser em princípio recusada. Faz parte da facticidade do ser-aí
encontrar-se em tal condição e submeter-se ao seu modo específico de abertura, marcada
pela ilusória sensação de tudo conhecer e dominar. Ilusória porque essa abertura de
mundo, propiciada desde o modo de ser do impessoal, mantém-se sempre numa relação de
superficialidade com as coisas. Preso à superficialidade daquilo que encontra na
publicidade cotidiana, o ser-aí não realiza de modo originário nem a experiência consigo
mesmo e nem com os entes que lhe vem ao encontro no mundo. Daí o caráter
obscurecedor da vida cotidiana regida pelo impessoal: ela negligencia a compreensão mais
profunda e autêntica das coisas.
143
SZ, p. 129.
80
O obscurecimento que mencionamos acima caracteriza o modo cotidiano da
abertura marcada pela entrega do ser-aí ao modo de ser do impessoal. Junto a essa abertura
dá-se, de modo igualmente originário, o obscurecimento. Falando assim parece haver um
contra-senso, pois conceitos como abertura e obscurecimento comportam conotações até
certo ponto antagônicas: a abertura representa o acesso às coisas e o obscurecimento
representa o seu encobrimento. Mas não é esse o caso. Na verdade, o que se quer indicar é
que aquilo que é descoberto na abertura específica do impessoal, por não penetrar
profundamente nas coisas, acaba por obscurecer aquilo que abre. Ou seja, ocorre uma
abertura, o ente se mostra, mas no modo da aparência. A abertura não é completa; algo
nela se perde (é obscurecido).
A abertura do impessoal (die Erschlossenheit des Man), assim marcada pelo
obscurecimento, é aprofundada por Heidegger através da tematização do “falatório”
(Gerede), da “curiosidade” (Neugier) e da “ambigüidade” (Zweideutigkeit). Estes
conceitos caracterizam o modo em que o ser-aí cotidiano abre, na impessoalidade, o seu
ser-no-mundo. Neles e na conexão ontológica que mantém entre si, desentranha-se o modo
fundamental de ser da cotidianidade que o filósofo denomina de “decadência do ser-aí”
(Verfallen des Daseins). Daremos, na seqüência, uma melhor caracterização destes
conceitos.
2.2 – A abertura do impessoal e a decadência do ser-aí
A análise do ser-com revelou o ser-aí em sua cotidianidade: ele é o impessoal.
Como uma força silenciosa e anônima, o impessoal exerce um poder regulador sobre o
ser-aí, arrebatando-lhe as possibilidades mais próprias e nivelando-o num modo de ser
comum a todos. Sob seu domínio cada um é igual ao outro. Toda e qualquer primazia é
silenciosamente vigiada e controlada através dos próprios modos existenciais de ser em
que o impessoal desdobra-se na publicidade. Na condição de ser-no-mundo, o ser-aí já se
encontra desde o início jogado num mundo com o qual se envolve e, nesse envolvimento,
sucumbe. O impessoal reflete, portanto, essa entrega ao mundo familiar em que o ser-aí se
arranja no cumprimento de atividades cotidianas em companhia dos outros que vêm ao
encontro no intercurso dessas atividades.
81
Existir no modo da impessoalidade não é, contudo, uma escolha que o ser-aí
faz deliberadamente em um determinado momento de sua vida, mas é, antes, um
acontecimento essencial de seu ser. Sucumbir ao domínio do impessoal é uma
possibilidade existencial na qual o ser-aí se encontra de início e na maior parte das vezes.
Daí a constatação de que este é o modo “constante” do ser-aí em sua cotidianidade. Nessa
constância reside o “sujeito real”, o ens realissimum da cotidianidade. E, sendo assim, a
interpretação das estruturas existenciais do ser-aí, desde onde se almeja liberar a base
fenomenal para uma discussão fundamentada da verdade, não pode prescindir da análise
deste aspecto. O fenômeno da abertura do ser-no-mundo, ao qual foi ligado o fenômeno
mais originário da verdade, precisa contemplar a facticidade da condição cotidiana do ser-
aí, em que este está de início e na maior parte das vezes. Há de se liberar, portanto, os
caracteres existenciais da abertura do ser-aí quando este, em seu cotidiano, se detém nos
modos de ser do impessoal. O modo de ser da abertura se constitui de disposição,
compreensão e discurso. Cotidianamente, discurso, compreensão e disposição modificam-
se nos modos do falatório, curiosidade e ambigüidade.
Tanto quanto discurso, compreensão e disposição, os modos de ser cotidianos
da abertura, evidenciados nos fenômenos do falatório, da curiosidade e da ambigüidade,
apresentam também uma íntima conexão ontológica que os une, de modo que um está
sempre implicado no outro.
Com o termo falatório, tradução de Gerede – que, na língua alemã, pode
suportar tanto o sentido de conversa, fala, quanto de fofoca, mexerico – indica-se, na
exclusão de qualquer sentido pejorativo que o termo possa ostentar, um fenômeno positivo
que constitui o modo se ser da compreensão e interpretação do ser-aí cotidiano
144
. O
falatório é um desdobramento mundano do discurso, em que este resulta encoberto em sua
origem. Não que todo discurso mundano – toda linguagem – seja falatório; não é isso.
Falatório designa uma das possibilidades mundanas do discurso, e não o modo de ser do
discurso em geral. Mas isso só ficará suficientemente claro na medida em que se alcançar
uma melhor caracterização do tema.
Quando falamos acima que o falatório é um desdobramento do discurso,
estávamos pressupondo um movimento que precisa ainda ser esclarecido. No capítulo
144
SZ, p. 167.
82
precedente o discurso foi abordado em seu modo originário enquanto a articulação da
compreensibilidade do ser-aí. O que se articula tem a possibilidade de ser pronunciado.
Primordialmente, o discurso é pronunciado no contexto das atividades práticas em que o
ser-aí está inserido. Ali, o discurso que se pronuncia é comunicação. A tendência
ontológica da comunicação é fazer o ouvinte participar do ser que se abriu para o
referencial discursado no discurso.
145
Quer dizer, enquanto comunicação, o discurso
cumpre a partilha daquilo que se abriu na experiência originária com os entes. Ocorre que,
“de acordo com a compreensibilidade mediana já dada na linguagem, que se articula em
pronunciamentos, o discurso comunicado pode ser compreendido amplamente sem que o
ouvinte se coloque num ser que compreenda originalmente do que trata o discurso”
146
, ou
seja, pode-se entender um discurso sem ter tido uma relação originária com o ente sobre o
qual ele se pronuncia. (“Relação originária com o ente” implica aqui a sua utilização, já
que, segundo o relato de Heidegger acerca dos instrumentos, é no uso que as coisas se
revelam naquilo que são). Mesmo que a maioria de nós nunca tenha tido uma experiência
originária com um bisturi, ou com uma cadeira de rodas, por exemplo – no sentido de
nunca ter manejado tais instrumentos – podemos compreender sem problemas o discurso
que sobre eles se pronuncia, embora – e esse é o ponto – aquilo de que fala o discurso (o
instrumento) é compreendido apenas aproximadamente e superficialmente. “Não se
compreende tanto o ente referencial, mas só se escuta aquilo que já se falou no falatório.
Este é compreendido e aquele só mais ou menos e por alto”
147
. O ser do discurso,
enquanto remissão à descoberta originária dos entes, é obscurecido; uma vez pronunciado,
o discurso assume a forma mundana de um manual que pode ser retomado e propagado
por qualquer um aleatoriamente, independentemente do fato de se dispor ou não de uma
compreensão profunda daquilo sobre o que ele discorre. Isso é precisamente o que
caracteriza o discurso enquanto falatório: a mera repetição e propagação de algo acerca do
qual não se dispõe de uma compreensão realmente profunda, oriunda de uma experiência
genuína com o mundo.
Ouvindo e repetindo sem se deter numa compreensão profunda daquilo que se
fala, o discurso cotidiano, enquanto falatório, converte-se numa atividade repetitiva e
reflexa, com pouca ou nenhuma remissão originária. A remissão originária aos entes que
145
SZ, p. 168.
146
SZ, p. 168.
147
SZ, p. 168.
83
constitui o modo de ser autêntico do discurso desaparece em meio ao turbilhão das
relações impessoais que já não liga mais para o que é dito senão que se ocupa apenas do
dizer. Comunicar já não diz mais partilhar uma experiência ontológica com o ente
referencial; comunicar indica agora a mera “transmissão” daquilo que impessoalmente já
se disse em algum outro momento. Também aquilo que se compreende não é mais o ente
referencial; compreende-se o dito, o dizer. Fica dispensada uma abertura originária para o
que é dito, para o que está sendo, pelo discurso, comunicado. A compreensibilidade já não
se estrutura mais na autenticidade da experiência, apenas se mantém na familiaridade do
que é comum; o dito torna-se inteligível porque emerge numa medianidade partilhada. Na
convivência mediana do cotidiano, desaparece a tendência ontológica da comunicação da
experiência originária com os entes e vige apenas o empenho no mero diz-que-diz-que.
Transformado desse modo pela convivência cotidiana, o discurso adquire
como marca específica a falta de solidez, proveniente de seu desarraigamento ontológico.
Enquanto falatório, o discurso perde (ou nem mesmo chega a alcançar) a referência
primária com o ente referencial. E, como decorrência, já não pode mais assumir a forma
de um comunicado originário acerca dos entes, limitando-se por isso em apenas repetir e
passar adiante a fala
148
. Contudo, esse falatório, essa atividade reflexa e isenta de solidez,
não é tão passiva e discreta quanto possa parecer num primeiro momento. O fenômeno
ganha complexidade; “o falado no falatório arrasta consigo círculos cada vez mais amplos
e assume um caráter autoritário. As coisas são assim como são porque delas se fala
assim”
149
. Esse processo ganha reforço também naquilo que cotidianamente se lê, pois o
caráter repetitivo e autoritário do falatório não se funda apenas no que se diz, senão que
ela se alimenta também daquilo que se escreve. A compreensão mediana do leitor, diz
Heidegger, “nunca poderá distinguir o que foi haurido e conquistado originalmente do que
não passa de mera repetição. E mais ainda, a própria compreensão mediana não tolera tal
distinção, pois não necessita dela já que tudo compreende”
150
. As diferenças de níveis
desaparecem. Ao ser-aí cotidiano a questão da autenticidade da relação com o mundo, com
os entes e consigo mesmo já não se constitui num problema. Tudo é imediatamente
acessível e compreensível sem problemas; nada há para além ou para aquém daquilo que
se encontra no domínio público.
148
SZ, p. 168.
149
SZ, p. 168.
150
SZ, p.169.
84
É esse tipo de postura, descrita acima, que, no entender de Dahlstrom, dá
impulso e sustentação à compreensão corrente da verdade enquanto propriedade de
proposições.
151
(Não se está dizendo com isso que a metafísica clássica que adotou um tal
conceito de verdade seja ela mesma um falatório, embora ela possa, em algumas
perspectivas ser considerada, assim como o falatório, encobridora de suas origens. O
falatório indica o tipo de discurso comum ao mundo cotidiano do ser-aí, marcado pela
entrega à convivência e, conseqüentemente, pela predominância da impessoalidade). Dizer
que o falatório dá sustentação à compreensão da verdade enquanto propriedade de
proposições é dizer que esse tipo de discurso, quando predomina, favorece o entendimento
ontológico que toma a proposição, tanto quanto aquilo sobre o que ela se pronuncia, como
algo simplesmente dado; compreensão essa que conduz ao preconceito lógico, ou seja, ao
entendimento de que a verdade é uma propriedade das proposições. Uma vez que, pelo
mero repetir e passar adiante o que é dito, o falatório acaba destacando o discurso – e aqui
se pode dizer a proposição – de sua origem ontológica e convertendo-o numa simples
ocorrência dada no interior do mundo, fica com isso preparado o solo para que, num passo
seguinte, se confronte esse discurso com o seu objeto para tirar daí um valor de verdade.
Daí Dahlstrom afirmar que “se o falatório predomina, o preconceito lógico torna-se quase
irresistível”
152
, porque o falatório cria as condições para o tipo de compreensão ontológica
que culmina na afirmação da verdade como uma propriedade das proposições. Isso não é
tão explícito em Ser e Tempo quanto Dahlstrom garante ser no trabalho de Heidegger
sobre o Sofista de Platão
153
. Em Ser e Tempo essa conexão entre a interpretação corrente
da verdade e o modo mundano do ser-aí, marcado pela impessoalidade e refletido no
falatório, é sugerido indiretamente no § 44 quando, ao referir-se ao predomínio da
interpretação da verdade proposicional, o filósofo diz que “a necessidade desse fato
[predomínio da explicação tradicional da verdade] se funda no modo de ser do próprio ser-
aí”. No desdobramento explicativo desta afirmação há, primeiramente, uma referência à
abertura própria do impessoal e, depois, mais especificamente, ao falatório: “Ao
empenhar-se na ocupação, o ser-aí se compreende a partir do que vem ao encontro dentro
do mundo. A descoberta inerente ao descobrimento se acha, inicialmente, no que é
151
Dahlstrom, op. cit., p. 285-6.
152
Dahlstrom, op. cit., p. 286.
153
Dahlstrom se refere à uma Lição ministrada por Heidegger durante o semestre de inverno de 1924/1925,
em Marburgo: Platon: Sophistes (constitui o volume 19 na publicação das Obras Completas de Heidegger).
85
pronunciado dentro do mundo”
154
. Nisso pode-se ver, sem dúvida, a indicação de que a
verdade já vem ao encontro objetivada como uma propriedade daquilo que
impessoalmente se diz e se escreve.
O falatório é, segundo o que expusemos, uma característica da abertura
cotidiana do ser-aí. Nele e por ele o ser-aí se mantém sempre numa determinada relação
para consigo mesmo e para com os outros entes. O falatório compreende tudo. Mas não se
trata de uma compreensão autêntica, que dispõe de uma relação originária com a coisa
compreendida. Pelo contrário, conforme já dissemos, o falatório mantém-se em tamanha
superficialidade que acaba trancando e encobrindo toda e qualquer possibilidade de uma
compreensão mais originária e autêntica dos entes. Não que lhe seja intrínseca a intenção
de enganar. O falatório não tem, argumenta Heidegger
155
, o modo de ser em que se
apresenta conscientemente algo como algo. A superficialidade e a falta de solidez no que é
dito e passado adiante já bastam para transformar a abertura em fechamento. “O falatório
é, pois, devido à sua própria abstenção de retornar à base daquilo que sobre o que se
pronuncia, por si mesmo, um fechamento (Verschliessen)”
156
. É este fechamento que o
filósofo tem em mente no § 44 ao falar da não-verdade. Pois se por um lado a abertura é
tida como verdadeira por abrir originalmente o acesso aos entes, por outro lado, essa
abertura é também, ao mesmo tempo, não-verdadeira, na medida em que, guiada pela
permanência do ser-aí no impessoal, ela sofre o fechamento do falatório. (Retornaremos a
discussão acerca da não-verdade mais adiante).
Fechamento não quer dizer uma completa inacessibilidade aos entes, senão
que indica o modo limitado como se dá o acesso a eles no falatório. E, de fato, mesmo no
falatório o ser-aí se mantém numa determinada relação com os entes. Aí também se dá
uma compreensão, só que uma compreensão diferente, uma compreensão desarraigada,
que já perdeu de vista a sua referência ontológica primária. Fechamento não implica,
portanto, uma ausência de abertura, senão que é antes uma possibilidade da própria
abertura. Não uma possibilidade qualquer, uma propriedade que o ser-aí possa apresentar
ou não, mas uma possibilidade fundamental da existência. Enquanto ser-no-mundo –
jogado num mundo e ocupado com ele – o ser-aí já está desde o início à mercê dos outros,
154
SZ, p. 225.
155
Cf. SZ, p. 169.
156
SZ, p. 169.
86
sujeito à influência de sua compreensão e interpretação, que se impõe silenciosamente
pelo falatório. É dessa maneira, diz Heidegger, “que nós aprendemos e conhecemos muitas
coisas e não poucas jamais conseguem ultrapassar uma tal compreensão mediana”
157
.
Interpretados desse modo, o falatório e o fechamento ontológico por ele
desencadeado constituem-se como modos fundamentais do ser-no-mundo. Isso quer dizer
que, se o ser-aí é já de início jogado no falatório e se nele se mantém na maior parte das
vezes, então esse ente existe fundamentalmente no modo do fechamento ou
desenraizamento, como pode-se dizer ainda. Do ponto de vista ontológico, isso significa:
Como ser-no-mundo, o ser-aí que se mantém no falatório rasgou suas
remissões ontológicas primordiais, originárias e legítimas com o mundo, com
o ser-aí-com e com o próprio ser-em. Ele se mantém oscilante e, desse modo,
sempre está junto ao “mundo”, com os outros e consigo mesmo. Somente um
ente cuja abertura é constituída pelo discurso que compreende e dispõe, ou
seja, que tenha o seu aí, que é “no-mundo”, nessa constituição ontológica, é
que também traz a possibilidade ontológica de um tal desenraizamento, que
está tão longe de constituir um não-ser do ser-aí, que constitui antes a sua mais
cotidiana e mais persistente realidade.
