A inteligibilidade de tudo que foi visto torna-se mais clara sobretudo quando levamos
em consideração a distribuição sexo-etária extremamente desequilibrada a que estavam
submetidos os homens e mulheres, fossem escravos ou livres. Dessa maneira, a alta
razão de masculinidade acabou por fazer com que até os livres disputassem mulheres no
mercado matrimonial escravo e forro. Em Portugal, as altas taxas de fecundidade, o
predomínio de pequenas propriedades e um sistema de heranças que privilegiava apenas
um dos herdeiros (para evitar uma excessiva fragmentação da terra) acabou por
impulsionar uma migração portuguesa predominantemente masculina, jovem, solteira e
pobre, originada sobretudo das províncias do norte e das Ilhas dos Açores e da Madeira.
No artigo “Imigração portuguesa e miscigenação no Brasil”, Cacilda Machado e Manolo
Florentino demonstram, a partir de registros de batismo de livres da Freguesia de
Inhaúma na primeira metade do século XIX, que os homens portugueses mostraram-se
seletivos na escolha da parceira a ser levada para o altar. Segundo os autores, “buscavam
portuguesas até onde fosse possível, partiam para as brasileiras brancas descendentes de
imigrantes lusos recentes e, por fim, para as brasileiras brancas de longínqua
ascendência lusitana.” Só então, em função da exigüidade de parceiras a seu gosto,
abriam-se ao casamento com mulheres de cor, escravas ou forras.
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Se deslocarmos o poder de escolha dos homens para as mulheres livres, que, como as
cativas, estavam em menor número, podemos pensar na possibilidade de que os homens
que casaram com forras, ao invés de não terem encontrado uma parceira entre as livres,
foram na verdade rejeitados pelas portuguesas e brasileiras livres, as quais
provavelmente encontraram melhores partidos para casar. Ao mesmo tempo, foram as
escravas, e sobretudo as forras, que vislumbraram condições de aproveitar-se de tal
situação para fugir do padrão endogâmico de seu grupo: encontraram homens livres
portugueses e livres com que unir-se, provavelmente aqueles preteridos pelas mulheres
livres. Na Freguesia de Jacarepaguá até encontramos três casos de homens escravos
casados com mulheres livres (ver Quadro 1). No entanto, um exame mais cuidadoso dos
registros revela que dois deles referem-se, na verdade, a casamentos de mulheres forras
com escravos. Tanto Francisca, crioula livre casada com Francisco escravo pardo,
quanto Domingas, crioula livre casada com o escravo Carlos, cuja naturalidade e cor não
foi declarada, tiveram o nome de seus ex-senhores anotados na ata. E ainda assim, no
caso de Rosa, crioula livre casada com o escravo Francisco no Livro consta a anotação:
“Proprietário não identificado”, o que significa dizer que ele provavelmente existiu.
Embora esses sejam exemplos de casamentos hipergâmicos do ponto de vista do estatuto
jurídico dos homens, ainda assim reforça o padrão da ausência de homens escravos no
“mundo” das mulheres livres brancas.
O que não pode deixar de ser mencionado é o fato de que, provavelmente, o que afastava
as portuguesas e brasileiras destes homens, e o que os aproximava das escravas e forras,
era a pobreza. Muitos imigrantes eram pobres, trabalhavam como carregadores no porto,
eram empregados no comércio ou até vendedores ambulantes, e estavam aqui justamente
para enriquecer e voltar para Portugal. No entanto, ao enfrentarem as agruras de uma
vida sem propriedades, por vezes sem emprego e com pouco ou nenhum recurso para
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FLORENTINO, Manolo e MACHADO, Cacilda. Op. cit. p.99.