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Em defesa da moral e dos bons costumes”: a censura de periódicos no
regime militar (1964-1985)
Adrianna Cristina Lopes Setemy
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-graduação em História
Social do Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Mestre
em História Social.
Orientador: Carlos Fico
Rio de Janeiro
2008
UFRJ
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Em defesa da moral e dos bons costumes”: a censura de periódicos no
regime militar (1964-1985)
Adrianna Cristina Lopes Setemy
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social do
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História Social.
Aprovada por
_______________________________________________
Prof. Dr. Carlos Fico
(Orientador)
________________________________________________
Profa. Dra.. Alzira Alves de Abreu
________________________________________________
Profa. Dra. Maria Paula Araújo
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III
Ficha catalográfica
Setemy, Adrianna Cristina Lopes.
“Em defesa da moral e dos bons costumes”: censura de periódicos no regime militar/ Adrianna
Cristina Lopes Setemy. Rio de Janeiro: UFRJ/ PPGHIS, 2008.
v, 253.; 29,7 cm.
Orientador: Carlos Fico
Dissertação (mestrado) – UFRJ /IFCS/ Programa de Pós-graduação em História Social, 2008.
Referências bibliográficas: f. 245-253
1. Censura de periódicos. 2. Regime militar. 3. Revolução dos costumes. I. Fico, Carlos II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-
graduação em História Social. III. Título
IV
RESUMO
Ao contrário de alguns estudos que vêem na vigilância à moral e aos bons
costumes apenas uma estratégia para encobrir uma censura que, na realidade, estaria
voltada apenas para temas poticos, neste trabalho revisitamos os anos do regime
militar no Brasil, para que pudéssemos compreender de que maneira, nesse período, a
censura de costumes, que era uma prática antiga e incorporada à cultura potica
brasileira, foi absorvida e reestruturada pelo grupo que estava no poder a fim de atender
tanto aos ditames da Doutrina de Seguraa Nacional como também às demandas de
setores conservadores da sociedade, no sentido de controlar a circulação de periódicos
que abordassem temas considerados ofensivos à moral e aos bons costumes, tais como a
emancipação feminina, o uso da pílula anticoncepcional, a busca de satisfação sexual, o
divórcio, a propagação das drogas e a insatisfação dos jovens diante das velhas
estruturas sociais. Para que pudéssemos conhecer a maneira como os leitores de revista
da época receberam as notícias e os debates acerca das transformações nos padrões de
comportamento e relacionamento, analisamos as matérias publicadas nas revistas
Manchete, Realidade e Ele Ela da década de 1960 e, em seguida avaliamos como esses
três periódicos foram atingidos pela estrutura “legal” e altamente burocratizada da
censura de costumes.
ABSTRACT
Despite some studies that see the care with the moral and the great costumes as a
strategy to hide a censorship that, in reality, would be only turned to political themes, in
this work we revisited the years of the military regimen in Brazil, for that we could
comprehend in what manner, in this period, the costume censorship, that already was an
ancient practice incorporated to the Brazilian political-culture, was absorbed and
restructured by the group that was in the power with the intention to attend the Doctrine
of National Security , as well, the demands from conservative social sectors, to control
the circulation of periodicals that talked about themes considered offensive to the moral
and the great costumes, as the feminine emancipation, the use of contraceptive pills, the
search for sexual satisfaction, the spread of drugs, and the young’s dissatisfaction with
the old social structures. For that we could know the way that the magazine readers of
the period received the news and the debates about the transformations in the standard
behavior and relationship, we analyzed the articles published in the magazines
Manchete, Realidade and Ele Ela, during the 1960’s, and after, we evaluated how these
three periodicals were hit by the “legal” and high bureaucratized structure of the
costumes censorship.
V
SUMÁRIO
Agradecimentos......................................................................................................................................6
Apresentação........................................................................................................................................10
Capítulo I-Alvoroço cultural, modernização da indústria editorial e a estruturação da censura de
periódicos no regime militar .................................................................................................................14
1.1-Desvendando “os porões da ditadura”...................................................................................28
1.1.1-As censuras ................................................................................................................36
1.2-A censura à imprensa escrita e suas múltiplas faces...............................................................40
1.3-Reformas legislativas e institucionalização da censura de imprensa: o regime militar em busca
de legitimidade .......................................................................................................................42
1.4-Regulamentação e sistematização da censura moral de periódicos .........................................46
Capítulo II-Os bastidores da imprensa pelas páginas, histórias e memórias de Manchete, Realidade e Ele
Ela. ......................................................................................................................................................87
2.1-De O Cruzeiro à Manchete, um pouco de tudo para todos, em imagens e cores......................91
2.2-Realidade: uma referência de qualidade para o jornalismo brasileiro .....................................95
2.3-Ele Ela: no compasso da segmentação, uma revista para mulheres e homens modernos .......113
Capítulo III-A revolução dos costumes nas páginas de Manchete, Realidade e Ele Ela ........................119
3.1-A mulher e o mundo moderno ............................................................................................120
3.2-“Santos inocentes” ou “perversos”: a juventude dos anos 1960 e os conflitos de geração .....148
3.3-Abaixo a autoridade pedagógica .........................................................................................187
Capítulo IV-A revolução dos costumes e a vigília moral aos periódicos...............................................206
4.1-Realidade vai ao Supremo Tribunal Federal........................................................................219
4.2-A censura moral em Manchete, Realidade e Ele Ela............................................................234
Considerações finais...........................................................................................................................240
Fontes e Referências bibliográficas.....................................................................................................245
6
Aos mestres com quem aprendi o ofício de tecer
o passado.
Àquele que com suas experiências bordou para
mim as mais belas e fascinantes histórias e com
quem, desde muito cedo, aprendi que tecer, mais
que um ofício, deve ser uma arte.
7
Agradecimentos
Vir para o Rio de Janeiro cursar o Mestrado, mais que uma importante
realizão profissional, representou a possibilidade de retornar à cidade natal depois de
mais de uma década afastada, onde ao longo desses dois apressados anos de pesquisas e
busca de amadurecimento intelectual, tive a satisfação de reencontrar pessoas queridas e
conhecer outras tão especiais que, de alguma maneira peculiar, fizeram dessa temporada
uma sucessão de bons momentos, durante os quais não pude, jamais, deixar de lembrar
daqueles que me ensinaram a dar os passos com os quais trilhei o caminho que me
trouxe de volta.
O professor Galba di Mambro, da Universidade Federal de Juiz de Fora, teve um
papel fundamental na descoberta do interesse por arquivos, pela investigação e pela
escrita da história, o que em pouco tempo se confirmou, no Mato Grosso do Sul, onde
a professora Maria Augusta de Castilho, da Universidade Católica Dom Bosco, de
maneira rigorosa e o menos afetuosa, me ensinou os fundamentos da pesquisa
histórica, me ofereceu as primeiras oportunidades e, até hoje, me estimula a apostar na
carreira acadêmica. Na Universidade de Brasília, onde concluí a graduação, tive a
fortuna de encontrar a professora Ione de Oliveira, com quem aprendi a apreciar história
política e a entender o valor essencial da objetividade. A ela agradeço pelo incentivo e
pelas primeiras discussões que levaram à elaboração do projeto de mestrado, cujos
rascunhos e primeiras versões leu e comentou atenciosamente. Nessa mesma ocasião,
tive a oportunidade de conviver com o professor Estevão de Rezende Martins, a quem
agradeço pela confiança que me depositou e pelos exemplos de conduta profissional e
humana que carregarei como o mais precioso dos seus ensinamentos.
Ao professor Carlos Fico, cujos trabalhos me instigaram a desenvolver esta
pesquisa e a vir para a Universidade Federal do Rio de Janeiro aprofundar os estudos
sobre censura, agradeço pela generosidade com que aceitou me orientar e, ao longo
desses dois anos, por ter me permitido a liberdade de escolhas em termos teóricos e
metodológicos sem, contudo, deixar de ressaltar e apreciar de maneira cuidadosa a
adequação entre objeto de estudo e conceitos, bem como a busca de “leveza”, “rapidez”
e “exatidão” no momento da construção textual.
Às Professoras Alzira Alves de Abreu e Maria Paula Nascimento Araújo, que
participaram do meu exame de qualificação, agradeço os valiosos comentários e
sugestões, incorporados tanto à rotina de pesquisa como à redação final dessa
8
dissertação. À professora Maria Paula agradeço ainda, pela gentil iniciativa de
encaminhar meu projeto ao professor Carlos Fico e por ter proporcionado, juntamente
com a professora Samantha Viz Quadrat, discussões sobre “memóriaque se tornaram
fundamentais na problematização de algumas queses relativas à imprensa.
Não poderia deixar de mencionar o valor inestimável das discussões com o
professor Renato Lemos, bem como dos livros e artigos que me indicou e o zelo com
que me encaminhava qualquer pequena nota que entendesse poder contribuir para a
minha pesquisa. Não tenha dúvidas de que contribuíram, e muito. Fundamentais
também foram as dicas da professora Andrea Daher, de como explorar
arqueologicamente” as revistas pesquisadas e transformá-las em uma passagem para
entender a dinâmica social da década de 1960 no Brasil. À professora Denise
Rollemberg, agradeço por disponibilizar textos ainda inéditos que tiveram grande
relevância no desenvolvimento de algumas discussões.
Destaco a importância do CNPq, cujo investimento de um ano de bolsa de
mestrado propiciou o levantamento das fontes documentais, a aquisição de material de
trabalho, a participação em eventos acadêmicos e a conclusão da dissertação de
mestrado. Sem este apoio institucional uma série de atividades teria sido colocada em
segundo plano.
Gostaria de agradecer aos jornalistas que fizeram parte da redação da revista
Realidade, especialmente Carlos Marão e Mylton Severiano da Silva, e também ao
jornalista Carlos Heitor Cony, ex-editor da revista Ele Ela, por estarem sempre
dispostos a contribuir com suas histórias e memórias. Especiais também foram as
contribuições de Carlos Marx, funcionário responvel pelo fundo DCDP na sede do
Arquivo Nacional em Brasília, e Vilma Oliveira, bibliotecária da Associação Brasileira
de Imprensa, cujo profissionalismo e dedicação com que me ajudaram no levantamento
de fontes foram fundamentais para a boa realização dessa pesquisa. Deixo aqui meu
reconhecimento à arquivista do Senado Federal, Renata Rozemberg, por me ajudar a
sistematizar a organização do vasto corpo documental que come essa pesquisa e por
me receber com sua amizade acolhedora nas vezes que estive em Brasília.
Serei eternamente grata aos queridos tio Carlos, tia Glorinha e à Dani, minha
amiga e companheira desde a mais tenra idade, por terem me oferecido o perfeito
ambiente de harmonia e carinho que me foram essenciais durante o período de
realizão das provas de seleção do mestrado. À tia Ana, tio Nelson e à amiga Fabíola,
agradeço por terem me ajudado de múltiplas maneiras a chegar até aqui, e pelos
9
desdobrados cuidados com que me acolheram enquanto a mudança para o Rio não se
concluía.
Aos amigos que ficaram distantes, agradeço pelo tempo em que juntos sonhamos
planos que hoje nos esforçamos em realizar.
À Luciana Fagundes, a minha admiração pela garra motivadora, pela cansativa
tarefa de ler as inumeráveis versões de meu manuscrito, por suas críticas e lembretes
sempre essenciais e pela presença carinhosa. À Cristina Luna, pela companhia sempre
alegre e enriquecedora e pelas preciosas trocas intelectuais. À Silvia Senna e Maria de
Fátima Fagundes por me devolverem o fôlego e a tranilidade quando por vezes me
faltaram. À Rachel Motta e Manuel Henrique Cantalejo, por partilharem comigo as
conquistas e incertezas que caminharam juntas nesse processo de pesquisa, do qual
fizeram parte também Paulo César, Aline Monteiro e Tífani Albuquerque com suas
incríveis faixas e votos de sucesso no dia do exame de qualificação. À Miliandre Garcia,
que além de tornar mais amenas e divertidas as horas de pesquisa no Arquivo Nacional
em Brasília, me enviou alegria em lindos cartões postais. Agradeço também aos mais
recentes e queridos amigos, Massimo Bonato, pela felicidade de intermiveis
discussões tricas; Evelise Neves, que me ensinou que se sonhos podem ser sonhados
também podem ser realizados, e à animação revigorante da turma da ditadura”,
liderada pela Maria Paula. Aos amigos que não foram citados nominalmente, digo-lhes
que as entrelinhas deste trabalho guardam um pedaço de cada um de vocês.
Por fim, agradeço à confiança e ao incentivo incondicionais do meu pai, que
alterou planos e rotas para permitir que eu desse continuidade à minha trajetória
acadêmica, à minha mãe, pelos cuidados, pela paciência e pelo entusiasmo mesmo nos
momentos mais difíceis, e à vovó Glorinha, pela dedicação, pela doçura e pelo afeto
com que preenche meus dias.
10
Apresentação
Em 1967, Caetano Veloso levou ao Festival da Record a canção “Alegria
Alegria”, cuja letra, segundo alguns críticos da época, possuía uma estrutura
cinematográfica, como se no momento da sua composição Caetano estivesse andando
pela rua com uma câmera na mão, cujos registros iam se transformando em versos.
Por ocasião deste estudo, ao analisar as revistas Manchete, Realidade e Ele Ela
publicadas na década de 1960, percebi que enquanto folheava suas páginas, pudia
experimentar algumas das impressões cantadas, especialmente, na primeira parte
daquela música. As matérias e imagens desses três periódicos mostram um mundo que,
simultaneamente, se repartia em “crimes”, de guerra, políticos e também os passionais,
que se tornaram as “vedetes” do momento, “espaçonaves” de nações para as quais nem
o céu representava o limite, “guerrilhas” e inúmeras Cardinales bonitas”, numa alusão
à atriz italiana Cláudia Cardinali e tantas outras musas, que através da publicidade
comavam a envolver os mais diversos aspectos do cotidiano com seu sex apeal e a
fazer de Eros o deus triunfante da instria cultural que crescia e se modernizava.
Numa década em que o Brasil vivenciou seis sucessões presidenciais, “caras de
presidentes” também o deixaram de aparecer nas páginas dessas revistas, assim como
os grandes beijos de amor”, já que o amor e a busca da eterna felicidade tornaram-se os
temas obsessionais” da cultura de massa, num mundo em que explodiam “bombase
“mitos olimpianos” como “Brigitte Bardot, Liz Taylor, Jacques Charrier, Annette
Vadim, Sasha Distel e Marilyn Monroe.
Portanto, nestes periódicos da década de 1960, estão registradas as “fotos”, os
“nomes”, as “cores” e os “amores”, nem sempre “vãos”, de que Caetano Veloso nos fala
em sua “canção-câmera-na-mão”, que enchiam os olhos e começavam a chamar a
atenção de um número cada vez maior de leitores de revista.
Partindo do contexto cultural brasileiro da década de 1960, marcado pelo
Tropicalismo e pela emergência de uma indústria cultural pautada no consumo de
massa, neste trabalho revisitamos os anos do regime militar e nos detemos, mais
precisamente, na análise da censura de periódicos considerados ofensivos à moral e aos
bons costumes.
O interesse em estudar a censura de temas morais não significa, em hipótese
alguma, que negligenciamos a censura de temas poticos, ou, sequer, que a
consideramos menos importante. O recorte privilegiado nesta pesquisa representa um
11
esforço no sentido de compreender a censura durante o regime militar de forma mais
ampla, através do esclarecimento de algumas especificidades que até então o haviam
sido contempladas pelos estudos do tema, sem, contudo, perder de vista as diversas
dimensões que caracterizaram a censura durante o regime militar, até porque, vale
ressaltar desde já, a censura de temas morais e de temas poticos, ainda que guardem
suas especificidades em termos de funcionamento, estrutura organizacional, abrangência
temática e intensidade, estiveram articuladas através desses e de outros aspectos que
fazem delas como que lados diferentes de uma mesma moeda.
Partindo das considerações do sociólogo francês, Edgar Morin, de que na década
de 1960 teve início, na nossa sociedade, uma transformação cultural que adquiriu um
aspecto de erupção de 1965 a 1970 e que, daí em diante, continuou seguindo seu curso,
1
no capítulo I esboçamos como se deu a modernização da instria editorial no Brasil,
em meio ao processo de instalação do regime militar e à turbulência cultural que marcou
a década de 1960, no país e no mundo.
Em seguida, analisamos de que maneira ocorreu, entre os anos de 1964 e 1985, o
processo de institucionalização, regulamentação e desmonte da estrutura legal e
burocrática da censura de periódicos, mais especificamente a que visava os temas
considerados ofensivos aos “valores tradicionais da sociedade brasileira”, que, como
veremos, era uma prática que estava inserida na cultura potica brasileira e que foi
absorvida e reelaborada pelo regime militar conforme as necessidades de adequar os
seus instrumentos de controle às novidades introduzidas pela modernização dos meios
de comunicação de massa e às variações verificadas na dinâmica social e potica, tendo
sido a “defesa da segurança nacional” a principal justificativa para a adoção de tais
medidas. Aqui, as principais fontes de pesquisa foram os documentos sigilosos que
circulavam no âmbito do Ministério da Justiça, os relatórios da Divisão de Censura de
Diversões Públicas, a legislação produzida na época e as normas legais que
regulamentavam a censura de periódicos considerados ofensivos à moral e os bons
costumes, que também nos permitiu verificar como ocorreram as oscilações entre os
momentos de maior e menor restrição a esses periódicos, ao longo dos anos em que os
militares estiveram no poder.
1
MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX. O Espírito do tempo-2. Necrose. 3 ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2006, p. 9.
12
No capítulo II, veremos a trajetória e a natureza das revistas Manchete,
Realidade e Ele Ela que, naquele momento, se destacavam no crescente mercado
editorial brasileiro tanto por trazerem novas propostas a umblico leitor que se
tornava cada vez mais volumoso e diversificado, como também por darem visibilidade a
temas que deixavam de ser tratados como tabu e passavam a ser discutidos
publicamente, especialmente no que dizia respeito às questões ligadas a comportamento
e sexualidade, visados pela censura que, simultaneamente, ia se institucionalizando e
ganhando normas mais rígidas.
A partir da seleção de artigos publicados nesses três periódicos, relativos à
questões como emancipação feminina, sexualidade e juventude da época, no capítulo III
veremos de que maneira as revistas Manchete, Realidade e Ele Ela deram forma aos
eventos e debates que caracterizaram a efervescência potico-cultural e as
transformações comportamentais da década de 1960, visados pelos setores mais
conservadores da sociedade e pela censura de costumes por serem considerados
ofensivos aos “valores da família cristã” e por representarem um risco à ordem social e
à ordem potica institdas, bem como à segurança nacional. Como esses periódicos
construíram e deram significado à chamada “revolução dos costumes”? Qual o papel
deles na difusão e discussão de temas relacionados à moralidade e aos novos padrões de
comportamento e relacionamento? Ao enfrentarmos tais questões, e considerando o fato
de se tratarem de periódicos que se destacavam no mercado editorial de revistas da
época por suas elevadas tiragens e pela distribuição em escala nacional, buscamos
avaliar a importância deles enquanto veículos através dos quais os leitores puderam se
sintonizar com os problemas da época, bem como a contribuição de cada um para a
discussão de questões relativas aos novos valores morais e padrões de comportamento
que começavam a emergir em todo o mundo.
Especialmente em relação às revista Realidade e Manchete, embora elas tenham
ganhado notoriedade, tanto no período abordado por esta pesquisa, como
posteriormente em trabalhos acadêmicos, pela abordagem que deram aos temas
eminentemente poticos, procuramos selecionar para análise os seus artigos que
tratavam mais especificamente de questões comportamentais, sem, contudo, deixar de
discutir o posicionamento e a atuação de cada uma delas no campo da potica,
especialmente através das obras que estudaram os periódicos em questão a partir dessa
perspectiva, bem como das entrevistas concedidas por jornalistas da época que, ao
contarem e recontarem suas experiências dentro das redações, nos permitiram avaliar de
13
que maneira eles vêm reelaborando suas memórias e, assim, a história da participação
desses periódicos e de alguns jornalistas nos anos do regime militar.
Depois de termos visto como foram estruturados e operados os mecanismos da
censura utilizados tanto para proibir como para direcionar a discussão de questões
comportamentais em periódicos de grande circulação, para que pudéssemos entender
em que condições as revistas Manchete, Realidade e Ele Ela puderam continuar
abordando essas questões, bem como a maneira como o regime se comportou em
relação a esses títulos, procuramos avaliar em que medida as ações restritivas do regime
no campo da imprensa representavam os interesses de uma parcela mais conservadora
da sociedade que recorria ao Estado através de diferentes canais de comunicação com o
poder público, para solicitar a ação das autoridades e instituições no sentido de garantir
a defesa da moral e dos bons costumes. Tendo isso em vista, no capítulo IV falamos das
cartas enviadas por membros de diferentes setores da sociedade à Divisão de Censura de
Diversões Públicas e à redação das revistas aqui estudadas, as quais nos permitiram
conhecer a variedade de demandas sociais, tanto no sentido de controlar como de
permitir que as novas idéias e práticas comportamentais vindas dos EUA, Inglaterra,
França, Holanda, Suécia, entre outros, entrassem no Brasil através dos periódicos de
grande circulação nacional. Além disso, essa documentação nos possibilitou ver o
diálogo travado entre o regime militar, a sociedade e as revistas, no que diz respeito às
questões morais e comportamentais da época, o que certamente vem contribuir para que
essas relações possam ser entendidas de maneira mais complexa e independente do
enquadramento dos diferentes atores sociais em tipologias estereotipadas e que pouco
dizem a respeito da dinâmica e dos conflitos internos da sociedade da época. Iremos
falar, também, do caso paradigtico de censura à revista Realidade, que demonstra
que antes mesmo da decretação do Ato Institucional n. 5 e com base em uma legislação
que antecedia em muito a entrada dos militares no poder, era possível impedir a
circulação de periódicos que fossem considerados ofensivos à moral e aos bons
costumes, e ainda com base nas cartas enviadas à DCDP, nos documentos do Ministério
da Justa e nos pareceres da censura de periódicos emitidos pelos técnicos de censura
da DCDP, finalizamos o capítulo mostrando de que maneira essa estrutura legal e
altamente burocratizada da censura de costumes viu a abordagem dada pelas revistas
Manchete, Realidade e Ele Ela às questões ligadas à moralidade e comportamento e de
que maneira agiu em relação a cada uma delas.
14
Capítulo I
Alvoroço cultural, modernização da indústria editorial e a estruturação da censura
de periódicos no regime militar
Traços e focos de ‘contracultura’, e mesmo de ‘revolução
cultural’ formaram-se no underground, à margem da cultura de
consumo, porém também penetrando-a, irrigando-a. A cultura
de massas tende, a um tempo, a deslocar-se e a integrar as
correntes desintegradoras.” (Edgar Morin, Cultura de Massas
no século XX: neurose, p. 07)
Por volta de 1967, eclodia no Brasil o movimento Tropicalista como expressão
de um processo de transição cultural que estava em marcha desde o início da década de
1960, e que tinha como uma de suas propostas a ruptura com os padrões tradicionais de
comportamento e de organização da sociedade.
2
Emergindo como uma nova linguagem
crítica, catalisadora das inquietações e impasses resultantes da derrota do projeto
revolucionário das forças progressistas pelo golpe de 64, o Tropicalismo veio sugerir
uma maior preocupação com o “aqui e o agora”, em detrimento das promessas de um
futuro redentor, e estimular o rompimento com a severidade e inflexibilidade da potica
vigente, através de uma produção cultural mais criativa, da subversão do corpo, da fusão
de elementos da cultura hegemônica norte-americana com a cultura popular brasileira,
de novas formas de organização social e da transgressão dos valores e do
comportamento.
3
No período pré-64, parte da produção artística e intelectual, largamente
controladas pela esquerda, eram marcadas pela utilização de uma linguagem que visava
atingir as massas através de um tom didático e conscientizador, cabendo ao artista e ao
intelectual, portanto, o papel de informar o povo e assim forjar a revolução. Com o
golpe de 64, o principal efeito que se abateu sobre essa dinâmica da produção cultural
o foi, num primeiro instante, o impedimento da circulação dessas produções teóricas e
artísticas de esquerda no território nacional, que paradoxalmente se tornavam
hegemônicas no mercado cultural daquele momento,
4
mas a tentativa de evitar que elas
se propagassem largamente. Portanto, assim como se deu com as formas de ação
política, as atividades culturais revoluciorias também precisaram ser reformuladas
2
NAPOLITANO, Marcos e VILLAÇA, Mariana Martins. Tropicalismo: as relíquias do Brasil em debate.
Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 18, n. 35, p. 53-75. Disponível em:http://www.scielo.br.
3
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde, 1967/70. Rio
de Janeiro: Rocco, 1992, p. 62.
4
GONÇALVES, Marcos Augusto e HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Cultura e participação nos anos
60. São Paulo: Brasiliense, 1999, p. 20-21.
15
após o golpe, no intuito de definir novas táticas de atuação, que não o discurso
nacionalista e populista característico do período Goulart.
5
Foi assim que a cultura engajada, para sobreviver ao novo quadro conjuntural,
marcado pela emergência e consolidação de uma ditadura que visava controlar as
diversas esferas da vida social, ao invés de mobilizar as massas, passou a fazer contato
com setores da classe média, através da crescente participação num mercado cultural
organizado para o consumo, especialmente de estudantes e intelectuais, que, ao
aderirem a essa linguagem cultural militante e entusiasmada, passaram a compor um
foco de resistência à implantação dos objetivos da “revolução vitoriosa” de 64.
Nesse sentido, o Tropicalismo, enquanto movimento de renovação da cultura
popular, cuja porta de entrada foi a música popular brasileira, mas que logo estendeu
suas possibilidades criativas aos diversos campos da produção artística e intelectual,
propunha uma revisão do nacionalismo e da idealização populista da “pureza-popular”,
características do projeto revolucionário pré-64, em favor de uma cultura brasileira
“moderna”, capaz de absorver e elaborar criticamente influências culturais de origem
internacional, como por exemplo os elementos da contracultura, vindos principalmente
da Inglaterra e dos Estados Unidos.
6
No final da década de 1960 e início da de 1970, à medida que se intensificava a
influência da contracultura no Brasil, especialmente através dos meios de comunicão
de massa, os elementos de crítica sugeridos pelo Tropicalismo foram se aprofundando
cada vez mais, resultando numa radicalização da crítica comportamental e numa
diversificação das suas formas de manifestação e atuação, especialmente através dos
canais controlados pelo sistema, tais como a imprensa escrita, a televisão, o cinema, o
rádio e a moda.
7
Assim, crescia cada vez mais o abismo entre a geração da década de
1960 e a geração de seus pais, não apenas em termos poticos e econômicos, mas
também culturais e comportamentais, à medida que crescia a rejeição à ordenação
historicamente estabelecida das relações sociais, suas convenções e proibições, em
nome da satisfação pessoal e de uma ilimitada autonomia dos desejos humanos, até
então rejeitados ou vistos com desconfiança.
8
Mas se de fato o Tropicalismo configurou-se na maneira adotada por alguns
grupos para manifestar sua insatisfação contra as formas autoritárias de poder, o
5
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Op. cit. p. 29.
6
GONÇALVES, Marcos Augusto e HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Op. cit. p. 52.
7
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Op. cit. p. 62-63.
8
HOBSBAWM, Eric. Op. cit. p. 322-327.
16
tradicionalismo, o nacionalismo ufanista e os velhos padrões comportamentais, fez isso
com base nas estruturas do consumo de massa. De maneira ambivalente, portanto, o
Tropicalismo atendia simultaneamente ao clima de engajamento político pela via
cultural, e às exincias de uma instria cultural voltada para o consumo de massa, que
naquele momento emergia em consonância com os interesses do regime militar e do
capital estrangeiro.
9
Visto o papel do Tropicalismo enquanto uma forma alternativa de crítica e
resistência potica, ideológica, comportamental e estética, é preciso, entretanto, não
perder de vista o fato de que as transformações cio-econômicas vividas pelo Brasil
naquele momento resultaram em mudanças na esfera cultural, especialmente no que se
refere à emergência de um mercado de bens culturais que vinha se estruturando ao
longo dos anos 1940 e 1950 e que viria se consolidar entre 1960 e 70.
Com a ascensão dos militares após o golpe de 1964, apoiados em amplos setores
da sociedade civil e grupos empresariais nacionais e estrangeiros, foi possível
aprofundar medidas ecomicas que haviam sido tomadas inicialmente no governo de
Juscelino Kubitschek, empreendendo um processo de reorganização e desenvolvimento
da economia brasileira, que, através da intervenção do Estado, começou a ser inserida
cada vez mais no processo de internacionalização do capital. Com base no
planejamento, gerenciamento e no incentivo ao desenvolvimento econômico, associado
a uma postura política marcadamente autoritária, os militares possibilitaram a
consolidação dos interesses do capital multinacional e associado, que vinham se
estabelecendo e ditando o ritmo da economia brasileira desde a década de 1940.
10
Essa reorientação econômica teve conseqüências imediatas, pois, paralelamente
ao crescimento do parque industrial e do mercado interno de bens materiais, houve um
fortalecimento tanto da indústria como do mercado de bens culturais, tanto a nível de
produção, como de distribuição e de consumo,
11
que se até os anos 1950 era incipiente e
restrito a um número reduzido de pessoas, naquele momento passava a ser cada vez
mais diversificado e a cobrir uma massa consumidora cada vez maior.
12
Nesse sentido, a
situação cultural do Brasil na década de 1960 foi de grandes transformações em todos os
9
GONÇALVES, Marcos Augusto e HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Op. Cit. p. 66.
10
A esse respeito da relação entre civis e militares e da participação de empresários no golpe de 64, ver
DREIFUS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. ão política, poder e golpe de classe. Rio de
Janeiro: Editora Vozes, 1981.
11
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. 5. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994, p. 113-114.
12
Idem, p. 122.
17
setores, caracterizando-se pelo crescente volume e dimensão do mercado de bens
culturais.
Nesse período, a indústria editorial, na sua totalidade, pôde se beneficiar e
modernizar com a potica de incentivo do governo para importação de novos
maquinários, o que resultou na ampliação de sua produção, evolução técnica, melhoria
na qualidade do material impresso, profissionalização e racionalização, com vistas a um
mercado consumidor que ia se formando e se diversificando graças aos processos mais
amplos de industrialização e urbanização que tiveram início ainda nos anos de 1940. De
acordo com a tabela abaixo, percebemos que entre os anos de 1960 e 1975 a indústria de
revistas dobrou sua produção, e praticamente quadriplicou o número de exemplares
publicados entre 1965 e 1985, enquanto que no mesmo espaço de tempo a população
brasileira aproximadamente duplicou.
Fonte: Tabela de crescimento do mercado de revistas. CORREA, Thomaz Souto. Mercado de revistas,
onde estamos para onde vamos. Anuário brasileiro de propaganda, 78/79. OBS: O ano de 1985 é uma
projeção.
Relembrando a canção “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso, os dados
apresentados acima nos ajudam a refletir a respeito de um dos seus versos, no qual o
compositor diz ser tomado, ao mesmo tempo, por um sentimento de alegria e preguiça
diante da enxurrada de notícias que encontrava nas bancas de revista. Entretanto, esses
números ainda não respondem à pergunta que aparece no verso seguinte: Quem tanta
notícia?
Dentro desse quadro de crescente racionalização da produção cultural e avanço
da sociedade de consumo, a imprensa passava a ser concebida cada vez mais como um
investimento comercial, um serviço público que deveria satisfazer os interesses do leitor
e assim alcançar altos índices de circulação e vendas. O jornalismo feito à francesa,
combativo, crítico, doutrinário e de opinião, que desde os seus primórdios reservava
grande espaço para a crônica, para o embate potico, para o fait divers e para a
publicação de folhetins, a partir da década de 1950 foi cedendo lugar para um
jornalismo influenciado pelo modelo norte-americano, que privilegiava a informação e a
notícia objetiva em detrimento da opinião e do comentário pessoal, em que o lucro
Ano 1960 1965 1970 1975 1985
Exemplares
(em milhões)
104 139 193 202 500
18
passava a falar mais alto que qualquer ideologia ou convicção potico-partidária.
13
Se
Chauteaubriand marcou sua época pelo espírito empreendedor-aventureiro com que
conduziu seus Diários Associados, nos anos 1960 e 1970 Roberto Marinho, Victor
Civita e Adolfo Bloch foram os grandes investidores do setor de comunicações,
destacando-se pelos vultosos investimentos em equipamentos e introdução de novas
técnicas em busca de maior produtividade, além da crescente profissionalização de seus
quadros, racionalidade na gestão administrativa e exatidão no lculo do lucro de suas
empresas jornalísticas.
14
Ao ler os artigos e anúncios publicados nas revistas de maior circulação da
época, percebemos que as manifestações da contracultura, além de servirem àqueles que
encontraram na sua expressão musical, visual e corporal um canal através do qual
poderiam manifestar sua insatisfação e indignação diante dos rumos da potica no
Brasil e no mundo, serviram também aos interesses da indústria e do mercado de bens
culturais, que se apropriaram das suas cores, do seu brilho e dos seus ritmos para atingir
um blico consumidor variado, que poderia vivenciar através de unhas postiças,
tatuagens provisórias, brincos, relógios e tecidos psicodélicos o espírito
experimentalista, inventivo, festivo e debochado que caracterizou a era de aquarius”,
sem que isso significasse qualquer forma de oposição ou resistência à ordem potica e
social, mas a adesão a alguns elementos de estilos de vida diferenciados que inspiraram
a moda da época, ditada e disseminada através dos meios de comunicação de massa,
especialmente as revistas, que tinham ampla circulação entre os diversos setores da
sociedade brasileira. Assim sendo, o fato de as revistas da época veicularem símbolos,
artigos e temas relacionados à contracultura não significava, necessariamente, qualquer
forma de engajamento potico, mas uma estratégia para chamar a atenção e estimular o
consumo através do apelo visual e sensorial àqueles que queriam estar “por dentro do
que se passava em termos de moda e comportamento nos principais centros de
irradiação cultural da época, tais como Londres, Paris e Nova Iorque.
Em contrapartida, ao permitir a circulação e discussão de temas relativos às
transformações comportamentais e a publicidade de produtos e símbolos da cultura de
protesto pelos meios de comunicação social de massa, o Estado buscava afirmar e
13
ABREU, Alzira Alves de. A modernização da imprensa (1970-2000). Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2002, p. 12.
14
Para uma discussão mais aprofundada a respeito das transformações da imprensa ao longo das décadas
de 1950, 60 e 70 ver: ABREU, Alzira Alves de (org.). A imprensa em transição; o jornalismo brasileiro
nos anos 50. Rio de Janeiro: FGV, 1996; ABREU, Alzira Alves de. A modernização da imprensa (1970-
2000). Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2002; e ORTIZ, Renato. Op.cit.
19
preservar sua imagem de defensor das liberdades e valores democráticos no espaço
amplo e contraditório da sociedade civil, sem que isso colocasse em risco sua
permanência no poder, tanto porque mantinha esses meios sob sua estrita vigilância,
como porque se empenhava em desenvolver poticas culturais proativas que
reforçassem, através de diversos meios de divulgação, a idéia de um Brasil grande,
unido e próspero. Outro ponto que deve ser ressaltado, é que a cultura e as artes daquele
período foram simultaneamente um terreno onde se configuraram as críticas das
oposições ao regime militar, como também um espaço de negociação entre o Estado e a
sociedade. Isso porque, com o fechamento dos tradicionais veículos de manifestação
política, o campo cultural passou a ser valorizado enquanto canal de comunicação do
Estado com a sociedade e entre os diferentes setores sociais, tanto pelo regime quanto
pelo mercado de bens culturais (editoras, televisão, empresas de rádiofusão, gravadoras
etc). Para esses empresários, a veiculação de produtos que contivessem elementos
relacionados à crítica social e comportamental surgia como um negócio
economicamente rentável, sem que representasse um ponto de atrito com o Estado,
que negociavam com ele os limites de conteúdo e de forma desses produtos, conforme
seus interesses poticos, ideológicos e econômicos, ao mesmo tempo em que atendiam
tanto à demanda daqueles grupos que o estavam satisfeitos com a permanência do
regime de exceção e com a derrota potica dos projetos de esquerda, como àqueles que
queriam apenas se inteirar da moda e consumir aquelas cores, ritmos e estilos.
15
Através dessas publicações, os leitores eram informados das transformações que
vinham se operando especialmente no campo da sexualidade, após a introdução e
disseminação do uso da pílula; ficavam sabendo das discussões sobre aborto,
emancipação feminina, homossexualismo, bissexualismo, do novo papel da mulher na
sociedade e acerca de outras questões bastante controvertidas na época, como o poder
de transformação dos jovens, os psicotrópicos, o divórcio, o “Louco Sonho Delirante"
16
dos hippies e a crescente ascensão do erotismo e da exploração do corpo feminino pela
indústria cultural. É nesse cenário que em dezembro de 1967, o figurinista José Ronaldo
lançava na revista Manchete o “verão das meninas em flor”, inspirado no mundo
15
Agradeço à professora Denise Rollemberg por ter disponibilizado este texto inédito de Marcos
Napolitano, que irá compor a coletânea de textos que está organizando e que será publicada ainda este
ano: NAPOLITANO, Marcos. “Vencer satã só com orações”: políticas culturais e cultura de oposição no
Brasil dos anos 1970. In: ROLLEMBERG, Denise, QUADRAT, Samantha Viz, FERRERAS, Norberto e
BITTENCOURT, Marcelo (orgs.). Sociedades e regimes autoritários (título provisório). Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, no prelo.
16
Este filme é na base do “Lindo Sonho Delirante”. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 819, p.
62-65, 30 Dez. 1967.
20
colorido dos hippies e no seu flower power;
17
que a aspiração ao sexo único ou à
inversão entre feminino-masculino, que já em 64 havia figurado nas páginas de
Manchete,
18
apareceram em destaque na capa da revista Realidade de abril de 1970;
19
enquanto que as cores e imagens psicodélicas produzidas pela viagem alucinante do
LSD foram, ao longo desses anos, se espalhando pelo corpo dos leitores através de toda
sorte de acessórios, inspirados na Carnaby Street de Londres e na Tropicália de Caetano
Veloso.
17
O verão das meninas em flor. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 815, p. 82-87, 02 Dez. 1967.
18
A roupa não faz o homem. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 652, p. 124-127, 17 Out. 1964.
19
O sexo único. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n. 49, p. 72-77, Abr. 1970.
Manchete, n. 853, 24/08/68.
Manchete, n. 824, 31/02/68.
Manchete, n.835, 20/04/68.
21
Para que possamos compreender como funcionou a circulação pela imprensa de
temas polêmicos e de conteúdo considerado permissivo, é preciso observar que, no
Brasil, a interação entre imprensa e Estado ocorre em diferentes níveis, uma vez que a
imprensa caracteriza-se como uma entidade multifacetada, que atua simultaneamente
como ator econômico e sócio-político, sujeita, portanto, às pressões do mercado
(advindas especialmente dos seus anunciantes, privados ou do Estado), da política e da
opinião pública.
20
Além disso, a forma como o Estado se comportava em relação à
imprensa escrita refletia as contradições internas do próprio regime, variando de acordo
com as mudanças de orientação no rculo do poder, à medida que os governos se
sucediam. Segundo Carlos Estevam Martins e Sebastião Velasco e Cruz:
O movimento político-militar que derrubou o presidente João Goulart demonstrou possuir
aquela qualidade que Maquiavel punha acima de tudo: a capacidade de conservar o poder
conquistado e ampliá-lo. Por outro lado, porém, registra-se o fenômeno da mutabilidade.
Longe de ter permanecido sempre idêntico a si mesmo, o regime sofreu diversas
transfigurações, ora regredindo na dirão do Estado de exceção, ora progredindo na
direção oposta.
21
O caráter de mutabilidade do regime militar, a que se refere o trecho acima,
relaciona-se às diferentes orientações poticas e ideológicas dos grupos que se
sucederam no comando da nação ao longo desse período,
22
e seus efeitos podem ser
observados, por exemplo, em relação à censura de temas morais e comportamentais na
imprensa, que por sua vez, não consistiu numa ação repressiva autônoma e estável ao
longo de todo o regime, mas numa potica de Estado que se adequava à dinâmica das
relações estabelecidas entre imprensa, regime militar e sociedade e que, além de
reprimir, buscava disciplinar, variando sua abrangência e intensidade conforme a
orientação do grupo que estivesse no poder. Do ponto de vista dos militares, a
divulgação do erotismo, da pornografia, do uso de tóxicos e da violência, pela imprensa,
consistia em uma das mais poderosas armas do “Movimento Comunista Internacional”
contra os regimes democráticos” e suas instituições, utilizada no intuito de minar e
tentar destruir os valores morais e cristãos da sociedade, cabendo, portanto, ao Estado, a
20
SMITH, Anne Marie. Um acordo forçado: o consentimento da imprensa á censura no Brasil. Rio de
Janeiro: FGV, 2001, p. 30.
21
CRUZ, Sebastião C. Velasco et MARTINS , Carlos Estevam. De Castello a Figueiredo: uma incursão
na pré-história da “abertura”. In: SORJ, Bernardo et ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de (orgs.).
Sociedade e política no Brasil pós-64. 2 ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984, p. 13.
22
A respeito da heterogeneidade, divisão e fluidez que caracterizam as práticas políticas dos militares,
ver: FILHO, João Roberto Martins. O palácio e a caserna: a dinâmica militar das crises políticas na
ditadura (1964-1969). São Carlos: UFSCar, 1996.
22
tarefa de proteger a família brasileira dos abusos verificados em algumas publicações
periódicas que, por serem amplamente divulgadas, podiam atingir leitores em todo o
território nacional.
23
Embora a maior parte da historiografia dedicada ao regime militar priorize suas
dimensões repressivas e os efeitos dilacerantes que tiveram sobre a sociedade, é preciso
matizar essa visão dicomica que separa lados de uma mesma moeda, colocando a
sociedade como tima indefesa de um Estado vilão, e partir para uma análise que veja a
relação entre Estado e sociedade como uma via de mão dupla. Isso se torna possível
quando pensamos que a capacidade de dominação política de um grupo sobre a
sociedade não está apenas no uso de instrumentos de coerção, mas no uso da persuasão
e de mecanismos de negociação que irão produzir arranjos estáveis dentro da sociedade,
base da ordem social que ilegitimar a dominação desse grupo sobre os demais.
É nesse sentido que iremos falar neste capítulo da censura de imprensa, e mais
especificamente de periódicos, durante o regime militar, numa abordagem que se
diferencia das demais obras que vêm tratando do tema,
24
exatamente por contemplar
o apenas seu aspecto repressivo, mas por tentar compreender a censura enquanto um
instrumento político que está inserido na tradição paternalista da potica brasileira,
segundo a qual compete ao Estado, através do seu poder de pocia, a missão de
controlar a sociedade, garantir a paz, a segurança, a ordem e a preservação dos modos
de vida da coletividade, em defesa do bem comum. Nessa perspectiva, que era
compartilhada por alguns setores conservadores da sociedade brasileira, a censura
consistia numa das expressões desse poder de polícia do Estado e deveria ser aplicada,
dentro de limitações estabelecidas por normas legais, no intuito de conter a “onda de
pornografia e subversão” que ameaçava invadir o Brasil, especialmente através dos
meios de comunicação de massa.
25
Entretanto, é preciso o perder de vista o fato de que a censura, ao longo do
regime militar, foi uma prática que variou tanto quanto à sua sistematicidade como
23
Informação Sigilosa, enviada do SNI ao SIGAB e à DCDP, Referência: Doc. de Info. 054/40/AC/73,
versando sobre infiltração comunista no Jornal do Brasil. Data: 18/05/1973. Arquivo Nacional-Sede em
Brasília. Seção: Administração Geral. Série: Corresponncia Oficial. Subsérie: Informações Sigilosas.
24
Dentre estes trabalhos destaco: A censura durante o regime autoritário, de Gláucio Ary Dillon Soares;
Censura, Imprensa, Estado autoritário (1968-1978), de Maria Aparecida de Aquino, Acordo Forçado: o
consentimento da imprensa à censura no Brasil, de Anne Marie Smith; e A censura política na imprensa
brasileira (1968-1978), de Paolo Marconi.
25
ROSA, F. A. Miranda. Sociologia do direito: o fenômeno jurídico como fato social. 6 ed. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1978.
23
quanto à sua intensidade,
26
mas que, independente disso, se caracterizou como
instrumento político composto por duas dimensões distintas, porém intrínsecas: uma
dimensão saneadora e uma dimensão pedagógica.
Essas duas dimensões coexistiram ao longo de todo o regime, tornando-se uma
mais evidente que a outra de acordo com os interesses mais prementes de cada
momento.
Assim, a dimensão saneadora, como a própria expressão sugere, ganhava relevo
em ocasiões nas quais, para a manutenção da ordem social e potica do país, o regime
sentia a necessidade de adotar medidas radicais para eliminar dos meios de
comunicação alguns temas contrários aos interesses do governo, mais freqüentes,
portanto, nos períodos de maior repressão potica.
27
Um bom exemplo disso são as
listas de proibições determinadas, emitidas pelo Ministério da Justa a partir de
solicitações de outros ministros ou membros do alto escalão do governo, contendo os
temas que não poderiam ser divulgados pela imprensa.
28
A circulação dessas listas era
restrita ao âmbito do governo, e a sua notificação aos órgãos de imprensa era feita
através de “bilhetinhos” e telefonemas às redações.
29
Os temas preferenciais sobre os
quais insidia a dimensão saneadora da censura de imprensa eram os relacionados à
política, cujas restrições deveriam ser feitas de forma disfarçada e negada perante a
opinião pública, para que não afetassem a imagem daquele governo que se intitulava
defensor da democracia, das garantias constitucionais e da liberdade de expressão.
30
26
Com relação aos diferentes momentos da censura durante o regime militar, ver FICO, Carlos. “Prezada
censura”: cartas ao regime militar. Topoi - Revista de História, Rio de Janeiro, v. 5, p. 251-286, 2002; e
SMITH, Anne Marie. Op. cit.
27
FICO, Carlos. A ditadura mostra a sua cara: imagens e memórias do período. 1964-1985. Disponível
em: www.history.umd.edu/HistoryCenter/2004-05/conf/Brazil64/papers/cficoport.pdf., p. 28.
28
Ofício n. 002/73-SIGAB/DG, de 16 de janeiro de 1973.Encaminha expediente que indica as atividades
do DPF executadas no campo da censura aos órgãos de comunicação social a partir de agosto de 1971.
Arquivo Nacional-Sede no Rio de Janeiro. Fundo:DSI/MJ, digo do Fundo: TT, Seção de Guarda: SDE,
Caixa n. 592, documento n. 50756.
29
Normas para a censura aos meios de comunicação social. Arquivo Nacional-Sede no Rio de Janeiro.
Fundo: DSI/MJ, Código do Fundo: TT, Seção de Guarda: CODES, Documentos avulsos (10), Caixa n.
08/4674, [1972].
30
Em comparação às suas conneres latino-americanas, o regime militar brasileiro foi mais burocratizado
e distinguiu-se pela importância que a esfera jurídica veio a assumir nas suas relações de dominação
política e pela dificuldade de atuar à margem de certos paradigmas da cultura política brasileira. Isso
porque, no mundo do pós-guerra, o “mercado mundial de idéias” estabeleceu a legitimidade democrático-
representativa como pré-requisito para a aceitação da dominação política, o que impôs aos regimes não-
democráticos surgidos a partir de então um quadro de “esquizofrenia ideológica”, em que o autoritarismo
era praticado no presente prometendo a democracia no futuro. Ver LEMOS, Renato. Poder Judiciário e
poder militar (1964-69). In: CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Victor et KRAAY, Hendrik. (orgs.) Nova
História Militar brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2004, p. 410-415.
24
a dimensão pedagógica da censura era aplicada no sentido de direcionar a
maneira como alguns temas deveriam ser tratados pela imprensa, assumindo muito mais
um caráter educativo do que proibitivo. Isso ia ao encontro da iia que os militares
tinham da sociedade civil, como sendo ingênua, despreparada e, portanto, facilmente
corruptível por ideologias extravagantes, que visavam se infiltrar no Brasil por meio do
ataque subliminar às suas bases morais e familiares, sendo a imprensa uma de suas
principais portas de entrada. Diante disso, caberia ao Estado a tarefa de defender a
sociedade “indefesa” diante de qualquer ameaça à moral e os bons costumes. Nesse
aspecto, a censura contava com o apoio efetivo de parcelas da sociedade civil,
especialmente diante das transformações comportamentais que marcaram os anos de
1960, vistas pelos mais conservadores como uma ameaça à instituição da família e do
casamento. Pílula anticoncepcional, divórcio, revolução sexual, drogas, emancipação
feminina, eram temas que estavam sendo bastante discutidos aqui no Brasil, tanto nas
páginas das revistas como em documentos oficiais que circulavam entre os óros
governamentais. Além disso, se por um lado a dimensão saneadora da censura era
ocultada da sociedade, por outro a censura de caráter pedagógico era orgulhosamente
assumida pelo regime, pois, como dissemos, ela representava uma das expressões do
poder de polícia exercido pelo Estado no sentido de assegurar a segurança, a paz social,
a ordem, a harmonia, a liberdade e os modos de vida da coletividade.
31
Assim, parece-nos mais fecundo pensar este aspecto da relação entre a sociedade
civil e o regime militar em termos de ambivalência do que em termos de ambiidades
ou contradições, pois assim podemos entender a maneira multiforme pela qual seus
diferentes setores se relacionavam com o regime, sem nos prendermos a tipologias
reducionistas, tais como colaboradores” ou “resistentes”, que não nos fornecerão mais
que imagens parciais do que foi vivenciado pelos contemporâneos daqueles anos.
32
Mas, inicialmente, é preciso enfrentar a questão relativa aos usos que o regime
militar fez da censura, não apenas como instrumento repressivo, mas também como
expressão do tradicional pensamento autoritário brasileiro, segundo o qual, ao Estado
31
ROSA, F. A. Miranda. Op. cit. p. 209-210.
32
O conceito de “pensamento duploe “ambivalência” foram elaborados pelo historiador frans Pierre
Laborie, com o intuito de compreender a sociedade francesa sob o regime de Vichy fora das fronteiras
rígidas de conceitos como “colaboradores” ou “resistentes”. Entretanto, serão aplicados aqui como
instrumento teórico para que possamos compreender a dinâmica das relações entre sociedade civil e
regime militar nos anos de 1960 e 1970. Ver LABORIE, Pierre. Les Français des années troubles. De la
guerre d’Espagne à la Liberation. Paris: Seuil, 2003.
25
paternalista caberia a tarefa de salvaguardar a moral, os bons costumes e os valores da
família cristã.
Partir da premissa de que a censura não foi uma prática homogênea ao longo do
regime militar, e de que é possível distinguir nela tanto uma dimensão saneadora como
uma dimensão pedagógica que na prática estiveram intrinsecamente relacionadas, é um
importante passo para que se possa pensá-la em termos mais complexos. Os
documentos que comem o fundo DSI/MJ
33
e DCDP, os quais fazem parte do corpo de
fontes desta pesquisa, não deixam vidas quanto à intenção dos sucessivos generais-
presidentes de regulamentar e institucionalizar a censura, tanto de diversões blicas
como de publicações e periódicos, especialmente no que se referia à abordagem de
temas considerados ofensivos à moral e aos bons costumes. A partir dessa
documentação podemos inferir a preocupação, por parte do regime, com que a censura
de temas poticos na imprensa fosse feita de maneira efetiva e sistemática, porém,
velada,
34
já que poderia comprometer a imagem do governo por seu aspecto proibitivo,
o condizente com as garantias constitucionais asseguradas pelos regimes
democráticos. Além dessa função eminentemente repressiva, percebemos que a censura
consistiu em um importante instrumento através do qual o regime pretendia
salvaguardar a sociedade despreparada” e “ingênua” da divulgação de conteúdos
considerados ofensivos à moralidade blica ou que representassem algum risco à boa
formação moral dos jovens. Assim, através da censura o regime podia atender à
demanda de uma parcela conservadora da sociedade que se sentia ameada perante as
transformações comportamentais que emergiram na década de 1960 e que, diante disso,
apelava ao Estado para que interviesse em defesa da moralização da sociedade
brasileira.
Mesmo antes do golpe de 1964, as “Marchas da Família, com Deus pela
Liberdade”, majoritariamente organizadas e conduzidas pelo clero e por entidades
femininas compostas por mulheres da classe média, se traduziram em importantes atos
33
As Divisões de Segurança e Informações (DSI) foram implantadas nos Ministérios Civis em 1967, no
intuito de compor uma abrangente e operante rede de espionagem. Estas repartições públicas se
diferenciavam das demais pela presença de militares, por sua “ânsia persecutória” de base anticomunista e
pelo cuidado com as normas de sigilo. Para fins da minha pesquisa de dissertação, venho pesquisando o
fundo documental da Divisão de Segurança e Informação do Ministério da Justiça, que se encontra na
sede do Arquivo Nacional no Rio de Janeiro. Ver mais a respeito das DSI na página 31 e 32.
34
Ofício n. 002/73-SIGAB/DG, de 16 de janeiro de 1973. Encaminha expediente que indica as atividades
do DPF executadas no campo da censura aos órgãos de comunicação social a partir de agosto de 1971.
Arquivo Nacional-Sede no Rio de Janeiro. Fundo:DSI/MJ, digo do Fundo: TT, Seção de Guarda: SDE,
Caixa n. 592, documento n. 50756.
26
de defesa intransigente de rigorosos valores morais, que estavam sendo colocados em
jogo tanto pela suposta “ameaça comunista”, representada na figura de João Goulart,
como pelas transformações que se operavam nos padrões comportamentais de países
como Estados Unidos, França, Holanda, Inglaterra e Suécia, especialmente no que se
referia à sexualidade e à instituição familiar. Passado o golpe, essas mesmas mulheres,
as chamadas “marchadeiras”, deram continuidade à sua cruzada” em defesa da moral e
dos bons costumes, tendo em mente salvar a sociedade brasileira dos abusos
introduzidos pelas novelas, filmes, músicas e publicações, que aumentavam em número
a cada dia, devido ao crescimento vertiginoso da indústria de bens culturais e ao
desenvolvimento dos meios de comunicação de massa.
35
Outra atuação marcante nesse sentido foi a da TFP, Sociedade Brasileira de
Defesa da Tradição, Família e Propriedade”, associação civil de âmbito nacional,
composta apenas por militantes do sexo masculino e cujos objetivos eram combater a
vaga do socialismo e do comunismo e ressaltar, a partir da filosofia de São Tomás de
Aquino e das encíclicas, os valores positivos da ordem natural, particularmente a
tradição, a família e a propriedade. Essa organização foi fundada em 1960 por Plínio
Correia de Oliveira, ex-integrante da Ação Católica Brasileira (ACB), da qual se
desligou em 1943, quando essa organização começou a se envolver com questões
sociais. Assim, a TFP foi a primeira organização de resistência às novas estratégias de
engajamento social da Igreja defendidas no Concílio Vaticano II e pelos papas João
Paulo XXIII e Paulo VI. Além disso, logo após a sua fundação, caracterizou-se como a
mais radical organização católica de oposição ao governo João Goulart e, entre os anos
de 1961 e 1963, promoveu sua primeira campanha nacional contra a “reforma agrária
socialista e confiscatória” proposta pelo presidente da República. Com o golpe de 1964
e o afastamento de Goulart, a associação colocou-se imediatamente ao lado do regime
militar e em oposição aos setores progressistas da Igreja católica, no intuito de fortalecer
sua campanha em oposição à “comunizaçãodo clero e da sociedade brasileira. Assim,
em junho de 1966, a TFP promoveu uma coleta de assinaturas para o documento
intitulado “Apelo às Autoridades Civis e Eclesiásticas em Favor da Família Brasileira”,
35
FICO, Carlos. A ditadura mostra a sua cara: imagens e memórias do período. 1964-1985. Disponível
em: www.history.umd.edu/HistoryCenter/2004-05/conf/Brazil64/papers/cficoport.pdf., p. 35-36. A
respeito das Marchas, ver PRESOT, Aline. As marchas da Família com Deus pela Liberdade. Dissertação
de Mestrado. PPGHIS/UFRJ, 2004. SIMÕES, Solange de Deus. Deus, Pátria e família: as mulheres no
golpe de 64. Belo Horizonte: UFMG, 1983. CODATO, Adriano Nervo; OLIVEIRA, Marcus Roberto de.
A marcha, o terço e o livro: catolicismo conservador e ação política na conjuntura do golpe de 1964.
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 24, n. 47, p. 271-302, 2004.
27
que argumentava contra um projeto de lei que havia sido enviado ao Congresso e que
previa a introdução do divórcio no país. Além disso, criticavam severamente o apoio
concedido pelos setores progressistas da igreja às greves operárias e às manifestações
estudantis de protesto contra o regime e, em função disso, durante os meses de julho e
agosto de 1968, a TFP promoveu uma campanha nacional de denúncia da “comunização
do clero no Brasil”, contra a atuação de dom lder Câmara e seus adeptos. Em todas
essas frentes, a ação da TFP junto à opinião pública desenvolveu-se através de
constantes campanhas em defesa da família monogâmica e indissolúvel, da propriedade
privada e do ataque ao comunismo e ao socialismo.
36
Ações como as empreendidas pelas “marchadeiras” ou pelos militantes da TFP,
estavam amparadas em valores morais fortemente enraizados na sociedade brasileira e
podem ser explicadas a partir de uma cultura potica anticomunista, que informava a
maneira como os mais conservadores viam as transformações em curso nos anos de
1960 e 1970, e que teve grande força enquanto elemento determinante do
comportamento político de setores sociais conservadores.
37
O medo que alguns setores conservadores compartilhavam de que a nação se
desintegrasse a partir da infiltração de “ideologias exóticas” e contrárias aos nossos
preceitos morais existia muito antes do golpe de 1964. O que havia mudado foi que,
no contexto da Guerra Fria, aqueles valores e temores se tornaram, acima de tudo,
questão de segurança nacional e foram instrumentalizados pelos grupos que estavam no
poder no intuito de criar uma espécie de “histeria” dentro da sociedade, que levasse seus
membros a obedecer as determinações do Estado em relação aos mais variados aspectos
da vida blica e privada. Portanto, a convicção na idéia de que a disseminação do
comunismo era um risco que estava prestes a se concretizar e a instrumentalização dos
fatos e mitos que davam sustentação a essa crença, combinaram-se em diferentes
medidas ao longo da história e resultaram na motivação anticomunista que culminou na
década de 1960, durante o regime militar. Entretanto, não devemos enfatizar apenas a
dimensão “oportunista” dessa luta, já que o “perigo vermelho” era uma realidade
naquele momento e foi combatido por grupos e indivíduos que viam as transformações
36
KORNIS, Monica e HEYE, Thomas Ferdinand. TFP. In: ABREU, Alzira Alves de; BELOCH, Israel;
LATTMAN-WELTMAN, Fernando; LAMARÃO, Sério T. de Niemeyer (Coord.) Dicionário histórico-
biográfico brasileiro pós-1930. CD-rom.
37
Ver a respeito das origens e desdobramentos do fenômeno anticomunista no Brasil, os trabalhos do
historiador Rodrigo Patto Motta, especialmente sua tese de doutorado, Em guarda contra o perigo
vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964); e o artigo “O anticomunismo militar”, publicado nos
Anais do Seminário 1964-2004: 40 anos do golpe. Ditadura Militar e Resistência no Brasil.
28
comportamentais em curso na década de 1960 pela ótica do anticomunismo, segundo a
qual, a família, o casamento, a juventude e os valores da cristandade encontravam-se
fortemente ameaçados.
38
Nesse sentido, ao contrário de algumas teses que vêem na vigilância à moral e
aos bons costumes apenas uma estratégia do regime para encobrir uma censura que, na
realidade, dirigia-se unicamente a temas poticos,
39
percebemos, a partir da pesquisa
aos documentos produzidos no âmbito do governo,
40
que havia um interesse por parte
dele em controlar tanto a circulação de temas poticos como também de temas
comportamentais, sendo que para os primeiros isso era feito de forma envergonhada e
velada e para os outros, de forma orgulhosamente assumida.
41
A idéia de que o país corria o risco de ser invadido e dominado pela ideologia
comunista constituiu-se na principal justificativa para a derrubada do presidente João
Goulart em abril de 1964, e mais tarde, ao longo do regime militar, para a construção do
aparato repressivo, do qual faria parte a censura.
42
Portanto, compreender o processo
através do qual se deu a elaboração e estruturação deste aparato repressivo, bem como
suas peculiaridades, é fundamental para que a censura seja percebida em sua
multiplicidade de práticas e formas, caracterizando-se de diferentes e diversas maneiras,
conforme os objetivos e as necessidades dos militares ao longo da sua permanência no
poder.
1.1-Desvendando “os porões da ditadura”.
Ainda que a história do Brasil durante o período em que os militares estiveram
no poder não se resuma à história do regime potico por eles implantado, qualquer
menção àqueles anos nos remete inegavelmente à lembrança de sua face autoritária,
38
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O anticomunismo militar. 1964-2004: 40 anos do golpe. Ditadura Militar
e resistência no Brasil, p. 290-305, p. 290-291.
39
A esse respeito ver KUSHNIR, Beatriz. Cães de Guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição
de 1988. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, p. 77.
40
Estes documentos fazem parte do fundo documental DSI/MJ, que se encontra na sede do Arquivo
Nacional no Rio de Janeiro.
41
O historiador Carlos Fico fala a respeito disso nos seguintes trabalhos: A ditadura mostra a sua
cara:imagens e memórias do período. 1964-1985; e “Prezada censura”: cartas ao regime militar.
42
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op. cit. p. 292.
29
marcada pela prática sistemática da repressão,
43
cujo objetivo era eliminar tudo e todos
que dissentissem dos objetivos da revolução, destacando-se o combate à ameaça
comunista, à subversão e à corrupção.
44
Com as comemorações dos quarenta anos do golpe de 1964, no ano de 2004, foi
crescente o interesse entre os acadêmicos de História por temas relacionados ao regime
militar, especialmente em vista da liberação de documentos inéditos desse período,
produzidos na esfera do poder público. Tais documentos permitiram que fossem
esclarecidos mitos e estereótipos consolidados pela historiografia,
45
além de propiciar
uma nova interpretação acerca das práticas repressivas, tradicionalmente
homogeneizadas e generalizadas sob o termo porões da ditadura”.
46
De fato, essa nova documentação trouxe à tona o esclarecimento das
especificidades do que Carlos Fico chama de “setores repressivos” do regime militar,
dentre os quais podemos citar a espionagem, a pocia potica, a censura, a propaganda
política e o julgamento sumário de supostos corruptos. Essas instâncias, embora
estivessem articuladas entre si, guardavam suas especificidades e funcionavam de
acordo com parâmetros próprios, compondo o que o mesmo autor denomina de “pilares
básicos da repressão”.
47
Esses pilares foram sendo erguidos à medida que o regime se instalava e se
consolidava no poder, atendendo a um projeto repressivo global que foi colocado em
43
SMITH, Anne-Marie. Op. cit. p. 48.
44
FICO, Carlos. “Prezada censura”: cartas ao regime militar. Revista Topoi, Rio de Janeiro, n. 5, set.
2002, p. 04.
45
Carlos Fico, nos seus trabalhos aos quais me refiro aqui, cita como exemplos desses mitos e
estertipos acerca do regime militar a imagem que se construiu de Castelo Branco como um general-
presidente moderado e legalista, a idéia de que a repressão só teve icio a partir de 1968 com a edição do
AI-5, a divisão simplista entre militares duros ou moderados e ainda a visão homogênea do sistema
repressivo. Como o teor deste trabalho não exige uma discussão mais aprofundada a respeito dos termos
mais adequados para classificar os antagonismos existentes no âmbito do regime militar, as classificações
“moderados” e “linha dura” são eventualmente utilizadas para que se perceba como se dava a fruição de
grupos com maior ou menor apego às práticas repressivas, de orientações ideológicas distintas, e muitas
vezes divergentes, na cúpula do poder, e os reflexos que isso produzia nas diferentes esferas de atuação
do regime. Contudo, as considerações a cerca da fragilidade dessas classificações não podem ser perdidas
de vista, tão pouco ignoradas, uma vez que a constatação da existência de divisões bastante peculiares no
interior das Forças Armadas desmistifica a noção de que elas consistem em uma unidade orgânica
homogênea e contribui para o entendimento da complexidade e diversidade que caracterizaram a prática
repressiva durante o regime militar, como forma de representação das relações conflitantes que se
estabeleceram dentro da própria esfera do poder. Ver mais a esse respeito dessa discussão em:
DREIFUSS, René Armand et DULCI, Otávio Soares. As forças armadas e a política. In: SORJ, Bernardo
et ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de (orgs.). Sociedade e política no Brasil pós-64. 2 ed. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1984, p. 109; e FICO, Carlos. A ditadura mostra a sua cara: imagens e memórias do
período 1964-1985. Disponível em: www.history.umd.edu/HistoryCenter/2004-
05/conf/Brazil64/papers/cficoport.pdf.
46
FICO, Carlos. Versões e controrsias sobre 1964 e a ditadura militar, Revista Brasileira de História,
São Paulo, v. 24, n. 47, 2004, p. 36.
47
Idem. “Prezada censura”: cartas ao regime militar. Revista Topoi, Rio de Janeiro, n. 5, set. 2002, p. 2.
30
prática a partir de 1964, fundamentado na utopia autoritária”,
48
segundo a qual aos
militares, considerados superiores aos civis em questões como patriotismo,
conhecimento da realidade brasileira e retidão moral, caberia a tarefa de eliminar todos
os óbices ao alcance dos objetivos permanentes da nação
49
, tendo em vista inserir o
Brasil entre as grandes potências mundiais e no campo da democracia ocidental e
cristã”, além de garantir a manutenção da segurança nacional.
50
A progressiva e sistemática implantação desse projeto esteve intrinsecamente
relacionada à escalada ao poder dos militares da “linha-dura”, cuja origem esteve entre
os primeiros oficiais nomeados pelo “Comando Supremo da Revolução”
51
para
conduzirem os Inquéritos Policiais Militares (IPM), ainda em 1964. Estes “coronéis dos
IPM”,
52
como ficaram conhecidos, liderados por Costa e Silva, constituíram
inicialmente um “grupo de pressão” dentro do governo Castelo Branco, descontentes
mediante a morosidade e curta duração da primeira “Operação Limpeza”, cujo objetivo
era prender, cassar mandatos eleitorais e suspender os direitos poticos daqueles que se
opunham ao regime e aos seus objetivos.
53
Entretanto, à medida que os militares
consolidavam seu poder, essa “força autônoma” que tomava para si a prerrogativa de
guardiã dos interesses da revolução, adquiria cada vez mais instrumentos que lhe
permitiam executar seus arroubos punitivos, alcançando seu ápice com a ascensão de
Costa e Silva à Presidência da República e a edição do AI-5 em dezembro de 1968,
quando deixou de ser grupo de pressão e se institucionalizou na forma de
comunidade de informações e de segurança”.
54
48
Essa expressão foi cunhada por Maria Celina D’Araújo, Celso Castro e Gláucio Ary Dillon Soares. Ver
D’ARAÚJO, Maria Celina, SOARES, Gláucio Ary Dillon, CASTRO, Celso (Int. org.). Visões do golpe: a
memória militar sobre 1964. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
49
Segundo José Alfredo Amaral Gurgel, os Objetivos Nacionais Permanentes (ONPs), consistem em
interesses e aspirações vitais que subsistem durante longo tempo, variando de acordo com as mudanças
conjunturais inerentes ao processo político brasileiro. Ver GURGEL, José Alfredo Amaral. Segurança e
democracia: Uma reflexão política sobre a Doutrina da Escola Superior de Guerra. Rio de Janeiro:
Editora Biblioteca do Exército e Livraria José Olympio Editora, 1975, p. 70.
50
FICO, Carlos. Versões e controrsias sobre 1964 e a ditadura militar, Revista Brasileira de História,
São Paulo, v. 24, n. 47, 2004, p. 36.
51
Instância liderada pelo general Costa e Silva, representada pelos comandantes-em-chefe do Exército
(general Artur da Costa e Silva), da Marinha (almirante Augusto Rademaker Grünewald) e da
Aeronáutica (brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo) e que antecedeu a nomeação de Castelo
Branco à presidência.
52
Esta expressão era pejorativamente usada pelos assessores de Castelo Branco para designar os coronéis
encarregados dos IPM. Ver FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da ditadura militar:
espionagem e polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 37.
53
Idem. Veres e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar, Revista Brasileira de História, São Paulo,
v. 24, n. 47, 2004, p. 36.
54
Idem. “Prezada censura”: cartas ao regime militar. Revista Topoi, Rio de Janeiro, n. 5, set. 2002, p. 4.
Para uma análise mais detalhada dos órgãos que compunham a comunidade de informações e a
31
Entendemos, portanto, que o AI-5 foi o instrumento que deu à “linha dura” as
condições necessárias para a implantação e institucionalização dos diversos “setores
repressivos", que, a partir de então, passaram a constituir os “pilares básicos da
repressão”.
55
Esse aparato repressivo contava com diversos órgãos e instrumentos
típicos de regimes autoritários, os quais se dividiam entre sistemas de informação e de
segurança altamente especializados.
Desde a fase de conspirações anterior ao golpe de 1964, os militares
demonstraram grande preocupação com a produção de informações, que se sentiam
carentes de um sistema de coleta de informações seguro, fundamental às exigências de
um Estado autoritário que desejava controlar e coibir qualquer forma de pressão social
ou oposição.
56
Em sintonia com tais preocupações é que um dos protagonistas do golpe, e mais
tarde do processo de distensão política, o general Golbery do Couto e Silva, elaborou e
chefiou o Serviço Nacional de Informações (SNI), implantado apenas três meses após o
golpe.
57
Inicialmente pensado como um órgão fornecedor de informações que
subsidiariam as decisões do presidente da República, o SNI foi ganhando atribuões
cada vez maiores, concomitantemente à escalada repressiva do regime e dos militares
“linha dura” ao poder, a tal ponto, que dezessete anos após sua fundação o general
Golbery afirmou ter criado um “monstro”.
58
Assim, o SNI passou a ser o principal órgão de uma ampla rede de espionagem
que foi implantada em todo o país, cujo objetivo era não mais apenas fornecer
informações ao presidente da República, mas invadir a esfera particular da vida dos
cidadãos em busca de detalhes que justificassem a escalada e a manutenção da
repressão.
Além do SNI, cada ministério civil contava com uma “Divisão de Segurança e
Informações” (DSI), órgão que obedecia a um sistema de duplo comando, já que estava
concomitantemente subordinado aos respectivos ministros de Estado e à
superintendência e coordenação do SNI. Nas autarquias, fundações e empresas estatais
comunidade de segurança, ver FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da ditadura militar:
espionagem e polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001.
55
Idem.
56
Idem. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In:
DELGADO, Lucilia A. Neves & FERREIRA, Jorge Luiz (orgs.). O Brasil republicano: o tempo do
nacional-estatismo. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2003, v. 2, p. 175.
57
Idem.
58
GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 158.
32
vinculadas aos ministérios civis, tais óros recebiam o nome de Assessoria Especial de
Segurança e Informações (Aesi) e eram instalados em função do prestígio que poderiam
proporcionar à seus chefes imediatos e superiores, pois se a repartição era importante,
então deveria contar com uma Aesi.
59
As pastas militares também contavam com seus órgãos de informação, os quais
embora já existissem mais tempo, foram reformulados entre 1967 e 1971 no intuito
de combater a “subversão” com maior eficácia. O Centro de Informações do Exército
(CIE), o Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (CISA) e o Centro de
Informações da Marinha (CENIMAR), diferenciavam-se das DSI e foram três das mais
temidas siglas do período, já que além de produtores de informações esses órgãos
também se envolviam em prisões, interrogatórios e torturas. Em função desse perfil
policial, os órgãos de informação militares podem ser classificados como “órgãos
mistos”, que realizavam tanto operações de informação como de segurança. Além
disso, atuavam de forma bastante independente em relação ao SNI, que se julgavam
mais capacitados que seus correlatos civis.
60
A partir de 1970, todos esses órgãos passaram a integrar o Sistema Nacional de
Informações (SISNI),
61
ao qual cabia a função de assegurar o perfeito funcionamento do
sistema, determinando a execução de atividades de informações, normatizando,
supervisionando e fiscalizando todos os óros participantes, a fim de que um fluxo
constante de informações mantivesse o governo informado de tudo.
62
O SISNI trabalhava com informações propriamente ditas e contra-informações,
isto é, a tentativa de neutralizar a atividade de informações dos inimigos, tanto no Brasil
como no exterior. Seu órgão central era evidentemente o SNI, o qual produzia as
informações que subsidiavam as atividades da comunidade de segurança”.
63
A criação de um “setor especificamente repressivoera um projeto que animava
os militares da “linha dura” desde os primeiros momentos do golpe e, cuja implantação,
se concretizou com a ascensão desse grupo ao poder.
59
Idem.
60
Idem. Como eles agiam. Os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia política. Rio de
Janeiro: Record, 2001, p. 91.
61
O SISNI foi criado a partir do Decreto n. 66.732, que instituiu o Plano Nacional de Informação.
62
FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia política. Rio
de Janeiro: Record, 2001, p. 80.
63
O termo segurança” era um eufemismo que designava as pries, interrogatórios, torturas e
extermínios praticados pelo Sistema DOI-CODI, pelos Departamentos de Ordem Política e Social
estaduais e pelos órgãos de informações dos ministérios militares (CIE, CISA e CENIMAR).
33
Dentro dessa perspectiva, é interessante rever um enunciado histórico bastante
aceito que toma o ano de 1968, quando foi publicado o AI-5, como um marco do
endurecimento do regime e das suas práticas repressivas. Se de fato é verdade que a
edição do AI-5 representou a radicalização do regime autoritário implantado em 1964,
isso não significa dizer que os anseios punitivos da “linha dura” surgiram
repentinamente em 1968.
Na concepção desses militares, a existência de um sistema de informações
operante, capaz de identificar a presença de óbices, antagonismos e pressões”
64
, não
era o suficiente para o combate efetivo à subversão. A tese de que as secretarias de
segurança não estavam devidamente preparadas para esse fim, justificava a necessidade
premente de implantação de um sistema de segurança que garantisse o funcionamento
global e harmonioso de todos os órgãos executantes, e levou à criação do Sistema de
Segurança Interna (SISSEGIN), em janeiro de 1970.
Embora sua estrutura já viesse sendo meticulosamente pensada e instalada
paulatinamente ao longo da implantação do regime, o elemento fundamental que
possibilitou a efetivação do Sistema de Segurança Interna foi o AI-5. Esse Ato trazia em
suas determinações as condições indispensáveis ao bom funcionamento desse Sistema,
como por exemplo, a suspensão do direito a habeas corpus nos casos de crimes
políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia
popular; o restabelecimento de cassações a mandatos eletivos e das suspensões de
direitos poticos, além da indeterminação de um prazo final para sua vigência. Outro
fator indispensável ao bom funcionamento do SISSEGIN foi a adoção, desde o AI-2,
editado em 27 de outubro de 1965, de foro especial para os crimes poticos, os quais
passaram a ser julgados pelos Tribunais Militares ajustados aos ditames da Doutrina de
Segurança Nacional e Desenvolvimento, o que possibilitou que uma série de prisões
arbitrárias fossem efetivadas.
65
Entretanto, o aparato repressivo o era composto apenas por leis ostensivas que
o legitimavam e institucionalizavam formalmente. A sua parte operacional,
caracterizada pelas prisões, torturas e assassinatos poticos, que marcaram o regime
64
“São caracterizados como óbices, antagonismos e pressões os elementos que possam criar obstáculos à
Política Nacional, tanto na área de Desenvolvimento, como na de Segurança.” Ver GURGEL, José
Alfredo Amaral. Op. cit..
65
FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia política. Rio
de Janeiro: Record, 2001, p. 111-115.
34
militar especialmente no período pós-68, foi estabelecida através de diretrizes secretas,
66
através das quais, em 1970, foi institdo pelo Conselho de Segurança Nacional e
aprovado pelo presidente da República o Sistema de Segurança Interna (SISSEGIN),
cujo objetivo era integrar todos os óros executores para que seus esforços
convergissem para um fim comum, o combate à subversão.
67
O SISSEGIN foi elaborado com base no modelo da Operação Bandeirantes
(OBAN), organização implementada em julho de 1969, em São Paulo, pelo comando do
II Exército, cujo objetivo era reunir o Exército, a Marinha, a Aeronáutica, as Pocias
militar e civil, a Secretaria de Segurança do Estado e o financiamento de empresários,
para promover uma ação conjugada e permanente de combate à guerrilha urbana”.
Embora contasse com o apoio oficial, a OBAN não era um óro “legalizado”, mas foi
incorporada à estrutura oficial de repressão à medida que sua sistemática inspirou a
criação do sistema CODI-DOI.
68
Em cada um dos comandos militares de área, denominados Zona de Defesa
Interna (ZDI), deveriam ser criados os seguintes órgãos: um Conselho de Defesa Interna
(CONDI), órgão de assessoramento do comandante do Exército respectivo, um Centro
de Operações de Defesa Interna (CODI), responsável pelo planejamento, controle e
execução de medidas de defesa interna e pela articulação de todas as instâncias
envolvidas, e um Destacamento de Operações de Informações (DOI), que
desempenhava o trabalho sujo”: prisões, tortura e assassinatos. Todos esses órgãos
estavam sob a responsabilidade de cada comandante de Exército, que nesse caso recebia
a denominação de comandante de “Zona de Defesa Interna”. Ao todo o Brasil ficou
dividido em 6 ZDI. Além disso, poderiam ser criadas Áreas de Defesa Interna (ADI), ou
ainda Sub-áreas de Defesa Interna (SADI), em caso de regiões que merecessem atenção
especial.
69
Assim como o SNI foi o centro das atividades de informão, o sistema CODI-
DOI foi o órgão repressivo por excelência, e embora houvesse divergências entre os
militares quanto às práticas repressivas, elas foram aceitas e valorizadas em diferentes
graus, porém, de maneira generalizada. Aqui se destaca o papel da comunidade de
informações, que agindo conjuntamente com a comunidade de segurança, foi
66
Idem.
67
Idem, p. 116-117.
68
Idem.
69
Idem, p. 120.
35
fundamental na construção e propagação de um discurso que defendia a necessidade de
um sistema de segurança que reprimisse a ameaça subversiva.
Além do combate à subversão e ao terrorismo, a ação repressiva visava atender
outro objetivo da “revolução”, que era o combate à corrupção. Tamm nesse caso, o
AI-5 foi o instrumento que proveu o governo dos mecanismos necessários para pugnar
os corruptos através da decretação do confisco de bens de todos que houvessem
enriquecido, ilicitamente, no exercício de cargo ou função pública. Para isso foi criado o
Sistema CGI (Comissão Geral de Investigações), o qual, a partir de denúncias, procedia
às investigações sumárias e propunha ao ministro da Justiça o confisco dos bens dos
acusados de enriquecimento ilícito, o que, em última instância, deveria ser decidido pelo
presidente da República.
70
Entretanto, a CGI o alcaou grande relevância dentro da estrutura repressiva
do regime militar. Em primeiro lugar, porque em muitos casos as investigações eram
interrompidas em fuão do envolvimento de militares em esquemas de corrupção, em
segundo, pelo despreparo e demora com que eram conduzidos os processos. Dessa
forma, o sistema CGI funcionou mais efetivamente como um órgão de intimidação,
que sua simples existência, suspeitas de investigação ou convocações para depor
causavam verdadeiro pavor entre os poticos, tidos pelo regime como venais e
corruptos potenciais.