158
Claro que, como se trata de uma possibilidade existencial, o ser-aí pode a ela
fazer frente. Não é possível saltar (evitar) essa possibilidade, que é a nossa própria
condição fáctica, e nem eliminá-la, mas é possível modificá-la. Não pode ser evitada
porque não depende da escolha do ser-aí. Não pode ser eliminada porque não é possível
desligar-se completamente do mundo e, também, porque toda a qualquer descoberta mais
autêntica é sempre feita desde a base da existência cotidiana e dos modos de ser que a
perpassam. Esse é o sentido da afirmação de Heidegger no final do § 27 que trata do ser-
próprio cotidiano e do impessoal: “quando o ser-aí descobre o mundo e o aproxima de si,
quando ele abre para si mesmo seu próprio ser, este descobrimento de “mundo” e esta
abertura do ser-aí se cumprem e realizam como uma eliminação das obstruções,
encobrimentos, obscurecimentos, como um romper das deturpações em que o ser-aí se
tranca contra si mesmo”
159
.
Se, por um lado, Heidegger admite a possibilidade de uma relação autêntica do
ser-aí com o mundo e consigo mesmo, como podemos acompanhar na transcrição acima,
157
SZ, p. 169.
158
SZ, p. 170.
159
SZ, p. 129.
87
por outro lado, ele admite também se tratar de uma possibilidade remota. Isso porque a
condição desarraigada do ser-aí em seu cotidiano permanece tão encoberta sob a proteção
da auto-evidência e da autocerteza, características da interpretação mediana, que muito
dificilmente tal condição torna-se para ele um problema. Assim camuflada, a falta de
solidez da cotidianidade não apenas se mantém com também se fortalece.
160
Ligado ao fenômeno do falatório está a curiosidade. Ela também se constitui
numa característica da abertura do impessoal, ou seja, num modo como o ser-aí descobre o
mundo (e ele mesmo) em seu cotidiano. Como um prolongamento da primazia do ver na
vida cotidiana, a curiosidade indica a tendência do ser-aí impessoal em saltar de novidade
em novidade sem se deter em nada. Diferentemente da visão trabalhada na perspectiva do
modo fundamental de abertura própria do ser-aí – ou seja, do ver compreensivo, no
sentido de uma apropriação genuína dos entes com os quais o ser-aí pode se comportar e
assumir uma atitude segundo suas possibilidades ontológicas essenciais – o “ver” da
curiosidade não tem o caráter compreensivo. A curiosidade liberada, diz Heidegger,
“ocupa-se em ver, não para compreender o que vê, ou seja, para chegar a ele num ser, mas
apenas para ver”
161
. Do mesmo modo como o falatório se sustenta num mero falar
destituído de uma compreensão profunda, a curiosidade também se mantém num ver
superficial, que não atinge a compreensão profunda daquilo que vê.
São três os caracteres destacados em Ser e Tempo como constitutivos da
curiosidade: a impermanência, a dispersão e o desamparo. A impermanência designa a
avidez na busca do novo. O ver curioso da cotidianidade não se detém em nada, está
sempre rumando para o que é mais recente. O ócio de uma permanência contemplativa
cede lugar à excitação e inquietação frente ao sempre novo e às mudanças daquilo que
vem ao encontro. Nessa impermanência reside concomitantemente a possibilidade
contínua da dispersão. Esta indica o desinteresse da curiosidade em se deixar levar, pela
admiração, até o que lhe é realmente incompreendido. Não se detendo em nada, a
curiosidade também não se aprofunda em nada. Por isso, constata Heidegger
162
, a
curiosidade nada tem a ver com uma meditação que admira os entes, senão que busca um
conhecimento apenas para tomar conhecimento. Impermanência e dispersão fundam a
160
SZ, p. 170.
161
SZ, p. 172.
162
SZ, p. 172.
88
terceira característica essencial da curiosidade, a qual Heidegger chamou de desamparo
(Aufenthaltslosigkeit). Desamparo significa: “a curiosidade está em toda parte e em parte
alguma”
163
.
Tanto quanto o falatório, a curiosidade, no modo de ser que está em toda parte
e em parte alguma, também caracteriza o desenraizamento do ser-aí. Mas, enfatiza
Heidegger, “esses dois modos de ser cotidianos do discurso e da visão não se acham
simplesmente um ao lado do outro em sua tendência de desenraizamento, senão que um
modo de ser arrasta o outro consigo”
164
. Também a ambigüidade, o terceiro fenômeno
característico da abertura do ser-aí cotidiano, tem de ser buscado junto a este
encadeamento primordial entre falatório e curiosidade.
Por ambigüidade deve-se entender, de acordo com os relatos de Heidegger no
§ 37 de Ser e Tempo, a condição cotidiana da compreensão do ser-aí que já não pode mais
distinguir aquilo que se abriu de modo autêntico, daquilo que apenas se mostrou no modo
da aparência. “Tudo parece ter sido compreendido, captado e discutido autenticamente
quando, no fundo, não foi; ou parece que não foi, quando, no fundo, já foi”
165
. Essa
ambigüidade não se estende apenas ao mundo e àquilo que nele vem ao encontro, senão
que perpassa também o próprio poder-ser do ser-aí. Isso porque, na convivência cotidiana,
o falatório e a curiosidade cuidam para que aquilo que é autenticamente aberto e
empreendido, como possibilidade autêntica, mostre-se como algo banal e corriqueiro. A
compreensão do poder-ser de cada um vem marcada pela influência do impessoal. De um
modo geral, tudo o que o ser-aí cotidiano pressente e persegue já foi impessoalmente
pressentido e perseguido. E, mesmo que algo de realmente originário aconteça, de pronto
o falatório e a curiosidade cuidam para que ele chegue envelhecido quando se torna
público. Toda e qualquer manifestação audazmente originária é nivelada e sufocada pelo
comportamento impessoal que a torna tão banal quanto qualquer outra.
Essa confusão entre o que é e o que não é autêntico, essa impossibilidade de
distinguir a compreensão originária da compreensão desarraigada é o que constitui,
precisamente, o modo de ser da ambigüidade. Esta se manifesta também no modo de ser
da convivência cotidiana como tal. Mantida nos moldes do impessoal, a convivência
163
SZ, p. 173.
164
SZ, p. 173.
165
SZ, p. 173.
89
cotidiana não é, de modo algum, diz Heidegger, “uma justaposição acabada e indiferente,
mas um ambíguo e tenso prestar atenção uns nos outros, um escutar uns aos outros
secretamente”
166
. Os outros com quem nos relacionamos no dia-a-dia se fazem presente,
de início, pelo que deles se fala impessoalmente e chega até nossos ouvidos. A
convivência já não se atém exclusivamente, e talvez nem minimamente, nos moldes de um
comportamento originário para com o outro e, desse modo, já não pode distinguir aquilo
que, nessa relação, foi autenticamente conquistado daquilo que foi colhido no falatório.
Isso evidencia que a ambigüidade não é um fenômeno que emerge singularmente em cada
ser-aí particular, senão que, tanto quanto o falatório e a curiosidade, ele já “subsiste na
convivência enquanto convivência lançada num mundo”
167
. Ou seja, a ambigüidade é uma
implicação direta da existência que se entrega ao mundo e, nele, à convivência.
Ambigüidade, curiosidade e falatório são os fenômenos que caracterizam o
modo em que o ser-aí realiza, cotidianamente, a sua abertura. Devem ser, portanto,
encarados, também, como existenciais desse ente. Neles e por eles desentranha-se o modo
de ser fundamental da cotidianidade que Heidegger denomina de “decadência”, Verfallen
em alemão
168
. A decadência indica o entregar-se do ser-aí no mundo, o empenhar-se junto
aos entes de que se ocupa e com que se preocupa. Pelo fato desse empenho no mundo
possuir, frequentemente, o caráter de um perder-se no impessoal, ele é sinalizado em
termos de uma queda de si mesmo. Enquanto ser-no-mundo, o ser-aí “já sempre caiu de si
mesmo e decaiu no ‘mundo’”
169
.
A decadência explicita o modo de ser cotidiano da impropriedade, o não-ser-
si-mesmo, ou melhor, ser o si-mesmo impróprio. Ela abarca a totalidade da condição
cotidiana do ser-aí, a forma estabilizada da existência diária em que o ser-aí permanece
imediata e regularmente. Abarca, em outras palavras, a entrega do ser-aí ao mundo, ao
mundo compartilhado, ao mundo da convivência, regida pelo falatório, curiosidade e
ambigüidade.
166
SZ, p. 175.
167
SZ, p. 175.
168
O verbo verfallen, usualmente empregado para indicar uma queda, também suporta o sentido de um
arruinar-se. Mas Heidegger prontamente assegura que ele não quer expressar com esse termo “nenhuma
valoração negativa” (SZ, p. 175), senão que busca apenas indicar, com ele, um modo de ser fundamental do
ser-aí cotidiano. Tanto o termo quanto o relato do fenômeno por ele indicado tem cunho exclusivamente
ontológico.
169
SZ, p.175.
90
Como um modo especial de ser-no-mundo em que o ser-aí é totalmente
absorvido pelo “mundo”, a decadência não deve ser apreendida como uma possibilidade
negativa da existência. Mesmo significando a decaída para a impropriedade do impessoal,
na qual o ser-aí já não é mais ele mesmo, ela, ainda assim, reflete “uma possibilidade
positiva dos entes que se empenham essencialmente nas ocupações de mundo”
170
. É
notável a preocupação de Heidegger em afastar de seu relato toda e qualquer conotação
valorativa que possa ofuscar a leitura ontológica do fenômeno em questão. Ser decadente é
o modo mais próximo de ser do ser-aí, sendo que é nesse modo que ele se mantém na
maior parte das vezes. Daí decorre que a decadência não deve ser apreendida como uma
queda de um estado original positivo, mais puro e superior, para outro mais inferior, não-
originário e, por isso, negativo. Ela não deve, também, ser confundida, em sua estrutura
ontológico-existencial, com “uma propriedade ôntica negativa que talvez pudesse vir a ser
superada em estágios mais desenvolvidos da cultura humana”
171
. A decadência é uma
determinação existencial. Decair de si-mesmo na entrega ao mundo é uma possibilidade
essencial do ente que existe facticamente. Daí a afirmação do filósofo de que “no
fenômeno da decadência apresenta-se um modo existencial de ser-no-mundo”
172
.
Sendo assim, a decadência do ser-aí, a sua queda no mundo, não é, de modo
algum, um estado de exceção. Ela reflete exatamente aquilo que esse ente é em seu
cotidiano; reflete a constância desse ente no dia-a-dia, aquilo que ele é de início e na maior
parte das vezes: um ente de tal modo empenhado no mundo que faz de si mesmo uma
vítima desse empenho, acabando por ser absorvido pelo mundo, dominado em suas
possibilidades mais próprias e sujeitado à tutela dos outros que se impõe no modo do
impessoal. Decair de si e entregar-se ao mundo não é um acontecimento extraordinário da
existência, mas é, antes, um movimento constante do ser-aí. É que, como diz Heidegger, o
fato de ser-no-mundo “já é em si mesmo tentador (versucherisch)”
173
. Inserido desde o
início num mundo em companhia com outros, o ser-aí já está constantemente a mercê da
força impessoal do falatório, da curiosidade e da ambigüidade.
Além de tentador, o ser-no-mundo da decadência é também, em si mesmo,
tranqüilizante (beruhigend). Isso porque a abertura do impessoal, que tudo vê e tudo
170
SZ, p. 176.
171
SZ, p. 176.
172
SZ, p. 176.
173
SZ, p. 177.
91
compreende, confere ao ser-aí a sensação de certeza quanto a autenticidade e a plenitude
das possibilidades de seu ser. Essa certeza de si mesmo, sustentada na pretensão do
impessoal de nutrir e dirigir toda “vida” autêntica, tranqüiliza o ser-aí na medida em que
assegura que tudo “está em ordem” e que “todas as portas estão abertas”
174
. Mas, ao
contrário do que se poderia supor, essa tranqüilidade não conduz a um estado de inércia e
inatividade, senão que promove mais e mais agitações. Na busca desenfreada por uma
compreensão mais profunda, o ser-aí busca, então, a compreensão de outras culturas e a
síntese delas com a sua própria cultura, acreditando que isso levaria a um maior
esclarecimento do ser-aí como um todo. Fazendo isso, contudo, apenas dá cadência ao seu
movimento alienante, pois aquilo que realmente deve compreender permanece, no fundo,
indeterminado e inquestionado; “não se compreende que compreender é um poder-ser que
só pode ser liberado no ser-aí mais próprio
175
. O confronto com outras culturas,
aparentemente esclarecedora e por isso tranqüilizante, encobre o poder-ser mais próprio de
cada um e é, portanto, uma alienação. O ser-no-mundo da decadência é, ao mesmo tempo
que tentador e tranqüilizador, também alienante (entfremdend). Alienação não quer dizer,
aqui, que o ser-aí se encontre de fato arrancado de si mesmo, não o conduz a algo que, por
assim dizer, ele não é, senão que lhe força ser no modo da impropriedade, que é, enfim,
uma possibilidade de seu ser. Dito de outro modo, a alienação condiz com a restrição do
ser do ser-aí à suas possibilidades impróprias. Em sua mobilidade característica, a
alienação da decadência, tentadora e tranqüilizante, promove o atropelamento e o
aprisionamento (Sichverfangens) do ser-aí em si mesmo. Quer dizer, a alienação faz com
que o ser-aí se restrinja (se prenda) unicamente ao modo da inautenticidade, não
alcançando o seu autêntico poder-ser.
Pela caracterização dos fenômenos acima mencionados, da tentação, da
tranqüilidade, da alienação e do aprisionamento, chega-se ao modo de ser específico da
decadência: der Absturz, o desmoronamento, a precipitação. “O ser-aí desmorona de si
mesmo para si mesmo na falta de solidez e na nulidade de uma cotidianidade
imprópria”
176
. Esse desmoronamento é contínuo. A decadência é um conceito que exprime
um movimento ontológico: o contínuo entregar-se do ser-aí ao mundo, o contínuo
desmoronamento desde si mesmo. Não sendo uma propriedade, a decadência também não
174
SZ, p. 177.
175
SZ, p. 177.
176
SZ, p. 178.
92
pode ser concebida como algo fortuito, senão que se trata de um modo de ser constante do
ser-aí. Ela tem de ser apreendida como parte da constituição ontológica do ser-aí. Decair
no mundo é um modo de ser básico desse ente, é um existencial. Como tal, ele constitui
também o seu “aí”; constitui, portanto, a sua abertura fundamental. E, nesse sentido, a
decadência tem de ser considerada, enquanto constitutiva da abertura do ser-aí, tão
originária quanto a disposição, a compreensão e o discurso. Entretanto, o que caracteriza a
abertura própria da decadência, a abertura do impessoal, como referimos acima, é
precisamente o obscurecimento promovido por ela. Aquilo que o ser-aí decaído abre e
descobre em seu cotidiano – mantendo-se no falatório, curiosidade e ambigüidade –
instala-se nos modos da deturpação e do fechamento.
O falatório abre para o ser-aí, numa compreensão, o ser para o seu mundo,
para os outros e para consigo mesmo, mas de maneira a que esse ser para...
conserve o modo de uma oscilação sem solidez. A curiosidade abre toda e
qualquer coisa de maneira a que o ser-em esteja em toda parte e em parte
alguma. A ambigüidade não esconde nada à compreensão do ser-aí, mas só o
faz para rebaixar o ser-no-mundo ao desenraizamento do em toda parte e em
parte alguma.
177
O que assim se abre não tem o caráter de uma compreensão estruturada; a
descoberta dos entes já não se dá desde uma relação ontológica originária para com eles.
Enquanto decadente, o ser-aí está desenraizado, ou seja, ele perdeu os nexos ontológicos
primordiais, originários e legítimos com o mundo, com os outros e consigo mesmo. Tudo
o que se abre e descobre nessa condição existencial carece de base e fundamento. A
compreensão que aí se alcança não atinge as raízes primordiais da experiência com os
entes, senão que se move na superficialidade insólita da interpretação pública posta em
marcha e sustentada pelo falatório, pela curiosidade desenfreada e pela ambigüidade. Essa
interpretação pública do impessoal, na qual o ser-aí decaído do cotidiano busca guarida,
não vai a fundo em nada. Permanece superficial e, justamente por isso, pode compreender
tudo, saber de tudo e estar em toda parte. A relação com os entes por ela disponibilizada já
perdeu ou nem mesmo chegou a alcançar um nexo ontológico para com eles. E é por
ocultar de tal modo a experiência primordial com os entes que a existência decadente
assume o modo de um fechamento, de um encobrimento. Ela é não-verdade. Com a
expressão “não-verdade”, Heidegger quer chamar a atenção, justamente, para esse
177
SZ, p. 177.
