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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
Programa de Pós-Graduação em História Social
CONFINS MERIDIONAIS:
famílias de elite e sociedade agrária
na Fronteira Sul do Brasil
(1825-1865)
Luís Augusto Ebling Farinatti
Tese de Doutorado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em História Social do
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
requisito parcial para a obtenção do grau de
Doutor em História.
Orientador: Prof. Dr. João Luís Ribeiro
Fragoso
Rio de Janeiro
Março de 2007
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CONFINS MERIDIONAIS:
famílias de elite e sociedade agrária
na Fronteira Sul do Brasil
(1825-1865)
Luís Augusto Ebling Farinatti
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em História Social do
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro -
UFRJ, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em História.
Banca Examinadora:
_____________________________________________
Orientador: Prof. Dr. João Luís Ribeiro Fragoso
_____________________________________________
Prof. Dr. César Augusto Barcellos Guazzelli (UFRGS)
_____________________________________________
Profª Dra. Hebe Maria Mattos (UFF)
_____________________________________________
Profª Dra. Helen Osório (UFRGS)
_____________________________________________
Prof. Dr. Antônio Carlos Jucá de Sampaio (UFRJ)
_____________________________________________
Profª Dra. Sheila de Castro Faria (UFF) - Suplente
_____________________________________________
Prof. Dr. Manolo Garcia Florentino (UFRJ) - Suplente
Rio de Janeiro
Março 2007
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RESUMO
A presente pesquisa dedica-se a estudar a composição, a lógica social e as estratégias da
elite agrária da Fronteira Meridional do Império do Brasil. O foco do trabalho recai
sobre Alegrete, o maior município da Campanha, principal zona pecuária do Rio Grande
do Sul, entre 1825 e 1865. Aquela economia pecuária era a base do abastecimento de
charque enviado às plantations de açúcar e café em outras regiões do Brasil. A
construção daquela realidade sócio-econômica foi marcada pela pecuária extensiva e
profundamente condicionada pela instabilidade institucional gerada pela guerra e pela
situação de fronteira. Nesse contexto, os grupos de elite precisavam combinar esforços
destinados a melhorar a atividade agrária, mas também a construir alianças sociais
favoráveis e procuravam estar próximos ao poder militar. Todos esses setores estavam
inextrincavelmente conectados naquela realidade. Nem sempre era possível estar
presente pessoalmente em todas essas áreas, mas se podia conseguir faze-lo através de
alianças familiares. Mais do que por indivíduos, a elite agrária era composta por
famílias que conseguiam diversificar suas atividades e atuar em diferentes áreas daquele
contexto sócio-econômico. Por outro lado, essa elite precisava lidar com uma larga e
diversificada base de setores médios rurais e população pobre. A grande pecuária estava
assentada em uma combinação de trabalho escravo e formas de trabalho livre. Os peões
livres, ao contrário do que a historiografia costuma afirmar, não eram homens errantes e
sem vínculos familiares significativos. Eles estavam inseridos em famílias de pequenos
produtores que buscavam sobreviver naquele mundo onde os recursos produtivos, em
escala modesta, ainda eram acessíveis. Essa realidade foi se modificando ao longo do
período estudado, mas essas transformações somente se radicalizaram na segunda
metade do século XIX.
ABSTRACT
This research is devoted to study the composition, the social logic and the strategies of
the agrarian elite of the Southern Boundary of Brazil. The focus of the work relapses on
Alegrete, the largest municipal district of the Campanha, main ranching area of Rio
Grande do Sul, between 1825 and 1865. That ranching economy was the base of the
salted and dried meat provisioning sent to the plantations of sugar and coffee in other
areas of Brazil. It was treated of a context in which the extensive livestock was
influenced by the war and for the border context. The elite groups needed to combine
efforts destined to improve the agrarian activity, to build favorable social alliances and
to control could militate. All those sections were connected. The elite was gotten to be
present in all those areas, through family alliances. Plus than for individuals, the
agrarian elite was composed by families. On the other hand, that elite needed to manage
a wide one and diversified base of rural medium sections and poor population. The great
livestock was seated in a combination of slave work and forms of free work. The free
workers were not wandering men and without significant family bonds. They were
inserted in families of small producers in a reality where the productive resources were
still accessible. That reality was modifying along the studied period, but those
transformations were only radicalized in the second half of the century XIX.
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao Programa de Pós-Graduação em
História Social, da UFRJ, na pessoa de seus coordenadores, os professores Carlos Fico e
Manolo Florentino e da secretária Sandra. Mesmo quando a pesquisa exigiu que eu
estivesse a muitos quilômetros do Rio de Janeiro, as rotinas burocráticas sempre foram
resolvidas de maneira rápida e tranqüila.
Agradeço também à CAPES, que viabilizou este trabalho através de duas
bolsas de estudo. A primeira delas, bolsa de demanda social, que, por anos a fio, vem
mantendo viva a formação de novos pesquisadores no Brasil, permitiu que eu me
dedicasse integralmente à pesquisa. A segunda, bolsa PDEE, que me permitiu realizar
um proveitoso estágio doutoral na Ecóle des Hautes Etudes en Sciences Sociales
(EHESS).
Ao professor João Luis Fragoso por sua orientação segura e atenciosa, suas
leituras inspiradas e rigorosas, pelo exemplo de um historiador que alcançou a plena
maturidade de seu ofício, sem deixar de lado a gentileza e a generosidade que o
caractrerizam.
Ao professor Juan Carlos Garavaglia, que aceitou me receber para um
estágio doutoral na EHESS e empenhou-se em facilitar minha estada em Paris. Seu
curso sobre formação do Estado a partir das realidades locais, na América Latina do
século XIX, ajudou-me a perceber a região a que me dedicava dentro de uma
perspectiva latino-americana.
Na UFF, ao Prof. Carlos Gabriel Guimarães, por seu excelente curso sobre
modelos de explicação da economia colonial. Na UFRJ, ao professor José Augusto
Pádua, pelos novos caminhos apontados por seu curso sobre história ambiental.
À Profa. Helen Osório que comentou com muito conhecimento e precisão
algumas partes desta tese, debateu idéias, cedeu generosamente muita bibliografia e tem
sido uma estimuladora constante. Aos professores César Guazzelli, Roberto Schmitt,
Regina Xavier, Marcos Gerhart, Paulo Zarth e Renato Leite Marcondes que, em
diferentes oportunidades, comentaram partes específicas deste trabalho, apresentadas
em congressos acadêmicos. A Graciela Garcia que me cedeu, gentilmente, seu arquivo
de Registros Paroquiais de Terras de Alegrete e auxiliou-me com a construção do banco
de dados. Maximiliano Mac Mez foi um leitor sagaz e interlocutor valioso, aportando as
opiniões de alguém que tem uma visão diversa sobre o mesmo objeto, mas respeita e
incentiva o debate entre opiniões diferentes.
Aos colegas do Grupo de Pesquisa em História Econômica da UFRJ: Tiago
Gil, Martha Hameister, Maria Fernanda Martins, Luciana Batista, Cuca Machado,
Carlos Matias, Rodrigo Amaral, Heitor Moura e nossa saudosa Célia Muniz. Pela leitura
atenta de meus textos, por seus comentários agudos e pelos chops e boas histórias
depois das reuniões de trabalho.
Alguns amigos historiadores prestaram inestimável e desinteressado auxílio
para este trabalho. Eles me provaram que um cabedal de relações sociais continua sendo
muito importante mesmo no século XXI. Quando os prazos pareciam me sufocar, Ana
Paula Flores meteu-se no arquivo por duas semanas e terminou o levantamento de parte
da documentação empregada aqui. Elaine Sodré me enviou grande quantidade de fontes,
sem que recebesse outras em troca. Alexandre Karsburg e Maíra Vendrame fizeram
leituras minuciosas do trabalho, quando já haviam terminado suas dissertações e podiam
descansar no verão abrasador de Porto Alegre. A eles agradeço também pelas conversas
historiográficas e outras nem tanto, nas noites de domingo. Paulo Moreira e Daniela
Vallandro enviavam fontes preciosas sempre que as encontravam e consideravam que
me podiam ser úteis, como de fato foram. É bom estar com o Paulo e a Dani para falar
de história, porque são apaixonados, e para falar da vida, porque sabem rir de tudo.
Gláucia Lima, historiadora e vizinha, além de me socorrer com bibliografias, também
“reparou” a nossa casa enquanto estivemos na França.
Martha Hameister indicou bibliografias importantes e foi uma amiga sempre
disponível e inteligente. Tiago Luis Gil cedeu fontes, foi companheiro de arquivo e de
debates historiográficos. Mariana Thompson Flores emprestou-me seu catálogo de
processos criminais e ações ordinárias de Alegrete. Além disso, debateu comigo
questões sobre a fronteira meridional, aportando contribuições que foram incorporadas
nesta tese, espero que fazendo jus a nossos debates. Jonas Vargas socorreu-me com as
informações genealógicas das famílias da elite sul-riograndense, foi companheiro de
debate, de viagem à fronteira, do Beira-Rio em domingos de sol e noites de chuva. José
Iran Ribeiro leu e comentou o capítulo sobre comandantes militares, emprestou-me
muito material, esteve sempre disponível para longas conversas sobre o século XIX,
regadas a mate e som de ponteado de violão.
Aos funcionários dos Arquivos Público e Histórico do Rio Grande do Sul,
onde passei boa parte deste período de doutorado, especialmente Denis, Luciméa,
Juslaine e Jorge porque nunca pouparam esforços em facilitar a vida dos historiadores
que buscam aqueles espaços. Em Alegrete, aos pesquisadores Danilo dos Santos, Flávio
Poitevim, Homero Dornelles e Demétrio Alves Leite, pela conservação das fontes
municipais e pela generosidade com que cederam informações vindas de suas próprias
pesquisas.
Aos amigos de toda hora Rodrigo, Ana, Alex, Lê, Carlinha e Aninha, porque
suas presenças e nossas conversas compuseram um pouco desta tese, e brotam em tudo
que eu faço. À Silvana, ao Luis e agora também à Luisa que, com amizade e
generosidade sem tamanho, nos receberam reiteradas vezes nos últimos anos em nossas
estadas no Rio. Aos amigos “cariocas” Dilma, Tetê, Cris e André, por tornarem nossa
vida no Rio mais divertida. Ao primo Paulo de Tarso pelos “churrascos de gaúcho” na
sua casa: um ar de família é sempre bom quando a gente está “longe do pago”. À
Débora, Fernando e Felipe pelo companheirismo sempre que a corrida nos permite. À
Bia, ao Iran e ao Tiago, compadres e afilhado, amigos inestimáveis, historiadores de
mão cheia. Pelo suporte emocional, intelectual e material que forneceram ao longo de
todo esse período. Vocês sabem o quanto foram importantes nessa trajetória.
À Eloiza, Luís Antônio, Tuta, Raquel, Vô Juvenal, Vó Maria, Elza,
Aldrovando, Vó Mocinha, Anie, Gustavo, Ângelo e Fernanda. Amada família, por
suportarem os longos períodos de ausência e por formarem uma base sólida de apoio e
uma fonte inesgotável de afetividade.
À Nikelen, entre muitas outras coisas: por estudar minha pesquisa e
hipóteses e dar sugestões melhores que as minhas, por correr mundo comigo, por me
mostrar o tamanho que as coisas realmente têm, por não me deixar trabalhar demais. Por
sorrir sempre, especialmente de manhã. Por estar sempre do meu lado, mesmo quando
estar do meu lado não é fácil. Eu já disse pra ela, se nós vivêssemos no século XIX e
fôssemos escravos, eu roubava ela; se fôssemos ricos, eu dava uma boiada, ou a
roubaria também... Este trabalho, como tudo que eu faço nesta vida, também é um
pouco pra ti, minha linda.
Para o Vô Juvenal,
que é menino de alma leve, voando sobre o pelego.
Para a Vó Maria, e sua cozinha mágica.
“Uma cidade, um campo, de longe, são uma cidade e um
campo, mas à medida que nos aproximamos são casas, árvores,
telhas, folhas, capins, formigas, pernas de formigas, até o
infinito. Tudo isso está envolto no nome campo.”
Blaise Pascal, Pensées. Citado por Bernard Lepetit
SUMÁRIO
LISTA DE ABREVIATURAS................................................................................. 13
LISTA DE QUADROS............................................................................................. 14
LISTA DE TABELAS.............................................................................................. 15
LISTA DE GRÁFICOS............................................................................................ 17
LISTA DE FIGURAS............................................................................................... 18
LISTA DE DIAGRAMAS........................................................................................ 19
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 20
PARTE I - FAMÍLIAS DE ELITE E ESTRUTURA AGRÁRIA ........................... 41
Capítulo 1 - Ricaços de Campo e Gado .................................................................. 42
1.1 - As muitas e dilatadas campanhas................................................................... 44
1.2 - Desigualdade econômica em Alegrete........................................................... 49
1.3 - Abastados Senhores ....................................................................................... 52
1.4 - “Era no tempo nas revoluções” I.................................................................... 61
1.5 - “Era no tempo nas revoluções” II .................................................................. 70
1.6 - Manejar a Fronteira........................................................................................ 78
Capítulo 2 - “Sem cercas nem tapumes”................................................................ 88
2.1 - Os grandes estancieiros e além....................................................................... 89
2.2 - “Sem respeitar fé nem tratados”..................................................................... 99
2.3 - Registros Paroquiais e formas de ocupação das terras................................. 106
2.4 - Itinerários patrimoniais ................................................................................ 111
2.5 - Compras, doações, posses: de todo jeito que for possível ........................... 122
Capítulo 3 - Produção agrária em Alegrete ......................................................... 125
3.1 - As receitas das estâncias .............................................................................. 125
3.2 - Um mundo de gado: produção pecuária nos inventários post mortem ........ 133
3.3 - Potros, mulas, couros e roças....................................................................... 139
3.4 - Vendas e ganhos........................................................................................... 152
3.5 - As despesas dos estancieiros........................................................................ 160
PARTE II – TRAJETÓRIAS E ESTRATÉGIAS FAMILIARES DA ELITE
AGRÁRIA................................................................................................................... 165
Capítulo 4 - “Será sempre o Rio Grande um teatro de guerra...” ..................... 166
4.1 - Elite agrária e altos postos militares............................................................. 168
4.2 - “Para assim os influir à defesa do território”: os comandantes militares e os
recrutamentos ....................................................................................................... 169
4.3 - As transformações no poder dos comandantes militares ............................. 181
4.4 - O devassador das coxilhas ........................................................................... 188
4.5 - O Temível Barão e o Cavaleiro Inexistente................................................. 193
4.6 - Disfarces, confiscos e privilégios................................................................. 196
4.7 - Mobilidade social e reprodução da desigualdade em tempos de guerra...... 201
Capítulo 5 - A Teia dos Casamentos..................................................................... 204
5.1 - Muitos parentes............................................................................................ 206
5.2 - Sobre o patriarcalismo.................................................................................. 211
5.3 - Os segredos da salamanca: os Ribeiro de Almeida...................................... 218
5.4 - Os múltiplos de gado, espadas e patacões.................................................... 231
5.5 - Ligando os Pontos........................................................................................ 239
Capítulo 6 - Antecipações de Herança e Práticas Sucessórias da Elite
Agrária................................................................................................................. 243
6.1 - Para começar a vida: as antecipações de herança ........................................ 245
6.2 - Para o proveito de todos............................................................................... 252
6.3 - Sucessões hereditárias.................................................................................. 257
6.4 - Os senhores de Japejú .................................................................................. 264
6.5 - Sucessão entre os Carvalho.......................................................................... 274
6.6 - Recursos compartilhados ............................................................................. 279
6.7 - Estratégias sociais da elite agrária................................................................ 287
PARTE III – PEÕES, ESCRAVOS E PRODUÇÃO FAMILIAR......................... 289
Capítulo 7 - As mãos e os pés dos estancieiros..................................................... 290
7.1 - Vastos campos, muitos trabalhos: técnicas e tarefas na pecuária ................ 290
7.2 - Homens, mulheres, crianças, crioulos e africanos ....................................... 297
7.3 - Muitos e variados ofícios ............................................................................. 301
7.4 - A gente do serviço........................................................................................ 307
7.5 - “E veio gente para assistir à marcação”....................................................... 313
7.6 - Acesso ao trabalho livre e cativo.................................................................. 316
7.7 - Com escravos e com peões........................................................................... 323
7.8 - Dinheiro, tecidos, erva, fumo e cachaça....................................................... 329
Capítulo 8 - “Há gente de todo tipo”..................................................................... 336
8.1 - O castelhano Reis, o negro Joaquim e o índio Maneco: um perfil social dos
peões livres........................................................................................................... 339
8.2 - Vive de ser criador, vive de seu trabalho, vive de ser carpinteiro................ 346
8.3 - Peões e estratégias familiares....................................................................... 353
8.4 - Do que se trata quando se fala em produção familiar? ................................ 360
8.5 - Arranchados nas terras de outros ................................................................. 367
8.6 - O “vaqueano do Quaraí” e o preto “roubador” de escravos......................... 377
CONCLUSÃO............................................................................................................. 394
BIBLIOGRAFIA E FONTES ................................................................................... 403
LISTA DE ABREVIATURAS
APRS – Arquivo Público do Rio Grande do Sul
AHRS – Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
AAHRS – Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
AN – Arquivo Nacional
BN – Biblioteca Nacional
LISTA DE QUADROS
Quadro 5.1 - Freqüência das práticas estratégias nas famílias da elite agrária
(Alegrete, 1825-1865)............................................................................................... 223
Quadro 6.1 - Filhos de Manoel José de Carvalho (?-1856) e Custódia Maria
de Carvalho ( ? – 1847) ............................................................................................ 265
Quadro 7.1 - Trabalhadores da Estância da Palma (Alegrete, 1851-1854).................. 308
Quadro 7.2 - Trabalhadores da Estância de Dona Ana Guterres (Alegrete,
1856-1857)................................................................................................................ 314
Quadro 8.1 - Categorias ocupacionais das testemunhas de processos
criminais (Alegrete, 1845-1865)............................................................................... 347
LISTA DE TABELAS
Tabela 1.1 - População de Alegrete segundo o sexo, 1859............................................ 45
Tabela 1.2 - População de Alegrete segundo sua condição jurídica, 1859 .................... 45
Tabela 1.3 - Participação dos bens econômicos nos inventários post mortem
(Alegrete, 1831-1870)................................................................................................. 48
Tabela 1.4 - Monte bruto médio nos inventários post mortem de Alegrete
(1831-1870) ................................................................................................................ 49
Tabela 1.5 - Concentração de Riqueza em Alegrete (1831-1870) ................................ 50
Tabela 1.6 - Composição das fortunas superiores a £ 10.000,00 (Alegrete,
1831-1870).................................................................................................................. 54
Tabela 2.1 - Distribuição do rebanho bovino entre os produtores (Alegrete,
1831-1870).................................................................................................................. 89
Tabela 2.2 - Criadores de gado com mais de 5.000 reses (Alegrete, 1831-
1860)........................................................................................................................... 93
Tabela 2.3 - Produtores com Terras (Alegrete, 1831-1870)........................................... 94
Tabela 3.1 - Receitas de Estâncias da Campanha (1847-1858).................................... 127
Tabela 3.2 - Participação dos tipos de animais no rebanho total (Alegrete,
1831-1870)................................................................................................................ 133
Tabela 3.3 - Freqüência de equipamentos e instrumentos agrícolas nos
inventários post mortem (Alegrete, 1831-1870)....................................................... 148
Tabela 3.4 - Vendas de gado efetuadas na Estância da Palma (Alegrete,
1851-1854)................................................................................................................ 153
Tabela 3.5 - “Receita x Despesa” na Estância da Palma (Alegrete, 1852-
1854)......................................................................................................................... 155
Tabela 3.6 - Despesas da Estância da Palma (Alegrete, 1851-1854)........................... 162
Tabela 3.7 - Despesa com mão-de-obra na Estância da Palma (Alegrete,
1851-1854)................................................................................................................ 162
Tabela 6.1 - Freqüência de bens nas antecipações de herança (Alegrete,
1831-1870)................................................................................................................ 249
Tabela 6.2 - Posição de filhos e genros nas transações de compra-e-venda de
bens herdados (Alegrete, 1831-1870)....................................................................... 263
Tabela 7.1 - Proporção de reses mansas nos rebanhos de diferentes
dimensões (Alegrete, 1831-1870)............................................................................. 295
Tabela 7.2 - Escravos com Ocupações Declaradas (Alegrete, 1831-1850).................. 303
Tabela 7.3 - Escravos Campeiros – Origem (Alegrete, 1831-1850)............................ 306
Tabela 7.4 - Percentuais de criadores de gado que possuíam escravos
(Alegrete, 1831-1870)............................................................................................... 317
Tabela 7.5 - Salários de peões livres e preço dos escravos jovens, em
relação aos novilhos (Alegrete, 1832-1870)............................................................. 320
Tabela 7.6 - Estâncias e trabalhadores da pecuária em quatro municípios
(Rio Grande do Sul, 1858)........................................................................................ 321
Tabela 7.7 - Percentuais dos produtos no pagamento em mercadorias nos
salários dos peões (Estâncias de “Japejú” e “A Oriental”, 1842-1845).................... 334
Tabela 8.1 - Distribuição das testemunhas de processos criminais por
períodos (Alegrete, 1845-1865)................................................................................ 341
Tabela 8.2`- Testemunhas em processos criminais – profissões (Alegrete,
1845-1865)................................................................................................................ 346
Tabela 8.3 - Testemunhas em processos criminais -relação entre profissão e
local de nascimento (Alegrete, 1845-1865).............................................................. 348
Tabela 8.4 - Testemunhas em processos criminais - relação entre profissão,
estado civil e média de idade (Alegrete, 1845-1865) ............................................... 349
Tabela 8.5 - Testemunhas em processos criminais - relação entre profissão e
cor da pele (Alegrete, 1845-1865)............................................................................ 350
Tabela 8.6 - Presença de escravos nos inventários Segundo a idade do
primeiro filho (Alegrete, 1831-1870) ....................................................................... 363
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 2.A - Concentração dos rebanhos (Alegrete, 1831-1870)................................ 92
Gráfico 2.B - Composição do patrimônio produtivo - Inventários post
mortem (Alegrete, 1831-1870) ................................................................................... 96
Gráfico 3.A - Número médio de reses por inventário (Alegrete, 1831-1870).............. 135
Gráfico 3.B - Freqüência dos rebanhos nos inventários da amostra
(Alegrete, 1831-1870)............................................................................................... 140
Gráfico 7.A - Percentuais de africanos nas escravarias de criadores de gado
(Alegrete, 1831-1870)............................................................................................... 317
Gráfico 7.B - Percentuais de crianças escravas de criadores de gado
(Alegrete, 1831-1870)............................................................................................... 318
Gráfico 7.C - Percentuais de masculinidade nas escravarias de criadores de
gado (Alegrete, 1831-1870)...................................................................................... 318
Gráfico 7.D - Percentuais dos meios de pagamento nos salários dos peões
(Estâncias de “Japejú” e “A Oriental”, 1842-1845) ................................................. 331
Gráfico 7.E - Meios de pagamento dos peões em relação ao tempo de
permanência na estância (Estâncias de “Japejú” e “A Oriental”, 1842-
1845)......................................................................................................................... 335
Gráfico 8.A - Cor da pele e estado civil dos peões em relação ao total de
testemunhas de processos criminais (Alegrete, 1845-1865)..................................... 342
Gráfico 8.B - Naturalidade dos peões em relação ao total de testemunhas de
processos criminais (Alegrete, 1845-1865).............................................................. 345
Gráfico 8.C - Características das escravarias em relação à idade do primeiro
filho Senhores com até 500 reses (Alegrete, 1831-1870)......................................... 364
Gráfico 8.D - Características das escravarias em relação à idade do primeiro
filho Senhores com mais de 2.000 reses (Alegrete, 1831-1870).............................. 365
Gráfico 8.E - Características das escravarias em relação à idade do primeiro
filho Senhores com 501 a 2.000 reses (Alegrete, 1831-1870).................................. 365
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Mapa mostrando o Rio Grande do sul e Uruguai.......................................... 62
Figura 2 - Mapa dos Municípios do RS, por volta de 1850. .......................................... 70
LISTA DE DIAGRAMAS
Diagrama 1 - Família Ribeiro de Almeida - Casamentos e principal
atividade profissional................................................................................................ 221
Diagrama 2 - Família Carvalho - Casamentos e principal atividade
profissional ............................................................................................................... 235
20
INTRODUÇÃO
No outono de 1851, o luto desceu sobre a Estância da Palma. A senhora dona
Febrônia Cândida morrera deixando seis filhos varões e três filhas mulheres, uma delas
ainda por casar. Seu viúvo, o Brigadeiro Olivério José Ortiz, encomendou missas em
favor de sua alma em quatro paróquias da província de São Pedro do Rio Grande do
Sul. O casal residia no município de Alegrete, possuía duas estâncias no Brasil e uma no
Uruguai, e eram donos de milhares de cabeças de gado. O Brigadeiro era um veterano
das guerras Cisplatinas e Farroupilha e, como muitos, migrara do leste da província para
a conturbada região de fronteira, na primeira metade do século XIX. Seu perfil se
encaixa facilmente no estereótipo dos grandes estancieiros do Brasil Meridional.
Embora a imagem da sociedade sulina do Oitocentos esteja fortemente associada aos
membros dessa elite agrária, a verdade é que não existe nenhum trabalho de história
econômica e social que os tome como objeto específico de análise. Esse é um daqueles
temas em que um largo consenso está combinado com pouca pesquisa. Será mesmo que
basta dizer que se tratavam de abastados terratenentes, caudilhos poderosos e
empresários arcaicos? Será que todos os membros da elite agrária correspondiam a essa
descrição? Como esses elementos se apresentavam e se articulavam, no contexto
concreto daquela realidade sócio-econômica? Creio que um estudo mais detido sobre
esse grupo possa ampliar a compreensão sobre seus integrantes e também sobre a
sociedade de que faziam parte.
Nesse sentido, esta tese dedica-se ao estudo da elite agrária da Fronteira
Meridional do Império, no período da chamada “pecuária tradicional”, entre 1825 e
1865, e sua relação com aquela sociedade. Escolhi centrar o foco do estudo em
Alegrete, o principal município da “Campanha”, a mais importante região pecuária da
província do Rio Grande do Sul.
1
Os dados resultantes de um censo agrário, realizado
1
O termo “Campanha”, como designação de uma área específica do território rio-grandense, vem sendo
empregado de forma variada. O mais comum, porém, tem sido chamar assim a região sudoeste do Rio
Grande do Sul, junto à fronteira do Brasil com o Uruguai, em uma faixa que, partindo do limite nacional,
alarga-se para o norte até encontrar o rio Ibicuí, no centro do território da província (ver Mapas 01 e 02,
no capítulo “1”). Na primeira metade do século XIX, englobava a área dos municípios de Alegrete, Bagé,
21
em 1858, dão clara medida dessa situação: dentre os municípios da província que
detinham os maiores rebanhos, os dois principais localizavam-se naquela região. O
primeiro era Alegrete, com 772.232 cabeças de gado vacum contra 531.640 cabeças em
Bagé, que vinha a seguir.
2
No início do século XIX, uma onda populacional vinda do Rio Grande de
São Pedro inundou as terras que lhe faziam fronteira a oeste, e que eram disputadas com
o Império Colonial Espanhol. Esse movimento de apropriação de terras e animais, de
colonização estável e de violenta conquista militar permitiu a expansão da economia
baseada na pecuária extensiva e o desafogo da sociedade das áreas antigas, através da
incorporação de uma nova fronteira. Ali, foi se estruturando uma sociedade muito mais
complexa do que costumam admitir algumas “idéias-força” da historiografia. A
produção pecuária vicejou, aproveitando os estímulos mercantis para a produção bovina
e de carne salgada, fornecidos pelas economias de agro-exportação de outras regiões do
Brasil. Apesar do indiscutível protagonismo dos grandes estancieiros, eles não eram os
únicos a desempenharem essa atividade. Uma larga base de pequenos e médios
produtores, com ou sem a posse jurídica da terra, encontravam, também, seu espaço. À
exemplo de muitas outras regiões do Brasil, também ali a escravidão teve um papel
estrutural e uma hierarquia fortemente desigual se reproduziu, mesmo com as mudanças
que foram acontecendo ao longo do Oitocentos. Além disso, todo aquele mundo estava
marcado pelo signo da guerra e da fronteira. Mais do que influências momentâneas, a
insegurança trazida pelas instáveis conjunturas de fronteira e a sombra da guerra, latente
ou efetiva, condicionavam as escolhas dos sujeitos e a direção do processo histórico.
Os dois primeiros terços do século XIX consistem na época, por excelência,
da pecuária “a campo aberto”, que marcou de forma decisiva a realidade sócio-
econômica da província. Um estudo dos primeiros 25 anos do século XIX exigiria uma
análise muito específica porque envolve a fase de conquista e ocupação do território,
com uma grande importância das formas não mercantis de acumulação. Tratar desse
período implicaria em investigar problemas específicos, com uma série de documentos
extremamente diferentes dos que serão empregados aqui. No entanto, é certo que farei
Uruguaiana e São Gabriel. É assim que utilizo o termo nesta tese.
Emprego, no mesmo sentido, o termo
“Fronteira”, com “F” maiúsculo, pois ele era o mais usado pelos contemporâneos para designar aquelas
regiões no século XIX. Quando uso a expressão “Fronteira Meridional do Império”, também é a esse
mesmo espaço que estou me referindo.
Uma síntese das diversas configurações da área da Campanha,
segundo critérios diferenciados, encontra-se em: COSTA, Rogério Haesbaert. Latifúndio e Identidade
Regional, 1988.
2
“Mapa numérico das estâncias existentes dos diferentes municípios da província, de que até agora se
tem conhecimento oficial, com declaração dos animais que possuem e criam, por ano, e do número de
pessoas empregadas no seu custeio”. Estatísticas, m. 02, 1858. AHRS.
22
referências seguidas a esse período, com o fim de instrumentalizar a pesquisa do recorte
temporal ora em análise. Assim, centro o foco do estudo a partir de 1825, quando
estourou a Guerra da Cisplatina e se encaminhou o processo de independência do
Uruguai, que fez diminuir as formas “não-mercantis” de apropriação de recursos e
ensejou que a economia baseada no gado passasse a ser, cada vez, mais uma produção
dependente da criação sistemática nas estâncias da Campanha. É também o período
sobre o qual restou um número mais regular de documentos, já que o município de
Alegrete somente seria instalado em 1831.
A pesquisa se detém em 1865, quando começaram a se radicalizar várias
mudanças que dariam nova face ao mundo agrário da Fronteira Meridional. Os
processos de valorização fundiária e de aplicação da Lei de Terras estavam, então, em
plena força. A crise do trabalho escravo, que já se iniciara com o encarecimento dos
cativos em razão do final do tráfico atlântico, em 1850, ganharia um forte influxo com a
Lei do Ventre Livre, em 1871. A Guerra do Paraguai (1865-1870) traria novas formas
de organização militar, com a ampliação do processo de profissionalização do exército.
Essas transformações se aprofundaram nas décadas finais do século, com a chegada da
ferrovia, a difusão do cercamento dos campos e a introdução de novas raças bovinas.
Esse novo contexto marcaria a transformação modernizante do universo social
construído em torno da pecuária e consiste em um tema próprio de pesquisa, impossível
de tratar com a devida profundidade nesta tese.
Contudo, é preciso notar que essas modificações não surgiram
abruptamente: elas eram o desdobramento de um conjunto de transformações que
vinham se desenrolando desde antes e isso sim é material de análise, aqui. Em termos
gerais, era um movimento que tinha três linhas de influência: a) a reiteração de um
sistema de produção extensiva sobre uma fronteira agrária que ia se fechando; b) a
conturbada instalação de um limite nacional entre Brasil e Uruguai; c) processos não-
lineares ocorridos lentamente, em todo o Império, rumo à dificuldade de acesso à mão-
de-obra escrava, à constituição de mercados de trabalho e de terras com traços mais
nitidamente capitalistas, à centralização administrativa e à constituição de um exército
profissional. A maioria dessas mudanças não se completou efetivamente dentro do
período trabalhado aqui. Sua culminância ocorreu depois da década de 1870, quando se
deu o processo de transformação modernizante que descrevi acima. No entanto, a
existência dessas transformações ajudava a compor o ambiente onde os sujeitos
estudados precisavam sobreviver e serão consideradas aqui.
23
No que se refere à demarcação espacial desta pesquisa, como já foi dito, o
foco do trabalho recai sobre Alegrete, o maior e mais importante município pecuário da
Campanha. Naturalmente, não estou imaginando Alegrete como uma sociedade fechada,
que se explica em si mesma. Os próprios documentos não o permitem. A elite agrária ali
residente possuía bens e relações sociais fora do município, os grupos subalternos eram
dotados de alta mobilidade espacial, como de resto ocorria em todo o Brasil daquela
época. Porém, há dois motivos que autorizam a tomar um município como a base
espacial do estudo. O primeiro é de ordem propriamente analítica: por mais que seus
horizontes espaciais fossem largos, o município de Alegrete, sediado no pequeno núcleo
urbano, era uma referência importante para o que residiam em seu território. O segundo
é de caráter metodológico: a escolha de privilegiar os residentes em um único município
permite realizar o cruzamento de fontes e viabilizar a combinação do estudo do contexto
agrário e da investigação de trajetórias familiares. Assim, o estudo parte de Alegrete e
tem nele uma referência geral, mas procurei não fechar os olhos quando os sujeitos
estudados abandonavam as imprecisas fronteiras do município e iam cuidar de seus
interesses no Uruguai, visitar parentes no município vizinho ou buscar trabalho eventual
em estâncias distantes.
***
A inspiração para esta tese nasceu do contato com dois conjuntos de obras
sobre história agrária, um no Brasil, outro na Argentina. Durante muito tempo, a história
econômica e social do Brasil colonial e do século XIX esteve assentada sobre uma visão
que enfatizava o que Caio Prado Júnior definiu classicamente como o “sentido da
colonização”. Em termos gerais, essa visão propunha que a dinâmica histórica do Brasil
naqueles quatro séculos haveria sido marcada, de forma profundamente determinante,
pelos interesses metropolitanos. Nem mesmo o fim do “pacto colonial” e a
Independência teriam conseguido dirimir essa orientação vinda “de fora”, em um país
que nascia assentado na agro-exportação. A contrapartida interna desse processo era
uma economia que cabia quase toda nos limites da plantation escravista e uma
sociedade formada pela divisão grandes senhores x escravos. As produções para o
mercado interno foram vistas como residuais e dependentes das pulsações do comércio
exterior.
3
Na década de 1970, essas idéias foram questionadas por obras que tinham, em
3
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo, 26ª ed., 1986. As idéias apresentadas no
clássico estudo de Caio Prado Júnior, foram retomadas e desenvolvidas em FURTADO, Celso. Formação
Econômica do Brasil, 15ª ed. 1977. Na mesma linha e incorporando idéias da teoria da dependência
NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808), 1983. Registre-
se que, embora haja claros pontos de discordância nesta tese com relação ao enfoque dado por Caio Prado
Júnior à economia colonial brasileira e, em especial, aos universos fora da grande lavoura, seu capítulo
24
comum, a proposta de que os condicionantes internos à sociedade colonial eram uma
variável de grande importância na equação que permitia entender a história brasileira do
período. Ainda que divergissem em muitos pontos, esses estudos encontraram tais
fatores na organização produtiva da própria colônia, assentada sobre o trabalho escravo,
que algumas delas propunham conformar um “modo de produção escravista colonial”.
4
A partir desse fecundo debate, as décadas de 1980 e 90 viram surgir um
expressivo número de trabalhos com recortes regionalizados, empregando uma
metodologia serial e assentados sobre vasta gama de fontes primárias manuscritas.
Essas obras eram inspiradas da história regional francesa, expressa na obra de
historiadores como Ernest Labrousse, Pierre Goubert e Emmanuel Le Roy Ladurie.
5
Tais trabalhos demonstraram, entre outros aspectos, o vigor das produções destinadas ao
mercado interno, a disseminação da escravidão muito além da produção para a
exportação, a existência de uma poderosa elite de comerciantes “de grosso trato” no Rio
de Janeiro em uma época “colonial tardia”, a diversidade dos grupos sociais existentes
fora das plantations, a reiteração de uma hierarquia social excludente em contextos
históricos diversos.
6
sobre pecuária, na obra citada acima, constitui um dos mais inspiradores e bem escritos ensaios sobre o
tema já elaborados até hoje.
4
GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial, 1978. CARDOSO, Ciro Flamarion. Agricultura,
escravidão e capitalismo, 1979. _____. As Concepções Acerca do Sistema Econômico Mundial: a
preocupação excessiva com a extração do excedente, 1980. CASTRO, Antônio Barros de. A Economia
política, o escravismo e a escravidão, 1980. Neste último texto, Antônio Barros de Castro contrapõe-se
frontalmente à idéia de Gorender sobre a existência de um “modo de produção escravista colonial”.
Porém, enfatiza a necessidade de se procurar entender a realidade colonial a partir da sociedade formada
na colônia e de sua própria lógica de reprodução.
5
Referências metodológicas gerais sobre a história serial podem ser encontradas em: SOBOUL, Albert.
Descrição e Medida em História Social, 1973. DAUMARD. Adeline. Hierarquia e riqueza na sociedade
burguesa. Algumas obras centrais da historiografia francesa de base agrária e regional referida são:
BLOCH, Marc. Les caracteres criginaux de l’histoire rurale française, 1968. DUBY, Georges. Senhores
e Camponeses, 1992. GOUBERT, Pierre. Cent Mille Provinciaux aux XVII siècle – Bouvais et le
Bauvaisis entre 1600 et 1730, 1968. LABROUSSE, Ernest. Flutuaciones económicas y historia social,
1962. VILAR, Pierre. Desenvolvimento Econômico e Análise Histórica, 1982. LE ROY LADURIE,
Emmanuel. Les Paysans de Languedoc, 1966. Uma Obra clássica de história agrária européia é: ABEL,
Wilhelm. Agricultural fluctuations in Europe – from the thirteenth to the twentieth centuries, 1980.
6
São exemplos da historiografia brasileira inspirada nos trabalhos da história regional francesa, entre
outros títulos: ALMEIDA, Carla. Alterações nas unidades de produções mineiras: Mariana, 1750-1850,
1994. CASTRO, Hebe Maria Mattos. Ao Sul da História: lavradores pobres na crise do trabalho
escravo, 1987. EISENBERG, Peter. Homens Esquecidos: escravos e trabalhadores livres no Brasil
(Séculos XVIII e XIX), 1989. FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento, 1998. FRAGOSO, João
L. Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro(1790-
1830), 2ª ed., 1998. FRAGOSO, João L.; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto, 1993.
FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África
e o Rio de Janeiro (século XVIII e XIX), 1995. FARIA, Sheila de C. A Colônia em Movimento: fortuna e
família no cotidiano colonial, 1998. GRAÇA FILHO, Affonso Alencastro, A Princesa do Oeste: elite
mercantil e economia de subsistência em São João Del Rei (1830-1888), 2002. LINHARES, Maria
Yedda. História do Abastecimento, uma problemática em questão (1530-1918), 1979. ____ & SILVA,
Francisco Carlos Teixeira da. História da Agricultura Brasileira. 1980. MARTINS, Roberto Borges.
Minas Gerais – século XIX: tráfico e apego à escravidão numa economia não-exportadora, 1983.
SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá. Na encruzilhada do Império: hierarquias sociais e conjunturas
25
Enfim, em termos gerais, pode-se dizer que ocorreu um franco
redimensionamento da importância do mercado interno, do papel das variadas
realidades regionais, produções, grupos e relações sociais para o entendimento da
realidade sócio-econômica brasileira. O Rio Grande do Sul, em meados do século XIX,
tinha na comercialização de produtos agro-pecuários (sobretudo o charque), para o
mercado interno brasileiro, o principal eixo de sua economia. Suas instituições
administrativas e políticas, além de uma série de práticas e relações sociais eram
semelhantes àquelas vigentes nas demais áreas que faziam parte do um vasto complexo
econômico integrado no centro-sul do Brasil.
7
Entre elas, estavam o trabalho escravo, a
estrutura hierarquizada da sociedade e o padrão de expansão territorial a partir da
reprodução de sistemas agrários extensivos em áreas de fronteira aberta.
Por outro lado, se o Rio Grande do Sul era o Brasil, tratava-se, mais
exatamente, do Brasil no Prata. Como bem perceberam os historiadores que têm se
dedicado ao estudo da história das regiões platinas, o Rio Grande do Sul estava
fortemente integrado ao vasto espaço fronteiriço conformado pelo território da atual
República do Uruguai e das províncias argentinas de Buenos Aires, Santa Fé, Entre
Rios e Corrientes.
8
Com essas regiões, compartilhava uma economia onde a pecuária
ocupava lugar de destaque; a disseminação de uma combinação de relações de trabalho
livres, escravas e familiares; o contexto de guerras recorrentes no século XIX; o
crescimento da atividade charqueadora (e a competitividade acarretada por ele); entre
outras características.
Os trabalhos de história agrária argentina, nas duas últimas décadas,
dedicados ao território do Vice-Reinado do Rio da Prata, mostraram que o mundo
“tardo-colonial” platino contemplava, ao lado dos grandes estancieiros, também
camponeses “pastores” e, sobretudo, “agricultores”. Essas famílias sobreviviam e
econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650- c.1750), 2003. SILVA, Francisco Carlos Teixeira da.
Camponeses e Criadores na Formação Social da Miséria: Porto da Folha no Sertão do São Francisco
(1820-1920), 1981. ____. A Morfologia da Escassez: crises de subsistência e política econômica no
Brasil colônia (Salvador e Rio de Janeiro, 1680-1790), 1990. Registre-se que, paralelamente, outros
importantes grupos de obras dedicaram-se a estudar a história do abastecimento e a demografia histórica
de diferentes regiões do Brasil no século XIX. São exemplos desses trabalhos: PETRONE, Maria Teresa
Schroeder. O Barão do Iguape, 1976. MARCÍLIO, Maria Luíza. Crescimento demográfico e evolução
agrária paulista, 1700-1836, 2000. BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os Senhores da Terra:
família e sistema sucessório entre os senhores de engenho do Oeste Paulista (1765-1855), 1997.
KUSNESOFF, Elizabeth Anne. Household Economy and urban development:1765-1836, 1986.
7
FRAGOSO, João. Homens de Grossa Aventura..., 1998, pp. 117-151.
8
Entre outros: LEITMAN, Spencer. Raízes socioeconômicas da Guerra dos Farrapos, 1979. OSÓRIO,
Helen. Apropriação da Terra no Rio Grande de São Pedro e a formação do espaço platino, 1990.
GUAZZELLI, César Augusto. O Horizonte da Província: a República Rio-grandense e os caudilhos do
Rio da Prata (1835-1845), 1998. BELL, Stephen. Campanha Gaúcha: a brazilian ranching sistem (1850-
1920), 1998. GARAVAGLIA, Juan Carlos; GELMAN, Jorge. Mucha tierra y poca gente: un nuevo
balance historiográfico de la historia rural platense (1750-1850), 1995.
26
reproduziam-se socialmente com êxito no Pampa, produzindo a partir de modalidades
diversas de posse da terra.
9
Sobre o período que se abre com as lutas de Independência e
vai até meados do século XIX, conhecido como a época áurea dos grandes latifúndios e
do poder político dos estancieiros, essa mesma historiografia identificou que os
pequenos produtores (então mais pastores do que agricultores) seguiram tendo um
papel nada desprezível naquela sociedade e que os grandes estancieiros do período
possuíam um patrimônio onde constavam, ao lado da pecuária, investimentos
diversificados como aluguéis de imóveis urbanos e atividades creditícias.
10
Assim, foi a
leitura dessas obras da história agrária “fluminense” e argentina, que me despertou uma
série de questões sobre a sociedade que se construiu na Fronteira Meridional, ao longo
do século XIX.
No Rio Grande do Sul, a partir do final da década de 1970, com a instalação
dos cursos de pós-graduação nas universidades gaúchas, a produção historiográfica
distanciou-se dos temas de história militar, administrativa e diplomática. Destaque-se,
antes disso, a obra de Fernando Henrique Cardoso que, estudando a atividade
charqueadora, colocou em novos termos a questão do trabalho escravo na província rio-
grandense (até então, visto como pouco importante) e erigiu-se em referência
obrigatória para as obras posteriores.
11
Surgiram vários trabalhos orientados para uma história que problematizava
temas econômicos e sociais. Essa historiografia preocupou-se com as principais formas
de integração da província às demais regiões do Império, centrando sua atenção nas
charqueadas e no processo da colonização com imigrantes alemães e italianos, onde
realizou avanços importantes.
12
Entretanto, pouca atenção foi dispensada ao estudo das
9
Nessa produção argentina, há uma clara inspiração da historiografia mexicana sobre a “hacienda
colonial”. Sobretudo, há uma inspiração na contestação à visão de que a simples propriedade de vastos
latifúndios conferiria, por si só, poder a uma “elite terratenente” e que esta teria características feudais.
Para uma avaliação da historiografia mexicana sobre “haciendas”, ver: VAN YOUNG, Eric. Mexican
Rural History Since Chevalier: the historiography of the colonial hacienda, 1983.
10
Entre outros: GARAVAGLIA, Juan C. “Três estancias del sur bonaerense en un período de ‘transición’
(1790-1834), 1995, p. 79-123. _____ . “Las “estancias” en la campaña de Buenos Aires. Los medios de
producción (1750-1815)”, 1993. _____ . Pastores y Labradores de Buenos Aires: una historia agraria de
la campaña bonaerense (1700-1830), 1999. GELMAN, Jorge. Campesinos y estancieros. Una región del
Rio de la Plata a fines de la época colonial, 1998. _____ . Las Condiciones del Crescimiento Estanciero
en Buenos Aires de la primera mitad del siglo XIX. Trabajo, salarios y conflitos en las estancias de
Rosas., 2000. BARSKY, Osvaldo; GELMAN, Jorge. Historia del Agro Argentino: desde la conquista
hasta fines del siglo XX, 2001.
11
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional, 1962.
12
Entre outros: CESAR, Guilhermino. Ocupação e diferenciação do espaço, 1979. SILVA, Elmar
Manique, 1979. DACANAL, José Hildbrando e GONZAGA, Sérgius. RS: Imigração e Colonização,
1980. PESAVENTO, Sandra. A Burguesia Gaúcha, dominação do capital e disciplina do trabalho. RS
1889-1930, 1988. CORSETTI. Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX,
1983.(dissertação de mestrado). LEITMAN, Spencer. Raízes sócio-econômicas da Guerra dos Farrapos,
27
áreas tradicionais da produção pecuária. Sobre estes últimos locais, ainda que tenham
combatido o mito da “democracia” e da “igualdade” entre estancieiros e peões,
consolidada pelos trabalhos históricos anteriores, as novas obras acabaram por repetir os
chavões consagrados que viam nos campos apenas grandes criadores de gado, donos de
rebanhos de bovinos que se contavam aos milhares, produzindo exclusivamente com
mão-de-obra de peões livres. Concordou-se que os escravos negros, se eram
empregados nas estâncias,
provavelmente estavam ligados a outras atividades ali
desenvolvidas que não o cuidado da criação, que seria incompatível com a escravidão.
Os trabalhos que começaram a surgir em fins da década de 1980,
tematizando as áreas de produção pecuária no Rio Grande do Sul, empregaram, pela
primeira vez, uma gama variada de fontes primárias. Inventários post mortem, registros
paroquiais de terra, processos judiciais, correspondências de câmaras municipais e
outras fontes manuscritas passaram a ser utilizadas para o estudo do mundo da pecuária,
ao lado dos tradicionais relatos de viajantes, então revistos sob novo prisma. Uma
influência da história regional francesa dos anos 1950 e 60 e da história agrária
praticada no sudeste brasileiro na década de 1980 transparecia na delimitação das
problemáticas, na escolha das fontes e no emprego de uma metodologia livremente
inspirada na história serial.
Surgiram estudos regionalizados que contribuíram para
matizar a antiga imagem de um agro rigidamente dicotomizado entre o latifúndio
pastoril de vastíssimas proporções e a pequena produção das zonas coloniais
imigrantres.
Os trabalhos pioneiros de Paulo Afonso Zarth trouxeram avanços,
principalmente, no estudo da região do Planalto, no norte do Rio Grande do Sul, ao
longo da segunda metade do século XIX.
13
Demonstraram, pela primeira vez, a
existência de um número significativo de lavradores nacionais, produtores de alimentos
que, no caso do Planalto Gaúcho, eram também extrativistas de erva-mate. Propuseram
a importância do predomínio de campos ou de florestas na cobertura vegetal do
território, como fator de influência na dinâmica de apropriação das terras do Rio Grande
do Sul e nas atividades produtivas que ali se desenvolveram (criação nos campos;
lavoura de alimentos nas zonas florestais). Demonstraram a existência de escravos
campeiros ao lado de roceiros e domésticos nos estabelecimentos rurais do Rio Grande
1979. MAESTRI Fº. M., O Escravo no rio Grande do Sul. A Charqueada e a Gênese do Escravismo
Gaúcho, 1984. CUNHA, Jorge Luiz, Os colonos alemães e a fumicultura, 1991.
13
ZARTH, Paulo Afonso. História Agrária do Planalto Gaúcho (1850-1920), 1997 (a dissertação de
mestrado que deu origem ao livro foi defendida na Universidade Federal Fluminense em 1987). ____ . Do
Arcaico ao Moderno – as transformações no Rio Grande do Sul rural no século XIX, 1994.
28
do Sul no século XIX.
14
Por fim, reavaliaram a instalação das colônias imigrantes em
áreas que, como fica bem demonstrado, não estavam vazias à espera dos braços
“civilizadores” dos imigrantes alemães e italianos, mas previamente apropriadas por
lavradores nacionais e seus roçados onde cresciam milho, feijão e mandioca.
Para o período colonial, dois trabalhos de Helen Osório tiveram pioneirismo
no que tange à história econômica e social do mundo agrário. Em sua dissertação de
mestrado, a autora estudou o conflitivo processo de apropriação de terras, ao longo do
século XVIII.
15
Por sua vez, em sua tese de doutorado, Osório demonstrou que a região
era mais do que um punhado de enormes estabelecimentos pecuários.
16
Ali, havia,
também, unidades produtivas que se dedicavam à agricultura, à criação em pequena
escala ou a um consórcio de ambas as atividades. Mesmo os maiores estabelecimentos
podiam combinar a pecuária com a cultura comercial do trigo, especialmente nas
décadas finais do período colonial. O trabalho familiar e a mão-de-obra escrava
desempenhavam um importante papel na produção, inclusive nas lides pecuárias
propriamente ditas. Uma estrutura, portanto, próxima daquela vivenciada em outras
paragens das Américas portuguesa e espanhola no mesmo período.
No que se refere à região da Campanha Rio-grandense, ao longo do século
XIX, área de estudo desta tese, os primeiros trabalhos centraram seu foco sobre as
transformações e conflitos ocorridos na segunda metade do Oitocentos, no bojo do lento
mas decidido avanço da modernização das atividades pecuárias, já referido acima. As
obras de Sandra Pesavento, Luiza Klieman, John Charles Chasteen, Paulo Afonso Zarth
e Stephen Bell apontaram traços gerais das transformações sociais trazidas por aquele
processo de modernização.
17
Por sua vez, estudando o período da Revolução
Farroupilha, Maximiliano Mac Menz apontou a diferença na estrutura agrária da grande
região de criação de gado, localizada ao sul do rio Ibicuí (município de Alegrete) e da
14
Algumas dessas questões foram rediscutidas para outras regiões do Rio Grande do Sul, com o aporte de
novas fontes, nos trabalhos de: FARINATTI, Luís Augusto. Sobre as Cinzas da Mata Virgem: os
lavradores nacionais na província do Rio Grande do Sul (Santa Maria – 1845-1880), 1999. FOLETTO,
Arlene Guimarães. Dos Campos junto ao Uruguai aos Matos de Cima da Serra: paisagem agrária e
estrutura produtiva em São Patrício de Itaqui (1850-1889), 2003. CHRISTILINO, Cristiano Luís.
Estranhos em seu próprio chão: o processo de apropriações e expropriações de terras na província de
São Pedro do Rio Grande do Sul (o Vale do Taquari no período de 1840-1889), 2004.
15
OSÓRIO, Helen. Apropriação da Terra no Rio Grande de São Pedro e a formação do espaço platino,
1990.
16
OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da Estremadura Portuguesa
na América: Rio Grande de São Pedro, 1737-1822., 1999.
17
Sobre o processo de modernização das atividades pecuárias e charqueadoras no Rio Grande do Sul,
destaque-se a obra pioneira de Sandra Pesavento: PESAVENTO, Sandra. República Velha: frigoríficos,
charqueadas, criadores, 1980. ZARTH, Paulo Afonso. Do Arcaico ao Moderno…, 2002. CHASTEEN,
John Charles. Background to Civil War: the process of land tenure in Brazil’s southern borderland,
1801-1893. BELL, Stephen. Campanha Gaúcha: a brazilian ranching sistem, 1850-1928. KLIEMANN,
Luiza. RS: Terra e Poder: história da questão agrária..., 1985.
29
região que praticava uma pecuária em menor escala, ao norte daquele rio (município de
São Borja).
18
Já a recente dissertação de Graciela Garcia sobre a estrutura e os conflitos
agrários em Alegrete demonstrou como o acesso e o direito à terra eram fortemente
mediados pelas relações sociais, em uma sociedade desigual. Apontou, também, as
diversas formas em que esse acesso se dava e como ele se transformou ao longo do
século, especialmente na década de 1870, em meio ao processo de aplicação da Lei de
Terras no município.
19
Pontos mais específicos dessas obras serão debatidos ao longo
deste trabalho.
Esta tese se inclui na esteira das contribuições aportadas por esse grupo de
trabalhos recentes e vem ao encontro das inquietações que têm norteado minha própria
trajetória de pesquisa desde a realização de meu mestrado. Naquele trabalho, estudei
uma região de pecuária de “segunda classe” e de agricultura de alimentos, no centro da
província do Rio Grande do Sul, em meados do século XIX.
20
A diversidade social que
encontrei ali, com a presença de criadores de gado, lavradores de roça, criadores-
lavradores e escravos estava em consonância com o que Paulo Afonso Zarth e Helen
Osório haviam percebido para o Planalto Gaúcho no Oitocentos e para o Rio Grande
todo, no período colonial.
Posteriormente, pesquisando as formas de mão-de-obra empregadas na
pecuária e percebendo a presença, integrada, do trabalho escravo, livre e familiar,
variando de acordo com o tamanho das unidades produtivas, comecei a interrogar-me
sobre a estrutura social das áreas de grande criação.
21
Estas tinham sua reprodução
vinculada ao abastecimento das grandes plantations brasileiras, mas estavam, também,
em profundo contato com as repúblicas platinas. Interroguei-me sobre os mecanismos
que uma elite agrária precisava colocar em prática para reproduzir essa condição em
uma sociedade que, certamente, seria bem mais complexa do que a imagem tradicional
fazia supor.
Nesse sentido, a leitura de trabalhos sobre elites nas sociedades pré-
industriais foram muito úteis. Ali estão os que centraram sua atenção nas elites
econômicas, como foi o caso do conhecido trabalho de Kicza para o Império Espanhol,
de Fragoso sobre os comerciantes de grosso trato instalados na praça mercantil do Rio
18
MENZ, Maximiliano M. O Rio Grande do Sul na primeira metade do século XIX: atividades
pecuaristas na fronteira oeste, 2002.
19
GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra: conflitos e estrutura agrária na Campanha Rio-grandense
Oitocentista, 2005.
20
FARINATTI, Luís Augusto. Sobre as Cinzas da Mata Virgem: os lavradores nacionais na província
do Rio Grande do Sul (Santa Maria: 1845-1880), 1999.
21
FARINATTI, Luís Augusto. Um Campo de Possibilidades: notas sobre as formas de mão-de-obra na
pecuária (Rio Grande do Sul – século XIX), 2003.
30
de Janeiro, de Susan Socolow sobre os comerciantes de Buenos Aires ou de Helen
Osório que, apesar de não ter nos grupos dominantes um tema exclusivo, identificou a
composição social da elite econômica do Rio Grande do Sul colonial.
22
Outros trabalhos
se tornaram clássicos da história das elites políticas, preocupados com suas formas de
recrutamento, treinamento e exercício do poder, do qual o melhor exemplo é a obra de
José Murilo de Carvalho.
23
Muitos, também, têm sido os trabalhos que vêm se
dedicando ao estudo das elites do Antigo Regime. Essas obras têm trazido avanços
significativos no estudo de estratégias sociais, alianças e dinâmicas familiares.
24
Sobretudo, encontrei instrumentos de análise inspiradores nos estudos sobre
as elites regionais da América Portuguesa, que têm sido alvo de uma leva de trabalhos
recentes. Eles têm como grande mérito o fato de situar a importância das relações
sociais horizontais e verticais que estabeleciam e como essas relações eram vitais para a
reprodução de sua posição social.
25
É uma preocupação que está presente, também, em
um trabalho de Giovanni Levi sobre a comunidade de Felizzano, em que o autor italiano
demonstra que não bastava simplesmente adquirir o poder e uma privilegiada posição
social: manter a dominação envolvia um reiterado processo de negociação e
acomodação com os subalternos.
26
Essa dimensão, até então pouco explorada em
estudos anteriores, abre uma perspectiva importante: a dinâmica das relações com
poderes maiores, com seus pares e com os subalternos passam a ser vistas como
22
KICZA, John. Empresarios Coloniales. Familias y negocios en la Ciudad del México, durante los
Borbones, 1986. FRAGOSO, João L. Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça
mercantil do Rio de Janeiro(1790-183). SOCOLOW, Susan. Los Mercaderes del Buenos Aires Virreinal.
Familia y comercio. OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da
Estremadura Portuguesa na América, 1999.
23
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem – Teatro de Sombras. 4ª ed, 2003. Uma
avaliação recente sobre historiografia acerca de elites e método prosopográfico está em:
HEINZ, Flávio
M. (org.). Por uma outra história das elites, 2006.
24
STONE, Lawrence. La Crisis de la Aristocracia (1558-1641), 1985. BURKE, Peter. Veneza e
Amsterdã: um estudo das elites do século XVII, 1991. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O Crepúsculo dos
Grandes, 1998. CUNHA, Mafalda Soares da. A Casa de Bragança (1560-1640). Práticas senhoriais e
redes clientelares, 2000.
25
FRAGOSO, João. A Nobreza da República: notas sobre a formação da primeira elite colonial do Rio
de Janeiro, 2000. _____. A nobreza vive em bandos: a economia política das melhores famílias da terra
do Rio de Janeiro, século XVII. Algumas notas de pesquisa, 2003. _____. Principais da Terra, Escravos e
a República. O desenho da paisagem agrária no Rio de Janeiro Seiscentista. ALMEIDA, Carla. Homens
Ricos, Homens Bons: produção e hierarquização social em Minas Colonial (1750-1822), 2001. GIL,
Tiago Luís. Infiéis Transgressores: os contrabandistas da fronteira (1760-1810), 2002. BATISTA,
Luciana Marinho. Muito Além dos Seringais, 2004. HAMEISTER, Martha. Para dar calor à nova
povoação: estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir dos registros batismais da Vila do Rio
Grande (1738-1863), 2006. MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A velha arte de governar: um estudo
sobre política e elites a partir do Conselho de Estado (1842-1889), 2005. Um trabalho específico sobre
elites no Rio Grande do Sul no período colonial é o de: KUHN, Fábio. Gente da Fronteira: família,
sociedade e poder no sul da América Portuguesa - Século XVIII, 2006.
26
LEVI, Giovanni. Centro e Periferia de uno Stato Assoluto, 1985.
31
estruturais na reprodução desses grupos. Como se verá, está é uma questão importante
também no contexto desta tese.
***
O problema que norteou a presente pesquisa pode ser formulado da seguinte
maneira:
a) Como se pode caracterizar a elite agrária de Alegrete, entre 1825 e
1865?
b) Quais eram os principais traços da lógica que informava suas
escolhas?
c) Quais eram as principais estratégias sociais que seus integrantes
colocavam em prática?
d) O que estudo da atuação desse grupo pode dizer sobre a reprodução
da hierarquia social, da estrutura agrária, da produção, dos assuntos
da guerra e fronteira e de como os processos históricos mais gerais
foram vividos naquela realidade?
Como se verá ao longo do trabalho, o fato de que a pecuária, com vistas à
criação de novilhos para enviar às charqueadas, era mesmo a principal atividade
econômica desenvolvida por aqueles sujeitos, permite definir a elite econômica do
município como uma elite agrária. Porém, em escala menor, os integrantes desse grupo
também praticavam outras atividades, como o prestamismo e o comércio de gado e de
mercadorias. Contudo, não se tratava apenas de desempenhar atividades econômicas,
mas de fazê-lo em um contexto de fronteira, onde a guerra foi um fenômeno recorrente.
Nesse sentido, percebi que alguns membros daquela elite dedicavam grande parte do
seu tempo às suas “carreiras” nas Milícias ou na Guarda Nacional, o que os levou aos
mais altos comandos nas freqüentes guerras do sul. Outros, porém, jamais ocuparam
qualquer posto militar.
A chave para compreender o amálgama desses diferentes elementos está na
família. A hipótese de trabalho desenvolvida aqui, é que essas várias atividades não
devem ser vistas de modo estanque na atuação da elite. Ao contrário, em conjunto, elas
constituíam faces da estratégia social colocada em prática pelas famílias que formavam
a elite agrária. O protagonismo estava menos no “estancieiro”, no “prestamista”, no
“negociante de tropas” ou no “chefe militar”, e mais na família que congregava todos
esses papéis e buscava organizá-los. Como deve restar claro ao final do trabalho, não
estou afirmando, com isso, que ela era um “clã” cujo patriarca decidia os destinos de
32
todos, mas sim que os sujeitos agiam tendo por base um marco de referência fortemente
familiar. Dizer que a família era importante para as elites agrárias do Brasil escravista
não é nenhuma novidade. O que importa, aqui, é perceber, na realidade específica do
universo estudado, como as relações familiares influenciavam o desempenho das
atividades econômicas, a estrutura agrária, a constituição de um grupo social, a
viabilização da reprodução da posição social dos membros da família, a construção de
transmissão de patrimônios materiais e imateriais. E como elas eram também
influenciadas por todos esses aspectos.
Essa situação se expressava, por exemplo, em um documento que guardava
registros de receita e despesa de uma grande estância. Voltemos ao Brigadeiro Olivério
Ortiz, que ficou viúvo em 1851. Transcorreria ainda um ano após o falecimento de
Dona Febrônia, antes que o Brigadeiro desse início às formalidades do inventário
judicial para a partilha dos bens. Mesmo então, ele não teve pressa em fazer andar o
processo, que se estendeu até dezembro de 1854, gerando um protesto por parte do
herdeiro Olivério Ortiz Filho. Em virtude dessas reclamações, o Brigadeiro apresentou
uma detalhada conta da administração dos bens da família, entre 1851 e 1854.
27
A conta que o Brigadeiro Ortiz elaborou indica que os recursos conseguidos
com suas estâncias não eram investidos apenas na reprodução daqueles
estabelecimentos, mas também em outras áreas. Ele gastou muito com a formação e
casamento dos filhos solteiros, prestou seguidamente “ajudas” financeiras a filhos
casados e constam gastos importantes com tarefas de Estado (reunião e manutenção de
gente para compor efetivos militares), feitos a partir de seu próprio patrimônio
particular. Esse variado rol de despesas era mais do que uma justaposição de gastos e
investimentos muito diversos e sem ligação entre si. Ao contrário, eles eram os
elementos que, em conjunto, compunham a estratégia social desenvolvida por aquela e
por outras famílias de grandes estancieiros da Campanha.
As estâncias não eram apenas empresas que buscavam a excelência na
atividade pecuária. Elas eram parte de um todo maior. Os lucros conseguidos ali, bem
como em outras atividades econômicas, serviam sim para reiterar e melhorar essas
atividades. Contudo, além disso, ajudavam a sustentar uma política de alianças sociais e
a construção de um cabedal militar que, por sua vez, também aportavam recursos à
família. Para os integrantes da elite agrária, investir seus recursos para estar perto do
poder militar e para realizar alianças sociais vantajosas não era contraditório com a
busca de obter vantagens econômicas com suas estâncias. O fato de que não
27
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 08, N. 111, A. 1852. APRS”.
33
“otimizavam” todos os seus recursos em busca da melhor forma de auferir lucros com a
produção pecuária não representa irracionalidade econômica. Por certo, eles estavam
interessados em ampliar seus ganhos e melhorar sua condição econômica: ela era a base
material de todo o resto. Como lembrou Witold Kula, em qualquer realidade sócio-
econômica, mesmo naquelas onde termos como investimento, dinheiro e consumo
tinham significados muito diferentes dos que têm hoje, “a conta precisava estar
equilibrada”.
28
Assim, as estratégias que as famílias da elite agrária elaboravam faziam parte
de uma lógica social que contemplava diferentes elementos, articulados entre si
29
:
a) desempenho eficiente das atividades econômicas;
b) busca de conseguir algum controle sobre as questões da guerra e da
Fronteira;
c) reprodução da posição social da família.
Como sugere a conta elaborada por Ortiz, esses elementos apareciam aos
agentes sociais como estando inextrincavelmente associados. Naquele contexto, não era
possível pensar na produção pecuária em grande escala sem levar em conta a questão
das guerras e da Fronteira, ou os rumos que o patrimônio e as alianças familiares iam
tomando. Essa combinação de fatores não era aleatória: ela era uma resposta criativa aos
desafios que o contexto impunha àquelas famílias e que, em parte, elas ajudavam a
construir.
De outra parte, é preciso deixar claro, lembrando Lawrence Stone, que a
elite nada tinha de semelhante a um grupo fixo de pessoas.
30
Ela se referia, sim, àqueles
que conseguiam reproduzir-se no mais alto locus social. Não é correto imaginar um
contexto onde a mobilidade social estivesse ausente e um punhado de famílias houvesse
se naturalizado como elite local. Ao contrário, era preciso alcançar e reiterar-se nessa
posição. O que interessa é, exatamente, estudar quais os mecanismos de ascensão e
28
“é verdade que ‘em várias sociedades, os termos câmbio, investimento, dinheiro, consumo, têm
conotações diferentes’. É verdade que ‘não há racionalidade econômica como tal (...)’. Isso tudo é
verdade, bem verdade (...). Sim, mas...(o historiadores que escreve essas palavras sabe muito bem a que
está se arriscando). Sim, mas em economia – ou, mesmo, exclusivamente em economia – a conta tem que
estar equilibrada, a sociedade que constantemente colhia menos grãos do que semeara teria que, ou mudar
sua técnica, ou emigrar para outro território, ou arranjar outra solução. Continuando como antes,
pereceria. Não se comportaria racionalmente.” KULA, Witold apud FRAGOSO, João; FLORENTINO,
Manolo. História Econômica, 1997, p.34. Ver também:
KULA, Witold. Problemas y métodos de la
historia econômica, 1977._____. Teoria Econômica do Sistema Feudal, 1979.
29
BARTH, Fredrik. Process and form in social life: selected essays of Fredrick Barth: Volume I, 1981.
ROSENTAL, Paul-André. Constuir o “macro” pelo “micro”: Fredrik Barth e a “microstoria”, 1998.
30
STONE, Lawrence. La Crisis de la Aristocracia (1558-1641), 1985, p.p. 37-38.
34
reprodução de posições sociais de relevo naquele universo e investigar as estratégias
que as famílias mobilizavam na busca de ocupar esse lugar privilegiado e reproduzir-se
nele. Nem sempre as estratégias colocadas em prática foram vitoriosas. Como veremos
ao longo do trabalho, o período estudado contemplou progressivas transformações. O
espaço para a prática da grande pecuária diminuiu e o poder dos comandantes militares
mudou suas características. As famílias da elite agrária se associavam ou lutavam entre
si para reproduzir essa posição. Nem todas conseguiam.
Por outro lado, quando se fala em estratégias sociais, é preciso ter cuidado
para não cair em interpretações demasiado funcionalistas ou hiper-racionalistas. Ao
afirmar que as alianças matrimoniais e as atividades sócio-econômicas faziam parte das
estratégias sociais desempenhadas por aquelas famílias, estou falando de estratégia
como a empregou Giovanni Levi, distanciado-se tanto da idéia de um sujeito totalmente
livre e consciente para exercer sua vontade, quanto de uma macro-estrutura dada a
priori que determina mecanicamente a atuação dos mesmos. Ao contrário, Levi propõe
a visão da atuação estratégica em sociedade como “uma ativa obra de transformação do
mundo natural e social”, empregando as margens de liberdade que lhes permitem os
condicionantes estruturais.
31
Essa ação estratégica era informada por uma racionalidade
limitada, seletiva, colocada em prática por sujeitos que tomavam decisões em condições
de incerteza, dispondo de uma quantidade limitada de informações. Além disso, eram
influenciados por sua posição em uma sociedade onde os recursos se encontravam
desigualmente distribuídos.
32
Ou seja: os sujeitos faziam escolhas o tempo todo, mas o
horizonte no qual eles agiam era limitado. Estava construído por sua posição social,
pelas relações e interações sociais que mantinham, pelas informações que podiam obter,
pela forma como avaliavam suas próprias experiências e pelos valores que sustentavam.
Por fim, aquela era uma elite “regional” ou “periférica”. Isso implicava em
que seus integrantes precisassem tecer relações sociais em três direções para reiterar sua
posição social. Essas três direções eram: relações horizontais de aliança com seus pares,
relações verticais “para baixo” com os subalternos e, dada sua condição “periférica”,
31
LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história, 1992, p.p.135-6. _____. A Herança Imaterial: trajetória de
um exorcista no Piemonte do século XVII, 2000. LIMA FILHO, Henrique Espada. Microstoria: escalas,
indícios e singularidades, 1999.
32
O antropólogo norueguês Fredrik Barth, que inspirou muitas do debate de Levi sobre as ações sociais,
sugeriu que os agentes fazem escolhas e tomam decisões em contextos em que estão sempre socialmente
posicionados, em um contexto onde são relevantes a interação e as relações sociais. Afirmou, também,
que essas decisões formam estratégias, e que estas estratégias expressam orientações valorativas desses
agentes. Assim, Barth propôs uma interessante forma de perceber sujeitos sociais realmente ativos, sem
que isso implicasse em um desprezo pela análise do nível social mais geral,
que mostra como os recursos
estavam distribuídos desigualmente naquela sociedade. LEVI, Giovanni. A Herança Imaterial..., 2000, p.
46 e p. 99. BARTH, Fredrik. Process and form in social life, 1981 . _____. O guru, o iniciador e outras
variações antropológicas, 2000.
35
relações verticais “para cima”, com os representantes do poder central. Alianças
matrimoniais propiciavam acesso a terras, ao crédito, a informações, ao poder militar;
relações com agregados, com escravos, com peões viabilizavam o trabalho, a
dependência pessoal e a obtenção de homens em armas; relações com os representantes
o poder central permitiam receber bens, cargos, favores e propiciavam aos membros da
elite tornarem-se redistribuidores desses recursos a seus pares e subalternos. Mas há,
ainda, um detalhe: como veremos, talvez seja melhor afirmar que se tratava de uma
“elite de fronteira”, ao invés de apenas uma “elite periférica”. A condição de fronteira
dotava-lhe de recursos que outras elites periféricas não tinham.
***
Para poder estudar os três aspectos, já referidos, da lógica social da elite
agrária estudada, foi preciso combinar dois tipos de metodologias: uma análise serial
anônima e um estudo micro-analítico reconstruindo trajetórias e relações. Como deve
ter ficado claro, considero que o estudo das unidades produtivas da grande pecuária e o
das alianças e trajetórias das famílias a quem pertenciam, não são contraditórios. As
caracterizações gerais com respeito aos animais criados; estrutura material das unidades
produtivas; concentração social de rebanhos, terras, escravos e da riqueza foram tratadas
a partir de fontes tradicionalmente empregadas pela historiografia das regiões agrárias.
Elas se constituem, principalmente, em fontes reiterativas e homogêneas, que podem
receber um tratamento serial. São empregados principalmente, inventários post mortem,
confrontados a fontes que exigem um tratamento qualitativo, como os relatos de
viajantes e os documentos administrativos.
Pela riqueza dos dados que fornecem, os inventários são fontes amplamente
utilizadas pelos pesquisadores de história econômica e social. São os únicos
documentos que permitem, com mais segurança, apanhar a totalidade do patrimônio de
um casal em um determinado momento. Além disso, constituem fontes homogêneas e
reiterativas, que permitem um tratamento seriado. Esses documentos permitem, nesse
sentido, uma visão de conjunto das unidades produtivas, uma “radiografia” dos
patrimônios e dão acesso à composição de fortunas, ensejando a percepção da
concentração da riqueza no local. Os inventários trazem como limite o fato de que
tendem a sobre-representar os estratos mais favorecidos da sociedade, já que os parcos
bens dos menos aquinhoados poucas vezes abriam processo de inventário.
33
Tendo em
conta essas limitações, porém, parece bastante claro que os inventários são as fontes
33
FRAGOSO, João e PITZER, Renato Rocha. Barões, homens livres pobres e escravos: notas sobre uma
fonte múltipla – inventários post mortem, 1988. GARAVAGLIA, Juan C. Las “Estâncias” en la
Campaña...., 1993.
36
bastante úteis para um estudo das estruturas agrárias. Maiores informações sobre a
composição da amostragem dessas fontes encontram-se no corpo da tese.
Também pude utilizar contas de herança. Tratavam-se de contas de “deve-
haver” anexadas a alguns inventários post mortem e que dão conta da administração de
alguns grandes estabelecimentos pecuários. Uma das grandes virtudes desses
documentos é o fato de que registravam dados sobre os trabalhadores livres empregados
nas estâncias, contendo os meses ou dias trabalhados por peões, seus salários e nomes.
Em se considerando que a pecuária extensiva no Rio Grande do Sul era desempenhada
com uma associação de trabalho livre e escravo e que os primeiro não aparecem nas
avaliações de bens presentes nos inventários post mortem, pode-se avaliar a importância
dessas referências. As características específicas dessa documentação será tratada com
mais vagar ao longo do trabalho, quando ela for empregada como instrumento de
análise.
Já as análises de trajetórias familiares e estratégias sociais, que dialogam
com o quadro geral de referência formado a partir da abordagem serial e colocam
algumas de suas conclusões em questão a partir da redução da escala de análise,
precisam partir de um ponto diferente. O estudo das estratégias e relações sociais que os
sujeitos construíam e que, ao longo de suas vidas, formavam trajetórias específicas,
viabiliza-se a partir de uma abordagem inspirada nas obras da micro-história italiana.
A prática micro-histórica foi rica e diversificada entre os historiadores
italianos, de modo que não se pode divisar entre eles uma rigorosa homogeneidade de
temas ou mesmo de referencial teórico. Contudo, de um ponto de vista metodológico,
uma fórmula cunhada por Carlo Ginzburg e Carlo Poni, em um texto da década de
1970, apesar de sua aparente simplicidade, é de tal modo instrumental que têm sido
freqüentemente retomada. Tal proposta reivindicava o nome como fio condutor da
investigação, possibilitando acompanhar um mesmo sujeito em momentos diversos e
através de diferentes contextos sociais. Essa metodologia baseia-se em procurar os
agentes sociais na mais variada gama de documentação possível e recompor suas
trajetórias.
34
Os mesmos documentos tratados de forma anônima pela história serial,
como os próprios inventários post mortem, quando contemplados a partir de uma busca
nominal permitem uma contextualização social mais profunda dos agentes históricos e
ensejam uma visão mais completa, revelando aspectos que podem escapar em uma
abordagem mais macroscópica.
34
GINZBURG, Carlo e PONI, Carlo. O Nome e o Como: troca desigual no mercado historiográfico,
1989.
37
No tocante à operacionalização de uma pesquisa nominal, como bem
apontou João Fragoso, a ausência de vastos corpos documentais onde se poderia
encontrar os agentes históricos, no Brasil colonial e monárquico limita, sem impedir, o
rastreamento dos mesmos, possibilitando apenas uma micro-história, nas suas palavras,
“tapuia”, “feia”, assumidamente incompleta porém de grande valia para seguir as
experiências dos sujeitos na construção do social.
35
Nesse quesito, a situação específica
da Campanha Rio-grandense em meados do Oitocentos é a mesma, senão mais difícil
do que a de outras regiões brasileiras. Não existem listas nominativas nem qualquer
outro conjunto documental com caráter semelhante. Mesmo assim, há fontes que
permitem a realização da empreitada proposta, ainda que não se deva acalentar ilusões
sobre a profusão das informações sobre os agentes sociais ali existentes.
Para realização dessa parte da pesquisa, montei um banco de dados onde
estão todas as informações nominais dos sujeitos que aparecem em todos os inventários
levantados, desde inventariantes, inventariados, herdeiros, escravos, devedores, credores
e daqueles que tiveram seus nomes mencionados naqueles processos, por qualquer outro
motivo. Faço, assim, uma outra utilização daquela mesma fonte que fora empregada
para conseguir informações de caráter serial. Depois disso, incluí no banco de dados as
referências nominais presentes nos registros paroquiais de terras de Alegrete (1854-
56)
36
e em uma listagem de proprietários brasileiros com estâncias no Uruguai
(doravante “RRNE”),
37
elaborada pela Repartição dos Negócios do Estrangeiros, em
1851, resultando num total de 2.291 pessoas.
Para poder realizar uma pesquisa intensiva e seguir trajetórias familiares, era
preciso reduzir o espectro de análise. Assim, concentrei-me nos inventários post mortem
da amostra que exibiam montes-brutos superiores a £ 10.000,00. Eram 16 processos, ou
8% dentre todos os pesquisados. Comecei o estudo pelo primeiro casal que chegou à
Fronteira, em cada família. Em 14 dos 16 inventários, esse era o caso do casal titular do
processo. As exceções foram dois casos cujos titulares eram filhos daquelas primeiras
famílias. A partir daí, tomei os próprios titulares e todos os filhos, genros e noras desses
casais, presentes nos inventários, além dos familiares de genros e noras que foi possível
encontrar, e realizei uma busca nominal nas escrituras públicas de Alegrete, e também
dos municípios de Rio Pardo e Cachoeira (aos quais a área do município havia
pertencido antes de seu desmembramento), nas “RRNE”; nos inventários post mortem,
35
FRAGOSO, João. Afogando em Nomes: temas e experiências na história econômica, 2002.
36
Registros Paroquiais de Terras. Alegrete. Livro 01. APRS.
37
“Relatório da Repartição dos Negócios Estrangeiros apresentado à Assembléia Geral Legislativa na 3ª.
Sessão da 8ª. Legislatura pelo respectivo ministro e secretário de Estado Paulino José Soares de Souza –
Anexo A(1850). AN.”
38
escrituras públicas e nos Registros Paroquiais de Terra dos municípios vizinhos
(Uruguaiana e São Gabriel), nos documentos da “Coleção Varella”
38
, na documentação
da Câmara Municipal de Alegrete, nas correspondências de Autoridades Militares da
Província.
39
Em suas fichas nominais, foram adicionadas todas as informações que
consegui encontrar sobre cada um deles.
Depois disso, as informações foram cruzadas e busquei reconstruir percursos
pessoais e familiares. Como se pode imaginar, em muitos casos a busca se mostrou
frustrante, pois apenas algumas mínimas informações foram encontradas. Em outros, no
entanto, foi possível remontar suas trajetórias de uma forma bastante consistente,
reunindo informações sobre:
seu local de origem e atividades que desempenhava antes de sua
migração para a Fronteira (no caso daqueles que não haviam nascido
ali);
seus casamentos e sua inserção em uma rede parental;
sua atuação econômica em transações envolvendo bens diversos
(terras, gado, escravos, etc.), os dotes e doações que fizeram a seus
filhos ou que receberam de seus pais, além do desempenho de
atividades produtivas, comerciais e usurárias;
oportunidades em que ocuparam cargos administrativos, políticos e
militares, participação em campanhas bélicas e na Revolução
Farroupilha;
outras informações de caráter diversificado.
O estudo proposto aqui não tem a pretensão de se constituir em uma
prosopografia da elite da Fronteira. O caráter pouco homogêneo e fragmentário da
documentação pesquisada não o permite. Há sujeitos e famílias para as quais existe
muita informação, enquanto a maioria dos casos contém grandes lacunas. Assim,
quando da análise das trajetórias sociais, optei por investigar de forma mais intensiva a
trajetória de algumas daquelas famílias, aproveitando o importante acervo documental
que restou sobre elas. Naturalmente, as conclues tiradas a partir daí são cotejadas com
38
A “Coleção Varela” é um acervo particular de documentação, principalmente referente ao período da
revolução farroupilha, recolhido pelo historiador Alfredo Varela, em fins do século XIX. Ali constam
principalmente cartas trocadas em os diversos oficiais “farrapos”, mas também ali estão listas de tropas
militares, resultados de eleições e outros. Essa coleção encontra-se parcialmente publicada nos Anais do
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Ela se encontra, em parte, publicada nos Anais do Arquivo
Histórico do Rio Grande do Sul.
39
Fundo “Autoridades Militares”, AHRS.
39
dados gerais e com as notícias que temos sobre as trajetórias das demais famílias
estudadas.
Em geral, todos os capítulos contemplam combinações dos dois tipos de
procedimentos metodológicos referidos acima, embora a análise serial seja claramente
dominante no capítulo “3” (sobre produção agrária) e a análise micro-social de base
nominal o seja nos capítulos “4” (sobre comandos militares) e “5” (sobre Alianças
matrimoniais da elite).
No capítulo “1” situo o município de Alegrete e faço análise da desigualdade
econômica ali existente a sua variação ao longo do período estudado. Depois, há a
caracterização da elite agrária estudada com a análise das atividades econômicas que
seus integrantes desempenhavam. A inserção dessa elite em um contexto onde a guerra
e a fronteira tinham grande importância fazem com que seja necessário uma
contextualização político-militar das principais contendas ocorridas nas plagas sulinas,
naquela época. Por fim, busco explicar a forma como a presença da fronteira vai se
encarada ao longo do trabalho e como ela influenciava os diferentes grupos sociais ali
existentes.
No capítulo “2”, através da análise serial, estudo a evolução da concentração
dos rebanhos bovinos, principal produção da região, conjugada com as formas de acesso
à terra. Aquele universo agrário se mostra mais complexo do que uma divisão entre
estancieiros e peões. No final do capítulo, perseguindo trajetórias familiares, analiso a
construção do patrimônio fundiário de três famílias da elite agrária. No capítulo “3”
tomo a conta elaborada pelo Brigadeiro Ortiz e analiso as receitas e despesas de uma
grande estância na Fronteira Meridional, em meados do século XIX. Também investigo
os números da produção agrária em Alegrete. Reforça-se a conclusão, já evidenciada no
capítulo anterior, da importância assumida por uma apropriação fundiária voraz feita
por algumas famílias antes que a terra alcançasse os altos preços que atingiu na segunda
metade do século XIX.
O capítulo “4” é dedicado ao estudo da inter-relação entre as guerras, a
economia e a sociedade estudada. Além dos efeitos das guerras sobre a produção
pecuária, procuro investigar, também, a presença de membros das famílias elite agrária
nos diversos comandos militares. São investigadas as implicações sócio-econômicas de
sua atuação, as formas pelas quais buscavam angariar prestígio e alguma autonomia no
que se refere ao poder central, através da construção de um cabedal militar.
Os capítulos “5” e “6” são dedicados a estudar, especificamente as famílias
como organizações que conjugavam as atividades pecuárias e militares, investigadas
40
anteriormente. No primeiro desses capítulos, estudo as alianças matrimoniais que
permitiam que os membros da elite agrária, mesmo que não acessassem diretamente os
principais recursos em jogo naquela sociedade, pudessem fazê-lo através do parentesco
via matrimônio. No segundo deles, estudo as antecipações de herança, a sucessão
hereditária e, sobretudo, as atuações econômicas conjuntas de membros da família como
forma de reiterar a grande pecuária. Além disso, elas eram um modo de ensejar que os
integrantes da família pudessem “começar a vida” em condições de trazerem mais
recursos para a família através de sua atuação “profissional” e das alianças matrimoniais
que conseguiriam estabelecer.
Os dois últimos capítulos tratam dos trabalhadores das estâncias. No capítulo
“7”, o tema é tratado a partir do ponto de vista dos estancieiros, dos tipos de mão-de-
obra que empregavam, da possibilidade de acesso ao trabalho escravo e livre, que se
combinavam naqueles estabelecimentos. São feitas análises das características da
população escravizada em Alegrete, bem como dos meios de pagamento de salários dos
peões livres.
Por sua vez, o capítulo “8” é um mergulho, ainda que rápido, no mundo dos
subalternos da Campanha. Esse tema, sozinho, já seria material para várias teses. Ainda
assim, é preciso, ao menos, perceber que peões livres e pequenos produtores -
personagens cujos papéis eram, por vezes, representados pelas mesmas pessoas -, como
também os escravos, tinham suas próprias demandas, informadas por lógicas diversas
das que orientavam a ação da elite agrária. Os grandes estancieiros precisavam ter isso
em conta para reproduzir suas atividades econômicas e sua posição social naquele
mundo.
41
PARTE I - FAMÍLIAS DE ELITE E
ESTRUTURA AGRÁRIA
42
Capítulo 1 - Ricaços de Campo e Gado
“Para seres ricaço de campo e gado e manadas de todo o pelo;... queres?”
“A Salamanca do Jarau” – J. Simões Lopes Neto
Qualquer visitante que passasse pela Estância da Palma, em Alegrete, em
meados do século XIX, não duvidaria da proeminência de seus proprietários, o
Brigadeiro Olivério José Ortiz e sua esposa, Dona Febrônia Cândida.
40
Os quase 20.000
ha. do estabelecimento abrigavam uma sede com nada menos do que 8 construções,
40
A origem da palavra “estância” é controvertida e seu significado variou no tempo e no espaço na
América Latina Colonial e do século XIX. É provável que o termo tenha sido tomado de empréstimo aos
espanhóis platinos pelos colonizadores lusos que povoaram o sul da América Portuguesa. Helen Osório
apontou que, século XVIII, o termo era utilizado para designar os estabelecimentos destinados à criação
de gado e que muitas vezes abrigavam, também, uma produção agrícola. A mesma autora ponderou que,
no século XIX, o termo pode ter se transformado, passando a designar apenas os grandes
estabelecimentos destinados exclusivamente à pecuária. Ver: OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e
comerciantes na constituição da Estremadura Portuguesa na América: o Rio Grande de São Pedro,
1737-1822, 1999, p. 89-90. No caso de Alegrete, entre 1831 e 1870, encontrei o termo “Estância”
designando as grandes propriedades que se dedicavam preferencialmente à criação, mas também podiam
praticar a agricultura de forma subsidiária. O termo “Fazenda” também foi encontrado. Nos documentos
pesquisados, ele sempre foi empregado como sinônimo de estância, sendo que comumente um mesmo
estabelecimento podia ser designado tanto por um quanto por outro nome. Por analogia com o que
acontecia no Prata, ao longo do século XIX, pode-se imaginar que “Fazendas” designavam apenas as
maiores propriedades, enquanto que “estâncias” se referiam a essas e também a estabelecimentos de
criação de gado de mediana envergadura, embora não tenha encontrado essa designação para as pequenas
unidades de produção dedicadas à pecuária. Aqui, optei pelo emprego do termo estância e estancieiros
porque ele tinha um uso corrente um pouco maior do que “Fazenda” e “fazendeiros”, embora, repito,
esses também fossem empregados.
43
entre casas, paióis, senzalas, galpões, currais, mangueiras de pedra e uma atafona, além
do quintal cercado de pedras onde se estendia um enorme pomar, composto por cerca de
1.500 laranjeiras e limeiras.
41
E não era só: se viesse bem recomendado e fosse
convidado para matear com os donos da casa, o viajante provavelmente ficaria sabendo
que os Ortiz possuíam mais duas estâncias, uma no município de São Gabriel e outra no
Estado Oriental
42
, além de arrendarem mais uma. Tinham um rebanho de cerca de 3.200
reses de gado bovino, 1.800 cavalares, além de muares e ovinos. Isso os colocava em
destaque entre os pecuaristas da Campanha: na década de 1850, apenas 9% dos titulares
da amostra de inventários post mortem de Alegrete, trabalhada aqui, possuíam mais do
que 2.000 reses de gado bovino. Olivério e Febrônia eram senhores de 18 escravos, um
número também expressivo para a época e região em que viviam, já que apenas 7% dos
inventários da amostra pesquisada tinham mais do que 15 cativos naquela mesma
década.
Esses números situavam o Brigadeiro Ortiz entre os grandes estancieiros da
Fronteira Meridional do Brasil. A historiografia tem repetido que aquela região, ao
longo do século XIX, foi o espaço por excelência dos grandes criadores de gado. Como
veremos nos próximos capítulos, a sociedade ali existente era mais diversificada do que
se costuma afirmar. A própria elite agrária da Campanha não recebeu estudos mais
detalhados, para além do mero reconhecimento de sua existência. A simples afirmação
de a elite econômica das plagas sulinas consistia em um grupo de grandes criadores de
gado é insuficiente. Como deve restar demonstrado ao final deste trabalho, a reprodução
da atividade pecuária dava-se no contexto das estratégias sociais colocadas em prática
por aquelas famílias e a análise deve contemplar tais aspectos de forma conjugada. Para
começar a estudar esse tema, é necessário responder a algumas perguntas básicas sobre
esses senhores, sobre o lugar e o tempo onde viveram.
Este capítulo se inicia com uma descrição sócio-econômica do município de
Alegrete. Em seguida, faço uma análise da desigualdade econômica ali existente.
Depois, realizo um estudo do lugar efetivamente ocupado pela pecuária nas atividades
daqueles que detinham as mais altas posições econômicas, bem como das outras
41
O campo da Palma tinha uma extensão declarada de 4,5 léguas quadradas, contando cada légua
quadrada com 4.356 ha. “Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 08, N.
111, A. 1852. APRS”.
42
A região que conformaria a República Oriental do Uruguai era chamada, no período colonial, de Banda
Oriental, por se referir as terras que ficavam na margem leste o Rio Uruguai, em contraposição à banda
ocidental, onde ficava localizada Buenos Aires. Com o processo de independência, o novo país foi
chamado correntemente de Estado Oriental. De fato, na documentação que estudo, os brasileiros sempre
se referiam àquele país com essa denominação. Em razão disso, essa será a denominação preferencial
para designar tal Estado, no corpo desta tese.
44
atividades que eles desempenhavam, buscando caracterizar o que defino aqui como
“elite agrária”. Essa elite, como o restante da população residente no município de
Alegrete, e em toda a Campanha, teve sua reprodução social profundamente marcada
pelo signo da guerra. Por isso, a próxima parte do capítulo é dedicada a fazer uma
contextualização político-militar da Fronteira Meridional, desde os primeiros anos do
Oitocentos até cerca de 1865. Por fim, proponho algumas reflexões sobre as condições
próprias daquela realidade de fronteira. Elas serão instrumentais para o restante da tese,
uma vez que a estrutura social e as trajetórias dos sujeitos estudados eram fortemente
condicionados pelo fato de que eles habitavam não apenas uma região próxima à divisa
nacional, mas um verdadeiro espaço fronteiriço.
1.1 - As muitas e dilatadas campanhas
Os viajantes estrangeiros e os comentadores da época eram unânimes em
louvar as pastagens da Campanha sobre todas as outras do Rio Grande do Sul. Ali, os
campos eram decisivamente predominantes, ainda que formações florestais de reduzida
extensão pontilhassem os extensos tapetes de vegetação baixa. Elas se apresentavam na
forma de matas de galerias e “capões de mato”. Acompanhando o leito dos cursos
d’água estava sempre uma faixa de mata, algumas vezes bastante estreita, outras bem
mais larga. O grande rio Uruguai tocava a região em seu extremo ocidental, em
Uruguaiana e seu leito foi uma via expressa para o comércio, na maioria das vezes
ilícito, com os portos platinos. Do outro lado, porém, nenhum rio navegável ligava a
Campanha às áreas charqueadoras e comerciais do leste. Era preciso vários dias de
viagem por terra até se encontrar o Jacuí em Cachoeira ou Rio Pardo e poder tomar um
barco que levava a Porto Alegre.
43
Mesmo assim, a região tinha boa provisão de cursos
d’água de menor expressão, o que, posto em comparação com as zonas pecuárias
ressecadas dos sertões do norte do Brasil, permitiu que Caio Prado Júnior visse um
aspecto “risonho” na pecuária sulina.
44
Os campos do sudoeste do Rio Grande do Sul distinguiam e davam
identidade geográfica à região, ainda que não fossem homogêneos. Eram mais
uniformes em alguns lugares, apresentavam formações arbustivas em outros. Mais
propícios à alimentação do gado aqui, mais “pobres” acolá. Não existem estudos
específicos sobre a diversidade fisiográfica dos campos sulinos no século XIX. A
historiografia é unânime em afirmar que uma divisão semelhante à existente nos dias de
43
ISABELLE, Arsènne. Viagem ao Rio Grande do Sul, 1983. AVÉ-LALEMMENT, Robert. Viagem pela
província do Rio Grande do Sul, 1980.
44
PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo, 1986.
45
hoje já ocorria no século XIX. Os campos mais ao norte da Fronteira, nas vizinhanças
da Depressão Central, eram de menor qualidade para a pecuária (mas melhores que o da
zona vizinha), e os mais indicados eram aqueles de oeste e sul até a fronteira com a
República do Uruguai. Ou seja, em termos gerais, as pastagens tendiam a ser tanto mais
próprias à pecuária quanto mais se estendessem rumo ao sul.
45
Esse fator ajuda a
explicar a permanência de propriedades de brasileiros no norte do Uruguai durante todo
o Oitocentos, mesmo com os inconvenientes trazidos pela situação política instável do
país vizinho.
Foi sobre essa planície levemente ondulada, coberta por boas pastagens
naturais, que foram instalar-se os luso-brasileiros nas primeiras décadas do Oitocentos.
Infelizmente, as poucas estatísticas populacionais de Alegrete, para a primeira metade
do século XIX, estão bastante incompletas. Trazem dados de um ou outro distrito, mas
não da maioria. O único levantamento que contempla a população em toda a extensão
do município, ao longo do período estudado, data de 1859. Ali constam os seguintes
dados:
TABELA 1.1 - POPULAÇÃO DE ALEGRETE SEGUNDO O SEXO, 1859
Sexo Indivíduos %
Homens
5.634
52,7%
Mulheres
5.065
47,3%
TOTAL 10.699 100%
Fonte: “Mappa statístico da população da província classificada por idades, sexos, estados e condições
com o resumo do total de livres, libertos e escravos”. In: FEE, “De Província de São Pedro a
Estado do RS”, 1981, p. 69.
TABELA 1.2 - POPULAÇÃO DE ALEGRETE SEGUNDO SUA CONDIÇÃO JURÍDICA, 1859
Livres % Escravos % Libertos %
Homens 4.191
52,6
1.339
53
104
49,8
Mulheres 3.774
47,4
1.186
47
105
50,2
Total
7.965
100
2.525
100
209
100
Fonte:
“Mappa statístico da população da província classificada por idades, sexos, estados e condições
com o resumo do total de livres, libertos e escravos”. In: FEE, “De Província de São Pedro a
Estado do RS”, 1981, p. 69.
45
CESAR, Guilhermino. Ocupação e diferenciação do espaço, 1979. XAVIER, Paulo. A estância, s/d.
FRANCO, Sérgio da Costa. A Fronteira, s/d.
46
Quando da realização deste censo, o povoamento regular daquelas áreas
pelos luso-brasileiros, iniciado nos primeiros anos do século XIX, já contava com cerca
de 60 anos. O percentual de população escrava situado em seus 23,4%, muito próximo à
média da província, que era de cerca de 25%.
46
Ressalve-se que esses dados,
compilados no final da década de 1850, pode deve estar apresentando os primeiros
efeitos do final do tráfico atlântico de cativos, ocorrido nove anos antes da realização do
censo. As regiões charqueadoras, mais capitalizadas e necessitadas de um maior número
de escravos, poderiam estar drenando cativos das outras regiões. Como veremos no
capítulo “7”, os efeitos desses processos foram sentidos com mais força a partir da
década de 1860, em Alegrete. O censo de 1872 aponta não apenas uma redução relativa
dos escravos que, naquela data, formavam apenas 12,6% da população, como também
absoluta: o número total de pessoas escravizadas havia baixado para 2.308 indivíduos.
47
No que se refere à população livre, seu grande percentual, com uma
tendência para o equilíbrio entre os sexos, expressa na tabela “1.1”, por si só, já indica
que se deve pôr em questão a imagem de uma sociedade dicotomizada entre grandes
estancieiros e uma população livre pobre composta, majoritariamente, por homens e não
por famílias. Como veremos adiante, as grandes estâncias empregavam peões livres e
escravos, mas elas não eram os únicos estabelecimentos produtivos de Alegrete. Ao
lado delas, muitas famílias buscavam levar a cabo uma produção agro-pastoril em
escala mais modesta. Sem contemplar essa diversidade, não há como compreender
corretamente aquela sociedade e nem mesmo as características próprias dos grandes
criadores, que controlavam a maioria dos recursos produtivos no município. Esse
quadro não se alterou substancialmente após essa data: apesar da população total ter
subido para 18.316 pessoas no censo de 1872, a relação entre os sexos seguia
equilibrada, com a população masculina atingindo cerca de 53,4% do total.
Como veremos no capítulo “8”, a vila de Alegrete comportava um núcleo de
artífices e comerciantes nada desprezível. Ainda assim, a maioria da população do
município estava envolvida em atividades econômicas eminentemente agrárias. Uma
análise dos bens presentes nos inventários post mortem permite compreender a
dimensão desse predomínio. Antes, porém, é necessário referir que, no caso de
Alegrete, entre 1831 e 1870, não há como testar com rigor a representatividade desta
46
“Mappa statístico da população da província classificada por idades, sexos, estados e condições com o
resumo do total de livres, libertos e escravos”. In: FEE, “De Província de São Pedro a Estado do RS”,
1981, p. 69.
47
Graciela Garcia já havia notado o decréscimo absoluto da população escrava entre as datas dos dois
censos citados aqui. GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra: conflitos e estrutura agrária na
Campanha Rio-grandense oitocentista, 2005, p.p. 63-66.
47
fonte. O município era muito extenso e sua densidade populacional, bastante baixa, o
que poderia implicar em dificuldades para a abertura de inventários por intermédio dos
moradores de áreas mais distantes. Como se não bastasse, houve uma guerra de
permeio. A Revolução Farroupilha (1835-1845) teve a Fronteira como teatro de
operações e, como já foi dito, Alegrete foi a última das três capitais da República Rio-
grandense.
Apesar de todas essas ressalvas, exatamente naquele período e espaço
tratados, o conjunto de inventários post mortem assume uma importância singular para o
estudo de história econômica e social. Ali, não restaram quaisquer fontes semelhantes às
listas nominativas e mapeamentos de população, que apontam os moradores por
“fogos”, muitas vezes indicando sua ocupação, sexo, estado civil, cor, estatuto jurídico,
etc., freqüentes em outras épocas e áreas do Brasil colonial e do século XIX. Por
conseguinte, em que pesem suas limitações (e é preciso tê-las sempre em mente), os
inventários, com suas descrições dos conjuntos totais dos patrimônios, das dívidas, dos
filhos sobreviventes e tudo mais, são insubstituíveis como fontes para o estudo daquela
economia e sociedade. Foram levantados 232 processos, sendo que 205 tiveram
prosseguimento e não apresentaram problemas para a análise serial dos patrimônios.
Ainda, 181 deles possuíam bens rurais. Para a composição dessa amostragem, foram
fichados todos os inventários do período que se estende de 1831 até 1850 e os processos
de um a cada dois anos, entre 1851 e 1870.
48
O fato de que apenas 23 inventários, em um total de 205, eram
exclusivamente urbanos, é um importante indicativo de que se está diante de uma
realidade onde havia um predomínio avassalador das atividades agrárias.
49
Esse
percentual de cerca de 11% significa menos da metade dos 26% de inventários
exclusivamente urbanos que Helen Osório encontrou, ainda no período colonial (entre
1765 e 1825) para todo o Rio Grande de São Pedro.
50
Se, naquele contexto, a autora
48
“Inventários post mortem. Cartório de Órfãos e Ausentes. Cartório do Cível. Cartório da Provedoria.
Alegrete. APRS.”
Esse procedimento foi adotado em razão de que os anos que se estendem entre 1831 e
1850 abrigam o menor número processos. Não há dúvidas que a guerra e a necessidade de reordenação da
vida que ela deve ter imposto a muitos teve aí uma parcela de responsabilidade. Contudo, essa
desproporção também se deve ao fato de que ocupação estável daquelas terras data apenas das primeiras
décadas do século XIX e a população do jovem município, na primeira metade do século, era certamente
menor do que nas décadas seguintes.
49
Considerei exclusivamente urbanos os inventários em que não constava nenhum imóvel rural e sim
terrenos e casas na vila de Alegrete. Para aqueles que não possuíam quaisquer imóveis, considerei
exclusivamente urbanos os inventários daqueles cuja residência fosse na vila e não no meio rural. A
indicação de residência aparece sempre na primeira peça do processo, que consistia em um requerimento
do interessado ou, no mais das vezes, uma citação por parte da autoridade para que se começasse a
proceder ao inventário.
50
OSÓRIO, Helen. Estancieiros, Lavradores e Comerciantes na Constituição da Estremadura
Portuguesa na América..., 1999, p.p. 231-2.
48
pôde apontar que um tal percentual indicava uma urbanização ainda incipiente, o que
dizer então de Alegrete no meado do século XIX? Além disso, a participação dos
diferentes tipos de bens no patrimônio avaliado nos inventários da amostra aponta para
a mesma direção.
TABELA 1.3 - PARTICIPAÇÃO DOS BENS ECONÔMICOS NOS INVENTÁRIOS POST
MORTEM (ALEGRETE, 1831-1870)
1831-40
%
1841-50
%
1851-60
%
1861-70
%
Imóveis Rurais
24,2 35,7 37,2 55,5
Gado
44,8 25,5 31,8 13,4
Equipamentos
0,2 0,1 0,3 0,4
Instrumentos
0,0 0 0 0,6
Escravos
16,0 15,6 18,3 9,5
Imóveis Urbanos
3,7 6,5 5,1 6,9
Dinheiro
0,4 2,4 0,8 1,6
Dívidas Ativas
8,8 10,9 5,7 11,2
Mercadorias
0 3,1 0 0,2
Ouro e Prata
1,9 0,1 0,8 0,8
Monte Total 100 100 100 100
N. De Inventários
48 42 64 51
Fonte: 205 inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. Cartório do Cível e Crime.
Cartório da Provedoria. 1831 a 1870. APRS.
Os dados da tabela “1.3” apontam para um percentual de bens rurais
(imóveis rurais, gado, equipamentos e instrumentos) superior a 60% em todo o período
estudado. Tendo em conta que a larga maioria dos escravos encontrava-se no meio
rural, essas proporções poderiam elevar-se a mais de 80%. No Rio Grande de São Pedro
entre 1765 e 1825, os bens rurais oscilaram entre 26 e 56%. Por sua vez, em Alegrete,
os imóveis urbanos variaram entre cerca de 4 e 7%. Já as dívidas ativas e as
mercadorias, indicando capital comercial e usurário ficaram entre 6 e 13%, enquanto
que no Rio Grande colonial rondavam em torno de 20%.
51
Essas diferenças decorrem do
fato que, na amostra analisada por Osório estavam incluídos, conjuntamente com um
vasto território rural, também Rio Grande e Porto Alegre, maiores portos e praças
comerciais da província. De qualquer forma, esses dados servem para caracterizar com
clareza o município de Alegrete, o maior de toda a Campanha. Mesmo na década de
51
OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da Estremadura Portuguesa
na América..., 1999, p.p. 231-2.
49
1860, a região tinha um perfil mais francamente rural e uma economia mais
decididamente agrária do que aquela apresentada pelas regiões do leste da província,
cerca de quarenta anos antes. Por sua vez, os níveis de desigualdade econômica ali
existentes, eram semelhantes aos que vinham se reiterando em todo o Brasil desde
tempos coloniais.
1.2 - Desigualdade econômica em Alegrete
A evolução da média dos montes brutos presentes nos inventários post
mortem analisados aponta uma oscilação conjuntural, ao longo do período em estudo.
TABELA 1.4 - MONTE BRUTO MÉDIO NOS INVENTÁRIOS POST MORTEM DE ALEGRETE
(1831-1870)
1831-40 1841-50 1851-60 1861-70
Total da riqueza
inventariada em £
144.508,820 88.075,199 188.156, 52 177.301,490
Número de inventários 48 42 64 51
Monte bruto médio em
£
3.010,600
2.097,029
2.939, 946
3.476,500
Fonte: 205 inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. Cartório do Cível e Crime.
Cartório da Provedoria. 1831 a 1870. APRS.
Os dados da tabela “1.4” indicam que a década de 1840 foi uma época difícil
para a economia do município. Como veremos no capítulo “3”, a ocorrência simultânea
de secas, epizootias e, sobretudo, de guerras dos dois lados do limite nacional (Guerra
dos Farrapos e Guerra Grande), prejudicaram o desenvolvimento da produção agrária e
a boa marcha da economia local. A recuperação ocorreu a partir da década de 1850,
com a pacificação do Uruguai e os tratados favoráveis ao livre trânsito do gado através
da linha de fronteira (1851). Outro fator que contribuiu para o aumento da riqueza
inventariada foi a valorização do preço da terra, que não cessou jamais dentro do
período estudado.
Como veremos com detalhe nos próximos capítulos, no início do período, a
riqueza local estava assentada principalmente sobre o gado, ainda que as terras tivessem
importante participação na composição dos patrimônios. Já na década de 1850 e 1860, o
crescimento da média das fortunas locais esteve, em muito, estribado sobre a vertiginosa
ascensão do preço das terras. Essas transformações, que foram bem demonstradas por
Graciela Garcia no tocante à década de 1870, já vinham acontecendo nas duas décadas
50
anteriores: a riqueza passava a assentar-se em um valorizado patrimônio fundiário.
52
Esses fatores também aparecem refletidos na concentração de riqueza. Os dados
expostos na tabela “1.5” demonstram que, em Alegrete, a riqueza sempre esteve
fortemente concentrada.
TABELA 1.5 - CONCENTRAÇÃO DE RIQUEZA EM ALEGRETE (1831-1870)
1831-40 1841-50 1851-60
1861-70
10% mais ricos
47,9% 44,3% 45,7%
69,8%
50% mais pobres
6,4% 10% 10,7% 4,3%
Fonte: 205 inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. Cartório do Cível e Crime.
Cartório da Provedoria. 1831 a 1870. APRS.
Os dados da tabela “1.5” mostram uma certa estabilidade na concentração de
riqueza ao longo das três primeiras décadas e uma alta acentuada na década de 1860.
Porém, esse movimento de ampliação da concentração de riqueza já havia começado na
década anterior. Tive que retirar da análise serial um processo que, nesse caso, tem o
poder de fazer muita diferença. Foi o inventário de Manoel José de Carvalho e sua
esposa Dona Custódia Maria de Carvalho.
53
Não pude contabilizá-lo nas análises gerais
de patrimônio porque apenas parte de seus bens foi avaliada no inventário. Ficaram de
fora uma estância no Uruguai, que dobraria o valor de seus bens de raiz e, imagina-se,
uma quantidade de animais equivalente. Ainda assim, só com os bens existentes no
Brasil, sua fortuna total montava £ 48.422,68, a maior de toda a década e a segunda
maior de toda a amostra, se o inventário estivesse incluído nela. Imagine-se que, se
tivessem sido avaliados os bens no exterior, ela passaria à primeira posição, uma vez
que essa fortuna poderia quase dobrar. Assim, os dados da década de 1850 encontram-
se subestimados no que se refere ao montante total de fortuna inventariada e, sobretudo,
no que se refere à concentração de riqueza.
Fazendo um exercício, incluí esse inventário com os valores que apresenta.
Mesmo sem poder saber o montante de todo o patrimônio do casal inventariado, sua
inclusão já fez o valor médio dos montes-mores (tabela “1.4”) pular de 2.939,946 para
3.639,680. Um valor um pouco maior, inclusive, que o referente à década de 1860. Isso
é mais coerente com o fato de que, na década de 1850, além da valorização da terra já
estar acontecendo, também o gado alcançou altos preços. Na década seguinte, a terra
seguiu se valorizando, mas o preço do gado despencou. Mais importante: ao incluir o
52
GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra..., 2005, p.p. 19-32.
53
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, M. 01, N. 07, A. 1853-7. APRS.”
51
inventário de Manoel José de Carvalho, a concentração de fortunas na década de 1850
também aumenta (tablea “1.5”). Os 10% mais ricos passam a acumular 56,8% da
riqueza e os 50% mais pobres ficam com 9%. Creio ser mais próximo do real uma
análise de fortunas e concentração de riqueza que inclua esse inventário.
Sendo assim, pode-se dizer que os 10% mais abastados da amostra viram sua
fatia na riqueza geral baixar um pouco (menos de 4%) com a crise da década de 1840.
Porém, recuperaram-se vigorosamente, conseguindo amealhar mais 12,5% da riqueza na
década seguinte (e talvez mesmo mais, se tivéssemos acesso ao valor de todo o
patrimônio de Manoel José de Carvalho). Eles chegaram à década de 1860
concentrando cerca de 70% de toda a riqueza inventariada. Por sua vez, os 50% mais
pobres nunca tiveram uma participação maior do que 10%, apresentando os piores
índices justamente naquela década de 1860 (4,3%), quando os mais ricos ampliavam
enormemente a sua fatia. A recuperação econômica ocorrida nas décadas de 1850 e
1860 ensejou um crescimento extremamente desigual. A concentração da riqueza era
marcante, tanto mais se lembramos que, como se sabe, os inventários post mortem
sobre-representam as camadas mais abastadas da sociedade.
Essa forte desigualdade é semelhante à que foi verificada em outros
contextos do Brasil colonial e monárquico. Analisando inventários post mortem dos
meios rural e urbano do Rio de Janeiro, entre 1790 e 1835, João Fragoso e Manolo
Florentino concluíram que, mesmo sob conjunturas diversas “agro e cidade continuaram
a apresentar o décimo superior de suas populações detendo cerca de 2/3 da riqueza, com
os cinco décimos mais pobres possuindo 4% a 8%.”
54
Estruturas semelhantes foram
encontradas, entre outros locais, no Vale do Paraíba fluminense em meados do século
XIX,
55
no Rio Grande do Sul em fins do período colonial
56
e no Grão-Pará entre 1850 e
1870.
57
A reiteração de uma marcante desigualdade sócio-econômica tem sido um traço
estrutural da sociedade brasileira em diversos rincões e durante diferentes períodos. Os
mecanismos que a sustentam, porém, não são sempre os mesmo. Como lembrou João
54
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O Arcaísmo como Projeto: mercado atlântico, sociedade
agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia. Rio de Janeiro, c.1790 – c. 1840, 2001,
p.172.
55
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O Arcaísmo como Projeto…, 175-179.
56
OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da Estremadura Portuguesa
na América..., 1999, p.p. 236-242.
57
BATISTA, Luciana Marinho. Muito Além dos Seringais: elites, fortunas e hierarquias no Grão-Pará,
2004, p.p. 108-109.
52
Fragoso, eles têm sua historicidade e ela deve ser objeto de estudo da história
econômica.
58
1.3 - Abastados Senhores
Neste trabalho, parto da elite econômica. Porém, é necessário um
esclarecimento antes de passar a uma caracterização de sua atuação nesse campo. Ao
reconstruir as trajetórias dessa elite, se percebe que seus interesses iam muito além da
maximização de suas atividades econômicas stricto sensu. Outros setores de atuação
eram privilegiados por eles em seus investimentos, carreiras, e na tessitura de relações
sociais. Nesse sentido, tiveram destaque os comandos militares, que davam acesso ao
poder sobre a guerra e a fronteira; e o estabelecimento de alianças sociais que
aportavam recursos para as famílias que as realizavam. Assim, este trabalho é dedicado
a estudar uma elite econômica que, como se verá, pode ser definida como uma elite
agrária; mas também inclui a percepção de que essas famílias conseguiam amealhar
recursos em outros campos, essenciais na reprodução daquela sociedade e
inextrincavelmente amarrados ao plano econômico.
59
Elas buscavam reiterar-se em uma
posição proeminente na hierarquia social vista de modo mais amplo, indo além do
econômico stricto sensu. A reiteração de uma hierarquia social fortemente excludente e
desigual passava também por esses aspectos.
60
Privilegiei 16 núcleos familiares para realizar uma análise mais intensiva.
São os 15 titulares de inventários da amostra pesquisada, que atingiram fortunas
superiores a £ 10.000,00, aos quais acrescentei o casal Custódia e Manoel José de
Carvalho, pelos motivos referidos acima. De fato, em uma análise da elite agrária eles
não poderiam ficar de fora. Em todas as estimativas seriais quanto à produção pecuária,
posse de escravos, composição dos patrimônios e outras que virão nos próximos
capítulos, não incluí esse casal. Mas as omissões existentes em seu inventário não
prejudicam as análises qualitativas e, de agora em diante, estarão presentes nos estudos
das trajetórias dessa elite.
58
FRAGOSO, João. Para que serve a história econômica? Notas sobre a história da exclusão social no
Brasil, 2002, p.p. 8-22.
59
Para um aporte teórico sobre as imbricações de fatores como poder, prestígio e economia nas
sociedades pré-industriais ver: MOORE JR., Barrington. Aspectos Morais do Crescimento Econômico,
1999. Sobre o fato da economia estar inextrincavelmente amarrada a pautas sociais nas sociedades pré-
industriais, ver o clássico trabalho de: POLANYI, Karl. A Grande Transformação, 1980.
60
Para uma reflexão sobre o emprego do sobre-trabalho em atividades não-produtivas e sua vinculação
com a reiteração de uma hierarquia social excludente em fins do período colonial no Brasil, ver:
FRAGOSO, João. Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de
Janeiro, 1998, p.p. 333-380.
53
Os 15 inventários mais afortunados somavam 7,3% do total da amostra, no
entanto, acumulavam 47% da fortuna total e 46% do gado vacum presente no conjunto
de inventários pesquisados. Somando o inventário de Custódia e Manoel José de
Carvalho, o grupo perfaz 7,8% dos inventariados e acumula nada menos do que 60% de
toda a fortuna inventariada e 53% das reses. Unindo a análise patrimonial ao estudo das
trajetórias individuais, é possível investigar as principais atividades econômicas a que se
dedicavam esses abastados senhores. Em um ponto, os dados não deixam margem a
dúvidas: tratavam-se de patrimônios com forte acento agrário. Os bens rurais
ultrapassam os 60% da composição da fortuna em quase todos aqueles processos. A
única exceção é a fortuna de Antônio Joaquim Barbosa, um comerciante português que
desenvolvia também importante atividade prestamista. As dívidas ativas somavam 40%
do seu patrimônio. Mesmo assim, Barbosa havia comprado uma estância onde pastavam
cerca de 5.000 animais, o que fazia com que os bens rurais, mesmo nesse caso,
consistissem em 38% da riqueza inventariada.
O inventário de Antônio Joaquim Barbosa é o único entre as grandes
fortunas que aponta para uma prática preferencialmente comercial. No total dos 205
inventários da amostra pesquisada, são apenas 11 os processos com essas
características, bem distribuídos de alto a baixo na escala de fortunas. Seus patrimônios
tinham em comum o fato de serem majoritariamente assentados em dívidas ativas: entre
42% e 73% do total, enquanto a média geral era de cerca de 9%. Além disso,
contemplavam com mais freqüência dinheiro em numerário e podiam ter mercadorias
avaliadas de forma significativa. Dentre eles, apenas Antônio Joaquim Barbosa
apresentava um patrimônio rural relevante. É preciso, porém, ressalvar que, dentro dos
inventários que tinham um perfil de estancieiros ou “mais estancieiros do que
comerciantes” poderiam existir casos de comerciantes que investiram seus lucros em
bens rurais e, ao final da vida, tornaram-se estancieiros, abandonando totalmente o
comércio, fato comum em outras áreas do Brasil e no próprio Rio Grande do Sul, no
período colonial.
61
61
FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial, 1998,
189-195. OSÓRIO, Helen. Estancieiros, Lavradores e Comerciantes na Constituição da Estremadura
Portuguesa na América..., 1999, p. 246. FRAGOSO, João e FLORENTINO, Manolo. O Arcaísmo como
Projeto..., 2001, p.p. 227-235.
54
TABELA 1.6 - COMPOSIÇÃO DAS FORTUNAS SUPERIORES A £ 10.000,00 (ALEGRETE, 1831-1870)
Inventariado Ano
Dívidas
Passivas
Monte
Bruto
em £ Terras
Benfeitorias
rurais
Imóveis
urbanos
Total
bens de
raiz Gado Escravos
Dívidas
ativas Móveis Dinheiro
João Batista de Castilhos 1834 5,5%
16.703,61
27,4% 0,6% 3,0%
31,1%
46,5% 10,0% 10,9% 1,5% 0
Teresa Joaquina de Jesus 1835 2,6%
10.164,18
25,5% 2,6% 0
28,1%
34,8% 20,8% 15,1% 1,2% 0
Maria Joaquina da Silva 1839 n/c
17.996,5
19,8% 4,2% 3,1%
27,0%
55,2% 11,9% 4,3% 1,6% 0
Albino Pereira de Lima 1840 9,0%
14.873,73
20,3% 7,1% 14,2%
41,5%
29,1% 12,1% 12,0% 5,3% 0
Floriana Maria de Jesus 1846 n/c
13.470,78
15,8% 8,9% 4,5%
29,2%
41,9% 11,6% 10,0% 7,3% 0
Potenciana Joaquina do Couto 1848 6,0%
10.170,18
45,9% 11,7% 7,4%
65,0%
1,5% 15,2% 16,7% 1,0% 0
Manoel José de Carvalho 1853-57 4,0%
48.422,68
28,1% 14,3% 0
42,4%
22,6% 8,0% 22,8% 2,4% 1,8%
Maria Mancia Ribeiro 1853 8,0%
22.650,26
38,9% 11,4% 3,8%
54,1%
10,0% 21,2% 13,8% 0,3% 0,6%
Auristela Maria de Almeida 1857 n/c
21.432,23
35,5% 3,1% 4,5%
43,0%
31,6% 19,0% 1,3% 0,8% 3,5%
Eufrasia de Oliveira Ribeiro 1857 n/c
11.245,52
31,6% 2,0% 10,3%
43,8%
44,9% 10,9% 0 0,4% 0
Liberato Rodrigues Jacques 1859 5,0%
10.429,49
37,1% 0,0% 14,2%
51,3%
26,9% 11,1% 9,6% 1,1% 0
José Antônio Martins 1859 n/c
16.479,79
31,2% 3,2% 5,2%
39,5%
38,4% 12,7% 0 0,7% 8,7%
Rufina Cândida de Carvalho 1863 5,0%
21.201,12
65,6% 8,7% 1,1%
75,3%
15,4% 4,2% 3,8% 1,3% 0
Antônio José de Oliveira 1865 n/c
59.192,83
59,9% 1,9% 1,2%
63,1%
22,6% 3,5% 6,0% 0,3% 4,5%
Antônio Joaquim Barbosa 1867 n/c
21.118,26
26,9% 0,4% 13,5%
41,0%
7,1% 4,2% 39,7% 7,1% 0,9%
Olivério José Ortiz 1869 n/c
14.623,76
23,8% 8,7% 16,2%
48,6%
22,7% 4,7% 9% 7,6% 7,2%
Fontes: 206 inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. Cartório do Cível e Crime. Cartório da Provedoria. 1831 a 1870. APRS.
55
Esse foi o caminho de outro inventariado presente entre os 16 mais ricos da
amostra pesquisada. Pelos documentos anexos ao inventário de Liberato Rodrigues
Jacques, sabemos que ele havia sido sócio de uma casa comercial em Alegrete. De par
com sua atividade comercial, Liberato passou criar gado em uma grande estância em
Quaró, no Estado Oriental, que continha cerca de 3.000 reses. Alguns anos antes de seu
falecimento, Liberato deixou de praticar o comércio, o que fez com que as dívidas ativas
não passam de 10% em seu inventário, contra 73% dos bens agrários.
62
Para além do português Barbosa e sua esposa, o grupo dos que possuíam
fortunas superiores a £ 10.000,00 era formado por 15 casais de grandes estancieiros.
Apresentavam uma média de 8.400 reses de gado vacum
e todos eles eram proprietários
de terras, sendo que 10 tinham mais de uma propriedade espacialmente descontínuas, 7
eram donos de campos no Estado Oriental e 13 possuíam casas e terrenos urbanos. Em
pelo menos uma de suas propriedades rurais, geralmente em todas, tinham casas de
moradia com paredes de pedra, cobertas de telhas – algumas delas forradas e
assoalhadas -, currais e mangueiras de pedras, ranchos de pau-a-pique, quintas com
cercados para plantações e arvoredo frutífero. Em 4 casos havia atafonas para o fabrico
de farinha, em 1 inventário havia uma olaria e em outros 3 processos havia os dois tipos
de fábricas, concomitantemente. Estavam equipados para a grande pecuária e a criação
de gado que foi, de fato, a mais importante e a mais constante das atividades da quase
totalidade daqueles casais. A clara importância que os bens rurais assumiam em seu
patrimônio permite designar essa elite econômica como uma elite agrária. Contudo, ao
nos aventurarmos em uma investigação mais intensiva da trajetória de cada um desses
agentes, o quadro desenhado acima ganha novos matizes. Vários deles praticaram outras
atividades econômicas, paralelamente à pecuária.
Há referências de que, nas décadas de 1830 e 1840, além de criar gado, o
Brigadeiro Olivério José Ortiz atuou como comerciante de tropas que partiam da
Fronteira para as charqueadas do litoral.
63
Na década de 1850, empreendeu também o
comércio de mulas para negociantes que as enviavam à feira de Sorocaba.
64
A
verificação da intensidade e importância da atuação desses senhores como negociantes
de gado é muito difícil de se fazer. O comércio de novilhos entre os produtores da
Campanha e os charqueadores do Litoral podia ser feito de diversas formas. Ocorria
desde a venda direta até a venda por intermediários. Esses negociantes de gado, que
62
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes, m. 15, n. 192, a. 1859. APRS.”
63
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, m. 01, n. 07, a. 1853-7. APRS.”
“AAHRS, vol. 4, 1980, p.p. 128-131.”
64
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes, m. 08, n. 111, a. 1852. APRS”.
56
compravam animais de um ou vários estancieiros e “formavam uma tropa” para entregar
aos charqueadores podiam ser comerciantes do litoral, mas eram, mais comumente,
estancieiros ou comerciantes da própria Campanha. O tipo de negócio era propício para
ser conjugado com a pecuária e podia ser praticado pelos criadores de gado com maior
ou menor freqüência.
Não existia um registro das tropas que saíam da Campanha rumo às
charqueadas, indicando o nome de seus agentes e a freqüência com que atuavam no
negócio. Assim, temos que nos contentar com evidências esparsas, colhidas nas poucas
ações ordinárias de cobrança, registros contábeis e correspondências particulares a que
foi possível ter acesso. Ali aparecem, eventualmente, os nomes de algumas das pessoas
que compravam gado aos estancieiros e os revendiam aos charqueadores. Através
dessas informações podemos saber que, além de Ortiz, pelo menos outros três
afortunados criadores de gado, Feliciano Pereira Fortes, Manoel Joaquim do Couto e
Albino Pereira de Lima, também desempenharam essas atividades, ao menos durante
algum tempo. Este último praticava, ainda, o comércio de mercadorias no leste da
província. Em seu inventário, realizado em 1840, constam 4 estâncias em Alegrete,
casas na vila, uma chácara suburbana e uma casa com armazém em Rio Pardo.
65
inventários em que aparecem valores referentes à “negócios de tropas” do inventariado
com charqueadores, sem ficar claro se tratar de tropas desses estancieiros ou se eles
estavam agindo como negociantes de tropas de terceiros. São os casos de Francisto
Telles de Souza e Manoel José de Carvalho.
66
Por fim, ainda que as dívidas ativas
chegassem a apenas 6% do patrimônio inventariado de Antônio José de Oliveira na data
de seu inventário (1865), a análise das escrituras públicas de Alegrete revela que ele
teve uma atuação constante como prestamista ao longo das décadas de 1840 e 1850,
quando já possuía grandes estabelecimentos pecuários em Alegrete, Uruguaiana e no
Uruguai.
67
Dessa forma, vários daqueles que desenvolviam a criação de gado em grande
escala praticavam também outras atividades em paralelo com ela, ao menos durante
parte de suas vidas. Infelizmente, não há documentos que permitam estudar a
rentabilidade de cada uma dessas atividades, para poder compará-las. Porém, esses
fatores estão de acordo com a afirmação de Stephen Bell, quando refere que os mais
bem sucedidos estancieiros da região da Campanha eram aqueles que diversificavam
65
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes, m. 04, n. 64, a. 1840. APRS”.
66
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, m.01, n. 27 , a.1853-1857. APRS”
“Inventários mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes, m. 5 , n. 69, a. 1846. APRS”
67
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, m 02, n 62, a 1865. APRS.
“Transmissões e Notas. Alegrete. Livros 01 a 05. APRS.”
57
seus investimentos e não os que se restringiam apenas à criação de gado.
68
É
interessante notar o que acontece com relação às dívidas ativas. Os patrimônios com
mais de £ 10.000,00, com exceção de Antônio Joaquim Barbosa - portanto os 15
patrimônios de “estancieiros” - possuíam uma média de 10% de sua composição
formada por dívidas ativas. Ou seja, só ligeiramente superior à média geral, que era de
cerca de 9%. Entretanto, isso era suficiente para que esses 15 casais, que são cerca de
8% do total de inventariados da amostra, apareçam concentrando nada menos do que
48% do valor de todas as dívidas ativas ali presentes.
69
Aqueles senhores ocupavam
uma posição extremamente privilegiada no controle do crédito em Alegrete, através de
negócios de tropa - onde atuavam como intermediários entre os criadores da Fronteira e
os charqueadores e comerciantes do litoral - de atividades prestamistas e, por vezes,
como negociantes de mercadorias. Por seu turno, o comerciante de mercadorias e
prestamista Antônio Joaquim Barbosa possuía, sozinho, 17% do valor total das dívidas
inventariadas. No total, o grupo das 16 maiores fortunas da amostra pesquisada
concentrava 65% de todas as dívidas ativas ali presentes.
70
Assim, a elite econômica de Alegrete tinha um perfil diferente daquela
identificada por Helen Osório para o Rio Grande de São Pedro, em fins do período
colonial.
71
Osório verificou a importante presença de comerciantes entre as maiores
fortunas que estudou, ao lado dos maiores estancieiros. Já em Alegrete, a vasta maioria
dos mais abastados senhores tinha na produção pecuária sua principal atividade
econômica. A primeira razão dessa diferença reside no fato de que Osório trabalhou
com todo o espaço do Rio Grande do Sul colonial, englobando tanto áreas rurais quanto
importantes praças comerciais, como era o caso dos portos de Rio Grande e Porto
Alegre. Alegrete, por sua vez, era uma região francamente rural. Além disso, os
produtores instalados no município estavam fortemente ligados àquelas mesmas praças
mercantis do litoral, e também a centros charqueadores, como Pelotas. A própria
posição da região, nesse sistema, já poderia sugerir o que foi confirmado aqui: uma elite
econômica majoritariamente agrária. A produção pecuária fazia parte de um sistema
onde a acumulação mercantil realmente importante devia se fazer nas praças do leste da
província. Se fossem incorporados inventários de Pelotas, Rio Grande e Porto Alegre
neste trabalho, é muito provável que o perfil das maiores fortunas investigadas fosse
outro, mais comercial, charqueador e urbano.
68
BELL, Stephen. Campanha Gaúcha: a brazilian ranching system, 1998, p. 59.
69
Inventário de Manoel José de Carvalho incluído.
70
Inventário de Manoel José de Carvalho incluído.
71
OSÓRIO, Helen. Estancieiros, Lavradores e Comerciantes na Constituição da Estremadura
Portuguesa na América..., 1999, p.p. 243-250.
58
Todavia, apesar da dominância das atividades pecuárias, não é possível
exagerar a especialização da elite econômica de Alegrete. Mesmo que a quase totalidade
dela fosse formada por pessoas que tinham nas estâncias de criação suas principais
atividades, elas também se envolviam em negócios que lhes permitiam controlar
importante fatia da esfera local do crédito.
72
Como veremos no capítulo “5”, o fato de
que muitos desses sujeitos tinham relações parentais com comerciantes reforçava ainda
mais essa posição.
No que se refere às dívidas passivas, as apreciações ficam prejudicadas pelo
fato de nem sempre todas as dívidas eram listadas nos inventários. Sabe-se disso em
razão da existência de ações de ordinárias de cobrança ajuizadas por credores contra os
espólios ou contra os herdeiros após a partilha.
73
Na larga maioria dos casos, tratavam-
se de credores de fora do município que não haviam tido suas dívidas arroladas no
processo de inventário. Em geral, exerciam suas atividades nas praças mercantis do leste
da província. A mesma verificação ocorreu nos casos em que puderam ser identificados
os credores das dívidas presentes naqueles inventários: grande parte do crédito de que
dispunham os grandes senhores de Alegrete era controlado por comerciantes e
charqueadores aquelas praças do litoral. De qualquer modo, em nada menos do que
metade dos inventários com maiores fortunas não se declarou qualquer dívida passiva.
Entre os que declararam, os percentuais eram baixos, variando entre 3% e 9%, sem
diferença notável entre os sub-períodos. Ainda assim, o desenrolar das sucessões
demonstra que esse grupo era superavitário e sua atividade não tendia a ser engolida por
suas dívidas.
Por outro lado, em sua dissertação de mestrado, Graciela Garcia comparou
as maiores fortunas inventariadas nas décadas de 1830 e 1870, em Alegrete. A autora
salientou as diferenças entre as duas décadas, demonstrando que ocorreu um
enriquecimento dos mais importantes senhores, entre os dois períodos, já que na década
de 1870 havia fortunas superiores a £ 20.000,00, inexistentes 40 anos antes.
74
Essa
afirmação é corroborada pela investigação feita aqui. Pelos dados da tabela “1.6”,
sabemos que só na década de 1850 essas fortunas começaram a aparecer. A principal
razão foi, como já percebera Garcia, a enorme elevação do preço das terras, que
passavam a compor grande parte do patrimônio inventariados após 1850. No restante, as
72
Esse parece ser um traço reiterado dos grandes produtores pecuários rio-grandenses: quatro dos seis
estancieiros que faziam parte da amostra de grandes fortunas trabalhadas por Osório para o Rio Grande
do Sul colonial possuíam também expressivas dívidas ativas. OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e
comerciantes na constituição da Estremadura Portuguesa na América..., 1999, p.p. 244-246.
73
“Ações Ordinárias. Alegrete. APRS.”
74
GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra..., 2005, p.p. 33-35.
59
tendências para as grandes fortunas mostram a diminuição gradativa do percentual
ocupado pelo gado, ao longo do período, e dos escravos principalmente na década de
1860.
Em seu estudo, Graciela Garcia também percebeu que as grandes fortunas do
primeiro período estavam assentadas sobre bens rurais, sobretudo gado e terra, enquanto
na década de 1870, “...as quatro maiores fortunas são compostas, fundamentalmente,
por uma riqueza de bens rurais em outras localidades ou de atividades comerciais no
município.”
75
O estabelecimento de estâncias fora do município, sobretudo no
município vizinho de Uruguaiana e no Uruguai, existia desde antes, e deve mesmo ter
aumentado, em razão do fechamento progressivo da fronteira agrária em Alegrete. Por
sua vez, a presença mais significativa das atividades comerciais entre as maiores
fortunas da década de 1870 tem ressonância no fato de que o único inventário de
características predominantemente “comerciais e usurárias”, o de Antônio Joaquim
Barbosa, aparece apenas na década de 1860. É possível pensar que o encarecimento da
terra e também dos escravos, após 1850, tenha influenciado em uma necessidade maior
de crédito, o que pode ter se refletido na ascensão de fortunas mercantis.
Ao olhar o processo em seu conjunto, pode-se perceber, grosso modo, um
movimento de transformação das formas mais importantes de acumulação existentes
naquela economia. Os cabedais conseguidos fora do mercado - sesmarias, posses por
ocupação simples da terra, preia de gado -, comuns nas primeiras décadas do século
XIX, foram sendo sobrepujados por formas mercantis de acumulação, o que se refletiria
na maior freqüência do capital comercial entre as grandes fortunas, conforme
avançamos na segunda metade do Oitocentos. Esse processo lembra o já detectado para
outras regiões do Brasil colonial e monárquico, como o Rio de Janeiro entre os séculos
XVII e XVIII; e o Grão-Pará em meados do século XIX.
76
Essa foi a direção geral dessas transformações. Porém, não se deve tomá-la
como uma evolução linear, fazendo-se necessário relativizar alguns de seus aspectos.