71
Além dos três grandes sistemas vistos acima (SISNI, SISSEGIN e CGI), o
regime militar contava ainda com dois outros esteios: a propaganda potica e a censura.
A Assessoria especial de relações públicas (Aerp), criada em janeiro de 1968,
era o órgão responsável pelo estímulo e patrocínio à produção de campanhas de caráter
oficial, que exaltassem e enaltecessem o país de maneira ufanista. Fundamentalmente
voltada para a propaganda potica, o termo “relações públicas” foi mais um eufemismo
do regime, utilizado na tentativa de evitar qualquer referência ao DIP (Departamento de
Imprensa e Propaganda), e de dissimular a idéia de que o regime estivesse fazendo
propaganda potica ou se auto-promovendo.
72
70
Idem, p. 149-151.
71
Idem, p. 156-160.
72
FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In:
DELGADO, Lucilia A. Neves & FERREIRA, Jorge Luiz (orgs.). Op. cit. p. 196; FICO, Carlos.
Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1997, p. 85.
36
está uma das características mais marcantes do regime militar brasileiro: a
busca de legitimidade potica.
73
Esse anseio se traduziu, por exemplo, no uso ostensivo
de formalidades jurídicas e diplomas que legalizassem e legitimassem seus atos mais
espúrios, o que se consolidou principalmente a partir da crião dos “decretos-secretos”,
que permitiam que o regime legislasse para si só, sem que o restante da sociedade
tivesse conhecimento do que era ou deixava de ser legal.
74
Assim, o regime agia envergonhadamente” na tentativa de preservar uma
imagem de esteio da democracia e, nesse sentido, tomou várias providências para que
o fosse reconhecido como autoritário, como por exemplo, a negação explícita de que
houvesse qualquer forma de propaganda política, espionagem, tortura ou censura,
exceto de diversões públicas e espetáculos, que como veremos, já era uma prática antiga
e reconhecida como parte das atribuições do Estado.
75
1.1.1-As censuras
Dentro do projeto repressivo colocado em prática pelos militares “linha dura” à
medida que ascendiam ao poder, a censura se configurava como um de seus
instrumentos políticos mais eficazes, já que visava especialmente as atividades culturais,
artísticas e de imprensa, encaradas pelo regime como os meios preferenciais da
estratégia de fragilização do governo e infiltração comunista.
Durante o regime militar, entretanto, puderam-se distinguir duas formas de
censura: a censura de diversões públicas e a censura de imprensa.
A censura de diversões públicas tinha, por definição, a função de fiscalizar peças
de teatro, cinema, pantominas bailadas, programas de rádio e televisão, espetáculos
musicais e circenses, em defesa da moralidade e dos bons costumes do “povo
73
SMITH, Anne-Marie. Op. cit. p. 44.
74
Em 11 de novembro de 1971 foi baixado o Decreto-lei n. 69.534, também conhecido como “Decreto-lei
Secreto”, pois autorizava o executivo a promulgar decretos-lei secretos, cujos textos não seriam
divulgados em qualquer publicação oficial. Este instrumento permitia ao regime punir com base em
dispositivos legais que, entretanto, o eram do conhecimento daqueles que infringiam ou eram
enquadrados em tais leis. Ver ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984).
2 ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1984, p. 159.
75
FICO, Carlos. Op. cit. p.196.
37
brasileiro”.
76
O óro responsável por essa atividade era o Serviço de Censura de
Diversões Públicas (SCDP), criado em 1946 e operado por funcionários blicos
concursados para o cargo de “técnico de censura” no âmbito do Departamento Federal
de Segurança Pública (DFSP), que a partir de 1969, por ocasião do Decreto-lei 64.416,
que reorganizou a estrutura burocrática do Ministério da Justiça, passou a se chamar
Departamento de Pocia Federal (DPF) e a atuar em todo o território nacional como um
óro centralizado na nova capital federal, Brasília.
77
A estrutura do SCDP foi
inteiramente absorvida pelo regime militar, que ao longo da sua vigência procurou fazer
algumas adaptações e reestruturações que a tornassem mais consistente e mais atuante,
conforme as exigências de uma indústria cultural que crescia vertiginosamente e
passava a produzir para um blico de massa em escala mundial. Embora o Serviço de
Censura de Diversões Públicas viesse, em anos anteriores, proibindo o que
considerava imoral no plano da produção artística e cultural, especialmente na esfera
cinematográfica, foi a partir de meados da década de 1960 que começaram a aparecer as
primeiras iniciativas do governo no sentido de centralizar a censura de diversões
públicas em nível nacional ( que até então ela era de competência estadual), aumentar
o número de censores e aperfeiçoar aquele serviço para que pudesse se adequar ao
contexto de modernização e difusão dos meios de comunicação.
78
Esse esforço no sentido de aperfeiçoar e centralizar a atividade da censura
federal foi explicitado pelo chefe do Serviço de Censura, Edísio Gomes de Matos, ao
encaminhar um ofício ao superintendente da Polícia Federal, contendo o relatório das
atividades do SCDP durante o ano de 1963:
Com o relato presente queremos salientar que o nosso trabalho, todo ele desenvolvido no
sentido de consolidar a censura federal, encontrou, em alguns momentos, dificuldades
tremendas para a sua realização, seja pela duplicidade de censuras (o Estado da Guanabara
nega-se a acatar a censura federal), que determinou a instalação de uma Delegacia desse
Serviço na Guanabara (Portaria n. 9/63) e outra em São Paulo (Portaria n. 13/63), seja pela
falta de meios adequados para exercer uma atuação mais eficiente em todo o território
nacional e mesmo no Distrito Federal, mercê de uma legislação superada. Junte-se a esses
fatores a quase absoluta falta de recursos materiais, e teremos idéia, embora pálida, das
dificuldades que enfrentamos.
79
Alguns meses depois, o mesmo Edísio Gomes de Matos, chefe do Serviço de
Censura de Diversões Públicas, enviou um ocio ao coronel chefe de Polícia do DFSP,
76
Idem. p. 191.
77
FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia política. Rio
de Janeiro: Record, 2001, p. 173.
78
Idem. “Prezada censura”: cartas ao regime militar. Revista Topoi, Rio de Janeiro, n. 5, p. 6.
79
Ofício n. 002/63-SCDP, enviado pelo chefe do Serviço de Censura de Diveres Públicas, Edísio
Gomes de Matos, ao superintendente da Polícia Federal, em 06 de janeiro de 1964. Arquivo Nacional-
Sede em Brasília. Seção: Administração Geral. rie: Relatório de atividades.
38
no qual relatava que a censura federal vinha sendo exercida no Rio de Janeiro até a data
da transferência da capital para Brasília, quando o ministro da Justiça, Armando Falcão,
e o governador do estado da Guanabara, Sette Câmara, firmaram um acordo pelo qual
aquele estado deveria continuar a executar os serviços que a União, de pronto, não
pudesse transferir para Brasília em função da falta de estrutura material da nova capital
e da resistência de funciorios que não queriam ser transferidos para lá. Assim, o
SCDP continuou na Guanabara até que o ministro Alfredo Nasser, em 15 de dezembro
de 1961, expediu um ocio ao governador da Guanabara agradecendo a colaboração
prestada na execução da censura federal e dispensando-a a partir de de janeiro de
1962, quando esse serviço passaria a ser realizado apenas em Brasília.
80
A partir de
então, relatou o signatário do ocio, quase tudo, desde sua precária organização à sua
o menos rudimentar estrutura, passou a ser feito praticamente de “boca”, exceto as
nomeações, que eram efetuadas através de portaria, fazendo-se, portanto, urgente
promover a organização e regulamentação daquele serviço, que seria um órgão executor
de normas expedidas a partir do Ministério da Justiça, passando pelo DPF, até chegar
aos seus quadros, que, enfim, as colocariam em prática. Ao concluir sua comunicação, o
então chefe do Serviço de Censura destacou a importância da instância censória naquela
conjuntura, bem como a necessidade de impor um maior rigor à atuação do SCDP no
tocante às diversões blicas e, por isso, enfatizou que a centralização das suas
atividades teria significativa importância para a nação, já que em todas as partes do
mundo a censura desempenhava o papel de defender a indústria de diversões blicas,
sem contar as “naturaisimplicações de ordem moral, ética, educacional e de segurança
nacional, tendo em vista os “anseios de progresso e desenvolvimento do país”.
81
Percebemos, portanto, que se por um lado a censura de diversões blicas era
antiga, legalizada e praticada por um órgão específico, o SCDP (Serviço de Censura de
Diversões blicas), por outro a censura de imprensa foi feita pelo regime militar de
maneira acobertada, negada, sem regulamentação por normas ostensivas e nem um
óro específico.
80
Retomando o trecho que citamos acima do ofício n. 002/63-SCDP, de 06 de janeiro de 1964,
verificamos que apesar dos esforços no sentido de centralizar a censura de diveres públicas em Bralia,
no âmbito do DFSP, ainda em 1963 este departamento solicitou o auxílio das Delegacias Regionais da
Guanabara e de São Paulo, em função da falta de recursos materiais, humanos e legais que permitissem à
censura federal realizar um trabalho efetivo e sistematizado.
81
Ofício de comunicação, n. 391/64-SCDP, enviado pelo chefe do Serviço de Censura de Diversões
Públicas, Edísio Gomes de Matos, ao coronel. chefe de Polícia do DFSPC, em 12 de maio de 1964.
Arquivo Nacional-Sede em Brasília. Seção: Administração Geral. rie: Correspondência Oficial.
Subsérie: Ofícios de Comunicação.
39
Entretanto, esse caráter sigiloso e pouco regulamentado da censura de imprensa
o deve ser interpretado como desordem ou falta de rigor. Ao contrário disso, novos
estudos acerca das práticas da censura, feitos com base nos documentos sigilosos do
período do regime militar que se tornaram blicos a partir dos anos 1990, demonstram
que tais atividades eram bastante reguladas e sistematizadas.
82
Dessa forma, a idéia de que a censura era praticada de acordo com o “humor” do
censor do dia é desmistificada à medida que temos acesso e pesquisamos, por exemplo,
a documentação que compõe o Fundo DSI e DCDP, que nos permite verificar a
existência de uma grande troca de papéis com informações variadas entre os diversos
óros de informação e segurança, tais como as DSI dos diversos ministérios, o CIE, o
CISA, o CENIMAR, o SNI, a CGI, as segundas seções das unidades militares e os
DOPS vinculados às secretarias estaduais de segurança. Essa rede difusora de
informações denuncia a existência de cadeias hierárquicas informais e de afinidade
temática entre os órgãos que compunham o aparato repressivo do regime militar, que
trabalhavam em conjunto e de maneira sistemática, no intuito de prover o ministro da
Justiça com dados relevantes, nos quais pudesse fundamentar suas decisões.
No que se refere ao período pós-64, que se distinguir dois momentos da
censura à imprensa, que se diferenciam quanto à sua intensidade e sistematicidade, a
saber: os quatro anos que se seguiram ao golpe de 64 e, depois, os anos que se seguiram
à publicação do AI-5, em dezembro de 1968.
Assim, mesmo a grande imprensa tendo sido uma catalisadora do golpe de 64,
ela esteve enquadrada pelo regime militar desde seus primeiros momentos, e, portanto, a
despeito de algumas declarações do presidente Castelo Branco quanto à sua ojeriza em
relação à censura e à propaganda potica e de alguns de seus biógrafos
83
terem insistido
em afirmar que não houve censura de imprensa nessa fase, alguns documentos
84
e
fatos
85
demonstram que nestes primeiros quatro anos a censura foi aplicada quando
necessária, embora de maneira episódica.
86
82
Dentre estes trabalhos destacam-se as pesquisas dos historiadores Carlos Fico, Marcos Napolitano,
Douglas Marcelino e Miliandre de Souza, citados detalhadamente nas referências bibliográficas.
83
Luís Viana Filho, autor de O governo Castelo Branco e John W. F. Dulles, autor de Castelo Branco: o
caminho para a presidência; foram dois biógrafos que procuraram destacar em suas obras o suposto
caráter “legalista” e “democrático de Castelo Branco, o que hoje vem sendo revisto pela recente
historiografia acerca do regime militar.
84
Por exemplo, a Lei de Imprensa, editada por Castelo Branco em 1967, dias antes de entregar a
presidência a seu sucessor, Costa e Silva. Embora essa lei declarasse a “liberdade de manifestação do
pensamento e de informação”, permitia a censura à propagandas de subversão da ordem política e social.
85
Um exemplo disso foi o fato de Castelo Branco ter deixado o jornalista Carlos Heitor Cony sem
punição, após as acusações que deferiu contra ele em sua coluna no jornal O correio da manhã. O fato de
40
A análise dos diplomas legais promulgados durante esse período, em conjunto
com alguns documentos de caráter sigiloso que circularam no âmbito do Ministério da
Justiça na mesma época, nos permitem observar que, embora a censura prévia, de
caráter moral, a livros e periódicos tenha sido regulamentada e institucionalizada em
1970 com a edição do Decreto-lei n. 1.077, de autoria do então ministro da Justiça,
Alfredo Buzaid, nos primeiros anos do regime militar ia-se constituindo uma teia
legal e conceitual que visava estruturar e amparar legalmente a prática da censura de
imprensa, tanto de temas morais e comportamentais como poticos e ideológicos.
1.2-A censura à imprensa escrita e suas múltiplas faces
Além dos documentos oficiais, tanto os de caráter público como os de caráter
sigiloso, a que acabamos de nos referir, o ministro da Justiça do presidente Médici,
Alfredo Buzaid, em 1970 redigiu o documento Em defesa da moral e dos bons
costumes, no qual procurou justificar a constitucionalidade e importância conjuntural do
Decreto-lei n. 1.077, de 26 de janeiro de 1970, que como veremos mais detalhadamente
adiante, institucionalizou a censura prévia de periódicos e livros que abordassem
questões consideradas ofensivas à moral e aos bons costumes. Nesse texto o ministro
procurava esclarecer e advertir que os problemas relacionados ao sexo deveriam dizer
respeito, exclusivamente, à intimidade de cada indivíduo e que, por isso, não podiam ser
tratados em rádio e televisão com publicidade escandalosa”, de maneira a “insuflar a
idéia de uma liberdade” que, segundo ele, além de ofender o decoro e o pudor, estariam
relacionadas a uma “campanha insidiosa” dos agentes do comunismo internacional,
empenhada em “desnudar a alma humana no que tem de mais reservado e secreto para
dar-lhe expansões de liberdade, para revelar sentimentos menos dignos, para pôr de
público grandes dramas morais, que envilecem e desonram”. Era contra esse esquema
de publicidade, dizia o ministro, que se volta o Decreto-lei n. 1.077, uma vez que
proibia que se “escancarassem” as exibições que deveriam ficar “no mais recôndito da
vida interior”, a fim de preservar a integridade da família brasileira e a sua moralidade
tê-lo dispensado de punição significa que dispunha de meios para puni-lo, o que denuncia a existência da
censura.
86
FICO, Carlos. Op. cit. p. 3.
41
tradicional das ameaças externas que pretendiam “dilacerar as resistências morais” da
nossa sociedade e pôr em risco a segurança nacional.
87
Percebemos, portanto, que a censura de imprensa praticada pelo Estado não
tinha em vista apenas os temas que diziam respeito à potica, mas também os temas
que, de alguma forma diziam respeito aos valores morais da sociedade, como por
exemplo, questões que estivessem relacionadas à educação, ao comportamento e à
sexualidade, ambos justificados em nome da segurança nacional e do combate ao
movimento comunista internacional. Portanto, para que possamos apreender as
diferentes configurações da prática da censura, é fundamental que ela não seja percebida
como uma ão política isolada e rígida, mas enquanto mecanismo inserido na
complexa rede de relacionamentos estabelecida entre a imprensa, o regime militar e a
sociedade, que variou de forma, de intensidade e de abrangência conforme as mudanças
de orientação potica que acompanhavam a sucessão dos generais-presidentes ao longo
dos 21 anos de duração do regime. Assim, a maneira como o Estado se comportava em
relação à imprensa escrita refletia as contradições internas do próprio regime, bem como
o seu interesse em manter sob rígido controle o processo de desenvolvimento e
ampliação da indústria cultural de massa que vinha incentivando, especialmente no
campo editorial e das artes.
No entanto, se houve divergências na maneira como os militares que ocupavam
as diversas instâncias do regime militar entendiam os ditames da Doutrina de Segurança
Nacional e Desenvolvimento, fato é que eles aderiram aos seus pressupostos,
88
dentre os
quais, a iia de que a imprensa era um dos meios utilizados pelo “movimento
comunista internacional” para minar os valores da família, da moral e dos bons
costumes, no intuito de fomentar uma “crise moral”, que abriria brechas para a
instalação do comunismo dentro da sociedade brasileira.
89
Embora a animosidade contra a imprensa fosse difusa, a atuação do regime em
relação a ela não se limitava a agir arbitrariamente de forma coercitiva. Embora tais
casos tenham ocorrido o raramente, através, por exemplo, do confisco de exemplares
e das perseguições a jornalistas, o regime procurava evitar esse tipo de ação que
expunha publicamente sua feição autoritária, dando preferência a táticas veladas, como
87
BUZAID, Alfredo. Em defesa da moral e dos bons costumes. Brasília: Departamento de Imprensa
Nacional, 1970, p. 42.
88
Idem.
89
FICO, Carlos. “Prezada censura”: cartas ao regime militar. Revista Topoi, Rio de Janeiro, n. 5, set.
2002, p. 8.
42
as auditorias financeiras, a suspensão de anúncios do governo (de onde provinha boa
parte do capital das publicações) e a pressão sobre anunciantes e gráficas particulares,
sob ameaça de serem associados à imagem de publicações perseguidas pelo Estado.
90
Focalizando os quatro primeiros anos do regime militar, pode-se perceber que
houve uma tentativa do governo em manter um compromisso formal com a liberdade de
expressão, embora, paralelamente, tenham sido tomadas medidas que visavam a
intimidar e a cercear a atuação da imprensa.
Assim, iremos voltar aos primórdios do golpe de 1964 e perpassar os
documentos excepcionais editados a partir de então, os chamados atos institucionais, os
quais já mencionavam a necessidade do Estado impor certas restrições aos meios de
comunicação de massa, justificadas principalmente com base na defesa da segurança
nacional em vista do “perigo vermelho”. Além disso, analisaremos a Legislação de
1967, a Lei de Imprensa publicada no mesmo ano e também a Lei de Segurança
Nacional, que nos permitirão perceber que a censura, assim como o aparato repressivo
num todo, foi sendo implantada aos poucos, de acordo com uma dinâmica que
combinava, simultaneamente, o recrudescimento do controle sobre a imprensa e a
tentativa de garantir uma imagem positiva para o regime.
1.3-Reformas legislativas e institucionalização da censura de imprensa: o regime
militar em busca de legitimidade
A intervenção potica, bem como a ocupação e permanência dos militares no
poder, foram justificadas e legitimadas com base na Doutrina de Segurança Nacional, a
qual definia como objetivos permanentes da nação duas metas: “seguraa”, no sentido
de controlar e eliminar os conflitos internos, e desenvolvimento”, no sentido de elevar
o Brasil ao nível das grandes potências mundiais.
Assim, desde os primeiros momentos, o regime militar brasileiro demonstrou
grande preocupação em adotar tanto um discurso potico como formas jurídicas que
justificassem, inclusive, seus atos de exceção e que lhe permitissem construir a imagem
de um regime defensor dos valores democráticos e das liberdades individuais, tais como
as alegações de que somente o regime militar seria capaz de conduzir o Brasil a
90
SMITH, Anne-Marie. Op. cit. p. 83.
43
elevados índices de crescimento econômico e a uma situação de segurança e
estabilidade nacional frente às ameaças subversivas dos comunistas; a manutenção,
mesmo que de fachada, de instituições tradicionais, como o Congresso, a Constituição
de 1946 e a realização de eleições, atendendo, assim, à cultura potica das elites que
apoiaram o golpe e que viam na permanência dessas instituições tradicionais um sinal
de que o Estado de Direito seria mantido pelos militares; a alegação de que a
intervenção potica dos militares no Estado visava proteger e aperfeiçoar a democracia;
e a transformação, precedida de retaliação, do sistema jurídico, mediante atos
institucionais e atos complementares, Leis de Segurança Nacional e “decretos secretos”,
conforme os quais, por exemplo, foi feita a regulamentação da censura à imprensa.
91
Logo em seguida ao golpe, o regime recém-instalado, representado pelos
comandantes-em-chefe do Exército, da Marinha e da Aeroutica, editou um
documento que, posteriormente, ficou conhecido como Ato Institucional n. 1, com o
objetivo de justificar as razões da intervenção militar, expor seus objetivos e legitimar a
si próprio, em detrimento do Congresso, que ao contrário, era quem recebia daquele ato
a sua legitimação. Além disso, o documento destinava-se a assegurar ao novo governo a
ser instituído, os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, potica e
moral do Brasil.
92
Quanto à Constituição de 1946, o documento garantia a sua manutenção,
entretanto, com algumas modificações no que se referia aos poderes do presidente da
República, sob a justificativa de que com a ampliação de seu espaço de atuação política
poderia cumprir a missão de “drenar o bolsão comunista”, cuja “purulência” teria se
infiltrado não só na cúpula do governo, como nas suas dependências administrativas.
93
Embora o AI-1, ao longo de seus 11 artigos, não fizesse qualquer menção à
liberdade de expressão, ela estava indiretamente garantida, uma vez que o ato
assegurava a vigência da Constituição de 1946, cujo artigo 141, parágrafo quinto,
afirmava:
§ - É livre a manifestação do pensamento, sem que dependa de censura, salvo quanto a
espetáculos e diversões blicas, respondendo cada um, nos casos e na forma que a lei
preceituar, pelos abusos que cometer. Não é permitido o anonimato. É assegurado o direito
de resposta. A publicação de livros e periódicoso dependerá de licença do Poder Público.
Não será, porém, tolerada propaganda de guerra, de processos violentos para subverter a
ordem política e social, ou de preconceitos de raça ou de classe.
94
91
Idem, p. 33-48.
92
Ato Institucional n. 1, de 9 de abril de 1964.
93
Idem.
94
Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946.
44
Entretanto, em 27 de outubro de 1965, após as eleições para governadores, em
que a oposição foi vitoriosa em importantes estados (especialmente Israel Pinheiro, em
Minas Gerais e Negrão de Lima, no Rio de Janeiro), o presidente Castelo Branco
decretou o Ato Institucional n. 2, que, dentre outras disposições, atribuía poderes ainda
maiores ao Executivo, ampliava a jurisprudência dos militares em matéria de
“subversãoe “seguraa nacional”, abolia o tratamento jurídico especial àqueles que
houvessem exercido mandato executivo, garantia o controle do Superior Tribunal
Federal, dissolvia os partidos poticos, criando dois novos, um que apoiava o governo,
a ARENA, e um para fazer a oposição, o MDB e, finalmente, regulamentava
rigidamente a liberdade de expressão e de ação dos cassados poticos.
95
Ao mencionar a situação jurídica dos poticos cassados, o AI-2 proibia que eles
se manifestassem a respeito de assuntos de natureza potica.
96
Essa determinação se
tornou ainda mais incisiva quando, através do Ato Complementar n. 1, editado na
mesma data, foram estipuladas as penas para os infratores dessa determinação, as quais
se estenderiam aos responsáveis pelos órgãos de divulgação, caso a transgressão se
desse por meio da imprensa.
97
Aqui retomamos uma observação já feita anteriormente de
que, conforme o regime ia adotando medidas repressivas mais rigorosas, verificava-se
uma maior penetração da dimensão estritamente política na teia que compunha o
aparato legal e institucional que controlava a circulação de informações através da
imprensa. Entretanto, por mais que nos momentos de maior rigidez do regime militar,
particularmente no auge da repressão entre os anos de 1968 e 1972, a censura de
diversões blicas tenha assumido um caráter mais potico e ideológico, ela continuou
guardando diferenças fundamentais em relação à censura potica stricto sensu,
conforme era feita pelo DIP, durante o Estado Novo. Como veremos mais adiante,
durante a década de 1970 a censura voltada para questões políticas na imprensa, passou
a ser feita o por um órgão público e legalizado, como o SCDP, mas por obscuros
setores inseridos nos meandros do Ministério da Justiça, provavelmente em função da
rejeição que muitos militares tinham de uma possível comparação com o órgão getulista
que fazia a censura e a propaganda do Estado Novo.
95
CALICCHIO, Vera. Atos Institucionais. In: ABREU, Alzira Alves de; BELOCH, Israel; LATTMAN-
WELTMAN, Fernando; LAMARÃO, Sério T. de Niemeyer (Coord.) Dicionário histórico-biográfico
brasileiro pós-1930. CD-rom.
96
Ato Institucional n. 2, de 27 de outubro de 1965.
97
CARVALHO, Alberto Arons de. A censura e as leis de imprensa. Lisboa: Seara Nova, 1970, p.134.
45
Afora as determinações do AI-2 que acabamos de assinalar, esse ato fazia
expressa menção a questões atinentes à imprensa, como por exemplo, reconsiderações
quanto ao julgamento e punição de abusos cometidos pela imprensa, em relação ao que
determinava a Lei de Imprensa n. 2.083, de 1953, ainda vigente naquela ocasião. O
artigo 24 do referido ato estabeleceu que, contrariamente ao júri previsto na Lei de
Imprensa então vigente, o julgamento dos processos instaurados contra a imprensa
deveria ser procedido pelo juiz que os houvesse iniciado, com possibilidade de recursos
a instâncias superiores. Esse artigo do AI-2 estendia para dois anos, após a publicação
de matéria delituosa, a prescrição do crime respectivo e o prazo da pena correspondente
foi dobrado.
98
Além disso, o artigo 12 do AI-2 introduzia uma importante mudança no
texto da Constituição de 1946. Onde antes se lia : “Não será, porém, tolerada
propaganda de guerra, de processos violentos para subverter a ordem potica e social,
ou de preconceitos de raça ou de classe”,
99
passou a vigorar a seguinte redação: "Não
será, porém, tolerada propaganda de guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos
de raça ou de classe".
100
A nuance da alteração está no fato de que, a subversão à ordem
o prescindiria mais de processos violentos, como ficava bem explícito no texto da
Constituição. E uma vez que o foi feito nenhum tipo de especificação quanto ao que
seria, de fato, considerado subversivo, tal interpretação passou a ficar a cargo dos que
fariam uso da lei. Segundo Alberto Arons de Carvalho, com essa mudança “tanto o
empunhar do fuzil, quanto o empunhar da caneta, poderiam, indiferentemente, em
certos casos, caracterizar ‘subversão da ordem’”.
101
É interessante observar que, dentre as preocupações do Estado, atinentes à
salvaguarda dos postulados da revolução e cumprimento das metas de segurança e
desenvolvimento, não cabia apenas controlar ou mesmo proibir a divulgação de
opiniões contrárias ou críticas à atuação do governo, mas também proteger a moral
pública e os bons costumes, elementos fundamentais para a manutenção da ordem e
garantia do bem comum. Essa preocupação se revelou de maneira mais explícita na Lei
n. 5.089, de 30 de agosto de 1966, que proibiu a impressão e a circulação de quaisquer
publicações destinadas à infância e à adolescência que contivessem ou explorassem
temas de crimes, de terror ou de violência. Os infratores seriam julgados e punidos de
98
FAGUNDES, Coriolano de Loyola Cabral. Censura e liberdade de expressão. São Paulo: Editora
Taika, 1974, p. 303.
99
Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946, artigo 141, § 5º.
100
Ato Institucional n. 2, de 27 de outubro de 1965.
101
CARVALHO, Alberto Arons de. Op. cit. p. 133-134.
46
acordo com o disposto na Lei de Imprensa n. 2.083, de 1953, que definia o crime de
ofensa à moral e aos bons costumes, e sua respectiva punição no artigo 9º, alínea E.
102
Como veremos mais adiante, a nova Lei de Imprensa promulgada em 1967, no seu
artigo 2º, afirmava a liberdade de publicação e circulação, em todo o território nacional,
de livros, jornais e outros periódicos, salvo se clandestinos ou quando atentassem contra
a moral e os bons costumes.
103
1.4-Regulamentação e sistematização da censura moral de periódicos
Além desses atos institucionais, atos complementares e leis, comentados até
aqui, outros diplomas legais, como por exemplo o AI-3, de 05 de fevereiro de 1966,
104
foram editados pelo governo entre 1966 e 1968. Esse furor legiferante do regime
militar, que resultou em drásticas mudanças na Constituição de 1946, tornava patente
sua carência em termos de um sistema legislativo adequado aos seus objetivos e
necessidades.
105
Assim, através do Ato Institucional n. 4, de 7 de dezembro de 1966, o Congresso
foi convocado, em caráter extraordinário, com a finalidade de discutir e votar um
projeto de Constituição apresentado pelo presidente da República, general Castelo
Branco, cujo intuito era conferir ao país uma Carta Constitucional que representasse a
institucionalização dos ideais e princípios da “Revolução de 1964” e que “assegurasse a
continuidade da obra revolucioria”.
106
Uma das inovações consagradas pela nova carta constitucional promulgada em
24 de janeiro de 1967 e, mantida posteriormente, pela Emenda Constitucional n. 1, de
17 de outubro de 1969, foi estabelecer como competência intrínseca da União o
provimento da censura de diversões blicas, pois considerava ser essa uma questão
eminentemente relacionada à seguraa nacional. Com essa medida, o governo tinha em
102
Idem, e Lei n. 2.083, de 12 de novembro de 1953, artigo 9º, alínea E.
103
Lei de imprensa n. 5.250, de 09 de fevereiro de 1967.
104
O AI-3 foi baixado pelo presidente Castelo Branco, e determinava que a eleição de governadores e
vice-governadores seria indireta, executada por colégio eleitoral estadual, e que o prefeito das capitais e
das cidades de segurança nacional não seriam mais eleitos, e sim indicados por nomeação pelos
governadores. Em seu artigo 6º, excluía de apreciação judicial os atos praticados com fundamento neste
ato e nos atos complementares dele, não sendo possível contestar judicialmente a legalidade, ou não, da
decisão tomada.
105
CARVALHO, Alberto Arons de. Op. cit. p. 134-135.
106
Ato Institucional n. 4, de 7 de dezembro de 1966.
47
mente chamar a si o controle, em âmbito nacional, da censura de diversões blicas e,
assim, retirar dos estados a competência de legislar sobre o assunto.
107
Ainda durante o primeiro ano de vigência do regime militar, em 16 de novembro
de 1964, o Congresso Nacional aprovou a lei n. 4.483, proposta pelo Executivo, que
reestruturava legalmente o antigo Departamento Federal de Segurança Pública
(DFSP)
108
e atribuía à União encargos inerentes ao seu poder de polícia, até então
executados na esfera estadual. No tocante à censura de diversões públicas, em especial a
censura que se referisse a filmes cinematográficos, essa lei estabeleceu que quando
transpusessem o âmbito de um estado a censura deveria ficar a cargo do DFSP, com
sede no Distrito Federal, diretamente subordinado ao ministro da Justiça e dirigido por
um diretor-geral nomeado por livre escolha do presidente da República.
109
Segundo o
ex- técnico de censura Coriolano Fagundes, embora nesse dispositivo se pudesse
observar o pensamento do governo federal no sentido de trazer para a sua alçada a
atividade censória, o legislador, ao redigir tal norma, foi cauteloso em o melindrar as
polícias de diversões estaduais, não as excluindo totalmente do exercício da censura ao
condicionar a ação da União, nesse setor, pela expressão: “quando transponham o
âmbito do estado”. Isso significava que qualquer espetáculo de entretenimento coletivo,
se não se destinasse à exportação para outras unidades federativas, não estaria sujeito a
exame da censura federal. Entretanto, o ex-técnico de censura diz que tal solução, cujo
objetivo era não contrariar os interesses da autoridade estadual, não satisfazia o governo
central, que conseguiu resolver esse problema a partir da promulgação da
Constituição de 1967, que tornou a censura de diversões públicas atividade privativa ao
Serviço de Censura de Diversões Públicas, do Departamento de Polícia Federal. Ainda
que após essas determinações as autoridades regionais tenham continuado exercendo a
censura, especialmente em fuão da falta de estrutura técnica e de pessoal no órgão
centralizado em Brasília, o ex- técnico de censura Coriolano Fagundes procurou
justificar as medidas adotadas pelo governo no sentido de centralizar a censura de
diversões públicas em função da sua necessidade de tomar conhecimento e vetar,
sempre que julgasse conveniente, “as mensagens contrárias aos interesses nacionais, à
107
Constituição da República Federativa do Brasil, de 24 de janeiro de 1967, Artigo 8º, item VII, alínea
D..
108
Como foi dito na página 37 deste capítulo, a partir de 1969, por ocasião do Decreto-lei 64.416, que
reorganizou a estrutura burocrática do ministério da Justiça, o Departamento Federal de Segurança
Pública (DFSP), passou a se chamar Departamento de Polícia Federal (DPF) e a atuar em todo o terririo
nacional como um órgão centralizado na nova capital federal, Brasília.
109
Lei n. 4.483, de 16 de novembro de 1964, artigo 1º, alínea F.
48
formação intelectual, moral e cívica do povo, a este eventualmente levadas, em qualquer
ponto do território nacional, sob a forma de espetáculo público”.
110
No tocante à liberdade de expressão, a nova Constituição fazia a seguinte
menção:
§ 8º - É livre a manifestação de pensamento, de convicção política ou filosófica e a
prestação de informação sem sujeição à censura, salvo quanto a espetáculos de diveres
públicas, respondendo cada um, nos termos da lei, pelos abusos que cometer. É assegurado
o direito de resposta. A publicação de livros, jornais e perdicos independe de licença da
autoridade. Não será, porém, tolerada a propaganda de guerra, de subversão da ordem ou de
preconceitos de raça ou de classe.
111
Dessa forma, enquanto a censura de diversões públicas era explicitamente
mencionada nos termos da Constituição, pode-se perceber que mesmo o Estado tendo se
preocupado, entre os anos de 1964 e 1967, em criar medidas que lhe permitissem
cercear a liberdade de imprensa, a nova Constituição a salvaguardava expressamente, o
que demonstra a intenção do Estado em não tornar pública a prática da censura aos
meios de comunicação e, além disso, enfatizar o seu compromisso com a livre
manifestação do pensamento.
112
Concomitantemente ao envio do projeto para uma nova Constituição, o
Congresso recebeu, também, do Executivo, um projeto de Lei de Imprensa que visava
reformar a que então vigorava desde 1953, para que pudesse atender às necessidades
pertinentes à realidade daquele momento.
Igualmente nesse caso, a premência do tempo concedido ao Congresso para
estudo e parecer do projeto, consistiu em estratégia para que os parlamentares não
tivessem tempo de propor reformas durante a tramitação do texto original, que, segundo
Alberto Arons de Carvalho, possuía um aspecto “draconiano”.
113
Mais uma vez o legislativo cumpriu o prazo estipulado e, após sensíveis
modificações, foi convertido na Lei n. 5.250, de 9 de fevereiro de 1967.
Reafirmando o compromisso com a liberdade de expressão e informação, o
primeiro artigo procurava enfatizar que a intenção daquela lei era restringir os abusos da
liberdade de imprensa e que não caberia ao Estado fazer uso da censura para controlar
os excessos por parte dos óros de informação. Cada indivíduo, portanto, seria
responsável pelo uso que faria dos meios de comunicão e das informações, devendo
110
FAGUNDES, Coriolano de Loyola Cabral. Op. cit. p. 83-85.
111
Constituição da República Federativa do Brasil, de 24 de janeiro de 1967, artigo 150, § 8º.
112
CARVALHO, Alberto Arons de. Op. cit. p. 135-136.
113
Idem, p. 136.
49
cada um estar ciente das punições previstas pela lei que, de fato, tornavam-se mais
rigorosas em relação à lei anterior.
114
Além disso, assim como na Constituição de 1967, a nova Lei de Imprensa
deixava explícito que, ao contrário das diversões públicas, a imprensa não estaria sujeita
à censura, entretanto, com a ressalva de que poderia ser “legalmente” exercida pelo
Estado caso fosse decretado estado de sítio:
§ O disposto neste artigo não se aplica a espetáculos e diversões públicas, que ficarão
sujeitos à censura, na forma da lei, nem na vigência do estado de sítio, quando o Governo
pode exercer a censura sobre os jornais ou periódicos e empresas de radiodifusão e
agências noticiosas nas marias atinentes aos motivos que o determinaram, como tamm
em relação aos executores daquela medida.
115
A nova Lei de Imprensa, como mencionamos, também previa a restrição
à circulação de livros e periódicos, caso atentassem contra a moral e os bons
costumes.
116
Além disso, advertia que estariam sujeitos à apreensão os impressos que
contivessem propaganda de guerra, de preconceitos de raça ou de classe, os que
promovessem incitamento à subversão da ordem potica e social, bem como os que
ofendessem a moral blica e os bons costumes.
117
Nesses casos, esclarecia que a
apreensão aí prevista seria feita por ordem judicial, a pedido do Ministério Público, que
fundamentaria e instruiria seu pedido com a representação da autoridade, caso houvesse,
e o exemplar do impresso incriminado.
118
Mais adiante, a lei informava que nos casos de impressos que ofendessem a
moral e os bons costumes, os juízes de Menores, de ocio ou mediante provocação do
Ministério Público, poderiam determinar a sua apreensão imediata para impedir a sua
circulação,
119
e estabelecia ainda que, no caso de reincidência das infrações ali
previstas,
120
praticada pelo mesmo jornal ou periódico, pela mesma empresa, ou por
periódicos ou empresas diferentes, mas que tivessem o mesmo diretor responsável, o
juiz, além da apreensão, poderia determinar a suspensão da impressão, circulação ou
distribuição do jornal ou periódico.
121
114
Lei n. 5.250, de 9 de fevereiro de 1967.
115
.Idem, artigo 1º, § 2º.
116
Idem, artigo 2º.
117
Idem, artigo 61, incisos I e II.
118
Idem, artigo 61, § 1º.
119
Idem, artigo 61, § 6º.
120
Idem, artigo 61, incisos I e II.
121
Lei n. 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, artigo 62.
50
Algumas medidas previstas nessa lei demonstram o seu caráter de estrita
vigilância, cujas infrações poderiam ser punidas de diversas formas, variando de penas
físicas (prisões), a pagamentos de indenização ou até apreensão das publicações.
Em meio a essas deliberações, o cartunista Claudius, em junho de 1966,
publicou na revista Manchete uma charge com previsões para 1967, na qual apresentava
quatro situações distintas em que os personagens consultavam-se com cartomantes e
com um psicanalista para falar a respeito dos rumos que tomaria a situação potica no
Brasil, no tocante à redemocratização do país, à nova Lei de Segurança Nacional, à
nova Constituição e à nova Lei de Imprensa, sobre a qual procurou enfatizar seu caráter
restritivo:
Manchete, n. 771, 28/06/1967.
Logo em seguida à promulgação da Lei de Imprensa e às vésperas de expirar o
prazo de vincia do AI-2, o governo baixou o Decreto-lei n. 314, em 13 de março de
1967, pelo qual entrava em vigor a Lei de Segurança Nacional, a qual definia os crimes
contra a segurança nacional, ordem social e potica e introduzia grande parte dos
ditames da Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento no ordenamento
51
jurídico do país.
122
Além disso, essa lei passava a abarcar o conteúdo da recente Lei de
Imprensa, sem, contudo, revogá-la. Assim, alguns delitos considerados pelo regime
militar como abuso de imprensa, passaram para a égide da Lei de Segurança Nacional,
e, portanto, a serem julgados pelo foro militar, uma vez que passavam a ser
considerados crime contra a segurança nacional.
123
O recrudescimento do controle do regime na área da imprensa e das diversões
públicas foi mais uma vez objeto de crítica do cartunista Claudius, que, em janeiro de
1968, publicou mais uma charge na revista Manchete que representava os censores
durante a execução de suas tarefas na área de imprensa, cinema e teatro:
Manchete, n. 823, 27/01/68.
122
CALICCHIO, Vera. Atos Institucionais. In: ABREU, Alzira Alves de; BELOCH, Israel; LATTMAN-
WELTMAN, Fernando; LAMARÃO, Sério T. de Niemeyer (Coord.) Dicionário histórico-biográfico
brasileiro pós-1930. CD-rom.
123
CARVALHO, Alberto Arons de. Op. cit. p.140.
52
Em 13 de dezembro de 1968, entretanto, foi outorgado o documento que marcou
o enrijecimento da prática da censura à imprensa que, como vimos, vinha sendo
implantada e regulamentada desde os primeiros anos do regime: O Ato Institucional n.
5.
Esse ato conferiu caráter permanente à ordem revolucionária e tornou crônica a
situação na qual a norma vigente poderia, a qualquer momento, perder sua validade.
Assim, os vínculos entre a ordem jurídica anterior e o novo sistema de poder implantado
a partir do golpe de 1964 tornavam-se cada vez mais frágeis, ao mesmo tempo em que
se fortaleciam as condições para que a ordem revolucionária se tornasse hegemônica,
pois assim, à medida que o regime militar ia se estabilizando e enrijecendo suas práticas
políticas, consolidava-se uma nova ordem legal, fundada, basicamente, em princípios
relacionados com a segurança nacional.
124
Algumas determinações do AI-5, de fato, tiveram fortes implicações na Lei de
Imprensa de 1967, que conferia ao presidente da República poderes para impor a
censura prévia sobre os meios de comunicação, bastando-lhe, para tanto, que julgasse
tal atitude necessária à “defesa da revoluçãoe da segurança nacional, sem que para
isso fosse preciso decretar o estado de tio.
125
Isso se deu porque, a partir da edição do
AI-5, inaugurou-se no país um período em que a defesa da seguraa nacional se firmou
como princípio jurídico absoluto, legitimadora das alterações que se processavam na
ordem e nas normas vigentes no país.
126
Se de fato, a partir de meados da década de 1960, como vimos, começaram a
aparecer as primeiras iniciativas do governo no sentido de centralizar a censura em nível
nacional, aumentar o número de censores e aperfeiçoar os mecanismos de atuação
daquele serviço, a partir do AI-5 uma gama de normas e portarias comaram a ser
elaboradas no intuito de criar novos ajustes legais que aprimorassem cada vez mais a
prática da censura.
Entretanto, paralelamente às leis e decretos publicados em Diário Oficial, ou
ainda em coletâneas, como o livro “Censura Federal-Leis, Decretos-leis, Decretos,
Regulamentos”, os militares produziram uma série de documentos secretos que a
recente abertura de arquivos, como o da DSI e da DCDP, possibilitou que fossem
124
KLEIN, Lúcia et FIGUEIREDO, Marcus. Legitimidade e coação no Brasil pós-64. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1978, p.27-28.
125
Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968, artigo 9º.
126
Idem, p. 26.
53
conhecidos. Nesses arquivos encontramos ainda uma série de correspondências
sigilosas dirigidas ao diretor do Departamento de Pocia Federal e ao chefe do Serviço
de Censura, falando de questões relativas à imprensa, ao controle da informação e à
necessidade de aperfeiçoar as normas da censura para que esse serviço agisse de
maneira mais eficaz no que se referia à garantia da moral e dos bons costumes.
A análise de tais documentos nos permite entender de que maneira o
emaranhado de normas que visavam estruturar a censura foi sendo tecido ao longo dos
anos de vigência do regime militar e, além disso, perceber como se deu o processo
através do qual a prática da censura foi ganhando consistência e sistematicidade,
especialmente no âmbito da moral e dos bons costumes, suas permanências e rupturas,
bem como as variações na intensidade e abrangência com que essa atividade foi
exercida sobre os periódicos que abordavam temas considerados ofensivos à moralidade
pública.
Toda pessoa natural ou jurídica, é responsável pela segurança nacional, nos
limites definidos em lei”, assim dizia o artigo da nova Lei de Segurança Nacional,
publicada em Diário Oficial da União no dia 30 de setembro de 1969, através de
decreto-lei que revogava tanto a Lei de Segurança Nacional de 1967 como o Decreto-lei
n. 510, que alterava alguns de seus dispositivos.
127
Dentre as suas principais disposões, a nova Lei de Segurança Nacional
estabelecia a pena de morte em grau máximo e a prisão perpétua, em grau mínimo, para
a subversão e o terror; e definia os crimes contra a segurança nacional, a ordem potica
e social, diferenciando-se da Lei de Segurança Nacional anterior e da Lei de Imprensa
de 1967 por aumentar as penas previstas para os crimes ali definidos e ainda por
qualificar novas transgressões.
128
Assim, os termos da Lei de Segurança Nacional mantinham-se suficientemente
amplos, a fim de que o Estado pudesse exercer total artrio no estabelecimento do que
constituiria crime contra a segurança nacional. De acordo com sua orientação no sentido
de controlar o “inimigo interno”, muitos artigos dessa lei tratavam da prevenção de
greves, do controle aos meios de comunicação e informação, da proibição de partidos
políticos e de outras limitações a diferentes formas de associação. As suas disposições
acerca da imprensa eram particularmente severas, pois responsabilizavam
127
Decreto-lei n. 898, de 28 de setembro de 1969. Define os crimes contra a segurança nacional, a ordem
e dá outras providências.
128
Idem.
54
criminalmente o editor, o proprietário e o jornalista pela veiculação de notícia falsa,
tendenciosa, ou fato verdadeiro truncado ou deturpado.
129
O Estado poderia ainda
apreender edições inteiras de jornais, periódicos, livros e qualquer outro impresso, além
de suspender sua impressão, circulação, distribuição e venda, ou ainda, impedir o seu
funcionamento, em caso de violação da Lei de Segurança Nacional.
130
Como vimos, o Departamento de Polícia Federal, com o advento da Constituição
de 1967, tornou-se o órgão responsável pela execução do serviço de censura no campo
de diversões públicas em todo o território nacional.
131
Entretanto, transferir o exercício
da censura de diversões públicas da esfera das Delegacias e Subdelegacias Regionais do
DPF, para o âmbito da sede do SCDP centralizada na capital federal, exigia um aumento
urgente no efetivo de funcionários qualificados para ocupar a função de técnico de
censura, em face do grande volume de trabalho com que o SCDP foi sobrecarregado a
partir do momento em que passou a cobrir todos os estados e territórios da federação, o
que resultou em prejuízos para ambas as partes, em função da demora advinda daquele
sistema.
132
Diante de tais circunstâncias, o chefe do Serviço de Censura de Diversões
Públicas encaminhou ao diretor-geral do Departamento de Polícia Federal um ofício
solicitando o aproveitamento dos servidores daquele departamento que haviam
realizado, entre 08 de julho e 16 de novembro de 1968, o Curso Intensivo de
Treinamento de Censor Federal, na Academia Nacional de Pocia, para que ocupassem
o cargo de técnico de censura.
O chefe do SCDP explicou que antes de terem sido matriculados naquele curso,
foram observados em cada um dos selecionados os condicionamentos básicos então
estabelecidos para o desempenho do cargo de censor federal
133
. Entretanto, à época do
treinamento, o exercício daquela função o exigia dos servidores a apresentação de
diploma de conclusão de curso superior, sendo suficiente, para tal, terem cursado o
colegial (que atualmente corresponde ao segundo grau do Ensino Médio). O requisito de
que o censor federal tivesse formação superior em Ciências Sociais, Direito, Filosofia,
129
Idem, artigos 8-16.
130
Idem, artigo 54.
131
Ver p. 47.
132
Ofício de solicitação, n. 442/69-SCDP, enviado pelo chefe do Serviço de Censura de Diversões
Públicas, Aloysio de Souza, ao general José Bretãs Cupertino, diretor Geral do DPF, em 18 de agosto de
1969. Arquivo Nacional-Sede em Brasília. Seção: Administração Geral. rie: Correspondência Oficial.
Subsérie: Ofícios de Solicitação.
133
A Lei n.5.536, de 21 de novembro de 1968, artigo 14, alterava para “técnico de censura” a
denominação do cargo de “censor federal”.
55
Jornalismo, Pedagogia ou Psicologia, foi uma determinação imposta pela Lei n. 5.536,
de 21 de novembro de 1968, que além de dispor sobre a censura de obras teatrais e
cinematográficas, instituía a criação do Conselho Superior de Censura, órgão
diretamente subordinado ao ministro da Justiça, ao qual caberia rever, em grau de
recurso, as decies finais, relativas à censura de espetáculos e diversões blicas,
proferidas pelo diretor-geral do Departamento de Polícia Federal e elaborar normas de
critérios que, após a aprovação do ministro da Justiça, orientariam a atuação dos
censores.
134
Entretanto, a decretação do AI-5 e o endurecimento do regime fizeram com
que esse Conselho fosse implementado e regulamentado mais de uma década depois da
sua criação, no governo do general Figueiredo (1979-1985), através do Decreto-lei n.
83.973, de 13 de dezembro de 1979.
Quanto à situação dos funcionários que foram submetidos ao Curso de
Treinamento de Censores Federais a que nhamos nos referindo, o problema é que
como a seleção dos 16 participantes aconteceu antes da edição da Lei n. 5.536, apenas
um deles possuía diploma de curso superior naquela ocasião, enquanto os outros
quinze ainda estavam cursando a universidade, em diferentes cursos. Ao final do
treinamento, entretanto, todos aqueles servidores que participaram foram credenciados
pela Portaria n. 1. 270/DG, de 30 de dezembro de 1968, e entraram imediatamente no
exercício da função de técnico de censura, que o curso terminou cinco dias antes da
promulgação da Lei 5. 536, com a finalidade de atender à urgência de pessoal
qualificado que desse conta de todo o trabalho que havia sido concentrado na esfera do
SCDP. Além disso, uma vez que aquela lei, datada de 21 de novembro de 1968,
entraria em vigor no prazo de 2 meses, na data em que os referidos funcionários foram
credenciados como técnicos de censura o provimento daquele cargo ainda não exigia a
apresentação do diploma de curso superior em uma das áreas que ela especificava.
135
Diante dessas circunstâncias, o chefe do SCDP solicitava que o diretor-geral do
DPF regularizasse “urgentemente” a situação daqueles servidores recém-credenciados,
levando em conta o fato de que se tratava de pessoal qualificado e que, em futuro
134
Lei n. 5. 536, de 21 de novembro de 1968, artigo 15.
135
Ofício de solicitação, n. 442/69-SCDP, enviado pelo chefe do Serviço de Censura de Diversões
Públicas, Aloysio de Souza, ao general. José Bretãs Cupertino, diretor Geral do DPF, em 18 de agosto de
1969. Arquivo Nacional-Sede em Brasília. Seção: Administração Geral. rie: Correspondência Oficial.
Subsérie: Ofícios de Solicitação.
56
próximo, estariam aptos a preencher todos os requisitos legais preconizados pelo
mencionado dispositivo legal.
136
Nessa ocasião, o presidente Costa e Silva já discutia com uma comissão jurídica,
coordenada pelo vice-presidente Pedro Aleixo, a necessidade de uma reforma no texto
constitucional de 1967. Essa comissão, sob direção do referido vice-presidente da
República, foi constituída no âmbito do governo e integrada pelos ministros Gama e
Silva (da Justiça), Rondon Pacheco (da Casa Civil) e os juristas Carlos Medeiros,
Miguel Reale e Thestocles Cavalcanti.
É importante lembrar que o Congresso encontrava-se em recesso desde 13 de
dezembro de 1968, conforme os termos do AI-5 que autorizava o presidente da
República a legislar em todas as matérias, inclusive na elaboração de emendas à
Constituição, caso resolvesse decretar o recesso do Congresso Nacional, das
Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, através de ato complementar,
137
como de fato fez o presidente Costa e Silva no mesmo dia em que baixou o AI-5,
através do Ato Complementar n. 38.
138
Assim, imbuído de todos os poderes regularmente reconhecidos ao legislativo, o
presidente Costa e Silva, juntamente com a referida comissão jurídica, já concluíam
seus estudos relativos aos termos da primeira emenda constitucional quando foi
acometido de grave enfermidade vascular-cerebral. Com o agravamento do seu estado
de saúde, Costa e Silva afastou-se da presidência em 31 de agosto de 1969, quando o
alto comando das Forças Armadas reuniu-se no Rio de Janeiro e baixou o AI-12, pelo
qual uma Junta constitda pelo ministro do Exército, general Aurélio Lira Tavares, da
Aeronáutica, brigadeiro Márcio de Souza e Mello, e da Marinha, almirante Augusto
Rademaker, deveria assumir interinamente a presincia da República. Após a
divulgação do AI-12 através de uma cadeia de televisão, a Junta Militar fez um
pronunciamento no qual explicava que, por motivo de enfermidade, o presidente se
encontrava temporariamente impedido do exercício pleno de suas funções, e que em
virtude da grave” situação que o país atravessava por força do AI-5 e do Ato
Complementar n. 38, não seria conveniente, naquele momento, transferir as
responsabilidades da autoridade suprema das Forças Armadas, exercidas por Costa e
Silva, a outros titulares previstos pela Constituição de 1967. Assim sendo, como
136
Idem.
137
Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968, artigo 2º, parágrafos 1 e 2.
138
Ato Complementar n. 38, de 13 de dezembro de 1968, artigo 2º, pagrafo 1º.
57
imperativo da Segurança Nacional”, a junta concluía que deveria assumir as funções
atribuídas ao presidente da República pelos textos constitucionais em vigor, enquanto
Sua Excelência estivesse impedido de exercer suas atividades. Dessa forma, o vice-
presidente Pedro Aleixo, sucessor natural de Costa e Silva nos termos da Constituição,
ficava impedido de tomar posse da presidência, bem como os que se lhe seguiam, na
linha sucessória estipulada naquela carta constitucional.
139
O ex-presidente Ernesto Geisel, ao comentar este episódio durante o seu
depoimento aos pesquisadores do CPDOC, Maria Celina D’Araújo e Celso Castro, fez a
seguinte apreciação:
Fala-se em golpe de 64, mas o golpe realmente foi dado quando impediram Pedro Aleixo
de tomar posse. Porque Pedro Aleixo não assumiu? Porque era um político, e fora o único
membro do governo a votar contra o AI-5. Achavam que ele não ia dar conta do problema.
A primeira coisa que haveria de querer era derrubar o AI-5, por isso, concluíram que não
podia assumir.
140
Em 7 de outubro de 1969, a secretaria de imprensa da Presincia da República
anunciou que o general Emílio Garrastazu Médici, comandante do III Exército, havia
sido indicado para suceder Costa e Silva, tendo como vice-presidente o almirante
Rademaker. no dia 14 do mesmo mês, considerando a impossibilidade do general
Costa e Silva reassumir o exercício de suas funções, os ministros militares que
compunham a junta que o sucedeu editaram o AI-16, através do qual declararam a
vacância dos cargos de presidente e vice-presidente da República, marcando para o dia
25 daquele mês a realização da eleição presidencial pelo Congresso, em sessão pública e
nominal e, além disso, fixavaram a posse do novo presidente para o dia 30 de novembro
de 1969 e o término do seu mandato em 15 de março de 1974.
141
Entretanto, antes que o
Congresso fosse reaberto através do Ato Complementar n. 17 em 22 de outubro 1969,
ainda no dia 17 daquele mês os ministros que compunham a junta invocaram o uso das
atribuições legislativas que lhes conferia a combinão entre o disposto no AI-16 e no
AI-5 e, considerando o recesso em que se encontrava o Congresso Nacional,
promulgaram a Emenda Constitucional n. 1, cujos termos vinham sendo discutidos
ainda sob a égide de Costa e Silva.
139
CALICCHIO, Vera. Atos Institucionais. In: ABREU, Alzira Alves de; BELOCH, Israel; LATTMAN-
WELTMAN, Fernando; LAMARÃO, Sério T. de Niemeyer (Coord.) Dicionário histórico-biográfico
brasileiro pós-1930. CD-rom.
140
CASTRO, Celso; D’ARAÚJO, Maria Celina (orgs). Ernesto Geisel. 5. ed. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1998, p. 210.
141
CALICCHIO, Vera. Op. cit.
58
No que se refere à censura, essa emenda constitucional reafirmava a inovação
introduzida pela Carta de 1967, segundo a qual passava a ser competência intrínseca da
União o provimento da censura de diversões públicas, por se tratar de uma área
eminentemente relacionada à segurança nacional.
142
Entretanto, o parágrafo da Constituição de 1967 relativo à liberdade de
expressão,
143
na emenda constitucional recebeu um acréscimo final que ensejou um dos
instrumentos legislativos mais importantes para a efetivação da censura prévia de
publicações que tratavam de temas relativos à moralidade e aos costumes: o Decreto-lei
1.077, de 26 de janeiro de 1970.
144
Onde antes a constituição de 1967 estata:
§ 8º-A publicação de livros, jornais e periódicos independe de licença da autoridade. Não
será, porém, tolerada a propaganda de guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de
raça ou de classe.
145
a Emenda Constitucional n. 1, de 1969, acrescentou os seguintes termos:
§ 8º-A publicação de livros, jornais e periódicos não depende de licença da autoridade. Não
serão, porém, toleradas a propaganda de guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos
de raça ou de classe e as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons
costumes.
146
Portanto, ainda que o regime, desde os seus primeiros anos de vigência, já viesse
se preocupando em elaborar algumas normas legislativas que visavam controlar a
circulação de livros e revistas, foi a partir do governo do general Médici (1969-1974)
que a censura prévia de publicações começou a ser de fato institucionalizada e
normatizada. Segundo Douglas Marcelino, em seu trabalho sobre a censura de livros e
diversões blicas na cada de 1970, a atuação do então ministro da Justiça, Alfredo
Buzaid (1969-1974), foi algo fundamental no sentido de aprimorar os mecanismos de
controle de publicações, especialmente em função do seu zelo pessoal com a defesa da
moral e dos bons costumes,
147
traduzida na forma do Decreto-lei 1.077, de 26 de janeiro
de 1970, na Portaria 11-B, de 06 de fevereiro de 1970 e na Instrução n. 1-70, de 24 de
fevereiro de 1970, todos de sua autoria, bem como no documento Em defesa da moral e
dos bons costumes, publicado também em 1970 pelo Departamento de Imprensa
142
Emenda Constitucional n. 1, de 17 de outubro de 1969, artigo 8º, item VIII, alínea D.
143
Constituição da República Federativa do Brasil de 1967, de 24 de janeiro de 1967, artigo 150, § 8º.
144
Emenda Constitucional n. 1, de 17 de outubro de 1967, artigo 153, § 8º.
145
Constituição da República Federativa do Brasil de 1967, de 24 de janeiro de 1967. artigo 150, § 8º.
146
Emenda Constitucional n. 1, de 17 de outubro de 1967. artigo 153, § 8º.
147
MARCELINO, Douglas Átila. Salvando a pátria da pornografia e da subversão: a censura de livros e
diversões públicas nos anos 1970. Dissertação de Mestrado em História Social, Programa de Pós
Graduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.
59
Nacional, onde ele procurava justificar tanto a necessidade daqueles diplomas legais por
ele produzidos, como a sua validade em termos constitucionais.
148
Tendo em vista salvaguardar a família brasileira, a mocidade e a segurança
nacional da ameaça comunista internacional, “que insinuava o amor livre para dilacerar
as resistências morais da nossa sociedade”,
149
o presidente Médici expediu o Decreto-lei
n.1.077, através do qual proibia as publicações contrárias à moral e aos bons costumes
de circularem através de quaisquer meios de comunicação e sujeitava as obras
provenientes do estrangeiro, destinadas à distribuição ou venda no Brasil, a serem
liberadas pelo Departamento de Polícia Federal, que atuaria como o órgão executor das
determinações provenientes do Ministério da Justiça.
150
Assim, caberia àquele órgão, quando o Ministério da Justiça julgasse necessário,
verificar previamente, em livros e periódicos, a existência de matérias infringentes à
moral e aos bons costumes, de acordo com o modo e a forma estipulados pelo ministro
Alfredo Buzaid na Portaria 11-B, de 06 de fevereiro de 1970, cujo artigo conferia aos
delegados regionais do Departamento de Pocia Federal a tarefa de proceder ao exame
prévio dos livros e periódicos enquadrados pelo Decreto-lei n. 1.077. Logo adiante, os
artigos 5º, 6º e 10º dessa portaria faziam referência ao poder de decisão que era
atribuído ao ministro da Justiça, em relação ao que liberar ou vetar em termos de
publicações que contivessem matéria ofensiva aos padrões de moralidade, em
detrimento do Delegado Regional do DPF, ao qual caberia o papel de examinar,
juntamente com o corpo de funcionários designados para aquela função, os livros e os
periódicos apresentados àquele departamento para verificação prévia, sem, contudo,
caber-lhe a tarefa de proibir a divulgação da publicação ou determinar a sua apreensão
em caso de haver matéria infringente ao exposto no Decreto-lei n. 1.077. Nesses casos,
conforme determinava a Portaria 11-B, caberia ao delegado regional do DPF comunicar,
de imediato, ao ministro da Justiça, as conclusões extraídas a partir da sua avaliação do
material e apresentar um exemplar da publicação ou cópia do respectivo original, para
que então o ministro da Justiça tomasse as medidas previstas pelo Decreto-lei
n.1.077.
151
Assim, percebemos que na estrutura de funcionamento da censura prévia de
livros e periódicos, cabia ao DPF o papel de executar as solicitações, determinações e
148
BUZAID, Alfredo. Op. cit.
149
Idem, p. 41.
150
Decreto-lei n. 1.077, de 26 de janeiro de 1970.
151
Portaria 11-B, de 06 de fevereiro de 1970, artigo 6º.
60
decisões provenientes do ministro da Justiça, que era a quem competia, de fato, o poder
de decisão.
152
Além disso, a Portaria 11-B autorizava o delegado regional do Departamento de
Pocia Federal a utilizar, no exame de livros e periódicos, a colaboração de “pessoas
por ele designadas, inclusive estranhos aos quadros do serviço público, desde que moral
e intelectualmente habilitadas a realizá-lo”.
153
Esses termos nos remetem a uma questão
que discutimos anteriormente, que se referia à carência de pessoal especializado no
âmbito do DPF para atuar na fuão de técnico de censura, que como vimos, vinha
recebendo uma sobrecarga de trabalho desde meados da década de 1960, quando
tiveram início os esforços do governo no sentido de centralizar as atividades da censura
de diversões públicas em torno do Departamento de Pocia Federal, em Brasília, em
detrimento da atuação local das suas Delegacias e Sub-delegacias regionais. Este estado
de coisas se tornou ainda mais grave a partir das deliberações introduzidas pelo
Decreto-lei n.1.077, a partir do qual ficaria a cargo do DPF, através do SCDP, a tarefa
de proceder a censura prévia de livros e periódicos que ofendessem a moral e os bons
costumes. Assim sendo, como anos mais tarde relatou o diretor-geral do DPF, Moacyr
Coelho, em ofício ao então ministro da Justiça, Armando Falcão, dia a dia cresciam as
atribuições do SCDP no campo dos divertimentos públicos, o que tornava as novas
atribuições introduzidas pelo Decreto-lei 1.077 uma considerável sobrecarga de serviço
àquele departamento. Diante disso, o ministro da Justiça Alfredo Buzaid, resolveu,
através da Portaria 11-B, autorizar os delegados regionais do DPF a procederem a
verificação prévia de livros e periódicos e, além disso, a convocarem tanto policiais de
outros departamentos como também pessoas estranhas aos quadros da Pocia Federal
para atuarem como censores, o que nos revela que o DPF dispunha de um corpo
censório pequeno e despreparado.
154
Além disso, os relatórios produzidos anualmente pela censura federal
demonstram que a escassez de censores foi um problema com o qual o regime se
defrontou desde a instalação e sistematização da censura até o desmonte daquele
aparato, na década de 1980. Assim, eram recorrentes nestes relatórios, tanto da censura
federal como das censuras estaduais, a solicitação para que fossem admitidos novos
técnicos de censura, fosse através de concurso, de remanejamento de pessoal do DPF ou
152
Portaria 11-B, de 06 de fevereiro de 1970.
153
Idem, artigo 5º.
154
Idem.
61
de contratação, o que nos leva a discordar do analista Alexandre Stephanou, quando ele
afirma ter havido um “inchaço do corpo de censores federais” durante os governos
militares.
155
Outro aspecto interessante de ser observado no relatório anual referente às
atividades da Turma de Censura de Diversões Públicas
156
da Delegacia Regional da
Guanabara, durante o ano de 1971, em que o técnico de censura Carlos Lúcio Menezes
relatava ao chefe do Serviço de Censura de Diversões Públicas que os técnicos de
censura efetivos naquela Delegacia sentiam-se “desprestigiados” e “inferiorizados” em
relação aos que eram contratados, já que esses além de ganharem o salário de censor,
podiam exercer outras atividades lucrativas alheias à SCDP e, assim, acabavam por
ganhar o dobro no final do mês. Por esse motivo, o chefe da TCDP da Guanabara
solicitava ao chefe da SCDP que reenquadrasse os técnicos efetivos daquela TCDP em
níveis que correspondessem a cargos superiores, para que dessa forma pudessem
receber gratificações maiores do que as que eram recebidas pelos técnicos de censura
contratados, a fim de proporcionar-lhes mais estímulo e eqüidade.
157
Ainda no mesmo relatório anual, o chefe da TCDP da Guanabara fez menção a
outro problema que, ao lado da questão do reduzido número de técnicos de censura,
apareceu com grande freqüência nos relatórios anuais da censura federal e dizia respeito
à necessidade urgente de que fossem unificados os critérios de censura. Dizia ele que,
no intuito de transmitir orientação de serviço, dirimir vidas e unificar os critérios de
execução da censura, realizava reuniões com os técnicos de censura, tanto os efetivos
quanto os contratados, os quais, embora não tivessem muita experiência naquela função,
dispunham de um “consagrado senso de responsabilidade”.
158
Assim, além da necessidade de ampliar o corpo de censores do Departamento de
Pocia Federal e de suas Delegacias Regionais, falava-se bastante na necessidade de
criar normas explícitas que orientassem os delegados regionais do DPF no cumprimento
da missão que lhes havia sido atribuída pela Portaria 11-B que, além de lhes conferir a
tarefa de proceder ao exame prévio dos livros e periódicos que contivessem matéria
155
STEPHANOU, Alexandre Ayub. O procedimento racional e técnico da censura federal brasileira
como órgão público: um processo de modernização burocrática e seus impedimentos (1964-1988). Tese
de doutorado em História. PUCRS, 2004, p. 59-61.
156
As Turmas de Censura de Diveres Públicas (TCDP) eram órgãos regionais, diretamente
subordinados às Delegacias Regionais, onde era realizado o Serviço de Censura em nível estadual.
157
Relatório TCDP-DR/GB, enviado pelo técnico de censura Carlos Lúcio Menezes (chefe da TCDP da
Guanabara), ao chefe do Serviço de Censura de Diveres Públicas, em 24 de março de 1971. Seção
Administração Geral. Série Relatório de atividades.
158
Idem.
62
ofensiva aos padrões de moralidade da sociedade brasileira,
159
determinava que aos
autores, editores, distribuidores ou responsáveis por tais publicações caberia não
divulgá-las enquanto a autoridade competente o as tivesse liberado.
160
A fim de obter
a liberação, os interessados deveriam cumprir o seguinte procedimento: apresentar ao
delegado regional do DPF três exemplares da publicação ou três pias autênticas dos
seus originais, que deveriam ser examinados por aquele delegado e seus colaboradores
no prazo de vinte dias, para livros, e de quarenta e oito horas, para periódicos, a contar a
partir da data de apresentação dos originais ou exemplares na Delegacia do DPF.
161
Por
o dispor de meios humanos e materiais suficientes para executar suas novas
atribuições no prazo previsto, começou a haver demora na emissão dos despachos de
liberação das publicações, o que gerou reclamações por parte dos editores e
importadores, que alegavam elevados prejuízos e a iminência de perderem seus créditos,
principalmente no exterior, pela demora com que as Delegacias Regionais do DPF
expediam a liberação para que suas publicações pudessem circular legalmente em todo
o país. Tendo em conta essas queixas, juntamente com as dos delegados regionais
encarregados de cumprir as determinações da portaria 11-B de que fosse estabelecida a
uniformização dos critérios liberatórios das revistas que, a partir de então, ficariam
submetidas ao exame prévio, o diretor-geral do Departamento de Polícia Federal baixou
a Portaria n. 219, de 17 de março de 1970, através da qual estabelecia os critérios e
procedimentos a que os editores e distribuidores deveriam cumprir para que pudessem
comercializar suas publicações periódicas destinadas ao público adulto, ilustradas ou
o, que contivessem matéria que exteriorizasse manifestação de temas eróticos, de
crimes de violência, aventura amorosa, horror, ou de humorismo picante.
162
O artigo dessa portaria determinava que tais publicações poderiam ser
distribuídas aos postos de venda , ou encaminhadas aos seus assinantes, embaladas em
material opaco, resistente e hermeticamente fechado,
163
contendo em uma das faces do
invólucro o logotipo da publicação e o número do exemplar, o número do registro do
título da publicação no SCDP, a data em que seria publicada, o preço do exemplar, o
país de origem e o nome da Editora com seu respectivo endereço. Além disso, deveria
159
Portaria n. 11-B, de 06 de fevereiro de 1970, artigo 2º.
160
Idem, artigo 3º.
161
Idem, artigoe 5º.
162
Portaria n. 219, de 17 de março de 1970.
163
Idem, artigo 1º.
63
conter os seguintes dizeres, em caracteres maiúsculos e em destaque: “PROIBIDA A
VENDA A MENORES DE 18 ANOS DE IDADE.”
164
Outro ponto que merece ser observado com cautela é que a Portaria n. 219, além
de regulamentar, dentre outras coisas, a circulação de publicações, ilustradas ou não,
que contivessem matéria que abordasse temas eróticos”, advertia que não seriam
toleradas quaisquer publicações que contivessem “matéria pornográfica, libidinosa,
obscena ou sadomasoquista”,
165
o que traz à tona a tentativa de distinguir os conceitos
de “obscenidade”, “pornografia” e “erotismo”, questão esta que foi abordada pelo
ministro Buzaid no documento Em defesa da moral e dos bons costumes, além de ter
sido debatida, como veremos mais adiante, no julgamento de publicações consideradas
ofensivas à moralidade pública e tamm nos cursos de formação de censores da
Academia de Pocia Federal, para fins de aplicação das leis relativas às publicações
visadas pelo Decreto-lei 1.077.
Numa época em que a sexualidade e o erotismo estavam entre os principais
temas explorados pelos meios de comunicação de massa e pela propaganda, no sentido
de atrair tanto o público masculino quanto o público feminino, tornava-se fundamental
definir os limites desses conceitos a fim de determinar a partir de que ponto aquilo que
na década de 1960 se constituiu numa das principais estratégias para atrair leitores e
consumidores, passaria a infringir os limites da moralidade pública.
Assim, uma apostila intituladaAula inaugural da censura”, de setembro de
1966, dizia que o trabalho do censor exigia uma ampla cultura unida ao bom senso, a
uma profunda compreensão no campo da estética e a uma mentalidade aberta, para que
o condenasse como “subversivas” ou “imorais” obras de arte consagradas e para que
pudesse sentir o “relativismo da moral social”, sem deixar que suas idiossincrasias,
preconceitos sociais, religiosos ou raciais interferissem no desempenho das suas funções
em defesa do povo”.
166
Numa outra apostila intitulada “Pornografia”, módulos I, II e III, utilizada em
um dos cursos de formação de técnico de censura oferecido pela Academia Nacional de
Pocia, o professor universitário Joaquim Orio começava o primeiro módulo
discutindo exatamente esta questão do limite entre o obsceno e o permissível, e a esse
164
Idem, artigo 1º, parágrafo 1º.
165
Idem, artigo 1º, parágrafo 2º.
166
Apostila da aula inaugural de censura. Data: Setembro de 1966-DFSP (Academia Nacional de Polícia).
Arquivo Nacional-Sede no Rio de Janeiro. Fundo DSI. Código do Fundo: TT. Documentos Avulsos (10).
Datas: 1946-1981. Caixa: 08/4674. Seção de Guarda: CODES.
64
respeito dizia que, historicamente, o conceito de “tolerável” variava quando se tratava
de admitir, em blico, as referências ao sexo, fosse em palavras, fosse em figuras,
fosse em gestos ou em ações, e mesmo regionalmente, o que se admitia com inteira
naturalidade em um país liberal, como era o caso da Suécia, seria totalmente
inadmissível em um país fundamentalista, tal qual a Líbia ou o Irã. Diante disso, ele
entendia que o que impedia um juízo desapaixonado e que se chegasse a um consenso
sobre os limites entre o obsceno e o permissível eram as ideologias, as religiões, os
tabus familiares, as faixas etárias diversas, as irracionalidades o superadas e a própria
carga emotivo-instintiva que o sexo despertava.
167
Quanto ao significado do termo pornografia”, originário do grego porné, que no
passado designava a mulher cuja profissão era a de prestar serviços sexuais, naquele
momento passava a definir toda representação sexual de caráter público, incluindo-se aí
fotos, pinturas, esculturas, objetos de uso, descrições orais ou escritas, gestos, ões e
palavras, transmitidos através de veículos de divulgação. Portanto, o conceito de
pornografia”, na sua concepção, não incluía juízo de beleza: “Pornografia é coisa
pública!”, dizia a apostila, “Pode ser bonita ou o. Não importa! Sua finalidade é trazer
à exposição de outras pessoas as imagens, descrições, palavras, representações que,
explicitamente, lembrem a atividade sexual.” E explicava que por se tratar de uma
representação de caráter público é que o convívio social exigia do Estado a coibição de
abusos ofensivos aos direitos de quem viesse a sofrer danos com a pornografia, no caso,
os menores de idade, ou aqueles que simplesmente não quisessem a ela se submeter por
motivos religiosos ou culturais.
168
Mas quais seriam os limites da pornografia? Questionava-se ao iniciar o segundo
módulo de sua apostila, no qual discutia qual deveria ser o vel de intervenção do
Estado em relação aos diferentes níveis de exposição pública da sexualidade. Quais
limites definiriam o ponto a partir do qual um gesto, uma figura ou um objeto passaria a
ser considerado pornográfico? Segundo a apostila, a dificuldade em determinar essas
fronteiras, assim como a dificuldade em estabelecer a diferença entre o erotismo e a
pornografia ou entre a sensualidade e a grosseria, estava no fato das pessoas serem
diferentes umas das outras e, portanto, terem sentimentos diferentes entre si. Assim,
afirmava que a manifestação erótica poderia ser pornográfica se o conceito de “beleza
167
Apostila do curso de técnico de censura. Data: s/d. Arquivo Nacional-Sede em Brasília. Seção:
Orientação. rie: Cursos.
168
Idem.
65
o fosse o mesmo para todos e, em fuão disso, uma representação erótica poderia
provocar escândalo.
169
Visando alcançar um equilíbrio, dizia a apostila, o Estado adotava como critério
mínimo de tolerância com as manifestações sexuais blicas, a preservação dos
pressupostos racionais dessa atividade. E com base nisso, distinguia três referências
básicas, a fim de “facilitar o raciocínio” e a percepção dos técnicos quando tivessem que
lidar com essas questões na prática. As três categorias propostas eram: erotismo,
pornografia leve (soft-porno) e pornografia pesada (hard-porno ou hard-core).
O terceiro módulo da apostila concluía demonstrando que o erotismo se
diferenciava da pornografia porque tinha como intenção não apenas expor a atividade
sexual, mas a realização da estética através da experiência de sensações sexuais.
170
Após
realizar a análise conjunta da documentação que circulava no âmbito do Ministério da
Justiça durante os anos do regime militar, percebemos que as discussões a respeito dos
conceitos de pornografia” e “erotismo não cessaram, sem que se chegasse a uma
definição precisa ou ao estabelecimento dos limites entre ambos.
Um outro aspecto relevante da Portaria n. 219, de 17 de março de 1970, é que
ela regulamentava a obrigatoriedade dos editores, importadores, ou responsáveis pelas
publicações a que se referia aquela portaria, de requererem o registro dos títulos de suas
publicações junto ao SCDP, além de estipular os procedimentos que deveriam cumprir a
fim de que suas publicações passassem pela verificação prévia antes de entrar em
circulação. Assim, ficava estabelecido que os responsáveis pelas publicações deveriam
enviar à SCDP três exemplares de cada número, pelo menos 72 horas antes da sua
distribuição aos postos de venda ou aos assinantes, a fim de que fosse verificada a
existência de textos ou imagens ofensivos à moral e aos bons costumes.
171
É interessante observar também que, embora o Decreto-lei n. 1.077 reafirmasse
a competência dos juízes de menores e do Ministério Público no que se referia à adoção
das medidas previstas na Lei de Imprensa,
172
para impedir a circulação de periódicos
que ofendessem a moral blica e os bons costumes, bem como as suas respectivas
competências no sentido de fazerem cumprir as determinações previstas naquele
decreto-lei,
173
a Portaria n.219 estipulava que as publicações periódicas com conteúdo
169
Idem.
170
Idem.
171
Portaria n. 219, de 17 de março de 1970, artigo 4º.
172
Lei de Imprensa n. 5. 250, de 09 de fevereiro de 1970, artigos 61 e 62.
173
Decreto-lei n. 1.077, de 26 de janeiro de 1970, artigos 6º e 7º.
66
erótico, de crime, horror, aventura amorosa ou humorismo picante poderiam ser
vendidas por intermédio de livrarias, estabelecimentos especializados, bancas de jornais
situadas em recintos fechados ou por meio de assinaturas concedidas à maiores de
idade, não estando autorizadas, portanto, a ficarem expostas em lugares blicos onde
os menores pudessem ter acesso a elas.
174
Além disso, advertia os adultos de que
poderiam ser processados caso facilitassem o acesso de menores às referidas
publicações,
175
considerando que ao Estado, enquanto mandatário da sociedade, cabia o
dever de disciplinar a distribuição e a difusão de tais publicações, de maneira a impedir
que menores de idade tivessem acesso às mesmas.
176
Retomando o conjunto dos três documentos produzidos pelo ministro da Justiça
Alfredo Buzaid, logo no início de 1970, percebemos que além de simplesmente
controlar a circulação de livros e periódicos que abordassem questões consideradas
prejudiciais à moralidade e aos costumes, o ministro preocupou-se ainda em estruturar e
institucionalizar a prática da censura prévia a esse tipo de publicação, através dos
diplomas legais que foram editados logo em seguida ao Decreto-lei n. 1.077,
177
ou seja,
a Portaria 11-B, a que já nos referimos, e a Instrução n. 1-70, de 24 de fevereiro de
1970, através da qual o ministro da Justiça procurava esclarecer o “verdadeiro sentido
daqueles dois últimos documentos, os quais vinham sendo alvos de severas críticas por
parte de escritores e editores que consideravam o Decreto-lei n. 1.077 uma nova forma
de autoritarismo.
178
Através daquela instrução ficavam isentas de verificação prévia as
publicações de caráter estritamente filofico, científico, bem como as que não
versassem temas referentes ao sexo, à moralidade pública e aos bons costumes, além
disso, chamava a atenção pra o fato de que, conforme o que havia sido exposto na
Portaria 11-B, ficariam subordinadas à verificação prévia as publicações e
exteriorizações que contivessem matéria “potencialmente ofensiva à moral e aos bons
costumes”.
179
Vale à pena ressaltar um aspecto que já foi tratado em trabalhos como os de
Douglas Marcelino
180
e Carlos Fico
181
, mas que merece ser retomado aqui por se referir
174
Portaria n. 219, de 17 de março de 1970, artigo 2º.