93
fechamento que já está sempre em andamento no desdobramento da existência do ser-aí no
mundo.
A não-verdade indica, portanto, o desenraizamento que perfaz o modo de ser
mais cotidiano e mais persistente do ser-aí, o qual se designou de decadência. Vimos
anteriormente que a decadência pertence à constituição ontológica do ser-aí. De início e na
maior parte das vezes o ser-aí já se perdeu em seu “mundo”, já sucumbiu ao impessoal e
se entregou à influência da interpretação pública. A existência decadente não é uma mera
possibilidade, senão que se trata de uma possibilidade essencial. Decorre disso que, se na
decadência desencadeia-se o obscurecimento, ou mesmo, o fechamento da relação
primordial com os entes, e se isso condiz com a não-verdade, então, pertence à
constituição ontológica do ser-aí ser na não-verdade. Assim, se por um lado, sendo
fundamentalmente sua abertura, o ser-aí está na verdade, por outro, enquanto decadente,
ele está, também, com igual originariedade, na não-verdade. Sobre o sentido de tal
constatação e suas implicações para a questão da verdade em geral, discutiremos na
seqüência.
2.3 – Verdade e não-verdade: a verdade existencial
O jogo entre verdade e não-verdade é uma das grandes novidades introduzidas
por Heidegger. A autenticidade de sua proposta não está, no entanto, na mera afirmação de
uma verdade e de uma não-verdade, mas na indicação da cooriginariedade de ambas no
modo de ser do ser-aí. Em outras palavras, a novidade reside na constatação do filósofo de
que o ser-aí está, de modo igualmente originário, na verdade e na não-verdade, ou melhor,
que ele é, em sua constituição ontológica, verdadeiro e não-verdadeiro.
Antes de prosseguirmos com o desenvolvimento desta temática, é importante
que fique claro a que verdade o filósofo está associando a não-verdade. Verdade, aqui, não
é para ser entendida em sentido lógico-semântico, enquanto uma propriedade de
proposições, de modo que também a não-verdade está muito distante do que se entende
por falsidade, enquanto um oposto da verdade proposicional. Quando o filósofo diz que o
ser-aí está “na verdade”, ele está se referindo ao fenômeno mais originário da verdade que
se mostra na abertura originária do ser-no-mundo. O ser-aí é verdadeiro, está na verdade,
na medida em que ele é essencialmente a sua abertura, na medida em que ele abre e
94
descobre o que se abre. A afirmação de que o ser-aí está na verdade tem, portanto, sentido
ontológico. Ela remete ao caráter descobridor do ser-aí, remete ao seu aí, enquanto o lugar
onde algo se abre, onde algo pode aparecer. Quer dizer, esta afirmação aponta para uma
constituição existencial básica, que tem de ser considerada antes de toda e qualquer
tematização acerca da verdade proposicional.
Vimos anteriormente, no primeiro capítulo, a estratégia de Heidegger em
promover um deslocamento do lugar onde se coloca a questão da verdade,
tradicionalmente ligada à proposição. Ele quer pensar a verdade para além da proposição;
quer pensar nas condições existenciais da verdade proposicional. Por isso ele vai falar em
verdade transcendental, em verdade originária. Estes não são conceitos que vêm competir
com os conceitos já existentes e que de modo geral tomam a verdade como uma
propriedade exclusiva das proposições. A verdade mais originária vem dar conta da
fundamentação da verdade proposicional. Mas é, como já indicamos, um fundamento
radicalmente distinto daquele da tradição, uma vez que o filósofo o liga ao ser-no-mundo,
à abertura. Isso é tanto mais surpreendente quanto mais percebemos o caráter existencial,
contingente e temporal que perpassa o conceito de abertura e o confrontamos com a
tendência tradicional de situar a verdade num horizonte de necessidade e atemporalidade.
Esse conceito de abertura, desenvolvido como um existencial, como um modo de ser-no-
mundo, vem dar conta da transcendentalidade, das condições de possibilidade do
conhecimento e, logo, da possibilidade da verdade e da falsidade enquanto valores lógico-
semânticos. Há uma aprioridade da existência que não pode simplesmente ser suprimida
da discussão dos conceitos filosóficos. A existência – e, aqui, entenda-se existência em
termos de ser-no-mundo – constitui-se no pano de fundo desde onde se torna possível toda
e qualquer forma de relação com o mundo, incluindo o conhecimento e sua possibilidade
de verdade e falsidade. Sem o caráter descobridor da existência, que Heidegger chama de
abertura e, depois, de verdade originária, as discussões, as certezas teóricas, e mesmo
lógicas, não seriam sequer possíveis.
Temos, então, um conceito de verdade ligado à existência. Um conceito de
verdade que Heidegger chama de verdade transcendental (veritas transcendentalis), de
verdade fenomenológica, ou, simplesmente, de verdade mais originária, e que, em Ser e
Tempo, toma o lugar da subjetividade, enquanto lugar último da fundamentação do
conhecimento e da verdade proposicional. No entanto, como já salientamos, a verdade
95
originária tem caráter existencial. Como tal, ela já não dispõe da mesma transparência e
idealidade de uma subjetividade dada aprioristicamente, pois é marcada fundamentalmente
pelas contingências de um existir fáctico e concreto, vulnerável à influência, sempre
tentadora, da impessoalidade. É justamente essa falta de transparência, que acompanha a
verdade originária, que Heidegger quer enfatizar ao colocar a questão da não-verdade.
Verdade e não-verdade são, no fundo, duas dimensões que marcam a existência do ser-aí.
Se por um lado o ser-aí é, enquanto ser-no-mundo, enquanto existente, a clareira do
mundo, a abertura desde onde se torna possível a descoberta dos entes, por outro, devido a
essa mesma condição existencial, ele também já sempre deturpou a possibilidade de sua
abertura ser total e transparente. Assim, se tomamos a verdade como a abertura, como o
acesso primário ao mundo e a si mesmo, a não-verdade é justamente aquilo que impede
que essa abertura seja total, seja transparente.
Verdade e não-verdade, portanto, andam juntas. Não é o caso de se pensar que
ora o ser-aí está na verdade e ora na não-verdade; que a existência reveze momentos de
abertura e momentos de fechamento. Do ponto de vista ontológico-existencial, elucida
Heidegger, “o sentido completo da sentença: ‘o ser-aí está na verdade’ tamm inclui, de
modo igualmente originário, que o ‘ser-aí está na não-verdade’. Pois, somente na medida
em que o ser-aí se abre é que ele também se fecha”
178
. O fechamento, a não-verdade, não
é, como vimos, uma ausência total de abertura, senão que se trata de um obscurecimento,
de uma deturpação da abertura mais própria e mais originária. Mesmo decadente, o ser-aí
se mantém numa determinada relação para com os entes e para consigo mesmo, ainda que,
guiada pelo falatório, curiosidade e ambigüidade, esta relação não atinja o ser mais
profundo daquilo que confronta. Em outras palavras, significa dizer que o ser-no-mundo
decadente também dispõe de uma compreensão dos entes, de si e do mundo – no entanto,
uma compreensão comprometida pela entrega aos modos de ser da impessoalidade, que
mantém o ser-aí na ilusão de que tudo pode e tudo compreende, quando, na verdade, o
tudo não passa de mera superficialidade. Já não se pode, entretanto, negar que se dá aí uma
abertura. A abertura acontece; “o ente não se vela por completo, ele se descobre no
momento em que se deturpa; ele se mostra – mas segundo o modo da aparência”
179
. O
178
SZ, p. 222.
179
SZ, p. 222.
96
encobrimento se dá simultaneamente à abertura, e isso equivale a dizer: a não-verdade é
cooriginária com a verdade.
É pertinente, para o esclarecimento desta questão, atentar para uma frase
explicativa que Heidegger acrescenta após o desenvolvimento do conceito originário de
verdade em termos de verdade e não-verdade. Ele diz: “A condição ontológico-existencial
para que o ser-no-mundo seja determinado pela ‘verdade’ e pela ‘não-verdade’ reside na
constituição ontológica do ser-aí que caracterizamos como um projeto lançado
(geworfener Entwurf)”
180
. O projeto, como vimos no capítulo anterior, constitui a estrutura
existencial da compreensão, ou seja, o ser-aí compreende originalmente em vista da
projeção de suas possibilidades. No projeto, o ser-aí se abre para o seu poder-ser como
compreensão. Ou, na palavras de Heidegger, “o caráter de projeção da compreensão
constitui o ser-no-mundo no tocante à abertura do seu aí, enquanto o aí de um poder-ser”.
Dito de outro modo, o projeto responde pela abertura do ser-aí em sua possibilidade de
compreensão. É na projeção que se abre o campo de jogo, o espaço de articulação em que
as coisas podem surgir como significativas de um modo ou de outro. No entanto, a
projeção se dá sempre em função de uma perspectiva na qual o ser-aí é de início lançado.
O ser-aí é um ser lançado no mundo. O “estar lançado” também pertence a constituição
ontológica do ser-aí como constitutivo de sua abertura. “Nele, desentranha-se que o ser-aí
já é sempre meu e isso num mundo determinado e junto a um âmbito determinado de entes
intramundanos determinados"
181
. O projeto não se realiza aparte da situação em que o ser-
aí é lançado, senão que se dá desde ela e em função dela. Assim, o projeto está sempre
marcado pelas múltiplas determinações de uma existência fatual, de um existir concreto
em um “mundo” ao qual o ser-aí não escolheu pertencer, mas ao qual já está desde sempre
envolvido, tão envolvido a ponto de ser tomado por ele. Esse conjunto de condições em
que o ser-aí é, em cada caso, lançado nunca é plenamente evidente. Tais condições, que
com muito cuidado podemos chamar de condições históricas, constituem o não
determinável que acompanha toda projeção do ser-aí. Quer dizer, é aquilo que permanece
obscuro em toda compreensão, em toda abertura: é a não-verdade que acompanha a
verdade, de modo igualmente originário.
180
SZ, p. 223.
181
SZ, p. 221.
97
Dito isto, há de se perguntar, agora, o que representa essa constatação da
cooriginariedade da verdade e da não verdade no contexto da análise heideggeriana do
conceito de verdade? Quais as conseqüências disso para a discussão da verdade? Qual é,
em suma, a novidade?
Vimos que Heidegger conduziu a discussão da verdade para o nível
transcendental. Ele disse em latim, na introdução de Ser e Tempo: “Verdade
fenomenológica é veritas transcendentalis”. Vimos também que se trata de uma
transcendentalidade diferente, visto que ela não está presa a uma idéia de subjetividade, a
um sujeito absoluto e idealizado, mas se liga ao modo de ser prático do ser-aí no mundo. A
verdade mais originária é, portanto, não apenas fundamento de toda e qualquer verdade
proposicional, mas também é o fundamento do próprio ser-aí, é seu “transcendental”.
Nesse contexto, a não-verdade surge para enfatizar de forma mais marcante esse caráter
existencial da verdade, que justamente por ser ligado à existência, é marcada por ela. A
não-verdade representa o aspecto do limite, daquilo que permanece oculto e obscuro,
apesar de todas as investidas no intuito de encontrar uma base sólida e transparente de
sustentação para o conhecimento e para a verdade.
A não-verdade (como ocultamento) que é igualmente originária à verdade, é
conseqüência necessária da indicação do ser-no-mundo como condição transcendental do
ser-aí e de sua possibilidade de conhecimento. O ser-no-mundo é temporal, determinado
por condições concretas – condições históricas, podemos dizer – devido as quais não pode
desfrutar jamais de uma abertura total, de um compreensão absoluta e transparente. É
precisamente a contingência histórica de uma vida marcada desde o início pela entrega a
um “mundo” ao mesmo tempo tentador, tranqüilizante e alienante, aquilo que deturpa, que
encobre a experiência originária da descoberta a ser conduzida desde as possibilidades
mais próprias de cada um. O ser-aí é decaído, “de início e na maior parte das vezes”, dirá
Heidegger, porque é mundano, porque é histórico, enfim, porque em seu modo de ser ele
já está sempre envolvido com o mundo. Esse envolvimento é, ao mesmo tempo, revelador
e deturpador. Daí segue que a constatação de que “a verdade (a descoberta) deve sempre
ser arrancada primeiramente dos entes. O ente é retirado do velamento. A descoberta em
seu fato é, ao mesmo tempo, um roubo
182
. Na abertura de mundo, inserida no modo de
ser decadente da impessoalidade, a experiência originária da descoberta dos entes acaba de
182
SZ, p. 222.
98
tal modo deturpada que não mais aparece no confronto imediato com os entes dentro do
mundo, precisando ser em cada caso resgatada em meio às aparências daquilo que, embora
já tenha sido descoberto, voltou a se encobrir.
Disto segue, também, o repúdio, no item C do § 44, às idéias de um “eu puro”
e de uma “consciência em geral” que pretendem garantir, em sua transparência, a
originalidade do ser-aí real. Como observa Stein, “com a afirmação de verdade e não-
verdade, o que Heidegger procura fazer é nos tirar a fantasia de um saber absoluto, de um
sujeito absoluto, de um sujeito apoditicamente afirmado, que seja livre das condições
históricas e que fundamenta, a partir daí, o resto do conhecimento”
183
. E conclui Stein, na
seqüência: “A verdade originária tem justamente este caráter de negação da absolutidade,
enquanto nela se dá verdade e não-verdade como contrapontos que se completam
184
.
Não há mais como sustentar a idéia de “verdades absolutas” a partir de um
transcendental temporal-histórico, e, por isso, constituído por verdade e não-verdade.
Aquilo que é condição, o fundamento, não é transparente, não pode ser completamente
explicitado; sempre se oculta algo além daquilo que se mostra. Isso que sempre se oculta
ou que permanece deturpado, é a contingência histórica do ser-aí, representada pela não-
verdade.
183
Stein, Seminário sobre a verdade, op. cit., p. 189.
184
Stein, Seminário sobre a verdade, op. cit., p. 190.
99
III - DA FINITUDE DA VERDADE
A análise da verdade conduzida nos capítulos precedentes buscou revelar
alguns aspectos centrais desde onde se pode alcançar uma compreensão mais profunda da
questão, assim como ela é posta em Ser e Tempo. Focou-se, num primeiro momento (cap.
I), a importância de se perceber a nítida distinção entre verdade fundada e verdade
fundante; quer dizer, entre aquela idéia de verdade como propriedade das proposições,
como concordância, e uma verdade mais originária, enquanto condição de possibilidade da
verdade das proposições. Num segundo momento (cap. II), focou-se o caráter existencial
dessa verdade que se chamou de fundante. E, nisso, revelou-se o sentido da crítica
heideggeriana ao conceito tradicional de verdade, ao conceito adequacionista de verdade.
A crítica não visa à destruição do conceito criticado, não exige tampouco seu abandono,
apenas almeja esclarecer os seus pressupostos ontológicos, que conduzem a um sentido
mais profundo e mais original em que a verdade deve e tem de ser pensada. Ocorre assim
um deslocamento e, com ele, um alargamento do campo onde é posto o problema da
verdade: a verdade não é apenas uma questão relativa ao nível lógico-semântico (tal
opinião reflete um preconceito lógico), ela se dá também e de modo mais originário na
relação do ser-aí com o mundo; verdade é antes de tudo um conceito existencial.
Essa manobra heideggeriana em direção de um conceito de verdade mais
amplo, mais fundamental, esteve desde o princípio apoiada na inusitada interpretação do
termo grego alétheia no sentido de descoberta. Uma vez que essa interpretação libertou o
conceito de verdade da noção de concordância fez-se possível, então, falar de verdade em
um nível antepredicativo. A verdade fundante, a verdade existencial, não possui os traços
da verdade proposicional, no sentido de concordância – adaequatio intellectus et rei. Bem
entendida, a concordância é apenas uma derivação distante e extrema daquela verdade
mais originária, abordada em termos de descoberta existencial. E, mesmo na proposição, a
verdade ocorre primeiramente como descoberta e não como concordância. De acordo com
a interpretação de Heidegger, em sentido originário, uma proposição é verdadeira na
100
medida em que ela descobre o ente em si mesmo. O ser-verdadeiro (verdade) de uma
proposição tem de ser entendido, portanto, no sentido de ser-descobridor. Somente depois,
graças a um processo de derivação em que essa compreensão mais profunda da verdade
resulta ocultada, a proposição pode ser tomada como algo simplesmente dado e
confrontada com o seu objeto, de modo a se extrair daí um valor de verdade no sentido de
concordância.