Em primeiro lugar, é preciso apontar que as formas mercantis de acumulação já
desempenhavam um papel importante nos tempos iniciais da ocupação luso-brasileira
da Fronteira, combinadas com formas não-mercantis. Isso é demonstrado pelo fato de
que, como vimos, alguns dos donos de grandes fortunas praticavam o comércio de gado
e mercadorias já na década de 1830. Ainda, como veremos no capítulo “2”, a formação
75
GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra..., 2005, p.p. 33-35.
76
FRAGOSO, João Luis. Para que Serve a História Econômica? Notas sobre a história da exclusão
social no Brasil, 2002, p.p. 11-19. BATISTA, Luciana Marinho. Muito Além dos Seringais..., 2004.
SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do Império: hierarquias sociais e conjunturas
econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650- c.1750), 2003.
60
dos grandes patrimônios fundiários desses senhores envolvia a compra como uma de
suas formas mais importantes, desde o início do Oitocentos. Além disso, como bem
demonstrou Garcia em seu trabalho sobre os conflitos agrários em Alegrete, as relações
sociais continuaram importantes no estabelecimento e confirmação dos direitos sobre as
terras, século XIX adentro.
77
E mais, como vimos, durante todo o período, parte
importante do crédito local estava nas mãos de sujeitos que tinham seus maiores
investimentos em patrimônios agrários. Por fim, como veremos, um aspecto “não-
econômico” como a ocupação dos comandos militares, mudou de características ao
longo do período estudado, mas não deixou de ser influente na reiteração daquela
hierarquia social.
Tudo isso é corroborado pelo fato de que as principais fortunas, inclusive as
de comerciantes, citadas por Garcia para a década de 1870, pertenciam a sujeitos
inseridos em tradicionais famílias de grandes estancieiros. Esse era o caso, por exemplo,
de Luiz Ignácio Jacques, importante comerciante local e também estancieiro que casou
com Felisberta Maria da Conceição, filha do Capitão Felisberto Nunes Coelho,
estancieiro e comerciante que, apenas no final da vida vendeu seus campos e dedicou-se
ao prestamismo.
78
O mesmo ocorria com Paulino Alves de Souza, cujo pai, Manoel
Alves de Souza, era um comerciante vindo do leste da província que se casara com
Clementina Urbana da Rosa, filha de José Rodrigues da Rosa e Jacinta Rodrigues
Jacques, grandes estancieiros em Alegrete.
79
Assim, a valorização das terras foi importante na reprodução e ampliação da
desigualdade econômica, em Alegrete, mas tal fenômeno não é explicado apenas pela
concentração fundiária nas mãos de grandes terratenentes. Aquele não era um segmento
de rentistas rurais: essa mesma concentração tinha por fim viabilizar o desenvolvimento
da pecuária em larga escala em um sistema extensivo e possibilitar a reprodução da
família nesse ramo de atividade, num contexto onde a fronteira agrária estava se
fechando. Tratavam-se de sujeitos firmemente engajados na produção pecuária que, de
par com ela, desenvolviam outras atividades econômicas relevantes, como os negócios,
sobretudo de tropas, e o prestamismo. Os mais ricos senhores de Alegrete eram sim
estancieiros e, no final do período, também os comerciantes aparecem com mais
freqüência. Porém, como veremos ao longo deste trabalho, mais do que tomarem parte
em grupos profissionais estanques e extremamente especializados, esses sujeitos
estavam inseridos em um contexto familiar de grande relevância e sabiam diversificar
77
GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra..., 2005.
78
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, m. 01, n. 18, a. 1853. APRS”.
79
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes, m. 03, n. 51, a. 1837. APRS”.
61
suas alianças e áreas de atuação. Além disso, precisavam lidar com um contexto de
extrema incerteza institucional, em razão das guerras que teimavam em ressurgir e da
situação instável da fronteira. Se faz necessário, agora, situar esses contexto onde os
sujeitos aqui estudados se inseriam e ajudavam a construir.
1.4 - “Era no tempo nas revoluções” I
Em 1800, a presença portuguesa no sul da América cobria uma faixa que
partia do Oceano Atlântico e chegava até o centro do que hoje é o território do estado do
Rio Grande do Sul. A noroeste, entre as zonas de domínio português e o Rio Uruguai,
ficavam os Sete Povos das Missões Orientais. Em conjunto com as outras reduções
localizadas do outro lado daquele rio, eles formavam os 30 Povos das Missões
Guaraníticas, de domínio espanhol. Ao sul dos Sete Povos, ultrapassando o rio Ibicuí e
chegando até a margem esquerda do rio Negro, localizava-se uma região de ricas
pastagens naturais, com ampla presença de gado, em grande parte alçado ou bravio (ver
fig. 01).
Aquela estava longe de ser uma “terra de ninguém”.
80
Tribos de indígenas
charruas e minuanos faziam daqueles campos a sua morada. Tinham se tornado destros
no manejo do cavalo, arrebanhavam gado e estabeleciam relações que podiam passar do
enfrentamento ao comércio com os assentamentos portugueses, a leste, guaranis, ao
norte/oeste e espanhóis, ao sul.
81
Da mesma forma, havia mais de século que os
guaranis missioneiros utilizavam a região para o estabelecimento de suas estâncias. Não
se tratava simplesmente de arrear gado. Além disso, eles organizavam postos para
amansar as reses e estabelecer o processo de criação. Era o caso, por exemplo, dos
missioneiros de Japejú, o mais meridional dos 30 Povos, que já desdobravam em quatro
suas estâncias na desembocadura do rio Quarai, em 1704.
82
80
Sobre as atividades de arreamento e comércio de gado envolvendo animais vindos daquela área, ao
longo do século XVIII, ver: PORTO, Aurélio. História das Missões Orientais do Uruguai, 1954.
HAMEISTER, Marta Daisson. O Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de
relações e suas mercadorias semoventes, 2002 e GIL, Tiago Luís, Infiéis Transgressores: os
contrabandistas da fronteira (1760-1810), 2003.
81
Sobre alianças do minuanos com o líder Rio-grandense Rafael Pinto Bandeira em fins do século XVIII,
ver: GIL, Tiago Luis. Infiéis Transgressores...,2003.
82
MORAES, María Inés. La ocupación del espacio y la formación de paisajes agrarios en Uruguay,
2006, p.p. 70-71.
62
FIGURA 1 - MAPA MOSTRANDO O RIO GRANDE DO SUL E URUGUAI
Fonte: Adaptado de BELL, Stephen. Campanha Gaúcha..., 1998, p. 22.
Em um texto recente e bastante sugestivo, a historiadora uruguaia María
Inés Moraes propôs uma releitura da ocupação e da construção de paisagens agrárias na
região. Moraes problematiza a corrente majoritária, que tende a ver a ocupação colonial
ao norte do rio Negro como tardia. Ao contrário, a autora propõe um
redimensionamento da importância das atividades dos guaranis missioneiros, dos
demais indígenas e dos diversos súditos das coroas ibéricas que exerciam papéis sociais
e econômicos diversificados naquela área. Sem aceitar a visão daquela como uma zona
bárbara cruzada apenas por indígenas ferozes e malfeitores egressos dos
63
estabelecimentos coloniais, Moraes prefere lançar outra hipótese. Para ela, os diversos
sujeitos envolvidos no povoamento da zona, antes de 1800, já formavam uma base
social primigênita e levavam adiante formas de produção pecuária diversas das
desenvolvidas nas zonas “atlânticas”, como as do entorno de Montevidéu, por exemplo.
Nesse contexto, a autora sugere uma redefinição na questão do contrabando,
que precisa ser analisado à luz da formação de um mercado interior de bens agrários e
de um mercado de trabalho, mesmo que com características muito específicas.
83
Esse
universo se tornaria ainda mais complexo com o avanço dos latifundiários hispânicos
vindos da região ao sul do rio Negro, em fins do Setecentos, e suas disputas por terras e
gado com os povoados missioneiros, enfraquecidos após a expulsão dos jesuítas. Ao
mesmo tempo, ao norte, os portugueses se infiltravam nas franjas daquele território. A
partir das praças de Rio Grande, ao sul e Rio Pardo, a oeste, povoadores seguiam se
estabelecendo nas fronteiras, adentrando nas áreas disputadas com o Império Espanhol.
Em contraposição, os espanhóis montaram um sistema de guardas na fronteira,
contando com um plano elaborado por Félix de Azara, que tencionava criar vilas e
estabelecer um cinturão urbano em toda a fronteira, com o fim de barrar o avanço
português.
84
Apenas uma dessas vilas, de nome Batoví, havia sido fundada quando, em
1801, os acontecimentos na Europa precipitaram os enfrentamentos na América
Meridional.
85
A Espanha invadiu Portugal e tomou a praça de Olivença. O Vice-
Reinado do Rio da Prata autorizou a ação de corsários franceses contra embarcações
luso-brasileiras. Como resposta, os moradores do Rio Grande aproveitaram para
intensificar as hostilidades aos castelhanos na zona de fronteira. Tropas regulares e
milicianas atacaram as guardas espanholas, ao mesmo tempo em que grupos de
particulares investiam contra as Missões Orientais, praticando saques e arreadas de
gado. Os portugueses tomaram, entre outros locais, a vila de Batovi, já deserta quando
de sua chegada. Esse posto lhes deu ampla possibilidade de acesso aos gados da região
ao sul do rio Ibicuí (ver fig. 01).
86
Nesse contexto, dois pequenos grupos formados por
milicianos e voluntários adentraram no território dos Sete Povos das Missões. O
primeiro, liderado por Maneco Pedroso, tomou a Guarda de San Martín e abriu o
83
MORAES, María Inés. La ocupación del espacio…, 2006, p.76.
84
As melhores descrições desse contexto estão em: CAMARGO, Fernando. O Malón de 1801: a guerra
das laranjas e suas implicações na América meridional, 2001. E também em: GOLIN, Tau. A Fronteira.
Governos e movimentos espontâneos na fixação dos limites do Brasil com o Uruguai e a Argentina,, vol.
I, 2002, p.p. 206-207.
85
Tratava-se da vila de Batovi, no local do atual município de São Gabriel, em território brasileiro.
86
CAMARGO, Feranando. O Malón de 1801...,2001.
64
caminho nas defesas missioneiras. O segundo, comandado por Borges do Canto, tomou
o povo de São Miguel, com a ajuda dos próprios guaranis, desgostosos com a
administração espanhola desde a expulsão dos jesuítas.
Os portugueses conservaram o domínio da região dos Sete Povos e, em
1804, um convênio foi firmado entre os dois Impérios, estabelecendo uma fronteira
provisória demarcada através dos rios Ibicuí, Santa Maria, Jaguarão, lagoa Mirim, São
Miguel e Chuí. Os luso-brasileiros não apenas consolidaram suas posições nos Sete
Povos, como também transpuseram o Ibicuí rumo ao sul e começaram a estabelecer
estâncias no local. Por volta de 1810, muitos deles já estavam assentados na região onde
viria a surgir o município de Alegrete, entre os rios Ibicuí e Quarai, quando os
processos revolucionários de independência começaram a sacudir o Prata.
87
Com o estouro das revoluções independentistas no Prata, a campanha da
Banda Oriental foi sublevada sob as tropas do líder José de Artigas. O temor de que as
desordens chegassem também às possessões lusas incentivaram a Coroa a planejar uma
ofensiva em socorro da última autoridade hispano-colonial no Prata, o governador
Francisco Javier Elío, sitiado em Montevidéu. Foi assim que o auto-denominado
“Exército Pacificador”, comandado pelo General Dom Diogo de Souza, Governador da
Capitania do Rio Grande de São Pedro, invadiu a Banda Oriental em 1811.
88
Naquele
mesmo ano, o Vice-Rei Elío firmou um tratado com Buenos Aires e pôde solicitar que
os portugueses se retirassem da Banda Oriental, o que aconteceu somente em agosto de
1812.
89
Contudo, essa retirada não significou o retrocesso dos luso-brasileiros para o
norte do Ibicuí.
Em sua obra sobre a fixação da fronteira entre Brasil e Uruguai, Tau Golin
apontou que as operações desenvolvidas durante a ocupação de 1811-12 acabaram por
assegurar a apropriação luso-brasileira do território localizado entre os rios Ibicuí e
Quaraí. Segundo o autor:
“Durante a entrada do Exército Pacificador, a sua segunda divisão, formada
por aproximadamente oitocentos homens de cavalaria, foi empregada na
‘guarnição da fronteira designada pelo Quaraí e empregada na polícia do
território que lhe era adjacente’. Esse contingente militar teve uma missão
decisiva para a conquista territorial. Fez a ‘faxina’ do que poderia significar a
presença espanhola e hispano-platina na região. ‘Expeliu dali, não só a
diversos magotes de bandidos [gaúchos] que o infestavam, [...] como as
87
GOLIN, Tau. A Fronteira..., vol. I, 2002, p.p. 209-243; 256-258.
88
MONIZ BANDEIRA, Luis Alberto. O Expansionismo Brasileiro e a formação dos Estados na Bacia
do Prata, 1985, p.p. 41-42.
89
GOLIN, Tau. A Fronteira..., vol. I, 2002, p. 275.
65
hordas de minuanos e charruas que se achavam acoitadas na serra do Jarau e
suas cercanias, fazendo dali sortidas em diversos sentidos’.”
90
Dessa forma, o “Exército Pacificador” submeteu populações designadas
como volantes e também reduziu a presença de indígenas charruas e minuanos,
conseguindo tornar firme a ocupação até a margem direita do rio Quarai, onde hoje está
a linha de fronteira entre Brasil e Uruguai. A ocupação estável da região foi estimulada,
foram realizadas enormes arriadas de gado e sesmarias foram distribuídas.
91
Assim, o
avanço territorial também vinha ao encontro do interesse dos rio-grandenses engajados
na campanha militar de 1811-12. A ampliação dos mercados para o gado bovino, que
desde fins do século XVIII eram interessantes não somente pelo couro, mas também
pelo charque, incentivava a busca de novas terras e de rebanhos a arrear ou saquear. A
produção pecuária era feita em bases extensivas, tendo necessidade de constante
incorporação de fatores produtivos, como a terra e o próprio gado, para se expandir. A
conquista, os saques e a ocupação sistemática de vastas áreas de boas pastagens nas
planícies disputadas com os castelhanos significava a abertura de uma nova fronteira
agrária, que vinha desafogar e ampliar as possibilidades daquele sistema extensivo e da
economia sulina como um todo.
Porém, José Gervasio Artigas voltou à carga e tomou Montevidéu, em 1815.
Alarmado pelos planos de distribuição de terras do líder oriental e por suas pretensões
de reclamar o território missioneiro, e embalando seu velho sonho de controlar uma das
margens do Rio da Prata, o Império Português planejou nova invasão à Banda Oriental.
Em 1816, as forças comandadas pelo General Lecor se puseram em marcha. Parte delas
era formada por soldados regulares e milicianos rio-grandenses, destros no tipo de
guerra que se desenvolvia no pampa, baseado em rápidas e incisivas cargas de
cavalaria.
92
Os combates se deram em várias frentes, com vantagens para as tropas de
Lecor, que entrou em Montevidéu a 20 de janeiro de 1817.
93
Em 1819, o cabildo de
90
GOLIN, Tau. A Fronteira..., vol.I, 2002, p. 268. As partes dentro da citação que estão entre aspas
simples correspondem à uma fonte primária citada pelo autor. Trata-se de uma memória histórica:
MACHADO DE OLIVEIRA, J.J. “Memória Histórica sobre a questão de limites entre o Brazil e
Montevidéu.” Revista do Instituto Histórico e Geográphico do Brazil. Rio de Janeiro. Imprensa Nacional,
tomo XVI, tomo 3º. da terceira série [3ª. série, n. 12, 4º. trim., 1853], 1894, p.410.
91
MONIZ BANDEIRA, Luis Alberto. O Expansionismo Brasileiro ..., 1985, p. 42. Ver também:
BARRÁN, Jose Pedro; NAHUN, Benjamín BARRÁN, Jose Pedro; NAHUN, Benjamin. Bases
económicas de la revolución artiguista, 1972.
92
GOLIN, Tau. A Fronteira..., vol. I, 2002, p.p.282-293.
93
MONIZ BANDEIRA, Luis Alberto. O Expansionismo Brasileiro ..., 1985, p. 46. Sobre a estrutura
econômica da Banda Oriental no período colonial e independentista ver: SALA DE TOURON, Luzía; DE
LA TORRE, Nelson; RODRÍGUEZ, José Carlos. Estructura económico-social de la colonia., 1967. ___.
Artigas: tierra y Revolución. Montevidéui: Arca,, 1967. FREGA, Ana
66
Montevidéu formalizou um acordo com as tropas de ocupação. Em troca do custeio da
construção de um farol na Ilha das Flores e do perdão de dívidas, os cabildantes
passavam ao Brasil a fortaleza de Santa Teresa, o forte de São Miguel e, o que interessa
mais diretamente a esta tese, o vasto espaço de ricas pastagens localizadas entre os rios
Quaraí e Arapeí. Esses campos já vinham sendo ocupados por luso-brasileiros desde o
início da invasão (1816) e, logo após a convenção de 1819, passaram a ser
redistribuídos, preferencialmente a militares que tivessem prestado serviços naquela
mesma guerra. Tais procedimentos enraizaram fortemente os interesses dos estancieiros
rio-grandenses na zona entre aqueles dois rios, região essa que, após a independência do
Uruguai (1828), ficaria pertencendo àquele país e fazendo divisa com o Império do
Brasil, exatamente com município de Alegrete. A apropriação de terras e os saques de
gado efetuados na região, entre 1816 e 1819, tiveram grande importância na formação
dos vastos patrimônios pecuários construídos pelos estancieiros rio-grandenses.
94
Enquanto isso, apesar da oposição da Inglaterra, da Espanha e dos Estados
Unidos e mesmo com resistências internas, o governo português decidiu levar adiante
seus planos de anexação oficial da Banda Oriental. Em 1821, os representantes do
cabildo de Montevidéu e o General Lecor formalizaram a incorporação da região ao
Império Português, sob a denominação de Província Cisplatina.
95
A divisória entre a
Cisplatina e o Rio Grande do Sul foi fixada no Quarai. Assim, a zona recém ocupada
pelos portugueses, que ia desse rio até o Arapeí, voltou ao domínio de Montevidéu.
Contudo, não apenas Lecor, mas também o governo do Rio Grande continuou a fazer
doações de terras naquela área, embora ela não estivesse mais sob sua jurisdição.
96
Com
a independência do Brasil, em 1822, a Província Cisplatina foi incorporada ao novo
Império, embora a disputa entre tropas leais a Portugal e aquelas partidárias da
Independência, somente tenha se resolvido em 1824, favoravelmente a estas últimas,
comandadas por Lecor. Os brasileiros aproveitaram a conjuntura favorável e, além das
arreadas e saques de guerra, passaram a instalar estâncias e se tornaram majoritários em
várias regiões da metade norte da Banda Oriental, acima do Rio Negro.
97
Em 1825, forças orientais e tropas vindas das províncias argentinas
começaram uma guerra para libertar a Banda Oriental do jugo brasileiro.
98
Em
princípio, o desejo dos revoltosos era de incorporação da região às Províncias Unidas do
Rio da Prata. No entanto, no desenrolar dos conflitos a idéia da transformação da Banda
94
GOLIN, Tau. A Fronteira..., vol 01, 2002, p.p.321-327.
95
MONIZ BANDEIRA, Luis Alberto. O Expansionismo Brasileiro ..., 1985, p.p. 46-47.
96
GOLIN, Tau. A Fronteira..., vol 01, 2002, p.330.
97
GOLIN, Tau. A Fronteira..., vol 01, 2002, p.p. 95-113.
98
MONIZ BANDEIRA, Luis Alberto. O Expansionismo Brasileiro ..., 1985, p. 47.
67
Oriental em um país independente começou a ganhar força, contando com a mediação
da Inglaterra, cujos interesses comerciais visavam o mais rápido restabelecimento da
paz, e a quem não interessava que o Brasil ou a Argentina tivessem excessivo controle
sobre o Prata.
99
Em um dos lances mais importantes da guerra, o General Rivera
promoveu uma bem sucedida incursão no território “brasileiro” dos Sete Povos das
Missões. Sua retirada foi uma condição para que o Brasil assinasse o tratado de paz e a
independência da República do Uruguai pudesse ser efetivada. Rivera desocupou a
região sob protesto, mas levou consigo milhares de guaranis missioneiros e vastos
rebanhos de gado.
100
Em 1828, a Convenção Preliminar de Paz determinava que a divisa
provisória entre os dois Estados seria dada, a oeste, pelo rio Quaraí, o que estava de
acordo com os antigos limites entre as províncias do Rio Grande do Sul e Cisplatina. No
entanto, o tratado de paz não definiu oficialmente a linha de fronteira, adiando para data
incerta a solução definitiva da questão dos limites entre os dois países.
101
Para o tema específico desta tese, é importante perceber que a República
Oriental do Uruguai nascia tendo sua metade norte fortemente conectada à região mais
meridional do Brasil. Acima do Rio Negro, estavam instalados inúmeros estancieiros
brasileiros e as reses criadas naquele espaço tinham como principal mercado as
charqueadas rio-grandenses. Muitos dos estancieiros domiciliados no Brasil, por sua
vez, possuíam também terras, parentes ou relações comerciais no “Estado Oriental”,
como passava a ser denominado o Uruguai em quase todos os documentos que os rio-
grandenses produziram ao longo do século XIX. Nesse contexto, o controle sobre os
limites nacionais e a possibilidade de trânsito de gado e mercadorias de um a outro
Estado estaria na ordem do dia para os moradores daquela zona fronteiriça e assumiria
grande importância para a economia rio-grandense, assentada principalmente na
exportação de charque e couros.
O município de Alegrete, estudado especificamente neste trabalho, tinha seu
limite meridional exatamente no rio Quarai (ver fig. 02). Como vimos, passando esse
rio até chegar ao Arapeí, ficava uma região de ricas pastagens onde houvera uma
distribuição estatal de terras aos brasileiros e que seria reivindicada por setores da
burocracia e da sociedade imperial durante as discussões sobre as fronteiras de ambos
os países, ao longo do Oitocentos. Como veremos, adiante, a análise dos processos
históricos ocorridos nas terras meridionais do Império não podem prescindir da
99
MONIZ BANDEIRA, Luis Alberto. O Expansionismo Brasileiro ..., 1985, p.p. 53-54.
100
Esses guaranis fundaram a colônia de Bella Unión, próxima à confluência dos rios Quarai e Uruguai,
do lado uruguaio do limite nacional. CAMARGO, Fernando. O Malón de 1801...,2001.
101
GOLIN, Tau. A Fronteira..., 2002, p.p. 145-153.
68
percepção de que aquele espaço estava inserido em uma ampla região de fronteira e que
era, em muito, influenciado por essa condição.
A incorporação de terras e animais realizada nessas três primeiras décadas
do século XIX atuou como um catalizador da expansão pecuária que transformou a
Fronteira na grande zona de criação de gado da recém criada província do Rio Grande
de São Pedro do Sul. O charque havia se tornado dominante nas exportações sulinas já
na década de 1790, fornecendo um impulso ainda maior a esse processo.
102
A pecuária
que se expandia e a exportação de charque que lhe dava vazão, ao longo de todo o
século XIX, foram atividades mercantis voltadas, primordialmente, para o mercado
interno brasileiro. O Rio Grande do Sul articulava-se a esse mercado enviando charque,
couros e, até 1820, também trigo para os portos de Salvador, Recife e, principalmente,
para o Rio de Janeiro. De lá, adquiria escravos e produtos importados.
103
Em uma
ligação que ganhou maior expressão no início do século XIX e manteve-se firme no três
primeiros quartéis daquele século, o charque rio-grandense desempenhou papel
relevante na reprodução das relações escravistas das áreas de plantation articuladas com
as praças mercantis para as quais a carne salgada era comercializada.
104
Assim, essa “Idade do Ouro” da exportação de produtos pecuários do Rio
Grande do Sul, nas duas primeiras décadas do século XIX foi, em muito, propiciada
pelo processo de conquista dos territórios disputados com o Império Espanhol e pela
possibilidade da apropriação privada de vastas áreas de terra e grandes manadas de
gado. Esse processo, somado à consolidação das exportações de charque, traduziu-se
também em uma maior especialização da pecuária bovina frente aos outros tipos de
criação presentes nas estâncias. Em seu estudo sobre o Rio Grande de São Pedro no
período colonial, trabalhando a partir da análise de 185 inventários post mortem de
estabelecimentos que possuíam mais de 100 reses de gado vacum, Helen Osório traçou
a evolução da participação dos diversos tipos de rebanhos nas estâncias, entre 1765 e
1825.
105
Entre 1765 e 1785, o gado vacum perfazia cerca de 65% dos animais da
amostra e em torno de 50% do valor total dos rebanhos analisados. No período seguinte,
de 1790 a 1810, os bovinos haviam alcançado os 70% tanto do gado como do montante
102
GOLIN, Tau. Fronteira, 2002. OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na
constituição da Estremadura Portuguesa na América....., 1999.
103
CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX, 1983. FRAGOSO,
João Luis, 1998. OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da
Estremadura Portuguesa na América..., 1999.
104
FRAGOSO, João, A economia brasileira no século XIX: mais do que uma plantation escravista
exportadora, 1990, p.p. 179-180.
105
OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da Estremadura Portuguesa
na América..., 1999.
69
de valores. Por fim, entre 1815 e 1825, o gado vacum atingiu 84% dos animais e 89%
do valor do conjunto de rebanhos da amostra inventariada. Esse movimento rumo a uma
maior especialização da pecuária bovina deu-se em detrimento da presença de eqüinos e
muares, expressivos em meados do século XVIII. Por outro lado, embora não haja uma
análise do tamanho médio dos rebanhos pertencentes aos produtores nesse período
específico (1815-25), é possível entrever seu crescimento quando a autora afirma que os
três maiores rebanhos da amostra, possuindo entre 20.000 e 25.000 reses, pertenciam a
criadores que tiveram inventários abertos nesse último decênio.
Foi em meio a esse contexto que, segundo a tradição, o Tenente-coronel
José de Abreu, um dos mais importantes líderes militares e sesmeiros das novas áreas,
instalou uma povoação e erigiu uma capela às margens do rio Inhanduí, em 1812.
106
Quatro anos depois, porém, uma incursão das forças do líder oriental José Artigas
destruiu e incendiou o povoado. Em 1817, sob as ordens do Marquês do Alegrete,
governador da capitania, José de Abreu refundou a povoação agora sobre as margens do
rio Ibirapuitã.
107
O povo reergueu a capela, que recebeu o nome de Nossa Senhora da
Conceição Aparecida do Alegrete, em homenagem ao marquês. Em 1817, o bispado do
Rio de Janeiro reconheceu oficialmente a instituição canônica da capela. Em 1831,
Alegrete foi elevada à categoria de Vila, assumindo a condição de sede de município,
deixando de pertencer ao de Cachoeira.
108
Em 1846 e 1857, dois de seus distritos mais
distantes, Uruguaiana e Santana do Livramento, emanciparam-se.
109
Para os efeitos
deste trabalho, seus territórios não estão incluídos na área privilegiada para a análise.
Ainda assim, a área do município de Alegrete cobria uma vasta extensão no sudoeste da
província do Rio Grande do Sul, partindo do rio Ibicuí, ao norte, até o rio Quarai, ao sul,
na divisa com a República do Uruguai.
106
José de Abreu, nascido em Maldonado, na Banda Oriental, em 1771, veterano das Guerras Cisplatinas,
chegou a Marechal de Campo Graduado, foi agraciado com o título de Barão de Cerro Largo e faleceu na
Batalha do Passo do Rosário, em 1828. Segundo consta na memória oficial, morreu alvejado por engano
por suas próprias tropas, no entrevero da batalha. SPALDING, Walter. Construtores do Rio Grande,
1978.
107
O fidalgo português Dom Luís Telles da Silva Caminha e Menezes foi o 5º e último Marquês do
Alegrete. Assumiu o Governo da Capitania do Rio Grande de São Pedro em substituição a Dom Diogo de
Souza, em 1814. SPALDING, Walter. Construtores do Rio Grande, 1978.
108
Quando de seu reconhecimento oficial, em 1817, a capela de Alegrete passou a integrar o município de
Rio Pardo. Em 1819, Cachoeira emancipou-se deste último e levou consigo a capela de Alegrete. Em
1831, Alegrete tornou-se sede de município. FEE. De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do
Sul, 1981, p. 11.
109
FEE. De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul, 1981, p.p. 23 e 30.
70
FIGURA 2 - MAPA DOS MUNICÍPIOS DO RS, POR VOLTA DE 1850.
Fonte: Adaptado de FELIZARDO, Julia Netto. Evolução administrativa do RS, s/d, p. 19.
1.5 - “Era no tempo nas revoluções” II
Após o final da guerra que resultou na independência da República do
Uruguai, em 1828, o Rio Grande do Sul experimentou sete fugazes anos de paz. Porém,
não foram exatamente anos tranqüilos: as disputas no Uruguai, entre os chefes político-
militares Rivera e Lavalleja, envolviam lideranças rio-grandenses e colocavam a
Fronteira em constante sobressalto. Mesmo pensando apenas no contexto do Rio
Grande de São Pedro, aquele período foi apenas a calmaria que precede o temporal. Em
1835, a Revolução Farroupilha sacudiu a província e a manteve como palco de guerra
por mais dez anos. O Brasil vivia o processo instável de construção e consolidação do
Estado Imperial. Se é verdade que a preservação da monarquia havia podido realizar o
processo de independência com a manutenção de um poder legítimo, não é menos certo
que a direção e a forma que iriam tomar o(s) Estado(s) que se construía(m) nada tinha
71
de indiscutível e definitivo. A própria unidade territorial do jovem país já havia sido
ameaçada com a Confederação do Equador e, depois, com revoltas que tiveram seu
início já no período regencial como a Cabanagem, no Pará (1835-1840) e a Sabinada, na
Bahia (1837-1838). Foi nesse contexto que parte da elite rio-grandense revoltou-se, em
1835, dando início à mais longa rebelião enfrentada pelo Império.
Não cabe aqui fazer uma análise exaustiva da Revolução Farroupilha, sobre
a qual já existe uma importante e variada produção historiográfica.
110
No capítulo “4”
tratarei com mais detalhe das formas como a elite estudada envolveu-se na guerra e
buscou obter algum controle sobre a situação de belicismo aberto que ela trazia. Por ora,
basta pontuar rapidamente seus principais momentos e características. Os fatores que
convergiram na eclosão do movimento foram variados. Em primeiro lugar, havia a
revolta dos produtores rio-grandenses com a política fiscal do Império. Como os
principais mercados do charque estavam localizados nas regiões brasileiras de
plantation, especialmente na zona cafeeira que começava sua expansão, a tendência da
política central era buscar baixar os preços desse produto, para diminuir os custos de
produção daquele que se tornava o principal produto da economia nacional. Isso ia de
encontro aos interesses sulinos, que pediam medidas protecionistas para a carne salgada.
Segundo Spencer Leitman, o charque rio-grandense pagava um imposto final de cerca
de 25% além do valor original, enquanto os competidores platinos pagavam 4%.
111
No
Uruguai, ao contrário do que ocorria no Brasil, a exportação de produtos pecuários era o
principal fator da economia e contava com os favorecimentos de seu governo.
112
De fato, como já notaram diversos autores, a competição platina sempre foi
um terrível contraponto para a produção charqueadora do Rio Grande. Entre outros
aspectos, a carne do gado uruguaio era reconhecidamente de qualidade superior. As
melhores épocas para as exportações da província foram aquelas em que a economia
charqueadora platina enfrentava problemas decorrentes de suas várias guerras internas
110
Entre outros: VARELA, Alfredo. História da Grande Revolução; o ciclo farroupilha no Brasil. Porto
Alegre: Globo, 1933. 6 volumes. FLORES, Moacyr. Modelo Político dos Farrapos. Porto Alegre:
Mercado Aberto, 1978. LAYTANO, Dante de. História da República Rio-grandense (1835-1845). 2ª. ed.
Porto Alegre: Globo, 1983. LEITMAN, Spencer. Raízes Sócio-econômicas da Guerra dos Farrapos,
1979. GUAZZELLI, César Augusto. O Horizonte da Província: a República Rio-grandense e os
caudilhos do Rio da Prata (1835-1845), 1998. DACANAL, José Hildebrando (org.). Revolução
Farroupilha: história e interpretação, 2ª. ed., 1997. PICCOLO, Helga. O Discurso Político na Revolução
Farroupilha, 1986-87. PESAVENTO, Sandra. Farrapos, Liberalismo e Ideologia, 2ª. ed., 1997.
PADOIN,
Maria Medianeira. Federalismo Gaúcho: fronteira platina, direito e revolução, 2001.
111
LEITMAN, Spencer. Raízes Sócio-econômicas da Guerra dos Farrapos, 1979, p. 137.
112
GUAZZELLI, César Augusto. O Rio Grande de São Pedro na primeira metade do século XIX:
Estados Nações e Regiões-províncias no Rio da Prata, 2004, p. 99.
72
ou de bloqueios aos seus portos.
113
Ainda na questão fiscal, o descontentamento
também se localizava no manejo de recursos pelo governo imperial e no aumento dos
impostos. No início da década de 1830, o Rio Grande do Sul vinha acumulando um
superávit anual em relação ao governo central, mas tal excedente não podia ser usado
pela província para obras públicas e nem mesmo para saldar as várias dívidas do
Império para com rio-grandenses, acumuladas no sustendo da guerra que findara em
1828. Ao contrário, esses recursos eram utilizados para cobrir o déficit de outras
províncias e saldar dívidas do governo central com outros credores.
114
Essas
insatisfações se somavam às geradas pela perda da Cisplatina, em 1828, que muitos rio-
grandenses atribuíram à uma direção desastrosa nos campos de batalha por parte dos
oficiais vindos de fora da província e, especialmente, ao comando do Marquês de
Barbacena.
115
Havia, ainda, outras duas motivações, interligadas: a questão do controle
sobre a recente fronteira nacional que se formara com a independência do Uruguai, em
1828; e as rivalidades políticas internas ao Rio Grande do Sul. Como vimos, as boas
pastagens da metade norte da república uruguaia abrigavam inúmeros estabelecimentos
pertencentes a brasileiros. O livre fluxo de mercadorias e, acima de tudo, de gado
através da linha de fronteira era essencial para os grandes produtores, que possuíam
terras nos dois lados. Por sua vez, os charqueadores rio-grandenses necessitavam da
entrada de gado vindo do norte do Uruguai, mas não viam com bons olhos o trânsito de
animais no sentido contrário.
116
O governo imperial começou a intervir mais
decisivamente nessas questões e passou a cobrar impostos sobre o trânsito de
mercadorias e de gado na fronteira.
117
Além disso, os principais líderes da Fronteira agiam com muita
independência na tessitura de alianças com chefes uruguaios, nem sempre respeitando a
política designada pelo governo central.
118
O Comandante das Armas da província,
General Sebastião Barreto, esforçava-se por um apoio a Rivera, então presidente
daquela república, enquanto o Coronel Bento Gonçalves, Comandante da Fronteira de
113
CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX. 1983, p.p. 22-77.
BELL, Stephen. Campanha Gaúcha: a brazilian ranching system, 1850-1928, 1998, p.p. 67-81.
114
Para uma análise mais detalhada sobre as motivações econômicas dos descontentamentos que
formaram parte da Revolução Farroupilha, ver: LEITMAN, Spencer. Raízes Sócio-econômicas da Guerra
dos Farrapos, 1979, p.p. 123-147.
115
GUAZZELLI, César Augusto. O Horizonte da Província..., 1998.
116
Sobre o tema ver também: CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século
XIX, 1983, p.p. 81-83.
117
LEITMAN, Spencer. Raízes Sócio-econômicas da Guerra dos Farrapos, 1979, p.p. 133-136.
118
Sobre essas alianças entre lideranças político-militares rio-grandenses e orientais na primeira metade
do século XIX, ver: GUAZZELLI, César Augusto. O Horizonte da Província..., 1998.
73
Jaguarão, líder liberal farroupilha e influente membro da maçonaria, insistia em apoiar e
dar guarida ao opositor Lavalleja. Bento Manuel Ribeiro, Comandante da Fronteira de
Alegrete, como de hábito, oscilava entre os dois pólos, tendendo mais para Rivera. Essa
independência de atitude dos comandantes regionais contribuía para que eles se
tornassem perigosos para a estabilidade dos interesses imperiais. O presidente da
província, Antônio Fernandes Braga, havia sido aliado de Bento Gonçalves, mas eles
acabaram por se afastar em razão das ações de Bento em apoio a Lavalleja, das
suspeitas de sedição que lhe recaíam e da tendência cada vez mais conservadora que o
governo de Braga ia tomando. Em 1834, Sebastião Barreto, que era o Comandante das
Armas nomeado por Braga, retirou os dois Bentos dos seus respectivos comandos de
Fronteira. A medida fez com que Bento Manuel compactuasse com os liberais
farroupilhas, que também conseguiram a adesão de outros chefes do interior.
119
Em 1835, eles marcharam contra Porto Alegre, tomando a capital em 20 de
setembro. A maior parte do exército de primeira linha se manteve fiel ao Império, mas
se encontrava muito enfraquecido. O governo regencial vinha resistindo em reforçar o
exército no sul e seu principal contingente concentrou-se em Porto Alegre. Isso facilitou
a vitória dos farroupilhas no interior. Uma vez tomada a capital, eles destituíram
Fernandes Braga da presidência da província e assumiram o comando. Nesse primeiro
momento, os revoltos não falavam abertamente em república, deixando sempre claro
que aquele era um movimento contra o presidente Braga e seu grupo. O Regente Feijó
nomeou, então, para a presidência da província, José de Araújo Ribeiro, um rio-
grandense de importante família do litoral, com ramificações parentais na Fronteira. Em
dezembro de 1835, o novo presidente chegou ao Rio Grande do Sul, mas a Assembléia
Provincial não lhe deu posse. Ele refugiou-se em Rio Grande e assumiu a presidência
naquele cidade. Aproveitando-se do ato irregular de Araújo Ribeiro, os rebeldes
declararam que sua autoridade não era legítima e se recusaram a aceitá-la. A partir
daquele momento, a revolução entrou em uma segunda fase. Alguns dos líderes dos
primeiros tempos, como os coronéis Bento Manuel Ribeiro, Olivério Ortiz e Manoel
dos Santos Loureiro recusaram-se a seguir ao lado dos revoltosos, sob o argumento de
que o principal motivo da revolta havia cessado (a deposição de Braga). Passaram,
então, a cerrar fileiras ao lado dos legalistas (como eram chamados os que defendiam as
forças imperiais durante o conflito).
120
119
LEITMAN, Spencer. Raízes Sócio-econômicas da Guerra dos Farrapos, 1979, p.p. 71-77; 103-121.
GUAZZELLI, César Augusto. O Rio Grande de São Pedro na primeira metade do século XIX..., 2004,
p.p. 102-104.
120
LEITMAN, Spencer. Raízes Sócio-econômicas da Guerra dos Farrapos, 1979, p.p. 30-31.
74
Os embates se sucederam, envolvendo, entre outros eventos, a recuperação
de Porto Alegre pelas forças leais ao Império. Em contrapartida, em pleno campo de
batalha, em 11 de setembro de 1836, os farroupilhas declararam a independência do Rio
Grande, sob a forma republicana. Os farroupilhas acumularam vitórias até cerca de 1840
e chegaram a declarar uma efêmera república também no sul da província de Santa
Catarina. Na República Rio-grandense, eles criaram órgãos de governo e controlavam
toda a Campanha, mas não conseguiram jamais efetivar um domínio estável sobre as
principais praças e portos do litoral, como Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande. Alegrete
esteve em meio ao teatro de guerra. A vila consistiu na última das três capitais da
República Rio-grandense, ocupando o posto entre 1840 e 1845.
121
O início da década de 1840 trouxe dificuldades para os farroupilhas e houve
um revigoramento nas forças imperiais. Em 1843, com o Barão de Caxias no comando
das operações e a volta do oscilante Bento Manuel Ribeiro às hostes legalistas, os
imperiais retomaram as principais vilas da Campanha. Entretanto, os farroupilhas
seguiam resistindo, escondendo-se no Uruguai e atacando de surpresa. As autoridades
do Império temiam que aquela resistência pudesse durar ainda muito mais tempo. O
Prata estava em ebulição e o poder do governador de Buenos Aires, Juan Manoel de
Rosas seguia sendo um perigo reconhecido pela Corte quando esta voltava seus olhos
para o sul. Nesse contexto, a pacificação do Rio Grande era mais do que necessária para
que a segurança dos interesses do Império na região. Ao mesmo tempo, os farroupilhas
estavam divididos. O Barão de Caxias começou a negociar o final do conflito com o
comando rebelde. Em 1º. de março de 1845, a paz foi assinada. Os revoltosos receberam
concessões como parte do acordo. O governo imperial assumiria as dívidas da extinta
República, os oficiais farrapos manteriam seus postos e seriam incorporados ao exército
brasileiro, além de terem direito de escolher o próximo presidente da província.
122
No que se refere à sua base social, é difícil associar estritamente a rebelião
com algum grupo específico. Não há dúvida de que ela teve grande adesão entre os
estancieiros da Campanha, estando ligada ao descontentamento desse grupo com a
política fiscal do Império. Ao mesmo tempo, como lembrou Spencer Leitman, os
comerciantes e charqueadores do litoral estiveram divididos. Todavia, aqui, não se pode
ceder ao esquematismo excessivo. Entre os próprios líderes da revolta, existia uma
grande heterogeneidade de perfis sociais, políticos e mesmo de motivações para a
adesão. No que se refere aos grupos sociais, havia estancieiros da região de fronteira,
121
LEITMAN, Spencer. Raízes Sócio-econômicas da Guerra dos Farrapos, 1979, p.p. 32-34.
122
LEITMAN, Spencer. Raízes Sócio-econômicas da Guerra dos Farrapos, 1979, p. 47.
75
sim, mas havia também militares de primeira linha, que eram de fora da província. Junto
com eles, estavam charqueadores, magistrados, padres e aventureiros revolucionários
italianos. O grosso dos combatentes era formado pelos subalternos: pequenos e
medianos produtores, peões, escravos. Ainda carecemos de uma pesquisa que enfoque
com a devida especificidade a participação desses sujeitos na revolução: suas formas de
recrutamento, as coações sofridas, suas motivações para adesões voluntárias. Por outro
lado, os estancieiros da Campanha também tiveram destaque nas forças legalistas, como
foi o caso de João da Silva Tavares, estancieiro na região de Bagé, Francisco Pedro de
Abreu, que tinha terras em Uruguaiana, e o próprio Bento Manuel Ribeiro, de Alegrete.
No tocante às posições políticas, os “rio-grandenses” (era assim que os
revoltosos se designavam) também discordavam entre si. A formação de um país
independente e o republicanismo esteve longe de ser uma unanimidade entre eles. O
federalismo e as pretensões de maior autonomia para a província, sim, estiveram mais
disseminados entre aquelas lideranças. Por sua vez, entre a maioria delas, não havia
ímpetos de reforma social. A República Rio-grandense prometia liberdade aos escravos
que lutassem ao lado da revolução, mas jamais promoveu uma abolição da legislação
escravista.
De outra parte, a Revolução Farroupilha deve ser vista no contexto da
efervescência política e militar que caracterizava o Prata, na primeira metade do século
XIX.
123
Esse foi um período de construção dos Estados platinos, assim como do Brasil.
Seria anacrônico pensar em todas essas entidades como Estados nacionais
consolidados.
124
Na verdade, aquela era uma época onde projetos nacionais diversos
conviviam, entravam em disputa e eram negociados entre diferentes forças sociais e em
estreito contato com os processos ocorridos em terras vizinhas. A própria revolta
farroupilha foi vista, não apenas por seus chefes, mas também por lideranças platinas,
como possibilidades para consecução de diferentes projetos nacionais, consubstanciados
123
Alfredo Varela foi o autor do primeiro estudo de peso que apontou a vinculação da Revolução
Farroupilha com o contexto platino e defendeu francamente que os rebeldes tinham intenções separatistas.
Publicado na década de 1930, seu trabalho gerou importante polêmica com historiadores da matriz
lusitana como Souza Docca, Aurélio Porto e Othelo Rosa. Estes, empenhados em marcar o precoce
pertencimento do Rio Grande do Sul ao Brasil, não aceitavam que os platinos pudessem ter tido ampla
influência tanto na formação cultural dos rio-grandenses quanto nas raízes de sua insurgência contra o
governo imperial. Sobre esses debates ver: GUTFREIND, Ieda. A historiografia rio-grandense, 1992.
GUAZZELLI, César Augusto. O Horizonte da Província..., 1998.
124
Ver: CHIARAMONTE, José Carlos. Ciudades, Provincias, Estados: orígenes de la nación argentina
(1800-1840), 1997. FREGA, Ana. Apuntes para el estudio del federalismo en la revolución rioplatense
(1810-1820), 1994. FERREIRA, Gabriela Nunes. O Rio da Prata e a Consolidação do Estado Imperial,
2006.
76
em federações ou confederações que podiam envolver o Rio Grande, o Uruguai,
algumas províncias argentinas ou todas elas e até mesmo o Paraguai.
125
Eram freqüentes as relações pessoais dos chefes rio-grandenses com os
platinos, a circulação de idéias federalistas e independentistas naquele espaço de
fronteira, bem como vicejavam os exemplos de construção de poderes soberanos.
126
O
Império não era alheio aos planos dos líderes platinos de fomentar a revolta no Rio
Grande do Sul, existentes desde o início do processo de independências sul-americanas.
Nesse sentido, a estreita aliança de Bento Gonçalves com o líder oriental Lavalleja,
aprofundada desde fins do conflito pela independência uruguaia, constituía uma
reconhecida ameaça.
127
Por outro lado, no Rio Grande, a maçonaria também servia de
canal para a difusão das idéias liberais e republicanas.
128
Tudo isso contribuiu para
abastecer o variado substrato ideológico que permitia aos farroupilhas desenhar seu
projeto de Estado ou construir as bases sobre as quais balizariam suas negociações com
o poder Imperial.
129
Por outro lado, os acordos mutáveis dos legalistas e dos
farroupilhas com lideranças uruguaias e das províncias argentinas, desde antes da
revolta até o seu final, foram elementos centrais para a definição dos rumos que o
conflito ia tomando. Suprimentos, cavalos, munição, soldados, esconderijo, promessas e
proteção circulavam de lado a lado, em uma economia bélica essencial para a
manutenção das guerras na região.
130
De fato, se deste lado da linha de fronteira aqueles foram anos turbulentos,
ao sul do Quaraí a situação estava ainda pior. A campanha uruguaia nunca esteve livre
de sobressaltos ao longo da década de 1830. Os “blancos” comandados pelo General e
ex-presidente Manoel Oribe, apoiado pelos federalistas de Buenos Aires, especialmente
por seu governador Juan Manoel de Rosas, iniciaram sua insurreição em 1839, com
125
Ver: GUAZZELLI, César Augusto. O Horizonte da Província..., 1998. MAGNOLI, Demétrio. O
Corpo da Pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912), 1997.
126
GUAZZELLI, César Augusto. O Rio Grande de São Pedro na primeira metade do século XIX..., 2004.
127
LEITMAN, Spencer. Raízes Sócio-econômicas da Guerra dos Farrapos, 1979, p.p. 58-59.
128
LEITMAN, Spencer. Raízes Sócio-econômicas da Guerra dos Farrapos, 1979, p.p. 61-62.
129
Sobre a circulação e apropriações de idéias políticas pela elite farroupilha, ver: PESAVENTO, Sandra.
Farrapos, Liberalismo e Ideologia, 2ª. ed., 1997. PICCOLO, Helga. O Discurso Político na Revolução
Farroupilha, 1986-87. PADOIN, Maria Medianeira. Federalismo Gaúcho: fronteira platina, direito e
revolução, 2001.
130
As alianças foram variadas durante a guerra. A princípio, os farroupilhas contaram com o apoio
informal mas bastante efetivo do Presidente Oribe, do Uruguai e dos federalistas argentinos, liderados por
Rosas. Depois, sua aliança foi com Rivera, que lutava para recuperar o poder naquele país e, efetivamente
conseguiu, em 1839. O Império cortejava Rivera, mas quando este passou a apoiar os farroupilhas, tentou
um acordo com os “blancos” e com a Confederação Argentina. Para uma análise detalhada sobre
complicada trama da política platina no período, composta por um reiterado vai-e-vem de alianças ver:
GUAZZELLI, César Augusto. O Horizonte da Província..., 1998. _____. O Rio Grande de São Pedro na
primeira metade do século XIX..., 2004.
77
enfrentamentos nas províncias do litoral argentino. Os combates adentraram em
território oriental em 1842 e se estenderam até 1851 naquela que ficou conhecida como
a “Guerra Grande”, um conflito que teve terríveis conseqüências para a economia
pecuária do país. Oribe lutava contra as forças do presidente Frutuoso Rivera, chefe do
partido “colorado” e alinhado com os unitários argentinos. A proibição da passagem de
gado para o Brasil, decretada por Oribe, motivaram expedições para saquear estâncias e
arrear gado, comandadas pelo Barão do Jacuí , das quais falarei com mais detalhe no
capítulo “4”. Em 1851, o Brasil entrou na guerra, para defender os “colorados” sitiados
em Montevidéu, ao lado das forças comandadas pelo general Justo José Urquiza, da
província de Entre-Rios. Oribe foi vencido e, em 1852, foi a vez da queda de Rosas,
encerrando uma era de domínio do líder argentino, à frente da província de Buenos
Aires.
O Brasil celebrou tratados de paz amplamente favoráveis com o Uruguai,
em 1851. Entre outros aspectos, o “Tratado de Comércio e Navegação” estabelecia o
livre trânsito de gado pela linha de fronteira entre os dois Estados. Por sua vez, o
“Tratado de Extradição” exigia a devolução dos cativos fugidos para a República do
Uruguai, onde já havia sido extinta a escravidão. Essa conjuntura extremamente
favorável se refletiu em um afluxo ainda maior de brasileiros investindo em campos no
norte do Estado Oriental, e na recuperação da produção charqueadora rio-grandense,
que se abastecia fortemente com gado vindo daquela região. Em 1857, calculava-se que
cerca de 30% das terras uruguaias estavam em mãos de proprietários brasileiros.
131
O
Tratado de Limites, também assinado em 1851, finalmente oficializou as divisas entre
os dois países, confirmando, no extremo oeste, a linha do rio Quarai. Ainda assim,
ronhas diplomáticas e contestações seguiram existindo século XX adentro.
132
Entre 1852 e 1864, os proprietários brasileiros continuaram a reclamar junto
ao Império uma efetiva proteção a seus interesses no país vizinho. Segundo eles, suas
propriedades eram vítimas de confiscos e crimes os mais diversos, praticados por chefes
locais da campanha oriental. Nesse contexto, emaranhado com a complexa geo-política
platina, o Império ainda interveio militarmente mais duas vezes naquele Estado, em
1853 e 1864. Argumentando que agia em defesa de seus súditos, a Corte do Rio de
Janeiro enviava tropas para auxiliar seus aliados políticos no Uruguai, pertencentes ao
Partido Colorado. Esta última intervenção se fazia em um contexto que o governo
131
SOUZA, Susana Bleil e PRADO, Fabrício Pereira. Brasileiros na fronteira uruguaia: economia e
política no século XIX, 2004, p.p. 131-137.
132
GOLIN, Tau. A Fronteira - volume II. Os Tratados de Limites Brasil-Uruguai-Argentina, os
trabalhos demarcatórios, os territórios contestados e os conflitos na Bacia do Prata, 2004.
78
“blanco” do presidente Bernardo Berro estudava soluções para buscar a efetiva
“orientalização” da fronteira norte que, segundo a avaliação de muitas autoridades, era
um espaço onde os hábitos, a identidade, a língua e a propriedade eram perigosamente
brasileiros.
Entre outras medidas, em 1861, Berro havia colocado um fim no livre
trânsito de gado pela fronteira e na extradição de escravos vindos do Brasil, duas molas
estruturais da economia pecuária praticada pelos brasileiros na fronteira.
133
Segundo os
historiadores uruguaios José Pedro Barrán e Benyamin Nahún, essas medidas ajudaram
a alavancar a retomada da produção de charque no Uruguai que, até então, estava
prejudicada pela rescaldo da Guerra Grande e pelo Tratado de Comércio e Navegação
celebrado com o Brasil, em 1851.
134
Por sua vez, a intervenção brasileira de 1864, em
favor dos “colorados”, foi o estopim que acabaria por deflagrar a Guerra do Paraguai,
no ano seguinte.
Enfim, os embates resumidos acima dão uma mostra da instabilidade crônica
em que viviam os habitantes da Fronteira e da interligação entre os dois lados do limite
nacional entre Brasil e Uruguai. Endemia bélica e irregularidade institucional
compunham o ambiente onde os sujeitos buscavam desenvolver estratégias para
sobreviver e ascender ou reproduzir sua posição social. Um estudo da economia e da
sociedade que se construíam naquela região deve ter em conta essas características. Elas
estavam profundamente influenciadas pelo fato de que aquele era um espaço
fronteiriço. Este, mostrava-se como um lugar onde os limites nacionais não isolavam as
populações mas, ao mesmo tempo, propunham problemas bastante específicos para os
sujeitos. Antes de prosseguir, se faz necessária uma pequena reflexão sobre essa
questão.
1.6 - Manejar a Fronteira
A percepção de que, desde os primeiros tempos de ocupação pelos luso-
brasileiros, o Rio Grande do Sul foi uma terra de fronteira, está enraizada na
historiografia. Os significados atribuídos a esse fato, porém, não gozam da mesma
unanimidade. Desde cerca de 1925 até meados da década de 1970, os intelectuais
ligados à chamada “matriz lusitana” da historiografia rio-grandense fincaram pé na
imagem da fronteira como barreira, como separação entre duas realidades distintas, no
caso o Brasil e as regiões de fala espanhola do sul da América. Para aquela corrente, a
133
SOUZA, Susana Bleil e PRADO, Fabrício Pereira. Brasileiros na fronteira uruguaia..., 2004, p.p.
131-137.
134
BARRÁN, José Pedro; NAHUM, Benyamin. História Rural del Uruguai Moderno, vol I., 1967, p.p.
91-94.
79
linha divisória nacional assumia uma existência quase a-histórica, como se o destino do
Estado Nacional brasileiro fosse, necessariamente, o de assumir a forma territorial que
tomou depois.
135
De viés claramente nacionalista, tais obras subestimavam as trocas
culturais e as relações sócio-econômicas do Brasil meridional com o Prata hispânico.
Além disso, argumentavam que a posição de “ponta-de-lança” brasileira no sul da
América teria tornado os rio-grandenses ainda mais identificados com o Brasil e opostos
aos “castelhanos” platinos.
Idéias diversas começaram a surgir naquela mesma época, com trabalhos
como os de Alfredo Varella e de Manoelito de Ornellas.
136
Esses e outros autores
apontaram a existência de vinculações importantes entre a sociedade que se formava no
sul do Brasil e seus vizinhos platinos. Porém, como observou Ieda Gutfreind, apesar de
reconhecerem a influência platina no Rio Grande do Sul, esses historiadores também
estavam guiados pela idéia pré-concebida de nação e de Estado, identificadas com a
unidade territorial político-administrativa que o país possuía no tempo em que eles
escreviam suas obras.
137
Aqui interessa salientar que, mesmo assim, esses trabalhos
abriram espaço para a superação da idéia da fronteira meridional como uma área onde a
divisa nacional pudesse isolar as populações que viviam de ambos os lados. Gutfreind
aponta, ainda, que outros autores, como Caio Prado Júnior em Formação do Brasil
Contemporâneo, Guilhermino César em Contrabando no Sul do Brasil e Alice
Canabrava em Comércio Português no Rio da Prata já mostravam uma vinculação
inconteste da fronteira meridional com as regiões hispano-platinas.
138
Mais recentemente, uma série de estudos vem situando o Rio Grande do Sul
dentro do “espaço platino”, “região platina” ou “espaço fronteiriço platino”.
139
Além de
135
GUTFREIND, Ieda. A Historiografia Rio-grandense, 1992.
136
VARELA, Alfredo. História da Grande Revolução..., 1933. ORNELLAS, Manoelito de. Gaúchos e
beduínos: origem étnica e formação social do Rio Grande do Sul,1948.
137
GUTFREIND, Ieda. A Historiografia Rio-grandense, 1992, p.p. 145-149.
138
GUTFREIND, Ieda. A Historiografia Rio-grandense, 1992, p.p. 145-149.
139
Entre outros: LEITMAN, Spencer. Raízes Sócio-econômicas da Guerra dos Farrapos, 1979.
OSÓRIO, Helen. Apropriação da Terra no Rio Grande de São Pedro e a formação do espaço platino,
1990.
REICHEL, Heloisa Jochims. Conflito e Violência na Campanha Platina: séculos XVIII e XIX,
1993. PADRÓS, Enrique Serra. Fronteira e Integração fronteiriça: elementos para uma abordagem
conceitual, 1994. OSÓRIO. Helen. O espaço platino: fronteira colonial no século XVIII, 1995. SOUZA,
Susana Bleil de. A fronteira do sul: trocas e núcleos urbanos - uma aproximação histórica, 1995.
PICCOLO, Helga. “Nós e os outros”: conflitos e interesses num espaço fronteiriço (1828-1852), 1997.
REICHEL, Heloisa Jochims; GUTFREIND, Ieda. As Raízes Históricas do Mercosul: a região platina
colonial, 1996. GUAZZELLI, César Augusto. O Horizonte da Província..., 1998. PADOIN, Maria
Medianeira. Federalismo Gaúcho: fronteira platina, direito e revolução, 2001. HAMEISTER, Martha
Daisson. O Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas
mercadorias semoventes, 2002. GIL, Tiago Luís. Infiéis Transgressores..., 2003. PANIAGUA, Edson
Monteiro. Fronteiras, violência e criminalidade na região platina. O caso do município de Alegrete
80
fazer parte do processo histórico de extensão colonial portuguesa e consolidação do
Império brasileiro em terras meridionais, o Rio Grande do Sul integrou, tamm, um
espaço de características comuns com a província de Buenos Aires, a Banda Oriental
(atual Uruguai) e as províncias do “litoral” argentino (Corrientes, Entre Rios e Santa
Fé). Apesar da heterogeneidade de abordagens dentre essas obras, elas compartilham a
percepção de que havia profundas ligações sociais, econômicas, militares, culturais e
políticas entre as sociedades que habitaram esse espaço, forjadas desde os tempos
coloniais. Além disso, enfatizam que havia muitas características em comum entre elas,
como a presença de áreas de boas pastagens naturais; o papel central, ainda que não
exclusivo, desempenhado pela da produção pecuária; a combinação de formas diversas
de trabalho “livre”, escravo e familiar; a onipresença do contrabando; a existência de
uma instabilidade institucional e de uma verdadeira endemia bélica nos séculos XVIII e
XIX. Naturalmente, as relações que permeavam esse espaço não excluíam o conflito.
Este, em variadas manifestações, foi também um traço estrutural da fronteira.
140
Ainda que não se aprofundem nessa questão, as obras recentes têm apontado
o importante papel das interações entre sujeitos muito diversos no processo de
construção da sociedade dessa fronteira. Como já foi dito aqui, desde os tempos
coloniais e durante as primeiras décadas do séculos XIX, antes que fossem praticamente
dizimados, grupos indígenas charruas e minuanos adaptaram-se à presença de grandes
manadas de gado e sobreviviam desempenhando sua própria política de alianças, guerra
e comércio com os diversos outros blocos populacionais que os circundavam.
141
Por sua
vez, os guaranis missioneiros também participaram ativamente da transformação da
paisagem agrária e fizeram parte dos exércitos em luta na primeira metade do século
XIX: combateram nas hostes de Tomás de Rocamora, Rivera, Bento Manoel e,
sobretudo, de Artigas. Infelizmente, ainda carecemos de estudos específicos sobre a
forte participação que tiveram na composição da população que habitava os campos da
fronteira, ao longo do Oitocentos.
142
O mesmo se dá quanto aos escravos, forros e pretos
e pardos livres, que começam a ter sua presença assinalada, mas que ainda reclamam
trabalhos mais profundos.
(1852-1864), 2003. SOUZA, Susana Bleil; PRADO, Fabrício Pereira. Brasileiros na Fronteira
Uruguaia..., 2004.
140
GUAZZELI, César Augusto. O Horizonte da Província, 1998. GOLIN, Tau. A Fronteira, vol. I...,
2004.
141
GOLIN, Tau. A Fronteira, vol I, 2002, p.p. 235-236, 254, 266.
142
Para os séculos XVII e XVIII, ver: NEUMANN, Eduardo Santos. O Trabalho Guarani Missioneiro no
Rio da Prata Colonial (1640-1750), 1996.
81
No que se refere ao período colonial, uma série de autores têm reiterado o
anacronismo do emprego da noção de fronteira assemelhada a uma linha divisória entre
Estados Nacionais. Ao contrário, ganhou ênfase a visão da fronteira como uma região,
uma zona de encontro de áreas extremas que não isolava as populações mas, ao
contrário, as colocava em contato.
143
Por outro lado, em fins da época colonial, o termo
fronteira também era empregado para designar uma realidade geográfica mais
específica no Rio Grande de São Pedro. A vila de Rio Grande representava o último
núcleo urbano da colonização portuguesa ao sul, e a vila de Rio Pardo tinha o mesmo
papel, a oeste. As regiões logo além dessas vilas eram designadas pelos contemporâneos
como “Fronteira do Rio Grande” e “Fronteira do Rio Pardo”.
144
O emprego do termo
fronteira para designar aqueles espaços sugere que aquele era visto como um lugar
instável, com a presença de “outros”, uma região de onde vinha o perigo de ataques
inimigos, mas sugere, tamm, que tais áreas eram vistas como campos possíveis para
a expansão da colonização. Sobre esses espaços controversos, o povoamento luso se
estendia, estâncias eram organizadas, sesmarias doadas, posses estabelecidas, faziam-se
arriadas de gado e contrabando de mercadorias. Por fim, na virada do século XVIII para
o XIX, aquelas zonas acabaram por ser as presas de uma expansão veloz e agressiva dos
luso-brasileiros.
Por sua vez, o limite nacional entre Brasil e Uruguai foi uma novidade do
século XIX e demorou a instalar-se. Na verdade, ele ainda estava em fase de construção
e consolidação, ao longo de boa parte do século. Além disso, os trabalhos recentes têm
ressaltado que a linha divisória era porosa. Ou seja, ela permitia um fluxo constante de
pessoas, idéias e mercadorias, além de ser atravessada por espessa teia de relações
sociais entre habitantes dos dois lados. No Estado Oriental, as áreas ao norte do rio
Negro estavam profundamente conectadas tanto com a grande zona pecuária já no
Brasil, que ia até o rio Ibicuí, como também com as charqueadas de Pelotas e com o
porto de Rio Grande. Em contraposição, durante o conflito farroupilha os estancieiros
da Campanha rio-grandense enviavam costumeiramente suas tropas para os saladeros
143
Para uma visão geral dos debates sobre fronteira nas ciências sociais, ver: ZIENTARA, Benedickt.
Fronteira, 1999. Ver também o apanhado historiográfico sobre os estudos norte-americanos em relação
ao tema de fronteira em: DJENDEREDJIAN, Julio. Economía y Sociedad en la Arcadia Criolla:
Formación y desarrollo de una sociedad de frontera en Entre Ríos, 1750 – 1820, 2003, p.p. 12-22. O
autor elabora uma importante reflexão que parte da a obra de F.J. Turner, passando pela escola dos
“borderlands” até os debates atuais. Ver o clássico estudo de: TURNER, Frederick Jackson. The frontier
in American History, 1958.
144
OSÓRIO, Helen. Apropriação da Terra no Rio Grande de São Pedro e a formação do espaço platino,
1990. GIL, Tiago Luís. Infiéis Transgressores..., 2003.
82
de Montevidéu.
145
Tais regiões também mantinham relações com as províncias
argentinas de Entre-Rios e Corrientes, sobretudo com as áreas em que essas províncias
tocavam o rio Uruguai. Assim, no contexto deste trabalho, considero essa área como
uma região de fronteira.
Enfim, os trabalhos recentes elaboraram uma crítica correta e contundente às
concepções de uma historiografia de matriz nacionalista, que havia consagrado a idéia
de “fronteira-barreira”. Porém, é também necessário ter cuidado para não cair no
extremo oposto. É preciso atentar para o fato de que esse limite nacional, ainda que
incerto e discutido ao longo do Oitocentos, ensejava que se buscasse instituir soberanias
distintas de ambos os lados, e que os sujeitos precisavam lidar com essa situação. O
limite nacional, por certo, não era uma barreira intransponível e não impedia trocas e
circulação de pessoas, mercadorias e idéias. Mas é imperioso reconhecer que esses
movimentos que se faziam de um lado a outro eram diferentes dos que se faziam dentro
de um mesmo país. Para ficar com um exemplo: para um estancieiro de Alegrete, levar
gado para o Estado Oriental implicava em cuidados com aspectos que não existiam
quando se tratava de levá-lo para São Gabriel, o município vizinho, ainda que as
distâncias pudesses ser as mesmas. Assim, os sujeitos que habitavam aquele espaço
precisavam incluir em seus cálculos formas de manejar a fronteira.
Como vimos, a independência do Uruguai, em 1828, ocorreu sem a
formalização da fixação dos limites daquele país com o Brasil. Esta oficialização
somente se efetivou em 1851, mas continuou sendo alvo de contestações diplomáticas
mesmo depois. No mesmo sentido, como bem demonstrou o estudo de Tau Golin, ao
longo de todo o século, as diplomacias de ambos os países e também a da Argentina
seguiram pretendendo ampliar os territórios a custa de seus vizinhos. Porém, desde
1828 havia uma divisa provisória que era sustentada na prática. Embora pudessem haver
controvérsias quanto a algumas áreas limítrofes, as autoridades uruguaias e brasileiras
estavam estabelecidas e buscavam exercer sua jurisdição, cada uma de seu lado do
limite nacional. No seu extremo ocidental, que interessa mais diretamente a este
trabalho, a linha divisória era marcada pelo rio Quaraí. A divisa entre o Brasil e a
província argentina de Corrientes era mais estável, consubstanciada no Rio Uruguai.
Também ali havia grande troca social e econômica, especialmente com o município
brasileiro de Uruguaiana, que tinha um porto sobre aquele rio.
Além de terem que lidar com um nascente limite nacional, as populações
daquela zona fronteiriça também experimentaram, mesmo após 1828, momentos de
145
GUAZZELLI, César Augusto. O Horizonte da Província..., 1998.
83
sobreposição de soberanias, como foi o caso da área dominada pelas autoridades da
República Rio-Grandense, nunca reconhecida pelo Império e que os governantes
platinos reconheciam ou não, conforme sua própria conveniência. O mesmo acontecia,
por exemplo, no Estado Oriental durante fins da década de 1840, quando existia um
governo em Montevidéu, que dominava a cidade-porto, enquanto os opositores haviam
estabelecido uma autoridade que se pretendia legítima em Cerrito, e governavam o
interior. Enfim, ao longo do período estudado, os habitantes do extremo sul do Brasil e
do norte da República do Uruguai estavam bastante conectados, mas eram confrontados
com questões trazidas por um nascente limite nacional e por soberanias e conjunturas
políticas instáveis e, por vezes, sobrepostas.
Em seu trabalho sobre o contrabando na Fronteira Meridional, na segunda
metade do século XIX, Mariana Thompson Flores observou a recorrência com que os
estrangeiros eram referidos expressamente como tal, sendo nomeados como “o
castelhano Fulano”, “o correntino”, “o argentino” ou “o oriental”. Da mesma forma,
segundo a autora, as referências a “cruzar a fronteira” ou a ir para o “Outro Lado”
demonstram “...o fato de que a fronteira não é nada indefinida ou nebulosa para os
sujeitos que a habitam”.
146
Expressões como as que foram citadas pela autora podem ser
encontradas mesmo na documentação referente ao período anterior a 1851, data da
formalização da fronteira entre o Brasil e o Uruguai.
Tendo em mente essas questões, ainda existe outro aspecto a perceber. Essa
situação apresentava problemas e possibilidades diversos para os agentes, conforme
fosse a sua posição social. Era a partir dela que esses sujeitos inventavam modos de
lidar com a existência de um limite nacional, em processo de construção. As grandes
famílias da Fronteira, que contavam, entre seus integrantes, com estancieiros,
comerciantes e oficiais militares tinham percepções acerca dessa situação e formas de
lidar com ela, que eram diferentes, por exemplo, daquelas articuladas por grupos
subalternos como famílias de pequenos produtores, carreteiros, peões e escravos. Essa
percepção aparece no texto, já referido, de Mariana Thompson Flores. A autora faz uma
avaliação da historiografia sobre a fronteira meridional que é, em traços gerais,
146
O processo de formação de identidades regionais e nacionais, e de sua manutenção e transformação
nesse espaço de fronteira, ao longo do século XIX, é um tema amplo e que pede pesquisas urgentes. Um
estudo sobre essas identidades e sobre a clivagem étnica nessas realidades sócio-culturais extrapola em
muito os limites desta tese. Aqui, basta apenas ressaltar que tais processos identitários foram sendo
forjados no contexto concreto das relações sociais e que os habitantes daquela zona fronteiriça e que seus
habitantes estavam longe de entenderem-se como uma comunidade homogênea. A própria condição de
“estrangeiro” podia ser invocada ou escondida, sendo manejada a favor ou contra os sujeitos dependendo
das situações em que tivessem envolvidos. Sobre o tema, ver: FLORES, Mariana Thompson. A Fronteira
Dinâmica..., Texto inédito.
84
semelhante à que tracei aqui. Interpretando aquela realidade, a partir de uma leitura do
antropólogo argentino Alejandro Grimson, a autora ressalta a importância de se as
relações entre as populações fronteiriças tomando a sério as diferentes posições sociais
dos agentes que ali interagiam.
147
Vejamos o caso dos criadores de gado. Como já foi referido, as terras de
boas pastagens ao norte do rio Negro significaram a possibilidade de expansão para a
pecuária extensiva dos estancieiros rio-grandenses, ao longo de todo o século XIX.
Segundo um levantamento realizado em 1850, eram, pelo menos, 1.181 os brasileiros
que tinham estâncias no Uruguai
148
, sendo que 161 deles tinham suas terras entre os rios
Quaraí e Arapeí. Infelizmente, não é possível realizar uma investigação mais completa
das características dessas unidades produtivas, através desse documento. Suas condições
de elaboração impedem que se possa considerá-lo como um “censo agrário” sobre a
presença brasileira em território oriental. As listagens ali presentes foram elaboradas
pelos Comandantes de Fronteira para demonstrar os danos sofridos pelos produtores
brasileiros em virtude do domínio das forças fiéis ao General Oribe, no contexto da
Guerra Grande. Sendo assim, os números de hectares e reses de cada proprietário, bem
como os prejuízos sofridos por ele, tendem a estar sobre-valorizados.
149
Suas
informações serão utilizadas qualitativamente, aqui, sempre que puderem ser
comparadas com outro tipo de documentação. Ainda assim, a existência de mais de mil
proprietários brasileiros, a maioria deles localizados ao norte do rio Negro, dá uma
dimensão de sua presença no país vizinho.
Foram listados vários estancieiros residentes em Alegrete, entre eles o
Brigadeiro Olivério Ortiz, que tinha uma estância entre o Quaraí e o Arapeí, fato
confirmado no inventário de sua esposa, em 1853. Dois de seus filhos tinham seus
rebanhos nas terras de seu pai. Uma configuração semelhante pertencia à família de
Manoel José de Carvalho, de quem muito falarei aqui e que era aparentado aos Ortiz
pelo casamento de seus filhos. Ele possuía uma estância na margem esquerda do rio
Quaraí. Dois de seus filhos e um genro tinham estâncias contíguas.
150
O expediente de
possuir terras nos dois países podia permitir que se diminuísse os efeitos nocivos das
147
FLORES, Mariana Thompson. A Fronteira Dinâmica..., Texto Inédito.
148
SOUZA, Susana Bleil; PRADO, Fabrício Pereira. Brasileiros na Fronteira Uruguaia..., 2004, p.p.
130-131.
149
As listas foram enviadas à Corte, para a Repartição dos Negócios Estrangeiros e constam do anexo
“A” do relatório que esse mesmo órgão fez à Assembléia Legislativa, em 1851. “Relatório da Repartição
dos Negócios Estrangeiros apresentado à Assembléia Geral Legislativa na 3ª. Sessão da 8ª. Legislatura
pelo respectivo ministro e secretário de Estado Paulino José Soares de Souza – Anexo A”(1850). AN. De
agora em diante, será chamado apenas de “RRNE”.
150
“RRNE”, p.p. 45-46.
85
guerras. Quando ela estourava em um dos lados da fronteira, os estancieiros procuravam
levar seu gado para o outro.
151
No entanto, o cenário político-militar incerto era um ônus a ser suportado
por quem desejasse desfrutar daquelas possibilidades. Em artigo recente, Susana Bleil
de Souza e Fabrício Prado apontaram que cerca de 9% dos declarantes estavam com
seus bens embargados, enquanto outros 8% haviam abandonado suas propriedades.
152
Segundo as listas, cerca de 17% dos proprietários brasileiros não estariam podendo usar
suas estâncias uruguaias nos anos finais da década de 1840. Os números descritos acima
correm sério risco de estarem superestimados. Todavia, ainda que os índices fossem
menores, eles seriam significativos, uma vez que mesmo os proprietários que estavam
utilizando suas estâncias sofriam uma série de restrições quanto ao manejo e
comercialização de seus rebanhos.
153
A principal delas era que estavam proibidos de
passar seu gado para o lado brasileiro, o que inviabilizava tanto os movimentos de
animais entre estâncias de um mesmo proprietário quanto sua venda para as
charqueadas do leste do Rio Grande do Sul. Os embargos relatados nas listas tinham se
dado, na maioria dos casos, porque os proprietários tentavam passar tropas,
clandestinamente, para o Brasil. Esse tema será tratado no capítulo “4”.
Contudo, essa situação não era igual para todos os estancieiros brasileiros
que tinham interesses em terras uruguaias. Manoel José de Carvalho alegava que seu
rebanho de 30.000 animais estava diminuído em, pelo menos, 4.000 reses, em virtude
das carneações feitas por uma força militar do exército de Oribe. A maioria dos
proprietários listados declarava problemas semelhantes. Porém, há também outras em
que o Comandante da Fronteira apenas anotou “Ignoram-se os prejuízos que tem
sofrido”. Por sua vez, ao lado do nome de Seginando Lopes, do campo e do gado que
possuía, no espaço onde normalmente estavam relatados os prejuízos sofridos pelos
estancieiros, está uma anotação curiosa: “tem percebido muitos lucros.”
154
Essa
insinuação de colaboracionismo com os “blancos”, como também aquelas situações
onde não se sabem haver prejuízo apontam para o fato de que a reiteração da produção
pecuária naquela zona fronteiriça era condicionada pelas relações políticas que se
estabelecia.
Por sua vez, as populações subalternas também se movimentavam pelas
áreas fronteiriças, em busca de melhores condições. Em estudo sobre a família dos
151
GUAZZELLI, César Augusto. O Horizonte da Província..., 1998.
152
SOUZA, Susana Bleil; PRADO, Fabrício Pereira. Brasileiros na Fronteira Uruguaia..., 2004, p. 131.
153
SOUZA, Susana Bleil; PRADO, Fabrício Pereira. Brasileiros na Fronteira Uruguaia..., 2004, p.p.
125-131.
154
“RRNE”, p. 48.
86
líderes militares Gumercindo e Aparício Saraiva, o historiador norte-americano John-
Charles Chasteen fez uma interessante retrospectiva da trajetória de um grupo de
pequenos produtores através da Fronteira.
155
Por volta de 1830, Francisco Saraiva e sua
mulher Maria Angélica, avós de Gumercindo e Aparício, haviam decidido migrar do sul
do Rio Grande e arrendar um campo em Cerro Largo, no Estado Oriental. Esse campo
ficava em terras dos Correia, uma família de grandes estancieiros brasileiros. Francisco
e Maria Angélica possuíam apenas alguns poucos escravos e, nas novas terras, eram
vizinhos de alguns de seus parentes, o que sugere que os laços parentais podiam estar na
base dessa estratégia que envolvia movimentos transfronteriços. Lá ficaram até depois
de 1845 quando, tendo Francisco já falecido, Maria Angélica e alguns de seus filhos
voltaram para o Rio Grande do Sul, aparecendo como proprietários de uma pequena
parte de terras em Arroio Grande, no extremo-sul da província rio-grandense. Como
observou Chasteen, é provável que o final do conflito Farroupilha, em combinação com
o aumento das violências da Guerra Grande tenha influencia a decisão da família em
retornar ao Brasil. Segundo o autor, os filhos do casal que permaneceram no Uruguai
podem ter ficado arranchados em terras de parentes ou de outros estancieiros brasileiros,
que parecem ter preferido seus compatriotas como agregados. Um deles, de nome
Francisco, como o pai, trabalhava como posteiro em uma estância no Uruguai, durante a
década de 1850.
Assim, movimentar-se de um lado a outro dos imprecisos limites nacionais
não parece ter sido uma exclusividade da estratégia dos mais ricos estancieiros. No
mesmo sentido, como veremos com mais detalhe nos próximos capítulos, entre os peões
que foram se empregar na Estância da Palma, pertencente ao Brigadeiro Ortiz, em
Alegrete, em 1853, estavam o “castelhano Alexandre” e o “castelhano Fernandez”.
156
Sobrenomes de origem hispânica aparecem também, com freqüência, entre os peões de
tropas que eram contratados por Manoel José de Carvalho para reunir o gado da sua
Estância de Japejú e começar a conduzí-lo para as charqueadas. Em contrapartida, entre
os peões que empregava na estância que possuía no Estado Oriental, existiam diversos
brasileiros.
157
Veja-se bem, o limite nacional não impedia esses deslocamentos, mas os
condicionava.
De outra parte, era comum que os perseguidos pela justiça em um dos lados
da divisa nacional fugissem para o Estado vizinho. Como veremos com mais detalhe no
capítulo “8” desta tese, algo semelhante ocorria com parte dos escravos pertencentes a
155
CHASTEEN, John Charles. Fronteira Rebelde, 2003, p.p. 38-45.
156
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 08, N. 111, A. 1852. APRS”.
157
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, m. 01, n. 07, a. 1853-7. APRS.”
87
senhores estabelecidos na Fronteira Meridional do Império. A escravidão havia sido
abolida em 1842 no Estado Oriental e desgastara-se mesmo antes em Entre-Rios e
Corrientes. Durante as décadas de 1840 e 1850, os senhores brasileiros seguiam levando
seus escravos para suas propriedades no Uruguai, e buscavam disfarçar a escravidão
com contratos de trabalho, mas esse procedimento foi ficando cada vez mais difícil,
tanto pela repressão das autoridades uruguaias, quanto pela ação dos próprios escravos,
que começavam a usar esse fator em seu proveito.
158
Ou seja, se, para os senhores, esse
fato fazia com que a fronteira trouxesse um ingrediente a mais nos cuidados que
precisavam desenvolver, para os escravos aquele espaço aparecia como possibilidade de
liberdade.
Também o comércio realizado nesse vasto espaço fronteiriço precisava ter
em conta a questão dos limites. Ali, a prática do contrabando estava bastante
disseminada. Segundo Mariana Thompson Flores, o contrabando exigia um aparato
organizacional para que pudesse se reiterar. Ele era praticado por diversos tipos de
sujeitos, desde Companhias de Comércio que mantinham linhas regulares de importação
de produtos e só pagavam as respectivas taxas quando eram apanhadas, até membros
das camadas subalternas, que praticavam o comércio ilícito para vender pequenas
quantidades de mercadorias ou apenas para consumo próprio. Em qualquer dos casos,
os agentes sabiam que aquela era uma transação ilegal, gerada pela existência de
distintos códigos jurídicos engendrados por Estados específicos e que exigia uma
estratégia própria para sua realização.
159
Assim, a existência de um limite nacional, ainda que instável, e de
conjunturas político-militares muito variáveis tinham de ser levados em conta nas
estratégias dos agentes históricos. E mais: os significados da fronteira para os sujeitos e
as formas como buscavam lidar com ela eram condicionados pela posição e pelas
relações sociais em que estavam inseridos, em um dado momento. Sua relação com a
fronteira sugere que, como observou Fredrik Barth “pessoas situadas em posições
diferentes podem acumular experiências particulares e lançar mão de diferentes
esquemas de interpretação, ou seja, podem viver juntas, mas em mundos diferentemente
construídos”.
160
158
Sobre esses contratos ver: ZABIELLA, Eliane. A Presença Brasileira no Uruguai e os Tratados de
1851 de Comércio e Navegação, de Extradição e de Limites, 2002, p.p. 82-98. BORUCKY, Alex;
CHAGAS, Karla; STALLA, Natalia. Esclavitud y Trabajo – Un estudio sobre los afrodescendientes en la
frontera uruguaya (1835-1855), 2004, p. 186.
159
FLORES, Mariana Thompson. A Fronteira Dinâmica..., Texto Inédito.
160
BARTH, Fredrik. Por um maior naturalismo na conceptualização das sociedades, 2000, p. 176. Dizer
que Jonas utilizou essa mesma expressão para estudar os significados das eleições “ao rés do chão”.
88
Capítulo 2 - “Sem cercas nem tapumes”
“Tudo era aberto; as estâncias pegavam umas nas outras sem
cercas nem tapumes...”
“Correr Eguada” – J.Simões Lopes Neto
A nítida supremacia das atividades agrárias em Alegrete e a importância que
a pecuária assumia entre as atividades desempenhadas por sua elite econômica
poderiam sugerir a pertinência de um verdadeiro “lugar-comum” historiográfico. A
imagem celebrizada da Fronteira do Rio Grande do Sul, no século XIX, descreve a
região como uma área caracterizada pela presença avassaladora de grandes estancieiros
que eram donos de reses que se contavam aos milhares. Eles teriam recebido sesmarias
na fronteira, tornando-se um grupo latifundiário que monopolizara a terra e construíra
seu patrimônio a partir dessas doações estatais. Esse monopólio teria inviabilizado as
possibilidades daqueles que não se tornaram estancieiros em terem acesso à produção
autônoma. Esse processo teria gerado uma estrutura social extremamente simplificada:
de um lado, estancieiros-sesmeiros e, de outro, peões que não tinham outra opção a não
ser empregarem-se por baixos salários nas grandes estâncias.
Porém, uma análise baseada no uso sistemático de fontes primárias
demonstra que aquela sociedade era mais diversificada do que a imagem tradicional
89
quer fazer crer. Em primeiro lugar, grandes, medianos e pequenos produtores estavam
lado a lado naqueles campos, alterando sua proporção conforme avançamos no período
estudado. Por outro lado, de fato houve uma importante obra de acumulação privada de
grandes áreas de terra por umas poucas famílias. Porém, as sesmarias não foram as
únicas formas de que esses senhores lançaram mão para tal empreendimento. Além
disso, essa acumulação não impediu o acesso dos menos afortunados à produção
autônoma, tornando muito mais complexa a questão das possibilidades de sobrevivência
desses grupos e da mão-de-obra disponível para os grandes estabelecimentos pecuários.
2.1 - Os grandes estancieiros e além
161
A análise dos inventários post mortem demonstra que a estrutura agrária na
Campanha era um tanto mais complexa do que se costuma admitir.
162
TABELA 2.1 - DISTRIBUIÇÃO DO REBANHO BOVINO ENTRE OS PRODUTORES
(ALEGRETE, 1831-1870)
Dimensão do
rebanho
Inventários % Reses %
+ de 10.000 reses
5 2,8% 86.308 23,3%
5.000 a 10.000
8 4,4% 48.255 13%
2.001 a 5.000
19 10,5%
17,7%
62.832 17%
53,3%
1.001 a 2.000
21 11,6% 82.878 22,7%
501 a 1.000
25 13,8%
25,4%
41.063 11,1%
33,8%
101 a 500
60 33,1% 31.544 8,5%
Até 100 reses
43 23,8%
56,9%
16.007 4,3%
12,9%
TOTAL 181 100% 100% 369.887 100% 100%
Fonte
: 181 inventários post mortem. Alegrete. Cartórios de Órfãos e Ausentes, Cível e Crime e da
Provedoria. APRS.
Os dados dos inventários apontam para o fato de que havia uma marcante
desigualdade econômica em Alegrete, expressa não apenas na propalada dualidade
161
Uma versão anterior das análises feitas no item “2.1” foi apresentada em uma comunicação nas “II
Jornadas de História Regional Comparada”, em 2005, cujo artigo foi publicado nos anais do mesmo
evento. Ocorreram algumas modificações exatamente porque pude me beneficiar das contribuições
trazidas pelo debate do texto no referido evento. FARINATTI, Luís Augusto. Criadores de Gado na
Fronteira Meridional do Brasil (1831-1870), 2005.
162
Os dados aqui apresentados referem-se aos produtores e não às unidades produtivas. Assim, nos casos
dos que possuíam mais de um estabelecimento rural, o gado destes foi somado para se alcançar o total de
gado possuído pelo inventariado no momento da avaliação de seus bens.
90
“estancieiros e peões”, mas inclusive entre aqueles que desenvolviam a pecuária. Na
tabela “2.1”, os três primeiros estratos colocam em evidência um grupo de criadores que
alcançava um vulto produtivo digno da imagem tradicional dos grandes estancieiros,
possuindo rebanhos que ultrapassavam as 2.000 cabeças de gado. Totalizavam cerca de
18% dos produtores da amostra e concentravam 53% do rebanho. Logo abaixo vêm dois
segmentos que poderíamos chamar de medianos criadores de gado, contando com
rebanhos entre 501 e 2.000 reses. Formam 25% dos inventariados e possuíam cerca de
34% do gado avaliado naqueles processos. Entre toda a amostra pesquisada, esses são
os percentuais que se encontram em maior harmonia, o que torna razoável chama-los de
criadores de médio porte.
Seguindo para baixo na tabela, entra-se no grupo dos pequenos criadores,
que não superavam as 500 cabeças de gado vacum e que, no melhor dos casos,
poderiam dispor de cerca de 50 novilhos por ano, se não quisessem ver reduzida ainda a
mais a dimensão de seus rebanhos.
163
Formavam 57% dos criadores da amostra, mas
não chegavam a possuir 13% do rebanho. Dentro desse estrato, localizava-se o sub-
grupo dos que tinham menos de 100 reses. Em seu trabalho sobre o período colonial,
Helen Osório verificou que as fontes coevas nem mesmo utilizavam o termo “criador”
para designar qualquer dono de um rebanho daquelas dimensões.
164
Isso sugere que eles
deveriam, forçosamente, desempenhar também outra atividade econômica além da
pecuária, para complementar suas rendas. É o mesmo que apontou Juan Carlos
Garavaglia, quando analisou um grupo agrário semelhante na Fronteira de Buenos Aires
no final do período colonial.
165
Em Alegrete, eram cerca de 24% dos inventariados e
possuíam algo em torno de 4% do rebanho.
A criação em pequena escala possuía uma lógica econômica diversa da
grande pecuária. Aqueles que criavam até 500 reses poderiam, em tese, manter a
produção pecuária com apenas um ou, no máximo, dois trabalhadores regulares,
precisando do concurso de mão-de-obra eventual apenas nos eventos da marcação e
castração. Ou seja, era possível reproduzir a pecuária nesses níveis com trabalho
familiar ou com o concurso de apenas mais um trabalhador, fosse ele um escravo
163
GARAVAGLIA, Juan Carlos. Las “estancias” en la campaña de Buenos Aires. Los medios de
producción (1750-1815), 1993. ____. Pastores y labradores de Buenos Aires, 1999. GELMAN, Jorge.
Campesinos y estancieros. Una región del Rio de la Plata a fines de la época colonial...., 1998. OSÓRIO,
Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da Estremadura Portuguesa na América:
Rio Grande de São Pedro, 1737-1822, 1999.
164
OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da Estremadura Portuguesa
na América, 1999.
165
GARAVAGLIA, Juan Carlos. Las “estancias” en la campaña de Buenos Aires. Los medios de
producción (1750-1815)..., 1992.
91
campeiro ou um peão livre. Isso reduzia em muito os custos anuais de operação desses
estabelecimentos e submetia suas condições de reprodução e sua viabilidade a critérios
diversos daqueles que eram válidos para as grandes estâncias.
166
Aliás, uma parte dos
sujeitos que procuravam trabalho regular ou eventual como peões nas grandes estâncias
estavam inseridos nessas famílias.
167
Voltarei a esse tema no decorrer do trabalho.
Enfim, o mundo que emerge da análise dos inventários é um tanto mais
complexo do que a imagem consagrada. Não há como negar que a expansão pecuária
desencadeada nas primeiras décadas do século XIX, com a conquista e ocupação estável
da Fronteira pelos luso-brasileiros, criou um universo agrário onde havia pecuaristas de
enorme vulto. No período seguinte, entre 1831 e 1870, os grandes estancieiros
marcavam presença de forma decisiva em Alegrete. Em seu trabalho sobre o Rio
Grande de São Pedro entre 1765 e 1825, Helen Osório apontou que 10,3% dos
inventariados de sua amostra possuíam rebanhos superiores às 1.000 reses. No caso
estudado aqui, esse percentual, que agruparia os grandes criadores e a camada superior
do que chamei de criadores de porte médio, é de 29,3%, ou seja, está multiplicado por
três em relação aos números encontrados por Osório. Isso permite caracterizar Alegrete
como uma zona dominada pela pecuária em grande escala.
168
Logo, para entender a
lógica dessa atividade produtiva dentro dos marcos cronológicos propostos, será central
estudar esses senhores de terras, de gado e de homens, que dominavam aquele universo
rural.
No entanto, eles não estavam sozinhos. Pelo contrário: nada menos do que
82% dos inventariados eram medianos e pequenos criadores. Indo além: 57% dos
inventariados criava de 500 reses para menos. Mesmo que concentrassem uma parcela
minoritária do rebanho, eles eram socialmente muito representativos. Nem seria preciso
lembrar que os inventários post mortem são uma fonte que tendem a sobre-representar
as camadas mais favorecidas da sociedade.
169
Ou seja, entre os limites do quadro
166
Essa é também uma observação feita por Jorge Gelman em seu estudo sobre os estabelecimentos de
criação na Banda Oriental em fins do período colonial. GELMAN, Jorge. Campesinos y estancieros...,
1998. Em um artigo recente, procurei apontar a centralidade do trabalho familiar para os criadores com
menos de 500 reses nos municípios de São Borja e Santa Maria, na mesma província do Rio Grande do
Sul, na década de 1850. FARINATTI, Luís Augusto. Um Campo de Possibilidades notas sobre as formas
de mão-de-obra na pecuária (Rio Grande do Sul – século XIX)..., 2003.
167
GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra: conflitos e estrutura agrária na Campanha Rio-grandense
Oitocentista, 2005.
168
Essa diferença já poderia ser esperada, pois os inventários trabalhados pela autora referem-se a todo
espaço do Rio Grande do Sul naqueles anos, englobando desde regiões francamente pecuárias até áreas
onde a produção agrícola tinha presença marcante.
169
FRAGOSO, João Luis; PITZER, Renato Rocha. Barões, Homens Livres Pobres e Escravos: notas
sobre uma fonte múltipla – Inventários post mortem, 1988, p. 37.
92
traçado acima está o de que, provavelmente, os pequenos produtores estivessem
presentes de forma ainda mais importante naquele universo.
Por outro lado, se tomarmos os números da concentração de reses e os
desdobrarmos no tempo, aparecem variações significativas, que indicam transformações
importantes na estrutura agrária de Alegrete, ao longo do período estudado.
GRÁFICO 2.A - CONCENTRAÇÃO DOS REBANHOS (ALEGRETE, 1831-1870)
0,0%
10,0%
20,0%
30,0%
40,0%
50,0%
60,0%
70,0%
80,0%
1830 1840 1850 1860
cadas
% inventários
mais de 2.000 reses de 501 a 2000 até 500 reses
Fonte: 181 inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. Cartório do Cível e
Crime. Cartório da Provedoria. 1831 a 1870. APRS
O primeiro fato notável é a expressiva diminuição do percentual de grandes
produtores, ao longo do tempo. Os que possuíam mais de 2.000 reses atingiam
impressionantes 38% entre 1831 e 1840. Eles representavam, nas décadas seguintes,
respectivamente: 12, 09 e 15%. Enquanto isso, os que tinham até 500 reses fizeram o
caminho inverso: partiram de cerca de 35% na década de 1830, passando para 53% na
seguinte e daí para 61% no terceiro período até atingir algo em torno de 72% na década
de 1860. Essa transformação era radicalizada pelo fato de que, mesmo entre os grandes
criadores (+ de 2.000 reses), a freqüência de estabelecimentos com mais de 5.000 ou
10.000 reses também diminuiu. Como demonstra a tabela “2.2”, eles eram quase 20%
na primeira década tratada, mas a partir de 1840 eles jamais atingirão mais do que 7%.
93
TABELA 2.2 - CRIADORES DE GADO COM MAIS DE 5.000 RESES (ALEGRETE, 1831-1860)
1830
Inv*
1830
%
1840
inv
1840
%
1850
Inv
1850
%
1860
inv
1860
%
mais de 10.000 3 7,1% 1 3% 0 0 1 2,1%
de 5.001 a 10.000 5 11,9% 0 0 1 1,7% 2 4,3%
Total acima de 5.000 reses 8 19% 1 3% 1 1,7% 3 6,4%
Fonte: 181 i
nventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. Cartório do Cível e
Crime. Cartório da Provedoria. 1831 a 1870. APRS
* inv = inventários
Um dos aspectos que influiu nessa dificuldade de reprodução de
estabelecimentos pecuários de enorme envergadura foi a crise conjuntural sofrida pela
pecuária na Fronteira na década de 1840. Como veremos com mais detalhe no capítulo
“3”, a alta média de reses por inventário, que era de 2.833 animais vacuns na década de
1830, despencou nos decênios seguintes sem conseguir jamais retornar àqueles
patamares. Esses fatores ajudam a explicar o incremento dos medianos criadores na
década de 1840, estrato inchado por uma parcela dos grandes criadores que viram seus
rebanhos se reduzirem de maneira importante, sob as dificuldades impostas pela nefasta
conjunção de guerras, epizootias e secas que abalou a economia da região e fez sentir
sua influência até os primeiros anos da década de 1850. Na década de 1860, houve um
“ressurgimento” dos patrimônios pecuários com mais de 5.000 reses. Isso indica que os
rebanhos estavam se recuperando da crise conjuntural do período anterior, em razão de
fatores como a maior facilidade de trânsito de gado entre os dois lados da fronteira
nacional com o Uruguai, ocorrida em virtude do tratado de 1851, e do arrefecimento de
pestes e guerras de meados da década de 1850 até meados da década seguinte.
Entretanto, essa leve alta não implicou, nem de longe, em um retorno aos
percentuais da década de 1830. Parece claro, então, que esse movimento geral da
configuração agrária em Alegrete não era devido apenas a fatores conjunturais, mas
recebia também influências mais profundas. As crescentes dificuldades para reproduzir
a pecuária extensiva de grande envergadura foram fortemente condicionadas pela baixa
oferta de terras, ocasionada pelo fechamento da fronteira agrária na região e, em menor
escala, pelo encarecimento da mão-de-obra escrava.
170
De fato, novos matizes aparecem
quando contrastamos esses dados com as variações no acesso à propriedade da terra, no
mesmo período.
170
Tratarei da evolução do acesso à mão-de-obra escrava no capítulo “7”.
94
TABELA 2.3 - PRODUTORES COM TERRAS (ALEGRETE, 1831-1870)
Rebanho 1831-40 1841-50 1851-60 1861-70
Mais de 2.000 reses 100% 100% 100% 100%
de 501 a 2.000
45,5% 81,8% 83,3% 83,3%
até 500 reses
26,7% 38,9% 75% 73,5%
TOTAL* 59,5% 60,6% 79,7% 78,7%
Fonte: 181 Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. Cartório do Cível e Crime.
Cartório da Provedoria. 1831 a 1870. APRS
* Esses são os percentuais de criadores com terras no universo total de criadores da década e não a
média das médias de cada estrato.
Como se pode depreender dos dados da tabela “2.3”, entre os titulares dos
inventários trabalhados, os índices gerais de propriedade eram altos, mantendo uma
média superior aos 50% ao longo do período em estudo. Todos os criadores que
possuíam mais de 2.000 reses eram donos das terras onde criavam seus rebanhos e o
percentual de proprietários tendia a baixar nos estratos inferiores daquela hierarquia.
Isso aponta para uma vinculação entre a propriedade da terra e a possibilidade da
criação em grande escala, naquele contexto. Por outro lado, todos os estratos de
medianos e pequenos criadores apresentaram uma tendência ascendente nos percentuais
daqueles que eram proprietários de terra.
Conjugando os dados da tabela “2.3” com os números representados no
gráfico “2.A”, aparece uma importante diferença entre os diversos sub-períodos
trabalhados. Na década de 1830, a estrutura agrária de Alegrete estava fortemente
marcada por grandes estancieiros, proprietários de vastas extensões de terra e de
rebanhos que podiam ultrapassar as 2.000 e, às vezes, mesmo as 10.000 cabeças de gado
vacum. Ao lado deles, pequenos e medianos criadores de gado já se faziam presentes,
formando mais da metade do total de inventários da amostra para essa década.
Entretanto, menos da metade dos criadores de porte médio (500 a 2.000 reses) eram
donos das terras onde pastoreavam o seu gado. Essa proporção baixa para cerca de 1/4
dos que tinham menos de 500 reses. No caso dos que tinham até 100 reses, eles eram
cerca de 1/6.
Contudo, é preciso fazer a leitura desses dados a contrapelo. Se, por um lado,
essa descrição aponta para uma forte concentração da propriedade fundiária entre os
grandes estancieiros, por outro ela sugere que havia possibilidades bastante razoáveis
para que os que não eram proprietários de terra pudessem desenvolver a produção
autônoma em campos alheios. Esse quadro enfrentou modificações importantes ao
longo do período tratado. Em primeiro lugar, a proporção geral de proprietários de
95
terras aumentou: era de cerca de 60% nas duas primeiras décadas e passou para algo em
torno de 80% nas duas últimas. Essa variação se deveu, substancialmente, às alterações
ocorridas nos estratos inferiores da hierarquia dos pecuaristas locais. A presença cada
vez mais significativa de pequenos produtores, evidenciada no gráfico “2.A”, foi
acompanhada pelo aumento da proporção daqueles dentre eles que eram proprietários
de terras. Comparando os dados da década de 1830 e da de 1870, Graciela Garcia
observou que, neste último período, haviam diminuído as possibilidades de criar seu
próprio rebanho para os que não eram proprietários de terras, em Alegrete.
171
Os dados
da tabela “2.3” confirmam essa observação e apontam para o fato de que o principal
influxo desse processo se deu após 1850.
Assim, ao longo do período trabalhado, o estrato dos grandes estancieiros
encolheu, mas seguiu dominando a maior parte do rebanho. Essa concentração inclusive
cresceu: se os criadores com mais de 2.000 reses eram 38% entre 1831 e 1840 e
detinham 87% dos rebanhos, na década de 1860 eles eram apenas 15% e eram donos de
82% de todo o gado vacum presente nos inventários. Essa ampliação na concentração
dos rebanhos acompanhou o aumento na concentração de riqueza apontado
anteriormente. Este, por sua vez, também esteve relacionado com a valorização
vertiginosa das terras, ocorrido ao longo do século XIX. Como demonstrou Graciela
Garcia, em uma comparação das décadas de 1830 e 1870, as terras valorizaram-se muito
acima de todos os outros fatores produtivos. Elas subiram quase 800% de seu valor (!)
entre aquelas décadas, enquanto o gado vacum e cavalar não chegaram a ter uma
valorização de 100%. Ovinos e muares tiveram, mesmo, uma valorização negativa.
172
Essa evolução se refletiu na composição dos patrimônios produtivos
presentes nos inventários analisados aqui:
171
GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra..., 2005.
172
GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra..., 2005, p. 25.
96
GRÁFICO 2.B - COMPOSIÇÃO DO PATRIMÔNIO PRODUTIVO - INVENTÁRIOS POST
MORTEM (ALEGRETE, 1831-1870)
0,0%
10,0%
20,0%
30,0%
40,0%
50,0%
60,0%
70,0%
1831-40 1841-50 1851-60 1861-70
Participação no total do patrimônio
produtivo
Benfeitorias Terras Animais Escravos Equipamentos/instrumentos
Fonte: 181 inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. Cartório do Cível e
Crime. Cartório da Provedoria. 1831 a 1870. APRS
173
Na década de 1830, o gado ocupava uma posição majoritária, compondo
cerca de 53% do valor dos patrimônios produtivos. As terras e benfeitorias rurais
vinham em segundo lugar, sem conseguir chegar a 30%. Nas décadas de 1840 e 1850,
os bens de raiz rurais passaram à frente, com 44 e 42%, respectivamente, mas a situação
era de relativo equilíbrio, pois o gado atingiu 36% do total dos patrimônios produtivos
nos mesmos períodos. Nessa época, a diminuição dos rebanhos foi compensada por uma
elevação no preço dos animais. A década de 1860 completou a tendência de ascensão
das terras e radicalizou esse quadro. O conjunto das terras e benfeitorias alcançou a
impressionante marca de 70% do valor total dos patrimônios, enquanto o gado, cujos
rebanhos cresciam, mas os preços haviam baixado muito, chegava a apenas a 17%, sua
menor participação em todo o período estudado. O percentual ocupado pelos escravos
manteve-se estável durante as décadas de 1830, 1840 e 1850. Eles apenas diminuíram
sua participação nos patrimônios ao longo da última década analisada, quando tanto seu
número quanto seu preço sofreram quedas.
174
Os equipamentos e instrumentos de
trabalho, por sua vez, ficaram sempre em torno de 1%, demonstrando a manutenção de
um nível tecnológico baixo, comum a todos os sistemas agrários extensivos.
173
Foram considerados “equipamentos”: carretas, carretões e carretilhas de transporte; moinhos; roda de
ralar mandioca, taxo para fazer farinha, prensa com o mesmo fim quando não estavam incluídos no valor
da casa que abrigava a atafona. Foram considerados “instrumentos”: laços; facas; marcas de ferro;
enxadas; machados; arados; cavadeiras; pás e instrumentos de carpintaria.
174
Sobre os preços e números de escravos em Alegrete, ver capítulo “7”.
97
O aumento do preço das terras foi, provavelmente, o resultado da
combinação de diferentes fatores. Ainda que não seja possível aqui realizar um estudo
específico sobre esse tema, creio ser necessário apontar pelo menos alguns dos
elementos que contribuíram para esse processo. Em primeiro lugar, ele certamente
sofreu influência da prática da pecuária extensiva em uma região onde as melhores
terras já estavam ocupadas desde as primeiras décadas do século. Em meados do século,
o fato de que as propriedades ficavam cada vez menores, implicando na redução da
capacidade produtiva dos estabelecimentos pecuários, agia no sentido da valorização de
cada quatro de légua de campo que pudesse ser utilizado.
Além disso, a extrema valorização das terras pode guardar relação também
com o arrefecimento das guerras e a estabilização da soberania do Império sobre a
região. Em seu trabalho sobre o Rio Grande de São Pedro no período colonial, Helen
Osório observou que, durante as conjunturas de guerra, a participação das terras nos
patrimônios produtivos tendiam a baixar, enquanto os escravos e o gado subiam. Em
conjunturas de paz, as terras voltavam a elevar seus percentuais. No caso de Alegrete,
parece bastante plausível que se possa imaginar situação semelhante para os primeiros
tempos de ocupação e para o período das Guerras Cisplatinas (1811-1828), embora não
existam dados de inventários post mortem para por essa hipótese à prova. Até 1828,
eram muito incertas a efetividade e a extensão territorial da soberania portuguesa, e
depois brasileira, sobre a região. Até fins da década de 1840, essa era ainda uma questão
nebulosa, como atestam, por um lado, as indefinições quanto à demarcação da linha de
fronteira com o Uruguai e, por outro, o fato de que, durante parte do período da
Revolução Farroupilha, a região esteve sob controle de forças que se diziam formadoras
de um outro Estado: a República Rio-Grandense. Após o final da Revolução
Farroupilha (1845), da Guerra Grande (1851), com o advento dos tratados que se
seguiram a esta sobre a questão dos limites nacionais entre Brasil e Uruguai, a região
experimentou um período de maior calma e estabilidade, ao menos até as convulsões em
seqüência ocorridas no Uruguai, em 1864 e na Guerra do Paraguai (1865-1870).
Por fim, é também bastante provável que esse aumento no preço das terras
tenha sofrido alguma influência do processo de aplicação da Lei de Terras no
município. A Lei de Terras era de 1850 e seu regulamento datava de 1854, mas sua
aplicação obedeceu a ritmos e características diversas nos quatro cantos do Império. Em
trabalho recente, Graciela Garcia comparou a estrutura agrária de Alegrete em dois
98
momentos distintos: as décadas de 1830 e 1870.
175
A partir deste procedimento, a autora
identificou a diminuição dos produtores que não detinham a propriedade da terra, entre
um e outro período. Isso se deveu, de um lado, ao fato de que houve o cerceamento à
possibilidade de se apropriar de terras devolutas após a Lei de Terras (1850). Além
disso, os proprietários foram se tornando menos tolerantes à presença de pessoas
arranchadas dentro de suas terras.
Esse parece ter sido um fenômeno geral em toda a Campanha: estudando
uma mostra de inventários de Bagé, John Charles Chasteen tamm apontou a redução
entre os produtores sem a propriedade da terra, ao longo do século XIX.
176
Preocupado
em mapear o contexto anterior à “Revolução Federalista”, de 1893, o historiador norte-
americano identificou um acirramento das tensões tanto horizontais, entre os
proprietários, como verticais, entre esses e a população pobre, privada do acesso à
produção independente, sobretudo a partir da década de 1870. Chasteen atribuiu essas
tensões ao sistema de partilha igualitária dos bens, que reduzia continuamente as
possibilidades de reprodução dos criadores de gado dentro do sistema da pecuária
extensiva, onde era impossível manter o mesmo número de reses sem manter a mesma
quantidade de terras.
Graciela Garcia vinculou essas transformações, em Alegrete, com o grande
aumento do preço das terras, mas deu um passo à frente ao relacioná-las, também, com
a crise do trabalho escravo e com o processo de aplicação da Lei de Terras na região, ao
longo da segunda metade do século XIX. Respeitando a complexidade do tema, Garcia
mostrou que conflitos fundiários ocorreram desde o início da ocupação luso-brasileira
na região, mas foram se tornando mais incisivos, e ganhando novas formas, em razão
das transformações que estavam em curso na segunda metade do Oitocentos.
A autora lançou a hipótese de que o aumento significativo na proporção de
pequenos criadores, entre uma e outra década estudadas por ela, significou uma
ampliação na mão-de-obra livre que poderia, sazonalmente, empregar-se nos grandes
estabelecimentos.
177
Esse estrato inchado de pequenos criadores, bem como a redução
das possibilidades de ser produtor “sem-terra”, contribuíram para atender as
necessidades das grandes estâncias quando da crise do trabalho escravo no município.
Paulo Zarth havia proposto que os lavradores nacionais expropriados das terras que
ocupavam, em favor da colonização, no norte do Rio Grande do Sul, serviram como
trabalhadores das obras de infra-estrutura dessas mesmas colônias, e também como
175
GARCIA, Granciela. O Domínio da Terra…, 2005.
176
CHASTEEN, John Charles. Background to Civil War..., 1991, p. 756.
177
GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra..., 2005, p. 178.
99
substitutos dos escravos nas estâncias daquelas regiões.
178
Garcia seguiu a mesma linha
de raciocínio para afirmar que as crescentes dificuldades impostas para que se pudesse
produzir sem possuir a propriedade formal da terra, na Campanha, ajudaram a fornecer
os substitutos para a mão-de-obra escrava na pecuária, quando esta entrou em crise.
179
No que se refere ao período estudado nesta tese, os dados confirmam a
tendência geral das transformações, identificadas por Graciela Garcia. Através deles,
podemos perceber que a década de 1850 foi um ponto de inflexão importante pois, a
partir de então, a proporção de criadores de gado sem a propriedade da terra, que havia
ficado em torno de 40% nas décadas de 1830 e 1840, decresceu e se estabilizou em
torno de 20%, nos dois decênios posteriores. A posse de uma parte de terras
formalmente ou pretensamente pertencentes a outros continuava sendo empregada como
estratégia pelos pequenos produtores, mas passou a encontrar mais resistência por parte
dos proprietários. Passemos, agora, à análise das formas como essa ampliação fundiária
compôs as estratégias daqueles que se tornaram parte da elite agrária de Alegrete, no
período estudado.
2.2 - “Sem respeitar fé nem tratados”
A grande valorização das terras, apontada acima, deixa claro que aqueles que
puderam executar uma política de ampliação fundiária na primeira metade do século
XIX, quando ainda era possível apropriar-se de boas terras a baixos custos, tiveram
vantagens em relação aos que procuraram fazê-lo de meados do século para diante. A
construção dos grandes patrimônios fundiários da Fronteira Meridional do Brasil foi,
tradicionalmente, associada à doação de sesmarias pela Coroa Portuguesa, no processo
de conquista das fronteiras de Rio Pardo e Rio Grande. Contudo, obras mais recentes
têm destacado o caráter diversificado e conflitivo do processo de apropriação da terra
nos extremos sulinos da América Portuguesa, desde o século XVIII.
180
Ao lado das
doações de sesmarias, as posses por ocupação simples, as compras e as usurpações
também marcaram presença naquele contexto. Da mesma forma, como veremos,
aqueles que se tornaram os grandes estancieiros da Fronteira, na primeira metade do
século XIX, empregaram modos diversos de aquisição das terras para a construção de
seus vastos patrimônios fundiários. Além disso, o complexo processo de apropriação
178
ZARTH, Paulo Afonso. História Agrária do Planalto Gaúcho (1850-1920), 1997.
179
GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra..., 2005.
180
OSÓRIO, Helen. Apropriação da Terra no Rio Grande de São Pedro e a Formação do Espaço
Platino, 1990. BELL, Stephen. Campanha Gaúcha: a Brazilian Ranching System (1850-1920), 1998, pp.
29-30. GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra ..., 2005.
100
fundiária gerou uma estrutura onde havia espaço para medianos e pequenos produtores,
tivessem eles a propriedade formal da terra ou não. Aqui, se estuda com mais detalhe o
processo de acumulação fundiária realizado pela elite agrária, o estudo das formas de
posse da terra pertencentes aos outros setores sociais serão vistos no capítulo “8”.
Em primeiro lugar, é preciso ficar claro que não se está negando a
importância das sesmarias, no contexto estudado. Dos 16 titulares de inventários com
fortunas superiores a £ 10.000,00 na amostra trabalhada, 11 haviam sido agraciados
com sesmarias nas primeiras décadas do século XIX.
181
Para além disso, mais dois
dentre eles – Cirino José de Carvalho e o Tenente-Coronel Severino Ribeiro de Almeida
- eram herdeiros de sesmeiros que também estão presentes entre os inventariados mais
afortunados daquela mesma amostra. Porém, na maioria dos casos, as sesmarias
recebidas foram apenas um dos elementos de uma política voraz de acumulação
fundiária. O pequeno grupo dos mais afortunados senhores locais operou uma obra
significativa de ampliação e consolidação de seus patrimônios fundiários ao longo da
primeira metade do século XIX. Nesse período, ainda era possível conseguir terras a
baixos custos: por ocupação simples, por doação de sesmarias, por compra a preços
muito menores do que viriam a alcançar na segunda metade do Oitocentos, quando
houve uma enorme valorização das terras, como já foi visto. A construção desses
patrimônios fundiários precisou combinar ações para reproduzir seus cabedais tanto de
fortuna quanto de relações sociais, e deve ocupar uma posição importante da análise
quando se trata de entender a hierarquia sócio-econômica da Fronteira. É necessário
investigar especificamente as formas pelas quais foi levada a efeito essa concentração.
O processo de apropriação estável das terras extremas da Fronteira do Rio
Pardo pelos luso-brasileiros, aí incluídas as que formariam o município de Alegrete, é
um tema que, sozinho, já mereceria uma obra específica. A ausência de um estudo sobre
esse processo, ocorrido nas duas primeiras décadas do século XIX, dificulta a análise do
período imediatamente posterior, ao qual me dedico aqui. Porém, mesmo que o
objetivo desta tese não seja tratar especificamente dessa época, será necessário
reconstruir alguns de seus traços principais, imprescindíveis para a análise correta do
tema estudado, ou seja, o cenário social de Alegrete, a partir da década de 1820.
181
Casais sesmeiros entre as 16 maiores fortunas da amostra de inventários post mortem trabalhada aqui:
João Batista de Castilhos e Julia Joaquina da Silva, Agostinho de Souza Dornelles e Teresa Joaquina de
Jesus, Joaquim Antônio de Oliveira e Maria Joaquina da Silva, Albino Pereira de Lima e Matilde
Joaquina da Assumpção, Francisco Telles e Souza e Floriana Maria de Jesus, Manoel Joaquim do Couto e
Potenciana Joaquina do Couto, Manoel José de Carvalho e Custódia Maria de Carvalho, Bento Manoel
Ribeiro e Maria Mância Ribeiro, Feliciano Pereira Fortes e Auristela Ribeiro de Almeida, José Antônio
Martins e Rosa Violante Martins, Olivério José Ortiz e Febrônia Cândida Ortiz. “Sesmarias, Maços 16 a
157, Anos 1811 a 1823. APRS.”
101
Durante o período colonial, as concessões oficiais (sobretudo as sesmarias) e
a posse por ocupação simples consistiram nas formas mais empregadas para a
apropriação de terras realengas na América Portuguesa. Em 1822, ano da Independência
do Brasil, a lei de sesmarias deixou de ter validade e a ocupação simples ficou sendo a
única forma de aquisição da propriedade de terras devolutas. Essa situação modificou-se
em 1850, com o advento da Lei de Terras, que instituía a compra como único meio legal
de fazê-lo. Essa mesma lei reconheceu as posses feitas até aquela data e a possibilidade
de sua legitimação por meio de um processo judicial específico para o caso.
182
A
ocupação simples foi, desde o início dos tempos coloniais, um instrumento utilizado
maciçamente por pequenos posseiros produtores de alimentos, que tinham dificuldades
para conseguir uma sesmaria. Todavia, ela também foi utilizada por grandes senhores,
como os cafeicultores do Vale do Paraíba no primeiro grande rush da lavoura de
exportação desse produto, na primeira metade do século XIX.
183
Na ocupação estável da
Fronteira Meridional, como em todas as outras regiões do Brasil, estiveram presentes
tanto as sesmarias quanto as posses, como expedientes de apropriação de terras
realengas.
Como já foi dito no primeiro capítulo desta tese, a conquista do território dos
Sete Povos pelos portugueses, em 1801, combinada com a expansão charqueadora do
Rio Grande nas duas primeiras décadas do século XIX, propiciou uma catalização no
processo de ocupação daquelas áreas pelos luso-brasileiros. Contudo, muitas das
sesmarias passadas nesse período foram concedidas sobre terras já ocupadas.
Comandantes militares e membros de famílias importantes das regiões mais antigas
puderam valer-se de sua posição social e de boas relações para conseguir concessões de
vastas áreas de terras, cujo direito conseguiam fazer valer sobre alguns dos antigos
possuidores.
184
Estes eram povoadores que, desde fins do século XVIII, tinham
avançado sobre as terras de fronteira, fazendo arranchamentos e estabelecendo unidades
produtivas. Alguns deles requereram e obtiveram sesmarias, outros jamais o fizeram ou,
182
Obras importantes acerca do processo de apropriação de terras devolutas no Brasil, dos tempos
coloniais até a Lei de Terras (1850), contemplando análises diferentes sobre o processo, são: LIMA, Ruy
Cirne. Pequena História Territorial do Brasil. Sesmarias e terras devolutas, 1988. SMITH, Roberto.
Propriedade da Terra e Transição: estudo da formação da propriedade privada e transição para o
capitalismo no Brasil,, 1990. SILVA, Lígia Osório. Terras Devolutas e Latifúndio: efeitos da Lei de
1850, 1996. MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra, 1996. MOTTA, Márcia. Nas Fronteiras do
Poder: conflitos de terra e direito agrário no Brasil em meados do século XIX, 1996.
183
MOTTA, Márcia. Nas Fronteiras do Poder..., 1996, pp. 203-4.
184
OSÓRIO, Helen. Apropriação da Terra no Rio Grande de São Pedro e a Formação do Espaço
Platino..., 1990, p.p. 24-89. A importante participação dos comandantes militares na distribuição de terras
no século XVIII no Rio Grande do Sul também havia sido apontada na obra pioneira de: RUDIGGER,
Selbat. Colonização e Propriedades de Terra no Rio Grande do Sul – Século XVIII, 1965.
102
em tentando, não conseguiram os títulos formais. Algumas das terras concedidas em
sesmarias eram mesmo vendidas pouco tempo após serem obtidas.
Formalmente, havia dispositivos para barrar os abusos. A concessão das
sesmarias esteve condicionada a várias exigências, ditadas pela legislação geral
referente às mesmas e também por regulamentações específicas. Em sua dissertação de
mestrado, infelizmente ainda inédita, Helen Osório demonstrou que as tentativas de
regulamentação das concessões de terras se sucederam nas últimas décadas do século
XVIII e inícios do XIX, porém, a própria estrutura do poder e a força dos beneficiados
tornou-as de difícil ou impossível execução.
185
Assim, as exigências de comprovação de
cultivo e produção, de medição e demarcação das terras, de que os concessionários não
tivessem recebido outra sesmaria, não foram alvo de uma fiscalização eficiente e
acabaram por ser raramente cumpridas.
Essa situação já havia ficado clara desde as décadas finais do século XVIII,
no processo de expansão ao sul do rio Jacuí e daí para oeste, em terras disputadas com o
Império Espanhol. A partir daquele momento, os Comandantes Militares de Fronteira
passaram a ter um papel muito importante na distribuição fundiária. Um Edital de 1º. de
Janeiro de 1780 regulou esse processo, começando pelo fato de que o Vice-Rei
outorgava ao Governador da capitania o poder para distribuir aquelas terras. A
distribuição deveria ser feita a partir de requerimento dos interessados, muitos deles
sendo gente que já tinha posses na região e queriam legalizá-las, através da doação
oficial. No requerimento, os solicitantes precisavam declarar suas “possibilidades para
estancieiros”, ou seja, a quantidade de animais que possuíam ou poderiam colocar nas
terras concedidas. Como ressaltou Osório, o teor da apropriação que se queria
regulamentar e fomentar era claramente pecuário.
186
Os requerentes também deveriam
informar as sesmarias que tinham ou tiveram, para que se evitasse acumulações
abusivas de terras.
Nesse contexto, os Comandantes Militares de Fronteira ganharam grande
poder, porque cabia a eles dar parecer sobre o requerimento onde, “além de
comunicarem sobre o conteúdo dos mesmos, investigariam ‘se os pais ou filhos ou
irmãos dos que pediram sesmaria tem outras posses imediatas às mesmas pedidas ou em
outras partes’".
187
Esse poder político dos Comandantes Militares tinha implicâncias
185
OSÓRIO, Helen. Apropriação da Terra no Rio Grande de São Pedro e a Formação do Espaço
Platino..., 1990, p.p. 24-89.
186
OSÓRIO, Helen. Apropriação da Terra no Rio Grande de São Pedro e a Formação do Espaço
Platino, 1990, Helen. Apropriação da terra..., 1990, p. 82.
187
OSÓRIO, Helen. Apropriação da Terra no Rio Grande de São Pedro e a Formação do Espaço
Platino, 1990..., 1990, p.82.
103
diretas na reprodução da ordem econômica e social, uma vez que eles interferiam na
distribuição e garantia dos direitos sobre a terra, em fins do período colonial. Como se
pode imaginar, essa organização foi propícia para o estabelecimento e reforço de redes
clientelares, e reproduziram o poder dos Comandantes Militares, que detinham uma
posição privilegiada em todo esse processo, dado que era deles o poder de avalizar a
veracidade das informações prestadas pelos requerentes.
188
O resultado foi que as exigências foram largamente burladas. As terras
concedidas não podiam exceder 3 léguas quadradas nem poderiam ser vendidas sem
autorização do Governador, no prazo de 5 anos. No, entanto, Osório verificou que os
próprios Comandantes Militares aparecem como proprietários de extensões de terras
muito superiores à estipulada e como vendedores de outras parcelas.
189
Além de tudo, a
própria imprecisão dos limites das concessões, feitas através de acidentes naturais ou,
por vezes, nem mesmo isso, acabou por gerar muitos conflitos. As necessidades
militares de defesa e expansão do território e a importância que os comandantes locais
tinham nesse assunto, permitiu-lhes uma posição forte na condução do processo de
apropriação das terras conquistadas.
190
Helen Osório afirmou que “o normal foi o desalojamento dos primeiros
possuidores de terras afastadas ou perigosas, a partir do momento em que avançavam as
possessões portuguesas, pelos próprios militares.”
191
Para as áreas florestais do norte do
Rio Grande do Sul, Paulo Afonso Zarth também percebeu esse processo de povoamento
em que uma “frente de expansão” foi sobreposta por uma “frente pioneira”, tendo
ocorrido, porém, mais tardiamente, ao longo do século XIX.
192
Situações semelhantes
foram apontadas para outras partes do Brasil colonial e monárquico, como no município
de Capivary, na província do Rio de Janeiro, estudado por Hebe Mattos ou no Oeste
Paulista, analisado por Carlos Bacellar. Hebe Mattos mostrou como o ritmo de
188
Sobre a importância e estruturação de redes clientelares no Antigo Regime português, ver: XAVIER,
Angela; HESPANHA, Antonio Manuel. As redes clientelares, 1993. Para o uso criativo desse conceito no
estudo da América Portuguesa, ver: FRAGOSO, João Luis. A Nobreza da República: notas sobre a
formação da primeira elite colonial do Rio de Janeiro, 2000. _____. A nobreza vive em bandos: a
economia política das melhores famílias da terra do Rio de Janeiro, século XVII. Algumas notas de
pesquisa, 2003. FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima; BICALHO, Maria Fernanda (orgs.). O
Antigo Regime nos Trópicos (a dinâmica imperial portuguesa: sécs. XVI-XVIII),2001.
189
OSÓRIO, Helen. Apropriação da Terra no Rio Grande de São Pedro e a Formação do Espaço
Platino, 1990..., 1990, pp. 88-89.
190
OSÓRIO, Helen. Apropriação da Terra no Rio Grande de São Pedro e a Formação do Espaço
Platino, 1990..., 1990.
191
OSÓRIO, Helen. Apropriação da Terra no Rio Grande de São Pedro e a Formação do Espaço
Platino, 1990..., 1990. p. 86.
192
Zarth analisa o Planalto, com muita pertinência, sob a inspiração de José de Souza Martins . ZARTH,
Paulo Afonso. História Agrária do Planalto Gaúcho..., 1997, p. 34. MARTINS, José de Souza. Frente
Pioneira: contribuição para uma caracterização sociológica..., 1980.
104
expansão das plantations influenciava nas possibilidades de reprodução social e nas
características assumidas pelos produtores de alimentos, se como sitiantes
independentes ou agregados.
193
Bacellar, por sua vez, apontou que a implantação da
lavoura de exportação representou um segundo movimento de apropriação das terras do
Oeste Paulista, tendo sido precedida por roceiros que desenvolviam agricultura de
subsistência e que, em boa parte, acabaram por ser deslocados com a chegada da grande
lavoura e da produção açucareira. O autor ressalta, porém, que esse novo momento não
implicava na eliminação de todas as antigas posses, nem de unidades produtivas mais
modestas, mas limitava suas possibilidades de existência.
194
Também no Rio Grande as posses e unidades agrárias de envergadura mais
modesta continuaram existindo, como demonstrou outro estudo de Helen Osório e a
análise dos inventários post mortem de Alegrete feita aqui.
195
Igualmente, alguns
grandes possuidores e mesmo sesmeiros foram prejudicados quando entraram em
conflito por partes de suas posses. Esses fatos servem como alerta para se evitar a
tentação de pensar que o processo de concentração fundiária, na Fronteira, tenha
implicado no total monopólio da terra parte de uns poucos senhores. Assim, a expansão
do povoamento luso para o sul e oeste do rio Jacuí teve muitos traços comuns com o
processo ocorrido em outras regiões do Brasil. Não houve unicamente a concessão de
sesmarias sobre um espaço vazio ou uma “terra de ninguém”. Ocorreu, sim, um
processo de concentração, mas não uma monopolozição absoluta da propriedade da
terra, e muito menos do acesso à sua posse.
O estudo de Osório, tantas vezes referido aqui, detém-se em 1810,
exatamente quando se acelerou a ocupação dos extremos da Fronteira do Rio Pardo,
diretamente interessante a esta tese. Infelizmente, não existe nenhum trabalho tão
detalhado quanto aquele para o período entre 1810 e 1825. Porém, as referências
presentes em outras obras e os próprios documentos trabalhados nesta tese, para o
período posterior, permitem afirmar que os traços mais importantes continuaram se
reproduzindo. Como vimos, aquele foi o período de rápida expansão de apropriação e
193
MATTOS DE CASTRO, Hebe. Ao Sul da História: lavradores pobres na crise do trabalho escravo,
1987, pp. 13-22. Ver também: LINHARES, Maria Yedda; SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. História
da Agricultura Brasileira - combates e controvérsias, 1981.
194
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra: família e sistema sucessório entre os
senhores de engenho do oeste paulista, 1765-1855, p. 117. Para análises sobre processos de ocupação de
terras em outras áreas do Brasil, ver: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Camponeses e Criadores na
Formação Social da Miséria: Porto da Folha no Sertão do São Francisco (1820-1920), 1981. _____. A
Morfologia da Escassez: crises de subsistência e política econômica no Brasil colônia (Salvador e Rio de
Janeiro, 1680-1790), 1990. SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do Império:
hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650- c.1750), 2002.
195
OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da Estremadura Portuguesa
na América..., 1999.
105
de extensão do domínio português, depois brasileiro nos extremos da Fronteira do Rio
Pardo e Banda Oriental adentro. Como veremos com mais detalhe no capítulo “4”,
naquele contexto, o poder dos Comandantes Militares e sua ingerência nas doações e
conflitos de terra parece ter se reproduzido e mesmo se ampliado.
Assim, ao invés de um bem ordenado tabuleiro de xadrez de estâncias, a
configuração agrária da Fronteira, na primeira metade do século XIX, assemelhava-se
mais a um mosaico onde posses de diversos tamanhos e sob diferentes estatutos
jurídicos estavam não apenas imbricadas, mas podiam inclusive apresentarem-se
sobrepostas. Como se pode imaginar, essa variedade de formas de apropriação da terra,
misturando sesmarias, compras, posse pura e simples, somada à imprecisão dos limites
de cada estabelecimento, constituiu-se em uma fonte perene de conflitos fundiários que
perdurariam e ganhariam força e variedade ao longo do Oitocentos.
196
Como já havia
notado Paulo Afonso Zarth, estudando o caso do Planalto Gaúcho, é muito difícil
avaliar a dimensão real dessas fraudes e usurpações, já que apenas uma parte mínima
desses casos aparece na documentação, o que ocorria justamente quando aqueles que
eram prejudicados por essas práticas reuniam condições para reclamar.
197
No que se refere, por exemplo, à extensão máxima de 3 léguas quadradas
para as sesmarias concedidas, mesmo que esse item fosse formalmente cumprido, a
possibilidade de alargamentos estavam sempre presentes. Como disse Graciela Garcia,
essa medida precisa em termos de área era praticamente inaplicável, uma vez que a
delimitação das terras concedidas se dava com base em acidentes naturais. Nas palavras
da autora, “dificilmente uma sesmaria que tem como limite ao norte uma coxilha, ao sul
um banhado, a oeste um rio e a leste um capão de matos, poderia conter a medida
declarada na carta que a concedeu.”
198
Assim, como notou Richard Graham,
genericamente, para todo o Império, “sesmarias sobrepostas umas às outras, e os
direitos tradicionais dos posseiros, junto à virtual ausência da agrimensura, ou registros
territoriais, criavam um sistema caótico de reivindicações potencialmente conflitantes,
que sacrificava o fraco e premiava a força.”
199
196
GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra: conflitos e estrutura agrária na Campanha Rio-grandense
oitocentista, 2005.
197
Zarth conseguiu estudar alguns desses casos no norte do Rio Grande do Sul, através de processos
criminais gerados pelas disputas em torno da terra, na segunda metade do século XIX. ZARTH, Paulo
Afonso. História Agrária do Planalto Gaúcho..., 1997. Para o mesmo tema em outras regiões do Rio
Grande do Sul, ver também: FOLETTO, Arlene Guimarães. Dos Campos junto ao Uruguai aos Matos de
Cima da Serra: a paisagem agrária na paróquia de São Patrício de Itaqui (1850-1889), 2003.
CHRISTILINO, Cristiano Luis. Estranhos em seu próprio chão: o processo de apropriações e
expropriações de terras na província de São Pedro do Rio Grande do Sul, 2004.
198
GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra..., 2005, p. 107.
199
GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil, no século XIX, 1997, p. 40.
106
Essa imprecisão nos limites das terras concedidas ou mesmo das adquiridas
por compra, acabava sendo uma oportunidade para que se buscasse alargar os limites
das parcelas possuídas, ainda que isso pudesse ir em prejuízo dos confinantes. Não há
como quantificar essa prática, mas, por vezes, restaram informações sobre elas em ações
judiciais possessórias e de despejo, como aquelas trabalhadas por Graciela Garcia em
sua dissertação de mestrado.
200
Essa situação acabava por gerar conflitos que não
chegaram, em sua totalidade, à esfera judicial. Em qualquer dos casos, estar inserido em
boa posição nas redes de relações pessoais que os ligavam a seus vizinhos e à
notabilidade local, que ocupava os cargos militares, judiciários e administrativos da
Fronteira ou do município, mostrou-se uma variável de grande importância para a
confirmação do domínio sobre uma determinada área de terras. Em consonância com o
que já haviam dito Helen Osório, para o Rio Grande do Sul no período colonial e
Márcia Motta já antecipara para a província do Rio de Janeiro, Garcia demonstrou
como, em Alegrete, em uma situação de tamanha imprecisão dos títulos de posse legal,
as relações sociais atuaram como legitimadoras do domínio sobre determinada área de
terras. Esse é um ponto que é necessário reter aqui.
2.3 - Registros Paroquiais e formas de ocupação das terras
Em seu trabalho, Graciela Garcia analisou os Registros Paroquiais de Terra,
realizados em Alegrete na década de 1850.
201
A autora considerou aquelas declarações
como um instrumento especialmente válido para investigar as intenções de domínio que
os declarantes possuíam. Quando o possuidor se postava diante do vigário de sua
paróquia, deveria prestar uma série de informações sobre as terras que pretendia
registrar, entre elas a localização, a extensão, os nomes dos confinantes e a forma de
aquisição. Cada paróquia apresentou uma combinação diversa desses elementos: em
algumas delas a extensão foi indicada apenas por uma mínima parte dos declarantes,
mas os confinantes e os limites eram sempre bem estabelecidos, em outras podia ocorrer
o contrário, e assim por diante.
202
No caso de Alegrete, Garcia observou que a maioria
200
GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra ..., 2007, pp. 115-124.
201
O Registro Paroquial de Terras foi instituído pela Lei de Terras (1850) e colocado em prática a partir
do decreto n.º 1.318, de 30 de janeiro de 1854, que regulamentou a execução daquela lei. Todos aqueles
que possuíssem terras, fossem sesmeiros ou simples possuidores, deveriam declará-las aos vigários de
suas paróquias. Lei número 601, de 18 de setembro de 1850. Brasil. Ministério Extraordinário para
assuntos fundiários. Coletânea: Legislação Agrária, legislação de Registros Públicos, Jurisprudência.
Maria Jovita Wolnei Valente (elaboração) . Brasília, 1982. A partir de agora referirei tal dispositivo legal
apenas por “Lei de Terras (1850)”.
202
LINHARES, Maria Yedda; SILVA, Francisco Carlos T. História da Agricultura Brasileira... , 1981.
MATTOS DE CASTRO, Hebe Maria. Ao Sul da História..., 1987. ZARTH, Paulo Afonso. História
107
dos declarantes indicou expressamente a extensão das mesmas. Além disso, a exemplo
do que ocorrera em outros municípios, uma parte significativa dos possuidores não
comparecera para registrar suas terras.
203
Mesmo considerando essas ausências, a soma
das extensões declaradas excedia em alguns hectares a área total do município. Essa
contradição significaria que aqueles que haviam registrado suas terras e declarado a área
das mesmas, o haviam feito com deliberado exagero. Segundo Garcia, mais do que uma
declaração fiel à realidade, os registros revelariam, assim, uma tentativa de expansão
dos domínios por parte de seus possuidores.
