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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MESTRADO – TRABALHO E EDUCAÇÃO
FERNANDO PEREIRA CÂNDIDO
LAZER E EDUCAÇÃO NO CAPITALISMO BRASILEIRO:
CONCRETUDE HISTÓRICA E PROJETO REVOLUCIONÁRIO
FLORIANÓPOLIS – SC
2008
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TOMBO
FERNANDO PEREIRA CÂNDIDO
LAZER E EDUCAÇÃO NO CAPITALISMO BRASILEIRO
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MESTRADO – TRABALHO E EDUCAÇÃO
FERNANDO PEREIRA CÂNDIDO
LAZER E EDUCAÇÃO NO CAPITALISMO BRASILEIRO:
CONCRETUDE HISTÓRICA E PROJETO REVOLUCIONÁRIO
Dissertação de mestrado apresentada ao
Programa de Pós-graduação em Educação,
da Universidade Federal de Santa Catarina,
no Centro de Ciências da Educação como
requisito final para a obtenção do título de
mestre em educação, na linha Trabalho e
Educação.
Orientadora: Nise Jinkings
Co-orientadora: Iracema Soares de Sousa
FLORIANÓPOLIS – SC
2008
FICHA CATALOGRÁFICA
Cândido, Fernando Pereira, 1979-
Lazer e educação no capitalismo brasileiro
: concretude
histórica e projeto revolucionário / Fernando Pereira Cândido.
2008.
223 f.
Mestrado (Dissertação) –
Universidade Federal de
Santa Catarina, Florianópolis, 2008.
1. Lazer. 2. Educação. 3. Capitalismo. I. Título.
FOLHA DE APROVAÇÃO
FERNANDO PEREIRA CÂNDIDO
LAZER E EDUCAÇÃO NO CAPITALISMO BRASILEIRO:
CONCRETUDE HISTÓRICA E PROJETO REVOLUCIONÁRIO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação, na linha Trabalho e
Educação, da Universidade Federal de Santa Catarina, para a obtenção do título de Mestre em
Educação
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
Dissertação defendida em 11 de abril de 2008
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________
Orientadora: Dr.ª Nise Jinkings
_______________________________________
Co-orientadora: Dr.ª Iracema Soares de Sousa
_______________________________________
Examinador: Dr.º Paulo Sérgio Tumolo – UFSC
_______________________________________
Examinador: Dr.º Ari Paulo Jantsch – UFSC
_______________________________________
Examinadora: Dr.ª Elza M. M. Peixoto - UEL
_______________________________________
Suplente: Dr.º Lucídio Bianchetti – UFSC
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho aos meus pais:
José Pereira Cândido, trabalhador que pôde orgulhar-se
da vida levada, pelo “bom combate” que travou. Prestativo,
honesto, cordial e amigo, arriscando de forma segura
deixou aos seus filhos um grande legado.
Odete Pereira Cândido, trabalhadora que saltou as
brincadeiras de criança trabalhando para poder trabalhar
com educação. Extremamente forte e obstinada, mantendo
a doçura e a amizade.
Ambos transmitiram aos seus filhos grandes lições de
solidariedade, um valor fundamental para a revolução
social. Aos dois devo tudo que posso ser e posso
retribuir com todo o amor que lhes tenho.
AGRADECIMENTOS
Antes de todos, devo agradecer aos trabalhadores que produzem a riqueza
material dessa sociedade, junto com os demais trabalhadores (deformados pela
unilateralidade do trabalho capitalista) que mantém o funcionamento social à custa da
sua plena realização e são privados do acesso ao nível de ensino que ora se conclui.
Agradeço aos meus professores, desde o ensino primário até o terceiro ano do
ensino médio, que me ensinaram parte do conhecimento produzido e sistematizado pela
humanidade. São os professores da Escola Santa Edwiges, do Colégio Novo Horizonte
e do Colégio Estadual Guilerme de Almeida.
Aos meus professores da Graduação em Educação Física, da Universidade
Estadual de Maringá, que permitiram o conhecimento da cultura corporal e da sua
processualidade histórica, o caminho de entrada à consciência sintética da realidade da
luta de classes. Nesse sentido, em especial à professora Rosângela Melo, que no
primeiro ano do curso permitiu aos seus alunos o contato com a obra de Marx e Engels.
Às professoras Alda e Telma e ao professor Rogerio, pelo comprometimento e
perspectiva crítica na formação dos seus alunos. Ao professor Vanildo e ao professor
Nelson, enquanto orientadores do PET de Educação Física da UEM.
Um agradecimento muito especial ao professor Pedro Jorge de Freitas,
companheiro de lutas do Espaço Marx Maringá (“alguns passos à frente” na grande
caminhada que devemos enfrentar), pelas discussões no grupo, bem como por suas
aulas na disciplina Sociologia III e orientações no projeto Marx Contra o Estado.
Outra figura muito importante nessa caminhada foi a professora Maria
Rosemary Coimbra Campos Sheen (in memoriam), por compartilhar seu conhecimento
profundo dando um exemplo de humanidade e humildade e pelas orientações no projeto
Formação do pesquisador. Pela energia e vigor em momentos tão de fragilidade na sua
luta pela vida.
Agradeço ao Movimento de Estudantes de Educação Física e a EXNEEF, sua
executiva nacional, pelos Encontros Nacionais e demais espaços de formação política e
militância contra o avanço do liberalismo na Educação Física e na sociedade brasileira.
Ao Movimento Nacional Contra a Regulamentação da Educação Física
MNCR, por resistir aos avanços do capital (implementado e aparelhado na forma do
Conselho Federal de Educação Física CONFEF e dos Conselhos Regionais de
Educação Física – CREFs) sobre a cultura corporal. Resistência que educa pela tomada
da ciência da história como princípio de ação: “a história não acabou”; desregulamentar
é possível!
Agradeço aos professores do Programa de Pós-graduação em Educação da linha
Trabalho e Educação, especialmente àqueles que participaram diretamente da minha
formação no mestrado: Nise Jinkings, Paulo Tumolo, Ari Jantsch, Eneida Shiroma e
Lucídio Bianchetti. Juntos aos professores desse programa, devo lembrar as amigas da
secretaria: a Sônia, a Patrícia e a Bethânia, não só pela ajuda com as questões da
secretaria, mas pela amizade durante o tempo em que as auxiliei como bolsista.
Agradeço aos funcionários que ajudam a manter a universidade funcionando, os
técnicos, os seguranças e, especialmente ao pessoal da limpeza – que atuam com
condições de trabalho extremamente precarizadas devido à terceirização do serviço que
prestam, mais uma conseqüência prática da sociabilidade mediada pela mercadoria.
À Sônia da lanchonete do CED, amiga desde a seleção em 2005.
Agradeço aos amigos de Maringá com quem discute e caminhei bom tempo da
formação que precedeu ao mestrado. Aos companheiros do PET/Educação Física. Ao
companheiros do Grupo de Estudos e Intervenções em Educação Física GEIEF, a
Joelma, a Nágela, o Samuel e o Emerson. Aos companheiros do Espaço Marx.
A Beatriz, a Ana Paula, a Meire, a Marli, a Ane, o Maurício, o Carlos Henrique,
o Ciro, o Israel, o Eduardo Borba.
Aos amigos de Florianópolis, que também me ajudaram nesse momento da
formação, seja nas discussões teóricas, no apoio emocional ou nas lidas da militância, a
Caroline, a Elenira, a Alciléa, a Vilma, a Cyntia, a Thisciane, a Amália, a Tina, a Bartira,
o Benedito, o Mauro, o Rafael, o David, o Bruno Emanuel. As colegas de turma do
mestrado da linha TE 2006, pela companhia e discussões nas aulas. A Clarice, pela
ajuda com a ficha catalográfica.
Como amigos, professores e exemplos de intelectuais com consciência de classe,
agradeço a Rosângela Aparecida Melo e ao Ademir Quintilo Lazarini, pela amizade,
solidariedade críticas e indicações muito valiosas. Sem vocês o trabalho teria avançado
bem menos.
Agradeço aos meus irmãos: José Roberto, Edson, José Luiz, Genival, Walter,
Wagner e Eliane, que vêm me auxiliando desde 1998, quando fui para Maringá cursar a
faculdade, em diversas ocasiões e de maneiras diferentes, até os dias correntes.
A Sandra, parceira de estudos e companheira na vida, pelo amor, carinho,
atenção e todo o apoio que tem me dado para concluir essa etapa.
Agradeço à Kátia Oliver de Sá, por enviar sua dissertação; à professora Celi
Taffarel, por disponibilizar prontamente um texto seu; ao Fernando Mascarenhas, por
indicar o caminho para baixar sua tese; e à amiga Elza Peixoto, pelas oportunidades de
discussão em Curitiba e em Londrina, bem como por enviar seus artigos, sua tese e
outros textos fundamentais para a pesquisa.
Agradeço aos professores avaliadores desta pesquisa na qualificação, Nise,
Iracema, Paulo e Ari. E a esses professores, a quem se junta a Elza e Lucídio, para esse
momento da defesa.
Agradeço à Iracema pela contribuição com materiais de pesquisa e por sua
disposição e ajuda valiosa na co-orientação dessa pesquisa. Pela sensibilidade de dispor
seu conhecimento respeitando, meus limites e minhas posições, e pelo trabalho intenso
que realizou para a preparação final dessa pesquisa. Por sua amizade e incentivo para
continuar a pesquisa no campo dos estudos do lazer. Muito obrigado!
O agradecimento à minha orientadora, Nise Jinkings, tem que ser muito especial.
Por ser uma pessoa imensamente humana, tendo, além de outras provas que deu dessa
qualidade, se preocupado em me ajudar a conseguir meios para me manter em
Florianópolis. Por sua grande humildade, frente ao conhecimento que acumula nessa
jornada do ‘desvendar os nexos contraditórios e complexos da sociabilidade capitalista’,
conhecimento que mobilizou para o sucesso do trabalho (que não foi além por minhas
limitações pessoais somadas à conjuntura sócio-educacional atual). Pela liberdade para
trabalhar, propor e discordar, ao mesmo tempo que não se omitiu de seu papel de
orientadora. Pela grande mobilização de energias em momentos-chave de síntese da
dissertação, para a consolidação do texto de qualificação e do texto final, com suas
correções, indicações e críticas. Por ter aceitado orientar alguém até então desconhecido
e por ter se tornado uma grande amiga nesse curto processo de formação.
.
EPÍGRAFE
Quem encontrou cabra que fosse
animal de sociedade?
Tal o cão, o gato, o cavalo,
diletos do homem e da arte?
A cabra guarda todo o arisco,
rebelde, do animal selvagem,
viva demais que é para ser
animal dos de luxo ou pajem.
Viva demais para não ser,
quando colaboracionista,
o reduzido irredutível,
o inconformado conformista.
A cabra é o melhor instrumento
de verrumar a terra magra.
Por dentro da serra e da seca
não chega onde chega a cabra.
Se a serra é terra, a cabra é pedra.
Se a serra é pedra, é pedernal.
Sua boca é sempre mais dura
que a serra, não importa qual.
A cabra tem o dente frio,
a insolência do que mastiga.
Por isso o homem vive da cabra
mas sempre a vê como inimiga.
Por isso quem vive da cabra
e não é capaz do seu braço
desconfia sempre da cabra:
diz que tem parte com o Diabo.
Não é pelo vício da pedra,
por preferir a pedra à folha.
É que a cabra é expulsa do verde,
trancada do lado de fora.
A cabra é trancada por dentro.
Condenada à caatinga seca.
Liberta, no vasto sem nada,
proibida, na verdura estreita.
Leva no pescoço uma canga
que a impede de furar as cercas.
Leva os muros do próprio cárcere:
prisioneira e carcereira.
Liberdade de fome e sede
da ambulante prisioneira.
Não é que ela busque o difícil:
é que a sabem capaz de pedra.
A vida da cabra não deixa
lazer para ser fina ou lírica
(tal o urubu, que em doces linhas
voa à procura da carniça).
Vive a cabra contra a pendente,
sem os êxtases das decidas.
Viver para a cabra não é
re-ruminar-se introspectiva.
É, literalmente, cavar
a vida sob a superfície,
que a cabra, proibida de folhas,
tem de desentranhar raízes.
Eis porque é a cabra grosseira,
de mãos ásperas, realista.
Eis porque, mesmo ruminando,
não é jamais contemplativa
”.
(João Cabral de Melo Neto. Excertos de
Poema (s) da Cabra)
RESUMO
O trabalho é a categoria originária do ser social. Ele tem seu caráter concreto de produtor de
valor de uso subsumido a seu caráter abstrato de produtor de valor, sob o capitalismo. O lazer
é uma prática social específica do capitalismo, própria do tempo livre definido por oposição
ao tempo ocupado do trabalho, ao mesmo tempo em que é complexo fundado com
dependência ontológica deste, se desenvolve em íntima relação com a educação. Desse modo,
esta pesquisa surgiu da necessidade da superação das análises idealistas do lazer, e de
estabelecer nexos teóricos que permitam chegar à apreensão concreta deste fenômeno, de
forma a permitir sua articulação ao projeto de superação radical do capital. A categoria
contradição permitiu analisar o lazer, por um lado, na sua característica hegemônica de
reprodução da sociedade capitalista e, por outro lado, com possibilidades de ser articulado a
um projeto de superação radical do capitalismo. Nesse sentido, configurou-se o problema:
partindo da história brasileira desde o século XX, o que é concretamente o lazer e quais suas
mediações nas relações sociais capitalistas considerando a luta de classes? Para essa
investigação se estabeleceu o objetivo central de analisar o lazer na sociedade brasileira a
partir da crítica de autores clássicos e contemporâneos, buscando estabelecer uma base teórica
para a compreensão concreta do lazer. Seguiram-se os objetivos específicos: a) Investigar a
constituição histórica do lazer na sociedade capitalista, especialmente no Brasil; b)
Compreender a mercadoria a partir da investigação marxiana; c) Discutir as conseqüências da
reestruturação produtiva para a compreensão do lazer; d) Estabelecer uma crítica do lazer a
partir de autores clássicos e contemporâneos; e) Indicar algumas relações entre lazer e
educação no processo da luta de classes. A metodologia utilizada foi uma pesquisa de caráter
analítico, que se perfila na ciência histórica de Marx e Engels e nas categorias marxianas de
investigação do capital. Após retomada histórica da constituição do capitalismo e análise do
lazer e da educação como complexos sociais mediados pela mercadoria, empreendeu-se a
crítica à alguns autores clássicos e contemporâneos do lazer. As sínteses alcançadas mostram
que articular o lazer à emancipação via luta por políticas públicas e garantia de direitos não
pode superar sua existência como mecanismo de recomposição/potenciação da força de
trabalho no tempo livre. Ou seja, o lazer em suas mediações com a educação, só pode
colaborar para a superação do capital se articulado à organizações revolucionárias de
trabalhadores.
Palavras-chave: Capitalismo; Lazer; Educação; Tempo livre; Revolução.
ABSTRACT
The work is the founding category of being social. It has, under capitalism, its concrete
character of producing of value of use subsumed to its abstract characteristic of producing of
value. The leisure is a specific social practice of the capitalism, own of the free time defined
by opposition at the occupied time of the work, at the same time in that is complex founded
with ontological dependence of this, it is developed in intimate relationship with the education.
It gave way, this research it appeared of the need of the overcomeness of the idealistic
analyses of the leisure, and of establishing theoretical connections that they allow to arrive to
the concrete apprehension of this phenomenon, in way to allow its articulation to the project
of radical overcomeness of the capital. The category contradiction allowed to analyze the
leisure, on one side, in its characteristic hegemony of reproduction of the capitalist society
and, on the other hand, with possibilities to articulate to a project of radical overcomeness of
the capitalism. In that sense, the problem was configured: starting from the Brazilian history
since the century XX, what is the leisure concretely and which are its mediations in the
capitalist social relationships considering the class struggle? For this investigation, it was
established the central objective to analyze leisure in the Brazilian society, based on the
critique of classic and current authors in order to establish a theory base for the concrete
comprehension of leisure. We followed specific objectives: A) To investigate the historic
constitution of leisure in the capitalist society, more specifically in brazil; B) To understand
the concept of goods through Marxist investigation; C) To discuss the consequences of the
production restructuring in order to comprehend leisure; D) To establish a critique of leisure
based on classic and current authors; E) To indicate a few relationships between leisure and
education in the process of class struggle. The used methodology was a research of analytic
character, that is profiled in Marx's historical science and Engels and in the Marxist categories
of capital investigation. Critics to some classic and current authors arose after analyzing the
historical constitution of capitalism and consider leisure and education as social complexes
mediated through the production of goods. The synthesis reached through this analysis
showed that to articulate leisure for emancipation for the fight for public politics and the
guarantee of rights should not overcome its existence as the mechanism for
recomposition/potentialization of the workforce in their free time. In other words, leisure in its
mediation with education can only collaborate towards the overcoming of the capital if
articulated to workers revolutionary organizations.
Key words: Capitalism; Leisure; Education; Free time; Revolution.
Word-key: Capitalism; Leisure; Education; Free time; Revolution.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................12
1. DO ÓCIO COM DIGNIDADE AO LAZER MERECIDO: tempo livre x tempo ocupado 35
1.1 Capitalismo na Alemanha e no Brasil no contexto mundial do século XIX:
particularidades e continuidades históricas ..........................................................................35
1.2 Concepção de história e bases teórico-metodológicas na Ideologia Alemã .......................39
1.3 Generalizações da concepção de história e estudo do lazer ...............................................47
1.4 Consolidação do modo capitalista de produção .............................................................49
1.5 A reestruturação produtiva: capital e trabalho a partir de 1980 .....................................59
2. A INVESTIGAÇÃO MARXIANA SOBRE A MERCADORIA........................................68
3 GÊNESE DO LAZER E SUA MERCANTILIZAÇÃO: CONTINUIDADES E RUPTURAS
..................................................................................................................................................96
3.1 O lazer no Brasil em seu desenvolvimento capitalista ...................................................96
1.2 Investigação do lazer como mercadoria e as conseqüências da reestruturação produtiva
............................................................................................................................................108
4. RELAÇÕES ENTRE LAZER E EDUCAÇÃO NO CAPITALISMO ................................96
4.1 O lúdico e a seriedade como as formas de expressão do espírito: o jogo como
protoforma da cultura .........................................................................................................142
4.2 Lazer e mudanças sociais: projeto de hegemonia sem classes .....................................170
4.3 Apontamentos para a crítica da educação no capitalismo............................................193
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................197
REFERÊNCIAS .....................................................................................................................215
INTRODUÇÃO
A crítica é entendida aqui como o processo de confrontar a teoria com a prática
social e a prática social com a teoria, analisando o que se confirma e o que não se
confirma, bem como o por quê dos acertos e dos erros. Foi partindo dos autores do
campo crítico do lazer que serão criticados nessa pesquisa que pude formar as idéias que
defendo. Muitos desses tiveram ou têm envolvimento prático, teórico-político com o
problema do tempo livre dos trabalhadores e se colocam ao lado da classe trabalhadora,
portanto, as críticas não têm o sentido de ataque pessoal ou moral porquanto objetivam
tão somente conhecer a realidade para nela intervir no sentido da sua transformação
radical. Por mais que esta explicação possa parecer desnecessária e até pueril, considero
importante esclarecer isso posto que se busca uma discussão franca com todos que se
colocam na mesma perspectiva da classe revolucionária, entendendo que é possível uma
unidade para a luta, respeitadas as discordâncias, tendo uma militância cientificamente
orientada contra aquilo para o qual a classe burguesa é mera personificação: o capital.
Além disso, a condição de iniciante no trabalho de pesquisa impõe assumir que as
formulações aqui defendidas correm todos os riscos de serem equivocadas em maior ou
menor grau. Essa comprovação deve ser feita pelo mesmo processo aqui buscado, pela
crítica.
Um segundo esclarecimento necessário é sobre a ordem capitalista dada. Aqui
ela não é tomada no sentido positivista, de uma ordem harmônica, mas entendendo que
essa ordem se constitui a partir de uma produção caótica, portanto, é uma ordem
contraditória e não fundada em um consenso entre os homens, o povo ou os cidadãos.
Sabe-se que a ordem burguesa é fundada sobre duas classes fundamentais antagônicas e
tem a violência como sua bandeirante. Uma ordem que nada tem de harmônica, pois
fundada na desordem planejada que dá a unidade característica de uma sociedade
contraditória.
O objetivo inicial desta pesquisa visava às mediações dialéticas entre lazer e
educação na sociedade capitalista. Essa preocupação persiste e deverá ser investigada
com o devido rigor posteriormente. Todavia, as limitações de tempo impuseram que a
pesquisa fosse delimitada a uma análise crítica de alguns autores do campo do lazer
visando a compreensão desse fenômeno na sua concretude. Mesmo assim, percebe-se
13
que este trabalho abrirá um caminho para o avanço da investigação no sentido
pretendido inicialmente.
Um último esclarecimento diz respeito às exigências metodológicas
concernentes ao método materialista histórico dialético e ao trabalho que se consegui
cumprir nessa fase do mestrado. Estas exigências metodológicas foram apontadas no
esforço de colaborar para a consolidação de bases marxistas para a pesquisa do lazer no
Brasil. Todavia, desde devo indicar meus limites pessoais, por ser produto do
momento de intensa desqualificação do ensino público no Brasil e no mundo, haja vista
a ofensiva do neoliberalismo e as conseqüências do ideário pós-modernista, que
atingem desde a educação infantil até os estudos de pós-graduação. Mesmo sendo um
resultado positivo da “produtividade” de uma escola deliberadamente “improdutiva”,
conforme demonstrou Frigotto (2001) em sua tese de 1984, não me eximo da obrigação
de buscar efetivar tal análise, todavia, com consciência de que não fazemos a história
conforme queremos, a fazemos sob determinadas condições, com o peso dos
antepassados sobre nossas cabeças. Essa explicação tem a intenção de situar-me como
um sujeito que obtém o grau de licenciado em um tempo em que pessoas formadas em
nível superior podem ser semi-analfabetas; período em que um curso de mestrado,
aligeirado para dois anos, flexibilizado, perdeu 50% do tempo que outrora contava para
a formação de um mestre. Assim, percebo que o momento em que começo a ter
condições de manusear o referencial eleito é acompanhado pela exigência institucional
de concluir o estudo que apenas se inicia.
Feitos os esclarecimentos, na introdução que segue será apresentado o percurso
feito desde o projeto inicial até a configuração final da dissertação aqui exposta,
portanto expressa dois tempos com distintas pretensões de pesquisa que confluem, se
relacionam, no resultado alcançado. Passemos ao contexto que permitiu o recorte do
objeto aqui estudado.
Parte-se da consideração do trabalho sob duas formas distintas: como processo
de satisfação das necessidades humanas onde o homem se relaciona com a natureza e
com os outros homens, produzindo sua própria humanidade. Ou, de outra forma, como
atividade de produção de mercadorias tendo em vista o lucro e o acúmulo do capital. A
segunda forma está indissoluvelmente dentro da primeira, sendo que o inverso se no
presente momento histórico, mas não inexoravelmente. Nesta discussão, o trabalho
14
também é visto como o momento da obrigação do homem a alguma coisa, e o lazer
como o momento de liberdade
1
, da desobrigação.
Liberdade no capitalismo é sempre limitada uma vez que está condicionada e
determinada pelas relações mercantis. Liberdade no sentido liberal, adotado na
consolidação do capitalismo, significa o trabalhador liberar-se dos meios de produção e
das suas obrigações de servidão, pois ele deve ser livre para vender sua força de
trabalho e para comprar onde quiser. Logo, a liberdade, no sentido que os autores do
lazer e da educação geralmente defendem, pretende ir além dessa liberdade no seu
sentido liberal. Todavia, a liberdade para a qual se caminha, geralmente, não consegue
ir além dos limites desta sociedade de classes, pois não trata da superação das suas bases.
De outra forma, no caminho da teorização aqui adotada, a associação da liberdade com
a emancipação humana pressupõe uma sociedade que supere a subsunção do trabalho ao
capital, vale dizer, uma sociedade que faça desaparecer a propriedade privada dos meios
de produção e de subsistência e as relações sociais que dela emergem.
O lazer, a prática socialmente estabelecida nesse tempo livre é, na sua essência,
entendido como espaço de recomposição da força de trabalho despendida na atividade
laboral. Porém, o lazer, como toda prática social, é movido pela contradição. O lazer
entendido dialeticamente, assim como todo novo fenômeno social, traz em si o germe
de sua superação. Por isso, ele apresenta, contraditoriamente a sua função hegemônica,
possibilidades de potencializar a formação de sujeitos revolucionários. Essa forma
contra-hegemônica do lazer é identificada quando ele acontece em um projeto de
organização revolucionária dos trabalhadores - para além do simples descanso e gozo de
práticas culturais empobrecidas - como espaço de apreensão crítica da cultura
historicamente produzida pela humanidade, mediado e mediando o entendimento da
necessidade da superação do sistema sociometabólico do capital.
O lazer se realiza no tempo livre, e tempo livre, na perspectiva aqui
assumida, dada a existência do trabalho. é possível definir o tempo livre a partir do
1
Mészáros realiza uma discussão desse conceito historicizando como a concepção aristotélica do homem
como um animal político, ou seja, social, predominante até fins da Idade Média, foi substituída pela
discussão filosófica da liberdade individual. “No momento em que alcançamos o século XX, o que
adquire a “santidade de um dogma” [remissão à discussão anterior de Mészáros a respeito do status da
doutrina aristotélica de que o homem é um animal político] é a crença de que a ‘liberdade’ é inerente
como se fosse um ‘direito natural’ - ao indivíduo isolado. As referências políticas e sociais tendem a
desaparecer e as circunstâncias condicionadas sócio-historicamente, da vida atomizada e privatizada do
indivíduo são caracterizadas, de maneira a-histórica, como ‘condição humana’ (MÉSZÁROS, 2006,
p.234-35). Considerando estes pressupostos, além de outros que serão expostos posteriormente, se pode
balizar o conceito de liberdade aqui problematizado. Deverá se distinguir a aparência da liberdade de sua
essência, seus limites concretos e as possibilidades postas pela luta de classes.
15
tempo não-livre, do tempo ocupado, onde se tem uma obrigação para com alguém e
algo. Segundo Waíchman (1997, p. 112), "podemos definir descritivamente o tempo
livre como aquele modo de manifestar-se o tempo pessoal, que é sentido como livre
quando dedicado a atividades autocondicionadas de descanso, recreação e criação para
compensar-se e, por último, afirmar-se a pessoa individual e socialmente". A
contradição do emprego, essa atividade remunerada, ao trabalho, segundo Marx (2004),
leva o homem a se sentir homem nas suas atividades animais, comer, dormir,
reproduzir-se, e o se reconhecer como homem na atividade que o define como
homem, o trabalho. Isto se deve necessariamente ao trabalho voltado a produção do
valor, por via da mercadoria, do capitalismo, que causa a alienação do trabalhador.
Junto ao tempo livre e ao tempo ocupado, considera-se também o tempo
desocupado
2
, o tempo que tem o desempregado. Nesse tempo ele tem disponibilidade
para fazer ao mesmo tempo: 1 - qualquer coisa, desde que alguém lhe permita ter acesso
aos objetos e aos meios de trabalho e; 2 -nada, na medida em que para ter acesso aos
bens produzidos social e historicamente, entre eles as práticas de lazer, os homens têm
que ir ao mercado consumir mercadorias, precisando para isso do valor de troca
universal, o dinheiro.
Quando se analisa o tempo este não pode ser tomado como um dado a-histórico
ou entendido sem a mediação da contradição. Também, o tempo não pode ser
determinado simplesmente por um fundamento subjetivo tal qual a “atitude” dos
sujeitos, conforme ocorre no campo do lazer. Este deve ser analisado no contexto das
relações sociais e em sua historicidade. Assim, se entende os diferentes tempos como
decorrentes das condições objetivas de vida dos sujeitos históricos. O tempo não é um
dado natural que os homens se limitam a constatar. Ele também é uma construção
histórico-social com determinações da forma social de produção da existência
(ANTUNES, 2005; HARVEY, 2001; PADILHA, 2000). Essa realidade histórico-social
do tempo dos indivíduos é o ponto de referência à compreensão do tempo livre na
sociedade capitalista - chamada por Marx de “pré-história” da humanidade
3
-, uma
categoria sem a qual não é possível a investigação do lazer.
2
Marcellino (1995), para essa categoria utiliza a denominação tempo desocupado e Sader (1998) utiliza
tempo livre para o tempo de lazer, no caso dos “ricos”, e como situação de desemprego, no caso dos
trabalhadores desempregados. Porém, este uma interessante idéia para conceituar esta categoria com a
denominação de “tempo morto”.
3
Esta expressão utilizada por Marx não deve passar desapercebida ou ser tomada como periférica. Ela
tem um peso gigante quando se teoriza a produção e fruição de riquezas - notadamente as riquezas
16
Paoletti (1998
4
, p.34 apud ANTUNES, 2005, p.174) traz uma indicação precisa
sobre o tempo nessa acepção, dizendo que ele “implica uma possibilidade de domínio
sobre a vida dos indivíduos e sobre a organização social, do tempo de trabalho e da
produção capitalista ao tempo da vida urbana”. E é nas relações sociais de planejamento
e execução desse domínio que surge a prática social conhecida como lazer.
A qualidade da utilização desses tempos é determinada também pela educação,
que por sua vez é determinada pela forma de organização social do trabalho, pela
estrutura econômica da sociedade. Por isso, o lazer e a própria sociabilidade têm como
um de seus determinantes a educação, que pode assumir o caráter de inculcação
ideológica dos valores da classe dominante e de preparação das qualidades necessárias
ao modo de produção socialmente estabelecido, ou, um sentido contrário a este, onde o
foco não está na produção de mercadorias e acúmulo do capital, mas na satisfação das
necessidades humanas, sendo a educação uma prática que visa permitir a efetivação das
várias potencialidades dos homens.
O lazer tem um duplo aspecto contraditório. Por um lado,
recomposição/potenciação da força de trabalho e, por outro lado, prática social de
desenvolvimento humano, sendo que, nessa segunda acepção, pode ser articulado com
uma prática de formação revolucionária. é possível falar em desenvolvimento
humano, tomando o conceito positivamente, se se fala em superação das barreiras
impostas pelo capital à realização das potencialidades humanas, processo em que a
tarefa da educação é entendida como essencial. Desconsiderando isso, falando em
desenvolvimento humano dentro da lógica anárquica do capitalismo, dada pelo capital,
o desenvolvimento do homem significa necessariamente sua desefetivação como ser
humano, uma vez que quem se apropria das características humanas é a mercadoria, são
as coisas em razão das quais as energias intelectuais e musculares são despendidas.
Desses pressupostos contraditórios e excludentes que envolvem o lazer é que parte o
problema a ser investigado neste trabalho: partindo da história brasileira desde o século
XX, o que é concretamente o lazer e quais suas mediações nas relações sociais
capitalistas considerando a luta de classes?
Para viabilizar a investigação dessa prática social foi estabelecido como objetivo
central analisar o lazer na sociedade brasileira a partir da sua história e de uma crítica de
culturais no presente momento histórico que contrapõe uma virtualidade de capacidade produtiva à
miséria humana crescente em escala planetáia.
4
PAOLETTI, Grazia. Dossier sobre “Riduzione dell’orario e Disoccupazione”. In: Marxismo Oggi, 2.
Teti Editore: Milão, 1998.
17
autores clássicos e contemporâneos, buscando estabelecer uma base teórica para a
compreensão deste complexo como ntese de muitas determinações. A partir deste
objetivo foram estabelecidos os seguintes pontos: a) Investigar a constituição histórica
do lazer na sociedade capitalista, especialmente no Brasil; b) Conhecer a mercadoria a
partir da investigação marxiana; c) Discutir as conseqüências da reestruturação
produtiva em relação ao lazer; d) Elaborar uma crítica ao lazer considerando a
formulação de autores clássicos e contemporâneos que influenciam a produção teórica
sobre o lazer; e) Indicar algumas relações entre lazer e educação no processo da luta de
classes.
Delimitados estes objetivos, estabeleceu-se uma investigação realizada a partir
de fontes bibliográficas e guiada pela concepção histórica marxista
5
, que buscou uma
compreensão analítica e dialética do objeto estudado. Partiu-se do modo de organização
dos homens para produzirem e reproduzirem suas existências, pois é a partir da forma
de produzir materialmente sua vida que o homem se humaniza. É da prática social que
nascem os diferentes tipos de intercâmbio que os homens travam entre si (MARX;
ENGELS, s/d). Buscou-se a leitura dialética do lazer, em primeira instância, sem perder
a preocupação com suas relações com a educação que media a gênese e
desenvolvimento do próprio lazer na superestrutura erigida da produção material da
existência. Nesse sentido, o foco de atenção deve estar sobre a forma como se divide o
trabalho porque à medida que se desenvolvem as forças produtivas e conseqüentemente
o comércio, mais se intensifica a divisão do trabalho. Por que cada força produtiva nova
leva a uma nova especialização da divisão do trabalho. E cada novo estágio da divisão
do trabalho determina uma nova relação entre os indivíduos (Idem, Ibidem).
“Na investigação concreta [...] cabe ao sujeito reproduzir racionalmente o objeto
restituindo-lhe todas as suas (dele, o objeto) múltiplas determinações” (NETTO, 1998,
p. 58). Uma pesquisa desse tipo deve partir do empírico, distanciar-se dele por
abstrações e tornar a ele novamente, sucessivamente até atingir essas múltiplas
determinações, o real pensado. Para isso, recorre-se à produção bibliográfica específica
do lazer, da educação e da crítica da economia-política, por meio de livros, periódicos
5
Trein e Ciavatta (2003, p.143) mostram qual é esse entendimento da história, em oposição as visões
relativistas, assumindo que: [...] a história é a produção da existência humana. Ao produzi-la, tanto
considerando a história como processo quanto considerando-a como método, colocamos nossos valores e
ideologias. Assim, a história construída é sempre fruto de opções conceituais e metodológicas, imbuídas
de uma determinada visão de mundo, certo referencial analítico, que conduzem à afirmação de uma
verdade aproximada. O que lhe retira um possível relativismo subjetivista, na medida em que está
subjacente à história escrita a produção material e seus aspectos sociais e culturais”.
18
impressos e arquivos buscados na internet. Procurou-se compreender a necessidade
histórica do lazer no capitalismo e, em oposição, para a teoria/práxis da transição
socialista, bem como os fatos que constituem seu ponto de partida. Para a análise
dialética dos fatos constatados empiricamente, as relações destes com os demais fatos
relativos aos fenômenos, as negações que eles trazem em si mesmos e as suas evoluções
causadas pelas contradições, tentou-se considerar as determinações mútuas entre: lazer
trabalho educação (sempre preocupados em apreender o lazer em sua concretude
histórica), e seus possíveis movimentos rumo à sociedade comunista.
Por tratar-se de uma pesquisa em que as fontes principais são bibliográficas os
livros que tratam do tema dessa pesquisa foram selecionados considerando obras
clássicas e obras escritas a partir de 1980. Isso porque, de acordo com a produção
acessada, as décadas de 1970 e 1980 são marcantes na forma de reorganização da
produção capitalista que precisava responder as crises características do fim do
chamado período do milagre, em fins de 1970. De 1979 a 1989 localiza-se, no Brasil, de
acordo com a pesquisa de Peixoto (2007), um ciclo de produção do conhecimento sobre
o lazer caracterizado pela preocupação com os interesses e conteúdos culturais, a
relação entre trabalho e lazer e início de uma crítica da produção anterior, sendo
destacado a utilização recorrente das obras de Marx e Engels.
Ainda na fase do projeto desta pesquisa, após um período de levantamento das
possíveis fontes a serem pesquisadas, foram delimitados os seguintes livros
6
para a
pesquisa:
Paul Lafargue – O direito a preguiça, de 1880.
Bertand Russel – O Elogio do Lazer, de 1932.
Johan Huizinga – Homo ludens: o jogo como elemento da cultura, de 1938.
Arnaldo Sussekind – A Recreação operária, de 1948.
Arnaldo Sussekind – A Recreação operária no Brasil, de 1949.
Acácio Ferreira – O Lazer Operário, de 1959.
Jofre Dumazedier – Lazer e cultura popular, de 1973.
Jofre Dumazedier – Questionamento teórico do lazer, de 1975.
6
As possibilidades de fontes primárias para a pesquisa eram alguns periódicos e Anais de eventos
científicos com publicações no campo de estudos específico, entre os quais as publicações do Colégio
Brasileiro de Ciências do Esporte - CBCE (Revista Brasileira de Ciências do Esporte e/ou Anais do
Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte - CONBRACE) e os Anais do Encontro Nacional de
Recreação e Lazer - ENAREL. Todavia, a opção foi feita por livros devido aos motivos expostos abaixo.
19
Jofre Dumazedier – Sociologia empírica do lazer, de 1979.
Nelson Carvalho Marcelino – Lazer e humanização, de 1983.
Nelson Carvalho Marcelino – Lazer e educação, de 1987.
Nelson Carvalho Marcelino – Pedagogia da animação, de 1990.
Domenico de Masi – O ócio criativo, de 2000.
Tais obras foram selecionadas na versão do projeto pelos motivos seguintes.
As construções de Lafargue, Russel, Huizinga e Dumazedier representam as
fontes clássicas das discussões atuais no campo do lazer (Pode-se observar a recurso a
essas fontes nas obras de MARCELLINO, 1995; GOMES, 2003; WERNECK, 2000-a e
2000-b;). Lafargue e Russel realizam enfática crítica à ideologia do trabalho como
virtude, sob posições políticas diferentes, sendo o primeiro um socialista e o segundo
um liberal. Huizinga efetiva uma análise histórico-linguística-filosófica que coloca a
centralidade do lúdico/jogo na constituição do gênero humano. Dumazedier, sendo
ponto de partida para produções nas diferentes temáticas desse campo, é um dos
maiores estudiosos no campo da sociologia sobre o problema do lazer, tendo
aprofundado suas pesquisas nesse campo. O conceito de lazer é revisto em 1970,
quando os estudos desse autor são divulgados no Brasil (GOMES, 2003).
Desse primeiro bloco de referências primárias, dado o limite de tempo, apenas
uma foi analisada, o livro de Huizinga. A escolha desse autor foi feita porque seu tema é
mais abrangente que o próprio lazer e, sua abordagem do lúdico é apropriada não no
lazer, mas em várias áreas que discutem o jogo em suas relações com a educação. A
obra de Dumazedier, mais importante e mais rica para a compreensão direta da
concretude do lazer, é mais extensa e, em grande medida, aparece diluída nas produções
do campo no Brasil. Dessa forma, a opção foi por sua análise mais cuidadosa em fase
posterior da investigação.
Sussekind, por sua vez, aparece como referência teórico/histórica indispensável
para a reflexão do lazer a partir do trabalho no Brasil, conforme as indicações de
Peixoto (2006; 2008). Este pensador e sua produção orgânica para as ações do Estado
direcionadas às políticas de lazer, traz, segundo Gomes (2003, p.12), análises profundas
sobre o trabalho, o lazer e a recreação, “tendo em vista compreendê-los em seus
desdobramentos mais complexos”, abordando as “conseqüências sociais da fadiga”, o
“funcionamento, processos instituídos e possibilidades de intervenção” do lazer.
Arnaldo Sussekind participou da Comissão de Consolidação das Leis do
20
Trabalho, constituída em 1942 sob presidência do Ministro do Trabalho Alexandre
Marcondes Filho, foi Ministro do Trabalho e Previdência Social no Governo de Castelo
Branco, de 1964 a 1967, Ministro do Tribunal Superior do Trabalho e atuou de forma
importante nas Reformulações da CLT de 1967 e 1974 (PEIXOTO, 2008). Além disso,
esse autor representa o Brasil nas Conferências Gerais da Organização Internacional do
Trabalho - OIT em “1951, 1952, 1953 e 1954; e nas 9 conferências seguintes” (Idem,
Ibidem, p. 6). Esse autor foi incorporado na pesquisa para a compreensão da
constituição histórica do lazer no Brasil, todavia, sua análise como fonte primária
também foi relegada ao próximo passo da investigação. Em seguida, encontrou-se que o
livro de Acácio Ferreira foi o primeiro no Brasil a utilizar o termo lazer (MARINHO,
2005
7
), sendo considerado por muitos autores a primeira publicação específica sobre
lazer no Brasil, segundo Gomes (2003). Após uma leitura inicial dessa obra, também foi
decidido relegá-la à um próximo momento da análise.
O pensamento de Marcelino expresso em suas obras é a maior referência teórica
nos estudos do lazer no Brasil, sendo reconhecido como um paradigma para os
pesquisadores desse campo, conforme Werneck (2000-a). Entre os três livros deste
autor decidiu-se pela análise detida do livro que resultou de sua dissertação de mestrado,
isso porque, o primeiro (Lazer e Humanização) é de caráter mais geral, e mais distante
da educação, do que o segundo (Lazer e Educação). O terceiro livro (Pedagogia da
animação) avança mais nas proposições para esta relação entre lazer e educação,
todavia, como no segundo livro é preparado o terreno para o desenvolvimento deste
terceiro, é naquele que o autor estabelece as relações entre “lazer, escola e o processo
educativo” para, em seguida, avançar na teorização da própria “pedagogia da animação”
a partir do “componente lúdico da cultura da criança” (MARCELLINO, 1990, p.19).
Por fim, de Masi, um destacado pensador italiano que discute o tempo livre,
também representa um paradigma das discussões atuais sobre o lazer, com uma leitura
no campo das teorias que defendem a sociedade pós-industrial e a diminuição da
importância do trabalho. Segundo Mascarenhas (2006, p.81-82), de Masi, o “apologeta”
mais famoso dessa corrente no campo do lazer, indica uma formação humana voltada ao
“ócio criativo”, a categoria que substitui o trabalho na “organização e explicação da
vida”. Também a análise deste autor foi protelada para um momento posterior de
investigações devido aos limites de tempo.
7
Texto de Inezil Pena Marinho do ano de 1984, contido na Coletânea publicada pelo CBCE (de 2005),
com textos da autoria de Marinho.
21
Os autores acima foram apresentados todos, inclusive aqueles que não foram
analisados detidamente, porque considerou-se importante expor os motivos contextuais
que levaram as suas escolhas, enquanto fontes primárias de investigação, dada a
necessidade de indicar caminhos para futuras pesquisas. Ou seja, ainda que o tempo não
tenha permito a incursão nas obras de todos os autores, chamar a atenção para a
importância de investigar os mesmos representa parte da contribuição pretendida nessa
pesquisa.
O desenvolvimento da pesquisa impôs a necessidade de novos autores passarem
a compor o quadro de fontes de investigação. Para uma exposição sistemática,
considerando os limites de tempo do mestrado, foram selecionados dois autores de
grande importância para a crítica ao lazer com o enfoque dado, ou seja, buscando
conhecer a concretude do lazer na particularidade brasileira. Nesse percurso, tomando a
questão específica do lazer, julgou-se necessário a compreensão das categorias iniciais
expostas por Marx para desvendar o capital. No processo de busca da consolidação
dessas categorias para a compreensão do lazer, outros autores foram selecionados para
uma análise de suas formulações, em especial sobre o lazer e a mercadoria. Por isso,
foram analisados dois autores contemporâneos de grande importância no campo dos
estudos do lazer:
Valquíria Padilha. Consumo e lazer reificado no universo onírico do
shopping center. In: PADILHA, Valquíria. Dialética do lazer (org.). 2006.
Fernando Mascarenhas.
Entre o ócio e o negócio: teses acerca da anatomia do
lazer. 2005.
Estes dois autores são doutores com pesquisas de mestrado e doutorado no
campo de estudos do lazer e estão produzindo teoria sobre o assunto com apropriação da
obra de Marx. Por isso optou-se em uma análise dos dois autores, que trazem elementos
para se conhecer o lazer na particularidade brasileira e, da discussão pontual sobre a
relação lazer-mercadoria e suas conseqüências sociais.
A partir do debate com estes dois autores, além de outros, um dos objetivos
específicos da presente pesquisa foi alterado. No projeto inicial a intenção era perceber
o que muda no lazer a partir da reestruturação produtiva chamada de “acumulação
flexível” por autores que estudam o trabalho e os processos produtivos no capitalismo.
Porém, como os trabalhos analisados apontavam para modificações formais como sendo
essenciais, o foco da investigação, nesse particular, inverteu-se para demonstrar não
mais o que mudou, e sim o que permanece no lazer como forma de ocupação do tempo
22
livre no capitalismo ou seja, os aspectos de continuidade - e suas mediações para a
reprodução da sociabilidade mediada pelas mercadorias. Isso se deu a partir da base
teórico-metodológica que se conseguiu estabelecer com os estudos da obra de Marx,
principalmente do O Capital.
A primeira indicação metodológica específica para se seguir nas investigações
sobre o lazer é dada por Taffarel (2005, p. 20), conforme expressa o texto a seguir:
O lazer é aquilo que se manifesta imediatamente enquanto
possibilidade de utilização do tempo livre do trabalhador, primeiro e
com maior freqüência. Partindo dessa consideração devemos nos
perguntar por que a “coisa em si”, a estrutura da coisa, não se
manifesta imediata e diretamente? Por que é necessário um percurso
para compreendê-la? Por que a “coisa em si” se oculta e foge à
percepção imediata? Ao fazer estes questionamentos nos esforçamos
para fazer um percurso de descoberta da verdade. Buscar a
compreensão da essência historicamente construída do lazer, das
possibilidades de utilização do tempo do trabalhador. Essa é uma
atitude científica da qual depende nossa emancipação enquanto classe
social. [...] acessar o método do pensamento para compreender o real
acerca do lazer.
Essa precisa indicação teórico-metodológica e política, bem como seus
fundamentos, não é tomada como instrumento para as pesquisas correntes no campo do
lazer. A análise da produção teórica nesse campo, realizada por (2003, p.19),
comprova que nela não se revelam “as contradições em que se inserem as categorias
trabalho, lazer e educação na sociedade capitalista”. Portanto, se as produções no campo
do lazer, em sua maior expressão e nas suas principais referências, não têm conseguido
atingir a apreensão concreta do lazer, será necessário realizar uma revisão crítica dos
principais autores desse campo de estudos para possibilitar um salto qualitativo em
relação ao entendimento dessa prática social conhecida como lazer. Além disso, uma
leitura da produção em trabalho e educação deverá ser empreendida buscando as
mediações presentes nos nexos causais existentes na totalidade social entre lazer e
educação. A importância da mediação, uma das categorias centrais desta pesquisa, é
percebida a medida que “O exame do papel mediador dos processos sociais, articulados
em uma determinada totalidade, é um primeiro passo no esforço de distinguir certas
parcelas do real nas suas múltiplas determinações” (CIAVATTA, 2001, p.129).
Segundo Mello (apud CIAVATTA, Ibidem), a mediação é referente a processos reais
dinâmicos, reciprocidade entre “fenômenos de uma totalidade” que não constitui um
momento, mas um movimento.
23
O pensamento de Kosik (1963, p.41) aprofunda essa indicação ao expor que
“os fatos isolados são abstrações, são momentos artificiosamente separados do todo, os
quais quando inseridos no todo correspondente adquirem verdade e concreticidade.
Do mesmo modo, o todo de que não foram diferenciados e determinados os momentos é
um todo abstrato e vazio”. O mesmo autor mostra que o “pensamento dialético parte do
pressuposto de que o conhecimento humano se processa num movimento em espiral, do
qual todo início é abstrato e relativo”. O “conhecimento concreto da realidade” é “um
processo de concretização que parte do todo para as partes e da parte para o todo, dos
fenômenos para a essência e da essência para os fenômenos, da totalidade para as
contradições e das contradições para a totalidade” (Idem, Ibidem).
Ciavatta diferencia a mediação da variável, pois esta diz respeito ao
comportamento de um fenômeno na busca de relações de causas e efeitos. A mediação,
diferentemente, é a própria “especificidade histórica do fenômeno. A mediação situa-se
no campo dos objetos problematizados nas suas múltiplas relações de tempo e espaço,
sob ação de sujeitos sociais” (CIAVATTA, 2001, p.132). Como o objetivo central desta
pesquisa pretende apreender a concretude do lazer, para indicar possibilidades de
articulação do lazer e da educação com um projeto histórico de construção do
socialismo, a mediação será uma categoria chave para estabelecer a inter-relação
dialética lazer/educação na especificidade do capitalismo e para além dele. Para tanto, o
entendimento concreto de lazer foi buscado durante esta pesquisa.
A própria revolução é mais uma categoria constituída em instrumento de
trabalho. É importante destacar que a revolução “é um processo histórico, resultado da
luta de classes, que conduz à superação de um modo de produção, no caso, o capitalista,
alterando substancialmente as relações sociais, principalmente as relações de
propriedade dos meios de produção; processo que demanda a elaboração e
implementação de uma estratégia revolucionária” (TUMOLO, 2005, p. 18-19). Para
obter condições do manejo analítico dessa categoria entende-se que a principal
necessidade é o estudo ampliado da obra marxiana, especialmente do O Capital. Este já
é um limite fundamental que a pesquisa encontrou na sua limitação temporal, pois, o
possível de ser alcançado foi apenas o estudo sistemático inicial de elementos desta obra.
Para além do estudo detido dos primeiros capítulos do capital, foi-se buscar em outros
capítulos subsídios para a compreensão de questões importantes ao objeto de pesquisa.
Para refletir sobre o processo revolucionário adotando o referencial teórico-
metodológico e político que parte das determinações materiais da produção existência,
24
coloca-se a necessidade de tomar a categoria contradição, também, como fundamento
para o conhecimento da realidade. Desde a contradição ontológica entre homem e
barreiras naturais - no processo de trabalho - até as contradições inerentes à forma
capitalista de sociabilidade entre produção social e apropriação privada do resultado
da produção -, chega-se às contradições mediatas e imediatas da educação, como
também, do lazer. Além dos pressupostos marxianos e engelsianos de entendimento da
contradição como o motor da história (MARX; ENGELS, s/d), tem-se a obra de Cury
que traz essa categoria como ponto de partida e de chegada para análise da educação,
uma vez que ela tem existência real, deve-se encontrar também no método de análise.
Ele identifica a contradição na/da educação em seu papel de reprodução social, ao
mesmo tempo em que “é portadora de fermentos de transformação irredutíveis que
podem acelerar a crítica da situação na qual ela aparece” (CURY, 1995, p.79). Essa
afirmação que serve de pressuposto metodológico, inicialmente tomada sem reservas
no projeto de pesquisa-, ao final da pesquisa, com o aprofundamento do entendimento
da concreticidade da educação na particularidade brasileira, tenciona a necessidade de
expor que esse caráter revolucionário está condicionado a determinadas mediações, pois
a educação como sistema, como instituição, vem colaborando para a reprodução das
relações sociais capitalista, no plano econômico, ligada à formação de qualidades
necessárias ao mundo produtivo, e no plano ideológico, incutindo valores, ensinando o
respeito à hierarquia e afirmando a moral burguesa.
A educação institucionalizada, especialmente nos últimos 150 anos,
serviu no seu todo ao propósito de não fornecer os
conhecimentos e o pessoal necessário à máquina produtiva em
expansão do sistema do capital, como também gerar e transmitir um
quadro de valores que legitima os interesses dominantes, como se não
pudesse haver nenhuma alternativa à gestão da sociedade, seja na
forma “internalizada” (isto é, pelos indivíduos devidamente
“educados” e aceitos) ou através de uma dominação estrutural e uma
subordinação hierárquica e implacavelmente impostas (MÉSZÁROS,
2006, p.35).
Considerando o aspecto contraditório da realidade social e dos seus produtos,
especialmente o lazer e a educação, práticas sociais que decorrem da forma de ser
ontológica do homem, o trabalho, tem-se que admitir que o velho é portador do novo.
As formas conservadoras da educação e do lazer carregam em si os germes da mudança,
suas próprias e, potencialmente, do contexto de onde emergem. Por isso será importante
entender como se dão suas funções de reprodução do estabelecido, para modificá-las de
25
forma a articulá-las ao projeto histórico de superação do capitalismo. Sendo assim, a
reprodução é outra categoria que segue ao longo das análises aqui propostas. Cury
(1995) mostra duas características fundamentais dessa categoria em relação à educação.
A primeira, as barreiras impostas pela burguesia para a conjugação entre teoria e prática
e democratização do ensino para impor sua própria ideologia. A segunda, o trabalho dos
representantes do capital, com as funções técnica e política da educação, para reproduzi-
lo. No campo do lazer, conforme esboçado anteriormente, a reprodução está na essência
desse fenômeno.
Partindo destas indicações teórico-metodológicas pretende-se realizar um exame
crítico da produção teórica de alguns dos principais autores no campo do lazer, no
Brasil, por entender-se que as formulações encontradas nesse campo não atingem a
concreticidade do fenômeno, nas palavras de Kosik (1963), não mostram “a coisa em
si”, ou seja, não superam a aparência fenomênica do lazer. Para isso será necessário,
conforme indica Taffarel (2005), partir do método da economia política. É partindo
desse método que será possível atingir um conceito de lazer que expresse as categorias
das quais ele emerge, ou seja, trabalho, sociedade, cultura, capital, relações de
produção, política e etc. É o caminho com tal concepção dialética da história que
permitirá o trato com o presente objeto de estudo, a saber, a constituição e as relações
do lazer no capitalismo brasileiro, especialmente sua inter-relação com a educação na
forma social do capital, seus limites e suas possibilidades no projeto histórico de
construção do socialismo.
Adotando essa perspectiva analítica a partir de uma interpretação do autor
matricial para analisar o lazer como mercadoria, Karl Marx, entrei em desacordo com as
análises dominantes no campo dos estudos do lazer - de fundamentação liberal - e
mesmo com posições dentro do campo que se fundamenta no marxismo. Tendo em
vista a sociedade comunista como ponto de chegada, a crítica dentro do campo marxista
não é considerada menos importante que a crítica às literaturas conservadoras, uma vez
que as suas produções poderão ser requeridas para embasar as estratégias de ação de
organizações revolucionárias dos trabalhadores. Tal discordância aconteceu porque é
necessário partir de uma concepção de lazer clara. A clareza ou obscuridade dessa
concepção depende do ponto de partida da investigação ser um ponto correto ou um
ponto equivocado. “O objeto verdadeiro da crítica é sempre o determinante
fundamental” (MÉSZÁROS, 1993, p.145), de forma que, o ponto de partida “deve ser
uma categoria objetivamente central no plano ontológico” (LUKÁCS, 1979, p.46).
26
Nesse sentido, é preciso diferenciar o que o lazer é na sua essência, na sua gênese
histórica - ou seja, prática social de recomposição/potenciação da força de trabalho -
daquilo que se deseja ou se busca que o lazer seja, a saber, espaço/tempo ou prática de
fruição da cultura, de vivência de novos valores e de transformação social conforme o
assumido pelos autores analisados.
No processo dessa investigação, compreende-se que a expansão do capital leva a
criação de novos mercados. Esferas da atividade humana, como a educação, são
transformadas em mercadoria (TONET, 2003), processo que também atinge o lazer. A
respeito desse fato, os autores com quem se discutiu concordam com a realidade desse
processo de mercantilização do lazer, apesar de pressupostos e análises diversas.
Portanto, esses complexos, o lazer e a educação, precisam ser analisados sob a lei do
valor formulada por Marx. Como a preocupação central nesse momento é o lazer, um
dos problemas que guiaram a pesquisa, o terceiro capítulo mais especificamente, foi:
como investigar o lazer como uma mercadoria? Para isso, foi necessário um estudo
sumário da sistematização de Marx sobre a mercadoria assunto do segundo capítulo,
para desvendar o lazer como mercadoria. Essa análise, que aqui não foi concluída, pode
estabelecer (dentro das limitações do pesquisador) uma base que deve colaborar para o
conhecimento mais amplo que se busca acerca da concretude do lazer. Nesse sentido, o
pressuposto que acabou de ser apresentado, para o entendimento do lazer, deve ser
confrontado com as análises dos autores que investigam esse fenômeno, entre outros
aspectos, na sua forma mercadoria, a partir de diferentes objetos de estudo - o corpo, o
shopping, a reestruturação produtiva que, todavia, caminham na mesma esfera de
análise, o consumo.
Discutir o lazer como mercadoria, a partir do entendimento da própria
mercadoria, se deve a necessidade de entender as categorias valor e mais-valia,
conforme as formulações de Marx. Entender esse aspecto específico, o lazer como
mercadoria, numa perspectiva de totalidade, a sociedade mediada pela mercadoria, deve
colaborar para o conhecimento das relações sociais do tipo capitalista. Esta
compreensão, por sua vez, é buscada na perspectiva de potencializar a possibilidade de
superação da subsunção do trabalho ao capital.
Para quem se ocupa com a investigação do lazer, entender tal problema para
poder agir sobre a realidade deve ser uma prioridade. Todavia, apresenta-se a seguinte
contradição para os pesquisadores nesse campo: o lazer é a forma como se vivencia o
tempo livre na sociedade capitalista para a recomposição da força de trabalho, ainda que
27
e independente do entendimento predominante no campo de investigação não ser esse;
tencionando um lugar diferente para o lazer nas relações sociais, os pesquisadores com
posicionamento crítico discutem formas de tornar o lazer mais humano, mais acessível,
pela via das políticas públicas e da mudança dos indivíduos. Essa é a posição defendida
desde estudiosos ecléticos, como Pelegrin (2006)
8
, até aqueles que se utilizam da
tradição teórica marxista, como Mascarenhas (2005)
9
. Este caminho é diferente dos
pressupostos que norteiam a presente pesquisa. Aqui se acredita que a busca da
democracia é uma perspectiva limitada quando se pensa na emancipação humana, pois
está fundada no complexo da política que, para Marx, é o terreno da alienação humana
10
.
Ele mostra isso, por exemplo, nas passagens:
Quanto mais evoluído e geral é o intelecto político de um povo
tanto mais o proletariado pelo menos no início do movimento
gasta suas forças em insensatas e inúteis revoltas sufocadas em sangue.
Uma vez que ele pensa na forma da política, vê o fundamento de todos
os males na vontade e todos os meios para remediá-los na violência e
na derrocada de uma determinada forma de Estado (MARX, 1995,
p.14).
Contudo, se é parafrásico ou absurdo uma revolução social com
uma alma política, é racional, ao contrário, uma revolução política
com alma social. A revolução em geral a derrocada do poder
existente e a dissolução das velhas relações - é um ato político. Por
isso, o socialismo não pode efetivar-se sem revolução. Ele tem
necessidade desse ato político na medida em que tem necessidade da
destruição e da dissolução. No entanto, logo que tenha início a sua
atividade organizativa, logo que apareça o seu próprio objetivo, a sua
alma, então o socialismo se desembaraça do seu revestimento político
(MARX, 1995, p.16).
Nessa perspectiva de revolução e de dissolução das bases que sustentam o
capital é que se coloca a única opção para a elaboração de uma teoria coerente com a
história em processo, sobre a possibilidade de fruição das produções culturais da
humanidade em um tempo radicalmente livre. Sem o entendimento das categorias valor
8
“A chamada indústria do entretenimento investe pesadamente na veiculação dessa concepção de lazer
baseada no consumo. Esta tendência é reforçada pela falta de políticas públicas para o setor ou pela baixa
qualidade das políticas existentes, favorecendo o modelo capitalista que se apropria refinadamente cada
vez mais do “tempo livre”, contribuindo para que ele se torne um tempo de consumo para a indústria do
entretenimento em suas diversas formas (do turismo, do esporte, da arte, do espetáculo etc.)
(PELLEGRIN p.108).
9
“Articulada à luta mais ampla por uma parametrização socialmente referenciada para o conjunto das
políticas públicas, a disputa hegemônica em torno das políticas de lazer revela-se, deste modo, como a
estratégia mais apropriada e, vale dizer também, necessária para pôr em marcha a construção de
alternativas ao processo de mercantilização que apanha o lazer” (MASCARENHAS, 2005, p. 255)
10
Se forem lembradas as observações de Lênin (2007) em 1902, na sua Carta a um camarada, também se
verá que defender igualdade de direitos, na perspectiva de uma organização revolucionária, não tem
nada a ver com a Democracia.
28
e mais-valia, não é possível entender o capital e, portanto, toda elaboração sobre as
possibilidades do lazer para a transformação da sociedade atual vai esbarrar em limites
instransponíveis, teórica e praticamente. Os limites da produção e acumulação do
capital.
Pretendendo contribuir nesse sentido, o segundo capítulo discutiu o lazer
enquanto mercadoria fundamentando-se na pesquisa de Marx sobre a constituição
histórica do capital, notadamente nos cinco primeiros capítulos do livro primeiro,
volume 1 do O Capital. A opção de concentrar esforços nesses capítulos se deu
seguindo as indicações de Marx (1985, p.11) nos textos explicativos da sua obra. No
Prefácio à primeira edição ele afirma que: “O entendimento do capítulo I, em especial a
parte que contém a análise da mercadoria, apresentará, portanto, a dificuldade maior”.
Em seguida, ele adianta que na “análise da substância do valor e da grandeza do valor”
ele tentou ser o mais didático possível, porém, é bom lembrar que deve haver uma certa
atenção com estas categorias, pois: “A forma do valor, cuja figura acabada é a forma do
dinheiro, é muito simples e vazia de conteúdo. Mesmo assim, o espírito humano tem
procurado fundamentá-la em vão há mais de 2 000 anos” (Idem, Ibidem).
A complexidade desta obra, que se buscou conhecer e expor com algumas
análises possíveis de forma aplicada ao lazer, é um tanto complexa porque, “nesta obra”
– nas palavras de seu autor – “me proponho a pesquisar o modo de produção capitalista
e as suas relações correspondentes de produção e de circulação” (MARX, 1985, p.12).
A complexidade desse modo de produção historicamente específico, que se funda sobre
o capital, cuja “célula” é a mercadoria, não vem da elucubração teórica do autor.
Todavia, a dificuldade de apreensão dessa teoria
11
reside em que ela demonstra a gênese
e desenvolvimento do capital, o que foi possível utilizando a lógica dialética, que
opera por contradição, se contrapondo a tradição milenar da lógica formal carregada
pela civilização ocidental desde a Antiguidade. Isso significa que a teoria social de
Marx consegue captar o movimento do capital, a relação social cujas células possuem
como mitocôndrias as contradições. A natureza profundamente contraditória dessa
relação social chamada capital vem da sua célula, composta de contradições imanentes,
contradições internas (valor de uso e valor; trabalho privado e trabalho social, trabalho
11
As idéias são para Marx “nada mais que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem”
(MARX, 1985, p. 20) [discutindo a diferença de sua dialética para a de Hegel. A referência direta de
Marx é ao “ideal”, e não as idéias, como foi tomado aqui].
29
concreto e trabalho abstrato) que se movimentam em contradições externas (D M
D’).
Assim, um breve esclarecimento a respeito da obra de Marx, que representa uma
síntese e um avanço em relação à grande produção anterior sobre o tema, é necessário.
Primeiramente é Mészáros quem auxilia nesse esclarecimento, informando que o:
projeto de Marx se ocupa das condições de produção e reprodução do
capital em si sua gênese e expansão, assim como das contradições
inerentes que prenunciam a sua supressão através de um “longo e
doloroso processo de desenvolvimento” , enquanto que a mal
traduzida versão
12
fala apenas de uma dada fase da produção do
capital, confundindo problematicamente os conceitos de “produção
capitalista” e de “produção do capital” (MÉSZÁROS, 1985, p.44).
Inicia-se a pesquisa, por isso, com uma breve análise dos fundamentos teórico-
metodológicos das análises de Marx, desenvolvida por ele e seu companheiro intelectual,
Friedrich Engels, em A Ideologia Alemã, apontando algumas generalizações para a
compreensão do desenvolvimento do capitalismo particular do Brasil. Em seguida foi
abordado o problema da reestruturação produtiva, de forma geral e na particularidade
brasileira. Estas discussões, apenas sumariamente empreendidas, representam outra
séria limitação deste estudo, pois a compreensão dos nexos históricos do
desenvolvimento capitalista brasileiro para a reconstrução da gênese do lazer no Brasil,
possibilitando seu conhecimento concreto, é condição indispensável. Todavia, o que foi
possível nesse momento foi a preparação para a elucidação posterior das categorias
utilizadas por Marx para explicar a mercadoria, o valor e a mais-valia, fundamentos
para a compreensão do capital.
Vale reforçar, a análise do lazer como mercadoria encontra uma série de
discussões sobre a complexidade do capitalismo recente, seja considerado desde o pós-
guerra, seja desde as mudanças na base técnica da produção da fase da acumulação
flexível. No entanto, o que mobilizou a análise feita aqui é o que permanece constante, o
que tem continuidade nesse processo de tantas rupturas que é o desenvolvimento
capitalista. Isso impõe, antes de cunhar novos conceitos para as transformações formais
que não significam revoluções, alcançar a elaboração do que já foi descoberto por
categorias precisas da obra marxiana, garantindo e demonstrando os caminhos de
investigação já abertos.
12
Mészáros se refere à primeira tradução do O Capital para o inglês, supervisionada por Engels, que teve
como subtítulo “Uma análise crítica da produção capitalista” (Idem, Ibidem, p.44).
30
O capital é um fenômeno que existe antes da sociedade capitalista e que é a
origem desta. Existe, de início, marginalmente para em seguida tornar-se predominante
na organização social da produção, uma vez que as relações sociais se direcionam para
sua produção constante, em detrimento da própria integridade dos indivíduos que
compõem esta sociedade.
Quando se fala em capital são diversos os entendimentos possíveis dele. Por isso,
a importância de compreender a mercadoria e as categorias que ela carrega. Para a
contribuição a que se pretende a presente pesquisa de mestrado, é necessário ir além da
afirmação, ainda que correta, insuficiente, de que o lazer e a educação, transformaram-
se em mercadorias.
Buscando ajuda em Tonet (2003) e seu conciso resumo do capital, pode-se
entendê-lo como:
uma relação social e não uma coisa. Esta relação, por sua vez, tem
origem na compra e venda da força de trabalho do produtor pelo
capitalista. Vale enfatizar que esta compra-e-venda pode assumir as
mais variadas formas, implicando sempre a dominação do capital
sobre o trabalho e a apropriação privada (ainda que de forma indireta)
da maior parte da riqueza produzida. Nesta relação, o capitalista paga
ao trabalhador um salário, que representa o custo socialmente
estabelecido – da reprodução da força de trabalho. Como o custo dessa
reprodução é menor do que aquilo que o trabalhador produz durante o
tempo de trabalho contratado, a parte que sobra em geral a parte
maior vai para as mãos do capitalista, transformando-se nas várias
formas da propriedade privada (TONET, 2003, p.35).
A exploração é a base dessa relação social, ainda segundo Tonet, de forma que a
desigualdade é da natureza do capitalismo. Isso fundamenta sua afirmação sobre a
impossibilidade de humanizar o capital. Por sua vez, Mészáros (1985, p.44)
diferencia capital e capitalismo, dizendo que o capital é anterior ao capitalismo e mais
fundamental que este, delimitado, por sua vez, a dado período histórico.
Capitalismo é aquela particular fase da produção de capital na qual: 1.
a produção para a troca (e assim a mediação e dominação do valor-de-
uso pelo valor-de-troca) é dominante; 2. a força de trabalho em si,
tanto quanto qualquer outra coisa, é tratada como mercadoria; 3. a
motivação do lucro é a força reguladora fundamental da produção; 4.
o mecanismo vital de formação da mais-valia, a separação radical
entre meios de produção e produtores, assume uma forma
inerentemente econômica; 5. a mais-valia economicamente extraída é
apropriada privadamente pelos membros da classe capitalista; e 6. de
acordo com seus imperativos econômicos de crescimento e expansão,
a produção do capital tende à integração global, por intermédio do
31
mercado internacional, como um sistema totalmente interdependente
de dominação e subordinação econômica (MÉSZÁROS, 1985, p.44).
Apresentadas a síntese de Tonet sobre o capital e a delimitação de Mészáros
sobre os fundamentos do capitalismo, no caminho para compreender o significado da
produção da sociabilidade sob o domínio do capital, cabe retomar a visão de Marx nos
Manuscritos Econômicos Filosóficos sobre o trabalho subsumido à mercadoria. O
trabalho sob esta determinação empobrece e desumaniza o homem quanto mais riquezas
ele produz; no processo social de produção de valores de uso, o valor estabelece a
mediação de um processo de atribuição das características humanas às mercadorias
(MARX, 2004).
