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CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DE JUIZ DE FORA
O QUINTAL DE ZIRALDO: raiz da ficção
MÁRCIA ASEDIAS MOURA
Juiz de Fora
2005
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CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DE JUIZ DE FORA
O QUINTAL DE ZIRALDO: raiz da ficção
por
MÁRCIA ASEDIAS MOURA
Dissertação de Mestrado apresentada
à Comissão de Coordenação do
Programa de Pós Graduação do
Centro de Ensino Superior de Juiz de
Fora. Mestrado em Letras. Área de
concentração: Literatura Brasileira.
Orientadora Acadêmica: Professora
Doutora Francis Paulina Lopes da
Silva.
Juiz de Fora
2005
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EXAME DE DISSERTAÇÃO
MOURA, Márcia Asedias. O QUINTAL DE
ZIRALDO: raiz da ficção. Dissertação de
Mestrado em Letras, área de concentração:
Literatura Brasileira, apresentada ao Centro de
Ensino Superior de Juiz de Fora. Juiz de Fora,
2005.
BANCA EXAMINADORA
Professora Doutora Francis Paulina Lopes da Silva
Orientadora Acadêmica
Professor Doutor
Professor Doutor William Valentine Redmond
Examinada a Dissertação
Conceito: ____________
Juiz de Fora, ______ de ___________ de 2005.
AGRADECIMENTOS
A Deus, pela luz divinal.
À Professora Doutora Francis Paulina Lopes da Silva, orientadora
deste trabalho e minha madrinha acadêmica, pela presença amiga
e pelos valiosos conhecimentos.
Aos meus professores, pela extraordinária contribuição com a
educação deste país: Eliane Vasconcellos Leitão, Maria de Lourdes
Abreu de Oliveira, Nicea Helena de Almeida Nogueira, Thereza da
Conceição Apparecida Domingues, Therezinha Mucci Xavier,
William Valentine Redmond e em especial, Francis Paulina Lopes
da Silva, pela força e amor ao trabalho.
À Leda, Lucas e Alice, testemunhos de amizade.
Aos meus colegas de curso, parceiros desta caminhada.
À coordenadora do curso de Letras do UNEC, Maria da Glória de
Sá, a Irmã Denise, pela acolhida e entusiasmo.
À Marta Ferreira Lúcio e ao Salatiel, por ter cedido, gentilmente, o
material de trabalho.
Á Escola Estadual Moacyr de Mattos, pelo apoio.
À Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais, pela
concessão do afastamento.
As amigas, Sileida, Sandra, Karina e Fran, pela compreensão.
DEDICATÓRIA
À memória de meu pai, Alaôr, por mostrar-me a beleza da aurora do dia,
incentivador deste trabalho.
À minha mãe, Sirlene (In memoriam), pela sabedoria.
Aos meus irmãos, Marcus (In memoriam), Sérgio, Júlio e Pablo,
presença constante em minha vida.
Às minhas filhas, Isadora e Isabela, pela admiração e amor.
Ao escritor Ziraldo, pela sensibilidade poética.
“O passado como objeto de narração pertence à memória. O passado como
tema lírico é um tesouro de recordação”
(Emil Staiger).
“Há um tempo de vida que dispensa a fotografia e só se registra com a palavra
e se pereniza, apenas, se gravamos, indelével, num texto escrito”
(Ziraldo).
“Espírito de Minas, baixe em mim e, sobre a confusão desta cidade, lance seu
claro raio, capaz de ordenar meu pensamento e orientar minhas palavras”
(Ziraldo).
RESUMO
Esta dissertação pretende analisar o percurso da
memória da infância de Ziraldo Alves Pinto, vivida
na cidade mineira de Caratinga, que se converte,
na sua obra literária, em realização poética de
elevado lirismo. Focalizam-se, na transição do
século XX para o XXI, mudanças significativas no
contexto da sociedade brasileira e internacional, a
partir das quais, assistiu-se ao surgimento do
sujeito definido como pós-moderno, fragmentado,
voltado para o seu mundo interior. Identifica-se,
na leitura de Ziraldo, o sujeito pós-moderno que
busca, na insistência em resgatar o tempo
perdido, a fixação de uma identidade marcada
pelo passado e o lugar de origem. Em Caratinga,
o autor se estabeleceu primeiro, criou suas raízes
afetivas e culturais, junto à família, a escola e a
sociedade. À luz desse tempo e espaço da
memória, este estudo apresenta a criação fictícia
da literatura infanto-juvenil e de crônicas de
Ziraldo, como espelho da sua produção textual,
explorando-se a linguagem e o pensamento do
autor, como sujeito/cidadão consciente da missão
do escritor, na leitura crítica da sociedade.
APRESENTAÇÃO
A palestra ministrada pela Professora Doutora Francis Paulina Lopes da
Silva, no III congresso de Letras do UNEC - Centro Universitário de Caratinga,
em 2003, despertou-me o desejo de ingressar no Curso de Mestrado em Letras
– Literatura Brasileira no Ces-JF, Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora.
As aulas ministradas pelos professores do CES-JF, especialmente, das
disciplinas Cultura e Identidade e Arquivos Literários, ministradas
respectivamente, pelas Professoras Doutoras Francis Paulona Lopes da Silva e
Eliane Vasconcelos Leitão e mais as reuniões do grupo de estudo MINLIT -
Minas Literária despertaram-me o desejo de aprofundar o estudo sobre a obra
dos autores radicados em Minas e entorno para compreender o universo do
escritor e sua colaboração na construção da identidade cultural brasileira.
Revirando, na casa dos meus pais, gavetas em busca de fotos ou
documentos antigos, deparei-me com uma foto, datada de junho de 2002. Era
do meu falecido pai, Alaôr Correa de Moura, abraçado à duas ilustres
personalidade da cidade de Caratinga. Izac Veriano Botelho, filho de Oscalina
Rosa da Luz , um talentoso cantador de bolero na boemia da cidade. A outra
personalidade era o já conhecidíssimo escritor Ziraldo Alves Pinto.
Não sei quanto tempo fiquei olhando àquela foto (Cf. anexo 8.2).
Lembrei-me de outros tempos, do passado escondido por trás da imagem da
foto. Lembrei dos ensinamentos do meu pai, dos livros de Faroeste que lia para
mim, das novidades que trazia do Restaurante Casarão, da Emi Batista, onde
ele e o Izac trabalhavam. Era ali que as pessoas iam se divertir.
A vida social chegava-me pela contagiante alegria do meu pai,
recontando as piadas, ensinando uma nova receita e contando os casos das
pessoas que apareciam no restaurante.
As sensações gostosas dessas recordações projetaram-me a entender o
que é identidade cultural e como é importante preservar a memória. A foto não
registrou apenas o momento presente, subjazem dela a história de vida de dois
artistas e de um ser anônimo que fazem a história de Caratinga.
Assim nasceu o desejo de registrar as memórias literárias de Ziraldo em O
quintal de Ziraldo: raiz da ficção.
Ziraldo é parte da nossa história cultural.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 10
I DESENRAIZANDO A IDENTIDADE CULTURAL DE ZIRALDO...................... 14
I.1 O Menino do milênio.......................................................................................... 15
I.2 Ziraldo: o desenraizado da pós-modernidade.............................................. 22
I.3 Ziraldo: a aquarela lírica................................................................................... 30
II REVISITANDO CARATINGA: “comunidade imaginada” entre o real e o
ficcional.......................................................................................................................... 39
II.1 O cronotopo do artista..................................................................................... 41
I.2 O discurso feminino – código familiar e raiz cultural................................... 48
II.3 A guardiã dos costumes, mecenas da arte ................................................. 51
II.4 The Supermãe entre a ficção e realidade..................................................... 55
II.5 A Mata do Fundão: espaço da vadiagem .................................................... 57
III. QUINTAL DE ZIRALDO: RAIZ DA FICÇÃO?................................................... 62
III.1 As crônicas no Brasil...................................................................................... 63
III.2 Crônica de Ziraldo: conversa de cozinha.................................................... 69
III.3 Resquícios de causos nas crônicas de Ziraldo.......................................... 76
IV. LAPSOS DA MEMÓRIA: ARTESANATO NO TEXTO-FICÇÃO.................... 87
IV.1 A crônica, artesanato da memória............................................................... 88
IV.2 O texto infantil, mosaico de recordações ................................................... 91
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................... 100
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA............................................................................. 102
ANEXOS ..................................................................................................................... 108
O PRANTO E O PRATO .............................................................................................. 8
10
INTRODUÇÃO
Este estudo, fundamentado na vida e obra de Ziraldo Alves Pinto,
apresenta uma leitura da identidade cultural desse escritor mineiro, nascido em
Caratinga, residindo no Rio de Janeiro.
Dentre as múltiplas atividades que Ziraldo desenvolve, destacam-se a
literatura infantil, os desenhos de humor, as histórias em quadrinhos, os
cartazes, as peças teatrais e as crônicas. Nessas obras, nota-se a referência
constante a pessoas com as quais o autor convive ou conviveu e também está
sempre presente a paisagem de Caratinga. Em sua obra, as personagens, o
tempo e o espaço são transportados da realidade para a ficção como se a
distância rompessem os limites estabelecidos entre o sonho e a realidade. O
autor estabelece um discurso muito íntimo com a persona/personagem,
utilizando o texto escrito como canal para não perder o vínculo com suas
raízes, sua identidade. O tom de intimidade assemelha-se à conversa de
cozinha, de prosa de quintal, no fundo das casas vizinhas, no interior mineiro.
Esta é a lembrança mais cara que sua obra desnuda.
Essa busca da simplicidade, do lugar tranqüilo, do campo virou hábito de
grande parte dos brasileiros. Quantas pessoas saem de seus apartamentos
nos grandes centros urbanos e vão para o campo, fugindo da rotina
estressante, à procura de repouso e paz! Assim também, é no seu quintal, a
região de Caratinga, cidade das palmeiras, que Ziraldo reconstrói suas
reminiscências e reencontra sua raiz, pela ficção.
Entre 1932 a 1952, Ziraldo viveu a infância e mocidade na região de
Caratinga. Sua obra literária infantil, juvenil e as crônicas apresentam
características significativas desse período. Caratinga se mostra na escritura
ziraldiana como o espaço de intimidade e aconchego, transforma-se no quintal
de recordações da mãe, do pai, das tias, dos tios, dos avós, dos professores,
dos amigos e seres anônimos que fizeram parte do microcosmo do artista,
nesse período.
11
Este estudo se propõe analisar a importância desses seres reais, raiz da
criação do escritor, investigando como ultrapassaram as fronteiras de Minas e
se universalizaram em seres ficcionais na escritura ziraldiana e ressaltar a
importância do regionalismo na construção da identidade cultural do povo
brasileiro.
Ler uma obra ficcional, como a de Ziraldo, percorrer o tempo e espaço
de sua narrativa, exige que se atente para elementos marcantes em sua
produção literária, como recordações de um tempo e de um espaço em que
viveu o artista. É importante que se investigue a interferência da memória do
autor em sua escritura, buscando reconstruir o passado, como forma de
inspiração para a criação literária.
A presente dissertação vincula-se à linha de pesquisa “Literatura de
Minas: o regional e o universal”, do Programa de Mestrado em Letras, área de
concentração Literatura Brasileira, do Centro de Ensino Superior de Juiz de
Fora. As discussões do grupo de pesquisa MINLIT – Minas Literária – do
CES/JF suscitaram o interesse por estudar este autor mineiro, considerando-se
a importância de se conhecer melhor e divulgar a obra produzidas por autores
nascidos ou radicados no estado de Minas Gerais.
O estudo da literatura infantil e das crônicas de Ziraldo trata da realidade
cotidiana do culo XX e XXI, período marcado por grandes transformações
políticas, sociais e econômicas no cenário nacional e internacional. Esse
escritor, nascido na Zona da Mata, embora conhecido além das fronteiras
nacionais, mantém a continuidade da tradição cultural de Minas, perpetua, por
suas obras, tradições e costumes mineiros e contribui na construção da
identidade de uma literatura verdadeiramente nacional.
Esse estudo pauta-se na produção literária infanto-juvenil e em crônicas
de Ziraldo, especificamente, nas obras Menino maluquinho (1980), Flicts
(1969), Outro como eu daqui a mil anos (1999), Os Meninos Morenos
(2004), Uma professora muito maluquinha (1995), Vovó delícia (1997), The
Supermãe (1969), Coleção ABZ (1994), Todo Pererê (2003. v. 1 e 2), e em
crônicas publicadas no jornal Estado de Minas, de 2002 a 2005.
12
No capítulo I, intitulado Desenraizando a identidade cultural de Ziraldo,
perseguindo-se a origem, a raiz cultural de Ziraldo, apresenta-se uma análise
do sujeito pós-moderno, verificando-se, na escritura desse autor,
características do sujeito fragmentado, atento aos avanços da tecnologia, da
era da informação, plugado ao mundo. Esse sujeito, embora imerso num
mundo globalizado, busca individualizar-se no compartimento do memória, seu
segundo lar. Tem às mãos os recursos da tecnologia digital, da era da
informação. No entanto, ele se volta para o seu interior e encontra na memória
o espaço das recordações dos momentos vividos com a família e o grupo de
amigos, com quem divide angústias, momentos felizes, dúvidas e inquietações
do mundo. É a memória familiar e do grupo que lhe dá a inteireza, que junta os
fragmentos perdidos nos lapsos da memória e o soergue. Assim, o escritor
recorre ao registro literário, na tentativa de perpetuar os momentos recordados
que lhe foram significativos, para se identificar e se reconhecer no convívio
familiar e do grupo. Ainda neste primeiro capítulo, apresenta-se a fase lírica de
Ziraldo, artesão das palavras, explorando-se, o lirismo presente em cada uma
de suas atividades artísticas.
No capítulo II, Revisitando Caratinga: “comunidade imaginada” entre o
real e ficcional, apresenta-se o Ziraldo, em seu olhar de flâneur sobre a
Caratinga do tempo de 1932 a 1952. Esse foi o tempo em que o autor viveu de
fato na cidade, atrelado às modificações do tempo e da história. Nessa leitura,
enfocando-se a importância da memória e do esquecimento na construção da
identidade cultural de um povo, tratam-se das raízes culturais provindas dos
ensinamentos materno e paterno, presentes na obra de Ziraldo, que une ficção
e realidade.
No capítulo III, ao se questionar: Minas: o quintal de Ziraldo?, apresenta-
se um breve estudo sobre a crônica no Brasil, destacando-se mudanças
significativas nesse gênero, desde a Carta de Caminha, até os nossos dias. As
crônicas de Ziraldo confirmam que Caratinga é o espaço sempre revisitado,
onde o autor busca a matéria de sua ficção. Caratinga representa o quintal, no
qual os mais íntimos sentimentos afloram, culminando na escrita poética dos
fatos vividos no tempo e no espaço rememorados. Aspectos da mineiridade
13
permeiam suas crônicas, revelando lições do cotidiano: as lições familiares, a
lembrança dos parentes, professores e amigos; a cultura regional e flagrantes
da paisagem mineira.
Residir e trabalhar no Rio de Janeiro contribuiu para dar um tom
inusitado à produção artístico-literária de Ziraldo, mas acredita-se que o
ambiente rememorado é o elemento principal, sempre presente na criação do
artista.
Enfim, pretende-se ressaltar, neste trabalho, o mérito de Ziraldo como
escritor da literatura infantil, juvenil e grande cronista. O autor assim criou um
estilo bem individual. Homem culto, conhecedor de outras culturas, além da
brasileira, revela a preocupação com o cidadão, a impaciência diante dos
problemas brasileiros, na educação, saúde, na denúncia à pobreza, na
solidariedade e cordialidade, na insistência em um regionalismo de raiz, na
linguagem incisiva, na preocupação em flagrar fatos do tempo vivido em
Caratinga e rememorá-los na sua escritura, na ênfase aos costumes mineiros,
ao ensinamento familiar, à preocupação com a ética e a moral, com a
educação e a política no país.
14
I DESENRAIZANDO A IDENTIDADE CULTURAL DE ZIRALDO
“Uma lembrança é diamante bruto
que precisa ser lapidado pelo espírito”
(Ecléa Bosi).
Em 1999, Ziraldo escreveu a obra infanto-juvenil, Outro como eu
daqui a mil anos, na qual enfatiza o privilégio das pessoas que puderam
assistir à passagem de 1999 para o ano 2000. Nesse livro, ele se refere às
modificações que marcaram a humanidade no segundo milênio e manifesta
seu desejo de que sua obra possa ser lida pelas próximas gerações. Dessa
forma, deixa em seu livro o registro dos dois mil anos da Era Cristã para as
próximas gerações conhecerem os mistérios, as profecias, os medos, as
dúvidas, as inquietações, as deficiências e as expectativas de se entrar no
terceiro milênio.
O medo e a incerteza, a sensação de não se identificar no outro,
provocou um retalhamento do pensamento pós-moderno. O homem perdeu
suas raízes, saiu do espaço da vivência com a família, parentes e amigos.
Enfrentou nova vida, outros lugares, mas a distância não apagou o tempo da
memória. Fragilizou-se e foi buscar alento e conforto nas memórias do
passado. Dessa forma, a completude de homem se dará nas lembranças do
tempo em que as pessoas se importavam umas com as outras, no tempo
guardado nas profundezas da memória onde quem tem acesso é o
indivíduo. ele sabe identificar e comparar o tempo passado com o momento
em que atravessa a humanidade. Buscar a sua identidade é completar-se e se
sentir novamente acarinhado e protegido. A lembrança do passado, da
infância, é tema constante na obra de Ziraldo. É a explosão lírica que subjaz a
sua escritura.
15
I.1 O Menino do milênio
A obra Outro Como eu só daqui a mil anos mostra a visão de Ziraldo a
respeito do indivíduo contemporâneo e revela a responsabilidade do “narrador”
na construção do seu instrumento de trabalho – a palavra.
Segundo Bakhtin, a palavra é “o signo se torna à arena onde se
desenvolve a luta de classes” (BAKHTIN, 1979, p. 33). A palavra é o signo
ideológico por excelência, que reflete o contexto social dos grupos, seus
desejos, suas angústias, medos, alegrias, tristezas, lutas de classes. É na
interação com o outro que se processa a comunicação. “A palavra revela-se,
no momento de sua expressão, como produto de interação viva das forças
sociais” (Ibidem, p. 52). Para Ziraldo, ela é “lavra e pá”, expressão por ele
empregada, para definir o nome de sua revista, Palavra, que pretendia tratar
de assuntos fora do eixo Rio e São Paulo. Os exemplares dessa revista,
entretanto, por questões financeiras, circularam apenas dois anos, entre 1999 e
2001, exclusivamente, focalizando assuntos relacionados a Minas Gerais:
Porque é da palavra que nascem todas as idéias do homem no princípio
era verbo e, (...), a palavra é o átomo da alma. (...) a palavra Palavra tem
o dom mágico de conter nela mesma – por linda coincidência e sem
qualquer implicação semântica a matéria-prima e seu instrumento.
Somente com a palavra pode-se mover a palavra, tirar dela sua essência,
tocar o próprio coração da palavra; já que é ela é lavra, que ela é
(PINTO, 1999, p. 08).
Assim, o instrumento de produção de Ziraldo é a palavra. Com ela, ele
desvela a “ideológica do cotidiano”, que, segundo Bakhtin, define “a totalidade
de atividade mental centrada sobre a vida do cotidiano” (BAKHTIN, 1979,
p.104). Ziraldo absorve, em sua consciência individual, a totalidade de temas
oriundos do contexto social a que pertence, para revelá-lo pela expressão
artística. “A palavra vai à palavra” (Ibidem, p. 133). É no dizer do outro que está
a âncora do discurso do autor e o no seu próprio individualismo. Segundo
Bakhtin,
Aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo, privado
da palavra, mas ao contrário, cheio de palavras interiores. Toda a sua
16
atividade mental, o que se pode chamar de o “fundo perceptivo”, é
mediatizado para ele pelo discurso apreendido do exterior (Ibidem, p.133).
A expressão da arte está na enunciação do discurso do outro. Naquilo
que se apreende do outro. Mas quem é esse outro? Pode-se responder a essa
pergunta aproveitando o título da obra de Ziraldo: Outro como eu daqui a
mil anos. O “eu” refere-se às crianças que viram a passagem do segundo para
o terceiro milênio; e o “outro”, às futuras crianças que assistirão à passagem do
terceiro para o quarto milênio. Esse título retoma a fala, do Menino Maluquinho
ao narrador da obra. Concomitante à fala do Menino Maluquinho, está o
discurso do narrador, assumindo subjetivamente esse mesmo eu:
“Como será que serão
os meninos e meninas
do Milênio que virá
depois
que este mesmo Milênio
passar?
Vão chorar se os magoarem?
Vão sorrir se se alegrarem?
Vão sofrer se desprezados?
(...) ” (PINTO, 1999a, p. 68).
Daí a importância do papel do narrador-autor, vozes que se misturam,
no processo de sua produção artística. É o que afirma Bakhtin:
O discurso citado é que começa a dissolver, por assim dizer, o contexto
narrativo. Esse último perde a grande objetividade que lhe é normalmente
inerente em relação ao discurso citado; nessas condições, o contexto
narrativo começa a ser percebido – e mesmo a reconhecer-se – como
subjetivo, como fala de “outra pessoa”. Nas obras literárias, isso é muitas
vezes composicionalmente expresso pelo aparecimento de um narrador que
substitui o autor propriamente dito. O discurso do narrador é tão
individualizado, tão “colorido” e tão desprovido de autoritarismo ideológico
como o discurso das personagens (1979, p.137).
O discurso do narrador, na obra Outro como eu só daqui a mil anos,
ganha a linguagem do tão conhecido “Menino Maluquinho” Mediado pela
linguagem infantil e a linguagem ideológica do narrador, tem-se um discurso
intencional que visa à aceitação do público infantil e à do público que
disponibiliza os recursos econômicos para retirar as obras das prateleiras das
livrarias e levá-las a casa. São responsáveis por esses deslocamentos das
17
obras as instituições governamentais e familiares (os sistemas de educação, as
escolas, os professores e os pais). No fragmento abaixo, observa-se a mistura
de vozes do narrador e da personagem:
“Atenção!
Este é um livro
pra se guardar por mil anos!”
Agora, essa é a fala
do Menino Maluquinho
pra parte esta parte do livro.
Ele queria tanto
que este fosse um livro assim
(desses que duram séculos),
só pra poder contar
– pro menino que, como ele,
um dia viverá
Um momento igual a este –
Como é que a gente era (PINTO, 1999a, p. 50).
Seria destoante o narrador assumir a posição do verdadeiro eu do autor.
Identificar essa diferença é distinguir, conforme Helena H. Nagamine Brandão,
as funções do sujeito falante em:
– locutor: é aquele que se representa como eu no discurso;
– enunciador: é a perpectiva que esse eu constrói;
– autor: é a função social que esse eu assume enquanto produtor da
linguagem. O autor é, dentre as dimensões enunciativas do sujeito, a que
está mais determinada pela exterioridade (contexto sócio-histórico) e mais
afetada pelas exigências da coerência, não-contradição, responsabilidade
(S.d, p. 67).
É o princípio da responsabilidade que indica o compromisso do autor
com quem vai receber seu texto. Indubitavelmente, o eu do autor não existirá
para sempre, mas seus múltiplos “eus” alcançarão ecos, ao se abrir a página
de seu livro em outro tempo e talvez outro lugar. Assim, a perpetuação da obra
e a preocupação com o tempo ecoam da leitura do seguinte fragmento:
Vai demorar muito tempo,
Muito, muito tempo mesmo!
Mais mil anos de História,
Mil perguntas sem respostas...
Quantos anjos, quanto anúncio,
Quantos papas e Cruzadas,
Quanta guerra, peste, dores,
Curas, santos, descobertas,
18
Quantos mares, quantos sustos?
(...)
palavras, líderes, guias,
quantos supercondutores,
astronautas, navegantes
e estações espaciais?
Quanta imagem,
Quantos símbolos,
Quantos reis, valetes,
Damas, quanta
Fome, pratos, garfos,
Quantos tiros, quanta paz... (PINTO, 1999a, p. 40)
Predominam nessa citação os versos de redondilha maior,
característicos da poesia medieval e do Romantismo. Na apresentação visual
do texto, além da ilustração, a distribuição textual não ocupa a extensão da
folha, como ocorre nos romances, contos, fábulas, ou crônicas em que se a
impressão do texto da margem esquerda para a direita, como na poesia, sendo
utilizada apenas uma parte da página:
E há mais de mil razões
Para comemoração
De fato tão importante:
Tudo, no mundo inteiro,
Jogos, negócios, festas,
Compromissos, convenções,
Encontros, apontamentos,
Bugs, navegações,
Vôos, viagens, juros,
Juras e desencontros,
Tudo, no mundo inteiro,
Depende do Calendário
que está na sua Folhinha.
Prá nós, então, que vivemos
Neste lado aqui da terra
(que se chama Ocidente),
meus Deus, como é importante
saber o dia em que estamos...
Se você está lendo
Este livro
E o ano que está lá fora
Começa com o número 1,
Você ainda es
No século XX
E no Segundo Milênio (Ibidem, p. 6-7).
Nota-se no livro, o autor onisciente, em terceira pessoa, o autor-
observador, segundo observa Alfredo Leme Coelho Carvalho, é aquele que
tem sua onisciência limitada à mente de uma personagem, o principal. As
19
outras personagens que compõem a narrativa o descritas pelo método do
autor-observador. Isso acontece em narrativas curtas (Cf. 1981, p. 06).
Em parte, pode-se apropriar do ensinamento de Carvalho, porque em
Outro como eu daqui a mil anos uma característica apresentada nessa
obra é o número restrito de personagens. Aparecem apenas dois: o “Menino
Maluquinho”, personagem principal, e o narrador-observador. A história se
mostra pela mistura do diálogo entre esses interlocutores, é segundo Emil
Staiger “o um-no-outro” (STAIGER, 1975, p. 60), não se sabe se o menino está
no autor ou se o autor está no menino. Contudo, é o autor-narrador que
comanda a ação, como se fossem marionetes conduzidas para um ponto certo
da narrativa. É, segundo Massaud Moisés, "um autêntico paradigma da 'arte do
implícito', de que a autor é mestre consumado. A arte do implícito pressupõe
que o eu do narrador esteja presente mesmo quando a narrativa está situada
na terceira pessoa" (1997, p. 33).
O "eu" de Ziraldo ganha voz quando ele assume a posição de também
personagem da narrativa, personagem implícito, que tudo sabe, tudo vê, tudo
sente. está o autor na tessitura do texto, transferindo à personagem as
impressões subjetivas da vida cotidiana. A personagem não a vê, mas o leitor,
sim, como bem exemplifica o fragmento:
2000 tem jeito de porto
Onde ancoram as profecias.
2000 é Coisa Distinta,
2000 é o Novo e se abre
como porta no Templo
em que o que importa é a porta
muito mais o que está dentro,
embora se guarde ali
os sonhos de Nostradamus
seus sustos e seus presságios –
e mais mil anos de espera:
o fim que não vai chegar
com as bestas do Apocalipse;
2000 tem olhos de Ogro
– três olhos feito de zeros -,
sua exata construção.
Eles são como faróis
Que se acendem pro mistério
– a pura fascinação –,
que para nos são certezas
de participaremos
de uma viagem no Tempo (PINTO, 1999a, p. 25).
20
O poético visualiza-se pelo fluxo da consciência do Menino Maluquinho
que transfere à narrativa sua preocupação com o futuro pela impressão que se
tem dos fatos vividos no passado, é que “O passado como objeto de narração
pertence à memória. O passado como tema lírico é um tesouro de
recordações” (STAIGER, 1975, p. 55).
Subjacente ao texto está a ironia ziraldiana, revelada na fala do Menino
Maluquinho:
E programa de tevê?
Será que vai ter?
(Com as moças
mostrando a bunda
pras criancinhas na sala?) (PINTO,1999a, p. 68).
Esse diálogo bem-humorado vai pouco a pouco, com leveza e
criatividade, informar a diferença entre tempo e espaço, a origem da Era Cristã
e do Calendário Gregoriano, da contagem das cadas e a confusão que esse
fato gerou e ainda gera nas pessoas que vivem no terceiro milênio e ainda
apresenta uma comparação entre Jesus Cristo e a personagem Menino
Maluquinho:
De uma coisa estou certo:
Quando papais e mamães
Chegarem ao Quarto Milênio
Serão – de novo pra sempre –
Papais e mamães. Espero.
E sejam de que Era forem
E estejam comemorando outros anos, outros séculos,
Sei que eles vão querer
- pois não muda nunca –
que os seus meninos
- e suas meninas, também
sejam muito parecidos
(mas bem parecidos, mesmo!)
com o menino mais antigo
dos Milênios já vividos
( e aqui tão mencionado,
como se viu – e se vê):
para uns, Jesus Cristinho,
para os íntimos, J.C. (PINTO, 1999a, p. 78)
Em entrevista à revista Marie Claire, em junho de 2005, Ziraldo fala
sobre sua fonte de inspiração:
21
Tom Jobim costumava dizer que a sua inspiração era a encomenda. A
minha também, guardada as devidas proporções entre Tom e eu. Pela
natureza das coisas que faço, acho que sou mais um artesão do que um
artista. Preciso de arte para me expressar e sei me expressar através da
arte. A minha arte tem uma função. Eu nunca seria um pintor, que fica
conceituando, que pinta pela pintura... A minha arte é a minha maneira de
conversar com os outros (Marie Claire. Jun. 2005, p. 49).
Ziraldo Alves Pinto nasceu em Caratinga, onde viveu a a mocidade,
morou em Belo Horizonte, atualmente, reside no Rio de Janeiro. Desempenha
várias atividades: é cartunista, jornalista, cronista, cartazista, desenhista, pintor,
chargista, escritor; destacando-se como escritor da literatura infantil. Conhecido
internacionalmente, sua obra foi traduzida para vários idiomas, transformada
em peça teatral e filme, histórias em quadrinhos adaptada como seriado na TV,
televisionada pela emissora TVE. Faz palestra sobre leitura e comerciais de
TV, foi selo de Natal. Em 1980, alcançou o recorde de venda do livro O Menino
Maluquinho, na Bienal do Livro, em São Paulo. Foi homenageado por várias
escolas de ensino fundamental a ensino superior, foi tema da escola de samba
Nenê da Vila Matilde, em São Paulo, no carnaval de 2003. Suas personagens
circulam pelo parque temático Ziralmundo, em Brasília. No dia 24 de junho de
2003, uma monumento do Menino Maluquinho foi erguido para a comemoração
dos 156 anos da cidade natal. Ziraldo adora cantar e seu maior sonho é gravar
um CD de boleros.
