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Universidade Federal de Goiás
Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia
Programa de Pós-graduação em História
AS REPRESENTAÇÕES DA CRISTIANIZAÇÃO DA
IRLANDA CELTA: UMA ANÁLISE DAS CARTAS DE
SÃO PATRÍCIO (V SÉC. D. C)
DOMINIQUE VIEIRA COELHO DOS SANTOS
GOIÂNIA
2008
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Dominique Vieira Coelho dos Santos
AS REPRESENTAÇÕES DA CRISTIANIZAÇÃO DA
IRLANDA CELTA: UMA ANÁLISE DAS CARTAS DE
SÃO PATRÍCIO (V SÉC. D. C)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal de
Goiás como requisito para obtenção do grau de Mestre
em História.
Área de concentração: Culturas, Fronteiras e
Identidades.
Linha de pesquisa: História, Memória e Imaginários
Sociais.
Orientadora: Profª. Drª. Ana Teresa Marques
Gonçalves.
GOIÂNIA
2008
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DOMINIQUE VIEIRA COELHO DOS SANTOS
AS REPRESENTAÇÕES DA CRISTIANIZAÇÃO DA IRLANDA
CELTA: UMA ANÁLISE DAS CARTAS DE SÃO PATRÍCIO (V SÉC.
D. C).
Dissertação defendida pelo Programa de Pós-graduação em História, nível Mestrado, da
Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal de Goiás, aprovado
em __________ de __________________ de _____________ pela Banca Examinadora
constituída pelos seguintes professores:
_______________________________________________
Professora Doutora Ana Teresa Marques Gonçalves/UFG
Presidente
_______________________________________________
Professor Doutor Carlos Oiti Berbert Júnior/UFG
Examinador
________________________________________________
Professor Doutor Ivan Esperança Rocha/UNESP
Examinador
________________________________________________
Professora Doutora Dulce O. Amarante dos Santos/UFG
Suplente
AGRADECIMENTOS
À professora doutora Ana Teresa Marques Gonçalves pela constante orientação
e cuidado;
À Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Ensino Superior (CAPES), pela
concessão da bolsa de estudos;
Ao professor Carlos Oiti Berbert Júnior pela colaboração e apoio oferecido a
este trabalho no que diz respeito às questões relacionadas com Teoria da
História;
Aos meus pais que finalmente compreenderam que um historiador às vezes ri
sozinho à noite trancado em seu quarto com algum clássico da literatura, artigos
de teoria da história ou uma gramática de grego.
Às pessoas que me proporcionaram reflexões densas: Henrique Modanez, Lyvia
Vasconcelos, Joyce Neves, Rafael da Costa Campos, Raul Vítor, Manoel
Gustavo, Carolina Etcheverry e Rayane Helena Araújo.
A todos os colegas da Pós-graduação e a todos que colaboraram para a
realização deste trabalho.
A Beethoven, Hermann Hesse e James Joyce, companheiros de jornada.
Aos professores (as) que aceitaram participar da banca examinadora e dedicar
suas atentas leituras a este trabalho.
RESUMO:
AS REPRESENTAÇÕES DA CRISTIANIZAÇÃO DA
IRLANDA CELTA: UMA ANÁLISE DAS CARTAS DE
SÃO PATRÍCIO (V SÉC. D. C)
Esta dissertação tem por objetivo analisar as representações da cristianização da
Irlanda Celta elaboradas por São Patrício. Temos como fontes dois documentos escritos em
Latim na Irlanda do século V (Confesio e Epistola ad milites Corotici). Diversas
publicações que tratam deste tema descrevem Patrício sempre como o cristianizador da
Irlanda ou organizador de um cristianismo pré-existente. Apresentamos uma outra
abordagem, levando em consideração apenas as duas cartas escritas por Patrício e nelas
tentaremos observar como ele representou os irlandeses, a si mesmo e a cristianização da
Irlanda. O enredo que construímos compreende o conceito de representação como uma
forma polissêmica, que se for pensada em voz dia, não se fixando na polarização entre
uma forma realista ou textualista de conduzir a narrativa, pode significar uma maneira
diferente de se relacionar com as obras de Patrício, apresentando, assim, em seu núcleo
narrativo, uma abordagem distinta das propostas de caráter realista sugeridas pela
historiografia irlandesa. Há Patrício, há Irlanda e há representações.
Palavras-chaves: Irlanda, São Patrício, Representações.
ABSTRACT:
REPRESENTATIONS CONCERNING
CHRISTIANIZATION OF CELTIC IRELAND:
ANALISYS OF PATRICK’S LETTERS (5
th
Century
A.D.)
This research intends to analyze representations concerning christianization of celtic
Ireland by Saint Patrick. We have as sources two Latin documents wrote in the 5th century
Ireland (Confesio and Epistola ad milites Corotici). Different publications that deal with
this subject often describe Patrick as cristianizer of Ireland or responsible for organizing a
preexisting Christianity. We present another approach considering only the two letters
written by Patrick trying to observe how it represented the Irishmen, himself and the
christianization of Ireland. The plot we’ve constructed understands the representation
concept as a polissemic form, that if thought in middle voice, whithout concentrating on the
polarization between a realistic or textualistic form of to lead the narrative, may mean a
different form of working with the Patrician workmanships, introducing, thus, in its
narrative nucleus, an aprroach that is different from the proposals of realistic character
suggested by the Irish historiography. There is Patrick, there is Ireland and there are
representations.
Keywords: Ireland, Saint Patrick, Representations.
SUMÁRIO
Introdução_________________________________________________01
1. Acerca do conceito de representação ___________________________07
1.1 Representação e filosofia política ________________________________12
1.2 As representações sociais_______________________________________18
1.3 A problemática da representação: uma questão para a teoria da história __25
1.4 As Cartas de Patrício e a problemática da representação ______________37
2. Patrício entre a Bretanha e a Irlanda celta do século V: Uma possível
história dos referentes ________________________________________44
2.1 Patrício em seu contexto bretão__________________________________ 46
2.2 Patrício em seu contexto irlandês ________________________________ 51
2.3 Uma análise da historiografia que aborda a vida de Patrício: J.B. Bury (1905);
R.P.C. Hanson (1968; 1978); E. A. Thompson (1986).________________59
2.4 Uma possível história dos referentes: Patrício, a Bretanha e a Irlanda celta do
Século V____________________________________________________79
3. As Cartas de Patrício e as representações da cristianização da Irlanda
celta do século V _____________________________________________82
3.1 Patrício por ele mesmo ________________________________________ 86
3.2 Patrício e a questão da escravidão ________________________________ 95
3.3 Os sonhos de Patrício ________________________________________ 102
3.4 As crenças de Patrício________________________________________ 111
3.5 A Irlanda e os irlandeses ______________________________________ 117
3.6 As Cartas de Patrício e uma imagem da cristianização da Irlanda celta do
Século V____________________________________________________125
Considerações finais ________________________________________ 132
Referências bibliográficas ___________________________________137
1
Introdução
esta dissertação apresentamos reflexões sobre as representações feitas por
São Patrício em suas cartas acerca de algumas vivências significativas que
ele teve durante sua vida. Nosso objetivo é mostrar, por meio da análise da
Confissão e da Carta aos soldados de Coroticus, como Patrício construiu a partir destas
representações uma imagem da cristianização da Irlanda celta do século V.
Apesar de ser Bretão, São Patrício é considerado padroeiro da Irlanda. Sabemos
que ele nasceu no fim do quarto século, por volta de 390 na Bretanha. Ele era filho de um
diácono e neto de um presbítero. Quando Patrício tinha 16 anos de idade foi raptado por
piratas irlandeses e vendido como escravo na Irlanda para um homem chamado Milliuc.
Viveu na Irlanda por seis anos pastoreando ovelhas até fugir em um navio. Ele ainda
seria escravo novamente na Irlanda por dois meses, desta vez, sendo porqueiro de um rei.
Durante estes anos pôde aprender um pouco do idioma e da cultura irlandesa. Após isso
ficou um tempo na Bretanha com seus familiares e no ano 432 voltou para a Irlanda com o
objetivo de divulgar o cristianismo.
Só existem dois documentos escritos por Patrício que chegaram até nós, a sua
confissão e uma carta que escreveu aos soldados de Coroticus, ambos escritos em latim.
Existem alguns textos atribuídos a ele, mas estes não têm sua veracidade confirmada e
aceita pelos estudiosos do tema. A confissão de São Patrício é um texto escrito no fim de
sua vida para defender-se principalmente da acusação de que teria ido para Irlanda ganhar
dinheiro. Neste texto, Patrício fala sobre sua origem, suas dificuldades e revela um pouco
de sua personalidade. A carta aos soldados de Coroticus, por sua vez, foi escrita como um
N
2
protesto e uma advertência ao próprio Coroticus, um chefe de soldados que teria detido
alguns discípulos de Patrício e que perseguia, segundo sua opinião, os cristãos irlandeses.
várias referências nos anais irlandeses sobre as possíveis datas da morte de
Patrício, sendo a mais conhecida delas em 493, pois assim ele morreria com 120 anos, a
mesma idade de Moisés. Segundo O’Mathúna (1992: 4), esta data parece ter sido inventada
por hagiógrafos medievais. Só podemos afirmar que Patrício morreu no fim do quinto
século da era cristã. No século VIII, a Igreja Católica reconheceu Patrício como um santo e
como o introdutor do cristianismo na Irlanda.
Todas as vidas de Patrício, escritas do século VII até o século XIX, das quais
tomamos conhecimento, o apresentam como o santo introdutor do cristianismo na Irlanda
que conseguiu cumprir seus objetivos agindo de forma sobrenatural, lutando contra os
druidas e a “obscuridade” do paganismo. Assim sendo, estas obras mostram um Patrício
poderoso e fazendo diversos milagres para convencer os Irlandeses a aderirem ao
cristianismo.
Grande parte da bibliografia sobre Patrício e sobre a história do cristianismo
constrói seu enredo concordando com a tese de que Patrício foi importante por ter sido o
introdutor do cristianismo na Irlanda, organizador de um cristianismo pré-existente ou
enfatizando apenas este aspecto (Bury: 1905; Liam de Paor: 1993; Brown: 1999; Cahill:
1999; Hillgarth: 2004 e outros).
Esta dissertação apresenta uma abordagem distinta. Concordamos com a tese de E.
A. Thompson (1985:14) de que durante a vida de Patrício os homens não reconheceram sua
importância, e depois que todos que o conheceram pessoalmente morreram, fora seus textos,
nada sobre ele foi preservado. Por um espaço de cem anos após sua morte, ninguém o
descreveu como um organizador do cristianismo irlandês, como um pregador ou um
3
fazedor de milagres. No tempo da morte de Patrício, a Irlanda ainda era quase que
totalmente pagã. Não sabemos por qual motivo suas cartas foram preservadas, mas o fato é
que somente quando vieram à tona as pessoas começaram a falar dele.
Por estes motivos, devemos reconhecer que foi uma grande contribuição para o
avanço do cristianismo o fato de Patrício, sendo um bispo católico, ultrapassar a fronteira
do Império Romano e passar o resto de sua vida entre povos considerados bárbaros,
tentando convertê-los à cristã. Mas a maior contribuição de Patrício não foi converter
milhares de irlandeses e sim a composição da epístola e da confissão, pois sem estes
documentos, não saberíamos praticamente nada da história da Irlanda deste período
(Thompson, 1986:156-157).
O nome de Patrício está envolvido em várias questões relacionadas à identidade da
igreja irlandesa e foi usado por pelagianos, anti-pelagianos, anabatistas etc. Ainda hoje,
seu nome é mencionado por místicos, pagãos, céticos, batistas e outros.
1
A partir do século
VII, com a Vita Patricii escrita por Muirchú, várias características foram sendo
acrescentadas à sua carreira e personalidade. Thompson (1986:15), analisando e
concordando com as idéias de D.A Binchy, por exemplo, chega a dizer que todas as vidas
de São Patrício, os anais irlandeses e outros documentos escritos durante a Idade Média não
acrescentaram nada (exceto ficções) além do que nós podemos aprender nos próprios
escritos de Patrício.
Devido a estas questões identitárias relacionadas à igreja irlandesa e à situação
religiosa da Irlanda, grande parte dos estudiosos da vida e da obra de São Patrício, e aqui se
incluem até mesmo as obras de H.P.C. Hanson, se dedicou a buscar, ordenar, analisar e
1
Citamos dois exemplos destas construções: 1) a obra de Thomas Cahill (1999); 2) o texto do Dr. L. K.
Landis disponível em [ http://www.carmichaelbaptist.org/Sermons/landis1.htm ]. Acesso em 5 de
Dezembro de 2007.
4
comparar referentes
2
. Ou seja, a pretensão destas obras era a de verificar, na medida do
possível, se o que é dito nos textos de fato ocorreu, onde, quando e de que forma aconteceu.
Assim sendo, a maior parte destas obras tem como pretensão fornecer a representação mais
adequada da vida de Patrício e o contexto da Irlanda celta do culo V, tendo em vista a
opinião de que é possível uma história dos referentes.
Não discordamos que uma história dos referentes seja possível, mas não é nossa
intenção escrevê-la e criar mais uma representação do passado da Irlanda que possa
concorrer com as demais obras que mencionamos. Nossa intenção aqui não é localizar
referentes, ordená-los e compará-los, fazendo surgir mais um sistema narrativo rival sobre a
vida e a obra de São Patrício ou sobre o que se convencionou chamar de cristianização da
Irlanda. Por isso algumas questões debatidas exaustivamente pelos autores comentados não
estão em primeiro plano
3
nesta dissertação. Dentre rias possibilidades, preferimos
elaborar uma narrativa que leve em consideração apenas as duas cartas escritas por Patrício
e que a partir da análise das mesmas consiga confirmar a hipótese de que uma imagem
da cristianização da Irlanda celta do século V construída por ele por meio de várias
representações encontradas nestas cartas, sejam elas dos irlandeses, de suas vivências
significativas ou de si mesmo.
Dividimos a dissertação em três capítulos. No primeiro, o leitor poderá encontrar
uma reflexão acerca do conceito de representação e o modo como ele está sendo usado e
entendido por nós. Um conceito-chave do discurso histórico e repleto de polissemias, a
2
Uma história dos referentes é aquela que almeja apresentar um discurso sistematizado sobre o passado
humano acreditando que seja possível um conhecimento seguro sobre elementos que residem fora dos textos.
Toda vez que o termo “referente” aparecer nesta dissertação, deve ser compreendido neste contexto.
3
Alguns exemplos destas querelas: 1) Patrício esteve mesmo na Gália? 2) Como era a vida das pessoas que
foram capturadas e levadas junto com Patrício para a escravidão na Irlanda? 3) Como Patrício encontrou
abrigo durante sua fuga? 4) Como Patrício ficou andando vinte e oito dias em algum lugar do Império
Romano sem encontrar pessoa alguma? 5) Estaria ele andando em círculos? 6) Teria se perdido? 7) Como
eram os barcos irlandeses do século V?
5
representação não tem um significado fixo. Francisco J. Calazans Falcon situa a questão da
“história e representação” na encruzilhada dos percursos historiográficos que ele chama de
moderno e pós-moderno (Falcon, 2000: 42), enquanto H.B Mayo defende que devemos
simplesmente abandonar o termo e parar de usá-lo devido à sua complexidade (Mayo, apud:
Pitkin, 1967: 6). Pelos extremos mencionados, pode-se facilmente compreender a
necessidade de um capítulo específico para tratar desta problemática. Diferentemente das
dissertações e teses de história escritas no Brasil por volta de 1970 e décadas anteriores, não
escrevemos este primeiro capítulo sobre o conceito de representação apenas para cumprir
questões formais relacionadas à teoria da história, mas tendo a plena consciência de que
fugir deste debate seria uma negligência com alguns aspectos teóricos do trabalho que
estamos realizando, além de prejudicar a compreensão do conjunto argumentativo desta
dissertação.
No segundo capítulo, intitulado “Patrício entre a Bretanha e a Irlanda celta do
século V: uma possível história dos referentes”, localizaremos as principais construções
elaboradas pela historiografia acerca de Patrício e sua relação com a cristianização da
Irlanda. Como dissemos, não é nossa intenção fornecer uma representação que se
candidate ao posto de “mais adequada” acerca da vida e da obra de São Patrício. Desta
forma, nosso interesse neste capítulo não é discutir o que de fato ocorreu, mas como este
passado foi mostrado nas obras que tratam do tema em questão. Todas as obras
historiográficas mencionadas neste capítulo foram escritas após 1905. Escolhemos esta data
porque foi o ano em que J.B Bury publicou The life of Saint Patrick and His place in
History. Esta foi a primeira vez que métodos modernos foram aplicados aos estudos da vida
de São Patrício. Neste capítulo, o leitor poderá se certificar de que a tese geral das obras
mencionadas é de que Patrício foi importante por cristianizar a Irlanda ou então por
6
organizar um cristianismo pré-existente. veremos uma tentativa de sair desta questão na
revisão feita por Hanson (1978) e, mais tarde, por Thompson (1986).
No terceiro capítulo, apresentamos uma análise da Confissão e da Carta aos
soldados de Coroticus, tentando identificar como Patrício construiu uma imagem da
cristianização da Irlanda celta do século V por meio de várias representações. Segundo
Hanson (1978:54), todos os nossos conhecimentos sobre a Irlanda do século V são raros e
incertos, sendo as duas cartas de Patrício essenciais para nos aproximarmos deste período.
Thompson (1985:152) admite que o contexto de Patrício tanto na Bretanha como na
Irlanda está irremediavelmente perdido, pois não sabemos como suas atividades foram
recebidas por outros grupos. Não possuímos nem autores irlandeses e nem bretões que
possam nos dar uma luz sobre este período da história irlandesa. Mas, como já dissemos,
tanto Hanson quanto Thompson apresentam em suas obras tentativas de construir uma
narrativa que tem como objetivo mostrar quem foi São Patrício ou falar de suas origens e
carreira missionária na Irlanda (ver capítulo 2). Por meio das percepções extraídas em
nossas leituras, não encontramos nenhum autor que tenha se importado em compreender as
representações feitas por Patrício sem pretender ligá-las aos referentes. Se conseguirmos
realizar esta tarefa e corroborar nossa hipótese de que Patrício construiu uma imagem da
cristianização da Irlanda celta do século V, utilizando-se de várias representações feitas ao
longo de suas duas cartas, o objetivo desta dissertação terá se cumprido.
Por fim, basta dizer que esta dissertação deve ser julgada após a análise de seus
três capítulos em conjunto, como um sistema. Um não pode ser compreendido sem o outro.
Por este motivo espera-se do leitor que aguarde até a exposição dos últimos encadeamentos
de frases para finalmente se manifestar.
7
CAPÍTULO 1
ACERCA DO CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO.
epresentação pode ter vários sentidos em português. Trata-se de uma palavra
de origem latina, oriunda do vocábulo repraesentare que significa “tornar
presente” ou “apresentar de novo”, como indica Hanna Fenichel Pitkin (1967).
No latim clássico, seu uso é quase inteiramente reservado para objetos inanimados e não
tem relação alguma com pessoas representando outras pessoas ou com o Estado romano.
Segundo ela, o conceito de representação tem um significado altamente complexo. Em sua
obra, podemos observar o esboço de uma história das famílias de palavras relacionadas com
o que conhecemos como representação para demonstrar como o significado deste termo
tem se tornado cada vez mais abstrato.
A autora nos mostra que até mesmo em idiomas próximos do seu, como o alemão,
os mapas semânticos das palavras diferem. A língua alemã apresenta três palavras distintas
para o que, em inglês, se pode expressar com o termo “represent”. São elas: vertreten,
darstellen e repräsentieren
. A primeira delas, “vertreten”, significa atuar como um agente
para alguém”; “darstellen”, traduz a idéia de “retratar” ou “colocar algo no lugar de”; O
significado da terceira, “reprësentieren”,
é próximo ao de “vertreten”, que mais formal e
com conotações mais elevadas. Os teóricos alemães da política dizem que meros interesses
privados e egoístas podem ser “vertreten”, mas o bem comum ou o bem do Estado devem
R
8
ser “repräsentiert”
4
. De forma alguma o significado de “repräsentieren” é próximo do de
“darstellen”. Desta forma, para quem fala a língua inglesa, e também para quem, assim
como nós, fala o português, o modo pelo qual uma pintura, um pintor ou um ator de palco
representa, e também o modo pelo qual um agente ou um legislador eleito representa, estão
ligados ao mesmo termo. O mesmo não ocorre para quem fala o alemão (Pitkin: 2006).
A expansão da palavra repraesentare” começa nos séculos XIII e XIV, quando se
diz que o papa e os cardeais representam a pessoa de Cristo e dos apóstolos. Um outro
exemplo é o dos juristas medievais que começaram a usar o termo para personificar a vida
coletiva. Desta forma, uma comunidade seria uma persona non vera sed repraesentata.
Assim, a partir deste momento, o termo representação, passa a significar também “retratar”,
“figurar” ou “delinear”. O termo passa a ser aplicado a objetos inanimados que “ocupam o
lugar de” ou correspondem a “algo ou alguém”. Além disso, significa “produzir uma peça”.
Na teoria política, o conceito de representação é encontrado pela primeira vez em 1651, em
O Leviatã de Thomas Hobbes.
Em meados do século XVIII, um escritor familiarizado com o direito romano e com
o pensamento eclesiástico alegórico podia argumentar que o magistrado representa a
imagem de todo o Estado. Ou seja, a representação de tipo alegórico ou imagético, que é
oriunda de metáforas cristãs, é aplicada a um magistrado secular. A seguir, Pitkin (2006)
estabelece comparações do termo francês “représenter” de acordo com o Littré, com o
aparecimento da palavra “represent” no Oxford English Dictionary, possivelmente no final
do século XIV. A partir daí, a palavra “repraesentare” passa a ser utilizada cada vez mais de
4
Hanna Fenichel Pitkin cita este exemplo em um texto seu chamado “representation”, que lemos na tradução
para o português de Wagner Pralon Mancuso e Pablo Ortelhado, professores da Escola de Artes e
Humanidades da USP. Segundo ela mesma diz, este exemplo é retirado de seu livro denominado “Wittgestein
and Justice”, publicado em 1972.
9
acordo com os desenvolvimentos de idéias representativas na teoria política e o
desenvolvimento das instituições, por exemplo, o Parlamento inglês.
Nicola Abbagnano, em seu Dicionário de Filosofia (2007), indica que
representação significa “imagem” ou “idéia” ou ambas as coisas e que este termo foi usado
pelos escolásticos para se referir ao conhecimento como “semelhança” do objeto.
Guilherme de Ockham distinguia três significados fundamentais para o termo
representação, garante Abbagnano. Em primeiro lugar, a representação designa aquilo por
meio do qual se conhece algo. Ou seja, o conhecimento é representativo; Em segundo lugar,
por representar pode-se entender conhecer alguma coisa, após cujo conhecimento conhece-
se outra. Neste sentido, a imagem representa aquilo de que é imagem. E em terceiro lugar,
por representar entende-se causar o conhecimento do mesmo modo como o objeto causa o
conhecimento. O autor conclui sua reflexão acerca do vocábulo representação em Ockham
resumindo estas concepções da seguinte forma: no primeiro caso, a representação é a idéia
no sentido mais geral; no segundo, é a imagem; e no terceiro, é o próprio objeto
(Abbagnano, 2007:853).
Na continuação da história do desenvolvimento do vocábulo “representação”,
Abbagnano diz que com a noção apresentada por Descartes, em suas meditações, da idéia
como “quadro” ou “imagem” da coisa, o termo voltou a ter importância. Após isso, foi
difundido na obra de Leibniz, que afirma que a mônada é uma representação do universo.
Mas a difusão deste termo em língua alemã e em outras línguas européias coube a Wolf.
Após isto, Kant estabeleceu um significado geral para o vocábulo representação,
considerando-o o gênero de todos os atos ou manifestações cognitivas, não dependendo de
sua natureza de quadro ou semelhança e deste modo o conceito passou a ser utilizado em
filosofia (Abbagnano, 2007:853).
10
Carlo Ginsburg, seguindo Roger Chartier, destaca a ambigüidade do termo
representação”, que ora “faz as vezes da realidade representada”, evocando a ausência;
ora a torna visível, sugerindo sua presença. Esta oscilação entre substituição e evocação
mimética está registrada no verbete représentation desde 1690 no Dictionnaire
universel de Furetiére (Ginsburg, 2001:85).
Gustavo Blázquez (2000:170) escreve que nos dicionários de língua portuguesa o
significado de representação é construído em torno de quatro eixos: 1) A representação é
“o ato ou efeito de tornar presente”, “patentear”, “significar algo ou alguém ausente”; 2) A
representação é “a imagem ou o desenho que representa um objeto ou um fato”; 3) A
representação é “a interpretação, ou a performance, através da qual a coisa ausente se
apresenta como coisa presente”; 4) A representação é “o aparato inerente a um cargo, ao
status social”, “a qualidade indispensável ou recomendável que alguém deve ter para
exercer esse cargo”; a representação também se torna “posição social elevada”.
Maria Helena Capelato e Eliana Regina de Freitas Dutra consideram que houve uma
renovação na historiografia brasileira na década 1984-1994
5
, isso ocorreu não apenas pela
incorporação de novos objetos e novas fontes, mas principalmente pela utilização do
conceito representação, todavia, segundo elas, podemos notar vários problemas
relacionados com os usos do mesmo: 1) Os trabalhos apresentam uma bibliografia restrita
demais ou então uma lista tão ampla de autores a ponto de descaracterizar a proposta do
5
As autoras analisaram trabalhos escritos entre 1984 e 1994 sobre História do Brasil envolvendo o conceito
de representações na política. O objetivo era contribuir para o conhecimento das pesquisas que estavam sendo
realizadas nesta linha de interpretação que naquela ocasião foi caracterizada como “nova”. Segundo elas, as
informações apresentadas poderiam ser úteis para um maior intercâmbio, nacional e internacional, entre os
historiadores que trabalham com a história das representações políticas. Passados sete anos da data de
publicação deste artigo na coletânea sobre representações organizada por Jurandir Malerba e Ciro Flamarion
Cardoso, percebemos que muitas destas críticas ainda fazem sentido e muitos destes problemas podem ser
notados não somente nos trabalhos que tratam de representações políticas, mas em vários outros, de história
ou não, que envolvem de uma forma geral o conceito de representação.
11
trabalho; 2) muitos dos títulos citados não apresentam qualquer relação com a opção
metodológica de análise; 3) dificuldade de incorporar ao trabalho as reflexões teóricas dos
autores mencionados na bibliografia; 4) muitos textos não conseguem ultrapassar o nível
descritivo do material empírico, apesar das proposições analíticas anunciadas na introdução;
5) extremo ecletismo, utilizando autores com posições teóricas distintas sem fazer a
necessária distinção; 6) incapacidade de integrar a discussão teórico-metodológica à
descrição das fontes (Capelato; Dutra, 2000: 251).
Existem vários trabalhos que utilizam este termo representação/representações
como suporte teórico. No momento em que este capítulo estava sendo escrito, localizamos
no banco de teses e dissertações da USP
6
vários trabalhos que continham este conceito em
seus títulos. No entanto, a maioria deles não apresentava uma reflexão conceitual mais
esclarecedora sobre o termo. Os poucos que o faziam se restringiam a falar somente de
representações sociais, ignorando as dimensões filosóficas do problema. Assim sendo, tanto
pelas dificuldades semânticas que podem ser verificadas na exposição que fizemos a partir
de Hanna Pitkin, Ginsburg e dos quatro eixos que Blázquez localizou nos dicionários de
língua portuguesa em torno dos quais orbita a construção do significado do termo
representação, quanto pelas críticas de Capelato e Dutra à historiografia brasileira que
desenvolve esta temática, consideramos que seria necessário reunir uma bibliografia sobre
o tema e, a partir da leitura da mesma, escrever este capítulo, visto que usamos o conceito
de representação/representações no desenvolvimento desta dissertação e, como pudemos
ver, trata-se de um conceito repleto de polissemias e sem um significado fixo. Esperamos
que após o término destas reflexões acerca do vocábulo representação, perceba-se qual é o
6
Encontramos 199 trabalhos no banco de teses e dissertações da USP. Mencionamos este acervo da biblioteca
da Universidade de São Paulo apenas como um exemplo, o escolhemos por ser de fácil acesso a todos e pelo
fato de poder ser consultado usando a Internet a partir de qualquer computador.
12
sentido que estamos atribuindo a ele e como o mesmo será utilizado ao longo desta
dissertação. Ou seja, queremos analisar de que maneira São Patrício representou a
cristianização da Irlanda Celta do século V em suas cartas.
1.1 REPRESENTAÇÃO E FILOSOFIA POLÍTICA
Um dos possíveis usos do termo representação é aplicado à filosofia política e
podemos observá-lo tendo como ponto de partida as reflexões da própria Hanna Pitkin,
autora que já mencionamos no início deste capítulo. Escolhemos abordar este aspecto
partindo de sua obra porque em vários autores que discutem filosofia política e democracia,
tendo em vista o conceito de representações, ela é apontada como um clássico que realiza
um estudo exaustivo sobre o tema (Martinez, 2004).
Segundo Pitkin, as pessoas enviadas para participar nos concílios das igrejas ou no
Parlamento inglês passaram gradualmente a serem chamadas de representativas. Aos
poucos, ter representantes se tornou um direito dos cidadãos ingleses. Depois, com a
revolução francesa e americana isto passou a ser um direito humano. Entendido desta forma,
o termo representar significava estar no lugar de outra pessoa na qualidade de seu
representante. Neste contexto político, a representação está associada ao conceito de
autorização. Antes que alguém represente outra pessoa no Parlamento, por exemplo, é
preciso haver uma negociação, uma espécie de transação que envolve os direitos dos
representados. O representante é investido de responsabilidades, direitos e significações que
ele não tinha antes. Desta forma, a autorização para representar alguém ou um grupo social
se concentra nas formalidades de relacionamento, é por este motivo que a autora denomina
13
este pensamento como uma visão formalista da representação. Hanna Pitkin (1967:39) nos
apresenta três versões desta visão formalista da representação: 1) uma desenvolvida por
teóricos alemães e centralizada no conceito de organschaft; 2) uma outra baseada em um
governo democrático representativo; 3) e uma terceira versão articulada no trabalho de Eric
Voegelin.
Divergindo de Thomas Hobbes, os teóricos que Pitkin chama de Organschaft
partem do grupo e não do individuo. O representativo não é um agente de algum indivíduo,
mas sim de um grupo. Segundo a autora, o melhor escritor que temos para observar esta
versão é Max Weber, embora ele não use o termo Organschaft. Assim sendo, a
representação tem o seu sentido de ser no conceito weberiano de legitimidade, que a autora
retira da obra Wirtschaft und Gesellschaft. A representação somente ocorre quando
membros seletos de um grupo social têm o poder para representar os demais. Ou seja,
algumas pessoas têm o poder legítimo para agir em nome dos demais grupos que integram
a sociedade, mas este poder não é delegado a todos, somente alguns podem tê-lo. É o poder
legítimo de representar. Pitkin apresenta estas observações para que o termo não seja
confundido com o conceito weberiano de solidariedade (Pitkin, 1967:39).