Uma definição da verdade em termos de concordância, além de ser, nas
palavras de Heidegger, “por demais vazia e universal”, não consegue se sustentar em seus
fundamentos, pois, sendo a concordância um fenômeno em muitos aspectos derivado, não
pode ela, por si só, dar conta do processo de fundamentação do qual depende. A
concordância é apenas um desdobramento extremo daquilo que a tradição mais antiga da
filosofia, numa compreensão pré-filosófica, já havia estabelecido como fundamento
“evidente” (selbstverständlich) do uso terminológico de alétheia: a descoberta, o
descobrir. Essa compreensão originária, resgatada da antiga tradição, ganhou confirmação
fenomenal com a analítica existencial, que pôde inclusive indicar o modo como o
fenômeno originário da verdade modifica-se até chegar à idéia de concordância e,
também, o fato desta predominar em detrimento da outra que é ocultada. (A necessidade
desse fato está ligada, como já vimos anteriormente (cap. I, seção 1.3.2), ao modo de ser
próprio do ser-aí, que tende a se compreender a partir do que vem ao encontro dentro do
mundo. Mas não vamos arrolar novamente todos os passos desse processo, apenas indicar
a pertinência daquela discussão para o que aqui é posto).
Munido de sua reinterpretação da alétheia e das conquistas alcançadas pela
analítica existencial, Heidegger acha-se, então, em condições de sustentar a posição de que
a verdade não possui a estrutura de uma concordância entre conhecimento e objeto, senão
que é o descobrir que responde pelo modo de ser mais originário da verdade. Os entes são
verdadeiros na medida em que estão descobertos; as proposições são verdadeiras na
medida em que contêm uma descoberta; e o ser-aí é verdadeiro, primordialmente
verdadeiro, na medida em que exerce a ação de descobrir.
Num certo sentido, essa determinação do modo de ser da verdade como
descoberta já estava mais ou menos clara desde o início desta problematização. Mas o
retorno a este aspecto cumpre agora o propósito de preparar a discussão das polêmicas
101
afirmações deferidas por Heidegger na parte C do § 44, onde ele diz, entre outras coisas,
que nem sempre precisou existir a verdade, que nem sempre precisará existir a verdade,
que a verdade é relativa ao ser-aí, que não existem verdades eternas, etc. Ou seja, temos aí
a defesa de uma idéia de verdade finita, que vem fazer frente às pretensões da filosofia
tradicional em afirmar a existência de verdades eternas.
Tomado no contexto do § 44, o item C pode ser encarado como uma espécie
de conclusão, onde são apresentadas as conseqüências extraídas das duas partes anteriores
em que se dá, respectivamente, a discussão do conceito tradicional de verdade e a
elaboração do conceito existencial de verdade. Conseqüências estas que, como já
indicamos, vão se chocar duramente com a tendência tradicional de colocar a verdade num
horizonte de necessidade e eternidade. Infelizmente, as questões apresentadas neste breve
tópico de Ser e Tempo não estão tão articuladas e desenvolvidas quanto a sua relevância
nos faria supor que estivessem. Isso tem dado margem a muitos mal entendidos, como é o
caso, por exemplo, da famosa apreciação crítica apresentada por Ernest Tugendhat em
Wahrheitsbegriff bei Husserl und Heidegger
185
.
Embora possamos adiantar desde já certa discordância com relação a
interpretação do conceito heideggeriano de verdade apresentada em Wahrheitsbegriff bei
Husserl und Heidegger, sua análise pode ajudar a realçar alguns aspectos centrais do tema
em questão. Por isso, uma breve apresentação da crítica de Tugendhat terá lugar no
contexto da discussão que se segue acerca do modo de ser da verdade e sua dependência
em relação ao ser-aí (3.1). Depois disso, abordaremos a idéia da verdade finita (3.2) e o
sentido em que a verdade deve ser pressuposta (3.3).
3.1 – O modo de ser da verdade e sua dependência em relação ao ser-aí
Como já foi mencionado, tomada em seu modo mais originário, a verdade não
tem, de acordo com a concepção heideggeriana, a estrutura da concordância de algo com
algo (do conhecimento com o objeto); verdade tem antes o modo da descoberta.
185
TUGENDHAT, E. Wahrheitsbegriff bei Husserl und Heidegger. 2 ed. Berlin: Walter de Gruyter & Co.,
1970. Na verdade, o estudo de Tugendhat move-se para além dos limites em que se situa o presente trabalho,
visto que ele toma o conjunto geral da obra de Heidegger. Todavia, o próprio Tugendhat sustenta, nessa obra
(ver p. 259s), que o essencial das ruminações de Heidegger sobre o problema da verdade tomam forma
dentro da estrutura de Ser e Tempo.
102
Descobrir, como também já vimos, é uma determinação existencial do ser-aí.
Descobrir é um modo de ser-no-mundo. No envolvimento cotidiano do ser-aí com o
mundo, através dos diversos modos de ocupação e preocupação, este ente já se mantém
desde o início numa determinada compreensão de si, dos entes com que se ocupa ou
preocupa e do mundo como um todo. Essa compreensão, que de modo algum deve ser
confundida com um tipo de conhecimento, tem lugar na abertura originária do ser-aí,
caracterizada por Heidegger como uma espécie de clareira onde os entes podem surgir de
algum modo iluminados. O ser-aí compreende à medida que, existindo, ele é sua abertura;
ou seja, à medida que sua existência é marcada fundamentalmente por um envolvimento
prático-funcional com o mundo, que abre uma espécie de perspectiva desde a qual os entes
aparecem (na luz) descobertos.
Toda descoberta tem lugar originalmente na abertura do ser-aí. Somente nela
algo pode ser significativamente encontrado e liberado em seu ser. E porque a abertura
realiza a descoberta primeira dos entes, Heidegger a indica como o fenômeno mais
originário da verdade – mais originário porque realiza a descoberta mais originária dos
entes. Entretanto, mesmo não sendo em si um produto do ser-aí, no sentido de algo que o
ser-aí realiza em determinado momento, algo como a abertura só acontece em função do
ser-aí – na medida em que esse ente interage com o mundo, na medida em que ele é ser-
no-mundo. A abertura é um modo de ser essencial do ser-aí.
Uma vez dado esse caráter da abertura enquanto constitutivo do ser-aí, fica
evidente pra Heidegger a conexão necessária entre verdade e ser-aí:
Somente “há” verdade enquanto e na medida em que o ser-aí é. O ente
somente é descoberto e aberto quando e enquanto o ser-aí é. As leis de
Newton, o princípio de contradição, toda verdade em geral somente é verdade
enquanto o ser-aí é. Antes que houvesse o ser-aí, e depois que não houver mais
o ser-aí, não havia e não haverá nenhuma verdade porque, nesse caso, ela não
pode ser no modo da abertura (Erschlossenheit), da descoberta (Entdeckung) e
do descobrimento (Entdecktheit).
186
Note-se aqui que Heidegger já não se restringe em falar da verdade da abertura
e da verdade da proposição, anteriormente discutidas; primeiro ele toma leis da ciência
natural, depois faz menção a um princípio da lógica clássica e, por fim, estende a sua
186
SZ, p. 226.
103
alegação a todo tipo de verdade. Essa manobra serviu como evidência de uma suposta falta
de rigor da argumentação heideggeriana, incapaz de seguir regras mínimas de
controlabilidade metodológica. O filósofo usa exemplos de áreas ontológicas distintas sem
qualquer consideração acerca da especificidade de cada uma delas. Tal déficit reflexivo o
teria impedido, conseqüentemente, de reconhecer as condições de verdade próprias a cada
uma das áreas, viabilizando assim a generalização pretendida por ele. É nesse sentido,
precisamente, que Tugendhat coloca sua alegação de que Heidegger acaba extraviando “o
sentido específico” desde o qual toda e qualquer noção de verdade deve ser caracterizada
como tal.
Pensando em linha com Husserl, Tugendhat argumenta, em Wahrheitsbegriff
bei Husserl und Heidegger, que o problema da verdade deve sempre pressupor a
possibilidade de distinguir entre o modo preliminar em que algo está dado
(vordergründiges Gegebensein) e o modo em que ele mesmo se dá (selbstgegebensein);
quer dizer, entre o modo como algo preliminarmente aparece (ou é percebido) e o modo
no qual ele é em si mesmo. É esse tipo de distinção que confere à proposição o seu caráter
bivalente, ou seja, sua possibilidade de ser confirmada ou não. Onde esta distinção fica à
margem ou, em outras palavras, onde a verdade não está ligada à bivalência, qualquer
discussão a respeito da verdade torna-se sem sentido – ambivalente, portanto. E,
definitivamente, constata Tugendhat, esta requerida distinção não está em jogo na
caracterização heideggeriana da verdade.
187
Sua argumentação, nesse sentido, assume dois
momentos cruciais. Primeiro ele constata que a equiparação promovida por Heidegger
entre “verdade” e “abertura” é insustentável [1] e depois ele explica como tal equiparação
promove um obscurecimento do problema da verdade [2].
1. A insustentabilidade da equiparação entre verdade e abertura. Tugendhat
sustenta que Heidegger só pôde equiparar “verdade” com “abertura” e depois com
“descoberta” por meio de um artifício que acaba “resumindo” a definição de verdade:
tomando como base a interpretação, já desenvolvida por Husserl, de que “uma proposição
é verdadeira quando ela ‘descobre’ o ente assim como ele é em si mesmo”, Heidegger
produz uma definição mais simples, segundo a qual “uma proposição é verdadeira quando
ela ‘descobre’”. Aí, então, desde o fato de que a abertura é a condição de possibilidade de
toda descoberta e por meio disso da verdade proposicional, Heidegger conclui
187
Tugendhat, op. cit., p. 296s.
104
(tacitamente) que a abertura deve ela mesma ser um tipo de verdade. Aos olhos de
Tugendhat, essa manobra consiste num non sequitur. A ilegitimidade de uma tal conclusão
é patente, visto que, o fato de x ser uma condição necessária de y, não implica que o
mesmo tipo de propriedade tida por y é também tida por x – do fato que não há ângulos
sem linhas, não segue que linhas são originariamente ângulos; do fato que água é líquida e
contém hidrogênio, não segue que hidrogênio é líquido.
188
Da constatação fenomenal de que há uma instância existencial de acesso aos
entes (abertura) que precede a verdade proposicional, não segue necessariamente que esta
instância seja ela mesma verdadeira. Quer dizer, o fato de a abertura ser condição para a
verdade proposicional não faz dela uma verdade. E a estratégia de Heidegger de
estabelecer a “descoberta” como modo de ser fundamental da verdade, comum tanto ao
âmbito fundamental da verdade como abertura quanto ao âmbito proposicional da verdade
como concordância, em nada diminui o non sequitur de sua argumentação, visto que a
definição da verdade proposicional, em termos de um ser-descobridor, não atinge, de
acordo com a visão de Tugendhat, o sentido específico da verdade. Que a proposição, em
algum sentido, descobre (ou pode descobrir) algo, isso é certamente correto; mas, no
entanto, é, por si só, insuficiente para explicar a possibilidade da verdade e da falsidade de
tal proposição.
Quando, em Ser e Tempo, Heidegger equipara o ser-verdadeiro com o ser-
descobridor e conclui que aquilo que possibilita esse descobrir “deve ser, necessariamente,
considerado ‘verdadeiro’ num sentido ainda mais originário
189
, ele está se equivocando.
Afinal, não há justificativa aparente para uma tal conclusão. Mesmo que se aceitasse a
verdade proposicional como um tipo de descoberta, aquilo que possibilita essa descoberta
não precisa necessariamente apresentar as propriedades do que é por ela descoberto. O
fundamento não precisa ter o mesmo caráter do fundamentado, de tal sorte que a
argumentação de Heidegger de que a abertura é verdadeira num sentido mais originário
porque ela é condição de possibilidade da verdade proposicional, simplesmente não
procede. E, consequentemente, não procede também sua equiparação entre “verdade” e
“abertura”.
188
Essa formulação é de Dahlstrom, op. cit., p. 399.
189
SZ, p. 220.
105
2. Heidegger promove um obscurecimento do problema da verdade. O
obscurecimento tem a ver, aqui, com o uso equivocado do termo “verdade”, resultante da
redução, já assinalada, da verdade enquanto “descoberta de algo assim como ele é em si
mesmo” à mera descoberta de algo. Na mera descoberta, um ente apresenta-se ele mesmo
de algum modo, mas não necessariamente como ele é em si mesmo. Não obstante, no
entender de Tugendhat, o sentido específico de “verdade” consiste precisamente na
descoberta de um ente assim como ele é em si mesmo.
190
Com a eliminação da restrição “assim como é em si mesmo” da definição de
“verdade”, Heidegger dá, por assim dizer, um passo fatal na direção de um
desenraizamento obscurecedor do conceito de verdade. Ele perde, com esse passo
decisivo, o sentido específico no qual a verdade é geralmente entendida. Como
conseqüência desta confusão, verdade não consiste mais no modo como algo se revela (ou
seja, como ele é em si mesmo), mas na mera constatação de que ele se revela.
Descaracterizando desse modo o conceito de verdade, Heidegger pôde, então, atribuí-lo à
toda descoberta dos entes dentro do mundo; e sendo que descoberta dos entes só é possível
com base na abertura do ser-aí, é extraída daí a conclusão de que essa abertura é o
“fenômeno mais originário da verdade”.
Mas, com essa sua concepção, Heidegger não consegue mais explicar o que é
característico da verdade proposicional, uma vez que ao retirar a restrição “assim como é
em si mesmo” de sua noção de verdade, ele perde o critério pelo qual se fazia, até então, a
distinção entre o sentido específico no qual uma proposição verdadeira descobre algo e o
sentido geral em que as proposições – mesmo as falsas – descobrem algo. Que uma
proposição em algum sentido descobre (ou pode descobrir) algo, isso é certamente correto,
mas é uma constatação insuficiente para dar conta da especificidade do problema da
verdade. Além disso, a tentativa de explicar a verdade e a falsidade das proposições em
termos de uma distinção entre velamento e desvelamento é também insuficiente, já que
Heidegger diz em Ser e Tempo que mesmo no velamento, na deturpação (falsidade) o ente
não é completamente ocultado.
191
Quer dizer, há verdade mesmo na falsidade.
Um relato dessa natureza nada contribui para o entendimento da verdade,
senão que, ao contrário, promove seu obscurecimento. Com a tese de que o ser-verdadeiro
190
Tugendhat, op. cit., p. 331-336.
191
SZ, p. 222.
106
(verdade) da proposição diz “ser-descobridor” (descoberta), Heidegger nada diz acerca do
modo de ser específico da verdade. O sentido específico de verdade (do termo verdade)
não advém simplesmente do fato de que a proposição traz algo à luz, mas do fato de que
ela traz algo à luz (deixa e faz ver, descobre) assim como ele é em si mesmo. Ao recusar
esse sentido específico da verdade e tomá-la em termos de mera descoberta (já sempre em
curso no ser-no-mundo), Heidegger propõe uma definição de verdade que não exige
demonstração e que, por isso, não pode ser articulada com a responsabilidade.
No fundo, a argumentação de Tugendhat se volta contra o uso que Heidegger
faz do termo verdade.
192
Ele entende que há um “sentido específico” de verdade que não
pode ser abandonado, sob o risco da descaracterização do conceito como tal, a saber, o
sentido de verdade enquanto adequação, enquanto concordância conduzida em termos do
“assim como”. Heidegger realmente abre mão dessa noção de verdade quando aborda a
verdade em termos de descoberta e a liga ao fenômeno originário da abertura. Quanto a
isso, Tugendhat está certo. Mas se entendermos essa manobra de Heidegger em harmonia
com o projeto total de Ser e Tempo, então vamos perceber que não era da verdade
proposicional que ele falava; a discussão é posta em outro nível: num nível onde o
192
Heidegger estaria fazendo mau uso do termo “verdade” ao utiliza-lo para denominar o âmbito da
fundamentação da verdade. Seria preferível (e esclarecedor) resguardar o termo “verdade” para indicar
aquele sentido específico desta como concordância, e fazer uso de outros termos para tratar de seus
fundamentos. As restrições de Tugendhat não são, portanto, contra o movimento de Heidegger em direção
dos fundamentos ontológicos existenciais da verdade. Ele não nega o fenômeno da abertura (o modo de ser
da descoberta e liberação primeira dos entes), apenas rejeita o uso do termo “verdade” para designá-la. Essa
é também a opinião de Karl-Otto Apel, ele mesmo um partidário da posição apresentada por Tugendhat em
Wahrheitsbegriff bei Husserl und heidegger. Em Transformação da Filosofia (vol. 1: Filosofia Analítica,
Semiótica, Hermenêutica. Edições Loyola, 2000, p. 49), Apel afirma que Heidegger avaliou erroneamente
sua grande descoberta do ‘descerramento de sentido’ (ou seja, o ser-no-mundo, a abertura) ao equipará-la a
verdade. Heidegger teria deixado de perceber uma diferença fundamental entre a verdade proposicional e a
suposta verdade da abertura: tal distinção consiste em que apenas a primeira comporta a restrição “assim
como”, ou seja, tem a sua medida no ser-em-si do ente, demonstrado e expresso. Verdade proposicional e
verdade enquanto abertura (descoberta) são coisas diferentes e por isso Apel junta-se à Tugendhat para
sugerir o equívoco da generalização que põe ambas sob o rótulo de “verdade”. Heidegger estava ciente da
gritante diferença existente entre o conceito corrente de verdade proposicional e a sua noção de verdade
enquanto abertura (descoberta). E a principal diferea, como já foi insistentemente ressaltado ao longo
deste trabalho, é aquela que diz respeito ao nível de consideração de cada uma delas. Quando Heidegger fala
da verdade como descoberta e a liga ao fenômeno fundamental da abertura, a discussão está se situando em
um nível pré-predicativo, e isso quer dizer num nível anterior às terminações lógico-semânticas que
delineiam a análise da verdade proposicional. A discussão da verdade qua abertura situa-se no nível
ontológico-existencial das condições de possibilidade. É ainda uma discussão sobre a verdade, mas agora
numa outra perspectiva. Claro que cada nível de consideração vai fornecer uma visão distinta, e, no entanto,
elas não se anulam. Há entre elas uma relação de fundamentação: uma é pensada em nível fundamental e
outra em nível derivado. Por isso pode-se dizer que não são exatamente a “mesma” verdade; e por isso
Heidegger usa os adjetivos “fundamental”, “original”, “fenomenológica” para diferenciar a verdade pensada
ao nível das condições ontológico-existenciais de possibilidade daquela noção de verdade identificada como
“tradicional”, “proposicional” ou “lógico-semântica”.