Esse mesmo capitalismo, no seu desenvolvimento recente, apresenta o
aprofundamento das tendências de crises já captadas por Marx. Concluindo que há uma
diferença nas derrotas da classe trabalhadora no final dos anos 1980 e 1990, porque
dessa vez observa-se a “crise de projeto estratégico” e o enfraquecimento da luta contra
o capital com o “abandono dos últimos resquícios de um projeto revolucionário”,
Tumolo defende que discutir a revolução é premente dado que:
1. vitorioso, o capital “foi jogado a sua própria sorte”, ou seja, a suas
próprias contradições, que se acirraram a cada dia; 2. por causa de sua
própria lógica, de seu movimento contraditório, o capital nunca
mostrou de uma forma tão enfática, como nos tempos atuais, sua
capacidade destrutiva, do homem e da natureza, no plano global; 3.
daí, a crise estrutural do capital, conforme denomina Mészáros (2002),
ou, como prefiro entender, crise estrutural de produção da
sociabilidade na forma capital; 4. nunca a contradição antagônica
entre capital e humanidade ficou tão evidente e constatável
empiricamente como no período contemporâneo, ou seja, nunca a
continuidade da existência humana esteve tão ameaçada por um modo
de produção gestado pela própria humanidade (TUMOLO,
2005,
p.18-19)
.
Ele apresenta, em decorrência desta avaliação, como necessidade de pesquisa
para quem busca compreender a educação a partir do trabalho, articulando-a à
superação do capital, entre outros, os temas que devem ser investigados: “crítica radical
do capital e de sua atual conformação sócio-histórica; crítica do Estado capitalista e de
sua configuração contemporânea” (TUMOLO, 2005, p.19). Compreende-se que no
campo do lazer, tais críticas são ainda mais urgentes, dado que: a constituição de uma
teoria do lazer em bases marxistas é muito mais incipiente que na educação; em regra,
identifica-se a vinculação do lazer à luta dos trabalhadores (quando a perspectiva dessa
32
luta é reconhecida) pela via das políticas públicas de lazer, não entendendo o lazer
apenas financiado pelo Estado, mas, organizado por ele
13
; o entendimento do lazer
como uma mercadoria pressupõe uma discussão rigorosa sobre a própria mercadoria; e,
finalmente, conhecer o lazer concretamente passa pela compreensão da totalidade do
capital e do capitalismo, e é condição do entendimento das mediações entre lazer e
educação e da correta articulação entre estes dois complexos com a organização dos
trabalhadores com o objetivo da superação do capital.
Esta pesquisa não poderá dar conta de todas estas questões apenas indicadas.
Antes, tenciona colaborar para a construção de instrumentos de análise do lazer na
sociabilidade mediada pelas mercadorias. Longe de querer formular categorias
analíticas, pretende-se colaborar para a discussão que as permita encontrar, pois,
conforme Marx mostra no prefácio da primeira edição do O Capital, “na análise das
formas econômicas não podem servir nem o microscópio nem, reagentes químicos. A
faculdade de abstrair deve substituir ambos”. E, especificamente para o propósito da
discussão aqui desenvolvida - encontrar a concretude histórica do lazer o
conhecimento da mercadoria, conforme Marx, “a forma celular da economia” que é
“produto do trabalho”, é um momento indispensável.
Essa é uma exigência colocada pela realidade para quem pretende lutar para
alcançar os interesses imediatos e de médio prazo da classe trabalhadora - a dissolução
da propriedade privada dos meios de produção e de subsistência - e históricos de toda a
humanidade a associação livre dos trabalhadores e a produção regulada pelas
necessidades sociais. A análise do lazer como mercadoria tem o propósito de criticar as
relações sociais baseadas e voltadas à produção de mercadorias, a curto prazo, e a longo
prazo, colaborar de alguma forma para a superação do capital, entende-se que a
apreensão dessas categorias é um ponto de partida indispensável.
Huizinga (2001, p.50) explica que um procedimento para analisar uma palavra é
a procura por seu oposto. “Para nós, a antítese do jogo é a seriedade, e também num
sentido muito especial, o de trabalho, ao passo que à seriedade podem também opor-se
a piada e a brincadeira”. Esta é a via da gica formal. A mesma que num primeiro
momento, no começo desta pesquisa sobre o lazer, permitiu concluir que o lazer ocorre
no tempo livre, que se define pelo tempo não livre, pelo tempo ocupado do trabalho.
13
Remete-se aqui à discussão de Marx (s/d) sobre a educação, na sua Crítica ao programa de Gotha,
onde ele afirma que a educação deve ser tomada das mãos do Estado, organizada pelos trabalhadores, e
apenas financiada e fiscalizada pelo Estado.
33
Para superar a lógica formal é necessária a compreensão dialética de que essa tese tem
sua antítese, ou seja, que apesar de ser definido em oposição ao tempo de trabalho, o
tempo livre tem nesse seu ponto de partida, sua base ontológica. Assim, na seqüência do
trabalho investigativo, no quarto capítulo foram analisados dois autores fundamentais
no lazer, um clássico e outro contemporâneo. Huizinga (2001), tratando sobre o lúdico e
o jogo, a partir de suas bases idealistas e sua tendência irracionalista, e Marcellino
(1995) com sua análise do lazer como via de participação cultural para a formação de
novos valores e sua utilização do conceito de hegemonia esvaziado do conteúdo radical
que Gramsci lhe imprimiu, foram criticados em relação a sua perspectiva de classe, a
partir do referencial teórico-metodológico central da pesquisa.
Como considerações finais desse trabalho, tratou-se de forma introdutória da
relação entre o trabalho auto-determinado e o lazer, relação que poderá ser expressa,
com a superação da propriedade privada e da produção voltada ao mais-valor e seu
acúmulo, como relação entre trabalho auto-determinado e pleno desenvolvimento do
tempo livre. Para essa discussão recorreu-se as leituras possíveis até esse momento de
Marx e outros marxistas clássicos e contemporâneos. Os estudos feitos de algum
tempo sobre a educação na perspectiva marxista significaram a base para as críticas dos
autores do lazer, motivo pelo qual busquei o aprofundamento do estudo na educação.
Essa base, confrontada com os autores matriciais, Marx, Lukács, Gramsci, mostrou-se
problemática em alguns aspectos. Dessa forma, a análise que até agora foi possível
precisa ser superada, tendo em vista a crítica da realidade e a organização dos
trabalhadores para o avanço da luta pela construção do socialismo. Conforme poderá ser
visto nas partes finais da pesquisa, a classe trabalhadora encontra-se em um momento
especialmente complicado, com sua organização profundamente fragilizada pelas
estratégias encontradas pelo capital para superar momentaneamente suas crises.
Na pesquisa que ora se conclui buscou-se bases para a investigação dos
problemas relacionados ao lazer e, ao lazer e suas mediações com a educação, de forma
mais profunda. Essa foi uma opção teórica e política que limitou, nesse primeiro
momento, a análise específica do lazer, mas necessária para uma crítica mais
fundamentada em relação ao que se elegeu como objeto desse trabalho, que demandará
muito tempo ainda para chegar ao seu objetivo de forma satisfatória.
Para além dos motivos apresentados que justificam uma pesquisa sobre a
análise do lazer como síntese de muitas determinações desenvolvida em uma instituição
pública, reafirma-se que a justificativa mais importante que faz dessa pesquisa uma
34
atividade e não uma ação na acepção de Leontiev (1988) para esses dois conceitos -, é
a tentativa de contribuir para alcançar elementos que possam ser apropriados pela classe
trabalhadora como ferramentas de trabalho na construção de uma teoria revolucionária.
Para isso, dada nossa desvantagem numérica e de recursos para produzir teoria desse
tipo, frente à avalanche da produção conservadora, reacionária, metafísica, a-histórica e,
portanto anti-revolucionária, temos que buscar cada vez mais a radicalidade de nossas
contribuições. Se ser radical é “ir às raízes” e “para o homem a raiz é o próprio homem”,
como afirmou Marx (2005), o homem deve estar no centro dessa produção. Todavia,
não se pode tomar o homem abstratamente, só se compreende o homem como ser social
enquanto se tome como pressuposto o homem de uma classe social dada. Da mesma
forma, compreender o lazer, voltando do momento da abstração para a prática social,
é possível tomando um homem da classe trabalhadora ou da classe burguesa, seu tempo
livre determinado pelo seu trabalho super explorado ou pelo trabalho expropriado do
outro. se entende o lazer da forma mais avançada tendo a luta de classes como
pressuposto. Esse ponto de partida não garante por si o conhecimento do lazer. Também
não estou dizendo que foi possível para esta pesquisa se aproximar desse ponto. No
entanto, o compromisso foi colaborar na demonstração de que sem essa base não se
pode ir além da erudição vazia, ou do esvaziamento comprometido.
1. DO ÓCIO COM DIGNIDADE AO LAZER MERECIDO: tempo livre x tempo
ocupado
1.1 Capitalismo na Alemanha e no Brasil no contexto mundial do século XIX:
particularidades e continuidades históricas
Os pressupostos histórico-filosóficos, ou teórico-metodológicos que serão
requeridos para as análises do lazer na sua concretude foram buscados inicialmente em
A Ideologia Alemã, de Marx e Engels. Neste texto, os dois pensadores fazem um acerto
de contas com os pressupostos filosóficos dos quais partiam anteriormente, quando
compunham a ala crítica da intelectualidade alemã junto com os jovens hegelianos ou
hegelianos de esquerda, estes, alvo da crítica dos autores na primeira parte desta obra
escrita entre 1845 e 1846.
Para nós também é necessário fazer um acerto de contas. No nosso caso, não
com nossos pressupostos filosóficos idealistas que muitas vezes não conhecemos, mas,
com a produção idealista e materialista do lazer. Fazer a crítica às teorias liberais do
lazer, bem como, às elaborações que se propõem transformadoras do lazer e pelo lazer.
Nossa proposta deve ser por uma teoria revolucionária do lazer. Mas o que é isso? Qual
o caminho teórico que pode orientar uma prática coerente com tal proposta?
A primeira pista para tal teoria é o pressuposto segundo o qual é o modo de
produzir materialmente a existência que determina a consciência, a cultura,
portanto, o lazer e a educação.
Pensar no lazer, seus aspectos educativos (educação pelo, para e do lazer) e suas
relações com a revolução das relações sociais implica pensar no que são o lazer e a
educação. Esse breve apontamento de estudo de A Ideologia Alemã desenvolve-se a
partir dos complexos lazer e educação, partindo do trabalho e da sociedade do capital,
conforme o eixo da presente pesquisa. Esta pesquisa tem justificativa histórico-social
por se constatar que interesse da burguesia na ocupação do tempo livre e na
formação do trabalhador para que este não se degenere física, moral e psicologicamente.
Essa preocupação decorre da indissociabilidade entre trabalhador e força de trabalho, a
única mercadoria, segundo Marx (1985) capaz de produzir a mais-valia. O lazer, dessa
forma, torna-se fundamental para a constituição de uma sociedade de produção
36
capitalista por ser a prática social de recomposição da força de trabalho que ocorre no
tempo de não trabalho, no tempo livre do trabalhador. E, por sua vez, o aspecto da
formação inclui a preocupação com a educação nos espaços formais e informais,
visando, de acordo com os interesses da burguesia, a reprodução da sociedade
capitalista.
Acredita-se que estão corretas as formulações de Marx e Engels, bem como de
representantes clássicos dessa tradição teórico-metodológica e político-militante, tais
como Lênin, Lukács, Gramsci, Mészáros e outros, que investigam a sociedade
capitalista como a sociabilidade regida e mediada pela mercadoria, por ser esta
portadora material do valor e condição para a extração da mais-valia. Nessa tradição,
seguindo a análise histórico-social que parte da base ontológica do trabalho e de seus
complexos fundados, tais como direito, política, cultura e ética (LUKÁCS, 1979), junto
dos quais estão a educação e o lazer, entende-se que estes dois complexos do ser social,
ontologicamente dependentes e relativamente autônomos do complexo fundante, o
trabalho, são, de forma hegemônica, instrumentos que fornecem a formação para o
trabalho capitalista, além de “gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os
interesses dominantes”, seguindo a crítica de Mészáros (2006-a) à educação formal.
Desta forma, nesse primeiro momento, muito mais do que mergulhar na
discussão destes eixos em sua concretude, pretende-se discutir as bases da construção
teórica de Marx e Engels a partir de A Ideologia Alemã, para estabelecer pressupostos
de investigação científica dos mesmos e, conseqüentemente, possibilitar o alcance do
conhecimento concreto do lazer. Parte-se desta concepção de conhecimento, de
movimento social e de história estabelecidos em linhas gerais já nessa obra de 1845/46,
porque na afirmação de Marx e Engels sobre a existência de uma única ciência, a
história, reside o problema central da produção e reprodução da vida humana, surgindo
a “dupla determinação de uma insuperável base natural e de uma ininterrupta
transformação social dessa base” (LUKÁCS, 1979, p.15-6). Tal concepção é um
pressuposto sem o qual não seria possível expor e defender uma determinada concepção
de homem, de ser genérico que deve ser tomado na investigação da sociedade capitalista
tendo em vista sua superação, conforme será visto no segundo capítulo dessa pesquisa.
Para entender a produção teórica de Marx e Engels até os anos de 1845 e 1846 é
importante conhecer alguns elementos contextuais da Alemanha nesse período, como
sua situação de relativo atraso em relação à Inglaterra e à França. Marx e Engels
afirmam no início de A Ideologia Alemã:
37
De acordo com certos ideólogos alemães, a Alemanha teria sido nestes
últimos anos o teatro de uma revolução sem precedentes. O processo
de decomposição do sistema hegeliano, iniciado com Strauss, teria
dado origem a uma fermentação universal para a qual teriam sido
arrastadas todas as potencias do passado. Nesse caso universal,
formaram-se impérios poderosos que depois sofreram uma derrocada
importante, surgiram heróis efêmeros, mais tarde derrubados por
rivais audazes e mais poderosos. Perante uma tal revolução, a
Revolução Francesa não foi mais do que uma brincadeira de crianças
e os combates dos diádocos parecem-nos mesquinhos. Os princípios
foram substituídos, os heróis do pensamento derrubaram-se uns aos
outros: de 1842 a 1845, o solo alemão foi mais revolvido do que nos
três séculos anteriores.
E tudo isso se teria passado nos domínios do pensamento puro
(MARX; ENGELS, s/d, p.11-12).
Nesta passagem do início do texto os autores mostram, com tom satírico, como
os pensadores alemães acreditam que suas idéias revolucionam o mundo. No entanto, as
mudanças no pensamento alemão de cunho idealista refletem as grandes mudanças
econômicas e políticas que revolucionam as bases sociais na Inglaterra e na França.
Na Inglaterra, a burguesia detinha o poder econômico, fruto da
industrialização que alcançava grandes proporções, desde o século XVII (ANDERY,
1998). Na França, as forças dominantes do velho regime haviam sido vencidas por
burgueses e operários desde a revolução burguesa no século XVIII. Dessa forma, no
século XIX a burguesia já se constituía em classe dominante, superando sua fase
revolucionária, apresentando-se enquanto opositora histórica da classe trabalhadora. A
contradição basilar do capitalismo, uma produção definida por seu caráter social que é
oposto à apropriação privada do resultado dessa produção, com a criação de uma
miséria (generalizada) tão mais intensa quanto mais riqueza (localizada) se cria, também
é evidenciada desde então.
Na Alemanha, no entanto, o poder ainda se encontra nas mãos da nobreza, do
clero e dos senhores feudais (FERNANDES, 1984). O território alemão ainda não
logrou sua unificação e o desenvolvimento econômico ainda carece de condições
dadas nos outros dois países (ANDERY, 1998). Essa situação de atraso econômico,
somada as revoluções do pensamento instituídas pelos filósofos alemães, junto com a
necessidade da correta interpretação do mundo para transformá-lo, impulsionam Marx e
Engels a revisar criticamente e superar o pensamento idealista da Alemanha nos seus
principais representantes: Feuerbach, Bauer, Stiner e socialistas alemães. A crítica ao
38
atraso econômico e político alemão, bem como à covardia e à baixa capacidade
intelectual da sua burguesia vai ser recorrente nos escritos de Marx, como fica evidente
na Introdução a crítica da filosofia do direito de Hegel, de fins de 1843 e início de
1844
14
, e no Posfácio da segunda edição do O Capital, de 1873
15
.
Essa crítica de Marx e Engels, retomada e intensificada por Marx nos seus
escritos posteriores a respeito da burguesia alemã, mesquinha, covarde e submissa,
conforme entende Marx (2005), deixa antever o tipo de desenvolvimento do capitalismo
que se daria na Alemanha desde o século XIX: a chamada via prussiana. A observação
do desenvolvimento subordinado do capitalismo alemão, capitaneado por esta burguesia
débil e reacionária, é importante para a análise do desenvolvimento do capitalismo no
Brasil
16
que se sem a ruptura da burguesia com as classes senhoriais, com a nobreza
e o clero, mas, com uma associação esquizofrênica com estas. Tal processo se
desenvolve no Brasil desde o fim da monarquia, com a derrocada do Segundo Império e
início da República, em 1889. A monarquia não é vencida em luta: ela vai se
enfraquecendo e desmontando, se encolhendo de tal forma que fica representada na
figura de um indivíduo, sendo substituída “naturalmente” pelos republicanos. A
república aceitou em seus quadros, igualmente, liberais e conservadores, republicanos e
figuras públicas do Império (SODRÉ, 1998).
Dessa forma, têm-se a constituição do capitalismo brasileiro, analisado por Netto
(2004-a), apresentando três traços fundamentais, sendo o primeiro deles:
um traço econômico-social de extraordinárias implicações: o
desenvolvimento capitalista operava-se sem desvencilhar-se de formas
econômico-sociais que a experiência histórica tinha demonstrado que
lhe eram adversas; mais exatamente, o desenvolvimento capitalista
redimensionava tais formas (por exemplo, o latifúndio), não as
14
“E um belo dia, o alemão encontrar-se ao nível da decadência européia, antes de alguma vez ter
atingido o nível da emancipação européia [...].
Se examinarmos agora os governos alemães, veremos que devido às condições da época, a situação da
Alemanha, o ponto de vista da cultura ale e, por último, o seu próprio destino afortunado, tudo os
impele a combinar as deficiências civilizadas do mundo político moderno (de cujas vantagens não
desfrutamos) com as deficiências bárbaras do ancien régime (de que fruímos na quantidade devida)”
(MARX, 2005, p. 153).
15
“[...] o Sr. Mayer, industrial vienense, afirmou com acerto, numa brochura publicada durante a guerra
franco-alemã, que o grande senso teórico, considerado patrimônio hereditário alemão, teria desaparecido
completamente das assim chamadas classes cultas da Alemanha, para ressuscitar, em compensação, na
sua classe trabalhadora” (MARX, 1985, p. 16).
Na Alemanha, o modo de produção capitalista atingiu a maturidade depois que o seu caráter
antagônico já tinha se revelado ruidosamente na França e na Inglaterra por meio de lutas históricas,
enquanto o proletariado alemão já possuía uma consciência de classe muito mais decidida do que a
burguesia alemã [...]” (Idem, p.17).
16
Não sob a forma transposição direta de uma experiência específica para outra, mas sob o princípio da
continuidade do decorrer histórico junto à consideração das rupturas que o mesmo apresenta, partindo da
consideração da especificidade de cada experiência.
39
liquidava: refuncionalizava-as e as integrava em sua dinâmica. Na
formação social brasileira, um dos traços típicos do desenvolvimento
capitalista consistiu precisamente em que se deu sem realizar as
transformações estruturais que, noutras formações (v.g., as
experiências euro-ocidentais), constituíram as suas pré-condições. No
Brasil, o desenvolvimento capitalista não se operou contra o “atraso”,
mas mediante a sua contínua reposição em patamares mais complexos,
funcionais e integrados (NETTO, 2004-a, p.18).
Sodré (Ibidem) afirma que entre os representantes do novo regime e do velho
não havia diferenças marcantes, de forma que a república não significou a ascensão de
nenhuma classe nova ao poder. O Brasil apresenta uma via de desenvolvimento
capitalista chamada por Chasin (1978, apud NETTO, 2004-a, p.20) de “via colonial-
prussiana”.
Essas referências da particularidade histórica brasileira são condição sine qua
non para a compreensão do lazer e da educação de forma radical, e são possíveis a
partir da concepção de história inaugurada por Marx e Engels.
1.2 Concepção de história e bases teórico-metodológicas em A Ideologia Alemã
A concepção da história de Marx e Engels é materialista e dialética, tendo o
homem como sujeito da história e a produção dos meios para satisfazer as necessidades
de subsistência como o primeiro ato histórico. Essa concepção é fundamental para
apreender concretamente o lazer, uma necessidade surgida das relações sociais próprias
do modo de produzir a vida do atual momento histórico. Assim, sobre as bases de Marx
e Engels na Ideologia Alemã pode-se demarcar sua lógica dialética, seu pressuposto
materialista e sua original concepção de história.
1. A lógica é a dialética. Esta lógica opõe-se historicamente à lógica formal, que
é a lógica dominante na produção hegemônica do conhecimento e na forma mais
comum de entender e julgar o mundo. A formulação mais conhecida sobre a dialética
pode ser assim apresentada: a uma tese original, ou primeira formulação sobre um
fenômeno, se opõe uma antítese, que é a negação da primeira tese. Isso decorre de um
dos pressupostos da dialética - a contradição -, que aparece nessa lógica como o motor,
o impulso da mudança. Após a antítese, que se opôs à tese inicial, o pesquisador pode
atingir uma ntese, que é a negação da negação inicial (antítese), por isso, pressupõe-se
40
a dialética como uma negação da negação. A lógica dialética capta os fenômenos em
movimento, na sua totalidade e a partir de seu movimento. Dentro dessa lógica,
Quando nos detemos a pensar sobre a natureza, ou sobre a história
humana, ou sobre a nossa própria atividade espiritual, deparamo-nos,
em primeiro plano, com a imagem de uma trama infinita de
concatenações e influências recíprocas, em que nada permanece o que
era, nem como e onde era, mas tudo se move e se transforma, nasce e
morre. Vemos, pois, antes de tudo, a imagem de conjunto, na qual os
detalhes passam ainda mais ou menos para segundo plano; fixamo-nos
mais no movimento, nas transições, na concatenação, do que no que se
move, se transforma e se concatena. Essa concepção do mundo,
primitiva, ingênua, mas essencialmente exata, é a dos filósofos gregos
antigos, e aparece claramente expressa pela primeira vez em
Heráclito: tudo é e não é, pois tudo flui, tudo se acha sujeito a um
processo constante de transformação, de incessante nascimento e
caducidade [...]” (ENGELS, s/d, p.45)
17
.
Esse movimento constante é desencadeado pela contradição, considerando-se
que dado acúmulo quantitativo, a partir de certo ponto, causa uma transformação
qualitativa. O elemento novo traz em si o germe de sua negação, logo, a unidade dos
contrários e a superação por incorporação são expressões dessa lógica dialética, da qual
Hegel foi o pensador moderno que mais longe chegou em sua elaboração.
Os pressupostos da dialética opõem-se aos pressupostos contidos na lógica
formal. Enquanto a lógica dialética faz um caminho do abstrato para o concreto, tendo o
concreto como ponto de partida
18
, a gica formal caminha do concreto para o abstrato
sem retornar ao concreto. Partindo de uma abstração inicial sobre o fenômeno, quem se
utiliza da lógica formal deve proceder a sucessivas abstrações sobre a base empírica,
tentando atingir um conceito mais universal possível sobre tal base até que, finalmente,
ocorre um desprendimento da base empírica da qual se parte (VIEIRA PINTO, 2005).
Portanto, opera-se no plano abstrato sem atingir o concreto como síntese de múltiplas
17
Texto escrito por Engels em 1877 (Anti Dühring) e reorganizado para publicação na Revue Socialiste
em 1880 (Do Socialismo utópico ao socialismo científico).
18
É importante distinguir, nesse sentido, a ontologia do conhecimento, que na construção marxiana e
engelsiana tem a materialidade como fundamento, da gnosiologia, processo de conhecer a realidade a
partir da abstração, da empiria apanhada de forma caótica pela transposição da realidade para a mente,
caminhando para o concreto, ou seja, a realidade compreendida como síntese de muitas determinações no
movimento do pensamento de apreensão da realidade. Germer (2003) explica essa relação a partir dos
conceitos de “concreto sensorial” e “concreto pensado”, dividindo esquematicamente a produção do
conhecimento “etapa material” em “concreto real” mais “concreto sensorial” e a elaboração do
conhecimento “etapa mental” em “concreto sensorial”, mais as abstrações simples” mais o
“concreto pensado”.
41
determinações, ou, “concentração de muitas determinações” (MARX, 1983, p.410),
como ocorre na lógica dialética.
2. Além da lógica dialética, Marx e Engels utilizam-se do pressuposto
materialista
19
em oposição ao idealista. Esse é o aspecto de sua teoria que lhes coloca no
campo oposto a Hegel, que parte da idéia de um espírito universal, absoluto, como a
origem da sociedade civil e do Estado, bem como das leis e da própria natureza.
As premissas de que partimos não constituem bases arbitrárias, nem
dogmas; são antes bases reais de que é possível abstrair no âmbito
da imaginação. As nossas premissas são os indivíduos reais, a sua
ação e as suas condições materiais de existência, quer se trate daquelas
que encontrou já elaboradas quando do seu aparecimento quer das que
ele próprio criou. Estas são portanto verificáveis por vias puramente
empíricas (MARX, ENGELS, s/d, p.18).
Assim, o ponto de partida para pensar a realidade é a prática social, não a idéia
sobre tal prática. Da mesma forma, pensar em modificar essa realidade é pensar em
modificar a prática social, não, como fazem os idealistas, buscar a revolução das idéias
para alterar essa realidade. Engels (s/d) discute com críticos do materialismo, os
agnósticos ingleses do século XIX, que têm o pensamento originário em Kant e Hume,
no século XVII, e suas dúvidas sobre a possibilidade de conhecer as coisas, afirmando
que delas se podem obter impressões, uma vez que os sentidos podem não percebê-
las corretamente. Engels (s/d, p.12) afirma que os homens “antes de argumentar, haviam
atuado”, sintetizando a relação da teoria com a prática, de forma a dissolver tal dúvida,
da seguinte forma:
desde o momento em que aplicamos estas coisas, de acordo com as
qualidades que percebemos nelas, ao nosso próprio uso, submetemos
as percepções de nossos sentidos a uma prova infalível no que se
refere à sua exatidão ou a sua falsidade. Se estas percepções fossem
falsas, falso seria também o nosso juízo acerca da possibilidade de
empregar a coisa de que se trata, e a nossa tentativa de empregá-la
teria forçosamente de fracassar. Mas se conseguimos o fim desejado,
se achamos que a coisa corresponde à idéia que dela fazemos, que nos
o que dela esperávamos ao usá-la, teremos a prova positiva de que,
dentro desses limites, as nossas percepções acerca da coisa e das suas
propriedades coincidem com a realidade existente fora de nós
(ENGELS, s/d, p.12).
Engels lembra que Hegel fornece o argumento para negar a afirmação agnóstica
da impossibilidade de conhecer a coisa em si, apreender o objeto concretamente, ao
19
Engels (s/d, p.10) entende que Bacon, Hobbes e Locke são os precursores ingleses do materialismo
moderno tomado pelos franceses.
42
dizer que “desde o momento em que conhecemos todas as propriedades de uma coisa,
conhecemos a própria coisa” (Idem, Ibidem). Essa posição tem importância
fundamental na construção teórica marxista, uma vez que o trabalho humano é sempre
pré-ideado, implica em conhecer as leis naturais que podem ser apropriadas e utilizadas
para atingir um fim, “no entanto, a posição do fim e a busca dos meios nada podem
produzir de novo enquanto a realidade natural permanecer o que é em si mesma”
(LUKÁCS, s/d, p.8).
3. Finalmente, cabe ressaltar que a concepção de história que estes dois
pensadores apresentam é original, pois supera a tradição historiográfica de descrição de
eventos históricos de caráter fatual e de entendimento linear dos acontecimentos.
Também, jamais atribuíram à história nenhum dado de teleologia, de lógica própria.
Marx e Engels tratam a história de forma processual, considerando a contradição como
impulso desse processo que é, em suma, todo resultado da produção da vida pelos
homens através de seu trabalho. Conforme a explicação de Florestan Fernandes (1983),
pode-se compreender que a investigação de Marx sobre um acontecimento histórico
partia do levantamento fiel da empiria, porém, sua exposição só acontecia com a
conclusão de um segundo levantamento, “das várias séries ou cadeias de fatos
essenciais, relacionados entre si por conexões causais conhecidas e comprovadas”. O
método de Marx de pesquisa histórica, seu “estilo científico de descrição histórica
opunha-se revolucionariamente às tendências dominantes da ‘história convencional’ e
do ‘culto à erudição’” (FERNANDES, 1983, p.58-9).
Fernandes afirma, ainda, que “sob o aspecto crucial de converter a pesquisa
histórica em pesquisa científica e de introduzir na observação histórica critérios de
reconstrução, de análise e de interpretação de fundamentos científicos, Marx foi um
pioneiro que se antecipou à sua época” (Idem, Ibidem, p.59).
Marx e Engels tratam a história a partir da perspectiva da totalidade, categoria
conferida pela forma de organização da produção (MARX; ENGELS, s/d, p.48-49) e
não pela soma das partes, ou pelo alcance de tudo o que existe, como o entendimento
equivocado trata essa categoria. Partindo desta categoria fundamental, eles explicam
que a distinção entre o homem e o animal começa quando os homens iniciam a
produção de seus meios de vida, análise que se constitui na base de sua concepção
ontológica. Essa concepção de história diz que aquilo que os indivíduos são coincide
com sua produção, com o que produzem e como produzem. Sob este pressuposto erige a
exigência de pensar o lazer, uma forma de manifestação da existência humana, como
43
reflexo das condições materiais da produção da existência, enquanto uma categoria da
sociedade capitalista
20
, dada a compreensão de categoria como expressão de “formas de
vida, determinações de existência”, segundo Marx (1983, p.415).
Portanto, para entender essa manifestação, assim como a educação, para além
das suas expressões sensíveis, é necessário entender o grau de desenvolvimento das
forças produtivas dadas em uma sociedade. E é possível reconhecer o grau de
desenvolvimento das forças produtivas a partir do desenvolvimento atingido pela
divisão do trabalho. Marx e Engels mostram no desenvolvimento histórico a oposição
entre trabalho comercial e industrial agrícola, com a oposição entre cidade e campo.
Nesse processo, um novo estágio da divisão do trabalho leva a uma nova forma de
propriedade, sucedendo-se as formas de propriedade tribal, comunitária e estatal, feudal
e capitalista (MARX; ENGELS, s/d, p.20-24).
Por isso, compreende-se que a estrutura social resulta do processo vital dos
indivíduos, não daquilo que pensam de si, mas daquilo que são na realidade, da forma
como trabalham e produzem materialmente (Idem, Ibidem, p.24). “A produção de
idéias, de representações e da consciência está em primeiro lugar directamente ligada à
atividade material dos homens” (Idem, Ibidem, p.25). “Não é a consciência que
determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (Idem, Ibidem, p.26).
Ao considerar essas indicações, caminhando pelo método materialista histórico
dialético, pode-se intentar a investigação do lazer e de suas relações com a educação de
forma a aprendê-los a partir dos fatos e de suas leis gerais, superando, tal qual Marx e
Engels fazem nesta obra, a fase idealista de sua discussão. O objetivo desta busca é a
possibilidade de articular ambos, lazer e educação, com a luta dos trabalhadores pela
superação histórica da forma capitalista, individual e mesquinha de propriedade. Para
tanto, cabe notar que a liberdade, também tratada como emancipação na tradição
marxista, é um fato histórico e não individual, como defendido na obra em questão
(Idem, Ibidem, p.28). Essas considerações levam os autores afirmar que importa
revolucionar o mundo existente (p.29), conforme está expresso também nas Teses sobre
Feuerbach, de Marx (s/d).
É fundamental notar acerca de tal concepção de história, formulada
originalmente por Marx e Engels, que a oposição entre homem e natureza decorre da
20
Marx, ao tratar das “categorias mais abstratas” indica o que é importante para tratar o lazer dessa forma,
a saber, que ele e as demais categorias explicativas da sociedade capitalista, constituem “o produto de
relações históricas, e não possuem plena valides senão para estas relações e dentro dos limites destas
mesmas relações” (MARX, 1983, p.414).
44
desconsideração da base efetiva da história, de forma que os homens compartilham
com cada época as ilusões que ela traz sobre si própria, sendo eleita a imaginação
como motor da práxis (MARX; ENGELS, s/d, p.31). O exemplo dessa constatação é
encontrado no texto, quando Marx e Engels contrapõem ingleses e franceses com suas
ilusões políticas aos alemães, com suas ilusões religiosas. Tendo essas ilusões como
ponto de partida, a transformação da realidade é buscada de forma unilateral, atacando
os ideais sem tocar nos pressupostos materiais, ou seja, econômicos. Essa solução
aparece freqüentemente no campo do lazer e da educação
21
, buscando transformar
condições sociais por via de campanhas culturais e das transformações individuais.
No desenvolvimento do seu pensamento sobre os pressupostos da história e da
demonstração histórica dos diferentes estágios da divisão do trabalho e das organizações
econômicas, Marx e Engels mostram como a partir do estabelecimento de um comércio
mundial a história se eleva a história universal. Deixam claro o poder alienante e
subsumidor que o mercado exerce sobre os homens e suas necessidades (Idem, Ibidem,
p.29-43). Discutem as “condições práticas” da superação dessa alienação e a
importância do pleno desenvolvimento das forças produtivas para o estágio da história
humana chamado de comunismo. Entendendo comunismo não como “um estado que
deva ser implantado, nem com um ideal a que a realidade deva obedecer”, mas como “o
movimento real que acaba com o actual estado de coisas” (p.42).
As bases gerais das formulações historiográficas idealistas clássicas são
demonstradas e criticadas na Ideologia Alemã, evidenciando a cisão entre pensamento,
indivíduos e modos de produção, dando autonomia às determinações do conceito. Essa
inversão do princípio determinante é elaborada da seguinte forma pelos filósofos
idealistas:
- Primeiro, uma separação entre dominantes e seus pensamentos, logo,
uma dominação de pensamentos.
- Segundo, os pensamentos se transformam em entes autônomos que determinam
a si próprios, formulação que depende, todavia, de sua conexão com a base empírica.
- Terceiro, a auto-consciência, ou, pensamento autônomo, para ganhar
legitimidade, para ser identificável na prática, é representada em uma pessoa ou em uma
série de pessoas, como os pensadores, os filósofos, os ideólogos.
21
Especificamente para uma análise crítica da produção em Trabalho e Educação, que tende a dar acento
ao momento político, conforme Tonet (2005), vale a pena consultar as análises de Marx no artigo “Glosas
críticas” de 1844 em que ele esclarece que a emancipação política não coincide com a emancipação
humana.
45
Em seguida, Marx e Engels mostram os estágios da divisão do trabalho e as
condições históricas para o aparecimento do capital. Para isso as grandes navegações, as
expedições e a colonização, o trafego de produtos das Índias, a extração e circulação do
ouro e da prata foram fundamentais. Com tais mudanças econômicas são necessárias
mudanças políticas para atender as novas condições, como demonstram ao discutir as
leis alfandegárias ou proteção ao mercado nacional (Idem, Ibidem, p. 69-73). Vale
lembrar que esta lição deve ser aprendida quando se investiga a última resposta do
capital a sua crise de acumulação, a partir da década de 1970, em que se observou a
radicalização do capital no plano político com o neoliberalismo.
As condições da grande indústria são as seguintes (p.73):
Concentração do comércio e da indústria em um único país (maior potência
marítima);
Criação do mercado mundial que determinou a procura dos produtos ingleses;
Procura por mercadorias que ultrapassava a capacidades das forças produtivas;
Liberdade de concorrência dentro da nação (séc. XVIII unidade nacional na
Inglaterra).
O aperfeiçoamento da mecânica teórica (p.73).
Com o estabelecimento da maturidade capitalista, a grande burguesia torna
insuportável para o trabalhador as relações com o capitalismo e até com o próprio
trabalho. Neste sentido é que Mészáros (1993, p.198) pode assumir que “a concepção
marxiana de história aponta” “um movimento em direção à substituição não das
determinações econômicas capitalistas, mas do papel preponderante da base material
como tal”. Se os complexos educação e lazer são fundados pelo trabalho e dele
dependem ontologicamente, pensar neles como processos de generalização e de fruição
da cultura socialmente produzida põe em pauta a perspectiva dos limites do capital e sua
“tendência universalizante” expostos por Mészáros (Ibidem, p.200) como as “próprias
limitações estruturais” deste. Limites naturais, condições objetivas da vida humana, são
desrespeitados, ignorados e transpostos frente às necessidades de “expansão contínua do
capital” (Idem, Ibidem, p.200). Por isso, a perspectiva da “da necessidade histórica em
desaparecimento progressivo, transfere a potencialidade positiva da tendência
universalizante do capital para fora dele, para um modo radicalmente novo de produção
e relações sociais”, de modo que:
46
O desenvolvimento “livre, desobstruído, progressivo e universal” da
vida social, sob as condições do novo modo de produção, implica o
fim do determinismo material unilateral
22
e, a partir daí, também uma
relação radicalmente nova entre a base anterior e a superestrutura
sua “fusão” efetiva no novo “reino da liberdade” (MÉSZÁROS,
1993, p.201).
Esta concepção de história radicalmente nova, que toma a perspectiva de Hegel
de que tudo que vive merece morrer, colocada na perspectiva materialista e sob o
projeto histórico da classe trabalhadora, permite a elaboração teórica que intenta a
superação radical dos limites do capital, intrínsecos à produção de mais-valia, à
valorização do valor. Estes limites são mostrados por Marx quando expõe o processo de
circulação simples de mercadorias na fórmula M – D – M, onde o objetivo da circulação,
mediado pelo dinheiro, é extrínseco a ela. O objetivo desta circulação é a satisfação de
necessidades humanas, pois nos extremos da equação estão mercadorias que efetivam
seu valor de troca ao sair da circulação para a esfera do consumo. Diferente da
circulação do dinheiro como capital, expresso na fórmula D M – D’, em que o
objetivo das trocas, mediadas pelas mercadorias que representam a riqueza material de
uma sociedade, é intrínseco à própria circulação. Seu objetivo é a obtenção de um valor
a mais, um D.
As necessidades humanas são relegadas ao plano de mediação da produção e da
valorização do valor, sendo que o valor de uso da mercadoria dinheiro só pode se
realizar na esfera da circulação, morrendo quando vai para a esfera do consumo (MARX,
1985, p.125-145). Compreender a historicidade do capital e do capitalismo no interior
desta concepção fundada por Marx e Engels permite aos pesquisadores do lazer e da
educação, ou, das relações entre lazer e educação, compreender a necessidade de
superação da estrutura econômica que sustenta o capital, considerando a forma orgânica
das determinações ideais como força material, dos campos superestruturais, para a plena
realização humana que se articula a estes complexos de fruição da cultura no tempo
livre e de generalização do conhecimento. Esta discussão sobre o capital será
aprofundada mais a frente nesse capítulo.
22
Esta questão será retomada a partir de outro texto de Mészáros (2004) no terceiro capítulo, com sua
discussão sobre uma contabilidade socialista e a superação do determinismo econômico que dissocia
economia e política.
47
1.3 Generalizações da concepção de história e estudo do lazer
Após os apontamentos feitos acima, pode-se afirmar que a apropriação da obra A
Ideologia Alemã, de Marx e Engels, tem a seguinte importância, para a investigação a
ser desenvolvida:
- Compreender os fundamentos teórico-metodológicos, em sua primeira
formulação, de toda a produção posterior de Marx e Engels.
- Apreender elementos para efetuar estudos críticos sobre o capitalismo, o
lazer, a educação superando as formulações idealistas, que não são poucas, e
avançando para a pesquisa científica histórica materialmente referendada e
dialeticamente interpretada.
- Diretamente em relação à educação, tomar o primado materialista de que a
consciência é formada no processo de produzir materialmente a existência,
de forma dialética, é ponto inextrincável de uma ciência pedagógica que não
seja desencaminhada pelo relativismo histórico, pelo irracionalismo
filosófico ou pelo ecletismo teórico-metodológico e niilismo político. Como
se sabe, tais concepções fundamentam os vários modismos assentados na
ideologia dominante que, dada a economia voltada à valorização do valor e
suas mediações, constrói diuturnamente a “produtividade da escola
improdutiva”.
- As investigações ulteriores desta dissertação têm o precípuo objetivo de
revolucionar praticamente a realidade dada. Para tanto, o estudo da Ideologia
Alemã deve representar uma introdução ao pensamento de Marx e Engels,
que deve ser estudado na sua obra principal, O Capital: crítica da economia
política. com a compreensão dessa obra pode-se atingir o entendimento
radical das relações sociais capitalistas e suas bases econômicas, condição
para construir uma teoria que ataque com a força requerida o sustentáculo da
fortaleza em que se constitui historicamente o capital.
Com esse trabalho teórico/prático é possível compreender a historicidade do
estágio de coisas que a sociedade atual atinge, demonstrá-lo didaticamente à classe
trabalhadora, retomar a compreensão da história como processo, e fazer avançar a roda
da história. Sobre esse aspecto, cabe recordar o importante conselho deixado por
48
Gramsci (2004-a, p.95-6): é mais importante repetir para as massas verdades
descobertas do que realizar individualmente descobertas originais
23
.
Retomar os estudos da Ideologia Alemã permite caminhar pela concepção de
história que parte das bases materiais, enfrentar mudanças no plano do pensamento que
se pretendem maiores ou diferentes das que ocorrem no plano econômico. Se na época
de Marx e Engels os “heróis do pensamento alemão atribuíam às elucubrações
filosóficas o que era produto do desenvolvimento das forças materiais, atualmente é
necessário combater a anunciada superação das classes sociais, do capitalismo, do
trabalho, da própria história e da modernidade, conforme as fábulas dos teóricos pós-
modernistas que, ao gosto da tradição filosófica que Marx e Engels contestam,
conseguem tais superações no plano do puro pensamento.
Nesse sentido, Le Goff citado por Dosse (1992, p.21), afirma que “Não é por
acaso que os Annales nascem em 1929, o ano da grande crise. Esse contexto permite
entender o surgimento da agenda ou paradigma s-moderno, dado o caráter de
descrença na idéia de progresso, o contexto de desemprego e recessão decorrentes da
crise econômica que “atingiu a economia capitalista em escala mundial” (DOSSE, 1992,
p.22) e sua conseqüente influência na formação das consciências dos homens daquele
período, que caracterizou “uma grande crise do espírito humano” (FEBVRE, apud
DOSSE, 1992, p. 24). As contradições estruturais do capitalismo, nesse momento
histórico de síntese, geraram uma crise nas condições materiais de produção da vida,
com uma conseqüente “crise de civilização, [que] não afetou somente os historiadores;
perturbou as certezas de todos os meios intelectuais” (DOSSE, 1992, p.24).
Todavia, cabe retomar a elucidação das revoluções econômicas que levam a
novas medidas políticas, conforme o exemplo inglês tem demonstrado. As
reverberações teóricas pós-modernistas do presente não são enganos inocentes, pelo
contrário, devem ser entendidas à luz da fase extremamente hostil do capital contra
condições mínimas de vida digna dos trabalhadores, resultante de sua última crise
cíclica. A reestruturação do capital, desde fins de 1960, pressupõe mudanças no cenário
político e ideológico, tais como o neoliberalismo e a “ambiência cultura pós-
23
A afirmação de Gramsci é tão poderosa que considero válida sua reprodução literal: “Criar uma nova
cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas ‘originais’; significa também, e sobretudo,
difundir criticamente verdades já descobertas, “socializá-las” por assim dizer; e, portanto, transformá-las
em base de ações vitais, em elementos de coordenação e de ordem intelectual e moral. O fato de que uma
multidão de homens seja conduzida a pensar coerentemente e de maneira unitária a realidade presente é
um fato “filosófico bem mais importante e “original” do que a descoberta, por parte de um “gênio”
filosófico, de uma nova verdade que permaneça como patrimônio de pequenos grupos intelectuais”
(GRAMSCI, 2004, p.95-6).
49
modernista” (NETTO, 2004-b). Assim, cabe e urge os estudos de A Ideologia Alemã e
da procedente produção de Marx e Engels, para entender e superar tais construções do
estágio atual do modo de produção capitalista.
Investigar o lazer e a educação a partir da categoria trabalho, evidenciando as
suas determinações na divisão social do trabalho, e descobrindo as mediações
estabelecidas entre estas práticas sociais, permite discutir suas inserções no sentido de
reproduzir ou de transformar a sociedade de classes que limita a plena fruição do tempo
livre. Esta proposição estabelece-se ao se identificar a preocupação de uma educação do
lazer, para o lazer e pelo lazer, que pode assumir rumos distintos, conforme o ponto de
partida e o objetivo pretendido. Esta compreensão será aprofundada no terceiro capítulo
da presente pesquisa. Agora, antes de analisar a particularidade do caso brasileiro, será
retomada a constituição das relações capitalistas de produção, tendo o lazer e, algumas
de suas relações com a educação, como eixo condutor.
1.4 Consolidação do modo capitalista de produção
A Propriedade Tribal demonstra um estágio não desenvolvido da produção
(MARX; ENGELS, s/d). Os homens se alimentam da caça, da pesca, da criação do gado
ou da agricultura. A divisão do trabalho é pouco desenvolvida, se limitando a uma
extensão da divisão natural da própria família. A estrutura social é uma extensão da
família: os chefes patriarcais da tribo, abaixo os membros da tribo. As práticas do
tempo livre na forma de sociedade decorrente dão-se por meio de atividades
ritualísticas, como, por exemplo, as danças em agradecimento aos deuses por uma boa
colheita
24
. Os jogos existiam nas culturas primitivas, conforme atesta Filho (1973,
p.14), se apropriando de Huizinga
25
, para mostrar que " as consagrações, os sacrifícios,
24
Se a análise aqui empreendida é correta, se o lazer é uma prática social própria do capitalismo que se
inicia a partir de sua estrutura e relações decorrentes, é mais correto não utilizar o termo lazer para outras
formas de sociedade. Nas sociedades primitivas as atividades ritualísticas poderiam ser consideradas
parte do trabalho de acordo com a forma de pensar do homem dessa organização social -, uma vez que
alguns rituais eram uma das etapas da caça e da guerra. A construção social do tempo nesse período é em
diversa daquelas vigentes nos períodos posteriores, de forma que as atividades culturais que hoje
compõem o lazer não podem ser tomadas com o mesmo significado em outro contexto histórico com
suas relações sociais determinadas.
25
Com uma dose de exagero Filho situa os jogos como anteriores a primitividade, justamente porque
toma o pensamento de Huizinga no seu livro Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. O
exemplo serve para constatar que os jogos existiam nas sociedades primitivas. Todavia, a concepção de
50
as danças e as competições sagradas constituíam parte integrante de uma festa". A
educação, nessa sociedade primitiva dava-se na prática social geral dos homens,
"Lidando com a terra, lidando com a natureza, se relacionando uns com os outros, os
homens se educavam e educavam as novas gerações" (SAVIANI, 2003, p. 152). A
escravidão latente na família se desenvolve com o crescimento da população e das
necessidades, com a extensão do intercâmbio externo, tanto da guerra como do
comércio (MARX; ENGELS, s/d).
A Propriedade Comunal e Estatal da Antiguidade resulta "da reunião de várias
tribos em uma única cidade, por contrato ou por conquista, e na qual subsiste a
escravatura" (MARX; ENGELS, s/d, p. 21). Desenvolve-se a propriedade privada
mobiliária e imobiliária, que está subordinada à propriedade comunal. Os cidadãos
possuem o poder sobre seus escravos apenas coletivamente, ligados à forma de
propriedade comunal. A forma de propriedade privada é a coletiva dos cidadãos ativos.
O trabalho já está mais desenvolvido em sua divisão e encontrando a oposição entre
cidade e campo. As classes constituídas são os cidadãos e os escravos. O centro da
produção está nas cidades. A partir do estabelecimento de uma classe determinada que
realiza o trabalho braçal, a outra classe irá viver desse trabalho. Essa mesma classe que
não precisa trabalhar, os cidadãos, é aquela que terá acesso ao ócio, a prática que
acontece no tempo livre que, equivocadamente, é identificada com a atual categoria
lazer. Segundo o explicado por Vega (1979, p.32): "Para Platão, e ele com isso mais não
faz do que recolher o pensamento dos seus contemporâneos, o homem livre tinha a
obrigação de se dedicar exclusivamente aos jogos corporais e ao exercício de sua
inteligência". O ócio continha as práticas de canto, pintura, escultura, estudos
filosóficos, políticos e exercícios ginásticos. Esse era o rico entendimento do conceito
ócio, que ganha nova e perniciosa dimensão no decorrer histórico. Imensamente rico o
tempo do ócio na antiguidade, todavia, é impossível de ser tomado como exemplo
positivo, uma vez que é condicionado pelo trabalho tomado do escravo, baseado na
exploração dessa classe que não tem ócio.
De Grazia (1966) diz que Aristóteles foi quem mais usou o conceito ócio,
chamando sua definição em Política que corresponderia o ócio à “libertarse de la
necesidad de trabajar”. Em seguida, De Grazia diz que para este filósofo o ócio diz
Huizinga é equivocada ao entender que os jogos precedem a cultura, o que é uma impossibilidade
partindo da base ontológica do trabalho aqui adota para considerar as manifestações da cultura corporal
como complexos fundados. Visão que contraria as proposições de Huizinga que coloca os jogos, dada sua
essência lúdica, como elemento fundante da cultura.
51
respeito não ao “tiempo”, mas à “una condición o un estado el estado de estar libre de
la necesidad de trabajar” (DE GRAZIA, 1966, p.3). Uma ocupação, segundo sua leitura
de Aristóteles, “excluye la idéia de ‘hacer lo que apetezca’”, pois ela se direciona a um
fim, em oposição ao ócio, que não tem um fim fora de si mesmo, que é um estado
(Idem, Ibidem, p.4).
Essa visão de De Gazia em relação ao ócio apresenta um purismo, um estado
ideal de plena realização humana que não corresponde, segundo o ponto de vista aqui
defendido, à forma como é tomado o tempo de não trabalho nas sociedades de base
escravista na Antiguidade. Este idealismo fica claro quando o autor anuncia, na
discussão sobre o enfoque cristão que “No parece demasiado poco probable el decir que
sin el ideal la práctica no puede nascer” (Idem, Ibidem, p.13); ainda, para explicar a
passagem do ideal altivo da contemplação, próprio do estado denominado ócio, para o
trabalho, sua compreensão é de que “La ruptura decisiva aparece en un lugar
inesperado: e las utopias” (DE GRAZIA, 1966, p.18). Uma apreciação idealista,
alinhada a uma postura liberal, desenvolvida no corpo do texto, com ignorância auto-
afirmada de partida, quando diz que “economistas clássicos”, “democratas”,
“anarquistas”, “socialistas de todas as classes: comunistas, cristianos, utópicos e
científicos” tiveram a mesma percepção sobre o trabalho [!!!], como algo bom ou que
seria bom, a que todos tinham o direito e o dever de fazê-lo. Para demonstrar sua
ignorância ao sustentar tal afirmação, não é preciso muito esforço, basta situar duas
obras, de pensadores em campos opostos da luta de classes, que desmentem essa
perspectiva: o escrito de Paul Lafargue, O Direito à preguiça, datado de 1880, e o
Elogio do Ócio, de Bertrand Russel, datado de 1932. já se demonstra um socialista e
um liberal que criticam duramente o desmedido clima de enaltecimento do trabalho
como fonte de todas as virtudes humanas.
De Grazzia aponta a diferenciação que é muito significativa para uma pesquisa
sobre o lazer e sua compreensão histórica que o distingüa, enquanto categoria, do ócio.
Ele aponta a diferenciação feita por Aristóteles entre ócio, que diz respeito aos que não
trabalham, da recreação e do divertimento, que são formas de recompor as energias
daqueles que trabalham. Indo ao pensamento do próprio Arsitóteles vê-se sua
formulação sobre o que é neceessário ensinar. Ele pergunta: “Devem, portanto, ser
ministrados aos jovens somente os conhecimentos úteis que lhes tragam um tipo de
existência sórdida e mecânica?” O que ele entende por arte mecânica é a arte ou ciência
que “impossibilita para os exerecícios e para a prática da virtude o corpo dos homens
52
livres, ou a sua alma, ou a sua integligência” (ARISTÓTELES, 2005, p.156). Sua
condenação as “artes liberais” não é total, o que ele adverte é que não se busque a
“perfeição” sob pena dessa desvirtuação. A educação é comprendida, nesse tempo, pela
gramática, ginástica, música e, às vezes, pelo desenho. A gramática, a ginástica e o
desenho têm a característica comum de serem úteis, o que as diferencia da música. A
relação entre a educação e o que seria feito no tempo livre, com a fruição da cultura, é
mostrada no pensamento de Aristóteles na seguinte passagem:
§ 5. Parece existir no repouso mesmo uma espécie de prazer, ventura e
encanto ligados à existência, porém que se acham apenas nos homens
libertos de todo trabalho, e não naqueles que se encontram ocupados.
Pois estar ocupado em alguma coisa é trabalhar para algo que ainda
não se alcançou; [...]. Do que se conclui com clareza que, para saber
entender os ócios da existência liberal, é necessário aprenderem-se
algumas coisas, desenvolverem-nas, e que tais estudos tenham por
finalidade o próprio indivíduo que desfruta desse descanso, enquanto
o trabalho aplicado às coisas necessárias diz respeito, mais
especificamente, aos outros do que a nós mesmos.
§ 6. Por essa razão é que os antigos não classificaram a música entre
os temas de educação como coisa imprescindível, pois ela não é uma
necessidade. Nem como coisa útil – como a literatura o é para o
comércio, para a economia, para o Estado e para a maioria dos atos da
vida civil, como o desenho que parece de utilidade para um melhor
julgamento dos artistas, e por fim como a ginástica para a saúde e para
a força -, pois não nos parece que qualquer desses benefícios advenha
da música. Resta, portanto, que ela seja de utilidade para as horas de
repouso, o que a torna admitida como parte da educação. Entendeu-se
sob esse nome o que se julga uma distração dos homens livres
(ARISTÓTELES, 2005, p. 157-8).
Fica latente o reconhecimento de Aristóteles em que a escola deva ensinar ao
jovens o que necessitarão para o seu repouso, para o tempo do “ócio da existência
liberal”. Dessa forma, mesmo os conhecimentos úteis, ligados ao comércio, têm suas
características de não utilidade, como a literatura, que representa um meio para adquirir
novos conhecimentos, e o desenho, que não limita-se à sua funcionalidade para as
compras de obras de arte, mas permite “atingir uma concepção mais fina da beleza dos
corpos”, bem como a ginástica para conferir “graça e vigor ao corpo”, enquanto a
pedotríbica para “educá-los nos exercícios” (Idem, Ibidem, p.159). As considerações de
Aristóteles dizem respeito ao homem livre, ao cidadão que não tinha que produzir a
existência na forma dos trabalhos braçais que eram delegados aos escravos. Mas é
imprortante distinguir que as “artes liberais’, dos homens livres - não pertencentes ao
centro decisório da classe dominante constituíam uma necessidade para a reprodução
social desse período e, por isso, não satisfaziam plenamente o conceito de ócio, por um
53
lado, e eram conhecimentos necessários de serem generalizados, por outro lado. Como
aqui interessa justamente saber da classe trabalhadora, tem-se que perguntar como se
dava a educação dos escravos. Saviani explica que com:
o aparecimento de uma classe que não precisa trabalhar para viver,
surge uma educação diferenciada. A palavra escola em grego significa
o lugar do ócio. Portanto, a escola era o lugar a que tinham acesso as
classes ociosas. A classe dominante, a classe dos proprietários, tinha
uma educação diferenciada que era a educação escolar. Por
contraposição, a educação geral, a educação da maioria era o próprio
trabalho: o povo se educava no próprio processo de trabalho
26
.[...]
A forma como a classe proprietária ocupava o seu ócio é que
constituía seu tipo específico de educação. Não a palavra escola
tem essa origem mas também a palavra ginásio, que era o local dos
jogos que eram praticados pelos que dispunham de ócio. A palavra
ginásio mantém esta duplicidade de significado ainda hoje. A origem
da palavra ginástica é a mesma da palavra ginásio: exercícios físicos
como lazer. A ginástica
27
dos que tinham que trabalhar era o próprio
trabalho, era o trabalho manual, era o manuseio físico da matéria, dos
objetos, da realidade, da natureza (SAVIANI, 2003, p. 152-153).
Esta concepção de educações diferentes, uma para a classe que tem ócio e outra
para a classe que trabalha, é nuclear na discussão proposta nesta pesquisa e será
discutida mais a frente. Na estrutura apresentada acima deve-se considerar, com a
conquista do Império Grego pelo Império Romano, modificações na organização da
sociedade e a diminuição da capacidade produtiva. No campo do ócio uma
degeneração dada a utilização dos espetáculos sangrentos, proporcionados como forma
de atração ao público. A invasão dos povos rbaros, que têm na guerra uma forma de
intercâmbio, praticada mais ou menos à medida que cresce a população e surge a
necessidade de novos meios de produção, também colabora para o declínio da cultura
clássica, dando abertura para a nova sociedade, segundo os apontamentos de Marx e
Engels (s/d).
26
Dizer que os escravos e cidadãos não constituintes do centro dominante se educavam no trabalho e pelo
trabalho pode ser entendido como uma redução/confusão do significado da própria educação. Se é correto
afirmar que a educação é a atividade de generalização do conhecimento social e historicamente
produzido, a educação, inclusive a informal, não pode ser delimitada aos processos de trabalho, pois o
conhecimento humano, ainda que tenha a atividade de transformação da natureza pelo homem como
ponto de partida, vai além desses processos ao ser sistematizado pelo pensamento nos complexos sociais
que surgem para satisfazer as necessidades impossíveis se serem sanadas pela atividade do trabalho. A
construção de Saviani, todavia, é exata na apreensão de formas diferenciadas de educação para as
diferentes classes que se estabelecem a partir da estruturação da forma de produção escravista.
27
É importante diferenciar atividade física, que é um conceito muito genérico, referindo-se, por exemplo,
ao ato de caminhar de casa para o trabalho, do conceito de exercício físico, que é bem específico e
envolve uma sistematização. Por isso, o sentido de ginástica, que é uma forma específica de educação
corporal, ou do movimentar-se humano que constitui a “cultura corporal”, não deve ser confundido com
atividade física, dispêndio de energia muscular nervosa para a realização do trabalho. O objetivo, o
significado e a forma da ginástica e da atividade manual do trabalho são diferentes.
54
A Propriedade Feudal ou Estamental, em oposição à propriedade comunal
antiga, parte do campo, em que a terra é força produtiva maior, e desenvolve-se sob
disciplina militar. Os pequenos camponeses constituem a classe diretamente produtora.
A nobreza tinha poder total sobre os servos. A mesma estrutura do campo se reproduzia
nas cidades, com a propriedade corporativa e a organização feudal dos ofícios
artesanais. “Contrariamente ao que acontecera na Grécia e em Roma, o
desenvolvimento feudal inicia-se portanto numa extensão territorial muito maior,
preparada pelas conquistas romanas e pelo desenvolvimento do cultivo da terra a que
aquelas inicialmente deram origem” (MARX; ENGELS, s/d, p. 22). Inicia-se o declínio
do império romano e, com as conquistas bárbaras, a destruição de muitas forças
produtivas. Coloca-se a oposição entre campo e cidade. No campo o domínio do
senhor sobre o servo, na cidade, do oficial sobre o aprendiz. A propriedade principal
nesse período é, por um lado, a propriedade da terra, com o trabalho servil, e, por outro
lado, “o trabalho pessoal apoiado num pequeno capital e regendo o trabalho dos
oficiais” (Idem, Ibidem, p. 23), com o trabalho de oficiais e aprendizes. As condições de
produção são limitadas pelas próprias “relações de produção, a agricultura rudimentar e
restrita e a indústria artesanal” (Idem, Ibidem). Os estamentos são compostos por:
príncipes, nobreza, clero e camponeses no campo, e mestre,
companheiros e aprendizes, e posteriormente uma plebe de
jornaleiros, nas cidades. Na agricultura, essa divisão tornava-se mais
difícil pela existência da exploração parcelar, paralelamente se
desenvolveu a indústria doméstica dos próprios camponeses; na
indústria, não existia divisão do trabalho dentro de cada ofício, e
muito pouca entre os diferentes ofícios. A divisão entre comércio e
indústria existia nas cidades antigas, mas mais tarde se
desenvolveu nas novas cidades, quando estas iniciaram contactos
mútuos (MARX; ENGELS, s/d, p. 24).
A prática do ócio na Idade Média muda radicalmente em relação ao seu
enaltecimento na Antiguidade Clássica, onde um pensamento livre de preconceitos
em relação às diversas práticas corporais, artísticas e intelectuais. As práticas ligadas à
corporalidade são condenadas. As artes sofrem um período de marginalização imposto
pelos dogmas religiosos. A produção intelectual foi limitada pela teologia do clero, que
dominou a transmissão do conhecimento nesse período. Com isso, o ócio é limitado por
diversos dogmas que impõem os "prazeres da carne" como objeto maligno a ser
expurgado, fazendo com que as práticas corporais se limitem a preparação militar dos
cavaleiros. A nobreza tem seus bailes e jantares, como forma de ócio. E, ainda que
defendam os preceitos religiosos, não os assumem para si, que se entregam aos
55
prazeres sensíveis nas suas cortes. As classes que produzem a vida materialmente não
têm acesso a tais formas de ócio, limitando-se a descansar para repor suas energias ou a
freqüentar tavernas. Em relação à educação, na Idade Média tem-se:
as escolas paroquiais, as escolas catedralícias e as escolas monacais
que eram as escolas que se destinavam à educação da classe
dominante. As atividades que constituíam a educação dessas classes se
traduziam em formas de ocupação do ócio, como na Antiguidade [...]
A classe dos proprietários se dedicava aos exercícios físicos que
estavam ligados às atividades guerreiras, o que é expresso através da
noção de Cavalaria, cuja ocupação era a guerra. Daí a relação
cavaleiro e cavalheiro como sujeito de boas maneiras a formação
dos nobres incluía as atitudes corteses. Cortês deriva de corte,
formação destinada à aristocracia a formação para a cavalaria
envolve então esses dois aspectos, o da arte militar e o da vida
aristocrática. Em contrapartida, a grande maioria continuava se
educando pelo trabalho
28
, no próprio processo de produzir a própria
existência e de seus senhores. Nesse contexto, a forma escolar de
educação é ainda uma forma secundária que se contrapõe como não-
trabalho à forma de educação dominante determinada pelo trabalho
(SAVIANI, 2003, p. 153-154).
A cultura sofreu grande retrocesso, conhecendo uma volta à barbárie, uma vez
que os bispos foram impedidos pelo Concílio de Catargo (400 d.C.), de fazerem leituras
dos textos clássicos (MANACORDA, 2002). Nesse contexto de pobreza intelectual,
onde mesmo os eclesiásticos muitas vezes eram analfabetos, e com todos os
preconceitos em relação às manifestações da cultura corporal - que mais constituirão o
que se conhece atualmene como educação física-, que é associada à degradação do
espírito, a prática do ócio também é negativamente influenciada, limitando-se para
ambas as classes, mas com especial degradação para a classe produtora dos meios de
subsistência. O movimento de recuperação da cultura clássica é observado, após o ápice
do feudalismo, com o movimento renascentista no chamado “século das luzes”.
O modo de produção feudal, baseado na terra, o desenvolvimento de suas
forças produtivas, com a implementação de novas técnicas, como o sistema de rodízio
das terras (alternância de cultivos em uma área, impedindo o seu esgotamento), e a
criação de novos instrumentos, como a charrua (tipo de arado) e seu preparo mais
eficiente da terra (FRANCO, 1996). A produtividade aumenta, de forma que começam a
ser produzidos excedentes, trocados no mercado que se constitui, formando novas
cidades. O comércio se expande, as trocas aumentam, mudam as relações que
caracterizavam o modo feudal de produção, com a produção das cidades ganhando
28
Cf. acima nota 26.
56
importância e com o aumento e maior importância da monetarização (MARX;
ENGELS, s/d). A produção industrial se inicia nas cidades com as manufaturas e a
cooperação simples, dominando, em seguida, as relações de produção no campo, que
adotam o modelo industrial.
Se configuram duas classes estruturais, os capitalistas, donos dos meios de
produção e o proletariado, classe que tem que vender sua força de trabalho, a produtora
dos meios de subsistência nesta sociedade. O modo capitalista de produção se afirma
com a maquinaria e a grande indústria, instituído o mercado mundial, e com a burguesia
tomando também o poder político da velha classe feudal. O modo de organização para a
produção se dá sob esta base capitalista, orientada pela produção de mercadorias com
vistas ao lucro, ao acúmulo de capital. A classe capitalista se enriquece e tem acesso aos
resultados da produção humana, em oposição à classe proletária, que quanto mais
produz menos tem para si e de si, empobrecendo quanto mais faz crescer as riquezas
sociais. “A contradição entre a produção social e a apropriação capitalista reveste a
forma de antagonismo entre o proletariado e a burguesia” (ENGELS, s/d, p. 60).
Configurada esta que é a contradição básica do capitalismo, aparece o conceito de lazer,
substituindo o antigo ócio com dignidade. Se a ideologia antiga pregava que era indigno
ao homem livre ocupar-se de trabalhos que gastam as energias joviais, o novo emblema
ideológico traduz-se no pensamento “o trabalho dignifica o homem”
29
. O trabalho
torna-se a fonte de todas as virtudes. Todavia, a virtude buscada é, na verdade, a
necessária ocupação em um emprego, a utilização da força de trabalho na produção do
lucro para o comprador da força de trabalho. Na relação com esta virtuosidade é que se
determina o tempo livre, estabelecido como ato lícito à todos aqueles que trabalham, de
29
Tão fortemente que Max Weber (1996) vai realizar amplo estudo sobre A Ética Protestante e o Espírito
do Capitalismo. Nesse texto o sociólogo mostra como os diferentes ramos do protestantismo relacionam
a graça divina com a disposição para o trabalho, de modo que preparam seus fiéis para o trabalho
específico do capitalismo. Gramsci (2001), dentro do referência teórico-metodológico e político da
presente pesquisa, discute como o fordismo se preocupa com a formação do novo homem preocupado em
conformá-lo em todos os sentidos. Gramsci a “composição demográfica racional”, ou seja, a não
existências de classes numerosas sem função no mundo produtivo, da América como elemento
fundamental para seu modo de produzir altamente desenvolvido. Situação que se contrapõe ao contexto
da Europa, em geral, e da Itália, em específico. Gramsci denomina a nobreza e sua corte, o clero, os
pequenos burgueses pensionistas e rentistas, e os administradores do Estado de “sedimentações
viscosamente parasitárias” (Ibidem, p.241-7). Ao tom de Marx e Engels na Ideologia Alemã, ele critica a
resistência dos intelectuais tradicionais ao novo modo de vida, tratando o americanismo como
“‘mecanicista’, grosseiro, brutal”, se contrapondo a ele com sua “tradição” “ridículo espírito de
gladiador que se auto-proclama ação e que só modifica as palavras e não as coisas” -, enquanto o
americanismo mostrava a “ação real, que modifica essencialmente tanto o homem como a realidade
exterior (isto é, a cultura real)” (Idem, Ibidem, p.254).
57
forma que a liberdade é estabelecida a partir de constrangimentos históricos da
desigualdade essencial entre possuidores e não possuidores dos meios de produção.
Nesta organização social da produção, a energia vital do homem, após ser
utilizada em uma excessiva jornada de trabalho, precisa ser recomposta, reproduzida.
Para esse fim o lazer é meio de compensar o desgaste do trabalho sem significado para o
trabalhador, de forma que uma atividade de compensação também sem significado é um
meio adequado de reproduzir uma força de trabalho alienada. Se o conceito de ócio
devia desvincular-se das atividades produtivas, agora o lazer se casa, com testemunhas e
sob a graça da “santa” Igreja, com a atividade produtiva. Surgem duas linhas teóricas
para o Lazer: a primeira, que percebe essa afinidade entre o desgaste laborativo e o
descanso necessário por meio das atividades de lazer; a segunda que, negando essa
"contra-função" do lazer ao trabalho alienante, enxerga-o como prática de potencial para
o crescimento e a emancipação do homem.
A educação na sociedade capitalista ganha outra dimensão, ao menos para a
classe trabalhadora, pelos motivos bem explicados por Saviani (2003, p. 156-157):
a indústria não é outra coisa senão o processo pelo qual se incorpora a
ciência, como potência material, no processo produtivo. Se se trata de
uma sociedade baseada na cidade e na indústria, se a cidade é algo
construído, artificial, não mais algo natural, isto vai implicar que esta
sociedade organizada à base do direito positivo também vai trazer
consigo necessidade de generalização da escrita. Até a Idade Média, a
escrita era algo secundário e subordinado a formas de produção que
não implicavam o domínio da escrita. Na época moderna, a
incorporação da ciência ao processo produtivo envolve a exigência da
disseminação dos códigos formais, do código da escrita.