7
Para a segunda versão, chamada de democracia representativa, o que interessa é a
eleição. É por meio dos votos que a autorização é concedida aos representantes. A
7
Pitkin diz que esta doutrina Organschaft tem suas raízes na revolução francesa e se desenvolve em
escritores do século XIX. Segundo ela, esta corrente se desenvolve principalmente com Gierke e Jellinek. Ela
segue suas explicações diferenciando e comparando detalhadamente cada autor mencionado e apontando os
problemas que existem em torno do conceito de representação se entendido formalisticamente. Para isso, a
autora faz comparações com o clássico “Leviatã” de Thomas Hobbes, analisa teóricos políticos
contemporâneos, faz a diferenciação entre representação e solidariedade em Weber etc. Para os objetivos
desta dissertação, interessa apenas a localização disto que a autora denomina de visão formalista da
representaçãoe suas três versões, sendo a Organschaft exposta até o presente momento. Pitkin nos mostra
que este argumento tem afinidades óbvias com o que pode ser chamada de teoria política orgânica. É a idéia
de que os grupos de pessoas são como organismos vivos (ver página 40 da obra The concept of
representation” de Hanna Fenichel Pitkin).
14
autoridade aqui é limitada pelo tempo. O status representativo dura até chegarem as
próximas eleições. Em cada eleição novos nomes são investidos de autoridade
representativa por um novo período. Assim sendo, são as eleições que garantem a
autoridade. Novamente, a autora menciona problemas que não pretendemos adentrar e
também estabelece comparações com Thomas Hobbes. Cabe apenas mencionar que, para
esta versão, o conceito central também é o de autorização, mas esta pode ser adquirida
por meio de eleições democráticas (Pitkin, 1967:44).
Por fim, a terceira versão apresentada pela autora é a baseada na obra New Science
of Politics de Eric Voegelin. Segundo Pitkin, Voegelin apresenta uma visão clássica do
termo autorização, mas procede de uma maneira distinta acrescentando uma discussão de
caráter transcendental. Assim, a obra de Voegelin é uma outra tentativa de ilustrar a
problemática da visão de autorização e, nela, encontra-se o conceito de representação em
sentido existencial. Este sentido aponta para uma noção transcendental do termo
representação. A autoridade representativa de uma sociedade desenvolve bem seu papel
se representar uma verdade ou ordem transcendente apropriada a esta sociedade. Desta
forma, se uma tragédia grega, por exemplo, consegue provocar o sentimento de
identificação e participação em seus espectadores, isso significa que o herói desta tragédia
representa um modelo de sofrimento para todos. A partir de exemplos semelhantes,
podemos perceber que, para Voegelin, não basta o representante ser eleito, ele deve agir de
forma eficaz e pode fazer isso quando atinge a idéia diretiva básica do grupo, nisto
consiste sua autoridade (Pitkin, 1967:46).
A segunda dimensão do conceito de representação em filosofia política apresentada
pela autora é a representação descritiva. Esta forma de compreender o conceito de
representação é muito diferente da visão formalista. Como vimos acima, para a visão
15
formalista em suas três versões é fundamental o conceito de autorização. Para esta teoria
chamada pela autora de “Standing For”, representar não é agir com autoridade, não é agir
pelos outros. Ou seja, o representativo é alguém que deve “estar para” e não “em lugar de”.
É uma espécie de conexão, de correspondência. A metáfora usada pela autora para
descrever esta abordagem é de que o corpo representativo é para a nação o que um mapa é
para a geografia da terra. Em partes ou no todo, a cópia deve ter sempre alguma proporção
com o original. (Pitkin, 1967:62).
A próxima abordagem diz respeito à “representação simbólica”. Esta forma de
entender a representação invoca a noção de símbolo. Assim, temos uma teoria simbolista da
representação. Para demonstrar o que ela entende por “símbolo”, Pitkin cita o exemplo de
um quadro em que a cena da crucificação esteja pintada. O quadro não é a crucificação,
mas a representa. Ela também diz que o peixe era um símbolo de Cristo, mas não uma
representação deste. Desta forma, o símbolo é uma coisa que está para outra
8
. Não reflete
com exatidão, mas por uma vaga sugestão ou por uma relação convencional, diz a autora
(Pitkin, 1967:94). Os símbolos têm algumas características com seus referentes. “Para todos
os efeitos, o representante simbolizará o povo, a nação”, diz Maria Antonia Martinez
(2004:10). Para esta forma de compreender o conceito de representação em filosofia
política não é levado em consideração o fato de uma pessoa atuar em nome de outras e
muito menos a noção de semelhança. A representação se mantém sobre a ficção de que o
representante é o símbolo do povo (Martinez, 2004:10).
Por fim, devemos falar sobre a dimensão do conceito de representação como
atuação substantiva. Segundo este modo de ver as coisas, representação significa atuar em
8
Como o peixe está para Cristo. A palavra 0Ixqu/v (peixe, em grego) é um acróstico de: Iesouv Kristov qeou
Uiov Soter, que significa, em português, Jesus Cristo, filho de Deus Salvador.
16
interesse dos representados. Significa atuar em interesse das pessoas representadas, mas de
uma forma sensível a elas. A dimensão substancial do conceito de representação é uma
maneira não-formalista de “atuar por”. Ou seja, é um “atuar por”, mas não são
correspondências estáticas e nem atos formais. Este tipo de representação pode ocorrer
em regimes democráticos. Assim, a representação se constrói a partir da relação entre os
cidadãos e os políticos. Martinez (2004:13) diz que esta idéia de representação de Pitkin
coloca ênfase em três questões. A primeira delas é que o representante atua em nome do
representado. Posteriormente, em sua atuação, o representante deve se sensibilizar diante
das opções dos cidadãos e por fim, os representados devem se comportar de forma ativa e
independente.
Esta reflexão ressalta as contradições presentes no Estado democrático em torno do
conceito de representação. Trata-se de um debate político que tem por objetivo explicitar
opções ideológicas e partidárias. Segundo estas concepções, a representação democrática
deve ser um exercício substantivo em favor de terceiros que requer ações independentes
que ultrapassem o interesse do eleitorado. É a representação como atuação substantiva que
descrevemos logo acima. A visão apresentada por Pitkin (1967) define representação
política como um relacionamento interpessoal e comunicativo entre um diretor e um agente.
Em suas próprias palavras, a representação política é um “arranjamento público
institucionalizado” onde a representação não emerge de uma ação simples, mas de uma
estrutura, de um sistema. Desta forma, o agente toma as decisões e age da maneira que deve
agir
9
.
9
Síntese apresentada por Lisa Disch, professora de ciência política da Universidade de Minnesota, em sua
resenha intitulada: “Representation ”Do’s and Don’ts”: Hanna Pitkin’s the concept of Representation”, que
pode ser consultada por meio do link: [ http://www.univ-paris8.fr/scpo/lisadisch.Pdf ]. Acesso em 05 de
Dezembro de 2007.
17
Segundo J. Marcelo Mella Polanco (2005), existe uma tensão que envolve o
conceito de representação política em seu significado moderno. Segundo ele, esta tensão
nasce do significado distinto do representante, entendido como um simples agente do
cidadão que delega o poder ou então entendido como comissário do representado. O autor
afirma que esta forma contraditória de entender a representação tem sido chamada de
“controvérsia do mandato-independência, debate que expressa a estrutura dual e tensão
interna que constitui o conceito moderno de representação” (Polanco, 2005:4).
Este modo de refletir sobre o conceito pode ser encontrado também em uma obra
de Hannah Arendt, intitulada “On Revolution” de 1965 (Apud: Pitkin, 2006:43), que
argumenta ser esta questão uma das mais cruciais e mais problemáticas da política moderna
desde as revoluções do século XVIII. Seria na verdade uma decisão sobre a dignidade do
próprio domínio político. Trata-se de saber se o representante de fato “representa” os
cidadãos ou se ao usar este conceito estamos na verdade decretando a exclusão da maioria
das pessoas dos benefícios da política.
Com os apontamentos do último parágrafo encerramos esta menção ao conceito de
representação em filosofia política. Nossa intenção foi apenas a de apresentar os vários
sentidos e disputas que existem em torno do conceito de representação. Assim sendo,
estamos cientes do reducionismo que fomos obrigados a cometer. Evidentemente outras
formas de abordagem para o conceito de representação política bem como formas distintas
de argumentação para a mesma escolha que fizemos, mas para os objetivos desta
dissertação consideramo-nos satisfeitos.
A seguir, damos o segundo passo neste sentido de localização de alguns problemas
relacionados ao conceito que está sendo tratado no capítulo em questão. A saber, uma
reflexão sobre as utilizações do conceito de representação em psicologia social, onde ele se
18
torna representações sociais e desta forma é também bastante utilizado em história.
Trata-se basicamente da reflexão que surgiu a partir da idéia de representação coletiva
desenvolvida por Durkheim e discutida mais recentemente por Serge Moscovici, para quem
o conceito de representação social tem origem na sociologia e na antropologia (Alexandre,
2004). Podemos localizar reflexões sobre este conceito também na obra de Denise Jodelet
(2001) e na história cultural de Roger Chartier (1990).
1.2) AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
O pressuposto do qual partem os autores que trabalham com as representações
sociais é de que os fenômenos humanos podem ser conhecidos e explicados a partir de uma
perspectiva coletiva, mas sem ignorar o indivíduo. Trata-se de uma forma de conhecimento
que tenta construir uma realidade comum a um conjunto social. Ciro Flamarion Cardoso
diz que as representações sociais são construídas a partir de representações mentais
examinadas no nível individual. Segundo ele, “as representações mentais constituem a
matéria prima das representações sociais” (Cardoso, 2000: 25).
Marcos Alexandre (2004) critica a visão reducionista de quem trata a psicologia
como o estudo do individual e a sociologia como o estudo da sociedade, mas, segundo ele,
esta visão perdurou por vários anos e teve origem, em sua opinião, em leituras diferentes da
obra do médico, filósofo e psicólogo alemão Wilhelm Wundt. Cardoso (2000:25) interpreta
19
a psicologia social como uma resposta a esta visão reducionista e, desta forma, aponta a
psicologia social neste encontro da psicologia com a sociologia. Estas considerações
iniciais que estamos fazendo são necessárias porque é na psicologia social que o conceito
de representações sociais se desenvolve, ele é uma das noções fundamentais desta
disciplina. No entanto, cabe ressaltar que estamos cientes dos múltiplos enfoques que este
conceito permite, as dualidades e as contradições dentro da própria psicologia social acerca
das dimensões do campo de estudos das representações sociais, mas não temos como tratar
de cada um destes aspectos aqui, pois isso, devido à extensão do problema, fugiria aos
objetivos desta dissertação
10
.
O conceito de representação coletiva foi introduzido em 1898 pelo sociólogo
francês Émile Durkheim. Com este conceito, Durkheim pretendia explicar fenômenos como
a religião, por exemplo, que, segundo ele, deveria ser pesquisada a partir de investigações
que tivessem por objetivo o coletivo. Émile Durkheim, ao propor esta divisão, se
fundamentava na concepção de que as regras que comandam a vida individual são distintas
das que comandam a vida coletiva. É que para Durkheim, a vida social seria a condição de
todo o pensamento. A individualidade se constitui a partir da sociedade (Alexandre,
2004:2). Assim, a representação coletiva, para ele, não é somente a soma das
representações individuais, mas um novo conhecimento, que pode, inclusive, favorecer uma
recriação do coletivo.
A partir das leituras desta noção de representação “coletiva” da obra de Durkheim,
surgiu na psicologia social o conceito de representações sociais. Ciro Flamarion Cardoso
10
Sobre estas dificuldades, ver o artigo de Mary Jane P. Spink intitulado “O conceito de representação social
na abordagem psicossocial” publicado nos Cadernos de Saúde pública, Rio de Janeiro, 9 (3): 300-308, 1993;
observar também “Representações sociais” de Serge Moscovici (2003) e “As representações sociais” de
Denise Jodelet (2001).
20
(2000: 23) afirma que para os psicólogos, as representações sociais têm, entre outras, a
característica de facilitar a comunicação e com isso garantir o que ele chama de “capital
cognitivo comum” aos membros de um mesmo grupo. Isto é também ressaltado por Mary
Jane P. Spink, que tendo em vista as contribuições de Denise Jodelet, nos adverte que é
justamente a partir deste ponto que o conceito de representações sociais diverge do conceito
de representação coletiva, pois suas estruturas são dinâmicas apreendidas no contexto das
comunicações sociais, e, desta maneira, mais flexíveis e permeáveis que as representações
coletivas de Durkheim. Estas características aproximam as representações sociais das
modernas análises de discurso, que, influenciadas por Wittgenstein
11
, são centradas na
relação entre linguagem e ação (Spink, 1993:6).
A substituição, então, do termo “coletivas” pelo termo “sociais”, marca a diferença
estabelecida com relação a obra de Durkheim no que diz respeito ao conceito de
representações.
12
Márcio Oliveira nos mostra ainda com suas reflexões sobre a obra de
Moscovici que, para este romeno naturalizado francês, as representações sociais não
derivam de uma única sociedade, como em Durkheim, mas de diversas sociedades que
existem no interior da sociedade maior (Oliveira: 2004). Ou seja, estas representações não
podem ultrapassar a sociedade. Esta diferenciação entre coletivo e social é tão complexa,
que nem o próprio Moscovici forneceu uma explicação sobre ela. Na página 358 do
capítulo 7 da obra resenhada por Oliveira, Serge Moscovici diz “não espere que eu jamais
11
Segundo Inês Araújo Lacerda, em sua obra “Do signo ao discurso - Uma introdução à filosofia da
linguagem”, para Wittgenstein, a língua não é de propriedade exclusiva do sujeito falante, existe a ação de
falar. São jogos de linguagem que mostram que existe um acordo no falar. Assim sendo, a língua não está “na
cabeça do falante” e deve ser pensada mediante uma comunidade de falantes. Isto justifica e fornece sentido
para que haja regras que governem os atos de fala (Lacerda, 2004: 104; 111; 112). Acreditamos que seja neste
aspecto que Spink afirma que as representações sociais se aproximam das análises do discurso influenciadas
por Wittgenstein.
12
Reflexão apresentada por Márcio S. B. S. de Oliveira em sua resenha do terceiro livro de Serge Moscovici
traduzido no Brasil a partir do original em língua inglesa “Social representations: explorations in social
psychology”, publicada no volume 19 nº 55 no ano de 2004 da Revista Brasileira de Ciências Sociais.
21
seja capaz de explicar a diferença entre coletivo e social”. Assim sendo, o discutiremos a
natureza destas diferenciações entre Moscovici e Durkheim aqui. Nossa intenção foi apenas
mostrar esse desenvolvimento conceitual.
Denise Jodelet é considerada divulgadora e explanadora da obra de Serge Moscovici.
Segundo nos afirma Eugênia Coelho Paredes, Jodelet propõe a teoria das representações
sociais de Moscovici como uma alternativa teórica às análises sobre fatos sociais (Paredes,
2006). O que podemos observar a partir das reflexões da própria Denise Jodelet é que para
os teóricos das representações sociais tem enorme importância o pensamento do senso
comum, do cotidiano da vida das pessoas e dos grupos aos quais pertencem (Jodelet, 2001).
A teoria das representações sociais se interessaria, dessa forma, por compreender como os
indivíduos, inseridos em seus respectivos grupos sociais, constroem, interpretam,
configuram e representam o mundo em que vivem. Assim entendidas, as representações
sociais são sintetizadores das referências que os diversos grupos fazem acerca do que
conseguem apreender de suas vivências sociais inseridos no tempo e espaço.
Comentando as idéias de Jodelet, Ciro Flamarion Cardoso diz que a representação
social como ela a entende poderia ser caracterizada por quatro pontos: 1) uma forma de
saber prático que liga um sujeito a um objeto; 2) A representação mantém com seu objeto
uma relação de simbolização e de interpretação; 3) a representação é uma mobilização de
seu objeto; 4) a representação desempenha um papel crucial no ajuste prático do sujeito e
seu ambiente (Cardoso, 2000: 30).
Um outro autor que nos apresenta uma reflexão sobre o conceito de representações
sociais é Roger Chartier. Em sua obra, ele nos diz que sua história cultural tem como
principal objetivo “identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma
determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler” (Chartier, 1990: 17). É neste
22
contexto que as representações sociais são inseridas. Suas preocupações são, entre outras
coisas, temas como: as atitudes perante a morte, os comportamentos religiosos, as crenças,
as formas de sociabilidade, as relações de parentesco, etc. Desta maneira, segundo Chartier,
pode-se pensar uma história cultural que “tome por objetivo a compreensão das
representações do mundo social, que o descrevem como pensam que ele é ou como
gostariam que fosse” (Chartier, 1990:19). As representações do mundo social seriam
determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam.
O livro de Chartier é construído a partir de três noções: representações, práticas e
apropriações. Em primeiro lugar temos a representação. Segundo Chartier, ela mostra
sempre duas possibilidades de sentido: 1) exibe um objeto ausente que é substituído por
uma imagem capaz de o reconstituir na memória; 2) a representação exibe uma presença,
como a apresentação pública de algo ou alguém (Chartier, 1990:20). Em segundo lugar
temos as práticas, que pertenceriam a uma outra natureza. O historiador escreve sobre as
práticas do passado. Chartier diz que a maioria dos trabalhos que ele orientou tratam de
uma forma ou de outra do mundo das práticas culturais
13
. O que deve ficar claro é que
existe uma distância entre as práticas e os discursos. Por fim, com o termo “apropriações”,
Roger Chartier se refere aos modos como um texto, um pensamento, ou uma imagem se
transforma e é dada a ler em outros momentos ou outras realidades distintas das que foram
produzidas. O autor acredita que uma série de interpretações, mediações e apropriações
que fazem com que seja necessário fazer uma história destas formas de leitura.
13
Em entrevista concedida a Isabel Lustosa quando veio ao Brasil participar de um seminário sobre história
cultural organizado por Sandra Pesavento. Esta entrevista em questão ocorreu no dia 16/09/2004 no Hotel
Glória, Rio de Janeiro. O leitor pode encontrá-la por meio do seguinte link:
[ http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2479,1.shl ].
Acesso em 5 de Dezembro de 2007.
23
Ciro Flamarion Cardoso situa Roger Chartier como crítico de Geertz e discípulo de
Bourdieu. A postura de Chartier parte, em primeiro lugar, da crítica da noção de
mentalidades. Em segundo lugar, apresenta uma crítica ao enfoque apresentado por Clifford
Geertz e, em terceiro lugar, apresenta a aceitação de algumas premissas de Bourdieu.
Segundo Cardoso (2000: 12), Chartier é fiel à história encarada como uma ciência social.
Mas, na opinião do autor, Chartier recusa a “tirania do social
14
”, invertendo-o por um
reducionismo de signo contrário, dando a impressão de que a única história possível é a
cultural. Além de chamar Roger Chartier de “reducionista”, Cardoso ainda o classifica
como “pós-moderno”. Ciro Flamarion Cardoso ainda diz que Chartier agiu como é
“corriqueiro” no tocante “às posições pós-modernas” ou da “nova história”. Ou seja,
responder ao que se considera um reducionismo propondo outro reducionismo (Cardoso,
2000: 20).
No restante de seus comentários, Cardoso afirma ainda que “a atual voga das
representações parece derivar, filosoficamente, de Martin Heidegger” possuindo assim um
caráter metafísico. No fim das contas, esta forma de compreender as representações, no
entender de Cardoso, acaba em uma “simplificação excessiva, favorita hoje em dia”. Assim
sendo, ao que parece, Cardoso considera que a história cultural de Chartier, assim como
outras áreas dos estudos sociais, com exceção da psicologia social, que é a que “menos cai”
nesta “tentação”, reduzem o pensamento “científico” a “meras representações” (Cardoso,
2000: 21).
14
Ciro Flamarion Cardoso tira este exemplo, como ele mesmo diz, do texto de Ronaldo Vainfas “História das
mentalidades e História cultural”, publicado na obra “Domínios da história” que foi organizada em conjunto
pelos dois autores (Cardoso, 2000: 19-20).
24
Helenice Rodrigues da Silva considera que as “representações” da história
cultural substituem o conceito de mentalidades. Assim, ela aponta a “nova” história cultural
como herdeira dos Annales (Silva, 2000: 82). Segundo a autora, o conceito de
representações sociais sustenta a possibilidade de integração entre os indivíduos e o mundo
social, para uma geração de historiadores que são herdeiros das tradições dos Annales.
Interpretando Chartier, Silva garante que o conceito de representação “permite associar
antigas categorias que a história social, a história das mentalidades e a história política
mantinham separadas” (Silva, 2000: 83). Critica, no entanto, o fato de o conceito de
representação desempenhar um papel excessivo nos discursos históricos atuais. A autora
parece concordar com Cardoso, pois demonstra-se preocupada com os usos demasiados do
conceito de representação. Todavia, diferentemente deste, ela não apresenta acusações tão
severas, e parece não considerar a história das representações como uma ameaça, a autora
apenas sugere que, para ser eficaz, esta forma de abordagem histórica deve integrar também
outros domínios da disciplina dialogando com eles (Silva, 2000: 97).
Não insistiremos mais aqui sobre esta questão, deve-se observar que o debate vai se
tornando cada vez mais intensificado e vão surgindo discordâncias quanto ao uso do
conceito. Francisco J. Calazans Falcon (2000) parece estar certo ao pretender situar o
problema da representação como um fator decisivo para se decidir entre um percurso
historiográfico moderno e outro pós-moderno. É justamente sobre o que vamos refletir no
próximo item deste capítulo, em que tentamos traçar alguns paralelos entre autores distintos
de modo a poder concatenar algumas possíveis utilizações do conceito de representação e
sua importância para a teoria da história.
25
1.3) A PROBLEMÁTICA DA REPRESENTAÇÃO:
UMA QUESTÃO PARA A TEORIA DA HISTÓRIA.
Alguns conceitos são epistemologicamente próximos ao de representação: real,
realidade, identidade, linguagem, discurso e cultura. Ao longo das reflexões que
apresentaremos neste tópico alguns deles aparecerão. Em nenhuma das obras que
consultamos, o conceito de representação é mencionado de forma isolada. Ao contrário,
sempre está acompanhado de um destes termos. Por este motivo, a reflexão sobre o
conceito de representação exige uma análise conceitual sistemática. Os usos deste termo
com suas imbricações apontam à teoria da história o desafio de se deparar com vários
problemas de caráter filosófico.
As obras de história, em linhas gerais, pretendem ser representações de um passado
que existiu. Neste sentido, o discurso historiográfico almeja o convencimento de seus
leitores sobre a realidade dos fatos nele apresentados. Desta maneira, representar significa
referir por meio de símbolos a algo que está fora do texto. Na sugestão feita por Luís Costa
Lima o que está fora do texto é chamado de real, que é entendido por ele como: “aquilo que
se impõe por si, o que, independendo da linguagem, esta tanto para os homens quanto
para os outros animais” (Lima, 2006: 268). Justamente do conteúdo destas afirmações
nascem variados problemas. Eles podem ser resumidos, em última instância, na dúvida
sobre a possibilidade da representação corresponder ou não ao objeto representado
(Capellari, 2006: 57). Trata-se de saber se a representação representa, ou seja, se o
discurso corresponde ou não à realidade.
26
É conhecida por parte dos leitores uma interpretação sobre as obras de Hayden
White, que diz que ele afirmou não haver diferença alguma entre história e literatura, pois
ambas possuem um caráter ficcional. Os que insistem somente neste ponto das teses de
White se concentram em argumentar que isso ocorre porque não possuímos “fatos em si” e
“o acesso ao que chamamos de fato histórico é sempre limitado”. Desta forma, a história
não seria mais do que retórica
15
, literatura e criação estética. Não haveria uma realidade
acessível ao historiador. Estas opiniões são bastante difundidas por autores que afirmam
que somente temos textos e devemos assumir nossa “condição pós-moderna
16
”, que não
nos é possível escapar dela
17
. Frederico Pieper Pires (2005:120), por exemplo, ainda cita
uma famosa frase de Nietzsche, sem dar os devidos créditos ao autor. Nesta frase, que já foi
usada também por Roland Barthes, o filósofo alemão diz que “não fato histórico puro,
pois é sempre necessário introduzir um sentido para que haja um fato”. Pires faz esta
menção com a intenção de corroborar suas interpretações sobre Hayden White e outros
autores considerados em seu artigo como pós-modernos.
Hayden White (2001) apresenta algumas destas reflexões para afirmar que, de fato,
o texto histórico é um artefato literário. Em nosso entender, isso não iguala os textos
produzidos pelos historiadores aos produzidos pelos literatos sob todos os aspectos.
Pensamos que foi este o motivo que conduziu Carlos Oiti Berbert Júnior a acrescentar uma
nota de rodapé na tradução que fez para o português de um texto de White, intitulado
15
Entendida em um de seus sentidos possíveis, a saber, o que a aproxima da poética, ignorando assim, a
tradição da retórica argumentativa presente em Cícero e Quintiliano, como apontou Carlo Ginsburg (2002).
Estes diferentes sentidos atribuídos à retórica e seus usos na historiografia podem ser verificados de forma
mais detalhada na tese de doutorado do professor Carlos Oiti Berbert Júnior intitulada: A história, a retórica e
a crise dos paradigmas, defendida em 2005 na UNB.
16
Aqui, estes autores parafraseiam a obra de Lyotard.
17
Pires afirma que este é um pensamento que tem sua matriz em Keith Jenkins para quem a s-modernidade
é o nosso destino histórico, desta forma, não se trata de uma posição que podemos escolher ou não (Pires,
2005).
27
Enredo e verdade na escrita da história”, publicado na coletânea A história escrita -
teoria e história da historiografia (Malerba: 2006), para dizer que, segundo Hayden White,
o historiador e o romancista não diferem em nada do ponto de vista da narrativa. Em
explicações dadas pelo próprio White, ele diz que jamais negou que fosse possível o
conhecimento da história, da cultura e da sociedade, negando apenas a possibilidade à
história de obter um conhecimento científico do tipo, que segundo ele, é alcançado no
estudo da natureza física (White, 2001: 38). Acreditamos que White pretende enfatizar que
um dos efeitos das obras dos historiadores é traduzir os fatos em forma de ficções sobre o
passado, ou seja, as narrativas históricas “pressupõem caracterizações figurativas dos
eventos que pretendem representar e explicar” (White, 2001: 108; 111). Todavia, Hayden
White admite que os “eventos históricos” são distintos dos “eventos ficcionais”. Os
primeiros podem ou então puderam ser observáveis ou perceptíveis porque são
relacionados a situações específicas no tempo e no espaço, diz White. os segundos são
imaginados, hipotéticos ou inventados (White, 2001: 137).
Luís Costa Lima (2006) aborda também estas questões envolvendo a história, a
literatura e a ficção concordando em aspectos mais gerais com estas observações feitas por
Hayden White. Segundo ele, o historiador aborda os eventos reais por meio das formas
ficcionais vigentes em uma cultura. No entanto, afirma que a narrativa histórica não tem
por objetivo tratar de objetos ficcionais. Costa Lima concorda com Paul Ricoeur que
mesmo o podendo separar totalmente as escritas da história e da ficção, existe algumas
distinções entre História e Literatura. Elas podem ser percebidas, segundo Ricoeur,
levando-se em consideração as três fases do que ele chama de operação histórica, pois as
duas primeiras não precisam aparecer na literatura. São elas: 1) fase documental; 2) fase
explicativa/compreensiva e 3) fase representativa (Ricoeur, apud: Lima, 2006: 385).
28
Talvez estas diferenças entre história e literatura possam ser sintetizadas no fato de
que o historiador representa acontecimentos que não dependem exclusivamente de sua
consciência para ter existência, ou seja, que puderam ser percebidos por outros seres
humanos que os presenciaram no momento em que ocorreram, ao passo que o literato tem a
permissão discursiva para inventar situações e personagens que não apresentem a mínima
intenção de ter referência no mundo empírico. Independentemente dos historiadores do
século XX falarem sobre ela ou a apresentarem segundo suas perspectivas e interesses,
existiu na Antiguidade uma cidade chamada Roma que foi capital do que ficou conhecido
como Império Romano do Ocidente. Todavia, não há Terra média sem Tolkien, Nárnia sem
Lewis; Castália sem Hermann Hesse ou Quixote sem Miguel de Cervantes.
O interesse de Luís Costa Lima nestas discussões é defender sua tese de que a
narrativa não exclui a cientificidade e que o fato do texto histórico apresentar categorias
pertencentes ao reino da ficção não tira dele suas pretensões científicas. Para isso, Costa
Lima apresenta um conceito de narrativa que a entende como estabelecedora de uma
organização temporal. É a narrativa que fornece ao diverso, ao irregular e acidental uma
ordem. Esta não é anterior ao ato da escrita, mas coincide com ela. Desta forma, História e
Ficção são apenas “modos diferenciais da narrativa” (Lima, 2006: 155). Estes são pequenos
exemplos de questões que estão direta ou indiretamente relacionadas com o conceito de
representação e como, dependendo do ponto de vista e das teses defendidas, a pesquisa
pode tomar rumos distintos tendo em vista a forma como se entende este conceito que
exploramos até aqui.
Como nossa intenção é apenas apresentar a problemática da representação e como
esta questão é tratada pela teoria da história, e não pretendemos obviamente abarcar
profundamente o que o tema oferece, trata-se antes de algumas pinceladas, apenas a
29
indicação de algumas reflexões possíveis que permitam ao leitor de nossa dissertação se
localizar nesta discussão tão ampla, pensamos que seria interessante resumi-la no que
podem ser considerados os dois esquemas mais gerais quando estamos falando do conceito
de representação: o realismo e o textualismo. São duas grandes formas utilizadas tanto em
filosofia quanto em historiografia para caracterizar distintas maneiras de se relacionar com
o conhecimento e como ao homem é possível conhecer as coisas que investiga.
Mencionaremos, em primeiro lugar, o pensamento que entende a representação
como algo mimético. O conceito de representação entendido desta maneira manifesta uma
concepção de mundo dualista. De um lado está o mundo físico existente e de outro as
representações que os homens fazem deste. Assim, a mente representa ou espelha as
coisas por meio das idéias. Esta maneira de se relacionar com o conceito de representação
é nomeada com o termo realismo.
Em história da arte, por exemplo, de uma maneira geral, esta forma foi utilizada
para caracterizar tentativas de representações objetivas do real. Geralmente, os artistas
considerados realistas pintavam paisagens, cenas do cotidiano, etc, em que tentavam, a
partir de uma observação direta da realidade representá-la em tela
18
. Tanto o realismo,
quanto o naturalismo, acreditam que a arte é a representação mimética da realidade
exterior
19
.
18
São exemplos de pintores considerados realistas: Jean-Baptiste Camille Corot, Jean-François Millet,
Honoré Daumier e Édouard Manet.
