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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL (UFRGS)
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
CONHECIMENTO CIENTÍFICO, AÇÃO E FELICIDADE
HUMANA NO COMENTÁRIO À ÉTICA NICOMAQUÉIA DE
TOMÁS DE AQUINO
ANDRÉA TEIXEIRA DOS REIS
Dissertação submetida como requisição para a
obtenção do título de MESTRE EM
FILOSOFIA.
Orientador: Professor Dr. Alfredo Carlos Storck
Porto Alegre, maio de 2008
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Agradecimentos
Em primeiro lugar, é ao meu orientador, Alfredo Carlos Storck, que dirijo meu
reconhecimento. Eu o agradeço pela confiança que depositou no meu trabalho, pelo
ensinamento e conselhos, além da imensa disponibilidade em atender às minhas demandas,
dividindo generosamente comigo o seu tempo e o seu conhecimento.
Também agradeço aos membros da Comissão Examinadora que aceitaram gentilmente
a tarefa de avaliar os resultados da minha pesquisa: Nelson Fernando Boeira, Wladimir
Barreto Lisboa e Luís Fernando Barzotto.
Agradeço, ainda, aos meus pais, que tanto apoio e estímulo sempre me dispensaram, e
ao meu noivo, que esteve presente ao meu lado no dia-a-dia da realização deste.
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“(...) àqueles que se dedicam a delimitar
uma coisa, o tempo parece ser como um
inventor ou um bom cooperador: não se
trata, é claro, de que o tempo faça ele
mesmo alguma coisa, mas do que se faz com
o tempo”.
(…) quae bene se habent ad aliquid circumscribendum
videtur tempus esse quasi adinventor, vel bonus
cooperator: non quidem quod tempus per se ad hoc
aliquid operetur sed secundum ea quae in tempore
aguntur.
Tomás de Aquino, Comentário à Ética
Nicomaquéia, I, 9, §133 [3].
4
Sumário
Abreviações........................................................................................................................... 5
Introdução ............................................................................................................................. 6
I A dinâmica da ação humana.............................................................................................. 12
1 A idéia de ordem e a ação humana................................................................................ 13
1.1 Os princípios da ação humana................................................................................ 24
1.2 A alma e suas partes............................................................................................... 26
1.2.1 A alma irracional............................................................................................. 28
1.2.2 A alma racional............................................................................................... 32
1.2.3 Limitações inerentes à classificação ................................................................ 34
1.3 A posição do homem.............................................................................................. 37
2 A relação com o bem .................................................................................................... 46
3 Virtude e felicidade....................................................................................................... 57
II O conhecimento da realidade humana .............................................................................. 69
1 A idéia de ordem e o conhecimento humano................................................................. 70
2 A diversidade de fins na Filosofia Moral....................................................................... 82
3 Distinção entre as operações ......................................................................................... 85
4 O fim supremo e a Política............................................................................................ 90
5 A Ética e a Política como ciências................................................................................100
5.1 O significado de scientia.......................................................................................103
5.2 O método..............................................................................................................106
5.3 O objeto da Ética...................................................................................................123
5.3.1 Idéia de perfeição...........................................................................................127
5.3.2 Idéia de auto-suficiência.................................................................................128
Conclusão...........................................................................................................................131
Bibliografia ........................................................................................................................142
A- Textos de base...........................................................................................................142
B- Bibliografia geral.......................................................................................................143
5
Abreviações
CEN: Comentário à Ética Nicomaquéia (Commentaire à l’Éthique à Nicomaque)
EN: Ética Nicomaquéia (Nicomachean Ethics)
SCG: Suma contra Gentis (Somme contre les gentis)
ST: Suma de Teologia (Somme de Théologie)
6
Introdução
O presente trabalho versa sobre a importância que o conhecimento científico exerce no
que tange à ação capaz de conduzir o homem à felicidade terrena, consoante o pensamento de
Tomás de Aquino (1225-1274) apresentado no Comentário à Ética Nicomaquéia (1271-
1272
1
). A hipótese que se levanta, a partir do referido texto, é a de que é necessário ao homem
conhecer o que é a felicidade para poder alcançá-la
2
, donde a necessidade de um estudo
científico sobre ela. Na sua investigação, observa-se a duas etapas. Na primeira delas, cuida-
se de descrever a dinâmica da ação que move o homem; na segunda, cuida-se de estabelecer
os limites e o interesse do conhecimento da realidade humana. Finalmente, a partir do cotejo
de uma e outra partes, espera-se demonstrar em que medida uma descrição da realidade pode
ajudar ao homem na prática. A questão que se pretende responder pode ser então resumida da
seguinte forma: É necessário um conhecimento de um certo tipo para que se seja feliz?
A Ética tomista é fundada na idéia de bem como fim, a qual implica na aceitação de
uma ordem teleológica que regra a realidade física e moral. A divisão do trabalho em duas
partes justifica-se, então, pelo desdobramento que Tomás opera dessa ordem com respeito à
moral em dois níveis: o do ordenamento da ação e o do ordenamento da teoria da ação.
Quanto ao desenvolvimento da primeira parte, partir-se-á da idéia de ordem tomada
sob o prisma prático. Tratar-se-á, na seqüência, dos princípios da ação humana, bem como,
para tanto, da alma e suas partes; da posição ocupada pelo homem na ordem em que se insere;
da relação que a ão guarda com o bem; e da relação que a virtude guarda com a felicidade.
Inicialmente, pretende-se responder a um questionamento sobre qual é a relação existente
entre a ordem moral e a ação humana. No que a ação importa para a felicidade do homem?
Quanto ao desenvolvimento da segunda parte, partir-se-á da idéia de ordem tomada
sob o prisma teórico. Tratar-se-á, na seqüência, da aparente diversidade de fins na Filosofia
Moral; da distinção entre os tipos de operação; do fim supremo e do seu tratamento pela
Política; e da consideração dessa, bem como da Ética, como ciências, com todas as
implicações que decorrem do termo (método e objeto). Pretende-se aqui responder a um
1
TORRELL, J.-P., Iniciação a Santo Tomás de Aquino, p. 400.
2
CEN, I, 2, §23 e 9, §106.
7
questionamento sobre qual é a relação existente entre a ordem moral e o conhecimento dessa
ordem. No que o conhecimento importa para a ação do homem?
A partir do desenvolvimento dessas duas etapas ou partes do trabalho, pretende-se,
então, responder à questão sobre a existência de uma relação entre o conhecimento e a
felicidade. Se a ação é necessária à felicidade (premissa 1) e se o conhecimento é necessário à
ação (premissa 2), o conhecimento é, logo, necessário à felicidade (conclusão). Ora, a
verificação de tais premissas conduzirá à confirmação da hipótese levantada.
A motivação para o estudo da filosofia moral e política de Tomás assenta-se no
problema da possibilidade de um conhecimento científico do bem humano, de tal sorte que
ele sirva como critério universal à ação. Dele decorre o debate sobre a a distribuição da
justiça, por exemplo, evidenciado na obra de G. Chalmeta: La justicia política en Tomás de
Aquino (2000). Enquanto utilitaristas
3
partem da idéia de que é possível definir o que é bom e
a partir de uma tal definição estabelecer o que é justo ou não, contratualistas
4
partem da idéia
de que as relações sociais devem ser reguladas de modo neutro, de tal sorte que o que é justo
independe de uma concepção de bem.
Com efeito, uma e outra posições importam em avanços, mas também em críticas. H.
Hart (1907-1992) situa em The concept of the law (1961) “sua teorização do Direito na junção
do utilitarismo e da filosofia analítica anglo-saxônica, esforçando-se para afastar as condições
fundamentalmente humanistas da ‘efetividade jurídica’”, negando uma prioridade da idéia
moral de justiça ao direito positivo, como nota S. Goyard-Fabre
5
. J. Rawls (1921-2002)
apresenta em Uma Teoria da Justiça (1971) uma alternativa ao utilitarismo, no sentido de
explicar as liberdades e os direitos básicos e também sua prioridade, além de integrar essa
explicação a um entendimento da igualdade democrática, o que o conduziu ao princípio da
igualdade eqüitativa de oportunidade e ao princípio da diferença
6
. J. Finnis (1940), enumera
em Natural Law and Natural Rights (1980) sete bens básicos intrinsicamente “bons”, os quais
não podem ser ignorados. A. Macintyre (1929), autor de Depois da Virtude (1981) e de
Justiça de quem? Qual racionalidade? (1988), mistura em seus discursos “conceitos
modernos, como os advindos da corrente utilitarista ou próprios à linguagem dos direitos,
com conceitos tradicionais de virtudes, que se contrapõem e se associam nas formas as mais
3
Tais como J. Bentham (1748-1832) e J. S. Mill (1806-1873).
4
Tais como J. Locke (1632-1704) , J.-J. Rousseau (1712-1778) e I. Kant (1724-1804).
5
GOYARD-FABRE, S., Les embarras philosophiques du droit naturel, p. 270/1.
6
RAWLS, J., Uma teoria da justiça, p. XIV.
8
disparatadas”, conforme assinala I. R. Oliveira
7
, que destaca, ainda, o seu apoio na tradição
aristotélica
8
. Sobre a filosofia moral e política de Tomás, J. Finnis assinala:
Nas décadas recentes, o modo de compreender alguns aspectos dos seus conceitos
fundamentais e gica têm sido arduamente discutidos, o apenas entre aqueles filósofos
que vêem isso como o oferecimento de uma resposta sensata em termos gerais ao ceticismo
radical sobre valores e obrigações, uma resposta mais verdadeira e mais humana que a de
Kant ou a de Bentham ou de seus sucessores (grosso modo)
9
.
G. Chalmeta coteja as idéias centrais de uma tal filosofia (a de Tomás) com as
propostas utilitaristas, destacando o reducionismo dessas às dimensões mais materiais e
quantitativas da existência humana e sua negação do conceito de dignidade da pessoa
humana, antecipando as principais críticas do contratualismo ao coletivismo, assim como as
“boas razões” contratualistas, em especial a noção de autonomia humana. Para ele, entretanto,
a neutralidade ética contratualista pressupõe um acordo que acredita não possa ser alcançado
se não haja o reconhecimento pelos cidadãos da existência de uma verdade prévia sobre o
bem comum, ao qual deve tender a sua liberdade e, portanto, sobre o fim que todos juntos -
unidos na sociedade política - devem alcançar”
10
. Quanto à importância do estudo das obras
políticas do Aquinate, apesar de algumas ressalvas, diz ele:
(...) admitem um tipo de “leitura” do qual emergem alguns princípios muito gerais de
justiça político-jurídica a partir dos quais o intérprete atual pode - sem forçar as coisas -
desenvolver uma reflexão capaz de superar com a cabeça bem alta a confrontação dialética
com as propostas políticas modernas e pós-modernas de matriz utilitarista ou contratualista
(...) e contribuir positivamente assim à solução dos problemas do Welfare State e à
construção de uma sociedade política mais justa no futuro (...). Entre os princípios tomistas
aos quais atribuo esta potencialidade sobressai-se o do “bem comum político” que constitui
indubitavelmente a chave de ouro da concepção política deste autor
11
.
O Santo Doutor alicerça a sua obra e o seu ensinamento na crença de que é possível
reservar um domínio para o pensamento racional e um outro para a fé. Enquanto o primeiro
apóia-se na luz natural da razão, o segundo apóia-se numa autoridade. F. Heer nota que, para
ele, pode-se estudar racionalmente e deve-se estudar cientificamente o mundo criado, a
7
OLIVEIRA, I. R., Notas sobre dois livros de Macintyre, p. 119.
8
“Dela [da tradição aristotélica], retira a idéia de que, como qualquer espécie, a espécie humana tem sua
natureza própria, que lhe confere o fim a que se destina, seu telos, a ser realizado ao longo de sua existência. A
eudaimonia, que pode ser traduzida, ainda que de forma um tanto elusiva, por felicidade, é um estado em que a
pessoa sente-se bem e faz o bem”. OLIVEIRA, I. R., Notas sobre dois livros de Macintyre, p. 122.
9
FINNIS, J., Aquina’s Moral, Political, and Legal Philosophy, item 1.
10
CHALMETA, G., La justicia política en Tomás de Aquino: una interpretación del bien común político, p. 27.
11
CHALMETA, G., La justicia política en Tomás de Aquino: una interpretación del bien común político, p. 30.
9
natureza, o homem e todas as coisas. Mas - e sobre este ponto Tomás refere-se à mais antiga
teologia cristã - a tarefa da teologia continua a girar em torno de Deus”
12
. Com efeito, o
contexto histórico vivido é marcado pela luta entre o papado e o Império, mas a sua doutrina
pressupõe uma harmonia entre a Igreja e o Estado. Com a sua morte, o processo de
canonização desencadeado por João XXII foi fortemente apoiado pela nobreza do reino da
Sicília que, segundo J.-P. Torrell, “se via exaltada num dos seus”
13
. J.-P. Boyer, no mesmo
sentido, descreve a santificação do tomismo como legitimadora do pensamento político da
classe governante:
Pelo seu esforço de assimilar o tomismo, o rei e os grandes oficiais extrapolavam o papel
de executores de uma ideologia concebida acima deles. Eles se queriam, à sua vez,
discípulos diretos e ativos. Em um dos sermões sobre Tomás de Aquino, Roberto
14
tomava-
lhe emprestada a fórmula, inspirada na Metafísica de Aristóteles: “Pertence ao sábio
organizar (sapientis est ordinare)” (...). Fora a confissão de um sistema político dominado
pela teologia. Pois a verdadeira sabedoria com ela se confundia, como advertia o Santo
Doutor (...), e como mostrava o discurso do rei. No mesmo sermão, entretanto, Roberto
distinguia entre os “doutores” e os “eclésiasticos”. Eles exerciam, cada um no seu domínio,
“a abertura da doutrina”, claramente as colocavam em exercício. E a chave do poder” o
ia sem a “chave da ciência”. O termo de “eclésiasticos” aplicava-se aos eclesiásticos, mas
podia ser entendido no seu sentido etimológico (...).
O magistério dominicano não impedia ao “tomismo de coração” de se encontrar nas mãos
da monarquia, como ciência prática. existia uma condição do seu sucesso. No nível do
Estado, o rei e os ministros exerciam pessoalmente a sabedoria que governava. A
predicação trazia uma demonstração evidente. De tal sorte, o regime tirava pleno proveito
da convicção, expressa com tanto vigor pelo Doutor Angélico, que todo poder vem de Deus
(...). Apoiado nesta certeza, o rei se afirmava, por exemplo, decidindo acima do direito
positivo, como seu intérprete sob a luz da “lei eterna”
15
.
O Comentário à Ética Nicomaquéia, objeto deste trabalho, não é um comentário
literal. Tomás está mais preocupado em responder a um conjunto de questões suscitadas pelos
escritos aristotélicos do que em apresentar o sentido exato de suas passagens. O Aquinate
procede a duas etapas para a elaboração do seu texto: em primeiro lugar, busca entender o que
diz Aristóteles; em segundo, busca determinar se o que ele diz é verdadeiro. O texto não é
neutro, mas também não é escrito em primeira pessoa. Com efeito, ele conjuga duas tradições.
O Doutor Comum utiliza autores de tradição patrística e escolástica, além de comentadores
gregos e árabes de Aristóteles. Apesar de não citar tais autoridades, eles as conhecia e nelas se
inspirava. Com relação à compreensão do seu intento, J.-P. Torrell assinala:
12
HEER, F., L’univers du Moyen Âge, p. 282.
13
TORRELL, J.-P., Iniciação a Santo Tomás de Aquino, p. 375.
14
Rei Roberto de Nápoles (1309-1343).
15
BOYER, J.-P., Sapientis est ordinare: La monarchie de Sicile-Naples et Thomas d’Aquin, p. 297/8.
10
(...) seus comentários não eram cursos que teria ministrado a estudantes. Eram antes o
equivalente a uma leitura pessoal devidamente anotada como forma de condicionar-se a
uma incisiva penetração no texto de Aristóteles a título de preparação para a redação da
parte moral da Suma teológica
16
.
O tema da pesquisa é original, apesar de Tomás ser um autor estudado e comentado ao
longo dos séculos, por basicamente dois motivos. O primeiro deles, de ordem histórica,
respeita a um “redescobrimento” da Idade Média no que tange à sua contribuição
intelectual
17
. Ora, ainda quem diga que ela representa um período de trevas
18
, assim como
que o Aquinate não tenha sido mais do que um teólogo cristão, cujos escritos não podem ser
compreendidos a não ser à luz da fé que ele professa
19
. Se é verdade, entretanto, como
assinala J.-P. Torrell, que ele comenta Aristóteles numa perspectiva apostólica, a fim de
melhor realizar o seu ofício de teólogo e sua obra de sabedoria”, ele o faz, “tal como a
compreendia a dupla escola de São Paulo e Aristóteles”, no intuito de “proclamar a verdade e
refutar o erro”
20
. Ou seja, se ele diz mais do que Aristóteles tenha dito, ele o faz dentro do que
acredita ter sido o intuito do autor significar, o que pode ser legítimo. Recorda-se que a obra
aristotélica era ainda conhecida, o mais das vezes, através das traduções latinas feitas, por sua
vez, a partir das traduções árabes, apresentando, para além das dificuldades inerentes ao texto
original, outras tantas oriundas da forma como ele fora dado a conhecer na época
21
. Pois o
Doutor Comum “lê” Aristóteles de maneira tal que as suas teses façam sentido. A sua
interpretação tem apoio nas ambigüidades e contradições encontradas, as quais tenta sanar
“completando” o texto quando a sua compreensão o exigia. Com efeito, salienta ainda J.-P.
16
TORRELL, J.-P., Iniciação a Santo Tomás de Aquino, p. 266.
17
“Pois a bela Idade Média é um século da escrita e da leitura, e, bem entendido, um século de mestres e de
estudantes. Donde esses grandes intelectuais, Alberto Magno, Tomás de Aquino ou Raimundo Lulle”. LE
GOFF, J., Un long Moyen Âge, p. 49.
18
LE GOFF, J., Un long Moyen Âge, p. 43/4.
19
J.-P. Torrell retoma as críticas que a exegese feita por Tomás recebera por alguns historiadores: “Reconhece-
se que é inteligente, e sem dúvida profunda, muitas vezes literal, mas não deixou de desvirtuar a doutrina de
Aristóteles em pontos decisivos, como no comentário sobre a Ética, guiado pelo princípio explicitamente cristão
da visão beatífica (...). Como jocosamente o dizia um de seus mais profundos intérpretes contemporâneos
[referência a L.-B. Geiger], Tomás batizou’ Aristóteles. A menos que se prefira dizer, com Gauthier, que ele
herdou um Aristóteles todo cristão’, e que seu esforço foi o de lhe restituir certa pureza a fim de utilizá-lo
como novo instrumento de sua reflexão teológica”. TORRELL, J.-P., Iniciação a Santo Tomás de Aquino, p.
277.
20
TORRELL, J.-P., Iniciação a Santo Tomás de Aquino, p. 278.
21
Tomás utiliza a tradução de Roberto de Grosseteste (1170-1253) revisada por Guilherme de Mœrbeke (1215-
1286). A tradução de R. de Grosseteste é, na verdade, a primeira tradução completa do grego ao latim que
circula, a partir de 1246/1247. Antes dela, a única tradução completa do grego existente era a de Averróis ao
árabe, realizada em 1240.
11
Torrell, uma das regras da hermenêutica medieval é a busca daquilo que o autor quis dizer
22
, o
que não significa a priori uma manipulação ou deturpação das suas idéias.
O segundo motivo, de ordem hermenêutica, respeita a uma distinção que parece
inexplorada no que tange ao Comentário à Ética e que está na base da passagem da ordem
teleológica à ordem jurídica e legislativa. Se é geralmente aceito que a teoria ética e política
de Tomás funda-se no reconhecimento de fins ou bens que são naturais ao homem, pouco é
dito sobre o tipo de conhecimento que acesso a eles. Contudo, o Santo Doutor utiliza
termos distintos para significá-lo: ora se serve de cognitio, ora de scientia (ainda que de forma
não sistematizada), o que importa na necessidade de estudá-los cientificamente ou não. A
primeira conseqüência far-se-á sentir do ponto de vista da compreensão das idéias de
autonomia e de liberdade humanas. Dependendo do tipo de conhecimento que a ação moral
exija (apenas supondo-se em sede introdutória que ela exija algum), nenhum, um, alguns ou
todos os indivíduos terão o condão de estabelecer as regras do bem agir, o que pode importar
numa discussão sobre a igualdade ou sobre a legitimidade. Ainda, supondo-se que nem todas
as regras possam ser definidas individualmente, mas que algumas precisem ser ditadas, o
conceito de autonomia é dado à discussão. Finalmente, se regras que possam ser
conhecidas individualmente, pergunta-se sobre até que ponto elas obrigam, e, então, a
discussão versa sobre a liberdade.
O debate sobre o tema da igualdade e da liberdade é, apesar de antigo, bastante atual.
Modernamente, a propósito, se os discute sob o signo de direitos humanos”, onde tais
direitos individuais coabitam com alguns direitos sociais, donde a discussão sobre a
organização do Estado e da distribuição da justiça. O que se objetiva com um trabalho sobre o
conhecimento científico, a ação e a felicidade humana no Comentário de Tomás de Aquino à
Ética Nicomaquéia é levantar uma questão pressuposta a qualquer teoria ética ou política: a
da existência de um bem intrínseco ao homem e, assim, da possibilidade do seu
conhecimento. Nesse sentido, ainda que a obra date do século XIII, a reflexão a que conduz o
seu leitor é iluminadora e certamente válida, em suas grandes linhas, nos dias atuais.
22
TORRELL, J.-P., Iniciação a Santo Tomás de Aquino, p. 278.
12
I A dinâmica da ação humana
A primeira parte deste trabalho visa apresentar em que medida a ação humana
relaciona-se com a idéia de ordem, o bem e a virtude no Comentário de Tomás de Aquino à
Ética Nicomaquéia. A análise do tema passa pelo estudo dos princípios da ação humana e,
logo, do da alma e de suas partes. Ela conduz à posição ocupada pelo homem na ordem
natural. Ainda, enseja o estabelecimento da relação que a ação guarda com o bem humano e
na que a virtude guarda com a felicidade também humana.
A ação humana, que faz do ser de fato “um homem”, é fruto do desejo pelo seu fim.
Ora, pode-se afirmar por meio de uma analogia que o desejo é “seu motor”, o fim, “seu
destino”, donde a felicidade consistir na atividade apropriada daquele cuja natureza pede um
certo movimento ordenado. Com efeito, a primeira acepção que se tem da felicidade é prática.
Ela está intimamente ligada à ação. O homem feliz é aquele que age virtuosamente. A
dinâmica da ação humana contribui, então, em alguma medida, à realização da sua natureza.
Não obstante a prévia e ainda suscinta concepção puramente prática de felicidade, a
segunda parte deste trabalho apresentará a dependência que ela comporta em relação a um
certo conhecimento sobre a moral.
13
1 A idéia de ordem e a ação humana
Antes de passar a comentar o texto aristotélico, Tomás de Aquino introduz uma idéia
de ordem, a qual o permeia e sem a qual não fará sentido. Em torno dela, constrói uma
espécie de prólogo (do §1° ao 6°) ao seu Comentário. Ele estabelece a existência de uma
relação de subordinação entre as teses da Ética para com as da Filosofia Natural ou Física que
está para além de uma hierarquização entre as ciências
23
. Ela também explica a natureza
humana e, logo, a atividade que a particulariza. Se a Ética respeita à ação humana, própria ao
homem, visto que racional, ela não acontece independentemente da sua animalidade. Ele,
assim como os demais entes naturais, é submetido à causalidade que rege o universo.
Também o seu fim é natural. Não obstante, por ser um animal dotado de razão, não é
simplesmente “guiado”, mas encontra espaço para um movimento voluntário conforme à sua
essência. Daí a importância de aproximação, sobre a qual insiste o Doutor Comum, do agir
humano ao conhecimento teleológico, assunto que pressupõe a aceitação de certas teses da
teoria geral da Física. Nesse sentido, e consoante Aristóteles, ele remete em passagem do seu
Comentário à Ética Nicomaquéia prova realizada no livro da Física:
Ora, é preciso que toda uma vida humana seja ordenada ao fim o melhor e último da vida
humana. É preciso, então, necessariamente, ter conhecimento do fim último e o melhor da
vida humana. O motivo é que sempre a razão do que é em vista do fim deve ser tirada do
fim ele mesmo, como foi provado também no segundo [livro] da Física
24
.
Assim, o Aquinate intenta justificar o caráter normativo
25
das regras de conduta moral.
A necessidade que caracteriza os eventos naturais é acompanhada da necessidade de
observância de um certo padrão ético, pois tanto aqueles como esse têm origem na
organização teleológica pressuposta à idéia de ordem. Na Suma de Teologia, encontra-se a
explicitação de sua tese, a qual conduz à necessária inserção do indivíduo humano num grupo
doméstico e num grupo político para bem viver
26
.
23
O tema referente à hierarquização entre as ciências será abordado na segunda parte deste trabalho.
24
CEN, I, 2, §23.
[72727] Sententia Ethic., lib. 1 l. 2 n. 5
Sed tota humana vita oportet quod ordinetur in ultimum et optimum finem humanae vitae; ergo ad rectitudinem
humanae vitae necesse est habere cognitionem de ultimo et optimo fine humanae vitae. Et huius ratio est, quia
semper ratio eorum quae sunt ad finem, sumenda est ab ipso fine, ut etiam in secundo physicorum probatur.
25
Normativo no sentido hipotético kantiano: Existe a possibilidade de transgressão.
26
Tema que será analisado na segunda parte deste.
14
Mas porque o bem tem razão de fim e o mal razão de contrário, segue-se que o espírito
humano entende como bens e, em seguida, como dignos de serem realizados, todas as
coisas as quais o homem sente carregar naturalmente; por outro lado, ele tem como males a
evitar as coisas opostas às precedentes. É segundo a ordem mesma das inclinações naturais
que se toma a ordem dos preceitos da lei natural. Com efeito, o homem se sente antes
atraído a buscar o bem correspondente à sua natureza, no qual ele se assemelha a todas as
outras substâncias, no sentido de que toda substância busca a conservação do seu ser,
segundo a sua natureza própria. Conforme essa inclinação, o que garante a conservação
humana e tudo o que impede o contrário advém da lei natural.
Em segundo lugar, no homem uma inclinação a buscar certos bens mais especiais,
conformes à natureza que lhe é comum com os outros animais. Assim, pertence à lei natural
o que “a natureza ensina a todos os animais”, por exemplo, a união do macho e da fêmea, o
cuidado dos pequenos, etc.
Em terceiro lugar, encontra-se no homem uma atração pelo bem conforme à sua natureza
de ser racional, que lhe é própria; assim, uma inclinação natural a conhecer a verdade
sobre Deus e a viver em sociedade. Nesse sentido, pertence à lei natural tudo o que advém
dessa atração própria: por exemplo, que o homem evite a ignorância ou não faça mal a seu
próximo com o qual ele deve viver e todas as outras prescrições que visam a esse fim
27
.
O Doutor Angélico inova ao apregoar a existência de um sistema de moralidade, o
qual não aparece no pensamento aristotélico. Ele decorre do Direito Natural: os seus
primeiros princípios são verdadeiros e são mediatizados pelos comandos. Em Aristóteles, os
primeiros princípios morais não são entendidos como axiomas. A partir de um bem aparente,
busca-se alcançar um bem moral, e a Ética Nicomaquéia ocupa-se de desenvolver a questão
de como agir neste sentido. Para o Estagirita, o raciocínio ou silogismo prático o é
normativo, porque não é possível transgredi-lo. Uma vez realizado, a ação é iniciada. Não se
está no domínio de uma teoria do dever. Essa, com efeito, fora inventada pelos estóicos
28
.
Ainda, o silogismo prático não está limitado à Ética, mas explica também as técnicas e o
27
ST, I-II, q. 94, a. 2, conclusão.
[37592] Iª-IIae q. 94 a. 2 co.
Quia vero bonum habet rationem finis, malum autem rationem contrarii, inde est quod omnia illa ad quae homo
habet naturalem inclinationem, ratio naturaliter apprehendit ut bona, et per consequens ut opere prosequenda,
et contraria eorum ut mala et vitanda. Secundum igitur ordinem inclinationum naturalium, est ordo
praeceptorum legis naturae. Inest enim primo inclinatio homini ad bonum secundum naturam in qua
communicat cum omnibus substantiis, prout scilicet quaelibet substantia appetit conservationem sui esse
secundum suam naturam. Et secundum hanc inclinationem, pertinent ad legem naturalem ea per quae vita
hominis conservatur, et contrarium impeditur. Secundo inest homini inclinatio ad aliqua magis specialia,
secundum naturam in qua communicat cum ceteris animalibus. Et secundum hoc, dicuntur ea esse de lege
naturali quae natura omnia animalia docuit, ut est coniunctio maris et feminae, et educatio liberorum, et similia.
Tertio modo inest homini inclinatio ad bonum secundum naturam rationis, quae est sibi propria, sicut homo
habet naturalem inclinationem ad hoc quod veritatem cognoscat de Deo, et ad hoc quod in societate vivat. Et
secundum hoc, ad legem naturalem pertinent ea quae ad huiusmodi inclinationem spectant, utpote quod homo
ignorantiam vitet, quod alios non offendat cum quibus debet conversari, et cetera huiusmodi quae ad hoc
spectant.
28
Zenon fora o primeiro a utilizar a palavra “dever”.
“Eles sustentam que o dever (kathêkon) é uma ação dotada de uma justificativa racional, como a coerência da
vida, que se aplica mesmo às plantas e aos animais; e mesmo esses seres enxergam seus deveres. O primeiro a
usar desse nome de dever foi Zenon”. Stoicorum Veterum Fragmenta, I, 230.
15
movimento dos animais
29
. A escolha não acontece no momento da conclusão, mas quando se
coloca a premissa maior. A conclusão provoca já a ação. No interior do silogismo prático, a
necessidade faz a lei. Mas ele não é normativo. Ele não tem valor de norma moral. o
obrigação formulada na conclusão. A conclusão é uma ação real e não um enunciado geral.
Nota-se que a lógica da ação pode ser enunciada tanto no indicativo como no
imperativo, mas tanto um como o outro constituem formulação de um silogismo prático que
não é mais do que uma descrição, uma ficção explicativa formulada por um observador que
pode mesmo não ser o agente. O silogismo prático é a dedução da ação a partir de certas
premissas. É a expressão em palavras da lógica real da ação, a qual, verificar-se-á, encadeia
desejo, conhecimento e ação. Há, contudo, outra forma de explicar a ação para além do
silogismo, a deliberação. Através da deliberação um questionamento sobre como se chegar
a um fim, quais são os meios para tanto. Remonta-se de condição em condição até o momento
em que se chegue a uma primeira ação. O Aquinate afirma na Suma de Teologia:
O comando é um ato da razão, mas o qual pressupõe um ato da vontade. Para convencer-se
disso, é preciso considerar que os atos da vontade e da razão podem reagir um sobre o
outro, a razão raciocinando sobre o querer, a vontade querendo raciocinar. Acontece assim
que o ato da vontade seja precedido por aquele da razão e reciprocamente. E porque o
dinamismo do primeiro ato continua no ato seguinte, acontece às vezes que haja um ato da
vontade no qual continua pelo seu dinamismo alguma coisa do ato da razão, como dissemos
sobre o uso e a escolha; e, reciprocamente, um ato da razão no qual continua pelo seu
dinamismo alguma coisa do ato da vontade.
Ora, comandar é essencialmente um ato da razão. Pois aquele que comanda ordena” o
sujeito do seu comando a fazer uma certa ação que lhe revela e significa. Ora, uma tal
ordenação é obra da razão. Mas a razão pode revelar e significar de dois modos. O primeiro
é dado no absoluto, e essa revelação exprime-se pelo verbo no indicativo, por exemplo, se
se diz a alguém: “Veja o que tu deves fazer”. Mas às vezes a razão comunica sua ordem a
alguém lhe encorajando a agir, e isso se exprime por um verbo no imperativo, como quando
se diz a alguém: “Faça isto”.
Ora, entre as faculdades da alma, o primeiro motor ao exercício do ato é a vontade,
dissemos. Então, porque o segundo motor não move a não ser em virtude do primeiro,
segue-se que o movimento exercido pela razão quando ela comanda vem-lhe do dinamismo
da vontade. Isso nos obriga a concluir que comandar é um ato da razão, o qual pressupõe
29
Na Suma de Teologia, Tomás expõe argumento aristotélico segundo o qual os animais são capazes de
raciocínio prático. É o que se segue:
“Um cachorro, por exemplo, que persegue um cervo, chegando a um cruzamento de três caminhos, explora-o
com o seu olfato a fim de identificar se o cervo o teria passado pelo primeiro ou pelo segundo desses
caminhos; e se ele acha que ele não passou, ele se lança sem exitação e sem ter precisado exercer seu faro, sobre
o terceiro caminho; como se ele procedesse a um silogismo disjuntivo, pelo qual ele concluira que o cervo, não
tendo adotado nenhum dos outros caminhos, tomou aquele, pois não nenhum outro”. ST, I-II, q. 13, a. 2,
objeção 3.
[34033] Iª-IIae q. 13 a. 2 arg. 3
Canis enim insequens cervum, si ad trivium venerit, odoratu quidem explorat an cervus per primam vel
secundam viam transiverit, quod si invenerit non transisse, iam securus per tertiam viam incedit non
explorando, quasi utens syllogismo divisivo, quo concludi posset cervum per illam viam incedere, ex quo non
incedit per alias duas, cum non sint plures.
16
um ato da vontade, em virtude do qual a razão move pelo seu comando ao exercício do
ato
30
.
A normatividade reside, então, no apetite racional. Com efeito, o que distingue o
homem do animal não é o silogismo prático, mas a deliberação. É a análise, a busca
consciente, que é própria ao homem. Não obstante, cabe observar, a maior parte das ações
humanas não dependem de deliberação.
O. Boulnois assinala o movimento que Tomás opera em relação à definição do
silogismo prático aristotélica. Para Aristóteles, é na maior que reside o objeto do desejo e,
logo, é já pela formulação do silogismo que a ação é iniciada. Para o Doutor Comum,
entretanto, é na menor que o desejo opera a particularização do bem, realizando a
determinação da maior que, por sua vez, consiste num enunciado racional que estabelece a
possibilidade de algo e de seu contrário. O. Boulnois observa:
Parece manifesto que o Tomás, ao invés de partir da definição do silogismo prático da
Ética Nicomaquéia (onde a maior é o objeto do meu desejo), inspira-se numa concepção
clássica do silogismo: a maior é dada pela faculdade racional, capaz de uma coisa e do seu
contrário, sendo logo indeterminada; a menor é inspirada pelo meu desejo, que determina a
escolha lhe particularizando. Dado que a maior ambivalente e racional não pode ser a causa
determinante da ação, é preciso, para se chegar ao ato, que alguma coisa de próprio
especifique a causa a fim de produzir um dos dois efeitos. Esta faculdade, diz Tomás, é o
desejo ou a escolha preferencial (appetitus aut prohairesis)
31
.
Pois Tomás conjuga o ensinamento aristotélico ao legado pelo direito romano, dando-
lhe contornos mais precisos. Se para Aristóteles o Direito Natural engloba tanto as tendências
naturais que o homem compartilha com os demais animais como aquelas que lhe são próprias,
30
ST, I-II, q. 17, a. 1, conclusão.
[34187] Iª-IIae q. 17 a. 1 co.
Respondeo dicendum quod imperare est actus rationis, praesupposito tamen actu voluntatis. Ad cuius
evidentiam, considerandum est quod, quia actus voluntatis et rationis supra se invicem possunt ferri, prout
scilicet ratio ratiocinatur de volendo, et voluntas vult ratiocinari; contingit actum voluntatis praeveniri ab actu
rationis, et e converso. Et quia virtus prioris actus remanet in actu sequenti, contingit quandoque quod est
aliquis actus voluntatis, secundum quod manet virtute in ipso aliquid de actu rationis, ut dictum est de usu et de
electione; et e converso aliquis est actus rationis, secundum quod virtute manet in ipso aliquid de actu
voluntatis. Imperare autem est quidem essentialiter actus rationis, imperans enim ordinat eum cui imperat, ad
aliquid agendum, intimando vel denuntiando; sic autem ordinare per modum cuiusdam intimationis, est rationis.
Sed ratio potest aliquid intimare vel denuntiare dupliciter. Uno modo, absolute, quae quidem intimatio
exprimitur per verbum indicativi modi; sicut si aliquis alicui dicat, hoc est tibi faciendum. Aliquando autem
ratio intimat aliquid alicui, movendo ipsum ad hoc, et talis intimatio exprimitur per verbum imperativi modi;
puta cum alicui dicitur, fac hoc. Primum autem movens in viribus animae ad exercitium actus, est voluntas, ut
supra dictum est. Cum ergo secundum movens non moveat nisi in virtute primi moventis, sequitur quod hoc
ipsum quod ratio movet imperando, sit ei ex virtute voluntatis. Unde relinquitur quod imperare sit actus rationis,
praesupposito actu voluntatis, in cuius virtute ratio movet per imperium ad exercitium actus.
31
BOULNOIS, O., Religions et philosophies dans le chritianisme au Moyen Âge: Désir et prudence (XIII
e
-XIV
e
siècles), p. 317.
17
para o Doutor Angélico, no Comentário à Ética Nicomaquéia, uma separação entre elas,
sendo, neste sentido, fiel à Isidoro de Sevilha
32
. Ele deduz um Direito das Gentes como parte
do Direito Natural, distinção que não se encontra presente nos escritos do Estagirita. Ainda,
na Suma de Teologia, o Santo Doutor precisa em que termos dá-se a derivação do Direito das
Gentes e em que outros dá-se a do Direito Civil. Aquele é uma conclusão dos primeiros
princípios enquanto esse é uma especificação. Ele explica:
É uma característica essencial da lei humana derivar da lei da natureza, nós dissemos.
Desse ponto de vista, o direito positivo divide-se em direito das gentes e em direito civil,
segundo os dois modos de derivação da lei natural que nós descrevemos. Pois o direito das
gentes liga-se ao que se deriva da lei da natureza do mesmo modo que as conclusões m
dos princípios, por exemplo, as compra-e-venda justas e outras coisas do nero, sem as
quais os homens não podem viver em comunidade; e isso é do direito natural porque “o
homem é por natureza um animal social”, como prova Aristóteles. Quanto ao que deriva da
lei da natureza a título de determinação particular, isso advém do direito civil, segundo
cada cidade determine o que lhe é melhor adaptado
33
.
Apesar dos acréscimos, seu pensamento continua harmônico com o colocado quando
do Comentário à Ética Nicomaquéia, dado que o Direito das Gentes é tido como o Direito
Natural próprio ao homem. Diz Tomás:
O direito das gentes é de uma certa maneira natural ao homem, na medida em que esse é
um ser racional, porque esse direito deriva da lei natural como uma conclusão que o está
muito longe dos princípios. Em todo caso, ele se distingue do direito natural estrito,
sobretudo daquele que é comum a todos os animais
34
.
Ora, a ação humana é, num certo sentido, fruto de uma ordem natural. O homem age
dentro das limitações e possibilidades que a sua condição de criatura lhe autoriza. Contudo,
32
O. Lottin descreve o trabalho de Tomás no sentido de, não contrariando Aristóteles, salvar a autoridade de
Isidoro. Para tanto, ele recorre à definição de Ulpiniano. LOTTIN, O., Le droit naturel chez saint Thomas et ses
prédécesseurs, p. 348.
33
ST, I-II, q. 95, a. 4, conclusão.
[37659] Iª-IIae q. 95 a. 4 co.
Est enim primo de ratione legis humanae quod sit derivata a lege naturae, ut ex dictis patet. Et secundum hoc
dividitur ius positivum in ius gentium et ius civile, secundum duos modos quibus aliquid derivatur a lege
naturae, ut supra dictum est. Nam ad ius gentium pertinent ea quae derivantur ex lege naturae sicut
conclusiones ex principiis, ut iustae emptiones, venditiones, et alia huiusmodi, sine quibus homines ad invicem
convivere non possent; quod est de lege naturae, quia homo est naturaliter animal sociale, ut probatur in I Polit.
Quae vero derivantur a lege naturae per modum particularis determinationis, pertinent ad ius civile, secundum
quod quaelibet civitas aliquid sibi accommodum determinat.
34
ST, I-II, q. 95, a. 4, solução 1.
[37660] Iª-IIae q. 95 a. 4 ad 1
Ad primum ergo dicendum quod ius gentium est quidem aliquo modo naturale homini, secundum quod est
rationalis, inquantum derivatur a lege naturali per modum conclusionis quae non est multum remota a
principiis. Unde de facili in huiusmodi homines consenserunt. Distinguitur tamen a lege naturali, maxime ab eo
quod est omnibus animalibus communis.
18
sua caracterização não se esgota nela, pois, à diferença de qualquer outro ser físico, ele é
dotado de uma natureza racional, para além da animal e de suas funções vegetativas. É a
ordem racional que o caracteriza, ainda que, inserida na natureza, à ordem natural não
contrarie. Antes disso, participa dela. Se o homem foi dotado de razão, é porque por ela passa
o reconhecimento de sua identidade e conseqüente realização terrena. Ele é, então,
naturalmente chamado a agir segundo a racionalidade que o especifica. Sustenta o Doutor
Angélico na Suma contra os Gentis:
Em todos os agentes e motores hierarquizados, o fim do primeiro é o fim último de todos;
assim, o fim do chefe de um exército é aquele de todos aqueles que combatem sob seu
comando. Ora, entre as diversas faculdades do homem, sua inteligência tem o papel de
primeiro motor: a inteligência move o apetite propondo-lhe seu objeto; o apetite intelectual,
a vontade, move o apetite sensível sob suas duas formas, irascível e concupiscível; também
não obedecemos nós a nossos desejos sensíveis salvo sob ordem da vontade; e o apetite
sensível, devido ao consentimento da vontade, move o corpo. O fim da inteligência é,
então, aquele de todas as atividades humanas
35
.
Com efeito, a distinção entre a ordem puramente natural e a ordem racional está na
base da compreensão da especificidade da alma e ação humanas. Dela decorre a atribuição da
liberdade ao homem, uma vez estando fundada na razão, e a complexidade que envolve o seu
bem frente a toda realidade. Cabe preliminarmente, então, definir o termo “natureza”.
J. Castello Dubra assinala que “natureza” equivale ao termo técnico physis de
Aristóteles, significando, de um modo genérico, “princípio imanente do movimento e do
repouso”
36
. De um modo estrito, por sua vez, diz significar o âmbito das coisas “desprovidas
de razão”, a saber, o “mundo físico”, ou, menciona mais restritivamente ainda, o “mundo
sublunar”
37
. Assim, chama a atenção para dois possíveis níveis de análise que a afirmação do
homem como ser natural exige. Ora ele é considerado sob o seu aspecto animal, ora ele o é
sob o seu aspecto racional. A compreensão da forma “bipartidada”
38
que parece guardar a
existência humana passa, por sua vez, pela reconstrução dos aspectos essenciais da doutrina
35
SCG, III, 25, §10.
[25768] Contra Gentiles, lib. 3 cap. 25 n. 10
In omnibus agentibus et moventibus ordinatis oportet quod finis primi agentis et motoris sit ultimus finis
omnium: sicut finis ducis exercitus est finis omnium sub eo militantium. Inter omnes autem hominis partes,
intellectus invenitur superior motor: nam intellectus movet appetitum, proponendo ei suum obiectum; appetitus
autem intellectivus, qui est voluntas, movet appetitus sensitivos, qui sunt irascibilis et concupiscibilis, unde et
concupiscentiae non obedimus nisi voluntatis imperium adsit; appetitus autem sensitivus, adveniente consensu
voluntatis, movet iam corpus. Finis igitur intellectus est finis omnium actionum humanarum.
36
CASTELLO DUBRA, J. A., Hombre y naturaleza, p. 622.
37
CASTELLO DUBRA, J. A., Hombre y naturaleza, p. 622.
38
Mais adiante será evidenciada a unidade da forma humana, apesar dela conjugar dois aspectos distintos.
19
tomista sobre a natureza da alma humana, bem como da relação entre alma e corpo. Contudo,
Tomás chama a atenção para a necessidade de se manter a análise focada sobre o que respeita
à matéria moral:
E diz que, nesta ciência, deve-se parar quanto à alma em vista daquelas, quer dizer, das
virtudes e ões do homem, sobre os quais versa aqui nossa intenção principal. É por isso
que se deve tratar da alma tanto quanto baste àquilo sobre o qual nós investigamos
principalmente. Se, ao contrário, nós quiséssemos garantir mais noções sobre a alma que
não bastam ao nosso propósito, isto exigiria mais trabalho que toda a investigação que nós
propusemos. Assim, segue-se que em tudo que buscamos em vistas de um fim sua
quantidade deve ser tomada segundo o que convém ao fim
39
.
Ainda, nota-se que, apesar de útil, a divisão da alma em “partes”, bem como o corte da
ordem em que se insere o homem em dois “níveis”, não são estanques. Como conseqüência,
para além de se poder e mesmo precisar vislumbrar tais distinções, um cotejo daquilo que
num certo sentido é diferente será exigido a fim de assinalar a sua interação e pertinência num
verdadeiro todo. Ora, a ordem existencial humana pode ser analisada sob seu aspecto
puramente natural ou sob o racional, mas o homem possui uma única realidade essencial.
Ainda, a alma pode ser analisada sob um aspecto que se dissocia da razão ou sob outro que se
reconhece racional estrito senso, mas não se poderá ignorar um terceiro aspecto que mescla os
dois primeiros. Finalmente, no plano prático, é a interação do caráter “animal” ao “racional”
que particularizará a ação humana.
Feitas as devidas observações, diz-se que a ordem natural é a que comunga todo ente
que compõe fisicamente o universo, ainda que os seres naturais se caracterizem de maneira
própria segundo a sua espécie. Para Tomás, e de acordo com o ensinamento aristotélico,
desde uma pedra até um ser humano, uma vez inseridos numa realidade teleologicamente
fundada, todos têm um fim o qual justifica e ordena sua existência. É por isso que tanto um
como outro possuem uma tendência natural a mover-se no sentido da atualização da sua
forma. Afirma o Aquinate no proêmio ao seu Comentário à Física:
Tudo o que é material é da ordem do movimento, de tal sorte que ser móvel é o objeto da
filosofia da natureza. Com efeito, essa versa sobre as realidades naturais das quais o
39
CEN, I, 19, §228.
[72932] Sententia Ethic., lib. 1 l. 19 n. 5
Et dicit quod in hac scientia contemplandum est de anima gratia horum, idest virtutum et actuum hominis, de
quibus est hic principalis intentio. Et ideo intantum considerandum est de anima, quantum sufficit ad ea quae
principaliter quaerimus. Si autem aliquis vellet plus certificare de anima, quam sufficit ad propositum,
requireret hoc maius opus quam ea quae in proposito quaeruntur. Et ita est in omnibus aliis quae quaeruntur
propter finem, quod eorum quantitas est assumenda secundum quod competit fini.
20
princípio é a natureza, fonte íntima do movimento e do repouso do ser. Serão, então, objeto
da ciência da natureza os seres que têm neles mesmos o princípio de seus movimentos
40
.
Mas pedra e homem não se movem em direção ao seu fim de uma mesma maneira.
Enquanto àquela impõe-se apenas uma ordem estritamente natural, a esse a ordem natural
“pura” restringe-se a algumas funções físico-vegetativas que não podem ser controladas pela
razão. Com efeito, a ordem natural em sentido estrito se traduz por uma determinação causal,
a qual não deixa margem ao “possível”, mas se esgota no necessário. O Doutor Angélico
explica no Comentário à Ética Nicomaquéia o caráter invariável de uma ação causada
naturalmente e a conseqüente inaplicabilidade do costume sobre ela.
Entre as [coisas] que são por natureza, nenhuma varia em função do costume. Isso é
manifesto por um exemplo: a pedra se coloca naturalmente para baixo; dessa forma, tantas
vezes quantas a projetemos para cima, ela não se acostumará de nenhuma maneira a mover-
se para cima. E o motivo é que o que age naturalmente, ou bem age sozinho, ou bem age e
é paciente. Se aquilo age sozinho, o princípio da ação não muda nele assim. Enquanto
permanecer a mesma causa, a inclinação ao mesmo efeito permanecerá sempre. Se, por
outro lado, aquilo age de maneira a ser também paciente mas não ao ponto do princípio da
ação ser retirado, a inclinação natural que lhe pertence não será removida. Se, entretanto,
aquilo sofre ao ponto de ter destruído o seu princípio de ação, ele não será, contudo, mais
da mesma natureza. De tal sorte que não lhe será mais natural o que lhe era antes. É por
isso que não se encontra também transformado quanto à sua ação pelo fato que se aja
naturalmente; e, segue-se também de modo semelhante, se se é movido contra a natureza; a
menos que, talvez, o movimento seja ao ponto de corromper a natureza. Mas se o princípio
natural de ação persiste, havesempre a mesma ação. E é por isso que o bito o tem
nenhum efeito sobre o que age conformemente à sua natureza e sobre o que vai contra a
natureza
41
.
40
Commentaire des Physiques, proêmio.
[71534] In Physic., lib. 1 l. 1 n. 3
Et quia omne quod habet materiam mobile est, consequens est quod ens mobile sit subiectum naturalis
philosophiae. Naturalis enim philosophia de naturalibus est; naturalia autem sunt quorum principium est
natura; natura autem est principium motus et quietis in eo in quo est; de his igitur quae habent in se principium
motus, est scientia naturalis.
41
CEN, II, 1, §248.
[72952] Sententia Ethic., lib. 2 l. 1 n. 4
Nihil eorum quae sunt a natura variatur propter assuetudinem; et hoc manifestat per exemplum: quia cum lapis
naturaliter feratur deorsum, quantumcumque proiciatur sursum, nullo modo assuescet sursum moveri, et eadem
ratio est de igne et de quolibet eorum quae naturaliter moventur. Et huius ratio est quia ea quae naturaliter
agunt, aut agunt tantum aut agunt et patiuntur. Si agunt tantum, ex hoc non immutabitur in eis principium
actionis et ideo, manente eadem causa, semper remanet inclinatio ad eumdem effectum. Si autem sic agant quod
etiam patiantur, nisi sit talis passio quae removeat principium actionis, non tolletur inclinatio naturalis quae
inerat. Si vero sit talis passio quae auferat principium actionis, iam non erit eiusdem naturae. Et sic non erit sibi
naturale quod fuerat prius. Et ideo per hoc quod naturaliter aliquid agit, non immutatur circa suam actionem.
Et similiter etiam si moveatur contra naturam; nisi forte sit talis motio quae naturam corrumpat; si vero
naturale principium actionis maneat, semper erit eadem actio; et ideo neque in his quae sunt secundum naturam
neque in his quae sunt contra naturam consuetudo aliquid facit. In his autem quae pertinent ad virtutes
consuetudo aliquid facit.