204
Por outro lado, em pouco mais de metade dos casos de parcelas de terras
declaradas (52,85%), especialmente as de maior extensão,
205
não foi indicada a forma
de aquisição: se por compra, sesmaria, herança ou posse por ocupação simples. No caso
das parcelas em que esse item foi declarado, a herança ou meação aparece como mais
freqüente (24,12%), seguida da compra (16,53%), mista entre herança e compra
(3,52%). Formas como a arrematação e a ocupação “a favor” aparecem com algo em
torno de 1%, pouco mais ou menos. A posse por ocupação simples teve índices pífios de
declaração: apenas 2 casos do total de 369 parcelas declaradas. Além disso, somente 4
parcelas foram declaradas como tendo sido apropriadas por sesmarias. Garcia considera
que, ainda que se pudesse invocar a distância temporal entre o final das concessões de
sesmarias (formalmente em 1822) e a data do Registro (meados da década de 1850),
mais declarações desse tipo deveriam ocorrer. A autora aponta que esse fato indica que
muitos sesmeiros provavelmente não tenham registrado suas terras naquele cadastro.
Por sua vez, uma explicação para o baixíssimo número de declarações de
terras adquiridas por ocupação simples seria a de que a fronteira agrária já estivesse
fechada havia algumas décadas, antes do início dos registros (1854). Garcia discorda
dessa idéia. Para ela, esses números estavam longe de corresponder à realidade. As
apropriações feitas por ocupação simples deveriam ter sido muito mais significativas,
uma vez que existiu “a referência constante a esta prática nos processos de despejo e
ações possessórias do município”.
206
Além disso, havia referência a campos devolutos
como confinantes de áreas declaradas no Registro Paroquial de Terras. É possível
Agrária do Planalto Gaúcho..., 1997. FARINATTI, Luís Augusto. Sobre as Cinzas da Mata Virgem: os
lavradores nacionais na província do Rio Grande do Sul (Santa Maria: 1845-1880), 1999.
203
GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra ..., 2007, pp. 95 a 100.
204
GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra ..., 2007, p. 89.
205
Para a autora, “grande possuidor” foi o que declarou parcelas com mais que 12.089 ha., o que
correspondia a 3 léguas quadradas, medida que, formalmente, era o tamanho máximo das sesmarias
concedidas na Fronteira. Em relação à área declarada, o percentual das grandes parcelas foi de mais de
60%, portanto ainda maior que o geral. GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra ..., 2007, p. 81.
206
GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra ..., 2007, p. 82.
108
concordar que a posse por ocupação simples teve, provavelmente, um papel muito mais
relevante do que aquele expresso pelos míseros dois casos de parcelas que teriam sido
adquirida por esta forma no registro. Como no caso de outras partes do Brasil, esse
expediente poderia ter sido utilizado não apenas por pequenos posseiros, como para o
estabelecimento e a ampliação de grandes propriedades.
207
A ocupação simples deve ter sido mesmo muito comum, pois um campo
ocupado primariamente por posse podia depois ser vendido, transmitido em herança ou
mesmo, se isso ocorresse antes de 1822, embasar o requerimento de uma sesmaria. Ou
seja, mesmo uma terra que aparecesse no registro paroquial como tendo sido adquirida
por uma dessas formas, ela podia ter tido origem em uma posse pré-existente. Essa
constatação é coerente com o processo descrito por Helen Osório para a expansão do
povoamento luso a partir do Rio Grande de São Pedro, no século XVIII e já comentado
aqui. Ao contrário do que se repetia de forma costumeira, a doação de sesmarias como
forma predominante de apropriação primária dos campos da Fronteira Meridional deve
ser, em muito, relativizada. Nesse ponto, estou totalmente de acordo com Garcia.
Com base nessa análise, a autora passa a tomar como certo que o contingente
de cerca de 52% das parcelas declaradas ao registro paroquial de terras, onde não consta
a forma de aquisição, teriam sido apropriadas por ocupação simples pelos registrantes.
Ela busca aplicar, para Alegrete, o mesmo procedimento elaborado por Hebe Mattos de
Castro, para Capivary na província fluminense. Em suas palavras: “por tudo isso,
acreditamos que as terras registradas em Alegrete, com omissão da forma de
apropriação, tenham sido adquiridas através da posse por ocupação simples”.
208
Com
essa afirmação, não é possível concordar. Não há evidências que autorizem a pensar
desse modo. Ao contrário, uma investigação nas escrituras públicas de compra e venda
realizadas no cartório de Alegrete, e em outras fontes como os inventários post mortem
e as ações ordinárias de cobrança, sugere um panorama diferente. Por exemplo, em
1845, Zeferino Gonçalves Leal comprou uma fazenda pertencente ao capitão Felisberto
Nunes Coelho, nas proximidades do arroio Paipasso.
209
Em 1854, declarou esses
campos no registro paroquial de terras sem, no entanto, referir a forma pela qual os
havia adquirido.
210
Em 1837, Feliciano Antônio Severo herdou uma légua de campo no
207
MOTTA, Macia Menendes. Nas Fronteiras do Poder..., 1996.
208
GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra ..., 2007, p. 83.
209
“Transmissões. Alegrete. Livro 01, fl. 154, 14.10.1845. APRS.”
210
“Registros Paroquiais de Terras. Alegrete, n. 07. APRS.”
109
inventários de seu sogro José Rodrigues da Rosa.
211
Em 1854, registrou esse campo e
nada declarou sobre a forma de aquisição do mesmo.
212
As parcelas cuja forma de aquisição não foi declarada podem ter sido
adquiridas por diversas modos pelos registrantes, entre os quais estava a posse. Como
bem apontou Garcia, em outras partes de seu trabalho, as escrituras de compra e venda
também traziam limites muito imprecisos e não garantiam, de per se, que o vendedor
possuía uma posse efetivamente legítima. Assim, os compradores podiam recear em
indicar no registro a forma de aquisição de suas terras. O mesmo se dá com os
sesmeiros, que podem ter declarado terras sem prestar essa informação porque não
haviam medido e demarcado suas terras. Ainda que a legitimidade das sesmarias fosse
aceita usualmente sem esse processo, é difícil saber como os sesmeiros interpretaram o
registro paroquial, em uma época em que a Lei de Terras ainda era recente e os rumos
de sua efetiva aplicação não eram conhecidos. Além de tudo isso, é possível que muitas
dessas áreas adquiridas por sesmaria e compra tivessem sido alargadas por posses, estas
podendo, por vezes, prejudicar algum confinante. Isso novamente explicaria a opção dos
declarantes por não informar o modo de aquisição da terra. Enfim, essas são apenas
algumas sugestões para pensar porque compradores e sesmeiros deixaram de prestar
essa informação no registro.
Por outro lado, como bem percebeu Garcia, a presença da compra como
segunda principal forma de aquisição dentre aquelas parcelas para as quais foi declarada
a forma de aquisição (atrás apenas da herança), não autoriza a deduzir, por si só, o
fechamento da fronteira agrária, mas indica a existência de um mercado de terras
mesmo antes de 1850, no município. Um mercado de terras que certamente tinha suas
peculiaridades, mas que indica que a compra esteve presente na região deste os
primórdios de sua ocupação estável pelos luso-brasileiros [cabe perguntar quem eram os
compradores e vendedores: parentes, aliados, desconhecidos?. A existência de um
mercado pressupõe relações impessoais entre comprador e vendedor].
Ainda que não se deva pensar em uma fronteira totalmente fechada no
meado do século, não há dúvida que estava em curso um processo efetivo de restrição
cada vez maior das possibilidades de se ocupar terras devolutas. Não estou dizendo aqui
que todas as terras de Alegrete já tinham proprietários no meado do Oitocentos, nem ao
menos formalmente. Não há dados para uma afirmação tão categórica. Porém, há
indícios de que, ainda que não houvesse uma fronteira completamente fechada em 1850,
211
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 03, N. 51, A. 1837. APRS”.
212
“Registros Paroquiais de Terras. Alegrete, n. 14. APRS.”
110
eram poucos os terrenos devolutos a serem apropriados no município. O principal
desses argumentos é justamente o já referido aumento do preço da terra, em proporções
vertiginosas, ocorrido ao longo do período em estudo. Outro, é a existência de um
número importante de produtores sem terras nos inventários da década de 1830. Ainda,
durante todo o período, os grandes estancieiros apresentaram um padrão de posse de
terras descontínuas, o que sugere a dificuldade em continuar a expansão fundiária e
produtiva em campos contíguos, dificuldade essa que não deveria ocorrer maciçamente
em uma realidade de fronteira agrária aberta.
Enfim, o trabalho de Garcia demonstra muito bem a importância das relações
sociais como forma de garantia da legitimidade do domínio sobre determinada área
naquele contexto de limites indefinidos e de grande oportunidade para fraudes e para
eclosão de conflitos, que ganharam novos matizes a partir da aplicação da Lei de Terras
e do aumento do preço da terra na segunda metade do século XIX. Esse é um dado que
precisamos reter aqui. A obra também traz evidências de que as terras do município não
foram todas apropriadas por sesmarias. Ali se destaca, corretamente, que a posse por
ocupação simples, fosse ela legítima (sobre terras devolutas) ou não (ferindo interesses
de posseiros mais antigos), provavelmente teve uma importância não depreciável no
processo de apropriação fundiária, em Alegrete. Apenas discordo que se possa afirmar
que todas as declarações do registro paroquial feitas sem indicar a forma de aquisição
correspondem a posses por ocupação simples. Dentro daquele número, também estavam
terras adquiridas por outras formas, como a compra, a herança e as doações de sesmaria.
O que interessa diretamente aqui é investigar a importância dessas formas de
aquisição, muitas vezes combinadas, na construção dos patrimônios dos grandes
estancieiros. É algo semelhante ao que observou Juan Carlos Garavaglia quando
estudou os patrimônios dos grandes proprietários rurais de Buenos Aires entre 1816 e
1852, onde o recebimento de terras em enfiteuses e as compras estiveram lado a lado.
Um contexto onde “oferta estatal y mecanismos mercantiles se combinan en forma muy
estrecha en todo el periodo.”
213
Uma ativa política de ampliação fundiária foi levada a cabo pelo grupo
daqueles que iriam se tornar parte da elite econômica do local, na maioria das vezes até
a década de 1840, período em que as terras ainda não apresentavam a enorme
valorização que as caracterizaria desde então. A análise dos itinerários patrimoniais de
algumas das famílias de estancieiros que deixaram maior número de vestígios na
213
GARAVAGLIA, Juan Carlos. Patrones de inversión y “elite económica dominante”: los empresarios
rurales en la Pampa bonaerense a mediados del siglo XIX, 1999, p. 42.
111
documentação permitirá perceber a importância das diversas formas de aquisição da
terra e de suas combinações.
2.4 - Itinerários patrimoniais
O processo de inventário conjunto de Manoel José de Carvalho e sua esposa
Custódia Maria Jacques apresenta uma grande riqueza documental. Foram anexadas a
ele muitas correspondências entre os membros da família, revelando os negócios
conjuntos levados a cabo por eles. Esses documentos serão analisados em detalhe
adiante, no capítulo “6”. Aqui, é interessante começar o acompanhamento dos
itinerários patrimoniais por esse casal, que reunia um dos maiores patrimônios
inventariados e, não por acaso, legou um importante cabedal de fontes de estudo para os
historiadores.
A descrição mais completa do patrimônio Manoel José de Carvalho e sua
esposa, Custódia Maria, pode ser obtida em meados do século XIX, com a reunião de
informações de duas fontes: o inventário do casal em 1853-7 e as listas de proprietários
brasileiros com propriedades no Uruguai, elaboradas em 1850.
214
Dona Custódia Maria
faleceu em 1847, mas seu viúvo somente abriu o inventário em 1852. Ainda assim, o
processo arrastou-se sem continuidade até o falecimento do próprio Manoel José de
Carvalho, em 1856. Como o casal não tinha herdeiros menores, foi possível aos
sucessores optarem por uma partilha amigável e angariarem um poder maior de decidir
sobre os rumos da sucessão familiar. Escolheram árbitros em Alegrete e, em segunda
instância, em Porto Alegre, e resolveram deixar para um segundo momento a descrição,
avaliação e partilha dos bens da herança existentes no Uruguai, com o fim de dar
celeridade à divisão dos bens existentes no Brasil.
Manoel José de Carvalho possuía três estabelecimentos agrários no meado
do século XIX. Um estava localizado em Alegrete, outro no município de Uruguaiana -
que havia se desmembrado de Alegrete, em 1846 - e o terceiro no Estado Oriental, na
costa do rio Quaraí. Em Alegrete, nas proximidades da vila, ficava o estabelecimento
que continha a residência preferencial do casal. Ele era chamado, modestamente, de
“Chácara da Boa Vista”, contando com 1 légua quadrada (4.356 ha.), um cercado
contendo uma casa de pedra, toda forrada e assoalhada, pomar e terras de plantações,
além de uma atafona para a fabricação de farinha de mandioca. Havia, ainda, uma légua
de campo localizada fora do cercado e imediato a ele, onde estavam pouco mais de 400
214
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, m 01, n 07, a 1853-7. APRS.”
112
reses, alguns cavalos e ovinos, dois burros echores e 12 mulas. A chácara contava
também com nove escravos e tinha uma olaria instalada naquelas terras.
215
Por sua vez, as terras pertencentes a Manoel José de Carvalho que estavam
localizadas no município de Uruguaiana, vizinho de Alegrete pelo Oeste, formavam a
emblemática Estância de Japejú, que marcou a memória local como um dos principais
estabelecimentos pecuários daquele município, no século XIX. Ela contava com cerca
de 12 léguas de campo (52.272 hectares). Quando da realização do inventário, ali
pastavam cerca de 5.000 reses e 1.000 animais cavalares pertencentes ao casal
inventariado, além de mais de 300 cavalos de serviço. No mesmo local, havia também
um estabelecimento de moradia com casa de pedra coberta de telha, matos de onde se
retirava regularmente madeiras e ainda uma pedreira. Ali, o casal Carvalho mantinha 28
escravos, sendo 22 adultos.
216
Por fim, as terras que ficavam no Estado Oriental. As informações mais
completas sobre elas encontram-se no Relatório da Repartição dos Negócios
Estrangeiros (“RRNE”, 1851), redigida com base nas listas dos Comandantes de
Fronteira, feitas em 1850. Como já foi dito no capítulo “1”, essa é uma fonte com a qual
se precisar ter cuidado. No caso da família Carvalho, as informações contidas naquele
documento são utilizadas aqui quando havia na rica documentação anexa ao inventário e
nas escrituras públicas, ao menos, indícios de que estavam corretas. Segundo aquele
documento, ele possuía um campo com nada menos do que 22 e ¾ léguas de
campos.
217
Segundo o autor da “Relação...”, ali havia existido cerca de 30.000 reses,
mas elas encontravam-se então desfalcadas pela presença de uma força armada de 1.000
homens, a mando do Coronel “blanco” Bernardino Vaz. Além disso, entre 1845 a 1850,
ali estiveram sempre pequenos contingentes daquele exército. Como vimos no capítulo
“1”, estimava-se seu prejuízo em, pelo menos, 4.000 reses.
218
Ainda que esses números
215
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, m 01, n 07, a 1853-7. APRS.”
216
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, m 01, n 07, a 1853-7. APRS.”
217
Não se pode saber com certeza se as listas se referem à medida de da légua quadrada em vigência no
Brasil (4.356 ha.) ou a adotada no Uruguai (2.656 ha.). O mais provável é que se trate da medida vigente
no Brasil. Ao menos, é a ela que mais se aproximam as dimensões que aparecem no “RRNE” quando
comparadas com as dimensões dos mesmos campos quando presentes em inventários post mortem, onde
consta sua extensão e/ou preço. As propriedades que os titulares dos inventários tinham no Uruguai
podiam ser descritas nesses processos tanto em léguas “brasileiras” como castelhanas. Porém, quando
ocorria esta última situação, em geral dizia-se expressamente “ ‘X’ léguas castelhanas de campo”. Para a
medida da “légua castelhana” ver: BORUCKI, STALLA e CHAGAS. Esclavitud y trabajo..., 2004.
Alguns inventários para cotejar com as medidas expostas no “RRNE” são: “Inventários post mortem.
Alegrete. Cartório do Cível e Crime, m 02, n 50, a 1862. APRS.” “Inventários post mortem. Alegrete.
Cartório do Cível e Crime, m 02, n 62, a 1865. APRS.”
218
“Relatório da Repartição dos Negócios Estrangeiros apresentado à Assembléia Geral Legislativa na 3ª.
Sessão da 8ª. Legislatura pelo respectivo ministro e secretário de Estado Paulino José Soares de Souza –
Anexo A”(1850). AN.
113
possam, todos, estar super-estimados, é relevante a informação de que essa era a maior
propriedade e o maior rebanho dentre todos os pertencentes a proprietários brasileiros
na zona do Quarai-Arapeí, listados no “RRNE”. Essa “fotografia” do patrimônio do
casal nos primeiros anos da década de 1850 é bastante informativa, mas pode ganhar
bastante se aliarmos a ela uma visão longitudinal.
A primeira notícia que encontrei sobre as atividades dos Carvalho na região
data de 1815. Trata-se de requerimento de sesmaria na Fronteira do Rio Pardo, na costa
do rio Santa Maria Chico, assinado por Manoel José de Carvalho. Na justificativa, o
requerente diz que estabelecera fazenda de criar gado no local “há mais de 10 anos”.
Manoel José de Carvalho era português, migrara para Rio Pardo, onde casara-se com
Custódia Maria Jacques, pertencente à uma importante família local. Possivelmente, a
decisão de empreender a pecuária nos extremos da fronteira deve ter sido tomada a
partir de debates com a família de dona Custódia, já que um tio da mesma, mais alguns
irmãos e primos também estavam se lançando à mesma aventura naquela época. A
sesmaria foi efetivamente obtida em 1816, por doação assinada pelo Governador da
Capitania, o Marques de Alegrete.
219
Contudo, essas terras foram vendidas em algum
momento que não é possível precisar, pois não constam da descrição dos bens do casal
em seu inventário, na década de 1850.
A próxima notícia de sua trajetória é de 1819. Trata-se da compra de duas
das quatro sesmarias que formavam a Estância de Japejú, na confluência dos rios
Uruguai e Ibicuí, no extremo-oeste das terras ocupadas pelos luso-brasileiros na
Fronteira de Rio Pardo. Elas foram compradas ao Padre Fernando José Mascarenhas
Castelo Branco e o casal entrou imediatamente na posse da estância. A escritura
definitiva somente foi passada cerca de vinte anos depois, quando um herdeiro do
vendedor protestou alegando que a segunda parcela devida pela compra jamais havia
sido paga. As partes entraram em acordo e, em 1846, foi elaborada uma escritura de
ratificação de venda no cartório de Alegrete.
220
Por sua vez, as partes de terra que formaram chácara da Boa Vista foram
compradas por Manoel José de Carvalho em 1834 e 1835.
221
É parte do mesmo
movimento de compra de terras próximas à vila de Alegrete, que observamos em outros
grandes estancieiros locais, como o Brigadeiro Olivério Ortiz e o Marechal Bento
Manoel Ribeiro. O núcleo urbano de Alegrete, como vimos no capítulo “1”, somente foi
fundado em 1817. Esse núcleo passaria a ser sede de distrito e, em 1831, seria sede de
219
“Sesmarias, M 91, Caixa 33, n. 1.115. AHRS.”
220
“Transmissões. Alegrete. Livro 01, fl. 166, 21.02.1846. APRS.”
221
“Transmissões. Alegrete. Livro 01, fl. 56v, 25.11.1834. Idem fl. 75, 09.09.1835. APRS.”
114
município. A posse de casas na vila ou de chácaras suburbanas era uma exigência para
aquelas famílias que desejavam se tornar “as principais” do lugar e exercer cargos
militares, políticos e administrativos de relevo. Além de sediar instâncias formais do
poder, como a Câmara Municipal, a vila era também o entroncamento de caminhos que
levavam para o litoral, para a fronteira e para “cima da Serra” (no rumo norte), por onde
circulavam mercadorias e informações.
Por fim, não foi possível descobrir o momento exato em que foram
adquiridas as vastas extensões de terras pertencentes a Manoel José de Carvalho no
Estado Oriental, próximas à margem esquerda do rio Quarai, mas é possível saber que
foram compradas.
222
Em 1849, Manoel José de Carvalho vendeu uma extensão de 3
léguas de campo no município de Alegrete a Albano José Dornelles. Por informações
contidas nessa escritura, sabemos que tais campos haviam sido comprados por Carvalho
a um tal João José da Câmara, mas não foi possível precisar quando isso se deu.
223
A trajetória patrimonial do casal Custódia Maria e Manoel José de Carvalho
deixa claro que, se as sesmarias eram importantes para dar o impulso inicial ao
patrimônio fundiário daqueles que se tornariam os mais abastados estancieiros da
Fronteira, elas estavam longe de serem a única base de seus cabedais. Em primeiro
lugar, a crer nos documentos, a concessão da sesmaria veio apenas para ratificar uma
atividade que já se desenrolava “há mais de dez anos”. Esses mesmos campos foram
vendidos, talvez não muito tempo depois de terem sido recebidos. Em 1819, foi
adquirida parte da grande estância de Japejú, talvez com ajuda do dinheiro recebido pela
venda da sesmaria. Não foi possível encontrar qualquer documento referente à compra
das outras duas léguas que formavam a estância. Podem ter sido adquiridas por simples
posse antes ou depois de compradas as outras duas léguas. Também é possível que
tenha havido uma doação oficial, da qual não consta o registro. As atividades
desenvolvidas nessa estância e o crédito adquirido com elas devem ter sido essenciais
para a expansão do patrimônio fundiário na década de 1830, com a aquisição da chácara
da Boa Vista e dos campos no Uruguai.
222
Entre as prestações de conta que foram anexadas ao inventário de Manoel José de Carvalho aparecem
referências à “prêmios” pagos ao uruguaio Domingos Vasquez no negócio dos campos do Estado
Oriental. “Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, m 01, n 07, a 1853-7. APRS.”
Domingos Vasquez era um negociante de Montevidéu que, na década de 1830, estava envolvido em
negócio de trazer “colonos” africanos para o Estado Oriental. Como muitos estancieiros da Campanha
Rio-grandense estavam enviando suas tropas para Montevidéu nos primeiros anos da Farroupilha, é
possível que os negócios entre Carvalho e Vasquez envolvessem compra de gado daquele por este.
BORUCKY, Alex; CHAGAS, Karla; STALLA, Natalia. Esclavitud y Trabajo – Un estudio sobre los
afrodescendientes en la frontera uruguaya (1835-1855), 2004, p. 23.
223
“Transmissões. Alegrete. Livro 02, fl. 71v, 01.12.1849. APRS.”
115
No caso dos Carvalho e de vários outros grandes estancieiros, os recursos
buscados no crédito serviram sobretudo para a formação de um expressivo patrimônio
fundiário. Os envios regulares de bem alentadas tropas de gado parecem ter garantido a
eles o acesso ao crédito. Algumas vezes, recebiam adiantamentos e, em troca,
comprometiam-se a entregar tropas de gado para charqueadores e comerciantes do
litoral. As formas pelas quais se dava essa comercialização serão estudadas no capítulo
“3”. Aqui, basta informar que Manoel José de Carvalho possuía negócios e crédito com
as três principais praças charqueadoras que recebiam gado dos estancieiros da Fronteira:
as charqueadas do Jacuí (cuja praça mercantil era Porto Alegre), Pelotas e Montevidéu.
Enfim, no caso dos Carvalho, a riqueza pecuária havia sido criada com o
arrebanhamento de gado e formação de estâncias logo na fase de conquista e ocupação
da Fronteira pelos luso-brasileiros. Uma sesmaria conseguida nessa mesma época
ajudou a dar um impulso no patrimônio dos mesmos já que pôde, provavelmente, ser
vendida e seus recursos empregados como parte do montante necessário para a compra
da grande estância de Japejú. O acesso ao crédito, a partir dessas atividades, garantiu a
ampliação do patrimônio fundiário, ocorrida desde o segundo decênio do Oitocentos até
fins da década de 1830. Trata-se da construção de um vasto cabedal em terras, feito na
época em que os campos da Fronteira ainda podiam ser comprados a preços
relativamente baixos, antes que atingissem os altíssimos patamares que alcançariam a
partir da metade do século XIX. Assim, um dos destinos dos lucros advindos da criação
de gado em larga escala foi o financiamento de uma política voraz de ampliação do
patrimônio fundiário dos grandes estancieiros. Como veremos adiante, ao lado dele, os
recursos gerados a partir da pecuária também foram alocados em outros setores, bem
amarrados à própria reprodução dessa atividade econômica, como a formação dos
filhos, o estabelecimento de alianças e a busca de participar dos círculos de poder, que
permitiam algum controle sobre as conjunturas de fronteira e os períodos de guerra.
A trajetória do casal Custódia e Manoel José de Carvalho não foi uma
exceção em sua época. Seus traços gerais podem ser encontrados nas outras famílias
mais afortunadas da Fronteira. Quando dona Febrônia Cândida faleceu, em 1852, ela e
seu esposo, o Brigadeiro Olivério José Ortiz, possuíam um patrimônio de estrutura
semelhante ao dos Carvalho, que eram seus vizinhos e com quem mantinham laços de
parentesco. O casal tinha, então, três estâncias de criar animais e arrendava mais uma.
Naquele momento, a mais importante de todas as suas propriedades era a
Estância da Palma, em Alegrete, já descrita no capítulo “1”. O outro estabelecimento em
terras brasileiras situava-se em São Gabriel, município vizinho a Alegrete, pelo lado
116
leste. A Estância de Santo Isidro, contando com cerca de 10.890 ha., abrigava a morada
de três dos nove filhos do casal. No mesmo município, Ortiz arrendava a Estância do
Vacacaí, incluindo no arrendamento as terras e os animais.
224
O último dos
estabelecimentos pertencentes ao casal encontrava-se em uma situação que sugere bem
as peculiaridades da endemia bélica vivida pelas regiões fronteiriças de Brasil e Uruguai
naqueles tempos. Tratava-se da Estância de Tacumbú, localizada na República do
Uruguai. No “RRNE” ela consta como tendo cerca de 31.876 ha.. Ainda, segundo
aquele documento, a propriedade estava em estado de quase abandono e a maioria dos
gados que haviam existido ali eram dados como perdidos devido à guerra civil que
assolou aquele país entre 1839 e 1851. Não é possível ter certeza sobre sua extensão,
mas a situação de dificuldade de aproveitamento devido ao endurecimento do governo
“blanco” de Cerrito é confirmada por declarações do Brigadeiro Ortiz e dos herdeiros
no inventário de Dona Febrônia Cândida, em 1852. Acompanhemos os eventos que
geraram essa estrutura partimonial.
Olivério José Ortiz nascera em 1779, no território do que viria ser o
município de Caçapava e então estava englobado no município de Rio Pardo
225
, dentro
dos domínios portugueses do Rio Grande de São Pedro. Era o filho mais jovem de uma
família que tinha ainda três filhas e um filho. Seu único irmão, Fidêncio, um pouco mais
velho do que ele, tornara-se padre. A irmã mais velha, dona Maria Josefa e seu marido,
o Capitão João Pedroso de Albuquerque, parecem ter tomado para si a tarefa de
proteção da família.
226
Seguindo os passos do cunhado, que era um comandante militar,
Olivério Ortiz engajou-se nas atividades de expansão territorial dos luso-brasileiros para
oeste, sobre as áreas disputadas com a Espanha. Em 1812, com o posto de tenente de
milícias, ele requereu uma sesmaria na fronteira do Rio Pardo, na costa do rio Quarai,
com três léguas de comprido e uma de largo. Naquele documento, Ortiz declarou estar
“em campanha” contra os castelhanos, desde que para ela marchou o terceiro regimento
de milícias de Rio Pardo, a mando de Dom Diogo de Souza, governador da capitania.
227
Ao contrário do caso de Manoel José de Carvalho, Olivério José Ortiz não
invocou o fato de já estar assentado na terra requerida e efetuando produção agrária. Sua
justificativa se assentou nos serviços militares prestados à Sua Majestade. Alegava, por
outro lado, já ter uma quantidade de animais em campo alheio “sem ter onde os criar”.
Não foi possível descobrir se o então Tenente Ortiz não possuía mesmo qualquer outro
224
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 08, N. 111, A. 1852. APRS”.
225
BENTO, Cláudio Moreira. O Exército Farrapo e seus Chefes, 1992, pp. 198-199.
226
“Inventários post mortem. Caçapava do Sul. Cartório de Órfãos e Ausentes, m 02, n 27, a 1825.
APRS.” .
227
“Sesmarias, M. 44, Cx. 16, N. 602. AHRS.”
117
campo. Como já foi dito, a legislação de sesmarias determinava que o beneficiado não
poderia ter outra propriedade em seu nome, mas as fraudes eram recorrentes, já que essa
comprovação se fazia apenas pela através de testemunhas. No caso de Ortiz, uma das
testemunhas foi um seu próprio sobrinho, Manoel Pedroso de Albuquerque.
De qualquer maneira, tanto o requerimento de Ortiz quanto o de Carvalho
demonstram o funcionamento do jogo de dom e contra-dom que envolviam a prestação
de serviços à Coroa, em troca de mercês. Esse tipo de troca entre partes desiguais
estruturava muitas das relações, tanto no Reino quando na América Portuguesa, ambas
sociedades de Antigo Regime.
228
Os requerentes declararavam tanto o respeito às regras
de concessão quanto a prestação de um serviço à Coroa. No caso de Custódia e Manoel
José de Carvalho, a afirmação de que já estavam de posse do campo requerido havia
mais de dez anos, mantendo nele grande número de animais, além de antender às
exigências legais, explicitava que a família colaborava com os objetivos da Coroa em
povoar a Fronteira e manter ali atividades econômicas que não eram esporádicas. E
faziam isso com o risco de suas pessoas e bens. Seu requerimento queria fazer crer, às
autoridades, que outorgar-lhes título de sesmaria seria recompensar um serviço, ao
mesmo tempo que seria promover a ocupação e defesa do território com pessoas
capazes de fazê-lo. Por sua vez, o então Tenente Olivério Ortiz lembrava os serviços
militares que estava prestando contra os castelhanos e afirmava ter animais para povoar
a terra que lhe seria passada. O próprio conhecimento desses campos (do qual não
estava de posse) devia vir de sua atuação como militar naquela Fronteira ou das relações
que mantinha com seus companheiros de milícias. A sesmaria foi concedida em
1814.
229
Entre 1814 e 1828, Olivério Ortiz seguiu firmemente engajado nos combates
contra os castelhanos. Essa atividade rendeu-lhe uma prestigiosa ascensão dentro dos
quadros militares da capitania, depois província do Rio Grande do Sul, tendo atingido o
posto de coronel. Nessa época, seguia residindo em Caçapava, onde atuava também
como negociante de tropas, comprando gado na Fronteira e revendendo para
charqueadores de Porto Alegre.
230
As atividades econômicas mantidas por Ortiz na
antiga “Fronteira do Rio Pardo”, sobretudo em Alegrete, eram intensas, mas ele
228
Sobre a teoria das relações de dom e contra-dom, ver: MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva.
Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. GODELIER, Maurice. O Enigma do Dom, 2001. Para
o emprego dessas noções para a compreensão das relações de troca de serviços por mercês, ver, entre
outros: XAVIER, Angela; HESPANHA, Antonio Manuel. As redes clientelares, 1993. FRAGOSO, João
Luis. A nobreza vive em bandos: a economia política das melhores famílias da terra do Rio de Janeiro,
século XVII. Algumas notas de pesquisa, 2003.
229
“Sesmarias, M. 44, Cx. 16, N. 602. AHRS.”
230
“AAHRS, vol. 4, 1980, p.p. 128-131.”
118
somente tratou de mudar definitivamente sua residência para aquelas paragens em
1834.
231
Antes disso, porém, reconfigurou as propriedades fundiárias que mantinha
naquele local. Em 1827, comprou uma légua de campo pertencente a Manoel Velloso
Rebello no local denominado Palma, nas proximidades do incipiente núcleo urbano de
Alegrete, confinando com “terras de sua propriedade.”
232
Estas terras “de sua
propriedade” não eram as mesmas que ele recebera em sesmaria, localizadas na costa do
rio Quarai, muito mais ao sul. Ou seja, em algum momento antes de 1827, Ortiz
adquiriu, por compra ou por ocupação simples, a primeira parte das terras que iriam
formar a Estância da Palma, a maior de suas propriedades e aquela na qual ficava sua
principal residência. Depois, comprou, à Velloso, outra légua contígua. Finalmente, em
1830, adquiriu mais uma légua de campo anexa à suas terras, no mesmo local, ao
Coronel Bento Manoel Ribeiro, seu vizinho, companheiro das lutas de fronteira e
também seu aliado militar e político.
233
A escritura dessa légua de terra somente foi
passada em 1835, ano seguinte ao da mudança definitiva de Ortiz para Alegrete e data
do início da Revolução Farroupilha.
234
Neste primeiro momento, ambos os oficiais
ingressaram juntos no movimento, ao lado dos rebeldes.
No inventário de Dona Febrônia, em 1852, não há qualquer referência às
terras na costa do Quarai, recebidas por sesmaria cerca de 30 anos antes. Sua
localização não era distante das terras da Estância de Tacumbú, mas também não era tão
próxima que autorize a pensar que aquela sesmaria foi o núcleo inicial daquela mesma
estância. O mais provável é que Ortiz tenha vendido a sesmaria que recebeu, resolvendo
investir em uma área mais próxima ao núcleo urbano que se formava e em novas terras
no Estado Oriental.
Quanto aos campos da estância de Tacumbú, no Estado Oriental, não é
possível saber como foram apropriados. Talvez por ocupação simples, ou por compra.
Talvez uma porção original tenha sido adquirida por uma destas formas e Ortiz tenha
expandido sua extensão por qualquer dos outros expedientes. Ou quem sabe ele as tenha
recebido como na repartição dos campos entre o Quarai e o Arapeí que o Comandante
de Armas havia feito nos tempos do avanço sobre a Banda Oriental.
235
O importante é
notar que, em qualquer desses casos, a apropriação, ampliação e a garantia do direito
sobre aqueles campos estavam vinculadas a uma inserção de seu titular em uma rede de
231
“AAHRS, vol. 4, 1980, p.p. 128-131.”
232
“Medições Judiciais. Alegrete. N 533, M 14, A 1866. APRS.”
233
BENTO, Cláudio Moreira. O Exército Farroupilha e seus Chefes..., 1992, p.p. 198-199.
234
“Transmissões e Notas. Alegrete. Livro 01. Fl 61, 16.02.1835. APRS”
235
Essa repartição já foi referida no capítulo “1” e será tratada, novamente, no capítulo “4”.
119
relações que envolvia os Comandantes Militares, autoridades civis e os outros senhores
que se apropriavam de terrenos próximos. Olivério Ortiz, oficial com carreira muito
bem sucedida naquela Fronteira, certamente possuía essa inserção. O cabedal de
relações sociais, dentro de um jogo de reciprocidades verticais e horizontais, mostrava-
se uma maneira importante de acumular recursos materiais. Isso estava ao lado, e não
em contradição, com a aquisição mercantil de outras porções de terra, financiada pelas
atividades produtivas e comerciais do seu titular.
Em 1848, Ortiz arrendou a estância de Tacumbú ao Barão do Jacuí e lhe
vendeu todos as reses que existiam ali. Em troca, ficou com a propriedade da Estância
de Santo Isidro, que o barão possuía em São Gabriel. Ao mesmo tempo, expandia suas
atividades arrendando uma outra estância naquele município. Em 1852, durante a
realização do inventário de sua esposa, o Brigadeiro invocou as grandes dificuldades
que estava tendo para aproveitar a propriedade de Tacumbú e, com a concordância dos
seus filhos, acabou por vendê-la.
236
O jovem Ortiz iniciou sua atividade de produção agrária nos campos da
família em Caçapava. Engajou-se nas tropas que foram à campanha contra os
castelhanos e recebeu sesmaria em 1814. A presença de um cunhado como oficial de
milícias de Rio Pardo, vila onde Ortiz foi sentar praça, deve ter favorecido o início de
sua carreira militar. Como no caso dos Carvalho, a sesmaria recebida certamente
auxiliou a ampliação da atividade pecuária, mas as 3 léguas que lhe foram doadas não
eram o principal estabelecimento pecuário do Brigadeiro Ortiz. Como vimos, elas
podem ter dado origem a uma propriedade três vezes maior, alargada por compra e/ou
simples posse. Também pode ter sido vendida. Ao mesmo tempo, outra área era
adquirida, por compra e, em parte talvez por ocupação simples, mas próxima ao núcleo
urbano de Alegrete. Através de compras sucessivas nas décadas de 1820 e 1830, Ortiz
ampliou sua estância da Palma, no Brasil. Quando a dominação dos exércitos do chefe
“blanco” Oribe tornou muito difícil a exploração da estância de Tacumbú, no Uruguai,
Ortiz conseguiu reinvestir seus interesses no Brasil, no município de São Gabriel,
vizinho a Alegrete.
No caso de Ortiz, os recursos para a construção de seu patrimônio fundiário
parecem ter vindo, em primeiro lugar, da atividade de negociante de tropas que já
236
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 08, N. 111, A. 1852. APRS”.
Para os problemas enfrentados pelos estancieiros brasileiros no norte do Uruguai durante a Guerra
Grande: SOUZA, Susana Bleil; PRADO, Fabrício, Brasileiros na fronteira uruguaia: economia e política
no século XIX, 2004. Uma análise mais detida deste ponto será realizada no capitulo “4”, quando forem
tratados os temas dos negócios que os estancieiros da Campanha mantinham no país vizinho e de como as
situações de guerra condicionaram essas atividades e moldaram as estratégias econômicas dos produtores.
120
exercia em Caçapava e da atividade de criador que desempenhava principalmente na
Fronteira, em seus campos em Alegrete, mesmo antes de se mudar para esse último
local. O suporte familiar foi importante tanto permitindo o início da criação de gado nos
campos da família em Caçapava, quanto pela entrada nas milícias de uma forma
diferenciada, já contando com um parente importante dentro do oficialato do comando
onde se alistara. Infelizmente, não contamos com uma documentação tão rica para a
trajetória de Ortiz quanto aquela que restou no caso dos Carvalho. Todavia, o fato dele
ter sido, além de criador de gado, também negociante de tropas, torna bastante plausível
imaginar que ele também pudesse contar com crédito entre charqueadores do litoral,
com quem mantinha negócios regularmente. Esse crédito deve ter entrado na monta dos
recursos que permitiram-lhe expandir seu patrimônio fundiário.
Como vimos, os traços principais da trajetória patrimonial se assemelhavam
tanto no caso de um estancieiro que jamais teve acesso a postos militares de relevo,
quanto no caso de outro que ocupou os maiores postos da Fronteira. E tampouco
encontraremos enormes discrepâncias se tomarmos outro importante comandante
militar, o Marechal Bento Manoel Ribeiro. Presente nas campanhas contra os
castelhanos na Fronteira de Rio Pardo desde cedo, o jovem Bento Manoel começou sua
carreira militar sob o comando de seu irmão, o Tenente Gabriel Ribeiro de Almeida, que
teve papel destacado no avanço luso. Gabriel recebeu sesmaria em 1812, no território
onde futuramente iria se localizar o município de Alegrete. Já como promissor oficial de
milícias, Bento Manoel casou com dona Maria Mância, município que acabava de se
tornar independente de Rio Pardo e a quem ficara pertencendo o distrito de Alegrete.
Em 1822, já com o posto de tenente-coronel, Bento pediu e recebeu uma sesmaria de
campos próximos ao que viria ser a vila de Alegrete e, então, era apenas uma povoação
com status de capela.
Em algum momento entre a década de 1820 e 1830, adquiriu uma parte de
terras nas proximidades do Cerro do Jarau. Não encontrei nenhuma escritura pública de
compra dessas terras, o que pode sugerir aquisição por ocupação simples, ainda que não
baste para afirmar essa circunstância. Das terras que havia recebido em sesmaria,
próximas à Vila de Alegrete, conservou uma légua onde fez uma chácara com
plantações. As outras partes, vendeu a dois oficiais que haviam sido seus comandados e
eram seus aliados: o coronel Olivério José Ortiz e o Tenente Américo Antônio Guterres.
Contudo, seu grande salto patrimonial deu-se em plena vigência do conflito
farroupilha. Em 1839, quando havia se “retirado” da guerra para cuidar de seus
negócios particulares, arrendou e logo em seguida comprou três sesmarias de campos
121
vizinhos às suas terras no Jarau, pertencentes ao Capitão Manoel Veloso Rebello,
morador de Porto Alegre. Em uma clara mostra de como estavam amarrados os
negócios da guerra e da economia pecuária naquela Fronteira, foi ninguém menos do
que Dom Frutuoso Rivera, líder militar e presidente da República do Uruguai, então em
guerra contra seus opositores “blancos”, quem emprestou os 28 contos de réis
necessários para a compra. Não por acaso, aquele era um período de grande
aproximação entre Rivera e Bento Manoel, no contexto do impreciso jogo de alianças
entre os líderes políticos militares de ambos os lados da fronteira.
237
Por uma declaração
no inventário de Dona Maria Mância Ribeiro, em 1854, sabemos que, quinze anos
depois, ainda restavam 16 contos a serem pagos, dívida essa que foi saldada no
transcurso do inventário por Antônio José de Oliveira, grande estancieiro e sogro do
filho de Bento Manoel.
238
As relações entre os dois chefes militares de ambos os lados
da Fronteira passaram por vários estágios, desde a rivalidade acintosa, até um
significativo apoio material como este. O grande General Rivera, envolto em uma
guerra violenta e difícil, parecia prezar muito a amizade de Bento Manoel, naquele
momento.
De qualquer maneira, o que vemos aqui é, novamente, uma estrutura em que
as sesmarias aparecem como ponto de partida ou de impulso, mas a construção de um
patrimônio fundiário se deu através da aquisição de terras, mormente por compra, com
parte talvez adquirida por ocupação simples. No caso da compra, ela fora
instrumentalizada pelo investimento de recursos advindos da pecuária e de
empréstimos. Neste caso, o principal empréstimo passou claramente pela atuação bélica
e política de Bento Manoel como liderança militar da Fronteira.
Todos esses exemplos referem-se à primeira geração das famílias chegadas à
Fronteira. É provável que heranças, dotes e empréstimos familiares tenham ajudado na
formação dos cabedais que permitiram a eles comprarem terras na Fronteira, engajarem-
se nas milícias e/ou reunir as condições para receber sesmarias. Situação que é difícil de
mapear no contexto desta tese, uma vez que remeteria ao período anterior ao tratado
aqui e a espaços variados e diversos: Porto Alegre, Rio Pardo, Cachoeira, província de
São Paulo, etc. No que se refere à segunda geração, como vimos, temos apenas 2
daqueles 16 inventários mais abastados de Alegrete. Em ambos os casos, tratavam-se de
filhos de outros inventariados daquele grupo. Ali, o recebimento de terras por herança
237
LEITMAN, Spencer. Raízes Sócio-econômicas da Guerra dos Farrapos, 1979, p. 54. GUAZZELLI,
GUAZZELLI, César Augusto. O Rio Grande de São Pedro na primeira metade do século XIX: Estados
Nações e Regiões-províncias no Rio da Prata, 2004, p. 106.
238
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes, m 11, n 152, a 1852. APRS.”
122
teve uma importância fundamental. Além disso, outros mecanismos de partilha e
redistribuição do patrimônio familiar, como empréstimos familiares, dotes, compra-e-
venda entre herdeiros marcaram também importante presença. Essa situação ficará clara
no capítulo “6”, quando será analisado o caso de Cirino José de Carvalho, filho de
Manoel José de Carvalho. Por ora basta mencionar que, do patrimônio fundiário
avaliado no inventário de sua esposa, dona Rufina, em 1863, cerca de 33% havia sido
diretamente herdado por Cirino, 19% havia sido comprado a outros herdeiros e os
outros 48%, formados pelos campos no Uruguai, que haviam sido comprados e pagos
com um empréstimo que teve decisiva participação de seu pai.
239
2.5 - Compras, doações, posses: de todo jeito que for possível
Por fim, cabe lembrar que as terras experimentaram a mais alta valorização
dentre todos os presentes nos inventários post mortem no período proposto. Como foi
dito ali, não apenas o número de grandes criadores (mais de 2.000 reses) tendeu a baixar
mas, mesmo dentro da pecuária de grande vulto, a freqüência de produtores com mais
de 10.000 e mesmo 5.000 reses diminuiu muito. Em uma fronteira agrária que se
fechava, a importância do acesso a terras crescia para o bom desempenho da pecuária
extensiva. Nesse contexto, os casos analisados acima indicam que um dos fatores
decisivos para o sucesso sócio-econômico na Fronteira foi uma acumulação fundiária
voraz, levada a cabo principalmente entre 1810 e 1840, quando elas ainda eram baratas
na região.
Porém, essa construção de grandes patrimônios fundiários não gerou um
monopólio da propriedade e, muito menos, do uso da terra por parte de uma pequena
elite terratenente. Como vimos, os pequenos produtores proprietários de terras existiam
desde o início do período estudado e se multiplicaram com o passar do tempo. Por sua
vez, os produtores que não eram proprietários de terras eram cerca de 40% dos
inventariados até 1850 e ainda seriam pouco mais de 20% nas duas décadas seguintes.
Desnecessário lembrar que esse número deveria ser muito maior, porque os inventários
post mortem sobre-representam as camadas mais abastadas da população. Imaginar um
monopólio das terras nos levaria de volta à antiga idéia de uma sociedade bipartida em
enormes latifundiários, de um lado, e gaúchos proletarizados, de outro, com alguns
escravos fortuitos aparecendo de quando em vez. Ao contrário, como veremos, a
possibilidade dos grupos subalternos acessarem recursos impediu a formação de um
mercado de trabalho livre nos moldes capitalistas na região, ao longo do período
239
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, m 02, n 50, a 1862. APRS.”
123
estudado. Sua combinação com o trabalho cativo foi necessária e os senhores locais se
esforçavam para manterem seus plantéis de escravos, mesmo após 1850. Em seu
trabalho, Graciela Garcia apontou que os conflitos fundiários existiram desde o início
do Oitocentos em Alegrete, mas que eles se ampliaram na segunda metade do século,
sobretudo a partir das décadas de 1860 e 1870, quando a escassez de terras se combinou
com a crise do trabalho escravo e com as vicissitudes da efetiva aplicação da Lei de
Terras na região.
240
Paulo Afonso Zarth já havia chegado a conclusões semelhantes para
a o Planalto, no norte da província.
241
Tendo em conta essas ressalvas, pode-se concluir a análise das formas pelas
quais os membros da elite agrária de Alegrete empreenderam sua impressionante
ampliação fundiária. Os enormes patrimônios agrários que emergem da análise dos
inventários foram o resultado de uma agressiva e bem sucedida estratégia de
acumulação de terras, na qual a compra e a posse simples exerceram papéis importantes,
ao lado das concessões de sesmarias. De fato, aquisições por compra existiram desde os
primeiros tempos da ocupação luso-brasileira na região, mas elas misturavam-se a
apropriações “não-econômicas”. Assim, esse mercado de terras tinha, em seu conjunto,
as características de um mercado “imperfeito”, no sentido que João Fragoso utilizou
esta expressão para descrever o mercado do Rio de Janeiros no século XVII, como “um
mercado não totalmente regulado pela oferta e pela procura, e onde a ação dos agentes
não dependia apenas de seus recursos econômicos.”
242
Ali, a inserção em uma rede de
relações sociais desempenhava um papel também muito importante.
Dito de outro modo: como vimos, a pecuária extensiva em larga escala na
Fronteira estava ligada aos mercados charqueadores do litoral do Rio Grande do Sul e,
menos intensamente, a Montevidéu. Seus mercados remotos eram as regiões de
plantation abastecidas via portos de Salvador, Recife e, sobretudo, Rio de Janeiro. A
posição subalterna dessa economia no contexto do mercado interno brasileiro exigia
que, para ser viável, ela devesse reproduzir-se a baixos custos.
243
Como se tratava de
uma produção extensiva, os principais fatores de sua reprodução estavam na
incorporação de terras e mão-de-obra. Os baixos custos das terras estiveram garantidos,
na primeira metade do século XIX, pela possibilidade do recebimento de sesmarias (até
1822), da ocupação (legítima ou não) e da compra a preços pouco elevados. Porém, se é
verdade que todas essas formas de apropriação não exigiam recursos financeiros tão
240
GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra.., 2005.
241
ZARTH, Paulo Afonso. História Agrária do Planalto Gaúcho (1850-1920), 1997.
242
FRAGOSO, João Luis. A nobreza da república..., p. 72.
243
FRAGOSO, João Luis. Homens de Grossa Aventura. Acumulação e hierarquia na praça mercantil do
Rio de Janeiro (1790-1830), 2ª. ed., 1998, p. 340.
124
vultuosos quanto viria a ser o caso da compra de terras a altos preços na segunda metade
do Oitocentos, também é verdade que eles impunham um outro tipo de recursos e de
investimentos, sobretudo no caso daqueles que pretendiam acumular vastas extensões
de campos. A informação sobre terras disponíveis, o recebimento de doações da Coroa,
a ocupação, a permanência e a garantia dos direitos sobre a terra dependiam do
estabelecimento de alianças tanto no âmbito local como da capitania/província. Como
veremos nos capítulos “5”e “6”, as relações familiares tiveram grande importância,
nesse contexto.
Tendo tomado conhecimento das principais formas de apropriação da terra
por parte da elite agrária, pode-se agora partir para uma análise da produção levada a
cabo em suas unidades produtivas, das principais fontes de receitas geradas por ela e das
despesas que precisavam fazer para viabilizar sua reprodução.
125
Capítulo 3 - Produção agrária
em Alegrete
Já se tornou um lugar-comum na historiografia dizer que, ao longo do
Oitocentos, a pecuária extensiva, desenvolvida em grandes estâncias, foi a principal
produção levada a cabo na Campanha. Como já ficou demonstrado, naquelas campinas
de relevo às vezes plano, às vezes levemente ondulado, a criação de gado não era
privilégio de uns poucos senhores de terras e de homens. Ao contrário, sua prática em
menor escala era acessível ao um espectro mais largo de famílias. Mas a verdade é que,
para além de informações genéricas, pouco sabemos sobre a atividade criatória e sobre
as unidades produtivas onde ela era empreendida. Mesmo a produção pecuária de
grande vulto e as grandes estâncias não receberam, ainda, estudos assentados sobre um
maior embasamento empírico, no que se refere àquela região no século XIX. Nesse
sentido, contas de herança, como aquela elaborada pelo Brigadeiro Ortiz em 1854,
podem ser de grande ajuda para uma análise mais pertinente daquela economia agrária.
A análise das receitas ali presentes permite compor um quadro mais completo e
detalhado da produção pecuária e das características das estâncias da Campanha.
3.1 - As receitas das estâncias
Os assentos de contas, onde constavam os movimentos de gastos e ingressos
de um determinado patrimônio ou unidade produtiva, assumiram diferentes formas no
Brasil colonial e monárquico. As contas de tutela, que muitas vezes eram apensas aos
inventários, constituíam-se em peças nas quais o tutor do herdeiro órfão era obrigado a
126
discriminar a receita e a despesa dos bens pertencentes a seu tutelado. Se a divisão da
herança havia operado de forma a preservar a integridade das unidades produtivas que
compunham o patrimônio partilhado, tais contas acabavam por registrar o movimento
de receita e despesa dos estabelecimentos agrários, tornando-se fontes valiosas para seu
estudo.
244
Por outro lado, poucos são os livros contábeis propriamente ditos com que se
pode contar para o estudo das “empresas” rurais daqueles períodos. Isso, em primeiro
lugar, porque a maioria daquelas fazendas, sítios, chácaras, estâncias não mantinha
mesmo uma escrituração contábil regular, além disso muitos dos registros que existiram
não se conservaram. Os que chegaram até hoje, em geral, pertenciam a ordens
religiosas, como no caso do engenho Sergipe, analisado por Stuart Schwartz em seu
clássico estudo sobre a sociedade açucareira do Recôncavo Baiano.
245
A conta elaborada pelo Brigadeiro Ortiz, analisada aqui, não pertence a
nenhum dos grupos descritos acima, ainda que compartilhe com eles a característica de
registrar os gastos e ingressos de um patrimônio ao longo de um período de tempo. Ela
está estruturada como uma conta-corrente entre o inventariante e a “herança”, termo que
representa a totalidade do patrimônio que estava sob inventário. Esses bens eram
geridos pelo inventariante até o momento da partilha, quando seriam pagas as dívidas
pertinentes, retirada a meação do viúvo e, finalmente, o monte partível seria dividido
igualmente entre os herdeiros. Ela descreve seus movimentos econômicos como gestor
daqueles bens durante os mais de três anos em que correu o processo.
Naturalmente, a fonte não possui total confiabilidade, como de resto
nenhuma outra. É preciso ter em mente que o inventariante poderia se ver tentado a
exagerar suas despesas e omitir receitas, visando lesar a herança. Contudo, esse risco é
contrabalançado porque, em primeiro lugar, as despesas deveriam ser documentadas,
ainda que se deva admitir que isso nem sempre ocorria de forma completa. Por outro
lado, os herdeiros costumavam estar atentos ao desenrolar do processo e tinham o
direito de contestar qualquer dos elementos da conta apresentada pelo inventariante.
Na conta de herança anexa ao inventário de Dona Febrônia, as receitas
anuais da Estância da Palma, dirigida diretamente pelo Brigadeiro Ortiz, são claras e
bem especificadas. Elas indicam a quantidade e o tipo de animais vendidos, dão o
244
Foi o caso das fazendas de café analisadas por João Fragoso, no vale do Paraíba.
245
SCHWARTZ, Stuart, Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-1835).
ed., 1999. No que se refere às estâncias platinas do período colonial, esse também era o caso da grande
estância de “Las Vacas”, situada na região de Colônia, na Banda Oriental do Rio da Prata, que foi alvo de
diversos estudos referentes à estrutura de gastos e ingressos e às formas de mão-de-obra ali empregadas.
GELMAN, Jorge. Campesinos y estancieros Una región del Rio de la Plata a fines de la época colonial.,
1998.
127
sobrenome (e por vezes o nome completo) do comprador, o preço unitário e o total
obtido com a venda. Assim, por exemplo, sabemos que em maio de 1853, foram
vendidos 89 novilhos “ao Cidade” por 17$000 cada, totalizando 1:513$000.
246
Por sua
vez, os ingressos advindos dos estabelecimentos de São Gabriel, administrados pelo
filho Gaspar José Ortiz, apresentam-se somados, sem uma discriminação do que viria de
uma e de outra unidade produtiva. Estão dispostos por ano, mas sem uma declaração
dos meses em que ocorreram as vendas.
247
Na tabela “3.1”, apresentada abaixo, encontram-se discriminados os
percentuais de cada categoria de receita de três criadores de gado que deixaram contas
de herança.
TABELA 3.1 - RECEITAS DE ESTÂNCIAS DA CAMPANHA (1847-1858)
Estância
da
Palma
Estâncias
em São
Gabriel
Olivério
Ortiz
(1851-1854)
Joaquim
Ferreira Braga
(1847-1850)
Ana Joaquina
Guterres
(1856-1857)
%* %*
%* %* %*
Gado vacum
73,3 88,6
82,1 91,5 62,3
Cavalos
7,7 8,5
8,2 3,1 ---
Couros e Cabelo
5,8 2,9
4,2 4,9 13,7
Frutas
6.9 ---
2,9 --- ---
Milho
1,2 ---
0,5 --- ---
Arrendamento
5,1 ---
2,1 --- ---
Jornais de Escravos
--- ---
--- --- 23,7
Venda de Carne
--- ---
--- 0,5 ---
TOTAL
100 100
100 100 100
Fonte: Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 08, N. 111, A. 1853. M.
10, N. 145, A. 1855. M. 08, N. 117, A. 1853. APRS.
* Percentual do valor das receitas.
Em primeiro lugar, cabe um comentário sobre o caso da estância de
Dona Ana Guterres, onde consta um percentual de cerca de 24% das receitas advindas
dos jornais ganhos por um escravo. Este é um percentual importante e, embora deva ser
matizado pela situação específica do ano em que foi feita a conta, ele não deve ser
desconsiderado. De fato, o ano a que se refere a conta foi de péssimo rendimento para
os bovinos da estância. Como veremos adiante, era considerado normal que se pudesse
vender de 9 a 10% do estoque bovino todos os anos, sem que isso prejudicasse a
reprodução total do rebanho. Contudo, naquele ano, Dona Ana Guterres vendeu apenas
246
Optei por grafar as cifras monetárias, ao longo de todo este trabalho, da forma que mais comumente
apareceram na documentação pesquisada: com o cifrão separando o milhar da centena de réis e os dois
pontos separando o “conto” do milhar de réis.
247
Na tabela “3.1”, no caso do Brigadeiro Ortiz, está discriminada a composição dos ingressos vindos da
Palma e os das estâncias localizadas em São Gabriel, que foram registradas em conjunto. Ao lado deles,
aparecem os ingressos totais de Ortiz, consistindo nos três estabelecimentos tomados em conjunto.
128
cerca de 4% do rebanho, o que foi compensado apenas parcialmente pelos altos preços
que o gado alcançava no período. Nesse contexto, os jornais recebidos pelo escravo
pedreiro Ricardo conseguiram ascender a quase 1/4 dos ingressos obtidos. Em um ano
com produção normal, é provável que essa proporção fosse bem menor. Por fim, é
preciso informar que aquele era o que podemos chamar de um estabelecimento de porte
médio. Tinha cerca de 1.000 reses, mais cavalares e muares, menos da metade dos
animais das outras contas presentes na tabela “3.1”. Isso, certamente, também ajudou no
alto valor percentual atingido por aqueles jornais. De qualquer forma, esse dado aponta
para a importância que um ganho acessório como os jornais de um escravo
especializado podiam ter para as estâncias, sobretudo as que não fossem de maior porte.
Voltando agora para os dados da tabela “3.1” tomados em conjunto,
pode-se perceber que eles confirmam a conhecida vocação das estâncias da Campanha
para a produção bovina. Os itens referentes à venda de gado vacum e de couros e
cabelos são os únicos presentes em todas as contas. No que se refere ao primeiro ponto,
era majoritária a venda de novilhos para as charqueadas do leste da província.
248
Havia
também uma presença menos expressiva da venda de vacas gordas, em nenhum dos
casos atingindo mais de 8% do valor total dos bovinos vendidos.
249
Fica claro o
importante grau de especialização produtiva e de vinculação dessas estâncias com as
charqueadas, que faziam sua conexão com o mercado interno brasileiro pela venda de
carne salgada e com o mercado internacional através da comercialização dos couros e
de sub-produtos como os ossos, sebo e graxa. Os estabelecimentos charqueadores
estavam localizados na zona litorânea da província, na orla das lagoas (dos Patos e
Mirim), sobretudo em Pelotas, no sul, mas também na região central da província, sobre
as margens do rio Jacuí, mais próximas a Porto Alegre.
Nos apontamentos do Brigadeiro Ortiz, constam vendas de novilhos “ao
Cidade”. José de Bittencourt Cidade residia em Alegrete, onde possuía uma estância
com 1.400 reses de criar, e era sócio de seus irmãos Francisco de Bittencourt Cidade e
248
Os rebanhos presentes nos inventários da amostra pesquisada que envolvem bovinos apresentaram
sempre “reses de criar”, ou seja, animais paridos e criados na própria estância. Após serem castrados, aos
3 anos, os machos ganhavam a denominação de “novilhos”. Estes eram, em geral, os animais
encaminhados às charqueadas. DREYS, Nicoulau. Notícia descriptiva da Província do Rio Grande de
São Pedro do Sul, 1961, p. 130. NUNES, Zeno; NUNES, Rui. Dicionário de regionalismos do Rio
Grande do Sul, 1990, p. 201. Nos inventários da amostra pesquisada não há registros de pecuaristas que
possuíssem apenas novilhos, sem indicar, também, reses de criar. Assim, todos eram, efetivamente
“criadores de gado”, não havendo entre eles nenhum que fosse apenas “invernador”, ou seja, alguém que
comprava os novilhos e os engordava para vender sem, no entanto, proceder à sua reprodução, criação e
castração.
249
Junto com as tropas incluíam-se “tourinhos de municio”. Estes eram animais incluídos para a
alimentação dos peões de tropa durante a sua condução até as charqueadas. Eles eram fornecidos pelo
vendedor e pagos pelo comprador. No caso da conta elaborada pelo Brigadeiro Ortiz, eles representaram
apenas 0,1% do valor das vendas de bovinos.
129
Antônio de Azambuja Cidade. Estes possuíam casa de comércio em Porto Alegre e
uma charqueada nas margens do rio Jacui, para onde eram levadas as tropas de novilhos
que José comprava em Alegrete.
250
Até a interiorização da ferrovia no Rio Grande do
Sul, ocorrida na década de 1880, as charqueadas eram inviáveis no interior da província,
em virtude dos custos de transporte motivados pela inexistência de grandes rios
navegáveis que ligassem aquelas áreas à zona das lagoas, onde os produtos
encontrariam saída para o mar. A única exceção era o rio Jacuí, mas este apenas era
navegável - uma navegação limitada e difícil em períodos de seca
251
- a partir de
Cachoeira e Rio Pardo, pontos ainda distantes tanto da Campanha, ao sul e oeste, quanto
da região do Planalto Gaúcho, ao norte. Ao longo da primeira metade do século XIX,
alguns estabelecimentos saladeris prosperaram na região do Baixo Jacuí, já próximo ao
desaguadouro desse rio, no centro-leste da província, no território das freguesias (depois
municípios) de Triunfo, São Jerônimo e da capital Porto Alegre. Nesta última, também
existiam charqueadas instaladas sobre as margens do rio Guaíba e da Lagoa dos
Patos.
252
Alvarino da Fontoura Marques apontou que os estabelecimentos do Baixo
Jacuí entraram em decadência a partir da Revolução Farroupilha, culminando por
sucumbir à concorrência das charqueadas localizadas em Pelotas, no sul da província.
Em 1858, o viajante alemão Robert Avé-Lallement comentou, ao passar por aquelas
paragens:
“Rio abaixo encontram-se alguns estabelecimentos na margem direita, por
vezes com belas casas, as charqueadas, onde antes se faziam grandes
matanças para o preparo de charque ou carne-seca. Mas ultimamente
perderam muito da importância e o seu ramo de comércio prospera mais em
Pelotas, a antiga freguesia de São Francisco de Paula, a noroeste da cidade
de Rio Grande.”
253
Mesmo em decadência, os estabelecimentos do Baixo Jacuí e de Porto
Alegre seguiam comprando gado dos estancieiros de Alegrete na década de 1850, como
mostra a atuação de José de Bittencourt Cidade. Da mesma forma, as vendas de
novilhos efetuadas pela estância de Dona Ana Guterres, presente na tabela “3.1”, refere-
se à venda de novilhos para Zeferino Vieira, que possuía charqueada na freguesia das
250
No inventário de José de Bittencourt Cidade, aberto em 1860, foram anexadas cartas que trocava com
seus irmãos, nas quais se mencionavam os negócios referidos no texto. “Inventários post mortem.
Alegrete. Cartório do Cível e Crime. M 02, N 45, A 1860. APRS”.
251
AVÉ-LALLEMENT, Robert. Viagem pela província do Rio Grande do Sul, 1980, p. 166.
252
MARQUES, Alvarino da Fontoura. Episódios do ciclo do charque, p. 72-3. O mesmo autor recolhe
referências aos estabelecimentos charqueadores do Baixo Jacuí em relatos dos seguintes viajantes:
SAINT-HILAIRE, August. Viagem ao Rio Grande do Sul, 1997. ISABELLE, Arsènne. Viagem ao Rio
Grande do Sul, 1983. AVÉ-LALLEMENT, Robert. Viagem pela província do Rio Grande do Sul, 1980.
253
AVÉ-LALLEMENT, Robert. Viagem pela província do Rio Grande do Sul, 1980, p.347.
130
Dores, no município de Porto Alegre.
254
É possível imaginar que o fluxo de gado entre
Alegrete e essas regiões tenha sido bastante intenso na primeira metade do século XIX,
quando aquelas charqueadas estavam no pico de suas atividades. A verdade é que ainda
se carece de um estudo monográfico mais profundo sobre aqueles estabelecimentos
charqueadores, sua envergadura econômica, produção, aquisições de matéria-prima e
comercialização de produtos.
O Brigadeiro Olivério Ortiz vendeu gado também para “o tenente-
coronel Eliseu, de Pelotas”, com quem tinha acertos de negócios de tropas, em 1853.
255
As charqueadas mais ricas e numerosas, localizadas no município de Pelotas, próximo
ao porto de Rio Grande, eram o destino da maioria das tropas de novilhos que partiam
de Alegrete todos os verões. Infelizmente, não existe nenhuma estatística que demonstre
as origens do gado chegado até lá e a variação desse tráfico nos diversos anos. No
entanto, aquele era o grande centro charqueador da província, desde os inícios do século
XIX. Na primeira metade do Oitocentos, as charqueadas do Jacuí parecem ter
conseguido competir razoavelmente com as de Pelotas, o que deixou de acontecer
gradualmente após 1850. Montevidéu parece ter recebido mais gado daquela zona,
sobretudo durante a Guerra dos Farrapos.
256
Entretanto, essa cronologia não foi linear
pois, ao longo de todo o período em estudo, os centros charqueadores de Pelotas, do
Jacuí e de Montevidéu disputavam o gado que vinha da grande zona fronteiriça que
ligava o Rio Grande do Sul, especialmente a Campanha, com o norte do Uruguai.
257
É o
que se pode deduzir, por exemplo, ao analisar os negócios de gado efetuados por
Manoel José de Carvalho, membro da elite agrária estudada.
Em 1850, o charqueador e comerciante português Manoel Batista Teixeira,
estabelecido em Pelotas, moveu uma Ação de Libelo Cível buscando cobrar uma dívida
que Manoel José de Carvalho tinha com ele.
258
Carvalho havia solicitado um
empréstimo a Teixeira, com quem mantinha negócios de gado, para saldar a dívida que
fizera com outro charqueador, Francisco Antônio Borges, instalado em Porto Alegre e
possuidor de um estabelecimento de charquear nas margens do Rio Jacuí. Na mesma
254
MARQUES, Alvarino da Fontoura. Episódios do ciclo do charque, p. 73. O autor cita uma
correspondência da Câmara Municipal de Porto Alegre, que informa serem 14 os estabelecimentos
charqueadores estabelecidos no município em 1854-1855, mas somente oito charquearam efetivamente
naqueles anos.
255
Como outro exemplo pode-se citar o processo de inventário post mortem de Manoel Coelho Agaxa,
importante estancieiro estabelecido em Alegrete, onde se encontra um recibo de venda de tropa de gados,
feita em 1854 e destinada à charqueada pertencente ao Capitão Antônio de Castro Antiquera, em Pelotas.
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível, M 01, N 24, A 1855. APRS”.
256
GUAZZELLI, César Augusto. O Horizonte da Província: a República Rio-grandense e os caudilhos
do Rio da Prata (1835-1845),1998.
257
BELL, Stephen. Campanha Gaúcha: a Brazilian Ranching System, 1998, p.p.80-81.
258
“Ações Ordinárias. Alegrete, n 817, m 34, a 1850. APRS.”
131
época, as correspondências de Carvalho dão conta que os problemas com secas e
epizootias tinham determinado uma queda nas safras, sendo que as tropas que iria fazer
já estavam totalmente comprometidas com o pagamento de dívidas.
259
Através desses
documentos, é possível observar um mecanismo de acesso a recursos financeiros por
parte dos grandes criadores e, ao mesmo tempo, uma forma pela qual alguns
comerciantes e charqueadores do litoral conseguiam obter o domínio do crédito sobre a
Fronteira e captar para si as tropas a serem feitas pelos estancieiros. Esse processo já
havia sido referido por Stephen Bell, em seu trabalho sobre a Campanha Rio-grandense,
na segunda metade do século XIX.
260
Contudo, na correspondência anexa ao inventário de Manoel José de
Carvalho, encontram-se também notícias de vendas de gado no Estado Oriental a
compradores uruguaios e uma dívida com um comerciantes de Montevidéu.
261
É
interessante notar como um estancieiro de grande envergadura econômica, como
Carvalho, estava conectado às três mais importantes praças charqueadoras e mercantis
da região pecuária que englobava o Rio Grande do Sul e o Uruguai. Essas conexões não
negam a dependência que os grandes estancieiros da Fronteira teriam com os
charqueadores de uma ou outra dessas praças, mas as relativiza e mostra que suas
possibilidades de crédito e mercados não eram demasiadamente restritas. Naturalmente,
essa não devia ser a situação da maioria dos criadores de gado da Campanha, mas
apenas a de pecuaristas de grosso calibre.
Uma parcela pequena do charque sul Rio-grandense atingia o mercado
cubano, mas ele foi suplantado pela produção platina nesse mercado antes mesmo de
1850.
262
De outra parte, os produtos secundários que saíam das charqueadas, como
couros, sebo, graxa, ossos e aspas (estas utilizadas para fabricação de fertilizantes)
conseguiam alcançar os mercados internacionais, sobretudo dos Estados Unidos e da
Grã-Bretanha.
263
Todavia, o principal produto de exportação da província continuou
sendo o charque durante todo o período estudado aqui. Por sua vez, o seu principal
mercado, ao longo do Oitocentos, sempre foram as regiões brasileiras de plantation,
primeiro na produção de açúcar, depois de café. A expansão do café, sobretudo, pôde
beneficiar-se também da reorganização dos “saladeros” platinos no meado do século.
Os cafeicultores abasteciam-se de carne salgada em um mercado onde fornecedores rio-
grandenses e platinos disputavam espaço avidamente.
259
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, m 01, n 07, a 1853-7. APRS.”
260
BELL, Stephen. Campanha Gaúcha..., 1998, p. 58.
261
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, m 01, n 07, a 1853-7. APRS.”
262
BELL, Stephen. Campanha Gaúcha: a brazilian ranching system (1850-1920), 1998, p. 78.
263
BELL, Stephen. Campanha Gaúcha: a brazilian ranching system (1850-1920), 1998, p.p. 76-77.
132
Os historiadores que se dedicam a estudar a produção charqueadora
queixam-se da falta de dados para analisar as exportações do produto nas décadas de
1820 e 1830.
264
Em geral, eles tendem a concordar que as exportações de charque
sofreram prejuízos com a concorrência dos “saladeros” criados nas nascentes
repúblicas do Prata, com a perda das áreas da “Província Cisplatina” e com os efeitos da
Guerra dos Farrapos. Porém, esses mesmos autores ressalvam que a situação pode não
ter sido tão difícil, haja vista as reiteradas descrições da década de 1830 que registraram
a prosperidade de vilas como Pelotas e Rio Grande.
265
De qualquer forma, as condições
econômicas nas regiões dos complexos porto-charqueada (tanto emPelotas - Rio
Grande” quanto “Charquedas do Jacuí – Porto Alegre”) ao longo dos anos que
precederam a Guerra dos Farrapos, ainda aguardam estudos mais aprofundados.
Os anos seguintes, a contar do início da década de 1840 (em plena vigência
do conflito farroupilha), ainda que com muitas oscilações, são descritos como uma
época de recuperação e crescimento da produção charqueadora. Nos primeiros tempos,
foi uma retomada lenta, tendo em vista a diminuição do gado causada pelas guerras,
pestes e secas, mas conseguiu recuperar-se a partir de 1851, quando foi liberada a
passagem do gado do norte do Uruguai para o lado brasileiro, iniciando novo período de
ascensão. A culminância dessa tendência geral aconteceu no final da década de 1860. A
partir do decênio seguinte, fatores como o fortalecimento da concorrência platina, cujos
“saladeros” produziam uma mercadoria com qualidade superior, a crise do trabalho
escravo que encareceu a mão-de-obra e o reiterado fato de que os representantes dos
principais mercados consumidores conseguiam manejar a política fiscal brasileira a
favor de seus interesses, acabaram por desaguar na crise da charqueada escravista rio-
grandense. Até o final do período escravista, jamais se voltou a alcançar volume de
3.916.545 arrobas de carne salgada exportado em 1868. Esse processo iria resultar na
transformação modernizadora dos estabelecimentos charqueadores, que passariam a
operar sobre novas bases no final do século XIX.
266
Todos esses comentários referem-se a produtos saídos das charqueadas.
Infelizmente, não existe uma cronologia do período para produção e comercialização de
gado a partir das estâncias. Seria equivocado associá-la automaticamente à evolução das
exportações de charque e couros. Assim, parece prudente ter sempre em mãos os dados
264
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, 1963. SILVA, Elmar
Manique. Ligações externas da economia gaúcha, 1979. CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada
escravista gaúcha no século XIX, 1983. BELL, Stephen. Campanha Gaúcha..., 1998.
265
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, 1963. CORSETTI,
Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX, 1983.
266
CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX, p.228.
133
e análises da evolução da exportação de carne salgada, mas com a única intenção de
compará-los aos resultados de uma investigação específica sobre a produção pecuária
em Alegrete no período proposto. Esta pode ser feita a partir dos dados dos inventários
post mortem da amostra pesquisada.
3.2 - Um mundo de gado: produção pecuária nos inventários post
mortem
O gado bovino era amplamente majoritário no que tange ao número de
animais criados e, de forma ainda muito mais marcante, no que se refere ao valor desses
diversos tipos de animais, como demonstram os dados da tabela “3.2”.
TABELA 3.2 - PARTICIPAÇÃO DOS TIPOS DE ANIMAIS NO REBANHO TOTAL
(ALEGRETE, 1831-1870)
1831-40 1841-50 1851-60 1861-70
Animais Valor Animais Valor Animais Valor Animais Valor
Bovinos
84,6% 88,4% 75,7% 84,6% 62,7% 84,5% 72,4% 84,2%
Eqüinos
8,0% 9,2% 19,1% 13,3% 22,5% 10,6% 13,0% 11,1%
Ovinos
7,3% 1,3% 4,5% 0,6% 13,4% 2,8% 13,0% 3,7%
Muares
0,2% 1,2% 0,7% 1,5% 1,6% 2,1% 0,9% 1,0%
Fonte
: 181 inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. Cartório do Cível e Crime.
Cartório da Provedoria. 1831 a 1870. APRS
Não resta dúvida de que a principal produção pecuária em Alegrete era a
criação de gado vacum, dominante em todas as décadas, como parece haver sido o tom
de toda a vida produtiva da Campanha, durante o século XIX.
267
Ao mesmo tempo, é
bastante claro que essa especialização não era absoluta e experimentou modificações ao
longo do período. Os maiores índices alcançados pelo número de bovinos em relação
aos outros rebanhos encontram-se nos dados referentes à década de 1830.
268
É uma pena
que não haja como contar com qualquer tipo de censo agrário que pudesse informar
sobre essas proporções para os primeiros trinta anos daquele século, quando os luso-
brasileiros realizaram a instalação de estâncias e a apropriação oficial daqueles campos.
267
Uma visão geral sobre a produção pecuária da Campanha encontra-se em: BELL, Stephen. Campanha
Gaúcha...,1998.
268
Para os efeitos deste trabalho, agrupei sob a rubrica “muares”, não apenas as mulas presentes nos
inventários, mas também os asininos: os burros “hechores” que, ao cruzarem com as éguas geram a, mula,
que é um animal híbrido e estéril; e as burras, termo pelo qual eram designadas as fêmeas que geravam os
burros “hechores”.
134
De qualquer forma, ao perceber que Helen Osório encontrou uma tendência
ascendente da dominância de bovinos sobre os outros animais para o período colonial,
tendo como ápice o decênio de 1815 a 1825, é possível argumentar em favor de uma
permanência desse padrão em Alegrete, na década de 1830.
269
Naturalmente, é preciso
ter em conta que Osório trabalhou como uma amostra que envolvia todo o Rio Grande
de São Pedro, o que alerta para ter cautela sobre qualquer ímpeto de comparação direta
com o caso estudado aqui. Todavia, é também significativo o fato de que a região da
Campanha somente passou a integrar aquele mesmo espaço nas décadas finais do
período colonial, exatamente quando os números passam a apontar a maior presença dos
bovinos. Os dados dos anos 1830, em Alegrete, estavam refletindo um rescaldo tardio
do momento feliz vivido pela pecuária rio-grandense nas primeiras décadas do
Oitocentos. Esta época, como vimos, foi marcada pela incorporação de terras e animais
no processo de ocupação de uma nova fronteira.
No entanto, aqueles índices de especialização bovina mostravam, então, um
fulgor que entraria em queda constante nas duas décadas seguintes, para somente
recuperar-se após 1860 sem, contudo, alcançar novamente os padrões iniciais. A análise
da evolução das médias de animais (vacuns, cavalares, ovinos e muares) por inventário,
aliada a referências de caráter qualitativo, parece indicar que esse declínio no percentual
de vacuns se deveu a uma verdadeira diminuição dos rebanhos bovinos e não apenas a
uma elevação na presença de outros tipos de animais. Vejamos os dados do gráfico
“3.A”:
269
A autora considerou “estancieiros” aqueles produtores que contavam com mais de 100 cabeças de
gado vacum. OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da Estremadura
Portuguesa na América: Rio Grande de São Pedro, 1737-1822, 1999, p. 110.
135
GRÁFICO 3.A - NÚMERO MÉDIO DE RESES POR INVENTÁRIO (ALEGRETE, 1831-1870)
0
500
1000
1500
2000
2500
3000
1831-40 1841-50 1851-60 1861-70
número de animais
Vacuns Cavalares Ovinos Muares
Fonte: 181 inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. Cartório do
Cível e Crime. Cartório da Provedoria. 1831 a 1870. APRS
A média de 3.833 vacuns por inventário, alcançada no primeiro período,
despenca para 1.166 nos anos seguintes e daí para seu ponto mínimo com 795 reses na
década de 1850, voltando a subir daí para alcançar os 1.291 bovinos na década seguinte,
número que, todavia, não chegava à metade daquele existente nos anos 1830. Como
vimos, houve uma sensível diminuição no tamanho dos estabelecimentos pecuários ao
longo do período trabalhado e, provavelmente, uma correspondente ampliação de seu
número, embora não haja como saber disso com certeza. Esse processo certamente teve
influência no decréscimo das médias de cabeças de gado por inventário observadas no
gráfico “3.A”. Entretanto, para além dele, aqueles números parecem expressar uma
verdadeira diminuição dos rebanhos do município entre 1840 e meados da década
seguinte, e uma recuperação daí para os anos 1860.
De fato, o período que iniciou em 1840 foi especialmente aziago para a
produção pecuária no município. Naquele mesmo ano, a duríssima combinação de uma
forte seca com uma epizootia atingiu os rebanhos de várias localidades, sendo
especialmente mortífera em Alegrete.
270
Como bem apontaram Berenice Corsetti e
Paulo Afonso Zarth, os presidentes da província derramaram queixumes sobre a
situação da pecuária em toda o Rio Grande do Sul no período posterior ao final da
Revolução Farroupilha. Falavam das secas, das pestes (especialmente o carrapato), do
270
CORREA DA CÂMARA, Antonio Manoel. Ensaios Estatísticos da Província do Rio Grande do Sul,
1863.
136
roubo de gado, dos efeitos tenebrosos da guerra recém-terminada.
271
Todos dão conta de
uma “espantosa diminuição dos gados” acontecida no período, que teria prejudicado
fortemente a economia da província como um todo.
272
Os vestígios dessa crise também
podem ser lidos nas petições juntadas aos processos de inventário post mortem. Em
1854, ao longo dos procedimentos do inventário de dona Febrônia Cândida Ortiz, o
genro João Telles de Souza ajuizou uma justificação pedindo que as 600 reses que
recebera, em 1838, não fossem avaliadas pelo preço corrente, mas pelo da época da
doação. Ali, arrolava testemunhas que afirmaram que aqueles animais tinham sido
trasladados ao campo da Palma em 1840 e então haviam perecido em virtude das
conhecidas pestes e secas ocorridas naquele ano e nos seguintes.
273
Passado esse período mais letal, novos recrudescimentos voltariam ainda a
emergir de tempos em tempos, pelo menos até a metade da década de 1850. Em 1859, o
Presidente da Província encaminhou um questionário a diversos estancieiros, indagando
suas opiniões sobre as causas da epizootia que, em ondas, vinha flagelando os gados da
província “há mais de quinze anos” e pedindo sugestões sobre os possíveis métodos
para combatê-la.
274
As respostas foram variadas, compreendendo tanto os rigores da
estação fria como os do verão, mas sobretudo a ação das secas que diminuíam o
alimento e o suprimento de água para o gado. Dois criadores disseram ter conseguido
salvar algumas reses mansas com sangrias e purgas, procedimento que seria, porém,
impossível de administrar para todo o rebanho. Em sua resposta, o Brigadeiro Olivério
Ortiz sugeriu que a falta de sal na dieta do gado poderia ser um fator agravante naquela
espécie de peste já que, no Uruguai, onde haveria mais sal nos campos e águas “mais
salobas”, o surto não fora tão forte, tendo o mesmo ocorrido no município de Cruz Alta
(na região do Planalto Gaúcho), onde os campos não eram salinos mas os estancieiros
tinham por hábito administrarem sal a seus animais.
275
271
CORSETTI, Berenice. Estudo da Charqueada Escravista Gaúcha..., 1983, p. 84-5. ZARTH, Paulo
Afonso. Do Arcaico ao Moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX, 2002, p.p. 231-233.
272
“Relatório do Presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, Senador e Conselheiro
Manoel Antônio Galvão, na abertura da Assembléia Legislativa Provincial, e, 5.10.1847. Porto Alegre:
Typographia do Argos, 1947, p. 21.” “Relatório do estado da Província de São Pedro do Rio Grande do
Sul, Ten. Gen. Francisco José de Sousa Soares Andréa, na abertura da Assembléia Provincial no dia 1º.
de junho de 1849, p. 10.” “Relatório do Presidente da Província do Rio Grande do Sul de São Pedro,
apresentado ao Exmo. Sr. Conselheiro José Antônio Pimenta Bueno, pelo Ten. Gen. Francisco José de
Sousa Soares Andréa, tendo entregado a presidência no dia 06 de março de 1850. Rio de Janeiro:
Laemmert, 1850, p. 16.” “Relatório do Presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, João
Lins Vieira Cansação de Sinimbu, na abertura da Assembléia Provincial, em 06 de outubro de 1853. Porto
Alegre: Typographia do Mercantil, 1853.”
273
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 08, N. 111, A. 1853. APRS.”
274
“Correspondências diversas, M 30, A 1859. AHRS.”
275
“Correspondências diversas, M 30, A 1859. AHRS.”
137
Em seu outro flanco, a produção pecuária precisou lidar com os combates da
Revolução Farroupilha (1835-45). A guerra desfalcou os rebanhos em virtude das
carneações e das dispersões de animais causadas pela passagem dos exércitos, da
dificuldade de vigilância que tornava mais simples a ação de bandos de ladrões de gado
(boa parte deles desertores daquela mesma guerra) e, sobretudo, da falta de gente e
cavalos para costear os animais e impedir que se evadissem. Durante a o período da
guerra, vários criadores rio-grandense levaram seus rebanhos para o Estado Oriental
276
,
o que agravou ainda mais o problema quando, no final da década, eles foram impedidos
de movimentar gado pela fronteira, em razão da proibição que lhes impunhas as forças
dos “blancos”, comandadas por Manoel Oribe.
Em 1849, Ana Tavares Leiria, viúva duas vezes e mãe de onze filhos, abriu
conjuntamente o inventário de seus dois falecidos esposos. Naquela oportunidade,
declarou que “...com a revolução que sofreu a Província e pestes perdeu todos os
animais que possuía, ficando reduzida a necessidades”.
277
Não é possível saber
exatamente quantos animais a viúva Ana Tavares possuía nos anos imediatamente
anteriores à nefasta conjunção de guerra e pestes (1840) mas o testamento de seu
primeiro marido, que se encontra em anexo, informa que, em 1832, o casal possuía
cerca de 500 cabeças de gado vacum. Pela avaliação dos bens no inventário aberto em
1849, sabe-se que, naquela data, o rebanho estava reduzido a apenas 25 reses.
278
A
situação não poupou também alguns dos criadores de maior envergadura produtiva,
como Joaquim Soares da Trindade. No inventário de sua esposa, em 1847, ele declarou
que “...pela peste, seca e revolução nesta província ficou sua fazenda em estado de não
poder costear por falta de cavalos e gente. Sem poder saber ao certo o número de reses,
traz à partilha apenas mil, ficando as que mais se acharem para a sobrepartilha.”
279
Quase ao mesmo tempo, no rumo sul, além da linha de fronteira, a Guerra
Grande, talvez ainda mais sangrenta e devastadora, assolou não apenas os uruguaios
mas teve também efeitos diretos na economia da Campanha.
280
Não esqueçamos que
muitos dos produtores rio-grandenses possuíam terras, gados, vínculos familiares e
negócios naquelas bandas, como bem indica a venda da Estância de Tacumbú pelo
276
GUAZZELLI, César Augusto. O Horizonte da Província..., 1998, p.p. 188-241.
277
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 07 , N. 98, A. 1849. APRS”.
278
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 07 , N. 98, A. 1849. APRS”.
279
“Inventáriospost mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 06, N. 82, A. 1847. APRS”.
Outras referências ao mesmo contexto encontram-se em: “Inventáriospost mortem. Alegrete. Cartório de
Órfãos e Ausentes: M. 05, N. 71, A. 1846. APRS”. E também: “Inventáriospost mortem. Alegrete.
Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 07, N. 99, A. 1849. APRS”.
280
Sobre os efeitos da Guerra Grande na economia pecuária do Uruguai, ver: BARRÁN, José Pedro;
NAHUM, Benyamin. História Rural Del Uruguai Moderno, vol. I, 1967, p.p. 11-60.
138
Brigadeiro Ortiz. A mortandade dos rebanhos nos dois lados da linha de fronteira se
refletiu em uma importante diminuição do volume de charque exportado pelo Rio
Grande do Sul na década de 1840. As vendas caíram continuamente, partindo de
3.264.221 arrobas em 1845, até atingirem as 700.074 arrobas em 1850. A recuperação
viria a partir de 1851, quando voltou-se ao patamar de mais de 1.000.000 arrobas
exportadas por ano.
281
A queda no volume de charque exportado após 1845 também era um reflexo
da dificuldade que as tropas do General Oribe, que controlavam o norte do Uruguai,
estavam impondo para que os estancieiros brasileiros lá instalados passassem seu gado
para o Rio Grande do Sul. Da mesma forma, em 1851, o final da Guerra Grande e o
tratado daí decorrente, que isentava de impostos o gado que passasse do Uruguai para o
Brasil, fez com que muitos criadores brasileiros comprassem ou arrendassem campos do
lado uruguaio, aproveitando suas melhores pastagens em uma época de paz e de isenção
de direitos alfandegários do gado que seria trazido de lá para as charqueadas
brasileiras.
282
Esse gado foi essencial na recuperação da produção charqueadora e na
recomposição dos rebanhos dos dois lados do limite nacional.
De fato, foi somente na década de 1860 que se apresentaram os sinais de
uma recuperação dos rebanhos na Campanha Rio-grandense, propiciada por um
arrefecimento nas calamidades naturais e pela reorganização das atividades produtivas
ao longo de mais de quinze anos de paz.
283
A ampliação da média geral de cabeças de
gado por inventário em Alegrete, de 795 para 1.291 reses está em consonância com o
fato de que foi apenas nessa década que os volumes de charque exportado voltaram ao
patamar de mais de 3.000 arrobas, alcançado em 1845.
284
Contudo, essa recuperação iria
encontrar o preço dos novilhos amplamente defasado, em virtude da violenta crise que
afetava as charqueadas.
285
O que todos esses números demonstram é a importância da vinculação dessa
economia com o mercado. As estâncias estavam organizadas, preferencialmente, para
produzir novilhos para as charqueadas. A grande demanda pelo charque, já comentada,
sobretudo a partir de inícios do século XIX, somada à apropriação de boas pastagens e
de manadas de gado, possibilitaram uma forma bastante viável de integração da região
281
CORSETTI, Berenice. Estudo da Charqueada Escravista Gaúcha..., 1983, p. 319.
282
BLEIL, Susana e PRADO, Fabrício. Brasileiros na fronteira uruguaia: economia e política no século
XIX, 2004.
283
BELL, Stephen. Campanha Gaúcha..., p.p. 80-1.
284
CORSETTI, Berenice. Estudo da Charqueada Escravista Gaúcha..., 1983, p. 319.
285
CORSETTI, Berenice. Estudo da Charqueada Escravista Gaúcha..., 1983. BELL, Stephen.
Campanha Gaúcha..., 1998.
139
ao mercado brasileiro. O gado, uma mercadoria que não tem altos custos de transporte,
viabilizou que o complexo porto-charqueada, do litoral da província, pudesse colher os
frutos da produção da Campanha, com a qual não tem uma comunicação fluvial ou
marítima direta. As tropas poderiam ser conduzidas por terra, sem a necessidade de
embarcações para tornar os custos mais baixos. Tendo em conta esses fatores, e
lembrando que se tratava de um sistema de criação extensiva, é possível estender para o
Rio Grande do Sul o argumento de Jonathan Brown, quando diz que o processo de
construção de grandes latifúndios em Buenos Aires, no século XIX, era consistente com
a racionalidade daquele sistema agrário.
286
Do ponto de vista estritamente econômico,
era uma forma adequada de aproveitar as oportunidades que o mercado das plantations
dava à Fronteira Meridional do Império.
Esse influxo mercantil condicionava fortemente a própria estrutura interna
daquelas unidades produtivas, com seus rincões, senzalas, galpões, postos, currais e
mangueiras. Porém, a racionalidade mercantil era apenas uma entre outras lógicas que
condicionavam a reprodução daquela realidade sócio-econômica. Como veremos ao
longo deste trabalho, a hierarquia social e a economia sofreram, também, fortes
influências de aspectos como a militarização, os vínculos e estratégias familiares, as
alianças, os reiterados processos de negociação e coação que permeavam as relações
sociais e animavam aquela sociedade. A própria estrutura das unidades produtivas se
construía na confluência desses elementos. Quando se olha mais de perto, como
acontecerá nos capítulos seguintes, torna-se possível perceber esses variados
condicionantes da composição das estâncias, expressos no gado dos filhos que pastava
nos campos dos pais, nos ranchos dos agregados e de parte dos escravos com seus
animais e roças, nas terras indivisas dos herdeiros, na diversidade de trabalhos e
negócios que tinham ali o seu palco e seu objeto, nas terras e rebanhos que se
transformavam em favores, aliados e bons casamentos. Nada disso é absolutamente
contraditório com a lógica de racionalizar a produção pecuária para tirar vantagens do
mercado. Adverte, porém, para o fato de que ela não estava sozinha.
3.3 - Potros, mulas, couros e roças
Em que pese a clara predominância da venda de gado vacum para as
charqueadas, outras produções também eram desenvolvidas nas estâncias da Campanha.
As contas presentes na tabela “3.1” mostram entrada de receita com a venda potros,
couros e produtos agrícolas. Além disso, produções comerciais de mulas e de lã de
286
BROWN, Jonathan. Historia socioeconômica de Argentina, p.p. 267-271.
140
ovelha, esta principalmente após 1850, também eram praticadas nos estabelecimentos
pecuários de Alegrete, como deixa claro o gráfico “3.B”. Ele aponta o percentual de
inventários da amostra pesquisada onde consta a presença de cada tipo de animal:
GRÁFICO 3.B - FREQÜÊNCIA DOS REBANHOS NOS INVENTÁRIOS DA AMOSTRA
(ALEGRETE, 1831-1870)
0,0%
20,0%
40,0%
60,0%
80,0%
100,0%
120,0%
1831-40 1841-50 1851-60 1861-70
% de inventários
Vacuns Cavalares Ovinos Muares
Fonte: 181 inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. Cartório do Cível e
Crime. Cartório da Provedoria. 1831 a 1870. APRS
Os gados vacum e cavalar foram relacionados em quase todos os
inventários ao longo do período estudado. As exceções ficam por parte de uns poucos
produtores muito modestos. Já a presença dos muares e ovinos oscilou entre os 40 e os
60% dos inventários da amostra. Elas parecem claramente terem sido criações
auxiliares, que podiam ganhar uma difusão um pouco maior de acordo com as variações
conjunturais, como foi o caso da produção de muares na década de 1850 e de ovinos no
decênio seguinte. Vejamos agora cada um desses rebanhos com um pouco mais de
detalhe.
A presença de cavalares acompanha a de bovinos em quase todos os
inventários pesquisados, o que já era de se esperar, em se considerando a necessidade de
“cavalos de serviço” para o costeio do gado. Por outro lado, tamm havia a criação
comercial de eqüinos. Entre 1851 e 1854, mais de 8% dos ingressos do Brigadeiro Ortiz
vieram da venda de cavalos mansos “para a Nação” - no caso, para o suprimento do
exército imperial -, ocupando a segunda colocação entre suas receitas e superando a
venda de couros e produtos agrícolas Essas vendas inseriam-se no conjunto maior das
relações que o Brigadeiro mantinha com o Estado Imperial e parecem ter sido realizadas
141
em bases muito acima das usuais no mercado local. Em 1851 e 1852, época das guerras
contra Oribe e Rosas, os cavalos mansos aparecem avaliados, nos inventários, entre
10$000 e 12$000 por animal. Nos anos seguintes, de 1853 a 1855, eles foram avaliados
entre 5$000 e 10$000. Em 1853, o Brigadeiro Ortiz vendeu 94 cavalos para “a Nação”,
por encomenda do General David Canabarro, pelo generoso preço de 14$000. Este tema
será alvo de uma discussão mais detida no capítulo “4”. Por ora, basta perceber que essa
era mais uma interface entre a guerra e a economia naquelas campanhas. Os espólios de
guerra abasteciam as estâncias com animais em toda a primeira metade do Oitocentos,
ainda que isso tenha tido um peso mais decisivo nas primeiras décadas daquele século.
Por outro lado, a guerra também era um mercado, sobretudo para os cavalos criados
naquelas unidades produtivas. Os rebanhos de animais cavalares parece ter resistido
melhor à guerra nas estâncias. O gráfico “3.B” mostra que os cavalares eram o tipo de
gado com maior presença entre os inventários das décadas de 1830 e 1840. E mais, o
gráfico “3.A” demonstra que, ao contrário do que ocorreu com vacuns e bovinos, a
média dos cavalares por inventário não caiu, entre essas duas décadas. Sem negar a
importância dos confiscos e roubos de cavalos feitos pelas forças em luta, parece que
parte dos criadores conseguiram manter seus rebanhos eqüinos em patamares estáveis e,
como veremos no capítulo seguinte, buscaram utiliza-los para angariar lucros e boas
relações com comandantes militares.
Ainda, note-se no caso da venda pelo Brigadeiro Ortiz, que se tratam de
cavalos mansos, prontos para serem montados e que, portanto, exigiam o duplo trabalho
de castração e doma, o que aumentava em muito o valor dos animais. No período
coberto pela conta, o Brigadeiro Ortiz comprou 106 éguas e potros xucros, parte delas
lhe foi vendida por Dona Ana Joaquina Guterres, e pagou entre 1$000 e 2$000. Os
cavalos mansos que vendeu ao exército, no mesmo período, alcançaram o preço de
14$000. Por outro lado, também eram efetuadas vendas envolvendo valores menores,
tendo como compradores outros criadores locais, como foi o caso das 233 éguas xucras,
6 potros capões e 4 cavalos mansos que Joaquim Ferreira Braga vendeu entre 1847 e
1850, e que aparecem na tabela “3.1”.Os tempos de guerra traziam maior necessidade
desses animais. Como veremos, a demanda de cavalos era enorme nas guerras do sul,
em cujos combates as cargas de cavalaria exerciam papel extremamente relevante.
Os muares e os ovinos, por sua vez, foram arrolados em cerca de metade
dos inventários da amostra. Os muares eram criados com finalidade quase que
exclusivamente comercial. Desde os tempos coloniais, tropeiros desciam de São Paulo,
dos Campos Gerais do Paraná, de Lages e voltavam com tropas de muares, consistindo
142
em uma das mais importantes atividades econômicas do período.
287
No meado do século
XIX, o principal destino dos muares produzidos no Rio Grande do Sul seguia sendo a
Feira de Sorocaba, de onde eram encaminhados, principalmente, para as regiões
cafeicultoras do Rio de Janeiro e, depois, de São Paulo.
288
O negócio de formação de
tropas compostas, sobretudo, por muares, ainda que possuíssem também alguma
participação de eqüinos, sua invernagem nos campos do Paraná e sua venda na Feira de
Sorocaba, construiu algumas fortunas de grande importância no Oitocentos, sobretudo
na província de São Paulo e na comarca, depois província do Paraná.
289
No Rio Grande do Sul, ainda que a principal produção de muares se fizesse
no norte da província, nos municípios de Cruz Alta e Passo Fundo, a Campanha não
estava fora desse circuito, como fica claro no gráfico “3.B”.
290
Em Alegrete, os muares,
que nos períodos anteriores estiveram presentes em 40 a 45% dos inventários,
ampliaram um pouco sua presença para 55% na década de 1850 e voltaram para os
padrões anteriores no decênio seguinte. Essa pequena ampliação na difusão da criação
de mulas e seu retrocesso posterior se deveram a uma conjuntura favorável no mercado
sorocabano e à crise que lhe sucedeu. O número de mulas comercializadas na feira de
Sorocaba ascendeu continuamente ao longo da primeira metade do século XIX, tendo
dado um salto na década de 1850, retrocedendo a partir da década de 1860 até entrar em
profunda crise quando da difusão das ferrovias no final do século.
291
Em consonância
com esse quadro, está uma referência existente no inventário post mortem do Brigadeiro
Ortiz, realizado em 1869, onde o procurador da inventariante (a segunda esposa de
Ortiz, dona Ana Ortiz da Silva) fez um interessante relato dos movimentos econômicos
do mesmo logo após ter encerrado o inventário de Dona Febrônia, em 1854. Segundo o
procurador, parte do dinheiro ganho com a venda da Estância de Tacumbú, no Estado
Oriental, fora empregado no negócio de mulas, em uma época em estas tinham grande
demanda e que, por isso mesmo, alcançavam altos preços. Infelizmente, declarava
ainda, os preços vieram a cair alguns anos depois, ocasionando importante prejuízo a
Ortiz.
292
287
Sobre o comércio de muares e cavalares ligando as regiões platinas e o Rio Grande de São Pedro a
outras regiões da América Portuguesa ver: HAMEISTER, Martha. O Continente do Rio Grande de São
Pedro...,, 2003.
288
WESTPHALEN, Cecília Maria. O Barão dos Campos Gerais e o comércio de tropas, 1995.
289
Sobre trajetórias de comerciantes de tropas, ver: PETRONE, Maria Teresa. O Barão de Iguape, 1976.
WESTPHALEN, Cecília Maria. O Barão dos Campos Gerais e o comércio de tropas, 1995.
290
ZARTH, Paulo Afonso. História Agrária do Planalto Gaúcho (1850-1920), 1987.
291
WESTPHALEN, Cecília Maria. O Barão dos Campos Gerais e o comércio de tropas, 1995,
principalmente p.p. 16-29. ZARTH, Paulo Afonso. História Agrária do Planalto Gaúcho..., 1987,
principalmente p.p. 111-113.
292
“Inventáriospost mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M 23, N 294, A 1869. APRS”.
143
A produção de mulas implicava na posse de uma manada de ventres
cavalares (o que era de acesso relativamente comum aos produtores de Alegrete), em
uma demanda específica de trabalho
293
e na presença dos “burros echores”, os
reprodutores asininos que, cruzados com as éguas geram a mula, um animal híbrido e
estéril. Os primeiros tempos de vida também exigiam um cuidado maior, dada a
fragilidade das crias.
294
A posse das éguas e dos burros echores permitia que se
praticasse essa criação, mas isso podia não ocorrer todos os anos, variando de acordo
com as avaliações que o produtor fazia em relação à viabilidade das vendas,
disponibilidade de pastagem e mão-de-obra. Isso explica porque o Brigadeiro Ortiz
possuía 33 burras e 02 burros eixores, com os quais também poderia desenvolver a
criação comercial de burros, mas não vendeu nenhuma mula entre 1851 e 1854, ainda
que o tenha feito nos anos seguintes. Da mesma forma, Dona Ana Guterres não vendeu
mulas nos anos de 1856-7, embora possuísse 5 burros eixores e 130 “éguas de crias de
mulas”. No inventário de seu esposo, aberto em 1853, constam, porém, 48 mulas, que
devem ter sido vendidas antes do começo dos registros da conta de tutela, em 1856.
Assim, a freqüência presente no gráfico “3.B” representa, na verdade, aqueles
produtores que estavam equipados para produzir mulas, o que não significa que eles
empreendessem essa produção todos os anos.
295
De qualquer forma, para aqueles que
conseguiam levar essa produção adiante, ela deveria representar, ao menos em alguns
períodos, uma importante fonte acessória de receitas. Nas décadas de 1830 e 1940, mula
xucra valia cerca de três vezes mais do que um animal cavalar não domado e na década
de 1850 elas chegaram a valer cinco vezes mais.
296
Os ovinos, por sua vez, serviam para o abastecimento interno de carne
nas estâncias. Apenas pequenos excedentes de lã eram encaminhados ao mercado local.
Essa situação começou a mudar a partir da década de 1850 e, sobretudo, da de 1860,
quando a província passou a exportar lã com regularidade.
297
Em Alegrete, os ovinos
também sofreram muito com a guerra, as secas e epizootias da década de 1840. A média
293
O processo era o mesmo que Juan Carlos Garavaglia descreveu para o agro platino colonial: “Como
es sabido la mula es un híbrido y no siempre es fácil ‘convencer’ a las yeguas madres que se crucen con
los ‘burros hechores’. Para ello se debe formar a unos caballos llamados ‘retarjados’ (han sido operados
de tal modo que puede estar en celo, pero no fecundar a las yeguas; la operación quirúrgica, como es de
imaginar, es delicada y compleja); las yeguas que están acostumbradas a ser puestas en celo por estos
caballos se llaman “de retarjo” o “de retajo”; una vez que la yegua ha entrado en celo, el burro ‘hechor’ es
quien debe finalizar la tarea que el pobre caballo ‘retarjado’ no ha hecho más que esbozar…”
GARAVAGLIA, Juan Carlos. Pastores y labradores de Buenos Aires..., 1999, p.p. 210-211.
294
GARAVAGLIA, Juan Carlos. Pastores y labradores de Buenos Aires..., 1999, p.p. 210-211.
295
Esse caso era semelhante ao estudado por Mariana Canedo na campanha de Buenos Aires. CANEDO,
Mariana. La Ganaderia de Mulas en la Campaña de Buenos Aires..., 1993.
296
“Inventáriospost mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M 01, N 15, A 1831/ M 06, N 81,
A 1847 / M 08, N 117, A 1853. Cartório da Provedoria: M 01, N 20, a 1857. APRS”.
297
SILVA, Elmar Manique. Ligações externas da economia gaúcha, 1979, p.p. 76-77 e 83.
144
de animais por inventário que era de 245 na década de 1830, despencou para apenas 70
nos dez anos seguintes, voltando a subir para 166 nos anos 1850 e chegando a 243 na
década de 1860. Assim, na década em que apareceram os primeiros registros de
exportação de lã pela província dotados de regularidade, o número de ovinos por
inventário voltou a alcançar a média da década de 1830.
Naquele novo contexto, porém, esses animais estavam mais bem
distribuídos, como atestam os dados do gráfico “3.B”, onde se pode notar uma
ampliação na difusão da criação de ovinos no município ao longo do período. Na
década de 1840, apenas 36% dos inventários registravam a presença daqueles animais.
No decênio seguinte esse número subiu para 51%, atingindo finalmente 55% dos
inventários da década de 1860. Nessa década, ainda que fosse praticada em unidades
produtivas de todas as envergaduras, a recuperação da criação ovina naquelas décadas
desempenhou um papel mais relevante entre os pequenos criadores, que contavam com
até 500 cabeças de gado vacum e tiveram nos ovinos um importante incremento
produtivo. Uma parte dos pequenos criadores estava aproveitando a ampliação no
mercado de lã e isso tem muito sentido. Um rebanho de até 500 reses poderia ser
costeado com um trabalhador regular, o que permitia que os outros membros da família
pudessem pastorear os rebanhos de ovinos que iam criando. Além disso, podia-se criar o
dobro do número de ovinos em relação aos vacuns dentro do mesmo espaço. Ou seja,
essa era uma criação que se adequava à nova conjuntura de diminuição geral no
tamanho das propriedades.
Entretanto, essa ampliação da produção ovina teve proporções modestas
se comparada com o processo ocorrido a partir dos anos 1850 na Argentina e 1860 no
Uruguai. Os 3.677.990$019 arrecadados com a exportação de lã durante a década de
1860 atingiam apenas cerca de 7% do valor das exportações de charque feitas pela
província no mesmo período.
298
Como apontou Stephen Bell, apesar de algumas
iniciativas, tanto do governo provincial como de uns poucos entusiastas, no sentido da
melhoria das raças destinadas à produção de lã, a atividade mais especializada
permaneceu marginal entre 1850 e 1870.
299
Não houve, no Rio Grande do Sul, nada
comparável à “febre del lanar” ocorrida nos países vizinhos, que potencializou o
processo de modernização pecuária naquelas regiões. Um incremento realmente
significativo da produção ovina na província somente se daria a partir da última década
do século XIX.
298
SILVA, Elmar Manique. Ligações externas da economia gaúcha, 1979, p. 83.
299
BELL, Stephen. Campanha Gaúcha..., 1998, p.p. 103-108.
145
Olhando agora para a venda de couros e cabelos nos dados expressos na
tabela “3.1”, percebe-se que essa operação ocupou um percentual entre 4 e 14% nas
contas analisadas. No que se refere a esses produtos, não há dúvidas de que aquela era
uma situação bastante diversa da encontrada no século XVIII, tanto no Rio Grande do
Sul como nas regiões platinas, onde um dos objetivos da criação bovina era a extração
de couros na própria estância, para sua venda.
300
Como já foi dito, no século XIX, ao
contrário, os couros e outros sub-produtos do gado exportados pela província eram, em
larga maioria, oriundos das charqueadas, resultantes do processo de beneficiamento dos
novilhos adquiridos junto aos produtores. As contas analisadas apontam para o fato de
que a venda direta de couros e cabelos desempenhava um papel claramente acessório
para os produtores de Alegrete.
301
Tratava-se de “couros de consumo”, retirados do
gado que ia sendo abatido para o próprio abastecimento da estância, ao longo do ano,
bem como dos animais que acabavam por morrer naturalmente.
302
Contudo, ainda que o percentual ocupado pela venda de couros fosse um
ganho secundário nas receitas dos grandes criadores, é preciso ressaltar sua presença
em todas as contas analisadas e a importância que assumia como elemento de troca na
aquisição dos gêneros necessários à estância. Nas contas do Brigadeiro Ortiz,
constavam vendas anuais de couro a Pedro Cassal e Antônio Barbosa, cujas casas
comerciais estavam instaladas em Alegrete. Enquanto os novilhos eram agrupados no
verão e no início do outono, para formarem as tropas que cruzavam centenas de
quilômetros até chegarem às charqueadas, localizadas no leste da província, os couros
iam sendo entregues a comerciantes locais de forma esparsa, ao longo de todo o ano.
Eles formavam parte importante da contrapartida dada pelos produtores em troca dos
mantimentos que adquiriam para o abastecimento de suas casas. Estabelecia-se, assim,
uma relação de débito e crédito pacientemente registrada nas “contas-correntes” que
mantinham entre si. Em geral, essas contas eram acertadas na época das safras,
300
Esse quadro começou a modificar-se na década de 1790, quando se organiza a produção de charque. A
carne salgada, em pouco anos, desbancaria o couro como principal produto pecuário do Rio Grande de
São Pedro. Sobre a ascensão do charque nas exportações sulinas, ver: OSÓRIO, Helen. Estancieiros,
lavradores e comerciantes..., 1999, p.p. 163-200.
301
Esse era o caso de Alegrete, mas também o dos outros municípios da Campanha. Em 1859, a Câmara
de Vereadores de São Gabriel escreveu à Presidência da Província estimando que a exportação anual do
município era formada das seguintes partes - 960:000$000 em novilhos, 100:000$000 em vacas;
32:000$000 em mulas; 120:000$000 em couros; 25:000$000 em cabelos (crinas e colas de eqüinos); e
100:000$000 em taboado e madeiras. “Correspondência Expedida da Câmara Municipal. São Gabriel. M
240, data 05.10.1859. AHRS.”
302
BELL, Stephen. Campanha Gaúcha..,1998. Da mesma forma, na conta da Estância de Dona Ana
Guterres está explicitado que os couros de vacas e de “tourinhos” se referem a couros de animais abatidos
para o consumo dos escravos. “Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 08,
N. 117, A. 1853. APRS.”
146
abatendo-se o valor dos couros e cabelos da divida pendente do criador com o
comerciante.
Entre 1851 e 1854, as vendas de couros e cabelos da Estância da Palma
alcançaram 57% do valor gasto em gêneros de abastecimento naquele mesmo período.
Foram, em maioria, couros de gado vacum, com pequeno aporte de “couros de bagual”,
ou seja, retirados da cavalhada xucra da estância. As outras duas contas presentes na
tabela “3.1” não discriminam o valor total despendido comneros para o
abastecimento da família estancieira e dos trabalhadores. No caso do estabelecimento de
Dona Ana Guterres, somente foram apontados os gastos com o suprimento para os
escravos e eles tiveram 89% do seu total cobertos pelas vendas de couros, sempre de
gado vacum, efetuadas no período. Na Estância de Joaquim Ferreira Braga, foram
registrados apenas os gastos com compra de instrumentos para a estância e de
abastecimento de escravos e peões. Naquele caso, talvez excepcional, o valor obtido
com a venda de couros chegou ao dobro do que foi despendido nas casas de comércio
locais. Assim, ainda que não fosse a principal atividade produtiva das estâncias, pode-se
dizer que a venda de couros conseguia cobrir a maior parte dos gastos com gêneros de
abastecimento feitos naqueles estabelecimentos. E veja-se que esses couros não
representavam um desfalque significativo no plantel de gado pois, como foi dito, eram
extraídos dos animais destinados ao consumo interno ou mortos naturalmente e não de
animais sacrificados apenas com o fim de se lhes extrair o couro.
303
Essa prática
contribuía para reduzir os custos de reprodução das estâncias.
Por fim, a conta elaborada pelo Brigadeiro Ortiz é a única que faz
referência à venda de excedentes agrícolas. Stephen Bell apontou o caráter pouco
expressivo da agricultura na Campanha através, entre outros documentos, de uma
correspondência da Câmara Municipal de Alegrete, datada de 1862, onde os vereadores
declaram que a produção agrícola no município era pequena, destinada basicamente à
subsistência, com pouco excedente comercializado. Essa produção consistia de milho,
mandioca, trigo e feijão.
304
O fato de que a criação de gado ocupou o lugar central da economia da
região não significou a ausência das lavouras naquele espaço agrário. Contudo, é
bastante claro que, ali, a atividade agrícola jamais alcançou a monta que teve a produção
tritícola nas duas décadas iniciais do Oitocentos, nas áreas de colonização mais antiga.
303
Nas três contas analisadas, os animais dos quais se retiravam os couros de consumo representavam
uma perda anual de algo em torno de 2 a 3% do total de reses dos rebanhos.
304
O autor também aponta uma correspondência datada de 1868, onde os vereadores referem-se à “total
decadência do cultivo”, indicando existirem estabelecimentos de criação onde todos os gêneros agrícolas
de abastecimentos precisavam ser comprados. BELL, Stephen. Campanha Gaúcha..., 1998, p.p. 37-38.
147
Ela também não atingiu a mesma importância que tiveram as culturas de alimentos
naquelas mesmas regiões, desde meados do século XVIII.
305
Também jamais
apresentou uma difusão semelhante à que teve nas áreas ao norte do rio Ibicuí, do centro
para o norte da província, ao longo do século XIX. Naquelas regiões, além da pecuária,
praticava-se uma agricultura de alimentos de maior expressão, sobretudo aproveitando-
se da existência grandes áreas cobertas por florestas.
306
No município de Alegrete, em
contraste, o predomínio dos campos era avassalador.
307
Como vimos, grosso modo,
esses campos eram de qualidade muito superior para a pecuária do que aqueles das
regiões ao norte do Ibicuí e os produtores locais voltaram suas melhores forças para
uma pecuária que encontrava bons mercados nas charqueadas do leste. Mesmo assim, as
lavouras de alimentos, além da fabricação de farinha de mandioca e trigo, estavam
disseminadas no município, em um leque de unidades produtivas de espectro
diversificado.
No entorno do núcleo urbano de Alegrete, localizava-se o cinturão de
chácaras que encantou o viajante alemão Robert Avé-Lallemant com a visão de seus
belos pomares e dos trigais ondulando ao vento.
308
Esses estabelecimentos podiam ter
extensões variadas mas tendiam a ser bem menores do que as estâncias de criação. Ali,
a principal atividade era a produção agrícola, podendo ou não ser consorciada com a
pecuária. Algumas dentre essas chácaras pertenciam a lavradores que tiravam dali o seu
sustento, empregando mão-de-obra familiar e podendo contar com o auxílio de uns
poucos escravos. Outras pertenciam a grandes criadores de gado, cujas estâncias
costumavam localizar-se a muitos quilômetros de distância, servindo como produtora de
alimentos para o complexo estancieiro dirigido por seu dono. Era o caso, por exemplo,
das chácaras pertencentes a Manoel José de Carvalho ou da pertencente ao Marechal
Bento Manoel Ribeiro, comentadas no capítulo “2”
305
Sobre a importante presença de lavradores no Rio Grande de São Pedro ao longo do período colonial,
e também sobre a presença da agricultura nas estâncias de criação naquele mesmo contexto ver:
OSÓRIO, Helen. OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da
Estremadura Portuguesa na América..., 1999.
306
Sobre o Planalto: ZARTH, Paulo Afonso. História Agrária do Planalto Gaúcho, 1997. _____. Do
Arcaio ao Moderno..., 2003. Sobre o município de Santa Maria: FARINATTI, Luís Augusto. Sobre as
cinzas da mata virgem, 1999. Sobre o de Itaqui: FOLETTO, Arlene. Dos campos junto ao Uruguai aos
matos de cima da serra..., 2003.
307
Em estudo anterior, foi possível verificar que, no município de Santa Maria, localizado no centro da
província, cerca de 40% dos “Inventários post mortem detentores de bens rurais apresentavam terras de
“matos” ou de “campos e matos”. FARINATTI, Luís Augusto. Sobre as cinzas da mata virgem..., 1999,
p. 56. Em Alegrete, ao contrário, apenas um entre todos os inventários pesquisados discriminam a
presença de “campos e matos”. Todos os outros referem a presença de “campos”. Naturalmente, isso não
quer dizer que não houvesse pequenas áreas florestais em meio àqueles campos, mas elas deviam ser
muito menos significativas do que as existentes nos municípios mais ao norte.
308
AVÉ-LALEMANT, Robert. Viagem pela província do Rio Grande do Sul, 1980, p. 318.
148
Por outro lado, a produção agrícola ocupava papéis distintos nos diferentes
estabelecimentos de criação. Muitos deles levavam a cabo o cultivo de trigo, feijão,
mandioca e milho em escala reduzida, cobrindo apenas parte da necessidade de auto-
abastecimento, enquanto outros chegavam a produzir pequenos excedentes que
enviavam para o mercado. Não há como medir com maior precisão o volume e o papel
dessa produção, tanto mais quando se tratava daquela destinada apenas ao
abastecimento interno, mas um dos caminhos para se ter, ao menos, uma idéia a
respeito, é a verificação da presença de instrumentos agrícolas nos inventários.
TABELA 3.3 - FREQÜÊNCIA DE EQUIPAMENTOS E INSTRUMENTOS AGRÍCOLAS NOS
INVENTÁRIOS POST MORTEM (ALEGRETE, 1831-1870)
1831-1840 1841-1850 1851-1860 1861-1870
Atafona ou moinho 7% 18% 19% 15%
Machado 45% 27% 24% 15%
Enxadas 40% 27% 27% 15%
Arados 19% 6% 12% 11%
Foice de ceifar trigo 12% 6% 3% 4%
Foice de roçar 2% 6% 3% 6%
Cavadeiras 5% 0 0 4%
Com algum instrumento 45% 33% 39% 17%
Fonte: 181 inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. Cartório do Cível e
Crime. Cartório da Provedoria. 1831 a 1870. APRS
A presença de atafonas e moinhos indica a fabricação de farinha de
mandioca ou de trigo, apontando para um sentido mais comercial da produção. Sua
presença em algo entre 15 e 18% dos patrimônios inventariados em grande parte do
período analisado matiza a especialização pecuária e afasta a imagem apressada de
Alegrete como uma pátria exclusiva da criação, onde todos os produtos agrícolas
deveriam vir de fora. De fato, ao menos uma parte das necessidades locais dessas
farinhas era suprida internamente. Certamente, podia haver épocas em que esses
engenhos produziam pouco ou nenhum excedente, destinando-se exclusivamente ao
auto-abastecimento. Isso poderia explicar porque não há qualquer venda desse produto
discriminada na receita da Estância da Palma, ainda que, entre os equipamentos ali
presentes, estivesse uma atafona para a produção de farinha de mandioca. Além do que,
é possível saber que o engenho encontrava-se em estado precário, tendo sido reparado
apenas no final do período abrangido pela conta de herança.
309
No que se refere aos instrumentos agrícolas, é preciso ter em conta que só
eram inventariados aqueles que tinham lâminas ou pontas metal. Enxadas, arados e
309
“Inventáriospost mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 08, N. 111, A. 1853. APRS”.
149
cavadeiras feitas exclusivamente de madeira, que não deviam ser incomuns, não
aparecem nas estatísticas. Algumas vezes, mesmo os instrumentos com partes de ferro,
principalmente se estavam velhos, eram de baixíssimo valor e podiam simplesmente
deixar de ser avaliados. Da mesma forma, a inexistência de instrumentos agrícolas em
um inventário não permite afirmar peremptoriamente que não havia produção agrícola
no estabelecimento rural pertencente ao inventariado. Alguns desses casos poderiam
tratar-se de estâncias que abrigavam agregados ou posteiros que praticassem a
agricultura com instrumentos próprios, dirigindo parte dessa produção para o
proprietário das terras. Os dados constantes na tabela “3.3” representam apenas o
número mínimo de inventários que possuíam instrumentos agrícolas. Ainda assim, o
fato de que esse percentual jamais tenha alcançado a metade dos processos torna lícito
supor que, em uma parte importante dos estabelecimentos, realmente não se praticasse a
agricultura em escala significativa. Na década de 1860, o percentual de processos com
menção a instrumentos agrícolas apresentou uma queda de 39 para apenas 17%, talvez
refletindo um contexto de crescimento da produção agrícola das colônias alemãs
instaladas em regiões como os vales dos rios Sinos, Caí e Pardo, que pode ter barateado
os preços dos gêneros de cultura.
310
Como veremos no capítulo “7”, a década de 1860
apresentou, também uma redução significativa no número de escravos presentes nos
inventários estudados. Esse fato pode ter relação com a diminuição da prática da
agricultura nas estâncias nesse período. Porém, a inexistência de um estudo específico
sobre a vinculação mercantil entre a Campanha e essas áreas de colonização alemã para
o período anterior à interiorização das ferrovias, ocorrida nas décadas de 1880 e 1890,
impede qualquer afirmação conclusiva nesse sentido.
De qualquer maneira, ainda que essa hipótese se confirmasse, ela estaria
longe de abonar a imagem de uma Campanha composta por estâncias quase auto-
suficientes ao longo de grande parte do século XIX, e que passaram a especializar-se e
vincular-se ao mercado quando do crescimento “dinamizador” das colônias
imigrantes.
311
Mesmo antes de 1860 e da maior difusão daqueles núcleos coloniais, uma
parte importante das estâncias de Alegrete não contava com uma produção agrícola
expressiva. Além disso, a presença de instrumentos agrícolas está longe de indicar auto-
suficiência em termos de abastecimento de produtos agrícolas. Podia-se cultivar um
produto para o consumo próprio ou mesmo para vender e, ainda assim, comprar outros
no mercado. Ainda que Dona Ana Guterres possuísse um escravo designado
310
FRANCO, Sérgio. A Campanha, s/d.
311
FRANCO, Sérgio. A Campanha, s/d.
150
expressamente como “roceiro”, sua estância não vendeu excedentes agrícolas e precisou
comprar 24 alqueires de farinha de mandioca para sustento de seus escravos, em 1856-
7.
312
Por outro lado, na Estância da Palma havia quatro escravos roceiros que tinham
como instrumentos oito machados e quatro enxadas. Eles provavelmente garantiram o
suprimento interno de alguns produtos agrícolas, geraram excedente de milho,
produziram frutas para a venda, mas o Brigadeiro Ortiz adquiriu vários alqueires de
“farinha” para o sustento de sua casa em 1852 e 1853. As compras foram feitas na casa
de comércio dos irmãos Balthar, em Alegrete: exatamente o mesmo estabelecimento
que comprou a produção de milho vendida pela Estância da Palma naqueles anos. Por
sua vez, Joaquim Ferreira Braga comprou 34,5 alqueires de farinha de mandioca para o
sustento de sua estância em 1847, ainda que tivesse um arado, duas enxadas e um
machado entre seus instrumentos.
Dessa forma, as compras de produtos agrícolas, sobretudo de farinha de
mandioca e, de outro lado, as vendas de excedentes dos mesmos, compuseram uma
forma de integração das estâncias ao mercado mesmo antes de uma possível “invasão”
dos gêneros vindos das colônias imigrantes. Uma boa parte desses produtos vinha de
fora da província.
313
Outra parte, porém, vinha da própria província, da região ao norte
do rio Ibicuí, a partir dos municípios limítrofes, como São Borja, Itaqui e Santa Maria.
Ali, estâncias mais especializadas na pecuária extensiva conviviam com
estabelecimentos mistos de “criação e lavoura” e com unidades de produção tão
somente assentadas em suas roças de alimentos, podendo tamm empreender a
fabricação de farinha de mandioca.
314
Naquelas regiões, a produção agrícola de
alimentos era o resultado do aproveitamento econômico das áreas florestais da Serra
Geral, impróprias para a pecuária, que foram sendo apossadas por ocupação primária ao
longo da primeira metade do século XIX. Ali, uma fronteira agrária aberta e o emprego
das técnicas baseadas em queimadas e derrubadas propiciaram o avanço sobre matas
virgens, comuns a todo Brasil agrícola. Esses fatores, em combinação com uma baixa
pressão demográfica, permitiam que várias famílias tivessem acesso à produção
312
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. M. 08, N. 117, A. 1853. APRS”.
313
SILVA, Elmar Manique. Ligações Externas da Economia Gaúcha, p. 79.
314
Os principais produtos cultivados eram o milho, a mandioca e o feijão. O arroz, o tabaco, a produção
de aguardente de cana e a extração de madeiras também encontravam lugar nesses municípios.
FARINATTI, Luís Augusto. Sobre as cinzas da mata virgem..., 1999. FOLETTO, Arlene. Dos campos
junto ao Uruguai aos matos de cima da serra..., 2003. Nas regiões mais ao norte, já no Planalto
(municípios de Cruz Alta e Passo Fundo), a extração de folhas do mate e produção de erva-mate ganhava
grande importância, ao lado de uma agricultura de alimentos em menor escala. ZARTH, Paulo Afonso.
História Agrária do Planalto Gaúcho, 1997. _____. Do Arcaico ao Moderno..., 2003.
151
autônoma, constituindo um grupo que vivia da agricultura muito antes que se criassem
colônias imigrantes em parte daquelas terras.
315
A maioria deles produzia para a própria subsistência e fazia seguir
apenas pequenos excedentes para os mercados regionais. Outros, no entanto, puderam
alcançar uma produção em escala mais francamente comercial, culminando com a
instalação de maquinismos de beneficiamento, como atafonas para fabricar farinha de
mandioca e engenhos para a produção de aguardente.
316
Em meados do século XIX, um
dos principais destinos de sua produção era a Campanha que, apesar de abrigar
agricultura, estava muito mais especializada na criação de gado. Em 1858, uma
correspondência da Câmara Municipal de Alegrete pedia melhoria da estrada de carretas
que ligava o município com São Francisco de Assis, distrito de São Borja, vizinho de
Alegrete ao norte do rio Ibicuí “...pois é da Serra que existe no distrito dessa freguesia
que vem madeiras de construção para esta cidade, sendo igualmente desse distrito, que
nos vem o milho, feijão, farinha e mais legumes...”.
317
Em resumo, Alegrete não era auto-suficiente em agricultura, mas também
não conformava uma paisagem deserta de cultivos. As estâncias não eram unidades
produção isoladas do mercado de abastecimento, nem totalmente dependente dele. Por
certo, havia criadores que não desenvolviam a agricultura, precisando adquirir todos os
gêneros de abastecimento e, por outro lado, existia um pequeno grupo de verdadeiros
“criadores-lavradores”, como Manoel Antônio d’Anhaia que, em 1867, criava 600 reses
em campo próprio e contava com uma atafona para a preparação de farinha de
mandioca, onde devia empregar a maior parte de seus 17 escravos.
318
Entre esses
extremos, havia uma maioria de estabelecimentos que procurava assegurar, com roças
internas, ao menos uma porção de suas necessidades em termos de produtos agrícolas.
Outra parte era buscada no mercado, onde se procurava também colocar os excedentes
dos produtos cultivados internamente. Essa situação articulava Alegrete e outras regiões
da Campanha com as áreas da Depressão Central e da zona missioneira além Ibicuí, de
onde adquiriam parte dos produtos agrícolas, aguardente e fumo de que necessitavam.
Esse fluxo de produtos de abastecimento entre o centro-norte do Rio
Grande do Sul e a Campanha, mesmo antes da instalação maciça de colônias de
315
Sobre as técnicas aplicadas nas lavouras de alimentos e de exportação no Brasil escravista ver:
FRAGOSO, João Luis. A roça e as propostas de modernização da agricultura fluminense no século XIX,
1986. Para um aporte metodológico sobre as relações entre os sistemas de uso da terra e a demografia,
ver: BOSERUP, Ester. Evolução Agrária e Pressão Demográfica..., 1987.
316
FARINATTI, Luis Augusto. Sobre as cinzas da mata virgem..., 1999.
317
“Correspondência Expedida da Câmara Municipal de Alegrete. M 05; 03.03.1858.AHRS.” Ver
também: BELL, Stephen. Campanha Gaúcha..., 1999, p.61.
318
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. M 21, N.268, A 1867.
152
imigrantes europeus, mostra que essas regiões estavam bastante integradas
economicamente. Sendo assim, não é possível concordar com Fernando Henrique
Cardoso quando afirmou que a “economia subsidiária” formada pelo complexo
pecuário-charqueador não conseguiu gerar uma economia estável e, ainda por cima,
contribuiu para destruir as tentativas de pequena produção agrícola, pois atraiu os
“açorianos” para a aventura da grande criação de gado na Fronteira. Ainda que o autor
tenha razão quando aponta para a força que a criação do gado e a produção do charque
tiveram em drenar os investimentos, por estarem ligadas à economia de exportação, ele
fechou os olhos para as regiões fora dessa pecuária.
319
Estas, chamadas por ele de
“economia de subsistência”, certamente não ensejaram vultuosos níveis de acumulação
de capital, mas permitiram a existência autônoma de um grande número de famílias, e
conectaram-se à Campanha, principal zona de pecuária, fornecendo parte de seu
abastecimento. Essa possibilidade da produção autônoma e da venda de pequenos
excedentes no mercado, tinha uma implicação social fortíssima: ela foi um obstáculo
decisivo para a existência de uma massa de despossuídos que pudesse alimentar um
mercado de mão-de-obra assalariada em bases estáveis para as estâncias, durante a
primeira metade do século XIX e parte dos anos posteriores.
3.4 - Vendas e ganhos
O que se pode dizer da produtividade, dos lucros anuais e do retorno sobre
o capital aplicado nas grandes estâncias? As respostas que as contas pesquisadas
permitem dar a essas perguntas são frágeis e de difícil generalização. Contudo, a
excepcionalidade de um documento como esse, para a Campanha do Oitocentos, exige
que se tente investigar aquelas questões, sem deixar de ter em conta as ressalvas
pertinentes.
A historiografia que se ocupa da produção pecuária no Rio Grande do Sul
e no Prata, nos séculos XVIII e XIX, têm concordado que a taxa de reprodução dos
rebanhos bovinos deveria ficar entre 20 e 25%, ainda que, dependendo de fatores
diversos, entre eles a qualidade dos campos, essa taxa pudesse não ser atingida.
320
Esse
relativo consenso também existe para indicar que se podia vender algo em torno de 9 a
319
CARDOSO, Fernando Henrique. O Rio Grande do Sul e Santa Catarina, 2004.
320
OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da Estremadura Portuguesa
na América..., 1999, p.p. 128-129. BELL, Stephen. Campanha Gaúcha..., 1999, p.54. MAESTRI, Mário.
Deus é grande, o mato é maior..., 2002, p.p. 94 a 98. GELMAN, Jorge. Campesinos y Estancieros...,
1998, p.75. GARAVAGLIA, Juan Carlos. Pastores y labradores..., 1999, p. 212-213.
153
10% do rebanho total por ano, sem que isso representasse um risco de redução do
mesmo.
321
Tomemos o depoimento de um contemporâneo.
Em 1848, Domingos José de Almeida, charqueador estabelecido em
Pelotas, antigo líder farroupilha e ex-ministro da República Rio-grandense, elaborou
uma estimativa de produtividade, gastos e lucros de estancieiros e charqueadores
naquele período. Almeida aponta uma taxa de procriação de cerca de 22,5% para os
rebanhos bovinos, ainda que ressalve que eram poucos os campos da província onde se
podia, de fato, alcançar tal desempenho. Segundo suas estimativas, uma estância com
18.000 reses produziria 4.050 crias, metade machos, metade fêmeas. Da primeira
metade (3.025 machos) se deveria deduzir 325 animais que morriam antes de atingir a
idade de comercialização, “devoradas pelos cães chamados chimarrões, ou nas
capações, ou de bicheiras, picadas de cobras, &c.”. Restariam, então, 1.700 reses, o que
dá 9,4% do rebanho total. Esse era o percentual de novilhos, de mais de quatro anos,
que podiam ser vendidos, sem risco para a reprodução do rebanho, pois seriam
substituídos por essas 1.700 crias machos. A outra metade das crias, compostas por
fêmeas, serviria para recompor o rebanho, substituindo as vacas que saíram da idade de
procriar, descontados 525 animais (25% do total dessas crias fêmeas) que pereceriam
em situações semelhantes às descritas acima, ou seriam consumidas no sustento da
“gente empregada no custeio da estância”.
322
No caso da Estância da Palma, não há registros do número de crias
marcadas nos anos cobertos pela conta de herança. Consta, porém, o número de animais
vendidos:
TABELA 3.4 - VENDAS DE GADO EFETUADAS NA ESTÂNCIA DA PALMA (ALEGRETE,
1851-1854)
Casco Vendas em 1851-2 % 1852-3
%
1853-4 %
3.800 110 3,9% 194 6,9% 182 6,5%
Fonte: 181 Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 08, N. 111, A. 1853.
APRS.
Como deixam claro os dados da tabela “3.4”, todos os percentuais ficaram
abaixo das estimativas feitas por Domingos José de Almeida, sendo que as vendas da
safra de 1851-52 foram extremamente modestas. Há duas possíveis explicações para
321
OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da Estremadura Portuguesa
na América...,1999, p.p. 128-129. MAESTRI, Mário. Deus é grande, o mato é maior..., 2002, p.p. 94 a
98.
322
CORREA DA CÂMARA, Antonio Manoel. Ensaios estatísticos da província do Rio Grande do Sul,
1979 (1ª. ed. 1863).
154
esse desempenho. A primeira delas é a de que o Brigadeiro Ortiz de fato não estava
conseguindo colocar no mercado toda a sua produção anual, em virtude de razões
variadas e sobre as quais não é possível, aqui, fazer afirmações com certeza. Uma
retração do mercado poderia causar essas vendas baixas. Esta, no entanto, não parece ter
sido a situação naqueles anos, onde se observou uma elevação contínua no preço do
gado. Por outro lado, podem ter ocorrido fatores como a falta de mão-de-obra e
calamidades naturais (secas, enchentes e epizootias), que podem ter reduzido o número
de gado disponível para a venda. Esses elementos, sobretudo quando combinados, eram
especialmente danosos aos rebanhos, podendo causar sua evasão e dispersão, além de
mortes de animais. Como veremos no capítulo “7”, durante todo o período abrangido
pela conta, o Brigadeiro Ortiz buscou fixar e um peão posteiro em um ponto da estância
mais sujeito à evasão de gado e, como não conseguiu fazê-lo em todos os períodos do
ano entre 1851 e 1853, precisou contratar mão-de-obra adicional de peões
exclusivamente para realizar “recrutas”, ou seja, expedições em busca do gado que
havia se evadido da estância.
De outra parte, também é possível que, senão em todos, pelo menos em
alguns daqueles anos, Ortiz estivesse procurando vender um percentual menor de
animais para ampliar seu rebanho e, assim, capitalizar-se em reses.
323
O fato é que,
mesmo com vendas baixas, a Estância da Palma apresentou um significativo percentual
de receita líquida naqueles anos.