Com a organização social do trabalho pautada na maquinaria, o domínio do
mínimo de conhecimento sistematizado é necessário para o trabalhador desse novo
estágio da divisão do trabalho. Além disso, o conhecimento secular próprio da escola
moderna laica, universal e gratuíta - se alinha com o projeto histórico da burguesia
fato que não pode ser desconsiderado se pretende-se situar a escola concretamente na
sua constituição histórica e nas suas determinações sociais –, constituindo-se em
importante instrumento conformador do sujeito histórico da nova sociedade. Todavia,
essa exigência gera mais uma contradição dessa contradição em processo que é o
capital: a instrução é, ao mesmo tempo, necessidade para a inserção do trabalhador no
processo produtivo, para ser explorado e, por outro lado, condição necessária e
possibilitante da sua emancipação. Dessa forma que, após os ideólogos da classe
58
capitalista discutirem sobre a educação escolar do proletariado ser uma necessidade ou
um gasto desnecessário, chegou-se a fórmula postulada por Adam Smith: "o ensino
popular pelo Estado, embora em doses prudentemente homeopáticas" (apud MARX,
2003, p. 418).
Um dos motivos da discussão era: se o trabalho intelectual seria realizado por
um pequeno grupo, enquanto a massa do proletariado executaria apenas o trabalho
braçal, por que educar essas pessoas que deveriam apenas por em movimento suas
forças físicas?
Desde a manufatura o conhecimento que o homem detém do processo produtivo
é materializado nas máquinas, deixando aos operários a tarefa de supervisioná-las,
tornando-os uma extensão delas. Com o avanço das forças produtivas, que leva a novas
formas de divisão do trabalho, o homem começa a realizar tarefas repetitivas de forma
mecânica. A conseqüência disso para o trabalhador já era alertada por Adam Smith:
A compreensão da maior parte das pessoas" diz Adam Smith, "se
forma necessariamente através de suas ocupações ordinárias. Um
homem que despende toda a sua vida na execução de algumas
operações simples (...) não tem oportunidade de exercitar sua
inteligência. (...) Geralmente ele se torna tão estúpido e ignorante
quanto pode se tomar uma criatura humana (SMITH apud MARX
2003, p. 417).
Smith se preocupa com o embotamento do trabalhador das fábricas porque
“a uniformidade de sua vida estacionária corrompe naturalmente seu ânimo. (...) Destrói
mesmo a energia de seu corpo e torna-o incapaz de empregar suas forças com vigor e
perseverança em qualquer outra tarefa que não seja aquela para que foi adestrado (Idem,
Ibidem). Frente a isto, Marx conclui que:
Certa deformação física e espiritual é inseparável mesmo da divisão
social do trabalho na sociedade. Mas, como o período manufatureiro
leva muito mais longe a divisão social do trabalho e também, com sua
divisão peculiar, ataca o indivíduo em suas raízes vitais, é ele que
primeiro fornece o material e o impulso para a patologia industrial
(MARX, 2003, p. 418).
.
Essa patologia industrial é citada por Marx a partir de estudos realizados por
médicos sobre doenças com etiologia na rotina de trabalho. Partindo da constatação
dessas doenças e de fatos conforme o alertado por Smith, sobre o esgotamento do
trabalhador e deterioração de suas capacidades nas atividades braçais do trabalho fabril,
59
surge a necessidade de um mecanismo de conservação da produtividade da força de
trabalho do proletariado. Eis o surgimento do lazer como mecanismo de reprodução da
sociedade capitalista.
Na sociedade capitalista a ocupação do tempo livre, outrora configurada na
prática do ócio, então substituída pela existência hegemônica do lazer, ganha outro
significado. Se antes, o ócio era a prática dos homens livres, nobres ou senhores, que
estavam liberados do trabalho braçal, agora o lazer é prerrogativa de todos que
trabalham. Todavia, assim como a educação existe em condições diferentes para o
proletariado e para os capitalistas, também o lazer existe em condições muito diferentes
para estas duas classes, determinado centralmente pelo fator econômico. “É preciso
levar em consideraçãonesse sentido, “a heterogeneidade do nível de participação dos
indivíduos nas atividades de lazer, advinda, principalmente da diferença de classes”
(PADILHA, 2000, p.61).
1.5 A reestruturação produtiva: capital e trabalho a partir de 1980
Como o capital responde a sua crise na década de 1970? O que é a reestruturação
produtiva (toyotismo/honismo) e quais as consequências desse processo para o
entendimento/prática do lazer e da educação?
Conforme será visto na discussão seguinte, a década de 70 é um marco da
configuração de novas formas de organização da produção no mundo capitalista, de
acordo com Harvey (2001). Também nesta década, no Brasil, identifica-se a
intensificação dos estudos do lazer, de acordo com Gomes (2003). Esse é um indicativo
importante para as pesquisas que devem ser desenvolvidas buscando saber quais as
relações entre as transformações do modo de organização da produção a partir de 1970,
de forma geral, e de 1980, no Brasil, e o lazer existente nessa sociedade. Acreditando
que a teoria existe como expressão abstrata das relações sociais existentes, será feito o
esforço de identificar na produção teórica do campo do lazer e da educação o
entendimento do objeto de pesquisa proposto, bem como das relações entre essas duas
categorias na sociabilidade do capital.
Mascarenhas (2005) afirma que no fordismo o lazer é um direito social, uma
“antimercadoria”, condição que muda com o toyotismo, quando ele se converte em
60
“mercolazer”, função de venda e ele próprio mercadoria que atua na valorização do
capital. O ponto de discordância identificado e posteriormente desenvolvido é em
relação à sua tese central, de que o lazer perde sua função social anterior, alterando-se
fundamentalmente seu valor de uso vigente no modelo de produção rígida, caracterizado
pela formação moral, recreação e contenção de conflitos, passando a ter a função social
de produzir mais-valia no regime de acumulação flexível.
Inicialmente é necessário esclarecer o que é o fordismo, uma forma específica de
organização social do trabalho, haja vista que é a partir da forma como os homens se
organizam para produzir coletivamente que são formadas as suas consciências, que se
dão as suas relações determinadas de humanização.
Uma das condições fundamentais para a criação do fordismo se na década de
1910, com a generalização do movimento chamado “gerência científica”, especialmente
após a publicação de Princípios de administração científica, de Frederick Taylor
(JINKINGS, 2005, p.82). Neste livro ele separa “drasticamente a concepção do trabalho
de sua execução. Transferindo o controle do processo de trabalho do operário para os
membros da administração das fábricas”. Em relação ao próprio processo de trabalho,
Taylor concebe a susa divisão “em unidades fragmentadas e rigidamente
cronometradas” de forma que permite “um aumento sem precedentes da produtividade
do trabalho e aprofunda a [sua] subordinação ao capital” (Idem, Ibidem).
Antunes (2003, p. 25), entende “o fordismo como o processo de trabalho que,
juntamente com o taylorismo, predominou na grande indústria capitalista ao longo deste
século [XX]”. Gounet (2002, p.19), explica que se dá, nessa organização, a “Produção
em massa através da racionalização das operações efetuadas pelos operários e do
combate aos ‘desperdícios, principalmente de tempo”. Com a racionalização, segundo
ele, acontece a maior divisão do trabalho (parcelamento), de forma que um operário
executa sempre os mesmos movimentos, “repetidos ao infinito durante sua jornada de
trabalho. [...] Acontece a desqualificação dos operários” (Idem, Ibidem, p,19). É criada
a linha de montagem para regular e ligar as diferentes funções, onde os trabalhadores
realizam seus trabalhos uns ao lado dos outros em um ritmo controlado. A
verticalização, o controle da produção desde a produção das peças até o momento do
acabamento do produto, de cima abaixo, acontece devido a necessidade de padronizar as
peças para combater desperdícios. Por último, a automação das fábricas. Com essas
alterações, um carro que antes demandava 12:30 h para ser montado, em 1914
necessitava apenas de 1:30 h (GOUNET, 2002).
61
A causa central da crise do modelo fordista de produção está na superprodução e
na incapacidade do mercado consumidor para absorver toda a produção possibilitada
por essa organização. Harvey (2001) afirma que o fordismo predominou até 1973,
quando um complexo contexto econômico mundial leva o capital a buscar um novo
regime de acumulação. Ele dá a seguinte explicação sobre a crise do fordismo:
Na superfície, essas dificuldades podem ser melhor apreendidas por
uma palavra: rigidez [...]. Por traz de toda a rigidez específica de cada
área estava uma configuração indomável e aparentemente fixa de
poder político e relações recíprocas que unia o grande trabalho, o
grande capital e o grande governo no que parecia cada vez mais uma
defesa disfuncional de interesses escusos definidos de maneira tão
estreita que solapavam, em vez de garantir, a acumulação do capital
(HARVEY, 2001, p. 135-136).
Considera-se, então, o fordismo como o sistema de organização da produção que
predominou a partir do início do século XX até a década de 1970, aproximadamente. A
partir de então, iniciam-se as transformações tão importantes de serem entendidas no
mundo do trabalho. Vai se identificar, a partir desta década, segundo Sabel e Piori
30
em
sua tese da "especialização flexível",
o advento de uma nova forma produtiva que articula, de um lado, um
significativo desenvolvimento tecnológico e, de outro, uma
desconcentração produtiva baseada em empresas médias e pequenas,
"artesanais". Esta simbiose, na medida em que se expande e
generaliza, supera o padrão fordista até então dominante. Esse novo
paradigma produtivo expressaria também, sempre segundo os autores
citados, um modelo produtivo que recusa a produção em massa, típico
da grande indústria fordista, e recupera uma concepção de trabalho
que, sendo mais flexível, estaria isenta da alienação do trabalho
intrínseca à acumulação de base fordista. Um processo "artesanal",
mais desconcentrado e tecnologicamente desenvolvido, produzindo
para um mercado mais localizado e regional, que extingue a produção
em série (SABEL; PRIORI,
1984, apud ANTUNES, 2003, p. 25).
Essa tese foi criticada por vários autores, devido: a impossibilidade da
generalização de um tal modelo (CORIATI
31
, 1992, apud ANTUNES, 2003); a não
superação do mercado de massa junto com a intensificação e desqualificação do
30
SABEL, C. ; PRIORI, M. The Second industrial divide. Noa Iorque: Basic Books, 1984.
31
CORIAT, Benjamin. El Taller y el robot: ensayos sobre el fordismo y la producción em masa en la era
de la electrónica. México/Espanha: Siglo XXI, 1992.
62
trabalho (CLARKE
32
, 1991, apud ANTUNES, 2003); a não comprovação da
característica artesanal da produção, uma vez que o fordismo continua seu domínio na
economia estadunidense (ANUNZIATO
33
, 1989, apud ANTUNES, 2003).
Antunes (2003), afirma que essas experiências de acumulação flexível têm
conseqüências consideráveis sobre o capitalismo. Entretanto, é o toyotismo/ohnismo
34
ou o modelo japonês que tem causado o maior impacto no mundo produtivo. Coriat
35
explica a gênese dessa forma de organização produtiva, que vai substituir a supremacia
do fordismo, em quatro fases:
Primeira: a introdução, na indústria automobilística japonesa, da
experiência do ramo têxtil, dada especialmente pela necessidade de o
trabalhador operar simultaneamente com várias máquinas. Segunda: a
necessidade de a empresa responder à crise financeira, aumentando a
produção sem aumentar o número de trabalhadores. Terceira: a
importação das técnicas de gestão dos supermercados dos EUA, que
deram origem ao Kanban. Segundo os termos atribuídos a Toyoda,
presidente fundador da Toyota, ‘o ideal seria produzir somente o
necessário e fazê-lo no melhor tempo’, baseando-se no modelo dos
supermercados, de reposição dos produtos somente depois da sua
venda. [...] Quarta fase: a expansão do método kanban para as
empresas subcontratadas e fornecedoras
(CORIAT, 1992, apud
ANTUNES, 2003, p.31),
.
O toyotismo se inicia também pela necessidade de enfraquecer a organização
dos trabalhadores. Para esse fim a organização dos empregados é feita de forma a não
manter grandes contingentes de trabalhadores em uma mesma fábrica. “10 mil operários
podem participar na execução de um veículo, mas somente 2 mil são empregados em
uma montadora. Os outros 8 mil não têm relação direta com ela(GOUNET, 2002, p.
9). Outros dados são oferecidos por Antunes (2005), quando mostra a horizontalização
da produção na organização flexível, passando de um percentual de concentração
interna da produção de 75% no fordismo, para apenas 25% no toyotismo.
Harvey, dando seqüência ao raciocínio anterior, confronta a “acumulação
flexível” com a “rigidez do fordismo”, dizendo que ela:
32
CLARKE, Simon. Crise do fordismo ou crise da social-democracia? . Lua Nova, 21. São Paulo:
CEDEC, 1991.
33
ANNUNZIATO, Frank. Il Fordismo nella crítica di Gramsci e nella realtá stadunidense
contemporânea. Crítica Marxista, nº 6. Itália, 1989.
34
Ohno foi o engenheiro que preconizou o modelo da Toyota.
35
CORIAT, Benjamin. Pensar al revés: trabajo y organización em la empresa japonesa.
México/Espanha: Siglo XXI, 1992.
63
se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de
trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo
surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas
maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e,
sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial,
tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas
mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre
setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um
vasto movimento no emprego no chamado "setor de serviços", bem
como conjuntos industriais completamente novos em regiões
subdesenvolvidas (
HARVEY, 2001, p. 140),
Harvey afirma dois aspectos fundamentais que não se devem perder de vista:
primeiro, que este impulso do capital para a flexibilização é identificável nos escritos
de Marx; e, segundo, que não se perca de vista que o sistema fordista ainda tem uma
força que não pode ser desconsiderada. Ao desenvolver a questão dessas mudanças
enquanto movimento próprio do capitalismo, Harvey lembra que:
o desenvolvimento de novas tecnologias gerou excedentes de força de
trabalho, que tornaram o retorno de estratégias absolutas de extração
da mais-valia mais viável mesmo nos países capitalistas avançados
[...] O retorno da superexploração em Nova Iorque e Los Angeles, do
trabalho em casa e do “teletransporte”, bem como o enorme
crescimento das práticas de trabalho no setor informal por todo o
mundo capitalista avançado, representa de fato uma visão bem
sombria da história supostamente progressista do capitalismo. Em
condições de acumulação flexível, parece que sistemas de trabalho
alternativos podem existir lado a lado, no mesmo espaço, de uma
maneira que permita que os empreendedores capitalistas escolham à
vontade entre eles. O mesmo molde de camisa pode ser produzido por
fábricas de larga escala na Índia, pelo sistema cooperativo da
“Terceira Itália”, por explorados em Nova Iorque e Londres ou por
sistemas de trabalho familiar em Hong Kong (HARVEY
, 2001, p.
175)
.
O resultado desse processo é, segundo Harvey, o desemprego estrutural, com
mais um agravante, o fato do toyotismo possibilitar o aprofundamento da exploração
por meio da: intensificação do ritmo do trabalho, com a redução dos tempos em que o
operário não está produzindo; redução dos salários e degradação dos direitos
trabalhistas, com base na terceirização e; fragmentação dos funcionários em locais
diversos, tendo ainda, os funcionários de uma mesma unidade produtiva situações
diferenciadas por diferentes contratos de trabalho (GOUNET, 2002).
A relação de alienação e individualismo do trabalho capitalista aumenta com a
organização de grupos de trabalho. “No interior desse time, de novo há divisão, pois os
64
trabalhadores não querem ser acusados de responsáveis pela performance do grupo.
Daí que todo mundo fiscaliza todo mundo” (GOUNET, p. 9). A competição
característica do capitalismo é exacerbada uma vez que, agora, além de ocorrer entre as
diferentes empresas, ocorre também entre os diferentes grupos de trabalho no interior de
uma mesma empresa. O capital afirma essa competitividade ao
individualizar os
rendimentos, promovendo diferenças salariais em função do cumprimento de metas por
trabalhador, por unidades ou equipes de trabalho”, resultando que “esse sistema maximiza a
exploração do trabalho e conduz a atitudes pouco solidárias nos ambientes laborais (JINKINGS,
2004, p. 229).
Essas considerações acerca no novo modelo de organização da produção, o
toyotismo/ohnismo, no contexto do que é chamado de acumulação flexível, precisam
considerar o caso específico do Brasil.
Segundo Gitahy
36
(1994, p.123, apud TUMOLO, 2002, p. 37), as modificações
na indústria brasileira se iniciam, tecnológica e organizacionalmente, em meados da
década de 70, "concomitantemente com o início da recessão, da abertura política, da
emergência do chamado 'novo sindicalismo' e da crise do modelo de relações industriais
vigente durante o período do 'milagre' ”. Antunes (2004), comentando estas
transformações, diz que um novo desenho do capitalismo se apresenta no Brasil,
particularmente na década de 1990, que certamente se identificam elementos de
continuidade e de descontinuidade.
Antunes (2004, p. 17-18), situa a segunda metade da década 1980 como um
período em que houve uma recuperação parcial da economia brasileira, observando-se
inovações tecnológicas e a “introdução da automação industrial de base microeletrônica
nos setores metal-mecânico, automobilístico, petroquímico e siderúrgico”. Reis
37
(1994,
apud TUMOLLO, 2002), estudou programas de modernização da produção em
empresas brasileiras, implantados a partir dos anos 90, classificando estas empresas,
como fábricas da passado, antes dos programas, e fábricas do presente, após os
programas, constatando grande diminuição de desperdícios e aumento da eficiência das
mesmas.
As alterações na organização produtiva no Brasil são confirmadas por Gounet
(2002, p. 9), quando fala sobre o modelo de produção da fábrica da Volkswagen de
36
GITAHY, L. Inovação tecnológica, relações interfirmas e mercado de trabalho. In: ________ (org.)
Reestruturación productiva, trajo y educación en América Latina: lecturas de educación y trajo, nº 3.
Campinas: IG-UNICAMP; Buenos Aires: RED CID-CENEP, 1994.
37
REIS, H. L. . Implantação de programas de redução de desperdícios na indústria brasileira: um
estudo de caso. COPPEAD, UFRJ. Rio de Janeiro, 1994. (Dissertação de mestrado)
65
Resende - RJ, onde “dos cerca de 2 mil operários do local, somente 300 estão sob
ordens da montadora”.
Os motivos que explicam a necessidade desses programas são dados pela
pesquisa de Abranches
38
et. al. (1994, apud TUMOLO, 2002). Dizem que o processo de
ajuste foi devido a mudanças na economia, maior concorrência interna, recessão
econômica e maior competição dos importados (Idem, Ibidem). Algumas empresas,
frente a este contexto se encolheram, demitindo trabalhadores e fechando instalações;
por outro lado, nas empresas que se ajustaram às novas exigências, também houve a
diminuição significativa de empregados, devido à terceirização de serviços e à
eliminação de postos de trabalho (Idem, Ibidem).
Carvalho e Schmitz
39
(1990, p.150, apud TUMOLO, 2002, p.49), estudaram a
indústria automobilística Brasileira, concluindo sobre a “adoção da automação
programável seletiva” que esta “‘está associada ao reforço da organização de trabalho
fordista’”. Essa posição realmente contraditória é explicada por Tumolo ao esclarecer
que:
Tendo como base as pesquisas realizadas, é possível afirmar que a
marca distintiva do chamado processo de reestruturação produtiva no
Brasil é a heterogeneidade generalizada, que ocorre não entre as
empresas, mas também no interior delas.
praticamente todas as pesquisas que as tinham [as relações de
trabalho] como objeto de investigação apontam a ocorrência da
intensificação do ritmo de trabalho e, ao mesmo tempo, um empenho
no sentido de afastar e neutralizar a ação sindical, valendo-se de
diversos mecanismos [...].
Dessa forma, tendo uma postura crítica, boa parte dos autores deste
último grupo considera que, no Brasil, se configura um processo de
modernização conservadora
(TUMOLO, 2002, p. 64-5)
.
Catani
40
(1995, apud TUMOLO, 2002), expõe uma posição que serve aqui de
síntese ao caso da reestruturação produtiva no Brasil, afirmando a heterogeneidade
como característica marcante desse processo. Para ele, além das tecnologias físicas, o
forte dessa reestruturação evidencia-se nas tecnologias de gestão que, implantadas pelo
empresariado nos mais diferentes contextos, compõem realmente o paradigma de
38
ABRANCHES, S. Eti ali. Caminhos da modernização empresarial no Brasil. Projeto modernização
empresarial e emprego no Brasil. Documento de trabalho nº 2. FINEP, out. , 1994.
39
SCHMITZ, H. Automação microeletrônica e trabalho: a experiência internacional. In: __________;
CARVALHO, R. Q. . Automação, competitividade e trabalho: a experiência internacional. São Paulo:
Hucitec, 1998.
40
CATANI, A. D. . O processo de trabalho e novas tecnologias. Porto Alegre: Editora da UFRGS,
1995.
66
flexibilização no caso brasileiro. Nesse processo de expressões contraditórias,
acontece ao mesmo tempo, o reforço do fordismo e a implantação do toyotismo.
Essa heterogeneidade específica do caso brasileiro, combinante da mais-valia
absoluta e relativa, tem bons resultados para o capital e sérias conseqüências para os
trabalhadores, que devem ser entendidas para compreender como o lazer e a educação
se fazem necessários na mediação, construção e reprodução das relações sociais
capitalistas.
O sofrimento psíquico de muitos desses trabalhadores, derivado do
controle, da pressão, da intensidade do trabalho, do medo do erro e
da demissão, das relações tensas e competitivas nos ambientes
laborais, desgasta a saúde mental, “contaminando” o tempo livre
de trabalho. As Lesões por Esforços Repetitivos (LERs) essa
síndrome do mundo produtivo na era da eletrônica atingem grande
número de bancários, degradando suas condições físicas e
repercutindo sobre a vida psíquica e social.
Para a ampla maioria dos bancários brasileiros e grandes parcelas da
classe trabalhadora em todo o mundo, a reestruturação capitalista
contemporânea destina formas modernas de exploração apoiadas na
tecnologia microeletrônica e na teleinformática convivem com
formas antigas e limitadas, baseadas no prolongamento da jornada
laboral (JINKINGS, 2004, p.239-40) [sem grifos no original].
duas perspectivas principais de Lazer nesta forma de sociabilidade
direcionada pela acumulação do capital que se apresentam como opostas. Todavia, são
oposições mais aparentes do que substanciais, haja vista as limitações práticas impostas
às teorizações que assumem um posicionamento crítico sem, todavia, passar pelas
questões fundamentais do sistema “sóciometabólico” do capital. Teorias que propoem
atividades de lazer sem nenhuma proposição de crítica às desigualdades sociais, e
aquelas que fazem essa crítica, reclamando os “valores” de justiça e igualdade, visando
alcançar a cidadania por uma via democrática, não se diferenciam en nada em relação
aos abalos que podem causar ao capital. Essa afirmação precisa, para ser justificada, que
se exponham as categorias que permitem conhecer a mercadoria, a unidade básica do
capital, para que se possa iluminar as relações sociais e suas mediações próprias do
capitalismo. Conhecendo tais categorias inicia-se um processo de desvendamento das
relações fetichizadas entre os homens, de seus intercâmbios guiados pela lógica do
lucro, de forma a compreender porque o caminho das reformas democráticas não podem
mudar a natureza incontrolável e insaciável do capital, de forma que não se poderá
67
alcançar o lazer e suas potencialidades humanizadoras como pretendem as teorias
críticas do lazer.
Assim, será exposto no próximo capítulo o percurso analítico de Marx para
demonstrar a concreticidade da mercadoria e do movimento contraditório do capital,
estabelecendo, com isso, fundamentos para a crítica da produção no campo de estudos
do lazer.
2. A INVESTIGAÇÃO MARXIANA SOBRE A MERCADORIA
A discussão um pouco alongada acerca da referida investigação não tem o
objetivo de aprofundar uma compreensão, ou, demonstrar alguma originalidade
concernente ao escrito de Marx a respeito da mercadoria. Todavia, se fez necessária na
medida em que aqui, especialmente, buscou-se a base para a compreensão do lazer em
seu enraizamento histórico-social. Portanto, foram da leitura e dos estudos do livro 1 de
O Capital que se obteve os fundamentos centrais para as críticas aos autores do lazer,
notadamente, para a discussão com os autores que assumem um posicionamento crítico.
Optou-se por expor minuciosamente o resultado desses estudos porque de outra
forma não ficariam claras as categorias utilizadas para discutir com os autores do campo
do lazer, bem como, para buscar ampliar a compreensão deste fenômeno moderno em
suas relações com a educação, esta também submetida aos imperativos do capital.
Marx (1985, p.45) define a mercadoria, inicialmente, como “um objeto externo,
uma coisa, a qual pelas suas propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer
espécie. A natureza dessas necessidades, se elas se originam do estômago ou da fantasia,
não altera nada na coisa”. Toda mercadoria deve possuir um valor de uso, uma utilidade
dada pelo seu “corpo” que se “realiza no consumo” e “constitui o conteúdo material da
riqueza” em qualquer sociedade. No capitalismo os valores de uso são, também, os
“portadores materiais do valor de troca”. Desta forma, a mercadoria contém, além do
valor de uso, o valor de troca, que “aparece, de início, como a relação quantitativa, a
proporção na qual valores de uso de uma espécie se trocam contra valores de uso de
outra espécie, uma relação que muda constantemente no tempo e no espaço”. “Por
conseguinte, primeiro: os valores de troca vigentes da mesma mercadoria expressam
algo igual. Segundo, porém: o valor de troca só pode ser a forma de expressão, a “forma
de manifestação” do conteúdo dele distinguível” (Idem, Ibidem, p.46). O valor de troca
permite igualar um valor de uso ao outro, indicando que algo em comum em ambos,
que se encontra na mesma proporção, significando, pois, que é feita uma abstração dos
valores de uso. Marx explica o porquê dessa abstração:
Deixando de lado então o valor de uso dos corpos das mercadorias,
resta a elas apenas uma propriedade, que é a de serem produtos do
trabalho. Entretanto, o produto do trabalho também já se transformou
em nossas mãos. Se abstraímos o seu valor de uso, abstraímos também
os componentes e formas corpóreas que fazem dele valor de uso.
69
Deixa já de ser mesa ou casa ou fio ou qualquer coisa útil. Todas as
suas qualidades sensoriais se apagaram. Também não é produto do
trabalho do marceneiro ou do pedreiro ou do fiandeiro ou de qualquer
outro trabalho produtivo determinado. Ao desaparecer o caráter útil
dos produtos do trabalho, desaparece o caráter útil dos trabalhos neles
representados, e desaparecem também, portanto, as diferentes formas
concretas desses trabalhos, que deixam de diferenciar-se um do outro
para reduzir-se em sua totalidade a igual trabalho humano, a trabalho
humano abstrato (MARX, 1985, p.47).
Retirando as características concretas dos diferentes trabalhos o que resta deles é
uma “mesma objetividade fantasmagórica, uma simples gelatina do trabalho humano
indiferenciado, isto é, do dispêndio de força de trabalho humano” (Idem, Ibidem).
Portanto, o que a relação de troca expressa é o valor das mercadorias, de forma que o
valor de troca é a forma de expressão do valor. Foi possível diferenciar, até agora, valor
de uso, valor de troca que aparece primeiro e valor como o resultado do trabalho
humano igual ou abstrato. Demonstrando melhor o que é o valor, nas palavras de Marx,
vê-se que:
um valor de uso ou bem possui valor apenas porque nele está
objetivado ou materializado trabalho humano abstrato. Como medir
então a grandeza de seu valor? Por meio do quantum nele contido da
“substância constituidora do valor”, o trabalho. A própria quantidade
do trabalho é medida pelo seu tempo de duração, e o tempo de
trabalho possui, por sua vez, sua unidade de medida nas determinadas
frações do tempo, como hora, dia etc (MARX, 1985, p.47).
Esse tempo, segundo Marx, não é o tempo individual, mas o tempo social, tempo
socialmente necessário para produzir determinado valor de uso, em “condições dadas de
produção socialmente normais, e com o grau médio de habilidade e de intensidade de
trabalho” (Idem, Ibidem, p. 48). Somente este é o tempo que confere valor às
mercadorias. Marx explica que um valor de uso para ser mercadoria tem que ser
produzido por alguém para outra pessoa, e tem que ser produzido para o outro que o
adquire por meio da troca. Marx explica isso para demarcar a diferença entre o valor de
uso que se transforma em mercadoria, do valor de uso entregue a outro por meio de
relações de servidão, como os tributos na Idade Média (Idem, Ibidem, p.49).
Sem ser valor de uso, sem ser útil, uma coisa não pode ser mercadoria, não pode
ter valor de troca. E esses dois valores da mercadoria, valor de uso e valor, expressam
duas características do trabalho, a sua utilidade, por ser formador de valor de uso, e a
sua generalidade, por ser, como “dispêndio de força humana de trabalho”, formador de
valor (Idem, Ibidem, p. 50-1).
70
O trabalho útil é criador de valor de uso. Os valores de uso constituem a riqueza
de uma sociedade, e
cada elemento da riqueza material não existente na natureza, sempre
teve de ser mediada por uma atividade especial produtiva, adequada a
seu fim, que assimila elementos específicos da natureza a
necessidades humanas específicas. Como criador de valores de uso,
como trabalho útil, é trabalho, por isso, uma condição de existência do
homem, independente de todas as formas de sociedade, eterna
necessidade de mediação do metabolismo entre homem e natureza e,
portanto, da vida humana (MARX, 1985, p.50).
O trabalho em geral cria o valor. Esta categoria, trabalho em geral, é resultado da
abstração das qualidades úteis do trabalho, conforme Marx:
Abstraindo-se da determinação da atividade produtiva e, portanto, do
caráter útil do trabalho, resta apenas que ele é um dispêndio de força
humana de trabalho. Alfaiataria e tecelagem, apesar de serem
atividades produtivas qualitativamente diferentes, são ambas
dispêndio produtivo de cérebro, músculos, nervos, mãos etc. humanos,
e nesse sentido, são ambas trabalho humano. São apenas formas
diferentes de despender força humana de trabalho. [...] o trabalho
humano. Ele é dispêndio da força de trabalho simples que em média
toda pessoa comum, sem desenvolvimento especial, possui em seu
organismo físico. Embora o próprio trabalho médio simples mude seu
caráter, em diferentes países ou épocas culturais, ele é porém dado em
uma sociedade particular. Trabalho mais complexo vale apenas como
trabalho simples potenciado ou, antes, multiplicado, de maneira que
um pequeno quantum de trabalho complexo é igual a um grande
quantum de trabalho simples
41
(Idem, Ibidem, p.51).
Este duplo aspecto do trabalho demonstrado por Marx, ser útil e ser abstrato,
quando confrontado, mediante as leis econômicas, com a questão da produtividade da
força de trabalho, um importante indicativo do que significa, primeiro, a mercadoria
como elemento mediador das relações sociais e, segundo, a fruição do tempo livre na
forma lazer e o lazer como mercadoria.
Marx (Ibidem, p.53) define a força produtiva como “o grau de eficácia de uma
atividade produtiva adequada a um fim. Num espaço de tempo dado”. Esta força
produtiva diz respeito somente ao trabalho útil, de forma que, o aumento da
41
É importante investigar a questão dos diferentes tipos de lazer para os trabalhadores dos diferentes
postos da produção: segundo essa indicação de Marx, sobre o trabalho complexo ser reduzido à trabalho
simples para a determinação do valor, será que também não muda a relação em nada o tipo de lazer, se é
um lazer menos elaborado ou mais elaborado? uma diferença entre estes complexos, trabalho e lazer,
de forma que a diferença da elaboração do tipo de lazer tem importância? Essa diferença diz respeito,
segundo posso inferir agora, aos planos da estrutura, no qual está o trabalho, e da superestrutura, no qual
está o lazer. Assim, tem-se que considerar, ainda, dois aspectos: o lazer como mercadoria e o lazer como
mediação para a recomposição da força de trabalho.
71
produtividade não influencia nos valores das mercadorias. Marx explica que a riqueza
aumenta com tal incremento, mas não o quanto de valor produzido: dois casacos vestem
duas pessoas, um casaco apenas uma. Todavia, se 2 casacos são produzidos no tempo
em que se produzia, anteriormente, 1 casaco, agora, como antes, uma hora de trabalho
humano socialmente necessário foi objetivada em mercadorias. Portanto, o aumento da
riqueza, 2 casacos ao invés de 1, determinou a diminuição de valor de cada mercadoria
individual. Conforme será visto a frente, o que importa ao capitalista é a produção de
valor e de mais-valor, não a produção de valores de usos. “A mesma variação da força
produtiva, a qual aumenta a fecundidade do trabalho e, portanto, a massa de valores de
uso por ela fornecida, diminui, assim, a grandeza de valor dessa massa global
aumentada, quando ela encurta a soma do tempo de trabalho necessário à sua produção.
E vice-versa” (Idem, Ibidem, p.53).
Após discutir os dois fatores da mercadoria, o valor de uso e o valor (que
inicialmente apareceu como valor de troca), Marx retoma a atenção ao valor de troca,
que foi ‘deixado para traz’ para a demonstração do valor (trabalho socialmente
necessário objetivado em uma mercadoria). Então, Marx retoma a discussão do valor de
troca, a forma de expressão do valor, para compreender como circulam as mercadorias
e o que é e como aparece o dinheiro.
Marx (1985, p. 53-4) explica que um valor de uso, ou “corpo da mercadoria”
é mercadoria porque é, ao mesmo tempo, um objeto para o uso e um portador de valor
(sua alma). O valor, segundo ele, tem uma objetividade que não é matéria natural. “Em
direta oposição à palpável e rude objetividade dos corpos das mercadorias, não se
encerra nenhum átomo de matéria natural na objetividade de seu valor”. A objetividade
do valor é social, dada por ser expressão do trabalho humano, e aparece na relação de
troca entre mercadorias diferentes, conforme suas diferentes expressões.
A equação que Marx utiliza para exemplificar a forma simples, singular ou
acidental do valor é: 20 varas de linho = 1 casaco, onde o linho é a forma relativa e o
casaco a forma equivalente da equação, o primeiro o elemento ativo, expressa seu valor,
o segundo, o elemento passivo, serve de material de expressão. “Forma relativa de valor
e forma equivalente pertencem uma à outra, se determinam reciprocamente, são
momentos inseparáveis, porém, ao mesmo tempo, são extremos que se excluem
mutuamente ou se opõem, isto é, pólos da mesma expressão de valor” (MARX, 1985,
p.54).
72
Essa equação, na qual duas grandezas de espécies diferentes só podem ser
comparadas depois de reduzidas a mesma unidade, tem como fundamento “linho =
casaco”. A relação de equiparação de uma mercadoria à outra é possível pela
abstração dos trabalhos específicos que as produziram, para encontrar o que elas
possuem em comum. A relação de equivalência revela o trabalho contido em todas as
mercadorias, o trabalho humano em geral (MARX, 1985, p. 55-56). Nessa equação, o
linho tem a forma relativa, enquanto o casaco a forma equivalente. O linho tem que
expressar seu valor no corpo, no valor de uso de outra mercadoria. Ao expressar assim
seu valor o linho revela que contém algo semelhante a qualquer outra mercadoria, ou
seja, o tempo social de trabalho despendido para sua produção. “O Valor da mercadoria
A, assim expresso no valor de uso da mercadoria B, possui a forma do valor relativo”
(Idem, Ibidem, p.57).
Sobre a diferença entre o trabalho como fonte de valor e o valor mesmo, Marx
explica que o segundo existe em forma concreta, objetivada. “A força de trabalho do
homem em estado líquido ou trabalho humano cria valor, porém não é valor” (Idem,
Ibidem, p.56). Esta diferenciação é importante para entender a discussão do
conhecimento como “um meio de produção”, feita por Saviani (2000)
42
. Pode o
conhecimento ser um meio de produção, algo colocado entre o homem e o objeto de sua
atividade, sem se concretizar em algo com propriedades físicas ou químicas? Acredito
que não
43
. Esta discussão deve ser feita e é da maior importância, pois, conforme analise
42
No livro Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações, na sua sétima edição (2000), que tem a
primeira edição datada de 1991, Saviani explica o caráter de classe da proposição da pedagogia histórico-
crítica, durante um debate, da seguinte forma: “a proposta de socialização do saber elaborado é a tradução
pedagógica do princípio mais geral da socialização dos meios de produção. Ou seja, do ponto de vista
pedagógico também se trata de socializar o saber elaborado, pois este é um meio de produção”
(SAVIANI, 2000, p.98).
43
Esta posição é tomada tendo como base, inicialmente, a definição exposta por Marx: “O meio de
trabalho é uma coisa ou um complexo de coisas que o trabalhador coloca entre si mesmo e o objeto de
trabalho e que lhe serve como condutor e sua atividade sobre esse objeto” (MARX, 1985, p. 150). O
trabalho humano é sempre pré-ideado, implica em conhecer as leis naturais que podem ser apropriadas e
utilizadas para atingir um fim, “no entanto, a posição do fim e a busca dos meios nada podem produzir de
novo enquanto a realidade natural permanecer o que é em si mesma” (LUKÁCS, s/d, p.8). Afirmar que o
conhecimento é meio de produção, é diferente de saber que a ciência é transformada em força produtiva
na grande indústria. O conhecimento científico é atributo indissociável do trabalhador, ou seja, da força
de trabalho, conforme o exemplo sobre a diferença entre a “apropriação capitalista e a apropriação
pessoal, seja da ciência, seja da riqueza material”, dado por Marx (2003, p.443). Quando fala que a
máquina, um meio de produção que transfere valor às mercadorias de forma parcelada, afirma que elas
são utilizadas sob “leis rigorosamente científicas” (p.444). O trabalhador detém o conhecimento de tais
leis, bem como, em outro estágio, necessitou conhecer as leis da mecânica e outras para construir as
máquinas. Mas, é importante retomar a definição que Marx (1985, p. 53) da de força produtiva como “o
grau de eficácia de uma atividade produtiva adequada a um fim. Num espaço de tempo dado”, bem como,
a conseqüência prática dessa definição, que é a constatação de que a variação na força de trabalho não
influencia no valor da mercadoria. Uma vez que na explicação de Marx o meio de produção sempre que
73
de Lazarini (2007, p.22) ao texto de Saviani (2006), Educação Socialista, Pedagogia
Histórico-Crítica e os Desafios da Sociedade de Classes
44
:
Saviani no sentido de defender a tese segundo a qual o “saber é um
meio de produção”, e tendo ele se tornado o elemento decisivo da
produção na sociedade capitalista contemporânea devido a automação
dos processos fundamentais de trabalho, a socialização desse saber,
principalmente através das escolas públicas unitárias, implicaria na
superação dessa forma social.
Se esta concepção fosse levada adiante, a revolução passaria a ser uma questão
de conhecimento, de racionalidade, e não mais de mudança estrutural na base material
da produção da existência.
Marx explica que a mudança na capacidade da força produtiva altera a relação
quantitativa na qual as mercadorias se trocam, dependendo do tempo, maior ou menor,
despendido na produção de cada mercadoria que entra em relação. Então, ele define a
forma equivalente como “a forma de sua permutabilidade direta com outra mercadoria”.
O casaco, ao aparecer como forma equivalente de expressão do valor representa
“determinado quantum de uma coisa” (p.59).
Sobre a forma equivalente, Marx destaca três pontos: 1º) que “o valor de uso
torna-se forma de manifestação de seu contrário, do valor” (p.59). Ele ressalta que “O
casaco representa na expressão do valor do linho uma propriedade sobrenatural a ambas
as coisas: seu valor, algo puramente social(p.60). 2º) “trabalho concreto” se converte
“na forma de manifestação de seu contrário, trabalho humano abstrato (p. 61). 3º)
“trabalho privado” toma a forma de seu contrário, trabalho em forma diretamente
social” (p.61). Esses pontos destacados por Marx ajudam a entender a sua conclusão,
fundamental para compreender as relações mercantis, qual seja, que o valor das
mercadorias não surge durante sua relação com outra mercadoria, mas, é intrínseco à
utilizado transfere valor à mercadoria, reafirma-se a observação de que força produtiva não é o mesmo
que meio de produção, sendo o conhecimento científico uma qualidade que define a habilidade da força
de trabalho. A “força de trabalho”, é classificada como “capital variável”, seja enquanto “valor” ou
“materialmente”, que existe em cada “grande secção” do capital social, junto com o “capital constante”
dividido em “capital fixo: máquinas, instrumentos de trabalho, construções, animais de trabalho etc.; e em
capital constante circulante: materiais de produção, tais como matérias-primas e matérias auxiliares,
produtos semi-acabados etc.” (MARX, 2000, p. 448). Após essa explicação, é necessário lembrar,
também, os três “elementos simples do processo de trabalho: o objeto de trabalho, os meios de trabalho e
o trabalho mesmo. Entendo que o conhecimento está relacionado diretamente ao trabalho mesmo, a
“própria atividade orientada à um fim”, e apenas mediatamente aos meios de trabalho, não sendo
possível, portanto, uma relação de identidade entre ambos – conhecimento e meios de produção.
44
SAVIANI, Dermeval. Educação Socialista, Pedagogia Histórico-Crítica e os Desafios da Sociedade de
Classes. In: LOMBARDI, Jo Claudinei; SAVIANI, Dermeval. Marxismo e Educação: Debates
Contemporâneos. Campinas-SP: Editores Associados, 2006, (p. 223-273).
74
20 varas de linho
própria mercadoria. o é a troca que determina o valor de uma mercadoria, ao
contrário, é seu valor que determina suas trocas.
Nessa forma de expressão do valor, “simples, singular ou acidental”, é possível
compreender que:
A antítese interna entre valor de uso e valor, oculta na mercadoria, é,
portanto, representada por meio de uma antítese externa, isto é, por
meio da relação de duas mercadorias, na qual uma delas, cujo valor
deve ser expresso, funciona diretamente apenas como valor de uso; a
outra, ao contrário, na qual o valor é expresso, vale diretamente
apenas como valor de troca. A forma simples de valor de uma
mercadoria é, por conseguinte, a forma simples de manifestação da
antítese entre valor de uso e valor, nela contida (MARX, 1985, p.63).
A segunda forma em que o valor pode se expressar é a forma total ou
desdobrada. A equação que representa esta forma é: “z mercadoria A = u mercadoria B
ou = v mercadoria C ou = w mercadoria D ou = x mercadoria E ou = etc”, ou, “20 varas
de linho = 1 casaco ou = 10 libras de chá ou = 40 libras de café ou = 1 quarter de trigo
ou = 2 onças de ouro ou = ½ tonelada de ferro ou = etc” (Idem, Ibidem, p.63). Essa
forma de expressão do valor permite a observação do valor como “gelatina de trabalho
humano indiferenciado”, pois, o linho entra em contato não com uma mercadoria
individualmente, mas, com todo o tipo de mercadoria existente. “Como mercadoria, ele
é cidadão deste mundo” (Idem, Ibidem, p.64). Estando o linho na forma relativa de
valor, todas as demais mercadorias casaco, chá, café, trigo, ouro, ferro, etc. -,
assumem a forma de equivalente.
Na forma geral de valor todas as mercadorias representam seus valores em uma
única mercadoria, de forma que a equação é assim expressa:
1 casaco =
10 libras de chá =
40 libras de café =
1 quarter de trigo =
2 onças de ouro =
½ tonelada de ferro =
x mercadoria A =
etc. mercadoria =
Essa igualação das mercadorias ao linho tem como resultado que “o valor de
cada mercadoria não apenas distingue-se de seu próprio valor de uso, mas de qualquer
valor de uso e justamente por isso ele é expresso como aquilo que ela tem de comum
com todas as mercadorias”. Conseqüentemente, a forma geral de valor “é a primeira a
relacionar realmente as mercadorias entre si como valores, ou as deixa aparecer
75
reciprocamente como valores de troca” (MARX, 1985, p. 66). O linho, excluído da
forma equivalente, não podendo ser uma sua parte, ganha a forma de equivalente geral
do mundo das mercadorias. O caráter social que esta forma representa deve ser
entendido para compreender-se, desvelado de todo mistério, o mundo das mercadorias.
As suas conseqüências para o trabalho são que, por exemplo:
A tecelagem, o trabalho privado que produz linho, encontra-se, ao
mesmo tempo, em forma social geral, na forma da igualdade com
todos os outros trabalhos. As inumeráveis equações em que consiste a
forma valor geral equiparam , sucessivamente, o trabalho realizado no
linho a cada trabalho contido em outra mercadoria e tornam, com isso,
a tecelagem a forma geral de manifestação do trabalho humano
enquanto tal (MARX, 1985, p. 67).
Por fim, percebe-se que
A forma valor geral, que representa os produtos de trabalho como
meras gelatinas de trabalho humano indiferenciado, mostra por meio
de sua própria estrutura que é a expressão social do mundo das
mercadorias. Assim, ela evidencia que no interior desse mundo o
caráter humano geral do trabalho constitui seu caráter especificamente
social (MARX, 1985, p. 67).
A forma de equivalente geral pode ser assumida por qualquer mercadoria, dado
que esta é “uma forma do valor em si”. Uma vez assumida tal forma, a mercadoria passa
a desempenhar a “função social” de funcionar como a mercadoria na qual todas as
demais podem expressar seu valor. Ao conquistar essa posição a mercadoria ouro
encontra-se a forma dinheiro. Esta forma de expressão do valor não difere da forma
anterior, senão pela substituição do linho pelo ouro na forma de equivalente geral.
Quando uma mercadoria expressa seu valor na mercadoria dinheiro, “20 varas de linho
= 2 onças de ouro”, por exemplo, tem-se a “forma preço” (Idem, Ibidem, p. 69).
Para a compreensão dessa forma acabada de expressão do valor, a forma
dinheiro, é necessária a compreensão da forma simples de expressão do valor, local
onde se encontra a maior dificuldade. E isso é muito importante, dado o caráter
misterioso que a mercadoria assume. Conforme a explicação anteriormente dada sobre a
relação de igualação dos trabalhos humanos a partir da abstração das características
concretas, tanto das mercadorias quanto dos trabalhos que as produziram, pode-se
compreender sua explicação procedente acerca do ar de mistério que envolve a
mercadoria vir de sua própria forma.
76
A relação entre os produtores assume a forma de relação entre seus produtos,
entre coisas
45
.
Porém, a forma mercadoria e a relação de valor dos produtos de
trabalho, na qual ele se apresenta, não têm que ver absolutamente nada
com sua natureza física e com as relações materiais que daí se
originam. Não é mais nada que determinada relação social entre os
próprios homens que para eles aqui assume a forma fantasmagórica de
uma relação entre coisas. Por isso, para encontrar uma analogia, temos
de nos deslocar à região nebulosa do mundo da religião. Aqui, os
produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras
autônomas, que mantém relação entre si e com os homens. Assim, no
mundo das mercadorias, acontece com os produtos da mão humana.
Isso eu chamo o fetichismo que adere aos produtos de trabalho, tão
logo são produzidos como mercadorias, e que, por isso, é inseparável
da produção de mercadorias (MARX, 1985, p.71).
Tal caráter fetichista das mercadorias provém do trabalho abstrato que as produz.
Nesta sociedade produtora de mercadorias, “o caráter especificamente social dos
trabalhos privados, independentes entre si, consiste na sua igualdade como trabalho
humano e assume a forma de caráter de valor dos produtos de trabalho”. Assim, a forma
acabada do valor, a forma dinheiro, “vela, em vez de revelar, o caráter social dos
trabalhos privados e, portanto, as relações sócias entre os produtores privados” (Idem,
Ibidem, p.72-3).
Uma mercadoria pode ser valor de troca não sendo valor de uso para quem a
produz, ou seja, com a produção de excedentes. Os homens têm que entrar em contato
para comerciar suas mercadorias como homens livres, comprando e vendendo seus
produtos no contexto de uma sociedade organizada pelos contratos sociais quer dizer,
a forma jurídica da relação entre proprietários e não proprietários dos meios de
produção e de subsistência, homens formalmente iguais. O dinheiro tem seu valor dado
pelo mesmo elemento que confere valor a qualquer mercadoria, o trabalho humano em
geral, medido pelo seu tempo de duração. Porém, o processo de troca faz parecer que as
mercadorias expressam seu valor em uma dada mercadoria porque ela é dinheiro, e não
o contrário, que uma mercadoria é dinheiro porque todas as demais expressam nela seu
valor, a excluíram da forma relativa para representar nela seus valores. O processo de
como isso vai se dando na história começa a ser ignorado, de forma que o fetiche da
45
“Seu próprio movimento social possui para eles a forma de um movimento de coisas, sob cujo controle
se encontram, em vez de controlá-las. [...] A determinação da grandeza de valor pelo tempo de trabalho é,
por isso, um segredo oculto sob os movimentos manifestos dos valores relativos das mercadorias. Sua
descoberta supera a aparência da determinação meramente casual das grandezas de valor dos produtos de
trabalho, mas de nenhum modo sua forma material” (MARX, 1985, p.72-3).
77
mercadoria é expresso no fetiche do dinheiro. Essa discussão é feita por Marx no
segundo capitulo do O Capital para que seja possível a compreensão da circulação das
mercadorias e da produção do capital. Portanto, para compreender o que significa a
educação e o lazer como mercadorias, é necessário a compreensão das categorias
utilizadas por Marx e do processo histórico de conformação da produção de mercadorias
especificamente capitalista, que difere da produção de mercadorias nas sociedades
escravistas e servis.
Marx explica que o ouro tem uma função de ser medida de valor, representando
o valor das mercadorias. o preço depende do valor do material monetário, o ouro,
que este e a mercadoria cujo valor é medido devem representar o mesmo quanto de
trabalho humano. “Como medida dos valores e como padrão dos preços, o dinheiro
exerce duas funções inteiramente diferentes. É medida dos valores por ser a encarnação
social do trabalho humano, padrão dos preços por ser um peso fixado de metal” (MARX,
1985, p.89). “O preço é a denominação monetária do trabalho objetivado na
mercadoria” (Idem, Ibidem, p. 92). E é importante entender a diferença entre valor e a
forma preço, ao mesmo tempo, sua necessária relação na sociedade capitalista. Por isso,
Marx explica que:
A grandeza de valor da mercadoria expressa, assim, uma relação
necessária imanente a seu processo de formação como o tempo de
trabalho social. Com a transformação da grandeza de valor em preço,
essa relação necessária aparece como relação de troca de uma
mercadoria pela mercadoria monetária, que existe fora dela. [...] A
possibilidade de uma incongruência entre o preço e a grandeza de
valor ou da divergência entre o preço e a grandeza de valor é, portanto,
inerente à própria forma preço. Isso não é um defeito dessa forma,
mas torna-a, ao contrário, a forma adequada a um modo de produção
em que a regra somente pode impor-se como lei cega da média à falta
de qualquer regra.
A forma preço [...] pode encerrar uma contradição qualitativa,
de modo que o preço deixa de todo de ser expressão de valor, embora
dinheiro seja apenas a forma valor das mercadorias. (MARX, 1985, p.
92).
Esta diferenciação entre o valor e a forma preço, observadas na função do
dinheiro como medida de valor é importante para compreender um outro aspecto do
dinheiro, ser meio de circulação. Neste particular pode-se observar o dinheiro atuando
na troca, o “metabolismo social”, onde mercadoria e dinheiro expressam uma antítese
externa, junto à antítese imanente da mercadoria, sua unidade de valor de uso e valor,
uma unidade de diferenças, conforme Marx (1985, p.94) demonstra.
78
Outra observação importante de Marx sobre as mercadorias, que ele retoma na
discussão dos capítulos IV e V, é sobre o valor de uma mercadoria. O valor total de um
tipo de mercadoria é avaliado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para a sua
produção e pelo quantum dessa mercadoria que o mercado pode consumir. Produzida
acima desse quantum, mais trabalho do que o necessário foi despendido na sua
produção, fazendo com que o valor total das mercadorias seja diminuído ou equiparado
ao valor socialmente requisitado desta (Idem, Ibidem, p.95-96). Também explica que o
valor de uso, “somente ideal”, do dinheiro é realizar a forma valor “meramente ideal” da
mercadoria, de forma que “a transformação da mercadoria em dinheiro é, ao mesmo
tempo, transformação de dinheiro em mercadoria” (Idem, Ibidem, p. 96). Ou seja,
diferente das demais mercadorias que devem cair na esfera do consumo para realizar
seu valor de uso, a mercadoria dinheiro só efetiva seu valor de uso na esfera da
circulação, “mora” eternamente nela.
Entender a função do dinheiro como meio de circulação das mercadorias é
necessário quando se busca compreender o lazer e a educação na sociedade capitalista
porque esta sociedade tem como fundamento a propriedade privada e como eixo a
mercadoria, suas precondições e suas decorrências. Marx (Idem, Ibidem, p. 97) afirma
que as relações econômicas entre os homens são de “possuidores de mercadorias
46
, uma
relação em que eles somente se apropriam do trabalho alheio alienando o próprio”. Essa
circulação de mercadorias é formada por quatro extremos, com as mercadorias
realizando duas metamorfoses sob a relação de três pessoas. Resumidamente, assim
expressa-se: M D, ou venda (p.95); D M, ou compra (p.97). Nessa relação à venda
corresponde seu oposto, uma compra e, na segunda mudança de forma, à compra
corresponde uma venda. A mercadoria muda de valor de troca para valor de uso, de
mercadoria para dinheiro, suas formas contrárias e inextrincáveis no processo de
circulação. Esse processo mostra o que ora se discute, a sociedade mediada por
mercadorias, da seguinte forma:
A circulação de mercadorias distingue-se não formalmente, mas
também essencialmente, do intercâmbio direto de produtos. [...] A
46
Isso explica aquilo que Marx diz, no prefácio da primeira edição do O Capital, em 1867, sobre a forma
de tratar as pessoas na sua pesquisa: “Mas aqui só se trata de pessoas à medida que são personificações de
categorias econômicas, portadoras de determinadas relações de classe e interesses. Menos do que
qualquer outro, o meu ponto de vista, que enfoca o desenvolvimento da formação econômica da
sociedade como um processo histórico-natural, pode tornar o indivíduo responsável por relações das quais
ele é, socialmente, uma criatura, por mais que ele queira colocar-se como subjetivamente acima delas”
(MARX, 1985, p.13).
79
mercadoria de B substitui a mercadoria de A, mas A e B não trocam
duas mercadorias reciprocamente. Pode, de fato, ocorrer que A e B
comprem reciprocamente um do outro, mas tal relação particular não é
condicionada, de modo algum, pelas relações gerais da circulação de
mercadorias. Por um lado, vê-se aqui como o intercâmbio de
mercadorias rompe as limitações individuais e locais do intercâmbio
direto de produtos e desenvolve o metabolismo do trabalho humano.
Por outro lado, desenvolve-se todo um rculo de vínculos naturais de
caráter social, incontroláveis pelas pessoas atuantes (MARX, 1985,
p. 99) [sem grifos no original].
Assim visto, esse processo também mostra que:
A antítese, imanente à mercadoria, entre valor de uso e valor, de
trabalho privado, que ao mesmo tempo tem de representar-se como
trabalho diretamente social, de trabalho concreto particular, que ao
mesmo tempo funciona apenas como trabalho geral abstrato, de
personificação da coisa e reificação das pessoas essa contradição
imanente assume nas antíteses da metamorfose das mercadorias suas
formas desenvolvidas de movimentos. Essas formas encerram, por
isso, a possibilidade, e somente a possibilidade, das crises (Idem,
Ibidem, p.100).
Não é a toa que Marx define a mercadoria ou a “forma valor da mercadoria”
como a forma celular da economia” (MARX, 1985, p.12). A mercadoria, conforme se
verá mais a frente, produzida sob a forma capitalista, difere da mercadoria produzida
sob relações servis ou escravistas. Produzida sob o capitalismo, a mercadoria tem como
condição que os meios de produção sejam de posse apenas do capitalista, ou seja,
realiza-se trabalho privado sobre meios privados de produção. Ao mesmo tempo, se o
produto do trabalho humano, o valor de uso, não realiza seu valor na relação de troca,
na circulação, demonstrando seu caráter social, tal produção não tem sentido para o ser
movente do processo, o processo de valorização do valor.
Marx demonstra como na circulação das mercadorias, na sua primeira
metamorfose, M D, é visível que a mercadoria se movimenta, pois ela troca de lugar
com o dinheiro. No entanto, na sua segunda troca de forma, D M, não é mais visível o
movimento dela, aparecendo só o movimento do dinheiro. Apesar dessa aparência
falseada, o movimento do dinheiro é “apenas expressão da circulação das mercadorias”
(Idem, Ibidem, p. 101). É importante deixar claro que o dinheiro é eleito meio circulante
porque é o “valor autonomizado das mercadorias” (Idem, Ibidem, p.102).
A partir da função do dinheiro como meio circulante surge a moeda. Cunhada
inicialmente com o material nobre que assume a função de equivalente geral ou dinheiro,
e com correspondência do nome da moeda com seu peso. Com a circulação as moedas
80
se desgastam e valor e preço da moeda deixam de ter correspondência, de forma que
começam a ser utilizadas as moedas divisionárias para as trocas mais rápidas, cunhadas
em prata e cobre. Desse processo é possível surgir a moeda papel, “signo do ouro ou
signo de dinheiro. Sua relação com os valores mercantis consiste apenas em que estes
estão expressos idealmente nas mesmas quantidades de ouro que são representadas
simbólica e sensivelmente pelo papel”. Esta moeda tem sentido na circulação
atuando como “meio circulante”. O movimento do dinheiro representa “os processos
antagônicos da metamorfose das mercadorias”, sua existência é simbólica, uma vez que
sua “existência funcional absorve, por assim dizer, sua existência material” (Idem,
Ibidem, p.109). Ou seja, sua função como meio de circulação, representante autônomo
do valor das mercadorias, substitui sua existência material, o ouro que contém
efetivamente valor, “trabalho social objetivado”.
Marx explica, em seguida, o entesouramento, a produção de mercadorias para
vender, não para comprar outras mercadorias, mas para acumular, fixar o produto da
primeira metamorfose da mercadoria, o dinheiro. Isso é feito mediante o sacrifício dos
“prazeres da carne”, mediante a avareza. “Laboriosidade, poupança e avareza são,
portanto, suas virtudes cardeais, vender muito e comprar pouco são o resumo de sua
economia política”. Este processo de entesouramento tem a função social de controlar o
volume de dinheiro necessário à circulação das mercadorias (MARX, 1985, p. 113).
Além de conhecer essa função importante do tesouro, é importante tal observação para
ser possível diferenciar um entesourador, um acumulador de dinheiro que vende para
não comprar, sacrificando inclusive suas necessidades para tal, do capitalista,
personificação do capital que determina a volta do resultado da venda para a produção
de novas mercadorias, ou seja, completar a circulação da mercadoria com sua segunda
metamorfose.
Com o desenvolvimento da circulação das mercadorias o dinheiro assume mais
uma função, a de meio de pagamento. Nesse estágio, a mudança de lugar da mercadoria
e a utilização do dinheiro como meio de circulação já não coincidem, o vendedor torna-
se credor, como aquele que receberá o dinheiro futuramente, e o comprador tornar-se
devedor, o representante do dinheiro futuro. O dinheiro funciona como “medida de
valor na determinação do preço da mercadoria vendida” e como “meio ideal de compra”,
entrando na circulação, como meio de pagamento, somente “depois que a mercadoria
se retirou dela. O dinheiro não media o processo. Ele o fecha de modo autônomo,
como existência absoluta do valor de troca ou mercadoria geral” (Idem, Ibidem,
81
p.114-5). É importante investigar esse processo de desenvolvimento da circulação, em
que o dinheiro funciona como meio de pagamento, devido à transferência das relações
humanas para a mercadoria e, num nível mais grave dessa transferência, para a
mercadoria dinheiro. Marx demonstra o desfecho dessa função da seguinte forma:
A função do dinheiro como meio de pagamento implica uma
contradição direta. Na medida em que os pagamentos se compensam,
ele funciona apenas idealmente, como dinheiro de conta ou medida de
valor. Na medida em que tem-se de fazer pagamentos efetivos, ele não
se apresenta como meio circulante, como forma apenas evanescente e
intermediária do metabolismo, senão como a encarnação individual do
trabalho social, existência autônoma do valor de troca, mercadoria
absoluta. Essa contradição estoura no momento de crises comerciais e
de produção a que se o nome de crise monetária
47
. Ela ocorre
somente onde a cadeia em processamento dos pagamentos e um
sistema artificial para sua compensação estão plenamente
desenvolvidos. Havendo perturbações as mais gerias desse mecanismo,
seja qual for a sua origem, o dinheiro se converte súbita e diretamente
de figura somente ideal de dinheiro de conta em dinheiro sonante.
Torna-se insubstituível por mercadorias profanas. O valor de uso da
mercadoria torna-se sem valor e seu valor desaparece diante de sua
própria forma de valor. [...] Na crise a antítese entre a mercadoria e
sua figura de valor, o dinheiro, é elevada a uma contradição absoluta
(p.116).
Compreender essa contradição entre mercadoria e dinheiro e seus efeitos nas
crises é muito importante para compreender a relação social chamada capital e,
portanto, a produção de lazer e educação como mercadorias. Assim, compreender-se
também a negação da função humanizante desses complexos do ser social em função da
afirmação do valor que eles podem produzir e reproduzir na forma de mercadorias.
Todavia, não é fácil essa compreensão pelo grau de abstração necessário e pelo
mergulho na lógica dialética e no raciocínio por contradição que tal abstração exige.
O dinheiro assume a forma autônoma de valor das mercadorias, pode expressar o
quanto vale qualquer mercadoria mesmo na sua ausência, diferente do que ocorre na
circulação de troca direta de mercadoria por mercadoria. Com o desenvolvimento da
circulação a experiência mostra a necessidade da utilização do dinheiro como moeda
divisionária e posteriormente da moeda de papel, um passo a frente na fixação do
dinheiro como signo do valor. Valor que existe como objetivação do trabalho
47
Marx faz a seguinte observação na nota de mero 99: “Deve-se distinguir bem a crise monetária,
definida no texto como fase particular de cada crise geral de produção e comércio, do tipo especial de
crise que se chama também de crise monetária, mas que pode aparecer independentemente, de modo que
ela afeta a indústria e comércio por repercussão. Estas são crises cujo movimento se centra no capital
monetário e, por isso, bancos, bolsas de valores e finanças são sua esfera imediata” (p.116).
82
humano contido em mercadorias com valor de uso, sem o qual não valor de troca.
Alçado o dinheiro como meio de pagamento, ele torna-se o fim do processo do
metabolismo social, se autonomiza em relação à mercadoria a qual representa o valor e
torna-se o fim da circulação de mercadorias. Existindo como meio de pagamento não
precisa comparecer na mesma quantidade dos valores que circulam, uma vez que
depende, o volume do dinheiro necessário, da velocidade das trocas e do número de
trocas que uma cadeia de mercadorias relacionadas representa. No momento da crise o
dinheiro é despido de sua “função ideal”, como expressão da obrigação de pagar, e
chamado à terra, tem que apresentar-se corporalmente. Se mais obrigações foram
contraídas que mercadorias que lhe correspondiam, haverá menos dinheiro que o
necessário para concluir as trocas, uma vez que o dinheiro fecha as metamorfoses ao
invés de media-las. Assim, aquilo que ele realmente expressa, o quanto de valor que
existe no corpo das mercadorias, passa a não fazer sentido, uma vez que o dinheiro
passa a ter a importância central no processo de circulação. Todavia, só tem essa
importância por ser expressão do valor. Daí que a crise traz à tona a contradição entre
mercadoria e dinheiro da forma mais visível. A antítese interna imanente da mercadoria,
entre valor de uso e valor, lugar a antítese externa entre mercadoria e dinheiro. Da
mesma forma que o valor de uso para se afirmar deve negar o valor de troca, e vice-
versa, a mercadoria para assumir a posição de dinheiro tem que trocar de lugar com o
próprio dinheiro, e, por sua vez, o dinheiro, para fazer valer seu valor de uso, tem que
substituir a mercadoria no local por ela deixado, na unidade dos contrários compra e
venda.
Finalmente, quando o comércio atinge proporções mundiais, “as mercadorias
desdobram seu valor universalmente. Sua figura autônoma de valor se defronta,
portanto, aqui também com elas sob a forma de dinheiro mundial”. A partir desse ponto
o dinheiro pode mostrar completamente sua função “como mercadoria, cuja forma
natural é, ao mesmo tempo, forma diretamente social de realização do trabalho humano
em abstrato. Seu modo de existir ajusta-se ao seu conceito”. Em conseqüência, o
“dinheiro mundial funciona como meio geral de pagamento, meio geral de compra e
materialização social absoluta da riqueza em geral (universal wealth)” (MARX, 1985,
p.119), sendo possível ver o processo de subjetivação das coisas, que toma as
características do processo social, do qual é produto, no ápice do processo que Marx
chama de fetiche da mercadoria.
83
Esta análise da mercadoria e as formas de expressão do seu valor, sua circulação
e a autonomização assumida pelo dinheiro no seu percurso de medida de valor, meio de
pagamento e dinheiro mundial, é necessária para a análise da origem da mais-valia que
Marx realiza em seguida em O Capital. Valor e mais-valia, duas categorias centrais e de
grande dificuldade de entendimento, sem as quais não é possível entender a relação
social, a contradição em processo chamada capital. Compreender o capital é condição
sine qua non da compreensão do lazer e da educação como mercadorias porque, como
Marx mostrará no final do capítulo V, a produção de mercadorias e a produção de
mercadorias na forma capitalista são unidades de diferentes processos. Portanto,
compreender um momento histórico em que a forma social impõe que novas fronteiras
caiam para a expansão do capital, produzindo e comercializando a mercadoria em áreas
como a educação e o lazer, impõe a necessidade de compreender o fundamento de tudo
isso, compreender o capital.
Nesse intento, Marx analisa o seguinte problema no quarto capítulo do O
Capital: pode a circulação simples, M D M, com sua forma invertida, D M D,
causar a valorização do valor? A fórmula geral do capital, D – M D’, a forma como a
mais-valia aparece, diz que sim, que é dessa inversão que surge o mais-valor. No
entanto, essa aparência contradiz a lei da circulação de mercadorias, via troca de valores
em quantidades iguais, desenvolvida até esse momento. Vejamos, então, qual a solução
desse problema.
Segundo Marx, o início do capital está na “circulação de mercadorias”.
“Produção de mercadorias e circulação desenvolvida de mercadorias, comércio, são os
pressupostos históricos sob os quais ele surge. Comércio mundial e mercado mundial
inauguram no século XVI a moderna história da vida do capital”. O dinheiro, o
“produto último da circulação de mercadorias é a primeira forma de aparição do capital”.
Porém, o dinheiro como “dinheiro e dinheiro como capital diferenciam-se primeiro por
sua forma diferente de circulação” (MARX, 1985, p.125).
Essas formas se apresentam assim:
M D M vender para comprar, é a “forma direta de transformação de
mercadorias”.
D M D comprar para vender, “Dinheiro que em seu movimento descreve
essa última circulação transforma-se em capital, torna-se capital e, de acordo com a sua
determinação, já é capital” (Idem, Ibidem, p.125-6).
84
Esta segunda forma de circulação contém as mesmas fases antitéticas da
primeira, a circulação simples: D – M, compra; e M – D, venda. Porém, aqui, o
processo se inicia e acaba com o dinheiro (D). Na primeira forma de circulação, a M
vendida no início tem o mesmo valor da mercadoria comprada no final. Na circulação
iniciada e finaliza por dinheiro, na venda um valor maior do que o utilizado para a
compra. “Se com 100 libras esterlinas compro 2.000 libras de algodão e revendo as
2.000 libras de algodão por 110 libras esterlinas, então troquei afinal 100 libras
esterlinas por 110 libras esterlinas, dinheiro por dinheiro” (Idem, Ibidem, p.126). Na
circulação M – D – M, o dinheiro media a circulação, enquanto na forma D – M – D, é a
mercadoria que faz a mediação do dinheiro. O objetivo da primeira forma de circulação
é a satisfação de necessidades, valor de uso, portanto, é externo a ela. Na segunda forma
de circulação, o objetivo é o próprio valor de troca, interno a ela. Ao final da primeira
forma de circulação, um valor de uso diferente do que nela entrou é obtido. A segunda
forma de circulação termina com um valor de troca maior do que aquele que nela entrou.
O algodão comprado por 100 libras esterlinas é, por exemplo,
revendido a 100 + 10 libras esterlinas, ou 110 libras esterlinas. A
forma completa desse processo é, portanto, D M D’, em que D’ =
D, ou seja, igual à soma de dinheiro originalmente adiantado mais
um incremento. Esse incremento, ou o excedente sobre o valor
original, chamo de - mais-valia (surplus value). O valor originalmente
adiantado não só se mantém na circulação, mas altera nela a sua
grandeza de valor, acrescenta mais-valia ou se valoriza. E esse
movimento transforma-o em capital” (MARX, 1985, p.128).