175
Idem, artigo. .
176
Idem, preâmbulo.
177
Decreto-lei n. 1.077, de 26 de janeiro de 1970.
178
BUZAID, Alfredo. Op. cit. p. 28.
179
Instrução n. 1-70, de 24 de fevereiro de 1970.
180
MARCELINO, Douglas Átila. Op. cit.
181
FICO, Carlos. “Prezada censura”: cartas ao regime militar. Revista Topoi, Rio de Janeiro, n. 5, set.
2002.
67
justamente ao fato de alguns outros analistas da censura praticada durante o regime
militar, como Beatriz Kushnir e Alexandre Stephanou, afirmarem que o Decreto-lei n.
1.077 institucionalizou a censura prévia à imprensa, de maneira geral, enquanto, na
realidade, a verificação prevista por aquele decreto, e reafirmada tanto pela Portaria 11-
B como pela Instrução n. 1-70, ficava restrita a periódicos e livros que atentassem
contra a moral e aos bons costumes.
O próprio autor do documento, o ministro da Justiça Alfredo Buzaid, procurou
ressaltar que o Decreto-lei n.1.077 visava apenas às publicações e exteriorizações que
ferissem aqueles valores e que, portanto, seu alcance não se estendia às demais
publicações.
182
Assim, referindo-se ao sentido e à abrangência daquele diploma legal, o
ministro procurava esclarecer que embora a Constituição garantisse a liberdade de
pensamento como um dos direitos fundamentais do indivíduo, numa época em que o
Estado democrático tinha que defender-se contra os agentes do comunismo
internacional”, a Constituição passava a considerar como inimigos da Pátria” aqueles
que promovessem propagandas de guerra, a subversão da ordem, o preconceito
religioso, étnico e de classe, bem como os que fizessem publicações e exteriorizações
contrárias à moral e aos bons costumes, que passavam a ser proibidas em nome da
segurança nacional:
A constituição reputou o deletéria a subversão da ordem como a publicação de obras
pornográficas. Não fez entre elas distinção de grau, importância ou gravidade. Tratou-as
igualmente, havendo-as por contrárias à segurança nacional. Logo, o que a Constituição
declarou intolerável, aplica-se de imediato, independentemente de regulamentação
particular. A norma constitucional é, pois, auto-executável.
Todavia, o governo da República resolveu disciplinar a matéria, dotando certos órgãos de
meios adequados à perfeita execução do preceito constitucional. Um deles é precisamente a
verificação prévia das publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons
costumes.
183
O ministro Alfredo Buzaid esclarecia que aquele diploma havia sido editado em
cumprimento à última parte do § 8º do artigo 153 da Constituição Federal,
184
que
expressamente declarava intoleveis as publicações e exteriorizações contrárias à moral
e aos bons costumes, o que, na concepção de Buzaid, vinha complementar a censura
antiga de diversões e espetáculos blicos, pois para ele não fazia sentido fiscalizar
previamente as diversões e espetáculos blicos ao mesmo tempo em que eram
permitidas “medrarem livremente" publicações consideradas “pornográficas”. Assim,
ele considerava legítima a verificação prévia, tanto de diversões públicas como de livros
182
BUZAID, Alfredo. Op. cit. p. 41
183
Idem, p. 15.
184
Constituição da República Federativa do Brasil de 1967, de 24 de janeiro de 1967. Artigo 150, § 8º
68
e periódicos, pois ao Estado deveria caber o poder-dever de velar pela moralidade
pública e formação sadia da juventude”, assim como a tarefa de intervir “em nome dos
princípios cristãos, reprovando o ultraje ao decoro e a dissolução da família”.
185
Portanto, observamos que a censura prévia e a censura de imprensa o eram
sinônimos, mas aspectos distintos da atividade censória,
186
tanto pelo fato de que a
censura prévia incidia não apenas sobre a imprensa, mas muito mais tempo e de
maneira mais sistemática sobre os espetáculos e diversões públicas, como também
porque a censura de imprensa praticada na época o se restringia ao regime de
verificação prévia, sendo executada, também, de maneira permanente, porém velada, no
sentido de impedir a divulgação de notícias ou comentários contrários ao regime e às
instituições da sociedade brasileira.
Outra diferença marcante entre a censura prévia de livros e periódicos,
regulamentada pelo Decreto-lei n. 1.077, e a censura de imprensa de maneira geral, é
que a primeira centrava-se em questões de natureza puramente comportamental e moral,
preocupando-se em preservar a juventude, os valores morais e a tradição da família em
defesa da segurança nacional, o que, de fato, era visto com bons olhos por uma parcela
da sociedade que temia a ascensão do erotismo nas publicações de circulação nacional e
a revolução dos costumes que explodia na década de 1960. Por outro lado, a censura de
imprensa visava controlar não apenas aquilo que estava relacionado ao plano da
moralidade, mas tamm as questões referentes a política, ou que de alguma maneira
pudessem afetar a imagem democrática e positiva que o regime se esforçava em
construir para si.
Um documento datado de 24 de janeiro de 1971, com o título de “Normas para a
censura aos meios de comunicação social”, tinha a finalidade de fixar o procedimento
dos órgãos descentralizados do DPF quanto à censura aos meios de comunicação social,
particularmente nos temas não relacionados com a moral e os costumes, uma vez que
esses já se encontravam “suficientemente regulados por legislação específica e em
execução por parte do Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP) e das Turmas
de Censura de Diversões Públicas”. Portanto, diferentemente dos termos dos três
documentos redigidos pelo ministro Alfredo Buzaid e publicados nos primeiros meses
de 1970, essa norma referia-se, de maneira geral, a toda a imprensa e visava o controle
185
Idem, p. 33.
186
Para interpretações distintas da aqui apresentada, ver STEPHANOU, Alexandre Ayub. Op. cit.; e
KUSHNIR, Beatriz. Op. cit.
69
o apenas dos temas que ofendessem a moral e os costumes, mas também aqueles que,
de alguma forma, atentassem contra o regime e suas instituições. Mais que isso, essa
norma continha os procedimentos que deveriam ser adotados pelos funcionários das
Delegacias e Subdelegacias Regionais responsáveis pela execução da censura de temas
morais e poticos na imprensa e definia que ficaria a cargo do DPF executar a censura
tanto de diversões públicas como de imprensa, com a finalidade de defender a moral, os
bons costumes, o regime e suas instituições, tanto no campo dos espetáculos e das
diversões públicas em geral, como também no campo da imprensa.
187
.
A norma distinguia três procedimentos diferentes quanto à forma como deveria
ser executada: a “censura prévia”, que seria exercida na defesa da moral e dos bons
costumes; a censura não permanente”, que tinha em vista a o divulgação de um
determinado fato ou notícia, podendo ser efetuada apenas a partir de uma determinação
emitida pelo ministro da Justiça e a “censura a posteriori”, que se tratava da censura
praticada após a divulgação da matéria, com o objetivo não apenas de aplicar as
medidas cabíveis, como também de realizar um estudo a respeito do comportamento do
óro de comunicação social infringente, tendo em vista a abordagem de certos temas
que pudessem caracterizar sua posição política e ideológica.
188
Ficava determinado que seria designado um responsável para permanecer junto
ao órgão submetido à verificação prévia e que caberia a ele responder pelo não
cumprimento das normas restritivas. Além disso, as Delegacias Regionais que
estivessem incumbidas da missão de realizar a censura prévia em algum órgão de
comunicação localizado na sua área de atuação, receberia instruções específicas do
ministério da Justiça sobre a maneira como deveriam proceder.
189
Para a censura não permanente, ficava estipulado que caberia apenas ao ministro
da Justiça a competência de emitir as “proibições determinadas” referentes à divulgação
de temas ou fatos específicos através da imprensa, as quais deveriam atender às
diretrizes gerais ou à pedidos específicos provenientes de outros Ministérios, da própria
Presidência da República e das comunidades de segurança e informação. Ao delegado
regional caberia a tarefa de decidir quanto à maneira de proceder à censura, sendo ele,
portanto, o único responsável pelo cumprimento da missão recebida. Assim, ele poderia
tanto expedir um documento escrito, os chamados “bilhetinhos”, solicitando que o
187
Idem.
188
Idem.
189
Idem.
70
óro atendesse aquela determinação, ou então, no caso dos órgãos que não estivessem
submetidos à censura prévia, telefonar para a sua redação, ou no caso contrário,
telefonar para o censor responsável pelo óro que estivesse submetido àquele tipo de
censura e repassar o conteúdo das proibições emitidas pelo Ministério da Justiça. É
fundamental ressaltar que uma das advertências prescritas naquela norma, era que
nenhum documento deveria ser entregue aos óros de divulgação, ficando a cargo dos
responsáveis pelos meios de comunicação notificados copiar o conteúdo das normas
emanadas da Direção-Geral e apor o ciente de recebimento.
190
Ainda com relação à função desempenhada pelos delegados regionais no
processo de censura permanente, a norma dizia que na sua tarefa de executar as
proibições determinadas pelo ministro da Justiça, deveria chegar ao ponto de impedir
a distribuição de uma determinada publicação quando estivessem esgotados todos os
recursos preventivos, devendo, portanto, ser evitadas em função das repercussões
negativas que esse tipo de medida poderia provocar na opinião pública. A tentativa de
organizar os procedimentos da censura e torná-la mais eficiente aparece novamente no
trecho em que o documento se refere ao papel desempenhado pelos delegados regionais
nos casos em que não dispusessem de tempo suficiente para solicitar a autorização
superior do ministro da Justiça para efetuar uma determinada proibição, estando, nesses
casos, autorizados a atender pedidos específicos de comandantes de áreas e de outras
altas autoridades federais, sendo necessário, contudo, que o diretor-geral do DPF
homologasse a sua decisão e, posteriormente, informasse o ministro da Justiça a
respeito do caso.
191
Quanto ao último tipo de censura distinguida no documento, a censura à
posteriori, dizia que sua execução prescindiria de ordem emanada do ministério da
Justiça, pois consistia no acompanhamento constante das matérias publicadas ou
transmitidas através da imprensa escrita, falada e televisada, visando capacitar o DPF e
seus óros descentralizados a terem uma visão conjuntural de como se comportavam
os veículos de comunicação social em relação aos diversos temas de interesse
governamental.
192
Além de sistematizar os procedimentos de censura à imprensa, especialmente
em relação aos temas de cunho potico e ideológico, aquele documento estipulava que
190
Idem.
191
Idem.
192
Idem.
71
uma vez que o trabalho de censura de diversões públicas já estava circunscrito ao SCDP
e às TCDP, o que se relacionasse com a imprensa, incluindo os aspectos de defesa da
moral e dos bons costumes, passaria a ser encargo do Gabinete de cada Delegacia
Regional ou Sub-delegacia Regional do DPF, mais precisamente, de um “Setor de
Imprensa do Gabinete” (SIGAB), cuja criação o documento anunciava que seria “em
breve determinada em ato da Direção Geral do DPF”. Entretanto, a existência desse
óro só se tornou conhecida publicamente a partir da abertura dos arquivos da DSI e da
DCDP, uma vez que não foi instituído por decreto nem inserido no organograma do
Ministério da Justiça ou do DPF.
193
A vantagem da existência daquele órgão, dizia o documento, estava no fato de
que iria dispor de elementos que estivessem permanentemente ligados aos problemas da
imprensa e, portanto, mais habilitados a realizar o exame e a análise desses meios de
comunicação com maior profundidade. Além disso, outro ponto considerado era que a
existência de um órgão especificamente voltado para a censura de imprensa criaria, aos
poucos, um vínculo com cada órgão de comunicação, o que era entendido como um
“facilitador do entendimentoentre o regime e a imprensa, nos casos em que se fizesse
necessária a adoção de medidas restritivas.
194
Com base no que ficou estabelecido por aquela norma, emitida em janeiro de
1971, logo no mês seguinte foram propostos novos textos para a redação da Portaria 11-
B
195
e para a Portaria n. 219
196
. Essa última, conforme os novos termos propostos,
passaria a regulamentar não apenas a verificação prévia de livros e periódicos, mas
também a classificação prévia das publicações que divulgassem atos, cenas, fotos ou
textos sobre:
I – violência;
II – crimes, com circunstâncias ou pormenores capazes de serem imitados;
III – manifestação erótica ou sexual;
IV – adultério;
V – prostituição;
VI – amor livre e mãe solteira;
VII – sedução;
VIII – traição;
IX – justificativa de mau comportamento, inconformismo ou rebeldia;
X – mentira, como fórmula de êxito na vida;
XI – chantagem, rapto, furto e delinqüência;
XII – humorismo picante;
XIII – nu artístico;
XIV – abalo de convicções normais;
193
Idem.
194
Idem.
195
Portaria n. 11-B, de 06 de fevereiro de 1970.
196
Portaria n. 219, de 17 de março de 1970.
72
XV – premissas inadequadas ou adversas à ética ou à realidade brasileira.
197
O novo texto acrescentava ainda, em relação à Portaria n. 219, que além das
publicações que contivessem matéria pornográfica, libidinosa, obscena, sadomasoquista
ou que de alguma forma atentassem contra a moral e os bons costumes, também não
seriam permitidas quaisquer publicações que atentassem “contra a segurança nacional e
a ordem potica e social”.
198
Com relação ao novo texto proposto para a Portaria 11-B, ele passava a
determinar que o exame prévio de livros e periódicos, a fim de verificar a existência de
matéria ofensiva à moral e aos bons costumes, não seria mais atribuição exclusiva dos
delegados regionais do DPF
199
e que competiria ao Gabinete do ministro da Justiça
proceder ao exame dos livros, enquanto que o exame dos periódicos continuaria a cargo
do Departamento de Polícia Federal.
200
À fim de executar essas tarefas, o artigo atribuía ao diretor-geral do DPF
autoridade para expedir portarias que regulassem a maneira como as verificações
prévias deveriam ser levadas a efeito.
201
Quanto aos prazos que cada autoridade responsável teria para efetuar o exame
dos livros ou dos periódicos submetidos à verificação prévia, o novo texto proposto para
a Portaria 11-B sugeria que fossem expandidos em relação ao que ficava estipulado pelo
texto original e, assim, determinava 30 dias para livros e 5 dias para periódicos, a contar
da apresentação dos originais ou exemplares.
O que podemos perceber até aqui é que as alterações propostas para a redação da
Portaria 11-B buscavam resolver o problema do volume de atividades acumuladas no
âmbito do Departamento de Polícia Federal, através da divisão das tarefas de
verificação prévia de publicações entre o DPF e o SIGAB e, além disso, o problema dos
atrasos na verificação do material enviado para exame prévio, através da ampliação dos
prazos que os técnicos de censura teriam para expedir os despachos contendo os
pareceres. Além disso, permitia que o Gabinete do ministro fizesse uso, assim como
197
Legislação (portarias)-1970/1971. Portaria que regulamenta a verificação prévia, bem como a
classificação das publicações, artigo . Data: Brasília, fevereiro de 1971. Arquivo Nacional-Sede no Rio
de Janeiro. Fundo DSI. digo do Fundo: TT. Documentos Avulsos (09). Datas: 1965-1972. Caixa:
07/4673. Seção de Guarda: CODES.
198
Idem, artigo 3º, parágrafo 2º.
199
Portaria n. 11-B, de 06 de fevereiro de 1970, artigos 1º e 2º.
200
Legislação (portarias)-1970/1971. Proposta para nova redação da Portaria 11-B, artigos e 3º. Data:
06 de fevereiro de 1970.Arquivo Nacional-Sede no Rio de Janeiro. Fundo DSI. Código do Fundo: TT.
Documentos Avulsos (09). Datas: 1965-1972. Caixa: 07/4673. Seção de Guarda: CODES.
201
Idem, artigo 3º, parágrafo único.
73
fazia o DPF, da colaboração de pessoas estranhas aos seus quadros no exame de livros,
dispensando, portanto, a obrigatoriedade de realizar concurso para preencher os cargos
daquele órgão novo e obscuro.
202
Enquanto o texto original da Portaria 11-B determinava que no caso de ser
verificada a existência de matéria ofensiva à moral e aos bons costumes o delegado
regional do DPF deveria enviar ao ministro da Justiça o seu parecer, acompanhado de
um exemplar da publicação ou pia do respectivo original, para que a ele coubesse a
decisão de proibir a divulgação da publicação ou determinar a busca e apreensão de
todos os seus exemplares,
203
na nova redação proposta para essa portaria ficava
resolvido que, nesses casos, passaria a ser do DPF a decisão de sustar a distribuão do
periódico, devendo, entretanto, comunicar, de imediatoao ministro da Justiça o teor
do seu despacho acompanhado do exemplar da publicação, para que ele ratificasse o seu
procedimento e aplicasse o disposto no artigo do Decreto-lei n. 1.077,
204
pelo qual,
verificada a existência de matéria infringente à moralidade blica, caberia ao ministro
da Justiça, além de proibir a divulgação da publicação, determinar a apreensão de todos
os seus exemplares.
205
Por último, esse texto incluía o conteúdo da instrução n. 1-70, publicada em 24
de fevereiro de 1970, na qual o ministro da Justiça declarava estarem isentas da
verificação prévia a que se referia a Portaria 11-B, os livros e periódicos de caráter
estritamente filofico, científico, técnico ou didático, bem como os que não versassem
temas referentes ao sexo, moralidade pública e bons costumes.
206
No processo onde hoje estão arquivados esses dois modelos de portaria,
encontra-se ainda uma outra versão, menos elaborada, da “Proposta para nova
elaboração da Portaria 11-B, de 06 de fevereiro de 1970”, o que vem demonstrar, dentre
outros tantos exemplos com os quais nos deparamos, o empenho regulatório do regime
militar e sua incessante preocupação em criar ou aprimorar instrumentos legais que
fundamentassem mesmo as suas atitudes mais arbitrárias e excessivas.
202
Idem, artigo 7º, § 2.
203
Portaria 11-B, de 06 de fevereiro de 1970, artigo 6º.
204
Legislação (portarias)-1970/1971. Proposta para nova redação da Portaria 11-B, artigo 8º. Data: 06 de
fevereiro de 1970. Arquivo Nacional-Sede no Rio de Janeiro. Fundo DSI. digo do Fundo: TT.
Documentos Avulsos (09). Datas: 1965-1972. Caixa: 07/4673. Seção de Guarda: CODES.
205
Decreto-lei n. 1.077, de 26 de janeiro de 1970, artigo 3º.
206
Legislação (portarias)-1970/1971. Proposta para nova redação da Portaria 11-B, artigo 11º. Data: 06 de
fevereiro de 1970. Arquivo Nacional-Sede no Rio de Janeiro. Fundo DSI. digo do Fundo: TT.
Documentos Avulsos (09). Datas: 1965-1972. Caixa: 07/4673. Seção de Guarda: CODES.
74
Percebemos ainda, como afirmamos anteriormente, que à medida que o
regime ganhava contornos mais autoritários, especialmente entre os anos de 1968 e
1974, iam sendo adotadas medidas repressivas mais rigorosas, dentre as quais
destacamos a estruturação e sistematização da censura potica stricto sensu, que, aliás,
vinha sendo introduzida no aparato legal e constitucional do regime militar desde o
AI-2, do Ato Complementar n. 1, do AI-5 e da Lei de Segurança Nacional de 1969.
Entretanto, mesmo em se tratando do período em que a repressão atingiu seu auge
durante a ditadura militar, a censura de temas poticos continuou sendo praticada de
maneira oculta e envergonhada, ainda que prevista no artigo do AI-5, para os casos
em que se fizesse necessária à defesa da revolução”,
207
enquanto que a censura prévia
de livros e periódicos que extrapolassem os limites da moralidade blica era praticada
de maneira aberta, uma vez que estava inserida na cultura potica brasileira segundo a
qual ao Estado paternalista, agente do bem comum e promotor de políticas sociais,
caberia o papel de proteger a juventude e a família da influência malévola dos meios de
comunicação de massa que disseminavam a pornografia e as discussões acerca de novos
padrões de comportamento.
208
Mesmo estando autorizada pelo AI-5,
209
como esse não era um documento auto-
executável, para que a censura de temas poticos na imprensa fosse efetuada
“legalmente” era necessário que o presidente da República emitisse um despacho
autorizando a aplicação daquela medida e foi nesse sentido que, em 29 de março de
1971, o ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, no intuito de “coibir os abusos no exercício
da liberdade de imprensa e impedir a utilização dos meios de comunicação social de
modo contrário aos interesses nacionais”, enviou ao presidente Médici um documento
sigiloso solicitando autorização para realizar a censura de imprensa, das
telecomunicações e diveres públicas, com base no artigo do Ato Institucional n. 5.
Os argumentos do ministro Buzaid para justificar a adoção de tal medida era que “fatos
recentes” revelavam a “crescente utilização da imprensa no Brasil pelos adeptos do
comunismo internacional, com os objetivos de solapar as bases do regime e
207
Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968, artigo 9º.
208
Ver CARVALHO, José Murilo. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a Reblica que não foi. 3 ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 50; e Idem. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de
Janeiro: Civilização brasileira, 2001.
209
Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968, artigo 9º.
75
intranqüilizar a população que heroicamente trabalha pelo bem comum”.
210
Numa lista
de dez tópicos, o ministro especificava os temas que deveriam ser impedidos de circular
na imprensa e é interessante observar que um deles proibia que fossem divulgadas
notícias a respeito da existência da própria censura, salvo a de diversões públicas, que,
como dissemos, já era antiga e estava inserida na cultura potica brasileira, além do fato
de que atendia às demandas de uma parcela moralmente mais conservadora da
sociedade civil, que recorria ao Estado, através de suas cartas e abaixo-assinados, para
que ele, em nome do bem comum, interviesse no campo da imprensa a fim de impedir
que a estrutura familiar desmoronasse ou tivesse sua honra ameaçada diante dos novos
padrões comportamentais difundidos através dos meios de comunicação de massa,
especialmente das revistas de grande circulação.
Assim, a partir da assinatura desse documento, ficaria valendo a seguinte regra:
era permitido fazer a censura prévia de temas poticos na imprensa e proibido aos
óros de comunicação fazer qualquer comentário a respeito desse assunto.
O fato de se tratar de um documento de caráter sigiloso, conhecido apenas
internamente por algumas esferas do governo e que se tornou público apenas a partir da
abertura dos arquivos do Ministério da Justiça na década de 1990, provocou algumas
divergências de interpretação entre pesquisadores que, sem conhecê-lo ainda,
analisaram casos de censura da imprensa que ocorreram na época, tal como o que se
abateu sobre o jornal Opinião, em 1973. Apenas um dia após esse periódico ter vencido
um complicado processo judicial no qual recorria contra a arbitrariedade da intervenção
do governo em suas publicações, o presidente Médici baixou um despacho que anulava
a decisão judicial a favor de Opinião e confirmava a “legalidadeda censura a que o
jornal havia sido submetido, com base em um documento datado de 30 de março de
1971 mediante o qual ele havia adotado o artigo do AI-5, que dentre outras coisas,
permitia censurar a imprensa quando se tratasse de defender os interesses da
revolução”. Para alguns analistas, o documento citado pelo presidente Médici teria sido
antedatado para embasar o ato proibitório que recaiu sobre o jornal,
211
enquanto outros
210
GM/0165-B. Pedido de autorização para realizar censura de imprensa. Data: 29 de março de 1971.
Remetente: ministro da Justiça Alfredo Buzaid. Destinatário: Presidente Médici. Arquivo Nacional-Sede
em Brasília. Fundo DCDP.. Manifestações da sociedade civil. Caixa 01.
211
SOUZA, Maurício Maia de. Henfil e a censura: o papel dos jornalistas. Dissertação de Mestrado.
Escola de Comunicação e Artes da USP, 1999. p. 81.
76
disseram não ter dúvidas de que o regime teria “inventado” aquele documento, no
intuito de atender às suas típicas preocupações com formalidades de ordem jurídica.
212
Do nosso ponto de vista, entretanto, o que levou o regime a institucionalizar e
burocratizar mesmo os seus instrumentos de coerção, ou ainda os seus mecanismos
políticos de ordem “revolucionária” e de caráter secreto, foi a sua dificuldade em atuar à
margem de formalidades jurídicas altamente burocratizadas e hierarquizadas, típicas da
cultura potica brasileira, associada à sua incapacidade em estruturar uma nova ordem
política com base em instituições próprias.
213
Como já afirmamos anteriormente, foi durante o governo Médici (1969-1974)
que passou a haver uma maior institucionalização e sistematização da censura de
periódicos que versassem sobre temas ofensivos à moralidade pública e aos costumes.
Portanto, em 16 de abril de 1973, o diretor-geral do DPF, no uso de suas atribuições
legais, baixou a Portaria n. 209, cujos termos deram uma rigidez muito maior à prática
desse tipo de censura que a dos diplomas que até então regulamentavam essa atividade.
Enquanto a Portaria n. 219, de 17 de março de 1970, estipulava que deveriam
solicitar registro na DCDP as publicações destinadas ao público adulto e que
contivessem matéria que exteriorizasse manifestação de temas eróticos, de crimes de
violência, aventura amorosa, horror ou de humorismo picante, a Portaria n. 209
determinava que a partir da data que entrasse em vigor, todas as publicações periódicas
que circulassem no país, do gênero revista, de origem nacional ou estrangeira, ficariam
sujeitas a registro na Divisão de Censura de Diversões Públicas do DPF, mediante
requerimento do editor, importador ou responsável, ao diretor da DCDP, acompanhado
de três exemplares da publicação, para que fosse procedida a verificação da existência
de matéria que infringisse a moral e os bons costumes, como enunciado no artigo do
Decreto-lei n. 1.077.
214
Autorizava ainda o diretor da DCDP a cancelar os registros das
publicações que não atendessem as exigências previstas naquela portaria
215
e permitia
aos órgãos descentralizados do DPF que recolhessem as publicações encontradas
circulando sem registro e que, em seguida, enviassem à DCDP um exemplar de cada
número arrecadado para que fosse submetido à verificação.
216
Com isso, percebemos
212
SMITH, Anne Marie. Op. cit. p. 132.
213
Ver LEMOS, Renato. Op. cit. p. 414; e KLEIN, Lúcia e FIGUEIREDO, Marcus. Op. cit. p.43.
214
Portaria n. 209, de 16 de abril de 1973, artigo 1º. Portaria n. 006/73 DCDP. Data: Brasília, 17 de
abril de 1973. Arquivo Nacional-Sede em Brasília. Documentos Avulsos. Fundo DCDP. Seção:
Administração geral. rie: Correspondência Oficial.
215
Idem, artigo 7º, parágrafo 1º.
216
Idem, artigo 7º, parágrafo 2º.
77
um esforço no sentido de descentralizar as funções do âmbito do DPF e de conceder
maior poder de decisão às suas Delegacias e Subdelegacias Regionais, que até então
tinham sua atuação limitada à execução das ordens emitidas a partir das decisões do
ministro da Justiça ou do diretor-geral do DPF.
Feita essa primeira verificação, no ato de concessão do registro ao periódico
deveria ser dado um parecer concedendo a dispensa ou informando a obrigatoriedade de
apresentar à DCDP os exemplares de todos os números a serem editados, a fim de
realizar a censura prévia de matérias que infringissem o disposto no Decreto-lei n.
1.077.
217
Assim como havia sido determinado pela Instrução n. 1-70, de 24 de fevereiro
de 1970, a Portaria n. 209 reforçava que estariam isentas de verificação prévia as
publicações periódicas de caráter estritamente filosófico, científico, técnico e didático,
bem como as que não versassem temas de sexo, moralidade pública e bons costumes,
sem, contudo, dispensá-las de fazer o pedido de registro na DCDP.
218
Para garantir a total observância das prescrições contidas nessa portaria, a
Divisão de Censura de Diversões Públicas ficava encarregada de reexaminar todas
aquelas publicações periódicas que já possuíam registro naquele órgão, com a finalidade
de verificar se estavam veiculando “matéria potencialmente ofensiva à moral e aos bons
costumes” e que, portanto, não poderiam continuar expostas à venda ou sendo
distribuídas aos seus assinantes.
219
Em cumprimento a essa determinação, em 17 de abril de 1973, o diretor da
DCDP emitiu uma portaria notificando o cancelamento de 62 tulos de periódicos
nacionais e estrangeiros, por fazerem divulgação de temas eróticos, especialmente de
ilustrações, que estimulavam a licenciosidade e ofendiam a moral pública.
220
Ainda com relação à Portaria n. 209, o artigo 6º desse documento abolia o uso da
embalagem “em material opaco, resistente e hermeticamente fechado”,
221
como havia
determinado a Portaria n. 219, no intuito de evitar que menores de idade tivessem
acesso às publicações a eles proibidas.
222
Entretanto, em dezembro de 1977, o diretor-
geral do DPF voltou atrás nessa decisão e expediu a Portaria n. 1563/77, que revogava o
217
Idem, artigo 2º.
218
Idem, artigo 3º.
219
Idem, artigo 7º.
220
Portaria n. 006/73-DCDP. Data: Brasília, 17 de abril de 1973. Arquivo Nacional-Sede em Brasília.
Documentos Avulsos. Fundo DCDP. Seção: Administração geral. Série: Corresponncia Oficial.
221
Idem, artigo 6º.
222
Portaria n. 219, de 17 de março de 1970, artigo 1º.
78
artigo da Portaria n. 209 e resolvia que as publicações periódicas que contivessem
ilustrações destinadas ao consumo do público adulto e que estivessem obrigadas a
apresentar para verificação prévia as matérias a serem divulgadas, poderiam ser
distribuídas aos postos de venda ou encaminhadas aos seus assinantes embaladas em
material plástico resistente, hermeticamente fechado, em que constasse em uma das
faces a inscrição: “VENDA PROIBIDA PARA MENORES DE 18 ANOS”, ficando
sujeitos a apreensão os exemplares distribuídos, ou expostos à venda em desacordo com
os termos daquela portaria.
223
No que tange à censura de espetáculos e diversões públicas, percebemos que
durante o governo do presidente Médici houve um grande esforço no sentido de
aperfeiçoar e unificar as normas que regulamentavam a prática desse tipo de censura,
muitas das quais ainda eram anteriores ao advento da televisão no Brasil e, portanto,
obsoletas, além de serem dispersas e algumas vezes conflitantes. Mas além do intuito de
elaborar normas para a censura que se adequassem ao acelerado desenvolvimento dos
meios de comunicação de massa, assim como pudemos observar para o caso da censura
prévia de periódicos, vemos que o regime também desejava imprimir um caráter mais
rigoroso à atuação da censura no campo das diversões públicas e espetáculos, além de
ampliar suas possibilidades de atuação para além da esfera da moral e dos bons
costumes até o âmbito das questões políticas.
Em dezembro de 1972, o relatório anual da censura federal relativo àquele ano,
relatava que, através do Decreto n. 70.665, de junho de 1972, o Departamento de Polícia
Federal recebeu uma nova estrutura e, com isso, o antigo Serviço de Censura de
Diversões blicas, até então subordinado à Polícia Federal de Segurança, passava a
integrar, na categoria de Divisão, os órgãos de Direção, Coordenação e Controle do
DPF e a ser designado Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP). Essa
mudança, dizia o relatório, devia-se ao reconhecimento, por parte da Direção-Geral do
DPF, da “importante missão” que a censura federal tinha a cumprir no sentido de
garantir aspectos de interesse da segurança nacional. Tendo em vista a melhor eficácia
dos serviços executados pela censura, o então diretor da DCDP, Rogério Nunes,
aproveitou a ocasião e argumentou que tornava-se premente consolidar as normas
censórias vigentes e informou que um projeto nesse sentido achava-se pronto,
223
Portaria n. 1563/77, de 10 de dezembro de 1977.
79
dependendo apenas de alguns retoques finais para encaminhamento à consideração
superior”.
224
Em 8 de janeiro de 1973, o general Nilo Caneppa, diretor-geral do DPF,
encaminhou ao ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, um ocio contendo o “Ante-projeto
de Decreto-lei de Censura de Diversões Públicas”, organizado no intuito de normatizar
as atribuições do órgão responsável por essa função no Departamento de Polícia
Federal, bem como unificar e consolidar a multiplicidade de normas censórias em
vigência. Tornava-se urgente, dizia o general Caneppa, revitalizar e readequar as
normas e poderes da Divisão de Censura de Diversões Públicas, de modo a capacitar e
prover aquele órgão com instrumentos capazes de enfrentar o acentuado progresso nas
técnicas e meios de transmissão de mensagens. Além disso, mencionava a necessidade
de municiar os técnicos de censura com uma legislação que os ajudasse a contornar as
dificuldades que sentiam no cotidiano de suas atividades e que lhes permitisse executar
suas tarefas com maior rapidez.
225
Na mesma data, o diretor-geral do DPF encaminhou outro ofício ao ministro
Buzaid com o “Ante-projeto de Regulamento da Divisão de Censura de Diversões
Públicas”, que visava dotar a DCDP de instrumentos que lhe permitiriam executar as
tarefas previstas pelo “Ante-Projeto de Decreto-lei de Censura de Diversões
Públicas”.
226
Segundo as alegações apresentadas pelo general Nilo Caneppa, não era apenas à
censura federal que interessava a urgente expedição daqueles dois diplomas que, sendo
aprovados, passariam a reger as atividades desenvolvidas pela DCDP, mas também às
empresas produtoras-exibidoras, que em função de desconhecerem os critérios aos quais
deveriam obedecer, a todo momento procuravam o órgão censório a fim de obterem
orientação e esclarecimento, além do fato de estarem sendo prejudicadas
financeiramente em virtude dos atrasos na execução dos procedimentos de verificação
prévia e liberação de textos.
227
224
Relatório Anual da DCDP, assinado pelo diretor da DCDP, Rogério Nunes, em 15 de dezembro de
1972. Arquivo Nacional-Sede em Brasília. Seção Administração Geral. Série Relatório de atividades.
225
Ofício n. 18/73-AGP/Sec. Gab. Data: 08 de janeiro de 1973. Remetente: general Nilo Caneppa Silva-
diretor Geral do DPF. Destinatário: ministro da Justiça Alfredo Buzaid. Arquivo Nacional-Sede no Rio de
Janeiro. Fundo DSI. Código do Fundo: TT. Documentos Avulsos (10). Datas: 1946-1981. Caixa:
08/4674. Seção de Guarda: CODES.
226
Ofício n. 19/73-AGP/Sec. Gab. Data: 08 de janeiro de 1973. Remetente: general Nilo Caneppa Silva-
diretor Geral do DPF. Destinatário: ministro Professor Alfredo Buzaid. Arquivo Nacional-Sede no Rio de
Janeiro. Fundo DSI. Código do Fundo: TT. Documentos Avulsos (10). Datas: 1946-1981. Caixa:
08/4674. Seção de Guarda: CODES.
227
Idem.
80
Sem obter solução do Ministério da Justiça, o relatório anual de atividades da
DCDP referente ao ano de 1973 destacava novamente, assim como no anterior, a
necessidade de que se conseguisse, “com a máxima urgência”, consolidar as normas
censórias vigentes.
228
Nessa ocasião, o diretor da DCDP informou ainda que era preciso
corrigir e atualizar os valores da tabela de multas estipuladas no Decreto n. 20.493, de
24 de janeiro de 1946, que naquela ocasião ainda era o documento que regia as
implicações da censura de diversões públicas e, segundo o qual, a inobservância de
qualquer dos dispositivos nele presente sujeitaria o infrator à multa de Cr$ 100,00 e Cr$
5.000,00, que convertidas para o valor da moeda naquela ocasião, representariam a
quantia irrisória de Cr$ 0,10 (dez centavos) e Cr$ 5,00 (cinco cruzeiros),
respectivamente. Essa solicitação, que já havia sido feita ao ministro da Justiça Alfredo
Buzaid em 1972, conforme nos informa o relatório daquele ano, e que seria repetida
novamente em 1974, mas dessa vez ao novo ocupante da Pasta da Justiça, Armando
Falcão,
229
tinha por objetivo prover a censura de diversões públicas de um recurso que
lhe permitisse exigir o cumprimento das suas determinações através de sansões de
ordem pecuniária, pois vinham sendo desrespeitadas por serem irrisórias as
importâncias ainda correntes.
230
em 1974, considerando o fato de que um novo ministro ocupava a pasta da
Justiça, o diretor-geral do DPF, Moacyr Coelho, enviou ao ministro recém empossado,
Armando Falcão, um ocio no qual explicava que havia encaminhado àquele
Ministério, desde janeiro de 1973, o Ante-projeto de Decreto-lei de Censura de
Diversões Públicas” e que, não tendo sido comunicada de qualquer resolução a respeito,
renovava sua solicitação quanto à máxima urgência que a matéria requeria, tanto para o
departamento de censura, como para aqueles que trabalhavam no ramo de diversões
públicas e que, em virtude da ausência de uma legislação precisa a esse respeito,
“ficavam a mercê da conceituação pessoal de cada censor ou responsável pela censura”,
228
Relatório Anual da DCDP, assinado pelo diretor da DCDP em serviço, Hugo Povoa da Silva, em 15 de
março de 1974. Arquivo Nacional-Sede em Brasília. Seção: Administração Geral. Série: Relatório de
atividades.
229
Ofício n. 382/Séc/Gab. Data: Brasília, DF, em 17 de Julho de 1974. Remetente: Moacyr Coelho-
diretor Geral do DPF. Destinatário: Armando Ribeiro Falcão-ministro de Estado da Justiça. Arquivo
Nacional-Sede no Rio de Janeiro. Fundo DSI. Código do Fundo: TT. Documentos Avulsos. Dara Limite:
1962-1984. Caixa: 02/04668. Seçãod e Guarda: CODES.
230
Relatório Anual da DCDP, assinado pelo diretor da DCDP em serviço, Hugo Povoa da Silva, em 15 de
março de 1974. Arquivo Nacional-Sede em Brasília. Seção: Administração Geral. Série: Relatório de
atividades.
81
o que poderia acarretar grandes prejuízos para as empresas produtoras ou produtores
autônomos.
231
No relatório anual da DCDP referente ao ano de 1974, além dos recorrentes
pedidos de aumento de efetivo em vista do vertiginoso crescimento do volume de
trabalho, repetia-se a mesma queixa quanto à necessidade de normatização da censura
de diversões públicas: “Os projetos encontram-se no Ministério da Justiça desde janeiro
de 1973, onde também se acha, desde maio de 1972, proposta de atualização de tabela
de multas”
232
É interessante observar que se durante o mandato do ministro da Justiça Alfredo
Buzaid (1969-1974), quando o Brasil viveu o auge da repressão potica, houve um
esforço no sentido de sistematizar e normatizar a censura, tanto de diversões blicas
como a de periódicos e livros, a gestão de Armando Falcão (1974-1979), ministro da
Justiça do presidente Geisel, foi marcada pela adoção de medidas importantes no
sentido de tornar a censura de costumes, fosse na imprensa ou nas diversões blicas,
mais rigorosa e efetiva, não obstante o Brasil estivesse em meio ao chamado processo
de abertura política”.
Foi nesse sentido que, em abril de 1974, o ministro Armando Falcão emitiu a
Portaria Reservada” de n. 157-B, através da qual designava Alberto de Rezende Rocha,
seu assessor especial, Mario Pessoa e Oliveira, professor catedrático da Faculdade de
Direito da Universidade Federal de Pernambuco e Rogério Nunes, diretor da Divisão de
Censura e Diversões blicas do DPF, para que, sob a presidência do primeiro,
constituíssem uma comissão encarregada de proceder a um levantamento da disciplina
legal existente e da situação em que se encontrava a problemática da censura de
diversões públicas e dos meios de comunicação. Ademais, a comissão deveria
apresentar sugestões que melhor situassem a censura no propósito de preservação da
moralidade pública e de defesa das instituições.
233
Outras medidas foram adotadas pelo ministro Armando Falcão no sentido de
tornar mais rígido o controle sobre a circulação de periódicos que tratassem de questões
relativas à moralidade blica e aos bons costumes, como por exemplo a Portaria n.
231
Ofício n. 340/c/Gab. Data: Brasília, DF, 24 de Junho de 1974. Remetente: Moacyr Coelho-diretor
Geral do DPF. Destinatário: Dr. Armando Falcão-ministro de Estado da Justiça. Arquivo nacional-Sede
no Rio de Janeiro. Fundo DSI. Código do Fundo: TT. Documentos Avulsos. Dara Limite: 1962-1984.
Caixa: 02/04668. Seção de Guarda: CODES.
232
Relatório Anual da DCDP, assinado pelo diretor da DCDP, Rogério Nunes, em 13 de dezembro de
1974. Arquivo Nacional-Sede em Brasília. Seção: Administração Geral. Série: Relatório de atividades.
233
Portaria n. 157-B. Data: 09 de Abril de 1974. Arquivo Nacional-Sede no Rio de Janeiro. Fundo
DSI/MJ. Código do Fundo: TT. Caixa: 40/4706/137. Seção de Guarda: SDE.
82
319, de 10 de abril de 1979, através da qual proibia que essas publicações fossem
expostas e vendidas em bancas.
234
Entretanto, a grande novidade introduzida por
Armando Falcão nesse âmbito veio através da Portaria n. 427, de 25 de maio de 1977,
que regulamentava a verificação prévia de publicações que viessem do exterior e fossem
destinadas à distribuição ou venda no Brasil. A inovação estabelecida por essa portaria é
que a verificação dessas publicações passaria a ser feita no próprio local do seu
desembarque no Brasil, através de funcionários do Departamento de Pocia Federal que
seriam designados a prestar seus serviços na Empresa Brasileira de Correios e
Telégrafos, nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Santos, Campinas, Porto Alegre,
Recife, Belém e Manaus, que era por onde chegavam as remessas postais procedentes
do estrangeiro. Além da urgência do ministro no sentido de classificar as publicações
vindas do exterior antes mesmo que saíssem dos correios, percebe-se que, embora as
determinações da portaria estivessem fundamentadas no Decreto-lei n. 1.077, ela
estabelecia que aquelas publicações seriam liberadas se o exame concluísse pela
inexistência de matéria ofensiva à moral e aos bons costumes ou contrária à ordem
pública”, ou seja, em pleno processo de distensão política, o controle das informações
de cunho eminentemente potico continuava sendo inserido, mesmo que de maneira
tímida e disfarçada, em meio ao emaranhado de diplomas legais que versavam sobre a
censura de periódicos ofensivos à moral e aos bons costumes.
235
Nesse sentido, é preciso relativizar as afirmações de que um dos pontos-chave da
abertura política teria sido a remoção da censura de imprensa e o retorno da liberdade de
expressão.
236
De fato, com a revogação do Ato Institucional n. 5, através da Emenda
Constitucional n. 11, de dezembro de 1978, a censura de temas poticos na imprensa foi
lenta e gradualmente deixando de ser praticada, enquanto que a censura de periódicos
considerados ofensivos à moral e aos bons costumes continuou a ser praticada até 1980
e, em 1982, foi publicada a Portaria n. 577/82, de 16 de junho de 1982, que revogou
as portarias que regulamentavam a censura prévia daquela modalidade de periódicos.
Daí em diante, os responsáveis pelas publicações que divulgassem temas considerados
contrários à moral e aos bons costumes, ou que atentassem contra a segurança nacional
234
Portaria n. 319/DG., de 10 de abril de 1979. Arquivo Nacional-Sede em Brasília. Fundo DCDP. Seção:
Administração Geral. Série: Correspondência Oficial. Subsérie: Documentos Avulsos.
235
Portaria n. 427, de 25 de maio de 1977, artigo 3º, §2º.
236
COUTO, Ronaldo Costa. História indiscreta da ditadura e da abertura. Brasil: 1964-1985. 3. ed. Rio
de Janeiro: Record, 1999, p. 167.
83
e os direitos e garantias individuais, seriam penalizados pelos abusos e crimes que
cometessem nos termos da legislação vigente.
237
Quanto ao “Ante-projeto de Normas para a Censura de Diversões Públicas”, em
1975 ele foi novamente enviado ao ministro da Justa, Armando Falcão,
238
mas
conforme nos informam os relatórios anuais de atividades da DCDP, embora a demanda
daquele ministro fosse no sentido de tornar a censura de costumes mais efetiva e
rigorosa,
239
as reclamações relacionadas à necessidade de uma legislação da censura
mais atualizada e uniforme se estenderam até 1979, pois, conforme o próprio Armando
Falcão explicou ao diretor do DPF, aquele ante-projeto só se transformaria em lei caso o
seu texto fosse aprovado pelo Congresso Nacional, o que ainda demandaria algum
tempo. Da mesma maneira, permaneceram as solicitações de que fossem atualizados os
valores da tabela de multas estabelecidas pelo Decreto n. 20.493, de 24 de janeiro de
1946.
A Comissão encarregada de atualizar as normas censórias, por sua vez, após três
anos da sua formação, através do “Decreto Secreto” 157-B, também o logrou
apresentar ao ministro da Justiça o relatório final que ele havia solicitado contendo o
levantamento da situação em que se encontrava a disciplina legal que regulamentava a
censura de diversões públicas e de publicações.
Entretanto, desejoso de que a sua iniciativa ainda se concretizasse, visando o
maior aperfeiçoamento de tais normas, Armando Falcão solicitou ao seu assessor
especial que localizasse no gabinete do Ministério da Justiça a documentação e o
material que já haviam sido coletados pela comissão, quando de apurar que o
relatório já se encontrava praticamente concluído. Em vista das dificuldades dos
membros da formação original em se reunirem para realizar a tarefa conjuntamente, o
assessor sugeriu ao ministro que constituísse uma nova comissão, a qual teria o prazo de
60 dias para concluir os trabalhos.
Tendo acatado essa sugestão, o ministro logo resolveu alterar a comissão
constituída pela Portaria 157-B, mas mesmo assim não obteve êxito, já que a nova lei de
237
Boletim de Serviço n. 113, do Departamento de Polícia Federal. Data: 17 de junho de 1982. Arquivo
Nacional-Sede em Brasília. Fundo DCDP. Seção: Administração Geral. Série: Correspondência Oficial.
Subséries: Documentos Avulsos.
238
Normas para a censura aos meios de comunicação. Data: Brasília, 24 de janeiro de 1971 ou
1972(ilegível). Arquivo Nacional-Sede no Rio de Janeiro. Fundo DSI. digo do Fundo: TT.
Documentos Avulsos (10). Datas: 1946-1981. Caixa: 08/4674. Seção de Guarda: CODES.
239
Ofício n. 493/76-DCDP, enviado pelo diretor-geral do DPF, Moacyr Coelho, ao ministro da Justiça,
Armando Falcão. Data: Brasília, em 29 de junho de 1976. Arquivo Nacional-Sede em Brasília. Seção:
Administração Geral. Série: Relatório de atividades.
84
censura discutida pela comissão nunca chegou a ser promulgada. Entretanto, em 1980 o
relatório anual da DCDP trouxe em destaque a regulamentação do artigo 15 da Lei
5.536, de 21 de novembro de 1969, que como já mencionamos anteriormente, instituía o
Conselho Superior de Censura, criado através do Decreto n. 83.973, de 13 de setembro
de 1979. Tendo sido efetivamente instalado em outubro daquele ano, o relatório
informava que o Conselho Superior de Censura começou a atuar com o dinamismo que
se esperava do novo órgão” a partir de 1980, quando passou a cumprir uma das suas
finalidades precípuas e mais aguardadas, ou seja, a de órgão normativo do exercício da
atividade censória. Assim, em tom otimista, o diretor da DCDP relatava que aquele
conselho havia baixado resoluções que puderam, em parte, suprir as necessidades da
censura federal, decorrentes de uma legislação desatualizada e em descompasso com a
realidade.
240
A partir daí, sucederam-se uma série de discussões envolvendo o Ministério da
Justiça, o DPF, os juízes de Menores e até mesmo os membros da sociedade civil,
241
acerca dos rumos que a censura deveria assumir, considerando-se o fato de que o Brasil
estava em pleno processo de negociações quanto às condições para a reabertura potica.
No que diz respeito à censura de costumes a periódicos de circulação nacional,
em 1980 o Poder Judiciário decidiu excluir do regime de verificação prévia as
publicações que abordassem temas relacionados ao sexo, à moralidade pública, aos bons
costumes, ou que apresentassem fotografias de nus, eróticos ou não.
242
A partir daquele
momento, os abusos constatados seriam reprimidos conforme as disposições da Lei de
Imprensa n. 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, e com a ajuda dos juízes de Menores no
cumprimento de suas competências quanto à preservação da moral blica e dos bons
costumes. Diante da necessidade de coibir tais abusos em publicações que estivessem
240
Relatório Anual da DCDP, assinado pelo diretor da DCDP, José Vieira Madeira, em 05 de janeiro de
1981. Arquivo Nacional-Sede em Brasília. Seção: Administração Geral. Série: Relatório de atividades.
241
Em dezembro de 1981 foi realizado o “Seminário Nacional sobre Programação de TV e Público
Usuário”, um evento aberto à sociedade e ao final do qual os participantes preencheram um formulário
que tinha em vista obter um consenso crítico sobre a realização do conclave”. Dentre as sugestões
apresentadas pelos participantes destacaram-se a necessidade de aprimorar os mecanismos de censura aos
meios de comunicação de massa, incluindo aí os jornais e as revistas, bem como a necessidade de serem
realizados outros seminários como aquele, relativo à temas como “O sexo nas comunicações”, “A família
e a TV”, “Filosofia e atuação da censura no Brasil”, “Meio de comunicação de massa”, e outros.
Ofício n. 403/82-SE/DCDP - circular, enviado pela diretora da Divisão de Censura de Diversões Públicas,
Solange Maria Teixeira Hernandes, aos chefes do Serviço de Censura de Diversões Públicas. Data:
Brasília, 15 de fevereiro de 1982. Arquivo Nacional-Sede em Brasília. Seção: Administração Geral. Série:
Correspondência Oficial. Subsérie: Informações Sigilosas.
242
Ofício n. 403/82-SE/DCDP-circular, enviado pela diretora da Divisão de Censura de Diveres
Públicas, Solange Maria Teixeira Hernandes, aos chefes do Serviço de Censura de Diveres blicas.
Data: Brasília, 15 de fevereiro de 1982. Arquivo Nacional-Sede em Brasília. Seção: Administração Geral.
Série: Correspondência Oficial. Subsérie: Informações Sigilosas.
85
circulando livremente pelo país, a orientação expressa era de que nenhuma apreensão
deveria ser executada por órgãos da Pocia Federal, salvo determinação prévia do
ministro da Justiça. Assim, a atuação dos SCDP e da DCDP voltava a se restringir ao
campo das diversões públicas e, quanto aos periódicos e livros considerados de natureza
pornográfica, caber-lhes-ia, a partir de então, simplesmente opinar sempre que fossem
consultados.
243
Esses órgãos especializados em matéria de censura continuaram
funcionando ativamente mesmo após o fim do regime militar, em 1985, até que em
1988 a nova Constituição extinguiu definitivamente a DCDP e transferiu para a alçada
do Ministério da Educação a censura de diversões públicas, que passava a ter caráter
apenas classificatório.
244
Cabe destacar que, mesmo as a decisão do ministro da Justiça de acabar
oficialmente com a censura prévia de livros e periódicos, permaneceram as discussões
acerca da necessidade de atualizar e incrementar as normas da censura, a fim de
preservar a família brasileira de influências nefastas”. Além disso, a DCDP continuou
recebendo cartas de membros e entidades da sociedade civil até fins da década de 1980,
que, como veremos mais detalhadamente no último capítulo, escreviam àquele
departamento para solicitar a “moralização dos meios de comunicação de massa”.
Depois de ter conhecido como se deu o processo de estruturação,
institucionalização e normatização da censura moral aplicada a periódicos, em meio à
modernização da indústria cultural e, mais precisamente, da indústria editorial
brasileira, que cresceu e se diversificou especialmente nos anos em que o Brasil vivia
sob a tutela do regime militar, é interessante observar a trajetória e a natureza de três
revistas que, naquele momento, se destacaram tanto por trazerem novas propostas
editoriais a um blico leitor que se tornava cada vez mais volumoso e diversificado,
como também por abordarem temas que deixavam de ser tratados como tabu e
passavam a ser discutidos publicamente, especialmente no que dizia respeito às questões
ligadas a comportamento e sexualidade, visadas pela censura que, simultaneamente ia se
243
Ofício-circular n. 85/82-SO/DCDP, encaminha Parecer n. 32/82, oriundo da Consultoria Jurídica do
Ministério da Justiça e aprovado pelo consultor-chefe através do Despacho 42/82, enviado pela diretora
da Divisão de Censura de Diversões Públicas, Solange Maria Teixeira Hernandes, aos chefes do Serviço
de Censura de Diversões Públicas. Data: Brasília, 12 de abril de 1982. Arquivo Nacional-Sede em
Brasília. Seção: Administração Geral. rie: Corresponncia Oficial. Subsérie: Informações Sigilosas.
Ver também: Protocolo n. 1627/82-SCCon/DCDP, comunicado do diretor Substituto da DCDP ao chefe
do SCDP/SR/RJ. Data: 15 de julho de 1982. Arquivo Nacional-Sede em Brasília. Seção: Censura Prévia.
Série: Publicações. Revista Eros, parecer n. 16, de 1982.
244
Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, artigo 21,
capítulo II, inciso XVI.
86
institucionalizando e ganhando normas mais rígidas. Vejamos a seguir, portanto, de que
maneira e em que condições de produção as revistas Manchete, Realidade e Ele Ela
despontaram no mercado editorial brasileiro e deram visibilidade a discussões que
implicariam em novos tipos de relações sociais e novas maneiras de ação e interação do
indivíduo com os outros e consigo mesmo.
87
Capítulo II
Os bastidores da imprensa pelas páginas, histórias e memórias de Manchete,
Realidade e Ele Ela.
“A resistência pacifista, a recusa dos autoritarismos à direita ou
à esquerda, a denúncia do sistema educativo-cultural, a luta por
direitos e contra as discriminações: soprava um vento
libertário, um desejo de “responsabilidade existencial” contra
um sistema de vida fechado e controlado por elites onde o
destino surgia como imposição exterior.” (Heloísa Buarque de
Hollanda, Cultura e participação nos anos 60, p. 70).
“O eixo da cultura de massas deslocou-se. Seu campo ampliou-
se, penetrando cada vez mais intimamente na vida cotidiana, no
lar, no casal, na família, na casa no automóvel, nas férias.
(...)A cultura de massas tende, a um tempo, a deslocar-se e a
integrar as correntes desintegradoras.” (Edgar Morin, Cultura
de Massas no século XX: neurose, p. 07)
Numa roda, mulheres sentadas semi-nuas entre homens cabeludos e barbados,
aparentemente transtornados pelo uso de entorpecentes, comem a imagem que ilustra
um editorial da revista Manchete intitulado “A escalada do erotismo”, onde se lê o
seguinte:
Quando os historiadores do futuro debruçarem-se sobre os anos de 1950 a 1970 certamente
concluirão que uma das tendências predominantes nesse período foi a promoção e o culto
do erotismo, numa escalada que se acentuou, dramaticamente, a partir do final da década de
60. O cinema tem sido um dos meios mais ousados e mais vanguardeiros nessa escalada
(...), mas nenhuma arte e nenhum meio de comunicação de massa escapam à tendência
geral.
1
Entretanto, ao explorar a historiografia produzida acerca das décadas de 1960 e
1970 no Brasil, nos damos conta da dificuldade que , entre os pesquisadores, de se
pensar os períodos de ditadura para além das análises centradas nas questões e
movimentos que marcaram esses períodos, notadamente por seu aspecto potico, como
por exemplo, movimentos estudantis,
2
passeatas, comícios, barricadas e as múltiplas
manifestações da contracultura, deixando em segundo plano as crescentes
1
A escalada do erotismo. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 936, 28 Mar. 1970, p. 29.
2
O recente livro lançado pela historiadora Maria Paula Araújo, Memórias estudantis da fundação da
UNE aos nossos dias, contém um item intitulado “Vida amorosa, questionamentos e preconceitos” no
qual ela se refere à maneira como os estudantes engajados no movimento estudantil vivenciaram o “sopro
libertário” que chegava ao Brasil proveniente da Europa e dos Estados Unidos, e do conservadorismo do
movimento do ponto de vista dos comportamentos e costumes “revolucionários”. Ver ARJO, Maria
Paula. Memórias estudantis: da fundação da UNE aos nossos dias. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
Fundação Roberto Marinho, 2007, p.187-188.
88
transformações que naquele momento se operavam no âmbito da cultura e do
comportamento, bem como os efeitos que produziram na política do período.
3
Comportamentos que até então eram tratados de maneira tímida e bastante
reservada, a partir dos anos 1960 passaram a ser discutidos e vivenciados
universalmente, tais como a igualdade entre os sexos, a liberação feminina, a
homossexualidade, a virgindade, o uso de pílula anticoncepcional, a exploração do
corpo e da mente através das drogas e da psicanálise, o aborto, a religiosidade, o
divórcio e até a loucura. E assim, no mundo todo, dividido pelo muro que materializava
as disputas poticas, econômicas e ideológicas da Guerra Fria, não houve quem não
sentisse, dentro dos limites do seu contexto, os reflexos dessas transformações no
campo cultural. Como bem ressaltou Hobsbawm, em sua “breve história” do século XX,
essas tendências, claro, o afetaram igualmente todas as partes do mundo. (...). O que
era e é muito mais interessante é que, grandes ou pequenas, as mesmas transformações
puderam ser identificadas por todo o globomodernizante’”.
4
No caso do Brasil, mesmo estando sob a tutela de um regime militar autoritário e
conservador, experimentou-se as novas tenncias vindas de Nova Iorque e Londres, as
capitais da contracultura, destacando-se os novos padrões de comportamento da
juventude, o clima de relaxamento sexual, a experimentação sensorial do corpo, a
revolta ricados hippies, o cinema de Goddard, a música dos Beatles, a canção de
Bob Dylan e a crise na relação entre os sexos e as gerações.
5
Falar, cantar, ousar na
maneira de se vestir e de se comportar certamente tornaram-se armas importantes no
combate à escalada autoritária do regime militar, mas também viraram moda entre os
mais diversos setores da sociedade, especialmente entre os jovens, que ao aderirem
àquelas “bossas” não estavam necessariamente interessados em contestar a ordem
política vigente, mas simplesmente em estar in com as tenncias e o espírito do seu
tempo. Além disso, com o advento da imprensa enquanto meio de comunicação de
massa dentro das sociedades modernas, uma de suas características fundamentais
passou a ser a veiculação de uma grande variedade de conteúdos que visam satisfazer o
maior número de leitores com gostos e interesses de todas as ordens, de modo a obter o
3
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Op. cit. p. 62.
4
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. O breve século XX. 1914-1991. 2. ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 2000, p. 317.
5
A respeito da influência da contracultura no processo de transformação de valores e padrões de
comportamento no Brasil da década de 1960, ver HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de
viagem: cpc, Vanguarda e desbunde, 1967/70. Rio de Janeiro: Rocco, 1992, p.61-90.
89
máximo de lucro e a estimular uma homogeneização dos valores de consumo entre
aqueles que pretende atingir. Tal se deu, especialmente, com certas revistas semanais ou
mensais, que, para sobreviverem, tiveram que acompanhar as transformações na
dinâmica da instria cultural, e entrar na corrida ao grande público”.
No que se refere à década de 1960, três periódicos revelam-se ricos mananciais
para que possamos conhecer e entender melhor, conforme suas representações, as
discussões e as disputas que caracterizaram a efervescência cultural daqueles anos,
sendo eles a revista Manchete, Realidade e Ele Ela. Isso porque, mais do que veículos
de informação, eles desempenhavam o papel de agente social,
6
mostrando os conflitos
de sua atualidade, trabalhando a opinião blica conforme seus interesses (econômicos,
políticos ou ideológicos), expondo as demandas e aspirações sociais, inserindo na
sociedade novas formas de pensar e agir e expressando a realidade vivenciada por
aqueles que participavam do seu processo de crião.
Além disso, é importante pensar que tanto a revista Manchete, como Realidade e
Ele Ela foram fruto de disputas dentro do campo da produção jornalística, onde as
editoras enfrentavam-se em lutas que tinham como alvo a primazia na produção de
sentido da realidade, para um blico leitor de classe média que crescia e se sofisticava
à medida em que avançavam os processos modernização e urbanização do país.
Entretanto, estas lutas e tensões que caracterizam o campo de produção
jornalística e que ditam o sentido das suas transformações, não se dão
independentemente dos fatores externos, tais como questões poticas, ecomicas e
sociais, uma vez que as editoras, ao lançarem suas revistas no mercado, fazem-no com
base em um espaço de possibilidades de produção que é diretamente influenciado por
aquilo que está acontecendo no mundo, em diversos aspectos, visando essencialmente o
lucro. Assim, por exemplo, as transformações comportamentais que marcaram a década
de 1960 definiram um amplo espaço de possibilidades no campo da produção
jornalística daquele momento, oferecendo uma gama de temas cuja abordagem
atenderia aos interesses ou à curiosidade de um novo público leitor que se constituía em
consonância com as transformações que estavam em curso na sociedade.
Mas é preciso estar atento para o fato de que a abordagem de polêmicas
relacionadas a costumes e comportamentos nas revistas de grande circulação não pode
ser entendida como um mero reflexo dos acontecimentos da época, mas como resultado
6
Ver CAPELATO, Maria Helena. Imprensa e História no Brasil. São Paulo: Contexto, 1998, p. 21.
90
de transformações que vinham se operando no campo da produção jornalística de
maneira mais ampla, que por sua vez, estava inserido no processo de modernização do
país. As lutas externas ao campo jornalístico e ao universo das revistas, de maneira mais
específica, não são exatamente a causa do aparecimento ou da permanência de títulos de
periódicos, mas o reforço no qual essas publicações irão encontrar os elementos que
lhes permitirão permanecer no páreo com as demais publicações nas bancas de revistas.
Em outras palavras, as revistas que circularam durante a década de 1960 o abordavam
questões comportamentais simplesmente em função de um suposto “compromisso com
os problemas do seu tempo”, mas porque a abordagem de tais temas atendia aos seus
interesses enquanto empresa capitalista que pretendia oferecer ao seu público leitor
aquilo que queria ler, sem deixar de observar ou negociar, entretanto, os limites
colocados pelo regime militar. Assim, por exemplo, o desenvolvimento acelerado da
sociedade urbano-industrial brasileira, naquela década, que levou à emergência de
segmentos modernos e mais intelectualizados, foi fator crucial para que a Editora Abril
lançasse no mercado de revistas, em 1966, uma fórmula totalmente inovadora como foi
a revista Realidade, que mesmo tendo sido uma experiência única no Brasil, em termos
de técnica, conteúdo e qualidade, não extrapolava os limites daquele momento no que se
refere a possibilidades de inovações e transformões na imprensa e, embora rompesse
com os parâmetros e paradigmas da produção jornalística do Brasil, não escapava dos
limites a que esse campo de produção estava circunscrito. Portanto, é importante ter em
mente que tudo o que se publica, por mais inovador ou transgressor que seja, está
restrito às possibilidades de produção de um determinado momento, e nesse sentido
pode-se dizer que a excepcionalidade de Realidade era algo que cabia no conjunto da
imprensa brasileira e no mercado de revistas do Brasil. O que a distinguiu dos demais
periódicos com os quais concorria era o fato de ter conseguido manipular, dar o devido
ajuste, a elementos que, na verdade, estavam disponíveis a todos que se dedicavam à
produção jornalística naquele momento, mas que ela soube adequar de maneira a
produzir algo que parecesse totalmente inovador naquele momento.
O que une essas três publicações, Manchete, Realidade e Ele Ela, é o fato de
terem se dedicado, entre outros, à abordagem de temas comportamentais, que, em
determinadas circunstâncias, desagradaram o regime militar por divulgarem imagens e
91
assuntos que estimulavam a licenciosidade e ofendiam a moral blica”.
7
Todavia,
como veremos nas páginas que se seguem, guardavam diferenças e especificidades
quanto aos caminhos que tomaram para tratar de tais questões. Antes, entretanto, é
preciso destacar que foram essas diferenças que permitiram que elas coexistissem no
mercado de revistas, na medida em que se definiam ao se opor às demais, ou ao tentar
suprir aquilo que consideravam insuficiente nas suas concorrentes.
2.1-De O Cruzeiro à Manchete, um pouco de tudo para todos, em imagens e cores.
“Para todos, alguma coisa é preparada”
(Theodor W.Adorno e Max Horkheimer, A indústria cultural: o
iluminismo como mistificação de massas, p. 204)
Durante os anos 1930, 40 e 50, reinou no mercado de revistas brasileiro O
Cruzeiro, publicação dos Diários Associados de Assis Chateaubriand, que ficou
consagrada como a “revista da família brasileira”, pois trazia um pouco de tudo para
todos, homens, mulheres, jovens ou adultos, sem se preocupar em atender às
preferências, interesses e estilo de um tipo específico de leitor, mas querendo agradar a
todos os gostos. Segundo uma pesquisa do Ibope realizada em 1950, a respeito da
“familia leitora” de O Cruzeiro, descobrimos que cada exemplar da revista encontrava
mais de 4 leitores dentro da mesma casa, dentre os quais homens, mulheres, crianças
menores e maiores de dez anos e empregados domésticos.
8
Inspirada no modelo da
revista ilustrada francesa Paris Match, que por sua vez seguia o padrão Life de revistas
de interesse geral, O Cruzeiro foi a pioneira da grande reportagem no Brasil, além de ter
introduzido no país o fotojornalismo, em que as imagens, outrora meras ilustrações,
passaram a ser valorizadas jornalisticamente pelo seu conteúdo informativo.
9
7
Informação Sigilosa, enviada do SNI ao SI/GAB e à DCDP, Referência: Doc. de Info. 054/40/AC/73,
versando sobre infiltração comunista no Jornal do Brasil. Data: 18/05/1973. Arquivo Nacional-Sede em
Brasília. Seção: Administração Geral. Série: Corresponncia Oficial. Subsérie: Informações Sigilosas.
8
Pesquisa sobre hábitos de compra e poder aquisitivo da família leitora de O Cruzeiro, São Paulo e Rio
de Janeiro, Nov-Dez/1950, Ibope, Pesquisas Especiais, 1951, vol. 10, Arquivo Edgar Leuenroth,
IFCH/UNICAMP. Apud MIRA, Maria Celeste. O leitor e a banca de revistas: a segmentação da cultura
no século XX. São Paulo: Olho d’Água, 2001.
9
A respeito da trajetória da revista O Cruzeiro e de como essa revista evoluiu no que se refere ao uso da
imagem, ver GAVA, José Estevam. Momento bossa nova: arte, cultura e representação sob os olhares da
revista O Cruzeiro. Tese de Doutorado em História. Assis, Faculdade de Ciências e Letras, Universidade
Estadual Paulista, 2003.
92
Entretanto, como vimos no capítulo I, os processos de modernização e
industrialização introduzidos no Brasil a partir de 1964 com a instalação e consolidação
do regime militar, repercutiram de maneira peculiar nos diversos setores culturais,
inclusive na imprensa, que durante esse período sofreu mudanças de grande
envergadura no sentido do aprimoramento técnico, empresarial e administrativo,
concomitante a um alargamento e diversificação do público consumidor e a uma
vertiginosa profissionalização e especialização dos jornalistas. Mais especificamente no
que se refere à indústria de revistas, ela dobrou sua produção entre 1960 e 1975,
10
tornando-se muito mais diversificada e especializada à medida que a indústria de bens
culturais se consolidava e que seus consumidores cresciam em número. Diante disso, O
Cruzeiro, que até então tinha como principal concorrente a popular revista Seleções,
11
além de alguns títulos do início do século XX que ainda resistiam, como Ilustração
Brasileira, Careta, A Cigarra, O Malho e A Revista da Semana, foi se tornando
ultrapassada, incapaz de se renovar para acompanhar todas as transformações daquela
década e de disputar a preferência dos leitores com as novas publicações mais
especializadas que iam despontando e se multiplicando no mercado editorial.
12
Em face dessas condições, em abril de 1952, a Editora Bloch lançou a revista
Manchete, que entrou no mercado disputando leitores com O Cruzeiro, mas logo se
destacando pelo cuidado que conferia ao seu aspecto visual e pela preocupação com a
produção e diagramação das imagens. Com uma fórmula jornalística que consistia em
20% de texto, 30% de títulos e espaços em branco e 50% de fotografia, além dos
crescentes investimentos em equipamentos gráficos, o projeto editorial de Manchete
oferecia ao grande público urbano uma linguagem acessível a todos, com ênfase nos
recursos fotográficos e na abordagem generalizada de temas mais modernos e
variados.
13
Sem estar circunscrita a seções permanentes de potica, economia ou
cultura, a cada número Manchete levava às bancas temas da atualidade, oferecendo ao
leitor uma visão panorâmica e superficial do que se passava no Brasil e no mundo.
É importante ressaltar que ela teve papel crucial enquanto órgão difusor das
ações do regime militar que visavam promover o desenvolvimento econômico,
10
Ver a tabela de crescimento do mercado de revistas na página 17.
11
MIRA, Maria Celeste. Op.cit. p. 25.
12
Idem, p. 84.
13
A respeito da trajetória da revista Manchete ver ANDRADE, Ana Maria e CARDOSO, JoLeandro
Rocha. Aconteceu, virou Manchete. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 21, n. 41, p. 243-264,
2001; e FARO, J. S. Realidade, 1966-1968. Tempo da reportagem na imprensa brasileira. Porto Alegre:
ULBRA/AGE, 1999.
93
tecnológico e industrial do país, prática que se sistematizou no governo do general
Médici, durante o qual a revista funcionou como uma espécie de órgão de propaganda
política do regime.
14
Um bom exemplo disso está num ensaio do repórter Murilo Melo
Filho, publicado na revista Manchete de 10 de janeiro de 1970, no qual ele faz um
balao dos anos da década de 1960 no Brasil e previsões “otimistas” para os anos 70,
no intuito de demonstrar que, antes do golpe, o Brasil vivia num estado de instabilidade
generalizada, amenizada a partir da intervenção dos militares na potica e à medida que
eles buscavam consolidar os “interesses gerais da nação” a partir do planejamento e da
intervenção do Estado na economia. Em meio a uma série de estatísticas, índices de
produção e outros tantos dados que comprovavam quantitativamente o sucesso da
política econômica do regime militar, ele afirmava que a década que se encerrava havia
sido “simplesmente terrível” e que era difícil compreender como o Brasil havia
conseguido sobreviver àqueles dez anos de aflições e angústias, durante os quais se
sucederam sete presidentes da Reblica: Juscelino, Jânio, Jango, Mazzili, Castelo,
Costa e Silva e Médici, dos quais, um deles havia renunciado, o outro sido deposto, dois
deles eram mortos e três cassados. Entretanto, após relatar minuciosamente o caos
administrativo dos anos 1960, o jornalista fez uma ressalva otimista: “A segunda
metade da década que agora termina transcorreu sob a espada de um movimento
revolucionário que lhe garantiu relativa estabilidade e segurança, permitindo que os
anos 70 comecem sob o signo da continuidade política e administrativa”.
15
Mesmo reconhecendo o caráter autoritário do regime, o repórter buscava exaltar
e comprovar que ele vinha garantindo segurança, estabilidade e altos índices de
crescimento para o país, além de ressaltar o seu sucesso no controle à eminente ameaça
do movimento comunista, que, embora estivesse retraído, dizia ele, ainda rondava o
nosso território, talvez a espera de um momento propício a um novo ataque:
A oposição, mesmo que o quisesse, não poderia opor-se em termos de uma combatividade
mais agressiva e contundente [ao regime]. O radicalismo perdeu o seu impulso. O próprio
terrorismo, com a morte de Marighela, parece ter refluído para as nascentes, a fim de
reorganizar suas fileiras e esperar que se recrie a atmosfera propícia a novas investidas.
16
14
A respeito do perfil ideológico da revista Manchete, do seu posicionamento neutro ou favorável às
ações e decisões governamentais bem como do seu papel enquanto órgão de propaganda política do
regime militar, ver: MARTINS, Ricardo Constante. Ditadura Militar e propaganda política: a revista
Manchete durante o governo Médici. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais, Centro de Educação e
Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, 1999.
15
FILHO, Murilo Melo. Quais os caminhos do Brasil. Manchete. Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.925, p.
16-17, 10 Jan. 1970.
16
Idem.
94
Além de ressaltar as “benfeitorias” dos governos militares, o jornalista também
apontava a necessidade de mantê-lo no poder, como forma de garantir a integridade da
nação diante das investidas bolcheviques e de preparar a sociedade para que pudesse
viver uma “democracia plena” com base numa economia sólida.
Outra característica marcante da revista Manchete era o sensacionalismo
empregado na abordagem de alguns temas relacionados a comportamentos e costumes,
expresso através de títulos intensos, flagrantes fotográficos (especialmente envolvendo
astros do cinema hollywoodiano) e imagens chocantes, ou ainda na discussão de tais
temas a partir de casos que envolviam o nome de celebridades, ou da apresentação do
enredo de peças e filmes que traziam a tona, às vezes de maneira caricata, questões
referentes à “nova moral que se delineava. No Brasil, a influência da cultura norte-
americana foi, sobretudo, cinematográfica, através dos filmes hollywoodianos e também
da especulação que as revistas faziam da vida íntima de seus astros, tornando-se ambos,
dessa forma, importantes veículos de novos ideais e valores. De acordo com Maria
Celeste Mira, as revistas nas quais figuravam os artistas de Hollywood, tais como
Manchete, foram responsáveis pelo que ela chama de “cinematografização do
cotidiano”, pois criavam um elo entre o cinema e o público ao trazerem estampadas em
suas capas e páginas o cotidiano de artistas que viravam figuras-modelo e cujos estilos
de vida deram origem a todo um universo de consumo voltado para beleza, moda,
saúde, decoração, conforto e bem estar.
17
Essas peculiaridades poderão ser melhor
observadas quando analisarmos a maneira como os periódicos selecionados para esta
pesquisa produziram os eventos e as discussões que marcaram as transformações
comportamentais que vieram à tona na década de 1960, bem como o tratamento que
cada um desses periódicos empregou na abordagem de tais temas.
Se por um lado Manchete era uma revista que satisfazia a um grande público de
classe média urbana,
18
as já mencionadas transformações que começaram a se processar
na sociedade a partir daquela década fizeram despontar no cenário brasileiro um novo
público de classe média alta, urbana, mais escolarizado, interessado em compreender de
maneira mais aprofundada as mudanças no país e no mundo e, para o qual, era preciso
preparar uma nova fórmula de periódico que lhes oferecesse um jornalismo
17
MIRA, Maria Celeste. Op. cit. p. 32.
18
É importante ressaltar que a revista Manchete circulou no mercado editorial desde 1952 até o ano 2000.
95
intelectualmente mais refinado e com maior profundidade textual.
19
2.2-Realidade: uma referência de qualidade para o jornalismo brasileiro
No vértice do furacão, a gente o percebe no momento o
“estrago” que estamos provocando. Parece que foi grande.
(Trecho da entrevista concedida por Mylton Severiano, via
correio eletrônico, em 12/06/07.)
Foi no intuito de explorar as necessidades desse novo blico leitor da classe
dia urbana-intelectualizada que, em abril de 1966, a Editora Abril lançou a revista
Realidade, uma publicação mensal que foi sucesso em todo o Brasil por abordar temas
da atualidade com maior profundidade, com uma linguagem textual e gráfica mais
sofisticada que as demais e que ultrapassava os limites da objetividade jornalística, que,
naquele momento, se mostrava insuficiente diante das inquietações intelectuais
características de alguns grupos que começaram a despontar na década de 1960.
20
Inovadora, tanto na escolha dos temas a serem tratados como na forma e estilo
jornalístico de seus artigos, Realidade tinha como proposta o rompimento com a
narrativa convencional e o emprego de recursos literários na narração de eventos
jornalísticos ou, simplesmente, não-ficcionais. Além disso, pretendia oferecer qualidade
editorial numa revista de assuntos gerais que situasse seus leitores no âmbito dos
problemas de seu tempo, não de forma acanhada e superficial, mas contundente e
instigante.
21
Como disse Victor Civita, primeiro editor e diretor da revista Realidade,
na apresentação do seu primeiro número, aquela seria “a revista dos homens e das
mulheres inteligentes que querem saber mais a respeito de tudo”.
22
A receita do sucesso de Realidade esteve na sua sensibilidade e meticulosidade
em retratar as questões que estavam em voga naquele momento, fosse no campo da arte,
economia, potica, saúde, ciência, esportes, humor ou comportamento, buscando, além
de informar, apresentar pontos de vista diferenciados acerca das questões abordadas e
estimular a reflexão dos leitores.
19
FARO, J. S. Op. cit. Ver também LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas Ampliadas. O Livro-Reportagem
como extensão do Jornalismo e da Literatura. Campinas: UNICAMP, 1993.
20
FARO, J. S. Op. cit. p. 50-51.
21
A respeito das características da revista Realidade, ver MORAES, Letícia Nunes de es. A dança
efêmera dos leitores missivistas na revista Realidade (1966-1968). Dissertação de Mestrado em História
Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2001, p. 33-49; e
FARO, J. S. Op. cit.
22
Carta do Editor. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n.1, p. 01, Abr. 1966.
96
De acordo com o testemunho de Audálio Dantas, repórter e editor da revista
Realidade, essa publicação
refletiu um momento da vida do país, em que, mesmo sob uma ditadura, havia reflexos do
que foi um grande momento de cultura e afirmação nacional. Desde os anos 50 até o
começo de 60, música, cinema, [viveram] momentos de grande criatividade que foram
assassinados em 64. A revista surgiu porque havia uma criatividade inibida. O momento
dela era aquele. Hoje não existe espaço para uma revista como aquela. Ela foi inovadora,
desfez tabus na sociedade brasileira, trouxe grandes assuntos, botou dedo em feridas. Do
ponto de vista jornalístico, Realidade reuniu o que de melhor se produziu como texto
jornalístico naquela fase até o início dos anos 70, principalmente como revista de
reportagem.
23
Além do legado de qualidade deixado por Realidade, chamo a atenção do leitor
para o interesse que, ainda hoje, a revista desperta entre os pesquisadores de diversas
áreas de conhecimento, sejam cientistas sociais, jornalistas ou historiadores, que mais
de quarenta anos após seu lançamento ainda procuram compreender melhor este
episódio” da história do jornalismo brasileiro.
São numerosas as produções acadêmicas que se dedicaram inteiramente, ou pelo
menos em parte, ao estudo de Realidade, dentre as quais destaco os trabalhos dos
jornalistas Terezinha Fátima Fernandes, Jorge Andrade: repórter Asmodeu (Leitura do
discurso jornalístico do autor na revista Realidade) (1988), Bernardo Kucinski,
Jornalistas e revolucionários. Nos tempos da imprensa alternativa (1991); Edvaldo
Pereira Lima, Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e
da literatura (1993); José Salvador Faro, Realidade, 1966-1968: tempo da reportagem
na imprensa brasileira (1996); e o mais recentemente lançado, Leituras da revista
Realidade, de Letícia Nunes de Moraes (2007). Em todos eles há um esforço no sentido
de reconstruir a trajetória da revista, especialmente a partir do relato dos jornalistas que
fizeram parte da redação de Realidade, de onde emergem pontos de referência em torno
dos quais vem sendo estruturada a memória que esse grupo vem construindo da revista
ao longo dos anos e, a partir dos quais, surgem inúmeras contradições. Dentre os marcos
que constituem a memória coletiva daqueles que hoje se dizem “viúvos” da “falecida”
Realidade,
24
destacam-se o momento de elaboração e lançamento da revista, a sua fase
áurea entre os anos de 1966 e 1968 e o que ficou conhecido como a “primeira morte” da
revista, em 1968, quando sofreu inúmeras modificações de forma e conteúdo, até deixar
de circular definitivamente em 1976. Esses diferentes momentos constituem pontos de
23
FARO, J. S. Op. cit. p. 245.