324
Como se pode ver na tabela “3.5”, houve grande variação tanto na receita
bruta quanto nas despesas, sendo que ambas quase dobraram seus valores de um ano
para outro. O salto dado pela receita bruta se deveu, em parte, a uma elevação no preço
do gado. Os 194 novilhos comercializados em 1851-2 renderam entre 14$000 e 17$000
cada. Já os 182 animais vendidos de 1853-4 foram vendidos por duas vezes a 20$000 e
21$000, respectivamente. Todavia, esta elevação dos preços não foi o único motivo da
prosperidade anotada na estância no último período do qual se fez registro. Oilvério
323
Esse era um procedimento bastante usado na pecuária platina e foi analisado por: GARAVAGLIA,
Juan Carlos. Tres estancias del sur bonaerense en un período de “transición” (1790-1834), 1995.
324
As principais receitas da estância vinham da venda de novilhos para as charqueadas. Como veremos
com mais detalhe no capítulo “7”, a safra desses animais iniciava-se em novembro e podia estender-se até
o início de maio. É nesse sentido que utilizo uma expressão como “a safra de 1852-3”. Na tabela “3.5”,
contrapus as receitas vindas da safra de 1852-3 com os gastos efetuados em 1852 já que, na conta
elaborada pelo Brigadeiro Ortiz, os gastos, ao contrário das receitas, não estão discriminados por meses,
mas apenas por ano. Adotei o mesmo procedimento para a safra de 1853-4. Por outro lado, a conta traz os
dados referentes à safra de 1851-2 mas, como os registros desse documento iniciam-se em abril de 1851,
ficou impossível conhecer os gastos totais efetuados naquele ano, inviabilizando a contraposição de
receitas e despesas referentes àquele período. Finalmente, a conta registra os gastos feitos de janeiro a
setembro de 1854, porém ela se detém nesse mês, não trazendo os valores das receitas auferidas na safra
1854-55, o que também impede que se faça o cálculo da relação receita/despesa para aquele ano.
155
Ortiz pôde contar também com a incorporação de novas receitas: o valor de uma parte
de campo arrendada e, sobretudo, a venda de cavalos para o exército brasileiro. A
elevação das despesas, por sua vez, deveu-se sobretudo ao fato de que Ortiz comprou
dois escravos em 1853.
TABELA 3.5 - “RECEITA X DESPESA” NA ESTÂNCIA DA PALMA (ALEGRETE, 1852-1854)
Safra de
1852-53
Safra de
1853-54
$* $*
Venda de gado 3:073$000 4:216$000
Couros e Cabelo 235$000 186$000
Milho 56$000 0
Laranjas e Melancias 250$000 212$000
Cavalos para a Nação 0 916$000
Arrendamento 0 600$000
TOTAL 3:614$000 6:130$000
Despesas com a estância 1:765$855 3:091$000
Receita líquida 1.848$145 3:039$000
Receita líquida em % da
receita total
51,1% 49,6%
* Em mil-réis
Fonte: Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 08, N. 111, A. 1853.
APRS.
Esses números dão um testemunho da importante variação conjuntural a
que estavam sujeitas as unidades produtivas dedicadas à pecuária naquele meado do
Oitocentos. O percentual de reses vendidas podia não atingir os 9 ou 10% do rebanho,
que seriam ideais. No caso estudado, o próprio número de animais comercializados
quase dobrou da safra de 1851-2 para as seguintes. Os preços do gado também podiam
variar bastante, como mostra o fato de Ortiz ter vendido, em uma mesma safra (1852-3),
uma tropa 96 novilhos a 14$000 cada e, depois, 88 novilhos por 17$000, para dois
compradores diferentes. Por fim, a incorporação de receitas acessórias como as das
vendas de cavalos e, como é lícito imaginar, também de mulas, eram importantes mas
nem sempre apresentavam regularidade.
Os percentuais de cerca de 50% de ingressos líquidos nos anos para os
quais há registro são significativos e indicam o baixo custo dos elementos essenciais
156
para a reprodução dos estabelecimentos dedicados à pecuária extensiva.
325
Tanto mais
quando se relembra que, no período coberto pela conta, foram feitos muitos gastos em
reparos nas construções, despesas essas que não deviam ocorrer todos os anos; além de
se comprar dois escravos, um investimento que aumentava o valor do patrimônio.
Evidentemente, esses números não podem ser generalizados para todos os
estabelecimentos pecuários de Alegrete e menos ainda para outros períodos, para os
quais não existem dados desse tipo. Contudo, eles servem, ao menos, para conhecer as
características de operação de uma grande estância que praticava a pecuária a campos
abertos na fronteira meridional do Império, em meados do século XIX, tema para o qual
inexiste qualquer estudo deste tipo até o momento.
Por sua vez, o cálculo do retorno sobre o capital investido é ainda menos
seguro. E mesmo que se possa estimá-lo, com muitas reservas, para o caso da Estância
da Palma, ele não terá como ser generalizado para outras estâncias da Campanha.
Seriam necessários mais registros contábeis, com assentamentos de vários anos, além de
avaliações precisas do capital total envolvido nesses estabelecimentos, para que fosse
possível estabelecer comparações e chegar a conclusões mais seguras. Tendo claras
essas ressalvas, é possível arriscar uma tentativa de estimar esse retorno na Estância da
Palma, em 1853, ano em que foi feita a avaliação dos bens no inventário de Dona
Febrônia Cândida. Os poucos fragmentos de contas encontrados sugerem que os
estancieiros não faziam esse tipo de cálculo de forma regular. No entanto, um de seus
contemporâneos o fez. Certamente era um empresário ilustrado mas, ainda assim, era
um homem do seu tempo: no artigo referido acima, Domingos José de Almeida
calculou, em um ano sem sobressaltos, um retorno de cerca de 8,6% sobre o capital
empregado em uma estância de criação.
Tomando-se os 3:091$000 da receita líquida da safra de 1853-54 (tabela
“3.5”), percebe-se que ela representa um retorno de 4,3% sobre o valor de 70:012$740,
em que foi avaliada a Estância da Palma, no inventário de Dona Febrônia. Supondo-se
que o valor da estância não fosse muito diferente nos anos imediatamente anteriores
pode-se estimar que, na safra de 1852-3, a taxa de retorno teria sido ainda menor.
325
Na estância de “Las Vacas”, localizada na Banda Oriental em fins do período colonial, foi estudada
pelo historiador argentino Jorge Gelman. Ali, a receita líquida ficou em cerca de 21% nos períodos de
1792-4 e 1796, atingindo os 50% em 1805. As técnicas de criação eram bastante semelhantes às utilizadas
na Campanha Rio-grandense no meado do século XIX, como também as formas de mão-de-obra
empregada. As diferenças estavam por conta de que suas receitas vinham, sobretudo, da venda de couros
para comerciantes de Buenos Aires, que lhes exportavam para ultramar. Isso implicava em necessidade de
mão-de-obra para abater e courear as reses dentro da própria estância. No entanto, a estrutura dos gastos
do estabelecimento eram extremamente semelhantes às das estâncias de Alegrete. GELMAN, Jorge.
Campesinos y estancieros..., 1998, p.p. 203-210.
157
Assim, apesar do produto da estância ter sido suficiente para cobrir seus gastos anuais e
ainda gerar uma importante margem de excedente, o retorno sobre o capital investido
foi bastante modesto, atingindo apenas a metade do estimado por Domingos José de
Almeida.
Todavia, é preciso lembrar que as vendas de novilhos, principal fonte de
receita na Estância da Palma, ficaram abaixo dos 9% do rebanho nos anos cobertos pela
conta. Se, por hipótese, na safra de 1853-4, tivessem sido vendidos os 252 novilhos que
representariam o percentual ideal, a receita bruta teria sido de 7:489$000. Aceitemos,
por um momento, que os gastos tivessem sido os mesmos – o que talvez não
acontecesse, já que se poderia precisar de mais trabalhadores para que se conseguisse
como resultado a venda de um número maior de gado. A receita líquida seria, então, de
4:407$000 perfazendo 6,3% do capital da estância. Uma taxa mais significativa, mas
ainda inferior às estimativas dos contemporâneos.
326
Naturalmente, só se pode falar aqui de um estabelecimento, em um único
ano, o de 1853, com todas as idiossincrasias que essa situação pode conter. Além de
tudo, há o fato de que a Estância da Palma era apenas um dos três estabelecimentos
pecuários que formavam o complexo produtivo do Brigadeiro Ortiz. Infelizmente, não
há como verificar o arranjo específico desse complexo e o papel que a Palma
desempenhou nele naqueles anos, mas é bastante provável que o acesso à lógica de
funcionamento do conjunto tornaria mais completa a explicação dos dados de cada uma
de suas partes.
De qualquer forma, esse exercício aproximativo remete a uma questão
importante. Na verdade, esse percentual de retorno sobre o capital investido para a
instalação da Estância da Palma deveria ser maior, porque, como vimos no capítulo “2”,
o Brigadeiro Ortiz havia obtido aquelas terras em uma época em que os preços estavam
muito mais baixos do que em 1853, quando se fez a avaliação das mesmas no inventário
de Dona Febrônia. Assim como ele, a maioria dos grandes estancieiros de Alegrete
havia obtido suas terras no período de expansão da fronteira ou logo depois, algumas
326
Stuart Schwartz investigou os retornos e lucros dos engenhos de açúcar baianos nos século XVII e
XVIII. Demonstrou que podia haver grande variação na taxa de retorno ao longo dos anos, de acordo com
fatores diversos, como as flutuações conjunturais dos preços do açúcar e dos escravos, as possibilidades
de auto-suprimento dos engenhos em alguns insumos ou gêneros de abastecimento, entre outros. Por fim,
estimou em 6,4% o retorno sobre o capital de um engenho. O autor mesmo ressalta que, nas Antilhas
Britânicas, 5% era uma taxa aceitável de retorno nos engenhos e 10% era considerada excelente.
Schwartz conclui, então, que em grande parte do período que estuda, a taxa de retorno do capital
investido nos engenhos baianos deveria variar entre 5 e 10%. Visto por este ângulo, não parece nenhuma
tragédia a taxa de retorno de 4 a 7% em uma estância como a Palma, que não desempenhava uma
produção “nobre” mas, pelo contrário, articulava-se, via charqueadas, com as áreas de plantation (elas
sim equivalentes aos estabelecimentos estudados por Schwartz).
SCHWARTZ, Stuart. Segredos
internos..., 1999, p.p. 202-205.
158
vezes por concessão de sesmarias, talvez em parte por posse, outras por compras a
baixos preços naquele período inicial de ocupação estável na Campanha. Ao analisar a
rentabilidade dos engenhos de açúcar da Bahia, no período colonial, Stuart Schwartz
relativizou a forma de calcular o retorno sobre o capital investido naqueles
estabelecimentos produtivos. O autor argumentou que a estimativa do investimento
necessário para se estabelecer um engenho deveria levar em conta que as terras em que
ele fora instalado tinham sido, em muitos casos, adquiridas gratuitamente como
concessão de sesmarias, ainda que, anos depois, elas tivessem alcançado um alto valor
de mercado. Tendo-se em conta que essas terras ocupavam parte importante da
composição do patrimônio produtivo, percebia-se que o retorno sobre o capital,
calculado para esses anos, era efetivamente maior.
327
A observação de que havia uma diferença significativa entre o valor das
terras quando apropriadas e aquele que elas assumiam depois, quando da feitura dos
inventários é, de fato, muito importante. No caso da Campanha Rio-grandense pode-se,
ainda, acrescentar a hipótese de que boa parte dos rebanhos que povoaram as primeiras
estâncias que se formaram na Campanha também não foram adquiridos no mercado. Ao
contrário, eram produtos das arreadas feitas sobre o gado bravio que pastava naquelas
coxilhas.
No entanto, essas considerações precisam ser ponderadas. Não é exato
pensar que a concessão de sesmarias se dava sem nenhum investimento por parte
daquele que recebia a mercê. O requerimento dessas terras e sua concessão baseava-se
em uma folha de serviços prestados à Coroa. Como vimos, em meio ao processo de
conquista e apropriação das terras disputadas com os espanhóis, nas primeiras décadas
do século XIX, tratavam-se principalmente de serviços militares, muitas vezes prestados
às expensas dos requerentes que iam realizar ofensivas contra os castelhanos ou
armavam homens para as batalhas em favor do Império Português, ou povoavam de
gado estâncias e arriscavam seus bens e suas vidas nas raias da fronteira.
328
Além disso,
o candidato à sesmeiro precisava, na maioria das vezes, movimentar uma rede de
relações que lhe permitisse ver atendida a sua pretensão.
329
Assim, o caminho para
conseguir uma sesmaria envolvia a mobilização de recursos diversos, inclusive
financeiros, impedindo que se pense que o beneficiário tomou posse daquela terra sem
qualquer tipo de custo. Da mesma forma, constituir um bando para arrear gado não era
327
SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos..., 1999, p. 203.
328
CESAR, Guilhermino. Ocupação e diferenciação do espaço, 1979. GOLIN, Tau. Fronteira,vol. I,
2003.
329
GOLIN, Tau. Fronteira, vol. I, 2003.
159
uma atividade livre de custos ainda que, provavelmente, implicasse em vantagens
maiores do que a compra desses animais no mercado.
330
Mesmo que se tenha em conta essas ressalvas, não há como deixar de
admitir que as apropriações de bens de produção, sobretudo de terras, se faziam a custos
mais baixos, ainda que não “sem custos”, no início do século XIX, do que em meados
dele. Assim, se é verdade que a pecuária sulina comungava com as produções agrícolas
de alimentos e das plantations de outras regiões do Brasil o caráter extensivo de sua
reprodução, também é certo que ela tinha suas especificidades. E sua compreensão é
essencial para uma avaliação correta da história econômica das regiões pastoris da
Fronteira Meridional. Ali, o baixo índice de lotação dos campos exigia que a criação em
grande escala fosse desenvolvida em propriedades cujas extensões seriam muito
superiores aos padrões vigentes nas áreas de agricultura. Uma estância com 3.000 reses
e com os respectivos cavalos para o serviço (um mínimo de 100), necessitaria de algo
em torno de 5.000 ha. para continuar mantendo esse patamar produtivo. Se
considerarmos que as estâncias normalmente mantinham outras produções em menor
escala (de muares, ovinos e potros), essa extensão deveria ser ainda maior. Por outro
lado, a necessidade de mão-de-obra exigida pela pecuária extensiva era muito menor do
que a da agricultura. Aquela mesma estância citada acima poderia operar com um
capataz, três peões escravos e dois livres, além de mais uns cinco escravos para as
tarefas de roça, construções e serviços domésticos, o que totaliza cerca de 11 pessoas
trabalhado o ano inteiro. Uma ou duas vezes por ano, nas épocas de marcação e
castração, era necessário contratar trabalhadores por empreitada (peões por dia), mas
isso não durava mais do que alguns dias. Esse número de 10 trabalhadores regulares era
impensável para o funcionamento da grande lavoura de exportação.
331
Em resumo, os grandes percentuais de receita líquida anual sugerem que as
estâncias conseguiam reproduzir anualmente suas atividades com baixos custos. Como
veremos no capítulo “7”, os gastos com trabalhadores eram as principais despesas
anuais feitas naquelas unidades produtivas, o que é coerente com o caráter extensivo da
pecuária praticada em Alegrete. Dessa forma, os baixos custos de reprodução anual das
estâncias podiam beneficiar-se do fato de que a necessidade de mão-de-obra na pecuária
era muito menor do que na agricultura. Em contrapartida, os custos para se estabelecer
uma estância aumentaram muito ao longo do período tratado. Terminaram as
330
GIL, Tiago Luis. Infiéis Transgressores..., 2003.
331
Em seu trabalho sobre as fazendas de café, no século XIX, em Paraíba do Sul, João Fragoso
considerou que as grandes fazendas de café tinham, pelo menos 60 escravos, mas esse número podia ser
bem maior. FRAGOSO, João Luis. Sistemas Agrários em Paraíba do Sul..., 1983.
160
possibilidades, existentes no tempo de fronteira aberta, de adquirir terras e gados a
baixos custos. Assim, pode-se ter uma idéia mais concreta das vantagens que tiveram
aqueles que construíram um expressivo patrimônio pecuário e fundiário no período de
conquista da Campanha. Como vimos no capítulo “2”, esse foi o caso das principais
famílias que ocuparam os lugares mais altos da hierarquia social local. Essa acumulação
exigia outros tipos de investimento, em planos não propriamente “econômicos”, onde a
atuação militar e as alianças familiares tinham destacado papel.
3.5 - As despesas dos estancieiros
As despesas presentes na conta elaborada pelo Brigadeiro Ortiz
desdobravam-se em um leque diversificado de categorias. Boa parte dos ingressos era
aplicada em seus estabelecimentos pecuários, com o pagamento de salários para
trabalhadores livres, aquisição de escravos, compra de cavalos xucros para domar e
revender, reparos nas construções ali existentes e obtenção de gêneros para a
manutenção dos trabalhadores cativos e da família proprietária. Outra parcela dos
recursos vindos das estâncias era encaminhada para destinos diferentes. Ao longo
daqueles três anos e meio, o Brigadeiro Ortiz entregou dinheiro a vários de seus filhos
casados; enviou importantes somas para o sustento de seu filho Pedro Fortunato, cadete
do exército em atividade; deu presentes à filha caçula, Maria Aldina, preparou seu
enxoval e pagou-lhe a festa de casamento. O Brigadeiro também gastou em viagens que
fez no interesse da “Nação” (em decorrência do posto militar que ocupava), pagou
dívidas, além de despender com os trâmites do inventário, o funeral e as missas em
intenção da alma de Dona Febrônia.
Esse variado rol de despesas era mais do que uma justaposição de gastos
e investimentos muito diversos e sem ligação entre si. Ao contrário, ele se torna
compreensível no contexto da estratégia social desenvolvida por aquela família. Os
recursos deviam sustentar, além da reiteração da atividade pecuária, também uma
política de alianças familiares e, em alguns casos, de manutenção e ampliação de um
cabedal militar.. Neste momento, me refiro apenas aos gastos diretamente envolvidos
com a reprodução das estâncias, mas as motivações das outras despesas e a conexão
entre todas elas devem se compreensíveis ao longo dos próximos capítulos, pois
formavam os traços básicos de uma estratégia comum às famílias da elite agrária da
Campanha no meado do Oitocentos.
É preciso ter sempre em mente que esta separação entre as despesas
feitas com a reprodução das estâncias e os demais gastos efetuados pelo Brigadeiro
161
Ortiz é empreendida aqui apenas para fins analíticos. Ela não existe na conta. Ali se fala
do pagamento feito a um peão, no item seguinte aponta-se a compra de um piano, no
outro mais salários a peões, logo após se registra o dinheiro enviado a um dos filhos e
assim por diante. Aquilo que parece uma verdadeira miscelânea de registros aos olhos
atuais tinha sentido para seu autor e expressa toda uma visão de economia, de
administração, de família, de Estado e de sociedade.
Tendo deixado clara essa ressalva, é permitido passar ao estudo das
despesas que Ortiz fez diretamente para a reprodução de suas estâncias. Nesse quesito,
as referências aos estabelecimentos de São Gabriel são bastante sumárias. Elas apontam
apenas o total gasto com “as despesas de Vacacaí e Santo Isidro, segundo conta de meu
filho Gaspar”.
332
Além disso, está discriminado o valor anual pago pelo arrendamento
da Estância do Vacacaí. Os gastos feitos na Estância da Palma, ao contrário, foram
descritos de forma mais completa. Ali constam despesas com mão-de-obra, como a
contratação de peões por mês, onde foi registrada a identificação do trabalhador, o valor
de seu salário e o total recebido por ele. Assim, em 1853, foram pagos três meses de
trabalho ao peão Liberato, a 12$000 por mês, tendo sido despendido um total de
36$000. O mesmo tipo de anotação se deu nos casos dos peões contratados por dia ou
tarefa e dos trabalhadores destinados a outros serviços, como os reparos feitos nas
construções da estância. Constam, ainda, aquisição de escravos, cuidados médicos,
compras de cavalos e de gêneros secos e molhados para o mantimento da casa.
Sendo assim, esta análise precisa se restringir aos gastos feitos na
Estância da Palma, para os quais se pode contar com um detalhamento suficientemente
claro daquelas categorias. Elas envolviam a mão-de-obra diretamente empregada na
criação de gado, contratação de trabalhadores para serviços fora da pecuária, gastos com
escravos, gêneros para a casa, materiais de construção, compra de cavalos, viagens a
serviço “da casa” e correspondências.
As despesas realizadas na estância da Palma, entre 1852 e 1854 estão
expressas na “3.6” e a discriminação das despesas feitas com mão-de-obra, presente na
tabela “3.7”:
332
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 08, N. 111, A. 1852. APRS”.
162
TABELA 3.6 - DESPESAS DA ESTÂNCIA DA PALMA (ALEGRETE, 1851-1854)
Despesas Em mil-réis %
Mão-de-Obra 4:002$200
52,2%
Aquisição de gêneros 1:209$050
15,8%
Compra de cavalos 1:178$000
15,4%
Reparos e construções 704$640
9,7%
Correspondências e
Viagens
522$880
6,7%
TOTAL 7:650$770 100%
Fonte: Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 08, N. 111, A. 1852
TABELA 3.7 - DESPESA COM MÃO-DE-OBRA NA ESTÂNCIA DA PALMA (ALEGRETE,
1851-1854)
Despesas com
mão-de-obra
Em mil-réis %
Capatazes 753$000
9,8%
Peões por mês 698$000
9,1%
Peões por dia 1:070$000
14%
Aquisição de escravos 1:316$000
17,2%
Outros trabalhadores 163$000
2,1%
Total 4:002$200 52,2%
do total das despesas
Fonte: Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 08, N. 111, A. 1852
Esses dados são confirmados e mesmo radicalizados por outras duas
contas de estâncias localizadas em Alegrete. A conta da Estância do Pedregal,
pertencente à Dona Francisca de Araújo Freitas, e a conta da Estância do Quaraí-Mirim,
de Joaquim Ferreira Braga, ambas abrangendo o período entre 1847 e 1850, apresentam
distribuições muito semelhantes. Assim como ocorria na Palma, também naquelas duas
estâncias os gastos com trabalhadores foram majoritários, mas alcançaram um
percentual ainda maior do que naquela, atingindo, em ambas, nada menos do que 86%
do total de despesas. Por sua vez, o segundo item com que mais se gastou, assim como
na Palma, foi a aquisição de gêneros de abastecimento, chegando a cerca de 12% em
cada estabelecimento.
No que se refere, propriamente, à estância da Palma é preciso dizer que
os gastos com reparos e construções não eram nada desprezíveis, aos quais poderiam ser
adicionados os pagamentos efetuados a alguns dos trabalhadores “fora da pecuária”,
como um carpinteiro e um pedreiro contratados por tarefa, naqueles anos. Esses gastos
podem ser explicados pelo vulto que alcançava o casario da estância, quesito onde,
como vimos, a Palma tinha poucos rivais entre os estabelecimentos agrários de
163
Alegrete. Ela era suficientemente próxima ao núcleo urbano para que pudesse fazer a
função, ao mesmo tempo, de estabelecimento produtivo e residência “citadina” de seus
proprietários. Já a rubrica referente à compra de animais ganhou uma maior expressão
em razão do já comentado comércio de cavalos que o Brigadeiro Ortiz mantinha com o
exército brasileiro. As outras duas contas comentadas não contemplam esse item.
Por sua vez, as despesas com gêneros de abastecimento envolvem a
aquisição de uma série de produtos vindos, em geral, dos comerciantes locais. Nesse
item, a conta elaborada por Ortiz é menos específica, indicando apenas pagamentos a
comerciantes “por gêneros comprados para o suprimento da casa”.
333
Através de
algumas contas-correntes de comerciantes, anexadas aos inventários de Alegrete, é
possível saber que esses suprimentos compunham um heterogêneo conjunto de
mercadorias envolvendo adiantamentos de pequenas quantias de dinheiro, tecidos finos
e grosseiros, instrumentos de ferro e couro, sal, açúcar, erva-mate, vinho, aguardente,
fumo, purgantes e, algumas vezes, farinha de trigo ou mandioca.
Por fim, o principal. As despesas com mão-de-obra desempenham um
papel central no conjunto dos custos anuais existentes nos períodos abrangidos por
aqueles registros.
334
A conta tem a mesma característica daquelas estudadas por Stuart
Schwartz para o caso do Engenho Sergipe, na Bahia, entre 1707 e 1716, onde se
misturavam anotações sobre aquisição de bens de capital e gastos correntes, colocando
lado a lado despesas como a aquisição de escravos e o pagamento de salário aos
peões.
335
Mesmo que retirássemos o montante referente à aquisição de dois escravos no
período da conta, os gastos de mão-de-obra atingiriam 42%, um percentual que seguia
sendo maior do que qualquer gasto corrente da estância. E veja-se que não estão
incluídos aí os gastos feitos com a manutenção dos escravos, mas é muito provável que
parte do valor despendido em “gêneros” comprados no comércio local se referia a
artigos como roupas, arreios, fumo e cachaça, que seriam fornecidos aos cativos, já que
esse procedimento aparece em fragmentos de anotações contábeis presentes em outros
inventários post mortem de Alegrete.
336
A estância da Palma abrigava uma escravaria
composta por um total de 17 cativos, sendo quatro campeiros, quatro roceiros, um
carpinteiro, um sapateiro, um que tinha princípios de pedreiro, três mulheres sem
333
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 08, N. 111, A. 1852. APRS”
334
Este também foi o padrão encontrado por historiadores que estudaram estabelecimentos pecuários em
diferentes regiões do Vice-Reinado do Prata, em fins do período colonial. Ver: GARAVAGLIA, Juan
Carlos. Tres estancias del sur bonaerense en un período de “transición” (1790-1834), 1994. GELMAN,
Jorge. Campesinos y Estancieros..., 1998, p. 199.
335
SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos..., .1995 p.p. 189-197.
336
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 08, N. 111, A. 1852. M. 10, N.
145, A. 1855. M. 08, N. 117, A. 1854. Cartório do Cível e Crime: M.01, N. 09, A. 1847. APRS.”
164
designação de ofício e três meninas de menos de nove anos de idade. Em fins 1853, o
plantel foi acrescido de mais um escravo e uma escrava, enquanto o pardo Eleutério,
campeiro, adoeceu e faleceu no ano seguinte. A ausência dos valores específicos do
custo de manutenção dos escravos não permite a realização de um cálculo mais preciso
sobre o valor despendido com a escravaria.
Dentre os gastos com mão-de-obra, os mais expressivos eram as
despesas com salários dos trabalhadores livres da pecuária, fossem eles capatazes ou
peões. Esses gastos envolviam pagamento de salários e poderiam ver-se incrementados
se fosse possível discriminar o valor da alimentação que esses trabalhadores recebiam e
que não era descontada do valor dos salários. Mesmo em uma temporada de reformas
nas construções, como a que estava ocorrendo na Palma, a contratação de trabalhadores
para serviços “fora da pecuária” foi limitada, o que também pode ser explicado pela
presença de um escravo pedreiro e outro carpinteiro na estância. Enfim, o lugar central
que as despesas com trabalhadores ocupavam nos gastos correntes da estância
demonstra que, embora a pecuária a campo aberto exigisse muito menos quantidade de
mão-de-obra do que a grande lavoura de exportação, isso não pode ser utilizado para
soprar as brasas da velha idéia segundo a qual a criação de gado era uma atividade onde
o trabalho não se revestia de grande importância.
A análise detalhada dessa mão-de-obra será feita nos capítulos “7” e “8”
desta tese, quando da investigação dos estratos sociais que formavam o grupo dos que
iam se assalariar nas grandes estâncias. O estudo, agora, passa a tratar da atuação da
elite agrária no universo da guerra e da fronteira, e na construção de alianças familiares.
Embora se costume chamar essas áreas de “extra-econômicas”, na verdade, elas
estavam absolutamente imbricadas com as estâncias e os negócios, pois retiravam deles
seu suporte material e influíam de forma nada sutil em sua reprodução.
165
PARTE II – TRAJETÓRIAS E
ESTRATÉGIAS FAMILIARES DA ELITE
AGRÁRIA
166
Capítulo 4 - “Será sempre o Rio Grande um
teatro de guerra...”
Em setembro de 1865, as tropas da aliança entre Brasil, Argentina e Uruguai
estavam acampadas algumas léguas a leste de Uruguaiana e preparavam-se para a
recuperação da vila, que havia sido tomada pelos paraguaios. Além de um ato de guerra,
aquela era também uma ocasião solene. Ninguém menos do que o imperador Dom
Pedro II, em pessoa, fora ao sul comandar o exército brasileiro naquele embate. As
forças argentinas eram lideradas pelo presidente Bartolomeu Mitre e os uruguaios por
Venâncio Flores. No dia da ação, o Conde d’Eu, genro do Imperador, escreveu em seu
diário:
“Efetivamente às 7 horas o Imperador monta em seu cavalo. Sabem todos que
esse é o dia em que à força vamos nos apossar de Uruguaiana. Por isso
ninguém falta à chamada, até o General Beaurepaire; a quem sua doença
ordinariamente obriga a se conservar na carretilha fez o esforço de montar a
cavalo, por ser hoje, diz ele, o dia solene. Vem também juntar-se ao Estado
Maior Imperial o General Olivério Ortiz, velho de 80 anos, que deixou
sua estância, nos arredores de Alegrete, para vir assistir à tomada de
Uruguaiana.
337
(grifos meus)
A retomada acabou acontecendo sem sobressaltos: as forças do comandante
paraguaio Estigarribia renderam-se sem resistir às tropas da coalizão, muito melhor
providas de soldados e armamentos do que as suas. Por sua vez, o fato de que o
Brigadeiro Ortiz, mesmo contando mais de 80 anos, fora tomar parte na ação,
337
D’EU, Conde. Viagem Militar ao Rio Grande do Sul, 1981, p. 97.
167
impressionou o jovem Conde d’Eu. Esse era, na verdade, mais um ato em uma longa
seqüência de serviços militares prestados por Ortiz na Fronteira Meridional. Sua carreira
começara quando engajou-se nas tropas que invadiram a Banda Oriental, sob o
comando do Governador Dom Diogo de Souza, em 1811. Talvez fosse mesmo o
coroamento de sua trajetória, pois, finalmente, combatia ao lado do Imperador. O fato
de apresentar-se para a luta re-atualizava antigos pactos, em que os comandantes
militares do sul colocavam sua pessoa, sua fortuna e suas relações à disposição para o
serviço de guerra. Sua capacidade de conseguir homens, armas e cavalos; seu
conhecimento do tipo de guerra ali praticado; suas relações em variados rincões daquela
zona fronteiriça formavam o cabedal que lhes permitia serem úteis à Coroa ou, em
tempos de menor concórdia, representarem uma ameaça para ela.
Como vimos no primeiro capítulo, a guerra foi uma presença constante na
formação histórica do Rio Grande de São Pedro. No período que interessa diretamente
aqui (1825-1865), tivemos sete anos de paz entre 1828 e 1835, seis anos entre 1845 e
1851 e, depois, o mais longo dos períodos, e dez anos entre 1854 e 1864. Os conflitos
cobriram nada menos do que 1/3 dessas quatro décadas. Porém, os intervalos entre-
guerras não significavam tranqüilidade: em geral, nessas épocas, combates estavam
sacudindo o Uruguai ou as províncias argentinas de Corrientes e Entre-rios, com
reflexos concretos na Fronteira Meridional do Brasil. E mais, naqueles momentos, as
mobilizações de efetivos e o sentido de alerta diminuíam, mas não desapareciam. As
autoridades e os habitantes da Fronteira sabiam que, amanhã ou depois, outra guerra
podia estourar. Findos os combates, os exércitos ficavam na província, os desertores
escondiam-se nos matos, os desmobilizados podiam permanecer nas vilas e campos,
tudo isso entrava nas preocupações das autoridades militares e dos administradores
civis. Em razão desses fatores, a militarização assumiu, em terras rio-grandenses, um
papel de extrema relevância, provavelmente maior do que em qualquer outra província
do Império. E isso é tanto mais verdadeiro no que se refere à região da Campanha,
conquistada pelas armas havia poucos anos, vizinha às instáveis repúblicas platinas e
refúgio privilegiado das tropas farroupilhas.
Nesse contexto, os comandantes militares possuíam grande poder e
reconhecimento social. Eles tinham ingerência sobre doações de terras, repartição de
gado, recrutamento de combatentes, abastecimento das tropas, passagem de animais e
mercadorias pela fronteira, além da política regional. Todos estes fatores tinham
implicações diretas na economia pecuária e na vida social. Este capítulo é dedicado
exatamente a analisar essas possibilidades de ingerência dos comandantes militares na
168
vida econômica e social da Fronteira Meridional. Aqui também começa o estudo do
nível de inter-relação entre os altos postos militares e a elite agrária, o que será
completado no capítulo seguinte, dedicado às alianças matrimoniais desta elite.
4.1 - Elite agrária e altos postos militares
Associação entre a elite agrária e os altos comandos militares na Campanha
Rio-grandense é praticamente uma “idéia-força” na historiografia. Contudo, essa
afirmação costuma ser feita por si mesma, sem que esteja acompanhada de um estudo
sobre a sua amplitude e as suas características. Como veremos, nem todo abastado
senhor da Fronteira era também uma autoridade militar. Muitos deles jamais ocuparam
qualquer posto nas forças marciais. Isso, porém, não retira a importância singular que os
comandos militares tiveram na estruturação da sociedade do extremo-sul, nem sua
conexão inextrincável com a economia e a sociedade.
De fato, não há uma correspondência necessária a priori entre a elite
econômica e os altos cargos militares, mas um cotejo entre ambas as escalas de
hierarquia social nos permite perceber o quanto elas estavam associadas, naquele
mundo. Como vimos, dos 16 titulares das maiores fortunas nos inventários pesquisados,
quatro deles exerceram altos cargos militares, tendo tamm sido grandes estancieiros.
Procurando avaliar o fenômeno a partir do ponto de vista inverso, podemos tomar os
Comandantes da Fronteira de Alegrete, e que estendia sua jurisdição sobre as questões
relacionadas à fronteira com o Estado Oriental. Entre 1820 e 1845, três sujeitos
dominaram o cargo: Bento Manoel Ribeiro, José Antônio Martins e Cláudio José de
Abreu. Os dois primeiros eram também estancieiros que estão entre as 16 maiores
fortunas dos inventários em análise aqui. O terceiro não está porque ficou fora da
amostra, mas seu perfil sócio-econômico é, em tudo, semelhante ao dos outros dois. Dos
três, o mais destacado foi Bento Manoel Ribeiro: chegou ao Comando da Armas da
Província, em 1836, e foi deputado provincial constituinte, um ano antes. Além deles,
os outros dois altos oficiais que aparecem entre as maiores fortunas tiveram trajetórias
semelhantes às suas. Olivério José Ortiz chegou a Brigadeiro do Exército, foi deputado
provincial constituinte em 1835, Ministro da Guerra da República Rio-grandense,
comandou a Fronteira de Missões e o distrito militar de Caçapava. Já Severino Ribeiro
de Almeida, filho de Bento Manoel, foi comandante da Guarda Nacional em Alegrete,
Livramento e Quarai, entre 1860 e 1867.
169
Que fique claro: eles estavam muito longe de serem “militares” no sentido
de funcionários de um exército moderno e profissional.
338
Tais senhores da guerra
levavam para o exercício desses postos toda uma série de obrigações, de prestações de
favores e ajuda que eram esperadas por parentes, aliados e subalternos. Prestações essas
que, quando contempladas, solidificavam lealdades e ampliavam sua legitimidade.
Dessa forma, os nomes dos que ocuparam aqueles comandos militares são apenas a fina
cobertura da sucessão de frações da elite da Fronteira que lutavam por aqueles postos.
Cada fração desta era composta por chefes militares que também eram estancieiros e
sua malha de parentes e aliados, além de carregar consigo compromissos e expectativas
dos subalternos que lhes emprestavam legitimidade social.
Contudo, 11 daqueles ricos senhores, sendo 10 estancieiros e 1 comerciante,
jamais desempenharam qualquer cargo militar importante. Esses números sugerem que
se deve evitar a associação imediata dos grandes estancieiros com os chefes militares.
Os dois mais ricos inventariados, que eram também os dois mais abastados estancieiros,
Manoel José de Carvalho e Antônio José de Oliveira, estão entre os que nunca
exerceram qualquer atividade militar. Porém, como veremos no capítulo “5”, uma
análise das relações familiares em que estavam inseridos esses senhores demonstra que
mesmo aqueles que jamais ocuparam altos postos marciais costumavam ter um parente
próximo, em geral genros ou os sogros de seus filhos, que eram altos oficiais do
exército ou, mas comumente, das Milícias ou da Guarda Nacional. Assim, o acesso
direto ou por via parental ao poder sobre a guerra e a fronteira foi uma característica da
elite agrária de Alegrete.
Vejamos, agora, as características da atuação dos comandantes militares, as
áreas em que essa atuação permitia uma forte influência sobre a economia e a sociedade
e como esses fatores variaram, ao longo do período estudado.
4.2 - “Para assim os influir à defesa do território”: os comandantes
militares e os recrutamentos
Desde tempos coloniais, as forças militares no Brasil tinham uma
organização tríplice. Além dos efetivos profissionais, chamados de “1ª. linha”, existiam
forças de “2ª. linha”, chamados de “terços de auxiliares” e, como se fosse uma “3ª.
338
Sobre o processo de profissionalização militar no segundo reinado ver: SCHULZ, John. O Exército na
Política: origens da intervenção militar (1850-1894), 1994. SOUZA, Adriana Barreto. O Exército na
Consolidação do Império. Um estudo histórico da política militar conservadora, 1999.
170
linha”, havia também as ordenanças.
339
Os terços de auxiliares passaram a se chamar
“Milícias”, em 1796. Essas forças serviam de reserva para o exército, devendo auxiliá-
lo em tudo quanto fosse necessário. A partir de 1831, a Guarda Nacional veio a
substituir as Milícias e as ordenanças, em um processo que, como veremos, não esteve
livre de conflitos. Assim como as Milícias, os efetivos da Guarda Nacional eram forças
não-profissionais compostas por moradores locais, mas tinham por tarefa principal
resguardar a ordem social e a segurança interna. Uma das grandes diferenças da Guarda
Nacional em relação às antigas forças de 2ª. linha era que ela não estaria subordinada ao
exército de primeira linha. As autoridades civis ganhavam espaço em sua organização e
gerenciamento. Porém, como função secundária elas deveriam, também, auxiliar o
exército em suas funções, todas as vezes que isso fosse necessário.
340
Esta última
disposição fez com que, no grave contexto de endemia bélica do sul, essas forças
auxiliares fossem empregadas efetivamente na defesa do território contra ameaças
externas, assumindo grande relevância em atividades de guerra.
A importância dos efetivos não-profissionais era mesmo enorme: nos
primeiros anos após a independência, o exército tinha apenas três unidades na província
do Rio Grande do Sul, enquanto as Milícias contavam com sete.
341
Como herança do
Império Colonial Português, o Estado Brasileiro nascia com uma grande dependência
em relação aos particulares, para a defesa militar de seus interesses nos confins
meridionais. Como já têm destacado diversas obras de história militar, as tropas
milicianas e da Guarda Nacional gozavam de maior prestígio social do que as de 1ª.
linha.
342
O recrutamento para o exército devia respeitar uma série de isenções, como as
relativas aos homens casados, aos filhos únicos de lavradores ou um à sua escolha, aos
empregados de determinadas profissões.
343
Com esse critério, o recrutamento para as
tropas de 1ª. linha, que envolvia serviços permanentes e, muitas vezes, em áreas
distantes dos locais de moradia, acabava por recair sobre os mais desfavorecidos na
escala social, além de servir como punição para criminosos e desajustados. O poder de
339
As ordenanças, em geral, somente eram empregadas no caso de falta de unidades de primeira ou
segunda linha, “pois a maioria de seus membros era de indivíduos com idade avançada que já tinham
servido muitos anos nas Milícias ou, ainda, por algum outro motivo, haviam sido dispensados do serviço
da 2ª. linha).” RIBEIRO, José Iran. Quando o serviço os chamava – Milicianos e guardas nacionais no
Rio Grande do Sul, 2005, p. 35.
340
RIBEIRO, José Iran. Quando o serviço os chamava..., 2005, p.p. 25-29, 133-134.
341
RIBEIRO, José Iran. Quando o serviço os chamava ..., 2005, p. 27.
342
CASTRO, Jane Berrance de. A milícia cidadã: a Guarda Nacional de 1831 a 1850, 1977.
RODRIGUES, Antônio Edmílson; FALCON, Francisco; NEVES, Margarida. A Guarda Nacional no Rio
de Janeiro (1831-1918), 1981. URICOCHEA, Fernando. O Minotauro Imperial: a burocratização do
Estado Patrimonial Brasileiro do século XIX, 1978.
343
RIBEIRO, José Iran. Quando o serviço os chamava..., 2005, p.p. 32-33.
171
recrutamento ficava nas mãos dos comandantes militares locais, com grande margem de
manobra para decidir entre os que se enquadravam ou não dentro do perfil dos que eram
suscetíveis de serem chamados. Havia forte resistência ao serviço no exército. Muitos
eram os que se evadiam, escondiam-se, ou buscavam contar com a proteção de
familiares ou de patronos influentes. Neste último caso, o recrutamento também
aparecia como um fator criador de relações de clientela entre os comandantes militares,
os protetores e os que buscavam auxílio para isentar a si ou a um familiar do serviço.
344
Por outro lado, ao menos teoricamente, o serviço na Milícia e na Guarda
Nacional seria menos freqüente e menos perigoso. Por isso mesmo, eram alistados para
essas forças os isentos do serviço de exército, e os cargos de oficiais eram preenchidos
por aqueles que ocupavam uma melhor posição social. Essa gente “de bem” era
considerada produtiva para a sociedade e não deveria ser desviada com freqüência de
seus negócios e tarefas para carregarem o peso do serviço militar. Junto com o
reconhecimento, vinha o ônus: os membros desses corpos, em tese, não recebiam soldos
e deviam ter condições de prover, eles mesmos, o fardamento, o armamento e a
montaria, se fosse o caso de unidades de cavalaria.
345
Todavia, nos casos em que
desempenhavam tarefas próprias do exército, os milicianos e guardas nacionais podiam
ser submetidos a autoridades da primeira linha, tinham direito a receber soldos e
apetrechos para o serviço.
346
Como já foi dito, no Rio Grande do Sul, onde as guerras
teimavam ressurgir seguidamente, essa utilização da Milícia e, depois, da Guarda
Nacional em tarefas que seriam do exército, como a defesa das fronteiras, foi recorrente.
Além disso, as incumbências de defesa das povoações em que estavam
sediadas ficava sempre a cargo dessas forças, o que aumentava ainda mais sua
importância e a efetividade de sua atuação. E, também ali, a busca pela evasão foi
constante. Compreensivelmente, a maioria dos habitantes da província teimava em não
querer abandonar suas famílias e seus meios de subsistência para arriscar suas vidas nos
campos de batalha. Eles não desejavam afastar-se de seus locais de moradia e, mesmo
quando devessem prestar serviço sem se ausentar de seu município, muitos deles
procuravam formas de se furtar ao serviço porque os recrutamentos transtornavam o
cotidiano dos serviços a que esses homens se dedicavam.
344
RIBEIRO, José Iran. Uma Ilha de Recrutados num Mar de Voluntários, (texto inédito).
345
PEREGALLI, Enrique. Recrutamento Militar no Brasil Colonial, 1986.
346
Os milicianos podiam ficar subordinados às autoridades de primeira linha sempre que deixassem o
local onde estavam sediados. Por sua vez, com os guardas nacionais tal subordinação somente aconteceria
quando devessem desempenhar tarefas próprias do exército. RIBEIRO, José Iran. Quando o serviço os
chamava..., 2005, p.p. 21-22, 90-96.
172
Da mesma forma que no caso do recrutamento para a 1ª. linha, tamm aqui
foi preciso utilizar um leque de mecanismos de aliciamento que iam desde diversas
formas de negociação até a coação. No caso dessas forças não-profissionais, as
dificuldades para empregar meios coativos eram ainda maiores, pois o alistamento não
podia se valer dos membros indesejados da sociedade e, ao menos em tese, os
responsáveis pelo alistamento estavam tratando com “homens honrados”, cidadãos
ativos que não podiam receber um tratamento assemelhado ao destinado aos que eram
recrutados para o exército. Assim, crescia ainda mais a importância dos comandantes
militares encarregados dessas atividades. De um lado, conseguir homens em armas
tornou-se um sinal de prestígio e poder para esses comandantes, perante seus superiores.
De outro, o poder de dispensar alguns de seus aliados ou manejar para que prestassem o
serviço em condições mais desejáveis foi um instrumento importante para que tais
comandantes estabelecessem clientelas e ocupassem uma posição importante naquela
sociedade.
No caso das Milícias, ao menos formalmente, a ordem para o alistamento
partia da Secretaria dos Negócios da Guerra, ainda que instâncias provinciais e
regionais tenham, por vezes, efetuado alistamentos por sua conta.
347
A ordem ia, então,
ao Presidente da Província, que a repassava ao Comandante da Unidade que, por sua
vez, repassava aos Comandantes das Companhias ou aos Comandantes de Distrito.
Estes eram os verdadeiros executores do recrutamento. Eles deviam elaborar as listas
daqueles dentre os habitantes de suas regiões, que estavam em circunstâncias de
servirem na 2ª. linha. Essas listas, então, deveriam cumprir caminho inverso, chegando
ao Presidente da Província, embora esse circuito de volta nem sempre chegasse ao seu
final.
348
Essa sistemática dava aos comandantes de unidades e de companhias grande
poder para estabelecer redes de favorecimentos. Legalmente, eles não poderiam fazer
isenções mas, na prática, o faziam. José Iran Ribeiro demonstrou como, em vários
casos, o recrutamento pôde ser utilizado pelos comandantes para favorecer seus aliados,
angariar clientelas e perseguir desafetos.
349
Além desses comandantes, também o
Presidente da Província e, por fim, uma junta médica que fazia o exame final dos
recrutados, podiam dispensar do serviço e ampliar seu cabedal social por meio desses
privilégios.
347
RIBEIRO, p.p. Quando o serviço os chamava..., 2005, p.p. 54-60. Mais elementos sobre o processo de
recrutamento no Brasil estão em: KRAAY, Hendrik. Repensando o Recrutamento Militar no Brasil
Imperial, 1999.
348
RIBEIRO, José Iran. Quando o serviço os chamava..., 2005, p.p. 38-39.
349
RIBEIRO, José Iran. Quando o serviço os chamava..., 2005, p.p. 38-68, 121-125.
173
Naturalmente, tais favorecimentos não eram absolutos. Eles não implicavam
na dispensa de todos os aliados ou clientes dos comandantes militares. Afinal, a
capacidade de arregimentar homens em armas era uma das maiores fontes de prestígio
dos senhores da guerra junto a seus superiores. Também é verdade que o próprio espaço
para essas negociações tendia a diminuir quando se tratava de períodos de necessidade
premente de homens, como as fases mais acirradas dos conflitos armados. Aí, a coação
tendia a ganhar terreno, mas jamais podia produzir, sozinha, o número de efetivos
necessário para a guerra. Dessa forma, os benefícios nascidos nessas relações sociais
eram produzidos dentro de um esquema de negociação entre partes desigualmente
situadas na escala social. Apresentava-se um escravo, ao invés de si mesmo, um filho,
ao invés de dois, pedia-se para ser alistado nas Milícias e não no exército, nesta
companhia e não naquela.
Podia-se aceitar o serviço em razão do prestígio do comandante,
conseguindo, assim, ser visto com bons olhos por ele em situações futuras e mesmo fora
da guerra, pois esses comandantes costumavam ser importantes social e politicamente,
em suas localidades. Era prática corrente no Rio Grande do Sul, que parte dos
arregimentados deixassem os corpos onde estavam prestando serviço para tratar de seus
afazeres, voltando algum tempo depois. Esse era um tipo de concessão que os
comandantes precisavam fazer para que não ficassem sem homens em suas unidades.
Na conta da estância do Quaraí-Mirim, elaborada por seu proprietário, Joaquim Ferreira
Braga, em 1849, aparecem salários devidos ao capataz Carlos, de 12 de junho de 1847
até 24 de março de 1849 “quando foi para o destacamento.” Em seguida, aparecem
pagamentos para “o mesmo desde agosto 4/1849 em que voltou do destacamento até
Março 4/1850 em que tornou a ser chamado, mais 20 dias que teve de licença e veio
trabalhar.”
350
Esta situação não era exclusiva do Rio Grande do Sul. Em seu estudo
sobre a província argentina de Entre-rios, Roberto Schmitt destacou o papel da
negociação e da aquisição de direitos em troca do serviço militar que prestava a
população entrerriana, ao longo da primeira metade do século XIX.
351
Nas três primeiras décadas do século XIX, a concessão de terras e a
redistribuição de presas de guerra, especialmente de animais vacuns e cavalares, servia
como um estímulo a que os homens fossem à guerra. A distribuição de gado saqueado
aos inimigos ou a arreadas de animais alçados era uma prática antiga, sendo freqüente
nos antigos territórios da “Fronteira de Rio Pardo” e na “Fronteira de Rio Grande”. Ao
350
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes, M. 10, N. 145, A. 1855. APRS.”
351
SCHMITT, Roberto. Ruina y ressurrección em tiempos de guerra: sociedad, economía y poder en el
Oriente Entrerriano posrevolucionario (1818-1852), 2004, p.p. 153-201.
174
analisarem a atuação da tomada dos fortes espanhóis de Santa Bárbara, São Martinho e
Santa Tecla, ocorrida na segunda metade do Setecentos, Tiago Luis Gil e Martha
Hameister mostraram como o butim serviu de atrativo para os que dela participaram.
352
Por sua vez, a expansão militarizada a partir de 1801, até o final da
dominação sobre a Banda Oriental (1828), intensificou as arreadas que eram feitas de
par com expedições militares. Elas desempenharam um papel de grande relevância na
constituição dos rebanhos que povoaram as estâncias que os luso-brasileiros foram
estabelecendo nas terras recém conquistadas. Os saques feitos nas Missões pelas
partidas de milicianos, particulares e mesmo do exército regular alcançaram grande
monta e tinham o gado como seu principal butim, mas não o único. Tau Golin traz
interessante documento, em que o diarista do quartel-general das forças portuguesas
escrevia, em fins de 1801:
“O saques que lhes tem feito pelas estâncias de suas campanhas [aos
castelhanos], têm sido em número muito avultado, sendo em escravos, bois,
cavalos, mulas, burros chucros, éguas, etc., que tudo tem entrado para estas
duas fronteiras [de Rio Pardo e de Rio Grande].”
353
Depois disso, quando do avanço do “Exército Pacificador”, em 1811, a
ocupação do território entre o Ibicuí e Quarai ganhou força e grandes arreadas de gado
foram feitas naquele rico espaço pecuário - onde iria surgir o município de Alegrete. O
mesmo aconteceu com a região entre o Quarai e o Arapeí quando da invasão das tropas
de Lecor, em 1816 e até, pelo menos, a incorporação da Banda Oriental como Província
Cisplatina, em 1821.
354
Porém, durante a guerra de independência do Uruguai (1825-
1828), as tropas de Lavalleja e Alvear deram o troco, arreando muito gado de brasileiros
na própria Banda Oriental e no Rio Grande.
355
Além disso, como já foi dito, Rivera
levou cerca de 7.000 reses consigo, quando desocupou o território das Missões
Orientais, em 1828.
356
A permissão para o saque e a redistribuição de cabeças de gado
entre os combatentes seguia servindo como um estímulo ao aliciamento e constituindo-
se em um elemento importante na reprodução do poder e prestígio dos comandantes
352
GIL, Tiago Luis; HAMEISTER, Martha Daisson. Fazer-se elite no Extremo-sul do Estado do Brasil:
uma obra em três movimentos. Continente do Rio Grande de São Pedro (século XVIII), (texto inédito)
353
“Notícia dos acontecimentos pela presente guerra nos Sete Povos de Missões e n´esta fronteira do Rio
Grande de S.Pedro” apud GOLIN, Tau. A Fronteira..., vol. I, 2002, p. 229.
354
BARRÁN, José Pedro; NAHÚN, Benjamín. Bases Económicas de la Revolución Artiguista, 1972, p.
93 GOLIN, Tau. A Fronteira…, vol. 01, 2002, p.p. 210, 222, 226, 229, 264, 266, 300, 324, 325, 326.
355
TORRE, Nelson de la; RODRÍGUEZ, Julio; TOURON, Lucía Sala de. Artigas: tierra y revolución.
Montevidéu: Arca, 1967, p.p. 120-121.
356
CAMARGO, Fernando. O Malón de 1801: a guerra das laranjas e suas implicações na América
meridional, 2001.
175
militares. Como veremos, algo muito semelhante ocorreu no que se refere às terras
recém conquistadas.
Os comandantes militares ocupavam uma posição-chave no sistema que
articulava as necessidades militares do Estado, as possibilidades de expansão da
economia pecuária e os interesses particulares da população. A conquista e a ocupação
estável das terras disputadas com os espanhóis, a partir de 1801, possibilitou a
reprodução de um sistema agrário extensivo, através da expansão sobre uma área de
fronteira aberta: neste caso, como em muitos outros no Brasil, mas talvez de forma mais
espetacular, tratou-se de uma fronteira aberta à força. A conquista militar do território,
que congregou combates e negociação com grupos ali já instalados (como o caso dos
guaranis que auxiliaram os luso-brasileiros na tomada dos Sete Povos), foi a forma pela
qual se abriu aquela fronteira.
357
Esse fato contribuiu para que a realidade sócio-
econômica construída nesse espaço estivesse imbricada com as questões da guerra e da
hierarquia militar.
Como vimos no capítulo “2”, os comandantes militares já possuíam grande
capacidade de ingerência sobre as doações de terras nas áreas de fronteira, desde fins do
século XVIII. Cabia a eles, por exemplo, afiançar as informações dadas pelos
requerentes de sesmarias nas novas áreas. Vários desses comandantes conseguiram
utilizar esse poder para começar ou ampliar seu próprio patrimônio fundiário. Além
disso, em um contexto em que, como vimos, havia imprecisões de títulos e limites
gerando disputas por terras, os comandantes militares serviam como garantidores da
posse legítima de um ou de outro dos contendores. Em 1824, o Major Comandante da
Fronteira Cláudio José de Abreu deu um parecer em uma disputa de terras em que
haviam se envolvido um tal Antônio José da Silva e o Major Eleutério dos Santos, que
era comandante militar do distrito de Quarai, subordinado àquele Comandante da
Fronteira. Nela, Abreu escreveu que:
“... se ele (Antônio José da Silva, laf), algum dia ali teve posse, não
compareceu na ação em que o Excelentíssimo Sr. General Governador das
Armas, de ordem superior, fez a repartição dos campos, o que prova que
direito nenhum tem àquele terreno, por cuja razão foi concedido ao Major
Eleutério dos Santos.”
358
357
Parte dos homens que compunham os bandos armados que invadir o território missioneiro para
saquear e prear gado tinham relações de aliança e parentesco com grupos guaranis missioneiros, o que
facilitou a adesão desses indígenas às forças invasoras. CAMARGO, Fernando. O Malón de 1801...,
2001.
358
“Autoridades Militares, Major-Comandante Cláudio José de Abreu, 15.03.1824. AHRS.”
176
A referida repartição dizia respeito aos campos entre os rios Quarai e Arapeí,
que depois ficariam em território uruguaio. As terras daquela região de excelentes
pastagens naturais foram divididas entre os militares pelo Tenente-Coronel José
Antônio Martins, por ordem direta do Comandante Geral das Armas, General José de
Abreu.
359
Este último, futuro Barão de Cerro Largo e estancieiro naquelas mesmas
paragens, era pai do Comandante da Fronteira Cláudio José de Abreu, que escrevia a
correspondência citada. Na correspondência está expresso que, mesmo que Antônio
José da Silva tivesse tido posse naquelas terras, ela de nada valeria se ele não houvesse
recebido aqueles mesmos campos na repartição posterior, presidida pelas autoridades
militares.
Naquele mesmo ano de 1824, o Coronel Bento Manoel Ribeiro enviava uma
correspondência à Presidência da Província. Em razão de uma disputa por terras, a
Presidência da Província perguntava sobre fatos acontecidos alguns anos antes, quando
Bento Manoel era o Comandante da Fronteira. Indagado de por que havia designado
uma área que já tinha dono para ser ocupada e concedida a outros, ele assim respondeu:
“Em tempo em que a Fronteira estava ameaçada os suplicantes requereram
entrar para esses campos, não me constando haver sesmaria informei por
devolutos e até consenti que eles se estabelecessem para assim os influir a
defesa do Departamento que se achava ameaçado, e por estas e outras
maneiras políticas pude apresentar ao Exmo. Sr. General das Armas no passo
do Arapeí seiscentos homens reunidos nesse ponto, em ocasião em que
ninguém podia reunir tropa porque as deserções eram inevitáveis. Estes foram
os poderosos motivos que me obrigaram a consentir a entrada dos suplicantes
nos campos em que se acham”.
360
Segundo este documento, além de ter o poder de informar se o terreno era ou
não devoluto, o Comandante da Fronteira também se achou no direito de permitir o
arranchamento dos requerentes naquelas terras. Assim, parece que a situação de guerra
vivida após 1811, época de avanço e conquista sobre um novo território, foi capaz de
manter ou mesmo ampliar o papel dos comandantes militares na distribuição de terras e
na manutenção do direito sobre elas. Porém, mais importante ainda: este documento dá
uma mostra explícita de que, embora a coação tenha feito parte das estratégias de
recrutamentos, somente ela não bastava. Quais seriam essas “outras maneiras políticas”
que ele refere ter empregado para convencer a população da Fronteira a ir à guerra?
Pode-se imaginar algumas delas: permissão de saques e repartição de arreadas de gado,
a própria distribuição de terras e a proteção em disputas por recursos, como ele mesmo
359
PINHEIRO, José Feliciano Fernandes. Anais da Província de São Pedro, 1982, p. 189.
360
“Autoridades Militares, Coronel Bento Manoel Ribeiro, 11.12.1824. AHRS.”
177
estava fazendo naquela disputa por terras e como o Major Cláudio José de Abreu fizera
com seu subordinado, no caso analisado anteriormente. Era, enfim, a utilização do cargo
que ocupava para estabelecer uma relação de reciprocidade desigual, de “dom e contra-
dom”.
361
Esse tipo de relação foi recorrente na estruturação das relações sociais e na
viabilização da política e da economia em tempos coloniais e seguia sendo importante
após a independência.
362
Neste caso, ela viabilizava a guerra e reproduzia o poder dos
comandantes militares na Fronteira Meridional.
Para conseguir desempenhar com êxito suas funções, os comandantes
militares deveriam ter boa inserção social e desenvolver estratégias eficazes de
aliciamento. A correspondência do Coronel Bento Manoel deixa isso claro.
Primeiramente, afirmou que não tinha conhecimento de que aquelas terras já tivessem
sido doadas. Entretanto, isso não era o mais importante. O Coronel justifica sua atitude
através do estado de guerra em que se achava a Fronteira. Era preciso arregimentar
homens, isso estava difícil, nenhum outro chefe militar vinha conseguindo, em virtude
das muitas deserções. Utilizando doações de terras e “outras maneiras políticas”, Bento
Manoel lembra que foi capaz de apresentar nada menos do que 600 homens armados
para o General Comandante das Armas. É um número impressionante. As tropas
comandadas pelo General Lecor, que invadiram a Banda Oriental, em 1816, formavam
um exército considerado muito grande para aquela época e local: quase 5.000
homens.
363
Nesse contexto, é fácil entender porque Bento Manoel utilizou esse
argumento em seu favor: um só comandante apresentar 600 homens armados era
realmente um feito notável, que depunha a favor de sua importância nas guerras do sul.
Tratava-se de uma situação em que os comandantes locais conseguiam
ocupar o lugar intermediário entre a população e o Governador da Capitania, depois o
Presidente da Província, representantes do poder monárquico. Em troca de recursos e
proteção, os habitantes da Fronteira iam à luta, possibilitando que o comandante
conseguisse homens em armas. Esses combatentes, por sua vez, transformavam-se no
cabedal social com o qual os comandantes faziam-se importantes para o governo
imperial. O tom da carta de Bento Manuel é claro: era a capacidade de conseguir
361
MAUSS, Marcel. MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades
arcaicas, 1974. GODELIER, Maurice. O Enigma do Dom, 2001.
362
XAVIER, Angela; HESPANHA, Antonio Manuel. As redes clientelares, 1993. FRAGOSO, João Luis.
A nobreza vive em bandos: a economia política das melhores famílias da terra do Rio de Janeiro, século
XVII. Algumas notas de pesquisa, 2003. Sobre as relações de dom e contra-dom no Rio Grande do Sul
colonial, ver: GIL, Tiago Luís. Infiéis Transgressores: os contrabandistas da fronteira (1760-1810),
2002. KUHN, Fábio. Gente da Fronteira: família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa -
Século XVIII, 2006.
363
CIDADE, Francisco de Paula. Lutas, ao Sul do Brasil, com os Espanhóis e seus Descendentes (1680-
1828), 1948.
178
recursos para a guerra (homens, armas, cavalos) e o sucesso nos campos de batalha que
permitiam a esses senhores, em contrapartida, requerer bens, postos de comando e
honrarias.
364
Essa pretendida posição de intermediação entre os habitantes da Fronteira e
o Estado, fica ainda mais clara em várias correspondências que o mesmo Coronel
Comandante da Fronteira Bento Manoel Ribeiro enviou à presidência da província, em
1822. Ali, ele louvou a disposição dos moradores daquela Fronteira em “com suas vidas
e fortunas”, defenderem a região. Neste mesmo ano, deu vários pareceres em disputas
sobre terras, amparou requerimentos feitos por milicianos, enviou uma lista dos
cidadãos que emprestaram cavalos para a marcha do exército, com seus nomes e a
quantidade de animais emprestados. Esse documento serviria tanto para o pedido de
ressarcimento quanto para compor a folha de serviços prestados por cada um desses
cidadãos, quando eles precisassem requerer qualquer graça ao Império. Escreveu, em
setembro, saudando a Independência do Brasil e afirmando sua lealdade ao novo
Império, bem como a do “povo de meu Comando”.
365
Entretanto, tais relações nem
sempre eram de concórdia. Durante a guerra de independência do Uruguai, entre 1825 e
1828, o Coronel Bento Manoel comandava uma brigada de cavalaria miliciana. As
cartas que escreveu neste tempo reiteram os sacrifícios sofridos pelos habitantes daquela
Fronteira. Entre elas, está uma correspondência indignada, em razão da ordem para a
retirada das forças brasileiras, que deviam deixar os territórios antigamente ocupados e
retroceder ante ao avanço do exército oriental. Afirmava:
“...com a maior amargura marchava ontem do meu Acampamento de
Quaraím, vendo chefes de corpos, oficiais, soldados, com lágrimas nos olhos,
representarem-me por que motivo abandonaríamos as Fronteiras, suas
fortunas, suas subsistências e de seus filhos, deixando tudo exposto a ladrões,
suas famílias errantes pelas costas dos arroios...”
366
A indignação do Coronel com a retirada, que ele considerava “precipitada e
intempestiva”, pode-se explicar por dois motivos. Em primeiro lugar, é provável que
ele não considerasse aquele movimento como a melhor opção do ponto de vista da
própria tática de guerra. Porém, além disso, parece claro que Bento Manoel percebia
364
Através de seus testamentos, sabemos que o Brigadeiro Olivério José Ortiz e o Coronel José Antônio
Martins eram membros da Ordem de Cristo. Ainda que não possuísse a mesma valorização que tinha no
século XVIII, pertencer a essa ordem seguia sendo um sinal valorização investimentos em prestígio social
e reconhecimento da qualidade social do postulante. Sobre as honrarias buscadas pela elite no Rio
Grande do Sul durante o período colonial, ver: KUHN, Fábio. Gente da Fronteira: família, sociedade e
poder no sul da América Portuguesa, 2006.
365
“Autoridades Militares, Coronel Bento Manoel Ribeiro, 16.09.1822. AHRS.”
366
“Autoridades Militares, Coronel Bento Manoel Ribeiro, 02.04.1826. AHRS.”
179
que a retirada podia abalar seu poder. Muitos dos milicianos sob seu comando,
sobretudo os oficiais, mas também parte dos soldados, tinham interesses (fortunas,
subsistências, famílias) nas terras que estavam sendo abandonadas ao inimigo. Pelo
documento analisado anteriormente, sabe-se que conseguir recrutar homens não era
fácil. Eles evadiam-se, escondiam-se, desertavam depois de já engajados. Assim, ao
lado da coação, era preciso também uma política de estímulos, que pudesse atrair, ao
menos, parte deles. Essa política era afiançada pelos comandantes, que podiam usar tais
expedientes em proveito da formação de suas próprias redes de clientelas, o que ajudava
a reproduzir sua posição e seu poder. O abandono dos interesses de muitos daqueles que
lutavam sob seu comando, certamente enfraquecia o prestígio de Bento Manoel. Ele
sabia que isso podia diminuir seu comando sobre as tropas naquela mesma guerra. Mas
talvez ele imaginasse, também, que teria mais dificuldades de recrutar gente para
próximas contendas. Isso, por sua vez, diminuía o prestígio e o cabedal militar com que
ele aparecia para seus superiores.
Emprego o termo prestígio para designar o reconhecimento social e das
instâncias superiores quanto ao poder de determinado comandante vencer as guerras, de
valer a seus protegidos e de ser útil ao governo. Sabemos que, por todo o Brasil, nos
tempos coloniais e monárquicos, foi comum a utilização de altas patentes de Milícias e
da Guarda Nacional como símbolo de prestígio. Porém, no contexto de guerras
reiteradas do Rio Grande do Sul, esse fato ganhava um conteúdo ainda mais concreto. A
praxe nos documentos oficiais era a de explicitar a patente do sujeito sempre que se
fosse referir seu nome. E isso não apenas em correspondências militares ou
administrativas, mas também em escrituras públicas, contratos, inventários post mortem,
processos criminais, ações cíveis. Quem comprava um campo não era Bento Manoel
Ribeiro, mas o Brigadeiro Bento Manoel Ribeiro. Quem fazia um testamento não era
José Antônio Martins, mas o Coronel José Antônio Martins. Brigadeiro, Coronel,
Major, Capitão eram expressões que traziam, implícitas, uma história de
reconhecimento por parte de instâncias superiores quanto ao valor e às qualidades da
pessoa, e também traziam a suposição quanto às possibilidades que tais senhores tinham
de proteger seus aliados. Ao invés de uma designação “profissional” das forças
armadas, eram formas de expressar um modo de hierarquização social, construído a
partir dos cabedais militares de cada um.
De fato, além de sua trajetória anterior, o prestígio de um comandante
também dependia do cabedal militar que ele possuísse: este era formado exatamente por
sua capacidade de conseguir homens, cavalos, suprimentos, por seu conhecimento das
180
guerras do sul, por suas relações com lideranças platinas. Um cabedal militar sólido
embasava o grau de autonomia relativa desses comandantes, ou seja, suas possibilidades
de posicionar-se nas guerras e alianças instáveis do sul, de se tornar um aliado desejável
para os lados em luta, de poder negociar sua entrada nas guerras de forma que
considerasse mais adequada e vantajosa. Essa capacidade, por sua vez, dependia de
também saber negociar com seus aliados e subalternos. Como vimos no caso do
exército apresentado por Bento Manoel na invasão à Banda Oriental, a habilidade
desses comandantes em negociar para baixo dotava-os de meios para melhor negociar
com seus iguais e superiores.
A idéia de que o espaço para a proeminência desses líderes guerreiros se
dava em razão da “inexistência” de um exército profissional ou da “debilidade” do
Estado soa perigosamente anacrônica. Ela vê essas instituições de uma forma que elas
jamais haviam assumido até então, naquela sociedade. Ao contrário, o exército
profissional e Estado Nacional é que eram as novidades e foram sendo construídas
lentamente, ao longo do século XIX. Eles não caíram de chofre sobre o vazio, mas
foram se impondo em um ambiente composto por práticas mais antigas. Um desses
conjuntos de práticas tradicionais era, justamente, essa forma de organizar a guerra, a
conquista e a ocupação territorial, articulando interesses diversos de grupos situados em
posições diferentes na hierarquia social. Situações análogas já podiam ser vistas, por
exemplo, na participação de homens pobres livres, flecheiros indígenas e escravos
armados nas lutas da elite do Rio de Janeiro no século XVII.
367
Tanto a negociação
entre desiguais, como a possibilidade de conseguir retribuições pelo serviço militar,
fossem elas na forma de bens materiais, simbólicos ou em dívidas de reciprocidade,
estavam no horizonte de muitos daqueles que iam à guerra na Fronteira Meridional. Era
uma maneira tradicional de pactuar sua participação nesses embates. Formavam o que
talvez se possa chamar de uma “moral” do serviço de guerra.
368
Naturalmente, nem
todos os homens arregimentados estavam nessas condições. Lembremos que a coação
figurava ao lado dessa negociação entre desiguais. Mas, sobretudo entre as forças de 2ª.
linha, essas concepções parecem ter estado presentes. Elas dão um sentido profundo à
indignação de Bento Manoel Ribeiro com a ordem de retirada de suas tropas e de
abandono dos “interesses” de seus comandados. Ele sabia que ela seria interpretada
367
FRAGOSO, João Luis. A Nobreza Vive em Bandos: a economia política das melhores famílias da
terra no Rio de Janeiro, século XVII, p.p.28-33.
368
Talvez se possa aproximar essa moral dos serviços de guerra a uma “economia moral”, conceito
empregado por E.P. Thompson para estudar as revoltas dos suballternos na Inglaterra. THOMPSON,
Edward Palmer. Costumes em Comum: estudos sobre cultura popular tradicional, 1998.
181
como uma quebra da reciprocidade vertical e poderia trazer danos para sua posição
naquela sociedade.
Por fim, resta ressaltar que, mesmo com a possibilidade da distribuição de
terras e gado entre os combatentes, existente durante as primeiras décadas do século
XIX, as deserções e a evasão já se davam em grande número, como ressaltou o próprio
Coronel Bento Manoel Ribeiro, em documento analisado anteriormente. Esse quadro
tendeu a se agravar a partir da década de 1830, quando as doações de terras não podiam
mais ser feitas e os saques de gado diminuíam seu vulto.
4.3 - As transformações no poder dos comandantes militares
Um olhar de longe sobre a organização das forças militares na Fronteira
Meridional e sua inserção na sociedade, da década de 1820 até o início da Guerra do
Paraguai, em 1865, sugere um movimento de progressiva transformação. Parece partir-
se de um contexto onde os particulares tinham grande importância e os chefes locais
retinham a maior parte do poder, até chegar a uma situação onde os poderes civis e
militares encontravam-se mais separados e o exército encaminhava mais fortemente seu
processo de profissionalização. Essa visão é coerente com a idéia de que o Estado
Imperial Brasileiro passou por um processo conturbado de consolidação ao longo de
seus primeiros 30 anos, mas que, em meados do século, o já se encontrava bem mais
sólido e centralizado.
369
No que se refere à organização militar e sua imbricação com a
sociedade no sul, a direção geral do processo parece ter sido mesmo essa, porém,
quando é analisado com mais detalhe, a partir das relações sociais concretas
estabelecidas na Fronteira Meridional, percebe-se que ele foi cheio de nuances, nada
linear e que os agentes históricos tiveram capacidade de jogar com ele, influenciando
sua velocidade e suas características.
370
Os poderes dos comandantes militares sofreram
369
Para o processo de construção e centralização do Estado no Brasil, duranto o período monárquico, em
diferentes posições teóricas, ver: HOLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História Geral da Civilização
Brasileira. Tomo II, “O Brasil Monárquico”. Vol. 04, “Dispersão e Unidade”, vol. 05, “Reações e
transações” 8ª. ed., 2004. FAORO, Raimundo. Os Donos do Poder, vol. I, 10ª. ed., 2000. MATTOS,
Ilmar H. de. O Tempo Saquarema, 1987. CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem – Teatro
de Sombras. 4ª ed., 2003. GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do Século XIX, 1997.
DOLHNIKOFF. Miriam. O pacto imperial: origens no federalismo no Brasil do século XIX, 2005.
MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A velha arte de governar: um estudo sobre política e elites a partir
do Conselho de Estado (1842-1889), 2005.
370
É um argumento análogo ao que Giovanni Levi elaborou quando estudou o avanço do Estado
Moderno, a partir da realidade de uma pequena comunidade piemontesa no século XVII: “Normalmente,
nós observamos esta sociedade de longe, estando, portanto, atentos aos resultados finais que, em regra,
escapam ao controle das pessoas e às suas próprias vidas. Parece-nos que as leis do Estado Moderno
tenham se imposto sobre resistências importantes e, historicamente, irrelevantes. Mas as coisas não se
deram exatamente dessa forma: nos intervalos entre sistemas normativos estáveis ou em formação, os
grupos e as pessoas atuam com uma própria estratégia significativa capaz de deixar marcas duradouras na
182
transformações, mas não desapareceram. Eles seguiram influenciando a economia e a
reprodução da hierarquia social.
371
O sistema de sesmarias foi extinto em 1822 e algumas doações de terras
ainda foram feitas por comandantes militares nos anos posteriores. Como vimos no
capítulo “2”, a fronteira agrária foi se fechando ao longo das décadas seguintes. Em
Alegrete, ainda existiam alguns terrenos devolutos em 1850, mas as melhores terras já
haviam sido apropriadas desde muito antes. Esses fatores fizeram com que a
distribuição de terras deixasse de ser uma arma que os comandantes militares podiam
mobilizar para conseguir soldados e estabelecer relações de reciprocidade desigual.
Ainda, a emancipação dos municípios de Alegrete (1831), São Gabriel (1846) e
Uruguaiana (1846) criava jurisdições municipais mais efetivas do que os distantes
centros de Rio Pardo e Cachoeira, aos quais pertencera aquele território. As autoridades
municipais, agora mais próximas, eram menos dependentes das informações prestadas
pelos comandantes militares e diminuíam sua liberdade para praticar arbitrariedades. Na
questão dos conflitos sobre terras, por exemplo, o poder dos comandantes diminuiu.
Esse processo se tornou ainda mais forte com a Lei de Terras (1850) e a atuação mais
efetiva, a partir de 1860, dos juízes comissários, cargo criado por aquela legislação.
Além disso, o próprio governo central estava temerário do poder que, principalmente, os
Comandantes de Fronteira estavam acumulando, e lhes retirou a função de coletores de
impostos na fronteira com o Uruguai, em 1831.
372
Contudo, a influência dos
comandantes militares na solução de conflitos e sua ingerência informal na garantia dos
direitos sobre as terras devem ter continuado ativas, ao menos, até meados do século.
Isso em se tratando de épocas de “paz”, porque nos períodos de guerra aberta seus
poderes ampliavam-se para vários outros setores da sociedade.
Uma época crítica na organização militar brasileira foram os primeiros anos
da Regência, em virtude da criação da Guarda Nacional e da conseqüente extinção das
Milícias. A criação da Guarda Nacional, em 1831, nutriu-se das desconfianças das
realidade política que, embora não sejam suficientes para impedir as formas de dominação, conseguem
condicioná-las e modificá-las.” LEVI, Giovanni. A Herança Imaterial – trajetória de um exorcista no
Piemonte do século XVII, 2000, p.45.
371
A importância militar dos senhores da guerra sulinos e as possibilidades de mando que angariavam em
razão de sua posição nas contendas de fronteira, muito maior do que sugeriria sua posição econômica no
Império, foi bem analisado por: GUAZZELLI, César Augusto. O Horizonte da Província..., 1998.
Guardadas as devidas proporções e especificidades, é um caso semelhante mas menos exitoso do que o da
à da elite do Rio de Janeiro no século XVII que, por sua posição estratégica no Atlântico-sul, conseguia
negociar em melhores termos com o Reino, as questões envolvendo o açúcar de má qualidade produzido
naquela parte da América Portuguesa: FRAGOSO, João. A Nobreza da República: notas sobre a
formação da primeira elite colonial do Rio de Janeiro, 2000. _____. Afogando em Nomes: temas e
experiências na história econômica, 2002. _____. A Nobreza vive em Bandos..., 2003.
372
LEITMAN, Spencer. Raízes Sócio-econômicas da Guerra dos Farrapos, 1979, p.p. 130-131.
183
autoridades regenciais em relação ao exército profissional, cujos soldados eram
recrutados entre os setores menos prestigiados da sociedade e cujos oficiais, muitos
deles portugueses, eram vistos como simpáticos a Pedro I, ao governo que findava
naquele mesmo ano e a temíveis pretensões de restauração colonial . A idéia era criar,
ao menos em tese, uma “Milícia cidadã”, formada pelos cidadãos ativos (votantes nas
eleições primárias), que percebiam uma renda mínima de 200$000 ao ano.
373
A Guarda
deveria ser criada em cada município e, diferentemente do que ocorria no caso das
Milícias, os responsáveis pelo alistamento e pela qualificação dos cidadãos seriam
autoridades civis ligadas à esfera local: o juiz de paz e um conselho de qualificação
formado por outras autoridades municipais.
374
Vários têm sido os autores a apontar que as reformas “liberais” da regência
ampliaram, sim, os poderes provinciais, mas não o fizeram em detrimento do poder do
governo central e sim a custa do que era, antes, parte da esfera municipal.
375
Se essa
idéia pode ser aplicada a alguns tributos e a uma redução do poder das câmaras
municipais, certamente não pode ser estendida para o caso da organização das forças
militares não-profissionais. As diretrizes que nortearam a criação da Guarda Nacional
colocavam no município e nas autoridades municipais o poder sobre o alistamento e a
qualificação da nova força. E mais, aparecia então um elemento de cores mais
igualitárias e menos hierárquicas: depois de qualificados, os guardas nacionais
escolheriam, entre eles, por votação, os que ocupariam os postos de oficiais. Estes o
fariam por um mandato de quatro anos. Naturalmente, nessas eleições existia espaço
para a ação dos poderosos e foram muitas as denúncias de fraudes e abuso de poder.
De qualquer maneira, essas determinações modificavam substancialmente o
modo como se vinha fazendo o recrutamento e o serviço militar para as forças de 2ª.
linha. Nesse quesito, a autoridade dos comandantes militares, fossem eles de 1ª. linha ou
milicianos, diminuía ou mesmo desaparecia. Para os que desejassem manter a
ascendência sobre os recrutamentos, seria preciso re-orientar práticas e estratégias no
sentido de obter cargos ou influência na esfera do governo municipal. A situação não se
resolveu de imediato, nem tampouco foi livre de embaraços. A lei estipulava que a
efetiva criação da Guarda Nacional em um município deveria ser acompanhada da
extinção do regimento de Milícias que houvesse no local. José Iran Ribeiro analisou
373
CASTRO, Jane Berrance de. A milícia cidadã..., 1977.
374
Sobre as mutações nos poderes dos juízes de paz no Brasil, ver: FLORY, Thomas. FLORY, Thomas.
El Juez de Paz y el Jurado en el Brasil Imperial, 1986.
375
HOLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II, 8ª. ed.,
2004. DOLHNIKOFF. Miriam. O Pacto Imperial...,2005. FERREIRA, Gabriela Nunes. O Rio da Prata e
a Consolidação do Estado Imperial, 2006.
184
essa transição conflitiva em vários municípios do Rio Grande do Sul. Em localidades
como Camaquã, Triunfo e Cachoeira, os comandantes de Milícias opuseram-se
frontalmente ao novo poder dado ao juiz de paz e aos vereadores, em detrimento do seu.
O resultado foi a demora na instalação e efetiva atuação da Guarda Nacional, com a
conseqüente permanência dos regimentos de Milícias.
376
Em Alegrete, o juiz de paz queixou-se, desde 1831 e pelos anos seguintes,
de que os oficiais milicianos embaraçavam a efetivação da Guarda, auxiliados pelo
Comandante da Fronteira, Coronel Bento Manoel Ribeiro, também ele um miliciano. A
situação começou a estabilizar-se apenas em 1834, quando se temia que as forças do
general uruguaio Lavalleja invadissem a região.
377
Porém, a instituição somente
apareceu em plenas condições de emprego em abril de 1835, quando Bento Manoel
havia sido destituído do Comando da Fronteira e, em seu lugar, havia sido nomeado um
seu desafeto, o Tenente-Coronel, ex-miliciano e agora da Guarda Nacional, José
Antônio Martins. Sintomaticamente, o juiz de paz nesta época era Miguel Luiz da
Cunha, genro do novo Comandante da Fronteira. Isso leva a crer que a transição das
Milícias para a Guarda Nacional seria facilitada quando o Juiz de Paz e as autoridades
egressas da Milícia, no caso o Comandante da Fronteira, eram da mesma facção. Isso
pode ter ocorrido em vários outros municípios, onde a Guarda Nacional encontrou
menos problemas para instalar-se.
Porém, o poder do juiz de paz e do conselho de qualificação, assim como as
eleições para oficiais da Guarda Nacional, tiveram vida curta. A modificação da lei
ocorreu em épocas diversas em diferentes partes do Império. No Rio Grande do Sul, ela
aconteceu em 1837.
378
A partir daí, os oficiais da Guarda Nacional passaram a ser
escolhidos pelo Presidente da Província, os alistamentos deviam se fazer pelos
Comandantes de Companhias da Guarda e a qualificação pelos Coronéis de Legião da
mesma instituição. Essa modificação se deveu, provavelmente, ao estado convulsivo da
província, que gerava a necessidade de arregimentar homens e centralizar as decisões
para o combate contra os farroupilhas. A partir de então, os oficiais da Guarda Nacional,
escolhidos pelo Presidente da Província, passavam a ter poderes semelhantes aos que
dispunham os seus antecessores, os oficiais milicianos, no que tange ao alistamento e
qualificação dos partícipes daquela força.
A escolha dos oficiais pelo Presidente da Província representava um passo
no processo de centralização que começava a ocorrer desde 1837, com a ascensão dos
376
RIBEIRO, José Iran. Quando o Serviço os Chamava..., p.p. 154-162.
377
RIBEIRO, José Iran. Quando o Serviço os Chamava..., p.p. 147-153
378
RIBEIRO, José Iran. Quando o Serviço os Chamava..., p. 152.
185
conservadores ao poder no Império. Todavia, é preciso notar que, nos municípios da
Fronteira Meridional, os Comandantes de Fronteira tinham o poder de sugerir ao
Presidente da Província os nomes dos cidadãos mais aptos para ocupar os postos do
oficialato da Guarda Nacional. Lembremos que esses comandantes costumavam ser
habitantes e proprietários naquela mesma Fronteira, estando completamente inseridos
no jogo de rivalidades entre grupos locais de poder. Assim, essa centralização precisa
ser relativizada. Ela ocorria, mas se dava através da mediação dos potentados locais, que
podiam usar sua correnteza para tocar seus próprios moinhos.
379
Em 1849, o
Comandante da Fronteira de Alegrete enviou uma lista dos cidadãos mais aptos para
ocupar os postos de oficiais da Guarda Nacional. Esse comandante era genro de Bento
Manoel Ribeiro. Os filhos de Bento Manoel aparecem bem colocados, recebendo
promoções dos postos que desempenhavam até então. O mesmo acontecia com famílias
que eram seus aliados, como os Ortiz. Nenhum posto foi sugerido, porém, a pessoas
com respeitável carreira nas Milícias e na Guarda, como o Tenente-Coronel José
Antônio Martins e seu genro Capitão Miguel Luiz da Cunha, ambos pertencentes a um
grupo oposto ao de Bento Manoel e seus parentes.
380
A desavença ocorrida entre esses dois comandantes não era nova.. Em 1831,
demonstra a importância do livre trânsito de gado pela fronteira. Naquele ano estava em
vigência uma cobrança de taxas pelo Império sobre o trânsito de gado para o Estado
Oriental. Bento Manoel procurou levar uma tropa para além do rio Quarai e foi
questionado por essa ação. Respondeu, então, que havia recebido autorização do ex-
Comandante da Fronteira e inspetor fiscal, Coronel José Antônio Martins. Consultado,
esse negou que tivesse dado tal permissão. Bento Manoel considerou-se ultrajado em
sua honra e precisou movimentar seu forte cabedal de relações para não precisar pagar
as taxas exigidas.
381
Por fim, apesar do final das eleições para oficiais, a imbricação dos que
ocupavam altos postos na Guarda Nacional com a política local parece ter aumentado ao
longo do século. Esse tema ultrapassa, em muito, os objetivos deste trabalho. Basta
referir, aqui, que trabalhos recentes vêm mostrando que as autoridades provinciais
esperavam que os comandantes militares pudessem efetivamente converter seu prestígio
em votos nas localidades do interior. Estes mesmos não eram apenas passivos no
379
GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do Século XIX, 1997. MARTINS, Maria
Fernanda Vieira. A velha arte de governar..., 2005.
380
“Autoridades Militares. Coronel Francisco de Arruda Câmara, M. 150, N. 308, s/d.”
381
LEITMAN, Spencer. Raízes Sócio-econômicas da Guerra dos Farrapos, 1979, p.p. 130-131.
186
processo: podiam usar sua influência para promover a candidatura de outros às
assembléias geral e provincial.
382
Na verdade, se, de um lado, houve progressivo fechamento da fronteira
agrária e o fim das doações de terras, de outro, havia o processo de consolidação de um
limite nacional em uma área instável. A nova fronteira entre países e a situação
turbulenta do Prata permitiram que os comandantes militares mantivessem sua
importância. Eles seguiam sendo os principais responsáveis por conseguir homens,
cavalos, suprimentos e alianças políticas, que eram os fatores indispensáveis para a
guerra no sul. Eles tinham, a seu favor, as relações que haviam estabelecido com outros
chefes militares da própria província e além fronteiras; a experiência no tipo de guerra
praticado naquelas plagas; o conhecimento do território e dos negócios na Fronteira.
Como já foi dito, esses fatores, somados ao prestígio como guerreiros eficientes,
formaram um cabedal militar que lhes colocava em posição de serem úteis para o
governo central. Esse mesmo cabedal militar dotava-lhes de um certo grau de
autonomia, permitindo que parte desses senhores pudesse sustentar uma insurreição
contra o governo Imperial, por longos 10 anos, na Guerra dos Farrapos.
Para corroborar essas afirmações, lembremos que boa parte das
desconfianças da Corte em relação ao Coronel Bento Gonçalves da Silva, entre 1828 e
1835, vinha de sua atuação autônoma dando proteção às forças do líder oriental Manuel
de Lavalleja, concedendo-lhe exílio, emprestando-lhe homens e cavalos. O próprio
apoio de líderes uruguaios foi essencial para a viabilidade da insurreição farroupilha,
comandada por aquele mesmo Bento Gonçalves. No mesmo sentido, as ligações de
Bento Manoel Ribeiro com o general uruguaio Frutuoso Rivera formavam parte do
cabedal militar que permitiu a Bento Manoel trocar de lado três vezes ao longo da
revolução e, mesmo assim, continuar tendo sua chegada comemorada por cada um dos
lados para o qual ele pendia.
383
Aliás, uma das provas de que os comandos militares das
fronteiras continuavam sendo cargos de grande importância, mesmo depois de perderem
o poder de distribuir terras, é que o estopim para a deflagração da revolta, em 1835,
contra o Presidente da Província, foram as destituições sofridas por Bento Gonçalves do
382
Jonas Moreira Vargas vem estudando com rigor, em seu trabalho de mestrado, a composição e as
estratégias da elite política provincial na segunda metade do século XIX e, dentro delas, sua imbricação
com os poderes militares. VARGAS, Jonas. Um Topo, Vários Caminhos: carreiras políticas entre a
paróquia e a Corte (texto inédito).
383
Sobre as ligações dos chefes rio-grandenses com líderes uruguaios, ver: GUAZZELLI, César Augusto.
O Rio Grande de São Pedro na primeira metade do século XIX: Estados Nações e Regiões-províncias no
Rio da Prata, 2004. Sobre a importância da proteção dada por Bento Gonçalves a Lavalleja como
antecedente da Revolução Farroupilha, ver: LEITMAN, Spencer. Raízes Sócio-econômicas da Guerra
dos Farrapos, 1979, p.p. 103-121.
187
Comando da Fronteira de Jaguarão (no extremo sul), e por Bento Manoel Ribeiro do
Comando da Fronteira de Alegrete (no oeste).
Como veremos adiante, a participação brasileira na guerra contra o líder
uruguaio Oribe, em 1851, foi antecedida por atividade autônomas de grupos armados
rio-grandenses, comandos pelo Coronel Francisco Pedro de Abreu (Barão do Jacuí) e
pelo Capitão Hipólito Gírio Cardoso, ambos oficiais de relevantes serviços prestados ao
Império durante a Guerra dos Farrapos.
Por fim, mesmo após o período estudado, na Guerra do Paraguai, vista como
um marco no processo de profissionalização do exército brasileiro, o Rio Grande do Sul
foi a província que mais enviou homens para a frente de batalha.
384
A arregimentação
desses combatentes se fez, em muito, a partir da ação e influência dos oficiais rio-
grandenses, como bem apontou Paulo Staudt Moreira ao analisar o diário escrito pelo
Coronel Manuel Lucas de Oliveira, durante os anos de guerra.
385
Em 1865, um grupo de
6 altos oficiais da fronteira de Quarai-Livramento, sentido-se prejudicados pelas
exonerações feitas pelo Comandante da Guarda Nacional e da Fronteira Brigadeiro
David Canabarro, enviaram uma representação ao Imperador. Entre outras reclamações
diziam que:
“Uma leva em massa foi decretada, e incumbida sua realização aos mais
dyscolos (sic) de sua parcialidade. Se sobre seus adversários tem pesado
todo o rigor dessa leva, acontecendo a alguns verem suas mulheres e filhos
menores abandonados em suas estâncias, sem deixarem em seus
estabelecimentos um único homem, capaz de lhe trazer o gado para o
alimento; ao passo que seus correligionários, todos que querem se escusam
do serviço.”
386
Ainda que não se possa comprovar a veracidade da acusação, ela consiste, ao
menos, em um indício de que a distribuição de favores através da mobilização de tropas
seguia forte em plena Guerra do Paraguai. Como foi dito, após 1850, essas práticas
parecem ter estado cada vez mais imbricadas com as eleições.
387
Por fim, uma
informação significativa: dos 6 oficiais que assinam a representação, 3 eram filhos do
falecido Marechal Bento Manoel Ribeiro e dizem isso expressamente naquele
384
DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra: nova história da Guerra do Paraguai, 2002. Ver também:
SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: escravidão e cidadania na formação do exército, 1990.
385
MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Introdução, 1997.
386
“Aviso do Ministério da Justiça, B-1, 113., 19.08.1865. AHRS” In: FERTIG, André. Clientelismo
Político em Tempos Belicosos: a Guarda Nacional da Província do Rio Grande do Sul na defesa do
Estado imperial centralizado (1850-1873), 2003, p. 367.
387
Sobre o tema há o clássico estudo de: URICOCHEA, Fernando. O Minotauro Imperial..., 1978. Uma
obra mais recente e com utilização mais sistemática de fontes primárias é: FERTIG, André Átila.
Clientelismo político em tempos belicosos..., 2003.
188
documento. Parecem acreditar que, mesmo depois de transcorrida uma década do
falecimento de seu pai, a evocação de seu nome contribuiria para vencer a causa.
4.4 - O devassador das coxilhas
Vejamos, agora, duas situações concretas que demonstram a reiteração do
poder dos comandantes militares e de sua influência naquela realidade sócio-econômica.
A primeira se refere à atuação de Bento Manoel Ribeiro, quando ele estava no comando
de uma das divisões que combatia os farroupilhas, em 1843; a segunda, tratada no
próximo item, refere-se aos embates entre o novo Comandante da Fronteira e um líder
local, o Barão do Jacuí, quando este liderou expedições armadas ao território uruguaio,
em fins da década de 1840.
Como vimos no capítulo “1”, o então Coronel Bento Manoel Ribeiro era
Comandante da Fronteira de Alegrete, quando foi destituído pelo Comandante de
Armas da Província, em 1834. Este ato motivou sua adesão ao movimento que derrubou
o Presidente da Província, no ano seguinte. Quando o novo presidente, José de Araújo
Ribeiro, foi nomeado, Bento Manoel posicionou-se favoravelmente a ele, e tornou-se
um bastião legalista, ocupando ele próprio o Comando das Armas da Província. Mas
uma nova reviravolta na política provincial, com a substituição de Araújo Ribeiro pelo
General Antero de Britto motivaram nova troca de posições do líder fronteiriço. Assim,
em 1837, Bento Manoel voltava para o lado farroupilha. Porém, em 1839, ele se
licenciou do posto de General da República Rio-grandense e abandonou a guerra para
cuidar de seus interesses particulares. Em 1842, o Barão de Caxias foi até o sul para
assumir o comando das forças legalistas, com a missão de encerrar o conflito, que já
durava tempo demais. Rapidamente, Caxias compreendeu que o cabedal militar de
Bento Manoel era de suma importância para a vitória do Império. Ele tinha relações,
prestígio social, conhecia como poucos os farrapos e as vicissitudes da guerra na
Fronteira. O Barão precisou vencer a resistência dos políticos da Corte, que
consideravam muito perigoso solicitar auxílio a Bento Manoel, depois que ele havia
traído as tropas legalistas, em 1837, passando para o lado dos rebeldes. Tristão de
Alencar Araripe, magistrado cearense, Presidente da Província do Rio Grande do Sul
em 1876, escreveu uma memória, publicada em 1881, em que descreve essa situação:
“O governo imperial, receoso do caráter de Bento Manoel, recomendava ao
Barão de Caxias que lhe não confiasse um comando importante: todavia o
Barão, prevenindo o mesmo governo da necessidade de utilizar-se do
préstimo deste oficial, tão conhecedor das circunstâncias peculiares desta
189
guerra tão singular, empregou-o, e não teve ocasião de arrependimento.
Bento Manoel, esse infatigável devassador das coxilhas, foi profícuo auxiliar,
já pela ciência topográfica da Campanha, e já por suas relações de
parentesco e de amizade na província. Os acidentes e os homens da terra,
em que vivia, lhe eram conhecidos e familiares.”
388
(grifos meus)
Em 1843, o agora Brigadeiro Bento Manoel voltava à ativa, no comando de
todas as forças posicionadas na metade oeste da província. Entre abril e outubro daquele
mesmo ano, ele enviou diversas correspondências ao Barão de Caxias. Essas
correspondências permitem ter idéia das necessidades de um comandante militar em
guerra e dos poderes e possibilidades de que dispunha.
Um dos principais temas das correspondências era o abastecimento de
montarias para o exército. A guerra no sul sempre exigira muitos cavalos, as forças de
cavalaria tinham, nas planuras cobertas de campos, uma importância singular. Cada
soldado precisava de, pelo menos, três cavalos para a remonta.
389
Isso ficava ainda mais
acentuado em razão da tática que os rebeldes foram obrigados a usar nos anos finais da
guerra. Caxias fazia uma guerra de ocupação: naquele ano, os legalistas já haviam
conseguido retomar as principais vilas da Campanha. Os farroupilhas não tinham mais
sedes fixas. Praticavam uma guerra de rápidos movimentos, fazendo ataques
inesperados e desaparecendo, preferencialmente no Uruguai, para depois reaparecerem
de novo, fustigando as tropas imperiais. Como disse Spencer Leitman, eram dias em
que Bento Manoel brincava de “gato e rato” com os comandantes farrapos David
Canabarro e Jacinto Guedes da Luz.
390
Em 15 de maio, Bento Manoel escreveu a Caxias “...até aqui, pouco mais de
trinta cavalos tenho comprado, no entanto que hei percorrido todo o departamento de
Alegrete recolhendo mais de mil cavalos de pessoas afeitas aos rebeldes”.
391
Esse
pequeno extrato resume duas das principais formas de se conseguir montarias para o
exército em meados do século XIX: o saque a inimigos e a compra. Além destas, ainda
havia a criação e a invernada de cavalos nos “Rincões Nacionais”, como os que
existiam em São Gabriel, Rio Pardo e Pelotas. Mas eles pareciam sempre insuficientes
para suprir as enormes necessidades de montaria. As forças imperiais compravam
cavalos de estancieiros legalistas, mas o mais comum era a compra no Uruguai e, com
menos freqüência, na província argentina de Corrientes. Em geral, o comandante
388
ARARIPE, Tristão de Alencar. Guerra Civil no Rio Grande do Sul: memória acompanhada de
documentos lida no IHGB. Porto Alegre, Corag, 1986, p. 134. (1ª. ed. 1881).
389
GUAZZELLI, César Augusto. O Horizonte da Província..., 1998, p.p. 188-199. RIBEIRO, José Iran.
Quando o Serviço os Chamava ..., 2005, p. 101.
390
LEITMAN, Spencer. Raízes Socioeconômicas da Guerra dos Farrapos, 1979.
391
“Autoridades Militares, Bento Manoel Ribeiro, 02.04.1826. AHRS.”
190
passava uma comissão para um oficial efetuar a compra de cavalos. Entre os oficiais
que receberam tais comissões naquele ano, estavam pessoas que tinham terras e
negócios do “Outro Lado”, como o Capitão Hipólito Girio Cardoso e o Capitão Manoel
Ferreira Bicca. Uma boa inserção e relações comerciais no Estado Oriental tornava-os
aptos a esse serviço. Mas também parece ter havido um outro critério: dois dos oficiais
que receberam tais comissões de Bento Manoel, em 1843, eram seus parentes.
Tratavam-se de seu filho Severino Ribeiro de Almeida e do já citado capitão Bicca, que
era co-cunhado de seu filho Antônio Mâncio. Na verdade, a grande necessidade de
cavalos enfrentada pelas tropas em guerra e a urgência em consegui-los, podia consistir
em uma boa oportunidade para negócios. Receber uma dessas comissões era também
escolher, é verdade que com pouca margem de manobra, os fornecedores, as
quantidades, os preços. Assim, tais comissões podiam servir de instrumentos para os
oficiais tecerem ou reiterarem boas relações com estancieiros e comerciantes,
ampliando seu cabedal social.
Como apontou um contemporâneo, o burocrata Antônio Manoel Correa da
Câmara, ao mesmo tempo que, para uns, a guerra era devastadora, tomando-lhes todos
os animais que possuíam, para outros ela podia até ser vantajosa. Correia da Câmara
afirma que também a “Nação” era prejudicada com o modo pelo qual se supria o
exército com cavalos já que, na precisão da guerra, muitas vezes se via obrigada a
comprar por preço exorbitante “quantos cavallos lhe apresentão”. O autor encerra o
parágrafo comentando a enorme soma gasta pelo Império na compra de cavalos durante
a Revolução Farroupilha e sugere, sem entrar em detalhes, que “alguns especuladores se
locupletaram nessas transações menos decorosas, fazendo-se rapidamente ricos, de
pobres que eram até então”.
392
As compras podiam ser pagas em dinheiro, caso em que,
como se pode imaginar, eram mais bem vistas pela população. Esse dinheiro podia vir
diretamente da Pagadoria Militar, que era o órgão incumbido de distribuir esses recursos
para as forças em guerra. Ou, então, podia acontecer de o comandante pagar com seus
próprios recursos e buscar ressarcimento posterior com o governo.
No entanto, eram recorrentes as compras ou requisições de cavalos serem
pagas não em dinheiro, mas com recibos ou letras emitidas contra a Pagadoria Militar.
Este era um expediente mal visto pelos donos dos animais, pois não se podia ter certeza
de que o ressarcimento posterior ocorreria efetivamente. Em 1851, o Coronel Olivério
José Ortiz tentava comprar cavalos nas Missões, para as unidades que iam combater
392
CORREA DA CÂMARA, Antonio Manoel. Ensaios Estatísticos da Província do Rio Grande do Sul,
1979 (1.ed. 1863), p. 171.
191
contra Oribe, no Uruguai. Ele reclamou muitas vezes de que, quando se oferecia o
pagamento em letras contra a Pagadoria, os estancieiros não queriam vender, exigiam
preços mais altos e mesmo escondiam os animais. Porém, quando se noticiava que o
exército estava pagando com dinheiro, muitos eram os que vinham oferecer seus
cavalos.
393
Por outro lado, conseguir esses cavalos em troca de papéis que eram, na
verdade, apenas promessas de pagamento, dependia também do prestígio e da confiança
que os comandantes militares possuíam entre a população.
A outra forma de se conseguir cavalos, bem como animais de tração e carga
(bois e mulas), era tomá-los aos inimigos. Esse expediente fora utilizado nas guerras na
Banda Oriental nas décadas de 1810 e 1820 e continuava sendo na Farroupilha. A
correspondência de Bento Manoel, já citada, dá uma idéia da monta que essas atividades
podiam assumir, quando diz que recolhera mais de mil cavalos de pessoas afeitas aos
rebeldes. Desnecessário dizer que esse era um amplo campo para arbitrariedades e
vinganças pessoais dos comandantes militares, uma vez que eram eles mesmos quem
decidia se o sujeito lesado era simpático à causa inimiga. Além de saque à cavalhada
das estâncias, também podiam ser arrebanhados cavalos entre as manadas de animais
alçados, exigindo grande trabalho de doma e disciplinamento.
Ao mesmo tempo em que dava conta de seus esforços para conseguir
montarias para o exército, o Brigadeiro Bento Manoel manejava a posição que ocupava,
buscando angariar favores para seus parentes e amigos. Suas cartas eram ditadas por ele
e escritas por um amanuense de boa letra e estilo. Em 25 de maio de 1843, porém,
Bento Manoel escreveu ao Barão de Caxias uma carta de próprio punho, com sua escrita
mal desenhada e repleta de erros ortográficos. Nela, o Brigadeiro pediu que passasse a
seu sobrinho, Francisco Ribeiro de Almeida, o contrato do fornecimento da carne para
toda a sua divisão.
394
Em outubro do mesmo ano, Bento Manoel escreveu nova
correspondência ao Barão, intercedendo a favor de outro sobrinho seu:
“Um filho do meu falecido mano José Ribeiro de Almeida, que andou comigo
emigrado para o Estado Oriental por andar até aqui envolvido em Negócios,
agora se apresenta ao Serviço, ele serviu antigamente em Tenente entre os
Rebeldes, se V. Exa. puder nomeá-lo servir no mesmo posto no corpo
provisório, me fará especial favor pois terá pejo a aparecer na qualidade de
simples guarda, ele é que vai com os ofícios a Correntes por ter aí bastante
conhecimento e chama-se Bento José Ribeiro.”
395
393
“Autoridades Militares, Coronel Olivério José Ortiz, M. 156, 1851. AHRS.”
394
“Autoridades Militares, Brigadeiro Bento Manoel Ribeiro, 20.05.1843. AHRS.”
395
“Autoridades Militares, Brigadeiro Bento Manoel Ribeiro, 31.10.1843. AHRS.”
192
O pedido envolvia o filho do falecido Coronel José Ribeiro de Almeida,
irmão e fiel escudeiro de Bento Manoel. Fica claro que o sobrinho também havia
seguido Bento Manoel quando ele lutava pelos farroupilhas e depois, quando fora cuidar
de seus interesses e esteve no Estado Oriental. Desde aquela época, o sobrinho
dedicava-se a fazer negócios naquele país. Legalmente, isso não o eximiria de estar
engajado nas tropas imperiais contra os farroupilhas, mas mesmo assim Bento Manoel
considerou esse um bom argumento para o fato do rapaz não haver se apresentado até
então. Bento Manoel ressalta, entre as qualificações do sobrinho, o fato de que ele tinha
grandes conhecimentos e relações em Corrientes, podendo ser útil ao Império. Mas o
que mais impressiona é que o Brigadeiro argumenta que, por já ter sido tenente entre os
rebeldes (!!), seu sobrinho gostaria de ser engajado nas tropas imperiais com o mesmo
posto, pois teria vergonha de ver-se em condição inferior. Apesar da traição ao Império,
Bento Manoel considerava que o cabedal militar da família era suficientemente
importante para embasar pedidos como esse.
O Brigadeiro usava seu prestígio não apenas em favor de seus parentes, mas
também de amigos. Foi o que fez ao tentar o relaxamento da prisão de um capitão
republicano. Em 23 de outubro de 1843, escreveu a Caxias:
“Este Capitão Farrapo, que ontem foi preso, eu sou amigo dele, e não é
influente, é homem de bem, que todos os que o conhecem podem informar a
V. Exa. se for possível V. Exa. anistia-lo muito agradecerei a V. Exa. pois ele
não será capaz de servir mais à causa da Rebelião, nem direta nem
indiretamente, apesar de ser cunhado do Guedes, é proprietário e tem uma
grande família.”
396
Além dos valores expressos por Bento Manoel quando falou em defesa do
tal capitão, que era homem de bem, proprietário e tinha uma grande família; também se
pode ver que ele considerou importante afirmar que o homem era seu “amigo” e tomou
a responsabilidade por suas ações futuras, dizendo que ele não prestaria mais nenhum
serviço à revolução. Na resposta, porém, Caxias ignorou o pedido e não tocou no
assunto. Bento Manoel voltou à carga em correspondência datada de onze dias depois:
“V. Exa. não me falou no Reginaldo Capitão que foi dos Rebeldes e se acha
preso, não sei se por esquecimento ou porque não convenha anistiá-lo e nesse
último caso eu o remeterei para o Exército, e vai em minha Companhia.”
397
396
“Autoridades Militares, Brigadeiro Bento Manoel Ribeiro, 20.10.1843. AHRS.”
397
“Autoridades Militares, Brigadeiro Bento Manoel Ribeiro, 31.10.1843. AHRS”
193
O Brigadeiro tornava a tocar no assunto e dizia que, se não fosse possível a
anistia, então que o prisioneiro seguiria para o exército na sua Companhia. Queria
poder interceder pessoalmente por seu amigo. Esse foi o procedimento tomado,
também, por outro líder militar local, o Brigadeiro Olivério José Ortiz, naquele mesmo
ano. Percebendo que a revolução malograva, ele abandonou as fileiras rebeldes,
convenceu seu genro e sobrinho, José Pedroso de Albuquerque, a se entregar e resolveu
levá-lo pessoalmente até o Barão de Caxias. Albuquerque havia sido ministro da justiça
da República Rio-Grandense e seria preciso interceder fortemente por ele.
398
Como se vê, as relações pessoais permeavam as forças militares. O fluxo de
favores conseguidos por prestígio e pelo cabedal militar de que dispunham os
comandantes continuava ativo em meados do século XIX, ainda que terras não fossem
mais distribuídas. Eles eram o combustível da reprodução do poder dos comandantes
militares. Homens em armas e montarias ampliavam seu cabedal militar e seu bom
nome junto ao Estado. Favores conseguidos aumentavam seu prestígio junto aos
subalternos. Ambos os pólos do sistema se retro-alimentavam. Porém, é preciso não
esquecer que o cabedal militar e o prestígio dos comandantes também dependiam de seu
sucesso e eficiência nos campos de batalha. Eles andavam no fio da navalha: de um
lado, utilizavam seu posto para angariar clientela, mas isso encontrava limite no fato de
que precisavam ganhar as guerras. Os favorecimentos praticados, obviamente, não
podiam chegar ao ponto de prejudicar reiteradamente suas ações bélicas e, por
conseqüência, seu bom nome como guerreiros vencedores.
4.5 - O Temível Barão e o Cavaleiro Inexistente
O poder dos comandantes locais seguia sendo forte em meados do século. O
final da Guerra dos Farrapos, em 1845, não foi suficiente para trazer paz aos negócios
de gado na Campanha. Isso porque, como vimos, aquela região estava intimamente
ligada ao norte do Uruguai, onde a Guerra Grande continuava levando destruição e
instabilidade aos campos. Desde 1843, o general “blanco” Manoel Oribe, apoiado pelo
governo de Buenos Aires, dominava todo o interior do país e apertava o cerco sobre
Montevidéu. Ali, as forças “coloradas” resistiam, usufruindo as possibilidades
oferecidas pelas rendas portuárias. Sem contar com estas, Oribe passou a tomar medidas
para evitar a evasão de gado e para garantir recursos a seu exército e ao governo que
procurava instalar na localidade de Cerrito. Recebia escravos fugidos do Brasil e os
integrava à suas forças, decretou o confisco ao gado dos inimigos, proibiu os
398
“Autoridades Militares, Brigadeiro Bento Manoel Ribeiro, 13.06..1843. AHRS”
194
estancieiros brasileiros de marcar seu gado, controlou a venda do mesmo e proibiu a
passagem de reses para o Brasil. Este último dispositivo, em especial, transtornava uma
prática corrente da pecuária dos brasileiros instalados naquela fronteira. Mesmo com a
proibição, muitos brasileiros seguiam levando seu gado para o Rio Grande do Sul.
Levavam-no para vender nas charqueadas rio-grandenses ou, com medo, buscavam o
gado para colocá-lo nos campos que eles próprios possuíam ou que pertenciam a seus
parentes, no lado brasileiro. No entanto, esse era um expediente arriscado, pois os que
eram flagrados descumprindo a lei perdiam seu gado e podiam ter suas estâncias
confiscadas.
399
Nesse contexto, além dos diversos estancieiros que buscavam passar seu
gado furtivamente através do limite nacional, outros começaram a praticar ações mais
agressivas. Comandados pelo Coronel Francisco Pedro de Abreu, Barão do Jacuí,
grupos formados por militares e estancieiros brasileiros, militares uruguaios “colorados”
que estavam sob a proteção do Barão e também vários subalternos da Campanha
entravam em território uruguaio. Agiam sob a alegação de que iam defender suas
posses, recuperar escravos fugidos e retomar seu gado. Principalmente a partir de 1848,
tais expedições armadas levaram o terror ao norte do Estado Oriental, saqueando
estâncias e arrastando todas as reses que conseguiam. Elas ficaram conhecidas como
califórnias, em comparação com a corrida do ouro que acontecia na mesma época, nos
Estados Unidos.
400
As autoridades do governo uruguaio de Cerrito reclamaram com
veemência, através do representante de Buenos Aires no Rio de Janeiro: o Brasil
proclamava-se neutro com relação àquela guerra, mas as ações dos brasileiros na
fronteira contradiziam essa disposição oficial.
401
A Corte enviava ordens à presidência
da província para que punisse os praticantes das califórnias. Essas ordens deviam ser
executadas pelo Comandante da Fronteira de Alegrete, Coronel Francisco de Arruda
Câmara.
Arruda era um oficial das forças de primeira linha, pernambucano, que fora
para o Rio Grande do Sul lutar contra os farroupilhas. O cargo de Comandante da
Fronteira de Alegrete vinha sendo tradicionalmente ocupado por estancieiros-militares
locais, egressos das Milícias. A indicação de um oficial do exército de linha e forasteiro
poderia levar a pensar em uma perda de força dos estancieros-militares. A leitura de
399
“Relatório da Repartição dos Negócios Estrangeiros apresentado à Assembléia Geral Legislativa na 3ª.
Sessão da 8ª. Legislatura pelo respectivo ministro e secretário de Estado Paulino José Soares de Souza –
Anexo A”(1850).
400
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O Expansionismo Brasileiro e a Formação dos Estados na Bacia
do Prata – Da colonização à guerra da tríplice aliança, 1985, p.p. 68-69.
401
FERREIRA, Gabriela Nunes. O Rio da Prata e a Consolidação do Estado Imperial, 2006, p.p. 89-95
195
suas correspondências, nos anos de 1847 a 1850 sugere que ele buscava cumprir
rigorosamente as ordens da presidência da província. Contudo, seus esforços eram
inúteis, tanto para evitar que os estancieiros buscassem seu gado no Uruguai, quanto
para tentar impedir as califórnias e punir seus comandantes. Arruda chegou a prender o
Barão do Jacuí, mas ele foi resgatado por seus aliados quando estava sendo enviado
para Porto Alegre. O Comandante da Fronteira repetia, sempre, que as ações de buscar
gado no Estado Oriental eram recorrentes entre todos os estancieiros e que mesmo as
ações violentas, como as califórnias do Barão, tinham apoio entre a maioria da
população.
O Barão do Jacuí chegou a divulgar uma carta que pretensamente teria
recebido da Corte, autorizando-o a fazer aquelas hostilidades, para provocar a guerra
contra os “blancos”. Ao ouvir essa notícia, o Tenente-Coronel Jacinto Guedes da Luz,
ex-oficial farroupilha e agora subordinado ao Comandante da Fronteira, enviou uma
correspondência a Arruda perguntando se aquilo era verdade. Se fosse, pararia de
perseguir o Barão e iria, ele também, cuidar de recuperar seus interesses no Uruguai.
Arruda lhe respondeu, furioso, que cumprisse seu dever e não caísse nas artimanhas do
Barão. A um olhar rápido, o Comandante da Fronteira lembrava o Cavaleiro
Inexistente, personagem do romance de Ítalo Calvino, que era tão perfeito na busca de
cumprir suas funções, tão imaculado pelo mundo ao seu redor que, na verdade, não
existia. Mas uma análise mais circunstanciada mostra que o Coronel Arruda não estava
tão distante daquela sociedade. Durante a Guerra dos Farrapos, ele havia combatido sob
as ordens do Brigadeiro Bento Manoel Ribeiro. Quando assumiu a comandância da
fronteira, seus vínculos com a família Ribeiro de Almeida eram fortes. Casou-se,
naqueles anos, com a filha de Bento Manoel.
402
Como seus auxiliares, nomeou Severino
Ribeiro de Almeida, também filho de Bento Manoel e Vitorino Carneiro Monteiro,
major de linha, pernambucano como Arruda e que, logo em seguida, também se tornaria
genro de Bento Manoel.
Em 1850, os aliados do Barão do Jacuí denunciaram que, enquanto os
perseguia, o Comandante da Fronteira protegia seu sogro, que também tratava de trazer
seu gado de volta para o Brasil. Como de costume, em meio aos embates fronteiriços,
havia disputas de facções pelo poder regional. Essa foi uma batalha perdida para a
família Ribeiro de Almeida. Arruda foi destituído. Um ano depois, o Império entraria
em guerra contra Oribe. Mesmo que nunca tenham sido aprovadas pela Corte, as ações
comandadas pelo Barão do Jacuí acabaram sendo justificadas pela intervenção brasileira
402
Para as alianças familiares da família de Bento Manoel Ribeiro, ver capítulo “5”.
196
no país vizinho. Porém, como veremos no capítulo “5”, os Ribeiro de Almeida
conseguiriam se recuperar e manter sua posição como uma das grandes forças da
fronteira e da província, ao longo do século XIX.
Essas disputas na Fronteira servem para ressaltar dois aspectos. Em primeiro
lugar, a própria tentativa de modernizar o comando da fronteira, tornando o poder
central mais forte naqueles confins, não podia prescindir da ligação com alguma das
facções de poder locais. Mesmo que fosse um militar de carreira e, a princípio, um
estranho às disputas locais, Arruda acabou por integrar-se a uma família poderosa da
região. Certamente, o Estado não era comandado pelos potentados locais e houve uma
lenta e efetiva obra de centralização do poder ao longo do Segundo Reinado. No
entanto, há que se reconhecer que “...os situados no centro impunham a ordem através
dos localmente proeminentes, como também ocorreu em tempos coloniais.”
403
Mesmo o
Conselho de Estado, lócus por excelência do poder central não pairava imaculado sobre
a sociedade. Ao contrário, sua composição e atuação tinha em conta os fortes vínculos
que mantinham com as relações sociais que os conselheiros tinham em suas regiões de
origem.
404
Por outro lado, mostra novamente o quanto o poder de arregimentar homens,
de conseguir suprimentos, de estabelecer relações com militares estrangeiros, enfim, o
cabedal militar, seguia sendo um instrumento importante para a elite da Campanha, em
meados do século XIX. E não foi diferente até o final do período estudado. A
intervenção brasileira no Uruguai, em 1864, que acabou por ser um dos fatores que
deflagrou a Guerra do Paraguai, também sofreu influência dos clamores dos estancieiros
brasileiros estabelecidos naquele país. Não estou dizendo que a única motivação das
intervenções de 1851-2 e de 1864 foi o atendimento aos interesses dos estancieiros rio-
grandenses. Mas ele foi, sem dúvida, um dos elementos que compuseram aquele
quadro.
4.6 - Disfarces, confiscos e privilégios
Em que outros aspectos consistia as possibilidades dos comandantes
militares em ajudar a si mesmos e seus aliados na busca por minimizar prejuízos,
continuar com as atividades econômicas e até lucrar em tempos de conflito armado? As
guerras sulinas tinham um grande potencial destrutivo para o gado. Os historiadores
403
GRAHAM, Richard. “Formando un gobierno central; las elecciones y el orden monárquico en el
Brasil del siglo XIX”, apud FERREIRA, Gabriela Nunes. O Rio da Prata e a Consolidação do Estado
Imperial, 2006, p. 46.
404
MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A velha arte de governar..., 2005.
197
uruguaios José Pedro Barrán e Benjamín Nahúm demonstraram o enorme desfalque
sofrido pelos rebanhos daquele país durante a Guerra Grande. Tais autores referem as
dificuldades de aprovisionamento dos exércitos, o que acabava por fazer com que as
reses dos campos por onde eles passavam fossem os grandes repositórios de alimentos
para combatentes. Nesse contexto, o saque ao gado dos inimigos era o alvo principal,
mas, nos anos finais daquele conflito, a destruição havia sido tamanha, que mesmo
estâncias dos partidários sofreram com requisições, que raramente foram ressarcidas. Às
necessidades de abastecimento dos exércitos, devia se somar o fato de que havia
algumas partidas de guerreiros que se agregavam a um dos lados em luta, mas tinham
certa autonomia. Elas também se fartavam dos gados que pastavam nos campos por
onde passavam. Os autores referem, ainda, as devastadoras incursões vindas a partir do
Brasil, desde 1848, as já referidas “Califórnias”. Além disso, muitas reses eram
carneadas para que se retirasse o couro e, utilizando-o como moeda, se pudesse
conseguir armamentos, munição, erva, tabaco e cachaça; instrumentos e mercadorias
que faziam parte do cotidiano dos soldados. Por fim, o estado de abandono de muitas
estâncias fez crescer, de maneira assustadora, as matilhas de cães selvagens que
espalhavam o terror nos campos, atacando o gado e mesmo os homens.
405
A Campanha Rio-grandense, onde se praticava o mesmo formato de guerra,
na mesma época, enfrentou problemas semelhantes. Como vimos no capítulo “2”, os
números recolhidos a partir dos inventários post mortem demonstram uma grave queda
na presença de gado na década de 1840, quando a Guerra dos Farrapos flagelava a
região e a Guerra Grande fustigava os campos uruguaios. Como vimos, os estancieiros
da Campanha enviavam seu gado para Montevidéu durante a Farroupilha. Porém, essa
rota não era exclusiva: o fluxo de gado em direção aos centros charqueadores continuou
existindo, durante todo o decênio revolucionário.
Para que os charqueadores do litoral continuassem recebendo gado dos
estancieiros da Campanha era preciso, por vezes, elaborar estratégias evasivas. Em
1837, o então Coronel Olivério José Ortiz recebia uma carta de seu compadre,
charqueador e bom legalista Francisco das Chagas Araújo. Nela, Araújo lamentava o
fato de que os ânimos estavam ainda mais exaltados em meio à guerra, tanto do lado dos
rebeldes, como das forças leais ao Império, que se atiravam a vinganças e atiçavam
ainda mais o ódio dos farroupilhas. Nesse contexto, considerava correto o estratagema
de Ortiz, que lhe enviara, vinda da Campanha, uma tropa de gado para sua charqueada,
405
BARRÁN, José Pedro; NAHÚM, Benjamín. História Rural del Uruguai Moderno, vol., 1967, p.p. 16-
32.
198
mas colocara como pretenso destinatário outro charqueador, um tal João Pereira.
Segundo Araújo, essa era uma boa medida, porque andavam ocupando aqueles lugares
partidas de revolucionários “e revolucionários maus”, assegurava ele. Se soubessem que
a tropa ia para a charqueada de um defensor do Império, certamente colocariam-na a
perder.
Na mesma correspondência, Araújo escreve a Ortiz que “... em tendo destes
lugares notícias favoráveis, mande-me alguma tropa, pois unicamente tenho matado a
que me mandou.”
406
Na conjuntura de guerra, era importante para os estancieiros,
negociantes de gado e charqueadores, conseguir “notícias” sobre movimentos dos
exércitos, sobre quais comandantes legalistas ou farroupilhas estavam ocupando este ou
aquele lugar, se era um comandante tolerante, se era alguém com quem se tinha
relações. Não é exagerado afirmar que os próprios comandantes militares ou seus
parentes tinham vantagem nesse contexto, pois poussuíam acesso facilitado a essas
informações. Foi assim que o Coronel Ortiz conseguiu reunir gado na Campanha e
enviar uma tropa de forma segura a um charqueador legalista, em meio ao fogo cruzado.
As relações pessoais e a inserção em postos militares de comando aparecem aí como
fatores importantes da reprodução das relações econômicas em tempos de guerra.
Isso não quer dizer, obviamente, que os comandantes militares sempre
tinham vantagens econômicas nas guerras. Essa questão não é unilateral. Por vezes,
exatamente em razão de sua proeminência militar, os bens de certos chefes poderiam ser
especialmente visados pelos inimigos, como foi o caso da Estância do Jarau, pertencente
a Bento Manoel Ribeiro. Ela foi atacada pelas forças farrapas, em 1843. Os invasores
puseram a perder mais de 1.000 reses e 400 cavalos. Além, disso, quatro escravos foram
embora com os invasores ou aproveitaram a situação para fugir.
407
Em outras
oportunidades, comandantes militares precisaram bancar cavalos, suprimentos e mesmo
soldos com recursos próprios, cujo ressarcimento podia ser demorado ou nem mesmo
acontecer. O benefício visado era outro: prestígio e cabedais militares, de que já falei
aqui. Por vezes, esse prestígio foi convertido em títulos de nobreza. Estudando a elite
nobilitada da província do Rio Grande Sul, Jonas Moreira Vargas percebeu a
participação majoritária que os estancieiros-militares tinham naquele grupo.
408
Segundo
406
“Carta de Francisco das Chagas Araújo ao Coronel Olivério José Ortiz. AAHRGS, v. 04, 1980, p.p.
130-131”.
407
“Autoridades Militares, Brigadeiro Bento Manoel Ribeiro, 04.08.1843. AHRS”
408
Naturalmente, aqueles que lutaram do lado rebelde na Guerra dos Farrapos tiveram dificuldade de
acesso à nobilitação: foram somente 2 casos contra 19 legalistas. VARGAS, Jonas Moreira. Em nome do
pai, do filho e dos cunhados: disputas políticas e estratégias familiares da estância ao parlamento, (texto
inédito).
199
o autor, a presença de uma “elite guerreira” dominando o estrato dos nobilitados foi
uma peculiaridade do Rio Grande do Sul. Vargas levanta, ainda, uma interessante
distinção regional:
“A partir destes números, fica evidente que a Coroa tendeu a oferecer títulos
para famílias da região da campanha e do complexo charqueador, que juntos
somavam 34 nobres (60% do total). Neste sentido, ela privilegiava as elites de
duas macro-regiões: a) uma economicamente importante para o comércio
exportador da Província (a produção e o escoamento do charque), que tinha
Pelotas e Rio Grande como seus principais eixos; b) a outra pela localização
estratégica, cujas famílias que ali residiam colaboraram fortemente com a
defesa da fronteira, seja através da ocupação territorial, seja pela sua
participação nas guerras.”
409
Todas essas constatações servem, novamente, para demonstrar a importância
da guerra e das atividades ligadas a ela, nos confins meridionais do Império. Por sua
vez, no que se refere às perdas sofridas por muitos estancieiros-militares nas guerras do
sul, mesmo as reconhecendo, não se pode negar que os altos oficiais, especialmente os
que dispunham de postos de comando, ocupavam uma posição privilegiada para tentar
minorar os efeitos da guerra para si e para os seus. Assim como para usar essas
possibilidades no sentido de reproduzir seus poderes. Em alguns casos, para quem
soubesse manejar essas relações sociais, era possível não apenas minimizar prejuízos
que a guerra trazia, mas até mesmo obter lucros. O caso de Manoel Alves de Souza,
comerciante e estancieiro de Alegrete, é elucidativo. Dois anos depois do final do
conflito, em 1847, o capitão Florêncio Antônio de Araújo moveu uma ação ordinária
contra os herdeiros desse Souza. O capitão Florêncio fora legalista e tivera sua estância,
em Alegrete, confiscada pelos farroupilhas durante a guerra. Segundo ele, o dito Manoel
Alves de Souza obteve licença do governo da República Rio-grandense para vender
gado daquela propriedade. O capitão Florêncio queria ressarcimento pelos gados
vendidos por Souza. Nesse processo, foram anexados os documentos que Souza
precisara elaborar para fazer o pedido, ao governo farrapo, para dispor dos gados
daquela estância. Eles mostram os intrincados caminhos que os sujeitos percorriam para
desempenhar a produção e o comércio em tempos de guerra.
Ocorreu assim: por pertencer a um oficial legalista, a estância foi confiscada
pelos farroupilhas, não sabemos em que data. Em novembro de 1841, Manoel Alves de
Souza pediu ao general farrapo David Canabarro, que lhe permitisse vender os novilhos
daquela fazenda nas charqueadas de Triunfo (nas margens do Rio Jacuí). É provável que
409
VARGAS Jonas Moreira. Em nome do pai, do filho e dos cunhados:disputas políticas e estratégias
familiares da estância ao parlamento, (texto inédito).
200
Souza fizesse a venda, entregasse uma parte do dinheiro ao governo da República e
ficasse com um percentual, mas os documentos não são claros, podendo, até mesmo, ter
acontecido de Souza ficar com todo o valor. Porém, a estância tinha sido posta aos
cuidados de Manoel Joaquim do Couto, estancieiro de enormes posses na Campanha.
Este se recusou a entregar os novilhos a Souza, alegando que apenas poderia fazê-lo
quando tivesse ordem do Tenente-Coronel Jacinto Guedes da Luz (outro comandante
farrapo). Souza, então, escreveu de novo ao General Canabarro, avisando que sua
autoridade estava sendo desrespeitada e dizendo que a tal ordem de só entregar o gado
com recomendação do Tenente-Coronel Guedes “indica suspeita”. A segunda carta
surtiu o efeito desejado: Canabarro enviou nova correspondência, agora em tom áspero,
aos administradores da estância confiscada, deixando claro que o gado devia ser
entregue a Souza e que suas ordens não deviam ser desrespeitadas. Souza recebeu 75
novilhos e os encaminhou às charqueadas.
410
Manoel Alves de Souza, comerciante de mercadorias e de tropas
estabelecido em Alegrete, foi habilidoso em utilizar suas relações com um dos maiores
generais da República para conseguir dispor de um gado confiscado a um inimigo dos
farroupilhas. Por outro lado, Manoel Joaquim do Couto, rico estancieiro, tentava fazer
valer suas relações com outro chefe rebelde. Vê-se aí, uma disputa entre dois civis
ligados a dois comandantes militares da República Rio-grandense, em uma
configuração onde relações pessoais formavam grupos de aliados e permitiam dispor do
patrimônio confiscado pelo governo republicano. Como vimos, essa configuração foi
comum não apenas no lado farrapo, mas também entre os legalistas e, igualmente, em
outras guerras ocorridas naqueles confins. A política e as relações sociais envolvendo
comandantes militares ensejavam o acesso a recursos econômicos na Fronteira em
guerra.
Outro fator interessante foi o desfecho da Ação Ordinária movida pelo
proprietário confiscado, Florêncio José de Araújo. Seu pedido de ser indenizado pelos
herdeiros de Souza foi negado pelo juiz, sob o argumento de que Souza não havia
tomado nada que pertencesse a Araújo. Ele pedira ao governo da República para dispor
de bens que estavam sob poder daquele governo e havia recebido autorização. A causa
de Araújo não podia ser contra Souza ou seus herdeiros e sim, se fosse o caso, contra a
extinta República, o que tornava a dívida, na prática, incobrável. A decisão fica mais
interessante ainda se atentamos para o nome do magistrado que julgou a ação: Joaquim
dos Santos Prado Lima, que fora importante político farroupilha.
410
“Ações Ordinárias. Alegrete, M. 33, N. 784, A. 1847. APRS.”
201
O flagelo da guerra se abateu sobre todos os setores da sociedade, mas
alguns sujeitos conseguiram manejar seu campo de relações de forma a diminuir seu
impacto ou a aproveitar oportunidades. Isso, por sua vez, reproduzia o poder dos
comandantes militares. Eles continuavam a ser importantes mesmo em um período em
que distribuições de terras e gado já haviam se tornado mais raras.
4.7 - Mobilidade social e reprodução da desigualdade em tempos de
guerra
Por fim, resta fazer um comentário sobre a relação entre a guerra, a fronteira
aberta e a mobilidade social. A abertura da fronteira nos territórios disputados com o
Império Espanhol, nas primeiras décadas do século XIX, e a importância que a guerra
teve nesse processo permitiram que várias famílias melhorassem sua situação e algumas
pessoas de baixa extração social pudessem ascender social e economicamente. São
conhecidos os casos do General José de Abreu, Barão de Cerro Largo, bem como do
próprio Brigadeiro Bento Manoel Ribeiro, que partiram de uma situação de poucas
posses e se valeram da guerra para subir rapidamente nas forças milicianas, para trocar
serviços militares por sesmarias e por poder. Enfim, eles utilizaram a guerra para
construir seus patrimônios e sua posição social. Os serviços militares e a ocupação de
cargos de comando nas novas áreas também permitiu aos homens que já tinham uma
boa situação nas áreas antigas, como o Brigadeiro Olivério José Ortiz, ampliassem seus
cabedais materiais e imateriais. Essa é a razão de encontrarmos entre os mais ricos
senhores de Alegrete pessoas que ocuparam altos postos nas forças que guerrearam na
Fronteira Meridional.
Contudo, é preciso tomar cuidado com esses exemplos. Eles não podem dar
a idéia de que a fronteira aberta era uma terra da promissão, de teor muito mais
igualitário do que as áreas de povoamento antigo. A possibilidade que havia, de se
conseguir recursos produtivos a baixos custos, era típica de todas as regiões de fronteira
aberta no Brasil colonial e monárquico, onde quer que houvesse um sistema de
produção extensiva. A abertura da nova fronteira servia para desafogar as regiões mais
antigas. Porém, ali, também se reproduziu uma estrutura social extremamente
desigual.
411
Como temos visto e seguiremos acompanhando, os espaços para
acumulação de fortunas e os altos postos militares da Fronteira não eram, nem de longe,
em número suficiente para contemplar todas as famílias da região. Aqueles que, por
411
Para reflexões sobre a reprodução de uma sociedade comtemplando a mobilidade social, mas sem
mudar a estrutura básica de sua hierarquia, ver: STONE, Lawrence. La Crisis de la Aristocracia (1558-
1641), 1985, p.p. 37-38.
202
toda uma trajetória anterior, haviam conseguido chegar aos mais altos postos do
oficialato, alternavam-se no Comando da Fronteira, nos Comandos de Distritos e de
unidades militares. Eles distribuíam, na medida do possível, favores e benesses geradas
por sua posição, a parentes, aliados e subalternos.
Os estudos mais recentes sobre sociedades de Antigo Regime têm mostrado
que mesmo elas, tidas como rigorosamente estruturadas, contemplavam possibilidades
de mobilidade social, ainda que ela nem sempre tivesse a mesma conotação que viria a
ter nas sociedades capitalistas.
412
Da mesma forma, na época da conquista da Fronteira
Meridional pelos luso brasileiros e depois, ao longo do século XIX, a mobilidade social
acontecia, como no caso dos referidos José de Abreu e Bento Manoel, que vieram de
baixo e se tornaram grandes estancieiros e importantes comandantes militares.
Entretanto, a estrutura desigual, com um ápice estreito e larga base, seguia existindo e
se reiterando nas novas terras.
Tiago Gil e Martha Hameister analisaram redistribuição do butim efetuada
pelos comandantes militares quando da tomada de fortes espanhóis, na segunda metade
do século XVIII. Os autores destacaram que a redistribuição dos bens tomados aos
inimigos cabia aos comandantes locais, garantindo e melhorando sua posição social.
Assim, “a guerra não só era algo normal para aquela sociedade como era fundamental
para a manutenção da ordem e da hierarquia social.”
413
O mesmo seguia acontecendo no
Oitocentos, ainda que de forma um tanto diferente. Como vimos, a partir da década de
1830, a acumulação direta de terras e gado, via guerra, reduziu sua intensidade. Já não
se podia mais requerer sesmarias com base em serviços de guerra, os saques de gado
seguiram existindo mas, embora não haja números confiáveis, é muito provável que não
possam ser comparados aos ocorridos nas primeiras décadas do século, na época do
avanço luso-brasileiro para sul e oeste. Por isso mesmo, a redistribuição de terra e
animais não se reiterou como forma de reprodução da posição social dos comandantes
locais. Porém, a continuação da endemia bélica por todo o período estudado, o poder de
manejar recursos e recrutamentos que tais comandantes assumiam nos momentos de
guerra aberta, o poder que tinham nas patrulhas do limite nacional, tudo isso permitiu
que a ocupação de altos postos das forças de primeira e segunda linha seguisse sendo,
século XIX adentro, um elemento importante de reiteração daquela hierarquia social.
412
LEVI, Giovanni. Comportamentos, recursos, processos: antes da “revolução” do consumo, 1998.
FRAGOSO, João Luis. Afogando em Nomes...,2002. FERREIRA, Roberto Guedes. Pardos: trabalho,
família, aliança e mobilidade social. Porto Feliz, São Paulo, c. 1798 – c. 1850, 2005.