21
Tomás acrescenta no Comentário ao Tratado sobre a Alma que a determinação causal
que caracteriza a ordem natural funda-se, justamente, no fim que todo ser possui de atualizar a
sua forma. Segundo ele, qualquer que seja o ser, animado ou mesmo inanimado, todos têm em
vista a alma, ato e forma do corpo
42
, como fim. Ora, ainda que o ser não seja dotado de uma
alma, a sua razão de existir é dada pelo uso que os seres animados, que lhe o superiores,
dele fazem. Diz o Doutor Comum:
Ainda, o somente a alma é o fim dos corpos vivos, mas também de todos os corpos
naturais entre os inferiores. O que ele prova como se segue. Com efeito, nós observamos
que todos os corpos naturais são como instrumentos da alma, não somente entre os animais,
mas também entre as plantas. Os homens, com efeito, nós observamos, servem-se a seu
proveito dos animais, das plantas e das coisas inanimadas; os animais, quanto a eles,
servem-se das plantas e das coisas inanimadas; e as plantas servem-se das coisas
inanimadas, na medida em que elas encontram alimento e assistência. A propósito, entre as
coisas naturais, cada coisa age segundo o que é da sua natureza. Assim, vê-se que todos os
corpos inanimados servem de instrumento aos animados, e existem em vista deles. E, ainda,
que os animados menos perfeitos existam em vista dos animais mais perfeitos. Em seguida,
ele distingue aquilo que é em vista do que se é como ele disse mais acima.
Em terceiro, ele mostra que a alma é o princípio dos corpos vivos, como aquele de onde se
origina seu movimento. E ele serve-se de um raciocínio que vai mais ou menos como se
segue. Toda forma de um corpo natural é o princípio de um movimento próprio desse
corpo; por exemplo, a forma do fogo é o princípio do seu movimento. Ora, existem
movimentos próprios aos seres vivos, por exemplo: o movimento local, pelo qual os
animais se movem eles mesmos quanto ao lugar de um movimento progressivo, apesar
disso não pertencer a todos os vivos; igualmente, sentir é uma alteração que não pertence a
todos os que o dotados de alma; ainda, o movimento de crescimento e de regressão
pertence apenas aos seres que se nutrem, e nada se nutre se ele não tem uma alma. É
preciso, então, que a alma seja o princípio de todos esses movimentos
43
.
42
“Com efeito, foi mostrado que a alma é o ato de todo corpo e suas partes são os atos das partes desse; a
propósito, o ato e a forma o se separam daquilo do que eles são ato ou forma; em conseqüência, é manifesto
que a alma não pode se separar do corpo, nem inteiramente, nem algumas de suas partes, se ela é de uma
natureza tal a ter as partes de uma certa maneira. Com efeito, é manifesto que as partes da alma o os atos das
partes do corpo, como fora dito que a vista é o ato do olho. Contudo, quanto a certas partes, nada impede à alma
de se separar, pois certas partes da alma não são ato de nenhum corpo, como será provado mais adiante daquelas
que concernem à inteligência”. Commentaire au traité de l’âme, II, 2, §242.
[80525] Sentencia De anima, lib. 2 l. 2 n. 8
Deinde cum dicit quod quidem concludit quamdam veritatem ex praemissis: quia enim ostensum est quod anima
est actus totius corporis, et partes sunt actus partium, actus autem et forma non separantur ab eo cuius est actus
vel forma: manifestum est quod anima non potest separari a corpore, vel ipsa tota, vel aliquae partes eius, si
nata est aliquo modo habere partes. Manifestum est enim quod aliquae partes animae sunt actus aliquarum
partium corporis, sicut dictum est quod visus est actus oculi. Sed secundum quasdam partes nihil prohibet
animam separari, quia quaedam partes animae nullius corporis actus sunt, sicut infra probabitur de his quae
sunt circa intellectum.
43
Commentaire au traité de l’âme, II, 7, §322/3.
[80605] Sentencia De anima, lib. 2 l. 7 n. 14
Et ulterius non solum anima est finis viventium corporum, sed etiam omnium naturalium corporum in istis
inferioribus: quod sic probat. Videmus enim quod omnia naturalia corpora sunt quasi instrumenta animae, non
solum in animalibus, sed etiam in plantis. Videmus enim quod homines utuntur ad sui utilitatem animalibus, et
rebus inanimatis: animalia vero plantis et rebus inanimatis; plantae autem rebus inanimatis, inquantum scilicet
alimentum et iuvamentum ab eis accipiunt. Secundum autem, quod agitur unumquodque in rerum natura, ita
natum est agi. Unde videtur quod omnia corpora inanimata, sint instrumenta animatorum, et sint propter ipsa.
22
Também ao tratar da alma, Tomás ressalva a anterioridade da Física. Se a alma
respeita a todo ser vivo, a matéria respeita a todos os seres físicos, que eles sejam animados
ou o. Quer dizer, uma vez que a alma anime um corpo, submete-se na mesma medida às
limitações da matéria à qual forma. Nesse sentido, o exame da matéria própria à alma,
causa do ser a título de princípio, de fim e de forma
44
, não pode ficar indiferente aos preceitos
oriundos da Filosofia Natural ou Física. um certo determinismo que alcança a todos os
seres naturais, ainda que variável em grau conforme à especificidade da sua forma. São as
palavras do Aquinate:
Em seguida, como ele parecia fazer digressões insistindo sobre o exame de definições, ele
volta-se à sua matéria própria, dizendo que é preciso retornar à matéria própria de onde
partiu o discurso, a saber, que as alterações da alma, como o amor, a temeridade, e outros
de tal sorte, não são separáveis da matéria natural dos vivos, na medida em que elas são de
uma tal natureza, a saber, na medida em que são alterações que não ocorrem sem o corpo, e
não o como a linha e o plano, quer dizer, a superfície, que podem separar-se da matéria
natural em razão. Se, então, é assim, o exame dessas coisas diz respeito à ciência natural, e
também o da alma, como fora dito
45
.
O determinismo causal que caracteriza de um modo geral os seres naturais é mitigado,
conforme fora visto, consoante o grau de superioridade do ser a que se refira. Daí a
necessidade de se introduzir o tema da natureza da alma, proposta inicialmente por Aristóteles
e a qual é retomada por Tomás, para compreender a existência humana. Ora, no interior da
“ordem natural” distingue-se não apenas os seres animados dos inanimados, mas ainda, entre
Et etiam animata minus perfecta, sint propter animata magis perfecta. Et consequenter distinguit id cuius causa
est, sicut et supra.
[80606] Sentencia De anima, lib. 2 l. 7 n. 15
Tertio ibi at vero ostendit quod anima est principium moventis corporis, sicut unde motus: et utitur quasi tali
ratione. Omnis forma corporis naturalis est principium motus proprii illius corporis, sicut forma ignis est
principium motus eius. Sed quidam motus sunt proprii rebus viventibus: scilicet motus localis, quo animalia
movent seipsa motu processivo secundum locum, licet hoc non insit omnibus viventibus: et similiter sentire est
alteratio quaedam: et hoc non inest nisi habentibus animam. Item motus augmenti et decrementi non inest nisi
illis quae aluntur, et nihil alitur nisi habens animam: ergo oportet, quod anima sit principium omnium istorum
motuum.
44
Commentaire au traité de l’âme, II, 7, §318 à 323.
45
Commentaire au traité de l’âme, I, 2, §30.
[86490] Sentencia De anima, lib. 1 l. 2 n. 15
Consequenter cum dicit sed redeundum quia videbatur fecisse quasdam digressiones ex hoc quod institit ad
inquisitionem definitionum, reducit se ad materiam propriam, dicens quod redeundum est ad materiam
propriam, unde est sermo habitus, scilicet quod passiones animae, ut amor, timor et huiusmodi, non sunt
separabiles a physica materia animalium, inquantum tales existunt, scilicet inquantum passiones quae non sunt
sine corpore, et non sunt sicut linea et planum, idest superficies, quae ratione possunt separari a materia
naturali. Si ergo ita est, ad naturalem spectat consideratio earum, et etiam animae, sicut supra dictum est.
23
os primeiros, os que são dotados de uma alma irracional e os que o são de uma alma
racional
46
.
Ressalta-se que, para o Aquinate, “a alma é o primeiro princípio da vida” e que,
portanto, não consiste numa realidade corporal, mas que é necessariamente o ato de um
corpo
47
. Fica claro, então, que a referência à “alma irracional” e à “alma racional” humanas
diz respeito a partes” ou aspectos de uma mesma alma, a qual subsiste em união ao corpo
humano. Na primeira parte da Suma de Teologia, o Doutor Angélico aborda a questão da
unidade da alma, muito embora os diferentes aspectos que ela pode engendrar, ratificando o
ensinamento do Estagirita:
A alma sensível, intelectual e vegetativa não formam, então, mais do que uma única e
mesma alma no homem. Facilmente se compreenderá como isso se faz considerando-se as
diferentes espécies ou formas dos seres da natureza. Elas distinguem-se umas das outras
pelos níveis de perfeição de crescimento; os seres animados são mais perfeitos que os seres
inanimados, os animais mais do que as plantas, os homens mais do que os animais. E
ainda níveis no interior de cada um dos gêneros. Veja-se porque Aristóteles, no livro VIII
da Metafísica, compara as espécies nos seres ao número que muda de espécie segundo se
acrescente ou retire uma unidade; no livro II do tratado sobre A Alma, ele compara as
diferentes almas às figuras geométricas onde uma contém a outra como o pentágono
contém o quadrado e possui um número maior de lados. A alma intelectual contém, então,
na sua perfeição toda realidade da alma sensível dos animais e da alma vegetativa das
plantas. Uma superfície de cinco lados não possui duas figuras, aquela de um pentágono e a
de um quadrado; pois a figura de quatro lados será inútil posto estar contida virtualmente
naquela de cinco. Similarmente, Sócrates o é homem por uma alma e animal por uma
outra, mas por uma única e mesma alma
48
.
Diz-se, então, que a ordem racional é a que distingue o ser humano de qualquer outro
ser no universo. Se uma pedra tende naturalmente para baixo e nunca se “acostumará” a
mover-se de outra forma, é porque sua determinação é do tipo causal. o homem tende
46
Alma racional essa que guarda uma “parte” irracional.
47
ST, I, q. 75, a. 1, conclusão.
[31452] Iª q. 75 a. 1 co.
Quod autem est actu tale, habet hoc ab aliquo principio quod dicitur actus eius.
48
ST, I, q. 76, a. 3, conclusão.
[31537] Iª q. 76 a. 3 co.
Sic ergo dicendum quod eadem numero est anima in homine sensitiva et intellectiva et nutritiva. Quomodo
autem hoc contingat, de facili considerari potest, si quis differentias specierum et formarum attendat.
Inveniuntur enim rerum species et formae differre ab invicem secundum perfectius et minus perfectum, sicut in
rerum ordine animata perfectiora sunt inanimatis, et animalia plantis, et homines animalibus brutis, et in
singulis horum generum sunt gradus diversi. Et ideo Aristoteles, in VIII Metaphys., assimilat species rerum
numeris, qui differunt specie secundum additionem vel subtractionem unitatis. Et in II de anima, comparat
diversas animas speciebus figurarum, quarum una continet aliam; sicut pentagonum continet tetragonum, et
excedit. Sic igitur anima intellectiva continet in sua virtute quidquid habet anima sensitiva brutorum, et nutritiva
plantarum. Sicut ergo superficies quae habet figuram pentagonam, non per aliam figuram est tetragona, et per
aliam pentagona; quia superflueret figura tetragona, ex quo in pentagona continetur; ita nec per aliam animam
Socrates est homo, et per aliam animal, sed per unam et eandem.
24
racionalmente para o que julga ser seu bem, mas tender a um bem real e não a um bem
aparente depende de como o desejo humano e o conhecimento do seu fim se articulam quando
da sua ação.
“Fim” e “desejo” relacionam-se na consecução da felicidade, dada a definição de
homem como “animal” e “racional”. Da sua racionalidade, tem-se que é um ser humano e que
há um fim que lhe deve ser próprio. Da sua animalidade, por outro lado, conclui-se o
movimento que é capaz de engendrar na busca de realização do seu fim, o qual deseja como
bem. Com efeito, a ordenação para um fim humano dá-se a partir da conjugação de dois
princípios: o racional “prático” e o apetitivo, ou seja, de um princípio propriamente oriundo
da razão e de outro que, oriundo do desejo, participa da razão. O que a razão ou intelecto
declara ser bom, o apetite busca como a um fim, o que declara ser mal, evita
49
. Esta é a tese
que, ainda de forma genérica e incipiente, abre a Ética Nicomaquéia:
Toda arte e todo ensino, e similarmente todo ato e toda escolha, parecem ter a realização de
algum bem como objetivo
50
.
Com o intuito de compreender essa relação, é preciso que se compreenda os princípios
que engendram a ação humana. Esses, por sua vez, ligam-se a uma certa definição de homem,
dada pela sua forma, a alma humana. Passa-se, então, a uma tal análise.
1.1 Os princípios da ação humana
A ação propriamente humana é o resultado de dois princípios, que agem
conjuntamente. Ambos situam-se no homem, sendo ele, neste sentido, movido por ele mesmo.
É a forma humana, sua alma, portanto, que enseja um tal tipo de ação. O primeiro deles é
dado pela “parte” irracional ou “animal” da sua alma, o desejo. O segundo pela sua parte
racional ou “humana”, o intelecto. Pois na ação humana o desejo é movido por uma
representação intelectual do seu fim como um bem. O homem age segundo um apetite
racional, quer dizer, segundo a vontade, que é conforme à determinação do intelecto. A sua
especificidade está na relação que guarda com a regra: O desejo humano é refletido.
49
CEN, VI, 2, §1128.
50
EN, 1094a1-1094a18.
25
Pelos seus princípios, a ação própria ao homem distingue-se do movimento dos
demais animais e criaturas. Um animal é movido pelo desejo de um objeto particular. Nunca
por uma idéia que se faça dele. E, portanto, não goza da liberdade de escolha daquele. O
homem, ao contrário, move-se segundo a sua natureza própria quando em vistas de um objeto
que apreende como bom. “Bom” porque conforme ao seu fim e, justamente por isso,
desejável. Ele é também determinado do ponto de vista estritamente natural, mas, tendo um
fim que escapa à ordem da natureza estrito senso, tem o condão de determinar os meios para a
consecução do seu fim, assim como o de escolher exercer uma determinação intelectual ou
não e de particularizar as suas escolhas. Diz o Santo Doutor no De Malo:
Para tornar, então, manifesta a verdade sobre essa questão, deve-se notar em primeiro lugar
que, assim como nas outras coisas um princípio dos atos próprios, também no homem.
Ora, esse princípio ativo ou motor é propriamente entre os homens a inteligência e a
vontade, como é dito no livro sobre A Alma, III, 9. Esse princípio, é verdade, acorda-se em
parte com o princípio ativo existente nas coisas naturais, e ele difere delas em parte. Ele se
acorda com elas, pois, assim como nas coisas naturais encontra-se uma forma que é o
princípio da ação e uma inclinação que segue sua forma, chamada apetite natural, a ação
resultante dos dois; também se encontra entre os homens uma forma intelectual e uma
inclinação da vontade que segue a forma assim descrita, e a ação exterior resulta dos dois.
Mas uma diferença, pois a forma da coisa natural é a uma forma individuada pela
matéria, assim como a inclinação que a segue é determinada a uma única coisa; no entanto,
a forma que está no intelecto é universal e ela entende uma multitude de coisas. Portanto,
como os atos não se produzem a não ser nos casos particulares e como nenhum deles o
pode igualar a faculdade do universal, a inclinação da vontade permanece na
indeterminação em relação a essa multiplicidade; assim, se um arquiteto concebe a forma
de uma casa universalmente, forma sob a qual estão contidos diversos planos de casa, sua
vontade pode, então, inclinar a realizar uma casa quadrada, ou redonda, ou de uma outra
forma
51
.
A relação do fim e do desejo com os dois princípios da ação humana, oriundos de
partes distintas da alma humana, a saber, da razão e do apetite, obram pela virtude do homem
51
Questions disputées sur le mal, q. 6, a. único, resposta.
[62321] De malo, q. 6 co. Respondeo.
Ad evidentiam ergo veritatis circa hanc quaestionem primo considerandum est, quod sicut in aliis rebus est
aliquod principium propriorum actuum, ita etiam in hominibus. Hoc autem activum sive motivum principium in
hominibus proprie est intellectus et voluntas, ut dicitur in III de anima. Quod quidem principium partim convenit
cum principio activo in rebus naturalibus, partim ab eo differt. Convenit quidem, quia sicut in rebus naturalibus
invenitur forma, quae est principium actionis, et inclinatio consequens formam, quae dicitur appetitus naturalis,
ex quibus sequitur actio; ita in homine invenitur forma intellectiva, et inclinatio voluntatis consequens formam
apprehensam, ex quibus sequitur exterior actio: sed in hoc est differentia, quia forma rei naturalis est forma
individuata per materiam; unde et inclinatio ipsam consequens est determinata ad unum, sed forma intellecta est
universalis sub qua multa possunt comprehendi; unde cum actus sint in singularibus, in quibus nullum est quod
adaequet potentiam universalis, remanet inclinatio voluntatis indeterminate se habens ad multa: sicut si artifex
concipiat formam domus in universali sub qua comprehenduntur diversae figurae domus, potest voluntas eius
inclinari ad hoc quod faciat domum quadratam vel rotundam, vel alterius figurae.
26
e pela sua felicidade. Com efeito, assinala Tomás, “a felicidade é uma atividade da alma”
52
. É
nesse sentido que, como fora dito, alguns aspectos da alma humana precisam ser investigados.
1.2 A alma e suas partes
No Comentário ao De anima, o Doutor Comum constata que o gênero de todos os
seres “animados”, aqueles que se movem por princípio próprio, é dado pela sua alma. Daí um
primeiro esboço caracterizador desse princípio vital. Ele diz:
Aliás, há como um gênero comum a todos os seres animados; é por isso que, ao observar os
seres animados, deve-se primeiramente observar aquilo que existe de comum a tudo o que é
animado, e, apenas depois, o que é próprio a qualquer ser animado. Ora, o que é comum a
todos os seres animados é a alma: nela, com efeito, todos os seres animados se
assemelham
53
.
Para Tomás, “a alma ela mesma é fonte e princípio de todo movimento entre os seres
animados”
54
. Mas sua caracterização não pode esgotar-se aí, uma vez que os ditos seres
animados não compartilham todos dos mesmos movimentos. A alma pode ser o princípio de
faculdades nutritivas, sensitivas, intelectivas e do movimento
55
, e a especificidade de cada um
é dada pelas propriedades que engendra sua alma. As espécies naturais identificam-se
consoante a “partição” característica de sua alma. Com efeito, “a alma é o ato do corpo e suas
partes são os atos de suas partes”, ainda que nem toda parte de uma alma seja ato de algum
corpo
56
.
Nesse mesmo comentário, refere a dificuldade de se definir a alma e de identificar as
suas partes, concluindo dever ser deixada de lado a busca de uma noção conveniente a todos
52
CEN, I, 19, §226.
53
Commentaire au traité de l’âme, I, 1, §1.
[86461] Sentencia De anima, lib. 1 l. 1 n. 1
Rerum autem animatarum omnium quoddam genus est; et ideo in consideratione rerum animatarum oportet
prius considerare ea quae sunt communia omnibus animatis, postmodum vero illa quae sunt propria cuilibet rei
animatae. Commune autem omnibus rebus animatis est anima: in hoc enim omnia animata conveniunt.
54
“A alma ‘age com efeito como princípio dos seres vivos’. Isso o como indica a similitude, mas o título”.
Commentaire au traité de l’âme, I, 1, §7.
[86467] Sentencia De anima, lib. 1 l. 1 n. 7
Ad naturalem vero utilis est, quia magna pars naturalium est habens animam, et ipsa anima est fons et
principium omnis motus in rebus animatis. Est enim anima tamquam principium animalium. Ly tamquam non
ponitur similitudinarie, sed expressive.
55
Commentaire au traité de l’âme, I, 1, §1 e §13; II, 2, §244 e 5, §298.
56
Commentaire au traité de l’âme, II, 2, §242.
27
os seres animados em prol de uma noção da espécie própria e indivisível
57
, pressuposta para
que se compreenda o significado do fim para o homem. Assim, no Comentário à Ética
Nicomaquéia, serve-se de uma divisão limitada, útil, entretanto, no que tange à análise dos
animais racionais, a saber, os homens, conforme pontuado por Aristóteles:
A alma deve ser estudada tendo em vista os objetos investigados e segundo a extensão
bastante para eles. Fazer um estudo mais exaustivo seria tarefa maior do que a matéria
exige
58
.
O que os homens m de próprio são as faculdades de conhecer e de agir
59
, ambas
ligadas à sua racionalidade. Dentre todos os seres vivos, é o único capaz de apreender os
universais para além dos particulares e, por conseqüência, é o único capaz de deliberação e
escolha, o que será demonstrado. Na base dessa sua distinção, está a compreensão da alma
humana. Ela é dividida, para fins de explicitação de sua especificidade, em duas partes, uma
irracional e outra racional
60
, como fora proposto por Aristóteles:
Algumas coisas sobre a alma são adequadamente tratadas em discursos alheios. Nós
devemos utilizar deles, neste momento, a distinção da alma em racional e irracional
61
.
Cada uma das partes da alma é subdividida em duas, ainda que o de maneira
estanque. A parte irracional subdivide-se em irracional vegetativa” (ligada às funções de
assimilação e crescimento)
62
e em “irracional apetitiva” ou irracional participante da razão”
(ligada ao apetite sensível e ao apetite racional ou intelectual, também denominado
simplesmente de vontade)
63
. A parte racional, por sua vez, subdivide-se em racional
57
Commentaire au traité de l’âme, I, 1, §9 e II, 4, 278.
58
EN, 1102a23-26; 228.
59
CEN, VI, 2, 1126.
60
CEN, I, 19, 20, e VI, 1, 2. Commentaire au traité de l’âme, III, 14, §797.
61
EN, 1102a26-28; 229.
62
CEN, I, 20, §231.
[72935] Sententia Ethic., lib. 1 l. 20 n. 1
Irrationabilis autem et cetera. Postquam philosophus divisit partes animae per rationale et irrationale, hic
subdividit partem irrationalem. Et primo ponit unum membrum divisionis. Secundo ponit aliud, ibi, videtur
utique et alia quaedam et cetera. Circa primum duo facit: primo proponit quandam partem animae irrationalem.
Secundo ostendit quod illa pars animae non est proprie humana, ibi: haec quidem igitur et cetera. Dicit ergo
primo, quod inter irrationales partes animae una est, quae assimilatur animae plantarum, quae est communis
omnibus viventibus hic inferius. Et huiusmodi pars est illa quae est causa nutrimenti et augmenti in hominibus.
Et talis pars animae ponitur in omnibus quae nutriuntur, non solum in animalibus, sed in plantis; in animalibus
autem invenitur non solum iam natis, sed etiam antequam nascantur, idest in embryonibus, qui manifeste
nutriuntur et crescunt.
63
CEN, I, 20, §236.
[72940] Sententia Ethic., lib. 1 l. 20 n. 6
28
estimativa ou conjectural (ligada ao conhecimento prático) e em racional científica (ligada ao
conhecimento especulativo)
64
. Contudo, alguns problemas advém caso se pretenda entender
as suas partes como estanques. Resume o Aquinate:
Com efeito, alguma coisa de simplesmente irracional, como a parte nutritiva da alma.
Há, ao contrário, algo de simplesmente racional, como a inteligência e a razão. Mas ,
ainda, uma parte irracional em si mesma, mas racional por partcipação, como o apetite
sensível e a vontade
65
.
Passa-se, então, a detalhar uma e outra partes consoante as exigências da matéria
moral aqui investigada. Seguir-se-á à divisão inicialmente proposta por Tomás, mas a ela
serão anexadas algumas considerações críticas levantadas pelo próprio autor no seu
Comentário ao De Anima.
1.2.1 A alma irracional
A parte irracional da alma humana subdivide-se em vegetativa e em apetitiva. À parte
irracional vegetativa atribui-se as funções de assimilação e crescimento, as quais o homem
comunga mesmo com as plantas. Ela é responsável pela vida orgânica em geral, não
distinguindo o homem de qualquer dos seres animados. Com efeito, a regra natural manifesta-
se por excelência no interior da parte irracional vegetativa da alma. Ela diz respeito às
necessidades primárias de qualquer ser vivo, sendo, justamente, o que marca o seu caractere
de vivacidade. A palavra “necessidade” deve ser entendida no seu sentido mais forte, posto
refletir a condição primeira do ser animado, havendo uma completa impossibilidade de
identificação do que seja “vivo” sem que tais operações se realizem. Ora, elas não dependem
de qualquer comando do ser que as encerra, mas constituem precisamente o seu sentido
existencial mais básico. À parte “irracional” apetitiva, por sua vez, atribui-se a faculdade do
Dicit ergo primo quod praeter nutritivam partem animae, videtur esse quaedam alia pars animae, irrationalis
quidem sicut et nutritiva, sed aliqualiter participans rationem; in quo differt a nutritiva, quae omnino est expers
humanae virtutis, ut dictum est.
64
CEN, VI, 1, §1118.
[73822] Sententia Ethic., lib. 6 l. 1 n. 10
Deinde cum dicit: dicatur autem etc., imponit nomina praedictis partibus. Et dicit quod praedictarum partium
rationalis animae una quidem quae speculatur necessaria potest dici scientificum genus animae, quia scientia de
necessariis est; alia autem pars potest dici rationativa, secundum quod ratiocinari et consiliari pro eodem
sumitur.
65
CEN, I, 20, §242.
[72946] Sententia Ethic., lib. 1 l. 20 n. 12
Est enim aliquid irrationale tantum, sicut pars animae nutritiva. Quaedam vero est rationalis tantum, sicut ipse
intellectus et ratio; quaedam vero est secundum se quidem irrationalis, participative autem rationalis.
29
desejo. Ela subdivide-se ainda em sensitiva e em racional. Muito embora seja irracional, ela
participa, no caso do homem, da razão, sendo, por isso, mais propriamente denominada
“irracional participante da razão”.
A parte referente ao apetite sensível, seja da concupiscência, seja da irascibilidade, é
responsável pelo controle das paixões interiores, o que margem à distinção entre o homem
continente e o incontinente. O primeiro é aquele cujo apetite sensível obedece à razão
66
. O
segundo, por exclusão, aquele cujo apetite sensível não a obedece.
Tanto o continente como o incontinente escolhem se abster de prazeres ilícitos. Mas num e
noutro parece haver algo inato, fora da razão, que a contraria e obstrui, quer dizer, a impede
na execução de sua escolha. Obviamente, há algo de irracional, pois isto é contrário à razão.
E é o apetite sensível, que deseja o que é prazeroso aos sentidos, aquele que às vezes
contraria o que a razão julga absolutamente bom. Ora, esse, naquele que é continente, se
encontra vencido pela razão, pois o continente tem, sem vida, desejos depravados, mas
sua razão o lhe segue. Contudo, no incontinente, aquele vence a razão, que se encontra
treinada por desejos depravados
67
.
O apetite sensível, no que tange à irascibilidade, liga-se à virtude moral da fortaleza,
que controla as paixões do medo e da ousadia. no que tange à concupiscência, liga-se à da
temperança, que controla o prazer e o sofrimento. À diferença do que acontece nos outros
animais, onde os sentidos operam o somente pelo instinto de sobrevivência, no homem eles
constituem um princípio para o conhecimento, a partir do qual se procede a um conhecimento
racional. O apetite sensível se relaciona, então, com o apetite racional, mas não é
necessariamente comandado por ele. A boa ação, entretanto, pressupõe uma tal submissão,
pois essa está na base da distinção do agir humano. Apresenta o Doutor Comum ensinamento
de cunho aristotélico na Suma de Teologia:
A razão que engloba a vontade, remarca Aristóteles, move por seu comando o irascível e o
concupiscível, não “de forma despótica”, como o escravo é movido pelo seu senhor, mas
“segundo um poder real e político”, como os homens livres são conduzidos pelo
66
CEN, I, 20, §239.
67
CEN, I, 20, §237.
[72941] Sententia Ethic., lib. 1 l. 20 n. 7
Primum autem probat ratione sumpta ex parte continentis et incontinentis, in quibus laudamus partem animae
quae habet rationem, eo quod ratio eorum recte deliberat et ad optima inducit quasi deprecando vel
persuadendo: uterque enim horum eligit abstinere ab illicitis voluptatibus. Sed in utroque eorum videtur esse
aliquid naturaliter eis inditum praeter rationem, quod contrariatur rationi et obviat ei, idest impedit ipsam in
executione suae electionis, unde patet quod est quiddam irrationale, cum sit rationi contrarium. Et hoc est
appetitus sensitivus, qui appetit id quod est delectabile sensui, quod interdum contrariatur ei quod ratio iudicat
esse bonum simpliciter. Hoc autem in eo qui est continens vincitur a ratione, nam continens habet quidem
concupiscentias pravas, sed ratio eas non sequitur. In incontinente autem vincit rationem, quae deducitur a
concupiscentiis pravis.
30
governante, sempre guardando a faculdade de agir. Donde advém que o concupiscível e o
irascível têm o poder de mover contrariamente à vontade. E, assim, nada impede que a
vontade às vezes seja movida por eles
68
.
A parte referente ao apetite racional ou intelectual, a saber, à vontade, é responsável
pela escolha e pela execução. Aquela é posta à “ação” (actio), enquanto essa é a ação
efetivamente realizada (actus)
69
. Pois a escolha é um ato da vontade, um julgamento
resultante de uma deliberação intencional
70
. A execução, por sua vez, é a ação exterior que
coloca em prática a escolha interior. Para Tomás, a virtude moral concerne de um modo
especial à boa escolha, mais do que à sua execução propriamente dita, posto que a vontade do
fim pode não concretizar-se por um motivo alheio à escolha do agente, assim como ele
poderia agir bem por acaso. Nesse sentido, ele toma a virtude (moral) como um hábito de
escolher corretamente os meios para um fim, que, pressupondo voluntariedade, é
necessariamente livre
71
. É o que ele afirma:
Um motivo dessa sorte é manifestado pelo fato de que, como do hábito da virtude procede
às vezes a escolha interior e a ação exterior, os costumes virtuosos ou viciosos são julgados
especialmente pela escolha do que pelos atos externos. Com efeito, todo virtuoso escolhe o
bem, mas às vezes ele não o faz em função de um impedimento externo. O vicioso faz às
vezes obra de virtude, não, entretanto, por uma escolha virtuosa, mas por medo ou por um
68
ST, I-II, q. 9, a. 2, sol. 3.
[33879] Iª-IIae q. 9 a. 2 ad 3
Ad tertium dicendum quod, sicut philosophus dicit in I Polit., ratio, in qua est voluntas, movet suo imperio
irascibilem et concupiscibilem, non quidem despotico principatu, sicut movetur servus a domino; sed principatu
regali seu politico, sicut liberi homines reguntur a gubernante, qui tamen possunt contra movere. Unde et
irascibilis et concupiscibilis possunt in contrarium movere ad voluntatem. Et sic nihil prohibet voluntatem
aliquando ab eis moveri.
69
“Como inteligência ou razão, a propósito, distingue-se a especulativa e a prática. E no apetite racional,
distingue-se a escolha e a execução. Ora, tudo isso é dirigido a um bem como a um fim, pois o verdadeiro é o
fim da especulação. Pela inteligência especulativa, então, ele fala do ensinamento, através do qual a ciência
passa do mestre ao discípulo. Pela inteligência prática, em seguida, ele fala da arte, que é a definição correta do
que deve ser feito, como ver-se-á no sexto livro desse tratado. Pelo ato do apetite racional, em seguida, coloca-se
a questão da escolha. Para sua execução, enfim, é questão do ato. Ele não faz, entretanto, menção à prudência
que, como a arte, está na razão prática, posto que é propriamente pela prudência que a escolha é dirigida. Ele
afirma, então, que cada um dos seus princípios tende manifestamente a um bem como a seu fim”. CEN, I, 1, §8.
[72712] Sententia Ethic., lib. 1 l. 1 n. 8
In intellectu autem vel ratione consideratur speculativum et practicum. In appetitu autem rationali consideratur
electio et executio. Omnia autem ista ordinantur ad aliquod bonum sicut in finem; nam verum est finis
speculationis. Quantum ergo ad intellectum speculativum ponit doctrinam per quam transfunditur scientia a
magistro in discipulum. Quantum vero ad intellectum practicum ponit artem, quae est recta ratio factibilium, ut
habetur in VI huius; quantum vero ad actum intellectus appetitivi ponitur electio. Quantum vero ad executionem
ponitur actus. Non facit autem mentionem de prudentia, quae est in ratione practica sicut et ars, quia per
prudentiam proprie dirigitur electio. Dicit ergo quod singulum horum manifeste appetit quoddam bonum
tamquam finem.
70
CEN, III, 9, §486.
71
CEN, III, 1, §382 e VI, II, §1129.
31
fim que não lhe convém, por exemplo, por uma glória ou por uma outra coisa dessa
sorte: de onde se segue que pertence à presente intenção de considerar a escolha
72
.
Ora, o intelecto interage com o apetite racional uma vez que ambos ordenam-se a
algum bem como a seu fim
73
. A harmonia de ambos é dada pela aquiescência do movimento
do apetite em relação aos ditames racionais. Se a determinação intelectual é verdadeira e o
desejo pelo meio de realizá-la correto, a escolha é boa. Daí não se segue ainda, como fora
visto, que a ação correspondente é bem sucedida. Diz o Santo Doutor:
Uma vez que a razão e a faculdade apetitiva concorrem na escolha, se a escolha deve ser
boa o que é requerido pela natureza da virtude moral a razão deve ser verdadeira e a
faculdade apetitiva certa, então a mesma coisa que a razão declara ou afirma, a faculdade
apetitiva persegue
74
.
A ação propriamente humana, objeto de investigação da Ética, tem origem na razão
deliberante
75
, mas não se realiza sem que haja o desejo pelo bem deliberado. Por um lado, o
homem virtuoso tem um conhecimento racional prático que lhe é próprio, por outro, é
motivado para agir segundo ele. Essa “motivação” ou desejo, a escolha, é engendrada a partir
da idéia de bem, que será examinada na seqüência, de tal sorte que, atendendo aos preceitos
da reta razão, atende, em decorrência, à realização de sua própria natureza.
72
CEN, III, 5, §433.
[73137] Sententia Ethic., lib. 3 l. 5 n. 2
Et huius ratio manifestatur ex hoc quod cum ex habitu virtutis procedat et interior electio et exterior operatio,
mores virtuosi vel etiam vitiosi magis diiudicantur ex electione quam ex operationibus exterioribus; omnis enim
virtuosus eligit bonum; sed quandoque non operatur propter aliquod exterius impedimentum. Et vitiosus
quandoque operatur opus virtutis, non tamen ex electione virtuosa, sed ex timore, vel propter aliquem
inconvenientem finem, puta propter inanem gloriam, vel propter aliquid aliud huiusmodi: unde patet quod ad
praesentem intentionem pertinet considerare de electione.
73
CEN, I, 1, §8.
74
CEN, VI, 2, §1129.
[73833] Sententia Ethic., lib. 6 l. 2 n. 6
Quia igitur ad electionem concurrit et ratio et appetitus; si electio debeat esse bona, quod requiritur ad
rationem virtutis moralis, oportet quod et ratio sit vera, et appetitus sit rectus, ita scilicet quod eadem quae ratio
dicit idest affirmat, appetitus prosequatur. Ad hoc enim quod sit perfectio in actu, oportet quod nullum
principiorum eius sit imperfectum. Sed haec mens, scilicet ratio quae sic concordat appetitui recto, et veritas
eius, est practica.
75
“A imaginação sensível, começa ele, como se segue do que precede, é também presente entre os outros
animais. Mas aquela que procede por deliberação é presente tão somente entre os animais racionais, posto que
examinar se uma tal coisa que deve ser feita ou uma tal outra, o que é deliberar, é obra da razão”. Commentaire
au traité de l’âme, III, 16, §840.
[81123] Sentencia De anima, lib. 3 l. 16 n. 5
Dicit ergo primo, quod phantasia sensibilis, ut ex dictis patet, est etiam in aliis animalibus; sed illa, quae est per
deliberationem, est tantum in rationalibus; quia considerare utrum hoc sit agendum, aut hoc quod est
deliberare, opus est rationis.
32
1.2.2 A alma racional
A parte racional ou intelectual por natureza da alma humana subdivide-se em
científica e em estimativa ou conjectural. Ela constitui o primeiro princípio da ação humana,
conquanto se dirija tanto à especulação como à prática. Como não possui um órgão
correspondente, a razão não pode ser subordinada diretamente pela ação de nenhuma
faculdade corporal (ex. vista)
76
. É ela que distingue o homem dos outros seres finitos e que o
aproxima dos seres superiores, posto não se fazer presente naqueles, mas é a forma desses.
Tomás chega a ser mais preciso, afirmando em outra passagem queo que distingue a
forma do homem é o que faz dele animal racional”
77
. Por isso, a alma do homem confere
unidade à espécie humana, posto ser “animal racional” e que o “ser” e a “unidade” são o
mesmo e uma única natureza”
78
. L. Elders, com efeito, assinala que:
(...) uma pluralidade de formas substanciais no homem o podem jamais produzir uma
unidade real. Como o homem é um, ele não pode ter que uma forma substancial. Esta forma
deverá ter uma tal perfeição que ela possa ser o princípio de operações completamente
diferentes. Porque no homem uma atividade espiritual (o conhecimento intelectual), é
preciso que a forma substancial (a alma) seja seu suporte, que ela seja ela mesma imaterial,
mas que ela possa ao mesmo tempo ser sujeito de outras operações do homem, como a vida
76
CEN, I, 20, §241.
[72945] Sententia Ethic., lib. 1 l. 20 n. 11
Cum enim intellectus vel ratio non sit potentia alicuius organi corporalis, non subicitur directe actioni alicuius
virtutis corporeae; et eadem ratione nec voluntas, quae est in ratione, ut dicitur in tertio de anima.
Commentaire au traité de l’âme, §294.
[80577] Sentencia De anima, lib. 2 l. 5 n. 16
Cum enim intellectus non habeat organum corporale, non possunt diversificari habentia intellectum secundum
diversam complexionem organorum, sicut diversificantur species sensitivorum secundum diversas complexiones,
quibus diversimode se habent ad operationes sensus.
77
CEN, II, 2, §257.
[72961] Sententia Ethic., lib. 2 l. 2 n. 3
Propria autem forma hominis est secundum quam est animal rationale.
78
“Ele diz, então, primeiro, que o ser e a unidade são o mesmo e de uma única natureza. Ele diz isso porque
algumas coisas são numericamente as mesmas e o têm uma única natureza, mas diferentes naturezas, por
exemplo, Sócrates, esta coisa branca e este músico. Agora, os termos um e ser não significam diferentes
naturezas, mas uma única natureza. Mas as coisas podem ser uma de dois modos; pois algumas coisas que são
uma são associadas como coisas intermutáveis, como o princípio e a causa; e algumas são intermutáveis não
apenas no sentido de que elas o uma e a mesma numericamente [ou em objeto] mas também no sentido de que
elas são uma e a mesma conceitualmente, como vestimento e roupa”. Commentary on Aristotle’s Metaphysics,
IV, 2, §548.
[82113] Sententia Metaphysicae, lib. 4 l. 2 n. 1
Dicit ergo primo, quod ens et unum sunt idem et una natura. Hoc ideo dicit, quia quaedam sunt idem numero
quae non sunt una natura, sed diversae, sicut Socrates, et hoc album, et hoc musicum. Unum autem et ens non
diversas naturas, sed unam significant. Hoc autem contingit dupliciter. Quaedam enim sunt unum quae
consequuntur se adinvicem convertibiliter sicut principium et causa. Quaedam vero non solum convertuntur ut
sint idem subiecto, sed etiam sunt unum secundum rationem, sicut vestis et indumentum.
33
sensível cognitiva e as operações orgânicas vitais. Ela deve também, em razão de sua
natureza, ser ordenada ao corpo
79
.
A parte racional por natureza dita científica refere-se ao intelecto especulativo
propriamente dito. Ela é responsável pelo conhecimento dos universais (rationes). Versa
sobre a ordem natural ou sobre a ordem lógica. Ocupa-se em estabelecer, por meio de uma
abstração, o que é necessário. Por isso, Tomás chama o conhecimento fruto da especulação de
“científico”
80
. Ele direciona-se ao verdadeiro. O seu fim é um bem, a saber, a verdade. O
conhecimento especulativo está ligado às virtudes intelectuais da ciência, do entendimento e
da sabedoria, as quais aperfeiçoam o intelecto quanto ao que respeita aos princípios eles
mesmos
81
.
A parte racional por natureza dita estimativa ou conjectural refere-se ao intelecto
prático. Ela é ora responsável pelo conhecimento de universais, ora pelo de particulares. Ela
versa sobre a ordem moral ou sobre a ordem artística. Não obstante, ao se reportar aos
“universais”, como o são as regras de conduta que se aplicam aos homens em geral, o seu
conhecimento pode ser também chamado de “científico”, ainda que não da mesma forma que
o conhecimento das ordens natural e lógica. Lá, referia-se ao necessário. Aqui, refere-se ao
contingente, mas de cuja observância depende a realização da natureza humana, distinta
justamente por não se submeter à determinação causal de modo absoluto. O domínio humano
é marcado pela deliberação e escolha, voltando-se à execução da ação particular concreta. Por
isso, o Doutor Comum chama o conhecimento fruto da prática de estimativo ou conjectural
82
.
Ele direciona-se ao certo. O seu fim é outro bem, a retitude. O conhecimento prático está
ligado às virtudes intelectuais da arte e da prudência, as quais aperfeiçoam o intelecto quanto
ao que deriva dos princípios
83
. O termo “científico”, cabe esclarecer, não é aplicável de forma
alguma ao conhecimento prático que se reporta diretamente aos particulares. O Aquinate
afirma no Comentário ao De anima:
Por sua vez, a razão prática é tanto universal como particular. Universal, quando ela diz,
por exemplo, que é preciso que um determinado tipo de pessoa realize um determinado tipo
de ação, por exemplo, que um filho deve honrar a seus pais. Como razão particular, ela diz,
então, que uma tal pessoa é tal e que eu sou tal, por exemplo, que eu sou filha e que eu
devo honrar a meus pais
84
.
79
ÉLDERS, L., La philosophie de la nature de saint Thomas d’Aquin: la nature, le cosmos, l’homme, p. 321/2.
80
CEN, VI, 1, §1118.
81
CEN, VI, 5, §1175.
82
CEN, VI, 1, §1118.
83
CEN, VI, 5, §1175.
84
Commentaire au traité de l’âme, III, 16, §845.
34
M. Rhonheimer sublinha o entendimento tomasiano de que o intelecto humano é uno,
o que o Santo Doutor prova através da noção de “extensão”, cuja formulação o encontra
correspondência em Aristóteles. O intelecto prático e o intelecto especulativo não seriam duas
potências diferentes, mas atos de uma mesma potência, donde aquele é uma extensão desse
85
.
A sua diferenciação limitar-se-ia, assim, ao fim que o sujeito cognoscente persegue quando
utiliza seu intelecto. Quer dizer, a potência intelectual pode ter um ato cujo fim é tão somente
especulativo como pode ter outro cujo fim é eminentemente prático, dependendo do uso que
seja feito dela
86
. O ato da razão prática, que é o juízo prático, não tem, então, sua origem na
vontade do objeto conhecido teoricamente, nem numa “extensão” prática do juízo teórico. Se
o intelecto prático é uma extensão do intelecto teórico, e que o juízo prático é uma “extensão”
do ato especulativo da razão, ele não é uma extensão do juízo teórico da mesma
87
.
Apesar do caráter especulativo invariável da faculdade, diferenciam-se, então, as intenções
cognitivas do ato do conhecimento. Esta intenção (o fim) é, em um caso, teórico (o mero
conhecer, pelo conhecimento mesmo, do que é); no outro caso, é prático (a determinação
do que é bom praticamente, do que deve ser feito). Ao primeiro modo de conhecimento
correspondem juízos práticos. Os juízos práticos são, sem dúvida, uma “extensio” do ato
especulativo da razão; mas em nenhum caso são “extensio” dos juízos teóricos da razão
88
.
A questão é importante posto que dela extrai-se que o juízo de verdade aplica-se tanto
ao bem que dirige o intelecto na sua acepção teórica como na prática. Com efeito, M.
Rhonheimer afirma que “o objeto da razão prática é o bem que pode ser ordenado ao operar, e
se trata, certamente, do bem sob o aspecto de sua verdade
89
. Mais adiante, uma tal conclusão
importará na discussão sobre a cientificidade da Ética e da Política
90
.
1.2.3 Limitações inerentes à classificação
[81128] Sentencia De anima, lib. 3 l. 16 n. 10
Ratio autem practica, quaedam est universalis, et quaedam particularis. Universalis quidem, sicut quae dicit,
quod oportet talem tale agere, sicut filium honorare parentes. Ratio autem particularis dicit quod hoc quidem
est tale, et ego talis, puta quod ego filius, et hunc honorem debeo nunc exhibere parenti.
85
RHONHEIMER, M., Ley natural y razón práctica: una visión tomisa de la autonomía moral, p. 54.
86
RHONHEIMER, M., Ley natural y razón práctica: una visión tomisa de la autonomía moral, p. 55.
87
RHONHEIMER, M., Ley natural y razón práctica: una visión tomisa de la autonomía moral, p. 56/7.
88
RHONHEIMER, M., Ley natural y razón práctica: una visión tomisa de la autonomía moral, p. 55/6.
89
RHONHEIMER, M., Ley natural y razón práctica: una visión tomisa de la autonomía moral, p. 55.
90
O tema será abordado na segunda parte deste.
35
O Doutor Angélico observa que as partes vegetativa e sensitiva não constam, a rigor,
da divisão da alma em racional e irracional, à qual se procedeu. Ele sinaliza, em primeiro
lugar, o fato de manifestamente não serem racionais. Em segundo lugar, o de que para
poderem ser ditas irracionais deveriam preencher a uma das seguintes condições. Ou bem
contrariar a razão
91
, ou bem, precisando tê-la por natureza, carecer dela
92
. Nenhuma das duas
é preenchida. Logo, não o também, de fato, irracionais. Não obstante, ressalta-se que, do
ponto de vista da Filosofia Moral, interessa identificar a unidade humana. Pela faculdade
apetitiva, seu gênero, animal, é dado. Pela faculdade intelectual, sua espécie. Daí a divisão
que melhor identifica o homem enquanto tal partir dessa última, objetivando separar aquilo
que pertence apenas a ele daquilo que ele compartilha com os demais. Diz o Doutor Comum
no Comentário ao De Anima:
Contudo, que nenhuma delas não possua razão, é manifesto. Mas que nenhuma delas não
seja irracional também, isso pode vir a ser manifesto como se segue: é irracional ou bem o
que é contrário à razão, ou bem o que por natureza deveria tê-la e não a tem. Ora, nem uma
nem a outra não convém às partes nomeadas. Se, com efeito, se quisesse dizer somente a
negação da razão, não se poderia colocá-la como gênero às faculdades da alma. Ainda,
parece manifesto que as divisões que precedem são inconvenientes às faculdades da alma
93
.
Quer dizer, as partes vegetativa e sensitiva consideradas em si mesmas não são nem
racionais nem irracionais. São, a princípio, faculdades próprias aos animais, sejam eles
detentores ou não de outra faculdade que é a razão. Essa sim é parte unicamente da alma
humana. E é apenas no esforço de se identificar uma particularidade humana que as
faculdades vegetativas e sensitivas são alocadas em pólo oposto ao da faculdade racional.
Quanto à parte vegetativa, ela funciona de maneira análoga em todos os seres
animados, ainda que adaptadas ao corpo de cada um. Quanto à parte sensitiva, entretanto, viu-
se que ela opera de maneira distinta segundo o animal seja racional ou irracional. Com efeito,
naquele os sentidos podem ser educados, nesse, não. E é justamente essa educação que faz
com que entre os homens se encontrem glutões” e gourmets”. Tanto maior for a sua
educação, maior será a similitude entre os desejos racionais e os sensíveis. Ela pode, assim, ir
91
O que contraria à razão, a sua negação, é o que se pode dizer “não-racional”.
92
Caso em que poder-se-ia empregar a palavra “irracional”: quando há a privação do que exige a natureza.
93
Commentaire au traité de l’âme, III, 14, §800.
[81083] Sentencia De anima, lib. 3 l. 14 n. 6
Et quidem quod neutra harum habeat rationem, manifestum est. Sed quod neque etiam aliqua earum sit
irrationabilis, ex hoc manifestum esse potest: quia irrationabile est, vel quod est contrarium rationi, vel quod est
natum habere rationem et non habet: quorum neutrum contingit dictis partibus. Si enim diceret tantum
negationem rationis, non posset poni genus potentiarum animae. Unde manifestum videtur, quod praemissae
divisiones potentiarum animae sint inconvenientes.
36
ou não de encontro à racionalidade humana, isto é, ser ou não “irracional”. Os sentidos
contrariam a razão quando o apetite sensível difere do racional, o que não necessariamente
acontece. No homem educado, por exemplo, eles costumam coincidir, e tanto mais educado
ele for, menores serão as diferenças. Tomás afirma:
A razão é que, neste homem [qualquer um que tenha o hábito da virtude moral], quase tudo,
tanto ações externas quanto desejos internos, harmonizam-se com a razão
94
.
Ora, não fosse a faculdade racional superior às demais faculdades da alma, o homem
permaneceria imóvel diante de uma situação em que razão e sensibilidade pedem ões
distintas. De mesmo, se a faculdade racional não fosse acompanhada de apetite, o homem não
passaria da intelecção à ação, ou seja, não agiria racionalmente. É a existência de uma
hierarquia entre apetite racional e apetite sensitivo, bem definida pelo cultivo de bons hábitos,
que garante a sua harmonia e, logo, a possibilidade da ação conforme à natureza humana. J.
Finnis se serve da analogia entre o regramento racional e o regramento estatal para ilustrar a
preponderância da razão sobre as emoções, mas a também não supressão dessa por aquela.
As emoções de alguém são reguladas pela sua razão da mesma forma que um povo livre é
regulado pelo seu rei ou outro líder. Cidadãos livres ou pessoas livres em geral podem
opor-se e resistir a suas regras diretivas. Como cidadãos livres, emoções podem resistir a
suas regras diretivas sobre o que é certo o apenas pelo seu bloqueio como também de
modo ativo pela atividade guiada por motivões próprias. De fato, eles são capazes de
inclinação do seu próprio estabelecimento regulatório, a vontade racional, aos fins aos
quais são atraídos
95
.
O Santo Doutor indica que a regra consiste no controle da razão sobre as paixões
96
.
Contudo, no homem não suficientemente educado, ou seja, não habituado a agir segundo a
sua função própria, a racional, a paixão serve de guia. Duas situações são então possíveis. Se
o apetite sensitivo difere da razão e a ela se sobrepõe, prevalece no homem a irracionalidade
sobre a racionalidade, o que é contrário à natureza humana. Se o apetite sensível difere da
94
CEN, I, 20, §239.