19
Claro que isso é apenas uma forma geral de explicação assumida por nós. O realismo artístico por vezes é
caracterizado por ser uma corrente de pensamento que pretende criticar e se opor ao romantismo e por isso
acabou mostrando todo este apego à crença de que é possível representar fielmente o real. Temos a
consciência de que como toda corrente de pensamento, escola, movimento, etc, o realismo também apresenta
diferenças internas, contradições e divisões. Todavia, nosso interesse aqui é apenas pela “tendência geral”
deste movimento artístico em considerar a representação como algo mimético. Foi inclusive, a partir desta
questão, que pôde surgir o naturalismo.
30
A representação assim entendida é uma cópia pura e simples do real e o representa
“um por um”. Isso significa dizer que cada entidade lingüística corresponde a um referente,
representando-o totalmente. Para o realismo, então, existem categorias externas que são
“captadas” pela linguagem. Assim, a representação representa a realidade, ela cumpre este
objetivo de forma plena e satisfatória. Encontramos reflexões sobre estas questões em
Francis Bacon, Descartes, Berkeley, Hume e outros. Richard Rorty afirma que esta
concepção de mundo segundo a qual a mente “espelha” ou representa as coisas através das
idéias era uma regra epistêmica no culo XVII
20
(Rorty, apud: Araújo, 2004: 27). Trata-se
de um problema do conhecimento, que é, de modo geral, representação das coisas, relação
entre uma razão e o mundo, diz Inês Lacerda Araújo, concordando com a reflexão de
Foucault em As Palavras e as Coisas. Segundo ela, a teoria da correspondência entre coisas
e significados dominou toda a tradição da física e da metafísica. Desta forma, a imagem na
mente teria a forma do objeto externo, tanto para racionalistas quanto para empiristas
(Araújo, 2004: 27; 146; 180).
Segundo Francisco J. Calazans Falcon, as várias escolas ou tradições
historiográficas dos séculos XIX e XX, apesar das diferenças, partilham do que ele chama
de “uma espécie de realismo histórico”. Ou seja, trabalham com uma idéia de
representação que tem um caráter epistemológico (Falcon, 2000: 43). Para Falcon, o
conceito de representação entendido desta maneira é característica principal da
historiografia moderna e tem como centro o logos, ou consciência racional. Este sistema
envolve um sujeito do conhecimento com sua capacidade de conhecer as coisas, de
apreender o que o autor chama de “real verdadeiro” (Falcon, 2000: 46).
20
A exceção à regra seria o empirismo nominalista.
31
Seguindo estas reflexões apresentadas por Falcon, encontramos uma definição dos
pressupostos do realismo. Para ele, o realismo é um sistema filosófico que afirma a
existência de um “real” como um “existente” independentemente do sujeito. Este “real”
pode ser conhecido em bases racionais. Ou seja, concordando com Bachelard, Falcon nos
diz que o realismo acredita que um conhecimento verdadeiro é possível (Falcon, 2000: 48).
Segundo Falcon, houve uma mudança radical em relação às concepções acerca de sujeito e
objeto, realidade, objetividade e verdade. Desta forma, a ciência deixou de ser um encontro
entre o “real” e a “representação” e passou a ser uma “construção”. Por este motivo, o
realismo é criticado e, assim, ora se postula a inexistência da realidade, ora se admite a
existência da mesma, mas que esta é incognoscível (Falcon, 2000: 47).
Frank R. Ankersmit, em seu ensaio chamado “Historicismo, pós-modernismo e
historiografia”, nos diz que para uma concepção pós-moderna de história, “a representação
histórica baseia-se essencialmente na produção de um objeto lingüístico que exerça a
função cultural de substituto de um passado não-presente”. Ou seja, o texto é visto como
um objeto (Ankersmit, 2006: 104). Esta é a forma de compreensão chamada de textualista.
Somente podemos conhecer as representações do passado que encontramos nos textos. De
forma alguma o “real” pode ser apreendido, ainda mais em se tratando de um “real” situado
no passado. O textualismo trata a ciência e a filosofia como gêneros literários e enfatiza a
importância da linguagem.
Assim, a referência perde importância e deixa de ser o fator mais relevante e o texto
é analisado em seus princípios internos. Para o textualismo, a referência é apenas mais um
entre os diversos jogos de linguagens possíveis. Falando sobre processos de referenciação,
Inês Lacerda Araújo (2004:209) diz que está em jogo é como as atividades humanas
cognitivas e linguísticas estruturam e dão sentido ao mundo. Assim, o processo de
32
referenciação provém de “práticas simbólicas” e não de uma “ontologia que fixa os seres
em um quadro permanente”. Desta forma, não podemos saber como é a realidade enquanto
tal.
Para esta concepção, o texto é auto-suficiente, daí o termo “textualismo”. Tudo que
podemos fazer é interpretar os textos e buscar sua coesão metafórica interna, sua fidelidade
aos princípios anunciados e escolhidos por ele, sua coerência estrutural e não buscar algo
que esteja situado além dos textos. Existe um jogo entre os signos de um texto que fazem
com que os elementos lingüísticos presentes nele remetam a outros elementos lingüísticos,
criando assim uma rede simbólica textual. Pensando assim, uma representação remete-se a
outra representação e não à realidade. A linguagem constrói não somente o real, mas
também o próprio sujeito. O textualismo não nega que existam objetos extradiscursivos,
mas nega que possamos conhecê-los.
Costuma-se considerar que a primeira teoria que mencionamos, chamada de
realismo, pode ser localizada sobremaneira em obras que são anteriores a Kant e em se
tratando de uma teoria da representação que leve em consideração a linguagem pode ser
encontrada em autores da filosofia da linguagem anteriores ao filósofo estadunidense
Willard Van Orman Quine. Desta maneira, fica claro que concordamos com Araújo (2004)
quando ela diz que foi Kant quem abalou a teoria da representação, embora, segundo ela,
não apresentando ainda uma preocupação específica com a linguagem.
Então desde Kant e suas investigações acerca dos limites das possibilidades do
conhecimento apresentadas em sua crítica da razão, a filosofia, cada vez mais, se afastou da
crença metafísica de que a “coisa-em-si” pode ser conhecida. Hoje, os pesquisadores das
ciências humanas, ou ciências do espírito, para usar o termo de Dilthey, sabem que não é
viável um conhecimento pleno do real, podemos apenas conhecer fenômenos,
33
representações do real e não o real “em si”, mas ele existe. Esta existência do real é
também admitida pelos textualistas. Isso coloca a teoria da história num dilema, escolher
entre uma postura realista e outra textualista, se considerarmos apenas o que foi dito até
aqui. De forma resumida, sabemos que estamos então diante de códigos, sistemas de
símbolos, sistemas de sentido. Trata-se de uma teoria do signo, entendido como algo que
representa. Representação deixa de ser entendida então como algo mimético, cópia pura e
simples, para ser entendida como substituição. Ou seja, a representação não é o real. O
signo é assim algo no lugar de outra coisa. Isso é uma teoria do simbolismo. São
interpretações de fenômenos culturais.
Atendendo a sugestão de Carlo Ginsburg (2006), não nos esqueceremos, então, por
um lado de que “a coisa em si” existe, mas também levaremos bastante a sério, por outro,
sua consideração de que “o historiador escreve”. Cremos que este cuidado nos manterá a
salvo do risco de sermos aprisionados nas quimeras da pura representação, como acontecia
com Dom Quixote, para usar uma metáfora foucaultiana. O real antecede qualquer
pensamento humano, ou seja, o mundo já existia antes de qualquer texto ser escrito, todavia,
o pensamento também configura o real. é possível referir a qualquer coisa que seja
usando conceitos forjados pelo entendimento, como podemos aprender com o próprio Kant,
mas existe algo que não pertence ao reino dos pensamentos e que nos chega pela
sensibilidade. Por este motivo, não como abstrair o real sem o pensamento e nem ao
contrário. Insistir nesta dualidade é escravizante.
Isso significa dizer que não vemos a questão da representação como algo que
ameace o conhecimento histórico ou que constitua uma negação do mesmo. A dimensão da
representação é uma possibilidade que deve ser levada em consideração e não excluída
apresentando como desculpas os inúmeros problemas que traz consigo. Não estamos
34
sugerindo que de um lado está a representação e de outro o real formando uma dicotomia
que obrigue o leitor a escolher, ou ficar com a representação ou com o real. Assim sendo, o
que estamos querendo dizer é que talvez possamos pensar a representação como uma
dimensão textual do real. Ou seja, a representação representa sim, que não representa
“um por um” (Araújo, 2004: 165). Desta forma, a representação e o real são
interdependentes, um não existe sem o outro, criando-se uma aproximação com uma
espécie de voz média do pensamento.
Todos estes problemas corroboraram para a crise geral que a História enquanto
disciplina acadêmica enfrentou (e ainda enfrenta) nos últimos tempos. Carlos Oiti Berbert
Júnior (2005) usa o termo “crise dos paradigmas” para se referir a esta questão
especificamente. Segundo ele, o problema central que pôde surgir com esta crise é o da
narratividade. Em sua tese de doutorado, o autor investiga as funções exercidas pela
narrativa na construção do texto historiográfico e defende a tese de que uma possível
saída para este embate entre os paradigmas moderno e pós-moderno sobre o texto histórico
poder ou não se referir ao passado. Segundo ele, essa dicotomia é “aparente” e “enganosa”
e podemos perceber isso ao analisar as obras de autores que não se situam nem na esfera do
modernismo e nem na do pós-modernismo. Como exemplo, ele cita: Rüsen, Paul Ricoeur,
Carlo Ginsburg e Dominick Lacapra. A chave para encontrarmos alternativas a este dilema
está no conceito de retórica em suas características argumentativas. Ele sustenta que o
debate entre autores modernos e pós-modernos gira em torno da ruptura entre os
enunciados individuais e o texto como um todo e é uma questão de ênfase em determinados
aspectos da narrativa histórica. O autor acredita que este impasse pode ser revisto
“mediante uma teoria da argumentação que unifique as frases individuais e a narrativa
como um todo” (Berbert Jr, 2005: 9).
35
Uma outra sugestão para este impasse está no conceito de voz média encontrado na
língua grega, no sânscrito e mais tardiamente no latim. Mário Bruno Sproviero nos mostra
isso na entrevista que concedeu à revista Mirandum
21
. Para acompanharmos a opinião
deste autor, é preciso ter em mente que, para ele, a linguagem ultrapassa os limites do
individual e que a linguagem é consciência. Desta forma, se algo não está mais na
linguagem, também não está mais na consciência. Assim, uma resposta possível no que se
relaciona com nossas questões em torno do conceito de representação, tendo em vista uma
alternativa aos sistemas duais de pensamento, está na voz média, que, na opinião do autor,
se perdeu no nosso inconsciente (Sproviero: 1997).
A voz média é uma forma de conjugação verbal alternativa às conjugações ativas e
passivas. Nas primeiras, evidencia-se a ação executada pelo sujeito com relação a um
objeto; nas segundas, é o sujeito quem recebe a ação. Na voz média, ao mesmo tempo em
que o sujeito pratica a ação, ele também a sofre. Sproviero cita um exemplo do sânscrito
para mostrar a atuação da voz média. É mencionado o caso de um sacerdote em que se ele
sacrifica para os outros, ele usa a voz ativa; no entanto, se sacrifica para si mesmo, ele usa a
voz média. O autor ainda menciona uma observação feita por Wittgenstein em sua
Gramática especulativa, em que ele diz que se nós distinguirmos os verbos somente como
ativos e passivos, como ficarão os casos dos verbos: “morar”; “viver” e “ser”, por exemplo?
(Sproviero, 1997).
21
SPROVIERO, M. B. Língua e Consciência: a Voz Média. Mirandum, Pamplona, v. 3, p. 9-24, 1997. Mário
Bruno Sproviero é professor do departamento de Letras e ciências humanas da Universidade de São Paulo.
36
A tese de Sproviero é de que estes dualismos
22
são características no ocidente
porque perdemos a voz média. Segundo o autor, com o desaparecimento da voz média da
consciência houve um empobrecimento da linguagem e perda da capacidade de integração
analítica com estes processos que, por este motivo, se mostram como alternativas duais.
Assim, Sproviero diz que “o médio indicaria a fase da consciência não destacada do
mundo”. Ou seja, o homem e o mundo “integram o mesmo todo e a linguagem expressa
esta relação” (Sproviero, 1997).
Isto seria uma das diferenças entre ocidente e oriente em suas relações explicativas
do cosmos. O autor fala acerca de uma história dos processos evocados pela voz média.
Segundo ele, a dicotomia “ativo e passivo” foi aparecendo “aos poucos” na linguagem.
Devido a isto, a forma média vai se extinguindo numa estrutura cada vez mais complexa.
Os resquícios de voz média mais próximo de nós são os verbos depoentes latinos, que não
são ativos e nem passivos, eles são de ação ativa, mas conjugados na passiva. Sproviero cita
os exemplos de: morior, loquor, confiteor e meditari (Sproviero, 1997).
Pensamos que tanto a alternativa sugerida por Carlos Oiti (2005) quanto esta
mencionada por Sproviero (1997), são tentativas coerentes de pacificações destes
dualismos que mencionamos. Ao cientista das coisas humanas caberia escolher, ordenar,
interpretar e compreender estas representações. Isto significa levar em consideração os
quadros de significados em que estas representações são produzidas. É uma história sempre
comparativa, pois os símbolos que compõem estes quadros podem ser entendidos se
relacionados e comparados uns com os outros. Mas isso deve ser feito tentando ao máximo
da permissão conjugar a realidade junto com a representação como fenômenos
22
Teoria e prática, empirismo e racionalismo, linguagem e pensamento; e os casos que descrevemos: realismo
e textualismo, realidade e representação.
37
interdependentes e não pensando em um par de opostos para sempre intransponíveis no
que diz respeito ao relacionamento conceitual e condenados à separação eterna nas práticas
discursivas. Este é o caso particular que interessa a esta dissertação e em certa medida
também à teoria da história, a saber, esta dualidade que envolve os conceitos
representação/realidade. É isso que mencionamos como sendo a problemática da
representação que tentamos situar neste tópico. A seguir, apresentamos uma reflexão de
como pretendemos fazer isto ao longo desta dissertação e como se poderá observar isso nos
capítulos que se seguem.
1.4) AS CARTAS DE PATRÍCIO E A
PROBLEMÁTICA DA REPRESENTAÇÃO.
Fizemos até aqui uma breve explanação de alguns dos possíveis usos do conceito de
representação e os problemas que o envolvem. Vimos que quando se fala de
representação em filosofia política o que está em jogo, pelo menos em linhas gerais, é se
uma pessoa pode ou não representar outra, e se a resposta é afirmativa, de que modo é que
se faz isso. Já quando o assunto são as representações sociais, pudemos observar que este
conceito foi uma resignificação feita a partir da obra de Durkheim pela psicologia social,
que mesclou conhecimentos das ciências sociais com os da psicologia, e após isto, o
conceito também passou a ser usado na história. Foi dito por nós que estudar as
representações sociais significa partir do pressuposto que os fenômenos humanos podem
ser conhecidos e explicados a partir de uma perspectiva coletiva. Afirmamos também que
38
as representações sociais são sintetizadores das referências que os diversos grupos fazem
acerca do que conseguem apreender de suas vivências sociais inseridos no tempo e no
espaço. À história, apresentamos as relações de Roger Chartier com este conceito e a
opinião de Helenice Rodrigues da Silva de que o termo representações sociais substitui o
de mentalidades. Por fim, mostramos como a teoria da história, também de uma forma
geral, se relaciona com a problemática das representações. Em uma tentativa de síntese,
podemos dizer que a preocupação da teoria da história é saber se o passado pode ou não ser
representado e de que maneira pode ser, caso se concorde com a hipótese. Por isso, quando
se fala em representação em teoria da história, em grande parte dos trabalhos, a reflexão
apresentada gira em torno da concepção do texto histórico como uma tentativa de
representar o passado humano. Dentre os vários modos possíveis de abordar esta questão,
foi a partir destes três exemplos, somados com as dificuldades semânticas que envolvem o
vocábulo representação, que pudemos traçar esta breve reflexão conceitual. Passamos
agora ao problema específico deste trabalho.
A partir das duas cartas escritas por São Patrício tentamos perceber como é que ele
representou algumas vivências significativas que teve durante sua vida e como construiu
uma imagem da cristianização da Irlanda celta do século V a partir destas representações.
Acreditamos que a maior contribuição de Patrício foi a composição de sua Carta aos
solados de Coroticus e sua Confissão, sem elas, com certeza, saberíamos bem pouco sobre
a Irlanda da época em que o cristianismo ainda era uma novidade por lá. Como
mencionamos na Introdução a esta dissertação, o nome de Patrício está relacionado com
várias questões identitárias na Irlanda e assim tem sido desde a Idade Média
23
. Desta
23
Idade Média está de acordo com a forma mais comum em que usamos o termo. É importante ressaltar que
segundo algumas interpretações, a história antiga na Irlanda começa no século V com São Patrício, pelo fato
39
maneira, vários estudiosos da vida deste santo irlandês se dedicaram a refletir sobre os
referentes e a escrever uma história sob estas perspectivas de orientação. O objetivo de
grande parte destes estudiosos, pelo menos até 1905 com a obra de Bury, era, a partir destes
estudos, fazer determinados usos do nome de Patrício para justificar suas crenças, legitimar
alguma paróquia em detrimento de outras, justificar doutrinas, fundamentar escolhas etc.
Isso será explicado de forma mais detalhada no capítulo 2. Nosso objetivo é distinto,
estamos interessados na Irlanda que Patrício representou.
A intenção de Patrício quando escreveu suas cartas era resolver problemas que via
diante de si. Ele não tinha em mente que o que estava escrevendo seria lido por gerações
futuras e não era este o seu pensamento. Até porque, ele acreditava que estava vivendo os
últimos tempos (Thompson, 1986). Ele também não tinha um plano consciente de construir
uma imagem acerca do mundo que presenciava. Não fazia parte de suas pretensões
descrever como era a Irlanda do século V e suas particularidades. Quando Patrício escreveu
sua confissão ele pretendia se defender das acusações que estava sofrendo. Em algum
momento próximo do fim de sua vida, em estágio de idade avançado, ele então reflete
sobre diversas coisas que presenciou e escreve uma carta que tinha como intenção ser uma
defesa de sua vida e de suas intenções missionárias. Em suas advertências a Coroticus, ele
pretendia resolver um problema que afetava seu trabalho de cristianização de forma
particular, pois vários cristãos eram raptados e vendidos nos mercados de escravos, tanto na
Irlanda quanto fora deste território (Hanson, 1968).
Desta maneira, mesmo que sem ter este objetivo em mente, Patrício registrou por
escrito suas vivências e as observações que fez sobre a Irlanda do período em questão, e
de que com ele passamos a ter textos escritos, e vai até o ano 1169, data da invasão normanda, e a Idade
Média vai desta data até 1534. Ver: A New History of Ireland - Prehistoric and Early Ireland organizada por
Moody, T.W.; Cróinín, Dáibhi; Martin, F.X. e publicada em 2005 Oxford University Press.
40
estes registros ficaram conservados para a posteridade. Chamamos estas palavras grafadas
por ele em suas cartas de representações, e nesta dissertação defendemos a hipótese de que
o conjunto destas representações forma uma certa imagem da Irlanda Celta do século V.
Como este é o período em que se considera que a Irlanda foi cristianizada, por muitos
estudiosos apontarem o Patrício como o principal agente desta cristianização e também
pelo fato de que ele próprio trata destas questões em suas duas cartas, dizemos que ele
construiu uma imagem da cristianização da Irlanda a partir das representações que fez.
Pensando por este ângulo, uma história que pretenda discutir sobre a veracidade de
fatos que ocorreram no passado, se entendida tal qual o leitor poderá observar no capítulo
seguinte, é secundária para os objetivos do nosso trabalho. Da forma como é feita, este tipo
de história é uma verdadeira “caça aos referentes”. Assim sendo, ela apresenta uma
dualidade, um processo dicotômico fixo e intransponível entre o texto e o real empírico,
entre os referentes e as representações. Por outro lado, compreendemos que a
representação não pode ser desvinculada do que alguns chamam de real empírico como se
fosse algo totalmente distinto deste, como se fosse uma quimera onírica particular. Desta
forma, como dissemos mais acima, o mundo percebido pelos sentidos e as representações
feitas acerca do mesmo são fenômenos interdependentes.
Temos consciência deste problema. Afinal, as representações são representações de
quê? Como foi mencionado, acreditamos que as representações feitas por Patrício
formam uma imagem da cristianização da Irlanda celta do século V. Ou seja, a Irlanda que
Patrício fez aparecer em seu texto não é a Irlanda tal qual ela realmente foi e sim uma, entre
as várias Irlandas possíveis. Isto pode conduzir ao pensamento de que uma coisa é o real e
outra é a representação, e assim, as palavras representariam este mundo fenomênico. No
entanto, esta percepção reduz, ao nosso ver, a compreensão do conceito de representação a
41
uma ótica que o entende como capaz de representar um por um o real e apresenta a questão
de forma ambígua, dual e que não poderia ser conjugada. Pensamos que isso está correto
em certa medida, mas, por outro lado, as representações feitas por Patrício não podem ser
compreendidas como independentes do mundo que ele presenciou. Ou seja, ele não criou
qualquer Irlanda, ele representou uma Irlanda possível. Em certo sentido, as representações
de Patrício representam mesmo a Irlanda em que ele viveu. Acreditar que não, significa
pensar que Patrício era um esquizofrênico.
Quando Patrício escreveu suas cartas, ele tinha em mente que as enviaria a outra
pessoa e estava respondendo perguntas de alguém que era um ente realíssimo, para citar um
termo que Spinoza usou para se referir a tudo aquilo que existe de forma necessária.
Pensando com Wittgenstein, neste sentido, podemos dizer que Patrício pertencia a uma
comunidade de falantes e que deveria obedecer a certas regras discursivas que vigoravam
em seu mundo, época e lugar específico. As palavras, os termos, os signos, as formas de
pensar encontradas nas cartas de Patrício não são invenções puras de sua mente, da mesma
maneira que, e sob certos aspectos somente, como os são algumas palavras de James Joyce
em sua obra Ulisses. Patrício não poderia falar qualquer coisa, não era qualquer
representação que poderia fazer. Isso significa dizer que ele estava envolvido em processos
de “mediações semióticas complexas” (Mondada; Dubois, apud: Araújo, 2004: 210).
As cartas de Patrício fixam por escrito suas experiências e observações de certos
fenômenos no tempo e no espaço. Todavia, isso não nos permite afirmar de forma tão
ingênua e simplificadora que de um lado temos estas representações feitas por ele e de
outro temos o real. Estes registros foram feitos atendendo às exigências discursivas da
Irlanda na época de Patrício, é de que estas representações são oriundas. Neste sentido,
podemos dizer que a representação da Irlanda que encontramos nas cartas de Patrício é um
42
referente oriundo do período em questão. Somente alguém que tenha vivido na Irlanda celta
do século V, que tenha sido escravo, era um nobre bretão e então um romano também, mas
irlandês, passando por certas vivências e não por outras distintas das quais passou, poderia
representar a Irlanda da forma como Patrício a representou.
Entendemos que estas representações elaboradas por Patrício tiveram que enfrentar
um processo de negociação, consciente ou não, tendo em vista o jogo entre o escritor, o
conteúdo de sua escrita, e o leitor do texto. Patrício não mandaria uma carta para Coroticus
reclamando de coisas que nunca existiram e propondo questões quiméricas, por exemplo. É
neste sentido que dissemos que quem estiver pronto para acreditar nisso, também deve estar
pronto para admitir a esquizofrenia de Patrício. Assim, estas representações estão
envolvidas em processos de comunicação. Desta maneira, ao criar uma imagem da
cristianização da Irlanda, Patrício elaborou diversas representações do mundo que
observara diante de seus sentidos, mas estas não foram feitas ao acaso, por isso, partimos
do pressuposto de que elas poderiam, neste sentido em que estamos falando, ser
compreendidas pelos destinatários das cartas.
O que faremos neste trabalho é analisar os textos escritos por Patrício e a partir disto
ver como ele constrói esta imagem do que chamamos de cristianização da Irlanda. Isso
significa praticar contra o texto a violência do ato interpretativo (Lima, 1989). Como nos
mostra Michel Pêcheux (2006: 53), toda seqüência de enunciados oferece lugar à
interpretação. Assim sendo, observaremos as representações que Patrício faz do
cristianismo e da cristianização na Irlanda, dos irlandeses, da escravidão, de si mesmo, etc,
e a partir disto interpretaremos suas cartas buscando atingir nosso objetivo. Não vemos uma
estabilidade no mundo das coisas e uma realidade fixa, mas sempre em construção e
movimento. Desta forma, falar em representar não significa dizer que a linguagem capta a
43
realidade empírica e a representa fielmente. Assim, ao invés de dizermos “Patrício
representa a Irlanda celta do século V”, gostaríamos de poder dizer em voz média “há uma
representação, há Patrício e há Irlanda”, da mesma forma sintética, como pode ser expresso
em grego arcaico, mas isso não é mais possível.
Esperamos que tenha se tornado compreensível que não temos o menor interesse em
escrever uma história dos referentes que esteja preocupada com questões do tipo que
mencionamos logo na introdução a este trabalho. Os mais diversos estudiosos do tema se
preocuparam tanto com isso (ver capítulo 2) porque estavam envolvidos em guerras de
representações com o interesse de construir identidades nos mais distintos níveis de
compreensão que o termo oferece. Nosso olhar é um olhar externo ao assunto, neste sentido.
Não somos irlandeses, nem descendentes de irlandeses e muito menos católicos. Até se
descobríssemos durante a pesquisa que Patrício jamais existiu, isso não nos causaria
espanto, lamento, dor ou qualquer sentimento de revolta ou perda que se relacione de forma
mais íntima com o tema em questão. Apenas mudaria o enfoque do nosso trabalho.
Chegado ao fim deste capítulo, esperamos que tenham compreendido o sentido que estamos
atribuindo ao conceito de representação e o que queremos dizer quando afirmamos que
Patrício representou a cristianização da Irlanda Celta do século V em suas cartas.
44
CAPÍTULO 2
PATRÍCIO ENTRE A BRETANHA E A IRLANDA
CELTA DO SÉCULO V - UMA POSSÍVEL HISTÓRIA
DOS REFERENTES
Santo dos irlandeses é na verdade um bretão. Ao longo da história o nome de
Patrício é mencionado em diversos documentos nos quais aparece
relacionado com o fenômeno da cristianização da Irlanda. Pouco ou quase
nada se fala dele em seu contexto bretão, talvez pela falta de indícios
24
. Por este motivo,
poucas pessoas imaginam que o padroeiro da Irlanda nasceu e cresceu na Bretanha romana.
Neste capítulo, nós apresentamos algumas considerações sobre São Patrício tendo em vista
uma possível história dos referentes.
Para esta tarefa, selecionamos alguns autores que desenvolveram estudos
importantes concernentes à vida e à obra deste santo (Bury 1905; Hanson: 1968 e 1978; e
Thompson 1986). Assim, nossas reflexões giram em torno daqueles que são considerados
os principais fatos que envolveram a vida de Patrício e sua carreira como missionário na
Irlanda. Todavia, nosso interesse não é comparar as representações do passado que estes
historiadores desenvolveram em suas obras com o objetivo de julgar qual seria a mais
adequada e nem é nosso interesse construir um “contexto imaginário” em que Patrício teria
vivido, como fazem diversas obras que abordam o assunto. Assim sendo, nosso objetivo
24
Talvez porque São Patrício ficou conhecido por ter ido para Irlanda divulgar o cristianismo ou até
mesmo por questões identitárias, visto que grande parte dos autores que consultamos sobre este tema possui
vínculos com a Irlanda. Pode ser que não seja interessante enfatizar que o padroeiro dos irlandeses é um
bretão.
45
neste capítulo terá sido alcançado se conseguirmos fazer duas coisas. Em primeiro lugar,
mapear os principais problemas e o que é considerado mais importante na vida e na carreira
missionária de São Patrício
25
. E por último, tentaremos identificar, quais são, segundo
nosso ponto de vista, os principais problemas que podemos encontrar, então, na
historiografia que trata da vida de Patrício com o intuito de identificar o contexto histórico,
tanto na Irlanda quanto na Bretanha, em que ele teria vivido.
A partir do que foi dito, é possível inferir nossa hipótese, que foi mencionada de
maneira inicial na Introdução a esta dissertação, de que, de uma maneira geral, a
historiografia sobre cristianismo e história da Igreja e também a bibliografia específica
sobre Patrício possuem um certo padrão unificador de suas teses principais. Podemos
classificar estas obras em dois grupos. O primeiro, representado aqui pela obra de Bury
(1905) procura apresentar Patrício como alguém importante por ter cristianizado a Irlanda
ou por ter organizado um cristianismo pré-existente na Ilha. No segundo grupo, onde
situamos Thompson (1986), estão as obras que não apresentam estas duas teses ou que não
dão ênfase a estes aspectos, mas compartilham da mesma tentativa de construção de um
contexto irlandês ou bretão para Patrício, que ao nosso ver é imaginário
26
em vários pontos.
25
Fazendo isso, estaremos elaborando, nada mais nada menos, que as mesmas formas explicativas que
encontramos em toda a bibliografia sobre São Patrício que consultamos e que criticamos sob certos aspectos.
Assim, os tópicos “2.1” e “2.2” podem ser considerados como uma tentativa de construção contextual, ou seja,
uma “caça aos referentes”, se entendemos este termo em um sentido restrito identificando com ele tudo que
está fora do texto e que é representado no texto pelas representações. Como dissemos na introdução e no
primeiro capítulo desta dissertação, este não é nosso interesse em sentido amplo. Elaboramos, em sentido
específico, estes tópicos, para que por meio deles, o leitor possa compreender o restante do capítulo em que
abordamos alguns problemas, que, ao nosso ver, existem na historiografia concernente ao tema e que estão
relacionados justamente com esta intenção de construir um contexto que, segundo nossa ótica, até que se
encontrem novos indícios, está perdido PARA SEMPRE.
26
Por imaginário, estamos querendo dizer que estes autores estão inventando um contexto para Patrício que
requer que seus leitores concordem com eles quanto aos aspectos que estão enfatizando e que os referentes
evocados em suas obras devem ser considerados. Até tudo bem, que estes referentes são completamente
obscuros e não possuímos indícios suficientes para admitirmos as coisas que estes autores sugerem. Assim, o
que nós mais podemos encontrar nestas obras são frases como: “podemos imaginar que Patrício...”; “Pode ser
que Patrício tenha ouvido falar de...”; “Se ele estava na Bretanha nesta época, talvez tenha sido difícil...”. Em
46
2.1) PATRÍCIO EM SEU CONTEXTO BRETÃO.