Ziraldo sempre produziu muito e aos 73 anos de idade, continua
exercendo suas atividades com mais vigor que antes. Não diminuiu a
inquietação e a alegria frente aos conflitos da humanidade, quer "abraçar o
mundo com as pernas" (CAMPEDELLI; ABDALA JR, 1982, p. 4). Seu vigor
talvez esteja justamente nas várias atividades que exerce: “eu topo tudo,
trezentas coisas ao mesmo tempo. E quando tenho uma coisa pra fazer fico
numa euforia igual à da droga" (Ibidem).
Pode-se definir Ziraldo como o sujeito da pós-modernidade. O homem
que se multiplica, que recebe todas as incertezas do seu milênio - a era da
informação, os avanços tecnológicos, a correria do dia-a-dia, a falta de tempo
para dedicar à família e amigos. Assim, o autor contribui, com sua obra, na
22
efetivação da nova tendência literária, que Emir R. Monegal analisa como: " O
duplo movimento que Paz aponta para o futuro e para o passado, permite
integrar a ruptura dentro da tradição" (MONEGAL, 1979, p. 135).
Segundo Zélio (PINTO, 1999a, capa da obra), irmão de Ziraldo, "O
menino do milênio" seria o segundo título para o livro Outro como eu só daqui
a um milênio, obra que busca perpetuar os acontecimentos desse tempo e
mostrá-los aos tantos meninos que jamais assistirão ao que Ziraldo viveu
nesse segundo milênio. Diante disso, Ziraldo transfere a experiência que teve
com o livro e com a vida a tantos outros meninos maluquinhos que existem
espalhados pelo mundo.
I.2 Ziraldo: o desenraizado da pós-modernidade
O advento da globalização estreitou as fronteiras entre as nações
comprimindo significativamente o espaço e o tempo. A partir da década de 70,
a eficácia da tecnologia passou a transportar informações em velocidade
recorde, de um lugar a outro, em um simples clicar de teclas. O mundo tornou-
se menor e a distância mais curta, como observa Milton Santos: como se o
mundo se houvesse tornado ao alcance da mão" (SANTOS, 2000, p. 19).
A aldeia global e o encurtamento das distâncias trouxeram,
conseqüentemente, a crise de identidade nacional. O que a princípio parecia
resolver os problemas sociais com a unificação das nações gerou uma crise
jamais vista no final do século XX e início do XXI, definida por Milton Santos de
"fábrica de perversidade":
O desemprego crescente torna-se crônico. A pobreza aumenta e as
classes médias perdem em qualidade de vida. O salário médio tende a
baixar. A fome e o desemprego se generalizam em todos os continentes.
Novas enfermidades como a SIDA se instalam e velhas doenças,
supostamente extirpadas, fazem seu retorno triunfal. A mortalidade infantil
permanece, a despeito dos progressos médicos e da informação. A
educação de qualidade é cada vez mais inacessível. Alastram-se e
aprofundam-se males espirituais e morais, como os egoísmos, os cinismos,
a corrupção (Ibidem, p. 19-20)
23
Essa desintegração da identidade nacional, conseqüentes dessa crise,
que as nações, sobretudo do Ocidente, vêm atravessando, preocupa a teoria
social que lhe atribui três fatores: a desintegração da identidade nacional
provinda da homogeneização cultural e do s-moderno global, a resistência à
globalização, das identidades locais ou particulares e o hibridismo de novas
identidades que podem se sobrepor às identidades nacionais.
Stuart Hall assim explica essa crise de identidade:
Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades
modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens
culturais de classe, nero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que,
no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos
sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades
pessoais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos
integrados. Esta perda de um "sentido de si" estável é chamada, algumas
vezes, de duplo deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo
deslocamento descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo
social e cultural quanto de si mesmos - constitui uma "crise de identidade"
para o indivíduo (2002, p. 9).
O indivíduo se viu fragilizado pelas estruturas sociais em diferentes
momentos de sua existência. A literatura encarregou-se de registrar momentos
de transição entre um século e outro. Da Idade Média ao Renascimento,
assistiu-se a períodos de rupturas significativos, como a dicotomia teocentrismo
e antropocentrismo, ou da ruptura dos modernistas do início do século XX, a
crise de 1940 e 1960, oscilando entre o retorno ao passado e os avanços
futuros. Assim se foram desvelando os aspectos significativos da identidade
cultural de uma época, como a etnia, a cultura racial, lingüística, religiosa e
nacional.
Dessa forma, percebe-se que mesmo essa crise na evolução dos
tempos e a sensação que se tem hoje é a falta de um porto seguro que possa
estabilizar o mundo social.
Se a crise de identidade é que existiu o fato: identidade. Stuart Hall
distingue as três concepções de identidade. A concepção do "sujeito do
Iluminismo, sujeito sociológico e sujeito pós-moderno" (HALL, 2002, p.10). O do
Iluminismo, indivíduo centrado em si, também definido como sujeito cartesiano,
de consciência e razão; o sociológico, formado na interação entre o eu e a
24
sociedade, preenche o espaço entre o mundo particular e público, "Estabiliza
tanto sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos
reciprocamente mais unificado e predizíveis" (HALL, 2002, p. 12). O exemplo
maior dessa ruptura deu-se no século XIX. O indivíduo da modernidade
passou a ser visto como um ser isolado, exilado ou alienado, dividido entre a
multidão anônima e impessoal. Segundo Walter Benjamin, a geração de
Baudelaire descrevia a sociedade como se o indivíduo fosse o flaneur a
fazer botânica no asfalto” (BENJAMIN, 1991, p.15) e o pós-moderno, o
fragmentado, "composto de várias identidades, algumas às vezes contraditórias
ou não resolvidas" (HALL, 2002, p. 12).
O surgimento do sujeito pós-moderno, marcado essencialmente pelo
descentramento do sujeito cartesiano, passa por importantes pensamentos que
rompem e fragmentam toda a humanidade. Interessante é o mapeamento
desses pensamentos feito por Stuart Hall em sua obra A identidade cultural
na pós-modenidade.
Uma dessas idéias vem de Marx, centrada no princípio de que os
homens fazem sua própria história (Cf. MARX; ENGELS, 1973). Assim, o
estruturalista marxista Louis Althusser acredita que o estado, conscientemente,
é responsável pela formação social e ideológica do indivíduo na sociedade.
Para ele existem dois aparelhos estatais. Um repressivo que, por exemplo, é o
exército, a política, os tribunais etc.; e outro o aparelho ideológico do estado
que é, por exemplo, a religião, a família, a escola etc. (Cf. ALTHUSSER, 1974).
A descoberta de Freud revelando que a subjetividade do indivíduo é
fruto do inconsciente inquietou a humanidade. De acordo com as idéias
freudianas, o indivíduo projeta, no inconsciente, as figuras coletivas”
originadas de personalidade múltiplas ou mistas. Essas figuras ganham a
forma, às vezes, de pessoas conhecidas, e podem ocupar lugar de outra
desconhecida, ou a figura conhecida pode ser projeta na realidade em que a
outra pessoa se encontra (Cf. FREUD, 1967, p. 45-46). Essa teoria confronta à
de Descartes – "Je pense, donc je suis” (DESCARTES, 1987, p. 118). O
indivíduo é um ser pensante, consciente da sua existência real no mundo.
25
Também Jacques Lacan, seguidor das idéias freudianas, acredita na
"fase do espelho" (LACAN, 1977, p. 97). Defendeu a idéia de que a criança não
se a si própria, e sim refletida no espelho real ou no espelho do olhar do
outro. Quando Ela se depara com os sistemas simbólicos de representação
como a língua, a cultura e a diferença sexual, pode ocorrer ou não uma
unificação de sua identidade (Cf. LACAN, 1977, p.97).
A dificuldade que a criança tem em identificar-se com o outro divide sua
personalidade, que ela não sabe ainda distinguir o certo do errado, bom ou
mau. Tais sentimentos evidenciam-se, especialmente no convívio familiar,
quando ela nutre pela mãe e pelo pai, sentimentos oscilando entre o amor e
ódio; alegria e dor. Esse pensamento psicanalítico tenta explicar a visão
contraditória da identidade do indivíduo, que se manifesta desde a infância e o
acompanha até a fase adulta. Esse é o grande dilema da humanidade:
desvendar o enigma do homem.
As disciplinas como a Literatura, Psicologia, Sociologia, Antropologia,
Biologia, Medicina, entre outras, encarregam-se, cada uma a seu modo, de
desvelar esse enigma, para que o homem compreenda a si mesmo e ao outro.
Assim, é importante observar, segundo Hall, que:
A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro
de nós como indivíduos, mas de uma falta de "inteireza" que é "preenchida"
a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos
ser vistos por outros (2002, p. 39).
Posteriormente, as idéias de Ferdinand de Saussure, estruturalista,
defenderam que a língua é um sistema abstrato e a fala é a concretização da
língua. Essa dicotomia não se dá no isolamento do indivíduo e sim na interação
com o outro. A linguagem é ação social, ela é a representação cultural do
indivíduo (Cf. SAUSSURE, 1974). Influenciado por ele, Jacques Derrida,
acredita que as palavras apresentam várias vozes que se misturam, está
sempre atravessada pelo discurso do outro (Cf. DERRIDA, 1981).
Segundo Ângelo Domingos Salvador, a linguagem humana não é um
sistema estático. Há uma enorme diversidade lingüística que caracteriza a
linguagem numa mesma região (Cf. SALVADOR, 1982). Haja vista os fatores
26
que interferem na variação lingüística, como a localização geográfica,
responsável por manter a identidade do linguajar regional. Além desse aspecto
regional, outros fatores contribuem para marcar a variedade lingüística, como o
tempo, as circunstâncias, a idade e a estratificação social (Cf. SALVADOR,
1982). Diante disso, uma constante atualização lingüística marcada pelo
dinamismo evolutivo da linguagem.
Embora não seja lingüista, as contribuições do filósofo e historiador
Michel Foucault foram relevantes para se compreender o que subjaz no próprio
discurso do homem. Para ele, o homem vive sob o regime disciplinar. Essa
coersão é estabelecida sutilmente no detalhe do discurso dirigido ao público.
Essa é uma estratégia usada pelo Estado para impor à população o discurso
do poder. Um povo disciplinado aceitar espontaneamente o que o poder
direciona. Assim sem se fazer notar, o regime disciplinar invade a vida do povo,
colocando-o em uma cerca, como se estive nos quartéis, nas escolas, nos
conventos. Delimitar o espaço do indivíduo visa a mantê-lo enclausurado sob
controle, transformando-o em autêntico “corpo dócil” fácil de ser manipulado
(FOUCAULT, 1987, p. 119). Para Foucault:
O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma
arte do corpo humano, que visa o unicamente o aumento de suas
habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de
uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente
quanto é mais útil, e inversamente (Ibidem).
Por fim, Stuart Hall refere-se aos grupos de movimentos que surgiram
na época de 1960, como exemplo do último descentramento que a humanidade
enfrentou. Como observa Stuart Hall:
(...) o impacto do feminismo, tanto como uma crítica teórica quanto como
um movimento social, as revoltas estudantis, os movimentos juvenis
contracultura e antibelicistas, as lutas pelos direitos civis, os movimentos
revolucionários do terceiro mundo, o movimento pela paz e tudo que está
associado com "1968" (2002, p. 44).
As convenções sociais, na contemporaneidade, aprisionam cada vez
mais o indivíduo dentro de seus limites pessoais. Dominado pelos grupos
27
majoritários, ele tende a voltar-se para o seu microcosmo, isolar-se,
individualizar-se nos limites do lar.
Como aponta David Harvey, nos anos 70, houve “a preocupação com a
identidade, com raízes pessoais e coletivas” (HARVEY, 2002, p. 85). Assim o
autor exemplifica essa preocupação mostrando que a mídia contribuiu
significativamente por divulgar esse tema no mundo “a série de televisão
RAÍZES, que acompanhava a história de uma família negra americana desde
as origens africanas, espalhou uma onda de pesquisas de história familiar, e de
interesse por esse tema, por todo o mundo ocidental” (Ibidem, p. 84-85).
David Harvey também aponta que:
Ficção, fragmentação, colagem e ecletismo, todos infundidos de um
sentido de efemeridade e de caos, são talvez, os temas que dominam as
atuais práticas da arquitetura e do projeto urbano. E, evidentemente,
aqui muita coisa em comum com práticas e pensamentos de muitos outros
campos como a arte, a literatura, a teoria social, a psicologia e a filosofia
(Ibidem, p. 96).
O desejo de preservar o passado, de reconstruir a cidade com
características de sua origem acentua uma das práticas arquitetônicas. A
mistura de formas, a informação excessiva, o mundo parece ter se
transformado em um caos, “a informação excessiva, afirma-se é uma das
melhores induções ao esquecimento” (HARVEY, 2002, p. 314). Tudo isso é
uma das características do pós-modernismo.
Esse retorno ao passado foi o grande tema de romances e poemas,
como se observa nas obras de autores mineiros, como Adélia Prado, Murilo
Mendes, Pedro Nava, Fernado Sabino, Carlos Drummond de Andrade. A
recordação, o olhar para trás, representa a tentativa de registrar as impressões
de um passado vivido e que não se pode perder, porque ele compactua com a
realidade do autor e que não se pode deixá-lo cair no caos do esquecimento.
E. Hobsbawm e T. Ranger consideram que a narrativa tem um valor
essencial para manter a tradição. O ato de contar, em verso ou prosa, as
recordações de tempo passado ou não tão antigo, eles classificam como a
"invenção da tradição".
28
Tradições que parecem ou alegam ser antigas são muitas vezes
inventadas... Tradição inventada significa um conjunto de práticas..., de
natureza ritual ou simbólica, que buscam inculcar certos valores e normas
de comportamentos através da repetição, a qual automaticamente, implica
continuidade com o passado histórico adequado (1983, p. 01).
No Brasil, Mário de Andrade, na obra Macunaíma, fez um relato dos
elementos estrangeiros que identificam a formação da identidade do povo
brasileiro. Apoiado na mitologia, lendas, bulas, rio de Andrade reinventa a
tradição, como no caso das lendas indígenas que são utilizadas na obra, para
explicar algum fenômeno não explicado cientificamente.
Especialmente nas crônicas, nas obras Os meninos morenos, Uma
professora muito maluquinha e Vó-delícia, Ziraldo retoma o passado como
uma representação simbólica do tempo em que viveu na cidade de Caratinga.
O tempo é recuperado pelas recordações que afloraram em sua memória
discursiva individual, ou aquelas apoiadas na memória coletiva dos grupos ao
qual pertencia. Essas últimas são interessantes e nostálgicas, como se o fio
emaranhado na memória fosse desfeito pelas mãos do outro que encontra o
lado perdido do fio e desfaz o do esquecimento. Juntas, memória individual
e coletiva reconstroem o "tempo perdido".
Segundo Ernest Renan, o princípio espiritual da unidade da nação se
constitui: "[na]... posse em comum de um rico legado de memória..., o desejo
de viver em conjunto e a vontade de perpetuar, de uma forma indivisiva, a
herança que se recebeu" (1990, p. 19). O autor considera que a identidade
cultural não se efetiva sem passar antes por esses três fatores: "as memórias
do passado; o desejo por viver em conjunto e a perpetuação da herança" (
RENAN, 1990, p. 19). Esse fenômeno é por ele definido como "comunidade
imaginária" (Ibidem).
É na "comunidade imaginária" que se restabelecem os vínculos perdidos
no tempo. As narrativas constituem o importante papel de manter a tradição e
perpetuar a herança cultural de um povo. Assim, esse retrocesso do indivíduo
ao ambiente da infância, ao convívio familiar, ao grupo de amigos ou das
relações que se estabeleceram na sua história de vida dão-lhe a sensação de
"pertencimento", de “completude” (Cf. BRENNAN, 1990, p.45). Essas
recordações funcionam como uma peça de um mosaico que precisa ser
29
colado, peça a peça, para se ter a obra. A peça principal da obra de Ziraldo,
que lhe a "inteireza", encontra-se em Caratinga. Não apenas a Caratinga
situada geograficamente no mapa de Minas, mas a cidade imaginada na
memória discursiva do autor e do grupo que com ele estabeleceu o vínculo
emocional com o lugar.
Caratinga será o lugar fixo no compartimento da memória, o cenário das
lembranças da infância ingênua, quando as crianças se alegravam com as
novidades e não sabiam o real significado dos acontecimentos. A vontade de
voltar ao tempo perdido na memória, despertou-lhe o desejo de reviver
intensamente. Experimentar daquele gozo único vivido na infância distante e
reencontrar os amigos de vadiagem e as pessoas que fizeram parte do grupo
era reencontrar algo em comum, sua identidade. Nessa busca pela
completude, encontra o fio do passado esquecido na memória e puxa-o para
presente. Adornando-o de arte poética, Ziraldo vai desnudando sua
sensibilidade emocional, eternizando, dessa forma, a herança cultural que
recebeu da família e do grupo, como se a recordação fosse um pincel
encantado, tão comum nos contos de fadas, que preenchesse de lirismo a tela
em branco, recriando poeticamente a paisagem da Caratinga imaginada na
sensibilidade de Ziraldo.
Ziraldo é um bucólico artesão da palavra. O painel de sua identidade vai
sendo reconstruído lentamente e com cuidado, em cada obra, cada detalhe
minuciosamente pintado com as nítidas cores de sua aquarela lírica. Como
Alice no país das maravilhas, não salta para dentro do espelho, mas salta
para dentro do quadro que ele mesmo pintou, passeia na cidade encantada.
Como canta Caetano Veloso:
Alguma coisa acontece no meu coração
que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João
quando eu te encarei pela frente não vi o meu rosto
chamei de mau gosto o que vi de mau gosto o mau gosto
e que Narciso acha feio o que não é espelho (1981, p. 79-80)
.
Ziraldo não se identifica na cidade real, no espaço presente, é no
passado que rompe os limites que separam o Rio de Janeiro de Minas, para
30
mirar-se no espelho dos olhos dos caratinguenses que com ele reconstroem
sua história.
I.3 Ziraldo: a aquarela lírica
Como nos contos de fadas, o pai, Geraldo Alves Pinto, parecia prever o
futuro de Ziraldo. Quando, em 1939, enviou à seção infantil do jornal Folha de
Minas, um desenho do garoto de apenas seis anos de idade. Essa primeira
publicação anunciou o rumo que Ziraldo iria seguir na vida: apreender as
coisas do mundo nas cores de sua aquarela. Sua obra literária concilia o que
há de melhor entre a arte gráfica e a linguagem.
Cuidadoso na arte de elaborar o texto. O estilo da obra de Ziraldo
consegue transformar os temas banalizados pela insensibilidade das pessoas
em ações reflexivas sobre a sobrevivência e o convívio do homem na
sociedade. Esses sentimentos vêm da observação dos problemas que aflingem
o homem como os desníveis sociais, a injustiça e a discriminação das classes
menos favorecidas. Para ele:
Sucesso é uma medida pessoal. Cada um deve ter a sua. sei
que, de escrever, fiz minha profissão, ou melhor, uma das minhas atividades
sérias. Agora não tenho mais como parar. Na verdade, eu não ia ser
escritor. Aliás, vai ver eu nem chego a ser. Costumo dizer que independente
da área em que estou atuando, eu me considero, na verdade um
observador. Sou um observador da minha cidade, Caratinga, do meu país,
Brasil, e do mundo (o nosso,o que vivemos, pois o outro não sei se existe e
se existe não o conheço). Para ilustrar, cito Paulinho da Viola: As coisas
estão no mundo, minha nega, sé que é preciso... estar atento”. Comecei
com um verso de Paulinho e acabei num do Caetano. Uma folha caindo da
mangueira pode ser, para muitas pessoas, apenas uma folha caindo da
mangueira. Para o sambista, “ela um samba lindo” (www.ziraldo.
com/historia).
Ziraldo o mundo poeticamente, seu subjetivismo é transportado para
a obra com todo lirismo que extrai da realidade. Tema e o estilo, na obra de
Ziraldo, mesclam-se originando um produto artístico que rompe com os
modelos tradicionais. Mistura prosa e poesia, o que Samira Youssef
Campedelli e Benjamin Abdala Jr. definiram como “prosoema” ao referir-se a
Flicts: “Desde sua publicação, em 1969, Flicts tem sido visto sob as mais
31
diferentes óticas: alguns enxergam-no como um poema, outros o classificam
como poema em prosa, ou então, sofisticadamente, prosoema” (1982, p. 18).
Também na opinião de Carlos Drummond de Andrade, Ziraldo “fez um
poema exato com Flicts (CAMPEDELLI; ABDALA JR., 1982, p.14). A
apresentação da estrutura visual do texto assemelha-se à poesia, pela
disposição das palavras na folha do papel:
Era uma vez uma cor
Muito rara e muito triste
Que se chamava Flicts
Não
Tinha
A Força
Do vermelho
Não tinha a imensa luz do amarelo
Nem a paz que tem o azul
Era apenas
O frágil e feio
E aflito
Flicts
Tudo no mundo tem cor
Tudo no mundo é
Azul
Cor-de-rosa
Ou furta-cor
É vermelho
ou amarelo
quase tudo tem seu tom
Roxo
Violeta ou lilás
Mas
Não existe no mundo
Nada que seja Flicts
– nem a sua solidão –
Flicts nunca teve par
Nunca teve um lugarzinho
Num espaço bicolor
(e tricolor muito menos
– pois três sempre foi demais)
Não
Não existe no mundo
Nada que seja Flicts (PINTO, 1992, p. 5-13).
No entanto, o conteúdo é narrativo: Ziraldo conta a história de uma
Flicts, uma cor que não tinha cor nenhuma. Era rejeitada pelas outras cores e
buscava incessantemente se identificar com uma delas. Para isso, percorreu
lugares inusitados e não se encontrou. “Um dia Flicts parou(Ibidem, p. 36-37)
de procurar e se deixou levar pela atmosfera, escondendo-se na lua. Flicts
32
identificou-se com as multiformas e cores que a Lua assume e refletiu seus
raios multicoloridos sobre a Terra. Feliz, ela confessou que a Lua é Flicts e que
ela e os astronautas partilharam dessa descoberta. Ziraldo transferiu para o
papel uma explosão de sensibilidade poética, na construção de metáforas
belíssimas como “A Lua é Azul” ou “A Lua é de Prata e de Ouro”, conforme se
observa neste fragmento:
E hoje
Com o dia claro
Mesmo com o sol muito alto quando a Lua vem de dia
Brigar com o brilho do sol
A Lua é Azul
Quando a Lua
aparece
__ nos fins das
tardes de outono __
do outro lado
do mar
como uma
bola de fogo
ela é redonda
e
vermelha
E nas noites
muito claras
Quando a noite é toda dela
A Lua é de prata e ouro
Enorme bola
Amarela
MAS
NINGUÉM
SABE A VERDADE
(a não ser
os astronautas)
que
de perto
de
pertinho
a Lua é flicts (Ibidem, p. 41-46).
Ziraldo utiliza uma frase inteira em letras maiúsculas: “MAS NINGUÉM
SABE A VERDADE”. A distribuição gráfica dessas palavras no papel e o uso
das maiúsculas expressam a dramaticidade que as palavras carregam. A
mistura das espécies de gêneros literários, em Flicts, é apenas um pequeno
33
exemplo de que a obra literária não está presa à tripartição tradicional dos
gêneros. Segundo René Wellek e Austin Warren:
O gênero representa, por assim dizer, uma soma de processos técnicos
existentes, de que o escritor pode lançar mão e dispor e que o leitor
compreende. Em parte, o bom escritor observa o gênero tal como este
existe e, em parte, estende-o, dilata-o . De uma maneira geral, os grandes
escritores raramente foram inventores de gêneros (1971, p. 298).
Em entrevista a Samira Youssef Campedellli e Benjamin Abdala Jr.
(1982, p.14-15) Ziraldo afirmou que todas as adaptações de suas obras para o
teatro, a que assistiu, foram “ótimas”:
Flicts foi adaptado por Aderbal Júnior para o teatro em 1972. houve
mais de trezentas montagens com pequenos grupos. Já foi encenada em
Milão e agora em Pistóia (Itália). O planeta lilás teve adaptação de Carlos
Arruda e Júnior César Retondo para a Companhia Teatral Sia Santa, de
Campinas. O espetáculo, com o jogo de cores, ficou muito bonito. E, como
aconteceu com Flicts, respeitou a poesia do livro... Com O menino
maluquinho fiz em versos livres, consegui um recorde de público do teatro
infantil: 32 000 espectadores. Foi adaptado pelo Demétrio Nicolau (Ibidem,
p. 15).
Ele se sensibiliza com a aceitação e reconhecimento que o público teve
com o seu trabalho. Nas palavras de René Wellek e Austin Warren: “O prazer
que uma obra instila no homem é composto por uma sensação de novidade e
por uma sensação de reconhecimento” (1971, p. 297).
Yves Stalloni, na obra Os gêneros literários, apresentou uma
contribuição significativa para o problema de se classificar um texto de acordo
com a tipologia literária. Para ele, “é a ‘esquisitice’ (tema preparado pelo
romantismo e que se retomado por Baudelaire) e, portanto, a mistura que
criam a obra-prima” (Cf. 2003, p. 179). Também René Wellek e Austin Warren
observaram que teoria moderna dos gêneros volta-se para as formas primitivas
da literatura folclórica e oral. O aproveitamento das histórias populares
contadas pelos povos de uma região, as adivinhas, os mitos, as lendas, as
canções populares, as canções de encantar, as rimas, os provérbios serviram
como fontes inspiradoras dos escritores da nova forma de arte literária como o
conto e o romance (Cf. 1971, p. 298-299).
34
A tentativa de classificar os textos literários em uma tipologia de gêneros
vem desde os clássicos gregos, atribuindo-lhes a tripartição dos gêneros em
épico, lírico e dramático. Essa divisão é ainda a que figura nos manuais de
literatura e, didaticamente, funciona para estabelecer a diferença entre um e
outro gênero. No entanto, não se deve estabelecer e enquadrar em um único
gênero uma obra literária.
Partindo desse pressuposto, Yves Stalloni acredita que não se pode
excluir o estudo dos gêneros literários, mas utilizá-lo como um dos elementos
para a análise da expressividade da obra literária. Afirma ele:
A liquidação do gênero é, portanto, pronunciada aqui em nome de uma
prioridade do texto que a crítica atual, especialmente três décadas, não
parou de reivindicar. Para o comentador, bem como para o criador, se foi
o tempo da lei das categorias, e a literatura, liberta desses grilhões teóricos,
teria enfim chegado à liberdade de escolher suas próprias vias (2003, p.
182).
Segundo Wellek e Warren, “a espécie literária é uma instituição tal
como a Igreja, a Universidade, o Estado, são instituições” (1971, p. 286). Se a
Igreja sofreu rias divisões desde sua origem até estes dias; se se observam
mudanças nos sistemas educacionais; se, no Estado, as transições políticas do
país passaram, passam e passarão por mudanças, não razão dos gêneros
literários não acompanharem essa evolução. O diacronismo do tempo é o
responsável por modificar a história da humanidade e a literatura segue essa
evolução, que o contexto histórico-social é o cenário dos acontecimentos
tanto da história real quanto da ficção literária.
Discussão à parte, Ziraldo escolheu sua própria via, rompeu com a
estrutura fixa da tripartição dos gêneros e sua obra reúne lirismo, prosa e
drama. O termo prosoema tornou-se incompleto para definir sua obra, exigindo
outro neologismo que melhor explicasse essa fusão de gêneros. Esse tipo de
narrativa que une prosa e poesia é, segundo Massaud Moisés, "um outro tipo
de arranjo entre enredo e lirismo" (1997, p. 33). O lirismo se caracteriza pela
medida do verso, o uso das rimas, as repetições, o ritmo, a seleção vocabular,
as figuras de linguagem, a musicalidade, especialmente nos textos em versos,
aplicados à narrativa, tem-se o que Massaud denomina de prosa poética,
35
quando se transfere para a textura do enredo da narrativa todo lirismo próprio
da poesia, mesclando-se acontecimento temático à linguagem revestida pelo
acontecimento poético (Cf. ibidem, p. 30).
O acontecimento temático, em Flicts, foi a experiência de frustração:
“Nada no mundo é Flicts ou pelo menos quer ser” (PINTO, 1992, p.30)”. Essa
constatação causada pela falta de cor, e o acontecimento poético foi o reflexo
dessa sensibilidade temática marcada de expressividade e afetividade. Essa é
matéria primeira da Estilística, de que o autor se beneficiou para conduzir a
narrativa. Ziraldo valeu-se dos arranjos das palavras, das metáforas, das
aliterações, da sinestesia, da ironia e, especialmente, da imagem visual,
característica que marca os primeiros desenhos do autor ainda na infância e o
acompanha sempre, em sua trajetória artística.
As ilustrações em cores seduzem os pequenos leitores para a leitura das
obras de Ziraldo. Segundo Antônio D’ Ávila, quatro são as funções das
ilustrações nos livros em geral. A primeira se refere ao conteúdo simbólico,
sugestivo e conceitual que o desenho sobrepõe à palavra: “o desenho ou a
fotografia mais prontamente alcançam o significado do símbolo e mais
facilmente o desvendam” (1967, p. 68). Ziraldo fez a capa de Flicts, utilizando
as cores vermelho, laranja, amarela, verde e os matizes do azul, em forma de
arco-íris, funcionando como epígrafe que anuncia o conteúdo da obra.
O uso da cor exerce importante papel nos estudos de várias ciências, na
arquitetura, na decoração, na cromoterapia, na pintura, no cinema, na
televisão, na fotografia, nos eletros domésticos, principalmente, observa-se a
mudança no clareamento da geladeira, do vermelho ao branco, na cor que dita
a tendência da moda de cada estação e especialmente, nos livros destinados
às crianças. A cor luminosidade à vida do indivíduo na sociedade.
Interessante é a observação de Carlos Drummond de Andrade, em 1992, na
contracapa do livro Flicts:
O mundo não é uma coleção de objetos naturais, com suas formas
respectivas, testemunhadas pela evidência ou pela ciência; o mundo são
cores. A vida não é uma série de funções da substância organizada, desde
a mais humilde até à de maior requinte; a vida são cores.
Tudo é cor...
...Aprendo isso, tão tarde! Com Ziraldo. Ou mais propriamente com Flicts...
36
Quem é Flicts?...
...Flicts é a iluminação afinal, brotou a palavra mais fascinante de um
achado: a cor, muito além do fenômeno visual, é estado de ser, e é a
própria imagem. Desprende-se da faculdade de simbolizar, e revela-se
aquilo em torno da qual os símbolos circulam, voejam, volitam, esvoaçam
fly, flit, fling no desejo de encarnar-se. Mas para que símbolos, se
captamos o coração da cor? Ziraldo realizou a façanha, em seu livro.
