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A modernidade, a este respeito, constitui um bom exemplo desta conivência
de conflitos. Para primeiro afirmar-se, para confirmar-se depois, e
finalmente para reivindicar sua hegemonia, o racionalismo se inventa um
defensor, um duble obscuro (uma eminência parda): o irracionalismo, que
sob distintos nomes – obscurantismo, reação, tradição, pensamento orgânico
–, permitirá ao primeiro mostrar-se como o discurso de referência ao redor
do qual se organizará a vida na sociedade.
A história do século que acaba de transcorrer é ilustrada neste sentido, pois
se tem visto num mundo que se precisa civilizado, umas explosões muito
mais bárbaras que nas épocas reputadas como tais. Com efeito, a barbárie
artesanal dos séculos anteriores a sucede pela sofisticação dos meios que os
avanços tecnológicos e o desenvolvimento científico permitem.
E, com tranqüilidade, poderíamos prosseguir a sentinela nesse sentido. Cada
vez é mais admitido. Mas muitas vezes qualificamos esses fenômenos sob a
rubrica infamante de um regresso à barbárie, esquecendo que esta é tão só
uma expressão da violência da natureza humana. Ao querer restringi-la em
demasiado, ao obrigá-la a dar o melhor de si mesma, ao decretar a priori o
que deve ser, esquecemos que também está formada de barro.
O racionalismo esquece que, se existe uma lei, esta é a da coincidentia
oppositorum, que faz que coisas, seres e fenômenos completamente opostos
possam unir-se. Ao ignorar isto, o racionalismo se esforça, especialmente na
forma moderna, por sufocar e excluir fragmentos inteiros da vida, até que
estes venham por sua vez exacerbando-se ou extremando-se, e daí surgem as
explosões perversas das que temos falado anteriormente.
Podemos pensar que em certas épocas esta discriminação pode ser benéfica,
porque permite estabelecer uma ordem precisamente ali onde reina uma
massa de todo confusa. Mas se se leva a cabo sem discernimento e se
converte em hegemônica, acaba por negar e denegar as correspondências
secretas das que temos falado. Nesse sentido, as explosões não racionais, das
que a atualidade não anda escassa, podem ser entendidas como outros tantos
sintomas ou indícios da união dos contrários, é dizer, do fato de cada
elemento da vida social afeta a seu contrário. Ainda que para o racionalismo
‘o terceiro fica excluído’, o conhecimento tradicional, a sabedoria popular ou
simplesmente a experiência empírica nos ensinam que ‘sempre se dá o
terceiro’ (tertium datum), que resulta impossível baseá-lo todo numa
discriminação estrita, e que a vida é, em seus diversos aspectos, um
movimento perpétuo no que se expressa a união dos contrários.
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MAFFESOLI, Michel. Elogio de la razón sensible: una visión intuitiva del mundo contemporáneo. Buenos
Aires: Paidós, 1997, p.33-36: “La modernidad, a este respecto, constituye un buen ejemplo de esta connivencia
de conflictos. Para afirmarse primero, para confirmarse después, y finalmente para reivindicar su hegemonía, el
racionalismo se inventa un valedor, un doble oscuro: el irracionalismo, que bajo distintos nombres –
oscurantismo, reacción, tradición, pensamiento orgánico -, permitirá al primero mostrarse como el discurso de
referencia alrededor del cual se organizará la vida en la sociedad.
La historia del siglo que acaba de transcurrir es ilustradora en este sentido, pues se han visto, en un mundo que
se precia de civilizado, unas explosiones mucho más bárbaras que en las épocas reputadas como tales. En
efecto, a la barbarie artesanal de los siglos anteriores le sucede la sofisticación de los medios que los adelantos
tecnológicos y el desarrollo científico permiten.
Y, con toda tranquilidad, podríamos proseguir la cantinela en ese sentido. Cada vez es más admitido. Pero
muchas veces clasificamos esos fenómenos bajo la rúbrica infamante de un regreso a la barbarie, olvidando
que ésta es tan solo una expresión de la violencia de la naturaleza humana. Al querer constreñirla demasiado,
al obligarla a dar lo mejor de si misma, al decretar a priori lo que debe ser, olvidamos que también está
formada de barro.