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pública. A noção de inimigo
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será, pois, o resultado natural dessa perspectiva, não
necessariamente inscrito em um perímetro de relações políticas (o inimigo externo, noção que
poderíamos, certamente, relacionar ao problema das epidemias), mas inscrito num cenário de
higiene, de saúde, de cuidado médico. O inimigo é algo como a doença, é algo como
os perigos, externos ou internos, em relação à população e para a população. Em
outras palavras, tirar a vida, o imperativo da morte, só é admissível, no sistema de
biopoder, se tende não à vitória sobre os adversários políticos, mas à eliminação do
perigo biológico e ao fortalecimento, diretamente ligado a essa eliminação, da
própria espécie ou raça. A raça, o racismo, é a condição de aceitabilidade de tirar a
vida numa sociedade de normalização. [...] A função assassina do Estado só pode ser
assegurada, desde que o Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo.
(FOUCAULT, 2005b, p. 306)
Abrimos um parênteses – e fazendo a ressalva de que as avaliações que aqui se
seguirão não são diretamente o objeto do presente trabalho – para trazer elementos
importantes na conformação de uma figura ampla e quiçá mais concreta dos reflexos que os
temas e conceitos até aqui trabalhados podem auxiliar na compreensão de problemas
contemporâneos concretos. Assim, nos reportando à questão que abrange as disputas entre o
Estado de Israel e os povos da Palestina
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, poderíamos propor algumas aproximações, como
contribuição ao debate frente ao qual este trabalho pretende se furtar. A expressão apartheid
israelense foi utilizada no título de um artigo publicado na revista “Le Monde Diplomatique
Berlim, não se pôde alcançar a vitória contra a doença por acreditar-se que a utilização de animais para a
testagem dos medicamentos, nesse caso, não era adequada – é ilustrativo aqui. Como assevera Ekcart, os
pacientes eram confundidos a coisas das quais os médicos eram proprietários, tendo o tratamento sido
convertido, por consegüinte, em um experimento que se realizava numa área privada da periferia imperial
germânica (ECKART, 2002, p. 87). Aliás, é interessante observar que a metodologia utilizada naquela época
(falamos do início do séc. XX, por volta de 1908) – bastante recente – muito tem de semelhante com exemplos
contemporâneos. Senão, vejamos como era, digamos, dado incentivo aos pacientes para que se submetessem ao
isolamento em campos de tratamento, seguindo as orientações dos médicos e utilizando os medicamentos
prescritos: “To make the stay in the camp more attractive, the government granted each patient 20 pfennigs
pocket money. And, for good behavior, men received tobacco, women and girls soap and oil for cosmetics.
These offers were not meant to function as ‘rewards’ but as ‘educational measure’” (ECKART, 2002, p. 82).
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Sobre a idéia de eliminação dessa figura do inimigo, nos parece pertinente citar o texto editorial sobre
segurança pública, publicada em revista especializada recentemente no Brasil, que afirma que enquanto o
problema da violência for tratado como o de um “inimigo a ser exterminado do convívio social, inexistirá
programa de segurança pública eficaz ou verba suficiente para o aparelhamento das forças de segurança ou para
a construção de estabelecimentos prisionais” (Boletim IBCCrim, São Paulo, n. 180, vol. 15, 2007).
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Sobre esse tema, importante mencionar que, conforme nos relata Koh (2007, p. 08), tendo em vista o fato de
que o Estado de Israel tem a existência posta em perigo, por causa do terrorismo, algo que portanto a coloca em
uma situação semelhante ao estado de guerra, tem-se encontrado suporte em doutrinadores do direito penal
(especificamente aqui, Claus Roxin) para que a prática de tortura e a conseqüente suspensão de direitos
fundamentais do homem sejam legitimados.