[72943] Sententia Ethic., lib. 1 l. 20 n. 9
Quia in talibus fere omnia consonant rationi; idest non solum exteriores actus, sed etiam interiores
concupiscentiae.
95
FINNIS, J., Founders of Modern Political and Social Thought: Aquinas. Moral, Political and Legal Theory, p.
72.
96
“Parece, então, que a razão não é submetida aos movimentos das paixões do apetite sensível, mas pode
reprimi-los”. CEN, I, 20, §241.
[72945] Sententia Ethic., lib. 1 l. 20 n. 11
Et ex hoc apparet, quod ratio non subditur motibus passionum appetitus sensitivi, sed potest eos reprimere.
37
razão, mas essa se sobrepõe, ou mesmo se naturalmente dela não difere, prevalece a
racionalidade, o que é próprio do homem. Como a natureza não faz nada em vão
97
, o caso da
sua contrariedade é a exceção, enquanto o da sua conformidade, o que acontece o mais das
vezes.
(...) o apetite inferior, bem que ele guarde algo do seu movimento próprio, move-se,
entretanto, de uma ordem natural pelo movimento de um apetite superior e pelo movimento
da razão deliberante. Se de algum modo ele proceda ao inverso, e o apetite superior seja
movido pelo inferior, isto vai contra a ordem natural
98
.
Para além de racionais, os seres humanos são animais, a partir do que se introduz a
noção de desejo. Dessa, por sua vez, depende a sua sobrevivência. O homem é um ser
desejante. Não o fosse, não haveria “ação exterior” para além da “escolha interior”. A
apreensão da forma do objeto desejável gera o desejo no homem de tê-lo.
1.3 A posição do homem
O homem ocupa uma posição especial frente à ordem natural lato senso, posto sua
inserção na ordem racional, a qual pertence à natureza ao mesmo tempo em que a transcende.
Ele é dotado de uma alma que possui um corpo, e este, por sua vez, está submetido a regras
oriundas da Física e da Biologia, as quais versam sobre a ordem natural. Quer dizer, do ponto
de vista da “matéria”, o corpo humano, o homem se rege, assim como qualquer outro ser
físico, por algumas regras estritamente naturais, as quais se estruturam pelo princípio de
causalidade: Dada uma certa causa, segue-se um certo efeito necessariamente. Nenhuma
“possibilidade” é aberta.
Y. Cattin sustenta que a posição de Tomás afasta-se do racionalismo clássico no que
tange à limitação e finitude da razão humana. Enquanto para esse a razão é apenas
97
Commentaire de la Politique, I; Commentaire au traité de l’âme, III, 13, §794.
98
Commentaire au traité de l’âme, III, 16, §844.
[81127] Sentencia De anima, lib. 3 l. 16 n. 9
Et similiter appetitus inferior, etsi aliquid de motu proprio retineat, movetur tamen naturali ordine, motu
appetitus superioris, et motu rationis deliberantis. Si autem e converso accidit, quod appetitus superior
transmoveatur ab inferiori, hoc est praeter ordinem naturalem. Unde et hoc facit peccatum in moribus, sicut
peccata sunt monstra in natura.
38
acidentalmente limitada
99
, pois ligada a um corpo que lhe é externo, para aquele ela é
essencialmente limitada, pois o corpo pertence ao seu interior. Ele afirma:
Tomás recusaria sem dúvida a ligação causal e preferiria dizer que a razão é limitada
porque ela tem um corpo. O corpo não é o limite externo, acidental e provisório da razão,
mas o corpo esna alma como sua limitação interna e essencial. Vê-se, trata-se aqui de
uma outra compreensão do homem diferente da do racionalismo espontâneo e popular, do
qual muitos filósofos não desconfiaram suficientemente
100
.
Por outro lado, o homem possui um tal corpo porque sua alma é primeiramente
racional. A razão transcende a natureza, ainda que, se não se submete de maneira absoluta a
ela, também não a contraria, mas vai além. Assim, do ponto de vista da sua “forma”, a alma
humana
101
, o homem rege-se não apenas “naturalmente” como também, e sobretudo,
racionalmente. É a ordem racional, que comporta regras de cunho teórico e prático, que o
explica. Nesse sentido, uma regra teórica descreve de maneira verdadeira ou falsa a realidade,
enquanto uma regra prática comanda, com sucesso ou não, a ação humana. Em qualquer caso,
duas possibilidades se abrem.
Também nesse ponto Y. Cattin destaca a inversão que opera o pensamento de Tomás
em relação a uma opinião comum. Pois, para o Santo Doutor, a razão não é explicada a partir
da sensibilidade, mas acontece o contrário. Entende-se que o homem possui certas faculdades
sensíveis porque o seu intelecto é caracterizado de uma certa maneira que as justifica. O corpo
humano é adaptado à sua forma racional
102
. Y. Cattin sustenta:
99
Por si só a razão não teria limites. Ela seria ilimitada e infinita. Sua limitação é apenas fática.
100
CATTIN, Y., L’antropologie politique de Thomas d’Aquin, p. 43.
101
CEN, I, 1, §123.
102
“Foi assim que Deus deu a cada realidade da natureza a melhor disposição: não no absoluto, mas com relação
ao seu próprio fim. É o que diz Aristóteles: ‘E porque é melhor assim, o abolutamente, mas relativamente à
substância de cada coisa’. Ora, o fim próximo do corpo humano é a alma racional e suas operações; pois a
matéria está para a forma e os instrumentos para as ões do agente principal. Eu digo, então, que Deus
estabeleceu o corpo humano segundo a melhor disposição para responder a uma tal forma e a tais operações. Se
nós vemos alguns defeitos na disposição do corpo humano, é preciso considerar que esse defeito decorre da
matéria, que é não obstante necessária às propriedades exigidas por um corpo para que ele seja exatamente
ajustado à alma e às suas operações”. ST, I, q. 91, a. 3, conclusão.
[32304] Iª q. 91 a. 3 co.
Sic igitur Deus unicuique rei naturali dedit optimam dispositionem, non quidem simpliciter, sed secundum
ordinem ad proprium finem. Et hoc est quod philosophus dicit, in II Physic., et quia dignius est sic, non tamen
simpliciter, sed ad uniuscuiusque substantiam. Finis autem proximus humani corporis est anima rationalis et
operationes ipsius, materia enim est propter formam, et instrumenta propter actiones agentis. Dico ergo quod
Deus instituit corpus humanum in optima dispositione secundum convenientiam ad talem formam et ad tales
operationes. Et si aliquis defectus in dispositione humani corporis esse videtur, considerandum est quod talis
defectus sequitur ex necessitate materiae, ad ea quae requiruntur in corpore ut sit debita proportio ipsius ad
animam et ad animae operationes.
39
Deve-se talvez inverter a opinião comum que entende a razão a partir da atividade primeira,
a sensibilidade. Tomás afirma que eu penso e que é porque eu posso pensar que eu posso
também sentir, ver, escutar, degustar. A razão não é a resultante das atividades sensíveis,
como poderiam deixar acreditar certas descrições ingênuas do conhecimento abstrato. A
razão é primeira porque ela é princípio e fim. Compreender a atividade racional do homem
é, então, também compreender sua atividade sensível, que lhe é elemento necessário. A
compreensão do homem só é então possível a partir do seu “espírito” e não do seu corpo
103
.
Tem-se, portanto, que a racionalidade entre os seres humanos reflete num movimento
peculiar: a ação humana. Nela, o elemento racional comparece ao lado de impulsos naturais.
Ele é responsável por um tipo de representação própria, caracterizada por uma duplicidade. A
representação é teórica ao se reportar a uma noção de verdade. A proposição é verdadeira se
as coisas são o que ela diz que são. Ela é prática quando opera uma modificação no mundo.
Se a modificação corresponde ao que fora representado, tem-se o sucesso”, do contrário, o
“fracasso”. Ter sucesso significa conseguir descrever ou fazer o que se queria. Ter fracasso
significa não conseguir descrever ou fazer o que se queria. Representar, neste sentido,
consiste na apresentação de um fim para a atividade. Aquilo que é representado, o é como se
um bem fosse. Quer dizer, se o que é feito não é necessariamente um bem, o que se queria
fazer era, ainda que apenas de forma aparente. Cada ação particular é orientada para um bem.
A raiz da noção de bem está na noção de representação e na natureza do ser racional. Ser
racional, por definição, significa produzir representações teóricas ou práticas
104
.
Dados os aspectos natural e racional que marcam a existência dita humana, à cuja
análise conduz o pensamento de J. Castello Dubra, conclui-se por uma sorte de “sobre-
saliência” do homem face à natureza. Ora, afirma ele, “o homem pode ser qualificado,
abertamente e sem reparos, como um ser natural”
105
. Sua qualificação, entretanto, o se
esgota aí.
J. Castello Dubra explica que “a ordem deve ser considerada como um desdobramento
de diversos graus de atualidade
106
, donde o homem ocupa o último deles no que tange à
ordem presente na natureza. Ele sustenta haver um “apetite” pela forma a qual caracteriza a
matéria e que se relaciona intimamente com a noção de finalidade, bem como com o termo
relativo de perfeição o qual implica. A alma humana, sendo uma forma subsistente por si e
103
CATTIN, Y., L’antropologie politique de Thomas d’Aquin, p. 42.
104
A relação existente entre a ação humana e o bem será desenvolvida na seqüência.
105
CASTELLO DUBRA, J. A., Hombre y naturaleza, p. 623.
106
CASTELLO DUBRA, J. A., Hombre y naturaleza, p. 625.
40
“emergente” da matéria, confere ao homem o grau mais alto possível de atualidade
107
. Na
Suma contra os Gentis, o Doutor Comum expõe tal graduação:
E, dissemos, porque todo móvel como tal tende à semelhança divina na busca da sua
própria perfeição e que a atualização de um ser é a medida da sua perfeição, todo ser deve
colocar-se em potência em direção ao seu ato pelo seu movimento. Mais, então, um ato está
no topo da escala dos atos e mais ele é perfeito, mais ele controla em si o apetite da matéria.
A conseqüência é que o movimento, pelo qual a matéria se coloca em direção à sua forma
como ao fim último da geração, tende ao ato mais elevado e mais perfeito que ela é
suscetível de receber. Ora, entre os atos das formas, ele é de níveis diferentes. A matéria
primeira está antes em potência à forma do elemento, depois, sob império da forma do
elemento, ela está em potência àquela do misto: os elementos são, com efeito, a matéria do
misto; depois a matéria sob a forma do misto está em potência à alma vegetativa: a alma é,
com efeito, o ato de um tal corpo. Igualmente, a alma vegetativa está em potência à alma
sensitiva, e, enfim, essa está à alma intelectual. O desenvolvimento da geração o mostra: na
geração, o embrião vive antes da vida da planta, depois, da vida do animal e, enfim,
daquela do homem. Acima da forma humana no mundo da geração e da corrupção não
existe nada nem de mais perfeito. O fim último de toda geração é, então, a alma humana, e
a matéria tende para ela como para sua forma última. Assim, os elementos m por fim os
mistos, esses os vivos; entre esses últimos, as plantas estão para os animais e, por sua vez,
os animais estão para os homens. O homem é, então, o termo de todo o movimento da
geração
108
.
Com efeito, J. Castello Dubra defende haver uma “continuidade” e não um “salto”
entre a ordem natural e a humana. O homem participa da natureza, mas a transcende pela sua
paralela participação na ordem racional. E é por meio dessa que ele é capaz de diferenciar-se
não apenas como espécie, mas, entre as espécies, como aquela que lhes é superior. Com
efeito, o homem goza do privilégio de alcançar o fim último de toda realidade
109
. O Aquinate
explica o grau de perfeição humana a partir da idéia de perfeição do criador, o qual acorda-lhe
um certo grau de perfeição apenas inferior ao acordado às criaturas celestes.
107
CASTELLO DUBRA, J. A., Hombre y naturaleza, p. 624/5.
108
SCG, III, 22, §7.
[25731] Contra Gentiles, lib. 3 cap. 22 n. 7
Cum vero, ut dictum est, quaelibet res mota, inquantum movetur, tendat in divinam similitudinem ut sit in se
perfecta; perfectum autem sit unumquodque inquantum fit actu: oportet quod intentio cuiuslibet in potentia
existentis sit ut per motum tendat in actum. Quanto igitur aliquis actus est posterior et magis perfectus, tanto
principalius in ipsum appetitus materiae fertur. Unde oportet quod in ultimum et perfectissimum actum quem
materia consequi potest, tendat appetitus materiae quo appetit formam, sicut in ultimum finem generationis. In
actibus autem formarum gradus quidam inveniuntur. Nam materia prima est in potentia primo ad formam
elementi. Sub forma vero elementi existens est in potentia ad formam mixti: propter quod elementa sunt materia
mixti. Sub forma autem mixti considerata, est in potentia ad animam vegetabilem: nam talis corporis anima
actus est. Itemque anima vegetabilis est potentia ad sensitivam; sensitiva vero ad intellectivam. Quod processus
generationis ostendit: primo enim in generatione est fetus vivens vita plantae, postmodum vero vita animalis,
demum vero vita hominis. Post hanc autem formam non invenitur in generabilibus et corruptibilibus posterior
forma et dignior. Ultimus igitur finis generationis totius est anima humana, et in hanc tendit materia sicut in
ultimam formam. Sunt ergo elementa propter corpora mixta; haec vero propter viventia; in quibus plantae sunt
propter animalia; animalia vero propter hominem. Homo igitur est finis totius generationis.
109
CASTELLO DUBRA, J. A., Hombre y naturaleza, p. 624.
41
Ao homem essa perfeição comunica-se de maneira ainda inferior; com efeito, ele não
possui no seu conhecimento natural a idéia de todas as coisas da natureza; mas ele é, em,
alguma medida, composto a partir de todas as coisas: do gênero das substâncias espirituais,
ele possui a alma racional; à semelhança dos corpos celestes, ele é mantido no
distanciamento dos contrários pelo extremo equilíbrio de sua constituição, os elementos
sendo nele segundo sua substância mesma. De tal sorte, entretanto, que os elementos
superiores nele predominem com relação ao que respeita à energia, a saber, o fogo e o ar,
pois a vida reside principalmente no calor, que depende do fogo, e na umidade, que
depende do ar; por outro lado, é segundo a substância que os elementos inferiores existem
em quantidade nele; de outra forma o equilíbrio do misto não poderia se realizar, a saber, se
os elementos inferiores queo de menos virtude não existissem em quantidade no homem
pela sua quantidade. E é por isso que diz do corpo do homem que ele fora formado do
limão da terra, pois chama-se limão” da terra misturado à água. É pela mesma razão
também que se chama o homem de um microcosmo, pois todas as criaturas do mundo
encontram-se de alguma maneira nele
110
.
Assim, ao mesmo tempo em que integra uma ordem causal, o homem é capaz de
“causar-se”, no sentido de que não é criado humano”, mas capaz de tornar-se um. E é a
intencionalidade humana, para além de sua finalidade, que o distingue. O fim do homem
“ordena” toda a realidade física, pois o fim de cada criatura é, em última instância, justificado
pelo seu fim. Ele é o único capaz de produzir representações universais e, logo, é o único ser
capaz de contemplar a Deus. Todos os outros seres a ele apenas tendem cega e limitadamente
pela sua forma. Pois a forma racional da alma humana eleva-o em grau de perfeição e o situa
entre os seres físicos e acima deles. J. Castello Dubra destaca:
Mas o homem emerge ou se destaca da ordem da “natureza inferior” corporal e sensível -
particularmente enquanto seu fim é o fim de toda realidade. Todas as criaturas tendem ao
fim último, tendem a assemelhar-se a Deus, mas o conseguem de maneiras diversas e na
medida de suas possibilidades: em compensação, o fim natural de toda substância
intelectual é contemplar a Deus. O fim da alma humana é “transcender toda a ordem das
criaturas e alcançar o fim supremo que é Deus”. Na verdade, na consecução do seu fim
último, o homem não apenas transcende a natureza inferior, como até as possibilidades de
sua natureza - entendendo agora por tal sua essência - posto que para o homem a aquisição
do fim último - a visão beatifícia de Deus - é impossível de alcançar por suas próprias
faculdades naturais e requer a influência sobrenatural de Deus
111
.
110
ST, I, q. 91, a. 1, conclusão.
[32285] Iª q. 91 a. 1 co.
Ad hominem vero derivatur inferiori modo huiusmodi perfectio. Non enim in sua cognitione naturali habet
omnium naturalium notitiam; sed est ex rebus omnibus quodammodo compositus, dum de genere spiritualium
substantiarum habet in se animam rationalem, de similitudine vero caelestium corporum habet elongationem a
contrariis per maximam aequalitatem complexionis, elementa vero secundum substantiam. Ita tamen quod
superiora elementa praedominantur in eo secundum virtutem, scilicet ignis et aer, quia vita praecipue consistit
in calido, quod est ignis, et humido, quod est aeris. Inferiora vero elementa abundant in eo secundum
substantiam, aliter enim non posset esse mixtionis aequalitas, nisi inferiora elementa, quae sunt minoris virtutis,
secundum quantitatem in homine abundarent. Et ideo dicitur corpus hominis de limo terrae formatum, quia
limus dicitur terra aquae permixta. Et propter hoc homo dicitur minor mundus, quia omnes creaturae mundi
quodammodo inveniuntur in eo.
111
CASTELLO DUBRA, J. A., Hombre y naturaleza, p. 623/4.
42
Enquanto os seres são aquilo que são, o homem é em alguma medida todas as coisas.
Ele é capaz de conhecer abstratamente e, logo, de ser também tudo o que ele conhece, na
medida em que o que ele conhece é também ele mesmo, pois o conhecimento em ato é o
conhecido mesmo em ato
112
. Esclarece Y. Cattin:
Definir o mundo da existência do homem como ser intencional é, então, entender o homem
como um ser finito existente em um mundo objetivo, afrontado a uma alteridade que ele
não pode reduzir mas que lhe oferece a possibilidade de ultrapassar de uma certa maneira
sua finitude sendo omnia alia
113
.
Em síntese, há uma regra geral na realidade física, à qual não pode fugir o homem. No
interior dela, entretanto, espaço para uma especificidade humana. Quer dizer, o homem se
submete a regras gerais, mas se distingue dos outros animais e criaturas. uma forma, a
qual constitui a unidade essencial da matéria, que é o princípio da ação. Ela provoca o desejo
que move animais tanto racionais como irracionais. Mas, sendo naqueles intelectual,
possibilita uma diferenciação de objetos. A ação humana é, então, fruto do seu apetite
racional, uma vez que o homem é capaz de apreender os universais e os deseja na medida em
que se lhe aparecem como um bem. Com efeito, a vontade humana é movida pelo objeto
desejável percebido por uma representação universal, o que distingue o seu desejo do animal,
pois a representação desse é sempre particular. É do desejo pelo objeto universalmente
112
“Ora, toda coisa é recebida numa outra do modo dessa última e não de sua própria maneira. E todo
conhecimento se produz do fato que o objeto conhecido torna-se presente de alguma maneira naquele que
conhece, a saber, por semelhança. Com efeito, a faculdade que conhece em ato é o objeto mesmo conhecido em
ato. Necessariamente, então, os sentidos recebem corporalmente e materialmente uma semelhança da coisa
sentida. E a inteligência, quanto a ela, recebe incorporalmente e imaterialmente uma semelhança do que ela
intelige. Ora, a individuação de uma natureza comum nas coisas corporais e materiais provém da matéria
corporal do fato de que ela esteja contida sob dimensões delimitadas; por outro lado, o universal é obtido por
abstração de uma tal matéria e de condições materiais individualizantes. É manifesto, então, que a semelhança da
coisa recebida pelos sentidos representa a coisa naquilo que ela tem de singular, enquanto aquela recebida pela
inteligência a representa sob a concepção de sua natureza universal. É por isso que os sentidos conhecem os
singulares enquanto a inteligência conhece os universais e que é sobre eles que versam as ciências”.
Commentaire au traité de l’âme, II, 12, §377.
[80660] Sentencia De anima, lib. 2 l. 12 n. 5
Unumquodque autem recipitur in aliquo per modum sui. Cognitio autem omnis fit per hoc, quod cognitum est
aliquo modo in cognoscente, scilicet secundum similitudinem. Nam cognoscens in actu, est ipsum cognitum in
actu. Oportet igitur quod sensus corporaliter et materialiter recipiat similitudinem rei quae sentitur. Intellectus
autem recipit similitudinem eius quod intelligitur, incorporaliter et immaterialiter. Individuatio autem naturae
communis in rebus corporalibus et materialibus, est ex materia corporali, sub determinatis dimensionibus
contenta: universale autem est per abstractionem ab huiusmodi materia, et materialibus conditionibus
individuantibus. Manifestum est igitur, quod similitudo rei recepta in sensu repraesentat rem secundum quod est
singularis; recepta autem in intellectu, repraesentat rem secundum rationem universalis naturae: et inde est,
quod sensus cognoscit singularia, intellectus vero universalia, et horum sunt scientiae.
113
CATTIN, Y., L’antropologie politique de Thomas d’Aquin, p. 35.
43
representado que decorre a ação exterior. A apreensão da imagem ou idéia do objeto desejável
gera a vontade no homem de tê-lo.
Ora, a capacidade do homem de pensar os universais decorre de dois momentos: um
compreendido pela sua forma intelectual e outro pela sua capacidade de especificação, pela
ação orientada pelos objetos apresentados ao intelecto, os quais não são apenas formas
individuais. Como exemplo, poder-se-ia dizer que o homem pode desejar um lugar para sentar
e escolher um lugar entre outros. A sua escolha é livre. um animal, apesar de ser capaz de
realizar escolhas, não dispõe de liberdade para tanto. A escolha do homem é livre porque ele é
capaz de pensar o universal. Ele representa a idéia de “lugar” intelectualmente. O animal,
não
114
.
Portanto, a liberdade de escolher assenta-se, de um lado, na forma intelectual e, de
outro, na capacidade de especificação. A liberdade vem da indeterminação da escolha, uma
vez que o homem é capaz de pensar o universal, enquanto o animal percebe particulares.
Ela assenta-se na contingência da sua vontade, tendo origem na forma intelectual que é
indeterminada quanto aos múltiplos. Ela produz uma representação universal do bem. Não é
uma liberdade de aceitar ou o, mas da maneira de particularizar a escolha. O homem pode
querer ou não exercer a determinação intelectual.
Para o Santo Doutor, com efeito, porque o homem é racional, ele é também livre
115
. Se
“o próprio do sábio é ordenar”
116
, é então paralelamente correta a afirmação de que o próprio
ao intelecto é ordenar, visto que a sabedoria está no intelecto. Pois o intelecto permite ao
homem escolher, ato que exige deliberação, pesar razões, o que apenas um ser racional é
capaz de fazer. A sua liberdade diz respeito à opção que ele faz por uma razão e não outra,
uma vez que a melhor delas não é necessariamente a que será escolhida. Deliberar implica no
poder de considerar algo como meio para se atingir um objeto, bem como outros meios.
uma abstração a qual permite ao agente avaliar as conseqüências da adoção de uma série
causal ou outra. A racionalidade está envolvida em dois momentos distintos, a saber,
identificar o que é melhor e decidir e agir segundo o melhor. Ora, a deliberação opera a
especificação do que é melhor no caso particular, sendo, portanto, natural que se deseje um tal
114
Vide ST, I, q. 18, a. 3, conclusão.
115
Esta tese de Tomás é combatida por Henrique de Gand. Enquanto aquele coloca no intelecto o ápice da alma
humana, esse o coloca na vontade, donde para um o homem é livre porque racional e para outro o é porque
desejante. Vide Henrici de Gandavo, Quodlibet IX, q. 6, 146: Ex consideratione igitur imperantis ad eum cui
imperatur, patet secundo quod imperares sit actus voluntatis.
116
CEN, I, 1, §1.
[72705] Sententia Ethic., lib. 1 l. 1 n. 1
Sicut philosophus dicit in principio metaphysicae, sapientis est ordinare.
44
objeto, definido livremente. Apenas uma vontade “fraca” não se moverá no seu sentido, o que
figura a incontinência. Enquanto o continente resiste aos desejos sensíveis e age pela escolha,
o incontinente é dominado por aqueles e não age segundo a sua condição racional.
Com efeito, o Aquinate não afirma que a vontade seja necessariamente movida pelo
objeto intelectualmente representado como bom, mas que uma tal negativa denota uma
fraqueza de espírito, contrária à essência humana. E. Stump sublinha que não nada na
apreensão intelectual que possa constranger a vontade do agente a agir sempre num certo
sentido, posto referirem-se a um tempo e a uma circunstância particulares, diferente do que é
considerado bom incondicionalmente ou abstratamente (Deus e a felicidade)
117
. A posição de
Tomás é no sentido de que a vontade só não pode fazer o intelecto pensar diferentemente em
relação às verdades evidentes, tais como a primeira verdade teórica (o todo é maior do que a
parte) e a primeira verdade prática (é preciso fazer o bem e evitar o mal), quando sua
capacidade reduz-se a desviar a atenção do intelecto para que o homem não pense nelas. Para
ele, a faculdade humana por excelência é a racional e é ela, justamente, que distingue o
homem dos animais em gerais. A escolha não é um desejo sensível, mas um ato da razão
118
. A
ação que não é a ela conforme não é livre, ou porque não é voluntária, ou porque, ainda que
voluntária, é determinada por desejos sensíveis que se sobrepõem ao racional. Daí a
importância do hábito no que tange aos vícios e virtudes, o que será abordado mais adiante. O
Doutor Angélico sustenta no De Malo:
Se, então, a disposição pela qual parece a alguém que uma coisa é boa e conveniente é-lhe
natural e não submetida à sua vontade, é por necessidade natural que a vontade a escolherá;
é assim que todos os homens desejam naturalmente ser, viver e compreender. Mas se uma
tal disposição o é natural, mas submetida à vontade, por exemplo, quando alguém está
disposto por um bito ou uma paixão a que uma tal coisa pareça-lhe boa ou nessa
circunstância particular, a vontade não será movida por necessidade, pois ela poderá
descartar essa disposição, de sorte que essa coisa não lhe pareça mais uma tal, assim
quando alguém acalma sua raiva, ele o julga mais as coisas como quando estava irritado.
Em todo caso, descarta-se mais facilmente a paixão do que o hábito.
Assim, então, do ponto de vista do objeto, a vontade é movida a certos fins, mas o a
todos, de modo necessário, mas do ponto de vista do exercício do ato, ela não é movida de
modo necessário
119
.
117
STUMP, E., Personal relation and moral residue, p. 6.
118
CEN, III, 5, §437 e 6, §457.
119
Questions disputées sur le mal, q. 6, a. único, resposta.
[62321] De malo, q. 6 co.
Si ergo dispositio, per quam alicui videtur aliquid bonum et conveniens, fuerit naturalis et non subiacens
voluntati, ex necessitate naturali voluntas praeeligit illud, sicut omnes homines naturaliter desiderant esse,
vivere et intelligere. Si autem sit talis dispositio quae non sit naturalis, sed subiacens voluntati, puta, cum
aliquid disponitur per habitum vel passionem ad hoc quod sibi videatur aliquid vel bonum vel malum in hoc
particulari, non ex necessitate movetur voluntas; quia poterit hanc dispositionem removere, ut sibi non videatur
aliquid sic, ut scilicet cum aliquis quietat in se iram, ut non iudicet de aliquo tamquam iratus. Facilius tamen
45
Logo, a posição que o homem ocupa dentro da ordem natural é privilegiada e,
considerando-se o grau de atualidade de sua forma, superior. A sua natureza (physis) encerra a
mais alta perfeição, pois adequada à sua finalidade ordenadora dentro da realidade terrena, a
qual enseja a sua transcendência dela. A alma humana lhe confere a faculdade de desejar seu
fim sob a representação de um bem e de agir livremente no sentido de sua concretização. O
homem “se torna”, então, pela ação. Ele se perfectibiliza.
removetur passio quam habitus. Sic ergo quantum ad aliqua voluntas ex necessitate movetur ex parte obiecti,
non autem quantum ad omnia; sed ex parte exercitii actus, non ex necessitate movetur.
46
2 A relação com o bem
A ação humana é motivada pela idéia de um bem. Um bem é buscado por ser tido
como um fim e, logo, o fim é a causa do bem, que é o seu efeito próprio. O que é primário não
pode ser entendido por nada que lhe seja anterior, posto que seria absurdo, mas deve ser
entendido por algo que lhe seja conseqüente. Ora, diz Tomás, “as causas são conhecidas pelos
seus efeitos próprios”
120
. Então, para que se conheça o fim humano, deve-se investigar o bem
humano. Tratar do fim importa em tratar do bem. Nesse sentido, como “o bem de todas as
coisas consiste no fato de sua operação ser adaptada à sua forma”
121
, é à atividade racional
(ou intelectual) que dever-se-á voltar uma tal investigação.
Mas a forma do homem é sua alma, cujo ato é vida, não exatamente a vida enquanto mera
existência de algo vivo, mas uma operação vital especial, por exemplo, o entendimento e o
sentimento. Portanto, a felicidade obviamente consiste numa operação vital
122
.
J. Rawls assinala a existência de duas teorias do bem. Uma, a que considera a justiça
como eqüidade, reza que o conceito de justo é anterior ao conceito que define o que é bom;
segundo ela, algo é bom apenas na medida em que se adapta aos modos de vida que são
consistentes com os princípios da justiça já disponíveis
123
. Outra, dita teleológica, reza
contrariamente que o conceito de bem é anterior ao que define o que é justo; segundo ela, algo
é justo apenas na medida em que se adapta às ações conformes aos primeiros princípios dados
pela razão humana. A Ética de Tomás caracteriza-se pela adoção da segunda teoria, a qual ele
acentua no seu Comentário à Ética Nicomaquéia. Com efeito, assinala G. Chalmenta:
120
CEN, I, 1, §9.
[72713] Sententia Ethic., lib. 1 l. 1 n. 9
Prima autem non possunt notificari per aliqua priora, sed notificantur per posteriora, sicut causae per proprios
effectus.
121
CEN, II, 2, §257.
[72961] Sententia Ethic., lib. 2 l. 2 n. 3
Cuius ratio est, quia bonum cuiuslibet rei est in hoc quod sua operatio sit conveniens suae formae.
122
CEN, I, 10, §123.
[72827] Sententia Ethic., lib. 1 l. 10 n. 6
Forma autem hominis est anima, cuius actus dicitur vivere; non quidem secundum quod vivere est esse viventis,
sed secundum quod vivere dicitur aliquod opus vitae, puta intelligere vel sentire; unde manifestum est, quod in
aliquo opere vitae consistit hominis felicitas.
123
RAWLS, J., Uma teoria da justiça, p. 438.
47
Esta consição básica
124
é respeitada pela teoria sobre a justiça política de Tomás de Aquino:
com efeito, sua estrutura é claramente teleológica, como o era a filosofia política de
Aristóteles, seu principal mestre neste ponto. Da perspectiva geral do operar humano, o
Aquinate, de forma mais radical todavia que seu mestre Aristóteles, acreditou que o fim ou
bem de cada uma das ações que compõem a vida humana é evidentemente a felicidade
(...)
125
.
Nesse sentido, o fim tomado como um bem é o princípio motor do apetite, que, face ao
direcionamento da reta razão (razão prática), origem à escolha. Escolher é, justamente,
desejar o que resulta de um juízo deliberativo, quer dizer, aquilo que é digno de desejo. A
prudência, com efeito, é o hábito relacionado à ação dirigida pela reta razão sobre o que é
bom ou ruim para o homem, sendo dado, logo, pelo apetite racional
126
. Daí a distinção entre o
desejo meramente animal e o desejo próprio ao homem, a vontade. Refere o Doutor Cristão
argumentação conforme ao pensamento de Aristóteles:
Ele diz que, como o objeto de escolha não é nada de outro que uma coisa do número
daquelas que estão em nosso poder que é considerada pela deliberação, segue-se que a
escolha não seja nada de outro que o desejo pelo que está em nosso poder, tendo como
fonte a deliberação. A escolha é, com efeito, o ato do apetite racional que se chama
vontade. É por isso que ele disse em seguida que a escolha é um desejo deliberado, porque
é do fato de que se delibera que se chega a julgar o que se encontrou pela deliberação. E é
certamente esse desejo que é a escolha
127
.
Quer dizer, duas maneiras de explicar a ação. Como fora visto, ou bem se o faz
tomando-se como referência o raciocínio ou silogismo prático, ou bem se o faz tomando-se
como referência a deliberação. No primeiro caso, tem-se uma ficção explicativa formulada
por um observador, não necessariamente pelo agente. Ela é a expressão em palavras da lógica
real da ação. Consiste na dedução da ação a partir de certas premissas. No segundo caso, tem-
se um agente que se pergunta sobre como chegar ao seu fim, quais são os meios para tanto.
124
Referência à condição que qualquer concepção de justiça política deve satisfazer para ter alguma
possibilidade de ser considerada como verdadeira e que é a de explicitar a própria natureza “humanista”, ou seja,
a estrutura teleológica ou ético-política. CHALMETA, G., La justicia política en Tomás de Aquino: una
interpretación del bien común político, p. 111/2.
125
CHALMETA, G., La justicia política en Tomás de Aquino: una interpretación del bien común político, p.
112.
126
CEN, VI, 4, §1166 e VI, 7, §1200.
A prudência insere-se entre as virtudes intelectuais (CEN, VI, 3, §1143), sobre as quais tratar-se-á mais adiante.
127
CEN, III, 9, §486.
[73190] Sententia Ethic., lib. 3 l. 9 n. 4
Et dicit, quod cum eligibile nihil aliud sit, quam quiddam de numero eorum quae sunt in nostra potestate quod
ex consilio desideratur, consequens est, quod electio nihil aliud sit, quam desiderium eorum quae sunt in nostra
potestate, ex consilio proveniens. Est enim electio actus appetitus rationalis, qui dicitur voluntas. Ideo autem
dixit electionem esse desiderium consiliabile, quia ex hoc quod homo consiliatur pervenit ad iudicandum ea
quae sunt per consilium inventa ---, quod quidem desiderium est electio.
48
Ele remonta de condição em condição até o momento em que chegue a uma primeira ão
nesse sentido. Consiste na análise do fim para que decida como agir. É uma pesquisa
consciente acerca dos meios, a qual, de fato, nem sempre é necessária. Daí a escolha dizer
respeito às coisas que são ordenadas a um fim
128
. Nela se assenta a liberdade humana, posto
que razão prática e apetite racional não são determinados causalmente, mas o fruto de
deliberação. Cada um escolhe, segundo a sua idéia de bem, os meios que, deliberadamente,
melhor convenham ao seu fim.
Para O. Boulnois, Tomás estaria rompendo discreta mas radicalmente com a tese
aristotélica segundo a qual a prudência, virtude intelectual responsável pela faculdade da
razão prática, consiste num conhecimento reflexivo” na busca pelo fim. Se por um lado
ambos concordam que ela não conheça o fim mas verse sobre a orientação dos meios, por
outro, o conhecimento dos fins últimos, ou seja, dos primeiros princípios morais, é
pressuposta pelo Aquinate como uma verdade universal, apreendida sob a forma da lei
natural, moral e racional. A prudência, então, adquire um estatuto de “conhecimento
determinante”
129
.
O Doutor Comum entende que o bem seja “conversível em ser”
130
. Não é, em primeiro
lugar, superior a ele, como quer a doutrina de Platão, pois seus efeitos estão no ser, e é a partir
deles que se o conhece. O bem, uma vez desejado e alcançado, torna-se ser, converte-se nele.
Não é, em segundo lugar, idêntico a ele, pois o bem pode não vir a ser, assim como o ser pode
consistir em algo diferente do bem. Se é verdade que o bem é aquilo a que todos desejam,
alguém pode desejá-lo e não conseguir realizá-lo, assim como pode desejar um mal pensando
equivocadamente tratar-se de um bem para ele. Esse é o caso do bem meramente aparente.
Num e noutro caso, não conversão de bem em ser, apesar da faculdade existir, o que
denota a sua não identidade.
128
“Fora dito sobre que tipo de coisas ele versa, a saber, sobre o que depende de nós. E fora dito, mais acima,
que ele versa sobre os meios, e é também sobre o que há deliberação”. CEN, III, 9, §487.
[73191] Sententia Ethic., lib. 3 l. 9 n. 5
Et dictum est circa qualia sit, scilicet circa ea quae sunt in nobis. Et supra etiam dictum est, quod est eorum
quae sunt ad finem, de quibus etiam est consilium.
129
BOULNOIS, O., Religions et philosophies dans le chritianisme au Moyen Âge: Désir et prudence (XIII
e
-XIV
e
siècles), p. 319/20.
130
EN, 1094a2-3;9-11. CEN, I, 1, §9.
[72713] Sententia Ethic., lib. 1 l. 1 n. 9
Sed secundum rei veritatem bonum cum ente convertitur.
49
Procede, então, a declaração dos filósofos de que “o bem é o que todos desejam”
131
,
porque ele se reveste” de fim, apesar de nem sempre ser alcançado. Isto não significa,
entretanto, que o desejo pelo bem dependa do seu conhecimento. Mesmo aqueles que o
ignoram buscam realizá-lo, na medida em que sujeitos a uma tendência natural a ele, obra do
intelecto divino. O Aquinate afirma que “todos desejam o bem na medida em que eles tendem
para o bem”
132
. Exemplifica com a imagem de uma flecha que tende ao alvo segundo a
direção que lhe imprime o arqueiro. Da mesma forma, a criatura tende ao bem segundo a
direção que a inteligência divina imprime na sua natureza. Se irracional, essa tendência
apresenta-se causalmente. Se racional, apresenta-se intencionalmente. Com efeito, enquanto o
universo é organizado de modo “cego”, considerando-se a motivação para o movimento que
lhe respeita, o homem é dotado da faculdade de conhecer a ordem e, assim, pode ordenar e
ordenar-se. Afirma Tomás:
Quanto ao que ele diz: “O que todos desejam”, não deve ser compreendido somente
daqueles que possuem conhecimento e que apreendem o bem, mas também das coisas às
quais falta o conhecimento; essas tendem ao bem por um apetite natural, o como se elas
conhecessem o bem, mas porque elas são movidas ao bem por alguém que o conhece, a
saber, pela ordenação da inteligência divina: do modo como a flecha tende ao bem pela
direção [que lhe dá] o arqueiro. Ora, isso mesmo de tender ao bem é desejar o bem
133
.
Nota-se, então, que as coisas o ordenadas ao seu fim de modos distintos. Ou bem o
agente se determina ele mesmo, ou bem o fim é determinado ao agente
134
. No primeiro caso,
131
CEN, I, 1, §9.
[72713] Sententia Ethic., lib. 1 l. 1 n. 9
Et ideo dicit, quod philosophi bene enunciaverunt, bonum esse id quod omnia appetunt.
132
CEN, I, 1, §11.
[72715] Sententia Ethic., lib. 1 l. 1 n. 11
Ipsum autem tendere in bonum, est appetere bonum, unde et actum dixit appetere bonum in quantum tendit in
bonum.
133
CEN, I, 1, §11.
[72715] Sententia Ethic., lib. 1 l. 1 n. 11
Quod autem dicit quod omnia appetunt, non est intelligendum solum de habentibus cognitionem, quae
apprehendunt bonum, sed etiam de rebus carentibus cognitione, quae naturali appetitu tendunt in bonum, non
quasi cognoscant bonum, sed quia ab aliquo cognoscente moventur ad bonum, scilicet ex ordinatione divini
intellectus: ad modum quo sagitta tendit ad signum ex directione sagittantis.
134
“Ainda, nós constatamos que uma coisa possui dois modos de ser operada para um fim. Inicialmente, de sorte
que o agente se determine ele mesmo o fim, como acontece com todos que agem por inteligência. Às vezes, ao
contrário, o fim é determinado ao agente por um outro, o agente principal; isso é claro no caso do movimento da
flecha, que move a um fim determinado, mas esse fim é-lhe determinado pelo lançador; e, semelhantemente, a
operação da natureza, que avança a um fim determinado, pressupõe uma inteligência que tenha fixado um fim
à natureza e que ordena a natureza a esse fim, e é a esse ponto de vista que se chama toda obra da natureza uma
obra de inteligência. Questions disputées sur la vérité, q. 3, a. 1, resposta.
[52219] De veritate, q. 3 a. 1 co. Responsio.
Videmus etiam quod aliquid propter finem dupliciter operatur. Uno modo ita quod ipsum agens determinat sibi
finem, sicut est in omnibus agentibus per intellectum: aliquando autem agenti determinatur finis ab alio
50
quando ele se move por si mesmo, é pressuposta a faculdade de conhecimento. No segundo,
quando ele se move por um outro, se o movimento fora determinado de forma violenta, é tão
somente pressuposta a determinação externa; se o fora de forma natural, é pressuposta a
concessão de uma certa forma ao agente a qual determina sua direção. O Santo Doutor o
explicita nas Questões disputadas sobre a Verdade:
Ora, de dois modos uma coisa encontra-se ordenada ou dirigida como a seu fim:
inicialmente, por si mesma, como o homem que se dirige ele mesmo em direção ao lugar ao
qual tende; em seguida, por um outro, como a flecha que é enviada pelo arqueiro em
direção a um lugar determinado. Somente as coisas que conhecem o fim podem ser
dirigidas por si mesmas em direção a um fim; com efeito, é necessário que aquele que
dirige tenha conhecimento daquilo em direção do que se dirige. No entanto, mesmo as
coisas que não conhecem o fim podem ser dirigidas por um outro a um fim determinado,
como é claro no exemplo da flecha. Ora, isso se produz de dois modos. Às vezes, a coisa
que é dirigida ao fim é somente lançada e movida por aquele que a envia, sem que ela
receba dele nenhuma forma pela qual essa direção ou essa inclinação lhe convenha; e uma
tal inclinação é violenta: assim a flecha é enviada pelo arqueiro em direção a um alvo
determinado. Às vezes, ao contrário, aquilo que é dirigido ou inclinado a um fim obtém do
remetente ou do motor uma forma pela qual uma tal inclinação lhe convém: também uma
tal inclinação será natural, tendo por assim dizer um princípio natural; como aquele que deu
um peso à pedra, inclinando-a a colocar-se naturalmente para baixo; e é dessa maneira que
aquele que gera é um motor para os pesados e os leves, segundo o Filósofo no oitavo livro
da Física. E é assim que todas as realidades naturais o inclinadas às coisas que lhe
convêm, tendo em si mesmas algum princípio de inclinação graças ao qual sua inclinação é
natural, de sorte que elas vão de algum modo elas mesmas aos fins convenientes e o são
somente conduzidas. Com efeito, são somente as realidades violentas que são conduzidas,
pois elas não cooperam em nada ao motor; mas as realidades naturais vão também ao fim,
na medida em que elas cooperam, pelo princípio posto nelas mesmas, ao que inclina e
dirige
135
.
principali agente; sicut patet in motu sagittae, quae movetur ad finem determinatum, sed hic finis determinatur
ei a proiiciente; et similiter operatio naturae, quae est ad determinatum finem, praesupponit intellectum,
praestituentem finem naturae, et ordinantem ad finem illum naturam, ratione cuius omne opus naturae dicitur
esse opus intelligentiae.
135
Questions disputées sur la vérité, q. 22, a. 1, resposta.
[56037] De veritate, q. 22 a. 1 co. Respondeo.
Dupliciter autem contingit aliquid ordinari vel dirigi in aliquid sicut in finem: uno modo per seipsum, sicut
homo qui seipsum dirigit ad locum quo tendit; alio modo ab altero, sicut sagitta quae a sagittante ad
determinatum locum dirigitur. A se quidem in finem dirigi non possunt nisi illa quae finem cognoscunt. Oportet
enim dirigens habere notitiam eius in quod dirigit. Sed ab alio possunt dirigi in finem determinatum etiam quae
finem non cognoscunt sicut patet de sagitta. Sed hoc dupliciter contingit. Quandoque enim id quod dirigitur in
finem, solummodo impellitur et movetur a dirigente, sine hoc quod aliquam formam a dirigente consequatur per
quam ei competat talis directio vel inclinatio; et talis inclinatio est violenta, sicut sagitta inclinatur a sagittante
ad signum determinatum. Aliquando autem id quod dirigitur vel inclinatur in finem, consequitur a dirigente vel
movente aliquam formam per quam sibi talis inclinatio competat: unde et talis inclinatio erit naturalis, quasi
habens principium naturale; sicut ille qui dedit lapidi gravitatem, inclinavit ipsum ad hoc quod deorsum
naturaliter ferretur; per quem modum generans est motor in gravibus et levibus, secundum philosophum in Lib.
VIII Physic. Et per hunc modum omnes res naturales, in ea quae eis conveniunt, sunt inclinata, habentia in
seipsis aliquod inclinationis principium, ratione cuius eorum inclinatio naturalis est, ita ut quodammodo ipsa
vadant, et non solum ducantur in fines debitos. Violenta enim tantummodo ducuntur, quia nil conferunt moventi;
sed naturalia etiam vadunt in finem, in quantum cooperantur inclinanti et dirigenti per principium eis inditum.
51
Se por um lado Tomás afirma haver uma tendência natural” que direciona o ser ao
seu fim, por outro insiste na importância, no caso do homem, de conhecê-lo, posto,
justamente, não ser determinado de modo causal. Ora, para que se mova na direção do seu
fim, é de grande ajuda que detenha o seu conhecimento, assim como, analogamente, um
arqueiro detém em mira o seu alvo para acertá-lo. O homem pode chegar a ele sem que o
conheça, mas será tão difícil alcançá-lo como é difícil a um arqueiro acertar o seu alvo sem a
sua visão.
Ele conclui, então, em primeiro, [partindo] do que fora dito, que, sendo dado que existe um
fim o melhor para todas as coisas humanas, seu conhecimento é necessário ao homem, pois
isso comporta um grande apoio para a vida, quer dizer, traz muita ajuda à toda vida
humana. E isso, é claro, torna-se evidente num raciocínio como o seguinte. O homem não
pode atingir diretamente nada do que é dirigido a outra coisa sem conhecer aquilo a que ele
está a se dirigir. Isso torna-se evidente pelo exemplo do arqueiro, que envia diretamente sua
flecha visando o alvo ao qual ele a dirige. Ora, é preciso que toda vida seja ordenada ao fim
o melhor e último da vida humana. É preciso, então, que se tenha necessariamente
conhecimento do fim último e o melhor da vida humana. O motivo é que sempre a razão do
que é em vista do fim deve ser tirada do fim ele mesmo, como é provado também no
segundo [livro] da Física
136
.
A capacidade de agir, própria ao homem, depende essencialmente da representação de
um bem. Não obstante, dependendo do valor de verdade do seu conhecimento, ela informa ou
não uma correspondência do bem apresentado pelo intelecto sob uma forma universal a um
bem real. O bem é a causa do desejo do fim, o propósito da ação. Mas o que parece desejável
pode, para além da aparência de bem, não encerrar efetivamente um bem. O homem pode ser
enganado pelos seus sentidos, assim como pode ter uma fraqueza de vontade. Ora, a relação
que se coloca entre o fim e o bem é dada pela distinção entre o que se procura e o porque se o
procura. O homem age em direção ao fim porque o deseja como a um bem. Não conhecendo
seu fim, é mais difícil estimá-lo com correção. É, então, o “acerto” seguido de um movimento
adequado, bem sucedido”, portanto, que importa na perfectibilização do aspecto
136
CEN, I, 2, §23.
[72727] Sententia Ethic., lib. 1 l. 2 n. 5
Concludit ergo primo ex dictis, quod ex quo est aliquis optimus finis rerum humanarum, cognitio eius, habet
magnum incrementum ad vitam, idest multum auxilium confert ad totam vitam humanam. Quod quidem apparet
tali ratione. Nihil quod in alterum dirigitur potest homo recte assequi nisi cognoscat illud ad quod dirigendum
est. Et hoc apparet per exemplum sagittatoris, qui directe emittit sagittam, attendens ad signum ad quod eam
dirigit. Sed tota humana vita oportet quod ordinetur in ultimum et optimum finem humanae vitae; ergo ad
rectitudinem humanae vitae necesse est habere cognitionem de ultimo et optimo fine humanae vitae. Et huius
ratio est, quia semper ratio eorum quae sunt ad finem, sumenda est ab ipso fine, ut etiam in secundo physicorum
probatur.
52
propriamente humano no homem. Com efeito, R. McInerny distingue dois sentidos que
podem ser atribuídos ao termo “desejável”:
O bem é o desejável. (...) Desejável
1
envolve o julgamento de que o que é desejável é
perfectivo do desejo. (...) Deixe-nos utilizar desejável
2
para designar os objetos que
verdadeiramente salvam a formalidade, a ratio boni. (...) Qualquer ação assume que
desejável
1
é desejável
2
. Se aprendemos que desejável
1
não é desejável
2
, nós temos um
motivo para desejar o que é verdadeiramente desejável, desejável
2
. Isso o significa que
nós necessariamente agiremos segundo nossa correta percepção, é claro; conhecimento não
é uma virtude. Além disso, nenhum curso de ação exaure a formalidade da bondade
137
.
Quando o Doutor Angélico discorre sobre “fim” e sobre “bem”, pressupõe o
reconhecimento de dois planos: o plano natural humano ou terreno e o plano divino. Ele
refere-se, então, ora ao fim do homem nesta vida, no sentido de um bem humanamente
realizável, em diferentes esferas; ora ao fim do homem após a morte, no sentido de um bem
último, não facultado a ele aqui realizar pela sua condição finita, mas cuja realização pode ser
dada pela providência divina ou cumprida sob outras condições numa outra vida. Com efeito,
um fim e um bem que são tomados do ponto de vista humano, por dizerem respeito ao
homem enquanto animal racional, do qual se ocupa a Política. também um fim e um bem
que são tomados do ponto de vista divino, por dizerem respeito ao homem enquanto criatura
divina, junto a todas as outras que compõem o universo, ainda que mais perfeitamente, do
qual se ocupa a Teologia. Tanto é assim que ele estabelece graus de perfeição, situando o fim
e o bem da primeira acepção num grau inferior ao da segunda, o qual não pode ser superado.
Afirma:
Deve-se saber, além disso, que ele diz que a Política é a mais importante, não
simplesmente, mas no gênero das ciências ativas que versam sobre as coisas humanas, das
quais a Política considera o fim último. Pois é a ciência divina que considera o fim último
de todo o universo e é ela que é a mais importante face a todas as [coisas]. Ele diz, em todo
caso, que a consideração do fim último da vida humana pertence à Política; e é dela,
contudo, que ele trata nesse livro, pois o ensinamento desse livro contém os primeiros
elementos da Ciência Política
138
.
137
McINERNY, R., Ethics, p. 37/8.
138
CEN, I, 2, §31.
[72735] Sententia Ethic., lib. 1 l. 2 n. 13
Sciendum est autem, quod politicam dicit esse principalissimam, non simpliciter, sed in genere activarum
scientiarum, quae sunt circa res humanas, quarum ultimum finem politica considerat. Nam ultimum finem totius
universi considerat scientia divina, quae est respectu omnium principalissima. Dicit autem ad politicam
pertinere considerationem ultimi finis humanae vitae; de quo tamen in hoc libro determinat, quia doctrina huius
libri continet prima elementa scientiae politicae.