107
problema da concordância da relação “assim como” não tem lugar, ainda. A verdade de
que fala Heidegger é a veritas transcendentalis, sugerindo com isso que a discussão se
move no nível das condições de possibilidade, das condições existenciais de possibilidade.
Tugendhat deu pouca importância a essa distinção de nível que é simplesmente decisiva
para a compreensão da posição heideggeriana.
Quando Heidegger fala em verdade em termos de abertura e de descoberta,
essa verdade já não é para ser entendida na direção da verdade proposicional, que
Tugendhat indica como o específico sentido de verdade. O ponto de Heidegger é,
justamente, atacar a posição tradicional que admite apenas a discussão lógico-semântica
da verdade – o sentido “específico” reivindicado por Tugendhat. E, no entanto, ao ampliar
o sentido de verdade, ele não descaracteriza aquele sentido específico no qual ela é
definida em termos lógicos. Em momento algum, em suas considerações acerca do
conceito tradicional de verdade, ele rejeita o sentido específico desse conceito, como que
sugerindo seu abandono ou reformulação. A indicação de tal conceito como um “conceito
derivado” não o esvazia e nem o desqualifica, apenas “lembra” que ele só é possível em
função de um contexto de fundamentação que o sustenta.
Há, por um lado, a tradição filosófica sustentando um sentido “específico” de
verdade como concordância (possível apenas em nível lógico) e, por outro, há Heidegger
pretendendo resgatar um sentido “originário” de verdade (que permite pensar a verdade no
nível de sua fundamentação ontológica). A posição de Heidegger não anula e nem
descaracteriza (como faz pensar Tugendhat) a posição tradicional e o seu conceito de
sentido específico, apenas a esclarece em seus fundamentos (ontológico-existenciais).
Assim, se percebermos nitidamente essa distinção de níveis de discussão do
problema da verdade, as objeções de Tugendhat já ficam bastante enfraquecidas,
principalmente em sua pretensão de mostrar que Heidegger promove, com sua teoria, uma
descaracterização do conceito de verdade. O uso aparentemente indiscriminado de
verdades de diversas áreas do conhecimento (“leis de Newton, o princípio de contradição,
toda verdade em geral”) – que aos olhos de Tugendhat serviria como evidência de uma
suposta falta de rigor na argumentação heideggeriana, alheia ao sentido específico da
108
verdade – reflete apenas uma maior amplitude no trato da questão.
193
O sentido específico
de verdade não é simplesmente negligenciado. Ele continua tão fundamental quanto antes
na determinação da verdade proposicional; mas agora, e esse é o ponto que precisa ficar
claro, a proposição não é mais o lugar por excelência da verdade, do mesmo modo como a
idéia de concordância, que reflete o sentido específico do “assim como”, já não responde
mais pela sua essência. A verdade esta sendo amplamente considerada: enquanto
descoberta, ela compreende agora todo o processo existencial que precede e, num certo
sentido, acompanha a atitude teórica-proposicional.
A generalização feita no § 44, na ocasião da apresentação da dependência de
toda verdade ao modo de ser do ser-aí, não procede simplesmente desde um extraviamento
do sentido específico da verdade, senão que, movendo-se desde o nível da fundamentação,
tal generalização institui o sentido específico da verdade como um desdobramento
“específico” daquele que é o sentido mais básico: a descoberta, que é, no fundo, um modo
de ser do ser-aí. Toda verdade, seja ela um princípio da lógica clássica ou as leis da ciência
natural, tem fundamentalmente o modo da descoberta, mesmo que isso não seja evidente
do ponto de vista ôntico, quer dizer, mesmo que onticamente essas verdades assumam
outro caráter – o da concordância, por exemplo. Mas, em última instância, toda verdade
implica o modo de ser da descoberta, no sentido que algo precisa ser previamente liberado
na abertura do ser-aí para mostrar-se como tal, aí sim, em sua “verdade”. Sem essa
descoberta fundamental que libera os entes em si mesmos e os torna acessíveis não se
justifica falar em verdade. Antes das leis de Newton serem descobertas, elas não eram
“verdadeiras”. Veja-se Heidegger:
193
Além do mais, o fato de o filósofo utilizar exemplos de diferentes regiões ontológicas, como ele mesmo
costuma designar as várias áreas do conhecimento, é perfeitamente coerente com o projeto geral de Ser e
Tempo que, enquanto pergunta pelo sentido do ser, não se compromete exclusivamente com nenhuma
ontologia regional em especial, senão que procura liberar o solo fenomenológico já pressuposto em cada
uma delas. Ser e Tempo tem caráter transcendental, ele aborda as condições de possibilidade das diferentes
ontologias (daí Heidegger caracterizar sua ontologia com o adjetivo “fundamental”, justamente para marcar
seu caráter transcendental). E uma obra de caráter transcendental só pode, como bem observou Stein
(Seminário sobre a verdade, op. cit., p. 142), produzir um conceito de verdade transcendental. Um conceito
de verdade que se coloca também ele ao nível das condições de possibilidade de toda e qualquer verdade à
nível ôntico, sejam verdades das ciências naturais, da lógica clássica ou de qualquer outra área do
conhecimento. Se compreendermos isso, então, já não resultam problemáticas as afirmações de Heidegger
acerca da dependência de toda e qualquer verdade ao modo de ser do ser-aí – que é a abertura, colocada ao
nível do ser-no-mundo, que é onde Heidegger desenvolve a questão do transcendental, das condições de
possibilidade.
109
As leis de Newton, antes dele, não eram nem verdadeiras nem falsas. Isso não
pode significar que o ente que elas, descobrindo, demonstram não existisse
antes delas. As leis se tornam verdadeiras com Newton. Com elas, o ente em si
mesmo se tornou acessível ao ser-aí. Com a descoberta dos entes, estes se
mostram justamente como os entes que antes delas já eram.
194
A verdade, assim como é posta em Ser e Tempo, não é nem identificada com a
realidade e nem com algo que pode ser afirmado independentemente da “realidade”, senão
que ela se dá propriamente na relação do ser-aí com a “realidade”. (Realidade, aqui,
naquele sentido tradicional do termo, que designa as coisas meramente subsistentes).
Verdade tem a ver com descoberta, enquanto um modo de ser-no-mundo. Se não for
devidamente considerado, o termo descoberta pode sugerir uma interpretação ambígua, na
medida em que se poderia entender também que “descobrir” implica a concepção de um
pensamento, ou sua expressão, ou seu reconhecimento como verdadeiro. Equívocos desta
natureza estão na base de um outro tipo bastante freqüente de acusações, que tomam a
teoria da verdade de Heidegger como um caso claro de psicologismo ou mesmo de
relativismo cético, marcado em sua base pela confusão entre o modo de ser da verdade e o
seu reconhecimento por parte do existente humano. Uma confusão que a filosofia da
lógica já discriminou há tempos, através de uma diferenciação entre o pensamento capaz
de ser verdadeiro e os atos de conceber e expressar tal pensamento. De um lado se põem o
pensamento, a proposição, o sentido, o conteúdo proposicional, e de outro as ações
referentes à concepção de tal pensamento, ao seu pronunciamento. Com base nisso
procede a distinção entre o ser verdadeiro do conteúdo proposicional e a possibilidade dele
ser ou não reconhecido como tal. Em resumo, a idéia é que a verdade do conteúdo
proposicional (o corpo da significação) valha independentemente do fato de ser
reconhecido, confirmado ou mesmo pronunciado por alguém.
Essa distinção faz parte, na verdade, de uma discussão mais ampla,
impulsionada por Lotze, na qual está em jogo a instauração do domínio próprio da Lógica.
De acordo com a doutrina de Lotze, o modo de ser próprio de uma proposição verdadeira
não é nem o psíquico e nem o físico, mas o valer, a validade (Geltung). É precisamente
esse conceito de validade que vai permitir a distinção entre aquilo que na proposição é real
e aquilo que é ideal, ou seja, entre o evento real de pensar, asserir e reconhecer uma
194
SZ, p. 227.
110
proposição e o seu conteúdo ideal que, por permanecer inalterado frente aos processos de
julgamento, proferimento e reconhecimento, “vale” independentemente deles.
Na primeira parte do livro Heidegger’s concept of truth, onde Dahltrom
analisa o confronto de Heidegger com a concepção lógica da verdade, fica evidente não
apenas que Heidegger já conhecia essa elementar distinção lógica, como já tomava
posição frente a ela, criticando o modelo ontológico que lhe estava implícito.
195
Na base
dessa distinção de um sentido em que verdade se dá independentemente de sua asserção
ou reconhecimento, está aquela compreensão ontológica de fundo que toma o ser pelo
subsistente. Isso permite que se pense, como Lotze, a verdade também como algo
subsistente, como algo que se mantém válido independentemente dos elementos que
condicionam seu reconhecimento.
196
É ainda a ressonância dessa doutrina de Lotze que vai
aparecer mais tarde em Husserl, quando este admite a necessidade de se distinguir entre o
que, no juízo, é ideal e o que é real – uma distinção com a qual Heidegger já estava
também bastante familiarizado.
197
Mas não vamos pormenorizar essa discussão, pois,
mesmo sendo pertinente, ela nos afastaria demasiadamente daquele que é o nosso foco no
momento. Isso que fizemos tem apenas o intuito de sinalizar para o prévio conhecimento
que Heidegger dispunha em relação à lógica e, mais especificamente, àquela distinção
elementar que permite pensar a verdade independentemente das condições de asserção e
reconhecimento da mesma. E isso já seria motivo suficiente para não se supor que o
filósofo tivesse, em Ser e Tempo, cometido tamanha gafe.
195
Dahlstrom, op. cit., cap. 1: A concepção lógica da verdade: o preconceito lógico e o conceito de validade
de Lotze (p. 1-47). Para o desenvolvimento deste tópico Dahlstrom toma para análise o texto do seminário
“Lógica. A pergunta pela verdade” (Logik. Die Frage nach der Wahrheit) ministrada por Heidegger no
semestre de inverno de 1925/26. Nesse texto, que pode ser tido como a pré-história do § 44, Heidegger
desenvolve mais demoradamente o cerne de sua teoria da verdade apresentada um ano depois em Ser e
Tempo: o conceito tradicional de verdade, o entendimento lógico do “juízo”, a insustentabilidade da
concordância como essência da verdade, tudo isso é ali amplamente discutido. E nesse contexto se dá o
confronto com Lotze. Heidegger demonstra que o fenômeno da “validade” oriundo daquele pensador e que
constitui o fenômeno originário desde onde se pensa tradicionalmente a questão da proposição e da verdade,
esse fenômeno é imensamente problemático, na medida em que repousa numa compreensão do ser como
presença (metafísica da presença, do subsistente). Em Ser e Tempo as ressalvas de Heidegger para com o
conceito de validade são brevemente apresentadas no § 33 (A proposição como modo derivado da
interpretação), para justificar a recusa de tal perspectiva para a discussão lá promovida acerca da proposição
(ver SZ, p, 155-156).
196
Conforme exposição de Dahlstrom acerca da leitura heideggeriana de Lotze em Heidegger’s concept of
thut (Op. cit., p. 35-47).
197
Mesmo sem fazer mensão direta nem a Lotze e nem a Husserl, Heidegger confronta-se diretamente com
essa problemática da separação entre o ideal e o real quando, no § 44 (SZ, p. 216-7), ele problematiza os
fundamentos ontológicos do conceito tradicional de verdade.
111
Quando o filósofo diz que as Leis de Newton não eram verdadeiras antes de
serem descobertas, ele não está dizendo que elas passaram a ser verdadeiras no momento
em que foram concebidas pelo pensamento ou no momento em que foram reconhecidas
em sua verdade. Do mesmo modo, também a constatação de que antes do ser-aí e depois
do ser-aí não havia e não haverá verdade, não está meramente acentuando a
impossibilidade óbvia de a verdade ser, em tais situações, asserida e reconhecida. Uma
interpretação nesse sentido é possível apenas a partir de uma total desconsideração do
programa fenomenológico esboçado em Ser e Tempo. O problema em questão na
abordagem heideggeriana da verdade não é a confusão entre o verdadeiro e o tomar por
verdadeiro, o que está em jogo é antes a instauração de uma nova perspectiva desde onde
pode (e deve) ser discutida a possibilidade da verdade como um todo. Uma perspectiva
que, como ressalta Róbson Ramos dos Reis, em Sentido e verdade: Heidegger e a “noite
absoluta”, não considera apenas as condições lógico-semânticas, senão que incide no
nível propriamente ontológico das condições para que um enunciado possa estar na
alternativa da verdade ou falsidade. E nesse nível de consideração, enfatiza Róbson, o
problema central deve ser bem entendido, pois a formulação heideggeriana distingue-se da
formulação clássica da filosofia primeira, isto é, como a determinação das propriedades e
leis que valem dos entes enquanto entes, ou como uma teoria formal dos objetos.
198
198
REIS, Róbson Ramos dos. Sentido e verdade: Heidegger e a “noite absoluta”. In: Souza, Ricardo T. de;
Oliveira, Nitamar F. de (Orgs.). Fenomenologia hoje: existência, ser e sentido no alvorecer do século XXI.
Porto Alegre: Edipucrs, 2001, p.319-344. O ponto central deste artigo constitui-se, justamente, no confronto
com as leituras críticas que não vêem na tese heideggeriana da verdade algo além da trivial indicação de que
em um mundo sem o ser-aí (situação descrita como a “noite absoluta”) não se daria a possibilidade de
reconhecimento ou pronunciamento da verdade. Róbson examina essa objeção argumentando que ela é
insustentável e que só se mantém em função de um desconhecimento do inteiro programa fenomenológico-
hermenêutico de Ser e Tempo. Tomadas em seu devido nível de consideração a constatação de que “a
verdade só acontece enquanto o ser-aí é” não implica nem relativismo cético, nem psicologismo ou
antropologismo, como sugerem freqüentes (más) interpretações. Para entender isso, é fundamental que se
perceba que não é a verdade efetiva dos enunciados que está em debate nas colocações de Heidegger, mas as
condições de possibilidade da afirmação dos conteúdos proposicionais. A existência do ser-aí não é apenas
condição de reconhecimento da verdade, mas é, antes disso, condição para instanciação dos conteúdos em
relação aos quais se decide a verdade das proposições. Nesse aspecto Róbson sustenta a interpretação de que
a dependência ontológica dos conteúdos proposicionais em relação ao ser-aí é mais bem formulada no
sentido de que a regionalização ontológica dos entes simplesmente dados depende do comportamento
enunciativo do ser-aí. Segundo tal interpretação é o asserir que propriamente permite a categorização dos
entes como coisas meramente subsistentes. Assim, num situação em que o ser-aí ainda não existia ou numa
em que ele não mais existirá, implicando a impossibilidade do comportamento enunciativo, fica sem sentido
propor a verdade já que claramente dependeria de condições ontológicas que já não estão presentes. Sem o
ser-aí, nada de enunciações; sem enunciações, nada daquela regionalização dos entes como coisas
simplesmente dadas; sem essa regionalização, nada de conteúdos proposicionais válidos independentemente,
enfim, nada de verdade. Esse é o sentido em que a verdade enunciativa (proposicional) pressupõe a
ontologia da subsistência, e como tal pressupõe o ser-aí.