413
GIL, Tiago Luis; HAMEISTER, Martha Daisson. Fazer-se elite no Extremo-sul do Estado do Brasil:
uma obra em três movimentos. Continente do Rio Grande de São Pedro (século XVIII), (texto inédito)
203
Não era possível a todos os membros da elite agrária exercer, diretamente, um desses
altos postos. No entanto, a aproximação indireta, via alianças matrimoniais com as
famílias que concentravam os comandos militares, era algo recorrente e ajudava a
compor a densa trama de relações que caracterizava o mais alto estrato social da
Campanha.
204
Capítulo 5 - A Teia dos Casamentos
...esse Brigadeiro Ortiz tinha três filhas: a primeira casou com um
estancieiro, filho do Francisco Telles, que era vizinho daqueles campos; a segunda com
um primo que morava longe e a terceira, que era bem moça quando morreu a mãe,
casou com um oficial graduado, que veio do norte lutar contra a Revolução. Pois, lhes
conto, esse oficial era viúvo: tinha sido casado com a filha do Marechal Bento Manoel
Ribeiro. O Marechal, além dessa filha, tinha mais duas. Uma, casou com um primo, que
morava longe; a outra casou com um oficial graduado, que depois até virou Barão. Mas
o Marechal também tinha filhos. Dois deles, que eram oficiais graduados, casaram com
duas irmãs, filhas de um grande estancieiro. Outro, que também tinha seus galões, casou
com a filha de Antônio José de Oliveira, que era estancieiro graúdo, com campos de
Alegrete até o Uruguai e, além disso, ainda emprestava dinheiro. Pois este Antônio
tinha, ainda, outras filhas: uma casou com outro oficial graduado e outra com um
comerciante de bom nome na praça. Mas isso não acaba aqui, porque o Brigadeiro Ortiz
também tinha filhos-homens. Um deles, que era oficial graduado, casou com a filha do
Senhor de Japejú, Manoel José de Carvalho, o mais abonado de todos os estancieiros
daqueles pagos. Esse Manoel tinha uma filharada. Uma filha casou com o João de
Araújo, que era comerciante e estancieiro bem aprumado, outra casou com um oficial
graduado. Dois filhos casaram com as irmãs do cunhado, desse mesmo João de Araújo.
Um filho casou com a sobrinha. Um outro filho ainda casou com a moça Ubaldina, filha
do Coronel José Antônio Martins. Esse Coronel tinha muitas filhas: a mais velha casou
com um oficial graduado...
205
A ciranda de casamentos resenhada aqui não é apenas anedótica. Ela sugere
a relevância da análise dos vínculos familiares dos sujeitos estudados. No capítulo “1”,
já foi apontado o fato de que vários membros da elite agrária estudada desempenhavam
mais de uma atividade ao longo da vida ou mesmo concomitantemente. Agora, veremos
que a visualização de sua inserção em uma rede familiar é importante para a correta
compreensão de sua atuação. Mais do que empresários individuais e ultra-
especializados, esses agentes acabavam por fazer-se presentes, por si ou por membros
de suas famílias, em variados campos de atuação social. De fato, essa análise pode
ganhar se buscarmos perceber sua atuação sócio-econômica de forma conjugada com as
alianças matrimoniais que estabeleciam.
A análise combinada das atividades sócio-econômicas com as relações
familiares vem sendo praticada por diversos historiadores que se dedicam ao estudo de
sociedades pré-industriais. Foi a partir desse procedimento que Giovanni Levi pôde
verificar as estratégias de ação conjunta de grupos familiares não co-residentes, tanto
entre os arrendatários como entre os “plebeus ricos” da pequena aldeia de Santena, no
século XVII.
414
Essa também foi a abordagem escolhida por Simona Cerutti ao estudar
o mesmo Piemonte seiscentista, mas com foco na população de dois bairros da cidade
de Turim. Seguindo as trajetórias desse segmento da população urbana, Cerutti
contextualizou suas relações sociais e percebeu que cada grupo familiar apresentava, em
sua composição, membros que tinham orientações profissionais diversas. As famílias
esforçavam-se para contar tanto com atividades que fossem protegidas pela autoridade
ducal, quanto com ofícios protegidos pela municipalidade, que consistiam nos dois
pólos em disputa pelo poder sobre a cidade. Mais do que o desempenho de um mesmo
ofício, o que unia os membros desse grupo social era uma mesma leitura dos recursos
da cidade e a elaboração de estratégias sociais semelhantes.
415
Na América Latina, vários têm sido os trabalhos que vêm demonstrando a
pertinência do estudo conjugado das relações familiares com as atividades econômicas e
profissionais, sob diferentes abordagens. No que se refere aos grupos dominantes, por
exemplo, João Fragoso tem demonstrado, em seus estudos sobre a elite do Rio de
Janeiro no século XVII, que um dos principais elementos estratégicos dessa “nobreza da
terra” era a composição de uma complexa engenharia parental, através da qual os
grupos familiares conseguiam levar poder e influência muito além de sua região de
414
LEVI, Giovanni. A Herança Imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII, 2000.
415
CERUTTI, Simona. Processo e Experiência: indivíduos, grupos e identidades em turim no século
XVII, 1998, p.p. 192-193.
206
residência e reiterar sua posição entre os principais do lugar.
416
Ainda no campo das
elites, a historiadora argentina Beatriz Bragoni analisou a trajetória de uma importante
família da elite política da província argentina de Mendoza, ao longo do século XIX,
evidenciando suas articulações com Buenos Aires, tanto no plano do poder, como no
das atividades econômicas e profissionais. Ali, as negociações e tensões dentro de uma
lógica familiar difícil de reduzir rapidamente a modelos apriorísticos, estavam em
relação de influência recíproca com os rumos profissionais, patrimoniais e políticos
tomados pela família.
417
O estudo dos grupos subalternos também têm se beneficiado da investigação
conjugada das atividades sócio-econômicas e das relações familiares. Analisando o
sudeste escravista do Brasil, no século XIX, Hebe Maria Mattos demonstrou a
importância dos laços familiares como um capital social básico para o acesso à
produção agrícola autônoma.
418
Por sua vez, em trabalho recente, Roberto Guedes
Ferreira demonstrou que o trabalho e relações familiares eram componentes da
estratégia de mobilidade social dos forros na primeira metade do século XIX.
419
Em todos esses casos, a contextualização das relações familiares dos agentes
possibilitou refinar o estudo das próprias atividades econômicas desempenhadas por
eles, compreender melhor sua atuação, através da caracterização de suas estratégias
sociais e, ainda, perceber aspectos antes inexplorados da composição e reprodução das
hierarquias sociais. Nesse sentido, creio que um estudo das atividades econômicas e
profissionais dos membros da elite agrária da Fronteira Meridional pode ganhar em
muito se tais atividades forem vistas no contexto das alianças e relações familiares em
que os agentes estavam envolvidos. Porém, antes disso, é necessário investigar um
pouco mais detidamente o que se entendia por família naquele tempo e lugar.
5.1 - Muitos parentes
A história da família tem sido um dos mais prolíficos campos do ofício
historiográfico nas últimas décadas. Sínteses importantes dessa produção, ainda que se
atenham à historiografia européia, encontram-se nos conhecidos textos de André
416
FRAGOSO, João Luis. A nobreza vive em bandos: a economia política das melhores famílias da terra
do Rio de Janeiro, século XVII - algumas notas de pesquisa, 2003, especialmente p.p. 21 a 33. Um outro
exemplo é o livro clássico de John Kicza: KICZA, John. Empresarios Coloniales. Familias y negocios en
la Ciudad del México, durante los Borbones, 1986.
417
BRAGONI, Beatriz. Los Hijos de la Revolución: familia, negocios y poder en Mendoza en el siglo
XIX, 1999.
418
MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista...,
1998, p.p. 55-72.
419
FERREIRA, Roberto Guedes. Pardos.Trabalho, família, aliança e mobilidade social em Porto Feliz,
São Paulo,c. 1798 – c. 1850, 2005.
207
Burguière, Alan Macfarlane e Michael Anderson.
420
Para uma análise conjugada da
produção européia com as obras realizadas sobre o Brasil e a América Hispânica temos,
entre outros, os textos de Sheila de Castro Faria e das historiadoras argentinas Maria
Bjerg e Roxana Boixadós.
421
De maneira geral, pode-se dizer que esses textos
apontaram a diversificação de abordagens pelas quais a história da família vem sendo
tratada, através de obras que têm explorado dimensões bastante variadas da dinâmica
familiar. Anderson propôs uma tipologia dos estudos históricos sobre família, sendo as
três de maior relevo: as abordagens dos estudos demográficos, os dedicados a estudar a
economia das unidades domésticas e os que procuram fazer uma história dos
sentimentos. Sheila Faria faz uma ressalva ao esquematismo dessa tipologia, indicando
que muitos estudos podem ter se nutrido de mais de uma dessas tradições hitoriográficas
e situar-se, portanto, em mais de um desses campos. Ainda assim, Faria considera essa
divisão pertinente quando encarada como ponto de partida para uma análise
historiográfica dessa produção.
422
Os estudos demográficos inspirados pelos métodos desenvolvidos pelos
franceses Louis Henry e Michel Fleury, há mais de meio século, centrados na
exploração de registros paroquiais (batismo, óbito e casamento), têm trazido
contribuições importantes no estudo das influências recíprocas entre a dinâmica
populacional (taxas de natalidade e mortalidade, idade dos cônjuges ao casar,
recasamentos, celibato definitivo, etc.) e as estruturas e transformações dos grupos
familiares.
423
Do outro lado do Canal da Mancha, os ingleses do chamado “Grupo de
Cambridge” criaram uma metodologia baseada na exploração quantitativa de listas
nominativa de população, abundantes na Inglaterra. Eles centraram sua análise sobre as
unidades domésticas de produção e consumo (households), enfatizando a co-habitação
como critério para o estabelecimento das tipologias familiares e para análise do
comportamento econômico dos membros das famílias (aqueles que habitavam um
mesmo lar e cozinhavam em torno de um mesmo fogo).
424
Com base nessas pesquisas,
puderam questionar a idéia de que as unidades domésticas da Europa pré-industrial
420
ANDERSON, Michel. Elementos para a História da Família Ocidental (1500-1914), 1980.
BURGUIÈRE, André ; LEBRUN, François. Les Cent et Une Familles de l’Europe, 1986.
MACFARLANE, Alan. História do Casamento e do Amor, 1990.
421
FARIA, Sheila de Castro. História da Família, 1997. BJERG, Maria; BOIXADÓS, Roxana (eds.). La
Família: campo de investigación interdisciplinario. Teorias, métodos y fuentes, 2004.
422
FARIA, Sheila de Castro. História da Família, 1997, p. 244.
423
HENRY, Louis. Técnicas de Análise em Demografia Histórica, 1977.
424
LASLETT, Peter. Households and Family in Past Time, 1972.
208
eram predominantemente extensas e complexas, envolvendo a convivência de duas ou
três gerações, além de muitos dependentes.
425
Em A Herança Imaterial, Giovanni Levi reconheceu a importância da crítica
feita por essas obras à visão então predominante, que apontava a evolução linear de uma
família extensa e patriarcal que ia encolhendo e perdendo suas funções, para restringir-
se ao âmbito privado com a predominância da família nuclear, após a
industrialização.
426
Contudo, Levi aponta para uma persistência entre as duas visões.
Mesmo demonstrando a pluralidade de modelos familiares e criando ricas tipologias e
geografias de formas familiares européias, aqueles historiadores, assim como os que
eles criticavam, centraram sua atenção apenas à estrutura interna da família. Para Levi
“...pouca atenção foi dada à rede de relações externas na qual a família está imersa e
pela qual é condicionada e assume um significado.”
427
Essa rede parental se estendia
para além dos limites da co-residência. Ela também não se restringia aos vínculos de
sangue, pois ela podia englobar os parentescos criados “por alianças e relações
fictícias”, tais como o casamento e compadrio.
A importância das relações parentais que iam além do núcleo conjungal
também foi ressaltada por Sheila Faria em seu estudo sobre a região açucareira de
Campos dos Goitacazes, no século XVIII.
428
A autora demonstrou que a concepção de
família para os habitantes do Brasil colonial não pode ser definida por um critério único,
seja ele a co-habitação ou a consangüinidade, pois estavam presentes ambos e também
os laços rituais, podendo-se incluir ainda um termo amplo, como “aliados”.
429
Essa
concepção continuava viva no Brasil do século XIX . Em seu clássico estudo sobre o
clientelismo, Richard Graham fez uma interessante descrição das características da
organização familiar no Brasil oitocentista:
“Os limites de uma família iam muito além do pai, da mãe e dos filhos. A
proteção em troca de lealdade, imposta pelos vínculos familiares, estendia-
se primeiramente a uma ampla gama de relacionamentos consangüíneos e,
em seguida, a um número igualmente grande de ligações por meio de
casamento. Embora um pouco mais tênues, os laços de parentesco ritual
também eram importantes. Ser padrinho e afilhado, compadre ou comadre
no Brasil, como em outras culturas ibéricas, envolvia obrigações religiosas
e materiais importantes.”
430
425
LEVI, Giovanni. A Herança Imaterial..., 2000, p. 128. FARIA, Sheila de Castro. História da Família,
1997, p. 245.
426
LEVI, Giovanni. A Herança Imaterial..., p.p.87 a 130.
427
LEVI, Giovanni. A Herança Imaterial..., p. 128.
428
FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial,1998.
429
FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento...,1998, p.p.41-43.
430
GRAHAM, Richard. Cientelismo e política no Brasil do século XIX.,1997, p.37.
209
Certamente, nem todas as situações apresentavam essa distribuição e essa
ordem de proximidade e relevância: das relações entre consangüíneos para as relações
entre os parentes obtidos a partir do casamento e, finalmente, os que se ligavam por
compadrio. Em alguns casos, por exemplo, um afilhado podia estar mais próximo de
seu padrinho do que um genro deste. Ou, ao contrário, um genro muitas vezes estava
mais próximo de seu sogro do que alguns dos irmãos deste. Feitas essas ressalvas,
parece bastante pertinente a idéia de uma vasta rede parental na qual estavam inseridos
os núcleos familiares, ainda que a efetividade das relações pudesse ser menos forte nos
pontos mais afastados do núcleo de referência.
A partir dessa imagem, o pesquisador poderia estender os limites da
parentela ad infinitum, a partir de um casal tomado como ponto de referência. Segundo
o historiador espanhol Joan Bestard Camps, nas sociedades com filiação indiferenciada,
os limites do parentesco são difíceis de precisar com exatidão porque se produzem de
fato e não de direito. Porém, a prática das relações sociais concretas tende a fazer surgir
níveis de parentesco. As pessoas envolvidas conseguem determinar um círculo de
parentes próximos, outro de parentes distantes até o limite daqueles que não são mais
considerados parentes.
431
Como foi dito, não há nenhuma regra apriorística para
estabelecer esses limites, que se dão nas condições concretas das relações sociais.
Naturalmente, essa imprecisão dos limites das parentelas não deve impedir o
reconhecimento de sua existência, mas apenas demonstrar seu caráter irredutível a
esquemas rígidos de delimitação.
No mesmo sentido, em seu estudo sobre as relações entre política e
parentela, no século XIX, Linda Lewin ressaltou a estrutura bilateral das parentelas
luso-brasileiras.
432
Nesse tipo de tradição parental bilateral, é acentuado o fato de que o
casamento significa mais uma aliança entre duas famílias do que a “transferência” de
uma filha ou de um filho, de uma para a outra. O novo casal cria um elo de
comunicação entre as duas famílias e, assim, expande o campo parental de ambas.
Aqui, é necessário fazer duas ressalvas. Primeiramente, é óbvio que podiam
haver conflitos e dissensões que tornassem difíceis ou até inviabilizassem a articulação
entre alguns dos membros de uma mesma parentela.
433
Da mesma forma, a efetividade
431
BESTARD CAMPS, Joan. La estrechez del lugar: reflexiones em torno a las estrategias
matrimoniales cercanas, 1992, p.p. 115-117.
432
LEWIN, Linda. Politics and parentela in Paraíba, 1997. Sobre o mesmo tema, referindo-se a
parentelas hispano-americanas ver: BRAGONI, Beatriz. Temas, problemas y procedimientos en torno a
los estudios de familia – aputnes de un ejercicio, 2004, p.p. 48-51.
433
Ver: GARAVAGLIA, Juan Carlos. Los Martínez: la complejidad de las lealtades políticas de una red
familiar en el Areco Rosista, 1999.
210
dos relacionamentos que um dos parentes mantinha com os outros variava ao longo da
vida, ao sabor tanto das necessidades específicas que precisava manejar, como da
dinâmica das solidariedades e contradições que fossem surgindo dentro da família. Em
segundo lugar, é preciso ficar claro que não estou afirmando que as relações familiares
tinham absoluta primazia na estruturação de lealdades e prestações recíprocas entre os
sujeitos. Outros tipos de relação, como a aliança militar e política, ou mesmo os
negócios podiam criar vinculações bastante fortes e que, inclusive, podiam desembocar
no estabelecimento de alianças familiares através de casamentos e compadrios. E
também não estou dizendo que os únicos vínculos familiares relevantes eram os
estabelecidos via matrimônio. Uma gama importante de obras recentes tem destacado,
por exemplo, a relevância do estudo dos vínculos de compadrio para a compreensão das
relações sociais horizontais e verticais no Brasil colonial e monárquico.
434
Contudo, uma análise de todos esses tipos de relações seria inviável nos
limites desta tese e seria mesmo difícil de executar com as fontes disponíveis. Para um
tal estudo, seriam adequadas, por exemplo, correspondências particulares, como as
utilizadas por Zacarias Moutoukias em seus estudos sobre as redes sociais nas quais
estavam inseridos comerciantes do Vice-Reinado do Prata, em fins do período
colonial.
435
Assim, escolhi estudar as vinculações familiares forjadas pelo casamento, e
sua relação com as atividades sócio-econômicas, por sua importância em romper a visão
estanque dos agentes sociais, que poderia advir de uma análise apenas quantitativa dos
inventários post mortem. A família era uma configuração de relações de grande
importância na definição das atividades e relações sociais dos sujeitos, bem como era
um vetor que influía na estratificação e reprodução social. Isso não significa,
obviamente, que tenha sido o único.
Tendo em conta essas ressalvas, é possível reconhecer que essa alargada teia
de relacionamentos familiares era uma referência marcante para os sujeitos quando
agiam e estabeleciam relações sociais. Além disso, e mais importante: pertencer a uma
434
GUDEMAN, Stephen. The Compadrazgo as a Reflection of the Natural and Spiritual Person, 1971.
GUDEMAN, Stephen Spiritual Relationship and Selecting Godparent, 1975. GUDEMAN, Stephen;
SCWHARTZ, Stuart. Purgando o pecado original: compadrio e batismo de escravos na Bahia do século
XVIII, 1998. FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Marcelino, filho de Inocência Crioula, neto de
Joana Cabinda: um estudo sobre as famílias escravas em Paraíba do Sul (1835-1872), 1987.
BRÜGGER, Sílvia Maria Jardim. Minas Patriarcal - Família e Sociedade (São João del Rei, séculos
XVIII e XIX), 2002. HAMEISTER, Martha. Para dar calor à nova povoação: estudo sobre estratégias
sociais e familiares a partir dos registros batismais da Vila do Rio Grande (1738-1863), 2006.
435
MOUTOUKIAS, Zacarias. Reseaux Personelles et Autorité Coloniale: les négociants de Buenos Aires
au XVIIIme siècle, 1992. _____. Familia Patriarcal o Redes Sociales: balance de una imagen de la
estratificación social, 2000. Um bom exemplo do uso de outro tipo de documentação para os mesmos fins
está em: GIL, Tiago Luís. Infiéis Transgressores: os contrabandistas da fronteira (1760-1810), 2002.
211
rede parental que concentrasse recursos era um diferencial relevante nas possibilidades
de sucesso e fracasso dos sujeitos, bem como em sua auto-imagem e na posição social
que ocupavam. Como pretendo demonstrar, a análise das alianças matrimoniais da elite
agrária da Fronteira Meridional indica que ali também estava presente aquela concepção
alargada de rede parental como referência relevante na experiência histórica dos sujeitos
e na composição da hierarquia social. Podemos falar em um nível amplo das relações
familiares na Fronteira. Através de uma vasta teia parental circulavam favores, proteção,
lealdade, serviços, crédito, informações, cuidados. Ela podia ainda facilitar o acesso a
relações comerciais, viabilizar alianças políticas e propiciar matrimônios.
Por outro lado, a inserção dos novos casais nas amplas malhas das parentelas
bilaterais não é contraditória com a identificação de uma ação conjunta entre alguns dos
núcleos familiares, em um nível mais estreito. Como veremos, neste último locus eram
efetivadas as estratégias e os projetos familiares que resultavam na destinação
profissional dos filhos, na política dotal e sucessória, e na própria realização de
matrimônios, que inseriam esses núcleos familiares naquela rede parental mais ampla,
de que falei anteriormente. Falar em projetos e estratégias familiares é o mesmo que
falar em patriarcalismo como modelo dessas famílias? Ou melhor, de que patriarcalismo
se está falando e onde ele poderia mostrar sua presença e seus limites na realidade
estudada?
5.2 - Sobre o patriarcalismo
Como é sabido, foi Gilberto Freyre quem elaborou o modelo clássico de
família patriarcal no Brasil escravista. Tal modelo teria como expressão mais nítida a
família dos grandes senhores de engenho, onde o patriarca teria exercido forte domínio
sobre sua esposa, seus filhos, as famílias dos filhos, seus dependentes, escravos,
agregados.
436
Essa visão encontra-se também em outros autores, por vezes, de forma
muito mais absoluta e menos rica do que em Freyre, como era o caso da noção de “clã
parental”, criada por Oliveira Vianna, que dedicou um dos dois volumes de sua obra a
descrever o que, para ele, seria a formação e o modus vivendi das famílias que formaram
a sociedade sul-riograndense.
437
Nas últimas décadas, a hegemonia desse tipo de família no Brasil escravista
foi contestada por trabalhos de história demográfica ou de estudos das unidades
domésticas, inspirados nos trabalhos do já referido “Grupo de Cambridge” de estudos
436
FREYRE, Gilberto. Casa-grande e Senzala: as origens da família patriarcal brasileira, 1987.
437
VIANNA, Oliveira. Populações Meridionais do Brasil, v. 01, 1987. _____. Populações Meridionais
do Brasil, v. 02, 1974.
212
de história e população. Empregando listas nominativas de habitantes, inventários post
mortem e registros paroquiais, estes trabalhos enfatizaram as altas taxas de filhos
ilegítimos, a presença significativa de domicílios chefiados por mulheres e a
predominância de famílias nucleares. Apontaram para o fato de que os modelos
familiares no Brasil eram plurais e que, ao menos em algumas partes do Brasil, como
São Paulo e as Minas Gerais, a família extensa e patriarcal não era predominante.
438
Sem discordar da pluralidade dos modelos familiares no Brasil, Sheila Faria
apontou para o fato de que os estudos que contestam a importância do patriarcalismo
estiveram mais concentrados em regiões urbanas, sendo necessária uma multiplicação
de estudos sobre áreas rurais, especialmente aquelas regiões de ponta na economia
colonial, para que se pudesse debater aí a presença do patriarcalismo e sua relação com
a família extensa.
439
Em seu trabalho sobre a região canavieira dos Campos de
Goitacazes, Faria ressaltou a importância dos casamentos, a baixa taxa de ilegitimidade
e concluiu, em concordância com Ronaldo Vainfas, que o patriarcalismo nem sempre
precisava estar conjugado com família extensa. Ele teria marcado presença na família
colonial brasileira, “ao menos no nível das idéias, ou melhor, dos ideais”.
440
Por sua
vez, Sílvia Brügger debateu a presença do patriarcalismo em Minas Gerais. Para a
autora, o conceito de patriarcalismo poderia ser aplicado mesmo para aquela região, se
tal conceito foi entendido não como presença da família extensa, mas como prevalência
das relações familiares naquela sociedade. Diz a autora: “a idéia central, sem dúvida,
parece residir no fato de as pessoas se pensarem mais como membros de determinada
família do que como indivíduos. Parece-me que, talvez, o uso do termo familismo seja
preferível a patriarcalismo, evitando tantas críticas que longe estão de atingir o cerne do
conceito”.
441
Para pensar na aplicação do conceito de patriarcalismo às famílias da elite
agrária de Alegrete, é necessário compreender que há aspectos bem diversos dentro
desse debate. Em primeiro lugar, creio que os estudos demográficos comprovaram a
existência de uma pluralidade de modelos familiares no Brasil, cuja prevalência variava
de acordo com as características sócio-econômicas de cada região, havendo locais e
grupos sociais onde a presença dos casamentos era menor, o número de domicílios
438
Reflexões importantes sobre as possibilidades de uso do conceito de patriarcalismo fora das áreas de
plantations estão em: MACHADO , Cacilda. O patriarcalismo possível: relações de poder em uma
região em que o trabalho familiar era a norma, 2006.
439
FARIA, Sheila de Castro. História da Família, 1997, p. 255.
440
FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial,1998,
p.42.
441
BRÜGGER, Silvia. Minas Patriarcal..., 2002, p. 53.
213
chefiados por mulheres era significativo e as taxas de ilegitimidades eram altas. Por
outro lado, também ficou demonstrado no estudo de Sheila Faria, o fato de que, nas
regiões rurais, as famílias constituídas a partir de matrimônios formalizados eram
dominantes.
Infelizmente, não dispomos ainda de um trabalho de história demográfica
sobre a paróquia de Alegrete, que pudesse fornecer dados e interpretações sobre as taxas
de ilegitimidade, por exemplo. Ainda assim, há como fazer uma estimativa, ao menos
para as famílias presentes na amostra de inventários post mortem que, como sabemos,
sobre-representam as camadas mais abastadas, mas contêm também contingentes dos
setores menos favorecidos. Entre os 352 herdeiros adultos presentes na amostra 86%
eram oficialmente casados. Isso demonstra a difusão e a importância do casamento e da
formalização das relações familiares em Alegrete, em consonância com o que fora
encontrado para outras regiões rurais do Brasil. Da mesma forma, como deverá ficar
claro adiante, é possível concordar com a percepção de que a família era um ponto de
referência essencial na posição e nas ações dos sujeitos daquela realidade histórica.
Por sua vez, a idéia da autoridade masculina e paterna sobre a família, sendo
esta entendida como uma organização fortemente hierarquizada, também estava
presente naquela realidade. Aqui, porém, é preciso advertir para não se sucumbir ao
exagero. Os pais buscavam convencer os filhos de seguirem os caminhos que se
adequavam às estratégias familiares mas, para isso, não se valiam apenas da autoridade
paterna. Sem negar a importância desse fator, é forçoso reconhecer que, para que seus
intentos fossem realizados, muitas vezes os pais movimentavam uma política de
auxílios e incentivos materiais. Como veremos no capítulo “6”, as antecipações de
herança, a permissão para que os filhos utilizassem os campos dos pais, as assistências
em dinheiro dadas aos filhos que iam buscar diplomas acadêmicos e os empréstimos
intra-familiares funcionavam como instrumentos a favor dos pais nas relações verticais
desiguais (mas não unilaterais) que estabeleciam com seus filhos. Além das convenções
culturais sobre os papéis que se esperavam daqueles agentes como bons pais e como
filhos gratos, e além do complexo envolvimento afetivo em que estavam inseridas essas
relações, também existiam trunfos materiais que ambos os lados lançavam mão nesse
jogo de interação. De um lado, os pais dispunham de bens e de relações sociais que
podiam instrumentalizar o futuro dos filhos e, de outro, os filhos encarnavam as
possibilidades da família contar com alianças e ter presença em atividades importantes
em sua estratégia social.
214
A correspondência da família Carvalho, que será analisada em mais detalhe
adiante, explicita as reiteradas negociações que envolveram o envio do filho Sebastião
Japejú para cursar Direito em São Paulo. Os pedidos de dinheiro pelo filho são
recorrentes, ao que Manoel José de Carvalho, o pai, responde explicando
detalhadamente as razões do mau momento financeiro da família e pedindo paciência e
compreensão. Em outras oportunidades, o velho Manoel era mais duro, recriminando
ações do filho, como haver pedido dinheiro emprestado ao Barão do Jacuí, sem
consultá-lo.
442
Por fim, em 1856, Manoel José de Carvalho acabou lavrando, em
escritura pública, uma doação de 10 contos de réis para o filho, declarando
expressamente:
“...havendo mandado estudar Direito seu filho Sebastião José de Carvalho
Japejú, na Academia de São Paulo, e tendo-se prestado a todas as suas
despesas, enquanto foi solteiro e filho-família, seguindo-se o seu
casamento, como o efetuou, tem a seu favor a herança de sua finada mãe.
Sendo porém do gosto dele outorgante que seu dito filho caçula conclua a
sua formatura, e vendo que não poderá conseguir só a custa de sua
mencionada herança, sem muito sensível desfalque, é sua vontade concorrer
com a quantia de 10:000$000.”
443
Esse pequeno trecho é revelador. Em primeiro lugar, está ali expresso o fato
de que a destinação profissional de Sebastião Japejú não foi apenas uma escolha
individual sua. Os termos usados são “havendo mandado estudar Direito”.
Teoricamente, as obrigações de sustento paterno com o filho cessariam quando de seu
casamento. Acontece que, mesmo depois do matrimônio, o velho Manoel precisou
continuar auxiliando seu filho porque era do “gosto de dele outorgante” que Sebastião
concluísse sua formatura. E veja-se que esta poderia ser alcançada com a herança que
Japejú receberia de sua mãe. Entretanto, os contínuos argumentos do filho, em suas
cartas, alcançaram seu objetivo e ele não precisou lançar mão daqueles recursos
imediatamente. A autoridade paterna, o projeto familiar, tudo está claro aí, mas também
está o fato de que, sem negar nada disso, havia uma negociação entre pais e filhos, ainda
que desigual, no processo que resultava na concretização de uma estratégia familiar.
E mais, como veremos no próximo capítulo, os filhos não apenas
negociavam com os objetivos dos pais, como também ajudavam a conduzir, com sua
própria atuação, os rumos das estratégias familiares. Assim, as carreiras e áreas de
atuação dos membros da família tinham muita relação com os caminhos que eram bem
442
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, m 01, n 07, a 1853-7. APRS.”
443
“Transmissões e Notas. Alegrete. Livro 01, fl. 92v, 16.05.1856. APRS.”
215
valorizados pela família em um contexto incerto e contingente. Elas ajudavam a
construir as características das estratégias sociais empregadas pela família. Porém, é
também preciso ficar claro que tais estratégias eram construídas dentro de um jogo de
interação entre os membros da família.
Essa parece ter sido a regra, ainda que houvesse exceções: em casos
extremos, os objetivos familiares e individuais podiam se tornar inconciliáveis e essa
parte da estratégia familiar acabava por malograr. Foi o que aconteceu com José Ortiz
da Silva, o primogênito do Brigadeiro Olivério José Ortiz e de Dona Febrônia Cândida.
Enviado por seus pais para estudar medicina na Corte, ele nunca mais voltou. Quando
do falecimento de sua mãe, em 1852, seu pai declarou que não tinha certeza sobre sua
morada, devendo estar no Rio de Janeiro. Ele acabou por ser encontrado na província do
Espírito Santo. De lá, enviou procuração para seu cunhado tomar conta de seus
interesses no inventário, declarando que se conformava com o que fosse decidido pelos
demais herdeiros. Não foi possível saber os motivos do desgarramento deste filho em
relação à sua família, mas esse caso serve para mostrar como, de fato, as estratégias
sociais eram elaboradas e colocadas em prática em um mundo contingente, e nem
sempre eram executadas com pleno sucesso.
444
No que se refere às escolhas matrimoniais, a regra de “casar entre iguais”
parece ter sido seguida, ao menos na grande maioria dos casos.
445
As alianças feitas a
partir dos matrimônios permite falar que elas foram compatíveis com as estratégias
sociais seguidas pelas famílias. Não disponho de documentação nem condições para
analisar o processo que conduzia a um enlace matrimonial. Contudo, parece seguro
afirmar que os pais, se não decidiam por si mesmos a escolha dos cônjuges para seus
filhos, ao menos deveriam aprová-los, dentro de uma campo de “cônjuges
aceitáveis”.
446
Esse caso aponta para a pertinência da consideração de Sheila de Castro
Faria, já comentada acima, de que o patriarcalismo, desligado do conceito de família
extensa, esteve presente no contexto do Brasil colonial, ao menos no plano dos ideais.
Essa parece uma proposição válida também para as famílias da elite agrária em
Alegrete, ao longo do período tratado.
De outra parte, as mulheres da elite estavam formalmente sob o domínio de
seus pais, maridos e, no caso de serem viúvas, podiam deixar a direção de seu
444
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 08, N. 111, A. 1852. APRS”.
445
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de Casamento no Brasil Colonial, 1984. _____. História da
Família no Brasil Colonial, 1998.
446
SOCOLOW, Susan. Cónyuges aceptables: la elección del consorte en la Argentina Colonial, 1778-
1810, 1991.
216
patrimônio a cargo de algum filho. Sem negar a dominação exercida sobre as mulheres
em uma sociedade de clara preponderância masculina é preciso, entretanto, evitar aqui
aceitá-la de forma absoluta. Não contamos com listas de população que pudessem
indicar mulheres chefiando fogos, em Alegrete. No entanto, há mulheres da elite agrária
que apareceram, mais de uma vez, nos documentos pesquisados, praticando atos
jurídicos em seu nome e portando reconhecimento social, sem precisar estar
subordinada a um homem. A situação das viúvas é clara nesse sentido. Havia casos,
como os de Paula Francisca da Silva e Mariana Romana Jacques, em que, tendo
falecidos seus esposo, ficaram os respectivos filhos Felisberto Pereira da Silva e
Mariano Rodrigues Jacques como seus administradores. São eles que aparecem em
contas e escrituras agindo em nome de suas mães. Porém, casos havia também, como o
de Rita Maria de Oliveira e o de Catharina da Silveira, em que, mesmo havendo filhos
que auxiliavam na administração, as referências são feitas a elas. Na medição judicial
dos campos da Palma, pertencentes ao Brigadeiro Olivério José Ortiz, o agrimensor
anotou, como limite os “campos de Dona Catharina”. Na conta de estância elaborada
pelo Brigadeiro Ortiz, constam 46 éguas compradas à Dona Catharina e à Dona Ana
Guterres (outra viúva, com estância vizinha aos campos de Dona Catharina).
447
Havia, também, casos extremos. Em 1857, Auristela Maria de Almeida, irmã
do Marechal Bento Manoel Ribeiro, estava casada com Feliciano Pereira Fortes,
estancieiro e negociante de tropas em Alegrete. Quando adoeceu e resolveu fazer
testamento, Auristela declarou que não tinham filhos e que se achava separada de seu
marido “... por cuja separação estou tratando de meu divórcio judicialmente e que até o
presente não obtive o final resultado.”
448
Como não tinha descendentes nem ascendentes
vivos, Auristela fez questão de fazer testamento para, entre outros motivos, garantir que
sua parte nos bens do casal não fosse herdada por seu marido. Distribuiu suas partes nas
estâncias e no gado entre seu irmão Manoel Ribeiro de Almeida, suas sobrinhas e
afilhadas, libertou todos os escravos crioulos e doou dinheiro para a Igreja e para a
caridade. Seu irmão, o Marechal Bento Manoel, já havia falecido, mas Auristela tinha
amigos importantes e colocou como testamenteiro ninguém menos que o Comendador
Antônio Vicente da Fontoura, líder político atuante na província e antigo chefe da ala
moderada dos Farroupilhas.
Os casos descritos acima são minoritários e de exceção, mas isso não quer
dizer que as mulheres casadas tivessem um papel nulo nas dinâmicas familiares. Sem
447
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 08, N. 111, A. 1852. APRS”.
448
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, M. 01, N. 25 , A.1857. APRS.”
217
negar o poder dos homens chefes de família, é forçoso reconhecer que necessitamos de
estudos específicos e maior fôlego, que trabalhem com as relações conjugais e os papéis
exercidos por homens e mulheres na organização familiar. Em um estudo recente e
inspirador, Martha Hameister demonstrou a importância das mulheres casadas no
estabelecimento de alianças via compadrio para suas famílias. A utilização criativa que
autora fez dos registros de batismo gerou uma análise que, finalmente, conseguiu fazer
aparecerem as mulheres como protagonistas das estratégias sociais e familiares.
449
No
mesmo sentido, os primeiros resultados de trabalhos ainda em andamento, dedicados a
correspondências entre estancieiros e suas esposas, têm demonstrado que ao menos
algumas delas tinham um conhecimento nada desprezível de negócios e de criação de
gado, debatiam o tema com seus esposos e tomavam decisões sobre o gerenciamento de
suas propriedades, especialmente quando aqueles estavam envolvidos nas reiteradas
guerras do sul.
450
Assim, a presença do patriarcalismo nas famílias da elite agrária de Alegrete
pode ser aceita, com alguns limites. Em primeiro lugar, era clara a importância da
família construída via casamento entre os membros daquele grupo. Da mesma forma, a
relevância das relações familiares em vários campos da vida social. No que se refere ao
domínio paterno e masculino sobre a família, estava também presente, sendo mais
efetivo no nível dos ideais, comportando exceções e, sobretudo, sem ser uma via de mão
única. Ainda que os papéis dentro da família fossem hierarquizados, a estratégia
familiar era construída dentro de um processo de interação entre todos os seus membros.
Não se tratava de uma larga linhagem com um patriarca-fundador que comandava e
elaborava estratégias sociais da qual seus descendentes eram pouco mais do que
instrumentos.
Como último ponto, as ligações verticais das famílias da elite com escravos,
agregados e dependentes certamente existiam. Elas eram importantes tanto para um pólo
da relação como para o outro, ainda que de maneira desigual. Porém, elas estavam longe
de implicar em uma anulação dos valores e das formas de organização social e
familiares próprias dos escravos e livres pobres, em uma imersão indiscriminada dentro
dos largos “clãs” da elite, como sugere a visão de um Oliveira Vianna, por exemplo.
Este ponto será analisado mais detidamente no último capítulo desta tese.
449
HAMEISTER, Martha. Para dar calor à nova povoação..., 2006.
450
BARBOSA, Carla Adriana. Quando a guerra nos separa..., 2003. MENEGAT, Carla. Minha Querida
Bernardina: gênero, relações e espaços de sociabilidade na Guerra dos Farrapos (1835-1845), 2006.
218
Tendo em conta essas questões é possível, agora, enveredar por um estudo
combinado das relações familiares e das atuações sócio-econômica da elite agrária da
Fronteira.
5.3 - Os segredos da salamanca: os Ribeiro de Almeida
O Marechal Bento Manoel Ribeiro foi um dos mais destacados chefes
militares da fronteira meridional do Brasil, na primeira metade do século XIX. Como
vimos no capítulo “4”, ele foi Comandante da Fronteira e chegou ao Comando Geral
das Armas da Província. De herói das guerras cisplatinas, tornou-se o vilão preferencial
da literatura, da teledramaturgia e da historiografia de matizes regionalistas, porque
trocou três vezes de lado durante o conflito farroupilha, acabando por ter um papel
militar importante no desfecho favorável ao Império. Os aspectos militares da atuação
do Marechal já foram tratados no capítulo anterior. Aqui, cabe apenas assinalar sua
proeminência nesse campo e analisar a trajetória de sua família, que conseguiu reiterar-
se no topo da hierarquia social da Fronteira, e mesmo da província, ao longo de todo o
século XIX.
O sucesso da família chegou a dar origem a lendas que alimentaram
algumas das produções literárias referidas acima. Bento Manoel teria um pacto com
uma princesa moura encantada, que habitaria uma gruta, uma “salamanca” do Cerro do
Jarau, onde os Ribeiro de Almeida tinham sua principal estância, vindo daí seu sucesso
na guerra e na paz. Deixando de lado as pretensas habilidades do Marechal para pactuar
favores com o além, creio que a investigação da trajetória dessa família tem muito a
mostrar sobre as estratégias da elite agrária e as características próprias do mundo da
Fronteira. A ênfase será dada para o período em análise nesta tese, que abrange a
atuação do próprio Marechal e as alianças construídas a partir do casamento de seus
filhos. Todavia, sem a pretensão de ser exaustivo, será necessário também dar alguns
mergulhos no período anterior e posterior ao trabalhado aqui.
Bento Manoel Ribeiro nasceu em Sorocaba, capitania de São Paulo, em
1783. Seu pai, Manoel Ribeiro de Almeida, transportava tropas vindas do sul para
aquela vila e, a convite de um irmão, mudou-se para o Rio Grande de São Pedro em
1788, levando consigo a família.
451
Instalaram-se em Cachoeira, distrito rural de Rio
Pardo, então a vila mais ocidental do território rio-grandense. Além de Bento Manoel, o
451
Esse era um fenômeno migratório recorrente naqueles tempos: das rotas do comércio de tropas para o
Rio Grande de São Pedro. Sobre essas rotas de pessoas e mercadorias: HAMEISTER, Martha Daisson. O
Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias
semoventes, 2002.
219
casal Manoel Ribeiro de Almeida e Ana Maria Bueno tiveram mais dois filhos homens
e uma filha mulher, todos já nascidos em território rio-grandense. Em 1800, com
dezessete anos, Bento Manoel aparece alistado no Regimento de Milícias de Rio Pardo.
Segundo seus biógrafos, ele participou das campanhas de 1801, que resultaram na
conquista do território dos Sete Povos das Missões Guaranis aos espanhóis. A partir daí,
a vasta região então conhecida como Fronteira do Rio Pardo e que englobava, grosso
modo, o que é hoje a metade oeste do atual estado do Rio Grande do Sul, foi sendo
rapidamente ocupada pelos portugueses. Bento Manoel teria feito essa campanha ao
lado de seu irmão por parte de pai, mais velho que ele, o Furriel Gabriel Ribeiro de
Almeida, que viria a ganhar sesmaria nas terras do futuro município de Alegrete.
452
Como já foi dito no capítulo “2”, em 1807, Bento Manoel casou-se na vila
de Caçapava com Maria Mância, filha de Antônio Monteiro Mâncio e de Ana Maria
Martins. Já como Furriel, a partir de 1811, Bento Manoel voltou ao front, participando
das campanhas da Cisplatina. Sua carreira nessas campanhas foi brilhante. Em 1823, ele
envergava o posto de Coronel e era o Comandante da Fronteira de Alegrete. Ele voltou
a ocupar esse mesmo cargo alguns anos depois, entre 1831 e 1834. Neste último ano,
quando Bento Manoel era também deputado na Assembléia Provincial, foi deposto da
comandância da Fronteira pelo presidente da província Antônio Fernandes Braga. Essa
deposição esteve na raiz de sua entrada no movimento Farroupilha ao lado dos rebeldes,
em 1835.
453
Depois disso, Bento Manoel trocou de lado três vezes durante o conflito e
terminou a guerra como Marechal do Império. Nas campanhas contra os chefes platinos
Oribe e Rosas, em 1851-52, chegou a ocupar o cargo de Comandante-Chefe do exército
em operações, mas afastou-se, segundo seus biógrafos, por problemas de saúde. Faleceu
alguns anos depois, em 1855.
Ao mesmo tempo em que brandiu armas e comandou exércitos contra os
castelhanos, contra os brasileiros e contra os rio-grandenses, Bento Manoel construiu
um sólido patrimônio agrário na Fronteira. É dele a terceira maior fortuna entre os 206
patrimônios inventariados de minha amostra, atingindo £ 22.650,26 com apenas 8% de
dívidas passivas a saldar. Possuía, então, uma chácara nos subúrbios da vila de Alegrete,
Tinha, também, quatro casas na mesma vila. Seu principal patrimônio agrário, no
entanto, eram as quatro estâncias contíguas, localizadas ao pé do Cerro do Jarau, na
parte sul do município, totalizando 14 léguas de campo (60.0984 ha.).
452
“Sesmarias. Cx. 6, M. 20, N. 315. AHRS.”
453
LEITMAN, Spencer. Raízes Socioeconômicas da Guerra dos Farrapos, 1979.
220
Todavia, nem só de cargas de cavalaria e criação de gado se ocupava Bento
Manoel. Ele e sua esposa, Dona Maria Mância, tiveram quatro filhos homens e três
filhas mulheres:
Um dos filhos do casal, o Dr. Sebastião Ribeiro, cursou direito e trilhou uma
breve carreira na burocracia imperial, antes de seu precoce falecimento, quando ainda
era solteiro.
454
Seus três irmãos seguiram o caminho paterno, tornando-se grandes
criadores de gado em Alegrete e no município vizinho, Uruguaiana, além de ocupar
comandos militares. Eles casaram com filhas de homens que eram grandes criadores de
gado na Fronteira e estavam incluídos dentre 16 mais afortunados de nossa amostra, e
que nunca ocuparam qualquer posto militar. Um deles, Antônio José de Oliveira exercia
também, regularmente, a atividade de prestamista. Por sua vez, a filha mais velha de
Bento Manoel, Dona Ana Dorotéa, casou-se com um parente de sua mãe, importante
estancieiro no município de Caçapava. Já as outras duas filhas casaram-se com oficiais
militares das forças de primeira linha.
A trajetória e as alianças estabelecidas por esta família apresentam uma
interessante diversificação dos campos sociais, onde a família era capaz de atuar. Se,
como vimos, a atuação dos titulares dos inventários pesquisados não pode ser restrita,
de forma absoluta, a uma única atividade, isso fica ainda mais claro quando rompemos o
isolamento dos agentes e os percebemos inseridos no contexto de suas relações
familiares. No caso dos Ribeiro de Almeida, se tomadas em conta as atividades do pai,
dos filhos, dos genros e das famílias às quais pertenciam os genros e as noras, vemos
que estavam presentes a produção pecuária em larga escala, as carreiras militares com
ambições ao mando sobre as questões da guerra e da fronteira, uma profissão liberal
com aspirações políticas e, finalmente, o prestamismo. Certamente, ter um filho casado
com a filha de um comandante militar ou de um importante prestamista local não era o
mesmo que desempenhar por si próprio essas atividades, mas significava uma inserção
naqueles campos, através da presença nele de um dos ramos de sua rede parental.
Ampliando o espectro das alianças parentais, os casamentos permitiam, assim, que a
família solidificasse sua atuação em um determinado campo e estendesse sua presença
para outros.
454
BRITO, Francisco de Sá. Memória da Guerra dos Farrapos, s/d., p. 186.
DIAGRAMA 1 - FAMÍLIA RIBEIRO DE ALMEIDA - CASAMENTOS E PRINCIPAL ATIVIDADE PROFISSIONAL
Dr. Sebastião Ribeiro
Ana D. Ribeiro Belchior M. Mancio
Ten. Cel. Severino
Ribeiro de Almeida
Eufrásia de Oliveira
Ribeiro
Major Antônio Mancio
Ribeiro
Joaquina Ribeiro
Raquel Ribeiro Câmara
Brgdo. Francisco de
Arrudamara
Maria Raquel
Dr. Severino Ribeiro
Monteiro
Mal.
Bento Manoel Ribeiro
Maria Mancia Ribeiro
Benvenuta Ribeiro
Monteiro
Brgdo. Vitorino
Carneiro Monteiro
"Bao deo Borja"
Cel. Feliciano Ribeiro
de Almeida
Joaquina de Oliveira
Ribeiro
Dr. Vitorino Ribeiro
Monteiro
Mal. Bento Manoel R.
C. Monteiro
Florêncio R. C.
Monteiro
Estancieiro-militar ou filha de estancieiro-milita
r
Estancieiro ou filha de estancieiro
Militar de 1ª linha
Casamento consangüíneo
Com diploma acadêmico
LEGENDA
Irmãs
222
Essa mescla de atividades e múltiplas atuações de membros de uma
parentela é coerente com a grande presença e efetividade dos laços familiares dentro das
sociedade de Antigo Regime, dos mundos coloniais e que, como vimos, estendia-se para
dentro do século XIX no Brasil. Aponta, assim, para as características próprias de uma
economia pré-industrial, onde as atividades econômicas encontravam-se amarradas a
pautas sociais.
455
Veja-se bem, não se trata de famílias que diversificavam suas
atividades colocando seus integrantes em campos demasiadamente especializados e
estanques. Como espero restar demonstrado ao final do trabalho, esses campos de
atuação influenciavam-se reciprocamente de maneira intensa, apresentando-se
verdadeiramente imbricados.
Dentro dessa característica geral de variedade das áreas de atuação, podemos
esboçar, previamente, quatro elementos da estratégia social dos Ribeiro de Almeida e
que, como veremos, estavam presentes também na atuação de outras famílias da elite
agrária:
1- os filhos-homens tenderam a seguir as mesmas atividades dos pais que, no
caso dos Ribeiro de Almeida, era a conjugação das atividades militares com a pecuária;
2- as alianças via casamento possibilitavam, à família, tanto um reforço
qualificado das atividades que já desempenhavam, quanto um alargamento de seus
contatos para outras áreas, através de seus novos parentes.
3- houve a re-atualização de alianças com outros ramos da mesma parentela;
muitas vezes, esses casamentos se davam com parentes que residiam nos municípios do
leste da província, renovando relações e uma atuação familiar que ultrapassava o nível
local.
4- houve o envio de um filho para obter diploma acadêmico;
O quadro “5.1” traz a freqüência com que essas práticas aparecem nas
famílias estudadas.
456
455
POLANYI, Karl. A Grande Transformação, 1980.
456
Não aparecem no quadro “5.1” os casais Feliciano Pereira Fortes e Auristela Ribeiro de Almeida; e
Antônio Joaquim Barbosa e Francisca Barbosa de Carvalho, porque não tiveram filhos.
QUADRO 5.1 - FREQÜÊNCIA DAS PRÁTICAS ESTRATÉGIAS NAS FAMÍLIAS DA ELITE AGRÁRIA (ALEGRETE, 1825-1865)
Casal 1 2A 2B 3 4
João Batista de Castilhos Julia J. da Silva X X X X
Agostinho D. de Souza Teresa J. de Jesus X X X
Joaquim Antônio de Oliveira Maria J. da Silva X
Albino José de Lima Mathilde Assumpção X X X X
Francisco Telles de Souza Floriana M. de Jesus X X X
Manoel Joaquim do Couto Potenciana do Couto X X X X
Manoel José de Carvalho Custódia de Carvalho X X X X X
Bento Manoel Ribeiro Maria M. Ribeiro X X X X X
José Antônio Martins Rosa V. Martins X X X
Liberato Rodrigues Jacques Mariana R. Jacques X X
Cirino José de Carvalho Rufina de Carvalho X X X
Antônio José de Oliveira Rita M. de Oliveira X X X
Olivério José Ortiz Febrônia C. Ortiz X X X X
Severino Ribeiro de Almeida Eufrásia de Almeida X X X
Fontes
: Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. Cartório do Cível e Crime. Cartório da Provedoria. 1831 a 1870. APRS.
1- Maioria dos filhos dedicam-se às mesmas atividades de seus pais; 2A – Presença de casamentos que reforçavam a principal atividade da família; 2B – Presença de casamentos que
diversificavam as atividades da família; 3- Casamentos com parentesco próximo: primo-prima, tio-sobrinha; casamentos entre co-cunhados; 4- Filho com formação acadêmica.
224
Vejamos, mais detidamente, cada um desses aspectos.
1. Tanto no caso do desempenho da pecuária quanto no que tange à
ocupação de cargos militares, o fato dos filhos homens seguirem os passos do pai era
francamente facilitado pela existência um patrimônio previamente construído pela
atuação paterna. Tal patrimônio era composto por estâncias, gado, escravos, relações
comerciais, crédito e informações, no caso da pecuária e negócios, e por cargos e
relações sociais, no caso dos postos militares. Como vimos no capítulo anterior, os
filhos de grandes estancieiros tinham facilidade no início de suas trajetórias como
pecuaristas, uma vez que muitos deles recebiam gado e escravos como adiantamento de
herança, podiam criar seu primeiro rebanho nas terras de seus pais, sem necessitar pagar
qualquer forma de arrendamento e contavam com o crédito que seus pais já haviam
conquistado no mercado.
Por sua vez, o prestígio e as relações pessoais dos pais no meio militar
rendiam dividendos àqueles dentre seus filhos que se aventurassem por esses caminhos.
Certamente, não foi por acaso que a trajetória militar de Severino e Feliciano, filhos do
Marechal Bento Manoel, tenham ganhado impulso nos últimos anos da década de 1840,
ao ocuparem postos importantes no momento em que o Comandante da Fronteira era o
Coronel Arruda Câmara, que havia sido braço direito de Bento Manoel no final da
Guerra dos Farrapos e que, naquela mesma época, viria a desposar uma de suas filhas.
A historiografia tem ressaltado que a carreira das armas na 1ª. linha, no
Brasil, estava longe de ser uma profissão prestigiada, pelo menos até a Guerra do
Paraguai.
457
Todavia, o contexto bélico da Fronteira Meridional fez com que, ali, as
coisas fossem um tanto diferentes. As famílias da elite tinham membros que, sendo
estancieiros ou comerciantes, conseguiam ocupar postos de grande importância nas
forças de 2ª. linha. Porém, como vemos no caso dos Ribeiro de Almeida e também de
outras famílias daquele grupo, os promissores oficiais do exército podiam ser bem
recebidos no mercado matrimonial da Fronteira. Da mesma forma, algumas dessas
famílias passaram a enviar seus filhos para a Academia Militar, buscando formá-los
como oficiais do exército, como era o caso de Pedro Fortunato, filho do Brigadeiro
Olivério José Ortiz.
458
2. Ainda que a maioria dos filhos de Bento Manoel tenha seguido o pai como
estancieiros-militares, eles casaram-se com filhas de homens que jamais haviam
ocupado qualquer posto militar, mas cujo patrimônio pecuário e fundiário eram
457
SCHULZ, John. O Exército na Política: origens da intervenção militar (1850-1894), 1994.
458
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 08, N. 111, A. 1852. APRS”.
225
semelhantes ou superiores ao de Bento Manoel. Antônio Mâncio casou-se com
Joaquina, filha de Antônio José de Oliveira, que figura como dono da maior fortuna e
do mais numeroso rebanho da amostra analisada. Além disso, Oliveira desempenhou
uma atividade regular como prestamista nas décadas de 1840 e 1850, o que demonstrava
que possuía acesso à liquidez e ao crédito, fatores que podiam auxiliar a expansão
patrimonial dos estancieiros e a própria reprodução da pecuária dentro da família. Ele
dera como dote à filha nada menos do que 1.000 reses de criar e uma escrava. Por sua
vez, Severino e Feliciano casaram-se com duas irmãs, filhas de Joaquim Antônio de
Oliveira, que era um viúvo recente e não precisou dotá-las, já que elas haviam acabado
de herdar metade da fortuna familiar, em razão do falecimento da mãe. Esse inventário,
aberto em 1839, apresentou a maior fortuna e o maior rebanho de gado (cerca de 25.000
reses) dentre todos os processos abertos na década de 1830.
459
Em um contexto em que
as terras estavam encarecendo rapidamente, ao mesmo tempo que se tornava cada vez
mais difícil reproduzir a grande criação na escala em que ela fora praticada até o final da
década de 1830, esses casamentos ganhavam ainda mais importância. Certamente, tais
alianças desempenharam relevante papel na busca desses jovens casais em manter sua
posição econômica. Tratava-se do reforço da posição da família no mundo da pecuária e
de seu acesso a patrimônios pecuários de um vulto ainda maior que o seu, e também ao
crédito e à liquidez, ao se ligaram com um importante prestamista local.
Por outro lado, os casamentos das filhas de Bento Manoel, bem como o
investimento nos estudos do filho solteiro, dão boa idéia da posição que seu pai ocupava
na Fronteira e também das ambições familiares. Suas duas filhas mais jovens, Raquel e
Benvenuta, casaram-se com dois oficiais pernambucanos das tropas de primeira linha
que o Império havia enviado ao sul para combater os rebeldes farroupilhas. Como já foi
dito, um deles, o então Coronel Francisco de Arruda Câmara, estivera sob o comando
direto de Bento Manoel nos anos finais da guerra. Finda a sedição, ele assumiria, em
1846, nada menos do que o Comando da Fronteira. O outro genro, o Major Vitorino
Carneiro Monteiro, esteve sob as ordens do Coronel Arruda e, portanto, também de
Bento Manoel, na Farroupilha. Entrou na guerra como ajudante-de-campo e saiu dela,
em 1845, como major. Logo depois, casou com a filha de Bento Manoel. Seu futuro foi
bem-aventurado. Sabendo combinar uma exitosa atuação militar com as possibilidades
que lhe davam o patrimônio material e imaterial dos Ribeiro de Almeida, Vitorino
Monteiro chegou a Comandante Geral das Armas da Província na década de 1870.
Naqueles anos, seus cunhados ocupavam os comandos da Guarda Nacional em Alegrete
459
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 01, N. 62, A. 1839. APRS”.
226
e Uruguaiana, os dois maiores municípios da Fronteira.
460
Além disso, foi agraciado
com o título de Barão de São Borja. O reforço e a reprodução da posição da família
dentro da organização militar da província, bem como a ampliação das possibilidades de
ingerência nos negócios da guerra e da fronteira, estão bem claros a partir dessas
alianças.
Assim, os casamentos não tramavam apenas laços entre as famílias da elite
local. Apareceram também ali, de um lado, os genros chegados havia pouco e que
buscavam inserção local e, de outro, os casamentos realizados com habitantes das áreas
antigas de colonização, no leste da província. Como em outras áreas do Brasil colonial e
monárquico, os forasteiros eram bem-vindos, desde que fossem portadores de bons
recursos. Ainda que o acolhimento de genros comerciantes pareça não ter tido a
primazia percebida por Sheila Faria em Campos dos Goitacazes, comerciantes vindos de
longe, como os irmãos paulistas Manoel e João de Freitas Valle, conseguiram ótimos
casamentos em duas famílias da elite agrária local, os Nunes Coelho e os Carvalho.
461
Foi o mesmo caso do comerciante português Bernardino Madeira Ilharco, que casou-se
com a filha de Manoel Joaquim do Couto, proprietário das maiores extensões de terras
entre todos os titulares de inventários analisados, possuindo nada menos do que sete
estâncias espalhadas entre Alegrete, Uruguaiana e no Estado Oriental. Ainda, como já
foi dito, os militares de primeira linha, que não gozavam de bom conceito em outras
partes do Brasil, tendiam a ser bem recebidos na Fronteira, desde, é claro, que fossem
oficiais promissores, como os genros de Bento Manoel Ribeiro. Por sua vez, no que se
refere aos casamentos com moradores dos municípios do leste da província, eles
ocorreram, na maioria das vezes, entre parentes consangüíneos próximos, como primos-
irmãos e casamentos entre tio e sobrinha.
3. Ana Dorotéa, a filha mais velha de Bento Manoel, casou-se com seu tio
Belchior Monteiro Mâncio, irmão de sua mãe. Assim, re-atualizou a aliança com esse
outro ramo da parentela. Os 16 inventários mais abastados da amostra pesquisada
somavam um total de 101 filhos como herdeiros.
462
Consegui mapear 62 casamentos
realizados por esses herdeiros. Apenas três herdeiros tiveram registrados mais de um
casamento. Ou seja, consegui encontrar casamentos de 59 entre os 101 herdeiros.
Considerando, ainda, que alguns deles devem ter falecido solteiros, creio que essa é uma
boa amostra dos casamentos dos filhos-herdeiros presentes nos inventários de grandes
460
VARGAS, Jonas Moreira. Em Nome do Pai, do Filho e dos Cunhados: disputas políticas da estância
ao parlamento, (texto inédito).
461
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, M. 01, N. 07, A. 1853-7. APRS.”
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, M. 01, N. 18, A. 1853. APRS.”
462
Esses 101 herdeiros correspondem a 14 inventários já que dois dos inventariados não tinham filhos.
227
fortunas de Alegrete. Dentre eles, 12 casamentos (cerca de 1/5) se deram com parentes
consangüíneos próximos: 4 entre primos-irmãos, 3 entre tios e sobrinhas, 5 entre co-
cunhados (casos de matrimônios duplos ou triplos).
Joan Bestard Camps, refletindo a partir de vários trabalhos sobre áreas
rurais na Europa do Antigo Regime, apontou o caráter ambíguo dos casamentos em
graus muito próximos de consangünidade.
463
Por um lado, esses casamentos tinham a
virtude de diminuir os efeitos da dispersão dos patrimônios. Além disso, ajudavam a
renovar e consolidar a união de grupos familiares ao longo do tempo, tornando possível
“a existência de redes de parentesco extremamente solidárias e de grande importância
nas múltiplas relações da vida social.”
464
Re-atualizando alianças, solidificava os laços
que uniam ramos de uma mesma parentela. Como vimos no capítulo “1”, ao longo do
período tratado, a envergadura dos patrimônios agrários tendeu a diminuir em Alegrete.
Ali, era difícil para os filhos repetir o desempenho dos pais, naquele sistema agrário
extensivo. Tratava-se de um contexto de fronteira agrária que ia se fechando, onde a
redução das extensões de terras disponíveis não eram compensadas por significativo
incremento tecnológico. Esse era, possivelmente, um estímulo aos casamentos
consangüíneos na região.
Porém, é o mesmo Bestard Camps quem assinala o outro lado da moeda.
Esse tipo de casamento tem como problema o fato de que “não cria novos parentes”,
reduzindo o campo de alianças da família.
465
As famílias precisavam se confrontar com
esses dois parâmetros conflitantes. Em virtude disso, os casamentos consangüíneos
eram mais empregados em algumas conjunturas específicas, mas não eram
predominantes o tempo todo. Podiam ser realizados por alguns dos filhos mas, em geral,
não era aconselhável que o fosse por todos ou pela maioria deles.
466
Em seu trabalho, Bestard Camps concluiu que os matrimônios próximos
foram utilizados como elementos de proteção, mas seus efeitos negativos na diminuição
da parentela conduziram a combiná-los com matrimônios fora desse círculo parental
mais restrito.
467
A menor fragmentação do patrimônio seria compensada negativamente
por um estreitamento das alianças e das parentelas, que também eram essenciais para a
reprodução da posição social daquelas famílias. Relações sociais, tanto quanto bens
463
BESTARD CAMPS, Joan. La estrechez del lugar..., 1992
464
BESTARD CAMPS, Joan. La estrechez del lugar ...., 1992, p. 118.
465
BESTARD CAMPS, Joan. La estrechez del lugar..., 1992.
466
Sobre a importância das alianças realizadas através dos casamentos dos filhos, em uma abordagem que
une esse tema aos problemas específicos da história agrária ver: FERRER I ALOS, Lourenç. De la
História Agrária a la História de la Familia: o de cómo la historia económica es historia social, 2004, p.
79.
467
BESTARD CAMPS, Joan. La estrechez del lugar…, 1992, p. 149.
228
materiais, faziam parte do patrimônio que se buscava ampliar e proteger. A redução das
parentelas teria efeitos sociais negativos e, inclusive, reflexos econômicos, em uma
economia cuja reprodução se dava tamm por meio dessas relações familiares de
aliança, por onde circulavam favores, informação, lealdade e proteção. As estratégias
sócio-econômicas e, dentro delas, as estratégias matrimoniais, precisavam levar em
conta essa dupla lógica. Apesar de estarmos longe da realidade rural da Europa do
Antigo Regime, as questões apontadas pelo autor parecem ter estado no horizonte da
elite agrária, em Alegrete. O casamento de Ana Dorotea com seu tio e o de Feliciano
Ribeiro com a cunhada de seu irmão foram compensados pelos casamentos fora da
família, feitos pelos outros quatro filhos de Bento Manoel.
No caso de Ana Dorotea e Belchior Monteiro Mâncio, bem como na maioria
dos casos em que integrantes da elite em Alegrete casaram com parentes consanguíneos,
uma outra característica também esteve presente. Esses matrimônios se realizaram com
um cônjuge que era morador das áreas antigas de povoamento, no leste da província.
Eles buscavam reforçar alianças de grupos parentais que estavam espalhados pelo Rio
Grande. Eles demonstram que não houve um total desligamento entre os ramos
parentais que migraram para a Fronteira e os que ficaram nas regiões antigas e apontam
para a possibilidade de atuação dessas famílias para além do âmbito local, através do
reforço e renovação desses laços parentais. Foi o que ocorreu no caso, por exemplo, de
Manoel Joaquim do Couto que, já sendo grande estancieiro na Fronteira, mantinha
negócios de mercadorias e tropas com seu sobrinho João Francisco Vilanova,
comerciante em Porto Alegre. Vilanova acabou por casar-se com Francisca Carolina,
sua prima e filha de Couto.
468
4. Sebastião Ribeiro de Almeida, o filho solteiro de Bento Manoel, fora
estudar direito em São Paulo Como vimos no caso de Sebastião Japejú, filho de Manoel
José de Carvalho, enviar um filho em busca do diploma acadêmico representava um
investimento significativo mesmo para uma família abastada dos confins meridionais do
Império. Como bem notou Sílvia Brügger em seu estudo sobre as famílias de Minas
Gerais nos séculos XVIII e primeira metade do XIX, esses investimentos não visavam
apenas a construção de um futuro sólido para os filhos, mas tinham também como
horizonte a expectativa de que a família pudesse colher os dividendos da atuação do
filho “doutor”.
468
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes, M. 21, N. 258, A. 1867. APRS.”
229
“A preocupação com a educação dos filhos não parece estar ligada
apenas a uma questão de sucesso ou crescimento pessoal, mas a um
projeto que deveria atender aos interesses familiares. Assim, a decisão
de enviar um filho a estudar em Portugal, por exemplo, parecia caber à
família e não apenas ao estudante...”
469
Além da atuação jurídica, um diploma acadêmico, especialmente em Direito,
ainda que também em Medicina, tornava-se algo cada vez mais importante na carreira
política. Esse parece ter sido um interesse verdadeiro dos Ribeiro de Almeida, uma vez
que o jovem Dr. Sebastião iniciou sua carreira trabalhando como secretário de José de
Araújo Ribeiro, Presidente da Província do Rio Grande do Sul no ano de 1836 e, depois,
diplomata a serviço do Brasil na França. O falecimento precoce do Dr. Sebastião
Ribeiro acabou por adiar as esperanças da família em estender seus braços para dentro
do núcleo duro da política nacional. Contudo, as expectativas que motivavam o
dispendioso investimento do envio de um filho para alcançar uma formatura, parecem
estar bastante evidentes nesse caso.
* * *
O filhos e genros do Marechal e de Dona Maria Mância trilharam
importantes carreiras como estancieiros, militares e políticos. Além de Feliciano e
Severino ocuparem comandos militares, como já foi referido, este último figura, ao lado
de seus pais, entre os 16 mais abastados titulares de inventários de Alegrete, por conta
do inventário de sua esposa, Eufrásia de Oliveira Ribeiro, aberto em 1857. O Coronel
Feliciano Ribeiro de Almeida e o Major Antônio Mâncio Ribeiro foram deputados
provinciais. Feliciano era uma importante liderança do Partido Conservador na
Fronteira e foi assassinado, provavelmente por motivos políticos, em 1876.
470
No ano
seguinte, morreu o Barão de São Borja. No entanto, a geração subseqüente conseguiu
reproduzir e, inclusive, ampliar a posição social da família. Tomemos, rapidamente, as
trajetórias dos filhos do Barão de São Borja. O filho mais velho, Florêncio Ribeiro
Carneiro Monteiro, foi estancieiro em Alegrete. Seu irmão, Dr. Severino Ribeiro
Carneiro Monteiro, advogado, casou-se com a filha de seu tio Coronel Feliciano Ribeiro
e foi seu herdeiro político. Foi deputado provincial e deputado geral nas legislaturas de
nas décadas de 1870 e 1880.
471
Já Bento Manoel Ribeiro Carneiro Monteiro, seguindo
os passos do pai e do avô, foi Marechal do Exército. Finalmente, o filho caçula do
Barão de São Borja, Vitorino Ribeiro Carneiro Monteiro foi advogado, diplomata,
469
BRÜGGER, Sílvia. Minas Patriarcal...., 2002, p. 174.
470
VARGAS, Jonas Moreira. Em Nome do Pai, do Filho e dos Cunhados..., (texto inédito).
471
VARGAS, Jonas Moreira. Em Nome do Pai, do Filho e dos Cunhados..., (texto inédito).
230
deputado em 1891, senador da república e presidente do estado do Rio Grande do Sul,
em 1891.
472
Jonas Moreira Vargas realizou um estudo detalhado das estratégias da
família Ribeiro de Almeida nas décadas de 1870 e 1880. O autor demonstrou a profunda
integração entre os empreendimentos pecuários, as atividades militares, a formação
acadêmica e a atuação política, além de perceber que, efetivamente, os membros dessa
família agiam efetivamente em conjunto, ao longo daquelas décadas.
473
Aqui, não é
possível me estender nesse tema, mas é necessário ressaltar, rapidamente, alguns fatores
básicos. A família continuava contendo a imbricação das atividades agrárias na
Fronteira com as carreiras militares, as profissões liberais e as aspirações a compartilhar
o mando político. Contudo, as atividades variadas, que eram desempenhadas de forma
muito conjunta nas carreiras de Bento Manoel e seus irmãos, e também nas carreiras de
seus filhos, parecem especializar-se um pouco mais, na terceira geração. Essa
especialização talvez possa ser lida como uma busca de adaptação da estratégia familiar
a um universo político e econômico em mutação, ainda com os mesmos objetivos
comuns de preservar a fortuna e o prestígio social da família, além de seguir
participando da partilha do poder político. Afinal, a criação de gado mudara suas bases
depois da crise e extinção da escravidão e da modernização das últimas décadas do
século XIX. Os diplomas acadêmicos estavam mais difundidos, o oficialato do exército
certamente não tinha o mesmo sentido em 1880 do que em 1840. Mas essas seguiam
sendo as áreas preferencialmente freqüentadas pelos membros da família.
Havia também antigas práticas que pouco tinham mudado. Lá estavam os
filhos do Barão de São Borja estabelecendo alianças que alargavam a parentela ao casar
fora da família enquanto um deles, o Dr. Severino Carneiro Ribeiro Monteiro, casava-se
com uma prima pois “cada matrimônio próximo tem o efeito negativo de não criar
novos parentes, mas o efeito positivo de consolidar os que já se tinham, atraindo ao
centro da relação os colaterais que se iriam dispersando.”
474
Com esse casamento, o
casal formado pelo Dr. Severino e por Dona Maria Raquel potencializou a herança
material e imaterial da família, colocando mais um laço entre os núcleos do Barão de
São Borja e do Coronel Feliciano Ribeiro de Almeida. Enfim, como já foi dito, somente
uma análise específica do contexto histórico onde atuaram esses agentes, no ocaso do
Império e nos primeiros anos da República, poderia dar lugar a análises mais seguras.
472
ALMEIDA, Antônio da Rocha. Vultos da Pátria, s/d.
473
VARGAS, Jonas Moreira. Em Nome do Pai, do Filho e dos Cunhados..., (texto inédito).
474
BESTARD CAMPS, Joan. La estrechez del lugar..., p. 117.
231
Aqui, cabe apenas registrar a re-atualização de estratégias já experimentadas nas
conjunturas incertas da Fronteira Meridional, nos dois primeiros terços do século XIX.
5.4 - Os múltiplos de gado, espadas e patacões
“OLIVEIRA”
Os elementos estratégicos percebidos nas trajetórias de Bento Manoel
Ribeiro e de seus filhos não eram uma exclusividade dessa família, no contexto da elite
agrária de Alegrete. Seus traços gerais se repetiam, por exemplo, no caso da família de
Antônio José de Oliveira, sogro de um dos filhos do Marechal Bento Manoel. Uma
rápida análise das escolhas matrimoniais e sócio-econômicas dos Oliveira permite
mudar o foco e enveredar por uma das ramificações formadas a partir do casamento de
um dos filhos de Bento Manoel e Maria Mância.
Como vimos no capítulo “1” Oliveira era dono da maior fortuna entre todas
aquelas da amostra de inventários pesquisados e possuía estâncias em Alegrete,
Uruguaiana, Itaqui e no Estado Oriental. Sua trajetória guarda semelhanças com a do
Marechal Bento Manoel, no sentido de que ambos tinham patrimônios assentados sobre
a pecuária, atividade essa que era desenvolvida em enormes estâncias na Fronteira.
Contudo, ao contrário daquele, Antônio José de Oliveira jamais ocupou qualquer cargo
militar de relevo. A idéia corrente que associa quase que de imediato os grandes
estancieiros com as atividades militares, não encontra respaldo neste sujeito. Aliás, ela
não corresponde mesmo a 11 entre os 15 mais afortunados estancieiros da amostra
pesquisada. Longe da imagem do caudilho engalonado reinando sobre o pampa de cima
de seu cavalo, Antônio José de Oliveira residia a maior parte do tempo em sua casa na
Vila de Alegrete, de onde dirigia a grande estância que possuía no limite do município
vizinho, de Uruguaiana e suas outras duas propriedades, na República Oriental e em
Itaqui. Também emprestava dinheiro com regularidade, durante aquele meado do
Oitocentos.
Ele e sua esposa, Dona Rita Maria de Oliveira, tiveram dois filhos homens e
cinco filhas mulheres. O filho mais velho, João Antônio Prestes de Oliveira, tornou-se o
braço direito de seu pai na administração das estâncias e não foi possível descobrir com
quem se casou. O outro filho-homem, Manoel, era o caçula de todos e tinha apenas 14
anos quando do falecimento de seu pai. Naquele momento, estava cumprindo seus
estudos na capital da Província. Talvez seu endereçamento futuro fosse a busca de um
diploma acadêmico. Duas das filhas casaram-se com homens que tiveram carreiras
militares de destaque. Eram o Capitão Manoel Ferreira Bicca, de abastada família de
232
pecuaristas com bases na Fronteira e em Rio Pardo, e o Major Antônio Mâncio Ribeiro,
filho do Marechal Bento Manoel Ribeiro, de quem já falei acima. Outra filha casou-se
com João Xavier de Azambuja Vilanova, que alcançou o posto de alferes, sem galgar
posições de grande prestígio no meio marcial, mas que vinha de uma família de grandes
estancieiros e comerciantes do litoral. Outra filha do casal, Dona Senhorinha, casou-se
com João Balthar, membro da uma importante família de comerciantes argentinos
instalados em Alegrete. A última das filhas, Ana Cândida de Oliveira, era ainda menor e
solteira quando seu pai faleceu.
475
A comparação dessa configuração familiar revela paralelos importantes com
a do Marechal Bento Manoel. Novamente, está presente o fato de que o filho homem
tende a seguir a profissão ou o ramo de negócios do pai. João Antônio Prestes de
Oliveira tornou-se um grande estancieiro e não seguiu carreira nas armas. Aqui parece
se confirmar que, para os filhos de pais que já eram altos oficiais militares, essa carreira
estaria facilitada. Mais importante: os genros de Antônio José de Oliveira, por si e por
seus familiares, traziam para aquela família a possibilidade de contar com gente de suas
relações em áreas onde não atuavam por si mesmos: os altos postos militares e o
comércio.
O casamento da filha de Antônio José de Oliveira com o filho do Marechal
Bento Manoel ilustra bem esse tipo de complementaridade. Este último havia visto,
provavelmente com muito gosto, seus filhos casarem-se com filhas de estancieiros que
não eram militares, mas que possuíam cabedais e fortunas agrárias ainda maiores que a
sua. Antônio José de Oliveira, por sua vez, conseguia, através do casamento de suas
filhas, contar com parentes que ocupavam os altos cargos militares da Fronteira. Assim,
mesmo que não houvesse jamais feito carreira militar, Antônio José de Oliveira podia
contar com a presença dos seus parentes Ribeiro e Ferreira Bicca, nesses domínios.
Como vimos no capítulo “4”, a busca de angariar - tanto quanto fosse possível - algum
controle das cambiantes conjunturas de fronteira e alguma defesa para as épocas
recorrentes de guerra aberta, eram preocupações que estavam na ordem do dia para os
grandes estancieiros, mesmo para aqueles que jamais se envolveram pessoalmente em
batalhas ou em cargos de autoridade. A possibilidade de contar com alguma ingerência
nesses campos era de grande importância para poder levar a bom termo a produção
pecuária em grande escala, muitas vezes com propriedades dos dois lados do limite
nacional, em meio à endemia bélica que grassava naqueles pagos.
475
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, M. 02, N.52 , A.1865. APRS.”
233
No caso das famílias Ribeiro de Almeida e Oliveira, as relações parecem ter
sido mesmo bastante estreitas. Antônio José de Oliveira foi o procurador do Marechal
Bento Manoel no processo de inventário post mortem de sua esposa, em 1853. Na
mesma oportunidade, pagou uma dívida expressiva do Marechal, assumindo o crédito
para si. Além disso, quando faleceu, em 1865, seu inventário apontava que seus maiores
devedores eram seus filhos, seus genros e o Capitão Feliciano Ribeiro de Almeida, filho
de Bento Manoel.
476
Essa diversidade de atividades dentro de uma mesma família, boa parte dela
trazida pelas alianças matrimoniais, já aparecera nas três grandes famílias da elite sulina
do século XVIII, estudadas por Fábio Kuhn. Homens que se dedicavam à pecuária, à
negócios de tropa e ao arrebanhamento de gado bravio estavam intimamente
aparentados com militares e comerciantes.
477
Assim como no caso do século XIX,
estudado aqui, o Rio Grande no século XVIII também era caracterizado economia pré-
industrial, com importante papel desempenhado pecuária extensiva em uma zona de
fronteira política e constantemente assolada pela guerra. É claro que havia diferenças
em todos esses setores. No século XIX a pecuária esteve voltada de forma mais decidia
476
Seguem alguns exemplos de configurações semelhantes às descritas, em famílias da elite agrária de
Alegrete. Outras poderiam estar listadas aqui, mas creio que essas, somadas às quatro que são trabalhadas
em detalhe no corpo do texto, já bastam para afiançar a recorrência da combinação da maioria daqueles
elementos apontados para a trajetória dos Ribeiro de Almeida. Na família de Francisco Telles de Souza e
Floriana Maria de Jesus, os dois filhos tornaram-se estancieiros, como o pai, tendo, um deles, João,
casado Rita de Cássia, filha do Brigadeiro Olivério José Ortiz, comandante militar de que tanto já se falou
aqui. Duas filhas casaram com comerciantes, sendo que um deles havia chegado havia pouco a Alegrete.
No caso da família Mathilde Joaquina da Assumpção e Albino Pereira de Lima, estancieiro que tamm
praticava, em menor escala, o comércio de mercadorias e de tropas, os filhos se tornaram estancieiros,
uma das filhas casou-se com o Coronel José Ribeiro de Almeida, irmão do Marechal Bento Manoel e
outra casou-se com o comerciante Roque Machado Ferreira, que aparece como credor de seu sogro em
seu inventário. O Coronel José Antônio Martins, estancieiro e militar, parece ser uma exceção ao
comportamento dominante, que era de os filhos-homens seguirem as atividades dos pais. Isso pode ser
explicado pela ordem de nascimento de seus filhos: o coronel e sua esposa tiveram cinco filhas mulheres
e, só depois delas, dois filhos homens. Assim, o genro mais velho, Tenente-Coronel Miguel Luiz da
Cunha, parece ter desempenhado o papel de filho mais velho, sendo militar e estancieiro, enquanto os
filhos caçulas tornaram-se apenas estancieiros. Das outras quatro filhas do coronel, duas casaram-se com
comerciantes do leste da província e as outras duas com estancieiros de Alegrete. Por fim, Potenciana e
Manoel Joaquim do Couto, estancieiros e negociantes de tropas, tiveram três filhos e dois genros
estancieiros, um genro comerciante de mercadorias e negociante de tropas que era também parente
consangüíneo (residia em Porto Alegre), outro genro comerciante recém-chegado a Alegrete.
477
O Capitão-Mor da Vila de Laguna, João Rodrigues Prates, praticava o arrebanhamento de gado no
Continente de São Pedro e depois comerciava os animais com Sorocaba. Tornou-se também estancieiro
com terras em Viamão. De seus genros, um foi “comerciante bem relacionado e outros dois militares
importantes” (p.199), outros eram estancieiros e lavradores abastados. Por sua vez, o Capitão de Dragões
Francisco Pinto Bandeira foi um estancieiro-militar que construiu seu patrimônio em meio ao uma
conjuntura conturbada de disputa com os espanhóis, beneficiando-se da apropriação privada de terras e
das correrias de gado. Seus filhos também foram estancieiros-militares, com destaque para Rafael Pinto
Bandeira, que ocupou posição proeminente na liderança militar e política das terras meridionais em fins
do século XVIII. Por sua vez, dois de seus genros eram comerciantes que se afazendaram. Por fim,
Jerônimo d’Ornellas tinha genros ligados ao tropeirismo e à venda de gados para Sorocaba, atividade a
que ele mesmo havia se dedicado, mas tinha também dois genros militares, dois comerciantes e um
lavrador. KUHN, Fábio. Gente da Fronteira..., 2006, p.p. 190-226.
234
à venda de novilhos para as charqueadas; a fronteira tornou-se uma fronteira política
entre dois nascentes Estados americanos; a fronteira agrária, por sua vez, estava se
fechando. Mas é importante perceber que aqueles procedimentos seguiam fazendo parte
do cabedal de práticas sociais com o qual os homens do século XIX puderam contar,
tratando de reinventá-las e adaptá-las a um contexto que era novo, mas que possuía
traços análogos ao período anterior.
Vejamos agora, como as escolhas matrimoniais e as atividades sócio-
econômicas se conjugavam em outras duas famílias da elite agrária de Alegrete,
também ligadas entre si por matrimônio.
“DE CARVALHO
As características gerais apresentadas acima são encontradas também na
configuração familiar de outro estancieiro cuja trajetória é análoga a de Antônio José de
Oliveira. Ao lado deste, Manoel José de Carvalho, cujo itinerário patrimonial já foi
descrito no capítulo “2”, possuía terras em Alegrete, no Estado Oriental e no município
vizinho de Uruguaiana. Ao lado de Antônio José de Oliveira, Manoel José de Carvalho
possuía um dos maiores patrimônios agrários da Fronteira e, como ele, jamais exerceu
qualquer tipo de posto militar.
Como já foi dito, Manoel casou-se com Custódia Maria Jacques, membro de
uma família importante de Rio Pardo. No início do século XIX, juntamente com os
parentes de Dona Custódia, o casal iniciou criação de gado nos extremos da Fronteira
do Rio Pardo, onde futuramente iriam surgir os municípios de Alegrete e Uruguaiana.
Encontramos, outra vez, a maioria dos filhos homens seguindo as atividades de seu pai,
no caso aqui, como criadores de gado que jamais ocuparam altos cargos militares. No
início da década de 1820, os três filhos mais velhos – Adão, Cirino e Florinda –
casaram-se com três irmãos, filhos do Capitão João de Araújo e Silva, de Rio Pardo.
Adão e Cirino tornaram-se grandes pecuaristas, mantendo vários negócios em comum
com seu pai. O quarto filho, João José de Carvalho, trabalhou por muito tempo como
administrador das estâncias de seu pai. Casou-se com Ubaldina, filha do Coronel José
Antônio Martins que era um dos mais prestigiosos chefes militares da Fronteira.
478
478
Lembremos que o Coronel José Antônio Martins era um dos quatro dentre os 16 titulares de
inventários mais afortunados, que havia alcançados importantes postos militares, tendo sido Comandante
da Fronteira por mais de uma vez.
DIAGRAMA 2 - FAMÍLIA CARVALHO - CASAMENTOS E PRINCIPAL ATIVIDADE PROFISSIONAL
Ana C. de CarvalhoAdão J. de Carvalho Zeferina A. de Araújo
João J. de Carvalho
Ubaldina Martins de
Carvalho
Propícia de Araújo
Carvalho
Manoel J. de
Carvalho Filho
Manoel José de
Carvalho
Cusdia Maria
Jacques
Florinda de Carvalho João de Araújo e Silva
Cirino J. de Carvalho Rufina C. de Carvalho
João de Freitas Valle
Maria J. de Carvalho
Major Olivério Ortiz
Filho
Prudência Mendes de
Carvalho
Major Antônio Mendes
Ferreira
Joaquina Taques Dr. Sebastião C. Japejú
Estancieiro-militar ou filha de estancieiro-milita
r
Estancieiro ou filha de estancieiro
Militar de 1ª linha
Casamento consangüíneo
Com diploma acadêmico
LEGENDA
Iros
Sem refencia
Comerciante
236
De outra parte, novamente, os casamentos das filhas e filhos alargavam os
pontos de inserção da família para outras áreas de atuação: o comércio e os postos
militares. A filha Florinda e o genro João de Araújo e Silva Júnior, além de estancieiros,
praticavam também o comércio e o prestamismo. Da mesma forma, João de Freitas
Valle, o primeiro marido de Maria José de Carvalho, era também comerciante. Como
vimos, as fortunas de Manoel José de Carvalho e de Antônio José de Oliveira eram,
disparadas, as mais vultuosas entre as 16 que ultrapassavam as £ 10.000,00. Em ambos
os casos, tratavam-se de patrimônios predominantemente agrários, mas cujos titulares
guardavam vinculações familiares ou pessoais com o comércio e o prestamismo. Creio
não ser abusivo imaginar que essas vinculações, no que se referem ao acesso ao crédito
e à liquidez, podiam ajudar em muito na construção desses patrimônios e, como
veremos adiante, também era importante na própria reprodução da atividade pecuária
em larga escala.
Por sua vez, João José de Carvalho que era genro do Coronel José Antônio
Martins, era o único dentre os filhos de Manoel e Custódia que teve participação militar,
mas o fez ao mesmo tempo que continuava praticando a criação de gado e sem jamais
ter alcançado os postos de comando mais expressivos. Através deste vínculo com os
Martins, e também das duas filhas casadas com majores, a família conseguia contar com
gente das suas relações nos altos postos militares da Fronteira. O mesmo acontecia com
o segundo matrimônio de Maria José de Carvalho, no qual casou-se com um filho do
Brigadeiro Olivério Ortiz, o Major Olivério Ortiz Filho. O casamento da filha mais
nova, Prudência, seguia os mesmo rumos. Ela casou com o Major Antônio Mendes
Ferreira, oficial superior do exército. Assim, as alianças dos Carvalho com os Martins,
Mendes e com os Ortiz repetem aqui a dinâmica das alianças da família de Antônio José
de Oliveira com os Ribeiro e com os Ferreira Bicca. Grandes criadores de gado que
jamais desempenharam atividades marciais estavam estabelecendo alianças com
famílias de importantes estancieiros-militares da Fronteira.
Essas alianças com estancieiros-militares já haviam tido início com o
casamento triplo de Adão, Cirino e Florinda com três filhos do Capitão João de Araújo
e Silva, de Rio Pardo. Uma filha desse capitão, Francisca, casara-se com o Capitão João
José de Freitas, e também foi para Fronteira. João José de Freitas teve importante
atuação militar e comercial em Alegrete e parece ter estado bastante ligado à família de
Manoel José de Carvalho: em 1834 aparece como procurador de Carvalho em Alegrete.
Depois, foram Manoel e seu filho Adão Carvalho que ajudaram Francisca na
administração e no suprimento de sua estância do Pedregal enquanto seu esposo esteve
237
enfermo e logo após seu falecimento, ocorrido em 1846. O único filho do casal havia
falecido antes de seus pais.
Por outro lado, volta a aparecer o fato de que um dos filhos era encaminhado
para alcançar um diploma acadêmico. O filho mais novo, Sebastião Japejú, foi estudar
direito em São Paulo na década de 1850 e, quando retornou, seguiu carreira como
advogado em Alegrete e Uruguaiana. Casou com Joaquina Taques, de família paulista,
quando ainda cursava direito em São Paulo. Como já foi dito, as cartas trocadas entre
Sebastião Japejú e seu pai dão conta de que, mesmo em se tratando de uma rica família
da Fronteira Meridional, a manutenção de um filho em São Paulo para a obtenção de um
diploma era um empreendimento dispendioso. Entretanto, já na primeira metade do
século XIX, os membros da mais destacada elite da Fronteira começavam a considerar
que essa era uma alocação de recursos importante.
Por fim, há o casamento de um tio, Manoel José de Carvalho Filho, com a
sobrinha, Propícia, filha de seu irmão Cirino. Repete-se o caso encontrado entre os
Ribeiro de Almeida. Junto com o casamento triplo entre os rebentos das famílias
Carvalho e Araújo, esse tipo de matrimônio tinha o poder de reagrupar linhagens
familiares e tornar sua união mais estreita. Além disso, reduziam a partilha do
patrimônio familiar. Os laços com os Araújo parecem ter sido muito efetivos realmente,
como testemunha a já comentada proximidade que Manoel José de Carvalho mantinha
com o casal Capitão João José de Freitas e Dona Francisca de Araújo, irmã de suas
noras e genro. Como veremos no próximo capítulo, esse núcleo de irmãos que
realizaram o casamento triplo teve uma atuação bastante vinculada entre si e com seu
pai, Manoel José de Carvalho. Porém, como também já foi dito aqui, esses dois tipos de
matrimônio – entre consangüíneos próximos e casamentos duplos e triplos – tinham o
efeito negativo de restringir as alianças sociais. No caso dos Carvalho, os casamentos
dos outros quatro filhos contrabalançavam esse problema, ligando-os a importantes
famílias de militares e comerciantes.
ORTIZ
Assim como foi feito com as famílias de Bento Manoel Ribeiro e Antônio
José de Oliveira, tomemos uma família conectada à de Custódia e Manoel José de
Carvalho, pelo casamento de seus filhos. Trata-se dos já bem conhecidos Dona Febrônia
Cândida e Brigadeiro Olivério José Ortiz, importante liderança militar da província,
com forte atuação na Fronteira. Como já foi dito quando da análise do itinerário
patrimonial do Brigadeiro, no capítulo “2”, Olivério José Ortiz nasceu em Encruzilhada,
238
no leste da província. Engajou-se nas milícias que lutaram ao lado de Dom Diogo de
Souza contra os castelhanos em 1811 e seguiu fazendo carreira até chegar a Coronel, na
década de 1820.
Casou-se com Dona Febrônia Cândida, e tiveram seis filhos e três filhas.
Dentre os varões, dois tornaram-se oficiais do exército de primeira linha: o Capitão
Antônio Cândido, que faleceu jovem deixando um filho com apenas um ano de idade; e
Pedro Fortunato Ortiz que, quando do inventário de sua mãe, em 1852, era cadete do
exército e veio a se tornar major. Outros dois foram oficiais da Guarda Nacional em
Alegrete e no município vizinho de São Gabriel: o Major Olivério Ortiz Filho, o
Tenente João Pedro Ortiz e o Capitão Gaspar José Ortiz. Eles foram também
estancieiros, atuando, durante parte de sua vida, bastante associados a seu pai, sendo
que Gaspar era o administrador das estâncias que o Brigadeiro possuía em São Gabriel.
O casamento do Major Olivério Filho com a filha de Manoel José de Carvalho garantiu
a ligação dos Ortiz ao enorme patrimônio agrário dos Carvalho, como já havia ocorrido
com os jovens oficiais, filhos do Marechal Bento Manoel, ao se casarem com filhas de
Joaquim Antônio de Oliveira e Antônio José de Oliveira. O mesmo ocorreu com
Antônio Cândido que se casou com uma filha de estancieiros de São Gabriel. E também
com Rita de Cássia Ortiz, casada com João Telles de Souza, filho de Francisco Telles de
Souza, outro dos grandes estancieiros presentes entre os 16 mais abastados
inventariados de nossa amostra.
Outra filha do Brigadeiro, Maria José Ortiz, casou com um primo: José
Pedroso de Albuquerque. A ligação dos Pedroso de Albuquerque com os Ortiz vinha
desde finais do século XVIII, ainda nas zonas antigas de colonização luso-brasileira no
Rio Grande de São Pedro. Como já foi dito no capítulo “2”, o pai de José, o Capitão
João Pedroso de Albuquerque, era um estancieiro-militar de Rio Pardo, que havia se
casado com a irmã mais velha do futuro Brigadeiro Olivério e parece ter tomado para si
a responsabilidade sobre a família de sua esposa quando seu sogro faleceu. A aliança
com esse ramo da família foi reforçada, na geração seguinte, com o referido casamento
de Maria José Ortiz com José Pedroso de Albuquerque. Este havia cursado direito em
Coimbra, mas não chegara a concluir sua formatura.
Dentro da área dos diplomas acadêmicos, como já foi dito anteriormente, o
filho mais velho do Brigadeiro Olivério Ortiz, o Dr. José Ortiz da Silva, fora para a
Corte cursar medicina. Contudo, por algum motivo que foi impossível averiguar,
acabou por afastar-se da família. Quando do falecimento de sua mãe, em 1852, seu pai
declarou não ter certeza de seu paradeiro. Ele foi encontrado trabalhando como médico
239
em Itapemirim, província do Espírito Santo, nomeou procurador de seus interesses no
inventário ao cunhado José Pedroso de Albuquerque, e declarou expressamente que se
conformava com as decisões que seus parentes tomassem sobre o que deveria tocar a ele
na partilha.
479
Depois de tudo terminado, fez uma viagem a Alegrete onde vendeu seu
quinhão para o pai e cunhados.
480
Por fim, Maria Aldina Ortiz, filha caçula do Brigadeiro com Dona Febrônia
Cândida, era ainda solteira quando sua mãe faleceu. Dois anos depois, casou-se com um
homem muito mais velho do que ela e já nosso conhecido. O agora Brigadeiro
Francisco de Arruda Câmara, pernambucano, que fora Comandante da Fronteira e que
havia enviuvado havia pouco de Raquel Ribeiro Câmara, filha do Marechal Bento
Manoel Ribeiro.
A configuração familiar conformada pelo casal do Brigadeiro Olivério José
Ortiz com Dona Febrônia Cândida, mais os seus filhos, genros e noras repete aspectos
encontrados anteriormente. Os filhos-homens seguiram a área de atuação preferencial
de seus pais: três filhos foram estancieiros-militares, tendo sua principal atividade
econômica na criação de gado e ocupando postos de comando na segunda linha. Outros
dois filhos foram encaminhados para se tornarem oficiais do exército profissional. Além
disso, um filho foi enviado para obter diploma acadêmico; estabeleceram-se alianças
com famílias de estancieiros ainda mais bem sucedidos que eles, mas que não ocupavam
postos militares de relevo (neste caso os Carvalho e o Telles de Souza). Ainda, da
mesma forma que ocorreu com a família do Marechal Bento Manoel Ribeiro, a família
do Brigadeiro Ortiz também fez gosto na aliança com outras autoridades militares. O
Brigadeiro Arruda Câmara, que fora Comandante de Fronteira e havia feito seu
estabelecimento de moradia nos campos que o sogro Bento Manoel possuía nas
imediações da vila de Alegrete, nem precisou sair daquela vizinhança para conseguir
um segundo casamento dentro da elite de estancieiros e militares da Fronteira. Sua
futura esposa, a jovem Maria Aldina, filha do Brigadeiro Ortiz, vivia na estância ao
lado.
5.5 - Ligando os Pontos
Tomando a análise de todos esses casos em conjunto, é possível perceber
que, em termos gerais, aqueles comportamentos identificados na trajetória dos Ribeiro
de Almeida, também aparecem no caso de outras famílias da elite agrária em Alegrete
479
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 08, N. 111, A. 1852. APRS”.
480
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 08, N. 111, A. 1852. APRS”.
240
(quadro “5.1”). As práticas estudadas aqui foram os elementos que ajudaram a produzir
a forma como se apresentava aquele grupo social. A análise anônima e seriada, feita a
partir dos inventários post mortem, é muito útil para perceber fatores básicos como a
distribuição da riqueza e as características das diversas unidades produtivas que
compunham aquele universo. Entretanto, ela pode nos passar uma imagem
demasiadamente estanque dos agentes sociais. A partir dela, podemos ser tentados a ver
indivíduos ou casais isolados e a tomar a racionalidade econômica da principal atividade
“profissional” que desempenhavam, como se fosse a única lógica a pautar seu
comportamento. Porém, a contextualização de suas relações sociais e a reconstrução de
suas trajetórias, a partir de uma análise nominal, indicou algo diferente. Aquela elite
agrária não era uma justaposição de estancieiros. Olhando mais de perto, a textura
daquele grupo social era a de uma trama de famílias, em maioria tendo sua base
econômica na pecuária, mas que, por si mesmos ou por seus parentes obtidos via
casamento, marcava presença em mais de um campo de atuação naquela sociedade: a
pecuária, o comércio e, para os que conseguiam, os altos postos militares e os cargos
políticos e administrativos.
Os membros dessas famílias casavam, muito comumente, entre si. Dos 62
casamentos que consegui levantar, 18 (quase 1/3) deram-se entre filhos de titulares de
inventários presentes nas 16 maiores fortunas da amostra pesquisada. Essa proporção
deve estar inflado pelo fato de que foi mais fácil, para mim, encontrar esses casamentos,
já que, em alguns dos casos, eu podia tomar conhecimento deles a partir de dois
processos de inventários post mortem, além dos registros matrimoniais. Ainda assim, é
um número bastante alto. Tanto mais que não estou identificando os casamentos
realizados com membros de outras famílias da elite agrária, que ficaram de fora da
amostra de inventários, ou com integrantes de famílias abastadas residentes nos
municípios vizinhos. A endogamia social não era novidade entre os grupos dominantes
sulinos: ao estudar a elite do sul da América Portuguesa no século XVIII, Fábio Kuhn
percebeu a importância dessa prática, sobretudo no período em que aquela elite já estava
consolidada.
481
Da mesma forma, a endogamia social e familiar já havia sido
identificada pelos historiadores uruguaios Alex Borucki, Natalia Stalla e Karla Chagas,
481
O autor identificou, em terras meridionais, a mesma tendência observadas por outros autores para
outras regiões da América Portuguesa, como o Rio de Janeiro e Pernambuco: nos primeiros tempos de
ocupação a elite local encontrava-se receptiva a forasteiros, depois, quando ela se consolidava, as práticas
endogâmcias aumentavam. KUHN, Fábio. Gente da Fronteira..., 2006, p. 163-4.
241
quando estudaram a trajetória de uma abastada família de estancieiros brasileiros
instalada no Estado Oriental.
482
Porém, há algo muito importante a notar aqui: tais famílias não eram
exatamente iguais umas às outras. Ainda que pudessem desempenhar atividades
semelhantes, algumas delas tinham recursos que outras não possuíam, como as
promissoras carreiras dos oficiais militares ou uma bem firmada atividade de
prestamista ou comerciante, por exemplo. Os casamentos conectavam famílias que
tinham recursos diferentes e alguns recursos semelhantes, potencializando-os. Por sua
vez, havia também genros recém-chegados em Alegrete e casamentos com moradores
do leste da província. Estes últimos se davam, na maior parte das vezes, com parentes
consangüíneos. Esses casamentos impedem de pensar em uma elite local fechada sobre
si mesma.
Além disso, um outro fator que chama a atenção é a ausência de
matrimônios com cônjuges uruguaios e argentinos. Tanto mais em se tratando dos
casamentos de uma elite que tinha propriedades e interesses no Estado Oriental e
habitava uma zona de fronteira onde os recentes e imprecisos limites nacionais estavam
muito longe de impedir deslocamentos, negócios e relações sociais. Nenhum dos 62
casamentos que pude mapear se realizaram com cidadãos das repúblicas vizinhas. Mais
comum parece ter sido o casamento com brasileiros que residiam no Estado Oriental,
embora tivessem familiares no Brasil.
483
Contudo, mais do que a presença majoritária deste ou daquele tipo de
casamento dentro do conjunto da elite agrária, o que deve ser ressaltada é a recorrência
da combinação, em um mesmo núcleo familiar, de casamentos consangüíneos e não-
consagüíneos, de endogamia geográfica com a presença de cônjuges moradores das
áreas antigas ou recém-chegados a Alegrete, de casamentos dentro da mesma atividade
sócio-econômica e fora dela. Essa combinação produzia famílias que estavam
fortalecidas em seu campo principal de atividades, mas que marcavam presença em
outros setores também importantes naquela sociedade; famílias com relações
consolidadas entre seus pares, mas que estendiam suas ligações e sua atuação para um
nível que ultrapassava o local; famílias que reforçavam e re-atualizavam os laços dentro
de uma mesma parentela, mas que também sabiam alargar seu campo de alianças,
através de casamentos externos aos vínculos familiares.
482
BORUCKI, Alex; STALLA, Natália; CHAGAS, Karla. Esclavitud y trabajo: un estudio sobre los
afrodescendientes en la frontera uruguaya (1835-1855), 2004, p.p. 183-185.
483
Era o caso, por exemplo, de dois dos genros de Antônio José de Oliveira, cuja trajetória já foi
analisada aqui. Ver também o já citado estudo de:
483
BORUCKI, Alex; STALLA, Natália; CHAGAS,
Karla. Esclavitud y trabajo…, 2004.
242
Assim, podemos dizer que, por exemplo, Antônio José de Oliveira não era só
um grande estancieiro. Era um grande estancieiro que, além disso, exercia a atividade
de prestamista, tinha um filho e um genro que levavam adiante a atividade pecuária,
dois outros genros cujas famílias ocupavam os mais importantes postos militares da
Fronteira, e um outro pertencente à uma família de bem-sucedidos comerciantes de
Alegrete. O Brigadeiro Olivério José Ortiz era um estancieiro-militar, mas também
negociava tropas de gado para as charqueadas, tinha dois filhos oficiais do exército e
três oficiais da Guarda Nacional, sendo que estes últimos eram também estancieiros (um
deles exerceu, por algum tempo, o comércio e a pecuária, conjugados). Tinha um genro
grande estancieiro e outro que era seu sobrinho, vindo de um ramo familiar residente em
Rio Pardo, com quem os contatos dos Ortiz seguiam sendo re-atualizados. Enfim,
aqueles sujeitos eram, sim, grandes estancieiros, comerciantes, militares, mas sempre se
deve ter em mente que eles estavam ligados por meio de parentesco, e que isso lhes
aportava recursos e prestígio, fatores que, por sua vez, ajudavam a reproduzir sua
posição naquela hierarquia social.
Como já foi dito, as alianças e os encaminhamentos profissionais dos filhos
se faziam conjugados a uma política familiar de compartilhamento de recursos. A
estratégia familiar devia envolver questões relativas às antecipações de herança que, por
sua vez, influenciavam os encaminhamentos que eram dados à sucessão hereditária e à
reprodução social da família entre gerações. Esses temas serão tratados no próximo
capítulo.
243
Capítulo 6 - Antecipações de Herança e Práticas
Sucessórias da Elite Agrária
Maria Aldina, filha mais nova do Brigadeiro Ortiz e de dona Febrônia
Cândida, tinha 16 anos de idade e ainda estava solteira quando sua mãe faleceu, em
1851. No ano seguinte, na conta de herança que o Brigadeiro anexou ao inventário de
sua esposa, entre salários de peões, compras de cavalos e consertos de currais,
encontram-se despesas com a compra e transporte de um piano, de Porto Alegre até
Alegrete. Não era tarefa fácil, esse trajeto atravessava a província de leste a oeste e mais
da metade dele devia ser feito por terra, desde Rio Pardo até seu destino final. Somando
os gastos com transporte, as gratificações a um mestre de música por escolher o piano e
copiar partituras, os salários de outro mestre que foi à Estância da Palma ensinar a
jovem Aldina e afinar o instrumento, os gastos chegaram a mais de 1:200$000. Essa
soma era mais alta do que o preço do escravo mais valorizado no inventário de Dona
Febrônia, cuja avaliação foi de 1:000$000. Cerca de trinta anos antes, Saint-Hilaire já
havia notado que, em Porto Alegre, eram freqüentes os pequenos saraus musicais, onde
algumas senhoras tocavam piano. Porém, o mesmo viajante observa que, no interior,
esse era um instrumento praticamente desconhecido, por causa das dificuldades de
transporte.
484
De fato, esse é o primeiro piano que aparece nos inventários post mortem
de Alegrete. Na década de 1850, em modelos mais fortes e resistentes, os pianos
484
NOAL FILHO, Valter e FRANCO, Sérgio da Costa. Os Viajantes Olham Porto Alegre, 2004, p.44.
244
passaram a ser comuns nas casas de boa família do Império, tornando-se, cada vez mais,
parte da sociabilidade das classes altas.
485
O piano talvez tenha alegrado a vida da jovem Aldina e aliviado sua tristeza
pela perda da mãe mas, além disso, o instrumento também deve ter aparecido como um
objeto apropriado para uma jovem senhora da elite sulina, naquele meado de século. No
ano seguinte, constam gastos de quase 1:500$000 com seu enxoval e casamento. A
moça ganhara, ainda, mais duas escravas de dote. Seu noivo possuía o mesmo posto que
seu pai: era o Brigadeiro Francisco de Arruda Câmara, que fora Comandante da
Fronteira e tinha enviuvado havia pouco, da filha do Marechal Bento Manoel Ribeiro.
Os dotes e outras formas de antecipação de herança foram importantes na construção de
alianças e na viabilização das estratégias sociais das famílias da elite agrária de
Alegrete. Sua composição, porém, não costumava incluir pianos ou outros artigos do
gênero. Ali, eram predominantes os bens apropriados para a produção: gado, cativos e
quantias em dinheiro. Aldina talvez tenha podido refinar seu dote porque contava com a
iminente herança de sua mãe, em fase final do processo de inventário.
O estudo dos dotes e das outras formas de antecipação de herança está
situado no cruzamento de outros temas relacionados à análise das estratégias familiares:
as alianças matrimoniais, as formas proteção do patrimônio e de sua transferência entre
gerações, a preparação dos filhos para a vida adulta e os modelos de organização
familiar. Por isso mesmo, parece-me indicado partir deles para investigar como tais
aspectos se articulavam na experiência as famílias da elite agrária, em Alegrete.
A
antropóloga espanhola Maria Dolors Comas d’Argemir alertou para a relevância do
estudo desses aspectos não de forma abstrata, mas sim no contexto concreto de atuação
das famílias estudadas. Para ela, “o essencial é compreender a utilização estratégica que
diversos grupos sociais fazem do matrimônio, das normas hereditárias, do celibato ou
da geração de filhos no contexto dos mecanismos que condicionam a reprodução social
e os processos de diferenciação social.”
486
Nesse sentido, neste capítulo realizo uma
análise geral das antecipações de herança e do encaminhamento do processo sucessório
nas famílias da elite agrária estudada e, depois, procuro investigar aqueles aspectos
variados da dinâmica familiar no caso concreto de uma dessas famílias. Por fim, busco
elencar os principais elementos da estratégia social da elite agrária estudada.
485
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida Privada e Ordem Privada no Império, 1997, p.p. 45-51.
486
COMAS D’ARGEMIR, María Dolors. Matrimonio, Patrimonio y Descendencia. Algunas histpótesis
referidas a la Península Ibérica., 1992, p.p. 173-174.
245
6.1 - Para começar a vida: as antecipações de herança
No Brasil colonial e monárquico, os casamentos costumavam realizar-se
pelo sistema de “carta de ametade”, que estabelecia a comunhão de bens entre os
cônjuges. Quando um dos cônjuges falecia, o outro conservava metade do patrimônio (a
sua “meação”). Da outra metade, era retirada até uma terça parte para atender às
disposições testamentárias do inventariado, se este houvesse feito testamento, e o
restante seria dividido entre seus herdeiros necessários (descendentes e, se estes não
existissem, os ascendentes).
487
Em um tal sistema de divisão de bens “o dote se fundia
aos bens do casal e não havia garantia, para a esposa, da soma fixada em caso de
viuvez”, observou Muriel Nazzari, autora de um dos trabalhos de maior fôlego sobre o
dote no Brasil, realizado ainda na década de 1980.
488
Quando do falecimento dos
ascendentes, os herdeiros precisavam “trazer à colação” seu “meio-dote”, ou seja,
deviam declarar todos os bens que haviam recebido durante a vida dos pais, de seu valor
era calculado a metade (correspondente ao que teria sido doado pelo ascendente
falecido) e esse valor era descontado do quinhão que o herdeiro teria a receber.
489
É
possível imaginar que essa obrigação fosse cumprida na maioria dos casos, já que os
outros herdeiros, que podiam ser prejudicados em caso de omissão, provavelmente
reclamariam se isso ocorresse. Assim, a presença de bens trazidos à colação fornece um
dado importante para o estudo das dinâmicas familiares de patrimônio. Essa era uma
legislação típica dos sistemas de partilha igualitária, onde as regras jurídicas dão pouca
liberdade aos pais, impondo que a maior parte dos bens deve ser dividida igualmente
entre os herdeiros. Nesses sistemas, os dotes não excluíam da herança as filhas
dotadas.
490
Eram, na verdade, adiantamentos de herança e eram regidos pelas mesmas
487
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de Casamento no Brasil Colonial, 1984, p.p. 97-110.
NAZZARI, Muriel. O Desaparecimento do Dote. Mulheres, Famílias e Mudança Social no Brasil (1600-
1900), 2001, p. 17-20. BRÜGGER, Sílvia. Minas Patriarcal Família e Sociedade (São João del Rei,
séculos XVIII e XIX), 2002, p. 188. .
488
NAZZARI, Muriel . O Desaparecimento do Dote..., 2001, p. 19
489
Dotes dados por um viúvo ou viúva vinham inteiros à colação. O mesmo acontecia se o inventário do
pai e da mãe estivesse sendo realizado conjuntamente. A legislação dava aos herdeiros a opção de não
trazer os bens dotados à colação, se recusasse a herança. Tal opção só era possível seu montante do dote
não fosse superior à legítima que deveria receber por herança. Porém, ainda que o fosse, o herdeiros
poderiam recusar à herança e não trazer os bens à colação se o “excesso” fosse incluído na terça que o
inventariado tinha disponível para legar em testamento. Ver: BRÜGGER, Sílvia. Minas Patriarcal..., p.p.
187-189.
490
O contrário ocorria nos sistemas “de herdeiro único” ou de herança indivisível, majoritários em várias
regiões da Europa, como o nordeste da França e o leste da Espanha no Antigo Regime. Ali, apenas um
dos filhos era escolhido como herdeiro, preservando o patrimônio de uma fragmentação por partilha. A
família se articulava em torno de uma casa, expressão que representava a continuidade dessa linha
patrimonial cuja integridade fora preservada. O filho herdeiro permanecia na casa de seus pais quando se
casava e devia prover os dotes para suas irmãs que, ao casar, passavam a integrar as casas de seus
esposos. Na maioria dos casos, também se deveria propiciar ajudas para que os filhos não-herdeiros
pudessem trilhar seus caminhos autônomos ou permitir que eles permanecessem sob o abrigo e proteção
246
regras quer fossem dadas a filhos ou filhas e não importando se os bens fossem doados
no ato do casamento ou em qualquer outro momento da vida.
491
A difusão e as características da prática de dotar os filhos variaram no Brasil
colonial e ao longo do século XIX. Além disso, apresentaram uma importante
diversidade regional. Em “O Desaparecimento do Dote”, Muriel Nazzari analisou as
transformações na prática do dote de forma longitudinal, estudando amostras de
inventários post mortem de São Paulo nos séculos XVII, XVIII e XIX. A autora
percebeu uma contínua transformação, partindo de uma conjuntura, no século XVII, em
que os dotes tinham suma relevância, sendo largamente difundidos e, muitas vezes,
alcançando valores que eram maiores do que as legítimas que seriam herdadas pelas
filhas quando do falecimento dos pais. Nesse período, os dotes eram constituídos
principalmente por meios de produção, sobretudo cativos indígenas. Ao mesmo tempo
em que permitia conseguir os melhores casamentos, a dotação generosa das filhas era
também um esforço de seus pais no sentido de manter o controle sobre o casal recém
formado.
Esse quadro geral se modificou, nos séculos seguintes, no sentido de uma
diminuição progressiva da difusão e do valor dos dotes, além de uma alteração em sua
composição, que passou a ter mais bens de consumo do que meios de produção.
Naquele momento, nem todas as famílias dotavam e, as que faziam, nem sempre
dotavam todas as filhas. Da mesma forma, os valores dos dotes reduziram sua
importância em relação ao valor da legítima que os herdeiros teriam a receber nas
partilhas sucessórias. Segundo a autora, tais mudanças, especialmente perceptíveis no
século XIX, teriam sofrido influência do avanço do capitalismo e do individualismo, e
estariam refletindo também a transformação da família, que de uma unidade de
produção passava, cada vez mais, a ser apenas uma unidade de consumo.
492
O processo geral foi bem demonstrado por Nazzari, mas a ênfase nas
transformações ocorridas no século XIX podem encobrir o fato de que elas surgiam
da casa, em uma posição claramente subordinada à do herdeiro. Os critérios de seleção do filho herdeiro
variavam bastante e a escolha nem sempre recaía sobre o varão primogênito. Poderia se tratar, inclusive,
de uma filha, nos casos de sucessão matrilinear. BURGUIÈRE, André ; LEBRUN, François. Les Cent et
Une Familles de l’Europe, 1986. BESTARD CAMPS, Joan. La Estrechez del Lugar..., 1992. COMAS
D’ARGEMIR, María Dolors. Matrimonio, Patrimonio y Descendência, 1992. Por fim, havia também
outros sistemas jurídicos, que permitiam um maior grau de liberdade para as famílias, que podiam
estabelecer quantos seriam os herdeiros e como se daria a partilha dos bens entre eles. Neste caso, o dote
também podia se assemelhar à função que exercia nos sistemas de herança indivisível, excluindo as
mulheres da herança de seus pais. LEVI, Giovanni. A Herança Imaterial. Trajetória de um exorcista no
Piemonte do século XVII, 2000.
491
Era o que estava determinado no Título XCVII do Livro Quatro das Ordenações Filipinas. Ver:
BRÜGGER, Sílvia. Minas Patriarcal...., p. 188.
492
NAZZARI, Muriel. O Desaparecimento do Dote..., 2001.
247
muito lentamente, com padrões de difusão que ainda precisam ser estudados. Além
disso, a família como unidade de produção seguiu predominante no universo agrário
(onde estava a ampla maioria da população brasileira) e a família alargada continuava
sendo um referencial de grande importância na atuação social dos agentes históricos, ao
longo do Oitocentos. Os dados sobre dotes, presentes nos inventários post mortem de
Alegrete, nos inícios e meados do século XIX, apresentam compatibilidade, em termos
gerais, com os dados demonstrado por Nazzari para São Paulo, nesse mesmo período.
Nem todas as famílias dotavam suas filhas e as que o faziam doavam bens de valor
relativamente baixo, em relação ao que iria ser herdado depois. Entretanto, não creio
que isso autorize a deduzir uma relevância diminuta das antecipações de herança nas
dinâmicas familiares e, muito menos, considerar que esse era um indicativo do avanço
do individualismo naqueles confins. Em termos de valores absolutos, essas doações
representavam apenas uma pequena parte das legítimas que cada um dos filhos viria a
receber no futuro inventário de sua mãe.
Todavia, é preciso notar que, como salientaram autores que trataram do tema
para outras regiões do Brasil, as antecipações representavam uma vantagem sobre a
herança porque permitiam que os futuros herdeiros tivessem acesso aos bens no
importante momento de iniciar a construção de um patrimônio próprio, muitas vezes
bem antes do falecimento de um de seus pais. Além disso, nem todos os frutos desses
bens vinham à colação no inventário. Carlos Bacellar, estudando o oeste paulista entre a
segunda metade do século XVIII e a primeira do século XIX, observou que “...a
anterioridade do dote em relação à legítima poderia dar ao primeiro um valor relativo
muito maior, pois os lucros auferidos em sua utilização não eram computados no
monte-mor.”
493
No caso da documentação pesquisada aqui, era trazido à colação o valor
atribuído aos filhos das escravas dadas em dote, que houvessem nascido depois que elas
já estivessem em poder dos novos senhores. Mas não era trazida a produção anual da
quantidade de gado que fora doada (um acréscimo de algo entre 20 a 25% de animais
por ano), o que é tanto mais importante em se tratando de uma economia de forte base
pecuária, onde o gado era um dos bens mais presentes nas doações paternas. Também
não era calculado nenhum juro ou correção sobre o dinheiro doado anteriormente e
declarado na colação e, muito menos, era feito qualquer cálculo a respeito do possível
493
O mesmo autor apontou que a importância relativa do dote “não se verificava exclusivamente devido à
sua composição, mas também estava intimamente relacionada ao timing, ao momento, dentro da história
longitudinal da vida de uma família, em que o dote era transmitido.” BACELLAR, Carlos de Almeida
Prado. Os Senhores da Terra: família e sistema sucessório entre os senhores de engenho do oeste
paulista, 1765-1855, 1997, p.142.
248
rendimento do trabalho dos escravos recebidos em dote, durante todos os anos que
transcorreram entre a doação e o inventário. Assim, esses fatores ampliavam a
importância da doação de bens ainda em vida dos pais, mesmo que seu valor em relação
à legítima hereditária parecesse pequeno.
Em um estudo como este, não me parece que as questões relevantes residam
apenas na difusão das práticas de doar bens aos filhos, ou no valor que elas alcançavam.
Esses fatores eram importantes mas, ao invés de ser vista isoladamente, essa prática
precisa ser inserida no contexto das trajetórias familiares específicas, como uma das
práticas pelas quais essas famílias buscavam melhorar suas condições naquela realidade
sócio-econômica.
Além disso, é preciso ampliar o estudo para além dos dotes feitos às filhas e
filhos quando de seus casamentos. Em trabalhos recentes, Dora Isabel Paiva da Costa
vem apontando a necessidade de se estudar sistematicamente todas das formas de
antecipação de herança dadas para os futuros herdeiros, ao longo de suas vidas.
494
Lembremos que, tanto as doações feitas às filhas como aos filhos, tanto as realizadas no
momento do matrimônio como em qualquer outra época, eram regidas pelas mesmas
normas.
495
Mesmo que a expressão “dotes” se referisse àqueles bens doados quando do
casamento, na prática eles tinham exatamente os mesmos efeitos que qualquer outro
adiantamento de herança feito em qualquer época da vida dos herdeiros. Na
documentação pesquisada aqui, todas as doações de bens de pais para os filhos,
ocorridas no momento do matrimônio ou antes dele, foram chamadas de “dotes”. As
doações de bens feitas após o casamento dos filhos não eram nomeadas com essa
expressão, mas seguiam as mesmas regras. Como aqueles, elas eram também formas
adiantamentos de herança.
Além desses adiantamentos de herança, Dora Costa identificou, ainda, um
outro tipo de prática. Eram os “empréstimos” de bens variados, que se declarava
pertencerem aos pais, mas estavam na posse efetiva dos filhos antes da partilha judicial
e mesmo ao longo da vida dos ascendentes. Tecnicamente, no caso dos “empréstimos”,
não teria havido a transferência da propriedade dos pais para os filhos, como ocorria no
caso dos adiantamentos de herança. Costa resolveu nomear de antecipações o conjunto
de ambas as formas: os adiantamentos de herança (fossem eles dotes ou bens doados
494
COSTA, Dora Isabel Paiva da. Herança e Ciclo de Vida: um estudo sobre família e população em
Campinas, 1997. _____. Formação de Famílias Proprietárias e Redistribuição de Riqueza em Áreas de
Fronteira: Campinas, São Paulo, 1795-1850. 2004
495
COSTA, Dora I.P. Formação de famílias proprietárias e Redistribuição de Riqueza em Áreas de
Fronteira..., 2004, p.22.
249
após o casamento) e os empréstimos, e os estudou de forma conjugada.
496
Neste
trabalho, utilizo o termo antecipações com o mesmo sentido cunhado por Costa.
Vejamos, agora, como as antecipações de herança se apresentavam no caso da elite
agrária de Alegrete.
Dos 205 inventários que compõem a amostra estudada aqui, em 108 casos
(53%) os inventariados faleceram sem filhos adultos.
497
Os 96 inventários restantes
formam o universo de análise daqueles casais que poderiam ter dotado seus filhos. Em
31 desses inventários, portanto cerca de 1/3, há referência a bens doados a herdeiros
ainda em vida do inventariado e trazidos à colação no momento da partilha. Uma
investigação discriminada dessas informações, tendo como base a fortuna inventariada,
mostra grandes diferenças entre os estratos econômicos quanto à difusão dessa prática.
Os inventários com fortunas superiores a £ 5.000,00 perfaziam 27 processos ou, dito de
outra forma, eram os 13% com maiores fortunas do total da amostra. Desses, 19 tinham
filhos adultos e em 12 deles (portanto 2/3), os herdeiros trouxeram à colação bens
doados em vida por seus pais. Dentro daqueles 16 inventários com fortuna superior a
£10.000,00 referidos no início deste capítulo, 11 tinham filhos adultos e, em 9 deles,
houve bens trazidos à colação. Por fim preciso alertar que, como veremos adiante, os
dotes, que deviam vir à colação, não eram as únicas formas de cessão do uso de bens
por parte dos pais em relação a seus filhos.
As antecipações eram compostas, predominantemente, por bens que
poderiam auxiliar o desempenho de uma atividade produtiva, sobretudo a pecuária. A
tabela “6.1” apresenta a freqüência de cada tipo de bem doado a herdeiros homens e
mulheres nos 31 inventários que apresentaram antecipações de herança, na amostra
pesquisada.
TABELA 6.1 - FREQÜÊNCIA DE BENS NAS ANTECIPAÇÕES DE HERANÇA (ALEGRETE,
1831-1870)
Escravos Escravas Gado Terras Dinheiro Outros Total de
Herdeiros
Homens
55% 16% 70% 0 25% 5%
44
Mulheres
17% 62% 51% 2% 13% 7%
87
TOTAL
30% 46% 57% 1% 17% 6%
131
Fonte: 205 inventários post mortem. Alegrete. 1831-1870. APRS.
496
COSTA, Dora I.P. Formação de famílias proprietárias e Redistribuição de Riqueza em Áreas de
Fronteira..., 2004, p.23.
497
Considerei não serem “filhos adultos”, aqueles solteiros com até 21 anos.
250
O gado e os escravos(as) foram os bens mais comumente doados, seguidos
pelas quantias em dinheiro. A maioria dos mais abastados doou aos seus filhos uma
combinação variável desses fatores, enquanto, nos estratos menos favorecidos,
predominou a doação de apenas algum desses bens. Por outro lado, repetiu-se a prática,
também verificada em outras regiões do Brasil, de se doar preferencialmente escravas
para as filhas e escravos para os filhos.
Como tem sido ressaltado por vários estudos, a
doação de escravos auxiliava o início da atividade econômica, funcionava como reserva
de capital, ao mesmo tempo que inscrevia os beneficiado no grupo dos senhores,
servindo como uma marca de distinção social.
498
Os escravos-homens podiam trabalhar
em todas as fainas típicas da produção agrária: como vimos, ainda que utilizassem
também peões livres, os criadores de gado procuravam manter um núcleo de
trabalhadores cativos em suas unidades de produção. As escravas, por sua vez, além de
atividades semelhantes às dos homens, como a de roceiras, por exemplo, também se
ocupavam dos serviços domésticos, cuidavam das senhoras nos momentos mais críticos
de suas repetidas gestações e partos, além de ajudar no cuidado dos filhos das mesmas.
Por outro lado, se a doação de gado e escravos marcou presença, a doação
da propriedade de terras não teve maior difusão.
499
De fato, os pais procuravam doar
bens que ajudassem no início da atividade produtiva dos filhos, mas também parecem
ter considerado importante que esses bens tivessem uma maior liquidez. Nesse quesito -
além do próprio dinheiro, naturalmente -, o gado e até mesmo os escravos teriam mais
possibilidades de serem realizados do que um quinhão de campo. Além do mais, em
uma zona de fronteira, que era palco de guerras recorrentes, é bastante lógico que se
procurasse doar bens que pudessem ser transportados para outros locais, em caso de
necessidade. De qualquer maneira, a composição das antecipações esteve estreitamente
vinculada com o auxílio para o início da produção agrária. Mesmo já bem entrado o
século XIX, não eram os bens de consumo, mas sim os meios de produção os bens que
formavam a maior parte das antecipações de herança realizadas em Alegrete.
Por fim, uma outra forma de os filhos terem acesso ao uso dos bens dos pais
se materializava no fato de que muitos deles começavam a sua atividade de pecuarista
criando nos campos dos ascendentes. Alguns continuavam a fazê-lo mesmo depois de
casados. Embora não houvesse transmissão da propriedade, esta prática pode ser
498
Sobre presença e importância da doação de escravos em dote, em várias partes do Brasil, ver:
NAZZARI, Muriel. O Desaparecimento do Dote..., 2001. BACELLAR, Carlos. Os Senhores da Terra...,
1997, p.133. BRÜGGER, Sílvia. Minas Patriarcal..., 2002, p.199. SAMPAIO, A.C.J. Na encruzilhada do
Império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650- c.1750), 2003, p. 287.
499
Essa foi também a situação encontrada Brügger para a região de São João del Rey, nos séculos XVIII e
XIX. BRÜGGER, Sílvia. Minas patriarcal…, 2002.
251
incluída entre os “empréstimos” de bens dos pais para os filhos e, portanto, pode
compor o conjunto das antecipações de herança. Infelizmente, não há dados para
quantificar essa prática, mas são freqüentes as referências a ela na documentação
pesquisada. Fiquemos, aqui, com um exemplo. Durante a década de 1840, o Brigadeiro
Ortiz possuía uma estância em Tacumbú, no Estado Oriental, onde possuía cerca de
12.000 reses. Dois de seus filhos, Gaspar José Ortiz e Olivério Filho, criavam ali,
respectivamente, 800 e 1.500 reses. No ano de 1848, o Brigadeiro transferiu parte de
seus interesses para uma estância em São Gabriel. Ali, na estância de Santo Isidro,
ficaram instalados e criando gado seus filhos João Pedro, Gaspar Ortiz e, por algum
tempo, também, Antônio Cândido.
500
Essa mesma prática era corrente também entre os proprietários brasileiros
que eram residentes no Estado Oriental. Os historiadores uruguaios Alex Borucki,
Natalia Stalla e Karla Chagas estudaram a estrutura patrimonial da família de João
Faustino Correa, um grande estancieiro brasileiro afazendado na região de Rocha. Por
um censo de 1834, sabe-se que, nas terras de Correa, estavam estabelecidos quatro de
seus filhos casados, sendo que dois filhos solteiros ainda viviam com os pais. Outro
filho era major do exército brasileiro e vivia em Jaguarão, no Rio Grande do Sul.
501
Essa configuração familiar que, como notaram os autores, incluía filhos que criavam nas
terras do pai, outro que buscava seguir carreira no exército e matrimônios de filhas e
filhos que conectavam o grupo a outras parentelas, lembra em muito as famílias
estudadas aqui. Borucki, Stalla e Chagas demonstraram que a prática dos filhos criarem
nos campos dos pais, mesclada com o uso do relevante do trabalho escravo, se
reproduzia também entre estancieiros brasileiros estabelecidos nas regiões de Cerro
Largo e Taquarembó, na primeira metade do século XIX.
502
Essas semelhanças não
surpreendem. Trata-se de um grupo com origem comum espalhado por uma região que
tinha um limite nacional de permeio. Esse limite não impediu que as estratégias
econômicas e sociais fossem semelhantes, já que os desafios eram análogos: pecuária
extensiva, guerras recorrentes e a necessidade de manejar as questões da fronteira
nacional e lidar com soberanias distintas e instáveis.
500
Relatório da Repartição dos Negócios Estrangeiros apresentado à Assembléia Geral Legislativa na 3ª.
Sessão da 8ª. Legislatura pelo respectivo ministro e secretário de Estado Paulino José Soares de Souza –
Anexo A(1850). AN. (RRNE)”. “Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M.
08, N. 111, A. 1852. APRS”.
501
BORUCKI, Alex; STALLA, Natália; CHAGAS, Karla. Esclavitud y trabajo: un estudio sobre los
afrodescendientes en la frontera uruguaya (1835-1855), 2004, p.p. 175-186.
502
BORUCKI, Alex; STALLA, Natália; CHAGAS, Karla. Esclavitud y trabajo, 2004, p. 187.
252
A presença de filhos produzindo na terra dos pais foi também um fenômeno
recorrente no Brasil colonial e monárquico, dentro das características fortemente
familiares que as práticas econômicas assumiam então. Muriel Nazzari identificou a
presença, sobretudo, de genros arranchados nas terras de seus sogros e compondo com
eles uma organização produtiva coesa, principalmente no século XVII. Por sua vez,
Carlos Bacellar encontrou casos de filhos produzindo nas terras dos pais, elencados nas
listas nominativas do “Oeste Paulista” em fins do período colonial. Em uma nota, o
autor retoma as práticas paulistas dos pais em associar os filhos às atividades
produtivas, comerciais e predatórias da família, “talvez numa espécie de etapa de
aprendizado”, e afirma que tais práticas foram preservadas, ao menos parcialmente, até
o início do século XIX. Sheila de Castro Faria, ao analisar a região de Campos dos
Goitacazes, no século XVIII, apontou a existência de filhos arranchados nas terras dos
pais e indicou que, além de propiciar uma moradia para o casal, aquela prática visava
que os filhos ali instalados produzissem cana e gado para os engenhos, controlavam
pontos estratégicos das propriedades, definindo limites e evitando a ação de invasores.
503
Em todos esses casos, a presença de filhos produzindo na terra dos pais indica a
possibilidade práticas econômicas conjuntas, mais ou menos reiteradas, entre esses
sujeitos.
6.2 - Para o proveito de todos
Os dados gerais vistos acima permitem que, agora, se possa refinar as
perguntas feitas à documentação. Como essas antecipações se distribuíam entre os
filhos? Havia claro privilégio de algum dos herdeiros ou as doações aproximavam-se de
um relativo igualitarismo? Que relações esses fatores mantinham com a estratégia social
colocada em prática pela família?
Nas últimas décadas, trabalhos importantes têm utilizado o estudo das
antecipações de herança para compreender o processo de construção e preservação de
patrimônios entre as famílias de áreas rurais do Brasil, com ênfase na segunda metade
do século XVIII até a primeira metade do século XIX. Sheila de Castro Faria, que
estudou a região de Campos dos Goitacazes e também Alida Metcalf, em seu trabalho
sobre Santana do Parnaíba, destacaram a importância das filhas e genros na
continuidade do patrimônio. Em geral, as filhas acabariam em situação bastante superior
à de seus irmãos, em sua trajetória sócio-econômica. Metcalf colocou a ênfase no dote
503
NAZZARI, Muriel. O Desaparecimento do Dote..., 2001. BACELLAR, Carlos. Os Senhores da
Terra..., 1997, p. 140. FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento..., 1998, p.p.51-2.
253
dado às filhas, que introduzia um elemento de desigualdade entre os herdeiros, no
coração do sistema de herança igualitário.
504
Por seu turno, Sheila Faria destacou o
papel dos genros comerciantes, a maioria deles de origem portuguesa. Na região
açucareira de Campos dos Goitacazes, comerciantes casavam com filhas de senhores de
engenho, buscando acesso ao prestígio de ligar-se a uma família senhorial e tornarem-
se, eles também, senhores de terras e de homens. Segundo a autora, para a família da
esposa, o capital, a liquidez e o crédito trazido por esses genros era de grande
importância, em uma economia onde a principal forma de acumulação se dava no
comércio. Não por acaso, foram exatamente esses genros - especialmente os que nunca
abandonaram por completo as atividades comerciais - os que conseguiram chegar a uma
posição econômica vantajosa como senhores de engenho.
505
Por sua vez, Carlos de Almeida Prado Bacellar estudou as famílias da elite
agrária no processo de expansão da produção açucareira no Oeste Paulista, entre 1765 e
1857. A indivisibilidade dos engenhos, peças-chaves daquela economia e sociedade,
agravava o problema da fragmentação do patrimônio no momento de sua passagem
entre as gerações. Bacellar analisou os elementos estratégicos colocados em prática por
aquelas famílias para lidar com essa situação. Entre eles, merece destaque a
transferência de recursos a alguns dos filhos, na forma de adiantamentos de legítima. De
posse desses recursos, os filhos migravam para a fronteira agrária, onde as terras
podiam ser ocupadas por simples posse ou, o que era mais comum, estavam à venda por
baixos preços. O mesmo podia se dar após a partilha dos bens, quando um herdeiro-
concentrador comprava as partes dos outros no engenho. Esses recursos eram usados
por esses herdeiros para instalarem com vantagem nas áreas novas.
506
Com esse
mecanismo, os engenhos se mantinham íntegros, nas mãos de um herdeiro-
concentrador, sempre um filho homem. Para os outros herdeiros, não havia,
necessariamente, desvantagem, já que migravam com bons recursos para iniciar a vida
nas áreas de fronteira aberta. Por sua vez, Dora Isabel Paiva da Costa, estudando
Campinas no mesmo período, pôde confirmar muitas das conclusões de Bacellar. Além
disso, aprofundou o estudo das formas diversas de antecipação de herança e sua relação
com o ciclo familiar e com o ciclo de vida dos indivíduos dentro da família.
507
Finalmente, estudando as estratégias familiares da elite sediada na Fronteira
Meridional da América Portuguesa, no século XVIII, Fábio Kuhn apontou semelhanças
504
METCALF, Alida. Families or planters, peasantes and slaves: strategies for survival in Santana do
Parnaíba, Brazil, 1720-1820, 1983.
505
FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento...., 1998, p.p. 165-221.
506
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os Senhores da Terra...,1997.
507
COSTA, Dora Isabel P. da. Herança e Ciclo de Vida..., 1997.