53
Não há, portanto, um bem particular a que tudo tenda, mas um bem geral
139
. No
que tange às diferentes esferas de realização do bem no plano terreno, é preciso que se
responda ao seu caráter individual, familiar e social. Cada homem tem um bem particular a
ser realizado, o qual a ele se refere tão somente enquanto indivíduo humano. Cada membro de
uma casa tem também um bem a ser realizado, o qual a ele se refere enquanto parte de uma
família ou grupo doméstico. Ainda, cada cidadão tem um bem comum a ser realizado, o qual
a ele se refere, assim como a todos os demais cidadãos, enquanto parte de uma sociedade ou
comunidade humana. Ora, o bem particular ou o doméstico, nesta vida, realizam-se no
interior de uma idéia de bem maior, que é a do bem comum, o bem humanamente realizável
por excelência. Finalmente, no que tange à realização no plano divino, todas as criaturas do
universo tendem ao bem geral de tudo o que fora criado, o qual se refere a todo universo, que
é criação divina, donde tem-se que Deus é o bem “sem qualificação”, porque fonte de todo
bem que se pode qualificar enquanto tal.
Logo, apesar de em um certo sentido serem diferentes, bem particular, bem doméstico,
bem comum e bem “sem qualificação” estão vinculados pela noção de ordem. Os primeiros,
pertencentes a uma ordem humana, organizam-se em função desse último, próprio a uma
ordem divina. Admite-se, assim, uma hierarquização entre eles, donde o bem comum é o mais
alto bem a que o homem pode alcançar pelos seus próprios meios e o bem “sem qualificação”
é o mais alto bem em sentido absoluto. Não é, entretanto, dado ao homem alcançar por si
nesta vida, tendo sua realização reservada, salvo intervenção divina, a uma outra.
uma sorte de independência entre os diferentes bens, considerando-se que a
realização de um não é pressuposta para a de outro. Mas eles dependem uns dos outros no que
tange à felicidade humana, a qual consiste, justamente, numa idéia maior de bem dada pela
realização de um conjunto de bens. Com efeito, a felicidade humana pressupõe o cuidado em
relação ao todo que é o homem, e não apenas a um aspecto de sua constituição. Nesse sentido,
faz-se preciso, ainda, conforme apregoa Tomás, admitir a idéia de um julgamento das ações
empreendidas no plano terrestre numa vida após a morte
140
.
Assim, tem-se que a diversidade de bens é em um outro sentido aparente, conquanto
haja uma idéia geral de bem que os unifica. É pela participação nesse verdadeiro bem” que
139
“Mas não há um único bem ao qual tudo tenda, como se dirá mais adiante. E é por isso que não se descreverá
aqui um bem particular, mas o bem tomado comumente”. CEN, I, 1, §11.
[72715] Sententia Ethic., lib. 1 l. 1 n. 11
Non autem est unum bonum in quod omnia tendunt, ut infra dicetur. Et ideo non describitur hic aliquod unum
bonum, sed bonum communiter sumptum.
140
CEN, III, 2, §395.
54
outros “bens” são derivados e é apenas pela conformidade ou, ao menos, o contrariedade a
ele que podem ser buscados enquanto tais (“bens”). Diz o Doutor Angélico:
Contudo, porque nada é bom exceto na medida em que se assemelhe e participe no mais
alto bem, o mais alto bem, ele mesmo, é, de alguma forma, desejado em todo bem
particular. Portanto, pode ser dito que o verdadeiro bem é aquele a que todos desejam.
141
Tomás passa, então, da relativa distinção entre bens à relativa distinção entre fins.
Com efeito, se todos desejam a algum bem como um fim, dependendo do grau que o bem
ocupa, um grau de fim ser-lhe-á correspondente, e, logo, haverá uma multiplicidade de fins.
Por exemplo, se o bem de um padeiro é fazer pães e ele o faz com excelência, é dito bom,
dado o bem, “fazer pães com excelência”, ter sido tomado como fim. O mesmo não vale
automaticamente como critério para um bom músico, dado que o bem a ser tido como fim é
outro, a saber, “fazer música com excelência”. “Bens” particulares e distintos correspondem a
“fins” também particulares e distintos.
De modo análogo, -se a passagem da idéia de um “bem final” para a de um “fim
supremo”. Notar que se está a tomar um bem como meio para a obtenção de outro, o qual não
se deseja por nada além dele mesmo, serve para que se desfaça também o equívoco” quanto
aos fins. Aquele que parecia ser um fim ao lado de outros não é, a rigor, o fim supremo,
último e único, mas meio para a sua realização. O Santo Doutor aponta a limitação dentro da
qual se deve entender a constatação aristotélica de uma diversidade de fins, pois, se o bem
final para o qual a inclinação de cada coisa tende é a sua perfeição última, o fim que é
desejado universalmente como um bem é o “fim supremo”. Com efeito, o texto de Aristóteles
informa que “uma certa diversidade de fins é aparente, pois alguns são operações enquanto
outros são trabalhos fora das operações”
142
. Comenta o Aquinate:
(...) é preciso considerar que o bem final ao qual tende o apetite de qualquer ser é a sua
perfeição última. Ora, a perfeição primeira obtém-se por meio de uma forma. E a segunda
por meio de uma operação. Assim, é preciso haver essa diferença entre os fins, que certos
fins o operações mesmas, enquanto outros são suas obras, quer dizer, os resultados à
parte das operações
143
.
141
CEN, I, 1, §11.
[72715] Sententia Ethic., lib. 1 l. 1 n. 11
Quia autem nihil est bonum, nisi inquantum est quaedam similitudo et participatio summi boni, ipsum summum
bonum quodammodo appetitur in quolibet bono et sic potest dici quod unum bonum est, quod omnia appetunt.
142
EN, 1094a3-5; 12-13.
143
CEN, I, 1, §12.
[72716] Sententia Ethic., lib. 1 l. 1 n. 12
55
Quer dizer, a relação entre fim, desejo e bem culmina no reconhecimento de um fim
supremo. A ação humana é ordenada a algum bem como a seu fim
144
a partir de uma
tendência natural, dita o desejo do bem
145
. Ela difere do movimento empreendido pela
criatura irracional na medida em que nessa um movimento cego” no sentido de uma
determinação causal. No ser humano, entretanto, essa determinação não é absoluta, posta a
contingência do seu exercício. A vontade humana pode ser exercida sobre uma pluralidade de
objetos particulares. O homem age segundo o seu próprio arbítrio. Ele é, apesar da submissão
a certas regras universais, um ser racional e, portanto, livre.
O bem universalmente considerado é desejado em cada bem particular, porquanto seja
o fim supremo. O fim de cada ação é mais propriamente dito um meio para esse fim maior,
pois, além de ser um fim bom, desejado em cada bem, é buscado apenas por ele mesmo. Diz,
então, o Doutor Comum:
Qualquer fim que seja tal que nós queremos os outros [fins] em vista dele e que nós o
queremos, ele, por ele mesmo e o em função de um outro [fim], esse fim não somente é
bom, mas ele é o melhor. E isso decorre de que sempre o fim em vista do qual os outros são
buscados é o principal, como é evidente a partir do que procede. Ora, nas coisas humanas é
preciso que exista um tal fim. Então, há nas coisas humanas um fim bom e o melhor
146
.
O fim supremo é o último termo da inclinação natural do desejo. Portanto, reza
Tomás, requer forma acabada, perfeição, e termo íntegro, auto-suficiência
147
. Conforme será
demonstrado, é a felicidade que parece ter esta natureza, uma vez que é, primeiro, sempre
Deinde cum dicit: differentia vero quaedam etc., ostendit differentiam finium. Circa quod considerandum est,
quod finale bonum in quod tendit appetitus uniuscuiusque est ultima perfectio eius. Prima autem perfectio se
habet per modum formae. Secunda autem per modum operationis. Et ideo oportet hanc esse differentiam finium
quod quidam fines sint ipsae operationes, quidam vero sint ipsa opera, id est opera quaedam praeter
operationes.
144
“É por isso também que ele diz que os filósofos m corretamente afirmado que o bem é o que todos
desejam”. CEN, I, 1, §8.
[72712] Sententia Ethic., lib. 1 l. 1 n. 8
Dicit ergo quod singulum horum manifeste appetit quoddam bonum tamquam finem.
145
CEN, I, 1, §11.
146
CEN, I, 2, §19.
[72723] Sententia Ethic., lib. 1 l. 2 n. 1
Quicumque finis est talis quod alia volumus propter illum et ipsum volumus propter se ipsum et non aliquid
aliud, iste finis non solum est bonus, sed etiam est optimus, et hoc apparet ex hoc quod semper finis cuius gratia
alii fines quaeruntur est principalior, ut ex supra dictis patet; sed necesse est esse aliquem talem finem. Ergo in
rebus humanis est aliquis finis bonus et optimus.
147
(…) ele coloca duas condições do fim último. A primeira, claro, que ele seja perfeito. A segunda, que ele
seja suficiente nele mesmo”. CEN, I, 9, §107.
[72811] Sententia Ethic., lib. 1 l. 9 n. 5
Deinde cum dicit: hoc autem adhuc magis explanare etc., ponit duas condiciones ultimi finis: primo quidem
quod sit perfectum; secundo quod sit per se sufficiens, ibi, videtur autem et ex per se sufficientia et cetera.
56
buscada por si mesma e, segundo, bastante acerca de tudo o que é absolutamente
necessário
148
. Passa-se, então, a tratar propriamente da felicidade, bem como da estreita
relação que, constatar-se-á, guarda ela com a virtude.
148
“Assim, é perfeito de maneira absoluta o que é sempre em si mesmo digno de escolha e nunca por outra
coisa. Tal é a manifestamente a felicidade. Nunca nós a escolhemos por uma outra coisa, mas sempre por ela
mesma”. CEN, I, 9, §111.
[72815] Sententia Ethic., lib. 1 l. 9 n. 9
Et ita simpliciter perfectum est, quod est semper secundum se eligibile et nunquam propter aliud. Talis autem
videtur esse felicitas, quam numquam eligimus propter aliud, sed semper propter seipsam.
“É dessa maneira que a felicidade da qual se fala agora tem suficiência de si, posto que ela contém nela tudo o
que é necessário em si, mas não tudo o que pode advir ao homem”. CEN, I, 9, 116.
[72820] Sententia Ethic., lib. 1 l. 9 n. 14
Et sic felicitas de qua nunc loquitur habet per se sufficientiam, quia scilicet in se continet omne illud quod est
homini necessarium, non autem omne illud quod potest homini advenire.
57
3 Virtude e felicidade
Tendo estabelecido que um bem final humano, o qual corresponde ao fim supremo
do homem nesta vida, Tomás pode introduzir uma primeira definição de felicidade. Ela
consiste na perfeição humana, sendo, por isso, sempre buscada por si mesma e nunca por nada
que lhe seja diferente. Sua investigação diz, logo, respeito à Ética, conquanto o bem
individual de cada um participa de sua idéia. Ora, ao longo da Ética Nicomaquéia, trata-se de
identificar a sua natureza específica e, logo, também no seu Comentário. O Aquinate parte da
opinião comumente aceita sobre ela:
(...) todos admitem que a felicidade é a melhor das coisas, incluindo a crença de que é o fim
último e o bem auto-suficiente perfeito
149
.
O tema da felicidade engendra uma certa tensão, posta a necessidade de distinção de
dois planos para a sua realização. Tomás busca especificá-la partindo da constatação de que,
por pertencer à natureza, o homem possui um fim natural. A operação conforme a esse fim, a
qual lhe é, portanto, própria, consiste no seu bem maior. O argumento pode ser colocado da
seguinte maneira: Se é consenso que é a felicidade humana a melhor das coisas, sua natureza
específica deve ser encontrada, justamente, na realização daquilo que o homem guarda de
mais importante. Pois os seres naturais distingüem-se uns dos outros pela sua função na
ordem natural, donde todo ser possuir uma operação própria ordenada, a partir da qual se o
identifica e que, logo, é também o que tem como principal. Reproduz, o Doutor Comum,
pensamento de Aristóteles:
Ele diz, primeiramente, que o que é a felicidade poderá tornar-se manifesto se for tomada a
operação do homem. Pois para todas as coisas que têm uma operação própria, é ela que é o
seu bem e, para ela, ser bem consiste na sua operação. Assim, para o flautista, o bem
consiste na sua operação
150
.
149
CEN, I, 10, §118.
[72822] Sententia Ethic., lib. 1 l. 10 n. 1
Dicit ergo primo, quod omnes confitentur felicitatem esse aliquid optimum ad quod pertinet quod felicitas sit
ultimus finis et perfectum bonum et per se sufficiens.
150
CEN, I, 10, §119.
[72823] Sententia Ethic., lib. 1 l. 10 n. 2
Dicit ergo primo, quod quid sit felicitas poterit manifestum esse si sumatur operatio hominis. Cuiuslibet enim rei
habentis propriam operationem, bonum suum et hoc quod bene est ei consistit in eius operatione. Sicut tibicinis
bonum consistit in eius operatione.
58
A operação própria do homem é o que lhe permite atingir à sua forma mais perfeita.
Tomás recorre, então, a um preciosismo terminológico que assinala um caminho entre o
homem tal como ele é e o homem tal como ele pode ser. Inserido num todo ordenado para um
fim, dotado de movimento, portanto, no caso do homem, que é livre, ou bem se desempenha a
operação que justifica sua inserção ou bem não se a desempenha. Quer dizer, a forma do
homem não é, a princípio, acabada. E ele pode buscar aprimorá-la, desempenhando sua
operação específica. Nesse sentido, sua forma é uma perfeição primeira e sua operação uma
perfeição segunda, a qual viabiliza a busca do seu bem, um bem dito final, que consiste na sua
perfeição última
151
. Se algo exterior for chamado fim, o será apenas em razão da operação
pela qual o homem entra em contato com ele. Logo, tendo o homem uma atividade
característica, o seu bem final, que é, então, a felicidade, deve consistir nela.
O motivo é que o bem final de qualquer coisa é sua perfeição última. Ora, sua forma é uma
perfeição primeira e sua operação é uma perfeição segunda. Se, todavia, é uma coisa
exterior que é dita seu fim, não será sem o viés de uma operação pela qual se atinge a essa
coisa, seja fazendo-a, como o construtor [faz] a casa, seja utilizando-a ou aproveitando-a.
Assim, resta que o bem final de qualquer coisa é a ser buscado na sua operação. Se, então,
existe uma operação própria ao homem, é necessariamente na sua operação própria que
consiste seu bem final ele mesmo, que é a felicidade. E, assim, a felicidade é a operação
própria do homem
152
.
Ora, um tal raciocínio pode levar o leitor a concluir que a felicidade do homem está na
vida contemplativa. Com efeito, o Aquinate sustenta que a operação própria a cada coisa é
dada pela sua forma. No homem, ela é racional, posto ser dela que ele recebe a sua
classificação específica. Ele distingue-se e se sobressai em relação ao universo natural pela
faculdade da razão. É, então, a partir do exercício dessa que se deve buscar formular uma
definição mais precisa sobre a sua felicidade. Conforme fora visto quando da exposição da
alma e de suas partes, grosso modo, de duas maneiras a faculdade racional pode ser exercida:
uma apenas por participação, visto que na origem a atividade é irracional, própria ao apetite,
mas obediente e regulada pela razão; e outra por natureza, quando a razão por si opera o
151
Tal distinção será retomada na segunda parte deste trabalho.
152
CEN, I, 10, §119.
[72823] Sententia Ethic., lib. 1 l. 10 n. 2
Et huius ratio est, quia bonum finale cuiuslibet rei est ultima eius perfectio. Forma autem est perfectio prima,
sed operatio est perfectio secunda. Si autem aliqua res exterior dicatur esse finis, hoc non erit nisi mediante
operatione, per quam scilicet homo ad rem illam attingit vel faciendo, sicut aedificator domum, aut utitur seu
fruitur ea. Et sic relinquitur quod finale bonum cuiuslibet rei in eius operatione sit requirendum. Si igitur
hominis est aliqua operatio propria, necesse est, quod in eius operatione propria consistat finale bonum ipsius,
quod est felicitas, et ita genus felicitatis est propria operatio hominis.
59
raciocínio e a compreensão, seja no intuito da ação, seja no intuito da pura especulação. Para
o Santo Doutor, a forma humana é dada, de modo mais adequado, pela operação propriamente
racional e, mais ainda, quando voltada à vida do pensamento do que à ativa. Ele diz:
(...) Com efeito, o homem tira sua natureza justamente daquilo que lhe é racional. Mas o
racional é duplo. Um dá-se por participação, a saber, na medida em que é persuadido e
regulado pela razão. outro é racional por essência: ele tem de si mesmo [a aptitude a]
raciocinar e inteligir. Esse é, obviamente, o que se diz mais principalmente parte racional.
Pois algo que é por si é sempre principal em relação ao que é por intermédio de outra coisa.
Porque, então, a felicidade é o bem mais importante do homem, segue-se que ela consiste
antes naquilo que é racional por essência do que naquilo que é racional por participação.
Donde se pode estabelecer que a felicidade consiste mais principalmente na vida
contemplativa do que na ativa; e [antes] no ato da razão ou da inteligência do que no ato do
apetite regulado pela razão
153
.
Mas o fato da atividade comtemplativa ser mais nobre não significa afirmar que o
homem deva dedicar-se exclusivamente à contemplação. O que Tomás prega é que, dentre as
diferentes atividades necessárias à perfeição humana, aquela mais próxima da razão, ao
mesmo tempo em que não substitui nenhuma outra, ocupa o lugar mais alto. Ele estabele,
então, um vínculo entre felicidade e virtude que precisa ser examinado com cautela.
Num primeiro momento, o Doutor Angélico estabelece que a operação que detém o
condão de fazer o homem feliz é a racional e que, então, operar racionalmente equivale a
operar bem, o que é próprio à virtude. O homem mais feliz é aquele que o faz melhor. Quer
dizer, se operar bem admite graduações, caso em que se admite diferentes bens com diferentes
valores de bem, admite-se também diferentes virtudes cuja valoração é variável. Nesse
sentido, a maior felicidade a que o homem pode almejar é aquela segundo a maior das
virtudes. São suas palavras:
Se, então, a obra do homem consiste em uma certa vida, a saber, onde o homem opere
segundo a razão, segue-se que pertence ao bem do homem bem operar segundo a razão, e
[que pertence] ao homem o melhor, a saber, o feliz, que ele o faça da melhor maneira. Ora,
pertence à definição de virtude que tudo o que tenha virtude opere bem graças a ela, como a
153
CEN, I, 10, §126.
[72830] Sententia Ethic., lib. 1 l. 10 n. 9
Post vitam autem nutritivam et sensitivam non relinquitur nisi vita quae est operativa secundum rationem. Quae
quidem vita propria est homini. Nam homo speciem sortitur ex hoc quod est rationalis. Sed rationale est duplex.
Unum quidem participative, inquantum scilicet persuadetur et regulatur a ratione. Aliud vero est rationale
essentialiter, quod scilicet habet ex seipso ratiocinari et intelligere. Et haec quidem pars principalius rationalis
dicitur, nam illud quod dicitur per se, semper est principalius eo quod est per aliud. Quia igitur felicitas est
principalissimum bonum hominis, consequens est, ut magis consistat in eo quod pertinet ad id quod est rationale
per essentiam quam in eo quod pertinet ad id quod est rationale per participationem. Ex quo potest accipi, quod
felicitas principalius consistit in vita contemplativa quam in activa; et in actu rationis vel intellectus, quam in
actu appetitus ratione regulati.
60
virtude do cavalo é aquilo graças ao qual ele corre bem. Se, então, a operação do melhor
homem, a saber, do [homem] feliz, é operar bem e da melhor maneira segundo a razão,
segue-se que o bem humano, a saber, a felicidade, seja operar segundo a virtude: de sorte
que se existe uma única virtude do homem, a operação que se faz segundo essa virtude será
a felicidade; mas que se existe várias virtudes do homem, a felicidade será a operação que
será a melhor entre elas. Pois a felicidade é não apenas o bem do homem, mas [seu bem] o
melhor
154
.
Como a virtude humana perfectibiliza o trabalho do homem realizado racionalmente,
assim como sua atividade distingue-se conforme tenha origem na parte da alma racional por
participação ou na racional por natureza, as virtudes distinguem-se conforme se refiram a uma
boa atividade regular do primeiro ou do segundo tipo. Aquelas, caracterizadas pela prática
regular do que é bom (e verdadeiro) são chamadas morais
155
, essas, caracterizadas pelo
conhecimento do que funda um tal exercício, intelectuais
156
. R. McInerny aborda a distinção
das virtudes remontando ao lugar de onde se origina a atividade virtuosa:
Dado que as ações humanas por definição procedem da razão e da vontade e são tanto boas
quanto más, para que sejam boas elas devem proceder da razão correta e da vontade
orientada ao bem. Os hábitos que garantem o conhecimento correto do bem e a orientação
constante do apetite para ele são virtuosos. Há, então, genericamente falando, dois lugares
ou loci de virtude - razão e apetite. Em resumo, há virtudes intelectuais e há virtudes
morais
157
.
Tomás hierarquiza as virtudes analogamente a como hierarquiza as partes da alma
humana. Quer dizer, ele concede às virtudes intelectuais a mesma superioridade sobre as
virtudes morais que concede à “parte” da alma que é racional por natureza qual referem-se
as primeiras) sobre a parte que é apetitiva qual referem-se as segundas). Ainda, da mesma
forma que distingue o racional por natureza científico do estimativo, distingue as virtudes
especificamente relacionadas ao primeiro, que são, então, prioritárias, daquelas relacionadas
ao segundo. A lógica que rege uma tal hierarquização consiste no reconhecimento de uma
maior importância ao que mais se separa da matéria e do corpo e que, logo, menos depende
154
CEN, I, 10, §128.
[72832] Sententia Ethic., lib. 1 l. 10 n. 1
Si igitur opus hominis consistit in quadam vita, prout scilicet homo operatur secundum rationem, sequitur quod
boni hominis sit bene operari secundum rationem, et optimi hominis, scilicet felicis, optime hoc facere. Sed hoc
pertinet ad rationem virtutis, quod unusquisque habens virtutem secundum eam bene operetur sicut virtus equi
est secundum quam bene currit. Si ergo operatio optimi hominis, scilicet felicis, est ut bene et optime operetur
secundum rationem, sequitur quod humanum bonum, scilicet felicitas, sit operatio secundum virtutem: ita
scilicet quod si est una tantum virtus hominis, operatio quae est secundum illam virtutem, erit felicitas. Si autem
sunt plures virtutes hominis, erit felicitas operatio quae est secundum optimam illarum, quia felicitas non solum
est bonum hominis, sed optimum.
155
CEN, II, 1, §247.
156
CEN, II, 1, §246.
157
McINERNY, R., Ethics, p. 96.
61
das sensações. Nessa linha, chegar-se-á ao reconhecimento de uma supremacia das virtudes
intelectuais referentes à dedicação ao conhecimento científico desinteressado ou
contemplação da imagem divina para a realização da felicidade - mas da felicidade dita
perfeita! Diz o Doutor Comum:
O que quer que ele [o intelecto] seja, além disso, é necessário, de tudo o que foi dito, que a
felicidade perfeita seja a operação desse melhor elemento, em conformidade com a sua
virtude própria. Com efeito, a operação perfeita exigida pela felicidade não pode ser outra
que aquela de uma faculdade perfeita por um hábito que seja sua virtude própria, por
intermédio da qual ela torna boa sua operação
158
.
Não obstante, uma tal idéia de felicidade leva a crer que a realização do homem
acontece consoante a virtude intelectual oriunda da atividade racional contemplativa. Essa
constitui o seu bem o mais valioso, posto marcar, por excelência, não apenas a especificidade
humana, mas, ainda, a sua superioridade. Nela o homem separa-se, de certa sorte, do seu
aspecto animal e, logo, comum. É preciso, então, ter claro que a felicidade perfeita é
inacessível pelos meios humanos, tendo seu alcance reservado a uma outra vida
159
. Ensina M.
Villey:
Mas não do “intelecto prático”, que visa uma obra e não chegou ao termo. A maior
felicidade está no ato do “intelecto especulativo” (art. 5). Esse tema ocupa um lugar de
honra na obra de São Tomás - e já naquela de Aristóteles: primado da especulação. Ele o
significa a negação do valor da prática. Ela possui algo de divino, posto que em Deus nós
reconhecemos esse outro atributo, a bondade. Obrar a serviço do próximo impõe-se ao
homem na sua vida presente. Mas a ão ela mesma é a via, ponto de cumprimento da
beatitude. A especulação toca o ponto.
É preciso, à maneira de Hegel ou mesmo de Aristóteles (art. 6), situar o termo da felicidade
no bios theoretikos, a vida científica desinteressada: Utrum beatitudo consistat in
considaratione scientiarum speculativarum? Aqui São Tomás toma distância de
Aristóteles, mostra a incompletude dessas ciências (a filosofia então compreendida). As
especulações naturais aos homens, que têm sempre o seu ponto de partida na sensação,
prende-os à matéria, orienta-os na direção do mundo dos corpos. Elas permanecem
impotentes a satisfazer nossa inteligência, que é espiritual.
Beatitude será a visão da essência divina (art. 8). O homem não a atinge nesta terra. Ele diz
aqui embaixo se Deus é (an est), não “o que ele é” (quid est). Essa contemplação es
prometida ao homem num outro estado a vir
160
.
158
CEN, X, 10, §2085.
[74787] Sententia Ethic., lib. 10 l. 10 n. 6
Quocumque autem modo se habeat, necesse est secundum praedicta, quod perfecta felicitas sit operatio huius
optimi secundum virtutem propriam sibi. Non enim potest esse perfecta operatio, quod requiritur ad felicitatem,
nisi potentiae perfectae per habitum qui est virtus ipsius secundum quam reddit operationem bonam.
159
Salvo intervenção da providência divina.
160
VILLEY, M., Questions de saint Thomas sur le droit et la politique ou le bon usage des dialogues, p. 12/3.
62
Ora, é inaceitável fazer a interpretação de que, para Tomás, o homem feliz é aquele
que volta toda a sua energia a contemplar o absoluto, isolando-se, assim, do mundo,
renegando o seu caráter social e político. Ele esclarece que uma tal felicidade corresponde à
realização do homem num plano superior ao plano terreno, o que não exclui a possibilidade
de realização da felicidade humana na vida presente. É, pois, impossível que o homem o
tenha enquanto tal um fim que corresponda ao seu bem nesta vida. A negação da
possibilidade de realização humana acarretaria na afirmação da sua “inutilidade”. Mas,
segundo o Aquinate, o homem é um ser natural e, como tal, possui um fim também natural e
que é, ora, realizável, posto que a natureza não faz nada em vão
161
. Logo, sustentar que a
virtude intelectual é superior à virtude moral não implica na afirmação de que o homem deva
cultivar a primeira em detrimento da segunda, nem tão pouco que a contemplação divina deva
suplantar a especulação propriamente científica.
O Aquinate não esquece que a natureza do homem é dúplice. Admitindo que a alma
especifica a sua forma, observa que o corpo lhe é intrínseco. Ele é um ser naturalmente dotado
de animalidade e razão. Se esse aspecto é superior àquele, não lhe subsiste separadamente. O
exercício da faculdade racional especulativa, depende da saúde corporal do ser. Mais que isso,
o homem precisa do outro já para que se reconheça como tal e, social, precisa nutrir, além do
corpo, boas relações com os seus semelhantes. Daí a importância, ao lado das virtudes
intelectuais, das virtudes morais. Com efeito, o Doutor Angélico apresenta a relação existente
entre as virtudes e os modos de vida, o que implica em dois níveis de análise sobre a natureza
da felicidade:
Daí decorre que tanto a virtude moral como a prudência versam sobre o composto. As
virtudes, a rigor, são humanas, na medida em que o homem é composto de alma e de corpo.
Assim, mesmo a vida que se conforma a tanto, a saber, à prudência e à virtude moral, é
humana, e é chamada vida ativa. Em conseqüência, a felicidade que consiste nessa vida é
humana. Mas a vida e a felicidade especulativas, próprias à inteligência, o separadas e
divinas
162
.
161
CEN, I, 2, §21; Commentaire de la Politique, I, 1, §28; Commentaire au traité de l’âme, II, 13, §794. A
análise do argumento será retomada na segunda parte do trabalho.
162
CEN, X, 12, §2115.
[74817] Sententia Ethic., lib. 10 l. 12 n. 5
Unde patet, quod tam virtus moralis quam prudentia sunt circa compositum. Virtutes autem compositi proprie
loquendo sunt humanae, inquantum homo est compositus ex anima et corpore, unde et vita quae secundum has,
id est secundum prudentiam et virtutem moralem, est humana, quae dicitur vita activa. Et per consequens
felicitas, quae in hac vita consistit, est humana. Sed vita et felicitas speculativa, quae est propria intellectus, est
separata et divina.
63
Com efeito, o desenvolvimento das virtudes intelectuais aproxima mais o homem
daquilo que ele tem de divino, mas não basta para a sua subsistência, nem tampouco para a
sua excelência de vida, pois essa depende, ainda, do convívio social e da atividade política. A
prática das virtudes morais é, assim, também parte da condição humana e, conseqüentemente,
uma condição para a felicidade humana. Ser racional implica tanto na distinção do verdadeiro
e do falso do ponto de vista teórico, como na distinção do que se deve e do que não se deve
fazer do ponto de vista prático. Mas um tal conhecimento seria de pouca utilidade se não
houvesse sua transposição prática. Apesar de Tomás afirmar a necessidade do conhecimento
para que se alcance a felicidade, ele tem claro que, sozinho, ele o seria bastante. Mais uma
vez, o homem o é apenas razão”, mas é “desejo”, posto que um animal racional. E se não
houver o desejo pelo que lhe é dado a conhecer racionalmente, não há que se falar no
empreendimento de qualquer ação que lhe seja conforme. O que move o homem em direção a
um fim é a sua faculdade apetitiva racional, na medida em que o deseja como a um bem. Por
isso, ele afirma:
(...) mas a ciência tem pouca ou nenhuma influência quanto a quem seja virtuoso; tudo
consiste nas outras [condições], que se seguem, claro, de uma ação virtuosa repetida, e que
se mantém assim sem alteração
163
.
É preciso haver a consideração das virtudes como um todo, onde o intelectual funda,
de um certo modo, o moral e o moral justifica, por sua vez, o intelectual. Uma virtude
intelectual que se queira completamente independente da ação pode ser divina e é falso,
então, considerá-la como “a” atividade humana, tomando-se-a como se fosse exclusiva. Se
por um lado o homem deve dedicar-se ao conhecimento da verdade e do bem, o que acontece
mais pelo aprendizado do que pela descoberta, pois essa, apesar de necessária, é menos
freqüente, ele também deve cuidar de agir segundo tais valores. Daí ser correto dizer que as
virtudes não são inatas. É o costume, o exercício habitual do que se conhece como bom (e
verdadeiro), o que faz do homem virtuoso. G. Chalmeta lembra o que é estabelecido na
Ética Nicomaquéia:
163
CEN, II, 4, §284.
[72988] Sententia Ethic., lib. 2 l. 4 n. 5
Potest enim aliquis esse bonus artifex, etiam si nunquam eligat operari secundum artem, vel si non perseveret in
suo opere; sed scientia parvam vel nullam virtutem habet ad hoc quod homo sit virtuosus, sed totum consistit in
aliis, quae quidem adveniunt homini ex frequenti operatione virtuosorum operum, quia ex hoc generatur habitus
per quem aliquis eligit ea quae conveniunt illi habitui et immobiliter in eis perseverat.
64
(...) é muito patente que, para Aristóteles, o bem humano consiste em (ou ao menos o
exige) alcançar a perfeição ou felicidade que é própria do homem virtuoso, ou seja, da
pessoa prudente, forte e moderada, que é e se comporta habitualmente de modo justo
164
.
O Santo Doutor salienta, então, que a felicidade é “uma atividade”, mais propriamente
do que um hábito
165
. Ora, é apenas quando esse, de modo voluntário, é exercido conforme ao
bom e ao verdadeiro que se afirma virtuoso e, então, meio para a felicidade. O Aquinate
esclarece, assim, que “a felicidade é uma operação virtuosa mais do que a virtude ela
mesma”
166
, conquanto a virtude sim seja “hábito”, existindo mesmo quando o agente não
esteja realizando nenhum ato bom
167
. Diz R. McInerny:
Virtudes que m assento no apetite são virtudes em um sentido mais forte do que são as
virtudes intelectuais. Se a virtude é o que confere a posse do seu bem e torna sua operação
boa, a recorrência do termo “bem”, que é o objeto do apetite, indica porque as virtudes cujo
objeto ou assento é o apetite o mais propriamente então chamadas. Tomás às vezes faz
esse ponto dizendo que as virtudes intelectuais dão a capacidade de agir bem enquanto as
virtudes morais asseguram o bom uso enquanto tal. Por isso, as virtudes que têm seu
assento no apetite são chamadas morais, tomando o termo originário mos para sugerir
costume, o que é natural ou quase natural para nós fazermos. Em resumo, elas nos
fornecem as diretivas para agir de um certo modo e não simplesmente a capacidade de fazê-
lo
168
.
Ora, manifesta é a existência de uma certa tensão no que tange à ordem de importância
a ser reconhecida entre virtudes intelectuais e virtudes morais, analogamente ao que acontece
quando se busca estabelecer uma hierarquia entre os modos de vida contemplativo e prático.
Se uma felicidade perfeita consistiria na eleição da virtude a melhor, a saber, a intelectual, em
detrimento da moral, a felicidade humana consiste no exercício de ambas. Participando da
idéia de bem final vários bens, não se elege aqui o melhor deles no intuito de se alcançar uma
felicidade por hora inatingível, mas se realiza o maior número deles no intuito de se alcançar
uma felicidade humana, fim da vida terrena. O Doutor Angélico, com efeito, precisa que essa
exija “principalmente” a atividade especulativa, mas não exclusivamente, dada a sua natureza
de animal, ainda que racional. Tal é manifesto pela comparação entre o que se passa com os
deuses, os homens e os animais em geral:
164
CHALMETA, G., La justicia política en Tomás de Aquino: una interpretación del bien común político, p. 86.
165
CEN, X, 9, §2066.
166
CEN, I, 12, §153.
[72857] Sententia Ethic., lib. 1 l. 12 n. 15
Unde melius dicitur, quod operatio secundum virtutem sit felicitas quam ipsa virtus.
167
CEN, I, 12, §152.
168
McINERNY, R., Ethics, p. 97.
65
Entre os deuses, com efeito, quer dizer, entre as substâncias separadas, como eles têm
apenas a vida intelectual, toda a vida é boa. Os homens, eles, são felizes na medida em que
exista neles uma semelhança a uma tal operação, a saber, especulativa. Mas nenhum outro
animal não é feliz, pois ele não se comunica em nada com a especulação. E assim torna-se
evidente que a felicidade estende-se tanto quanto se estende a especulação. A quem
pertence especular anteriormente, pertence ser mais feliz; o apenas por acidente, mas em
relação à especulação que é por si mesma honrável. De onde se segue que a felicidade seja
principalmente especulação
169
.
Nesse sentido, ainda, Tomás sustenta que a felicidade humana pressupõe continuidade
e perpetuidade em algum grau, conquanto seja perfeita a felicidade que as denote
absolutamente. Essas qualidades são desejadas por natureza pelo apetite de uma pessoa
dotada de razão, que apreende o ser ele mesmo, e não apenas um ser particular momentâneo.
Ora, é preciso que o homem opere segundo as virtudes de modo constante ao longo de toda
uma vida. Apesar do pensamento do Doutor Comum não autorizar um julgamento sumário de
privação de qualquer possibilidade de alcance da felicidade baseando-se em um único ato
contrário à virtude
170
ou na falta de realização de um bem, ele também não autoriza que se
reconheça, em função de apenas alguns atos parcos e espaçados, a satisfação das condições
que a garantem
171
. Assim, Tomás chega à noção de felicidade como a operação própria do
homem, orientada segundo sua virtude, ao longo de uma vida completa
172
. Ele diz:
A felicidade exige, com efeito, continuidade e perpetuidade na medida do que é possível.
Com efeito, o apetite de quem tem inteligência deseja isso naturalmente, posto que
apreende não somente, como os sentidos, o ser atual, mas também o ser simplesmente. Ora,
como o ser é desejável nele mesmo, segue-se que como o animal, que apreende pelos
sentidos o ser atual, deseja ser simplesmente e sempre, e não apenas atualmente. E é
porque, ainda que a vida presente não a sofra, a continuidade e a perpetidade pertencem à
169
CEN, X, 12, §2125.
[74827] Sententia Ethic., lib. 10 l. 12 n. 1
Diis enim, idest substantiis separatis, quia habent solam intellectualem vitam, tota eorum vita est beata, homines
autem in tantum sunt beati, inquantum existit in eis quaedam similitudo talis operationis, scilicet speculativae.
Sed nullum aliorum animalium est felix, quia in nullo communicant speculatione. Et sic patet, quod quantum se
extendit speculatio, tantum se extendit felicitas. Et quibus magis competit speculari, magis competit esse felices,
non secundum accidens, sed secundum speculationem, quae est secundum se honorabilis. Unde sequitur, quod
felicitas principaliter sit quaedam speculatio.
170
Uma tal afirmação depende da verificação da qualidade do ato, das circunstâncias de sua realização e das suas
conseqüências.
171
O homem não pode, por definição, ser “completamente” realizado, posto que a completude simples e absoluta
é uma nota de perfeição. Nenhum ser mutável, ser físico, é completo, pois possui uma indeterminação. O único
ser completo, plenamente determinado, é o ser em ato, pura forma, a saber, Deus. O homem é dotado de uma
“certa perfeição”, relativa à sua plena determinação com respeito à sua forma, a certas propriedades, mas não se
a reconhece no que tange à matéria. Ora, bem que ele possa cultivar uma vida virtuosa, ele o está livre de
cometer alguns enganos.
172
CEN, I, 10, §130.
[72834] Sententia Ethic., lib. 1 l. 10 n. 13
Sic ergo patet, quod felicitas est operatio propria hominis secundum virtutem in vita perfecta.
66
definição da felicidade perfeita. Daí a felicidade não poder ser perfeita na vida presente. É
preciso, todavia, que a felicidade, tanto que possível na vida presente, acompanhe-se de
uma vida perfeita, quer dizer, durante toda a vida do homem. Da mesma forma que, com
efeito, uma andorinha não faz primavera, nem também um dia ameno, uma só operação
bem feita o faz o homem feliz; [o homem não é feliz] salvo quando continua a operar
bem durante toda sua vida
173
.
Cabe observar que a felicidade não é idêntica à virtude, ela não se reduz à ação
virtuosa. Essa é, a rigor, uma instância sua. Não se realiza a ação virtuosa para que se seja
feliz. Ela é escolhida por ela mesma
174
. Mas a felicidade já está, de um certo modo, presente
na ação. É necessário um conjunto de ações virtuosas para se chegar à felicidade. A ão
virtuosa é condição para a felicidade, um meio para que se a obtenha. Não há, entretanto, uma
fórmula matemática cuja aplicação resulte em ser feliz
175
. Ao mesmo tempo em que é
necessário um conjunto de ações virtuosas para tanto, a ação o é escolhida como um
elemento a mais. A ação virtuosa possui um valor intrínseco.
Com efeito, duas teses são apresentadas pelo Aquinate no Comentário à Ética
Nicomaquéia. No livro I, tem-se que toda ação tem um fim
176
e que o fim último de toda ação
é a felicidade
177
. Logo, em todas as ações humanas, busca-se a felicidade. no livro II, tem-
173
CEN, I, 10, §129.
[72833] Sententia Ethic., lib. 1 l. 10 n. 12
Requiritur enim ad felicitatem continuitas et perpetuitas quantum possibile est. Hoc enim naturaliter appetitus
habentis intellectum desiderat, utpote apprehendens non solum esse ut nunc sicut sensus, sed etiam esse
simpliciter. Cum autem esse sit secundum seipsum appetibile, consequens est, quod sicut animal per sensum
apprehendens esse ut nunc, appetit nunc esse, ita etiam homo per intellectum apprehendens esse simpliciter,
appetit esse simpliciter et semper et non solum ut nunc. Et ideo de ratione perfectae felicitatis est continuitas et
perpetuitas, quam tamen praesens vita non patitur. Unde in praesenti vita non potest esse perfecta felicitas.
Oportet tamen quod felicitas qualem possibile est esse praesentis vitae, sit in vitam perfectam, id est per totam
hominis vitam. Sicut enim una hirundo veniens non demonstrat ver, nec una dies temperata, ita etiam nec una
operatio semel facta facit hominem felicem, sed quando homo per totam vitam continuat bonam operationem.
174
“(…) mas que se aja por escolha, e de maneira que a escolha do ato virtuoso não vise outra coisa, como
quando é por ganho ou glória vã que se coloca um ato de virtude. Mas que seja por isso, a saber, o ato mesmo da
virtude, que agrada em si mesmo àquele que possui o hábito da virtude, naquilo que lhe convém”. CEN, II, 4,
§283.
[72987] Sententia Ethic., lib. 2 l. 4 n. 4
Quorum unum est, ut non operetur ex passione, puta cum quis facit ex timore aliquod opus virtutis, sed operetur
ex electione; aliud autem est ut electio operis virtuosi non sit propter aliquid aliud, sicut cum quis operatur opus
virtutis propter lucrum, vel propter inanem gloriam, sed sit propter hoc, id est propter ipsum opus virtutis, quod
secundum se placet ei qui habet habitum virtutis, tamquam ei conveniens.
175
Aqui a Ética tomista afasta-se substancialmente da teoria utilitarista de J. S. Mill, na qual, conforme refere G.
Chalmeta, “o princípio ético-político capital será ‘o princípio da felicidade geral ou da utilidade’, segundo o qual
uma sociedade política é justa quando está ordenada de um modo tal que permite obter a máxima quantidade de
todos os aspectos da felicidade, segundo um cálculo de natureza matemática que consiste essencialmente na
soma da felicidade que conseguiram, em seu conjunto, os cidadãos que pertencem a ela”. CHALMETA, G., La
justicia política en Tomás de Aquino: una interpretación del bien común político, p. 18.
176
“Assim, então, o próprio da Filosofia Moral, sobre a qual versa nossa intenção presente, é de tratar das
operações humanas, na medida em que elas são ordenadas entre elas e a um fim”. CEN, I, 1, §2.
177
“E esse fim último do homem chama-se o bem humano, a felicidade”. CEN, I, 9, §106.
[72810] Sententia Ethic., lib. 1 l. 9 n. 4
67
se que uma das condições para a virtude moral é o apetite, o desejo, o qual ele expressa pela
escolha de algo por si mesmo e não por qualquer outro motivo. Quer dizer, a ação virtuosa
deve ser praticada buscando-se a obra virtuosa como um fim em si
178
. As duas teses são
compatíveis a partir da identificação do vínculo existente entre virtude e felicidade. se
alcança a felicidade por meio da virtude. O conceito de felicidade existe a priori, mas o modo
como este conceito é tomado é a posteriori. Quer dizer, o bem humano é naturalmente dado
ao homem como seu fim, mas ele pode ser conhecido apenas de modo aproximativo, na
medida em que sua determinação depende do indivíduo, da situação, do lugar e do tempo. A
virtude moral é um “meio termo” relativo ao caso concreto. Ela depende do intelecto, porque
este atua e determina a formatação do desejo e, por conseguinte, do caráter humano. Liga-se,
então, à virtude intelectual. O comportamento não se coaduna com uma concepção utilitarista,
mas teleológica, vinculada a valores. Por isso, não é na ação propriamente, que é externa, que
está a felicidade, mas é a partir dela que se a obtém. Ora, a ação virtuosa gera o hábito da
virtude, mas ela é virtuosa porque conforme ao bem humano intelectualmente dado a
conhecer
179
.
Virtude e felicidade relacionam-se na formatação do aparato determinante do caráter
humano. Não obstante, o virtuoso é louvável mesmo que não chegue a ser feliz. É a partir daí
que o ser humano deve orientar-se. Essa é a idéia de “fim em si” referida na segunda tese. O
ser humano busca na formação do seu caráter agir virtuosamente, o que pode fazê-lo feliz,
mas não necessariamente. Agir implica numa representação de algo (bem) como fim da ação
e buscá-lo. Não significa que, necessariamente, se conseguirá alcançá-lo.
A virtude moral, derivada de uma ação costumeira, encontrada na parte apetitiva da
alma humana, implica numa certa inclinação para algo desejável
180
. Ela não é natural em
sentido estrito, mas adquirida pela constância de sua atividade. Há um certo modo de regular
como os agentes racionais desejam as coisas. A ação depende de uma certa ligação com o
(…) et iste unus ultimus finis hominis dicitur humanum bonum, quod est felicitas.
178
Apesar de serem as virtudes condição para a felicidade, elas não o são no sentido de meio ou instrumento,
posto serem exercidas por si mesmas, e é na medida em que se as deseja por si mesmas que se deseja a
felicidade. Diz A. Macintyre: “(...) o que constitui o bem para o homem é uma vida humana completa vivida no
seu melhor, e o exercício das virtudes é uma parte necessária e central de tal vida, o apenas um exercício
preparatório para garanti-la”. MACINTYRE, A., After virtue, p. 149.
179
Vide definição dada à virtude por Aristóteles: “A virtude é, então, um hábito que escolhe o meio em relação a
nós, tal como esse meio é determinado pela razão e compreendido pelo homem sábio”. EN, 1106b36-1107a2;
322-323. Ela é retomada por Tomás no CEN, II, 7, a partir do §322.
180
CEN, II, 1, §247.
[72951] Sententia Ethic., lib. 2 l. 1 n. 3
Sed moralis virtus fit ex more, idest ex consuetudine. Virtus enim moralis est in parte appetitiva. Unde importat
quamdam inclinationem in aliquid appetibile.
68
desejo pelo objeto da ação. Esse objeto, por sua vez, é apresentado ao agente de modo
intelectual. É, com efeito, a virtude intelectual, derivada do conhecimento, encontrada na
parte racional da alma humana, que responde pela apresentação daquilo que é efetivamente
digno de desejo. O agente racional é complexo. A ação racional pressupõe uma certa
representação de algo, mas uma certa influência do apetite contribuindo para tanto, para
além da necessária dose de liberdade. O ato independente liga-se à razão e à vontade.
Na base de uma teoria moral tem-se que os seres humanos possuem desejos os quais
podem ser regulados. Dizer que se pode regrar a faculdade desejante significa que o desejo
pode ser educado. Há dois níveis de interpretação neste sentido. O primeiro se refere à
educação do desejo a certos objetos ou não. Ela afirma que um desejo, mas também uma
regra informando que o objeto desejado deva sê-lo ou o. O segundo, mais profundo, afirma
que o modo como se deseja um objeto é que merece educação. Existem objetos mais dignos
de serem objetos de desejo, mas, para além de se realizar tal tipo de ação, é necessário que se
passe a desejá-los. É preciso adesão de espírito! As regras não impõem estrito senso uma
conduta. O desejo deve encontrar satisfação em objetos que o dignos, mas objetos dignos
podem não ser desejados caso se os desconheça ou caso o caráter do agente não seja educado
numa tal direção. Formar o caráter de um agente moral significa educá-lo para que deseje o
que é digno de desejo, e o apenas para que aja nesse sentido, o que pode consistir numa
etapa, mas que não é bastante no que tange à felicidade. O problema vai além do primeiro
nível interpretativo. Importa uma investigação do ser humano enquanto ser desejante. Uma
teoria moral não trata da imposição de regras, mas de tê-las espontaneamente cumpridas.
Ora, o agente moral é aquele que encontra a satisfação de seus desejos em objetos que
são dignos. Esse é o modelo. Daí ser necessário que se forme cidadãos, que se trabalhe sobre
o caráter dos seres humanos. É provável que o agente maduro coadune-se com o sistema, mas
nem todos são maduros. Logo, é também necessário educar desejos. Mais do que conhecer o
que é certo, é preciso desejá-lo. E o processo pedagógico pode dar-se através da intervenção
de terceiros. Pela atividade costumeira do que é bom, a repetição de certas práticas, é que se
alcança o modelo. Não se busca propriamente uma verdade, mas, a partir dela, uma ação. A
verdade é pressuposta, uma vez que as virtudes devem acordar-se com a reta razão. Portanto,
o homem cujo caráter está fundado no exercício das virtudes e que desempenha, assim, sua
operação própria dentro da ordem humana, reúne as condições necessárias para ser feliz.
69
II O conhecimento da realidade humana
A segunda parte deste trabalho visa apresentar em que medida o conhecimento
científico é necessário à felicidade humana consoante o pensamento de Tomás de Aquino,
comentador da Ética Nicomaquéia. A análise do tema passa pela retomada da idéia de ordem,
mas sob um prisma eminentemente teórico. Ela conduz ao reconhecimento de que há uma
aparente diversidade de fins, no que tange à Filosofia Moral, e à distinção entre os tipos de
operações. Ainda, resulta no estabelecimento do fim supremo, cujo estudo pertence à Política,
e da relação que essa guarda com a Ética enquanto disciplinas científicas que são.
Aristóteles atribui uma noção comum a dois domínios distintos, formas de
conhecimento e prática humana, no que tange à xima de que “o bem é o que todos
desejam”
181
. Ele opera, assim, uma certa unificação. O Aquinate ratifica-a conquanto conceba
a realidade como um todo ordenado.
A realização do ser humano não pode ser compreendida sem que antes seja
estabelecida a sua originalidade. Pois ele é racional e, portanto, capaz de “ação”, a qual
respeita a uma ordem de caráter teleológico. Ela não se esgota na mera atividade, mas
depende do conhecimento racional do fim ao qual se dirige. Daí o interesse de uma Ética
Nicomaquéia, bem como de seus comentários
182
: ser conhecimento que ajude na busca pelo
homem de seu fim
183
.
Nesse sentido, evidenciar-se-á a contribuição que a Ética e a Política, enquanto formas
de conhecimento que são, podem oferecer ao homem na busca do seu bem nesta vida, ainda
que esse seja essencialmente prático.
181
EN, 1094a2-3; 9-11.
182
Segundo B. Sère, entre os séculos XIII e XV, vinte e nove comentários foram redigidos sobre a Ética
Nicomaquéia. SÈRE, B., Penser la amitié au Moyen Âge, p. 47.
183
EN, 1094a22-24; 23. CEN, I, 2, §23.
70
1 A idéia de ordem e o conhecimento humano
A idéia de ordem, para além de sua abordagem prática, contempla um enfoque
eminentemente teórico. O objetivo inicial de Tomás de Aquino repousa nele. Ele preocupa-se
em descrever a disciplina que estuda o comportamento humano.