Ziraldo ilustrou Flicts, em amarelo, tom indefinido, de palha mais escuro,
chegando ao cromo: “Era uma vez uma cor muito rara e muito triste que se
chamava Flicts” (PINTO, 1992, p. 5). Flicts não sabia de que cor era. Segundo
Antônio D’Ávila, “o amarelo, na tonalidade palha é indicada nos casos de psico-
neurose” (1967, p. 72). Essa definição da cor se aplica à descrição da confusa
cor Flicts, que buscava sua identidade, procurando se achar em uma
tonalidade. Importante é a abordagem que D’Ávila fez sobre o valor das cores:
Consideram-se, nesse assunto, cores estimulantes, calmas, emotivas,
exaltativas, sedativas, de acordo com a seguinte valorização. O vermelho é
estimulante mental, cor quente e excitante. O amarelo, tido também como
estimulante, tem função especial sobre o sistema nervoso. Diminui a fadiga
visual; na tonalidade palha é indicada nos casos de psico-neuroses. É
altamente visível. O azul também com propriedades calmantes, é indicado
especialmente para pessoas emotivas. Inspira paz e sugere a introspecção.
É considerada a cor predileta das crianças e a preferida dos homens. Sendo
cor fria, a sensação de calor. O verde tem destacado efeito calmante,
eficaz contra a irritabilidade nervosa, a fadiga e a insônia. É também cor fria
e, nesse particular, tem as mesmas aplicações do azul. O verde das
folhagens dos campos constitui um dos fatores repousantes e recuperantes
para cansados ou fatigados física e mentalmente. O laranja aumenta a
emotividade, a sensação de bem-estar e alegria. É cor quente. O roxo,
cor fria, é quando empregada só, deprimente, mas calmante no conjunto de
outras cores (1967, p. 72).
A segunda função que Antônio D’Ávila atribui à ilustração está no valor
memorativo. O leitor fixa as imagens dos livros com mais facilidade do que fixa
as palavras. Um bom exemplo é o que ocorreu com uma personagem de
Ziraldo. quase três décadas, a personagem Menino Maluquinho o menino
com a panela na cabeça encanta o Brasil, tendo se universalizado, nas
diversas traduções dessa obra. Quando uma personagem literária,
cinematográfica ou teatral é bem construída, não se consegue desvencilhar a
descrição que o autor fez dela daquela imagem que se processa na mente do
público. Assim, casos risíveis foram registrados na confusão que o público faz
com a personagem e a pessoa do ator.
37
A terceira função da ilustração está no valor pedagógico. As obras de
Ziraldo foram transformadas em produtos recomendados para trabalhos
escolares, a imagem do Menino Maluquinho ilustra vários produtos destinados
à criança, dentre os quais, o almanaque Férias maluquinhas. Trata-se de uma
publicação mensal da Editora Globo, que começou a circular em maio de 2005,
tendo em sua capa as seguintes frases: “Divirta-se! Mais de 90 passatempos e
histórias em quadrinhos incríveis” (PINTO, 2005, capa). Ela seduz as crianças
e ao mesmo tempo ensina, diverte e desperta a curiosidade. Contribui na
formação estética, quando se tem um belo desenho: fica-se extasiado diante
de seu traçado. Admirar é apurar o senso estético, o gosto, o estilo. O ato de
apreciar um objeto é um processo de aprendizagem, com o qual se pode
identificar ou não, sendo a possível acrescentar-lhe ou eliminar detalhes e
assim, construir algo novo, como observa Antônio D’Ávila:
(...) o papel das ilustrações como recurso de educação artística da criança e
do adolescente. Dado que a criança é profundamente ligada à gravura do
livro, pois que a reproduz, a colore, a completa e a retifica muitas vezes, a
boa ilustração, com seus inúmeros recursos, pode servir de estímulos não
só ao gozo maior da criação artística mas oferecendo modelo e sugestão de
estilos, de modos de fazer, de processos de representar a realidade ou o
imaginando. As cores, os traços, o pontilhado, a sombras, o jogo das
proporções, tudo pode servir de lição à formação estética dos pequenos ou
jovens leitores (1967, p. 69).
A última função atribuída à ilustração do livro seria o momento de
descanso do texto. Ela seria o intervalo de deleite, a pausa na leitura. “A
fotografia, o ornato, o desenho, a gravura. As vinhetas, a variedade de tipos de
letras empregados, concorrem para suavizar e descansar a vista” (Ibidem).
Todos esses recursos justificam o porquê da obra de Ziraldo ter agradado tanto
ao leitor e, tantas vezes, ter sido transformada em filme. A matéria-prima da
arte cinematográfica é a imagística, enquanto a da literária é a palavra. Em
Ziraldo, ambas se combinam, harmonicamente. Quando uma obra de
Ziraldo, o leitor fecha os olhos e tem as cenas constituídas na memória. Ziraldo
comenta sobre a explosão de alegria do editor, quando, no momento em que
lhe apresentou a obra Flicts:
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Com o Flicts eu trabalhei em regime de concentração: o editor estava
esperando o livro que eu havia prometido. Quando entreguei, ele leu e
aconteceu uma cena emocionante. Ele gritava: “Eu quero o melhor papel!
Eu quero o melhor acabamento!...” Magalhães Pinto, nosso chanceler na
época, deu o volume de presente ao astronauta Neil Armstrong, que
escreveu: “The moon is Flicts” (PINTO, 1992, p. 14-15).
Conforme afirmou o astronauta Neil Armstrong, o mundo de Ziraldo é
Flicts, tem a exata cor que sua sensibilidade alcança. Pode-se concluir que
Ziraldo iniciou com Flicts a descoberta de um novo mundo: o mundo das
palavras sensíveis. Ziraldo construiu um mundo fictício para desenvolver sua
linguagem literária. Caratinga, a pequena província de Minas, foi o lugar
escolhido pelo autor para abrigar as personagens que representam seres que
fizeram parte da vida real do autor na época em que ele viveu na cidade. O
espaço da narrativa será a pequenina cidadezinha delimitada pelo tempo em
que o autor viveu nessa cidade. Suas personagens dividem com Ziraldo o
mesmo tempo e o mesmo espaço da narrativa. Revisitando Caratinga pela
ficção de Ziraldo descortina o lugar aprazível, o começo de seu idílio.
39
II REVISITANDO CARATINGA: “comunidade imaginada” entre
o real e o ficcional
“O que o tempo tem feito é revisitar-nos à sombra de nós mesmos escondidos na
soleira da porta“
(Marx Portes).
Nos festejos de comemoração dos 155 anos de aniversário de
Carantinga, um grande monumento foi erguido na praça do Rodoviários, no
bairro Santa Zita, para homenagear o ilustre cidadão, Ziraldo. É a reprodução
gigantesca do Menino Maluquinho. Por ali, passam, obrigatoriamente, os
transeuntes da cidade e os viajantes que trafegam na BR 116, no sentido Rio
de Janeiro–Bahia.
Por que se erguem monumentos, nomeiam-se ruas, praças ou cidades
com nomes ou obras de alguém? Qual a importância em se fixarem marcos de
significação da nossa história?
A memória e o esquecimento fazem parte do mesmo processo de
construção/desconstrução do passado e do presente, que resgatam a tradição
cultural de um povo, em busca da própria identidade. Os fatores que podem
contribuir para a construção/desconstrução da memória giram em torno de dois
eixos: o tempo e a história. Essa última é ainda mais vilã. O tempo corrói
objetos, pessoas, cidades, monumentos, uma cultura inteira pode deixar de
existir por falta de registro.
a história seleciona o que se registra. Os feitos notáveis, os casarões
antigos, fazendas, nome de rua, pessoas. Tudo que reluz fala da imponência e
riqueza de um tempo passado. Esse processo seletivo não abrange,
erroneamente, todos os indivíduos que foram parte da história. Principalmente,
exclui os que atuaram em terrenos menos inusitados, como a floresta, a
senzala, a cozinha da casa grande. Assim, são comuns as referências aos
índios, aos pobres e aos negros, que se tornam inquilinos da memória alheia.
Ricos ou pobres, heróis ou não, todos fazem parte do resgate cultural de
um povo. Saber contar uma história sem fragmentá-la é passar de geração a
40
geração sua cultura. É saber responder "Quem sou eu?". É se identificar com
os fatos narrados.
A importância dos marcos de significação é a fixação da tradição. Ergue-
se um monumento, nomeiam-se ruas, fixam-se, nos livros didáticos, fatos
notáveis da história para homenagear alguém. É o reconhecimento da
importância, não do objeto em si, mas do que se depreende dele, do sonho que
se esconde sob o monumento e se tornou realidade (Cf. THEODORO, 1998, p.
61-73).
Esse monumento é patrimônio histórico da coletividade. No radical da
palavra patrimônio, -pater, sugere-se o nculo hereditário que se estabelece
de pai para filho. Preservá-lo é saber cuidar dessa herança e se sentir
responsável por ela. É narrar exaustivamente seu significado às gerações
vindouras que saberão, por exemplo, em Caratinga, quem é e o porquê do
Menino Maluquinho na praça dos Rodoviários. Elas se conscientizarão que
esse marco representa a excelência do artista caratinguense, ao perpetuar em
sua obra, as suas raízes mineiras.
A cidade de Caratinga foi tomada na obra de Ziraldo como o valioso
elemento que deu unidade aos enredos de sua narrativa. O tempo e o espaço
em que o autor viveu de fato na cidade foram retomados através das
recordações passadas como tema lírico.
o afastamento do lugar onde o autor tem suas raízes pode suscitar o
desejo de perpetuar na obra literária a emoção do tempo rememorado. È na
soleira da porta que se abre para o compartimento da memória, que as
personagens se reencontraram, estabelecendo a fronteira entre o real e o
ficcional.
O reencontro com esses seres reais, revestidos de personagens
ficcionais, será a matriz temporal que delimitará o período de vivência do autor
com as personagens que fizeram parte de um período extremamente marcante
na vida do autor. A demonstração desse reencontro explicita a expressividade
emocional de Ziraldo que revestiu de lirismo o passeio pela cidade guardada no
compartimento da memória, em que o esquecimento não pode apagar as
41
marcas desse tempo. È nessa cidade imaginária que suas personagens soltam
da vida real para construírem o enredo da literatura ficcional.
Revisitando Caratinga pela ficção, Ziraldo vai desnudando os momentos
sublimes de sua infância feliz na cidadezinha de Minas. São retomadas do
passado as recordações das brincadeiras de rua, do quintal de sua casa, da
comida da mãe, dos passeios pelas matas, dos colegas do grupo escolar, da
professora, das histórias das personagens que habitavam seu microcosmo, da
subida à montanha mais alta da cidade onde se avistava a pequena cidade, da
estação, do trem, da pracinha da matriz, das palmeiras, dos melros, da igreja, e
das altas palmeiras que contornam a Praça Cesário Alvim.
A memória da narrativa literária de Ziraldo foi capaz de vencer a
espoliação do patrimônio cultural: o esquecimento.
II.1 O cronotopo do artista
Mikhail Bakhtin apresenta uma abordagem sobre a dimensão do espaço
em concomitância com o tempo, criando o neologismo “cronotopo” (BAKHTIN,
1988, p. 211) que significa crono tempo e topos espaço. E essa fusão
estabelece a indissolubilidade entre tempo e espaço. Não há o tempo sem se
definir o espaço e não espaço sem o estabelecimento do tempo.
Compreender a obra artística relacionando tempo e espaço da narrativa é
compreender a produção literária, marcada por recordações de um tempo e de
um espaço em que viveu o artista. Daí a relevância de se investigar a
interferência da memória de Ziraldo na construção da sua obra literária.
Para Mikhail Bakhtin:
No cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e
temporais num todo compreensivo e concreto. Aqui o tempo condensa-se,
comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-se,
penetra no movimento do tempo, do enredo e da história. Os índices do
tempo transparecem no espaço, e o espaço reveste-se de sentido e é
medido com o tempo. Esse cruzamento de séries e a fusão de sinais
caracterizam o cronotopo artístico (1988, p. 211).
42
Assim como Marcel Proust sugere, No caminho de Swann, um
percurso pelas lembranças da infância, em busca do tempo perdido (Cf.
PROUST, 1979), Ziraldo compartilha com ele da mesma preocupação em se
identificar nas coisas vividas no passado:
(...) nós sempre temos um causo pra contar antes de entrar no assunto.
Uma coisa assim proustiana, como se Proust fosse o único que tivesse
passado sua vida em busca do tempo perdido. Aqui, por exemplo, não
temos feito outra coisa. Pois, não era a casa da tia, eu não estava em
Combray e, em vez de chá de lia com madeleines, tomava café com leite
de açúcar queimado e canela era inverno com biscoito de polvilho,
quando a coisa se deu. Meu pai trouxe da rua a "Vida Doméstica" para
minha mãe e um "Gibi mensal" para mim. Ele não sabia ainda que era
pecado ler histórias-em-quadrinhos, como logo depois ensinou o Padre
Otton (e os gibis ficaram muito mais saborosos). Abri o gibi e tive uma
iluminação (PINTO, 1991, p. 08).
É preciso retroceder no tempo, aos anos de 1932 a 1952, para entender
as citações referentes a pessoas, lugares, obras, situações as quais Ziraldo
perpetua em sua obra. Que importância têm em suas lembranças, por
exemplo, o café com leite de açúcar queimado e canela com biscoito de
polvilho? Que lembrança foi despertada com essa sensação?
Assim, o objeto desperta sensações. A imagem é um ícone que ativa a
memória. Múltiplas sensações podem aflorar ao ver um monumento, tocar um
papel, provar uma comida, ouvir uma música ou sentir o cheiro de um perfume.
São sentimentos que provocam alegria, dor, tristeza, nostalgia, saudade de um
tempo habitado por um grupo de pessoas, ou dos lugares que faziam parte
desse círculo.
Para Bakhtin, “No idílio, a comida e a bebida assumem ora um caráter
social, ora, mais freqüentemente, um caráter familiar; em volta da comida se
reúnem as gerações, as idades” (1988, p.335). Dessa forma, as sensações
olfativas e gustativas estão ligadas à memória do autor, bastou referir-se ao
café e ao biscoito que Ziraldo os associou imediatamente ao contexto familiar,
ao mesmo cheiro e o mesmo gosto experimentado na infância, é como se
essas sensações carregassem em si o registro do tempo e do lugar onde se
deu o fato pela primeira vez. Essas sensações acompanham o indivíduo ao
longo de sua vida. Para Massaud Moíses, “Relembrar o passado significa
43
narrar acontecimentos ou o registro deles, mas é também, e notadamente,
reconstruir as sensações que o acompanham” (MOISÉS, 2001, p. 38).
Ao estudar o cronotopo idílico no romance, Bakhtin apresentou uma
interessante divisão dos idílios que são matéria importante na análise da
narrativa literária. Para Bakhtin, o autor recorre a narrar poeticamente:
o idílio amoroso (cuja principal manifestação é a pastoral), o idílio dos
trabalhadores agrícolas, o idílio do trabalho artesanal e o idílio familiar. Além
desses tipos puros, são extremamente difundidos os tipos mistos, em que
predominam um ou outro elemento (amor, trabalho, família) (1988, p. 333).
que para construir o enredo da obra literária, Ziraldo sublima
bucolicamente a paisagem e a vida dos moradores da cidade de Caratinga,
toma-se a expressão “idílio” para referir-se à leitura poética que Ziraldo fez
desses elementos. Para Bakhtin:
Qualquer que sejam as diferenças dos tipos e das variantes do idílio,
todas elas têm, sob o ângulo que nos interessa, alguns traços comuns que
são determinados pela relação geral com a unidade total do tempo
folclórico. No idílio, isso se manifesta em primeiro lugar na relação particular
do tempo com o espaço: a adesão orgânica e a ligação da vida e dos seus
recantos, suas montanhas, vales, campos, rios, florestas e a casa natal. A
vida idílica e os seus eventos são inseparáveis desse cantinho
concretamente situado no espaço, onde viveram os pais e os avós, e onde
viverão os filhos e os netos (1988, p. 333).
Ziraldo estabeleceu um vínculo afetivo tão forte com Caratinga, que
segundo o relato de Sérgio Henrique de Moura, na ocasião de asfaltar as ruas
em torno da Praça Cesário Alvim, coração da cidade, também denominada
Praça das Palmeiras, Ziraldo se opôs:
Uma grande parte dos moradores queria as ruas asfaltadas. Os
argumentos eram os prejuízos com a manutenção dos veículos, a poeira e,
por fim, a modernidade. Outro grupo se opunha ao asfalto, dentre os quais,
alguns intelectuais, como o Ziraldo, que apresentavam como contra-
argumentos: o valor do calçamento em paralelepípedo, melhor escoamento
de água da chuva, originalidade, conservação do patrimônio público (Cf.
anexo 01).
Entende-se que o segundo grupo se opunha ao asfalto, pelo medo de
não se identificar mais nas pedras daquela praça. Os paralelepípedos traziam
44
uma lembrança de um tempo passado ao qual Ziraldo viveu; cobri-los era cobrir
uma parte do seu passado, seu tempo, o espaço dos acontecimentos que lhes
marcaram a infância e adolescência. Era como se um ente querido houvesse
morrido. Reconhecer naquelas pedras seu passado era reconfortante.
Significava o vínculo entre passado e presente. As pedras encobertas pelo
asfalto o mais aparecerão, ou melhor, aparecerão sim na ficção de Ziraldo
numa esperança de resistência ao esquecimento.
Mas os grupos resistirão, e, neles, é contra a resistência mesma, senão
das pedras ao menos de seus arranjos antigos que vos batereis. Sem
dúvida esta disposição foi anteriormente obra de um grupo. O que um grupo
fez, outro pode desfazer. Mas o desígnio dos homens antigos tomou corpo
numa disposição material, isto é, numa coisa, e a força da tradição local lhe
vem da coisa da qual era imagem (BOSI, 2003, p. 452).
Para Ecléa Bosi: “À resistência muda das coisas, à teimosia das pedras,
une-se a rebeldia da memória que as repõe em seu lugar antigo” (2003, p.452).
o vínculo com o grupo podereconfortar a sensação de perda. O grupo de
amigos ficará para relembrarem juntos daquele tempo:
Mas a tristeza do indivíduo não muda o curso das coisas: o grupo
pode resistir e recompor traços de sua vida passada. a inteligência e o
trabalho de um grupo (uma sociedade de amigos de bairro, por exemplo)
podem reconquistar as coisas preciosas que se perderam, enquanto estas
são reconquistáveis. Quando não essa resistência coletiva, os indivíduos
se dispersam e são lançados longe, as raízes partidas (Ibidem p. 452).
Ziraldo reconstrói a vida da pacata e bucólica Caratinga, revelando
através da ficção os valores dos moradores. Descrevendo o cotidiano da
cidade, vai pouco a pouco mostrando as personagens que juntos recuperam
suas raízes partidas. Em Uma professora muito maluquinha ele rememora
as leituras que fazia naquele tempo:
É que na gente ficava lendo nossas revistinhas, nossos tico-ticos e
gibis tinha menino lendo até Tarzan ou O Espírito além de outras
revistas que ela mesma trazia de casa pra nos emprestar. Então, de
repente, o Padreco batia na porta. Rápido, rápido sob o comando da
professora a gente dava cambalhotas na carteira para esconder as
revistinhas, antes que ele entrasse na sala (PINTO, 1999, p.44-45).
45
Interessante também é a referência aos valores moralizantes ensinados
na escola pelo padre que também era professor de catecismo:
Acontece que o Padreco era o professor de catecismo do grupo escolar
e havia proibido a leitura de histórias em quadrinhos, segundo o padreco,
gibi era pecado! Ele não dava sossego pra nossa professorinha. Vivia
dizendo que ela era muito liberal, uma anarquista muito da maluquinha. E
contava tudo para o Padre Velho, que ao contrário dele, tinha a maior
paciência com sua maluquinha querida. Ninguém entendia a implicância do
padreco. Quando menino, era ele que tomava conta da Professorinha
Maluquinha menina: saía com ela pra passear pelo campo, fazia bonecas
de pano pra ela brincar, ensinou-a a assobiar e a rodar pião. Agora, depois
de grande, ficava naquela enjoança (PINTO, 1999, p. 46-47).
Segundo Francisco Moreira Filho, colega de sala de Ziraldo da primeira
Turma de Cientificandos de Caratinga, em 1951:
Ziraldo demonstra ter muita afetividade a Caratinga, houve um tempo
que ele saiu da cidade para estudar, fazia sucesso com seus desenhos,
era reconhecido internacionalmente. Ziraldo voltou a Caratinga, seis meses
antes do término do curso para fazer parte dos formados da Primeira
Turma de Cientificandos de Caratinga. Fez uma caricatura de todos os
alunos como lembrança dessa formatura. Além da caricatura outra foto foi
tirada com os formandos de terno e gravada. Eu emprestei todos os ternos,
a camisa e os lenços para a foto tradicional. Durante o baile de formatura
Ziraldo, propôs um reencontro para dez anos depois. Nessa ocasião, ele
presenteou os trezes colegas de formatura com um desenho caricatura em
que o Pererê representava a profissão de cada um de nós. (Cf. anexo 02).
Esse registro torna-se valioso para exemplificar que alguns colegas da
foto ou da caricatura representam as personagens da história em quadrinhos
da obra A Turma do Pererê.
Assim, na tentativa de capturar um pouco do passado, far-se-á um breve
percurso pela história cultural da Caratinga, cronotopo do artista Ziraldo.
Entre 1841 e 1847, muito antes de ser povoada pelos desbravadores em
busca de poaia (ipecacuanha), planta de valor comercial, Caratinga era
habitada pelos índios bugres, da tribo dos Aimorés que viviam na região dos
batatais, municípios hoje conhecidas por São Sebastião do Batatal e o Jo
do Batatal. Existia nessa região um tubérculo muito apreciado pelos índios, o
cará-tinga, que significa cará-branco, originando daí o nome da cidade. Em
1848, recebe o nome de São João de Caratinga em homenagem ao santo
padroeiro, São João Batista.
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Em Caratinga, a religiosidade é latente, graças à herança espiritual
deixada pelo Monsenhor Aristides da Rocha, que ali chegara em 19-02-1919,
fundando, em 1920, o jornal O Missionário, púlpito aos que não iam à igreja
escutá-lo. Homem culto, de grande retórica, conhecedor de vários idiomas,
brincalhão, esportista, rapidamente, Monsenhor Rocha conquistou o público e
envolveu-o em campanhas para a construção das treze igrejas católicas na
cidade, além de várias outras obras espalhadas pela região. Deve-se a ele a
construção do hospital e do Palácio Episcopal, a Escola Normal, assim como a
presença, na cidade, dos padres da Congregação do S.S. Sacramento, da
Congregação das Irmãs Carmelitas da Divina Providência, da Confraria do
Rosário, Congregação das Irmãs Vicentinas, e das Irmãs Gracianas. Sempre a
seu lado estava sua irmã, dona Glorinha Rocha Abelha, mulher dinâmica,
sábia, ligada à educação, mãe de Stael Abelha que, na década de 1950,
ganhou o concurso de miss Brasil (Cf. ABELHA, 1991, p. 100).
Outra mulher marcante no cronotopo do artista Ziraldo, também irmã de
Monsenhor Rocha, foi Catarina Marques da Rocha, a Kath, professora do
grupo escolar Princesa Isabel. Sua relevância se deve ao fato de ter sido ela a
professorinha que incentivou Ziraldo a ler, uma personagem que passou da
vida real à ficcional, na obra Uma professora muito maluquinha.
Segundo testemunho do caratinguense, Senhor Quinzinho, morador da
Rua Nova, hoje conhecida como Rua Coronel Antônio da Silva, vizinho dos
pais de Ziraldo, dono da venda mais antiga de Caratinga:
A Rua Nova ganhou este nome porque ela ficava entre a cidade e o rio
Caratinga, não existia ponte unindo os dois lados do rio. Havia no lugar de
ponte um tronco grosso de árvore pregado com bambus, em que as
pessoas apoiavam-se para fazer a travesia. Tudo era um mata, tinha uma
nina bem debaixo do viaduto. As pessoas buscavam água e as crianças
gostavam de brincar pelas matas.
Entre as décadas de 30 e 50, vários acontecimentos marcaram o
progresso de Caratinga: a construção exuberante da nova catedral, que
substituiu a antiga e pequena matriz. A Estrada de Ferro Leopoldina,
cortada a picareta abria caminho para a estação ferroviária de Caratinga. A
construção da ponte, na praça da estação, obra também da Estrada de
Ferro Leopoldina. Foi nessa época que abriram a Rua Nova e ela começou
a ser povoada (Vide anexo 03).
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Como aponta Glorinha Rocha Abelha, Monsenhor Rocha comprou um
Caminhão para buscar as pedras no pico do Itaúna para a construção da
Catedral. O caminhão:
Ia e vinha à pedreira do Silva, no sopé do Itaúna, por uma picada
aberta na mata cerrada, buscar as pedras. Quem estradas, asfaltadas,
sem dificuldade, feitas por máquinas, não pode avaliar o que é uma estrada
a picareta e enxada e pás, aberta por braços humanos, como se fazia
naquele tempo (ABELHA, 1991, p. 36).
A Praça Cesário Alvim ornamentava a cidade com suas altas palmeiras.
Em torno dela, casas em estilo e mobiliário colonial do século XIX, luxo e estilo
característicos da transação econômica do comércio do açúcar e do café.
Ao fundo da Praça, fica a Catedral São João Batista. Segundo Glorinha
Rocha Abelha, ela foi construída entre 1930 a 1935, por Monsenhor Rocha, em
estilo neo-gótico, com cinqüenta metros de comprimento, dezesseis de largura
e cinqüenta de altura. No topo da torre mais alta, está a imagem de São João
Batista e abaixo; na mesma torre, o relógio que orienta a vida temporal e
espiritual dos habitantes da cidade. É um imponente monumento (Cf. ABELHA,
1991, p.48).
Essa praça principal de Caratinga foi calçada com pedras portuguesas,
trabalhadas com arte, em mosaico. Árvores antigas, como o pau-brasil, o ipê,
em vários tons, a dama-da-noite, rosa, bananeirinhas de diversas cores,
margaridas brancas e amarelas e uma variedade de arbustos enfeitavam a
cidade, principalmente em setembro, quando se abrem em cachos e
inebriavam a cidade com seu perfume.
Havia uma nostálgica fonte que à noite jorrava água iluminada por uma
luz amarelada. Ao som das águas e da luz gica, os casais namoravam, a
família levava os filhos para o passeio domingueiro e aproveitavam para
registrar a cena familiar na antiga máquina fotográfica do jardim.
Bem ao fundo da Praça fica a Pedreira do Silva, assim chamada porque
as terras pertenciam à família Silva Araújo, é conhecida também pela “Pedra
Itaúna”, o monte mais alto da cidade. Próximo ao lugar havia a fazenda do
Silva Araújo, terreno doado para a futura construção do Santuário de Adoração
Perpétua.
48
Em 1942, Caratinga continuou progredindo, segundo Glorinha Rocha
Abelha:
As máquinas [do DNER] começaram a derrubar o morro que separava
a Fazenda do Silva do Esplanada. (...) havia uma linha de avião de carreira,
Belo Horizonte-Caratinga e vice-versa, e também de Nanuque-Caratinga-
Rio. (...) De avião eram 50 minutos e a passagem baratíssima, custando
só Cr$ 500, 00 ida e volta (1991, p. 66).
Quanto à vida cultural de Caratinga, Glorinha Rocha Abelha aponta o
divertimento dos moradores da progressiva Caratinga era o cinema, as festas
religiosas,as barraquinhas para ajudar a construção das igrejas e pessoas
necessitadas, o circo, o passeio pelas ruas e a escola. Interessante é a
descrição da juventude dessa época:
A moçada de Caratinga sempre foi luzidia, bem arrumada. As moças
mandavam fazer fora os seus vestidos. Os meus vinham de Belo horizonte.
Era no tempo do apuro no vestir, da elegância do traje. Então, para o circo,
as moças se esmeravam (1991, p. 41).
Os resquícios desse tempo permanecem eternizados na narrativa
ficcional de Ziraldo, revisitando os lugares do passado, onde viveu sua vida e
construiu sua história, Ziraldo recorda os ensinamentos maternos, a presença
importante que a mãe deixou em sua vida, a veia literária que tinha e,
sobretudo, o apoio às artes.
I.2 O discurso feminino – código familiar e raiz cultural
Difícil empreitada compreender o que se esconde por detrás do discurso
feminino. A mulher desempenha importante papel na literatura. Ela é a grande
fonte de inspiração dos poetas. A figura feminina assumia, na Antigüidade, a
forma de musas ou ninfas inspiradoras, que habitavam os rios, montes e
florestas. Filhas das nove noites de amor de Zeus com Mnemósine, deusa da
memória, nasceram nove musas. Os deuses lhes atribuíram o dever de
proteger a arte, história e astronomia.
Desde a Antigüidade greco-romana, os poetas pediam às musas
inspiração para compor seus versos, acreditando que a poesia nascia de um
processo mnemônico. Buscar proteção de uma deusa era ter o cuidado de não
49
se perder no lapso da memória (WILKINSON, 2000, p.61). Assim, o ato de
invocá-las garantia a inspiração e a criação dos mais belos versos. Os poetas
entravam em transe, como se fossem tomados por uma divindade. O fato é que
a sociedade entendia esse estado de espírito do qual o poeta estava acometido
como um grande mal. O reflexo disso sobrecaía em sua reputação que,
cronologicamente, se modificava, de acordo com o contexto histórico e social
em que viveram. Diacronicamente, vários estigmas foram empregados para
caracterizá-los. Da Idade Média até esses dias, o poeta foi considerado bufão,
palhaço, bobo da corte, maldito, depravado, vadio, boêmio, egocêntrico, gótico,
diferente, lunático, irreverente, e amplia a lista um número sem fim de
adjetivos.
A sensibilidade dos poetas para transformar a realidade em poesia
ligava-os a seres contemplados pela iluminação divinal. Possuídos pelo dom da
epifania, transformam momentos comuns em momentos de extremo lirismo.
Essa capacidade sensitiva de percepção dos fatos cotidianos distinguia-os dos
seres considerados normais, daí também serem chamados de loucos. No
entanto, essa capacidade estava ligada à criação artística, talvez pela
correlação com a gênese da criação do homem: Fiat lux(Gn. 1.,v. 3), e a luz
se fez. Inegável é não lhes atribuir o dom divino do talento de lidar com as
palavras. Partilha dessa opinião a poetisa mineira, Adélia Prado, ao reconhecer
o ato de criação como dom divino. Além da normalidade, é um dom mais que
normal: é especial, místico, e também, ironicamente, ela revela – um dom
masculino:
Quando eu descobri que isso é masculino e está em mim e a forma de
eu ser mais mulher é eu não recusar um dom, foi um descanso. Agora
vocês me deram a linguagem, é um falo, é um falo! Um falo perfeito, né? E
se eu o obedecer a esse imperativo, porque eu não sou inventora da
poesia, isso é um dom. A palavra é do Espírito Santo, ela é divina, ela é
anterior a mim.’E do esplêndido ao caos’, aquilo que todo mundo falou aí.