24
Tanto José Carlos Mao como Mylton Severiano nomeiam-se desta maneira em suas entrevistas,
concedidas por ocasião desta pesquisa.
97
intercessão entre os depoimentos de todos aqueles que fizeram parte da equipe da
revista e são uma espécie de marco, que balizam as diversas reconstruções da sua
trajetória dentro da história da imprensa brasileira.
Ao falarem de suas experiências na redação de Realidade, percebemos que a
memória coletiva que está em constante processo de elaboração por esses jornalistas
fundamenta e reforça a identidade de cada um deles, bem como as fronteiras que os
diferenciam dos demais jornalistas da época que o pertenceram ao projeto Realidade
e que, portanto, não compartilham daquelas memórias que são parte constituinte da
identidade dos indivíduos que fizeram parte daquele grupo. Embora ligados entre si
pelos elementos que comem a memória que compartilham, percebe-se que esta vem
sendo constantemente reorganizada em função dos interesses e preocupações do grupo
que representa, bem como da imagem a que esse grupo quer estar associado em
diferentes momentos.
Por exemplo, no que se refere ao processo de elaboração da revista Realidade e
ao seu lançamento nas bancas em abril de 1966, percebe-se nos depoimentos o intuito
de demonstrar que a revista, embora feita com base em modelos internacionais, como a
Panorama argentina ou a francesa Realités, foi uma receita peculiar, única,
“brasileirísima”, fruto da “intuição” dos jornalistas que estiveram envolvidos desde
meados de 1965 no projeto “Interesse Geral” da Abril, cuja meta era lançar uma revista
de interesses gerais que preenchesse a carência desse tipo de revista no mercado
editorial brasileiro. É curioso o fato de que além de exaltar a singularidade e
autenticidade da revista, os “viúvos” da Realidade procuram, ainda hoje, afirmar que a
idéia da revista surgiu de forma “inesperada” e “surpreendente” entre aqueles que
algum tempo, dentro do projeto IG (Interesse Geral), vinham tentando encontrar a
fórmula ideal para uma revista desse gênero.
José Carlos Marão, um dos jornalistas que permaneceu por mais tempo entre os
quadros da revista Realidade, numa resenha sobre o livro de J. S. Faro que menciono
neste trabalho, faz a seguinte afirmação:
Realidade foi quase um improviso. A Editora Abril, em setembro de 1965, estava pronta
para lançar uma revista semanal "de interesse geral" que seria encartada nos principais
jornais do país. Contratou uma equipe inteira. Entre outubro e novembro, um dos grandes
jornais rompeu o acordo e o projeto foi abortado. Mas já estávamos todos lá, no Projeto IG.
Foi uma correria para "salvar" os empregos e a Abril, de seu lado, precisava de mais títulos.
Surgiu a idéia, na empresa, de uma revista mensal, tipo Fortune ou Realités. O projeto, a
98
pauta e dois números "zero" foram feitos pela redação. Só então veio a pesquisa, com base
no "zero", que confirmou a intuição da equipe.
25
A partir desse depoimento temos a impressão de que a revista Realidade foi a
tábua de salvação da Editora Abril diante de uma situação de crise que exigia uma
solução rápida e eficaz por parte da equipe do projeto IG. Entretanto, através do
depoimento de outros jornalistas que estiveram envolvidos no episódio, verificamos que
alguns elementos da Editora Abril vinham traçando esboços do que iria ganhar vida
através da revista Realidade, e que o epidio do fracasso das negociações entre a
Editora Abril e os principais jornais do Brasil que iriam distribuir, semanalmente, o
encarte com uma pequena revista de interesses gerais, serviu, na verdade, como uma
ocasião propícia para que Victor Civita fosse persuadido a lançar diretamente nas
bancas uma revista mensal com aquele tipo de conteúdo.
No ABI On-Line, Jornal da Associação Brasileira de Imprensa, de 20 de abril de
2007, foi publicada uma breve entrevista com o jornalista Paulo Patarra, que foi o
Editor-chefe da revista Realidade entre os anos de 1966 e 1968, ano em que foi
“inesperadamente” promovido ao cargo de Diretor de Projetos Especiais da Abril, fato
que, como veremos adiante, teve graves repercussões na redação e na trajetória da
revista. Nessa entrevista ele contou que a revista Quatro Rodas, da qual foi diretor,
havia funcionado como uma espécie de ensaio para a Realidade e que, tanto ele como
Mino Carta, estiveram na redação de Quatro Rodas de passagem, à espera do
lançamento de uma revista de interesse geral pela Abril.
26
Num outro depoimento, Paulo Patarra contou que foi ele quem “convenceu
Victor Civita, após o fracasso do convênio com os jornais, de que havia um “nicho
escancarado no mercado editorial para uma revista de interesse geral, e revelou que
nessa ocasião já tinha em mente um modelo para essa nova publicação, baseado no seu
“faro e “intuição de jornalista e que apenas aguardava uma boa oportunidade para
lançar mão de sua iia:
A Abril vinha crescendo tanto e o rápido, e eram tantas as brechas no mercado de
revistas, que apostei firme quando o Victor Civita me perguntou, depois que a jogada
fracassou:
“E agora, Patarrinha, o que fazemos?”
Estávamos no nono andar, na sala dele, que era defendida por outra, menor, onde ficavam
de guarda duas secretárias. Para o Victor Civita, eu virava Patarrinha em duas ocasiões:
quando acertava ou quando tudo estava na merda. Nem titubeei:
25
MARÃO, José Carlos. Realidade por dentro. Disponível em:
http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/jd201099.htm.
26
PATARRA Paulo. “Jornalista tem que saber ler. ABI On-Line, Abr. 2007. Entrevista concedida a Gil
Campos. Disponível em: www.abi.org.br.
99
“Fazemos uma revista mensal. De reportagens.”
Revista mensal de reportagens? Ninguém fazia isso no mundo! Mas como achava que
Victor Civita esperava o palpite de uma revista semanal, os investimentos e eventuais
prejuízos, de saída, ficariam divididos por quatro.
Ponto meu, ponto da redação. Saí da sala do Victor Civita e fui contar vantagem cinco
andares acima, no décimo-quarto:
“Vamos fazer uma revista mensal de reportagens. Que nem esta aqui” e exibia uma
Panorama Argentina, editada pela Abril de Buenos Aires, sob comando de Cesar Civita,
irmão do Victor Civita, que me havia aconselhado o modelo.
A Panorama dos argentinos, inspirada na italiana, era feia e chata. Artigos e mais artigos
escondiam uma que outra reportagem. Lembro-me dela como uma revista branca. Ou em
branco. Nunca tinha lido mais do que os títulos de algumas daquelas reportagens. Mas,
como eu e nossa turma não sabíamos fazer artigos... Em sua sala, o Victor Civita me havia
dito:
“Precisamos vender cem mil exemplares!”
Era mole, me pareceu de cara. A Quatro Rodas brasileira, revista mensal dirigida ao
automóvel e ao turismo, atingia essa marca, impressa na página 3 de cada edição, junto
com sumário e expediente.
27
Mesmo admitindo em seu depoimento que a revista Panorama tenha servido de
modelo para Realidade, as críticas quanto ao seu formato, diagramação e conteúdo, são
demonstrativas do intuito do jornalista em ressaltar o caráter singular, inédito e nacional
de Realidade, mesmo em relação àqueles títulos internacionais que teriam servido de
inspiração. Até o New Journalism norte-americano, apontado por vários estudiosos
como o principal modelo a influenciar o estilo jornalístico de Realidade,
28
é refutado
tanto por José Carlos Marão como por Mylton Severiano, que recusam a pecha de terem
copiado a fórmula norte-americana, que é claro, diz Mylton Severiano, conheciam,
contudo, souberam fazer seu próprio jornalismo, brasileiríssimo.
29
Quanto aos efeitos que o lançamento de Realidade teria provocado no mercado
de revistas brasileiro, Carlos Marão nos diz que foi algo fantástico
30
e Mylton Severiano
endossa, contando dois episódios que para ele ilustram muito bem o impacto que a
revista havia causado, tanto no mercado editorial brasileiro, como entre os leitores.
O primeiro caso se refere às principais revistas semanais da época, O Cruzeiro e
Manchete, que, segundo ele, tentavam copiar as pautas de Realidade, tendo havido na
época, inclusive, a suspeita de que Manchete andava espionando a redação de
27
Esse trecho da narrativa de Paulo Patarra nos foi concedido generosamente pelo Jornalista Mylton
Severiano dos Santos, que foi editor de texto da revista Realidade e que, atualmente, vem coletando
depoimentos de viúvos” da “falecida” para compor um livro onde irá falar do cotidiano na redação de
Realidade.
28
Os citados Edvaldo Pereira Lima, José Salvador Faro, Letícia Nunes de Góes Moraes e Adalberto
Leister Filho, em seus trabalhos dedicados ao estudo da revista Realidade, consideram que a revista foi
diretamente influenciada pelo New Journalism norte-americano, um tipo de jornalismo iniciado nos EUA
pelo jornalista Tom Wolfe, que dentre outros itens, fazia uso de recursos literários para narrar eventos
jornalísticos.
29
Entrevista concedida por Mylton Severiano Silva, via correio eletrônico, em 12 Jun. 2007.
30
Entrevista concedida por José Carlos Marão, via correio eletrônico, em 2007.
100
Realidade. Para obter a confirmação, ele conta que armaram a seguinte emboscada:
preparam uma capa falsa e deixaram-na exposta na redação e na gráfica. E qual a
surpresa? Na semana seguinte Manchete saiu nas bancas com um dos assuntos que
supostamente estaria em Realidade.
O segundo caso narrado por Mylton Severiano, ilustra o impacto que Realidade
causou sobre os leitores. Ele recorda que quando a redação da revista ficava no centro
de São Paulo, no dia em que a revista ia às bancas, ele saía ora com Marão, ora com
Luiz Fernando Mercadante e outros, pelas ruas vizinhas e pela Praça da República,
pra ver gente comprando Realidade que nem pãozinho quente”, o que lhe causava uma
imensa alegria.
31
Tais depoimentos reforçam cada vez mais o mito de que a revista Realidade foi
algo excepcional diante das condições em que foi lançada, levando autores como J. S.
Faro a afirmar que Realidade “extrapolou” os limites das transformações que se
verificavam na imprensa e se tornou “um fenômeno cultural de dimensões mais
amplas”.
32
Entretanto, como vimos no item anterior, a revista Realidade estava inserida
no mesmo espaço de possibilidades de produção jornalística que as demais publicações
da época, no qual estavam presentes uma série de elementos e coordenadas, que faziam
com que a cada uma dessas publicações, por mais distintas que fossem suas propostas
editoriais, estivessem situadas umas em relação às outras, já que todas tinham à sua
disposição o mesmo universo de possibilidades, cuja apropriação era feita conforme a
influência exercida pelas condições externas ao campo de produção jornalística, tais
como os interesses poticos, econômicos e ideológicos de cada uma delas. Nesse
sentido, percebe-se que Realidade não extrapolou limites nem esteve desvinculada da
experiência jornalística do seu tempo. Tanto é que, mesmo alegando que estivessem
muito acima da qualidade dos concorrentes, os jornalistas entrevistados confirmam que
nas reuniões de pauta de Realidade as outras revistas eram objeto de discussão.
33
Uma outra questão que vem merecendo a atenção dos que se dedicam a estudar a
revista e que é sempre pontuada e ressaltada nas falas dos repórteres que fizeram parte
de Realidade, diz respeito aos ditos “anos áureos da revista”, que durou de 1966 a 1968
e se caracterizaram especialmente pelos altos índices de tiragem, chegando a quase
31
Entrevista concedida por Mylton Severiano, via correio eletrônico, em 12 Jun. 2007.
32
FARO, J. S. Op. cit. p. 10.
33
Entrevista concedida por Mylton Severiano, via correio eletrônico, em 12 Jun. 2007 e por José Carlos
Marão, via correio eletrônico, em 2007.
101
500.000 exemplares por mês, e pela abordagem contundente e aprofundada de temas
polêmicos, que, ao contrário do que afirma J.S. Faro,
34
não eram novidade para o
público leitor, que podia encontrar a discussão de temáticas relacionadas a sexualidade,
comportamento e costumes em outros periódicos da época, que entretanto, as
abordavam de maneiras diferentes e a partir de outras perspectivas.
José Hamilton Ribeiro, famoso correspondente de guerra brasileiro que perdeu
uma das pernas ao pisar numa mina, em 1968, enquanto cobria a guerra do Vietnã para
a revista Realidade, disse num depoimento a J. S. Faro que a revista encantou o Brasil
desde o primeiro número e que o seu sucesso surpreendeu a própria Editora Abril, que
estava acostumada a “períodos de amaciamento e manutenção” até que uma nova
publicação começasse a dar lucro. Mas com Realidade, segundo Hamilton, havia sido
diferente. A massa de anúncios e a procura nas bancas surgiram “como incêndio e
cresciam a cada mês e quem lucrou com isso foi a redação da revista, pois num acordo
informal com a Editora antes do lançamento da revista, estabeleceram que a cada 100
mil exemplares vendidos receberiam aumento de salário.
35
Ele diz que, em pouco
tempo, aquela já era a equipe mais bem paga da imprensa brasileira,
isso sem mencionar
as fortunas que eram gastas com passagens e diárias de hotéis para mandar os repórteres
aos lugares mais remotos, do Brasil e do mundo, pelo tempo que fosse necessário, para
preparar suas grandes reportagens; além da grande quantidade de uísque Old Eight,
refrigerante e salgadinhos que eram consumidos para embalar” a primeira etapa das
reuniões de pauta prévia, que se realizavam na casa de um deles, onde todos
participavam e tinham suas sugestões anotadas, “sem censura”, pelos “abstêmios”
adeptos do guaraná, num verdadeiro clima de happening, como recorda Audálio Dantas,
ex-repórter e editor de Realidade já na fase de decadência da revista.
36
No dia seguinte,
as anotações da véspera eram “peneiradas” por Paulo Patarra (redator-chefe) e Sérgio de
Souza (editor de texto)e levadas à Robert Civita, com o qual realizavam a segunda etapa
da reunião, onde tentavam conciliar as sugestões vindas da redação à “verdade positiva”
de Civita,
37
que consistia na sua própria receita editorial, segundo a qual Realidade
deveria levar ao leitor reportagens edificantes, que garantissem o equilíbrio da revista
no sentido de que não fosse carregada apenas de “verdades negativas” a respeito das
34
FARO, J. S. Op. cit. p. 28.
35
Idem, p. 87.
36
Idem, p. 245.
37
Entrevista concedida por Mylton Severiano, via correio eletrônico, em 12 Jun. 2007.
102
mazelas e pessimismos que afligiam o país.
38
Nesse sentido, era preciso tentar encaixar
numa mesma pauta humor, esporte, sexo, educação, religião e um ou outro perfil do
general de plantão”.
39
De acordo com os relatos, a esperteza de Paulo Patarra não esteve apenas na
espera por uma boa ocasião para apresentar a Victor Civita a idéia de uma revista
mensal de interesse geral, cuja viabilidade vinha sendo estudada e especulada por ele
desde os tempos em que era diretor de Quatro Rodas e que, mais tarde, viria se tornar a
galinha dos ovos de ouro” da Abril. Como o próprio Patarra afirma, o grande pulo-do-
gato foi ele ter indicado Robert Civita para comandar a revista. Com isso, nunca faltou
dinheiro, nem para a revista, nem para eles, nem para qualquer doida matéria que
nascesse das reuniões de pauta”.
40
Para Mylton Severiano, a jogada de Paulo Patarra foi
espetacular, “Esperteza macunaímica: trouxe para o nosso lado o filho do dono”.
41
E assim se sucedem os depoimentos dos jornalistas que pertenceram ao núcleo
inicial de Realidade, na fase áurea da revista, exaltando o clima de camaradagem,
cumplicidade e afetividade, naquela redação que havia se tornado um verdadeiro antro
de amigos íntimos e fraternos”, incluindo o filho do dono, Robert Civita, que ao mesmo
tempo em que tentava “puxar a brasa para a sardinha da empresa”, não deixava de ouvir
e atender às reivindicações da equipe que levava prestígio e dinheiro para sua empresa.
Além dele, Paulo Patarra e Sérgio de Souza, que foi quem inaugurou no Brasil, na
redação de Realidade, o cargo de editor-de-texto, lideravam e coordenavam aquele
“bando de sonhadores” com entusiasmo, privilegiando, segundo os relatos, o esrito
coletivo e a harmonia. No número 10, de janeiro de 1967, em uma edição especial
dedicada às mulheres, Roberto Civita descreveu esse clima de amizade, cumplicidade e
comprometimento da equipe em desvendar “novas realidades” no editorial de abertura
da revista, onde ele dizia ao leitor:
Seis meses atrás, em longa conversa ao pé da lareira, numa noite de inverno, comamos a
discutir a posição e a importância da mulher em nosso país. Falamos da revolução tranqüila
e necessária mas nem por isso menos dramática que a mulher brasileira estava
realizando. E decidimos dedicar uma edição especial de REALIDADE ao que ela é, ao que
faz, ao que pensa e ao que quer.
A partir daquela conversa informal e aconchegante, ao da lareira, os
jornalistas de Realidade saíram em campo e deram início a uma exaustiva jornada, que,
38
MORAES, Leticia Nunes de Góes. Op. cit. , p. 62.
39
Entrevista concedida por Mylton Severiano, via correio eletrônico, em 12 Jun. 2007.
40
PATARRA Paulo. “Jornalista tem que saber ler”. ABI On-Line, abr. 2007. Entrevista concedida a Gil
Campos. Disponível em: www.abi.org.br.
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Entrevista concedida por Mylton Severiano, via correio eletrônico, em 12 Jun. 2007.
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segundo Roberto Civita, também foi uma corrida contra o tempo, certamente contando
com ajuda de recursos financeiros que possibilitaram as seguintes realizações:
Como primeiro passo, levamos quase três meses realizando uma grande pesquisa nacional.
Entrevistamos 1.200 mulheres de todos os tipos, idades e mentalidades de Pernambuco ao
Rio Grande do Sul. Tabulamos mais de cem mil respostas. E nas páginas 20 a 28
orgulhamo-nos de apresentar as conclusões do maior estudo no gênero jamais realizado no
Brasil.
Simultaneamente, três equipes saíram de viagem. Encarregados de procurar uma
reportagem sobre o trabalho pioneiro das novas” freiras, Luiz Fernando Mercadante e
Geraldo Mori voaram antes para o Araguaia, depois para cidadezinhas empoeiradas de
quatro Estados do Norte e Nordeste, Roberto Freire e David Zing foram morar em Salvador
a fim de realizar o perfil de uma típica e-de-santo. E Narciso Kalili e Cláudia Andajur
passaram quase 20 dias no Rio Grande do Sul à procura de uma parteira.
E o périplo dos repórteres de Realidade, engajados em mostrar aos seus leitores
o que as mulheres já haviam feito e o mais que ainda iriam fazer, não terminava por .
No Rio, Alessandro Porro buscava entre dezenas de cariocas famosas a nossa Ingrid
Thulin brasileira; o fotógrafo lson Di Rago saiu à procura de uma foto que
representasse o “Amor Materno” e Paulo Henrique Amorin entrevistava centenas de
universitárias, para no fim, produzir uma reportagem tão grande que não coube naquela
edição. Também foram convidadas três mulheres, para que dessem sua contribuição
àquela edão: a jornalista Carmem da Silva, a terapeuta Gilda Grillo e Daisy Carta. Em
São Paulo, Carlos Azevedo e Luygi Mamprim foram à procura de alguém que fosse
exemplo do sucesso que a mulher pode ter quando sabe trabalhar”. Já Carlos Marão
passou três semanas conversando com mulheres desquitadas, enquanto Eduardo Barreto
e Jaime Figuerola estudavam num curso intensivo de medicina e biologia, para ao final
poderem escrever a reportagem “Ela é assim”.
Num trecho do seu depoimento a este trabalho, Mylton Severiamo diz que
Ali nasceram namoros, que renderam casamentos com filhos, e amizades que nunca mais se
desfizeram. Octavia Yamashita, secretária do Robert, namorou o chefe de Arte, Eduardo
Barreto, durante 18 anos – e ele era casado... Sérgio de Souza, também casado, futuro editor
da Caros Amigos, apaixonou-se pela secretária, futura repórter e editora competentíssima
Lana Novikowa, casaram, tiveram três filhas. rgio será para sempre um grande amigo
meu. Assim como Marão; o falecido João Antônio (1996); Hamilton Ribeiro; Carlos
Azevedo; Edu Barreto (2006); Hamilton Almeida Filho, o Haf (1993); Luiz Fernando
Mercadante; Eurico Andrade (2006); Roberto Freire; o fotógrafo Luigi Mamprim, também
falecido, não me lembro a data. Praticamente todos.
42
Isso demonstra algo bastante significativo da maneira como os ex-Realidade
vêm fazendo o enquadramento da memória da revista, no sentido de que mesmo tendo
42
Entrevista concedida por Mylton Severiano, via correio eletrônico, em 12 Jun. 2007.
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sido extinta de forma tão prematura, se mantém viva até hoje, através dos diversos laços
de amor, de amizade ou de admiração que unem aqueles que pertenceram especialmente
à sua primeira fase, e por ser um lugar onde, até hoje, cada um deles se reconhecem, se
definem e se diferenciam dos demais colegas de profissão, que na época não
compartilharam a experiência jornalística daquela redação e que, hoje em dia, também
o compartilham da memória coletiva dos que pertenceram àquele grupo.
Em uma fórmula simples e bem humorada, Mylton Severiano, ou Myltainho,
como costuma ser chamado pelos colegas dos tempos de Realidade, explicou a razão do
sucesso da revista entre os anos de 1966 e 1968: “Passarinho canta, gato mia, escritor
escreve e jornalista conta de seu tempo. E ele afirma ainda que foi nesse intuito que
aquela redação procurou entender sua época, fazer dos temas comportamentais a sua
praia e compensar eventuais falhas de atualização com a profundidade de suas
matérias.
43
Além disso, ele diz que a equipe de Realidade conseguiu perceber que
naqueles seus três primeiros anos de vida havia as condições necessárias para fazer um
jornalismo mais ousado, tanto no que se referia à temática das reportagens como à
estrutura do texto e técnica narrativa, levando aos leitores a discussão contundente de
temas “perigosos” ou polêmicos através de textos fluidos, densos, atraentes e que
tocavam a sua sensibilidade.
Entretanto, na bibliografia acerca da revista, bem como nos diversos
depoimentos daqueles que compuseram a equipe de Realidade, percebemos que mais do
que ousada, a revista é caracterizada como “transgressora” da ordem e da moral
vigentes, pelo olhar que lançava sobre o universo temático que abordava, tanto político
como comportamental.
No livro Jornalistas e revolucionários, Bernardo Kucinski afirma que a revista
Realidade, por sua natureza e concepção, esteve na origem da imprensa que nos anos
43
Ao mencionar as eventuais falhas de atualização da revista, me refiro a um dos itens que o próprio
Paulo Patarra incluiu num projeto que contém as idéias iniciais para a revista mensal que propunha a
Victor Civita, do qual vale destacar o seguinte trecho: “1)revista mensal com muita cor e papel bom; 2) é
de classe, de peso, funcionando como ápice da pirâmide de revistas da Abril; 3) para a Editora, a revista é
cartão de visita, bandeira, prova de sua capacidade de bem editar; 4) a revista deve trazer prestígio; 5)é de
interesse geral, mais masculina que feminina no relacionar e tratar assuntos. Melhor, é revista masculina
porque não feminina; 6) muita mulher precisa ser ganha pela revista; 7)prestígio se consegue com a
escolha dos assuntos, com a qualidade do texto e da apresentação; 8) a receita o é a atualidade; 9)a
revista vai precisar equilibrar texto e ilustração, não pode ser revista de texto ou ilustração; 10) o que
deve ser a revista é função direta de duas coisas: a) necessidade e possibilidade da Editora; b) necessidade
e possibilidade dos leitores.”
Trechos deste projeto foram publicados em: MATIUSSI, Dante. Paulinho Patarra, nosso guru. Imprensa,
Abr. 1994.
105
1970 foi a portadora de um estilo de “resistência” à ditadura militar, sendo ainda a
precursora de duas vertentes que formaram as bases da imprensa alternativa: uma
existencial e outra potica. Além disso, o autor afirma que Realidade, mesmo tendo
pertencido ao grupo empresarial da Editora Abril, funcionou internamente como uma
área de concentraçãode parte da militância de esquerda, da qual fizeram parte alguns
de seus jornalistas, como era o caso de Paulo Patarra, que pertencia ao Partido
Comunista, sendo, portanto, um espaço através do qual os membros dessas
organizações poticas puderam ganhar certa organicidade e divulgar suas idéias e
valores.
44
Nesse mesmo sentido, a tese do jornalista Jo Salvador Faro, em Realidade,
1966-1968: tempo da reportagem na imprensa brasileira, é de que a revista polemizou
todo o universo simbólico conservador que povoava a moral cotidiana das classes
dias urbanas brasileiras”, transgredindo, portanto, a convenção estabelecida e
contrapondo-se ao discurso ético-potico através do qual o Estado buscava se legitimar
perante a sociedade. Após ter analisado as matérias sobre sexualidade, juventude,
família e mulher, que foram publicadas em Realidade entre os anos de 1966 e 1976, é
inevitável concordar com o autor quando ele afirma que entre os anos de 1966 e 1968
Realidade foi uma espécie de “pólo gerador de polêmica e de inquietação cultural” por
ter dado ressonância aos novos padrões de comportamento da sociedade diante do
acelerado processo de modernização pelo qual estava passando. Entretanto,
discordamos do autor quando ele passa a afirmar que a revista teria feito parte de um
“movimento transgressor” que escapou à cooptação da ordem conservadora, sendo
necessário, portanto, para melhor compreender análises como a dele e de Kucinski,
levar em conta algumas questões relativas à memória que se quer constituir a respeito da
revista, dentro do panorama da ditadura militar, enquanto um foco de resistência, tima
do seu ato mais autoritário e espúrio: o AI-5.
45
Ao falar do surgimento da revista no mercado editorial brasileiro, Milton Coelho
da Graça, que foi repórter e diretor da revista Realidade, conta que no momento em que
a revista foi lançada, quando o Brasil vivia sob o governo do general Castelo Branco
44
KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários. Nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo:
Scritta Editorial, 1991.
45
FARO, J. S. Op. cit.
106
Robert Civita achava que havia espaço para uma publicação como aquela, “contestatória
dos costumes” e formada por uma equipe em que todo o pessoal era de esquerda.
46
Em todos os depoimentos daqueles que fizeram parte da primeira equipe de
Realidade é possível depreender essa idéia de que a revista foi, à sua época, um
instrumento de transformação social que, certamente, iria despertar, mais cedo ou mais
tarde, a ira do regime conservador e moralista. Woile Guimarães, por exemplo, que foi
secretário-gráfico e secretário de redação de Realidade, diz:
Sem exageros, a revista mudou o comportamento do brasileiro. Suas abordagens do sexo,
corajosas, sem sensacionalismo, destruíram muitos tabus e foram seguidas por revistas
semanais, que chegaram a se descaracterizar para também conseguir leitores.
47
Carlos Marão, assumindo certo grau de presunção, afirma que do seu ponto de
vista a revista teria sido responsável, em boa parte, pela divulgação dos novos padrões
comportamentais dos anos 60, sendo as matérias ali publicadas, simultaneamente,
conseqüência e veículo das novas idéias.
48
Mas quando questionado a respeito do
caráter transgressor que geralmente é atribuído à revista, ele faz a seguinte avaliação:
Não, não foi transgressora. Nem mesmo avançada em alguns casos”.
49
Aqui poderíamos acrescentar ainda um trecho da entrevista com Myltainho em
que ele diz o seguinte: A gente procurava abordar os temas perigosos’ no fio da
navalha, sem cutucar a onça com vara curta. Em geral, o Robert nos convencia a dosar a
fórmula de cada número”.
50
Isso nos leva a refletir a respeito da influência que as preocupações e interesses
do presente exercem sobre o processo através do qual um determinado grupo elabora,
reelabora e transmite suas memórias.
Entretanto, para que se possa compreender melhor como vem se dando o
processo de construção de memórias acerca da trajetória da revista Realidade, é
necessário inseri-lo dentro de um quadro mais amplo, relativo às constantes redefinições
que vem sendo efetuadas no campo das memórias relativas aos anos de ditadura militar.
De acordo com Daniel Aarão Reis, ao longo do processo de abertura política e mesmo
após o restabelecimento da democracia no Brasil, a palavra “resistência” virou um mote,
havendo uma espécie de sentimento difuso entre os diversos setores da sociedade no
46
GRAÇA, Milton Coelho da. Comunista, Graças a Deus. Entrevista concedida a Cláudia Merquior e
Raphael Martins, disponível em: http://www.facha.edu.br/publicacoes/jornallab/2004/marco/Pag12.pdf.
47
FARO, J. S. Op. cit. p. 88.
48
Entrevista concedida por José Carlos Marão, via correio eletrônico, em 2007.
49
Idem.
50
Entrevista concedida por Mylton Severiano, via correio eletrônico, em 12 Jun. 2007.
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sentido de manifestar uma longínqua convicção democrática e de definir posições entre
aqueles que, de alguma forma, teriam resistido à ditadura.
Dessa forma, entendemos que as primeiras interpretações que atribuíram à
revista Realidade um sentido de transgressão e aos seus jornalistas um exacerbado grau
de autonomia em relação á direção da revista, devem ser inseridas dentro desse primeiro
momento de construção de memórias, em que estar associado à idéia de transgressão,
subversão, ou “resistência” era algo enaltecedor e gratificante, especialmente se tratando
de um periódico que fazia parte de uma empresa, cujas relações “amistosas" com o
regime militar muitas vezes foram colocadas em questão. Atualmente, entretanto,
percebe-se um maior senso crítico, tanto por parte dos que estudam a revista como
daqueles que dela participaram, ainda que a iia de ter sido um periódico
revolucionário, que transformou a vida dos seus leitores e se tornou uma “lenda viva”
na história do jornalismo brasileiro ainda esteja presente em muitos depoimentos. Isso,
de toda forma, vem confirmar a idéia de que a memória é parte da identidade daqueles
que a compartilham, transformando-se e adaptando-se de forma camaleônica, sempre no
sentido de atender aos seus interesses e enaltecer o seu passado.
Em setembro de 1966, aqueles que abriram a sexta edição da revista Realidade
deram de cara com um editorial que trazia as seguintes palavras:
Neste número, Realidade ia concluir a publicação da grande pesquisa focalizando o que os
jovens pensam, fazem e falam a respeito de sexo. Poucos dias antes da impressão da
segunda parte de A juventude diante do sexo, entretanto, recebemos uma advertência do
Exmo. Sr. Alberto Cavalcanti de Gusmão, Juiz de menores da Guanabara, comunicando-
nos que apreenderia a edição, caso publicássemos a conclusão da pesquisa. Na opinião do
Juiz, o artigo era “obsceno e chocante”. (...) Resolvemos suspender temporariamente a
publicação da parte final do trabalho, a que os Tribunais Superiores se pronunciem a
respeito.
51
Ao falar de como a redação da revista reagiu diante desse episódio, Paulo
Patarra rompe com o discurso de que aquela redação se comportava de maneira
independente e autônoma em relação aos interesses e ao posicionamento político da
empresa, bem como com a idéia de que a revista teria sido um foco de resistência ao
autoritarismo e conservadorismo moral e a acusa de ter se acovardado diante da
possibilidade de enfrentar o regime e, assim, desmascarado a prática de censura:
Tribunais Superiores! Não passava de ironia apelar para eles, no País sem eira nem beira,
onde Justiça foi e continua sendo quase sempre um poder curvado diante dos poderosos,
caçadores de índios e de ouro, escravocratas, latifundiários, potentados das indústrias, dos
bancos, da própria mídia. Escrevi o editorial, metido a bonzinho. Realidade não se indignou
como devia. O cerco começava a apertar. E não tivemos capacidade, nem coragem, de dar
51
Nota de Redação. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n. 06, Set. 1966.
108
um chega-pra-lá. Diante dum juizinho qualquer, enfiamos a viola no saco. Desculpas?
Nenhuma. Explicação? Ah, vamos dar um jeitinho, quem sabe publicamos o fim da
pesquisa noutra edição...
De jeitinho em jeitinho, comodamente íamos abrindo as pernas. É estupro? Relaxe e goze.
Estávamos tão dentro da “ditabrandaque ninguém se deu conta da oportunidade perdida.
Será que o juiz carioca ia mesmo apreender a revista? Talvez não, e ficaria por isso mesmo.
Talvez sim, e já tínhamos força para criar um caso nacional, quem sabe internacional. Mas
sequer pensamos em desafiar aquele poderzinho.
Pior ainda. Ao aceitar sem briga a ameaça de apreensão da tiragem, e brigar seria publicar o
fim da pesquisa e pronto, demos força aos autoritários, ajudamos a “ditabranda” a tornar-se
ditadura. Sem mais disfarces. Bela ajuda!
52
Teriam então, os jornalistas de Realidade, colaborado com o regime militar?
Como podemos perceber, em alguns casos, é tênue a linha que separa o campo da
colaboração e o da resistência, não cabendo a nós, historiadores, o papel de julgar ou
enquadrar os atores sociais em rígidas tipologias que em nada nos ajudariam a
compreender a complexidade e heterogeneidade de suas ações ao longo do tempo e em
diferentes ocasiões. Mais relevante que isso é tentar verificar as oscilações que os
depoimentos e as interpretações vêm sofrendo ao longo desses anos e tentar entendê-los
dentro de um contexto mais amplo, ou seja, como resultado de interesses e
preocupações que variam de acordo com as diferentes ocasiões em que são produzidos.
Entretanto, ainda nos resta uma última questão a ser discutida acerca da memória
que se constitui acerca da revista Realidade e em torno da qual ainda pairam algumas
controrsias historiográficas, que diz respeito à sua causa mortis ainda em 1968, a
partir de quando, mesmo não tendo sdo de circulação, começou a sofrer drásticas
alterações de formato, conteúdo e abordagem, até se descaracterizar totalmente em
relação ao seu projeto inicial, do qual teria conservado apenas o nome.
Na visão de alguns pesquisadores como Bernardo Kucinski e J. S. Faro, a
conjuntura potica de 1968 aparece como o principal fator responsável por esse declínio
da revista Realidade. Esse tipo de interpretação que considera a precedência do potico
sobre outros fatores mais estruturais, como por exemplo, as mudanças no
funcionamento do campo de produção jornalística e da imprensa, encontram
justificativa em alguns depoimentos de jornalistas que apontam as restrições à liberdade
de imprensa introduzidas pelo AI-5 como o fator que desencadeou o processo de
decadência da Realidade.
52
Entrevista concedida por Mylton Severiano, via correio eletrônico, em 12 Jun. 2007.
109
Em depoimento ao jornal Unidade, do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do
Estado de São Paulo, José Hamilton Ribeiro, que foi redator-chefe da revista Realidade,
fez as seguintes considerações acerca dos efeitos da edição do AI-5 sobre a revista:
A primeira morte da Realidade aconteceu no ano também da sua grande tragédia: 1968
(...). O AI-5, como se sabe, matou um pouco a inteligência do Brasil inteiro. E continua
matando. Acabou com o Estado de Direito, e entregou o direito individual das pessoas “ao
guarda da esquina”. Instituiu o arbítrio e a irresponsabilidade. (...) No caso da revista
Realidade, o AI-5, mais que por ação direta, assustou a Editora Abril. Realidade era então
uma forte “instituição política” (ainda que para incvel) e se abateu sobre ela o peso das
discriminações. Muitos itens da pauta de Realidade, e que eram o seu cardápio preferido
(estudantes, padres, juventude, operários, sexo, D. Helder e os bispos progressistas), foram
proibidos. Com isso e por mais alguns fatores de ordem interna aconteceu a “segunda
morte”: toda a equipe se demitiu.
53
Entretanto, uma outra questão vem sendo pontuada nos relatos como tendo sido
a causa das mudanças na revista a partir do fim de 1968, que foi a demissão em massa, a
partir de outubro daquele ano, dos repórteres que compunham a redação de Realidade,
muitos deles desde o número zero da revista.
Nas palavras de Mylton Severiano, o episódio se deu da seguinte maneira:
Certo dia de outubro de 1968, chega à redação, logo depois do almoço, a notícia de que
Paulo Patarra havia sido “promovidoa diretor de “projetos especiais” e que o novo redator
seria Alessandro Porro, falecido. Esse ítalo-brasileiro, um “farseur”, se havia
notabilizado por curioso episódio: enviou para algum jornal italiano em 1967 a matéria “Ho
visto Guevara morto”, sem ter viajado à Bolívia, onde haviam matado Che. Escreveu de
São Paulo, com base em textos publicados em jornais brasileiros. Não o respeitávamos,
como jornalista nem como caráter. Nos dias e semanas seguintes, nada menos que 11 de
nós, entre redatores e repórteres, pedimos demissão. Depois, outros se mandaram. Assim se
dispersou a equipe.
54
Entretanto, o anúncio de que Porro seria o novo redator-chefe acabou sendo um
rebate falso, ou simplesmente a empresa desistiu do nome dele na última hora e, de fato,
quem assumiu a chefia da redação foi Milton Coelho da Graça, ao qual o ex-Realidade
João Antônio, tributário do jornalismo literário no Brasil, chamava pejorativamente de
“Milton Caolho Desgraça”.
55
Myltainho conta que Sérgio de Souza, certa tarde, ao encontrar Milton Coelho no
saguão da Abril disse-lhe: “Aí, interventor!”. Respondendo ao gracejo de Serjão com
um sorriso amarelo, o Caolho da Desgraça”, como tamm era conhecido, tomou o
elevador e foi ao andar da Diretoria tratar da “Intervenção”.
56
53
FARO, J. S. Op. cit. p. 85.
54
Entrevista concedida por Mylton Severiano, via correio eletrônico, em 12 Jun. 2007.
55
Entrevista concedida por Mylton Severiano, via correio eletrônico, em 26 Jul. 2007.
56
Idem.
110
O jornalista Carlos Marão, que também pediu demissão nessa ocasião, tendo
retornado à redação de Realidade alguns anos depois como parte do esforço da direção
para salvar a revista do seu inevitável naufrágio, afirma que o pedido de demissão quase
coletivo “não teve nada a ver com o AI-5”, até porque a decretação desse ato ocorreu
apenas em dezembro de 1968, enquanto que a debandagem em massa dos repórteres de
Realidade teve início em outubro daquele ano, quando a Editora Abril resolveu
transferir Paulo Patarra para outra função dentro da empresa e colocar no seu lugar um
novo redator-chefe, que não foi bem aceito pela equipe, como nos contou Myltainho.
Embora o haja nenhuma comprovação, indicações de que o afastamento de Paulo
Patarra da redação de Realidade esteve relacionado a questões poticas, pois, como ele
próprio contou, além de ter militado no PCB desde 1957, no ano de 1968, pouco antes
de estourar o AI-5, assinou em Realidade uma das matérias mais importantes de sua
vida, uma entrevista clandestina com Luís Carlos Prestes, que virou capa da revista, lhe
rendeu um prêmio Esso de jornalismo (do qual se esquivou de receber, temendo que “os
milicos ficassem p...”), mas que também lhe custou uma fuga de cerca de sete meses,
por conta da Editora Abril, durante os quais ficou escondido no Hotel Delfim, no
Guarujá, com medo de que os militares o pegassem e torturassem até que dissesse onde
estava o “velho” Prestes.
57
E mais uma vez sua “esperteza Macunaíma” lhe foi
favorável, pois o jornalista Milton Coelho da Graça conta que logo após a decretação do
AI-5, quando já era o redator-chefe de Realidade, teve que fugir pelos fundos do prédio
da Abril, pois os militares invadiram a redação da revista procurando por Milton
Coelho, “vulgo Paulo Patarra”, sem saberem que se tratavam de duas pessoas diferentes
e que o segundo já estava bem longe dali.
58
Mas ainda antes do “afastamento branco” de Paulo Patarra e da nomeação do
carreirista” e “interventor” Milton Coelho,
59
a redação da revista já havia passado por
uma outra crise interna de liderança, em outubro de 1967, quando o diretor da redação
deixou de ser Robert Civita e passou ao comando de Odylo Costa, fiho. Na versão de
Milton Coelho, a troca se deu porque a Editora Abril havia percebido que era necessário
colocar na chefia alguém que fosse aceito pelos ‘milicos’”.
60
Entretanto, a redação não
57
PATARRA Paulo. Op. cit.
58
GRAÇA, Milton Coelho da. Op. cit.
59
Entrevista concedida por Mylton Severiano, via correio eletrônico, em 26 Jul. 2007.
60
Idem.
111
ficou nada satisfeita, pois consideravam Odylo Costa um facista, “cagador de regras e
censor”.
61
Além da conjuntura potica desfavorável e das querelas internas à redação da
revista Realidade, é preciso levar em conta, ainda, o fato de que à medida que a década
de 1960 avançava, o estilo inovador introduzido por Realidade começava a dar sinais de
que já não funcionava tão bem. As os dois episódios de enfrentamento com a censura,
respectivamente em agosto de 1966 e janeiro de 1967,
62
a revista sofreu limitações que
a descaracterizaram em relação ao seu projeto inicial, especialmente no que se referia à
abordagem incisiva e extensiva de temas comportamentais e à manutenção da linha
investigativa de análise dos problemas de seu tempo. Percebemos, portanto, que as
questões estruturais contribuíram de maneira significativa para a progressiva
inviabilidade do modelo editorial que vinha sendo oferecido pela revista Realidade, até
então um sucesso de blico inquestionável. Com a intensificação dos questionamentos
acerca dos padrões de comportamento e dos valores tradicionais, com a valorização da
liberdade e as mudanças no estilo de vida, bem como com a aceleração do ritmo de vida
nas cidades, com o aumento da velocidade na transmissão de imagens e informações
provocada pela difusão dos aparelhos de TV e com a ampliação do espaço dos
telejornais nas redes de televisão, tornava-se premente a elaboração de novos formatos
de periódicos que pudessem oferecer aos leitores o resumo e a análise interpretativa dos
acontecimentos da semana, com uma maior densidade informativa a respeito de
questões mais específicas, em detrimento da revista de interesse geral, que informava a
respeito de tudo.
63
Embora a revista Realidade tenha circulado nas bancas até março de 1976,
estamos de acordo com a jornalista Letícia Nunes quando ela afirma que o declínio da
revista a partir de 1968 se explica pelo fato de que ela deixou de ser a aposta principal
da Abril, que atenta às mudanças que se processavam na sociedade brasileira, em maio
de 1968 lançou no mercado o primeiro número da revista Veja, cuja proposta era
oferecer informação rápida e objetiva a um blico que o tinha tempo para digerir
61
Entrevista concedida por Mylton Severiano, via correio eletrônico, em 12 Jun. 2007.
62
No capítulo IV desta dissertão estes dois casos de censura, dos quais a revista Realidade foi vítima,
serão retomados e analisados de maneira mais minuciosa.
63
A respeito da reestruturação no formato, na linguagem e no estilo das revistas a partir dos anos 60, após
o apogeu das revistas ilustradas semanais de circulação nacional (como O Cruzeiro, Manchete e Fatos e
Fotos), ver ABREU, Alzira Alves de. A modernização da imprensa (1970-2000). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editora, 2002; FARO, J. S. Op. Cit.; e LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas Ampliadas. O Livro-
Reportagem como Extensão do Jornalismo e da Literatura. Campinas: UNICAMP, 1993.
112
toda a informação trazida pelas revistas de interesses gerais. Se na década de 1940 as
revistas se inspiravam na arte cinematográfica, as revistas de fins dos anos 60 e início
dos anos 70 deveriam acompanhar o padrão de visualidade e velocidade criados pela
televisão, que naquele momento se preparava para, em 1972, entrar na era das cores.
O Brasil, que então vivia um surto de industrialização, de urbanização e um
crescimento generalizado da instria cultural e da publicidade, via aparecer nas bancas
de revistas títulos cada vez mais especializados, criados para atender às expectativas de
um blico diversificado que estava vivenciando novas experiências cotidianas e que
queria entender melhor e de maneira dinâmica, os problemas de seu tempo. Nessas
condições, a estratégia adotada pelas editoras a partir de fins da década de 1960 foi
identificar interesses e desejos do público leitor e detectar as tendências de
comportamento do mercado no intuito de oferecer revistas atualizadas, especializadas e
que estivessem afinadas com a realidade e com as expectativas de cada grupo.
Portanto, à medida que a indústria cultural se expandia e se consolidava, em
meio a um público cada vez maior e diversificado, o mercado de bens culturais
procurava cada vez mais segmentar seus produtos, visando atender de maneira precisa
os interesses dos seus consumidores e, assim, garantir a sobrevivência desses produtos
num campo em que a competição se tornava cada vez mais ampla e acirrada. Portanto, a
segmentação do mercado de revistas, em consonância com o desenvolvimento de outros
meios de comunicação mais dinâmicos e com as transformações que se operavam no
campo social, se abateu de forma contundente sobre a revista Realidade, que após ter
alcançado uma tiragem mensal de cerca de 500.000 exemplares, tornou-se um mito, em
termos de qualidade e de conteúdo, tanto na história do jornalismo brasileiro como na
memória dos seus saudosos “viúvos”.
113
2.3-Ele Ela: no compasso da segmentação, uma revista para mulheres e homens
modernos
“No fim da aventura do Fausto Ocidental, eleva-se o canto do
eterno feminino”
(Edgar Morin, Cultura de Massas no século XX: neurose, p.
146)
Em consonância com essas novas condições de produção da imprensa escrita, a
revista Manchete, em abril de 1969, trouxe em página dupla a foto de uma cama de
casal, serrada ao meio, com uma mulher de um lado e um homem do outro, ambos de
braços cruzados, cada qual com seu semblante marcado pelo tédio e a insatisfação. Ao
lado, destacavam-se os seguintes dizeres:
Os problemas de uma vida a dois podem acabar assim. Mas você poderá evitá-los. Basta
conhecer exemplos e situações idênticos nos seus mais íntimos detalhes. Ele Ela discutirá
com você todas as regras do jogo do amor. Trata-se de uma revista diferente de todas as
outras. Textos de alta qualidade ilustrados com fotografias espetaculares e exclusivas. Dia 2
de maio em todo o Brasil, Ele Ela: uma revista para ler a dois.
E de fato foi isso que os leitores puderam encontrar nas bancas na data
anunciada. A Editora Bloch, na disputa pelos consumidores de revistas especializadas
em função do gênero do leitor, lançou uma revista que se apresentava de forma
astuciosa” como do interesse de ambos os sexos. Embora tenha se preocupado em dar
à Ele Ela um toque de “brasilidade”, a revista seguia o modelo editorial da alemã
Jasmim, da qual a Editora Bloch possuía o franchising, o direito de usar todo o material,
as capas, os principais artigos e até o slogan, uma revista para ler a dois”, que a partir
de maio de 1970 deixou de aparecer na capa de Ele Ela por determinação da censura
federal, que o considerou malicioso demais.
64
Para estimular homens e mulheres a consumirem aquela publicação, dois
artifícios tiveram que ser empregados de forma simultânea: textos de interesse
eminentemente feminino e fotografias que seduzissem o público masculino. Dessa
forma, enquanto os artigos publicados em Ele Ela chamavam a atenção das mulheres
por promover os valores femininos, através da discussão de temas relacionados com
moda, amor, relacionamento e sexualidade, as ilustrações promoviam uma nova
feminilidade, privilegiando a perspectiva da mulher enquanto objeto de desejo do
64
Agradeço ao jornalista Carlos Heitor Cony, que gentilmente me enviou a cópia de uma entrevista que
concedeu às autoras da seguinte monografia de conclusão de curso: ALMEIDA, Marilza Aparecida de;
BEJATO, Telma Eliana; CAETANO, Juliana Genésio e NATALI, Adriana Campos. “Ele Ela”, 30 anos:
do jornalismo à pornografia. Monografia de Conclusão de Curso Faculdade de Jornalismo, Pontifícia
Universidade Católica de Campinas, São Paulo, 1996.
114
homem ao expor semblantes e corpos que serviam de chamariz para os consumidores do
sexo masculino. É interessante ressaltar que naquele momento a estetização de qualquer
mercadoria, desde capas de revistas, livros, discos, até anúncios de cigarros, cadeiras e
pastas de dente, através da sua associão à imagem de uma bela mulher, era uma
estratégia empregada pela indústria cultural de massa, que visava atrair tanto os olhares
masculinos. Portanto, as mesmas imagens que são usadas para provocar o desejo de
consumo masculino através da libido, destinam-se tamm às mulheres, estimuladas a
consumir tais imagens como modelos de sedução com os quais desejavam se
identificar.
65
Sendo a revista a mídia mais feminina que existe,
66
Ele Ela, que teve sua
primeira edição esgotada em dois dias, com uma tiragem de 350 mil exemplares,
certamente foi um grande sucesso entre as mulheres, pois, ainda que se propusesse a ser
uma revista para ambos os sexos, a preponderância da feminilidade se manifestava tanto
por englobar todos os temas das revistas femininas como por imperarem em suas capas
e páginas a imagem da mulher sedutora, objeto de consumo para os homens e sujeito de
identificação para as mulheres.
Em algumas cartas enviadas à redação da revista, alguns leitores não deixaram
de observar e até mesmo de reclamar, a primazia de imagens femininas na revista Ele
Ela.
Na edição de número quatro, publicada em agosto de 1969, aparecem quatro
missivistas reclamando a ausência de nu masculino naquela revista que se dizia,
igualmente, para homens e mulheres. A remetente Adréa Martins, do antigo estado da
Guanabara, queria saber se elas, mulheres, não teriam direito a uma “colher-de-c:
tanto o bacana por aí, que desejaríamos apreciar as linhas atléticas do homem. A
beleza não tem sexo. Comprei os números desta revista a espera de ver um galã
despido...e nada.” À sua “curiosa” sugestão, a revista respondeu dizendo que não
pretendiam exibir nenhum homem nu em suas páginas, “tanto por imposição da
censura, quanto pela imposição do bom gosto”, e acrescentava dizendo: “Se a leitora
tiver mesmo muito interesse em ver homens nus, o seu problema poderá ser resolvido
sem necessidade de nossa ajuda”
67
Numa outra carta, assinada por “uma turma de Juiz
de Fora”, os remetentes diziam ter “uma vontade imensa de ver criada uma seção sobre
65
Para um estudo mais detalhado acerca da cultura e massa no século XX ver: MORIN, Edgar. Cultura
de massas no século XX.
66
MIRA, Maria Celeste. Op. cit. p. 43.
67
Ele e Ela escrevem para Ele Ela. Ele Ela, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 04, Ago. 1969.
115
o ‘corpo do homem’, contendo todas as explicações a respeito de suas funções.” Após
fazerem essa solicitação de caráter educativo, acrescentaram uma outra requisição, um
pouco menos instrutiva: “A prosito, considerando que o corpo do homem é também
‘lindo de morrer’, gostaríamos que publicassem um retrato lindo da sua maravilhosa
nudez.”.
68
Mais ansiosa parecia estar Ovia Paula Junho, também da Guanabara, que
clamava: “Por favor, queiram fazer com o ‘corpo do homem’ o mesmo que fizeram com
o ‘corpo da mulher’. Rápido, sem demora. Considero o assunto de grande utilidade
pública e particular.” A revista respondeu dizendo ser “impressionante” o número de
cartas semelhantes que estavam recebendo e a essa leitora sugeriu o mesmo que à
Turma de Juiz de Fora”: que entrasse numa academia de halterofilismo, onde a
“maravilhosa nudez masculina” poderia ser apreciada ao vivo.
69
E não eram apenas as mulheres que utilizavam o espaço da seção Ele e Ela
escrevem para Ele Elapara esse tipo de queixa. Em janeiro de 1970, uma das cartas
trazia a seguinte solicitação: “Peço para publicarem no próximo número uma foto de
homem despido com o sexo bem visível, mesmo que tenha que sair em folhas fechadas,
como o Dicionário de Educação Sexual. Vocês da revista deveriam desfazer todos os
tabus nesta época em que o homem pisa o solo da Lua.”
70
A resposta a José Adriano
Nunes, de Nova Iguaçu, estado da Guanabara, autor da referida correspondência, veio
carregada de ironias: “Essa é forte, seu Adriano. Não sabemos o que o solo da Lua
tem a ver com o sexo masculino. O senhor sabe que o próprio Adão, quando teve de se
apresentar ao Senhor, não usou de folhas fechadas - não havia rotativas naquele tempo -
mas usou de uma célebre folha de parreira para esconder exatamente o que o senhor
exige”. Mais uma vez a revista procurou esclarecer que não pretendia atender as
solicitações daqueles que gostariam de ver em suas páginas a imagem masculina
exposta da mesma maneira que a imagem feminina, e sugeria que havendo alguma
necessidade de ordem pessoal”, o problema poderia ser resolvido de maneira mais
prática e privada, não sendo necessário apelar à ajuda” da revista.
71
Por outro lado, ao receberem a carta de Edílson JoMoura, do Rio Grande do
Norte que dizia: “Gostaria que publicassem bastante fotografias de mulheres nuas para
68
Idem.
69
Idem
70
Ele e Ela escrevem para Ele Ela. Ele Ela, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.09, Jan. 1970.
71
Idem.
116
ficarmos mais satisfeitos”, a revista respondeu com entusiasmo, além de uma dose de
ironia que, como pudemos perceber através da pesquisa, se tratava de uma marca
característica das respostas às cartas publicadas naquela seção: “Até que enfim!
Estamos com os arquivos cheios de cartas pedindo fotos de homens nus. A sua foi a
primeira que nos chegou pedindo mulher. É um sintoma que nos desvanece , pois já
estávamos pensando mal de nossos leitores.” E embora parecessem interessados em
atender à solicitação do remetente, explicaram ao leitor que questões legais os
impediam de fazê-lo: " Infelizmente, não podemos satisfazer o seu pedido: o senhor
ouviu falar na portaria do Ministro Buzaid?”. Ao contrário do que vimos nas cartas
solicitando nus masculinos, em que os missivistas eram aconselhados a resolverem suas
curiosidades” individualmente, sem contar com o auxílio da revista, nesse caso o leitor
recebeu a seguinte sugestão: “Faça um abaixo assinado ao ministro e vamos aguardar as
provincias."
72
Entretanto, alguns meses mais tarde, ao responder a carta de Elsom
Messias, de Minas Gerais, solicitando mais fotos de mulheres nuas, percebemos que
com o avao do ano de 1970 o tom jocoso e entusiasmado da revista, ao incitar seus
leitores a levarem suas reclamações ao ministro Buzaid, foram arrefecidos.
73
Embora não tenha sido criada com o intuito de ser uma revista pornográfica, Ele
Ela veio preencher uma lacuna no mercado de revistas masculinas, que mais tarde seria
dominado pela versão brasileira da revista Playboy, lançada pela Editora Abril em 1975
com o tulo Homem, que naquele momento o título original da publicação estava
proibido de circular no país. Até o lançamento de Ele Ela em 1969, aqui no Brasil ainda
o havia nenhuma revista “masculina”. Havia revistas pornográficas que não eram
editorialmente levadas a sério, mas que lançavam o do nu feminino como objeto de
prazer para o olhar masculino, além de explorarem de forma nada glamurosa o universo,
condenado pela moralidade vigente, do sexo, do erotismo e da pornografia.
74
Segundo Carlos Heitor Cony, que foi o editor da revista Ele Ela em 1969 e 1970,
embora hoje fosse considerada uma revista “papai e mamãe”, no momento do seu
lançamento Ele Ela criou um impacto muito forte na sociedade, na medida em que o
marido, o rapaz, o homem que compravam a revista viam nela uma janela para a
sexualidade, ao mesmo tempo em que ficavam chateados porque essa mesma revista,
que entendiam como masculina e erótica, dizia que a mulher tinha direito ao prazer, ao
72
Idem.
73
Ele e Ela escrevem para Ele Ela. Ele Ela, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.18, Out. 1970.
74
Entrevista de Carlos Heitor Cony, Op. cit.
117
ato sexual quantas vezes quisesse e aos mesmos direitos que os homens, inclusive na
cama.
75
Do seu ponto de vista, Ele Ela não tinha uma proposta erótica, mas foi assim
caracterizada por acidente”, em decorrência dos olhares e pensamentos maliciosos com
que era consumida por seus leitores e pelos censores que lhe enquadraram em tal
classificação. Cony argumenta que Ele Ela procurava fazer um apelo à sensualidade
feminina no intuito de atrair o público masculino, mas sem mostrar o erotismo puro e
simples.
76
Ele Ela também não pretendia ser uma revista de educação sexual, mas de
relacionamento entre duas pessoas, não apenas sexual, mas acerca de todas as questões
que comem esse pacote que se convencionou chamar de “vida a dois”:
Diferença de idade, diferença de comportamento, diferença de cultura, diferença de
religião, tudo isso faria parte do relacionamento a dois, certo? Então, quando a gente pensa
em relacionamento, já pensa logo em sexo. Um homem e uma mulher na cama. Muito bem,
isso era importante, evidente. Era, digamos assim: uma proposta de 50% do assunto.
Entretanto, embora o seu primeiro editor afirme que os temas relacionados ao
sexo não fossem a prioridade da linha editorial da revista, é interessante lembrar que a
chamada para o lançamento de Ele Ela, como mencionamos anteriormente, ressaltava
justamente esse aspecto: o relacionamento entre homem e mulher, na cama. Essa
estratégia de marketing estava de acordo com a lógica da indústria cultural de massa da
época, que lucrava com a erotização do cotidiano, ao mesmo tempo em que oferecia aos
seus leitores um produto que veiculava, tanto na forma como no conteúdo, questões que
estavam em alta naquele momento, como, por exemplo, a igualdade entre os sexos. Em
sua entrevista, Carlos Heitor Cony lembra que desde o logotipo da revista, em que o Ele
e o Ela tinham o mesmo tamanho, o intuito da revista era “ensinar que os direitos eram
iguais”, mostrar os dois lados, do homem e da mulher e, assim, tentar aprimorar a
relação dos casais.
77
Entretanto, à medida que avançava a década de 1970 e o mercado editorial de
revistas crescia, se diversificava e se segmentava mundialmente,
78
tanto em termos de
revistas de interesses gerais como de revistas voltadas para o público masculino, Ele Ela
foi se modificando e adaptando seu modelo às exigências do mercado e da concorrência,
75
Idem.
76
Idem.
77
Idem.
78
MIRA, Maria Celeste. Constituição e segmentação do mercado de revistas no Brasil: o caso da Editora
Abril. In: XXI Congresso Brasileiro de Ciências e Comunicação, 1998, Recife. Anais do XXI Congresso
Brasileiro de Ciências e Comunicação, 1998. v. 1, p. 78-79.
118
assim como às novas e maiores possibilidades de produção no campo jornalístico,
decorrentes do processo de distensão potica. Foi a partir daí que a revista começou, de
fato, a transformar-se numa revista masculina, deixando de lado a linha editorial de
Jasmim e tomando como modelo a revista Playboy. Portanto, a proposta inicial de
igualdade entre homem e mulher foi sendo gradativamente substituída pela idéia de uma
revista em que a mulher passava a figurar apenas como objeto do desejo masculino e,
o mais, como sujeito, tema de discussão e consumidora em potencial daquele produto.
Como parte desse conjunto de transformações, o logotipo da revista também foi
alterado, passando o Ele a ser bem maior e destacado que o Ela.
119
Capítulo III
A revolução dos costumes nas páginas de Manchete, Realidade e Ele Ela
“A escrita como modelo de todo processo do real... e mesmo
como a única realidade cognoscível... ou, ainda, a única
realidade tout court...Não, não me meterei por esse trilho
forçado que me leva longe demais do uso da palavra como a
entendo, ou seja, como perseguição incessante das coisas,
adequação à sua infinita variedade.” (Italo Calvino, Seis
propostas para o próximo milênio, p. 39.)
Como vimos no capítulo I, a década de 1960 presenciou transformações de
grande envergadura na instria cultural, na imprensa e, mais especificamente, no
mercado editorial de revistas, no sentido de um maior aprimoramento técnico,
empresarial, administrativo, concomitante a um alargamento e diversificação do seu
público consumidor. Nesse capítulo, portanto, iremos analisar de que maneira as
revistas Manchete, Realidade e Ele Ela deram forma aos eventos e debates que
caracterizaram a efervescência potico-cultural e as transformações comportamentais da
década de 1960, que, como vimos, eram visados pela censura de costumes por serem
considerados ofensivos aos valores morais e por representarem um risco à ordem social
e potica instituídas, bem como à segurança nacional.
Na segunda metade do século XX, alguns papéis sociais tradicionalmente
determinados passaram a ser questionados no sentido de um maior abrandamento dos
formalismos que presidiam tanto a vida privada, como a vida pública, no que tangia, por
exemplo, as relações entre marido e mulher, pais e filhos, estudantes e professores.
Guardadas as diferenças de ritmo e intensidade com que este processo atingiu os
diversos setores sociais em diferentes partes do mundo ocidental, pode-se dizer que
caminhava-se rumo a uma sociedade mais “descontraída”.
1
A antiga organização da vida blica e privada, baseada numa rígida divisão de
papéis sociais, aos quais correspondia uma série de funções e comportamentos
específicos, vinha sendo progressivamente substituída por um tipo de organização social
mais fluida, na qual se buscava privilegiar o indivíduo dentro do espaço público e diluir
as fuões tradicionais, ditadas por normas e instituições antigas, que limitavam sua
atuação na sociedade.
2
1
PROST, Antoine et VINCENT, Gerard. História da vida privada: da primeira Guerra a nossos dias. São
Paulo: Companhia das Letras, v. 5, 1992, p. 136.
2
Idem.
120
3.1-A mulher e o mundo moderno
Ao lado das transformações científico-tecnológicas, uma das grandes mudaas
que marcou o século XX foi a entrada da mulher de classe média, especialmente as
casadas, no mercado de trabalho. Segundo nos informa o jornalista Roberto Muggiati
numa reportagem para a revista Manchete, a mulher, aqui como em outros países, estava
mudando de maneira irreversível.
3
Assim, observamos que se durante gerações o ideal
consistiu em que as mulheres ficassem em casa e cuidassem do lar, uma vez que
trabalhar fora era visto como sinal de pobreza ou de desprestígio, a partir de meados do
século XX a dedicão exclusiva da mulher ao trabalho doméstico passou a ser
denunciado como uma alienação, uma sujeição ao homem, ao passo que ter o seu
próprio trabalho se tornava, para elas, um sinal concreto de sua emancipação.
4
Quanto a essa inversão, a jornalista e psicóloga Carmem da Silva,
5
considerada a
dama da imprensa feminista no Brasil”, fez uma ressalva bastante importante num
debate entre mulheres, a respeito da emancipação feminina, publicado num número da
revista Manchete de março de 1968. Segundo ela, aquele era um problema bastante
complexo, que não deveria ser situado em termos de “mulher brasileira”, mas pensado
dentro das diferenças que separavam mulheres de classe alta, média e baixa. Sendo a
emancipação econômica o pressuposto fundamental para que a mulher conquistasse sua
liberdade perante o marido, a jornalista concluiu que o problema da emancipação
feminina era uma questão que dizia respeito essencialmente à mulher de classe média,
que para as mulheres que pertenciam a grupos mais pobres, o ingresso no universo de
trabalho não era novidade, além de justificar-se primordialmente pela necessidade
econômica e não de afirmação em relação ao sexo oposto.
6
Portanto, considerando a realidade da mulher de classe média no Brasil, Carmen
da Silva dizia não restar dúvidas de que a sua situação estava melhorando, mas que
3
MUGGIATI, Roberto. Que pensam as mulheres do homem brasileiro. Manchete, Rio de Janeiro:
Editora Bloch, n. 791, p. 22-25, 17 Jun. 1967, p. 22.
4
PROST, Antoine et VINCENT, Gerard. Op. cit. p. 40.
5
A jornalista Carmen da Silva teve grande influência na imprensa feminina no Brasil, escrevendo
ininterruptamente, de 1963 a 1984, a coluna A arte de ser mulher” para a revista Cláudia, na qual
oferecia às suas leitoras discussões à respeito de questões relativas ao universo feminino no mundo
moderno, como dircio, o uso da pílula anticoncepcional,a inserção da mulher no mercado de trabalho
etc. Ver BORGES, Joana Vieira. A grande dama do feminismo no Brasil. Revista de Estudos Femininos
[online]. 2006, v. 4, n. 2, p. 553-555. Disponível em: <http://www.scielo.br.
6
CASTRO, Ruy. A mulher em questão. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 828, p. 116-117, 02
Mar. 1968, p. 116.
121
ainda não se podia afirmar que estivesse emancipada e sim a caminho da emancipação.
Tanto ela como as demais participantes do debate, concluíram que a busca de uma
consciência crítica e de atitudes emancipadas em relação ao homem eram uma aspiração
das mulheres daquele período, sem que isso significasse que já estivessem de fato muito
mais emancipadas em relação às mulheres da geração anterior.
7
Ao percorrer as entrevistas e matérias publicadas nas revistas Realidade,
Manchete e Ele Ela, percebemos que a idéia de emancipação feminina sempre esteve
atrelada à idéia de sair de casa para trabalhar. Numa entrevista à revista Manchete em
1967, a atriz Tereza Raquel definiu a mulher moderna como uma mulher integrada ao
esquema produtivo da sociedade, que dava ao mundo, além de filhos, algum produto do
seu trabalho, que acompanhava a marcha dos acontecimentos da sua época, lutando para
que pudesse ter um lugar no mundo, ombro a ombro com o homem.
8
No mesmo sentido, uma matéria da revista Ele Ela enfatizava que para
conquistar sua liberdade, a mulher deveria percorrer um caminho áspero”, em muitos
sentidos igual ao do homem e que, antes de tudo, teria de se emancipar
economicamente, além de capacitar-se e qualificar-se a fim de prover suas necessidades
sem a ajuda de um homem, fosse ele seu pai, seu marido ou seu amante.
9
Em Janeiro de 1967, inserida no clima de debates acalorados que em todo o
mundo discutiam o papel feminino no mundo moderno, a revista Realidade lançou nas
bancas uma edição toda dedicada às mulheres, cujo editorial de abertura anunciava aos
leitores: Eis, pela primeira vez no país, um panorama completo da situação atual da
mulher brasileira”. Nesta edição a revista iria falar da “revolução tranila e necessária -
mas nem por isso menos dramática – que a mulher brasileira estava realizando”
10
e, para
isso, apresentou doze reportagens que falavam a respeito de questões relativas aos
valores femininos (vida sentimental, trabalho, moda, beleza, saúde e outros) e que
contavam histórias de vida de mulheres de diversas partes do Brasil, dentre as quais a de
Dona Berta, uma mulher de mais de quarenta anos, bem sucedida em sua vida
profissional, dona de uma fábrica de calças femininas, além de ser casada e ter filhos. O
repórter Carlos Azevedo, autor da reportagem, dizia que mais do que a resistência de
7
Idem.
8
Tereza Raquel: esta mulher vai ser assassinada. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 803, p. 152-
153, 09 Ago. 1967, p. 153.
9
Reeducação sentimental: a emancipação sexual da mulher vale a pena? Ele Ela, Rio de Janeiro: Editora
Bloch, n. 6, p. 58-61, Out. 1969.
10
CIVITA, Roberto. O trabalho que elas deram. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n. 10, p. 1, Jan.
1967.
122
mercado, em um país onde as mulheres pouco usavam calças, dona Berta teve de
enfrentar também os “moralistas que sempre encontraram motivos para se
escandalizar”.
11
Não obstante a colaboração feminina à atividade econômica no Brasil ainda
fosse bastante reduzida e o se estendesse a alguns ramos de atividade, essa
participação vinha crescendo a cada ano e se fazia sentir amplamente no mercado de
trabalho nacional, sendo mais significativa a sua presença em áreas como o ensino
público e particular, instituições culturais e na assistência médico-hospitalar, embora
também já estivessem ocupando cargos nas profissões liberais e na administração
pública.
12
De tal modo que em janeiro de 1968, a revista Manchete trazia uma lista
contendo os nomes das mulheres que haviam sido homenageadas pelo Conselho
Nacional de Mulheres do Brasil, por terem colaborado, através de suas atividades
profissionais, para a integração feminina e para o crescimento do país. A revista dizia
que o prêmio consistia, ao mesmo tempo, em um reconhecimento e um incentivo à
participação do sexo frágil na vida do país.”
13
A referida edição especial de Realidade sobre as mulheres trazia também o
resultado de uma pesquisa intitulada “A mulher brasileira, hoje”, na qual uma equipe de
pesquisadores espalhados pelo Brasil, durante 40 dias, entrevistou 1.200 mulheres, da
Guanabara, de São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Caxias do Sul,
Caruaru, Juiz de Fora, Bragança e Jundiaí, fazendo a cada uma delas 110 perguntas
sobre os mais variados assuntos. O objetivo era oferecer, “pela primeira vez no país, um
panorama completo da situação atual da mulher brasileira”. Os resultados da pesquisa,
apresentados na forma de quadros estatísticos resumidos, eram “animadores”, na
opinião da revista, pois ainda que alguns preconceitos aparecessem com bastante força
nas respostas, percebia-se “com clareza” que a mentalidade da mulher estava mais
aberta, o que os levava a concluir que quanto mais equilibradas, liberais e realistas elas
fossem, maiores seriam as oportunidades de serem felizes.
14
Um “mundo novo”, portanto, exigia uma mulher nova, dizia a revista Ele Ela:
uma mulher que desde a infância deveria aprender que o lar, a maternidade, o sexo, a
11
AZEVEDO, Carlos. Dona Berta, o diretor. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n. 10, p. 110-115, Jan.
1967.
12
Idem.
13
CABRAL, Edson. As mais importantes de 1967. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 820, p.
85, 06 Jan. 1968.
14
A mulher brasileira, hoje. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n. 10, p. 20-28, Jan. 1967.
123
beleza, o amor e todos os demais valores, eram apenas decorrência de um valor
primeiro, a vida, dentro da qual haveria milhares de outras vidas, sendo a de esposa,
e, amante, funcioria, apenas uma das variadas modalidades que poderia assumir. A
mulher moderna o poderia ser mais o “sexo frágil”, pois deveria ser lúcida e
responsável a ponto de conseguir se realizar tanto no plano pessoal como no plano
profissional, “amando de verdade e não por interesse em manter apenas um status
social”, tendo filhos se realmente os quisesse, “e não por imposição de um descuido ou
de uma aventura”. Dessa forma, dizia a revista, as “mulheres modernas” conseguiriam
experimentar um gosto que até então lhes era estranho, o da liberdade.
15
Retomando a matéria da revista Realidade, ainda pouco mencionada, que
contava a história de dona Berta, a empresária da fábrica de calças femininas, ali foram
abordadas duas questões que merecem ser observadas com mais cautela, por estarem
diretamente relacionadas a alguns efeitos provocados pela entrada das mulheres no
mercado de trabalho.
Descrevendo o cotidiano de dona Berta na sua fábrica, o repórter diz que ela:
Mexe-se na poltrona, roda com ela, balança a perna cruzada sobre a outra. Nunca está
quieta. Mas nela não há nada masculino, e a voz soa agradável, em frases rápidas, num tom
que a faz ouvida na sala vizinha. Berta Schlesinger está tratando de negócios. Ela é a dona
de uma pequena indústria que faz calças compridas para mulheres. (...)
Durante esses 28 anos, Berta trabalhou sempre 10 horas por dia. A empresa cresceu tanto
que Félix, o marido, teve de abandonar seu emprego para ajudá-la. E está ela todos os
dias, desde muito cedo até a noite, de calças compridas, a dar ordens, a exigir bom trabalho,
a tornar-se amiga dos colaboradores. Mas sem se masculinizar, porque Berta acredita que a
mulher tem de tentar se realizar sem perder a condição feminina.
16
Embora fosse cada vez maior o número de mulheres que passavam a trabalhar
fora de casa, inclusive ocupando funções geralmente restritas aos homens, velhos tabus
e preconceitos continuavam dificultando a sua emancipação e a sua realização
profissional, dentre eles a idéia de que, ao sair de casa para trabalhar, a mulher estaria
em tudo querendo se igualar ao homem, inclusive nos trajes que deveria vestir para
freqüentar o ambiente profissional, qual seja, terno e gravata.
Entretanto, na sociedade moderna, em que as novas técnicas modificavam as
condições de vida e as possibilidades de consumo se elevavam, a moda “desce dos
15
Reeducação sentimental: a emancipação sexual da mulher vale a pena? Ele Ela, Rio de Janeiro: Editora
Bloch, n. 6, p. 58-61, Out. 1969.
16
AZEVEDO, Carlos. Dona Berta, o diretor. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n. 10, p. 110-115, Jan.
1967.
124
cumes da alta costura”
17
para envolver as massas femininas, oferecendo modelos que
atendem às necessidades de diferentes ocasiões para os mais variados tipos de mulheres,
inclusive aquelas que começavam a sair todos os dias de casa para o trabalho, sem
deixar de se preocupar com a beleza e com a afirmação da sua individualidade, através
de roupas e sapatos variados, novos penteados e novos cosméticos que lhes garantissem
um visual diferenciado.
18
Além do sucesso profissional não implicar na perda de feminilidade, a história
de dona Berta “ensinava” às leitoras que o trabalho fora de casa não significava a
abdicação do tradicional papel de mãe e de esposa. Segundo ela, tratava-se apenas de
saber administrar essas diferentes funções no cotidiano:
Não adianta iniciar nada se lhe puder dedicar algumas horas por dia. Um
empreendimento para ser vitorioso precisa receber dedicação total. Para a mulher casada
isso é mais difícil, tem de cuidar da casa. Mas pode resolver o problema montando uma
retaguarda eficiente. (Aqui ela se referia a ter empregadas em casa, experientes e às quais
não precisasse ensinar sobre como fazer o serviço).
19
Portanto, percebemos que a emancipação da mulher de classe média urbana,
com sua entrada no mercado de trabalho e elevação do seu nível de instrução, implicou
numa redefinição do seu papel dentro do lar e da vida conjugal, mudanças no exercício
do poder dentro do ambiente familiar e das funções e papéis desempenhados por cada
um, dentro e fora da família. Se, por um lado, a imagem do homem chefe de família”,
que ocupava uma posição privilegiada em relação à mulher enquanto “embaixador do
mundo externo”,
20
começava a ser questionada e contestada, a mulher, por sua vez,
mesmo dedicando-se a novas ocupações fora do ambiente doméstico, não deixaria de
exercer um poder decisivo nessa esfera, na qual o perderia o título de patroa” e
rainha do lar”, mesmo que trabalhando fora de casa.
21
Através das revistas femininas e masculino-femininas aqui estudadas,
percebemos que embora promovessem os novos valores da mulher no conjunto da
cultura de massa, o arquétipo da mulher moderna que veiculavam era o de uma mulher
17
MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: neurose. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2007. 2 v. (O espírito do tempo; v. 1), p. 142
18
Idem, p. 141-142.
19
AZEVEDO, Carlos. Dona Berta, o diretor. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n. 10, p. 110-115, Jan.
1967.
20
MUGGIATI, Roberto. Que pensam as mulheres do homem brasileiro? Manchete, Rio de Janeiro:
Editora Bloch, n. 791, p. 22-25, 17 Jun. 1967.
21
PROST, Antoine et VINCENT, Gerard. Op. cit. p. 76 e 78.
125
emancipada, mas cujas funções de “dona de casa” e amante” não deveriam ser
atenuadas por sua realização profissional.
22
Além de trabalhar, cuidar da casa, dos filhos e do conforto do marido, estas
revistas ressaltam que a mulher deveria ainda se preocupar com a sua beleza e em
valorizar seus encantos. Segundo Edgar Morin, a cultura de massa introduziu em nossos
costumes a “arte da sedução”, que a cada dia passou a adquirir uma nova importância no
“saber-viver” quotidiano.
23
Portanto, a maquilagem, o batom e tantos outros produtos de
beleza, até então “apanágio das coquetes” e das “mulheres de vida fácil”, começaram a
ganhar cada vez mais espaço nas páginas de publicidade das revistas e tornam-se uma
maneira “honesta” das mulheres valorizarem sua beleza e assim, garantir o sucesso na
busca de um amor eterno ou a estabilidade do seu relacionamento.
24
Foi no intuito de alertar suas leitoras para a importância da mulher agir sempre
no sentido de manter a tranilidade do lar e o marido fiel aos laços matrimoniais, que a
revista Manchete publicou um decálogo com dicas para ajudar as mulheres a “conservar
os maridos quietinhos junto às esposas, e cada vez mais apaixonados”.
25
De acordo com o manual, à mulher caberia agradar o marido, especialmente no
que se referia aos cuidados com o lar, mantendo seus objetos arrumados, a casa em
ordem e o capricho com o jantar. Além disso, quando estivesse ao seu lado deveria
aparentar boa disposição, estar sempre alegre, sorridente e impecável, ser compreensiva
e não fazer queixas, nem torturá-lo com cenas de ciúme. Em relação ao trabalho da
mulher fora de casa, era apontado não como um elemento de realização pessoal dela,
mas como um componente que poderia colaborar para o sucesso do casamento, pois
assim o marido não se sentiria um mero pagador de contas. Nessas recomendações,
portanto, a mulher figurava como uma coadjuvante ao lado do marido, ator principal, ao
qual ela deveria acompanhar, mesmo nos programas que ele gostasse, pois assim não
daria chance para que encontrasse outra mulher com a qual descobrisse ter maior
afinidade.
26
Outros artigos e histórias de vida publicados na revista Ele Ela, da mesma
forma, procuravam advertir suas leitoras de que no casamento caberia à mulher a
22
MORIN, Edgar. Op. cit. p. 144-145.
23
Idem, p. 141.
24
PROST, Antoine et VINCENT, Gerard. Op. cit. p. 97.
25
SILVA, Laís Gama. As duas faces da felicidade. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 816, p.
98-100, 16 Dez. 1967.
26
Idem p. 100.
126
responsabilidade de salvar a relação do desgaste e da rotina, devendo, portanto,
aprender truques – em suas páginas, obviamente para que o marido pudesse encontrar
no lar tudo o que desejasse compreensão, amor, aventura tudo isso, contudo, sem
que perdesse o recato, a ternura e a sensualidade”.
27
Portanto, para atingir o modelo do que era considerado, naquele momento, ser
uma mulher de sucesso, seria necessário que ela operasse simultaneamente três
imperativos: seduzir, amar e proporcionar uma vida confortável ao parceiro, ou seja,
casa limpa, comida gostosa e filhos educados.
Nesse sentido, as principais revistas femininas ou também voltadas para o
público feminino, tornavam legítima a preocupação das mulheres em manterem-se
atraentes e sedutoras, como nos primeiros anos de namoro e noivado”, para que assim
conservassem a fidelidade dos maridos e a felicidade matrimonial. Nesse sentido,
percebe-se que o casamento adquire uma nova concepção, segundo a qual a sua base de
sustentação passa a ser o amor e a atração “sexual” entre os cônjuges e, não mais apenas
o interesse, que poderia ser de ordem econômica ou política, e a cooperação mútua para
formar e fazer crescer, às vistas da sociedade, uma família próspera.