254
e diferenças das práticas sulistas com aquelas descritas para outras regiões. O autor
destacou a inexistência de um modelo absolutamente dominante nas práticas
sucessórias, fosse ele igualitário ou não-igualitário. Havia diferentes encaminhamentos,
desde o favorecimento explícito a algum dos filhos até uma tendência para o
igualitarismo em dotes e heranças. Tendo em conta essa complexidade e sem tentar
reduzí-la a um modelo apriorístico, Kuhn buscou estabelecer alguns princípios gerais
que, de formas diversas, eram mobilizados por aquelas famílias. Ali aparecem: a
importância dos dotes para a viabilização das alianças matrimoniais; uma sucessão
mista onde o padrão matrilinear tinha certa predominância, mas que podia contemplar
casos em que um dos filhos era favorecido; atração de genros-comerciantes que
melhoravam sua condição social pelo exercício de cargos na Câmara ou nas
Ordenanças; e a migração de alguns dos herdeiros excluídos para as áreas de fronteira
“sem que essa opção se configurasse necessariamente como desfavorável, na medida em
que possibilitava o acesso a recursos materiais importantes (como a posse da terra, por
exemplo).”
508
Esses trabalhos têm muitos méritos, dos quais destaco aqui dois.
Primeiramente, essas obras relativizaram o peso das normas de partilha igualitária de
bens, demonstrando o uso estratégico que as famílias fizeram das possibilidades abertas
pela lei - como as diferentes formas de antecipação de herança -, conseguindo diminuir
os efeitos da fragmentação do patrimônio e, por outro lado, construir alianças sociais.
Nesse sentido, tais estudos estão em consonância com trabalhos de historiadores
europeus, que têm alertado para a distância que havia entre as regras e as práticas
sucessórias. Mesmo em sistemas igualitários, existiam práticas diversas que visavam
tentar evitar o fracionamento demasiado do patrimônio e/ou buscavam diferenciar os
herdeiros. E mesmo nos sistemas de herdeiro único, havia práticas de redistribuição que
tornavam o sistema menos desigual.
509
Em segundo lugar, os trabalhos referidos
demonstraram a importância das antecipações de herança para o estudo das estratégias
familiares, da reprodução da hierarquia social e da definição da posição que as famílias
ocupavam nelas. Vejamos como se processaram esses dois pontos em Alegrete.
No que se refere ao sexo dos filhos a quem se dirigiam as antecipações,
havia uma clara diferença entre os estratos econômicos. Todos os nove titulares de
inventários com fortunas superiores a £ 10.000,00 que fizeram antecipações de herança,
508
KUHN, Fábio. Gente da Fronteira: família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa -
Século XVIII.,2006, p.p. 228-229.
509
BESTARD CAMPS, Joan. La Estrechez del Lugar…, 1992, p. 121. BURGUIÈRE, André; LEBRUN,
François. Les Cent et Une Familles de l’Europe, p.p. 53-55; COMAS D’ARGERMIR, Maria Dolors.
Matrimonio, Patrimonio y Descendencia, 1992, p.167.
255
apresentaram doação de bens a todos os filhos, independentemente de seu sexo. Por
outro lado, dos 23 inventários com fortuna inferior às £ 10.000,00 em que constam
antecipações, 11 apresentaram doação a todos os filhos e 12 a apenas alguns deles.
Nessas famílias, houve 4 casos em que somente as filhas mulheres foram contempladas,
mesmo havendo filhos homens adultos. O contrário, porém, não ocorreu em nenhum
caso.
Este último grupo, formado por alguns grandes pecuaristas mas, sobretudo,
por medianos e pequenos criadores de gado e pequenos comerciantes, certamente tinha
dificuldades para adiantar bens a todos os filhos, pelo simples fato de que não possuíam
tantos bens que tornasse essa prática facilmente viável. As antecipações de bens deviam
resultar de algum esforço e demandavam cuidado. O que parece, é que elas eram parte
de uma estratégia em que se buscava privilegiar uma ou algumas herdeiras, preparando-
as para realizar bons casamentos e unir a família com outras, melhor posicionadas
socialmente. Aqui, parece mesmo ter havido uma aposta na diferenciação dos herdeiros.
Por sua vez, os mais abastados tinham recursos para fazer antecipações de herança a
todos os filhos, fossem eles homens ou mulheres, fossem eles os mais velhos ou os mais
jovens. Mas a posse de recursos, por si só, não explica essa prática. É preciso ir mais
fundo na análise de várias faces das trajetórias sociais daquelas famílias.
Em primeiro lugar, é evidente que o fato de que todos os filhos recebiam
antecipações de herança alerta para não se exagerar no uso dessas antecipações como
forma de infundir desigualdade entre os herdeiros. Aliás, há outros indícios de que o
desejo de favorecer especialmente um ou alguns herdeiros não parece ter sido uma
preocupação efetiva entre os membros da elite agrária sediada em Alegrete. A terça
correspondia à fração legal do patrimônio que se podia legar livremente, através de
testamento. Como o próprio nome diz, tratava-se de 1/3 do valor da meação
correspondentes às pessoas casadas. Dora Costa apontou que, a partir dela, “é possível
medir a predisposição de comportamentos em relação à diferenciação de estratégias e de
eleição de sucessores, que iriam controlar parte da riqueza nas famílias.”
510
Entre as 16
famílias mais abastadas da amostra, 14 tinham filhos quando de seu falecimento, e
apenas 4 desses inventariados fizeram testamento. Ainda assim, em 3 casos, os
testadores não estabeleceram qualquer diferenciação entre os filhos. Os legados foram
feitos à afilhados, igrejas, pobres, órfãos, agregados, ex-escravos e foi dada a liberdade
a alguns cativos. Estabeleceu-se que o restante da terça seja distribuído igualmente entre
510
COSTA, Dora Isabel Paiva da. Formação de Famílias Proprietárias e Redistribuição de Riqueza em
Áreas de Fronteira, 2004, p. 23.
256
todos os filhos.
511
A única exceção foi o testamento do Brigadeiro Olivério José Ortiz,
aberto em 1869, que tinham a mesma estrutura dos anteriores, mas definia que o
remanescente da terça fosse distribuído entre seus filhos menores, procedentes de seu
segundo matrimônio. Assim, se o expediente da terça é um indicador para verificar a
disposição para diferenciar herdeiros, então esse não era um interesse prioritário dos
membros da elite agrária trabalhada.
Retornando às antecipações de herança, como já foi dito, foram 9 titulares de
inventários com fortunas superiores a £ 10.000,00 que fizeram antecipações aos filhos.
Dentre eles, 7 promoveram uma política que tendia à igualdade nos bens doados aos
filhos homens, e uma ligeira superioridade no valor dos bens doados às filhas. Apenas
em 2 casos, o do Brigadeiro Olivério José Ortiz e do Marechal Bento Manoel Ribeiro,
as antecipações feitas às filhas tinham valores muito mais altos do que aquelas feitas aos
filhos.
Porém, havia outras formas de utilização de bens dos pais pelos filhos, que
não são fáceis de verificar nos inventários. Os filhos usavam correntemente os campos
dos pais para iniciar suas atividades de criadores de gado. Além disso, aqueles dentre
eles que se dedicavam a uma formação acadêmica ou ao oficialato de primeira linha do
exército, recebiam assistências financeiras regulares de seus pais até começarem suas
atividades autônomas. Esses fatores contrabalançavam a vantagem expressiva que
tinham as filhas de homens como Olivério Ortiz e Bento Manoel, em relação a seus
irmãos, e mais ainda nos outros casos de famílias com grandes fortunas, onde a
superioridade que as herdeiras tinham no recebimento de antecipações era menor. De
novo, as conclusões apontam para o fato de que as antecipações ocasionaram sim
desigualdades entre os herdeiros da elite agrária de Alegrete, mas não parece ter havido
uma política deliberada de favorecimento de algum herdeiro, em detrimento dos outros.
Por outro lado, as antecipações certamente desempenharam um papel
importante na viabilização das estratégias sociais das famílias da elite agrária. No caso
das filhas, a maior parte das antecipações era dada no momento do matrimônio, ainda
que, algumas vezes, ela pudesse ser feita anteriormente. Tais antecipações visavam
propiciar um bom casamento para as filhas e uma ajuda para o início de suas vidas de
casadas. O mesmo se dava para os filhos, porém com um objetivo adicional: na maioria
das vezes, essas antecipações eram feitas desde muito antes do casamento. Significava,
511
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes, M.01, N. 62, A. 1839. APRS.”
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, M. 01, N.25, A.1857. APRS.”
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes, M.11, N. 152, A. 1853. APRS.”
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 08, N. 111, A. 1852. APRS”.
257
então, ajuda para iniciar uma atividade econômica. Essa atividade lhes permitiria criar
um pecúlio que, por sua vez, também ajudaria a “casar bem” e a dar continuidade às
suas atividades, já no estado de casado. Veja-se bem, essas funções das antecipações de
herança não querem dizer que elas serviam para tornar os filhos e os novos casais
totalmente independentes das atividades familiares. Ao contrário, as ajudas na
preparação dos filhos para o exercício das atividades de pecuária, comércio, do
oficialato militar ou de profissões liberais se faziam na expectativa de que as atuações
desses filhos pudessem aportar recursos para a família como um todo. Como veremos,
algumas das antecipações de herança eram realizadas mesmo depois de efetuado o
matrimônio.
Da mesma forma, se as antecipações ajudavam a “casar bem”, essas alianças
eram importantes para toda a sua família, que criava um elo com outras famílias cujos
recursos, como vimos, reforçariam ou ampliariam suas possibilidades de atuação. Essa
situação era a utilização criativa de uma antiga prática: Antonio Carlos Jucá de
Sampaio, analisando as escrituras de dotes concedidos na sociedade fluminense entre
1650 e 1750, considera que “unir famílias” foi o principal significado do dote naquela
realidade.
512
Outros estudos, como o de João Fragoso para o Rio de Janeiro no século
XVII e o de Fábio Kuhn para o Rio Grande do Sul do século XVIII apontaram a
presença da lógica da reciprocidade e do dom e contra-dom como estando presente,
entre outros aspectos, nas práticas dotais daquelas sociedades.
513
6.3 - Sucessões hereditárias
O estudo das antecipações de herança praticadas pela elite agrária, em
Alegrete, mostrou que elas inseriam, sim, um elemento de desigualdade entre os
herdeiros, mas que essa desigualdade não tomava as cores de um claro privilégio a um
ou a alguns dentre eles. Ao mesmo tempo, como apontou Maria Beatriz Nizza da Silva
em seu estudo sobre o casamento no Brasil colonial, as áreas de pecuária não padeciam
do problema da indivisibilidade dos engenhos.
514
Assim, ali não havia um dos fortes
condicionantes que pressionavam as famílias da elite açucareira para que utilizassem
formas de preservação da integridade patrimonial, relativizando a regra de sucessão
512
Ali, em um contexto mais urbano e mercantil do que a São Paulo analisada por Nazzari no mesmo
período, os dotes eram menos expressivos e contavam, em sua composição com menos meios de
produção e mais produtos dotados de melhor liquidez. SAMPAIO, A.C.J. Na encruzilhada do império...,
2003, p. 292.
513
FRAGOSO, João. A Nobreza Vive em Bandos: a economia política das melhores famílias da terra do
rio de Janeiro, século XVII, 2003. KUHN, Fábio. Gente da Fronteira..., 2006.
514
SILVA, Maria Beatriz Nizza. Sistema de Casamento no Brasil Colonial, 1984.
258
igualitária do direito português. Esses fatores, conjugados, poderiam sugerir que a
partilha igualitária foi soberana em Alegrete, região da grande pecuária por excelência?
É preciso ir com calma nessa conclusão. A diferença existente entre as regras
sucessórias e as práticas movimentadas pelos agentes históricos sugere que a realidade
não estava nem tanto ao mar, nem tanto à terra.
Em seu estudo sobre os senhores de engenho do Oeste Paulista, Carlos
Bacellar aponta que, além das antecipações de herança, havia também importantes
mecanismos que eram postos em prática no momento da partilha ou mesmo após sua
efetivação, no sentido de diminuir os efeitos da fragmentação patrimonial.
515
A partilha
podia destinar o engenho a um dos herdeiros e compensar esse fato distribuindo as
terras entre os outros. Ou então, podia-se dividir todo o patrimônio igualmente em
partes ideais, em caráter pro-indiviso, gerando uma propriedade em condomínio pelos
herdeiros e podendo ser administrada em conjunto. Como era de se imaginar, essa
situação era muito mais comum quando se tratavam de terras sem engenhos.
516
Por fim,
um mecanismo comum entre os herdeiros de engenhos do Oeste Paulista foi o da
redistribuição pós-partilha. Nesse caso, “a repartição ideal não perdurava, pois os
diversos herdeiros acabavam vendendo suas frações a um único dentre eles, que assim
reunia e concentrava a propriedade do engenho em suas mãos”.
517
No caso daqueles 16 inventários de grandes fortunas em Alegrete, as
partilhas foram bastante específicas na destinação de bens móveis, de gado e de
escravos a cada herdeiro. As dívidas ativas, se fossem de pequeno valor, costumavam
ser imputadas inteiras nos quinhões dos herdeiros. Porém, se fossem muito vultuosas,
tinham seu valor dividido entre vários deles. O caso das terras merece especial atenção.
Como já foi visto, a terra foi o item que mais se valorizou ao longo do período estudado
e já formava a parte mais importante dos patrimônios na década de 1840. Na maioria
dos casos, elas foram divididas em partes ideais. Dividia-se o valor da terra pelo número
de herdeiros. Assim, por exemplo, no inventário de Custódia e Manoel José de
Carvalho, o herdeiro João José recebeu uma parte de 6:672$893, na chácara da Boa
Vista, que valia 56:523$334.
518
Apenas em alguns inventários se verificou a designação
da extensão de terras recebidas, como no caso de João Pedro Ortiz, que recebeu meia
légua de campo na estância de Santo Isidro, por ocasião do inventário de sua mãe,
515
BACELLAR, Carlos. Os Senhores da Terra, 1997, p.p. 147-164.
516
BACELLAR, Carlos. Os Senhores da Terra, 1997, p. 154.
517
BACELLAR, Carlos. Os Senhores da Terra, 1997, p. 156.
518
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, M. 01, N. 07, A. 1853-7. APRS.”
259
Febrônia Cândida.
519
Mais raros ainda foram os casos em que se designava o local onde
a parte de terra herdada deveria se localizar, como no caso de Cirino José de Carvalho
que, no inventário de sua esposa, recebeu, em sua meação, campos dentro da Estância
de Japejú no valor de 2:853$955, localizados no local chamado “Chácara do
Aferidor”.
520
Quando os patrimônios que eram compostos por mais de uma propriedade,
de forma descontínua, aconteciam acertos sobre algumas áreas de campo, mas as outras
eram divididas em partes ideais. Por exemplo, no próprio inventário de Rufina de
Carvalho, esposa de Cirino José de Carvalho, o patrimônio era composto por campos na
Estância de Japejú (em Uruguaiana), por partes de uma chácara nas imediações de
Alegrete e por uma estância no Estado Oriental. O viúvo meeiro ficou a propriedade
existente naquele país e com as partes na chácara, mas os campos de Japejú foram
divididos em frações ideais, tomadas apenas pelo valor, entre ele e os herdeiros. Sua
parte em Japejú foi menor que a dos herdeiros, de modo a compensar o fato de ter
ficado com todas as outras terras.
521
O mesmo caso ocorreu com a sucessão de Antônio
José de Oliveira, que possuía terras em Alegrete, Uruguaiana, Itaqui e no Estado
Oriental. A viúva meeira ficou com uma parte maior da Estância dos Três Capões e com
o estabelecimento que havia ali, contando com casas, currais e mangueiras. Por sua vez,
o herdeiro João Prestes de Oliveira ficou com os campos em Itaqui, que eram pequenos.
Este mesmo herdeiro e todos os outros, também receberam frações ideais de todos os
outros campos.
522
Enfim, a tendência, para os inventários mais abastados, foi uma mescla das
duas primeiras situações descritas por Bacellar. Havia acertos que designavam uma
porção maior de terras para alguns herdeiros em algumas das propriedades do espólio,
em geral propriedades onde esses herdeiros já tinham arranchamentos ou localizadas em
áreas onde desenvolveram mais fortemente sua atuação ao longo da vida. Porém, a
maior parte das terras partilhadas, naqueles inventários, foi transmitida na forma de
partes ideais, representadas por uma fração do valor da terra. Mesmo no caso em que
constavam extensões, não havia discriminação de limites exatos sobre onde começavam
e terminavam as terras herdadas por eles. Assim, esses inventários acabaram por gerar
uma configuração agrária onde era comum a manutenção dos campos herdados como
indivisos.
519
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 08, N. 111, A. 1852. APRS”.
520
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, M. 02, N.50, A. 1863. APRS.”
521
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, M. 02, N.50, A. 1863. APRS.”
522
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, M. 02, N.52 , A.1865. APRS.”
260
Essa não era uma prática restrita à mais alta elite agrária. Graciela Garcia
observou que cerca de 10% das posses declaradas nos Registros Paroquiais de Terras de
Alegrete foram registradas em nome de mais de uma pessoa. Eram 35 casos e, em
apenas um deles, os declarantes não tinham relação de parentesco entre si. Essa
proporção poderia ser aumentada, ainda, pelos casos em que apenas um dos herdeiros
registrou uma “parte” ou um “quinhão” de campo e que, provavelmente, dividia com
outros herdeiros. A autora apontou que tal situação trazia benefícios para os co-
proprietários, já que possibilitava a todos o acesso ao matos e às aguadas da
propriedade, além do uso comum de currais e mangueiras.
523
No entanto, a Garcia
pondera igualmente que:
“... para que todos tivessem acesso a essas vantagens que a posse
conjunta oferecia, era fundamental haver um consenso entre a
parentela: hábitos costumeiros de acesso comum e irrestrito aos
matos, rios e benfeitorias para manejo do gado deviam contemplar o
interesse de todas as partes envolvidas, sob o risco do rompimento do
equilíbrio que garantia o domínio coletivo.”
524
Para a autora, o processo de elevação do preço da terra na década de 1850,
somado a uma preocupação maior com a delimitação das propriedades, pode ter
influenciado negativamente “o frágil equilíbrio sobre o qual se sustentava a posse
coletiva dos campos até 1850”.
525
Estudando os conflitos agrários ocorridos nas décadas
de 1860 e 1870, a partir de ações possessórias, Garcia observa que muitos deles tiveram
origem em desacordos ocorridos entre esses co-proprietários. O momento em que um
deles vendia sua parte nas terras, sobretudo quando se tratava de vendas para alguém de
fora da família, podia ser um gerador de atritos entre o novo possuidor e os antigos.
Tanto mais que a porção de terra vendida não costumava ter seus limites precisados nem
mesmo nas escrituras públicas de compra e venda. Mas os conflitos não se davam
sempre pela introdução de um estranho a essas posses. Se é correto que os campos não
tinham divisas formalizadas, é também certo que havia um acordo, muitas vezes tácito,
entre os co-proprietários, que regulava as condições de usufruto individual do campo
por parte de cada um. Sendo assim, qualquer ato possessório de um dos co-
proprietários, que pudesse ser interpretado pelos outros como restritivo de seus direitos
sobre a terra, levava a disputas que podiam chegar à esfera judicial.
523
GARCIA, Garciela. O Domínio da Terra: conflitos e estrutura agrária na Campanha Rio-grandense
Oitocentista, 2005, p.p. 153-154.
524
GARCIA, Garciela. O Domínio da Terra..., p. 154.
525
GARCIA, Garciela. O Domínio da Terra..., p.154.
261
Pode-se perceber, então, que as práticas de transmitir partes ideais de terras e
de não discriminar os limites das partes herdadas conduziu a que vários herdeiros
passassem a ser proprietários das terras em conjunto. Como já foi dito, essa também foi
uma situação encontrada por Carlos Bacellar para o Oeste Paulista. No caso dos
engenhos, o autor identificou, ainda, um ativo procedimento de re-distribuição pós-
partilha, com a compra dos quinhões por um “herdeiro-concentrador”, que conseguia,
assim, re-unificar a propriedade do engenho partilhado. Um processo semelhante
poderia ter ocorrido com a elite agrária de Alegrete?
Investiguei as escrituras públicas em que foram transacionados bens que
haviam sido transmitidos por herança naqueles 16 inventários onde estavam as maiores
fortunas da amostra pesquisada, somando 40 documentos. Tratavam-se de 34 escrituras
de compra-e-venda, 5 permutas e uma doação. A larga maioria dos bens transacionados
era formada por terras, exceto em dois casos: uma morada de casas em Alegrete e um
crédito com a Fazenda Nacional. Em dois casos, incluíam-se animais juntamente com as
terras. Por sua vez, em 24 casos, portanto, mais da metade, trataram-se de negociações
entre os próprios herdeiros, sendo que aí estavam incluídas todas as 5 permutas, a única
doação e 18 das 34 compras e vendas (chamo de herdeiro aqui também o viúvo meeiro,
embora, tecnicamente, não o seja). As outras 16 vendas foram feitas por herdeiros a
pessoas de fora da sucessão.
Em qualquer dos casos, não houve a identificação de um “herdeiro-
concentrador”. Houve, no máximo, casos em que dois ou três herdeiros adquiram as
partes dos outros herdeiros ou da maioria deles. Foi o que ocorreu, por exemplo, na
sucessão do Coronel José Antônio Martins, que teve 7 herdeiros. O inventário foi
encerrado em 1858 e, num espaço de três anos, o genro João José de Carvalho havia
vendido as duas partes que havia herdado na estância da Boa Vista, uma para outro
genro, Miguel Luiz da Cunha e outra para Antônio Tomás Martins, filho do Coronel.
Nesse mesmo espaço de tempo, Antônio Tomás adquiriu, ainda, umas casas em
Alegrete que seu irmão José havia recebido na herança e mais um quinhão da estância
da Boa Vista, vendido por outro cunhado seu.
526
Veja-se, porém, que os outros 4
herdeiros conservaram suas partes na estância da Boa Vista.
527
A ausência de um padrão definido por um herdeiro concentrador pode se
dever a uma composição de motivos. Em primeiro lugar, como vimos, a terra era um
526
“Transmissões. Alegrete, L. 04, Fl.113v, 13.12.1858. APRS.” “Transmissões. Alegrete, L. 06, Fl.61,
07.08.1860. APRS.” “Transmissões. Alegrete, L. 06, Fl. 81, 30.11.1860. APRS.” “Transmissões.
Alegrete, L. 05, Fl. 6v, 02.08.1858. APRS.”
527
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, M. 01, N.32 , A.1858. APRS.”
262
bem que estava se valorizando de forma extremamente acelerada. Some-se a isso o fato
de que o número de herdeiros costumava ser muito grande (uma média de 7 herdeiros
para os inventariados com filhos) e a maior parte deles recebia frações ideais das terras.
Nesse contexto, um herdeiro que pretendesse reagrupar o patrimônio fundiário de seus
pais ou sogros teria pela frente uma empreitada muito difícil. Deveria pagar por um bem
que se valorizava rapidamente e, ao mesmo tempo, precisava negociar com muitas
pessoas diferentes. Além disso, esse candidato a herdeiro-concentrador não teria
recebido uma antecipação de herança que fosse extremamente significativa, no sentido
de dar-lhe vantagens com relação aos outros co-herdeiros.
Todos esses fatores ajudam a explicar porque vários herdeiros seguiam
possuindo a terra em conjunto, por vezes muito tempo depois da partilha. No caso dos
herdeiros de João Batista de Castilhos, analisado por Graciela Garcia, a propriedade da
terra estava indivisa ainda 30 anos depois da partilha.
528
Muitas vezes, havia uma
mistura entre co-proprietários que efetivamente ocupavam as terras com outros que
apenas guardavam seu direito de propriedade à uma parte delas sem, no entanto, estar na
sua posse efetiva. De fato, o “delicado equilíbrio” que mantinha os acordos em torno da
posse comum, no dizer de Garcia, devia mesmo ser essencial em um tal contexto.
Por outro lado, a ausência de um “herdeiro-concentrador” não significa que
não tenham havido mecanismos de redistribuição de bens pós-partilha, em Alegrete.
Lembremos das 40 transações de bens herdados, sendo 24 delas realizadas entre os
próprios herdeiros. Elas significavam a parte formalizada dos ajustes e negociações
reiteradas que os co-proprietários deveriam fazer após o recebimento de seus bens. Era
preciso certo tempo para ajustar as negociações intra-familiares: daquelas 24 transações
entre herdeiros, 18 se deram até 5 anos após a partilha, mas 7 ocorreram em um prazo
maior, chegando até a 22 anos após a data do inventário post mortem. Por sua vez, o
caso das 5 permutas e da única doação registrada ocorreram em apenas três famílias.
Foram elas as sucessões, interligadas, de Manoel José de Carvalho e de sua nora Rufina
de Carvalho, das quais falarei com mais vagar adiante, e a sucessão de Antônio José de
Oliveira. Nesta última, a viúva Rita Maria de Oliveira trocou as três léguas de campo
com estabelecimento de moradia e benfeitorias, que havia recebido em sua meação, por
duas partes descontínuas de 1,5 légua que haviam tocado à sua filha Ana Cândida de
Oliveira. Esta era a única filha ainda solteira de Dona Rita e parece clara sua intenção
em fortalecer as possibilidades de Ana Cândida realizar um bom casamento. Nesse caso,
a permuta funcionou como um dote, já que, ao invés de duas partes não-delimitadas de
528
GARCIA, Garciela. O Domínio da Terra..., 2005.
263
campo, uma no Brasil e outra no Uruguai, a moça tornava-se proprietária de uma
estância com 3 léguas contíguas de campo, mais casas e benfeitorias.
529
Admitida a ausência do “herdeiro-concentrador”, ainda assim poderíamos
identificar uma relativa preponderância dos genros ou dos filhos na sucessão do
patrimônio familiar? Infelizmente, a inexistência de listas nominativas e censos, em
Alegrete, impede um maior grau de certeza sobre esse aspecto, tão bem trabalhado em
outras obras. Porém, uma olhada atenta às próprias escrituras públicas fornece
condições para, pelo menos, formular uma hipótese a esse respeito. A tabela “6.2” toma
as 34 escrituras de compra-e-venda de bens herdados e discrimina os vendedores e
compradores entre filhos, genros e “ambos” (caso em que genro e filho venderam ou
compraram juntos uma parte da herança). Foram incluídos, também, os viúvos meeiros.
TABELA 6.2 - POSIÇÃO DE FILHOS E GENROS NAS TRANSAÇÕES DE COMPRA-E-
VENDA DE BENS HERDADOS (ALEGRETE, 1831-1870)
TRANSAÇÕES ENTRE
HERDEIROS
Filhos Genros Ambos Meeiro Total de
Transações
Compradores 9 5 1 3 18
Vendedores 8 9 1 0 18
TRANSAÇÕES COM NÃO-
HERDEIROS
Filhos Genro Ambos Meeiro
Vendedores 3 10 3 16
Fonte: “34 escrituras públicas. Transmissões. Livros 01 a 12, 1834 a 1867. Alegrete. APRS.”
A presença de transações entre herdeiros em que os filhos aparecem como
compradores é quase o dobro do que aquelas em que essa posição foi ocupada pelos
genros, são 9 casos contra 7. Por sua vez, o número de transações entre herdeiros nas
quais os genros são vendedores (9) supera levemente a que os filhos desempenharam
esse papel (8). Essa diferença torna-se mais pronunciada, quando vamos para as
transações fora da família: são 10 os genros vendedores e apenas 3 os filhos. Em
primeiro lugar, esses números impedem que se possa afirmar uma primazia específica
dos filhos ou dos genros como continuadores do patrimônio familiar. Uma conjuntura
diferente, portanto, das sucessões predominantemente patrilineares encontradas por
Carlos Bacellar no Oeste Paulista ou matrilineares encontradas por Alida Metcalf em
Santana do Parnaíba. A situação é mais próxima à encontrada por Dora Costa para
Campinas e com o sugerido por Fábio Kuhn para a elite sulina no século XVIII,
apresentando um padrão misto. Por outro lado, 9 dentre 20 filhos transacionistas eram
529
“Transmissões. Alegrete, L. 10, Fl. 67, 07.06.1865. APRS.”
264
compradores, enquanto somente 5 entre 24 genros o eram. Isso permite apontar como
hipótese que, dentro do padrão misto encontrado, os filhos tinham alguma
predominância como continuadores do patrimônio paterno.
Os genros tendiam a vender mais suas posses, por vários motivos. Como
estou trabalhando apenas com aquelas 16 famílias mais abastadas da amostra de
inventários, foi possível identificar cada um dos sujeitos envolvidos nessas transações.
Parte dos genros vendedores era formada por comerciantes, militares de primeira linha
ou moradores do leste da província, que não tinham interesse em praticar diretamente a
produção pecuária nas terras herdadas. Outra parte dos genros vendedores era consituída
por filhos de estancieiros locais que, ao venderem as terras herdadas de seus sogros,
provavelmente, concentraram investimentos nas terras herdadas de seus pais, reforçando
a tendência encontrada..
Esse padrão misto é coerente com o fato de que as antecipações de herança
eram feitas, nas famílias da elite agrária, para todos os filhos, independentemente de seu
sexo. Ainda que os bens dados às filhas fossem mais significativos, os filhos recebiam
suas antecipações desde cedo e podiam criar seu gado na terra dos pais, podendo iniciar
seus negócios de gado em conjunto com eles. Isso podia produzir uma vinculação maior
entre os filhos e o patrimônio agrário de seus pais. Como veremos com mais detalhe a
seguir, um número maior de filhos e alguns genros podiam desenvolver com
regularidade atuações econômicas conjuntas com seus pais/sogros, ao longo de grande
parte da vida. É bastante plausível imaginar que essa vinculação também tenha
influenciado no fato de que eles prosseguissem mais próximos do patrimônio agrário
partilhado na sucessão, do que os outros herdeiros.
O estudo específico da trajetória da família de Manoel José e Custódia Maria
de Carvalho permitirá investigar, no contexto concreto das estratégias desenvolvidas por
uma família, todos os aspectos tratados neste capítulo: antecipações de herança, prática
conjunta de atividades econômicas e manejo da sucessão familiar. Mais importante do
que isso: permitirá verificar como esses aspectos se relacionaram entre si.
6.4 - Os senhores de Japejú
A estrutura patrimonial de Manoel José e Custódia Maria de Carvalho já foi
detalhada no capítulo anterior. Lembremos que ela estava composta, basicamente, por
três estabelecimentos. As propriedades do casal consistiam: 1) em duas léguas de
campo (8.712 ha), com cercado para plantações, olaria e atafona para o fabrico de
farinha de mandioca, próxima à vila de Alegrete, no que era chamado, modestamente,
265
de “Chácara da Boa Vista”; 2) nas 12 léguas da Estância de Japejú (52.272 ha.),
localizada na confluência entre os rios Ibicuí e Uruguai, região que viria a pertencer ao
município de Uruguaiana, emancipado de Alegrete, em 1846; 3) por fim, as 22,75
léguas
530
de campo localizadas na margem esquerda do rio Quarai, já em território
uruguaio. O casal Manoel e Custódia teve, ainda, 28 escravos arrolados em seu
inventário.
O quadro “6.1” traz a lista dos filhos de Manoel José de Carvalho, seus
nomes, a de seus cônjuges, os bens que trouxeram à colação no inventário de seus pais e
mais algumas informações relevantes para a análise da trajetória da família.
QUADRO 6.1 - FILHOS DE MANOEL JOSÉ DE CARVALHO (?-1856) E CUSTÓDIA MARIA
DE CARVALHO ( ? – 1847)
Nome Bens que trouxeram à
colação
Informações
1- Adão José de
Carvalho, casado
com Zeferina Auta
de Araújo e depois
com Deolinda Ferraz
- 800 reses de criar recebidas
entre 1820 e 1826
- 200 reses de criar recebidas
em 1829
- 20 cavalos mansos
- 20 éguas xucras
- 14 potros
- 50 ovelhas
- 03 escravos
- 01 escrava
Total= 6:236$000
- Criava gado nas terras de seu pai, em
Japejú.
- Tinha campo em Alegrete, vizinho
aos de seu cunhado João de Araújo e
Silva Filho.
- Possuía campo no Uruguai, ao lado
do seu pai.
2- Cirino José de
Carvalho, casado
com Rufina Cândida
de Araújo Carvalho
- 1.000 reses de criar entre
1820 e 1829.
- 50 ovelhas
- 03 potros
- 17 cavalos
- 20 éguas xucras
- 08 cavalos e 01 égua em
1832
- 18 éguas em 1832
- 02 escravos
- 02 escravas
Total= 6:637$600
- Criava gado nos campos de seu pai,
em Japejú.
- Possuía campos vizinhos aos de seu
pai, no Uruguai.
3- Ana Cândida de
Carvalho, faleceu
solteira aos 50 anos
de idade, em 1854
- Não trouxe bens à colação
- Em 1847, recebeu, por adiantamento
de legítima em razão do falecimento
de sua mãe, duas escravas, um
escravo, 1.000 reses de criar e uma
parte de campo na estância de Japejú,
sem ter sido discriminada das demais
terras da Estância
...continua
530
Lembremos que, como foi dito no capítulo “2”, não é possível ter certeza se os dados de extensão dos
campos constantes no “RRNE” se referem à medida das léguas vigentes no Uruguai ou no Brasil. Como
foi dito, parecem se referir à medida brasileira (4.356 ha.), o que deixaria a propriedade de Manoel José
de Carvalho com nada menos do que 99.099 hectares.
266
4- Florinda de
Araújo Carvalho,
casada com João de
Araújo e Silva
- 1.000 reses, em 1825
- 20 cavalos
- 11 éguas
- 50 ovelhas
- 02 escravas
- 01 escravo
Total = 5:512$000
- Ela e seu esposo, João de Araújo e
Silva Filho recebera sesmaria na
Fronteira do Rio Pardo, em 1822.
- Eram proprietários de um campo, em
Alegrete, vizinho ao de Adão José de
Carvalho.
- Possuíam campos vizinhos aos de
seus familiares, no Estado Oriental.
- Faziam comércio e emprestavam
dinheiro, em Alegrete.
- Criavam nos campos de Manoel José
de Carvalho, em Japejú.
5- João José de
Carvalho, casado
com Ubaldina
Martins de Carvalho
- 1.000 reses de criar, em
1835
- 30 éguas xucras
- 02 escravos
Total= 5:010$100
- Era o administrador das estâncias de
seu pai.
- Criava gado nos campos de seu pai,
em Japejú.
6- Manoel José de
Carvalho Filho,
casado com Propícia
de Araújo Carvalho
- 1.000 reses de criar, em
1847
- 22 cavalos
- 20 potros
- 30 éguas
- 02 escravas
Total= 6:744$000
- Era genro de seu irmão, Cirino José
de Carvalho.
- Criava em campos de seu pai, em
Japejú.
7- Maria José de
Carvalho, n 1817,
casada com João de
Freitas Valle e
depois com Olivério
José Ortiz Filho
- 2.000 reses de criar doadas a
João de Freitas Valle, em
1842
- 01 escrava em 1846
- 100 éguas xucras em 1854
- 25 potros em 1854
Total = 9:700$000
- As 2.000 reses que ganhara de dote
eram costeadas no campo de seu pai,
em Japejú.
8- Sebastião José de
Carvalho Japejú,
casado.
- 1.000 reses de criar, em
1850
- 02 escravos
- 01 escrava
Total = 7:000$000
- Estudava direito em São Paulo.
Formou-se após o falecimento de seu
pai e tornou-se advogado em Alegrete
e Uruguiana.
- Além dos bens declarados em
colação, recebia vultosas quantias a
título de assitências enquanto mantinha
seus estudos de direito
9- Prudência
Mendes de
Carvalho, casada
com Antônio
Mendes Ferreira
- 100 éguas xucras
- 04 cavalos
- 50 ovelhas
- 02 escravas
Total = 1:528$000
- Não precisou receber dote vultuoso
porque casou após o falecimento de
sua mãe, e o recebimento da herança
era iminente.
Fontes: “Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, m 01, n 07, a 1853-7. APRS.”
“Relatório da Repartição dos Negócios Estrangeiros apresentado à Assembléia Geral Legislativa na 3ª.
Sessão da 8ª. Legislatura pelo respectivo ministro e secretário de Estado Paulino José Soares de Souza
Anexo A(1850). AN. (RRNE)” “Registros Paroquiais de Terras. Alegrete. Livro 01. APRS.”
“Transmissões. Alegrete. Livros 01 a 10. 1831 a 1865. APRS”
267
Manoel José de Carvalho aplicou uma política relativamente igualitária no
que se refere às antecipações de herança feitas a seus filhos, começando pelos mais
velhos, Adão, Cirino e Florinda, na década de 1820, até Manoel Filho, em 1847. As
diferenças ficaram por conta das filhas mais novas. Maria José e seu primeiro marido
João de Freitas Valle receberam o dobro de gado do que os outros irmãos. Quando de
seu segundo casamento, alguns bens suplementares também lhe foram doados. Por sua
vez, a filha mais jovem, Prudência, recebeu bem menos que todos os seus irmãos,
constando seu dote de duas escravas e alguns animais. Isso se deveu ao fato de que ela
casou após o falecimento de sua mãe, quando já corria o inventário desta e o
recebimento de sua legítima hereditária era esperado para logo. O outro caso de exceção
é o de Sebastião Japejú. Apesar de haver recebido uma doação semelhante à de seus
irmãos, ele rapidamente vendeu as reses que lhe haviam sido doadas. Além disso,
recebeu muita assistência financeira de seu pai na década de 1850, pois estava em São
Paulo seguindo a faculdade de direito. Por fim, como vimos no capítulo “5”, ele
recebera uma doação de 10 contos de réis, feita por seu pai, em 1856.
Assim como no caso de Dona Febrônia e do Brigadeiro Ortiz, o casal
Carvalho também doou bens que pudessem ajudar no início da atividade pecuária dos
filhos. Os 5 varões mais velhos e a filha Florinda, casada com João de Araújo,
receberam entre 2 e 4 escravos, em geral de ambos os sexos, além da vasta quantia de
1.000 reses de criar e mais quantidades variáveis de cavalos, éguas xucras e ovelhas.
Adão e Cirino ganharam seus bens entre 1820 e 1829. Por uma declaração de Adão em
sua prestação de contas anexa ao inventário, sabemos que os escravos recebidos por ele
foram doados com diferença de alguns anos, obedecendo, provavelmente, às
possibilidades de negócio e recursos de seu pai.
531
Em 1825, a filha Florinda casou-se
com João de Araújo e Silva Filho, recebendo um dote que guardava muitas semelhanças
com os bens doados a seus irmãos, tanto na composição quanto no valor. Como já foi
visto anteriormente, Adão, Cirino e Florinda casaram, nessa mesma década de 1820,
com três irmãos. Adão e Cirino dedicaram-se à pecuária ao lado de seu pai, enquanto
Florinda e seu esposo (que havia recebido uma sesmaria nos campos de Alegrete, em
1821) conjugavam o comércio de mercadorias com a criação de animais.
As antecipações de herança podiam servir como início de uma série de
atividades econômicas conjuntas entre pais e filhos. A freqüência dessas atividades era
maior no caso de alguns filhos do que de outros, podia ser mais recorrente em uma
531
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, m 01, n 07, a 1853-7. APRS.”
268
época da vida dos filhos do que em outras, mas elas não parecem ter sido uma exceção
entre a elite agrária de Alegrete. No caso dos Carvalho, esses filhos puderam contar com
as relações creditícias e comerciais dos pais; com o gado, escravos e dinheiro recebidos
em adiantamento de legítima; com a possibilidade de iniciar sua atividade de criador de
gado costeando suas reses de graça nos campos paternos. O desenvolvimento da
atividade de criador sob o abrigo e proteção de seus pais possibilitou a eles formar um
pecúlio que lhes permitiria comprar terra. Adão José de Carvalho adquiriu uma área
composta por duas partes de campo a dois herdeiros do finado Inácio Alves de Castro,
em 1831. Os campos lhe custaram 625$000, que pagou à vista. O negócio não era
inviável para ele, pois equivalia ao mais valorizado dos escravos que recebera por dote,
ou à produção de um ano das 1.000 reses que havia recebido de seu pai.
532
Em 1834,
seu cunhado João de Araújo comprou terras vizinhas àqueles campos.
533
Possivelmente
fora alertado da possibilidade da compra por Adão e, talvez, ambos estivessem
desejosos de expandir conjuntamente os seus empreendimentos de criação.
A compra de terras pelos filhos poderia também ser subsidiada por crédito
familiar ou por crédito conseguido a partir da confiabilidade que seu pai já tinha no
universo das relações comerciais e creditícias da província. Nas listas do “RRNE”
constam que, em fins da década de 1840, Adão, Cirino e João de Araújo tinham
estâncias vizinhas à pertencente a Manoel José de Carvalho. O primeiro possuindo 8
léguas de campo e os outros dois possuindo 4 léguas um. Como já foi dito no capítulo
“2”, os assentos de contas presentes no inventário de Manoel José de Carvalho sugerem
que ele havia conseguido um vultuoso empréstimo ao uruguaio Domingos Vasquez,
para efetuar a compra daqueles campos, e que havia repassado parte desse empréstimo
aos filhos e genro, para que comprassem suas próprias estâncias. No entanto, a
documentação não deixa clara a época em que isso se deu.
Como já foi dito, as listas presentes no “RRNE” não são totalmente
confiáveis pois podem superestimar, principalmente, os animais existentes naqueles
campos. Tendo isso em mente, consideremos a informação, ali existente, de que, antes
do enrijecimento da ocupação dos “blancos” no norte do Uruguai (que se deu sobretudo
após 1847), Manoel José de Carvalho criava cerca de 30.000 reses nas quase 23 léguas
de campo de sua propriedade na “Oriental”, já Adão Carvalho criava 3.000 reses nas 8
léguas que possuía, vizinhas àquela propriedade; a mesma quantidade que João de
Araújo costeava nas suas 4 léguas; por fim, Cirino Carvalho criava 1.000 reses nas suas
532
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, m 01, n 07, a 1853-7. APRS.”
533
“Transmissões. Alegrete, L. 01, Fl. 85v, 29.02.1836. APRS.”
269
4 léguas. Ou seja, a crer no documento, esses criadores controlavam nada menos do que
39 léguas de campo e 37.000 reses, sem contar com o gado que outro filho, João José de
Carvalho, tinha nas terras de seu pai e do qual não conhecemos a quantidade.
534
Esses dois filhos e o genro João de Araújo apresentaram grande recorrência
nos negócios conjuntos com seu pai/sogro, segundo informam as contas juntadas aos
inventários de Manoel e Custódia, abrangendo o período que se estende de 1847 a 1857.
Junto com eles estava ainda João José de Carvalho, que recebeu sua doação em 1835 e
desempenhava as funções de administrador dos interesses de seu pai em todas essas
estâncias. Suas atividades e o crédito familiar lhe possibilitaram comprar terras, em
1846.
535
Além disso, ele também criava gado nos campos de Manoel José de Carvalho
tanto em Japejú quanto na “Oriental”. Os outros filhos e genros de Manoel José de
Carvalho também atuaram associados a seu pai/sogro por algumas vezes, mas em uma
freqüência bem menor que os citados anteriormente.
O caso dos “Carvalho”, excepcionalmente documentado, permite uma
aproximação mais detalhada das características dessas atuações conjuntas entre pais e
filhos na Fronteira. As informações de que dispomos vêm de uma rica documentação
encabeçada por contas-correntes (tipo “débito – haver”) entre os herdeiros e Manoel
José de Carvalho (ou “a herança”, quando se refere à fatos ocorridos após o falecimento
deste, em 1856). Essas contas-correntes foram elaboradas por um contador
especialmente contratado para a realização do inventário. Elas realizavam a
sistematização de diversos documentos e correspondências trocadas entre o velho
Manoel e os herdeiros ou entre alguns deles e alguém “de fora”. Elas englobavam cartas
com instruções e avisos sobre negócios, ordens para pagamento e recebimento de bens e
dinheiro, recibos, etc. Todos esses documentos também se encontram juntados ao
processo. Assim, foi possível dispor de um número considerável de informações
regulares sobre as atividades econômicas da família no período de 1847 a 1857, e
também de algumas referências esparsas sobre períodos anteriores.
536
Adão José de Carvalho possuía gado na Estância de Japejú, pertencente a seu
pai, e também em suas terras no Uruguai (vizinhas às de seu pai) e no seu campo em
Alegrete (vizinho ao de seu cunhado João de Araújo). O mesmo acontecia com o genro
João de Araújo, que tinha gado nas estâncias de seu sogro em Japejú, também em suas
terras vizinhas às do sogro no Estado Oriental e ainda em suas terras em Alegrete, além
534
Se forem léguas brasileiras, o que é provável, seria algo em torno de 168.795 hectares (!!). Se fossem
léguas castelhanas seria a ainda impressionante extensão de cerca de 103.000 hectares.
535
“Transmissões. Alegrete. L. 01, Fl. 165, 20.02.46. APRS.”
536
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, m 01, n 07, a 1853-7. APRS.”
270
de ser comerciante nesta última vila. Já Cirino José de Carvalho criava nos campos de
seu pai, em Jepejú e em seus campos no Uruguai, também vizinhos aos do velho
Manoel José de Carvalho. Por fim, João José de Carvalho, que era o administrador das
estâncias de seu pai, possuía gado em Japejú e na “Oriental”, além de criar nas próprias
terras que havia adquirido em 1846.
A documentação anexa ao inventário de Manoel José de Carvalho registra
uma série de práticas de atuação comum entre os pais e os filhos. Além do fato de que
os filhos criavam gado nos campo dos pais, existiam outras ações conjuntas: eles
vendiam gado dos outros, remuneravam trabalhadores dos outros, pagavam e recebiam
dívidas em nome dos outros. E, nas oportunidades ali registradas em que os pais e filhos
venderam o gado dos outros, ficaram com o dinheiro por cinco, dez anos e sabe-se lá
quanto tempo mais teriam ficado, pois aqui o limite foi o falecimento de Manoel José de
Carvalho e a realização de seu inventário. Quando pagaram dívidas ou trabalhadores
uns dos outros, não recuperaram esses valores em todo aquele período. No caso do
genro João de Araújo, havia muitas mercadorias fornecidas durante dez anos para
Manoel José de Carvalho e que jamais haviam sido pagas.
Por exemplo, em dezembro de 1850, Cirino José de Carvalho escreveu uma
carta para seu pai, dando conta do dinheiro de um gado que o capataz das estâncias do
Uruguai havia vendido, mas que ele Cirino resolveu reter, em parte, para ir custeando
despesas feitas em Japejú:
“Salço, 26 de dezbro. 1850. Meu pai. O Dornelles entregou-me 70 onças de
ouro, produto de bois e algum gado de criar que tem vendido na Ilha de
Cabellos. Os registros e as contas de despesas que o Dornelles tem feito hei
de entregar-lhe em outra ocasião. Antonio Roiz lhe a de entregar quarenta
onças e o resto fica para eu ir pagando alguns bois q tem saído de Japeju.
Eu nestes poucos dias vou para o outro lado de Quaraí tratar de fazer
vendas de algum gado de corte e se o preço do gado de cria convidar
também hei de vender (...). Saúde é o que lhe desejo. Seu amigo e filho.
Cirino”
537
Nessa pequena carta, vê-se a prática corrente de se dispor de parte dos
recursos dos outros, desde que considerasse as suas ações como sendo convenientes aos
interesses de todos. Isso implicava em uma gestão compartilhada dos negócios.
Apesar de haver o registro escrito de todos esses débitos entre pais e
filhos/genro, tornando-os aptos a serem cobrados posteriormente, é de fato muito difícil
considerar que essas transações entre familiares fossem equivalente a uma dívida
537
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, m 01, n 07, a 1853-7. APRS.”
271
existente entre um devedor e um credor agindo no mercado “impessoal”. Naturalmente,
podiam haver empréstimos, relações de débito-crédito, vendas e outras transações entre
membros de uma família, que fossem regidas estritamente pelos mesmos mecanismos
de mercado que eram aplicáveis entre partes “impessoais”. Isso implicaria em
empréstimos com prazo fixado, bem como os competentes juros de mora e, também, em
cobrança de aluguel dos escravos e arrendamento das terras de uns, que se colocava a
serviço de outros. Contudo, essa não parece ter sido a regra. No mais das vezes, essas
práticas conjuntas eram operacionalizadas, de um lado, através da tolerância recíproca
no que dizia respeito ao pagamento das dívidas e, de outro, da comunicação de alguns
recursos fundamentais como o uso da terra e o trabalho dos escravos.
De fato, os escravos de cada um desses senhores podiam trabalhar a serviço
de outros. Isso é válido para os escravos campeiros que trabalhavam nas estâncias onde
pastavam em conjunto rebanhos de vários parentes. O mesmo ocorria com cativos
pedreiros e carpinteiros, que construíam instalações como mangueiras e currais que
seriam aproveitados por todos. Nesse sentido, doar escravos aos filhos não significava
sempre “perder” o trabalho desses cativos, já que, muitas vezes, eles seguiam
desempenhando serviços que aproveitavam a vários membros da família.
No balanço final das contas, os filhos e o genro acabaram saindo como
devedores de seu pai/sogro. Os gastos que faziam com trabalhadores de seu pai, com
pagamento a casas comerciais por suprimento às estâncias do mesmo, com o pagamento
de dívidas paternas de envergadura pequena e mediana, com suprimento direto de
mercadorias acabaram por ser inferiores aos montantes alcançados pelas dívidas
contraídas por eles e pagas ou assumidas por Manoel José de Carvalho, como era o caso
daquela decorrente do empréstimo que permitiu-lhes adquirir as estâncias compradas no
Estado Oriental.
Pela natureza da documentação, que tinha por objetivo acertar as contas dos
herdeiros com o espólio, gerido pelo viúvo meeiro, não contamos com referências à
atuações econômicas conjuntas entre os irmãos e cunhados – algo que deveria tamm
fazer parte dessa trama que mistura relações econômicas e familiares. De qualquer
forma, é possível deduzir algumas implicações dessas práticas conjuntas recorrentes.
1. Em primeiro lugar, uma configuração fundiária que reunia tão vastos
campos, colocava em disponibilidade uma área de terras muito maior para os membros
da família do que eles teriam se criassem gado individualmente. Ainda que de forma
limitada, esse fato propiciava alternativas quando houvesse necessidade de
deslocamentos de animais, como em caso de secas, guerras, pestes, ou só para invernar
272
em campos melhores – ou seja, propiciavam maior racionalidade à criação, dentro
daquele sistema agrário extensivo. Em uma conjuntura onde estava ocorrendo o
fechamento da fronteira agrária, e as melhores terras já haviam sido apropriadas, a
expansão fundiária deveria ocorrer sobre terras descontínuas. Nesse caso, o
investimento em terras no Estado Oriental, que eram de melhor qualidade, foi
preferencial. Todavia, a manutenção de propriedades a tão afastadas distâncias, mesmo
se considerássemos apenas as pertencentes a Manoel José de Carvalho, também tinha o
ônus da dificuldade de administração e controle. Nesse sentido, eram exatamente as
práticas de atuação conjunta que viabilizavam a existência desse tipo de propriedade.
538
2. É possível imaginar que os membros da família tivessem acesso facilitado
à informação, à oportunidade de negócios, a relações comerciais, ao crédito, ao dinheiro
em numerário, a gêneros para pagar os peões. A possibilidade de contar com dinheiro e
crédito dentro da própria família parece ter sido um fator de grande importância, pois
permitia que esses criadores dispusessem de recursos financeiros “imediatos” quando
necessitavam. Se um deles precisava pagar uma dívida e não tinha o dinheiro, outro
podia ter. Se havia possibilidade de vender gado no Estado Oriental, mas o dono das
reses não contava com numerário para pagar peões ou se ele estava em Japejú, outro
membro que estivesse “do outro lado do Quaraí” efetivava o negócio e pagava a feitura
da tropa com seus próprios recursos. Além desses casos presentes na documentação,
parece correto que se devia recorrer a crédito interno à família também no caso da
compra de escravos ou mesmo de terras. A contrapartida necessária que um membro da
família devia prestar, em troca dessas possibilidades, era exatamente atender às
necessidades dos outros sempre que tivesse condições para tanto. Além dessa forma
específica de crédito “interno”, é bastante claro que pertencer a uma família facilitava a
todos o aproveitamento de relações creditícias e de oportunidades comerciais fora da
família. As relações de confiança e os contatos mercantis também deviam “comunicar-
se” aos parentes que tinham muitos negócios em comum.
3. Como já foi dito, na chácara da Boa Vista estava instalada uma olaria e na
Estância de Japejú havia uma pedreira e matos de onde retirar madeira. Assim, os
membros da família puderam valer-se de telhas, pedras e táboas pelas vias da circulação
intra-familiar, sem depender do mercado. E aí novamente vemos todos os membros da
família aproveitando-se do trabalho de escravos oleiros, lenhadores e falquejadores que,
formalmente, tinham apenas um senhor. O mesmo devia ocorrer com parte do
538
As cartas trocadas entre esses familiares eram datadas de locais diversos. Há cartas de Manoel José de
Carvalho datadas de Japejú e da Chácara da Boa Vista; de Cirino datadas da estância “Oriental” e de
Japejú; de João José datadas da Chácara da Boa Vista e do Uruguai, e assim por diante.
273
suprimento necessário de farinha de mandioca (alimento importantíssimo na dieta dos
escravos e dos peões), vinda da atafona presente na chácara da Boa Vista, ainda que nos
documentos não haja indicações específicas a esse respeito.
4. É interessante, ainda, perceber o papel dos suprimentos de mercadorias
feito pelos genros do velho Manoel, principalmente por João de Araújo. Esses criadores
de gado precisavam de gêneros diversos para si mesmos e para a alimentação dos
trabalhadores cativos e livres de suas estâncias. Também precisavam de gêneros para
compor o pagamento do salário dos peões mensais. As despesas com mão-de-obra
formavam a maior parte dos gastos operacionais das grandes estâncias, e uma parcela
importante do salário dos peões mensais era paga em mercadorias, como veremos no
capítulo “7”. No período entre 1842 e 1845, para o qual contamos com dados, cerca de
54% da remuneração dos peões de Manoel José de Carvalho foi feita em produtos,
sendo, o restante, pago em dinheiro durante o tempo trabalhado ou no momento do
acerto de contas. Segundo as contas do administrador João José de Carvalho, apenas
33% dessas mercadorias (considerando seu valor) foram adquiridas diretamente pelos
próprios peões em casas de comércio externas a família – caso em que os trabalhadores
compravam na casa comercial e suas contas eram pagas pelo estancieiro. Todo o resto
foi retirado diretamente com ele administrador.
539
Uma parte importante dessas
mercadorias “pertencentes às estâncias” devia ser exatamente aquelas supridas pelos
genros.
As contas presentes no inventário de Manoel José de Carvalho registram que
seus genros Olivério Filho, Antônio Mendes e, sobretudo, João de Araújo também
supriram suas estâncias com mercadorias. Ali, há suprimentos registrados desde 1847 e,
no caso de João de Araújo, foram regulares e ininterruptos até o encerramento do
inventário, 10 anos depois. No entanto, eles deviam vir de muito antes, já que, no
começo da conta, em 1847, está anotado um valor referente ao saldo de um acerto das
contas anteriores àquele ano. Diferentemente das contas-correntes estabelecidas com
comerciantes de fora da família, esses suprimentos somente foram “pagos” quando da
realização da partilha dos bens do casal inventariado, momento em que se acertaram as
contas que havia entre João de Araújo e seu sogro. Aliás, há registros de pagamentos
que o próprio João de Araújo fez, por diversas vezes, a esses comerciantes “externos”
que supriam as estâncias de seu sogro, comprovando a prática dos acertos regulares
entre estancieiros e comerciantes de fora da família.
539
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, M. 01, N. 07, A. 1853-7. APRS.”
274
Assim, além de ter um papel relevante no fornecimento geral de suprimentos
para a família e para as estâncias, essas mercadorias também compunham parte
essencial da remuneração dos peões mensais. Tendo em conta que a família comprava
essas mercadorias “a grosso” e as entregava para seus peões pelo preço de “retalho”,
pode-se deduzir que aí havia uma forma de se conseguir um abatimento nada
desprezível no pagamento dos peões. Esse era mais um motivo para que as famílias da
elite agrária estudada procurassem contar com, pelo menos, um membro dedicado ao
comércio.
Resumindo: essas práticas econômicas conjuntas de pais e filhos colocavam
uma área de terras maior à disposição desses criadores, permitindo opções de circulação
do gado, sobretudo em épocas críticas. Facilitavam, também, o acesso à informação e ao
crédito interno e externo à família. Propiciavam a circulação intra-familiar de recursos
como o trabalho de escravos, o uso da terra, suprimentos de mercadorias, pedras, telhas,
taboas e farinha de mandioca. Por fim, permitiam que se diminuísse os custos com
pagamento de mão-de-obra livre e suprimento de roupas para os escravos, ao empregar
ali mercadorias que membros da família adquiriam no atacado. Vejamos, agora, como
foi encaminhado o processo de sucessão e partilha de bens de Manoel José e Custódia
Maria de Carvalho.
6.5 - Sucessão entre os Carvalho
O processo de inventário de Dona Custódia Maria de Carvalho começara a
correr em 1853, seis anos após o seu falecimento. Ainda assim, foi necessário que os
genros Olivério Ortiz Filho e Antônio Mendes peticionassem reiteradamente solicitando
que seu sogro desse seguimento ao processo. O pouco interesse do inventariante e dos
demais herdeiros em fazer andar o inventário tem uma explicação lógica no fato de que
a maioria deles tinha muitos negócios em conjunto com seus pais. A realização do
inventário e a partilha dos bens acabariam por perturbar o modus operandi de seus
negócios. Não por acaso, os herdeiros que mais pressionaram para o andamento do
processo, foram exatamente os genros menos integrados nessa economia comum. Em
1856 faleceu o próprio Manoel José de Carvalho e, só então, o inventário andou célere e
a partilha pôde ser realizada.
Como vimos, a maioria dos filhos recebeu antecipações de herança com
estruturas semelhantes. No entanto, a presença importante de uma atuação econômica
conjunta entre pais e alguns dos filhos significou uma forma de desigualdade entre os
herdeiros. Os filhos Adão, Cirino, Florinda e João José tiveram vantagens por atuarem
275
de forma bastante integrada com seus pais. Como já foi dito, no balanço dessas
atividades, eles acabaram como devedores do casal Manoel e Custódia. Porém, de novo,
não se deve exagerar aqui. O filho Sebastião Japejú, que não tinha negócios em comum
com seus pais, como se viu, recebeu muitas assistências e uma doação de 10 contos de
réis, que foi deduzida da terça de seu pai e, portanto, não precisou ser descontada de sua
legítima. O investimento familiar em sua formação foi realmente expressivo. Já Manoel
José de Carvalho Filho estava casado com Propícia, sua sobrinha, filha de seu irmão
Cirino, com quem mantinha muitos negócios em comum. Por sua vez, Maria José
recebera um dote que era o dobro daquele recebido por todos os seus irmãos, o que
ajuda a compensar o fato de que seu segundo esposo, Olivério Ortiz Filho, não tenha
mantido tantos negócios comuns com seu pai, como fizeram outros herdeiros. Da
mesma forma, a filha Prudência, casada com Antônio Mendes Ferreira, casou no
decorrer do inventário, estando já na expectativa de receber sua herança, o que
implicava, como de praxe naquela sociedade, que seu dote fosse menor ou mesmo nem
precisasse existir.
Assim, mais do que um claro privilégio a um ou a alguns herdeiros, o que
parece ter acontecido foi a mobilização de recursos diversos para aproveitar as
oportunidades diferenciadas que propiciariam que os filhos, cada um a seu modo,
pudesse contribuir para a família e viabilizar a construção de seu próprio futuro. Nesse
sentido, mais do que garantir uma rígida igualdade nas antecipações de herança ou
concentrar favorecimentos em um herdeiro eleito, considerou-se importante auxiliar de
forma apropriada cada um dos destinos diversos dos filhos que, em conjunto, iam
solidificando, reproduzindo e ampliando os recursos e relações com que a família podia
contar.
Essa estratégia familiar esteve assentada na busca de reprodução das
atividades familiares em campos diversos e ali estava presente, também, a necessidade
de sua adequação a fatores contingentes e ao próprio ciclo familiar. Como bem apontou
Dora Costa, “o tamanho e as proporções das antecipações têm relação direta com a
abertura do inventário numa determinada fase do ciclo de desenvolvimento da família e
da fase individual de cada membro da prole...”.
540
Por exemplo: para a filha Prudência
fazer um bom casamento, não seria necessário um dote tão significativo quanto o de sua
irmã, porque ela era uma herdeira em vias de receber sua legítima. Assim, foi possível
para a família, na década de 1850, desviar recursos que poderiam engordar seu dote e
540
COSTA, Dora. Formação de família proprietárias e redistribuição de riqueza em áreas de fronteira...,
2004, p.p. 30-31.
276
destiná-los a seguir financiando os estudos de Sebastião Japejú que, como vimos, era
hábil em conseguir sustendo de seu pai, com vistas a alcançar a sua formatura.
De forma coerente com a política de antecipações de herança e negócios
conjuntos dentro desta família, sua sucessão não apresentou um “herdeiro-
concentrador”, mas comportou ajustes e pequenos movimentos concentradores que
guardavam íntima relação com os momentos anteriores da trajetória dos herdeiros.
Seguindo o padrão das famílias da elite agrária, a estância de Japejú foi
dividia em partes ideais, ficando os nove herdeiros com frações iguais do valor total.
Cirino José de Carvalho ficou com a casa, mangueiras e demais benfeitorias da estância,
compensando os outros herdeiros pelo fato de que recebeu menos cabeças de gado. A
chácara da Boa Vista e a légua de campo anexa a ela, localizadas perto da cidade de
Alegrete, foram também divididas em partes ideais. Como já foi dito, o inventário era
amigável e se resolveu não partilhar através deles os bens existentes no Estado Oriental.
Contudo, as escrituras públicas feitas alguns anos depois, indicam que houve, lá, uma
divisão semelhante à das terras no Brasil. Em 1863, faleceu a esposa de Cirino, Dona
Rufina Cândida de Carvalho. Depois da partilha de bens realizada em seu inventário,
mais algumas redistribuições das terras foram realizadas entre membros da família.
Englobando os bens herdados nesses dois inventários, houve um total de 13 transações,
sendo 4 permutas e 5 vendas entre herdeiros, além de mais 4 vendas feitas a pessoas de
fora da família.
541
No que se refere aos herdeiros de Custódia e Manoel José de Carvalho, as
transações pós-partilha apontam que Adão, João José e o genro Antônio Mendes
Ferreira, concentraram seu patrimônio em Japejú e no Estado Oriental. João de Araújo e
Silva teve postura contrária. Vendeu todos os seus interesses no Estado Oriental e
concentrou-se em suas propriedades no Brasil. Com o tempo, acabaria por arrendar seus
campos e gado e a se tornar uma ativo prestamista.
542
Ele e Dona Florinda não tiveram
filhos, fato que não permitia uma reiteração da estratégia de seus pais/sogros. Por fim,
Olivério Ortiz Filho vendeu e trocou com os cunhados seus interesses no Estado
Oriental e em Japejú por terras na chácara da Boa Vista e na légua contígua.
541
Das 13 transações, 3 não se encontram nos livros de escrituras públicas de Alegrete, mas sim referidas
no inventário de dona Rufina Cândida de Carvalho. “Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível
e Crime, M. 02, N.50, A. 1863. APRS.” As outras são as seguintes. “Transmissões. Alegrete, L. 10, Fl.
35, 14.11.1864. APRS.”“Transmissões. Alegrete, L. 10, Fl. 27v, 05.10.1865. APRS.”“Transmissões.
Alegrete, L. 06, Fl. 62v, 21.10.1860. APRS.”“Transmissões. Alegrete, L. 05, Fl. 36, 09.10.1858.
APRS.”“Transmissões. Alegrete, L. 06, Fl. 44, 2.06.1860. APRS.”“Transmissões. Alegrete, L. 07, Fl.
15v, 04.04.1861. APRS.”“Transmissões. Alegrete, L. 12, Fl. 02v, 24.08.1866. APRS.”“Transmissões.
Alegrete, L. 12, Fl. 76, 17.09.1867. APRS.”“Transmissões. Alegrete, L. 12, Fl. 38v, 25.04.1867.
APRS.”“Transmissões. Alegrete, L. 05, Fl. 45 , 11.12.1858. APRS.”
542
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, M. 02, N.50, A. 1863. APRS.”
277
Cirino José de Carvalho conseguiu re-agrupar parte da chácara da Boa Vista,
que acabou por dividir apenas com seu irmão Sebastião Japejú e seu cunhado Olivério
Ortiz Filho. Também ficou com uma pequena parte da légua de campo contígua à
chácara e com sua parte em Japejú. Porém, acabou sem parte no campo do Estado
Oriental. Através do inventário de sua esposa, aberto em 1863, sabemos que Cirino e
seus filhos/genros desempenhavam uma estratégia semelhante a que fora colocada em
prática por seus pais. Sua fortuna era menor do que a de seus ascendentes, o que, como
já foi comentado, era fato comum naquela economia pecuária extensiva, em uma
fronteira agrária que já se encontrava fechada na segunda metade do século XIX.
Entretanto, ainda era um patrimônio vultuoso, que o incluiu entre as 16 maiores fortunas
da amostra trabalhada e cuja estrutura permitia a reiteração da estratégia que seus pais
haviam desempenhado. Cirino tinha partes na Chácara da Boa Vista, próxima a
Alegrete, e na estância de Japejú, incluindo aí todo o estabelecimento e as benfeitorias,
e possuía a estância de quatro léguas castelhanas no Estado Oriental, que comprara
quando seu pai ainda era vivo.
Cirino e Rufina tiveram 4 filhos e 3 filhas. O casal teve uma atuação
econômica comum bastante regular com um filho e dois genros. O filho mais velho,
Cirino de Araújo Carvalho, criava gado e era comerciante. Já havia comprado um
pedaço de terra, repetindo a trajetória de seu pai e seus tios. Porém, faleceu pouco antes
de sua mãe. O genro Antônio Cândido de Oliveira Mattos foi administrador dos
interesses de Cirino em Japejú e criava gado naqueles campos. Outro genro era o
também irmão de Cirino, Manoel José de Carvalho Filho. Ele parece ter tido mais
negócios em comum com o irmão/sogro do que com o velho Manoel. A política dotal
de Cirino e Rufina, uma geração depois de seus pais, fora diferente. As filhas receberam
apenas escravas quando de seus casamentos. Os filhos, por sua vez, receberam muitas
assistências na forma de pagamento de dívidas que contraíam em casas comerciais. Os
dois filhos mais novos, Marcos de Araújo Carvalho e Confúcio de Araújo Carvalho,
estavam cumprindo estudos e eram sustentados por seu pai. Confirmando uma
tendência já vista no caso dos Ribeiro de Almeida, no capítulo anterior, as formações
acadêmicas foram ficando mais difundidas entre as famílias da elite agrária da
Fronteira, na segunda metade do século. Não houve dote em gado, mas os genros e
filhos deviam quantias expressivas em dinheiro a Cirino.
543
Mesmo com essas diferenças, na década de 1860, a reiteração de uma
produção pecuária que se estendia em três estabelecimentos a largas distâncias, seguia
543
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, M. 02, N.50, A. 1863. APRS.”
278
sendo viabilizada pela atuação conjunta, de forma regular, entre o pai e alguns dos
filhos e genros. Entre as despesas que constam de sua conta-corrente estavam, por mais
de uma vez, a transferência de gado, entre suas diferentes propriedades. Não há como
falar com segurança sobre o futuro desse tipo de estratégia familiar, no período seguinte
ao estudado aqui. Só uma pesquisa apurada, em documentos semelhantes a este, poderia
trazer certeza sobre aquele período, onde as mudanças ocorriam de forma cada vez mais
rápida: a fronteira agrária definitivamente fechada em um sistema que seguia assentado
sobre bases extensivas de reprodução; a abolição da escravidão no Uruguai e o
recrudescimento da vigilância sobre os estancieiros brasileiros que passaram a disfarçar
seus escravos em trabalhadores contratados; a crise do trabalho escravo no Brasil, com o
aumento dos efeitos do final do tráfico atlântico e com a Lei do Ventre Livre; os efeitos
próprios da aplicação da Lei de Terras na região. Além disso, nas décadas finais do
século, a modernização que chegaria com as cercas de arame, a ferrovia, a instalação de
frigoríficos, as novas exigências sobre a qualidade do gado vendido. É apenas possível
imaginar que essas transformações exigiram também mudanças nas maneiras como as
famílias elaboraram ações para lidar com a nova realidade sócio-econômica. Esse,
porém, é tema que ultrapassa em muito as pretensões e possibilidades desta tese.
De toda a forma, a trajetória do casal Manoel e Custódia, bem como a dos
casais formados pelos matrimônios de seus filhos, demonstra uma estratégia familiar
que viabilizou a reiteração da família dentro do privilegiado grupo das maiores fortunas
locais. O patrimônio do casal foi construído a partir da mobilização dos recursos
disponíveis em uma época onde as terras e os escravos ainda tinham preços baixos. Os
matrimônios de seus filhos permitiram que a família estendesse suas alianças para as
áreas do comércio e dos altos comandos militares. É verdade que o encarecimento das
terras e a reiteração da pecuária em um sistema extensivo impedia que os filhos
repetissem os enormes patrimônios agrários de seus pais. Porém, não evitaram que eles
reiterassem sua posição privilegiada como concentradores da riqueza social. Como já
foi dito, em 1863, o inventário de Dona Rufina, esposa de Cirino José de Carvalho,
colocou-os como integrantes do grupo dos 16 inventariados com fortunas superiores a £
10.000,00 na amostra pesquisada. Por sua vez, com inventário realizado em 1878, João
de Araújo e Silva figurou como dono da maior fortuna na amostra de inventários
estudados por Graciela Garcia para aquela década, montando nada menos do que £
44.077, 38.
544
544
GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra..., 2005, p. 33.
279
Parece sempre razoável afirmar que estar inserido em uma família
importante alçava o indivíduo para cima na estratificação social, ainda mais em
sociedades pré-industriais. No entanto, creio que as práticas que reveladas pela análise
dos documentos dos Carvalho permitem perceber, com mais clareza, alguns dos
motivos concretos porque o pertencimento a uma família com recursos notáveis era um
dos critérios de hierarquização social, em conjunto com a posse individual de riqueza
material e de cargos de comando.
Cabe agora, tentar sistematizar as conclusões mais gerais que a trajetória dos
Carvalho pode trazer para este trabalho.
6.6 - Recursos compartilhados
Embora não seja possível medir com maior precisão a difusão dessas
práticas regulares de atuação conjunta entre pais e filhos, elas parecem ter sido comuns
às famílias da elite agrária, em Alegrete. Não há uma documentação tão rica como a dos
Carvalho para nenhuma outra família, mas não há motivos para crer que ela tenha sido
uma família excêntrica em seu mundo. Existem indícios claros da recorrência daquele
tipo de situação em outras famílias, ainda que o grau de integração fosse diferente entre
elas e também variasse de filho para filho. Esses indícios surgem, por exemplo, no caso
do gado criado pelos filhos do Brigadeiro Ortiz em seus campos. Ou então a situação de
Manoel Joaquim do Couto, que era dono das maiores extensões de terra da amostra
pesquisada, com nada menos do que 7 estâncias, e tinha parte delas administradas por 3
filhos e pelo genro Agostinho Pereira de Carvalho. Outro dos genros, João Francisco
Vilanova, tinha negócios de gado e mercadorias em comum com seu sogro.
545
Peças dos inventários post mortem como as “declarações do inventariante” e
a “alimpação da partilha” também trazem preciosas informações sobre essas atuações
conjuntas entre membros da família. Na primeira, o inventariante podia dar informações
sobre bens que estavam em poder de herdeiros, sobre negócios comuns, uso do campo
dos pais e mesmo sobre dotes e doações feitas aos filhos. Já a segunda era o momento
em que os herdeiros e o viúvo meeiro podiam requerer que fosse lançado na sua
legítima, ou meação, este ou aquele bem. Na maioria das vezes, apenas um ou outro
herdeiro realizavam esses pedidos, mas eles traziam informações sobre os temas aqui
tratados. É o caso da alimpação da partilha do inventário de Dona Maria Mância
Ribeiro, esposa do Marechal Bento Manoel Ribeiro. Ali, o herdeiro Severino Ribeiro de
Almeida pediu que o que lhe tocasse em campo o fosse na parte da propriedade do Jarau
545
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes, M.21, N. 258, A. 1867. APRS.” .
280
chamada Sesmaria do Guterres “por já ter ali seu arranchamento.”
546
Também seu
cunhado, o Brigadeiro Francisco de Arruda Câmara, pediu a parte do campo onde “já
tem seu estabelecimento.” Por sua vez, o herdeiro Feliciano Ribeiro de Almeida
discordou das contas de administração dos bens de seus pais, apresentadas por seu
irmão Severino, bem como do valor que dado em pagamento das dívidas contraídas por
seu outro irmão, o Dr. Sebastião Ribeiro. Por sua vez, o próprio Feliciano havia
recebido em doação um escravo, algumas reses e quantias em dinheiro, porém, naquele
documento, ele declarou que estavam em seu poder também mais dois escravos e 50
reses mansas. Da mesma forma, seu irmão Antônio Mâncio Ribeiro, que havia recebido
em doação um escravo, umas poucas reses e dinheiro, declarou que estavam em seu
poder outros 5 escravos e mais 60 reses mansas.
Exemplos como esses existem em outros inventários e indicam duas coisas.
De um lado, demonstram que o valor alcançado pelos dotes e doações, e declarado nas
colações, era apenas uma parte daqueles bens pertencentes aos pais, mas que eram
acessíveis aos filhos. Como disse Dora Costa, os empréstimos de bens, onde não havia a
transferência da propriedade, também compunham essas antecipações de herança. E
mais, pode-se acrescentar aí o uso do campo dos pais pelos filhos: veja-se que alguns
dos filhos declaram mesmo ter estabelecimentos dentro das terras paternas, o que indica
um decidido grau de estabilidade dessa prática. De outra parte, tais exemplos são
indícios claros da existência de atuações econômicas conjuntas entre esses parentes.
Além do uso do campo dos pais pelos filhos e da posse de escravos de uns por outros,
havia reses mansas em poder de herdeiros, o que pode sugerir práticas de manejo e
venda conjunta de gado, como descrito para o caso dos Carvalho.
Por fim, as dívidas dos filhos para com os pais, que aparecem reiteradas
vezes nos inventários, podem representar formas de circulação de recursos dentro da
família, sem seguir estritamente as regras do mercado impessoal. Também podem
indicar a conta final de uma série de prestações recíprocas, como aquelas que estão
discriminadas no caso dos Carvalho.
A existência de práticas regulares de atuação econômica conjunta entre pais
e filhos conduz a algumas conclusões importantes para o estudo das relações entre as
famílias, a estrutura agrária e a hierarquia social.
1. Em primeiro lugar, a análise do caso dos Carvalho reforça a idéia de que,
além de ser estudada como uma forma de transmissão de patrimônio entre as gerações,
546
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes, M.11, N. 152, A. 1853. APRS.”
281
as antecipações de herança devem ser vistas, também, como uma maneira de
compartilhar recursos. Elas não eram apenas uma forma de transferência de recursos
entre duas famílias nucleares sem articulação entre si. Ao contrário, elas
instrumentalizavam os filhos para, através de suas próprias trajetórias, ajudar na
reprodução social e aportar recursos para a família. Elas podiam se tornar, ainda, o
ponto de partida para o estabelecimento de uma relação em que os pais e os filhos
atuavam regularmente em conjunto. Nesse caso, elas eram mesmo um forte indicativo
da existência de estruturas familiares onde os núcleos conjugais não eram totalmente
independentes uns dos outros, construindo uma estratégia conjunta de atuação no
mundo social.
Os trabalhos, já citados, de Carlos Bacellar e Dora Costa, têm como mérito,
entre outros, o fato de vincular com pertinência as antecipações de herança, a
redistribuição de bens entre herdeiros e a migração para a fronteira agrária. Eles
desvendaram com perfeição as estratégias que as famílias ligadas à economia açucareira
utilizaram para agir em uma situação que combinava o grave problema da
indivisibilidade dos engenhos, com a existência de uma fronteira aberta. A mesma
situação de fronteira agrária aberta se encontra no caso das terras sul-riograndeses no
século XVIII, analisado no estudo, já referido, de Fábio Kuhn. A situação na Fronteira
Meridional, durante o período estudado aqui, era diferente. Contudo, as antecipações de
herança foram também utilizadas pela elite agrária.
A partir da década de 1830, a fronteira agrária estava, senão completamente
fechada, ao menos em rápido processo de fechamento. As melhores terras para a
pecuária já haviam sido apropriadas e os que pretendessem estender a atividade não
encontravam vastas terras contíguas a apropriar. Prova disso é que, como já foi dito no
capítulo “1”, 10 dos 16 inventários com grandes fortunas, em Alegrete, apresentaram a
posse descontínua de mais de uma área de campo.
547
E veja-se que não se tratava de
propriedade especulativa de terras. Em sua larga maioria, esses campos eram
efetivamente utilizados para a criação de gado e sua aquisição não se justificou pelo
desejo de seus senhores de se tornarem rentistas rurais. Ao contrário, eles eram a
547
Alguns exemplos: Manoel José de Carvalho tinha terras em Alegrete, em Uruguaiana e no Estado
Oriental; o Brigadeiro Olivério José Ortiz em Alegrete e no Estado Oriental, depois em São Gabriel; o
Marechal Bento Manoel Ribeiro em duas áreas muito distantes dentro de Alegrete; Albino Pereira de
Lima em quatro lugares diferentes no município de Alegrete, também em São Borja e no Estado Oriental;
Antônio José de Oliveira em Alegrete, Uruguaiana, Itaqui e no Estado Oriental; Manoel Joaquim do
Couto em Alegrete e Uruguaiana; Joaquim Antônio de Oliveira em três locais diferentes dentro do
município de Alegrete e em São Francisco de Assis (distrito de São Borja).
282
expressão da busca da expansão da atividade pecuária em um sistema agrário de
reprodução extensiva, que tinha na incorporação de terras um fator essencial.
Nesse contexto, mais do que ajudas para migrar, como ocorria no Oeste
Paulista, no caso de Alegrete no século XIX as antecipações de herança foram ajudas
para ficar mantendo atividades próximas ou mesmo conjuntas com as da família. Nas
vezes em que elas deram início a práticas regulares de atuação conjunta entre pais e
filhos, elas viabilizaram a própria produção pecuária estendida sobre uma dilatada
geografia. A aquisição voraz de terras, vista no capítulo “2”, servia para criar um
patrimônio fundiário que comportaria a produção pecuária dos pais e de muitos de seus
filhos. Podendo usar essas terras para pastorear seus rebanhos, em parte recebidos como
antecipação de herança, os filhos aprendiam a gerir sua própria atividade pecuária e
construíam um pecúlio que os ajudaria a tornarem-se criadores bem sucedidos e a
realizarem alianças matrimoniais que trariam vantagens para sua família. Por sua vez,
alguns dos filhos auxiliavam na gestão dessa pecuária familiar feita a grandes
distâncias. As antecipações, o crédito interno da família e o crédito que os pais tinham
no mercado podiam ajudar na construção do próprio patrimônio fundiário dos filhos,
com no caso dos irmãos Carvalho, mas, tão importante quanto isso, é o fato de que elas
viabilizavam a produção pecuária dos pais em larga escala que, naquele contexto de
fronteira agrária fechada, devia se estender sobre diferentes distritos, municípios e
mesmo sobre mais de um país.
2. Essas constatações levam a pensar sobre as estruturas familiares
predominantes naquela realidade. Tentar enquadrar perfeitamente esses grupos parentais
em um tipo abstrato de família, fosse ela nuclear, troncal ou extensa seria um exercício
exasperante e pouco útil. E isso não ocorre apenas porque não existem as fontes que
seriam as mais adequadas para tanto – censos e mapeamentos de população – mas
porque o critério pelo qual é feita essa classificação, a co-residência, se mostra
inadequado para compreender a realidade estudada aqui. Os irmãos Adão, Cirino,
Florinda e João José de Carvalho tinham suas próprias terras mas, mesmo assim,
criavam nas terras do velho Manoel. Cirino e João José residiam nas terras de seus pais;
Adão e Florinda não, mas todos tinham uma atuação semelhante em termos de negócios
conjuntos com eles. Havia uma interdependência entre os espaços produtivos
pertencentes a diversos agentes. Enfim, no caso da elite agrária, praticante de uma
pecuária em unidades produtivas espalhadas e distantes naquela Fronteira, a co-
283
residência não é um elemento pertinente para compreender a organização das famílias e
as estratégias que elas colocavam em prática.
Lembremos, novamente, da crítica feita por Giovanni Levi, em A Herança
Imaterial. As classificações baseadas na co-residência, ainda que sejam importantes em
muitos contextos, atentam exclusivamente para o aspecto interno da família. A partir
dela constatação, Levi explicita o conceito operativo de famílias que emprega em seu
trabalho, sobre o Piemonte no século XVII:
“A análise das estratégias das famílias de Santena será buscada, portanto, em
um contexto que vai além da unidade de residência. Falaremos de famílias
no sentido de grupos não-co-residentes, mas interligados por vínculos de
parentelas consangüíneas ou por alianças e relações fictícias que
aparecem na nebulosa realidade institucional do Antigo Regime como cunhas
estruturadas que serviam de auto-afirmação diante das incertezas do mundo
social, mesmo no contexto de uma pequena aldeia.”
548
(grifo meu)
Naturalmente, o mundo camponês do Antigo Regime, estudado por Levi, é
muito diferente da fronteira meridional do Brasil no século XIX, mas a idéia de núcleos
parentais não necessariamente co-residentes, que levam adiante uma atuação sócio-
econômica conjunta, está mais próxima da realidade encontrada neste estudo do que
qualquer classificação familiar com base na co-residência.
Em “O Desaparecimento do Dote”, Muriel Nazzari referiu essas práticas de
atuação conjunta e compartilhamento de recursos como típicas da atuação econômica
das famílias do Brasil colonial, que teriam características patriarcais e extensas. Em
meados do século XIX, as relações econômicas entre as famílias de elite de São Paulo
passavam a assumir a forma de sociedades comerciais de caráter impessoal,
expressando um afloramento do individualismo e um compromisso maior dos homens
com seu destino individual e suas famílias nucleares do que com a “família patriarcal
extensa ou clã”.
549
Aqui há uma dicotomia por demais radical, que opõe uma concepção
de família patriarcal identificada com a família extensa, concepção essa já bem criticada
na historiografia brasileira e, de outro lado, um individualismo que soa exagerado
mesmo para as áreas mais dinâmicas do Brasil imperial. A autora demonstra que
diminuiu tanto a freqüência dos dotes às filhas quantos das doações feitas aos filhos, no
século XIX. Porém, ela indica que, naquele mesmo período, cresceu a proporção de pais
548
LEVI. Giovanni. A Herança Imaterial..., 2000, p. 98-99.
549
A autora ressalva que “os pequenos proprietários na São Paulo do início do século XIX tendiam a
manter a propriedade em comum com os outros membros da família, sem uma sociedade formal,
funcionando mais como haviam feito as famílias no período colonial.” NAZZARI, Muriel. O
Desaparecimento do Dote...., p.p. 172-179.
284
que permitiam que filhas e filhos casados utilizassem suas terras e, por vezes, seus
escravos. Infelizmente, essa constatação não recebe a mesma atenção, em sua análise,
do que a diminuição da freqüência dos dotes.
550
De toda a forma, nos confins meridionais do Império, as famílias da elite
agrária de Alegrete seguiam empregando essas práticas e integrando-as em suas
estratégias sociais. Elas não eram grupos nucleares que pudessem ser entendidos fora
das relações que mantinham com o restante de sua família. Tamm estavam longe de
ser algo como um “clã patriarcal”, onde os bens de todos praticamente se diluíam no
patrimônio comum, dirigido por um patriarca. Cada escravo tinha seu senhor, cada terra
seu dono, cada rês sua marca, o dinheiro que trocava de mãos era anotado para ajuste
futuro. Mas o compartilhamento de recursos e as práticas de atuação conjunta eram
recorrentes e não seguiam exatamente as mesmas regras do que as que se davam com os
que eram “de fora”.
A freqüência dessas práticas comuns variava mas, ao que tudo indica, elas
foram regulares pelo menos no que se refere aos pais e a alguns dos filhos/genros. Sobre
a maior presença de filhos ou de genros atuando conjuntamente com os ascendentes, as
fontes não permitem mais do que lançar uma hipótese. Se pensarmos nos casos
referidos, dos Ortiz, dos Carvalho, dos Couto, dos Telles de Souza, vemos que, ainda
que alguns genros também tivessem essa maior efetividade na atuação conjunta com
seus sogros, a presença dos filhos era mais comum. Isso é coerente com o fato de que
os filhos recebiam antecipações de herança desde muito cedo e, em geral, começavam
suas atividades de criadores nos campos de seus pais. Também está de acordo com o
fato de que os filhos tendiam a seguir a carreira dos pais. Por fim, é compatível também
com o fato de que os filhos permaneciam mais ligados ao patrimônio familiar,
aparecendo menos como vendedores e mais como compradores de parte de terras
herdadas de seus pais.
3. Por fim, a existência de espaços produtivos interdependentes e de
circulação de recursos entre os núcleos familiares por vias que não eram as do mercado
impessoal sugere que se deve repensar as próprias características assumidas pelas
atividades econômicas e pela estrutura agrária, naquele contexto. Não há dúvida de que
é muito importante estudar as unidades produtivas, buscando analisar seus fatores
constituintes (mão-de-obra, acesso à terra, gado, instrumentos, etc.) e desvendar a
racionalidade econômica própria daquele sistema agrário, afinal, seus titulares as geriam
550
NAZZARI, Muriel. O Desaparecimento do Dote..., p.p. 206-208.
285
visando melhorar a produção e otimizar recursos. Porém, essas unidades, elas mesmas,
não tinham sempre a ordem e a estrutura que nos sugerem as avaliações de bens
presentes nos inventários post mortem. Ao contrário, as estâncias da elite agrária
abrigavam gado de mais de um integrante da família, pastando junto com as reses do
titular. Esses rebanhos eram pastoreados, em conjunto, por escravos que pertenciam a
senhores diferentes dentro da família, e por peões que podiam ser pagos por um dentre
esses senhores. O gado dos filhos era trazido para ser marcado nas mangueiras e currais
que eram construídos por escravos dos pais. E isso sem contar o gado dos agregados,
dos posteiros, as roças e pequenos rebanhos dos escravos, dos quais falarei no último
capítulo.
Se o estudo da estrutura agrária diz respeito à análise da maneira como os
recursos produtivos estavam desigualmente distribuídos naquele agro, então essas
relações familiares devem ser tidas em conta quando buscamos explicá-la. Assim, a
partir do estudo das trajetórias familiares, é possível refinar a imagem da estrutura
agrária proposta no capítulo “2” desta tese, que fora desenhada com base no estudo
seriado e anônimo dos inventários post mortem. Ela partia de uma configuração que
apresentava, na década de 1830, grandes proprietários com enormes estabelecimentos e
rebanhos que, frequentemente, superavam as 7.000 reses. Ao lado deles, parte dos
medianos e a maioria dos pequenos criadores não detinha a propriedade da terra.
Conforme avançamos até a década de 1860, a proporção de grandes criadores diminuiu,
bem como o vulto de seus estabelecimentos. O número de medianos e, sobretudo,
pequenos criadores aumentou e um número maior dentre eles era proprietários das terras
onde produziam. No entanto, os grandes criadores seguiam concentrando o mesmo
percentual, ou até mais, do gado presente nos inventários.
O estudo das trajetórias familiares sugere que muitos dos estabelecimentos
dos grandes criadores comportavam também rebanhos menores, de propriedade de seus
filhos. Em contrapartida, uma pequena parte dos criadores de rebanhos modestos e sem
terras era formada exatamente pelos filhos que criavam nos campos de seus pais. Deve
ter sido este o caso, por exemplo, do casal Nicolau Antônio Severo e Faustina
Rodrigues da Rosa, que criavam 600 reses e não eram proprietários de terras quando
Nicolau faleceu, em 1834.
551
Três anos depois, no inventário do pai de Faustina, José
Rodrigues da Rosa, foram avaliadas duas sesmarias de campos. A viúva inventariante
declarou expressamente que, em uma dessas sesmarias, encontravam-se parte dos
herdeiros instalados. É bastante possível que Nicolau e Faustina tenham criado suas 600
551
“Inventários. Cartório de Órfãos e Ausentes. Alegrete. M. 03, N. 34, A. 1834, APRS.”.
286
reses dentro do campo do pai dela. Este, José Rodrigues da Rosa, possuía cerca de 6.000
reses, mas seus mais de 26.000 hectares podiam abrigar tranqüilamente os rebanhos de
alguns de seus descendentes.
552
Como já foi dito aqui, é possível que esse tipo de prática tenha diminuído
com o passar do tempo, em razão da redução progressiva do tamanho dos
estabelecimentos pecuários. Entretanto, não contamos com fontes precisas para verificar
esse processo. E não é conveniente exagerá-lo, uma vez que temos indícios de que essa
prática continuava ocorrendo ainda na década de 1860, como já demonstrou a trajetória
de Cirino José de Carvalho e seus filhos e genros. Outro exemplo é de Athanázio
Gonçalves Leal e sua esposa Zeferina Antônia da Silva. No inventário de Athanázio,
aberto em 1861, não foram arroladas terras, mas se pode saber que o casal criava mais
de 800 reses, 500 ovelhas, e praticavam a criação de mulas.
553
Dois anos depois, no
inventário de seu sogro e irmão, Zeferino Gonçalves Leal, foi descrito um campo de
mais de 18.000 hectares: mais de três vezes do que o necessário para as cerca de 1.600
reses, 400 cavalos, 400 ovelhas, e para a pequena criação de mulas empreendida por
Zeferino. O campo tinha capacidade para abrigar animais de alguns de seus filhos, como
pode ter sido o caso das que eram criadas por Athanázio e sua esposa Zeferina.
554
Por outro lado, nos anos finais do período em estudo, o aumento de
medianos e pequenos criadores e da proporção dentre eles que era proprietária de terras
precisa ser matizada. Não se tratava apenas do aumento do número de pequenos
proprietários com estabelecimentos individuais. Uma parte que não se pode medir com
precisão, mas que se pode supor significativa, era formada por antigos herdeiros que
eram co-proprietários de terras que permaneciam indivisas por muito tempo. Nesse
caso, as negociações, relações e a dinâmica familiar mediavam o acesso a recursos e o
manejo desses estabelecimentos, como apontou o trabalho, já referido, de Graciela
Garcia sobre conflitos agrários e também como deve ter ficado claro aqui nesta tese.
No caso da família de Pedro Paulo de Souza, uma seqüência de inventários
permite verificar três momentos de uma trajetória familiar de criadores de gado
descritas aqui. Ela também sugere que as práticas de uso dos campos dos pais pelos
filhos não estava restrita à elite agrária. Em 1846, o inventário de Rosa Vitorina de
Oliveira, casada Manoel Paulo de Souza, aponta 300 reses, alguns cavalos e nenhuma
terra.
555
No ano seguinte, o inventário do pai de Manoel, Pedro Paulo de Souza,
552
“Inventários. Cartório de Órfãos e Ausentes. Alegrete. M. 03, N. 51, A. 1837, APRS.”
553
“Inventários. Cartório de Órfãos e Ausentes. Alegrete. M. 17, N. 207, A. 1861, APRS.”
554
“Inventários. Cartório de Órfãos e Ausentes. Alegrete. M. 18, N. 223, A. 1863, APRS.”
555
“Inventários. Cartório de Órfãos e Ausentes. Alegrete. M. 05, N. 75, A. 1846, APRS.”
287
apontava a propriedade de 2 sesmarias de campo em Alegrete e também 300 reses, além
de cerca de 300 éguas. Um número de gado 22 vezes menor do que a capacidade de
seus campos. É bastante possível que Manoel e outros de seus 9 irmãos criassem nos
campo de seu pai, Pedro Paulo. Sete anos depois, em 1854, Florinda Paula, filha de
Pedro Paulo e irmã de Manoel, realizou o inventário de seu esposo José Jacinto da Luz.
Ali constavam cerca de 330 reses, 120 éguas e “uma parte de campo nas pontas do
Paipasso, que lhes coube pelo falecimento do pai da inventariante Pedro Paulo de
Souza.”
556
Os campos herdados ainda não haviam sido medidos e demarcados: a filha
de Pedro Paulo de Souza, como deveria ser o caso de seus 8 irmãos ou ao menos de
alguns deles, ainda eram co-proprietários de “partes” ideais das terras herdadas.
Assim, estâncias que abrigavam gado de mais de uma geração, membros da
família que atuavam em conjunto com muita regularidade e co-propriedade indivisa de
terras herdadas eram fatores presentes e importantes naquela configuração agrária. Sua
existência mostra a relevância do estudo das estratégias e dinâmicas familiares para a
análise da estrutura agrária e sua evolução, mesmo quando não estamos falando em
grupos camponeses.
6.7 - Estratégias sociais da elite agrária
Após essas reflexões, é possível buscar sintetizar os elementos básicos que
compunham as estratégias sociais utilizadas pelas famílias da elite agrária em Alegrete.
Como já foi dito na introdução desta tese, as estratégias são vistas, aqui, como sendo
elaboradas dentro das limitações de um quadro estrutural onde se localizavam os
agentes.
Por outro lado, as trajetórias estudadas não representam exatamente o
comportamento de todas as famílias da elite agrária da localidade, mas revelam, cada
uma, vários elementos estratégicos postos em prática por aquelas famílias.
557
Assim,
cada trajetória familiar era uma declinação, uma combinação variada daqueles mesmos
elementos, podendo-se acentuar ou enfraquecer um elemento (e mesmo dispensar algum
outro) dependendo do contexto específico e da diversidade interna das situações
existentes no grupo. Nesse sentido, ao invés de procurar uma absoluta identidade entre
556
“Inventários. Cartório de Órfãos e Ausentes. Alegrete. M. 10, N. 133, A. 1854, APRS.”
557
LEVI, Giovanni. A Herança Imaterial..., 2000. Ver também: LEVI, Giovanni. Sobre a Micro-história,
1992. Para uma explicação detalhada desses conceitos, ver: BARTH, Fredrik. Process and form in social
life, 1981. Uma análise da apropriação das categorias do antropólogo norueguês na obra de Levi, ver:
ROSENTAL, Paul-André. Construir o “macro” pelo “micro”: Fredrik Barth e a “microstoria”, 1998.
Para debates em torno das relações entre antropologia e micro-análise social nas obras da micro-história
italiana, ver: LIMA FILHO, Henrique Espada. Microstoria..., 1999.
288
todas as trajetórias familiares ou de vê-las como respostas simples e funcionais aos
condicionantes externos, o que deve ser ressaltado é a quantidade de pontos em comum
que elas possuíam. Essa coincidência não era aleatória. Ela tinha a ver com o fato de
que essas famílias participavam do mesmo grupo social e demonstra que tinham uma
leitura comum dos recursos daquele mundo e que partilhavam valores, como no caso do
grupo social turinense estudado por Simona Cerutti e referido no capítulo anterior.
558
Assim, lembremos os aspectos que aprecem reiteradamente, mas em
combinações variadas, nas trajetórias das famílias da elite agrária de Alegrete e que
podem ser apreendidos de tudo que se disse até aqui:
a) Predominância da pecuária extensiva, mas sem especialização absoluta.
b) Uma política voraz de acumulação fundiária, realizada no período em que
as terras ainda eram acessíveis a baixos custos na região.
c) Combinação de investimentos ecomicos e “não-econômicos”, buscando
reproduzir a atividade pecuária da melhor forma possível, mas também estabelecer
relações sociais que aportariam recursos relevantes. Estavam conjugados, assim, as
atividades econômicas (com ênfase na pecuária), o estabelecimentos de alianças
familiares e a busca de estar próximo ao poder militar da Fronteira.
d) Alianças matrimoniais diversificadas e presença da família em diferentes
campos de atuação.
e) Antecipações de herança e recursos compartilhados dentro da família.
f) Manutenção das terras indivisas depois da sucessão hereditária e
redistribuições pós-partilha.
558
CERUTTI, Simona. Processo e Experiência: indivíduos, grupos e identidades em Turim no século
XVII, 1998.
289
PARTE III – PEÕES, ESCRAVOS E
PRODUÇÃO FAMILIAR
290
Capítulo 7 - As mãos e os pés dos estancieiros
Como vimos no capítulo “3”, dentre os gastos anuais com a reprodução
das estâncias, os principais diziam respeito à mão-de-obra. Essa questão recebe um
tratamento mais aprofundado neste capítulo, que contempla a investigação sobre a
oferta de trabalhadores, os tipos de mão-de-obra, a lógica dos estancieiros em sua
contratação ou aquisição, as formas de pagamento dos peões livres. Um estudo a partir
do ponto de vista destes trabalhadores será feito no capítulo “8”.
7.1 - Vastos campos, muitos trabalhos: técnicas e tarefas na pecuária
Em 1832, João Francisco Vieira Braga, destacado negociante da praça de
Rio Grande e futuro Conde de Piratini, redigiu uma carta com 58 artigos contendo as
instruções ao capataz que ia assumir a administração de sua “Estância da Música”,
localizada na fronteira com a República do Uruguai.
559
Esse documento é uma das mais
detalhadas fontes com que se pode contar sobre as tarefas da pecuária e sobre a
administração das estâncias da Campanha no século XIX. Muito ricos também são um
informe escrito pelo Visconde de São Leopoldo,
560
em 1842, e as memórias do Dr.
Severino de Sá Brito sobre a criação de gado nos tempos de sua infância, em Alegrete,
559
CESAR, Guilhermino. O Conde de Piratini e a Estância da Música...,1978.
560
José Feliciano Fernandes Pinheiro, Visconde de São Leopoldo, foi o primeiro presidente da província
rio-grandense e autor dos “Anais da Capitania de São Pedro” e “Anais da Província de São Pedro”, dois
volumes daquela que é a obra inaugural da historiografia sobre o Rio Grande do Sul, publicado
primeiramente em 1819 e 1822, respectivamente. PINHEIRO, 1946 (2.ed.). O informe tem como
referência: “Informe do Visconde de São Leopoldo, sem indicação de destinatário, sobre a criação de
gado na Província do Rio Grande do Sul, 1842)”. Manuscritos, II-36, I, 18. BN (de agora em diante o
título do documento será grafado apenas “Informe...”).
291
na segunda metade do século XIX.
561
As informações dos viajantes estrangeiros que
cruzaram o Rio Grande do Sul ao longo do Oitocentos, sobretudo as do francês Nicolau
Dreys, são também importantes para o estudo do tema. Esses documentos têm sido
largamente empregados por historiadores que se referiram à criação de gado no Rio
Grande do Sul, tanto no período monárquico como em fins da época colonial. Dentre
aquelas fontes, a campeã de referências é, sem dúvida, a carta de instruções enviada
pelo futuro Conde de Piratini a seu novo capataz.
562
Aqui, procuro agregar as
informações aportadas pelas contas de estâncias de Alegrete a esses documentos e aos
trabalhos já realizados, visando recompor, ainda que de maneira bastante rápida, um
calendário das atividades pecuárias na Campanha.
As tarefas atinentes ao manejo do gado estavam, naquele sistema
extensivo e dependente das boas condições das pastagens naturais, fortemente ligadas
ao ciclo das estações. As grandes atividades das estâncias eram os rodeios. Essa palavra
assumia um duplo significado. Por um lado, designava os locais específicos, dentro das
estâncias, onde eram reunidos os gados que estavam aquerenciados em suas
redondezas.
563
Ao mesmo tempo, fazer ou parar “rodeio” queria dizer partir com um
número suficiente de trabalhadores e reunir, no lugar de mesmo nome, todo o gado que
pastava nos arredores daquele local. Nessas ocasiões, o gado era reconhecido, contado e
podiam-se realizar curas em feridas e bicheiras.
564
Há informações conflitantes quanto à periodicidade em que se realizava
essa tarefa. Nas “Instruções...”, o futuro Conde de Piratini recomendou a seu capataz
que se fizessem rodeios “o mais amiúde possível” sem que se possa compreender
561
Severino de Sá Brito era filho de Francisco de Sá Brito, magistrado riograndense e dono de uma
grande estância em Alegrete em meados do século XIX. Formado médico pela faculdade do Rio de
Janeiro em 1891, Severino escreveu sobre economia rural e medicina. A obra aqui utilizada é um livro de
memórias, publicado em 1928, no qual ele relembra os tempos de sua infância e juventude, na segunda
metade do século XIX. Ali, o autor explicita a intenção de registrar os trabalhos e costumes comuns ao
mundo da pecuária a campo aberto que ele viu modificarem-se após a difusão do cercamento dos campos
no Rio Grande do Sul. BRITO, Severino de Sá. Trabalhos e costumes dos gauchos, s/d (2.ed.).
562
BELL, Stephen. Campanha Gaúcha: a brazilian ranching sistem, 1850-1928, 1998. OSÓRIO, Helen.
Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da Estremadura Portuguesa na América: Rio
Grande de São Pedro, 1737-1822, 1999. MAESTRI, Mario. O cativo e a fazenda pastoril sul-
riograndense, 2002. ZARTH, Paulo Afonso. Do Arcaico ao Moderno: o Rio Grande do Sul agrário do
século XIX, 2003. FARINATTI, Luís Augusto. Um Campo de Possibilidades: notas sobre as formas de
mão-de-obra na pecuária (Rio Grande do Sul – século XIX), 2003.
563
“Aquerenciar” era um termo corrente no século XIX e ainda hoje empregado nas regiões de pecuária
do Rio Grande do Sul. Significado: “Acostumar o animal a viver em determinado lugar que não é o do
seu nascimento. Habituar o animal à companhia de outros”. NUNES, Zeno Cardoso; NUNES, Rui
Cardoso. Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul, 1990, 4. ed., p. 38.
564
Stephen Bell elaborou uma ótima descrição dessas atividades, baseado principalmente em um informe
sobre a criação de gado elaborado pelo Visconde de São Leopoldo, que fora Presidente da Província do
Rio Grande do Sul: “Informe do Visconde de São Leopoldo, sem indicação de destinatário, sobre a
criação de gado na Província do Rio Grande do Sul, 1842)”. Manuscritos, II-36, I, 18. BN (de agora em
diante o título do documento será grafado apenas “Informe...”) BELL, Stephen. Campanha Gaúcha…,
1998, p.p. 42-43).
292
exatamente ao que essa expressão se refere. Para o historiador Guilhermino César, trata-
se de uma advertência que denota um estancieiro excepcionalmente zeloso porque não
era prática corrente parar mais de dois rodeios por ano.
565
Contra todas as outras
referências e, ao que parece, com muito exagero, o Visconde de São Leopoldo sugeriu
que eles eram feitos todas as semanas.
566
Severino de Sá Brito referiu que se paravam
rodeios em pelo menos três épocas por ano, nas oportunidades da marcação, da
castração e da formação de tropas para as charqueadas.
567
Creio que se essa informação
ajuda a compor uma freqüência mínima de três ou até duas oportunidades por ano (caso
a marcação e a castração fossem realizadas na mesma época) para a realização dos
rodeios, afinal, marcar, castrar e vender os animais eram procedimentos obrigatórios
para qualquer estabelecimento de criação em um ano de condições normais de
produção. Além delas, variando de acordo com a disponibilidade de trabalhadores, as
dimensões do rebanho e os cálculos dos criadores, podia-se reunir o gado um maior
número de vezes ao longo do ano.
A marcação e a castração eram realizadas no outono, no inverno ou no
início da primavera, o que dava tempo para as feridas geradas por essas atividades
cicatrizarem e evitava que os insetos, comuns no verão, depositassem ali suas larvas
gerando bicheiras.
568
Ambas as atividades eram as que exigiam um incremento mais
significativo de trabalhadores, representando os picos estacionais de demanda de mão-
de-obra nos estabelecimentos pecuários. Por sua vez, as tropas que partiam das estâncias
rumo às charqueadas eram formadas em uma longa temporada, que ia de novembro até
inícios de maio do ano seguinte, quando o bom pasto começava a escassear de novo e se
principiava a preparação para as atividades de marcação e castração.
Por fim, naquele mundo onde não existiam cercas artificiais nas divisas
dos estabelecimentos de criação, o problema da evasão de gado era uma constante. Em
tempos de seca, os rios e arroios tornavam-se rasos ou mesmo vazios, sendo facilmente
vadeados pelas reses que partiam em busca de água e comida. Ainda, os períodos de
565
César baseia-se em Nicolau Dreys para afirmar a periodicidade de duas épocas por ano em que se fazia
rodeios. CESAR, Guilhermino. O Conde de Piratini e a Estância da Música 1978, p.38. DREYS,
Nicolau. Notícia descriptiva…, 1961, 2. ed., p. 130.
566
Informe...” Manuscritos, II-36, I, 18, Art. 4. BN.
567
BRITO, Severino de Sá. Trabalhos e costumes dos gaúchos, s/d , 2.ed, p.p. 55-62.
568
Em 1832, o futuro Conde de Piratini ordenava que a marcação fosse feita “o mais cedo que for
possível a fim de não encontrar este trabalho com outros que se acumulam para o tempo de inverno...”
CESAR, Guilhermino. O Conde de Piratini e a Estância da Música 1978, p. 38. Dez anos depois, o
Visconde de São Leopoldo afirmou que a marcação era praticada uma vez por ano, na estação fresca do
outono. “Informe...”. Manuscritos, II-36, I, 18, art. “4”, BN. Severino deBrito lembra que, na estância
onde cresceu durante segunda metade do século XIX, a marcação era realizada no inverno e que, durante
esses afazeres, se passavam alguns dias e eram feitos diversos rodeios BRITO, Severino de Sá. Trabalhos
e costumes dos gaúchos, s/d , 2.ed, p. 64.
293
guerra, tão freqüentes na região e época tratada, traziam problemas adicionais. A prática
voraz de recrutamentos arrancava seguidamente trabalhadores às lides produtivas. Sem
trabalhos de marcação e castração, perdia-se o controle da produção anual. Sem
operações de manejo regular, o gado ia-se desacostumando ao costeio e tornando-se
mais bravio. Da mesma forma, o problema da dispersão do gado pela falta de água e
alimento propiciada por uma seca, por exemplo, era catalisado se a unidade produtiva
não pudesse contar com trabalhadores para evitar sua dispersão. Além de tudo, nas
épocas de guerra, a passagem dos exércitos e a existência de bandos de desertores
podiam desfalcar verdadeiramente os rebanhos. Por todos esses motivos, era preciso
fazer repontes, pastoreando o gado o mais amiúde possível e também efetuar recrutas
ou reculutas, ou seja, partir à procura do gado já evadido, em campos vizinhos e
além.
569
Assim, a criação em campos não-cercados estava longe de ser uma
atividade simples de deixar o gado ao sabor das pastagens naturais. As atividades de
marcação, castração, curas, pastoreio regular, repontes e recrutas eram partes de um
processo contínuo de controle com vistas a manter os animais dentro dos imprecisos
limites das estâncias, ir atrás deles e trazê-los de volta quando evadidos, interferir em
seu processo de reprodução, acostumá-los àqueles campos e à presença humana, curar
suas doenças, mantê-los tão gordos e saudáveis quanto possível.
O que costumava, sim, acontecer era a prática de deixar uma grande
parte do rebanho como xucro, exigindo uma aplicação de trabalho menor, como uma
forma dos criadores conseguirem economizar mão-de-obra, em um contexto onde ela
não era abundante.
570
Os rebanhos bovinos e cavalares presentes nas estâncias
possuíam diferentes graus de domesticação. Dentre os inventários que arrolam
cavalares, 94% trazem a separação entre animais xucros e mansos. Essa distinção varia,
porém, quanto à sua especificação. Na maioria dos inventários, encontra-se apenas uma
discriminação sumária. De um lado, os “cavalos mansos”, em geral cavalos de serviço,
empregados no costeio do gado vacum. De outro, uma designação genérica de “éguas
xucras” ou “animais cavalares”. Esta consistia em uma manada de éguas, potros e
alguns reprodutores, todos ainda não domados, que os criadores buscavam aquerenciar e
569
O futuro Conde de Piratini dispôs que seu capataz não negasse rodeios a quem os pedisse, havendo
gente para os parar. Guilhermino César explica que os donos de reses evadidas, ao providenciarem
recrutas, podiam “pedir rodeio” ao dono do campo onde supunha encontrá-las. “Reunido o gado, com o
concurso das duas partes, procede-se à busca.” Negar rodeio era sinônimo de má fé e era condenado por
códigos de posturas de vários municípios riograndenses CESAR, Guilhermino. O Conde de Piratini e a
Estância da Música 1978, p. 43.
570
BELL, Stephen. Campanha Gaúcha..., 1998.
294
manter dentro dos limites de sua propriedade. Esse era o reservatório de animais de
onde sairiam, depois de domados, os cavalos de serviço. Nessa manada, também
estavam os ventres para a produção de mulas ou para a produção comercial de potros. A
domesticação era, portanto, a clivagem essencial que instaurava a classificação dos
eqüinos existentes nas estâncias.
No que se refere aos bovinos, a situação é análoga. A divisão expressa
entre reses de criar “xucras” e “mansas” está presente na grande maioria dos rebanhos
inventariados (cerca de 81%), repetindo um padrão já encontrado nos tempos coloniais
tanto no Rio Grande de São Pedro quanto nas áreas vizinhas, de colonização
espanhola.
571
Os estudos dedicados a esses locais e épocas encontram o vocábulo
“xucro” como sinônimo de gado selvagem ou “alçado”.
572
Esse, porém, não parece ter
sido o caso do gado descrito nos inventários da amostra pesquisada. O significado que a
expressão “xucro” assumia no contexto em análise pode ser melhor compreendido a
partir do único inventário da amostra em que foram descritas reses “alçadas”. Trata-se
do inventário de dona Maria Mância Ribeiro, esposa do General Bento Manoel Ribeiro,
aberto em 1854.
No processo constava a presença de 200 reses mansas, 340 reses de gado
xucro “costeado” e aproximadamente 700 reses de gado alçado. As primeiras valiam
9$000 e as segundas 7$000, dentro da média de preços correntes para reses mansas e
xucras nos inventários cujas avaliações de bens ocorreram naquele ano. As reses
alçadas, porém, apresentam uma avaliação de 5$000, portanto inferior e não compatível
com nenhum preço de reses xucras dos outros processos.
573
Ali está presente uma clara
graduação em termos de domesticação que aparece como critério para a categorização
dos animais criados. O que variava era o nível de domesticação dos animais. Com gado
manso se faziam com mais facilidade todos os procedimentos atinentes à criação,
denotando a aplicação de um grau mais intenso de trabalho. O gado xucro “costeado”
era aquele que se procurava, na medida do possível, manter dentro dos limites dos
campos de seus proprietários e sobre os quais certamente se efetuava a castração e a
marcação. Em 1832, o futuro Conde de Piratini recomendava que o gado manso fosse
marcado na perna, do lado esquerdo, e o gado xucro na anca, do mesmo lado. Essa
571
GELMAN, Jorge. Estancieros y Campesinos..., 1998. OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e
comerciantes..., 1999. DEJENDEREDJIAN, Julio. Producción y trabajo en perspectiva comparada…,
2002.
572
“Gado alçado” era aquele que, após extraviar-se, tornara-se bravio. O termo também era empregado
para designar todo o gado que não estivesse submetido a nenhum tipo de costeio. NUNES, Zeno Cardoso;
NUNES, Rui Cardoso. Dicionário de regionalismos do Rio Grande do Sul, 4ª. ed. 1990, p. 26.
573
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 11, N. 152, A. 1854. APRS”.
295
distinção parece ter perdurado, pois Severino de Sá Brito relembra que a mesma prática
era empregada na segunda metade daquele século.
574
Ao gado xucro era aplicada uma intensidade menor de manejo, sem
garantir um nível mais forte de controle. Contudo, havia um limite para essa diminuição
da intensidade do costeio. Além desse limite, poderia haver o extravio desse gado ou o
fato de que, mesmo que permanecesse dentro das terras de seu dono, ele voltasse a se
tornar bravio e os animais jovens que ali nascessem não fossem marcados e castrados. O
gado estaria se tornando alçado. Assim, a palavra “xucro” não pode ser tomada aqui
como sinônimo exato de gado não-domesticado. A designação de “reses xucras” até
podia incluir dentro desse rebanho reses realmente alçadas, mas, em maioria, designava
reses com um certo grau de domesticação, localizado e os extremos ocupados pelo que
se considerava gado manso, de um lado, e alçado, de outro.
A prática de deixar a maioria do rebanho como xucro era uma estratégia
empregada, sobretudo, pelos grandes estancieiros.
TABELA 7.1 - PROPORÇÃO DE RESES MANSAS NOS REBANHOS DE DIFERENTES
DIMENSÕES (ALEGRETE, 1831-1870)
CRIADORES
1831-40 1841-50 1851-60 1861-70
+ de 2.000 reses
9% 9% 10% 5%
1.001 a 2.000
10% 11% 19% 17%
501 a 1.000
18% 11% 30% 17%
101 a 500
33% 18% 35% 21%
até 100 reses
34% 71% 100% 88%
Fonte: 181 Inventários post mortem. Alegrete. Cartório: de Órfãos e Ausentes; do Cível e Crime; da Provedoria..
1831-1870. APRS”.
A proporção de reses mansas nos rebanhos tende a aumentar
regularmente conforme se caminha dos maiores estancieiros para os criadores de menor
vulto. De fato, um ou dois trabalhadores podiam dedicar maior atenção a um rebanho
que atingisse apenas algumas centenas de reses, mas o mesmo não acontecia nos
grandes estabelecimentos, especialmente aqueles com mais de 2.000 animais vacuns.
Devido à maior exigência de mão-de-obra, era comum que esses criadores optassem por
deixar grande parte de seu rebanho em estado semi-selvagem, mas sendo marcados e
castrados. Isso implicava em manejá-los bem menos amiúde (o que não quer dizer
deixá-los soltos, sem cuidado algum) e arcar com o risco de ter de realizar recrutas em
campos vizinhos para buscar reses desgarradas, sobretudo se, nas suas estâncias,
574
CESAR, Guilhermino. O Conde de Piratini e a Estância da Música..., 1978, p. 38. BRITO, Severino
de Sá. Trabalhos e costumes dos gauchos, s/d , 2.ed., p. 64.
296
houvesse muitas áreas de campo aberto, sem limites naturais.
575
A tônica para os
estabelecimentos com mais de 2.000 reses parece ter sido, mesmo, a de haver apenas
um décimo do rebanho totalmente domesticado.
Uma boa administração da relação “reses x trabalhador” era importante
na busca de um melhor desempenho econômico dos estabelecimentos pecuários.
576
Esse
é um tema bastante controvertido na historiografia que se dedica a estudar as regiões
pecuárias do sul da América. Uma afirmação do militar e demarcador espanhol Felix de
Azara, em fins do período colonial, serviu para que se fixasse essa relação em cerca de
um trabalhador para cada 1.000 reses, na região do Prata. Entretanto, pesquisas recentes
sobre aquelas áreas, com base em censos e contas de estâncias, contraditaram essa
versão e têm demonstrado que aquele tipo de pecuária exigia um contingente bem maior
de trabalhadores, por vezes até o dobro do número indicado por Azara, ficando mais
próximo da razão de um trabalhador para cada 700, 600 ou mesmo 500 reses.
577
Para o Rio Grande do Sul do século XIX, Stephen Bell reproduz uma
afirmação do viajante inglês John Luckoc, dizendo que uma propriedade com 4.000 a
5.000 reses, poderia ser costeada com 6 homens e cem cavalos de serviço, mas matiza
essa afirmação lembrando que Severino de Sá Brito indica que, em tempos de rodeios,
esse número poderia se ver multiplicado em muitas vezes.
578
No início da década de
1820, foi a vez do francês August de Saint-Hilaire falar de uma estância com 6.000
animais, cuidada por um capataz e 10 peões. Uma referência já bem mais próxima das
atuais pesquisas feitas para o agro platino.
579
Um censo agrário levado a efeito em 1858, traz dados importantes sobre
essa questão. Apenas alguns municípios atenderam ao requerimento da Presidência da
Província e enviaram listas com os nomes dos criadores de gado locais, seu número de
reses e os trabalhadores regulares que empregavam no costeio do gado. Essas
informações foram resumidas e utilizadas para compor um mapa estatístico, em 1858.
Tal documento vem sendo utilizado em larga escala pelos historiadores.
580
Contudo,
aqui quero chamar a atenção para as próprias listas que foram enviadas pelas Câmaras
575
DREYS, Nicolau. Notícia descriptiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul, 1961. BELL,
Stephen. Campanha Gaúcha..., 1998. MAESTRI, Mário. O cativo e a fazenda pastoril sul-riograndense,
2002.
576
GELMAN, Jorge. Campesinos y Estancieros..., 1998, p. 198.
577
GARAVAGLIA, Juan Carlos. Tres estancias del sur bonaerense en un período de “transición”
(1790-1834), 1993. GELMAN, Jorge. Campesinos y estancieros. Una región del Rio de la Plata a fines
de la época colonial, 1998, p.p. 184-88.
578
BELL, Stephen. Campanha Gaúcha..., 1998, p. 52.
579
SAINT-HILAIRE, August. Viagem ao Rio Grande do Sul, 2ª. ed., 1997, p.129.
580
BELL, Stephen. Campanha Gaúcha..., 1998. ZARTH, Paulo Afonso. Do Arcaico ao Moderno...,
2002. ..., Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da Estremadura Portuguesa na
América, 1999.
297
ao governo provincial. Em dois desses municípios, as listas bastante completas,
discriminando, inclusive, seus trabalhadores entre escravos campeiros, peões livres e
filhos. Um deles, São Borja, era então vizinho a Alegrete pelo norte, fazendo divisa no
rio Ibicuí. O outro, Santa Maria, ficava no centro da província, sendo vizinho de São
Borja pelo leste.
Analisando esses dados, em estudo anterior, pude verificar que 42% dos
criadores que possuíam entre 100 e 500 reses não contavam com nenhum tipo de mão-
de-obra estável que não a sua própria.
581
Para aqueles que possuíam entre 500 e 1.000
reses esse número não ultrapassava 10% e, para os grandes criadores, com mais de
1.000 cabeças de gado, essa situação se deu em apenas 4% dos casos. Assim, a criação
de 1.000 reses empregando um único trabalhador estável (no caso, o próprio dono do
rebanho) devia ser muito difícil, senão mesmo inviável. Por outro lado, a criação de 500
reses nessa condição não parecia ser impossível, ainda que pudesse não ser o mais
indicado. Isso autoriza a pensar que o número de reses que um trabalhador podia
manejar estivesse mais próximo dos 500 do que dos 1.000 animais. Esse cálculo
minimiza a visão da pecuária extensiva como uma produção onde o fator trabalho tinha
pouca importância e corrobora as críticas feitas, neste quesito, em artigo pioneiro de
Décio Freitas, em fins da década de 1970.
582
Havia, ainda, fatores geográficos que
influíam no número de trabalhadores necessários para o costeio de um determinado
número de reses, como veremos adiante, ao analisar o caso da Estância da Palma.
Assim, a demanda de trabalho nas estâncias em um ano normal variava
em razão das dimensões do rebanho a ser costeado, da situação do campo (se era
cercado por matos e rios ou aberto, favorecendo a evasão do gado) e, por fim, quanto à
distribuição, ao longo do ano, das tarefas que elencadas acima. Os trabalhos das
estâncias eram efetuados por uma combinação de trabalhadores livres e cativos.
Vejamos, agora, a composição da população escravizada em Alegrete para, em seguida,
buscar perceber como se manejava as questões de mão-de-obra no caso específico da
estância da Palma.
7.2 - Homens, mulheres, crianças, crioulos e africanos
A imagem da pecuária sulina como palco, por excelência, do trabalho de
peões livres insere-se em uma tradição historiográfica que percebe a pecuária, por seu
caráter de atividade voltada para o mercado interno, como incapaz de gerar uma
581
FARINATTI, Luís Augusto. Um Campo de Possibilidades..., 2003, p.p. 273-274.
582
FREITAS, Décio. O Gaúcho: o mito da produção sem trabalho, 1980.
298
acumulação que pudesse sustentar a incorporação contínua de cativos. Nas últimas
décadas, porém, surgiram estudos assentados sobre larga base empírica, que têm
demonstrado a importância do trabalho escravo em diversas regiões de criação de gado
no Brasil colonial e oitocentista.
583
No caso do Rio Grande do Sul, merece destaque a obra pioneira de
Fernando Henrique Cardoso. Além de evidenciar a importância dos trabalhadores
escravos nas charqueadas e de desmistificar a escravidão supostamente “branda” dos
sulinos, o autor apontou que os escravos também eram utilizados nas estâncias, em
várias tarefas, inclusive no trato do gado. Porém, confiando apenas na leitura de relatos
de viajantes estrangeiros, Cardoso acabou por excetuar desse quadro as regiões de
fronteira com o Uruguai e a Argentina. Segundo ele, ali a possibilidade de contar com
os indígenas egressos das Missões teria tornado a escravidão pouco relevante.
584
Obras
mais recentes começam a reconhecer que o trabalho escravo nas estâncias era
importante no próprio costeio do gado (nesse caso, ao lado de peões livres) e não
apenas em atividades acessórias, como os trabalhos de construções, serviços domésticos
e da agricultura interna a essas unidades produtivas.
585
Todavia, são ainda raros os
estudos monográficos que permitam conhecer com mais profundidade as características
da população escrava presente nas zonas sulinas de pecuária extensiva, os níveis de
concentração desses trabalhadores entre os senhores locais, as atividades nas quais de
fato eram empregados e as transformações sofridas por esses aspectos ao longo do
tempo.
Em dois trabalhos anteriores, analisei as características da população
escrava em Alegrete. O primeiro teve como foco o período de 1831 a 1850. O segundo
trabalho tomou esses dados e os comparou com os referentes às duas décadas seguintes,
após o final do tráfico atlântico de cativos.
586
No que se refere ao primeiro período
583
Entre outros: PETRONE, Maria Teresa Schroeder. O Barão do Iguape, 1976. MOTT, Luís. O índios e
a pecuária nas fazendas de gado do Piauí colonial, 1979. Pecuária, agricultura de alimentos e recursos
naturais no Brasil, 1993. FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento: família e fortuna no
cotidiano colonial, 1998. GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial, 1978. GUTIERRES, Horacio.
Estratégias produtivas entre fazendeiros de gado no sul do Brasil, século XIX, 1999. Para uma revisão
dos artigos mais recentes sobre estrutura de posse de escravos na pecuária, em várias partes do Brasil,
ver: TEIXEIRA, Luana. Abordagens atuais: escravidão e pecuária no século XIX, 2006.
584
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional, 4ª. ed., Paz e Terra,
p.p. 60-69.
585
LEITMAN, Spencer. Slave Cowboys in the Cattle Lands of Southern Brazil, 1800-1850. 1975.
ZARTH, Paulo Afonso. História Agrária do Planalto Gaúcho, 1997. _____. Do Arcaico ao
Moderno...,2004. BELL, Stephen. Campanha Gaúcha..., 1998. OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores
e comerciantes na constituição da Estremadura Portuguesa na América. 1999. FARINATTI, Luís
Augusto. Um Campo de Possibilidades, 2003. _____. Escravos do Pastoreio. Pecuária e escravidão na
fronteira meridional do Brasil (Alegrete, 1831-1850). 2006.
586
FARINATTI, Luís Augusto. Escravos do Pastoreio..., 2006. _____. Escravos nas estâncias e nos
campos: escravidão e trabalho na Campanha Rio-grandense (1831-1870), 2005.
299
(1831-1850), a relação entre os sexos apresentava-se bastante desequilibrada entre os
cativos, com uma média de mais de 177 homens para cada 100 mulheres escravas
(razão de masculinidade de 177,6; com uma proporção de apenas 36% de cativas
mulheres no universo total analisado). Quanto à origem, os africanos representavam
42,4% daquela população. Esses dados costumam estar intimamente relacionados entre
si,
587
e não foi diferente em Alegrete. A predominância masculina era maior entre os
africanos, sendo que a população crioula tendia a apresentar uma proporção mais
harmônica entre os sexos, ainda que os homens permanecessem como dominantes.
588
O percentual de masculinidade de 177,6 era muito menor do que os
232,08 encontrados por João Fragoso para a região cafeicultora do Vale do Paraíba
fluminense, na década de 1840.
589
Da mesma forma, os 42% de africanos existentes em
Alegrete é um índice que alcança apenas pouco mais da metade dos 79% do Vale do
Paraíba. Todavia, aquele percentual de africanos não ficava tão distante dos 50%
encontrados por Bert Barickman para as lavouras de cana e os engenhos de açúcar do
Recôncavo Baiano, entre 1790 e 1860. Sobretudo, a taxa de masculinidade de 177,6 em
Alegrete era superior aos 143 encontrados por Barickman na produção açucareira. E
mais, no mesmo trabalho sobre o Recôncavo Baiano, os sítios produtores de fumo
apresentavam uma relação equilibrada entre homens e mulheres (“108”) e uma presença
de apenas 23% de africanos entre os cativos ali presentes.
590
Por outro lado, se comparamos os números encontrados em Alegrete
com outra região brasileira onde a pecuária desempenhava importante papel, a Vila de
Castro, no Paraná, novamente a africanidade e a masculinidade existentes no município
rio-grandense se tornam expressivas.
591
Segundo Carlos Lima, em 1824, os africanos
eram apenas 18,9% dos escravos adultos em Castro. Em 1835 esse número havia
crescido para 29,8%, mas ainda estava muito distante dos 42% encontrados em
Alegrete, tanto mais se considerarmos que a contagem para Castro se fez apenas entre
os escravos com 15 anos ou mais de idade.
592
Por sua vez, a razão de masculinidade em
todo o contingente escravo de Castro, naquelas duas datas, ficou, respectivamente, em
106 e 128 homens para cada 100 mulheres. Ou seja, também muito menores que os
587
FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento..., 1998.
588
FARINATTI, Luís Augusto. Escravos do Pastoreio..., 2006.
589
FRAGOSO, João Luis. Sistemas Agrários em Paraíba do Sul (1850-1920): um estudo de relações
não-campitalistas de produção, 1983.
590
BARICKMAN, Bert. Um Contraponto Baiano: açúcar, fumo,mandioca e escravidão no Recôncavo
(1780-1860), 2003.
591
A vila pertencia ao que era, então, a província de São Paulo.
592
LIMA, Carlos A.M. Sobre posses de cativos e o mercado de escravos em Castro (1824-1835):
perspectivas a partir da análise de listas nominativas. Encontro Nacional de História Econômica, 2003,
ABPHE.
300
177,6 encontrados em Alegrete. Esses dados acentuam a importância da escravidão em
Alegrete, bem como sua reprodução via mercado e seu papel estrutural na produção
desenvolvida nos grandes estabelecimentos pecuários.
Essa situação não era nova. Utilizando também inventários post mortem,
Helen Osório apontou, para o Rio Grande do Sul como um todo em fins do período
colonial, um percentual de homens e de africanos apenas um pouco superiores aos
descritos aqui. Entre 1790 e 1825, a presença de africanos foi de 47% e 48% dos
escravos arrolados. Quanto à masculinidade, para o período entre 1865 e 1825, Osório
encontrou uma presença de 68% de homens, portanto levemente superior à calculada
aqui (64%). A estrutura da posse de escravos, no coração da Campanha entre 1831 e
1850, seguia reproduzindo padrões semelhantes aos coloniais.
593
Não obstante a predominância dos crioulos na população escrava em
Alegrete, entre 1831 e 1850, a presença de cerca de 42% de africanos é significativa. Ao
lado da alta taxa de masculinidade, ela indica que parte importante da reposição dos
cativos da região era feita a partir da compra, muitas vezes de africanos. Apesar de seu
caráter de produção voltada para o mercado interno, a pecuária extensiva tinha por
característica a incorporação contínua de trabalhadores escravos. Contudo, a presença
de cerca de 21% de crianças entre a população escrava adverte para não se minimizar
demasiadamente a influência da reprodução endógena desses cativos. Por outro lado, a
alta taxa de masculinidade está intimamente relacionada com as atividades para as quais
se demandavam escravos na região. Ainda que eles fossem empregados em diversas
ocupações dentro dos estabelecimentos pastoris, a requisição de parte importante deles
para o trabalho direto do costeio do gado parece ter sido um dos fatores responsáveis
pela preferência na compra de cativos homens, por parte dos senhores da Campanha.
Ao longo da primeira metade do século XIX, os estancieiros brasileiros
reproduziram essa estrutura quando estavam instalados no Estado Oriental. Borucki,
Stalla e Chagas analisaram alguns grandes estabelecimentos pertencentes a brasileiros e
mostraram que todos eles possuíam número expressivo de escravos, com predominância
dos homens adultos, ainda que houvesse, também, presença de mulheres e crianças. Em
1831, nas estâncias da família de João Faustino Correia, em Castillos, havia nada
menos do que 61 escravos, dos quais 34 eram homens e 11 tinham menos do que 10
anos de idade.
594
Por sua vez, todos os 13 inventários post mortem de proprietários
593
OSÓRIO, Helen. Escravos da Fronteira: trabalho e produção no Rio Grande do Sul, 1765-1825,
2003, p. 06.
594
BORUCKY, Alex; CHAGAS, Karla; STALLA, Natalia. Esclavitud y Trabajo – Un estudio sobre los
afrodescendientes en la frontera uruguaya (1835-1855), 2004 p.178.
301
brasileiros encontrados em Taquarembó, próximo à fronteira com o Brasil, entre 1837 e
1841, continham escravos.
595
7.3 - Muitos e variados ofícios
As referências aos ofícios dos escravos são bem mais freqüentes nos
inventários do período anterior ao final do tráfico atlântico. Assim, para o estudo dos
ofícios dos escravos, vou me restringir, aqui, às conclusões chegadas no já referido
trabalho anterior, dedicado ao período localizado entre 1831 e 1850.
596
Esse período
abrangeu um total de 62 inventários que apresentavam, simultaneamente, bens rurais e
escravos. O total de cativos envolvidos era de 633 pessoas.
Em seu estudo sobre o Rio Grande do Sul rural do século XIX, Paulo
Afonso Zarth apontou que o trabalho escravo deveria ser imprescindível nas grandes
estâncias. Ressaltou, também, o fato de que eles eram empregados tanto na agricultura,
como também no costeio do gado e em serviços domésticos. No mesmo trabalho, o
autor levantou a hipótese de que os escravos roceiros comporiam a maioria dos escravos
das estâncias, ainda que a presença de campeiros fosse significativa.
597
Investigando o
período colonial, Helen Osório demonstrou que os escravos campeiros tendiam a ser
maioria e argumentou que eles provavelmente supriam as necessidades de trabalhadores
estáveis nas estâncias. O complemento da mão-de-obra livre tendia a ser empregado nos
momentos de pico da atividade pecuária, como as épocas de marcação e de castração.
598
Os inventários pesquisados indicam semelhanças e diferenças com os
quadros delineados acima. Nos poucos casos em que existe referência explícita aos
ofícios das escravas, eles foram, invariavelmente, domésticos: cozinheira, costureira e
rendeira. Não encontrei nenhuma referência a escravas roceiras. O pequeno percentual
de mulheres acima dos 10 anos de idade cujo ofício foi declarado (17%) não nos
permite, no entanto, fazer generalizações a respeito. No caso das maiores escravarias,
escravas que se dedicassem ao serviço de roça poderiam estar escondidas no alto
número de cativas cuja ocupação não foi declarada. É bastante provável que as escravas
de pequenos senhores, por sua vez, pudessem ser utilizadas tanto no variado renque de
serviços domésticos quanto nas roças de alimentos. O próprio trabalho doméstico não
pode ser visto como algo de pouca importância, já que era essencial para a reprodução
595
BORUCKY, Alex; CHAGAS, Karla; STALLA, Natalia. Esclavitud y Trabajo …, 2004, p. 189
596
FARINATTI, Luís Augusto. Escravos do Pastoreio..., 2006.
597
ZARTH, Paulo Afonso. Do Arcaico ao Moderno...,2004, p. 114.
598
OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da Estremadura Portuguesa
na América..., 1999, p.p. 132-146.
302
das unidades produtivas e a prova disso é que, mesmo os criadores com mais de 2.000
reses, que possuíam escravarias com alta proporção de homens, jamais deixaram de
contar com cativas. Infelizmente
Para os homens adultos, há um total de 180 escravos com referência
explícita de sua ocupação, atingindo cerca de 53% do total. O silêncio sobre os ofícios
de quase metade dos cativos pode estar indicando duas coisas diferentes. Muitos dos
casos referem-se simplesmente a uma forma do inventariante ou do escrivão
responsável pelo processo, designarem mais sumariamente os termos do inventário.
Nesse caso, escravos campeiros, roceiros, carpinteiros e outros podem estar diluídos
naquele número de cativos sem ocupação declarada. Porém, em outros casos, a omissão
pode significar que aquele escravo era empregado em um variado leque de funções,
como o costeio do gado, a roça de alimentos, o trabalho em construções e outros. Em
favor dessa idéia, está o fato de que a proporção de escravos com ocupações
especificadas expressamente é maior nos estratos mais afortunados dos estancieiros,
diminuindo conforme nos aproximamos dos criadores de menor vulto. É possível pensar
que os senhores procurassem fazer com que os escravos, mesmo os pertencentes aos
grandes estancieiros e aqueles dentre eles que tinham uma ocupação definida,
desempenhassem acessoriamente também muitas outras atividades. Essa tentativa podia
encontrar resistência entre escravos especializados, mas encontrei fontes adequadas para
debater este assunto aqui. De qualquer forma, cabe apontar que a construção de uma
auto-imagem dos cativos tendo por base seus ofícios, especialmente o de campeiro que
era sumamente importante na realidade estudada, é um tema que pede urgentemente
pesquisas mais específicas.