No primeiro movimento, vender para comprar, o processo se extingue ao obter o
valor de uso necessário, valor de uso de qualidade diferente. Já no segundo processo,
dinheiro não se diferencia qualitativamente de dinheiro, apenas quantitativamente.
Porém, se 100 libras é um valor limitado que precisava se valorizar, Marx explica que
110 libras é um valor tão limitado quanto 100 libras, precisando valorizar-se da mesma
forma. Isso caracteriza o capital por um movimento incessante de valorização do valor
48
.
O possuidor de dinheiro, com consciência desse processo, ao buscar como “meta
subjetiva” o “conteúdo objetivo” da segunda forma de circulação, a “valorização do
48
Neste ponto da análise Marx, baseado em Aristóteles, mostra a diferença entre Economia, a arte da
aquisição, limitada porque se preocupa com algo diferente do dinheiro, voltada aos valores de uso; e
Crematística, a arte de fazer dinheiro, ilimitada porque tenciona a multiplicação de dinheiro, de valores
de troca (MARX, 1985, p.127).
85
valor” torna-se a “personificação do capital”, o capital “dotado de vontade e
consciência” (MARX, 1985, p.130).
Marx relembra, agora com os elementos novos da diferenciação das duas formas
de circulação, a autonomização do valor, que discutiu anteriormente em relação à
antítese entre dinheiro e mercadoria. Explica que nessa segunda forma de circulação,
dinheiro e mercadoria tornam-se meras formas de manifestação do valor, sendo o
dinheiro a forma geral e a mercadoria a forma específica, disfarçada. O valor entra no
processo de circulação, repele a si mesmo e sai dela como mais-valor. “Pois o
movimento, pelo qual ele adiciona mais-valia, é seu próprio movimento, sua valorização,
portanto, autovalorização”. O valor apresentado na circulação D M D’ como “uma
substância em processo semovente”, entrando em relação consigo mesmo:
O valor torna-se, portanto, valor em processo, dinheiro em processo e,
como tal, capital. Ele provém da circulação, entra novamente nela,
sustenta-se e se multiplica nela, retorna aumentado dela e recomeça o
mesmo ciclo sempre de novo. D D’, dinheiro que gera dinheiro
money which begets money diz a descrição do capital na boca dos
seus primeiros tradutores, os mercantilistas (MARX, 1985, p.131).
No capital a juros, a circulação D M D’apresenta-se, afinal,
abreviada, em seu resultado sem a mediação, por assim dizer em estilo
lapidar, como D D’, dinheiro que é igual a mais dinheiro, valor que
é maior que ele mesmo (Idem, Ibidem, p.131).
A fórmula D M D’ mostra a mais-valia, mas não explica sua origem. De
onde ela provém então?
Para responder isso Marx retoma o que foi demonstrado sobre a forma de
expressão do valor, como valores mercantis se trocam na mesma proporção por serem
expressão de igual trabalho humano. As trocas impulsionadas pela necessidade de
adquirir valores de uso não produzidos pelo produtor que vende para comprar, ou de
gerar mais dinheiro, pelo capitalista que compra para vender, não podem basear-se na
esperteza de um agente da circulação sobre o outro. Isto porque, como as leis de
mercado ditam que um valor se troque pelo seu equivalente, se o comprador quiser levar
vantagem na compra, pagar menos, encontrará, na sua forma de vendedor, outro
comprador que desejará pagar menos. Se vender acima do preço, deverá comprar acima
do preço. E, mesmo que um personagem da circulação consiga enganar os seus pares e
comprar por menos e vender por mais, isso não explicaria a origem da mais-valia, uma
vez que na soma geral de valores, um preço de 10 a menos, pago na compra, elimina um
86
preço de 10 a mais, obtido na venda. Porém, a fórmula geral mostra um acréscimo de
valor (D) que aparece na venda final da fórmula D – M – D’.
Marx explica que “por meio da inversão da seqüência, nós não transcendemos a
esfera da circulação simples de mercadorias, e devemos muito mais verificar se ela
permite, de acordo com sua natureza, valorização do valor que nela penetra e, daí,
geração de mais-valia” (MARX, 1985. p. 132). Ele lembra que:
O valor das mercadorias está representado em seus preços, antes que
entre, na circulação, sendo, portanto, pressuposto e não resultado da
mesma.
Considerado abstratamente, isto é, deixando de considerar as
circunstâncias que não decorrem das leis imanentes da circulação
simples de mercadorias, o que ocorre nela, fora a substituição de um
valor de uso por outro, nada mais é que uma metamorfose, mera
mudança de forma da mercadoria. O mesmo valor, isto é, o mesmo
quantum de trabalho social objetivado, permanece nas mãos do
mesmo possuidor de mercadoria, primeiro na figura de sua mercadoria,
depois na do dinheiro em que se transforma, finalmente na da
mercadoria na qual esse dinheiro se retransforma. Essa mudança de
forma não inclui nenhuma mudança na grandeza do valor (MARX,
1985. p. 132-3).
Ele lembra que a explicação da mais-valia pela circulação de mercadorias
carrega a confusão entre valor de uso e valor de troca. Marx faz uma afirmação
imediatamente importante para compreender que um capitalista não pode aproveitar-se
do outro por sua esperteza, e, mediatamente para compreender as relações entre os
homens na forma social do capital. Ele diz que no mercado de mercadorias,
possuidor de mercadorias se confronta com possuidor de mercadorias e o poder que
essas pessoas exercem umas sobre as outras é somente o poder de suas mercadorias”
(Idem, Ibidem, p.134). Marx explica que da circulação de equivalentes e da circulação
de não equivalente não pode surgir a mais-valia. No primeiro caso, comprando por 50 e
vendendo por 50, tem-se no final o mesmo que no início. No segundo caso, comprando
por 40, abaixo do valor real, e vendendo por 50, no final o valor total é de 90, não houve
acréscimo.
Assim, Marx afirma que a mais-valia não pode vir da circulação, tem que ter
origem em outro local. Todavia, sendo a circulação a “soma de todas as relações
recíprocas dos possuidores de mercadorias”, fora dela o produtor só tem contato com ele
próprio, de forma que pode até acrescentar valor a uma mercadoria. No exemplo de
Marx, transformando couro em bota. Todavia, não poderá valorizar o valor, ele aumenta
o valor, mas não produção de mais-valia. Contradizendo o que afirmou pouco antes,
87
ele diz que é “impossível que o produtor de mercadorias, fora da esfera da circulação,
sem entrar em contato com outros possuidores de mercadorias, valorize valor e, daí,
transforme dinheiro ou mercadoria em capital” (Idem, Ibidem, p. 137-8). Sua conclusão,
de forma dialética, abre ao caminho para a explicação real da origem da mais-valia:
Capital não pode, portanto, originar-se da circulação e, tampouco,
pode não originar-se da circulação. Deve, ao mesmo tempo, originar-
se e não originar-se dela.
Um resultado duplo foi, portanto, alcançado.
A transformação do dinheiro em capital tem de ser desenvolvida com
base nas leis imanentes ao intercâmbio de mercadorias, de modo que a
troca de equivalentes sirva de ponto de partida. Nosso possuidor de
dinheiro, por enquanto ainda presente apenas como capitalista larvar,
tem de comprar as mercadorias por seu valor, vendê-las por seu valor
e, mesmo assim, extrair no final do processo mais valor do que lançou
nele. Sua metamorfose em borboleta tem de ocorrer na esfera da
circulação e não tem de ocorrer na esfera da circulação. São essas as
condições do problema” (MARX, 1985, p.138).
Uma vez que o dinheiro é figura monetária, expressão do valor da mercadoria,
não pode ser dele que se origina a mais-valia. Esta tem que se originar da mercadoria
comprada no primeiro ato da circulação D M D’, mas, essa modificação de valor
não se no valor de troca dessa mercadoria, se no seu valor de uso. Para que tal
modificação seja possível, o possuidor de dinheiro precisa comprar uma mercadoria que
tenha a faculdade de produzir mais valor do que ela própria possui. Essa mercadoria é a
força de trabalho, entendida por Marx como “o conjunto das faculdades físicas e
espirituais que existem na corporalidade, na personalidade viva de um homem e que ele
põe em movimento toda vez que produz valores de uso de qualquer espécie”. Para que o
possuidor de dinheiro possa comprar força de trabalho como mercadoria, o seu
possuidor, o trabalhador, precisa ser um homem livre. Dessa forma, comprador e
vendedor da força de trabalho se encontram como iguais possuidores de mercadorias,
travando uma relação jurídica. Além de ser um homem livre, dono se sua força de
trabalho, o trabalhador tem que ser desprovido dos meios de produção, de forma que
não possa vender outra mercadoria que não seja a sua força de trabalho. Todavia, é da
maior importância notar que essa relação, historicamente estabelecida, não é natural,
tampouco presente em todas as formações sociais. Antes, pressupõe uma série de
“revoluções econômicas” e a “decadência de toda uma série de formações mais antigas
de produção social” (Idem, Ibidem, p. 139-140).
88
Tratando das condições de surgimento do capital Marx diz que a produção de
mercadorias, que pressupõe a divisão do trabalho dentro da sociedade, e a presença do
dinheiro nas suas diferentes formas, como “equivalente de mercadoria ou meio
circulante ou meio de pagamento, tesouro e dinheiro mundial”, que indicam diferentes
estágios do “processo de produção social”, existem nas mais variadas formações
econômicas. Em relação ao capital a situação é diferente. Sua condição de surgimento é
que “o possuidor de meios de produção e de subsistência” encontre “o trabalhador livre
como vendedor de sua força de trabalho no mercado”. A partir desse momento a história
inicia sua fase de “história mundial. O capital anuncia, portanto, de antemão, uma época
do processo de produção social” (Idem, Ibidem, p.140-1). Após esse esclarecimento,
Marx mostra mais um elemento para o entendimento da origem da mais-valia: o valor
da força de trabalho. Elemento que também será essencial para a discussão posterior do
lazer como, no próximo ponto desse escrito.
O valor da força de trabalho é igual ao valor dos meios de subsistência
necessários à manutenção e reprodução do trabalhador e de sua família. Portanto, seu
valor corresponde ao tempo socialmente necessário para a produção dos meios de
subsistência do trabalhador e de sua família. Por isso, pode-se ver que a variação na
força produtiva, aumentando ou diminuindo o tempo social necessário para produzir
esses meios, determina a elevação ou diminuição do valor da força de trabalho. Sobre
essa mercadoria específica é necessário esclarecer que:
As próprias necessidades naturais, como alimentação, roupa,
aquecimento, moradia etc., o diferentes de acordo como o clima e
outras peculiaridades naturais de um país. Por outro lado, o âmbito das
assim chamadas necessidades básicas, assim como o modo de sua
satisfação, é ele mesmo um produto histórico e depende, por isso,
grandemente do nível cultural de um país, entre outras coisas também
essencialmente sob que condições, e, portanto, com que hábitos e
aspirações de vida, se constitui a classe dos trabalhadores livres. Em
antítese às outras mercadorias, a determinação do valor da força de
trabalho contém, por conseguinte, um elemento histórico e moral.
No entanto, para determinado país, em determinado período, o âmbito
médio dos meios de subsistência básicos é dado (MARX, 1985, p.141)
[sem grifos no original].
Além disso, a transformação da natureza humana em força de trabalho específica
para determinada atividade exige determinada formação ou educação, mais ou menos de
acordo com o grau de mediaticidade da atividade. Essa formação ou educação é um
89
elemento que entra no tempo social gasto na produção da força de trabalho (Idem,
Ibidem, p. 142).
Se o preço pago pela força de trabalho se limita ao mínimo necessário à sua
existência fisiológica, isso significa que o seu preço caiu abaixo do seu valor. Significa
que essa força de trabalho vai ser reproduzida de forma atrofiada (Idem, Ibidem, p.143).
Se o necessário para a existência fisiológica é garantido, a educação e o lazer são
custos que não são possíveis de serem realizados para a produção dessa mercadoria. Isso
também significa que o capitalista vai consumir uma mercadoria sem os requisitos que
ele necessita para utilizar seu valor de uso.
O trabalhador aliena o valor de uso de sua força de trabalho que se realiza ao
final do período contratado, momento em que a sua mercadoria é paga. No caso de
mercadorias em que a “alienação formal do valor de uso mediante a venda e sua
verdadeira entrega ao comprador se separam no tempo, o dinheiro do comprador
funciona geralmente como meio de pagamento”. Por isso, são os trabalhadores quem
fornecem crédito ao capitalista, entregando-lhes a mercadoria antes do seu pagamento.
Tendo feito essa observação, Marx mostra que o consumo do valor de uso da força de
trabalho é o “processo de produção de mercadoria e de mais-valia” (Idem, Ibidem,
p.143-5). Porém, o consumo não ocorre na esfera da circulação, mas fora dela. Por isso,
a investigação tem que se direcionar para a esfera da produção, que Marx chamou no
início dessa discussão sobre a mais-valia de as costas do processo de circulação.
Este direcionamento se pela análise do processo de trabalho em sua forma
abstrata, existente em todas as sociedades e em sua forma concreta, na sociedade
capitalista. O “processo de trabalho deve ser considerado de início independentemente
de qualquer forma social determinada”. Assim, o trabalho aparece primeiramente como
um processo de mediação entre o homem e a natureza, onde o homem “põe em
movimento as forças naturais pertencentes à sua corporalidade, braços e pernas, cabeça
e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua própria vida”.
O trabalho tratado aqui é especificamente relativo ao gênero humano porque ele é feito
de forma pré-ideada. O homem atua sobre a natureza de forma que atinge, no final do
processo, um resultado que já existia idealmente, que já havia sido projetado, modifica a
natureza e, ao mesmo tempo, a si próprio (Idem, Ibidem, p.149-50).
Este processo apresenta três “elementos simples”: a) “atividade orientada a
um fim ou trabalho mesmo”; b) objeto de trabalho ou matéria prima: as coisas que o
homem tira diretamente da terra ou da água são os objetos de trabalho, enquanto estes
90
objetos já trabalhados, já “filtrados” pelo trabalho humano, são matéria prima. “O
objeto de trabalho apenas é matéria-prima depois de ter experimentado uma
modificação mediada por trabalho”. c) meio de trabalho: é aquilo que o homem coloca
entre si e a natureza para agir sobre ela, utilizando “as propriedades mecânicas, físicas,
químicas das coisas para fazê-las atuar como meios de poder sobre outras coisas,
conforme o seu objetivo”. Este elemento é definidor deste processo porque, o “uso e a
criação de meios de trabalho, embora existam em germe em certas espécies de animais,
caracterizam o processo de trabalho especificamente humano” (MARX, 1985, p.150).
No processo de trabalho, a atividade do homem efetua, portanto,
mediante o meio de trabalho, uma transformação do objeto de trabalho,
pretendida desde o princípio. O processo extingue-se no produto. Seu
produto é um valor de uso; uma matéria natural adaptada às
necessidades humanas mediante transformação da forma. O trabalho
se uniu com seu objetivo. O trabalho está objetivado e o objeto
trabalhado. O que do lado do trabalhador aparecia na forma de
mobilidade aparece agora como propriedade imóvel na forma do ser,
do lado do produto. Ele fiou e o produto é um fio.
Considerando-se o processo inteiro do ponto de vista de seu resultado,
do produto, aparecem ambos, meio e objeto de trabalho, como meios
de produção, e o trabalho mesmo como trabalho produtivo (MARX,
1985, p.151).
Marx mostra que é o “trabalho vivo” que forma aos objetos de trabalho, que
os transforma de “valores de uso apenas possíveis em valores de uso reais e efetivos”.
Em seguida, diferencia o consumo produtivo e o consumo individual. O primeiro é
consumo de objetos e meios de trabalho com um produto diferente do consumidor, que
é o processo de trabalho. O segundo, o consumo individual, é o gasto de meios de
subsistência onde o resultado é o próprio consumidor, a força de trabalho. Esta primeira
parte da análise do processo de trabalho é concluída por Marx assim:
O processo de trabalho, como o apresentamos em seus elementos
simples e abstratos, é atividade orientada a um fim para produzir
valores de uso, apropriação do natural para satisfazer necessidades
humanas, condição universal do metabolismo entre o homem e a
natureza, condição natural eterna da vida humana e, portanto,
independente de qualquer forma dessa vida, sendo antes igualmente
comum a todas as suas formas sociais. Por isso, não tivemos
necessidade de apresentar o trabalhador em sua relação com outros
trabalhadores. O homem e seu trabalho, de um lado, a Natureza e suas
matérias, do outro, bastavam. Tão pouco quanto o sabor do trigo
revela quem o plantou, podem-se reconhecer nesse processo as
condições em que ele decorre, se sob o brutal açoite do feitor de
escravos ou sob o olhar ansioso do capitalista (Idem, Ibidem, p.153-4).
91
Marx anuncia que retoma a discussão do processo de valorização, após discutir o
trabalho em sentido genérico, independente das relações sociais que o cercam. Diz que a
natureza do processo de trabalho não se altera de imediato por ser executado para o
capitalista, ocorrendo tal alteração posteriormente. Quando isso ocorre se observam
dois fenômenos distintos: 1º o trabalhador se põe em atividade sob vigilância do
capitalista, para evitar desperdícios de matéria-prima e meios de trabalho; a força de
trabalho paga pelo capitalista, e tudo o que ela produz durante sua jornada, pertence ao
capitalista. O processo de trabalho é, do ponto de vista do capitalista, consumo de força
de trabalho e dos meios e objetos necessários para sua ativação (MARX, 1985, p.154).
A partir destas observações Marx confronta o processo de trabalho em geral com o
processo de valorização, o processo de trabalho sob a propriedade privada dos meios de
produção, compra e venda da força de trabalho, onde esse processo aparece como uma
relação entre “coisas que o capitalista comprou”.
O produto desse processo é um valor de uso, o conteúdo da riqueza. Produzido
sob a propriedade privada dos meios de produção, esse valor de uso é propriedade do
capitalista, para o qual não importa em nada o valor de uso, a não ser na sua função de
portador do valor de troca. Além de produzir uma mercadoria para a troca, o capitalista
quer “produzir uma mercadoria cujo valor seja mais alto que a soma dos valores das
mercadorias exigidas para produzi-las, os meios de produção e a força de trabalho, para
as quais adiantou seu bom dinheiro no mercado”. Portanto, ele quer “produzir não
um valor de uso, mas uma mercadoria, não valor de uso, mas valor e não valor,
mas também mais-valia” (Idem, Ibidem, p.155).
O “processo de trabalho”, anteriormente exposto, tem que ser tratado agora
como “processo de formação de valor” porque a unidade de valor de uso e valor da
mercadoria expressa a unidade desses dois processos. Para discutir esse processo Marx
utiliza uma equação com os seguintes elementos: produto = fio; matéria-prima = 10
libras de algodão = 10 xelins; meios de trabalho = fusos = 2 xelins; 12 xelins = 24 horas
ou 2 dias de trabalho; fio = 2 e ½ dias de trabalho. Marx previne que o valor aparecer
em qualquer desses elementos não muda em nada a coisa.
O valor do produto final do processo (fiação) analisado por Marx, o fio, é
estabelecido levando em conta o tempo de trabalho necessário para produzir o algodão
(matéria-prima) e os fusos (meio de trabalho). Para que o produto final, o fio, possa
expressar esses elementos em seu preço, 12 xelins, existem duas condições: o algodão e
o fuso devem ter se tornado um valor de uso, portador do valor; “que somente o tempo
92
de trabalho necessário, sob dadas condições sociais de produção” tenha sido utilizado
(Idem, Ibidem , p.156).
Na análise do processo de trabalho deveria ser levada em conta a atividade
específica desenvolvida, que resultaria em diferentes valores de uso. Na análise do
processo de formação de valor não importa a especificidade do trabalho, sua concretude,
pois é a partir da indiferenciação ou da igualação dos diferentes trabalhos que é possível
considerar esses diversos trabalhos como “partes apenas quantitativamente diferentes do
mesmo valor total, do valor do fio” (Idem , Ibidem, p.156-7). Pode-se entender bem o
que significa o valor como objetivação de trabalho socialmente necessário sabendo que
“Durante o processo de trabalho, o trabalho se transpõe continuamente da forma de
agitação para a de ser, da forma de movimento para a de objetividade. Ao fim de 1 hora,
o movimento de fiar está representado em determinado quantum de fio, portanto
determinado quantum de trabalho, 1 hora de trabalho está objetivado no algodão” (Idem,
Ibidem, p. 157).
Em seguida, Marx mostra que além da atividade do trabalhador ser vista
diferentemente, também os outros elementos o são. Matéria-prima se limita a “algo que
absorve determinado quantum de trabalho”, transformada pela força de trabalho que lhe
é acrescida como fiação, resulta em fio, que “é agora apenas uma escala graduada que
mede o trabalho absorvido pelo algodão” (Idem, Ibidem, p.157).
O processo analisado mostra uma força de trabalho hipoteticamente avaliada em
3 xelins, correspondendo a 6 horas de trabalho. Durante um hora essa força de trabalho
transforma 1 e 2/3 libras de algodão em fio, ou 10 libras em 6 horas. Portanto, nestas 10
libras de fio se objetivaram 2 e ½ dias de trabalho, sendo: algodão + fusos = a 2 dias, ou
24 horas, ou 12 xelins, e força de trabalho = ½ dia, ou 6 horas, ou 3 xelins. “O preço
adequado ao valor das 10 libras de fio é, portanto, 15 xelins, o preço de 1 libra de fio 1
xelim e 6 pence” (MARX, 1985, p.158). Como pode, então, surgir a mais-valia, se o
valor ao final do processo é igual ao valor adiantado pelo capitalista no início da
produção? Os 15 xelins que representam os custos de todos os fatores da produção são
os mesmos 15 xelins que são o valor do produto final, as 10 libras de fio.
Examinemos a coisa mais de perto. O valor de um dia da força de
trabalho importava em 3 xelins, porque nela mesma está objetivada
meia jornada de trabalho, isto é, porque os meios de subsistência
necessários para produzir diariamente a força de trabalho custam meia
jornada de trabalho. Mas o trabalho passado que a força de trabalho
contém, e o trabalho vivo que ela pode prestar, seus custos diários de
93
manutenção e seu dispêndio diário, são duas grandezas inteiramente
diferentes. A primeira determina seu valor de troca, a outra forma seu
valor de uso. O fato de que meia jornada seja necessária para mantê-lo
vivo durante 24 horas não impede que o trabalhador, de modo algum,
de trabalhar uma jornada inteira. O valor da força de trabalho e sua
valorização no processo de trabalho são, portanto, duas grandezas
distintas. Essa diferença de valor o capitalista tinha em vista quando
comprou a força de trabalho. Sua propriedade útil, de poder fazer fio
ou botas, era apenas uma conditio sine qua non, pois o trabalho para
criar valor tem de ser despendido em forma útil. Mas o decisivo foi o
valor de uso específico dessa mercadoria. Ser fonte de valor e de mais
valor do que ela mesma tem. Esse é o serviço específico que o
capitalista dela espera. [...] O valor de uso da força de trabalho
pertence tão pouco ao seu vendedor, quanto o valor de uso do óleo
vendido, ao comerciante que o vendeu. O possuidor de dinheiro pagou
o valor de um dia da força de trabalho; pertence-lhe, portanto, a
utilização dela durante o dia, o trabalho de uma jornada. A
circunstância de que a manutenção diária da força de trabalho custa
meia jornada de trabalho, apesar de a força de trabalho poder operar,
trabalhar um dia inteiro, e por isso, o valor que sua utilização cria
durante um dia é o dobro de seu próprio valor de um dia, é grande
sorte para o comprador, mas, de modo algum, uma injustiça contra o
vendedor (MARX, 1985, p. 159-60).
Como o trabalhador deve trabalhar, para efetivar o valor de uso da mercadoria
que vendeu, sua força de trabalho, durante uma jornada inteira de trabalho ou 12 horas,
uma nova situação se apresenta Seu trabalho vai consumir 20 libras de algodão,
transformando-as em 20 libras de fio com o valor de 30 xelins, dos quais: 20 xelins = 20
libras de algodão; 4 xelins = fusos; força de trabalho = 3 xelins. O valor de produção
das 20 libras de algodão é de 27 xelins, enquanto o seu preço é de 30 xelins. Ai está a
origem da mais-valia que aparece na fórmula D M – D’. Sua origem está na produção,
portanto, não pode estar na circulação. Porém, é na esfera da circulação que o capitalista
compra a força de trabalho, por isso, também não pode estar na esfera da circulação a
origem da mais-valia (Idem, Ibidem, p.160).
O capitalista, ao transformar dinheiro em mercadorias, que
servem de matérias constituintes de um novo produto ou de fatores do
processo de trabalho, ao incorporar força de trabalho viva à sua
objetividade morta, transforma valor, trabalho passado, objetivado,
morto em capital, em valor que valoriza a si mesmo, um monstro
animado que começa a trabalhar” como se tivesse amor no corpo
(MARX, 1985, p.160-161).
Essa figura de monstro animado não parece ser demasiada para definir a relação
social chamada capital. Mas, ainda, outro elemento importante na definição do capital,
conforme a investigação de Marx, é a diferenciação entre o processo simples de
94
formação de valor e o processo de valorização, entre processo de produção de
mercadorias e processo de produção capitalista.
Marx explica que o processo de valorização é o processo de formação de valor
que se estende até certo ponto. Comparando o processo de formação de valor com o
processo de trabalho, a diferença reside em que este está voltado à produção de valores
de uso, sendo considerado qualitativamente. Aquele diz respeito à produção de valor e,
portanto, é observado apenas quantitativamente, apenas em relação ao tempo
despendido. Sendo diferenciado o trabalho enquanto “criador de valor de uso e
“criador de valor”, é possível a distinção fundamental para compreender o fundamento
do capital: “Como unidade do processo de trabalho e processo de formação de valor, o
processo de produção é processo de produção de mercadorias; como unidade do
processo de trabalho e processo de valorização, é ele processo de produção capitalista,
forma capitalista da produção de mercadorias” (MARX, 1985, p.161-62).
Outra definição de Marx deve ser conhecida, por dois motivos, por quem se
preocupa com a educação e a formação humana: o trabalho complexo ou de “peso
específico superior”. Este trabalho “mais complexo em face do trabalho social médio, é
a exteriorização de uma força de trabalho na qual entram custos mais altos de formação,
cuja produção custa mais tempo de trabalho”, tendo, por isso, “valor mais elevado que a
força de trabalho simples”. No mesmo tempo de trabalho a força de trabalho de peso
específico superior objetiva maior valor que a força de trabalho simples. No entanto, o
trabalho necessário para sua reprodução é o mesmo, não difere em qualidade, do
trabalho que produz mais-valia, tal qual no trabalho de valor social médio. (Idem,
Ibidem, p.162).
Após essa demonstração dos pressupostos centrais do O Capital, que expressam
as descobertas mais originais do autor, considerando a sua indicação sobre a ordem de
exposição não ser necessariamente a mesma da investigação, é possível compreender o
que são relações mercantis e relações sociais alienadas, fetichizadas pela mercadoria e a
autonomia que ela adquire em relação ao seu produtor. É possível compreender como a
relação entre homens aparece como uma relação entre coisas, o processo que Marx
chama de reificação do sujeito e subjetivação do objeto. Tal demonstração visa conferir
o entendimento concreto à afirmação de que é necessário superar as relações mercantis
para a plena apropriação e fruição da produção cultural da humanidade no tempo livre.
Marx mostrou que o trabalho é atividade ineliminável do ser social em qualquer
formação social, portanto, o tempo ocupado e o tempo livre continuarão a existir
95
enquanto houver o ser social. Ao mesmo tempo, discutindo o trabalho na sua concretude
na forma social do capital, que assume a predominância de processo de valorização,
processo de formação do valor continuado além do ponto necessário para a reprodução
da força de trabalho, mostra como o homem tornado uma coisa, um elemento da
produção, tem seu tempo livre comprometido sob os imperativos do ser semovente em
que se constitui o capital, que necessita extrair mais-valia para reproduzir-se
continuadamente. O tempo livre pode ser efetivado em sua máxima potencialidade, uma
vez que o avanço das forças produtivas tem para o capital uma repercussão bem
diferente do que a repercussão que tem para a humanidade. Produzir 50 ou 100 kg de
alimentos não altera o valor produzido no mesmo tempo dado, pode alterar apenas um
dos elementos que constituem o capital, o valor da força de trabalho. Porém, produzir o
alimento necessário para a humanidade na metade do tempo antes necessário, apresenta
a possibilidade de liberar o homem do tempo ocupado com o trabalho em 50 %, sem
falar na possibilidade de produzir tudo o que a humanidade necessita para satisfazer
suas necessidades
49
.
Os produtos do processo de trabalho, incluindo as produções culturais nos mais
diversos campos, não podem ser acessados por todos os seres humanos a quem pertence
essa riqueza, pois a produção desses produtos sob a propriedade privada e mediante a
venda da força de trabalho, determina que eles sejam apropriados por quem pode
consumir mercadorias. Esse problema será retomado no terceiro ponto do próximo
capítulo.
Em seguida, serão apresentados alguns aspectos do desenvolvimento do lazer no
Brasil, no contexto da industrialização do país, desde inícios do século XX. Em seguida,
poderão ser aplicadas as categorias marxianas da análise da mercadoria, acima expostas,
para a investigação do lazer como mercadoria e das mediações das mercadorias nas
práticas de lazer.
49
Um exemplo disso está nas formas de gestão do trabalho que o capitalismo desenvolve para superar
suas crises. Conforme Harvey (2001, p. 175): “o desenvolvimento de novas tecnologias gerou excedentes
de força de trabalho, que tornaram o retorno de estratégias absolutas de extração de mais-valia mais
viável mesmo nos países capitalistas avançados. [...] O retorno da superexploração em Nova Iorque e Los
Angeles, do trabalho em casa e do “teletransporte”, bem como o enorme crescimento das práticas de
trabalho no setor informal por todo o mundo capitalista avançado, representa de fato uma visão bem
sombria da história supostamente progressista do capitalismo. Em condições de acumulação flexível,
parece que sistemas de trabalho alternativos podem existir lado a lado, no mesmo espaço, de uma maneira
que permita que os empreendedores capitalistas escolham à vontade entre eles”.
3. GÊNESE DO LAZER E SUA MERCANTILIZAÇÃO: CONTINUIDADES E
RUPTURAS
3.1 O lazer no Brasil em seu desenvolvimento capitalista
Entender a história do lazer em si mesma não oferece os elementos para sua
crítica e compreensão no plano necessário. Portanto, a intenção é de apreender o
movimento de constituição econômica e política da sociedade brasileira, observando as
repercussões desses momentos na dinâmica cultural e educacional. Esse caminho,
porém, não pretende mais do que aduzir elementos para a compreensão do lazer no
Brasil, desde a consolidação histórica deste país no modo de produção capitalista e,
especialmente, atentando para as décadas de 1980 e 1990, momento em que a produção
alça novas formas organizativas sobre o padrão de acumulação flexível, mediante
processo desencadeado na década de 1970 discussão esta, particularmente abordada
no próximo capítulo.
Para a análise do lazer e a crítica da produção dos clássicos desse campo, faz-se
necessário apanhar o seu movimento de constituição e modificação na especificidade
brasileira
50
. Fazer isso nos marcos de uma teorização marxista, sem reducionismo de
nenhuma espécie, impõe ao pesquisador uma análise que conjugue as continuidades
desse movimento sem ser linear. Que mostre como o Brasil se desenvolve, como nação
capitalista periférica, de forma combinada e desigual em relação ao centro do
capitalismo. Essa análise tem que ser, portanto, ao mesmo tempo sincrônica e
diacrônica. Tal perspectiva é possibilitada pela retomada dos estudos dos clássicos da
interpretação da singularidade do caso brasileiro
51
.
A constituição do Brasil moderno configurou uma particularidade histórica
evidenciada a partir de três ordens de fenômenos distintos e relacionados, conforme
Netto (2004-a, p.18-19), a saber:
50
Exigências metodológicas que não foram levadas a cabo neste trabalho pelas limitações de tempo, mas
que serão trabalhadas na próxima fase da investigação no curso de doutorado, a concluir-se em 2012.
51
Florestan Fernandes (1965; 1966; 1973; 1975; 1980); Caio Prado Junior (1963; 1966); Nelson Werneck
Sodré (1961; 1962; 1964-a;1964-b; 1966; 1970; 1987; 1988; 1990-a; 1990-b), entre outros. Esta retomada
será feita nos estudos de doutorado a se iniciarem em 2008.
97
Primeiro: “No Brasil, o desenvolvimento capitalista não se operou contra o
‘atraso’, mas mediante sua contínua reposição em patamares mais complexos,
funcionais e integrados.
Segundo: Os setores mais lúcidos das classes dominantes sempre barraram a
participação das “forças comprometidas com as classes subalternas nos processos e
centros políticos decisórios. A socialização da política, na vida brasileira, sempre foi um
processo inconcluso. [...] Por dispositivos sinuosos ou mecanismos de coerção aberta,
tais setores conseguiram que um fio condutor costurasse a constituição da história
brasileira: a exclusão da massa do povo no direcionamento da vida social”.
Terceiro: O Estado na sociedade brasileira, desde 1930, como “expressão
potenciada” da sociedade civil, consegue “atuar com sucesso como vetor de
desestruturação” lançando mão de estratégias como “incorporação desfiguradora” e
diretamente pela “repressão” “das agências da sociedade que expressam os interesses
das classes subalternas”. Dessa forma, o autor entende que se constituiu “um Estado que
historicamente serviu de eficiente instrumento contra a emersão, na sociedade civil, das
agências portadoras de vontades coletivas e projetos societários alternativos”.
Tal Estado configurou-se em um contexto próprio, em que o Brasil se
encontrava inserido nas relações do mercado mundial capitalista, baseado em estrutura
econômica escravocrata, que começa a utilizar a maquinaria emergente mesclada ao
trabalho escravo. Aqui é bom lembrar Marx (2003, p.451), que mostra os resultados da
fase procedente da cooperação de trabalho assalariado, nas manufaturas, com as
máquinas ferramentas
52
sendo substituídas pelo sistema de máquinas
53
. Ele demonstra
52
“A máquina-ferramenta é, portanto, um mecanismo que, ao lhe ser transmitido o movimento
apropriado, realiza com suas ferramentas as mesmas operações que eram antes realizadas pelo trabalhador
com ferramentas semelhantes. Provenha a força motriz do homem ou de outra máquina, a coisa não muda
em sua essência. Quando a ferramenta propriamente dita se transfere do homem para um mecanismo, a
máquina toma o lugar da simples ferramenta” (MARX, 2003, p.430).
53
“Temos, então, de distinguir duas coisas, a cooperação de muitas máquinas da mesma espécie e o
sistema de máquinas.
No primeiro caso, o produto por inteiro é feito por uma máquina. Ela executa as diversas
operações que eram realizadas por um artesão com sua ferramenta, por exemplo, um tecelão com seu tear,
ou que eram executadas em série por artesãos com diferentes ferramentas, independentes uns dos outros
ou como membros de uma manufatura” (Idem, Ibidem, p.434). Enquanto, no segundo caso:
“Um verdadeiro sistema de máquinas só toma lugar das máquinas independentes quando o
objeto de trabalho percorre diversos processos parciais conexos, levados a cabo por um conjunto de
máquinas-ferramenta de diferentes espécies, mas que se complementam reciprocamente. Reaparece então
a cooperação peculiar à manufatura baseada na divisão do trabalho, mas agora sob a forma de
combinação de máquinas-ferramenta parciais, complementares” (Idem, Ibidem, p.435-6). O último limite
derrubado pela indústria moderna é a construção de máquinas por outras máquinas, a partir da qual ela
pode alcançar a “sua base técnica adequada” para sustentar-se sobre “seus próprios pés”.
98
que com a utilização da maquinaria, a força muscular se tornou “supérflua”, de modo
que a força de trabalho de mulheres e crianças passou a ser requisitada.
Assim, de poderoso meio de substituir trabalho e trabalhadores, a
maquinaria transformou-se imediatamente em meio de aumentar o
número de assalariados, colocando todos os membros da família do
trabalhador, sem distinção de sexo e de idade, sob o domínio direto do
capital. O trabalhado obrigatório, para o capital, tomou o lugar dos
folguedos infantis e do trabalho livre realizado, em casa, para a
própria família, dentro dos limites estabelecidos pelos costumes
(MARX, 2003, p.451).
A máquina, ao tempo que aumenta o “campo específico de exploração do capital,
o material humano” amplia, também, o “grau de exploração”, revolucionando o contrato
entre o dono dos meios de produção e do detentor da força de trabalho, uma vez que a
partir dessa fase o capital começa a comprar “incapazes ou parcialmente capazes, do
ponto de vista jurídico”. Marx cita um anúncio de jornal, apontado por um inspetor de
fábrica, em que o capitalista procura “jovens com a aparência de 13 anos, pelo menos”
(MARX, 2003, p. 452-3). Dado esse quadro, em que o tempo livre, agora de toda a
família, é comprometido pela produção e reprodução do capital, coloca-se o problema
da educação. Não podia ser outro o resultado da produção sob estas condições e com os
objetivos precípuos que a “obliteração intelectual dos adolescentes” a partir das suas
transformações em “máquinas de fabricar mais-valia”, de forma que o Parlamento
Inglês tornou obrigatória a “instrução elementar” para que fossem empregados menores
de 14 anos. Porém, as leis fabris, em relação à educação, eram confusas, não passando
de ilusões, muitas vezes, em relação à “obrigatoriedade do ensino”, frente à capacidade
dos fabricantes de burlar tais leis, conforme atesta o inspetor de fábrica Leonard Horner:
“Essa lei estabelece apenas que as crianças sejam encerradas ‘por determinado número
de horas’ [3 horas] por dia entre quatro paredes de um local chamado escola, e que o
empregador receba por isso, semanalmente, certificado subscrito por uma pessoa que
se qualifique de professor ou professora(apud MARX, 2003, p.457) [sem grifos no
original]. Alguns desses professores não sabiam sequer escrever, assinando certificados
“com uma cruz”.
Outro inspetor de fábrica, John Kincaid, verificando as condições de ensino na
Escócia, traça um quadro que pode ser facilmente reproduzido nas condições da escola
contemporânea. “Numa segunda escola, a sala tinha 15 pés de comprimento por 10 pés
de largura e continha 75 crianças que grunhiam algo ininteligível”.
99
Mas não é apenas nesses lugares miseráveis que as crianças recebem
atestados de freqüência escolar e nenhum ensino
54
; existem muitas
escolas com professores competentes, mas seus esforços se perdem
diante de perturbador amontoado de meninos de todas as idades, a
partir de 3 anos. Sua subsistência, miserável, depende totalmente do
número dos pence recebidos do maior número possível de crianças
que se consegue empilhar num quarto
55
. Além disso, o mobiliário
escolar é pobre, falta de livros e de material de ensino e uma
atmosfera viciada e fétida exerce efeito deprimente sobre as infelizes
crianças. Estive em muitas dessas escolas e nelas vi filas inteiras de
crianças que não faziam absolutamente nada, e a isto se o atestado
de freqüência escolar; e esses meninos figuram na categoria de
instruídos de nossas estatísticas oficiais (HORNER, 1857, apud
MARX, 2003, p.458).
A realidade retratada por estes inspetores de fábrica não destoa da atual. Nisso se
confirma que o capitalismo é realmente totalizante e profundamente eficiente em
transformar o que seria o local de educação da classe trabalhadora em, conforme
mostram as condições contemporâneas, imensos depósitos de gente, sem condições para
a relação ensino/aprendizagem obstinadamente buscada por um sem número de
educadores. Marx cita, ainda, outro relatório de Kincaid, de 1856, em que ele apresenta
a legislação específica das estamparias, que exige a freqüência à escola de 150 horas em
períodos de seis meses. Sob esta condição, os capitalistas mandam seus jovens
trabalhadores nos mais diferentes horários para a escola, cumprindo esta determinação,
às vezes, em 30 dias, de forma que ao retornarem à escola, a descontinuidade dos
estudos determina que eles voltem a rever tudo, pois não se recordam do que foi
estudado seis meses antes (Idem, Ibidem, p.459-60).
Mas, será justo reivindicar as análises de Marx, sobre a Europa e mais
especificamente a Inglaterra do século XIX, para compreender a particularidade do
capitalismo no Brasil? Não se estará incorrendo em uma análise eurocêntrica invalidada
para o caso brasileiro? Parece que não, conforme se demonstra a seguir.
Um quadro geral do capitalismo no final do século XIX e início do século XX, é
traçado por Tumolo (1991), justamente para discutir o capitalismo no Brasil:
54
Situação acertadamente definida por Kuenzer (2005) como “certificação vazia”, dada em um processo
de inclusão dos trabalhadores no ensino formal sem a correspondente apreensão do conhecimento.
55
Mais uma vez é notável a atualidade dessa afirmação, dada pela totalidade conferida pelo modo de
produção capitalista, ao observar-se as estratégias de desqualificação da qualidade do ensino oferecido na
educação formal. Apesar do mecanismo não ser voltado ao indivíduo diretamente, as relações mercantis
que direcionam as políticas de cunho neoliberal para a educação vêm determinando, atualmente, a
distribuição de recursos entre as escolas pelo número de alunos matriculados. Esse procedimento de
gestão nos diversos planos da União tem as mais sérias conseqüências pedagógicas.
100
Sabemos que o final do século passado e início do presente, época da II
Internacional, foi um período de intensas transformações. É o momento da
consolidação da burguesia, na medida em que consegue derrotar as duas
grandes classes que lhe são antagônicas: aquela que está às suas costas,
resquício do feudalismo, através das revoluções burguesas e das unificações
da Alemanha e Itália, e aquela que está à sua frente, o proletariado, através do
massacre à Comuna de Paris em 1871. É o período do advento do
Capitalismo financeiro e monopolista, ou seja, do Imperialismo, quando a
burguesia estende seus tentáculos por todos os cantos do mundo,
universalizando o poder do Capital (TUMOLO, 1991, p.39-40).
Mostrando a validade do início da discussão partindo da exposição anterior de
Marx, tem-se a investigação de Requixa (1977) tratando do início da industrialização no
Brasil para compreender a urbanização do país e a organização do lazer. Ele conta que a
primeira indústria instalada em São Paulo data de 1811, empregando “energia hidráulica
e braço escravo”. Porém, este Estado assumiu a liderança da industrialização em
1920. Os trabalhadores exerciam jornadas de trabalho de 10 horas ou até mais, durante
seis dias na semana (Idem, Ibidem, p.26).
O autor cita um relatório do “Departamento Estadual do Trabalho”, do Estado de
São Paulo, datado de 1912 informando sobre as condições de trabalho na indústria têxtil,
setor que inaugura a industrialização no Brasil repetindo “as condições que
prevaleceram na Europa”. Este relatório faz referência às jornadas de trabalho de 12 e
13 horas, com “condições desumanas de trabalho”, “acidentes freqüentes” e “salários
insuficientes”, levando os trabalhadores a se manifestarem em situações como a greve
de 1917, em São Paulo (REQUIXA, 1977, p.26). Assim, pode-se identificar que é a
partir da constituição do proletariado no Brasil, com o desenvolvimento industrial, que a
ocupação do tempo livre dos trabalhadores surge como problema importante na
reprodução do sistema.
Tomando como base Leôncio Martins Rodrigues (1966) Requixa assinala que
em finais do século XIX e nas duas primeiras décadas no início do século XX existiram
“Clubes, Ligas, Centros, Círculos” do proletariado, que exerciam as funções políticas,
atuando também como centros recreativos para os “trabalhadores imigrantes, que não
tinham acesso aos poucos locais e instrumentos de diversão que a sociedade punha à
disposição apenas das camadas superiores” (ANDRADE, 1966, apud REQUIXA, 1977,
p.27-8). Requixa demonstra sua posição de defesa dos interesses do empresariado ao
avaliar, simplesmente que, “Neste caso, o lazer esteve vinculado a um movimento de
doutrinação política das massas” (Idem, Ibidem, p. 28). Em seguida cita Leôncio
Martins Rodrigues, que:
101
transcreve relato de Everaldo Dias, que fala sobre a tendência dos
militantes em organizarem “Centro de Cultura, que formariam a base
para promover a difusão e o desenvolvimento de núcleos de doutrina
socialista (...) Também se realizavam festivais no centro da cidade
(...), iniciados por palestras doutrinárias e de crítica social, terminados
por um baile, que servia de chamatriz à juventude, mas mesmo assim
não deixavam de ser cantados hinos de caráter socialista, entoados por
grupos corais (...) Quando havia companheiros que tocavam algum
instrumento, improvisava-se um baile para a juventude, em que aliás
todos tomavam parte”. Tais exemplos ampliam as dimensões do lazer
e o colocam em conexão com os movimentos sociais de natureza
política, no Brasil (apud REQUIXA, 1977, p.28).
É notável a semelhança com a proposição de Gramsci, nos seus escritos
anteriores à prisão, de enfrentamento à burguesia italiana em sua organização pelo PSI
56
.
Conforme os artigos Para uma associação de cultura (p.122-125) e a carta à
Giuseppe Lombardo Radice, “Clube de Vida Moral (p. 145-146)
57
, pode-se ler:
Surgiu assim, pouco tempo, um Clube de vida moral. Com ele,
propomo-nos habituar os jovens que aderem ao movimento político e
econômico socialista à discussão desinteressada dos problemas éticos
e sociais. Queremos fazer com que se habituem à pesquisa, à leitura
feita com disciplina e método, à exposição simples e serena de suas
convicções (GRAMSCI, 2004-c, p. 146).
Discutindo o desenvolvimento do trabalho no Brasil, um intelectual orgânico da
burguesia que poderia ser chamado de “Adam Smith brasileiro” –, o jurista Arnaldo
Sussekind, dá os seguintes esclarecimentos:
O advento da máquina, como vimos, reformou o mundo
contemporâneo; criou novas riquezas; aproximou materialmente os
povos e, pelos novos inventos e aprimoramento da técnica industrial,
tornou-se indispensável à vida moderna. Entretanto, ela foi também a
causa do excesso de braços, das longas jornadas de trabalho e dos
baixos salários; possibilitou a exploração do trabalho da mulher e do
menor impúbere; deslocou os trabalhadores para ambientes sem
higiene, insalubres e perigosos, tornando-se, enfim, responsável pela
fadiga profissional e por todos os males que dela resultam
(SUSSEKIND, 1950, p.86).
Sussekind relata com fidelidade os resultados para os trabalhadores do estágio
mais avançado da produção capitalista. Porém, diferente da análise de Marx, que situa a
56
É necessário um estudo histórico que demonstre de onde surge a necessidade e os germes de
organização de tais grupos no movimento operário, para fazer análises comparadas e projetar
possibilidades e tendências para novas organizações com esse sentido na atualidade, potencializando o
enfrentamento do capital.
57
Em Gramsci (2004-c) Escritos Políticos, volume 1: 1910-1920.
102
maquinaria nas relações sociais de produção especificamente capitalista, Sussekind,
dado seu comprometimento de classe, não pode demonstrar a origem da exploração na
luta de classes como resultado das relações sociais de produção, autonomizando a
máquina e tornando imanente à ela a exploração do homem.
Observando o processo de concentração de contingentes humanos nas grandes
cidades, como produto da industrialização, “Vão, assim, tornando-se claros, no país, os
sintomas típicos de uma sociedade que deixa de ser tradicional e que vai adotando
novos padrões de conduta social, mais próprios de uma civilização urbano-industrial”
(REQUIXA, 1977, p.28). Dai a necessidade do lazer como nova forma de se ocupar o
tempo livre visando a conformar o trabalhador, encaminhando-o à recomposição
saudável e moralmente aceita de sua força de trabalho. Fernandes (1977) explica que as
ciências sociais aparecem quando, para a conformação da população de uma sociedade
que se civiliza, os costumes e as tradições já não são suficientes. Emprestando a
expressão de Mannheim
58
, citado por Fernandes (1977, p.106), poderia ser dito que
um movimento “do costume às ciências sociais”, ou, no caso aqui investigado,
parafraseando este autor, “do ócio ao lazer”. E, o papel do lazer como instrumento desse
tipo é bem compreendido ao se descobrir o sentido educacional identificado ao mesmo:
Ademais, a recreação do trabalhador desempenha ainda relevante
papel na sua educação social, ensejando a criação de hábitos culturais,
artísticos e desportivos necessários à boa formação moral, espiritual e
física do homem, concorrendo, decisivamente, pela força educativa
desses bons hábitos e costumes, para que, nas comunidades de
trabalho e nos lares operários, saiba e possa o trabalhador viver com
dignidade (SUSSEKIND, 1950, p.94-5)
59
.
Este aspecto da formação moral do trabalhador, junto às preocupações com a
saúde e a assistência social, é criticado por Marcassa (2002). Esta autora entende que o
lazer é o tempo livre institucionalizado que teve na função de formação da classe
trabalhadora, por meio de “assistência”, “recreação” e “educação”, sua participação na
formação do perfil social e da subjetividade necessárias ao capitalismo em consolidação,
desde 1888 até as primeiras décadas do século seguinte.
58
MANNHEIM, Karl. Freedom, Power and Democratic Planning. New York: Oxford University
Press, 1950.
59
Em seguida Sussekind compartilha o pensamento do Ex-ministro do Trabalho, Marcondes Filho: não
“basta, para tornar-se destacada a sua atuação [do operário], que cumpra os deveres que lhe cabem e, na
oficina, encontre rigorosos métodos de higiene e segurança. É necessário que se sinta feliz no ambiente
em que vive” (apud SUSSEKIND, 1950, p. 95).
103
Pensando no aspecto sincrônico da análise histórica do desenvolvimento do
capitalismo no Brasil, considerando os aspectos de continuidade que guarda com o
desenvolvimento antecedente no centro do capital, é interessante observar o quadro
exposto por Requixa (1977, p. 29-30) a respeito das leis trabalhistas e da atividade dos
trabalhadores na conformação da indústria no Brasil:
- Decreto 1313, de 1891, legislava sobre o trabalho de menores na capital
federal.
- Decreto 5/1/1907 criou os Sindicatos profissionais e as sociedades
cooperativas.
- Em 1923 é criada a Caixa de Aposentadorias e Pensões” pela lei “Eloy
Chaves”.
- Lei 4982, de 24/12/1925, trata das férias “sem prejuízo dos vencimentos”.
- 1943 são consolidadas as leis do trabalho com o Decreto-Lei 5.452 de 1°
de Maio de 1943, a Consolidação das Leis do Trabalho.
- As reivindicações dos trabalhadores, nesse período, têm como motivo o
cumprimento da legislação. Organizam-se a União dos Trabalhadores
Gráficos e a União dos Operários em Fábricas de Tecidos de São Paulo para
pressionarem pelo cumprimento da legislação relativa às férias.
- Em 1933 acontece “A Marcha Proletária Sobre o Catete”, puxada por
representantes sindicais, buscando o efetivo cumprimento da lei de férias e
das oito horas, entre outras.
- Lei da sindicalização de 19/3/1931 tem inspiração na lei fascista da “Carta
Del Lavoro”, sendo contestada pelo capital e pelo trabalho.
Esta análise, em relação à luta dos trabalhadores pelo cumprimento das leis, é
confirmada por Sussekind (1950, p.32), que consulta Evaristo de Morais (1905)
60
para
asseverar que “não havia quem fiscalizasse sua execução”, referindo-se à lei 1313,
“motivo por que [sic.] não era cumprida pelas empresas, que continuavam a admitir
crianças de 7 e 8 anos de idade”.
É importante ver que ainda no século XIX, mesmo que nos seus fins, os
trabalhadores no Brasil se deparam com o enfrentamento da exploração do trabalho
infantil e feminino, repondo o desenvolvimento acima exposto por Marx. Essa luta
pelas leis se pouco tempo após aquela que é considerada a primeira revolução social
brasileira, o fim do trabalho escravo em 1888. Ainda, outra característica semelhante é
encontrada no descumprimento das leis pelos donos das fábricas, que no caso brasileiro
resultou na Marcha de 1933. Cientes dos riscos que corriam, dado o caráter de
totalidade e a característica de totalização desse modo de produção, haja vista as
insurgências dos trabalhadores de 1848 e mesmo a experiência da Comuna de Paris de
1871, a burguesia não poderia ver a situação fugir-lhe ao controle de forma prejudicial
60
MORAIS, Evaristo. Apontamentos do direito operário. 1905.
104
ao seu desenvolvimento. Assim, as ciências e as técnicas de conformação do trabalhador
deveriam ser requisitadas em todas suas possibilidades.
Nesse cenário de movimento contraditório do capital, tentando livrar-se dos
impedimentos legais por várias estratégias, enfrentando a resistência da classe
trabalhadora, pode notar-se que, em 1920, “realizou-se em Hamburgo um congresso
mundial para aproveitamento das horas livres, no qual a recreação foi considerada tão
importante quanto o trabalho e a educação” (MARINHO, 1987, p.97). Desde o início
das preocupações com a ocupação do tempo livre, estas se deram considerando uma
relação existente entre o lazer e a educação. Tendo em vista tal preocupação, Marcassa
(2002, p.11-2) mostra que nas “décadas de 1920 e 1930” identificou-se “um conjunto de
iniciativas públicas relativas à recreação e à diversão da população antes não existente,
especialmente em Porto Alegre, com os Jardins de Praça ou Jardins de Recreio e, em
São Paulo, com os Parques de Jogos”.
Conforme pesquisa de Gomes (2003, p. 8-10), foram implementadas três
experiências voltadas ao lazer operário, no Brasil, entre as décadas de 1920 e 1950. Em
Porto Alegre, de 1926 a 1955, o Serviço de Recreação Pública implementou
atividades de recreação massificadas com foco nas atividades físicas e culturais,
orientadas pela teoria veiculada na Educação Física, se direcionavam aos cuidados com
a “sadia” formação física, social e moral dos gaúchos. Em São Paulo, de 1935 a 1947, a
Divisão de Educação e Recreio do Departamento de Educação e Recreação parte de
base mais ampla que em Porto Alegre, vendo a recreação como atividade-meio e se
baseando nas idéias dos intelectuais modernistas, no bojo de uma política cultural. A
concepção teórica vem da educação de inspiração escolanovista. Ambas as propostas
preocupavam-se com a correta utilização do tempo de lazer, entendido como a
ampliação do tempo livre (Idem, Ibidem). A proposta desenvolvida no Rio de Janeiro,
na época Distrito Federal, pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, no
governo de Getúlio Vargas, se preocupou com a recreação a partir da ampliação dos
momentos de folga dos trabalhadores, segundo a autora. Os estudos internacionais sobre
o lazer do operariado mostravam a importância da recreação como “meio de educação”
do trabalhador no seu tempo de lazer. O governo busca um programa de recreação para
os “trabalhadores sindicalizados e suas famílias” caracterizado pela saúde, educação e
comprometimento social. Assim, a autora entende que é em ligação com o trabalho
produtivo que se define a proposta de recreação e lazer do Serviço de Recreação
Operária (Idem, Ibidem).
105
Em 1947, Arnaldo Sussekind
61
, o então presidente do Serviço de Recreação
Operária, demonstra claramente a importância do lazer para o desenvolvimento
industrial no Brasil:
Ao Estado interessa que sua população não degenere, e para isso,
de evitar o desgaste que no organismo físico produz um regime de
trabalho sem repouso. [...] Interessa-lhe também o nível de cultura não
decresça, procurando que um sistema de descanso proporcione ao
espírito ocasião de ilustrar-se. [...] as experiências de ordem psico-
fisiológica procedidas por técnicos em assuntos de organização de
trabalho têm demonstrado que o organismo humano resiste a um
limite máximo de desgaste de energia além do qual o trabalho se
apresenta improdutivo e prejudicial ao indivíduo e à coletividade
(SUSSEKIND, 1947, p.5)
Nas análises, ainda que problemáticas, de Gomes e de Sussekind, ficam
explícitos seus entendimentos da necessidade de ocupação do tempo livre relacionado
com uma perspectiva de formação mais ampla, ou, do “novo homem”necessário aos
novos métodos de produção. No decorrer do desenvolvimento da sociedade brasileira
sob o modo de produção capitalista, as classes fundamentais se consolidam e se opõem
antagonicamente durante o processo de urbanização. Este processo traz inúmeros
problemas de ordem higiênica que atingem, principalmente, a classe trabalhadora.
Conforme Requixa, (1977, p.32):
Problemas decorrentes da falta de aparelhamento das cidades para
atender os novos contingentes humanos, imediatamente se fizeram
sentir em todos os setores: transporte, habitação, assistência, recreação
e outros serviços. Ademais, os hábitos, costumes e formas de vida,
que se exprimem através de maneiras de pensar, sentir, agir, diferindo
no homem do campo e no homem da cidade, permitiam o surgimento
de conflitos entre as novas exigências e os padrões tradicionais de
comportamento.
Sobre estes conflitos, que não são mostrados em sua historicidade pelo autor que
tem comprometimento com a forma corrente de sociedade e esmaece a luta de classes,
pode-se pedir a palavra de Gramsci em sua investigação sobre o modo de vida nos
países que alçam da velha sociedade para o capitalismo. Ele diz:
61
Arnaldo Sussekind Participou da Comissão de Consolidação das Leis do Trabalho, constituída em 1942
sob presidência do Ministro do Trabalho Alexandre Marcondes Filho, foi Ministro do Trabalho e
Previdência Social no Governo de Castelo Branco, de 1964 a 1967, Ministro do Tribunal Superior do
Trabalho e atuou de forma importante nas Reformulações da CLT de 1967 e 1974 (PEIXOTO, 2008).
Além disso, esse autor representa o Brasil nas Conferências Gerais da OIT em “1951, 1952, 1953 e 1954;
e nas 9 conferências seguintes” (Idem, Ibidem, p. 6).
106
Até agora, todas as mudanças no modo de ser e viver tiveram lugar
através da coerção brutal, ou seja, através do domínio de um grupo
social sobre todas as forças produtivas da sociedade: a seleção ou
“educação” do homem adequado aos novos tipos de civilização, isto é,
às novas formas de produção e de trabalho, ocorreu com o emprego de
inauditas brutalidades, lançando no inferno das subclasses os débeis e
os refratários, ou eliminando-os inteiramente (GRAMSCI, 2001, p.
262-3).
Frente a esta violência que, se mantida somente pela força não pode obter o
sucesso necessário, tem auto custo e baixos resultados para a produtividade, tendo que
ser internalizada pela própria classe trabalhadora, a burguesia tem que criar as
instituições, aparelhos, mecanismos e processos que definirão quais práticas de
conformação podem ser eficazes para a construção e reprodução do quadro de valores,
conduta moral e respeito hierárquico por parte dos trabalhadores ao ideário burguês. Foi
por isso que,
Sensíveis à situação que se delineava, as classes empresariais propõem
ao Governo Federal o custeio de instituições que trouxessem ativa
contribuição para o equacionamento e solução dos problemas
emergentes. O Governo federal aceita a proposição e, em 1946,
autoriza a Confederação Nacional da Indústria e a Confederação
Nacional do Comércio a criarem, respectivamente, o SESI e o SESC,
a serem mantidos, exclusivamente, através de contribuição
compulsória do empresariado industrial e comercial brasileiro
(REQUIXA, 1977, p.32).
Estas instituições se preocupam com o lazer voltado à promoção do mesmo tipo
de formação acima destacada, frisando, ainda, a “justiça social, visando melhor
relacionamento entre empregados e empregadores” (Idem, Ibidem). Pensando o Brasil e
sua inserção no capitalismo de desenvolvimento “desigual e combinado”, pode-se
analisar as experiências dos EUA e da Itália para compreender na perspectiva de
totalidade esse desenvolvimento.
A preocupação com as atividades realizadas no tempo livre, nos EUA do início
do século XX, foi demonstrada por Gramsci (2001, p. 267), nos seus estudos sobre o
americanismo e o fordismo. Ele fala sobre os industriais do “tipo Ford”, deixando “claro
que eles não se preocupam com a ‘humanidade’, com a ‘espiritualidade’ do trabalhador,
que, no nível imediato, são esmagados”. Para eles “esta ‘humanidade e espiritualidade’
só pode se realizar no mundo da produção do trabalho, na criação produtiva”. As
iniciativas “’puritanas’ têm apenas o objetivo de conservar, fora do trabalho, um certo
107
equilíbrio psicofísico, capaz de impedir o colapso fisiológico do trabalhador, coagido
pelo novo método de produção”
62
(Idem, Ibidem).
Os puritanos defendiam, nos EUA do início do século XX, o lazer associado à
saúde, assim como os programas de esportes de massa, como o Esporte Para Todos
(EPT), surgido em 1967, na Noruega, que veio ao Brasil na década de 70 do século
passado, conforme Cavalcanti (1984). O trabalhador deveria, segundo os puritanos,
gastar seu salário para "conservar, renovar e, se possível, aumentar sua eficiência
muscular-nervosa, e não destruí-la ou danificá-la", colocando a luta contra o álcool
como função do Estado (GRAMSCI, 2001, p. 267). Na Itália, na década de 1920, foi
constituído o dopolavoro, uma rede de “atividades recreativas e culturais para os
operários, de modo a mantê-los integrados ao mundo da produção” que cobria todo o
país e era organizada pelo partido fascista (PADILHA, 2000, p. 64).
No final da década de 1950 é utilizado pela primeira vez o conceito Lazer no
Brasil (MARINHO, 1987; REQUIXA, 1977; MARCASSA, 2002), no livro de Acácio
Ferreira (1959), O lazer operário, tese de 1958 que situa a importância do lazer para a
integridade das sociedades industrializadas. O autor afirma que todo o progresso
cultural da humanidade tem se realizado com base no lazer” que, se “usado por todo o
povo e num sentido construtivo, o país progride” (FERREIRA, 1959, p.27). Desde a
década de 1980, no Brasil, testemunha-se o desenvolvimento de uma produção teórica
crítica, impulsionada pela vinda do sociólogo francês Joffre Dumazedier (1973; 1975;
1979
63
) para trabalhos no SESC, na década de 1970. Marcellino (1983; 1987; 1990 e
etc.) dá continuidade a muitos elementos do pensamento desse autor, assumindo, porém,
originalidade na sua produção sobre o lazer no Brasil, preocupando-se com a análise
sociológica desse problema. Este autor é uma referencia aos pesquisadores de esquerda
do lazer no Brasil, seja nas produções que seguem suas proposições, seja nas que o
criticam parcialmente ou mesmo rompem com sua linha central de análise do lazer. O
contexto da produção material e do lazer desde finais de 1960, o que inclui os autores
acima citados, foi analisado brevemente no primeiro capítulo, onde foi discutida em
linhas gerais a reestruturação produtiva. Feitas estas considerações específicas, e
62
Uma vez que o modelo toyotista/ohnista intensifica a exploração do trabalhador em relação ao
taylorismo/fordismo – lembre-se do Karoshi do toyotismo, amorte repentina por esforço extremo -,
aumenta a importância que este tenha hábitos no seu tempo livre que garantam sua recuperação para a
jornada de trabalho seguinte.
63
DUMAZEDIER, Jofre. Lazer e cultura popular, 1973. ________ . Questionamento teórico do lazer,
1975. __________ . Sociologia empírica do lazer, 1979.
108
tomando aquelas do primeiro capítulo sobre o capitalismo e a reestruturação produtiva,
bem como, os pressupostos de Marx para a análise da mercadoria - expostos no capítulo
anterior será discutido, no ponto seguinte, as relações do lazer com a mercadoria no
contexto do capitalismo brasileiro que se inicia com a década de 1980.
3.2 Investigação do lazer como mercadoria e as conseqüências da reestruturação
produtiva
Aqui importa discutir o lazer como uma mercadoria, qual é o seu valor de uso e
seu valor. Superar a análise do lazer como mercadoria com predominância no plano da
circulação, indo para a análise do lazer como mercadoria no momento da sua produção
e da sua produção como mercadoria no processo especificamente capitalista.
Inicialmente é pertinente expor o que se entende por lazer, uma vez que a sua
compreensão é buscada a partir de vários aspectos e a ele são atribuídos vários
significados. Aqui o lazer é definido a partir do seu lugar, do seu papel nas relações
sociais, por isso, entende-se que ele é hegemonicamente o momento de
recomposição/potenciação
64
da força de trabalho despendida na atividade laboral. Sua
existência se no tempo livre, definido por oposição ao tempo ocupado do trabalho.
Analisando historicamente a forma de ser do tempo livre nas diferentes formações
sociais, observa-se que na Antiguidade e na Medievalidade o ócio era a forma de
ocupação do tempo livre. Por sua vez, o lazer é uma categoria que se constitui na
sociedade do capital, regulada pelo contrato social, onde possuidores dos meios de
produção e de subsistência se relacionam juridicamente com os possuidores da força de
trabalho como iguais, homens igualmente livres. Sendo o tempo livre definido por
oposição ao tempo ocupado, do trabalho, dois encaminhamentos são possíveis: primeiro,
o tempo livre do capitalista, que não é trabalhador, é ocupado com outra categoria que
64
Entende-se como recomposição/potenciação, e não apenas como recomposição, devido a ligação
indissolúvel entre lazer e educação, entre descanso/fruição da produção cultural da humanidade e
generalização do conhecimento, atitudes e valores produzidos. Ao mesmo tempo em que a força de
trabalho é recomposta, pelo descanso, ela é potenciada, pelo aspecto de formação que a fruição da cultura
apresenta. Remete-se aqui à indicação de Marx da força de trabalho de maior peso social, que tem mais
tempo socialmente necessário utilizado na sua formação, para fazer o paralelo com um lazer mais
complexo se comparado ao lazer médio, um lazer com maior tempo socialmente necessário para a sua
elaboração.
109
não o lazer, que pode ser o ócio, por exemplo; segundo, que o tempo livre do capitalista
e o lazer que ele frui nesse tempo é determinado socialmente, mediante o mais-trabalho
tomado do trabalhador.
Essas reflexões partem do entendimento de que o conteúdo do lazer e do ócio
não difere. A música, o teatro, os esportes, a ginástica, as lutas, as festas, as viagens e
etc. compõem um e outro, porém, o que os distingue são suas funções nas relações
sociais.
Na sociedade mediada pelas mercadorias, onde se gera o lazer, a alienação do
trabalhador, dos produtos e dos meios da sua atividade chega ao ponto que somente
como trabalhador ele [pode] se manter como sujeito físico e apenas como sujeito físico
ele é trabalhador” (MARX, 2004, p. 82). Pensando na função do lazer, restauração de
força de trabalho no tempo livre, vê-se a sua determinação fundamental pela forma de
produção social da vida nesse fato, do trabalhador ter que vender sua força de trabalho
para se reproduzir como homem, e ter que existir como homem para vender sua força de
trabalho. Na relação imediata do trabalhador com sua produção o resultado é que: “O
trabalho produz maravilha para os ricos, mas produz privação para o trabalhador.
Produz palácios, mas cavernas para o trabalhador. Produz beleza, mas deformação para
o trabalhador”
65
(Idem, Ibidem). Dada tal determinação do trabalhador pelo trabalho do
tipo capitalista, retoma-se a questão inicial posta em relação ao lazer: o trabalho é a
categoria fundante do lazer, uma vez que é a categoria fundante da sociabilidade
humana. Ao definir-se o lazer pelo trabalho, após ter visto na exposição de Marx que o
processo de trabalho é subsumido pelo processo de valorização, no capitalismo, é
impossível compreender o lazer - se ele é determinado pelo trabalho - sem compreender
o objetivo e o resultado do trabalho na sociedade do capital, a mercadoria e a
valorização do valor.
Em tal sociedade, assim como a educação existe em condições
66
diferentes para
o proletariado e para os capitalistas, também o lazer existe em condições muito
diferentes para estas duas classes, determinado centralmente pelo fator econômico. “É
65
“Notou que a sua marmita, Era o prato do patrão, Que a sua cerveja preta, Era o uísque do patrão, Que
o seu macacão de zuarte, Era o terno do patrão, Que o casebre onde morava, Era a mansão do patrão, Que
seus dois pés andarilhos, Eram as rodas do patrão, Que a dureza do seu dia, Era a noite do patrão, Que a
sua imensa fadiga, Era amiga do patrão” (MORAES, Vinícius de. Operário em construção. s/d.)
66
Ao falar em condições não está se tratando apenas da escola que será freqüentada, mas de todo o
conjunto de determinações como estrutura econômica, tempo, ambiente cultural, familiar e etc. que o
trabalhador terá, em níveis e qualidades diferentes daquelas que o detentor dos meios de produção ou
mesmo os membros de alguns estratos de classe gozam.
110
preciso levar em consideração a heterogeneidade do nível de participação dos
indivíduos nas atividades de lazer, advinda, principalmente da diferença de classes”
(PADILHA, 2000, p.61). E essa dualidade na existência do lazer, bem como da
educação, para ser entendida, depende da compreensão da mercadoria como força
central de mediação entre os indivíduos, bem como, do poder de determinação dessa
forma social, interna e externamente contraditória, na qualidade dos bens culturais
consumidos, em média, pelas classes fundamentais.