Como assinala J. Finnis, ele toma cuidado em situar a Filosofia no esquema geral dos
pensamentos e dos assuntos humanos. Enquanto Aristóteles intenta explicar e descrever o
comportamento dos indivíduos e das sociedades, o Doutor Comum preocupa-se
principalmente com o objeto, o fim e o método da teoria social, política e legal, assim como
da Ética e da justiça
184
. Sugere, então, a existência de uma certa dependência entre a prática
humana e a descrição que o homem faz da realidade, isto é, entre a ação voluntária e o
conhecimento científico, cuja mediação reside no conhecimento dos bens. Ressalta-se que
essa idéia decorre já da doutrina aristotélica, ainda que de maneira implícita.
Tomás argumenta que a ação humana não é independente da razão. Ao contrário, ela é
dita “humana” justamente por corresponder à faculdade própria ao homem, que é a racional.
Ela é fruto da sua deliberação. Através da razão, cuja mais poderosa perfeição é a sabedoria,
ele conhece a “ordem”
185
, a saber, as causas primeiras e princípios
186
, e age conformemente
ao seu bem. Assim, é também próprio ao homem a capacidade de ordenar, estando o seu bem
ético, contemplado pela análise que se seguirá, no cumprimento dessa sua essência racional
ordenadora. O Doutor Comum lança, assim, a idéia de que é próprio ao homem a faculdade
racional e de que, logo, é sábio aquele que a exerce.
(...) pertence ao homem sábio ordenar. O motivo disto é que a sabedoria é a mais poderosa
perfeição da razão, cuja característica é conhecer a ordem. Com efeito, mesmo se os
poderes sensíveis conhecessem as coisas de maneira absoluta, conhecer a ordem de uma
coisa em relação a outra pertence somente à inteligência ou razão
187
.
184
FINNIS, J., Founders of Modern Political and Social Thought: Aquinas. Moral, Political and Legal Theory,
p. 21.
185
“Ordem” é a tradução para ratio, que na Suma contra os Gentis será traduzida por “plano” da providência
divina.
186
Metafísica, I, 1, 981b27-982a3; Commentary on Aristotle’s Metaphysics, I, 1, 35.
Tomás afirma, ainda, que o homem sábio deve dirigir os outros e induzi-los a agir conformemente ao seu
conhecimento. Ele é descrito como “aquele que conhece tudo, mesmo matérias difíceis, com certeza e pela sua
causa”. Commentary on Aristotle’s Metaphysics, I, 2, 42-3.
187
CEN, I, 1, §1.
[72705] Sententia Ethic., lib. 1 l. 1 n. 1
71
Cabe notar que a expressão sapientis est ordinare é de significado ambíguo em
Aristóteles. Ela deixa margem ao entendimento de que é próprio ao sábio colocar ordem,
assim como de que lhe é próprio, por ser homem político, ordenar. No primeiro caso,
ordinare é sinônimo de “organizar”, o que se coloca no domínio da theoria, no segundo, de
“comandar”, o que se coloca no da praxis. Esta discussão, em Tomás de Aquino, parece
menos nebulosa
188
, mas também exige cautela. Pois a formulação aristotélica é retomada pelo
Aquinate, inaugurando a sua Suma contra os Gentis. Nela, ele diz:
O uso comum, que, segundo o Filósofo, deve-se seguir quando se trata de nomear as coisas,
quer que se chame bios aqueles que organizam diretamente as coisas e presidem ao seu
bom governo. Entre outras idéias, o Filósofo afirma, então, que o ofício do sábio é o de
ordenar. Ora, todos aqueles que têm a responsabilidade de ordenar a um fim devem tirar
desse fim a regra do seu governo e da ordem que eles criam: cada ser está, com efeito,
perfeitamente no seu lugar quando ele está convenientemente ordenado ao seu fim, o fim
sendo o bem de todas as coisas
189
.
Com efeito, no terceiro livro da mesma obra, o Doutor Cristão explica como é que se
opera esta capacidade de ordenar própria ao homem. Ela se relaciona com a providência
divina de duas maneiras, diferentemente do que acontece com os outros seres naturais. Além
de a ela submeter-se, ele é capaz de conhecê-la e, logo, de exercê-la sobre aqueles que a ela
apenas se submetem e os governar. Diz ele:
A criatura racional é assim submetida à providência divina, da qual não é somente
governada, mas pode, em certa medida, conhecer o plano (ratio) da providência: também
Sicut philosophus dicit in principio metaphysicae, sapientis est ordinare. Cuius ratio est, quia sapientia est
potissima perfectio rationis, cuius proprium est cognoscere ordinem. Nam etsi vires sensitivae cognoscant res
aliquas absolute, ordinem tamen unius rei ad aliam cognoscere est solius intellectus aut rationis.
188
Para Tomás, a Metafísica é mais importante do que a Política do ponto de vista da ordem existente entre as
disciplinas científicas.
189
SCG, I, 1, §1.
[23490] Contra Gentiles, lib. 1 cap. 1 n. 2
Multitudinis usus, quem in rebus nominandis sequendum philosophus censet, communiter obtinuit ut sapientes
dicantur qui res directe ordinant et eas bene gubernant. Unde inter alia quae homines de sapiente concipiunt, a
philosopho ponitur quod sapientis est ordinare. Omnium autem ordinatorum ad finem, gubernationis et ordinis
regulam ex fine sumi necesse est: tunc enim unaquaeque res optime disponitur cum ad suum finem convenienter
ordinatur; finis enim est bonum uniuscuiusque. Unde videmus in artibus unam alterius esse gubernativam et
quasi principem, ad quam pertinet eius finis: sicut medicinalis ars pigmentariae principatur et eam ordinat,
propter hoc quod sanitas, circa quam medicinalis versatur, finis est omnium pigmentorum, quae arte
pigmentaria conficiuntur. Et simile apparet in arte gubernatoria respectu navifactivae; et in militari respectu
equestris et omnis bellici apparatus. Quae quidem artes aliis principantes architectonicae nominantur, quasi
principales artes: unde et earum artifices, qui architectores vocantur, nomen sibi vindicant sapientum.
72
lhe advém de exercer sobre as outras a providência e o governo
190
. Não é o caso das outras
criaturas, que não participam da providência a não ser em se submetendo a ela. Ora, tendo a
faculdade de ser providência, pode-se também dirigir e governar seus próprios atos. A
criatura racional participa então da providência divina não apenas sendo governada, mas
governando pois ela se governa ela mesma nos seus próprios atos e ela governa também
as outras
191
.
Para além, ainda, desse duplo sentido, a ordem guarda uma dupla dimensão de análise.
Uma se entre as coisas. A outra, das coisas para um fim. Aquela existe em função desta,
que é, pois, a mais importante. Tomás estabelece uma analogia com o que acontece em um
exército. Diz que a ordem das partes entre elas em um exército existe porque uma ordem
do exército como um todo em relação ao comandante
192
.
Ordem e razão, por sua vez, relacionam-se de quatro modos. A ordem que a razão
considera mas não estabelece diz respeito à Filosofia Natural. A que a razão estabelece por
ato próprio de consideração diz respeito à Filosofia Racional ou Lógica. A que a razão
deliberadamente estabelece nas ações voluntárias, diz respeito à Filosofia Moral. Finalmente,
a que a razão planeja estabelecer nas coisas externas das quais é causa diz respeito às Artes
Mecânicas
193
.
No que tange à Filosofia Moral, importam as ações humanas na medida em que
estejam ordenadas entre si e em consideração a um fim
194
. É o intelecto ou razão que viabiliza
conhecer o escalonamento existente entre os fins e, por conseguinte, a operação da vontade
em conformidade com o bem humano. Ao afirmar o domínio sobre o qual repousa a
disciplina moral, Tomás enseja a realização de uma diferenciação importante: uma “ação
propriamente humana” (actus humani) e uma ação do homem” de maneira genérica (actus
hominis). R. McInerny afirma:
190
Esta conseqüência é importante, pois uma vez que possa ela mesma ser providência às outras criaturas e
governá-las, evidencia-se a existência de domínios de competência que participam à providência divina. O
homem é, assim, agente dela.
191
SCG, III, 113, §5.
[26664] Contra Gentiles, lib. 3 cap. 113 n. 5
Creatura rationalis sic providentiae divinae subiacet quod non solum ea gubernatur, sed etiam rationem
providentiae utcumque cognoscere potest: unde sibi competit etiam aliis providentiam et gubernationem
exhibere. Quod non contingit in ceteris creaturis, quae solum providentiam participant inquantum providentiae
subduntur. Per hoc autem quod aliquis facultatem providendi habet, potest etiam suos actus dirigere et
gubernare. Participat igitur rationalis creatura divinam providentiam non solum secundum gubernari, sed etiam
secundum gubernare: gubernat enim se in suis actibus propriis, et etiam alia.
192
CEN, I, 1, §1.
193
CEN, I, 1, §2.
194
CEN, I, 1, §2.
73
As últimas (ações de um ser humano) constituem toda e qualquer atividade ou operação
que pode ser atribuída aos seres humanos, mas não na medida em que são humanos, não
qua humano. Ações humanas constituem a ordem moral
195
.
A “ação humana” implica necessariamente em uma ação voluntária, ao passo que a
“ação do homem” o significa mais do que um certo tipo de coisa que uma pessoa pode
fazer. Aquela pertence ao homem por essência, essa, por acidente. É a primeira que interessa
à moralidade. Uma ação, se dita com legitimidade “humana”, brota da vontade, referindo-se
àquilo que é bom em si mesmo, consoante os ditames da reta razão
196
. “Ações humanas têm
sua fonte na razão e na vontade, faculdades peculiares aos humanos”
197
, salienta R. McInerny.
Nesse sentido, Tomás não vislumbra a possibilidade de separação da ação humana”
da idéia de fim: o homem sempre age com vistas a um fim. Ora, a ação é do “homem”
enquanto tal quando com ela atualiza a sua essência, quer dizer, quando representa o uso de
sua faculdade apetitiva racional. Age de maneira livre e consciente: move-se segundo o fim
que deseja, pois apreendido racionalmente como um bem. Diz R. McInerny:
A ação humana é ordenada para um fim; nós agimos na busca de um fim na medida em que
temos uma razão para agir. Como é caracteristicamente humano, a ação procede do
intelecto e da vontade; ou seja, o agente conscientemente dirige-se para um certo objetivo e
o faz livremente
198
.
Ora, quando Aristóteles e então Tomás sustentam haver uma tal ligação entre o agir e
o fim humanos, é importante notar em que sentido ela acontece. Não significa o mesmo
afirmar que toda ação tem um ou outro fim e que um fim para toda ação, frisa ainda R.
McInerny
199
. Efetivamente, ambos se engajam à segunda assertiva, o que tem implicações a
serem abordadas na seqüência. Para o que interessa tratar aqui, a saber, o domínio
compreendido pela moral, conclui o Doutor Angélico:
(...) o objeto da Filosofia Moral é a operação humana ordenada para um fim ou mesmo o
homem, enquanto agindo voluntariamente em vista de um fim
200
.
195
McINERNY, R., Ethics, p. 196.
196
CEN, III, 10, §494.
197
McINERNY, R., Ethics, p. 197.
198
McINERNY, R., Ethics, p. 198.
199
“Aristóteles não quis fixar o acerto de que toda ação visa a um fim ou outro; ele sustenta que há algum fim ou
bem pelo qual todas as ações o realizadas. Ou seja, um fim último, compreensível, mais importante do que
tudo que os seres humanos fazem. Aquino dirige-se à mesma posição através de uma série de passos”.
McINERNY, R., Ethics, p. 198.
200
CEN, I, 1, §3.
[72707] Sententia Ethic., lib. 1 l. 1 n. 3
74
A distinção entre a “ação humana” e a “ação do homem” está, por sua vez, na base da
distinção entre “viver” e “viver bem”. O ser “humano” pode estar no mundo enquanto ser
vivo, o que por si só o garante que esteja enquanto ser propriamente humano. A sua
essência depende de realização, ou seja, da ação humana. Aquele que não age segundo sua
excelência racional não realiza a sua condição específica. Y. Cattin, a esse respeito, resume:
“O ser do homem é sempre a vir e sua essência essempre além da sua existência. Tal é a
marca da finitude do homem”
201
.
Tomás chama a atenção para a exigência de se compreender que o homem é, por
natureza, um animal social, o que dá nascimento à fundamentação da ordem política. Além de
possuir uma série de necessidades vitais as quais não consegue satisfazer sozinho, possui
outras tantas que dizem respeito à sua qualidade de vida. Ele faz naturalmente parte de um
grupo. As relações que guarda com os outros homens são condição para que possa não apenas
assegurar a sua vida biológica, mas também a vivência de todos os aspectos que encerram o
adjetivo “humano”.
É preciso compreender que, por ser o homem naturalmente um animal social
202
, quer dizer,
precisando de várias coisas para sua vida as quais o pode sozinho garantir a si mesmo,
segue-se que o homem deva fazer naturalmente parte de um grupo que lhe fornece ajuda
para viver bem
203
.
Sicut igitur subiectum philosophiae naturalis est motus, vel res mobilis, ita etiam subiectum moralis
philosophiae est operatio humana ordinata in finem, vel etiam homo prout est voluntarie agens propter finem.
201
CATTIN, Y., L’antropologie politique de Thomas d’Aquin, p. 156.
202
Sobre a tradução do zoon politikon de Aristóteles como animal socialis, H. Arendt mostra-se em desacordo.
Entende que a relação especial entre a ação e a vida em comum parece justificar a antiga tradução que, segundo
ela, estaria presente em Sêneca e que, até Tomás de Aquino, fora aceita como tradução consagrada. Cita o
Index Rerum: homo est naturaliter politicus, id est, socialis, ou seja, o homem é por natureza, político, isto é,
social. Contudo, julga a tradução equivocada. A substituição do social pelo político marca o abandono da
concepção original grega de política, em que essa não apenas difere mas é diretamente oposta à associação
natural, cujo centro é constituído pela casa e pela família. Afirma ser significativo que a palavra “social” seja de
origem romana, sem qualquer equivalente na língua ou no pensamento gregos. Ela teria adquirido o sentido
geral de condição humana fundamental ulteriormente. Nega, entretanto, que Aristóteles ou Platão ignorassem ou
não dessem importância ao fato de que o homem não pode viver fora da companhia dos homens. Eles
simplesmente, segundo ela, não incluíam tal condição entre as características especificamente humanas.
ARENDT, H., Condition de l’homme moderne, p. 60/1.
203
Nota-se que a boa vida é a vida em sociedade. CEN, I, 1, §4.
[72708] Sententia Ethic., lib. 1 l. 1 n. 4
Sciendum est autem, quod quia homo naturaliter est animal sociale, utpote qui indiget ad suam vitam multis,
quae sibi ipse solus praeparare non potest; consequens est, quod homo naturaliter sit pars alicuius multitudinis,
per quam praestetur sibi auxilium ad bene vivendum.
75
No Comentário à Política, o Doutor Cristão aborda o mesmo tema afirmando ser o
homem um “animal naturalmente cidadão” e, acrescenta, familiar”
204
. Com efeito, insiste
que a cidadania importa sobre a família e sobre o indivíduo, que uma parte se define pela
sua operação e pelas suas aptidões e resume: “o indivíduo está para a cidade assim como um
órgão está para o organismo”. É justamente porque compõe a sociedade que o homem é dito
“indivíduo”. Ele é indivíduo dela. Assim, conclui ser-lhe a sociedade anterior.
Segundo, diz que a comunidade é uma comunidade perfeita
205
e o prova, dado que se a
comunidade de todos os homens deve ordenar-se ao necessário para viver, a comunidade
perfeita será a que se ordena a que o homem possua com suficiência o necessário para
viver. Tal comunidade é a cidade. Pois compete à noção de cidade que nela se encontre
tudo o que baste à vida humana, como acontece. Esta é a razão pela qual se formam muitos
setores, num se exerce a arte fabril, noutro a arte têxtil, e assim por diante. Disso se
depreende que a cidade é a comunidade perfeita. Terceiro, assinala que a cidade está
ordenada, pois originalmente foi instituída em razão do viver, para que os homens
encontrassem onde viver com suficiência. Contudo, nela acontece que o homem o só
viva, mas que viva bem, enquanto pelas leis da cidade a vida do homem se ordena à
virtude
206
.
O homem precisa do grupo doméstico a que pertence já para satisfazer suas
necessidades vitais primárias, corporais. A família ao homem o necessário à sua
sobrevivência, como alimentação e instrução. O Doutor Cristão afirma que todo homem tem
um débito com seus pais pela sua geração, nutrição e instrução. Basta pensar em como a
sobrevivência de uma criança recém nascida é dependente da atenção de sua mãe para que se
compreenda a evidência do argumento. Ela precisará dos seus pais também para que cresça
com saúde, tenha uma boa educação, etc.
Tomás diz que o homem precisa, por sua vez, do grupo civil de que é membro para
que não apenas viva”, mas para que o faça de forma excelente. Mais do que precisar de um
grupo humano numericamente superior, ele depende de participar de um grupo
qualitativamente diferenciado. Em uma cidade, muitos ofícios que um simples lar não
204
Commentaire de la Politique, I, 1, §19 e 20.
205
A comunidade é dita “perfeita” no sentido de “alcançada”.
206
Commentaire de la Politique, I, 1, §17.
[79096] Sententia Politic., lib. 1 l. 1 n. 23
Secundo dicit, quod civitas est communitas perfecta: quod ex hoc probat, quia cum omnis communicatio omnium
hominum ordinetur ad aliquid necessarium vitae, illa erit perfecta communitas, quae ordinatur ad hoc quod
homo habeat sufficienter quicquid est necessarium ad vitam: talis autem est communitas civitatis. Est enim de
ratione civitatis, quod in ea inveniantur omnia quae sufficiunt ad vitam humanam, sicut contingit esse. Et
propter hoc componitur ex pluribus vicis, in quorum uno exercetur ars fabrilis, in alio ars textoria, et sic de
aliis. Unde manifestum est, quod civitas est communitas perfecta. Tertio ostendit ad quid est civitas ordinata: est
enim primitus facta gratia vivendi, ut scilicet homines sufficienter invenirent unde vivere possent: sed ex eius
esse provenit, quod homines non solum vivant, sed quod bene vivant, inquantum per leges civitatis ordinatur vita
hominum ad virtutes.
76
conseguiria desempenhar. Eles são de outra ordem. No que tange à reta conduta, por exemplo,
a autoridade pública é capaz de corrigir a delinqüência pelo medo da punição, o que uma
repreensão paterna não seria capaz de fazer. Não fosse assim, a lei do mais forte, a qual vigora
entre os animais em geral, também o sujeitaria.
Ele depende de auxílio por duas razões. Primeiramente, para ter o que é necessário à vida,
sem o que não pode viver a vida presente: é a ajuda que traz o grupo doméstico
207
de que
faz parte. Com efeito, todo homem recebe de seus pais a geração e a alimentação e a
educação. Paralelamente, indivíduos que são membros de uma família doméstica ajudam
uns aos outros a alcançar as coisas necessárias à vida. Há ainda uma outra relação da qual o
homem recebe ajuda de um grupo de que faz parte para uma suficiência perfeita de sua
vida, a saber, para que não somente viva, mas também viva bem, dispondo de tudo o que
seja suficiente para a vida: é assim que o grupo civil
208
participa da ajuda ao homem, não
somente para as coisas corpóreas, como há na cidade artefatos que uma casa não é bastante
para oferecê-los, mas também no domínio moral, na medida em que os jovens insolentes
que a repreensão paterna não chega a corrigir são constrangidos pelo poder público, pelo
temor da pena
209
.
A sociedade
210
é necessária para que alcance a sua perfeição, pois nela encontra
ocasião para cumprir a sua condição humana. À diferença de todos os outros seres naturais,
assinala Y. Cattin que, para o Doutor Comum, o homem não se reconhece a partir de sua
espécie, mas de sua individualidade
211
. Ele se sabe único ao mesmo tempo que, e porque,
membro de um grupo. “Único” na medida em que consciente de sua participação num todo,
mas ligado de modo indissociável na medida em que é a sua integração que lhe viabiliza
realizar os valores humanos que o agrupa e o torna “um”. E se é na Cidade (ou Estado) que
encontra outros “iguais” (os cidadãos), é nela o somente que poderá realizar a sua
humanidade. Não pertencesse a uma coletividade, não faria sentido sua individualidade
207
O grupo doméstico pode também ser dito “família”.
208
O grupo civil pode também ser dito “cidade”.
209
CEN, I, 1, §4.
[72708] Sententia Ethic., lib. 1 l. 1 n. 4
Quo quidem auxilio indiget ad duo. Primo quidem ad ea quae sunt vitae necessaria, sine quibus praesens vita
transigi non potest: et ad hoc auxiliatur homini domestica multitudo, cuius est pars. Nam quilibet homo a
parentibus habet generationem et nutrimentum et disciplinam et similiter etiam singuli, qui sunt partes
domesticae familiae, seinvicem iuvant ad necessaria vitae. Alio modo iuvatur homo a multitudine, cuius est pars,
ad vitae sufficientiam perfectam; scilicet ut homo non solum vivat, sed et bene vivat, habens omnia quae sibi
sufficiunt ad vitam: et sic homini auxiliatur multitudo civilis, cuius ipse est pars, non solum quantum ad
corporalia, prout scilicet in civitate sunt multa artificia, ad quae una domus sufficere non potest, sed etiam
quantum ad moralia; inquantum scilicet per publicam potestatem coercentur insolentes iuvenes metu poenae,
quos paterna monitio corrigere non valet.
210
Seguindo-se a observação de H. Arendt antes mencionada, poder-se-ia argumentar que Aristóteles se refere à
política como condição humana e não à sociedade. O emprego dessa última seria fruto de interpretação própria a
Tomás de Aquino, dissonante com o espírito do texto aristotélico.
211
“Na ordem universal, à diferença de todas as outras naturezas, o homem não é apreendido através da espécie,
a natureza humana, mas enquanto indivíduo humano, tendo em si um valor próprio”. CATTIN, Y.,
L’antropologie politique de Thomas d’Aquin, p. 138.
77
humana, pois essa pressupõe o exercício de certas virtudes, como a justiça. Ora, a justiça é um
conceito que adquire significado numa relação de paridade ou de proporcionalidade. Se o
homem fosse um ser solitário, estaria condenado a sucumbir à sua animalidade, pois privado
da condição de desenvolvimento das potencialidades que o distingue, quais sejam, as
humanas.
A Cidade (ou Estado) dá-lhe, assim, o necessário à sua perfeita suficiência. É no seio
dela que encontra as condições de realização de suas capacidades mais sublimes,
correspondentes a características que lhe são próprias, e que, portanto, têm o condão de
realizá-lo justamente como homem. Com efeito, diz o Aquinate na Suma contra os Gentis:
Parece então que apenas a criatura racional é dirigida por Deus nos seus atos e não somente
em função do que convém à espécie, mas em função do que convém ao indivíduo
212
.
Daí se segue que a sociedade é natural ao homem. o fosse o convívio entre
cidadãos, o homem o realizaria a sua humanidade, bem como seria privado do
reconhecimento da sua originalidade já no interior de sua espécie, quer dizer, ele não existiria
enquanto tal. Y. Cattin afirma: “A sociedade é ‘interior’ ao homem, ela faz parte de sua
essência e ela é imediatamente humana”
213
. É neste sentido que Tomas teria assimilado o
caractere político do homem.
Quando Tomás afirma que o homem é por natureza um ser político, ele quer dizer que o
homem o pode existir realmente sem retomar em si um domínio que não seja puramente
racional e imediatamente humano
214
.
Uma vez tendo explicitado em que moldes se a ligação natural entre o homem, a
família e a sociedade, evidenciando o seu caráter de parte” e, logo, a sua intrínseca
dependência ao todo, chama a atenção para a questão da “unidade de ordem” em oposição a
uma unidade orgânica ou substancial. É o que lembra J. Finnis: “Aquino desencoraja
firmemente tentativas de compreensão das sociedades humanas como organismos ou
212
SCG, III, 113, §1.
[26660] Contra Gentiles, lib. 3 cap. 113 n. 1
Ex hoc autem apparet quod sola rationalis creatura dirigitur a Deo ad suos actus non solum secundum
congruentiam speciei, sed etiam secundum congruentiam individui.
213
CATTIN, Y., L’antropologie politique de Thomas d’Aquin, p. 95.
214
CATTIN, Y., L’antropologie politique de Thomas d’Aquin, p. 102.
78
substâncias”
215
. Afirma o Doutor Comum que tanto o grupo político como o familiar têm uma
unidade que é apenas de ordem, pois eles não são algo uno absolutamente
216
. Uma parte deste
todo, portanto, pode ter uma operação que o é do todo, como um soldado tem atividades
que não pertencem ao exército enquanto tal, por exemplo, limpar os fuzis. O comandante
manda ao soldado que os limpe, mas não se ocupa do modo como se deve fazê-lo, pois a
definição de uma tal técnica pertence a outra disciplina. O todo, por sua vez, tem uma
operação que não se confunde com a das partes que o compõem, como um exército tem uma
operação que não é passível de ser realizada apenas por um soldado, por exemplo, a vitória
sobre outro exército.
Ora, o fato da unidade das sociedades humanas ser “de ordem” não prejudica o
reconhecimento de certas ações como sociais ou domésticas. Ele apenas assinala que, em
sendo a ação de um todo oriunda de ações particulares e em não sendo toda ação do particular
tomada na qualidade de cidadão ou de membro familiar, a compreensão da associação como
una é limitada. Quando o soldado limpa fuzis, não age, a rigor, enquanto soldado. Nesse caso,
exerce atividade que é considerada como da armada apenas no sentido de ordem. Quando, por
sua vez, encontra-se em combate, tem uma ação tipicamente militar. Nesse caso, exerce
atividade que é considerada como da armada em sentido absoluto, pois, para além da ordem
entre as partes, a ordem volta-se diretamente para o fim da sua união.
Tomás sustenta, assim, a existência de uma espécie de todo, dentro da unidade de
ordem, que constitui uma unidade de composição, ou de conjunção, ou mesmo de
continuidade, e de acordo com esta unidade uma coisa é única absolutamente, e, logo, não
operação da parte que não pertença ao todo. É o mesmo o movimento do todo ou o de uma de
suas partes. De maneira semelhante, nas composições e nas coisas ligadas, a operação de uma
parte é principalmente aquela do todo
217
. Exemplos de unidade de composição são a casa e a
cidade. Ambas se constituem não a partir de algo construído, mas também a partir de algo
natural, esse porque a afirmação da natureza humana depende também da afirmação da “casa”
e da “cidade”, aquele porque a atualização do “homem” não é dada de ofício, mas a partir da
atividade que empreende conformemente à sua natureza. Elas possuem, portanto, um
fundamento na realidade, para além da referida unidade de ordem.
215
FINNIS, J., Founders of Modern Political and Social Thought: Aquinas. Moral, Political and Legal Theory,
p. 25.
216
CEN, I, 1, §5.
217
CEN, I, 1, §5.
79
Depreende-se, daí, que a ordem de um grupo humano possui dois níveis. Um é dado
pela inter-relação das partes de um todo, outro, pela ação do todo com vistas ao fim que une
suas partes, uma vez que parte e todo identifiquem-se qualitativamente. No primeiro caso,
uma coordenação entre as partes (ou sub-grupos) na realização de atividade acessória a do
todo, ainda que pressuposta por essa. No segundo, uma conjunção da parte com o todo na
medida em que ela realiza atividade que se confunde com o objetivo da associação. A
existência da relação de coordenação das partes (ou sub-grupo) entre elas depende da
existência da relação inteligível entre a sua associação e o fim pelo qual se associaram. Essa é,
logo, mais importante do que aquela. Ao mesmo tempo em que a atividade de uma parte em
relação à da outra assinala que um grupo o tem uma unidade substancial para além da sua
ordem, a atividade de uma parte em relação imediata com o seu fim, enquanto parte
formadora do todo, assinala uma identidade formal entre parte e grupo cuja unidade de
composição, conjunção ou continuidade permite uma ação total real.
Esta passagem pode se fazer, a princípio, por simples ordenação, assim como uma cidade é
feita por uma multiplicidade de casas, uma armada é feita de uma multiplicidade de
soldados. Ela pode se fazer, ainda, por ordenação e por composição, assim como uma casa
é feita de diversos elementos reunidos e da composição de paredes. Mas estas duas
maneiras aqui não podem resultar na constituição de uma natureza única a partir de vários.
As coisas, com efeito, que têm por forma apenas a ordenação ou composição, não são
coisas naturais, nas quais a unidade possa ser chamada uma unidade natural
218
.
Assim, não cabe à mesma ciência considerar o todo que possui somente uma unidade
de ordem e as partes desse todo. No exemplo, não cabe à arte da guerra estabelecer a técnica
de limpeza de um fuzil. Analogamente, não cabe à Ciência Política informar à Ética
Doméstica como um filho deve respeitar ao seu pai. Não obstante, ela depende de que essa
faça com que filhos sejam bem educados.
É por isso que a Ética ou Filosofia Moral divide-se em três partes, cada uma delas
considerando uma unidade de composição, que, por sua vez, se conjugam no sentido de uma
ordenação total. A Ética Individual ou Monástica, ou também chamada de Moral, importa-se
com a ação do indivíduo direcionada ao seu fim individual. A Ética Doméstica, ou também
chamada de Economia, com as operações do grupo doméstico direcionadas ao seu fim
218
SCG, IV, 35, §7.
[27606] Contra Gentiles, lib. 4 cap. 35 n. 7
Fit autem unum ex multis, uno quidem modo, secundum ordinem tantum: sicut ex multis domibus fit civitas, et ex
multis militibus fit exercitus. Alio modo, ordine et compositione: sicut ex partibus domus coniunctis et parietum
colligatione fit domus. Sed hi duo modi non competunt ad constitutionem unius naturae ex pluribus. Ea enim
quorum forma est ordo vel compositio, non sunt res naturales, ut sic eorum unitas possit dici unitas naturae.
80
“familiar”. Ciência Política, ou simplesmente Política, com as operações do grupo civil
direcionadas ao seu fim político (ou social, para Tomás). Cada parte tem um fim que lhe é
próprio, mas uma vez que todas digam respeito ao homem, ainda que sob um certo aspecto, o
fim de uma o se opõe ao da outra. Daí a hierarquia entre as disciplinas componentes da
Filosofia Moral: a Ciência Política é a mais importante, porque o fim da Ética Monástica e o
fim da Ética Doméstica são, a rigor, subordinados em uma certa medida à consecução do seu
fim, o qual os engloba e sentido. Um fim individual é buscado no interior da busca de um
fim total, com o qual guarda uma relação onde esse é superior àquele. Logo, apesar de
diferentes, os fins não são completamente independentes.
H. Arendt possui um posicionamento que se opõe não à equivalência da palavra
“político” à “social” como também distingue de maneira estanque os diferentes níveis de
ordenação humana. onde Tomás encontra vínculos apesar de uma autonomia, H. Arendt
encontra uma separação total. A política não resultaria de uma associação natural, mas
decorreria de um fato histórico. Ela cita:
O surgimento da cidade conferia ao homem “outra vida para além da sua vida privada, uma
espécie de segunda vida, sua bios politikos. Desde então, cada cidadão pertence a duas
ordens de existência; e na sua vida uma distinção bem clara entre o que lhe é próprio
(idion) e o que é comum (koinon)”
219
.
O Doutor Angélico não sustenta nem que a sociedade é um fato puramente natural,
nem que o é puramente histórico. Para ele, ela é o resultado de ambos os fatores. Assinala Y.
Cattin, a sociedade é imediatamente humana, mas o homem o é imediatamente social, ou,
antes, não é imediatamente homem:
(...) quando Aristóteles e Tomás dizem que o homem é naturalmente um ser político, eles
não querem dizer que o seja imediatamente. A comunidade política não é uma realidade
natural no sentido em que seria um puro dado da natureza, que não será constituída
ativamente. Deve ser dito, ao contrário, que a comunidade política que é natural ao homem
não existe que ao termo de um certo processo histórico
220
.
Ora, natureza e história não se excluem no que tange à condição humana. A sociedade
faz parte da essência do homem, dependendo dele para que se torne realidade externa. Y.
Cattin afirma que, segundo se depreende dos ensinamentos do Aquinate, “a existência política
219
JAEGER, W., Paidéia. III, 111, 1945. Apud ARENDT, H., Condition de l’homme moderne, p. 61.
220
CATTIN, Y., L’antropologie politique de Thomas d’Aquin, p. 130.
81
depende do conhecimento racional ao mesmo título que a existência pessoal depende do
homem”
221
.
221
CATTIN, Y., L’antropologie politique de Thomas d’Aquin, p. 101.
82
2 A diversidade de fins na Filosofia Moral
As partes da Ética ou Filosofia Moral são identificadas segundo o âmbito em que as
ações são realizadas, voluntariamente, para a consecução de um fim. A Ética é dita Individual
ou Monástica quando considera as ações individuais. É dita Doméstica quando considera as
ações realizadas pelo grupo doméstico. É dita, finalmente, Ciência Política quando considera
as ações realizadas pelo grupo civil, a sociedade
222
.
Logo, a Filosofia Moral é dividida em três partes. Entre elas, a primeira examina as
operações de um homem ordenadas a seu fim, e ela se chama monástica. A segunda, por
sua vez, examina as ações do grupo doméstico, e se chama econômica. A terceira, por sua
vez, examina as ações do grupo civil, e se chama política
223
.
As ações pertinentes ao domínio da Filosofia Moral são, então, aquelas fruto da busca
de um fim. Conforme o âmbito dentro do qual ela se realize, um fim e não outro será buscado.
O fim do indivíduo, na Ética Monástica, o fim daquele que pertença ao grupo doméstico, na
Ética Doméstica, e o fim da sociedade, na Ciência Política, não se confundem. O primeiro é
tomado numa esfera que não é a mesma do segundo ou do terceiro. Apesar de não se estar a
negar uma comunicação entre eles, é preciso notar a especificidade relativa à esfera em que se
os considera.
No que tange ao tema, não é evidente ao leitor de Tomás a identificação do domínio a
que ele se refere. Ora trata de uma relação entre as coisas, ora de uma relação entre
disciplinas. Apesar dessa depender daquela, uma e outra possuem um domínio próprio. A
diversidade de “fins” na Filosofia Moral tem fundamento fático, a saber, ao que interessa
aqui, o indivíduo busca um fim e esse fim individual constitui o objeto da Ética; o cidadão
tem um fim e esse fim social constitui o objeto da Política.
Assim, a diversidade de fins na atividade humana justifica, em parte, a autonomia
científica das disciplinas componentes da Filosofia Moral que deles se ocupam. O “fim”
estudado por cada uma delas respeita-lhe particularmente, constituindo seu objeto justamente
222
CEN, I, 1, §6.
223
CEN, I, 1, §6.
[72710] Sententia Ethic., lib. 1 l. 1 n. 6
Et inde est, quod moralis philosophia in tres partes dividitur. Quarum prima considerat operationes unius
hominis ordinatas ad finem, quae vocatur monastica. Secunda autem considerat operationes multitudinis
domesticae, quae vocatur oeconomica. Tertia autem considerat operationes multitudinis civilis, quae vocatur
politica.
83
por ser diferente dos outros. A distinção de disciplinas depende da distinção de objetos, que,
no caso das disciplinas práticas, depende da distinção de fins. Cada uma tem o seu objeto
específico, que não se confunde com o das demais, o que será tratado em capítulo à parte.
Não obstante a diversidade levantada, considerando-se que todas as disciplinas morais
têm em vista seu “fim”, que não se apresenta isoladamente, mas no interior de uma ordem
maior, todas respeitam, em última instância, a um “fim comum”. Então, os diferentes fins
que, num certo sentido, são considerados como supremos no interior da disciplina a que
pertençam, ou seja, o fim supremo na Ética Monástica, o na Ética Doméstica e o na Ciência
Política, podem, ainda, ter o seu estatuto teleológico relativizado considerando-se a ordem
geral das disciplinas práticas, que é dada a partir de dois critérios que serão tratados
posteriormente.
A análise dos fins da atividade humana requer, ainda, uma nova precisão. Quanto à
sua diversidade, pode-se fazer uma segunda leitura, baseada na natureza do que se busca. Ao
lado da distinção entre o fim supremo numa disciplina e em outra, é preciso reconhecer a
existência de uma variação tipológica de fins inerente à hierarquização que permite chamar
um fim de superior e, como se notará mais adiante, de último. Ora, a ordem que decorre da
idéia de fim depende da idéia de “perfeição última”. Na sua base, por sua vez, es uma
distinção de níveis de excelência entre perfeições: perfeição primeira” e “perfeição
segunda”. Busca-se um fim por meio de uma operação a ele ordenada. A operação, ela
mesma, é considerada uma perfeição segunda. A forma dela resultante, por sua vez, é
considerada uma perfeição primeira. Daí Tomás reconhecer uma distinção referente à
natureza do fim. Há dois tipos de fim: uns são ditos operações e outros resultados delas.
A perfeição primeira é possuída ao estilo de uma forma, mas a perfeição segunda pelo
modo de uma operação. Assim, deve haver esta diferença entre os fins, que alguns fins são
operações elas mesmas, enquanto outros são suas obras, quer dizer, os resultados à parte
das operações
224
.
Os fins ditos operações são fins imediatos, porque meios para a realização de outros
fins. Constituem o que ele chama de “perfeição segunda”, pois não são buscados por si
mesmos, mas em relação a um fim ao qual estão subordinados. Os fins ditos resultados são,
224
CEN, I, 1, §12.
[72716] Sententia Ethic., lib. 1 l. 1 n. 12
Prima autem perfectio se habet per modum formae. Secunda autem per modum operationis. Et ideo oportet hanc
esse differentiam finium quod quidam fines sint ipsae operationes, quidam vero sint ipsa opera, id est opera
quaedam praeter operationes.
84
por sua vez, mediatos. Constituem o que chama de “perfeição primeira”, por serem aquilo que
é buscado em primeiro lugar. Resultam da intermediação de fins menores, que o os seus
meios.
Dependendo do nível em que se proceda à análise, tem-se que o que é dado como
“perfeição primeira” pode, ainda, ser considerado uma “perfeição última”, caso consista
naquilo que deva ser alcançado em último lugar, não havendo nada que possa ser buscado
depois dele, uma vez observada a hierarquização dos bens”. O contrário também é possível,
ou seja, a perfeição primeira” que o consista naquilo que deva ser alcançado em último
lugar, mas num meio para tanto, tendo, então, um outro sentido, justamente, o de “perfeição
segunda”.
Essa identificação importa na classificação do fim da Ética, da Economia e da Política
enquanto atividade ou obra, bem como dos “fins” buscados no seu interior. No último caso,
induz ao reconhecimento de que um “fim” pode ser dito em dois sentidos: imediata, sentido
impróprio, ou mediatamente, sentido próprio, e que, conseqüentemente, apenas em um certo
sentido procede a distinção entre fins. Ao lado dela, é preciso reconhecer também uma certa
unidade. Com efeito, a existência de uma diversidade de fins é eclipsada pela existência de
um “bem final”, para o qual a inclinação de cada coisa tende, sendo sua perfeição última.
Em outras palavras, é apenas como fins imediatos para um fim maior, mediato, que se
afirma haver uma distinção de fins no âmbito da atividade humana. A rigor, a distinção
verifica-se entre diferentes meios que precisam ser realizados para se chegar a um fim (por
isso supremo). Como eles se inserem em um encadeamento hierarquicamente organizado, em
um primeiro momento os meios são tidos como fins, embora não o sejam de modo absoluto.
No âmbito das disciplinas morais, o encadeamento hierárquico entre “fins” traduz-se
ora na noção de fim supremo, ora na sujeição de uma disciplina a outra. No primeiro caso,
meios e fins compõem a matéria sobre a qual dirige seu olhar, posto estar ligada ao seu
objeto, o fim supremo que a encadeia. No segundo, meios e fins são tomados de modo a
observar a natureza de uma causa final mais poderosa, visto a extensão de seus efeitos, objeto
de disciplina, então, superior
225
.
225
CEN, I, 2, §30.
85
3 Distinção entre as operações
Tomás estende suas precisões ao reconhecer uma distinção inerente às operações, a
qual conduz a uma revisão do que estabelecera acerca de sua excelência. A operação
(operare), que fora dita num primeiro momento perfeição segunda”, divide-se em ação
(actio) e produção (factio) e é a esse segundo tipo que se atribuem os resultados, ditos
“perfeição primeira”. Sobre os dois tipos, ele afirma
226
:
Uma repousa na operação mesma, como ver, querer e inteligir: uma operação deste tipo é
dita propriamente, assim, ação. Ainda, uma outra operação, a qual passa de uma matéria
exterior, e que é dita propriamente produção
227
.
Do ponto de vista da Ética, o primeiro tipo, a ação, é mais excelente do que o segundo,
a produção, conquanto permanece no agente ele mesmo. Nela, a matéria exterior não é visada
como produto, mas, no máximo, como instrumento prático para que se realize. A produção é
menos excelente porque, ao contrário, não permanece no agente, mas visa a matéria exterior
como produto, constituindo-se, então, como um mero instrumento
228
. Ora, o bem da Ética é
próprio ao indivíduo que age, é aquele que o realiza enquanto ser que se reconhece como
único entre os homens e no universo. Nesse sentido, está necessariamente naquele que age e
não em algo que lhe seja diferente. Por sua vez, o resultado da atividade de produção, a saber,
“a coisa produzida”, é o fim que se busca de modo mediato e que constitui uma “perfeição
primeira” em relação à operação de produzir
229
. Não pode, então, ser o bem do homem
tomado individualmente, mas algo que ele produza com vistas a intermediá-lo ou a realizá-lo
sob um outro aspecto que o individual.
226
Referência à Metafísica, IX, 8, 1050a23.
227
CEN, I, 1, §13.
[72717] Sententia Ethic., lib. 1 l. 1 n. 13
Ad cuius evidentiam considerandum est, quod duplex est operatio, ut dicitur in IX metaphysicae: una quae
manet in ipso operante, sicut videre, velle et intelligere: et huiusmodi operatio proprie dicitur actio; alia autem
est operatio transiens in exteriorem materiam, quae proprie dicitur factio; et haec est duplex: quandoque enim
aliquis exteriorem materiam assumit solum ad usum, sicut equum ad equitandum, et cytharam ad
cytharizandum.
228
A mesma distinção entre “agir” e “produzir” consta no CEN, I, 1, §13 e VI, 3, §1151.
229
Observa-se que a formulação do §13 (CEN, I, 1) revela uma incoerência na forma de apresentação dos
argumentos por Tomás. O parágrafo é introduzido pelo anúncio da existência de dois tipos de atividade, mas, no
final, conclui-se que o terceiro é o mais excelente. Uma maneira de interpretar esta confusa exposição consiste
em tomar o produto de uma atividade, analogamente, também como uma atividade.
86
Tomás explica os dois tipos de operação por meio de um exemplo
230
. Na ação, uma
pessoa aceita a matéria exterior simplesmente para usá-la, como quando se serve de um
cavalo para dirigir ou de uma cítara para tocar. Na produção, ela a toma para mudar a sua
forma, como um carpinteiro que se serve da madeira para fazer uma casa ou uma cama. Nesse
caso, a atividade não encontra um esgotamento em si mesma, mas no produto gerado, a saber,
a casa ou a cama. É a ele que Tomás chama “perfeição primeira”. A operação de produção é
subordinada ao que se quer seja feito, sendo ela o fim “intermediador” da coisa produzida,
que é, conseqüentemente, um fim “intermediado” ou mediato”. Por isso, “produzir” é uma
“perfeição segunda” e o seu produto é uma “perfeição primeira”, que o quer ainda
significar “última”.
Depreende-se, portanto, que a operação (operare) é uma “perfeição segunda” apenas
no sentido de “produção”. Não é possível que se a admita como tal quando tomada no sentido
de “ação”, ainda que a reserva não tenha sido explicitada. É forçoso que se reconheça que
uma “perfeição primeira” pode consistir num fim não “intermediado” ou “mediato”, desde
que observada a condição de também não ser constituída por um fim “intermediador”. É o
caso da ação” que, esgotando-se nela própria, é, ao lado da “coisa produzida”, uma
“perfeição primeira”. A “ação” ela mesma é seu fim, não havendo um “resultado” distinto em
xeque.
De antemão, faz-se saber que Tomás não atribui importância, na ordem teleológica, à
classificação prioritária dos fins consoante se trate de uma operação (atividade)
231
ou um
resultado (produto)
232
. Apesar de se servir de exemplos que remetem a uma consideração
situada eminentemente no domínio das técnicas, defende uma tese que remete a uma
consideração da relação que se coloca entre o nível das artes e o da Ética.
O Aquinate afirma que o fim de um cavaleiro é uma ação, a de cavalgar (atividade), e
que o dos freios, nela pressuposta, é o resultado do uso dos freios, do fazer frear, a saber, o
freio realizado (produto). O contrário é verdadeiro quando se considera que o fim da medicina
é algo produzido, a saúde (produto), mas o das ginásticas, que estão nela contidas, é uma
ação, a de exercitar-se (atividade)
233
. Lá, destaca-se uma atividade; aqui, um produto. De
modo análogo, a Ética tem como objeto uma ação enquanto as artes têm como objeto um
produto, dado ser o fim do indivíduo um tipo de ação e o do artesão um tipo de produto.
230
CEN, I, 1, §13.
231
Tomada aqui no sentido de ação.
232
CEN, I, 1, §18.
233
CEN, I, 1, §18.
87
Conforme seja o caso, uma ação, no da Ética, ou uma coisa produzida, no das artes, é dada
como mais importante no que tange à operação humana em seu sentido mais amplo. Percebe-
se, então, que interessa discernir não se o fim é uma atividade ou um produto, mas se ele é
justamente um fim e se os meios se conformam a ele.
(...) sempre que os fins o resultados à parte das operações, os resultados são
necessariamente melhores do que as operações, como a coisa produzida é melhor do que
sua produção. Com efeito, o fim é mais poderoso do que os meios que o visam. Pois o que
visa a um fim tem uma razão de bem em referência ao fim
234
.
No que tange à ordem interna do todo, Tomás nega que haja uma linearidade. O
homem necessita de certos bens materiais, os produtos, e imateriais, as ações, para alcançar ao
seu fim último. uma certa relação de dependência de uns em função dos outros que é
alternante, seja em função das habilidades próprias ao sujeito, seja em função de um erro, seja
em função de um evento, etc. Não é possível, então, estabelecer que uns ou que outros são
superiores. Contudo, no que tange à ordem do todo face ao “bem final”, uma relação de
dependência que se necessariamente em um sentido: o todo deve conformar-se a ele. É
preciso, logo, saber o que são os fins e o que são os meios para que se chegue a eles na ordem,
ainda que não linear, que rege o homem em suas escolhas. É apenas nesse sentido que importa
estabelecer o que é prioritário para si e o que é prioritário do ponto de vista universal, mas
este é um ponto que diz respeito à natureza do fim supremo, o qual será discutido
posteriormente.
Em síntese, o Santo Doutor insiste na subordinação dos meios ao fim. Entre a “ação” e
a “produção”, como aquela é um fim em si mesma e essa um meio para a realização de um
fim, ela (a ação) é mais importante. Entre a criação” e a coisa produzida”, como essa é o
fim daquela, ela (a criação) é mais importante. E entre a “ação” e a “coisa produzida”, não se
pode estabelecer o que é prioritário na ordem dos fins de maneira absoluta, mas apenas em
relação ao fim último.
O Aquinate retoma, então, a comparação aristotélica entre hábitos e atos com o fim,
suscitando a noção de “hábito operativo”
235
, a qual respeita às virtudes. Ele demonstra que
234
CEN, I, 1, §14.
[72718] Sententia Ethic., lib. 1 l. 1 n. 14
Deinde cum dicit: quorum autem sunt fines etc., ponit tertium; dicens, quod in quibuscumque operata, quae sunt
praeter operationes, sunt fines, oportet quod in his operata sint meliora operationibus: sicut res generata est
melior generatione. Nam finis est potior his quae sunt ad finem. Nam ea quae sunt in finem habent rationem
boni ex ordine in finem.
235
CEN, I, 1, §15 a 17.
88
diferentes coisas são ordenadas para diferentes fins. Se diferentes operações e artes e
ciências, então deve haver diferentes fins para cada uma delas, dado que os fins e os meios
são proporcionais. Ele exemplifica: o fim da arte médica é a saúde; da construção de navios, a
navegação; da estratégia, a vitória; e da economia doméstica ou administração da casa, as
riquezas. O último exemplo, entretanto, toma da opinião da maioria dos homens, pois ele
mesmo discorda
236
. Encontrando-se as diferentes operações, artes e ciências dentro de uma
rede ordenada de relações, as riquezas não são de forma absoluta o fim da economia
doméstica, mas devem ser ditas em um sentido mais exato instrumentos dela
237
.
Aqui, mais uma vez, Tomás se serve de exemplos que misturam as habilidades, as
artes técnicas e o domínio moral, o que denota uma compreensão das ciências em um sentido
largo, o qual inclui as ciências da produção entre o conhecimento teórico, além de confundir o
que diz respeito à realidade fática e ao seu estudo
238
. Ddecorre a sua distinção entre Ética e
Política a partir dos atos a cuja disposição objetivam esmiuçar, ainda que as etapas
percorridas para tanto não sejam claras. Se Ética e Política diferem, é bem porque versam
sobre hábitos operativos também diferentes. Quer dizer, uma descreve o bito operativo
individual e a outra um hábito operativo social, tendo, logo, aquela um fim individual que
pode ser dado por uma “ação”, o que não se confunde com o fim social dessa, dado, por sua
vez, por um “produto” extrínseco à atividade capaz de originá-lo.
Ademais, o Doutor Comum sustenta que da mesma forma que uma ordem dos fins,
uma ordem dos hábitos entre eles, além de uma ordem dos fins em relação aos hábitos.
Quanto à ordem entre os bitos, Tomás sustenta que um bito operativo ou habilidade é
subordinado a outro, como a arte dos freios é subordinada à arte da equitação porque o
cavaleiro informa àquele que faz os freios como deve fazê-los. Ele toma, então, hábito por
disciplina técnica. Quanto à ordem dos fins em relação aos hábitos, afirma que, assim como
um fim, um hábito operativo pode ser mais importante do que outro, e incorre, mais uma vez,
em equivocidade. Faz depender a noção de fim da noção de hábito
239
, estabelecendo a ordem
dos primeiros de acordo com a dos segundos. Não obstante, tenta esclarecer a tese tomando
“hábito” por artes ou habilidades, o que, num certo sentido, é demasiado cnico quando um
236
Prova feita na Política, I, 3-4, 1253b12-1254a.
237
CEN, I, 1, §15.
238
R. A. Gauthier e J. Y. Jolif acreditam que Tomás tenha cometido um equívoco ao tomar “artes” e “ciências”
não dentro do contexto platônico de mundo das técnicas, mas o extrapolando ao entender a palavra “ciência”
empregada por Aristóteles em um sentido teórico-especulativo, o que compreende a ação moral. L’Éthique à
Nicomaque. Intr., trad., com. R. A. GAUTHIER, J. Y. JOLIF, p. 4.
239
A palavra “hábito” precisaria ser tomada no seu sentido específico de disposição à atividade virtuosa, o que
parece dizer mais do que “hábito operativo” ou habilidade.