112
Heidegger rejeita, como já foi dito no início do capítulo I, o ponto de partida
da metafísica tradicional que toma o ente na qualidade de algo simplesmente dado, com
suas propriedades subsistentes. Não que o caráter de algo simplesmente dado seja
desconsiderado; ocorre que, com as conquistas da analítica existencial, esse domínio
específico de entes não pode mais ser visto numa condição de independência em relação à
existência. Na verdade, os três domínios ontológicos reconhecidos em Ser e Tempo – que
inclui, além do ente simplesmente dado, o existente e o manual – têm sua instanciação
ligada ao comportamento existencial do ser-aí. E é aqui que tem de ser pensado o sentido
específico em que é empregado o termo descoberta, ou seja, ligado à liberação existencial
das diferentes regiões ontológicas. Nisso ressalta, mais uma vez, o modo como o ser-aí é
condição de toda verdade: mesmo que se tome a verdade (ou falsidade) como uma
propriedade possível das proposições – determinada pelos fatos, pelos estados de coisas
por elas denotados – ainda assim a existência tem de ser reconhecida como condição da
verdade dos conteúdos proposicionais, quer dizer, como possibilidade de que estejam na
alternativa do verdadeiro e do falso. Afinal, a possibilidade de uma proposição mostrar os
entes tais como são em si mesmos depende, necessariamente, de pressupostos ontológicos;
ou seja, depende de um descobrir prévio que libere esses entes para serem tomados como
objetos de proposições. E o “descobrir prévio” é um existencial, é um modo de ser-no-
mundo.
O reconhecimento do nível de consideração dos problemas discutidos é o
primeiro e decisivo passo na direção de uma leitura mais justa da tese heideggeriana. Uma
tese que se apresenta como uma distinta possibilidade de tratamento de um clássico
problema da lógica e que, em última instância, constata Róbson, representa também todo
um programa de investigações construtivas sobre os temas da teoria do conhecimento, da
filosofia da linguagem e da metafísica da mente; um programa que não mais se pauta pela
constelação do ceticismo e sua refutação, e que, em verdade, exige um redimensionamento
nas prioridades temáticas da filosofia.
199
Esse redimensionamento é especialmente
evidente no trato da verdade.
Heidegger trabalha com um conceito mais fundamental de verdade, que não é
o conceito lógico da concordância. Há de se perceber – e essa é uma constatação
importante – que ele fala da relatividade da verdade ao mesmo tempo em que sublinha o
199
Róbson Ramos dos Reis, op. cit., p. 324.
113
entendimento da verdade como descoberta. Na caracterização do descobrir como modo de
ser da verdade está o indicativo do nível em que está sendo conduzida a discussão, que é o
nível ontológico existencial e não o nível lógico-semântico. Quando o filósofo diz, então,
que sem o ser-aí não há verdade, ele não tem em mente meramente a concepção lógica da
verdade, senão que ele está pensando a verdade no seu modo mais fundamental, enquanto
descoberta. E, depois, quando ele sustenta a dependência de toda e qualquer verdade em
relação ao ser-aí (citando inclusive leis da ciência natural e princípios da lógica clássica), o
que está implícito é o caráter derivado dessas verdades, que somente tem lugar desde
aquela abertura originária em que a verdade ocorre de modo mais originário, enquanto
descoberta primeira dos entes. Uma vez que não se dá essa verdade mais fundamental,
também não se dá aquele tipo de verdade dela derivado. Nenhum tipo de verdade se furta,
assim, à dependência com relação ao ser-aí: “Toda verdade (alle Wahrheit) é relativa ao
ser do ser-aí na medida em que seu modo de ser possui essencialmente o caráter do ser-
200
.
Tão logo a formulação da tese de que toda verdade é relativa ao ser-aí é posta,
Heidegger alerta para que não se interprete essa relatividade como um indicativo de que
toda verdade é “subjetiva”, no sentido de que “está no arbítrio do sujeito”. Não é o caso de
se pensar assim pois, como argumenta o filósofo, “tomada em seu sentido mais próprio,
enquanto descoberta, a verdade retira a proposição do arbítrio “subjetivo” e leva o ser-aí
descobridor para o próprio ente; e apenas porque “verdade” como descobrimento é um
modo de ser do ser-aí é que ela se acha subtraída ao arbítrio do ser-aí”
201
. Ou seja,
descobrir é um modo de ser-no-mundo; o existir enquanto clareira já sempre revelou,
descobrindo aquilo que vem ao encontro no mundo, o mundo como um todo e o próprio
ente existente, o ser-aí. O descobrimento já está sempre em curso e acontece
independentemente do arbítrio do ser-aí. Ligado a isso, pode-se pensar também a
“validade universal” da verdade. Heidegger vai dizer
202
, então, que a “validade universal”,
no fundo, está enraizada no fato de que o ser-aí pode descobrir e liberar o ente em si
mesmo, e isso quer dizer, independentemente de um arbítrio “subjetivo”. Somente assim é
que esse ente pode, em si mesmo, ligar-se a cada proposição possível, ou seja, à sua
própria demonstração.
200
SZ, p. 227.
201
SZ, p. 227.
202
SZ, p. 227.
114
A relatividade da verdade não tem, portanto, como Heidegger fez questão de
ressaltar, o sentido de uma submissão ao arbítrio “subjetivo” do ser-aí. A verdade se dá
com relação ao modo de ser do ser-aí enquanto ser-no-mundo e não com relação a sua
“subjetividade".
3.2 – A idéia de verdade finita
A constatação de que a verdade é relativa ao ser-aí conduz diretamente à
negação da possibilidade das verdades eternas:
A existência de “verdades eternas” só pode ser comprovada de modo
suficiente caso se logre demonstrar que, em toda a eternidade, o ser-aí foi e
será. Enquanto não houver essa prova, a sentença seguirá sendo apenas uma
afirmação fantasmagórica que não recebe nenhuma legitimidade apenas
porque os filósofos geralmente nela “acreditaram”.
203
Conservando aquilo que discutimos acima, acerca da dependência de toda
verdade em relação ao ser-aí, essa colocação de Heidegger, atacando a pretensão
tradicional de afirmar verdades eternas, é para ser entendida ao nível da fundamentação
ontológica. Tomada do ponto meramente lógico, essa afirmação comporta todas aquelas
objeções que mencionamos quando tratamos, no tópico anterior, do caráter relativo da
verdade: que é uma afirmação ingênua baseada numa confusão também ingênua entre o
verdadeiro e o tomar por verdadeiro. Mas vimos que o ponto de debate de Heidegger
situa-se para aquém dessa diferenciação, dessa distinção lógica; suas considerações não
são apenas lógico-semânticas, senão que incidem no nível das condições ontológico-
existenciais de possibilidade da verdade assim como ela é pensada pela lógica.
204
203
SZ, p. 227.
204
E é somente porque a verdade é posta em nível ontológico-existencial e não lógico-semântico que a
negação da possibilidade das verdades absolutas pode recusar a crítica que a toma como uma contradição
performativa, de modo que, ao se dizer que o há verdade absoluta, já se estaria afirmando uma tal
verdade. Esse tipo de argumentação, em seu caráter estritamente formal, nada pode dizer acerca do nível
ontológico que ele, enquanto artifício lógico, já sempre pressupõe. Martin Kusch, ao abordar essa questão no
livro Linguagem como cálculo versus linguagem como meio universal (São Leopoldo: Editora Unisinos,
2001, p. 211), mostra que Heidegger repudia esse argumento da contradição sustentando que o seu caráter
estritamente formal, aplicável à qualquer contexto, o descaracteriza como um argumento propriamente
filosófico. O que pode ser usado em qualquer contexto, não tem ligação essencial com nenhum assunto. Por
isso, além de formal e vazio, tal argumento é também destituído de obrigação. Além disso, a arapuca dessa
argumentação lógica não funcionaria para as afirmações heideggerianas, já que o filósofo teria ressaltado no
final dos anos 20, ainda segundo a elaboração de Martin Kusch (op. cit., p. 212), que suas afirmações sobre a
impossibilidade da verdade absoluta não implicam um conhecimento de certeza absoluta. Trata-se de um
115
No mais, o ataque às verdades eternas constitui o arremate final de um
confronto com o modelo tradicional de filosofar, que começou a ser travado muito antes,
com a colocação da necessidade da analítica existencial. O conceito de verdade, tanto
quanto o conceito de realidade, ambos muito caros para a tradição, serve como índice das
transformações que foram sendo introduzidas. A idéia de verdade existencial, da verdade
relativa ao ser-aí, enfim, a indicação da verdade finita são produtos de uma
descontinuidade, que não significa exatamente um desligamento, mas uma radicalização
dos pressupostos filosóficos.
Um desses pressupostos, diretamente ligado à afirmação de verdades eternas, é
a suposição de um “sujeito ideal”. Heidegger reconhece que há um motivo implícito, ou
mesmo explícito, por traz desta suposição. Trata-se da exigência justa, mas que também
precisa ser fundamentada ontologicamente, de que a filosofia tem como tema o “a priori
e não os “fatos empíricos” como tais.
205
Mas então Heidegger questiona: “será que a
suposição de um ‘sujeito ideal’ satisfaz essa exigência? Ele não seria um sujeito
fantasticamente idealizado? No conceito de um tal sujeito não estaria faltando justamente
o a priori do sujeito ‘de fato’, isto é, do ser-aí?”
206
O foco de Heidegger é a exclusão tradicionalmente conduzida das condições
histórico-existenciais do âmbito da fundamentação. Se tomarmos como exemplo as
filosofias de Descartes, de Kant e mesmo de Husserl, com a qual Heidegger dispunha de
um contato mais imediato, podemos perceber que o que impera na base conceitual dessas
filosofias é a ânsia por uma fundamentação transparente, independente das contingências
da existência fática. No ens cogitans de Descartes, base de sua filosofia, as contingências
do existir fático não têm lugar; o sujeito pensante move-se no nível da necessidade lógica;
não é temporal e nem histórico. Semelhante é o caso do eu penso kantiano e da
consciência transcendental de Husserl. E, embora não haja uma referência direta à essas
filosofias, são elas que ocupam a mente de Heidegger quando ele se pronuncia dizendo
que, “as idéias de um ‘eu puro’ e de um ‘consciência em geral’ são tão pouco capazes de
sustentar o a priori da subjetividade ‘real’, que elas passam por cima, ou seja, não vêem de
conhecimento de tipo próprio, um conhecimento marcado pela flutuação entre certeza e incerteza; um
conhecimento no qual se cresce por meio do filosofar.
205
SZ, p. 229.
206
SZ, p. 229.
116
forma alguma os caracteres ontológicos da facticidade e da constituição ontológica do ser-
aí”
207
.
Ao refutar a idéia de um “eu puro” ou de uma “consciência em geral”,
Heidegger não nega, com isso, o a priori enquanto tal, senão que questiona o modo como
é concebido esse a priori, um modo que não contempla as condições fácticas da
existência. É essa carência que ele pretende resolver com o conceito de ser-no-mundo. O
ser-no-mundo é o a priori de Heidegger. Nele são contempladas as determinações
contingenciais do existir “real” – em oposição à “necessidade” das determinações de um
sujeito pretensamente “ideal”.
Para a discussão da verdade, o efeito da suposição de um sujeito ideal ou então
de uma consciência em geral é a imediata noção de que verdade também tem de ser
buscada, na transparência desse idealismo, como um conceito atemporal e necessário. E
então vai se falar em verdades absolutas, em verdades eternas. Mas se a reivindicação de
Heidegger for considerada, quer dizer, se se levar em consideração o a priori do sujeito de
fato, então, a verdade já não é mais aquele conceito transparente pensado pela tradição; a
verdade já é sempre ao mesmo tempo não-verdade. A não-verdade vai indicar justamente
aquela dimensão temporal e histórica que a tradição sempre buscou excluir do processo de
fundamentação através da suposição de um “sujeito ideal” – fantasticamente idealizado,
como diz Heidegger.
Essa recusa do “real” em prol do “ideal” é, no entender de Heidegger, um
resquício do modelo filosófico tributário da teologia. Ele afirma isso numa passagem que
ficou famosa, acima de tudo, pelo seu tom provocante e polêmico:
A afirmação de “verdades eternas”, bem como a confusão da “idealidade” do
ser-aí fenomenalmente fundada, com um sujeito absoluto e idealizado, fazem
parte dos restos de teologia cristã ainda presentes no seio da problemática
filosófica, mas que há muito tempo já deveriam estar radicalmente expulsos.
208
Claro que Heidegger não está taxando a filosofia tradicional (orientada pela
idéia de um sujeito ideal e pela possibilidade das verdades eternas) de teologia e nem
sugerindo que todas as filosofias que assim procedem aceitam o pressuposto teológico. O
sentido de sua afirmação é de que a filosofia, mesmo que se confesse independente da
207
SZ, p. 229.
208
SZ, p. 229.
117
teologia, conservou uma atração pelo perpétuo, que é própria da perspectiva teológica
(teológica cristã, no caso). Essa atração pelo perpétuo, pelo permanente, explicaria a
tendência tradicional de buscar a fundamentação em algo seguro, atemporal, livre das
contingências da existência fáctica que constitui o mais imediato.
Stein, ao comentar essa passagem, sugere que não a tomemos primeiramente
em seu caráter polêmico, visto que em tal manifestação o que está em jogo não é tanto a
sua crítica à metafísica ontoteológica, senão que, o que lhe importa “é delimitar a tarefa
filosófica, reduzir o campo da filosofia que quer ser um saber com problemática
própria”
209
. Em outras palavras, Stein está chamando a atenção para a manobra de
Heidegger em conduzir a discussão filosófica para o âmbito existencial, onde as Filosofias
de Deus e do Mundo natural, já não são um pressuposto. Sua referência aos “restos de
teologia cristã” teria o intuito de frisar mais uma vez (agora ao final da primeira parte de
Ser e Tempo) o campo temático com o qual se ocupou a analítica existencial.
A recusa da perspectiva teológica tem a ver, no fundo, com uma estratégia
metodológica que exclui, em princípio, qualquer tipo de pressuposto não justificado,
restringindo a investigação “às coisas mesmas”, como sugere a máxima da fenomenologia
herdada de Husserl. Não se trata, portanto, de uma mera negação teológica, no sentido de
um ateísmo. O que está sendo negado é a aceitação prévia de uma perspectiva que permite
pressuposições infundáveis do ponto de vista fenomenal, como é o caso, por exemplo, na
afirmação de “verdades eternas”.
Rejeitado o prisma da eternidade como forma privilegiada de ver o mundo,
resta a opção por uma consideração finitista e existencial dos problemas filosóficos. Não
mais se fala de verdades eternas, senão que toda verdade tem então caráter finito; porque,
afinal, toda verdade é relativa ao ser-aí; e o ser-aí é fundamentalmente marcado pela
finitude.
Sem dúvida, trata-se de uma leitura filosófica até então sem precedentes. Os
velhos problemas ganharam novas formulações. E é desde estas novas formulações que
tem de se buscar o sentido de suas polêmicas afirmações. Assim, quando o filósofo se
pronuncia acerca da impossibilidade das verdades eternas, essa impossibilidade tem de ser
209
STEIN, E. Seis estudos sobre “Ser e Tempo”. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1990, p. 9. O autor chama essa
manobra heideggeriana de “encurtamento hermenêutico”, operação que tem como resultado o “mundo
hermenêutico” no qual se realiza a hermenêutica da facticidade.
118
interpretada desde a perspectiva da ontologia fundamental em que a verdade é apresentada
em termos de descoberta. Nos capítulos I e II trabalhamos demoradamente o modo como
essa descoberta existencial dos entes, que tem lugar na abertura do ser-aí, desdobra-se até
chegar por fim à noção lógico-semântica da verdade em termos de concordância. É o
processo que vai do lidar transparente com o manual até o confrontamento com o ente no
caráter de algo simplesmente dado. Isso é fundamental; tanto mais se percebermos a
mudança que isso impõe com relação aos modelos ontológicos tradicionais, que tinham no
ente subsistente o seu ponto de partida. Heidegger inverte esta perspectiva: não
confrontamos de início coisas simplesmente dadas, independentes e sem valor, senão que
tudo o que encontramos surge já de início como algo determinado por um contexto
significativo previamente aberto (mundaneidade). E é o lidar prático que primeiro
descobre e libera os entes; a contemplação teórica que os descobre como “coisas”
simplesmente dadas tem lugar apenas como uma possibilidade derivada, geralmente
introduzida por situações inoportunas que afetam o andamento normal da ocupação. Sem
esse comportamento prático revelador dos entes, o acesso a eles como coisas
simplesmente dadas também não seria possível.
210
E isso vai respingar na concepção
lógico-semântica da verdade, na medida em que ela está diretamente ligada à
categorização do ente simplesmente dado. Já não se pode afirmar um conceito de verdade
que se sustente e justifique num nível puramente lógico, desvenciliado da condição
existencial do ser-aí. Esse é o sentido em que se pode falar, então em verdade finita: não se
pode conceber a verdade independentemente do ser-aí.