Se eu me recusar a isso por vergonha, para ser politicamente correta, é
pecado. Eu peco. E eu serei uma mulher anã, de segunda categoria, e eu
não o quero. Por isso eu quero escrever. Isso me completa, é o meu falo.
(1995).
Malquistos pela sociedade da época, os poetas recebiam o desprezo de
muitos. Dessa prática mitológica, tem-se, no decorrer dos séculos, a invocação
50
às musas para a criação literária de vários poetas. Por exemplo, no século VIII,
Homero, com a Ilíada; no Século XVI, foi a vez de Camões pedir-lhe proteção,
para a feitura de Os lusíadas; e no culo XVIII, Tomás Antônio Gonzaga
elegeu a doce Marília, para musa inspiradora de sua lira. na modernidade,
tem-se o poetinha Vinícius de Moraes, que cantou com maestria as belezas da
mulher, inspiradora de seus versos. Assim, em todo o tempo e lugar, uma lista
infindável de escritores desvela o universo feminino perante a sociedade de
seu tempo.
O discurso feminino amplia o campo epistemológico das disciplinas que
se debruçam e se preocupam em entender e analisar o papel da mulher na
sociedade, ganhando força nos estudos sociológicos, psicológicos, históricos,
antropológicos, além de sua constante abordagem no campo artístico-literário.
Nem mesmo o psicanalista Freud conseguiu entender o que pensa e o que
quer uma mulher! A obra literária se debruça também sobre o discurso
polifônico das mulheres na sociedade, para registrar seus hábitos, em
diferentes épocas e lugares, descortinando, pelas escrituras, o que não foi dito,
mas ficou subentendido. A literatura deixa à mostra, dessa forma, a evolução
histórica do pensamento e do comportamento feminino no contexto em que a
obra foi produzida.
Para Michael Foucault, deve-se buscar além do enunciado do outro, não
a intenção consciente do sujeito que fala, mas também a intenção
inconsciente que se esconde atrás do simples enunciado:
Trata-se de reconstruir um outro discurso, de reencontrar a palavra
muda, murmurante, inesgotável, que anima do interior a voz que se ouve,
de estabelecer o texto miúdo e invisível que percorre o interstício das linhas
escritas e, às vezes, as subverte (1971, p. 23).
A mulher, voz muda da sociedade patriarcal, acostumada a obedecer
aos pais, irmãos, maridos e também à sogra, era relegada a cumprir o papel de
dona do lar, restrita à clausura dos seus próprios pensamentos, desejos
reprimidos, submissão, alegrias, medos, mistérios, maternidade, devoção,
crendices e fé. Entretanto, sua relevância é tanta, que se fosse excluído das
áreas de estudos citadas acima o discurso feminino, certamente, seria uma
51
catástrofe, e talvez sua mudez não atingiria os ecos que atingiram na história
da humanidade. Ainda Foucault observa que:
[...] todo discurso manifesto repousa secretamente sobre um dito; mas
que este já dito não é simplesmente uma frase já pronunciada, um texto
escrito, mas um “jamais dito”, um discurso sem corpo, uma voz tão
silenciosa quanto um sopro, uma escritura que é apenas oco de seu próprio
traço. Supõe-se, assim, que tudo que o discurso formula se encontra
articulado nesse meio-silêncio que lhe é prévio, que continua a correr
obstinadamente sob ele, mas que ele recobre e faz calar. O discurso
manifesto seria, apenas, afinal de contas, a presença depressiva do que
não diz e esse não-dito seria oco que anima do interior tudo o que se diz
(1971, p. 21).
Difícil para Freud, difícil para este estudo que pretende analisar o papel
de uma mulher, mãe de sete filhos, dos quais, o primeiro, Ziraldo Alves Pinto, é
o foco deste estudo e quer ressaltar a importância dessa personagem real e
sua contribuição na produção literária ziraldiana.
II.3 A guardiã dos costumes, mecenas da arte
Sherazade representa a cultura feminina das ricas mulheres islâmicas,
cobertas de jóias raras e sofisticadas, mulheres sábias, que preenchiam o
tempo com a arte e o mecenato, mulheres sensíveis e incentivadoras da arte
em geral e da literatura em particular (Cf. KERVEN, 2003, p. 09).
Também na vida, na história cultural e na obra de Ziraldo, uma mulher é
presença marcante: sua mãe, a Dona Zizinha. Ela representa a cultura das
mulheres interioranas da distante cidade de Minas Caratinga , que também
dividem seu tempo entre os afazeres do lar, a arte de fiar e ainda, de tecer o
texto literário. Não se cobria de jóias preciosas e pedraria. Contudo, era uma
presença preciosa e sofisticada em seu lar.
Entre o fiar e o tecer, D. Zizinha, mesmo sem a riqueza material de um
mecenas, mas, sobretudo graças aos seus dons morais e intelectuais,
promovia e incentivava o teatro infantil dos filhos, que atraía os parentes e os
amigos. Ela emprestava-lhes as roupas para a apresentação, dava palpites na
produção do cenário, sugerindo, às vezes, um estilo diferente de apresentar o
52
texto. Sem sair de casa, transformou-a em cenário, no grande palco teatral. Ali
as personagens infantis foram conduzidas pelo fio da sabedoria da mãe. Como
no teatro dos bonecos, mais que as marionetes, ou Pinóquio, talhado por
Gepetto, ou mesmo os famosos bonecos de madeira do teatro Giramundo;
essas crianças ganhavam vida própria, conduzidas pela sabedoria de Dona
Zizinha.
Dona Zizinha Alves Pinto, filha de pai ignorado e de Dona Elisa Alves
era casada com Geraldo Alves Moreira Pinto, filho de Hortêncio Alves da Silva
e Dona Manoela Martins da Silva. Ela incorpora a típica mulher interiorana cujo
perfil tão bem delineado, que Adélia Prado traça, da “mulher comum”:
N
ão sou matrona, mãe de Gracos, Cornélia,
Sou é mulher do povo, mãe de filhos, Adélia.
Faço comida e como.
Aos domingos bato o osso no prato pra chamar o cachorro
E atiro os restos.
Quando dói, grito ai,
Quando é bom, fico bruta,
As sensibilidades sem governo.
Mas tenho meus prantos, claridade atrás do meu estômago humilde
E fortíssima voz para cânticos de festa.
Quando escrever o livro com meu nome
E o nome que eu vou pôr nele, vou com ele a uma igreja,
A uma lápide, a um descampado,
Para chorar, chorar, e chorar,
Requintada e esquisita como uma dama (1991, p.12).
Mãe de Ziraldo, Ziralzi, Zélio, Geraldinho, Santinha, Helena e Beth, Dona
Zizinha também cozinha, alimenta cachorro, costura, borda, como declara
Dona Odete (Cf. anexo 04): “Acordava os filhos às cinco horas para fazê-los
ver o sol nascer. O dia começava cedo, ela não gostava de ver os filhos até
tarde na cama, era costume”. Para Dona Zizinha, o amanhecer era um
espetáculo maravilhoso; daí o costume de acordar os filhos para mostrar-lhes a
beleza desse momento, em que os raios rosicler tingem a manhã.
Essa mulher sensível às percepções sensoriais que vêm da natureza
tinha um olhar que transcendia as cenas rotineiras de cada dia, capaz de
conceber a vida poeticamente.
Nesse encantamento pela vida, ela conseguia transformar os cinzentos
dias em dias claros e ensolarados, lutando sempre para poder vê-los sempre
53
melhor, a cada amanhecer. Assim, Sherazade, pelo dom da palavra, livra-se da
morte e atrai para si o amor do rei. Dona Zizinha, assim como a personagem
ficcional da história As mil e uma noites é uma lutadora, paciente e
persistente. Mulher articulada e inteligente, possuidora de pensamentos que se
projetam sempre em busca de alcançar a felicidade, sem medo e neura.
Para Maria de Lourdes Manzini-Covre, o mito de Sherazade suscita
duas possíveis leituras. Uma é a da mulher articulada, inteligente, mulher
dissimulada que atinge o poder vencendo a luta pela sobrevivência, através de
caminhos sinuosos. A outra, seria a da mulher paciente e persistente que em
prol desse comportamento é comparada à santa. Entre os dois pontos de vista,
Maria de Lourdes prefere entender a personagem como pessoa/cidadão. Essa
é expressão empregada pela autora para se referir as mulheres que lutam
pelos seus direitos e desempenham relevante papel na sociedade ”como
pessoas/cidadãos específicos por desenvolverem esse veio cultural avançado”
(2002, p. 108-109).
Segundo depoimento de Sylvio de Abreu , jornalista e escritor:
Dona Zizinha adorava cantar e escrever poesia. Ela carregava um
caderno, onde registrava todos os acontecimentos do dia. Funcionava como
um diário. Um dia vinha de ônibus para Caratinga e perguntou se queria
saber o quê tinha acontecido no dia do nascimento do filho Ziraldo. Abriu o
caderno e começou a ler. Lia receitas de bolo, de doces, letras de músicas,
tudo, menos o que ela procurava. Perdida nos emaranhados dos textos,
virava, sucessivamente, páginas e páginas do caderno. Ela se explodia de
alegria e risos quando encontrava o perdido. Outras vezes fazia poesia.
Dona Zizinha adorava cantar e escrever poesia. Ela também gostava de
cantar, misturava letras de músicas existentes com pedaços inventados
por ela e afirmava ser uma criação, exclusivamente, sua. Quem a ouvia
achava estranhamente engraçada sua atitude (Cf. anexo 04).
Segundo Onair, fotógrafo:
Dona Zizinha, estava em um baile no Palácio de Cristal, o Esporte
Clube Caratinga, pegou o comando da mesa e escreveu uma bela poesia e
presenteou-o, com os versos de improviso. Às vezes, voltando da igreja,
tirava os sapatos e continuava o percurso a pé (Cf.anexo 05).
54
Em um tempo em que o discurso feminino não existia, Dona Zizinha
destoava das outras mulheres. Conforme Ziraldo aponta no fragmento abaixo,
sua mãe era uma mulher além de seu tempo.
Minha mãe deixava eu desenhar a casa toda. Além disso, minha
mãe também dobrava, costurava e fazia para mim uns livrinhos de papel
manilha para eu escrever e ilustrar minhas histórias. Tive grande incentivo
dos meus pais, tias, tios, parentes. (entrevista do site de ziraldo)
A mamãe sabia das coisas. Era protetora e irônica-era uma pessoa
que ria dela mesma, sabe? Algumas das melhores piadas que escrevi foi
ela quem inventou. Ela dizia, por exemplo, que o pior inimigo da gente é
amigo de infância, que faz a gente achar que está um caco, como ele,
[risos]. Lembro dela dançando no meio da rapaziada na festa dos 70 anos
do meu pai e alguém comentar: “Aí dona Zizinha, lembrtando do seu
tempo!”. Na mesma hora ela respondeu: “Que é isso, minha filha! Meu
tempo é o tempo todo”. Essa era dona Zizinha, sábia, e o tinha nem
primário. Minhas irmãs têm mais de 40 cadernos que ela escreveu. Ainda
vou compilar esse material e fazer as memórias da Supermãe (PINTO,
2005, p 49).
A educação familiar é a primeira instituição responsável pela educação
dos filhos, é nela que se aprende os valores da vida, funciona como matriz que
capacita os filhos para a convivência em grupo. Fruto da união da primeira
sílaba Zi de Zizinha, nome da mãe, e das duas sílabas finais do nome do pai,
Geraldo Alves Pinto, criou-se o singular nome de Ziraldo. Desse jogo criativo,
outros vieram marcar a infância do pequeno Ziraldo como a recordação da foto
para o álbum de família.
Ziraldo, Ziralzi e o lambe-lambe estavam a posto quando dona
Zizinha, mãe dos dois, ordenou ao fotógrafo: “Ainda o!”, e pediu à
empregada que fosse dentro “buscar o melhor amigo do Ziraldo pra
também sair na fotografia”. Intrigado com o pedido, pois o único amigo digno
de sair com ele numa fotografia era o irmão, Ziraldo sossegou quando
seu melhor amigo finalmente chegou, trazido pela esbaforida empregada.
Era um livro (PINTO, 2004, p. 50).
Ziraldo aos três anos nem sabia ler. Infância feliz foi a que teve:
piquenique com a família, a e descalça “a reprodução mais fiel do que era a
idéia de felicidade no Brasil dos anos da minha infância” (PINTO, 2004, p.87).
Dona Zizinha, a verdadeira supermãe, ensinou o filho a ler, isso em
Caratinga em 1939, época em que eclodiu a Segunda Guerra Mundial,
Ziraldo “aprendeu o bê-a-bá da maneira mais eficaz, ou seja, silabicamente.
As letra Ziraldo as conhecia, ajudado pela mãe, que as transformava
diante dos olhos do filho em coisas vivas. O “a” era a escadinha, o “esse”
55
era uma cobra.(...) Juntar as letras, contudo, eram outros quinhentos. b”,
tudo bem; “ba”, nem pensar. “Você vai abrir a boca, como quem vai dizer
‘bê’”, ensinou-lhe dona Zizinha, mas vai falar ‘A’, pois a última letra é que
faz a diferença. Experimente.” Ziraldo experimentou: “B...bá! E depois,
“p...pê; p...pó; f...fê.” Achou mais fácil que jogar bola de gude.(Revista
Educação, ano 08,n. 89 set. 2004, p.53)
Dessas reminiscências maternas Ziraldo criou, em 1969, a personagem
The Supermãe, protótipo de mãe extremamente protetora.
II.4 The Supermãe entre a ficção e realidade
Ziraldo invoca a proteção da mãe, musa guardadora de suas memórias,
e a mascara como personagem de ficção literária. A transferência da figura
materna em personagem ficcional é retomada de forma deformada, suas
atitudes transformam-se em ser caricatural, representa a performance de todas
as mães que têm o filho, como ser supremo, fruto do excesso de amor, carinho,
dedicação e cuidados. O sentimento exagerado e obsessivo pelo filho é a
marca do excesso de afeto e proteção que lhe atribui a mãe.
Dona Clotildes é o nome da personagem da obra The supermãe, que
nutre pelo filho Carlinhos, um excessivo amor. Ziraldo ironiza a relação entre
mãe e filho, suscitando, em torno desta, as mais divertidas piadas. Exemplar é
o entrecruzamento do texto da mitologia grega, a obra de Sófocles, Édipo rei,
escrita no século IV a.C., que trata da relação incestuosa entre mãe e filho.
Dessa relação Freud atribui, em seus estudos psicanalíticos, a teoria do
complexo de Édipo, quando a criança desperta a libido pela mãe.
Desse entrecruzamento dos textos tem-se, na obra de Ziraldo, um
discurso invertido, marcado pelo humor. Aí não é o filho que tem pela mãe o
sentimento de posse, mas sim a mãe que se sente dona do filho. Exemplar é o
fragmento abaixo, retirada do jornal Estado de Minas que a mãe faz uma
pesquisa intensa para escolher uma fantasia para o filho Carlinhos.
Ficou meses visitando museus e bibliotecas. Leu tudo quanto foi livro de
história de mitologia (...) enciclopédia leu umas quatro... Fascículos nem
sei quantos! (...). para escolher uma fantasia que ela achasse perfeita
pro filhinho dela aqui (PINTO, 1970 – Suplemento Estado de Minas).
56
A fantasia escolhida era a de Édipo. Em outro episódio, era dia das
mães e dona Clotildes espalha bilhetes pela casa toda, no boxe do banheiro,
espelho, sala e cozinha com os seguintes conteúdos, “Mãe é única”. Quando o
filho sai do banheiro e a saúda pelos dias das mães, ela responde “Você se
lembrou, filhinho”
(PINTO, 2002, p. 10)
.
As histórias de dona Clotildes surgiram em 1969, no jornal Estado de
Minas, e são episódios em quadrinhos que alegravam as páginas dedicadas às
charges e cartuns. Com irreverente humor, Ziraldo conseguiu definir o perfil de
muitas mães mineiras, reconhecidas pelos filhos, maridos, parentes e amigos.
O público transformou-as em ícone da grande e mineira. Para Ziraldo, a
mãe interiorana difere-se da mãe metropolitana:
Na província, nós fomos criados jogando bola na rua, pra lavar os pés
e dormir. Mãe era coisa boa e meio distante. Cheguei aqui, e era um tal de
fazer amigo que tinha que voltar pra casa por causa da mãe, eu fiquei besta.
Cunhei a uma frase para um deles: ‘A mãe é o maior inimigo do
homem’ (CAMPEDELI; ABDALA JR.1982, p. 61).
Morar no interior subentende liberdade de ir e vir, de não dar satisfação
de seus atos o tempo todo, aos pais. A e sabia que o filho estava brincado
por perto, mas que se precisasse dele poderia chamá-lo a qualquer minuto que
um vizinho ou parente informavam notícias do paradeiro do filho. A mãe, “coisa
boa e distante” (Ibidem), é a nostálgica lembrança que Ziraldo teve das mães
das crianças de seu tempo.
Esse estranhamento causado pela obediência dos filhos à mãe da
cidade grande suscitou Ziraldo a analogia entre os filhos do interior e os da
cidade. Esse fato remexeu o terreno da memória ziraldiana e remeteu-o à sua
feliz infância na cidade de Caratinga. É a mãe, receptáculo da memória, que
evidencia o discurso materno na frase que cunhou “O maior inimigo da gente é
a mãe”, é uma paráfrase da frase que a mãe disse ao Ziraldo quando se referia
aos amigos “O maior inimigo do homem é o amigo de infância”.
Protótipo de mãe, The supermãe, mulher superprotetora e narcisista tem
a certeza que o mundo gira em torno dela e do filho. Movida pelo excesso,
característica principal, de amor, carinho e cuidados com o filho, o autor a
57
transforma em símbolo. E o público a tem como personagem risível e ilariante,
capaz de intermediar a realidade e a imagística.
O importante papel da mãe na educação dos filhos torna-se o principal
instrumento de socialização, veículo primeiro da transmissão e divulgação da
tradição cultural da família. Manter a tradição familiar é não deixar cai no
esquecimento a contribuição de seres reais que fixaram sua história na
intimidade do lar e na sociedade.
Enquanto a sociedade patriarcal entendia que a mulher devia,
exclusivamente, cuidar de tudo: o lar, marido, filhos, criadagem, orações e
festejos, D. Zizinha ia além, preservava, criticamente, os valores familiares, as
tradição cultural de sua gente.
Criticamente, a partir da experiência positiva em família, Ziraldo suscita
no leitor um questionamento na relação familiar. O apego à família e ao grupo
constitui um relato das recordações de Ziraldo. A turma de amigos que
vagavam com Ziraldo pelos mais variados lugares da cidade encontrar-se-ão
em A turma do Pererê.
II.5 A Mata do Fundão: espaço da vadiagem
Os anos de 1960 a 1964 marcaram a publicação das primeiras histórias
em quadrinhos coloridas no Brasil: A Turma do Pererê. Ziraldo fazia os
“desenhos e criava as histórias, Paulo Abreu fazia as artes finais, Heucy
Miranda cuidava da cor, João Barbosa das letras e dos balões e Renato de
Biasi era o editor” (CAMPEDELLI E ABDALLA JR. 1982, p. 89). As aventuras
da Turma do Pererê saíram em uma revista mensal editada pelo O Cruzeiro,
quando por questões políticas, em 1964, deixaram de serem publicadas. Em
1973, voltaram novamente. Em 1990, foram reunidas em três volumes e se
transformaram em livros. Atualmente, é uma série televisiva, filmada na cidade
de Tiradentes, Minas Gerais com episódios de vinte minutos e apresentada nos
horários de 10h45min, pela TV Educativa, aos sábados.
58
O espaço idílico dessas aventuras foi, segundo Onofre Guzella de
Abreu, amigo de Ziraldo, dentista - o Nozito -, personagem de A Turma do
Pererê, o menino pobre como era chamado na obra, os lugares onde os
amigos brincavam:
Os lugares que Ziraldo descreve são os espaços aqui de Caratinga.
Ribeirão do Nódoa é nada mais que o rio Caratinga, porque ali tinha muitas
bananeiras em volta do rio. Eu era chamado na história em quadrinhos de
menino pobre, porque, ficávamos vagando nas ruas da cidade como se não
tivéssemos casas (Cf. anexo 06).
Wolfgang Iser atribui à obra ficcional a função de representar a repetição
fingida de uma realidade extratextual. Através de um processo de seleção da
realidade sociocultural, são retomados os referentes a lugares, espaço, tempo,
pessoas, outras literaturas, temas e, na poesia, as emoções próprias do poeta.
Esses referentes da realidade percebida, ao serem repetidos no texto ficcional,
exigem que se considere a intencionalidade do poeta que o atualiza no seu
texto ficcional. O referente passa a ser sombra, espectro da realidade
percebida que, combinado a outros elementos do texto ficcional assume valor
independente do atribuído à realidade (Cf. 1984, p. 383).
Essa seleção dos referentes combinados a fatores intratextuais, cria o
ambiente imagístico da obra literária. As retomadas do mundo percebido, não
pelo autor, mas também pelo leitor, passam a figurar na obra independente
da realidade anterior (Cf. ibidem, p. 384).
Assim também, nessas histórias em quadrinhos, Ziraldo retoma o
espaço, o tempo, o lugar, o tema da realidade vivida na cidade de Caratinga e
recriada na idealização da Mata do Fundão, habitada por personagens
percebidos e extraídos na existência real. Esses são recriados, repetidos na
ficção, tornando o texto uma forma de fingimento da realidade.
Segundo Iser, o leitor não ciente dessa combinação entre real e ficcional
não se prejudica ao interpretar o texto, pois entre ficcional e real está a
imaginação do autor. Real, ficcional e imaginário são elementos responsáveis
pelo processo de criação da obra literária (Cf. ibidem, p. 385).
Para Wolfgang Iser “O ato de fingir é, portanto, transgressão de limites”
(1984, p. 386). Transgredir os limites da realidade percebida é a reutilização
59
dos fatores retomados do contexto sócio-cultural dessa realidade e reintegrá-
los ao texto ficcional, através da combinação dos elementos repetidos da
realidade a outros fatores que caracterizam o texto de ficção.
O que Ziraldo faz em A Turma do Pererê é justamente isso. Retoma
pessoas, lugares, tempo, tema e, intencionalmente, os atualiza através da
repetição. O ato de fingir é percebido na zoomarfização das personagens que
compõem a história. Estes animais ganham o nome dos amigos de infância de
Ziraldo. Os bichos, heróis dessas aventuras, são as figuras clássicas das
lendas do folclore brasileiro: a coruja é o Professor Nogueira, o conselheiro da
turma; o coelho é o Geraldinho, o mais novo e extremamente nacionalista;
Galileu é a onça, representa o clássico bufão; Moacir Floriano é o jabuti, usa
capacete de asinhas, trabalha no correio, é o mensageiro da turma; o macaco
é Alan, comprido e calmo e é muito espirituoso; o tatu é Pedro Vieira, o que
conserta e inventa as coisas, Quiquita e Pimentel formam o casal de pássaros
joão-de-barro, e representam o amor e a união entre os casais. Curiosamente,
é Quiquita quem está à frente das decisões do lar.
O tema norteador da obra é a identidade nacional, trabalhado por
Monteiro Lobato, no Sítio do Pica-pau Amarelo, no ano de 1921. Zirado leu
tudo de Lobato quando criança e, talvez por isso, associado a um dos mais
fecundos movimentos literários de nossa história literária e cultural, o
Modernismo, soube agregar os valores traçados no Romantismo e
revalorizá-los em A Turma do Pererê. Efetiva, assim, uma valorização do
elemento nacional, com o índio; do estudo folclórico, com o lendário Saci;
estudo etnográfico, com a Boneca-de-Piche de jabuticaba, porque era negra,
muito parecida com a cor da jabuticaba; do estudo histórico e sociológico,
mostrados nas atitudes de solidariedade, lhaneza, igualdade, política, história
do Brasil, amor, música, folclore, entre outros. Só numa leitura vertical da
história em quadrinhos é que torna possível interpretá-los devidamente.
O espaço dos acontecimentos da Turma do Pererê , segundo Samira
Youssef Campedelli e Abdala Júnior, “é a Mata do Fundão (situada num lugar
indefinido do interior do Brasil) cujos os limites geográficos são a Fazenda do
Dodói, A Fazenda das Canoas, A Fazenda Inglaterra, o Ribeirão da Nódoa e o
60
Coqueiral do Salim” (1982, p. 89). A idealização da Mata do Fundão rompe as
fronteiras do espaço real, pois o público pode reconhecê-la em qualquer região
do interior do Brasil, mas quem conhece as raízes do escritor, reconhecerá na
idealização do espaço, o lugar aprazível, a Caratinga, onde viveu sua infância,
povoada por seres alegóricos, humanos e animais; todos, pertencentes ao
grupo de amigos e familiares das lembranças infantis.
Algumas histórias, porém, ultrapassam os limites de Minas como é o
caso da história 'Tudo pelo Brasil', publicada em agosto de 1963, em que o
Saci-Pererê es no alto do seu rodamoinho observando a estrada Belém-
Brasília, em diálogo com a Coruja, o professor Noqueira, pergunta se ele é
ainda amigo do Presidente da República. A coruja afirma que tem "sua
intimidade" e Pererê diz:
Então telefona pra ele, por favor, diz que prepare bastante asfalto e
algumas máquinas...
– Pra que, Saci?
–.Pra asfaltar a estrada Belém-Brasília, que s construímos com uma
pequena ajuda do estrangeiro (CAMPEDELLE. ; ABDALA JR. 1982, p. 61-
62).
Nas apresentações das personagens que habitam o imaginário da
Turma do Pererê, Ziraldo revela a verdadeira origem da coruja:
Professor Noqueira
Nos anos sessenta, quando a revista nasceu o Professor Noqueira
chamava-se General Noqueira! Mas logo começou o período político dos
generais presidentes e o posto perdeu o charme. Em 1976 o personagem
reapareceu reformado: virou professor. Uma profissão, aliás, que cai muito
bem para a sóbria coruja, que é o conselheiro de todas as horas para a
turma. Basta fazer uma pergunta para a resposta virar uma aula. Seu nome
é o do poeta e, hoje, professor Paulo Noqueira, de Itajubá, MG (PINTO,
2002, p. 06).
Essa variante no espaço da narrativa de A Turma do Pererê ocorre pelo
fato de o autor morar no Rio de Janeiro e estar politizado, próximo aos últimos
acontecimentos que marcavam o país.
As personagens que habitam a Mata do Fundão são o lendário Saci-
Pererê, não o tradicional da história de Monteiro Lobato, rompendo com o
61
protótipo do Saci maldoso, articulista, perspicaz na arte de assustar as
pessoas, mas simpático quando lhe convém. Ziraldo cria uma personagem
líder, sensível, poética, alegre e questionadora. Ele é um negrinho, fuma
cachimbo, anda nu, tem o gorro vermelho, é do tamanho de uma criança na
faixa de dez a doze anos.
Sua namorada é a Boneca-de-Piche da jabuticaba ela é o símbolo
da garota nacional do interior: adora música tocada ao violão, merece ser bem
tratada com serestas, presentes, poemas, festas, banquetes, carinhos, tudo.
Tininin é o índio da aldeia da tribo dos Parakatokas, cuja aldeia fica lá no
fundo da Mata do Fundão. É o amigo fiel de Pererê, que está sempre
inventando uma doença ou um perigo imaginário que ele tem que vencer e o
vence sempre.
Tuiuiu é a indiazinha, namorada de Tininim e melhor amiga da Boneca; é ela
quem organiza as festas na Mata do Fundão.
Outros personagens habitam esse microcosmo como personagens de
apoio com o fim de sustentar o enredo: Seu Nereu da Silva Pinto, pai da
boneca de Piche; Nozito, o menino pobre, filho de Dona Eborina e a turma
liderada por Rufino, sempre adversária à do Pererê: Virgilão, Leopoldo,
Gláucio Tatuzão, Queiroz, Geraldão e Marechal.
Ziraldo cria esta dicotomia: espaço urbano real X espaço rural, mais ou
menos idealizado. No urbano, espaço dos conflitos políticos, sociais e
econômicos; no rural, espaço da solidariedade, do companheirismo, da busca
de soluções em grupo, da valorização da cultura indígena e negra, da
preservação da ética, do nacionalismo, das soluções para os problemas
sociais.
A luta entre o bem e o mal existe na Matas do Fundão. Esse é o recurso
utilizado pelo autor, para comprovar que a disputa é um mal e que existem
pessoas solidárias, puras, honestas, capazes de ajudar outras. O autor se
despe de toda retórica de advogado, jornalista, entrevistador e incorpora o
linguajar simples, direto, compreensível ao público infantil. Humor, desenho e
história fazem da Turma do Pererê – um tratado de brasilidade.
62
III. QUINTAL DE ZIRALDO: RAIZ DA FICÇÃO?
Caratinga, na década de 1940, na província de Minas, era a cidade
construída em torno do rio Caratinga, com apenas uma rua principal,
entrecortada pelo rio Caratinga. Dividindo-a em duas, a cidade, do lado
esquerdo, fixaram-se o comércio e os moradores dos sobrados; do lado direito
do rio, havia construções espaças, terrenos baldios e morros. Era uma rua de
terra batida, cortada a picareta, comprida, que serpenteava sinuosamente
seguindo os caminhos do rio até a estação.
do lado direito do rio vivia a família Alves Pinto, o tão tinha o
glamour dos engenhos, nem tampouco dos sobrados dos centros urbanos do
século XVIII e XIX, mas era uma casa em que prevaleciam resquícios dos
hábitos culturais do período colonial e pós-colonial.
O ovo, leite, fubá, açúcar, entre uma conversa e outra dos moradores
vizinhos à casa de Ziraldo, transformavam-se em broa; o café aromatizava o
ambiente; o bolinho de chuva; ou biscoito de polvilho ficava pronto. Bastava
colocar a cadeira em frente a casa, quando esta o possuía o velho banco de
madeira fixado no chão de terra batida. O sol se punha, o jantar tinha sido
servido, o frescor anunciava a chegada da noite, o fumo e a palha para o
cigarro, a fruta da região jambo, laranja, goiaba, manga, amendoim,
jabuticaba ou a cana cortada com o mesmo canivete que cortou o fumo e
distribuída aos presentes.