Segundo Philippe Ariès, a fusão entre amor e casamento é historicamente uma
idéia nova, circunscrita ao Ocidente a partir do culo XX. Portanto, tendo o amor
tornado-se o novo fundamento dos casamentos em lugar dos interesses
eminentemente econômicos, as desilusões e desgastes sentimentais passaram a
desempenhar importantes papeis na decisão de um casal levar ou não adiante a sua
união matrimonial. Com isso, verificou-se que à medida que avançava a década de 1960
crescia o número de separações enquanto que o casamento tornava-se cada vez mais
raro, como um sinal de que ia se tornando uma instituição frágil à medida que o amor
entre os cônjuges passava a ser privilegiado, em detrimento das formalidades
institucionais e do papel social do matrimônio.
28
Algumas reportagens publicadas nos periódicos estudados nesta pesquisa
tentaram explicar a “grande crise da instituição familiar” como uma resultante do
enfraquecimento dos laços matrimoniais. Uma dessas matérias informava seus leitores
de que a “maré montante dos desquites” era conseqüência das mutações aceleradas
27
Conselhos a uma jovem esposa. Ele Ela, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.2, p. 140-143, Jun. 1969, p.
140.
28
ARIÈS, Philippe. Le mariage indissoluble. Communications, n. 35, 1982, p. 123-137; ARIÈS, Philippe.
L’amour dans le marriage. Communications, n. 35, p. 116-122 ; e PROST, Antoine et VINCENT, Gerard.
Op. cit. p. 89.
127
daquela geração que se transformava e que não aceitava os valores da antiga família
patriarcal, bem como dos problemas ecomicos, dos desencontros sexuais e tensões
profissionais.
29
uma outra matéria, também publicada na revista Manchete, atribuía o
crescente número de separações ao fato da estrutura familiar ter permanecido
basicamente a mesma após uma série de mudanças pelas quais o mundo havia passado
naqueles últimos vinte anos. Ou seja, por todo o mundo a família tradicional ameaçava
desmoronar, pois não conseguia se conter nos moldes que lhe haviam sido traçados
séculos. Segundo o jornalista, a raiz dessa grande crise” estaria no fato de que, com
a urbanização, a estrutura da antiga família rural não havia sido alterada, mas
simplesmente transladada do campo para a cidade, com apenas algumas mudanças
exteriores de hábitos, comportamentos e atitudes. Portanto, estruturalmente, a família
o teria mudado em nada, permanecendo em tudo e por tudo igual “à velha família
patriarcal do senhor de engenho do nordeste.
30
Assim, ele concluía que a crise da família, que não era apenas da família
brasileira, se dava pelo fato de que aquela estrutura que havia servido para uma
realidade remota, já não servia mais à nova realidade trazida pela modernidade:
O que sociólogos mais afeitos ao problema têm concluído quase sem discordância é que a
família não poderá continuar mantendo, daqui para frente, a estrutura patriarcal ou quase
– em que basicamente ainda se sustém, conservando-se, assim fechada sobre si mesma. (...).
A civilização vai se transformando em rios pontos, na sua passagem de rural a urbana.
Mas a família continua mantendo as mesmas características. Por isso, fundamentalmente, é
que es em crise.(...)
Os casais mais velhos são os menos permeáveis a qualquer tipo de reformulação. Menos
por culpa deles mesmos, do que pela rapidez com que as estruturas que os rodeiam
mudaram nas últimas décadas especialmente depois da Segunda Guerra. E amesmo
porque, entre outras coisas, não compete aos velhos encabeçar as mudanças. Os jovens,
mais decididos, mais generosos na entrega de si mesmos, é que devem reconhecer que
coisas que devem ser mudadas, pois se tornaram obsoletas diante da nova realidade.
31
Uma das soluções apontadas pelo autor para resolver a crise da família, seria
reformular o papel ocupado pela mulher dentro dessa instituição, pois ao perceber sua
condição de objeto” em relação ao homem, muitas vezes experimentava uma “revolta
surda”, o que acabava se refletindo nos filhos e em todo o relacionamento do casal e
afetando, portanto, o bom funcionamento familiar. Essa mudança, em sua opinião,
29
Desquites: a família que não permanece unida. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 1010, p. 44-
47, 28 Ago. 1971.
30
CASTRO, Marcos de. A grande crise da família. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.981, p.
68-75, Jun. 1971.
31
Idem.
128
deveria começar pelo tipo de educação dada aos filhos, que tradicionalmente garantia
total liberdade aos meninos e uma série de restrições às meninas. Em seu lugar, o
jornalista sugeria que os rapazes fossem criados dentro de um espírito de solidariedade
às causas femininas, pois assim não desejariam mais serem os machões de antigamente,
mas aprenderiam a respeitar e dar a vez às mulheres.
32
Para o jornalista, o importante naquela crise não era o crescente
desmoronamento da família que se podia verificar em todo o mundo, mas a vontade
generalizada de reconstruí-la em bases novas. Este esforço estaria totalmente de acordo
com uma série de movimentos de libertação que surgiam naquela década, como o Black
Power, o Gay Liberation Front, além dos movimentos de libertação feminina. Nesse
sentido, argumentava o autor, porque não poderia existir um movimento de libertação
da família de suas bases tradicionais e opressoras?
33
Estando de acordo com vários estudiosos do tema, o jornalista afirmava que a
libertação da família começaria a partir da libertação da mulher e, portanto, criticava
aquelas mulheres que se acomodavam no luxo que os maridos lhe garantiam como
forma de manterem-nas dentro de casa, sem contestar sua condição de “coisa” nem
participar ativamente da sociedade. Essas mulheres, “conformadas” e satisfeitas” com o
luxo que os maridos lhe proporcionavam em troca de manterem-se inexpressivas, eram
denominadas pelo jornalista como as “prostitutas do high-society”, que embora em seus
aspectos visíveis afetassem menos a sociedade do que as mulheres do baixo
meretrício”, na sua opinião eram muito mais abjetas do ponto de vista moral.
34
Portanto, ele concluia que a solução para a crise na família estava na “família
aberta” – nem patriarcal, nem matriarcal – onde os direitos de todos deveriam ser iguais,
tanto quanto os deveres. Assim, pai, mãe e filhos poderiam reunir-se democraticamente
e discutir os problemas de todos e de cada um e o homem o seria mais educado para
ser dono da mulher, nem esta para ser submissa ao homem. Ambos deveriam contribuir
para as necessidades domésticas com tipos de serviço e assistência que poderiam diferir,
mas que teriam sempre valores iguais, pois, só assim, a mulher encontraria a sua
libertação total, abandonando o sentimento de inferioridade que até então carregava
consigo. A base da “família-aberta” seria, portanto, a igualdade de direitos e deveres
entre todos os seus membros. Na visão do jornalista, a superação dos desajustes
32
Idem.
33
Idem.
34
Idem.
129
familiares traria, em germe, a solução de vários problemas de contestação que emergiam
naquele momento. Isso porque a liberdade começaria a surgir dentro de cada casa,
dentro de cada lar, dentro de cada pequena comunidade, que deixaria de ser uma
comunidade de “egoísmos mesquinhos” e “privilégios intoleráveis”, para ser uma
comunidade básica” de abertura no sentido da justiça e do respeito aos direitos de cada
criatura humana.
35
O tema da crise na estrutura da família foi bastante discutido nos periódicos que
estudamos, os quais deram destaque especial a um importante debate da época que
estava inserido nessa questão: o Congresso deveria aprovar leis que permitissem a
dissolução dos laços matrimoniais através do divórcio ou deveria conservar apenas o
desquite?
36
Em todas as matérias que trouxeram essa discussão à tona, pudemos perceber
que um argumento esteve sempre presente, tanto no discurso dos divorcistas como dos
que eram contra o divórcio, que era a necessidade de “salvar” a família brasileira,
manter os filhos resguardados dos desentendimentos entre os pais e, em suma, garantir o
bem comum da sociedade.
Num debate publicado pela revista Realidade, entre o padre Charbonneau, que
lutava para salvar casamentos e reconciliar casais em vias de separação através de
encontros de casais, e o deputado federal Nelson Carneiro, que desde 1947 se
empenhava em mudar a Legislação brasileira para que o divórcio fosse
institucionalizado, toda a discussão e todos os argumentos apresentados pelos dois
demonstravam que o que ambos desejavam, em essência, era preservar a família e,
assim garantir a manutenção da ordem e a segurança nacional.
37
Segundo o padre Charbonneau, a lei sobre o casamento não deveria ser
elaborada para resolver os “desastres pessoais”, por mais dolorosos que fossem, mas
para favorecer o equilíbrio sociológico e psicológico da nação. Nesse sentido, falar de
uma lei que teria por objeto o divórcio parecia-lhe simplesmente contraditório: “é usar
de um instrumento de bem comum contra o bem comum, em nome do bem particular de
35
Idem.
36
De acordo com a Legislação brasileira da época, o divórcio ainda não era permitido, sendo posvel
apenas desquitar-se, o que permitia apenas a dissolução da sociedade conjugal, na qual o homem era o
chefe, sem que o vínculo matrimonial fosse desfeito. Dessa forma, mesmo desquitados, nenhum dos dois
poderia contrair novas núpcias. o divórcio, permitia a ambas as partes que após a dissolução do
casamento contraísse novas núpcias, tanto no civil como no religioso, entretanto, foi instaurado no
Brasil em 28 de junho de 1978, através da Emenda Constitucional n. 9 e, posteriormente, regulamentado
através da Lei n. 6.515/77.
37
O que você pensa sobre o divórcio. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n.6, p. 123-127, Set. 1966.
130
um número mínimo de indivíduos que sofrem um fracasso que devemos nos esforçar
por compreender, mas que não deve nunca tornar-se o padrão de lei.”
38
o deputado Nelson Carneiro dizia ser a favor do divórcio porque, entre isso e
o desquite não haveria melhor opção que a primeira, quando se pensava no que seria
mais favorável à sociedade, à mulher e aos filhos. Ele esclarecia que os divorcistas do
Brasil, de todo o mundo e de todos os tempos, não lutavam pelo divórcio como um bem,
como um fim. Mas que na competição com o desquite, sua superioridade era evidente,
como fórmula social, legal e humana. E insistia que esse ponto precisava ser esclarecido
em todos os debates, para que os antidivorcistas não continuassem posando de
advogados da “felicidade familiar”.
39
Em seus depoimentos, o Deputado Nelson Carneiro procurava deixar claro que
seus projetos de lei a favor do divórcio não preconizavam uma nova moral, ao contrário,
buscavam resguardar os valores familiares e o papel de “esposa” tradicionalmente
atribuído à mulher:
Ao desquitado ou desquitada que não quer, ou não pode, se render ao castigo da
continência, somente se abrem tristes caminhos. Para a desquitada, principalmente, ainda
que jovem, ainda que cheia de vida, ainda que inocente, mais sombrias são as perspectivas
que se apresentam, se o puder converter em renúncia e recalque os apelos da idade, do
sexo despertado, da necessidade de amar e ser amada. Ou se deixará envolver pelas
seduções fáceis e temporárias, de mão em o, hoje de um, amanhã de outro, contrariando
a natureza feminina e a formação moral, ou construirá novo lar, com ânimo de torná-lo
definitivo, onde tenha o nome e o trato de esposa. (...)
Quando existe o divórcio, a mulher que torna a casar recupera a condição de esposa, com
todas as conseqüências, sociais, morais, jurídicas e patrimoniais. A mulher desquitada que,
na melhor hipótese, se junta a um homem livre (solteiro, desquitado ou viúvo), e a ele se
dedica anos a fio, vive a incerteza do presente e do futuro, o que se reflete em toda a vida
familiar. (...).
É somente abrir os olhos para verificar que – na sociedade brasileira a acolhida cordial e
automática das segundas uniões, criadas à margem da lei, vai incutindo na juventude a
convicção de que tanto faz casar como não casar.
E que ninguém duvide, nem os mais ferrenhos adversários do divórcio: os divorcistas
querem apenas legalizar o que aceitam como moral. Só isso.
40
Numa outra matéria da revista Realidade, o jornalista Carlos Marão contou a
história de três dessas mulheres que o deputado Nelson Carneiro sempre mencionava e
procurava defender em seus depoimentos, as quais, tendo se separado de seus maridos
após a experiência de um casamento fracassado, eram socialmente estigmatizadas pela
alcunha de “desquitadas”. O jornalista dizia que as “milhares de desquitadas ou
separadas que havia no Brasil tinham histórias semelhantes às de Elisa, Dagmar e
38
Idem.
39
Idem.
40
Idem.
131
Emília, personagens de sua história, ou ao menos, teriam com elas um ponto em
comum: mesmo sendo felizes e independentes, as “desquitadas” não conseguiam
ignorar a pressão e a hostilidade da sociedade contra elas.
41
De fato, a crescente independência feminina foi amplamente discutida nos
periódicos analisados, que a percebiam como uma das grandes transformações porque
passava a sociedade naquela época, entretanto, não deixaram de ressaltar que o
fenômeno se dava ancorado em valores tradicionais, tal como a psicóloga Ofélia
Boisson
42
disse à revista Manchete em uma entrevista concedida em 1964:
A moça de hoje vai para a escola ombrear-se com o rapaz. Tendo mais tempo para estudar,
maior estabilidade sexual, desnorteia o sexo masculino tornando-se a primeira da turma e
aparecendo, às vezes, comoinimiga”. O rapazinho percebe que está perdendo terreno
diante da mocinha. Que ela não vai ser uma mulher “submissa”, embora para a mulher, hoje
como sempre, o ideal resida no marido que oferece segurança, no lar, nos filhos. O grande
drama das mocinhas é que, apesar de uma liberdade exterior, estão interiormente
acorrentadas pela sensibilidade e pela tradição.
Num inquérito do Ibope, publicado pela revista Manchete a respeito do que as
mulheres pensavam do homem brasileiro, pode-se verificar que as brasileiras ainda
estavam bastante presas à “regras tradicionais”, que 85% das entrevistadas disseram
ter convicção de que os homens brasileiros preferiam as mulheres que oferecessem
“maiores dificuldades”na hora da conquista. Em outras palavras, mesmo diante dos
eventos e discussões que vinham à tona e marcavam a crescente emancipação feminina
em relação ao homem, essas mulheres ainda procuravam se valorizar enquanto objeto
do desejo masculino para conseguirem obter um “preço mais alto no mercado
matrimonial”.
43
Em 1969, a revista Ele Ela publicou um artigo no qual apresentava uma série de
depoimentos de atrizes famosas, tais como Vanessa Redgrave, Julie Christie, Kim
Novak, Leila Diniz e Diana Rigg, falando a respeito da sua vida amorosa e de suas
opiniões a respeito do casamento. Em síntese, a revista pretendia mostrar às suas
leitoras que, embora em seus depoimentos a maioria daquelas atrizes classificassem o
casamento como um “pesadelo”, fonte de ressentimentos e ódios, e defendessem o
41
MARÃO José Carlos. Três histórias de desquite. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n. 10, p. 100-
106, Jan. 1967.
42
Ofélia Boisson Cardoso, psicóloga, dedicou-se ao estudo de temas relativos à criança, adolescência e
sua relação com a família. Foi autora dos livros: “Alguns problemas de perturbação de caráter(1945);
“O problema da repetência na escola primária (1949), Alguns problemas do ensino da linguagem
(1956), “Aspectos psicológicos no ensino da linguagem” (1963), “Problemas da adolescência” (1965);
dentre outras obras.
43
MUGGIATI, Roberto. Que pensam as mulheres do homem brasileiro. Manchete, Rio de Janeiro:
Editora Bloch, n. 791, p. 22-25, 17 Jun. 1967, p. 24.
132
chamado “amor livre” e a liberdade de união como o único caminho para o verdadeiro
amor, no final das contas, todas acabaram se “convertendo” ao casamento.
44
em 1970, num outro artigo, cujo título anunciava “Nem todas querem casar”,
a revista Ele Ela discutia com seus leitores a situação das mulheres que preferiam ficar
solteiras ou apenas namorar, o que, na época, ainda era visto considerado um fato
inusitado e que, portanto, deveria ser debatido e esclarecido:
O rapaz namora a moça três anos, os dois se amam e se entendem perfeitamente. Um dia ele se
decide e propõe: “Vamos casar?” E ela responde: “Não”. Este é um fato novo e bastante estranho da
vida moderna. Até há pouco, toda moça era uma aflita para encontrar um marido. E qualquer rapaz
tinha um ódio sagrado quando a namorada o imprensava contra a parede. O que foi que aconteceu?
45
Para responder a tal pergunta, ao longo da matéria foram apresentados diversos
depoimentos de moças em torno dos 20 anos, que apontavam a busca de realização
pessoal através do trabalho como um dos principais fatores que as afastavam da idéia de
casamento, não porque lhes garantiria indepenncia econômica, mas também
porque uma grande quantidade delas não aceitaria um casamento com o sacrifício da
profissão que, segundo diziam, lhes garantiria maior dignidade.
46
Entretanto, a jornalista concluiu o artigo afirmando que, embora as moças
modernas rejeitassem o casamento, muitos acreditavam que, no fundo, esta recusa não
passava de “pura balelae que as mulheres continuavam sendo “eternas românticas”.
Essa suspeita, acrescentou a repórter, não seria apenas dos homens, mas também das
próprias moças que adotavam um comportamento “antitradicional”, pairando entre elas
a suspeita de que muitas se comportavam daquela maneira apenas para se convencerem
de que eram pra frente”, quando na verdade, o que desejavam mesmo era ceder à sua
“vocação tradicional” de casar e ter filhos:
Para elas, o comportamento atual não passa de deslumbramento provisório, trazido pela
assimilação superficial de teorias aprendidas em livros ou em rodas de amigos. Algumas
nem mesmo encontram qualquer satisfação nessa liberdade. Adotaram as novas teorias da
boca para fora, pelo simples temor de passar, perante os amigos, por antiquadas. No íntimo,
sofrem com a contradição entre uma vocação tradicional e uma aparência que são obrigadas
a sustentar.
47
Além da crescente passagem da mulher, especialmente a mulher casada de
classe dia, do espaço doméstico para o espaço público, através da sua entrada no
44
O casamento é sempre melhor. Ele Ela, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 4, p. 48-52, Ago. 1969, p. 49.
45
CAVALCANTI, Virginia. Nem todas querem casar. Ele Ela, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 16, p.
12-16, Ago. 1970.
46
Idem.
47
Idem.
133
mercado de trabalho, outro fator fundamental para a emancipação feminina foi a
popularização de métodos de controle da natalidade, tais como a pílula
anticoncepcional, o DIU e o diafragma.
Embora no Brasil, a Lei das Contraveões Penais, de 1941, proibisse anunciar
processo, substância ou objeto destinados a provocar aborto ou evitar a gravidez,
48
ainda
que o digo de Ética dica, de 1957, proibisse o médico de anunciar, clara ou
veladamente tais processos e , além disso, a moral cristão condenasse o controle da
natalidade,
49
pesquisas de opinião pública confirmavam que todos os modernos métodos
de contracepção vinham sendo aprovados e praticados em larga escala em todo o país.
50
Durante a década de 1960, as revistas Manchete, Realidade e Ele Ela publicaram
inúmeros artigos que falavam a respeito da existência de métodos anticoncepcionais
caseiros, como chás e beberagens, além dos métodos naturais, como o coito
interrompido ou a abstinência em períodos férteis, para então informar seus leitores das
inovações dos métodos contraceptivos, esclarecer vidas quanto ao seu
funcionamento, seus efeitos e discutir as vantagens e desvantagens em empregar cada
um deles, tanto do ponto de vista médico-científico, como do ponto de vista da moral
cristã e dos interesses nacionais em controlar, ou não, o crescimento da natalidade.
Além disso, discutiam o emprego de métodos provocativos, a exemplo do aborto, bem
como as questões referentes à sua legalização ou ao controle institucional para que não
fosse praticado clandestinamente.
É importante perceber essa ampliação das possibilidades de se fazer o controle
preventivo da natalidade como uma importante manifestação da modernidade, no que se
refere à afirmação do poder do indivíduo em modelar seu próprio futuro e controlar o
curso de sua vida no que se refere à formação de uma família, independente de
regulamentações institucionais, tais como os códigos e leis que restringiam o casamento
ou as relações sexuais entre determinados casais.
51
Entretanto, as discussões em torno
do controle da natalidade, que estiveram presentes com grande freqüência nestes
periódicos,
52
nos chama atenção para o fato de que embora algumas decisões coubessem
48
Decreto-lei n. 3.688, de 3 de outubro de 1941, decreta a Lei das Contravenções Penais, artigo 20.
49
Brasil: 60 milhões de pílulas por ano. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n. 2, p. 16-22, Maio 1966.
50
MUGGIATI, Roberto. Pesquisa Ibope: A mulher brasileira e a pílula. Manchete, Rio de Janeiro:
Editora Bloch, n. 787, p. 114-119, 20 Maio 1967.
51
THERBORN, Göran. Sexo e poder: A família no mundo (1900-2000). São Paulo: Contexto, 2006, p.
352 e 353.
52
As seguintes matérias levaram aos leitores a discussão a respeito do controle de natalidade e suas
implicações blicas: Brasil: 60 milhões de lulas por ano. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n. 2, p.
134
somente ao indivíduo, era necessário debatê-las no espaço público, uma vez que
acarretariam conseqüências para a sociedade como um todo. Dessa forma, embora
coubesse a cada indivíduo ou a cada casal a decisão de ter ou não ter um filho, isso
implicaria em conseqüências que afetariam não apenas a eles, mas a nação como um
todo, no que se refere, por exemplo, aos efeitos demográficos do controle da natalidade,
sendo necessário, portanto, discutir o tema no espaço público da imprensa, por exemplo.
Outra questão freqüentemente ressaltada nos artigos analisados era que com o
advento dos modernos métodos anticoncepcionais, especialmente a pílula, as mulheres
conquistavam, gradativamente, uma liberdade cada vez maior em relação a costumes e
preconceitos milenares que às impediam de ter uma vida sexual plena e prazerosa,
que o sexo sempre esteve estritamente associado à atividade reprodutora. Sendo capaz
de planejar o nascimento de um filho e, portanto, liberada do medo de uma gravidez
indesejada ou fora de hora, as mulheres poderiam buscar, ou mesmo exigir, uma
atividade sexual gratificante, sem que isso tivesse implicações negativas às regras da
decência e dos bons costumes.
Entretanto, quando aludiam ao direito da mulher de usufruir sua vida sexual,
essas matérias referiam-se especificamente às mulheres casadas e não às moças
solteiras, as quais, como veremos adiante, eram freqüentemente advertidas quanto às
desvantagens de “entregarem-se às relações pré- nupciais”.
Na edição número um da revista Ele Ela, foi publicada uma entrevista com o dr.
Greenson, médico psiquiatra que na época ficou famoso após o suicídio de uma de suas
pacientes, a atriz Marilyn Monroe, onde ele falava o porque das mulheres começarem a
exigir mais da relão amorosa e afirmava que se por um lado a popularização da pílula
anticoncepcional havia permitido que as mulheres se libertassem de antigos
preconceitos e medos, por outro lado, permitiu tamm que elas começassem a exigir
“mais e melhor do amor”.
53
Essa reivindicação das mulheres por uma vida amorosa mais aprazível foi
apresentada novamente aos leitores, porém de forma mais contundente, através da
correspondência que uma leitora enviou à redação da revista Ele Ela e que foi publicada
com o título de “carta aberta aos homens”, na qual, a Anita Garibaldi, a remetente da
16-22, Maio 1966; BENEVIDES, Henrique e REGIS, Jairo. Esterilização é genocídio. Manchete, Rio de
Janeiro: Editora Bloch, n.803, p. 42-43, 09 Ago. 1967; Brasil Pergunta: Devemos limitar a natalidade no
Brasil? Realidade, São Paulo: Editora Abril, n. 6, p. 138, Set. 1966.
53
Entrevista com dr. Greenson. Porque as mulheres exigem mais do amor? Ele Ela, Rio de Janeiro:
Editora Bloch, n. 1, p. 6-10, Maio 1969.
135
missiva, dizia que se as mulheres haviam começado murmurando, naquele momento
elas gritavam para dizer que estavam cansadas da “incompetência” dos homens, de
fingir e de se resignar, sem medo de serem chamadas de histéricas ou de “ninfômanas”.
Ela dizia que o que desejavam não era homens a mais, mas um homem que visse nelas
a mulher”, e não apenas a esposa, a nova rival do mercado de trabalho, ou a prostituta:
Eles agora tremem de medo. Medo de nós, agora transformadas em parceiras que sabem o
que exigir. Medo de nós que deixamos de ser simples estímulos de prazer. Medo de nós,
que não somos mais apenas as matrizes do mundo. Mas não gritamos por super-homens
superpotentes. Que seja uma vez em cada noite, e nem em todas. Mas que haja
competência. Que haja experiência, que haja força. Para eles, as falhas são sempre nossas.
(...). Porque o amor é nosso também. Tão nosso quanto deles. O amor é da mulher e do
homem, biologicamente. Nem estamos falando de amor livre, pois que essa é outra história.
Estamos, isto sim, acusando os nossos maridos, os nossos amores. E os acusamos de não
conseguirem ser sensuais conosco. E os acusamos de não reconhecerem na sensualidade
também uma manifestação de afeto. Não queremos experiências mirabolantes. Não
queremos extravagâncias. s também abominamos o amor desvinculado da ternura e da
preservação.(...). Nós os denunciamos - aos homens - não em bandeiras e passeatas em
nome de um Women Power que não nos interessa. Nosso grito não é um grito de guerra.
(...) Com muita humildade, nós até confessamos uma culpa: o erro de não havermos exigido
antes. Nós o fazemos agora, agora que sabemos o que exigir. (...) Estamos falando de amor,
não de lutas, não de baboseiras feministas. s queremos apenas o amor de nossos homens.
Mas um amor para valer, não somente flores ou exercícios físicos no escuro. Que se
liberem de seus condicionamentos, que esqueçam seus preconceitos. Para serem os homens
de verdade que nós queremos. E exigimos.
54
Dentre os papéis sociais criticados durante a segunda metade do século XX, um
dos mais contestados foi o papel tradicionalmente atribuído às mulheres. Nesse aspecto,
ganhou destaque, especialmente a partir de 1968, a intensa mobilização das militantes
feministas e sua luta em defesa da igualdade de direitos entre homens e mulheres e pelo
fim das discriminações sexistas que atribuíam comportamentos específicos a cada um
dos sexos e que determinavam quais tarefas cada um poderia desempenhar na
sociedade. Assim, na opinião dessas mulheres, os papeis sexuais serviam apenas para
impedir que a pessoa se afirmasse e se expressasse enquanto indivíduo.
55
As demonstrações coletivas das feministas estiveram presentes em uma série de
matérias publicadas nos três periódicos aqui examinados,
56
destacando-se as ativistas
norte-americanas, que representaram uma vanguarda global na disseminação das
reivindicações e ações daquele grupo por todo o mundo, especialmente a partir dos anos
54
GARIBALDI, Anita. Carta aberta aos homens Ele Ela, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 16, p. 38-39,
Ago. 1970.
55
PROST, Antoine et VINCENT, Gerard. Op. cit. p. 138.
56
Ver a esse respeito, por exemplo, as seguintes matérias: Nova Iorque: a guerra dos sexos. Manchete,
Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 960, p. 67-71, 09 Set. 1970; LEVIT, Leonard. Todo o poder à Glória.
Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 1015, p. 28-31, 02 Out. 1971; FALLACI, Oriana. A guerra
do sexo: diretamente do front. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n. 62, p. 71-86, Maio 1971.
136
1960.
57
Entretanto, afastando-se das questões reclamadas pelas feministas, aparecia
naquele momento uma outra espécie de reivindicação, semelhante às queixas da sra.
Anita Garibaldi, relacionada, em geral, à falta de afeto dos maridos, que embora fossem
reconhecidamente bons pais de família e trabalhadores responsáveis, na maioria dos
casos, ainda não correspondiam ao amante ideal que as mulheres começavam a buscar.
58
Se até a década de 1950, especialmente nos países do ocidente, o matrimônio era
valorizado, primordialmente, pelos seus aspectos institucionais e ecomicos, como
dissemos ainda pouco, com a revolução dos costumes o amor conjugal passou a ter
grande importância para a união e manutenção dos laços matrimoniais. Dessa forma, o
amor passou a ser tratado como o lugar central do casamento, seu verdadeiro
fundamento, o que indica a emergência de uma nova norma social, em que o casamento
deixava de ter como base um contrato, um projeto de família que deveria ser bem
sucedido aos olhos da sociedade e passava a ser realizado fundamentalmente em razão
do amor mútuo.
59
Numa entrevista exclusiva à revista Ele Ela, a atriz Catherine
Deneuve, considerada a mais famosa mãe solteira daqueles tempos, traduzia essa nova
concepção de casamento que começava a se propagar, dizendo que ele deveria ser um
ato de amor”, e não uma “justificativa”.
60
Se por um lado, a difusão em larga escala dos métodos contraceptivos permitiu a
dissociação entre sexualidade e procriação,
61
nas revistas aqui examinadas verificamos,
entretanto, que a vida sexual não deixaria de ser vinculada ao casamento, que, por sua
vez, dentro da nova norma social que emergia na década de 1960, já não era mais o
suficiente para legitimar a prática do sexo, que a partir de então deveria ser
experimentado unicamente como expressão dos sentimentos existentes entre marido e
mulher e não mais como parte de uma obrigação contratual entre os cônjuges.
Até a primeira metade do culo XX, quando em geral o casamento não
pressupunha uma relação amorosa, sendo, basicamente, um acordo para a união de dois
patrimônios ou visando a ascensão social, a vida conjugal era regida por regras que
garantiam o cumprimento do “dever marital”, no qual estava incluída a obrigação de
ambos em consumar o casamento, com vistas à procrião. Entretanto, a partir da
57
THERBORN, ran. Op. cit. p. 153.
58
MUGGIATI, Roberto. Que pensam as mulheres do homem brasileiro? Manchete, Rio de Janeiro:
Editora Bloch, n. 791, p. 22-25, 17 Jun. 1967.
59
PROST, Antoine et VINCENT, Gerard. Op. cit. p. 89.
60
Catherine Deneuve. Ele Ela, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 4, p. 36-40, Ago. 1969.
61
THERBORN, ran. Op. cit. p. 306-307.
137
segunda metade daquele século, quando o matrimônio deixou de ser animado
unicamente pelos interesses materiais e pelo dever recíproco, quando seu fim deixou de
ser exclusivamente a procriação e a sua meta a educação dos filhos e quando passou a
ser o resultado do amor entre os cônjuges, o sexo deixou de ser apenas uma das
obrigações do contrato de casamento e passou a ser um dos pontos em torno do qual os
casais buscariam estruturar a sua harmonia e da família como um todo. Em algumas
matérias publicadas nas revistas Manchete, Realidade e Ele Ela, percebe-se a
preocupação em discutir a satisfação sexual, tanto do homem quanto da mulher, bem
como o papel que o sexo passava a ocupar dentro do matrimônio, sendo importante
ressaltar, entretanto, que ali a finalidade não era exaltar ou discutir o prazer pelo prazer,
mas o prazer que deveria ser experimentado pelos njuges com vistas ao
fortalecimento dos laços matrimoniais em sua dimensão sentimental.
62
Numa matéria a respeito da sexualidade feminina, a revista Ele Ela dizia haver
um abismo entre a mulher do passado, presa ao lar por obrigações tanto “elementares”
como “irrecusáveis”, e a mulher do presente, profissionalizada e livre:
Hoje, ela vive intensamente e deseja conhecer todas as formas de realização - a começar
pelo amor, onde sempre sofreu restrições. Embora a sua sexualidade tenha experimentado
profundas transformações, ela é vítima, ainda, de conceitos errôneos. Um deles é a lenda de
que está condenada à frigidez pela própria natureza do seu organismo. Outro é de que as
suas necessidades sexuais desaparecem com a menopausa. A ciência está destruindo esses
preconceitos e abrindo o caminho da juventude e da felicidade à mulher do século vinte.
63
De acordo com a revista, tais “anomalias”, habitualmente atribuídas às mulheres,
seriam nada mais que a expressão de uma vida sexual sem amor, o que, à medida que
avançava a década de 1960, passava a ser visto cada vez mais como impedimento à
realizão de uma “perfeita vida conjugal”.
64
Ao abordar problemas relativos tanto à sexualidade feminina como masculina,
nota-se que as revistas procuravam fazer com que os leitores se identificassem com suas
matérias ou que encontrassem ali uma resposta a problemas vivenciados na privacidade
de sua relação conjugal, os quais, muitas vezes não conseguiam compartilhar com um
especialista, ou por vergonha, ou por conservadorismo, ou mesmo por ignorar que se
tratasse de um problema. Por outro lado, além de fazerem o papel deconsultório
sentimental” e de esclarecedora de problemas íntimos, essas revistas procuravam
desvendar, tanto aos homens quanto às mulheres, os segredos da sua sexualidade que,
62
Idem, p. 89-91.
63
É tempo de amar. Ele Ela, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 6, p. 06-10, Out. 1969, p. 06.
64
Idem.
138
geralmente, desconheciam em função da criação conservadora que haviam recebido
tanto em casa como na escola. Entretanto, é importante ressaltar que o objetivo dessas
revistas, ao oferecer tais informações, não era estimular as relações sexuais pré-maritais,
e sim atrair cada vez mais leitores que se interessassem em consumir suas “dicas” e
“fórmulas prontas” de como haver um bom entendimento sexual entre os cônjuges.
Era o caso, por exemplo, do “Moderno Manual da Vida a Dois”, um encarte que
começou a ser publicado na revista Ele Ela a partir da edão de janeiro de 1970, nos
quais os leitores poderiam encontrar resposta a 250 perguntas de grande importância
para uma vida conjugal perfeita”.
65
Uma das perguntas do manual, dizia respeito à outra questão que na época
ganhou grande repercussão e causou muitas polêmicas em função das novas
possibilidades de controle de natalidade que se difundiam: a importância de conservar-
se virgem até o casamento.
66
O tema foi bastante discutido pelas revistas Manchete,
Realidade e Ele Ela, as quais procuravam oferecer aos leitores um debate entre
teólogos, psilogos ou personalidades do meio artístico, onde os argumentos
apresentados, tanto pelos que defendiam quanto pelos que condenavam as experiências
sexuais que precediam as núpcias, eram no sentido de advertir quanto às possíveis
conseqüências” negativas desse ato, as quais não diziam respeito à uma gravidez
indesejada, que isso poderia ser evitado através dos variados métodos contraceptivos
disponíveis na época, mas aos possíveis prejuízos à dignidade da moça que cedesse aos
apelos” dos rapazes. Embora a mudança dos costumes trouxesse um relativo
afrouxamento do controle familiar sobre os jovens, permitindo uma maior liberdade nos
encontros entre namorados, nos quais já poderiam inclusive ficar a sós, as revistas
voltadas para o público feminino não deixavam de advertir suas leitoras que, nessas
ocasiões, não “chegassem às vias de fato”, pois isso poderia inibir os ânimos
casadoiros” do rapaz, que, embora cobrassem um comportamento mais liberal das
moças, na hora de escolher uma esposa, ainda valorizavam a virgindade como uma
qualidade pertinente às mulheres ideais para serem levadas ao altar.
67
Esse aspecto foi observado por Susana Stechnin, uma jovem antropóloga
americana, que após um ano viajando pelo Brasil concluiu, em um relatório publicado
65
Um moderno manual da vida a dois. Ele Ela, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 9, Jan. 1970.
66
Idem.
67
SILVA, Carmem da. Nossa mulher não mostra tudo. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n. 06, p. 94-
100, Set. 1971.
139
pela revista Manchete, que o homem brasileiro era um quadradoem se tratando de
envolvimentos amorosos:
No relacionamento homem-mulher, no Brasil, existem dois pesos e duas medidas. Os
homens passam o tempo todo tentando levar as mulheres para a cama, mas na hora de casar
exigem mulheres virgens. O sexo foi transformado num jogo estranho. Numa relação, o
rapaz tenta fazer tudo para que a mulher sinta algo, mas se a mulher quer ser considerada
séria, não deve sentir absolutamente nada. Ela não pode ter necessidade de sexo. Outra
coisa: a mulher sai com um homem e ele imediatamente se sente seu dono, antes mesmo
que ela decida se gosta ou não gosta dele. Isso tudo está errado. (...). O latino a mulher
como se ela fosse uma apetitosa refeição. Ele tem medo de que todos queiram provar e que
quando o prato voltar para as suas mãos não terá sobrado nada. (...)
Nos debates acerca da virgindade, percebe-se que a vivência feminina em termos
de sexualidade estava primordialmente centrada na questão do matrimônio, que
permanecia como o ideal a ser alcançado pelas mulheres. Portanto, aquelas que se
mantinham “castas”, faziam-no como garantia de arranjar um marido”, enquanto
aquelas que se entregavam” faziam-no não como forma de realizar-se, eminentemente,
através da satisfação de seus próprios impulsos sexuais, mas por inexperiência, falta de
vigilância ou excesso de amor e confiança no parceiro, ao qual pretendiam agradar
diante do medo de perdê-lo por não ceder às suas insistentes “investidas”
68
.
Mas o crescente acesso das mulheres a posições consideradas masculinas,
especialmente no campo profissional, o aumento do número de mulheres a freqüentarem
os bancos das universidades, o fato de recusarem ou adiarem o casamento por estarem
mais conscientes do desgaste do amor e dos riscos que a maternidade poderia trazer para
seus planos de ascendência profissional, além da crescente revelação da sua apetência
sexual e suas reivindicações pelo direito de sentirem prazer, passaram a despertar o
seguinte debate: a emancipação feminina significaria o crepúsculo do macho? Qual
papel o homem deveria assumir diante da emancipação feminina e da sua penetração em
espaços que antes eram restritos apenas aos homens e, por outro lado, qual deveria ser o
novo papel dele no espaço que antes era de total responsabilidade e competência da
mulher, o lar?
Nesse sentido, o inquérito feito pelo Ibope e publicado pela revista Manchete a
respeito do que as mulheres brasileiras pensavam do homem brasileiro, mencionado
anteriormente, concluiu que a emancipação feminina estava sendo conquistada à custa
de um alto preço para ambos os sexos, sendo “ilusóriopensar que o papel da mulher na
68
Brasil Pergunta: a mulher deveria ser virgem ao casar? Realidade, São Paulo: Editora Abril, n. 10, p.
122, Jan. 1967.
140
sociedade pudesse se transformar sem que o estatuto do homem “sofresse uma
metamorfose paralela”:
Em suas linhas gerais, a revolução sexual atinge mais intensamente os países
desenvolvidos, mas sua marcha é irresistível e ela reserva grandes modificações para um
futuro talvez bem menos remoto do que a maioria imagina (...).Como resume muito bem a
antropóloga americana Margaret Mead: “Estamos passando por um peodo de discrepância
nos papéis sexuais, discrepâncias tão evidentes que os esforços para se disfarçar o preço
pago por ambos os sexos são cada vez mais frustrados. Porém, se perpetuarmos o hábito de
falar sobre a condição das mulheres, no vácuo, deixaremos de reconhecer que o que um
sexo sofre o outro sofre também.”
69
A preocupação com tais “discrepâncias” nos papéis sexuais, como conseqüência
das transformações comportamentais em marcha, podem ser observadas, por exemplo,
em algumas crônicas da época que pretendiam comprovar a superioridade da mulher em
relação ao homem, que, por sua vez, estaria “a caminho de se tornar o sexo frágil”
70
Na edição da revista Realidade especial sobre as mulheres, a que nos
referimos, o jornalista Mylton Severiano Silva escreveu um texto no qual enumerava
uma série de argumentos a favor da superioridade feminina, que comprovavam sua tese
de que o que teria levado o homem a difundir a idéia da supremacia do macho, ao longo
de toda a história, teria sido a sua inveja em relação ao poder de procriação da mulher.
Para ele, a prova definitiva da superioridade feminina estava no fato de que as mulheres,
por amor, permitiam que os homens seguissem adiante proclamando sua “falsa
superioridade” e pensando serem os bons”.
71
Alguns anos mais tarde, na revista Manchete, o jornalista Juliano Palha,
admitindo a fragilidade do sexo masculino, apresentou um ensaio fotográfico com belas
modelos vestindo trajes militares, através do qual convocava “todos os homens do
mundo” a unirem-se, pois se tornava cada vez mais urgente deter a crescente
emancipação feminina, sua guerra a favor de direitos iguais aos dos homens e a sua
pretensão” em conquistar um lugar na sociedade além do espaço que até então lhes
havia sido reservado com toda exclusividade – a cozinha.
72
69
MUGGIATI, Roberto. Que pensam as mulheres do homem brasileiro. Manchete, Rio de Janeiro:
Editora Bloch, n. 791, p. 22-25, 17 Jun. 1967, p. 25.
70
Idem, p. 22.
71
SILVA, Mylton Severiano. A discutível, nunca antes proclamada (e terrível) superioridade da mulher.
Realidade, São Paulo: Editora Abril, n. 10, p. 30-34, Jan. 1967.
72
PALHA, Juliano. Elas fazem a guerra. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 1021, p. 126-131,
13 Nov. 1971.
141
Embora a tendência dos homens fosse resistir às mudanças de comportamento
feminino,
73
eles não puderam deixar de sentir a presença de uma nova mulher na
sociedade, produto da urbanização, do crescimento industrial, da tecnologia e da pílula.
Além disso, começaram a perceber que o seu comportamento também teria de se alterar
para acompanhá-la e, assim, diante da emancipação feminina e do afrouxamento dos
laços patriarcais, coube ao homem dividir as responsabilidades com a mulher e reavaliar
sua masculinidade, pois a modernidade anunciava que o primado da dominação
masculina chegava ao fim,
74
e em seu lugar prevaleceria o que Philippe Ariès chamou
de “sociedade unissex”, onde os papeis sociais seriam intercambiáveis entre homens e
mulheres que, cada vez mais, desejariam realizar-se em diversas atividades e aspectos
que antes eram destinados especificamente a cada um dos gêneros.
75
Essa tendência à unissexualidade, como uma característica das sociedades
modernas, foi tratada em algumas matérias das revistas Manchete, Realidade e Ele Ela,
especialmente em relação à moda, que durante as décadas de 1960 e 1970 foi um dos
aspectos da vida pública que melhor traduziu a aspiração de alguns grupos,
especialmente de jovens, à diluição dos papéis sociais e sexuais. Essa tendência podia
ser observada no fato das calças estarem cada vez mais presentes nas coleções de roupa
feminina, no triunfo do blue jeans para ambos os sexos, no corte de cabelo curto para
mulheres que antes usavam imensos penteados mantidos à base de “laquê” e nas longas
madeixas à moda dos Beatles que os rapazes começavam a ostentar em lugar dos rígidos
cortes curtos, além de uma série de acessórios como colares, medalhões e braceletes que
passavam a ser usados tanto por homens como por mulheres.
76
A repórter Carmen da Silva, numa de suas matérias para a revista Realidade,
anunciava aos seus leitores:
Eis que o brado retumbante, como um vento audaz, se alastra sobre a face da Terra: sexos
de todo o mundo, uni-vos!
Não se trata de uma incitação indecorosa, como poderia supor as mentes inclinadas ao
julgamento aleivoso e à interpretação malévola (...). Tranqüilizem-se os puritanos e
exaltem-se os corações inocentes: nada de uniões promíscuas, cenas pouco edificantes,
públicas ou privadas, sessões de love-in ao ar livre sob a regência de um guru “ligado”;
nada de regressão à nudez primitiva, ao alegre desenfreio da horda sem lei, aos casamentos
coletivos e outros desregramentos comuns na história remota e na pré-história, que a
73
MUGGIATI, Roberto. Que pensam as mulheres do homem brasileiro. Manchete, Rio de Janeiro:
Editora Bloch, n. 791, p. 22-25, 17 Jun. 1967, p. 22.
74
FRANCIS, Marina. Nós, as mulheres do mundo. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 1022, p.
126-131, 20 Nov. 1971, p. 126.
75
PROST, Antoine et VINCENT, Gerard. Op. cit. p. 386.
76
Idem, p. 97.
142
civilização em boa hora superou. Nada, enfim, que possa chocar a pudicícia, a sensibilidade
e o bom gosto.
Pelo contrário é tudo na base da roupa, conforme a decência manda. É ante o altar dos
deuses aceitos, cumprindo o sacrossanto ritual do consumo, que os sexos hoje em dia
passarão a irmanar-se em tocante confraternização que exclui as diferenças supérfluas e
suprime os antiquados pronomes discriminatórios “ele” e “ela” que faziam acirrar
ainda mais as divisões entre as pessoas, (...). A moda unissex vem abolir definitivamente os
gêneros ultrapassados – homem, mulher e os diversos matizes intermediários -, deixando de
pé apenas o essencial, que é o gênero humano: quem roupas não vê cromossomos.
77
No mesmo sentido, a revista Ele Ela publicou uma matéria dizendo que a moda
havia sido o primeiro veículo a traduzir um “crescente processo de neutralização dos
sexos”, o prenúncio de um “terceiro sexo”, cujo sintoma principal era a forte adesão das
mulheres ao gênero da calça “pantalona”:
na rua, de costas e ao longe, não se distingue mais um homem de uma mulher. As jaquetas
longas, os coletes, gravatas e os ternos são usados por ambos. No último desfile de moda
masculina, em Nova Iorque, os homens usavam foulard no pescoço, braceletes e brincos. E,
ao mesmo tempo, as grandes lojas femininas da Europa apresentam toda uma linha de
produtos unissex, altamente comprometedora para ambos. São talvez os prenúncios de um
terceiro sexo.
78
Cabe destacar, em relação aos trechos que acabamos de citar, que se por um lado
estas revistas informavam e até mesmo incentivavam os seus leitores a aderirem à moda
unissex, por outro lado não deixavam de manifestar o seu estranhamento diante dessas
tendências “altamente comprometedoras” para ambos os sexos, nem de ressaltar e
deixar bem claro que a alternância entre o masculino e o feminino se restringia ao
campo da moda, sem que isso significasse qualquer forma de incitação a
desregramentos” da sexualidade. Esse cuidado em diferenciar aquilo que era moda ou
estereótipos veiculados e comercializados pela indústria cultural de massa, daquilo que
eram comportamentos considerados socialmente aceitáveis, se explica pelo fato de que,
na época, o homossexualismo, tanto masculino quanto feminino, ainda era visto
majoritariamente como uma doença ou como um vício,
79
que, segundo uma matéria da
série especial sobre a saúde do homem, publicada na revista Ele Ela, poderia ser
definido como um mal de caráter “congênito”, mas que também poderia ser “adquirido”
por influência do meio, contra o qual havia sido tentada a “cura” através de inúmeros
77
SILVA, Carmen da. O sexo único. Realidade, São Paulo, n.49, p. 72-77, Abr. 1970.
78
Um pouco dela na roupa dele. Ele Ela, Rio de Janeiro, n. 2, p. 144-147, Jun. 1969.
79
Na pesquisa realizada pela revista Realidade, em setembro de 1967, sobre a juventude brasileira, 42%
dos entrevistados, sem diferença entre a opinião de rapazes e moças, disseram que o homossexualismo era
uma doença, e 32% disse que era um vício. Em cem entrevistados, apenas 18 jovens definiram o
homossexualismo como uma escolha individual. Ver: A juventude brasileira, hoje. Realidade, São Paulo:
Editora Abril, n. 18, p. 18-26, Set. 1967.
143
todos terapêuticos, tais como, castigo físico, tratamento com hormônios, castração ou
a psicanálise, sem, contudo, serem obtidos resultados “significativamente positivos”,
que os homossexuais, em sua maioria, dificilmente desejavam “livrar-se de sua
anomalia”.
80
A respeito da homossexualidade feminina, um dos encartes do “Moderno
Manual da Vida a Dois”, publicado pela revista Ele Ela, dizia que também se tratava de
uma “doença congênita” que, segundo o psicólogo alemão Egon Grave, era provocada
por um trauma que poderia ter as mais diversas causas, dentre as quais: castigos físicos
de pais demasiadamente severos, assédio precoce, primeiras relações sexuais realizadas
com um homem bruto ou decepção amorosa ainda durante a adolescência:
Estas experiências infelizes podem levar moças sensíveis a considerar todos os homens
como brutais e egoístas. Por isso preferem encontrar refúgio nos braços de uma amiga. Os
homens podem eliminar as conseqüências desses traumas por meio de compreensão e
ternura. Com isso, a moça aparentemente “anormal”, em breve torna-se uma perfeita
esposa. Quando o caso é mais grave, somente a atuação de um psicanalista será eficiente. E
mesmo nesses casos, quando o problema é mais grave, a solução nunca é impossível.
81
Os presságios de que os tempos modernos transformariam os indivíduos em
seres “andrógenos” também foi tema de discussão da revista Manchete, por exemplo,
numa matéria que falava a respeito da moda middlesex, nome atribuído pelos ingleses
para designar o “sexo intermediário que, segundo diziam, surgia à medida que
aumentava o número de rapazes e moças adeptos à moda da troca de vestimentas entre
homens e mulheres. A reportagem advertia que na opinião de psicólogos e psiquiatras
essa nova moda não significava que as mulheres estivessem prestes a dominar os
homens, mas representava uma forma de “protesto conjuntode ambos os sexos, diante
de um cenário marcado pela angústia de duas guerras sucessivas e pela ameaça de uma
terceira que poderia exterminar a raça humana.
82
De maneira semelhante, a jornalista
Carmen da Silva, na matéria para a revista Realidade a que nos referimos por último,
dizia que o fato da moda unissex ter sido lançada rodeada por grande alarde publicitário
e ter tido boa receptividade do blico, pareciam delatar, entre outros indícios, a
confusão reinante da atualidade”. Confusão no espaço e no tempo, bem caracterizada,
segundo a jornalista, pelos “avaadinhos” que viviam em nomadismo, sem pontos
fixos de referência espacial e vestindo “paródias das roupas medievais” combinadas
com o desalinho” do homem das cavernas. Confusão quanto ao papel do indivíduo
80
Os homens vivem perigosamente. Ele Ela, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 9, p. 92-98, Jan. 1970, p.
95-96.
81
Um moderno manual da vida a dois. Ele Ela, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 9, Jan. 1970.
82
A roupa não faz o homem. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 652, p. 124-127, 17 Nov. 1964,
p. 126.
144
num mundo massificado, confusão quanto ao desempenho sexual e social de cada um,
confusão entre forma, aparência e realidade, atitude externa e tomada de posição,
protesto e escapismo. Acima de tudo, ela afirmava, confusão sobre o valor da vida
humana ante a ameaça de extinção coletiva.
83
Voltando à matéria publicada em
Manchete a respeito do middlesex, o texto dizia que essas “indumentárias
escandalosas”, às quais a jornalista Carmen da Silva tamm se referiu, e a inversão
entre o masculino e o feminino, eram uma expressão do não-conformismo dos jovens
diante daquele estado de instabilidade: “Que é que se pode imaginar de mais não-
conformista, para um rapaz, do que vestir roupas femininas? Essas manifestações nos
chocam, nos irritam e nos fazem rir, quando na verdade deviam amedrontar-nos.”
84
E um dos maiores medos em relação a essa nova tenncia unissex,
constantemente apontado pelas revistas, dizia respeito à virilidade do homem: a adoção
de camisas rendadas, de cores tropicais, botas de salto alto e tantos outros adornos de
metal ou couro, viriam acompanhadas de um declínio da masculinidade?
85
A década de 1960 marcou o fim da hegemonia britânica na moda masculina e
quem deu início a essa “revolução” foi o estilista Pierre Cardin, com suas calças justas,
camisas vermelhas, alaranjadas, amarelas e rosa, mandando “direto para o museu” o
traje a rigor e o terno escuro londrino, com camisa branca e sapato preto. Assim, ainda
que com algum receio quanto à adesão aos novos estilos masculinos vindos das capitais
da moda, essas revistas anunciavam, através de reportagens e propagandas, que o
homem poderia usar roupas de todas as cores sem que isso implicasse na perda da
masculinidade.
86
Segundo Pierre Cardin, numa entrevista publicada pela revista Manchete
Para o homem ser homem, não é bem a roupa que manda. (..). No futuroou desde agora –
eles deverão, para estar na moda, obedecer ao que diz (...): terno com paletó na linha
Chopin (uma volta ao romantismo), com seis botões, uma abertura atrás; calças justas
evasê na bainha; camisa sem abotoação visível; sapatos de bico largo. Além disso, o
homem moderno deve fazer a barba com um aparelho super automatic, usando loção
antes e depois; ao sair do banho, aplicar desodorante do tipo spray e água-de-colônia de
essência acre-doce. (...) Depois de tudo isso, sua masculinidade, sendo real, não ficará
alterada.
87
83
SILVA, Carmen da. O sexo único. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n.49, p. 72-77, Abr. 1970.
84
A roupa não faz o homem. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 652, p. 124-127, 17 Out. 1964,
p. 126.
85
Idem.
86
O homo psicodélicus. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 823, p. 156-157, 20 Jan. 1968, p.
156-157.
87
SCHEIER, Betina. Assim o homem é mais homem. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 804, p.
28-31, 16 Set. 1967.
145
O autêntico homem ao estilo Pierre Cardin, portanto, deveria ser um “novo
homem”, moderno, sem preconceitos, dinâmico, alegre, generoso e vaidoso.
88
Numa
outra matéria, a revista Manchete dizia que em períodos anteriores, um homem para ser
“homem de verdade”, tinha que ser “durão”, “caladão”, tinha que “meter medo”, mas
que desde o início da cada de 1960, especialmente com as inovações introduzidas no
mundo da moda por Cardin, as coisas haviam mudado e os protótipos masculinos que
passavam a “enlouquecer as mulheres” eram jovens, alegres, descontrdos e com um
toque de loucura”, semelhante à imagem representada pelos Beatles no início da sua
carreira. Além disso, deveriam ter uma aparência frágil, colorida, quase feminina”,
com longos cabelos bem tratados, óculos de fantasia, calças justas e camisas floridas,
colares e bolsa a tiracolo. Durante a década de 1960, portanto, a vaidade passava a ser
um atributo tanto masculino quanto feminino e o homem estaria autorizado a assumi-la
sem prejuízo da sua virilidade.
89
Entretanto, a matéria fazia a ressalva de que o fato dos
homens terem assumido sua vaidade não significava que o “machismo tivesse sido
abolido, mas simplesmente “mudado de roupa”. Ou seja, apesar de um novo estereótipo,
a maneira do homem pensar e entender o mundo em transformação continuava a
mesma.
90
Outra matéria, entretanto, trazia a seguinte advertência quanto aos usos da nova
moda masculina que seguia, cada vez mais de perto, os caminhos da moda feminina: o
segredo de “continuar homem” era saber usar, sem complexos ou exageros, os novos
modelos e os novos tratamentos de beleza, pois não se tratava de imitar as mulheres,
nem de adotar suas tradicionais “armas de conquista”, mas de assumir novos hábitos e
uma nova maneira de “ser” perante o mundo.
91
Se antes perfume era artigo consumido
apenas pelas mulheres, na década de 1960, “qualquer homem que se prezasse, assim
como à sua modernidade”, deveria ter no mínimo 3 ou 4 diferentes perfumes. A matéria
diz que, na época, qualquer drogaria ou farmácia mais simples do interior já apresentava
uma seção ou prateleira com todos os tipos de cheiros e cores de produtos masculinos.
Além dos perfumes e loções para o após barba, a indústria dos cosméticos desse período
passou a disponibilizar os mais diversos produtos a serviço do charme masculino, dentre
88
Idem.
89
ALVES, Ivan. Vaidade teu nome é homem. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 983, p. 94-95,
20 Fev. 1971, p. 94-95.
90
Idem, p. 94.
91
SCHEIER, Betina. Assim o homem é mais homem. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 804, p.
28-31, 16 Set. 1967, p. 28 e 30.
146
eles: xampus, sao para barba, tônico para o couro cabeludo, sabão especial para o
rosto, bronzeador, compacto, creme para o dia, creme para a noite e máscara de
beleza.
Assim como para a mulher, a reportagem dizia que o padrão de beleza
masculino naquele momento era o do homem esbelto, o que exigia certos sacrifícios.
Assim, estava na ordem do dia dos homens mais “avançados”, após o trabalho ou nos
fins de semana, freqüentar as saunas, os banhos a vapor, ginástica e massagens.
Segundo a repórter, muitos preferiam as academias onde poderiam praticar a ioga para
acalmar os nervos, caratê para a autodefesa ou judô para o equilíbrio e aquisição de
autoconfiança, sendo essas umas das muitas variações que estavam à disposição do
homem que desejasse aprimorar seu físico, como mandava o figurino. Aos que
desejassem maior refinamento, havia ainda as visitas semanais aos institutos de beleza,
onde poderiam se submeter a diversos tratamentos, tais como as massagens faciais, o
banho de xampu e óleo para couro cabeludo, manicure e em alguns casos até tintura
dos cabelos”
92
Uma matéria da revista Ele Ela intitulada “Até que ponto o homem é feminino”,
dizia que era necessário estarem todos atentos para o fato de que depois de terem
deixado que as mulheres “lhes roubassem as calças, as camisas e os sapatos”, os
homens pareciam estar “prontos para o revide no próprio campo feminino”, o da
“futilidade”, ou, ao menos, “em tudo aquilo que a eles, até o momento, parecia fútil”: a
moda, a coqueteria e o cuidado com a aparência. Essa “revolução na estética feminina”,
dizia a reportagem, havia sido o resultado do desenvolvimento de uma civilização de
consumo”, onde o mercado dos artigos de moda e de produtos de beleza, quase
exclusivamente reservado às mulheres até poucos anos, passava a descobrir novas e
impressionantes perspectivas na clientela masculina, que, impelidos pela publicidade e
por aquilo que lhes parecia um “imperativo da sociedade moderna”, venceram suas
últimas relutâncias, sem sentirem-se afeminados. Para obter esse resultado, conta que os
publicitários apelaram, entre outras coisas, para o orgulho feminino: “como uma mulher
bem cuidada poderá suportar ao seu lado um homem que negligencia a aparência
física?”.
93
92
Idem, p. 30.
93
BETHLEN, Diana Aque ponto o homem é feminino. Ele Ela, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 8, p.
60-63, Dez. 1969, p. 61
147
Além de uma mudança na relação entre os gêneros, portanto, assim como já
havia apontado essa última reportagem da revista Ele Ela, é importante entender essas
novas preocupações com o corpo e com a aparência como parte do desenvolvimento da
sociedade de consumo e dos meios de comunicação de massa, através dos quais a
publicidade lançava perfumes, xampus, loções s banho, cremes, filtros solares,
maquilagens, além dos cosméticos masculinos, como espuma de barbear, loção s-
barba, gel fixador para os cabelos e desodorantes. Além da indústria de cosméticos, os
fabricantes de lingerie e roupas íntimas, para mulheres e homens, também
empreenderam grande esforço publicitário na conquista do público alvo, apelando para
o ideal de beleza e felicidade simbolizado por esses produtos. Enquanto para a mulher,
ser bonita e sedutora tornava-se imprescindível para manter seu marido fiel e satisfeito
com o casamento, para o homem, cuidar da aparência sica, do vestuário e da higiene
tornava-se a garantia de sucesso entre as mulheres que, cada vez mais, passavam a
valorizar o estereótipo masculino, para além dos valores antes exaltados na hora de
escolher um namorado ou um futuro marido, como a disposição para o trabalho, os
laços de família, a honestidade e a valentia.
94
Assim sendo, embora as revistas Manchete, Realidade e Ele Ela tenham
informado seus leitores e debatido com eles acerca das questões relativas à emancipação
feminina e dos novos padrões de relacionamento entre os sexos, mesmo nessas
ocasiões, na maioria das vezes, percebemos que elas continuaram veiculando um
discurso afinado à maneira tradicionalmente aceita de ver o mundo, em que as
mulheres, ainda que independentes financeiramente e desejosas de realizar-se em sua
vida amorosa e sexual, poderiam fazê-lo, sem, contudo, deixar de guardar zelo à sua
honra e aos valores da família cristã, assim como o homem, ainda que estive ciente das
transformações em curso no papel da mulher dentro da sociedade e disposto a adotar
alguns dos novos bitos e comportamentos introduzidos na sociedade pela indústria
cultural de massa, não deixava de figurar nas matérias publicadas por essas revistas
como o “ator principal” nas relações entre homem e mulher, nem deixava de ter
exaltadas as suas qualidades associadas à virilidade e à masculinidade.
94
PROST, Antoine et VINCENT, Gerard. Op. cit. p. 97.
148
3.2-“Santos inocentes” ou “perversos”: a juventude dos anos 1960 e os conflitos de
geração
O século XX, especialmente a partir da segunda metade, foi um período em que
comaram a despontar, em diferentes partes do mundo, algumas críticas ao sistema
familiar patriarcal. Como vimos no item anterior, a emancipação feminina que estava
em marcha naquele momento provocou mudanças nas relações familiares e na
distribuição dos pais sociais relativos a cada membro da família, o que gerou o
princípio de uma ruptura no incontestável donio dos maridos sobre esposa e filhos.
Portanto, a grande família baseada na autoridade do pai, começou a dar lugar ao lar em
que pai e mãe passavam a dividir responsabilidades e compartilhar direitos.
95
Se até a primeira metade do século XX eles vigiavam minuciosamente a vida de
seus filhos, seus relacionamentos, suas escolhas profissionais e até matrimoniais, à
medida que as mulheres foram deixando o ambiente doméstico para trabalhar fora de
casa, uma parte das tarefas antes confiadas à família e, mais precisamente, deixadas aos
cuidados das mães, como por exemplo, a educação e socialização dos filhos, foram
gradativamente sendo assumidas por instâncias coletivas, como as escolas, às quais as
crianças passaram a ser levadas cada vez mais cedo,
96
e as universidades, cujo acesso,
tanto de rapazes quanto de moças, aumentou substancialmente a partir da década de
1950, como resultado do crescimento explosivo da economia mundial, que possibilitou
a um maior número de famílias investirem na educação superior dos filhos, para que
tivessem a oportunidade de conquistar melhores empregos, além de um status social
mais elevado. Dessa forma, pode-se dizer que uma das conseqüências da emancipação
feminina, associada às maiores possibilidades de acesso à educação após a Segunda
Guerra Mundial, foi o decnio do poder absoluto dos pais sobre os filhos, que passaram
a desfrutar de um pouco mais de autonomia para efetuar suas escolhas e estabelecer suas
redes de sociabilidade.
97
Com o alargamento do período de educação e formação
profissional em espaços coletivos de ensino, criava-se uma população de rapazes e
moças que passavam boa parte do seu tempo juntos nas escolas e universidades, como
um grupo etário, que embora experimentassem condições de vida bem mais prósperas e
95
THERBORN, ran. Op. cit. p. 22 e 114.
96
PROST, Antoine et VINCENT, Gerard. Op. cit. p. 61.
97
Idem, p. 71, 72.
149
promissoras que a que seus pais haviam conhecido na juventude, não deixaram de
desenvolver uma consciência crítica a respeito dos problemas do seu tempo.
98
Os mais velhos, contudo, acostumados aos tempos em que as oportunidades
eram mais limitadas, andavam satisfeitos com as novas possibilidades de acesso a
produtos e serviços que, até meados da década de 1950, eram um privilégio dos mais
ricos e, por isso, não conseguiam compreender a razão da insatisfação de uma parcela
daqueles jovens que, em alguns casos, optavam pelo radicalismo potico e
comportamental.
99
Esses, por sua vez, crescidos no pós-Segunda Guerra, à sombra de batalhas
nucleares entre EUA e URSS que, acreditava-se, poderiam estourar a qualquer
momento,
100
ao mesmo tempo em que seus sentidos eram constantemente
bombardeados, desde cedo e em ritmo cada vez mais acelerado, por uma variedade de
estímulos e informações produzidos pelas inovações científico-tecnológicas,
101
tornavam-se cada vez mais angustiados e impacientes com a prudência dos mais velhos
– tanto seus pais quanto seus mestres em conservar antigas convenções e em manter o
status-quo. Essa diferença de mentalidades, inescapavelmente, provocou uma série de
contradições que levaram a um choque entre essas duas gerações.
102
Diante dessas circunstâncias internacionais, a preocupação em conhecer o que os
jovens brasileiros estavam pensando, fazendo e planejando levou a revista Realidade a
anunciar para setembro de 1967 a publicação de uma edição especial sobre a “juventude
brasileira” e justificava essa iniciativa dizendo que num país onde a metade da
população era constitda de menores de 21 anos, tornava-se premente traçar um perfil
dessa juventude. Por isso, fazia um apelo para que aqueles que tivessem mais de 15
anos e menos de 25, lessem, estudassem e respondessem ao questiorio de 19
perguntas publicado naquela edição e que, independente da idade, os leitores enviassem
cartas com sugestões para a edição especial que preparavam.
103
Em setembro, como haviam anunciado, chegou às bancas a edição especial de
Realidade sobre a juventude brasileira, na qual a jornalista Carmen da Silva publicou
98
HOBSBAWM, Eric, Op. cit. p. 289-296.
99
Idem.
100
Idem, p. 224.
101
Entrevista com Ofélia Boisson. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 652, p. 100-102, 17 Out.
1964.
102
Inquérito Manchete-Ibope. Porque se rebelam os estudantes? Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch,
n. 835, p. 144-147, 20 Abr. 1968.
103
Convite ao leitor. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n.16, Jul. 1967.
150
uma crônica falando do conflito de gerações e de como essa briga, antiga, vinha se
repetindo, “ao longo dos séculos e milênios”, nas sociedades de todo o mundo. Ela
afirmava que a “rebeldia dos jovens” como reação ao “conservadorismo dos mais
velhos” não era uma exclusividade da juventude da década de 1960, mas algo
tradicional” na relação entre os mais moços e os mais antigos. Entretanto, ela se fazia o
seguinte questionamento: se toda aquela crise entre duas gerações era “mera repetição
do passado”, como se explicaria “tanta preocupação com a mocidade atual”, tanta
pesquisa, tanta manchete, “tanta onda”? E em resposta à sua indagação disse que o que
havia de “novo” era o contexto cultural da década de 1960 e que isso não era, “de
nenhum modo”, um dado secundário, já que, do seu ponto de vista, era preciso levar em
conta a realidade do mundo para que se pudesse ter uma visão mais objetiva da rebeldia
juvenil, tal como ela se apresentava naquele momento.
104
a psicóloga Ofélia Boisson, numa entrevista à revista Manchete, disse que o
choque entre pais e filhos resultava daqueles quererem enquadrar dentro de certas
normas e hábitos “seres em plena ebuliçãoe em “clima de transformação acelerada”.
Assustados, ou muitas vezes deslumbrados, diante das mudanças de seu tempo e da
responsabilidade de corresponder às expectativas que seus pais lhes depositavam,
pediam a compreensão dos mais velhos e, entretanto, eles lhes ofereciam
tempestades”.
105
Descontentes” com a situação política e social do mundo, “alarmados” diante
do tênue equilíbrio entre duas superpotências equipadas com armas nucleares, pelo
triunfo de regimes comunistas, pela emergência de governos ditatoriais e pelas
manifestações em defesa dos direitos civis de negros, mulheres e homossexuais, ao
mesmo tempo em que se sentiam estimulados” a aproveitarem as novidades e maiores
liberdades proporcionadas pelo mundo moderno, alguns jovens começaram a questionar
os valores de seus pais e a perder a na experiência daqueles que lhes precederam e
que viam como subversiva a atitude dos que buscavam romper com antigas convenções
e idéias consideradas ultrapassadas. Segundo Edgar Morin, naquele momento a
experiência dos velhos se tornou “lengalenga desusada”, “anacronismo”. O ideal para
104
SILVA, Carmen da. O conflito de gerações. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n. 18, p. 44-52, Set.
1967.
105
Entrevista com Ofélia Boisson. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Abril, n. 652, p. 100-102, 17 Out.
1964, p. 101.
151
alguns, portanto, deixava de ser a sabedoria acumulada e passava a ser a adesão aos
valores cultuados pela juventude.
106
Em uma entrevista concedida ao repórter Narceu de Almeida, da revista
Manchete, o embaixador britânico no Brasil, Sir John Russel, analisou o problema da
oposição entre as gerações de pais e filhos como sendo uma das conseqüências da II
Guerra Mundial:
Os jovens tornaram-se adultos muito depressa, durante a guerra. Foram forçados a crescer
como plantas numa estufa. Começaram a trabalhar mais cedo, passaram a ganhar salários
mais altos e ficaram independentes, do ponto de vista financeiro. Esse processo se acentuou
com o desenvolvimento industrial. Lançados na vida, eles formaram suas próprias opiniões
e gostos e estilos de vida, libertando-se das velhas gerações. Isso produziu uma saudável
independência e um novo sistema de padrões. Trata-se de uma rebelião contra a mofada
imagem do chapéu-côco, do guarda-chuva enrolado e do pai vitoriano, e acho isso
esplêndido, acho que assim é que deve ser.
107
E essa rebelião da juventude contra imagens e mitos já “mofados” de ser vista
pelos leitores da revista Manchete, por exemplo, numa matéria que falava sobre a nova
aparência das ruas e lojas da tradicional Londres, após ela ter se rendido ao “poder dos
jovens” e, então, substituído os “velhos signos vitorianos” pelos novos ícones, cores e
ritmos da juventude:
Até há alguns anos atrás, Londres provocava em todo mundo certas associações de idéias
clássicas: monarquia, tradição, cdas cinco, fog e ruas sombrias, mordomos e carruagens,
cartolas e chapéus gelot, Rolls-Royces e aristocratas, a rainha dos mares, o sol nunca se põe
sobre as terras do império britânico. (...) Surgem eno os jovens, cavalgando uma
revolução latente muito tempo. Hoje, Londres lembra os Beatles, Mary Quant a mini-
saia, a moda para frente de Carnaby Street e King’s Road, Jean Shrimpton e Twiggy e Julie
Driscoll, o novo teatro e o novo cinema ingleses. Para alguns, esses são os frutos da
alienação e da decadência; para outros, a semente da renovação e do futuro. Mas os jovens
londrinos ignoram o debate e vão promovendo o seu happening ambulante.
108
As fotos que se seguem a essa descrição mostram que aos sábados a King’ Road,
no bairro de Chelsea, tradicional por acolher as mais famosas butiques londrinas e por
ter sido o ponto de encontro de artistas e intelectuais como Mark Twain e Oscar Wilde,
agora tornava-se o centro de atração da nova juventude de Londres, que por ali
desfilava, em seus carros “envenenados”, os mais exóticos trajes da moda psicodélic.
109
Ao longo da década de 1960 as revistas Manchete, Realidade e Ele Ela tamm
apresentaram inúmeras matérias com resumos de livros recém-publicados que
106
MORIN, Edgar. Op. cit. p.147.
107
ALMEIDA, Narceu de. A serviço de sua Majestade. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.789, p.
100-101, 03 Jun. 1967.
108
ANDRADE, Alécio de. Londres: os jovens no poder. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 841,
p. 44-53, 01 Jun. 1968, p. 44.
109
Idem.
152
procuravam orientar a relação entre pais e filhos,
110
entrevistas com psicólogos e
pedagogos interessados nos problemas da juventude e da família,
111
além de pesquisas
de opinião ou debates realizados entre jovens,
112
com o objetivo de mostrar aos seus
leitores quais eram suas expectativas, suas críticas e seus medos em relação ao mundo
em que viviam. Por outro lado, esses periódicos também se preocuparam em mostrar o
que os mais velhos pensavam da nova geração e, através de uma pesquisa nacional de
opinião pública, a revista Realidade, por exemplo, revelou aos seus leitores que a
maioria dos entrevistados – todos com mais de 45 anos – condenavam o comportamento
dos jovens, mas que, ainda assim, gostariam de voltar aos 20 anos naquele momento e
experimentar o clima de “liberdade” e “revolução” em que viviam.
113
Algumas crônicas publicadas nesses três periódicos também procuraram retratar
de que maneira o conflito ideológico entre aquelas gerações esteve presente em
situações do cotidiano, como por exemplo, a do colunista social Ibrahim Sued que,
referindo-se à vida noturna da zona sul carioca em 1967, dizia que rapazes e moças,
numa faixa de 15 a 20 anos iam, pouco a pouco, ocupando os lugares dos adultos e
invadindo territórios até então proibidos “pela lei ou pela moral vigente”. Ele lembrava
que no tempo da “caão melodiosa”, os templos da noite carioca eram o “Bom
Gourmet”, onde as sextas o smoking era traje obrigatório, o Sacha’s”, onde Sacha
Rubin dedilhava blues, valsas e até boleros ao piano, o “Top Club” e o “Vogue”,
famoso pela sua freqüência de paletó e gravata. Mas com a chegada do “iê-iê”, dos
Beatles e da mini-saia, tudo começou a mudar e a geração “pão-com-cocada” começou
a “mandar a sua brasa” no Rio, enquanto coroas e balzaquianas” de 30 anos para
cima – foram forçadas a se encolher ou a correr o risco de passarem vergonha ao
tentarem se mostrar atualizadas. Nas novas casas noturnas, “totalmente remodeladas
110
Ver por exemplo: Simone de Beauvoir: o elogio à velhice. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.
934, p. 124-129, 14 Mar. 1970; Porque odiamos nossos pais. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.
969, p. 36-42, 04 Nov. 1970; Cada adolescente é um problema. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch,
n. 891, p. 44-47, 17 Maio 1969.
111
Ver por exemplo: Entrevista com Ofélia Boisson. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 652, p.
100-102, 17 Out. 1964
112
Ver por exemplo: A edição especial da revista Realidade de setembro de 1967 sobre a juventude
brasileira; Inquérito Manchete-Ibope. Porque se rebelam os estudantes? Manchete, Rio de Janeiro:
Editora Bloch, n. 835, p. 144-147, 20 Abr. 1968; TUMSCITZ, Gilberto. Os jovens estão na deles.
Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 981, p. 46-50, 06 Fev. 1971; RITA, Chico Santa. Os velhos
invejam os jovens. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n. 48, p. 44-51, Mar. 1970; RACHEL, Vera. A
geração dos 20 anos. Ele Ela, Rio de Janeiro: Editora Bloch n. 11, p. 52-56, Mar. 1970; AMARAL,
Carlos Soulié. Qual é a (moral) deles? Realidade, São Paulo: Editora Abril, n. 52, p. 120-129, Jul. 1970.
113
RITA, Chico Santa. Os velhos invejam os jovens. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n. 48, p. 44-51,
Mar. 1970.
153
para receber a brotolândia”, nada de músicas românticas para dançar a dois, ou um bom
papo acompanhado de um drink tranqüilo. A “nova bossa”, dizia o colunista, era se
“sacudir freneticamente”, afastados uns dos outros, ao som de guitarras elétricas, usando
roupas coloridas e exibindo “vastas cabeleiras”. Quanto aos moralistas que se
escandalizavam com os novos gostos e costumes dos jovens da cada de 1960, ele
pedia que se lembrassem de sua juventude e dos lugares que costumavam freqüentar,
onde a música tocada era aquela que gostavam de ouvir e as danças eram aquelas que
sabiam dançar. Aos que se “horrorizavam” vendo as mocinhas de mini-saia, lembrava-
os de que havia sido eles também que, durante a juventude, puderam ver com
entusiasmo o biquíni aparecer pela primeira vez em Copacabana.
114
O escritor e jornalista Rubem Braga, por sua vez, numa crônica publicada na
revista Manchete, confessou não ter nada contra “as novas bossas dos jovens” e que
embora muitas pessoas “de certa idade” torcessem o nariz aos cabeludos, barbudos e às
jovens de jeans apertado, na sua opinião, sempre haveria algo de novo a aprender com
eles.
115
Mas na maioria das vezes, as matérias publicadas nos periódicos que analisamos
procuraram ressaltar que dentro daquele conflito de gerações o que chamava a atenção
era a luta que alguns jovens travavam contra as convenções sociais estabelecidas e, além
disso, destacavam freqüentemente que um dos fatores que diferenciava a rebeldia dos
jovens daquela geração da rebeldia dos jovens de gerações anteriores, era a sua total
rejeição à experiência e sabedoria dos mais velhos, bem como o desejo de abrir novos
caminhos e reconstruir a sociedade a partir de novos valores e princípios, em que o
indivíduo fosse valorizado em detrimento dos padrões de comportamento esperados de
cada grupo, que não mais se justificavam diante dos novos estilos de vida anunciados
pela modernidade.
116
Mais que um “colapso” nas relações entre duas gerações, esses periódicos
anunciaram “a rebelião universal dos jovens” e, como veremos mais detalhadamente a
114
SUED, Ibrahim. O Rio de 7 às 7. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 801, p. 152-156, 26
Ago. 1967.
115
BRAGA, Rubem. Da juventude e suas baldas. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 803, p.
116, 09 Ago. 1967.
116
Do Bureax em Paris, Nova Iorque e Roma. A rebelião universal dos jovens. Manchete, Rio de Janeiro:
Editora Bloch, n. 834, p. 16-23, 13 Abr. 1968, p. 18.
154
seguir, as diferentes formas e ambientes onde puderam ser experimentadas ou
simplesmente observadas
117
:
Descrevendo o clima de contestação da juventude da década de 1960, um
repórter da revista Manchete procurou alertar seus leitores dizendo:
O mundo está inquieto: nas cidades, os jovens agitam as bandeiras negras do anarquismo,
num ruidoso desafio às autoridades constituídas, enquanto outros se rnem, em suas
comunas bucólicas, ao som das guitarras, para um protesto menos espetacular. É a
contestação que avança sobre os valores tradicionais da sociedade ocidental. Até onde
pretendem ir os contestatários? Até quando a poderosa quina da sociedade industrial se
revelará incapaz de detê-los, cortando o seu sonho psicodélico e a sua fuga sem destino
ou no rumo de uma nova ordem social?
118
Embora o cenário das maiores e mais radicais expressões de revolta dos jovens
contra o establishment tenha sido os anos 1960, nos anos 1950, especialmente nos
Estados Unidos, alguns jovens começaram a confrontar os velhos padrões sociais e o
status quo, tão caros às gerações anteriores que, naquela ocasião, experimentavam dias
mais prósperos e de maior estabilidade em relação ao período de recessão econômica
que se seguiu à grande depressão dos anos 1930 e se estendeu até o fim da Segunda
Guerra Mundial.
119
A maioria dos jovens americanos, diz o historiador Terry Anderson a respeito
dos anos 1950, não demonstrava grande interesse em relação a problemas que, na
década de 1960, estimulariam o debate e até mesmo o protesto, como por exemplo, a
Guerra da Coia, o crescimento vertiginoso do arsenal nuclear das potências mundiais,
os testes atômicos, os direitos civis de minorias desprivilegiadas como negros, mulheres
e homossexuais, e o digo de moral pública, segundo o qual, deveria haver um padrão
de comportamento específico para as moças e outro para os rapazes. Entretanto, a glória
e a prosperidade norte-americana nos chamados “Anos de Ouro”, tão exaltadas pela
mídia e pelas autoridades, passaram a incomodar uma minoria que começou a perceber
a necessidade de confrontar o Sonho Americano”, o conformismo social e as velhas
117
Do Bureax em Paris, Nova Iorque e Roma. A rebelião universal dos jovens. Manchete, Rio de Janeiro:
Editora Bloch, n. 834, p. 16-23, 13 Abr. 1968.
118
ALVES, Ivan. A contestação. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.1001, p. 94-99, 26 Jun.
1971.
119
ANDERSON, Terry. The movement and the sixties. Protest in America from Greensboro to Wounded
Knee. New York: Oxford University Press, 1995, p. 21-39.