Vejamos, então, como estavam divididos os escravos homens maiores de 10
anos de idade,
599
segundo esse quesito:
599
Para o caso dos ofícios, tomei em conta os homens com mais de 10 e não de 14 anos de idade porque,
como já referi, encontrei escravos com ofícios discriminados com 11, 12 e 13 anos de idade.
303
TABELA 7.2 - ESCRAVOS COM OCUPAÇÕES DECLARADAS (ALEGRETE, 1831-1850)
CRIADORES Escravos
Campeiros
Escravos
Roceiros
Outros
Ofícios
Dois
Ofícios
600
S/Ref
Total
10.001 a
25.000 reses
18 2 24 4 40
88
2.001 a 10.000 49 19 26 --- 59
153
500 a 2.000 14 11 8 --- 40
75
101 a 500 2 --- 1 --- 11
14
Até 100 reses --- --- --- --- 7
7
TOTAL 83 32 61 4 157 337
Adaptado de: FARINATTI, Luís Augusto. Escravos do Pastoreio..., 2006, p. 147.
Tomando-se a comparação dos escravos roceiros com os campeiros, vemos
que estes aparecem como maioria em quase todos os estratos.
601
É possível saber que,
dentro do grupo de 88 cativos para o qual não consta referência de ocupação, havia ao
menos uma parte de trabalhadores que eram empregados na agricultura dentro das
estâncias, porque todos aqueles inventários relacionam instrumentos agrícolas. Esse fato
matiza a dominância dos escravos campeiros, mas não a invalida uma vez que, como já
foi dito, é provável que os cativos sem ocupação declarada também fossem empregados
em tarefas especificamente pecuárias, sem uma especialização mais pronunciada.
Assim, tomando-se o conjunto dos grandes criadores, que possuíam acima
de 2.000 reses, é possível perceber características comuns que nos informam sobre esses
estancieiros e sobre o emprego dos escravos em suas unidades produtivas. Ali, os
campeiros eram a maioria, demonstrando uma continuidade em relação ao padrão
encontrado por Osório para o período colonial. Na verdade, esse padrão parece mesmo
estar potencializado. Isso indica que as grandes estâncias da fronteira praticavam sim a
agricultura, em geral para buscar garantir parte de sua reprodução e também poderiam
vender seus excedentes nos mercados locais. Porém, essa produção jamais alcançou a
monta que teve, por exemplo, a cultura do trigo nas primeiras décadas do século XIX,
nas regiões de mais antiga colonização do Rio Grande do Sul. Nem a produção de
farinha de mandioca atingiu relevância similar à observada, no mesmo meado do
Oitocentos, para as regiões ao norte do rio Ibicuí, como as freguesias de Itaqui e Santa
600
Tratavam-se de dois “campeiros e roceiros”, um “campeiro e carpinteiro” e um “cozinheiro e
pedreiro”.
601
Cabe aqui uma ressalva quanto ao primeiro grupo, aquele dos estancieiros com mais de 10.000 reses.
Desses quatro inventários, apenas dois trazem a ocupação de todos os seus escravos. Em um deles, os
escravos roceiros correspondem aos dois elencados na coluna pertinente e no outro havia mais dois,
inseridos na tabela naqueles que tinham “Dois Ofícios” (eram “campeiros e roceiros”).
304
Maria.
602
Isso explica que, apesar dos escravos roceiros terem existindo em quantidade
não desprezível nas grandes estâncias de Alegrete, essa presença fosse muito menor que
a de campeiros.
Há, porém, um elemento ainda não levantado neste debate. Os estancieiros
não possuíam apenas escravos campeiros, roceiros e domésticos. A coluna “Outros
Ofícios”, na tabela “7.4” dá conta de outro interessante número de ocupações. Se, nos
estratos inferiores, esses cativos marcaram uma presença apenas eventual, o mesmo não
se pode dizer daqueles pertencentes aos grandes estancieiros (+ 2.000 reses). Ali
estavam escravos homens que poderiam ser enquadrados também como “de serviço
doméstico”: eram 6 cozinheiros e 5 alfaiates. Mas aparecem, sobretudo, 11 pedreiros, 10
sapateiros e 9 carpinteiros. A grande maioria dos inventários com escravos cujos ofícios
são declarados contemplava algum desses cativos. E veja-se que não se tratavam de
especializações de pouca importância: esses trabalhadores, junto com os 3 ferreiros
relacionados, costumavam valer bem mais do que os roceiros e tanto ou mais do que os
escravos campeiros. O carpinteiro Mariano, o sapateiro Ângelo, o alfaiate Antônio e o
pedreiro Caetano, por exemplo, valiam mais do que os campeiros de seu senhor, todos
mais jovens do que eles.
603
Essa é uma regra cujos exemplos seria possível multiplicar.
Mas basta ressaltar que esses cativos apenas raramente valiam menos do que os
campeiros e isso ocorria, em geral, quando a diferença de idade entre eles era muito
grande. Aqueles ofícios demandavam tempo de aprendizagem e exigiam habilidades
específicas.
Os “oficiais” de carpinteiro, pedreiro, sapateiro e ferreiro não estavam
presentes todos juntos nas escravarias. O mais comum era haver um ou dois deles.
Contudo, o fato de que raramente os grandes criadores deixavam de contar com algum
deles, não obstante seu alto preço, indica que cumpriam um papel importante na
reprodução das grandes estâncias e dá pistas sobre a racionalidade econômica de seus
senhores. Da mesma forma que os roceiros, eles indicam que os seus senhores
buscavam diminuir sua necessidade de recorrer ao mercado, garantindo ao menos um
trabalhador em algum daqueles ofícios. As estâncias eram estabelecimentos que não
contavam com construções muito complexas. No entanto, as casas de vivenda dos
grandes estancieiros, descritas nos inventários trabalhados, eram sempre de pedra e
602
OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da Estremadura Portuguesa
na América..., 1999. FARINATTI, Luís Augusto. FARINATTI, Luís Augusto. Sobre as Cinzas da Mata
Virgem: os lavradores nacionais na província do Rio Grande do Sul (Santa Maria: 1845-1880), 1999.
FOLETTO, Arlene Guimarães. Dos Campos junto ao Uruguai aos Matos de Cima da Serra: paisagem
agrária e estrutura produtiva em São Patrício de Itaqui (1850-1889), 2003.
603
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes, M.01, N.1, A. 1831, APRS.”
305
cobertas de telhas, ainda que não fossem forradas nem assoalhadas. E contavam com
mangueiras, currais e cercados para plantações, em geral também de pedra. Todos eles
possuíam carretas, indispensáveis ao transporte de cargas nos campos da fronteira.
Pedreiros e carpinteiros deviam ser empregados na construção e reparo desses bens. Por
outro lado, podia ocorrer o contrário: os senhores poderiam usufruir dos jornais desses
escravos em trabalhos para terceiros.
No que se refere aos escravos campeiros, percebe-se que eles eram maioria
nas escravarias pertencentes aos grandes estancieiros e marcavam presença também nos
estratos inferiores da hierarquia econômica dos criadores de gado. Além disso, vários
dos cativos cuja ocupação não foi declarada, sobretudo os pertencentes àqueles que
praticavam a pecuária em média e pequena escala, devem ter sido empregados no
costeio do gado. Estes, muitas vezes, realizavam o pastoreio conjuntamente com outras
atividades.
Um levantamento da produção pecuária de alguns municípios do Rio Grande
do Sul, datado de 1859, têm sido comumente referido pelos pesquisadores que
argumentam em favor da importância da escravidão nas regiões de predominância
pecuária.
604
Nele, aponta-se que, em Alegrete, havia 391 estâncias onde se empregavam
527 peões escravos empregados nas tarefas de pastoreio, além de trabalhadores livres.
Se tomarmos os dados do Mappa Estatístico de População da Província, do mesmo ano
de 1859, perceberemos que, em Alegrete, existiam 1.102 escravos homens entre 11 e 59
anos.
605
Ou seja, a estarem corretas as estatísticas, cerca de 48% dos escravos homens
adultos do município eram empregados diretamente no costeio do gado, fossem ou não
designados formalmente como “campeiros”. Esse número mostra o quanto o emprego
de escravos na pecuária continuava sendo forte na região, mesmo quase uma década
após o final do tráfico atlântico, em um período de rápida elevação dos preços dos
cativos. Além disso, e o que interessa mais diretamente a este estudo, esse percentual
coincide com os dados encontrados nos inventários para o período de 1831 a 1850 –
lembremos que, na amostra analisada, os campeiros perfazem 47% do total dos escravos
com ocupação declarada.
604
“Mapa numérico das estâncias existentes nos diferentes municípios da província, de que até agora se
tem conhecimento oficial, com declaração dos animais que possuem, e criam por ano, e do número de
pessoas empregadas no seu costeio”. Estatísticas, m. 02, 1858. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
(AHRGS). Obras que referem esse documento: ZARTH, Paulo Afonso. Do Arcaico ao Moderno..., 2004.
BELL, Stephen. Campanha Gaúcha..., 1998. OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes
na constituição da Estremadura Portuguesa na América..., 1999. MAESTRI, Mário. O cativo e a fazenda
pastoril sul-riograndense, 2002.
605
Escolhi essa idade porque foi dentro delas que encontramos, nos inventários, escravos com designação
de “campeiros”.“Mapa Estatístico da População da Província classificada por díades, sexos, estados e
condições”, 1859. In: F.E.E. De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul, 1981.
306
Por fim: havia presença importante de africanos entre os escravos campeiros
ou, eles eram, em larga maioria, crioulos, como propuseram estudos recentes?
606
Tomemos os escravos expressamente designados como “campeiros” nos processos
analisados:
TABELA 7.3 - ESCRAVOS CAMPEIROS – ORIGEM (ALEGRETE, 1831-1850)
Escravos Campeiros
Africanos 26
Crioulos 26
Não informada 31
Total 83
Adaptado de: FARINATTI, Luís Augusto. Escravos do Pastoreio..., 2006, p. 152.
Os dados da tabela “7.3” mostram um equilíbrio entre os africanos e os
crioulos no conjunto dos escravos campeiros que tiveram ocupação declarada. Os
africanos ficariam em vantagem se somássemos três deles que tinham dois ofícios (dois
“campeiro e lavrador” e um “campeiro e carpinteiro”). Isso não significa que
efetivamente houvesse uma maioria de africanos entre os cativos empregados na
pecuária na região estudada. O número de campeiros cuja origem não foi informada é
de mais de um terço. Além disso, vários dos escravos que não tiveram suas ocupações
especificadas certamente eram empregados no costeio do gado, e muitos deles eram
crioulos. Mais ainda, a maioria dos escravos cuja ocupação e a origem foram declaradas
pertencia a grandes estancieiros cujos plantéis, como vimos, tinham uma composição
onde se sobressaíam os homens e os africanos.
Porém, os dados existentes não podem ser ignorados. Se eles não são
suficientes para concluir pela presença equivalente de africanos e crioulos entre os
campeiros, eles permitem sim afirmar que, ao menos antes de 1850, os africanos
formavam uma parte importante da mão-de-obra escrava empregada diretamente no
trato da pecuária, especialmente nas grandes estâncias. Entre 1831 e 1850, o tráfico
atlântico ajudava diretamente a reproduzir a produção pecuária da Campanha. Se havia
uma preferência por destinar os crioulos para a atividade de peão, ela não elidia que os
grandes criadores, que tinham mais recursos para investir em escravos, comprassem
cativos africanos e os empregassem para pastorear rebanhos.
Estudando os números da entrada de escravos no Rio Grande de São Pedro,
entre 1788 e 1802, Gabriel Berute percebeu a grande importante que tinham, ali, as
606
MAESTRI, Mário. O cativo e a fazenda pastoril sul-riograndense, 2002, p. 120.
307
crianças de todas as idades, especialmente aquelas entre 10 e 14. Essa presença era
ainda mais pronunciada entre os africanos do que entre os crioulos que desembarcavam
em terras rio-grandenses. O autor analisa os vários aspectos que podem ter composto os
motivos dessa composição etária. Entre eles, estava o fato de que as crianças escravas
eram utilizadas de forma recorrente nas atividades produtivas. O autor traz a informação
do autor de uma “Memória” sobre a capitania, em que diz: “Os escravos dos habitantes
do Rio Grande são outros tantos cavaleiros: estes colonos vão e compram escravos de
mais de dez anos para os ensinarem a passar a vida a cavalo”
607
Berute levanta a
hipótese de que cativos naquela faixa etária pudessem mesmo ser preferidos pelos
senhores rio-grandenses, uma vez que poderiam aprender o uso do cavalo e serem
empregados como campeiros.
608
É difícil saber se a tendência de entrada de escravo
muito jovens voltou a reiterar-se ao longo da primeira metade do século XIX. Contudo,
a entrada de um número expressivo de crianças africanas ajudaria a explicar a presença
não desprezível de egressos da África entre os escravos campeiros de Alegrete e,
imagina-se, de outros municípos rio-grandenses, pois teriam tempo para tornarem-se
destros no manejo do cavalo.
Sabemos, então, que os escravos estavam presentes em unidades produtivas
de diversas envergaduras, e não apenas nas grandes estâncias. Era nestas, porém, que
eles desempenhavam um papel fundamental. Eram empregados em diversos tipos de
tarefas, com destaque para o costeio do gado. Como veremos agora, nesse domínio
específico, eles formavam um núcleo de pessoal permanente e eram empregados em
conjunto com trabalhadores livres.
7.4 - A gente do serviço
O quadro “7.1” traz o elenco, ano a ano, dos trabalhadores empregados
nas atividades de manejo do gado, na estância da Palma. Os nomes dos trabalhadores
foram escritos exatamente da mesma forma em que se encontram na conta elaborada
pelo Brigadeiro Ortiz.
607
“ALMEIDA, Luís Beltrão de Gouveia de. Memória sobre a Cap
a
. do Rio Grande do Sul. Ou influência da
Conquista de Buenos Ayres pelos Ingleses em toda a América, e meios de prevenir seus effeitos por: L.B.G.A
y L., 1806”, apud BERUTE, Gabriel do Santos. Dos escravos que partem para os portos do sul:
características do tráfico negreiro do rio grande de são pedro do sul, c. 1790- c. 1825, 2006, p.p. 64-65.
608
BERUTE, Gabriel dos Santos. Dos escravos que partem para os portos do sul…, 2006, p.p. 61-65.
308
QUADRO 7.1 - TRABALHADORES DA ESTÂNCIA DA PALMA (ALEGRETE, 1851-1854)
Ano Capataz Escravos
Campeiros
PEÕES POR MÊS
c/ tempo de
permanência e salário
mensal
Peões por
dia/tarefa
1851
Leonardo
(10 meses –
20$000)
Simão,
Felisberto Sargento,
Manoel Baiano,
Eleutério
preto forro Manoel
(12 meses –
4$000 e 8$000)
negro Torres
(06 meses – 12$000)
negro Joaquim
(07 meses- 8$000)
castelhano
Fernandes
“serviços por dia e
repontes de gado”
(39$000)
Castelhano
Fernandes
“serviços por dia
várias vezes”
(22$000)
castelhano
Alexandre
“serviços por dia”
(36$000)
Reginaldo, seu
escravo e um peão
“condução de 01
tropa para o
Vacacaí”
(120$000)
1852
Leonardo
(1 mês –
20$000)
Rufino Porto
(3 meses –
20$000)
índio Maneco
(8 meses –
16$000)
Simão,
Felisberto Sargento,
Manoel Baiano,
Eleutério
preto forro Manoel
(12 meses – 8$000)
castelhano Fernandes
(3 meses – 12$000)
“em um posto”
piá Antônio
(2 meses – 4$000)
Laureano *
(? – 6$000)
Recrutas, marcações
e capações
(300$000)
Pedro Gomes de
Lima
“Recrutas”
(6$000)
Fredo Anhaia, dois
filhos e um sobrinho
“Recrutas”
(27$200)
Reginaldo e
Medeiros
“Recrutas”
(21$440)
1853
Alexandre
(10 meses -
16$000 e
24$000)
Daniel
(2 meses –
24$000)
Simão,
Felisberto Sargento,
Manoel Baiano,
Eleutério
piá Antônio
(12 meses – 6$000)
irmão do mulato
Bernardo
(2 meses – 12$000)
Liberato
(3 meses – 12$000)
Laureano
(? – 6$000)*
Frederico e peões
“pastoreio das éguas
compradas”
(14$400)
...continua
309
1854
até
Setembro
Alexandre
(9 meses –
24$000)
Simão,
Felisberto Sargento,
Manoel Baiano,
Manoel Cabinda
Antonio de Barros
(2 meses – 10$000)
Antonio que pára no
fundo
(3 meses – 10$000)
Balduíno que pára no
fundo
(3 meses – 6$000)
castelhano Reis
(3 meses – 12$000)
“no posto”
João da Rosa
(5 meses – 12$000)
“no posto”
* O peão Laureano trabalhou 12 meses contínuos entre 1852 e 1853, porém, não há como saber com
certeza quando esse período começou e terminou.
Fonte:
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. M. 08, N. 111, A. 1852.
APRS”.
Como é possível perceber através dos dados do quadro “7.1”, havia uma
combinação de peões escravos e peões livres entre o pessoal encarregado do costeio do
gado. Falo aqui em “trabalhadores livres” no sentido de que eram juridicamente livres,
em oposição aos escravos, e é neste sentido que utilizo o termo nesta tese. Como
veremos, apesar de receberem salários, ao menos parte deles não configurava mão-de-
obra livre no sentido de totalmente desprovida do acesso aos meios-de-produção.
Essa combinação de trabalhadores escravos e livres era a estrutura, por
excelência, das grandes estâncias do Rio Grande do Sul e das áreas vizinhas, do Vice-
Reinado do Prata, ao longo do período colonial.
609
O processo de independência nas
províncias argentinas e a forma como elas encaminharam o final da escravidão fizeram
com que, por volta da década de 1830, os escravos já não fossem mais significativos
como trabalhadores da pecuária naquelas regiões. O gado seria manejado, a partir daí,
por trabalhadores juridicamente livres.
610
No Estado Oriental, a abolição da escravidão
se deu em 1842, ainda que, como veremos, tenha havido persistências em sua fronteira-
norte, em razão do alto índice de produtores brasileiros ali existentes.
609
OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da Estremadura Portuguesa
na América..., 1999. GARAVAGLIA, Juan Carlos. Pastores y Labradores de Buenos Aires: una historia
agraria de la campaña bonaerense (1700-1830), 1999. GELMAN, Jorge. Campesinos y Estancieros…,
1998.
610
CHIARAMONTE, Juan Carlos. CHIARAMONTE, José Carlos. Mercaderes del litoral: economía y
sociedad em la provincia de Corrientes, primera mitad del siglo XIX, 1991. GELMAN, Jorge.
Campesinos y Estancieros…, 1998. BROWN, Jonathan. BROWN, Jonathan. Historia Socioeconómica de
la Argentina, 1776-1860, 2002. SCHMITT, Roberto. Ruina y Ressurreción em Tiempos de Guerra.
Sociedad, economía y poder em el Oriente Entrerriano post-revolucionario, 1810-1852, 2004.
310
Voltando ao quadro “7.1”, é possível perceber que havia um núcleo estável
de mão-de-obra sob comando do capataz, formado pela combinação de trabalhadores
cativos com peões mensais. Conjugado com esse pessoal estável, a estância recorria
também à contratação de mão-de-obra eventual, para determinadas atividades.
611
No
que se refere aos trabalhadores estáveis, ao lado daqueles quatro cativos, o Brigadeiro
Ortiz buscava contar com, pelo menos, mais um trabalhador fixo ao longo de todo o
ano, tarefa desempenhada pelo preto forro Manoel nos dois primeiros anos e pelo piá
Antônio, em 1853.
612
Em 1854, os 16 meses trabalhados pelos peões cobriram com
folga os 9 meses do ano aos quais se refere a conta, compondo o trabalho de um peão
estável durante todo o período.
Por outro lado, somando-se os meses trabalhados pelos outros peões a cada
ano, temos sempre algo próximo dos 12 meses ou, no caso do ano de 1854, 8 meses em
9. Poderia parecer que, com esses vários peões que permaneciam na estância apenas 2
ou 3 meses, o Brigadeiro Ortiz estivesse tentando cobrir a ausência de um sexto
trabalhador que fosse empregado o ano inteiro. Isso indicaria que a estância precisaria
de 6 trabalhadores fixos, mas Ortiz tinha dificuldade de completar esse sexto
trabalhador devido à baixa oferta de mão-de-obra livre.
Porém, é preciso evitar conclusões apressadas. Uma conta anexa ao
inventário da esposa de Joaquim Ferreira Braga, também de Alegrete e cobrindo os
últimos anos da década de 1840, ainda que seja muito menos completa que a conta da
Estância da Palma, traz as datas exatas de entrada e saída dos peões, dado que não existe
para o caso da conta analisada aqui.
613
Ali, se percebe a repetição desse padrão de
escravos campeiros, peões mensais e peões por dia/tarefa. Entre os peões por mês,
também se nota a diferença entre os que permaneceram por longo tempo (um por cerca
de 36 meses e outro que entrou duas vezes, permanecendo 13 e 17 meses,
respectivamente) e os que ficaram menos tempo, normalmente sem superar os 3 meses.
Como constam os dias de entrada e saída de cada peão, sabemos que a maioria destes
peões que permaneciam menos tempo, na verdade, estiveram concomitantemente na
estância. Isso indica que o manejo do gado exigia um número um pouco maior de
trabalhadores mensais durante algumas épocas do ano.
611
Em seu trabalho sobre a Campanha Gaúcho, Stephen Bell destacou a diferença entre os peões
regulares e os peões eventuais. BELL, Stephen. Campanha Gaúcha..., 1998.
612
“Piá” era um terno empregado no Rio Grande do Sul do século XIX para designar os meninos
mestiços de índio e branco. NUNES, Zeno Cardoso; NUNES, Rui Cardoso. Dicionário de Regionalismos
do Rio Grande do Sul, 1990, 4. ed., 1990, p. 371. Hoje em dia, é utilizado em referência a qualquer
menino.
613
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. M. 08, N. 111, A. 1852. APRS”.
311
No caso dessa estância do “Quarai-Mirim”, a principal época da presença
desse tipo de peão era o fim do inverno e início da primavera, com destaque para os
meses de agosto, setembro e outubro. Já em outro estabelecimento, a Estância do
Pedregal, para qual temos contas sumárias de despesas para os anos de 1847 a 1850,
também se repetiu o mesmo padrão, mas ali não havia peões que permanecessem por
longo tempo, mas apenas os que vinham por 2 ou 3 meses, concentrarado-se no período
de abril a junho.
614
Parece que as tarefas mais freqüentes tendiam a se concentrar em
alguns meses entre março e novembro, variando entre cada estância. Dessa forma, o
fluxo de entrada e saída de trabalhadores parece ter se pautado pelo ritmo das
necessidades de trabalhadores das estâncias. Isso alerta para não se exagerar na escassez
endêmica de mão-de-obra que, por vezes, se costuma diagnosticar como um dos males
desses estabelecimentos produtivos. Contudo, isso não autoriza a supor a existência de
um mercado de trabalho funcionando completamente nos moldes capitalistas. Como
veremos adiante, esses peões que permaneciam apenas poucos meses nos
estabelecimentos não o faziam por terem uma índole inconstante, e sim porque aquela
atividade não era sua única possibilidade de ganhar a vida mas, ao contrário, significava
apenas um elemento em uma estratégia de sobrevivência mais complexa.
Assim, é talvez uma fórmula mais realista dizer que a mão-de-obra da
estância da Palma era formada por um capataz, 4 escravos campeiros, um peão livre
trabalhando o ano todo e mais 1, 2 ou 3 trabalhadores, permanecendo todos ao mesmo
tempo, em alguns desses meses.
615
Além deles, vinham peões eventuais contratados por
dia ou tarefa, formando um grupo flutuante de trabalhadores eventuais.
Ficando com o número de 5 trabalhadores permanentes e considerando que
ali havia cerca de 2.800 cabeças de gado vacum, temos uma relação de um trabalhador
para cada 560 reses. E veja-se que esta conta é feita sem incluir o capataz. Este, muito
provavelmente, trabalhava junto com os peões, no comando direto da maioria das
atividades da pecuária. Um número alto de trabalhadores, portanto, mas que se justifica
ao lembrarmos o negócio de venda de cavalos mansos ao exército brasileiro,
desempenhadas pelo proprietário, o Brigadeiro Ortiz. De fato, é possível imaginar que
alguns dos peões contratados ou dos escravos campeiros da estância fossem, também,
domadores e dedicassem boa parte do seu tempo a esse ofício. Como se pode perceber
nas “Instruções...” do futuro Conde de Piratini, os peões domadores eram preferidos e
614
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes, M. 10, N. 145, A. 1855. APRS.”
615
Baseado em uma afirmação do Visconde de São Leopoldo, Stephen Bell sugere que a necessidade de
trabalhadores permanentes nas estâncias diminuía nos meses mais tórridos do verão. BELL, Stephen.
Campanha Gaúcha..., 1999, p.p. 40-59.
312
podiam receber salários mais elevados.
616
Mesmo que um ou dois homens do serviço
dedicassem parte de seu tempo em alguns meses do ano à tarefa preferencial de domar
cavalos, a média de reses por trabalhador regular ficaria mais próxima dos 500 do que
dos 1.000 animais. Por outro lado, há também um fator geográfico a ser considerado.
Em 1858, ao final da “Relação de Pecuaristas” já referida, os vereadores do
município de São Borja escreveram um interessante comentário. Respondiam assim ao
questionamento da Presidência da Província sobre o contingente de trabalhadores
necessário para costear determinado número de reses:
“Tendo essa Câmara ouvido aos principais estancieiros deste município pode
colher as informações seguintes: que não se pode regular o número de peões
para o costeio de uma estância em relação ao número de animais vacuns e
cavalares que cada uma possui e sim em sua relação à localidade do campo: há
estâncias que tendo oito mil animais precisão para o costeio dela oito peões e
um capataz, e outras com igual número de animais precisam o dobro do número
de peões para o mesmo serviço por serem estas em campo aberto e ver-se o
estancieiro na dura necessidade de destacar postos pelas divisas do campo; e
aquelas serem cercadas pela natureza, e com mais facilidade fazem o serviço de
campo em razão de estarem os animais reunidos dentro dele...”
617
Se essas observações forem precisas, um rebanho criado em campo sem
limites naturais poderia exigir até o dobro de peões do que outro do mesmo porte, que
estivesse em um campo com rincões “naturalmente cercados”.
618
A estância da Palma deveria estar longe de uma situação ideal, de acordo
com esses parâmetros. Freqüentemente, o Brigadeiro Ortiz contratou peões “por tarefa”
para recrutar gado que andava fora da estância, nos anos de 1852 e 1854. Esse fato
guardava estreita relação com a dificuldade que ele estava tendo para fixar um peão
regular na atividade de posteiro. Estes eram peões que arranchavam-se em um “posto”,
ou seja, em um dos limites da propriedade, onde se podiam fazer currais e mangueiras,
além de alguma lavoura.
619
Em 1852, contou com o castelhano Fernandes por apenas
três meses. No ano seguinte, não houve menção a nenhum peão posteiro. Somente em
1854 o local esteve ocupado quase que permanentemente, primeiro pelo castelhano Reis
616
Dizia o artigo “17” das “Instruções...”: “Ajustar os peões que sejam precisos para o serviço da
estância, preferindo os que forem domadores...” CESAR, Guilhermino. O Conde de Piratini e a Estância
da Música, 1978, p. 41.
617
“Correspondências das Câmaras Municipais. Correspondência Expedida. São Borja. Relação das
Estâncias que contém o termo de São Borja com as declarações dos nomes de seus proprietários, número
de crias vacuns e cavalares que marcarão no ano de 1857 e a pessoas empregadas como capatazes e
peaes. Ano de 1858. AHRS.”
618
Em passagem já citada por vários autores, o viajante francês Nicolau Dreys explicava que a estância
em melhores condições era aquela cercada por “morros íngremes, matos impenetráveis e rios profundos”.
DREYS, Nicolau. Notícia descriptiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul, 1927, p. 7.
619
NUNES, Zeno Cardoso; NUNES, Rui Cardoso. Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul,
1990, 4. ed., p. 392.
313
e depois pelo peão João da Rosa. A importância da existência desses posteiros a
repontar gado e impedir que se evadisse pode ser bem compreendida quando se percebe
que, exatamente em 1854, quando o posto esteve permanentemente guarnecido, não
houve contratação de mão-de-obra extra para a realização de recrutas.
7.5 - “E veio gente para assistir à marcação”
Além de realizarem recrutas, na Estância da Palma, os peões por dia ou
tarefa desempenharam atividades de marcação, castração, condução de gado bovino e
de éguas para as estâncias do Brigadeiro em São Gabriel. As contas da estância da
Palma não dão detalhes sobre os trabalhadores vindos para o trabalho da marcação e
castração. Contamos, porém, com outro pequeno registro contábil, referente à estância
da viúva Dona Ana Guterres, vizinha aos campos da Palma.
O estabelecimento de Dona Ana Guterres era de dimensões menores do que
a Palma, estando dentro do que poderia ser considerada uma estância de médias
proporções em Alegrete, na década de 1850.
620
A propriedade contava com 1.114 reses
de criar xucras, 130 reses de criar mansas e desenvolvia, ainda, a produção comercial de
potros e mulas, pois existiam ali 362 éguas de crias de potros, 21 potros capões e 27
inteiros, além de 130 éguas de crias de mulas, 05 burros eixores e 48 mulas novas. A
força de trabalho com que podia contar estava assim distribuída:
620
Stephen Bell trabalhou com as referências a trabalhadores livres nesse processo de inventário. BELL,
Stephen. Campanha Gaúcha..., 1998, p. 53.
314
QUADRO 7.2 - TRABALHADORES DA ESTÂNCIA DE DONA ANA GUTERRES (ALEGRETE,
1856-1857)
Ano Capataz Escravos
campeiros
PEÕES POR MÊS
c/ tempo de permanência e
salário mensal
Peões por
dia/tarefa
de Fev
1856
Joaquim José
Lucas
(32$000)
Benedito
Antônio Gonçalves,
Feliciano genro do
mesmo
e Athanázio
Marcação em 1856
(16$000)
Antônio Gonçalves,
Feliciano genro do
mesmo
Capação em 1856
(6$000)
até
Out
1857
Joaquim José
Lucas
(32$000)
Benedito
Antônio Israel Lucas
(7 meses – 12$000)
Manoel Syrino
(5 meses – 8$000)
Antonio Candido da Rosa
(4 meses – 12$000)
Zacarias,
Manoel Porfírio,
Athanázio e Rufino
Marcação em 1857
(14$000)
Athanázio, Porfírio,
Rufino e
Américo de Mello
Capação em 1857
(8$000)
Fonte: “Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. M. 08, N. 117, A. 1854.
APRS”.
Um padrão já conhecido volta a aparecer: o capataz Joaquim José Lucas teve
sob seu comando o campeiro Benedito e contou também com peões livres. À
semelhança da conta referente à estância da Palma, também aqui não é possível saber
com exatidão quando entraram e saíram esses peões mensais. Todavia, novamente
encontramos um núcleo estável formado por um escravo e peões por mês. Nenhum
destes últimos, porém, trabalhou durante todo o período. Aliás, nem mesmo a soma de
todos os 16 meses trabalhados chegou a cobrir os 20 meses registrados na conta. Ou
seja, temos o capataz mais 2 trabalhadores regulares na maioria do tempo, sendo que,
em alguns momentos, ficaram apenas o capataz e o campeiro Benedito.
Entretanto, é no aspecto das atividades estacionais que a conta de Dona Ana
Guterres é a mais completa. Enquanto a conta da estância da Palma traz apenas a
referência a um gasto total com “marcações e castrações”, aqui aparecem discriminados
os nomes dos peões que vieram trabalhar nessas atividades. A importância do
incremento de mão-de-obra fica clara: em um estabelecimento que empregava o capataz
315
mais 1 ou 2 trabalhadores permanentes, foi necessário contratar ainda mais 3 ou 4
trabalhadores nos períodos de marcação e castração. Isso conforma um mínimo de um
capataz mais 5 ou 6 trabalhadores para marcar a produção da estância que, naqueles
anos, foi de cerca de 260 terneiros (uma taxa de reprodução do rebanho que foi de cerca
de 21%) e para castrar os jovens machos equivalentes.
621
Ou seja, uma necessidade de
cerca de um trabalhador para cada 50 terneiros a serem marcados.
622
E veja-se que,
nessas épocas de pico de demanda laboral, não se pode duvidar que os outros dois
escravos homens adultos da estância (o roceiro Benedito e o pedreiro Ricardo)
pudessem auxiliar no trabalho. Esse número poderia ser ampliado se existissem pessoas
que, muito mais por um dever de reciprocidade do que por qualquer pagamento, viriam
auxiliar naqueles trabalhos.
623
É uma pena que não se possa contar com fontes mais
específicas sobre essa prática, que permitissem avaliar sua disseminação e importância.
Contudo, não parece exagerado dizer que as atividades estacionais mobilizavam
também uma rede de reciprocidade, ao lado do pessoal regular e dos trabalhadores
eventuais contratados para elas.
No período colonial, tanto no Vice-Reino do Prata, região vizinha, de
colonização espanhola, como no Rio Grande de São Pedro eram comuns as descrições
dessas atividades como estando imersas em verdadeiras festas vicinais, para as quais
podiam acorrer agregados, vizinhos pobres e vizinhos ricos com a “sua gente”, sem
receber necessariamente pagamento, mas podendo desfrutar de comida e bebida às
fartas e reatualizar importantes laços de solidariedade.
624
Em seu estudo sobre a
Campanha de Buenos Aires, o historiador argentino Juan Carlos Garavaglia apontou
que, em algumas contas de estabelecimentos pecuários, não apareciam gastos com
salários de peões para essas tarefas, mas apenas referências a alguns gastos excepcionais
destinado à “gente da marcação” como, por exemplo, vinho, aguardente, passas de uva,
tabaco e outros. Esses eram os presentes fornecidos àqueles que vinham “ajudar”
naquelas tarefas. Severino de Sá Brito refere que, em algumas estâncias, nos dias de
marcação, vinham pessoas amigas e mais um grande número de homens, que se
621
“Terneiros” era o termo empregado na época, como ainda hoje, para os filhotes bovinos chamdos, em
outras regiões do Brasil, de “bezerros” ou “garrotes”.
622
Em seu estudo sobre a Campanha de Buenos Aires no final do século XVIII, o historiador argentino
Juan Carlos Garavaglia encontrou números de algo em torno de 80 a 110 animais para cada trabalhador
na faina da marcação: GARAVAGLIA, Juan Carlos. Pastores y labradores..., 1999, p. 213.
623
Sobre o tema no Vice-Reinado do Rio da Prata, ver: GARAVAGLIA, Juan Carlos. Pastores y
labradores..., 1999, p.p. 213 e 214. Para o Rio Grande do Sul ver BRITO, Severino de Sá. Trabalhos e
Costumes dos Gaúchos s/d , 2.ed., p. 62.
624
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo, 1976. BELL, Stephen. Campanha
Gaúcha..., 1998. GARAVAGLIA, Juan Carlos. Pastores y labradores...,1999.
316
ofereciam para o serviço só pela diversão e pela comida.
625
Quando João Telles de
Souza, genro do Brigadeiro Ortiz, disse terem morrido da peste as reses que havia
recebido de seu sogro em doação, esteve depondo como testemunha José Gonçalves
Pereira. O depoente era criador vizinho dos campos dos Telles e declarou saber do
ocorrido por “ter ajudado com gente sua a marcação”.
626
Imagine-se, então, o que representavam essas atividades em termos de alta
demanda de trabalhadores em um ou dois momentos do ano. Mesmo sem considerar os
possíveis trabalhadores não-remunerados, na estância de Dona Ana Guterres foi preciso
multiplicar por três o número de trabalhadores regulares (de 2 para 6), durante aqueles
períodos. Fazendo uma analogia com aquele estabelecimento, é possível estimar o
número de trabalhadores contratados na Palma para as tarefas de marcação. Se
tomarmos o mesmo índice de procriação do rebanho encontrado naquela estância (21%)
e o aplicarmos às 2.800 reses da Estância da Palma, teremos uma produção de 588
animais por ano. Tomando também a média de 50 reses por trabalhador na marcação,
encontramos a necessidade de cerca de 12 trabalhadores para as fainas de marcação,
mais do que o dobro do pessoal regular da estância.
Agora que já conhecemos a estrutura básica da mão-de-obra nessas
estâncias, assentada sobre uma combinação de trabalho escravo e livre, e de trabalho
regular e eventual, cabe indagar sobre as possibilidades de acesso a essas formas de
mão-de-obra e sobre as possíveis razões do emprego dessa combinação pelos
estancieiros sulinos.
7.6 - Acesso ao trabalho livre e cativo
Pelos dados da tabela “7.4”, colocada a seguir, podemos perceber que o
acesso à propriedade de escravos era bastante difundido entre os inventariados de
Alegrete, pelo menos até fins da década de 1850. Durante todo o período trabalhado, a
maioria dos pequenos criadores que deixaram inventários post mortem, tinha acesso ao
trabalho cativo.
625
BRITO, Severino de Sá. Trabalhos e costumes dos gaúchos s/d (2.ed.), p. 62. GARAVAGLIA, Juan
Carlos. Pastores y labradores..., 1999, p.p. 213-214.
626
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 08, N. 111, A. 1852. APRS”.
317
TABELA 7.4 - PERCENTUAIS DE CRIADORES DE GADO QUE POSSUÍAM ESCRAVOS
(ALEGRETE, 1831-1870)
1831-1840 1841-1850 1851-60 1861-1870
mais de 2.000 reses
100% 100% 100% 100%
de 501 a 2.000
100% 100% 88,9% 83,3%
até 500 reses
60,0% 66,7% 80,6% 58,8%
TOTAL
85,7% 81,8% 84,7% 68,1%
Média de escravos por
inventário
9 7 6 5
Fonte
: 181 inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. Cartório do Cível e Crime.
Cartório da Provedoria. 1831 a 1870. APRS
Por outro lado, os efeitos do aumento do preço dos escravos em razão do
final do tráfico atlântico de cativos já se faziam sentir, no município, na década de 1850.
Houve uma redução nas médias de escravos por inventários ao longo do período. Ela foi
potencializada pelo decréscimo brutal no percentual de africanos que formavam as
escravarias, pela elevação do número de crianças e pela tendência para a diminuição do
número de homens, como se pode ver nos gráficos “7.A”, “7.B” e “7.C”.
GRÁFICO 7.A - PERCENTUAIS DE AFRICANOS NAS ESCRAVARIAS DE CRIADORES DE
GADO (ALEGRETE, 1831-1870)
0,0%
10,0%
20,0%
30,0%
40,0%
50,0%
60,0%
70,0%
1831-40 1841-50 1851-60 1861-70
% de africanos
mais de 2.000 501 a 2.000 ate 500 reses
Fonte: 181 inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. Cartório
do Cível e Crime. Cartório da Provedoria. 1831 a 1870. APRS
318
GRÁFICO 7.B - PERCENTUAIS DE CRIANÇAS ESCRAVAS DE CRIADORES DE GADO
(ALEGRETE, 1831-1870)
0,0%
10,0%
20,0%
30,0%
40,0%
50,0%
60,0%
1831-40 1841-50 1851-60 1861-70
% de crianças
mais de 2.000 501 a 2.000 ate 500 reses
Fonte: 181 inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. Cartório do Cível e Crime.
Cartório da Provedoria. 1831 a 1870. APRS
GRÁFICO 7.C - PERCENTUAIS DE MASCULINIDADE NAS ESCRAVARIAS DE
CRIADORES DE GADO (ALEGRETE, 1831-1870)
0,0%
10,0%
20,0%
30,0%
40,0%
50,0%
60,0%
70,0%
80,0%
1831-40 1841-50 1851-60 1861-70
% de escravos homens
mais de 2.000 501 a 2.000 ate 500 reses
Fonte: 181 inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. Cartório do Cível e
Crime. Cartório da Provedoria. 1831 a 1870. APRS
Os grandes criadores continuaram tendo percentuais mais altos de homens
adultos em suas escravarias durante todo o período estudado, embora seus índices
passassem a estar mais próximos do estratos inferiores.
627
O Rio Grande do Sul foi,
sabidamente, uma região vendedora de escravos na dinâmica do tráfico inter-
627
Análises detalhadas dos impactos de fenômenos conjunturais sobre as escravarias dos diferentes
estratos de criadores de gado em Alegrete encontram-se em: FARINATTI, Luís Augusto. Escravidão e
pecuária na fronteira sul do Brasil..., 2005.
319
provincial.
628
Além disso, também é de se supor que as regiões mais capitalizadas da
própria província, como as áreas de charqueadas no leste, drenassem cativos das regiões
de pecuária. Contudo, as maiores dificuldades para o acesso ao trabalho escravo se
deram mesmo a partir da década de 1860. Somente então, a média de inventariados que
podia contar com escravos, que havia se mantido sempre acima de 80%, caiu para 68%
(tabela “7.4”). Como veremos a seguir, no decênio anterior, a grande valorização
ocorrida nos preços dos novilhos vendidos às charqueadas (principal produto das
estâncias), superior à valorização dos escravos, possibilitou, sobretudo aos grandes
criadores de gado, oferecer alguma resistência à drenagem de seus cativos para as
regiões mais capitalizadas. Entretanto, na década seguinte, essa resistência tornou-se
bem mais difícil, em razão da crise que derrubou o preço do gado.
Tendo em conta esses dados sobre a população cativa, é possível passar à
análise comparativa do acesso dos estancieiros ao trabalho livre e escrava. Ela pode ser
feita comparando-se o gasto anual com um peão, a partir do salário médio praticado na
época, com o valor necessário para a compra de um escravo jovem, nos mesmos
períodos. Como se trata de observar a viabilidade econômica dessas formas de mão-de-
obra para os pecuaristas, convém tomar a sua evolução não apenas em mil-réis, mas
principalmente em termos da quantidade de novilhos necessários para pagar um ano de
salários a um peão ou para comprar um escravo. Como vimos, os novilhos vendidos
para as charqueadas eram a produção essencial das estâncias e sua venda consistia na
maior fonte de receita para aqueles estabelecimentos.
Apesar de haver uma elevação contínua no valor dos salários, o trabalho dos
peões livres ia ficando cada vez mais acessível aos criadores ao longo das três primeiras
décadas estudadas, experimentando um refluxo no final da década de 1860, quando o
gado havia sofrido uma queda nos preços e os recrutamentos realizados para a Guerra
do Paraguai haviam transformado muitos peões potenciais em “Voluntários da Pátria”.
Por outro lado, o encarecimento do preço dos cativos, que se seguiu ao fim do tráfico
atlântico, em 1850, não foi acompanhado por ascensão dos salários nas mesmas
proporções. No início da década de 1830, o valor de um escravo jovem equivalia a 6
anos de trabalho de um peão.
629
No final da década seguinte, essa relação se mantinha
628
MAESTRI, O cativo e a fazenda pastoril sul-riograndense, 2002.
629
O valor despendido com a manutenção anual dos escravos não prejudica essa comparação. Tais gastos
envolviam alimentação, habitação, roupas, cuidados de saúde, arreios, fumo e cachaça. Os dois primeiros
não são discriminados na documentação disponível. Isso impede que se possa fazer uma estimativa
completa do total dos gastos anuais que se devia fazer com um escravo. Porém, não impede que se faça
uma comparação com os gastos feitos com peões livres, uma vez que aqueles dois itens faltantes
(alimentação e habitação) eram igualmente fornecidos a peões livres e cativos. Quanto àqueles gastos que
320
estável. No entanto, logo após o final do tráfico atlântico de cativos, a elevação do preço
dos escravos fez com que essa relação passasse para 9 anos, chegando a 11 anos no
biênio 1856-57. No final da década de 1860, todos os fatores apresentaram quedas,
porém, a redução do preço dos cativos foi mais pronunciada do que a dos salários e era
preciso 8 anos de salário de um peão para formar o valor despendido com a compra de
um escravo jovem.
TABELA 7.5 - SALÁRIOS DE PEÕES LIVRES E PREÇO DOS ESCRAVOS JOVENS, EM
RELAÇÃO AOS NOVILHOS (ALEGRETE, 1832-1870)
Preço médio
do novilho
Gasto anual
com um
peão,
em mil-réis
Gasto anual
com um
peão, em
novilhos
Preço de um
escravo
jovem, em
mil-réis
Preço de um
escravo
jovem, em
novilhos
1832
7$000
76$800
11 novilhos
500$000
71 novilhos
1847-50
9$000 100$800 11 novilhos 600$000 67 novilhos
1851-54
15$000 106$000 7 novilhos 1:000$000 67 novilhos
1856-57
24$000 139$200 6 novilhos 1:500$000 63 novilhos
1869-70
12$000 120$000 10 novilhos 1:000$000 83 novilhos
Fontes: Para os preços dos novilhos e dos escravos, a amostra de “Inventários post mortem pesquisada.
Para o salário médio dos peões em 1832: CESAR, 1978, p. 44. Salários em 1847-50:
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. M. 10, N. 145, A. 1855.
APRS”. Salários em 1851-54: “Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e
Ausentes. M. 08, N. 111, A. 1852. APRS”. Salários em 1856-7: “Inventários post mortem.
Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. M. 08, N. 117, A. 1854. APRS”. Salários em 1869-
70: “Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. M.15, N.162 ,
A.1869. APRS”.
O fato de que contratar peões ficou mais acessível em determinado momento
da década de 1850 pode sugerir que os estancieiros passassem a buscar contratar mais
peões livres e diminuir o número de escravos em suas estâncias. Seria possível pensar
eram feitos só com os escravos, temos os dados de uma conta de despesas da Estância do Pedregal,
pertencente à Dona Francisca de Araújo Freitas, cobrindo os anos completos de 1848 e 1849. No caso
concreto, tais gastos envolveram instrumentos de trabalho como esporas e lombilhos; tratamentos de
saúde com suadores e purgantes; e roupas como ponchos e jaquetas. Com esses itens, gastou-se, em
média, a quantia de cerca de 8$000 réis com cada escravo adulto, por ano. Em seis anos, isso daria cerca
de 48$000 que devem ser somados ao preço do escravo jovem (600$000). Esses 648$000, naquele
período, seguem sendo equivalentes a pouco mais de seis anos de trabalho de um peão. Esses dados
podem ajudar a começar a pensar a questão, mas, naturalmente, não a resolvem de todo em razão, por
exemplo, dos custos com vigilância e da capacidade de negociação de peões e escravos, impossíveis de
estimar matematicamente. “Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime: M.01, N. 09,
A. 1847. APRS.”
321
que esses escravos iam sendo substituídos por trabalhadores livres e que isso acontecia
de imediato nas regiões especializadas na criação de gado, menos dependentes do
trabalho escravo do que as áreas onde existiam charqueadas. Porém, é preciso ir com
calma nessas estimativas.
Ainda que o preço de um escravo jovem ascendesse constantemente e de
forma acentuada logo após 1850, sua valorização não chegou a ultrapassar a dos
novilhos, minimizando os efeitos do encarecimento dos cativos para os criadores,
especialmente para os grandes estancieiros, ainda ao longo de toda aquela década. Isso
ajuda a compreender algumas situações que poderiam parecer paradoxais em se
contemplando apenas a elevação no preço dos escravos após o final do tráfico atlântico
de cativos. Em 1853, o pardo Eleutério, escravo campeiro de apenas 20 anos,
pertencente ao Brigadeiro Ortiz, adoeceu gravemente e acabou por falecer no ano
seguinte. Ortiz tratou de recompor o quadro de seus trabalhadores, não com a
contratação de mais um peão livre, cujos salários estavam muito mais acessíveis do que
na década anterior, mas sim com a aquisição de outro escravo campeiro. Ao efetuar a
compra de Manoel Cabinda, o Brigadeiro declarou que ele era absolutamente necessário
para o costeio dos rebanhos da Estância da Palma.
630
Além disso, uma estatística da criação de gado em alguns municípios
provincial, já referida aqui e datado de 1858 listou os trabalhadores empregados no
costeio do gado em diversos estabelecimentos de alguns municípios da província do Rio
Grande do Sul. Esse documento tem sido amplamente utilizado pelos historiadores
como argumento em favor da importância do trabalho escravo na pecuária e traz os
seguinte dados:
TABELA 7.6 - ESTÂNCIAS E TRABALHADORES DA PECUÁRIA EM QUATRO
MUNICÍPIOS (RIO GRANDE DO SUL, 1858)
Municípios N. de
estâncias
Capatazes Peões livres Peões escravos
Alegrete 391 124 159 527
Rio Pardo 40 32 34 173
São Borja 568 171 339 153
Santa Maria 90 55 86 143
Fonte:
“Mapa numérico das estâncias existentes nos diferentes municípios da província, de que até agora
se tem conhecimento oficial, com declaração dos animais que possuem, e criam por ano, e do
número de pessoas empregadas em seu costeio”. Estatísticas, M.2, A. 1858. APRS”.
630
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 08, N. 111, A. 1852. APRS”.
322
Ainda que se possa imaginar que os peões listados nesse mapa sejam apenas
aqueles mais regulares, que permaneciam mais tempo nas estâncias, e possam estar
subestimados, não há como negar que, mesmo nos últimos anos da década de 1850,
quando os escravos atingiram seu mais alto preço e os peões livres se tornaram mais
acessíveis, o emprego de cativos no trato da pecuária continuava sendo muito
importante em Alegrete. Sem dúvida, os efeitos do final do tráfico dificultaram a
reprodução do trabalho escravo na região, sobretudo no que se refere ao acesso a esses
trabalhadores via mercado. Contudo, as informações analisadas acima permitem
acreditar que, ao menos durante a década de 1850, a economia local tenha tido uma
certa resistência contra essa tendência. Esse processo sofreu uma alteração na década de
1860, quando se deu uma grande queda no preço do gado, refletindo uma crise geral da
economia pecuário-charqueadora sulina.
631
A vinculação estrutural dos estancieiros rio-grandenses com a mão-de-obra
cativa se expressou também na forma como lidaram com a abolição da escravidão no
Uruguai. Um dos tratados celebrados após a derrota de Oribe, em 1851, previa a
extradição de todos os escravos fugidos do Brasil para o Estado Oriental, mesmo que a
escravidão já tivesse sido abolida em 1842, naquele país. Ao mesmo tempo, os
brasileiros que possuíam estâncias “do outro lado” seguiam levando para lá seus
escravos e disfarçando sua condição através da celebração de falsos contratos de
trabalho. Em 1861, como parte das medidas tomadas pelo governo do presidente
uruguaio Bernardo Berro para diminuir a força dos brasileiros na fronteira-norte
uruguaia, proibiu-se a celebração de contratos por mais de seis anos de serviço entre
patrões brasileiros e “cidadãos de cor”. Além disso, os contratos deveriam ser
celebrados na chefatura de polícia, onde o empregado era esclarecido de sua condição
de homem livre.
632
O apoio do Brasil ao opositor Venâncio Flores, do Partido Colorado,
em 1864, teve uma de suas raízes no descontentamento com essas medidas. Cada vez
mais ficava difícil reproduzir os traços da grande pecuária baseada na combinação de
trabalhadores escravos e livres e, em muitos casos, estendida sobre espaços nacionais
distintos.
Por outro lado, em alguns casos, a combinação de trabalho escravo e livre
podia se apresentar de formas variadas, em virtude de fatores conjunturais, com mais
peões livres sendo empregados nos trabalhos permanentes ou, ao contrário, com os
631
CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX, 1983. BELL, Stephen.
Campanha Gaúcha..., 1998.
632
SOUZA, Suzana Bleil; PRADO, Fabrício Pereira. Brasileiros na fronteira uruguaia: economia e
política no século XIX. 2004, p.p. 134-136. BORUCKY, Alex; CHAGAS, Karla; STALLA, Natalia.
Esclavitud y Trabajo...., 2004, p. 186.
323
escravos cobrindo toda a demanda de trabalho. Estas, porém, parecem ter sido situações
temporárias. Mesmo com todas essas dificuldades que foram surgindo ao longo do
tempo, os fatores comentados acima e a análise das contas de herança sugerem que, para
os grandes estancieiros, pelo menos até a década de 1860, o que vigia mesmo era a
busca por combinar o emprego de trabalhadores cativos e livres no costeio do gado
dentro das grandes estâncias. Mas afinal, quais eram os motivos da recorrência dessa
estrutura? Por que não se procurava cobrir todas as necessidades de mão-de-obra para o
costeio do gado exclusivamente com peões livres ou com escravos campeiros.
7.7 - Com escravos e com peões
Analisando a combinação de trabalhadores livres e escravos na estância de
“Las Vacas”, na Banda Oriental em fins do século XVIII, o historiador argentino Jorge
Gelman perguntou-se exatamente por que os estancieiros não cobriam com escravos
todas as necessidades de trabalhadores permanentes de seus estabelecimentos? No caso
da estância oriental, Gelman elencou uma série de fatores que parecem bastante
pertinentes (Gelman, 1998: 184-217). Em primeiro lugar, o risco de flutuações das
necessidades de trabalho entre os diversos anos. Bloqueios dos portos por razões de
guerra, bastante comuns naquela época, e também secas e pestes poderiam diminuir
consideravelmente os rebanhos ou suas possibilidades de comercialização dos couros,
principal sub-produto do gado naquelas paragens. Nesse caso, as necessidades de
trabalhadores regulares diminuíam e era melhor poder dispensar parte deles, o que
somente poderia ocorrer se fossem trabalhadores livres. Por outro lado, a aquisição de
escravos exigia um desembolso inicial de capital que nem todos os estancieiros podiam
ou estavam dispostos a fazer.
633
Além disso, havia os riscos inerentes ao investimento
em trabalhadores cativos: o capital investido poderia ser perdido ou debilitado por
fugas, morte e doenças. Por fim, havia uma disponibilidade de trabalhadores livres que,
apesar de estar longe de caracterizar um mercado de trabalho nos moldes capitalistas,
possibilitava uma alternativa aos escravos.
Esta interessante lista de argumentos permite propor os termos do debate
sobre o mesmo tema em Alegrete, no meado do Oitocentos. Os prejuízos causados pela
Revolução Farroupilha e pelas secas e pestes da década de 1840 fazem pensar que o
perigo da perda de parte significativa do rebanho ou de problemas para sua
comercialização, implicando na diminuição das necessidades de mão-de-obra regular,
633
Este fator foi levantado por Mário Maestri, para o caso riograndense. MAESTRI, Mário. O Cativo e a
Fazenda Pastoril no Rio Grande do Sul..., 2002.
324
fosse um fator levado em conta na província do Rio Grande do Sul. Por outro lado, a
estacionalidade das tarefas da pecuária ao longo do ano também ajuda a explicar porque
não se cobria todo o pessoal com cativos. Como vimos, durante os dias de marcação e
castração, o número de trabalhadores necessários se multiplicava em duas ou até três
vezes. Porém, mesmo quanto aos “peões por mês”, a influência da sazonalidade dos
trabalhos volta a estar presente.
Vejamos uma rápida análise dos salários pagos aos peões. A quantia de
12$000 mensais foi o maior valor pago pelo Brigadeiro Ortiz e também por Dona Ana
Guterres. Por outro lado, saltam aos olhos as diferenças dos valores das remunerações
pagas aos peões dentro do mesmo ano, na mesma estância. Na Palma, em cada ano de
1851 a 1853, foram pagos salários que variavam entre 4$000 e 12$000 mensais e, no
ano de 1854, ainda que a média salarial tenha subido, as remunerações variaram entre
6$000 e 12$000. As diferenças salariais parecem ter tido razões diversas. Em primeiro
lugar, contemplemos os valores mais baixos encontrados: 4$000 mensais pagos ao preto
forro Manoel e ao piá Antônio. Esse valor não se perpetuou, vigorando nos primeiros
meses e, depois, tendo sido aumentado, respectivamente, para 8$000 e 6$000. O que
parece ter ocorrido aqui é uma negociação onde o estancieiro pôde “testar” os serviços
do peão e, depois de 2 ou 3 meses (tempo em que muitos dos peões costumavam ir
embora ou serem dispensados), confirmando-se as habilidades do trabalhador, este teve
condições de exigir um aumento de salário para permanecer na estância.
634
O fato de
que o salário do piá Antônio foi sempre o mais baixo dentre todos os peões da estância,
se justifica em razão de sua pouca idade, como se depreende pelo fato de ser chamado
de “piá”.
635
Por outro lado, parece claramente ter havido um valor máximo que o
Brigadeiro Ortiz não se dispunha a ultrapassar. Durante aqueles três anos e meio, não se
pagou salário de mais de 12$000 mensais na Estância da Palma. Veja-se que esse foi
sempre o salário pago aos posteiros, o que confirma o fato de que o Brigadeiro vinha
tentando fixar alguém nessa função para evitar a evasão de gado e os gastos com
recrutas de reses extraviadas. Note-se, também, que todos os peões que permaneceram
um ano ou mais (o piá Antonio, o preto forro Manoel e Laureano) receberam salários
mais baixos. À exceção dos posteiros, o Brigadeiro Ortiz não pagou mais do que 8$000
mensais para nenhum peão que ficou durante o ano todo. Os maiores salários eram
634
Jonathan Brown percebeu o mesmo procedimento nas estâncias da família Anchorena, em Buenos
Aires durante a primeira metade do século XIX. BROWN, Jonathan. Historia Socioeconómica de la
Argentina, 1776-1860, 2002.
635
DEJENDEREDJIAN, Julio. Economia y sociedad em la Arcadia Criolla…, 2003.
325
pagos a peões que permaneciam na estância apenas 2 ou 3 meses.
636
É pouco provável
que o Brigadeiro tenha dispensado esses peões em razão de seus altos salários. Se fosse
assim, seria plausível esperar encontrar casos em que o peão tivesse aceitado reduzir seu
salário para permanecer na estância, o que não ocorreu em nenhuma das contas
pesquisadas.
637
A resposta mais provável pode ser encontrada nos ritmos de demanda de
trabalho da estância. Como vimos anteriormente, durante algumas épocas do ano,
precisava-se contar com um número um pouco maior de trabalhadores regulares pagos
por mês. Além dos escravos e dos peões que permaneciam por longo período,
contratava-se, então, um ou mais “peões mensais” apenas por alguns meses. A
necessidade de trabalhadores nesse período fazia com que os estancieiros se
dispusessem a pagar salários um pouco mais altos. Obviamente, isso não nega o fato de
que, em alguns casos, os peões trabalhavam alguns meses e iam embora porque tinham
suas próprias motivações para deixar a estância.
638
Essas conclusões são confirmadas pela análise dos salários pagos a 20 peões
que trabalharam nas estâncias “A Oriental” (nas margens uruguaias do rio Quarai) e
Japejú (em Uruguaiana), pertencentes a Manoel José de Carvalho, entre 1842 e 1845.
Ali, novamente encontramos o padrão de um núcleo estável e um núcleo eventual de
mão-de-obra. O núcleo estável, de novo dentro do padrão, era formado por escravos
campeiros, peões mensais que ficavam por longo tempo e peões mensais que
permaneciam apenas alguns meses. Assim como ocorreu na estância da Palma, também
nos estabelecimentos de Manoel José de Carvalho os maiores salários pertenciam aos
peões que ficavam por menos tempo. O período médio trabalhado pelos peões que
ganhavam 14$000 réis de salário mensal, não chega a 4 meses, enquanto que a média
entre os que ganhavam 10$000 foi de mais de 8 meses: mais que o dobro, portanto. No
mesmo sentido, o tempo máximo trabalhado por um dos peões que tinha salário alto foi
de 8 meses, enquanto que 47% dos peões que ganhavam salários baixos ficaram mais de
10 meses nas estâncias. Um outro aspecto que pode estar envolvido nesse fenômeno, e
que não é contraditório com essa explicação, é que, dentre os peões que ficavam apenas
636
A exceção era o negro Torres, mas ele trabalhou em 1851, quando os recrutamentos para a Campanha
contra Oribe e Rosas estavam no auge e a dificuldade em se conseguir peões pode ter elevado os salários.
637
Isso ocorreu no caso da Estância da Música: CESAR, Guilhermino. O Conde de Piratini e a Estância
da Música, 1978, p. 44.
638
É uma estrutura lembra o que Juan Carlos Garavaglia afirmou para a Campanha de Buenos Aires em
fins do período colonial. A entrada e saída de peões era governada, em linhas gerais, pelos ritmos e
necessidades laborais das estâncias, ainda que as necessidades e estratégias dos peões também as
influenciassem. Em alguns casos, dependendo das conjunturas, podia acontecer das estâncias não
conseguirem os peões necessários para satisfazer suas necessidades.
GARAVAGLIA, Juan Carlos.
Pastores e Labradores..., p. 354.
326
alguns meses na estância, estivessem alguns que também fossem domadores, e que se
dedicariam também a essa tarefa no tempo que ali permanecessem. Como já foi dito, os
domadores costumavam receber um salário mais alto.
Assim, como outros autores já disseram, cobrir toda a necessidade de mão-
de-obra, inclusive a da marcação e castração (que duravam apenas uma ou duas
semanas), com escravos campeiros implicaria em ter muito mais escravos do que se
precisava no restante do tempo. Mas também não era aconselhável cobrir toda a mão-
de-obra estável com escravos, porque durante uma época do ano (no outono, no inverno
ou na primavera, dependendo da estância) era preciso aumentar o número de
trabalhadores, o que se fazia contratando um ou mais peões por 2 ou 3 meses. No
restante do ano, eles não eram necessários. Assim, parece perfeitamente compreensível
uma estrutura de mão-de-obra que combinasse escravos campeiros trabalhando o ano
todo, peões mensais contratados por 2 ou 3 meses na época de maior demanda laboral, e
peões por dia/tarefa para as épocas de pico da necessidade trabalhadores, como
marcação e castração.
Porém, os estancieiros também contratavam alguns peões que trabalhavam o
ano inteiro: esses não poderiam ser substituídos por escravos? Essa foi a situação
encontrada por Helen Osório para o período colonial e parece ter lógica.
639
Isso podia
acontecer em algumas estâncias na Fronteira, no período estudado. Foi o caso, por
exemplo, da já analisada estância de Dona Ana Guterres, em que apenas o capataz e o
escravo campeiro ficaram o ano todo, houve peões que vieram e ficaram alguns meses e
outros que vieram apenas para a castração e marcação. No entanto, a conta de Ortiz, que
já foi analisada aqui e também as de Ferreira Braga e Manoel José de Carvalho, já
referidas, apresentam peões que ficam o ano inteiro, ao lado de escravos campeiros.
Essa é uma questão para a qual é possível, apenas, formular hipóteses que
precisam de comprovação em novos estudos. Vejamos: lembremos que os estancieiros
estavam conseguindo negociar de forma a pagar salários mais baixos a esses peões que
ficavam por mais tempo nas estâncias. Como veremos, eles tamm conseguiam que
esses peões recebessem uma parte maior de seus salários em mercadorias, o que
diminuía ainda mais os custos dessa mão-de-obra. Retornemos à comparação entre o
preço dos cativos e os salários dos peões, feita na tabela “7.8”. Se tomássemos apenas o
salário dos que ficavam o ano todo na estância, o gasto anual com um peão entre 1851 e
1854 cairia mais de 25%: de 106$000 para 78$000. Ao invés do preço de um escravo
639
OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da Estremadura Portuguesa
na América: Rio Grande de São Pedro, 1737-1822..., 1999.
327
jovem equivaler a 9 anos de trabalho de um peão, equivaleria a 12. Talvez esses fatos
fizessem com que cobrir aquelas demandas com aquele tipo de peão livre aparecesse
como mais compensador aos estancieiros.
Então, porque não cobrir toda a demanda de trabalhadores “do ano todo”
com peões livres? Porque não havia tantos homens dispostos a se assalariar por um
valor tão baixo permanecendo o ano inteiro. A oferta de trabalhadores livres não era tão
ampla e regular que pudesse permitir a substituição dos escravos campeiros por peões
que ficavam por longo tempo, recebendo baixos salários. A disponibilidade de
trabalhadores livres, apesar de sempre ter existido, nunca alcançou vastas proporções.
Como já foi dito e como veremos em detalhe no capítulo “8”, a maior parte deles não se
encaixava no conceito de trabalhadores “livres” no sentido de despossuídos de todos os
meios-de-produção. Não era uma massa de proletarizados formando um exército de
mão-de-obra nos moldes capitalistas. Alguns precisavam se assalariar por baixos
valores e ficar o ano inteiro na estância, mas outros tinham possibilidades de
sobrevivência diversificada, que incluíam o acesso a recursos e a elaboração de
estratégias familiares. Isto lhes permitia assalariarem-se por pouco tempo, ganhando
mais e percebendo uma parte maior de seus vencimentos em moeda. A existência de
escravos campeiros diminuía a necessidade de trabalhadores, possibilitando que parte
do trabalho regular “do ano todo” fosse coberto por esses peões a salários menores.
640
Mas, se não houvesse escravos, não seria possível cobrir todas as necessidades de
trabalhadores com peões livres a custos viáveis.
Além disso, aquela não era uma situação livre de solavancos conjunturais.
Em muitas ocasiões, sobretudo durante as guerras, os peões ficavam ainda mais raros e
seu trabalho, mais caro. Os recrutamentos militares drenavam grande parte dessa mão-
de-obra potencial, durante longos períodos. Em 1858, a Câmara Municipal de Alegrete
respondia à Presidência da Província sobre os possíveis motivos da carestia
experimentada pelos gêneros alimentícios naqueles anos, afirmando que, entre outros
aspectos, ela seria minorada: “... sobretudo deixando de ser chamado o povo em massa
para o serviço militar especialmente na ocasião das colheitas e quando o serviço das
640
A importância de um núcleo de trabalhadores escravos, devido à inexistência de um mercado de
trabalho livre consolidado na primeria metade do século XIX, no Rio Grande do Sul, já havia sido
apontada por Paulo Afonso Zarth e por Mário Maestri. Contudo, os dados trabalhados aqui não me
permitem concordar com Maestri quando afirma que a mão-de-obra escrava era dominante nas atividades
“mais pesadas” mas tinha caráter subordinado nas lides da pecuária: “os criadores sulinos proprietários de
grandes fazendas constituíram núcleos de trabalhadores escravizados em suas fazendas, que lhes garantia
mão-de-obra permanente, de forma dominante nas atividades mais pesadas; de forma subordinada nas
tarefas pastoris.”MAESTRI, Mário. O Cativo e a Fazenda Pastoril sul-riograndense..., 2002, p. 115. Ver
ZARTH, Paulo Afonso. Do Arcaico ao Moderno..., 2003.
328
estâncias demanda maiores cuidados...”.
641
No inventário realizado por ocasião da morte
de sua esposa, em 1855, Manoel José Flores pedia que fossem lançados em sua meação
os três escravos do casal:
“por lhe serem necessários para o costeio de sua Estância, atenta a escassez que
há de peões que se queiram justar para esse serviço, e mesmo porque os
contínuos destacamentos não deixam pessoa livre alguma nas estâncias, que
estejam no caso de pegarem em armas, embora não tenham sido qualificadas,
ou nas circunstâncias de não o ser.”
642
Esse é um caso em que a mão-de-obra de uma estância de médio porte era
formada apenas por escravos, mas a declaração do viúvo inventariante deixava claro
que o ideal era agregar a ela peões livres, o que não estava sendo possível em razão dos
contínuos recrutamentos. Em seu trabalho sobre Entre-rios, na primeira metade do
século XIX, Roberto Schmitt demonstrou que a expansão pecuária precisava conviver
com uma presença da guerra ainda maior do que a existente no Rio Grande do Sul. Ali,
os estancieiros deixaram de contar expressivamente com a mão-de-obra escrava já na
década de 1820, o que agravou ainda mais a situação e exigiu uma forte intervenção das
autoridades no que se refere à negociação e à busca de certo grau de consenso para
compatibilizar a guerra e a produção.
643
Esses problemas de falta de mão-de-obra em
razão dos recrutamentos eram uma constante em todo esse espaço fronteiriço platino,
onde as guerras teimavam em ressurgir seguidamente.
644
Em terras brasileiras, a escravidão perdurou por mais tempo do que no
Estado Oriental ou nas províncias do “litoral” argentino. Essa permanência dotava a
pecuária rio-grandense de um pouco mais de elasticidade para resistir à irregularidade
da oferta de mão-de-obra livre.
645
Talvez por isso, conscientes da importância da
escravidão para seu sistema produtivo, a maioria dos líderes farroupilhas jamais foram
favoráveis à abolição da escravidão na República Rio-grandense. Deve-se ressalvar,
porém, que os senhores de escravos não podiam estar tranqüilos nos períodos de
641
“Correspondências das Câmaras. Correspondência Expedida. Alegrete. M 05, N 936, Data
10.01.1858.”
642
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 09, N. 129, A. 1854. APRS”.
643
SCHMITT, Roberto. Ruína y resurrección en tiempos de guerra…, 2004, 113-115.
644
Para a província de Buenos Aires, ver: GELMAN, Jorge. Las condiciones del crecimiento estanciero
en el Buenos Aires de la primera mitad del siglo XIX – Trabajo, salarios y conflitos en las estancias de
Rosas, 1999, p. 116.
645
Em seu trabalho sobre Corrientes, outra província argentina vizinha ao Rio Grande, José Carlos
Chiaramonte demonstrou como a Lei de “Libertad de Vientres”, de 1813, fazia com que a população de
escravos houvesse diminuído muito nos campos, nas décadas de 1820 e 1830. Ainda assim, o autor
ressalva que alguns produtores rurais compravam escravos clandestinamente a partir do Rio Grande do
Sul. CHIARAMONTE, José Carlos. Mercaderes del Litoral: economía y sociedad en la provincia de
Corrientes, primera mitad del siglo XIX., 1991, p.p.118-119.
329
guerras. Estas atuaram como uma possibilidade de liberdade para escravos que fugiam
de seus senhores e engajavam-se nos exércitos em luta no Estado Oriental ou mesmo
em um dos exércitos que combatiam durante a Guerra dos Farrapos, para assim serem
protegidos e escaparem ao cativeiro. Retornarei a este tema no próximo capítulo.
646
Assim, havia um contingente de homens livres disposto a assalariar-se nas
estâncias, mas seu número e suas características estiveram longe de bastar para a criação
de um mercado de trabalho nos moldes capitalistas na região.
647
Isso ocorria, sobretudo,
porque ainda havia a possibilidade do acesso a recursos produtivos para larga parte da
população da Fronteira, em meados do século XIX, mesmo que já estivesse em curso
um processo de redução dessas possibilidades, que se radicalizaria no último quartel
daquele século. Como vimos, os inventários de Alegrete nas décadas de 1830 e 1840
revelam uma presença importante de produtores sem terras, em geral criando gado “a
favor”, como agregados nos campos dos grandes proprietários. Ainda que precária, essa
era uma forma de acesso à terra e a uma produção com relativo grau de autonomia.
Estes pontos serão vistos, em detalhe, no capítulo “8” desta tese. Vejamos, por fim, os
meios pelos quais eram saldados os salários dos peões livres nas estâncias.
7.8 - Dinheiro, tecidos, erva, fumo e cachaça
A maioria das contas de estâncias referidas neste capítulo não trazem
qualquer especificação sobre os meios de pagamento dos salários devidos aos peões.
Constam apenas os valores mensais, estipulados em mil-réis. Esse silêncio não autoriza
a pensar que esses valores eram pagos sempre em dinheiro. Os fragmentos de contas
que consegui reunir não são extratos de livros contábeis, mas organizações de débitos e
haveres feitas para serem anexadas aos inventários. Assim, se justifica plenamente que
somente os montantes dos gastos com salários estejam discriminados e não suas formas
concretas de pagamento. Além do mais, a exigüidade das quantias em dinheiro
presentes nos inventários de grandes estancieiros corrobora as inúmeras queixas que os
contemporâneos faziam sobre a escassez de meios metálicos de pagamento.
646
PETIZ, Silmei Santana PETIZ, Silmei Santana. Buscando a Liberdade: as fugas de escravos da
Província de São Pedro para o além-fronteira (1815 – 1851), 2001. MOREIRA, Paulo Roberto. A
Liberdade Fardada: escravidão e alforria na Guerra do Paraguai, 2002.
647
Em seu trabalho sobre a campanha de Buenos Aires em fins do período colonial, Juan Carlos
Garavaglia concluiu que, não obstante a mão-de-obra assalariada fosse importante nas estâncias, ainda
não havia um autêntico mercado de trabalho, como também não havia um autêntico mercado de terras,
fenômenos que, ademais, estavam ligados. Ainda assim, não se pode associar qualquer das formas de
trabalho existentes naquele mundo com a servidão. GARAVAGLIA, Juan Carlos. Pastores y labradores
de Buenos Aires, 1999, p.p. 354-355.
330
Em contrapartida, os únicos documentos onde aparece uma descrição dos
meios de pagamento de peões encontram-se nos acertos de contas de Manoel José de
Carvalho e seus filhos, estudados no capítulo “6”. Essas contas foram muito mais
detalhadas que todas as outras em especificar como cada herdeiro empregou recursos
próprios para atender às necessidades cotidianas das estâncias de seu pai e vice-versa.
Na conta de José João de Carvalho, filho e administrador das estâncias do velho
Manoel, constam listas de salários pagos a diversos peões que se empregaram nas
estâncias de “Japejú” e “A Oriental”, embora não fique claro quais trabalharam em uma
e quais em outra.
648
Constam os dias de entrada e saída de cada peão e, por sorte, as
formas de pagamento de cada um desses salários.
Não é aconselhável generalizar a partir apenas de um documento. Tanto mais
se considerarmos a época em que os registros foram feitos: eles cobrem um período
quase 4 anos que vai de fevereiro de 1842 a dezembro de 1845: os anos finais da Guerra
dos Farrapos. Bem se pode pensar que presença importante de mercadorias encontrada
nesses pagamentos estaria sofrendo uma influência do período de guerra, onde talvez
houvesse uma escassez ainda maior de dinheiro em meio metálico. Entretanto, esse
argumento é contrabalançado ao percebermos que, justamente em razão da guerra, era
provavelmente ainda maior a escassez de mão-de-obra livre, naqueles anos. Se o hábito
fosse pagar em moeda, é difícil pensar que os Carvalho tivessem conseguido manter
tantos peões recebendo por 4 anos uma grande parte de seu salário em mercadorias.
Outros estudos precisam ser feitos, para outras décadas e em outros estabelecimentos,
para dimensionar melhor esses dados. Todos os fatores colocados aqui, porém, indicam
que a praxe devia ser mesmo ser um pagamento que se fazia parte em dinheiro, parte em
mercadorias. Creio que seja lícito ficar com essa hipótese, ela é coerente com as
características daquela economia de baixa liquidez, onde o crédito assumia papel
principal nas transações. Além disso, esse era exatamente o sistema de pagamento que
se praticava, na mesma época, na província argentina de Corrientes, separada da
estância de Japejú apenas pelo leito do Rio Uruguai.
649
Os 20 trabalhadores que terão suas contas analisadas eram “peões por mês”,
6 dentre eles saíram e, depois, tornaram a entrar naquelas mesmas estâncias. Três deles
estiveram nas estâncias por duas vezes. Outros dois foram se empregar ali por três
vezes. Totalizavam, assim, um total de 27 acertos de contas.
648
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes, M. 21, N. 258, A. 1867. APRS.”
649
CHIARAMONTE, José Carlos. Mercaderes del Litoral, 1991, p.p. 109-111.
331
A dinâmica dos pagamentos ocorria da seguinte forma. Os peões iam
cumprindo seu trabalho e cada mês trabalhado era anotado como “vencido”. Porém,
nada era pago nesse momento, o valor do salário mensal apenas era anotado como
crédito para o peão. Enquanto isso, os peões iam retirando mercadorias e, mais
eventualmente, dinheiro com o administrador. O acerto de contas se fazia quando o
peão queria ir embora ou era dispensado. Poderia também acontecer em meio à sua
permanência, embora isso fosse mais raro. No momento do acerto de contas, era
contraposto o que o valor total referente aos meses “vencidos” pelo peão, de um lado e,
de outro, tudo que ele havia retirado e que era chamado pelo administrador de
“adiantamentos”. Essa denominação demonstra muito bem como era pensada a relação
entre patrões e peões. Apesar de constar de um valor estipulado por mês, o trabalhador
apenas adquiria verdadeiro direito a receber seu salário quando a relação entre eles se
encerrasse, ou quando conseguisse negociar o acerto antes desse prazo. Quando do
acerto de contas, a diferença era paga pela parte que tivesse ficado devendo.Em alguns
casos, além de mercadorias e do dinheiro, dentro dos “adiantamentos” tamm havia
compras que os peões faziam nas vendas próximas e cuja dívida era assumida pelo
patrãoO gráfico “7.D” traz o percentual de cada um desses fatores no total pago aos
peões dos Carvalho.
GRÁFICO 7.D - PERCENTUAIS DOS MEIOS DE PAGAMENTO NOS SALÁRIOS DOS PEÕES
(ESTÂNCIAS DE “JAPEJÚ” E “A ORIENTAL”, 1842-1845)
Dinheiro
"adiantado"
16%
Diferença
27%
Mercadorias
36%
Pago a
comerciantes
18%
Dívida
anterior
3%
Fonte: “Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, M. 01, N. 07, A. 1853-7. APRS.”
A maior parte dos valores foi paga em “adiantamentos”. Dentre eles, o mais
importante eram as mercadorias retiradas diretamente com o administrador, depois as
332
adquiridas pelos peões no comércio local cuja dívida foi assumida pela estância e, por
fim, a retirada de dinheiro com o administrador. Fazendo, agora, um recorte vertical,
pode-se perceber que as parcelas pagas em dinheiro (dinheiro “adiantado” + diferença)
atingiram, em média, 43% do total pago, enquanto que os meios não-monetários
(mercadorias + pagamentos a comerciantes + dívidas anteriores dos peões com a
estância) chegaram a 57%. Por fim, somente 3% do valor “recebido” foi referente à
dívidas anteriores: casos em que os peões haviam trabalhado uma outra vez na estância
e haviam ficado devendo no acerto final. Esse valor, então, era colocado ao lado dos
“adiantamentos” na sua nova conta.
Esses números sugerem uma consonância com o que já disseram outros
autores para economias pecuárias das regiões platinas vizinhas.
650
Estudando Entre-rios
em fins do período colonial, Julio Djenderedjian mostrou que a região era dividida
geograficamente quanto aos meios de pagamento dos salários. No sul, mais vinculado
ao mercado atlântico de couros, os pagamentos em moeda eram dominantes e cada vez
mais expressivos. Por sua vez, no norte, mais vinculado à Corrientes e ao Paraguai, os
pagamentos eram feitos, em grande parte, em produtos. Contudo, o autor afirma que
eles eram oferecidas a preço de mercado, já que também havia a possibilidade dos peões
comprarem mercadorias nas vendas locais e da dívida ser assumida pela estância. As
eventuais dívidas dos peões para com a estância não tinham o condão de prender os
trabalhadores no estabelecimento.
651
Por sua vez, José Carlos Chiaramonte, estudou contas muito parecidas com a
que trabalhamos aqui, para Corrientes, na primeira metade do século XIX. O autor
concluiu que, apesar das mercadorias entregues aos peões terem um certo “ágio” em seu
valor, elas estavam muito longe de propiciar a retenção de mão-de-obra, como ocorreu
nas “haciendas” de parte da Nova Espanha, a partir de fins do século XVI. Os
montantes referentes às entregas de mercadorias não eram tão vultuosos que gerassem
uma dívida de valor muito maior do que seus salários.
652
Nas estâncias dos Carvalho, em apenas 7 casos os acertos geraram dívidas
para os peões, num universo de 27 acertos de contas. Em apenas um deles a diferença
650
Os próprios estudos sobre peonagem por dívidas na Nova Espanha têm fomentado discussões que
apontam para interpretações diversas. A idéia tradicional de que se tratava de uma forma coercitiva de
trabalho tem sido relativizada desde a década de 1980 por estudos que apontam a diversidade dos tipos de
dívidas que regiam essas relações. Elas iriam desde meios mais coercitivos, em alguns casos, para outros,
onde o mercado tinha um papel preponderante. Para uma rápida revisão desses debates, ver: DORE,
Elizabeth. "Debt Peonage in Granada, Nicaragua, 1870-1930: Labor in a Noncapitalist Transition". The
Hispanic American Historical Review, Vol. 83, No. 3. (Aug., 2003), p.p. 521-559. Van Young
651
DJENDEREDJIAN, Julio. Economia y Sociedad em la Arcadia Criolla...,1993, p. 34.
652
CHIARAMONTE, José Carlos. Mercaderes del litoral…, 1991, p. 112.
333
pró-estância superou o valor de um mês de salário do peão, chegando a duas vezes: o
peão Salvador recebia um salário de 14$000 e ficou devendo 28$380. Em todos os
outros casos os valores foram muito pequenos. Os salários médios foram de 10$000 e,
os valores das dívidas pró-estância variaram entre $300 e 8$100. Assim, parece que,
também, no caso analisado aqui, os adiantamentos não eram feitos com intuito de
“prender” a mão-de-obra. Eles diziam respeito mais a uma forma de pagamento
adequada a uma economia com pouca circulação monetária e a uma maneira de tentar
diminuir custos. Por outro lado, também deve ser considerado que as dívidas não
prendiam porque os peões não se endividavam a ponto de perderem sua autonomia. A
situação lhes era desfavorável, mas eles não eram meros instrumentos passivos das
necessidades das estâncias. Tinham suas formas de jogar com aquele contexto e
conseguiam ampliar suas margens de vantagens.
Por outro lado, não é possível saber se essa quantidade majoritária de
pagamentos em produtos que eram retirados diretamente na estância se repetia na
maioria dos outros estabelecimentos pecuários. Lembremos que, como vimos no
capítulo “6”, Manoel José de Carvalho tinha um genro comerciante que supria as
estâncias com mercadorias. Elas eram compradas a grosso e entregues aos peões pelo
preço “de retalho”. Isso implicava que, mesmo que o estancieiro não cobrasse mais caro
em relação ao comércio de varejo, ele conseguia reduzir seus custos com pagamentos de
salários, por meio desse procedimento. O fato de que os peões podiam comprar nas
vendas locais e terem suas dívidas assumidas pelos estancieiros, possibilidade que
Djenderedjian identificou também para Entre-rios em fins do período colonial, precisa
ser refletido. Ele talvez estivesse demonstrando que os peões tinham certa liberdade de
escolha. No entanto, não esqueçamos que era o estancieiro quem decidia se assumiria as
dívidas desses peões ou não. Uma hipótese é a de que ele apenas as assumisse quando
estivesse em falta de mercadorias. Porém, isso parece pouco provável, já que os casos
em que há esse tipo de pagamento se distribuíram ao longo de todo o período coberto
pela conta. O mais provável é que fosse um tratamento privilegiado conferido apenas
alguns peões. Ele apareceu apenas em 7 dos 27 acertos de contas. Com exceção de um
caso, todos os outros se referiam a peões que ficaram por muito tempo na estância: entre
8 e 20 meses. Talvez esse fosse o tempo necessário para conquistar a confiança do
administrador e negociar com ele esse tipo de regalia.
As mercadorias entregues como “adiantamento” aos peões envolviam
majoritariamente tecidos. Como se pode ver na tabela “7.10”, eles preenchiam,
sozinhos, mais de 80% dos valores pagos aos peões em mercadorias e foram recebidos
334
em quase 70% dos casos. Depois vinham prazeres como o mate, o fumo e a cachaça.
Um terceiro item com alguma relevância foram os instrumentos de trabalho, sobretudo
arreios como lombilhos, freios e estrivos. Na rubrica “outros” aparecem trigo, sal e
terneiros, fornecidos raramente. O importante, aqui, é confirmar o que já havia sido dito
acima: albergagem e alimentação eram fornecidos pela estância sem estarem incluídos
nos valores dos salários. Eram considerados uma obrigação dos patrões e acabavam por
tornar o trabalho assalariado, na verdade, mais caro do que se pode estimar apenas pelo
valor nominal dos salários.
TABELA 7.7 - PERCENTUAIS DOS PRODUTOS NO PAGAMENTO EM MERCADORIAS NOS
SALÁRIOS DOS PEÕES (ESTÂNCIAS DE “JAPEJÚ” E “A ORIENTAL”, 1842-1845)
% do valor recebido
em mercadorias
Contas nas quais aparece
o produto
Tecidos
82,9% 18
Erva-mate, fumo e cachaça
11,1% 11
Instrumentos de trabalho
4,4% 9
Outros
1,5% 3
TOTAL 100% 27
Fonte:
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, M. 01, N. 07, A. 1853-7. APRS.”
Esses dados indicam que uma grande parte da relação que os peões poderiam
ter diretamente com o mercado era, na verdade, mediada por seus patrões: casa, comida,
parte do vestuário, de seus prazeres e, eventualmente, de seus instrumentos de trabalho.
Lembremos que, no caso estudado, o total da remuneração dos peões que era paga em
mercadorias retiradas na estância atingia o relevante percentual de 36%. Os peões que
ficavam por mais tempo nas estâncias, eram os que se tornavam mais dependentes dessa
mediação feita por seus patrões. Como podemos ver no gráfico “7.E”, os peões que
ficaram mais de 5 meses receberam a maior parte de seus vencimentos em mercadorias
e pagamento a comerciantes, enquanto que aqueles que ficaram até 5 meses receberam
maiores percentuais em dinheiro “adiantado” e em dinheiro como “diferença”.
Em primeiro lugar, é lógico que os peões que permaneciam por mais tempo
recebessem uma parcela maior em mercadorias, porque o momento de acertarem suas
contas e poderem, assim, receber a diferença em dinheiro demorava muito mais. Além
disso, o administrador das estâncias estudadas relutou em dar dinheiro “adiantado”,
preferindo “adiantar” mercadorias. Nesse sentido, é possível imaginar que, para peões
que tivessem uma habilidade especial, como ser domador, por exemplo, trabalhar por
quatro meses em duas estâncias fosse melhor do que trabalhar oito meses na mesma..
335
Por sua vez, o fato de que os que ficaram pouco tempo também receberam mais
dinheiro “adiantado” do que os peões mais estáveis, é coerente com a idéia de que iam à
estância em uma estação de alta demanda laboral, quando os estancieiros estavam um
pouco mais fracos na negociação dos pagamentos.
GRÁFICO 7.E - MEIOS DE PAGAMENTO DOS PEÕES EM RELAÇÃO AO TEMPO DE
PERMANÊNCIA NA ESTÂNCIA (ESTÂNCIAS DE “JAPEJÚ” E “A ORIENTAL”, 1842-1845)
0,0%
5,0%
10,0%
15,0%
20,0%
25,0%
30,0%
35,0%
di
nh
ei
r
o adi
a
nt
a
do
dife
r
e
n
ça
dívida anterior
m
ercad
o
r
i
as
pa
g
o
a
co
m
erci
a
nt
es
meios de pagamento de salários
até 5 meses
mais de 5 meses
Fonte: “Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, M. 01, N. 07, A. 1853-7. APRS.”
Como vimos anteriormente, os peões que iam às estâncias apenas por poucos
meses, em geral, recebiam salários mais altos, pois supriam uma alta demanda
estacional. Agora, acabamos de conhecer outra vantagem que eles levavam em relação
aos peões mais estáveis: recebiam uma parte maior de seus salários em dinheiro e
ganhavam em independência com relação a seus companheiros que permaneciam por
longos períodos. A desvantagem ficaria por conta da “instabilidade” desses trabalhos.
Para a maioria desses peões de poucos meses isso, porém, não parece ter sido um
problema. Como veremos no próximo capítulo, a maioria deles estava inserida em uma
unidade familiar que desempenhava a produção autônoma. O trabalho estacional como
peão era uma diversificação usada estrategicamente por eles.
336
Capítulo 8 - “Há gente de todo tipo”
Na visão clássica do Rio Grande do Sul oitocentista, os peões eram vistos
como “homens soltos”, sem vínculos sociais e familiares estáveis, através dos quais
pudessem ser criadas demandas próprias e estratégias para concretizá-las. Eles seriam
recrutados entre uma população volante de homens vagos. Estes seriam, em geral,
mestiços de índios e brancos, e andariam de estância em estância, empregando-se em
um trabalho que não lhes era penoso, ao contrário, era quase um divertimento, em razão
de seu gosto pelas correrias e embates com o gado a campo aberto.
653
Esses sujeitos
seguiriam os estancieiros nas guerras devido a seu sentimento patriótico ou de lealdade
para com seus patrões.
Essa imagem romântica foi contestada pela historiografia das décadas de
1970 e 80, quando se apontou que foi a concentração de recursos em poucas mãos que
forçou esses homens a empregarem-se nas estâncias. O que fazia com que seguissem
seus patrões na guerra seria, justamente, a situação de grande dependência em que se
encontravam. Em um importante artigo que desmistificou a idéia da pecuária extensiva
como uma “produção sem trabalho”, Décio Freitas chegou a afirmar, numa frase de
efeito, que “o gaúcho não era um folgazão, como se lhe apregoa – era um desgraçado,
um pobre diabo sem eira nem beira”.
654
Por sua vez, Berenice Corsetti, Sandra
Pesavento e Mário Maestri discordaram de Freitas sobre a existência de um capitalismo
pastoril no Rio Grande do Sul do século XIX. Empregando majoritariamente fontes
impressas, avançaram no estudo do tema, apontando a inexistência de um mercado de
653
OLIVEIRA VIANA, Populações meridionais do Brasil, 1974, GOULART, Jorge Salis. A Formação
do Rio Grande do Sul., 4ª. ed., 1984. CESAR, Guilhermino. Ocupação e diferenciação do espaço, 1979.
654
FREITAS, Décio. O Mito da Produção sem Trabalho, 1980, p. 9.
337
trabalho livre, nos moldes capitalistas, na pecuária durante a primeira metade do século
XIX.
655
Tais autores apontaram as formas mistas de remuneração, que envolviam tanto
pagamento monetário como em produtos e, em alguns casos, permissão para o
arranchamento como agregado. Eles salientaram a possibilidade de acesso aos meios de
subsistência por parte da população, porém, atribuíram esse fenômeno à existência de
gado alçado e à dificuldade de vigilância nas estâncias. E insistiram no caráter volante
dos homens livres pobres.
Essas obras trouxeram uma grande contribuição, ao fazerem a crítica da
visão anterior, apontando as relações de dominação que, no discurso tradicional, tinham
ficado escondidas sob a capa da “democracia sulina”. Contudo, a idéia de que os peões
eram “homens soltos”, sem maiores vínculos sociais e familiares, continuou firme
também nessa historiografia. A diferença era que, ao invés de uma opção devida a seu
“amor à liberdade”, isso se daria em razão de um sistema de opressão tão poderoso que
anularia sua capacidade de construir laços sociais estáveis e significativos. Seu refúgio
de resistência encontrava-se mais na itinerância e no crime do que na criação de
estratégias de sobrevivência que envolvessem relações familiares relevantes.
Curiosamente, a visão de uma anomia social entre os livres pobres da Campanha
perpetuou-se mesmo em visões antagônicas.
656
Paulo Afonso Zarth trouxe mais uma contribuição a esse debate quando
demonstrou que as áreas florestais do centro e do norte do Rio Grande do Sul não
estavam desertas à espera do braço imigrante. Ao contrário, já que, em um primeiro
momento, ficaram relativamente livres da sanha apropriadora que se abateu sobre as
áreas de campos, os “matos” possibilitaram a produção autônoma para parte da
população que não haviam se tornado estancieiros. Ali se instalaram famílias que
praticavam a agricultura de alimentos e, em algumas áreas, o extrativismo da erva-mate.
Zarth demonstrou como o processo de transição do trabalho escravo para o livre, na
pecuária, esteve ligado à expropriação desses “lavradores nacionais”. Um processo onde
655
CORSETTI, Berenice. Estudo da Charqueada Escravista Gaúcha, 1983. MAESTRI, Mario. O
Escravo no Rio Grande do Sul. A Charqueada e a Gênese do Escravismo Gaúcho..., 1984. _____. O
cativo e a fazenda pastoril sul-riograndense, 2002. PESAVENTO, Sandra. República Velha Gaúcha:
frigoríficos, charqueadas, criadores, 1980.
656
Nesse sentido, é impossível deixar de notar a semelhança desse contexto historiográfico para com o
que aconteceu com a análise da escravidão brasileira, algumas décadas antes. O grupo da escola
sociológica paulista, nucleado em torno de Florestan Fernandes, desempenhou uma obra importantíssima
sobre o tema da escravidão (na qual se inclui o livro de Fernando Henrique Cardoso sobre a escravidão no
Rio Grande do Sul). Porém, buscando ressaltar o poder desumanizador do cativeiro, acabaram por
considerar que ele impediria de todo a formação de laços familiares estáveis e a construção de projetos
conjuntos nas senzalas. Uma avaliação profunda e erudita sobre o tema está em: SLENES, Robert. Na
Senzala uma Flor flor – esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil, sudeste,
século XIX, 1999, p.p. 28-68.
338
a valorização das terras florestais, ocorrida em virtude da instalação de núcleos
coloniais imigrantes, cumpriu importante papel. Apesar de aprofundar sua investigação
na área do Planalto (centro-norte do Rio Grande do Sul) e na segunda metade do século
XIX, a ênfase que o autor deu a essa produção familiar como um fator a contribuir para
a não existência de um mercado de trabalho capitalista foi uma novidade relevante no
que diz respeito a toda a província, ao longo de todo o século XIX.
657
Após seus
trabalhos, outros autores elaboraram estudos monográficos sobre diferentes regiões da
província, demonstrando a existência de lavradores e de pequenos criadores em outros
municípios.
658
Por sua vez, em seu estudo sobre as transformações na pecuária da
Campanha entre 1850 e 1920, Stephen Bell analisou rapidamente uma conta de estância.
O trema dos trabalhadores livres não ganhou a profundidade que outras questões
receberam no texto. Ali, ele não foi além da constatação da existência de peões
regulares e eventuais.
659
Por outro lado, analisando um censo agrário elaborado em
1858, pude constatar a importância do trabalho familiar para as unidades dos pequenos
criadores de gado. Nessa oportunidade, investiguei a difusão do trabalho cativo entre
criadores de gado de diferentes envergaduras econômicas e sua combinação com
trabalho livre e familiar, em meados do século XIX, na Fronteira e nas Missões.
660
Vinculei essa necessidade de escravos à não-existência de um mercado de trabalho
livre, nos moldes capitalistas, e procurei mostrar que elas estavam relacionadas com a
possibilidade da produção familiar, não apenas na agricultura, mas também na pecuária
de pequeno porte. Essa era uma percepção que os historiadores argentinos já haviam
tido para o Prata e que Helen Osório apontara para o Rio Grande do Sul do período
colonial.
661
Em trabalho recente, comparando as décadas de 1830 e 1870 Graciela
Garcia demonstrou a redução da tolerância dos grandes proprietários com produtores
657
ZARTH, Paulo Afonso. História Agrária do Planalto Gaúcho, 1997. _____. Do Arcaico ao Moderno:
o Rio Grande do Sul agrário do século XIX, 2002.
658
FARINATTI, Luís Augusto. Sobre as Cinzas da Mata Virgem: os lavradores nacionais na província
do Rio Grande do Sul (Santa Maria: 1845-1880), 1999. FOLETTO, Arlene Guimarães. Dos Campos
junto ao Uruguai aos Matos de Cima da Serra: paisagem agrária e estrutura produtiva em São Patrício
de Itaqui (1850-1889), 2003. CHRISTILINO, Cristiano Luis. Estranhos em seu próprio chão: o processo
de apropriações e expropriações de terras na província de São Pedro do Rio Grande do Sul (o Vale do
Taquari no período de 1840-1889), 2004.
659
BELL, Stephen. Campanha Gaúcha: a brazilian ranching sistem, 1850-1928, 1998, p.p.44-47.
660
FARINATTI, Luís Augusto. Um Campo de Possibilidades: notas sobre as formas de mão-de-obra na
pecuária (Rio Grande do Sulséculo XIX), 2003.
661
GELMAN, Jorge. Campesinos y estancieros. Una región del Rio de la Plata a fines de la época
colonial, 1998. GARAVAGLIA, Juan Carlos. Pastores y Labradores de Buenos Aires: una historia
agraria de la campaña bonaerense (1700-1830). OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e
comerciantes na constituição da Estremadura Portuguesa na América, 1999.
339
arranchados em suas terras. A autora relacionou esses processos com a crise do trabalho
escravo e com a crescente necessidade de substituição dessa mão-de-obra.
662
Na esteira desta trajetória historiográfica, este capítulo será dedicado a
elaborar uma rápida análise dos subalternos da Campanha. Esta não é uma tese sobre
eles, mas creio que um estudo sobre elites não pode deixar de fazer, ao menos, uma
caracterização geral dos outros grupos sociais. Afinal, a elite, para manter-se enquanto
tal, para reproduzir sua dominação, precisava interagir com um variado estrato de
populações que agiam de acordo com lógicas próprias. Assim, não tive a pretensão de
ser exaustivo em nenhum dos pontos tratados aqui: apenas procurei abordar alguns dos
principais traços do processos históricos ocorridos com esses grupos, estudar ao menos
algumas de suas demandas e estratégias, e apontar possibilidades de estudos futuros;
estes, sim, mais profundos. Parto dos peões livres, buscando inseri-los no contexto dos
grupos desfavorecidos de Alegrete. Creio que a utilização de fontes até agora pouco
empregadas, como a qualificação de testemunhas em processos criminais e os registros
contábeis de estâncias podem trazer mais clareza a alguns pontos do debate resenhado
acima. O estudo dos peões leva a uma análise da pequena produção familiar onde, não
raro, eles estavam inseridos. Por fim, abordo rapidamente a situação de escravos e
libertos, personagens que, como vimos, eram essenciais na dinâmica daquela sociedade
e economia.
8.1 - O castelhano Reis, o negro Joaquim e o índio Maneco: um perfil
social dos peões livres
A verdade é que sabemos bem pouco sobre os homens livres que
trabalhavam nas estâncias. As fontes sobre os peões não são abundantes e, na maior
parte das vezes, trazem apenas referências indiretas. Por serem livres, eles não eram
descritos nos inventários, como acontecia com os escravos. Por serem pobres, apenas
em poucas vezes eles eram titulares de atos patrimoniais, como escrituras públicas,
contratos sobre bens e os próprios inventários post mortem. Como eram, na maioria dos
casos, analfabetos, praticamente não deixaram relatos de próprio punho. Os
historiadores argentinos supriram essas deficiências estudando registros contábeis de
estâncias e censos sócio-profissionais.
663
Os primeiros apenas agora começam a ser
662
GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra: conflitos e estrutura agrária na Campanha Rio-grandense
Oitocentista, 2005.
663
Para um balance dessa historiografia, no que se refere à primeira metade do século XIX, ver:
FRADKIN, Raúl; GARAVAGLIA, Juan Carlos; GELMAN, Jorge; GONZÁLEZ BERNALDO, Pilar.
Cambios y permanencias: Buenos Aires en la primera mitad del siglo XIX, 1997. Ver também:
340
encontrados no Rio Grande do Sul, e têm um caráter menos completo do que os
existentes para as áreas platinas. Os segundos não existem para a província rio-
grandense.
Mesmo ante essa conjuntura pouco animadora, em um texto recente e
inspirador, Helen Osório enfrentou o desafio de estudar os peões no Rio Grande do Sul
durante os últimos anos do período colonial.
664
Com criatividade, a autora supriu a
carência de fontes com a utilização da caracterização sócio-profissional presente na
qualificação das testemunhas de processos criminais. Era um procedimento que Hebe
Mattos havia utilizado com sucesso para compor a análise das estratégias sociais dos
homens livres pobres na província fluminense, ao longo do Oitocentos.
665
Creio que a
aplicação de semelhante técnica aos processos criminais de Alegrete permite desenhar
com mais clareza os contornos daquela sociedade, muito mais complexa do que a visão
tradicional costuma admitir e, também, compreender melhor o lugar ocupado pelos
peões naquele mundo.
Naturalmente, a fonte tem seus limites, decorrentes dos critérios que
entravam em jogo quando se tratava de ouvir testemunhas em processos criminais. Os
segmentos sociais que gozavam de maior respeitabilidade e prestígio naquela escala de
valores tendem a estar sobre-representados. É de se imaginar que os homens adultos,
casados, chefes de família e detentores de uma situação econômica estável fossem
chamados para testemunhar não apenas quando haviam presenciado o fato, mas também
para afiançar uma das versões em jogo, ou como testemunhas abonatórias. Por sua vez,
os sujeitos pertencentes a outros setores da sociedade eram inquiridos apenas quando
haviam presenciado os eventos de que tratava o processo ou quando fossem moradores
das proximidades do local do delito, soubessem do caso “por ouvir dizer” e pudessem
garantir qual era “a voz corrente” sobre a situação em questão. Por fim, nos processos
analisados, mulheres e escravos somente foram chamados a depor quando haviam
efetivamente presenciado as circunstâncias do crime.
Sem esquecer essas restrições e considerando a inexistência de outros
documentos de natureza semelhante, é preciso admitir que as qualificações das
testemunhas nos processos criminais são fontes úteis para o estudo dos homens livres. O
único teste de representatividade que pude fazer, foi comparar o percentual de homens
GELMAN, Jorge. Unos Números Sorprendentes. Cambio y continuidad en el mundo agrario bonaerense
durante la primera mitad del siglo XIX, 1996.
664
OSÓRIO, Helen. Trabalhadores da Pecuária: peões e gaudérios na fronteira do Império Português,
2002.
665
MATTOS, Hebe. Das Cores do Silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista (Brasil,
século XIX), 1998, p.p. 55-72.
341
livres casados, com mais de 15 anos de idade, no censo de 1858, com os da amostra de
testemunhas. No primeiro caso eles, ficaram em 47%.
666
No segundo, atingiam 56%. Ou
seja, havia mesmo uma sobre-representação dos homens casados entre as testemunhas.
Entretanto, ela não se constituía em uma diferença tão significativa que pudesse
prejudicar as análises feitas aqui. Aqueles que testemunharam o crime ou que tinham
grande conhecimento dos envolvidos precisavam ser chamados. Esse fato agia como um
contra-veneno e diminuía os efeitos da elitização das testemunhas, referido
anteriormente. Isso faz com que, apesar de haver certa sobre-representação das camadas
superiores, esta seja uma fonte menos elitizada do que os inventários post mortem, por
exemplo. Nela aparecem peões, carpinteiros, pedreiros, jornaleiros – sujeitos que, só
muito raramente, teriam inventários de seus bens realizados após seu falecimento. Além
disso, constam informações como idade, naturalidade e cor da pele dos depoentes.
Os processos criminais de Alegrete depositados no Arquivo Público do Rio
Grande do Sul iniciam em 1845. Alguns deles, porém, dizem respeito a crimes
acontecidos alguns anos antes. Em razão da existência de um número muito maior de
processos criminais a partir de 1850, procurei equilibrar a amostra trabalhada. Assim,
levantei as testemunhas de todos os processos abertos de 1845 a 1850, e dos processos
de um ano a cada três, no período entre 1851 e 1865.
667
Houve um total de 555
testemunhas, sendo que apenas 6 eram escravas. Estas tiveram apenas a designação de
seu nome, idade, do nome de seu senhor e do local onde nasceram. Como esses dados já
foram estudados através de inventários post mortem, que são fontes melhores para este
tipo de estudo com cativos, retirei estes seis sujeitos da análise, restando apenas os
livres ou libertos. A distribuição das testemunhas dentro do período está descrita na
tabela “8.1”:
TABELA 8.1 - DISTRIBUIÇÃO DAS TESTEMUNHAS DE PROCESSOS CRIMINAIS POR
PERÍODOS (ALEGRETE, 1845-1865)
Testemunhas %
1845 a 1855
303 55,2%
1856 a 1865
246 44,8%
TOTAL
549 100%
Fonte: “Processos Criminais. Alegrete. 1845-1865. APRS”
666
“Mappa statístico da população da província classificada por idades, sexos, estados e condições com o
resumo do total de livres, libertos e escravos”. In: FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA. De
Província de São Pedro a Estado do RS, 1981, p. 69.
667
Exclui alguns processos por se tratarem de crimes em Uruguaiana e Santana do Livramento, que
estavam sob jurisdição judicial de Alegrete.
342
Vejamos, agora, as características dos que aparecem como peões, em relação
com o restante das testemunhas listadas. Nessa categoria, incluí os indivíduos que
tiveram nas suas qualificações de profissão as designações “peão”, “campeiro”, “peão
posteiro” e “vive de seu trabalho de campeiro”. Além destes, incluí também alguns
casos de pessoas que declararam “viver de seu trabalho” mas que, pelas circunstâncias
do processo, eram evidentemente peões de campo. Ao todo, chegam a 67 pessoas ou
13% da amostra de testemunhas. Vejamos o que os dados dos processos criminais
podem dizer sobre o perfil social dos peões.
GRÁFICO 8.A - COR DA PELE E ESTADO CIVIL DOS PEÕES EM RELAÇÃO AO TOTAL
DE TESTEMUNHAS DE PROCESSOS CRIMINAIS (ALEGRETE, 1845-1865)
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%
solteiros Brancos Pardos Pretos Índios
Testemunhas %
Peões TOTAL
Fonte: “Processos Criminais. Alegrete. 1845-1865. APRS”
A maioria dos peões eram solteiros (63%). Os 37% de peões casados
formam um percentual bastante inferior aos 56% do total da amostra. Aqui, é preciso
fazer a ressalva de que se tratavam de casamentos legalizados pelo rito religioso.
Provavelmente, o número de uniões consensuais estáveis, porém não formalizadas, não
era desprezível. Se pensamos em laços conjugais, ainda que informais, o percentual
devia ser algo maior do que o de casamentos legalizados, sobretudo em camadas menos
afortunadas como peões, jornaleiros, artífices, lavradores e pequenos criadores. Ainda
assim, a comparação da média de idades das testemunhas sugere que, entre os peões, o
percentual de homens efetivamente solteiros era maior do que em outras categorias. A
média de idade do peões é de apenas 30 anos, contra 37 do total. Esses números são os
menores de toda a amostra, excetuando-se os capatazes, cujos percentuais encontram-se
distorcidos. Se excetuamos 3 casos de capatazes que eram filhos dos proprietários das
estâncias onde trabalhavam, a média de idade sobre para 39 anos. Sendo mais
343
específico: 66% dos peões tinham até 30 anos, enquanto que apenas 41% do total das
testemunhas ficavam abaixo daquela idade. Essa era uma estrutura que vinha se
reiterando desde os tempos coloniais. Em seu estudo sobre os peões nos processos
criminais do Rio Grande de São Pedro, entre 1779 e 1834, Helen Osório apontou que os
peões apresentavam um percentual de solteiros de 61% e uma média de idade de 29
anos, números quase idênticos aos encontrados para Alegrete, em meados do século
XIX. Osório verificou que nada menos do que 80% dos peões estudados por ela tinham
até 35 anos. No caso estudado aqui, foram 75%.
Outra diferença marcante dos peões com relação à maioria das categorias da
amostra aparece no tocante à cor da pele. Apenas 27% são considerados brancos, contra
79% do total da amostra. Outra semelhança com o contexto tardo-colonial observado
por Osório: lá, os peões brancos compareciam ainda em menor número, alcançando
apenas 21%. A autora demonstrou a enorme presença de índios ou “indiáticos”,
chegando a 62% dos peões e 17% para negros e pardos. Em Alegrete, no meado do
Oitocentos, essa subdivisão havia mudado. Os “pretos” atingiam um contingente nada
desprezível de 14%. Aliás, todos os homens “pretos” da amostra eram peões. Mas o
grande salto se deu entre os chamados de “pardos”: em Alegrete, eles eram maioria
entre os peões, com um índice de 41%. É possível imaginar que a maioria do percentual
de “pretos” e parte do de “pardos” estivesse se referindo a homens libertos. Isso é
absolutamente lógico, se pensarmos na importância dos escravos campeiros, já apontada
no capítulo “7”. Estes, quando conseguiam sua liberdade, provavelmente continuavam
se valendo da atividade de peões.
668
Entretanto, não é possível precisar essa questão
pois não há discriminação entre livres e libertos na qualificação das testemunhas.
Em Alegrete, os índios ainda eram importantes, com 18% dos peões, mas
esse é um percentual três vezes menor do que o encontrado por Osório para o período
anterior. A maioria dos indígenas que aparecem como peões nos processos analisados
por Osório eram identificados como guaranis.
669
Eles vinham migrando das Missões
para os domínios portugueses com mais intensidade na segunda metade do século
XVIII, quando as novas administrações dos Povos não conseguiam repetir o sucesso
obtido pelos jesuítas, expulsos no meado do século. Com a expansão luso-brasileira
para oeste, no início do século XIX, a população de egressos das Missões certamente foi
grande nas novas áreas. Lembremos, ainda, a fundação do povoado de Bella Unión
pelos guaranis missioneiros que migraram dos Sete Povos quando da retirada do
668
OSÓRIO, Helen. Trabalhadores da Pecuária..., 2002.
669
OSÓRIO, Helen. Trabalhadores da Pecuária..., 2002, p. 18.
344
General Rivera, em 1828. Esse povoado localizava-se próximo à margem esquerda do
rio Quaraí. Vizinho, portanto, aos domínios brasileiros. Além deles, alguns charruas e
minuanos que habitavam as margens do mesmo Quaraí podem ter se mesclado às
populações que iam chegando à região.
A redução do percentual de “índios” entre os peões pode ter se devido à
diminuição geral das populações indígenas, provavelmente grave na Fronteira
Meridional, ao longo do Oitocentos. Como já foi dito, ainda não existe um estudo
criterioso do impacto demográfico dos indígenas na Campanha e sua variação no século
XIX. Essa é uma matéria para trabalhos futuros, onde os registros de batismo e
casamento certamente ajudarão bastante. Uma hipótese que não se deve desprezar, é que
a designação “pardo” pudesse ser aplicada tanto a mestiços de negros e brancos e a
“negros claros” (como sabemos que era, já que há várias referências a escravos “pardos”
nos inventários post mortem), mas também a mestiços de indígenas e brancos.
670
Como
advertiu Osório, ligar a cor atribuída nos processos criminais à origem étnica é uma
operação problemática.
671
O que parece ser correto afirmar, ao menos, é que, entre os
peões, os qualificados como brancos formavam um percentual menor do que em todas
as outras categorias.
No que se refere à naturalidade dos peões, 58% deles havia nascido na
província do Rio Grande do Sul, praticamente o mesmo percentual encontrado para o
total das testemunhas. Sua origem tamm era semelhante: a maioria vinha das áreas
mais antigas do centro-leste, com destaque para Triunfo e Porto Alegre. Já a proporção
de naturais de Alegrete entre os peões e no total da amostra é rigorosamente igual,
atingindo 8%. Assim, também entre os peões o número de migrantes era
esmagadoramente majoritário. Como podemos ver no gráfico “8.B”, as diferenças
aparecem quanto às outras regiões.
670
No processo de inventário de seu marido, em 1853, Maria Francisca Xará é chamada de, em um
documento, de “a índia Maria Francisca” e, em outro, de “parda”. “Inventários post mortem.Cartório de
Órfãos e Ausentes. Alegrete, M10, N. 142, A. 1855.”
671
OSÓRIO, Helen. Trabalhadores da Pecuária...,, p. 17.
345
GRÁFICO 8.B - NATURALIDADE DOS PEÕES EM RELAÇÃO AO TOTAL DE
TESTEMUNHAS DE PROCESSOS CRIMINAIS (ALEGRETE, 1845-1865)
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
RS
Aleg
r
ete
O
u
t
r
as
Prov
í
nc
i
a
s
Re
gi
ã
o
P
l
a
t
i
n
a
Eur
o
pa
África
Testemunhas %
Peões
Total
Fonte: “Processos Criminais. Alegrete. 1845-1865. APRS”
Os egressos da Europa e das outras províncias do Império eram raros entre
os peões. Os naturais da África, muito provavelmente “forros”, são apenas dois, o que é
pouco, mas são os únicos dois homens africanos de toda a amostra.
672
A maior diferença
se encontra entre os oriundos das regiões platinas vizinhas ao sul do Brasil. Eles são
28% entre os peões e apenas 11% no geral. A maioria desses peões de fala espanhola
vinha do Estado Oriental e de Corrientes, áreas limítrofes à Campanha, mas também
havia dois homens nascidos no Paraguai e três em províncias argentinas mais distantes:
Entre-Rios, Buenos Aires e Córdoba. Aqui, é preciso lembrar que entre os naturais do
Estado Oriental podem estar filhos de brasileiros que, como vimos, formavam parte
importante da população do norte do Uruguai. Por outro lado, não parece ter havido
uma diferença significativa entre os peões brasileiros e os nativos das repúblicas
vizinhas: em ambos os casos a idade média é de 30 anos e os brasileiros apresentam um
índice de solteiros um pouco maior, 77% contra 72% dos hispânicos.
Assim, o perfil geral dos peões indica que a maior parte deles era jovem,
solteiro, não-branco e nascido fora do município, na maioria dos casos em outras áreas
do Rio Grande do Sul, mas com presença tamm importante de migrantes
“castelhanos”. As várias semelhanças com o perfil traçado por Osório para os peões rio-
grandenses entre 1779 e 1834 indicam que essa uma estrutura antiga, que se reiterava
nas novas áreas, no meado do século XIX. Como veremos, a reprodução dessa estrutura
estava muito menos ligada à uma suposta anomia social dos peões do que à sua antítese:
672
A outra era uma mulher, lavadeira.
346
a elaboração de estratégias de sobrevivência e de acesso a recursos que continuavam
sendo relativamente acessíveis (ainda que estivessem deixando de ser), onde o ciclo
familiar desempenhava um papel relevante. Antes de detalhar essa hipótese, é
necessário visualizar melhor o quadro social onde ela se desenvolvia. Os dados gerais
da amostra de testemunhas, estudada aqui, ajuda a realizar essa operação.
8.2 - Vive de ser criador, vive de seu trabalho, vive de ser carpinteiro...
A tabela “8.2” traz a freqüência com a qual as categorias ocupacionais
apareceram entre as testemunhas. Já o quadro “8.1” discrimina as denominações que
compuseram cada uma delas.
TABELA 8.2`- TESTEMUNHAS EM PROCESSOS CRIMINAIS – PROFISSÕES (ALEGRETE,
1845-1865)
Testemunhas %
Criadores 129 25%
Comerciantes 74 14%
Peões 67 13%
Jornaleiros 49 10%
Artífices 42 8%
Lavradores 43 8%
Fazendeiros e estancieiros 20 4%
Costureiras e Lavadeiras 14 3%
Capatazes 11 2%
Proprietários 11 2%
Outros 59 12%
Total com referência de
profissão
513 100%
Sem referência de profissão 36 ---
TOTAL GERAL 549 ---
Fonte: “Processos Criminais. Alegrete. 1845-1865. APRS.”
Uma primeira olhada na tabela “8.2” já sugere uma sociedade bem mais
diversificada do que a velha dicotomia entre estancieiros e peões.
673
Os “fazendeiros/
estancieiros” são apenas 4% dos inquiridos.
674
Por sua vez, os “criadores”, que
englobavam pessoas que praticavam a pecuária em escala mais modesta eram, sim,
673
Um trabalho que utilizou, com muita pertinência, a classificação sócio-profissional das testemuinhas
de processos criminais para o estudo de um município do interior do Rio Grande do Sul, com foco no
meio urbano, foi: CARVALHO, Daniela Vallandro de. “Entre a solidariedade e a animosidade”: os
conflitos e as relações interétnicas populares, Santa Maria – 1885 a 1915, 2005.
674
Entre os depoentes 16 foram designados como “fazendeiros” e 4 como “estancieiros”. Por outros
documentos, como inventários post mortem e escrituras públicas foi possível investigar o perfil sócio-
econômico de todos eles e parecem ser muito semelhates. Como já foi referido, na documentação
pesquisada encontrei os termos “fazenda” e “estância” utilizados para designar as mesmas unidades
produtivas, por vezes nos mesmo documentos.
347
maioria. Contudo, ambas as categorias, somadas, chegam apenas a 29% das
testemunhas. Por outro lado, apesar da propalada exigüidade agrícola da Campanha, os
lavradores atingiam 8% do total de testemunhas.
QUADRO 8.1 - CATEGORIAS OCUPACIONAIS DAS TESTEMUNHAS DE PROCESSOS
CRIMINAIS (ALEGRETE, 1845-1865)
CATGEAGORIA EXPRESSÃO ENCONTRADA NO PROCESSO
Criadores
Criador, vive de criar, vive de criar gado, vive da
criação de animais
Comerciantes
Comerciante, negociante, vive de seu negócio
Peões
Peão, campeiro, vive de seu trabalho de campeiro,
peão posteiro
Jornaleiros
Jornaleiro, vive de seu trabalho, vive de salários,
vive de seu jornal
Artífices
Ferreiro, carpinteiro, alfaiate, pedreiro, oleiro,
ourives, marceneiro, sapateiro
Lavradores
Lavrador, vive de plantações, vive de suas lavouras,
vive de agricultura
Fazendeiros e estancieiros
Fazendeiro, estancieiro, vive de ser estancieiro
Costureiras e Lavadeiras
Costureira, lavadeira, costureira e lavadeira,
lavadeira e engomadeira
Capatazes
Capataz, vive de ser capataz na estância de seu pai
Proprietários
Proprietário
Outros
Advogado, médico, farmacêutico, tabelião, escrivão,
oficial de justiça, carreteiro, agências, militar,
Guarda Nacional em destacamento, soldado da força
policial
Fonte: “Processos Criminais. Alegrete. 1845-1865. APRS”
Os comerciantes são a segunda categoria melhor representada na amostra,
atrás apenas dos criadores. Como no caso destes, aqui também existia uma variedade de
situações e envergaduras econômicas. Havia desde comerciantes residentes na vila que
eram também importantes prestamistas e faziam negócios de gado, até pequenos
vendeiros do meio rural. Quanto à outra categoria, a daqueles que se designaram como
“proprietários”, sua caracterização não é evidente. Das 11 testemunhas que assim se
declararam, encontrei 8 em meu banco de dados. Em pelos menos 4 desses casos
tratavam-se de pessoas que viviam preferencialmente de rendas, normalmente
imobiliárias, fossem elas rurais ou urbanas, ainda que também pudessem ser
348
prestamistas. Por sua vez, em um universo de 549 testemunhas, apareceram apenas 20
mulheres, todas elas de baixa extração social. Seis declararam viver “do sustento que
lhe dá seu marido” ou “de serviços domésticos”, enquanto que 14 se declararam
lavadeiras ou costureiras.
Tratava-se de uma economia voltada para o mercado interno e assentada na
pecuária extensiva que pôde sustentar uma sociedade bem mais diversificada do que se
costuma supor. Havia, ali, um número importante de ofícios especializados (artífices),
onde trabalhadores exerciam diversas ocupações, tanto na vila quanto nos campos.
Também havia uma avassaladora presença de migrantes, totalizando nada menos do que
92% das testemunhas. Isso se deve, em parte, àquela ser uma região de ocupação
relativamente nova. Mas não exageremos. A média geral de idade dos depoentes é alta,
como já se supunha, elevando-se a 37 anos. Porém, os dados cobrem o período de 1845
a 1865, ou seja, cerca de 50 anos ou mais desde que havia iniciado a ocupação luso-
brasleira daquelas bandas. Assim, esse elevado número de pessoas que nasceram fora do
município não se devia apenas à “juventude” da ocupação luso-brasileira, mas
provavelmente também ao fato de que aquela região de pecuária extensiva seguiu
atraindo migrantes de forma importante, ao longo de toda a primeira metade do século
XIX. Como já foi dito, não existe uma seqüência de censos até 1858, que permitam
fazer essas estimativas com segurança, mas pesquisas demográficas que venham a ser
feitas com os registros de batismo e casamento poderão testar essa hipótese. Vejamos,
agora, uma análise dos locais de nascimento das testemunhas presentes na amostra.
TABELA 8.3 - TESTEMUNHAS EM PROCESSOS CRIMINAIS -RELAÇÃO ENTRE
PROFISSÃO E LOCAL DE NASCIMENTO (ALEGRETE, 1845-1865)
RS
%
Alegrete
%
Outras
Províncias
%
Região
Platina
%
Europa
%
África
%
Fazendeiros e estancieiros 95 0 5 0 0 0
Criadores 81 12 4 2 1 0
Lavradores 75 5 6 11 3 0
Capatazes 50 30 0 20 0 0
Peões 58 8 3 28 2 2
Proprietários 100 0 0 0 0 0
Comerciantes 44 0 8 10 38 0
Artífices 20 5 40 5 30 0
Costureiras e Lavadeiras 63 19 0 13 0 5
Jornaleiros 42 5 21 17 15 0
Outros 43 10 35 10 2 0
GERAL 59 8 12 11 10 0,4
Fonte: “Processos Criminais. Alegrete. 1845-1865. APRS”
349
A grande maioria das testemunhas havia nascido em outras áreas da
província do Rio Grande do Sul e migrado para Alegrete. As áreas campeãs de
referência são as regiões limítrofes à antiga Fronteira de Rio Pardo, de onde partiu a
grande expansão sobre as terras disputadas com o Império Espanhol, na virada do
século XVIII para o XIX: Rio Pardo, Cachoeira, Encruzilhada, Caçapava e Triunfo.
Mas também Porto Alegre, Viamão, Cruz Alta e Missões. O segundo lugar era ocupado
por três grandes áreas que tinham percentuais semelhantes: as outras províncias do
Império, as repúblicas platinas e a Europa.
Para fazer uma análise por categoria, agreguemos informações referentes ao
estado civil, à média de idade e a cor da pele declaradas ou atribuídas às testemunhas
nos processos criminais.
TABELA 8.4 - TESTEMUNHAS EM PROCESSOS CRIMINAIS - RELAÇÃO ENTRE
PROFISSÃO, ESTADO CIVIL E MÉDIA DE IDADE (ALEGRETE, 1845-1865)
Casados/viúvos
%
Solteiros
%
Média de Idade
Fazendeiros e estancieiros 100 0
49
Criadores 68 32
38
Lavradores 78 22
44
Capatazes 30 70
29
Peões 37 63
30
Proprietários 90 10
51
Comerciantes 51 49
36
Artífices 54 46
35
Costureiras e Lavadeiras 30 70
35
Jornaleiros 59 41
31
Outros 45 55
37
GERAL 56 44 37
Fonte: “Processos Criminais. Alegrete. 1845-1865. APRS”
Os comerciantes e os artífices apresentavam os maiores índices de europeus.
Os primeiros tinham maioria portuguesa. A presença de lusos desempenhando o
comércio era comum em muitas outras áreas do Brasil nos séculos XVIII e XIX. Já os
segundos desdobravam-se em um renque mais variado de nacionalidades: franceses,
alemães, italianos e espanhóis. Note-se, ainda, a importante presença de naturais de
outras províncias do Brasil entre os “artífices”. O interessante é que, nessa categoria,
eles eram pernambucanos, baianos, paraenses, cearenses, mineiros, fluminenses,
enquanto os que existem em outras categorias, como entre os “comerciantes” e
“fazendeiros/estancieiros”, eram naturais de São Paulo, do Paraná ou de Santa Catarina.
Esses oriundos do norte apareceram também entre os “jornaleiros” e, sintomaticamente,
eram maioria entre os militares (dentro da categoria “outros”).
350
TABELA 8.5 - TESTEMUNHAS EM PROCESSOS CRIMINAIS - RELAÇÃO ENTRE
PROFISSÃO E COR DA PELE (ALEGRETE, 1845-1865)
Branco
%
Preto
%
Pardo
%
Índio
%
Fazendeiros e
estancieiros
100 0 0 0
Criadores 90 0 10 0
Lavradores s/r s/r s/r s/r
Capatazes 75 0 0 25
Peões 27 14 41 18
Proprietários 100 0 0 0
Comerciantes 100 0 0 0
Artífices s/r s/r s/r s/r
Costureiras e
Lavadeiras
s/r s/r s/r s/r
Jornaleiros s/r s/r s/r s/r
Outros s/r s/r s/r s/r
GERAL 79 3 13 5
Fonte: “Processos Criminais. Alegrete. 1845-1865. APRS”
Em pesquisa em andamento sobre os combatentes que foram ao Rio Grande
do Sul defender o Império na Guerra dos Farrapos, José Iran Ribeiro tem encontrado
uma importante presença de praticantes desses ofícios especializados (sapateiros,
alfaiates, ourives, etc.), recrutados nas províncias de norte e do centro do país.
675
Essa
era uma “migração” diferente daquela praticada pelos moradores das províncias mais
próximas. Estes migravam, provavelmente, a partir de uma rede de laços sociais que
permitia sua inserção nas novas terras. Muitos deles passaram algum tempo no leste da
província, casaram-se com mulheres daqueles lugares e, dali, se dirigiram para a
Fronteira Meridional. Já os que chegavam vindos das províncias do norte parecem ter
sido, em maioria, soldados que foram lutar nas guerras do sul e que, desengajados ou
desertados, ficavam pela Fronteira. Podia ser difícil conseguir recursos para voltar à sua
terra, podiam nem ter essa pretensão. De qualquer forma, alguns deles conseguiam
beneficiar-se de seu saber especializado para criar novos vínculos e estabelecer-se.
Estudando os forros na vila de Porto Feliz, na província de São Paulo,
Roberto Guedes Ferreira mostrou como exercício de um ofício, ao lado da estabilidade
familiar e do estabelecimento de alianças sociais eram mecanismos centrais na busca de
mobilidade social para os egressos do cativeiro.
676
Naturalmente, isso não significa
dizer que não houvesse repúdio ao “defeito mecânico” entre os valores daquela
675
RIBEIRO, José Iran. Levantar um Gigante em Crescimento: a mobilização do exército imperial
brasileiro para a Guerra dos Farrapos, (texto inédito).
676
FERREIRA, Roberto Guedes. Pardos: trabalho, família, aliança e mobilidade social
Porto Feliz, São Paulo, c. 1798 – c. 1850, 2005.
351
sociedade, sobretudo entre as elites e os que estavam próximos a ela. Entretanto, entre
os estratos mais desfavorecidos da população, ter um ofício que requeria habilidades
especiais, que ensejasse o auto-sustento e, sobretudo, propiciasse um relativo grau de
autonomia, diferenciava os artífices dos trabalhadores não-especializados e os tornava,
inclusive, possíveis proprietários de escravos. Creio que essas reflexões podem se
aplicar ao caso dos ex-soldados na Fronteira Meridional.
Forasteiros, soldados rasos de primeira linha, muitos deles pardos: os
recursos de que dispunham para buscar um lugar na sociedade fortemente hierarquizada
à qual estavam chegando não eram muitos. É possível imaginar que as relações que
estabeleciam com comandantes militares pudessem auxiliá-los. Além disso, a habilidade
em um ofício especializado pode ter feito diferença, por exemplo, no caso do
pernambucano Manoel Paulo Alves que, com 36 anos, se encontrava casado e exercia o
ofício de alfaiate em Alegrete. Ou então no caso do mineiro Rogério José de Almeida,
ourives, que com 23 anos já estava casado. Outros, sem o recurso de um ofício
especializado, podiam encontrar mais dificuldade para inserir-se, como era o caso do
maranhense Manoel dos Santos e do sergipano Martiniano José de Melo, jornaleiros.
Ambos tinham 40 anos e seguiam no estado de solteiro. Apesar dos “jornaleiros”
apresentarem um percentual de casados um pouco superior ao dos “artífices”, essa
situação se inverte quando tomamos apenas aqueles dentre eles que eram egressos das
outras províncias do Império.
Olhemos, agora, para as ocupações ligadas diretamente ao mundo agrário,
que eram as dominantes naquele universo. É possível imaginar que as designações
“fazendeiro” ou “estancieiro” estivessem se referindo apenas aos mais abastados
criadores de gado, todos proprietários de terras e de grandes estabelecimentos rurais.
677
Os inclusos nessa categoria foram todos qualificados como brancos, o que, na sociedade
escravista, não indica necessariamente que aquela era a cor da pele do depoente, pois a
condição social elevada podia “embranquecer” as pessoas. Além disso, eles eram todos
casados e tinham uma média de idade de 49 anos, bastante superior aos 37 da média
geral. Os “proprietários” apresentavam características muito semelhantes. Também
eram todos descritos como brancos, quase todos casados e tinham a mais alta média de
idade da amostra, 51 anos. É possível pensar nessas duas categorias como sendo muito
próximas. A alta média de idade existente em ambas sugere uma consonância com o
fenômeno, conhecido para outras partes do Brasil, em que mesmo os que se dedicavam
677
Como era o caso do Tenente-Coronel da Guarda Nacional Apolinário de Souza Trindade ou de
Francisco Martins da Cruz Jobim, presentes entre aquelas testemunhas.
352
a outras atividades, como o comércio, tendiam a se tornar proprietários de terras,
homens e, neste caso, também de gado, atividades de maior prestígio social.
678
Entre os “criadores”, categoria com o maior número de testemunhas, a média
de idade baixa para 38 anos, praticamente a mesma da média geral, o percentual de
casados diminui, mas ainda é alto (68%), e 90% são designados como brancos,
contando com 10% de pardos. Como vimos no capítulo “2”, os que criavam gado em
Alegrete tinham uma variedade muito grande de envergaduras econômicas. De fato, ali
estavam filhos de estancieiros que começavam então sua atividade própria, como era o
caso de José Telles de Oliveira e de Constantino José Lopes, que depuseram no mesmo
processo, em 1855: o primeiro tinha 23 anos e já era casado e o segundo 25 e ainda era
solteiro.
679
Também haviam pequenos e medianos criadores, proprietários das terras em
que manejavam seus rebanhos, como Firmiano de Souza Luz, que foi chamado a depor
em 1861. Quatro anos antes, foi realizado o inventário de sua mulher e, por ele, sabe-se
que o casal possuía apenas 1/4 de légua de campo de sua propriedade, cerca de 450
reses, 200 ovelhas e 2 escravas - uma africana de nome Teresa, de 40 anos e sua filha
Florisbela, com 12 anos de idade. Havia também agregados com algumas dezenas de
vacuns, alguns cavalos e ovelhas, como Felício José de Lima, morador agregado na
Estância Santo Agostinho, que tinha 49 anos e era casado, quando depôs, em 1853.
680
Por sua vez, as testemunhas incluídas na categoria de lavradores podem ser
aquelas dos inventários post mortem, que possuíam instrumentos agrícolas e podiam
criar até 100 reses de gado vacum, não sendo, em boa parte dos casos, proprietários das
terras onde viviam. Lembremos o que foi dito no capítulo “2”: os estudos de
Garavaglia, para Buenos Aires e Osório o Rio Grande de São Pedro, em fins do período
colonial, constataram que aqueles que criavam até 100 reses não tinham como
sobreviver exclusivamente da pecuária e nem mesmo eram chamados de “criadores”.
Entre esses lavradores, ainda predominam os nascidos na província do Rio Grande do
Sul, mas os naturais das regiões platinas vizinhas ganham alguma visibilidade,
atingindo 11% das testemunhas. Infelizmente, foi muito baixo o número de lavradores
que teve especificada a cor de sua pele, impedindo que se possa ter uma amostragem
suficiente para afirmar qualquer coisa a esse respeito.
Entre os lavradores, a média de idade (44 anos) e o percentual de casados
(78%) são mesmo superiores às dos criadores. Os próprios depoimentos dessas
678
FRAGOSO, João L.; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto, 1993. FARIA, Sheila de
Castro. A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial, 1998.
679
“Processos Criminais. Alegrete, M. 80, N. 2807, A. 1855. APRS.”
680
No primeiro caso inclui-se, por exemplo, José Telles de Oliveira que tinha apenas 23 anos quando
depôs, e era filho de Francisco Telles de Souza, que está entre 16 maiores fortunas da amostra pesquisada.
353
testemunhas sugerem que a maioria destes lavradores e parte dos criadores formavam o
conjunto daqueles que moravam de agregados nas estâncias, levando a cabo uma
produção autônoma, mas modesta, em terras alheias. A média de idade e o percentual de
homens casados entre os criadores seriam semelhantes aos dos lavradores, mas podem
ter baixado um pouco em virtude de que, entre eles, havia filhos de grandes e medianos
estancieiros que já criavam gado, embora fossem jovens e, muitas vezes, ainda
estivessem solteiros. De qualquer maneira, a média de idade e o percentual de homens
casados, tanto entre os criadores como entre os lavradores, são muito superiores aos dos
peões. Essa é a constatação que permite abrir as portas para uma análise mais detalhada
sobre o mundo dos peões livres e dos subalternos rurais daquela sociedade.
8.3 - Peões e estratégias familiares
Helen Osório apontou muitas semelhanças entre os dados que encontrou,
através das testemunhas de processos criminais, para o Rio Grande do Sul e as
informações de pesquisadores argentinos sobre Buenos Aires nos censos de 1813 e
1815, e sobre Concórdia, em Entre-Rios, na metade do século XIX. Percebeu um
“movimento em direção ao envelhecimento, constituição de famílias e
‘branqueamento’, tendo em uma extremidade os peões, e na outra os criadores e
lavradores.”