O ritual ganhava força quando se juntava ao grupo o maior contador de
história do lugar. As histórias contadas mesclam-se às narrativas dos fatos que
marcaram o dia das pessoas durante o dia. Assunto não faltava para as
conversas. O nascimento de uma criança, o filho da vizinha que fora para a
cidade grande, os namoros, as novenas, o novo morador, o nascimento de um
bezerro, o tempo, a plantação, os medos, os desejos, uma nova receita
culinária, uma moda que chegava à cidade, a política, o mistério, a fantasia.
Em suma, esse hábito de narrar o momentâneo assemelhava-se ao escritor de
63
crônica, seja pelo uso da linguagem oral, seja pela simplicidade ou
transitoriedade dos assuntos.
Inicialmente, antes de focalizar o autor Ziraldo Alves Pinto no elenco dos
grandes cronistas mineiros, cumpre percorrer brevemente o caminho
perpassado pela crônica, entendida como um documento fiel que busca, na
realidade dos fatos, registra a história de um povo. Com o tempo, a prática
contumaz do cronista ganhou um novo estilo. O cronista apurou a percepção
da paisagem, ampliou seus horizontes, burilou a palavra e viu, além da palavra
escrita, o sentido da existência humana. Forte e viçoso, o relato documental ou
histórico infiltra no campo literário, originando em um subgênero: a crônica
literária. Cabe atribuir sua origem nas histórias dos reis de Portugal.
III.1 As crônicas no Brasil
A segunda metade do século XIV foi marcada por um profundo
movimento político e social que mudou o rumo da nação portuguesa. Em 1384,
morreu o rei de Portugal D. Fernando. Portugal passou a ser governada pela
espanhola D. Leonor Teles. Em conluio com o Conde de Andeiro, também
espanhol, ela tramou anexar Portugal à coroa espanhola. Mas tendo sidoi
descoberta a trama, o Mestre de Avis, filho bastardo de D. Pedro I, liderou uma
revolução que se estendeu por dois anos, culminando com o assassinato do
Conde de Andeiro. O povo toma o poder e coroa o Mestre de Avis a rei de
Portugal, que passa a se chamar Dom João I (Cf. MOISÉS, 1990, p. 31-32).
Durante 195 anos, Portugal viveu sob a dinastia de Avis. Período
marcado por relevantes transformações no desenvolvimento humanístico da
nação. Dom João I, homem culto, dinâmico, escritor, autor do Livro de
montaria, não titubeou em incentivar as letras, as descobertas e conquistas
ultramarinas. Em 1418, Dom Duarte, filho de Dom João I, cuidava do
“conselho, justiça e da fazenda” atribui a Fernão Lopes o título de “guarda das
escrituras” da Torre de Tombo. Em 1434, dom Duarte, então Rei de Portugal,
64
“incube-o de ‘poer a caronica’ dos reis de Portugal, desde D. Henrique a D.
João I” (cf. MOISÉS, 1990, p. 32).
Escrever a vida dos monarcas portugueses suscitou também a
necessidade de escrever a vida da coletividade. Tanto a individualidade da vida
a corte, quanto das pessoas comuns que viviam em Portugal foram abordadas
por Fernão Lopes. De sua inegável autoria são os textos: Crônica d’El-Rei D.
Pedro, Crônica d’El-Rei D. Fernando e a primeira e segunda partes, até
1411, da Crônica d’ El-Rei D. João I. Outras crônicas o-lhe atribuídas, mas
sem a comprovação merecida.
Inquestionável é o duplo valor de Fernão Lopes no século XV, como
historiador e literato. Como historiador, debruça-se no documento escrito e
analisa a fonte:
(...) com o máximo de rigor objetividade, honestidade e imparcialidade, no
encalço de reconstruir a verdade histórica e fazer a justiça na interpretação
dos acontecimentos e das personagens que neles se envolvem. Mais ainda:
manuseia copiosamente a documentação. Sempre à procura da verdade;
para tanto chega a cotejar três ou quatro versões do mesmo fato, no
incansável afã de ser justo e correto (Apud MOISÉS, 1990, p. 33) “.
Notam-se, nas crônicas de Fernão Lopes, características estilísticas da
literatura medieval, apresentadas na preferência pela linguagem arcaica. Além
disso, Fernão Lopes utiliza a linguagem cinematográfica: a técnica de corte; da
análise psicológica das personagens, transformando-as em seres vivos e
presentes na vida das pessoas; do retorno ao passado. Assim, esse cronista se
faz presente no ato narrativo e se destaca no hábil jogo dialógico. Essa
inovação o faz precursor, tanto da historiografia, quanto da literatura. Fernão
Lopes abriu precedentes, como Pero Vaz de Caminha, que chegou ao Brasil
em 1500 com a missão de registrar informações sobre a nova terra descoberta.
Por outro lado, na França em 1799, foi o professor de retórica, Julien-
Luis Geofroy, quem escrevia a crítica diária de suas atividades dramáticas no
Journal de Débat. Uma particularidade, em sua atividade literária foi o lugar
para ele reservado no jornal: notas de rodapé, na primeira página, com o
objetivo de divertir os leitores; assim era o feuilleton. Depois as crônicas de
Geofroy, foram reunidas em seis volumes, intitulados Cours de litterature
65
dramatique (1819-1820). Além da crítica diária, ela tratava de temas como
receitas de beleza e culinária, crimes, monstros, piadas, charadas, críticas de
teatro, resenhas de livros e outras novidades.
O fenômeno jornalístico tornou-se gênero literário no Brasil após 1836,
em forma de crônicas-folhetins. Um expoente dessa escritura foi José de
Alencar, que almejou atrair não o leitor masculino, mas também a leitora.
Tratava de uma diversidade de temas do coridiano local: dos fatos e costumes,
à economia da sociedade carioca do fim do século XIX.
José de Alencar revelou uma profunda reflexão acerca do novo gênero,
consciente da exigência do público leitor da crônica-folhetim, e ciente do
estranhamento que causou o novo gênero aos críticos e leitores. Assim,
escreve no folhetim de 24 de setembro de 1854:
É uma felicidade que não me tenha ainda dado ao trabalho de saber
quem foi o inventor deste monstro de Horácio, deste novo Proteu, que
chamam folhetim; senão aproveitaria alguns momentos em que estivesse
de candeias às avessas, e escrever-lhe-ia uma biografia, que com as
anotações de certos críticos que eu conheço, havia de fazer o tal sujeito Ter
um inferno no purgatório onde necessariamente deve estar o inventor de tão
desastrada idéia.
Obrigar um homem a percorrer todos os acontecimentos, a passar
do gracejo ao assunto sério, do riso e do prazer às misérias e às chagas da
sociedade; e isto com a mesma graça e a mesma nonchalance com que
uma senhora volta as páginas douradas do seu álbum, com toda a finura e
delicadeza de uma mocinha loureira dá sota e basto a três dúzias de
adoradores! Fazerem do escritor uma espécie de colibri a esvoaçar em
ziguezague, e a sugar, como o mel das flores, a graça, o sal e o espírito que
deve necessariamente descobrir no fato o mais comezinho!
Ainda isto não é tudo. Depois que o mísero folhetinista por força de
vontade conseguiu atingir a este último esforço da volubilidade, quando à
custa de magia e de encanto fez que a pena se lembrasse dos tempos em
que voava, deixa finalmente o pensamento lançar-se sobre o papel, livre
como espaço. Cuida que é uma borboleta que quebrou a crisálida para
ostentar o brilho fascinador de suas cores; mas engana-se: é apenas uma
formiga que criou asas para perder-se.
De um lado um crítico, aliás de boa fé, é de opinião que o folhetim
inventou em vez de contar, o que por conseguinte excedeu os limites da
crônica. Outro afirma que plagiou, e prova imediatamente em fim nihil sub
sole novum. Se se trata de coisa séria, a amável leitora amarrota o jornal, e
atira-o de lado com um momozinho displicente a que é impossível resistir. -
Quando se fala de bailes, de uma mocinha bonita, de uns olhos brejeiros, o
velho tira os óculos de maçado e diz entre dentes: "Ah! O sujeitinho está
namorando à minha custa! Não fala contra as reformas! Hei de suspender
as assinaturas".
O namorado acha que o folhetim não presta porque não descreveu
certo toilette, o caixeiro porque não defendeu o fechamento das lojas ao
Domingo, as velhas porque não falou na decadência das novelas, as moças
porque não disse claramente qual a mais bonita, o negociante porque não
66
tratou das cotações da praça, e finalmente o literato porque o homem não
achou a mesma idéia brilhante que ruminava no seu alto bestunto (Apud.
CHECKER, 2002, p. 59-60).
José de Alencar publicou o romance-folhetim, Cinco minutos,
encaminhando outros adeptos da nova literatura jornalesca como Machado de
Assis, Rubem Braga, Raquel de Queirós, Fernando Sabino, Carlos Drummond
de Andrade e tantos outros.
Hoje o conceito da crônica não é o mesmo surgido no Brasil do século
XIX, apresenta estas peculiaridades: um texto de caráter efêmero que circula
diariamente nos jornais ou revistas, escrita em primeira pessoa do singular
sobre os acontecimentos cotidianos, não é um texto extenso, ocupa uma
coluna do jornal, é destinada a um leitor implícito de nível médio que busca no
noticiário um texto breve e objetivo. Os acontecimentos diários são passados
ao leitor sob a ótica do autor. Pressupõe que o público alvo saiba o contexto
dos acontecimentos selecionados pelo autor para ser escrito naquele dia.
Resultando no discurso intertextual entre autor-leitor.
Surgida no início do Romantismo, no auge do nacionalismo, período de
fertilidade literária no Brasil, até nossos dias, a crônica assume um gênero
próprio, totalmente brasileiro.
O cuidado em selecionar o repertório vocabular da crônica mostra o
estilo claro, natural e conciso da linguagem, atrelado à sabedoria do uso das
figuras de linguagem, atribuindo ao texto um misto de conto e poesia. A
presença do narrador em primeira pessoa desnuda o subjetivismo, tanto do
poeta, quanto do cronista. Essa aproximação entre o lirismo e a narrativa não
desqualifica a especificidade do poético ou do narrativo, pelo contrário um
novo tom ao texto jornalístico.
O caráter de inferioridade dado à crônica assemelha-se ao veículo ao
qual a crônica circula, o jornal. O jornal é perecível, lê-se rapidamente, como a
refeição matinal, alimenta e prepara o homem para as atividades diárias.
Próprio para ser lido sem muito cuidado, o jornal objetiva passar o tempo,
informar, rir das piadas, informar o valor da moeda, o tempo, o futuro. Qualquer
lugar é palco para se ler as notícias do jornal. Lê-se no ônibus, no trem, no
avião, na banca, no escritório, no bar, ou no restaurante. Em suma, o jornal é
67
efêmero, cumpre a função de informar apenas fatos do dia. Cumprida sua
função momentânea, o jornal ganhará outra função, segundo Antonio Candido,
servirá: “para embrulhar um par de sapatos ou forrar o chão da cozinha“ (1992,
p. 14). A pouca durabilidade do jornal suscita a pouca importância da crônica
jornalística. Ela não tem a pretensão de “permanecer na memória e na
lembrança da posteridade; e a sua perspectiva não é a dos que escrevem do
alto da montanha, mas do simples rés-do-chão” (Ibidem).
A efemeridade é uma importante característica da crônica. O termo
efêmero diz respeito à estética do Barroco, referente ao transitório, passageiro,
evocando o bucolismo. Essa característica barroca foi o reflexo dos costumes
da época, associados à arquitetura e às festas barrocas, em cujas
comemorações religiosas e profanas, as construções alegóricas, deformadas
da realidade, se faziam apenas para durar o tempo das comemorações.
Representações momentâneas, os textos se perdiam junto às comemorações,
era a arte do inútil. Surgiu daí uma literatura efêmera e assim, a dicotomia
eterno/efêmero ficou associada ao contexto social da época.
Nas crônicas, o efêmero é uma característica singular, parafraseando
HOUAISS (2001, p. 1102), a planta dura um dia, mas pode florescer várias
vezes ao ano. O cronista semeia na véspera e a colheita virá com o tempo,
como se têm, na literatura brasileira, exemplos de autores que compilaram
suas crônicas em livro e foram consagrados por elas: Machado de Assis,
Carlos Drummond, Fernando Sabino, Clarice Lispector, Rubem Braga, dentre
outros.
Massaud Moisés apresenta sua visão sobre a origem e o volume desse
gênero no Brasil:
Conseqüentemente, se gaulesa na origem, a crônica naturalizou-se
brasileira, ou melhor, carioca: é certo que há cronistas, e de mérito, em
vários Estados onde a atividade jornalística manifesta vibração algo mais
que noticiosa, mas também é verdade que, pelo volume, constância e
qualidade de seus cultores, a crônica parece um produto genuinamente
carioca (1997, p. 103).
Considerada, por Antonio Candido como gênero menor, aclimatou-se tão
bem aos trópicos, que de cópia parisiense, passou a ser o espelho da
68
sociedade do século XIX. É certo que a crônica se naturalizou carioca, e que se
têm cronistas espalhados nas várias regiões brasileiras, como em Minas Gerais
se destacam Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Fernando Sabino,
Paulo Mendes.
O principal objetivo da crônica era aliviar, ou seja, desafogar a atenção
do leitor, dos sérios problemas tratados nas outras páginas do jornal, como
aponta Antônio Cândido:
A linguagem se tornou mais leve, mais descompromissada e (fato decisivo)
se afastou da lógica argumentativa ou da crítica política, para penetrar
poesia adentro. Creio que a fórmula moderna, onde entra um fato miúdo e
um toque humorístico, com o seu quantum satis de poesia, representa o
amadurecimento e o encontro mais puro da crônica consigo mesma (1992,
p. 15).
Os “quatro mineiros apocalípticos” (PINTO, 2004, p. 06) expressão
utilizada por Ziraldo para definir os maiores cronistas mineiros: Carlos
Drummond, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga. Suas
crônicas foram as leituras preferenciais de Ziraldo e em cuja escritura buscou
um modelo a ser seguido:
Ler as crônicas do Fernando e do Paulo Mendes Campos me despertava
para o sonho, para a reflexão, para a vida e me matava de inveja. É que eu
queria viver ou ter vivido os momentos que eles viviam ou viveram
queria que me acontecessem as mesmas coisas que lhes aconteciam,
queria participar ou ter participado da grande aventura existencial que me
parecia ser as das suas vidas. Lembro-me de uma crônica que Paulo
publicou na Manchete, onde ele contava que, quando chegou ao rio de
trem, foi entrando pela cidade, bem devagar, no meio da noite. A velha
máquina da Central ralentou sua marcha enquanto atravessava os poéticos
subúrbios do Rio. Paulo ouviu, então, o som de um pistom sendo tocado ao
longe e, enquanto aquele som ia deixando para trás ele fazia a grande
descoberta: “Adivinhei todo o meu futuro.”
Foi uma das maiores alegrias literárias que um daqueles quatro me deu. Eu
havia vivido, exatamente, a mesma aventura mineira que ele, no mesmo
trem, em outra noite, com outro pistom e não sabia que tipo de sentimento
havia me invadido naquela noite da chegada. Eles sabiam sempre! (Estado
de Minas, 15-10-2004, p. 6).
Dessas leituras dos quatro apocalípticos, realizadas nas décadas de
1940 e 50, emerge, nos anos 70, Ziraldo Alves Pinto, novo cultivador do estilo,
publicando esporadicamente, suas crônicas no jornal O Pasquim,
Almanaques de Ziraldo ou Almanaques do Pasquim. Mantém o mesmo
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traço comum, o tom de “conversa aparentemente fiada”, que Antonio Candido
observou não nos textos dos mineiros, mas também em outros autores
como nos textos de Rachel de Queirós (Cf. 1992, p. 17).
III.2 Crônica de Ziraldo: conversa de cozinha
Todo bom mineiro tem o dom de prosear, especialmente, nas cidades do
interior. O costume de puxar prosa marca uma das singularidades do povo
mineiro. A cozinha é o espaço reservado para as refeições e conversa da
tradicional família mineira, hábito cultivado desde os tempos coloniais,
conforme aponta Gilberto Freyre:
Nos sobrados e nas próprias casas-grandes de sítio, ou assobradas,
de subúrbio, a cozinha não teve a mesma importância que nas casas de
engenho; nem a mesa extensão de mesa de convento das casas maiores
de engenho, onde se sentavam para almoçar, para jantar, para cear quem
aparecesse. Viajantes e mascates, além dos compadres que nunca
faltavam dos papa-piões, dos parentes pobres, do administrador, do feitor,
do capelão, dos vaqueiros, das visitas de passar o dia: famílias inteiras que
vinham de outros engenhos em carro de boi. Eram mesas de jacarandá às
vezes de seis, oito metros de comprido como a que ainda conhecemos na
casa-grande - vasto sobrado rural – do engenho Noruega (2004, p. 143).
Com o decorrer do tempo, a família foi se adaptando ao contexto da vida
citadina, os hábitos mudaram e a mesa diminuiu, devido à proporção e função
que ela se destinava. Observa, ainda, Freyre:
Não que nas casas-grandes de sítios e nos sobrados a mesa de jantar,
também grande, comprida, para se sentarem em volta delas famílias
enormes. O pai e a mãe, os filhos, os netos, os parentes as visitas de
passar o dia, os hóspedes, os compadres do interior. Mesas de cinco x dois
metros. Mas nas cidades e nos subúrbios, a vida era, em certo sentido, mais
retraída e menos exposta aos hóspedes, os compadres do interior que nos
engenhos. Nos engenhos as leis da nobreza à brasileira obrigavam a
receber o viajante a qualquer hora com a bacia de prata, com toalha de
linho, um lugar na mesa, uma cama ou uma rede para dormir. Tudo trabalho
que as mucamas faziam com a mãos de anjo; mas dirigidas pela senhora de
engenho ou pela dona da casa que raramente aparecia a quem não fosse
parente próximo pelo sangue ou pelo compadrio. Instituição brasileira - o
compadrio – que não teve ainda o estudo merecido (Ibidem, p. 143-144).
70
Em torno da mesa enorme e dos bancos de madeiras, a família
provinciana se encontra para prosear. A “dona da casa”, expressão usada para
designar a esposa, sabe que o melhor lugar para conversar é na cozinha, em
volta do fogo. Por isso, deixa o alimento preparado com antecedência. O
imprevisto é a marca do mineiro. O compadre desavisado pode chegar para
engrossar a conversa na cozinha. A dona da casa desconfia sempre que pode
receber uma dessas visitas. Para se prevenir, prepara os alimentos com
antecedência, como um mágico, a esposa mantém um “coelho na cartola”, ou
melhor, um capado na caçarola ou na lata.
Os segredos da culinária mineira instigam o paladar de qualquer pessoa.
A mãe ensina à filha os segredos das receitas das avós. Nesse ciclo sem fim,
consegue-se dar continuidade à tradição da gastronomia mineira. O capado
engordado no fundo do quintal, bem perto do rio para evitar o mau cheiro,
meado, às vezes, com um compadre ou amigo, sempre enche a lata guardada
na despensa. A carne fica curtindo na própria banha do porco. O torresmo pré-
pronto é o tira-gosto, fácil para fazer, acompanha a cachaça. Doces ou
salgados, esses víveres são bem armazenados, com cuidado para durarem
tempo certo. Além disso, a horta sempre oferece verdura fresca.
Essa prática é, segundo Freyre, proveniente da cultura das senhoras
portuguesas que habitavam os grandes engenhos, cercadas de mucamas,
sobrando-lhes, apenas, “inventar comida” (Cf. Ibidem, p. 142):
(...) o caju foi europeizado pelas senhoras do engenho em doce, em vinho
e licor, em remédio (...). Da polpa dez o doce em calda, doces secos,
conservas (...) tudo isso, foi no Brasil, arte da mulher com as sobras do
açúcar que o marido fabricava no engenho, com as frutas que o colomis e
mais tarde os molequinhos apanhavam pelo mato, pelo sítio, pelo quintal.
(...)
O mesmo que com o caju, a banana e o cará se terá dado com o
jenipapo, com o araçá, com o mamão, com a goiaba,com o maracujá, com
o marmelo; mais tarde com a manga, com a jaca, a fruta-pão, o coco-da-
índia, frutas que misturadas com o mel de engenho, com o açúcar, com a
canela, com o cravo da índia, com a castanha, tornaram-se doce de calda,
conserva, sabongo, marmelada, geléia, enriquecendo de uma variedade de
sabores novos tropicais a sobremesa das casas-grandes e dos sobrados
burgueses; chegando a ir em latas e caixas ao próprio Portugal. Parece que
mesmo a palavra marmelada, hoje tão comum no vocabulário inglês, é
brasileirismo (Ibidem, p. 142-143).
71
Muitos desses hábitos foram mantidos até hoje, guardadas as devidas
proporções, as mais humildes casas da pequena Caratinga mantêm o asseio, a
limpeza do impecável fogão à lenha, o pano de saco alvejado e bordado usado
para toalha de banho ou para cobrir o bolo de milho, o cuidado com o quintal
da casa.
A lembrança da cozinha da infância de Ziraldo emerge na memória
discursiva do cronista, originando um espaço privilegiado onde os
acontecimentos do tempo passado serão suscitados no tempo presente,
relacionando-os a assuntos costumeiros do dia-a-dia. A cozinha de Ziraldo
assume, no texto, um sentido polifônico. Deslocou-se de seu sentido particular,
espaço físico da casa paterna, destinado às refeições, conversas familiares,
afazeres, especialmente, das mulheres da casa ou lembranças da meninice
para assumir o sentido universal de laboratório de produção de texto. É nesse
sentido que da cozinha-laborátório, contexto imagístico de um espaço
geográfico, criado semelhante à cozinha da memória de seu tempo de criança
que frutificará a releitura do cotidiano mineiro sob a ótica do cronista Ziraldo.
Dessa forma, em tom confidencial e íntimo, marcado pelo linguajar,
descompromissado com as normas gramaticais, mais próximos da linguagem
oral, Ziraldo conversa com o público leitor do jornal Estado de Minas, como se
estivesse conversando na cozinha de sua casa, em Caratinga. Na crônica
“Minas aquém das Gerais”, observa-se a estreita relação do autor com o
público mineiro, comprovando assim que Ziraldo mantém seu compromisso
com o regionalismo, ao afirmar que:
Por exemplo: me convidaram para escrever para outros jornais fora de
Minas. Não é uma coisa agradável? Pois, não aceitei. Garrei a falar com o
pessoal aqui de casa, como se tivesse conversando na cozinha e não estou
seguro se esta conversa interessa a sapo de fora. Sei se eles vão gostar.
A gente fica um tempão fora de Minas, mas nunca desaprende que é bom
ter desconfiômetro, jogar sempre com uma carta de menos (que eu nunca
entendi bem o que queria dizer mas foi num conselho que meu pai me deu
quando saí de casa e conselho de pai, seja o conselho que for, a gente o
decifra mas entende).
Fora de brincadeira, tenho coragem de escrever as coisas que tenho
escrito aqui para outro público, não. Sério. É quase certo que a maioria das
pessoas que me em Minas não ache graça na minha conversa, mas fica
tudo em casa, a gente se conhece, fico sem medo de passar vergonha
(2003, p. 10).
72
O tema abordado nessa crônica é a preocupação com a educação
alimentar. Ziraldo apresentar, sutilmente e ironicamente, um pequeno projeto
de intervenção para se aproveitar o alimento que melhor se adapte a condição
geográfica e climática da região:
Sexta atrasada escrevi aqui sobre a minha redescoberta da taioba.
Imagina se esse assunto ia interessar a gaúcho, por exemplo! Acho que
nem tem brejo, tem coxilhas e canyons como as sete mulheres não me
deixam mentir. Mas, preocupado com esse negócio de acabar com a fome
no Brasil, tenho insistido em que temos que tratar, entre todas as
providências, de um programa de educação alimentar, descobrir comidas
mais apropriadas ao nosso clima, com mais qualidade protéicas, com maior
adequação às características de cada região. E me lembrei da taioba
(Ibidem).
Interessante é a articulação entre o assunto atual com a lembrança dos
causos vinculados a familiares e amigos de sua cidade natal ou cidades de
Minas. Ziraldo entrelaça os fatos passados, presentes e futuros, como no
fragmento abaixo:
Eu estava falando das alegrias do cronista. Pois não é que a Irmã
Raymunda de Toledo Clume, do morro Alto em Vespasiano, confiante na
velocidade do Sedex-10, empacotou, diligentemente, um presente, botou-o
dentro de uma caixa e mo (epa!) mandou qui para o Rio, onde o presente
chegou fresquinho ainda, eu diria até orvalhado. Eram folhas de taioba,
acondicionadas dentro de um plástico hermeticamente fechado e molhadas
com uma agüinha altamente confiável. [...].
Não sou nostálgico quanto à comida da minha infância, pois Marília,
que é de Minas, mantém a cozinha da casa como se ainda estivéssemos
em Caratinga. Mas a taioba da Irmã funcionou para mim, como a madeleine
do Proust! (Mineiro quando sai de Minas e mete a intelectual fica assim
citando Proust.) (Ibidem).
Outra característica da crônica de Ziraldo é a habilidade em lidar com os
assuntos diversos entrelaçados no mesmo texto, sem perder o rumo da
temática principal, consegue chegar ao fecho do texto mantendo a mesma
coerência que o iniciou. Como aponta Stélio Furlan, ao estudar as crônicas de
Machado de Assis, diz:
Se a crônica é, por natureza, uma escritura fragmentária e
descontínua, aberta às multiplicidades temporais e espaciais, cabe ao
cronista, no caso de Machado, articular o variegado do vivido: a partir de
recortes, superposições, intextos, torna-o inteligível, isto é, corteja dar um
sentido final ao que escreve (2003, p. 61).
73
Nesse sentido, Rolando Barthes afirma que o método para ensinar algo a
alguém “não pode ter por objeto senão a própria linguagem, na medida em que
ele luta para baldar todo discurso que pega: e por isso é justo dizer que esse
método é também ele uma ficção” (2001, p. 42-43). E ainda Barthes afirma
que:
(...) quer ao escrever, quer ao ensinar, que a operação fundamental desse
método de desprendimento é, ao escrever, a fragmentação, e ao expor, a
digressão ou, para dizê-lo por uma palavra preciosamente ambígua: a
excursão. Gostaria pois que a fala e a escuta que aqui se trançarão fossem
semelhantes às idas e vindas de uma criança que brinca em torno da mãe,
dela se afasta e depois volta, para trazer-lhe uma pedrinha, um fiozinho de
lã, desenhando assim ao redor de um centro calmo toda uma área de jogo,
no interior da qual a pedrinha ou a importam finalmente menos do que o
dom cheio de zelo que deles se faz (Ibidem, p. 43-44).
Dessa forma, Ziraldo constrói sua própria trança literária apropriando-se
das idas e vindas do discurso do outro, para transformá-lo em discurso da
ficção. Cada parte da trança é uma voz que se escuta no texto, ela
corresponde a um fragmento do texto. Da união dos fragmentos, forma-se o
texto, que corresponde ao que Barthes denominou de excursão ou digressão,
em que o fio condutor do texto perpassa os caminhos que conduzem ao
discurso final. Sem se perder nos entrecruzamentos dos textos, Ziraldo trança
cada fio com a maestria de um artesão que sabe conduzir uma roca.
Neste fragmento, Ziraldo excursiona pelo texto, faz largo uso da
metalinguagem, retoma e confirma, mais uma vez a justificativa de não aceitar
escrever para outro jornal fora de Minas:
Se fosse para outro jornal não teria a coragem de escrever sobre isto e
aí iria perder a alegria de ficar conversando essas coisas. Embora, na
cozinha, eu seja um macaco em loja de louça ou mesmo um macaco na
cozinha adoro falar sobre segredos culinários de Minas. depois de
velho, por exemplo, foi que descobri que jiló tem um dos sabores mais
sofisticados e mais agradáveis que pode existir. Quiabo foi outra descoberta
tardia como foi também o maxixe. Menino do meu tempo não comia
verdura. Era frango todo dia, comida que estava ali, à mão. Uma vez meu
pai ganhou um saco de aninhagem de açafrão da Dona Rita da Serra que
meiava um capado com a gente. Comemos tanto arroz com açafrão em
casa, que os meninos todos ficaram com a palma da mão amarelinha e a
cara alaranjada. Açafrão não era verde... (2003, p. 10).
74
Outro fragmento que Ziraldo apresenta, nessa crônica, é uma receita de
broa, especiaria muito famosa da gastronomia mineira, exemplo de tradição
culinária que Dona Zizinha ensinou para Vilma e a Vilma ensinou para a
Marília: “Para usar uma expressão que eu detesto, resgatar a verdadeira broa
da infância mineira” (2003, p. 11):
Bom, pra terminar meu papo, vou revelar um segredo que minha mãe
passou para a Vilma, minha mulher, e a Vilma passou a Marília, a campeã
mundial da broa. Para usar uma expressão que eu detesto, resgatar a
verdadeira broa da infância mineira. É a seguinte: pegue uma chávena de
farinha de trigo, uma milharina, meia de leite, uma chávena rasa de açúcar
(já viu que as duas primeiras são com aquele montinho além da borda),
quatro ovos inteiros, meia chávena de óleo, duas colheres de sopa de
manteiga ou margarina (a broa lambuza os dedos da gente de óleo), duas
colheres de porroial e, last but not least, uma pitada de sal. Misture bem
com uma colher de pau a manteiga, o úcar, o óleo, o sal e os ovos.
Depois coloque farinha de trigo, a milharina, o leite e, por último, o porroial e
acabe de misturar. Unte bem o tabuleiro com óleo, derrame a massa e leve
ao forno quente. Deixe assar por trinta minutos e, tão logo ela comece a
esfriar, coma. Broa não se guarda.
Ah, sim, esqueci de dizer que é preciso que a quitandeira tenha mão
boa exigência fundamental de uma boa receita pois, quem não leva
jeito, estraga até receita de brigadeiro (Ibidem).
Para confirmar o estilo da crônica em tom de conversa de cozinha, Ziraldo
refere-se à produção de sua crônica como “... chega de conversa de goma,
voltaremos ao sério, semana que vem“ (Ibidem).
Em outra crônica, intitulada “A síndrome do tio Chiquito”, Ziraldo se sente
à vontade para tecer elogios aos dois filhos, Fabrízia e Antônio Pinto, como
fazia o tio Chiquito. E o faz no jornal de circulação mineira, pois sabe que isso
não causaria estranhamento ao público, uma vez que todo mineiro adora
bajular os filhos:
Sabe este rapaz que é candidato ao Oscar de melhor diretor pelo
Cidade de Deus, o Fernando Meirelles? Vocês imaginam, um rapaz o
jovem, fazendo um filme onde as pessoas falam português, uma língua que
povo rico do mundo nenhum fala, chegar lá, se enfiar no meio dos gringos e
emplacar quatro indicações para o prêmio mais importante do mercado
internacional do cinema. É brincadeira? Fiquei felicíssimo. Sabem por quê?