155
instituições que regulavam a liberdade dos indivíduos em diversas esferas da vida
pública e privada.
120
Imbuídos desse espírito de rebeldia contra os padrões de comportamento e o
estilo de vida daqueles que acreditavam viver “os dias mais felizes de suas vidas”, os
Beatniks se destacaram no cenário americano da década de 1950 por ridicularizarem e
rejeitarem a sociedade de consumo, adotando um comportamento indisciplinado e uma
aparência que destoavam dos rígidos digos de ética e de vestimenta da sociedade da
época.
121
Nascida sobre os escombros da Segunda Guerra Mundial, a Beat Generation foi
produto da cultura de Guerra Fria, que na década de 1950 disseminou na sociedade
norte-americana o medo de uma nova depressão econômica e a histeria diante de uma
“suposta” ameaça comunista, fatores que serviriam de justificativa para as tentativas de
uniformização das práticas cotidianas e o crescente controle do Estado sobre a vida dos
indivíduos. A rebeldia dos beatniks, portanto, era contra a autoridade do Estado e das
autoridades erigidas, contra as “estruturas esclerosadas” que regiam a sociedade e os
chavões moralistas, que viam as mudanças de hábitos e costumes como uma ameaça à
segurança e à prosperidade nacional.
122
Numa matéria publicada na revista Manchete, em 1971, o jornalista Ivan Alves
dizia que os beatniks não haviam sido um fenômeno exclusivo dos Estados Unidos, mas
que em todas as partes do mundo os jovens estavam se manifestando de maneira
semelhante contra as “ameaças” da moderna sociedade de consumo e contra as crenças
das gerações mais velhas, destacando-se na Inglaterra os Teddy Bear, no Japão os Sun
Tribers e na Holanda os Provos.
123
Greenwich Village, em Nova Iorque e as praias do Norte, em São Francisco,
foram os principais pontos de encontro desses jovens de barbas compridas e roupas
extravagantes, que fumavam maconha e liam poesia de protesto no intuito de
demonstrar sua rejeição à sociedade moderna e de atacar a retórica “alienante” da
cultura de Guerra Fria difundida pelos grupos que estavam no poder e pelos setores
sociais mais conservadores. Entre seus principais expoentes estiveram os amigos Allen
120
Idem, p. 32. Ver mais a respeito da “Cultura de Guerra Friaem: ANDERSON, Terry. Op. cit. p. 03-
41. Ver também: O dilema dos jovens americanos. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 888, p.
08-11, 26 Abr. 1969.
121
Idem p. 35-36
122
Ver mais a respeito da “Cultura de Guerra Fria” em: ANDERSON, Terry. Op. cit. p. 03-41.
123
ALVES, Ivan. A contestação. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 1001, p. 94-99, 26 Jun.
1971, p. 97.
156
Geinsberg
124
, Jack Kerouac
125
e William Boroughs
126
, alunos da Universidade de
Colúmbia, em Nova Iorque, que, embora fizessem parte de uma minoria dentro da
sociedade norte-americana, ganharam notoriedade na imprensa nacional e internacional
por seu comportamento desviado, destoante da maioria dos jovens daquele país, que
naquele momento pensavam e agiam de maneira semelhante aos seus pais e cujas metas
principais eram erigir uma carreira próspera e garantir a segurança da família que iriam
construir.
127
A revista Manchete, em 1967, publicou um texto de autoria do poeta italiano
Salvatore Quasimodo, Prêmio Nobel de Poesia em 1964, no qual ele reproduzia o
diálogo que havia tido com Allen Geinsberg, o poeta dos Beatniks, quando este, de
passagem por Milão, o procurou para uma conversa.
128
Segundo Quasimodo, Geinsberg desfilava pelo mundo como um sábio estóico”,
disseminando as suas experiências que o levavam a atritar-se, constantemente, com os
políticos e com a lei, resultando-lhe em seguidas prisões, processos e absolvições.
Estava sempre nadando contra a corrente, no que se referia a questões sociais e sexuais,
defendendo os “toxicomaníacos” e entregando-se às sensações produzidas pelos
paraísos artificiais”, conforme os ensinamentos extraídos das filosofias e religiões
orientais e budistas. Seu objetivo era, através da sua poesia lírica e da música, modificar
o mundo e torná-lo melhor, devolvendo ao corpo a poesia e a vida ao indivíduo.
129
Quasimodo dizia que Geinsberg revelou a ele ter ganhado muito dinheiro com a
venda de seus livros de poesia, especialmente Howl
130
, lançado em 1955, e que com
esse dinheiro de comprar um terreno onde construiu uma casa de campo, na qual
124
Allen Geinsberg, o poeta Beatnik, ganhou popularidade a partir de 1955 com seu poema Howl”,
considerado obsceno e pornográfico conforme os padrões morais da sociedade norte-americana da época,
ao qual se seguiram outros poemas importantes, nos quais fazia severas críticas à sociedade e seus
valores. Durante sua viagem pelo mundo descobriu o budismo e aceitou a orientação espiritual do guru
tibetano Rinpoche e já na década de 1960, enquanto sua celebridade crescia, passou a figurar em diversos
eventos hippies de protesto contra a Guerra do Vietnam e ao lado de Thimoty Leary, ajudando-o a
divulgar os poderes de cura do Ácido Lisérgico (LSD).
125
Jack Kerouac foi autor do romance On the road”, considerado a “bíblia dos hippies”, escrito em três
semanas enquanto viajava pelos Estados Unidos e durante as quais esteve sob efeito constante de
alucinógenos.
126
William Boroughs foi autor de obras de ficção de caráter autobiográfico, nas quais representava uma
atmofesra fantástica e grotesca proveniente das suas experiências com uso de alucinógenos.
127
Idem, p. 17-19 e 35-38.
128
QUASIMODO, Salvatore. O Nobel e o Beatnik. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.813, p.
148-149, 18 Nov. 1967.
129
Idem.
130
Em Howl, poesia que levava o mesmo título do livro, Geinsberg descrevia os Estados Unidos
usando as seguintes palavras: “Molosh! Solitude! Filth! Ugliness! Ashcan and unobtainable dollars!
Children screaming under stairways! Boys sobbing in armies! Old men weeping in the parks!”. Ver:
ANDERSON, Terry. Op. cit. p. 36.
157
vivia em coletividade com místicos, praticantes de ioga e artistas viciados em tóxicos,
uma espécie de Cidade do Sol ou civilização pré-Babel”, na qual o poeta seria o
“monarca absoluto”.
131
O texto de Quasimodo, portanto, permitia que os leitores conhecessem um pouco
melhor a ideologia e o cotidiano dos Beatniks, que, segundo uma reportagem de Raul
Caldas, também para a revista Manchete, haviam espalhado seu estilo de vida pelo
mundo, inclusive pelo Brasil, onde influenciaram um grupo de jovens, originários de
diversas partes do país, que viviam agrupados no Rio de Janeiro com o objetivo de levar
à frente um movimento que lhes desse “liberdade total para “viver, amar e criar”.
Composto por rapazes e moças, todos de cabelos longos, barbas compridas, vestindo
roupas extravagantes, crucifixos e símbolos que representavam a fraternidade universal,
esses jovens “sem família, sem Deus, e pela liberdade”, segundo o repórter, deixavam
suas casas, seus pertences e saíam pelas ruas do Rio de Janeiro “levando o espantoaos
que passavam. Viviam num casarão abandonado, cedido ao grupo por um proprietário
sob a condição de que eles mostrassem um resultado positivo de sua permanência no
lugar. Sem luz e sem água, localizado no meio de uma encosta cercada por densa
vegetação, lá realizavam, “entre beijos e bebidas”, obras de artesanato que vendiam para
comer, liam e escreviam poesias, além de dividirem entre si o serviço doméstico e a
busca, em quintais alheios, de frutas e verduras que complementassem sua alimentação.
Dessa forma, dizia a reportagem, eles pretendiam fugir dos condicionamentos sociais,
dos compromissos pré-estabelecidos, dos preconceitos “bocós” e “regras ultrapassadas”
que, na opinião deles, serviam para restringir a real liberdade de criação e de
escolha do indivíduo. Embora estivessem isolados da sociedade, o pretendiam romper
totalmente com ela, o pregavam a violência nem a revolta, nem queriam realizar
passeatas ruidosas em defesa do direito de andar cabeludos”, mas apenas encontrar-se
artisticamente, livres das obrigações maçantes e da “disciplina burguesa retrógrada”. A
reportagem mostrava que alguns dos integrantes do grupo eram filhos de famílias ricas,
haviam estudado nas melhores escolas e viajado pela Europa e que, apesar disso,
abandonaram tudo para viver uma vida simples, que lhes permitisse conhecer melhor a
si mesmos e encontrar sua “força interior”.
132
Se os Beatniks Cariocas” existiram de
fato, não podemos afirmar, uma vez que não encontramos qualquer outra referência a
131
Idem.
132
CALDAS, Raul. Os beatniks cariocas. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 782, p. 30-33, 15
Abr. 1967.
158
eles nos periódicos do período ou qualquer outro tipo de registro a esse respeito.
Entretanto, independente da veracidade do conteúdo da matéria, vale a pena destacar
que aquele grupo de rebeldes da década de 1950 se tornou notícia no Brasil,
especialmente no início da década de 1960, quando, segundo a reportagem de Bonnie
Frier, parte deles começou a buscar um rumo para as suas contestações, iniciando uma
transformação no movimento beat rumo à filosofia hippie, em torno da qual se reuniram
variados movimentos de contestação de diferentes partes do mundo: os Blue Angels, os
Provos, e os membros do grupo Hog Farm, que, custeados por alunos da Universidade
de Los Angeles, rolavam pelas estradas americanas em seis ônibus velhos e seis
calhambeques, nos quais adultos, crianças e animais viviam em conjunto, num ambiente
“sujo” e de “total promiscuidade”, onde as drogas eram um “elemento sempre
presente”.
133
Ao contrário dos Beatniks, vistos como poetas vagabundos, desajustados e
enraivecidos, que desprezavam a higiene pessoal, os hippies consideravam-se a si
mesmos almas amorosas, em busca da libertação de sua consciência smica,
134
ainda
que igualmente despreocupados em relação à higiene e à maneira de se vestir, pois,
conforme uma jovem hippy contou a um repórter da revista Realidade, eles pretendiam
fazer com que as pessoas não julgassem mais a masculinidade ou o caráter dos outros a
partir da aparência, pois só assim poderiam enxergar o “verdadeiro eu” de cada um.
135
Segundo a revista Realidade, a explosão hippy aconteceu em 1967, quando
todas as “tribos” foram convidadas a se reunirem em São Francisco da Califórnia para
entoar hinos hindus ao som de sininhos, cítaras e flautas, enquanto mulheres e crianças
pintadas distribuíam flores entre os que chegavam. Desde então, dizia o repórter, o
movimento hippy o iria parar de “assombrar” a América e o mundo.
136
Fato é que, em
1969, a revista Realidade publicou dados que afirmavam existir, só nos Estados Unidos,
mais de 500 mil jovens que haviam optado por viver à margem da sociedade e rejeitar
os princípios que orientavam a maioria dos americanos, através de uma conduta
aparentemente” original, que provocava espanto e curiosidade nos observadores e
133
FREER, Bonnie. Eles vivem como loucos. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 892, p. 60-63,
24 Maio 1969 e MENDES, Lucas. Lar doce ônibus. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 944, p.
124-128, 23 Maio 1970.
134
A mesma definição da diferença entre beatniks e hippie, aparece tanto na revista Manchete n. 818, de
23 de dezembro de 1967, como na revista Realidade, n. 23, de fevereiro de 1968. Ver: ALMEIDA,
Narceu de. A mansa loucura dos hippies. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 818, p. 66-70, 23
Dez. 1967 e Façam amor, não guerra. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n. 23, p. 110-116, Fev. 1968.
135
“Façam amor, não guerra”. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n. 23, p. 110-116, Fev. 1968.
136
Idem.
159
chamava a atenção de sociólogos, psilogos e educadores preocupados em entender
tipos de “anomalias sociais”, dentre as quais estava incluído o movimento hippy.
137
Tendo em vista explorar a curiosidade a respeito do tema e assim atrair mais
leitores, essas revistas procuraram, por exemplo, apresentar reportagens que falavam a
respeito das origens remotas dos hippies e, nesse intuito, contaram a história de
personalidades e grupos sociais que, em outras circunstâncias e em épocas distantes,
vivenciaram comportamentos e filosofias de vida semelhantes às daquele grupo, como
fez a revista Realidade, ao contar a trajetória de homens famosos que muito antes dos
hippies aparecerem na Califórnia ou em Nova Iorque, já haviam pregado a necessidade
de uma revolução cultural e do desapego aos valores burgueses, tais como Rimbaud,
Baudelaire e Henry Murger.
138
a revista Ele Ela lembrou que, embora muita gente se
espantasse com a liberdade e aparente promiscuidade dos hippies e considerasse a sua
existência um fenômeno dos tempos modernos, há muitos séculos os ciganos”, um
povo “nômade, enfeitado e adepto do deixar para amanhã o que pode ser feito hoje
vivia “mais ou menos” como viviam as comunidades hippies daquele momento.
139
Um aspecto que a maioria das reportagens procurava esclarecer era a origem
daquele movimento, quem eram seus seguidores, como e onde viviam, quais eram suas
crenças, suas formas de protesto e, principalmente, quais os efeitos que aquele “mundo
estranho
140
poderia provocar dentro da sociedade. O que diferenciava essas reportagens
entre si, é que enquanto algumas atribuíam ao movimento hippy e aos seus protestos um
aspecto poético, bucólico e, algumas vezes, inocente, outras se referiam às suas
manifestações com um tom ameaçador e intimidador, preconizando os aspectos
negativos da rapidez com que o movimento crescia nos EUA e espalhava pelo mundo
sua filosofia e estilo de vida.
Segundo Narceu de Almeida, os hippies eram líricos, que rejeitavam a sociedade
moderna em favor de um mundo poético dominado pelo amor, as flores, as cores, o
contato com a natureza, a simplicidade da vida, a inexistência de quaisquer
preconceitos, convenções e fronteiras, o livre uso de alucinógenos, a ausência de
compromissos e uma liberdade absoluta. Sua “mansa loucura”, produto de uma “época
137
MUGI, Roberto. Os hippies do passado. Realidade, São Paulo:Editora Abril, n. 41, p. 88-96, Ago.
1969.
138
Idem.
139
Os ciganos: os hippies mais antigos do mundo. Ele Ela, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 20, p. 148-
154, Dez. 1970.
140
Façam amor, não guerra. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n. 23, p. 110-116, Fev. 1968.
160
desvairada”, os levava a abandonarem suas casas pequeno-burguesas” e se porem a
percorrer o mundo com a pretensão de torná-lo “menos cruel”.
141
Num depoimento publicado pela revista Realidade, uma jovem hippy declarou
que se os soldados do Vietnam lutavam em defesa da América, os hippies, em sua luta
pacifista, defendiam a humanidade, sem nenhum fim potico, apenas “em nome da paz
e da felicidade, no momento e no lugar presente”. O jornalista Sérgio Alberto, por outro
lado, destacou que a origem do movimento nos Estados Unidos esteve relacionada a
demonstrões e passeatas a favor da ampliação dos direitos civis dos negros e contra a
guerra do Vietnam e que, no início, “pela obsessão de seus cartazes e declamações
contra a guerra”, chegaram a ser chamados de “vietniks”.
142
Narceu de Almeida,
procurou enfatizar o caráter pacífico das manifestações cotidianas dos hippies, fosse em
Washington, durante um protesto contra a Guerra do Vietnam em que depositaram
flores nos fuzis de soldados que avançavam contra eles, ou em demonstrações no met
de Nova Iorque, distribuindo flores e saudações aos passageiros e pedindo que
reservassem algum tempo do dia para o amor e as boas coisas da vida.
143
Para essa parcela da juventude norte-americana, rebelde e insatisfeita, que via
com desconfiança os conselhos das gerações mais velhas e para os quais John Kennedy
havia sido a última liderança potica na qual puderam acreditar,
144
os seus modelos de
identificação e as funções tutelares haviam desertado da família e do homem maduro e
passaram a ser encarnados pelo que Edgar Morin chamou de os “deuses de carne”, ou
“heróis imaginários” da cultura de massa.
145
Portanto, seus líderes e inspiradores, antes
um privilégio de parentes e ancestrais, passaram a ser aqueles que cantavam as
frustrações, a perplexidade e o protesto daquela geração, como Bob Dylan, os Beatles e
141
ALMEIDA, Narceu de. A mansa loucura dos hippies. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.
818, p. 66-70, 23 Dez. 1967, p. 66.
142
ALBERTO, Sérgio. A revolta lírica dos hippies. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.806, p.
124-133, 30 Set. 1967, p. 126.
143
ALMEIDA, Narceu de. A mansa loucura dos hippies. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.
818, p. 66-70, 23 Dez. 1967, p. 66.
144
Segundo Terry Anderson, para a nação norte-americana, e mais especificamente para a emergente
geração dos anos 1960, a morte de JFK foi um evento crucial. Após alguns anos de uma retórica liberal,
especialmente no que diz respeito a promessas em benefício dos direitos civis das minorias menos
favorecidas, a morte inesperada de Kennedy fez com que ele se transformasse numa espécie de rtir da
luta pela igualdade racial e pelos direitos civis das minorias. Os seus admiradores ocuparam-se de
disseminar essa imagem e durante a década de 1960 era possível, inclusive, encontrar um retrato seu
pendurado na parede da casa de pessoas negras. Entretanto, mais tarde, historiadores demonstraram que
embora JFK demonstrasse simpatia pelos direitos civis e prometesse agir em sua defesa, geralmente
esteve ausente das decisões referentes a este tema, estando mais interessado na política e nos negócios
internacionais. Ver: ANDERSON, Terry. Op. cit. p. 75.
145
MORIN, Edgar. Op. cit. p. 152, 156.
161
Johan Baez; os que lhes revelavam o “bravo mundo novo” das drogas e do erotismo,
como o escritor inglês Aldous Huxley e o americano Henry Miller; os que denunciavam
a violência da sociedade e marchavam contra a Guerra do Vietnam, como o jornalista e
escritor Norman Mailer e o poeta dos Beatniks Allen Geinsberg; e aqueles que
convidavam à meditação e à valorização espiritual, como os Swamis hindus, além de
Jesus Cristo e São Francisco de Assis, as duas únicas figuras do catolicismo que foram
aceitas pelos hippies como heróis e modelos de conduta.
146
Entre as matérias publicadas nestas revistas, algumas procuraram, além de
esclarecer suas origens, descrever o cotidiano dos hippies, especialmente os de Nova
Iorque, onde o principal ponto de concentração era a Topkins Square, no East Village.
Segundo o repórter Sérgio Alberto, o East Village era, “até a chegada dos hippies”, um
bairro tranilo, habitado quase todo por emigrantes poloneses. Mas desde a chegada
daqueles, e à medida que iam se multiplicando, expulsavam os primitivos habitantes
que, zelando por seus filhos, não queriam vê-los “contaminados” pelos “maus hábitos”
de seus novos vizinhos.
147
Mais tarde, em dezembro de 1967, Narceu de Almeida dizia
que os hippies de East Village, embora pregassem a não violência” estavam sendo
“forçados” a pegarem em armas canivetes, soco-inglês e porretes para se
defenderem dos antigos moradores porto-riquenhos, que os atacavam por sentirem-se
ameaçados em seu antigo habitat pelos “floridos invasores”.
148
Entretanto, um acontecimento chamou a atenção do mundo para o movimento
hippy e despertou uma série de discussões acerca dos possíveis riscos que poderia
representar para a sociedade, ainda que a sua bandeira fosse a da paz e o seu lema “paz
e amor”. Em janeiro daquele ano a revista Ele Ela publicava uma nota informando seus
leitores a respeito dos assassinatos cometidos em Los Angeles pela “Família Manson”,
uma seita satânica fundada por Charles Manson, que em 1969 invadiu a casa do diretor
de cinema Roman Polanski e assassinou sua esposa grávida, a atriz Sharon Tate, e mais
quatro amigos do casal, repetindo o mesmo ato na noite seguinte, quando assassinou o
casal de empresários LaBianca, após ter invadido sua casa. O objetivo dos assassinatos
planejados por Charles Manson era comar uma “guerra apocaliptica”, segundo ele, a
146
ALMEIDA, Narceu de. A mansa loucura dos hippies. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.
818, p. 66-70, 23 Dez. 1967, p. 66.
147
ALBERTO, Sérgio. A revolta lírica dos hippies. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.806, p.
124-133, 30 Set. 1967, p. 128.
148
ALMEIDA, Narceu de. A mansa loucura dos hippies. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.818,
p. 66-70, 23 Dez. 1967, p. 69.
162
maior travada na terra, denominada Helter Skelter, que era o mesmo nome de uma
canção dos Beatles que havia sido lançada no ano anterior. Diante desses fatos, a
imprensa norte-americana começou a proclamar a violência do movimento hippy, ao
qual a seita de Charles Manson foi associada pelo estilo de vida nômade e alternativo
que ele e seus seguidores levavam.
149
Entretanto, a nota publicada na revista Ele Ela, ao
contrário, afirmava que o “massacre de Los Angeles” não poderia servir de condenação
ao movimento hippy, constituído por uma “maioria basicamente pacífica”. A “beleza
plástica”, a autenticidade e a liberdade dos hippies foram apontadas como fatores
positivos do movimento e o seu protesto através de roupas extravagantes, flores
espalhadas pelo corpo e do lema “Faça amor, não faça guerra” assinalados como formas
“inócuas” de manifestar a sua insatisfação contra o “mundo injustoe “mentirosoque
as gerações anteriores lhes haviam legado. Para concluir a defesa dos hippies, a nota da
revista Ele Ela afirmava que aquele movimento era “inocente demais para ser levado a
sério” e que, se o “diabo andava solto" em Los Angeles, isso não era culpa deles.
150
O espírito pitoresco e musical dos hippies também foi exaltado nas matérias que
falavam a respeito dos seus be ins, manifestações coletivas realizadas ao ar livre, onde
cada jovem deveria comparecer com o intuito de “viver plenamente, sentir a vida em
sua totalidade e ser feliz em uníssono com as vibrações íntimas de seus amigos e de
todo o universo”. O jornalista Narceu de Almeida contou em sua matéria para a revista
Manchete, que, nessas ocasiões, os jovens trocavam presentes, flores, abraços e beijos,
dançavam, cantavam e abriam cestas de alimentos sobre a grama, convidando todos que
por ali passavam à comer com eles. Entretanto, ele observava que em um be in
verdadeiro não poderia haver qualquer tipo de protesto ou pronunciamento potico, pois
o importante para eles era cultuar a vida”.
151
Outras matérias, entretanto, mostravam
que não de contemplação viviam os hippies e que, nessas ocasiões, aproveitavam-se
do fato de seu estilo de vida ter virado moda e chegavam a cobrar cinco centavos dos
transeuntes que desejassem tirar uma foto entre eles no Central Park.
152
Dois outros aspectos que estiveram fundamentalmente relacionados à filosofia
de vida dos hippies nas matérias publicadas em Manchete, Realidade e Ele Ela foram as
149
ANDERSON, Terry. Op. cit. p. 279-281
150
O diabo anda solto. Ele Ela, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 9, p. 67, Jan. 1970.
151
ALMEIDA, Narceu de. A mansa loucura dos hippies. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 818
p. 66-70, 23 Dez. 1967, p. 69.
152
GAMMA. Françoise Hardy: hippie por um dia. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.806, p.
124-133, 30 Set. 1967.
163
questões relativas à liberdade sexual e ao uso de drogas, aos quais não foram poupadas
severas críticas e advertências de cunho, eminentemente, moralista e alarmante.
Ao descrever os hippies e sua revolta lírica”, o repórter Sérgio Alberto dizia
que geralmente eram jovens de idade entre 15 e 30 anos, cuja atitude era “a do maior
desdém” pelo que os outros pudessem pensar a respeito deles, além de um “completo
desligamento do meio social e das normas estabelecidas”, das quaisnão tomavam
nenhum conhecimento”. Procuravam não fazer nada que pudesse ser qualificado de
quadrado ou “normal”, desprezando ou ignorando toda espécie de convenções sociais,
às quais reagiam de forma direta, entoando estranhas canções orientais, queimando
incenso, distribuindo flores silvestres, adotando atitudes mentais zen-budistas e hábitos
liberais, predominando entre eles “o maior hedonismo” e a mais ampla liberdade sexual,
sem nenhuma noção de exclusivismo, partilhando dois e três rapazes a mesma moça, ou
rias moças vivendo conjugalmente com o mesmo rapaz, pois, de acordo com o
repórter, entre eles, tudo era permitido e ninguém devia satisfação a ninguém.
153
A revista Manchete, em 1971, publicou uma série de reportagens intitulada O
mundo em revolução”, e foi na terceira matéria dessa série que o jornalista Ivan Alves
falou a respeito da crescente indústria do erotismo, que, conforme a revista, estava entre
as principais revoluções do mundo moderno. De acordo com o jornalista, os hippies,
com sua filosofia de vida, o comportamento despreocupado ou mesmo insolente diante
dos valores tradicionais da sociedade, foram um dos principais elementos de
deflagração da revolução sexual. Dizia que os hippies não foram, como outros grupos,
influenciados pelo cinema, pela literatura ou pela psicologia contemporânea, porque
todas essas manifestações culturais, ao seu ver, refletiam os interesses do establishment,
fora do qual eles afirmavam estar. Em suas comunas, em suas andanças mades, dizia
o repórter, os hippies desmistificavam o sexo, vivendo numa civilização à parte, a
civilização free and easy”, com a ressalva de que embora as suas formas de
contestação já estivessem sendo superadas com o surgimento de outros tipos mais
eficazes de protesto, seus princípios e filosofia de vida continuavam influenciando
outros setores da sociedade, especialmente no que dizia respeito à liberdade sexual.
154
Além da influência dos hippies no campo da sexualidade, a sua adesão ao LSD e
outras drogas alucinógenas foi um dos fatos mais comentados e alarmados pelas
153
ALBERTO, Sérgio. A revolta lírica dos hippies. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.806, p.
124-133, 30 Set. 1967.
154
ALVES, Ivan. Erotismo. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.1003, p. 92-97, 10 Jul. 1971.
164
matérias publicadas nos três periódicos que estudamos. O fato de terem sido os
entusiastas do ácido lisérgico (LSD) e de outros alucinógenos, que, segundo eles, lhes
permitiam adquirir uma maior sensibilidade sensorial, preocupava médicos e cientistas
sociais que desconheciam quais seriam os efeitos dessas drogas nos seus futuros
descendentes.
155
De acordo com o depoimento de um hippy da Califórnia, no começo do
movimento o LSD os teria ajudado a encontrar mais depressa o caminho da verdade” e
o amor universal para com todos os homens”. Além disso, alguns asseguravam que o
ácido, juntamente com a entoação de cânticos hindus, lhes assegurava a comunicação
direta com Krishna, uma das divindades orientais adoradas pelos hippies.
156
A isso
podemos relacionar as inúmeras matérias que fizeram críticas à “passividade” e
alienação” dos hippies diante dos problemas da sociedade em que viviam e da qual
pretendiam fugir, por exemplo, através das drogas.
Indo até o Nepal, ao encontro dos hippies que iam para Katmandu, aos pés do
Himalaia, em busca da paz e do amor que pregavam como filosofia de vida, o que o
fotógrafo Peter Dahlke encontrou foi um cenário “degradante” e deprimente”, onde
jovens de diversas partes do mundo, especialmente dos Estados Unidos e da Itália,
passavam os dias sob a ação permanente de alucinógenos, que fumavam em cachimbos
ou injetavam nas veias, sem se dedicarem a nenhuma causa potica ou ideológica, nem
a fazer nada em prol dos seus países de origem, nem dos miseráveis habitantes daquele
país pobre e sem recursos, que, para eles, era um “paraíso inexpugnável”.
157
Em suas fotos, Dahlke registrou os hippies participando de cerimônias hindus,
tomando banho nos tanques blicos, vagando ou deitados pelas ruas e participando de
inúmeras atividades cotidianas dos nepalenses, mas observava que, no entanto, eram
totalmente alheios aos significados daquelas práticas, entendendo o valor e o sentido
unicamente das drogas que consumiam em níveis “impressionantes”. Embora sua
filosofia pregasse paz e amor, segundo o fotógrafo, nada faziam de concreto para
alcançar esse lema, ao contrário, se afastavam de seus países e de suas famílias e se
isolavam no Nepal, onde sobreviviam de restos de comidas recolhidos em bares e
155
Façam amor, não guerra. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n. 23, p. 110-116, Fev. 1968.
156
ALMEIDA, Narceu de. A mansa loucura dos hippies. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.
818, p. 66-70, 23 Dez. 1967, p. 69.
157
DAHLKE, Peter. O inferno dos hippies. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.978, p. 04-10, 16
Jan. 1971.
165
pequenos restaurantes, e de biscates, conseguidos com algum esforço, coexistindo,
portanto, com a pobreza e com as doenças que assolavam a população daquele país.
158
Numa pequena reportagem, muito ilustrada e colorida, a revista Realidade
também fez a sua crítica à passividade e à indiferença dos hippies diante dos problemas
da sociedade, dizendo que “Ser Hipie”, significava uma conciliação “impossível” entre
um remoto futuro de paz” e a memória da barbárie recente, era querer construir uma
civilização “super bela”, quando na prática o que se verificava era um afastamento dos
problemas desta civilização, era “simular” uma realidade para erigir seus sonhos”, o
que por uma lado era bonito, mas que na realidade, não passava de “um faz-de-conta
por vezes cruel”.
159
Essa visão se aproximava bastante à do fotógrafo francês que esteve
no Nepal e se surpreendeu ao ouvir o depoimento dos jovens que diziam ter abandonado
suas famílias porque não suportavam mais a sociedade de consumo intoxicada por
chavões e preconceitos”, e que preferiam “a paz de Katmandu”, onde diziam ter
encontrado a verdadeira felicidade, mesmo vivendo em meio à miséria e a sujeira de um
país assolado pela fome e pelo tifo.
160
Se para os hippies o Nepal representava um “paraíso inexpugnável”, na mídia o
paaís ficou conhecido como o “inferno das drogas”, conforme o tulo de uma outra
reportagem da revista Manchete, onde foi publicada uma entrevista com o cineasta
André Cayatte, que assim como o fotógrafo Peter Dahlke, viajou àquele país para filmar
Os caminhos de Katmandu”, onde iria tratar dos jovens que viajavam para o Himalaia
e outras regiões do oriente, em grandes grupos ou isoladamente, a fim de puxar um
fuminhoou “picar” a veia com morfina e heroína. O cineasta explicava que a escolha
por aquelas regiões se dava em função de o haver ali qualquer tipo de problema com a
polícia, pelo baixo preço da dose de qualquer droga e também em virtude da música
oriental, que funcionava como um auxílio para as suas “viagens”.
Nessa ocasião, o cineasta teve a oportunidade de estabelecer diversos contatos
com jovens que iam pra em busca de paz espiritual e dos “paraísos artificiais”
produzidos pelo elevado consumo de alucinógenos e da maconha. Entretanto, ele conta
que o que viu foram jovens vivendo em condições “aterradoras” e situações
158
Idem.
159
Ser hippie. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n. 44, p. 141-146, Nov. 1969.
160
DAHLKE, Peter. O inferno dos hippies. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.978, p. 04-10, 16
Jan. 1971.
166
dramáticas” em que faziam “qualquer coisa” para conseguir “uns trocados ou uma dose
de heroína”:
Vi uma garota francesa de 16 anos que vive como uma viva-morta dentro de uma taverna,
imunda, dos pés à cabeça, fazendo qualquer coisa em troca de uns trocados ou de uma dose
de heroína. Passei dois dias dentro dessas tavernas foi um pesadelo. Os jovens ficam
prostrados no chão, sem trocar uma palavra, levantando-se apenas para ir vender seu sangue
e obter dinheiro para nova dose. Eles não têm nem mais forças para amar. É um espetáculo
aterrador. Saí de lá com o coração em frangalhos. Se meu filme contribuir para desencadear
o necessário debate a sério do problema, estarei bem recompensado e realizado como
artista.
161
Segundo o entrevistado, o consumo das drogas alucinógenas, da maconha e do
haxixe seria um dos grandes temas da cada de 1970, ainda que o assunto o tivesse
nada de novo. Contudo, ele criticava a abordagem que vinha sendo dada pela mídia, que
na sua opinião, esforçava-se em lançar o pânico na população a respeito de um
problema que era antigo, mas para o qual a maioria das pessoas havia “tampado os
olhos e os ouvidos” por muito tempo, enquanto as drogas prosseguia em seu caminho
subterrâneo conquistando cada vez mais adeptos.
162
De fato, ao analisar as matérias que falavam a respeito da questão das drogas,
publicadas nos três periódicos pesquisados, percebemos que todas as três revistas
utilizavam uma linguagem alarmante que se traduzia em manchetes e títulos como, “As
siglas da morte”, “O flagelo das drogas”, “A fuga perigosa”, “Droga: o inimigo público
1” ou “A cruzada contra os entorpecentes” e, além disso, faziam uso de imagens
impactantes que mostravam jovens no momento do “picoou em estado de alucinação,
procurando destacar suas expressões faciais transtornadas e, em alguns casos, as lesões
provocadas pelo uso constante de drogas injetáveis.
Entretanto, o que chama a atenção é que o principal motivo alegado para que
pais e autoridades se mobilizassem na luta contra as drogas, era que o envolvimento dos
jovens com entorpecentes representava um risco tanto para a estabilidade da família
como para a segurança nacional, pois, se por um lado, o “embalo alucinante das drogas”
abria os caminhos para o sonho, como preconizavam os hippies, também poderia
comprometer a estabilidade psíquica de seus usuários e, assim, conduzi-los à loucura.
163
161
ATTINELLI, Lúcio. Os hippies no inferno da droga. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.926,
p. 122-126, 17 Jan. 1970, p. 126.
162
Idem, p. 124.
163
BORBA, Marco Aurélio. Droga: o inimigo público nº 1. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch,
n.1003, p. 36-42, 10 Jul. 1971, p. 38.
167
Quanto às motivações que levavam um número cada vez maior de jovens a
consumirem os mais variados tipos de xicos, predominaram as explicações que
privilegiavam tanto a sua necessidade de fuga à realidade do mundo e aquelas que
apontavam os desajustes com a família ou com o grupo social em que conviviam.
Referindo-se ao problema das drogas no Rio de Janeiro, uma matéria publicada em
1969 na revista Ele Ela descrevia a situação e o estado de espírito da época em relação a
essa questão de maneira sucinta, porém, elucidativa:
À semelhança do que acontece em outras grandes cidades do mundo, é considerável, no
Rio, o número de jovens que fumam maconha e, vez por outra, absorvem um pouco de
ácido lisérgico em um torrão de açúcar ou num fragmento de papel mata-borrão. Sua
atitude em relação à droga é, em grande parte, influenciada pela filosofia dos hippies, a
propaganda dos Beatles e uma vaga informação acerca de religiões orientais. Mas embora
haja um impulso de fuga à realidade na psicologia de cada consumidor de entorpecente, as
motivações imediatas variam quase de indivíduo para indivíduo. Uns procuram na maconha
a possibilidade de viver uma experiência mais madura do que lhes permite a própria idade.
Outros, pelo contrário, buscam desligar-se inteiramente do mundo. Mas, tanto estes como
aqueles, não podem esconder os seus desajustes com a família e o grupo social a que
pertence.
164
A maior parte das reportagens sobre o assunto informava os leitores que nos
Estados Unidos o problema das drogas estava disseminado na sociedade como um todo
e assumia “proporções assustadoras”, caracterizando-se como uma espécie de sintoma”
que se manifestava em quase todas as grandes nações.
165
Com relação ao Brasil, o
jornalista Amado Ribeiro dizia que o que havia de novo em torno dos entorpecentes é
que, até poucos anos, a maconha era considerada apenas coisa de marginais” e seu
consumo restringia-se quase que exclusivamente aos “malandros de morro” e aos
“bandidos”. Entretanto, dizia ele, “na esteira dos filmes de James Dean”, o ícone
cinematográfico dos “rebeldes sem causa”, comaram a aparecer na segunda metade da
década de 1950, especialmente na zona sul carioca e “quase que exclusivamente em
Copacabana”, os primeiros jovens rebeldes que promoviam bagunças em grupos de
“barulhentas motocicletas” e que passaram a ser conhecidos como membros da recém-
batizada “juventude transviada”. O jornalista conta que foi nesse momento que as
drogas e os entorpecentes receberam seu primeiro “impulso promocional”, numa
escalada que iria popularizá-los de tal modo a transformar os traficantes da década de
1960 em “gangsters de grande poder”. Espantados com a crescente comercialização de
drogas, o presidente Médici e o ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, empreenderam o
164
BETHLEN, Diana O outro lado da maconha. Ele Ela, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 8, p. 46-49,
Dez. 1969, p. 48.
165
As siglas da morte. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 799, p. 132-135, 12 Ago. 1967 p. 134.
168
que o jornalista chamou de uma cruzada nacional” pelo recuo na expansão dos tóxicos.
“A guerra está declarada”, anunciava entusiasticamente a reportagem e, exaltando os
resultados obtidos pela campanha do governo contra o cio, procurava tranqüilizar os
leitores de que, embora fosse impossível erradicar totalmente aquele mal da sociedade
brasileira, a intervenção dos militares contava boas vitórias em suas ações contra
traficantes, portadores e usuários de drogas, aos quais pretendiam encurralar e conter
numa clandestinidade “restrita e quase insuportável para a maioria”.
166
A matéria
relatava que na reunião ministerial em que o presidente Médici anunciou o projeto do
governo de combate aos xicos, a droga foi enfatizada como um dos males que mais
afligiam a mocidade, o apenas no Brasil, mas em todo o mundo, uma vez que “gerava
o aparecimento de neuroses, estimulava a criminalidade, desagregava a família,
corrompia os costumes, provocava perversões e colocava em risco a segurança
nacional”. Mais que um problema social, portanto, naquele momento a preocupação
final dos chefes de Estado em combater a escalada das drogas, especialmente entre os
jovens, era o imperativo de garantir a ordem social e a segurança interna.
Antes mesmo dessa reação do regime militar ao problema da toxicomania”,
especialmente as revistas Manchete e Realidade procuraram debater com seus leitores
uma questão que até hoje causa polêmica entre os membros da nossa sociedade e as
esferas do poder público: qual seria a melhor solução para os viciados, liberar o uso das
drogas ou manter a proibição? Muitas procuraram dar informações a respeito dos
processos de legalização das drogas em países da Europa, como por exemplo, a
Inglaterra, onde o objetivo das poticas públicas era controlar o consumo dos viciados e
simultaneamente acabar com o mercado negro de entorpecentes. Entretanto,
percebemos que a abordagem dada ao tema por cada uma dessas revistas se diferenciava
no momento em que a revista Manchete procurava ressaltar os benefícios da
descriminalização dos usuários de drogas, sem, contudo, defender abertamente essa
posição, enquanto que a revista Realidade procurava alertar seus leitores para os
diversos riscos, individuais e coletivos, do consumo legalizado de drogas.
Assim, a revista Manchete argumentava que enquanto na Inglaterra os
entorpecentes, acompanhados de assistência e tratamento médico-psiqutrico, eram
fornecidos pelo governo aos que não podiam dispensá-lo, no Brasil, o cio era punido
por lei e os viciados viviam tão clandestinamente quanto seus fornecedores. Como
166
RIBEIRO, Amado. A cruzada contra os entorpecentes. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.
989, p. 16-19, 03 Mar. 1971, p. 19.
169
exemplo, relatou o caso de Júnior, um rapaz de 20 anos, viciado empicadas” de
Pervitin
167
, que para conseguir o dinheiro da droga fazia programas com homossexuais
e confessou que, para obter a droga seria capaz de roubar e até matar. Após esse relato,
o repórter fecha a matéria deixando a seguinte reflexão:
Diferente é a sorte dos Juniores ingleses. Recebem a droga de graça, já saem da farmácia se
picando, picam-se no metrô, nos bares, nas esquinas. Uns poucos fazem reuniões em que o
pico local submete-se a um certo ritual. Há quem diga que é deprimente ou vexatória a cena
a cena dos jovens drogando-se em plena via pública. Não importa aqui, saber se a cena é
um vexame ou não. Mas talvez fosse importante saber que os Juniores ingleses jamais
precisarão matar ou roubar pela droga.
168
Enquanto isso, a revista Realidade, apenas seis meses depois, publicou uma
matéria intitulada “A fuga perigosa” e na nota de abertura da edição lançou a seguinte
pergunta: “Seu filho é viciado em tóxicos?”. Se a pergunta parecia chocante, dizia o
jornalista Paulo Mendonça, a resposta poderia ser mais ainda, especialmente se os filhos
dos leitores ainda fossem “ginasianos”, quase crianças.
169
Assim, o objetivo da matéria,
segundo o jornalista Carlos do Amaral, era chamar a atenção para o “eminente perigo
das drogas” em todo o mundo e especialmente em locais que, pelo menos em teoria,
deveriam resguardar seus filhos dessa “ameaça”. Além de contar alguns casos, como o
de uma escola onde o caixa da cantina era fornecedor de maconha e um aluno o
revendedor e “aliciador de novos consumidores”, trazia o depoimento de jovens
explicando as razões pelas quais faziam uso da maconha e advertia o leitor para os
riscos que significavam o contínuo alastramento do uso de xicos e também para os
riscos da legalização da maconha:
O adolescente, sem valores definidos, sem padrões de comportamento psíquico e social
definidos, pode se dar muito mal com a moda do fumo. Sua vontade e sua capacidade
motora se esfiapam e definham. Seus estudos são substituídos pelas divagações da
imaginação, sua insegurança e incerteza tendem a crescer desencadeando uma tempestade
de novos conflitos interiores. E nesse instante pode aparecer em sua vida uma grama de
cocaína que abrirá caminho para outra grama,e mais outro, até que o equilíbrio químico do
organismo exija mais e mais pó, transformando quem antes só pretendia viver novas
emoções num viciado irrecuperável. (...)
A moderna psicofarmacologia, a bioquímica, a psicanálise, a parapsicologia e também
alguns sociólogos têm-se debruçado sobre a questão. Seus trabalhos ainda estão novel da
investigação e da pesquisa. Por isso, a prudência científica do Dr. Stanley Yolles diretor do
National Institute of Mental Health, EUA, observa com razão que os paladinos da
167
Remédio altamente estimulante, à base de anfetamina, utilizado no combate à depressão e, que na
época, era facilmente encontrado e adquirido nas farmácias com receitas falsificadas. Foi retirado do
mercado por seus graves efeitos colaterais, como dependência física, alucinações, irritabilidade,
taquicardia, ansiedade e forte diminuição dos reflexos.
168
MENDES, Uirapuru. Os escravos da droga. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.925, p. 44-48,
10 Jan. 1970, p. 48
169
MENDONÇA, Paulo. Nota de redação. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n.51, p. 03, Jun. 1970.
170
legalização da maconha estão agindo com muita presa, sem qualquer informação
fundamentada sobre seus efeitos farmacológicos.
170
Num ponto, entretanto, Manchete, Realidade e Ele Ela concordavam: A
juventude e a humanidade como um todo, naquela década, vivia inquieta, em busca do
auto-conhecimento e da felicidade, num mundo do qual desejavam escapar, dentre
outras maneiras, através das psicotrópicos. Explicavam que a razão para esse desejo de
retorno à própria personalidade” e de fuga generalizada estava na realidade
contundente” dos anos 1960 e na complexidade que os problemas do cotidiano haviam
adquirido no mundo moderno. Além disso, na maioria das matérias que falavam a
respeito do problema das drogas, os hippies e à música “psicodélica” dos Beattles eram
citados entre os principais incitadores do fascínio que as drogas e seus efeitos
alucinógenos vinham provocando em uma parcela da juventude.
Mas além de ressaltar o “refúgiodos hippies nas drogas e nos países orientais,
bem como sua parcela de responsabilidade na promoção dos alucinógenos entre os
jovens, algumas matérias falaram a respeito das colônias fundadas pelos hippies, tanto
nos centros urbanos como nas pequenas cidades de interior, onde jovens viviam em
comunidade ou onde aqueles que desejassem “fugir do mundo esporadicamente”
poderiam passar um final-de-semana diferente”.
171
A atriz Guide Vasconcelos, que na
década de 1960 vivia em Paris numa mansão de três andares na qual abrigava amigos
hippies, disse durante uma entrevista à revista Manchete que o Brasil era visto por eles
como a terra ideal, pois gostavam do calor e procuravam áreas tropicais para fundar
suas colônias.
172
Entretanto, a única matéria, em todas as três revistas pesquisadas, na qual se
falou a respeito do fenômeno hippy no Brasil, dizia que aqui, “os hippies o eram tão
hippies assim e descrevia os hippies brasileiros como rapazes e moças que usavam
cabelo comprido, que pregavam a filosofia do amor, da paz e da flor, que procuravam
viver sem convenções, mas sem se desligarem totalmente delas, que olhavam com
ingênuo otimismo para a possibilidade de conseguir sua realização humana ao ingressar
numa família coletiva e que, por fim, se entusiasmavam com a possibilidade de
participar de um festival de música. Assim, percebemos que apesar de suas roupas,
170
AMARAL, Carlos Soulié do. A fuga perigosa. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n.51, p. 38-50,
Jun. 1970.
171
Idem.
172
AUTRAN, Christina. Guide: a hippie número um. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 820, p.
88-89, 06 Jan. 1968, p. 88.
171
atitudes e idéias, os jovens brasileiros que recebiam o rótulo de hippy estavam mais
preocupados em adotar um estereótipo e defender um estilo de vida mais natural, menos
materialista, do que propriamente em contestar a sociedade de consumo. Alguns se
drogavam, muitos fumavam maconha, iam morar em lugares afastados dos grandes
centros urbanos, mas apesar disso, não abandonavam seus estudos e procuravam
garantir sua sobrevivência através da venda de artigos artesanais na Praça General
Osório, em Ipanema, e na Praça da República, em São Paulo. Portanto, os hippies do
Brasil, dizia a reportagem, estariam mais próximos de serem artesãos do que de
formarem um “grupo de revoltados” que pretendia contestar a ordem vigente e a
sociedade de consumo, como vinha acontecendo nos EUA e na Europa.
173
Conversando com membros de uma comunidade coletiva de São Paulo que
viviam num casarão antigo, duas moças disseram ao repórter que não eram contra a
sociedade, pois dependiam dela, e que o que desejavam era viver de uma forma que lhes
agradasse e através da qual pudessem cumprir seus compromissos sociais. Um outro
morador do casarão disse que não eram hippies, mas artesãos que sentiam vontade de
“viver dentro de um certo primitivismo”, longe das coisas artificiais, das regras e dos
regulamentos.
174
No caso dos hippies dos Estados Unidos, o repórter Narceu de Almeida entendia
que enquanto existissem as causas que deram origem ao seu movimento, assim como
aos beatniks, “aos desajustados, aos revoltados, aos transviados e aos delinqüentes
juvenis”, rapazes e moças continuariam fugindo de suas casa em busca de um estilo de
vida e de valores que diferissem daqueles que lhes eram oferecidos pela sociedade que
recusavam.
175
Depois de tantas notícias que na década de 1960 anunciaram a explosão do
movimento hippy, Manchete revelou aos seus leitores que a década de 1970 traria uma
“surpresa maravilhosa” para os “adultos de boa vontade”, pois a cada dia, nos EUA,
milhares de jovens redescobriram Jesus Cristo, o primeiro contestatário”, que, segundo
eles, estava à caminho da Terra para redimir a humanidade. Para essas centenas de
milhares de jovens norte-americanos, dizia a revista, o sonho das drogas chegava ao
173
Nossos hippies têm mais flores. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 962, p. 36-42, 20 Set.
1970, p. 37-39.
174
Idem.
175
ALMEIDA, Narceu de. A mansa loucura dos hippies. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.
818, p. 66-70, 23 Dez. 1967, p. 70.
172
fim e o novo caminho em direção à verdade, contra as angústias do mundo moderno,
seria o reencontro com a religião e a “inebriante visão de Jesus”.
176
Na Califórnia, de onde o movimento havia partido até se espraiar rapidamente
em direção ao Leste, gangs de motociclistas, antes dedicadas a espalhar o terror nas
estradas, hippies e jovens viciados em drogas convertiam-se ao culto de Jesus Cristo;
clubes de streap-tease e prostituição eram transformados em cafés religiosos, onde os
hippies e outros grupos de jovens se reuniam à noite para rezar e entoar cânticos
cristãos. Nos campi das universidades de Berkeley, Standford e UCLA, eram
organizados clubes religiosos fundamentalistas, enquanto numerosos homens ricos
transformavam suas mansões em comunas, para abrigar os andarilhos que pregavam a
boa nova. Dentre essas seitas destacaram-se, por exemplo, a dos “Católicos Episcopais”
e a dos Jesus Freak. Nos seus rituais, conforme nos mostram as fotos publicadas na
revista Manchete, moças e rapazes trajando roupas e adereços tipicamente hippies,
rezavam e cantavam ao som de guitarras elétricas e atabaques, num crescendo que,
segundo o jornalista, chegaria à exasperação, conduzindo-os à histeria e a um estado de
catarse geral”. Os líderes desse movimento eram quase todos antigos viciados em
heroína e morfina, e diziam ter encontrado em Cristo o caminho para sua regeneração.
A revista apontava esse novo movimento da juventude norte-americana como um meio
seguro de derrotar o alarmante problema das drogas naquela sociedade. Uma única
igreja, por exemplo, abrigava cerca de 500 jovens em uma dúzia de paróquias existentes
ao redor de Los Angeles; em Bethel, na Califórnia, o jovem Breck Stevens, de 19 anos,
iniciou o movimento da juventude cristã e em dois anos e meio conseguiu atrair 15 mil
jovens, dos quais o pastor da paróquia disse que pelo menos quatro mil tinham deixado
o vício.
177
Portanto, a revista Manchete proclamou em algumas de suas matérias que
aquele movimento de “revivescência da religiosa” iria atuar em seus seguidores,
“jovens com a bíblia nas mãos, que tomavam banho regularmente e cheiravam bem”,
como um estímulo para uma vida “mais limpa” e “mais pura”.
178
Quanto à participação dos hippies na potica, em 1967 mais uma vez o
jornalista Narceu de Almeida, da revista Manchete, referindo-se às manifestações que
eles faziam em oposição à Guerra do Vietnam ou a qualquer outra guerra, ou então em
176
A curtição é Jesus Cristo. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 1005, p. 28-33, 24 Jul. 1971, p.
28.
177
VACHON, Brian. Jesus Cristo, nós estamos aqui. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 982, p.
04-09, 13 Fev. 1971.
178
Idem, p. 08.
173
favor do desarmamento ou da proibição da bomba, explicava que essas suas atitudes
eram um “corolário natural de sua posição contra a violência, e que não estavam,
portanto, relacionadas a razões poticas, uma vez que a filosofia hippy recusava o
engajamento político, mesmo nas facções da Nova Esquerda norte-americana que
adotavam idéias semelhantes às suas.
179
Entretanto, diante da Guerra do Vietnam, do despontar de ativistas como Ângela
Davis
180
e Eldridge Cleaver
181
, da crise universitária e dos choques raciais nos Estados
Unidos, parte dos hippies fundaram o YIP, Youth International Party, em 1966.
Segundo o der Jerry Rubin, os Yippies eram revolucionários que haviam surgido da
política da Nova Esquerda, com um estilo de vida psicodélico, baseado em LSD, cabelo
comprido, roupas berrantes, erva, rock e sexo. “Nossa existência em si”, dizia Rubin,
ridiculariza a América. A velha ordem está morrendo. s somos a potica do
futuro.
182
Por isso, no verão de 1968 os Yippies se instalaram no Lincoln Park, em
Chicago, e em meio à muita música e cigarros de maconha iniciaram a campanha
política pela eleição do seu candidato à presidência dos Estados Unidos, o porco
Pigasus, cujo slogan dizia o seguinte: They nominate a president and he eats the people.
We nominate a president and the people eat him. Sob a acusação de perturbarem a
ordem, a pocia rapidamente desmantelou aquela mobilização e levou prezo tanto os
Yppies como o seu candidato à presincia, o porco Pigasus.
183
Outras tantas manifestações hippies foram noticiadas através das ancias de
notícias internacionais, especialmente pela revista Manchete, e a partir delas
percebemos que, embora a filosofia hippy pregasse o não-engajamento político, a sua
busca de satisfação pessoal e de um novo estilo de vida em sociedade, se fazia, algumas
vezes, pelas vias poticas, ao lado de reivindicações coletivas mais abrangentes.
179
ALMEIDA, Narceu de. A mansa loucura dos hippies. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.
818, p. 66-70, 23 Dez. 1967, p. 69.
180
Ângela Davis é uma professora e filósofa afro-americana, que alcançou notoriedade mundial nos anos
1970 como integrante do Partido Comunista dos Estados Unidos, dos Panteras Negras, por sua militância
em defesa do direitos das mulheres e contra a discriminação social e racial nos Estados Unidos.
181
Eldridge Cleaver foi escritor e um proeminente líder dos Panteras Negras, em defesa dos direitos civis
dos negros. Em 1968 foi candidato à presidência dos EUA pelo Peace and Freedom Party, mas naquele
mesmo ano foi ferido num confronto entre os Panteras Negras e a polícia de Oakland. Acusado de
tentativa de assassinato, fugiu para a Argélia junto com Timothy Leary, estudioso pioneiro e defensor do
uso de drogas psicodélicas para fins terapêuticos.
182
ALVES, Ivan. A contestação. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 1001, p. 94-99, 26 Jun.
1971, p. 99.
183
ANDERSON, Terry. Op. cit. p. 221.
174
Assim, em 1967 uma matéria anunciava a candidatura de Louis Abolafia, do
Cosmic Love Party, para a presidência dos Estados Unidos nas eleições de 1968. Ele se
dizia o candidato dos beatniks, dos hippies, dos psicodélicos, dos partidários de mais
amor e menos guerra, daqueles que defendiam o flower power, dos “artistas barbudos” e
das “garotas moderninhas”. Sua plataforma potica incluía algumas provincias como
a retirada das forças norte-americanas do Vietnam, a pintura das paredes da Casa
Branca com a cor “lavanda”, porque dizia ser essa a cor do amor, o fechamento das
fábricas de armas de guerra e o auxílio federal maco às artes, “ao amor e à flor”.
Estando sempre cercado de admiradores, a reportagem relatava o sucesso de Abolafia
em sua campanha eleitoral, na qual os cocios eram substitdos por be-ins e as
entrevistas por maratonas de arte ou noites psicodélicas.
184
Assim como os hippies fundaram partidos que funcionaram como mais um
mecanismo, nesse caso institucionalizado, através do qual puderam expressar sua recusa
ao establishment e confrontar os padrões morais e comportamentais da sociedade em
que viviam, em 1970 a revista Manchete anunciou que na Alemanha, um jovem editor
de Hamburgo, Joachim Driessen, ex-aluno de um colégio de jesuítas, fundava o
Deutsche Sex-Partei, o Partido Alemão do Sexo, com o qual iria lançar-se na batalha
eleitoral de 1973, visando um lugar no Parlamento alemão entre os 5% das cadeiras
destinadas aos partidos menores. Seu único trunfo nessa disputa, dizia a reportagem, era
o sexo, e a sua campanha potica, cujo slogan era “Façamos o amor e o faremos a
guerra”, estava focada, basicamente, na necessidade de reformar algumas das leis e
regulamentos “ultrapassados” que condicionavam a vida sexual na Alemanha. Segundo
o fundador do partido, o seu programa potico visava garantir a liberdade sexual para o
povo alemão, a livre venda de pílulas anticoncepcionais, a abolição de toda e qualquer
censura que limitasse a liberdade sexual, a educação sexual e até a pornografia, a
oficialização do direito ao aborto e a autorização dos casamentos entre pessoas do
mesmo sexo.
185
De fato, através análise das revistas Manchete, Realidade e Ele Ela, percebemos
que durante a década de 1960 a discussão de temas sexuais na imprensa foi bastante
relevante e esteve relacionada aos fatores analisados no item anterior, como a
184
GLOBE. Abolafia: o candidato psicodélico. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 805, p. 34-35,
23 Set. 1967.
185
BONNEVILLE, Floris de. Este homem fundou o partido do sexo. Manchete, Rio de Janeiro: Editora
Bloch, n. 937, p. 100-103, 04 Abr. 1970.
175
emancipação feminina e o conflito entre as gerações mais antigas e a geração que
durante os anos de 1960 chegava à adolescência.
De acordo com o historiador Terry Anderson, referindo-se à geração da década
de 1960 dos Estados Unidos, a crescente liberalização do comportamento daqueles
jovens diante de questões relacionadas ao sexo, não deve ser entendida como uma forma
de delinqüência juvenil ou como uma recusa generalizada aos valores morais, mas como
uma maneira que eles encontraram para expressar os valores próprios da sua geração e o
desejo de erigir uma nova moralidade, que se diferenciasse da moral tradicional, que,
para eles, estava ultrapassada, superada e decadente.
186
Entretanto, algumas matérias publicadas nestes três periódicos, são
demonstrativas de que naquele momento havia uma evidente preocupação em tentar
compreender os rumos que tomaria a crescente tendência à liberalização do
comportamento sexual da juventude, que na ocasião era muitas vezes associada a mais
uma forma de contestação ou de rebeldia e não à insurgência de novos valores e
comportamentos pertinentes à nova geração dos anos 1960. Para a psicóloga Ofélia
Boisson, os jovens daquela época eram uma espécie de “anjos rebelados” que
representavam uma “ameaça de destruição total”, uma vez que amadureciam
sexualmente muito mais cedo que os jovens das gerações anteriores. Ela explicava que
isso se dava não porque já estivessem devidamente preparados para a velocidade dos
novos tempos, mas porque tinham pressa de experimentar de tudo o quanto antes.
Durante sua entrevista à revista Manchete, a psiloga disse que:
Curras, mocinhas embriagadas em automóveis, maconha, mães solteiras, homossexualismo,
angústia e violência são alguns dos problemas que surgem às dezenas diante do psicólogo
de hoje (...). Noto na juventude de hoje uma inquietação profunda, mesclada de angústia,
uma oposição à autoridade (dos pais, dos mestres) e uma alarmante desorientação sexual.
Adolescentes pervertidos sem conta surgem revoltados contra o meio que não os defendeu
da perversão.
187
Outra matéria, que trazia o resumo de um livro publicado na França em 1965,
intitulado O amor no século da cibernética”, advertia que em meio à “tormenta” dos
tempos modernos que subvertia “todos os valores sociais”, o amor começava a
experimentar mudanças que poderiam ser notadas, por exemplo, na medida em que o
186
ANDERSON, Terry. Op. cit. p. 92.
187
Entrevista com Ofélia Boisson. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 652, p. 100-102, 17 Out.
1964, p. 100.
176
sentimento puro e inocente, de tempos anteriores, começava a ceder cada vez mais
espaço para a emoção de viver intensamente cada momento.
188
Essa idéia de aproveitar o momento presente ficava explícita no depoimento de
uma moça de 17 anos, que dizia ter “fervidocom muitos rapazes magros, gordos,
altos, baixos, morenos, loiros, solteiros e casados – sem se preocupar com o que
poderiam pensar dela, já que o seu “lema” era simplesmente “ferver”. Dizia que
nenhum desses, até então, havia conseguido conquistar seu coração e que, em todos os
casos, logo que os conhecia ficava muito interessada, mas a empolgação inicial
rapidamente passava e então comava a enjoar dos moços:
Fiquei conhecendo no clube um rapaz. Uma coisa louca, de deixar qualquer uma de água na
boca. Um garotão! Mas... casado. Quando o via, meu coração dava pulos, minhas mãos
gelavam. Pensei: encontrei o amor da minha vida. Pelos sintomas, eu estava gamadinha.
Mas um dia, no próprio clube, ele me “chegou no cantão”. A partir deste momento, pifou.
Tomei uma antipatia por ele que não posso nem vê-lo.
189
Ao final do seu relato, entretanto, após toda sua retórica de “ma moderninha”
e liberal, ela se apressou em fazer uma ligeira ressalva: “Já fervi muito, é verdade, mas
continuo invicta”.
190
Além da preocupação com os rumos que tomariam esse novo tipo de
comportamento da juventude, alguns artigos procuravam advertir sobre as suas
conseqüências, assemelhando-se ao que já falamos anteriormente em relão à
importância que as revistas continuaram atribuindo ao fato da moça dever conservar a
virgindade até o casamento, mesmo dentro do contexto de crescente emancipação
feminina que caracterizou a década de 1960. Assim, falando a respeito das jovens da
zona sul, que haviam lido “Lolita” ou estudado nas Universidades de Berlim, Paris e
Viena, uma reportagem da revista Manchete dizia, usando um tom bastante inico, que
essas moças, as “Einsteins de Copacabana ou da Tijuca”, declaravam não precisar de
orientação ou conselhos, pois se consideravam muito mais “sabidas” e “experientes”
que suas mães, que ainda assim insistiam em lutar para preservar suas filhas e mantê-las
longe dos “perigos” e “armadilhas” do mundo. Entretanto, as moças eram rebeldes e
queriam fazer “o que lhes desse na telha”, e por isso, acabavam fazendo “todo tipo de
asneira”.
191
188
Que fim levou o amor? Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 962, p. 124-127, 24 Jul. 1965.
189
Os brotos. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.770, p. 43-45, 21 Jan. 1967, p. 43-44.
190
Idem.
191
Os brotos. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.770, p. 43-45, 21 Jan. 1967, p. 44.
177
Diante disso, o artigo procurava advertir que, ainda que lessem “Lolita” mais de
500 vezes, não iriam aprender nada, pois depois que “levassem muito na cabeça” e
chegassem à condição de “coroas” é que iriam saber alguma coisa, mas “a um preço
muito alto”:
Infelizmente a juventude tem vitalidade e não sabe aproveitar, e os “coroas” têm
capacidade e o podem tanto. Bem diz o ditado frans: Si la jeunesse savait, si la
vieillesse pouvait...
192
Em 1966, a revista Realidade publicou os resultados de uma pesquisa, onde
foram reunidas as respostas de mil jovens a um questionário distribuído aos leitores em
um número anterior da revista. Dentre os mil questionários que embasaram a pesquisa,
500 eram do Rio de Janeiro e 500 de São Paulo e em cada uma dessas cidades 250
foram respondidos por rapazes e os outros 250 por moças, todos entre 18 e 21 anos e
alunos de cursos preparatórios para o vestibular, portanto, a maioria de classe dia ou
alta. O objetivo do inquérito era apresentar ao leitor da revista um “retrato autêntico” do
que rapazes e moças, do Rio e de São Paulo, conheciam, falavam e faziam a respeito da
sua sexualidade e, assim, oferecer um esclarecimento a respeito da “incômoda e nunca
antes estudada revolução sexual da juventude”:
No mundo inteiro, a juventude está revendo seus comportamentos e atitudes diante de todos
os problemas da existência humana. Segundo as estimativas oficiais, existem hoje no
Brasil entre 84 milhões e 600 mil habitantes 44 milhões e 700 mil jovens com
menos de 20 anos. O que pensam, falam e fazem estes rapazes e moças? Ninguém sabe,
embora alguns assegurem que tudo vai muito mal. Especialmente na área sexual, onde
talvez o maior medo, hoje, é o medo de saber a verdade. Mesmo assim, muitos educadores,
sociólogos, sacerdotes, médicos e pais pedem informações, querem conhecer dados,
procuram saber em números o que está acontecendo com o comportamento sexual da
mocidade brasileira.
193
Segundo o jornalista Duarte Pacheco, em muitas respostas os jovens se
mostraram desorientados e ansiosos, ao mesmo tempo em que inibidos, embora tudo
tivesse sido feito por escrito e em absoluto anonimato. Algumas perguntas procuraram
verificar o grau de conhecimento científico dos jovens a respeito de questões relativas à
sexualidade e os resultados, segundo o repórter, eram de “inquietar”, já que a maioria
demonstrou pouquíssimo conhecimento a respeito do tema, além de reproduzirem em
larga escala velhos preconceitos já desmistificados por pesquisas, como por exemplo, a
crença de que durante a gestação a mulher não poderia manter relações sexuais ou de
192
Idem.
193
PACHECO, Duarte. A juventude diante do sexo. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n.5, p. 68-80,
Ago. 1966.
178
que o sangramento menstrual pudesse conter algum veneno ou toxina prejudicial à
saúde do homem.
194
Quanto ao nível de educação sexual dos jovens entrevistados, as respostas
demonstraram que eles haviam recebido pouca orientação e que as informações que
possuíam, na maioria dos casos, haviam sido extraídas de livros e revistas, mas que,
mesmo assim, estavam dispostos a se lançar “à arriscada aventura” de r em questão
os padrões sexuais vigentes na sociedade. Outras perguntas diziam respeito a flerte,
namoro, casamento, divórcio e à nova moralidade que aquela juventude pretendia erigir.
E em suas respostas, dizia o repórter, transparecia a idéia de que enquanto muitos
daqueles jovens haviam modificado profundamente” os seus padrões de
relacionamento, uma “parte considerável”, na prática, ainda observava os limites
impostos pela tradição. Essa impressão extraída dos resultados da pesquisa vai ao
encontro dos depoimentos de jovens, que comentamos anteriormente, nos quais se
verifica uma contradição entre o que diziam pensar e a maneira como contavam ter se
sentido após alguma experiência de relacionamento amoroso que rompesse com os
critérios socialmente estabelecidos. Assim, embora se declarassem “moderníssimos” e
se permitissem formas mais liberais de namoro, a pesquisa demonstrou que a maioria,
tanto de moças como de rapazes, sentia-se arrependida ou pelo menos preocupada com
as conseqüências de seus atos. Mesmo afirmando que não namoravam mais apenas
para casar, as moças, como dissemos, tinham medo de que uma “má fama” lhes
impedisse de encontrar um “bom partidoe os rapazes, por sua vez, demonstraram-se
ciumentos e possessivos.
195
A conclusão da pesquisa foi que, embora os jovens não tivessem rompido com a
visão oficial, o se sentiam muito bem dentro dela e o conseguiam mais entender
suas justificativas e que, portanto, não era verdadeira a impressão que os mais velhos
tinham de que os jovens não aceitavam mais nenhuma moral. Eles não haviam perdido
o sentimento de erro e culpa”, ou a noção de que existiam regras a serem seguidas, mas
consideravam a moral vigente uma falsa moral, uma “moral de fachada”, que
contrariava a natureza do homem e que não se preocupava com a realidade concreta da
vida. Assim, a pesquisa demonstrava que aqueles jovens estavam em busca de uma
nova moral, que estivesse baseada na felicidade e no amor como critério para
julgamento e decisão do que seria certo ou errado, em detrimento de uma moral de
194
Idem.
195
Idem.
179
soluções prontas, de normas gerais e absolutas, na qual seus pais e mestres pretendiam
lhes enquadrar, fosse em casa ou na escola.
196
No rastro das suas contestações, os jovens rebeldes da década de 1960 criaram
uma nova arte, uma nova moda e uma nova música, que passaram a ser consumidos em
massa, como ícones da modernidade e dos valores a ela associados, tais como
jovialidade, liberdade e sensualidade, independentemente da faixa etária ou das questões
políticas e ideológicas com as quais se identificassem. Assim, pode-se dizer que os
principais símbolos da busca dos jovens por uma nova moral e por uma maior liberdade
sexual estiveram presentes tanto na moda como na música e, portanto, no cotidiano,
tanto dos grandes centros urbanos como das cidades de interior.
197
Uma reportagem da revista Manchete ao referir-se aos “brotos”, definidos como
uma estranha fauna”, entre 13 e 16 anos, inventada na zona sul do Rio de Janeiro, dizia
que o que aqueles adolescentes queriam era ser diferente, não imitar ninguém, não
serem anônimos nem confundidos com a “massa ignara”, o que os levava a exibir uma
maneira de ser e de vestir mais liberta e solta. Ser um “broto” significava usar calça Lee,
tênis, biquínis sumaríssimos e mini-saia. Fosse gorda de perna fina, ou magra de perna
grossa, não importava. O importante era acompanhar a moda,
198
pois se por um lado ela
lhes enquadrava num determinado padrão criado pela indústria cultural de massa,
também lhes proporcionava a realização de uma identificação mimética” com os
modelos que desejavam seguir, fossem eles os ídolos do “iê-iê-iê” e do rock, os artistas
de Hollywood ou os hippies do Central Park.
199
Numa outra reportagem publicada na revista Manchete, que dessa vez falava a
respeito da vida dos jovens que viviam em “cidades tranqüilas” do Brasil, o repórter e
fotógrafo João Luiz de Albuquerque procurou registrar em suas imagens como se vivia
em dois pacatos municípios paulistas: São Jodo Rio Preto e São Sebastião. Ele dizia
que embora nenhuma das duas conhecesse a agitação das passeatas de protesto ou os
muros pichados com slogans provocadores, também não correspondiam à imagem
anacrônica que se fazia do interior, como sendo um lugar habitado por uma “massa de
caipiras” e uma reduzida elite de grandes fazendeiros. Embora ali algumas tradições
ainda fossem severamente observadas, os novos costumes iam sendo implantados em
196
Idem.
197
PROST, Antoine et VINCENT, Gerard. Op. cit. p. 97.
198
Os brotos. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.770, p. 43-45, 21 Jan. 1967, p. 44.
199
MORIN, Edgar. Op. cit. p. 142.
180
ritmo “acelerado”, aparecendo nos biquínis e nas mini-saias das meninas, na música,
nas danças e nos hábitos cotidianos. Portanto, tradição e novidade caminhavam lado a
lado naquelas duas cidades, ainda que temas como casamento e emancipação financeira
da mulher, sexo e virgindade fossem tratados como tabus e encarados como um
problema que deveria ser resolvido conjuntamente entre os pais, os médicos e a
igreja.
200
É interessante lembrar que com o advento da mini-saia, do biquíni e da praia
como espaço de socialização,
201
sobretudo entre os jovens, cresceu também a
preocupação em manter a forma através de regimes e práticas esportivas, especialmente
no período de veraneio e de forma mais intensa nas cidades de praia, sobretudo no Rio
de Janeiro. Portanto, os cuidados com o corpo apareciam à medida que multiplicavam-
se as ocasiões de mostrar o físico em público. A publicidade foi sem dúvida um
elemento fundamental na definição de uma nova estética corporal e de novas práticas
esportivas e as revistas, por sua vez, tornaram-se um importante suporte para a
propagação dos mais diversos produtos voltados para a jovialidade e a beleza do corpo,
difundindo novas formas de consumo, novos valores e novas normas de conduta.
202
Nos três periódicos que analisamos pudemos perceber que o tema da juventude
o concernia apenas aos jovens, mas também àqueles que envelheciam. Esses, ao invés
de se prepararem para a senilidade, lutavam para ficar jovens e, principalmente, para
parecerem jovens.
203
Um conto de Henrique Pongetti, publicado na revista Manchete,
contava a história de um rapaz que sofria de uma psicose, que segundo o autor, era
típica daquela época: “a vergonha de não parecer moderno”. Ainda que fosse
atualizadíssimo de espírito e conhecesse como poucos as transformações políticas
sociais, ecomicas e técnicas de seu tempo, o fato de o ter cabelos longos, não usar
calças de helanca, batas carnabyanas”, sininhos e correntes pendurados no pescoço,
sem contar a sua linguagem obsoleta e o jeito envergonhado de ser, não lhe permitiam
conquistar um espaço entre os jovens colegas de escola que usavam gírias e toda espécie
de indumentária de estilo indiano. Com isso o autor pretendia dizer aos seus leitores que
200
ALBUQUERQUE, João Luiz de. A viagem às cidades tranqüilas. Manchete, Rio de Janeiro: Editora
Bloch, n. 854 p. 136-140, 31 Ago. 1968.
201
Ver por exemplo: O topless no verão carioca. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 1019, p. 18-
21, 30 Out. 1971.
202
PROST, Antoine et VINCENT, Gerard. Op. cit. p. 97.
203
MORIN, Edgar. Op. cit. p. 152.
181
“ser moderno”, naqueles tempos, não era apenas uma questão de intelecto ou de
mentalidade, mas também de estilo.
204
Na esteira do desenvolvimento da instria de cosméticos e produtos de beleza,
nascidos a partir da maquilagem hollywoodiana, o rejuvenescimento se democratizava e
parecer jovem se tornava um imperativo de todos.
205
Nas palavras do cronista Paulo Mendes Campos, na década de 1960,
1) Ser jovem passou a ser um esnobismo, isto é o esnobe [que ocupava as ginas das
colunas sociais na imprensa] teve de deixar os limites do clã [o clã daqueles que apareciam
nas colunas sociais] e estender seus privilégios e mútua admiração a todos os inumeráveis
membros de uma geração;
2)ser jovem passou a ser uma consciência fatigada e fatigante, e não mais um gesto tão
espontâneo, gracioso e deleitoso quanto o de ser uma palmeira;
3) ser jovem passou a ser uma tomada de posição contra quem não é jovem.
Em uma palavra, criou-se o poder jovem.
206
O otimismo e a confiança no poder de transformação daqueles jovens estavam
presentes numa carta enviada à revista Realidade por um leitor de Americana, São
Paulo, que dizia: “Durante a Segunda Guerra cortava-se o cabelo escovinha. Esperemos
que a juventude de cabelos compridos seja um pouco melhor que a de cabelos curtos e
que consigamos legar a nossos filhos o que nossos pais não nos conseguiram legar.”
207
Se ser jovem era usar mini-saia, calça de elanca, cabeleira comprida, correntes e
cores psicolicas espalhadas pelo corpo, sem vida o Rock n’ Roll foi a música dessa
geração, e tornou-se uma das principais expressões da sua rejeição ao establishment e da
sua revolta contra a autoridade e moralidade dos mais velhos.
Nascido nos Estados Unidos na década de 1950, o Rock foi o ritmo que
mobilizou a juventude apática” e “silenciosa” daquela década de “ouro”, que começou
a dançar e cantar agitadamente ao som da guitarra de Chuck Berry, Bill Halley e Elvis
Presley, vistos pelos mais velhos e conservadores como símbolos e incentivadores da
delinqüência juvenil, ainda que as letras de suas canções falassem de histórias de amor e
expressassem antigas convenções sociais (mulheres em busca de amores eternos,
homens conquistadores de mocinhas puras e ingênuas).
208
na década de 1960, as
bandas Inglesas, como Beatles e Rolling Stones, comandaram a chamada Britsh
204
PONGETTI, Henrique. A vergonha de parecer moderno. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.
1009, p. 99, 21 Ago. 1971.
205
MORIN, Edgar. Op. cit. p. 153.
206
CAMPOS, Paulo Mendes. Genealogia do poder jovem. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.
825, p. 46, 10 Fev. 1968.
207
A juventude brasileira, hoje. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n.18, p. 18-26, Set. 1967.
208
ANDERSON, Terry. Op. cit. p. 33-34.
182
Invasion e causaram grande impacto entre os adolescentes de todo o mundo com
canções que expressavam a sua revolta e a sua rejeição à moralidade dos anos 1950.
Além deles, os cantores e as bandas de música popular norte-americana, conhecida
como Folk music, também souberam expressar em suas letras e melodias os novos
valores da geração da década de 1960, bem como as suas críticas em relação aos
problemas sociais da época, como a luta pelos direitos civis e o crescente envio de
tropas norte-americanas à Guerra do Vietnam. Dentre eles destacaram-se Bob Dylan,
Peter, Paul and Mary, Johan Baez, Phil Ochs, Tom Paxtom e outros, que durante os
festivais de rock da década de 1960 levaram os jovens ao delírio.
209
Em Setembro de 1969, a revista Manchete publicava uma notícia enviada da sua
sucursal de Nova Iorque, que dizia:
Foi a festa mais maluca e movimentada de que se teve notícia. Quatrocentos mil jovens
americanos acamparam em quase trezentos hectares de terra junto à cidadezinha de Bethel,
no estado de Nova Iorque, para um encontro de paz e amor. Ali, durante três dias e três
noites, eles cabeludos de todos os tipos se entregaram à música agitada dos moços e à
paz fabricada dos estimulantes.
210
“A festa mais maluca do mundo” a que a reportagem se referia era o Festival de
Música e Artes de Woodstok, realizado numa fazenda em Bethel, Nova Iorque, durante
os dias 15, 16 e 17 de agosto de 1969, considerado até os dias de hoje o mais importante
festival de rock and roll da década de 1960.
211
Embora os organizadores do evento
estivessem contando com a presença de 100 mil jovens, a reportagem dizia que a
chegada de “300 mil convidados excedentes” o representou problema para eles, ao
contrário, foi uma surpresa que os deixou mais “confiantes no futuro do movimento
hippie”.
212
Afinal de contas, como dizia a legenda de uma das fotos da reportagem, o
motivo declarado do festival era comemorar, ao som do rock’n’roll, o advento da
Idade de Aquárioe o tempo da paz e do amor”.
213
Embora alguns problemas tenham
sido registrados, como por exemplo, o engarrafamento que se estendeu por mais de
vinte quilômetros congestionando todas as cinco rodovias que conduziam a Bethel ou
que passavam por lá, a falta de comida durante o evento, além das péssimas condições
sanitárias do local, que podem ser observadas em algumas fotos que mostram os jovens
acomodados com seus pertences ao lado de pilhas de lixo, a reportagem procurava
209
ANDERSON, Terry. Op. cit. p. 92-93.
210
ESTENSSORO, Hugo. A festa mais louca do mundo. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.
909, p. 16-19, 20 Set. 1969, p. 33.
211
ANDERSON, Terry. Op. cit. p. 277.
212
Idem, p. 36.
213
Idem, p. 33-34.
183
ressaltar que tudo havia transcorrido com grande tranilidade, sem que “nada afastasse
os jovens do desejo de ouvir música” e que, embora o festival tivesse começado sob
apreensão das autoridades, ao final todos foram obrigados a admitir que “não ocorreu
um ato de violência e que a agressividade foi reduzida a um mínimo”.
214
Referindo-
se aos pais que permitiram, ou que simplesmente não conseguiram impedir, que seus
filhos comparecessem ao festival de Woodstock, o jornalista disse que esses puderam
respirar “aliviados e felizes”, pois aquela havia sido uma “festa de paz”.
215
Outra questão que mereceu destaque da matéria foi o fato de que durante o
festival todos os comportamentos foram permitidos, inclusive a nudez, sem que isso
causasse qualquer problema ou constrangimento aos participantes. Em relação ao uso de
drogas, a legenda de uma foto onde aparece um grupo de aproximadamente quatro
rapazes e uma moça, sentados no chão de terra, sem roupa e fumando cigarros, conta
que através de alto-falantes os jovens eram advertidos contra os riscos do uso de
entorpecentes, sem que fossem proibidos de usá-los. Quanto aos habitantes da cidade de
Bethel, a princípio teriam ficado desconfiados com a realização do evento, mas após
essa impressão inicial, puderam observar o espírito de solidariedade dos participantes e
logo passaram a ajudá-los a solucionar os problemas sanitários e de alimentação que se
apresentaram ao longo dos três dias de festa.
216
Esse fato, segundo o autor, teria levado
tanto os organizadores como os próprios participantes a afirmar que o Festival de
Woodstock havia permitido que os hippies se tornassem uma minoria social importante
dentro dos Estado Unidos, deixando-os confiantes no futuro do movimento.