Se ao lazer for dada a tônica positiva em sua possibilidade de humanização,
conforme o fazem muitos autores, são exemplos do anti-lazer o consumo da informação
e do entretenimento via meios de comunicação de massa – consumo de fantasias
fetichizadas, de diversas formas de espetáculos alienados e alienantes , consumo de
mercadorias em shoppings, consumo de turismo em empresas deste setor com seus
pacotes de viagem padrões e etc., que negam a "recriação" e a "criação" (WAICHMAN,
1997). Ao mesmo tempo que o trabalhador recompõe a sua força de trabalho, compra
mercadorias, colabora para garantir o movimento do capital. Nesse sentido, procurando
analisar o lazer a partir das leis da produção e reprodução do capital, será importante
pensar se é possível, analogamente à mercadoria, falar em valor de uso, como
recomposição da força de trabalho (funcionalismo), e valor de troca, como potenciação
(utilitarismo) da força de trabalho, do lazer. A partir da consideração do lazer como
mercadoria, esta questão deve ser desenvolvida.
Marcellino entende o lazer como a cultura vivenciada no tempo onde se pode
optar pela atividade, com acento no caráter desinteressado dessa atividade, ou seja, onde
o objetivo do agente dessa atividade é somente a “satisfação provocada pela situação”
(MARCELLINO, 1996, p. 3). Desinteressado para quem? Para quem media a atividade
professor de educação física, recreólogo, animador sócio cultural, empresário, etc ,
não é, pois este sujeito tem seus objetivos, que vão da imediata reprodução da sua vida
pela venda da sua força de trabalho, obtenção de lucro vendendo o acesso à prática, no
caso do dono de uma empresa de recreação ou eventos, até a educação do outro que está
vivenciando a prática. A indicação de Taffarel (2005) é ilustrativa do caráter interessado
que existe no lazer:
O lazer é um dos fenômenos socioculturais contemporâneos de alta
relevância para a classe trabalhadora e está situado dentro da divisão
internacional do trabalho. Neste momento histórico sofre, também, o
processo de degeneração, decomposição e destruição dos impactos do
111
projeto de mundialização do capital ao qual corresponde um projeto
de mundialização da educação de perfil neoliberal
67
. Isso é visível
quando observamos o empresariamento do lazer internacionalmente
no sistema de franquias, a mercadorização do lazer nas inúmeras
ofertas do mercado, vista nos empórios e centros turísticos, a
espetacularização do lazer vista na mídia e nos fantasiosos espetáculos,
na esportivização vista nas inúmeras competições oferecidas como
opção de lazer (TAFFAREL, 2005, p.5).
O que define o lazer é o caráter social da ação, o papel que a atividade ocupa na
organização dessa sociedade. Por exemplo, o esporte
68
. Se a pessoa envolvida com ele é
um atleta profissional, um técnico, um jornalista esportivo, um médico do esporte, o
esporte é, para eles, um trabalho. Sua função na organização social é produzir o lazer
para os outros. Está vendendo uma mercadoria (com valor de uso: a catarse, o descanso,
a apreciação estética; e valor: o tempo socialmente necessário para produzir um atleta
profissional, um time profissional, a estrutura material e física que possibilita o esporte),
configurando um trabalho produtivo desde que se configurem as relações de exploração
da força de trabalho e produção de mais-valia nesse processo.
Por outro lado, se o indivíduo que com o esporte se envolve não tem neste o
local onde vende sua força de trabalho para obter seus meios de subsistência, este
indivíduo tem o esporte como uma alternativa de lazer.
No caso do trabalhador em esporte, para definir se este produz ou não uma
mercadoria, tem que se considerar se ele vende sua força de trabalho produzindo capital
67
Frigotto (1985), mostrando as mediações entre a escola e a produção capitalista, destaca como uma das
mediações a criação de uma indústria do ensino, particularmente a privada, que representa a utilização
produtiva da riqueza social produzida em outras esferas produtivas.
68
Entende-se o esporte segundo a formulação do Coletivo de Autores (1992, p.70): “prática social que
institucionaliza temas lúdicos da cultura corporal, [que] se projeta numa dimensão complexa de fenômeno
que envolve digos, sentidos e significados da sociedade que o cria e o pratica”; conforme este Coletivo
de Autores, o esporte é determinado pela gica capitalista e não pode ser separada das suas condições
determinantes. Também é interessante notar que o esporte tem início na Inglaterra, no século XIX,
configurando-se como uma das correntes pedagógicas que influenciam a organização da educação física
escolar no Brasil. Contemporâneo do Método Ginástico Francês (precursor na educação física escolar
brasileira), fortemente ligado ao exército, e ao Método Ginástico Alemão, peculiarmente preocupado com
o aspecto educacional. Tubino (2001, p.133) Cita a “Carta Internacional de Educação Física e Esportes”,
documento da UNESCO de 1978/9, que defende o esporte como “direito de todos”. A partir dessa
compreensão do esporte o autor indica três formas de sua manifestação: “esporte-performance”, ligado ao
rendimento e a institucionalidade; “esporte participação”, ligado ao bem-estar, educação permanente e
saúde; “esporte-educação”, voltado à formação, cidadania e lazer. Além de reconhecer sua ligação com o
lazer, o autor aponta que o esporte de rendimento assumiu “uma perspectiva de negócio” e indica, entre
suas 8 projeções para o esporte no século XXI, duas especialmente importantes: 1ª o surgimento de
modalidades esportivas ligadas à natureza e ligadas à “aparelhos indústrias como suporte econômico”,
projeção que já aponta a exaustão dos ambientes explorados; reorganização internacional devido a
expansão de modalidades e aos interesses econômicos; “influência decisiva da mídia” em busca do
espetáculo e de “retorno financeiro”, promovendo esportes de massa, enaltecendo esportes perigosos e de
forte mobilização econômica (Idem, p. 133-7).
112
ou apenas reproduzindo as condições para a produção do capital
69
. O primeiro caso se
com os envolvidos com o esporte profissional ou esporte amador em instituições
privadas. O segundo caso, com os envolvidos com o esporte amador em escolas ou
instituições mantidas pelo Estado ou por instituições sem fins lucrativos, onde o
aprendizado e a prática do esporte não são comprados, mas acessados pelos
trabalhadores como ‘condição básica de existência’.
Do ponto de vista de quem pratica a atividade, por mais que este não esteja em
um momento de obrigação, a satisfação da atividade é condição indispensável a sua
“qualidade de vida”, sem a qual ele não pode reproduzir e vender sua força de trabalho.
Logo, o caráter desinteressado não é possível de ser evidenciado como aspecto
definidor, senão, como entendimento distorcido da relação do lazer na estrutura atual.
Conforme Antunes (2005) lembra de forma muito precisa, se a luta pelo tempo livre é
dissociada da luta pela superação das relações produtivas próprias do capitalismo, as
ações se limitam ao possível dentro da ordem e buscam avanços por meio do consenso.
Frente a isso, será visto como alguns pensadores contemporâneos discutem a
relação lazer/mercadoria e as vias de análise para essa relação, com suas conseqüências
para a compreensão do lazer. Pellegrin (2006, p.121) diz que na modernidade o corpo”
assume dois ideais. Primeiro, de “corpo produtore, segundo, de “corpo consumidor”:
“O símbolo da modernidade é o corpo que consome e as práticas corporais procuradas
pelas pessoas como forma de lazer não estão acima desses determinantes”. Essa análise
parece não considerar a indissociabilidade entre produção e consumo para a realização
da mercadoria. E, o que é mais equivocado, indica que a tônica da preocupação com o
lazer como mercadoria é o consumo, e não a produção. Pelo princípio anteriormente
exposto, da impossibilidade de separar produção e consumo como se fossem duas fases
do capitalismo, a fase em que se produziu muito e a fase em que se consome muito
(para onde iria a produção da primeira fase e de onde viriam os produtos consumidos
dessa segunda?), não pode ser feita tal divisão. Porém, considerando toda a formulação
de Marx sobre a mercadoria e sua centralidade por ser portadora do valor e condição
ineliminável da produção de mais-valia, não é possível tratar o lazer como mercadoria
69
A indústria do esporte apresentou movimentação de 24 bilhões a cada ano no Brasil entre 1996 e 2000.
Desse valor, 50% corresponde “à indústria de artigos esportivos, como roupas, calçados e equipamentos.
Outra parte advém dos serviços mais ligados ao esporte propriamente dito, como sua prática em clubes e
academias, arrecadação em estádios e outros espaços, marcas e direitos de imagem, marketing e
comunicação esportiva. O restante diz respeito ao valor gerado pelo setor através de gastos com atletas e
manutenção de infraestrutura (MASCARENHAS, 2005, p.92-3, citando KASZNAR & GRAÇA FILHO,
2002) [sem grifos no original].
113
dando centralidade ao consumo, esfera da circulação, sem perder o caminho correto da
análise do problema, o momento da produção do lazer como mercadoria, local de onde
se origina a valorização do valor ou, o D’, conforme a explicação precedente de Marx.
Padilha (2006) faz uma análise do shopping center buscando compreender a sua
relação com o consumo e o lazer. As categorias mais gerais utilizadas são capitalismo,
consumo e espaço urbano. Ela mostra a origem históricas dos centros comerciais nas
lojas de departamento de Paris, nos séculos XVIII e XIX, chegando a uma nova
definição desses centros, na sua atual configuração, shopping center híbrido” porque
congregam consumo de bens de consumo, de serviços e de lazer (Idem, Ibidem, p.150).
Sua análise do lazer como mercadoria é guiada pela demonstração de como são criados
desejos de consumo e a identificação desse ato à felicidade. Na sua dimensão
conservadora, o lazer “é um tempo” para o “consumo manipulado pela publicidade que
prioriza o lucro para os capitalistas”. À publicidade a autora reserva grande parte da
discussão para evidenciar seu caráter de ferramenta de produção de necessidades
artificiais no capitalismo. Um dos pressupostos dessa análise do “shopping center
híbrido” como “símbolo” da sociedade de consumo capitalista é a consideração de que
o interior do shopping é o “mundo de dentro”, apropriação do pensamento de Benjamin
(1991)
70
e Freitas (1999)
71
. Padilha resume sua tese acerca da relação entre shopping
center, consumo e lazer” da seguinte forma:
Os shopping centers o símbolos de uma sociedade que valoriza o
espetáculo do consumo de bens materiais e de lazer-mercadoria e que,
além disso, oferecem a uma parcela da população o direito a esse
consumo e a este lazer, enquanto exclui a maioria dessa mesma
população. Assim, estes centros comerciais configuram-se como
espaços de lazer alienado, influenciando de forma decisiva a
construção da identidade social de cada um, tanto dos que freqüentam
estes espaços como dos que não os freqüentam mas, enfeitiçados pela
publicidade e pela “cultura de consumo”, desejam fazê-lo (PADILHA,
2006, p.147).
O ponto alto da formulação da autora em relação a sua análise crítica dos centros
comerciais, que expressam o estilo de vida americano, e sua influência na determinação
das relações sociais capitalistas é mostrado em uma passagem conclusiva de seu texto.
70
BENJAMIN, Walter. Paris, capital do século XIX. In: KOTHE, F.R. (org.) Walter Benjamin.
Sociologia. São Paulo: Ática, 1991. (Coleção Grandes Cientistas Sociais).
71
FREITAS, Ricardo F. Nas alamedas do consumo: os shopping centers como solução de lazer nas
cidades globalizadas, contato. In: Revista Brasileira de Comunicação, Arte e Educação. Brasília, ano
1, n.2, jan.-mar, 1999.
114
Esta instituição que mascara as contradições da vida social e
da vida psíquica, assim como todos os produtos da “indústria cultural”,
leva a crer que a vida desumana pode e deve ser tolerada. Isso porque
faz um serviço de depuração e assepsia, mantendo apenas o “lado
positivo” do mundo. [...] O shopping center alimenta a ilusão de que
nossas insatisfações psíquicas podem ser resolvidas por aquisições
materiais e por divertimentos reificados (PADILHA, 2006, p. 154-5).
Mostrar esse caráter de instrumento de reprodução dos centros comerciais,
indicando sua característica, é a maior contribuição do texto que perseguiu o objetivo de
mostrar a relação deste local com o consumo e o lazer, refletindo sobre a “formação das
necessidades e dos mecanismos da publicidade como sustentação de uma ‘cultura de
consumo’” (Idem, Ibidem, p.137). O texto é denso, discutindo a relação
produção/consumo a partir de Marx, nos Grundrisse, o problema da produção destrutiva
e da obsolescência planejada, em Mészáros (1989)
72
e a questão da alienação e do
fetichismo da mercadoria. Todavia, em relação ao problema do lazer como mercadoria,
a autora sublinha o caráter de mercadoria fetichizada e reificante, de mercadoria que
representa a privatização do público, e, demonstra quais são as mercadorias lazer
presentes nos shoppings, a saber: “as salas de cinema, os jogos eletrônicos, a praça de
alimentação, os ocasionais e padronizados eventos artísticos, os brinquedos, dentre
outros” (Idem, Ibidem, p.148). E, de forma geral, ela afirma o “lazer-mercadoria”
estando no “consumo de bens materiais e simbólicos, como os produtos da indústria
cultural, pacotes de viagem, brinquedos em parques de diversão” (p.130) [sem grifos no
original]. Todavia, não demonstra como é produzida a mercadoria lazer. A sua análise
se preocupa fundamentalmente com o consumo, suas causas e seus efeitos na
sociabilidade e no projeto de emancipação.
O primeiro e grave problema na sua análise, que significa um entrave para a
correta compreensão do lazer como mercadoria, é seu pressuposto do shopping center
como um “mundo de dentro” e o restante da cidade como um “mundo de fora”. Isso não
explica nada do capitalismo para além da aparência. É tão abstrato quanto “o corpo”. O
ambiente para o consumo é diferenciado e isto mesmo constitui um processo de agregar
valor às mercadorias. Porém, a forma como a coisa satisfaz a necessidade, e mesmo o
local, se no shopping center ou na rua de comércio popular, não altera a relação
capitalista fundamental, a valorização do valor, o que não foi mostrado a partir do foco
estabelecido.
72
MÉSZÁROS, István. Produção destrutiva e Estado capitalista. São Paulo: Cadernos Ensaio, 1989.
(Série Pequeno Formato).
115
Outra questão basilar da discussão de Padilha refere-se a um aspecto indicado no
início desse texto. Ela toma a visão ideal do lazer, como um espaço e tempo que era
voltado ao ser humano e foi submetido ao capital. Ela diz que a “subordinação do lazer
à lógica do capital dá-se basicamente pelas várias maneiras de mercantilização da
diversão” (p.130) e, posteriormente, após sua correta compreensão sobre a
incompatibilidade entre tempo livre e capitalismo, recorre à visão idealizada do lazer,
sustentando que em uma “abordagem marxista” o “lazer e o tempo livre” são “vistos
como algo manipulado e pervertido pela lógica do capital” (p.146-7). Apesar de se
expressar sobre “lazer e tempo livre” acertadamente como singularidades, os iguala
dizendo que são “uma coisa”. O principal não está na letra do texto, mas na concepção
histórico-social que ele demonstra. Se a perspectiva que adoto está correta, de que o
lazer é essencialmente recomposição/potenciação da força de trabalho, ele se inicia
assim por ser a forma como se toma o tempo livre na sociedade capitalista, nas suas
relações sociais, então a avaliação de que o lazer foi “pervertido” não condiz com sua
formação histórico-social.
Este ponto de partida equivocado dificilmente possibilitaria a correta análise do
lazer como mercadoria. Todavia, uma análise que assumisse uma ortodoxia marxista
colaboraria para chegar mais longe com dados levantados pela autora. Vale ressaltar que,
entre ortodoxia e dogmatismo não há relação alguma, pois:
A relação de ortodoxia com dogmatismo é a mesma relação
que existe entre totalitarismo e categoria heurística da realidade, ou
seja, nenhuma. A ortodoxia metodológica é a clareza acerca da
direção da pesquisa, sobretudo da relação constituinte no processo da
pesquisa, da relação de unidade entre pesquisador e seu objeto. o
uma relação de unidade como o objeto, mas uma relação de unidade e
unidade implica diferenciação e relação de unidade que põe sujeito
como alto implicado no objeto de pesquisa (NETTO, 2002, p.26)
.
Esta observação é complementar à crítica do mesmo autor aos teóricos de
esquerda que ele chama de marxistas penitentes, que pretendem “superar a ‘ortodoxia
metodológica’ pela via do pluralismo (NETTO, 2004-b). Gramsci (2004-a, p.152)
havia feito uma discussão acerca desse conceito, afirmando que a ortodoxia se refere a
buscar os elementos do marxismo nos seus próprios fundadores, entendendo que a
“filosofia da práxis não necessita de sustentáculos heterogêneos”. Esta lembrança da
necessidade de uma ortodoxia teórico-metodógica é pertinente, uma vez que no texto de
Padilha há uma forte apropriação de um teórico anti-marxista e contra-revolucionário da
116
escola de Frankfurt, Adorno (1996)
73
para tratar de tema nada periférico como a
cultura
74
. Mesmo que se considerasse, segundo a tradição de algo oposto ao construto
marxiano, o chamado marxismo mecanicista, a cultura como epfenômeno, a autora se
apropria de dois conceitos que interditam a investigação concreta do lazer como
mercadoria, os “bens” “simbólicos” (p.130) e o valor simbólico” (p.134). Além deste
estão o “território das marcas”, o “corpo e a alma”, a “sociedade do consumo” (p.143), a
super ideológica noção de um “indivíduo livre e radicado em sua própria consciência”
(p.150) e do shopping center como uma “unidade simbólica de reprodução da ideologia
dominante” (p.153).
Tal apropriação é sintomática. No capítulo anterior do livro encontra-se a
afirmação de que Adorno é um filósofo marxista (!) (PELLEGRIN, 2006, p. 122). O
capítulo que precedeu aquele escrito por Pellegrin, trouxe outro pesquisador marxista do
lazer que informa opor ao “lazer-mercadoria” as “contra-racionalidades” que combatem
a “razão instrumental” (MASCARENHAS, 2006, p.76).
Tomando as análises de Mészáros (2004) sobre Adorno (que não economiza
citações do próprio autor em várias de suas obras, bem como se valendo de estudiosos
desse filósofo) para que não esteve sozinho no seu empreendimento, contando com
seus colaboradores da escola de Frankfurt
75
-, no segundo capítulo de O Poder da
Ideologia, é possível identificar o caráter reacionário deste pensador que se esforçou
teoricamente para se livrar de suas ligações com o marxismo. No entanto, foi
politicamente, somando forças ao imperialismo estadunidense que Adorno foi
desgraçadamente radical. Adorno escreveu contra Lukács em jornal criado pela CIA, na
Alemanha Ocidental, o Der Monat e em outros fundados pela mesma agência, como o
Ecounter. Isso ocorreu no ano de 1958, quando foi lançado Realismo crítico hoje, de
Lukács. Neste ano Lukács encontrava-se em prisão domicilar, na Hungria, e Adorno
assumia a direção do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt. Conforme Mészáros, ele
“sentia-se livre também para condenar algumas das mais corajosas manifestações da
luta por uma transformação socialista genuína, colaborando alegremente, em nome da
73
ADORNO, Theodor W. Teoria da semicultura. Educação e Sociedade, ano XVII, n.56, dez, São
Paulo, 1996.
74
“Este conceito de ortodoxia, assim renovado, serve para precisar melhor o atributo ‘revolucionário’ que
se costuma com tanta facilidade aplicar a diversas concepções do mundo, teorias, filosofias” (GRAMSCI,
2004-a, p.152)..
75
Mészáros ressalta algumas diferenças entre os membros individuais da Escola de Frankfurt , apontando
, no entanto, o “alinhamento da ‘teoria crítica’ com a perspectiva weberiana” (p.152).
117
‘mente autônoma’, até com os inimigos profissionais do socialismo” (Idem, Ibidem,
p.181).
É impossível identificar em toda a obra de Adorno, ainda de acordo com
Mészáros, o sujeito revolucionário, nessa obra de conseqüências profundamente
imobilistas, haja vista que se negava a relacionar a produção teórica com a intervenção
política
76
. Não poderia ser diferente, sendo a “teoria crítica” de natureza elitista, com
profundo desprezo pelas massas (a quem Adorno culpa por sua própria miséria, em
confronto com o enaltecimento do seu sujeito - escolhido para afastar o sujeito
revolucionário da teoria marxista -, o “intelectual solitário e exposto”
77
), coletividades e
sociedade (todas obscurecidas pela fundamentação negativa da confusa obra de
Adorno
78
). Em Adorno o conceito de capitalismo foi substituído por “mundo moderno”
e “modernidade” e a categoria marxiana de “classes” pela de “massas” (p.168).
Mészáros explica que na caracterização da obra de arte, feita por Adorno, fica
expressa “sua avaliação categoricamente negativa e irreal de algumas relações humanas
76
O que o paralisava em sentido teórico era o desejo de alcançar o impossível; isto é, de apresentar uma
avaliação crítica das questões fundamentais da ordem socioeconômica e política capitalista, projetando
uma saída para suas contradições destrutivas, e proclamar ao mesmo tempo o caráter totalmente fútil e até
mesmo perigosamente contraproducente (em sua opinião, tendente ao fascismo) de toda negação política
prática daquela ordem.
Além disso, ano núcleo de seu empreendimento teórico se podia encontrar uma contradição
fundamental que tendia a paralisá-lo, não apenas política e ideologicamente, mas também do ponto de
vista intelectual. Pois, embora aceitasse o quadro teórico marxiano (sob a forma em que o herdou, acima
de tudo, da História e consciência de classe de Lukács, em vez de se apropriar dela a partir de um estudo
sólido de primeira mão) como um instrumento de diagnóstico para compreender as linhas gerais da era
capitalista e sua ‘reificação’, teve de rejeitá-la, em sua especificidade histórica, como o necessário quadro
estratégico da ação aplicável a suas próprias circunstâncias. Teve de rejeitá-la porque a aceitação da
perspectiva marxiana, no segundo sentido, era radicalmente incompatível com sua rejeição, “por
princípio”, tanto do envolvimento político-organizacional ativo quanto do compromisso ideológico, em
favor de uma forma genérica de ‘crítica’ ” (MÉSZÁROS, 2004, p.165-6).
77
Citação de Adorno em Dialética Negativa, transcrita de Martin Jay: “Se um golpe de sorte imerecido
tornou a composição mental de alguns incompatível com as normas prevalecentes um golpe de sorte
pelo qual freqüentemente têm de pagar em suas relações com o ambiente , cabe a esses indivíduos o
esforço moral e, por assim dizer, representativo, de dizer o que a maioria daqueles para quem falam não
podem ver ou, fazendo justiça à realidade, o se permitem ver” (MÉSZÁROS, 2004, p.168) [Sem grifos
no original].
78
Ele próprio admite em seu último trabalho, o Aesthetic Tehory (p.496, apud MÉSZÁROS, 2004, p.
177), que não consegue uma unidade entre suas formulações, adotando uma composição com “partes
paratáticas” que tentam orbitar ao redor de um “centro de gravidade”. Adorno utiliza um recurso
lingüístico próprio do gênero literário lírico. Segundo Cunha (1979), este tipo de construção, a paratática
(orações coordenadas), predomina sobre a hipotática (orações subordinadas), no gênero lírico. Note bem a
explicação da autora: “Uma vez que o período composto por subordinação requer maior elaboração
mental, as relações causais, condicionais, finais, concessivas pressupõem o raciocínio lógico e conectante.
Justamente onde comparecem tais conjunções, o clima lírico se desmancha. Na hipotáxe, a subordinação
a uma oração principal estabelece um nexo gico de dependência, em oposição à liberdade da expansão
das emoções” (CUNHA, 1979, p.6). Esta nota é importante para confirmar a análise de Mészáros, sobre o
caráter fragmentário da obra de Adorno. Este declara que o “verdadeiro conteúdo das teorias sistemáticas
só pode ser revelado pela sua desintegração” (MÉSZÁROS, 2004, p. 178).
118
fundamentais. Havia algo de profundamente errado no diagnóstico que Adorno fez do
mundo”. Prossegue com citação textual de Adorno em Aesthetic Theory: “As obras de
arte são uma acusação constante do sistema de atividades práticas e de seres humanos
práticos, que, por sua vez, são meras fachadas para o apetite selvagem da espécie
humana. Enquanto eles forem governados por este apetite, não haverá gênero humano,
apenas dominação” (citado em MÉSZÁROS, 2004, p.173). É, para Adorno, a “espécie
humana” e não uma classe particular que personifica a relação social portadora deste
“apetite”, tornando todos igualmente culpados pela situação atual. Posição que confirma
a avaliação de Mészáros sobre Adorno manter uma conveniente posição “em cima do
muro”.
Desconsiderando as “atividades práticas”, com uma ignorância “auto-imposta”
sobre os aspectos conjunturais e os estruturais da sociedade em dado tempo histórico,
Adorno faz uma apreciação sobre a sociedade do pós-guerra, castigando” a própria
sociedade por sua característica conjuntural. Adorno afirmou que “a sociedade
intencionalmente colocou o ideal de pleno emprego no lugar da abolição do trabalho
[...] a perniciosa tendência social para glorificar os meios a produção pela produção,
o pleno emprego” (MÉSZÁROS, Ibidem, p.173) [citação de Adorno em Aesthetic
Theory]. Sobre essa apreciação, Mészáros avalia que:
Assim como rejeitou as atividades práticas dos seres humanos
práticos, Adorno também denunciou a idéia de planejamento, em
termos mais mordazes. Ele o deu a menor atenção ao fato de que
um modo racionalmente planejado de produção social é o pré-
requisito absoluto para se fazer qualquer progresso no sentido da
libertação dos seres humanos da carga das formas mais desumanas de
trabalho, sem falar da completa ‘abolição do trabalho’ (p.174).
Adorno não percebe que o pleno emprego era uma fase
estritamente conjuntural na ordem socioeconômica da ‘sociedade
industrial avançada’ (que, parece, ‘curou-se’ deste ‘mal’ particular
com efeitos devastadores e duradouros). Ainda mais surpreendente é
que também permaneceu cego ao fato de o modo de produção em
questão não ter como objetivo a ‘glorificação dos meios’ (uma
grotesca mistificação) ou a produção pela produção’ (idéia mais
grotesca ainda, dada a força motriz real do sistema produtivo
estabelecido), mas o objetivo muito mais prosaico (e absolutamente
tangível do ponto de vista socioeconômico, ainda que
caracteristicamente não mencionado pela ‘teoria crítica’ de Adorno)
do lucro capitalista. Ele só mencionaria o ‘capital se pudesse ao
mesmo tempo cegar o gume da crítica necessária, diluindo seus
termos de referência no espírito da absurda teoria da ‘utilidade
marginal e de seu consumidor’, de modo a fazer o trabalho
desaparecer de cena (p.174).
119
Para concluir essa breve apreciação sobre as análises de Mészáros sobre o
caráter da “teoria crítica” de Adorno, é bom esclarecer que Adorno toma categorias da
sociologia norte-americana para substituir as categorias marxianas que caducaram na
“sociedade industrial avançada”, a “sociedade do consumo”. Adorno o enfrentou a
“difícil questão do agente social coletivo historicamente específicoe, por outro lado,
ainda substituiu “a especificidade sócio-histórica das múltiplas interdeterminações
dialéticas entre a base material e a superestrutura cultural-ideológica-política” pela
“questão da técnica(p.187). Assim, para este para quem “o mundo” se converte em
uma “prisão a céu aberto”, não sendo mais importante saber o que depende de quê, tal
a extensão em que tudo é único (ADORNO, apud MÉSZÁROS, 2004, p. 167), a
categoria central de classes é tornada em simples palavra esvaziada de conteúdo crítico,
oportunamente, que Adorno tem que afirmar - para negar o posicionamento e ação
política, motivadores de cegueira ao artista a continuidade das classes, embora sem
existência da luta entre elas. “Entretanto, uma vez negada a realidade da luta de
classes, todas as pretensões de radicalismo acabam junto com esta negação
(MÉSZÁROS, 2004, p.163).
Após esta breve situação histórico-política de Adorno, necessária haja vista a sua
apropriação para a discussão da cultura e mesmo da economia nos estudos do lazer, bem
como da educação, voltemos ao que interessa de imediato. A construção de Padilha
que se repete em Mascarenhas – de suas críticas ao lazer-mercadoria pela via do
consumo, autorizando uma tal concepção de “valor simbólico”. O valor é o trabalho
social objetivado, medido pelas unidades de tempo e expresso no valor de troca na
forma simples, desdobrada, geral e dinheiro, conforme Marx (1985). A única fonte do
valor é o trabalho humano abstraído de suas qualidades úteis, o trabalho em geral ou
abstrato. Portanto, valor simbólico, valor que vem do símbolo, que emana do símbolo,
pode ser teorizado, mas não conforme a investigação marxiana mostrada no item
anterior. Também, a existência de “bens materiais” e “bens simbólicos” encaminham a
pesquisa para um terreno onde não o trabalho, mas a cultura ou a linguagem é a
categoria central de análise. Um valor e sua expressão, o valor de troca, não podem
existir sem seu portador, o valor de uso. A publicidade produz desejos associados a
coisas, intensifica o consumo pela identificação da felicidade com o consumo, o espaço
é reorganizado para a conjunção de consumo de bens, uso de serviços e compra de lazer,
todavia, a necessidade da existência do corpo da mercadoria não é excluída. Sem o seu
corpo, as propriedades físicas do objeto, não há sua alma, seu valor. No caso do lazer, se
120
ele é mediado pela mercadoria preteritamente produzida, como um CD para jogo
eletrônico, ou se ele é atividade que será executada no shopping, os meios para produzir
essa atividade, como o próprio local onde elas acontecem, são também sua condição.
Por mais coberta de fetiche que esteja a mercadoria, por mais relações sociais, trabalho
socialmente necessário para produzi-la, e desejos encarnados que ela traga consigo e
apresente como seus próprios atributos, existe um objeto, o trabalho vivo que se
objetivou em “forma de ser”, “propriedade imóvel” (p.151), como a própria mercadoria
ou como condição de sua produção. Ou esses pressupostos são aceitos e, nesse caso, não
se aceita nenhum tipo de valor ou bem simbólico, ou a teoria do valor que deve guiar a
análise da mercadoria não é a marxiana. Mesmo no caso da produção do lazer como
mercadoria, onde a análise pode ter que seguir desvendando novas categorias, haja vista
que não há transformação da natureza pelo processo de trabalho em seus aspectos
simples, mas trata-se de matéria social, a existência do valor de uso, portador material
do valor de troca, não pode ser dispensado, bem como, não pode ser admitido um valor
vindo da subjetividade e sem objetivação.
A explicação da produção do lazer como mercadoria, no caso em que a atividade
não tem como resultado um objeto, será discutida adiante. Por ora se adianta que da
atividade não resulta um objeto, mas o dispêndio da força de trabalho do trabalhador é
materializada, não se tratando de um símbolo em si.
Outro influxo da falta de ortodoxia metodológica na investigação do lazer como
mercadoria, se a teoria assumida é o marxismo, é o entendimento dualista do ser
humano. Claro que nos referimos ao marxismo naquilo que sua teoria social tem de
central, de “visceral e medular: seu caráter unitário e totalizante/totalizador, embasado
numa ontologia do ser social” (NETTO, 2004-b, p.239). Entender o homem como um
ser indivisível é fundamental para uma compreensão social ontológica, para que não
haja equívocos nas discussões sobre o fetiche, a alienação e o valor das mercadorias,
entre as quais o lazer.
Tratar objetivação da subjetividade, materialização do espírito, valor do trabalho,
ou se faz em perspectiva dialética ou se faz equivocadamente. Como compreender o ser
social, natureza animal tornada ser genérico pelo domínio social da matéria natural, em
que o natural é corpo orgânico do social? É possível investigar a natureza humana, de
ser natural convertido em social, que tem como natureza a história, com uma lógica
formal? Lógica formal porque trata como dois entes uma unidade de diversos, ou seja, o
corpo e a alma, o físico e o espírito. No seu texto Pellegrin (2006, p.124) conseguiu
121
levar, graças à sua equivocada compreensão da tecnologia, o Spirit a Marte”, deixando
o “corpo” (“consumidor”) na terra. Padilha, por sua vez, encontrou que a publicidade
visa, para além do corpo, a “alma humana”, concordando com Barber (1996), ela afirma
que “o corpo tem limites físicos de satisfação que a alma não tem”, de forma que a
alma o espírito humano é o verdadeiro motor da ‘sociedade de consumo’ [e,
parece que para ser mais enfática], mais que o corpo” (PADILHA, 2006, p.143)
[sem grifos no original]. Para uma teorização hegeliana do valor, talvez o espírito
absoluto respondesse a esse primado da alma. Porém, o pressuposto de Marx é o
materialismo, de forma que essa formulação não pode ser enquadrada em uma análise
marxista do lazer.
Segundo esse primado, da matéria, ou a coisa é material ou ela é um não ser. O
ser é, o não ser não é, conforme Mészáros (1993). Por isso, mesmo as idéias são
materiais, assim como tudo que possa existir ‘do’ ou ‘no’ ser humano e na natureza. O
desejo é material, o espírito só se conhece se é materialmente dado a reconhecer.
Quando Gramsci (2004-b, p.18) diz que não há uma só atividade de trabalho humano da
qual se possa excluir toda reflexão, ele demonstra esse entendimento e facilita a
compreensão de que não uma atividade intelectual sem materialização. Desde o
nível biológico, o pensamento é troca de correntes elétricas positivas e negativas em um
conjunto de células específicas, ativadas por transmissores químicos e dependentes de
estruturas gordurosas para cumprirem eficientemente sua função
79
. Não é preciso
lembrar que sem digestão não metabolismo de proteínas e gorduras, além de
carboidratos; sem o estômago não existe a “infinita” e “perfeita” alma, ela morre, ou,
pode até mesmo não nascer
80
. Sem os aminoácidos (moléculas que formam as
proteínas) glutamato, o espírito não aprende, e noradrenalina, a alma não se satisfaz
com o prazer do “corpo”. Se um corpo sem alma é possível, no caso da morte ou morte
cerebral, um espírito sem corpo é um não ser. Para não caminhar para o outro lado do
79
“Como uma função do cérebro humano, o pensamento representa um processo natural, mas o
pensamento não existe fora da sociedade, fora do conhecimento humano acumulado e métodos de
pensamento desenvolvidos pela raça humana. [...] Em outras palavras, o pensamento humano como a
percepção humana tem uma natureza sócio-histórica” (LEONT’EV, 2008, p.11) [Tradução livre, capítulo
1].
80
Para não haver mal entendidos é bom lembrar Gramsci (2004-a, p. 243-4) ao discutir a afirmação de
Feuerbach: ‘O homem é aquilo que ele come’ ”. Ele alerta que essa consideração é correta entendida
mediatamente, e não imediatamente, pois se assim o fosse, como ele bem lembra, “a história teria sua
matriz determinante na cozinha e as revoluções coincidiram com as modificações radicais na alimentação
da massa”. A intenção aqui não é dizer que o pensamento é um ato puramente biológico, mas, lembrar
que sem o biologico não há pensamento e, portanto, não há espírito sem matéria.
122
pensamento formal, toma-se a psicologia sócio-histórica
81
que, por sua vez, superou a
apreensão biologicista do homem, que considerava o aprendizado fruto da maturação
biológica, mostrando que o aprendizado determina o desenvolvimento, sendo, ao
mesmo tempo, dele dependente. Lukács (s/d), desenvolvendo a concepção ontológica
do ser social de Marx, mostra que toda a potencialidade biológica do homem, se não
fosse pelo trabalho, ainda estaria em seu estágio animal, e que as determinações sociais,
a partir de certo ponto, prevalecem sobre a base natural, da qual não possibilidade de
desligar-se. Frente a tudo isso, não motivos para um pesquisador que se proponha a
uma perspectiva ontológica continuar com essa mentalidade dualista, e, por isso, formal,
do ser humano. Vale lembrar, ainda, Kosik (1963) quando afirma que quanto mais se
avança nas descobertas da natureza mais é possível entender o ser social.
Essa digressão foi necessária para chegar à discussão do trabalho de concepção e
de execução, da atividade eminentemente intelectual e da prioritariamente braçal. O
trabalho intelectual ou se materializa, e se objetiva, ou não é parte do trabalho social que
é dividido entre as classes no capitalismo. O pensamento que foi dito, anotado,
registrado, materializou-se. A linguagem é a expressão material do pensamento, é a
matéria da idéia. O projeto e o planejamento são também formas de materialização da
idéia. Essa idéia materializada tem que ser objetivada, ou não atinge seu objetivo,
considerando a produção de mercadorias ou a produção da satisfação das necessidades
humanas.
O pintor que objetivou sua subjetividade em uma tela tem um produto que, de
acordo com o quanto de trabalho socialmente necessário para produzi-la, expressa um
valor. Considerando o momento da pintura, o tempo da formação do pintor e, o tempo
que a humanidade despendeu para produzir certo número de pintores (simples) para
chegar a determinado tipo de pintor (uma força de trabalho potenciada, “complexa”),
vêem-se valores que se vão agregando ao valor do produto final, o quadro. Conforme
Marx explica, naquilo que foi exposto anteriormente, esse acúmulo de valores é
possível porque os diversos trabalhos por exemplo, em relação ao pintor: dos
professores que o ensinaram, dos motoristas, dos pilotos ou dos arrais que o
transportaram, das pessoas que organizaram os eventos que ele freqüentou, daqueles
81
A consciência humana, desta maneira, cessa de ser uma ‘qualidade intrínseca do espírito humano’
sem história ou intratabilidade para análises causais” [tradução livre]. “Human conciousness thus ceases
to be an ‘intrinsic quality of the human spiritwith no history or intractability to causal analysis. We
begin to understand it as the higest form of relection of reality that sociohistorical development creates: a
system of objectively existing agents gives birth to it and causal historical analysis makes it accessible to
us” (LEONT'EV. 2007) [sem grifos no original, excerto de Marxism and Psychological Science].
123
que lhe fizeram a comida, cuidaram de sua segurança e etc. necessários para produzir
esse artista são reduzidos a igual trabalho humano, trabalho abstrato, gelatina de
trabalho social. No caso de uma calça de grife famosa, por mais que ela seja produzida
em um fundo de quintal para, só em seguida, receber a etiqueta, há uma série de
trabalho necessário para produzir a marca, por exemplo, estilistas, pesquisadores de
campo, transportadores de materiais, dos próprios trabalhadores especializados dessa
marca, dos publicitários, jornalistas, fotógrafos, modelos, dos trabalhadores que
produziram o aparato tecnológico necessário, entre outros. No caso das empresas
capitalistas que trabalham com a mídia, seja televisiva, radiofônica, cinematográfica ou
escrita, que produzem mercadorias planejadas para não proporcionar a fruição da
produção cultural de melhor qualidade, de forma a não proporcionar o desenvolvimento
de força de trabalho para além daquilo que lhe cabe e a que ela pode ter expectativas no
processo e hierarquia produtiva, igualmente de ser considerado a série de trabalhos
sociais necessários para produzir, sejam os programas ou as publicações de péssima
qualidade.
Em todos esses exemplos, em nenhum momento se tratou da produção de
símbolos, de desejos, de ilusões, em sua pureza, sem um portador material do valor.
Mesmo nas atividades onde a mercadoria foi a mediação, como no filme assistido, no
jogo eletrônico onde se divertiu, no museu que se visitou, ou nas atividades produzidas
como mercadorias de lazer, no esporte, dança ou luta que se praticou ou assistiu, houve
a venda de força de trabalho pelo trabalhador, utilizando meios para efetivar o seu
trabalho, pertencentes a outro que não ele, na atividade presente ou no processo de
trabalho passado que se objetivou na mercadoria adquirida. Em ambos os casos, têm-se
um produto que não é simplesmente simbólico, é material, tem força de determinação
na realidade. Esse aspecto, especificamente em relação ao lazer, será melhor examinado
mais a frente. A explicação de Harvey na sua discussão sobre o capital financeiro nos
Estados Unidos da América, que ele chama de “economia com espelhos”, confirma essa
argumentação:
quando a máquina de produção de imagens de Los Angeles sofreu um
grande choque durante a greve dos Sindicato dos Escritores, as
pessoas perceberam de súbito “o quanto sua estrutura econômica se
baseia no fato de um escritor contar uma história a um produtor e que
afinal é a tecedura dessa história (em imagens) que paga o salário do
homem que dirige o caminhão que entrega comida que é consumida
no restaurante que alimenta a família que toma as decisões que
124
mantém a economia funcionando” (reportagem de Scott Meek no The
Independent, 14 de julho de 1988) (HARVEY, 2001, p.299).
O exemplo retirado por Harvey do Independent não está no plano da
transformação direta da natureza para a produção de meios de subsistência. O que ele
indica, segundo o argumento acima exposto, é que a “indústria da imagem” tem um
processo de trabalho que resulta em objetivação de mercadoria com valor de uso. Dessa
forma, em qualquer dos exemplos, o valor de todas as mercadorias, seja obra de arte,
roupa de grife, programa de televisão ou publicação escrita, veio da mesma e única
fonte, do trabalho humano; o trabalho socialmente necessário que determinou seus
respectivos valores.
Por último, falar em “sociedade do consumo” tanto é uma redundância quanto
uma imprecisão, muito funcional ao capital, assim como o grosso das formulações da
“teoria crítica” da Escola de Frankfurt. É uma redundância, pois qual sociedade não é
uma sociedade que consome, portanto, “do consumo”. Segundo, por mais que se
produza, e por mais voltado ao luxo que se apresente um ramo da produção, o grosso da
população, da classe trabalhadora e do contingente de desempregados, não consome o
mínimo necessário para uma vida digna, frente aos avanços reais das forças produtivas.
Pior ainda do que isso, não consome sequer para se reproduzir como uma força de
trabalho em condições ideais de ser explorada. Conforme se sabe, a partir dos estudos
da reorganização do capital para responder à sua crise, desde a década de 1970, as
formas de organização da produção, investindo contra as organizações sindicais e
pulverizando as conquistas do Estado de Bem Estar-social isso nos países que se
chegaram a constituir –, implementaram mais profundos níveis de exploração dos
trabalhadores, fizeram crescer assustadoramente as taxas de desemprego e pioraram as
condições de vida dos trabalhadores com o arrocho salarial.
Para se entender a gravidade da situação da classe trabalhadora, do contingente
de desempregados e sub-empregados, entre 1979 e 1986 constatou-se o aumento em
35% das famílias pobres com crianças nos Estados Unidos da América, sendo que em
cidades como Nova Iorque, Chicago, Baltimore e Nova Orleans , mais de 50% das
crianças eram de “famílias com renda abaixo da linha de pobreza” (HARVEY, 2001,
p. 296). O número de pessoas sem moradia aumentou causando confrontos que
pareciam ter origem racial ou étnica
82
e 40 milhões de pessoas ficaram sem cobertura
82
O filme American History X, traduzido como A Outra história americana, de 1998, dirigido por Tony
Kaye, ilustra essa situação.
125
médica (Idem, Ibidem). Isso se tratando da maior potência capitalista mundial. Segundo
as Nações Unidas, em “1999-2000, 2,8 bilhões de pessoas viviam com menos de 2
dólares por dia” (MÉSZÁROS, 2006-b, p.73), o que corresponderia hoje (e,
basicamente ao mesmo valor de janeiro de 2000, quando a cotação do dólar estava em
1,80 real) a menos de 3,60 reais por dia, ou seja, menos de 108,00 reais mês.
Considerando que a população mundial no ano 2000 contava com 6,07 bilhões de
pessoas, 41,79 % da população mundial vivia com menos de 108,00 reais por mês.
Dessa forma, usar um conceito tal como “sociedade do consumo” leva a um
distanciamento irrecuperável da realidade. Frente a esta breve retrospectiva, lembrando
que a situação da classe trabalhadora e do contingente de desempregados e
subempregados vem se agravando, é necessário perguntar: consumo de quem? Padilha
diz que o consumo não toca a todos da mesma forma. Se ela mesma tem a noção dessa
situação, porque insistir nesse conceito? O mesmo ocorre com Mascarenhas (2005),
porém, no caso deste, é mais incompreensível o por quê da utilização desse conceito,
considerando os dados que ele próprio apresenta, confirmando a posição aqui defendida
da inadequação de pensar o capitalismo como uma “sociedade de consumo”:
É claro que para os deserdados da economia, para aqueles que vivem
em condições de miserabilidade, com renda diária inferior a 1 dólar,
falta dinheiro inclusive para o básico que é o consumo de alimentos.
Esse contingente soma 14,6% dos brasileiros, 24,7 milhões de pessoas
que, juntas com a outra parcela de 33,94% da população que possui
rendimentos entre 1 e 2 salários mínimos – ou seja, mais 56,6 milhões
que sofrem restrições quanto ao atendimento de suas necessidades de
habitação, saúde, transporte, educação, vestuário, lazer etc. –,138 dão
forma à base da pirâmide da desigualdade social. São as vítimas da
exclusão, aqueles que anteriormente classificamos como semlazer, os
que se encontram à margem do mercado de consumo dos bens e
serviços de lazer isto é, sem condições de acesso ao mercolazer –,
quando muito, tendo suas necessidades de lazer atendidas pelas
políticas assistencialistas de cunho filantrópico (MASCARENHAS,
2005, p. 134).
Por conta dessas novas adjetivações, que buscam dar conta de mudanças
aparentes no capitalismo, e que, ao contrário de auxiliar na compreensão do movimento
incessante de valorização do valor, da contradição em processo que é o capital,
obscurecem seu entendimento, acaba-se jogando a favor dessa relação social
relativamente criticada porquanto tão pouco entendida. Antes de lançar-se a novas
denominações, conceitos que, como no caso, dão a idéia de que a sociedade está em
uma nova fase, para além da modernidade e seu “projeto vencido”, entende-se ser
126
necessário um esforço para compreender as categorias já descobertas e que seja feito
uso delas para compreender o capital e o capitalismo.
Outro exemplo de apropriação de conceitos, ou, categorias ideais, que dificultam
a compreensão da realidade, é vista na análise de Mascarenhas (2005) sobre a
mercadoria. O objeto de sua tese diz respeito especificamente ao problema do lazer
como mercadoria. Ele trabalha com a categoria “mercolazer”, que expressa a
manifestação tendencial do lazer na fase de sua subsunção real ao capital. O mercolazer
é produto da passagem do lazer da era fordista, que tinha a função social, ou valor de
uso, caracterizados pelo descanso, divertimento e o desenvolvimento, seja com o
objetivo de controle social ou de recomposição da força de trabalho, para o lazer da era
da acumulação flexível e da cultura globalizada, que assume função direta na produção
e reprodução do capital. Se na produção rígida o lazer era uma “anti-mercadoria”
(p.139) por ser um direito social e parte de um política pública com fins educativos e
conformativos dos trabalhadores, desde 1970, no centro do capital, e de 1990, no Brasil,
é observável essa nova fase do lazer que se converte em mercadoria.
Mesmo que manifestações do lazer sob a forma mercadoria possam
ser localizadas bem antes do início dos anos 1970, a afirmação das
relações mercantis como padrão dominante, dando o contorno daquilo
que estamos convencionando chamar por mercolazer, ocorre
justamente no contexto em que a acumulação flexível emerge como
um processo de reestruturação das relações econômicas, políticas e
culturais, impulsionando a decisiva universalização do capitalismo.
Nesta direção, reafirmamos que tais mutações se evidenciam em nosso
país principalmente a partir da década de 1990, momento em que o
governo se subordina mais intensamente à globalização, não só
dissolvendo as fronteiras que antes limitavam a expansão e livre
circulação do capital divertido, mais do que isso, financiando grande
parte dos empreendimentos da grande indústria do lazer
(MASCARENHAS, 2005, p.150-1) [sem grifo no original].
Além do lazer em sentido estrito como mercadoria, o mercolazer é explicado por
mais duas funções do lazer em suas relações com o mercado. Primeiro, com a produção
de valores de troca para as mercadorias, independentes de seus valores de uso,
associando o lazer, modos e estilos de vida e sensações de prazer às mercadorias, que
ele chama de valor de uso “prometido” ou valor de uso “corruptor”. Segundo, pela
criação de ambientes prazerosos para as compras, que passam a ser vivenciadas como
práticas de lazer, configurando o que ele chama de “compra divertida”.
127
Para demonstrar essas relações do lazer com a mercadoria, antes da discussão
específica, Mascarenhas demonstrou que às mudanças na economia devem corresponder
mudanças na cultura. Essa guinada do lazer como direito social para o lazer como
mercadoria é pressuposta por duas questões fundamentais que ele analisa. A
relativização do luxo, seu enaltecimento, contraposto ao período fordista, no qual era
negado, onde vigia a moral da poupança.
Em articulação com o econômico e com o político, atuando junto com
o aumento da exploração do trabalho, com a redução da utilidade das
mercadorias e com a desintegração dos direitos sociais, formando uma
totalidade relacional, no plano da cultura, corrobora ainda como
determinante fundamental na mercantilização do lazer, a relativização
do luxo e da necessidade, dinâmica que se delineia pelo apelo ao
consumo indiscriminado e permanente redefinição dos chamados
estilos de vida. Trata-se de uma mudança qualitativa no
comportamento de amplos setores da população, particularmente,
naquilo que se refere aos hábitos de consumo, expressão de uma
avaliação positiva do supérfluo. O que se evidencia, portanto, é um
processo de legitimação do luxo, aqui considerado como o consumo
de bens e serviços de segunda ordem, outrora moralmente condenado
(MASCARENHAS, 2005, p.113-4).
Esta tendência de afirmação do luxo reflete a necessidade de expansão do
consumo, segundo ele. Com isso, traços culturais são dizimados, como aquele que ele
analisa como “cultura da casa”, relacionado ao núcleo familiar de concepção burguesa,
criado no combate aos excessos e cios da classe trabalhadora, que é substituído pela
“cultura das saídas”, que se relaciona à cultura do consumo (p.129). Apropria-se da tese
de Ortiz
83
(2000) para esclarecer que a cultura das saídas é uma “expressão categorial”
referida “à convergência de hábitos, comportamentos, valores e formas tendenciais de
organização da vida em que ‘a oposição cultura erudita x cultura popular é substituída
por outra: os que saem muito x os que permanecem em casa’” (MASCARENHAS,
2005, p. 134). As seguintes considerações esclarecem um pouco mais essa proposição:
Afora a funcionalidade moral que não se encaixa muito no
perfil contemporâneo do lazer pois muitas vezes é justamente seu
conteúdo “amoral” que chama atenção –, o que prioritariamente conta
também não é mais seu caráter compensatório no sentido de recuperar
para o trabalho. Depois de sucumbir à forma mercadoria, seja como
objeto direto de compra e venda no mercado, seja como valor de uso
prometido, seja como invólucro estético de outras mercadorias ou seja
ainda como uma espécie de compra divertida, – processo que se
83
Não consta na bibliografia a referência desta obra. Obs: A versão utilizada para a pesquisa foi baixada
da biblioteca virtual do site: www.boletimef.org
128
manifesta justamente pela cultura das saídas –, além de agregar valor
a uma série de outros produtos e serviços – em setores como habitação,
alimentação, vestuário, dentre outros exemplos –, ele contribui
sobremaneira para o incremento do consumo, despertando
frequentemente novas necessidades e servindo de estímulo a
instantaneidade, ao desperdício e à superfluidade característicos da
sociedade involucral e do padrão da acumulação flexível
(MASCARENHAS, 2005, p.139-40) [sem grifos no original].
Deve-se considerar, primeiro, que se o lazer é determinado diretamente pelo
modo de organizar a produção- seja sob fordismo ou toyotismo -, não se pode afirmar a
mudança fundamental do lazer com a acumulação flexível, dado que o fordismo persiste
com muita força após a década de 1970, conforme Harvey (2001). Segundo, pela
própria reorganização dos processos produtivos, novas formas de recomposição da força
de trabalho devem ser requeridas. Por isso, mesmo que o Estado se desresponsabilize
progressivamente da oferta de lazer, sendo assumida tal oferta por empresas privadas,
ainda que sejam compradas e caracterizem o consumo/consumismo o papel definidor
das práticas de lazer, nas relações sociais, continua o mesmo, ainda que adotando novas
formas.
As observações do autor sobre a necessidade de mudanças culturais e da relação
do lazer com o consumismo e a afirmação do luxo são muito pertinentes e devem ser
estudadas mais profundamente. Todavia, a sua avaliação de que o eixo definidor do
lazer muda com uma reorganização do capital, impossibilita a compreensão do lazer
como fenômeno moderno, que nasce junto com o capitalismo, pois desde sua fase
madura o capitalismo passou por várias crises e ajustou-se de diferentes maneiras para
sobreviver a elas. Ainda que o caráter da crise que o capital vivencia nesse momento
seja distinta das crises anteriores, conforme afirma Mészáros (2006-c), o fundamento
das relações sociais capitalistas, que confere ao lazer sua essência, se mantém intacta
desde o século XIX.
Tomando os pressupostos do consumo para a análise do lazer como mercadoria,
o autor afirma que a troca é o ponto de partida para a análise do lazer como mercadoria.
Afirmando isso, em seguida trata da relação entre produção e consumo, trabalhando
com a idéia de Marx de que o consumo gera a produção, assim como a produção cria
um consumo determinado, chega à discussão da disjunção entre necessidade e produção
da riqueza, tomando Mészáros (2002) como fonte. Ele trabalha com a idéia da
autonomização crescente do valor de troca em relação ao valor de uso, processo em que
a publicidade e a moda têm papel importante. Via fetiche da mercadoria, o capital
129
efetiva essa disjunção, um desequilíbrio na relação entre produção e consumo, com este
caminhando na frente daquela, os valores de uso são superados pelas necessidades de
venda, fazendo aparecer novas contradições (MASCARENHAS, 2005, p.179-82).
Uma destas contradições consiste em agregar, à forma original do
valor de uso da mercadoria, a manifestação sensível desse, de outro ou
de tantos mais valores de uso adicionais à sua respectiva aparência.
[...] como adverte Haug (1997), a aparência estética, os valores de uso
prometidos pelas mercadorias, surgem como uma função de venda
tornada autônoma no interior do sistema de compra e venda. [...] Por
conseguinte, levando-se em conta que tal processo não se constrói de
outro modo senão pelo trabalho objetivado pelo design e pela
propaganda, a mercadoria a qual foram colados estes valores de uso
corruptores tem expandido seu respectivo valor de troca, agregando
ainda mais trabalho ao seu valor final (Idem, Ibidem, p.182).
Chamar um valor de uso de “corruptor” não é justamente atribuir uma
característica humana à uma coisa? A apreciação do autor é correta sobre a origem do
valor que a mercadoria, ‘produzida sobre orientação da venda’, carrega. Vejamos em
que ponto ele se desvia na análise.
Na nota número 196, sua apropriação de Haug (1997) o leva a constatar que o
design faz cair as barreiras entre as mercadorias, criando “complexos de mercadorias” e
a formulação das “mercadorias híbridas”, produto “do processo de inovação estética que
deposita, artificialmente, um determinado complexo de valores de uso num único corpo
de mercadoria, como o carro que serve não ao transporte convencional, mas, também,
ao transporte em situação de viagens à natureza”. Dada a importância do design e do
marketing, ele pode afirmar que “a produção da estética do mercolazer deve ser
entendida como um processo de trabalho imaterial, cujo determinado quantum
encontra-se coisificado na forma final dada às mercadorias funcionalizadas para o lazer”
(Idem, Ibidem, p. 187). Partindo de Haug (1997), afirma que o valor de uso é
substituído pelo significante, a importância sai das características físicas das
mercadorias para os pensamentos e sensações associados à mercadoria. Considerando
sua apropriação do conceito de “valor simbólico”, pode estar aqui o ponto onde o autor
se perde na análise do valor das mercadorias e da relação do lazer com as mercadorias e,
ele próprio, produzido como uma delas. Esta possibilidade é reforçada com a
apropriação feita pelo autor do conceito “trabalho imaterial”, conforme a discussão feita
anteriormente sobre o primado materialista na construção marxiana.
Após a discussão sobre o “valor de uso corruptor” da mercadoria, o autor analisa
a criação do “palco de vivência” para as compras, segunda característica do mercolazer.
130
Através da disposição das mercadorias nas lojas, de forma a proporcionar um ambiente
e um aspecto visual que agradem o cliente e lhe faça consumir, é criado um “poderoso
recurso-simulacro de entretenimento do cliente que exercita seus prazeres a fim de
amorosamente lhe proporcionar uma nova espécie de compra, a compra vivenciada
(MASCARENHAS, 2005, p. 189).
Tal expediente domina hoje quase todo o comércio, no entanto,
indiscutivelmente, foi nos shoppings que assumiu sua forma mais
desenvolvida. Ali, a compra vivenciada, tomada como atividade de
lazer, portanto, como compra divertida, exerce um enorme poder de
atração sobre o cliente. Tudo é meticulosamente preparado de modo a
fazer com que o potencial comprador não só se defronte com as
mercadorias, mas que se envolva vivencialmente com elas, deixando-
se seduzir e envolver por uma estimulante experiência (Idem, Ibidem,
p.190).
O autor conclui essa função do mercolazer assim: “Sob a forma de processos
materiais e imateriais, foi vendida e consumida, ainda que indiretamente, a própria
vivência da compra, cuja significação dada pelo público não é outra senão a de uma
vivência de lazer” (p.192). Dessa forma, o autor chega ao momento da sua análise do
mercolazer que é o principal, para os fins desta pesquisa. Mascarenhas toma como
exemplo de produção do mercolazer, enquanto a própria atividade de produção de
capital, uma empresa de esportes de aventura diversos. Explica qual o interesse do
capitalista em investir nos equipamentos necessários a tais práticas, que é a obtenção de
mais dinheiro, como capital monetário, do que investiu no início do processo. Em
seguida, afirma que o “valor de troca” dos meios de produção desses esportes é
conferido pelo “valor que corresponde à sua potencial utilidade para o desempenho de
tal prática” (p. 193-4). Aqui ele comete um equívoco, pois, o valor de qualquer
mercadoria, inclusive dos meios de produção, não é dado por seu valor de uso, mas pelo
tempo de trabalho socialmente necessário para sua produção. O valor de troca é,
conforme viu-se anteriormente, a forma de expressão do valor. Na seqüência da
explicação diz que “na proporção que tais valores de uso são consumidos e
transformados em novos valores de uso, uma fração correspondente de seu valor de
troca original é automaticamente repassada para o produto esportes de aventura”
(p.194-5). Mas o que é o esporte de aventura como uma atividade de lazer e qual é o seu
valor de uso? Isso tem que ficar claro para que se compreenda o lazer como mercadoria.
O autor defende, em sua tese central, que o mercolazer supera o antigo valor de
uso, ou, a função social do lazer da produção fordista. Ele explicou que esse valor de
131
uso estava expresso nos três ‘D’ de Dumazedier - o descanso, o divertimento e o
desenvolvimento - tendo sido subsumido pelo lazer alçado à produção direta do capital,
que ele chama de mercolazer. Porém, o mercolazer é explicado em termos do que ele
proporciona para o capital promoção do consumo via promessa de felicidade, valor de
uso corruptor, construção do palco de vivências para o consumo - funções de venda das
mercadorias -, e, agora, o próprio lazer enquanto produto da valorização. O que ele
discute, que pode ser compreendido como valor de uso, o “êxtase”, a “adrenalina” e um
“estilo de vida” denominado “divertido”, seriam os aspectos que deveriam configurar na
explicação do valor de uso do mercolazer. Mas, se assim o fizesse, ele infirmaria sua
própria tese, considerando que o êxtase e a adrenalina estão ligados à diversão e,
portanto, à recomposição da força de trabalho. Ora, mas é exatamente isso que ele faz
em seguida.
Ele diz: “No entanto, para que os valores de uso destes equipamentos sejam
consumidos e transformados em novos valores de uso, a diversão e o entretenimento
proporcionados pelo lazer, faz-se necessária a intervenção da força de trabalho dos
instrutores que organizam as atividades” (MASCARENHAS, 2005, p.195) [sem grifos
no original]. O autor considera que o lazer, na forma mercolazer, perde seu valor de uso
e função social, porque passa a integrar o rol de mercadorias, deixando de ser direito
social e tornando-se possível apenas sob a troca de valores. Todavia, para ser submetido
à forma mercadoria, seu valor de uso não pode ser extinto, e é isso que sua própria
análise acabou demonstrando no parágrafo acima e que ele descola da análise geral.
Para os fins da pesquisa que estamos desenvolvendo sobre o lazer em sua concretude
histórica, da qual a discussão do lazer como mercadoria é uma parte importante, essa
compreensão é fundamental. Considerar que o lazer tinha um valor de uso, “descanso,
diversão e desenvolvimento”, que se perdem quando ele assume a forma capitalista de
mercadoria, decorre da incompreensão, no ponto de partida, daquilo que é o lazer. Mais
uma vez se evidencia que, o lazer ser tomado como o lúdico, como direito social,
política pública, espaço-tempo de vivência e construção de novos valores, antes de ser
compreendido em sua essência, leva a apreensões e análises enviesadas no decorrer das
investigações. Daí a necessidade de compreender o que é o lazer concretamente,
permitindo que as análises cheguem àquilo que ele realmente é, à sua essência,
superando o terreno ideal onde o lazer é tomado como o que se quer que ele seja: partir
do concreto, da abstração inicial da forma aparente do lazer, para chegar ao lazer como
“síntese de muitas determinações”.
132
Em seguida o autor desenvolve uma passagem que apresenta certa confusão
entre valor e preço. “Na esteira desta discussão, mais do que saber o que está por detraz
do valor do mercolazer, por detraz de seu preço, o que equivale ao valor do tempo de
trabalho socialmente necessário à sua produção, de ficar entendido também que este
valor, que volta à forma dinheiro após a realização da troca, é injustamente partilhado”
(MASCARENHAS, 2005, p.196). Conforme Marx explicou, o preço pode se alterar:
mantendo-se constante o valor das mercadorias, pela alteração do valor do equivalente
geral que funciona como dinheiro; caindo ou subindo o valor das mercadorias por
diferenças na capacidade das forças produtivas. Se “o preço como expoente da grandeza
de valor da mercadoria é expoente de sua relação de troca com dinheiro, não se segue,
ao contrário, que o expoente de sua relação de troca com dinheiro”, ou seja, o preço
“seja necessariamente o expoente de sua grandeza de valor” (MARX, 1985, p.92).
Discutindo a diferença entre consumo produtivo e consumo individual
Mascarenhas informa da peculiaridade deste tipo de serviço, em que a produção se
realiza ao mesmo tempo que o consumo, tendo o consumidor papel ativo na
“constituição da atividade”. Ele esclarece que o trabalho não se confunde com o lazer,
uma vez que os “instrutores promovem, organizam e dão suporte à atividade mediante a
contrapartida do salário. O consumidor, por mais que ajude e participe da produção,
continua um consumidor propriamente dito”. Então, para desenvolver a discussão da
diferença entre os dois consumos, ele questiona: “Mas e se excluíssemos desta relação
os instrutores? E se o consumidor se tornasse ele próprio o sujeito de sua aventura,
organizando-a e dirigindo-se diretamente às paisagens naturais sem passar por qualquer
tipo de empresa?” (Idem, Ibidem, p.197). Neste ponto é importante colocar as seguintes
questões: O que é que o consumidor consome? Paga para obter o que? Qual o valor de
uso dessa prática? Estas questões vão auxiliar na análise que se segue.
Mascarenhas continua seu raciocínio sobre a situação da produção dos esportes
de aventura sem a mediação do instrutor e da empresa de lazer com a seguinte
explicação:
Para isso, teria, ele mesmo, além de responsabilizar-se por toda a
logística de organização e suporte à viagem – transporte, hospedagem,
licença para a realização da atividade etc. –, de ser o possuidor ou
locatário dos equipamentos necessários à atividade escolhida.
Neste caso, muda o produto do consumo. Está-se consumindo agora o
complexo de utensílios auxiliares. Antes, ao servirem como meios de
produção em processos de trabalho perdiam, tais utensílios, o caráter
de produto. Não constituíam o objeto direto do consumo.
133
Participavam daquilo que Marx (1971a, 2003) chama de consumo
produtivo. Como produtos de trabalho anterior, os equipamentos de
lazer, apresentavam-se, além de resultado, como condição de
existência do processo de trabalho que dava origem ao produto
esportes de aventura. Esta forma de consumo, consumo produtivo,
difere daquilo que o mencionado autor define como consumo
individual, concebido como antítese destrutora dos objetos da
produção, aquele que consome os produtos como meios de vida ou de
gozo do indivíduo. O que estamos, de fato, querendo distinguir é o
consumo dos utensílios auxiliares de lazer ou seja, o consumo
produtivo do consumo do lazer como uma mercadoria propriamente
dita – isto é, o consumo individual (Idem, Ibidem, p.198).
O autor realiza estas análises a partir de uma analogia com o processo simples
de trabalho, em seus “elementos simples e abstratos”. Nesse sentido, conforme Marx
expôs, ele é “condição universal de metabolismo entre o homem e a Natureza, condição
natural eterna da vida humana” e, ainda, “comum a todas as suas formas sociais”
(MARX, 1985, p.153). Todavia, o processo de trabalho analisado diz respeito à
valorização do valor, é produtivo de mais-valia, mas não à produção dos meios de
subsistência. Então se coloca a questão: é correto lançar mão de analogias com o
processo simples de trabalho para analisar este processo de valorização do valor? Será
que a questão aqui não tem que passar por analise do lazer produzido como mercadoria,
aplicado à produção do esporte de aventura sob supervisão do instrutor, no primeiro
caso, distingüindo-o do lazer mediado pela mercadoria, à produção ou à fruição do
esporte de aventura na natureza pelo praticante, no segundo caso? Como o esporte de
aventura é uma atividade de fruição da cultura e não um processo de trabalho nos seus
aspectos simples, envolvendo transformação da natureza para satisfação das
necessidades humanas; o esporte é transformação de matéria social poderia se dizer, é
um complexo fundado e não o complexo fundante -, é relação homem-homem, e como
tal, pode ser subsumida a lógica do mercado, mas não tem os mesmos elementos da
mediação homem-natureza. Por isso, as leis sociais de produção e reprodução do capital
devem ser utilizadas para a análise do primeiro caso, na própria atividade esportiva,
porém, no segundo caso, a análise deve ser mediada pela relação mercantil anterior à
expressão esportiva. No primeiro caso, os meios de produção consumidos pelo instrutor
do esporte de aventura, têm o fim de produzir a mercadoria lazer, o valor de uso
descanso, divertimento e desenvolvimento, catarse, prazer, êxtase, etc. que porta o
valor. No segundo caso, consumidos os meios de produção do esporte de aventura pelo
próprio esportista/praticante, o objetivo é produzir o esporte de aventura como valor de
uso que está no plano da fruição cultural, que é distinto do plano da transformação da
134
matéria natural para a produção de meios de subsistência e meios de produção
84
. Os
elementos para a continuidade e aprofundamento dessas questões ainda não estão
presentes. Estes elementos demandam estudos e investigação que extrapolam as
possibilidades do presente momento, mas que deverão ser desenvolvidas posteriormente.
Outra imprecisão na formulação do autor, tratando do consumo produtivo dos
meios de produção, encontra-se na passagem: “Como produtos de trabalho anterior, os
equipamentos de lazer, apresentavam-se, além de resultado, como condição de
existência do processo de trabalho que dava origem ao produto esportes de aventura”.