Porque o conheço, desde antes de ele começar a fazer cinema. Quer dizer,
ele fazia cinema comercial, era o rei dos comerciais da televisão paulisto-
brasileira, já cheio de prêmios. Seu sonho, porém, era fazer cinema de
verdade, só que ele nunca achava a hora. Aí, tinha uma mocinha que
trabalhava com ele e que arranjou um filme para fazer. Na empresa que ele
comandava ela estava, também, começando a fazer seus filmezinhos.
75
falou pra ele: “Fernando vou fazer um filme aí. Você não quer co-dirigir o
filme comigo?” Não é que ele topou? Ela a menina, estava era aproveitando
pra fazer um curso completo de cinema com ele e o filme foi um imenso
aprendizado para ela, um curso completo de cinema, o Fernando era um
craque. Para ele foi, também, uma experiência importante, um teste para
ficar seguro de que poderia levar um filme inteiro, de ponta a ponta. Fizeram
um filme muito bom, muito bem feito. O filme se chamava Menino
Maluquinho 2, a Aventura”. A menina que convidou Fernando para essa sua
primeira grande aventura cinematográfica se chama Fabrízia. Minha filha!
(Ibidem).
Segue nessa mesma crônica um elogio ao filho: “Porque a música do
Cidade de Deus é de Antônio Pinto, sabe?, aquele menino que fez também a
música do Central do Brasil (que, aliás, quase que leva o Oscar, também). Pois
é, meu filho!” (Ibidem).
Envolvido nos causos dos parentes, Ziraldo acrescenta à sua lavra um
caso que demonstra mais uma vez o retorno ao passado familiar. Ao reelaborar
uma conversa entre seu pai e um tio, denuncia o entrelaçamento do discurso
regional dos moradores do interior de Minas, como forma argumentativa na
construção de sua crônica, utiliza-se da piada, uma característica muito forte na
escritura de Ziraldo. Leia-se:
Um dia um tio velho do meu pai perguntou a ele quantos filhos eu tinha.
Meu pai falou que eu tinha três. “Quêsquiêsfaz?”, perguntou o tio. E meu pai
respondeu: “A mais velha faz teatro, a do mei faz cinema e o caçula faz
música”. E o tio então falou: “Õ, Geraldo, num tem nem um fi útil?” (Ibidem).
No mesmo campo semântico de conversa de cozinha, Ziraldo expressa,
pelo teor de suas crônicas, a intimidade que o mantém ligado ao público
mineiro, estabelecendo uma cumplicidade entre autor e leitor. Interessante é a
confissão que ele faz, de seu estilo pessoal frente aos mineiros:
Confesso ao meu leitor de Minas que só contei este caso aqui porque
estou escrevendo em casa. Deixa eu explicar: tenho recebido convites para
publicar minha crônica semanal em outros jornais do Brasil; não tenho
aceitado porque tudo que tenho publicado aqui é conversa de cozinha,
mesmo, confissões mineiras, coisas que não tenho vergonha de contar pro
meu povo. Se fosse escrever pro Brasil inteiro, ia ter que ter certos
cuidados, muita gente o ia entender. Agora, imagina, ficar contando
vantagens dos meus filhos pra gente de fora. Deus me livre! (Ibidem).
76
Ziraldo denomina sua crônica como conversa ao do fogo. Na crônica
escrita em 18 de julho de 2003, com o título de “Conversa ao do fogo”
aborda o problema dos aposentados no Brasil. Para iniciar a conversa, dirige-
se aos conterrâneos da seguinte forma: “Anda, porém acontecendo tanta coisa
neste nosso fantástico País que me sinto tentado a sentar na beira do fogão,
ficar bebendo um café quente com biscoideporvilho e ir esticando conversa”
(2003, p. 10).
Como o filho que volta sempre à mãe para ofertar-lhe uma pedrinha ou um
pedacinho de lã, Ziraldo oferece aos leitores seus causos fragmentados, sem
contudo, desprezar um caso em detrimento do outro. Eles são como fio que
engrossa a trança do texto. Todos os fragmentos juntos constituem o espaço
sagrado, que é a ambientação da crônica no espaço da conversa de cozinha.
III.3 Resquícios de causos nas crônicas de Ziraldo
O mineiro conversa no seu silêncio. Uma possível justificativa seria
talvez a distância geográfica que o afastou do convívio com outros indivíduos,
restrito apenas ao contato com os familiares e o pequeno grupo que o cerca.
Esse isolamento o fez bio: pode, no seu silêncio, aproveitar o tempo para
refletir sobre a vida. No entanto, quando aparece alguém, cautelosamente,
inicia a conversa que flui como se velhos conhecidos fossem. Se amigo antigo,
a conversa parece nunca ter sido interrompida pela distância.
A oralidade mineira foi o grande filão que Guimarães Rosa encontrou
para elaborar sua escritura. É justamente nessa reconstrução do linguajar
mineiro que descortina o processo de criação de seus textos. Guimarães
penetra sonoramente no reino das palavras. Entra e desvenda a magnitude da
palavra, a origem arcaizante, percebendo-a na sua inteireza, comparando-a às
múltiplas línguas que domina. Toma a palavra na sua origem, no momento em
que surgiu.
Em entrevista, realizada em Gênova, por ocasião do "Congresso de
Escritores Latino-Americanos", Guimarães responde a Günter Lorenz, quando
77
interrogado se ele é um revolucionário das palavras: "(...) eu preferiria que me
chamasse reacionário da língua, pois quero voltar a cada dia à origem da
língua, onde a palavra ainda está na entranha da alma, para poder lhe dar
luz segundo a minha imagem” (ROSA, 1994, p. 49).
Guimarães exalta a responsabilidade do escritor, de tomar a palavra no
seu estado bruto atribuindo-lhe o significado que deseja. Para ele "o sertanejo
perdeu a inocência no dia da criação e não conheceu ainda a força que produz
o pecado original” (Ibidem, p. 50). Se Guimarães é a luz que ilumina a palavra,
então os homens que habitam suas histórias "vivem sem a consciência do
pecado original; portanto não sabem o que é o bem e o que é o mal” (ibidem, p.
58). O grande pecado de certos escritores é não ter consciência da força que o
homem exerce, pela habilidade no trato da palavra, como elemento
transformador do ser humano na sociedade "Considero a língua como meu
elemento metafísico, o que sem dúvida tem suas conseqüências” (Ibidem, p.
45).
Na crônica “O feijão e então”, Ziraldo revelou como foi difícil aceitar o
convite para escrever em uma coluna cultural do jornal Estado de Minas,
que seu grande filão era o desenho:
Quando Clara Arreguy me convidou para escrever aqui, todas as semanas,
titubeei. (...) lembrei-me de como foi que começou minha, digamos,
carreira literária.
(...) Desde o começo da vida, o que fiz foi narrar alguma coisa quando
desenhava. Podia ser uma garatuja ou, mais tarde, uma ilustração, um
cartum, meu quadrinhos... o desenho foi, para mim, sempre, uma forma de
contar alguma coisa. Até o dia em que descobri a palavra, a que estava no
princípio (2005, p. 06).
Se Guimarães Rosa reconhece que a palavra tem poder e que o escritor
precisa se conscientizar da responsabilidade em lidar com ela. Ziraldo
comunga desse mesmo pensamento. Para ele:
A palavra é a que gera o ser humano, é que permite que ele elucide seu
pensamento, formule suas idéias; é a palavra que o informa e o distingue. A
palavra vem antes da imagem e do som. Ela é a mais perfeita matéria prima
da arte. É a palavra que nos permite perscrutar (!) as regiões mais fundas
da alma humana. Da qual, aliás, a palavra é o átomo (Ibidem.).
78
A personagem de Guimarães Rosa, Riobaldo, em Grande sertão:
veredas pronunciou uma frase que se consagrou célebre “Viver é muito
perigoso” (ROSA, 1984). Se se permite uma analogia, Ziraldo disse que
“escrever é que é difícil”:
Me lembro do dia em que descobri que escrever era preciso. Fiz a
descoberta, mas em vez de sair por escrevendo, continuei desenhado.
Era mais fácil, muito mais fácil. Escrever é que é difícil!
A palavra voa, como sabemos. É preciso gravá-la. Foi porque o ser humano
conseguiu o prodígio de materializar a palavra e passá-la a geração, que a
humanidade sobrevive. Ou se desentende (Ibidem.).
Se uma característica da crônica é a marca da oralidade. O mineiro é,
pela sua especificidade, o grande cultivador dessa arte. Em busca das palavras
em sua fonte primitiva, Guimarães Rosa, em sua astúcia e sensibilidade,
encontrou no mineiro o grande contador de causos, buscou em Minas a
matéria-prima para seu primeiro livro de conto, Sagarana. Atingiu notoriedade
literária em Grande sertão: veredas, obra que revela o imaginário mineiro
através de um linguajar muito próximo da oralidade.
Ziraldo constrói sua crônica com base na oralidade do povo de Minas,
nos causos contados em suas crônicas, como reflexos de uma cultura de raiz
mineira. Busca na narrativa popular, apesar da diferença que se estabelece
entre a linguagem escrita, a fonte primitiva do texto. O falar mineiro é
transportado para a sua crônica, simulando o som da oralidade da palavra,
como também muitas das palavras que Ziraldo registra, têm sentido dentro
do contexto em que ela originou, é o caso da palavra “caiaia” que
semanticamente significa, conforme Ziraldo explica, “desapontamento",
significado que não se encontra em dicionário da língua portuguesa, todavia é
uma palavra do linguajar oral dos mineiros. Lembrar dessa palavra o fez
perscrutar o caminho da memória, para entender em que circunstância esse
dicionário provinciano teria sentido. Registra-se o momento em que a palavra
veio à sua memória:
Aí, quando comecei o texto, me veio a vontade de falar mineiro. É que
hoje de manhã, revendo velhos cadernos meus dos longínquos tempos de
79
escola, topei lá, numa velha composição, com uma palavra da qual havia
me esquecido há muito tempo: caiaia (2004, p.06).
As lembranças do tempo em que Ziraldo vivia em Caratinga trouxeram
outras palavras e expressões usadas na cidade “E saí a me lembrar de outras
palavras dos meus tempos de municipais: pongar, estumar, cair de chopa,
tiotado, prazo, farinha de mun-i, papiateiro, mamucha, birosca, banho
espertinho” (2004, p. 06).
Para Nádia P. de Magalhães Gomes e Edmilson de Almeida Pereira, a
literatura erudita se interessa pelo texto escrito, analisa seus vínculos formais e
semânticos da qual a crítica literária extrai os significados estéticos e
ideológicos organizados pelo escritor. O mesmo não ocorre na narrativa
popular cujo foco é a oralidade. O enredo depreende-se da fala mental,
desenhada no pensamento do emissor e captada pelo receptor no momento
em que se a unidade de sentido. Se no texto escrito, o leitor não
compreendeu o sentido de uma palavra, pode imediatamente voltar à página
anterior e capturar o não entendido. Ao passo que na narrativa oral, se o
ouvinte não acompanha a velocidade das palavras pronunciadas pelo narrador,
o entendimento não se na concomitância do fato, pois o narrador não pode
quebrar a unidade do relato da história (Cf. 1992, p. 176-186).
O contador de histórias é um artista da palavra e do gesto. Ele teatraliza
os fatos à medida que os narra; revela, por meio da narrativa, a realidade social
e a imaginária. Para garantir veracidade à sua história, utiliza-se da realidade
social, da presença concreta do homem e de seu vínculo a organizações
coletivas como a arte, a política, a economia e a religião. Esses recursos
conferem conhecimento de sua comunidade e apresentam suas habilidades
criadoras aos pares. Estabelecer o vínculo ético entre a platéia e narrador é
pressuposto essencial para apresentar a realidade social, inserindo em sua
história fatos que definam o espaço conhecido ou que possa torná-lo parte do
universo cultural e humano.
Desse modo, Ziraldo contextualiza as lembranças das palavras de seu
tempo de criança na escritura de suas crônicas:
80
(...) papiateiro (que os dicionários dizem que é um cara muito cheio de
conversa, mas que lá em Caratinga, pelo menos, na minha família, se
referia a pessoa teatralmente fingida: “Leva ele a sério não. Tá fazendo
papiata”.), mamucha, birosca (para bola de gude), banho espertinho (com
água morna), tadim (para se referir a qualquer pessoa, em qualquer
circunstãncia, com simpatia: ‘Você tem acompanhado o Lula?
Tadim do
Lula!” (2004, 30 jan. p. 6).
Interessante é o plurissignificado da palavra “acá” que Ziraldo revirou no
baú da memória para mostrá-la aos leitores de Minas:
(...) estaé mágica, de múltiplo uso. Como é meu Deus que eu fui me
esquecer dela, uma palavra que a gente, naqueles tempos e talvez hoje
ainda, nas ruas das limpinhas da molhadíssima Caratinga ouvia e
falava uma centena de vezes por dia.
Acá, presta atenção no que eu vou falar. Acá, olha isto! Acáa vou falar
pra você. Aça olha quem está chegando. Acá, ce podia me trazer um
copo d’água? Aça, qual foi a explicação pro fracasso dos meninins no
Chile? Aça, sô, num tenho idéia. Aça, deixa de ser besta, sô! Aça!
Vem cá, olhe aqui, veja bem, por gentileza, preste atenção, me
esclareça. Vocês acham que nós, a mineirada, vamos gastar pra conversar,
expressões tão sofisticadas? Aça quem ce pensando que nós somos?
(Ibidem).
As expressões repetidas conferem o ritmo, é a dinâmica responsável
pela manutenção do discurso do narrador. Faladas ou cantadas, as palavras
compõem a melodia à qual se entrega o ouvinte: essa repetição compara-se ao
refrão, lugar de descanso, fala pausada, tempo para respirar e retornar à
seqüência narrativa. Ziraldo, na crônica “O sondiminas”, publicada em 09 de
janeiro de 2004, escreve uma coluna sobre o som da fala dos mineiros,
sentimento despertado por um texto, de autor desconhecido, que circulou na
Internet. O texto se referia a uma receita de milho com pipoca, seguindo a
mesma linha do texto da internet, Ziraldo escreveu o seu texto, somente com a
melodia da fala mineira:
Hermafrotite era fidihermes e fidiafrodite e Zeus fezele
viradeuspratender unpedi diunmaninfapaixonada purêle. Elachava aninfa
quiassim o jovendeus iaficassonadela. Poisbem.
perguntaraojovendeusentendissimo: quequié melhor? Serôme ôssemulhé?
Udeuzindisse: sêmulher! (PINTO, 2004, 09 jan., p. 06).
81
Para Ziraldo, a distância de Minas contribuiu para fazê-lo ouvir de longe
a cadência da fala dos mineiros, pode perceber de fora de “o sondiminas”:
Nosso modo de falar tem uma musicalidade que, vivendo aí, não
chegamos a perceber. Nosso modefalar tem um ritmo preguiçoso,
malemolente que a gente pensa que é coisa de baiano uma preguiça
maior que do que o falar do povo da Bahia. A gente estica as oxítonas e
arrasta a nossa fala num cantochão que nunca havia sendo apenas mineiro
como eu era (Ibidem).
Na fala mineira, outros elementos se ausentam do texto escrito: a
respiração do narrador, os ruídos dos pés e das mãos, os murmúrios dos
ouvintes, a interferência da natureza com seus sons característicos. O silêncio
do texto escrito possibilita a apreensão de outros feixes de significados que
compõem a narrativa oral. Ao referir-se ao autor do texto da internet Ziraldo
revela a sua importante experiência apreendida da escrita do som de Minas:
Seu autor não se deu a conhecer, mas sua descoberta, para mim, foi
importante. Sua experiência resulta bem diferente da de Guimarães Rosa,
Carmo Bernardes ou Mário Palmério, por exemplo. Ou, no caso do gaúcho,
a experiência de Simões Lopes. E não era também um texto caipira. Era
outra coisa (Ibidem).
Ziraldo reconhece que essa prática de transcrever o som da fala instiga
os autores que tem a curiosidade e a percepção desse universo sonoro tão
peculiar de Minas. Dessa forma, refere-se aos autores citados como o
escultores das palavras:
Rosa, Palmério ou Bernardes eram escultores da palavra. Usaram
cada uma delas como se fossem pedras brutas e foram dando a cada uma
a forma da alma de Minas, Guimarães Rosa bebeu, inclusive, em outras
fontes para achar uma forma mineira de falar, um jeito parecidao com o som
da fala de sua gente do sertão. Acrescido, é claro da sua capacidade
criativa, de seu constrtutor ou escultor de palavras. Ele foi inclusive, ao
português arcaico, foi a formação histórica de cada palavra, pesquisou ceca
e meca mesmo! -, grego e latim, para achar um som mineiro, comovente,
emocionante, verdadeiro (Ibidem).
A imaginação do narrador subverte as regras de organização da
sociedade, pintando-a alegoricamente. Assim, a reconstrução da realidade se
mescla as personagens reais e inventadas. Dessa mistura, sobressai o espaço
82
sagrado. A sacralização está ligada à revelação de um mundo sobrenatural que
o homem desconhece, mas tenta decodificá-lo, pela e pela prática religiosa,
imaginando-o através do mundo conhecido.
Assim, através da narrativa, o contador de história decifra o próprio eu e
o do mundo. Diferencia a classe dominante da dominada, revela a diversidade
econômica, política e ideológica que caracteriza a linguagem mineira. Utiliza o
anacoluto, considerado erro na linguagem escrita pela gramática da língua
padrão, mas por essa quebra da seqüência, no texto oral, revela uma
identificação do universo cultural inter-relacionado. Compartilhando dessa
articulação entre o discurso do contador de história e a platéia, torna-se
possível estabelecer o significado global do texto. Responsável pela identidade
humana e social.
Como observa Guimarães Rosa em está Minas: a mineiridade,
publicada no Suplemento literário do jornal Estado de Minas, em 1967, o
mineiro é espectador por natureza, velhíssimo, reflexivo, é gente imaginosa,
resiste à monotonia. Nunca é inocente, e traz mais individualidade que
personalidade. Acha que o importante é o ser, e não o parecer. Sabe que
agitar-se não é agir. Aceita o paradoxo, pois acredita que a vida é feita de
imprevisto. É um idealista prático, otimista através do pessimismo. Sua filosofia
é a cordialidade universal, sincera. Necessita de solidão nos assuntos
verdadeiramente importante. Desconhece castas. Não tolera tiranias sabe
deslizar fora delas. Se precisar briga. Tem memória longa. Escorrega para
cima. quer o essencial, não as castas. Enigmático pica o enigma em
pedacinhos como fumo de rolo, e faz contabilidade com a metafísica. Apto ao
reino-do-céu. Não acredita que as coisas se resolvem com facilidade. Mas
aprendeu que as coisas voltam, que a vida dá muitas voltas, que tudo pode
tornar a voltar; apresenta extrema religiosidade (Cf. ROSA, 1967, p. 12-13).
As crônicas de Ziraldo seguem o mesmo percurso de Rosa. Contam a
história de Minas Gerais, tema preferencial de viajantes que aqui chegaram e
se encantaram com a paisagem de Minas. É como se a paisagem mineira
evocasse em suas mentes as lembranças mais caras, necessariamente
sofreadas pelo longo afastamento e, de repente, brotassem a despeito de suas
83
vontades. Observa Maria Arminda do N. Arruda, que, tomados pela melancolia
que ocupa pessoas afastadas de suas querências, os artistas mineiros pintam
a paisagem com sentimentos vigorosos (Cf. 1990, p. 50):
Se para os viajantes oitocentista, a trajetória que percorreram requer
significativa dose de heroísmo, puderam encontrar no terreno alcantilado
das Minas Gerais e nos precipícios divisados certa harmonia nos feitos. O
andamento do discurso surge eivado pela correspondência entre ambiente e
emoção. Aquele com o poder de criar o fascínio sobre eles, esta enquanto
resultado da capacidade de deixar-se enlevar por estímulos inusitados.
Nesse encontro, individualizam também a natureza. Não é qualquer
imagem, mas aquela singular, forte e imaginativa, que transita em direção
aos espectadores e foge destes para ela, num movimento circular. No
percurso fusionam-se os homens e a realidade, ficando difícil distinguir
limites claros e precisos entre o humano e o natural, ocorrendo, pois, o
verdadeiro processo de identificação. A operação identificadora, não
obstante, prende-se aos fios da memória, tecidos em oficinas distantes por
mãos adestradas para seguir o ritmo de rocas que emitem ruídos
absorvidos apenas por ouvidos previamente educados (Ibidem, p. 51).
O poder da paisagem, de suscitar sentimentos passados liga-se, no
entanto, a uma visão particular, àquela que se assemelha aos sentimentos
vividos pelo autor e saudosamente irá ser reconduzida como espaço de
lembranças pleno de emoção e saudade. Transformou-se na matéria de
estudos literários em tempos diversos. A paisagem é o conteúdo do fazer
poético de muitos autores que viram na região de Minas o elemento principal
para descrevê-la.
Na crônica “Visita do velho senhor”, publicada em 27 de junho de 2003,
Ziraldo expressa o fascínio que a paisagem de Caratinga exerce sobre ele:
”Voltei porque sempre achei o maior barato rever minha terra, andar pelas ruas
perdidas por onde comecei a construir este cara em que me transformei, pelos
caminhos onde fundei a sede das minhas dores” (2003, p. 11).
Rever a cidade é, para Ziraldo, a reconstrução de um tempo que
permanece vivo em sua memória, recriando o espaço imaginário que a ação do
tempo não conseguiu destruir. Percorrendo os caminhos pisados quando
criança, preenche a ausência que a distância entre ele e a cidade estabeleceu-
se. Seu relato sobre a volta à cidade denuncia o sentimentalismo exacerbado
que o liga a ela deixando à mostra o vínculo que o mantém preso a sua raiz.
84
Voltei para subir ao alto da montanha que domina minha, hoje, nada de
pequena cidade. Era do alto da Itaúna que eu via aquela mancha branca
lááááá embaixo, uma casinha atrás da outra, as ruas pequenas
acompanhado os vales, que a minha cidade cresceu correndo junto com
seus córregos. Voltei para ver se ouvia de novo a voz da Neide, coleguinha
do ginásio, minha primeira intelectual, evangélica e ledora, blica e
pedante, dizendo ao olhar a pequena vila no piquenique que fazíamos lá em
cima: Vista daqui, o branquinha, Caratinga me lembra Damasco!”
(Ibidem, p.12).
A lembrança do piquenique com os colegas de infância na pedra Itaúna
é a eterna lembrança dos tempos que o esquecimento não pode apagar, a
modificação na topografia da cidade não desfez a imagem que o acompanha
ao longo de sua vida. A cidade é o repositório das lembranças passadas.
Mesmo sofreada pela trágica ação do tempo, do homem e dos fenômenos da
natureza, a cidade de Caratinga sobrevive, sem perder seu charme e
encantamento. A pedra Itaúna compara-se ao Pão de açúcar, metáfora
construída por Ziraldo para demonstrar o valor dessa pedra na topologia da
cidade e o fascínio que ela exerce sobre ele. Segundo Luís Cabreira, fotógrafo,
Ziraldo refere-se aos artistas de Caratinga como “Esse nasceu sob a sombra
da Itáuna”, demonstrando que a pedra tem valor místico de iluminar os artistas
locais (Cf. anexo 07). Subindo a Itaúna novamente, Ziraldo percebe as
modificações que a cidade sofreu:
Agora, do alto da pedra preta nosso Corcovado, nosso Pão de
açúcar –, o que se o milhares de casas e centenas de edifícios de
todos os tamanhos e alturas que cobrem os morros todos, onde a paisagem
branca da infância é apenas o miolinho no centro da urbs (!) (Ibidem).
Ziraldo, agradecido e comovido, refere-se ao tratamento que recebeu
dos moradores de Caratinga quando retornou à cidade:
E me trataram tão bem e me acarinharam tanto que não tenho como
explicar aos meus urbanísticos filhos o que está acontecendo comigo. E
nem aos meus amigos que, como eu, nasceram na província mas dela só
querem o esquecimento (Ibidem.).
A sensação de conforto e reconhecimento que Ziraldo experimentou
quando deixou a província o fez pensar na possibilidade de morar
definitivamente nela. Momentos passageiros, todavia reconfortantes, que o
85
encheram de energia para seguir seus dias. Tem-se a impressão que quando
esse sentimento está prestes a esgotar-se, vem novamente à cidade para
experimentar desse mesmo gozo. Em tom epitáfico, Ziraldo expressa a esse
respeito: “Volto da terrinha decidido a largar tudo e me instalar de vez ali e ali
esperar que a terra, onde pisei pela primeira vez, seja a terra que vai cobrir
minha definitiva despedida” (Ibidem).
Ziraldo ficou admirado de constatar que a cidade de Caratinga
sobreviveu a uma enchente, sem precedente, na história local. Viu a força, a
união e a coragem dos moradores na reconstrução da cidade, quando, na
madrugada do dia 16 de janeiro de 2003, as águas das chuvas subiram
exorbitantemente, atingindo oito metros acima da calha do rio Caratinga.
Amedrontando a população, devastando a cidade, derrubando prédio,
provocando vítimas, destruindo o comércio e os sonhos da comunidade.
Silenciosos e extáticos, os moradores contemplaram os estragos que a fúria
das águas deixou. Inesperadamente, viu-se brotar uma força suprema, um
ânimo tirado não se sabe de onde; a solidariedade, a esperança e a fé foram
as ferramentas que os moradores tinham para vê-la, aos poucos, surgir da
lama fétida. Contagiado pelo bravio esforço que seus conterrâneos
demonstraram frente a essa calamidade, Ziraldo revela em suas palavras quem
é o povo de Caratinga:
Pois não é que a tempestade que quase destruiu Caratinga, uma
cidade que cresceu torta como uma samambaia aguada com
anticoncepcional – fez renascer na alma dos seus cidadãos fantásticos
espírito de solidariedade e superação. Parece que fizeram uma nova cidade
por cima da que a chuva encharcou. Caratinga nunca esteve tão limpa,
florida ou tão preparada para virar uma cidade com tantas flores quantas
têm as cidades do Rio Grande do Sul ou de Santa Catarina –, as lojas
nunca estiveram tão bonitas e o povo nunca esteve tão consciente das
vantagens da união de todos em torno de um propósito (Ibidem.).
Ziraldo atribui à recuperação da cidade a são João Batista, padroeiro de
Caratinga, e demonstra a religiosidade do povo em se apegar ao santo.
Incentiva os produtores da Festa O maió e mió São João de Minas que vêm
realizando a festa desde 2003, acreditando que a festa traz benefícios para a
cidade, por atrair várias pessoas para a região:
86
Caratinga se Chama São João de Caratinga. Todas as cidades do
Brasil têm o nome de um santo embutida em seu nome, o do seu santo
protetor. Pois não é que em menos de seis meses depois das chuvas,
inventaram de fazer uma festa de São João lá? E a festa ficou tão bem feita,
tão bem feita, que, em breve, será tão importante quanto as festas juninas
de Caruaru ou de Campina Grande. Com a vantagem de ficar mais perto!...
O povo de lá ficou assim: impossível! (Ibidem).
Ziraldo agradece aos moradores a estátua do Menino Maluquinho,
presente que recebeu da cidade, pelo reconhecimento de seu trabalho:
Não se pode ficar com considerações literárias ou existenciais diante
de uma estátua de dez metros de altura, na entrada da cidade.
Principalmente se esta estátua é a de um personagem que você criou; uma
estátua que é a materialização de uma pequena idéia, de uma proposta
existencial de quem acredita que o outro tem, para um Supremo Juiz, a
mesma importância que você tem.
Momento: existe um supremo Juiz? Se não existe, que diferença faz?
(Ibidem).
A crônica ganha o tom prosa sem compromisso, despretensiosa, de
linguagem simples: “deixando de ser comentário mais ou menos argumentativo
e expositivo para virar conversa aparentemente fiada, foi como se a crônica
pusesse de lado qualquer seriedade nos problemas” (CANDIDO, 1997, p. 17).
O reflexo é que dessa mistura geográfica e do modo de viver dos mineiros,
formam-se a nacionalidade de um povo e uma literatura além-fronteiras.
87
IV. LAPSOS DA MEMÓRIA: ARTESANATO NO TEXTO-FICÇÃO
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia.
Mas o Tejo não é mais belo que o rio
que corre pela minha aldeia.
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia
(Fernando Pessoa)
Ziraldo não é, ao modo de Alencar, o colibri a esvoaçar em ziguezague;
é o sabiá-laranjeira, da Zona da Mata, que cantou no Rio de Janeiro e ecoou
em Belo Horizonte, para o público do jornal Estado de Minas. ele escreveu
suas crônica de fevereiro de 2002 a setembro de 2005, às sextas-feiras e a
partir de outubro de 2005, então, escreve suas crônicas no jornal O Tempo,
também para o público de Minas, aos sábados.
O fato de residir e trabalhar no Rio de Janeiro contribui para dar um tom
inusitado às crônicas de Ziraldo. Antes da explosão folhetinesca no Brasil,
julgou-se que o ambiente era o responsável pela criação do artista. O contexto
histórico-literário brasileiro era fecundo, haja vista o desenrolar dos estilos de
época. O Arcadismo (1768-1836), com temas bucólicos, tratava da natureza
e do índio, denunciando os males da sociedade, como as Cartas chilenas, de
Tomás Antônio Gonzaga, panfletadas às escondidas na cidade do ouro. O
Romantismo (1836) ufanava a beleza do Brasil, mas também denunciava o
tráfico de escravos, na voz de Castro Alves. No Modernismo, com a atitude
demolidora da primeira fase, que serviu para romper com o modelo de herói
fabricado no Romantismo, de Peri a Macunaíma, nota-se grande diferença.
Poesia, crônica e romance contextualizam a sociedade da época. E será
no lapso da memória, ou seja, na ausência do espaço que se estabeleceu
entre as lembranças do passado vivido na infância e o momento presente,
Ziraldo ressuscitará a palavra, preenchendo os vazios com a palavra renascida.
Como um artesão une o passado ao presente, revelando que o cotidiano
das pessoas são os temas mais ricos da atividade do cronista.
88
IV.1 A crônica, artesanato da memória
O mérito de Ziraldo como cronista mineiro revela seu estilo individual:
homem culto, conhecedor de outras culturas, além da brasileira, a preocupado
com o cidadão, impaciente diante dos problemas brasileiros relacionados à
educação, saúde e pobreza, solidário, cordial, regionalista de raiz. Sua
linguagem incisiva revela preocupação em flagrar fatos e valores do tempo em
que viveu em Caratinga e rememorá-los na sua escritura: os costumes, o
ensinamento familiar, a preocupação com a ética e a moral, com a educação e
a política no país. Talvez por ser também advogado e conhecedor dos códigos:
civil, penal e ortográfico, atrelado à simplicidade da crônica o faz mestre nesse
gênero. E especialmente, seus textos se pautam pela consciência de que o
leitor é coadjuvante no processo de criação literária.