89
fim depende propriamente de uma noção de bem que deveria ser associada a um hábito
virtuoso. Ainda, segue sendo relapso quanto à distinção entre as coisas e as disciplinas que a
elas voltam sua atenção. Com efeito, ele diz que em todas as artes ou habilidades é
comumente verdade que os fins arquitetônicos são absolutamente mais desejados a qualquer
um dos fins das artes ou habilidades que são subordinadas a elas. Prova-o pelo fato de que os
homens seguem ou procuram os fins das artes ou habilidades inferiores por causa dos fins da
superior. Logo, no interior do hábito operativo, uma cadeia de fins organizados em função
do “fim-chefe”, que é mais propriamente o objeto de uma disciplina que a descreve.
Ora, falta rigor à intenção tomasiana de alicerçar uma relação de ordem entre Ética e
Política baseando-se na relação de ordem que se coloca entre os fins de que tratam. Ele
passará a sustentar que uma hierarquia entre as partes da Filosofia Moral e,
conseqüentemente, dos fins a que fazem objeto, chegando à afirmação de um fim supremo
240
.
Nela, a Política é apresentada como arquitetônica, sobrepondo-se, de certa forma, à Ética, e o
seu fim é aquele dado como hegemônico. Contudo, ao mesmo tempo em que é a qualidade do
seu objeto que a autoriza exercer as prerrogativas inerentes à sua superioridade sobre as
demais partes, é a virtude da atividade conforme aos ditames de uma e de outra que rege a
organização dos fins.
Assim, o Aquinate apresenta a existência de uma diversidade de “fins” como uma
componente da concretização da idéia de ordem, a qual se faz sentir, do ponto de vista da
Filosofia Moral, pela relação entre a Ética e a Política. Se são várias as necessidades humanas,
vários são os fins que o homem tem a alcançar, consoante o domínio sobre o qual versam.
Não se dispõem, entretanto, de maneira necessária. Cabe a ele mesurá-los e elegê-los, no
intuito de guiar adequadamente suas operações, num e noutro domínio.
240
O que será abordado na seqüência.
90
4 O fim supremo e a Política
Dada a diversidade de fins, ordenados, por sua vez, hierarquicamente, de sorte que um
fim serve em algum momento como meio para um outro, conclui-se haver também um fim
acima de todos e que é, assim, dito o melhor, o fim supremo dentro de um certo domínio. É
ele o critério de que dispõe o homem para mesurar e eleger os “fins” capazes de intermediar a
realização do seu bem, sendo, neste sentido, ditos meios, desencadeando a ação propriamente
humana e dando sentido à sua vida, seja enquanto indivíduo, seja enquanto membro de um
lar, seja enquanto cidadão.
Qualquer fim que seja tal que nós desejamos os outros [fins] em vista dele, e que nós o
desejamos por ele mesmo e não em função de um outro [fim], este fim o apenas é bom,
mas é o melhor. E isto é evidente que sempre que um fim em vista do qual outros fins o
buscados ele é principal, como é evidente a partir do que precede. Ora, é necessário que nas
coisas humanas exista um tal fim. Então, há nas coisas humanas um fim bom e melhor
241
.
Ser o melhor fim
242
é uma decorrência lógica do fato deste fim ser buscado em
qualquer outro. Um fim não é dito “fim” propriamente enquanto se puder mostrar que ele fora
buscado em vista de outro. É preciso, entretanto, que, em algum momento, o se possa
mostrá-lo, sob pena de se encontrar compelido a admitir que o processo de busca de um fim
não tem fim, o que é incongruente. Já porque um fim pode ser chamado “fim” quando
marca um encerramento, ou bem porque um meio pode ser chamado “meio” em relação a
um fim. Ora, se um fim é desejado por outro mais importante, diz-se que aquele é um meio
para a realização desse. O alcance do fim supremo, hierarquicamente superior a qualquer
outro, passa, com efeito, pelo reconhecimento de uma certa hierarquia também dos meios.
Um meio encontra sua razão de ser no fim que o motiva, mas se a cadeia teleológica for
infinita, não haverá um thelos que lhe sentido. É, logo, patente que haja um fim que não
seja desejado por outro.
241
A tradução inglesa do Comentário à Ética Nicomaquéia traduz optimus por “supremo”. CEN, I, 2, §19.
[72723] Sententia Ethic., lib. 1 l. 2 n. 1
Quicumque finis est talis quod alia volumus propter illum et ipsum volumus propter se ipsum et non aliquid
aliud, iste finis non solum est bonus, sed etiam est optimus, et hoc apparet ex hoc quod semper finis cuius gratia
alii fines quaeruntur est principalior, ut ex supra dictis patet; sed necesse est esse aliquem talem finem. Ergo in
rebus humanis est aliquis finis bonus et optimus.
242
As expressões “melhor fim” ou “fim supremo” são ambas tomadas como sinônimas para traduzir a expressão
finis optimus.
91
Imagine-se que fosse preciso proceder ao infinito no desejo pelos fins. Jamais se
chegaria a um ponto onde o homem pudesse ver o seu fim realizado. Neste caso, o ser
humano desejaria infrutiferamente aquilo que não pode alcançar. Conseqüentemente, o “fim”
que ele deseja pareceria inútil e vão. O Santo Doutor repudia uma tal possibilidade, o que se
verifica não apenas no Comentário à Ética Nicomaquéia
243
, como no da Política
244
e no do
Tratado da Alma
245
. Em suma, a natureza, sendo ordenada, é ordenada a um fim, o qual lhe é
inerente. Logo, tudo o que pertence à natureza, tem um fim que lhe é inerente que lhe ordena.
Ora, o homem é um ser natural, tendo um fim naturalmente dado, sendo-lhe sua condição
humana adaptada. É pela consecução do seu fim que ele é ordenado (e se ordena). Nesse
sentido, o desejo pelo fim é natural, posto consistir no seu bem enquanto homem. Um desejo
natural é uma inclinação pertencente às coisas pela disposição do Primeiro Motor, o que,
estando gravado na sua essência, não pode não ser. Logo, é impossível que se deva proceder a
um infinito de fins: “deve haver um fim supremo para os negócios humanos”
246
.
É manifesto que todo apetite é em vista de alguma coisa. Com efeito, é absurdo dizer que
desejamos por desejar. Pois o desejo é um movimento que tende para outra coisa. Não
243
“Que, além disso, seja impossível de avançar de fim em fim ao infinito, isso também se prova por um
raciocínio que conduz ao impossível, da seguinte maneira. Se se vai ao infinito no desejo dos fins, de sorte que
sempre um fim seja desejado em vista de outro, ao infinito, nunca se poderá chegar a que o homem atinja os fins
desejados. Ora, é inútil e em vão que alguém deseje o que não pode atingir; o fim dos desejos será, então, inútil e
vão. Ora, esse desejo é natural: fora dito acima, com efeito, que o bem é o que todos desejam naturalmente.
Segue-se, então, que um desejo natural será vão e vazio. Mas isso é impossível, porque o desejo natural não é
nada mais do que uma inclinação inerente às coisas pela ordenação do primeiro motor, que não pode ser
frustrada. É, então, impossível que se vá ao infinito de fim em fim”. CEN, I, 2, §21.
[72725] Sententia Ethic., lib. 1 l. 2 n. 3
Quod autem sit impossibile in finibus procedere in infinitum, probat tertia ratione quae est etiam ducens ad
impossibile, hoc modo. Si procedatur in infinitum in desiderio finium, ut scilicet semper unus finis desideretur
propter alium in infinitum, nunquam erit devenire ad hoc quod homo consequatur fines desideratos. Sed frustra
et vane aliquis desiderat id quod non potest assequi; ergo desiderium finis esset frustra et vanum. Sed hoc
desiderium est naturale: dictum enim est supra quod bonum est, quod naturaliter omnia desiderant; ergo
sequetur quod naturale desiderium sit inane et vacuum. Sed hoc est impossibile. Quia naturale desiderium nihil
aliud est quam inclinatio inhaerens rebus ex ordinatione primi moventis, quae non potest esse supervacua; ergo
impossibile est quod in finibus procedatur in infinitum.
244
“(...) a natureza não faz nada de inútil, pois ela persegue sempre um objetivo preciso”. Commentaire de la
Politique, I, 1, §28.
[79101] Sententia Politic., lib. 1 l. 1 n. 28
Dicimus enim quod natura nihil facit frustra, quia semper operatur ad finem determinatum.
245
“Ora, se a natureza não faz nada em vão nem neglige nada do que seja necessário, salvo entre aqueles que são
mutilados e imperfeitos (...)”. Commentaire au traité de l’âme, II, 13, §794.
[81094] Sentencia De anima, lib. 3 l. 14 n. 17
Et quia posset aliquis credere, quod non est propter hoc quod deficiat eis principium motivum, sed quia deficiunt
eis instrumenta apta ad motum; ideo ad removendum hoc, subiungit quod natura nihil facit frustra, neque deficit
in necessariis, nisi in animalibus orbatis et imperfectis, sicut sunt animalia monstruosa: quae quidem monstra
animalibus accidunt praeter intentionem naturae, ex corruptione alicuius principii in semine.
246
CEN, I, 2, §22.
[72726] Sententia Ethic., lib. 1 l. 2 n. 4
Et ita necesse est esse aliquem optimum finem rerum humanarum.
92
obstante, aquilo no qual apetite, a saber, o objeto desejável, é o princípio da inteligência
prática. Com efeito, aquilo que é desejado primeiramente é o fim por onde começa a
consideração da inteligência prática. Com efeito, quando nós queremos deliberar sobre o
que a fazer em vista de algo, nós supomos primeiramente o fim; em seguida, nós
procedemos por ordem à investigação dos meios em vista deste fim; e, assim, indo sempre
do posterior ao anterior, até aquilo que é conveniente a ser feito em primeiro lugar
247
.
É preciso observar, entretanto, que a expressão finis optimus, traduzida por “melhor
fim” ou por “fim supremo”, comporta uma certa ambigüidade. O conceito é formal, o
prescrevendo um conteúdo. Com efeito, ela pode ser entendida em mais de um sentido. Em
primeiro lugar, uma vez que as partes da Filosofia Moral sejam autônomas, cada uma possui
um objeto próprio, que é o fim da atividade humana em diferentes domínios. Ora, o objeto da
Ética é o fim individual, o da Economia, o doméstico, e o da Política, o social. Cada qual
comporta uma supremacia no interior do domínio da atividade a que se reportam e, neste
sentido, cada um dos fins pode ser dito um “fim supremo”. Em segundo lugar, as partes se
articulam entre si, pois, em razão da qualidade do fim que têm por objeto, sustenta-se uma
ordem hierárquica entre elas. Ora, o fim que justifica a superioridade da disciplina que dele
trata é um “fim supremo” em relação aos fins tratados pelas disciplinas subordinadas.
Finalmente, considerando-se que a noção de ordem não se exaure no domínio ético-humano,
o homem há que ter, ainda, um fim superior a ele, o qual será dito de modo absoluto
“supremo”. Mais adiante será introduzida, ainda, a expressão ultimum finem ou fim último”,
onde se distinguirá o fim último da vida humana e o fim último de todo universo, o qual
ultrapassa a existência terrena. Ela cobre o segundo e o terceiro sentidos supra-mencionados
de “fim supremo”.
Tomás vai, então, mais longe. Sustenta não apenas que um fim supremo como que
ele deve ser conhecido. O homem, que é um ser inserido num universo ordenado, move-se
também ordenadamente. É na atividade conforme à sua ordem natural que encontra sua
realização. Na ignorância do que seja, o homem não é capaz de realizá-la, pois o princípio da
causalidade não opera sistematicamente sobre ele, que possui a faculdade de fazer ou não
fazer. Logo, depende de conhecer aquilo que quer realizar para que seja bem sucedido no seu
247
Commentaire au traité de l’âme, III, 15, §821.
[81104] Sentencia De anima, lib. 3 l. 15 n. 4
Et manifestum est, quod omnis appetitus est propter aliquid. Stultum enim est dicere, quod aliquis appetat
propter appetere. Nam appetere est quidam motus in aliud tendens. Sed illud cuius est appetitus, scilicet
appetibile, est principium intellectus practici. Nam illud, quod est primo appetibile, est finis a quo incipit
consideratio intellectus practici. Cum enim volumus aliquid deliberare de agendis, primo supponimus finem,
deinde procedimus per ordinem ad inquirendum illa, quae sunt propter finem; sic procedentes semper a
posteriori ad prius, usque ad illud, quod nobis imminet primo agendum.
93
intento. Da mesma forma, compara o Santo Doutor, compreende-se que um arqueiro precisa
mirar o seu alvo a fim de acertá-lo.
O homem não pode alcançar diretamente nada do que seja dirigido a outra coisa sem
conhecer isto a que se dirige
248
.
Ainda, o homem precisa, desde que se reconheça como tal, conhecer o fim supremo
para agir segundo o seu conhecimento, pois toda a sua vida, se propriamente dita humana,
depende de estar orientada para ele. Uma vez que do seu conhecimento depende a
possibilidade de bem agir, seu advento tardio pode não ser eficaz. Com efeito, da mesma
forma que uma única andorinha não faz primavera”
249
, um único ato conforme à ordem
própria ao homem não faz de uma vida “humana”
250
.
(...) dado que existe um fim que é o melhor para as coisas humanas, seu conhecimento é
necessário ao homem, pois isto comporta uma grande contribuição para a vida, quer dizer,
traz muita ajuda a toda vida humana
251
.
O homem é um ser racional e, como tal, age conformemente à sua natureza quando
age racionalmente. Com efeito, Tomás é afirmativo no sentido de que a razão para os meios
deva sempre ser encontrada no fim ele mesmo
252
. Agir sem razão para tanto não é “do
homem” e, precisando o homem encontrá-la, precisa antes encontrar o fim supremo. É esse o
fundamento da distinção entre “ação humana” e “ação do homem”. Aquele que age”
propriamente, age com um fim. “Agir” por agir (ou por um desejo sensual) não é algo que
pertença ao homem e, logo, não é algo que permita diferenciá-lo de um animal irracional.
Apenas a “ação humana” constitui condição para que se diga do animal um homem.
Se, por outro lado, uma diversidade de artes e ciências que tratam dos meios para o
fim, dada a ordem hierárquica existente entre os fins, é lógico que haja também uma ordem
entre elas e, neste sentido, uma arte ou ciência que se encontre acima de todas, a saber, aquela
que tem por objeto o fim supremo, ao qual subordinam-se todos os outros, e que tem, então,
248
CEN, I, 2, §23.
[72727] Sententia Ethic., lib. 1 l. 2 n. 5
Nihil quod in alterum dirigitur potest homo recte assequi nisi cognoscat illud ad quod dirigendum est.
249
CEN, I, 10, §129.
250
Aqui dar-se-á a passagem à virtude.
251
CEN, I, 2, §23.
[72727] Sententia Ethic., lib. 1 l. 2 n. 5
Concludit ergo primo ex dictis, quod ex quo est aliquis optimus finis rerum humanarum, cognitio eius, habet
magnum incrementum ad vitam, idest multum auxilium confert ad totam vitam humanam.
252
CEN, I, 1, §23.
94
todas as artes ou ciências a ela subordinadas: tal é a ciência arquitetônica. As artes ou ciências
que tratam dos meios para o fim estão contidas na ciência ou arte referente ao fim
propriamente dito. Por isso a necessidade de que o fim último pertença à mais importante
ciência, concernente ao primário e mais importante fim, e à verdadeira ciência arquitetônica,
que dita às outras o que devem fazer. Tomás indica ser a Ciência Política aquela que
corresponde a uma tal descrição, sendo, portanto, de sua competência a consideração do fim
supremo. Passa, então, a provar que a Ciência Política é a mais arquitetônica ciência e que é a
mais importante.
Com referência à primeira prova, apresenta as duas características de um
conhecimento arquitetônico e atribui à Ciência Política o preenchimento de ambas. Diz que o
conhecimento arquitetônico dita o que deve ser feito pela arte ou ciência a ele subordinada,
como a equitação dita a forma de conduzir o cavalo à arte dos freios, apesar de não ditar a ela
a forma de fazer os freios para se chegar a tanto. Ele, ainda, serve-se das outras ciências para
alcançar seus fins, como a equitação se serve dos freios feitos pela arte de fazê-los para bem
conduzir um cavalo
253
.
A primeira característica, a de ditar o que deve ser feito pela arte ou ciência a ela
subordinada, diz-se aplicável à Política tanto no que tange às ciências especulativas como no
que tange às ciências práticas, mas de modos distintos, segundo se considere a operação ou o
objeto da referida ciência. A Política dita à ciência prática quando e como operar, a saber, a
que assuntos deve direcionar-se, etc. Por exemplo, dita ao ferreiro o apenas que ele deve
usar sua habilidade para fazer facas, como também o modo de fazê-lo para que obtenha facas
de um determinado tipo. À ciência especulativa, por sua vez, dita tão somente quando operar,
mas não lhe é dado determinar como. Por exemplo, dita a alguém que ensine ou aprenda
geometria, e outras operações deste tipo, não podendo, entretanto, determinar as conclusões
que a geometria deve retirar de um triângulo. A Política pode ditar que determinadas
operações sejam feitas e, se voluntárias, como devam ser feitas, na medida em que pertençam
à matéria moral, podendo ser direcionadas ao objetivo da vida humana. Contudo, as regras
políticas não guardam relação com as propriedades que pertençam exclusivamente à natureza
das coisas, posto não se referirem à vontade humana e, logo, ao que possa ser direcionado à
vida humana. Ao contrário, são pré-determinadas e independentes em relação ao homem.
253
CEN, I, 2, §26.
95
Assim, Tomás afirma que a Política estabelece que ciência deve ser estudada em um Estado,
tanto prática como especulativa, quem deve estudá-la e por quanto tempo
254
.
A segunda característica, a de servir-se das outras ciências para alcançar seus fins, é
aplicável à Política em sentido genérico apenas no que tange às ciências práticas.
Conseqüentemente, o Doutor Angélico acrescenta que vemos a mais alta estima, as mais
nobres habilidades, isto é, as artes operativas, como a estratégia, a economia política e a
retórica, como que compreendidas pela Política. Essa usa os fins daquelas como meios para
alcançar seu próprio fim, que é o bem comum do Estado. Não obstante, em um sentido
específico, qual seja, o da aplicação das regras de justiça pela Política, nota-se que também
das ciências especulativas ela pode servir-se. É o caso da utilização da matemática
255
.
Tomás então extrai sua conclusão de duas premissas. Já que a Ciência Política se serve
de outras ciências práticas e que ela legisla o que deve ou não ser feito, segue-se que o seu
fim, arquitetônico, admite ou contém sob si os fins das demais ciências práticas. Logo,
conclui que o fim objeto da Ciência Política é o bem do homem, que é o fim supremo das
coisas humanas. Quer dizer, é na Política que a condição humana é realizada, porque ainda
que a atividade política não seja garantia da satisfação individual, sem a realização do seu
fim, o social, não há que se falar em vida excelente do homem.
Cabe aqui abrir um parênteses. Excelência de vida ou felicidade humana não pode ser
entendida tomando-se a ação ética e a ação política de um homem como operações estanques.
Elas possuem características próprias, visam a bens imediatamente próprios, mas, tomadas no
contexto da existência do homem, não podem visar que a um único bem, a excelência de vida
ou felicidade humana. O homem não é ora indivíduo, ora cidadão: ser “homem” consiste na
reunião de ambos esses aspectos, que lhe são, com efeito, fundamentais. A “felicidade do
indivíduo” e a “felicidade do cidadão” são, por assim dizer, apenas partes de uma felicidade
maior, esta sim digna de seu nome. Afirmar que a condição humana é realizada na Política,
com efeito, não equivale a afirmar que o homem se realize tão somente com base na atividade
política (social), o que seria falso. Ele precisa realizar igualmente a atividade ética
(individual)
256
. Significa que a excelência ou felicidade humana encontra lugar de
254
CEN, I, 2, §27.
255
CEN, V, 5 à 9.
256
Com efeito, M. Villey observa: “O indivíduo em si só constitui um ‘todo’, escreve São Tomás, acima da
cidade”. VILLEY, M., Le droit et les droits de l’homme, p. 114.
No século XX, J. Maritain, cuja posição é descrita como a de um “personalismo tomístico”, vem a desenvolver a
tese de que é apenas como pessoa que o ser humano é um todo. MARITAIN, J., La personne et le bien commun,
cap. III.
96
realização entre cidadãos e que, logo, na falta deles, sem alteridade, portanto, ela se
inviabilizaria: o indivíduo estaria privado da possibilidade de buscá-la, porque a condição”
para tanto o está apenas nele, mas na existência dos vínculos sociais. Partindo da noção de
bem, o “bem particular” correspondendo ao fim individual e o “bem comum”,
correspondendo ao fim social, J. Follon afirma:
Uma vez, ainda, nós gostaríamos de prevenir a tentação de estabelecer uma oposição por
demais simplificada entre o bem comum e o bem particular, lembrando que a sua diferença
não depende do titular do bem, como se se afirmasse que o primeiro é o bem da
comunidade política, e o segundo aquele da parte. Uma tal abstração cidade-indivíduo, cada
um existindo separadamente, não teria nenhum sentido. Pode-se agora compreender
porque, segundo o Tomás, o bem comum é o fim das pessoas singulares vivendo em
comunidade. (...) O objeto do querer pessoal retificado pela virtude da justiça geral é o
bem comum na sua perfeição de finis quo. Para uma concepção da pessoa que não é
“substancialista”, na medida em que não se trata aqui de uma natureza autosuficiente, esta
quase assimilação do bem comum ao bem pessoal não possui nada de individualista. De
fato, sendo a práxis necessariamente interpessoal, todos os motivos de nossas ações
concernem sempre, diretamente ou indiretamente, nosso próximo
257
.
Com referência à segunda prova, Tomás trata da consideração da Política como a mais
importante ciência em função da natureza de seu “fim especial”. Evidencia-o na medida em
que a causa gera mais efeitos se for anterior e tanto mais quanto mais poderosa. Portanto, na
medida em que o bem, que tem a natureza de uma causa final, for mais poderoso, mais efeitos
gera. Então, mesmo que o bem seja o mesmo para um homem e para todo o Estado, ele parece
melhor e mais perfeito de se atingir enquanto esteja relacionado com este último.
Certamente, pertence ao amor
258
que deve existir entre os homens que se deve preservar o
bem, mesmo que de um único homem. Mas é muito melhor e mais divino tomar esta
atitude visando toda uma nação, a qual contém inúmeras cidades. Diz, a propósito, que isto
é mais divino no que mais pertence à semelhança de Deus, que é a causa última de todos os
bens. Ora, é este bem, a saber, aquele que é comum a uma ou várias cidades, que visa o
método, quer dizer, a arte que se chama civil. Ainda, pertence-lhe supremamente, enquanto
principal, considerar o fim último da vida humana
259
.
257
FOLLON, J., Le finalisme chez Aristote et S. Thomas, p. 160.
258
Tomás introduz aqui vocabulário fortemente marcado pela sua visão cristã. O “amor” a que se refere diz
respeito àquele estabelecido por Deus para conduzir os homens à sua finalidade última.
259
CEN, I, 2, §30.
[72734] Sententia Ethic., lib. 1 l. 2 n. 12
Pertinet quidem enim ad amorem qui debet esse inter homines quod homo quaerat et conservet bonum etiam uni
soli homini, sed multo melius est et divinius quod hoc exhibeatur toti genti et civitatibus. Vel aliter: amabile
quidem est quod hoc exhibeatur uni soli civitati, sed multo divinius est, quod hoc exhibeatur toti genti, in qua
multae civitates continentur. Dicit autem hoc esse divinius, eo quod magis pertinet ad Dei similitudinem, qui est
universalis causa omnium bonorum. Hoc autem bonum, scilicet quod est commune uni vel civitatibus pluribus,
intendit methodus quaedam, id est ars, quae vocatur civilis. Unde ad ipsam maxime pertinet considerare
ultimum finem humanae vitae: tamquam ad principalissimam.
97
Retomando-se a divisão das ciências práticas, a Ética Individual ocupa-se da ação do
indivíduo, a Ética Doméstica das operações da célula familiar e a Ciência Política das do
grupo civil. Essa última tem um objeto maior, que engloba, não quantitativa como
qualitativamente, os das demais ciências supracitadas. A ação de cada homem direciona-se
para um fim o qual o pode opor-se ao alcance pela sociedade do seu fim. Do contrário, o
próprio fim maior do homem seria frustrado. Fica patente, então, a subordinação do fim do
homem estrito senso relativamente ao fim social, fim do homem lato senso. Esse é anterior.
Recorde-se da afirmação feita por Tomás de que o homem é por natureza um animal
“social”
260
ou cidadão
261
. A satisfação de seu fim individual é dependente de uma ordem total,
que o engloba, e que está intimamente ligada ao fim último de sua vida. É dessa ordem,
justamente, que trata a Política.
No seu Comentário à Política, desenvolve outro argumento tendente a demonstrar a
mesma conclusão. Parte do princípio de que toda sociedade é estabelecida para a busca de
algum bem, pois os cidadãos agem motivados pela idéia de posse daquilo que lhes parece
bom. Diz, então, que a sociedade que é a mais alta busca necessariamente, no mais alto grau,
o bem que é o mais alto entre todos os bens humanos. A sociedade mais elevada é aquela que
engloba as outras, como a casa é principal em relação aos muros que a compõem. Englobando
a Cidade (ou Estado) os demais grupos civis, que por sua vez englobam as famílias, que
englobam os indivíduos, é ela dita a sociedade perfeita. Com efeito, como foi visto, a ordem
entre os diferentes níveis sociais assegura a possibilidade do suprimento de todas as
necessidades da vida humana, tanto biológicas, como morais, e é justamente a garantia desta
completa subsistência que busca garantir o Estado. Logo, o bem a que está ordenado é o mais
alto bem humano, dito supremo: o bem comum, melhor e mais divino que aquele de cada um.
Pois é este Estado, teleologicamente ordenado ao bem comum, o objeto da Política.
No De regno, destaca a não identidade entre o bem individual e o bem comum
262
,
razão pela qual a divisão da Filosofia Moral é justificada. A Ciência Política é necessária pois
isoladamente o homem buscaria o seu bem enquanto indivíduo, mas não se realizaria
260
CEN, I, 1, §4.
[72708] Sententia Ethic., lib. 1 l. 1 n. 4
Sciendum est autem, quod quia homo naturaliter est animal sociale, utpote qui indiget ad suam vitam multis,
quae sibi ipse solus praeparare non potest; consequens est, quod homo naturaliter sit pars alicuius multitudinis,
per quam praestetur sibi auxilium ad bene vivendum.
261
Commenatire de la Politique, I, 1, §26.
[79099] Sententia Politic., lib. 1 l. 1 n. 26
Et cum civitas non sit nisi congregatio hominum, sequitur, quod homo sit animal naturaliter civile.
262
De regno, I, 1.
98
enquanto cidadão. Enquanto àquele é guiado por Deus através da faculdade racional que lhe
foi conferida, a esse depende de ser guiado por uma autoridade de Estado através de uma
legislação
263
. O Doutor Cristão sustenta que, em sendo o ser humano de natureza social, ele
depende, para além do seu princípio ordenador individual, que o levará a um bem também
individual, de que seja estabelecido um princípio ordenador para a sociedade que integra,
capaz de levá-lo, então, ao seu bem fundamental próprio, capaz de torná-lo digno de
humanidade: o bem comum.
(...) como o homem é um animal naturalmente social, vivendo em multidão, a similitude
com o governante divino no homem não se encontra apenas naquilo que um homem é
governado pela razão, mas ainda naquilo que a multidão é regida pela razão de um
homem
264
.
Tomás é coerente em também insistir sobre as implicações da noção de ordem
hierárquica no que tange às ciências. Se os fins são trabalhados no interior de uma ciência
própria segundo o seu âmbito de alcance imediato, comunicam-se entre si quando se passa a
considerar o seu âmbito de alcance mediato. Nesse sentido, é impossível que se isole as
ciências de modo absoluto, apesar de ter cada uma um objeto de alise específico. Ao
contrário, dada a inter-relação dos fins que fazem objeto de uma e de outra ciência, é preciso
respeitar uma hierarquia entre elas. O fim supremo, objeto da Política, funciona como um
critério limitador do fim que é objeto da Economia e do que é da Ética, o que justifica que
aquela se sobreponha a essas, definindo sua atuação e servindo-se delas.
Após ter provado que a Ciência Política é a mais importante, chama a atenção para o
fato de que o é a mais importante absolutamente, mas na divisão das ciências práticas que
estão relacionadas às coisas humanas, cujo fim último ela considera. À Política cabe tratar do
fim último da vida humana. Contudo, é à Teologia que cabe considerar o fim último de todo o
universo, sendo, logo, a mais importante ciência, sem qualquer qualificação. Aqui a
contribuição do pensamento cristão de Tomás é evidente. Aristóteles limitara-se, a o
momento, a estabelecer a disciplina referente ao estudo do fim supremo, a saber, a Ciência
263
De regno, I, 1.
264
De regno, I, 13.
[69945] De regno, lib. 1 cap. 13
Sed quia, sicut supra ostendimus, homo est animal naturaliter sociale in multitudine vivens, similitudo divini
regiminis invenitur in homine non solum quantum ad hoc quod per rationem regitur unus homo, sed etiam
quantum ad hoc quod per rationem unius hominis regitur multitudo: quod maxime pertinet ad officium regis,
dum et in quibusdam animalibus, quae socialiter vivunt, quaedam similitudo invenitur huius regiminis, sicut in
apibus, in quibus et reges esse dicuntur, non quod in eis per rationem sit regimen, sed per instinctum naturae
inditum a summo regente, qui est auctor naturae.
99
Política
265
. Mais adiante, admite que essa não é a melhor ciência em geral
266
, mas também não
afirma ser essa a Teologia. É consensual a impossibilidade de que seja a ciência mais
importante de maneira absoluta, conquanto se limite aos bens humanos, aqueles sobre os
quais se delibera e que, logo, têm o estatuto da contingência. Como ciência prática, ainda,
trata do fim supremo do homem, mas não do fim supremo de todas as coisas indistintamente.
Com efeito, o homem não é a coisa mais importante sem qualificações e, logo, não se
está autorizado a atribuir o maior grau de excelência à ciência que se limita a ele. Aristóteles
diz que “há outras criaturas mais divinas por sua natureza, a saber, as coisas mais evidentes
que constituem o universo”
267
. Aqui também há, mas de maneira mais sutil, um acréscimo de
Tomás que denota suas convicções religiosas. O Doutor Cristão afirma que:
(...) outras [coisas] possuem uma natureza muito mais divina e excelente que o homem.
Mesmo não falando de Deus, nem das substâncias separadas, que não recaem sob os
sentidos, algumas [coisas], entre as mais manifestas aos sentidos, e das quais o mundo é
constituído, a saber, os corpos celestes, são mais poderosas que o homem, seja sendo
comparadas corpo a corpo, seja sendo comparadas substância motora a alma humana
268
.
Também não é critério válido para a atribuição de uma maior importância à Ciência
Política sua utilidade para um fim posterior. Ao contrário, como foi visto, o fato dela se dirigir
ainda a outro fim indica, primeiro, que ela é em um certo sentido um “meio” e, segundo, que
existe um fim superior ao seu. Ora, diz Tomás, as ciências especulativas estrito senso são
buscadas simplesmente como honráveis em si mesmas. Elas encontram na sabedoria sua
principal virtude, cuja função é considerar as coisas que são comuns a todas as entidades.
265
EN, II, 1094b7-11, 30-31; CEN, I, 2, §30.
266
EN, VII, 1141a20-22, 1185-1186; CEN, VI, 6, §1186.
267
EN, VII, 1141a22-33, 1187-1188.
268
CEN, VI, 6, §1189.
[73893] Sententia Ethic., lib. 6 l. 6 n. 6
Sed hoc nihil refert ad propositum: quia quaedam alia secundum suam naturam sunt multum diviniora propter
sui excellentiam, quam homo. Et ut taceamus de Deo et substantiis separatis quae non subiacent sensibus, etiam
ipsa quae manifestissima sunt sensui, ex quibus mundus constat, scilicet caelestia corpora, sunt homine potiora,
sive comparemus corpus corpori, sive comparemus substantias moventes animae humanae.
100
5 A Ética e a Política como ciências
Uma disciplina qualquer, especulativa ou prática, para que possa ser dita científica,
precisa preencher a duas características. Primeiro, ela deve ter princípios que sejam
informados por uma ciência superior, o que determina a existência de uma ordem hierárquica
entre as ciências e, logo, uma certa dependência. Segundo, ela precisa ter princípios que sejam
independentes da ciência superior, o que caracteriza propriamente uma “autonomia
científica”, ainda que as ciências se relacionem de maneira desigual. Do contrário, aquela
disciplina se resumiria a uma parte dessa, a qual teria o estatuto científico em detrimento seu.
Deve estar claro que, para Tomás, a Ética não se resume a um capítulo da Política. Ele
reconhece a ambas como ciências. Isto porque, apesar daquela estar subordinada a essa, cada
uma possui um domínio que lhe é próprio, dito seu subiectum
269
. Ora, se ambas tratam do
bem, uma trata do bem individual e outra do coletivo, o que não significa a mesma coisa.
Com efeito, dependem de regras próprias para serem alcançados. O Doutor Angélico já tratara
do tema no De Regno, onde sustenta que “não identidade entre o bem próprio e o bem
comum”
270
. Um indivíduo humano, uma família ou uma sociedade civilmente organizada
distinguem-se, assim, não apenas em termos quantitativos, mas fundamentalmente em termos
qualitativos. Com respeito ao ponto que interessa aqui: a qualidade humana individual e
cidadã, apesar de pertencerem ao mesmo ser, assinalam diferentes perspectivas dentro do
gênero que constitui o homem. O cidadão não é necessariamente um indivíduo humano, assim
como a recíproca também o é verdadeira. As qualidades humanas individuais e políticas,
apesar de encontrarem respaldo na natureza do homem, dependem de certos bens para serem
concretizadas. O homem, ele mesmo, o tem existência, a o ser por analogia, se não for
realizado dentro da totalidade das esferas que compõem o seu conceito.
Sozinho, o bem da Política, apesar de superior ao bem da Ética em qualidade, ainda
não assegura a humanidade àquele que o alcança. O homem é indivíduo, é integrante de um
lar e é cidadão. Tem, logo, uma atividade ética, doméstica e social a exercer. A falta de
269
J.-F. Courtine apresenta a discussão sobre o subiectum de uma ciência, donde se faz necessário distinguir o
seu objeto propriamente dito (subiectum), aquilo que lhe é dado como pressuposto, e a matéria que gira em torno
dele (quaesitum), aquilo sobre o que se volta sua investigação. Sobre a origem da necessidade de emprego deste
vocabulário, consultar: COURTINE, J-F., Suarez et le système de la métaphysique, p. 9 a 30.
270
De Regno, I, 1.
[69921] De regno, lib. 1 cap. 1
Hoc autem rationabiliter accidit: non enim idem est quod proprium et quod commune.
101
qualquer delas impede a associação da palavra “homem” em sentido estrito ao ser. Diz-se que
a condição humana só se realiza na Política porque não apenas ações propriamente sociais são
realizadas em sociedade, mas as ações éticas e econômicas inserem-se neste todo. Em
outras palavras, não é apenas o homem visto sob o seu aspecto político que integra uma
sociedade. Se ele a integra, também quando visto sob o seu aspecto individual ou sob o
doméstico é preciso fazer tal consideração. Sua educação, valores e linguagem, portanto, é
fruto do meio em que vive. A ação humana não existe dela dissociada. A família é englobada
pela sociedade política, bem como os seres humanos individualmente considerados. o
obstante, cabe a ressalva de que nem todo indivíduo pode ser chamado cidadão
271
e apenas
aqueles que podem sê-lo são passíveis de realizar sua excelência ou felicidade nesta vida.
A linguagem humana pode dizer o útil e o nocivo, e significar, assim, o justo e o injusto. A
justiça reside, com efeito, na adaptação do benéfico a cada situação. A linguagem é, então,
própria ao homem, pois único entre os animais a conhecer o bem e o mal (e por via de
conseqüência, o justo e as noções deste gênero) e a poder exprimir-se pela linguagem.
Como esse poder lhe foi dado pela natureza, a fim de dividir com seus pares suas posições
sobre a utilidade, a justiça ou qualquer outra consideração do tipo, e que a natureza não faz
nada que decepcione, é natural aos homens de colocar sua opinião em comum. Mas essa
comunicação constitui o fundamento mesmo do domínio e da cidade. Assim, o homem é
naturalmente um animal familiar e cidadão
272
.
A Ciência Política, como ciência arquitetônica que é, dita à Ética que o indivíduo aja
segundo a virtude e como deverá fazê-lo, o que está posto na lei civil. Manda, por exemplo,
àquele que quer exercer a profissão de médico, que faça faculdade de medicina, a fim de que
possa bem desempenhar tal papel na sociedade. Nesse sentido, o indivíduo é também
considerado um cidadão, uma vez inserido no meio social e sujeito às leis civis. A Política se
serve da Ética, então, para a realização do seu fim, que é o fim da comunidade, a garantia
social de que o médico dispõe da formação adequada para que se ocupe da saúde humana.
271
H. Arendt observa: “Os Gregos, dos quais a cidade foi a mais individualista, a menos conformista que nós
conhecemos, sabiam muito bem que sua polis, acentuando a linguagem e a ão, o poderia sobreviver a o
ser pela condição de manter sempre restrito o número de cidadãos”. ARENDT, H., Condition de l’homme
moderne, p. 82.
272
Commenatire de la Politique, I, 1, §29.
[79102] Sententia Politic., lib. 1 l. 1 n. 29
Sed loquutio humana significat quid est utile et quid nocivum. Ex quo sequitur quod significet iustum et
iniustum. Consistit enim iustitia et iniustitia ex hoc quod aliqui adaequentur vel non aequentur in rebus utilibus
et nocivis. Et ideo loquutio est propria hominibus; quia hoc est proprium eis in comparatione ad alia animalia,
quod habeant cognitionem boni et mali, ita et iniusti, et aliorum huiusmodi, quae sermone significari possunt.
Cum ergo homini datus sit sermo a natura, et sermo ordinetur ad hoc, quod homines sibiinvicem communicent
in utili et nocivo, iusto et iniusto, et aliis huiusmodi; sequitur, ex quo natura nihil facit frustra, quod naturaliter
homines in his sibi communicent. Sed communicatio in istis facit domum et civitatem. Igitur homo est naturaliter
animal domesticum et civile.
102
Não obstante, a Ética possui, ao lado das regras que são dadas pela Política, outras que lhe são
próprias e sobre as quais essa não pode interferir. Ela não pode mandar que o indivíduo queira
ser médico e, logo, que faça tais estudos. Pertence à esfera individual a escolha de um dado
projeto de vida, pois cada ser humano é único no uso das faculdades que decorrem de sua
singularidade. Escolhas individuais pressupõem uma certa liberdade, a qual exclui um
determinismo absoluto. É próprio a cada um a definição e a busca do bem correspondente à
sua humanidade, não sendo razoável que se admita um pré-estabelecimento geral oriundo da
esfera política. Esse bem, que também é único, constitui uma especificação da idéia comum
de humanidade, que é compartilhada apenas de modo abstrato com os outros indivíduos
“homens”. Em síntese, o ser humano individual é livre para elaborar a concepção de bem que
lhe é própria, desde que sejam respeitados os limites ditados pela Política, disciplina que
cuida de assegurar a possibilidade do bem comum.
Neste sentido, não é por uma impossibilidade lógica que a Política não possa ditar à
Ética que um determinado indivíduo seja médico, como não pode ditar ao geômetra que faça
um triângulo cuja soma dos ângulos seja diferente de 180°. Uma lei despótica o faria. Mas
uma impossibilidade ética, dada a afronta à natureza humana, que depende da garantia de
certas prerrogativas individuais, dentre elas a liberdade, para que possa ser assim qualificada.
Fica claro, então, que a Ciência Política não tem o condão de determinar a concepção
particular de bem, visto que essa é dada dentro de outro domínio, o privado. Incumbe a cada
um desenvolver, consoante os princípios diretivos que lhe são dados racionalmente, o seu
projeto de vida, aquele que fará da sua pessoa, que é única, feliz. É à Ética Monástica que
incumbe investigar o que é bom para si e defini-lo abstratamente, por dizer respeito à natureza
do homem enquanto diferente” dos outros homens em individualidade. À Ciência Política
incumbe estabelecer quais são as regras de moralidade aplicáveis à coletividade, por dizer
respeito à natureza do homem enquanto “igual” aos outros em humanidade. Elas se aplicam
ao conjunto humano e dependem da interação humana, no caso, sob a qualidade civil, para
serem satisfeitas. Há, portanto, que se admitir a existência de regras gerais, as quais não
podem ser desrespeitadas por uma regra individual. O indivíduo que escolhe os meios que lhe
aprouvem para a realização da sua felicidade o faz em meio a uma sociedade organizada,
precisando observar os limites impostos pela Ciência Política ao exercício da Ética Individual.
Contudo, aquela, interferindo no domínio próprio dessa, comete arbitrariedade e não obriga.
Coexistem, no que tange às duas disciplinas supra-citadas, uma dose de subordinação e uma
dose de autonomia, da mesma forma em que se admite a existência de certos deveres sociais
103
ao lado da liberdade individual. O Doutor Comum pode, logo, afirmar a superioridade de uma
sobre a outra e, ainda, o caráter científico de cada uma delas.
5.1 O significado de scientia
Cabe, aqui, identificar dois usos feitos por Tomás de Aquino do termo scientia no
sentido de ciência” ou “disciplina científica”
273
, cuja ignorância pode induzir o leitor do
Comentário à falsa crença de que ele se contradiz. O Doutor Cristão introduz a distinção já no
livro I, mas a retoma no livro VI, onde faz decorrer da sua consideração conseqüências mais
fortes
274
. A ciência pode ser dita, então, especulativa ou prática
275
.
Para que se chegue a esta distinção, cabe proceder a alguns esclarecimentos sobre o
modo como Tomás atribui ao homem a capacidade de conhecer cientificamente. Ele parte da
divisão da alma em racional e irracional. À primeira, corresponde o órgão dito intelecto” ou
“razão”, à segunda, o dito “apetite”. Pois aquele, o intelecto, se subdivide em duas partes,
uma propriamente “científica” e a outra “estimativa”, dependendo do uso que o sujeito
cognoscente queira fazer dele (estritamente teórico ou prático), conforme fora visto. A divisão
da alma em partes diferentes permite que se conheça coisas de natureza também diferentes,
como o são as necessárias e as contingentes. Diz Tomás que “as partes da alma racional
diferem em gênero da mesma maneira que as [coisas] conhecidas pela razão”
276
.
A parte que conhece as necessárias é dita especulativa, a que conhece as contingentes,
prática. Com efeito, o conhecimento do que é necessário não é dado ao homem da mesma
maneira do que o conhecimento do que é contingente. Assim, uma ciência própria para o
tratamento de um e de outro, a saber, a ciência especulativa e a ciência prática,
respectivamente.
273
O termo scientia significa também o conhecimento próprio à ciência ou disciplina científica, ou seja, o
conhecimento científico.
274
É conseqüência a prioridade da virtude da sabedoria sobre a da prudência. Isto porque aquela trata do
conhecimento especulativo e, então, necessário e incorruptível; essa, por sua vez, trata do conhecimento prático
e, então, contingente e corruptível. Assim, Tomás chega à demonstração de que o tipo de vida político o é
superior absolutamente.
275
É interessante notar a crítica feita modernamente por Blanché à tentativa de classificação das ciências. Ele
diz: “Não ciências abstratas e ciências concretas, ciências racionais e ciências empíricas. Há, primeiramente,
entre as ciências, degraus diversos de abstração e de racionalidade, que permitem ordená-las em série. Há, em
seguida, para cada uma delas, a possibilidade de uma dupla leitura: abstrata, racional e formal, ou concreta,
empírica e material”. BLANCHÉ, R., L’axiomatique, p. 101/2.
276
CEN, VI, 1, §1117.
[73821] Sententia Ethic., lib. 6 l. 1 n. 9
Ergo, sicut cognita per rationem genere differunt, ita et partes animae rationalis.
104
A ciência especulativa, aquela que Tomás chama de “ciência” em um sentido estrito
277
no decorrer do seu Comentário, descreve uma realidade “objetiva”, conquanto pertença à
natureza das coisas em si, independentemente da vontade humana. Refere-se à matéria
necessária, à qual se aplica o conceito de verdade, em oposição ao de falsidade. O que é
necessário é de uma determinada maneira e não pode ser de outra. Nesse sentido estrito, nota,
não existe ciência sobre as coisas contingentes ou incertas, aquelas “que podem ser de algum
outro jeito”
278
. Apenas excepcionalmente pode-se admitir o contrário, a saber, quando aquilo
que era contingente acontece. Mas, nesse caso, deixa de ser contingente, pois passa a habitar o
mundo “real”. Por exemplo, Tomás cita a constatação de que Sócrates está sentado”
279
. Ele
diz que “é próprio à ciência conhecer com certeza e não seguir aproximações para a
verdade”
280
, dado, como deve ter ficado claro, consistir em “uma certa avaliação dos
universais e das coisas existentes necessariamente”
281
.
A ciência prática, por sua vez, é comparada a uma habilidade
282
por descrever uma
realidade “subjetiva” com o propósito de que sua descrição sirva para o desenvolvimento de
uma prática humana, não tendo sentido se resumida ao ato de conhecimento ele mesmo.
Refere-se à matéria contingente, à qual se aplicam os conceitos de certo ou errado. O que é
contingente pode ser, mas não o é necessariamente. uma possibilidade maior de que seja
de uma determinada maneira, mesmo que o se esteja autorizado a negar a possibilidade do
seu contrário. Ela trata do que é particular, sendo útil para direcionar as operações humanas.
Tomás afirma em relação à dificuldade de compreensão do fim último da vida humana, bem
como de todas as causas últimas, que nós devemos entender isso em suas linhas gerais, ou
277
CEN, I, 2, §24.
278
CEN, VI, 3, §1145.
[73849] Sententia Ethic., lib. 6 l. 3 n. 4
Sed certa ratio scientiae hinc accipitur, quod omnes suspicamur de eo quod scimus quod non contingit illud
aliter se habere: alioquin non esset certitudo scientis, sed dubitatio opinantis.
279
CEN, VI, 3, §1145.
[73849] Sententia Ethic., lib. 6 l. 3 n. 4
(…) Sed quando fiunt extra speculari, idest quando desinunt videri vel sentiri, tunc latent utrum sint vel non sint,
sicut patet circa hoc quod est Sortem sedere.
280
CEN, VI, 3, §1145.
[73849] Sententia Ethic., lib. 6 l. 3 n. 4
Dicit ergo primo, quod manifestum potest esse quid sit scientia ex his quae dicentur, si oportet per certitudinem
scientiam cognoscere, et non sequi similitudines, secundum quas scilicet quandoque similitudinarie dicimus
scire etiam sensibilia de quibus certi sumus.
281
CEN, VI, 5, §1175.
[73879] Sententia Ethic., lib. 6 l. 5 n. 1
Est enim scientia quaedam existimatio de universalibus et de his quae sunt ex necessitate particularia enim et
contingentia non possunt attingere ad certitudinem scientiae, quia non sunt nota nisi secundum quod cadunt sub
sensu.
282
CEN, I, 2, §24.
105
seja, com verossimilhança, porque tal é o modo de entendimento que convém às coisas
humanas”
283
.
A identificação de que algo ocorre geralmente serve como uma aproximação da
verdade. Em se tratando das ações humanas, diz-se serem dignas de um juízo de valor, o certo
ou o errado, justamente porque não são necessárias. O homem é livre para agir, conquanto o
princípio de causalidade o se insurja de modo absoluto sobre ele. Com efeito, Tomás
exclui a necessidade sobre o intelecto e sobre a vontade
284
, os quais são, assim, responsáveis
pela escolha. O critério a ser considerado em qualquer caso, entretanto, é dado, pois diz
respeito à natureza mesma do homem. É sobre os meios que ele delibera, não sobre o fim a
que se dirigem. Por isso, a matéria moral pode ser conhecida, respeitados certos limites. Diz o
Aquinate em relação às ciências práticas:
(...) é preciso que se mostre sua verdade de maneira figurada, quer dizer, com
verossimilhança; e é isto proceder aos princípios próprios desta ciência
285
.
Uma vez que se tenha claro o que o Santo Doutor quer referir com o termo “ciência”
num e noutro caso, não faz sentido atribuir às suas teses a nota da contradição. Contudo, ele é
bastante sutil em seu movimento, devendo o leitor atentar tanto ao seu vocabulário como às
inúmeras subdivisões constantes de sua obra. Ao afirmar que a ciência conhece com certeza e
que não segue aproximações para a verdade, refere-se à “ciência especulativa”. Ao afirmar,
por sua vez, um entendimento em “linhas gerais”, ou seja, com apenas a evidência da
probabilidade, e que se deve “traçar um esboço da verdade”, ou seja, uma aproximação da
verdade, refere-se à “ciência prática”.
Pois a Ética e a Política são ciências no segundo sentido: são ciências práticas, porque
tratam da ordem que pode ser trazida à deliberação, escolha e ação voluntária
286
, qual seja, a
283
CEN, I, 2, §24.
[72728] Sententia Ethic., lib. 1 l. 2 n. 6
Dicit autem quod oportet illud accipere figuraliter, id est verisimiliter, quia talis modus accipiendi convenit
rebus humanis, ut infra dicetur.
284
Salvo quanto à primeira verdade teórica (o grande é maior do que a parte) e quanto à primeira virtude moral
(deve-se fazer o bem e evitar o mal).
285
CEN, I, 3, §35.
[72739] Sententia Ethic., lib. 1 l. 3 n. 4
Deinde oportet ostendere veritatem figuraliter, idest verisimiliter; et hoc est procedere ex propriis principiis
huius scientiae.
286
FINNIS, J., Founders of Modern Political and Social Thought: Aquinas. Moral, Political and Legal Theory,
p. 21.
106
ordem que envolve os bens do homem. Ora, diz Tomás, se delibera sobre aquilo que é
contingente, como o são as coisas ordenadas a um bem, pois o contrário não faz sentido
287
.
Apesar das indefinições e das dificuldades encontradas para um estudo sistematizado
desta matéria, é um imperativo que se o faça. Como fora visto, tudo no universo está dirigido
a um fim. É natural ao homem o desejo de alcançar o seu fim, o qual pode, em parte, ser
realizado já neste mundo
288
. O seu alcance depende do seu conhecimento. Daí, então, a
necessidade da ciência que tem o condão de viabilizá-lo.
5.2 O método
Se Ética e Política possuem o estatuto de ciências, é também porque ambas seguem a
um método científico. Quer dizer, tanto uma como a outra observam a um conjunto de regras
lógicas com vistas à apreensão de conceitos, bem como à sua análise. Sua observância,
contudo, respeita a moldes próprios. Com efeito, cada ciência dele se serve na medida em que
o seu objeto lhe autorize.