Patrício nasceu em uma nobre família bretã no fim do século IV quando parte da
Bretanha era uma província romana. Costuma-se pensar que este fato garantia paz e
prosperidade e que a ilha estava bem sob a proteção romana, principalmente devido à
presença de legiões. No entanto, no ano 367, pictos e scotos atacaram os muros de Adriano
e enquanto os soldados se defendiam deste ataque, ao mesmo tempo os saxões e os francos
atacaram o sul e o leste da Bretanha. Estes ataques eram corriqueiros, e Hanson conta que
por causa deles a população civil que ele chama de “romanizada” desapareceu de várias
partes da Bretanha entre York e a muralha de Adriano, com exceção de poucas cidades,
como Corbridge e Brougham, onde as pessoas ainda podiam encontrar proteção romana
(Hanson, 1968: 1). Devido à constância em que os ataques estavam ocorrendo na Bretanha,
como uma tentativa de solucionar o problema, Teodósio, mandado para a Bretanha por
Valentiniano I, criou uma quinta província chamada Valentia, para se juntar com a
Britannia Prima, Britannia Secunda, Flavia Caesariensis e a Maxima Caesariensis, que
eram as quatro províncias existentes na Bretanha. Para defender esta nova província,
Teodósio convocou vários foederati
27
(Hanson, 1968: 2).
nossa opinião, dever-se-ia assumir que o contexto irlandês de Patrício e também o bretão estão
perdidos,
ou no mínimo, obscuros. Da bibliografia que selecionamos, Hanson (1978) esboça um pensamento
semelhante e Thompson (1986) chega a admitir esta lacuna, mas sem se afastar muito do mesmo modelo. Ou
seja, não estamos discordando de que padrões de ficção nos textos históricos e que o texto histórico
apresenta construções literárias, mas nestes casos que mencionamos, o que vemos são livres especulações.
27
Povos bárbaros Vinculados à Roma por meio de um tratado (foedus). Apesar de não serem cidadãos
romanos deveriam fornecer soldados quando lhes fosse solicitado.
47
Seguindo ainda as análises de R.P.C. Hanson sobre o contexto bretão do século V,
podemos observar que durante todo este período houve diversas rebeliões e vários
usurpadores, dentre os quais ele cita Valentinus, Carausius, Allectus e um bretão chamado
Magnus Maximus, que teria adquirido poder e prestígio junto aos soldados que comandava
e teria provocado uma rebelião na Bretanha. Apesar destas revoltas, Hanson diz que
nenhum dos chefes bárbaros da guerra tinha o anseio de ocupar diretamente o trono
imperial (Hanson, 1968: 3; 4). Após a morte de Magnus Maximus em 388, teria se iniciado
o que ficou conhecido como “o período clássico da pirataria irlandesa
28
Muitas cidades na Bretanha formaram-se a partir de vilas celtas da Idade do Ferro
que foram transformadas pelos romanos em verdadeiras fortificações. Não era o caso de
Bannauenta Berniae ou se preferirem Bannauen Tabernieae, o lugar em que Patrício nasceu.
Kathlenn Hughes (2006: 307) diz que as vilas na Bretanha deste período se conectavam
com estas grandes cidades e formavam um sistema econômico. Estas vilas ficavam
próximas das cidades ou então das estradas que eram rotas de alimentos porque elas não
tinham acesso aos mercados. Parece que o lugar onde Patrício vivia era um pequeno
vilarejo, mas um pouco privilegiado se aceitarmos as considerações feitas por Philip
Freeman quando ele diz que Bannauen Tabernieae servia como um centro comercial
agrícola na área. (Freeman, 2004: 6; 8).
Durante este período, os ataques de piratas irlandeses e diversos saqueadores
aconteciam com freqüência nas costas do mar britânico e as pessoas que mais eram
capturadas eram as que trabalhavam nos campos, longe das cidades fortificadas. Em uma
destas incursões de piratas irlandeses, Patrício foi seqüestrado. Não temos condições de
28
Este é um termo usado por Collingwood e Myres na obra “Roman Britain and the English Settlements”
(Oxford, 1937), que Hanson (1968) cita em seus estudos sobre a Bretanha do século V.
48
saber como isso se deu, nem de que maneira, e muito menos em que tipo de embarcação ele
teria sido levado para a Irlanda (Thompson, 1986: 4-6).
Representação cartográfica da Bretanha romana. À esquerda, a Hibernia. Atual
Irlanda. Disponível em [http://iam.classics.unc.edu ]. Acesso em 05 de dezembro de 2007.
Patrício viveu na Bretanha envolto em uma cultura bretã e romana, mas cercado por
diversos outros convívios culturais, a partir de relacionamentos políticos e bélicos que os
romanos e os bretões tinham com os scotos, pictos, francos, saxões e outros povos
considerados bárbaros. Patrício era filho do diácono Calpunius e neto de um presbítero
49
chamado Potitus. Ou seja, Patrício cresceu aprendendo bretão, seu idioma materno, e o
latim da província romana da Bretanha. Assim, foi educado na religião cristã.
Nós não sabemos de que forma foi que o cristianismo entrou na Bretanha. Hanson
afirma que existem referências na Historia Brittonum de Nennius dizendo que um rei
bretão chamado Leucius foi batizado junto com sub-reis de toda a Bretanha no ano 167 e
também nas Homiliae de João Crisóstomo apontando para uma origem apostólica do
cristianismo britânico (Hanson, 1968:29). No entanto, Hanson sugere que o cristianismo
pode ter alcançado as ilhas britânicas por meio de comerciantes ou de soldados convertidos.
Segundo ele, encontramos vagas referências sobre o cristianismo na Bretanha por volta
da primeira metade do terceiro século em escritores como Tertuliano, Orígenes e Hipólito
(Hanson, 1968: 29). Liam de Paor (1993: 9) diz que estas referências ajudam pouco e que a
história da igreja na Bretanha neste período é obscura.
No quarto século as informações sobre o cristianismo na Bretanha aumentam,
embora ainda não sejam muito amplas, diz Hanson (1968: 30). Ele nos informa que desta
época nós temos mosaicos cristãos que a arqueologia encontrou em algumas vilas e
também cruzes com inscrições. Segundo o autor, é também no quarto século que
encontramos pela primeira vez referências ao cristianismo britânico na literatura (Hanson,
1968: 31). Nos dias de Patrício, muitos bretões eram cristãos porque eram romanizados e o
cristianismo era identificado com a cidadania romana. Mas, foi somente no século V que a
igreja na Bretanha cresceu, tanto em influência quanto em número de membros (Hanson,
1968: 35).
Um outro bretão que viveu na mesma época e também se tornou conhecido na
história da Igreja é Pelágio. Dennis Bethel (apud: Thompson, 1986: 52) o chamou de “o
maior herético produzido pela Igreja latina”. De qualquer forma, Pelágio foi importante
50
para o cristianismo do século V por formular o conjunto doutrinário que ficou caracterizado
como uma heresia e foi denominado, em homenagem ao seu autor, de pelagianismo
29
. As
principais controvérsias apresentadas pelo pelagianismo eram acerca das concepções de
graça, liberdade e predestinação. Apesar de Pelágio ser um bretão, Thompson diz que seria
um erro dizer que o pelagianismo foi uma heresia bretã porque Pelágio a formulou
quando foi viver em Roma (Thompson, 1986: 53).
Palladius, um missionário que foi enviado para a Irlanda antes de Patrício, é
mencionado pela primeira vez, convencendo o Papa Celestino de que ele deveria enviar
alguém para combater o avanço do pelagianismo na Bretanha e, aceitando o conselho,
Celestino enviou, em 429, Auxerre e Lupus de Troyes para cumprirem esta tarefa
(Thompson, 1986: 54). Alguns estudiosos pensam que Patrício tenha ouvido falar ou até
mesmo entrado em contato com o pelagianismo, mas nos escritos de Patrício não nada
sobre isso, nenhuma menção, e segundo Thompson, não nenhum indício que possa
revelar isso. Pode até ser que Patrício conhecesse o pelagianismo, mas como ele não era um
teólogo especulativo, talvez por isso, nada disse a respeito. (Thompson, 1986: 54). Uma
outra opção para este silêncio é oferecida por Thompson quando ele compara Patrício com
Gildas
30
. Segundo ele, pode ser que o pelagianismo tenha afetado somente uma parte da
ilha e como tanto Patrício quanto Gildas eram homens do interior do oeste da Bretanha,
pode ser que nunca tenham ouvido acerca desta heresia (Thompson, 1986: 55).
29
Trata-se de uma doutrina divulgada pelo monge bretão Pelágio (360-425) que se estabeleceu em Roma em
384, depois no Egito e, finalmente, na Palestina. Esta doutrina foi combatida por Agostinho de Hipona,
sobretudo seu conceito de graça.
30
Um monge bretão que nasceu por volta do ano 516 d.C. Por vezes é mencionado como Gildas, o sábio, e
também como Gildas Baldonicus.
51
2.2) PATRÍCIO EM SEU CONTEXTO IRLANDÊS.
Patrício foi seqüestrado por piratas irlandeses quando ele tinha dezesseis anos de
idade e levado para Irlanda onde foi vendido a um homem chamado Milliuc. Por seis anos
ele foi um pastor de ovelhas e pode ser que tenha sofrido muito mais de abandono do que
de maus tratos (Thompson, 1986: 17). Durante este tempo é que Patrício aprendeu a falar
gaélico irlandês e também os costumes de um povo que ele considerava bárbaro.
A escravidão na Irlanda pré-cristã era semelhante à escravidão do mundo romano.
Os escravos eram tratados como objetos de seus donos e se alguém fizesse um mal contra
um escravo deveria compensar ao senhor pelo dano causado (Freeman, 2004: 26). Na
Irlanda, em período posterior, durante os anos de cristianismo, diversos esforços foram
feitos, freqüentemente em vão, para tentar proibir de que se usasse as escravas para
finalidades sexuais, mas no período em que Patrício foi levado para lá o havia nenhum
impedimento. Assim, podemos observar que os escravos eram considerados uma posse
(Freeman, 2004: 26).
Após seis anos de cativeiro, Patrício fugiu em um navio. Quanto a este ponto em
questão, a saber, a fuga de Patrício da Irlanda e sua recaptura, a historiografia aponta
diversos problemas para localizar e situar os referentes e praticamente não há acordo sobre
as questões levantadas. Os motivos são óbvios, não documentos para indicar caminhos
possíveis, somente as cartas de Patrício, então só podemos saber o que ele mesmo narra.
Nós apresentamos alguns destes problemas na introdução, mas eles já renderam tantas
especulações desde o século VII que nem conseguiríamos mensurar a dimensão desta
problemática.
52
Como Patrício encontrou abrigo durante a fuga, vivendo em uma sociedade em que
sabiam que era um escravo? Para onde ia o navio que levou Patrício? Era uma viagem
regular ou excepcional? Onde é que este navio chegou? Na Bretanha? Na Gália? Quem
capturou Patrício pela segunda vez? Quando conseguiu embarcar em um navio em sua
primeira fuga, o capitão já estava pensando em vendê-lo em outro lugar? Estas são algumas
das tantas perguntas feitas pelos estudiosos da vida de São Patrício (Bury: 1905; Thompson:
1986).
Depois destes acontecimentos envolvendo a vida de Patrício, ele voltou para a
Bretanha e, estando lá, decidiu ir para a Irlanda cristianizar os irlandeses. Aos olhos de um
nobre bretão, que era um romano, os irlandeses eram considerados bárbaros que tinham
utilidade para a escravidão. Não tinha como um bretão fazer contato com um irlandês no
século V utilizando a escrita, porque não havia escrita na Irlanda neste período, com
exceção dos oghans
31
(Thompson, 1986: 113). Eram mundos bem diferentes. Então, é
evidente que este pensamento de Patrício tem relação com os anos em que foi um escravo
na Irlanda. É aceito de forma mais comum por todos os autores que investigamos a data de
432 como sendo o ano em que Patrício foi para a Irlanda desenvolver seu trabalho
missionário. Nesta época, a Irlanda era uma terra céltica.
De forma resumida, podemos dizer que os celtas são populações assim chamadas
porque possuem como característica o fato de falarem uma língua céltica e também por
apresentarem uma matriz religiosa comum. Estes povos ocuparam um vasto território na
Europa e o grau de desenvolvimento destas populações, bem como a extensão geográfica
31
Trata-se de um alfabeto usado nas línguas gaélicas. O alfabeto ogham consiste de vinte caracteres distintos.
Cada letra simboliza uma árvore diferente e é formada por meio de diferentes traços ascendentes,
descendentes e perpendiculares sobre uma linha vertical. O ogham era escrito da esquerda para a direita em
manuscritos, e de baixo para cima em pedras. O uso da escrita ogâmica foi peculiar à população céltica nas
Ilhas Britânicas. Cerca de 375 inscrições são ainda conservadas (Oliveira, 2007).
53
destes territórios que ocuparam, mudam em função de condições históricas determinadas.
Assim sendo, as discussões sobre este assunto podem variar muito e dependendo do
enfoque dado e das teorias escolhidas, podemos falar de celtas do século XIV antes de
Cristo até os dias atuais. No entanto, existem algumas unanimidades entre os celtólogos
quando o objetivo é localizar os povos celtas no tempo e no espaço. podemos usar o
termo “celtas”, a partir dos gregos, pois foram estes que o criaram
32
. Foram os celtas que
ensinaram os europeus a utilizarem o cavalo e forjar instrumentos de ferro para a guerra
(Green, 1996). Podemos perceber os vestígios destas populações em vários países: Escócia,
País de Gales, Irlanda, Inglaterra, França, Espanha, Portugal, Suécia, Dinamarca, Alemanha,
Polônia, Bélgica, Itália e Suíça
33
.
Existem várias teorias que tentam explicar como os celtas chegaram na Irlanda.
Desde teorias mais tradicionais, que afirmam que os celtas invadiram a Irlanda no século
IV antes de Cristo (Powell, 1958), até teorias mais recentes que afirmam que os celtas
sempre estiveram ou que migraram pacificamente pelo “arco atlântico”. De qualquer
forma, não se pode datar ao certo quando a Irlanda se tornou “céltica” (Raftery, 1996: 652).
Todavia, podemos afirmar que ao chegar na Irlanda do século V, São Patrício encontrou
uma terra céltica onde se falava o gaélico.
Patrício encontrou uma sociedade dividida em pequenos reinos particulares, cada
uma destas partes era denominada com o termo gaélico Tuath e cada uma delas era
governada por um rei. Estes reis eram fundamentais na política da Irlanda celta do século
32
Κελτοι em grego, que mais tarde passou ao termo Celtae no latim, que é de onde vem a palavra Celtas que
usamos em português.
33
Sobre os celtas, consultar nosso artigo intitulado “Quem são os celtas?”, publicado na revista História e-
História em 2006 e as reflexões de Ana Donnard, nos artigos “Celtas, lticos e a celticidade - embates de
uma cultura anônima” e As origens celtas do mito arturiano” publicados por ela na mesma revista. Ambos
podem ser consultados em: http://www.historiaehistoria.com.br/, acessado em 23 de junho de 2007.
54
V. Milliuc, por exemplo, o dono de Patrício quando ele foi escravo na Irlanda pela primeira
vez, era um destes reis. O rei celta era uma espécie de chefe de clãs que governava uma
comunidade local no comando de algumas dezenas de famílias de criadores de gado. A
riqueza na Irlanda não era medida em terras, mas em gado
34
(Cahil, 1999: 117). O rei
deveria ser casado, justo, bom, generoso e garantir a prosperidade da comunidade
governada por ele. O rei não podia falar antes que seu druida se pronunciasse e
praticamente não poderia deixar o território do seu reino (Le Roux; Guyonvarc`h, 1995:
148). Se o rei não cumprisse suas funções, ele poderia perder o poder e ser destituído pelo
druida.
Na Irlanda pagã que Patrício encontrou, outros personagens fundamentais eram os
druidas. Eles constituíam a máxima representatividade em termos de religião sendo o
detentor total do conhecimento acerca das esferas do sagrado. A palavra dru-uid-es
significa “os muitos sábios” ou “aqueles que possuem o conhecimento”. Foram os filid
35
,
uma das especializações druídicas, que após a conversão para o cristianismo, se tornaram
os copistas que registraram por escrito muito do que sabemos sobre a Irlanda tradicional.
Eles se dedicavam cerca de doze anos aos estudos, deveriam saber recitar várias narrativas
34
Uma das maiores obras da mitologia irlandesa é a Táin Cúalnge, alguns autores a consideram uma
espécie de Ilíada da Irlanda. Em português, esta obra é freqüentemente mencionada com o título “A rázea das
vacas de Cooley”. O termo gaélico irlandês “Bó” significa gado. Por meio da leitura desta obra podemos ter
uma noção da importância que os irlandeses davam a estes animais.
35
Um druida responsável pela poesia. Le Roux & Guyonvarc`h (1995, p.152) apresentam uma lista de
especializações druídicas, entre elas estão os filid: sencha: historiador, antiquário, genealogista, panegirista,
professor; brithem: juiz, jurista, legislador, árbitro;
scelaige: narrador; cainte: sátiro; liaig: médico, cirurgião
(três medicinas: mágica, do sange e vegetal); cruitire: harpista; deogbaire:
escanção; dorsaide: porteiro;
file:
poeta (em geral); fáith: advinho, vate (técnico da predição e da profecia, única função sacerdotal acessível às
mulheres). Os filid eram poetas, recitadores, dentre outras coisas mais, sempre relacionadas aos relatos orais
(scél, scéla) da tradição.
55
e tinham que assimilar e ensinar a prática de várias dezenas de metros poéticos (Le Roux;
Guyonvarc`h, 1999: 128).
Representação cartográfica da Irlanda antiga mostrando a divisão em pequenos
reinos e Tuaths. Note que a “chegada do cristianismo” está diretamente relacionada com a
“chegada de Patrício”. Disponível em [ http://www.rootsweb.com/~irlkik/ihm/]. Acesso em
05 de dezembro de 2007.
56
Além de conhecer o funcionamento estrutural desta sociedade céltica irlandesa,
Patrício sabia bem o gaélico, que aprendeu durante o tempo de seus trabalhos como escravo.
Por este motivo, quando foi para a Irlanda desenvolver seu trabalho missionário, ele sabia
como agir nas determinadas situações que encontrou por e podia conversar com os reis
irlandeses no próprio idioma deles na tentativa de convertê-los ao cristianismo. Em suas
cartas podemos observar exemplos de como estas negociações eram estabelecidas, no
terceiro capítulo isso deverá ser apresentado. Diferente do cristianismo, o paganismo não
faz exigências de adoração exclusiva a uma única divindade (MacMullen, 1984:17). Isso
pode ter favorecido o trabalho de Patrício, pois, os irlandeses tinham o costume de
integrar novos deuses em seu sistema de crenças.
Thompson (1986) afirma que não existia no começo do século V a idéia de enviar
um missionário para cristianizar povos que eram considerados bárbaros. Por este motivo,
acreditamos que tanto Palladius quanto Patrício não foram enviados para a Irlanda para
converter as pessoas ao cristianismo. O primeiro caso pode ser verificado nas palavras de
Prosper quando ele diz que Palladius foi enviado ad Scotos in Christum credentes
(Hanson, 1968: 54). Ou seja, ele foi enviado para trabalhar junto de grupos cristãos
existentes na Irlanda, o que mostra que até mesmo antes de Palladius havia cristãos lá.
Nenhum bispo católico tinha ultrapassado as fronteiras do Império Romano com estas
intenções antes de Patrício, ninguém tinham planejado ir até o interior de terras
consideradas bárbaras falar sobre o cristianismo, para as pessoas que viviam lá. Não era
costume dos cristãos do século V se importarem com povos que eles consideravam
assassinos e seqüestradores (Thompson, 1986: 98). Patrício sabia dos riscos que corria e
dos perigos que enfrentava. No versículo 55 de sua Confissão ele nos diz: ”porque
cotidianamente espero ser morto, traído ou reduzido à servidão se a ocasião surgir”.
57
Mesmo assim, ele escolheu deixar a Bretanha e ir passar o resto de sua vida na Irlanda: “e
nesse lugar escolho devotar minha vida até a morte, se assim o Senhor me permitir”
(Confissão 37). Ou seja, Patrício não foi enviado para a Irlanda pela Igreja, ele foi para
por sua livre e espontânea vontade. Acreditamos que o sucesso da missão de Patrício foi
possível devido aos conhecimentos que tinha da sociedade irlandesa, sua cultura e seu
idioma.
Um outro fato sempre abordado nas histórias sobre Patrício é seu entrave com
Coroticus. No contexto dos conflitos que se desenvolviam nas ilhas britânicas no culo V,
havia alguns chefes de soldados que eram considerados e respeitados, como Vortigeern,
Ambrosius Aurelianos e Coroticus. Nós não sabemos onde é que este último vivia com seus
soldados, mas é certo que passou a raptar pessoas na costa Irlandesa para vender nos
mercados de escravo, de forma que se mantinha com os despojos de suas vítimas e da
rapina. Patrício, vivendo em terras irlandesas, conseguiu formar uma comunidade de
Cristãos. Foi parte dela que foi atacada por Coroticus. Para reclamar das ações de Coroticus,
Patrício escreveu uma carta, uma espécie de advertência e ex-comunhão caso ele não se
arrependesse. Abordaremos esta questão no capítulo final desta dissertação.
No fim de sua vida, Patrício foi acusado por algumas pessoas de ter ido para a
Irlanda para ganhar dinheiro. Por este motivo ele escreveu sua confissão, que é uma defesa
de sua vida e de sua carreira missionária contra estas acusações.
“Por acaso quando batizei milhares de pessoas
esperava mesmo que fosse a metade de qualquer coisa deles?
Se assim foi, digam-me e eu vos restituirei. E quando o
Senhor ordenou clérigos em todas as partes por intermédio da
58
minha humilde pessoa e o ministério gratuitamente eu conferi
a eles, se pedi em qualquer lugar qualquer recompensa deles,
que seja o valor de um par de sapatos, digam-me na minha
frente e os restituirei”. (Confissão, 50).
Patrício estava sendo interrogado e examinado e em nenhum momento de sua
confissão ele questiona o direito destes inquisidores. Ou seja, Patrício lhes reconhecia a
autoridade. vários problemas relacionados a este ponto que podem ser lidos também no
próximo capítulo em que analisaremos as cartas que Patrício escreveu. Estes são os fatos
mais mencionados entre os que são relacionados à vida de São Patrício e sua carreira
missionária na Irlanda. Eles estão presentes de uma forma ou de outra em toda a
bibliografia que consultamos sobre o tema.
No próximo tópico, abordamos o que, ao nosso ver, são os principais problemas
encontrados na historiografia que selecionamos, tendo em vista esta possível história dos
referentes tal qual tentamos apresentar até aqui. Nós escolhemos estas obras pelo fato de
serem citadas pela grande maioria dos estudiosos do tema e também por representarem,
cada uma delas, uma situação específica na história dos estudos acerca de São Patrício. Nós
não poderíamos analisar muitas obras, pois além de não haver tempo suficiente, este
também não é o objetivo principal desta dissertação. Por isso, selecionamos algumas obras
específicas. Se observarem bem, poderão perceber que a primeira que escolhemos é a obra
de Bury que data de 1905. Nós tomamos conhecimento de sua existência observando as
análises de Thompson, que afirma que com ela se iniciam os estudos modernos sobre a vida
de Patrício. A seguir, comentamos as obras de R.P.C. Hanson, escritas respectivamente em
1968 e 1978, o que nos permite perceber algumas mudanças na historiografia sobre Patrício.
59
Por fim, abordamos a obra Who was saint Patrick de autoria do próprio Thompson,
escrita em 1986.
2.3) UMA ANÁLISE DA HISTORIOGRAFIA QUE
ABORDA A VIDA DE PATRÍCIO: J.B. BURY (1905);
R.P.C. HANSON (1968, 1978); E. A. THOMPSON (1986).
John Bagnell Bury nasceu no ano de 1861 em Monaghan, um dos condados da
República da Irlanda, situado na província do Ulster e morreu em 1927. Ele foi um dos
historiadores mais eruditos do século XX, sabia grego, latim, russo, sânscrito e hebraico,
entre outros idiomas. Segundo Thompson, havia três línguas européias que Bury não
falava, mas ele não diz quais. Bury produziu e comentou uma edição da obra de Gibbon
Declínio e queda do Império Romano” e contribuiu para a Encyclopaedia Britanica
publicada em 1911. Tem diversas publicações sobre Império Romano e uma obra sobre a
invasão dos povos rbaros na Europa. Thompson (1986: 9) diz que foi Bury quem cunhou
o termo “Império romano tardio” usado para denotar a história romana nos séculos finais do
Império Romano no Ocidente. A obra de Bury que nos interessa tem como título The life of
St. Patrick and his place in History e foi publicada por ele em 1905.
A tese defendida por Bury nesta obra é que devemos compreender São Patrício em
seu contexto no interior do Império Romano do Ocidente. Assim, o lugar de Patrício na
história está reservado como um cristianizador de povos bárbaros no contexto do avanço do
cristianismo para além das fronteiras do Império Romano. Segundo Bury (1905), a
60
contribuição de Patrício foi colocar a Irlanda em conexão com a Igreja do Império fazendo
assim parte da cristandade universal, converter reis que eram pagãos e organizar o
cristianismo existente na Irlanda. Nesta obra, Bury trata de questões relacionadas com as
datas e os lugares por onde Patrício teria passado. Thompson (1986:176) afirma que esta
obra de Bury “foi a última palavra no assunto e encerrou os estudos acerca de Patrício por
um geração inteira”. O autor segue dizendo que, com exceção de alguns detalhes “ninguém
poderia esperar contribuir para a obra de Bury no sentido de melhorá-la” e que ele tinha
escrito uma obra que “parecia que para sempre seria um padrão para se falar da vida de São
Patrício”.
Bury diz que sua intenção é explicar este período da história irlandesa não
apontando a vida de Patrício em um período de crises na história da Irlanda, mas em
primeiro lugar como um “apêndice” para a história do Império Romano e em segundo lugar,
apenas como mais um “episódio notável” entre uma série de conversões no norte da Europa
(Bury, 1905: 5). Por este motivo, Bury está interessado em ilustrar as relações que ocorriam
entre os vários povos nas fronteiras do Império Romano. Bury justifica seu trabalho
dizendo que o que ele fez partiu de um “exame metódico das fontes”. É isso que
Thompson (1986) aponta como sendo “métodos modernos de interpretação”. Lendo a obra
de Bury percebemos que isso significa que ele usou seus conhecimentos de arquivo,
filológicos e hermenêuticos para interpretar as inúmeras fontes que mencionavam a vida de
Patrício e que ele conseguiu localizar em suas pesquisas.
Bury tenta mostrar que, para compreendermos a conversão da Irlanda, temos que
pensar este fenômeno como um episódio da história da Europa e que devemos levar em
consideração as maneiras gerais de propagação do ideal cristão no Império Romano.
Segundo Bury, a Europa sem o Império era inimaginável e que o domínio de Roma parecia
61
uma “ordem universal” e “um globo girando em torno de si próprio” (Bury, 1905: 9). Para
ele, a existência do Império é que “condicionou” o sucesso de uma religião “universal” na
Europa (Bury, 1905: 02). Assim, o autor vai localizando diversas formas de cristianização
ao longo do Império. Segundo ele, vários povos que viviam nas fronteiras com o Império
Romano conheceram o cristianismo por meio de cativos de guerra, e também por
mercadores. Isso confirmaria o fato de que a cristianização dos bárbaros, até o sexto século,
não era um plano da Igreja, mas “meros acidentes” a partir das relações que o Império tinha
com seus vizinhos. Assim, o que ele chama de “missões” aos gentis eram limitadas ao
mundo romano (Bury, 1905:7). Desta maneira, Bury caracteriza a conversão da Irlanda ao
cristianismo como um “modesto” lugar entre outras mudanças que ocorriam na Europa do
século V.
John Bagnell Bury afirma que não devemos acreditar que Patrício tenha sido o
primeiro missionário a tentar cristianizar a Irlanda, pois, quando ele chegou lá, havia
cristãos na ilha. E ainda, segundo ele, não temos motivo para acreditar também que
Patrício pregou por toda a Irlanda, mas que ficou restrito a um pequeno distrito no Leinster.
No entanto, Patrício é importante por ter “assegurado” a permanência do cristianismo na
Irlanda (Bury, 1905: 212). Bury diz que, a partir de Patrício, a Irlanda passou a ter uma
nova conexão com Roma e o Império romano. Em sua opinião, havia diversas relações
envolvendo a Irlanda, a Gália e a Bretanha, mas somente a partir destes acontecimentos, a
Irlanda “estava pronta” pra entrar em associação “mais direta e intimamente” com a Europa
Ocidental por ter se tornado “uma parte organizada do mundo cristão” (Bury, 1905: 213).
Seguindo esta linha de raciocínio, Bury afirma que estas ligações históricas
“importantes” que “marcaram” a história da Irlanda como “um país europeu” foram
“obscurecidas” depois da morte de Patrício pela Igreja irlandesa. Segundo ele, neste
62
período as relações com o “centro” foram suspensas (Bury, 1905: 215). O autor afirma que
as ligações voltariam a ser feitas, marcando uma espécie de “retorno ao sistema
estabelecido por Patrício”, no século VII (Bury, 1905: 216).
A obra de John Bagnell Bury sobre a vida e a obra de São Patrício apresenta alguns
problemas. Como podemos ver, o autor aponta Roma como um “centro” e o contexto da
cristianização irlandesa deve ser entendido apenas em torno do Império Romano. Estas
idéias apresentam um conceito de “romanização” bastante coeso e mostra uma noção do
que Bury chama de Idéia romana” muito fechada e fixa. Não podemos nos esquecer de
que Bury escreveu esta obra em 1905 e que atendia a outras lógicas de pensamento vigentes
em sua própria época. Quando Bury a escreveu, ainda fazia sentido pensar desta maneira.
Em tempos mais recentes, esta visão acerca de Roma e da romanização foi e é
questionada por inúmeros trabalhos. Citamos uma obra que data de 100 anos após a obra de
Bury para vermos como esta interpretação acerca da romanização mudou. Trata-se do
capítulo, escrito por Richard Miles, “Communicating culture, identity and power” que
integra a obra Experiencing Rome: Culture, Identity and Power in the Roman Empire de
Janet Huskinson (2005: 29-62).
Nesta obra, Miles defende que as identidades são sempre construídas mediante as
representações que os grupos ou as pessoas fazem de si mesmas e dos outros. Isto significa
falar de jogos de poder, principalmente o poder de configurar representações. Estas
identidades podem ser construídas, mantidas e contestadas mediante comunicação e no
mundo romano, comunicação é necessariamente uma exploração da relação entre a
oralidade e a literalidade. Assim sendo, a tese principal de Richard Miles é de que é
possível entender cultura, identidade e poder no império Romano se forem pensados de
forma relacional e imbricados ao conceito de comunicação. Por este motivo, a
63
romanização não representa uma completa supressão
36
das culturas locais e das linguagens
que eram usadas em suas articulações. A romanização era na verdade um processo que
envolvia apropriações de ambos os governos
37
e culminava na criação de novas narrativas
imperiais (Miles, 2005: 29-62).