No dizer de Antonio Candido “Parece às vezes que escrever crônica
obriga a uma certa comunhão, produz um ar de família” (CANDIDO, 1992, p.
13). Ziguezagueando entre os diversos assuntos tratados em sua crônica
Ziraldo revela sua proximidade entre os assuntos e o público, tratando-os como
se fossem tratados em família. Poder-se-ia dividir a matéria de sua crônica em
assuntos que servem para divertir o blico, reflexão sobre o fazer poético,
política social do Brasil, memória da infância e dos parentes, descrição da
cidade natal, a fugacidade da vida e do grupo de amigos.
Ziraldo apresenta na crônica “Saudade do meu pai”, publicada em 20 de
novembro de 2004, a impotência diante da morte e a certeza que ela por si
mesma provoca. Essa dicotomia será o fio condutor da narrativa. Começa pela
lembrança do pai “Ele me voltou pelo verbo, é o que estou tentando dizer. No
universo de minha memória, as palavras que ele usava e que morreram com
ele, retornam agora” (PINTO, 2004, p. 06). A relação com a morte ganha vida,
quando Ziraldo revive a linguagem que o pai utilizava no convívio do lar. As
brincadeiras infantis e os ensinamentos morais afloram no texto: a palavra fez
renascer o espírito paterno. Das lembranças que guarda do pai, as brincadeiras
ressurgem como uma lembrança muito forte em sua vida:
89
Meu pai me voltou quase assim, concretizado na maneira com que,
através das palavras de sua propriedade, ele se comunicava com os filhos,
cadê o toucinho que estava aqui? Gato roeu cadê o gato? Tá no mato; fogo
queimou; cadê o fogo? Água ‘pagou’; caa água? Boi bebeu; cadê o boi?
Ta ‘massando’ trigo; cadê o trigo? Galinha espalhou; cadê a galinha?
botando ovo; cadê o ovo? Frade comeu; cadê o frade? Tá celebrando
missa.”Então vamos todos para a procissão!” e, segurando, com firmeza, a
mão pequenina do primogênito, meu pai saía com os dedos da outra mão
caminhando sobre o meu braço e, tic,tic, tic, tic, ia direto à axila, para fazer
cosquinha (2004, p. 06).
Quando o pai de Ziraldo chegava a casa e logo a família se alegrava.
Com suas rimas desconexas, ele provocava risos, como neste fragmento que
Ziraldo retoma: “Zezé Leoni/ toca o trombone / foi proclamada rainha da
beleza./ tão elegante/ puxa o barbante (possivelmente da cortina do palco)/
cadê a rainha da beleza? / Ela estava de purgante!” (Ibidem).
Ziraldo une palavra e imagem, visualiza as cenas através de uma escrita
cinematográfica numa linguagem simples e marota; pincelada pelo tom de
piada e ironia. A lembrança da infância ingênua em que as crianças se alegram
com as novidades sem saber o significado real dos acontecimentos funciona
como texto-matriz que o impulsiona a lembrá-los. Nesse rememorar jocoso,
cada lembrança funciona como peça de um gigantesco quebra-cabeça, cada
recordação é a peça principal na reconstrução do tempo perdido. O fato dessa
infância ingênua se ligar a acontecimentos políticos, desnuda um artista
politizado, de aguçado senso crítico associado ao senso de humor. Essa
sutileza se comprova na lembrança de um grande acontecimento:
Um dia, no grupo escolar, todos nós recebemos uma latinha
redondinha. Mil novecentos e quarenta e três, por aí. Era o governo
estadual que tinha mandado. Era pra gente devolver cheia. É. Cheia disso
que vocês estão pensando mesmo. Uma oportunidade de mandar o
governo a (*). Mandamos. Caratinga tirou o primeiro lugar. Era fogo.
Ficamos na maior felicidade. Era o mais alto índice de chistose na
população infantil da região (CAMPEDELLE, ; ABDALA JR., 1982, p. 54).
O discurso nominal, as frases breves o auxiliam na reconstrução do
passado. Os amigos amalgamaram-se todos em um compartimento especial
da memória de Ziraldo. Assim, chama-lhes como se fosse o treinador da
Seleção conferindo a escala para o grande jogo revelando a adoração pelo
time Flamengo:
90
E quem pode se esquecer do Zé Quipa, Carmo e Betinho: Argeu,
Pedro Heleno e Mite: Nico, Celso, Galofonte, Quiquita e Zito, "o maior
esquadrão do nobre esporte bretão que pisou na Zona da Mata"? E de
que cor era a camisa deles? Vermelho e preto (Ibidem, 54).
O registro da lembrança das moças bonitas que fizeram parte do tempo
vivido em Caratinga demonstra o homem que sabia apreciar a beleza das
garotas da região:
Mas eu falava do rastro da glória. O disco, o petróleo e depois vieram
as misses. Tinham inventado os jogos da Primavera no Rio. E quem vem
ser a sua primeira (ou Segunda?) rainha? Martha Abdalla. De onde? De
Caratinga. Depois, outra moça bonita saiu da cidade pra representá-la em
um concurso de maior importância em Poços de Caldas: Rainha do
Turismo! Quando a moça voltou, desfilou em carro aberto. Uma caravana de
automóveis foi recebê-la trinta quilômetros antes da entrada da cidade,
bandeirolas e foguetes, uma festa. A moça merecia: tinha tirado o vigésimo
lugar no concurso! E se, porém, a conquista máxima era ser miss Brasil,
Minas Gerais tinha que ter uma. De onde? Pois não deu outra coisa. Foi
Stael Abelha, filha da minha professora Dona Glorinha, a sobrinha do
Monsenhor Rocha, o chefe de sua torcida. Eu não queria contar, mas vou
ser obrigado: a garota de Ipanema é de Caratinga. Mudou-se para cá, pois
não dava pé notarem ela vir e passar (Ibidem, p. 56-57).
Uma expressão genuína da mineiridade se revela na gastronomia
mineira, às vezes, estranha para o visitante. Cozinhar é um fenômeno social,
relacionado a três categorias: o sabor, o afeto e a memória. A culinária é uma
arte que combina esses três ingredientes. Os pratos simples, aprendidos dos
ancestrais são passados de geração a geração e os que os aprendem
conservam a mesma receita, talvez acrescentando um detalhe de
complemento. Talvez, o esforço do trabalho e o amor sejam a química dessa
comida que se mostra na escritura de Ziraldo:
Depois, meus amigos, Agnaldo Timóteo o inventor da mãe é a nossa
maior glória. comemos muito arroz-doce juntos, já ganhamos muito
destões, ele cantando Coração Materno em cima da mesa do Bar do Bonfim
e eu desenhando mulher pelada.(...) este nome quase feio de quem já
pegou chistose já e passou sua infância lá, comprando chouriço e murcia no
Bar do Orlando pra levar no hotel pro Grande Otelo, hóspede ilustre da
cidade, que desceu do ônibus gritando: Eu quero comer chouriço, eu quero
comer chouriço” (Ibidem, p. 55).
91
A prática do intertexto, na produção da crônica revela o conhecimento
literário de Ziraldo sobre a cultura clássica, também parte do discurso
memorialístico do autor. Essa biblioteca marcada pela lembrança dos livros
lidos durante a vida se faz presente em suas crônicas. Ele se identifica com
Dom Quixote e Agnaldo Timóteo é Sancho Pança. Assim, são lembradas as
importantes personagens da obra-prima de Miguel de Cervantes, paródias dos
heróis da Idade Média. Ziraldo faz, também, neste fragmento, uma alusão ao
primeiro verso do soneto de Camões – “Busque, amor novas artes, novo
engenho” (CAMÕES, 1994, p. 26):
E estamos nós dois [Agnaldo Timóteo e Ziraldo] eu na minha, ele na
dele – Dom Quixote e Sancho Pança, um de Rocinante e outro de Mustang,
lutando contra nossos moinhos de vento, e, enquanto nos ajudarem nosso
engenho e nossa arte, vamos cantando e espalhando por toda parte este
nome (Ibidem, p. 55)
Os traços da linguagem mineira marcam a escritura de Ziraldo, quer na
descrição de cenas, quer na referência a costumes e à culinária de Minas. Nos
casos populares, na música, no cheiro, nas recordações das brincadeiras da
infância ingênua, dos amigos e personalidades. Tudo isso, construído, faz com
que permaneça o fôlego de um artista que não quer deixar de registrar nas
crônicas o retrato vivo de suas recordações.
São as recordações do tempo de criança, as lembranças mais
agradáveis da memória são retomadas no texto infantil.
IV.2 O texto infantil, mosaico de recordações
Há, segundo Afrânio Coutinho muita dificuldade em caracterizar a
literatura infantil. Ela compreende o livro escrito para criança ou o que ela ,
que não foi criado exclusivamente para crianças, como As fábulas, de La
Fontaine, As viagens de Gulliver, de Swift, ou as Aventuras de Telêmaco,
de Fénelon (Cf. COUTINHO, 1997, p. 200).
Cecília Meireles, em 1951 publicou um estudo, com o título “Literatura
infantil” , explicitando o que se compreende por literatura infantil:
92
a) livros escritos para a infância( didáticos, recreativos e morais);
b) contribuição folclórica(canções de roda, brinquedos e parlendas,
contos, lendas, etc.);
c) livros para adultos passados para o domínio infantil (Dumas, F. Cooper,
Dichens, M. Reid) e as grandes obras da literatura universal (MEIRELES,
1951).
A literatura infantil é uma ciência epistemológica, uma ramificação da
literatura. Diferente da literatura para adultos, em que o escritor produz
múltiplas emoções para seus personagens, ela visa recrear, educando, se
possível, e favorecendo o desenvolvimento da inteligência da criança:
A literatura infantil é por essência desinteressada, no sentido de ensino
sistemático, embora deva ser educativa e possa ser instrutiva. Seu fim é
emocionar artisticamente a criança, pelo sublime, pelo cômico, pelo
patético, pelo trágico, pelo pitoresco ou pela aventura e, ao mesmo tempo,
despertar-lhe a imaginação, aperfeiçoar-lhe a inteligência e aprimorar-lhe a
sensibilidade ( COUTINHO, 1997, p. 200).
uma tendência a considerar nos autores que cultivam esse gênero o
estilo e o a idéia, para não prejudicar a formação espiritual e moral e o
desenvolvimento mental da criança. Ainda deve provocar o deleite, o amor pela
leitura, curiosidade, ser cil sem ser banal. O autor deve empregar um
linguajar compreensível, mas que alargue o vocabulário da criança. Alguns
autores, segundo Afrânio Coutinho, também contribuíram para viciar as
crianças erros lingüísticos, com sua linguagem descuidada, registrando erros
em seus textos literários (Cf. COUTINHO, 1997, p. 200).
As fontes da literatura infantil no Brasil seguem as mesmas fontes dos
contos de fadas que chegaram aqui no Brasil no século XVII, oriundos dos três
magos dos contos de fadas: Charles Perrault, irmãos Grimm e Hans Christian
Handersen. Esses escritores buscaram, no folclore, nos contos populares que
coletaram da boca do povo e na sua própria história, a fonte primitiva para
compor sua obra.
Ziraldo vai à fonte primitiva, à raiz. Segundo Antônio Houaiss: “raiz é o
vínculo emocional, freqüentemente estabelecido com o lugar ou cultura em que
nasceu e/ou viveu” (2001, p. 2379). Assim o autor busca identificar-se nas
93
histórias reais do povo, raiz da pequena província de Caratinga. Como
Andersen, ele faz parte do povo e escreve a própria história de sua vida.
Em 2003, Ziraldo visitou a Guatemala. A viagem proporcionou-lhe um
triplo prazer. O primeiro, foi a possibilidade de conhecer a cultura, a geografia,
a gastronomia, os hábitos e costumes dessa civilização. O segundo prazer foi o
encantamento de conhecer a obra de Humberto Ak’Abal, importante poeta
guatemalteco, descendente dos maias. E nessa leitura, ele se ateve,
especialmente, nas páginas destinadas a desvendar as recordações da
infância dos meninos cor de terra, como Humberto Ak’Abal descreveu sua raça.
A partir desse deleite, Ziraldo teve seu terceiro prazer, revelado como
num momento epifânico: quando percebeu que ele era da cor daqueles
meninos descritos no texto do guatemalteco e se identificou na mesma cor de
terra que eles tinham. Na crônica escrita em abril de 2004, refere-se a eles:
“Queria escrever uma obra que abordasse os meninos morenos brasileiros, a
obra recebeu o título de Os meninos morenos” (PINTO, 2004).
Para estruturá-la, Ziraldo utilizou na abertura dos capítulos poemas de
Humberto de Ak’Abal, Ziraldo constrói sua história de vida em Os meninos
morenos; reconta sua história buscando, na origem da etnia, o traço que
marca seu percurso, do nascimento à maturidade.
Em Os meninos morenos, a lembrança da infância do pequeno Ziraldo
tem muito de comum com a infância dos meninos brasileiros. Verifica-se nessa
obra, o maior exemplo do sujeito pós-moderno, segundo foi referido por
Stuart Hall, como o sujeito fragmentado, “composto de várias identidades,
algumas, às vezes contraditárias ou não resolvidas (HALL, 2002, p. 33). Ziraldo
confirma que se sente incompleto:
Quero voltar ao Lajão. Lajão era o nome da vila à beira do rio doce
quando, comandada por meu avô, minha família se mudou para lá. Quero
voltar porque preciso esclarecer tantas histórias. Ali vivi dos três aos seis
anos. Todas as lembranças são nebulosas e fora de ordem (2004, p. 10).
É no ir e vir das lembranças, que Ziraldo junta os fragmentos do
passado. Os rios que fizeram parte da sua infância marcam presença
significativa em sua escritura. Na desordem do pensamento, o autor
94
apresentou, no texto acima, o rio Doce, que passava no fundo da casa do avô.
Esse rio banhava o Lajão, local onde ele viveu dos três aos seis anos e que em
1940 passou a chamar-se Conselheiro Pena. Esse ideal de compor e recompor
o puzle da memória só se realiza no reencontro com outro, os moradores
locais, os costumes ou com a paisagem, buscando o vínculo que restaura a
história de sua identidade.
Ziraldo demonstra inquietude ante o risco do esquecimento e volta no
tempo, para retomar pessoas, lugares e as cenas da vida oculta sob o manto
da neblina do passado. No fragmento abaixo, refere-se ao rio Caratinga, numa
comparação lírica ao tão decantado rio Tejo, dos poetas portugueses, mas
também realista, ao lembrar o lado fatal daqueles belos remansos:
Quando nasci, as cidades de minha infância eram exatos pueblos. E
tinham rios. Mais belos do que o Tejo. Era bonito, ainda que mortal, o
pequeno rio da minha aldeia, o lugar onde nasci. Era pouco mais do que um
córrego, com belos remansos escondidos entre os bambuzais, onde os
meninos nadavam escondidos e morriam de esquistossomose, pois
achávamos engraçadinhos os caramujos que vinham colados em nossas
canelas, quando saíamos da água (2004, p. 10).
E, num lapso de memória, ele se refere ao belo imponente rio Doce,
numa comparação com o pequeno rio de sua aldeia, e recordando momentos
pitorescos vividos às suas margens:
O rio da outra aldeia, este sim, era belo de verdade. Corria por entre a
mata densa e eram lindas as suas curvas, com as árvores debruçadas sobre
seu leito. Tão grande quanto o Tejo, chamava-se Doce e dava lagostas.
Minha avó gostava de pescar com os filhos nas suas margens. E dizia que
não tinha sorte com peixes, que só sabia pescar lagostas. E falava: “Querem
ver?”. Aí, afundava a vara de seu anzol, remexia o fundo do rio, turvava a
água e, em poucos segundos, saía com uma lagosta embolada na linha do
anzol. “É fácil” minha avó dizia. “Elas ficam distraídas passeando no
fundo” (Ibidem, p. 11).
Num jogo intertextual com a antológica “Canção do exílio” (DIAS,
1966,p. 21), Gonçalves Dias”, também saudosista, o autor caratinguense
recorda, dos tempos de escola, o coro dos melros, que compunham a
paisagem e hoje não mais existem:
95
Uma das recordações mais felizes da minha infância é a sinfonia dos
melros nas palmeiras. A gente chegava muito cedo para a primeira aula do
Grupo Escolar que ficava na praça que era cercada de altas palmeiras.
Pois é: minha terra tem palmeiras onde, em vez de sabiá, cantava o
melro. E como a gente chegava muito cedo para a aula, os melros ainda
estavam cantando a canção matinal. Era como se estivessem saudando os
meninos morenos, que também chegavam em bandos para a escola
(Ibidem, p. 45).
Ziraldo faz uso de referências, de alusões a outros textos, de situações
em que autor-leitor partilham do contexto sociocomunicativo, compondo seu
discurso da memória. Trata-se de uma forma de construção textual de
cumplicidade com o leitor, já que, segundo observa Maingueneau: "um discurso
não vem ao mundo numa inocente solicitude, mas constrói-se através de um
já-dito em relação ao qual ele toma posição" (1976, p. 39). A intertextualidade
não prejudica o entendimento do texto, se bem dosada, é um recurso de
argumentação necessário que mostra a capacidade do autor articular suas
idéias e confirmá-las ou refutá-las valendo-se de discursos de outros autores.
Em Uma professora muito maluquinha, Ziraldo recorda o relevante papel
dessa personagem em sua vida real. Destaca o gosto pela revistas e gibis que
levava para a sala de aula e o seu hábito de ler para os alunos muitas histórias.
Catharina, a Kate, a professora muito maluquinha, era irmã do
Monsenhor Rocha, foi aluna do colégio de freiras. Contudo, era diferente das
demais professoras, na capacidade de se aproximar dos alunos. Era jovem e
bonita, tinha apenas dezesseis anos. Ziraldo retorna a lembrança da
Professora Kate, pintando-lhe o perfil como importante personagem real, que
fez parte do seu universo infantil, e de mais trinta e dois alunos:
Era uma vez uma professora muito maluquinha.
Na nossa imaginação ela entrava voando pela sala (como um anjo)
E tinha estrelas no olhar.
Tinha voz e jeito de sereia
E vento o tempo todo nos cabelos (na nossa imaginação).
Seu riso era solto como um passarinho.
Ela era uma professora inimaginável.
Para os meninos ela era uma artista de cinema.
Para as meninas, a fada Madrinha (1995, p. 05-13).
96
Outra descrição evocativa da memória refere-se à pequena Caratinga,
lugar real onde as personagens reais povoam a narrativa do autor,
reconstruindo, assim o cenário onde viveu o Menino Maluquinho Ziraldo:
A cidade onde a professorinha vivia era assim: tinha a pracinha, a
matriz e o cemintério no alto do morro; tinha o padre velho (que era tio dela)
e o Padreco (que foi o menino que o padre criou); tinha as beatas e as
solteironas (que davam notícias da cidade inteira). E tinha o funcionário do
Banco do Brasil (que fazia versos de quebrado) e o boêmio que cantava
boleros (e que era muito bonito) [Vide Anexo 1]; tinha o professor de
Geografia, que sabia onde estava o tempo e no espaço; tinha o cinema e o
velho dono do cinema sentado na porta, lendo seu jornal; tinha o colégio das
irmãs (onde ela havia estudado para professora) e o ginásio municipal; tinha
a professor de piano e, sem qualquer explicação para a pobreza da
cidadezinha, tinha todos os pianos do mundo nas casas das moças
prendadas, onde, todas as manhãs, elas tocavam o Pour Elise . (Ibidem, p.
14).
As práticas pedagógicas da professora Kate atraíam muito a atenção
das crianças, mas também despertavam inveja e despeito, na escola. A
diretora e as demais professoras não compreendiam a metodologia de Kate.
Irreverente, a professorinha, às vezes, passava o tempo assentada em sua
mesa, lendo revistas. Os alunos ficavam em volta dela, folheando também as
várias revistas espalhadas sobre a mesa, viam umas figuras, perguntavam
alguma coisa, mostravam uma descoberta ao colega. Interessante a maneira
como Ziraldo narra a estratégia inovadora da Professora Maluquinha para
descobrir se os alunos já sabiam ler: “Debaixo da última carteira da fila do meio
tem um maçã embrulhadinha. Quem ler está frase até o fim, ganha a maçã.
Pode ir lá pegar” (Ibidem, p. 35).
Essa frase escrita na lousa despertou a atenção da aluna Ana Maria:
(...) levantou-se, de repente de seu lugar, foi até a última carteira da
fila do meio e, de lá, tirou uma maçã embrulhadinha no papel de seda azul.
Foi quando a turma resolveu ler, ainda com alguma dificuldade, a frase que a
Ana Maria apontava no quadro-negro. Fez-se uma festa quando todos
conseguiram ler a frase, apesar de terem de agüentar as gozações de Ana
Maria (Ibidem, p.35).
97
A aparente algazarra na sala de aula continuou o ano todo. Os alunos
ansiavam pela hora de ir para a escola. Curiosos, chegavam observando o
quadro-negro e mais um recado estava ali escrito:
Quem, até o final da aula, tiver lido com cuidado esta frase e tiver
prestado bastante atenção nela, vai escrever um bilhetinho para mim e
deixar sobre a minha mesa com seu nome. Neste bilhete o aluno vai dizer
qual foi a palavra que escrevi errada (Ibidem, p. 37).
Diversificando suas aulas, ora com jogos como “da velha’ e “forca”,
cineminhas, dramatizações, leituras e muitas leituras, o fim do ano chegou e a
professora muito maluquinha não estava com eles na cidadezinha. Para a
alegria das beatas, ela tinha fugido com o namorado. As crianças encontraram
no quadro da escola uma mensagem escrita em código: “Nós nos sentamos na
calçada, em volta da Ana. Ela tirou o código da pasta e agora, o código era de
todos nós, meninas e meninos. Fomos, então, decifrando cada letra. Até formar
a frase inteira” (Ibidem, p.112).
O que mais chama a atenção em A professora muito maluquinha é o uso
do código alfabético, escrito no quadro, para ser decifrado pelos alunos. Foi, na
narrativa, o recurso que Ziraldo encontrou para instigar a curiosidade dos
leitores e marcar o momento da despedida da professora, gravado na memória
dos alunos, e confirmar o fascínio que ela exercia sobre os eles. O narrador
escreve, codificadas as últimas palavras de Kate, para o leitor desvendar. A
mensagem era a seguinte: “Sou muito feliz com vocês, mas outro tipo de
felicidade que a gente tem que lutar por ela. Vocês vão entender quando
crescerem” (Ibidem, p. 111).
Assim, Ziraldo utiliza vários elementos reais na construção dessa obra.
Retomando lembranças desse tempo, guardadas na memória, o escritor
organiza sua narrativa, reconstruindo na ficção o retrato da infância feliz ao
lado da família e dos amigos que dividiam com ele o mesmo tempo e espaço.
Ficção ou realidade na escritura ziraldiana andam de mãos dadas, como o
atesta o próprio Ziraldo:
98
O código alfabético, citado e demonstrado no livro, existiu de verdade.
Foi inventado por Dona Zizinha, minha mãe, para escrever suas memórias
secretas e para bilhetinhos exclusivos às filhas. Depois virou domínio dos
inúmeros netos. Quase todos eles, hoje, sabem escrever anotações com o
código da vovó Zizinha (Ibidem, p.120).
Não esse código alfabético, mas também as letras do alfabeto são
exploradas criativamente na obra de Ziraldo, como na Coleção ABZ, inspirada
nos ensinamentos que a mãe atribuía aos filhos. Nessa obra, cada letra do
alfabeto tem sua história. A narrativa é simples, o vocabulário fácil, como deve
ser a literatura destinada a crianças. Ziraldo mantém a característica principal
dos textos infantis: ampliar o vocabulário, recrear e instruir a criança através da
leitura.
Os hábitos dos caratinguenses, a cultura local, as brincadeiras, e as
personagens que marcaram a vida de Ziraldo passeiam no livro Vovó-delícia.
Nessa obra, o autor estabelece uma comparação entre a avó do século
passado e a avó do final do século XX. Para confrontar uma com a outra,
retoma a imagem da avó, personagem do livro Minha vida de Menina, de
Helena Morley. Sobre a construção dessa obra, Ziraldo afirma:
(...) tentando descrever uma avó do final do meu século, lembrei-me
da a de Helena Morley, uma avó do fim do século passado. E aquela
imagem de avó sábia, infalível, hierática, ainda que doce, com a casa cheia
justamente de doces, esperando os netos, sentada em sua cadeia de
oráculo, com o seu vestido negro e suas agulhas de bordar entre dedos,
marcou a figura da avó por todo o século que se seguiu ao século de Helena
(1997, p. 77).
Dessas reminiscências, Ziraldo percebeu que sua avó tinha muito da
avó de Helena. Constrói sua história, aproveitando da história da família Alves
Pinto. Apresenta os retratos da família para ilustrar sua obra e cria uma
biografia para as personagens da fotografia. E elas ganham vida dentro da
obra, como seres fictícios. O retrato de um senhor, na página 79, o tataravô, é
um ser real: “Quem está fazendo papel de tataravô, é na verdade, meu
bisavô Manoel Martins (Ibidem, p. 79).
99
O passado ficou para trás, mudanças significativas mudaram todos os
setores da humanidade. Na narrativa de Ziraldo, o passado e o presente se
mesclam, apresentando cuidadosamente as mudanças de hábitos na
sociedade. E para abordar esse assunto, Ziraldo criou a obra Vovó-delícia, em
que a personagem protagonista é uma avó muito moderna. Conversa com a
neta como se fosse da sua idade, gosta de andar de moto, é tão bonita como a
filha, faz plástica, dança, passeia, é separada, namora, tem muito gosto com a
decoração da casa, adora artes e cinema, tem muitos amigos.
A narrativa segue o fluxo da consciência do autor, na voz da narradora-
observadora, a neta, que revela as diferenças entre a avó da realidade e sua
personagem ficcional:
Ela tem muitos amigos. Tem amigo que se separou da mulher e vem
passar uns dias na sua casa, e ela fica consolando, fica fazendo chá de
camomila pra ele, fica abrindo o livro e lendo poesias, dizendo presta
atenção, olha v6e se não serve direitinho para o seu caso (Ibidem, 1997, p,
13).
A memória é tão importante na obra de Ziraldo, que a avó, personagem
fictícia, é culta e politizada, moderna, como as personagens televisivas Eva
tudor, Tônia Carrero, Eva Wilma, Leila Diniz, Odete Lara e Norma Bengel, que
saíram as ruas para reivindicar liberdade de expressão na época da ditadura
militar no Brasil, a foto que registra esse movimento feminino está utilizada na
página 10 da obra, para descrever a modernidade de Vovó-delícia. Se fosse
descrever um avô-delícia, certamente, Ziraldo seria a personagem, pois ele é
contemporâneo dessas mulheres que, nos anos 60, reivindicaram e lutaram por
melhores dias. Sua obra é a renovação de um tempo que o esquecimento está
longe de apagar.
100
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo da obra infantil e das crônicas de Ziraldo Alves Pinto possibilita
constatar que ela é, essencialmente, a expressão crítica e criativa de uma
emoção, contida na memória do escritor, da infância feliz em que viveu na
província de Minas, a Caratinga, cidade das Palmeiras. As marcas deixadas
pelas recordações desse tempo, de valor estritamente pessoal, manifestam, na
obra ficcional de Ziraldo, o vínculo com a família, o grupo e o lugar. Os temas
simples do cotidiano da cidadezinha mineira transformam-se em linguagem
poética.
A ação do tempo e da história não modificou por completo a cidade do
Ziraldo. A magia do lugar e, particularmente, a Praça das Palmeiras continuam
encantando os filhos da terra. Caratinga é vista sob a ótica do escritor como um
acolhedor quintal, não o lugar reservado no fundo da casa, onde se trata das
intimidades, e sim como cenário construído para estruturar suas narrativas,
lugar imaginário, fictício como se fosse, mesmo, o aconchegante quintal da
família Alves Pinto. É o lugar da memória, de onde Ziraldo retira a seiva que
nutre seu lirismo, de onde escreve sua narrativa. Essa nostálgica lembrança é
a temática principal da criação artística de Ziraldo, o quintal: a raiz da ficção.
Constata-se ainda, pela leitura da obra de Ziraldo, sua linguagem se faz
mágica e popular, no retorno ao passado, sem nunca perder o fio que o liga às
origens. Seu relato é um retrato cultural do povo de Minas, sempre a partir do
seu cronotopo. Seu texto é íntimo, porém desencadeia o processo reflexivo
sobre o papel do indivíduo na sociedade pós-moderna. O sujeito fragmentado
em busca de sua identidade, busca restaurar, como um artesão da palavra, o
monumento patinado pelo tempo, devolvendo-lhe a originalidade. O escritor e o
homem buscam recuperar sua integridade em Caratinga, lugar onde se
estabeleceu os primeiros vínculos afetivos e culturais.
Dessa maneira Ziraldo, reafirma a função do cronista, de lutar pela
dignidade do homem. E suas crônicas, o leitor torna-se cúmplice do autor ao
101
entranhar na leitura cúmplice do texto, tentando extrair daí as possibilidades de
leitura.
Quem se interessa pela crônica busca desafogar das tragédias das
reportagens jornalísticas e entrar no mundo da crônica artesanal. um bom
cronista tem o poder de transformar a realidade diária em fonte que limpa o
pessimismo, a violência, o descaso, a injustiça e tantos males da sociedade
contemporânea. Ziraldo assim se propõe transformar, todo sábado, no jornal O
tempo, esse mundo violento em um mundo otimista, possível de se viver.
Ziraldo, pela memória soube transformar o diamante bruto, lapidado pelo
espírito do “Menino Maluquinho”, acreditando em seu sonho e foi longe. Suas
histórias vazaram a cidade, o país e o mundo.
O monumento do Menino Maluquinho, na Praça dos Rodoviários, em
Caratinga, registra a excelência do caratinguense Ziraldo. Revelando ao mundo
a história cultural dos moradores da pequena província de Minas.
Ziraldo é PÁ e LAVRA.