217
em 1970, uma outra matéria, também publicada na revista Manchete dizia
que, em matéria de barulho e animação, o festival hippy de Roterdã, na Holanda, havia
sido o “maior do mundo”, pois mesmo não tendo superado em número de pessoas o
festival norte-americano de Woodstock, não deixava nada a desejar em termos de
“liberdade total e de segurança para os participantes, garantidas pela própria pocia
holandesa, que também havia garantido a total liberdade de venda e consumo dos mais
variados tipos de drogas.
218
214
Idem, p. 35.
215
Idem.
216
Ver mais a respeito disso em: ANDERSON, Terry. Op. cit. p. 278.
217
Idem, p. 36.
218
Holanda: liberdade total. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 953, p. 152-156, 25 Jul. 1970, p.
153.
184
O autor contava que não os vendedores de maconha gozavam de total
liberdade para comercializar seu produto, mas também aqueles que negociavam e
consumiam heroína, ácido e outros tipos de tóxicos “em enormes quantidades”, tanto do
lado de dentro como do lado de fora do “imenso cercado de arame farpado estendido
para o festival”, onde policiais de “apancia truculenta” difundiam a seguinte divisa de
paz: “Nós estamos aqui para ajudá-los”. “Mas ajudá-los a quê?”, perguntava o repórter,
referindo-se ironicamente ao descaso dos policiais diante do intenso comércio de drogas
entre os participantes aos quais estavam, supostamente, protegendo. Para responder à
sua indagação, ele sugeriu as seguintes opções: estariam a fim de ajudá-los a tirar
uma boa tragada do cigarrinho de maconha?ou “a limpar-lhe os ouvidos para que eles
pudessem ouvir melhor o som estridente dos “iê-iês” que eram incessantemente tocados
todas as horas?”
219
Dessa forma, o local onde se realizou o festival de Roterdã, ao qual o repórter se
referiu como sendo o “Congresso dos hippies”, transformou-se num “autêntico
santuário da música moderna e da música pop”, oparaíso do exotismo total”, onde não
fazer nada, drogar-se, comer, despir-se e “entregar-se ao amor” foi, segundo a
reportagem, a rotina de cerca de 30 mil participantes, que saíram de diferentes partes do
mundo em busca do máximo de liberdade e de uma aparência cada vez mais próxima do
primitivismo, em nome da paz e do amor, durante três dias nos quais a ordem era: “cada
um fazer o que quiser, a hora que quiser”, e que, segundo o autor, transcorreram entre
muita fumaça, muitos odores, muita droga e ao som de uma “música louca” que
solicitava intensamente os sentidos, “música agressiva, lancinante, violenta música a
pregar a não violência”.
220
Outra “reunião de hippies que virou notícia nas páginas de Manchete foi o
“silencioso festival de Middlefield”, nos Estados Unidos, que em função de disputas
judiciais entre as cortes do estado de Connecticut e da União, tentando decidir se ele iria
ou não acontecer, acabou acontecendo, que sem música. A reportagem enviada pela
sucursal de Nova Iorque, conta que tudo começou com a revolta da população de
Middelfield, em cujas terras, próximas ao lago Power Ridge, iria realizar-se o encontro.
As a quase totalidade dos 4 mil habitantes da cidade terem assinado uma petição
contra a realização do festival, que foi deferida pela corte local, a apelação dos
organizadores do evento foi imediata e a Suprema Corte, à véspera da data marcada
219
Idem, p. 155.
220
Idem, p. 154, 155.
185
para inaugurar a festa, autorizou sua realização. Mas a essa altura os fios e cabos de som
estavam cortados, os alto-falantes recolhidos e as estruturas desmontadas, o que não
impediu que os hippies comparecessem ao evento mesmo sem música, que ficou
resumido, segundo a matéria, a muita maconha, muito LSD, muito STP, NDP,
mescalina e heroína”.
221
Segundo o autor, a animação dos que compareceram ao encontro, mesmo na
ausência de música, era uma demonstração de que, “via de regra”, a música dos
festivais era apenas um pretextopara que aqueles jovens pudessem se reunir e fazer
uso liberado e variado de drogas, geralmente vendidas a baixo custo nestas ocasiões.
222
Enquanto a reportagem sobre o Festival de Roterdã falava que os vendedores de
maconha ficavam anunciando em microfones o preço da erva, tentando com isso atrair o
máximo de compradores e afastar a concorrência,
223
no “festival proibido de
Middlefield, o repórter dizia que as drogas estiveram variadas, fartas e baratas, sendo
vendidas a preços inéditos, havendo LSD a um dólar a dose e 30 gramas de maconha
mexicana também por umlar.
224
E se durante o festival de Roterdã os jovens entregaram-se ao amor” como
forma de passar o tempo durante os três dias de encontro,
225
a reportagem contava que
em Middlefield, “por estranho que pareça”, houve pouco sexo, pois com tanta droga à
disposição ele acabou sendo esquecido pelos participantes.
226
Tanto o texto como as imagens ressaltavam que em Middlefiel, assim como nos
demais festivais anteriores, os participantes puderam comportar-se com total liberdade,
sem se preocupar em respeitar, inclusive, a advertência de que não se banhassem no
lago Power Ridge que, na ocasião, estava contaminado.
227
Quanto aos moradores de Middlefield que tentaram impedir que o festival fosse
realizado ali, o repórter dizia que o último dia do “festival silenciosofoi o pior para
eles, pois os hippies teriam andado a pé, em bandos, ao longo dos cinco quilômetros que
221
DEVIS, Gerald e AONO, Y. O festival proibido. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 957, p.
04-09, 25 Jul. 1970, p. 06.
222
Idem.
223
Holanda: liberdade total. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 953, p. 152-156, 25 Jul. 1970, p.
153.
224
DEVIS, Gerald e AONO, Y. O festival proibido. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 957, p.
04-09, 25 Jul. 1970.
225
Holanda: liberdade total. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 953, p. 152-156, 25 Jul. 1970, p.
156.
226
DEVIS, Gerald e AONO, Y. O festival proibido. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 957, p.
04-09, 25 Jul. 1970, p. 09.
227
Idem, p. 08.
186
separavam o campo do festival da lagoa poluída, , uns nus e outros vestidos, “fumando
maconha todos e drogando-se seguidamente”. Assustados, contou o repórter, os “da
terra” fugiam para dentro de suas casas, no alto das colinas.
228
Alguns meses depois, em setembro de 1970, o editorial de abertura de um
número da revista Manchete levava a seus leitores notícias a respeito do terceiro festival
da Ilha de Wight, na Inglaterra, para o qual a revista havia enviado correspondentes com
a incumbência de fotografar e cobrir o evento. Segundo Nei Sroulevich, que era diretor
do Bureau da Editora em Paris, ele e os outros quatro repórteres que compunham a
equipe enviada à ilha de Wight ficaram boquiabertos assim que chegaram e viram mais
de 500 jovens inteiramente despidos tomando banho de mar na ilha.
229
Essa cena foi
mostrada na foto de página dupla que introduzia a matéria com a cobertura que os
repórteres de Manchete deram ao festival, e vinha acompanhada da seguinte descrição:
Este alegre, despido e coletivo banho de mar, em vez de esfriar os ânimos gerais, ainda
esquentou mais o ambiente enfumaçado [alusão às drogas consumidas durante o evento] da
pequena ilha de Wight, no arquipélago britânico. E a lei é feita para ser cumprida. Como
ela determina que “é proibido andar nu”, a polícia teve que encontrar um jeito para não ser
obrigada a prender quase todos os quatrocentos mil defensores da sociedade permissiva
reunidos para um festival de música pop. Pura e simplesmente, os policiais o foram à
praia, não viram e não acreditaram nem mesmo nas fotografias.
A matéria trazia uma série de fotos que mostravam o clima de liberdade
daqueles que compareceram ao evento, que segundo os repórteres, puderam ostentar o
nudismo e o uso compulsivo de drogas de todas as espécies dentro dos limites do
camping onde o festival foi realizado. Além disso, foram registrados depoimentos de
participantes que procuravam ressaltar que o objetivo daquele encontro era que cada um
pudesse experimentar a total liberdade individual e ampliar seus canais de comunicação
com o mundo através das drogas e fazer da música a sua forma de protesto, de
preferência, “com erva ou com ácido”.
230
Assim como nos demais festivais, a matéria dizia que a regra era que cada um
fizesse aquilo que desejasse, em geral, de maneira “desordenada e surpreendente”, não
havendo qualquer tipo de restrição, nem se quer à presença de crianças, sendo vedado o
acesso apenas “aos que não falavam a mesma linguagem da cor e do som”.
231
228
Idem.
229
MARTINS, Justino. Editorial. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 961, p. 03, 19 Set. 1970.
230
Assim começou o festival de Wight. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 961, p. 03, 19 Set.
1970, p. 08.
231
Idem.
187
A música pop, portanto, foi uma espécie de hino para aquela juventude
intelectualizada, que apreciava aqueles “protestos em forma de cançãomais pelo seu
conteúdo do que pela sua forma,
232
pois expressavam a sua desilusão face aos valores e
estruturas sociais que receberam como legado de seus pais e a sua recusa à ordenação
historicamente estabelecida das relações humanas, em nome de uma crescente
autonomia do indivíduo sobre a sociedade e suas convenções.
233
Os festivais, por sua
vez, foram os lugares onde os jovens puderam experimentar na prática, por tempo
determinado e sob estrito controle das autoridades, os novos valores e comportamentos
que pregavam na teoria ou que cantarolavam ao som dos ídolos da sua geração.
Verificamos, portanto, que os assuntos relativos à juventude estiveram presentes
com grande freqüência nas páginas das revistas Manchete, Realidade e Ele Ela, tanto
quando se tratava de falar a respeito das transformações que se processavam na sua
maneira de se comportar e de ver o mundo, como também quando se tratava de
promover os valores e símbolos de uma parcela dos jovens que passava a rejeitar os
padrões morais e comportamentais vigentes através de uma grande variedade de bens
materiais e simlicos que eram oferecidos pelo crescente mercado de bens culturais, a
um público de massa que passava a consumir o rock, as roupas inspiradas nos hippies, a
música de protesto, o erotismo e a sensualidade, presentes em tantas dessas
mercadorias, independente de quaisquer preocupações de caráter político ou ideológico,
mas pelo simples prazer de estar na moda e sentir-se moderno.
3.3-Abaixo a autoridade pedagógica
No final da década de 1930 o Brasil experimentou um primeiro impulso no
crescimento do ensino universitário, como parte de um projeto do presidente Getúlio
Vargas juntamente com o ministro da Educação Gustavo Capanema, que pretendia
modernizar o ensino brasileiro e criar padrões nacionais de referência. A iniciativa mais
importante nesse sentido foi a crião da Universidade do Brasil, em 1937, a partir da
antiga estrutura da Universidade do Rio de Janeiro, que serviria de modelo para
232
Idem, p. 12.
233
HOBSBAWM, Eric. Op. cit. p. 327.
188
implantar em todo o país um padrão nacional de ensino superior e estabelecer critérios
para controlar a qualidade desse ensino.
Na década de 1940, verifica-se um novo impulso do governo para a criação de
universidades em diversos estados e, além disso, começaram a funcionar as Faculdades
Católicas a partir de uma iniciativa de padres e intelectuais católicos que desde a década
de 1920 reuniam-se em prol da educação superior católica. A maior parte das
universidades do Brasil, nessa época, haviam sido criadas a partir da reunião dos
tradicionais cursos de Direito, Medicina, Engenharia, Agronomia, Veterinária,
Economia e Filosofia, que geralmente agregava os cursos de História, Geografia e
Letras.
A partir da década de 1960 o número de universidades no país começou a
crescer, assim como o processo de “federalização”, ao qual vinham sendo submetidas
desde a década de 1950. Além disso, crescia também a demanda de jovens oriundos da
classe média por uma vaga no ensino superior, o que resultou no problema dos
excedentes”, ou seja, alunos que eram aprovados no vestibular, mas não classificados
para ocupar o reduzido número de vagas das universidades. Essa crescente demanda de
vagas provocou uma considerável expansão no número de universidades no país ao
longo das décadas de 1960 e 1970, as quais começaram a se espalhar fora do eixo das
grandes capitais. Outro aspecto importante, é que nesse período as universidades
comaram a diversificar os cursos que eram oferecidos, acompanhando, assim, a
multiplicidade de novas profissões e disciplinas que surgiam como produto do processo
de modernização social.
234
Em meio a essas transformações, especialmente a partir de 1968,
235
não apenas
no Brasil, mas em diferentes partes do mundo, os estudantes passaram a contestar de
maneira contundente o desempenho e a atuação dos professores, pois, para eles, o
conhecimento e o saber em que se fundava a sua autoridade pedagógica o eram
suficientes para legitimá-la, uma vez que consideravam “conhecimentoe “sabedoria
elementos de ordem abstrata, impessoal e, portanto, desvinculados dos interesses
individuais e das necessidades coletivas. Segundo os contestadores, era necessário
234
ARAÚJO, Maria Paula. Memórias estudantis: da fundação da UNE aos nossos dias. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, Fundação Roberto Marinho, 2007, 56-57 e 130-131.
235
Embora ao longo de uma década os três periódicos analisados nesta pesquisa tenham publicado
diversas matérias falando a respeito dos problemas relacionados à juventude, em 1968 aparece uma
grande quantidade de reportagens informando os leitores a respeito de manifestações estudantis que
eclodiam em diferentes partes do mundo e discutindo suas principais causas e conseqüências.
189
rasgar” os papéis sociais e as convenções garantidas pelos títulos e pelo
reconhecimento da autoridade intelectual, para que os estudantes não mais se sentissem
intimidados a falar em primeira pessoa, a tomar partido em favor dos seus interesses e a
expressar llivremente aquilo que pensavam. O que eles pretendiam, entre outras coisas,
era um abrandamento dos formalismos que presidiam as relações entre professores e
alunos e que, na maioria das vezes, resultavam na sua submissão em relação àqueles. Na
escala hierárquica que regia essa relação, os alunos deveriam acatar o que diziam seus
mestres e, assim, deixar de lado suas aspirações.
236
Essa insatisfação aumentava à medida que crescia o número de jovens a
ingressarem nas universidades brasileiras e de diversos países da América e da Europa,
Ocidental e Oriental,
237
os quais passaram a constituir um novo grupo social, com sua
própria linguagem, seus deveres e seus anseios, revelando-se não apenas radicais e
explosivos, mas singularmente eficazes nas suas expressões de descontentamento
político e social.
238
Como dizia uma matéria da revista Manchete, o “poder estudantilcomeçava a
impor sua presença em diferentes partes do mundo e embora o sentido desse protesto
variasse de um lugar para outro, um fio comum entrelaçava todos esses movimentos: o
desejo de derrubar a ordem estabelecida. Assim, em diferentes lugares, grupos de jovens
tentavam demonstrar que se sentiam sufocados e deslocados em um mundo que
consideravam superado:
239
Que podemos fazer neste mundo que vocês fizeram? Em nome de quê, tendo em vista o
resultado revoltante de suas ações e de suas omissões, vocês pretendem nos dar conselhos e
ordens? Em Roma e Londres, em Praga e Berlim, em Berkeley e Varsóvia, em Madri, em
Nanterre e no Rio de Janeiro, perguntas como estas tiram o sono dos líderes do mundo. Pela
primeira vez eles começam a admitir que os protestos estudantis não mais se originam na
secular rebeldia dos jovens. Para alguns, trata-se de algo inteiramente novo. Nos países
capitalistas e nos comunistas, nos países democticos e nos totalitários, os cassetetes não
conseguiram reprimir as manifestações.
240
236
PROST, Antoine et VINCENT, Gerard. Op. cit
237
Estatísticas apontam que entre os anos de 1960 e 1980, o número de estudantes triplicou na Grã-
Bretanha e na Suíça, multiplicou por quatro na Alemanha Federal, Irlanda e Grécia, por cinco a sete na
Finlândia, Islândia, Suécia e Itália, e por sete a nove na Espanha e Noruega. Ver: HOBSBAWM, Eric.
Op. cit. p. 290; TEICHLER, Ulrich. Research on Higher Education in Europe (1989), European Journal
of Education, Vol. 24, No. 3, p. 223-247. Disponível em: http://links.jstor.org; ANDERSON, Terry. Op.
cit. p. 95.
238
HOBSBAWM, Eric. Op. cit. p. 292.
239
Do Bureax em Paris, Nova Iorque e Roma. A rebelião universal dos jovens. Manchete, Rio de Janeiro:
Editora Bloch, n. 834, p. 16-23, 13 Abr. 1968, p. 18.
240
Idem, p. 17.
190
Nos Estados Unidos as agitações estudantis em defesa dos direitos civis dos
negros, contra o envolvimento dos EUA na Guerra do Vietnam e por uma maior
liberdade de expressão dos universitários nos campi, vinham se sucedendo desde o
início dos anos 1960,
241
mas em 1968 assumiram caráter agudo em Nova Iorque, onde
600 alunos sitiaram a Universidade de Colúmbia em sinal de protesto contra a
construção de um ginásio numa área de recreação que até então era usufruída pela
população negra do Harlem. Além das manifestações de solidariedade aos negros, a
matéria da revista Manchete que noticiava o ocorrido, dizia que o movimento tamm
contou com um “colorido pacifista”, pois repetiram demonstrações anteriores de
contrariedade à Guerra do Vietnam, através da ocupação de outros cinco edifícios que
abrigavam a sede da Universidade de Colúmbia no bairro de River Drive.
242
Numa outra reportagem que falava da importância da Universidade de Colúmbia
enquanto instituição de ensino superior e centro de desenvolvimento tecnológico nos
Estados Unidos, o repórter tentava explicar porque, naquele momento, ventos de
protesto levaram aquela e outras universidades dos EUA às manchetes da imprensa do
mundo todo:
A paz, a igualdade racial e a promoção do desenvolvimento do Terceiro Mundo são
objetivos imediatos dessa filosofia neo-esquerdista que os universitários da Europa e dos
Estados Unidos buscam aplicar, incorporando-lhe a admiração romântica por heróis como
Che Guevara e Ho Chi Min, que simbolizam, para eles, a luta do oprimido contra o
opressor. Em nome desses princípios é que uma bandeira vermelha tremula ao lado de um
dos mais pujantes centros de ensino da mais rica nação do mundo.
em 1970, a revista Manchete publicou uma série de reportagens acerca dos
movimentos pacifistas nos Estados Unidos, encabeçados desde o início da década de
1960 pelos jovens universitários que começavam a questionar-se a respeito dos valores
que fundamentava a organização da sociedade americana e da validade dos esforços do
governo norte-americano em enviar tropas para combater o comunismo no sul
vietnamita.
243
Numa dessas reportagens, falou-se das manifestações realizadas em
241
Ver a respeito do ativismo estudantil nos EUA no início da década de 1960. ANDERSON, Terry. Op.
cit. p. 41-239.
242
Colúmbia: a universidade sitiada. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 839, p. 34-35, 18 Maio
1968, p. 34.
243
Com relação ao envolvimento dos EUA na Guerra do Vietnam, Terry Anderson conta que havia um
esforço por parte do governo norte-americano em difundir uma atmosfera de medo dentro da sociedade
em relação à uma “suposta” ameaça comunista, que justificasse o envio de tropas ao Vietnam. .Ele cita
uma declaração do presidente Lyndon Johnson na qual ele dizia que os EUA o tinha outra opção que
não fosse afirmar sua posição de líder no mundo, considerando a suspeita de que os países de ideologia
comunista desejavam dominar o cenário internacional, “If we don’t stop the reds in south Vietnam”, dizia
o presidente, “tomorrow they will be in Haiwaii, and next week they will be in San Francisco”. Ou seja, a
191
Washington, em frente à Casa Branca, contra a decisão do presidente Nixon de enviar
tropas americanas para o Camboja. Os manifestantes exigiam, ainda, o fim da guerra e o
impeachment de Nixon, acusando-o de adotar políticas facistas e de estimular tais
conflitos. Ele, por sua vez, em uma declaração reproduzida no número anterior da
revista Manchete, disse, com a maior irritação”, ter desprezo pela ação daqueles
“vagabundos” que se opunham nas universidades contra as suas ações, enquanto os
“bravos soldados” cumpriam seus deveres no Vietnam, sem protestos.
244
A reportagem
procurou ressaltar, inclusive em fotos, que as 75 mil pessoas que fizeram parte da
manifestação se comportaram de maneira pacífica, cantando, dançando e correndo pelos
gramados da Casa Branca, onde jovens nus se banhavam nas fontes, respingando de
água os curiosos que paravam para observar, enquanto outros buscavam a sombra de
floridas cerejeiras para fumar o seu “baseado ou empunhavam máscaras de gás
lacrimogêneo para protestar contra a grave situação de Indochina.
245
Berkeley, um dos mais importantes campi da Universidade da Califórnia, foi
considerado sinônimo do protesto estudantil nos Estados Unidos e durante as décadas
de 1960 e 1970, viveu entre as formalidades de ser uma das mais importantes e
tradicionais instituições de ensino norte-americana, e a rebeldia de alguns de seus
alunos, contestadores do status quo, do establishment e da política internacional do
governo. Hippies, black panthers, conservadores, feministas e homossexuais, todos os
grupos podiam ser encontrados no campus de Berkeley e entre eles estavam as
principais lideranças do movimento estudantil norte-americano. Herbert Marcuse, por
exemplo, o “filósofo da revolta estudantil”, era professor da Universidade da Califórnia,
no campus de San Diego, e suas idéias, especialmente as publicadas em 1964 no livro
O homem unidimensional”, no qual sugeriu que a juventude questionasse o sistema
capitalista e participasse do que ele chamou “a grande recusa”, forneceram a base
idéia que se pretendia disseminar era de que mais valia combater o comunismo no rio Mekong do que no
rio Mississipi. O autor considera que a1971, a maioria dos cidadãos norte-americanos não conseguia
concordar com a idéia de que as tropas norte-americanas deviam deixar os campos do sul do Vietnam,
pois ainda encontravam-se sob o efeito da “histeria comunista” disseminada desde o fim da II Guerra
Mundial. Mas conforme os anos se passavam e aumentava o número de americanos e vietnamitas mortos
em combate, os cidadãos passaram a perceber que a intervenção de tropas americanas no sudeste asiático
se tratava de um equívoco e, especialmente a partir de 1971, as pesquisas de opinião pública passaram a
demonstrar que a maioria desejava que as tropas americanas se retirassem imediatamente. Ver
ANDERSON, Terry. Op. cit. p.121-147.
244
EUA: o protesto nas ruas. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 943, p. 18-19, 16 Maio 1970.
245
ESTENSSORO, Hugo. EUA: protesto até debaixo d’água. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.
944, p. 04-10, 23 Maio 1970.
192
ideológica para os movimentos estudantis de todo o mundo e, por isso, foi considerado
o “patrono dos movimentos reivindicatórios”.
246
Essas matérias ilustraram uma das principais características referente ao
movimento estudantil dos anos 1960, que era a fusão entre insatisfações coletivas e
pessoais, o que fazia com que as manifestações públicas de caráter político desses
grupos assumissem um aspecto de revolta comportamental, como foi o caso, por
exemplo, das que ocorreram em frente à Casa Branca, a que acabamos de nos referir. E,
além disso, havia também o fato dessas manifestações agregarem às questões estudantis
as mais diversas causas, tais como a defesa dos direitos civis, a busca de uma nova
moral menos rígida, a crítica ao status quo, a preocupação diante dos problemas
políticos que afligiam o mundo, os problemas do operariado, as reivindicações de
grupos feministas e até de ecologistas.
247
O que unia os movimentos estudantis de todo
o mundo aos demais movimentos contestarios, era o desprezo pelas formas
tradicionais de potica, o culto à ação e o sentido de radicalidade que marcaram os anos
de 1960.
248
No dia 25 de maio de 1968 a revista Manchete chegou às bancas trazendo entre
as suas principais manchetes a seguinte notícia: “As explosivas manifestações de
estudantes se sucedem em todo o mundo. Depois de Berlim, Varsóvia, Roma, Rio,
Madri, a luta eclode na França”.
249
Era o “Maio de 68” que irrompia em Paris, um
acontecimento que ficou marcado, na memória e na historiografia, como o principal
marco da rebelião estudantil na década de 1960. O cenário do conflito entre policiais e
manifestantes foi descrito da seguinte maneira:
Ao cair da tarde da segunda-feira da semana passada, o Quartier Latin famoso bairro
estudantil da margem esquerda do Sena transformou-se num impressionante campo de
batalha. Utilizando a tática das guerrilhas urbanas, entrincheirados atrás de barricadas
improvisadas com automóveis virados e postes arrancados, estudantes e professores
parisienses entraram em choque com a polícia, armados de paralelepípedos, paus e latas de
lixo. Enquanto a coluna principal dos manifestantes – com sete mil pessoas – avançava pelo
Boulevard Saint-Michel, grupos isolados enfrentavam a polícia em ruas laterais. A passeata,
embora encabeçada pela União Nacional dos Estudantes Franceses, parece ter sido
organizada por grupos de extrema esquerda na sua maioria trotskistas, castristas da linha
chinesa, ou anarquistas. Seu objetivo: protestar contra o fechamento da Sorbone fato sem
precedentes nos 800 anos de história da universidade.
250
246
ANGÉLICA, Joanna. Berkeley: a universidade dos rebeldes. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch,
n. 982, p. 116-123, 13 Fev. 1971.
247
Ver mais a esse respeito em ANDERSON, Terry. Op. cit.
248
ARAÚJO, Maria Paulo. Op. cit. p. 166.
249
Paris: a hora da violência. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 840, p. 30-37, 25 maio 1968.
250
Idem.
193
A invasão dos policiais à mais tradicional universidade da França se deu porque
esta se insurgiu contra o fechamento da Universidade de Nanterre, localizada na
periferia de Paris, após ela ter sido o palco de acirrados confrontos entre policiais e
estudantes que protestavam e distribuíam panfletos em favor de reformas nos currículos
e nos todos de ensino. Conforme o trecho citado acima e as fotos que compunham a
matéria, os confrontos foram marcados pelo uso da violência por ambas as partes, se
estendendo a vários bairros da capital francesa e para além dos seus limites, chegando
até Strasbourg, Lyon, Nantes, Bordeaux, Toulon e Rennes. Em solidariedade aos
estudantes de Nanterre que foram reprimidos e presos pela pocia durante suas
manifestações, a Sorbonne organizou um cocio que terminou com a invasão da
universidade pelos policiais. A partir daí, a França, como dizia a matéria da revista
Manchete,vivenciou dias de “caos e fogo”.
251
A União Nacional dos Estudantes da
França marcou para o dia 13 de maio uma concentração nas portas da Sorbonne, que
contou com a participação de dois mil universitários, aos quais se uniu um grupo de mil
professores. A polícia, sob a ordem de dispersar os manifestantes, utilizou bombas de
gás lacrimogêneo às quais revidaram atirando pedras e paralelepípedos.
252
As sete dias de conflitos sangrentos e paralisação dos serviços gerais, o
general De Gaulle reuniu-se com os ministros militares e decidiu mandar reabrir a
Sorbonne. “Os estudantes pareciam andar pelas ruas com um ar de triunfo: acabavam de
vencer o primeiro round da luta pelas suas reivindicações”, dizia a reportagem.
253
Por
outro lado, as fotos e os dados apresentados mostravam o saldo negativo desses
conflitos: mais de trezentos feridos e quinhentas prisões,
254
depredações por toda parte,
carros incendiados e abandonados pelas ruas, trânsito interceptado por imensas pilhas de
entulho e barricadas erguidas com carros e postes, racionamento de gêneros alimentícios
e outros artigos, além de um bito aumento de 30% em todos os preços. A capital
francesa tinha o aspecto de uma cidade devastada, tal como se um furioso vendaval a
tivesse varrido.
255
A revista Manchete também mostrou aos seus leitores o momento em que o
jovem Daniel Cohn-Bendit, um dos principais líderes das revoltas estudantis em
251
GHIVELDER, Zevi. Conversa com o leitor. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 840, p. 01, 25
Maio 1968.
252
Idem.
253
Idem, p. 36.
254
Idem, p. 34.
255
Do Bureaux em Paris. SROULEVICH, Nei. Paris sob o terror. Manchete, Rio de Janeiro: Editora
Bloch, n. 842, p. 04-15, 08 Jun. 1968.
194
Nanterre, tentou retornar à Fraa, mesmo depois de ter sido oficialmente notificado de
que o Ministério do Interior o havia banido daquele território. Nas fotos, o jovem
Dani-Le Rouge”, como era conhecido na época, aparece tentando argumentar com o
então prefeito da cidade francesa de Forbach, na Alsácia, fronteira com a rego ale
do Sarre, e com os militares que ocupavam postos de um dispositivo militar que havia
sido montado em diversos pontos da fronteira franco-germânica a fim de impedir a
entrada do der estudantil que, no momento do seu banimento, encontrava-se na
Alemanha, seu país de origem, falando aos estudantes de Francfurte e Berlim.
256
Os epidios de Maio de 68 na França serviram ainda como pano de fundo
para outras matérias que tentavam explicar as razões daqueles conflitos
257
e da violência
característica das revoltas estudantis em geral
258
, quem eram aqueles rebeldes
259
e qual
era o pensamento dos seus “mentores ideológicos”, especialmente do filósofo Herbert
Marcuse, apontado pelo jornalista Muniz Sodré como o “ídolo dos jovens universitários
rebeldes da década de 1960”.
260
Assim como nos Estados Unidos, no México, em Buenos Aires, Montevidéu,
Paris, na Polônia, Tchecoslováquia, Iuguslávia e outros, no Brasil, as lutas estudantis e
o processo de radicalização potica culminaram em 1968, especialmente após a morte
do estudante Edson Luis, assassinado durante um confronto entre policiais militares e
estudantes no restaurante universitário Calabouço, onde o jovem trabalhava. Esse
acontecimento foi o estopim de um processo que deflagrou uma série de protestos e
manifestações de milhares de jovens em todo o país. Mas além da solidariedade ao
colega morto, da repulsa pelo governo vigente, pela sociedade passiva e pela
imobilidade dos intelectuais, uma reportagem publicada na revista Manchete ressaltava
que naquele momento as insatisfações e inquietações dos estudantes com as deficiências
256
Idem, p. 14-15.
257
SROULEVICH, Nei. Paris, a rebelião está nas ruas. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 841,
p. 06-17, 01 Jun. 1968; O que aconteceu na França. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 844, p.
36-42, 22 Jun. 1968.
258
PONGETTI, Henrique. A raiva do mundo. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 845, p. 122, 29
Jun. 1968.
259
SROULEVICH, Nei. Os guerrilheiros da Sorbonne. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 845,
p. 12-17, 29 Jun. 1968.
260
O desafio jovem. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 845, p. 38-47, 29 Jun. 1968; e SODRÉ,
Muniz. Os mil olhos de Marcuse. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 845, p. 44-45, 29 Jun.
1968.
195
do ensino superior atingiam um ponto crítico, e que sem vida teriam contribuído para
que eles fossem às ruas e adotassem atitudes mais radicais.
261
No Rio de Janeiro, dizia um editorial, a crise estudantil explodiu ao meio-dia de
uma sexta-feira, dia 21 de junho de 1968, em meio a uma “batalha de pedras e balas
entre estudantes e forças policiais no centro da cidade”.
262
A matéria que se seguia ao editorial, contava os acontecimentos transcorridos
em dois dias do mês de junho, que representaram o gradativo processo de radicalização
nos embates entre policiais e estudantes e no uso da violência na repressão policial
contra os manifestantes.
263
Em seu depoimento ao livro Memórias estudantis, Vladimir Palmeira, um dos
líderes que comandou aquela ação dos estudantes, se referiu ao dia 19 de junho como a
Quarta-feira Sangrenta”, que foi o dia em que eles decidiram ocupar o prédio do MEC,
no intuito de demonstrar que desejavam conversar com o ministro sobre suas propostas
de reforma no ensino. Ele conta que foi a primeira vez em que resolveram usar a
violência e, por isso, prepararam coquetel molotov com antecedência, levaram pedaços
de pau e partiram “para o cacete”.
264
Quando a polícia veio, naquele passo terrível, aquele passo de ganso, disseram: “que a
gente faz?” Eu disse: “Vamos resistir.” Quando chegou, sei lá, a uns cinqüenta metros, a
gente disse: “Vamos para cima deles!” E fomos e batemos na polícia pela primeira vez. A
polícia saiu correndo e nós atrás por aquelas ruelas do Centro, invertendo as coisas. (...).
Houve de tudo. A massa é criativa. Até que tocaram fogo num caminhão do Exército.
Nesse momento, a barra pesou, chegou a PE e eu me mandei.
265
Entretanto, os eventos que receberam destaque na matéria da revista Manchete
foram os do dia 20 e 21 de junho, respectivamente quinta e sexta-feira. As primeiras
páginas mostravam uma foto de página dupla com os alunos reunidos em um dos pátios
do prédio do Conselho Universitário da Praia Vermelha, que foi ocupado no dia 20 de
junho, no intuito de forçar uma discussão com os professores sobre a reforma
universitária. A reportagem dizia que, no começo, houve o diálogo. Na reitoria da
Universidade Federal do Rio de Janeiro professores e alunos iniciaram o debate a
respeito de problemas comuns: verbas, sarios, anuidades, vagas. Mas o cerco policial
ao redor do prédio da Universidade crescia e emprestava um clima de tensão aos
261
Inquérito Manchete-Ibope. Porque se rebelam os estudantes. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch,
n. 835, p. 144-147, 20 Abr. 1968, p. 145.
262
O diálogo da violência. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 846, p. 08-17, 06 Jul. 1968, 01.
263
ARAÚJO, Maria Paula. Op. cit. p. 176.
264
Idem, p. 177.
265
Idem.
196
discursos inflamados dos deres estudantis, que passaram a denunciar o governo, a
sociedade passiva, a imobilidade dos intelectuais e a repetir teses, segundo a
reportagem, já proclamadas em Milão, Barcelona, Madri, Turim, quio, Berlim
Hamburgo, Paris, Nova Iorque, Califórnia, Buenos Aires e Montevidéu. Enquanto isso,
a pocia esperava do lado de fora. E assim, o “sonhadodiálogo dos jovens terminou
ao estilo dos filmes de guerra”, na “dura realidade” de uma “rendição humilhante” no
Campo do Botafogo.
As fotos e as legendas mostram que os alunos rendidos foram obrigados a ficar
durante horas com as os erguidas na cabeça, numa longa fila indiana em diagonal ao
campo de futebol, enquanto a outros os policiais ordenavam, “ao comando de
cassetetes”, que se deitassem de bruços no chão cimentado das quadras com o rosto
virado para baixo, proibindo-os de olhar o que se passava ao redor.
266
As o “espancamentono campo do Botafogo,
267
a reportagem contava que os
estudantes, “ainda com os livros nas mãos” foram empurrados pelos policiais para
dentro de camburões da Polícia Militar, conhecidos como “carros-frigoríficos”, onde
foram transportados até a Polícia Central A legenda de uma das fotos que mostra a
chegada dos estudantes no Departamento de Polícia, dizia que durante o trajeto puderam
ler uma frase escrita do lado de dentro da porta do camburão, que os aconcelhava a
fazer o seguinte pedido em oração: “Cria em mim, ó Deus, um coração puro”.
268
Entretanto, a batalha de fato, como afirmou a revista Manchete, começaria no
dia seguinte. Vladimir Palmeira relembra atualmente, que, suspeitando que houvesse
repressão no dia da Assembléia Geral na Reitoria da UFRJ, marcaram para o dia
seguinte, 21 de junho, às 8 horas da manhã, outra manifestação que começaria na Praça
Tiradentes e que ficaria conhecida como a “Sexta-feira Sangrenta”.
269
Perseguido pela polícia desde quinta-feira, dia da Assembléia ao ar livre no
campus da UFRJ na Praia Vermelha, quando se escondeu na Reitoria da Universidade e
escapou pelos fundos depois da meia-noite, Vladimir Palmeira, contou na época à
revista Manchete, que naquela sexta-feira foi ele quem comandou pessoalmente a
reação dos estudantes à pocia nas ruas centrais do Rio. Protegido por um esquema
anti-polícia de grande mobilidade, ele de ser visto discursando em vários cocios
266
O diálogo da violência. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 846, p. 08-17, 06 Jul. 1968, p. 16.
267
Ver trecho do depoimento de Vladimir Palmeira em: ARAÚJO, Maria Paula. Op. cit. p. 177 e 178.
268
Idem, p. 17.
269
ARAÚJO, Maria Paula. Op. cit. p. 179.
197
relâmpagos e em alguns lugares usou até megafone para que pudesse ser melhor ouvido,
mas sem que a pocia conseguisse alcançá-lo.
270
A reportagem destacava que o Senador
Rui Palmeira, na dupla condição de pai do então estudante Vladimir Palmeira e de
membro do bloco parlamentar do governo, havia anunciado que não interviria, caso o
filho fosse preso.
271
Referindo-se aos acontecimentos daquela sexta-feira, o jornalista Elio Gaspari
conta que naquela manhã, o Rio de Janeiro “acordaria em sobressalto, com as primeiras
páginas dos jornais exibindo “lúgubres fotografias” de garotos deitados no escuro,
debaixo das botas da pocia”.
272
Mas para ele, o que de fato chocou a sociedade, é que
aqueles jovens encurralados pela Pocia Militar no campo do Botafogo tratavam-se dos
dourados filhos da elite”,
273
o que levou setores da classe média a apoiarem às
manifestações, tanto no asfalto como do alto dos prédios da Avenida Rio Branco, de
onde os moradores e funcionários aplaudiam a passeata, avisavam sobre a aproximação
da pocia e jogavam uma chuva de objetos” sobre os policiais que atiravam e
lançavam bombas de gás lacrimogêneo contra os manifestantes.
274
Os “lugares dos combates” ficaram marcados pela fumaça negra que vinha dos
carros de polícia tombados e queimados com a própria gasolina dos tanques.
275
No
corre-corre da repressão”, os transeuntes alheios ao combate o conseguiram fugir a
tempo e, entre eles, alguns se tornaram timas de tiros que imaginavam ser de festim,
até que vissem tombar os primeiros feridos. Misturado à multidão que fugia das bombas
de gás ou que atirava pedras por detrás das barricadas, um fotógrafo da revista
Manchete flagrou um padre que concedia absolvição aos feridos e a ação de populares
que se incumbiram da tarefa de retirar das ruas os que haviam sido atingidos. A única
morte registrada pela revista foi a do PM Nelson de Barros,
276
embora hoje em dia
tenhamos conhecimento, mesmo sem dispor de dados estatísticos exatos, de que houve
algumas outras vítimas fatais, tanto entre os policiais como entre os manifestantes.
277
A esses três agitados e violentos dias de junho se seguiu o pacífico dia 26 do
mesmo mês, quando aconteceu a chamada “Passeata dos Cem Mil”,
270
Idem, p. 11.
271
Idem.
272
GASPARI, Elio. Op. cit. p. 293.
273
Idem.
274
O diálogo da violência. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 846, p. 08-17, 06 Jul. 1968, p. 12-
15.
275
Idem, p. 14.
276
Idem, p. 13, 15.
277
ARAÚJO, Maria Paula. Op. cit, p. 179 e GASPARI, Elio. Op. cit. p. 293-294.
198
Cem mil pessoas talvez um pouco mais, talvez um pouco menos. O número exato não
tem tanta importância: a verdade é que todas as classes sociais do Rio estavam presentes na
gigantesca demonstração promovida pelos estudantes. O território tradicional das
manifestações políticas dos cariocas – entre a Assembléia Legislativa, o Teatro Municipal e
a Biblioteca Nacional abrigou padres, religiosas, professores, artistas, intelectuais,
trabalhadores e funcionários. Foi a maior concentração popular realizada na Guanabara
desde a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em 1964. E agora, como há quatro
anos, havia nas faces das pessoas e nas faixas que empunhavam uma grave advertência.
[logo abaixo desse texto, uma foto da multidão reunida na Cinelândia destaca uma faixa
que dizia: “Abaixo a ditadura – Povo no Poder”].
278
A matéria da revista Manchete que noticiou o evento que é apontado como o
ponto máximo da mobilização estudantil no Brasil,
279
procurou ressaltar o caráter
ordenado e alegre da passeata que reuniu pessoas de diferentes setores da sociedade
(freiras, padres, artistas, donas de casa), todos de braços dados em defesa das liberdades
públicas. Além daqueles que marchavam entoando os slogans das faixas e bandeiras que
empunhavam pedindo mais verbas para a educação e o fim da ditadura, a passeata
contou com o colorido das chuvas de papel picado que caíam do alto dos prédios por
onde passavam:
Assim foi o povo, de braços dados em compridas alas de 50 pessoas, da Cinelândia até a
Candelária: cantava seus hinos e gritava slogans ao longo da Avenida Rio Branco, sob
chuva de papel picado. Os estudantes imprimiram à manifestação uma organização perfeita.
À sua voz de comando atendiam, por igual, os professores, os pais e os representantes do
clero. As freiras mais jovens e alguns sacerdotes faziam coro com a massa, pedindo aos que
aplaudiam das janelas que descessem para se integrar na passeata. Antes, um padre
discursara na escadaria da Assembléia. Quando seu nome foi anunciado e o povo aplaudiu,
as irmãs e os sacerdotes tendo à frente o Bispo Auxiliar do Rio de Janeiro, levantaram-se
do chão, onde todos estavam sentados, para expressar seu agradecimento. Quando o Padre
João Batista marchava para a tribuna improvisada, seus colegas bateram-lhe nas costas e
aconselharam baixinho: “Fala direito, irmão”, e uma freira mais idosa comentou, tranqüila:
“Ele falará bem”.
280
Além de noticiar os embates blicos entre estudantes e policiais em diferentes
partes do mundo, tanto a revista Manchete como a Realidade publicaram resultados de
inquéritos que visavam conhecer melhor as aspirações e insatisfações estudantis e, com
isso, pretendiam oferecer orientação a pais e autoridades nas atitudes a serem tomadas
em relação àquela que foi identificada como “a mais grave crise nacional”.
281
Logo após os episódios que marcaram a “explosão” do movimento estudantil no
Rio de Janeiro, a revista Manchete divulgou os resultados de um inquérito sobre as lutas
278
Sob o comando dos estudantes: a opinião pública. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 847, p.
106-113, 13 Jul. 1968.
279
ARAÚJO, Maria Paula. Op. cit, p. 180.
280
Sob o comando dos estudantes: a opinião pública. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 847, p.
106-113, 13 Jul. 1968, p. 109.
281
Inquérito. Porque lutam os universitários. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 848, p. 32-37,
20 Jul. 1968.
199
estudantis no Brasil, realizado em 1965 pela Sociedade de Pesquisas e Planejamento,
com o objetivo de revelar por que os universitários lutavam. Cerca de oito mil jovens
foram ouvidos em 19 centros universitários (Brasília, Belo Horizonte, Belém, Curitiba,
Campinas, Florianópolis, Goiânia, João Pessoa, Juiz de Fora, Niterói, Porto Alegre,
Pelotas, Rio de Janeiro, Recife, São Paulo, Salvador, Santa Maria, Vitória e Viçosa) e
responderam a perguntas relacionadas aos seguintes temas: quem era o universitário,
qual a relação entre potica e universidade e quais eram, na sua opinião, as deficiências
do ensino universitário.
282
Um pouco antes disso, diante dos protestos e manifestações deflagrados após a
morte do estudante Edson Luiz, a Manchete juntamente com o Ibope, realizou o
inquérito “Porque se rebelam os estudantes”, através do qual pretendia escutar a
juventude estudantil, traçar-lhes um perfil e identificar as causas “próximas ou remotas”
da sua rebeldia. Com base nas respostas dos jovens entrevistados, a respeito da relação
que tinham com seus pais e com os deres poticos do país, e sobre a maneira como
viam e vivenciavam os problemas do mundo e do sistema educacional brasileiro, uma
das conclusões gerais do inquérito foi que os jovens revelavam grande maturidade e
lucidez ao enfrentar os seus problemas e ao buscar suas próprias soluções.
283
Em Setembro de 1967, a revista Realidade levou às bancas um número especial
no qual pretendia mostrar “como é, o que pensa e o que quer a juventude brasileira”.
284
Para isso, seus repórteres foram enviados ao encontro dos jovens em diferentes
campos de atividade: a brica, o escritório, o campo e a universidade. Foram ver como
viviam os jovens do interior, viajaram até um quartel na fronteira para ver o que
acontecia com o recruta, procuraram os jovens que estavam fazendo coisas importantes
em potica, ciência, arte e negócios, e também aqueles que, não podendo entrar nas
universidades, buscaram e encontraram outras carreiras e oportunidades de trabalho. A
psicóloga e jornalista Carmen da Silva escreveu sobre o conflito de gerações e uma
fotógrafa apresentou um ensaio sobre o primeiro amor. A jovem-guarda e a juventude
“iê-iê-iê” também mereceram um ensaio fotográfico e os comentários de uma psicóloga
e de um psicólogo.
285
282
Idem.
283
Inquérito Manchete-Ibope. Porque se rebelam os estudantes. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch,
n. 835, p. 144-147, 20 Abr. 1968.
284
Nota da Redação: Aqui estão os jovens. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n.18, Set. 1967.
285
Idem.
200
Além disso, a edição trouxe duas pesquisas sobre a juventude, uma realizada por
uma empresa especializada e outra feita com base nos formulários distribuídos aos
leitores na edição de Julho daquele ano. O resultado das duas, dizia o editorial, foi quase
coincidente, o que, do ponto de vista da revista, valorizava ainda mais os resultados
apresentados e o retrato juventude brasileira que pretendia traçar.
286
Para fazer a reportagem sobre o mundo universitário, Realidade convidou o
jovem Alberto Libânio, de 22 anos, a quem caberia a tarefa de ir viver um mês com os
estudantes e descobrir se eles eram “realmente tão subversivos” como eram pintados,
quais as suas preocupações e o que pensavam sobre política, religião, sexo e moral.
Deveria descobrir tamm como eles se divertiam, o que faziam fora das universidades,
o que conversavam em volta de uma mesa de chope e o que seus pais e suas namoradas
achavam de suas atitudes. Libânio aceitou o trabalho e decidiu fazer a reportagem fora
de São Paulo, por um motivo que considerou muito importante: naquela capital se
preparava o XXIX Congresso da “ex-UNE” e, portanto, os estudantes não seriam
apanhados em ritmo de vida normal. Escolheu então Belo Horizonte, em Minas Gerais.
Alberto Libânio arrumou as malas e durante 30 dias viveu numa república de estudantes
mineiros. Entrevistou autoridades, almoçou e bebeu com universitários, foi a bailes,
festinhas, reuniões de centros e diretórios acadêmicos, participou de reuniões sobre
política estudantil e sobre problemas do ensino brasileiro.
287
Durante essa experiência ele disse ter percebido que alguns estudantes estavam
convencidos de que haviam de mudar as estruturas sociais do Brasil, recorrendo sempre
aos livros para defenderem suas opiniões, especialmente às obras de Celso Furtado e
Caio Prado. Outros, porém, só estavam preocupados em adquirir um diploma que
comprovasse sua especialização profissional, sem relacionar sua atividade técnico-
científica com a participação política.
288
Em relação às questões morais e comportamentais, o jovem Libânio disse ter
ficado surpreendido com a facilidade com que os universitários pregavam as mais
avançadas idéias, chegando mesmo a afirmarem que era preciso fazer a “revolução
social” e reconstruir tudo de novo.
289
286
Idem.
287
LIBÂNIO, Alberto. O jovem universitário. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n. 18, p. 81-90, Set.
1967.
288
Idem.
289
Idem.
201
De forma geral, o enviado da revista Realidade relatou que naquela república de
estudantes havia conhecido um mundo bem jovem, atraente, contagiante, cheio de
dúvidas, incertezas e problemas, mas que ainda assim achava difícil encontrar um
estereotipo que caracterizasse o jovem universitário de maneira generalizada.
290
Dois anos mais tarde, em maio de 1969, após a vigorosa atuação do movimento
estudantil em 1968, a revista Realidade lançou um questionário direcionado aos
universitários brasileiros e, através das suas respostas, pretendia apresentar aos leitores
um perfil “amplo e objetivodaquele grupo e divulgar seus pontos de vista a respeito
das qualidades e deficiências dos cursos de nível superior.
291
Depois de quatro meses, Realidade apresentou o resultado da pesquisa:
Um questionário com 31 perguntas procurou captar, do modo mais concreto possível a
partir da própria experiência de cada aluno -, as dificuldades vividas no meio universitário,
muitas delas relacionadas com a própria formação dos nossos estudantes, desde os cursos
médios. Por outro lado, toda uma série de questões destinou-se a levantar dados que
permitissem traçar um perfil de quem é o aluno das universidades brasileiras. O grande
número de questionários respondidos e a franqueza das respostas garantiram que fosse
alcançado aquele duplo objetivo da pesquisa. Mais importante ainda: a seriedade e o
espírito construtivo evidentes na esmagadora maioria das respostas mesmo nos momentos
de crítica, traduzem uma responsabilidade à qual o universitário não deseja furtar-se. Fica
patente a disposição dos jovens de colaborar com a reforma universitária.
292
Portanto, um dos pontos que fica mais evidente nas respostas dadas ao
questionário era o desejo dos estudantes de realizar uma reforma universitária que
incluísse a reestruturação dos currículos dos cursos, a contratação de novos professores
e uma maior aproximão da universidade com a indústria, com os óro públicos e
com os problemas do país.
293
De maneira geral, portanto, verificamos que especialmente as revistas Manchete
e Realidade retrataram os problemas atinentes ao universo estudantil, tanto no Brasil
como nos Estados Unidos, França e tantos outros lugares onde os jovens estivessem
contestando as autoridades poticas ou pedagógicas, no intuito de explorar
mercadologicamente o lado explosivo” de suas manifestações, como também de servir
enquanto fórum de discussão a respeito das principais questões que naquela ocasião
figuravam na pauta das reclamações estudantis e que interessavam, portanto, tanto aos
manifestantes como aos que estavam de fora, mas desejavam manter-se informados.
290
Idem.
291
O estudante com a palavra. Realidade, São Paulo:Editora Abril, n. 38, p. 06-07, Maio 1969.
292
WEIS, Luiz. A palavra dos estudantes: eles querem construir. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n.
42, p. 24-39, Set. 1969.
293
Idem.
202
Assim, além de participar seus leitores acerca das manifestações dos grupos
jovens cujas opções eram sempre no sentido de contestar a ordem e os valores vigentes,
esses periódicos também serviram como um espaço de discussão a respeito das suas
principais reclamações e sugestões, que como tivemos a oportunidade de ver nas
matérias analisadas neste capítulo, eram atinentes aos mais diversos aspectos da vida
pública e privada.
3.4-A circulação de idéias modernas e a força da tradição na sociedade brasileira
Através da análise das revistas Manchete, Realidade e Ele Ela, pudemos
perceber que, ao longo da segunda metade do século XX, a sociedade foi
gradativamente adotando formas reguladoras mais brandas, que permitiam que algumas
meninas usassem biquíni na praia, saíssem à rua de mini-saia, passeassem de carro com
o namorado etc. Entretanto, embora alguns setores da sociedade começassem a desfrutar
de uma maior liberdade na maneira de se comportar e de se vestir, por exemplo, isso
o significa que poderiam abrir mão de quaisquer princípios ou parâmetros de conduta
social. Além disso, percebemos que questões privadas e problemas até então restritos à
esfera particular, passaram a aparecer cada vez mais freqüentemente nestes periódicos,
que, dessa forma, buscavam chamar a atenção de diferentes tipos de leitores que
comaram a se reconhecer nestas publicações e, portanto, a consumi-las.
Mas se de fato algumas particularidades da vida privada passaram a ser
abordadas em espaços públicos, o desenvolvimento dos meios de comunicação de
massa, tais como os jornais, as revistas e especialmente a TV, cada vez mais presentes
nos lares de mais pessoas, permitiu que a esfera pública penetrasse, e modelasse de
maneira mais incisiva os setores mais secretos da vida privada.
Segundo o sociólogo Antony Giddens,
Tanto em extensão, quanto em intensidade, as transformações envolvidas na modernidade
são mais profundas do que a maioria das mudanças características dos períodos anteriores.
No plano da extensão, elas serviram para estabelecer formas de interconexão social que
cobrem o globo; em termos de intensidade, elas alteraram algumas das características mais
íntimas e pessoais de nossa existência cotidiana.
294
294
GIDDENS, Antony. The consequences of Modernity. Cambridge: Polity Press, 1990, p. 21.
203
Sem dúvida, antes da segunda metade do século XX, o livro, o jornal e as
revistas já eram muito tempo veiculados como mercadoria, mas a cultura e a vida
privada nunca haviam entrado com tanta intensidade no circuito comercial e industrial
como naquele momento, em que os “murmúrios do mundo” e questões até então
tratadas de forma mais reservada, como os amores, os medos, os problemas do coração,
da alma e do corpo, passavam a ser “fabricados” industrialmente e “vendidos”
comercialmente.
295
Fazendo uso de uma linguagem amigável e mais pessoal para dialogar com
leitores anônimos, os novos títulos que surgiam com a crescente segmentação do
mercado de revistas traziam explicações de como se maquilar, como cuidar da saúde,
como seduzir o marido e como educar os filhos, ofereciam conselhos, pesquisas de
opinião pública e histórias de vida, além de pedirem a opinião dos seus leitores através
de questionários aos quais deveriam responder e enviar à redação das revistas, ou ainda,
um espaço para solucionarem suas vidas, como a seção permanente “Brasil
Pergunta”, da revista Realidade, onde todo mês a pergunta de um leitor, acerca de
problemas nacionais”, era respondida através de um debate entre duas personalidades.
Além disso, existiam as tradicionais sessões de cartas e os correios sentimentais, que em
diversas ocasiões funcionavam como uma espécie de confessionário anônimo, através
dos quais os leitores tentavam encontrar resposta para problemas das mais diversas
categorias: relacionamento, sexualidade, distúrbios psíquicos, vícios, doenças, traumas,
além de ser um espaço onde podiam fazer queixas, elogios, desabafos e pedidos de
ajuda. E assim, a vida privada e seus mais íntimos recônditos iam parar, mesmo que
anonimamente, no espaço público das páginas das revistas.
Contudo, é importante atentarmos para o fato de que dentro do universo
capitalista, ou ainda mais especificamente, dentro de uma sociedade, como a brasileira,
em que o capitalismo foi implantado tardiamente sob o signo de um regime militar
autoritário, a cultura de massa, ainda que falasse das transformações sociais e
propusesse novos modelos a serem seguidos, contribuiu para a manutenção do status
quo e da estrutura vigente, pois, estando sujeita aos interesses dos grandes empresários
que a sustentavam e que, por sua vez, estavam associados aos interesses e valores do
Estado que os autorizava, devia obedecer fundamentalmente à lei do mercado. Uma vez
que ela depende da indústria e do comércio, a cultura de massa deve passar sempre pela
295
MORIN, Edgar. Op. cit. p. 13,14.
204
mediação do produto venvel, consistindo, portanto, no resultado de um diálogo entre
uma produção e um consumo, pois, como ressalta Morin, mesmo nos sistemas
totalmente controlados pelo Estado, a ida ao cinema, o ouvir o rádio, o assistir televisão
ou a leitura de jornais e revistas não são obrigatórios, sendo a “auto-seleção” o princípio
do consumo, o que significa dizer que o consumidor pode desligar seu rádio ou sua
televisão, não comprar o jornal e as revistas ou deixar a sala do cinema quando a
mensagem transmitida pelo meio não lhe agradar. Ou seja, não ação unilateral dos
mass media sobre o público, e seus efeitos não guardam uma relação direta com as
intenções daquele que comunica ou com o conteúdo da comunicação, pois as
predisposições do leitor ou do ouvinte estão profundamente engajadas nessa situação e
podem, inclusive, bloquear ou modificar o efeito esperado, uma vez que o consumidor
dificilmente assimila o que contraria seus próprios processos de projeção, identificação
e intelecção. Portanto, para Edgar Morin a influência da publicidade sobre o leitor ou
ouvinte, não é absoluta, sendo mediada pela sua experiência de vida e seus valores
internalizados.
Assim, percebemos que a dialética produção-consumoque resulta na cultura
de massa, não é autônoma nem pressupõe uma situação de igualdade entre aqueles que
consomem e aqueles que produzem os bens culturais, estando, ainda, sujeita às
variações que ocorrem na dimica das relações entre a sociedade e a esfera potica.
Isso nos leva a pensar que se por um lado o regime militar incentivou o
desenvolvimento e a expansão dos meios de comunicação de massa, sua ação, através
da censura, interferiu nesse diálogo entre produção cultural e consumo em massa, pois,
uma vez que a lei fundamental que rege a indústria da cultura de massa é a do mercado,
isso pressupõe, portanto, que ela deva agradar tanto ao público que consome seus
produtos, como ao Estado, que permitirá ou o, a sua veiculação no mercado de bens
culturais.
296
Como veremos no capítulo seguinte, além de conhecer como foram estruturados
e operados os mecanismos de controle, dentre os quais a censura, utilizados para
restringir a discussão de questões comportamentais, para que possamos entender de que
maneira os periódicos de grande circulação, no caso, as revistas Manchete, Realidade e
Ele Ela, veicularam tais temas durante o regime militar, é preciso entender em que
medida essas ações restritivas do regime representavam os interesses de uma parcela
296
Idem, p. 46-47.
205
mais conservadora da sociedade que, independente de apoiar ou recusar o regime
vigente, solicitavam a ação do Estado no sentido de garantir a defesa da moral e dos
bons costumes.
206
Capítulo IV
A revolução dos costumes e a vigília moral aos periódicos
No capítulo anterior vimos que as revistas Manchete, Realidade e Ele Ela foram
portas de entrada para as novidades que surgiam nos Estados Unidos, França, Inglaterra,
Holanda, Suíça e outros países ocidentais. Da mesma forma, entretanto, pudemos
observar em nossa pesquisa que, consecutivamente, esses periódicos veicularam, de
forma esporádica, notícias que falavam a respeito das pretensões do regime militar em
desmobilizar e reprimir as agitações poticas e culturais que caracterizaram a “era de
aquárius” e, assim, “salvar” o Brasil daquela tempestade” de idéias e novos costumes,
advindos de um provável declínio do mundo ocidental e das suas formas de liberalismo
democrático, que, aos olhos dos que naquele momento estavam no poder, ameaçavam a
ordem social e a segurança da nação.
Citando as palavras do escritor Dias Gomes, que viu proibida pela censura sua
peça “O berço do herói”, o repórter Luis Fernando Mercadante, numa matéria para a
revista Realidade de setembro de 1966, procurou explicar aos leitores que, naquele
momento, falar em “liberdade” no Brasil era algo fundamental, que uma das poucas
liberdades ainda garantidas era a de se falar propriamente em “liberdade”, e assegurava
que, quando num país se começa a falar muito nesse assunto, é sinal de que ela “não
existe ou está para desaparecer”.
1
No ano seguinte, na edição de junho de 1967, a redação de Realidade publicou
uma nota dizendo:
Quando autoridades mandam apreender revistas (...) e cortam ou interditam filmes (...), a
censura se transforma em assunto do momento. Para aprofundar o problema, repórteres
procuraram os homens que “sabem” o que podemos ou não podemos ver e entrevistaram
intelectuais. Todos foram contra o primarismo dos censores.
2
Neste mesmo número, uma matéria de José Carlos Marão e Afonso de Souza,
intitulada Isto é proibido”, trazia o depoimento do jornalista Paulo Francis a respeito
da censura no Brasil, onde ele dizia que essa prática consistia em fator de
obscurantismo político e sexual”, citando como exemplo do primeiro caso as
apreensões de livros realizadas durante o governo Castelo Branco e, em relação ao
segundo caso, a apreensão de títulos como “O casamento”, de Nelson Rodrigues e
1
MERCADANTE, Luis Fernando. liberdade no Brasil? Realidade, São Paulo: Editora Abril, n. 6, p.
22-26, Set. 1966.
2
Nota de redação. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n.15, 06/1967.
207
Fanny Hill”, de John Cleland, e concluiu que uma sociedade onde o se podia ler a
respeito de um “ato fisiológico normal, como é o sexual”, não poderia estar preparada
para o desenvolvimento industrial e para a era da tecnologia.
3
Segundo Elio Gaspari, no entanto, diante da “explosão anárquica daqueles
anos, o regime militar imbuiu-se de um “salvacionismo de quitanda” e difundiu a idéia
de que possuía a “clarividência de se antecipar ao Juízo Final, perfilando-se à o
direita de Deus Padre como emissário de um novo tempo”.
4
Essa idéia está presente nas palavras do primeiro general-presidente, Castelo
Branco, em uma entrevista publicada pela revista Manchete, na qual, ao falar das
proibições aplicadas durante o seu governo, fez a seguinte afirmação:
Reconhece o atual governo que a revolução tem tido de concentrar seus esforços nas
proibições e na severidade com que contém bitos perdulários e dissolutos, próprios de
regimes inflacionários. Acha a situação muito semelhante à do tempo de Moisés, que nas
tábuas da lei teve de redigir dez mandamentos proibitivos, no Monte Sinai, justamente
porque a orgia campeava.
5
Gaspari diz ainda que quando Castelo Branco entrou no Palácio do Planalto,
levou para o governo um mundo em que Jack Kerouac era visto como um
“homossexual bêbado”, Allen Geinsberg um “judeu doido”, Aldous Huxley um “inglês
excêntrico”, Wright Mills um “exibicionista”, Herbert Marcuse um “alemão perigoso” e
Martin Luther King um “ingênuo sonhador”. Todos eles, com seus respectivos
pensamentos e estilos de vida, encontravam-se muito longe da lógica do poder que
havia se instalado no Brasil a partir do golpe de 1964 e figuravam como marginais num
“mundo arrumado”, cujos problemas deveriam ser resolvidos através daquele “vagaroso
processo de evolução em que mandava quem podia e obedecia quem tinha juízo.
Tratava-se, portanto, de um mundo onde o homossexualismo era uma anomalia e a
condição feminina, um estuário procriador, amoroso e doméstico.
6
Assim sendo,
Gaspari entende que o regime militar brasileiro, “com suas violências e mesquinharias”,
caiu em meio àquela “delirante agitação” sem entendê-la, mas pensando em reprimi-la.
7
Como vimos no capítulo anterior, ainda que a existência de formas poticas e
culturais alternativas, ou diretamente opostas à dominante, fosse claramente limitada e
3
MARÃO, José Carlos e SOUZA, Afonso de. Isto é proibido. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n.15,
p. 94-102, Jun. 1967.
4
GASPARI, Elio. Op. cit. p. 235.
5
FILHO, Murilo Melo. O que pensa Castelo. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 692, p. 18-19,
24 Jul. 1965, p. 18.
6
GASPARI, Elio. Op. cit. p. 215
7
Idem, p. 233.
208
condicionada pelo grupo que estava no poder, tiveram um efeito decisivo na experiência
social daquela geração e, portanto, no processo de instalação e consolidação do regime
militar, que na prática, tentou controlá-las, transformá-las ou mesmo incorporá-las ao
processo de desenvolvimento da indústria cultural.
8
Foi no intuito de conhecer melhor a diversidade de demandas provenientes dos
diferentes setores da sociedade, no que se refere à abordagem que os periódicos de
grande circulação faziam de temas comportamentais, especialmente ligados à
sexualidade, que recorremos às cartas enviadas pelos leitores tanto às redações das
revistas aqui analisadas como à Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP).
Vistas em conjunto, percebemos que, assim como os leitores dirigiam cartas
diretamente às autoridades responsáveis pela censura, também utilizavam os espaços
das revistas, reservados para as cartas dos leitores, como um canal de comunicação com
o poder público, no sentido de demandar ações do Estado ou fazer sugestões e críticas à
sua atuação no terreno das publicações consideradas ofensivas à moral e aos bons
costumes. Entretanto, é importante distinguir o valor documental de cada um desses
dois volumes de cartas, pois, se por um lado, pudemos manusear e ter acesso ao
conteúdo integral daquelas que eram enviadas à DCDP, não chegamos a ter contato
direto com as que eram enviadas às redações das revistas, das quais conhecemos os
trechos selecionados e publicados nas seções de cartas, que, mesmo sendo o espaço
reservado ao leitor dentro das publicações, não deixa de estar sujeito à intervenção de
editores e redatores, que exercem diferentes formas de controle no conteúdo das cartas
visando atender interesses editoriais e também direcionar a maneira como os leitores
devem ler a revista.
9
Nesse sentido, o podemos descartar a hipótese de que algumas
correspondências transcritas possam ter sido produzidas no interior das próprias
redações, durante o processo de confecção dessas seções, no intuito de atribuir a
“supostos leitores” iias e reflexões que expressavam o ponto de vista da própria
revista.
8
Para uma discussão a respeito de como, por exemplo, o mercado de bens culturais e o regime militar
assimilaram e apoiaram parte significativa da cultura de oposição através de suas políticas culturais, ver
NAPOLITANO, Marcos. “Vencer satã só com orações”: políticas culturais e cultura de oposição no
Brasil dos anos 1970. In: ROLLEMBERG, Denise, QUADRAT, Samantha Viz, FERRERAS, Norberto e
BITTENCOURT, Marcelo (orgs.). Op. cit. Ver também ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira:
cultura brasileira e indústria cultural. 5 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
9
Ver a dissertação de mestrado de Letícia Nunes de Góes Moraes, A dança efêmera dos leitores
missivistas na revista Realidade (1966-1968), especialmente o capítulo II, onde ela discute o processo de
confecção da seção de cartas daquela revista a partir dos depoimentos de jornalistas que fizeram parte da
sua redação.
209
Assim, podemos citar a carta da menina nia Rangel, de 15 anos, à Manchete,
solicitando que a revista dissesse às autoridades que tanto ela como suas amigas do
colégio, filhas de pais desquitados, preferiam o divórcio como forma de separação, pois
na sua opinião, essa fórmula definia melhor a situação dos cônjuges do que o desquite, e
assim, “ninguém ficaria envergonhado de dizer que seus pais constituíram novos
lares”.
10
Já na revista Ele Ela, pudemos encontrar solicitações inusitadas como a de Élson
Mecias, de Minas Gerais, que pedia para que a redação não se incomodasse com o
ministro da Justiça e desse um “jeitinhode publicar mais fotos de mulheres “e bem
nuas”, ao que a redação da revista respondeu, naquele tom de sarcasmopeculiar às
respostas dadas aos leitores que enviavam cartas a essa seção, dizendo que,
infelizmente, tinham que se incomodar com todos os ministros, leis e digos do Brasil,
inclusive com a lei do bom gosto e o código dos bons costumes, e que, caso o leitor
insistisse em querer ver mulheres nuas, que desse um jeito ele mesmo.
11
De maneira semelhante, na resposta à carta enviada por Edílson José Moura, do
Rio Grande do Norte, a redação da revista Ele Ela alegou não poder satisfazer o seu
pedido de que a revista publicasse “bastante fotografias de mulheres nuas”, em função
da portaria do ministro Buzaid”,
12
e aconselhava ao leitor que então fizesse um abaixo
assinado endereçado àquele ministro e aguardasse as provincias.
13
Uma característica recorrente, tanto nas cartas enviadas à censura como nas
cartas enviadas às revistas, é que os missivistas costumavam justificar suas sugestões ou
queixas em nome da coletividade, alegando a necessidade de garantir o bem comum, o
progresso e a segurança nacional. Assim, por exemplo, o sr. Ottone Migheli Pedrollo,
ao enviar uma carta endereçada ao presidente Médici falando a respeito da pornografia
nos filmes, publicações e programas de televisão, dizia dirigir-se à sua excelência em
nome dos “milhares de pais e patrícios” que, “amargurados”, observavam o destilar
diuturno do veneno insidioso a corromper as almas e os corações dos seus filhos”, nos
10
Seção “O leitor em Manchete”. Manchete, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n.846, 06 Jun. 1968.
11
Ele e Ela escrevem para Ele Ela. Ele Ela, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 18, p. 112, Out. 1970.
12
Trata-se do Decreto-lei 1.077, de 1970.
13
Ele e Ela escrevem para Ele Ela. Ele Ela, Rio e Janeiro: Editora Bloch, n. 14, p. 146, Jun. 1970.
210
quais haviam depositado todas as esperanças de vê-los um dia felizes, “numa pátria
igualmente feliz e moralmente engrandecida”.
14
Em outra carta endereçada ao presidente Médici, o diretor do Jornal de
Formiga, Timotheo Pinto, queixava-se da “poluição moralque, segundo ele, imperava
nas artes, na moda, nos costumes, no cinema, na televisão, na imprensa falada e escrita,
enfim, “na maioria das atividades humanas” daquele momento, e levantava a seguinte
questão, seguida de um forte apelo às autoridades:
Fala-se muito hoje em sexo, comenta-se o sexo, exibe-se o sexo. Será tudo sexo? E pelo
sexo, muitos vivem um mundo de erotismo e pornografia, renegando os mais elementares
preceitos de moral (...), permitindo, de maneira assustadora, o crescimento da delinqüência
juvenil e a corrupção de nossos lares brasileiros. (...). Com todo respeito e acato a V. Exa.,
apelamos e pedimos de joelhos que tome enérgicas providências contra esta onda de
desenfreado erotismo e esta irrespirável onda de sexomania que quer arrasar o nosso país
fazendo, então, V. Exa., com que os preceitos legais sejam rigorosamente respeitados, para
o bem da nação e felicidade de milhões de criaturas humanas.
15
Ao encerrar a carta, o diretor do jornal enfatiza que o que realmente importava
naquele momento, “com urgência”, era “proscrever da mesa intelectual da família
brasileira”, o erotismo exposto e exibido “com tanta ênfase e com tanto atrevimento
nos meios de comunicação social. E com grande exaltação, transcrita em letras
maiúsculas, finalizava dizendo: É a hora exata de V. Exa. e milhões de brasileiros dizer
um BASTA a esse processo de debilitamento do organismo familiar e nacional”.
16
As solicitarem ao presidente Ernesto Geisel uma atuação mais severa da
censura, no que se referia à garantia dos valores morais e dos costumes tradicionais, os
missivistas Antônio Wenceslau Beu e Waldemar Soave subscreveram-se dizendo que
aquele apelo representava a reação de uma “infinidade de pessoas” alarmadas com a
onda devastadora” que tentava reduzir a zeroa figura humana diante de Deus e da
sociedade.
17
Da mesma forma, o coronel Dastro Morais Dutra, de Porto Alegre, em
carta ao ministro da Justiça, Armando Falcão, dizia-se inconformado com a
14
Carta de Ottone Migheli Pedrollo ao presidente Médici. Data: Palmas, 16/05/972. Arquivo Nacional-
Sede em Brasília. Fundo DCDP. Seção: Administração Geral. Série: Corresponncia Oficial. Subsérie:
Manifestações da Sociedade Civil. Caixa: 01.
15
Carta do jornal de Formiga ao presidente Emílio Garrastazu Médici. Data: Formiga, 07/10/1972.
Arquivo Nacional-Sede em Brasília. Fundo DCDP. Seção: Administração Geral. Série: Corresponncia
Oficial. Subsérie: Manifestações da Sociedade Civil. Caixa: 01.
16
Idem.
17
Carta de Antônio Wenceslau Beu e Waldemar José Soave, ao presidente Ernesto Geisel. Data:
Sorocaba, 05/12/1976. Arquivo Nacional-Sede em Brasília. Fundo DCDP. Seção: Administração Geral.
Série: Correspondência Oficial. Subsérie: Manifestações da Sociedade Civil. Caixa: 02.
211
licenciosidade de costumes que, segundo ele, não deixava de afetar a segurança nacional
pelo “desfibramento da juventude”.
18
Por outro lado, a leitora Ovia Paula Junho, da Guanabara, escreveu à revista
Ele Ela solicitando que publicassem uma matéria a respeito do corpo do homem e que o
fizessem “rápido e “sem demora”, pois considerava o assunto de grande utilidade
pública e particular”. Em resposta, a redação da revista disse estar impressionada com o
número de cartas que recebia solicitando matérias a respeito da nudez e do
funcionamento do corpo masculino, e que a leitora exagerava ao classificar o assunto
como sendo de utilidade blica, e enfatizou: O assunto pode ser de utilidade
particular. Pública, dá cadeia”.
19
Podemos citar ainda a carta enviada à DCDP pela Associação dos Ex-
combatentes, na qual reclamavam, em nome de “inúmeros associados”, a respeito da
venda de revistas “atentatórias à moral e aos bons costumes” em bancas de jornal, onde
poderiam ser facilmente acessadas pela “juventude imatura e ávida de coisas obscenas,
fazendo despertar nela, pelo que se e lê, prematuramente, pensamentos eróticos com
reflexos psíquicos e morais, profundamente negativos à sua formação”. Entretanto, após
formularem essa solicitação de cunho moralista, fundamentada na defesa da juventude
“inocente” e das famílias cristãs, os missivistas fizeram uma veemente ressalva de que
o pretendiam, “em hipótese alguma”, que a sua denúncia resultasse na proibição do
direito das editoras publicarem revistas “altamente pornográficas e com farto material
fotográfico obsceno”, mas tão somente que passassem a distribuir e vender este tipo de
material em livrarias especializadas, “legalmente montadas e instaladas à sua literatura
malsã”, que pelo escrúpulo e responsabilidade dos seus proprietários, jamais seriam
vendidas a um menor de idade. Ou seja, aqui, a preocupação dos missivistas não era
exatamente extirpar a pornografia dos meios de comunicação de massa, mas impedir
que esse material circulasse livremente ao alcance dos menores de 18 anos,
preocupando-se, por outro lado, em sugerir uma maneira de fazer o controle de venda
por faixa etária sem prejuízo dos adultos no acesso a esse tipo de publicação.
20
18
Carta do coronel Dastro Morais Dutra ao ministro da Justiça Armando Falcão. Data: Porto Alegre,
22/03/1977. Arquivo nacional-Sede em Brasília. Fundo DCDP. Seção: Administração Geral. rie:
Correspondência Oficial. Subsérie: Manifestações da Sociedade Civil. Caixa: 02.
19
Ele e Ela escrevem para Ele Ela. Ele Ela, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 5, Set. 1969.
20
Carta da Associação dos Ex-combatentes do Brasil ao diretor da DCDP Rogério Nunes. Data: São
Gonçalo, 14/07/1976. Arquivo Nacional-Sede em Brasília. Fundo DCDP. Seção: Administração Geral.
Série: Correspondência Oficial. Subsérie: Manifestações da Sociedade Civil. Caixa: 02.
212
As transformações comportamentais da década de 1960 a que nos referimos no
capítulo anterior, além de terem sido freqüentemente discutidas nas páginas das revistas
Manchete, Realidade e Ele Ela, foram mencionadas em grande parte das cartas
analisadas nesta pesquisa, tanto nos casos em que se tratava de pedir ações “enérgicas
e “urgentes” das instituições públicas para garantir a manutenção e o respeito aos
costumes tradicionais da sociedade brasileira, como também quando o intuito dos
missivistas era manifestar o desejo de quebrar velhos tabus. Tanto nas cartas enviadas à
censura, como nas que eram remetidas às redações destas revistas, percebemos que
alguns argumentos se repetiam com freqüência no momento em que os missivistas
procuravam justificar suas manifestações contra ou a favor da abordagem de questões
comportamentais, especialmente aquelas relacionadas à sexualidade. Assim, os leitores
que se opunham à publicação de tais temas apresentavam como principais argumentos a
defesa da família brasileira, da juventude e da Igreja católica, enquanto que aqueles que
eram favoráveis e estimulavam os periódicos a continuarem tratando de tais questões,
faziam-no em nome da educação e do esclarecimento do “povo brasileiro”.
Luiz Serra, de Belo Horizonte, escreveu uma carta ao diretor da DCDP, Rogério
Nunes, solicitando que a censura atuasse de maneira mais severa na seara dos meios de
comunicação de massa, que, na sua opinião, esse serviço estava sendo muito liberal
com as publicações expostas nas bancas de jornal. O missivista se dizia “escandalizado
com os temas abordados e com a maneira como vinham sendo tratados nesses
periódicos, onde, segundo ele, se via sexo, amor proibido, sugeses para uniões
ilícitas, falta de respeito aos pais, aos mais velhos e à Igreja.
21
Assim também o
missivista Dilésio Amaral Brum remeteu ao ministro da Justiça, Armando Falcão, uma
carta onde contava que, naquela manhã em que tomou a iniciativa de lhe escrever, ao
dirigir-se ao jornaleiro, adquiriu um dos exemplares da revista Ele Ela da edição de
maio de 1977. Segundo ele relatou, ao folhear tal publicação, que se encontrava exposta
ao alcance do público de qualquer idade, deparou com uma “enormidade de
obscenidades, onde o sexo chegava aomulo de ser misturado com o ‘amor de Deus’”.
Diante disso, ele decidiu sugerir ao ministro que empreendesse maiores esforços junto à
censura federal no sentido de que medidas mais rigorosas fossem adotadas contra
editoras cujas publicações, tal como Ele Ela da Editora Bloch, ferissem “a moral, os
21
Carta de Luiz F. Serra ao Sr. Rogério Nunes, diretor da DCDP. Data: Belo Horizonte, 31/12/1976.
Arquivo nacional-Sede em Brasília. Fundo DCDP. Seção: Administração Geral. Série: Correspondência
Oficial. Subsérie: Manifestações da Sociedade Civil. Caixa: 02.
213
costumes, as autoridades e a própria lei”, pois ao seu ver, tais “barbaridades de ordem
sexual” eram altamente imorais e somente contribuíam para a formação moral e
social da juventude, sendo causa de contínuos e constantes transtornos aos educadores,
pais e autoridades.
22
o funcionário blico Ottone Migheli Pedrollo, de Palmas, dirigiu uma carta
ao presidente Médici pedindo que ele encetasse um processo de moralização dos
costumes no Brasil do século XX, quando cinemas, revistas e programas de televisão
pareciam estar a serviço do maligno”, procurando “com suas apresentações eivadas de
pornografia e erotismoabalar os alicerces da família ao oferecer ao jovem um conceito
de moral que, segundo ele, jamais poderia ter sido imaginado no Brasil cristão de seus
genitores. Do ponto de vista desse missivista, formava-se uma grande contradição entre
o vertiginoso crescimento econômico que o Brasil experimentava naquele momento e o
crescimento, também vertiginoso, da licenciosidade e do atentado à “moral sadia e
tradicionalmente cristã do povo brasileiroe, com isso, concluiu dizendo que, enquanto
a primeira situação, em breve, os levaria “incontestavelmente ao destino glorioso que
Deus traçou para este país”, a segunda “fatalmente” os levaria à “derrocada moral e,
conseqüentemente, à destruição de todo o bem que, homens da estrutura de um
presidente Médici, com tenacidade, abnegação, honradez e muito patriotismo souberam
construir”.
23
Razão semelhante levou José da Conceão a redigir uma carta ao referido
presidente, tamanha foi sua indignação ao ler uma notícia no Jornal do Brasil falando a
respeito da publicação de um calendário com fotos de oito modelos nus, cujos
candidatos apareciam em foto que ilustrava a matéria do JB apenas em trajes de banho.
O missivista pedia que o presidente tomasse “medidas drásticas para que o tal
“Calendário do Homem Nu” não chegasse a ser publicado e alegava que o “nobre
presidente” deveria honrar com o apoio que os brasileiros lhe haviam depositado,
através de “milhões de cartas e telegramas”, por sua atitude “correta e leal” quando
22
Carta de Dilésio Amaral Brum ao ministro da Justiça Armando Falcão. Data: Guaçuí, 06/06/1977.