Então, esta visão de Bury sobre Roma como um “centro” poderoso e que
determinava as relações até mesmo fora das fronteiras do Império e da romanização como
um modus vivendi romanorum que era determinado a outros povos, apesar de problemática,
deve ser compreendida em seu contexto, mas isso não descaracteriza o teor do problema
desta tese. Talvez não possamos exigir que Bury tenha percebido isso na época em que
escreveu sua obra. Situar São Patrício e verificar qual é “o lugar dele” na “História”
significa, na obra de Bury (1905), relacionar a vida de Patrício com um contexto romano
imperial. Assim, a história da Irlanda se torna uma “história menor” dentro da narrativa de
uma “história maior” que é a história romana. Nas palavras do autor, a história da
cristianização da Irlanda no século V é, como foi mencionado acima, um “apêndice” da
história do Império Romano do Ocidente (Bury, 1905: 5).
Outro problema da obra de Bury, que também deve ser entendido no contexto em
que ela foi escrita, é que ele aceita as informações da Vita Patricii escrita por Muirchu
38
,
dos anais irlandeses
39
e de outros documentos como a Senchus mor
40
como “verdadeiras” e
36
Toma de posesión; cambio di gestione; Übernahme; possivelmente, “tomada de poder”, em português.
37
“Rulers” em português pode significar ainda: poderes, administrações, gestores etc. O autor pretende dizer
que não havia romanização no sentido de uma imposição romana de mão-única sobre as culturas “dominadas”.
Ao contrário disso, o que havia eram apropriações de ambos os lados.
38
A Vita Patriciifoi a primeira vida de São Patrício. Ela foi escrita por Muirchu, que é considerado seu
principal Hagiógrafo, em Latim, no século VII. Nesta obra, Muirchu narra além da vida de Patrício, muitas
coisas sobre os costumes dos povos irlandeses.
39
Uma coletânea de textos recolhidos de vários manuscritos irlandeses medievais.
40
Existe na Irlanda um conjunto de leis escritas em gaélico arcaico. Essas leis foram traduzidas em 1852 em
seis volumes e ganharam o título de “As antigas leis da Irlanda”. É comum ver referência a elas como
64
“dignas de confiança”. Ele considera que a partir destas obras podemos fazer inferências
“seguras” acerca da vida e da carreira missionária de Patrício na Irlanda. Este problema
foi questionado em 1962, quando D.A. Binchy publicou um artigo intitulado Patrick and
his Biographers, Ancient and Modern”. Segundo Binchy, o livro de Bury é “viciado” em
erros porque admite as informações destas obras que ele considera “seguras” como
verídicas. Para Binchy, as únicas verdadeiras informações que podemos ter sobre Patrício
estão em seus próprios escritos (Binchy, apud: Thompson, 1986: 177). Outro autor citado
por Thompson que questionou a obra de Bury foi James F. Kenney, em sua obra The
sources for the Early History of Ireland”, publicada em 1966. Segundo Kenney, talvez o
exame tão crédulo que Bury fez tenha sido “devido ao excesso das fontes” que fez com que
por meio do cruzamento de tantas informações ele pensasse poder estar seguro acerca da
veracidade das sínteses que conseguiu elaborar e que Bury estava “levemente voltado para
a tradição” (Kenney, apud: Thompson, 1986: 177).
Estes são, em nossa opinião, os dois principais problemas da obra de Bury. Nós
podemos perceber que ele se enquadra no primeiro grupo que descrevemos, o que procura
apresentar Patrício como alguém importante por ter cristianizado a Irlanda ou por ter
organizado um cristianismo pré-existente na Ilha. John Bagnell Bury acredita nas
informações encontradas nos documentos irlandeses e as considera fidedignas e a partir
delas localiza o contexto em que Patrício teria vivido, que ele constrói uma história dos
contextos imperiais romanos no século V para enquadrar Patrício e a Irlanda nela, pois
acredita que devemos localizar o lugar de Patrício na História levando em consideração a
história do Império Romano. Assim, temos que aceitar a premissa de Roma como um
Brehon Laws”. À primeira parte das leis contida neste código dá-se o nome de Senchus mor (Klingen,
1997:11).
65
“centro” e o fato de Patrício ter “ligações” com a Igreja Católica Romana para que essas
descrições façam sentido.
Outro autor que merece aqui a nossa atenção é Richard Patrick Crosland Hanson.
Ele nasceu em 24 de novembro de 1916 em Londres, na Inglaterra e morreu em 23 de
dezembro de 1988. Durante sua vida, escreveu diversas obras sobre a história do
cristianismo e da Igreja e publicou diversos artigos sobre assuntos teológicos. Foi professor
de História e de Teologia contemporânea na Universidade de Manchester, deu aulas no
Westminster College, Cambridge e foi membro da Royal Irish Academy e da Society for the
Study of Theology. Sabia grego, latim, inglês, francês, alemão e italiano. Entre suas obras
mais importantes estão: “Tradition in the Early Church” (1962); Mystery and Imagination:
Reflections on Christianity (1976) e The search for the Christian Doctrine of God: The
Arian Controversy, 318-381 (1988). Além das que nos interessam mais diretamente nesta
dissertação: Saint Patrick: His origins and Career (1968) e St. Patrick: Confession,
Lettre a Coroticus” (1978).
Quando fala acerca de São Patrício, sua origem e sua carreira, Hanson (1968)
descreve o contexto da Bretanha e da Igreja britânica do século V. Isto foi mencionado por
nós no início deste capítulo, pois do que apontamos em São Patrício em seu contexto
bretão grande parte foi apoiado nesta obra de Richard Patrick Crosland Hanson. O autor
acredita que uma obra que pretenda tratar acerca de Patrício deva investigar seu contexto na
Bretanha do século V. Hanson considera este ponto essencial, não pelo fato de Patrício
ser um bretão, mas porque o autor acredita que foi na Bretanha que Patrício aprendeu tudo
o que sabia sobre as doutrinas cristãs e os ensinamentos bíblicos que lhe eram ministrados
em latim. Hanson tenta então apontar os principais momentos da história da Bretanha do
66
século V e também explicar qual era a situação da Igreja bretã neste período. Isso ocupa o
autor nos dois primeiros capítulos de sua obra.
A seguir, Hanson (1968) faz uma crítica documental acerca dos textos que
encontramos sobre São Patrício. Ele divide os documentos que mencionam o nome do
santo irlandês em três categorias: 1) Os escritos do próprio Patrício; 2) Os manuscritos
tradicionais irlandeses que tratam de sua vida; 3) As menções feitas a ele nos Anais
irlandeses. A tese principal apresentada nesta parte é de que de todos estes textos, somente
dois são unanimemente reconhecidos como sendo de autoria de Patrício, sua confissão e a
carta que escreveu aos soldados de Coroticus. Além destas cartas, que são as que nos
interessam diretamente, alguns estudiosos como MacNeil, Bieler, Newport White, Meissner
e o próprio Bury mencionam também outros documentos, que, segundo eles, deveriam
figurar nesta categoria: Dicta Patricii; Lorica Patricii; Synodus II S. Patricii e outros
inúmeros textos atribuídos a São Patrício que podem ser localizados na Collectio
Canonum Hibernensis”. Todavia, Hanson, seguindo as indicações de Binchy, acredita que
não possuímos argumentos convincentes para aceitar que estas obras tenham sido escritas
por Patrício
41
. Segundo o autor, “a opinião dos especialistas mais eruditos em Irlanda antiga
é decididamente contra esta visão” e para isso eles se apóiam “em argumentos lingüísticos”
(Hanson, 1968: 75).
Na segunda categoria, Hanson diz que o principal e mais importante manuscrito é o
Livro de Armagh, escrito em 807 por um escriba chamado Ferdomnach. Este livro contém
documentos relatando os feitos de Patrício; o novo testamento na versão da vulgata; a vida
41
No início da pesquisa, foi este motivo que nos levou a selecionar a Confissão e a Carta aos soldados de
Coroticus como as obras que utilizaríamos. Com relação a outros textos, que supostamente teriam sido
escritos por Patrício, não acordo entre os estudiosos. Como vimos, uns acreditam que foram escritos pelo
próprio punho de Patrício (Bury, 1905), outros acham que não (Thompson, 1986), mas quanto a estas duas
cartas existe uma unanimidade no que diz respeito à veracidade das mesmas.
67
de São Martin escrita por Sulpicius Severus; e alguns diálogos também sobre São Martin
(Hanson, 1968: 75). Concernente à vida de São Patrício, o manuscrito apresenta a Vita
Patricii escrita por Muirchu Mocuu Machteni; uma outra vida de Patrício escrita por
Tirechan; uma narrativa chamada Líber Angeli” que se relaciona também a Patrício; uma
cópia da confissão; e dois hinos em homenagem a Patrício (Hanson, 1968:76). O autor
também diz que existem algumas vidas de Patrício escritas no século VIII e IX que foram
impressas em 1647 por Colgan em uma obra chamada Acta Sanctorum Hiberniae. Segundo
ele, estas informações também são mencionadas em outros documentos medievais e podem
ser verificadas na obra Codices Patriciani, em que Ludwig Bieler descreve as vidas de
Patrício escritas durante a Idade Média. Segundo o autor, todas estas obras se enquadram na
categoria de manuscritos tradicionais irlandeses que tratam de sua vida e da obra de São
Patrício (Hanson, 1968: 76-96).
Por fim, na terceira categoria de obras, Hanson nos apresenta uma série de menções
ao nome de Patrício nos Anais irlandeses. São vários nomes de lugares, datas de
acontecimentos ligados a Patrício e a história da Irlanda, menções a pessoas, etc. Foram
nestas informações que muitos historiadores se guiaram para construir uma história que
localizasse Patrício e o apresentasse em um contexto histórico datado. Hanson se detêm
apenas em mencionar alguns problemas que giram em torno destes textos. Em sua maioria,
eles abordam a tarefa de localizar Patrício no tempo e no espaço. Saber onde nasceu, onde
viveu, por onde passou, com quantos anos morreu, etc. Apesar de citar estes Anais
Irlandeses
42
, Hanson diz que “esta investigação seria uma tarefa para especialistas em
42
Hanson classifica os “Anais irlandeses” em seis grupos: 1) Anais do Ulster; 2) Chronicum Scottorum; 3) Os
Anais de Innisfallen; 4) Os Anais de Tigernach; 5) Os Anais de Clonmacnoise; e 6) Os Anais dos quatro
mestres (Hanson, 1968: 213).
68
estudos célticos antigos e não devemos nos ocupar disso nesta obra” (Hanson, 1968: 104).
Por este motivo, o autor não diz nada de substancial sobre a questão.
A partir destas investigações, Hanson escreve os capítulos finais de sua obra falando
acerca da “carreira de São Patrício como missionário na Irlanda”, “o contexto em que teria
vivido” e “as datas relacionadas a Patrício”. O autor começa tentando estabelecer que obra
foi escrita em primeiro lugar, a confissão ou a carta aos soldados de Coroticus. A seguir,
Hanson tenta encontrar respostas para várias dúvidas acerca do que Patrício menciona em
suas cartas, como aquelas questões que mencionamos, querelas que possuem mais de
treze séculos de história e que foram envolvidas em várias disputas pelos mais diversos
sentidos. A diferença é que Hanson tenta cumprir esta tarefa dando ênfase às obras escritas
pelo próprio Patrício e deixando os textos mencionados na segunda e terceira categoria em
segundo plano, apoiando-se neles somente quando não mais saídas. Somente no último
capítulo da obra é que Hanson recorre às referências encontradas nos manuscritos da
tradição irlandesa e aos Anais.
No capítulo final, Hanson inclui além destas referências, comparações com teorias
modernas sobre Patrício. Depois de feitas as análises de todos estes indícios, o autor conclui
que “Nós não podemos fornecer datas precisas para Patrício”. Segundo ele, podemos
dizer que nasceu em “algum ano entre 388 e 408”, “pode ter recebido sua educação antes
de 420” e que “seria legítimo conjecturar que ele nasceu por volta de 390”, foi seqüestrado
“próximo de 406”, “talvez tenha escapado em 412” e que voltou para a Irlanda como um
bispo “em algum ponto entre 425 e 435” e “pode ser que tenha morrido por volta de 460”
(Hanson, 1968: 188). Segundo Hanson, para nós é impossível “reconstruir” os movimentos
de Patrício na Irlanda. Este é o motivo pelo qual nós o podemos escrever uma vida de
São Patrício em nossos dias de maneira “tão freqüente” e que seja confiável” como foi
69
feito no passado” (Hanson, 1968: 197). Assim sendo, ele diz que podemos afirmar ou
negar algumas coisas. E ele diz que Patrício “provavelmente” não fez suas matrizes em
Armagh. Ele educou alguns filhos de chefes das comunidades locais para a vida monástica
e, “em alguma ocasião”, Patrício “pode ter viajado” com eles e “provavelmente” ele tenha
se fixado em algum ponto onde poderia estabelecer uma educação regular (Hanson, 1968:
197).
Estas considerações e conclusões feitas por Hanson podem ter levado o autor às
idéias que apresentou em sua obra St. Patrick: Confession, Lettre a Coroticus (1978).
Nela, Richard Patrick Crosland Hanson publicou as duas cartas de Patrício no original em
latim com uma versão para o francês. Nesta obra, ele apresenta alguns apontamentos sobre
São Patrício e também ricas informações sobre o seu latim. Hanson afirma que a
importância de Patrício é nos proporcionar um pouco de conhecimento, embora seja
“indireto e fortuito”, acerca da Irlanda do século V. Segundo o autor, nossos conhecimentos
acerca da Irlanda neste período são “raros e incertos” e nós podemos considerar Patrício
como uma “fonte de primeira mão” para o estudo da Irlanda e da Igreja do século V. Assim,
Patrício pode ser considerado um dos autores do corpus da literatura patrística e um dos
“raros autores bretões” deste período que podemos conhecer (Hanson, 1978: 54).
Sem dúvida alguma, Richard Patrick Crosland Hanson foi um dos autores que mais
contribuíram para os estudos acerca da vida e da obra de São Patrício. Thompson chega a
dizer que a primeira de suas obras sobre Patrício (1968) foi um “estudo compreensivo que
sustentou a área por mais de um ano” (Thompson, 1986: 177). Todavia, sua obra apresenta
problemas. Ele mesmo foi percebendo alguns destes problemas ao longo do tempo, tanto é
que, como mostramos acima, em sua segunda obra (1978), ele se preocupou em traduzir as
duas cartas de Patrício para o francês porque, ao nosso ver, passou a acreditar cada vez
70
mais que um estudo acerca da vida deste santo irlandês deveria levar em consideração as
cartas que são reconhecidas por unanimidade como tendo sido escritas pelo próprio Patrício,
deixando um pouco de lado os outros documentos ou recorrendo a eles em última instância.
Devemos lembrar que o olhar de Hanson é vinculado à teologia e aos estudos da história da
Igreja, talvez por este motivo ele veja Patrício, e amesmo o tenta incluir, entre os autores
do corpus da literatura patrística da Igreja no Ocidente.
Podemos perceber que mesmo tendo chegado a estas conclusões, isso não anula a
preocupação de Hanson com os contextos em que Patrício teria vivido, tanto na Irlanda,
quanto na Bretanha do século V. O autor parece acreditar que os escritores antigos e
medievais podiam escrever vidas de Patrício com mais freqüência pelo fato de estarem
“mais próximos” ao tempo em que ele viveu e, por este motivo, eles poderiam escrever
obras “mais confiáveis” sobre Patrício. No entanto, o próprio Hanson, apoiado em Binchy,
conclui que várias coisas que encontramos nos documentos posteriores ao século VII sobre
Patrício são indignas de crédito e distintas do que pode ter ocorrido no passado. Já
dissemos no início do capítulo que o nosso objetivo não é dizer qual representação do
passado é mais adequada. Estes apontamentos que fizemos servem para mostrar a
preocupação de Hanson com um contexto que ele mesmo conclui ser impreciso.
Assim, o que podemos observar é que Hanson tenta construir uma história dos
referentes que apresente um Patrício em seu contexto histórico tanto bretão quanto irlandês,
mas ele próprio é obrigado a reconhecer os problemas desta jornada. E desta maneira, o
autor tem que usar termos como: “algum ano entre...”; “pode ter recebido...”; “seria
legítimo conjecturar que...”; “pode ser que tenha morrido por volta de...”; Patrício
“provavelmente não fez suas matrizes em Armagh...” e outros que mencionamos acima. A
idéia de Hanson é que foi possível “reconstruir” o contexto em que Patrício viveu e que
71
isso não nos é possível mais porque não podemos estabelecer as datas precisas
concernentes à sua vida e também não podemos localizar seus movimentos na Irlanda.
Isso mostra que Hanson compartilha de uma idéia de representação acerca do
passado que acredita que se temos os documentos e temos “acesso aos acontecimentos” e
“as datas corretas”, nós podemos representar o passado em um texto de forma fidedigna,
ou seja, de forma “reconstruída”. Hanson só acha que devemos fazer isso a partir dos
próprios escritos do Patrício, na medida em que isso for possível, e não dos manuscritos da
tradição irlandesa e dos Anais irlandeses, nos apoiando nestes documentos que classificou
nas categorias “2” e “3” somente quando for extremamente necessário. A obra de Hanson,
em nossa opinião, abre caminho e fornece sugestões para fazermos várias interpretações
relacionadas aos enunciados de Patrício contidos em suas duas cartas, como por exemplo,
as reflexões de como, nos termos em que Hanson aponta, ERA o latim, os costumes e o
credo da Igreja Bretã do século V. Falaremos sobre isso no terceiro capítulo desta
dissertação, todavia, de um ponto de vista da representação entendida tal qual conceituamos
no primeiro capítulo.
A próxima obra que comentaremos é a de Edward Arthur Thompson (1986), um
classicista e historiador que trabalhava com antiguidade tardia, principalmente as relações
entre o Império Romano e os povos bárbaros. Thompson nasceu em Waterford na Irlanda
em 1914 e morreu em 1994. Foi professor de estudos clássicos na Universidade de
Nottingham de 1948 até 1979 e deu aulas como visitante nos Estados Unidos nas
universidades de Michigan e Wisconsin. Em 1964 ele foi eleito um amigo da British
Academy. Publicou seu primeiro livro em 1947 sobre a vida de Ammianus Marcellinus. Seu
segundo livro foi acerca de Átila e os hunos. Entre suas obras mais importantes estão
72
Romans and barbarians the decline of the western empire (1982); Visigoths in the Time of
Ulfila (1966) e a obra que comentamos aqui Who was Saint Patrick? (1986).
Em sua análise, Thompson nos apresenta vários detalhes da vida de São Patrício e a
Irlanda do século V. Ele mostra que São Patrício não foi o primeiro missionário da Irlanda,
que ele obviamente não foi o santo fazedor de milagres ou ainda quem expulsou as
serpentes da Irlanda, como aparece em alguns textos irlandeses. O Patrício apresentado por
Thompson em sua obra (1986) foi o primeiro missionário a ultrapassar a fronteira do
Império Romano do Ocidente para cristianizar os povos que eram considerados bárbaros
pelos romanos. O autor fala da vida de Patrício acompanhando as etapas descritas pelo
próprio Patrício em sua Confissão. Assim, ele menciona em primeiro lugar o nascimento de
Patrício e sua vida na Bretanha. Depois fala de seu rapto e escravidão.
Em seguida, Thompson menciona a fuga de Patrício da Irlanda, sua segunda
escravidão e diversas especulações que existem em torno destes fatos. O terceiro capítulo
da obra de Thompson é dedicado a tentar compreender os fatos relacionados ao período em
que Patrício esteve junto de seus familiares na Bretanha após ter sido escravo na Irlanda e
como ele tomou a decisão de voltar pra com o objetivo de divulgar as idéias do
cristianismo. No quarto capítulo, Thompson fala do cristianismo entre os bárbaros do norte
da Europa, entre os quais estão inclusos os celtas irlandeses. A seguir, o autor questiona os
fatos relacionados ao apontamento de Patrício como um bispo e os problemas que existem
em torno de sua narrativa. Os últimos capítulos da obra de Edward Thompson apresentam
reflexões sobre as cartas de Patrício.
Segundo Thompson, Patrício é o único bretão que viveu no tempo do Império
Romano que podemos saber alguns fatos significativos sobre sua personalidade (Thompson,
1986: 11). Suas cartas são os únicos textos escritos em latim fora da fronteira imperial que
73
nos restaram desta época. Assim, Thompson segue as cartas de Patrício em suas
interpretações. Ele acredita que todas as vidas de São Patrício, os Anais irlandeses e todos
os outros documentos escritos após sua morte não dizem nada que não possamos saber dos
próprios escritos de Patrício (Thompson, 1986:13). Assim sendo, ele vai contra as teses
defendidas por Bury, o primeiro autor que apresentamos. Segundo Thompson, nós não
sabemos quando a Irlanda foi convertida. O fato é que quando Patrício chegou já havia
cristãos e mesmo após sua morte, após ter passado toda sua vida na Irlanda divulgando
princípios cristãos, o território ainda era quase que totalmente pagão, tendo apenas alguns
sinais de presença do cristianismo (Thompson, 1986: 88).
Patrício não teve tanta importância em sua época ou pelo menos esta importância
não foi reconhecida por seus contemporâneos. Durante a vida de Patrício os homens não o
reconheceram e mesmo após sua morte, por um espaço de cem anos, nada se falou sobre ele.
Ninguém o mencionou neste período como um organizador do cristianismo irlandês, como
um pregador ou como o introdutor do cristianismo na ilha. Talvez suas cartas tenham sido
preservadas por mero acaso, um acidente e somente quando foram descobertas é que
começaram a falar da vida de Patrício. Segundo o autor, se Patrício nunca tivesse sido pego
por piratas e ido para a Irlanda pregar o cristianismo aos irlandeses e depois tivesse escrito
suas cartas, provavelmente nunca ouviríamos seu nome. Thompson sustenta, então, como já
mencionamos na Introdução, que a maior contribuição de Patrício não foi converter
milhares de irlandeses, mas escrever a sua confissão e a carta que pretendia que alcançasse
Coroticus e se não tivesse escrito estes dois textos e os mesmos não tivessem chegado até
nós, seu nome não seria nem conhecido (Thompson, 1986: 156- 157).
Edward Arthur Thompson (1986: 65) diz que sabemos pouco sobre os métodos que
os cristãos usaram para difundir sua dentro do Império e quando o assunto são os rumos
74
que o cristianismo tomou fora dos limites da fronteira do Império Romano é uma “obscura”
e “tentadora” parte da “história romana”. É uma tarefa impossível ver Patrício em seu
contexto social. Tanto na Bretanha, quanto na Irlanda, seu contexto está
“irremediavelmente” perdido. Não temos como saber também como sua vida e suas
atividades foram percebidas por outros grupos. Assim, Patrício existe em um “vacuum”
quando o assunto é a Irlanda e também está isolado” quando tentamos vê-lo em seu
contexto bretão, porque não temos outros autores bretões para nos dar “uma luz” sobre o
assunto em questão (Thompson, 1986: 152). Thompson ressalta que Patrício não menciona
nada sobre Pelágio e sobre o pelagianismo. o diz nada sobre Diocleciano, sobre o caos
britânico do século V e as invasões saxônicas, não nos informa sobre o saque dos visigodos
a Roma em 410 e nem sobre outros fatos que consideramos significativos e que lhe são
contemporâneos (Thompson, 1986: 154).
A obra de Thompson leva no título uma pergunta: Quem foi são Patrício? E ele a
responde ao longo de 175 páginas, debatendo com vários historiadores que trataram do
mesmo tema, incluindo os que citamos neste tópico. A síntese da resposta que Thompson
elabora em sua obra é que Patrício foi um homem que nasceu na Bretanha no fim do quarto
século, e que, apesar de ser filho de religiosos e educado segundo os princípios cristãos,
viveu de forma rebelde à fé de seus pais até a idade de dezesseis anos quando foi
seqüestrado por piratas e vendido como escravo na Irlanda. Após isso, conseguiu fugir e
mais tarde voltou para a ilha para fazer o que nenhum bispo católico tinha feito antes dele,
que foi ir para terras bárbaras divulgar o cristianismo. Thompson acredita que não razão
para acreditarmos que Patrício tenha introduzido o monasticismo na Irlanda e nem que
tenha sido um monge (1986: 94). Patrício morreu no fim do século V em uma Irlanda ainda
quase totalmente pagã e não foi lembrado por ninguém até suas cartas serem, talvez por
75
obra do destino, encontradas mais de cem anos depois de sua morte. Desta maneira, o Santo
dos irlandeses é um bretão, o único que podemos saber sobre sua personalidade de forma
significativa e foi importante não por ter cristianizado parte da Irlanda, mas simplesmente
porque o contexto em que teria vivido está perdido para sempre, de modo que usando textos,
só podemos saber sobre a Irlanda e a Bretanha do século V por meio de suas cartas
(Thompson, 1986).
Com esta obra de Thompson, finalmente podemos ler alguém admitindo que o
contexto da Irlanda e Bretanha do século V está perdido para nós. Ainda assim, o autor
passa toda sua obra discutindo com as teorias de outros estudiosos da vida de São Patrício
quanto aos referentes. Da página 26 até a 31, por exemplo, Thompson discute com Bieler,
Bury e MacNeill, se Patrício teria ido à Gália e onde teria passado os vinte e oito dias que
ele menciona em sua Confissão. Por fim, Thompson afirma que Patrício teria sim
desembarcado na Gália. Os argumentos que ele sustenta apresentam as mesmas situações
hipotéticas que demonstramos acima quando comentamos a obra de Hanson (Thompson,
1986: 26).
Este tipo de argumentação não pode, ao nosso ver, ser chamada de inferência. Ela é
de ordem distinta do tipo de inferência que Hayden White menciona em seu artigo A
interpretação na história”. Segundo o exemplo fornecido por este autor, se nós sabemos
que Júlio César em uma determinada época esteve na Gália e em outra época posterior ele
esteve em Roma, nós podemos, a partir destes dois fatos, inferir de forma legítima que
César tem que ter ficado entre estes dois lugares no intervalo entre estas duas épocas
(White, 2001:76). O autor ainda concorda e cita Collingwood, que diz que sem este tipo de
inferência “nenhuma narrativa histórica pode ser produzida” e que ele chama estas
referências de “imaginação construtiva” (White, 2001: 76). O tipo de argumento que
76
Thompson usa não permite inferirmos e afirmarmos com segurança que Patrício esteve na
Gália. poderemos fazer isso se concordarmos e imaginarmos o mesmo tipo de situação
que o autor imagina. Já no exemplo de White, se trata de uma argumentação que não
permite que dela discordemos. Pois se em uma determinada época A estava em B e em
outra época, posterior a essa, A estava em C, logo, neste intervalo, A tem que ter estado,
necessariamente, em algum lugar e tempo entre B e C.
O fato é que Thompson, apesar destas tentativas e argumentações a favor dos
contextos, pede uma espécie de desculpas e fica tentando se justificar por não poder
localizar o contexto em que Patrício teria vivido na Bretanha e na Irlanda do século V. Ele
tenta mostrar para seus leitores que o fato de não sabermos onde fica Bannaven Taburniae,
local em que Patrício nasceu, não diminui em nada a vida dele e tenta nos convencer de que
não faz tanta diferença assim sabermos onde é que Patrício nasceu e para isso cita o
argumento de que não era costume no século V se registrar o lugar de nascimento das
pessoas. Thompson chega a perguntar se nós estimaríamos mais a carreira de Júlio César e
seu significado seria mudado se soubéssemos com certeza o ano e o lugar de seu
nascimento ou se nós estimaríamos mais a Ilíada ou nossa admiração sublime por ela seria
evaporada se soubéssemos onde e quando Homero nasceu (Thompson, 1986: 13).
Thompson apresenta a preocupação e tenta saber o porquê de Patrício não
mencionar determinados fatos que ocorreram mais ou menos em sua época. O autor
comenta, por exemplo, que Patrício não diz nada sobre o saque dos visigodos a Roma em
410. Talvez este ataque tenha sido importante apenas se levarmos em consideração uma
história do Império Romano e de suas crises. Este ataque foi considerado por Agostinho de
77
Hipona em sua obra Cidade de Deus
43
, em que ele lamenta a “queda da cidade eterna” e
tenta isentar o cristianismo de qualquer culpa. Pode ser que isso tenha afetado Agostinho
pela sua proximidade com o evento e também por sua necessidade de fazer uma defesa do
cristianismo. Patrício não tem nada a ver com o ataque dos visigodos em Roma em 410.
Por que teria? Se Hanson está correto e também o próprio Thompson em suas tentativas de
contextualizar Patrício na Bretanha e que teria nascido no fim do quarto século, ele
estava acostumado então com ataques de povos que considerava bárbaros, scotos, pictos,
saxões etc. Por que Patrício deveria se importar com um ataque a Roma? Ele pelo menos
soube disso? Se ele soube por que não disse nada?
Escolhemos este exemplo, mas outros na obra de Thompson que poderíamos
comentar. Por que Patrício deveria conhecer Diocleciano depois que estava na Irlanda
vivendo entre bárbaros, que tinham poucas ligações com o Império Romano? Por que ele
deveria mencionar o pelagianismo? E isso vale para outras questões também. Assim,
acreditamos que Thompson está pensando nas grandes formas explicativas do passado e
continua vendo um mundo que gira em torno de Roma e do Império Romano. Tanto é que
quando tenta encontra um papel para Patrício e afirmar-lhe alguma importância que não
seja a de cristianizar irlandeses, Thompson localiza Patrício como “o primeiro missionário
a deixar o Império Romano e...”, como citamos neste mesmo capítulo mais acima.
Quando falamos de Bury, e a tentamos lhe entender no contexto em que ele viveu,
dizíamos que ele apresentava uma idéia de romanização muito rígida. Aqui, Thompson
parece compartilhar de formas semelhantes de raciocínio, pelo menos na obra em questão,
43
Cidade de Deus (De civitate Dei contra paganos) compreende 22 livros. Trata-se de uma resposta de
Agostinho aos habitantes pagãos de Roma, a “cidade eterna”. A invasão e pilhagem de Roma por Alarico,
líder dos Visigodos, em 410, levantou uma revolta entre os romanos que não eram cristãos. Para eles, a
invasão bárbara era uma resposta dos deuses pagãos pelo abandono de seu culto pelo povo. Agostinho escreve
combatendo esta idéia (Agostinho, 2003).
78
que data de 1986. Estamos certos de que pelo menos um problema há na obra de Thompson,
o de pensar ou pelo menos sugerir que estas formas, nomenclaturas e padrões de análise
que se tornaram clássicos na historiografia do ocidente, como “o pelagianismo”, “o saque
de Roma pelos visigodos em 410”, “Diocleciano e os governos imperiais” deveriam ser
mencionados por Patrício.
Edward Arthur Thompson é o autor que vai mais longe nestas investigações e
tentativas de estabelecer a construção de contextos e escrever uma história dos referentes.