Dizer que os equipamentos, os meios de produção do lazer como mercadoria, são
“resultado” do processo de produção do lazer como mercadoria, é o mesmo que dizer
que o linho é produto do processo de trabalho de alfaiataria. Os equipamentos os
84
Este pensamento tem base na formulação de Lukács (1979) sobre a constituição do ser social, mais
precisamente sobre sua avaliação da “prioridade ontológica” na teoria de Marx. Lukács explica que tomar
o momento econômico do qual o trabalho é a categoria chave - como o momento predominante do
processo de constituição do ser social, não estabelece grau de hierarquia valorativa entre o complexo
fundante os complexos fundados. Ele explica que no ser social uma insuperável base natural da qual
emergem as categorias sociais, que se tornam dominantes com o desenvolvimento histórico. “No
momento em que Marx faz da produção e da reprodução da vida humana o problema central, surge
tanto no próprio homem como em todos os seus objetos, relações, vínculos, etc. a dupla determinação
de uma insuperável base natural e de uma ininterrupta transformação social dessa base. Como sempre
ocorre em Marx, também nesse caso o trabalho é a categoria central, na qual todas as outras
determinações se apresentam in nuce(LÚKÁCS, 1979, p. 15-6). E, especificamente em relação a este
possível caminho de trabalhar com as relações de transformação de matéria social, tomo como base a
formulação marxiana sobre o “afastamento das barreiras naturais”, desenvolvida por Lukács (1979, p.17)
da seguinte forma: “Em primeiro lugar: o ser social – em seu conjunto e em cada um dos seus processos
singulares pressupõe o ser da natureza inorgânica e orgânica. Não se pode considerar o ser social como
independente do ser da natureza, com antíteses que se excluem, o que é feito por grande parte da filosofia
burguesa quando se refere aos chamados ‘domínios do espírito’. [...] As formas de objetividade do ser
social se desenvolvem, à medida que surge e se explica a práxis social, a partir do ser natural, tornando-se
cada vez mais claramente sociais. Esse desenvolvimento, porém , é um processo dialético, que começa
com um salto, com o r teleológico do trabalho, não podendo ter nenhuma analogia na natureza” [sem
grifos no original]. Dessa forma, é a natureza orgânica e inorgânica e suas leis que constituem “a base
ineliminável das categorias sociais”. “Mesmo quando o objeto da natureza parece permanecer
imediatamente natural, a sua função de valor-de-uso é já algo qualitativamente novo em relação à
natureza; e, com o pôr socialmente objetivo do valor-de-uso, surge no curso do desenvolvimento social o
valor-de-troca, no qual, se considerado isoladamente, desaparece toda objetividade natural: como diz
Marx, o que ele possui é uma ‘objetividade espectral’.[...] Por outro lado, porém, cada uma dessas
objetividades puramente sociais pressupõe e não importa se com mediações mais ou menos
aproximadas – objetividades naturais socialmente transformadas (não valor-de-troca sem valor-de-uso,
etc.). Assim, existem, certamente, categoriais sociais puras, ou, melhor, apenas o conjunto delas constitui
a especificidade do ser social; todavia, esse ser não apenas se desenvolve no processo concreto-material
de sua gênese a partir do ser da natureza, mas também se reproduz constantemente nesse quadro e não
pode jamais se separar de modo completo precisamente ontológico dessa base. É preciso sublinhar,
em particular, a expressão “jamais de modo completo”, já que a orientação de fundo no aperfeiçoamento
do ser social consiste precisamente em substituir determinações naturais puras por formas ontológicas
mistas, pertencentes à naturalidade e à socialidade (basta pensar simplesmente nos animais domésticos),
explicitando ulteriormente - a partir dessa base as determinações puramente sociais.. A tendência
principal do processo que assim tem lugar é o constante crescimento, quantitativo e qualitativo, das
componentes pura ou predominantemente sociais, aquilo que Marx costumava chamar de ‘recuo dos
limites naturais’” (LUKÁCS, 1979, p.19-20).
135
meios de produção são sim condição para a existência do citado processo de trabalho.
A observação procederia, desde que se completasse com a observação: os equipamentos
são resultado do processo de produção do esporte de aventura, ‘considerando-se a
produção determinada pelo consumo’, mas não da forma imediata como foi expressa.
Como ele mesmo diz no final dessa consideração, a intenção é diferenciar o consumo
produtivo do consumo improdutivo, e não situar a relação de reciprocidade entre
produção e consumo, que foi discutida anteriormente no texto do autor. Além disso, ele
está trabalhando com os conceitos de “meios de produção” e “equipamentos” para a
prática dos esportes e, quando começa a discutir o consumo produtivo e individual,
passa a utilizar o conceito “utensílios auxiliares”. Considerando a discussão que Marx
(1985, p.152 e p.167) realiza sobre o processo simples de trabalho, onde ele diferencia
“matéria-prima” de “matéria auxiliar”, que não tem a ver com o tipo de consumo, se
produtivo ou individual, tal mudança na forma de tratar os meios de produção pode
gerar mais equívocos do que colaborar para a compreensão.
Para adicionar mais um elemento a este problema, considerando a historicidade
da máquina, meio de produção mais desenvolvido, conforme Vieira Pinto (2005),
poderia ser considerado pouco adequado lançar mão do conceito “utensílio”, uma vez
que a máquina tem origem na ferramenta que, por sua vez, se origina no utensílio. O
utensílio “pode ser definido como qualquer corpo natural encontrado ao alcance da mão,
servindo ao animal em via de humanização para alcançar um fim capaz de
vislumbrar”. Também, nota-se que o utensílio “distingue-se por ser usado
ocasionalmente, enquanto a ferramenta é fabricada expressamente, a princípio para
vantagem individual. Mas a investigação dela só pode prosseguir se a ferramenta for
entregue à sociedade com caráter geral e coletivo para a criação de bens” (VIEIRA
PINTO, 2005, p.108). Feitas as considerações pelas quais se considera inadequado
passar de “meios de produção” para “utensílios auxiliares”, retoma-se o raciocínio de
Mascarenhas. Ele diz que:
O instrutor, com as vestes de um trabalhador, assume-se, assim, um
consumidor produtivo. Por sua vez, o cliente que compra o produto
mercolazer, como consumidor individual, ao mesmo tempo em que o
consome, em companhia do instrutor, participa ativamente de sua
produção. Ele também está envolvido no consumo produtivo dos
equipamentos de lazer (MASCARENHAS, 2005, p.198-9).
Será que aqui não está havendo uma confusão, por transposição direta da
situação do processo de produção onde se modifica material natural para produzir um
136
objeto que satisfaz necessidades humanas, com a situação de um processo de produção
de uma atividade cultural, de produto social, para a satisfação da necessidade humana?
Misturando o complexo fundante com o complexo fundado? Consumidor não pode ser,
na mesma operação, produtor e consumidor. Na circulação ele participa das duas
operações antitéticas e indissolúveis, compra e venda. venda, de um lado, se
compra, do outro. se compra e vende o que foi produzido. Com as mercadorias em
que produção e consumo não se separam, acontecem ao mesmo tempo, como no caso
dos serviços, como isso fica?
O esporte de aventura, como uma aula, é consumido no momento em que está
sendo produzido. Todavia, quem vende sua força de trabalho, o instrutor, ou o professor,
utiliza o meio de produção cachoeira, bote, corda; sala, quadro, retroprojetor para
produzir a atividade esportiva, ou o ensino. Eles usam o meio de produção
produtivamente. No caso dos praticantes dos esportes, dos alunos, eles estão
consumindo a atividade esportiva organizada, o ensino ministrado. Não estão
organizando o esporte, estão praticando-o; não estão produzindo a generalização do
conhecimento, estão adquirindo-o. O lugar de cada um na relação social não permite
afirmar que ambos produzem o que se vende, de um lado, e se compra, do outro. Sem o
atleta ou o aluno não há o esporte ou a aula. Ambos consomem, é verdade, os meios de
produção em questão, mas apenas um lado produz o que está sendo consumido.
Seguindo a discussão, o caminho que Mascarenhas propõe, da prática do esporte
de aventura sem o instrutor e sem a empresa de esportes de aventura, com os meios de
produção sendo posse do próprio esportista, a situação muda. Nesse caso, o esporte de
aventura não é produzido como uma mercadoria, mas como um valor de uso. O
praticante organiza a prática previamente, adquire o que é necessário ao esporte, projeta
dia, horário, local e condições para, no momento estabelecido, consumir a atividade, o
esporte de aventura. Nesse caso, não houve prestação de serviço, ou seja, não houve o
trabalho produtivo de mais-valia, de forma que a atividade esportiva mantém-se no seu
campo de análise essencial, de fruição da cultura socialmente produzida. A análise dessa
prática não se dará metafisicamente por isso, pois a prática de lazer é mediada pela
mercadoria, pelos meios necessários à prática do esporte que o esportista teve que
adquirir no mercado antes de poder desenvolver a atividade.
Ainda, um outro caso diferenciado, será na situação do instrutor ou quem
organiza o esporte de aventura ser o dono dos meios de produção. Nesse caso, é vendida
a mercadoria lazer, porém, não é explorada a mais-valia do professor/instrutor, ou seja,
137
do produtor, pois ninguém comprou sua força de trabalho. O praticante do esporte de
aventura não compra a força de trabalho do instrutor, compra a prática do esporte de
aventura com seus valores de uso. Nesse caso, o lazer como mercadoria é unidade de
“processo de produção” com “processo de formação de valor”, conforme Marx (1985).
Ou seja, é produção de mercadoria, de lazer como mercadoria, fora da relação
capitalista de produção de mercadorias.
Continuando a explicação do consumo produtivo e improdutivo pelo instrutor e
pelo consumidor, Mascarenhas dá o seguinte exemplo:
A título de ilustração, o consumo de um bote que produz a experiência
do raffitng ou seja, consumo produtivo é concomitante ao
consumo do próprio raffiting isto é, consumo individual. Contudo, a
motivação da compra não foi o bote, aliás, o cliente pouco se importa
com as especificações do bote, muito menos com seu valor, pois o que
conta mesmo, é o produto alvo da troca, a prática do raffiting. O
chamariz para a venda não foi o valor de uso do bote, mas as
qualidades deste tipo particular de mercolazer. Na posição de
consumidor individual, como cliente, o que essencialmente se
consome, portanto, é o mercolazer propriamente dito
(MASCARENHAS, 2005, p. 199).
A questão aqui é: Como o cliente pode adquirir as “qualidades desse tipo
particular de mercolazer” sem o valor de uso do bote? O valor de uso do bote é produzir
a navegação ou o deslize que - considerando condições específicas - é o próprio raffiting.
Em seguida, ele afirma que o “consumidor individual” consome “essencialmente” o
“mercolazer”. Se o mercolazer é a mercadoria, que é o caso deste momento da análise
específica do autor, ele tem que ser unidade de valor de uso e valor, ou seja, tem que ter
um conteúdo material. O objeto do consumo não é o valor, mas o valor de uso. Segundo
pode-se compreender em Marx, a essência da mercadoria é o valor. Então: é o valor que
o consumidor consome, ou o valor de uso? O que é consumir “essencialmente”
mercolazer? O valor é realizado na esfera da circulação, mas ele pode realizar-se, ou
seja, efetivar a troca da mercadoria, porque tem um valor de uso, é útil para alguém.
Quem está preocupado com o valor é o capitalista, que vive em sua função. Esse
equívoco pode ser tanto por considerar o valor de uso do lazer, sob o toyotismo,
produzir diretamente capital, quanto por considerar que a ênfase na análise da
mercadoria tem que ser sobre o desejo, a necessidade de consumo produzida
artificialmente pela propaganda, pelo design, pela moda e, sob a vigência do valor
simbólico. Apesar do autor anunciar que essas produções têm valor dado pelo trabalho
humano, ele acaba por autonomizar estas vias de promoção do consumo, atribuindo a
138
elas a origem do valor. Por isso esse desvio da análise do lazer como mercadoria,
dizendo que o consumidor consome essencialmente mercolazer, que tem que ser
analisado a ‘partir da troca’. Lembrando outra passagem de Marx (1985, p.167), pode-se
confirmar que o valor, “abstraindo sua representação puramente simbólica no signo do
valor, existe apenas num valor de uso, numa coisa. [...] Portanto, se o valor de uso se
perde, perde-se também o valor”.
Mascarenhas um novo exemplo de consumo individual dos “utensílios
auxiliares de lazer”, demarcando que a sua expressão categorial, o mercolazer, não
diferencia o lazer produzido como mercadoria do lazer mediado pela mercadoria o
autor diferencia ambos os processos, mas eles compõem da mesma forma o mercolazer,
categoria que sustenta sua tese central. Nas suas palavras:
De qualquer forma, chamamos esta prática igualmente de mercolazer.
Embora se apresentando aqui como experiência de consumo, como
consumo vivenciado, não como produto de consumo, a prática do vôo-
livre, mesmo realizada “autonomamente” por um indivíduo, por mais
que não tenha ocupado a centralidade da troca, está totalmente envolta
pela forma mercolazer, assim como a TV, povoada pelo espírito da
mercadoria. Novamente na posição de consumidor individual, o que
se consome agora não é o produto mercolazer, mas os utensílios de
lazer (MASCARENHAS, 2005, p.199-200)
Assim, o autor retoma sua tese central, afirmando, sobre o lazer, que “sua
funcionalidade para o sistema é hoje cada vez mais econômica do que social”, isso se
constata nos diferentes processos: “como coisa significante, valor de uso prometido,
valor de uso corruptor, palco de vivências, compra vivenciada, compra divertida, enfim,
seja como função de venda, como forma de consumo ou seja, o consumo divertido
ou como mercadoria stricto sensu(Idem, Ibidem, p. 200). Ao retomar as funções do
lazer na valorização do capital, reafirma seu lugar nas relações sociais, que lhe
conferem o status de mercolazer, esclarecendo a compreensão de que ele é um
fenômeno mais amplo do que o lazer como mercadoria, que diz respeito a todas as
formas de envolvimento do lazer com a produção e venda de mercadorias, tanto suas
funções relacionadas com a vendabilidade de mercadorias, quanto ele próprio, o lazer
como produto mercadoria. Como conseqüência deste “processo de universalização do
valor de troca no âmbito da produção-consumo do lazer” o autor “um vazio de
sentido humano em seu conteúdo. Isso, pois a subsunção real do lazer ao capital
implicou na mudança do que antes nele era qualitativo-concreto pelo que hoje é apenas
quantitativo-abstrato, o que, em outros termos, corresponde à sua reificação” (Idem,
139
Ibidem, p.201). Entende-se que esta conclusão decorre de uma visão idealizada do lazer,
que o valor de uso continua o mesmo, o que é acentuado agora é seu caráter de
mercadoria e, o lazer, o colabora menos do que antes, por isso, para a reprodução do
capital. Feita essa retomada da tese e das conclusões, o autor vai analisar a reificação do
lazer através do êxtase-lazer, expressão maior da interferência do valor de troca sobre
o universo das práticas de lazer” (Idem, Ibidem, p.201). Esta categoria, o êxtase-lazer,
indica a mudança do foco do valor de uso do lazer do aspecto ideológico para a
valorização do imediato e da performance individual, haja vista que os valores de uso
do lazer passam a atender não mais as necessidades humanas, e sim as necessidades do
mercado, “necessidades capitalísticas”.
Ele apresenta sua crença na substituição dos 3D diversão, descanso e
desenvolvimento assinalados por Dumazedier (1999)”
85
pela promessa de utilidade
expressa pelos 4S sport, sun, sex and sea –, estes últimos, apontados por Sant’Anna
(2001)
86
como os novos balizadores para a busca do ideal de lazer” (Idem, Ibidem, p.
201-2). Em seguida comete uma confusão com o valor, atribuindo origem de valor ao
valor de troca:
Em decorrência do crescente comércio destas atividades de lazer, cuja
produção dá-se em escala cada vez mais ampliada e diversificada, à
mencionada utilidade prometida dos 4S, é sobreposta a insígnia do
valor. Isso pois, ao lado destes valores de uso deturpados, o próprio
valor de troca, como explica Goldmann (1991)
87
, vem se tornando
também uma qualidade atribuída às mercadorias, destarte,
apresentando-se à consciência dos consumidores como uma qualidade
objetiva das mercadorias, neste caso, do mercolazer. Isso acontece
porque antes mesmo que uma determinada prática de lazer
adrenalizante seja avistada pelo consumidor, que aspira, justamente,
por seus 4S corruptores, ela bate primeiro à porta do mercado. Lá,
inevitavelmente, adentra sendo comparada a outras práticas sob a
lógica do custo-benefício, tendo seu valor de troca quantitativamente
avaliado em relação às ofertas concorrentes. Assim, o preço se torna
também um atributo de qualidade para as práticas de lazer
(MASCARENHAS, 2005, p.202-3).
A análise econômica apresenta traços de crítica moral, decorrente do valor de
uso “corruptor” que o autor utiliza. Principalmente porque, entre os “3D” e os “4S”, se
ambos são valores de uso, para a análise das relações econômicas não importa quais
85
DUMAZEDIER, Joffre. Sociologia empírica do lazer. 2. ed. São Paulo: Perspectiva; SESC, 1999.
86
SANT’ANNA, Denise Bernuzzi. Corpos de passagem: ensaios sobre a subjetividade contemporânea.
São Paulo: Estação Liberdade, 2001.
87
GOLDMANN, Lucien. Dialética e cultura. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
140
necessidades o valor de uso satisfaz, se do estômago ou da fantasia. Portanto, não se
deve considerar se os valores de uso do esporte, sol, sexo e mar’ são rebaixamentos
morais e culturais em relação ao valor de uso do “descanso, divertimento e
desenvolvimento” segundo Mascarenhas o ‘esporte, sol, sexo e mar’ não estão
incluídos nos “3 D”, entendimento do qual discordo profundamente. Em seguida,
pergunta-se: de onde vem base para afirmar que o preço se transforma em qualidade?
Isso deve ser uma conseqüência da apropriação de uma categoria como “valor
simbólico”. Seguindo seu raciocínio, ele diz que “o consumidor, quando decide trocar
seu dinheiro por um pacote de aventuras, a não ser que seja um gastador desmedido e
excêntrico, não pode deixar de pensar no preço que vai pagar pelo serviço” (p. 203). O
preço é um fator determinante da escolha de uma ou outra mercadoria, porém, não é sua
qualidade enquanto valor de uso. O preço é a “forma monetária do valor” ou expressão
em moeda do valor, e este é trabalho social objetivado. Trabalho criador de valor é
medido pelo tempo, ele pode ser descoberto pela da análise do trabalho abstrato,
abstraídos de suas qualidades úteis, transformado em “simples gelatinas homogêneas de
trabalho”, depois de ter sido “reduzido a trabalho humano, sem outra qualidade”
(MARX, 1985, p.52). Mascarenhas afirma também que:
É deste modo que o par valor–prazer se apresenta à consciência como
única qualidade objetiva e possível do lazer. Quanto ao homem, seu
ser, seus desejos, seus impulsos, seus sentidos, fazem-se passivos
diante da entronização do sensacional, do radical, da aventura e da
fórmula adrenalina. Se antes as experiências de lazer estavam ligadas
ao aspecto sensível e educativo de uma atividade ou programa de lazer,
na atualidade do capitalismo avançado, seu valor de troca faz
abstração de qualquer referência à qualidade, levando em conta apenas
as diferenças de quantidade. A perda do sensível e o esvaziamento
educativo do lazer, transformando as pessoas em elementos
passivos ante uma prática social cujo objetivo maior, senão único,
é o de liberar adrenalina, recarregando a excitação, faz da
intensificação do prazer isto é, do êxtase o atributo abstrato e
quantitativo que hoje, ao lado do preço, é o que mais conta na hora da
opção e consumo de um determinado serviço (Idem, Ibidem, p.205)
[sem grifos no original].
Realmente o valor de troca, como forma de expressão do valor, tem que fazer
“abstração de qualquer referência à qualidade”. Apesar disso, o valor expresso no valor
de troca tem que ser carregado por um valor de uso mesmo que com “obsolescência”
profundamente avançada ou com taxas de utilização mínimas, conforme as
investigações de Mészáros (2002) -, porém, o autor separa ambos na sua análise,
autonomizando o primeiro.
141
Segundo é incorreto considerar que este tipo de função do lazer, “liberar
adrenalina” e “recarregar a excitação”, não é educativo. Retomando o pensamento de
Gramsci (2001) que o Mascarenhas supra utilizou, o homem de um tempo tem que ser
formado em todos os sentidos. Essa personalidade consumista e alienada, imediatista e
individualista que o lazer reafirma e promove é uma forma de educação conformativa
essencial ao capital. Será mesmo a “intensificação do prazer” um “atributo abstrato”?
Além disso, se o lazer, ou o êxtase-lazer atua sobre os sentidos explorando a fórmula da
aventura em busca da adrenalina, não “perda do sensível”, senão uma exploração da
sensibilidade dentro dos interesses do consumo de certa mercadoria produzida. Esse
processo, ainda que se desenvolva sob novos contornos, não difere essencialmente da
utilização dos sentidos pelo lazer, na sua expressão característica do fordismo, em
relação ao objetivo de reprodução do capital. Apesar dessas novas configurações se
apresentarem com grandes barreiras que impedem o acesso às mesmas pelos
trabalhadores, por converterem-se em mercadoria, as formas anteriores de lazer
persistem com a mesma importância que persiste o modo fordista de organização da
produção, e com a mesma funcionalidade reprodutiva hegemônica. O ponto central que
não pode ser ignorado é que a manifestação hegemônica do lazer satisfaz as
necessidades do capitalismo, “meramente histórica” e “em última instância,
desnecessária” (MÉSZÁROS, 1993, p.196-7).
Feita essa discussão introdutória sobre o lazer como mercadoria e o lazer
mediado pelas mercadorias, que partiu das categorias anteriormente reconhecidas em
Marx (1985), será iniciada uma discussão com dois autores do lazer, um clássico e outro
contemporâneo. Essa discussão significa o início de um processo investigativo de
revisão crítica das formulações dos principais autores clássicos e contemporâneos do
lazer, que possam fornecer elementos para a sua crítica até atingir a sua concretude
histórica, mediante sua confrontação com a prática social particular do capitalismo
brasileiro. Esse é um passo necessário para a apreensão desse fenômeno como síntese de
muitas determinações, para que se possa articulá-lo, observando suas mediações
dialéticas com a educação, ao projeto de superação revolucionária do capital.
4. RELAÇÕES ENTRE LAZER E EDUCAÇÃO NO CAPITALISMO
Investigar o lazer sem reconhecer suas relações com a educação é impossível
quando se busca conhecer esse fenômeno em sua concretude. Por isso, nesse capítulo
serão analisados dois autores de referência no lazer no Brasil. O primeiro, Johan
Huizinga, um autor dos Países Baixos que escreveu na primeira metade do século XX,
no período entre guerras. O segundo, Nelson Carvalho Marcellino, brasileiro que
escreve no período em que se presenciava a atual reestruturação produtiva no mundo
e no Brasil. Huizinga, além de ser autor de referência em grande parte da produção no
campo dos estudos do lazer, tem grande influência também na educação quando as
pesquisas dizem respeito ao jogo e sua função educativa e de desenvolvimento.
Marcellino, é um intelectual que produziu amplamente no campo do lazer sobre a
relação lazer-educação, tendo profunda influência na produção brasileira sobre o mesmo
tema.
4.1 O lúdico e a seriedade como as formas de expressão do espírito: o jogo como
protoforma da cultura
Huizinga nasceu na província de Groningen nos Países Baixos, no ano de 1872.
Formou-se em Línguas Indo-Germânicas e doutorou-se após estudos em lingüística
comparada - feitos na universidade de Leipizig após retornar para seu país, versando
sobre “A figura do palhaço no drama Sânscrito”
88
. Depois de formado começou a
lecionar História no “ginásio” e palestrar sobre História Antiga na Universidade de
Amsterdã, tornando-se professor de História Antiga na Universidade de Groningen, em
1905. Uma de suas obras mais conhecidas é O Declínio da Idade Média, onde tratou da
vida, das idéias, da arte e do comportamento das classes altas da Borgonha nos séculos
XIV e XV, de acordo com Liukkonen (2008). Além disso, atuou como presidente do
Comitê Internacional de Cooperação Intelectual com a Liga das Nações. Em 1941 foi
88
Tradução livre: “Huizinga's dissertation dealt with the clown figure in Sanskrit drama” (LIUKKONEN,
2008). Disponível em: http://www.kirjasto.sci.fi/huizin.htm
143
preso na sua terra que estava ocupada pelos nazistas, após críticas às influências da
Alemanha sobre a cultura Holandesa. Morreu no cárcere em 1945, pouco antes do final
da Segunda-Guerra Mundial.
Dada essa formação, Huizinga, no seu livro Homo ludens: o jogo como
elemento de cultura”, analisa o jogo e a cultura de forma bem característica, lançando
mão da filologia e dos discursos dos homens das diferentes épocas. Sua análise não é
restrita, pois utiliza pesquisas etnológicas feitas em praticamente todos os continentes,
porém, sua concepção de história é muito distinta daquela apresentada no início dessa
pesquisa. Ele entende o jogo como um elemento definidor da humanidade, somando a
ele os elementos razão e trabalho. O grau de determinação do jogo para o gênero
humano parece ser equiparado aos outros dois elementos: “Não vejo, todavia, razão
alguma para abandonar a noção de jogo como um fato distinto e fundamental, presente
em tudo o que acontece no mundo” (s/p.)
89
. Ele declara que durante palestras
ministradas sob o título O jogo como elemento da cultura, nas universidades de Zurique,
Viena e Londres (The play element of culture), não tinha a intenção de “definir o lugar
do jogo entre todas as outras manifestações culturais, e sim determinar até que ponto a
própria cultura possui um caráter lúdico”, acrescentando, em seguida, que o objetivo
deste livro é “integrar o conceito de jogo no de cultura” (s/p.).
O jogo é fato mais antigo que a cultura, pois esta, mesmo em suas
definições menos rigorosas, pressupõe sempre a sociedade humana;
mas, os animais não esperaram que os homens os iniciassem na
atividade lúdica. É-nos possível afirmar com segurança que a
civilização humana não acrescentou característica essencial alguma à
idéia geral de jogo. Os animais brincam tal como os homens. Bastará
que observemos os cachorrinhos para constatar que, em suas alegres
evoluções, encontram-se presentes todos os elementos essenciais do
jogo humano (HUIZINGA, 2001, p.3).
Segundo esta concepção de Huizinga fica interditada a discussão do jogo no
plano do ser social, pois este não é considerado como uma atividade fundada na
sociabilidade humana. Partindo da análise histórica das manifestações culturais essas
proposições não podem ser aceitas como corretas, o que compromete, portanto, todas as
análises posteriores, ainda que elas tragam riqueza empírica, dos jogos e de outras
manifestações lúdicas da cultura humana, pois elas não atingirão o real sintético do jogo
e do lúdico. Essa afirmação é feita baseada em um autor que - conforme se verá adiante
89
Constante do prefácio.
144
- residia em um país que é tomado como exemplo da degradação social contemporânea
por Huizinga. Vigotsky (1984), em seu estudo sobre o brinquedo, ou jogo, no
desenvolvimento humano pode compreender que:
No início da idade pré-escolar
90
, quando surgem os desejos que não
podem ser imediatamente satisfeitos ou esquecidos, e permanece
ainda a característica do estágio precedente de uma tendência para a
satisfação imediata desses desejos, o comportamento da criança muda.
Para resolver essa tensão, a criança em idade pré-escolar envolve-se
num mundo ilusório e imaginário onde os desejos não realizáveis
podem ser realizados, e esse mundo é o que chamamos de brinquedo.
A imaginação é um processo psicológico novo para a criança;
representa uma forma especificamente humana de atividade
consciente, não está presente na consciência de crianças muito
pequenas e está totalmente ausente em animais. Como todas as
funções da consciência ela surge originalmente da ação (VIGOTSKY,
1984, p.106) [sem grifos no original].
A concepção de jogo de Huizinga, em outra via, segue seu entendimento como
uma atividade imaterial: “jogo é mais do que um fenômeno fisiológico ou um reflexo
psicológico. Ultrapassa os limites da atividade puramente física ou biológica” -
afirmação que até é correta. Porém, continua: “É uma função significante, isto é,
encerra um determinado sentido. [...] Seja qual for a maneira como o considerem, o
simples fato de o jogo encerrar um sentido implica a presença de um elemento não
material em sua própria essência” (p.3-4). Por que é incorreto considerar a atividade de
significação como imaterial? Porque conforme a citação anterior do psicólogo marxista
russo, a “imaginação é um processo psicológico”, e a imaginação como “função da
consciência”, “surge originalmente da ação”. Portanto, a atividade de significar, de
construir abstrações que possibilitem a reprodução e ordenamento do mundo exterior na
consciência, não é um elemento imaterial. Pelo contrário, pode ser compreendido
concretamente se é tomado como processo material da mente humana. No jogo a
criança “cria uma situação imaginária”. Apesar disso ser reconhecido, ao tratar a
imaginação como sub-categoria do jogo comete-se o erro de não conhecer seu papel
como “característica definidora do brinquedo em geral” (VIGOTSKY, 1984, p.107). A
explicação que Vigostky apresenta em seguida fundamenta porque o jogo não é
meramente atividade simbólica e demonstra a materialidade dessa atividade humana:
90
O estudo de Vigotsky sobre o brinquedo ou jogo para a criança é valido para o jogo nas fases
posteriores porque sua investigação se preocupa justamente com a importância desta atividade humana no
desenvolvimento posterior do ser humano.
145
Primeiro, se o brinquedo é entendido como simbólico, existe o perigo
de que ele possa vir a ser considerado como uma atividade semelhante
à álgebra; isto é, o brinquedo, como a álgebra, poderia ser considerado
como um sistema de signos que generalizam a realidade, sem
nenhuma característica que eu considero específica do brinquedo. A
criança poderia ser vista como um desafortunado especialista em
álgebra que não conseguindo escrever os símbolos, representa-os na
ação. Acredito que o brinquedo não é uma ação simbólica no sentido
próprio do termo, de forma que se torna essencial mostrar o papel da
motivação no brinquedo. Segundo, esse argumento, enfatizando a
importância dos processos cognitivos, negligencia não somente a
motivação como também as circunstâncias da atividade da criança
(VIGOTSKY, 1984, p.107).
Fora a lógica da biologia, diz Huizinga, “é nessa intensidade, nessa fascinação,
nessa capacidade de excitar que reside a própria essência e a característica primordial do
jogo” (p.5). Para ele, é no divertimento do jogo, [que] resiste a toda análise e
interpretação lógicas”, que está a “essência do jogo”. Vigotsky (1984, p105),
contrariamente, inicia sua discussão sobre o jogo com a afirmação: “Definir o brinquedo
como uma atividade que prazer à criança é incorreto”. Justifica isso em função de
verificar que existem jogos “nos quais a própria atividade não é agradável”, que só “dão
prazer à criança se ela considera o resultado interessante”.
Para Huizinga o jogo é a-histórico e a-social, pois não depende de nenhuma fase
da civilização. “A existência do jogo não está ligada a qualquer grau de civilização, ou a
qualquer concepção do universo. Todo ser pensante é capaz de entender à primeira vista
que o jogo possui uma realidade autônoma, mesmo que sua língua não possua um termo
geral capaz de defini-lo” (p.6). “A própria existência do jogo é uma confirmação
permanente da natureza supralógica da situação humana. [...] Se brincamos e jogamos, e
temos consciência disso, é porque somos mais do que simples seres racionais, pois o
jogo é irracional” (p.6). Para o autor, o jogo é uma atividade irracional, e, além disso,
transcendente, conforme ele mostrará ao longo desse livro.
Além de transcendente, uma entificação do jogo, o jogo aparece como o
impulso da civilização: “Ora, é no mito e no culto que têm origem as grandes forças
instintivas da vida civilizada: o direito e a ordem, o comércio e o lucro, a indústria e a
arte, a poesia, a sabedoria e a ciência. Todas elas têm suas raízes no solo primevo do
jogo” (p.7). O jogo é “diametralmente oposto” à seriedade. Porém, esse contraste não é
“imutável” (p.8). Os “dois modos fundamentais de vida, [são] o jogo e a seriedade”
(p.9).
146
Ele distingue entre “jogos sociais” e “jogos primitivos”. O jogo tem uma
liberdade imanente, coisa que o afasta da evolução natural. Essa liberdade está presente
em crianças e animais, dado que “brincam porque gostam de brincar” (p.10). Esta
concepção de Huizinga, tomada e generalizada para o lazer pode trazer como
conseqüência as interpretações subjetivistas e individualistas da relação entre lazer e
transformação social. Huizinga entende que “antes de mais nada o jogo é uma atividade
voluntária”. Quando é submetido a “ordens, deixa de ser jogo, podendo no máximo ser
uma imitação forçada. Basta esta característica de liberdade para afastá-lo
definitivamente do curso da evolução natural. [...] As crianças e os animais brincam
porque gostam de brincar, e é precisamente em tal fato que reside sua liberdade” (p.10).
O jogo é “praticado nas ‘horas de ócio’. Liga-se a noções de obrigação e dever apenas
quando constitui uma função cultural reconhecida, como no culto e no ritual” (p.11).
As características fundamentais do jogo podem ser assim elencadas: é livre,
irreal, desinteressado, isolado e limitado (tem um espaço e um tempo delimitado),
ordenado e criador de ordem, jogado de forma consciente, e, o que parece ser um
dos principais, o jogo é transcendente. Ele “trata-se de uma evasão da vida ‘real’ para
uma esfera temporária de atividade com orientação própria” (Idem, Ibidem, p.11).
A concepção de seriedade de Huizinga tem fundamento religioso/mítico, sendo
este um dos conceitos chaves utilizados para definir o lazer: “Nunca há um contraste
bem nítido entre ele e a seriedade, sendo a inferioridade do jogo sempre reduzida pela
superioridade de sua seriedade. Ele se torna seriedade e a seriedade, jogo. É possível ao
jogo alcançar extremos de beleza e de perfeição que ultrapassam em muito a seriedade”
(p.11).
O caráter “desinteressado” do jogo, na concepção de Huizinga, separa o jogo do
próprio homem:
No que diz respeito às características formais do jogo, todos os
observadores dão grande ênfase ao fato de ser ele desinteressado.
Visto que não pertence à vida “comum”, ele se situa fora do
mecanismo de satisfação imediata das necessidades e dos desejos e,
pelo contrário, interrompe este mecanismo. Ele insinua como
atividade temporária, que tem uma finalidade autônoma e se realiza
tendo em vista uma satisfação que consiste nessa própria realização
(HUIZINGA, 2001, p.11-2).
O que é vida incomum para o autor, uma vez que se define o jogo por
contraposição a “vida comum”? Segundo, mesmo que o jogo tivesse um fim nele
mesmo, o que justificaria esse fim não satisfazer uma necessidade humana? Por não
147
compreender o jogo historicamente, também não é possível à Huizinga compreender
que as necessidades humanas não se limitam ao plano biológico. Sempre é afirmado que
o jogo se realiza, é realizado, sem muito lembrar do sujeito que joga. O jogo é
entificado mesmo, sendo um dos criadores das “forças instintivas da vida civilizada”
(p.7).
De acordo com Huizinga, o jogo “pertence sempre, em suas formas mais
elevadas” ao “domínio do sagrado”, por isso ele dedica boa parte da discussão do
primeiro capítulo às relações entre o jogo e o culto e o ritual, trabalhando com a
categoria da “seriedade” existente em ambos para demonstrar a justeza de tal
aproximação.
Mas o fato de ser necessário, de ser culturalmente útil e, até, de se
tornar cultural diminuirá em alguma coisa o caráter desinteressado do
jogo? Não, porque a finalidade a que obedece é exterior aos interesses
materiais imediatos e à satisfação individual das necessidades
biológicas. Em sua qualidade de atividade sagrada, o jogo
naturalmente contribui para a prosperidade do grupo social, mas de
outro modo e através de meios totalmente diferentes da aquisição de
elementos de subsistência (HUIZINGA, 2001, p.12)
.
Huizinga acerta em sua análise sobre o jogo satisfazer necessidades do “grupo
social” de forma diferente que o trabalho satisfaz. Todavia, ele divide a história natural
da história social, conforme essa concepção que afirma que as necessidades do espírito
que o jogo atende não têm ligação alguma com as necessidades biológicas, de
“subsistência” dos homens. E, demonstra uma forma metafísica teológica de conceber o
jogo, localizado no território do “sagrado”.
Reina dentro do jogo uma ordem específica e absoluta. E aqui
chegamos a sua outra característica, mais positiva ainda: ele cria
ordem e é ordem. Introduz na confusão da vida e na imperfeição do
mundo uma perfeição temporária e limitada, exige ordem suprema e
absoluta [...] É talvez devido a esta afinidade entre a ordem e o jogo
que este, como assinalamos de passagem, parece estar em tão larga
medida ligado ao domínio da estética. nele uma tendência para ser
belo. Talvez este fator estético seja idêntico aquele impulso de criar
formas ordenadas que penetra o jogo em todos os seus aspectos. [...] O
jogo lança sobre nós um feitiço: é ‘fascinante’, ‘cativante’. Está cheio
das duas qualidades mais nobres que somos capazes de ver nas coisas:
o ritmo e a harmonia (HUIZINGA, 2001, p.13).
Identifica-se uma aproximação do pensamento de Huizinga de premissas
positivistas, não só por esse acento na importância do jogo “ser ordem” e “criar ordem”,
mas também por sua concepção religiosa muito profunda do jogo. Tanto quanto na
religião positivista, não há Deus nessa religiosidade, mas, a “natureza” que permitiu que
148
o homem satisfizesse suas necessidades com “a tensão, a alegria e o divertimento do
jogo” (p.5). Além disso, ele se preocupa em fazer uma ampla descrição do jogo e sua
relação com o ritual sem se preocupar com o “por que” e “para que” do espaço
delimitado para ambos (p.24). Apesar dessa aproximação, não se pode dizer que o
fundamento de Huizinga é, coerente e unicamente, essa linha filosófica, apesar de que,
no principal, sua postura de “neutralidade” ao analisar o jogo e sua relação com a
cultura, não se dirigindo à luta de classes, é também coincidente.
As regras são outro elemento constituinte do jogo: “Por sua vez, estas regras são
um fator muito importante para o conceito de jogo. Todo jogo tem suas regras. São estas
que determinam aquilo que ‘vale’ dentro do mundo temporário por ele circunscrito. As
regras de todos os jogos são absolutas e não permitem discussão” (p.14). Com tal
afirmação o autor desconsidera a própria historicidade de seu objeto de estudo. Exemplo
da ignorância dessa historicidade que se contrapõe a tal afirmação é o caso do jogo de
futebol, que apesar de denominar-se atualmente de “pé na bola” teve sua gênese em um
jogo em que a bola era conduzida e lançada com as mãos, dentro de um espaço, número
de jogadores e outros fatores diferentes. Mesmo durante o próprio jogo as regras podem
e constantemente são alteradas pelos próprios jogadores. Isso não significa negar a
existência das regras e sua importância para o desenvolvimento do jogo, todavia, não
sendo o jogo uma instituição como são os esportes (que passam inclusive por processos
burocratizados para a alteração de suas regras/leis), as normas de ação podem ser mais
facilmente convencionadas de acordo com as contingências dos participantes no
momento do jogo.
Falando sobre o aspecto de mistério que o jogo carrega, Huizinga afirma que
“Dentro do círculo do jogo, as leis e costumes da vida cotidiana perdem validade.
Somos diferentes e fazemos coisas diferentes. Esta supressão temporária do mundo
habitual é inteiramente manifesta no mundo infantil, mas não é menos evidente nos
jogos rituais dos povos primitivos” (p.15-6). Nesta afirmação, de reiteração do
descolamento do jogo da sociedade e da história na qual ele se encontra na concepção
de Huizinga, ele acaba por excluir o jogo da própria cultura, pois os rituais não fazem
parte da cultura? E a cultura, por sua vez, não está no cotidiano também? Apesar do
jogo ser uma atividade de representação de elementos da vida prática, de se desenvolver
realmente em um tempo diferente em relação ao tempo de trabalho e de estudo, aquilo
que é representado faz parte da cultura de quem joga/representa. Por exemplo, os
próprios mitos são arquitetados de acordo com a organização social e relações de poder
149
estabelecidas. Essa cultura, por sua vez, é um complexo fundado no trabalho, e, portanto,
impossível de desvincular-se totalmente da satisfação das necessidades biológica e da
vida cotidiana.
“A função do jogo, nas formas mais elevadas que aqui nos interessam, pode de
maneira geral ser definida pelos dois aspectos fundamentais que nele encontramos: um a
luta por alguma coisa ou a representação de alguma coisa” (HUIZINGA, 2001, p.16).
Para Vigotsky (Ibidem), essa pode ser considerada uma perspectiva acertada, se com
representação se referir ao processo de significação. Porém, na continuação da reflexão,
Huizinga diz que: “Representar significa mostrar, e isto pode consistir simplesmente na
exibição, perante um público, de uma característica natural”, conforme o
comportamento de animais como o pavão e do peru. Dessa forma, ele demonstra que
não é relativo ao aspecto de significação que se refere à representação e, que não
distingue as formas sociais de ação das formas animais, que não se libertaram da
imediaticidade natural porque nunca trabalharam. O autor entende o “espetáculo” como
“uma passagem da realidade vulgar para um plano mais elevado”. Sobre a representação
da criança diz: “Mais do que uma realidade falsa, sua representação é a realização de
uma aparência: é ‘imaginação’ no sentido original do termo” (p.17). Nesse sentido se
refere ao processo de significação, porém, colocando a representação enquanto
espetáculo, num plano transcendente, ideal.
“O ritual é um dromenon, isto é, uma coisa que é feita, uma ação. A matéria
desta ação é um drama, isto é, uma vez mais, um ato, uma ação representada num palco.
Esta ação pode revestir a forma de um espetáculo ou de uma competição. O rito, ou ‘ato
ritual’, representa um acontecimento cósmico, um evento dentro do processo natural”
(p.18). Na mesma página o autor afirma: “O que é importante para a ciência da cultura é
procurar compreender o significado dessas figurações no espírito dos povos que as
praticam e nelas crêem” (p.18). Huizinga quer saber o significado das representações
ritualísticas no “espírito dos povos”, não em suas práticas sociais de produção e
reprodução da existência, o que inclui os problemas do espírito e vai além deles. Esta
pode ser a base que leva o autor a compartilhar com cada época as suas ilusões. Ele quer
saber o que os homens pensam sobre si mesmos, não o que realmente acontece -
realidade da qual não se pode excluir tais pensamentos, pois também a constituem.
Porem, os pensamentos são uma parte da totalidade social e não a totalidade em si.
Sem pretender dar conta da realidade, “impenetrável” segundo sua concepção,
Huizinga se concentra em apenas “um fato”, assim pode explicar que:
150
na sociedade primitiva, verifica-se a presença do jogo, tal como nas
crianças e nos animais, e que, desde a origem, nele se verificam todas
as características lúdicas; ordem, tensão, movimento, mudança,
solenidade, ritmo, entusiasmo. em fase mais tardia da sociedade o
jogo se encontra associado à expressão de alguma coisa,
nomeadamente aquilo a que podemos chamar ‘vida’ ou ‘natureza’. O
que era jogo desprovido de expressão verbal adquire agora uma forma
poética. Na forma e na função do jogo, que em si mesmo é uma
entidade independente desprovida de sentido e de racionalidade, a
consciência que o homem tem de estar integrado numa ordem cósmica
encontra sua expressão primeira, mais alta e mais sagrada. Pouco a
pouco o jogo vai adquirindo a significação de ato sagrado. O culto
vem juntar-se ao jogo; foi este, contudo, o fato inicial (HUIZINGA,
2001, p.21) [sem grifos no original].
O jogo, além de entificado, é posto na condição de protoforma da sociedade.
Antes de ter consciência do mundo o homem jogava, assim como os animais
continuam a jogar. O jogo, com seu caráter organizador e sagrado, significa um impulso
para o homem representar suas relações consigo mesmo e com a natureza e, portanto,
para se organizar socialmente. Sobre o caráter de irracionalidade e desprovimento de
sentido do jogo, segundo a perspectiva vigotskiana, a “medida que o brinquedo se
desenvolve, observamos um movimento em direção à realização consciente de seu
propósito. É incorreto conceber o brinquedo como uma atividade sem propósito”
(VIGOTSKY, 1984, p.117).
Huizinga formula a questão ao aproximar o jogo do sagrado: “O culto é a forma
mais alta e mais sagrada da seriedade. Como pode ele, apesar disso, ser jogo?” Sua
resposta é a seguinte: “A criança joga e brinca dentro da mais perfeita seriedade, que a
justo tulo podemos considerar sagrada. Mas sabe que o que está fazendo é um jogo”
(Ibidem, p.21). Esta consideração de Huizinga a respeito da seriedade do jogo é de
caráter psicológico idealista. O ponto de referência para dizer que o jogo é sério é a
atitude psicológica da criança para com a atividade, não a práxis do jogador em relação
à sociedade. O culto tem uma função na sociedade, diferente da função do jogo, tanto
para a sociedade quanto para o indivíduo. Se a análise psicológica fosse de caráter
materialista-dialético, a exposição dessa relação seria diferente, pois entender-se-ia que
a “atividade principal” da criança depende de sua relação com a realidade (LEONTIEV,
1988, p. 64). Na “infância pré-escolar” a atividade principal é o jogo, e é a partir da
mudança da atividade principal que surgem as modificações mais importantes “nos
processos psíquicos e nos traços psicológicos da personalidade da criança” (LEONTIEV,
1998, p.64-5). A atividade principal da criança em idade escolar é o “estudo
151
sistemático”, do adolescente o “treinamento especial” e do adolescente e suas fases
posteriores o próprio trabalho
91
(Considerando as condições da Rússia quando da escrita
do texto) (Idem, Ibidem). Portanto, mesmo como função psicológica, o jogo é diferente
do culto atividade que estava/está relacionado, de forma idealista, com o controle das
condições naturais necessárias à sobrevivência ou de desenvolvimento da alma. As duas
atividades, em relação ao seu papel nas relações sociais, cumprem diferentes funções.
Huizinga toma uma idéia de Platão que tem um peso muito grande para sua
concepção do jogo e do lúdico:
Deus é digno da suprema seriedade, e o homem não passa de um
joguete de Deus, e é esse o melhor aspecto de sua natureza. [...] Qual é,
então, a maneira mais certa de viver? A vida deve ser vivida como
jogo, jogando certos jogos, fazendo sacrifícios, cantando e dançando,
e assim, o homem poderá conquistar o favor dos deuses e defender-se
de seus inimigos, triunfando no combate (PLATÃO, apud HUIZINGA,
2001, p.22).
O autor se contradiz ao afirmar que o jogo, para a criança, não é sério, enquanto
acabou de afirmar, pouco antes, que a criança joga na maior “seriedade”. “Dissemos no
início que o jogo é anterior à cultura; e, em certo sentido, é também superior, ou pelo
menos autônomo em relação a ela. Podemos situar-nos, no jogo, abaixo do nível da
seriedade, como faz a criança; mas podemos também situar-nos acima desse nível,
quando atingimos as regiões do belo e do sagrado” (p.23).
Analisando a questão da delimitação de espaços para rituais sagrados, Huizinga
condena uma análise racional de formas culturais, que para ele estão no plano do supra-
racional:
É costume reduzir essa analogia geral das formas de cultura a
qualquer causa ‘racional’ ou ‘lógica’, explicando a necessidade de
isolamento e separação pela ânsia de proteger os indivíduos
consagrados de influências maléficas [...]. É uma explicação que
coloca na origem do processo cultural em causa uma reflexão de
ordem racional e uma intenção utilitária, precisamente aquilo que
91
“O caso é que cada nova geração e cada novo indivíduo pertencente a uma certa geração possuem
certas condições dadas de vida, que produzem também o conteúdo de sua atividade possível, qualquer
que seja ela. Por isso, embora notemos um verto caráter periódico no desenvolvimento da psique da
criança, o conteúdo dos estágios, entretanto, não é, de forma alguma, independente das condições
concretas nas quais ocorre o desenvolvimento. É dessas condições que esse conteúdo depende
primariamente.
As condições históricas concretas exercem influência tanto sobre o conteúdo concreto de um estágio
individual do desenvolvimento, como sobre o curso total do processo de desenvolvimento psíquico como
um todo [...] o período de criação e o de treinamento estão historicamente longe de ser sempre os
mesmos. Sua duração varia de época para época, alongando-se à medida que as exigências da sociedade
fazem este período crescer” (LEONTIEV, 1988, p.65). São estes pressupostos teóricos que fundamentam
o tipo de análise psicológica que chamei de materialista-dialética.
152
Froebius recomendava evitar. [...] Se por outro lado, aceitarmos a
identidade essencial e original do jogo e do ritual, limitamo-nos a
reconhecer o lugar santificado como um campo de jogo, sem chegar a
colocar a ilusória questão do ‘por que e para que’ (HUIZINGA,
2001, p.24) [sem grifos no original].
Huizinga apresenta uma concepção de desprezo pela prática e sua relação com o
racional, e pelo que é útil. Demonstra, nesse sentido, aproximação com a visão elitista
que a escola de Frankfurt desenvolveu no pós-guerra. Como tem esse acento no ritual e
no sagrado para caracterizar a cultura humana, não pode, efetivamente, preocupar-se, na
sua concepção a-histórica do jogo, com o processo de produção material da existência
humana e condicionante da própria cultura.
Expondo a relação do jogo com a festa o autor demonstra seu entendimento de
que “Ambos são limitados no tempo e no espaço. Em ambos encontramos uma
combinação de regras estritas com a mais autêntica liberdade. Em resumo, a festa e o
jogo têm em comuns suas características principais. O modo mais íntimo de união de
ambos parece poder encontrar-se na dança” (p.25). “Sobre a função que opera no
processo de construção de imagens, ou imaginação, o máximo que podemos afirmar é
que se trata de uma função de jogo ou função poética; e a melhor maneira de defini-la
será chamar-lhe função de jogo ou função lúdica” (p.29). Com essa compreensão
Huizinga comete o erro que Vigostky critica e que foi apontado anteriormente, ou seja,
considerar a imaginação uma função do jogo e não sua definidora. De forma sintética
Vigotsky (1984, p.118) explica essa afirmação: “A essência do brinquedo é a criação de
uma nova relação entre o campo do significado e o campo da percepção visual – ou seja,
entre situações no pensamento e situações reais”.
“Decidindo considerar toda a esfera da chamada cultura primitiva como um
domínio lúdico, abrimos caminho para uma compreensão mais direta e mais geral de
sua natureza de maneira mais eficaz do que se recorrêssemos a uma meticulosa análise
psicológica ou sociológica” (HUIZINGA, 2001, p.30). Qual seria a concepção de
natureza que o autor adota para fazer esta afirmação? A concepção sobre o que é natural
pode determinar uma série de erros no percurso de investigação de um dado fenômeno,
principalmente se tratando de um fenômeno social. O natural pode ser tomado como o
que é comum, o que está estabelecido, ou o que é isento de influência humana e, nesses
casos, levará a equívocos ao se tratar de um complexo do ser social. Por outro lado, se a
concepção de natureza, ao se analisar um fenômeno social decorre da própria história do
153
homem, que não se separa da história natural, ai pode-se obter resultados concretos
acerca do que se pesquisa.
O próximo tema abordado por Huizinga é “a noção de Jogo e sua expressão na
linguagem”. Para ele “devemos admitir que os gregos podiam ter muita razão em
estabelecer uma distinção lingüística entre a competição e o jogo”, porque em “regra
geral o elemento de ‘não-seriedade’, o fator lúdico propriamente dito estava
ausente da palavra grega que denominava as “competições e concursos” (p.35) [sem
grifos no original]. Porém, pouco depois, Huizinga cita as críticas do filólogo
Bolkestein, sobre sua concepção que identifica jogo e competição na cultura grega.
Bolkestein contradita que tal identificação seja possível, a menos que se admita que
“tudo na vida era jogo”, para os gregos. A resposta de Huizinga confirma a crítica do
filólogo: “Em certo sentido é mesmo essa a tendência deste livro”. Huizinga entende
que uma identidade entre competição e jogo, pois na vida dos gregos, ou a
competição em qualquer outra parte do mundo, possui todas as características formais
do jogo e, quanto à sua função pertence quase inteiramente ao domínio da festa, isso é,
ao domínio do lúdico” (p.36).
Para Huizinga “O jogo é uma entidade autônoma. O conceito de jogo enquanto
tal é de ordem mais elevada do que o de seriedade. Porque a seriedade procura excluir o
jogo, ao passo que o jogo pode muito bem incluir a seriedade” (p.51).
Huizinga diz que não afirma que a sociedade se desenvolve a partir do jogo: “O
fato de apontarmos a presença de um elemento lúdico na cultura não quer dizer que
atribuamos aos jogos um lugar de primeiro plano, entre as diversas atividades da vida
civilizada, nem que pretendamos afirmar que a civilização teve origem no jogo”. O que
o autor defende é que a cultura surge sob a forma de jogo” (p.53). Ele situa o jogo
como anterior à cultura: “Não queremos com isto dizer que o jogo se transforma em
cultura, e sim que em suas fases mais primitivas a cultura possui um caráter lúdico, que
ela se processa segundo as formas e no ambiente do jogo. Na dupla unidade do jogo e
da cultura, é ao jogo que cabe a primazia” (p.53) [sem grifos no original].
Apesar de afirmar que a sociedade não vem do jogo, Huizinga afirma que sua
forma primordial, o lúdico, é absorvida por toda a superestrutura conhecida, chamada
por ele de “outras formas do lúdico”. A primeira e mais geral forma em que o lúdico se
dissolve com o desenvolvimento social é a forma do “sagrado”:
Regra geral, o elemento lúdico vai gradualmente passando para
segundo plano, sendo sua maior parte absorvida pela esfera do
154
sagrado. O restante cristaliza-se sob a forma de saber: folclore, poesia,
filosofia, e as diversas formas da vida jurídica e política. Fica assim
completamente oculto por detrás dos fenômenos culturais o elemento
lúdico original. Mas é sempre possível que, a qualquer momento,
mesmo nas civilizações mais desenvolvidas, o ‘instinto’ lúdico se
reafirme em sua plenitude, mergulhando o indivíduo e a massa na
intoxicação de um jogo gigantesco (HUIZINGA, 2001, p.54).
Qual a origem do próprio lúdico o autor não explica, nem qual a origem de toda
a cultura que “absorve” o lúdico. Além disso, a segunda parte da formulação, em que
afirma que o lúdico “cristaliza-se” em complexos que compõem a própria cultura, o
sentido é exatamente o de criação destes complexos – “folclore, poesia, filosofia”,
direito e “política” a partir do lúdico. Para mostrar que o seu raciocínio anterior
apontava na mesma direção, vamos à letra do próprio texto: “a noção de jogo como um
fator distinto e fundamental, presente em tudo o que acontece no mundo. Já muitos
anos que vem crescendo em mim a convicção de que é no jogo e pelo jogo que a
civilização surge e se desenvolve(s/p., Prefácio). E, bem próximo a essa passagem:
“Ora, é no mito e no culto que têm origem as grandes forças instintivas da vida
civilizada: o direito e a ordem, o comércio e o lucro, a indústria e a arte, a poesia, a
sabedoria e a ciência. Todas elas têm suas raízes no solo primevo do jogo” (p.7).
Segundo as formulações de Huizinga pode-se dizer: o jogo é. O jogo independe
de civilização, de cultura, portanto, do próprio homem. Conforme Huizinga afirmou no
início do livro, pode ser negada a “seriedade”, categoria que ele só definiu por sua
oposição ao jogo, a “justiça”, a “verdade”, a “beleza”, o “bem” e até “Deus”, mas não o
jogo (p.6). É possível lembrar do “espírito absoluto” hegeliano que existia antes de tudo.
Huizinga não chegou a afirmar que o jogo existe fora do mundo, apesar de sua visão
de que é através do jogo que o homem percebe que faz parte do cosmo. Ele afirmou que
o jogo ultrapassa a “realidade física” do homem, é a confirmação da “natureza
supralógica da situação humana” que só pode ser pensada quando “o espírito destrói o
determinismo absoluto do cosmos”. O fato de jogar e ter consciência disso demonstra
que “somos mais do que simples seres racionais”. Apesar da total negação da
materialidade do mundo e do rebaixamento da racionalidade humana, ele afirma que a
análise do jogo será feita como “elemento da cultura” e “fator cultural da vida” (p.6-7).
Huizinga não busca explicar o jogo racionalmente, ou cientificamente. À ciência ele
propõe sua prometida explicação “histórica” que, todavia, não será feita justificando”
todas as “palavras usadas”. A forma de construção do pensamento de Huizinga é
155
totalmente paratática, coordenando os parágrafos, sem, contudo, seguir um pensamento
de subordinação de uma formulação à outra, não uma construção hipotática de suas
explicações, mais poéticas que científicas:
Na criação da fala e da linguagem, brincando com essa maravilhosa
faculdade de designar, é como se o espírito estivesse constantemente
saltando entre a matéria e as coisas pensadas. Por detrás de toda
expressão abstrata se oculta uma metáfora, e toda metáfora é jogo de
palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o homem cria um outro
mundo, um mundo poético, ao lado do da natureza (HUIZINGA, 2001,
p. 7).
“Conforme acima assinalamos, todos os fatores básicos do jogo, tanto
individuais quanto comunitários, encontram-se presentes na vida animal a saber,
nas competições, exibições, representações, desafios, nos ornamentos e pavoneios, nos
fingimentos e nas regras limitativas” (p.54). Afirmar que os elementos anteriormente
indicados como características fundamentais do jogo se encontram na vida animal, é
confirmar a centralidade da irracionalidade para tratar o jogo. Todavia, o afastamento
diametral de Huizinga do conhecimento do gênero humano se confirma quando tem-se
que uma das características básicas do jogo é que ele deve ser praticado de forma
consciente. Portanto, segundo a definição irracionalista do autor, os animais devem ter
consciência, devem ter teleologia nas suas ações. Huizinga diria veementemente que
não faz tal afirmação e, na sua construção que não se pretende racional nem científica
encontraria os elementos para negar tal conclusão aqui expressa, pois o jogo é um ente
que está em tudo e não é nada, origem da compreensão humana, mas irracional e
supralógico. Como o próprio autor não busca a subordinação de uma idéia à outra, a
coerência gica, mas somente a coordenação de vários pensamentos sobre a relação
jogo-cultura, ele terias todos os argumentos para negar a crítica aqui empreendida.
Como resposta a negação do autor, bastaria entender que os elementos que constituem o
jogo existem em cada situação de acordo com a conveniência para a análise, ou então,
que eles não precisam se submeter a um raciocínio lógico – formal ou dialético,
idealista ou materialista.
Todos os jogos, incluídas as competições, não têm objetivo, pois são praticados
com fim em si mesmos. Ter um objetivo significa que o “resultado” deve ter uma
“contribuição para o processo vital do grupo” (p.56-7). Huizinga estabelece, a partir
dessa compreensão, que ter importância vital é participar da reprodução física, biológica
e fisiológica do indivíduo. Isso está de acordo com a apropriação transcendente e
156
metafísica que Huizinga tem do jogo e do lúdico. Porém, ele se trai na sua consideração
do lúdico que despreza o biológico, pois desconsidera que o processo vital do homem
enquanto ser histórico o é composto apenas do que diz respeito ao biológico. Ele não
considera as necessidades do espírito como vitais ao indivíduo que se constitui
historicamente. Ou seja, o jogo deve estar a serviço somente da alma do ser, ficando seu
corpo no terreno da imperfeição que impede a perfeição e infinitude do espírito, ao
gosto do dualismo vigente desde a Antiguidade. Considerando que esta obra foi lançada
em 1938, e dado o avanço no início do século XX das tendências de tomar as leis
naturais para explicar os fatos sociais, é compreensível a negação do biológico como
definidor do jogo. Porém, ao tentar tal negação por via do irracionalismo idealista,
Huizinga se submete - ao invés de mostrar a predominância das categorias sociais a
partir de certo ponto - ao biológico no movimento de sua negação.
Sobre o método utilizado nesta obra pode-se dizer que o procedimento geral de
Huizinga consiste em verificar investigações etnológicas e antropológicas, extrair
conceitos lingüísticos que categorizam rituais, festas, jogos ou competições específicas
e daí demonstrar o espírito lúdico contido todavia, querendo e demonstrando que o
lúdico é que contém nas diversas manifestações culturais de diversos povos, com
especial atenção aos de organização primitiva. Essa preferência se pela necessidade
de exemplificação via atividades ritualísticas que caracterizam cultos e que, dessa forma,
lhe da guarita para sua luta contra a racionalidade na análise do jogo e do lúdico,
tencionando o caráter transcendental dos mesmos. Por exemplo, sua análise do espírito
agonístico na cultura primitiva, pela festa indígena de fundo competitivo, observada na
região da Colômbia Britânica, chamada “potlatch
92
.
Esse procedimento é composto juntamente com a análise filológica das palavras,
recorrendo aos Mitos da Antiguidade e algumas obras filosóficas. No caso da análise da
relação entre o direito e o jogo o exemplo é de um concurso de tambor entre esquimós
da Groenlândia, observados no quarto capítulo
93
. Duas passagens nesse capítulo
ilustram esses procedimentos observados:
É evidente que o concurso de tambor dos esquimós pertence à mesma
esfera que o potlach, os torneios pré-islâmicos de fanfarronice e de
insultos, o mannjafnaar nórdico e o nidsang (hino de ódio) islandês,
assim como as antigas competições chinesas. É igualmente claro que,
92
Cf. páginas 66 e 70
93
Cf. especialmente às páginas 96 a 99
157
originalmente todos estes costumes pouco tinham em comum com o
ordálio, tomado este no sentido de um juízo divino revelado através de
um milagre (HUIZINGA, 2001, p.98).
Na seguinte passagem verifica-se o recurso constante à filologia presente nas
suas análises:
A palavra latina iurgum mostra também a ligação original entre a
invectiva e o julgamento em tribunal. É uma forma elíptica de ius-
igium, derivado de ius e agere, que significa literalmente ‘ato jurídico’.
Ainda hoje, a palavra objurgação conserva um pálido eco dessa
ligação. Compara-se também com litígio (litigium: ato conflituoso).
Vistas à luz dos concursos de esquimós de tambor, produções
puramente literários como os iambos de Arquíloco contra Licambo
aparecem agora sob uma perspectiva inteiramente nova, e até as
censuras de Hesíodo a seu irmão Perses podem ser encaradas deste
ponto de vista (HUIZINGA, 2001, p.99).
O relativismo do conhecimento e a afirmação do traço teológico da sua análise
são demonstrados na seguinte passagem:
O pensamento arcaico, arrebatado pelos mistérios do Ser, encontra-se
aqui situado no limite entre a poesia sagrada, a mais profunda
sabedoria, o misticismo e a mistificação verbal pura e simples. Não
compete a nós dar conta de cada um dos elementos particulares destas
efusões. O poeta-sacerdote está constantemente batendo à porta do
Incognoscível, ao qual nem ele nem nós podemos ter acesso. Sobre
esses veneráveis textos, tudo o que podemos dizer é que neles
assistimos ao nascimento da filosofia, não em um jogo inútil, mas no
meio de um jogo sagrado. A mais alta sabedoria é praticada sob a
forma de uma prova esotérica (HUIZINGA, 2001, p.121-2).
Encontra-se mais uma vez a origem teológica da civilização em Huizinga:
“Podemos concluir que originalmente o enigma era um jogo sagrado, e por isso se
encontrava para além de toda distinção possível entre o jogo e a seriedade. Era ambas as
coisas ao mesmo tempo: um elemento ritualístico da mais alta importância, sem deixar
de ser essencialmente um jogo”. Essa ontologia teológica é ratificada quando ele
observa: “o que se passa é que a civilização vai gradualmente fazendo surgir uma certa
divisão entre dois modos da vida espiritual, aos quais chamamos ‘jogo’ e ‘seriedade’, e
que originalmente constituía um meio espiritual contínuo, do qual surgiu a própria
civilização” (p.125). Segundo Huizinga, a civilização surgiu desse meio espiritual
contínuo, unidade de jogo e seriedade, o “jogo sagrado”. Portanto, mais uma vez ele
afirma que o jogo, o lúdico é a protoforma da vida civilizada.
158
No penúltimo capítulo Huizinga continua com sua análise do jogo como
elemento primordial da cultura humana em todas as épocas. “nas suas faces primitivas a
cultura é um jogo. Não quer isto dizer que ela nasça do jogo, como um recém-nascido se
separa do corpo da mãe. Ela surge no jogo, e enquanto jogo, para nunca mais perder
esse caráter” (p.193). Para ele, quando uma cultura está em decadência, como o
exemplo dado por ele de Roma, o lúdico não desempenha sua função orgânica (p.197).
Ele afirma que “A sociedade romana não podia viver sem os jogos. Estes eram
tão necessários para sua existência como o pão, pois eram jogos sagrados e o direito que
o povo a eles tinha era um direito sagrado” (p.198). Sua afirmação é correta,
considerando a totalidade do ser social
94
, porém, a motivação de tal afirmação no autor
é equivocada, pois atende ao “sagrado”. O motivo da correção é encontrado na própria
história, na perspectiva materialista dialética, onde se aprende que o ser social não é
apenas biológico, não tem que atender apenas as necessidades do estômago. Sobre o
jogo nesse contexto Huizinga afirma que sua função “não era a simples celebração da
prosperidade que o grupo social havia conseguido, e sim a consolidação desta e a
garantia de mais prosperidade no futuro através do ritual” (p.198). Tomando o jogo sob
esta perspectiva ele continua não distinguindo o que os homens dessa época pensam
sobre si mesmos daquilo que concretamente está dado pelas condições de produção e,
no contexto destas condições, a importância do jogo e dos comportamentos que ele
incutia/reproduzia, ou seja, como elemento de superestrutura tomado pela classe
dominante.
“Seria difícil dar exemplos de espíritos mais sérios do que os de Leonardo da
Vinci e Miguel Ângelo, e no entanto é uma atitude lúdica que caracteriza toda a
atmosfera espiritual do Renascimento. Essa busca da beleza e da nobreza da forma, ao
mesmo tempo sofisticada e espontânea, é um exemplo de jogo cultural” (p.201).
Huizinga sugere a importância de se estudar como “um capítulo a parte” a
“peruca” na “história da civilização” (p.204), pois nela está o caráter mais claro do
lúdico na cultura nos séculos XVII e XVIII. E vai ainda mais longe nas suas sugestões:
“A Revolução Francesa pôs fim à moda da peruca, sem todavia a ter eliminado
bruscamente. A história dos penteados e das barbas na época subseqüente é uma mina
94
Ao adotar um pressuposto correto ele desfaz o argumento anteriormente exposto sobre o jogo não ter
objetivo e, por isso, não ser vital. Isso comprova também a compreensão de que suas idéias são
coordenadas e não subordinadas, literárias e não científicas. Não é uma relação mecânica (forma literária
não é científica), mas apenas está se evidenciando que a forma da escrita corrobora com o conteúdo das
idéias apresentadas pelo autor.
159
de interessantes ensinamentos, que até aqui quase não foi explorada” (p.206). Nessa
passagem vê-se um impulso do autor para a pesquisa histórica denominada “história
cultural”. Ele é mesmo indicado como fundador da “moderna história cultural”
95
.
Tratando de afirmar o “conteúdo lúdico da música” e a ludicidade de seu
“conteúdo estético”, Huizinga diz que “Tal como o jogo, a música assenta na aceitação
voluntário e na rigorosa aplicação de um sistema de regras convencionais: ritmo,
tonalidade, melodia, harmonia etc.” (p.209). Sobre esta forma de colocar os
fundamentos da música, entendo que ela não pode ser tratada como simples relação
homem-homem, puramente social, mas que deve ser considerado para a sua
compreensão sob bases ontológicas a transformação de matéria natural (os tons sonoros
e tempo natural) em produto social (as notas musicais e o ritmo). Esta compreensão é
indicada aqui como uma possibilidade de investigação a ser realizada da música em
perspectiva materialista histórica dialética.
O Romantismo surgiu por volta de 1750 e “pode ser definido como uma
tendência para remeter toda a vida emocional e estética para um passado idealizado,
onde tudo aparece como que através de uma névoa, carregado de mistério e terror”
(p.210). Entre o humanismo do Renascimento e o romantismo do Século XVIII
Huizinga se posiciona em favor do romantismo como maior expressão do Zeitgeist
96
(p.211). O “sentimentalismo era uma imitatio mais autêntica do que a pose ciceroniana
ou platônica dos humanistas e de seus sucessores do barroco” (p.212). Essa predileção é
compreensível pensando nos ideais do Renascimento e sua busca do racional, do
científico e da colocação do homem no centro da ordem dos problemas sociais ainda
que via racionalidade sintética ou o empirismo a-histórico representando as
transformações sociais em curso, com o desenvolvimento das condições econômicas
que possibilitariam a consolidação do capitalismo. Como o romantismo remete ao
irracional, ao sentimento transcendental, poderia ser por esta via de expressão
artística a preferência de Huizinga, defendendo ser ele o “mais profundo” (p.211).
Todo fenômeno cultural pode ser jogo, porque a cultura é composta pelo “sério”
e pelo “fingimento”. O lúdico está no “núcleo central de todo ritual e de toda religião”,
por isso, quando movimentos culturais como o romantismo, por exemplo, se afastam do
ritual, a análise desse movimento é acompanhada por uma sensação de “ambigüidade”,
95
Conforme site de biografias hospedado no portal da Universidade Federal de Campina Grande:
http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/JohaHuiz.html Acessado em janeiro de 2008.
96
Espírito da época.
160
motivada por essa “ambigüidade fundamental” entre o “sério” e o fingimento” (p.212).
Mais uma vez o autor confirma sua convicção de que tudo no plano da cultura é jogo. É
possível compreender que tudo o que não é trabalho é jogo.
Desde a Revolução Industrial no século XIX, com seu espírito prático,
“utilitarista” e com o desenvolvimento tecnológico o:
trabalho e a produção” foram estabelecidos como “ideal da época, e
logo depois como seu ídolo. Toda a Europa vestiu a roupa do trabalho.