Tomás reconhece que, assim como a natureza do conhecimento científico difere, o
modo de operar numa e noutra ciência deve ser-lhe adaptado. Ora, sustenta, ao homem não é
dado conhecer a tudo, nem de uma mesma forma. O conhecimento humano é, pois, mais ou
menos limitado pela sua condição de criatura conforme seja o tipo de matéria sobre o qual
repouse. Com efeito, ele afirma na Suma de Teologia:
Nosso conhecimento natural tem origem nos sentidos, e segue-se que nosso conhecimento
natural pode estender-se tão longe quanto os objetos sensíveis
289
.
O Aquinate destaca a existência de certas barreiras capazes de colocar freio à busca de
conhecimento pelo homem. É impossível à alma humana, que é ligada a um corpo orgânico,
287
CEN, VI, 6, §1193.
288
Tomás sustenta que o fim supremo pode ser alcançado pelo homem como tal, mas reconhece a
impossibilidade de alcance do fim absoluto do universo nesta vida (humana). É preciso, logo, distinguir o fim
último da vida humana do fim último de todo universo (o Primeiro Motor de Aristóteles ganha uma significação
divina na filosofia de Tomás).
289
ST, I, q. 12, a. 12, conclusão.
[28776] Iª q. 12 a. 12 co.
Respondeo dicendum quod naturalis nostra cognitio a sensu principium sumit, unde tantum se nostra naturalis
cognitio extendere potest, inquantum manuduci potest per sensibilia.
107
apreender as substâncias separadas, causas universais e primeiras do ser
290
, pelo conhecimento
de suas qualidades próprias
291
. O homem não dispõe da faculdade de conhecê-las
absolutamente, mas apenas de estimá-las pela razão. No Comentário à Metafísica, Tomás
explica uma tal limitação a partir do reconhecimento de que a alma humana possui uma
capacidade de inteligir inferior a das demais substâncias capazes de fazê-lo, posto não ser
“separada”, mas unida a um corpo físico. O seu ponto de partida para conhecer é, assim,
sempre dado pela sensibilidade. Ora, o sensível não alcança toda extensão do puramente
cognitivo, que a ultrapassa. Ele diz:
Portanto, dado que a alma humana ocupa o lugar mais baixo na ordem das substâncias
intelectivas, ela possui o menor poder intelectivo. Efetivamente, como ela é por natureza a
atualidade de um corpo, apesar do seu poder intelectivo não ser o ato de um órgão corporal,
de um modo similar ela possui uma capacidade natural de conhecer a verdade sobre as
coisas corporais e sensíveis. Isso é menos conhecido por natureza por causa da sua
materialidade, apesar de poderem ser conhecidas pela abstração das formas sensíveis pelas
imagens. E dado que esse processo de conhecimento da verdade beneficia a natureza da
alma humana na medida em que é a forma desse tipo de corpo (e o que é natural
permanece, então, sempre), é possível à alma humana, que é unida a esse tipo de corpo,
conhecer a verdade sobre as coisas apenas na medida em que ela pode ser elevada ao nível
das coisas as quais ela compreende pela abstração das imagens. Contudo, por esse processo
ela não pode ser elevada ao nível do conhecimento das essências das substâncias imateriais
porque elas não estão no mesmo vel das substâncias sensíveis. Portanto, é impossível
para a alma humana, que é unida a esse tipo de corpo, apreender as substâncias separadas
pelo conhecimento da sua essência
292
.
É impossível ao intelecto humano compreender um número infinito de coisas. Logo, o
homem não é capaz de conhecer todos os singulares. Com efeito, sendo a sabedoria o
conhecimento das causas
293
, importa identificar de que tipo de causa ela trata. Ora, sustenta o
Aquinate, “ela trata das causas mais universais e primárias”. Ele destaca, então, essa
incapacidade intelectual de compreensão da idéia de infinito:
290
Commentary on Aristotle’s Metaphysics, prólogo.
291
Commentary on Aristotle’s Metaphysics, II, 1, §285.
292
Commentary on Aristotle’s Metaphysics, II, 1, §285.
[81851] Sententia Metaphysicae, lib. 2 l. 1 n. 13
Sic igitur, cum anima humana sit ultima in ordine substantiarum intellectivarum, minime participat de virtute
intellectiva; et sicut ipsa quidem secundum naturam est actus corporis, eius autem intellectiva potentia non est
actus organi corporalis, ita habet naturalem aptitudinem ad cognoscendum corporalium et sensibilium
veritatem, quae sunt minus cognoscibilia secundum suam naturam propter eorum materialitatem, sed tamen
cognosci possunt per abstractionem sensibilium a phantasmatibus. Et quia hic modus cognoscendi veritatem
convenit naturae humanae animae secundum quod est forma talis corporis; quae autem sunt naturalia semper
manent; impossibile est, quod anima humana huiusmodi corpori unita cognoscat de veritate rerum, nisi
quantum potest elevari per ea quae abstrahendo a phantasmatibus intelligit. Per haec autem nullo modo potest
elevari ad cognoscendum quidditates immaterialium substantiarum, quae sunt improportionatae istis substantiis
sensibilibus. Unde impossibile est quod anima humana huiusmodi corpori unita, apprehendat substantias
separatas cognoscendo de eis quod quid est.
293
Commentary on Aristotle’s Metaphysics, I, 2, §36.
108
(…) em geral, nós todos consideramos serem especialmente sábios aqueles que conhecem
todas as coisas, conforme peça o caso, sem que tenham um conhecimento de cada coisa
particular. Pois isto é impossível, uma vez que as coisas singulares sejam infinitas em
número, e um número infinito de coisas não pode ser compreendido pelo intelecto
294
.
É também uma impossibilidade humana a apreensão da essência das coisas pelos
sentidos. Como o homem possui um intelecto que opera a partir da intermediação deles, as
essências, que os ultrapassam, são conhecidas apenas por abstração. Com efeito, a
sensibilidade refere-se tão somente ao que é material, cabendo ao intelecto “enxergar” o que
está para além dos acidente. Há, logo, uma certa limitação no que tange ao conhecimento das
propriedades essenciais do objeto cognoscível, a qual pode ser vencida no caso de
intervenção divina. Afirma o Doutor Comum:
Os sentidos não apreendem a essência das coisas, mas somente os acidentes exteriores.
Igualmente, a imaginação alcança a imagem dos corpos. Somente a inteligência alcança
suas essências. Assim, Aristóteles diz que o objeto da inteligência é o que é a coisa, e que,
nesse domínio, ela nunca se engana, não mais do que os sentidos relativamente a seu
sensível próprio. As essências das coisas materiais não estão, então, na inteligência do
homem e naquela do anjo segundo seu ser real, mas do modo como o conhecido é no
conhecedor. Contudo, certas coisas estão na inteligência ou na alma segundo esses dois
modos de ser. Num como noutro caso, há a visão intelectual
295
.
Reconhecendo-se a existência de imperfeições no que concerne à faculdade cognitiva
humana, fica clara a necessidade de relativização das exigências num e noutro domínio, bem
como de adaptação metodológica. A apreensão de conceitos dar-se-á na medida das
capacidades do homem de aproximar-se cognitiva e experimentalmente da verdade.
No que tange à apreensão de conceitos em matéria moral, a busca das causas é uma
“tentativa” que não pode ser negligenciada. Com efeito, do ponto de vista prático, fora
294
Commentary on Aristotle’s Metaphysics, I, 2, §36.
[81602] Sententia Metaphysicae, lib. 1 l. 2 n. 1
Quae talis est: quod communiter omnes accipimus sapientem maxime scire omnia, sicut eum decet, non quod
habeat notitiam de omnibus singularibus. Hoc enim est impossibile, cum singularia sint infinita, et infinita
intellectu comprehendi non possint.
295
ST, I, q. 57, a. 1, ad2.
[30768] Iª q. 57 a. 1 ad 2
Ad secundum dicendum quod sensus non apprehendit essentias rerum, sed exteriora accidentia tantum. Similiter
neque imaginatio, sed apprehendit solas similitudines corporum. Intellectus autem solus apprehendit essentias
rerum. Unde in III de anima dicitur quod obiectum intellectus est quod quid est, circa quod non errat, sicut
neque sensus circa proprium sensibile. Sic ergo essentiae rerum materialium sunt in intellectu hominis vel
Angeli, ut intellectum est in intelligente, et non secundum esse suum reale. Quaedam vero sunt quae sunt in
intellectu vel in anima secundum utrumque esse. Et utrorumque est visio intellectualis.
109
evidenciada a utilidade de se conhecer as causas últimas
296
para o alcance do fim último da
existência humana. Nesse sentido, Tomás recorre a Aristóteles e ainda reforça a necessidade
de se tentar determinar, para insinuar a dificuldade de apreender o fim último da vida
humana, como o caso] em relação a todas as causas mais altas”
297
. Em outra passagem,
menciona seus dizeres, insistindo ainda na problemática que envolve o conhecimento das
“causas” e complementa tomando os princípios como exemplo.
Ele diz que não se deve buscar a causa da mesma maneira em tudo. De outra forma,
proceder-se-á ao infinito nas demonstrações. Ao contrário, em certas [matérias], basta
demonstrar bem, quer dizer, manifestar que isto é assim; por exemplo, no que serve como
princípio em uma ciência, pois o princípio deve ser primeiro. Ainda, ele não pode se
resolver em alguma coisa anterior
298
.
Se a decisão que define a ação humana vincula-se a uma deliberação sobre os meios,
na sua base estão certas regras gerais, princípios primeiros ou segundos. Sua apreensão é,
nesse sentido, diversa. L. Elders apresenta introdutoriamente o método a ser empregado no
estudo da Ética consoante Tomás de Aquino
299
, onde distingue duas maneiras de se conhecer
as regras gerais a serem aplicadas às ões concretas. Ou o seu conhecimento dá-se de
maneira imediata, como no caso dos primeiros princípios do intelecto prático, primeiros
princípios morais que o intelecto formula espontaneamente com base nas inclinações
fundamentais da natureza humana
300
; ou de maneira experimental, como no caso dos
princípios segundos, determinação detalhada das normas de base e normas ou regras de
conduta que os homens sábios aplicam
301
.
296
“Causa última” remete à ordem de conhecimento. Ela é, entretanto, “primeira” na ordem de perfeição.
297
CEN, I, 2, §24.
[72728] Sententia Ethic., lib. 1 l. 2 n. 6
Dicit autem quod tentandum est de his determinare ad insinuandum difficultatem, quae est in accipiendo
ultimum finem in humana vita sicut et in considerando omnes causas altissimas.
298
CEN, I, 11, §137.
[72841] Sententia Ethic., lib. 1 l. 11 n. 7
Et dicit quod non est in omnibus eodem modo causa inquirenda. Alioquin procederetur in infinitum in
demonstrationibus. Sed in quibusdam sufficit quod bene demonstretur, idest manifestetur, quoniam hoc ita est,
sicut in his quae accipiuntur in aliqua scientia, ut principia: quia principium oportet esse primum.
299
ELDERS, L. J., L’Éthique de Saint Thomas d’Aquin: Une lecture de la Secunda pars de la Somme de
théologie, p. 23/32.
300
“Esses primeiros princípios resultam da análise de nossas inclinações fundamentais. É desse modo que a
moralidade de nossos atos é conexa e dependente indiretamente da ordem ontológica”. ELDERS, L. J.,
L’Éthique de Saint Thomas d’Aquin: Une lecture de la Secunda pars de la Somme de théologie, p. 20.
301
ELDERS, L. J., L’Éthique de Saint Thomas d’Aquin: Une lecture de la Secunda pars de la Somme de
théologie, p. 26/7.
110
Portanto, se a ciência é prática ou eminentemente teórica, a apreensão de seus
conceitos seguirá um modo específico. Enquanto aquela se serve de um modo indutivo,
partindo do complexo e particular ao simples e universal, essa, num certo sentido, privilegiará
um modo dedutivo, cuja forma clássica é o silogismo, que procede justamente ao caminho
inverso. Ressalva-se, entretanto, que toda dedução deve em algum momento ter partido de
uma indução. É o que Tomás afirma:
Ora, o ensino procede duplamente a partir do que é conhecido: inicialmente, por indução,
em seguida, por silogismo. A indução é utilizada para conhecer um princípio e um
universal aos quais nós chegamos pela experiência dos singulares, como é dito no primeiro
[livro] da Metafísica. Depois, a partir dos princípios universais conhecidos dessa
maneira, procede o silogismo. Assim, então, segue-se que o silogismo possui princípios que
não são certificados pelo silogismo: de outra forma, proceder-se-ia ao infinito nos
princípios do silogismo, o que é impossível, como provado no primeiro [livro] dos
Segundos Analíticos. Resta, então, que a indução fornece seu princípio ao silogismo. Em
qualquer caso, nenhum silogismo funda uma disciplina, quer dizer, não faz saber sobre a
ciência, mas apenas o demonstrativo, que conclui do necessário a partir do necessário
302
.
O Aquinate insiste com mais força do que o Estagirita na necessidade de se seguir os
princípios. Se os conceitos em matéria prática são apreendidos pela experiência consoante um
modo indutivo, a ação humana é resultado do silogismo que destes conceitos, primeiros
princípios morais, se extrai
303
. Há o que se denomina deliberação. O homem age como
homem quando sua ação é fundada em argumentos concatenados sob a forma de um
silogismo correto. Ele decide de modo analítico, passando de regras gerais, que são simples, à
ação particular e, logo, complexa. Sem que se conheça os princípios que regram a boa ação, o
silogismo se construirá de maneira tal que sua conclusão será equivocada.
O Doutor Comum ensina como se chegar aos princípios. Ele introduz a noção de mais
conhecido “em si mesmo” e a de mais conhecido para nós”
304
. Quer dizer, o modo de
procedimento em qualquer disciplina tem como marco inicial aquilo que é mais conhecido.
Ora, o conhecimento humano não é igualmente alcançado quando a matéria é prática e
302
CEN, VI, 3, §1148.
[73852] Sententia Ethic., lib. 6 l. 3 n. 7
Est autem duplex doctrina ex praecognitis: una quidem per inductionem, alia vero per syllogismum. Inductio
autem inducitur ad cognoscendum aliquod principium et aliquod universale in quod devenimus per experimenta
singularium, ut dicitur in principio metaphysicae; sed ex universalibus principiis praedicto modo praecognitis
procedit syllogismus. Sic ergo patet quod sunt quaedam principia ex quibus syllogismus procedit, quae non
notificantur per syllogismum, alioquin procederetur in infinitum in principiis syllogismorum, quod est
impossibile ut probatur in primo posteriorum. Sic ergo relinquitur quod principiorum syllogismi sit inductio.
Non autem quilibet syllogismus est disciplinalis, quasi faciens scire, sed solus demonstrativus, qui ex necessariis
necessaria concludit.
303
Procedimento análogo ao que se apresentou ser o modo de apreensão de conceitos em matéria teórica.
304
CEN, I, 4, §52.
111
quando é eminentemente teórica. No primeiro caso, reza ser preciso partir do que é mais
conhecido “para nós”, quer dizer, dos subsídios dados ao conhecimento pela sensibilidade
humana, que não necessariamente equivalem ao que é mais conhecido “em si mesmo”. No
segundo, reza ser preciso partir do que é mais conhecido “em si mesmo”, quer dizer, do que é
dado mais imediatamente à razão humana. Em outras palavras, em matéria prática, o que é
mais conhecido “em si mesmo” e “para nós” não coincide, e, então, Tomás sugere que se
comece dos efeitos em direção às suas causas. Em matéria teórica, o que é mais conhecido
“para nós” é também o que é mais conhecido “em si mesmo”, daí começar-se naturalmente
pelos princípios eles mesmos. Ele diz:
Para entender em que ordem se deve proceder em qualquer matéria, deve-se considerar a
necessidade de começar pelo mais conhecido, pois chega-se ao não conhecido a partir do
mais conhecido. Mas se é mais conhecido de duas maneiras. Algumas [coisas], certas [o
são] quanto a nós, como o composto e o sensível. E algumas [coisas o são] de modo
absoluto e quanto à natureza, a saber, o simples e o inteligível. E como nós adquirimos
conhecimento utilizando a razão, é preciso que procedamos do que é mais conhecido para
nós; e se, claro, a mesma [coisa] é mais conhecida de nós e de maneira absoluta, então, a
razão procede dos princípios, como na matemática. Se, contudo, outra coisa é mais
conhecida de maneira absoluta, e outra coisa quanto a nós, é preciso então proceder ao
contrário, como em [matéria] natural e moral
305
.
Ora, os princípios ou causas do conhecimento não se manifestam sempre de uma
mesma maneira. Daí um fundamento para a diversificação das ciências. Em cada uma delas,
eles se apresentam consoante a natureza da matéria que engendram. O mais conhecido, ponto
de partida no processo de apreensão de conceitos, desponta por vezes “em si mesmo”, outras
tantas apenas “para nós”. É o que afirma o Aquinate:
Os princípios eles mesmos, a propósito, não se manifestam [todos] de uma mesma maneira.
Mais freqüentemente, alguns são vistos por uma indução que procede de particulares
fictícios, como, por exemplo, que todo mero é par ou ímpar. Outros são obtidos dos
sentidos, como em [matéria] natural; por exemplo, que todo aquele que vive precisa de
alimento. Outros, enfim, do costume, como em [matéria] moral, por exemplo, que os
305
CEN, I, 4, §52.
[72756] Sententia Ethic., lib. 1 l. 4 n. 10
Et ut accipiatur quo ordine oporteat procedere in qualibet materia, considerandum est quod semper oportet
incipere a magis cognitis, quia per notiora devenimus ad ignota. Sunt autem aliqua notiora dupliciter. Quaedam
quidem quoad nos, sicut composita et sensibilia, quaedam simpliciter et quoad naturam, scilicet simplicia et
intelligibilia. Et quia nobis ratiocinando notitiam acquirimus, oportet quod procedamus ab his quae sunt magis
nota nobis; et si quidem eadem sint nobis magis nota et simpliciter, tunc ratio procedit a principiis, sicut in
mathematicis. Si autem sint alia magis nota simpliciter et alia quoad nos, tunc oportet e converso procedere,
sicut in naturalibus et moralibus.
112
desejos diminuem, se não se os obedece. Outros princípios se manifestam ainda de maneira
diferente, como nas artes de ação os princípios se obtêm graças a alguma experiência
306
.
Se os princípios manifestam-se de diversas maneiras, a mediação é uma característica
constante do conhecimento humano, dada a condição existencial do homem: ele está no
mundo enquanto criatura física, ainda que dotada de uma dimensão espiritual
307
. A razão
humana é mediada pela sensibilidade, o que importa na sua finitude. O bem pelo qual se move
a vontade é também um bem aparente. O homem não pode escapar à impossibilidade do
imediato. Se é então verdade que ele age enquanto homem apenas quando apreende algo
como um bem, o é verdade que essa apreensão ocorra sempre de modo conforme. Como
diz Y. Cattin, “o mundo que se apresenta no sensível não é aquilo que é, ele não é a não ser
em potência relativamente a si mesmo”
308
. Acrescenta que a limitação inerente ao intelecto
humano não significa que o homem possa conhecer racionalmente apenas uma parte do ser
enquanto a outra lhe será sempre inatingível, mas que o ser é dado, transcendente, irredutível
ao próprio eu
309
.
Assim, então, a ciência é manifestamente um hábito demonstrativo, quer dizer, causado
pela demonstração, uma vez observadas todas as [regras] a propósito da ciência,
demonstradas nos Segundos Analíticos. É preciso, com efeito, para que se possa ter ciência,
que os princípios a partir dos quais se sabe sejam também, de alguma maneira, acreditados
e conhecidos antes das conclusões sabidas da ciência. De outra maneira, não se terá por si a
ciência, mas por acidente, apesar de que pode acontecer que se saiba tal conclusão graças a
outros princípios, e não graças àqueles que se sabe antes da conclusão. A causa, com efeito,
deve ser mais poderosa do que o seu efeito. Também, o que é causa do que se conhece deve
ser mais conhecido. É assim que se manifestou a ciência graças a esta maneira [de
conhecer]
310
.
306
CEN, I, 11, §137.
[72841] Sententia Ethic., lib. 1 l. 11 n. 7
Unde non potest resolvi in aliquid prius. Ipsa autem principia non omnia eodem modo manifestantur, sed
quaedam considerantur inductione, quae est ex particularibus imaginatis, sicut in mathematicis, puta quod
omnis numerus est par aut impar. Quaedam vero accipiuntur sensu, sicut in naturalibus; puta quod omne quod
vivit indiget nutrimento. Quaedam vero consuetudine, sicut in moralibus, utpote quod concupiscentiae
diminuuntur, si eis non obediamus. Et alia etiam principia aliter manifestantur; sicut in artibus operativis
accipiuntur principia per experientiam quamdam.
307
É a leitura feita por Y. CATTIN: “(...) o intelecto não é um intelecto humano salvo se reconheça a
impossibilidade do imediato e se abra sobre um outro domínio que não o do pensamento. Dito de outra maneira,
o que é verdade no plano do habitus (quer dizer, da estrutura do espírito) não pode se realizar absolutamente. O
espírito tende dele mesmo a se compreender imediatamente, mas ele não se compreende atualmente, salvo de
modo mediato, quer dizer que a sua atividade não se exerce a não ser sobre o fundamento de uma passividade
originária”. CATTIN, Y., L’antropologie politique de Thomas d’Aquin, p. 56.
308
CATTIN, Y., L’antropologie politique de Thomas d’Aquin, p. 51.
309
CATTIN, Y., L’antropologie politique de Thomas d’Aquin, p. 57.
310
CEN, VI, 3, §1149.
[73853] Sententia Ethic., lib. 6 l. 3 n. 8
Sic ergo manifestum est quod scientia est habitus demonstrativus, idest ex demonstratione causatus, observatis
omnibus illis quaecumque circa scientiam demonstrativam determinata sunt in posterioribus analyticis. Oportet
113
Ainda, para além da imperfeição do intelecto, o conhecimento pode vir a ser frustrado
por uma imperfeição das coisas elas mesmas, quer dizer, pela sua própria natureza: matéria,
movimento e tempo
311
. Um evento não se inclina sempre a uma mesma direção (por isso o
nome), devendo, então, ser considerado como ele aparece na maior parte das vezes, pois
costuma inclinar-se mais a uma do que a outra, ainda que não o faça por necessidade. Nas
palavras de Tomás de Aquino:
(...) como vamos falar de [coisas] que acontecem apenas freqüentemente, a saber, dos atos
voluntários, que a vontade o produz por necessidade, mas que talvez incline mais a um
[lado] que a outro, é preciso que nós procedamos também de [princípios] de mesma
qualidade, de modo que os princípios sejam conformes às conclusões
312
.
Cabe ressaltar, entretanto, que muito embora esse duplo obstáculo se coloque ao
conhecimento, Tomás se posiciona pela maior relevância de um deles, a saber, o intelectual.
Isso explica a necessidade de se proceder a partir do que é mais conhecido para nósna
busca pela verdade, o que nem sempre equivale ao que é mais conhecido “em si mesmo”.
(...) apesar da dificuldade experienciada em conhecer a verdade poder ser talvez bipartida
em função de diferentes coisas, isto é, nosso intelecto e as coisas elas mesmas, a principal
fonte da dificuldade continua a não estar nas coisas, mas no nosso intelecto
313
.
enim, ad hoc quod aliquis sciat, quod principia ex quibus scit (sint) per aliquem modum credita et cognita etiam
magis quam conclusiones quae sciuntur. Alioquin non per se, sed per accidens habebit scientiam, inquantum
scilicet potest contingere quod istam conclusionem sciat per quaedam alia principia et non per ista quae non
magis cognoscit quam conclusionem. Oportet enim quod causa sit potior effectu. Unde id quod est causa
cognoscendi oportet esse magis notum. Et ita per hunc modum determinatum est de scientia.
311
Commentary on Aristotle’s Metaphysics, II, 1, §280.
312
CEN, I, 3, §35.
[72739] Sententia Ethic., lib. 1 l. 3 n. 4
Tertio oportet ut cum dicturi simus de his quae ut frequentius accidunt, idest de actibus voluntariis, quos
voluntas non ex necessitate producit, sed forte inclinata magis ad unum quam ad aliud, ut etiam ex talibus
procedamus, ut principia sint conclusionibus conformia.
[72739] Sententia Ethic., lib. 1 l. 3 n. 4
Tertio oportet ut cum dicturi simus de his quae ut frequentius accidunt, idest de actibus voluntariis, quos
voluntas non ex necessitate producit, sed forte inclinata magis ad unum quam ad aliud, ut etiam ex talibus
procedamus, ut principia sint conclusionibus conformia.
313
Commentary on Aristotle’s Metaphysics, II, 1, §281.
[81847] Sententia Metaphysicae, lib. 2 l. 1 n. 9
Sed hoc excludit philosophus, dicens, quod quamvis difficultas cognoscendae veritatis forsan possit secundum
aliqua diversa esse dupliciter, videlicet ex parte nostra, et ex parte rerum; non tamen principalis causa
difficultatis est ex parte rerum, sed ex parte nostra.
114
Com relação ao duplo obstáculo enfrentado para o conhecimento, o Doutor Angélico
posiciona-se de maneira diversa a Aristóteles. Enquanto aquele situa a imperfeição
prioritariamente no intelecto humano, este a situa nas coisas elas mesmas. Conforme salienta
L. Elders:
Aristóteles parece ter pensado que as regras gerais admitem exceções, enquanto São Tomás
tende a atribuir a falta de certeza na aplicação das regras a defeitos inerentes ao homem,
como a falta de liberdade nas nossas escolhas ou a possibilidade de que uma ação virtuosa
possa, num dado momento, ser impedida por um obstáculo. O exemplo clássico de uma tal
situação é aquele da restituição de um objeto perigoso que, em circunstâncias especiais,
será moralmente errado, a saber, se o proprietário está em um tal estado de emoção que não
se pode devolver-lhe sem o arriscar o advento de um mal
314
.
Uma vez aprendido um conceito, o gozo do seu estatuto científico dependerá da
possibilidade de sua demonstração. A cientificidade do conhecimento depende do emprego de
um conjunto de procedimentos intelectuais e técnicos, que não é o mesmo para todas as
ciências, a fim de manifestá-lo. Com efeito, é ele que viabiliza a verificação da verdade do
conhecimento produzido. Assim como quando se investe na apreensão de uma ordem, faz-se
preciso dispor de um método adequado à sua natureza quando se a analisa. Quer dizer, para
além de um método próprio à apreensão de certos conceitos, é imprescindível um outro
método que seja próprio à sua análise. Ensina o Aquinate no que tange à demonstração de
conceitos:
O modo de manifestar a verdade, em qualquer ciência, deve ser conveniente ao objeto desta
ciência. É manifesto do fato de que a certeza não pode ser encontrada, nem deve ser
buscada, de maneira semelhante em todos os discursos onde raciocinamos sobre algo
315
.
Em se tratando de uma ciência prática, não há que se proceder de maneira estrita, pois,
ainda que a matéria moral possua princípios necessários, a sua realização é contingente. O
método adequado, neste caso, é aquele em que a razão considera as incertezas e variantes
como componentes do seu objeto. Continua o Doutor Angélico:
314
ELDERS, L. J., L’Éthique de Saint Thomas d’Aquin: Une lecture de la Secunda pars de la Somme de
théologie, p. 24/5.
315
CEN, I, 3, §32.
[72736] Sententia Ethic., lib. 1 l. 3 n. 1
Modus manifestandi veritatem in qualibet scientia, debet esse conveniens ei quod subiicitur sicut materia in illa
scientia. Quod quidem manifestat ex hoc, quod certitudo non potest inveniri, nec est requirenda similiter in
omnibus sermonibus, quibus de aliqua re ratiocinamur.
115
(...) deve-se mostrar a verdade de maneira figurada, ou seja, com verossimilhança; e é isto
proceder dos princípios próprios desta ciência. Com efeito, a ciência moral trata das ões
voluntárias; ora, o motivo da vontade não é apenas o bem, mas o bem aparente
316
.
O Aquinate esclarece que os princípios são “tomados como certos numa ciência, uma
vez que estejam no começo e não possam ser reduzidos a nada que lhes seja anterior”
317
. Seja
a matéria prática, como a Ética ou a Política, seja ela especulativa, são dos princípios que
decorrem o seu conteúdo. É claro do que se viu ser preciso que se os considere
conformemente ao tipo de conhecimento que encerram e ao modo como o homem é capaz de
adquiri-lo, mas, Tomás destaca, a necessidade de se os observar não muda.
(...) deve-se insistir em percorrer os princípios um a um, tomando conhecimento e
utilizando-os segundo sejam dados naturalmente a conhecer, e deve-se examinar de que
maneira eles são tratados tendo em vista o conhecimento humano, para que se saiba
distinguir os princípios entre eles e de outras coisas. Com efeito, o conhecimento dos
princípios ajuda a conhecer o que se segue deles. Pois o princípio parece constituir mais da
metade do todo, já que todo o resto está contido nos princípios
318
.
Importa, então, apesar das dificuldades intrínsecas a certos casos, que se examine
atentamente os princípios que regem a matéria objeto
319
da disciplina racional, pois é a partir
deles que se estará autorizado a proceder à ordem lógica de suas preposições, além de
constituírem a condição de possibilidade do desvelamento de suas conclusões. Com efeito, é a
demonstração realizada pela conformação das conclusões com os princípios que legitima um
dado conhecimento como científico, visto que tal procedimento precisa ser finito. Lembra R.
Blanché:
316
CEN, I, 3, §35.
[72739] Sententia Ethic., lib. 1 l. 3 n. 4
Deinde oportet ostendere veritatem figuraliter, idest verisimiliter; et hoc est procedere ex propriis principiis
huius scientiae. Nam scientia moralis est de actibus voluntariis: voluntatis autem motivum est, non solum
bonum, sed apparens bonum.
317
CEN, I, 11, §137.
318
CEN, I, 11, §138.
[72842] Sententia Ethic., lib. 1 l. 11 n. 8
Et dicit quod homo debet insistere ad hoc, quod singula principia pertranseat, scilicet eorum notitiam
accipiendo et eis utendo, secundum quod nata sunt cognosci et studendum qualiter determinentur in hominis
cognitione, ut scilicet sciat distinguere principia abinvicem et ab aliis. Cognitio enim principiorum multum
adiuvat ad sequentia cognoscenda. Principium enim videtur plus esse quam dimidium totius. Quia scilicet omnia
alia quae restant continentur virtute in principiis.
319
Sobre o significado de “objeto”, vide COURTINE, J-F., Suarez et le système de la métaphysique, cap. 1.
116
(...) a demonstração o pode, com efeito, remontar ao infinito e deve repousar bem sobre
algumas proposições primeiras, mas se tomou o cuidado de escolher aquelas sobre as quais
nenhuma dúvida subsista num espírito são
320
.
Da mesma forma, não faz sentido a pergunta pelo fim último do homem, mas pelos
meios capazes de levá-lo até ele, pois aquele é pressuposto à caracterização de sua espécie, é
o que o realiza como tal: um ser humano. Enquanto o conhecimento dos meios para o fim é
obtido a partir do raciocínio deliberativo, o conhecimento do fim não pode ser alcançado por
outro modo que não seja o imediato: ele é formulado espontaneamente pelo intelecto. Ora,
se delibera sobre matéria contingente, tais como os meios, mas não sobre o necessário, como
o fim último do homem, que lhe é dado visto sua natureza. Refere o Santo Doutor
ensinamento de Aristóteles:
(...) ele mostra que termo ou parada apresenta a deliberação no que tange ao fim. Ele diz
que todas as ações são em vista de outra coisa, a saber, dos fins. Assim, não há deliberação
do fim mesmo, mas do meio. Assim, decorre que há um fim na investigação da deliberação,
às vezes no que toca o fim, às vezes no que toca o agente, como nas demonstrações, às
vezes em direção ao alto e em direção ao baixo, como no que toca um e outro extremo
321
.
Faz-se preciso destacar que o tema do método na Ética é abordado por Tomás sob dois
enfoques - o do professor e o do aluno - o que ilustra a relação existente entre uma ciência
superior e uma ciência subordinada. Quer dizer, assim como o aluno coloca certas questões
para as quais apenas o professor possui a resposta, a ciência subordinada parte de certos
princípios os quais apenas a ciência que lhe é superior tem o condão de demonstrar. Como
conseqüência, uma ciência subordinada é verdadeira hipoteticamente, posto que ela funda-se
sobre princípios os quais o conhece, mas que são pressupostos à sua investigação. É a
ciência superior, por sua vez, que pode demonstrá-lo. No caso da Ética, não faz sentido a
pergunta sobre o porquê da necessidade de respeito ao bem comum. Esse é uma premissa a
ser aceita. A investigação acerca do bem individual acontece, necessariamente, dentro de um
quadro de conformidade com aquele, que não é posto em pauta. Ora, assim como o professor
é aquele que detém o conhecimento em si e que o aluno parte daquilo que aquele lhe dera
320
BLANCHÉ, R., L’axiomatique, p. 9.
321
CEN, III, 8, §480.
[73184] Sententia Ethic., lib. 3 l. 8 n. 8
Secundo ibi: operationes autem etc., ostendit quod consilium habet terminum vel statum ex parte finis. Et dicit,
quod operationes omnes sunt aliorum gratia, id est finium. Unde de ipso fine non est consilium, sed de his quae
sunt ad finem. Et sic patet, quod status est in inquisitione consilii et ex parte finis et ex parte agentis sicut in
demonstrationibus, et in sursum et in deorsum, quasi ex parte utriusque extremi.
117
como conhecido, a ciência superior é aquela que conhece as causas e a ciência subordinada
deve partir daquilo que aquela lhe dita.
No que tange à análise dos conceitos apreendidos, quer dizer, às operações lógicas que
a eles se impõem, o Doutor Angélico ensina que ela pode ser feita de dois modos, de tal sorte
que as conclusões se mostrem conformes aos princípios ou regras gerais acima referidas.
Sendo a ciência especulativa, adota-se o modo resolutivo ou analítico, segundo o qual de um
conceito complexo chega-se a conceitos mais simples. Sendo a ciência operativa, adota-se o
compositivo ou sintético, segundo o qual se procede, inversamente, de conceitos simples a um
complexo. Ele afirma:
Assim, posto que segundo a arte da ciência demonstrativa é preciso que os princípios sejam
conformes às conclusões, é amável e desejável, sobre tais [coisas], a saber, o variáveis,
que fazendo o tratado proceda-se também a mostrar a verdade a partir de [princípios]
similares, e antes certos grosseiramente, a saber, aplicando os princípios universais e
simples aos [objetos] singulares e compostos onde se passa o ato. Pois é necessário em
qualquer ciência operativa que se proceda segundo um modo compositivo. Ao contrário,
entretanto, numa ciência especulativa é necessário que se proceda segundo um modo
resolutivo, resolvendo os [objetos] compostos a princípios simples
322
.
L. Elders afirma que o todo de análise da disciplina ética é o compositivo (more
compositivo), ou seja, que ele se pela aplicação de normas e de regras às ações concretas,
enquanto o método de análise das disciplinas especulativas é o analítico (more resolutivo),
pela redução do que é composto aos seus princípios
323
. Segundo ele, é a virtude intelectual da
prudência que viabiliza a composição ética, uma vez que seja responsável pela aplicação da
norma adequada ao caso em questão. Lembra, não obstante, que também a Ética encontra
ocasião de servir-se desse último, quando, conforme fora visto, o que está em pauta é o modo
de apreensão de conceitos e não a sua análise.
Na ética, nós utilizamos o modus compositionis, mas isso não significa que a análise
(resolutio) seja totalmente ausente. É preciso empregar a análise para conhecer o fim
322
CEN, I, 3, § 35.
[72739] Sententia Ethic., lib. 1 l. 3 n. 4
Et quia secundum artem demonstrativae scientiae, oportet principia esse conformia conclusionibus, amabile est
et optabile, de talibus, idest tam variabilibus, tractatum facientes, et ex similibus procedentes ostendere
veritatem, primo quidem grosse idest applicando universalia principia et simplicia ad singularia et composita,
in quibus est actus. Necessarium est enim in qualibet operativa scientia ut procedatur modo compositivo, e
contrario autem in scientia speculativa necesse est ut procedatur modo resolutivo, resolvendo composita in
principia simplicia.
323
ELDERS, L. J., L’Éthique de Saint Thomas d’Aquin: Une lecture de la Secunda pars de la Somme de
théologie, p. 23.
118
último do homem. No que concerne o modus compositionis, a virtude da prudência nos faz
aplicar regras em situações particulares
324
.
Os princípios possuem uma dupla importância no processo de conhecimento. De um
lado, sendo a matéria de natureza ou prática ou especulativa, é neles que uma tal
diferenciação se faz sentir de modo original, constituindo o parâmetro à definição do método
a ser empregado. De outro lado, dada a exigência de demonstração para que o conhecimento
seja dito científico, é também a eles que se precisará conformar as conclusões que se supõe
sejam científicas, servindo de critério para uma tal legitimação.
É preciso distinguir, não obstante, o plano da teoria sobre a prática do plano prático
propriamente dito. A ação não é determinada sem que haja a intervenção de algo para além
dos princípios morais. Se a cientificidade do conhecimento moral explica-se através deles, a
ação, que é propriamente humana, depende ainda da vontade. O homem move-se como tal
quando o faz guiado por um apetite racional. Cita-se os dizeres de J. H. J. Schneider:
(...) a razão especulativa vai dos princípios às conclusões por necessidade; ela tem sempre
por objeto as coisas necessárias, enquanto a razão prática procede por “determinação”,
como diz Tomás (ST, I-II, 95, 2). Ela tem por objeto o agir humano e por conseqüência as
coisas, que ocorrem sempre de outro jeito (ST, I-II, 94, 4). O que deve ser feito não pode
ser deduzido do primeiro princípio. Concretamente, o agir do homem advém unicamente da
vontade. A razão é nele ativa por invenção, ou seja, agregando ao primeiro princípio
alguma coisa. O que ela agrega é o que na origem o está no primeiro princípio da razão
prática, mas nas experiências humanas
325
.
Tomás apresenta, na Suma de Teologia, sua formulação ao que seria o primeiro
princípio da Ética
326
, do qual extrai o primeiro preceito da lei natural. É a partir dele que
justifica o método que emprega na sua investigação, bem como, num segundo momento, dele
se serve para a corroboração do estatuto científico da disciplina moral. Justifica o todo
porque, remetendo o conteúdo desse primeiro princípio à ação humana, exige a consideração,
para além do elemento racional que ela encerra, do elemento apetitivo, ligado à animalidade
do homem (o desejo). Dele se serve, por sua vez, quando estabelece ser a moral uma
disciplina científica, pois a cientificidade depende de um embasamento racional, o qual é
conferido pelos princípios evidentes ao intelecto do homem. Reza, então, o Doutor Angélico
324
ELDERS, L. J., L’Éthique de Saint Thomas d’Aquin: Une lecture de la Secunda pars de la Somme de
théologie, p. 24.
325
SCHNEIDER, J. H. J., L’unité de la raison humaine selon Thomas d’Aquin et Al-Farabi, §20.
326
Com efeito, na Política as leis são positivadas, não contrárias à lei natural da qual derivam, donde se servir do
primeiro princípio da Ética.
119
ser o bem “o que todos os seres desejam”, donde o dever de “fazer e procurar o bem”, assim
como o de “evitar o mal”
327
consistirem no fundamento racional dado à ação humana.
Com efeito, todo aquele que age o faz em vista de um fim que tem a razão de bem. Por isso,
o primeiro princípio da razão prática é aquele que se funda na razão de bem, e que é: O
bem é o que todos os seres desejam”. É, então, o primeiro preceito de lei que se deve fazer
e procurar o bem, e evitar o mal. É sobre este axioma que se fundam todos os outros
preceitos da lei natural: quer dizer que tudo o que se deve fazer ou evitar decorre dos
preceitos da lei natural; e a razão prática os visa naturalmente como a bens humanos
328
.
Não obstante a demonstração da matéria teórica operar-se de modo (relativamente)
independente da experiência mundana, tanto o primeiro princípio teórico como o prático são
conhecidos a partir da realidade sensível. Ora, as conclusões das ciências especulativas são
provadas tendo-se como base o simples e universal, puramente racional, enquanto as
conclusões das ciências práticas o são com base no complexo e particular, onde a razão
coloca-se ao lado dos desejos animais. Por sua vez, os primeiros princípios de ambas não são
conhecidos sem que intervenha a sensibilidade ou a memória do homem, conforme a
estabelecida necessidade de mediação sensível para o conhecimento humano. Afirma O.
Lottin:
O conhecimento dos primeiros princípios da ordem moral, como da ordem especulativa,
tem seu ponto de partida no conhecimento sensível ou na memória; mas tão logo os termos
sejam conhecidos, a relação que os liga entre eles é cognoscível por ela mesma unicamente
pela luz do intelecto agente, sem nenhum recurso ao discurso racional
329
.
Abre-se um parênteses. A idéia de “primeiros princípios da ordem moral” confunde-se
à de “lei natural” em Aristóteles. Conforme observa O. Lottin, os princípios indemonstráveis
ou regras de conduta prática formulados espontaneamente pelo intelecto constituem para ele o
direito natural. os preceitos que deles decorrem constituem o direito legal. O Aquinate
incorpora a doutrina aristotélica à sua. Não obstante, a também influência dos juristas
romanos sobre o seu pensamento moral o leva a proceder a uma distinção na lei natural
aristotélica. Ele reserva a expressão jus naturae às regras que regem o homem naquilo que ele
327
ST, I-II, q. 94, a. 2.
[37592] Iª-IIae q. 94 a. 2 co.
Hoc est ergo primum praeceptum legis, quod bonum est faciendum et prosequendum, et malum vitandum.
328
ST, I-II, q. 94, a. 2, conclusão.
329
LOTTIN, O., Le droit naturel chez saint Thomas et ses prédecesseurs, p. 345.
120
compartilha com os outros animais. Destina, entretanto, a expressão jus gentium às normas de
ação que, tendo também base na lei natural, limitam-se às relações humanas.
O homem, responde São Tomás, tem uma natureza dúplice: uma que lhe é comum com o
animal; outra que lhe é própria como ser racional. Ora, os juristas reservam o nome de jus
naturae ao que rege as tendências que o homem divide com o animal: tal a união dos sexos,
a educação, a progenitura. E para designar o que rege a vida propriamente racional do
homem, esses mesmos juristas empregam o nome jus gentium, pois essas normas de ação
são próprias ao gênero humano: tal a fidelidade devida aos contratos, o respeito devido aos
delegados das nações beligerantes. Mas, prossegue o Santo Doutor, esse direito duplo, o jus
naturae e o jus gentium, é englobado no justum naturale de Aristóteles
330
.
Tomás, com efeito, atribui à lei natural a faculdade de tornar a lei eterna inteligível ao
homem. Cabe notar que, para ele, o conhecimento de ambas pertence ao domínio filosófico.
Nos dizeres de Y. Cattin: “A lei natural é a lei eterna retomada e posta pela razão humana”
331
.
Fora o estabelecido pelo Doutor Angélico:
(...) a luz da razão natural, dando a discernir o que é o bem do que é o mal, não é nada mais
do que uma impressão em nós da luz divina. É evidente, então, que a lei natural não é outra
coisa além de uma participação da lei eterna na criatura racional
332
.
Mas a grande revolução que Y. Cattin assinala ter gerado Tomás diz respeito ao
domínio do Direito. Segundo ele, o Aquinate não sustenta ser a lei natural a origem do Direito
Positivo, mas o seu fim. Tanto quanto a humanidade não é dada ao homem”, mas, ao
contrário, precisa ser buscada, o Direito Positivo não representa mais do que o esforço
humano de inscrever aquilo que ele encontra como mais indicativo da lei natural à qual é
chamado a realizar.
Nós não estamos submetidos por antecipação a uma lei natural, à qual nós devemos
obedecer cegamente. Ao contrário, nós somos responsáveis por essa lei que nós devemos
decifrar na história e inscrever nas normas do direito positivo
333
.
330
LOTTIN, O., Le droit naturel chez saint Thomas et sés prédécesseurs, p. 347.
331
CATTIN, Y., L’antropologie politique de Thomas d’Aquin, p. 141.
332
ST, I-II, q. 91, a. 2, conclusão.
[37471] Iª-IIae q. 91 a. 2 co.
Cui quaestioni respondens, dicit, signatum est super nos lumen vultus tui, domine, quasi lumen rationis
naturalis, quo discernimus quid sit bonum et malum, quod pertinet ad naturalem legem, nihil aliud sit quam
impressio divini luminis in nobis. Unde patet quod lex naturalis nihil aliud est quam participatio legis aeternae
in rationali creatura.
333
CATTIN, Y., L’antropologie politique de Thomas d’Aquin, p. 142.
121
É apenas em função da lei natural que leis humanas são legitimamente positivadas,
mas é também em função dela que estas mesmas leis podem precisar ser revogadas. O homem
não detém o conhecimento absoluto da ordem natural na qual se inserem suas ações, mas tem
a sua realização como fim. O Direito Positivo marca a tentativa humana de traçar as diretivas
para tanto. Acrescenta Y. Cattin:
Assim, jamais a lei natural é automaticamente traduzida na lei positiva, mas essa sempre a
adapta interpretando-a, com os riscos que isso comporta
334
.
O primeiro princípio da Ética, nesse sentido, é o que alicerça a interpretação da lei
natural. Com efeito, o ditame moral “fazer e procurar o bem” adquire significado justamente
quando se faz face a uma situação concreta. Tomás sustenta, assim como fizera Aristóteles, a
existência de um fim último que é o mesmo para todo ser humano apesar de não se identificar
com o bem individual de cada um
335
, o qual permite caracterizar uma ação como “boa” ou
“má”. Boa é a ação que com ele se acorda ou ao menos o o contraria. A que o faz, por sua
vez, é má. Afirma R. McInerny:
Aristóteles não quis estabelecê-lo no sentido de que toda ação objetiva um certo fim ou
outro; ele defende que há um certo fim ou bem em função do qual toda ação é realizada. Ou
seja, há um alvo superior, compreensível, fim último de tudo o que os seres humanos
fazem
336
.
Cabe observar que o fim último é o mesmo para todos, ainda que se observe que cada
um age a sua maneira, no sentido de que todos agem com vistas àquilo que lhe é bom. Como
os homens, apesar de compartilharem “a humanidade”, guardam ao lado dela sua
individualidade, o que é bom para um ser humano não é necessariamente bom para outro.
Ainda, aqueles que se equivocam quanto ao que de fato lhe é bom. Assim, continua R.
McInerny:
Quando Aquino fala que todo agente humano necessariamente busca o mesmo fim último,
ele quer dizer que cada e todo agente humano faz tudo o que faz sob a presunção de que a
realização disto é bom, ou seja, completando o tipo de agente que ele é, qual seja, um
agente humano. A noção de bem humano está implícita em qualquer ação humana
337
.
334
CATTIN, Y., L’antropologie politique de Thomas d’Aquin, p. 149.
335
McINERNY, R., Ethics, p. 198.
336
McINERNY, R., Ethics, p. 198.
337
McINERNY, R., Ethics, p. 200/1.
122
O aperfeiçoamento do caráter humano, próprio ao agente, depende, então, da relação
que o fim que move suas ações efetivamente guarda com o fim que o torna melhor. Dotado de
faculdade racional, o homem pode conhecer o seu fim, o que não acontece com os demais
animais, os irracionais. Contudo, é a sua faculdade sensível, a qual com eles comunga, que
mediatiza este conhecimento. Y. Cattin explica em que medida ocorre essa mediação:
Essa mediação deve ser entendida no seu sentido mais estrito: essa mediação que é a
sensibilidade para a razão não é “qualquer coisa”, um poder isolado que existiria em si
mesmo ao lado da razão e ao qual essa deveria confiar-se para poder exercer-se. A
mediação o é tal a o ser na medida em que ela não é exterior ao que ela mediatiza. A
razão vai de si a si sem sair dela mesma, e, portanto, ela é mediatizada. É, então, nela
mesma que ela encontra e deve superar a alteridade. Essa alteridade, se é interior, o é
como uma coisa numa outra coisa. Ela é apenas o limite: a sensibilidade é o que faz que a
razão o possa se manifestar como pura razão, posto que, nela mesma, ela é finita e
limitada
338
.
A ação propriamente humana deriva desse conhecimento mediatizado uma vez que a
vontade mova o agente em sua direção. A felicidade, entretanto, depende de que a
mediatização se exerça de maneira fiel e de que a vontade não seja frustrada por algum fator
estranho. Com efeito, afirma R. McInerny, “a felicidade consistirá no alcance do que
realmente realiza a ratio bonis
339
.
Ora, a experiência sensível limita a razão. Não obstante, é condição de possibilidade
para o conhecimento racional do fim, o qual tem o condão de desencadear o movimento em
sua direção pela vontade. M. Villey comenta o ensinamento de Tomás:
Ele professa que nossos conhecimentos procedem da experiência sensível, e são, como toda
experiência sensível, fragmentários, falíveis. Não se possui resultado firme, de
conhecimento preciso da lei moral natural a não ser no caso onde a Santa Escrita vem
trazer confirmação ao seu conteúdo. Mas isso não tem lugar a não ser em moralia de
praecepta judicialia
340
.
Nesse sentido, tem-se que o universo moral é concebido pelo Doutor Comum na
medida em que se insere na realidade fática. É, então, imprescindível à ciência à qual incumbe
investigá-lo a consideração da experiência sensível a partir da qual o conhecimento prático é
manifesto. O modo de apreensão de conceitos em matéria prática é indutivo, parte
338
CATTIN, Y., L’antropologie politique de Thomas d’Aquin, p. 67.
339
McINERNY, R., Ethics, p. 201.
340
VILLEY, M., Seize essais de philosophie du droit dont un sur la crise universtaire, p. 102.
123
necessariamente da experiência, e nela se assenta o pensamento moral do Aquinate. M. Blais
critica aqueles que não compartilham de uma mesma leitura:
Alguns autores dizem que a moral tomista é “dedutiva”. Dedutivo se opõe a indutivo,
dedução a indução. Para medir o que o caractere dedutivo tem de odioso, deve-se saber que
a indução é uma operação mental que consiste a remontar dos fatos à lei, dos casos dados,
com maior freqüência singulares ou especiais, a uma proposição mais geral. Se a indução
parte dos fatos e que a dedução se desenvolve no sentido contrário, conclui-se que uma
moral dedutiva se elabora sem que haja contato com o mundo, fora da vida humana. E é
assim que se imagina Tomás de Aquino pensando sua moral, quando, ao contrário, a moral
tomista foi pensada nas cidades as mais agitadas do século XIII Paris, Roma, Nápoles,
Colônia, etc.
341
.
Vencida a discussão sobre o método científico, cabe delimitar qual é o objeto da Ética.
Como deve ter ficado claro, é justamente ele que permitirá à disciplina científica delimitar o
termo sobre o qual ela vai especular. Com efeito, a ciência parte do objeto para demonstrar os
atributos que lhe são predicados. Ora, como foi colocado quando da analogia da relação entre
o professor e o aluno e da relação entre as ciências, uma disciplina científica não demonstra o
seu objeto, mas o admite. Ele é, justamente, aquilo que ela tem como pressuposto.