Apesar dele discutir com vários autores sobre diversos pontos e apresentar argumentos para
tentar situar inúmeras partes da vida de Patrício em seu contexto irlandês e bretão no século
V, ele admite que localizar este contexto é algo que não é possível de ser realizado e que
devemos aceitar que ambos os contextos sociais em que Patrício teria vivido estão perdidos
de forma irremediável. Por este motivo, Thompson é classificado por nós no segundo grupo
de autores que mencionamos, pois ele discorda das teses que afirmam que Patrício foi
importante, para dizer em termos gerais, por ter cristianizado milhares de Irlandeses. No
entanto, ainda apresenta a tentativa de localizar um contexto para Patrício e “lamenta” o
fato dele não citar alguns “acontecimentos” do século V da era cristã.
79
2.4) UMA POSSÍVEL HISTÓRIA DOS REFERENTES:
PATRÍCIO, A BRETANHA E A IRLANDA CELTA DO
SÉCULO V.
outros autores que mereceriam que nós os mencionássemos e que suas obras
fossem comentadas nesta dissertação, no entanto, por questões de limitação, escolhemos
estes que citamos pelo fato de sintetizarem como os estudos acerca da vida e da obra de São
Patrício foram sendo pensados ao longo do século XX. No que diz respeito as principais
teses encontradas nestas obras, notamos que talvez em Hanson possamos perceber melhor
estas mudanças, pois em sua primeira obra sobre São Patrício (1968), ele parece bem mais
próximo das idéias de Bury, embora discorde em vários pontos, se apoiando na obra de
Binchy. Já em sua segunda obra (1978), ele está bem mais próximo das teses que mais tarde
serão defendidas por Thompson (1986).
Nós acreditamos que, em grande medida, esta necessidade de estabelecer, ordenar e
localizar referentes possui relação com questões de identidade. Não estamos falando de
identidades epistemológicas apenas e de questões que estão relacionadas com as discussões
acerca da possibilidade da história ser ou não uma ciência, ter ou não um estatuto literário,
apresentar ou não ficções em suas elaborações narrativas etc. Nosso questionamento aqui é
sobre identidades religiosas e étnicas. O que está em disputa é se Patrício é ou não um
bretão
44
, é se ele esteve ou não na Gália e questões desta natureza. No final das contas,
44
Pelo que foi exposto aqui ficou claro que concordamos que sim, São Patrício, o padroeiro dos irlandeses, é
na verdade um bretão. Mas existem afirmações de que Bannaven Taburniae ficava na Escócia. A maior parte
dos autores, no entanto, aceitam, o que para nós é óbvio, ou seja, o fato de Patrício ser um bretão, mas o
enfatizam bem mais em seu contexto irlandês. Ver esta discussão em Thompson (1986). E desde a Vita
Patricii de Muirchu, o nome de Patrício é usado para resolver questões identitárias. No caso de Muirchu a
questão envolve Armagh. O ápice deste exemplo é o Saint Patrick’s Day que é celebrado todo ano no dia 17
80
uma enorme disputa entre protestantes e católicos em torno do nome de Patrício. Os
primeiros
45
, dizem que a reforma protestante e as idéias que foram apresentadas pelos
reformadores são uma correção dos vícios e dos erros do cristianismo e são, desta maneira,
um “retorno” aos caminhos ensinados por Patrício. Já os segundos
46
, dizem que Patrício era
um católico, apesar dele não fazer nenhuma referência a Roma, à Igreja romana, ao nome
de qualquer sacerdote romano ou tentar estabelecer qualquer vínculo desta natureza. Para
esta segunda opinião, é interessante que se saiba se Patrício esteve ou não na Gália, se foi
ou não enviado por algum “Papa” para a Irlanda ou se pelo menos ele esteve em Roma.
Nós não pretendemos discutir se uma história dos referentes é ou não necessária e
em que medida ela tem valia. Nós preferimos estudar as cartas de São Patrício e analisá-las
a partir de outras perspectivas. Como vimos, com todos os problemas que encontramos no
que diz respeito à vida e a obra de São Patrício, uma história dos referentes é possível. É
isso que é feito na historiografia que mencionamos neste capítulo. Um esboço de como isso
se torna viável também foi realizado por nós nos dois primeiros tópicos desta parte da
dissertação. No entanto, nosso objetivo é diferente. Pretendemos compreender as
representações que Patrício fez do mundo que ele viu.
Nosso objetivo foi cumprido se o leitor tiver conseguido, ao longo da leitura deste
capítulo, perceber em que sentido é possível uma história dos referentes quando o assunto é
a Bretanha e a Irlanda do século V, no que diz respeito ao contexto em que Patrício teria
de março no mundo inteiro.
São Patrício se tornou um herói, na visão de alguns, e é descrito quase sempre
como “O santo dos irlandeses”. John Ryan, por exemplo, o menciona como alguém que morreu, mas viveu na
memória popular como uma grande figura nacional, em companhia de heróis e reis (Ryan, apud: Thompson,
1986: 158).
45
O arcebispo Ussher no século XVII tentou estabelecer a tese de que o protestantismo fosse um retorno ao
caminho de Patrício, tamanha a semelhança das doutrinas (O’Mathúna, 1992:19). Um exemplo atual destas
tentativas é L.K. Landis, disponível em: [ http://www.carmichaelbaptist.org/Sermons/landis1.htm ]. Acesso
em 5 de Dezembro de 2007.
46
Ver os versículos 15, 16 e 17 da Vita Patricii de Muirchu Maccu Machteni, por exemplo.
81
vivido e os problemas nos quais esta maneira de pensar a História está envolvida quando o
tema é este que está em questão. Esperamos ter identificado os principais fatos
reivindicados por este tipo de narrativa histórica concernente à vida de Patrício e sua
carreira missionária na Irlanda. Também sentimos que nosso dever foi realizado se o leitor
conseguiu, compreender, quais são, em nossa opinião, os principais problemas que
podemos encontrar nesta historiografia que estuda a vida do santo irlandês com o intuito de
identificar o contexto histórico, tanto na Bretanha, quanto na Irlanda, em que ele teria
vivido. Pensando nestes termos, podemos partir para o capítulo final desta dissertação em
que apresentamos uma análise das cartas de São Patrício, tentando identificar uma imagem
que ele construiu da cristianização da Irlanda celta do século V, por meio das várias
representações que fez do mundo empírico, que observou a partir de seus sentidos.
82
CAPÍTULO 3
AS CARTAS DE PATRÍCIO E AS
REPRESENTAÇÕES DA CRISTIANIZAÇÃO DA
IRLANDA CELTA DO SÉCULO V.
atrício, em nossa opinião, construiu por meio de várias representações que fez
ao longo da Confissão e Carta aos soldados de Coroticus uma imagem da
cristianização da Irlanda celta do século V. Neste capítulo final, analisamos
estas duas cartas, os únicos documentos escritos que possuímos da Irlanda neste período,
tentando perceber como ele elaborou esta construção. Patrício grafou algumas das
vivências significativas que teve durante o tempo que se dedicou a difundir as idéias do
cristianismo na Irlanda. Seu objetivo era resolver algumas questões que lhe importunavam
no momento em que as cartas foram escritas. Sua confissão é uma defesa das acusações de
que teria ido para a Irlanda para enriquecer; a carta que escreveu aos soldados de Coroticus
é uma ameaça, um decreto de ex-comunhão. Nela, Patrício censura o chefe bretão pelos
seus atos e descrevendo-lhe como serão suas penas no inferno caso prossiga agindo desta
maneira, tenta fazer com que se arrependa e pare de perseguir os cristãos irlandeses que
eram seus discípulos.
Embora possamos ler diversas informações acerca de sua personalidade nas duas
cartas que escreveu, de maneira alguma podemos interpretá-las como uma tentativa de
autobiografia. Patrício não tinha intenção de escrever sobre sua própria vida registrando-a
P
83
para qualquer que seja a finalidade. Tanto na Confissão quanto na Carta aos soldados de
Coroticus, ele faz uma justificação de suas ações e elabora considerações sobre vários
aspectos e episódios da sua vida, mas o que ele imaginava era resolver estes entraves que
mencionamos acima, ou seja, problemas específicos que lhe ocorreram em determinada
época.
“Eis que reiteradamente tenho relatado as palavras da minha
confissão. Eu testifico na verdade e na exultação do meu
coração perante Deus e seus santos anjos que tive apenas um
motivo, o evangelho e suas promessas, para voltar àquela
nação, da qual havia previamente escapado com dificuldade”.
(Confissão 61).
Os 62 versículos que constituem a Confissão de São Patrício foram escritos em
latim próximo ao fim de sua vida. Nesta carta, ele começa se apresentando, fala sobre como
foi parar na Irlanda raptado por piratas e narra sua conversão na época em que era um
escravo. A seguir, Patrício fala sobre suas crenças e nos descreve uma espécie de credo
religioso. Depois, ele explica porque queria ir para a Irlanda e de onde ele tirou a idéia de
que Deus o tinha escolhido para este trabalho. Em um próximo momento, Patrício aborda
sua defeituosa educação e apresenta os motivos para isso. Para concluir a carta, ele
descreve algumas situações sobre sua obra missionária na Irlanda e faz algumas reflexões
sobre as coisas que realizou lá. Assim, a Confissão pode ser considerada como um
comentário em geral do mundo no tempo do escritor, acredita Thompson (1986: 105).
84
A Carta aos soldados de Coroticus é menor em extensão, ela tem 21 versículos.
autores, como é o caso do próprio Thompson (1986:12), que defendem com base em
argumentos lingüísticos que ela foi escrita antes da Confissão. Neste texto, Patrício começa
dizendo que, apesar de ser um bispo, é um pecador e ignorante. Ele diz que abandonou sua
pátria e família para ir para a Irlanda ensinar aos gentis. Após isso, apresenta o motivo pelo
qual teria escrito a carta, ou seja, para que as palavras contidas nela fossem transmitidas e
enviadas aos soldados de Coroticus. Patrício explica qual era a situação que estava lhe
ocorrendo e qual eram os entraves entre ele e Coroticus e faz recomendações para que
nenhum cristão tome parte com este homem ou sequer ande na companhia de seus soldados.
O autor também menciona os povos chamados de pictos e nos apresenta uma visão sobre
eles. Patrício se mostra aflito e preocupado com o rapto e a morte de alguns cristãos que
eram seus discípulos. Por fim, ele pede que nada desta carta seja suprimido ou escondido,
mas que ela seja levada a todos e lida na presença do próprio Coroticus para que este se
sensibilize e liberte os cristãos que foram por ele aprisionados.
Aceitamos que a interpretação é um ato de violência contra o texto, concordando
com Luís Costa Lima (1989: 74), como mencionamos anteriormente neste trabalho.
Todavia, levamos também em consideração que um texto pode ter vários sentidos, mas que
não podemos a partir desta questão, inferir que ele possa ter qualquer sentido, como nos
mostra Umberto Eco (1997). Deste modo, acreditamos que um texto não é
“indefinidamente abertoe que suas interpretações o são “infinitas”. Seguindo ainda as
indicações de Eco, acreditamos que deve haver uma aceitabilidade mínima de uma
interpretação na base de um consenso da comunidade. Assim, interpretar significa emitir
uma conjectura possível sobre a intenção da obra, tomando o texto como um “todo
orgânico”. De forma alguma pretendemos desrespeitar a coerência do texto, indo, em nosso
85
caso, contra os critérios e os sistemas lexicais das cartas de Patrício, de forma que nossa
dissertação se torne incapaz de ser confrontada com todas as interpretações anteriores sobre
elas. A isso, Umberto Eco chamaria superinterpretação. Em última instância, nós não
podemos dizer qualquer coisa, não podemos atribuir às cartas de Patrício qualquer sentido
em função de nossos desejos. Nós estamos situados em uma comunidade interpretativa que
produz significados de forma pública e convencional (Rabernhorst, 2002: 9-16; Eco, 1997).
Nós sabemos das diferenças que existem entre as duas cartas que Patrício escreveu e
que elas foram produzidas em momentos distintos de sua vida e para responder perguntas
diferentes. Todavia, acreditamos que podemos tomá-las como o conjunto dos escritos de
Patrício. Somos conscientes de que existem estudos que apontam as variabilidades de
significações, mudanças gramaticais, reutilização de sentenças e várias outras questões que
envolvem as diferenças entre as duas cartas e problemas acerca do latim de São Patrício
47
.
No entanto, acreditamos que existem certas unidades de conteúdo em suas cartas e estas
unidades dependem, em linhas gerais, de um léxico do discurso do cristianismo. Os
sintagmas que ele usa são os do missionário: converter pessoas, ensinar a palavra de Deus,
exaltar ao Senhor, acreditar, admoestar, orar, testemunhar, pregar o evangelho, sofrer
perseguições, etc. Por este motivo, observamos as representações que Patrício fez acerca
das vivências que teve e do mundo que viu diante de si de forma sistemática a partir das
duas cartas que escreveu. Desta maneira, a seguir, nós começamos a abordá-las em
conjunto e não de forma separada. Ao longo deste capítulo, refletiremos, então, sobre estas
várias representações que ele fez dos muitos aspectos que presenciou durante sua vida
como missionário na Irlanda, classificando-as em tópicos e é desta forma que elas serão
47
Ver “Le latin de Patrick” in: Hanson (1978:155-163); “A linguist’s View of St Patrick: Remarks on a
Recent Study of St Patrick’s Latinity”, Eigse 10 (1961-3) 149-52 por Ludwig Bieler; e Morsmann, Christine.
“The Latim of St Patrick” (Dublin, 1961).
86
analisadas por nós. Por fim, em uma tentativa de síntese do que foi dito em cada tópico,
apresentaremos a hipótese central desta dissertação e nossa sugestão de como, a partir
destas representações, Patrício construiu uma imagem acerca da cristianização da Irlanda
Celta do século V.
3.1) PATRÍCIO POR ELE MESMO.
Em diversos momentos, Patrício representa a si mesmo em suas cartas. Nosso
intuito aqui é apresentar algumas reflexões sobre estes trechos em que ele está falando
acerca dele mesmo de modo que possamos perceber qual é a imagem que Patrício passa
acerca de sua própria pessoa. Como explica Ruty Amossy, mesmo sem querer, o autor de
um texto constrói nele uma imagem de si. Nem é necessário que o escritor faça um auto-
retrato ou mesmo que fale explicitamente acerca de si, diz a autora, suas competências
linguísticas e suas crenças implícitas já são suficientes para construir uma representação de
sua pessoa (Amossy, 2005: 9). Este não é o caso de Patrício. Em suas cartas, construir uma
imagem de si mesmo, representar-se por meio de palavras, significa uma opção discursiva
que ele faz. Para responder aos questionamentos que lhe foram feitos e justificar-se perante
as acusações, Patrício fala acerca de si como uma estratégia retórica. As representações que
ele faz acerca de sua pessoa são, ao nosso ver, um argumento que contribui com sua tese
principal de que foi Deus quem o enviou para Irlanda e assim sendo, ele não foi para lá para
ganhar dinheiro. Janet Huskinson (2000:5) nos mostra que existia uma diversidade cultural
dentro do Império Romano e uma complexa relação política, cultural e administrativa entre
87
Roma e as províncias. Por este motivo devemos ter o cuidado, ao estudar qualquer
personagem que tenha vivido sob estas circunstâncias, como é o caso de Patrício, de levar
em consideração o que o autor fala de si mesmo, como define sua sociedade e seus
costumes. Pois se por um lado, Patrício era um cidadão romano, por outro, não podemos
esquecer jamais de que ele era um bretão.
O fato de Patrício falar de si mesmo e descrever vários aspectos de sua vida em suas
cartas nos leva a perguntar: seria sua Confissão uma biografia? Um projeto autobiográfico?
Na tipologia das abordagens biográficas, produzida por Giovanni Levi (1996), podemos
observar que as biografias possuem várias utilidades para os historiadores, por exemplo, a
possibilidade de por meio delas, esclarecer contextos. Assim sendo, caso concordássemos
com estas alternativas em torno da obra de Patrício e respondêssemos afirmativamente as
estas questões, um flanco de discussões estaria aberto em torno da questão da biografia. No
entanto, a Confissão de Patrício não é uma biografia que ele faz de si mesmo. E nem tão
pouco a sua Carta aos soldados de Coroticus pretende ser algo parecido. As cartas de
Patrício não são como a Vida de Apolônio de Tyana, escrita por Filóstrato, e outras
biografias oriundas do mundo antigo (Cox, 1983). Patrício pretende resolver problemas que
lhe afetam diretamente, como a acusação de que teria ido pra Irlanda enriquecer-se ou os
ataques de Coroticus. A leitura de suas duas obras em conjunto nos permite afirmar que
tanto a Confissão quanto a Carta aos soldados de Coroticus foram escritas tendo como
objetivo resolver estes problemas específicos. Assim, Patrício fala de si mesmo como uma
estratégia retórica e não uma tentativa de construir uma biografia ou registrar para a
posteridade a história de sua vida.
Logo no início de sua Confissão, Patrício já apresenta algumas caracterizações
sobre sua pessoa. Ele começa esta carta dizendo que é um pecador, talvez o mais rústico
88
entre todos os fiéis, pequeno diante de Deus, se considera insignificante, ignorante e
imperfeito em muitas coisas. Ele se mostra fazendo uso destes adjetivos pejorativos, mas
que, em se tratando de defender o relacionamento que ele diz ter com Deus e suas intenções
bondosas, podem ser entendidos como fortalecedores da imagem que ele pretende passar.
Todavia, autores (O’Mathúna, 1992:10) que acreditam em uma sinceridade
48
de Patrício
e que toda esta humildade, rebaixamento moral e espiritual podem ser resultados do trauma
da escravidão. Vejamos, então, o primeiro versículo de sua Confissão e a forma como ele
começa seu discurso em que defenderá sua posição de missionário na Irlanda:
“Eu, Patrício, um pecador
49
, o mais rústico e o menor entre
todos os fiéis, profundamente desprezível para muitos... Eu
ignorava o verdadeiro Deus e junto com milhares de pessoas fui
capturado e conduzido ao cativeiro na Irlanda segundo o nosso
merecimento, por afastarmos-nos bastante de Deus, não
guardamos os seus preceitos, nem sermos obedientes aos nossos
sacerdotes, que nos exortavam a respeito da nossa salvação. E o
Senhor lançou sobre s a violência de sua cólera e nos dispersou
entre vários povos até os confins da terra, onde agora na minha
pequenez, me encontro entre estrangeiros”. (Confissão, 1).
48
Nos interessa a maneira como Patrício se representa e não se está dizendo a verdade.
49
Grifo nosso. As palavras que estão em negrito sintetizam a idéia que Patrício pretende passar aos leitores de
suas cartas.
89
A partir do trecho acima, percebemos que Patrício se representa como
alguém que acredita em uma idéia de punição divina
50
. É isto que Patrício quer dizer com
“nosso merecimento”. Para compreendermos isto melhor é necessário estabelecer uma
diferença entre punição e provação. A primeira palavra é a que se aplica melhor ao discurso
de Patrício. Segundo o que nos diz, Deus fez com que ele fosse raptado por piratas e
disperso entre pessoas estrangeiras até os confins da terra. Foi dessa forma que Patrício
esteve na Irlanda pela primeira vez. O fato de ter sido enviado a um país estrangeiro, ter sua
língua vertida em outra, passar fome e frio está relacionado à sua desobediência. Patrício
estabelece uma relação de troca. Ele se representa crente que foi punido pelo fato de ter se
afastado de Deus. Podemos interpretar este discurso pelo menos de duas maneiras: 1)
Patrício acreditava que se tivesse guardado os preceitos divinos não seria punido, pois não
haveria de merecer a pena. Assim, o fato de ter sido levado para Irlanda deu-se
exclusivamente pela sua desobediência, trata-se de uma punição; 2) ele está usando este
argumento para corroborar sua idéia de que era um miserável pecador e na Irlanda ele se
converteu e foi escolhido por Deus para trabalhar como missionário junto aos irlandeses. Se
admitirmos a primeira opção, Patrício está dizendo a verdade e de fato acreditava que sua
ida pra Irlanda como escravo era uma punição divina; se, por outro lado, ficamos com a
segunda alternativa, ele mente e fala nestes termos apenas para se defender das acusações
que lhe estavam fazendo.
Nosso interesse é identificar o modo como Patrício se representa e constrói uma
imagem acerca de si, independentemente de estar falando a verdade ou não. Ele deseja ser
50
No tópico “As crenças de Patrício” relacionamos esta idéia com o conceito de graça e de conversão em
Patrício.
90
visto sob certas perspectivas pelos seus leitores, interessa-lhe que esse discurso da
humildade e da vocação seja aceito. Assim sendo, nesta dissertação procuramos não
apresentar juízos acerca da sinceridade ou negligência da verdade por parte de Patrício.
Neste sentido, discordamos de Thompson
51
. De acordo com os interesses que
apresentamos nesta dissertação, desenvolvemos interpretações acerca da primeira
possibilidade, ou seja, a idéia de que estava sendo punido. Não pelo fato de que desta
maneira Patrício estaria dizendo a verdade, mas porque esta é a representação que constrói
acerca de si mesmo e é desta forma que ele deseja ser visto.
Como dissemos, esta idéia de punição difere da de provação. O exemplo clássico
de provação é o personagem Jó da narrativa bíblica. No caso do mito de Jó, ele não merecia
ser punido, provado, tentado ou qualquer coisa do tipo, pois era irrepreensível. Assim sendo,
Deus mesmo não o provou, mas permitiu que Satanás o fizesse. A continuação desta
narrativa descreve seu personagem principal caindo em várias desgraças, foi tentado e
humilhado de todas as formas, porém permaneceu fiel a Deus e Satanás não foi capaz de
fazê-lo desviar-se dos seus objetivos e crenças. Neste caso, temos a idéia de provação e não
de punição e mesmo assim não é Deus o provador e sim Satanás. O máximo que pode ser
atribuído a Deus é o papel de cúmplice por permitir a provação de Jó.
Quando Patrício diz: “segundo o nosso merecimento”; “por não guardarmos”;
“afastarmos-nos”; e “não sermos obedientes”, Ele nos cria uma outra dificuldade de
interpretação. Como ele poderia saber acerca da crença das outras pessoas que foram
raptadas com ele? Eram todos pagãos? Eram cristãos? O fato é que neste trecho podemos
51
Edward Arthur Thompson profere vários destes juízos acerca da veracidade das representações de Patrício:
“O fato é que Patrício parece ter distorcido a verdade aqui. Possivelmente por ser descuidado, mas certamente
não tentou, conscientemente, nos induzir ao erro (Thompson: 1986, 4); “Patrício sonhou mesmos ou
inventou que sonhou para justificar sua ida para Irlanda? A obscuridade dos seus sonhos é uma boa razão para
acreditar que eles eram genuínos” (Thompson: 1986, 50); “A possibilidade de que ele pudesse
conscientemente nos enganar está fora de questão, é uma impossibilidade” (Thompson: 1986, 145).
91
notar duas claras generalizações. A primeira é numérica. Segundo Patrício, junto com ele
foram raptadas milhares de pessoas. Sua intenção aqui não é dizer com exatidão quantas
pessoas entraram naquele navio com ele, mas sim, dizer que era um grande número.
Devemos lembrar que trata-se de uma argumentação perante seus acusadores na qual ele
tenta mostrar que foi pra Irlanda por vocação e que foi chamado por Deus. Dentre os
artifícios de convencimento usados está esta menção das pessoas que estavam com ele
naquele dia. A idéia que Patrício pretende passar é a de que ele era somente um entre
muitos. Ele era apenas mais um pecador miserável entre milhares de pessoas que mereciam
a escravidão pelos motivos que destacamos na citação supramencionada.
A segunda generalização é a de colocar todas estas pessoas no mesmo estado de
crença. Como pode ser que piratas irlandeses raptassem “milhares” de pessoas na costa da
Bretanha e fossem todas elas cristãs? Certamente havia pagãos entre elas. As pessoas que
mais eram capturadas eram aquelas que viviam trabalhando nos campos. E elas eram, em
geral, pagãs. O cristianismo na Bretanha deste período era uma religião das Villae e não
dos pagi. O habitante dos pagi era caracterizado como paganus e, portanto, tinha crenças
pagãs. Patrício pode ter representado as coisas em seu texto desta maneira por dois motivos:
1) ele pode ter generalizado seu modo de ver as coisas aos demais, atribuindo às outras
pessoas aquilo que ele acreditava ser um problema de sua própria conduta religiosa; 2)
Patrício pode ter mencionado esta questão para introduzir a noção de merecimento e
punição divina. É a partir desta idéia que ele constrói sua noção de graça e, nos versículos
seguintes de sua Confissão, apresenta aos seus críticos seu conceito de conversão,
levantando os argumentos necessários para convencê-los de que ir para tão longe de seus
parentes e amigos divulgar princípios cristãos foi uma resposta ao chamado divino, pois,
92
segundo afirma em seu discurso, Patrício não iria para a Irlanda, caso não houvesse esta
vocação, nem mesmo para ganhar dinheiro.
Diferentemente dos discursos que encontramos em vários textos escritos durante a
Idade Média em que Patrício é representado como um santo poderoso, fazedor de milagres
diversos, expulsando as serpentes da Irlanda, lutando contra druidas e até participando de
disputas mágicas
52
, fazendo os pagãos temerem, em suas cartas, Patrício se representa
sempre se diminuindo. É o discurso da humildade. Ele se mostra como humilhado e que
tudo quanto faz, o pode fazê-lo porque Deus é com ele e o ajuda. É esta a imagem que
ele pretende passar. Vejamos mais uma citação do que ele diz acerca de si mesmo em sua
Confissão:
“Por esta razão tenho pensado em escrever, mas até agora
tenho hesitado; na verdade temi me expor na língua dos homens,
porque não me instrui da mesma maneira que os outros, que têm
assimilado bem tanto a lei como as Sagradas Escrituras e nunca
mudaram o idioma desde a infância, mas ao contrário, sempre o
tem aperfeiçoado. Enquanto a nossa linguagem e idioma foram
traduzidos para uma língua estrangeira, assim facilmente se pode
provar a partir de uma mostra dos meus escritos a minha qualidade
em retórica, a minha instrução e também erudição, porque, está
escrito
53
: A sabedoria será reconhecida pelo modo de falar, no
entendimento, e no conhecimento da doutrina da verdade”.
52
Como pode ser verificado no capítulo XVII da Vita Patricii de Muirchu em que Patrício luta contra os
druidas Ercc, filho de Dego, e Lochru, fazendo com que este último seja arremessado ao ar e depois jogado ao
chão onde bate com a cabeça em uma pedra e morre instantaneamente.
53
Líber Ecclesiasticus 4.29.
93
(Confissão 9).
A partir do trecho acima, versículo nono de sua Confissão, Patrício faz uma
reclamação. Lendo suas duas cartas como um sistema, podemos perceber que isto se refere
ao seu rapto e conseqüente escravidão na Irlanda. Enquanto as pessoas que estão inquirindo
Patrício, e para elas é que ele escreve esta defesa, estudaram tanto as leis da Bretanha
romana como os textos bíblicos no mesmo idioma por vários anos seguidos, ele teve que
interromper seus estudos e pastorear ovelhas na Irlanda. No trecho mencionado, podemos
perceber esta insatisfação e a forma como Patrício representa a si mesmo como inculto.
Apesar de Patrício não ter estudado como os demais” podemos notar que ele não ignora
totalmente as escrituras. Por meio destas citações, Patrício está legitimando seu discurso.
Em vários momentos de suas cartas observa-se passagens como “isso foi dito pelo profeta”;
“assim está escrito”; está escrito”, etc. Ele está tentando fundamentar suas opiniões e se
defender das críticas construindo seu discurso baseado na autoridade bíblica.
Quando ele pede para que verifiquemos por meio de sua “qualidade em retórica”,
sua “instrução” e também “erudição”, sua pretensão é desculpar-se por não escrever bem,
por não dominar as artes retóricas como as pessoas estão lhe questionando. É por este
motivo que Patrício diz que desejava escrever, mas tinha hesitado até o momento em que
compôs a sua Confissão, pelo fato de temer as críticas que poderia sofrer em se expor em
sistemas discursivos que não dominava. Aqui nota-se um Patrício que se representa como
inculto no que diz respeito às formas de exposição em língua latina acerca da lei e do que
ele chama de “sagradas escrituras”. Sobre esta questão, Patrício diz ainda que se
“envergonha” e que “teme de forma árdua” mostrar sua “ignorância”. Ele diz que não é
“eloqüente” e, por este motivo, não consegue “dizer com palavras” como seu “espírito” está
94
“ávido” por fazer as coisas e o tanto que sua “alma” e seu “entendimento” se mostram
“dispostos” ao mesmo propósito (Confissão, 10).
Acompanhando o desenvolvimento da argumentação estabelecida por Patrício em
sua Confissão, podemos perceber que ele continua, ao longo de toda a carta, se
representando como um simples camponês e incapaz de fazer por si as coisas. Vamos
ver mais um destes trechos:
“Por isso eu, o maior dos camponeses, fugitivo,
evidentemente ignorante, alguém que não é capaz de prever o
futuro, mas sabe com certeza que, em todo o caso, antes de ter sido
humilhado, eu era como uma pedra que jazia no lodo profundo”.
(Confissão 12).
Percebe-se notavelmente que o argumento que ele pretende manter é o de que tudo
quanto ele conseguiu fazer, tudo quanto se tornou e as coisas que realizou na Irlanda
foram possíveis com a ajuda de Deus. Assim, ele poderia defender-se das acusações que
estava sofrendo.
É importante não esquecer este fato, Patrício estava defendendo-se destas acusações,
pois estava sendo examinado. A palavra “confissão” não era usada como no sentido
moderno, não tem o mesmo significado que atribuímos a ela. Thompson (1986:12) diz que
era um sinônimo de defesa, era uma espécie de justificação da vida. Quem eram estes que
investigavam Patrício? Quem eram estes doutores da lei? Que direito eles tinham sobre ele?
Não sabemos ao certo, pois Patrício não nos fala sobre isso com clareza. O fato é que em
momento algum ele questiona o direito destas pessoas de o interrogarem e de rejeitá-lo
95
(Thompson, 1986: 70). Assim, o que Patrício tenta fazer é apenas justificar determinadas
partes de sua carreira missionária diante deste grupo de pessoas que o criticavam
(Thompson, 1986: 106). Desta maneira, Patrício tenta mostrar-se como pequeno, como
temos acompanhado até aqui e argumentar que suas realizações conectam-se com a graça
de Deus em sua vida.
Não nos interessa aqui apresentar todas as palavras que Patrício usa para se
caracterizar como humilde e pecador. Cremos que por meio do que foi exposto pode-se
chegar à conclusão de que o discurso construído por ele ao longo de sua confissão segue
estes padrões. Ele representa a si mesmo como alguém ignorante que conseguiu cumprir
sua missão na Irlanda devido à ação de Deus e não às suas próprias vontades. Quando
alguém lhe oferecia um sacrifício, Patrício dizia que este só poderia ser feito a Deus
(Confissão, 19); quando alguém lhe oferecia adornos ou qualquer tipo de recompensa a
troco de seu trabalho, ele diz que não aceitava (Confissão, 49-50). Ele termina sua
Confissão dizendo que não atribuíssem nada à sua ignorância, ao “indouto” Patrício e que
ele não era merecedor.