Arquivo Nacional-Sede em Brasília. Fundo DCDP. Seção: Administração Geral. Série: Corresponncia
Oficial. Subsérie: Manifestações da Sociedade Civil. Caixa: 02.
23
Carta de Ottone Migheli Pedrollo ao presidente Médici. Data: Palmas, 16/05/972. Arquivo Nacional-
Sede em Brasília. Fundo DCDP. Seção: Administração Geral. Série: Corresponncia Oficial. Subsérie:
Manifestações da Sociedade Civil. Caixa: 01.
214
baixou o decreto-lei da moralização do Brasil”, referindo-se dessa forma ao Decreto-lei
1.077, de 1970.
24
Essa tensão entre velhos costumes e novos comportamentos, especialmente no
que dizia respeito à questão da sexualidade, aparece de forma eminente na carta que
dom Joaquim de Lange enviou endereçada ao presidente Médici, na qual falava a
respeito da “moralidade do povo” que, para ele, consistia num problema diretamente
relacionado “ao futuro do país” e a respeito do qual o presidente deveria preocupar-se:
Os bons costumes fazem um povo forte, mas esses bons costumes são agora diariamente, e
de todos os modos, atacados por exibições despudoradas e pornográficas de filmes e
revistas. Sei que muitos vão gritar logo que deverá haver liberdade de expressão, mas
liberdade não é libertinagem. (...) Espero, que V. Exa., por seu grande tato e sensibilidade
das coisas públicas, e guiado pelo Espírito de Deus, possa encontrar a melhor forma de pôr
fim aos abusos e melhorar o nível desses meios de comunicação social.
25
No intuito de colaborar com os órgãos de governo incumbidos do “reerguimento
moral e material da pátria”, diante dos males que poderiam vir a ser causados ao país e
ao “povo brasileiro” pelos “famigerados mercenários da imprensa”, o tenente coronel
Hugo da Cunha Alves dirigiu uma carta ao ministro da Educação, Jarbas Passarinho,
pedindo providências contra a “má imprensa” que, segundo ele, vinha sabotando de
maneira covarde o “grandioso trabalhorealizado pela “abnegada e competente” equipe
que dirigia a nação. Dizia ele que se, por um lado, tentavam destruir lares pregando a
imoralidade sob todas as formas, por outro lado, e o que considerava ser o mais grave,
desejavam evitar a formação de novas famílias. Afirmava ainda que os modernos meios
de comunicação procuravam tirar um dos mais “belos e puros” atributos de uma jovem,
que se tratava, certamente, do pudor. Sem pudor, dizia ele, a moça passaria de
namorado em namorado, adquirindo toda sorte de “experiências”, o que, na sua
concepção, lhe seria válido, em último caso, se conseguisse casar. Dentro da sua
maneira de ver as coisas, dizia que as principais conseqüências desse afrouxamento dos
costumes seriam o aumento da prostituição e a diminuição do número de casamentos, o
que, finalmente, resultaria na desagregação da “família brasileira”.
26
24
Carta de José da Conceição ao presidente Emílio Garrastazu Médici. Data: Ponte Nova, 09/06/972.
Arquivo Nacional-Sede em Brasília. Fundo DCDP. Seção: Administração Geral. Série: Corresponncia
Oficial. Subsérie: Manifestações da Sociedade Civil. Caixa: 01.
25
Carta de dom Joaquim de Lange ao presidente Médici. Data: Amazonas, 03/06/972. Arquivo Nacional-
Sede em Brasília. Fundo DCDP. Seção: Administração Geral. Série: Corresponncia Oficial. Subsérie:
Manifestações da Sociedade Civil. Caixa: 01.
26
Carta do tenente coronel Hugo da Cunha Alves ao ministro da educação Jarbas Passarinho. Data:
Curitiba, 31/05/1971. Arquivo nacional-Sede em Brasília. Fundo DCDP. Seção: Administração Geral.
Série: Correspondência Oficial. Subsérie: Manifestações da Sociedade Civil. Caixa: 01.
215
Por sua vez, o padre Hermenegildo Adami Carvalho, citando uma matéria
publicada no Boletim Quinzenal do Santuário do Sagrado Coração de Jesus, de
Conselheiro Lafaiete, procurou advertir as autoridades de que os meios de comunicação
modernos, através de revistas e periódicos que exploravam o sexo, a liberdade absoluta
da mocidade “e outros temas absurdos”, consistiam numa luta constante contra a e a
moral, sendo, portanto, necessário que os cristãos ficassem alertas e lutassem “em
defesa dos desígnios do divino criador”, pois, segundo ele, o mundo moderno
conspirava contra a sua fé”.
27
Nos capítulos anteriores comentamos que a revista Realidade, de agosto de
1966, publicou a matéria “A juventude diante do sexo”, que trazia a primeira parte dos
resultados de uma pesquisa onde mil jovens, dentre os quais moças e rapazes do Rio de
Janeiro e de São Paulo, entre 18 e 21 anos, responderam a um questionário que tinha o
objetivo de descobrir o que eles conheciam, falavam e faziam a respeito da sua
sexualidade. Entretanto, no mês seguinte, ao invés da revista apresentar a conclusão da
pesquisa, como havia anunciado, o que ofereceu aos seus leitores foi um editorial de
abertura explicando que poucos dias antes da impressão da segunda parte de A
juventude diante do sexo”, recebeu uma advertência do juiz de menores da Guanabara,
Alberto Cavalcanti de Guso, comunicando que apreenderia a edição, caso a
conclusão da referida pesquisa fosse publicada. Na opinião do juiz, o artigo era
obsceno e chocante”, ao que a revista respondeu dizendo que não poderia haver
obscenidade num artigo que era apenas o “retrato fiel do comportamento e das atitudes
de uma parte representativa da juventude brasileira”, retrato este que afirmava não ser
invenção sua, não o aprovando ou condenando, deixando tal julgamento a cargo dos
leitores, mas cuja divulgação considerava de inestimável valor tanto para os pais e
educadores, como também para os jovens. Entretanto, dizia a nota, por não querer entrar
em choque com o Juizado de Menores da Guanabara, a revista resolveu “suspender
temporariamente” a publicação da parte final do trabalho, até que os tribunais superiores
se pronunciassem a respeito do caso.
28
A repercussão da pesquisa e da ameaça de apreensão feita pelo juiz de menores
da Guanabara motivou os leitores a escreverem cartas à revista Realidade, tanto se
27
Ofício n. 1856/72, referente à correspondência do Padre Hermenegildo Adami Carvalho encaminhando
boletim “Mensagem”, contendo artigo sobre comunismo e a censura aos meios de comunicação. Data:
Brasília, 10/08/1972. Arquivo Nacional-Sede em Brasília. Fundo DCDP. Seção: Administração Geral.
Série: Correspondência Oficial. Subsérie: Manifestações da Sociedade Civil. Caixa: 01.
28
A juventude diante do sexo. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n.6, Set. 1966.
216
comprazendo da atitude do juiz em defesa do “decoro da família brasileira”, das
crianças, das “mocinhas”
29
e da Igreja católica, como também em sinal de protesto
àquele ato e parabenizando a revista por seu caráter educativo, e por permitir, através da
reportagem O jovem diante do sexo”, que os leitores rompessem fronteiras e
abordassem questões ligadas à sexualidade com seus filhos e alunos.
30
Enquanto o sr. Barroto, da Guanabara, escreveu à redação de Realidade
acusando-a de pregar a dissolão da família brasileira com seus artigos amorais”,
especialmente aquele que trazia a enquete sobre a sexualidade dos jovens, que, na sua
opinião, não deveria circular, pois se tratava de “caso de polícia”,
31
Isaltino Brigadão
Netto, de São Paulo, contou em sua carta que a revista lhe “quebrou um galho imenso”
ao publicar o resultado parcial da referida enquete e explicou sua situação:
Tenho uma filha de 17 anos e dois rapazes de 13 e 16 anos. Nunca consegui fazer-me
entender com eles a respeito de problemas sexuais, pois tendo sido educado em meio aos
tabus convencionais da nossa sociedade, nunca pude romper a barreira do acanhamento e
abordar a questão como devia. Sua revista fez isso por mim. Todos leram e emitiram sua
opinião. Fiquei sabendo o que meus filhos fazem e pensam a respeito do sexo.
32
A leitora Valdete Santos, de 22 anos de idade, também enviou uma carta à
revista Realidade na qual ela contava que era moradora de uma favela na Guanabara,
onde, a cada instante, via pessoas com as quais convivia se “degradando”, “não por falta
de vergonha, mas por falta de educação sexual e intelectual”. Diante disso, ela pedia à
revista que o desse ouvido aos “comentários maldosos” que acusavam-na de ser uma
publicação de “cunho impudico”, pois na sua opinião, se havia tão grande número de
es solteiras no lugar onde morava, era em função da falta de educação sexual. Assim,
encerrava sua carta fazendo um apelo ao diretor de Realidade: “continuem esclarecendo
e educando o povo, por que é disso que o Brasil precisa”.
33
As a publicação da carta do sr. Barroto no n. 6 da revista Realidade, a que nos
referimos ainda pouco, o leitor Edílson Limeira, de São Paulo, escreveu à redação da
revista manifestando seu contentamento ao perceber que o referido missivista, que na
sua opinião deveria se chamar “Barroco”, pelo atraso de suas idéias, não recebeu o
apoio de nenhum outro leitor que concordasse com a sua iia de que a edição de agosto
da revista, contendo os primeiros resultados da pesquisa sobre a sexualidade da
29
Cartas. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n.7, Out. 1966.
30
Cartas. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n.6, Set. 1966.
31
Cartas. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n.6, Set. 1966.
32
Cartas. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n.8, Nov. 1966.
33
Cartas. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n.18, Set. 1967.
217
juventude, não deveria circular por se tratar de “caso de polícia”. Além disso, ele fazia
votos de que Realidade conseguisse derrotar aqueles que imbuídos de preconceitos
mesquinhos” tentavam impedir “seu esforço para esclarecer o povo deste país”.
34
As duas últimas cartas mencionadas são significativas do papel muitas vezes
atribuído pelos leitores a essas publicações de grande circulação, identificadas, como
dissemos anteriormente, tanto a um canal de comunicação entre os diversos setores da
sociedade e o poder público, através do qual poderiam expor suas demandas e
reclamações, como também a um meio formador de opinião pública e através do qual os
diferentes grupos sociais poderiam se informar e obter conhecimento. Pudemos verificar
isso em algumas cartas enviadas à revista Ele Ela, nas quais os leitores, por
identificarem a revista com a abordagem de temas ligados à sexualidade, solicitavam
que publicasse fotos ou tratassem de temas que rompessem preconceitos e padrões de
conduta socialmente estabelecidos que, naquela conjuntura, vinham sendo discutidos e
redefinidos e, a respeito dos quais, alguns leitores desejavam se inteirar ou ter maior
conhecimento. Foi nesse sentido que Adriano Nunes, do Rio de Janeiro, escreveu à Ele
Ela pedindo que publicassem uma foto de homem despido “com o sexo bem visível”,
pois na sua opinião, aquela revista deveria “desfazer todos os tabus”. Entretanto, assim
como em sua resposta a tantas outras cartas que continham demanda semelhante, a
redação de Ele Ela procurou desconstruir a idéia de ser uma revista que privilegiava a
abordagem de temas ligados à sexualidade,
35
e neste caso advertiu o leitor de que aquela
redação não merecia tanto entusiasmo, a ponto de serem “obrigados” a desfazer todos os
tabus daquela ou de outras épocas e sugeriu que se havia alguma necessidade de ordem
pessoal em seu caso, o problema poderia ser resolvido de maneira mais prática e
pessoal, não sendo necessário, portanto, apelar à ajuda daquela revista.
36
Retomando a questão relativa à repercussão do caso da matéria “A juventude
diante do sexoentre os leitores de Realidade, percebemos que, enquanto alguns viram
uma utilidade de cunho educativo na publicação daquela enquete, por outro lado, os pais
que escreveram revelando-se contrários à publicação da segunda parte da pesquisa
mostraram-se particularmente preocupados com a influência que aquela revista poderia
exercer sobre a educação de seus filhos e, especialmente, na de suas filhas e noras.
Marinho Vidal, de Belo Horizonte, por exemplo, confessou ter ficado profundamente
34
Cartas. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n.7, Out. 1966.
35
Ele e Ela escrevem para Ele Ela. Ele Ela, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 18, p. 112, Out. 1970.
36
Ele e Ela escrevem para Ele Ela. Ele Ela, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 9, p. 105, Jan. 1970.
218
chocado” com a matéria, pois, mesmo sendo pai de quatro rapazes, dizia se importar
também com o comportamento das moças, pois não iria querer para nora uma jovem
que já “soubesse demais”.
37
A decepção de alguns leitores, tanto em relação à publicação da referida
pesquisa como de outras matérias a respeito de questões comportamentais, os levou, em
alguns casos, a anunciar, através de suas cartas, atitudes de repúdio em relação à revista
Realidade. Tal foi o caso de um missivista de o Paulo que escreveu àquela redação
dizendo que todos os exemplares da sua coleção iriam para o fogo, em conseqüência da
sua indignação mediante a publicação de parte da enquete sobre a sexualidade da
juventude.
38
As ter publicado a edição especial sobre a mulher, em janeiro de 1967,
que, como veremos mais detalhadamente adiante, foi apreendida nas bancas por
determinação dos juízes de menores da Guanabara e de São Paulo, a revista Realidade
novamente recebeu inúmeras cartas de leitores, em sinal de apoio ou de revolta contra a
publicação de temas ligados ao comportamento e à sexualidade feminina, destacando-se
a manifestação de um missivista que chegou a fazer imprecações contra a revista:
Os senhores podem ficar esperando o prêmio que estão procurando, pois quem semeia a
prostituição e o adultério nos seios das famílias honestas e no coração das mocinhas puras,
terá de receber resposta à altura, e eu tenho certeza de que o povo brasileiro saberá separar
o joio do trigo, para lançar tudo o que é repulsivo e imoral ao fogo sagrado da justiça.
39
Mais que conhecer a multiplicidade de demandas da sociedade civil em relação
ao Estado e aos óros de comunicação, a análise dessas cartas nos permite observar
que, mesmo se tratando de um regime autoritário, que se impôs através de um golpe, se
legitimou a si próprio independentemente do Congresso Nacional e que teve como
pilares de sustentação uma vasta gama de instâncias repressivas, preocupou-se em
manter canais de comunicação com a sociedade civil, através dos quais de conhecer
suas demandas e também disseminar a idéia de que os militares estavam preocupados
em garantir o exercício da cidadania e a participação da sociedade, especialmente no
que se referia à defesa da ordem social, dos valores morais e dos bons costumes.
37
Cartas. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n.8, Nov. 1966.
38
Cartas. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n.7, Out. 1966.
39
Cartas. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n.11, Jan. 1967.
219
4.1-Realidade vai ao Supremo Tribunal Federal
Um caso rumoroso e paradigmático concernente à apreensão de periódicos
considerados ofensivos à moral e aos bons costumes aconteceu em janeiro de 1967,
quando a revista Realidade lançou nas bancas o seu n. 10, que era uma edição especial
dedicada ao tema: “A mulher brasileira, hoje”, na qual pretendia apresentar aos leitores
e discutir com eles a revolução tranqüila e necessária – mas nem por isso menos
dramática que a mulher brasileira estava realizando”, através de artigos que falavam
“sobre o que elas eram, faziam, pensavam e queriam”. Para isso, realizaram uma grande
pesquisa nacional, ao longo de três meses, durante os quais foram entrevistadas 1.200
mulheres de diferentes localidades, com experiências de vida distintas e idades variadas,
cujas respostas serviram de fundamento para a realização do que a revista anunciou ser
o maior estudo de gênero jamais realizado no país”.
O primeiro passo para dar início à realização dessa edição, foi enviar três
equipes de repórteres para diferentes regiões do país, onde cada uma deveria
acompanhar a rotina e esboçar o perfil de mulheres típicas de cada um desses lugares, e
que, de alguma maneira, se destacassem em seus respectivos a fazeres. Luiz Fernando
Mercadante e Geraldo Mori foram às cidades do interior do Norte e do Nordeste para
conhecer o trabalho pioneiro das “novas freiras”, Roberto Freire e David Zingg foram
morar em Salvador para observar mais de perto o cotidiano de uma mãe-de-santo,
enquanto Narciso Kalili e Cláudia Andujar passaram cerca de 20 dias no Rio Grande do
Sul à procura de uma parteira tradicional.
No Rio de Janeiro, o repórter Alessandro Porro ficou com a tarefa de encontrar
uma atriz brasileira que representasse as aspirações de liberdade e emancipação
feminina, sendo Ítala Nandi a escolhida para representar a incorporação e vivência de
tais valores.
Além de artigos que falavam a respeito de variados aspectos relativos à mulher,
três delas foram convidadas para colaborar com aquela edição. Assim, a psicóloga e
jornalista Carmen da Silva ficou encarregada de ler as cartas enviadas a meia dúzia de
revistas femininas e escrever um artigo sobre os consultórios sentimentais; a terapeuta
Gilda Grillo relatou a experiência de uma e de 20 anos, que se dizia otimista e
orgulhosa da sua condição de mãe solteira e Daisy Carta, após consultar livros, ensaios
e estatísticas, de concluir pela “superioridade natural das mulheres”. A tradicional
seção “Brasil Pergunta” trazia ainda o debate entre a radialista Sarita Campos e a
220
escritora Eneida, a respeito da importância, ou o, da virgindade feminina pré-
matrimonial.
Em São Paulo, os repórteres Carlos Azevedo e Luigi Mamprim conheceram
dona Berta, a dona de uma confecção de calças que personificava, segundo o editorial
da revista, “o sucesso que a mulher pode ter quando sabe trabalhar”. Eduardo Barreto e
Jaime Figuerola fizeram um curso intensivo de medicina e biologia a fim de poderem
preparar a matéria “Ela é assim”, onde mostravam, através de textos e ilustrações, como
funcionava o corpo da mulher. Jo Carlos Marão, por sua vez, passou três semanas
conversando com mulheres cujas experiências matrimoniais lhe permitiram escrever
Três histórias de desquite”.
Assim, a edição n. 10 de Realidade foi às bancas em janeiro de 1967 com um
conteúdo inteiramente dedicado à mulher, desde as cartas até o tema da seção “Brasil
Pergunta”.
Entretanto, em São Paulo, no penúltimo dia do ano de 1966, o juiz da Vara de
Menores daquela comarca, Artur de Oliveira Costa, acolhendo o protesto do curador de
menores, Luiz Antônio Satana Pinto, mandou apreender, na gráfica onde a revista era
impressa, 231.680 exemplares de um total de 475.000 da edição especial sobre as
mulheres, que, naquele momento, já estavam sendo distribuídos aos assinantes e às
bancas de todo o Brasil, de onde também foram confiscados milhares de exemplares.
40
Segundo argumentou o juiz de menores, o que determinou sua decisão de
apreender aquele número da revista Realidade não foi apenas o caráter “obsceno” de
algumas reportagens, mas o fato de ter publicado matérias profundamente ofensivas à
dignidade e à honra da mulher, ferindo o pudor e, ao mesmo tempo, ofendendo a moral
comum, com graves inconvenientes e incalculáveis prejuízos para a moral e os bons
costumes.”
41
. Note-se que em suas considerações acerca dos motivos que o levaram a
executar tal ato, o juiz não chegou a mencionar especificamente o que havia de
obsceno” naquela edição.
Passados alguns dias após o fato ocorrido em o Paulo, o juiz de menores da
Guanabara, Alberto Cavalcanti de Guso, o mesmo que impediu a publicação do
resultado final da pesquisa “A juventude diante do sexo” na edição de setembro de 1966
de Realidade, também mandou apreender a edição n. 10 daquela publicação na área sob
sua jurisdição.
40
FAGUNDES, Coriolano de Loyola Cabral. Op. cit. p. 305.
41
A apreensão de Realidade. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n.11, Fev. 1967.
221
A resolução proferida por esse juiz, bem como a do juiz de menores de São
Paulo, não mencionava especificamente a(s) matéria(s) ou ilustração (ões) que teria
provocado o ato de apreensão impetrado por ele, entretanto, nos revela a maneira como
os setores mais conservadores da sociedade viam o entusiasmo em discutir e conhecer
questões relativas ao comportamento e à sexualidade, especialmente através da
imprensa e, mais especificamente, por meio das revistas de grande circulação.
Volta a REALIDADE aos temas que já provocaram pronunciamento deste
juízo”, advertiu o sr. Alberto Cavalcanti ao iniciar seu despacho, afirmando que, mesmo
após a sua ameaça de apreender a edição de setembro de 1966, caso divulgasse a
segunda parte da pesquisa sobre a sexualidade da juventude, a revista insistiu em
publicar reportagens de “absoluta desenvoltura” acerca de temas como amor livre e
comportamento sexual. Além disso, o juiz afirmava que quem vinha acompanhando de
perto a linha de trabalhos apresentados pela revista, podia perceber que a direção
daquele periódico fugia aos propósitos comuns ao periodismo brasileiro, que, na sua
concepção, consistiam em informar corretamente, divulgar acontecimentos e iias
dentro do panorama dos nossos costumes, aceitando ou combatendo moderadamente
os nossos hábitos e as nossas tradições”, Ao contrário disso, ele acusava a revista de ter
decidido encetar uma campanha a favor de uma “verdadeira revolução radical” no
terreno da moral familiar. Diante de tais constatações, o juiz de menores questionava-se
até que ponto poderiam os órgãos de divulgação assumir uma postura como aquela,
contrária aos cânones morais adotados pela nossas sociedade e consagrados nas leis do
país”.
42
Na edição seguinte, de fevereiro de 1967, Realidade publicou uma nota de
abertura da direção na qual informava seus leitores a respeito dos fatos ocorridos.
Segundo dizia essa nota, a retenção dos exemplares da revista, ainda na gráfica, por
ordem do juiz de menores de São Paulo, era medida arbitrária porque privava leitores
que estavam fora da sua jurisdição de terem acesso àquela publicação, além de ter
significado a anulação de meses de trabalho e provocado vultosos prejuízos materiais à
Editora Abril, já que quase metade dos exemplares não puderam chegar às mãos dos
leitores. Além disso, defendeu-se dizendo que a apreensão do número de janeiro era
muito mais que uma “simples ão punitiva contra qualquer vulgar publicação
licenciosa”, mas significava, essencialmente, que qualquer juiz de menores podia
42
A apreensão de Realidade. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n.11, Fev. 1967.
222
impedir que uma revista circulasse em todo o país, apenas por não concordar com seu
ponto de vista”. Mediante tais circunstâncias, considerava, portanto, que a liberdade de
imprensa, de maneira geral, via-se novamente em perigo, uma vez que aquele tipo de
apreensão, baseado em critérios exclusivos de uma única pessoa, vinha ameaçar jornais
e revistas que publicassem fatos, estatísticas e opiniões que pudessem ser julgados
inconvenientes ou impróprios.
43
Em ambos os casos, o único recurso cabível, de acordo com os termos legais
vigentes naquela ocasião, segundo o artigo 24 do Ato Institucional n. 2, era a revista se
dirigir aos tribunais superiores e contestar a alegações dos dois juízes.
44
E assim o fez.
Primeiramente, a Editora Abril, através do seu advogado, Silvio Rodrigues,
impetrou mandado de segurança ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, contra
o ato do juiz da Vara de Menores da capital, mas a petição foi rejeitada.
45
A ementa relativa à decisão final do Tribunal de Justiça trazia alguns
esclarecimentos e especificações quanto ao conteúdo que teria despertado a ação
promovida pelo juiz de menores de São Paulo e declarava que o exame dos artigos
reunidos na edição n.10 da revista Realidade, toda ela dedicada à mulher brasileira,
revelava, às claras, o objetivo daquela publicação: “ampliar a liberdade sexual e reduzir
o casamento a algo secundário e dispensável, senão desprezível”. De acordo com aquele
Tribunal, as intenções da revista apareciam de forma explícita em alguns enunciados
por ela apresentados superficialmente” e, por vezes, “levianamente”, tais como “Sexo
o tem nada de indecência”, “Felicidade é possível sem o casamento e ainda,
Devemos ser independentes a qualquer custo”. Além disso, a ementa dizia que no
artigo intitulado “Confissões de uma moça livre”, a revista fazia freqüentes refencias
ao clima social” da Suécia como modelo a ser seguido, especialmente no tocante à
sexualidade feminina, ainda que fizesse a ressalva de que “a noite funda da moral
brasileira” ainda os impedia de alcançá-la. Quanto à matéria Três estórias de desquite”,
o juiz as considerou, em suma,“uma sugestão, um convite à desquitada para refazer sua
vida ao lado de outro homem” e, por fim, no artigo “Sou mãe solteira e me orgulho
disso” a nica era que a maternidade, em si mesma, propiciava as melhores emoções e,
assim, o juiz entendeu que a matéria justificava e estimulava que fosse procurada fora
do casamento.
43
A apreensão de Realidade. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n.11,Fev. 1967.
44
Ato Institucional n. 2, de 27 de outubro de 1965, artigo 24.
45
FAGUNDES, Coriolano de Loyola Cabral. Op. cit. p. 307.
223
Além dessas matérias, o acórdão denunciava o aspecto obsceno da fotografia de
um parto, apresentada na matéria Nasceu!”, pois “chocava o sentimento comum de
pudor, mesmo quando tomado no seu mais amplo sentido:
Realidade timbrou em tornar público aquilo que todos os povos insistem em ocultar até das
pessoas mais íntimas da parturiente. Essa foto, que só caberia em revista científica
especializada, não passa de violenta agressão ao pudor público.
Antes de apresentarmos a decisão final do juiz do Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo, acerca da apreensão da revista Realidade pelo juiz de menores da capital
daquele estado, faremos uma pausa e nos reportaremos ao segundo capítulo deste
trabalho, quando nos referimos a trechos da entrevista que nos foi concedida pelo ex-
repórter da revista Realidade, Mylton Severiano, que disse lembrar-se ainda hoje do dia
em que concluíram o número especial sobre a mulher. Myltainho contou que na
reportagem de Narciso Kalili, sobre um parto em Bento Gonçalves, havia uma foto,
meio de lado, de um bebê saindo da barriga da mãe, e que seu “faro jornalístico” lhe
dizia que aquela deveria ser a foto de abertura da reportagem, cujo título, aliás, era
Nasceu!”, ainda que tivesse igualmente a certeza de que a foto criaria problemas para a
revista. Além da sua memória acerca do episódio, ele nos relatou a versão que Paulo
Patarra lhe contou do desenrolar dos fatos em torno da polêmica foto do parto:
A resposta em torno, quando gritei “a foto é esta!”, foi o silêncio geral. Não que alguém,
entre os sete ou oito ali presentes, discordasse da qualidade, do impacto, da beleza da foto
de Claudia. Mas estávamos em ditadura militar, tínhamos todos presente na cabeça o temor:
qualquer bobeada, apreenderiam a edição. No fim do meu comício, apenas Robert e eu
queríamos abrir a reportagem com a foto. Havia outros querendo, mas sem entusiasmo
algum, “pode dar bode”. A foto acabou na segunda página dupla da reportagem, bem
pequena. E deu bode. Antes tivéssemos ousado. Como dizia um de nossos gurus, Jo
Ângelo Gaiarsa, a gente se arrepende mais daquilo que não faz do que aquilo que faz. O
bebezinho nascendo foi a conta. Os reacionários só viam ali uma vagina, uma imoralidade.
Viria retaliação dos inimigos da revista, que eram muitos e sequer desconfiávamos.
46
Se nos primeiros trabalhos e depoimentos acerca do papel jornalístico
desempenhado pela revista Realidade esse episódio da apreensão da edição n. 10 era
citado como uma clara evincia da índole “transgressora” da revista, os relatos mais
recentes, como ocorre no trecho que acabamos de citar, embora ainda situem esse fato
dentre os marcos que comem a memória coletiva e afetiva dos ex-Realidade, já
procuram relativizar o caráter de “baluarte da resistência que alguns estudiosos
atribuíram à revista, e mostrar que embora procurasse ser um veículo de novas idéias,
46
Entrevista concedida por Mylton Severiano via correio eletrônico, em 12 Jun. 2007.
224
o deixou de se preocupar em observar os limites colocados pelo regime como
condições para que pudesse circular no mercado editorial de revistas.
Quanto à decisão final da justiça paulista, mesmo reconhecendo que a revista
continha excelentes páginas de exaltação à mulher”, inclusive nos artigos criticados,
parecia-lhe que essas existiam apenas para o efeito de realçar o que considerava ser o
tema principal da revista: a dissolução da família. Portanto, concluiu que, ao contrário
do que havia alegado a Editora Abril, o juiz de menores não havia exorbitado de suas
competências quando apreendeu toda a edição da revista Realidade de janeiro de 1967,
impedindo, com isso, que a editora realizasse a sua remessa para outras cidades, pois, de
acordo a Lei de Imprensa n. 2.083, de 1953, que era a que vigorava naquele momento,
cabia ao juiz de menores definir o que era obsceno, levando em consideração a
possibilidade dessas publicações estarem ao alcance de menores de idade.
47
Além disso,
dizia o acórdão, a educação sexual competia aos pais, o a estranhos.
48
Não conformada com essa decisão de primeira instância, restava à revista um
caminho: o Supremo Tribunal Federal.
No STF, o processo recebeu o n. 18.534/SP e foi distribuído à Segunda Turma,
presidida pelo ministro Evandro Lins e composta pelos ministros Aliomar Baleeiro,
encarregado de redigir o acórdão, Adalício Nogueira e Themístocles Cavalcanti, que foi
o relator do processo.
49
No momento do julgamento, o ministro Themístocles Cavalcanti votou a favor
de que fosse confirmada a decisão do Tribunal de Justa do Estado de São Paulo, da
qual a revista recorria e, portanto, que a ela fosse negado provimento ao recurso. O
ministro Aliomar Baleeiro, por sua vez, divergiu do voto do relator e foi favorável ao
recurso impetrado pela revista Realidade e reconheceu que, em sua decisão final, a
justiça paulista havia postergado o direito da recorrente. No entanto, fez uma ressalva
reconhecendo a competência do juiz de menores em tomar as providências que
considerasse convenientes a fim de evitar a venda da revista para crianças de idade
inferior a que fosse por ele determinada, assim como em impedir que a publicação fosse
manuseada por menores em lugares e bibliotecas públicas. Tanto o ministro Evandro
Lins, como o ministro Adalio Nogueira, votaram de acordo com o ministro Aliomar
Baleeiro e assim, por maioria de votos, a Segunda Turma do Superior Tribunal Federal
47
Lei de Imprensa n. 2.083, de 12 de novembro de 1953, artigo 53.
48
FAGUNDES, Coriolano de Loyola Cabral. Op. cit. p. 307-308.
49
Idem, p. 308.
225
concedeu mandado de segurança que ordenava a imediata liberação dos exemplares da
revista Realidade que haviam sido apreendidos.
50
Portanto, a Editora Abril teve que esperar até de outubro de 1968 para ver
resolvida a sua pendência judicial iniciada em 1966, e no intuito de informar seus
leitores acerca do desfecho do caso, no número de novembro daquele ano os diretores
de Realidade publicaram logo nas primeiras páginas os trechos principais do voto do
ministro Aliomar Baleeiro, que segundo eles, valeu os 20 meses de espera pela decisão
da Justiça.
51
A objetividade” e “erudição” do ministro Aliomar Baleeiro em seu voto
favorável à liberação da edição n. 10 da revista Realidade, foram referendadas e
rememoradas no plerio da Suprema Corte, ora em pronunciamento por ocasião de sua
aposentadoria, ora em discurso proferido em solenidade de celebração do primeiro
centenário do seu nascimento.
52
Para os fins deste trabalho, é interessante conhecer de
maneira detalhada os votos e os debates havidos em torno do processo provocado pela
Editora Abril na esfera do Supremo, pois através deles podemos nos inteirar dos
conceitos que permearam a conduta de cada uma das partes envolvidas no que tangiam
a questão da censura e da liberdade de imprensa, tais como, pornografia, obscenidade,
preservação da moral e dos bons costumes, resguardo ao menor e limitação da
competência atribuída ao juiz de menores para efetuar apreensões ou sustar a impressão
de publicações. Além disso, os termos dessa documentação nos permitem ver como
eram aplicadas na prática algumas questões elaboradas teoricamente nos instrumentos
legais que, naquela ocasião, regulamentavam, ou faziam menção, à liberdade de
expressão.
Uma vez que a apreensão dos exemplares de Realidade n. 10 foi feita sob a
alegação de que se tratava de publicação obscena, mais especificamente em função dos
artigos “Porque me orgulho de ser mãe solteira” e “Confissões de uma moça livre”,
além de uma fotografia considerada de “mau porte”, as definições dos conceitos de
Obscenidade” e “Pornografia”, que estiveram presentes ao longo de todo o julgamento
50
Idem.
51
Realidade no STF. Realidade, São Paulo: Editora Abril, n. 32, p. 04-05, Nov. 1968.
52
Discurso proferido pelo ministro Celso de Melo, em nome do Supremo Tribunal Federal, em 22 Set.
2005, na solenidade de celebração do centenário de nascimento do ministro Aliomar Baleeiro. Disponível
em: http://www.stf.gov.br/imprensa/pdf/baleeiro.pdf.
226
do recurso solicitado pela editora, aparecem especificadas em três itens que antecedem
os textos contendo o acórdão e o relatório do julgamento,
53
O primeiro desses itens esclarecia que o Direito Constitucional de livre
manifestação do pensamento não excluía a punição penal, nem a repressão
administrativa de material impresso, fotografado, irradiado ou divulgado por qualquer
meio, para os casos de divulgação pornográfica ou obscena, como constava na Lei de
Imprensa n. 2.083, de 1953, que afirmava a liberdade de publicação e circulação, em
território nacional, de jornais e outros periódicos, salvo quando se tratasse de publicação
clandestina ou que atentasse contra a moral e os bons costumes.
54
Além disso, essa
mesma lei fixava que a liberdade de imprensa não excluía a punição dos que
praticassem abusos no seu exercício,
55
e definia a ofensa contra a moral blica e os
bons costumes como um desses abusos, sujeito à pena ali indicada.
56
Advertia ainda que
o poderiam ser impressos, nem expostos à venda ou importados, jornais ou quaisquer
publicações periódicas que fossem declarados pelo juiz de menores, ou, na falta dele,
por qualquer outro magistrado, como sendo de caráter obsceno.
57
O segundo item dizia que, à falta de um conceito legal do que fosse
pornográfico, obsceno ou contrário aos bons costumes, a autoridade deveria guiar-se
pela consciência de homem médio de seu tempo, tentando conhecer os prositos dos
autores do material suspeito, e especialmente, a ausência, nesses materiais, de qualquer
valor literário, artístico, educacional ou científico, que o redimisse de seus aspectos
“mais crus e chocantes”.
58
O terceiro e último item afirmava que a apreensão de periódicos obscenos,
conforme a Lei de Imprensa que então vigorava, competia ao juiz de menores, no intuito
de proteger crianças e adolescentes contra aquilo que fosse impróprio à sua formação
moral e psicológica, com a ressalva de que essa ação judicial o deveria impedir que os
adultos interessados tivessem acesso a tais publicações, e que, portanto, caberia ao juiz
adotar medidas “razoáveis” que impedissem a venda ou a consulta desses materiais aos
menores, até o limite de idade que julgasse conveniente.
59
53
FAGUNDES, Coriolano de Loyola Cabral. Op. cit. p. 309.
54
Lei de imprensa n. 2.083, de 12 de novembro de 1953, artigo 1º, § 1º.
55
Idem, artigo 8º.
56
Idem, artigo 9º, alínea E.
57
Idem, artigo 53.
58
FAGUNDES, Coriolano de Loyola Cabral. Op. cit. p. 309.
59
Idem.
227
A seguir, são apresentados os votos de cada membro da Turma que participou do
julgamento, sendo o primeiro o do relator, ministro Themístocles Cavalcanti, que como
mencionamos, votou contra o deferimento do recurso solicitado pela Editora Abril junto
ao STF.
Na sua opinião, embora a leitura do número da revista apreendida o o tivesse
levado a considerá-la uma publicação obscena, precisamente porque não ofendia o
pudor, nem era erótica, ele o recomendaria a sua leitura para pessoas “pouco
amadurecidas”, uma vez que alguns dos seus artigos justificavam formas de
comportamento que, no seu entender, não eram dos mais “salutares”, além de conter
narrativas de certas formas de vida que não condiziam rigorosamente com “preceitos
tradicionais de moral”. Do seu ponto de vista, portanto, não se tratava de uma revista
obscena, mas de uma publicação destinada a um blico pouco exigente”, com
conteúdo “profundamente medíocre” e de “profundo mau gosto”, sob todos os pontos
de vista. Além disso, ponderou o ministro, se fossem analisar o que se publicava na
generalidade das revistas, poucas resistiriam a uma análise mais rigorosa, dentro do
conceito de obscenidade fixado pelo juiz que teve seu ato impugnado.
60
Dentre as considerações feitas no intuito de justificar seu voto final, o ministro
Themístocles Cavalcanti argumentou que a maior dificuldade daquele caso estava na
necessidade de verificar a validade do ato do juiz a partir da apreciação do conteúdo de
cada um dos textos publicados no n. 10 da revista Realidade, no intuito de averiguar se
os mesmos eram, de fato, obscenos. Entretanto, tal medida esbarrava na não existência
de um critério objetivo que permitisse avaliar se uma publicação era ou não obscena,
que não havia uma nítida linha de demarcação entre o obsceno e o não obsceno,
cabendo, portanto, ao juiz fazer tal avaliação.
61
Em sua explanação, disse que o exame do recurso requeria saber se pelo artigo
53 da Lei de Imprensa de 1953, que vigorava no momento da apreensão da revista,
62
competia ao juiz apreciar livremente os casos de obscenidade ou se as instâncias
superiores poderiam corrigir a aplicação da lei por ele determinada, caso fosse feita com
60
Idem, p. 310.
61
Idem, p. 311.
62
É importante observar que, no momento da apreensão dos exemplares do n. 10 da revista Realidade,
em dezembro de 1966, vigorava a Lei de Imprensa n. 2. 083, de 1953, e que no momento do julgamento
do recurso movido pela editora contra a decisão do Juiz do Tribunal Judiciário do Estado de São Paulo,
no âmbito do STF, essa lei já havia sido substituída pela nova Lei de Imprensa, n. 5.250, de 1967.
Entretanto, era preciso observar os termos da antiga Lei de Imprensa de 1953, já que tanto a apreensão da
revista como a decisão final do juiz de São Paulo foram embasadas nessa lei.
228
excessivo rigor ou resultasse do seu indevido entendimento do conceito de
obscenidade”. Feitas essas verificações, o ministro concluiu dizendo que, no seu
entender, o havia no ato da Justiça de São Paulo qualquer ilegalidade que justificasse
a concessão da medida requerida pela Editora Abril e que, portanto, não se podia, pela
lei, negar ao juiz a sua decisão final, tomada com base no seu próprio conceito de
obscenidade”, segundo o qual, se fazia necessária a apreensão da revista Realidade.
63
As o voto do relator, que negou provimento ao recurso, foi a vez do ministro
Aliomar Baleeiro dar o seu voto. Ele começou sua exposição afirmando que ninguém
poderia contestar o direito da sociedade defender-se do obsceno e do repugnante e,
sobretudo, preservar de influências “deletérias” o caráter do adolescente e da criança e,
dessa forma, reconhecia ao juiz de menores, conforme os termos do artigo 53 da Lei de
Imprensa de 1953, os poderes para agir de maneira repressiva, eficaz e imediata”.
Entretanto, procurou ponderar sua afirmação dizendo que o conceito deobsceno”,
“imoral” e “contrário aos bons costumes” estava condicionado ao local e à época onde
fosse aplicado. Assim, lembrou que inúmeras atitudes aceitas no passado eram
repugnadas naquele momento, da mesma forma como já eram aceitos procedimentos
que as gerações anteriores certamente repugnariam e, para efeito de demonstração,
enumerou uma série de exemplos relativos a esses casos.
Por outro lado, o ministro Aliomar Baleeiro lembrou que embora os problemas
do sexo representassem um tabu para os censores, consistiam em objeto de investigação
científica de rias universidades, a partir de diferentes perspectivas, sendo notória a
enorme biblioteca de “publicações eróticas” subvencionada por essas instituições,
dentre as quais citou o Relatório Kinsey, pertencente ao Institute for Sex Research,
fundado pelo autor do relatório, Alfred Kinsey. O ministro procurou destacar que um
dos fundamentos da apreensão da edição n. 10 da revista Realidade foi o fato de ter
publicado um inquérito sobre a sexualidade de um grupo de 1.200 mulheres brasileiras,
assim como haviam feito, só que em vulto maior, os dois relatórios Kinsey, que foram
publicados de maneira resumida em várias revistas de circulação mundial. Além da
existência de inúmeras revistas de grande circulação que abordavam questões
relacionadas ao sexo numa perspectiva científica, o ministro argumentou ainda, que
fosse do conhecimento de todos, o fato das autoridades tolerarem a veiculação de
63
FAGUNDES, Coriolano de Loyola Cabral. Loc. Cit.
229
publicações restritas e voltadas para o erotismo em “todas as capitais civilizadas” do
mundo.
Entretanto, dizia que o fato mais importante que lhe ocorria a partir da análise
dos documentos produzidos ao longo daquele processo judicial, era que imeras
revistas de circulação mundial, como as publicações do grupo Time, ou ainda revistas
brasileiras de grande prestígio, “insuspeitas de comércio de torpezas” e do cultivo de
paixões más”, versavam os mais graves temas da atualidade” em quase todas as suas
edições, onde tratavam de sexo, erotismo, contracepção, pílula, e até mesmo, diz o
ministro, de “anormalidades da conduta sexual”, como a prostituição, a
homossexualidade, o sadismo”, e outras. Levando isso em consideração, ele levantou a
seguinte questão:
Por que, então a atitude discriminatória contra Realidade? Até que ponto outros interesses,
outras considerações, outros preconceitos ideológicos podem ter açulado uma repressão a
que foram poupadas outras revistas com os mesmos pecados.
64
Portanto, para o ministro Baleeiro não se tratava de defender a liberdade de
expressão e a adoção de uma postura menos conservadora no que se referia à
abordagem de temas da atualidade em periódicos de grande circulação, que, por baterem
de frente com alguns princípios da moral cristã na qual se fundamenta a sociedade
brasileira, eram por vezes considerados ofensivos à moral e aos bons costumes, mas de
tentar impedir que questões relacionadas à concorrência no mercado editorial entre
publicações de diferentes estados, levassem as autoridades locais a adotarem medidas
administrativas no sentido de proteger seus produtores na competição com os
produtores de outro estado, e advertia que,
se a Guanabara e São Paulo os maiores centros editoriais e cinematográficos entrarem
em retaliação nesse campo, não haverá melhor arma para isso que a censura de filmes e a
apreensão de livros e revistas, sob pretexto de licenciosidade.
65
No sentido de evitar tais abusos, o ministro alegava que não o padrão moral
do país era um , como também que era de competência da União, e não dos estados,
tanto regular o comércio interestadual, como legislar sobre o Direito Penal, e que,
portanto, lhe competia definir e punir aquilo que fosse considerado obsceno e contrário
aos bons costumes.
66
64
Idem, p. 316.
65
Idem, p. 317.
66
Idem, p. 316-317.
230
Referindo-se ao voto anterior, proferido pelo ministro Themístocles Cavalcanti,
o ministro Aliomar Baleeiro disse concordar com ele quanto à dificuldade de se
averiguar a existência, ou não, de matéria obscena na edição apreendida da revista
Realidade, dada a ausência de critérios objetivos que permitissem fazer tal avaliação;
concordou ainda com a opinião do relator de que, embora não considerasse aquela
edição de Realidade uma publicação obscena, precisamente porque não ofendia o pudor
nem continha matéria erótica, não considerava sua leitura recomendável para pessoas
pouco amadurecidas, uma vez que ali se encontravam justificadas “certas formas de
vida que não condiziam com os “preceitos tradicionais de moral”. Além disso,
concordavam que a acusação feita à Realidade condenaria outras revistas brasileiras que
o haviam sido incomodadas da mesma forma. O ministro Baleeiro acrescentou ainda
que não se convencia da obscenidade atribuída àquela revista, já que, como havia
mencionado o ministro Themístocles em seu voto, se todo o material publicado na
generalidade das revistas fosse analisado com tal rigor, poucas resistiriam no mercado
editorial.
67
Assim, o ministro Aliomar Baleeiro concluiu que a divergência entre ele e o
relator, ministro Themístocles Cavalcanti, se restringia à conclusão e solução a serem
dadas ao caso, enquanto que suas opiniões e julgamento de valor quanto aos padrões
morais de Realidade não entravam em colisão.
Em seguida, ele indagou o relator quanto ao seu voto, e argumentou que ao
negar provimento ao recurso solicitado pela Editora Abril, deixava sem remédio o que a
ambos parecia ser um caso de má aplicação da lei, já que não se estendia de maneira
sistemática aos demais periódicos que continham material semelhante, resultando em
prejuízo vultoso aos direitos da recorrente, além de representar uma ameaça à liberdade
de imprensa e do pensamento.
68
Em seus argumentos a favor da liberação da revista, o ministro Baleeiro disse
que no seu entendimento havia direito líquido e certo de alguém expor e defender
livremente seu pensamento, desde que respondesse pelos abusos que cometesse. O
cidadão poderia ainda dizer e publicar o que pensasse a respeito do nudismo, da
igualdade de sexos, da defesa jurídica e social da mãe solteira, sobre educação sexual,
divórcio, comunismo, anarquismo, sobre a existência de Deus, a historicidade de Cristo,
a pílula anticoncepcional ou qualquer outro tema referente ao seu tempo. Entendia
67
Idem, p. 318-319.
68
Idem.
231
também que, no exercício do poder de polícia, a autoridade, no caso, o juiz de menores,
poderia apreender qualquer publicação “evidentemente pornográfica”, obscena ou
contrária aos bons costumes, assim como as que visassem “inequivocamente a excitar a
lascívia depravada” ou que ferissem os padrões de decoro da comunidade”, sem
nenhum prosito de divulgação científica, artística, educacional ou literária e,
sobretudo, as publicações que manifestassem ostensivamente “seu propósito perverso e
corrompido”, referindo-se, nesse caso, àquilo que os juristas americanos costumavam
chamar de hard core pornography. Entretanto, do seu ponto de vista, aquilo que era
natural não podia ser considerado imoral, e dessa forma, os fenômenos de reprodução
do homem por serem equiparáveis aos de digestão, circulação e outros de ordem
biológica, comportavam divulgação.
69
Da mesma maneira, considerava que a análise ontológica de fatos sociais como o
crime, a mendicância, a prostituição, a atividade sexual extraconjugal, e outros, não
poderia ser considerada indecente se não visasse a servir de pretexto para o
encorajamento de todos esses “desvios de conduta social”. Lembrava que a lei proibia a
alusão em prol de crime, de vício e da perversão, mas não o exame objetivo desses
problemas.
70
Assim, considerando a ausência de padrões claros e seguros a respeito da linha
divisória entre o obsceno ou o pornográfico e o publicável, o ministro Aliomar Baleeiro
disse que para chegar a uma conclusão a respeito do caso da revista Realidade teve que
basear seu julgamento na sua consciência de homem de seu tempo e de seu país,
concluindo, após analisar o exemplar da revista que estava anexado aos autos, que não
se tratava de publicação obscena, imoral,rdida ou contrária aos bons costumes:
A linguagem é decorosa, a exposição se fez em tom alto e não encontrei apologia do vício,
da anomalia ou mesmo da irreverência, enfim nenhum juízo de valor que se possa
considerar anti-social. Não ofensa aos padrões atuais do Brasil ou de qualquer país
policé, em gravuras esquemáticas da concepção ou num inquérito que aborda os mais
variados aspectos do comportamento da mulher, inclusive o sexual. (...). Certo, Realidade
não é indicada para crianças ou alunos de aula primária. Isso não impede que desejem ou
possam lê-la adultos. Mas duvido que os colegiais, hoje, ainda levem a sério a cegonha.
71
As sua longa exposição, seguiu-se a votação com o ministro Adalício
Nogueira, que por sua vez, pediu licença ao ministro Themístocles Cavalcanti e
acompanhou a decisão de Aliomar Baleeiro, concedendo provimento ao recurso
69
Idem, p. 320.
70
Idem.
71
Idem, p. 322-323.
232
solicitado pela Editora Abril, com a mesma ressalva a respeito do juiz de menores poder
tomar as providências consideradas necessárias para acautelar os menores dos
possíveis danos” que pudesse acarretar a leitura da revista em questão.
72
Por último, foi a vez do presidente da Turma, ministro Evandro Lins, dar o seu
voto. Considerando que o conceito de obscenidade era variável no tempo e no espaço e
que aquilo que havia sido entendido como obsceno em um passado próximo deixava de
ser assim percebido em decorrência da mudança que começava a se processar nos
costumes e no conhecimento que a juventude passava a ter de problemas que, até então,
lhe eram proibidos de ser estudados e conhecidos, Evandro Lins decidiu acompanhar a
decisão do ministro Baleeiro e dar provimento, em parte, ao recurso da Editora Abril.
73
Entretanto, apressou-se em fazer o que considerava ser uma importante distinção
no que se referia ao critério a ser seguido pelo juiz no ato de caracterizar a obscenidade.
Do seu ponto de vista, o que deveria valer não era o critério pessoal daquela autoridade,
e sim, o critério da maioria, o pensamento médio da população. Além disso, considerava
de suma importância que se fizesse a distinção entre a “baixa pornografia e a obra de
arte”.
74
As esse comentário, o ministro Aliomar Baleeiro interferiu na tentativa de
estabelecer um critério de distinção entre ser “erótico” e ser “obsceno”. O erotismo em
si, dizia ele, o podia ser considerado imoral, por estar relacionado a fatores
biológicos. Por outro lado, deformar os fatos, exagerar o que é natural ou dar ênfase e
louvor ao que é anômalo, vicioso, depravado, isto sim, deveria ser considerado obsceno,
por ser contrário aos bons costumes, ainda que nada tivesse a ver com sexo.
75
Na seqüência, tomou a palavra o relator, ministro Themístocles Cavalcanti, no
intuito de defender seu ponto de vista contrário à liberação do n. 10 da revista
Realidade, e então disse que o fundamento do seu voto estava na lei que atribuía ao juiz
de menores competência para determinar aquilo que era obsceno. Assim, sugeria aos
demais membros da Turma que, através dos votos e declarações resultantes daquele
julgamento, corrigissem o conceito de “obscenidade” aplicado pelo juiz de menores de
São Paulo à edição n. 10 da revista Realidade e, posteriormente, demandassem dele um
outro comportamento perante a publicação.
76
72
Idem, p. 323.
73
Idem, p. 324.
74
Idem, p. 324-325.
75
Idem.
76
Idem, p. 325.
233
O relator dizia que, para ele, o que verdadeiramente interessava naquele caso era
exatamente a sua repercussão social, pois, mesmo ciente de que existia um “novo
conceito de moral e uma liberdade muito maior”, entendia que a lei exigia e
justificava que as revistas e os livros fossem disciplinados no que se referia à
abordagem de tais temas, e, por isso, embora reconhecesse que o juiz precisava ter
corrigido a sua conceituação acerca do que era obsceno”, negou provimento ao
recurso.
77
Entretanto, o ministro Aliomar Baleeiro discordou do relator e, tomando a
palavra, disse que não era possível deixar a cargo do juiz o arbítrio sobre o que era, ou
o, obsceno, e sugeria que essas autoridades passassem a observar certos padrões, nos
quais pudessem fundamentar seus julgamentos.
Como vamos deixar um magistrado apreender a edição de uma revista, pode ser, hoje,
Realidade, pode ser, amanhã, outra qualquer, pode ser O Estado de São Paulo, conforme
lhe der na caba, segundo sua concepção pessoal ou visão religiosa do que é obsceno? o
é possível uma coisa destas. É preciso estabelecer critérios, segundo os quais ele pode fazer
isso.
78
Mais algumas discussões entre os ministros Aliomar Baleeiro, Themístocles
Cavalcanti e Evandro Lins se seguiram, a respeito de obras de arte e autores que, em
outros tempos, foram condenados e depois redimidos por atentarem contra a moral e os
bons costumes, esse último ministro, como presidente da Turma, desse por encerrado o
julgamento:
Faço uma declaração para o futuro, porque o juiz, no caso, agiu interpretando a Lei de
Imprensa e aplicou, um pouco, o seu poder, em relação à divulgação de revistas entre
adultos, quando devia limitar esse seu ato aos menores. Acho que o juiz tem todo o poder
para impedir que essa revista chegue a ser lida por menores, adotando as providências que
lhe parecerem mais convenientes e mais eficazes para esse fim.
Meu voto é acompanhando, portanto, o eminente ministro Aliomar Baleeiro, dando
provimento, em parte, ao recurso.
79
A decisão final, portanto, foi dar provimento, em parte, ao recurso da Editora
Abril, contra o voto isolado do relator, ministro Themístocles Cavalcanti.
Quanto aos 225 mil exemplares da revista Realidade, retidos ainda na gráfica em
29 de dezembro de 1966, foram macerados depois de um ano de sua apreensão,
enquanto a Editora Abril ainda aguardava pela decisão da justiça, que foi proferida
no dia 1º de outubro de 1968.
77
Idem.
78
Idem.
79
Idem, p. 326-327.
234
4.2-A censura moral em Manchete, Realidade e Ele Ela
Ao longo das décadas de 1960 e 1970, como vimos no capítulo I, o regime
militar se preocupou em institucionalizar e regular, através de um ostensivo corpo
documental, a censura de livros e periódicos considerados ofensivos à moral e aos bons
costumes, ao mesmo tempo em que a indústria de bens culturais e, mais
especificamente, o mercado editorial, crescia vertiginosamente e tornava-se cada vez
mais especializado, no intuito de atender às diversas demandas que começaram a
despontar em meados do século XX. Dentro desse cenário, destacaram-se as revistas
Manchete, Realidade e Ele Ela, que embora seguissem diferentes linhas editoriais,
guardavam entre si a característica comum de abordarem temas relacionados aos novos
costumes que emergiam nas principais capitais do mundo. Portanto, de que maneira
essas três revistas passaram por esse período em que as questões comportamentais eram
severamente vigiadas, tanto pelos órgãos responsáveis pela censura de periódicos, como
também pelos setores mais conservadores da sociedade?
Quanto à revista Realidade, já vimos que, em duas ocasiões, agosto de 1966 e
janeiro de 1967, a abordagem de tais temas provocou a reação dos juízes de menores do
Rio de Janeiro e de São Paulo. Entretanto, após esses dois episódios, e especialmente
depois de 1968, a revista não teve qualquer outro problema, fosse com o Juizado de
Menores ou com o Serviço de Censura. Aliás, vale destacar novamente que, embora a
revista Realidade tenha circulado até o ano de 1976, em 1968 se deu a sua “primeira
morte”, como dizem os ex-componentes daquela redação, já que em fuão de crises
internas, associadas ao contexto político geral e as novas exincias do mercado
editorial, a revista perdeu seu vigor inicial e o ímpeto de abordar temas considerados
tabus na sociedade brasileira, conservando do seu projeto inicial apenas o nome.
A revista Manchete, embora não tenha sido submetida ao regime de censura
prévia, foi alvo de algumas cartas enviadas por membros da sociedade civil à DCDP.
Em 1971, por exemplo, a Comunidade Católica de J enviou uma carta
endereçada ao presidente Médici, pedindo que, por intermédio das autoridades
competentes, advertisse a revista Manchete em virtude de ter publicado os artigos A
grande crise da família brasileira” e “A vida sexual das solteironas”.
As apresentarem-se de maneira “autorizada” ao presidente, dizendo-se “todos
cristãos, casados e exemplares chefes de família”, os peticionários denunciaram a
revista Manchete por pregar, através dos dois artigos citados, contra o recato feminino,
235
por estimular a mulher a se revoltar contra a severidade com que foram criadas e a
buscar direitos iguais aos do homem, por incentivar o amor livre e por solapar a
instituição matrimonial. Diante disso e considerando que “a família representa, sem
contestação, o núcleo fundamental, a base mais lida em que repousa toda a
organização social”, solicitavam ao presidente que aqueles escritos não tornassem a cair
nas mãos da juventude, sob o risco de deturpar suas mentes e desviá-los do caminho da
moral e dos bons costumes.
80
em 1977, Edson Pinheiro, de Governador Valadares, indignado com as fotos
daquele carnaval publicadas na revista Manchete, escreveu à censura fazendo a seguinte
reclamão:
Prezados Senhores:
Uma revista da montagem e da tiragem de “Manchete” é uma fonte de comunicação
incontestável! Pena que tamanha força seja muitas vezes o mal utilizada pelos homens
que têm em suas mãos o poder de escolher! (...) Em nossas casas não compramos a referida
revista uma vez que não tivemos coragem de levá-la para nossas famílias verem, pois ela
está com fotos bastante imorais. Alegria não é sinônimo de libertinagem!
81
Para finalizar, advertia que aquelas imagens desfiguravam o povo brasileiro,
“já tão desacreditado no mundo”.
Excelência, permita-me que, com toda reverência dirija um apelo a Vossa
Excelência”, assim Maria Helena Marques iniciou a carta que enviou ao ministro da
Justiça, Armando Falcão, a qual, segundo ela, nada mais era que “um pedido de mulher
brasileira, uma solicitação de mãe, uma súplica de quem enxerga com evidentíssima
nitidez a pornografia atentatória da instituição familiar”. O “desabafo” daquela senhora,
que se dizia “admiradora sincera” da atuação ministerial de Falcão, era contra “o
carnaval de imoralidades” estampado nas fotos das revistas Manchete, Fatos e Fotos,
Status, Homem e Ele Ela.
82
Em resposta à missivista, Rogério Nunes, diretor da DCDP, ao qual o Ministério
da Justiça encaminhou a correspondência, enviou-lhe uma carta dizendo que tanto
entendiam as razões do seu desabafo, como também o consideravam lido, pois servia
de parâmetro para o trabalho da censura federal e reforçava a necessidade de se
80
Carta da Comunidade Católica de J ao presidente Emílio Garrastazu Médici. Data: São Paulo,
25/02/1971. Arquivo Nacional-Sede em Brasília. Fundo DCDP. Seção: Administração Geral. Série:
Correspondência Oficial. Subsérie: Manifestações da Sociedade Civil. Caixa: 01.
81
Carta de Edson Pinto de Oliveira, e outros, ao Departamento de Censura Federal. Data: Governador
Valadares, 05/03/1977. Arquivo Nacional-Sede em Brasília. Fundo DCDP. Seção: Administração Geral.
Série: Correspondência Oficial. Subsérie: Manifestações da Sociedade Civil. Caixa: 02.
82
Carta de Maria Helena Marques Dip ao ministro da Justiça Armando Falcão. Data: São Paulo,
02/03/1977. Arquivo Nacional-Sede em Brasília. Fundo DCDP. Seção: Administração Geral. Série:
Correspondência Oficial. Subsérie: Manifestações da Sociedade Civil. Caixa: 02.
236
preservar um órgão censório no país, mesmo após a saída dos militares do poder, o que,
segundo ele, contrariava uma boa parcela de brasileiros que atacavam e criticavam
aquele serviço. Entretanto, ele informava a sra. Maria Helena que algumas revistas às
quais havia se referido, dentre elas, Manchete, Gente e Fatos e Fotos o estavam sob
censura prévia como acontecia com alguns periódicos ou revistas que eram obrigados a
submeter toda a matéria à aprovação da DCDP antes da impressão, como era o caso, por
exemplo, da outra revista que analisamos nesse trabalho, Ele Ela.
83
A abordagem de temas ligados à sexualidade e à emancipação feminina pela
revista Manchete também foi a razão que levou Álvaro Freitas a escrever uma carta
endereçada ao ministro Armando Falcão, na qual dizia ter diante de si o número 1.364
daquele título, no qual eram apresentadas as reportagens “Sexo 78”, que era uma
entrevista com a autora de um livro sobre a “nova mulher”, e “A primeira vez”, onde
atores e atrizes famosos davam depoimentos sobre a “primeira vez em que fizeram
amor”. Tomado de indignação, o leitor pedia ao ministro da Justiça que tomasse
provincias no sentido de “eliminar tal espécie de jornalismo, sem nenhuma utilidade
se não estimular os ‘contestadores’ que pululam nas escolas primárias e secundárias, à
prática de atos que a maioria de nossa sociedade condena por contrários aos nossos
princípios”.
84
Alguns meses depois, Rogério Nunes encaminhou uma carta-resposta ao sr.
Álvaro, mostrando-se solidário com as preocupações que expôs em sua carta, as quais
vinham reforçar a necessidade de se preservar um órgão censório no país, mesmo que a
contragosto “de uma boa parcela de brasileiros” que atacavam e criticavam a censura
federal. Entretanto, explicava ao leitor que uma vez que a revista Manchete o estava
sob censura prévia, os editores tinham “inteira liberdade” de selecionar o material a ser
veiculado, inclusive fotos. Mas levando em consideração os fatos por ele apresentados,
informava que uma carta seria remetida à Editora Bloch advertindo-a sobre a publicação
83
Carta-resposta de Rogério Nunes, diretor da DCDP à Maria Helena Marques Dip. Data: Brasília,
06/04/1977. Arquivo Nacional-Sede em Brasília. Fundo DCDP. Seção: Administração Geral. Série:
Correspondência Oficial. Subsérie: Manifestações da Sociedade Civil. Caixa: 02.
84
Carta de Álvaro Freitas Guimarães ao ministro da Justiça Armando Falcão. Data: Santos, 08/06/1978.
Arquivo Nacional-Sede em Brasília. Fundo DCDP. Seção: Administração Geral. Série: Corresponncia
Oficial. Subsérie: Manifestações da Sociedade Civil. Caixa: 02.
237
de matérias “tão contundentes” e de que, em caso de reincidência, estaria sujeita a sofrer
as penalidades previstas em lei.
85
Recuando no tempo, voltamos aos meses que se seguiram à decretação do AI-5,
quando a revista Manchete começava a anunciar que, em maio de 1969, chegaria às
bancas uma nova publicação da Editora Bloch, Ele Ela, “uma revista para ler a dois”.
Segundo Carlos Heitor Cony, que foi o editor da revista entre os anos de 1969 e 1973,
Ele Ela não era uma revista erótica, mas uma publicão que procurava discutir temas
sexuais, numa época em que, no Brasil, a pílula, a mini-saia, o divórcio, a igualdade de
direitos entre homens e mulheres e o aborto eram “novidades” que mereciam ser
transformadas em linha editorial. Ele conta que após a publicação do seu primeiro
número, toda a diretoria da editora foi convocada a se apresentar no gabinete do
Comandante da Região Militar do Leste, no Rio de Janeiro, que funcionava na Praça da
República, no antigo prédio do Ministério da Guerra.
86
Em função das advertências e recomendações daquela autoridade, Cony conta
que o número dois de Ele Ela foi repensado, repaginado e reimpresso, “para não criar
marola”, mas mesmo assim, foram obrigados a, dali em diante, levar, todo mês, os
layouts da revista para aprovação do Comandante Militar do Leste. Mas em setembro de
1969, mesmo tendo levado o material referente à edição de n. 5 para verificação prévia,
apenas um dia após ter sido distribuída nas bancas, essa edição de Ele Ela foi
apreendida em todo o território nacional, o que acarretou à Editora Bloch um prejuízo
de 400 mil exemplares.
87
Como o encontramos qualquer documento que mencionasse esse episódio,
o sabemos ao certo de onde partiu a ordem de apreensão nem exatamente qual foi o
motivo que levou o regime a adotar essa medida. Entretanto, no seu depoimento, Cony
atribui o fato da apreensão à foto que havia escolhido para a capa daquele mês, que por
trazer matérias falando a respeito do machismo, mostrava o busto de um homem nu,
com uma coroa de rei na cabeça e, por trás dele, uma mulher, presumidamente nua,
abraçando-o na altura do peito com apenas uma das mãos. Dois dias após o ato de
apreensão, ele conta que dois diretores da revista foram levados de camburão ao
gabinete da Região Militar do Leste, e ele próprio, enquanto editor da revista, teve que
85
Carta-resposta de Rogério Nunes, diretor da DCDP à Álvaro Freitas Guimarães. Data: Brasília,
21/11/1978. Arquivo Nacional-Sede em Brasília. Fundo DCDP. Seção: Administração Geral. Série:
Correspondência Oficial. Subsérie: Manifestações da Sociedade Civil. Caixa: 02.
86
CONY, Carlos Heitor. Para não dizer que não falei contra a censura. Folha de S. Paulo, 24/11/2000.
87
Idem.
238
passar duas semanas depondo em um inquérito, cuja finalidade, diz ele, era justamente
explicar onde estava a outra mão da mulher que abraçava o homem da capa.
Daquele número em diante, Cony diz que, ao invés de terem que levar o material
a ser editado até a sede do Comando Militar do Leste para a verificação prévia,
passaram a contar com a presença de uma censora na redação da revista, especialmente
designada pela Pocia Federal para efetuar, ali mesmo, os cortes necessários para que a
revista pudesse circular sem prejuízo da moralidade pública.
Entre a documentação pesquisada nos fundos DSI e DCDP, o que pudemos
apurar a respeito de Ele Ela foi um ofício de 16 de janeiro de 1971, encaminhado pelo
general Nilo Caneppa, diretor Geral do DPF, ao ministro da Justa, Alfredo Buzaid, no
qual comunicava as atividades do DPF executadas no campo da censura aos órgãos de
comunicação social a partir de agosto de 1971. Nessa ocasião ele informava ao ministro
que, consoante determinação superior”, a revista Ele Ela deveria continuar sujeita à
censura prévia, assim como a revista Pais e Filhos e os jornais Tribuna da Imprensa, O
Pasquim, A Notícia e o semanário Opinião.
88
Na sede do Arquivo Nacional em Brasília, encontramos um rico arquivo na série
referente a publicações da seção de Censura Prévia do fundo DCDP, contendo os
requerimentos das editoras e distribuidoras de livros e periódicos com os pedidos de
autorização para que pudessem veicular suas publicações em terririo nacional, bem
como os pareceres emitidos, desde 1970 até 1988, pelos censores que faziam a
verificação prévia dos periódicos submetidos a esse tipo de censura, ou, após o fim da
censura prévia de publicações, os pareceres emitidos pelos técnicos em resposta às
solicitações de esclarecimento quanto ao teor pornográfico, ou não, de algumas
publicações.
Quanto à revista Ele Ela, verificamos que, entre os anos de 1975 e 1978, a
revista teve que enviar mensalmente à DCDP o material, tanto textual como fotográfico,
daquilo que seria publicado em cada edição para verificação prévia da existência de
matéria considerada ofensiva à moral e aos bons costumes. Disso resultou um grande
volume de pareceres, pois, conforme as determinações da Portaria n. 219, de 17 de
março de 1970, deveriam ser enviados à DCDP três exemplares de cada edição, os quais
88
Ofício n. 002/73-SIGAB/DG-Encaminha expediente que indica as atividades do DPF executadas no
campo da censura aos órgãos de comunicação social a partir de agosto de 1971. Data: Brasília, 16 de
janeira de 1973. Remetente: general Nilo Caneppa Silva-diretor geral do DPF. Destinatário: ministro da
Justiça Alfredo Buzaid. Arquivo Nacional-Sede no Rio de Janeiro. Fundo DSI. Código do Fundo: TT.
Ano: 1973. Caixa: 592/50756. Seção de guarda: SDE.
239
seriam analisados por três técnicos de censura diferentes que emitiriam pareceres, em
geral individuais, para cada matéria, embora tenhamos verificado que alguns pareceres
concentravam a análise de uma ou mais, e às vezes de todas, as matérias relativas a um
número da revista, ou ainda, casos em que apenas um parecer era emitido, contendo a
análise de todas as matérias de um ou mais números, assinado pelos três censores. Os
pareceres eram feitos em formulário padronizado, contendo um cabeçalho onde
deveriam ser preenchidos o nome do periódico, o número da edição, o título da matéria
a ser analisada e, logo abaixo, uma das três classificações: “Liberado”, “Liberado com
cortes” ou “Não Liberado”. A decisão final, com base nesses despachos, caberia ao
diretor da DCDP, e no caso da sua ausência, seriam assinados ou pelo diretor substituto
ou por um assistente da DCDP, como pudemos verificar em alguns pareceres emitidos
sobre a revista Ele Ela no início do ano de 1976.
O que deduzimos a partir do relato do jornalista Carlos Cony, juntamente com a
documentação disponível no Fundo DCDP, é que, durante esses três anos em que a
revista teve que enviar para Brasília o material para verificação prévia, ela não tenha
contado com a presença permanente e cotidiana de um censor em sua redação, o qual
teria retornado em 1979, já que a revista esteve submetida à verificação prévia até 1980,
quando esse tipo de censura foi definitivamente extinto pelo ministro da Justiça Ibrahim
Abi-ackel.
Com o pretexto de comemorar” a liberação do nu frontal, a revista Ele Ela
procurou atrair mais leitores ao anunciar, na sua edição de março de 1968, a publicação
do primeiro ensaio fotográfico de nudez total feminina, enquanto na capa os leitores e
freqüentadores de bancas de jornal já podiam ver estampada a foto da atriz Helena
Ramos com os seios à mostra, seguida de uma exclamação que dizia: “Nu frontal sem
censura”.
89
89
Ele Ela, Rio de Janeiro: Editora Bloch, n. 131, Mar. 1980.
240
Considerações finais
“Ao se falar em censura naqueles anos, pensa-se sempre no
lado político, ideológico. Mas a censura é um pega-pra-capar
que, quando começa, ninguém sabe onde vai acabar.” (Carlos
Heitor Cony, Para não dizer que não falei contra a censura.
Folha de S. Paulo, 24/11/2000.)
Desde os anos 1960, até os dias de hoje, são inúmeras as produções artísticas e
intelectuais que procuram registrar os eventos que marcaram a chamada “revolução dos
costumes” que agitou aquela década, bem como a memória e a identidade de uma
geração que ficou marcada pelo espírito voluntarista e pela disposição à experimentação
de alguns jovens rebeldes da classe média intelectualizada. Dentre essas obras,
destacam-se trabalhos como os de Zuenir Ventura e Nelson Mota, respectivamente,
1968: o ano que o terminou” e “Noites Tropicais”; os romances e ensaios de Simone
de Beauvoir, que abordam temas existencialistas e muitas vezes inspirados nas
experiências da própria autora durante aquela década, como “A força das coisas”, “As
belas imagens”, “A mulher desiludida” e “A velhice”, entre outros; a biografia de
personagens que marcaram aqueles anos, como a da atriz Leila Diniz, transformada em
símbolo da geração dos anos 1960 por defender na prática, e não apenas na teoria, o
amor livre e a independência feminina; musicais da Broadway, como o norte-americano
Hair, que conta a história de uma tribo de hippies de Nova Iorque em sua luta contra a
Guerra do Vietnam; o documentário Woodstock, three days of peace and music,
produzido durante o festival a partir de entrevistas com os organizadores, autoridades
locais e participantes, além da trilha sonora do evento, relançada em dois Cd’s duplos
em 1994, como parte das comemorações de 25 anos de Woodstock; e o projeto para que
nesse ano de 2008 seja inaugurado um museu em comemoração aos seus 40 anos e em
memória dos hippies, que ficará sediado no topo de uma colina na cidade de Bethel,
perto de onde esteve localizado o palco que na ocasião recebeu artistas como Janes
Joplin, Jimi Hendrix, Santana e The Who, e que, ainda hoje, recebe milhares de turistas
que vão até lá em busca da memória daqueles três dias de “paz e amor”; filmes como
Cannabis, protagonizado por Serge Gainsbourg, e o nacional “Todas as mulheres do
mundo”, de Domingos de Oliveira, estrelado com toda a graça de Leila Diniz, ou ainda,
mais recentemente, as mini-séries, “Anos Rebeldes”, de Gilberto Braga, e “Queridos
Amigos”, de Maria Adelaide Amaral, produzidas pela Rede Globo e exibidas,
respectivamente, em 1992 e 2008. Todas essas obras e monumentos, portanto, são
241
lugares de memória que nos oferecem uma narrativa nostálgica, emocionada e
embriagante daqueles anos em que a alegria de transgredir valores e de quebrar tabus,
ganham vida na profusão de sensações psicodélicas, beijos, transas, amores, traições e
casamentos desfeitos que elas representam e privilegiam como símbolos de uma
geração.
Entretanto, o estudo de algumas matérias publicadas nas revistas Manchete,
Realidade e Ele Ela da década de 1960, relativas à mudança de costumes e liberação
sexual, nos mostram que, embora os ventos da modernidade tornassem algumas
barreiras sociais menos rígidas, estruturas de longa duração continuariam presentes na
organização da sociedade brasileira e no discurso desses periódicos. Assim, ainda que se
mostrassem receptivos às conquistas femininas em termos financeiros e sexuais e aos
novos valores e aspirações de uma parcela da juventude que desejava romper as malhas
apertadas das redes familiares e escolares, esses periódicos continuaram propagando
uma linguagem eufemística e neutra para falar de sexo e sexualidade e valorizando
ideais de amor romântico, pureza, integridade e fidelidade da mulher. Quanto ao papel
do homem diante dessa sociedade que começava a se tornar um pouco mais flexível,
ainda que esses periódicos problematizassem a hegemonia, a identidade e a virilidade
masculina diante das mudanças nos costumes e hábitos cotidianos, a homossexualidade
e o Gay Power, que explodia nos Estados Unidos e na Europa, ao lado do Women
Power e do Black Power, continuaram sendo tratados num tom de estranheza e de
sarcasmo, invariavelmente, como doença” ou “desvio de comportamento”.
O fato de abordarem muitos temas que ainda eram tabus dentro da sociedade
brasileira, não significava que esses periódicos concordassem com todas
asquelas“novidades”, especialmente no que se referia à questão da sexualidade. Em
geral pudemos perceber que o discurso conservador falava mais alto ao lado das
discussões a respeito desses novos valores e novas dinâmicas sociais, o que, de fato,
caracteriza essas revistas como um espaço onde emergem as contradições vivenciadas
pela sociedade daquela época.
Sem dúvida, esses conflitos sócio-culturais que caracterizaram a década de 1960
interferiram na relação entre o regime militar, instalado após o golpe de 1964, e o
conjunto da sociedade brasileira, pois mesmo se tratando de um governo de caráter
autoritário, a sua instalação e o seu funcionamento estivera diretamente relacionado aos
conflitos e antagonismos existentes entre os diversos grupos sociais. Assim, a
242
preocupação do regime, do ponto de vista moral, em controlar, sem eliminar, as
discussões que circulavam nos periódicos, acontecia simultaneamente ao seu empenho
em construir a imagem de um regime protetor das liberdades individuais e dos valores
democráticos, perante uma sociedade marcada por fortes contradições, em que setores
mais conservadores recorriam ao Estado em busca de proteção à boa formação moral da
juventude, à manutenção da estrutura do lar e da família, enquanto que outros grupos
mais intelectualizados da classe dia urbana procuravam se adequar a um estilo de
vida mais despojado em relação ao conservadorismo e a hierarquia dessas instituições.
As analisar o corpo documental pesquisado nos fundos DCDP e DSI/MJ
constatamos, por conseguinte, que o regime militar, desde a sua instalação e mesmo
durante o processo de abertura potica que resultou na sua retirada negociada do poder,
preocupou-se em elaborar mecanismos legais que amparassem a sua ação controladora
sobre a produção cultural do crescente mercado editorial de revistas e sobre os leitores,
que passavam a consumir publicações cada vez mais especializadas, embora voltadas
para umblico de massa.
Entretanto, como também pudemos observar, o controle exercido pelo Estado no
mercado de bens culturais o visava apenas coibir a abordagem de temas poticos,
como a bibliografia a respeito da censura durante o regime militar costuma ressaltar.
Assim como esses, as questões relacionadas ao comportamento e à moralidade eram
vigiados de perto e também representavam uma possível ameaça à estabilidade potica
do regime, às suas instituições e, além disso, à segurança nacional.
Ao longo dos 21 anos de sucessivos governos militares, tanto a censura de temas
políticos como a censura de temas comportamentais foram exercidas, simultaneamente,
tanto numa dimensão pedagógica como numa dimensão saneadora, sendo que, ora uma
se sobressaía à outra em função das condições poticas gerais que informavam a
abrangência e a intensidade com que esses mecanismos deveriam ser empregados a fim
de garantir os interesses do regime.
Uma importante diferença que podemos assinalar entre os procedimentos da
censura de temas morais e da censura de temas poticos em periódicos de grande
circulação, é que a primeira, como vimos, estava amparada numa cultura potica que
definia a salvaguarda da moralidade e dos bons costumes como sendo atribuição do
Estado, logo, era praticada de maneira ostensiva e orgulhosamente assumida, enquanto
que a censura de temas poticos, ainda que tenha causado grandes e múltiplos
243
transtornos à imprensa da época, foi praticada de forma escamoteada no intuito de que
o chegasse ao conhecimento da opinião pública.
O que justificava a diferea entre esses dois procedimentos era o fato da
censura de temas poticos estar diretamente associada à ação repressiva de regimes
autoritários, enquanto que a censura de temas morais tinha o apoio das parcelas mais
conservadoras da sociedade civil, que mesmo após o retorno à democracia, continuou
enviando cartas à Divisão de Censura de Diversões Públicas cobrando uma maior
moralização da sociedade brasileira através do controle aos meios de comunicação de
massa, especialmente dos programas de TV. Percebemos, portanto, que a demanda
social pela censura de temas morais reflete muito mais a preocupação de alguns grupos
em manter os costumes e os valores da família cristã do que, supostamente, o seu apoio
ao regime. Se de fato na maioria das cartas esses missivistas se colocam à disposição
das autoridades e do Estado, fazem isso, especificamente, em defesa da moral e dos
bons costumes, que, como vimos, é uma característica que perpassa a sociedade
brasileira independente do regime potico em vigor.
Embora uma das preocupações desse trabalho tenha sido demonstrar que a
censura de temas poticos na imprensa acompanhou o auge da repressão que se
verificou entre finais dos anos 1960 e início dos anos 1970, enquanto que a censura de
temas morais teve seu ponto alto no final dos anos 1970, já durante a “abertura
política”, procuramos não perder de vista o fato de que esses dois tipos de censura
caminharam juntos ao longo do regime, sendo necessário, portanto, distinguir os
aspectos individuais de cada uma das duas, como também observar a inter-relação que
guardavam entre si durante o processo de estruturação, consolidação e desmonte do
aparato repressivo de Estado.
Por último, gostaríamos de retomar uma questão precípua que deu origem a essa
pesquisa, que é o fato de entendermos que censura é um instrumento potico que pode
ser utilizado tanto a partir de motivações poticas como a partir de motivações morais,
sem prejuízo do seu aspecto controlador e castrador da liberdade de expressão. E o fato
de chamarmos a atenção para essa distinção no que se refere à censura de periódicos
durante o regime militar, com ênfase na censura de temas morais, nos permite contribuir
para uma compreensão mais abrangente da censura praticada nesse período, além de
demonstrar que, mesmo ao adotar uma perspectiva potica, a compreensão da dinâmica
das esferas sociais e culturais não podem ser deixadas de lado, sob pena de incorrermos
244
na análise parcial e unilateral de um instrumento que, como pudemos ver, assemelha-se
a um prisma compacto, de múltiplas faces que, entretanto, se decome em cores
variadas ao ser exposto à luz da análise histórica.
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