5.3 O objeto da Ética
Tomás de Aquino passa à discussão acerca do objeto ou subiectum da Filosofia Moral,
o qual mostra ser a felicidade, explicitando as etapas que irá vencer neste sentido. Seu projeto
consiste em partir da montagem de um panorama geral acerca dela, no qual mostra a sua
relação com as virtudes de maneira igualmente genérica. Começa descrevendo a felicidade,
dando acesso às “linhas gerais do conteúdo da Ética ao leitor. Depois, procede ao
detalhamento do seu quadro, que se pela composição das virtudes particulares. Faz do
conhecimento inicial “imperfeito” um conhecimento “perfeito”, refinando aquilo que antes
tinha uma forma ainda rudimentar. Por último, faz o “caminho de volta”, investigando o tipo
e a natureza da operação que chamou felicidade (faz remissão à Política e à Ciência
Legislativa). Salienta L. Elders:
No seu Comentário à Ética Nicomaquéia, São Tomás escreve que nós devemos antes
estudar o fim último do homem, a felicidade, mostrando no que ele consiste e por qual
atividade pode-se alcançá-lo. O tema é abordado de modo genérico na Prima Secundæ da
341
BLAIS, M., L’autre Thomas d’Aquin, p. 124.
124
Suma de Teologia, e, mais em detalhe, na Secunda Secundæ, que examina as diferentes
virtudes e vícios, cobrindo inteiramente o campo da moralidade dos atos humanos
342
.
A necessidade de se fazer saber no que consiste o fim último do homem, o bem
humano, decorre das noções introdutórias. Com efeito, por detrás da exposição sobre o caráter
científico da matéria moral, Tomás esboça os limites da relação entre o conhecimento e a
realização do homem. Assinala L. Elders sobre a importância do estudo das virtudes:
Estuda-se as virtudes a fim de mostrar como o homem pode ordenar-se ele mesmo ao seu
fim e reforçar essa ordem cumprindo os atos apropriados nas circunstâncias alternantes da
vida. Nesse sentido, não se atribui o primeiro lugar aos preceitos e ao dever, mas ao homem
e à sua liberdade. É um privilégio do homem ser capaz de determinar, com base nas suas
inclinações naturais, o que ele deveria fazer em diferentes situações
343
.
Se por um lado o Aquinate é explícito no que tange à utilidade, ver necessidade, de
que se conheça o fim último da vida humana para que se aja virtuosamente, por outro lado,
deixa transparecer a impossibilidade de que todos dediquem suas vidas em prol da ciência de
uma maneira geral. Com efeito, reza que o homem “social” divida-se na realização das tarefas
de que depende o bem comum. Dissera já no De regno:
Mas não é possível que um homem só atinja, pela sua própria razão, a todas as coisas deste
gênero. É então necessário ao homem viver em comunidade, a fim de que cada um seja
ajudado por seu próximo, e que todos se ocupem de descobertas racionais diferentes, por
exemplo, um em medicina, outro em um tal domínio, um outro em um tal outro
344
.
É hora, então, de discorrer sobre este fim último, objeto pertencente à Ciência Política,
mas que também interessa à própria Ética, ainda que indiretamente. Isto porque o bem visado
num e noutro caso é, em última instância, o mesmo, dado ser o bem que legitima a busca de
um fim imediato na Ética o próprio fim da Política. Esse é, portanto, também um fim para
aquela, mas mediato.
Não obstante, em termos imediatos, o objeto da Política é diferente do objeto da Ética,
qualitativamente mais do que quantitativamente, porque o bem individual e o bem coletivo
342
ELDERS, L. J., L’Éthique de Saint Thomas d’Aquin: Une lecture de la Secunda pars de la Somme de
théologie, p. 25.
343
ELDERS, L. J., L’Éthique de Saint Thomas d’Aquin: Une lecture de la Secunda pars de la Somme de
théologie, p. 25.
344
De regno, I, 1.
[69921] De regno, lib. 1 cap. 1
Non est autem possibile quod unus homo ad omnia huiusmodi per suam rationem pertingat. Est igitur
necessarium homini quod in multitudine vivat, ut unus ab alio adiuvetur et diversi diversis inveniendis per
rationem occupentur, puta, unus in medicina, alius in hoc, alius in alio.
125
dependem de regras diferentes para serem alcançados. A Ética tem como objeto o primeiro e a
Política o segundo. E cada uma delas possui regras que lhe são próprias para identificá-los,
não sendo legítima, apesar da hierarquia que as separa, a interferência nesse sentido de uma
sobre a outra. Tomás exemplifica a singularidade de objetos com a estrutura repressivo-
educativa paterna e a pública. Elas o se excluem, tendo o homem a necessidade das duas
para bem viver, tanto no âmbito de sua família como no de sua Cidade (ou Estado). Tem-se,
então, que o fim da Política, muito embora fundamente o fim da Ética, não o substitui, e que,
em conseqüência, cada uma delas tem um objeto próprio, o qual confere à Ética tanta
cientificidade quanto possui a Política. E é justamente esta não identidade que permite a
consideração de ambas enquanto ciências autônomas. Diz o Doutor Angélico na Suma de
Teologia:
O bem comum da cidade e o bem particular de uma pessoa diferem entre eles formalmente,
e o apenas em quantidade. A noção de bem comum e aquela de bem individual diferem,
com efeito, entre elas como aquelas do todo e da parte
345
.
Para Tomás, então, o bem da Política é superior ao da Ética. Ele é o bem “sem
qualificação”, pois se coloca acima de todos os outros bens que são dados ao homem buscar
durante sua vida. É em função dele que todos os outros são buscados e é a partir desses que a
Política tem os meios para realizar a sua missão própria.
(...) uma vez que todo conhecimento e escolha visam a algum bem, isto é, são ordenados
para algum bem desejável como a um fim, nós devemos discutir a natureza deste bem para
o qual a Ciência Política está ordenada. Ele é o mais alto bem de todas as ações, isto é, o
mais alto entre aqueles atingíveis pela operação humana
346
.
Tomás chama o bem “sem qualificação” de fim (supremo), conquanto defina ambos
como “aquilo pelo que as outras coisas são feitas”
347
. Como deve ter ficado claro da noção de
345
ST, II-II, q. 58, a. 7, ad 2.
[41479] IIª-IIae q. 58 a. 7 ad 2
Ad secundum dicendum quod bonum commune civitatis et bonum singulare unius personae non differunt solum
secundum multum et paucum, sed secundum formalem differentiam, alia enim est ratio boni communis et boni
singularis, sicut et alia est ratio totius et partis.
346
CEN, I, 4, §43.
[72747] Sententia Ethic., lib. 1 l. 4 n. 1
Dicit ergo primo resumendo quod supradictum est, quod cum omnis cognitio et electio desideret aliquod bonum,
idest ordinetur ad aliquod bonum desideratum sicut in finem, dicendum est, quid sit illud bonum, ad quod
ordinatur civilis scientia; quod scilicet est summum omnium operatorum, idest inter omnia ad quae opere
humano perveniri potest.
347
CEN, I, 9, §105.
126
ordem, a vida humana depende de certos bens para que possa ser identificada como humana, e
são eles que a movem enquanto tal. Todos esses bens devem ser buscados como fins porque
eles fazem parte deste bem maior, que é o bem humano por excelência, dito, então, o fim
supremo nesta vida. Todo homem é igual em humanidade, apesar de único no universo,
justamente por haver algo que, para além de suas diferenças, o faz um todo: a consciência de
seu fim humano, que o chama a realizá-lo como a seu bem próprio. A unidade na natureza
humana é, com efeito, dada pelo conhecimento da sua ordenação teleológica comum e
conformação da sua ação a ela. Quer dizer, é porque o homem é livre para agir segundo sua
individualidade e consciente do fim comum que guarda a ação humana que ele é capaz de
dirigir-se à sua realização como um ser humano total: diferente e ao mesmo tempo igual aos
outros. É justamente essa unidade que faz com que haja um fim único para o homem
enquanto homem, assim como uma unidade na medicina que faz com que haja um fim
único para o físico enquanto físico
348
, apesar de cada homem possuir um fim particular no
interior da comunidade. Logo, frustrar à sua ordem equivale a negar a humanidade que o
distingue. Sobre o paradoxo entre a particularidade e a igualdade humanas, Tomás afirma no
De Regno:
Os seres são divididos sob o ângulo de seus bens próprios; eles são unidos sob o ângulo do
bem comum. Ora, os efeitos diferentes têm causas diferentes. É preciso, então, além do que
move ao bem próprio de cada um, algo que move ao bem comum da pluralidade. É por isso
que, em todas as coisas que são ordenadas em um todo, encontra-se um princípio diretor
349
.
O objeto da Filosofia Moral é este fim último do homem chamado de bem humano,
porque é ele que fundamenta a ação humana, à qual Política, Economia e Ética se referem.
Ele é a causa que leva o homem a deliberar sobre como agir, conquanto precisa dispor dos
bons meios para atingi-lo, a saber, dos bens de que depende a sua vida humana, componentes
[72809] Sententia Ethic., lib. 1 l. 9 n. 3
Et si quaeratur quid sit bonum intentum in unaquaque arte vel in unoquoque negotio, sciendum est, quod hoc est
illud cuius gratia omnia alia fiunt in illa arte vel illo negotio, sicut in medicinali omnia fiunt propter sanitatem,
in militari omnia fiunt propter victoriam. Et in aedificativa omnia fiunt propter domum construendam. Et
similiter in quolibet alio negotio aliquod aliud est bonum intentum, cuius gratia omnia alia fiunt. Hoc autem
bonum intentum in unaquaque operatione vel electione dicitur finis, quia finis nihil est aliud quam id cuius
gratia alia fiunt.
348
CEN, I, 9, §106.
349
De Regno, I, 1.
[69921] De regno, lib. 1 cap. 1
Secundum propria quidem differunt, secundum autem commune uniuntur. Diversorum autem diversae sunt
causae. Oportet igitur, praeter id quod movet ad proprium bonum uniuscuiusque, esse aliquid quod movet ad
bonum commune multorum. Propter quod et in omnibus quae in unum ordinantur, aliquid invenitur alterius
regitivum.
127
do bem humano propriamente dito. Fazendo-o, cumpre a sua função específica e se aproxima
de sua perfeição e auto-suficiência. Ora, o fim em função do qual o homem é levado a agir,
por consistir no maior bem da sua vida terrena, e objeto desta disciplina, a partir do momento
em que ela visa assegurar o seu conhecimento e prática, é, diz o Doutor Angélico, a
felicidade
350
.
Contudo, ele só chega a uma conclusão própria, e ainda em linhas gerais, após analisar
a opinião dos outros. Parte do que é consensual e do que não é sobre o fim último da ação
humana, examina-o e, então, estabelece que é a felicidade o fim último e que condições ela
deve preencher enquanto tal. São duas: ela precisa ser algo perfeito (acabado) e auto-
suficiente (completo).
5.3.1 Idéia de perfeição
A perfeição diz respeito a algo pronto, acabado. No caso do objeto em questão, ele
deve ter sido alcançado e não estar ainda apenas sendo buscado. Até aqui se insistiu no fato de
que o homem é chamado a realizar o seu fim último, onde se coloca a sua felicidade. Ora, ele
será dito feliz no momento em que a alcança, o quando estiver em vias de alcançá-la,
pois ela é marcada por um termo final, não pelo seu caminho.
Partindo da premissa de que “na medida em que o agente se move em direção ao fim,
o fim move o desejo do agente”
351
, Tomás admite três graus de perfeição que se aplicam a um
fim, estabelecendo uma analogia com o sujeito que se move em relação a ele. Nesse sentido, o
fim “mais imperfeito” é aquele que é buscado por outro, como o agente que se move por uma
forma que o a sua. O perfeito” é aquele que é buscado por si mesmo, mas que pode ser
buscado por um fim prioritariamente principal, como o agente que se move por sua própria
forma, mas que pode ser movido por outra prioritariamente principal. O “mais perfeito”, por
sua vez, é buscado por si mesmo e nada mais, como o agente que se move por sua própria
forma e nenhuma outra
352
.
É forçoso reconhecer que Tomás trata no seu Comentário daquele fim “perfeito” que
identifica à felicidade humana. Não obstante, é possível depreender-se que se há ainda um fim
350
CEN, I, 9, §106.
351
CEN, I, 9, §108.
[72812] Sententia Ethic., lib. 1 l. 9 n. 6
Circa perfectionem autem finalis boni considerandum est quod, sicut agens movet ad finem ita finis movet
desiderium agentis; (…).
352
CEN, I, §108 e §109.
128
“mais perfeito”, é porque deve haver uma felicidade igualmente mais perfeita, a felicidade
absoluta. De fato, ele reconhece que é da natureza da felicidade que ela seja desejada por ela
mesma e nunca por nada mais. Não admite, entretanto, que seja dado ao homem realizá-la
neste grau em vida, mas apenas naquele intermediário. O fim da Ética é perfeito porque ele
satisfaz às características apresentadas. A felicidade individual pode ser buscada por si
mesma, mas pode também ser buscada com vistas ao bem comum, pois são bens
independentes que, para além de sua independência, guardam uma certa conexão. Eles se
relacionam no que tange à realização do homem, que, dada a complexidade de sua natureza,
depende do respeito tanto da sua face “indivíduo”, como da sua face “cidadão”.
5.3.2 Idéia de auto-suficiência
A auto-suficiência diz respeito a algo completo, integral. No caso do objeto em
questão, ele não pode ser deficiente de alguma parte necessária, do contrário, o desejo não
seria satisfeito e o bem também não poderia ser dito perfeito, necessitando ainda de algo. Ora,
o homem só será dito feliz no momento em que se complete, não quando ainda estiver em via
de se completar, pois a felicidade é marcada pela sua autonomia, o que exclui qualquer
carência.
Tomás considera que a auto-suficiência não é propriamente realizada se disser respeito
apenas ao homem enquanto indivíduo, pois a sua natureza é social. Ele não é dito “homem”
no sentido rigoroso da palavra se isolado de outros homens também assim ditos
rigorosamente, pois não poderá exercer as suas atividades mais nobres, quais sejam, aquelas
que lhe são particulares e que se referem à sua consciência como parte de um todo, o qual
carrega inteiramente em si (a idéia de humanidade). Daí decorre que o seu desejo se inclina
também à vida daqueles que o cercam. Não é um desejo que se resume às necessidades
biológicas, conquanto também deva ocupar-se delas, mas um tal desejo não o diferenciaria de
tantos outros seres. Se ele se identifica como humano é porque quer também a realização das
necessidades morais humanas de um modo integral.
Poder-se-ia objetar a possibilidade de uma tal satisfação “suficiente”, considerando-se
que, em tese, é sempre possível que o homem deseje o suprimento das necessidades de
alguém mais. Um processo infinito não se coaduna com a idéia de algo completamente
pronto. Não obstante, vale aqui observar que cada grau de perfeição aplicável ao fim e, logo,
ao bem, corresponde a um determinado grau de suficiência. Ora, a suficiência perfeita não é,
129
ainda, a suficiência mais perfeita infinita. Ela se refere à suficiência do homem, que é
limitada, implicando no fornecimento do que ele necessita absolutamente enquanto homem.
Não exclui, entretanto, que algo ainda possa vir a ser-lhe fornecido, desde que o fosse
essencial.
O homem pode ser tornado melhor pela adição de um bem. Mas o desejo do homem em
relação a ele não permanece insatisfeito, porque um desejo controlado pela razão, como um
homem verdadeiramente feliz deve ter, não é perturbado pelas coisas desnecessárias,
mesmo se atingíveis
353
.
Com efeito, o fato da suficiência dever ser própria, a saber, “auto-suficiência”,
significa que o conceito de suficiência deve ser aplicado a algo tomado separadamente das
outras coisas. O Doutor Comum reconhece duas maneiras de suficiência própria, segundo o
nível de perfeição que ocupe. Ou se está diante do bem mais perfeito”, e, então, tem-se que
ele é incapaz de receber acréscimo de bondade de outro, a exemplo de Deus. Ou se está diante
do bem “perfeito”, e, então, tem-se que ele, tomado isoladamente, sem que seja feita qualquer
adição, é completo, possuindo tudo o que o homem necessita para bem viver, mas não
exatamente tudo o que poderia vir a ele, quer dizer, é ainda capaz de receber acréscimos no
que tange aos bens supérfluos, a exemplo da felicidade. Para Tomás, mesmo que ela não seja
aumentada por outros bens, é desejável, mas, podendo receber adições, é passível de se tornar
mais desejável ainda
354
.
Pois a Ética e a Política têm por objeto o bem humano, cada qual em relação a uma
dimensão específica. A Ética trata da felicidade dos indivíduos, a Política do seu bem comum
aos outros cidadãos. Nesse sentido, o seu método é aplicado no estabelecimento de regras de
conduta diferentes, como, por exemplo, no que tange aos critérios de distribuição de encargos.
Apesar de ciências separadas, é da conjugação dos resultados de uma e de outra que se pode
falar na possibilidade de uma felicidade humana, pois, como se acaba de assinalar, sem que
essa seja acabada e completa, não preenche as condições de um fim supremo, bem do homem
enquanto tal. Com efeito, resume Tomás de Aquino o que se depreende do objeto da Filosofia
Moral: “se a felicidade é o fim último de todas as atividades, ela é o bem perfeito e auto-
353
CEN, I, 9, §116.
[72820] Sententia Ethic., lib. 1 l. 9 n. 14
Unde potest melior fieri aliquo alio addito; nec tamen remanet desiderium hominis inquietum, quia desiderium
ratione regulatum, quale oportet esse felicis, non habet inquietudinem de his quae non sunt necessaria, licet sint
possibilia adipisci.
354
CEN, I, 9, §116.
130
suficiente”
355
. Não há nada a que o desejo ainda se incline: “O fim último é o último termo da
inclinação natural do desejo”
356
.
355
CEN, I, 9, §117.
[72821] Sententia Ethic., lib. 1 l. 9 n. 15
Ultimo autem concludit epilogando quod dictum est, scilicet quod felicitas, cum sit omnium operatorum ultimus
finis, est perfectum bonum et per se sufficiens.
356
CEN, I, 9, §107.
[72811] Sententia Ethic., lib. 1 l. 9 n. 5
Ultimus enim finis est ultimus terminus motus desiderii naturalis.
131
Conclusão
No Comentário à Ética Nicomaquéia, Tomás de Aquino explicita a tese aristotélica
segundo a qual o conhecimento (cognitio) acerca da felicidade é “necessário” para que se a
alcance
357
. O conhecimento científico (scientia), nuancia, é de pouca utilidade do ponto de
vista prático caso consista em um fim em si mesmo
358
. Conclui-se, com efeito, que o termo
“conhecimento” é empregado ora designando o conhecimento em geral, a cognição, cujo
conceito respeita à epistemologia elementar; ora designando o conhecimento em sua forma
paradigmática, a saber, a científica ou teórica
359
. Se é preciso “conhecer” para agir bem, esse
ato de conhecimento não é condição suficiente para tanto e, além disso, pode ter sua
necessidade graduada segundo a interpretação que se faça do sentido que a ele aplica-se. A
felicidade humana depende da sua conjugação à ação, mas a sua formulação mais específica,
a que se atrela a uma ciência, comporta exceções. Mas porque o que é raro não pode constituir
uma regra para o alcance da felicidade, que é o fim natural do homem, é preciso que também
o conhecimento científico não seja negligenciado. Ainda que não se esteja aqui a apregoar
como exigência que se seja cientista no intuito de garantir a possibilidade de ser feliz, é
manifesta a contribuição que o produto da especulação pode oferecer à formatação do caráter
do agente, dada a necessidade de sua consonância com os princípios da moralidade.
A consideração da felicidade humana pressupõe, primeiramente, o reconhecimento do
aspecto natural do homem. Segundo o Santo Doutor, como ele pertence à ordem da natureza,
tem uma atividade própria a ser cumprida no seu interior, a qual o realiza como tal. A
atividade conforme ao fim dado-lhe naturalmente é condição para que alcance o bem humano,
chamado de felicidade. Para além dele, outro aspecto ainda precisa ser reconhecido, o
racional. Destacando-se de todas as outras criaturas terrenas, o homem é, não um animal,
mas um animal racional, o que lhe a participar de uma ordem superior em perfeição. Com
efeito, a sua atividade não é determinada, posto que os meios capazes de levá-lo ao seu fim
são livremente escolhidos. É a razão que lhe permite realizar a ação humana (actus humani),
atividade que o especifica como homem”. No seu exercício variado e constante encontra o
357
CEN, I, 2, §23 e 9, §106.
358
CEN, II, 2, §256 e 4, §284.
359
Vide JACOB, B.; ZEIS J., Form and cognition: How to go out of your mind, p. 539/57.
132
cumprimento da sua função natural, a qual se confunde com a de um “guia”
360
. Conhecendo o
seu fim, que não se esgota nas condições vitais do “estar no mundo”, ele cria condições
completamente outras, ainda que não independentes daquelas, de uma forma de vida
excelente. Nela, a imposição de regras sicas concorrem com a obrigatoriedade hipotética de
regras essencialmente humanas. Nesse ponto, emerge a questão da “necessidade” do
conhecimento científico.
O intelecto humano tem o condão de determinar em cada caso os meios conformes ao
fim, dado, por sua vez, pela natureza. O apetite racional tem o condão de mover o homem na
sua direção, posto desejar aquilo que é representado como um bem
361
. E. Stump refere que o
intelecto apreende ou julga as coisas como boas sob uma certa descrição em circunstâncias
particulares; o apetite segue as boas porque é um apetite para o que é bom e assim elas lhe
foram apresentadas
362
. Quer dizer, a ação que tem o condão de dirigir o homem ao seu bem, a
felicidade, resulta da coordenação do desejo a uma representação verdadeira do que seja meio
para ela. Sem o conhecimento da sua felicidade e, logo, dos possíveis meios para alcançá-la, o
desejo moverá o homem a agir de maneira desordenada, de tal sorte que a realização a que um
animal irracional causalmente alcança não estará muito aquém da sua.
Por isso, o conhecimento verdadeiro sobre o que é bom é necessário, mas não ainda
suficiente. Ele precisa ser desejado a fim de poder mover o homem. Se o homem não tiver
uma disposição de caráter tal que ele deseje o que racionalmente escolhe, pode ter suas
determinações intelectuais suplantadas pelas apetitivas estritamente sensíveis
363
. Nota-se que
a ação conforme ao apetite racional é digna de louvor. Se ela vai ou não resultar na felicidade
do agente, depende da sua habitualidade, bem como da de outras ações virtuosas (do seu
conjunto)
364
, o que, entretanto, não está ao alcance de todos. Com efeito, a felicidade depende
da verdade do fim, do acerto do desejo quanto ao bem e do cumprimento efetivo da escolha
de ação a ele conforme repetidas vezes numa constância de vida e relativamente a um
360
Com efeito, o homem é a única criatura capaz de conhecer a ordem em que se insere e de, assim, ordenar e
ordenar-se. SCG, III, 113, §5.
361
CEN, VI, 2, §1131.
362
STUMP, E., Personal relation and moral residue, p. 6.
363
E. Stump destaca a possibilidade do intelecto ser conduzido mesmo pela vontade. Ela diz: “De fato, para
Aquino, a vontade exerce algum grau de causalidade eficiente sobre o intelecto. Em algumas circunstâncias, ela
pode comandar o intelecto diretamente a adotar ou rejeitar uma crença particular. Ela pode também mover o
intelecto dirigindo-o a voltar-se a algumas coisas e a negligenciar outras, ou mesmo parar de pensar sobre algo
completamente. Como a vontade quer algo apenas caso o intelecto apresente-o como um tipo de bem, o fato de
que a vontade possa comandar o intelecto a parar de pensar sobre algo significa que a vontade pode,
indiretamente, desligar-se a si mesma, ao menos com respeito a uma ação particular ou resultado”. STUMP, E.,
Personal relation and moral residue, p. 6.
364
Para que se venha a ser feliz, o caráter moral do agente é condição inafastável, mas impedimentos de ordem
externa podem frustrar a sua realização nesta vida.
133
número considerável de bens. Nesse sentido, um certo número de bens externos é, mesmo que
em pequena quantidade, exigido
365
. Não se pode ser liberal, por exemplo, ou em certos casos
justo, sem o preenchimento da referida condição. Ora, se o se pode alcançar a felicidade
sem que se tenha um certo comprometimento com a busca das virtudes (o que é necessário),
isso pode também não ser suficiente.
O caminho que leva à felicidade é complexo. Como deve ter ficado claro, não se está
aqui a apregoar que o conhecimento garanta que se chegue aela. Reza-se, entretanto, que
ele está na base de qualquer boa ação, posto que essa tira a sua bondade da concordância que
guarda com uma representação verdadeira.
A aquisição do conhecimento que justifica a verdade da representação sobre o que é
bom e, logo, deve ser feito, não acontece de um único modo. Alguns poucos o adquirem por
descoberta própria, mas não se a exige. Pelo ensino é possível que se a multiplique a uma
maioria. Também não se exige que aquele que conheça saiba demonstrar o que conhece,
justificando a sua verdade cientificamente, o que importaria na dependência de que o homem
fosse um cientista para poder ser feliz. É preciso um conhecimento científico sim, mas no
intuito de que apenas as descobertas verdadeiras sejam ensinadas, não no de que precise ser
produzido por todos. De um modo geral, importa que a educação no sentido do que é
verdadeiramente bom aconteça, assim como a ação conforme e repetida, a fim de se ter criado
um hábito virtuoso, e não o contrário
366
.
O Doutor Comum introduz, então, uma idéia mais forte. Como em matéria moral o
conhecimento que precisa ser apreendido ou, via-de-regra, “aprendido”, precisa ainda ser
praticado para que gere a virtude, além de ser verdadeiro, ele deve ser obrigatório. Isso porque
a verdade não é suficientemente persuasiva para que se faça refletir, em todos os casos, na
prática
367
. Ora, com a devida veemência foi ressaltada a importância de que um tal
conhecimento especulativo fosse voltado para a ação
368
. Tomás diz:
(...) ora, para quem o aprecia o bem honrável e que é mais inclinado às paixões, o
aceita nenhuma proposição que seja, argumentos que conduzam à virtude. Assim, o é
possível, ou ao menos não é fácil, por via de argumentação, desviar um homem do que ele
tem de enraizado por costumes antigos. Acontece o mesmo nas [ciências] especulativas,
onde não se poderia trazer à verdade aquele que adere firmemente ao contrário dos
365
CEN, I, 16, §187 e X, 8, §2129.
366
Tomás concorda no que tange à aquisição do conhecimento com o pensamento de Hesíodo. CEN, I, 4, §54.
367
CEN, X, 14, §2139.
368
CEN, II, 2, §256.
134
princípios, aos quais, nas ações a serem tomadas, são proporcionais aos fins, como fora dito
acima
369
.
Nesse sentido, os princípios do bem agir, componentes da Ética, são dados pela
Ciência Política, que investiga as regras de constituição do Estado no intuito do bem comum
(ou felicidade de todos). A Ciência Política objetiva, através do estudo da virtude, formar
bons cidadãos, obedientes à lei
370
. O legislador estabelece então as leis, as quais prevêem
benefícios e honras para os que as observam (estímulo) e encargos e punições para os que não
o fazem (desestímulo)
371
. Quer dizer, se o homem não consegue por si mesmo persuadir-se de
que o seu bem é dado por certas ações, verdadeiramente boas, e agir de modo conforme a elas
constantemente, a sua observância é imposta pela legislação civil, que inflinge o temor do
sofrimento de uma penalização no caso contrário. Seguindo a mesma lógica, ela premia
àquele que a obedece. O intuito desse sistema é o de estimular o homem a fazer o bem” e o
de o desestimular a “fazer o mal”, através da definição de um corpo positivo de normas que,
derivando de uma lei natural, a conhecer o que é verdadeiramente bom ou mau (na maior
parte dos casos) e no qual elas se encontram acompanhadas da disposição das conseqüências
que uma ação conforme ou contrária pode gerar no plano jurídico. Motivado a agir bem e
constrangido a não agir mal, o homem passa, na sua generalidade, a adotar um
comportamento obediente à verdade da lei, de tal sorte que ele torna-se hábito. Nesse sentido,
G. Chalmeta sublinha que:
(...) sempre sob o rastro de Aristóteles e de seu judicioso utilitarismo”, Tomás acreditou
que na realização desse fim a cidade encontra o melhor aliado na natureza mesma do
homem, que é um “animal naturalmente social” (homo naturaliter est animal social). Com
369
CEN, X, 14, §2142.
[74844] Sententia Ethic., lib. 10 l. 14 n. 6
Ad hoc enim quod aliquis sermone transmutetur, requiritur quod proponatur homini aliquid quod accipiat, ille
autem cui non sapit bonum honestum, sed inclinatur ad passiones, non acceptat quicquid proponatur sermone
inducente ad virtutem. Unde non est possibile, vel saltem non est facile, quod aliquis per sermonem possit
hominem transmutare ab his quae per antiquam consuetudinem comprehendit. Sicut etiam in speculativis, non
posset reduci ad veritatem ille qui firmiter adhaereret contrariis principiorum, quibus in operabilibus
proportionantur fines, ut supra dictum est.
370
“Com efeito, a Ciência Civil parece verdadeiramente dirigir seu estudo e esforço sobretudo sobre a virtude.
Ela intenta, com efeito, tornar os cidadãos bons e obedientes às leis, como é evidente dos legisladores dos
cretenses e dos espartanos, que tinham a cidade mais bem ordenada; ou, se outros semelhantes, aqueles que
estabelecem as leis para tornar os homens virtuosos”. CEN, I, 19, §225.
[72929] Sententia Ethic., lib. 1 l. 19 n. 2
Civilis enim scientia secundum rei veritatem maxime videtur studere et laborare circa virtutem. Intendit enim
cives bonos facere et legibus obedientes, sicut patet per legislatores Cretensium et Lacedaemoniorum, qui
habebant civilitatem optime ordinatam, vel si qui alii sunt similes leges ponentes ad faciendum homines
virtuosos.
371
CEN, III, 1, §383 a 385.
135
efeito, por “lei natural”, dirá com a terminologia tomada emprestada de Cícero e dos
juristas romanos, cada homem está inclinado por natureza e dirigido objetivamente a uma
série de comportamentos habituais que, ainda que pertencendo a espécies muito diferentes
(as virtudes distintas), são todos “referíveis ao bem comum do todo [social]”, ou seja, à
“justiça geral ou universal” que consiste - precisamente - em promover a vida virtuosa dos
membros da sociedade. Enquanto que, em sentido contrário, a injustiça e o dano ao bem
comum são o resultado do hábito vicioso, contrário à natureza humana
372
.
A adesão de espírito, para além da obrigação a seguir uma prescrição legal, acontece
na medida em que o agente realiza que a sua ação possui um valor em si mesmo, o qual
ultrapassa o elogio do legislador, donde a pergunta sobre a voluntariedade da ação que
decorre de uma imposição legal. De um lado, ela é involuntária, posto haver uma certa
coerção no seu sentido, ainda que hipotética. De outro, ela é voluntária, posto que o agente
pode sempre escolher seguir ou não a lei e de se submeter às suas conseqüências (pode ainda
tentar fugir delas). O Aquinate pergunta-se, nesse sentido, sobre o que seja uma ão
moralmente imposta
373
.
A discussão que se coloca tange o conhecimento do que é bom, o qual justifica uma
dada legislação. Um tirano, por exemplo, não poderia servir-se de instrumentos legais para
alcançar o que ele julga bom para ele, esquecendo-se (ou ignorando) que o seu “bem” passa
pelo bem dos demais (o bem comum) ao mesmo tempo em que impede a realização dos
cidadãos
374
. Ainda, dado que a generalidade da lei pode não se coadunar com a especificidade
de um caso concreto, o qual pediria uma ação contrária, a lei deve restringir-se à regulação
dos atos diretamente relacionados com o bem comum
375
. O respeito ao bem fundamental
humano, o qual se realiza em concordância com o bem comum, pede que esse sirva de critério
à lei, não sendo ela legítima ao contrariá-lo ou ao excedê-lo
376
.
Daí a Filosofia Moral, na sua investigação científica acerca da moralidade,
intimamente ligada à Política, precisar distinguir entre o voluntário e o involuntário, bem
como estabelecer a sua relação com a virtude (hábito gravado internamente ou disposição do
caráter). Pois o voluntário, quando conforme à virtude, é que é digno de louvor, quando
372
CHALMETA, G., La justicia política en Tomás de Aquino: una interpretación del bien común político, p.
114.
373
CEN, III, 1, §390.
374
Tomás menciona a hipótese de um tirano que tem sob seu poder os pais ou os filhos de um certo homem e
que o ordena a cometer uma ação vergonhosa, caso contrário seus parentes serão mortos. CEN, III, 1, §388.
Uma lei - legítima - o pode, entretanto, dispor contrariamente à dignidade do indivíduo, além de o poder
dispor sobre o que ultrapassa as exigências do bem comum.
375
G. Chalmeta refere as conseqüências indesejadas da lei apontadas por Tomás na Suma de Teologia.
CHALMETA, G., La justicia política en Tomás de Aquino: una interpretación del bien común político, p. 198.
376
G. Chalmeta atribui ao Aquinate a adoção de uma posição “minimalista”, tanto no que se refere à proibição
dos vícios, como no que se refere à exigência das virtudes. CHALMETA, G., La justicia política en Tomás de
Aquino: una interpretación del bien común político, p. 208/9.
136
contrário, digno de reprovação. o involuntário, ainda que conforme à virtude, não pode ser
digno de louvor, tampouco de reprovação quando a ela contrário, mas, nesse caso, de perdão e
de piedade
377
. Com efeito, o voluntário é um princípio da ação virtuosa
378
, ligando-se, então, à
felicidade
379
que, por sua vez, liga-se ao bem comum que a lei civil visa assegurar
380
.
No que tange à virtude, Tomás assinala que ela pode ser uma decorrência de três
fatores, a saber, natureza, prática e instrução, mas que nenhum deles dispensa a necessidade
do hábito
381
. Por natureza, o homem pode ter uma inclinação às virtudes morais, mas não às
intelectuais que dependem de instrução. A prática constante do que se conhece, por sua vez,
depende da aquisição do hábito correspondente
382
. A legislação aparece, assim, como
necessária à habituação
383
. O Doutor Angélico aponta que o caminho da virtude passa tanto
por um intelecto dotado do direcionamento correto (conhecimento verdadeiro) como
acompanhado da firmeza capaz de coibir uma negativa da vontade (apetite racional), como se
segue:
377
É preciso que se faça, então, a consideração de dois momentos: aquele da elaboração da lei, pela ciência que
se ocupa da moral, e aquele da aplicação da lei. Ora, se é fato que as intenções precisem ser consideradas na
avaliação do ato, sua verdade nem sempre pode ser demonstrada. Por isso, enquanto os critérios legislativos
centram-se na escolha (olhando para os motivos da ação), os critérios judiciais centram-se, sem desprezar
aqueles, nos dados objetivos da ação em pauta (olhando o seu resultado). Com efeito, a justiça respeita aos atos
externos e apenas secundariamente às influências internas que o influenciaram. CEN, V, 1, §886.
378
Os princípios da ação virtuosa são o voluntário, a escolha e a vontade. Diz Tomás em referência a
ensinamento de Aristóteles: “Ele havia dito, com efeito, defindo a virtude, que a virtude é um hábito eletivo
porque a virtude opera pela escolha. Assim, ele trata agora, conseqüentemente, da escolha, do voluntário e da
vontade. A esses três [itens], o voluntário é comum, pois se diz voluntário tudo o que se faz de pleno
consentimento, a escolha, ela, trata do que visa um fim e a vontade considera o fim ele mesmo”. CEN, III, 1,
§382.
[73086] Sententia Ethic., lib. 3 l. 1 n. 1
Dixerat enim, definiens virtutem, quod virtus est habitus electivus, eo scilicet quod virtus per electionem
operatur: et ideo nunc consequenter de electione determinat, et de voluntario et voluntate. Horum trium
voluntarium commune est. Nam voluntarium dicitur, omne quod sponte fit. Electio autem est eorum quae sunt ad
finem. Sed voluntas respicit ipsum finem.
379
A felicidade é uma atividade virtuosa. CEN, I, 12, §153.
[72928] Sententia Ethic., lib. 1 l. 19 n. 1
Dictum est enim supra, quod felicitas est operatio quaedam secundum virtutem perfectam. Et sic per
cognitionem virtutis melius poterimus de felicitate considerare.
380
O julgamento da ação, entretanto, não pode limitar-se às suas condições, mas deve considerar também a
vontade do agente. É preciso que se admita que o que é universalmente errado pode ser circunstancialmente a
melhor ação a ser feita. Certos valores norteiam a criação de regras gerais. Não obstante, o universal não é o
universal do que vale necessariamente para todos os casos, mas é o que vale na maioria dos casos ou na maior
parte deles. Ora, a disciplina científica exige um certo rigor. Mas da Política, por exemplo, não se pode exigi-lo
no mesmo grau que na Matemática (na qual o universal corresponde ao necessário). Deve-se considerar o que é
bom e o que é mau universalmente, entretanto, o que é bom e correto de forma universal pode não o ser de forma
particular, porque as circunstâncias podem exigir a adoção de certos meios particulares os quais o se deseja
como fim. As regras gerais pedem o seu sopesamento.
381
CEN, X, 14, §2143.
382
CEN, X, 14, §2144.
383
CEN, X, 14, §2148.
137
Em seguida, ele mostra que a lei é necessária para que se torne bom. Ele mostra com duas
razões. A primeira é que é preciso que aquele que deve tornar-se bom receba boa educação
e costume, e que ele viva na seqüência em conformidade com as vias corretas descobertas,
de maneira a abster-se das coisas depravadas, seja pela sua vontade própria, seja mesmo
sendo constrangido contra sua vontade. Certamente, isso acontece quando se tem sua
vida dirigida por uma inteligência que detém tanto a ordem correta, para conduzir ao bem,
quanto a força, quer dizer, um poder de coerção, para constranger aqueles que não querem.
Ora, o preceito paterno não tem força de coerção, nem ela pertence a qualquer outro
homem persuasivo que não seja o rei, nem é constituída em uma outra forma de governo.
Mas a lei tem o poder de coerção do fato que ela é promulgada por um rei ou por um chefe.
Ela é também um argumento que procede da prudência e de uma inteligência que dirige em
direção ao bem. Assim, decorre que a lei é necessária para tornar os homens bons
384
.
Nota-se que o Aquinate conduz o leitor a oscilar entre as concepções de
“conhecimento” e “vontade”, “alma” e “corpo”, faculdades racionais” e “faculdades
sensíveis”, virtudes intelectuais” e virtudes morais”, “Ética” e “Ciência Política”, “vida
contemplativa” e “vida prática”, cuja interação culmina nas de “felicidade divina” e
“felicidade humana”. Se num primeiro momento tem-se a tendência a polarizar umas e outras,
uma leitura de conjunto do Comentário à Ética Nicomaquéia, bem como dos outros
comentários que ele realiza no que toca ao corpo aristotélico e das obras onde versa sobre tais
temas em primeira pessoa, permite que se compreenda sua complementariedade
385
. Com
efeito, Aristóteles deixara transparecer uma certa tensão entre a esfera política e a esfera
especulativa, tendendo a priorizar aquela em detrimento dessa, mas Tomás parece desfazê-la,
apoiado numa idéia de ordem que ultrapassa a idéia grega. Quer dizer, ele estabelece uma
hierarquização entre o que se refere a propriedades físicas e racionais no homem, que reflete a
função que o especifica no universo, bem como a hierarquização existente entre esta vida e a
divina, e que justifica a também hierarquização das disciplinas que pretendem descrever
cientificamente a realidade, sem, contudo, negar a unidade humana e a ordem total do
cosmos. Se para o Santo Doutor a felicidade divina é superior em perfeição à humana, da
384
CEN, X, 14, §2153.
[74855] Sententia Ethic., lib. 10 l. 14 n. 17
Deinde cum dicit: si igitur, quemadmodum dictum est etc., ostendit, quod lex est necessaria ad hoc quod homo
fiat bonus. Et hoc duabus rationibus. Quarum prima est, quia oportet eum, qui est futurus bonus, bene nutriri et
consuescere, et quod postea vivat secundum adinventiones rectarum viarum, ita quod abstineat a pravis, sive
propria voluntate sive etiam contra suam voluntatem coactus. Quod quidem non contingit nisi vita hominis
dirigatur per aliquem intellectum, qui habeat, et rectum ordinem ad hoc quod ducat ad bonum, et habeat
fortitudinem, idest vim coactivam ad hoc quod compellat nolentes; quam quidem vim coactivam non habet
praeceptum paternum, neque cuiuscumque alterius hominis persuadentis, qui non sit rex, vel in aliquo alio
principatu constitutus. Sed lex habet coactivam potentiam, in quantum est promulgata a rege vel principe. Et est
sermo procedens ab aliqua prudentia et intellectu dirigente ad bonum. Unde patet, quod lex necessaria est ad
faciendum homines bonos.
385
Uma leitura do Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo de Tomás de Aquino pode ser também
desejável. Nela, destaca J.-P. Torrell, pode-se contar mais de duas mil citações de Aristóteles, sendo que a Ética
Nicomaquéia vem em primeiro lugar, com algo em torno de 800 citações. TORRELL, J.-P., Iniciação a Santo
Tomás de Aquino, p. 49.
138
mesma forma que o intelecto é superior à sensibilidade e o conhecimento à ação
386
, esta
superioridade não pode ser suplantada nesta vida, mas experienciada de maneira tal que o que
é inferior acorde-se com o que lhe ultrapassa, sem ser por isso neligenciado.
Como a sua alma, o fim do homem é também dúplice: a razão humana desdobra-se
numa atividade racional eminentemente prática e noutra contemplativa. Embora essa seja
mais nobre do que aquela, não pode desmerecê-la, sob pena de falta à realização do seu
caráter estritamente humano, o qual é dado o somente ao homem realizar e que possui uma
função reguladora do ponto de vista social. Se todos os homens passassem a se dedicar tão
somente à contemplação divina, o haveria sociedade, e a condição humana por excelência
seria frustrada. Nada impede, entretanto, que a atividade empreendida o seja em concordância
com uma tal diretiva. McInerny sublinha:
A contemplação, apesar de o poder ser a atividade exclusiva de nenhum ser humano, é
objetivamente a melhor atividade na qual um humano pode se engajar. Um homem, então,
que ordena sua vida estando tudo o que ele faz, em última instância, a serviço da
contemplação, pode ser dito estar conduzindo a melhor vida humana objetivamente
387
.
Ora, segundo McInerny, o bem humano está na “orquestração” de vários bens e não na
busca de apenas um único entre eles
388
. Dada a condição humana, a contemplação não pode
ser exigida como uma atividade exclusiva, mas exercida na medida da necessidade e
capacidade individual de cada um. A ordem humana pede a realização de um conjunto de
bens que concorda com um bem maior, mas o maior dos bens não é dado ao homem realizar
justamente porque a natureza dele é de outra ordem, a divina.
Do ponto de vista filosófico, o Doutor Angélico observa que o bem o qual pode ser
investigado é o bem humano, sendo o divino maior do que a condição racional humana
permite conhecer
389
. Na busca do seu bem, então, o qual passa pelo bem comum, e em
respeito à sua natureza, mas o completamente determinado por ela, o homem necessita
conhecê-lo e desejá-lo, a fim de conduzir a sua conduta na direção correta. Ainda, ele precisa
ter o hábito de desejar o que é verdadeiramente conforme ao seu bem a fim de não ser levado
386
Tomás, num certo sentido, privilegia a ordem especulativa sobre a prática, o que não é feito por Aristóteles.
387
McINERNY, R., Ethics, p. 33.
388
McINERNY, R., Ethics, p. 34.
389
“Pois nesse livro, o Filósofo fala da felicidade tal como se pode obter nesta vida. Com efeito, a felicidade de
outra vida excede toda investigação da razão”. CEN, I, 9, §113.
[72817] Sententia Ethic., lib. 1 l. 9 n. 11
Loquitur enim in hoc libro philosophus de felicitate, qualis in hac vita potest haberi. Nam felicitas alterius vitae
omnem investigationem rationis excedit.
139
a agir por um desejo puramente sensual. É a formação dessa disposição de caráter que a lei
positiva incentiva. Uma vez que decorra da lei natural, princípio sobre o qual se funda o
conhecimento científico em matéria moral, dispõe sobre o que é verdadeiramente bom a ser
feito (na maior parte dos casos) e de maneira obrigatória.
Daí a conclusão de que, para Tomás, sendo a ação humana uma ão racional, ela
pressupõe o conhecimento, e sendo ela desencadeada pelo desejo, ela pressupõe que esse lhe
seja conforme, a fim de que forme um hábito virtuoso. Logo, uma lei é legitimamente imposta
quando as suas prescrições satisfazem as exigências do bem comum. Dele ela extrai o seu
valor de verdade. E ela garante a conformidade da ação à essa verdade na medida em que é,
justamente, imposta. Da coerção tem-se a estimulação ao hábito. Pois a Ciência Política trata
do estudo do bem comum e a legislação que nele se funda (produto da Ciência Legislativa)
obriga hipoteticamente ao seu cumprimento
390
. O homem é, nesse sentido, determinado o
apenas de forma estritamente natural, mas, sobretudo, racional. Como a razão é um princípio
individual a cada um e como a realização do bem de cada um passa pela do bem comum, é
preciso que os critérios mínimos de uma tal realização sejam definidos e respeitados por
todos. A lei cumpre, assim, com a definição das principais diretrizes do agir humano. Ela
garante a prerrogativa do bem da coletividade, pelo qual passa o bem dos indivíduos
391
.
Assinala G. Chalmeta:
(…) a existência de leis emanadas da autoridade que estabelece com validez geral algumas
implicações da lei natural, apesar dos problemas de justiça que origina, é necessária para a
realização existencial desse ideal. Entre as razões que Tomás propõe para sustentar essa
tese, encontram-se no artigo da Summa Theologiæ, que se ocupa especificamente do
problema: primeiro porque será mais fácil encontrar poucas pessoas sábias capazes de ditar
bem estas normas gerais do que as muitas necessárias para julgar o que exige a lei natural
em cada caso singular; ademais, porque os que estabelecem as leis podem considerar
largamente os problemas em discussão, enquanto se devessem julgar sobre os fatos
particulares seria inevitável ter que decidir alguma vez sem a atenta consideração dos
elementos em jogo; e, por último, porque os legisladores julgam em abstrato e sobre coisas
futuras, e, portanto, a valoração será com freqüência mais objetiva do que a que se refere
390
Observa G. Chalmeta: “Sem embargo, quem quer de verdade realizar o ideal da justiça o tem como evitar a
exigência de algumas leis coercitivas e universais. Razão pela qual a justiça exigirá, algumas vezes, sacrificar
alguns direitos o fundamentais do indivíduo para salvar a sociedade, da mesma forma que às vezes sacrifica
algo da parte para salvar o todo [ST, I-II, q. 96, a. 4, conclusão]”. CHALMETA, G., La justicia política en
Tomás de Aquino: una interpretación del bien común político, p. 202.
391
M. S. Kempshall chama a atenção para duas perspectivas possíveis de análise: “Na teoria, portanto, Aquino
argumenta que a justiça geral compreende todas as virtudes, que a lei é instituída para fazer os indivíduos
virtuosos, e que as ões as quais um indivíduo pratica para si mesmo o ões que o feitas para toda a
comunidade. Na prática, entretanto, ele concede que a lei humana não compreende toda ação de toda virtude,
que a lei é instituída para corrigir apenas aquelas atividades que ameaçam a continuação da sociedade humana, e
que uma esfera de atividade privada para cada ser humano individual”. KEMPSHALL, M. S., The common
good in late medieval political thougt, p. 123.
140
aos acontecimentos particulares e presentes; com efeito, esta última se faz com freqüência
sob a influência perturbadora das paixões [ST, I-II, q. 95, a. 1, ad 2]
392
.
A hipótese que motivara inicialmente a realização deste trabalho era a de que, para
Tomás de Aquino, comentador da Ética Nicomaquéia, o conhecimento científico da
felicidade é um pressuposto ao seu alcance. A sua confirmação procedeu-se pela verificação
de duas premissas: a de que a ação é pressuposta à felicidade e a de que o conhecimento é
pressuposto à ação. Pois, uma vez demonstrado que a felicidade é uma atividade humana
(premissa 1) e que essa atividade é ordenada pelo conhecimento do homem sobre ela
(premissa 2), conclui-se que o conhecimento é pressuposto à felicidade. O Aquinate,
entretanto, diz mais, donde a necessidade da consideração de duas acepções da palavra
“conhecimento”. Numa primeira acepção, qual seja a de “conhecimento científico” (scientia),
não é preciso que se conheça o que é a felicidade, mas, a partir da sua definição, é preciso
que se conheça, ainda, o que ela envolve. A um tal conhecimento, entretanto, não se pede de
um modo geral ao homem que chegue por si só. Basta que alguns entre eles (os cientistas
políticos, num primeiro momento, e os legisladores, num segundo) o façam a fim de que sirva
como diretiva aos demais (os cidadãos). Numa segunda acepção, portanto, a de
“conhecimento” em sentido lato (cognitio), é preciso que todos conheçam o que é a felicidade
e o que ela envolve para dirigir a sua ação até ela, o que se pode conhecer pela experiência
(apreensão) ou pelo ensinamento (aprendizado). Nesse sentido, o “ensinamento” dado pela lei
é o mais eficiente, posto que científico e, logo, verdadeiro, e que coercitivo e, logo, motivador
- na maior parte dos casos
393
.
Assim, do ponto de vista do indivíduo, a legislação assegura o conhecimento de que
depende para ordenar-se ao seu fim e a motivação de que pode precisar para agir
conformemente a ele. do ponto de vista do cidadão, ela assegura o seu direito humano a
realizar-se, o qual passa pelo dos demais, posta a relação do bem individual com o bem
comum. O homem feliz é aquele que tem o seu bem realizado em suas diferentes esferas, a
qual depende da sua ação, mas também da do seu semelhante. Daí o fundamento da lei, ser
instrumento à realização humana. Ela dá a conhecer as diretivas de cuja observação depende o
392
CHALMETA, G., La justicia política en Tomás de Aquino: una interpretación del bien común político, p.
198.
393
J.-M. Aubert apresenta a distinção operada por Tomás de uma dupla faculdade da lei: “uma vis directiva’
inerente e essencial a toda lei humana, característica que a aproxima mais à lei divina (orientação dos homens
em direção a seu fim último), e uma ‘vis coactiva’ que é apenas acidentalmente e que não entra em jogo a não
ser que a primeira não tenha eficacidade”. AUBERT, J.-M., Le droit romain dans l’œuvre de saint Thomas, p.
83.
141
bem comum, assim como a estimula. A felicidade humana pressupõe, portanto, um
conhecimento deste tipo: um conhecimento que seja científico, mas também coercitivo, tal
como o que é dado pela legislação civil.
142
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394
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