Assim, as dominantes da civilização passaram a ser a consciência
social, as aspirações educacionais e o critério científico. Com o
imenso desenvolvimento técnico e industrial, da máquina a vapor à
elétrica, vai ganhando terreno a ilusão de que o progresso consiste na
exploração da energia solar. Em conseqüência, pôde aparecer e
mesmo ser acreditada a lamentável concepção marxista segundo a
qual o mundo é governado por forças econômicas e interesses
materiais. Este grotesco exagero da importância dos fatores
econômicos foi condicionado por nossa adoração do progresso
tecnológico, o qual por sua vez foi fruto do racionalismo e do
utilitarismo, que destruíram os mistérios e absorveram o homem da
culpa do pecado. Mas esqueceram de libertá-lo da insensatez e da
miopia, e a única coisa de que ele passou a ser capaz foi de adaptar o
mundo à sua própria mediocridade (HUIZINGA, p. 212-3).
Nessa passagem Huizinga confirma seu irracionalismo profundo e cristaliza um
ideal de mundo governado por forças místicas, ou, dito de outra forma, pelo fundamento
lúdico. Na sua análise da sociedade “medíocre” o progresso tecnológico é um espírito
que corrompe a natureza arcaica do homem, substitui o “sagrado” pelo “utilitário”. Se
aproximando, nesse sentido, da Escola de Frankfurt, ele não analisa o capitalismo e nem
as classes sociais antagônicas em luta. Desviando o foco que deve ser combatido para a
natureza humana corrompida, anulando a teoria que permita compreender e avançar na
luta de classes. Considerando a grande penetração dessa tendência nas teorias sobre o
lazer, com o lúdico sendo tomado como categoria básica de análise nesse campo, pode-
se perceber as conseqüências profundamente conservadoras de tais influências. Se a
apropriação de Huizinga para fundamentar o lúdico se der de forma acrítica, confirma-
se esta conseqüência. A “teoria crítica” antirevolucionária dos frankfurtianos, tomada
para a análise da cultura contemporânea, pode produzir essa conservação na forma de
críticas estéreis e imobilistas de forma ainda mais nefasta.
Huizinga afirma que as correntes de pensamento no século XIX “eram adversas
ao lúdico na vida social. Nem o liberalismo nem o socialismo contribuíram para ele em
alguma coisa. A ciência analítica e experimental, a filosofia, o reformismo, a igreja e o
161
estado, a economia, tudo no século XIX se revestia da mais extrema seriedade” (p.213).
Mas porque ele não incluiu tudo na categoria jogo, opondo a ele uma característica que
nele está contida, que o compõe, a “seriedade”? Será porque o aspecto ritualístico
diminuiu nesses complexos por ele citado? Parece que ele vai resolver isso, circular e
coordenativamente no capítulo seguinte. O lúdico é determinado pelo idealismo
metafísico, de forma que saindo a religião o lúdico igualmente se esvai. “O realismo, o
naturalismo, o impressionismo e todas as outras monótonas escolas literárias e artísticas
eram mais destituídas de espírito lúdico do que qualquer dos estilos anteriores” (p. 213).
No último capítulo, O Elemento lúdico da cultura contemporânea”, Huizinga
vai retomar suas notações anteriores, porém de forma mais confusa ainda, com escrita
circular em que o jogo é fundamento da cultura e, portanto, tudo que é cultura é jogo.
Ele analisa a degenerescência do espírito lúdico devido à racionalidade,
intencionalidade e dessacralização do mundo. Demonstra de forma contraditória que
nos vários campos - no jogo e esportes, nos negócios, na arte, na ciência, na política e
de forma especialmente problemática na guerra da cultura o lúdico perde espaço, não
obstante, continuando presente e sendo a raiz de todas as formas culturais.
“À primeira vista poderia parecer que certos fenômenos da vida social moderna
mais do que compensam a perda das formas lúdicas. O esporte e o atletismo, enquanto
funções sociais, têm vindo constantemente a aumentar sua influência, conquistando
territórios novos à escala nacional e internacional” (p.217-8). Sobre as “formas básicas
da competição esportiva” Huizinga afirma que seu “princípio agonístico” fundante
exige que elas sejam consideradas “jogos”, ou seja, atividades que podem ser
extremamente sérias”. Com essa indicação inicial parece que Huizinga começa a desatar
o apresentado no capítulo anterior sobre a seriedade que marca o século XIX. Sobre
a organização do jogo na forma esportiva, com a fundação de clubes e competições
organizadas Huizinga diz que na Inglaterra estavam presentes as condições necessárias
para que essa expressão se desse primeiro lá, apesar do “espírito anglo-saxão” não poder
ser considerado a “causa eficiente” (p.219). Novamente surge a questão do “espírito da
época” que ele defende como o mais profundo representante do lúdico.
Com a profissionalização do esporte o espírito lúdico vai se perdendo, processo
que se desencadeia desde o último quartel do século XIX (p.220). Profissionais e
amadores levam o esporte “para longe da esfera lúdica”, transformando-o em uma coisa
que “nem é jogo nem é seriedade”. A relação entre as competições e as festas
necessárias à saúde e a felicidade da comunidade, que existia nas “civilizações arcaicas”,
162
foi perdida em um processo de dessacralização. Desfeita a ligação entre competição e
ritual, com a perda da função “orgânica” que aquelas ocupavam na “estrutura da
sociedade”, a conclusão de Huizinga sobre os esportes é que “ele é sempre estéril, pois
nele o velho fator lúdico sofreu uma atrofia quase completa”. Essa consideração é feita
justificada por um “excesso de seriedade” nos esportes (p.220). Todavia, o que acontece
é que o esporte não carrega o ideal de lúdico de Huizinga, haja vista que o jogo
institucionalizado como esporte é submetido à racionalização que busca o resultado
máximo. Mas, considerando-se os aspectos estéticos presentes nos esportes, seu
significado profundo e sua organicidade visceral a esta sociedade, deve-se concluir que
as críticas de Huizinga ao esporte críticas que não deixam margem para a exclusão do
lúdico dado seu caráter de protoforma da cultura atribuído pelo autor são motivadas
em maior grau pela superação da religiosidade a que se ligava, do afastamento do
irracional e do aspecto mágico que revestia as competições arcaicas.
Procurar ver se um conteúdo lúdico na confusão da vida moderna
pode levar-nos a conclusões contraditórias. No caso do esporte temos
uma atividade nominalmente classificada como jogo, mas levada a um
grau tal de organização técnica e de complexidade científica que o
verdadeiro espírito lúdico se encontra ameaçado de desaparecimento
(HUIZINGA, 2001, p.221).
Tomando novamente o agon, o impulso para a competição, como categoria
central do jogo e da civilização, Huizinga consegue entender que certas atividades
voltadas ao interesse material, nas quais o lúdico pode ser coisa séria, transformam-
se em jogo. Ele o exemplo dos negócios e da competição que é gerada, com o apoio
da mídia, da publicidade e da propaganda:
As estatísticas de vendas e de produção não podiam deixar de
introduzir na vida econômica um certo elemento esportivo. A
conseqüência disso é haver hoje um aspecto esportivo em quase todo
o triunfo comercial ou tecnológico [...]. Os negócios se transformam
em jogo. Este processo vai ao ponto de algumas das grandes
companhias procurarem deliberadamente incutir em seus operários o
espírito dico, a fim de acelerar a produção. Aqui a tendência se
inverte: o jogo se transforma em negócio (HUIZINGA, 2001, p.222).
Essa análise de Huizinga mostra a capacidade do autor de relatar uma tendência
da organização da produção capitalista e suas concepções gerenciais. Todavia, os
elementos que são observáveis em mais de um complexo do ser social, como as regras,
a oposição, a capacidade de imaginação e outras, são atribuídas a um complexo fundado,
163
ao jogo, e não compreendidas dentro da totalidade que é conferida pelo complexo
fundante, o trabalho. O idealismo de Huizinga o impede de alcançar essa compreensão,
bem como, sua consciência de classe o impede de explicitar as conseqüências para os
trabalhadores da utilização da ideologia da competição para incentivar a produtividade.
Ainda mais distante para Huizinga está a análise do jogo, dos esportes, das artes e de
outros complexos culturais e sua ligação ao processo de formação do "homem de novo
tipo” necessário ao industrialismo. Ainda, considerando a competição entre empresários
como um jogo, ele retira a imaginação como fundamento do jogo.
A análise que Huizinga realiza em seguida é em relação ao caráter lúdico da arte
na contemporaneidade. Ele explica que a apreciação da arte até o século XIX era
considerada passatempo da elite, situação que se modificou nesse período com impulso
especial dado pela “reprodução fotográfica” que tornou a apreciação das obras de arte:
acessível à imensa maioria das pessoas de educação média. A arte
tornou-se propriedade pública, e o amor da arte passou a ser de bom-
tom; a idéia do artista como ser superior foi ganhando aceitação, e o
público em geral foi agitado por uma tremenda onda de esnobismo, ao
mesmo tempo que o impulso criador era deformado por uma busca
desesperada de originalidade. Essa constante procura de formas novas
e nunca vistas levou a arte pela ladeira do impressionismo até às
excrescências do século XX. A arte está muito mais sujeita do que a
ciência à influência deletéria da técnica moderna. A mecanização, a
publicidade e o desejo de fazer sensação atingem muito mais
fortemente a arte, porque regra geral esta produz diretamente para o
mercado e pode escolher livremente entre todas as técnicas que no
momento se encontram disponíveis (HUIZINGA, 2001, p.224-5) [sem
grifos no original].
Em seguida ele afirma que a “arte atual, do mesmo modo que a de outrora,
precisa de um certo esoterismo, e todo esoterismo pressupõe uma convenção”, ou seja,
as regras que caracterizam o jogo (p.225). Na passagem acima fica evidente a
culpabilização da técnica e a crítica ascética à deformação da arte causada, ao que
parece, pela racionalidade e pelo avanço das forças produtivas.
Em relação à ciência e sua proximidade com o jogo Huizinga, considerando
características semelhantes a ambos, como limites de espaço, tempo, significado e
regras, poderia creditar aos vários campos da ciência o status de jogo (p.225-6). Todavia,
a ciência se aproxima da realidade e tem uma aplicação, uma utilidade fora dela mesma,
de forma que não pode ser definida, toda ela, como jogo. Porém, ao questionar se
existem elementos lúdicos na ciência a resposta do autor é que na “tendência” de
164
“sistematizar” dos cientistas existe um caráter lúdico que, com o seu desenvolvimento, é
barrado pela “observação” e pelo “cálculo”. Esta tendência de freio do lúdico não
“implica que na atividade científica não se encontrem alguns elementos de capricho.
Mesmo a mais minuciosa análise experimental pode ser ludicamente manejada no
interesse da teoria subseqüente, embora certamente não possa ser alterada quando em
curso” (p.226). O elemento de “capricho” faz referencia a um aspecto emocional que, na
perspectiva do autor, não deve corresponder ao racional, de forma que caracteriza um
fator lúdico. Porém, quando ele diz que “toda” pesquisa pode ser manipulada segundo
as necessidades do lúdico, poderia ser dito, de uma perspectiva de classe, que as
pesquisas científicas podem ser manipuladas em função de interesses políticos e
econômicos. Todavia, uma análise desse tipo foge ao escopo do autor que adota a
análise da competição científica como fato motivado por comportamento subjetivo, do
indivíduo que busca a vitória: “Mas, constitui mau sinal quando a ânsia de se antecipar
aos outros na descoberta ou de arrastá-los com argumentos transparece demasiado no
resultado final do trabalho científico. Aquele que realmente procura a verdade pouca
importância ao trunfo sobre seus adversários” (p.227). Ao apontar a análise do autor
pelo caráter individual da adulteração científica não se está negando que determinações
individuais, como “vaidade acadêmica”, possam ser motivos reais de tal processo.
Todavia, as maiores adulterações não ocorrem por conta de vaidades ou disputas
individuais, mas devido a interesses de classe e pela necessidade de produzir e
reproduzir a ideologia que representa um dos sustentáculos do sistema.
O próximo objeto utilizado para a análise da existência do elemento lúdico na
cultura contemporânea é a política, que é analisada, acertadamente, em íntima relação
com a guerra.
Em primeiro lugar, pode acontecer que certas formas lúdicas sejam
consciente ou inconscientemente utilizadas para ocultar determinados
desígnios políticos ou sociais, caso em que não estaríamos mais
perante o eterno lúdico que constituiu o tema deste livro, e sim como
o falso jogo. Em segundo lugar, é sempre possível depararmos com
fenômenos que uma visão superficial tomará como jogo, como
tendências lúdicas permanentes, e que na realidade nada têm a ver
com isso (HUIZINGA, 2001, p.227).
Huizinga denuncia a característica da vida moderna confundida com o lúdico
que ele denomina “puerilismo”, definido também por ele como uma mistura de
adolescência com barbárie”. Esse puerilismo se manifesta por dois fenômenos
165
principais, o “gregarismo” e a “sede insaciável de divertimentos vulgares e de
sensacionalismo, o gosto pelas reuniões e manifestações de massa, pelas paradas etc.”
Esse prenúncio de análise elitista é confirmado com a explicação das causas desse
processo:
Temos visto grandes nações perderem toda noção de honra, todo
sentido de humor, a própria idéia da decadência e do jogo limpo. Não
caberia aqui investigar as causas e a importância deste abastardamento
universal da cultura, mas não dúvida que a participação de grandes
massas semi-educadas no movimento espiritual internacional, o
relaxamento dos costumes e a hipertrofia da técnica são em grande
parte responsáveis (HUIZINGA, 2001, p.228)
.
Além do elitismo característico da contra-revolução o autor apresenta, ainda -
não pela primeira vez -, sua visão irracionalista anti-tecnológica, atribuindo ao produto
(a técnica) o predicado do produtor (os homens nas relações sociais capitalistas).
Comprovando como a posição antirevolucionária é marca inextrincável desse tipo de
leitura elitista da cultura, o exemplo histórico real que Huizinga encontra para o
puerilismo é a Rússia revolucionária (p.228).
Nossa definição do jogo impõe uma nítida distinção entre o puerilismo
e a ludicidade. Os brinquedos das crianças não são pueris no sentido
pejorativo em que este termo é aqui tomado. Além disso, se o
puerilismo atual fosse autênticamente [sic.] lúdico o resultado seria o
regresso da civilização às grandes formas arcaicas de diversão, nas
quais se verificava uma união perfeita entre o ritual, o estilo e a
dignidade (HUIZINGA, 2001, p.229).
Essa afirmação é muito complementar a sua descrição seguinte da cultura, pois
na ligação entre ambas está presente um veio romântico e idealizado do autor sobre seu
objeto de estudo: “O autêntico jogo desapareceu da civilização atual, e mesmo onde ele
parece ainda estar presente trata-se de um falso jogo, de modo que torna-se cada vez
mais difícil dizer onde acaba o jogo e começa o não-jogo (p.229). Entende-se que o
verdadeiro jogo só é possível na sociedade idealizada da religiosidade dominando a vida
social através do culto, uma vez que a vida civilizada retirou ao homem estes elementos,
substituindo-lhes pela técnica, pela ciência e pela racionalidade. Como não adota uma
perspectiva de classe, do agente revolucionário, ele não pode criticar a perspectiva
burguesa do racionalismo iluminista, que busca resolver as contradições históricas pela
166
via da razão, mas tem que criticar o racionalismo de forma abstrata, adotando o
irracionalismo como instrumento.
Discorrendo sobre os elementos lúdicos que se verificavam nas disputas
políticas, o autor oferece como exemplo a política norte-americana, segundo ele,
substancialmente “emocional” porque as pessoas dessa região “sempre se conservaram
fieis ao primitivismo da vida dos pioneiros”. O “elementos afetuosos” encontrados na
política desses povos estão ausentes da vida política européia, conforme o autor
(p.230). Huizinga acredita que essa ludicidade presente na política interna está
esmaecida nas relações internacionais, todavia, o fato dessas relações terem chegado
“ao auge da violência e da periculosidade não basta por si para excluir a
possibilidade do jogo. Conforme vimos através de numerosos exemplos, o jogo pode
perfeitamente ser cruel e sangrento” (p. 231). Essa posição encima do muro a respeito
do problema da guerra, iniciada nesse ponto, vai-se tornando mais circular e
previstamente confusa no desenvolvimento posterior do raciocínio. Huizinga explica
sua compreensão sobre direito internacional e a base deste no mútuo reconhecimento
pelos países das “regras do jogo”, sendo causa de “colapso” quando um dos
participantes desrespeita estas regras. Ele faz uma crítica muito superficial aos
interesses imperialistas que se mostram na Alemanha sem, contudo, expor nenhum
destes termos, ficando na sua análise formal e conceitual. A respeito de um problema tal
como a guerra ele observa:
Não conheço exemplo mais triste e mais completo de insulto à razão
humana que a patética ilusão de Schmitt a respeito do princípio do
‘amigo ou inimigo’, pois o que é sério não é a guerra, e sim a paz. A
guerra e tudo quanto com ela se relaciona está presa à rede mágica e
demoníaca do jogo. superando essa primária relação amigo-
inimigo, a humanidade atingirá uma dignidade superior. A concepção
da ‘seriedade’ de Schmitt leva-nos muito simplesmente de volta ao
nível selvagem (HUIZINGA, 2001, p.233).
Segundo a concepção de Schmitt sobre inimigo, este é qualquer estrangeiro que
estiver barrando os interesses do seu grupo que, por sua vez, constitui o grupo dos
amigos. Para esta concepção belicosa, que justifica os interesses do capital, a critica que
Huizinga optou por tecer foi a citada acima, complementada pela seguinte:
Temo-nos gradualmente aproximado da conclusão de que a
civilização tem suas raízes no jogo, e que para atingir toda a plenitude
de sua dignidade e estilo não pode deixar de levar em conta o
167
elemento lúdico. Em nenhuma outra instância o respeito às regras do
jogo é mais absolutamente necessário do que nas relações
internacionais; se essas regras são desrespeitadas a sociedade cai na
barbárie e no caos. Por outro lado, é precisamente na guerra moderna
que o homem volta à atitude agonística que inspirava o jogo primitivo
da guerra tendo em vista o prestígio e a glória (HUIZINGA, 2001,
p.233).
Para além dessa análise que no máximo da crítica chega ao caráter a-moral do
desrespeito das “regras”, o autor segue rotulando a guerra como falso jogo. E, ao final
das desqualificações moralistas contra a quebra das regras, Huizinga afirma que “apesar
das aparências em sentido contrário, a guerra não se libertou completamente do círculo
mágico do jogo”.
As críticas de Huizinga ao “desmancha-prazeres” (p.231) alemão, nesses termos,
têm os seguintes problemas. A sua explicação da relação da guerra com o jogo,
afirmando que esta mantém o espírito lúdico por seu caráter de agon que não é perdido,
expressa a avaliação do autor de que a guerra parece ser a expressão do “espírito da
época”, o espírito carregado pela razão”, elemento que é combatido por todo o livro.
Sua interpretação das relações internacionais pela via da cultura e a condenação da
razão, afirmando que esta tem a natureza da guerra, é compreendida pelo movimento
intelectual que se começa a desenvolver no período entre guerras, tendo esse livro sido
lançado no prelúdio da Segunda Guerra. Ao atribuir o caráter bélico à razão, mais
especificamente à razão iluminista, Huizinga não assume que este impulso para a guerra
é constituinte da natureza expansionista da fase imperialista do capital. Por isso sua
análise tem que se manter nos estreitos limites da crítica à violação das regras, do direito
internacional. Ao não assumir a posição radical de defesa da paz entre os países
conforme a Rússia (o país que ele toma como exemplo de puerilismo) o fez no seu
período revolucionário -, camuflando sua posição de classe com as elucubrações sobre o
jogo verdadeiro e jogo falso da guerra e da política, ele reafirma a ideologia que
sustenta a sociedade que precisa do conflito bélico para destruir forças produtivas e
continuar sua existência.
Uma outra ordem de problemas vem da seguinte análise. O jogo é a origem de
toda a cultura humana, a cultura tem dependência ontológica (dentro de sua ontologia
idealista) do jogo. A guerra jamais perde totalmente seu vínculo com o lúdico, de forma
que a guerra carrega sempre o que se poderia chamar de gênero humano, carrega
sempre o dico. “Seu ponto de vista [de Schmitt] é o do agressor que não se sente
168
limitado por quaisquer considerações de ordem moral. Mas não deixa de ser verdade
que a política e a guerra têm profundas raízes no solo primitivo da cultura lúdica e
competitiva” (p.234). Anteriormente ele havia afirmado que apesar do falso jogo da
política e da guerra contemporânea a política que conduz à guerra e os treinamentos
para a guerra são lúdicos. Desta forma, Huizinga ao mesmo tempo em que critica a
guerra apenas pela via moral, motivos metafísicos para justificar a guerra, pois ela é
expressão ‘do’ e expressa ela mesma ‘o’ lúdico.
A forma escolhida por Huizinga para sugerir o caminho oposto ao da guerra o
faz entrar em contradição com toda a formulação anterior formulação completamente
circular -, apelando para a razão e por seu amuleto do lúdico religioso. A “verdadeira
civilização” depende do elemento lúdico, tem que viver sobre regras e auto-limitada.
“Para ser uma vigorosa força criadora de cultura, é necessário que esse elemento lúdico
seja puro, que ele não consista no esquecimento das normas prescritas pela razão, pela
humanidade ou pela fé” (p.234). Para sustentar sua crítica moral da guerra ele chama à
voz a razão. Todavia, o mais importante dessa frágil justificativa é a “fé”, pois ele
trabalhou durante todo o livro sobre o par categorial seriedade-jogo ou seriedade-lúdico
em dois sentidos. No primeiro, opondo seriedade/realidade ao lúdico/irrealidade. No
segundo sentido, justapondo seriedade/sagrado ao jogo/cultura. Este segundo, o
princípio do primeiro, sendo sintetizado na fala de Platão que iniciou e concluiu suas
formulações: “Só Deus é digno da suprema seriedade, e o homem não passa de um
joguete de Deus, e esse é o melhor aspecto de sua natureza. [...] consideram a guerra
uma coisa séria, embora não haja na guerra jogo ou cultura dignos desse nome,
justamente as coisas que nós consideramos as mais sérias” (p.235). Conclui sua
concepção irracionalista com o apelo religioso: “O espírito humano só é capaz de
liberar-se do círculo mágico do jogo erguendo os olhos para o Supremo. A concepção
lógica das coisas é incapaz de levá-lo muito longe” (p.235).
As críticas regradas de Huizinga para não chegar à relação fundamental da luta
de classes impediram a explicação clara de porque se processava a luta intercapitais,
embolando explicações pela via da cultura, dificultando aos estudiosos do jogo, do
lúdico e do lazer compreender a luta de classes no momento em que este livro foi
lançado, no ano de 1938. Apesar de conservar seu compromisso com a burguesia, suas
críticas ascéticas não impediram que os nazistas o mandassem para o cárcere no ano de
1941, pois apesar de não atacar o capital ele acabou se posicionando contra o capital
alemão que invadiu os Países Baixos, sua terra natal.
169
Buscando uma breve síntese crítica da obra, pode-se estabelecer como aspecto
mais geral os ataques de Huizinga à racionalidade, afirmando que ela é um equívoco
quando se analisa o jogo, aspecto que é bem funcional às tendências relativistas e
irracionalistas presentes nas concepções ecléticas pós-modernistas em educação.
Condenar a razão como elemento indutor do erro para a compreensão do jogo e do
lúdico, a negação da base material dessa prática social, bem como o apelo ao sentimento,
do sagrado, um anti-iluminismo naquilo que ele trouxe de revolucionário, é a concepção
geral exposta por Huizinga e que, apropriada sem a devida crítica radical, significa
apropriar-se dos instrumentos do inimigo para intervir na realidade. Tem a conseqüência
de operar com uma concepção metafísica do jogo - aqui compreendido como uma
atividade de significação criada pelo homem para suprir suas necessidades de
desenvolvimento - interditando a compreensão histórica desse fenômeno e colocando-o,
ideológica e praticamente, disponível para a criação dos quadros mentais formadores do
trabalhador necessário à sociabilidade capitalista.
Ele diz que não importa submeter o pensamento e os hábitos dos povos
primitivos à racionalidade vigente hoje, possibilitada pelas análises científicas. Pelo
contrário, o que importa é captar o sentimento do homem nesse estágio, nas culturas de
organizações sociais primitivas. Estes homens são sempre tomados a conhecer por meio
das suas explicações mitológicas e religiosas do mundo, com sua concepção “mágica” e
“esotérica” do conhecimento.
A surpreendente semelhança que caracteriza os costumes agonísticos
em todas as culturas talvez tenha seu exemplo mais impressionante no
domínio do próprio espírito humano, quer dizer, do conhecimento e da
sabedoria. Para o homem primitivo as proezas físicas são uma fonte de
poder, mas o conhecimento é uma fonte de poder mágico. Para ele
todo saber é um saber sagrado, uma sabedoria esotérica capaz de obrar
milagres, pois todo conhecimento está diretamente ligado à própria
ordem cósmica (HUIZINGA, 2001, p.119).
Considerando que Huizinga não se propõe a discutir o jogo a partir da ontologia
do ser social em bases materialistas, ignora o desenvolvimento das forças produtivas
como se estas fossem epifenômeno desqualificante da natureza supra-racional do
homem, a proposição de fundo em Huizinga é que o mais importante ao tratar do jogo e
do lúdico, que correspondem às bases de toda a civilização humana, é o caráter sagrado,
transcendental destas protoformas da sociabilidade. Para além dos procedimentos –
mais literários que científicos - utilizados por Huizinga, expostos anteriormente, é
170
fundamental identificar que ele realiza o processo de conhecimento de modo inverso ao
proposto pelo materialismo histórico: estudar o mais avançado para compreender o mais
primitivo. Ou seja, ao invés de tentar compreender o jogo na modernidade para poder
explicar o jogo do primitivo, ele realiza o processo inverso, tenta conhecer o jogo nos
primitivos para alcançar sua essência na modernidade.
Huizinga condensa nas suas explicações aspectos étnicos da cultura européia,
africana, asiática, americana e ártica. Dessa forma, seu livro carrega uma universalidade,
precisamente quanto ao idealismo, a mitologia e a teologia de povos primitivos e
antigos de todo o mundo. Identificar estes aspectos no raciocínio de Huizinga sobre o
jogo e o lúdico é um passo importante para a discussão do lazer na sua concreticidade,
haja vista a ampla apropriação desse pensador no campo dos estudos do lazer, de forma
mais ou menos crítica, dada à centralidade que a categoria lúdico assume na
investigação do lazer. Compreender o papel que a teoria deste autor cumpre na disputa
ideológica que perpassa a luta de classes fornece uma base para a análise crítica dos
trabalhos que se utilizam de suas formulações.
Por fim, a mesma perspectiva de classe que limita suas análises da guerra
negando a luta de classes, o faz tomar o homem como categoria abstrata, a-histórica,
tornando suas análises do lúdico e/ou do jogo abstratas, limitadas pelo complexo
ideológico a-histórica, sustentador da estrutura capitalista, que ele defende.
Essa postura iracionalista, elitista e teológica de Huizinga, além de sua pesquisa
de vanguarda na linha da história cultural - conhecida também como nova história -,
contribui fortemente para a ideologia burguesa que visa à manutenção das relações
sociais fundadas na propriedade privada dos meios de produção e de subsistência.
Portanto, a ampla apreensão deste autor, no campo do lazer e mesmo da educação
quando se trata de estudar os jogos sem a necessária crítica da concepção de classe
que essas formulações carregam, é profundamente problemático para os trabalhadores
que precisam fundamentar teoricamente suas atividades do tempo livre e de educação, o
que pode causar um desencaminhamento das escassas iniciativas desse tipo.
4.2 Lazer e mudanças sociais: projeto de hegemonia sem classes
171
Neste tópico será feita a análise do livro Lazer e educação, de Nelson Carvalho
Marcellino. Este autor é uma das maiores referências no campo dos estudos do lazer no
Brasil, um autor “paradigmático”, como disse Werneck (2000-a). Marcellino nasceu em
1950, na cidade de Campinas SP, é formado em Ciências Sociais (1972), concluiu o
mestrado em filosofia (1984), orientado por Antônio Joaquim Severino, e doutorou-se
em educação no ano de 1988, com orientação de Rubem Alves. Em 1996 apresentou
Tese de livre-docência sob o tema “Interesses físicos no lazer e associativismo”. Entre
1988 e 2001 foi professor na Universidade de Campinas, ministrando disciplinas e
orientando pesquisas sobre o lazer. Desde 2001 é professor da Universidade Metodista
de Piracicaba, orientador de projetos de pesquisa de graduação e pós-graduação sobre o
mesmo tema e líder do Grupo de Pesquisas do Lazer
97
. A sua obra é referência no
campo dos estudos do lazer, sendo reafirmada ou criticada quanto a seus pressupostos e
conclusões, portanto, não se pode ignorar a produção deste intelectual ao pesquisar o
lazer no Brasil.
O estudo que será analisado foi a dissertação de mestrado de Marcellino, na
filosofia, e teve o objetivo de verificar as relações entre o lazer, a escola e o processo
educativo tendo em vista a formulação de uma “pedagogia da animação”. Ele investigou
“a importância do papel da Escola, quando se considera o lazer, quer como instrumento,
quer como objeto de educação”. Marcellino informa que o lazer vem se firmando como
área de atuação profissional e se preocupa com a “relação pedagógica” com a clientela
(p.14). Quais os “valores” que cercam a produção teórica que alimenta a ação de grupos
e instituições que trabalham com o lazer? Esta preocupação com os “valores” vai se
desenvolvendo partindo de categorias como “povo”. Ele informa que os procedimentos
metodológicos contemplaram “Observações empíricas do sociólogo” e aprofundamento
teórico a partir de documentação bibliográfica (p.15). Especificamente, ele utilizou a
“análise comparativa de textos teóricos das duas áreas consideradas”, pautada na
“abordagem crítica temática”. Parte da “consideração do lazer como cultura vivenciada
no “tempo disponível”, não em contraposição, mas em estreita ligação com o trabalho e
as demais esferas de obrigação da vida social, combinando os aspectos tempo e atitude”
(p.16).
Em relação à sua estrutura, o livro é composto de 4 capítulos. O primeiro sobre
o entendimento de lazer e educação. No segundo é feita uma análise de possibilidades e
97
Conforme informações do currículo Lattes de Marcellino:
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=S93051 Acessado em 04-03-2008, 23:00 h .
172
riscos da educação pelo e para o lazer (veículo e objeto). A relação entre lazer e escola,
quanto a conteúdo e forma é a discussão do terceiro capítulo. No último capítulo
Marcellino busca superar as críticas pela sugestão de alternativas com uma “pedagogia
da animação”, considerando as relações entre lazer, escola e processo educativo (p.17).
O autor informa que houve uma “tentativa de doação de sentido à relação entre os
elementos estudados; procuro assumir, também, o papel do educador, comprometido
com a mudança, com a transformação social; procuro muito mais que conclusões, o
questionamento” (p.18). Uma questão a ser feita é: o que adianta doar sentido, um
processo individual, a uma prática social que precisa de uma nova base? O capitalismo
se transforma se auto-revoluciona para sobreviver. Falar em termos concretos em
superação da miséria humana é falar em superação do capital e do capitalismo. Para
articular o lazer a tal processo histórico é necessário entendê-lo concretamente. Mas,
aparentemente, isso ainda não foi feito. O entendimento da materialidade da produção e
reprodução da vida no atual estágio histórico é condição para isso. Sem ele não é
possível ir ao centro de uma prática social que é fruto desse estágio caracterizado por
um modo de produção específico. Portanto, as mediações entre os modos de existir do
ser social e sua base ontológica, o trabalho, não serão explicitadas concretamente
tomando o indivíduo como centro da análise do lazer. Por último, discordando do
propósito de Marcellino neste trabalho, “o questionamento”, entende-se que um trabalho
de pesquisa tem que dar respostas sim, abrir o caminho para o avanço do conhecimento.
É claro que dar respostas às questões postas possibilita novas questões serem
formuladas, contudo, são necessárias sínteses, conclusões, ainda que provisórias, para
alcançar estágios mais profundos de domínio dos nexos causais da sociabilidade
humana.
O Capítulo 1 é intitulado Dois temas polêmicos: duas fontes de mal-
entendidos”. Nele Marcellino tem o objetivo de analisar os entendimentos de lazer e
educação pelos teóricos brasileiros (p.19). A produção teórica sobre o lazer o aborda
de forma indireta ou de forma direta, quanto ao seu significado. Na abordagem indireta,
“o foco de análise é um dos seus conteúdos culturais” ou está relacionado com
componentes de obrigação, família, escola, trabalho. As teorias indiretas geralmente não
conceituam o lazer, mas o tratam valorativamente, junto com a pouca produção teórica
direta e que não costuma tratar dos enfoques indiretos, contribui para mal-entendidos na
discussão do lazer isoladamente ou associado a outro tema. Os enfoques indiretos
173
costumam opor lazer e trabalho, mitificando o trabalho e gerando desconhecimento das
outras dimensões do humano (MARCELLINO, 1995, p.21-2).
“Essa mitificação do trabalho, na sua identificação com a essência humana,
longe de poder ser questionada apenas com idéias, parece estar, progressivamente,
sendo contestada pela realidade empiricamente observada. Aos progressos e riscos dos
avanços tecnológicos são somados os da automação” (p.22). Toma o pensamento de
Vicente Ferreira da Silva
98
que afirma que o trabalho ocorre na cultura, mas a cultura
não ocorre no trabalho, o trabalho é, pois, um ‘item intracultural’ (p.22-3).
Marcellino compreende que Paul Lafargue (1841-1911) é um dos primeiros a defender
o lazer dos operários e a criticar o trabalho como cerceamento e exploração do
trabalhador. Marcellino concorda com a afirmação de Paul Ricoeur
99
sobre a apoteose
ao trabalho feita por filósofos contemporâneos. Ricoeur critica a “noção de ‘civilização
do trabalho’”, segundo ele “o lazer será, cada vez mais, o grande problema da
civilização, a mesmo título que o trabalho” (RICOEUR, apud MARCELLINO, 1995,
p.23). Essa é uma afirmação importante, uma vez que considerar o lazer unilateralmente
pode levar a “sua utilização como fuga, fonte de alienação e simplesmente consumo”
(p.24).
Segundo Marcellino, “muitos autores, fascinados pelas possibilidades abertas
pelo progresso tecnológico, liberando tempo das obrigações profissionais, passaram,
numa atitude radicalmente oposta à ‘mitificação’ do trabalho, a propor o elogio do lazer,
como finalidade da existência e ideal de felicidade” (p.25). Ecléa Bosi
100
afirma que “se
no trabalho e no lazer corre o mesmo sangue social, é de se esperar que a alienação de
um gere evasão e processos compensatórios em outro” (REFp.26). A partir dessa
constatação pode-se inquirir: sem capital e o capitalismo o que existirá será o lazer no
tempo de não trabalho? No mesmo sentido da afirmação de Bosi, outra indicação é
tomada por Marcellino de David Riesman: “o lazer em si não é capaz de salvar o
trabalho, mas fracassa juntamente com ele, e poderá ser significativo para a maioria
dos homens se o trabalho o for” (p.26).
Marcuse, apropriado por Marcellino, opõe o jogo - anulador da repressão e
exploração do - ao trabalho e ao lazer. Para ele as horas de lazer na sociedade industrial
desenvolvida “não são livres desde que são administradas pelos negócios e pela
98
SILVA, Vicente Ferreia da. Ócio versus trabalho. In: Obras completas. São Paulo: Instituto Brasileiro
de Filosofia, 1964.
99
RICOEUR, Paul. História e verdade. Rio de Janeiro: Cia. Ed. Forense, 1968.
100
BOSI, Ecléa. Cultura de massa e cultura popular, 1978.
174
política”. Marcellino entende a oposição entre jogo e seu caráter lúdico e lazer e seu
controle e permissão social (p.27). A propósito do lazer como conquista histórica da
classe trabalhadora
101
, tal discussão pode ser encontrada em Lazer e Humanização.
Sobre os conceitos existentes a respeito do lazer, Marcellino mostra duas
grandes linhas: “a que enfatiza o aspecto atitude, considerando o lazer um estilo de vida,
portanto, independente de um tempo determinado [Riesman], e a que privilegia o
aspecto tempo, situando-o como liberado do trabalho [Fourastié], ou tempo livre, não só
do trabalho, mas de outras obrigações familiares, sociais, religiosas destacando a
qualidade das ocupações desenvolvidas [Dumazedier]” (p.29). A tendência dos
estudiosos atuais, para o autor, é considerar o lazer sob “os dois aspectos tempo e
atitude. Portanto, como uma atividade de escolha individual, praticada no tempo
disponível e que proporcione determinados efeitos, como o descanso físico e mental, o
divertimento e o desenvolvimento da personalidade, da sociabilidade” (p.31).
Dessa forma prefiro entender o lazer como a cultura compreendida
no seu sentido mais amplo – vivenciada (praticada ou fruída) no
‘tempo disponível’. O importante como caráter definidor é o traço
desinteressado dessa vivência. Não se busca, pelo menos
fundamentalmente, outra recompensa além dessa satisfação provocada
pela situação. A ‘disponibilidade de tempo’ significa possibilidade de
opção pela atividade prática ou contemplativa. Quero enfatizar essa
última afirmação, uma vez que significa uma revisão de conceitos que
emiti em outros trabalhos (MARCELLINO, 1995, p.31-2).
A forma como Marcellino define o lazer, a partir da opção, estabelece o
indivíduo como determinante do que é uma prática de lazer, e não o indivíduo em suas
relações sociais.
Comprometia, assim, a característica básica do lazer a opção -, e
privilegiava a ocupação ativa do tempo disponível, ainda que
destacando que a atividade era uma atitude e não estaria ligada,
necessariamente, à prática. Essa minha posição anterior, no entanto,
colocava em campos opostos lazer e ócio, ou seja, tirava a
possibilidade de opção pelo não-uso do tempo em atividades
possibilidade da contemplação. Autocriticando minha posição anterior,
não coloco lazer e ócio em campos opostos. Na realidade eles se
confundem, e constituem oportunidades para opção pessoal
‘desinteressada’, essa sim, a característica básica, comprometida de
certo modo, na minha concepção anterior, pelo conceito de
101
Marcassa (2002) tem uma avaliação diferente. Em sua análise histórica afirma que foi o tempo livre
que os trabalhadores conquistaram não o lazer, que foi instituído pela burguesia para o controle da classe
trabalhadora, dentro de um projeto educacional mais amplo e associado à instituição do lazer.
175
“produtividade”, que ironicamente, era por mim criticado, como bem
supremo da sociedade moderna (MARCELLINO, 1995, p.32).
A forma como o ócio é identificado à contemplação não explica a totalidade
dessa forma de ocupação do tempo livre anterior ao capitalismo. O ócio continha a
contemplação, com certeza, mas não estava limitado a ela, conforme explicado
anteriormente. Outro problema trazido por uma análise do lazer a partir do aspecto
“atitude” é a a-historicidade deste objeto. Se o que o define é a atitude, o lazer poderia
ter existido em qualquer tempo histórico, determinado pelo posicionamento dos
indivíduos frente às atividades que lhes eram acessíveis ou impostas. Como o próprio
autor afirmou, mesmo o trabalho pode ser considerado lazer nessa perspectiva, o que
constitui uma confusão teórica que não corresponde à concreticidade das relações
sociais. Por fim, a categoria “desinteresse” é um tanto problemática. Se fosse adjetivada
enquanto desinteresse pecuniário ainda seria mais consistente dentro da construção do
autor - de caráter individualista. Todavia, partindo das categorias econômicas para a
compreensão da sociabilidade é quase impossível desvincular as possibilidades de lazer
das mediações das mercadorias, haja vista o duplo aspecto discutido anteriormente, do
lazer mediado pelas mercadorias e do lazer produzido ele próprio como mercadoria.
Marcellino diferencia ócio de ociosidade, sendo a segunda identificada com a
ausência do trabalho (p.32). “Dessa forma, o tempo do desempregado não pode ser
entendido como tempo disponível, mas sim desocupado. Não possibilidade de opção
por atividade ou contemplação. Não há lazer ou ócio e sim ociosidade” (p.33).
Ele toma a afirmação de Costa
102
para dizer que “‘o lazer sempre existiu,
variando apenas o conceito sobre o que era e quais seus significados’. Em outros tipos
de organização social o que se verifica é o não isolamento das atividades obrigatórias
das atividades lúdicas, o que de modo algum significa a não-existência do lúdico” (p.34).
Ao analisar o lazer sobre a determinação da subjetividade individual, ou da atitude do
sujeito, qualquer atividade com caráter lúdico pode ser considerada lazer, bem como se
a análise parte dos dados tempo e espaço. Porém, divergindo desta posição, a escolha
feita nesta pesquisa é pela análise da prática social compreendida como lazer a partir das
relações sociais e da historicidade das expressões da cultura que compõem o lazer. O
lazer não é analisado sob a predominância da atividade e suas características peculiares,
por exemplo, pelos elementos que compõe um esporte, a forma como se joga e a
102
COSTA, Maria Heloísa Fénelon. Há lazer entre os carajás? Arte & Educação, v.4, n. 17, p.4-5, 1975.
176
sensação do jogador. Ao contrário, a análise se sob a importância desta prática no
conjunto das relações sociais, como ela é organizada, por quem e para quê. Por isso não
se corrobora o entendimento de que o lazer existiu sob qualquer forma de organização
social da produção e relações sociais correspondentes as diferentes organizações
econômicas.
Em seguida, Marcellino se ocupa das Aborgadens “funcionalistas” do lazer. Ele
distingue quatro abordagens que classifica nesta linha, a partir dos “valores” atribuídos
ao lazer pelos autores: a romântica, a moralista, a compensatória e a utilitarista. Sobre a
primeira abordagem a romântica -, identificada no escrito de Schmidt
103
, o lazer está
ligado aos “valores da sociedade tradicional” e à “nostalgia do passado”. A abordagem
moralista do lazer compreende sua função na “tranqüilidade, ordem e segurança social”
(GAELZER, apud MARCELLINO, 1995, p.36). A abordagem compensatória,
representada por Requixa
104
, Medeiros
105
e Pacheco
106
, compreende que a função do
lazer reside na compensação da insatisfação e da alienação no trabalho. Por último, a
abordagem utilitarista reduz o lazer “à função de recuperação da força de trabalho, ou a
sua utilização como instrumento de desenvolvimento” (p.36-7). As abordagens
funcionalistas do lazer buscam a manutenção da ordem social, mas, apesar disso, os
autores também demonstram “valores” de desenvolvimento pessoal e social nas
atividades de lazer (p.38-9).
Contrapõe-se a essa visão do lazer como instrumento de dominação,
aquela que o entende como um fenômeno gerado historicamente e do
qual emergem valores questionadores da sociedade como um todo, e
sobre o qual são exercidas influências da estrutura social vigente.
Assim, a admissão da importância do lazer na vida moderna significa
considerá-lo como um tempo privilegiado para a vivência de valores
que contribuam para mudanças de ordem moral e cultural.
Mudanças necessárias para a implantação de uma nova ordem
social.
Considero fundamental a busca do prazer no lazer, o que não impede
sua caracterização como um dos canais de atuação, no plano
cultural, tendo objetivos não meramente reformistas, mas que
signifiquem mudanças radicais no plano social (MARCELLINO, 1995,
p.41) [sem grifos no original].
103
SCHMIDT, Maria Junqueira. A família por dentro. Rio de Janeiro: Agir, 1967.
104
REQUIXA, Renato. Sugestão de diretrizes para uma política nacional de lazer. São Paulo: SESC,
1980.
105
MEDEIROS, Ethel Bauzer. O lazer no planejamento urbano. Rio de Janeiro: F. G. V., 1971.
106
PACHECO, Horácio. Inchação urbana, violência, lazer. Boletim de Intercâmbio. Rio de Janeiro:
SESC. 1981.
177
Sobre a perspectiva neutra de Marcellino ao propor um questionamento à
“sociedade como um todo”, é importante notar como uma crítica social desenraizada da
perspectiva de classe é primordial ao sistema capitalista no seu processo de reprodução.
Nesse sentido, questionar como a mudança pode ocorrer a partir de novos valores se
esses são criados a partir da estrutura econômica dada, é tão válido quanto inquirir em
que consiste a “radicalidade” dessas “mudanças”.
Alguns autores, segundo Marcellino, observam a ocorrência da negação do lazer
na sociedade atual, do “anti-lazer ou seja, sua própria negação - simples atividades a
serem consumidas aumentando a alienação”, sendo o lazer “uma ‘...construção
ideológica, sob a qual o anti-lazer se aproveita para penetrar mais eficazmente no modo
de vida das pessoas, com o objetivo de mantê-las perfeitamente integradas na sociedade
industrial e urbana’” (BRANDÃO apud MARCELLINO, p.42). Considerar o consumo
alienado um anti-lazer só pode ser fruto da incompreensão da objetividade do lazer, da
sua consideração abstrata e ideal do ponto de partida da análise, pois, se o lazer se
destina a recompor e potenciar a força de trabalho, se seus conteúdos serão acessados
por meio de uma instituição pública ou de uma instituição privada não muda seu caráter.
Só é possível considerar o lazer consumido como um anti-lazer se o conhecimento sobre
essa prática social é fundado em um ideal positivo, sobre suas qualidades
emancipatórias a partir de “valores e atitudes”, ou seja, a partir do indivíduo livre de
determinações históricas, em um plano metafísico.
A próxima questão discutida nesta obra é a relação entre educação e escola.
Marcellino distingue a educação sistemática, realizada “sobretudo através da Escola, e a
assistemática, que compreende os vários processos de transmissão cultural, englobando,
dessa forma, toda relação pedagógica” (p.42). O autor toma o pensamento de Gramsci
para se opor à relação pedagógica como relação “escolástica”, compreendendo que ela
está presente “em toda a sociedade no seu conjunto e em todo o indivíduo com relação
aos outros indivíduos” (GRAMSCI, apud MARCELLINO, 1995, p.43). Sobre a relação
entre educação e sociedade Marcellino aponta duas tendências: uma que a educação
como instrumento de reprodução; a outra que a entende como adestramento no próprio
sistema de produção capitalista. A posição tomada por ele é de defender o valor da
educação como instrumento de mudança social, criticando a escola a serviço do capital
e a orientação liberal (p.44-6).
Marcellino chama a atenção para a importância das relações pedagógicas extra-
escolares para a educação, ao mesmo tempo em que afirma a indispensabilidade desta.
178
Buscando novamente as idéias de Gramsci, recorre ao conceito de “serviços públicos
intelectuais”
107
toma, como exemplo, o teatro, as bibliotecas, os museus, as pinacotecas,
os jardins zoológicos, os hortos florestais e etc. que são “elementos de hegemonia, ou
seja, de democracia no sentido moderno” (GRAMSCI, apud MARCELLINO, 1995, p.
48). O seu primeiro capítulo é concluído com a análise que confronta os valores
atribuídos ao lazer por autores do lazer e da educação. Marcellino entende que a maioria
dos autores do lazer recusa a escola no processo educativo. Eles relativizam sua eficácia
democrática e criticam os conteúdos por ela transmitidos. A crítica aos autores da
educação é que estes não discutem o lazer de forma sistemática, apresentando juízos
negativos dele, que não fica estabelecido como objeto de análise. Ele afirma que se o
lazer se constitui em privilégio na sociedade atual, com a educação não é diferente. Se o
lazer e a escola são elementos de hegemonia, não se pode abrir mão deles para superar o
status quo. “Creio na mútua influência dessas duas áreas de atuação como parte do
processo educativo no seu todo” (p.49-55).
O autor lembra que deixar de considerar aspectos importantes na relação de
apropriação do lazer pela população como quantidade e qualidade do acesso à produção
cultural, o consumo e o caráter da prática, também é deixar de se preocupar com uma
“ação educativa” que colabore para a “correção dessas tendências indesejáveis do ponto
de vista de quem considera o plano cultural como um canal possível para mudanças de
repercussão, inclusive no plano social”. Ele afirma que se trata “de um posicionamento
baseado em duas constatações: a primeira, que o lazer é um veículo privilegiado de
educação; a segunda, que para a prática das atividades de lazer é necessário o
aprendizado, o estímulo, a iniciação que possibilitem a passagem de níveis menos
elaborados, simples, para veis mais elaborados, complexos, com o enriquecimento do
espírito crítico, na prática ou na observação. Verifica-se, assim, um duplo processo
educativo – o lazer como veículo e como objeto de educação” (p.58-9).
Iniciando a discussão dos “valores atribuídos ao lazer e este como “instrumento
e objeto de educação” (p.59), Marcellino discute o lazer como veículo de educação. O
lazer como veículo de educação apresenta potencialidades de desenvolvimento pessoal e
social, cumprindo objetivos consumatórios, relacionados ao prazer, e instrumentais,
relacionados à compreensão da realidade (p.60).
107
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura.
179
A indústria cultural cria necessidades padronizadas para facilitar o consumo, o
que “Torna ainda mais necessário um processo criativo de incentivo à imaginação
criadora, ao espírito crítico, ou seja, uma educação para o lazer que procure não criar
necessidades, mas satisfazer necessidades individuais e sociais”. Essas necessidades
dizem respeito ao acesso ao próprio lazer, conforme o autor. Ele também deixa expressa
a posição segundo a qual utilizar o lazer como veículo de educação é tratá-lo sob a
perspectiva funcionalista, se esta educação visar reparar perdas do indivíduo em relação
à educação formal, pois tem sentido falar em aspectos educativos do lazer, se esse
for considerado, conforme dissemos anteriormente, como um dos possíveis canais de
atuação no plano cultural, tendo em vista contribuir para uma nova ordem moral e
intelectual, favorecedora de mudanças no plano social”. Uma explicação sobre a
realidade a ser mudada é “uma estrutura sócio-econômica sufocante, em que uma
minoria tem excesso de recursos, de espaço e de tempo, pela exploração da grande
maioria” (p.62-4). Qual o caráter da superação proposta? Mudanças graduais por meio
da mudança cultural, pela construção de novos valores? Sim, é nesse sentido que a
“mudança” é proposta, pois as classes sociais fundamentais não são mostradas e
discutidas claramente, nem ao menos a sociedade capitalista e o capitalismo aparecem.
Nesse sentido: como lutar contra o que não se conhece?
Avançando em sua análise Marcellino critica a relativização ou negação da
escola no processo educativo. Para ele, alguns autores, ao ressaltarem o lazer como
campo privilegiado para a educação permanente, deixam claro o caráter
utilitarista/compensatório “das atividades praticadas no ‘tempo livre’ e seu caráter
‘funcionalista’ como dissimulador das desigualdades”. A educação permanente é
realizada como forma de “suplência de escolaridade” para quem não teve acesso a ela.
Assim, o lazer entendido como educação a partir do conceito de Educação Permanente
é uma relativização e negação da escola. A Educação pelo lazer, através dos meios de
comunicação de massa, com a cultura de massas, também é criticada. “O valor cultural
de uma atividade está ligado, sobretudo ao nível alcançado, seja na prática, seja no
consumo, ponto de vista que comungo com Dumazedier” (p.64-8).
Apoiando-se em Dumazedier explica que a atividade ou a passividade da prática
de lazer depende da atitude do indivíduo. Para este autor, um expectador ativo define-se
por sua seletividade, sensibilidade, compreensão, apreciação e explicação. É o que
“‘reúne todas as possibilidades de sua sensibilidade e inteligência para refazer, do
melhor modo possível e a seu modo, o caminho percorrido pelo criador’”
180
(DUMAZEDIER, apud MARCELLINO, 1995, p.69). Marcellino acredita que vai além
de Dumazedier no conceito de lazer porque, conforme ele diz, “coloco entre as
possibilidades de opção para a ocupação do ‘tempo disponível’, a contemplação
propiciada pelo ócio” (p.69). A utilização, por Marcellino, da categoria ócio para dar
conta da compreensão do lazer, se as afirmações feitas no início dessa pesquisa
estiverem corretas, é anacrônica, pois o lazer e o ócio são categorias distintas que, dessa
forma, não devem ser interpenetradas para a explicação de uma ou de outra. Marcellino
não diferencia as duas categorias - ócio e lazer – a partir da forma de organização social
da produção, portanto, acaba realizando uma análise descolada da historicidade de cada
uma dessas práticas sociais.
Sobre o conteúdo da produção cultural e a educação pelo lazer Marcellino
lembra que “a grande maioria do tempo disponível é usufruído nos próprios locais de
moradia, dentro das casas, o que propicia a formação de um público cativo’ da
televisão”. Sobre a qualidade do conteúdo veiculado pela grande mídia, ele entende que:
A necessidade do estímulo para o consumo rápido fez com que o nível
da maioria das obras veiculadas seja elementar e fragmentário. A
pobreza de conteúdo é uma constante oferecida ao grande público, nos
vários gêneros culturais, notadamente naqueles mais consumidos, caso
dos filmes feitos para televisão, das fotonovelas, da música ‘pop’ e
dos ‘best-sellers’. É uma enfadonha repetição de estilos, de ritmos, de
temas, de estrutura (MARCELLINO, 1995, p.70).
A causa do rebaixamento do nível da produção cultural é encontrada no trabalho,
por Marcellino, tomando o pensamento de Friedmann
108
como base. “A alienação do
trabalho, motivado pela despersonalização, pela ausência de participação e pelo caráter
inacabado do produto, como salienta Georges Friedmann, está para muitos autores no
centro da padronização das atividades fora do trabalho, e do lazer de uma maneira
geral” (p.71). Apesar dessa importante afirmação, de acordo com as bases de
investigação da presente pesquisa, Marcellino não desenvolve esse raciocínio, que
aparece de forma marginal e não se constitui como fundamento para uma análise
histórica do lazer.
Marcellino diz não ver ingenuamente a educação como “antídoto” para a
alienação que se verifica no campo do lazer, mas defende sua importância como forma
de acesso à contra-informação, conceito que “propõe o ‘...fornecimento de instrumentos
108
FRIEDMANN, Georges. O trabalho em migalhas especialização e lazeres. São Paulo: Perspectiva,
1972.
181
ao consumidor para que ele possa fazer uma decodificação crítica das mensagens
veiculadas pelos meios de comunicação...’” (SILVA
109
, apud MARCELLINO, 1995,
p.75). Essa contra-informação visa “‘...garantir a circulação de informações sobre a
situação de classe, à margem dos canais controlados pelo poder constituído e também
utilizando os espaços que as contradições da burguesia oferecem no seio desses canais’”
(SILVA, apud MARCELLINO, 1995, p.75). Esse apontamento do potencial da contra-
informação é feito devido às críticas dos teóricos do lazer e da educação aos meios de
comunicação de massa, como reprodutores da hegemonia burguesa. Considerando a
abrangência desses meios, o autor indica a necessidade da intervenção nos mesmos
(p.76).
Como próximo elemento da discussão Marcellino traz o lazer como objeto de
educação, iniciando por critica à Requixa: “O aprendizado para o uso do ‘tempo livre’
não considera que esse tempo não é livre, ou que pelo menos, não deve ser considerado
de maneira abstrata, indistintamente para todas as camadas da população(p.78) [sem
grifos no original]. É importante notar que nas análises de Marcellino não se encontra a
categoria classes sociais, coisa que difere em autores apropriados por ele, conforme a
passagem anterior em que ele usa a definição de Silva (1982) de “contra-informação”.
“Os valores marcadamente utilitaristas atribuídos ao lazer são também
lembrados, quando se procura justificar a necessidade da educação para o lazer,
disfarçando a inculcação de uma ideologia consumista e desenvolvimentista” (p.79). Ele
critica as concepções moralistas e utilitaristas da educação para o lazer que pregam a
necessidade de discernimento entre o bem e o mau, utilizando o tempo de lazer para
afastar, sobretudo os jovens, do perigo. Essas tendências cumprem a função de
“adestramento para o aproveitamento do ‘tempo livre’, tendo em vista a inculcação do
caráter social exigido para a manutenção da estrutura vigente” (p.81).
Contrapondo-se a estes valores conservadores “atribuídos” ao lazer, Marcellino
vai desenvolver o raciocínio da relação entre a escola e a superação do senso comum.
Antes dos conceitos de arte erudita e esporte de elite, na sociedade tradicional, diz ele, a
produção e o consumo da arte não se desvinculavam da vida cotidiana. Na sociedade
tradicional o aprendizado artístico se no cotidiano, com uma “educação espontânea”,
enquanto, com a cultura erudita, quem vai produzir a arte recebe uma formação
sistemática e especializada, uma educação planejada” (p.82-3). Estas observações
109
SILVA, Carlos Eduardo Lins da (org.). Comunicação, hegemonia e contra-informação. São Paulo:
Cortez; INTERCOM, 1982.
182
sobre a arte podem ser estendidas aos demais “conteúdos culturais do lazer”. Marcellino
lembra que a cultura moderna não começa com o fim da tradicional, mas que ambas co-
existem:
assim, observa-se ao mesmo tempo, com relação às atividades de lazer,
uma educação espontânea, nas escolas de samba, nos clubes de várzea,
nas decorações dos andores das procissões, etc., e uma educação
planejada, nos conservatórios, nas escolas dos vários esportes, nos
ateliês de arte, etc., e na Escola.
Essa última agência de educação para o lazer, na grande maioria das
vezes menosprezada pelos teóricos da área, na perspectiva do lazer
que defendo, ou seja, no seu entendimento como um dos canais
possíveis de superação do senso comum, tem um papel preponderante
e fundamental, como mediadora entre a cultura popular e a dominante
(MARCELLINO, 1995, p.83-4).
Bauzer considera que toda comunidade, incluindo família, Igreja, órgãos
públicos e privados devem participar da educação para o lazer, porém, cabe à escola [...]
“dar-lhe cunho sistemático, visando à atividade cuja prática poderá prosseguir vida
afora” (apud MARCELLINO, 1995, p.86). Os poucos estudos existentes demonstram a
“relação entre o nível de escolaridade e a prática do lazer. O estudo de Guidi
110
, em
Brasília, conclui que a diversificação da prática do lazer é função do nível de
escolaridade” (apud MARCELLINO, 1995, p.87). Estas considerações sobre o papel da
escola na superação do senso comum, a sua mediação do conhecimento científico e
artístico à classe trabalhadora e suas relações com o lazer, são o ponto de maior
contribuição nessa obra de Marcellino, segundo se entende nessa análise. Todavia, a
historicidade da escola, a compreensão da escola moderna e o papel que cumpre
efetivamente como instituição burguesa na reprodução de valores e comportamentos
que caracterizam o amoldamento da subjetividade do trabalhador no capitalismo, é a sua
realidade como sistema burguês de ensino. A este fato deve-se contrapor as
possibilidades de trabalhos de grupos em determinados locais, e mesmo dos indivíduos
em suas ações singulares, que conseguem quebrar a barreira estabelecida para a
apropriação do conhecimento acima referido. Junto com essas considerações, sem as
quais não se conhece historicamente a escola moderna, com sua “dualidade estrutural”,
é necessário ainda a compreensão dos nexos concretos entre essa formação, e o acesso
ao lazer na sua expressão mais rica, e o projeto revolucionário de superação do
capitalismo, pois, afirmar que socialização ampla do conhecimento científico e artístico
110
GUIDI, J. Juventude e lazer: o lazer no contexto sócio-cultural de Brasília na faixa-etária de 18 a 20
anos. Porto Alegre: PUC, 1975. (Tese de livre-docência)
183
de qualidade é diretamente construção da revolução é um equívoco, pois há nesse
problema a questão da consciência de classe que deve ser compreendida.
Marcellino critica o papel do especialista em lazer, apoiado em Chauí e Parker, e
indica que a orientação deste deve ser guiada por determinado posicionamento político,
de modo que “a educação para o lazer pode vir orientada pela ideologia dominante,
“folclorizando” a cultura popular e valorizando uma cultura pretensamente “erudita” (p.
92). Também, baseado em Parker, demonstra a preocupação de que a educação para o
lazer afirme
a prática de atividades consagradas, o que pode contribuir para a o
exploração de concepções alternativas. Corroboram essa crítica duas
constatações: a primeira, que algumas atividades são apreciadas ou
desenvolvidas em estágios diferenciados da maturidade física,
emocional e mental; e a segunda, que as modificações ocorridas nos
campos técnico e social, se processam de maneira rápida, alterando o
quadro de atividades possíveis de serem desenvolvidas. Do meu ponto
de vista esses riscos são procedentes e derivam da forma como se
processa a educação para o lazer. Orientada por valores conservadores,
‘compensatórios’, ‘moralistas’, ou ‘utilitaristas’, centra-se em
conteúdos, não levando em conta a idéia do processo de fruição, mas
privilegiando o ‘produto’. Dessa forma, reflete e reforça a ideologia
dominante (MARCELLINO, 1995, p.92-3).
Marcellino faz ainda uma importante reflexão no sentido de que “não se pode
separar a educação para o lazer da educação em geral” (p.93).
Nesse capítulo viu-se que o trabalho é citado, estando, porém, longe de aparecer
como elemento fundante da vida social: a base estrutural da sociedade não é tratada,
apesar do autor utilizar seguidamente o conceito de hegemonia de Gramsci. Sua busca
de uma mudança social e do fim da exploração da maioria pela minoria, sem tocar nas
categorias revolução e classes sociais, é auxiliada pelo recurso ao conceito de “camadas
sociais”. Isso se liga à sua discussão sobre o conceito de “contra-informação” sem a
discussão da consciência de classe.
Quanto a sua crítica da escola na sua função de reprodução, percebeu-se sua
falta de contextualização histórica no processo de constituição do capitalismo. Isso
expõe uma outra característica das críticas empreendidas pelo autor: a tensão no campo
cultural, de forma autonomizada em relação aos processos de produção e reprodução
material da existência na forma social do capital. Quanto a isso, o acento na importância
da escola como uma “agência” de formação para o lazer, desgarrada da discussão do
184
controle e organização desta agência, de sua configuração histórica, carrega o mesmo
aspecto de idealismo que uma mudança pelos valores expõe.
Com a preocupação a respeito da posição da escola em relação ao lazer e de
como ela se intera com a cultura vivenciada no tempo do lazer, é que Marcellino inicia
o terceiro capítulo: Lazer e escola: um amontoado de equívocos”. Ele lembra que
teóricos do lazer criticam o caráter imposto do trabalho escolar, iniciando por
exemplificar com a posição de Dumazedier. Este afirma haver uma “reivindicação de
autoformação voluntária, que concerne antes de tudo a um novo estilo de lazer dos
jovens”. Autores do lazer chegam a vincular o abandono escolar e a não observação dos
“valores veiculados no lazer” na escola. Em discordância com essa posição Marcellino
utiliza Freitag
111
para sustentar que esse problema advém da questão econômica, de
“classe social.” A classe a que Marcellino se refere é, por exemplo, “classes
privilegiadas economicamente” (p.96-7). Nesse sentido, um funcionário de alto cargo,
bem remunerado, mas que não possui nenhum meio de produção, se enquadra em
“privilegiado economicamente”.
“Nas tentativas de adaptação dos valores vivenciados no lazer como prática
educativa, tem-se confundido a orientação e a motivação, com um simples ‘deixar fazer’.
A situação é particularmente grave, nas matérias mais diretamente ligadas à iniciação
aos conteúdos culturais do lazer. Muitas vezes os professores confundem omissão com
liberdade de expressão, não participando do processo do desenvolvimento de atividades,
encarando-as, assim, como fins em si mesmas e não como parte de um plano de
objetivos educacionais a serem atingidos. O professor passa a funcionar como mero
espectador, em atitudes que disfarçam certo comodismo (p.97-8) [sem grifos no
original]. O questionamento de autores como Rubem Alves
112
, sobre prazer e educação,
não é inválido, porém, Marcellino concorda com Marinho
113
sobre a necessidade de
competências nas diversas atividades humanas, e com Morais
114
, sobre a necessidade de
equilíbrio entre disciplina e prazer (p.100).
Marcellino cita os estudos sobre a relação entre prontidão para a aprendizagem e
a participação em jogos, de Rosamilha; e a pesquisa sobre lazer e educação de bem-
dotados, de Maria Helena Moraes Mira. Segundo ele, estas pesquisas demonstram “a
111
FREITAG, Bárbara. Escola, Estado e sociedade. 4ª ed. São Paulo: Moraes, 1980.
112
ALVES, Rubem. A utilidade e o prazer: um conflito educacional. In: DUARTE JR., João
Francisco.Fundamentos estéticos da educação. São Paulo: Cortez; Autores Associados; Uberlândia:
Universidade Federal de Uberlândia, 1981.
113
MARINHO, Inezil Penna. Educação Física, recreação e jogos. São Paulo: Cia. Brasil Editora, 1981.
114
MORAIS, Regis de. Entre a educação e a barbáries. Campinas: Papirus, 1982.
185
validade do aproveitamento do lazer como prática educativa”. O lazer com suas
atividades é utilizado como preparação: “Perde-se de vista o prazer e instrumentaliza-se
o lazer. Como reflexo da ideologia dominante, fundamentada na produtividade, ele
passa a ter valor, a partir do momento que é útil” (p.103).
Quem é o educando, “como se dá, e com que objetivos sociais, o uso do tempo
da criança”? São estas questões que conduzem a discussão sobre o tempo na infância
(p.107). Tanto quanto o trabalho, o jogo, controlado pelo adulto é utilitário. Na
sociedade pragmatista e utilitarista em que vivemos, a criança não é considerada em si
mesma, mas como um adulto em potencial. Os estímulos para o lazer são orientados
dentro dessa perspectiva de preparação para a produtividade” (p.109). Sobre esta
afirmação do autor deve-se questionar: primeiro, qual sociedade não busca fins úteis?
Segundo, Essa crítica de um “jogo controlado pelo adulto” não infirma sua crítica
anterior ao processo de perda da direção do ensino, na escola, pelo deixar fazer? O
professor quando organiza uma atividade, um jogo, uma brincadeira, ele tem - e não
pode deixar de ter - um objetivo, um fim, uma utilidade para a brincadeira que ele
organizou. Seguindo a teoria de Vigotsky sobre o jogo não se pode discordar que
qualquer brincadeira tenha uma finalidade útil no desenvolvimento infantil. O que deve
ser diferenciado é uma utilidade voltada ao ser humano, que Marcellino coloca
mecanicamente na relação útil = produtivista/mercado, de uma utilidade voltada a
produzir mediações para a valorização do valor. Se é a utilidade, a racionalidade voltada
à produção que é o problema, não se pode chegar a discutir a questão radical do controle
e objetivos da produção.
“A escola absorve, rejeita ou promove as aquisições dos alunos nas atividades de
lazer? Existem, e quais são as diferenças de valorização, pela Escola, das ‘aquisições’
feitas pelos alunos na prática dos cinco interesses do lazer físicos, artísticos,
intelectuais, manuais e sociais?” (p.121).
Quais são os conteúdos culturais do lazer? Dumazedier distingue os conteúdos
baseado em áreas de interesse. “essa classificação, que incluiu interesses físicos,
práticos ou manuais, artísticos, intelectuais e sociais, é a meu ver, a mais adequada, pois
situa, no campo específico do lazer, as atividades que buscam o atendimento das
necessidades do corpo(p.121) [sem grifos no original]. Sobre esse encaminhamento
dos interesses físicos do lazer por meio de uma teorização sobre as “necessidades do
corpo”, já se discutiu o caminho metafísico desse conceito, quando se trata da natureza
186
humana a própria história, conforme Gramsci e a impossibilidade de apreensão do
real por via da sua utilização, no capítulo anterior.
No entanto, é importante a consideração de que cada atividade não
cumpre apenas um desses interesses, sendo dessa forma, impossível
distinguir com precisão os critérios levados em conta para a
classificação. Até que ponto as atividades físicas seriam individuais ou
sociais? Até onde a arte é expressão marcadamente da sensibilidade
ou da habilidade manual? Em outro trabalho, procedo uma análise das
relações existentes entre esses vários interesses, concluindo que a
distinção pode ser estabelecida em termos de predominância,
representando escolhas subjetivas, o que evidencia uma das
características das atividades de lazer – a opção. E nem poderia ser de
outra forma, pois os interesses compõem um todo interligado e não
formado por partes estanques (MARCELLINO, 1995, p.121-2).
O aspecto positivo dessa análise de Marcellino é a colocação de alguns nexos
entre os interesses que apontam para a categoria totalidade. Essa avaliação, porém, do
caráter subjetivo da escolha, pode contribuir para a compreensão do lazer de forma
concreta, se for considerada a base objetiva da subjetividade, bem como, a
materialidade da subjetividade. E, para além do significado de cada atividade de lazer,
com seu respectivo conteúdo, para o indivíduo, é essencial saber o papel cumprido por
elas no plano das relações sociais.
É importante ressaltar que as atividades de lazer procurem atender as
pessoas no seu todo. Mas, para tanto, é necessário que essas mesmas
pessoas conheçam atividades que satisfaçam os vários interesses,
sejam estimuladas a participar e recebam um mínimo de orientação
que lhes permita a opção. Em outras palavras, a escolha, a opção, em
termos de conteúdo, está diretamente ligada ao conhecimento das
alternativas que o lazer oferece (MARCELLINO, 1995, p.122).