3.2) PATRÍCIO E A QUESTÃO DA ESCRAVIDÃO.
Patrício teve uma experiência direta com a escravidão mesmo quando vivia em um
uicus
54
de nome Banauem Taburniae, na Bretanha, com seus pais e era um nobre bretão
romano. Neste período, ele era dono de escravos. Aos dezesseis anos, Patrício foi raptado e
54
Uicus (plural Uici), em latim significa pequeno vilarejo.
96
conduzido à Irlanda onde teve que ser um escravo pastor de ovelhas por mais de seis anos.
Por estes motivos, ele é um dos poucos escritores antigos que nos deixaram relatos que
mencionam, por alguém que teve uma experiência direta, a escravidão. Não é freqüente
encontrarmos no mundo antigo, um ex-escravo falando de sua escravidão (Thompson, 1986:
19).
Segundo Norberto Luiz Guarinello (2006: 228), no que convencionalmente
chamamos de mundo antigo, havia uma situação relacional entre escravidão e liberdade. O
Império Romano conheceu diversas formas de trabalho compulsório e a escravidão era
somente uma dentre estas formas. No entanto, a temática da escravidão estava presente em
todas as dimensões do que o autor chama de “tecido social” romano e não somente
relacionada ao mundo da produção, do trabalho e dos afazeres domésticos, não exercendo,
desta forma, nenhuma influência na esfera política e cultural. Guarinello afirma que a
escravidão no mundo romano é um fenômeno de grande plasticidade e para
compreendermos melhor a idéia do escravo como uma mercadoria, tendo em vista este
contexto, ele introduz, a partir do livro Slavery and Social Death de O. Patterson, a noção
de “trajetória”. Nestes termos, a escravidão pode ser compreendida como um processo de
morte simbólica. O escravizado perde sua identidade original, sua pessoa, para tornar-se
quem seu senhor determinar. No entanto, nesse processo, ele não se transforma numa coisa.
Pelo contrário, o escravizado é ressocializado dentro da sociedade que o escravizou,
seguindo trajetórias determinadas, tanto pelas necessidades do dono, como por sua própria
individualidade (Guarinello, 2007: 232).
Esta situação de relação e convivência entre escravos e livres também é mencionada
por Sandra R. Joshel e Sheila Murnaghan na obra Womens & Slaves in Greco-Roman
Culture. Não é possível pensar a história romana sem levar em consideração o fenômeno da
97
escravidão. Para compreendermos a organização social do mundo romano, temos que nos
atentar para as relações sociais entre livres, escravos e libertos. A identidade do homem
romano livre era construída a partir do confronto de seu ideal de liberdade com as várias
problemáticas surgidas em torno da questão da escravidão. Vir-a-ser como cidadão livre
significava existir em relação ao outro. É em torno deste complexo relacionamento de
construção identitária que devemos pensar a realidade social do mundo romano
(Murnaghan; Joshel, 1998).
Patrício diz que foi capturado junto com “milhares de pessoas” na Bretanha Romana
e levado para a Irlanda. Segundo nos mostra em sua Confissão, estas pessoas foram
raptadas, assim como ele, por merecimento devido ao “afastamento” de Deus, por não
“guardarem” os seus preceitos e nem serem “obedientes” aos seus sacerdotes (Confissão, 1).
Como mencionamos no tópico anterior, uma das grandes dificuldades deste trecho é
saber se estas pessoas eram cristãs ou se eram pagãs. No entanto, trata-se de um
complicado problema que até hoje ninguém conseguiu solucionar. Para os objetivos do
nosso trabalho, é suficiente observar que Patrício, um bretão romanizado, representa em
suas cartas a escravidão entre os mares da Bretanha e da Irlanda do século V e que a partir
destas menções temos uma visão sobre esta questão.
Após narrar o seu rapto, a próxima consideração significativa que Patrício faz sobre
o tema da escravidão é quando ele relata sua fuga após ter passado seis anos trabalhando
como escravo na Irlanda:
98
(...) E naturalmente uma noite no meu sono
55
eu ouvi uma voz
dizendo para mim: “Fazes bem em jejuar, pois brevemente partirás
para a tua pátria” e novamente muito pouco tempo depois ouvi uma
resposta me dizendo: “Eis que teu navio está pronto” e não era em
um lugar perto não, pelo contrário, estava a duzentas milhas de
distância onde eu nunca havia estado e não havia ninguém
conhecido. Então pouco tempo depois eu me coloquei em fuga e
abandonei o homem com quem estivera seis anos e avancei na
virtude de Deus, que dirigiu meu caminho para o bem e eu nada
temi até que alcancei aquele navio (...) (Confissão, 17).
Patrício ao ver o navio, pediu aos homens que o deixassem navegar com eles. O
capitão não queria permitir, segundo nos conta Patrício, o seu embarque, mas voltou atrás
depois de algum tempo. E, então, comunicaram a ele a decisão sobre sua permanência e que
ele poderia ir com eles e “fazer amizade” da forma que desejasse. Em sua Confissão,
Patrício diz que neste dia ele se recusou a “sugar as mamas daqueles homens
56
” por temor a
Deus. Sobre esta fuga, não temos como saber que tipo de navio era este, o que ele
transportava
57
e nem para onde ia. É aqui que entram todas aquelas teorias e discussões
55
Nós abordamos esta questão no tópico que fala sobre os sonhos de São Patrício.
56
Em latim: “Sugere mammellas eorum”. Trata-se de um antigo costume irlandês do período anterior a
Patrício. Isso significa admissão e concordância. Verificar J. Ryan, 1938: 293-299 apud: Hanson, 1978: 35).
Uma interpretação possível para a negação de Patrício é a de que ele não concordou com este costume por
estar em desacordo com as crenças pagãs daqueles homens. Patrício tinha o propósito de mostrar novos
hábitos concernentes com a nova fé cristã. Logo depois deste episódio Patrício diz: “esperava que eles
viessem a ter fé em Jesus Cristo, porque eram gentios” (Confissão: 17).
57
Thomas Cahil afirma que os tripulantes do barco transportavam uma carga de cães irlandeses, para venda
no continente europeu, onde eram muito valorizados (Cahil, 1999:119). Excetuando-se este autor, não
encontramos esta informação em qualquer outro lugar e muito menos Patrício fala sobre isso em suas cartas
em qualquer ponto que seja.
99
entre Thompson, Bury, Bieler, MacNeill e outros para saber se Patrício chegou à Gália, à
Bretanha ou a outro lugar após esta viagem.
Patrício foi escravo na Irlanda uma segunda vez. Segundo nos conta, ele teria ficado
por dois meses. Depois disso, ele estaria com seus familiares na Bretanha. Patrício nos
descreve isso da seguinte maneira:
“E mais uma vez, anos mais tarde fui feito cativo pela
segunda vez. Na primeira noite, eu permaneci com eles. Ouvi, então,
uma voz divina me dizendo: você permanecerá dois meses com eles e
assim aconteceu: na sexagésima noite o meu Senhor me libertou das
mãos deles” (...) “e depois de uns poucos anos eu estava de novo na
Bretanha com meus pais, que me acolheram como um filho e
rogaram-me intensamente que eu, após ter passado por tantas
tribulações que nunca partisse para longe deles”. (Confissão: 21, 23)
A vida de Coroticus pode ser relacionada com estas discussões sobre escravidão.
Pelo que podemos perceber na carta destinada a ser lida em sua presença, tratava-se de um
bretão, chefe de soldados. Este personagem é descrito por Patrício como um assassino, pelo
fato de raptar cristãos na costa irlandesa. Podemos notar que uma das fontes de renda de
Coroticus era o lucro que tinha com a venda de escravos. Patrício reclama que os cristãos
que foram “gerados para Deus” e “confirmados em Cristo” estavam sendo perseguidos e
até assassinados por Coroticus. No entanto, por meio de suas menções, podemos ver que
não somente os cristãos eram perseguidos. Assim como Patrício foi raptado do lado bretão,
estas pessoas eram constantemente levadas para ser vendidas nos mercados de escravos
100
também do lado irlandês. Não se fazia distinção por credo religioso, até porque os
irlandeses eram considerados “bárbaros”, logo isso não fazia a menor diferença. Patrício
lamenta em sua carta o fato de que estes cristãos fossem vendidos aos Pictos, povo que ele
considerava “indigno”, “apóstata” e “abominável” (Carta: 16). Pelo menos segundo os
escritos de Patrício, Coroticus e seus soldados “vivem” da rapina, o que sugere que isso era
uma prática comum neste período (Hanson: 1968). Patrício, faz uma reclamação a
Coroticus acompanhada de uma ameaça. Vejamos o trecho:
“Este é o costume dos cristãos Galo-Romanos: Enviam
homens santos e idôneos aos Francos e outros povos com milhares de
Solidi
58
para resgatar os batizados cativos. Você prefere matar e
vendê-los a povos estrangeiros que não conhecem a Deus. Engana os
membros de Cristo como se estivessem em um lupanar. Que
esperança tens em Deus, ou quem pensa como você ou conversa com
você com palavras de bajulação? Deus julgará. Pois as escrituras
dizem: Serão condenados não somente aqueles que fazem o mal, mas
também aqueles que consentem com ele”. (Carta: 14)
Segundo pudemos acompanhar no versículo acima, Patrício se mostra descontente
porque Coroticus não aceita, como fazem os francos com os cristãos galo-romanos, que os
raptados sejam resgatados com dinheiro. Patrício afirma que Coroticus prefere vendê-los
para povos estrangeiros que não conhecem a Deus. Neste caso, ele está se referindo aos
58
Solidus (i) é uma moeda de ouro que começou a ser fabricada no ano 309 por Constantino, o grande (306-
337).
101
pictos, povo que habitava a região da atual Escócia. Como dissemos mais acima, isso
parecia ser uma prática comum neste período da história irlandesa.
Segundo Guarinello, a escravidão no mundo romano era uma prática comum, era
um fato normal da vida. A escravidão, a posse do corpo de outra pessoa e os castigos
corporais como pena para as leis infligidas eram fatos que ninguém discutia. Ser escravo
era apenas uma circunstância da vida, uma posição específica dentro da sociedade e não
uma anomalia. Não havia uma separação nítida entre o mundo escravo e o mundo livre. As
pessoas escravizadas e as livres conviviam lado a lado, exerciam ofícios semelhantes,
compartilhavam desejos, reivindicações, teciam redes de vizinhança e amizade (Guarinello:
2007, 235). Gostaríamos de encerrar este tópico ressaltando que podemos observar em
Patrício um posicionamento que vai ao encontro destas explicações fornecidas por
Guarinello, pois, em momento algum ele se coloca contra a escravidão ou do sistema de
compra e venda de escravos. Quando ele foi raptado ele diz apenas que “mereceu” isso e
quando não resistiu mais à escravidão e aos trabalhos que lhe eram impostos, fugiu. Em
momento algum, Patrício se refere a esta questão do mercado de escravos como sendo
deplorável, vil, etc. Não lhe ocorre a idéia de que esta estrutura social poderia mudar ou que
a escravidão deveria ser abolida. Assim, Patrício não é diferente de outros escritores
cristãos do mundo antigo, ou seja, ele não levantou questão alguma que apresentasse
objeções ao sistema da escravidão.
102
3.3) OS SONHOS DE PATRÍCIO.
Para os povos da antiguidade os sonhos tinham grande importância, eles
eram vistos como comunicações entre os humanos e as divindades. Ana Teresa Marques
Gonçalves afirma que os homens podiam entrar em contato com os deuses por meio dos
sonhos e neste processo de comunicação de caráter transcendente várias ações e
procedimentos a serem tomados eram sugeridos. Os sonhos também eram vistos como
manifestações das divindades que forneciam inúmeras indicações e pistas utilitárias para a
vida dos homens (Gonçalves, 2003: 28). Os antigos dificilmente separavam sonhos de
visões, a distinção rígida, característica moderna, entre os sonhos, fenômeno que ocorre
com quem está dormindo, e visões, manifestações que ocorrem com quem está acordado,
não era clara para eles. Os sonhos tendem a refletir os padrões culturais de quem sonha,
pois, ao dormir, cada homem sonha com aquilo que lhe é próprio. Na antiguidade, o sonho
mais comum é a aparição de um deus que ordena ou proíbe a realização de um ato. Assim,
os sonhos constituíam um processo para as divindades se manifestarem aos homens e lhes
indicarem o correto procedimento (Gonçalves, 2003: 30).
Patrício nos fala acerca de oito sonhos que teve e eles estão todos em sua Confissão.
Alguns destes sonhos falam de sua fuga da Irlanda, três deles o encorajam a voltar pra
para pregar o evangelho e o último sonho menciona um momento de sua missão na Irlanda.
Não nos interessa se Patrício inventou estes sonhos ou se de fato eles existiram. Segundo
Thompson (1986: 50), a “obscuridade” destes sonhos é uma boa razão para acreditar que
eles eram “genuínos”. No entanto, para os objetivos desta dissertação o que interessa é o
fato de Patrício, ao escrever uma defesa de sua carreira missionária, quando estava sendo
103
acusado por pessoas que supostamente teriam autoridade para fazer isso, citar estes sonhos
em seu discurso. Pensamos que o objetivo principal dele ao fazer isso era corroborar a idéia
de que suas formas de agir, quando não estavam fundamentadas na Bíblia, tinham seu
sentido de ser em uma comunicação direta com Deus. Vamos ver então como foi cada um
dos oito sonhos mencionados por Patrício.
O primeiro deles diz respeito à sua primeira fuga da Irlanda. Trata-se do versículo
de número 17 de sua Confissão, mencionado no tópico sobre escravidão. Patrício nos
conta que “em sono” ele ouviu uma voz que lhe revelava que brevemente ele escaparia de
sua escravidão. Ele partiria em direção à sua pátria. Segundo ele, “pouco tempo depois”
ouviu novamente uma voz (segundo sonho) que dizia que “seu navio estava pronto”.
Segundo Patrício, este navio estava em um lugar distante e em um lugar em que ele nunca
havia estado e nem conhecia pessoa alguma. Ele diz que, confiando nestas vozes que ouviu
durante seu sonho, fugiu e abandonou a escravidão que já durava seis anos. Em suas
descrições ele menciona que “nada temeu” porque “Deus dirigiu seu caminho” até que ele
alcançasse aquele navio. Escrevendo no fim de sua vida e lembrando-se do período em que
foi escravo na Irlanda, Patrício está, por meio deste sonho, justificando como foi que fez
para fugir e porque abandonou seu Senhor irlandês. Então, ele afirma que sua fuga foi
preparada por Deus, foi ele quem a organizou, definiu como tudo iria acontecer e lhe disse
isso em sonho por meio de uma voz.
Patrício conta que embarcou neste navio com aqueles homens e alcançaram terra
firme após três dias. Ele apresenta algumas dificuldades que passaram relacionadas com a
falta de alimentos, pois, segundo ele, andaram por vinte e oito dias em uma região estéril
até que a comida acabou. Ele diz que em um dos dias, o capitão lhe pediu explicações sobre
o porquê desta situação e perguntou se o Deus de Patrício poderia ajudar. Patrício, então,
104
segundo ele diz, orou e aconteceu que uma vara de porcos apareceu diante deles e muitos
destes animais foram mortos para servirem de alimento. Patrício diz que por duas noites
eles permaneceram neste local e fartaram-se das carnes destes porcos. Nesta ocasião, após
terem se alimentado, Patrício tem seu terceiro sonho, que nos descreve da seguinte
maneira:
“Na mesma noite eu estava dormindo e Satanás violentamente
tentou-me, da forma que eu me lembrarei enquanto neste corpo
estiver, ele caiu sobre mim como um enorme rochedo e nenhum dos
meus membros podia se mexer. Mas de onde me veio à idéia,
ignorante espiritual que sou, de clamar por Elias? Neste meio tempo
vi no céu o sol surgindo e durante o clamar “Elias, Elias, com toda a
minha força” eis que o esplendor daquele sol caiu sobre mim
imediatamente e me sacudiu livrando-me de todo o peso, creio que
fui ajudado por Cristo, meu Senhor, e este espírito agora chamava por
mim e espero que assim seja no dia da minha aflição, como diz no
evangelho: Naquele dia, diz o Senhor, não sois vós que falais, mas o
espírito de vosso pai que fala em vós”. (Confissão, 20)
Patrício usa o trecho bíblico do livro de Mateus, capítulo 10, para justificar suas
crenças e também sua incapacidade retórica. Assim, ele faz uso de uma característica típica
do discurso cristão, que é citar os livros sagrados para justificar suas condutas. Trata-se do
argumento da autoridade. Neste sonho, descrito por Patrício muito tempo depois da noite
105
em que supostamente teria ocorrido, também acontece algo que ele próprio desconhece o
motivo. Passando por um momento de dificuldade em que Satanás teria caído sobre ele
como um rochedo, de forma que nem podia mover-se, ele chama por Elias. A figura de
Satanás aparece neste discurso representando angústia e dificuldade. Patrício acreditava que
Satanás estava trabalhando para impedir o crescimento do cristianismo da Irlanda. Neste
sonho, o inimigo, então, de seu trabalho de cristianização impede seus movimentos caindo
em cima dele como um rochedo, sufocando-o. Patrício não sabe de onde lhe veio a idéia,
pelo menos é o que diz, de invocar Elias. Por que Elias
59
? Por que ao clamar por Elias ele
diz que vê o sol e clamando este nome cada vez mais o brilho do sol lhe atinge? Não temos
como saber ao certo qual era a intenção que Patrício tinha ao descrever este sonho e nem o
significado que de seu conteúdo. Todavia, podemos perceber por meio da leitura de suas
cartas, que os irlandeses deste período adoravam ao Sol como uma divindade. Os
contemporâneos de Patrício podem ter notado a semelhança entre “Elias”, o profeta, e
“Hélios”, o sol. O próprio Patrício, inconscientemente, pode ter confundido os dois
(Hanson, 1978: 93). De qualquer forma, novamente Patrício diz ter sido “ajudado” por
Deus e é este fato que ele parece querer evocar quando está escrevendo sua defesa. A
mensagem que Patrício quer passar é a de que ele tinha a aprovação divina para agir da
forma que agiu e tomar as atitudes que tomou durante seu trabalho de missionário na
Irlanda.
O próximo sonho (o quarto) que Patrício menciona em sua Confissão ocorre depois
deste momento, segundo nos afirma. Mas ele diz que isso aconteceu “anos mais tarde”
59
Um personagem bíblico. Nos discursos cristãos, principalmente nos livros que compõem o que conhecemos
como novo testamento, Elias é freqüentemente mencionado como uma representação dos profetas. Quando se
quer fazer menção às leis judaicas cita-se Moisés, quando o assunto em questão é invocar à memória a
atuação dos profetas cita-se Elias e assim por diante.
106
quando ele foi feito cativo pela segunda vez. Segundo Patrício nos conta, logo na primeira
noite em que ele permaneceu em seu cativeiro ouviu uma voz que lhe dizia: “Você
permanecerá com eles por dois meses”. De acordo com sua carta, assim aconteceu”.
Patrício diz que: “na sexagésima noite em que estava cativo o Senhor me libertou das mãos
deles”. Ele nos estas informações e nada mais diz. Patrício sequer menciona como foi
que Deus o teria libertado do cativeiro (Confissão: 21). No entanto, podemos analisar este
trecho levando em consideração a seqüência temporal em que as ações mencionadas por
Patrício acontecem em sua narrativa. Pensando desta forma, podemos perceber que
primeiramente ocorre o fenômeno, ou seja, Patrício ouve a voz. Depois, em um momento
posterior, acontece justamente aquilo que a divindade lhe houvera avisado. Patrício faz
questão de dizer aos seus leitores que “assim aconteceu”. A veracidade da voz é percebida
depois. É um processo de confirmação das palavras reveladas no sonho e isso é uma
garantia da autenticidade da crença. Vamos ao próximo relato onírico de Patrício (o quinto
sonho):
“E depois de uns poucos anos eu estava de novo na Bretanha
com meus pais, que me acolheram como um filho e rogaram-me
intensamente que eu, após ter passado por tantas tribulações que
nunca partisse para longe deles; e neste lugar naturalmente vi numa
visão noturna um homem vindo como que da Irlanda, cujo nome era
Uictoricus
60
, com inumeráveis cartas, e deu para mim uma delas e
60
Gostaríamos de informar que quando traduzimos as cartas de Patrício para o português, tivemos que tomar
uma decisão acerca de como ficariam todos os nomes próprios mencionados por ele. Em todos os textos que
107
logo no princípio da carta estava escrito: “A voz dos irlandeses” e
enquanto eu recitava o princípio da carta, pareceu-me naquele
momento ouvir as vozes daqueles que estavam perto da floresta de
Uocluti que fica perto do mar ocidental, e ainda exclamavam como se
fosse uma voz: “Nós te rogamos, santo jovem, venha e caminhe
novamente entre nóse eu estava tão profundamente tocado no meu
coração que nem pude ler mais e assim despertei. Graças a Deus,
porque depois de muitos anos, o Senhor concedeu-lhes a sua súplica”.
(Confissão, 23).
possuímos e outros que consultamos pela internet acerca dos assuntos envolvendo a patriciologia e as
traduções de documentos relacionados a Patrício, percebemos que existe uma tradição de manter em latim os
nomes: Bannavem Taberniae, Voclut, Victoricus, Calpurnius, Potitus e Coroticus. Isso ocorre em Bieler,
Hanson, Thompson, De Paor, Bury e outros estudiosos do tema. Assim, temos em inglês, por exemplo: “Saint
Patrick- Letter to Coroticus” (tradução de Ludwig Bieler); em francês: “Livre des épitres de Saint Patrick
évêque- Livre II: Lettre aux soldats de Coroticus” (tradução de Hanson). Todos os outros nomes próprios
encontrados nas duas cartas de Patrício são traduzidos para os idiomas em que as traduções estão sendo feitas:
Jesus Cristo, Elias, Bretanha, Irlanda, Abraão, Isac, Jacó, Oséias, Gália, Eva etc. Vale também ressaltar que
não encontramos nenhuma tradução em que o nome de São Patrício fosse mantido em latim. Assim como fez
Hanson, podemos encontrar uma possível explicação para esta opção de não se traduzir os nomes que
mencionamos na obra Codices Patriciani Latini de Ludwig Bieler. Nesta obra, Bieler seleciona, classifica,
enumera e analisa os vários manuscritos que contém a Confissão e a Carta aos soldados de Coroticus. Ele
divide as cartas de acordo com os manuscritos em que foram encontradas e com isso chega a 7 grupos: 1)
Oriundas de Armagh; 2) Encontradas nas Vitae Sanctorum mensis Martii; 3) Retiradas dos manuscritos do
British Museum (Londres); 4) Escritas nas últimas folhas de um manuscrito sobre vida de santos encontrado
no século XI que pode ser consultado na Biblioteca municipal de Roeun; 5) Retiradas de um manuscrito
escrito no século XII provavelmente em Salisbury; 6) Encontradas igualmente em um outro manuscrito
escrito em Salisbury também no século XII; 7) Retiradas de um manuscrito do século XII que fazia parte das
Vitae Sanctorum encontradas em Arras, que pode ser encontrada atualmente na Biblioteca municipal de Arras.
Em cada um destes manuscritos, os nomes: Bannavem Taberniae, Voclut, Victoricus, Calpurnius, Potitus e
Coroticus aparecem da mesma maneira. Assim encontramos, por exemplo, as variações: Uictoricus;
Uictoricius; Uictricius; Uictoricum etc; Temos ainda: Coroticus, Ceredig, Cerdic, Caradock etc. Na tradução
que Hanson fez, por exemplo, ele manteve as formas em latim e apenas mencionou que seguiu a
classificação
de número 1 proposta por Bieler (Victoricus-Coroticus) que é oriunda do manuscrito de Ferdomnach escrito
em Armagh no ano de 807. Não encontramos tradução para estes nomes em nenhum idioma moderno, em
todos os documentos que consultamos eles estão em latim, talvez pela falta de unanimidade entre os
manuscritos, o que causaria uma dificuldade na hora da tradução. Nossa opção então foi por mantê-los
também em latim conforme esta tradição. Assim sendo, esta escolha está em conformidade com a obra de
Thompson, Hanson e principalmente de Bieler, sem dúvida um dos maiores eruditos quando o assunto é o
Patrício e o cristianismo irlandês. Uictoricus aparece na Vita Patricii de Muirchu como um anjo. Na Vita
Patricii de Tírechán, há um Uictoricus que Patrício enviou como um bispo para Domnach Maigen. Em
algumas biografias mais tardias Uictoricus foi mudado para Uictor (Bury: 1905,296). Alguns autores
acreditam que Uictoricus pode ser um homem que Patrício conheceu na Irlanda (Thompson, 1986; Hanson,
1968).
108
Talvez este seja o sonho mais importante de toda a Confissão porque é por meio
dele que Patrício justifica aos seus questionadores a forma como foi chamado para ir para
Irlanda tentar cristianizar os irlandeses. Assim, segundo ele, teria ido para Irlanda não por
sua própria vontade, mas atendendo a uma ordem do próprio Deus. Patrício afirma que se
dependesse dele mesmo ficaria na casa de seus pais e não voltaria para Irlanda. Isso pode
ser percebido em vários outros trechos ao longo de suas duas cartas (Confissão: 1, 3, 23, 28;
Carta: 1, 6, 10). Este sonho deve ser entendido em conjunto com os que Patrício apresenta
no restante de sua Confissão. Vejamos estes últimos relatos (sexto, sétimo e oitavo sonho
de Patrício):
“E outra noite –não sei, Deus o sabe, se dentro de mim ou
próximo a mim - foram pronunciadas algumas palavras bem próximo,
eu as ouvi, mas não pude compreendê-las, a não ser no final: Aquele
que deu a sua vida por ti, o próprio é que fala dentro de ti. E
deste modo acordei jubiloso”. (Confissão, 24).
“E uma outra vez, o vi orando em mim, era como que dentro
do meu corpo e o ouvia acima de mim, isto é, acima do homem
interior, e lá orava fortemente com gemidos, e no meio disto eu
estava pasmo e admirado e pensava quem seria esse que orava dentro
de mim, mas após o final da oração foi-me revelado que era o
109
Espírito, e assim fui desperto e recordei-me das palavras do
apóstolo
61
: O Espírito nos auxilia na debilidade de nossas orações,
pois não sabemos orar como convém. Mas o próprio Espírito
intercede por nós com gemidos inexprimíveis, que não podemos
narrar, e mais uma vez: O Senhor, nosso advogado intercede por nós”.
(Confissão, 25).
“Então naquele dia em que fui reprovado como mencionei
acima, eu tive uma visão à noite de um texto diante de minha face
sem honra, e enquanto isso, ouvi uma voz divina dizendo para mim:
com desgosto vimos a face do escolhido, despido de seu nome, e ele
não disse: você viu com desgosto, mas: nós vimos com desgosto.
Como se ele mesmo se juntasse a mim, ele então disse: Aquele que
te tocar é como se tocasse a menina dos meus olhos”.
(Confissão, 29).
Como mencionamos no início deste tópico, na antiguidade não havia uma diferença
clara entre visão e sonho. Não tinha uma cisão tida entre uma mensagem recebida da
divindade em estado de sono ou acordado. Podemos observar que no caso de Patrício não é
diferente. Em alguns momentos ele ouve uma voz, em outros ele tem uma visão à noite, etc.
Não é isto o mais importante do discurso de Patrício. Devemos reter nossa atenção sobre a
mensagem que ele almeja passar com estas lembranças oníricas. Patrício acredita que
61
Carta de Paulo aos Romanos, capítulo 8, versículo 26: Do mesmo modo também o Espírito nos ajuda na
fraqueza; porque não sabemos o que havemos de pedir como convém, mas o Espírito mesmo intercede por
nós com gemidos inexprimíveis.
110
precisa explicar para os leitores de suas cartas como é que ele foi parar na Irlanda e de que
modo era o seu relacionamento com a divindade. Desta maneira, ele cita esta série de
fenômenos oníricos envolvendo a audição de vozes, mensagens recebidas, aparições e
visões para dizer que tinha um relacionamento direto com Deus. Sua intenção é caracterizar
sua estreita comunhão com a divindade e enfatizar que esta lhe falava diretamente e,
portanto, todas as suas ações nada mais são do que uma resposta aos desígnios divinos. Foi
o próprio Deus que elaborou os planos para a cristianização da Irlanda e o escolheu para
executar esta missão. Assim, Patrício faz esta menção aos seus sonhos para dizer que ele
possuía um chamado, uma vocação e por ser um eleito, um escolhido, Deus lhe falava de
forma particular.
Semelhantemente a qualquer bretão romano que tenha vivido em sua época, Patrício
também considerava os irlandeses como bárbaros e não tinha qualquer preocupação com
eles e nem vontade alguma de ir para Irlanda até ter sido escravo durante seis anos.
Assim, como mencionamos em outro momento desta dissertação, acreditamos que esta
idéia lhe ocorreu devido aos anos que passou na Irlanda conhecendo os costumes, a
cultura e o idioma dos irlandeses. Podemos observar nestas últimas menções feitas por
Patrício que ele alega toda sua vontade de ir para Irlanda, sua preparação e ensinamentos ao
próprio Deus. Ele fez questão de mencionar, por exemplo, que aquele que o tocasse seria
como se tivesse tocando o próprio Deus. Ele menciona no versículo 29 de sua Confissão
que tinha Deus como seu guia. Por quê os sonhos de Patrício retratam somente um período
de sua vida? Nós acreditamos que isso pode estar ligado à necessidade de convencer as
pessoas que lhe estavam questionando de que ele teria ido para Irlanda atendendo a um
chamado e não por livre e espontânea vontade, e assim, estaria cumprindo a vontade de
Deus. Por isso, segundo Patrício, Deus se importava com a condição de idolatria em que os
111
irlandeses viviam e pretendia que estes fossem convertidos. Desta forma, podemos
compreender que estes sonhos mencionados por Patrício fazem parte de uma argumentação
específica, a saber, a retórica cristã, sua intenção era elaborar uma defesa de suas intenções
e de legitimar sua ida para Irlanda divulgar as idéias cristãs baseada na autoridade das
Sagradas Escrituras e em seu relacionamento pessoal com a divindade.
3.4) AS CRENÇAS DE PATRÍCIO
Tanto na Confissão quanto na Carta aos soldados de Coroticus, Patrício nos fornece
vários indícios de sua fé. Ele menciona várias passagens blicas e inúmeras ocasiões em
que podemos perceber quais são seus posicionamentos cristãos sobre vários assuntos
teológicos. Vamos analisar algumas destas menções. A primeira coisa que Patrício deixa
transparecer em sua Confissão é que Deus pode punir aqueles que não o obedecem. É assim
que Patrício justifica sua escravidão na Irlanda. Segundo ele, Deus lançou sobre ele e as
pessoas que tinham sido raptadas com ele em igual condição a “violência de sua cólera”.
Isso ocorreu porque tanto Patrício quanto estas pessoas não teriam sido obedientes a ele.