681
Cotejando esses dados com informações de um ofício do Governador do
Rio Grande, em 1776, a autora demonstrou a vinculação do perfil social dos peões com
o ciclo de vida. Tal fenômeno se repetia em Alegrete, em meados do século XIX. Como
vimos, também ali os lavradores e os criadores tinham média de idade e percentuais de
casados/viúvos muito mais altos do que os apresentados pelos peões.
Essa não era uma tendência apenas do espaço fronteiriço platino.
Investigando os processos criminais da corte de apelação do Rio de Janeiro, Hebe Maria
Mattos analisou as designações profissionais presentes nas qualificações de testemunhas
de diversas áreas da província fluminense, no século XIX. Os lavradores eram o
principal grupo naquela amostra, e apresentavam 71% de seus integrantes como casados
ou viúvos. Já os assalariados agrícolas tinham esse percentual em exíguos 5%.
682
O
estabelecimento como lavrador pressupunha, na maioria dos casos, a constituição de
famílias, que acabavam por se tornar a base do trabalho e da organização que permitiam
o acesso à produção independente. Por sua vez, as ocupações ligadas ao assalariamento
agrícola não-especializado costumavam ter um sentido de temporariedade: eram
681
OSÓRIO, Helen. Trabalhadores da Pecuária..., 2002, p. 20.
682
MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio..., 1998, p. 40-44.
354
exercidas até que se conseguisse construir as condições necessárias para o
estabelecimento como lavrador.
Hebe Mattos identificou três grupos entre os que eram qualificados como
jornaleiros nos processos: os filhos de lavradores de roça, que complementavam a renda
familiar com o trabalho assalariado; os migrantes recém-chegados à região; e velhos ex-
cativos, em geral africanos. A autora observou que, ao menos nos dois primeiros casos,
essa atividade era marcada por um caráter eventual ou temporário. Tratava-se de uma
forma de sobreviver e construir laços que permitiriam a inserção social, a formação de
famílias e o futuro estabelecimento como produtores independentes. Mattos ressalta que
nem sempre essa condição era alcançada, mas que “o sentido social das ocupações só é
atingido plenamente quando se percebe o caráter eventual ou transitório com que era
encarado pelos que as realizavam.”
683
Essa situação somente existia em virtude da
possibilidade de acesso ao uso de uma porção de terras, ainda que não à sua
propriedade, e do estabelecimento de uma organização familiar que fornecia o “capital
social básico” para a instalação como produtores autônomos no mundo rural.
No Rio Grande do Sul, as coisas se davam de forma semelhante. Entre os
peões livres, haviam filhos de pequenos criadores ou lavradores, que complementavam
a renda familiar com trabalho assalariado nas estâncias. Também existiam migrantes
vindos de outras áreas da província e das repúblicas vizinhas. Muito provavelmente,
havia também a presença de libertos, como sugere a existência de dois africanos entre
os peões e de um número expressivo de pessoas designadas como pardos. Vejamos as
duas primeiras situações mais concretamente. O caso dos libertos será analisado adiante,
no item “8.7”.
Lembremos da conta da estância de dona Ana Guterres, analisada no
capítulo “7”.
684
Nos anos de 1856 e 1857, cobertos por aqueles registros, o capataz da
estância chamava-se Joaquim José Lucas, tendo o mesmo sobrenome do peão Antônio
Israel Lucas, que trabalhou por sete meses na estância.
685
Em 1860, o capataz
reapareceu nas fontes pesquisadas como inventariante de sua falecida esposa. Naquele
processo, descobre-se que Antonio Israel era filho de Joaquim José e, quando trabalhara
para dona Ana Guterres, tinha 18 anos e era solteiro. Antonio Israel tinha, ainda, um
irmão e três irmãs, todos já casados. A família possuía um casal de escravos adultos e 4
crianças cativas, além de uma data de matos em São Francisco de Assis, no município
de Itaqui, vizinho de Alegrete pelo norte.
683
MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio..., 1998, p. 43.
684
Capítulo “7”, Quadro “7.2”.
685
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. N . 117, A. 1853. APRS”
355
Não é difícil imaginar Joaquim José Lucas, sua esposa, o filho solteiro
Antônio Israel, vivendo dentro da estância de dona Ana Guterres, em Alegrete,
enquanto que parte dos outros dos filhos casados e os escravos praticavam a agricultura
do outro lado do rio, na data de matos localizada em São Francisco de Assis. Antônio
Israel permaneceu como peão por apenas 7 meses. Em parte dos outros 13 meses
cobertos pela conta, pode ter se somado aos parentes e escravos nas tarefas de plantação
e colheita. A estratégia parece ter sido bem sucedida porque, nesse mesmo ano de 1860,
os Lucas haviam comprado uma parte de campo naquela mesma estância e criavam uma
ponta de gado, composta de 124 reses xucras e 24 reses mansas. Além disso, o velho
Joaquim José continuava trabalhando como capataz para o novo proprietário, o herdeiro
Victor Antônio Guterres.
686
Veja-se que Antônio Israel Lucas, tomado isoladamente, preenchia as
características clássicas atribuídas aos peões: era jovem, solteiro e se empregava por
salário em uma estância de criação. No entanto, a realização de uma busca mais
profunda de seus laços sociais, apresenta-o inserido no contexto de uma família que
também desenvolvia em pequena escala a agricultura e a criação, assentada sobre a
diversificação das atividades de seus membros, o acesso à terra, o trabalho familiar e o
emprego complementar da mão-de-obra escrava. Nesse caso, o acesso à terra se deu nas
áreas florestais acima do Ibicuí, onde as possibilidades de apropriação de uma área
florestal e de prática da lavoura de roça autônoma permaneciam sendo uma realidade
em meados do século XIX.
687
Porém, o mais comum, em Alegrete, devia ser o
arranchamento como agregado nas terras de outros.
No caso dos Lucas, o trabalho como peão era uma atribuição do membro
jovem e solteiro da família. Pelo perfil demográfico apresentado pelos peões nos
processos criminais, é possível imaginar que isso ocorresse com muitas outras famílias.
Esses jovens podiam voltar para casa e auxiliar os trabalhos familiares ou podiam
mesmo ficar o ano inteiro nas estâncias. Contudo, esse trabalho deveria se revestir, para
eles, de um sentido de transitoriedade, como apontou Hebe Mattos para os jornaleiros
fluminenses. Casar e estabelecerem-se como produtores independentes eram ações que
deviam aparecer coligadas em seus horizontes, como sugere o número minoritário de
peões casados e o fato de que 75% deles tinha menos de 35 anos de idade, enquanto
lavradores e criadores apresentavam características inversas.
686
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M 08, N 117, A 1853. Cartório do
Cível e Crime: M 02, N 45, A 1860. APRS”.
687
FOLETTO. Arlene Guimarães. Dos Campos junto ao Uruguai aos Matos de Cima da Serra..., 2002.
356
Depois de casados, eles podiam continuar a assalariar-se nas estâncias, mas
pode-se imaginar que, tendo condições, preferiam fazê-lo por dia/tarefa ou por apenas
alguns meses durante o ano. Assim, poderiam atender sua produção independente. Em
favor dessa hipótese, temos os casos freqüentes de peões que iam com seus familiares
contratar-se nas estâncias e saiam também juntos.
688
Nas contas analisadas, esses eram
os casos do peão Mariano “e seu filho” que permaneceram por 3 meses trabalhando para
Joaquim Ferreira Braga; de Antônio Gonçalves e Feliciano, “genro do mesmo”, que
estiveram contratados na estância de dona Ana Guterres para as tarefas de marcação e
castração no ano de 1856; do peão Fredo Anhaia, que esteve na estância da Palma
realizando recrutas juntamente com “dois filhos e um sobrinho”.
689
Ainda, entre os
peões que foram trabalhar na feitura de tropas que iam ser enviadas às charqueadas, nas
estâncias de Manoel José de Carvalho, em 1851, encontramos o peão Ortiz e um outro
que só foi listado como “irmão do mesmo”. Ambos trabalharam 2 dias e receberam o
mesmo salário de 2$000 por dia. Em outras listas de trabalhadores da mesma atividade
naquelas estâncias, em 1851, havia muitos peões com os mesmo sobrenomes. Em um
total de 41 peões que foram listados com nome e sobrenome, tivemos 7 casos de dois
peões com o mesmo sobrenome, totalizando 14 trabalhadores. Em 4 desses casos os
peões permaneceram o mesmo número de dias, nos outros 3 casos tiveram diferença de
um dia apenas.
690
Em todas as situações referidas, tratavam-se de peões por dia/tarefa ou
daqueles peões mensais que ficavam apenas poucos meses nas estâncias. Os autores que
vêm estudando as relações de trabalho na pecuária platina apontam que os peões por
dia/tarefa eram, proporcionalmente, melhor remunerados do que os peões por mês.
691
Essa também foi uma hipótese lançada por Mário Maestri para o caso das estâncias rio-
grandenses.
692
As contas analisadas aqui não permitem avaliar os casos das atividades
de marcação e castração, pois não discriminam quantos dias foram trabalhados pelos
peões contratados para essas atividades. Porém, contamos com referências no caso dos
peões empregados nos serviços de reunião de gado para formação de tropas que iam
para as charqueadas.
688
GARAVAGAGLIA, Juan Carlos. Pastores y Labradores de Buenos Aires..., 1999, p.p. 352-353.
689
Capítulo “7”, Quadros “7.1” e “7.2”. Também: “Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos
e Ausentes, M. 10, N. 145, A. 1855. APRS.”
690
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, M. 01, N. 07, A. 1853-7. APRS.”
691
GELMAN, Jorge. Las condiciones del crecimiento estanciero en el Buenos Aires de la primera mitad
del siglo XIX – Trabajo, salarios y conflitos en las estancias de Rosas, 1999. GARAVAGLIA, Juan
Carlos. Pastores y Labradores de Buenos Aires..., 1999.
692
MAESTRI, Mário. O Cativo e a Fazenda Pastoril Sul-Riograndense, p.115.
357
A maioria dos peões que se justaram nas estâncias de Manoel José de
Carvalho para esse serviço, em 1851, receberam 4$000 por dia. Os outros ganharam
2$000. São três contas, envolvendo três oportunidades em que se arrebanhou gado para
vender. A média de dias trabalhados em cada uma delas foi de 5, 6 e 7 dias. Os que
trabalharam 7 dias por 4$000, como os peões João Pio, Hilário Alves e muitos outros,
receberam 28$000 por uma semana de trabalho, ou seja, o dobro do maior salário por
mês praticado naquela época (14$000).
693
E mais: receberam o pagamento logo após o
final das tarefas e em dinheiro, ao invés de ganhar após trabalhar muitos meses e
receber grande parte em produtos.
Essas tarefas de “feituras de tropas” envolviam a reunião do gado para
vender. Para os peões, havia também a possibilidade de engajarem-se como condutores
das tropas que levavam os animais comprados para as charqueadas, caso em que seu
trabalho era pago pelo comprador do gado. Nesse sentido, a temporada de safra, que se
estendia de novembro a maio, era tamm uma época de maiores oportunidades de
emprego para os que precisassem trabalhar como peões. E, por outro lado, era um
período em que os estancieiros deviam ter mais dificuldade para conseguir
trabalhadores que quisessem se justar por mês. Essa estacionalidade ficava
relativamente compatível com o fato, já comentado, que os trabalhos regulares das
estâncias diminuíam no verão. Enfim, ainda que não se possa generalizar o valor dos
trabalhos em tropas para as outras tarefas estacionais e eventuais, como marcações,
castração e recrutas de gado, esses números dão uma idéia de como trabalhar “por dia”
era compensador para os peões e como esses serviços pesavam para os estancieiros.
Em seu estudo sobre os trabalhadores das estâncias do governador de
Buenos Aires, Juan Manoel de Rosas, entre 1838 e 1850, Jorge Gelman concluiu que o
“trabalho por dia” era sim um resultado da demanda estacional dos estabelecimentos
pecuários, mas também era produto de uma estratégia de um grupo dentre os
subalternos rurais, que exercia eventualmente esses serviços de melhor remuneração. A
documentação pesquisada pelo autor deixa claro que os peões “por dia” traziam suas
próprias montarias, consistindo em um estrato de pequenos proprietários “ao menos de
uma tropilha de cavalos”.
694
No caso de Alegrete, ainda que pudessem ser
693
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, M. 01, N. 07, A. 1853-7. APRS.”
694
No caso estudado por Gelman, havia épocas em que não se conseguia contratar nem mesmo o número
suficiente de “peões por mês” para cobrir a demanda de trabalho regular - lembremos que, ali, os
criadores já não podiam contar com escravos. Quando isso acontecia, acabavam por empregar, muito a
contragosto, peões por dia para dar conta mesmo das tarefas ordinárias. Não encontrei registro desta
última situação em Alegrete, o que se explica, ao menos em parte, pela permanência do acesso ao
trabalho escravo na região, durante o período trabalhado. GELMAN, Jorge. Las condiciones del
crecimiento estanciero en el Buenos Aires de la primera mitad del siglo XIX…, 1999, p. 92.
358
desempenadas por peões “despossuídos”, parece claro que as tarefas eventuais e
estacionais eram um tipo de serviço bastante adequado para os que tinham outras
formas de ganhar a vida e precisavam se dedicar a elas em boa parte de seu tempo.
Por sua vez, os migrantes que chegavam a Alegrete no período estudado
podiam cumprir trajetórias semelhantes às descritas acima. Como vimos anteriormente,
o município seguia atraindo pessoas em meados do século XIX. Vinham,
preferencialmente, das outras áreas da província e das regiões platinas vizinhas. Como
no caso analisado por Hebe Mattos, o trabalho como peão deve ter funcionado como
uma etapa de duração variável, em que os migrantes justavam-se nas estâncias e, a partir
de então, iam travando conhecimento no local, buscando criar laços e inserir-se,
podendo constituir família. Ao mesmo tempo, iam construindo relações de confiança
com os estancieiros, que poderiam desembocar na contratação como capataz ou na
permissão para arranchar-se como agregado, criando alguns animais e fazendo
plantações.
Obviamente, nem todos os peões chegaram a instalar-se como pequenos
produtores. Aquela estrutura de enorme concentração de recursos produtivos nas mãos
de uma pequena elite agrária, por certo, não permitia que todos os subalternos pudessem
chegar à produção autônoma, nem mesmo em condições precárias, nem mesmo nas
primeiras décadas do século XIX. Além disso, uma parte menos numerosa dos peões,
especialmente os que tivessem habilidades reconhecidas, como, por exemplo, a
valorizada capacidade para ser domador, podiam preferir continuar a viver do costeio do
gado, procurando empregar-se por dia, por poucos meses, ou nas tropas, sem nunca
buscar tornar-se produtor. Podiam combinar o trabalho como peão com outros trabalhos
assalariados, tanto nos campos como nas vilas. Apesar da presença da escravidão, essas
outras atividades não-especializadas eram sim um campo de trabalho para os livres
pobres, como atesta a presença de jornaleiros formando 10% das testemunhas de
processos criminais em Alegrete.
Enfim, parte daquelas pessoas que se assalariavam nas estâncias podiam se
encaixar no perfil clássico desenhado para os pobres livres da Campanha: homens que
permaneciam solteiros, para quem o trabalho como peão não estava inserido em uma
estratégia familiar mais complexa. Porém, eles estavam longe de ser maioria. Como
vimos, os indivíduos com mais de 30 anos formavam apenas 36% do total de peões que
tiveram declarado seu estado civil. Eram 22 homens, dos quais 11 eram legalmente
casados. Considerando que a existência de uniões conjugais estáveis, mas informais,
359
provavelmente era bastante difundida nesses estratos, aquela situação de homens soltos
e desenraizados deve ter sido realmente minoritária.
Assim, os dados demográficos e os exemplos trabalhados acima sugerem
que, para parte expressiva dos que se assalariavam nas estâncias de Alegrete, ao menos
na primeira metade do século XIX, a produção familiar era uma realidade ou um
horizonte, como também acontecia com os jornaleiros agrícolas do Rio de Janeiro.
695
Algo semelhante ocorria na campanha de Buenos Aires, naquele meado de século: no
trabalho referido anteriormente, Jorge Gelman aponta que a persistência camponesa, em
pleno período da grande expansão pecuária argentina, condicionava fortemente a oferta
de mão-de-obra das grandes estâncias.
696
Possuir um pequeno rebanho e/ou plantações próprias ampliava a margem
de autonomia desses subalternos. Por vezes, era possível contar com um ou dois
escravos, como no caso dos Lucas, o que conferia pecúlio, mão-de-obra auxiliar e um
ganho em prestígio na sociedade escravista. Uma organização familiar estável
viabilizava a conquista e a reprodução desses recursos. Mais ainda, ela era a fonte de
solidariedades e estratégias compartilhadas que envolviam a combinação práticas
diversificadas, como a produção própria e o assalariamento de alguns de seus
integrantes. Esses recursos eram mobilizados pelos grupos sociais menos favorecidos
em busca de um nível maior de segurança, em um contexto econômico e institucional
extremamente instável. Eles conferiam proteção para os mais velhos, que não
precisariam depender apenas do desgastante e perigoso trabalho como peões de
estância, lugar que deveriam disputar com um largo contingente de homens jovens e
fortes.
As duas pedras-de-toque de toda essa configuração eram a possibilidade do
acesso à recursos produtivos e a formação de famílias. Ainda que em escala modesta e
em caráter precário, os recursos produtivos continuavam sendo relativamente acessíveis
a muitos dos subalternos da Campanha, até meados do século XIX. Não houve a
formação de um exército de mão-de-obra constituído por uma massa de despossuídos,
que responderiam prontamente ao chamado dos estancieiros para o serviço. E isso não
ocorria apenas porque uns quantos gaúchos esquivos podiam pegar gado nos campos
com relativa facilidade. Mas porque os grupos subalternos estavam re-atualizando
estratégias de sobrevivência há muito utilizadas no Brasil e no Prata, calcadas no
estabelecimento de laços parentais, na diversificação de atividades e na busca por obter
695
MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio..., 1998, p.p. 55-72.
696
GELMAN, Jorge. Las condiciones del crecimiento estanciero en el Buenos Aires de la primera mitad
del siglo XIX…, 1999, p. 117.
360
e reproduzir a condição de produtor, em um contexto familiar. Essas possibilidades, no
entanto, estavam ficando mais difíceis, à medida que avançamos dentro do período
estudado aqui.
8.4 - Do que se trata quando se fala em produção familiar?
Antes de prosseguir é preciso fazer uma pequena parada para avaliar com
mais cuidado o que significa dizer que essa produção tinha um caráter familiar, como
venho repetindo ao longo do capítulo. O grupo dos que criavam até 500 reses abarcava
uma diversidade de situações. Na amostra de inventários de Alegrete, podemos
encontrar alguns filhos de grandes criadores que estavam começando a vida de
pecuarista criando nos campos dos seus pais. Também havia alguns medianos e grandes
criadores que tinham perdido muitos animais rapidamente, em razão de problemas
conjunturais, casos encontrados principalmente na década de 1840, com sua conjunção
de secas, guerras e pestes. Eles possuíam terras e crédito para voltar a ampliar seus
rebanhos, e é provável que a maioria deles tenha conseguido fazê-lo, ainda que talvez
não tenham retornado ao patamar anterior. Esses dois tipos de inventariados devem ter
comparecido em pequeno número dentro dos que tinham até 500 reses e não podem ser
considerados pertencentes ao mesmo estrato econômico dos outros criadores de
modestos rebanhos.
A maioria dos pequenos criadores era formada, na verdade, por outros dois
conjuntos de titulares de inventários. De um lado, estavam os egressos de famílias de
medianos ou até grandes criadores que empobreceram em razão da reiteração da
pecuária extensiva em um contexto onde a fronteira agrária estava se fechando, e que
foram ficando mais comuns a partir de 1850.
697
Como vimos no capítulo “6”, muitas
vezes eles criavam seus animais em um campo herdado, que continuava indiviso por
vários anos, onde outros parentes também tinham seus arranchamentos e rebanhos.
Junto com eles, estava o largo grupo daqueles que procuravam conquistar ou manter a
condição de produtores autônomos, com ou sem a propriedade da terra.
O ideal seria fazer um estudo prosopográfico dessa gente, o que é difícil
dentro dos limites da documentação e extrapola as possibilidades desta tese. Assim,
escolher um corte em 500 reses para os pequenos criadores me pareceu um critério
instrumental e útil, ainda que não esteja livre de problemas. A pergunta agora é: essa
697
Em seu trabalho, Graciela Garcia também identificou o empobrecimento de famílias de médios e
pequenos criadores, ao longo do século, como um fatores a engrossar as fileiras dos pequenos produtores
nos inventários post mortem. GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra..., 2005, p.p. 50-51.
361
pequena produção tinha mesmo um caráter predominantemente familiar? Dois
procedimentos ajudam a responder essa questão.
O primeiro deles envolve relembrar os dados do “censo agrário” de 1858, já
mencionado no capítulo “7”. Trabalhei com essas informações, em estudo anterior,
enfocando a presença de trabalhadores estáveis na pecuária, nos municípios de São
Borja e Santa Maria. Naquela oportunidade, pude verificar a incidência da mão-de-obra
escrava, livre e familiar nos estabelecimentos de criação com diferentes envergaduras
econômicas. Os escravos formavam uma parcela constante da mão-de-obra regular,
dentro de grandes quanto e médios estabelecimentos.
698
Segundo aqueles dados, os
cativos também apareciam nas pequenas unidades de produção pecuária. Sua presença
não era importante apenas dentre os que tinham menos de 100 reses. Os peões livres, ao
contrário, concentravam-se nas grandes estâncias, trabalhando ao lado de escravos
campeiros. Enquanto o percentual de escravos permanecia constante, o de peões livres
descendia conforme avançávamos para baixo na escala dos criadores de gado. Seu lugar
ia sendo ocupado pelos filhos do produtor.
699
Como já foi dito no capítulo “7”, nessas mesmas listas o percentual de
criadores que tinham entre 101 e 500 reses e que não dispunham de nenhum trabalhador
regular era de 42%. Nesses casos, quem manejava o rebanho era apenas o produtor.
Entre os outros 58% que contavam com mão-de-obra auxiliar, essa era formada, em
média, por apenas um trabalhador que, em cerca de 30% dos casos, era filho do próprio
produtor. No caso dos que tinham menos de 100 reses esse percentual subia para 70%.
Esses dados sugerem que tratava-se, então, de uma pecuária de claro caráter familiar.
Outro procedimento que se soma à análise das listas de criadores de 1858, é
uma avaliação das escavarias pertencentes aos pequenos criadores, nos inventários de
Alegrete. A questão da presença de mão-de-obra escrava entre os pequenos produtores
esteve no centro do debate sobre a possibilidade de perceber neles características
camponesas, nas décadas de 1980 e 1990.
700
A análise feita por Hebe Mattos me parece
bastante pertinente para tratar a questão. Dentre os lavradores de roça estudados pela
autora no sudeste escravista, não era incomum a posse de pequenos plantéis de
escravos, principalmente antes do final do tráfico atlântico, em 1850. Porém, segundo
698
No “Mappa numérico...”, o número de peões livres em São Borja e em Santa Maria encontra-se
artificialmente inflado. A análise da própria relação enviada pela Câmara demonstra que, sob aquela
denominação foram agrupados os peões livres e os filhos do criador que trabalhavam no costeio do gado.
FARINATTI, Luís Augusto. Um campo de possibilidades...,2003.
699
FARINATTI, Luís Augusto. Um campo de possibilidades...,2003.
700
Para uma referência a esse debate, ver: MATTOS, Hebe Maria. Campesinato e Escravidão, 2001, p.
338.
362
Mattos, raramente “...criavam-se condições para a reposição regular dessa força de
trabalho adicional.”
701
Nos documentos analisados por ela, a aquisição de mão-de-obra
cativa se dava no auge da produção familiar. No período seguinte, quando os filhos
casavam e tendiam a dispersar-se, havia o risco da unidade produtiva ficar a cargo dos
velhos lavradores e seu velho escravo. Em vista disso, muitas vezes as famílias
preferiam adquirir cativas mulheres. Além de serem menos caras, elas teriam filhos, que
podiam garantir uma mão-de-obra jovem no período em que o casal de lavradores
estivesse envelhecendo e seus filhos já casados.
702
Naturalmente, apenas as camadas superiores desse campesinato conseguiam
ter acesso ao auxílio da mão-de-obra escrava. Nunca é demais lembrar que os
inventários post mortem sub-representam as camadas pobres da sociedade. Por certo
existia, ainda, muitas famílias de lavradores que ficaram ausentes dessas fontes. Mattos
reconhece que havia a possibilidade de que, no apogeu da produtividade familiar, a
acumulação gerada permitisse a reposição regular da mão-de-obra escrava. Alterava-se,
aí, o tipo de cálculo econômico, os escravos tornavam-se o núcleo principal da mão-de-
obra e a família afastava-se da experiência camponesa, ingressando no universo dos
pequenos produtores escravistas. Para a autora, esse tipo de mobilidade social foi mais
comum do que se costuma admitir. E o mesmo ocorreu no sentido inverso, sobretudo na
segunda metade do século XIX, com pequenos produtores escravistas perdendo
escravos e passando a depender do trabalho familiar.
O que me parece mais interessante nessa análise é o foco no tipo de
racionalidade econômica que as relações de produção estão apontando. De um lado,
estavam situações em que o trabalho escravo surgia como um complemento para uma
reprodução que era ditada pelo ciclo de vida da família, em sua busca de se manter
como produtores independentes. De outro, estavam casos que alcançavam um patamar
superior, no qual a reprodução dessas modestas unidades eram dependentes,
principalmente, da lógica do trabalho escravo. A zona de pecuária extensiva da
Fronteira Meridional – que, por muito tempo foi vista como um local onde o trabalho
cativo e as unidades familiares não eram relevantes - apresentava semelhanças
significativas com os casos apontados por Hebe Mattos. A análise da presença de filhos
e escravos entre os pequenos produtores ajuda a tornar mais clara essa situação.
Dos 103 inventários que listaram até 500 reses, pude identificar com
segurança o estado civil do inventariado, os herdeiros e a idade deles em 96 casos.
701
MATTOS, Hebe Maria. Campesinato e escravidão,, 2001, p. 338.
702
MATTOS, Hebe Maria. Campesinato e escravidão,,2001, p.p 338-339.
363
Confirmando o que havia sido encontrado quando da análise dos criadores e dos
lavradores entre as testemunhas de processos criminais, a importância do casamento
formal era enorme. Nada menos do que 88% dos inventariados eram casados ou viúvos.
Entre os 11 casos de inventariados solteiros, houve 3 em que o titular declarou ter
relações conjugais não formalizadas e reconheceu os filhos dela resultantes. Somando
esses casos com aqueles onde os inventariados eram casados, ficou um total de 88
processos para a análise. A média de filhos foi de 4 por casal inventariado.
703
Para
avaliar a importância do ciclo de vida familiar na aquisição de escravos, separei os
inventariados em dois grupos. De um lado, os que não tinham filhos com mais de 15
anos;
704
de outro, o que já tinham um ou mais filhos acima dessa idade.
TABELA 8.6 - PRESENÇA DE ESCRAVOS NOS INVENTÁRIOS SEGUNDO A IDADE DO
PRIMEIRO FILHO (ALEGRETE, 1831-1870)
Idade do 1º.
Filho
Inventários com
escravos
Média de cativos
por inventários
com escravos
Número de
Escravos
Número de
Inventários
< 15 anos
60,5 % 3 71 38
> 15 anos
72,0% 4 144 50
Total 69,3% 3 215 88
Fonte
: “Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. Cartório do Cível e Crime.
Cartório da Provedoria. 1831 a 1870. APRS.”
Tanto a proporção de senhores quando a média dos plantéis era menor para
os que não tinham filhos com mais de 15 anos. Os casais jovens, ainda sem filhos ou
apenas com filhos pequenos, tinham menores condições de adquirir cativos. Mais
importante: como se pode ver no gráfico “8.C”, entre os escravos dessas famílias jovens
havia mais mulheres e crianças. Os homens eram muito poucos, menos da metade do
que no caso das famílias mais maduras.
705
703
Em 2 desses casos tratavam-se de casais sem filhos biológicos, mas que fizeram testamentos e
deixaram os bens para filhos que, em suas palavras, “desde pequenos criamos como nossos”.
704
Entre os 38 inventários sem filhos com mais de 15 anos, apenas 02 não tinham filhos. Podiam se tratar
de casais ainda muito jovens ou de casais velhos que não haviam conseguido ter filhos.
705
Como no capítulo anterior, segui a metodologia corrente e considerei “crianças” aquelas com até 14
anos, embora seja necessários lembrar que isso não é absoluto, uma vez que existem alguns escravos
designados como “campeiros” e que tinham entre 09 e 14 anos.
364
GRÁFICO 8.C - CARACTERÍSTICAS DAS ESCRAVARIAS EM RELAÇÃO À IDADE DO
PRIMEIRO FILHO SENHORES COM ATÉ 500 RESES (ALEGRETE, 1831-1870)
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
Homens Mulheres Crianças
% escravos
< 15 anos > 15 anos
Fonte: “Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. Cartório do Cível e Crime.
Cartório da Provedoria. 1831 a 1870. APRS.”
A semelhança com o que ocorria com os camponeses do sudeste aparece
nitidamente: quando os casais jovens com filhos pequenos conseguiam comprar
escravos, davam preferência a cativas mulheres, não apenas porque tinham menor
preço, mas também porque elas poderiam ter filhos. Estes, ao crescerem, representariam
um importante acréscimo de mão-de-obra no futuro, quando os senhores estivessem
envelhecendo e a maioria de seus filhos houvesse abandonado a unidade produtiva. Em
um período no qual a senhora estava passando por gestações relativamente freqüentes, a
escrava, por vezes também grávida, tomava conta da maior parte dos serviços
domésticos e ainda podia trabalhar nas lavouras e manejar os pequenos rebanhos de
reses mansas.
Por sua vez, os casais maduros apresentavam índices mais expressivos de
escravos-homens. Ali, eles chegam a superar o percentual de mulheres. Em parte, esses
escravos-homens eram os próprios filhos das cativas, que chegavam então à idade
adulta. Ao lado deles, estavam os escravos adultos que a prosperidade alcançada no
apogeu da produtividade familiar permitia adquirir. Já o índice de crianças, nos dois
casos superior a 40%, mostra como era difícil para os pequenos produtores adquirir
cativos via mercado, com regularidade.
Dessa forma, é possível afirmar que, tamm na Fronteira Meridional, os
ritmos de aquisição de escravos de pequenos produtores eram ditados pelo ciclo
familiar. Para a maioria dessas famílias, não era possível atingir um patamar em que a
reposição do trabalho escravo adquirisse uma regularidade tal que pudesse desvincular
esses pequenos senhores dos imperativos ditados pelas flutuações da mão-de-obra
365
familiar, ao longo da vida. Os dados sugerem, ao contrário, que eram as condições do
trabalho da família, suas estratégias e formas de organização, que estavam orientando
seus cálculos quando decidiam investir em escravos.
Como se pode ver nos gráficos “8.D.” e “8.E”, a configuração assumida pela
posse de escravos entre os pequenos produtores não se repete entre os grandes, nem
entre aqueles que possuíam de 501 a 2.000 reses. Nesses dois grupos, a diferença entre
famílias jovens e as maduras era muito pequena. A especificidade apresentada pelos
pequenos produtores sugere que a lógica da aquisição de escravos entre os
estabelecimentos de variadas envergaduras produtivas era mesmo diferente.
GRÁFICO 8.D - CARACTERÍSTICAS DAS ESCRAVARIAS EM RELAÇÃO À IDADE DO
PRIMEIRO FILHO SENHORES COM MAIS DE 2.000 RESES (ALEGRETE, 1831-1870)
0,0%
10,0%
20,0%
30,0%
40,0%
50,0%
60,0%
70,0%
Homens Mulheres Crianças
% escravos
< 15 anos > 15 anos
Fonte: “Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. Cartório do Cível e Crime.
Cartório da Provedoria. 1831 a 1870. APRS.”
GRÁFICO 8.E - CARACTERÍSTICAS DAS ESCRAVARIAS EM RELAÇÃO À IDADE DO
PRIMEIRO FILHO SENHORES COM 501 A 2.000 RESES (ALEGRETE, 1831-1870)
0,0%
5,0%
10,0%
15,0%
20,0%
25,0%
30,0%
35,0%
40,0%
Homens Mulheres Crianças
% escravos
< 15 anos > 15 anos
Fonte: “Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. Cartório do Cível e Crime.
Cartório da Provedoria. 1831 a 1870. APRS.”
366
A nova historiografia argentina tem escrito reiteradamente sobre o que
chamam de campesinos pastores y labradores.
706
De fato, os dados analisados acima
ressaltam os traços camponeses de parte significativa dessas famílias que tinham menos
de 500 reses. Elas também criavam cavalos e, eventualmente, ovelhas; faziam
plantações em maior ou menor grau; podiam ter a propriedade da terra ou estabelecer-se
a favor nas terras de outros; empregavam-se eventualmente ou estacionalmente como
peões de campo ou em diferentes formas de trabalho por jornal.
Aliás, um estudo que aparece nas primeiras páginas de uma agenda de
pesquisa sobre esses grupos deve investigar a hipótese de que, provavelmente, essas
famílias camponesas não constituíam unidades produtivas isoladas. Certamente, a
precariedade e, por vezes, a exigüidade dos recursos dificultava a integração de mais de
um núcleo familiar, empurrando as novas gerações para a migração. Ainda assim, suas
estratégias possivelmente envolviam arranjos que iam além da família conjugal e faziam
circular recursos por uma malha mais ampla de parentes. Por exemplo, pode-se
imaginar que os poucos escravos pertencentes a essas famílias servissem não apenas a
seus senhores, mas pudessem também ser aproveitados por outros ramos de uma mesma
parentela.
Ao lado do trabalho familiar, Hebe Mattos analisou outras duas
características do campesinato, o acesso estável à terra e um certo grau de autonomia,
apontando como elas se apresentavam no contexto específico do Brasil escravista. Ali, o
sistema agrário extensivo, a possibilidade de se apossar de terras devolutas ou de se
estabelecer em terras que eram, nominalmente, de outros, faziam com que o acesso
estável à terra não fosse contraditório com o deslocamento espacial. Ao contrário,
muitas vezes era exatamente a migração para áreas de fronteira aberta que possibilitava
a manutenção da produção independente. Essa relativa facilidade de acesso à terra
conjugada ao trabalho familiar permitiam que se alcançasse níveis importantes de
autonomia. Esta não implicava em isolamento, mas em integração sem total
subordinação.
707
A autora salienta que, no conceito de camponês, autonomia e
subordinação não são excludentes. Havia uma tensão entre esses pólos, que gerava
combinações variadas.
708
Principalmente: a noção de camponês se liga a uma
experiência concreta de parte das populações rurais que, mesmo quando migravam e
tornavam-se despossuídas, buscavam reproduzir nos locais de chegada a situação
706
GELMAN, Jorge. Campesinos y Estancieros..., 1998. GARAVAGLIA, Juan Carlos. Pastores y
Labradores de Buenos Aires..., 1999. SCHMITT, Roberto. Los Pastores-labradores de las lomadas
entrerrianas. Ganadería, Agricultura y Medio-Ambiente en el litoral argentino del siglo XIX, 2006.
707
MATTOS, Hebe Maria. Campesinato e escravidão,, 2001, p. 240.
708
MATTOS, Hebe Maria. Campesinato e escravidão,, 2001, p.333.
367
vivenciada anteriormente, ainda que nem sempre conseguissem.
709
Os dados, já
analisados, sobre estado civil e idade das testemunhas de processos criminais, em
Alegrete, sugerem que esse projeto estava presente entre muitos daqueles que iam se
assalariar nas estâncias.
O conceito de campesinato tem sido, com justiça, um dos temas mais caros à
teoria social, desde os inícios do século XX. Não tenho a pretensão de adentrar, aqui,
neste rico e antigo debate. O que não posso deixar passar em branco é o fato de que
parte importante dos pequenos produtores, estudados neste capítulo, compartilhavam os
traços apontados por Hebe Mattos para populações camponesas de outras partes do
Brasil, naquela mesma época. Creio que a maior vantagem da visualização dessas
características no grupo analisado é que ela permite perceber que eles tinham uma
racionalidade sócio-econômica específica, diferente da lógica que balizava a ação da
elite ou dos setores intermediários daquele universo rural. Embora pudessem partilhar
alguns aspectos culturais, eles tinham também outros valores, outros projetos e outras
estratégias. E isso se dava apesar de alguns deles compartilharem com medianos e
grandes criadores a condição de senhores de escravos ou de proprietários de terras.
Quando esses estratos mais abastados se relacionavam com essas famílias,
eles ficavam face a face com um universo que era, em boa medida, diferente dos seus.
De forma análoga ao que foi percebido nos trabalhos, já referidos, a respeito do sudeste
brasileiro e do Prata, também na Campanha Rio-grandense esses níveis de autonomia da
população rural geraram grande parte dos discursos elitistas sobre a “inconstância”
daqueles que iam empregar-se nas estâncias. A resistência em conformar-se às
necessidades da grande produção estavam relacionadas às outras atividades, projetos e
estratégias que animavam essas famílias, ligados à possibilidade de reproduzir níveis de
relativa autonomia no gerenciamento do trabalho familiar, dos destinos da família, da
reiteração de sua produção independente.
8.5 - Arranchados nas terras de outros
As condições de existência dessa produção familiar autônoma não
permaneceram iguais, durante o Oitocentos. Ao contrário, um de seus pré-requisitos, as
possibilidades de se ter acesso ao uso da terra, fosse por posse de uma área devoluta, por
permissão para produzir em terra alheia ou por compra de áreas relativamente pequenas
a preços reduzidos, foi diminuindo ao longo do período estudado aqui.
709
MATTOS, Hebe Maria. Campesinato e escravidão, 2001, p.340.
368
Na primeira metade do século XIX, a propriedade da terra não era um
requisito para a prática da pequena produção, em Alegrete. Lembremos alguns aspectos
vistos no capítulo “2”: nas décadas de 1830 e 1840, a ampla maioria dos pequenos
criadores não tiveram qualquer pedaço de terra avaliado em seus inventários. Eram,
quase todos, agregados que estavam estabelecidos “a favor” nos campos pertencentes a
outras pessoas. A prática do arrendamento de pequenas parcelas não parece ter sido
generalizado, naquele período: em uma busca nas escrituras públicas daqueles 20 anos,
encontrei alguns contratos de arrendamento, mas todos eles envolviam grandes
extensões de terra, por vezes estâncias inteiras, com os animais incluídos, e os
arrendatários eram grandes estancieiros ou filhos destes. Não se pode descartar a
hipótese de ter havido contratos privados ou mesmo informais. Porém, entre os
inventários dos pequenos produtores, abertos naquelas décadas, apenas um refere-se a
arrendamento. Os arrendamentos de áreas menores de terra, como também de pequenos
rebanhos de gado, especialmente os pertencentes a herdeiros “órfãos” logo após a
partilha judicial, tornaram-se comuns apenas na segunda metade do Oitocentos, e
constituem temas que reclamam pesquisas específicas.
Essa situação foi se modificando progressivamente, ao longo do período
estudado. Após 1850, começou a aumentar o percentual de pequenos produtores e a
proporção daqueles dentre eles que eram proprietários da terra. Graciela Garcia
percebeu a transformação ocorrida nos patrimônios: na década de 1830, a maior parte
destes era composta por animais, já na década de 1870, estava investida em terras. Para
a autora, talvez muitos dos criadores tenham optado por ter rebanhos menores em troca
assegurar a propriedade da terra, em um momento em que ela passava a ser um pré-
requisito para a produção independente.
Como vimos, na segunda metade do Oitocentos, a possibilidade de se tornar
produtor sem ter a propriedade da terra foi se reduzindo cada vez mais. Essas mudanças
vinham sendo construídas ao longo do século, pela perpetuação do sistema agrário
extensivo, combinada com a diminuição das propriedades através das gerações, pelo
aumento do preço da terra, pelo fim da possibilidade de se apropriar de um terreno
devoluto sem ônus, ocorrido com o processo de aplicação da Lei de terras, e pelo início
da crise do trabalho escravo. Ganhou mais efetividade na década de 1860, quando o
acesso ao trabalho cativo mostrou-se mais problemático e a terra subiu ainda mais seu
valor. Seguiu com força já fora do período em estudo aqui, nas décadas de 1870, com os
efeitos da Lei do Ventre Livre (1871) e com a ampliação dos conflitos fundiários
369
decididos em escala judicial. Desaguou na década de 1880 e daí para o final do século,
com o processo de cercamento dos campos.
710
Assim, pode-se dizer que a possibilidade de ter acesso facilitado ao uso da
terra existiu em todo o período estudado aqui, mas estava diminuindo, especialmente a
partir de 1850. Esse fator foi cerceando as possibilidades de amplos contingentes de
população rural de alcançarem uma produção autônoma. Mas o que podemos dizer
sobre os graus de autonomia alcançado por esses pequenos produtores, especialmente os
agregados, do início até meados do século XIX? Grande parte da historiografia sobre
diferentes regiões do Brasil ressaltou o caráter de subordinação e dependência que
marcava a existência dessas famílias que se arranchavam em terras das quais não tinham
a propriedade.
711
No Rio Grande do Sul, é seguidamente repetida a visão dos agregados
como inteiramente subordinados aos proprietários de suas terras, servindo-lhes como
mão-de-obra, auxiliando o abastecimento da estância com produtos agrícolas, sendo
protegidos e tutelados por eles, seguindo-lhes nas recorrentes guerras do sul. Em linhas
gerais, é possível concordar com essas colocações.
Contudo, essas relações eram bem menos ordenadas e não eram
automáticas. Em primeiro lugar, nem todo agregado estava arranchado em terras de
grandes proprietários. Esse fato, por si só, relativiza a situação extrema de subordinação
a partir da qual eles tem sido vistos. Além disso, mesmo para o caso dos que estavam
arranchados em terras de famílias de elite, a subordinação existia, mas talvez ela não se
processasse de forma tão simples como tem sido comumente descrita. A análise
qualitativa da documentação estudada e a reconstrução de relações sociais, remontadas a
partir do banco de dados nominal montado nesta pesquisa, dão algumas pistas sobre
essas afirmações. Trata-se, aqui, de lançar algumas hipóteses, que devem ser testadas
em estudos futuros sobre as formas como se estruturavam as relações verticais de
dependência naquela sociedade.
Não há dúvida de que a condição de agregados dava menor grau de
autonomia a essas famílias do que, por exemplo, os “situados” que Hebe Mattos
mostrou serem comuns na primeira metade do século XIX, na província do Rio de
Janeiro.
712
A “situações” consistiam em benfeitorias e lavouras em terra alheia que
710
Para mais detalhes sobre esse processo, ver: CHASTEEN, John Charles. Background to Civil War: the
process of land tenure in Brazil’s southern borderland, 1801-1893, 1991. ZARTH, Paulo Afonso. Do
Arcaico ao Moderno…, 2002. BELL, Stephen. Campanha Gaúcha..., 1998. GARCIA, Graciela. O
Domínio da Terra..., 2005.
711
Uma obra que teve forte influência nessa visão foi o clássico estudo de: FRANCO, Maria Sylvia de
Carvalho. Homens Livres na Ordem Escravocrata. 2ª. ed., 1974.
712
CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Ao Sul da História: lavradores pobres na crise do trabalho escravo,
1987.
370
eram, costumeiramente, vendidas e herdadas. Nos inventários e escrituras públicas
analisados em Alegrete, não há qualquer referência a transações com esse tipo de bem.
Os arranchamentos dos agregados não foram transmitidos por qualquer título legal.
A condição de ser proprietário das terras onde estava instalada uma família
de agregados, sem dúvida, era um instrumento poderoso para que se estabelecesse uma
relação de dependência e subordinação. Tanto isso era reconhecido pelos
contemporâneos, que as testemunhas em processos judiciais deveriam declarar se
fossem agregadas de uma das partes, pois essa condição demonstrava uma vinculação
entre elas, que poderia comprometer seu depoimento.
713
Em 1854, João Telles de Souza
entrou em uma querela judicial contra o Brigadeiro Olivério Ortiz, seu sogro,
envolvendo o inventário de sua falecida sogra. A questão dizia respeito a 600 reses que
sua esposa havia recebido como adiantamento de legítima. João Telles listou, então,
quatro testemunhas. Duas delas eram seus vizinhos e, as outras duas, seus agregados.
Em sua resposta, o Brigadeiro Ortiz desqualificou as testemunhas chamadas por seu
genro, argumentando que ele as tinha convocado por serem “pessoas de sua amizade e
suas dependentes”.
714
Os agregados também podiam ser chamados para garantir a segurança da
propriedade, como no caso dos roubos de gado que vinham acontecendo na estância de
Ermelindo Machado Leão, em 1854. Este declarou que, em virtude do desaparecimento
de algumas reses, “mandou gente espreitar” de noite. Os vigias flagraram os ladrões e
puderam agarrar três deles. Dois dessses homens que foram “espreitar” a mando do
estancieiro eram João Esteves Velasco e Modesto Borda, naturais da Confederação
Argentina, criadores, agregados Ermelindo Leão.
Por outro lado, é bem provável que os agregados ajudassem em algumas
tarefas, principalmente nos casos de marcações e formação de tropas, pois essas
atividades poderiam envolver alguns de suas próprios animais. Lembremos que as
estâncias não tinham divisórias internas e os rebanhos de seus moradores estavam
sempre misturados. Além disso, os agregados podiam fornecer produtos agrícolas para
os proprietários.
715
Fornecidas eventualmente, essas prestações funcionavam como
demonstração do reconhecimento, por parte dos agregados, do favor que recebiam do
proprietário que permitia sua estada no local. Entretanto, nada indica que os
proprietários pudessem contar com esses produtos ou com essa mão-de-obra de maneira
713
“Processos Criminais. Alegrete. M.78, N. 2753, A. 1853. APRS” “Processos Criminais. Alegrete.
M.80, N. 2805, A. 1855. APRS”
714
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 08, N. 111, A. 1852. APRS”.
715
ZARTH, Paulo Afonso. Do Arcaico ao Moderno..., 2002.
371
regular e pudessem confiar nelas para suprir parte importante de sua demanda de
gêneros de abastecimento ou de trabalhadores.
O historiador argentino Jorge Gelman verificou que nenhum dos moradores
das estâncias do governador Juan Manoel de Rosas, que o pesquisador pôde conhecer o
nome, apareceu trabalhando como peão naqueles mesmos estabelecimentos, durante os
anos analisados naquele estudo.
716
Ele concluiu que, ainda que alguns deles pudessem
responder al favor” em alguma volteada de animais ou outra tarefa pontual, eles “...no
parecen ser una fuente de mano de obra segura ni disponible en las estancias que le
daban acogida.”
717
Por sua vez, Hebe Mattos reconheceu que havia diferenças nos
graus de autonomia entre as populações camponesas das diferentes regiões do Brasil.
Nas áreas de ocupação mais antiga, como eram, por exemplo, as zonas açucareiras no
século XIX, um tempo maior decorrido desde o processo de apropriação fundiária fazia
com que fossem mais comuns os arrendamentos e a subordinação pessoal aos
proprietários legais. Ainda assim, ela ressalva que, por exemplo, na zona da mata
pernambucana, na década de 1850, “...as relações de subordinação entre agregados e
proprietários não se desdobravam no aproveitamento regular da força de trabalho ou dos
excedentes agrícolas dos moradores.”
718
Uma vez mais, encontramos em Alegrete uma situação semelhante aos
contextos agrários referidos acima. Vejamos, de novo, a conta de estância elaborada
pelo Brigadeiro Olivério Ortiz, trabalhada no capítulo “7” (ver Quadro “7.1”). Em 1854,
apareceram trabalhando como peões, por três meses, sujeitos que o Brigadeiro chamou
de “Antônio, que pára no fundo” e “Balduíno, que pára no fundo”. Não se tratavam de
posteiros, pois sempre que um peão exercera essa atividade, ela fora indicada
expressamente na conta. Isso ocorreu naquele mesmo ano: estiveram empregados “no
posto”, primeiro, João da Rosa e, depois, o castelhano Reis. Assim, parece que Antônio
e Balduíno eram agregados que moravam nos fundos da estância da Palma, deviam ter
suas plantações e pequenos rebanhos, e justaram-se como peões, durante alguns meses,
naquele mesmo estabelecimento. Veja-se que, quando precisou contar com o trabalho
dos agregados por mais do que uma tarefa pontual, o Brigadeiro Ortiz teve que contratá-
los como peões, pagando o mesmo salário que dedicava aos outros trabalhadores da
pecuária.
716
GELMAN, Jorge, Las condiciones del crecimiento estanciero en el Buenos Aires de la primera mitad
del siglo XIX , 1999, p.p. 117-118.
717
GELMAN, Jorge, Las condiciones del crecimiento estanciero en el Buenos Aires de la primera mitad
del siglo XIX , 1999, p. 118.
718
MATTOS, Hebe Maria. Campesinato e Escravidão, 2001, p. 343.
372
Lembremos, ainda, que vinha sendo difícil para o Brigadeiro contar com
peões posteiros, o que o obrigava, seguidamente, a contratar peões por tarefa para fazer
recrutas em busca de gado evadido da estância. Se os agregados fossem uma mão-de-
obra disponível para os proprietários, não teria sido difícil para Ortiz manejar um deles,
de seu arranchamento para o posto. Afinal, sabemos que, nesse período, os postos
consistiam exatamente em arranchamentos colocados nos limites das propriedades, onde
o posteiro poderia viver com sua família, plantar e ter alguns animais. No entanto, o
estancieiro não pôde lançar mão desse expediente. Antônio e Balduíno parecem ter
preferido manter um maior grau de autonomia, permanecendo nos arranchamentos com
os quais se identificavam e assalariando-se por um tempo menor, no momento de maior
demanda laboral da estância. Tinham sua própria produção para cuidar e tinham alguma
opção para assalariarem-se como trabalhadores eventuais em diversas estâncias e tropas.
As próprias condições dos pactos tácitos entre agregados e proprietários
devem ser problematizadas. Nem sempre a história da relação entre eles equivalia ao
modelo no qual o proprietário tinha a estância e depois, reconhecendo com clareza de
quem eram aquelas terras, o agregado pedia permissão e erguia, ali, o seu
arranchamento.
719
Essa versão legitimadora da grande propriedade peca por
anacronismo. Como demonstrou Graciela Garcia, muitas vezes, sobretudo na primeira
metade do século XIX, em um contexto de extrema imprecisão dos limites das
propriedades, estabelecimentos de pequenos posseiros acabaram sendo engolidos pela
expansão posterior das estâncias vizinhas ou sobrepostos por doações de sesmarias ou
pelas compras que se estendiam ilegalmente sobre seus domínios.
720
Essa situação
gerava conflitos que podiam se resolver pela força ou acabar parando nas instâncias
judiciais. Todavia, um outro tipo de desfecho deve ter acontecido em muitos casos, sem
deixar documentos dos quais os historiadores pudessem se servir. É provável que muitas
dessas situações tenham envolvido uma negociação e acomodação, em que o posseiro,
mais fraco socialmente, acabava por reconhecer a propriedade e se tornar um agregado.
Sua posse seria precária, não há dúvida. Não poderia vendê-la ou transmiti-la
legalmente por herança. No entanto, os direitos de uso da terra que ele acreditava ter,
calcado no costume e na experiência anterior sua ou de seus familiares, em outras terras,
desempenhavam um papel importante no estabelecimento do que julgava serem seus
direitos e deveres e que balizava, na medida do possível, sua relação com o proprietário
das terras onde estava arranchado.
719
CASTRO, Hebe Maria. Ao Sul da História..., 1987, p. 119.
720
GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra..., 2005.
373
Assim, durante o período em estudo, os agregados certamente ajudavam nos
trabalhos das estâncias, mas não parecem ter sido uma fonte confiável de mão-de-obra
que garantisse alguma regularidade para os proprietários. Conflitos entre essas partes
existiram desde o início do século. Porém, essa situação parece ter encontrado um
momento crítico a partir de 1860, quando a valorização da terra e a crise do trabalho
escravo fizeram com que os proprietários tivessem novos parâmetros para renegociar os
pactos desiguais que mantinham com as famílias arranchadas em seus campos. Talvez o
acirramento desses conflitos e a diminuição da tolerância dos proprietários para com
produtores independentes morando em suas terras, apontados nos já referidos estudos de
John Charles Chasteen e Graciela Garcia, tenham ocorrido porque muitos agregados se
recusavam a reduzir seus níveis de autonomia. Em uma conjuntura onde terras e
trabalhadores regulares eram ainda mais avidamente buscados, uma família que
ocupava uma parte de terras e não compensava esse fato com a prestação de trabalhos
regulares começava a se tornar um fardo pesado demais, dentro da lógica do
proprietário.
Por outro lado, uma das vantagens de se ter agregados, na primeira metade
do século XIX, estava desaparecendo no período seguinte. Ao reconhecerem o domínio
do proprietário sobre a terra, em uma realidade onde a confusão de limites e direitos
fundiários era a regra, eles agiam como legitimadores e mantenedores dessa
propriedade. Ao longo da segunda metade do Oitocentos, o gradativo processo de
aplicação da Lei de Terras, de valorização dos títulos legais, de maior definição da
propriedade fundiária foi diminuindo a importância desse papel dantes desempenhado
pelos agregados. Papel esse que, aliás, nem sempre estava isento de riscos para o
proprietário. Esse talvez tenha sido o início de um processo que desembocou, quase um
século depois, no novo significado que o termo agregados assumiu na segunda metade
do século XX, no Rio Grande do Sul. Ele passou a designar, preferencialmente, a
família que vivia nos campos de um proprietário, podia plantar e ter alguns animais e,
em contrapartida, “reparava o campo” e auxiliava regularmente nos trabalhos da
pecuária.
Vejamos, agora, a questão das relações de reciprocidade vertical entre
proprietários e agregados. Se estes não eram uma reserva sempre disponível de
trabalhadores, ao menos se pode pensar que eram uma fonte segura de clientes, de
pessoas com quem sempre se podia estabelecer relações de favor e proteção em troca de
lealdade, obediência e defesa dos interesses dos proprietários?
374
O fato de ser proprietário da terra onde estava arranchado um agregado
certamente era um fator bastante eficaz para a construção de relações de reciprocidade
vertical. Porém, ele não estava sozinho e não era absoluto. Outros tipos de
relacionamento entre estratos sociais podiam se combinar ou disputar espaço com ele. O
compadrio, o fornecimento de crédito e o comprometimento eleitoral eram alguns
deles.
721
Outro, muito importante naquele contexto de endemia bélica, era o que dizia
respeito aos recrutamentos e à guerra. A grande maioria dos estancieiros não era
comandante militar. No entanto, a maior parte deles tinha um parente, de sangue ou por
aliança, que havia alcançado o oficialato das Milícias, da Guarda Nacional, ou mesmo
do exército de primeira linha. Como vimos, esses oficiais buscavam construir e
sustentar um cabedal militar, que tinha como um de seus principais componentes a
capacidade de arregimentar homens em armas. Em muitos casos, o recrutamento podia
ser feito através da mediação de seus parentes e aliados que eram proprietários de terras
onde viviam famílias de agregados. Isso, certamente, foi mais um motivo para o
Marechal Bento Manoel Ribeiro ver com satisfação o casamento de seu filho com a
filha de Antônio José de Oliveira, dono vastas extensões de terra e sem nenhum cargo
militar. Entre os moradores arranchados em suas vastíssimas extensões de terra,
estavam potenciais soldados que iriam engrossar as hostes de Bento Manoel e ajudar a
compor o cabedal militar daquele comandante. O mesmo se aplica aos diversos outros
matrimônios estabelecidos entre famílias de estancieiros-militares e de estancieiros
“civis”, como aqueles comentados no capítulo “5”.
Todavia, existia também uma relação que se dava diretamente entre os
chefes militares e os possíveis soldados, sem passar necessariamente pela mediação de
outras pessoas. Em 21 de setembro de 1845, um dia depois do acordo de paz entre
imperiais e farroupilhas, José da Rocha ditou seu testamento.
722
Ele não tinha terras,
mas possuía 560 reses e 6 escravos: Joana, de 50 anos; Felipa, de 25; Paulo, com 18; e
mais 3 crianças. Era viúvo e tinha dois filhos homens (José Antônio da Rocha, de 21
anos e Joaquim, de 10 anos de idade) e uma filha mulher (Cândida, de 12 anos). Ele era
agregado dos herdeiros de Sabino Antônio da Cunha, em Alegrete. Entretanto, fora ser
cuidado de sua doença na casa do Tenente Hipólito Francisco de Paula, em Uruguaiana.
721
Para relações de clientela no Brasil do século XIX, ver o clássico estudo de: GRAHAM, Richard.
Clientelismo e política no Brasil do Século XIX, 1997. Um estudo sobre relações de reciprocidade vertical
e sua relação com o compadrio está em: HAMEISTER, Martha. Para dar calor à nova povoação: estudo
sobre estratégias sociais e familiares a partir dos registros batismais da Vila do Rio Grande (1738-
1863), 2006. Sobre esse tipo de relações nas eleições do Rio Grande do Sul, durante a segunda metade do
século XIX, está sendo feito em uma pesquisa, ainda em andamento, por: VARGAS, Jonas Moreira. Em
Nome do Pai, do Filho e dos Cunhados: disputas políticas da estância ao parlamento, (texto inédito).
722
“ Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes, M 06, N. 84, A. 1847.”
375
Este fora também o testamenteiro de José da Rocha. Em suas disposições, o testador
nomeou o Tenente Hipólito como tutor de seus filhos menores e deixou arrendadas a ele
as reses que possuía, para que pudesse prover o cuidado dos órfãos com o dinheiro do
arrendamento. Também declarou que o escravo Paulo deveria ser vendido para que,
com parte do valor, seu testamenteiro fosse indenizado dos gastos que fizera durante o
período em que havia cuidado de sua moléstia. José da Rocha fora cabo das forças que
combateram contra os farroupilhas, nas quais lutava também o Tenente Hipólito.
723
Suas relações podem ter se forjado ou se intensificado durante a guerra. De qualquer
maneira, as relações verticais de proteção que José da Rocha estabelecera não se deram
preferencialmente com os proprietários das terras onde criava seus gados.
Além disso, nas palavras de Hebe de Mattos “...as relações de solidariedade
culturalmente sólidas e não simplesmente táticas eram, em geral, estabelecidas entre
famílias e não entre indivíduos.”
724
Cândida Maria da Rocha, filha do já referido José da
Rocha, casou-se com Tomáz da Luz, na década de 1850. Esse casamento mostra que ela
estava inserida em uma rede de sociabilidade que envolvia uma família que tinha fortes
laços de dependência com a parentela do Tenente Hipólito, seu tutor. Ao casar-se com
ela, Tomaz da Luz já tinha uma filha natural, de nome Francisca, que havia entregado
para ser criada por seu irmão, Francisco da Luz e sua mulher Felicidade Perpétua do
Céu. Em 1839, Felicidade recebeu um legado no testamento da rica estancieira Dona
Maria Joaquina da Silva, que era cunhada do Tenente Hipólito. Por sua vez, em 1861, o
testamenteiro de Francisco da Luz, marido de Felicidade, foi o Tenente-Coronel
Severino Ribeiro de Almeida, genro de Dona Maria Joaquina da Silva.
Francisco da Luz e Felicidade Perpétua do Céu tinham ¼ de légua de campo,
onde criavam 140 reses.
725
Quando Francisco faleceu, em 1861, com a filha adotiva já
adulta, o casal tinha 3 escravos: Eva, de 50 anos; Felisberto, 40 anos “sem valor”; e
Felipe, de 20 anos de idade. Eram pequenos produtores com o perfil de propriedade
escrava vinculado ao ciclo familiar, apontado no item “8.4”. Aí aparecem camponeses
que não eram agregados de ninguém, mas que claramente estabeleceram uma relação
reiterada com uma família da mais alta elite agrária de Alegrete. Veja-se que as relações
cuja documentação consegui reunir começaram em 1839, com o legado recebido por
Felicidade e chegaram a 1861, quando do testamento de Francisco da Luz.
A importância das relações familiares apareciam, também, em momentos
críticos, como as épocas mais agressivas de recrutamentos. Se estes causavam
723
“Autoridades Militares. Marechal Bento Manoel Ribeiro, n. 379 , data 31.10.1843.”
724
MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio..., 1998, p. 65.
725
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, M.02, N. 42., A. 1861.”
376
dificuldades para as grandes estâncias, tornando mais rara a mão-de-obra e mais altos
seus salários, muito pior ainda elas eram para aqueles que dependiam essencialmente do
trabalho familiar. Em sua obra sobre milicianos e guardas nacionais no Rio Grande do
Sul, José Iran Ribeiro analisou casos de pais que procuravam negociar com os oficiais a
quantidade e os termos do alistamento de seus filhos. Contudo, não apenas as ligações
verticais, mas também as relações de solidariedade horizontal foram mobilizadas como
redes de proteção para os que buscavam escapar das malhas do recrutamento. Em, 1826,
o Coronel de Milícias Francisco de Carvalho reclamava que os irmãos Joaquim e
Florisbelo Flores, moradores de Santa Ana, em território que depois seria do município
de Alegrete, tendo sido recrutados em 1822, haviam buscado esconderijo na casa de seu
tio Francisco Flores no distrito de Cruz Alta e lá permaneceram até que o capitão
comandante do distrito de Santa Ana, que os havia recrutado, fosse substituído no
cargo. Quando isso ocorreu, eles voltaram para a casa do seu pai, em Santa Ana. E,
ainda acrescentou, de modo a não deixar dúvidas: “a rebeldia daquela família Flores é
conhecida naquele distrito, e sendo ela tão numerosa, não é possível poder-se
conseguirem o serem alistados, por desaparecerem logo que são chamados.”
726
Enfim, os exemplos apontados aqui sugerem que, apesar da propriedade da
terras ser um instrumento poderoso, os liames que conectavam verticalmente dois
sujeitos, nem sempre se confinavam dentro dos imprecisos limites das estâncias:
podiam atravessá-los. A idéia do atrelamento absoluto dos agregados para com os
proprietários de suas terras no sul do Brasil ganhou relevo na obra de Oliveira Vianna e
vem sendo repetida de forma difusa na historiografia.
727
Repito: é bastante claro que a
condição de proprietário da terra onde estava arranchada uma família era um poderoso
instrumento para o estabelecimento de relações de dependência. Entretanto, o que foi
debatido aqui indica que essas relações não deve ser naturalizada. Sua freqüência, sua
difusão em uma determinada realidade social, as outras relações verticais e horizontais
que podiam aparecer em conjunto com elas ou mesmo agir no sentido de embaraçar sua
efetividade, tudo isso deve ser tema de pesquisa.
Como lembrou Hebe Mattos, as noções de “clãs parentais” presente na obra
de Oliveira Vianna, e a de “família patriarcal”, de Gilberto Freyre, conseguiram
conceituar família ultrapassando os limites da co-habitação, mas trazem a idéia da
absorção cultural de escravos e dependentes livres pela família senhorial.
728
Como referi
726
RIBEIRO, José Iran. RIBEIRO, José Iran. Quando o Serviço os Chamava: milicianos e guardas
nacionais no Rio Grande do Sul (1825-1845), 2005, p.70.
727
VIANNA, Oliveira. Populações Meridionais do Brasil – vol. 01, 1987.
728
MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio..., 1998, p. 56.
377
no capítulo “5”, não estou entre os que consideram que se deva jogar fora os conceitos
de “família patriarcal”, veiculados por aqueles autores. No entanto, esse traço da
impossibilidade da existência de dinâmicas, formas de organização e estratégias
familiares específicas de escravos e dependes livres é o ponto daquelas teorias que
considero menos aceitável. É claro que eles estavam vinculados às famílias senhoriais,
mas tinham lutas e estratégias próprias. Estavam muito longe de se constituírem em
meros instrumentos da atuação das famílias de elite. Para ter o atendimento à suas
necessidades de mão-de-obra, para angariar uma malha de dependentes, para
reproduzir-se como elite daquela sociedade, não bastava ser proprietário de grandes
extensões de terra. Esse era um ótimo instrumento para construir dependentes, mas
devia estar ao lado de um gerenciamento competente das atividades econômicas e,
sobretudo, de uma capacidade de usar seus recursos privilegiados para estabelecer
importantes relações sociais horizontais (como vimos nos capítulos anteriores) e
verticais.
As diferentes fontes instituidoras de relações de reciprocidade vertical –
onde a propriedade da terra marcava forte presença, mas não estava sozinha - eram
disputadas pelas famílias que tinham condições de se colocar em posição de distribuir
benesses através delas. Por sua vez, os subalternos não tinham um papel apenas passivo
nessas relações. Para eles, ter ligações com determinadas famílias das camadas
superiores permitia acessar recursos que não estariam à disposição de outros sujeitos de
condição social semelhante à sua. Essas relações instituíam novas diferenças dentro do
estrato dos pequenos produtores e dos trabalhadores. O preço pago era a reprodução de
uma hierarquia social desigual e da posição privilegiada dos que conseguiam reiterar-se
no topo.
Como vimos, porém, nem só de homens livres se formavam os grupos
menos favorecidos daquela sociedade. Os escravos, com seus projetos, lutas e trabalho,
construíam também as relações de dominação e solidariedade que davam forma àquela
sociedade.
8.6 - O “vaqueano do Quaraí” e o preto “roubador” de escravos
Como vimos, a nova historiografia platina sobre o período colonial e alguns
trabalhos recentes no Rio Grande do Sul vêm apontando que a presença escrava era
estrutural na grande pecuária. Os maiores estancieiros não tinham a confiança de que
poderiam suprir com trabalhadores livres toda a demanda laboral de seus
estabelecimentos. A população livre não conformava uma massa de despossuídos, os
378
agregados não se transformavam facilmente em trabalhadores estáveis, os recrutamentos
arrancavam os homens de seus trabalhos. Tudo isso está correto. Porém, é preciso
lembrar que o ato de comprar escravos não garantia, por si só, que se poderia contar
com eles de forma estável. As relações escravistas precisavam ser construídas,
reiteradas a cada dia, em uma luta que envolvia vigilância, violência, fugas, revolta
aberta, mas também um processo cotidiano de negociação entre desiguais, de busca, por
parte dos escravos de ampliação das margens de liberdade, de reivindicação e
acomodação. Nesses embates, a escravidão se viabilizava, mas também se desgastava.
Enfim, as relações escravistas envolviam a interação entre, de um lado, uma
política de domínio senhorial e, de outro, uma cultura de resistência escrava. Nada disso
é novidade, uma importante e já sólida produção historiográfica, apesar de divergir entre
si em alguns aspectos, tem desenvolvido essas questões em diferentes contextos dentro
do Brasil escravista.
729
Sem qualquer pretensão de esgotar o assunto, neste sub-
capítulo procuro tratar, rapidamente, de alguns desses pontos de embate, conquistas e
acomodações entre escravos e senhores na Campanha.
Comecemos analisando um caso de tentativa frustrada de fuga. Ele pode
ajudar a compreender a busca do rompimento total com o cativeiro, mas também a
própria dinâmica diária das relações escravistas. E mais: aponta a constante interação
entre livres, libertos e cativos, naquele mundo que partilhavam a partir de suas
diferentes condições.
Foi um alvoroço: chegou até o delegado de polícia de Alegrete uma denúncia
de que se estavam seduzindo alguns escravos ali e no município vizinho, de
Uruguaiana, para que fugissem para o Estado Oriental. Era outubro de 1850. O acusado
era Manoel Paulino Filho, qualificado pelo delegado como sendo um “soldado desertor
do Corpo do Tenente-Coronel Manoel Luiz da Cunha”.
730
A primeira testemunha,
Liberato Teixeira Brasil (branco, 36 anos, casado, natural de Encruzilhada, criador)
contou que a denúncia fora feita por Manoel Rodrigues, conhecido por Maneco Meu
Deus, capataz da estância do Tenente-Coronel Apolinário de Souza Trindade. Maneco
descobrira que os escravos de seu senhor tinham sido convidados para fugir. Escrevera,
então, um bilhete a Delfino Antônio da Rosa, dando conta que seu escravo, o mulato
Adão, também havia entrado no convite. Além dele, teriam sido convidados, ainda, dois
729
Entre outros: REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito, 1989. CHALHOUB, Sidney.
Visões da Liberdade, 1990. FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz nas senzalas: famílias
escravas e tráfico atlântico. Rio de Janeiro, c. 1790 – c. 1850, 1997. MATTOS, Hebe Maria. Das Cores
do Silêncio..., 1998. SLENES, Robert. Na Senzala uma Flor, 1999. MOREIRA, Paulo Roberto. Os
Cativos e os Homens de Bem. Experiências negras no espaço urbano, 2003.
730
“Processos Criminais. Alegrete, M. 77. N. 2697, A. 1850. APRS.”
379
escravos de Dona Policena, viúva de Matheus Muniz, outro escravo de Manoel José
Flores e dois de dona Listarda (sic), viúva do Tenente-Coronel Jacinto Guedes da Luz.
Os convites teriam sido feitos pelo réu, “que fazia cabeça nessa sedução.” Em seu
depoimento, Delfino Antônio da Rosa (branco, 45 anos, natural de Viamão, criador)
contou que recebeu o bilhete com o aviso e interrogara seu escravo. O mulato Adão
disse a seu senhor que, de fato, recebera o convite, mas que não tinha aceitado. Ao que
Delfino disse ter “castigado, correcionalmente”, o dito escravo. Seguem-se mais dois
testemunhos que repetem os anteriores. Mas não nos esqueçamos do mulato Adão, ele
voltará a aparecer nessa história.
Além dos problemas comuns a diversas outras áreas escravistas, os senhores
da Fronteira Meridional conviviam, ainda, com outros dois: a proximidade com países
onde a escravidão já havia sido abolida e a presença recorrente da guerra. O primeiro
deles foi usado como argumento para que se defendesse a idéia de que a escravidão não
podia desempenhar um papel importante nas regiões da Campanha e das Missões.
731
Trabalhando a cavalo, em campos abertos, os escravos não hesitariam em fugir para os
países vizinhos. Os custos da vigilância se tornariam inviáveis. Os escravos, de fato,
fugiam. Iam para o Estado Oriental, para Corrientes, para os matos de “Cima da Serra”.
No entanto, ao menos ao longo do período estudado aqui, essas fugas não foram tantas
que inviabilizassem a reprodução da escravidão na Fronteira. Como vimos no capítulo
“7”, as grandes estâncias utilizaram-se do trabalho escravo com muita força até, pelo
menos, a década de 1860. Mesmo uma parte dos médios e pequenos produtores pôde
contar com cativos durante todo o período estudado aqui.
As novidades começam a aparecer no depoimento da 5ª. testemunha.
Leandro Francisco da Rocha (branco, 27 anos, natural “deste distrito”, criador) disse
saber que havia uma reunião de negros para fugirem para o Estado Oriental e quem
ficara por cabeça nessa sedução eram Manoel Paulino Filho e um escravo negro de
Manoel José Flores. Disse mais: que sabia por ouvir dizer que os escravos do Tenente-
Coronel Apolinário Trindade ofereceram-se para participar da fuga prometendo
contribuir com armamentos que seu senhor guardava em casa, por ser comandante de
uma companhia de guardas nacionais. O depoimento de Rocha trazia mais um réu ao
processo: um dos escravos que, nas outras versões, aparecia apenas como um dos
convidados para fugir. Esse escravo foi, então, interrogado. O preto Manoel (natural de
Cruz Alta, escravo de Manoel José Flores) respondeu que tinha sido convidado para
731
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional, 4ª. ed., 1997.
FREITAS, Décio. O Mito da Produção sem Trabalho, 1980.
380
fugir pelo escravo Adão, de Delfino Antônio da Rosa. Perguntado se o mulato Adão
tinha lhe dito quem fazia cabeça neste convite para fuga, respondeu que Adão não lhe
tinha dito mais nada senão “que ele Adão era vaqueano do Quarahy”. Foram, então,
buscar o mulato Adão na estância de seu senhor para que também fosse interrogado.
Adão (escravo de Delfino Antônio da Rosa, natural de Encruzilhada) disse
ter sido convidado para fugir por Manoel Paulino Filho e um escravo de Manoel José
Flores, de nome Manoel e que este escravo que lhe tinha convidado lhe dissera que
também estavam convidados um ou dois escravos do falecido Tenente-Coronel Guedes
e que ele respondente não sabia quem eles eram. Disse, ainda, que o mesmo escravo de
Flores lhe dissera que de Alegrete vinha uma porção de gente, para o mesmo fim. Não
sabia de armamentos nem de cavalos e que não sabia de qualquer mal que fossem fazer
aos brancos. Disse mais: que não tinha aceitado o convite porque sabia que seu senhor o
queria vender e que não tinha contado a seu senhor porque já fugira uma vez para o
Estado Oriental, “e que tendo chegado ali o prenderam e o mandaram para o Salto,
para servir de soldado e como era inimigo de ser soldado, tinha fugido do caminho e
tinha vindo apresentar-se a seu senhor; e que não tinha dito nada a seu senhor porque
tinha medo dos outros e que quando seu senhor lhe perguntou, ele logo lhe contara.”
732
Colocados em acareação, os escravos Manoel e Adão confirmaram suas
versões anteriores, acusando-se mutuamente. A esperança de resolver o caso passava
pelo interrogatório do réu, Manoel Paulino Filho, que havia sido preso em Uruguaiana e
estava sendo conduzido para ser ouvido em Alegrete. Manoel Paulino Filho (natural da
Vila de São Gabriel, vivia do trabalho de campo) deu um depoimento que deve ter
frustrado as autoridades. O réu negou qualquer envolvimento no caso e disse não
entender o motivo de sua prisão. Alegou que, ao tempo em que se dizia ter cometido o
crime, estava em casa de Gaspar de Moura e que lá se conservara desde então. Manoel
Paulino foi absolvido por unanimidade.
Quando se busca reconstruir a história a partir desses fragmentos, surgem
versões plausíveis que informam bastante sobre o mundo que escravos e livres
construíam em uma área de fronteira e guerra. Em primeiro lugar, aparece a
possibilidade de uma fuga coletiva, organizada por informações a longas distâncias e
que devem ter envolvido tanto escravos quanto, ao menos, um homem livre. Manoel
Paulino, que aparece no início do processo como sedutor de escravos, termina absolvido
e resta a suspeita de que possa ter se envolvido na fuga, mas provavelmente não
arquitetou sozinho o plano. Chamado de desertor pela autoridade policial, ele declarou
732
“Processos Criminais. Alegrete, M. 77. N. 2697, A. 1850. APRS.”
381
que era peão de estância e que, durante o tempo em que se diz estar desertado, esteve
trabalhando na chácara de Manoel José de Carvalho, nas imediações da vila de Alegrete
e, depois, na estância de Gaspar de Moura, em Uruguaiana. Apontá-lo como desertor
era uma forma de enriquecer a denúncia, pois já o qualificava como criminoso e
perigoso. Mesmo sendo desertor, Manoel Paulino andava campo a fora e se empregava
em diferentes estabelecimentos. Isso era possível, principalmente em tempos que não se
estava em guerra aberta. Como vimos, os desertores utilizavam uma rede de proteção
que envolvia laços familiares e de amizade. É possível crer que, depois de algum tempo,
pudessem retomar suas atividades com normalidade. A extrema escassez de soldados
fazia, inclusive, com que os comandantes tivessem que aceitar de volta antigos
desertores, perdoando-os.
733
Manoel Paulino bem pode ter tido contato com os dois escravos acusados de
serem “cabeças” da sedução. Ele disse ter inimizade com Delfino da Rosa, senhor do
mulato Adão e morador de Uruguaiana. Isso tanto sugere que pode ter trabalhado para
Delfino no passado como lhe dava um motivo para ajudar na fuga. Por outro lado, disse
estar trabalhando na estância de Gaspar de Moura, que também ficava em Uruguaiana.
A família de Gaspar de Moura tinha campos em Alegrete, vizinhos aos de Manoel José
Flores, senhor do preto Manoel.
734
E mais, os Guedes da Luz, que também tiveram dois
escravos convidados para fugir, eram igualmente vizinhos desses campos. Manoel
Paulino podia, sim, ter ligações com os dois escravos acusados de serem co-autores dos
planos de fuga, bem como com outros cativos convidados para a ação. Ele tinha
condições de servir de comunicação entre vários deles.
Essas relações entre cativos de diferentes escravarias e entre eles e homens
livres pobres eram importantes não apenas para a orquestração de fugas, como também
para formar laços de solidariedade bastante estáveis. Como mostrou João Fragoso, em
artigo recente sobre o Rio de Janeiro do século XVII, o conjunto formado por essas
relações redesenhava a geografia social do mundo agrário.
735
Esse espaço social era
muito mais complexo do que a divisão entre as unidades produtivas (elas mesmo, como
vimos, bastante imprecisas).
Por sua vez, o mulato Adão disse, em seu depoimento, que já havia fugido
uma vez para o Estado Oriental. Ao contar esse fato, ele acabou por corroborar a versão
do preto Manoel, quando este afirmou que Adão lhe garantira ser “vaqueano do
733
RIBEIRO. José Iran. Quando o Serviço os Chamava..., 2005.
734
“Registros Paroquiais de Terras. Alegrete. Livro 01, n. 189.
735
FRAGOSO, João. Principais da Terra, Escravos e a República. O desenho da paisagem agrária no
Rio de Janeiro Seiscentista, 2006.
382
Quarahy”. Vaqueano era um termo usado para designar a pessoa que conhecia
perfeitamente “os caminhos e atalhos de uma região podendo servir de guia aos que
precisam percorrê-la.”
736
Ao dizer que era vaqueano das região banhada pelo rio Quarai,
que fazia as vezes de limite nacional entre Brasil e Uruguai, o mulato Adão garantia ter
uma habilidade essencial aos que procuravam ir ao Estado Oriental em busca de suas
liberdades.
Por outro lado, o relato de sua experiência naquele país dá conta que, lá
chegando, fora preso e incorporado como soldado. Desde os tempos das guerras de
independência, a formação de exércitos e grupos armados, nas regiões platinas, lançava
uma sombra de medo sobre os senhores de escravos rio-grandenses. Para ficar com
alguns exemplos: Artigas, depois Rivera e Oribe incentivavam fugas dos escravos do
Brasil, dando-lhes proteção e troca de engajamento como soldados em suas tropas.
737
Como mostrou o recente trabalho de Silmei Petiz, os escravos aproveitaram-
se muito das situações de guerra para realizar seus projetos de busca da liberdade.
738
Por
aliciamento ou por conta própria, escapavam e engajavam-se nas forças em luta. Outras
vezes, eram mandados para a guerra por seus próprios senhores, para ajudar a causa à
qual os mesmos se aliavam, ou para substituir seu senhor-moço. Em qualquer dos casos,
também aproveitavam a deserção como forma de fuga, já que sabiam que, se fossem
pegos pelos inimigos, poderiam voltar a ser escravizados.
739
Ainda, mesmo ficando nas
estâncias, podiam aproveitar a desorganização causada pela guerra para tentar escapar.
Foi o caso de 4 dos escravos que o Brigadeiro Ortiz mantinha em sua estância de
Tacumbú, no Estado Oriental. Aproveitando-se do acirramento da Guerra Grande, em
fins da década de 1840, eles fugiram. No inventário de sua esposa, o Brigadeiro
declarou que constava que o africano Manoel Antônio, campeiro, da Costa, 36 anos,
estivesse ainda no Estado Oriental. Tomaz, sapateiro, da Costa, 28 anos, teria
atravessado o Rio Uruguai no rumo norte e fora esconder-se em Corrientes. Antônio,
campeiro, da Costa, 26 anos teria ido para sudoeste e estaria então em Entre-Rios. Do
quarto escravo, que tinham o mesmo nome, origem e ofício deste último, não havia
notícia.
740
736
NUNES, Zeno Cardoso e NUNES, Rui Cardoso. Dicionário de regionalismos do Rio Grande do Sul,
1900, p. 522.
737
PETIZ, Silmei Santana. Buscando a Liberdade: as fugas de escravos da Província de São Pedro para
o além-fronteira (1815 – 1851), 2001.
738
PETIZ, Silmei Santana. Buscando a Liberdade: as fugas de escravos da Província de São Pedro para
o além-fronteira (1815 – 1851).
739
PETIZ, Silmei Santana. Buscando a Liberdade: as fugas de escravos da Província de São Pedro para
o além-fronteira (1815 – 1851).
740
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes: M. 08, N. 111, A. 1852. APRS”.
383
Dessa forma, a guerra, que era um flagelo para os homens livres de todos os
setores sociais, especialmente os pobres, aparecia como uma possibilidade de liberdade
para os cativos. No entanto, é melhor não exagerar. O preço pago era o risco de vida e
esta, certamente, não era uma escolha simples para os escravos. A história contada pelo
mulato Adão dá conta de que desertara “por ser inimigo de ser soldado” e voltara a
apresentar-se a seu senhor. Podia ser verdade, ou podia apenas ser uma história que
Adão contava às autoridades para convencê-las de que não organizaria uma fuga, pois já
tentara a aventura no Estado Oriental e preferira voltar ao cativeiro. Imaginemos, por
um instante, que Adão tenha participado mesmo, ativamente, da organização dessa fuga
coletiva. Ele admitiu estar insatisfeito com o fato de ser cativo de Delfino da Rosa, pois
diz que não pretendia fugir porque o seu senhor havia prometido vendê-lo. Imaginemos
que sua experiência em terras orientais tenha sido exatamente como contou às
autoridades. Talvez ele tivesse esperança de que uma fuga coletiva, onde participariam
escravos que prometeram levar cavalos e armamentos, propiciasse melhores
possibilidades de se defender, em caso dos uruguaios tentarem forçá-los a entrarem para
os exércitos em luta naquele país. De qualquer forma, mesmo que tudo isso fosse
apenas uma história inventada para se proteger das acusações, para funcionar como tal
ela devia ser, ao menos, verossímil.
A participação dos escravos nas campanhas da cisplatina e na Guerra dos
Farrapos recebeu atenção em alguns trabalhos, mas ainda precisa de um estudo
específico, de maior fôlego.
741
Os Farroupilhas incorporaram centenas de ex-escravos
no batalhão de lanceiros negros. Em um dos lances mais polêmicos da guerra, recaí
forte suspeita de que alguns chefes farrapos, nos anos finais do conflito, fizeram uma
combinação com os legalistas e “entregaram” largos contingentes de seus soldados
negros, permitindo que sofressem uma “surpresa” e fossem quase dizimados pelas
forças imperiais. Seria uma situação difícil de administrar com o fim da guerra:
reescravizá-los seria correr o risco de uma insurreição, permitir que vivessem como
libertos abriria o terrível precedente de premiar com a liberdade escravos que haviam
lutado contra o Império. Além disso, uma força coesa de guerreiros livres, cujos
parentes e amigos ainda eram cativos seria uma espada pendendo sobre a ordem
senhorial no sul do Brasil.
742
Precisam ser estudados temas como a influência das
solidariedades forjadas nos campos de batalha entre os escravos e seus companheiros de
741
Sobre o tema ver: LEITMAN, Spencer. Negros Farrapos: hipocrisia racial no Brasil do século XIX,
1985. GUAZZELLI, César Augusto. O Horizonte da Província: a República Rio-grandense e os
caudilhos do Rio da Prata (1835-1845),
742
LEITMAN, Spencer. Negros Farrapos: hipocrisia racial no Brasil do século XIX, 1985.
384
luta. Também, a apropriação criativa que eles fizeram dos ideais que se difundiam entre
as tropas para as animar ao combate. Ainda, as possíveis influências que o fato de ter
lutado em uma guerra poderia gerar como fonte de hierarquização dentro das
escravarias e nas comunidades de relações que reuniam escravos, libertos e livres
pobres.
É interessante notar os nomes de dois escravos pertencentes a dois dos
maiores comandantes militares da Fronteira Meridional. O Marechal Bento Manoel
Ribeiro tinha um escravo, crioulo, campeiro, chamado Manoel Batalha. Por sua vez, o
Brigadeiro Ortiz tinha um cativo também campeiro, da Costa, de nome Felisberto
Sargento. Não deixa de ser interessante que justamente esses senhores tivessem
escravos cujas alcunhas evocassem uma experiência guerreira. Dois campeiros que, ao
contrário da maioria dos escravos incorporados aos exércitos no sul, podem ter servido
na prestigiosa arma da cavalaria.
Fugas eram atitudes extremas e, como vimos no caso anterior, nem sempre
davam certo. Se havia redes de auxílio, proteção e informação que articulavam escravos
e livres, podendo viabilizar planos de fuga, havia também redes de comunicação e
vigilância no mundo dos senhores, como mostra o bilhete escrito pelo capataz do
Tenente-Coronel Apolinário de Souza Trindade à Delfino da Rosa. Para além desses
momentos extremos, no dia-a-dia das relações escravistas, os cativos procuravam
alargar suas pequenas margens de ação, conjugar esforços, concretizar projetos, colocar
alguns limites ao grande controle que sofriam. Um trabalho específico sobre a
experiência dos escravos na Fronteira deve dar conta de todos esses projetos e
estratégias. Aqui, cabe mencionar, ao menos, alguns deles, que me parecem ter sido
extremamente importantes. Tratam-se de três objetivos, interligados: a possibilidade de,
eventualmente, conseguir desempenhar trabalho e produção autônomas, a ampliação do
tempo e do espaço onde podiam se movimentar, e a formação de laços familiares
estáveis. Não por acaso, eram três demandas que os aproximavam da experiência de
liberdade que observavam entre as famílias livres com quem conviviam e, ao mesmo
tempo, que poderiam permitir a construção de pecúlios para que, sabendo negociar com
seus senhores, tentassem alcançar a alforria.
743
Vários escravos buscavam desempenhar a produção própria ou um ofício
especializado como escravo de ganho, guardando parte da remuneração para si. Este
último caso podia ocorrer, como em todo o Brasil, com os escravos “oficiais”:
pedreiros, carpinteiros, ferreiros. Era exatamente o que se passava com o carpinteiro
743
MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio.
385
Ricardo, escravo de Dona Ana Guterres, cuja conta de estância foi analisada no capítulo
“7”. Ricardo trabalhava fora da estância por jornais, ao longo de todo o ano.
744
Era
também o caso do crioulo Tomaz, 30 anos, carpinteiro “feitor de carretas”, o mais
valorizado dos 14 escravos avaliados no inventário de Agostinho Dornelles de Souza,
em 1847.
745
O mesmo acontecia com muitos escravos campeiros. Na conta de estância
elaborada por Joaquim Ferreira Braga, consta que esteve justado “Antônio, escravo da
viúva” como peão na estância do Quarai-Mirim, por 3 meses em 1848, recebendo
10$000 por mês.
746
Que fique bem claro: não se tratava de um escravo do próprio dono
da estância, uma vez que ele não consta do inventário e não havia uma “viúva”, visto
que era exatamente a esposa de Joaquim Ferreira Braga que havia falecido e ele atuava
como seu inventariante. Foi o único caso, nas contas analisadas, de um escravo que se
justou como peão por mês. Mais freqüentemente, os escravos campeiros iam trabalhar
alguns dias nas reuniões de gado para as tropas que iriam para as charqueadas. Entre os
77 peões que estiveram trabalhando na feitura de tropas para Manoel José de Carvalho,
em fevereiro de 1852, estavam “Manoel, escravo” (15 dias, 2$000 por dia), “Paulo,
escravo” (28 dias, 2$000), “Rogério, escravo” (7 dias, 2$000) e “José, escravo” (10
dias, 2$000) e “Carlos, escravo” (15 dias, 2$000).
747
Lembremos que os valores dos
peões de tropa eram pagos em dinheiro, logo que saíam do serviço. Os escravos
campeiros, ao lado dos “oficiais”, parecem ter tido vantagens nessas possibilidades de
trabalhar para outros patrões, embora se mantivessem cativos de seus senhores. Ao fazê-
lo, aproximavam-se da experiência da liberdade, porque tinham acesso à parte da
remuneração de seu trabalho e porque ganhavam permissão para deslocar-se e
permanecer fora por um tempo que ia de uma semana a cerca de um mês.
É provável, realmente, que uma parte desses valores ficasse em mãos dos
escravos, haja vista a grande freqüência com que aparecem alforrias sob pagamento,
desde a década de 1830, em Alegrete.
748
Por outro lado a permissão para deslocar-se e
permanecer por algum tempo longe das vistas de seu senhor ganhava importância
porque essa era uma marca dos homens livres, observadas pelos cativos. Retornemos ao
exemplo da estância da Palma. Escravos campeiros trabalhavam lado a lado com
homens livres e libertos. As atividades que desempenhavam não os diferenciava.
Acordavam antes do clarear do dia, cavalgavam juntos, expunham-se aos mesmos
744
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes. M. 08, N. 117, A. 1854. APRS”.
745
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes, M.3, N. 46, A. 1835. APRS.”
746
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes, M. 10, N. 145, A. 1855. APRS.”
747
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório do Cível e Crime, M. 01, N. 07, A. 1853-7. APRS.”
748
“1º. Tabelionato. Alegrete. Registros Diversos. Livros 01 a 10. APRS.”
386
perigos, travavam embates ferozes contra o gado xucro, sofriam a dureza da lida e,
provavelmente, contavam vantagens quando o laço de um deles, atirado sobre uma rês,
descia com precisão nas patas dianteiras do animal, fazendo-o cair de costas, em um
perfeito pealo de sobre-lombo.
Contudo, os campeiros da Estância da Palma, Felisberto Sargento, Manoel
Baiano, o preto Simão e o pardo Eleutério viam o peão Liberato, o castelhano
Fernandes, o peão “irmão do mulato Bernardo” chegarem à estância, ficarem por 2 ou 3
meses, e irem embora, cuidar de sua pequena produção ou empregar-se em outros
estabelecimentos. Mesmo os que conviviam mais tempo com eles, como o peão
Laureano, o piá Antônio, o preto forro Manoel, o negro Joaquim, podiam acabar por
pedir as contas e saírem, muitas vezes contando com o desagrado de seus senhores, que
vociferavam freqüentemente contra a “inconstância” dos peões. Longe da estância,
aqueles homens livres podiam engajar-se nas tropas durante o verão, meter-se no Estado
Oriental em busca de trabalho, passar contrabando, casar e estabelecer produção
própria, comprar um escravo. A possibilidade, ainda que limitada, de deslocar-se e
diversificar suas estratégias de sobrevivência, era uma característica dos homens livres
pobres com quem os escravos conviviam. Isso, certamente, não passava despercebido
tanto para uns como para os outros e compunha as idéias que eles iam formando sobre o
que era liberdade e o que era cativeiro. Nesse sentido, para os cativos, poder deslocar-se
para trabalhar em outra estância, ficar lá por algumas semanas e ganhar uma
remuneração era uma forma de ampliar suas margens de liberdade e aproximar-se da
experiência dos homens livres. Como também o eram o desempenho de uma pequena
produção própria e a construção de laços familiares relativamente estáveis.
A possibilidade de acessar a produção agrária própria, por parte dos
escravos, já foi identificada em várias partes da América escravista.
749
Ainda que este
seja um tema cuja recorrência é impossível de quantificar, sua presença é evidente.
Paulo Afonso Zarth notou que, nas Instruções que o futuro Conde de Piratini enviou a
seu capataz da Estância da Música, em 1831, constava esta: “os escravos podem plantar,
e criar galinhas, tendo milho para as sustentar.”
750
Em trabalho recente, Vinícios Pereira
de Oliveira verificou a prática dos senhores autorizarem o trabalho dos cativos para si
749
Ver o clássico trabalho de: CARDOSO, Ciro Flamarion. Escravo ou Camponês: o protocampesinato
negro nas Américas, 1987.
750
ZARTH, Paulo. História Agrária do Planalto Gaúcho,1997, p. 161. CESAR, Guilhermino. O Conde
de Piratini e a Estância da Música, 1978, p. 43.
387
nos domingos e a presença de roças próprias entre os escravos de regiões próximas à
colônia alemã de São Leopoldo, na segunda metade do século XIX.
751
Além das roças, alguns escravos também podiam ter animais. Em 1855, um
registro de uma tropa que estava sendo vendida para as charqueadas, feito nas estâncias
da família Coelho Agaxa, em Alegrete, contava com as reses dos seguintes
proprietários, entre outros: Felisberto João Coelho Agaxa (144 reses); Bernardo Agaxa
Sobrinho (34 reses); Manduca Agaxa (34 reses); Manoel Mulato “escravo” (8 reses);
Domingos “escravo” (5 reses); Florentina “afilhada” (3 reses).
752
Ambos os cativos
citados eram escravos de Manoel Coelho Agaxa (provavelmente o “Manduca Agaxa”,
da conta). O cativo Manoel era pardo, campeiro e tinha 34 anos. Domingos era africano,
roceiro e devia ter idade próxima à de Manoel, pois fora avaliado com o mesmo
valor.
753
Essa, certamente, não era uma possibilidade aberta a todos os cativos. Ainda
assim, o fato de que parte dos escravos pudesse criar alguns animais decorria de suas
próprias reivindicações e da política de domínio senhorial. Como no caso dos
agregados, um escravo com animais misturados aos de seu senhor, ou com roças e
famílias, cuidava e defendia também algo que fazia parte de seus interesses. Para
funcionar, as relações escravistas precisavam aceitar esses limites. Em alguns casos,
porém, essas mesmas conquistas dos escravos podiam trazer instabilidade à ordem
escravista. Esse assunto será tratado adiante. Por agora, notemos que a criação de
pequenos rebanhos de animais pode, também, ter viabilizado a construção de pecúlios
que pudessem ensejar a tentativa de alguns cativos pagarem suas alforrias. Um caso,
certamente extremo e nada corriqueiro, mas que, ainda assim, merece ser mencionado:
em 1872, o preto João Luiz, escravo de Maria Gomes da Rosa Lemes, de Alegrete,
conseguiu sua alforria mediante a entrega de “60 reses de criar”.
754
Por fim, a importância da construção de laços parentais entre os escravos e o
papel das relações familiares no cativeiro é um tema que já rendeu alguns dos mais
instigantes estudos realizados, nas últimas décadas, sobre a escravidão brasileira. Entre
tantos outros, destaco o debate presente em três obras sobre o sudeste, escritas, uma por
Manolo Florentino e J.R. Góis, outra por Hebe Maria Mattos, e a terceira por Robert
751
OLIVEIRA, Vinícius Pereira. De Manoel Congo a Manoel de Paula: um africano ladino em terras
meridionais, 2006.
752
“Inventários. Alegrete, Cartório do Cível e Crime., A 1855. M. 01. N. 24. APRS.”
753
“Inventários. Alegrete, Cartório do Cível e Crime., A 1855. M. 01. N. 24. APRS.”
754
“1º. Tabelionato. Alegrete. Registros Diversos. 28.04.73 (Talão 6, p. 23r), APRS.”
388
Slenes.
755
Não tenho como tratar com profundidade, aqui, da formação de famílias
escravas na Campanha. Esse é, sozinho, um tema para uma tese. Em um estudo
específico sobre escravidão na Fronteira Meridional, a própria demografia escrava,
analisada rapidamente no capítulo “7”, deveria contemplar essa dimensão. Como
lembraram Florentino e Góis:
“A demografia da escravidão não é efeito exclusivo da lógica da empresa
escravista, nem existe descolada da pessoa do escravo. É, antes, um cenário
conflitivo por definição, espaço onde estratégias se delineiam e fazem
conhecer melhor a escravidão.”
756
Um caso ocorrido próximo ao Rio Uruguai, no município de Uruguaiana,
vizinho à Alegrete, permite refletir um pouco sobre a formação de famílias entre cativos
e sua influência na gestação de projetos conjuntos. Ele foi analisado em um artigo
recente por Paulo Roberto Staudt Moreira.
757
O relato detalhado e um estudo profundo
do caso encontram-se no referido artigo. Aqui, apenas faço um resumo de parte das
conclusões daquele autor e acrescento algumas observações que se fazem pertinentes a
esta tese.
Na madrugada do dia 21 de março de 1870, João Pereira Soares foi acordado
de seu sono, em sua Fazenda, próxima à costa do Imbahá, por Francisco de Tal, que
estava de pouso naquele mesmo lugar. Foi avisado que Antônio de Tal, preto forro,
acompanhado por outra pessoa, havia furtado uma escrava da mesma fazenda, de nome
Rosa, junto com cinco filhos da mesma e se dirigiam para o rio Uruguai.
758
Na queixa-
crime que deu origem ao processo, João Pereira Soares relatou que montou a cavalo e
foi até a casa de seu posteiro, Pedro Fagundes, com quem saiu em perseguição “aos
roubadores”. Encontraram, a cerca de meia-légua, e conseguiram agarrar a escrava e
seus filhos, sendo que o estranho que os acompanhava conseguiu se evadir. O preto
forro Antônio não se encontrava com eles.
Os depoimentos das testemunhas foram tomados em presença do réu preto
forro Antônio, que havia sido preso no dia posterior ao do crime. Em seu depoimento,
Francisco José de Medeiros declarou que, naquela noite, estava pousando na fazenda e
755
FLORENTINO, Manolo Garcia; GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas..., 1997 MATTOS, Hebe
Maria. Das Cores do Silêncio..., 1998. SLENES, Robert. Na Senzala uma Flor..., 1999. Para o Rio
Grande do Sul, ver: LAUREANO, Marisa. A Última Vontade. Um estudo sobre os laços de parentesco
entre os escravos na capitania do Rio Grande de São Pedro, 1767-1809, 2000. GUTERRES, Letícia
Batistela. Para Além das Fontes. Im/Possibilidades de laços familiares entre livres, libertos e escravos
(Santa Maria, 1844-1882), 2005.
756
FLORENTINO, Manolo Garcia; GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas..., 1997, p.p.174-175.
757
MOREIRA. Paulo Roberto Staudt. Justiçando o Cativeiro: a cultura de resistência escrava, 2006.
758
“Processos Criminais. Uruguaiana, M. 70, N. 2604, A. 1872. APRS.”
389
que ali também dormira o preto Antônio, por ser conhecido da casa. À noite viu o réu
sair com os escravos e foi dar parte ao queixoso, João Pereira Soares. Disse que este o
mandou avisar a Anastácio Goulart. Quando vinha já com Anastácio, encontrou-se com
o queixoso e seu posteiro, que traziam Rosa e seus filhos. A segunda testemunha foi
Pedro Fagundes, peão posteiro do queixoso. Ele confirmou a captura de Rosa e seus
filhos e acrescentou que um deles, o crioulinho Eugênio, 12 anos, havia lhe contado que
fora mesmo o réu os havia levado até aquele lugar. A terceira testemunha era Anastácio
Silveira Gularte, agregado e compadre do queixoso. Declarou que este o mandara
chamar em sua casa para ajudar na perseguição aos escravos e seus roubadores.
Afirmou, ainda, que o crioulinho Eugênio havia contado que quando preto Antônio os
deixara no lugar em que, depois, seriam apanhados, havia se despedido de Rosa dizendo
“até logo”. Outras testemunhas ainda depuseram, corroborando o que fora dito pelas três
primeiras.
O réu Antônio Mina, natural da Costa da África, liberto, lavrador,
aparentando 60 anos negou terminantemente sua participação no crime de roubo de
escravos que lhe era imputado. Disse que no dia 20 de março esteve na vila vendendo
melões e outros frutos de sua lavoura, depois voltou para a estância de Dona Joaquina
Fonseca, onde morava e tinha suas plantações, e ali pernoitou. Na segunda-feira esteve
em sua lavoura. Na terça, havia ido ao mato com sua carreta buscar madeiras para uma
casa, quando foi preso pelo queixoso. Como testemunhas de ter pousado na estância de
Dona Joaquina Fonseca, apresentou Inácia, “mulher de Antônio Lopes” e os pretos
forros Pedro, João, e os escravos Henriqueta e Benedito.
O queixoso pediu, então, que fossem ouvidos o crioulinho Eugênio e a
escrava Rosa. Eugênio declarou que “pai Antônio” se escondera no quarto de sua mãe e
daí os conduzira para fora, onde os esperava João, crioulo, que parava na casa de
Antônio Miranda de Castro, despachante da alfândega. Disse, ainda, que quando sua
mãe estivera no povoado é que tinham combinado de fugirem para Corrientes. Por sua
vez, Rosa, escrava de João Pereira Soares, solteira, 39 anos, confirmou que o réu se
ocultara na casa uma noite, e que dali fugiram com seus filhos. Disse que não
tencionavam, sim, ir para Corrientes, mas sim ir até a vila de Uruguaiana, para ver se
arrumavam quem a comprasse. Disse que foi o réu que a aconselhou a fugir porque os
senhores se negavam a conceder-lhe sua liberdade. O seu senhor havia forrado o réu e
prometido dar a ela, também, sua liberdade, mas sua senhora se opôs. Como ela já havia
lhe dado 11 crias, achou que isso era injustiça de parte de sua senhora, tendo esta,
inclusive, recusando-se a receber o seu preço pela sua liberdade. O preto Antônio Mina
390
admitiu, então, que conhecia Rosa, que ela era sua parceira, “e que com ela tem vivido
sempre como o cão com o gato, isto é, sempre de ponta um com outro.” Mas disse que
nunca tinha falado com ela sobre fuga e que, se tivessem, teria tentado “dispersuadí-la”
de fugir.
759
O juiz absolveu Antônio Mina, considerando que não podia ser incurso no
artigo de roubo, já que não roubava de outrem algo para si. Porém, houve recurso e,
somente em 19 de maio de 1871 foi confirmada, pelo tribunal, a sentença de absolvição.
Nesta história aparecem diversos personagens que eram corriqueiros na
Fronteira Meridional, ao longo do século XIX. Pelos depoimentos, sabe-se que, na
estância de João Pereira Soares, além dos escravos, havia um homem que estava “de
pouso”, um agregado que também era compadre do proprietário das terras, um peão
posteiro. Todos eles foram mobilizados pela ordem senhorial quando se tratou de
perseguir os escravos “roubados”. Ampliando o olhar, vemos que a estância de Dona
Joaquina Fonseca, de quem era agregado o réu, era próxima, possivelmente vizinha.
Não era para menos, Dona Joaquina era cunhada de João Pereira Soares, irmã de sua
esposa. Paulo Moreira descobriu que os campos do queixoso haviam pertencido, na
verdade, à família de sua esposa.
760
O espaço em que circulavam esses escravos parece
ter sido, anteriormente, uma propriedade maior, pertencente ao pai tanto da senhora de
Rosa, quanto da proprietária das terras onde estava agregado o liberto Antônio. Pela
idade de ambos, talvez eles mesmos tivessem sido escravos do pai das senhoras.
Antônio Mina e Rosa mantinham uma relação conjugal estável. Não co-
habitavam, mas não parece serem raras as visitas de Antônio à fazenda já que, como
dissera a primeira testemunha, ele havia dormido lá por ser conhecido da casa. Os
senhores concederam carta de liberdade a Antônio em 1869 e prometeram fazer o
mesmo a Rosa, porém frustraram suas expectativas.
761
Alforriado, Antônio Mina
permaneceu perto de sua mulher e filhos, na esperança de que ela também seria
libertada. Arranchara-se como agregado da irmã de sua senhora. Tornara-se um lavrador
em terra alheia, como podem ter sido também os pretos forros Pedro e João, que ele
apresentou como testemunhas de que tinha pernoitado nas terras de Dona Joaquina
Fonseca, na noite em que se lhe atribuía o crime. Mas tornar-se um pequeno produtor
não bastava para ele. Esse projeto, construído e acalentado em conjunto com Rosa,
somente estaria completo se carregasse também a sua família. Esse caso sugere que não
apenas ter uma família servia para ter acesso à produção própria, mas também o
759
“Processos Criminais. Uruguaiana, M. 70, N. 2604, A. 1872. APRS.”
760
MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Justiçando o Cativeiro..., 2006.
761
MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Justiçando o Cativeiro..., 2006.
391
contrário: para Antônio Mina, a produção e a relativa autonomia somente ganhavam
pleno sentido quando elas podiam sustentar o estabelecimento de relações familiares.
Para a senhora de Rosa, conceder a liberdade a Antônio Mina, mas negar à
escrava era uma forma de manter o escravo liberto dentro da órbita de dependência
daquela família senhorial. Como apontou Paulo Moreira: “era parte das políticas de
dominação senhorial barganhar com a família escrava, mantendo a parte alforriada por
perto, prestando serviços e obediência.”
762
Parecia dar certo: Antônio era agregado de
sua irmã e vizinha. Porém, a quebra do “pacto” estabelecido pela barganha entre partes
tão desiguais não foi bem aceita pelos escravos. Rosa considerou “uma injustiça” o que
sua senhora havia feito: ela havia recebido uma promessa, havia dado já 11 filhos como
escravos, havia se oferecido para pagar por sua liberdade. Nada disso, entretanto,
animara sua senhora a cumprir sua promessa. Como apontou Moreira, os projetos dessa
família precisavam ser reformulados. Tentaram, então, o arriscado caminho da fuga,
contando com o auxílio de um crioulo livre ou liberto de quem nunca mais se ouviu
falar e, pode-se supor, também de dois libertos, um casal de escravos e uma mulher
livre, vizinhos de Antônio Mina, que ele havia dado como testemunhas para corroborar
seu álibi. Paulo Moreira investigou a história a fundo e pôde supor, de forma bastante
plausível, a possível participação de um “padrinho” que pudesse comprar a escrava,
talvez o escrivão da alfândega na casa de quem “parava” o crioulo João, que ajudara na
fuga.
763
Do outro lado estavam o senhor, João Pereira Soares, a senhora, de quem
não sabemos o nome, mas que tinha papel ativo em toda essa história, um agregado-
compadre, um posteiro, um homem livre “de visita” e o aparato estatal de vigilância e
repressão. Duas redes de relações complexas e articuladas que se enfrentavam. Mesmo
com a absolvição de Antônio Mina, não se pode pensar que ele tenha saído vencedor. A
fuga foi frustrada, Rosa parece nunca ter conseguido sua liberdade e, como afirmou
Paulo Moreira:
“Entre o suposto crime cometido em março de 1870 e o alvará definitivo de
soltura, expedido em 23 de agosto de 1871, vemos Antônio amargando um
ano e cinco meses de prisão! Aos sessenta anos de idade, Antônio teria
condições de reorganizar suas plantações abandonadas? Será que alguns
dos parceiros que ele enumerou como testemunhas de sua inocência (os
pretos forros Pedro e João e os escravos Henrique e Benedito), que nunca
foram chamados a depor, conseguiram salvar pelo menos uma parte do seu
patrimônio?”
764
762
MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Justiçando o Cativeiro..., 2006, p. 228.
763
MOREIRA Paulo Roberto Staudt. Justiçando o Cativeiro..., 2006.
764
MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Justiçando o Cativeiro..., 2006, p. 223.
392
O caso sugere que o estabelecimento de relações familiares estáveis era
também um projeto dos escravos da Campanha, que a família era um lócus de
elaboração de projetos conjuntos, que estavam relacionados à ampliar os graus de
liberdade e autonomia, vistas não somente de forma individual. Reforça a idéia,
observada no caso da “reunião de negros” em Alegrete e Uruguaiana, de que fugir
atravessando os limites nacionais até era possível, mas não era tarefa simples. Mostra as
reivindicações e conquistas dos escravos, as concessões e as políticas de dominação dos
senhores, a existência de acomodações e pontos de tensão.
Outros libertos trilharam um caminho diferente para a consecução de seus
projetos, casando com mulheres livres. Foi o caso de Felix, 45 anos, preto, Mina,
escravo de José Vieira de Macedo e Matilde Benedita Pedrosa de Macedo, que recebeu
alforria em 1839.
765
Ele devia ter uma boa relação com seus senhores, pois conseguiu
alforria sem ônus e assumiu o sobrenome da família. Além disso, ficou como agregado
da estância em que fora cativo, tornando-se um pequeno criador e lavrador. No ano
seguinte, nascia Salvador, o primeiro dos três filhos que teria com a índia Maria
Francisca Xará. Felix de Macedo morreu em fins da década de 1840, mas sua mulher
continuou como agregada da mesma estância. Em 1855, alguém denunciara, na vila de
Alegrete, que Felix havia falecido havia anos e tinha deixado filhos menores sem que,
no entanto, jamais se fizesse o inventário de seus bens. Maria Francisca Xará foi
chamada na vila para dar início ao processo. Através dele, sabe-se que a família tinha
300 reses xucras, 50 reses mansas, 100 éguas xucras, 6 cavalos mansos, uma enxada e
um machado.
766
João Vieira de Macedo, herdeiro de seu recém-falecido pai e novo dono
da estância onde estava agregada Maria Francisca e sua família assumiu a tutoria
herdeiros e colocou as reses em arrendamento para, com a renda delas, vestir e educar
os órfãos. Os antigos sujeitos do “pacto” de reciprocidade desigual haviam falecido. Ele
precisava, então, ser re-atualizado. Em uma época em que a terra se valorizava e a
tolerância com os agregados começava a diminuir, o herdeiro aproveitou-se de um
artifício legal para retirar a autonomia da pequena família chefiada por Maria Francisca.
A família de um ex-escravo conhecia, assim, as possibilidades oferecidas pela produção
autônoma e a dura realidade de dominação que não pesava apenas sobre os cativos.
765
Caso muito semelhante foi o do pardo liberto Salvador Antunes de Camargo, casado com a “china”
Maria Antônia de Siqueira. Eram agregados de José Maria de Souza. Depois do falecimento de Salvador,
“tendo ao desavido” com o estancieiro, Maria Antônia e seus filhos tiveram que fugir de suas
perseguições, deixando para trás seu pequeno rebanho de 47 reses, 8 cavalos e uma manada de 20 éguas.
Em 1861, Maria Antônia procedia o inventário de Salvador por iniciativa própria e requeria as reses que
lhe haviam tomado. Inventários... M. 17 , N. 211, A 1861. APRS.”
766
“Inventários post mortem. Alegrete. Cartório de Órfãos e Ausentes, M. 10, N. 142, A. 1855. APRS”
393
Dessa forma, a sociedade de um município na Fronteira Meridional do
Império aparece muito mais complexa do que se costuma supor. Um espectro variado de
grupos subalternos, que formavam a maioria da população, tinha projetos, demandas,
estratégias diferentes daquelas articuladas pelas elites e nem sempre funcionais para
com aqueles. Não bastava, para as mais importantes famílias senhoriais, apropriar-se de
uma enorme área de terras para reproduzir sua dominação sobre esses grupos. Era
preciso estabelecer relações horizontais com outras famílias de elite, portadoras de
recursos que ampliassem os seus. Estabelecer relações verticais de dependência, que
permitissem poder chamar ao peão posteiro e ao agregado para irem atrás de escravos
fugidos. Era preciso aceitar o jogo da negociação desigual, ceder, acomodar. Nada disso
era incompatível com a reprodução da dominação. Ao contrário, fazia parte dela
naquele mundo complexo e contingente.
394
CONCLUSÃO
Os luso-brasileiros promoveram a apropriação estável das terras que viriam
formar a região da Campanha Rio-grandense nas primeiras décadas do século XIX. Ali,
tomou corpo uma importante economia pecuária, que produzia novilhos para as
charqueadas do leste da província. A carne salgada daí derivada tinha como mercado
preferencial as regiões da grande lavoura de exportação, abastecidas pelos portos do Rio
de Janeiro, de Salvador e de Recife. A viabilização daquela expansão pecuária ocorreu a
partir de uma prática bastante conhecido em toda a América Portuguesa: a reprodução
de sistemas agrários extensivos em áreas de fronteira agrária aberta. Ao mesmo tempo,
ocorreu ali a reconstrução e mesmo a radicalização de uma sociedade de fronteira que
tinha na relação com os vizinhos platinos e na organização guerreira pontos muito
importantes de sua estruturação. Essa combinação fez com que a atividade agrária e os
negócios de guerra e fronteira se apresentassem de forma bastante conexa naquela
realidade.
A sociedade que foi se constituindo a partir desses fatores contemplava, ao
lado de grandes estancieiros e peões, também médios e pequenos produtores, que
podiam ou não ter a propriedade jurídica da terra. Tamm havia comerciantes,
artífices, jornaleiros e uma população escravizada cuja presença nada tinha de fortuita e
desempenhava papel essencial na reprodução da economia pecuária. Eram
características já existentes no Rio Grande de São Pedro, ao longo do período colonial,
e que foram recriadas nas novas áreas. Nesse sentido, aquela era mais uma das áreas que
compunham a rica variedade do Brasil escravista. Ao mesmo tempo, participava de um
espaço fronteiriço com regiões do Prata hispânico cuja diversidade social os estudos
recentes não cessam de mostrar. A complexidade apontada pelos novos estudos sobre
essas duas regiões, das quais o Rio Grande do Sul era a intersecção, não nega as
relações de dominação e resistência que marcaram aquelas sociedades. Ao contrário, ao
perceber que a acumulação de um ou outro recurso (como a terra ou os escravos) era um
instrumento importante, mas não era capaz de propiciar, sozinha, a reiteração de um
grupo de elite; ao apontar que os grupos subalternos eram diversificados, tinham
395
demandas e estratégias próprias que informavam suas lutas; enfim, ao elaborar esses
procedimentos analíticos, os novos estudos têm conseguido refinar as explicações sobre
como se tem operado a perversa química da reprodução de hierarquias sociais
extremamente desiguais em diferentes contextos. Este trabalho buscou somar-se a esse
esforço reflexivo, centrando o foco na Fronteira Meridional do Império do Brasil.
No universo marcadamente rural da Campanha Rio-grandense, a elite
econômica pode ser chamada de elite agrária.. Analisando os inventários post mortem
percebi que a grande pecuária era, de fato, a principal atividade dos integrantes desse
grupo. Porém, ao lado dela, parte deles também desempenhava atividades como os
negócios de tropas, o prestamismo e o comércio de mercadorias. Dentre eles, havia os
que tinham conseguido alcançar altos comandos militares, o que é compatível com a
grande importância assumida pelas questões da guerra e da fronteira naquela realidade.
Procurei reconstituir, dentro do possível, o campo de relações em que esses
sujeitos estavam envolvidos. Isso permitiu perceber que, ao invés de uma elite composta
por estancieiros, estancieiros-militares e, minoritariamente, comerciantes, vistos
isoladamente, ela estava constituída por famílias que procuravam congregar essas
diferentes atividades e, assim, buscar reiterar seu acesso privilegiado aos recursos
sociais e econômicos. Se o que interessava era investigar os elementos que compunham
a lógica social da elite agrária e as estratégias que seus integrantes punham em ação,
então não eram os indivíduos, e sim as famílias que precisavam ser estudadas.
Pode-se perceber que houve direcionamentos diversos para os rendimentos
auferidos com as atividades econômicas das famílias de elite: além de financiarem a
reprodução e ampliação dessas atividades, eles auxiliavam a formação, o casamento e as
atividades próprias dos filhos; e também permitiam uma participação da família na
partilha do poder, com destaque para o controle militar sobre a Fronteira. Esses
investimentos variados aparecem bem ilustrados na conta de herança elaborada pelo
Brigadeiro Ortiz, referida ao longo de todo este trabalho. A presença de uma mesma
família nesses variados setores de atuação não era fortuita. Ao contrário, sem serem
contraditórios nem perfeitamente funcionais entre si, esses elementos faziam parte de
uma mesma estratégia posta em prática pelas famílias da elite para agir em uma
sociedade onde aqueles aspectos estavam interligados. Aquele era um contexto marcado
pela existência de mercados “imperfeitos” de terras e de trabalho, de uma incurável
endemia bélica e de instabilidade das questões da fronteira nacional com o Uruguai. Ao
lado das atividades econômicas, era preciso também investir na reprodução de alianças
e relações sociais relevantes.
396
A pecuária desempenhada na Campanha precisava reproduzir-se a baixos
custos, tanto em razão de seu caráter extensivo quanto da posição subordinada que
ocupava no contexto do mercado interno brasileiro. Eles foram garantidos, em parte,
pela apropriação de enormes extensões de terra nas primeiras décadas do século XIX,
quando os campos da Fronteira Meridional ainda não haviam sofrido a grande
valorização que iriam experimentar depois, sobretudo após 1850. Da mesma forma, as
famílias de elite procuraram combinar a presença de um núcleo de trabalhadores
escravos, pois o “mercado” de trabalho livre era ainda muito instável, com o número de
peões livres que pudessem contratar a salários relativamente reduzidos. Trabalhadores
mais caros eram empregados somente nos momentos de pico da demanda laboral.
Contudo, veja-se bem, se os custos monetários desses recursos podem ser
considerados baixos, é também verdade que eles sempre exigiram um outro tipo de
investimento. Para ter e garantir o acesso à terra, bem como para reproduzir relações de
dominação (que sempre encontravam resistências, em formas variadas) sobre
trabalhadores escravizados e sobre a população livre pobre, era necessário investir em
alianças sociais e estabelecer relações de reciprocidade vertical e horizontal. Nesse
sentido, a combinação de investimentos econômicos strictu sensu e “não-econômicos”
pode ser compreendido como um comportamento que era bastante racional dentro da
leitura que as famílias de elite faziam da realidade em que viviam.
Esse processo de apropriação fundiária foi feito através de formas diversas.
Havia compras, instrumentalizadas pelo crédito que conseguiam com charqueadores e
comerciantes em Porto Alegre, Pelotas e Montevidéu. Sem ser dominante, também
houve presença constante do recebimento de sesmarias. Ao lado desses dois
expedientes, estiveram presentes, também, a posse “simples” e mesmo a usurpação de
antigos posseiros. Não seria possível consolidar a apropriação e a manutenção do direito
sobre esses latifúndios sem estar inserido em uma importante teia de alianças com
autoridades militares e civis, com vizinhos e mesmo com os subalternos. Creio que os
casos analisados, em que comandantes militares fizeram doações de terras em troca de
serviço de guerra e sustentaram o direito dos beneficiados contra antigos posseiros, dão
boa mostra da importância desse tipo de relações.
Grande parte dos próprios comandantes militares faziam parte da elite
agrária da Campanha. A maioria deles era de grandes estancieiros que iniciara sua
carreira nas Milícias, sendo que alguns poucos, como Bento Manoel Ribeiro e Olivério
José Ortiz, conseguiram ser incorporados ao exército no final de suas vidas. Uma
porção significativa de seus patrimônios (ainda que não a totalidade) foi conseguida a
397
partir de sua atuação nos combates de fronteira. De fato, no início do século XIX, a
guerra era uma forma explícita de acumulação de recursos, sobretudo terras e gado. No
entanto, havia ainda outros pontos de intersecção entre os comandos militares e a
economia. De um lado, a guerra podia também ser muito nefasta para os
estabelecimentos agrários já constituídos, reitrando-lhes cavalos, gado vacum e
trabalhadores. De outro, como não eram militares profissionais, muitas vezes o serviço
era prestado por aqueles homens a partir de seus próprios recursos, que precisavam ser
expressivos, dentro do próprio espírito das forças de 2ª. linha.
Os comandantes militares procuravam manter e ampliar seu cabedal militar,
que consistia nos homens em armas que podiam reunir, nos cavalos e munições que
podiam conseguir, nas relações que entabulavam com as lideranças platinas. A partir de
sua posição podiam, ainda que de forma limitada, redistribuir benesses, proteger aliados
e clientes, diminuir os transtornos da guerra para parentes e amigos. Em parte, o lucro
advindo de suas atividades pecuárias era revertido para reforçar esse cabedal. Em
contrapartida, podia ser engrossado por ele.
Após a última campanha da Cisplatina (1828), a possibilidade de
apropriação direta de recursos via guerra diminuiu muito. O poder dos comandantes
militares se transformou, mas não cessou. A partir de então, passou a haver um limite
nacional de permeio a uma extensa zona de criação de gado dominada por estancieiros
brasileiros, que congregava a Campanha Rio-Grandense e a Fronteira-Norte uruguaia. O
fluxo de gado de um lado a outro desse impreciso limite nacional era de importância
central para a economia pecuária e charqueadora rio-grandense. A fronteira agrária
estava se fechando nas terras brasileiras, o que se reflete no fato de que a maioria dos
grandes estancieiros tinha terras descontínuas e boa parte deles possuía tanto
propriedades no Brasil quanto no Estado Oriental. Nesse contexto, os comandantes
militares de fronteira seguiam sendo importantes.
Além disso e talvez ainda de forma mais forte: longe de garantir qualquer
estabilidade política para o Prata, a independência do Estado Oriental foi mais uma
fonte de convulsões em uma época em a guerra compunha o contexto de construção dos
estados americanos. A Guerra Grande, a Guerra dos Farrapos, os embates contra Oribe e
Rosas, as intervenções no Uruguai, todos esses sobressaltos contínuos faziam com que o
Império não pudesse prescindir do cabedal militar dos comandantes sulinos. Por outro
lado, as guerras recorrentes fizeram com que esses comandantes fossem importantes
também para os habitantes da fronteira, que seguiam precisando de sua proteção.
398
Entretanto, apenas 4 dentre as 16 maiores fortunas estudadas pertenciam a
homens que haviam ocupado os comandos militares. Como é possível, então, dizer que
a elite agrária tinha como uma de suas características a busca e o exercício do poder
militar? De novo, a família é a resposta para a combinação de áreas de atuação
diferentes. Vários dos recursos que não podiam ser acessados individualmente, o eram
através das alianças familiares, sobretudo através de matrimônios.
As principais estratégias colocadas em prática pelas famílias de elite
estruturavam-se da seguinte forma. A atividade principal desempenhada pela família era
reforçada e reproduzida pelas trajetórias pessoais e pelos matrimônios de filhos e filhas.
Por outro lado, parte dessas atuações e muitos desses matrimônios propiciavam que a
família estendesse suas relações para campos onde não atuava diretamente, através das
famílias de genros e noras. Formava-se, assim, uma trama de grupos familiares que
conseguiam estar presentes, por si ou por seus parentes, em campos sociais diversos,
relevantes e conexos. A pecuária, o comércio, o prestamismo e os altos comandos
militares aportavam recursos e prestígio que podiam ser acessados direta ou
indiretamente por cada um daqueles núcleos familiares. O que ajudava a produzir essa
configuração era o fato de que os casamentos também não foram “especializados”. É
possível perceber um padrão de, em cada família, combinar tipos diferentes de
cônjuges, englobando: casamentos com outros membros daquela elite agrária, com
“forasteiros” (sobretudo comerciantes e militares), e com membros da mesma parentela
residentes no leste da província. Isso é coerente com o fato de que a política dotal
empregada por essas famílias não demonstrou o privilégio evidente de um herdeiro, em
detrimento dos outros. No mesmo sentido, as partilhas e as redistribuições posteriores
não indicaram a presença de um “herdeiro-concentrador”. A instrumentalização de
todos os filhos para casar bem e a possibilidade de que todos herdassem igualmente
eram atrativos para a multiplicação das alianças sociais, que eram valorizadas
positivamente pelas famílias de elite. Naturalmente, as alianças entre essas famílias não
impedia que houvesse uma constante disputa intra-elite. Os conflitos entre os grupos do
Coronel José Antônio Martins e do Marechal Bento Manoel Ribeiro, na década de 1830,
exemplificam bem a situação.
Tendo em conta esses fatores, é possível encontrar outras dimensões na
análise da hierarquia sócio-econômica e da estrutura agrária. O patrimônio individual
era importante, mas ao lado dele estava o pertencimento a uma família que, por seu
cabedal econômico, mas também social e militar concentrava recursos relevantes
naquela sociedade. Por outro lado, a já referida empreitada de acumulação fundiária
399
levada a efeito pela elite agrária nas primeiras décadas do século foi uma também
marcada por um caráter familiar. A acumulação de vastas extensões de terra serviu
como uma reserva para a reprodução da criação de gado em larga escala tanto dos pais
como de seus filhos. Isso ocorreu mesmo antes da partilha hereditária, uma vez que
muitos dos filhos criavam gado dentro dos campos de seus pais e começavam a
construir seus próprios patrimônios fundiários a partir do capital e do crédito
conseguido com essas atividades.
A pecuária praticada nos campos dos pais permitia aos filhos varões a
formação de um pecúlio, que lhes forneceria uma posição vantajosa para conseguir um
bom matrimônio e, assim, construir alianças importantes para toda a família. As receitas
advindas das atividades econômicas também eram empregadas para dar dotes às filhas,
com o mesmo sentido que ocorria no caso do pecúlio dos filhos, objetivando
instrumentalizar o a carreira do jovem casal e construir laços sociais relevantes. Em
alguns casos, as antecipações de herança e outras formas de compartilhamento de
recursos, como o próprio uso das terras dos pais por alguns de seus filhos, serviram para
iniciar uma prática recorrente de atividades conjuntas com eles. Nesses casos, recursos
de diversos tipos eram compartilhados fora das regras do mercado impessoal. Núcleos
conjugais aparentados - na maioria das vezes sendo o dos pais e o de alguns dos filhos
(as) - tinham muitos negócios em comum, o que acabava por gerar uma administração
familiar para os negócios do gado e viabilizavam sua produção em propriedades que se
espalhavam a largas distâncias.
Por outro lado, a grande pecuária era viabilizada por uma combinação de
trabalho livre com escravo. Como já apontaram alguns estudos anteriores, não existia
um mercado de trabalho livre nos moldes capitalistas no Rio Grande do Sul, durante o
período estudado aqui. O recurso ao trabalho cativo era indispensável. Cobrindo parte
das necessidades de trabalhadores com escravos, era possível lançar mão de peões livres
para cobrir a outra parte das necessidades de mão-de-obra. Porém, ao contrário do que
se tem dito sobre a Campanha Rio-Grandense no Oitocentos, o principal fator que
impedia a criação de uma massa de despossuídos nos campos não era o fato de que
podiam se apossar de um gado que era pouco cuidado pelos estancieiros. O que ocorria
era que o acesso ao uso da terra para a produção autônoma era possível, ainda que tenha
diminuído ao longo do período estudado. Mesmo que se tenham criado vastíssimas
estâncias na primeira metade do século XIX, havia espaço para a produção própria de
famílias que, no mais das vezes, não eram proprietárias das terras onde pastavam seus
pequenos rebanhos e cresciam suas modestas lavouras.
400
Boa parte dessa pequena produção tinha traços nitidamente camponeses.
Mesmo no caso dos que possuíam escravos, era a reprodução do ciclo familiar que
comandava a lógica de aquisição de cativos. Os peões, vistos muitas vezes como
homens soltos e sem vínculos sociais e familiares relevantes, na verdade estavam
inseridos nessas famílias de pequenos produtores e tinham em seu horizonte a criação
de laços familiares e a produção agrária própria. Enfim, esses grupos subalternos da
Fronteira Meridional não parecem tão diferentes de outras populações pobres rurais que
vêm sendo estudadas em outras partes do Brasil e do Prata. Parte desses pequenos
produtores iam empregar-se nas estâncias para trabalho eventual ou aquele de “apenas
alguns meses”, recebendo remunerações mais altas do que os peões “de longo tempo” e
uma maior parte de seus salários em dinheiro.
Por outro lado, os agregados podiam ser uma forma de mão-de-obra eventual
para os proprietários das terras onde produziam, mas não que parece que tenham sido
sempre uma reserva de trabalhadores não-remunerados disponível para atender às
necessidades laborais das estâncias onde estavam arranchados. Certamente tinham uma
posição subordinada ao dono de suas terras, mas essa subordinação não parece ter se
expressado como uma obrigatoriedade de prestação de trabalho de forma regular. Do
contrário, é de se supor que os estancieiros não precisassem contratar os caros peões “de
poucos meses” e “por tarefa” nos períodos de pico da demanda laboral.
Por sua vez, os escravos também procuravam elaborar demandas e projetos
próprios, chegando a tentar fugas, assassinatos, revolta aberta e, em muitas outras
oportunidades, buscando diminuir a opressão a que estavam submetidos, através de
pequenos ganhos. Embora aqui esse tema fique restrito a hipóteses, parece que a
possibilidade de deslocamento eventual, de trabalhar “para si” em alguns dias, de
constituir um pecúlio e laços familiares estáveis estiveram na ordem do dia em suas
lutas, como de resto ocorria em todo o Brasil da mesma época. Comprar escravos não
bastava para reproduzir a escravidão. Ao lado da coação era preciso algum nível de
negociação desigual e acomodação. Ao contrário do que se repetiu durante muito tempo
na historiografia, o trabalho cativo não era inviável na fronteira. Apesar das fugas
ocorrerem, a escravidão conseguiu desempenhar um papel estrutural na reprodução da
grande pecuária desde o século XVIII até, pelo menos, o final da década de 1860.
Há que se reconhecer, porém, que mudanças importantes estavam ocorrendo.
A reiteração da pecuária extensiva em uma fronteira agrária que se fechou em meados
do século fez cair o número de grandes criadores e o vulto produtivo que eles
alcançavam. O quadro da primeira metade do século XIX apresentava enormes
401
estâncias que continham espaço para a produção de seus titulares; para o início das
atividades dos filhos e que se transformavam em alianças através dos casamentos dos
mesmos; para manter uma relação de relativo acordo com agregados. Em 1850, com o
final do tráfico atlântico de cativos e o aumento do preço da terra, a reprodução das
estratégias da elite agrária foram se tornando mais difíceis. Ao mesmo tempo, as
autoridades uruguaias recrudesciam sua perseguição aos brasileiros que disfarçavam
seus escravos com falsos contratos de trabalho em propriedades naquele país. O
processo de profissionalização do exército e de aplicação da Lei de Terras avançavam.
Todo esse movimento ganhou uma forma mais nítida a partir de 1870 mas, como vimos,
teve seus primeiros traços ensaiados ao longo do período estudado aqui. Essas
mudanças mexiam diretamente com os elementos das estratégias sociais da elite agrária.
Somente um estudo específico sobre elites no período posterior poderia responder como
essas estratégias se transformaram, em consonância com a nova situação.
O que importa assinalar ao final deste estudo é que, ao longo dos dois
primeiros terços do século XIX, as famílias de elite parecem ter conseguido combinar o
aproveitamento dos estímulos mercantis vindos das zonas de plantation, a constituição
de cabedais militares e a construção de alianças para ocupar uma posição privilegiada
em uma realidade terrivelmente desigual. Não bastaria, para isso, apenas apropriar-se de
imensas extensões de terra. Dizer que aquela era uma elite latifundiária é um começo,
mas está longe de explicar sua constituição, sua lógica, suas estratégias, sua reiteração.
Era preciso combinar o desempenho eficiente das atividades econômicas com o
estabelecimento de alianças, que trouxessem recursos em áreas que estavam
inextrincavelmente amarradas a ela naquele mundo de enorme instabilidade
institucional. Era preciso lidar com setores médios e com uma vasta base de população
pobre que tinha suas próprias demandas e teimava em não corresponder a todas as
necessidades da elite, por mais que esta lhes apertasse o cerco. Esses subalternos
garantiam certo espaço de ação em razão da existência de possibilidades de produção
autônoma, ainda que elas estivessem se reduzindo.
Enfim, as famílias de elite da Fronteira Meridional tinham suas principais
atividades econômicas assentadas na pecuária em larga escala, mas tamm estavam
presentes em outras áreas, como o comércio e o prestamismo. Realizaram uma
acumulação fundiária voraz nas primeiras décadas do século XIX, antes do aumento no
preço das terras. Reforçavam sua atuação e diversificavam os setores sociais onde
estavam presentes, através das carreiras dos filhos e genros. Conseguiam ter algum
acesso aos comandos militares, por si ou por seus parentes e aliados, em uma época em
402
que ele era essencial para o próprio desempenho das atividades econômicas de grande
vulto, além de ser fonte de poder e prestígio social. Produziam a partir de uma
combinação de trabalho escravo e livre. Tinham propriedades espalhadas a largas
distâncias, muitas vezes no Estado Oriental. Sobretudo: combinavam a busca de
desempenhar da melhor forma possível as atividades econômicas com uma necessária
política de produção de uma sólida rede de parentesco e aliança.
Nesse contexto, parece bem mais compreensível a conta que o Brigadeiro
Olivério José Ortiz anexou ao inventário de sua esposa, em 1854. Ali constavam, entre
outras despesas, gastos com reparos das mangueiras e currais, dinheiro que dera ao filho
Major Olivério para que fosse à Porto Alegre buscar “o soldo da gente reunida”, venda
de novilhos a um charqueador de Pelotas, gastos com o casamento de sua filha com o
Brigadeiro Arruda Câmara, pagamento de salário ao piá Antônio (enteado do “velho
Leonardo”), ao “peão irmão do mulato Bernardo”, ao preto forro Manoel, assistências
em dinheiro a seu filho Pedro como cadete do Exército, venda de cavalos “à Nação”,
pagamento a um médico para cuidar da doença do escravo pardo Eleutério. Ao anotar
conjuntamente todos esses gastos, o Brigadeiro Ortiz não expressava uma confusa
irracionalidade como empresário rural. Ao contrário, se aceitamos cada anotação dessa
conta e conjunto como oportunidades de pesquisa, podemos ver que ela expressa uma
forma própria de lidar com a economia, com a família, com o poder militar, com seus
pares, com gente “mais graúda” e com “o pobreriu”. Ela aponta os caminhos para
analisar quais os elementos que se precisava mobilizar para reiterar a posição de elite
em um universo marcado pela pecuária, pela guerra, pela fronteira e pela reprodução de
uma hierarquia sócio-econômica fortemente desigual.
403
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