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possibilidade de agirmos de acordo com ele. O Fato da Razão seria a prova de que todo dever
implica poder. O fato de podermos decidir por conta da liberdade de nossa vontade, no
sentido de uma espontaneidade prática (capacidade de determinação da ação sem estados
psicológicos, inclinações internas a nos moverem), significa que podemos escolher como
móbil de nossas ações os impulsos sensíveis, porém, de acordo com Kant, podemos resistir a
estes impulsos e, submetendo-os à razão, agirmos de acordo com o que o dever nos determina
através da autoconsciência da lei moral.
Esta interpretação a respeito do Fato da Razão parece ser a mais tradicional: se devo
fazer algo isso implica imediatamente a possibilidade de fazê-lo.
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Contudo, algumas críticas
podem colocar em dúvida este tipo de argumentação. Vejamos um exemplo apresentado por
Darlei Dall`Agnol para ilustrar a pouca plausibilidade daquela afirmação segundo ele: “(...)
um médico deveria sempre salvar vidas, mas nem sempre, apesar de desejá-lo, pode fazê-lo.
Outro caso: vejo uma pessoa afogando-se em alto mar, devo salvá-la, mas não sei nadar e, por
conseguinte, não posso fazê-lo”.
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Podemos argumentar, portanto, que em muitas situações de
nossa vida o “dever fazer” não necessariamente implica o “poder fazer”. Procuremos,
contudo, investigar se este é o caso para a interpretação da consciência da lei moral em nós.
Kant menciona a expressão Fato da Razão (Faktum der Vernunft) em várias passagens
de seu texto na Crítica da Razão Prática. Contudo, consideramos aqui se tratar o Fato da
Razão de um evento resultante da atividade pura da razão e, muito embora possamos
encontrá-lo descrito de diferentes formas, pretendemos considerá-lo um único Fato. Aquilo
que significa, realmente, tal Fato é que precisa ainda ser clareado em nossas investigações,
entretanto assumimos desde já que “(...) importa observar, a fim de considerar, sem falsa
interpretação, esta lei como dada, que não é um facto empírico, mas o facto único da razão
pura”.(KpV, A-56, grifo meu)
Portanto, apesar de a expressão em questão ser utilizada de diferentes formas por Kant
na segunda crítica e apesar da possibilidade de uma interpretação acerca da existência de mais
de um Fato da Razão, iremos considerar para efeito da discussão aqui pretendida que a
multiplicidade e distinção de significados desta expressão não significam propriamente a
existência de mais de um Fato e sim a existência, apenas, de mais de uma forma de apresentá-
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“Julga, pois, que pode alguma coisa porque está consciente de que o deve e reconhece em si a liberdade a qual,
sem a lei moral, lhe permaneceria desconhecida” (KpV, A 53).
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Dall`Agnol, Darlei. Sobre o Faktum da razão. In Existência Lógica. 1997,p. 270