102
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108
ANEXOS
Anexo 01
DEPOIMENTO DO SENHOR SÉRGIO HENRIQUE DE MOURA
Anexo 02
DEPOIMENTO DO SENHOR FRANCISCO MOREIRA FILHO
Anexo 03
DEPOIMENTO DO SENHOR QUINZINHO
Anexo 04
DEPOIMENTO DO SENHOR SYLVIO DE ABREU
Anexo 05
DEPOIMENTO DO SENHOR ONAIR DE SOUZA
Anexo 06
DEPOIMENTO DO SENHOR ONOFRE GUZELLA DE ABREU – NOZITO
Anexo 07
DEPOIMENTO DO SENHOR LUÍZ CABREIRA
109
Anexo 08
FOTOS E CARICATURA DA 1ª TURMA DE CIENTIFICANDOS DE
CARATINGA - 1951
Frente (da esquerda para a direita)
1- Raimundo Silva Araújo
2- Alípio Canuto da Silva (falecido)
3- Fábio Silva Araújo
4- Onofre Guzella de Abreu
(falecido)
5- Ziraldo Alves Pinto
Retaguarda (da esquerda para a
direita)
1- Padre Dr. José Rocha de Castro
2- (Paraninfo) Desembargardor, Dr.
Anaudim Freitas
3- Adão Rodrigues da Silva
4- Rubens Paulo de Souza (falecido)
5- Jaider Cevidanes
6- Galileu Bonifácio da Costa
7- Francisco Moreira Filho.
1
Anexo 8.1
Assentados (esquerda para a direita)
1- Francisco Moreira Filho
2- Alípio Canuto de Souza (falecido)
3- Fábio Silva Araújo
4- Onofre Guzella de Abreu (Nozito
- falecido)
De pé (da esquerda para a direita)
1- Ziraldo Alves Pinto
2- Adão Rodrigues da Silva
3- Rubens Paulo de Souza
(falecido)
4- Galileu Bonifácio da Costa
5- Jaider Cevidanes
6- Raimundo Silva Araújo.
2
Anexo 8.2
Diversão na noite Caratinguense
Da esquerda para direita – Ano 1992
01- Alaôr Correia de Moura - Garçon
02- Ziraldo Alves Pinto - Escritor
03- Izac Veriano Botelho – Cantor de boleros
3
Anexo 09
CRÔNICAS
A VISITA DO VELHO SENHOR
A felicidade está nas coisas simples. “Esta é uma frase que você nunca
vai encontrar na chamada Grande Literatura. Escritor da pesada não tem
coragem de escrevê-la, a não ser que ela venha carregada de ironia. Clarice
Lispector, nossa maior escritora, a propósito, dizia da vida que ela até que era
bastante suportável. Onde se pode ver o medo que os Grandes Espíritos têm
de admitir a possibilidade da felicidade.
Como eu gostaria muito de ser um grande escritor, toda vez que fico
imensamente feliz, me digo: "Desista, Ziraldo". Abandonei total e
irremediavelmente este sonho de grandeza na última semana. Voltei à
província e o que aconteceu comigo foi exatamente o contrário do sucedido à
velha senhora do Dürrenmatt.
Os grandes temas da literatura universal, na sua grande maioria, até que
têm como cenário a vida na província, mas a volta à província - ela mesma - e
seu impacto na alma dos personagens não têm sido dos temas mais
recorrentes. Tentei, com o velho Ivo Barroso, descobrir algum grande autor que
colocasse este retorno e suas conseqüências no centro de sua obra; andamos
da Odisséia - com o regresso do Ulisses a Ítaca - à volta do filho pródigo com o
Gide, mas este enfoque - o retorno à província como leit-motif- não apareceu.
Em grande estilo mesmo o encontramos em outras manifestações: no teatro
com A Visita da Velha Senhora do citado Dürrenmatt e no cinema com o
Cinema Paradiso do Tornatore, entre um montão de outros (citamos o mais
bem logrado). Sem falar, é claro, nos Verdes Campos do Lugar, do repertório
do Agnaldo Timóteo!...
4
É claro que, numa obra literária, a geografia da ação, o tempo da história e a
movimentação dos personagens importam menos do que o que estes
elementos, como causa, fazem fluir da alma dos protagonistas. A Grande
Literatura, sabemos nós, passa é por aí. Voltar à província, pois, no Grande
Romance, importa pelos elementos ficcionais que este retorno pode
proporcionar ao escritor, na busca do entendimento e da revelação das ca-
rências humanas, da percepção dos jogos de poder, das necessidades de
afirmação, da aceitação do outro, do significado do retorno ao tempo e ao
paraíso perdidos.
Mas não foi por causa de nada disto que voltei a Caratinga. Voltei
porque sempre achei o maior barato rever minha terra, andar pelas ruas
perdidas por onde comecei a construir este cara em que me transformei, pelos
caminhos onde fundei a sede das minhas dores.
Voltei para subir ao alto da montanha que domina minha, hoje, nada
pequena cidade. Era do alto da Itaúna que eu via aquela mancha branca
lááááá embaixo, uma casinha atrás da outra, as ruas pequenas
acompanhando os vales, que a minha cidade cresceu correndo junto com seus
córregos. Voltei para ver se ouvia de novo a voz da Neide, coleguinha do
ginásio, minha primeira intelectual, evangélica e ledora, bíblica e pedante, di-
zendo, ao olhar a pequena vila no piquenique que fazíamos em cima: "Vista
daqui, tão branquinha, Caratinga me lembra Damasco!".
Pode? Tenho ou não tenho que voltar? Agora, lá do alto da pedra preta -
nosso Corcovado, nosso Pão de Açúcar -, o que se vê são milhares de casas e
centenas de edifícios de todos os tamanhos e alturas que cobrem os morros
todos, onde a paisagem branca da infância é apenas o miolinho no centro da
urbs (!). E me trataram tão bem e me acarinharam tanto que não tenho como
explicar aos meus urbaníssimos filhos o que está acontecendo comigo. E nem
aos meus amigos que, como eu, nasceram na província, mas dela só querem o
esquecimento. Isto, porém, são temas literários...
O que quero é anunciar para os meus leitores de Minas que eu - que
continuo querendo abraçar o mundo com as pernas volto da terrinha decidido a
largar tudo e me instalar de vez ali e ali esperar que a terra, onde pisei pela
5
primeira vez, seja a terra que vai cobrir minha definitiva despedida. Sempre
aconteceu assim, na época em que, mais jovem, eu ia e .voltava de lá, todos
os anos. Depois passa!...
Toda esta conversa, porém, são preâmbulos. A primeira frase que
pretendia escrever nesta crônica não era aquela lá, sobre a felicidade. Era
outra frase de efeito. Esta: "A humanidade caminha tangi da pela tempesta-
de". Quero, isto sim, contar-lhes o que vejo de fantasticamente verdadeiro
nesta frase. Que podia ser substituída pelo famoso dito popular que exprime,
com menos pretensão, a mesma coisa: "O que bota pobre pra frente é topada".
Pois não é que a tempestade que quase destruiu Caratinga, uma cidade
que cresceu toda torta - como samambaia aguada com anticoncepcional- fez
renascer na alma dos seus cidadãos um fantástico espírito de solidariedade e
de superação. Parece que fizeram uma nova cidade por cima da que a chuva
encharcou. Caratinga nunca esteve tão limpa, tão florida - ou tão preparada pa-
ra virar uma cidade com tantas flores quantas têm as cidades do Rio Grande
ou de Santa Catarina -, as lojas nunca estiveram tão bonitas e o povo nunca
esteve tão consciente das vantagens da união de todos em torno de um
propósito.
Caratinga se chama São João de Caratinga. Todas as cidades do Brasil
têm o nome de um santo embutida em seu nome, o do seu santo protetor. Pois
não é que menos de seis
meses depois das chuvas, inventaram de fazer uma festa de São João lá? E a
festa ficou tão bem feita, tão bem feita, que, em breve, se tão importante
quanto às festas juninas de Caruaru ou de Campina Grande. Com a vantagem
de ficar mais perto!... O povo de lá ficou assim: impossível!
Não se pode - ou não se deve - vir com papo-cabeça diante de fatos
como estes. Não se pode ficar com considerações literárias ou existenciais
diante de uma estátua de dez metros de altura, na entrada da cidade.
Principalmente se esta estátua é a de um personagem que você criou: uma
estátua que é a materialização de uma pequena idéia, de uma proposta
existencial de quem acredita que o outro tem, para um Supremo Juiz, a mesma
importância que você tem.
6
Momento: existe um Supremo Juiz? Se não existe, que diferença faz?
O REINO DA PALAVRA
Tadim dos mininim da seleção quês tavam chamando de ouro! Foro
pro Chile chei de vento, acabarão tomando uma caiaia destamanho. Eu queria
falar da tristeza que me deu o fiasco da Seleção olímpica brasileira. Mais uma
vez foi adiado o único título mundial que nosso futebol não tem. Pra mim, foi
uma das maiores zebras da história do futebol. Se alguém se der ao trabalho
de voltar a assistir a primeira meia nora do jogo do Brasil contra o Chile na pri-
meira fase - pareciam os Globetrotters jogando basquete nos seus áureos
tempos vai ver que aquela Seleção de jovens parecia uma máquina de jogar
futebol, pronta para ser sexicampeã mundial em 2006. (Sexicampeã é muito
melhor do hexacampeã, é ou não é?)
Acredito, contudo, que eles vão superar isto e, se todos continuarem
jogando o futebol que sabem jogar, amadurecidos, serão imbatíveis. Foi
apenas um acidente de percurso e esses revezes - a cultura judaicocristã nos
ensinou - sempre aprimoram. Não sei o quê, mas aprimoram, garante a tal
cultura.
Aí, quando comecei o texto, me veio a vontade de falar mineiro. É que
hoje de manhã, revendo velhos cadernos meus dos longínquos tempos de
escola, topei lá, numa velha composição, com uma palavra da qual havia me
esquecido há muito tempo: caiaia.
Fui a todos os dicionários que tenho e não a encontrei em nenhum
deles. Vai ver deve estar esquecida até em Caratinga; vai ver fazia parte do
dialeto municipal do meu tempo.
O significado da palavra, eu sei: é desapontamento. Não sei se a gente,
quando se desaponta, leva ou toma uma. Acho que leva: "Fulano esperava
uma coisa mas veio outra; levou uma caiaia".
7
Será que é corruptela de alguma palavra arcaica? Ah, quem sabe vem
do guarani? Deixa ver aqui no meu dicionário da Língua Geral. (Tempo)
Também não tem.
Outro dia comecei um texto aqui tentando reproduzir o falar mineiro,
independente deregras de grafia ou de gramática, apenas o som. Agi assim:
escrevi um texto corrido sobre qualquer coisa e depois traduzi para nosso jeito
de falar que descobri no Nerso da Capitinga - muito mais do que nos escritores
ou nos poetas caipiras - e naquele famoso texto do frango com milho da
internet. Não deu muito certo. Aí, estou colecionando frases inteiras bem
mineiras para ver se consigo, um dia, escrever uma história com elas.
Neste mister, deparei com a palavra caiaia e com a caiaia que nos
aprontou a Seleção dos meninins. E saí a me lembrar de outras palavras dos
meus tempos municipais: pongar, estumar, cair de chôpa, tiotado, prazo (no
lugar de tempo. "Tou muito sem prazo. "), farinha de mun-i (ou com o til em
cima do u), papiateiro (que os dicionários dizem que é um cara muito cheio de
conversa, mas que em Caratinga, pelo menos na minha família, se referia a
pessoa teatralmente fingida: "Leva ele a sério, não. fazendo papiata" .),
mamucha, birosca (para bola de gude), banho espertinho (com água morna),
tadim (para se referir a qualquer pessoa, em qualquer circunstância, com
simpatia: "Você tem acompanhado o Lula? Tadim doLula!") são as que me
ocorrem, agora. Achei algumas nos dicionários, outras não.
Pra terminar essa conversa de beira de fogão - mais uma- quero
me lembrar de duas palavras em especial. Nesta mesma composição em que
revi a palavra caiaia estava uma outra que vim a descobrir que não se
escrevia - nem se pronunciava - do jeito que está na composição depois que
saí de Minas. Podem crer. A composição é do quarto ano ou do primeiro
ginasial e ali estava, sem correção do professor ou da professora, a palavra
muncadinho!
Fiquei imaginando a Bibi Ferreira (ou será que foi o Professor Higgins)
no Pigmalião, cantando a versão da canção famosa: "Muncadinho só,
muncadinho só, muncadinho sóde sorte a meu favor!"
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. Acendeu uma espécie de luz na minha vida de mineiro no dia em que
descobri que estava um bocado enganado.
Bocado!!! Bocado era o pedacinho de um doce dos meus aniversários
de criança, chamado bombocado. Parecia mais referir-se àboca (bocada!) do
que à pequena quantidade. Um pouquinho de qualquer coisa era
muncadinho. Bom... vivendo e aprendendo.
Agora, a segunda palavra, esta é mágica, de múltiplo uso. Como é, meu
Deus, que me esqueci dela, uma palavra que a gente, naqueles tempos - e
talvez hoje ainda, lá nas ruas já limpinhas da "molhadíssima Caratinga - ouvia e
falava uma centena de vezes por dia.
Acá, presta atenção no que eu vou falar. Acá, olha isto! Acá, vou falar só
pra você. Acá, olha quem está chegando. Acá, podia me trazer um copo
d'água? Acá, vocêtem certeza de que vai dar certo? Acá, qual foi a explicação
pro fracasso dos meninins no Chile? Acá, SÔ, num tenho idéia. Acá, se não
me engana, hein. Acá, deixa de ser besta, sô! Acá! "
Vem cá, olhe aqui, veja bem, por gentileza, preste atenção, me
esclareça. Vocês acham que s, a mineirada, vamos gastar, pra conversar,
expressões tão sofisticadas? Acá, quem cê tá pensando que nós somos?
Meu Deus do céu, como foi que eu me esqueci do acá? Acá, gente, me
explica!.
O PRANTO E O PRATO
O quintal da casa era muito grande. Pelo menos para as impressões que
meninos têm sobre o tamanho das coisas. A rua era ao do morro e ficava
acima do pequeno rio que passava no fundo do quintal. Logo depois da
escada da cozinha havia um pequeno pátio de terra batida e, a seguir, uma
horta protegida por uma cerca feita de bambus. Depois da horta, o mistério: o
quintal descia em direção ao pequeno rio e era coberto pelo mato. Havia uma
estreita trilha para se chegar até o rio. Ali era o universo das galinhas e dos
9
gambás. Quer dizer, muitas galinhas e poucos gambás, pois mais histórias
de cobras do que de gambás na minha memória.
Um dia, uma galinha desaparecida pelos fundos do quintal surgiu ao
pé da cozinha com uma bela ninhada. Havia pintinhos de todos os tipos e,
entre eles, um grandão, mais forte, mais esperto.
Como eu era leitor de contos de fadas, achei que aquele pintinho ia
crescer e virar um cisne. Meu irmão, porém, proclamou-se dono do pintinho e
resolveu que ele ia ser um galo de briga. Decidiu criá-lo como quem cria um
cãozinho.
Toda manhã, antes de irmos para o grupo escolar, ele ia no quintal,
conversar com o a Galinho - o nome que lhe deu - passar a o v, sobre sua
cabeça de guerreiro, botar no colo, alisar suas penas, fazer planos para suas
futuras lutas. E o Galinho era dócil, não fugia à to sua aproximação, ao
contrário, vinha ao seu encontro todo alegre, pisando na ponta dos s, todo
arrepiado, emitindo um som parecido a um ronronar. Era uma ave com alma de
bicho de quatro patas.
Uma vez, estávamos indo para a escola, eu ia na frente com uns amigos
mais velhos que meu irmão, que vinha mais atrás. Como meu irmão se
atrasava, olhei para ver o que havia de acontecido. estava ele mandando o
Galinho voltar para casa, bravo como quem zanga com um cão ensinado. E o
galinho, que o vinha seguindo, voltou, dócil. Meu irmão juntou-se a nós,
explicando: “Ele queria ir para a escola com a gente”.
Quando voltávamos da escola, tínhamos obrigação de entrar em casa
gritando: “Estou morto de fome!. Ás vezes não estávamos com tanta fome
assim, mas fazia parte do nosso ritual de infância. A gente chegava jogando a
pasta pra cima e correndo para a cozinha, que era que comíamos. Nesse
dia, meu irmão devia estar com fome, mesmo, porque nem se lembrou de ir até
o quintal cumprimentar o Galinho. Estávamos de cozinheira nova, uma mulher
calada, de ar severo. Quando ela nos viu chegar foi logo fazendo nossos
pratos no grande fogão de lenha: primeiro o feijão fumegante, depois o angu
frio, cortado em fatias, depois o frango com quiabo. Nós comíamos galinha
quase todos os dias.
10
Nas pequenas cidades do interior daqueles tempos, galinha - comida
criada no quintal, como a couve ou o chuchu - é que era o alimento dos que
não podiam comprar carne de boi no açougue. O ensopado de galinha envolvia
a cozinha com o cheiro do quiabo e a gente chegava ao prato salivando de
prazer. Sentamo-nos à mesa com os nossos pratos na mão e, antes de
colocarmos os pratos sobre ela, antes mesmo da primeira garfada, ouvi o berro
do meu irmão: "Galiiiiinho!". E saiu correndo para o quintal.
A cozinheira nova, de duro semblante, virou-se para mim e perguntou,
sem muito interesse, o que havia com o menino e expliquei.
"Um franguinho marrom? Um de perna comprida que tava gordinho?",
ela perguntou. Eu disse que era. E ela disse que ele estava ali, fervendo na
panela e servido no nosso prato. "Sua mãe mandou fazer um frango pro almo-
ço, peguei o que' estava mais gordinho."
Meu irmão voltou à cozinha: "Cadê meu galinho?". Respondi com outra
pergunta: "Será que gamnão comeu?". E a cozinheira muito prática: "Que
gambá o quê, s'iminio. O galinho tá aí no prato. Quem vai comer ele é ocês".
O pranto do meu irmão invadiu a cozinha, saiu pelo quintal inundou o
mundo. Ele se sentou, afastou o prato e esmurrou a mesa, com as duas
mãozinhas fechadas, chorando com a cabeça enfiada na toalha. A cozinheira
não tomou conhecimento. Fiquei olhando para ele, com o garfo na mão, a
fumaça subindo do feijão quentíssimo, o angu frio cortado ali, no meio do prato,
e o caldo do quiabo desenhando oleosas formas cheias do brilho de seus
carocinhos em volta dos pedaços do frango. O cheiro da comida era, para
quem tinha tomado café antes das sete da manhã, um apelo forte o bastante
para eu ir descendo levemente o garfo, antes parado no ar, até chegar ao
prato, partir o angu e ir amassando o angu contra o caldo de feijão e do quiabo
e puxando um pedacinho da carne do frango para a mistura; meu irmão
levantava a cabeça e chorava e as lágrimas caíam no seu prato fumegante;
levei aa boca a primeira garfada, comecei a mastigá-la muito devagarinho,
muito lentamente mesmo, por causa da gravidade do momento.
Minha barriga roncou e seu som confundiu-se com o choro de meu
irmão que não parava de repetir: "Eu quero meu galinho. Eu quero meu
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gatinho". As lágrimas saíam de seus pequenos olhos inchados de chorar, des-
ciam por suas bochechas e pelo nariz vermelho, misturando-se com o que eu
achava que eram lágrimas de nariz e inundavam, com um líquido salgado, sua
boca. Sem me olhar e sem parar os soluços, sua mão também repetia meu
gesto, lentamente, e ia cortando e amassando o angu no prato, enquanto seu
nariz fungava e ele misturava o feijão e o caldo do quiabo e chorando pegava a
coxa tenra do frango com a mão e chorando e mordendo a coxa e lambuzando
a cara de feijão, de lágrimas e de gosmas, de soluços e quiabo, ele imitou
meus gestos e fomos, os dois, comendo o frango e comendo o feijão e
comendo o angu, e voltamos à panela no fogão e repetimos o prato, eu comi a
moela e ele, sem parar de chorar, o coração do galinho. Até hoje escuto os
seus soluços toda vez que vou comer frango com quiabo. Ele nem se lembra.
OS MENINOS MORENOS
"Quando eu estava te esperando sentia muito vontade
de comer terra:
arrancava pedacinhos
de adobe das paredes
e comia.
Esta confissão de minha mãe despedaçou meu
coração.
Mamei leite de barro,
por isso minha pele
é cor de terra.
Conheci a poesia de Humberto Ak'abal- autor do poema acima -quando,
em 2003, estive na Guatemala. Não sou índio, não sou negro, não sou árabe,
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sou apenas da mesma cor que Ak' abal e, por essa razão, creio que entendi a
alma de quem, como ele, sabe de onde vem: do ventre do jaguar, dos templos
de Tikal, onde seus avós e os avós de seus avós já ouviam o canto do quetzal.
Vivi minha infância numa clareira aberta na floresta úmida - que virou
uma cidade - na mesma floresta do meu poeta, ouvindo cantar, com outros
nomes, os mesmos pássaros.
Por esta razão, escrevi um novo livro e fiz a Ak'abalo convite para
intercalar, entre as minhas histórias de menino moreno, alguns dos seus belos
versos de menino cor de terra.
Eu fui um menino cor de terra. Não vou, porém, saber nunca de onde
vieram os verdadeiros avós dos avós dos meus avós. Nisso, nós, os meninos
brasileiros, somos diferentes dos meninos morenos da Guatemala, do México,
da América Central ou de todo o planalto andino. Quando o homem branco
chegou na minha terra, encontrou meninos com a carinha igual à de todos os
meninos que viviam nas florestas úmidas da América ou nas altas montanhas
dos Andes. Depois, eles trouxeram os negros da África, que não queriam vir. E
vieram também os árabes e outras gentes da Ásia. E todos se misturaram, sem
registro e sem cartório.
E, aqui, ficamos todos da cor da nossa terra e viramos, todos, os
brasileiros.
Vamos fazer uma experiência. Vamos pegar um livro de história geral,
virar suas páginas e tomar nota. Em cada página que a gente virar, vamos ver
surgir um novo povo. É conferir: aqui estão os sumerianos, logo depois os
egípcios, os fenícios, os gregos, os romanos, os persas, os celtas, os
viquingues, os hunos, os godos, os visigodos (entre centenas de outros).
Eis que, de repente, o historiador branco descobre povos antigos na
América, e aqui estão os olmecas, os astecas, os maias, os araucanos, os
guaranis.
De repente, a história parece que chegou mesmo ao fim. 500 anos
não surge mais povo nos nossos livros de história geral.
Bem, o livro que escrevi não é para se estudar história geral. É para
conversar sobre meninos morenos. Quem sabe essa gente morena que hoje
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habita o Brasil inteiro não vai ser, no livro de história geral do ano 4000, por
exemplo, um povo que surgiu nas Américas? Alguém sabe corria é que um
povo surge?
Os índios da terra dos meninos morenos se vestem e se enfeitam com
uma quantidade de cores infinita. Como são coloridos os meninos morenos do
planalto andino, da América Central, do México!
Eles transferiram as cores de seus pássaros e de suas flores para suas
roupas e para seus enfeites. Creio que uma menina cor de terra desses
lugares jamais perguntou à sua mãe qual cor combinava com outra. Ali, todas
as cores combinam.
O índio brasileiro, como nunca usou roupa - pois não conheceu o
inverno -, se enfeitou com duas cores: o vermelho do urucum e o preto do
jenipapo.
Deve ser por isso que o time mais querido pelos meninos do Brasil-
inclusive este aqui, que escreve o livro mencionado - tem a camisa vermelha e
preta. Nascido no fundo da terra brasileira, esse time se chama Flamengo,
um nome que não é desta terra.
A América Latina é a Terra dos Meninos Morenos. É tão fácil perceber
isto - agora mesmo vi umas fotos de Paula Saldanha, feitas em suas andanças
pelo Brasil, e eles estão lá, lindos, os meninos morenos - e me emociono ao
fazer esta constatação. Voltei da Guatemala entusiasmado com a idéia de
escrever sobre isto, um grande livro sobre nós, os meninos que o poeta
guatemalteco chamou de meninos cor de terra. Voltei no avião decidido a fazer
pesquisas, visitar embaixadas, saber tudo sobre eles. Aí, de repente, tive a
iluminação: eu faço parte desta - digamos - raça! Eu sei exatamente o que é ter
sido um menino moreno vivendo nesta parte do mundo. Vou falar, portanto, é
de mim mesmo nesse livro que, aliás, está quase pronto.
14
HISTÓRIAS DE JACARÉS
Domingo, dia 4 de abril, foi aniversário do Adão Jacaré. Tu teria que
dizer: aniversário do Adão Rodrigues da Silva. Isto, se ele não fosse tão
velhinho quanto eu e, sendo novo e cheio de futuro, se importasse com este
negócio de apelido. Imagine: ficar a vida inteira sendo chamado de Adão
Jacaré! Agora, não tem mais importância: já aconteceu.
Muito tempo se passou e o Adão fez, ao longo dele (o tempo) uma bela
biografia. É bem possível que o pessoal tenha se esquecido e os muito
antigos - como nós - se lembrem do seu apelido de infância. Aliás, na minha
terra, era difícil um sujeito viver sem apelido. Tem uma velha anedota que
conta que os viajantes não gostavam de passar por por causa desta mania
de cidade.
Não sei se é verdadeira a anedota, mas pode ser aplicada a Caratinga.
Um viajante, avisado do fenômeno, foi pela primeira vez. Para não pegar
apelido, decidiu não sair do hotel. Depois de uma semana no quarto,
atendendo os fregueses, foi dormir sua última noite na cidade, seguro de que
tinha escapado do apelido. Meio da noite, porém, ouviu ruídos de um tumulto
na pracinha em frente. Era uma discussão de bêbados. Ele se levantou pra ver
o que era. Abriu a janela, botou a cabeça pra fora e, aí, se lembrou de que
não podia ser visto pelo povo da cidade. Rápido, botou a cabeça pra dentro e
bateu a janela. Foi o bastante para um dos bêbados gritar: "Olha o Cuco!"
O coitado do viajante voltou a Caratinga várias vezes, entrando em
contato com seus clientes, fora do hotel. Conformado, era chamado por todos,
de Cuco.
Não sei se é verdade, mas me lembro que o maior apelidador da minha
infância era um simpático contador chamado Edson Obolari, morador da rua
Nova. Ele botava apelido em todo mundo! Um dia, um menino falou pra ele:
"Bota um apelido no Ziraldo." Eu desenhava, fazia poesia, declamava nas fes-
tas da escola, inventava histórias, era meio sobre o menino prodígio. Fiquei
esperando um apelido monumental. Quer dizer, fiquei que nem o Woody Allen
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num dos seus diálogos geniais: "Quem é vaidoso? Eu? Imagina! Não é com
Narciso o deus com o qual mais me identifico." "Com qual deus você se
identifica, então?" E ele: "Zeus!"
Era o mínimo que eu esperava. O Edson me olhou, me examinou bem e
mandou o apelido: "Relojão!
PQP! É verdade que eu, orgulhosamente, estava usando um relógio mais
largo do que meu pulso-que meu tio Wilson me dera de presente - mas isto
me'pareceu um detalhe muito pequeno da minha vasta personalidade pra virar
meu apelido! Fiquei certo de que o apelido não ia pegar por ser inadequado.
Os meninos ficaram rodando em minha volta, gritando: "Relojão, relojão,
relojão! - mas o apelido não pegou. Em compensação nunca mais usei o
relógio do meu tio.
Não sei se foi o Edson que botou o apelido de Jacaré no Adão. Acho
que não foi, não. Éramos muito pequenininhos e a gente o chamava assim.
Adão era filho do Sêo Alonso e da Dona Nicota, um casal especialíssimo.
Tiveram dois filhos: Adão e Eva. Quer dizer, eram uns criadores! Dona Nicota
fazia doces e, todos os anos, armava o mais famoso presépio da rua, com
laguinho de espelho e um patinho no lago, maior do que a vaquinha e o
burrinho da manjedoura. Foi na casa de Dona Nicota que fui à primeira festa
de aniversário da minha vida! Uma novidade. Voltei para casa com um
pratinho de doces, coberto por guardanapo de linho com beiradinha bordada.
No dia seguinte, mamãe devolveu o prato, o guardanapo e os docinhos dela:
figo cristalizado. Por causa desta festa, nunca me esqueci a data do
aniversário do Adão.
Sabem de uma coisa? Ele era um menino especial. Era um menino que
gostava de ler, imaginem! Naqueles tempos! Eu ficava danado da vida,
porque, quando ia falar de uma novidade que havia lido nos jornais pra turma,
ele já tinha falado na minha frente. Adão adorava falar difícil. Um dia, contando
um caso de cabritas, falou de um terreno báldio. Ninguém sabia o que era
báldio. Ele explicou: "Vazio!" eu estava chegando ao grupo e fui dizendo:
"Então, não é vazio, é vazio. Porque não é báldio, é baldio!"
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algum tempo, em Caratinga, o Adão reclamou comigo pelo fato de
não ser citado como um dos personagens da Turma do Pererê. Preciso contar
isto para o Galileu, o Pedra Vieira, o Alan, a Quiquica e o Moacir: nós
esquecemos o Adão. Ele aparece no Pererê, pela primeira vez, no mero de
novembro de 1962, numa das historinhas com o Tarzan. Vai logo se apresen-
tando ao Rei das Selvas: "Muito prazer, Adão Lucius Alligator de Caiman
Rodrigues... mas pode me chamar de Jacs!"
Jacs! Este é que era um apelido bom pro Adão.
Vocês estão lendo esta história aqui e estão pensando: "Ih - hh... aí vem
herda! Ficar lembrando história assim de um companheiro, com jeito de
saudade... sei não... sei não... Acaba logo essa historia, Ziraldo. O que foi que
aconteceu com o Adão?"
Nada, pessoal! O bicho continua vivo e bom feito um coco. No domingo,
dia 4, conforme lembrei, ele fez 72 anos. Quer dizer: muito - mas muito
mesmo! - mais velho do que eu!
Estou escrevendo esta crônica por este motivo e outro mais. Primeiro, é
mesmo para homenagear este velho amigo em mais um dos seus, para mim,
inesquecíveis aniversários. Segundo, porque, acho bom demais este negócio
de ficar falando da infância. Eis que ela recomeça todo dia na sua alma e na
sua memória. Recomeça sempre se você está aberto para a vida e para as
luzes de cada dia. E recomeça nas extensões da sua passagem pelo mundo,
nas vidas geradas a partir de você, na existência que nasce da semente devida
que você plantou.
Neste momento, meu sexto neto está nascendo! Ele vai se chamar
Joaquim (que, agora, virou um nome bonito). E histórias, exatamente, como
essas que recordei vão se repetir com o Joaquim, em outras paisagens, nesta
ciranda que é o ato de viver.
Aqui me apresento, pois, para dar um abraço no Adão Jacaré pelo seu
aniversário e para dar as boas-vindas ao Joaquim, sonhando para ele uma
infância tão recordável como a que seu avô e os amigos de seu avô tiveram.
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