No entanto, a indicação da finitude da verdade não diminui o seu ser-
verdadeiro. O fato, por exemplo, das leis de Newton terem sua verdade dependente da
abertura do ser-aí não as torna menos verdadeira, nem do ponto de vista ontológico
existencial, enquanto descoberta, e nem do ponto de vista lógico-semântico enquanto sua
adequação ao estado de coisas correspondente. O ser-verdadeiro das leis de Newton não é
210
No Capítulo I teve lugar, paralelamente a discussão da verdade, uma reconstrução do modo como
Heidegger interpretou o ente simplesmente dado (Vorhandenheit) em função do ente disponível
(Zuhandenheit). De início, o ser-aí está entregue à ocupação. Os entes lhe vêm ao encontro como
instrumentos disponíveis. Somente na ocasião de alguma perturbação no afazer que se ocupa do mundo é
possível a contemplação de algo simplesmente dado. Aí então, explica Heidegger (SZ, p.61), “abstendo-se
de todo produzir, manusear, etc., a ocupação se concentra no único modo ainda restante de ser-em, ou seja,
no simples fato de demorar-se junto a... Com base nesse modo de ser para o mundo, que só permite um
encontro com o ente em sua pura configuração (eidos) e como modo dessa maneira de ser, é que se torna
possível uma visualização explícita do que assim vem ao encontro. Essa visualização é sempre um
direcionamento para..., um encarar o ente simplesmente dado” (SZ, p.61).
119
afetado pela constatação de sua dependência em relação ao ser-aí e, conseqüentemente,
pela afirmação de sua finitude. Afinal, não é a possibilidade do acesso ao ente
(conhecimento) que está em jogo; não é isso. Heidegger aceita as leis de Newton como
verdadeiras, aceita a verdade do princípio de contradição. O que ele discute é o modo de
ser fundamental dessas “verdades” enquanto descoberta; um modo de ser que já havia sido
pressentido pela filosofia mais antiga, mas que acabou encoberta pela predominância do
conceito lógico de verdade, que, como Heidegger procurou mostrar, constitui-se num
desdobramento da verdade mais fundamental, não podendo prescindir dela.
Como já foi salientado em outros momentos, a discussão promovida em Ser e
Tempo acerca da verdade não visa produzir um novo conceito de verdade, ou um novo
sentido de verdade que venha se opor, ou mesmo substituir os conceitos de verdade
correntes. A verdade no modo da descoberta pretende apenas dar conta dos fundamentos
ontológico-existenciais das “verdades” do nível ôntico-existenciário. Essa distinção
garante e admite o sentido em que a verdade é empregada usualmente. E mesmo que a
elaboração dos fundamentos dessa verdade implique, como foi o caso, a indicação de sua
finitude, mesmo assim, dirá Heidegger, essa “limitação” não contém uma diminuição de
seu ser-verdadeiro.
211
Quer dizer, mesmo que se afirme que toda verdade é relativa ao ser-
aí e que disso se siga a afirmação da finitude da verdade, isso de modo algum restringe o
ser-verdadeiro das verdades colocadas, por exemplo, em nível lógico-semântico. O que
fica afetado é, sim, a pretensão de que essas verdades valham eternamente,
independentemente do ser-aí.
Assim, a negação da verdade absoluta não é para ser entendida como uma
forma de ceticismo. De modo algum Heidegger é um cético com relação á possibilidade da
verdade. Como veremos na seqüência, o que se verifica é, antes, um ataque ao ceticismo.
3.3 – A pressuposição da verdade
O que significa “pressupor” (voraussetzen)? Compreender algo como a base
(Grund) do ser de um outro ente. Uma tal compreensão dos entes em seus
nexos ontológicos somente é possível com base na abertura, ou seja, no ser-
211
SZ, p. 227.
120
descobridor do ser-aí. Pressupor “verdade” significa, pois, compreendê-la
como algo em função de que o ser-aí é.
212
Novamente, deve estar claro que se trata da verdade concebida
existencialmente, a verdade enquanto descoberta fundamental dos entes que tem lugar na
abertura do ser-aí. Não é, de modo algum, a verdade no sentido tradicional de
concordância que deve ser pressuposta.
É a discussão conduzida anteriormente, no capítulo I, acerca do caráter
transcendental da verdade que ganha agora maior amplitude. Na ocasião, a
transcendentalidade da verdade existencial (verdade fundante) foi posta com relação à
verdade lógico-semântica (verdade fundada): a verdade existencial, mais originária,
constitui-se como condição ontológico-existencial da verdade proposicional; esta
pressupõe aquela. Agora, a verdade existencial é posta como condição de possibilidade do
próprio ser-aí.
Quando, então, o filósofo fala que devemos pressupor a verdade, isso significa
que devemos pressupor o ser-no-mundo, a abertura e, nela, a descoberta dos entes que já
está sempre em curso. Aqui temos de ter em mente mais uma vez o sentido daquela
afirmação, já discutida anteriormente, de que “o ser-aí está na verdade”. Estar “na
verdade” é uma determinação ontológica do ente que tem a abertura como constituição
fundamental, visto que a abertura responde pelo fenômeno mais originário da verdade. Na
medida em que o ser-aí é, a verdade já aconteceu e continua a acontecer enquanto abertura
e, por isso, ela deve ser pressuposta por “nós”, os entes com o modo de ser do ser-aí.
“Nós” pressupomos verdade porque “nós”, sendo no modo de ser do ser-aí,
estamos na verdade. Nós não a pressupomos como algo “fora” ou “sobre” nós,
frente à qual nos comportamos junto com outros “valores”. Não somos nós que
pressupomos a “verdade”, mas é ela que torna ontologicamente possível que
nós sejamos de modo a “pressupor” alguma coisa. A verdade possibilita
pressuposições.
213
Essa transcrição sugere mais uma vez o caráter fundante da verdade enquanto
abertura. Se não há verdade, quer dizer, se não há a abertura de mundo desde a qual o ser-
aí se constitui como ente descobridor, então, também não há ser-aí e, consequentemente,
212
SZ, p. 228.
213
SZ, p.228.
121
não há “pressuposições”. Por isso, na medida em que existimos e que podemos fazer
pressuposições, devemos pressupor aquilo que está na base de nossa existência como ser-
no-mundo, devemos pressupor aquilo em função do que somos; devemos pressupor a
verdade, enquanto a abertura originária que nos determina em nosso modo de ser. Enfim,
“devemos ‘fazer’ a pressuposição da verdade porque ela já se ‘fez’ com o ser do ‘nós’”
214
.
Essa abordagem da verdade enquanto algo a ser pressuposto, enquanto
elemento fundante, fornece à Heidegger uma nova perspectiva de confronto com o
ceticismo. Se devemos pressupor a verdade, pois esta em seu sentido mais fundamental
constitui um modo essencial de nosso ser, então, a posição cética se atropela em sua
função. O duvidar do cético já é sempre e em cada caso uma possibilidade existencial,
fundada na abertura originária de mundo, propriamente indicada, por Heidegger, como a
verdade mais fundamental. Em relação à corriqueira objeção que é lançada aos céticos,
focalizando a contradição inerente a sua posição – negar a verdade em geral implica negar
também a verdade de sua própria posição (cética) – Heidegger dirá que ela fica no meio do
caminho. A formalidade de tal argumentação é eficaz para mostrar ao cético que ao manter
sua posição (ao negar a possibilidade da verdade) ele mesmo pressupõe a verdade (no
caso, a verdade de sua posição). Ela mostra que a proposta do cético revela, descobre uma
verdade. Mas só isso. Falta, segundo Heidegger
215
, mostrar por que isso é assim, qual é o
fundamento ontológico que sustenta esse todo argumentativo e, acima de tudo, falta
esclarecer o modo de ser da verdade, o sentido da pressuposição da verdade e a sua relação
ontológica com o ser-aí. Ainda, além disso, a objeção corriqueira dirigida aos céticos não
considera o fato de que, mesmo que o cético não se manifeste como tal, mesmo que
nenhum juízo seja emitido, mesmo assim já se pressupõe a verdade na medida em que o
ser-aí é.
216
O ponto de Heidegger é que, se a verdade é compreendida de modo adequado,
o problema do ceticismo nem chega a se constituir. Não se trata mais de refutar o
ceticismo ou provar a existência da verdade:
O cético, quando o é de fato, no modo da negação da verdade, não precisa ser
refutado. Na medida em que é e se compreendeu nesse ser, ele dissolve o ser-
214
SZ, p. 228.
215
SZ, p. 228.
216
SZ, p. 229.
122
aí e, com isso, a verdade, no desprezo do suicídio. A verdade não se deixa
provar em sua necessidade porque o ser-aí não pode ser colocado para si
mesmo à prova. Do mesmo modo que não se comprova que “verdades eternas”
se dão, não se comprova que “se dê” um cético “real” – no que acreditam
fundamentalmente todas as refutações do ceticismo, apesar do seu
propósito.
217
Note-se que os argumentos do filósofo não são exatamente contra o cético,
senão que contra a necessidade (e também a possibilidade) de refutá-lo. Bem entendida, a
própria postura filosófica, conduzida desde a analítica existencial, esvazia o problema. O
ceticismo assim como o dogmatismo apenas são significativos em face da suposição de
que a filosofia é capaz de postular alguma verdade absoluta. Nesse sentido, também a
possibilidade de caracterizar a filosofia ceticamente fica dependendo da legitimidade desta
em assumir, como sua norma e meta, a construção de conhecimentos de validade absoluta.
De qualquer modo, tal modelo filosófico está, para Heidegger, fora de propósito. Ele
entende que o conhecimento filosófico tem de tomar seu ponto de apoio na determinação
do sentido de suas relações com o mundo, sem perder a visão da “condicionalidade” da
interpretação, ou seja, sem perder de vista a estrutura prévia que lhe é subjacente. Em vista
desta “condicionalidade”, a idéia de um conhecimento absoluto, incondicionado, torna-se
uma fantasia: “A interpretação nunca é apreensão de um dado preliminar, isenta de
pressuposições”
218
. A idéia ingênua de uma apreensão da realidade em si, isenta de
preconceito, foi sepultada no momento em que Heidegger abriu mão da subjetividade
como marco último de fundamentação e em seu lugar introduziu o constructo ser-aí, com
todas as implicações histórico-existenciais que o termo implica. Desapareceu assim o
ponto de partida seguro e transparente, que motivou os modelos filosóficos tradicionais, e
surgiu, em seu lugar, um fundamento flutuante: o ser-no-mundo, enquanto indicativo da
contingência existencial.
Não há mais um lugar seguro para as interpretações filosóficas. A filosofia
avizinha-se agora com a inquietação; converte-se numa batalha contra a decadência na
tentadora e (contudo) ilusória segurança do mundo cotidiano. Não cabe à filosofia
apregoar certezas. Cabe-lhe, sim, suscitar incertezas. Em Heidegger’s concept of truth
219
,
217
SZ, p. 229.
218
SZ, p. 150.
219
Op. cit., p. 415.
123
Dahlstrom mostra que já na Lição de Verão de 1920
220
Heidegger se espantava com o
barulho filosófico que ainda era feito quando inesperadamente as pessoas descobriam que
a filosofia é incapaz de tornar-se um sistema ou de ser um sistema, seja de ciência ou de
visões de mundo. Na ocasião sua posição já era clara: a filosofia é destruição. (É essa
mesma idéia de filosofia que aparece em 1927, quando Heidegger fala, em Ser e Tempo,
de uma destruição da história da ontologia. Sabemos que tal destruição não tem o caráter
de eliminação negativa, senão que ela indica a gradual desconstrução dos modelos
filosóficos rumo aos pressupostos existenciais por eles esquecidos).
É importante que se perceba que há na filosofia heideggeriana muito mais que
uma mera discussão de velhos problemas. Claro, isto também está certo; são ainda os
velhos problemas da filosofia que o ocupam: o ser, o tempo, a realidade, a verdade. Mas o
fundamental é notar o modo completamente novo em que estes velhos problemas são
abordados agora. Heidegger introduz um perspectiva inédita para o fazer filosófico. Ele
inaugura um novo paradigma: o paradigma do mundo prático, da existência concreta.
Como alternativa aos paradigmas da consciência e da subjetividade, esse novo paradigma
inaugurado por Heidegger desloca o ponto de partida das investigações. Trata-se de pensar
as condições ontológicas existenciais, já sempre subjacentes aos modelos filosóficos
tradicionais, que se movem ao nível da subjetividade idealizada. Cumprindo essa tarefa,
muitos dos reincidentes problemas da filosofia desaparecem. É o caso, por exemplo, do
ceticismo, visto acima. Afinal, se concordamos com Heidegger no entendimento de que o
ceticismo, assim como o dogmatismo, só tem lugar num modelo filosófico que se propõe a
colocação e sustentação de verdades absolutas, de fato, tal posição não tem lugar em sua
filosofia. Daí a afirmação de que, do mesmo modo que não se comprova que “verdades
eternas” se dão, não se comprova que “se dê” um cético “real”.
221
Evidentemente que há
mais coisa por traz desta afirmação. Basta lembrar para isso toda a argumentação arrolada
acerca da impossibilidade das verdades eternas e, principalmente, acerca do modo de ser
mais básico da verdade, ligado ao ser-aí. Como vimos, é o nexo entre verdade, entendida
em seu modo fundamental enquanto descoberta, e o ser-aí que, em última instância,
consome o cético no “desprezo do suicídio”. A existência já implica, em cada caso, aquela
abertura originária que traz à luz (descobre) não apenas os entes intramundanos, mas o
220
Volume 59 das Obras Completas de Heidegger: Phänomenologie der Anschauung und dês Ausdrucks.
221
SZ, p. 229.
124
próprio existente em sua condição de ser-no-mundo. E na medida em que se identifica o
duvidar como um modo possível de ser-no-mundo, nele já está pressuposta a verdade
originária.
222
O alcance dado a este aspecto da pressuposição da verdade se mostra, de modo
ainda mais contundente, quando Heidegger afirma, já no finalzinho do § 44, a
cooriginariedade entre ser e verdade. Ele diz: “O ser – e não o ente – só ‘se dá’ porque a
verdade é. Ela só é na medida e enquanto o ser-aí é. Ser e verdade ‘são’, de modo
igualmente originário
223
. Com isso o filósofo retoma aquilo que ele, de modo
introdutório, apenas havia sugerido no início do § 44, ao dizer que “de há muito, a
filosofia correlacionou verdade e ser”
224
. (E como evidência dessa correlação ele cita
trechos escolhidos de Parmênides e Aristóteles, onde verdade indica as “coisas elas
mesmas”, o que se mostra, o ente na modalidade de sua descoberta.)
Heidegger está ciente das dificuldades que envolvem essa correlação entre ser
e verdade na filosofia, especialmente na filosofia moderna, que desde Leibniz mantém
uma fratura entre ontologia e conhecimento.
225
Juntar a questão da ontologia, do ser, e a
questão do conhecimento, da verdade, numa única dimensão, como problemas que se
aproximam e quase se justapõe, constitui o grande desafio da modernidade. O problema se
estabelece porque há, de um lado, a pretensão de realismo ontológico e, de outro, a
constatação da finitude do conhecimento, que conduz ao idealismo.
Sem dúvida, Kant deu um grande passo em direção da recomposição dessa
fratura, ao estabelecer os limites da Metafísica, da Ontologia: estabelecer os limites da
Metafísica significa fazer da própria questão metafísica uma questão do conhecimento.
Nessa manobra, o ontológico é transformado no transcendental: o ontológico é convertido
222
Stein, Seminário sobre a verdade, op. cit., p. 22: “...antes de pronunciarmos uma frase já estamos
praticamente no mundo, compreendendo o mundo. E estamos sobre o signo da compreensão do ser, que nós
não podemos elidir e eliminar. Nós estamos radicalmente engajados e comprometidos com essa maneira de
ser no mundo. Assim, para Heidegger, a questão cética pode ser eliminada pela raiz, na medida em que não
apenas o cético falando deveria ser levado ao silêncio, mas em que o cético nem mesmo pode falar, porque
no momento em que fala e se pronuncia ele nega a si mesmo, ele nega as condições fundamentais da verdade
em que ele mesmo se situa”.
223
SZ, p. 230.
224
SZ, p. 212.
225
Stein, Seminário sobre a verdade, op. cit., p. 287-8: “...se olharmos, por exemplo, para o momento chave
onde começamos a notar essa fratura entre ontologia e conhecimento, vamos perceber que isso se dá em
Leibniz, onde está mais explícita a abordagem das questões do conhecimento, que o empurram para a
questão da finitude. Mas, de outro lado, permanece a questão da ontologia, que novamente lhe coloca a
necessidade de uma teologia”.
125
na condição de possibilidade do idealismo, isto é, da questão do conhecimento.
226
Caracterizando seu idealismo de transcendental, Kant pretendia fugir da oposição
idealismo versus realismo. No entanto, tal oposição continuou implícita em sua teoria do
conhecimento (especialmente notável no que tange à fundamentação da proposição).