Foi até esse ponto que a primeira versão do projeto dessa pesquisa chegava. Tal
perspectiva foi superada a partir da identificação da necessidade de formação de
indivíduos com consciência e práxis revolucionária. Além do conhecimento das
possibilidades dadas de lazer, é necessário o acesso material a tais atividades (que
Marcellino não nega), pois o lazer não depende da imaginação do indivíduo, ainda
que a imaginação seja profundamente necessária. Como Marx e Engels mostraram na
Ideologia Alemã e, os cientistas russos comprovaram e avançaram a partir de uma
psicologia com base materialista-histórica-dialética, a consciência é resultado da
produção e reprodução material da existência e das relações que os homens constroem e
187
contraem nesse processo, dos seus intercâmbios. É sobre essa história da formação do
ser social que se compreende que a subjetividade é objetivamente construída, bem como,
ela própria passa a exercer determinação objetiva nas relações sociais. Por exemplo,
uma pessoa que se priva de praticar esportes, assistir filmes, ouvir música popular e etc.
porque tem uma formação religiosa que lhe faz tomar tais práticas como pecado. A
subjetividade religiosa objetivou-se como uma barreira para a apropriação da cultura
socialmente produzida.
Voltando à análise escola-lazer de Marcellino, encontra-se que a educação
física/esportes atende interesses físicos, enquanto a literatura, a música e o desenho
atendem interesses artísticos e intelectuais, sendo os outros interesses relegados na
escola. As práticas manuais estiveram nos currículos, em disciplinas como “artes
industriais” ou “trabalhos industriais”, permanecendo em conhecimentos sobre
“horticultura, jardinagem, artesanato, etc., na atual disciplina educação para o trabalho”
(p.122-3). “Mesmo não existindo disciplinas voltadas para a iniciação dos conteúdos
culturais do lazer, o papel da educação formal seria, como é, de importância
fundamental para a vivência do lazer, entendida como instrumento de contra-
hegemonia” (p.136).
No quarto capítulo, Elementos para uma pedagogia da animação, o autor
informa que vai discutir “alguns elementos que possam orientar as relações lazer-
escola-processo educativo, encarando o lazer não dentro de uma visão ‘funcionalista’,
mas como um dos canais possíveis de atuação no plano cultural, buscando mudanças na
ordem social” (p.137). Partindo desse pressuposto colocado por Marcellino,
diferentemente do que ele afirma do caráter do lazer, este não pode ser algo
desinteressado: seja a formação humana em todos os sentidos, estando articulada à
reprodução ou à superação da ordem vigente, o lazer, a partir do momento que
pressupõe uma prática sistematizada, organizada, pressupõe um interesse, um sentido e
um significado. Nesse capítulo o autor privilegiou em grande medida a discussão,
análise e crítica do ensino de artes na escola. Antes disso, no início do capítulo,
Marcellino utiliza o conceito de corpo”, uma abstração idealista que emperra,
obstaculiza o entendimento concreto do homem e, portanto, de suas relações históricas.
A opção é apontada como “uma das características das atividades de lazer”.
Apesar da escola não proporcionar a educação para o lazer da forma apropriada,
Marcellino defende sua importância para o lazer se realizar como “um instrumento de
contra-hegemonia”. Ele entende que é necessário ultrapassar a fase das críticas à escola
188
e passar às proposições que “constituam reflexões no sentido de estimular a busca de
caminhos alternativos concretos de atuação no campo cultural”, afirmando sua crença
em que “essa busca envolva fundamentalmente, a competência técnica e a opção
política” (p.130-40). Retomam-se as críticas de Tumolo (2005) à produção no campo de
Trabalho e Educação (mesmo que Marcellino não seja desse campo de produção do
conhecimento, vê-se que ele lança mão de alguns argumentos semelhantes aos que
existem neste campo), na década de 1990, devido à perda de radicalidade da mesma que
deixou de explicitar o projeto socialista como horizonte, estabelecendo o mesmo
direcionamento que Marcellino apresentava nos finais de 1980. Ou seja, que era
chegado o momento das proposições, tendo sido superado o momento da crítica. A
esta proposição é necessário aproximar algumas questões importantes: primeiro, o que
mudou concretamente para estabelecer essa ruptura do momento de crítica ao momento
das proposições? Segundo, a escola estava/está já sob o controle dos trabalhadores de
forma que as suas propostas de uma escola critica, contra-hegemônica sejam
alcançadas? Terceiro, transpor o momento da critica significa que a realidade foi
suficientemente compreendida? Quarto, a quem será mais importante parar de criticar e
começar a propor, ao proletariado e demais segmentos de trabalhadores ou à burguesia e
seus administradores?
E aqui a animação engloba os sentidos de vida, de movimento e de
alegria. Portanto, uma ‘pedagogia da animação’, assim encarada,
estaria ligada à criação de ânimo, à provocação de estímulos, e à
cobrança da esperança. À preparação não para uma sociedade
dominada pela exploração do trabalho, ou para o ideal questionável de
uma ‘civilização do lazer’. Mas à educação para o movimento do
presente, o que implica em não considerá-lo imutável, e que entra em
choque profundo com a visão funcionalista’ do lazer, nas suas várias
nuanças aqui abordadas (MARCELLINO, 1995, p.142).
Novamente faltam os sujeitos históricos, as classes sociais, na análise de
Marcellino. A sociedade capitalista é fundada sobre a exploração do trabalho, não
dominada por ela. A posição hegemônica nessa sociedade é ocupada pela classe
detentora dos meios de produção e de subsistência, pela burguesia. Dessa forma, se a
hegemonia é uma das categorias centrais na defesa do papel da escola e do lazer como
canais de ação cultural, quem exerce a hegemonia, sobre que bases e sob quais
ideologias e instituições? Ao retirar as classes fundamentais, a categoria gramsciana de
hegemonia perde a materialidade histórica e se esvazia em abstração que não retorna ao
189
empírico, mas dele se distancia em sentido contrário da compreensão concreta das
relações sociais. Essa afirmação é feita tomando como base a categoria “bloco
histórico” que Gramsci toma do historiador George Sorel
115
. Comentando a formulação
de Marx na Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel: a teoria converte-se
em força material quando penetra nas massas” (MARX, 2005, p.151) (de forma
imprecisa, porque não tinha o material em mãos no seu confinamento carcerário), ele
diz:
A análise destas afirmações, creio, conduz ao fortalecimento da
concepção de ‘bloco histórico’, no qual, precisamente, as forças
materiais são o conteúdo e as ideologias são a forma, distinção entre
forma e conteúdo puramente didática, que as forças materiais não
seriam historicamente concebíveis sem forma e as ideologias seriam
fantasias individuais sem as forças materiais (GRAMSCI, 2004-a,
p.238)
116
.
Em outra passagem Gramsci diz diretamente que a hegemonia nasce da
fábrica” (GRAMSCI, 2001, p.247)
117
, ou seja, a classe que tem o domínio da economia
tem também o domínio político, jurídico, militar e cultural.
Por último, a educação para o “movimento presente”, segundo entendo, é a
educação para o capitalismo, pois de 1980 até 2008 não se apresentou uma situação
revolucionária no Brasil. A “mudança” em foco nada resolve, dado que o capitalismo
sobrevive mediante seu constante auto-revolucionamento, de forma que mudanças é o
que não faltam nesse sistema “sócio metabólico”. A educação deve ser pensada em
termos históricos, dos quais são inextrincáveis o passado e o futuro, sem os quais não se
pode pensar a revolução socialista.
O homem livre grego, segundo Huizinga, tinha tempo livre quando não estava
prestando serviços ao Estado, à guerra ou ao ritual. Marcellino faz a leitura de Huizinga
afirmando que segundo este autor, nesse tempo os gregos tinham “bastante lazer”
(p.143). Marcellino questiona esse conceito de ócio/lazer de Huizinga, dizendo que mais
correto seria denominá-lo “‘ociosidade’ alicerçada no trabalho de escravos” (p.143).
115
Na discussão em que demonstra porque Croce está errado ao defender que existe a divisão entre
estrutura e superestrutura no materialismo histórico, Gramsci (2004, p. 370) conta que toma esse conceito
de Sorel. Na nota ao texto Nº 62 (p.482), lê-se que Sorel foi um “pensador socialista mas não marxista”.
116
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, v.1: Introdução ao estudo da filosofia; a filosofia de
Benedetto Croce. 2004.
117
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, v. 4: Temas de cultural; ação católica; americanismo e
fordismo. 2001.
190
Em seguida Marcellino inicia a articulação da pedagogia proposta com a
destruição e a reconstrução. Ele diz que para a ‘destruição da forma de sociedade
atual’
118
, a colaboração da pedagogia da animação não se por meio de mais uma
disciplina no currículo, nem das atividades extra-curriculares. Dá-se pela apreensão da
cultura popular, “mediada pelo conhecimento científico”. O conceito de cultura popular
é tomado de Gramsci, que não é um conceito “conformista, pois supõe a crítica da base
popular – o folclore” (p.145-6).
Nesse sentido, a ‘pedagogia da animação’ é uma pedagogia do
movimento; do movimento desencadeado junto aos ‘simples’, com
eles, a partir de sua vivência; e os intelectuais, organicamente ligados
ao processo, para desempenharem seu papel pedagógico, precisam
mergulhar na feliz expressão de Gramsci no húmus da cultura
popular, expressão essa que caracteriza a grande contradição: é o
próprio produto decomposto das bases populares o folclore -,
amalgamado com detritos da cultura erudita, que constitui a fonte
geradora, de onde deverá germinar a ‘Revolução Cultural
(MARCELLINO, 1995, p.146-7).
A escola, funcionando como “centro de cultura popular”, contribuiria em termos
de: conteúdo, para a superação do senso comum; forma, “respeitando o ‘ritmo’ dos
alunos”; abrangência, atingindo para além dos alunos matriculados, toda a comunidade
local, não na perspectiva do voluntariado, mas na perspectiva de influenciar na vida
cultural desta, configurando uma “possibilidade de fazer-se instrumento de pressão para
obtenção de verbas e de participação nas decisões quanto à sua destinação; espaço,
saindo do interior da escola e atuando em “outros equipamentos da comunidade
próxima; elementos humanos, por um grupo de educadores (professores, funcionários,
administradores, lideranças culturais informais, práticos), os “animadores culturais, que
aliem competência técnica acadêmica ou prática a um compromisso político de
transformação”; recursos materiais, utilizando os recursos que recebe e buscando
“soluções alternativas da própria comunidade local”, sem esquecer a pressão ao poder
público para obter recursos (p.147-8). Em relação ao ponto “abrangência”, parece estar
definida nessa obra de 1987 o caminho de transformação baseado na reivindicação
por políticas públicas estabelecido e demonstrado por Marcellino (1996) em textos
posteriores. Na sua teorização não é identificável a busca da tomada do Estado pelos
proletariados, mas sim, no máximo a perspectiva das reformas graduais.
118
Idéia tomada de Gramsci, citado por MACCIOCCHI, Maria Antonieta. A favor de Gramsci. ed.
Rio de janeiro: Paz e Terra, 1980.
191
A atuação da escola para além dela e o compromisso político evidenciado por
Marcellino, voltam-se ao campo educacional. o aparece no seu escrito o
compromisso político como momento da luta que tem que ir muito além da política, ou
seja, da luta pela socialização dos meios de produção e seu controle livre e auto-
determinado. O máximo que sua teoria aponta é um Estado de Bem-estar Social. Não
são utilizadas as classes sociais na investigação do lazer e, portanto, não pode ser
teorizada a possibilidade de sua articulação à classe historicamente revolucionária.
Marcellino propõe a passagem da crítica à proposição de alternativas. Mas como passar
do momento da crítica ao momento propositivo que, na verdade, não são momentos
distintos – se a crítica fundamental do lazer ainda está por ser realizada? Como trabalhar
uma teoria para transformar aquilo que a teoria ainda não desvendou em suas muitas
determinações? Dessa forma, a transformação pode significar um tornar a ser do mesmo
sob um novo aspecto. Formar homens com alta apropriação da cultura e da ciência, sem
alterar a base social da produção, é capacitar força de trabalho para a produção e
acúmulo de capital. Claro que, dialeticamente, essa alta formação pode potencializar o
futuro revolucionário. Mas isso não acontece se essa formação se desarticulada da
quebra da ideologia dominante, da formação da consciência de classe e da organização
prática para a revolução social o que necessita de uma teoria revolucionária para ir
além da insurreição.
Marcellino expõe que a pedagogia da animação deve atuar no plano cultural,
com a valorização da cultura popular e no plano social, atendendo com critérios
qualitativos o maior número de pessoas. Nesse plano é vista a necessidade de começar o
“trabalho educativo a partir de suas condições reais”, o que é muito coerente. Todavia, é
muito problemático o que ele propõe na seqüência de seu pensamento: “procurando,
sem preconceitos ideológicos, articulações com os órgãos e instituições locais, na
medida em que essas possam ser estabelecidas, sem que se abra mão do compromisso
de mudança da situação, portanto, do compromisso político” (p.149). Como não ter
preconceito ideológico em uma sociedade de classes? O que é mudança de situação?
Esse conceito ganha corpo em algum escrito posterior? É possível articular-se à
qualquer indústria capitalista e manter o compromisso político com a classe
trabalhadora?
A concepção funcionalista do lazer, segundo o autor, com suas “nuanças” -
moralista, romântica, utilitarista ou compensatória não desconhece a relação entre
lazer, escola e processo educativo, mas privilegia o lazer e diminui o papel da escola,
192
usando para isto a justificativa do “fracasso escolar” (p.151). Os teóricos da educação
conhecem a relação, mas privilegiam a escola e consideram o lazer do ponto de vista
da “classe dominante”, o que indica, para Marcellino, uma visão a-histórica do lazer
(p.151-2).
Para Marcellino, reconhecer a interdependência entre lazer, escola e processo
educativo exige uma nova pedagogia e uma nova prática educativa, considerando as
possibilidades do lazer, como canal possível de atuação no plano cultural, de modo
integrado com a escola, no sentido de contribuir para a elevação do senso comum, numa
perspectiva de transformação da realidade social, sempre em conexão com outras
esferas de atuação política” (p.152).
Marcellino diz que não vai retomar as conclusões dos capítulos anteriores, mas
“manifestar a crença na possibilidade de mudança, sem a espera da situação ideal para a
ação, sem a atuação marcada pelo ‘tarefismo’, mas na aliança de ‘competências’ para
gerar ‘novas competências’ engajadas no compromisso de superação do quadro atual
que se verifica no plano social, e na re-descoberta do ‘gosto e o sabor da festa” (p.153).
A discussão de Marcellino tem como teórico mais contundente, ao que se
entende na presente pesquisa, o intelectual sardo Antônio Gramsci. Porém, sua
apropriação da obra de Gramsci dá-se pelo viés culturalista, pois os textos de embate
político e de análise econômica para justificar a categoria hegemonia não se fazem
presentes na teorização de Marcellino. Ainda mais, discutir hegemonia sem colocar
claramente a relação contraditória entre as classes sociais fundamentais, a burguesia e o
proletariado, é esvaziar o poder analítico desta categoria. Somando-se a estas questões
fundamentais, a concepção a-histórica do lazer como “cultura vivenciada” no “tempo
disponível” é determinada por não tomar a organização social da produção, ou o “bloco
histórico” na expressão tomada por Gramsci, como definidor das relações sociais entre
os homens e, portanto, da forma como se ocupa o tempo livre no capitalismo. Assim,
ainda que Marcellino apresente elementos preciosos das mediações entre lazer e
educação, sua formulação não apresenta os elementos necessários para a compreensão
das possíveis mediações dialéticas entre lazer e educação na construção de um projeto
socialista.
193
4.3 Apontamentos para a crítica da educação no capitalismo
No taylorismo-fordismo, a divisão entre concepção e execução do trabalho, leva
“tanto as relações sociais e produtivas e a escola a educarem o trabalhador para essa
divisão [...]. Assim, conhecimento científico e o saber prático são distribuídos
desigualmente, contribuindo ainda mais para aumentar a alienação dos trabalhadores”
(KUENZER, 2005, p.79). A mesma autora continua sua apreciação sobre as pedagogias
que erigem no modo de produção taylorista-fordista: “nas versões sempre conservadoras
das escolas tradicional, nova e tecnicista, sempre se fundamentaram no rompimento
entre pensamento e ação” (KUENZER, 2005, p.83).
Em relação à educação no contexto da reorganização produtiva, Frigotto (1985),
afirma que A Teoria do Capital Humano de Theodor Schultz, que tem grande influência
na educação, é uma especificidade da ideologia burguesa no ocultamento da natureza da
sociedade capitalista e tem o caráter circular, que preserva os elementos mitificadores
do senso comum. Segundo ele, o positivismo - que intenta impor a naturalidade das
relações capitalistas e o homem como ser natural cuja característica é seu
comportamento racional - constitui a base do liberalismo individual -que decorre da
concepção de homem genérico, abstrato e livre -, que fornece o arcabouço da teoria
econômica neoclássica.
Para o autor supra citado, esta formulação teórica vai constituir a seguinte visão
de sociedade: todos os indivíduos são livres, todos no mercado podem vender e comprar
o que quiserem, logo, o problema da desigualdade é do indivíduo. Aqueles que têm
capital, sempre segundo a formulação teórica criticada por Frigotto (1985), é porque se
esforçaram mais, trabalharam mais, sacrificaram o lazer, pouparam para investir
119
.
Existindo um mecanismo de concorrência perfeita os indivíduos ganham seu lugar na
hierarquia segundo seu mérito, que se define em termos de talentos individuais,
motivações para suportar longos anos de estudo e outras provações iniciais. O somatório
das decisões tomadas, fruto das aspirações pessoais resultará num equitativo equilíbrio
de poder (concorrência perfeita). Para ele, esta análise reducionista, que considera
119
Marx (2003, p. 827), para explicar a origem do capital ironiza a explicação da economia política
clássica sobre a origem das classes sociais: "Havia outrora, em tempos muito remotos, duas espécies de
gente: uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo econômica, e uma população constituída de vadios
trapalhões que gastavam mais do que tinham". Discurso esse que ainda predomina no ideário dominante e
ciência oficial que, da mesma forma, afirma que os países mais desenvolvidos chegaram a tal ponto
porque investiram mais em educação.
194
fatores isolados e faz análises mecânicas, faz com que a relação entre classes se
transforme numa relação entre indivíduos, postulando a superação do conflito de classes
sem a superação do modo de produção capitalista. Sentido semelhante ao traçado pelos
teóricos dos lazer, que visam a transformação da sociedade atual pela mudança de
atitude dos indivíduos.
A educação, de acordo com a concepção analisada, é pensada como produtora de
capacidade de trabalho, potenciadora do trabalho e potenciadora da renda, como capital
social, fator de desenvolvimento econômico e social. A prática educativa escolar reduz-
se a uma questão técnica, uma tecnologia educacional com função de ajustar requisitos
educacionais a pré-requisitos de uma ocupação no mercado de trabalho. Na Teoria do
Capital Humano a educação é tida como fator básico de mobilidade social. Ou seja,
enfatiza-se a crença de que a aquisição de capital humano, via escolarização e acesso
aos graus mais elevados de ensino, é garantia de ascensão a um trabalho qualificado e
níveis de renda cada vez mais elevados. Esse ideário se inicia no Brasil a partir da
segunda metade da década de 60, segundo Frigotto (1985).
Mas, segundo o mesmo autor, a prática educativa escolar relaciona-se com a
prática social de produção da existência não de forma imediata, e sim de forma mediata.
Em seguida são elencadas as mediações entre prática educativa escolar e processo de
produção:
Fornecimento do saber geral que se articula ao saber específico do processo
produtivo;
Dotação de traços ideológicos necessários na grande massa de trabalhadores;
O conceito de alfabetização funcional desenvolvido pela UNESCO e utilizado
em contratos do Banco Mundial expressa, nas condições histórica atuais, a
educação em doses homeopáticas para as classes populares (A. Smith);
Prepara com domínio aprofundado em diferentes ramos do conhecimento,
mediante seletividade social e criação de centros de excelência, quadros de
trabalhadores improdutivos (nos âmbitos do planejamento, organização,
gerência;
Sua ineficiência, sua desqualificação. Ao se desqualificar a escola da classe
trabalhadora, justifica-se a situação de explorados e impede-se o acesso ao saber
195
elaborado, limitando a classe trabalhadora na sua luta contra o capital. Sua
improdutividade toma-se produtiva às relações capitalistas;
Represamento de um exército de reserva funcional e válvula de escape à tensões
sociais, através do prolongamento da escolaridade desqualificada - que Gramsci
chamou de função parasitária;
Criação de uma indústria do ensino, particularmente a privada, que representa a
utilização produtiva da riqueza social produzida em outras esferas produtivas.
Em outro texto, Frigotto (2004), mostra que nas décadas de 80 e 90 a Teoria do
Capital Humano se renova e “o ideário neoliberal, sob as categorias de qualidade total,
formação abstrata e polivalente, flexibilidade, participação, autonomia e
descentralização está impondo uma atomização e fragmentação do sistema educacional
e do processo de conhecimento escolar”.
Na conformação educacional para atender as características da produção flexível
um conceito que ganham destaque é o de competências, segundo Kuenzer (2005). De
acordo com ela, as demandas de disciplinamento que o capitalismo impõe à escola
mudam radicalmente a partir de 1990, dada a “mudança da base eletromecânica para a
microeletrônica”, de forma que as novas exigências impostas ao trabalhador
120
, que vão
se refletir na educação no estabelecimento das competências, são:
análise, síntese, estabelecimento de relações, rapidez de respostas e
criatividade diante de situações desconhecidas, comunicação clara e
precisa, interpretação e uso de diferentes formas de linguagem,
capacidade para trabalhar em grupo, gerenciar processos, eleger
prioridades, criticar respostas, avaliar procedimentos, resistir a
pressões, enfrentar mudanças permanentes, aliar raciocínio lógico-
formal à intuição criadora, estudar continuamente e assim por diante
(KUENZER, 2005, p.86).
Concluindo esse raciocínio de forma concordante com a indicação de Frigotto
(2004), a autora supra citada afirma que os novos princípios toyotistas invadem a
escola, encontrando sua forma de efetivação com a pedagogia das competências, que
vão se preocupar em formar ”trabalhadores e pessoas com comportamentos flexíveis, de
modo que se adaptem com rapidez e eficiência a situações novas” (KUENZER, 2005,
120
È indispensável pensar sobre essas exigências em relação a quantos e quais trabalhadores elas atingem,
pois há diferenças na organização produtiva entre diferentes regiões de um mesmo país, e entre diferentes
países e continentes. Também, deve ser questionado o papel que cumpre a escola que forma a maioria dos
filhos da classe trabalhadora e os próprios trabalhadores.
196
p.87). Assim, ao mercado que exclui trabalhadores dos postos formais de trabalho para
inclui-los [não todos, é bom frisar] no mercado informal precarizado, corresponde a
escola que inclui os alunos nos diversos níveis e modalidades de ensino, excluindo-os,
todavia, da qualidade da educação, da efetiva apreensão do conhecimento específico
que a escola deve socializar (KUENZER, 2005, p. 92).
Este tipo de educação, que reproduz o pensamento dominante e atua para
garantir a estrutura produtiva especificamente capitalista, está no processo de
engendramento da pobreza espiritual condicionante das práticas pobres do lazer no/do
capitalismo, conforme se discutiu acima em relação à produção do lazer como
mercadoria.
Assim, dado o quadro das discussões do lazer e da educação que caminham na
ordem do capital, faz-se necessário avançar no conhecimento da luta de classes,
tentando algumas aproximações com a teoria social que seja capaz de mostrar caminhos
em que o lazer e a educação possam estar articulados no processo de construção do
socialismo, tarefa que começa a ser esboçada, nos limites desta pesquisa, nas
considerações finais, próximo e último ponto a ser desenvolvido.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nas considerações finais da pesquisa será feita uma reflexão sobre algumas
questões referentes ao trabalho autodeterminado e às mediações do lazer e da educação.
Duas idéias de Mészáros (2002) são um bom ponto de partida para essa reflexão. A
primeira traz a afirmação da necessidade da superação positiva do objeto negado, para
não ficar condicionado ao objeto da negação. A segunda, diz que o capitalismo esgotou
sua capacidade civilizatória e deve ser superado positivamente pelo socialismo,
caso contrário, a continuidade desse sistema sociometabólico insaciável e incontrolável
levará a humanidade à barbárie. Assim, pensar o lazer voltado à emancipação humana é
pensar - e é possível com -a superação positiva do capitalismo e do capital, pois
trabalhar somente com as práticas do lazer voltadas à negação das relações sociais
atuais significa manter-se condicionado ao objeto negado. A educação tem papel
fundamental nesse processo uma vez que na “concepção marxista ‘a transcendência
positiva da auto-alienação do trabalho’ ] caracterizada como uma tarefa
inequivocamente educacional” (MÉSZÁROS, 2004, p. 19). Portanto, discutir lazer de
forma radical e indispensavelmente crítica é discutir a superação das relações sociais de
produção estruturadas a partir e em função do capital, que se fundamenta na propriedade
privada dos meios de produção e dos meios de subsistência.
É necessário entender que a divisão entre concepção e execução do trabalho, se
estende à divisão do político e do econômico, gerando a alienação e a exploração do
homem pelo homem, uma vez que o trabalho é a categoria fundante do ser social,
segundo Lukács (1981) apud Lessa (2002). Superar essa alienação é superar a alienação
do trabalho e sua causa, a propriedade privada dos meios de produção. Nas palavras de
Marx (2004, p. 79):
constatamos que o trabalhador baixa à condição de mercadoria e à de
mais miserável mercadoria, que a miséria do trabalhador põe-se em
relação inversa à potência (Macht) e à grandeza (Grösse) da sua
produção, que o resultado necessário da concorrência é a acumulação
do capital em poucas mãos, portanto a mais tremenda restauração do
monopólio, que no fim a diferença entre o capitalista e o rentista
fundiário (Grundrentner) desaparece, assim como entre o agricultor e
o trabalhador em manufatura, e que, no final das contas, toda a
sociedade tem de decompor-se nas duas classes dos proprietários e dos
trabalhadores sem propriedade.
198
E afirma, coerentemente, em texto escrito após 31 anos
121
:
precisamente pelo fato do trabalho estar na dependência da natureza se
conclui que o homem possuir apenas a força de trabalho será
forçosamente, em qualquer estado [situação] social e de civilização,
escravo de outros homens que se tornarem proprietários das condições
objetivas do trabalho. Ele não pode trabalhar nem, por conseguinte,
viver, a não ser com a autorização destes últimos (MARX, 2005, p.
126).
Fica evidente que a propriedade privada é o fundamento da alienação humana no
capitalismo, uma vez que o trabalho é a categoria central definidora da sociabilidade.
Será visto agora como a lógica do capital afeta esta atividade humana, o trabalho, que já
é o indicativo de como o movimento inerente à sobrevivência do capital tem resultado
proporcionalmente inverso para a humanização plena de realização do ser humano. O
que acontece na produção especificamente capitalista, que opõe o trabalho ao capital?
O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais
mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas
(Sachenwelt) aumenta em proporção direta a desvalorização do
mundo dos homens (Menschenwelt). O trabalho não produz somente
mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma
mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em
geral.
Este fato nada mais exprime, senão: objeto (Gegenstand) que o
trabalhador produz, o seu produto, se lhe defronta como um ser
estranho, como um poder independente do produtor. O produto do
trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, fez-se coisal (sachlich),
é a objetivação (Vergegenständlichung) do trabalho. A efetivação
(Verwirklichung) do trabalho é a sua objetivação. Esta efetivação do
trabalhado aparece ao estado nacional-econômico como desefetivação
(Entwirklichung) do trabalhador, a objetivação como perda do objeto
e servidão ao objeto, a apropriação como estranhamento
(Entfremdung), como alienação (Entäusserung).
A efetivação do trabalho tanto aparece como desefetivação que o
trabalhador é desefetivado até morrer de fome. A objetivação tanto
aparece como perda do objeto que o trabalhador é despojado dos
objetos mais necessários não somente a vida, mas também dos objetos
do trabalho (MARX, 2004, p. 80-81).
A determinação fundamental do lazer e da educação está na forma de produção
social da existência, na relação em que o trabalhador tem que vender sua força de
121
A primeira citação (MARX, 2004) refere-se aos Manuscritos econômico-filosóficos, escritos em 1844.
A segunda (MARX, 2005), à Crítica ao Programa de Gotha, datado de 1875.
199
trabalho para se reproduzir como homem, e tem que existir como homem para vender
sua força de trabalho. Pensando, pois, na forma como o tempo livre é ocupado na
sociedade capitalista confirma-se que o trabalho é a condição determinante do lazer,
uma vez que é a condição da vida humana. Este pressuposto deve estar presente nas
investigações e nos projetos da classe trabalhadora em tudo que se refere ao seu tempo
livre e a sua educação.
Realizando um esforço de sair da negatividade do lazer condicionado pela
sociedade capitalista, e intentando informar a alternativa positiva do lazer, para o
desenvolvimento das múltiplas possibilidades humanas, reiterar-se-á a condição dessa
positividade: a sociedade do direito, da “justiça social”, democrática e igualitária deve
ser superada pela alternativa socialista, momento de transição para a sociedade da
legitimidade, da satisfação, da livre associação dos produtores autônomos e do
tratamento diferente para homens com necessidades também diferentes. Mesmo
considerando que a exigência do profundo entendimento da realidade e dos esforços
práticos guiados por esse profundo entendimento é uma tarefa histórica gigante, da
classe dos trabalhadores que se devem organizar mundialmente, um ponto de
positividade é rever a afirmação do investigador que desvendou a dinâmica do
capitalismo para possibilitar sua superação: “na atual sociedade capitalista, estão
finalmente criadas as condições materiais e outras que permitem e obrigam o
trabalhador a discutir essa maldição social” (MARX, 2005, p. 128).
Da mesma forma que o lazer, e como condição necessária a este com o sentido
emancipador aqui buscado, a educação, de acordo com a proposição de Mészáros
(2004), para vir a ser no seu sentido mais profundo e positivo, deve estar inserida ‘no’ e
depende ‘do’ processo de superação revolucionária do capital e do capitalismo, do fim
das sociedades de classes. Ela deve buscar a possibilidade da contradição nos espaços e
tempos onde acontece, para sair do campo da inculcação da ideologia burguesa e ir para
o campo do desvelamento das contradições entre as classes. Trabalhar para a formação
de homens capazes de entender a realidade atual a partir do maior número de
determinantes possíveis, visando aumentar as possibilidades de uma ação revolucionária
coesa, coerente, consciente e acertada em vista do movimento das relações sociais e das
contradições imanentes das mesmas.
Em relação ao lazer articulado a um projeto de emancipação, a educação pode
colaborar, além da formação em sentido geral, no sentido específico mostrando as
possibilidades existentes para as práticas de lazer, que devem ser pensadas juntamente
200
com a necessidade de superação da propriedade privada e da acumulação privada do
resultado da produção social.
O lazer será potencializado em sentido emancipador quando atingir a totalidade
das relações sociais em que se insere, participando da formação cultural rica do
trabalhador que o goza, abrindo possibilidades de uma imaginação forte que, deve
articular-se a partir da formação teórica balizadora da necessidade de superar os
determinantes impostos pela lógica do trabalho alienado, produtor de mercadorias, pela
alternativa socialista. Assim, quebra-se o ciclo de consumir as mercadorias de lazer de
custos diferenciados, direcionadas aos diferentes trabalhadores dos diversos setores
produtivos. Gerentes do capital e conceptores do trabalho consomem mercadorias do
lazer mais elaboradas - óperas, teatros e exposições artísticas. Os executores do trabalho
consomem mercadorias de lazer com menor tempo de trabalho socialmente necessário
para produzi-las – futebol amador, churrasco, bar, programas televisivos pobres. O
proletariado, na perspectiva buscada aqui, passa a ter acesso a atividades que lhe
proporcione o enriquecimento nos diversos campos da produção cultural humana, não
se circunscrevendo às atividades pensadas pelos capitalistas, e limitadas pelos preços
das mercadorias, ao seu posto na produção. A “qualidade humana eleva-se e se refina na
medida em que o homem satisfaz um número maior de necessidades e, portanto, torna-
se independente delas [...]. A política da qualidade determina quase sempre seu oposto:
uma quantidade desqualificada” (GRAMSCI, 2001, p.261).
É imprescindível reafirmar que não basta o trabalhador gozar de várias
possibilidades de lazer para que este seja caracterizado como revolucionário. As práticas
de lazer devem contribuir para uma educação historicamente balizada para a superação
da sociedade de classes, para a formação da consciência de classe para si. Mas, o que
determina isso? O conteúdo da prática? Este é um ponto fundamental para este tema,
que deve ser aprofundado em relação as suas especificidades e mediações na estrutura
econômica atual.
Esta riqueza se articula com o conceito amplo de educação para além do capital
trabalhado por Mészáros (2004, p. 23), que deve superar o caráter vocacional, ou seja,
“pessoas envolvidas a funções utilitaristas estreitamente pré-determinadas, privadas de
qualquer poder decisório” e geral, que se preocupa em “ensinar aos indivíduos, de
forma paternalista, as ‘artes do pensamento’ ”, por uma educação contínua e inseparável
da prática da auto-gestão, que necessita de homens “educacionalmente enriquecidos”,
201
que possam articular suas necessidades à determinação dos princípios e objetivos da
sociedade.
Mészáros (2004, p. 24), lembra também que “o êxito estratégico é impensável
sem a realização das tarefas imediatas”, afirmação importante para pensar-se o campo
da política. Para operar neste plano é importante a ajuda de Gramsci (2001, p. 20-1),
que expõe a sociedade política ou Estado como um dos grandes planos da
superestrutura, que tem “a função de ‘hegemonia’ que o grupo dominante exerce em
toda a sociedade”. Por isso, travar as lutas no campo político é importante para construir
as condições necessárias a transição socialista, na medida em que a mesma for orientada
pelo movimento de via extra-política, pelos interesses históricos da classe situada no
campo da produção fundamental da existência. Para essa classe, a tarefa imediata é
resolver os problemas de suas organizações que, de um lado não se internacionalizaram,
conforme é necessário para a ação mundial do proletariado, uma vez que o socialismo
ou acontece no mundo todo ou não pode ser vitorioso. De outro lado, organizações de
trabalhadores, os sindicatos, que no seu sentido inicial representam as necessidades dos
trabalhadores contra o capital, expressam a luta de classes, atualmente são subsumidos
aos interesses patronais e se vincularam à resolução dos problemas da produção
capitalista. Gounet (2002, p.106) cita o periódico francês L’Expansion, que mostra a
fala de um secretário de sindicato de metalúrgicos, criador de “estruturas locais de
diálogo entre patrões, militantes, especialistas e altos funcionários”. Este secretário
chamado François Introvigne afirma que “O sindicato [...] deve ser um valor agregado
para a empresa” (Idem, Ibidem).
Mészáros (2002) faz a análise da organização dos trabalhadores, desde suas
comissões de fábrica e sindicatos até os partidos políticos. Lembra que quatro
Associações Internacionais foram criadas nos último 150 anos, não conseguindo,
porém, “a necessária unidade internacional do movimento operário” (Idem, p.27). Tal
unidade, explica Mészáros, não foi atingida ainda devido a “pluralidade setorial do
movimento operário” como decorrência da “pluralidade contraditória hierarquicamente
estruturada dos capitais, seja de cada país, seja em escala mundial” e não por simples
falta de “clareza ideológica” (Idem, Ibidem).
Segundo Mészáros, os sindicatos surgem de associações parciais, assumindo
posturas defensivas com sérias conseqüências para o movimento socialista. Tal postura
defensiva transforma “o movimento operário, por meio de seus primeiros sindicatos,
[...] em interlocutor do capital, sem deixar de ser obviamente seu adversário estrutural”
202
(MÉSZÁROS, 2002, p.22-23). Historicamente problemático, ainda segundo Mészáros,
é o fato dessa postura defensiva significar a legitimação do sistema capitalista e suas
leis. Entretanto, as crises do capital o impediram e o impedem de continuar a oferecer as
vantagens a seu interlocutor racional”, de forma que “foi obrigado a retomar as
concessões passadas, atacando sem piedade as próprias bases do Estado de Bem-estar,
bem como as salvaguardas legais de proteção e defesa do operariado por meio de um
conjunto de leis autoritárias contrárias ao movimento sindical” (Idem, Ibidem, p.24).
Um dos aspectos fundamentais das análises que este autor realiza sobre a relação do
movimento dos trabalhadores e suas representações políticas, especialmente nas últimas
3 décadas do século XX, é a dissociação das lutas políticas com as organizações de
trabalhadores nas indústrias, determinante de uma centralidade das decisões
fundamentais para o enfrentamento do capital. Esse aspecto histórico da organização
dos trabalhadores, dado pelo complexo econômico sob a luta de classes, se reflete nas
análises e proposições do lazer e da educação, conforme apontado anteriormente,
devendo ser melhor conhecido esse conjunto de relações sociais, econômicas e políticas,
para a análise das mediações entre lazer e educação e seus posicionamentos em
diferentes projetos históricos.
O caráter problemático das organizações dos trabalhadores é também discutida
por Antunes (2003), no terceiro capítulo de seu livro Adeus ao trabalho?, em que ele
analisa os problemas e desafios do sindicalismo frente às modificações do modo de
organização do trabalho no capitalismo. Os dados mostrados indicam uma diminuição
no número de sindicalizados pelo mundo. Também confirmam a relação dos sindicatos
com as empresas, apontando ainda outros problemas, como a verticalização dos
sindicatos, dada por um corporativismo das diferentes categorias de trabalhadores
estáveis, impedindo a organização conjunta dos trabalhadores precarizados e
desempregados. Decorre daí conseqüências negativas para as ações de luta dos
trabalhadores como o enfraquecimento das greves.
Antunes (Ibidem, p.73-74) mostra como os embates entre capital e trabalho são
levados para o campo individual do “sindicalismo de empresa”, do “‘sindicato-casa’,
que se originou na Toyota”, sendo que a “via participacionista”, caracterizada pela ação
sindical subsumida as necessidades da classe dominante, pactuando com o capital, traz
conseqüências nefastas ao conjunto da classe trabalhadora. De outra forma, também se
configuram “movimentos sindicais” que negam essa postura de submissão, de
alinhamento as leis e necessidades do capital e atuação “dentro da ordem”, dos quais
203
são exemplos os “Cobas (Comitati di Base), que começaram a despontar a partir de
meados da década de 1980 na Itália, em setores vinculados ao ensino público, aos
controladores de vôo, aos ferroviários e mesmo em alguns núcleos do operariado
industrial” (ANTUNES, 2003, p.75). As iniciativas contrapostas ao capital em suas
bases têm que ser conhecidas, desde a consideração da contradição como impulso
primordial das relações sociais, de forma a não desconhecer o processo histórico, como
condição do entendimento contextualizado do lazer e da educação, e como pressuposto
da organização desses dois complexos do ser social dentro de um projeto socialista.
A ação, nesse sentido, é balizadora de um projeto de lazer revolucionário:
Com isso entramos em outro ponto que entendo crucial: uma vida
cheia de sentido fora do trabalho supõe uma vida dotada de sentido
dentro do trabalho. Não é possível compatibilizar trabalho assalariado,
fetichizado e estranhado com tempo (verdadeiramente) livre. Uma
vida desprovida de sentido no trabalho é incompatível com uma vida
cheia de sentido fora do trabalho (ANTUNES, 2005, p.175).
Nas ações mais imediatas que margeiam a discussão política voltada a esse
campo está a discussão do aumento do tempo livre e da diminuição do tempo de
trabalho. Desde Marx e Lafargue, até os dias atuais, esse tema vem sendo discutido,
com especial importância para o campo dos estudos do lazer. Essa discussão sobre a
diminuição da jornada de trabalho se relaciona, dentro da mesma lógica de exploração
de mais-valia absoluta dos trabalhadores, com a situação muito problemática na
instituição da educação da classe trabalhadora, no século XIX, que encontrou ampla
resistência da classe capitalista, uma vez que o tempo que as crianças perdiam na escola
não era passível de ser explorado no trabalho, conforme bem explicita Marx no capítulo
VIII do O Capital (2003).
Antunes (2005) e Padilha (2000) são autores que tratam atualmente a questão da
diminuição da jornada de trabalho no horizonte da luta da classe trabalhadora contra o
capital. Para discutir com maior clareza esse ponto, é importante pensar nas relações
sociais que se estabelecem a partir da, e, determinam a forma de produção capitalista. A
contradição insuperável desse sistema, captada por Marx em O Capital, revela como as
relações sociais de compra e venda da força de trabalho, a partir de certo ponto,
começam a impedir o desenvolvimento das forças produtivas, compostas pelos meios de
produção, força de trabalho e conhecimento ou técnica de produção. O desenvolvimento
das forças produtivas permite produzir mais valores de uso em um tempo menor. Os
204
valores de uso - tudo o que é necessário para a satisfação das necessidades humanas - no
atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas, poderiam ser produzidos no
quantum necessário para suprir as necessidades humanas de todos os indivíduos do
mundo. Porém, sob a lógica do capital, que visa produzir valores de troca, mais valor e
lucro, isso é impossibilitado. Ou seja, são as relações sociais que entravam as forças
produtivas.
Em termos práticos, esse entrave significa que a satisfação das necessidades
humanas, a reprodução da vida, não é garantida. O que tem que ser garantido no
capitalismo é a valorização do valor, mediante as leis do mercado. Estas leis impedem
que seja produzida a quantidade necessária de bens materiais, de riqueza, uma vez que
são tratados como mercadorias e a oferta e a procura têm determinação direta na esfera
da circulação das mercadorias e no lucro do capitalista.
Estas leis, subordinadas á lógica maior do capital, impedem então que as forças
produtivas se realizem plenamente. O desenvolvimento científico tecnológico e
organizacional não permite que os homens sejam liberados de suas atividades
laborativas, pelo contrário, é utilizado para ampliar o grau de exploração sobre o
trabalhador. O processo de flexibilização da produção evidencia como o capital
combina exploração absoluta e relativa para garantir seu movimento, para garantir o
lucro. Essa situação, extremamente simplificada aqui, é o que complica a discussão da
redução da jornada de trabalho e aumento do tempo livre. As contradições internas do
capitalismo e seu movimento impõem severas restrições ao se pensar nesse objetivo. Na
lógica atual, reduzir tempo de trabalho é reduzir salário, ou seja, limitar ainda mais as
possibilidades de lazer e a própria reprodução da vida. A luta pela redução da jornada de
trabalho sem redução de salários exige a organização e fortalecimento do movimento
operário, que, tem como uma das condições determinantes a educação dos trabalhadores,
processo que está intimamente ligado ao modo como se ocupa o tempo livre.
Pensar o lazer a partir dessa base não é tarefa simples. Porém, fora dela,
desconsiderando estas contradições, é idealista e liberal pensar seriamente o aumento do
tempo livre, como faz Leite (1995) no seu livro O Século do lazer, que entende da
mesma forma os aposentados e os desempregados, como público que fruirá o lazer no
século caracterizado pelo tempo livre, chega a encontrar a resolução do problema de
desemprego no lazer. Todavia, o maior representante de tal tendência deve ser De Masi
(2000), que dentro das discussões que negam a centralidade do trabalho como categoria
ontológica para o entendimento da sociedade capitalista, que este autor denomina de
205
pós-industrial, exerce grande fascínio sobre as visões fetichizadas das novas aparências
que o trabalho - essencialmente similar em sua lógica - apresenta desde a reestruturação
produtiva. Mészáros (2003) afirma que o avanço da produtividade apresenta o caráter
profundamente positivo do tempo livre, que, todavia, nessa sociedade, onde política e
economia estão alienados e submetidos a reprodução e acúmulo do capital, dentro da
lógica do seu sistema, a “riqueza potencialmente imensa” desse tempo é desperdiçada.
Sob essa lógica é que deve caminhar a pesquisa sobre o lazer, para chegar ao concreto
na volta da incursão analítica que deverá ser empreendida.
Marx (1980, p.59) é incisivo ao discutir o desenvolvimento das forças produtivas
sob o capitalismo dizendo que, para ele, o real critério de riqueza de uma sociedade é o
tempo livre do qual ela dispõe, emitindo seu entendimento de que “economizar não
significa renunciar a fruição, mas, desenvolver a potência e as capacidades produtivas”.
Todavia, a contradição entre as relações sociais e o desenvolvimento das forças
produtivas determina a relação inversa, quanto mais o homem tem condições de ser
liberado do seu trabalho, mais tempo a ele o homem tem que dedicar. Se “o tempo de
trabalho é a medida da riqueza, é porque a riqueza se fundamenta na pobreza, é porque
o tempo-livre resulta da base contraditória do sobretrabalho” (MARX, 1980, p.55), ou
seja, o desenvolvimento produtivo na forma social do capital libera tempo de trabalho
necessário, mas se apropria do tempo liberado para explorar o sobretrabalho. Pode-se
entender isso como uma contradição imanente do capital: seu potencial de liberdade
causa a ocupação. “É por isso que a mais desenvolvida maquinaria obriga hoje o
operário a trabalhar mais tempo do que trabalhava o selvagem, ou até ele próprio,
quando dispunha de ferramentas mais rudimentares e primitivas” (MARX, 1980, p. 55).
Jinkings (2005, p. 95) analisando Mandel
122
afirma que “os progressos da ciência e da
técnica, em nome do capital, realizam-se para incrementar sua dominação, ao invés de
criar um tempo livre de trabalho disponível para o florescimento das capacidades dos
indivíduos fora do espaço produtivo” [sem grifos no original].
No contexto dessa contradição imanente da sociedade que tem por base a
propriedade privada, pode-se retomar a articulação entre as práticas de lazer, trabalho e
educação, aqui entendidas como práticas particulares constituintes da totalidade destas
relações sociais:
122
MANDEL, E. Marx, la crise actuelle et l’avenir du travail humain. Quatrième Internacionale, nº20,
maio. Paris, 1986.
206
O tempo livre para o descanso como para as atividades superiores –
transformará naturalmente aquele que dele desfruta num indivíduo
diferente, e é este homem transformado que, em seguida, se
apresentará no processo de produção imediato. O homem em
formação encontra no processo de produção imediato tanto a
disciplina quanto a matéria para exercícios de aplicação, tanto um
saber experimental como uma ciência criativa. O homem realizado,
esse vai aí encontrar apenas uma ciência objetivada na sociedade, e da
qual seu cérebro está imbuído. Mas nestes dois estádios da história
humana, trata-se sempre de um exercício, na medida em que o
trabalho reclama uma prática manual bem como uma liberdade de
movimento” (MARX, 1980, p. 60).
Esse entendimento é importante para o autor e, na perspectiva aqui buscada,
considerando os nexos entre os complexos do ser social numa perspectiva de apreender
a totalidade. As mediações entre o lazer, o trabalho e a educação devem ser encontradas
partindo da contradição que movimenta o trabalho, primeiro determinante, o lazer e a
educação no processo da reposição do mesmo ou na busca da construção do novo. Essa
contradição como motor do desenvolvimento histórico, está implícita no próprio
metabolismo do capital, que possibilita, ao desenvolver-se, a sua própria superação:
Desde que o trabalho, na sua forma imediata, deixe de ser a fonte
principal da riqueza, o tempo de trabalho deixa e deve deixar de ser a
sua medida, e o valor de troca deixa portanto também de ser a medida
do valor de uso. O sobretrabalho das grandes massas deixou de ser a
condição do desenvolvimento da riqueza geral, tal como o não
trabalho de alguns deixou de ser a condição do desenvolvimento das
forças gerais do cérebro humano
123
.
Por essa razão, desmorona-se a produção baseada no valor de troca, e
o processo de produção material imediato acha-se despojado da sua
forma mesquinha, miserável e antagônica. Ocorre então o livre
desenvolvimento das individualidades. o se trata, então, de
reduzir o tempo de trabalho necessário com vista a desenvolver o
sobretrabalho, mas de reduzir em geral o trabalho necessário da
sociedade a um mínimo. Ora, esta redução supõe que os indivíduos
recebam uma formação artística, científica, etc., graças ao tempo
libertado e aos meios criados para benefício de todos (MARX, 1980,
p.51).
É necessário insistir nesse caráter contraditório da relação entre o avanço das
forças produtivas e seu potencial de liberar o homem e o emprego de suas energias para
satisfazer suas necessidades, dado que o conhecimento da lógica que mantém essa
contradição, das relações sociais que a sustenta, é uma condição de sua superação.
123
Conforme se discutiu no primeiro ponto desse estudo, particularmente na Antiguidade de base
escravista, pelas barreiras naturais, mas, também, na sociedade capitalista, onde as relações sociais
tornam a obstaculizar o que já foi superado pelo afastamento das barreiras naturais.
207
Intenta-se também, ir além do entendimento que busca mudar a realidade contrapondo a
ela novas idéias, pela efetivação de uma práxis social revolucionária. Uma ação
revolucionária requer uma teoria revolucionária, ou, dito de outra forma, a revolução
pressupõe a reunião das condições objetivas e subjetivas. O esforço empreendido nessa
reflexão para pensar criticamente a educação e suas contraditórias mediações, em sua
relação dialética com o lazer como uma prática do tempo livre, possível de participar da
educação humana homnilateral, vem nesse sentido de colaborar para a construção dessa
teoria. Todavia, ainda caminhou-se no plano abstrato, levantando questões, pontuando
diferentes entendimentos sobre o lazer e seu lugar na sociedade atual e, ensaiando a
determinação recíproca entre lazer e educação, situados nas relações de produção
material da vida.
O avanço dessa discussão necessita que se compreenda como se estrutura e quais
os movimentos nos campos econômico, político e cultural, entendendo como articular a
luta política com a luta social para a modificação da estrutura econômica, para que
aquela condições para se realizar esta, que, por sua vez, deve possibilitar a
consolidação dos avanços na política. A complexidade dessa tarefa decorre da própria
complexidade da luta entre capital e trabalho no tempo atual. Diferente das estratégias
de controle prioritariamente físico do taylorismo, ou da sedução afetiva da “escola de
relações humanas”, atualmente “é a mobilização total do indivíduo que se deseja obter;
é não somente sua energia física e afetiva, mas também sua energia psíquica que se
procura captar” (AUBERT; GAULEJAC
124
, 1991, apud JINKINGS, 2005, p.101).
Como se nesse quadro, a utilização da educação e do lazer na formação do
homem necessário ao capital do início do século XXI tende a ser cada vez maior. Por
isso, investigar o lazer e a educação nessa totalidade, apanhando-os em seus
movimentos para poder trabalhar por suas inserções no projeto histórico do proletarido
é mais que urgente. Nesse sentido, é importante analisar uma das tendências apontadas
por Antunes sobre a crise do sindicalismo que pode ser observada claramente no centro
do capital a partir de 1980 e, nos países periféricos do capital, a partir de 1990:
Junto ao culto do individualismo exacerbado e da resignação social, o
capital amplia enormemente por métodos mais ideológicos e
manipulatórios do que diretamente repressivos, estes reservados
somente para momentos estritamente necessários sua ação isoladora
e coibidora dos movimentos de esquerda, especialmente aqueles que
124
AUBERT, N.;GAULEJAC, V. . Le côut de l’excellence. Paris: Seuil, 1991, p.84.
208
ensaiam práticas dotadas de dimensão anti-capitalista. É lugar-comum,
hoje, em qualquer parte da sociedade produtora de mercadorias, um
clima de adversidade e hostilidade contra a esquerda, contra o
sindicalismo combativo e os movimentos sociais de inspiração
socialista (ANTUNES, 2003, p. 75).
Pensando nas mediações entre lazer e educação, combater essa tendência pode
ser um dos caminhos de articulação destas práticas sociais com o projeto histórico
socialista? Se for, como é possível efetivá-la?
Uma “nova” prática – que atende velhas preocupações dos capitalistas – presente
nas relações de trabalho das novas formas como se organiza a produção, nos diferentes
setores produtivos, que incidem na intensificação da exploração dos trabalhadores, é o
oferecimento de breves períodos de tempo durante a jornada de trabalho para exercícios
que visam a prevenção de lesões e distúrbios ósseos, musculares, nervosos e etc, bem
como a elevação dos níveis de atenção e atividade dos trabalhadores. Essas práticas são
conhecidas como ginástica laboral. Esse mecanismo do capitalista para assegurar a
integridade das suas forças de trabalho, bem como para aumentar sua produtividade,
acaba por se apresentar como a primeira oportunidade de acesso a conhecimentos e
práticas da cultura corporal, o que é muito emblemático do porque das discussões aqui
elencadas sobre as mediações entre lazer e educação.
A ginástica é um conteúdo básico da educação física escolar, escola por onde
passaram ou estão passando os operários em questão. Esta disciplina trata
pedagogicamente os conteúdos da cultura corporal, os jogos, as ginásticas, as danças, as
lutas e os esportes, como formas de linguagem (COLETIVO DE AUTORES, 1992)
125
,
visando a uma educação hominilateral dos alunos, que poderão fruir o seu tempo livre
de forma culturalmente rica. Todavia, os trabalhadores e seus filhos passam pela escola
sem a apropriação desse conhecimento socialmente produzido e historicamente
acumulado pela humanidade, que é de fundamental importância para o agir do homem
no tempo livre, demonstrando que a educação da classe trabalhadora realmente visa
garantir apenas certa forma de comportamento conformado e algumas habilidades
básicas necessárias para a produção, confirmando a tese da produtividade da escola do
trabalhador ser sua própria improdutividade, em termos do alcance do seu objetivo
125
Esta é uma perspectiva específica da Educação Física, que se alinha com o projeto de construção do
socialismo, denominada crítico-superadora. Todavia, mesmo as tendências tecnicistas, higienistas,
desenvolvimentistas e outras m, necessariamente, mesmo que sob enfoques contrários, que possibilitar
conhecimentos básicos dessa prática social historicamente significada aqui discutida, a ginástica.
209
declarado e reconhecido (FRIGOTTO, 1985). Confirma, também, a tese de Kuenzer
(2005, p. 92-3), de que nas relações entre capital e trabalho, particularmente no regime
flexível, os alunos são incluídos nos “diversos níveis e modalidades de educação escolar
aos quais não correspondam os necessários padrões de qualidade”, em um conjunto de
estratégias que fornecem o que ela chama de certificação vazia, que “fornecerão a
justificativa, pela incompetência, para a exclusão do mundo do trabalho, dos direitos e
das formas dignas de existência”.
O conhecimento sistematizado que no capitalismo está submetido, na maioria
dos espaços e instituições, aos interesses burguesia, é continuamente negado à classe
trabalhadora. São criadas estratégias de exclusão desse conhecimento, em dados
momentos, e outras para possibilitá-lo, quando é interessante ao capital, conforme o
exemplo da ginástica laboral que passa a ser a primeira chance de acesso ao mínimo de
conhecimento (o mais empobrecido possível) sobre suas possibilidades de movimento,
ou seja, sobre um aspecto específico da cultura corporal. Taffarel (2003) compreende
profundamente essa degradação da formação humana no que diz respeito à cultura
corporal mostrando que:
O acesso a esse bem possibilita a ela constatar, compreender, inferir,
construir a cultura corporal do seu tempo. A cultura corporal não está
restrita a um espaço. O capital forja a corporalidade do trabalhador
dentro da fábrica para que ele seja disciplinado, não gaste energia,
concentre suas forças no trabalho e não reivindique tempo livre para
se movimentar e brincar com seus colegas. Portanto, é um crime que
se comete contra a humanidade quando se elimina do interior da
escola a possibilidade do jovem acessar um bem como é o afeto a
cultura corporal (TAFFAREL, 2003, p.12).
Além de ser retirado o acesso a cultura corporal de dentro da escola, também não
se constata a possibilidade do acesso a esse produção humana em outros espaços como
associações de trabalhadores, clubes de cultura e etc. Frente a isso, se reconhece o
quanto continua atual a formulação de Saviani (2005, p.71) do início da década de 1980,
que luta pela democratização do conhecimento científico para os trabalhadores e seus
filhos com uma ferramenta necessária para eles se libertarem “das condições de
exploração em que vivem”, e da importância desse conhecimento para o homem que
não é naturalmente homem, mas se humaniza no processo de produzir sua vida, onde a
educação é um elemento fundamental (SAVIANI, 2000, p. 11 e 17). Também,
perceptível é o fato de como a educação para o lazer se articula a educação geral,
210
enquanto não é possibilitada aos trabalhadores frente às determinações dadas pela
organização social da produção na sociedade de classes. Um conhecimento específico
que é característico das práticas do tempo livre, a ginástica, lhe é negado na sua
formação escolar
126
. Como decorrência dessa exclusão do conhecimento sistematizado,
o trabalhador vai perceber naquela prática empobrecida que lhe é oferecida por seu
explorador, como um bem que o capital lhe oferece, pois a ginástica laboral, ferramenta
do capitalista para extrair o máximo da potência do trabalho em processo, é sua porta de
acesso ao conhecimento de si próprio e de suas possibilidades de movimento
especificamente humanas. Logo, o fetiche das relações sociais, próprias do capitalismo,
se prolonga, também, como produto dessa situação. O nexo da ginástica como prática
do tempo livre, o não-trabalho e a desobrigação que permite a sua fruição, é substituído
pela mediação do tempo obrigado com o trabalho. O que deveria ser fruição, expressão
humana do ser social que superou as barreiras naturais imediatas e pode exercitar-se de
forma específica
127
, é tornado um mecanismo de potencialização de extração da mais-
valia relativa - considerando que o trabalhador pode produzir mais lançando mão desse
artifício - e absoluta - a partir da prevenção de distúrbios psicofísicos que diminuam a
vida útil, o número de anos que se podem explorar uma força de trabalho.
O entendimento concreto dessas relações no intuito de colaborar para a
construção da teoria revolucionária, exige, para além do que se pode fazer nesse
momento, que se capte dados atuais sobre os fenômenos lazer e educação, se conheça a
teoria já produzida sobre ambos e se desvende seus nexos causais históricos.
A importância do conhecimento do lazer como mercadoria é real, por três
motivos. Primeiro, compreender, a partir da especificidade do lazer, o processo de
readaptação do capital, seu constante revolucionamento, para continuar seu movimento
que lhe garante a vida. Segundo, para discutir a questão da importância do lazer nas
126
Entrevista da professora Celi Taffarel ao jornal do Sindicato dos professores do Estado do Paraná é
ilustrativa dessa situação: 30 de Agosto- A Educação Física foi um alvo recente das políticas
neoliberais, que tentam suprimi-la. Como você avalia essa situação? Celi Taffarel Quando se excluem
disciplinas do currículo, entende-se que elas não são mais úteis para formar aquele trabalhador necessário
para responder às exigências do mercado de trabalho capitalista. Quanto menor o grau de consciência do
trabalhador a respeito da necessidade das atividades corporais para a sua integridade humana, mais lucro
o capitalismo tem, pois esse trabalhador não exige tempo e espaço para suas atividades corporais de
lazer” (30 DE AGOSTO, 200, P.12).
127
Existem muitos tipos de ginástica atualmente, como por exemplo matroginástica, hidroginástica,
aeróbicas, calistênicas, rítmica desportiva, olímpica, geral, natural, acrobática e outras, que são praticadas
com diversos objetivos como saúde, estética, relaxamento, socialização, preparação física, competição e
etc.
211
relações sociais no capitalismo. Terceiro, para intervir revolucionariamente na forma
social do capital.
Mascarenhas (2005), na sua tese defende que a subsunção real do lazer ao
capital se a partir da sua conversão à forma mercadoria como expressão hegemônica.
Com essa passagem, que se deu a partir dos processos produtivos e relações de trabalho
flexíveis, a função social do lazer, ou seu valor de uso social, o descanso, o divertimento
e o desenvolvimento, foi substituído por sua função de geração de lucro, de acúmulo de
capital, pela mercantilização do lazer, o “mercolazer”. Compreendendo o que é o valor
de uso do lazer como mercadoria, conforme foi exposto anteriormente, é possível
concluir que o lazer pode produzir mais-valia porque carrega a mesma função social,
com o mesmo valor de uso que possui desde sua gênese, ou seja, a
recomposição/potenciação da força de trabalho. O fato desse valor de uso começar a ser
acessado, nas atuais formas, nas grandes empresas de produção de lazer, não altera a
essência da coisa. Mais uma vez, tal avaliação decorre do ponto de partida incorreto. Tal
descaminho deve-se à tomada do lazer como um ideal, como aquilo que se deseja que
ele seja, e não como uma prática social apreendida em sua concretude historicamente
dada.
Para chegar a esta compreensão, a apropriação da teoria do valor de Marx, bem
como de sua demonstração sobre o que é a mercadoria e como o dinheiro - enquanto
equivalente geral de troca, em sua forma acabada - intensifica os processos de alienação
próprios da forma mercadoria, é uma condição indispensável.
Tal análise e posterior propaganda dos resultados obtidos são da maior
importância, considerando que a forma hegemônica de educação que, em regra,
reproduz o pensamento dominante e atua para garantir a estrutura produtiva
especificamente capitalista, está no processo de engendramento da pobreza espiritual
condicionante das práticas pobres do lazer.
O lazer articulado ao projeto socialista não deve significar a
recomposição/potenciação alienada da força de trabalho, mas deve possibilitar acesso a
cultura com mediações que lhe permita, além de fruir a cultura produzida, e produzida
numa perspectiva contra-hegemônica, principalmente, conhecer que na realidade do
capitalismo, conforme dados da OMS apresentados por Mascarenhas:
15% de nossos jovens nunca tiveram a oportunidade de ir ao cinema,
46% ao teatro, 29% a um show de música brasileira, 86% a um
concerto de música clássica, 52% ao museu, 72% a uma exposição
212
fotográfica, 77% a um espetáculo de dança moderna, 88% a um
espetáculo de ballet, 22% ao circo, 49% a um jogo de futebol no
estádio e 40% à biblioteca (MASCARENHAS, 2005, p. 47-8).
Porém, tal acesso não pode ser propiciado pelo Estado mediante políticas
públicas, dada a própria natureza do Estado. A intervenção via políticas públicas é
possível e necessária, todavia, não é esse o caminho da luta dos trabalhadores e, sendo
conseguidos resultados no sentido de tais políticas, a concepção e organização dessas
atividades deve ficar a cargo dos trabalhadores, limitando-se o Estado sendo forçado
pelos trabalhadores a essa limitação - ao financiamento delas. Tal projeto pode ser
conseguido mediante a reorganização dos trabalhadores, nacional e internacionalmente,
de forma a conseguirem criar órgãos de comando, estruturados a partir dos próprios
trabalhadores, com a estrutura circundante necessária que permita a criação de grupos
de trabalho para as diversas necessidades
128
, entre as quais, certamente, aquelas afeitas à
cultura, como a educação e o lazer.
De forma sintética, pode-se dizer que no primeiro capítulo as discussões sobre a
constituição histórica do capitalismo e sobre a configuração da reestruturação produtiva,
mostram que a sociedade contemporânea constitui-se a partir da contradição básica
entre produção social e apropriação privada dos resultados da produção, que se funda na
separação dos produtores dos seus meios de produção, que são transformados em
propriedade privada da classe capitalista. Essa posse material dos meios de produção e
dos meios de subsitência, que configura as duas classes fundamentais antagônicas
determina que os trabalhadores tenham apenas sua força de trabalho para vender, o que
tem conseqüências para a qualidade e quantidade do lazer a que terá acesso.
No segundo capítulo realizou-se o estudo e exposição das categorias que Marx
utiliza para compreender a mercadoria, a “célula do capital”, que deve ser compreendida
por ser o elemento que representa a mediação entre os homens nessa sociedade. Marx
diferencia a produção de mercadorias pré-capitalista (unidade de processo de trabalho e
processo de formação de valor, que pode ser compreendido na fórmula da circulação
M D M), da forma capitalista de produção de mercadorias (unidade de processo de
trabalho e processo de valorização, que apresenta a forma de circulação D M D’).
Desde o estabelecimento do sistema social que tem como objetivo o D’, o acúmulo de
mais-valia ou a valorização do valor, os seres humanos tem acesso aos bens
necessários à sua sobrevivência na medida que podem ir ao mercado trocar mercadorias.
128
Conforme as indicações fornecidas por Lênin (2008) em Carta a um camarada.
213
Sobre esta base econômica é que se estruturam a educação e o tempo livre dos
trabalhadores.
Conhecendo essas determinações sociais desvendadas por Marx, pode-se
aproximar com mais clareza da indicação de Mészáros (2006, p.72) sobre a necessidade
de superar as “mediações de segunda ordem” do capital, principalmente “o Estado, a
relação de troca orientada para o mercado, e o trabalho, em sua subordinação estrutural
ao capital”. Essas mediações devem ser superadas porque:
impõem à humanidade uma forma alienada de mediação. A
alternativa concreta a essa forma de controlar a reprodução pode
ser a automediação, na sua inseparabilidade do autocontrole e da
auto-realização através da liberdade substantiva e da igualdade,
numa ordem social reprodutiva conscienciosamente regulada pelos
indivíduos associados (MÉSZÁROS, 2006, p. 72-3).
A tarefa ativa da educação no processo de superação radical do capital é um
problema da maior importância quando se pensa na educação, nos aspectos educativos
do lazer, e nas mediações entre lazer e educação e sua articulação com o projeto
socialista de derrubada do capital.
No terceiro capítulo buscou-se retraçar o movimento de constituição do lazer na
sociedade brasileira. Foi possível verificar que a ocupação do tempo livre do
trabalhador na sociedade capitalista, a organização do lazer que substitui o ócio da
organização social anterior, tem como motivo principal a recomposição da força de
trabalho e a formação de valores e da moral necessários ao trabalhador do modo
capitalista de produção. O lazer constitui-se em compósito com o projeto de educação
do trabalhador. Além dessa ligação, compreende-se que a fruição da cultura em
diferentes níveis qualitiativos e quantitativos vai influenciar, de forma mediata, na
formação de força de trabalho de “peso social superior” ou inferior, donde chegou-se a
definição do lazer como prática social de recomposição/potenciação da força de
trabalho. Em seguida, com a discussão do lazer como mercadoria, tendência
aprofundada com a reestruturação produtiva, pode-se aplicar as categorias de Marx às
análises do lazer e sua inserção de forma mais imediata no processo de valorização do
valor. Nessa discussão chegou-se a importante conclusão de que o valor de uso do lazer
não se altera por ser ele produzido como mercadoria ou como direito social. Além disso,
reafirmou-se a compreensão de que o caminho para a articulação do lazer com o projeto
214
de superação radical do capital não pode se dar por via das políticas públicas, o que
seria a legitimação do Estado e, conseqüentemente, do capitalismo.
No quarto capítulo inciou-se um projeto mais amplo que deverá ser continuado
no curso de doutorado, que é a crítica aos autores clássicos e contemporâneos do lazer,
selecionados entre aqueles de maior influência nas investigações para o conhecimento
da realidade com a particularidade do lazer. Estes autores foram Huizinga, com o seu
livro Homo Ludens: o jogo como elemento de cultura” e Marcellino, com o livro
“Lazer e educação”. Huizinga e Marcellino foram criticados por suas terorias que
defendem posições de classe contrárias à classe trabalhadora, ambos com indicações
críticas sobre a sociedade capitalista, porém com críticas que não atingem as questões
centrais para a crítica ao capitalismo: as classes sociais fundamentais, a propriedade
privada dos meios de produção e de subsitência, as relações de produção, o capital, e
fundamentalmente a categoria revolução.
Neste último momento, das considerações finais, foram feitos alguns
apontamentos sobre o trabalho como categoria abstrata formadora de valor, sobre a
situação da classe trabalhadora e suas dificuldades de organização devido à cooptação
empreendida pelo capital aos seus representantes, apontando a necessidade de
reorganização dos trabalhadores e da tomada dos rumos da educação e das atividades de
lazer em suas próprias mãos. Para que esse processo seja viabilizado, o importância da
construção de uma teoria revolucionária que apreenda a realidade concretamente é
fundamental. E essa teoria é possível na sociedade capitalista passando pela
apropriação de Marx, que apreendeu os nexos fundamentais e as leis de
desenvolvimento do movimento contraditório da relação social que é o capital. O
trabalho de Engels, tanto em suas contribuições originais, quanto na gigante tarefa de
organização dos livros II e III do capital, também deve ser profundamente investigada.
Para esse trabalho pode ser buscada ajuda nos continuadores clássicos do legado
marxiano, como Lenin, Lukács, Gramsci, Rosa e Mészáros. A apreensão ainda muito
inicial da obra de Marx e Engels, bem como dos demais intelectuais dessa tradição,
expressam grandes limites dessa pesquisa. Para além dessa, a restrição ao pequeno
volume de material específico do campo dos estudos do lazer é outra limitação
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