Heidegger vai perceber – e essa é sua grande cartada – que esse dualismo, essa
oposição entre idealismo e realismo, só pode ser definitivamente superada de modo a
reestabelecer mais uma vez o correlacionamento entre ontologia e conhecimento, entre ser
e verdade, na medida em que, abandonando a perspectiva da subjetividade moldada desde
a cisão sujeito-objeto, a investigação se voltar para a dimensão do ser-no-mundo. Aí,
então, em nível existencial, ontologia e teoria do conhecimento podem ser pensadas juntas,
porque aí o ser não é mais tomado como realidade e nem a verdade como concordância;
ser é “compreensão de ser” e verdade é “abertura”. Trata-se de ontologia fundamental e
verdade originária, ambas concebidas como modos de ser do ser-aí.
Uma melhor caracterização das diferenças entre os dois níveis de consideração
– o da existencialidade e o da subjetividade – pode ser conduzida desde o prisma da
diferença ontológica, que estabelece o ser como aquilo que determina o ente como ente,
como o ente já é sempre compreendido, em qualquer discussão que seja. Com base nessa
distinção, o ser dos entes não “é” em si mesmo um outro ente.
227
O ser tem a ver com os
critérios de determinação dos entes como tal. Toda e qualquer referência ao ente só é
possível porque o ser já foi de algum modo compreendido. “Nós nos movemos sempre
numa compreensão de ser”, diz Heidegger.
228
Essa questão da “compreensão do ser” é
decisiva na medida em que é posta a partir do ser-aí, enquanto modo prático de ser no
mundo. Na questão do ser-aí, de sua historicidade, de sua facticidade, dá-se um ponto de
partida absolutamente novo para a filosofia – sendo que, na expressão ser-aí, o “aí” tem de
ser acentuado não apenas como um lugar, mas como um modo de ser. O ser-aí é o seu aí,
quer dizer, enquanto compreensão de ser, ele abre um espaço, produz uma revelação, uma
abertura. E nisso começa a mostrar-se a correlação entre verdade e ser, que é, no fundo,
entre compreensão de ser e abertura. São fenômenos cooriginários, um está ligado ao outro
226
Cf. Stein, Seminário sobre a verdade, p. 291-2.
227
SZ, p. 6.
228
SZ, p. 5.
126
originariamente: a compreensão de ser produz a abertura e a abertura comporta o dar-se do
ser. Tudo isso na dimensão existencial.
Evidentemente que a recuperação dessa identidade entre ser e verdade não
seria possível ao nível lógico-semântico, em que tradicionalmente é pensado o problema
do conhecimento como um todo. Na medida em que se mantém presa a relação sujeito-
objeto, a discussão do conhecimento em nível lógico-semântico não permite pensar junto
os conceitos de ser e verdade, pois, como já indicamos, tal postura acaba produzindo uma
oposição entre realismo e idealismo. A recuperação dessa unidade entre ser e verdade é
possível apenas naquela dimensão anterior à cisão sujeito-objeto, ideal-real, com que
trabalham as teorias do conhecimento tradicionais. Ela é possível na dimensão concreta do
existir cotidiano, em que o ser-aí já sempre se movimenta no mundo significativo de suas
ocupações práticas, desde o qual as coisas surgem (na abertura) compreendidas, de algum
modo, em seu ser. É claro que mesmo aqui não se dá uma identidade absoluta, mas há
uma proximidade, há uma conexão.
Isso tudo, essa conexão entre ser e verdade em nível existencial, a
cooriginariedade de ambos, isso vem reforçar uma vez mais aquilo que anteriomente já foi
assinalado quanto à dependência, não apenas da verdade em relação ao ser-aí, mas
também quanto à dependência das próprias regiões ontológicas desde as quais se decide a
verdade. Para que ocorra algo como a verdade proposicional, no sentido específico da
concordância, da descoberta dos entes assim como eles são em si mesmos, é preciso que se
dê a compreensão do ser que os toma como algo determinado e é preciso, também, o
espaço significativo da abertura para que eles possam aparecer, serem descobertos.
Retomando a metáfora do lumen naturale, pode-se dizer agora que a fenômeno da verdade
originária, enquanto abertura, e o fenômeno da compreensão de ser constituem a
“luminosidade” que propriamente caracteriza a existência. Dela depende todo e qualquer
comportamento ôntico que possa ser estabelecido com o ente, inclusive, o comportamento
teórico, que o converte em objeto de conhecimento. Mas, por estar ligada a existência,
essa luminosidade é finita. E, na falta dela, não há mais ser, não há mais verdade.
127
CONCLUSÃO
A metafísica ocidental edificou-se sob o signo da luz. A possibilidade do
conhecimento sempre esteve na dependência de uma iluminação divina ou natural, que
assegurasse a transparência do ser em sua verdade. Heidegger, como vimos, também faz
uso da metáfora da luz, mas com um diferencial desconcertante. Recusando o caráter de
transparência impregnado à tradição metafísica, ele concebe a luminosidade em conexão
com o modo inconstante e indeterminado da existência. Todo seu esforço filosófico
consiste em mostrar as bases de um novo paradigma de pensamento, a partir de onde a
questão do ser e da verdade pode receber uma interpretação completamente distinta
daquela tradicional. Sua inovação está em pensar a relação entre compreensão e finitude,
conjugando o problema do ser com o tempo.
Compreensão e finitude são pensadas desde a constatação de que o ser-aí
nunca, simplesmente, é, mas só é enquanto ser-no-mundo, ou seja, ele já desde sempre se
encontra situado num mundo significativo, espontaneamente articulado a partir do
envolvimento efetivo em contextos práticos determinados. Tanto o ser quanto o tempo se
dão num compromisso prático do ser-aí com o ente disponível, com o instrumento, com o
artefato. Há, portanto, antes de qualquer teoria do conhecimento e antes de qualquer
subjetividade fundante, uma relação espontânea e reveladora com os entes; uma relação
que é de ordem prática, funcional, no sentido de um saber-como proceder. É essa relação
que Heidegger quer recuperar com o conceito de ser-no-mundo, na medida em que o ser-
no-mundo é perpassado por essa dimensão prática, que comporta a evidência de um prévio
“estar junto aos entes” anterior à separação sujeito-objeto das teorias do conhecimento.
Focalizando a condição de ser-no-mundo, assim caracterizada, pôde-se
demonstrar, no capítulo I, o movimento promovido por Heidegger em direção dos
fundamentos da consideração acerca do ser e da verdade. A discussão da verdade é
deslocada da proposição para o ser-no-mundo; e, aqui, ela já não é mais pensada enquanto
128
relação, enquanto medida que o sujeito pensante impõe às coisas. Assim como o ser,
quando pensada nesse nível de consideração, a verdade adquire um caráter fundamental.
Daí se falar em verdade mais originária. O adjetivo “originário” aponta precisamente para
essa diferença no nível de consideração da verdade. Com base nessa diferença,
principalmente, buscou-se, no capítulo III, rebater a acusação principal de Tugendhat de
que a discussão da verdade em Heidegger recusa a distinção essencial entre o dar-se
prévio de algo e o modo como ele é em si mesmo ou, equivalentemente, a distinção entre
sentido e verdade (antes de um juízo poder ser verificado, ele precisa ser significativo,
precisa ser apto para ser verdadeiro ou falso). Ao deixar de perceber o deslocamento no
nível de consideração da verdade, Tugendhat não teria percebido que a verdade originária
responde pelas condições de possibilidade da verdade e não, propriamente, pela verdade
assim como é pensada ao nível lógico-semântico, no sentido específico da concordância.
Heidegger está considerando a verdade como um fenômeno amplo, que tem de
ser perseguido desde o âmbito existencial da ocupação reveladora dos entes. Nesse
contexto, a verdade proposicional, pensada enquanto concordância, não é meramente
desconsiderada ou confiscada em seu sentido específico, como faz pensar Tugendhat,
senão que é vista como uma possibilidade que o fenômeno da verdade pode assumir em
função do comportamento comunicativo do ser-aí. Não há nada que justifique pensar que
esse modo derivado assumido pela verdade basta para caracterizar o fenômeno como um
todo. Tal pensamento reflete um preconceito. Um preconceito que impede de ver, para
além das determinações lógico-semânticas, o solo existencial que sustenta toda a trama
conceitual implicada na caracterização da verdade proposicional. Afinal, como notado ao
longo deste trabalho, as proposições não pairam no ar, elas são um produto das
articulações significativas, já sempre em curso com o ser-no-mundo.
Mesmo tendo elegido a proposição como seu ponto de orientação, a metafísica
ocidental nunca a considerou para além dos confins lógicos. Assim, permaneceu
completamente inexplorada a dimensão existencial que a analítica do ser-aí revelou como
fundamento último do fenômeno proposicional. Em função disso, também não se detectou
o fenômeno da verdade em toda sua amplitude, enquanto elemento ligado ao ser-aí. E
somente porque negligenciou este aspecto é que foi possível falar em verdades absolutas.
Mas, no momento em que a analítica existencial trouxe a tona os pressupostos ontológico-
existenciais da verdade, muitas implicações surgiram. A principal delas é a constatação de
129
que não há um fundamento transparente e seguro desde onde se possa justificar “verdades
absolutas” ou “verdades eternas”. Na medida em que não pode prescindir dos pressupostos
existenciais que acompanham o conhecimento nas mais diversas áreas, a verdade (toda e
qualquer verdade!) assume um caráter finito.
No geral, o estudo aqui realizado procurou levantar alguns aspectos centrais
desde os quais a análise heideggeriana da verdade pode ser vista, não como um nova teoria
da verdade, mas antes como uma problematização dos fundamentos ontológicos
pressupostos pelas teorias já existentes. Em vista disso é que não foi feito um trabalho
comparativo com os conceitos de verdade já existentes ou com as teorias da verdade
vigentes. O confronto com essas teorias seria especialmente positivo, caso Heidegger
estivesse apresentando uma teoria concorrente que viesse rivalizar com elas. Mas,
definitivamente, não é esse o caso. Quando, no § 44, tem lugar uma caracterização do
conceito tradicional de verdade, não é para depois confrontá-lo nem superá-lo, mas para, a
partir dele, orientar a investigação para uma dimensão mais fundamental. Feita esta
distinção, o que se segue é a caracterização da verdade aí nessa dimensão mais
fundamental, onde verdade já não é mais a mesma verdade proposicional – é verdade
originária, é verdade existencial, é verdade transcendental.
Os tópicos abordados nos três capítulos deste estudo são essenciais para uma
compreensão mais justa dos propósitos heideggerianos. Mas são apenas alguns poucos
tópicos, levantados desde uma perspectiva previamente delimitada. É evidente que muitos
outros aspectos podem e merecem ainda ser levantados. Muito esclarecedora seria, nesse
sentido, uma abordagem conduzida desde um diálogo com Kant ou, então, com Husserl.
Proveitosa seria, também, uma consideração mais direta acerca da conexão entre verdade e
temporalidade ou entre verdade e método (fenomenologia), aspectos pelos quais se passou
muito por alto nesta investigação.
Indo para além de Ser e Tempo, caberia analisar, ainda, as continuidades e
descontinuidades que marcam as duas distintas fases do pensamento heideggeriano.
Afinal, é sabido que a partir da crise do fim dos anos 20 o filósofo começa a olhar
criticamente para sua própria obra, reconhecendo, entre outras coisas, que a postura
filosófica assumida até então e apresentada sobremaneira em seu tratado de 1927 mantém-
se ainda muito próxima das teorias da subjetividade que ele se propunha combater. A
130
analítica existencial acabou por conceder o ser-aí tão poderoso quanto o sujeito de que
falava a tradição. É o ser-aí que compreende, que abre o espaço onde as coisas surgem,
que interpreta. No fundo, o ser-aí está apenas ocupando o lugar do sujeito, mesmo não
tendo mais a transparência, a absolutidade e a apodicidade com que o conceito foi
tradicionalmente pensado. Ao mesmo tempo em que percebe isso, Heidegger passa a
intensificar um aspecto que já estava presente em Ser e Tempo quando o ser-aí foi definido
como um geworfener Entwurf, como um projeto lançado. Quer dizer, há algo no ser-aí que
não depende dele, que escapa do seu controle: é a sua faticidade, a sua condição de estar já
sempre em um mundo determinado, numa época determinada. Esse aspecto ganha força e,
então, surge aquilo que (o “segundo”) Heidegger vai denominar de história do ser.
Essa percepção equivale àquilo que o próprio Heidegger chamou de Kehre, de
virada; processo pelo qual o ser-aí perde o lugar central enquanto o ente que produz a
clareira para a compreensão do ser e para o acontecer da verdade, por revelar-se
mergulhado sempre e em cada caso numa história do ser que o determina. Essa virada
desencadeou o segundo grande momento da obra de Heidegger, em que ele passa, de 1930
em diante, a abordar (interpretar) a história da filosofia enquanto épocas de manifestação
do ser. Dá-se, com isso, uma inversão no modelo de se fazer filosofia, na medida em que é
abandonada a perspectiva da filosofia transcendental, que ainda imperava em Ser e Tempo.
Apesar de seu propósito contrário, o que o filósofo havia feito em Ser e Tempo estava
ainda muito próximo de uma filosofia que quer o fundamento, que quer uma verdade
última. Com a problematização da história do ser ele reduz o projeto do ser-aí, colocando-
lhe um limite: não basta mais falar que o ser-aí compreende o ser no seu horizonte de
projeção e também se compreende a partir dele; há uma história da metafísica, uma
história do ser, que limita a compreensão. É preciso estar na posse da história da
metafísica para poder compreender o ser.
Para a questão da verdade, essa virada no pensamento de Heidegger trouxe
também algumas implicações – algumas grandes implicações, é preciso dizer. Já em 1930,
no ensaio Sobre a essência da verdade, onde se pode identificar os primeiros sinais da
virada, aparecem novos elementos, associados a discussão do tema, que não estavam
presentes na obra de 1927. No fundo, são novos termos para discutir questões já
levantadas no § 44, mas que o filósofo retoma de modo ainda mais radical, no sentido de
afastar de uma vez por todas a sombra da subjetividade que ainda reinava em Ser e Tempo.
131
Pode-se perceber, por exemplo, que o filósofo mantém o foco do confronto com a tradição
ao diferenciar entre verdade como propriedade de proposições e verdade como
fundamento, mas já não procede desde o nível da filosofia transcendental.
Nesse sentido, uma lava de questões poderiam ser levantadas e investigadas a
partir de um trabalho comparativo, não somente entre o § 44 e o ensaio Sobre a essência
da verdade, mas entre os muitos textos que ao longo do amadurecer filosófico de
Heidegger trataram da verdade: O que se modificou de uma fase para outra, de um texto
para o outro? Quais as novidades? O que permaneceu constante ao longo das
transformações?
Talvez no final se descobrisse que há muitas semelhanças entre os diferentes
textos, e que todos eles remetem àquela estrutura argumentativa inicial, que tomou forma
em Ser e Tempo. E mesmo Heidegger vai reconhecer, em determinado momento, que Ser
e Tempo foi “um caminho necessário”, mesmo que depois ele sugira seu abandono – uma
atitude que faz lembrar o aforismo de Wittgenstein ao final do Tractatus logico-
philosophicos, em que ele compara sua obra com uma escada que deve ser jogada fora
depois de utilizada. Mas algumas questões não são jamais abandonadas; são questões que
perpassam praticamente toda a obra do filósofo. É o caso da alétheia. Esse conceito grego
que impulsionou o jovem Heidegger em seu princípio filosófico, marcando decisivamente
a posição assumida em Ser e Tempo, fez-se constantemente tema para novas e variadas
interpretações. E como marca das novas interpretações que o conceito recebeu depois, há
de se destacar o seu progressivo afastamento do conceito de verdade, com o qual foi
relacionado no § 44.
Com a virada filosófica ocorrida no pensamento de Heidegger a alétheia
passou a ser pensada muito mais próxima à questão do ser. E então ele corrige a postura
assumida nos anos 20, constatando que, no fundo, a questão acerca da alétheia, do
desvelamento, não constitui ainda a questão da verdade. Sua autocrítica não nega a
interpretação da alétheia enquanto descoberta, não nega, por assim dizer, o fenômeno da
abertura e a sua implicância para a discussão da verdade em geral; nega, sim, a
equiparação dela com a “verdade”, assim como esta é concebida pela tradição filosófica.
Heidegger parece reconhecer que todo aquele universo da fundamentação escavado desde
132
o nome aletheia, afasta-se tanto do sentido semântico e do uso popular, comum de verdade
que já não lhe cabe mais tal denominação.
De qualquer modo, as reflexões conduzidas em Ser e Tempo acerca do
problema da verdade, ligadas ao nível da operacionalidade prática do ser-no-mundo,
abrem uma nova perspectiva de colocação da questão como um todo. Trata-se de encarar o
problema desde a sua base, levantar suas condições ontológico-existenciais de
possibilidade, que já são sempre também o a priori do universo lógico-semântico desde o
qual tradicionalmente é pensada a verdade, no sentido “específico” de concordância.
Mesmo que não valha a equiparação de verdade e abertura, é o problema da verdade que
está em jogo quando Heidegger descreve o modo de ser-no-mundo como abertura, como
“clareira”, como o Spielraum – “espaço de manobra” de possíveis verdades e inverdades
proposicionais.
133
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