Este tipo de ira também está reservada a todos aqueles que o seguirem os caminhos de
Deus. Segundo Patrício, Deus “destrói” os que se comportam de forma inadequada
(Confissão: 1).
Esta concepção de um Deus que repreende, que pune, dentre outras coisas mais, está
plenamente relacionada com uma visão pedagógica. Segundo Patrício, tudo isso que Deus
fez foi visando o seu próprio bem. Isso lhe ocorreu para que ele fosse preparado para o
trabalho que iria realizar. Assim, em vários momentos de sua Confissão, Patrício menciona
112
as ajudas que recebeu de Deus, como as que apresentamos quando falamos dos sonhos de
Patrício, e como só se tornou um missionário segundo a graça divina. Se por um lado, Deus
é um Deus de ira; por outro, ele é um Deus de compaixão e misericórdia. Todavia, isto está
intimamente ligado com o conceito de conversão que Patrício apresenta. Assim, para obter
as bênçãos de Deus é necessário converter-se ao cristianismo e seguir os caminhos corretos,
caso contrário, toda sorte de punições poderão ocorrer. A conversão só pode acontecer pela
graça, entendida como um favor imerecido de Deus. Se converter ao cristianismo, para
Patrício, significa “recuperar a razão”, assim como na parábola bíblica, o filho pródigo que
“caindo em si” resolve voltar para casa de seu pai. É este o desejo de Patrício a Coroticus,
que este possa “recuperar a razão” e “inspirado por Deus” possa se “arrepender” de seus
atos ímpios (Carta, 21). Patrício diz que na Irlanda “o Senhor abriu o entendimento de seu
coração de incredulidade”. Segundo ele, Deus não levou em conta sua “mocidade” e
“ignorância” e dignou-se lhe conceder “tantas graças e divas” (Confissão, 2-3). Patrício
nos apresenta no quarto versículo de sua Confissão um resumo de seu credo, vejamos:
“Porque não outro Deus, nunca houve antes, nem haverá
no futuro, além de Deus pai não gerado, sem princípio, do qual
procede todo o princípio, quem tudo possui, bem como tem nos sido
dito; e seu filho Jesus Cristo, que assim como o pai evidentemente
sempre existiu, antes do começo dos tempos em espírito com o pai,
inefável, criado antes da origem do mundo, e por ele mesmo foram
criadas todas as coisas visíveis e invisíveis. Ele foi feito homem,
venceu a morte e foi recebido no céu junto do pai, e foi-lhe dado todo
poder absoluto sobre todo nome no céu, na terra e no inferno para
113
que assim toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor e Deus, em
quem nós cremos e esperamos o advento de sua iminente volta, como
juiz dos vivos e dos mortos. Este que dará para cada um segundo os
seus feitos, e derramou em nós abundantemente o seu Espírito Santo,
o dom e a garantia da imortalidade, que tornou os crentes e
obedientes em filhos de Deus e co-herdeiros de Cristo, àquele que
confessamos e adoramos, o único Deus na trindade do seu santo
nome”. (Confissão, 4).
A partir destes versículos podemos notar que Patrício apresenta várias concepções
acerca de como compreende, de uma forma geral, a doutrina cristã no que diz respeito aos
seus principais pontos: 1) Deus é único e não gerado; 2) tudo foi criado por ele; 3) Cristo e
Deus são co-substanciais e existem desde o princípio dos tempos; 4) Cristo mesmo sendo
também Deus, viveu como homem aqui na terra, morreu e ressuscitou; 5) A Cristo foi dado
todo o poder de julgar os vivos e os mortos; 6) crença na trindade. Por meio destas
declarações podemos perceber que Patrício não manifesta nenhum tipo de semelhança com
as doutrinas do arianismo
62
, pois, em sua opinião, como pudemos verificar na citação acima,
Cristo é co-eterno com o pai e possui a mesma substância. Pelos escritos de Patrício,
podemos observar que suas idéias são mais semelhantes ao credo nicênico, não se
aproximando também do pelagianismo. Patrício mantinha divergências tanto com relação
ao principal ponto defendido pelo arianismo (consubstancialidade), quanto o que era
defendido pelo pelagianismo (necessidade da graça para salvação).
62
Trata-se de uma doutrina sustentada pelos seguidores do bispo Ário (256-336). Segundo esta maneira de
ver o cristianismo, não havia consubstancialidade entre Jesus e Deus. Ou seja, Cristo era um homem e não
Deus. O concílio de Nicéia condenou esta doutrina considerando-a herética.
114
Na carta que Patrício escreveu aos soldados de Coroticus nós podemos perceber
grande parte de seu pensamento escatológico. Trata-se de suas interpretações sobre as
últimas coisas que deverão ocorrer com a segunda vinda de Cristo à terra. Patrício diz que a
pena de Coroticus, caso não se arrependa, será no inferno, onde haverá apenas dor. É
interessante esta menção que Patrício faz ao inferno porque ele pode ser considerado o
introdutor desta idéia na Irlanda. Claro que é possível que os cristãos que estiveram na
Irlanda antes de Patrício tenham feito referências ao inferno, mas nenhum vestígio do que
acreditavam estes cristãos nos chegou.
Segundo as crenças dos povos celtas, este mundo é apenas um reflexo do outro
mundo. O contato entre este mundo e um outro, chamado Síd, é freqüente. Pode-se adentrá-
lo, pode-se viajar até ele, pode-se lutar com as divindades, etc. Neste outro mundo o tempo
passa de forma diferente: mais lento, mais rápido, ou pode simplesmente não passar. Em
algumas narrativas celtas, quando alguém passa dois, três dias no Síd, sem se dar conta, fica
ausente por anos no mundo de cá. O tempo e o espaço são percebidos pelos Celtas de forma
bem diferente de como são compreendidos pelo cristianismo. Para o cristianismo, a
concepção mais próxima desse outro mundo céltico é a de paraíso. Todavia, esse paraíso só
pode ser alcançado após a morte. Para os Celtas, o Síd poderia ser atingido a qualquer
momento da vida e caso não se voltasse de lá, a morte era vencida. Assim como a noção de
paraíso ou céu era estranha para os celtas, a de inferno também. Para um irlandês do século
V seria inadmissível a idéia de inferno. Mesmo durante muito tempo depois da entrada do
cristianismo na Irlanda esta idéia continuou mal compreendida. No século XII, surge na
Irlanda a idéia do purgatório como um lugar para onde as almas vão (Purgatorium). Esta
noção é encarada como uma tentativa de conciliação entre as bonanças celestiais e os
horrores do inferno (Le Goff, 1993: 230).
115
Patrício diz que o chefe bretão será escravizado em uma pena eterna, diferente da
pena passageira que ofereceu aos cristãos. Ele será “consumido por fogo inextinguível”,
“atormentado pela ira dos dragões”, “a língua das serpentes o matará”. São estas as
metáforas que Patrício usa para representar o inferno. Todas elas significam dor e
afastamento divino. Tanto o dragão quanto a serpente são associados à figura de Satanás.
Segundo Patrício, quando Cristo voltar para buscar os seus, nem os homens de Coroticus
escaparão, pois os que contribuem com o mal também são condenados. Vejamos dois
trechos da Carta aos soldados de Coroticus:
“Vocês então reinarão junto com os apóstolos e profetas e
também os mártires. Vocês tomarão posse de um reino eterno, assim
como ele mesmo disse: virão do oriente e do ocidente e sentar-se-ão a
mesa com Abraão, Isaque e Jacó no reino dos céus. De fora ficarão os
cães, os feiticeiros e os homicidas e: Aos mentirosos e aos que dão
falso testemunho estarão reservadas suas partes no lago de fogo
eterno. Não é sem razão que o apóstolo disse: se o justo foi salvo
penosamente, onde se encontrarão o pecador e o ímpio transgressor
da lei?” (Carta, 18).
“Onde então Coroticus com seus infames criminosos, rebeldes
contra Cristo, onde se verão? Aqueles que distribuíram jovens
mulheres batizadas como prêmios por um reino temporal miserável
que em um momento passa? Como nuvens e fumaça que o vento
espalha, assim os pecadores fraudulentos perecerão ante a face do
116
Senhor; os justos, porém, participarão de um grande banquete em
grande perseverança com Cristo, eles julgarão as nações e dominarão
sobre os reis iníquos pelos séculos dos séculos. Amém”. (Carta, 19).
Segundo Patrício, as ações de Coroticus foram gravíssimas, pois nem mesmo o
inferno se alegra com as injustiças sofridas pelos servos de Deus. Todos os despojos
adquiridos pelos soldados de Coroticus serão vomitados no dia da vinda de Cristo, diz
Patrício, porque O Altíssimo” reprova as ofertas dos “iníquos” e também porque os que
fazem o mal, segundo ele, recebem a “morte eterna” como recompensa (Epistola: 13). Por
meio destas considerações feitas por Patrício no que diz respeito a Coroticus e seus
soldados, podemos perceber como é sua visão acerca das últimas coisas que deverão
ocorrer. Haverá um juízo final em que todas as pessoas serão julgadas pelo que fizeram e
uns serão salvos ao passo que outros serão condenados. A doutrina de Patrício, neste ponto,
é bem semelhante ao novo testamento
63
, principalmente no que diz respeito às cartas de
Paulo. Tanto sua Confissão quanto a Carta aos soldados de Coroticus estão repletas de
trechos semelhantes a estes. Em resumo, dizem a mesma coisa: Os justos serão salvos,
enquanto os que cometem injustiças e não se arrependem serão condenados ao fogo do
inferno. Esta é uma síntese escatológica no texto de Patrício. É esta doutrina que ele
pretendia apresentar aos irlandeses. Ele considerava-os infiéis, pagãos, gentis, idólatras e,
por este motivo, desejava fazer com que se convertessem e aceitassem estas idéias para que
não tivessem o mesmo fim que Coroticus teria caso não se arrependesse.
Hanson acredita que os textos de Patrício são de fato “a primeira literatura da Igreja
bretã”. O autor menciona também os escritos de Fastidius e os documentos de Pelágio, mas
63
Marcos 16:16; Atos 3:19; Apocalipse 21:6-8; Romanos 3:23-24 e outros.
117
diz que não são mais do que conjecturas. em Patrício, Hanson afirma que nós temos a
primeira testemunha do texto da bíblia usada pela Igreja bretã. Em suas cartas, podemos
também coletar as evidências do tipo de latim que era usado na Bretanha, as primeiras
informações sobre a doutrina da Igreja bretã. Segundo o autor, nós “quase” podemos dizer
que Patrício é a “primeira personalidade bretã que podemos conhecer” (Hanson, 1968: 200).
Por este motivo, Hanson considera Patrício como um dos autores do corpus da patrística
latina, pois suas cartas são uma “fonte de primeira mão” para o estudo da Irlanda e da Igreja
do século V, como já mencionamos no capítulo dois desta dissertação (Hanson, 1978: 54).
3.5) A IRLANDA E OS IRLANDESES
Patrício conseguiu formar uma comunidade de cristãos na Irlanda e ela não era
reconhecida pela Igreja bretã, isso causava indignação a Patrício. Isso significa que Patrício
não dispunha de uma comunidade romana unificada, ao contrário de Severino e os bispos
da Gália. Na visão de um bretão romanizado, os irlandeses eram bárbaros e por este motivo
considerados perigosos. Para Coroticus, por exemplo, mesmo quando batizados, os
irlandeses nunca poderiam ser considerados cidadãos de Roma (Brown, 1999). Não era
uma intenção da Igreja que os irlandeses se tornassem cristãos. A Bretanha mantinha
contatos constantes com os romanos, os bretões falavam latim, a Irlanda ficava isolada
pelo mar, os irlandeses falavam apenas o gaélico e tinham como escrita apenas o Ogham.
Patrício diz que a Igreja bretã não acreditava que os irlandeses evangelizados por ele
poderiam receber o mesmo batismo e ter o mesmo Deus em comum. Segundo Patrício, para
118
os bretões “é indigno que sejamos irlandeses” (Carta, 16). É importante notar que Patrício
também pensava assim e mudou sua visão após ter sido escravo na Irlanda. Todavia, ele
mudou de opinião com relação aos irlandeses, pois no que diz respeito aos pictos,
Patrício continuou a compartilhar do mesmo pensamento que seus familiares bretões, de
que são povos bárbaros, os mais “indignos” e “abomináveis”, como já mencionamos (Carta,
2; 15).
O termo bárbaro é de origem grega. Segundo Heródoto, os egípcios chamavam de
“bárbaros” todos os que falavam uma ngua diferente da sua. Em grego, “bárbaro”
designava inicialmente aquele que possuía uma língua incompreensível e que não
compartilhava dos costumes dos helenos. Na opinião de Catherine Peschanski, pode-se
considerar as guerras medas como os acontecimentos determinantes para a construção de
uma visão radicalmente dualista do mundo. No entanto, a divisão do mundo entre gregos e
“bárbaros” estava relacionada a uma reação perante o tempo e não pela espacialidade.
Assim, para os gregos, o tempo estaria submetido a categorias distintas daquelas aplicadas
pelos “bárbaros”. Em suma é-se grego por cultura e não por natureza (Cassin; Loraux;
Peschanski, 1993). Posteriormente, a concepção de “bárbaro” que foi adotada pelos
romanos tinha completa relação com limites territoriais, espaciais, desta maneira, ela era
aplicada aos povos que viviam fora das fronteiras imperiais, entre eles os irlandeses. Assim,
“bárbaro” era um termo utilizado para designar os estrangeiros, os “outros” (Guerras, 1987).
Patrício compreendia desta maneira o termo “bárbaro”. Ou seja, ele o aplicava aos diversos
povos que habitavam além das fronteiras do Império Romano, em particular, além da
Bretanha. Todavia, em suas cartas, em certos momentos Patrício inverte este conceito de
bárbaro aplicando-o a Coroticus mesmo ele sendo um bretão romano. Desta forma,
“bárbaro” não é mais um “não-romano” e sim um “não-cristão”. Patrício afirma que todo
119
aquele que pratica o mal é um concidadão do demônio e Coroticus, então, era um
concidadão das trevas, não tendo parte com Patrício e nem com “os santos romanos” (Carta,
3). Desta maneira, a divisão entre bretão e irlandês era superada e uma outra construção
identitária era construída: “cristão ou não-cristão”; “filho de Deus ou filho do diabo”.
Patrício diz que não pensava em nada além dele mesmo e que por isso foi
repreendido por Deus. Se não fosse isso, não teria ido para Irlanda de forma espontânea.
Ele diz que estava a ponto de desistir e que Deus o preparou para que fosse um missionário
e fosse para Irlanda “pregar o evangelho” e “suportar as injúrias dos incrédulos” sofrer
“muitas perseguições e até prisões” (Confissão, 28; 37). Pelas citações que Patrício faz de
alguns versículos bíblicos, podemos perceber que, em sua opinião, a Irlanda era o fim do
mundo. Era o limite máximo a se alcançar, os confins da terra. Um exemplo destes
versículos é: “Ponho-te como luz para os gentios para que tu possas levar salvação até os
confins da terra”, mas existem outros ao longo da Confissão e da Carta aos soldados de
Coroticus (Confissão, 38).
Em uma passagem da Confissão, Patrício diz que na Irlanda nunca tiveram o
conhecimento de Deus. Acreditamos que a partir deste trecho é que se originaram várias
discussões em torno da questão de Patrício ter ou não sido o primeiro missionário da
Irlanda. Os que discordam desta afirmação dizem que Patrício conheceu apenas uma parte
da ilha que não tinha sido ainda apresentada ao cristianismo.
“Assim, tal como acontece na Irlanda onde nunca tiveram
conhecimento de Deus, mas que, até o presente momento,
conheciam ídolos e coisas impuras, como que recentemente estão se
tornando um povo do Senhor e sendo chamados de filhos de Deus, os
120
filhos dos Scotos e as filhas dos reis são vistas como monjas e
virgens de Cristo”. (Confissão, 41)
Patrício representa uma Irlanda que desconhecia o cristianismo. Ele classifica as
crenças dos irlandeses como “idolatria” e diz que acreditavam em coisas impuras”.
Patrício está se referindo às crenças dos celtas
64
. No mesmo trecho, podemos observar a
opinião que ele nos apresenta de que “recentemente” os irlandeses estão se convertendo ao
cristianismo, por meio dele, e estão se “tornando” um “povo do senhor” e por este motivo
podem ser chamados de “filhos e filhas de Deus”. Note a menção feita por Patrício aos
“filhos dos Scotos” e às “filhas dos reis”. Como já dissemos antes, a Irlanda era dividida em
vários pequenos reinos e cada uma destas partes era chamada de Tuath, cada uma delas
com um rei e são às filhas destes reis que Patrício está se referindo. Segundo ele, estão se
tornando “monjas” e “virgens de Cristo”. Patrício nos cita um exemplo específico deste tipo
de conversão:
“E ainda uma abençoada irlandesa [Scota], nobre, linda e de
idade adulta, que eu batizei; poucos dias depois veio a nós e nos
informou que tinha recebido uma profecia de um mensageiro de Deus
e sido convidada a ser uma virgem de Cristo e aproximar-se de Deus.
Graças a Deus, que seis dias depois, excelentemente e avidamente ela
tomou o caminho que todas as virgens de Deus tomam, mas não com
o consentimento dos pais dela, mas suportando perseguições e as
64
Paganismo céltico. Várias divindades relacionadas aos mais diversos aspectos e o druida como responsável
por explicar as coisas relacionadas ao sagrado.
121
reprovações imerecidas de seus parentes. Apesar disso o número
delas aumenta (a respeito das que são de nossa raça nascidas lá
desconhecemos o número)
65
além das viúvas, e aquelas que mantêm
a continência
66
. Mas entre elas as que mais trabalham são as que são
mantidas na escravidão. Além de terrores, elas suportam ameaças
constantes; mas o Senhor concede muitas graças as suas servas, pois
mesmo apesar da prisão (sendo proibidas) elas resolutamente seguem
o seu exemplo”. (Confissão, 42).
Neste trecho, Patrício nos fala sobre um certo tipo de situação enfrentada pelos
novos convertidos à cristã na Irlanda e suas dificuldades. Segundo ele, esta “nobre”
irlandesa, “de idade adulta” foi batizada por ele e depois “sem o consentimento” do pai
tomou o caminho “que todas as virgens de Deus tomam”, suportando assim “reprovações e
perseguições” dos próprios parentes. O que sugere que o cristianismo de Patrício não foi
aceito na Irlanda sem resistência. Outras classes de mulheres mencionadas por ele no
versículo citado são as viúvas e as que são mantidas em cativeiros. Patrício diz que mesmo
com a prisão, “elas seguem” o exemplo de Cristo.
65
“As de nossa origem que nasceram, desconhecemos o número”. No texto latino está: “Et de genere
nostro qui ibi nati sunt nescimus numerum eorum”. As traduções desse texto trazem uma querela sobre esta
frase. Algumas pretendem que “genere nostro”, em francês “notre race”, signifique “irlandês”; outras
traduções pretendem que signifique “bretão” devido ao grande número de bretões que habitavam a Irlanda
nesse período e porque o próprio Patrício era Bretão. Quanto à “qui ibi nati sunt” alguns pretendem que se
trate de “renascidas” no sentido de “nascer de novo” fazendo menção a batismo. Não cremos assim e por isso
preferimos traduzir ao pé da letra. Para isso nos baseamos na tradução francesa de Hanson e na nota que ele
coloca na gina 117, onde cita a parte da confissão de São Patrício, versículo 38, linhas 2 e 3. Nestas linhas,
Patrício claramente fala de renascimento no sentido de renascer em Deus e ele usa a palavra “renascerentur”.
Se aqui quisesse tratar desta questão, pensamos que usaria os mesmos termos.
66
As que mantêm e prezam pelo domínio próprio, que se abstém dos prazeres, etc.
122
Segundo Patrício, estas virgens de Cristo e mulheres religiosas davam a ele
espontaneamente alguns “pequenos presentes” e “seus adornos” que “costumavam jogar ao
altar”. Ele nos fala que devolvia tudo, esperando se proteger de qualquer coisa que fosse e
não ser acusado de desonestidade e que elas “se escandalizavam” com este fato. Segundo as
crenças pagãs célticas, era comum a prática de ofertas votivas em rituais religiosos e
cerimônias de culto. A arqueologia encontrou inúmeras peças de ouro, espadas e vários
outros artefatos que foram lançados como oferta em lagos e em outros lugares (Green,
1996). É totalmente compreensível o fato destas mulheres terem se escandalizado com
Patrício. Podemos imaginar que elas tenham se assustado com esta atitude de Patrício, pois,
para elas, isso era uma prática comum, fazia parte da cultura irlandesa deste período
específico. Patrício desejava não ser acusado nem mesmo nesse “mínimo detalhe” e não
queria dar qualquer margem para difamação ou depreciação por parte dos incrédulos” e,
segundo ele, era por isso que devolvia até mesmo estes adornos (Confissão, 49). É
justamente disto que Patrício está se defendendo em sua carta. Ele então pergunta: “Por
acaso quando batizei milhares de pessoas esperava algo em troca?” Patrício ainda diz que
se alguém tem alguma acusação direta contra ele que digam e ele restituirá tudo, ainda que
seja “o valor de um par de sapatos” (Confissão, 50). Segundo Patrício, “de vez em quando”,
foi ele quem “deu presentes” aos reis e também “recompensas” aos filhos destes reis que
viajavam com ele. Ele ainda diz que um dia ele foi preso junto com estes seus
companheiros e tudo deles foi saqueado. Tudo que foi encontrado com Patrício e os que
estavam com ele foi levado e ele ainda foi preso, ficando quatorze dias na prisão.
Patrício faz no versículo sessenta de sua Confissão uma comparação de Cristo com
o sol. Segundo ele, o sol que nós podemos ver nasce todos os dias para nós sob o comando
de Deus, mas nunca governará e nem “irá durar” o seu esplendor. Patrício afirma que
123
“todos que adoram este astro irão desgraçadamente cair em punição”. No lugar do sol que
os irlandeses adoravam, Patrício apresenta, então, Cristo, o “verdadeiro sol”. E ele
conclama todos os irlandeses a adorarem este sol, “que nunca morrerá”. Segundo Patrício,
aquele que fizer a vontade de Deus também “nunca morrerá”, mas permanecerá para
sempre exatamente como Cristo “permanece eternamente” e que “reinará com Deus e com
o Espírito Santo” (Confissão, 60). Em suas reclamações e diálogos com Coroticus, o chefe
bretão, Patrício diz que está vivendo entre os bárbaros para pregar o evangelho. Ele diz que
vive como um “fugitivo”, “um estrangeiro” na Irlanda (Carta, 1). Neste momento em que
Patrício está falando de suas dificuldades, ele usa o termo “bárbaro” para se referir aos
irlandeses, para caracterizar a amplitude de seus problemas e para usar uma figura de
retórica conhecida por seu interlocutor, já quando o objetivo é defender os irlandeses,
Patrício se inclui entre os mesmos e não utiliza este termo.
Segundo Patrício, o seu trabalho na Irlanda estava crescendo e ele estava sendo bem
sucedido. Neste sentido, para honrar o nome de Deus, valeu a pena ter deixado a casa de
seu pai, ter “vendido” sua nobre posição e ido viver “pelo resto da vida” entre um povo que
o tinha feito cativo (Carta, 10). Patrício descreve que batizou inúmeras pessoas na Irlanda e
que estava conduzindo tudo com “o maior cuidado” e que eram tantos convertidos filhos
dos Scotos e filhas dos pequenos reis que eram “monges” e “virgens de Cristo”, que,
segundo ele, já nem poderia mais enumerar (Carta, 12).
Christina Harrington diz que estas menções que Patrício fez acerca da mulher na
Irlanda celta do século V são as primeiras descrições de mulheres na história do
cristianismo irlandês. Para compreendermos melhor o que significam estas conversões
femininas neste período, deveríamos levar em consideração a religião e a sociedade pagã na
Irlanda e os papéis religiosos desempenhados pelas mulheres nesta sociedade, mas não
124
temos fontes que falem deste período (Harrington, 2002: 23). A autora afirma que a
Confissão de São Patrício e sua Carta aos soldados de Coroticus não são apenas os únicos
textos a mencionar mulheres da Irlanda celta do século V ou as nossas primeiras
informações sobre o cristianismo irlandês, mas que estas narrativas são também os únicos
textos escritos que nos chegaram de qualquer religião deste período pré-cristão da Irlanda
(Harrington, 2002: 36).
O mundo que Patrício encontrou na Irlanda celta do século V era um mundo repleto
de deuses e deusas. Assim, estes novos convertidos, discípulos de Patrício, tinham que
conviver com muitas divindades pagãs. Podemos inferir algumas dificuldades que Patrício
encontrou para convencer os irlandeses a receberem o cristianismo. Os celtas não são povos
que apresentam um pensamento sistematizado, unitário e com tendências universais. Tanto
é que jamais conseguiram formar uma unidade territorial em conjunto com uma unidade
política. Assim, Philip Freeman diz que Patrício teve dificuldade em apresentar uma
religião que vai de encontro ao sistema religioso da Irlanda antiga (Freeman, 2004: 105).
Segundo Ludwig Bieler, em direção ao fim de sua vida, Patrício descreveu um país quase
totalmente pagão (apud: Thompson, 1986: 88). Embora possamos fazer algumas perguntas
sobre os métodos utilizados por Patrício em suas tentativas de evangelizar os irlandeses,
abordar a hipótese de que se cristianizava um rei para que este conduzisse as pessoas que
viviam em torno dele à cristã, entrar em discussões sobre como os irlandeses poderiam
julgar o cristianismo enquanto não sabiam ler, se Patrício falava aos escravos com ou sem
autorização de seus donos e outras questões semelhantes, sabemos que não conseguiremos
desvendar estes mistérios. Patrício não diz nada sobre isso em suas cartas. Desta maneira,
cremos que, por meio de seus textos, são estas as informações que podemos obter acerca da
Irlanda e dos irlandeses no século V da era cristã.
125
3.6) AS CARTAS DE PATRÍCIO E UMA IMAGEM DA
CRISTIANIZAÇÃO DA IRLANDA CELTA DO
SÉCULO V
Em diversas obras sobre história do cristianismo e história da Igreja (Bury, 1905;
Liam de Paor, 1993; Brown, 1999; Cahill, 1999; Hillgarth, 2004), Patrício aparece como o
cristianizador da Irlanda. Estas maneiras de se abordar o passado da história da Irlanda
fixam narrativas, ao nosso ver, simplificadoras, e que passam uma mensagem hiperbólica
sobre Patrício. A impressão que temos é que ele foi o introdutor do cristianismo na Irlanda
ou que organizou o cristianismo que existia lá. No entanto, nos seus textos, Patrício
representa uma Irlanda pagã. Ele diz que os irlandeses até então não conheciam o Deus que
ele estava apresentando. Por meio do que escreveu, nós podemos notar que a imagem que
ele nos mostra é de uma cristianização parcial, incompleta, lenta e em desenvolvimento.
Quando se refere a Coroticus e seus ataques, uma das reclamações é que o chefe bretão
estava destruindo seu trabalho na Irlanda que, segundo ele, estava “crescendo
excelentemente com o maior cuidado” (Carta, 12).
Patrício constrói a imagem de uma cristianização problemática e envolvida em
diversas questões que lhe renderam bastante trabalho e preocupação. Segundo Patrício, ele
foi roubado, perseguido, foi preso, teve que suportar injúrias e próximo ao fim de sua vida
ainda teve sua jornada missionária questionada. Na visão dos bretões, a Irlanda era um
lugar distante habitado por povos que eram considerados salteadores, assassinos e perigosos.
Eram estes povos o alvo das missões de Patrício na Irlanda. Embora ele tivesse consciência
destes perigos e do que poderia enfrentar, resolveu ir para lá, segundo ele, não pela sua
126
vontade. Assim, a cristianização na Irlanda, segundo a imagem apresentada a nós por
Patrício em suas cartas, teve que enfrentar oposição de alguns irlandeses, enfrentar também
os freqüentes ataques que tinham como objetivo raptar pessoas para vender nos mercados
de escravos e ainda oposição de outros bretões que achavam que Patrício tinha ido para
Irlanda para obter recompensas financeiras e também pensavam que os Irlandeses não
poderiam receber o mesmo batismo que os bretões e nem a crença no mesmo Deus. O
batismo aparece, assim, relacionado com a cidadania romana. Ser batizado parece significar
ter comunhão com as crenças cristãs romanas e com a cultura romana de um certo período.
Por este motivo, mesmo que batizado, aos olhos bretões, um irlandês seria sempre um
bárbaro, afinal, um bretão era um romano e um irlandês não era. Por este motivo, os bretões
não se agradaram da idéia de que Patrício estivesse batizando irlandeses.
Patrício era um bretão que mudou sua visão com relação aos irlandeses. Próximo ao
fim de sua vida, ele já se contava entre eles. Desta maneira, por meio desta imagem que
Patrício nos passa acerca da cristianização da Irlanda celta do século V, podemos perceber
que ele conseguiu divulgar idéias cristãs na ilha de forma restrita, opaca e não sem
enfrentar resistências, somente porque conhecia o idioma dos irlandeses e durante o tempo
que trabalhou na Irlanda como escravo ele aprendeu os costumes, o funcionamento das
estruturas sociais e a cultura da Irlanda Celta. Patrício tenta mostrar aos seus questionadores
que não importava a diferença de identidade entre irlandês e bretão, todos poderiam ser
cristãos. E era isso que estava acontecendo “recentemente”. As identidades são marcadas
pelas diferenças, pela relação de existência com algo que está fora delas. Ou seja, a
identidade precisa de uma identidade distinta para existir (Kathryn Woodward, 2000:19).
Assim, esta luta entre bretões e irlandeses, que podemos observar nos escritos de Patrício, é
uma luta simbólica. Trata-se de uma luta pelo poder de representar, pelo poder de construir
127
identidades. É, neste sentido, que Patrício, por exemplo, em seu discurso (Carta 16), se
inclui entre os irlandeses mesmo sendo Bretão. Patrício, está tentando construir uma
identidade cristã irlandesa para si mesmo e para seus discípulos. Ele está tentando construir
uma “representação aceitável” (Hall, 2000: 112) de povos considerados bárbaros, mas que,
por meio do cristianismo, podem superar sua barbárie” e se tornarem concidadãos dos
“santos romanos”. No entanto, para que isso ocorresse, deveria haver um abandono das
antigas práticas. Os irlandeses do período de Patrício tinham várias divindades, entre elas o
sol. Para Patrício, estas crenças eram “impuras”, tudo isso não passava de “idolatria”. A
cristianização feita por Patrício, então, tinha como objetivo levar a “luz” aos irlandeses e
“salvá-los” da ignorância. Patrício acreditava que deveria apresentar a eles o “verdadeiro
sol” que é Cristo. Assim, Patrício nos mostra a imagem de uma cristianização que deveria
conseguir conviver com todas estas questões.
Devemos tentar compreender que esta imagem construída por Patrício era uma
resposta para outras pessoas. Ou seja, estas representações que descrevemos ao longo deste
capítulo pertencem a uma época específica e tinham sentido para uma comunidade
específica de falantes. Patrício está falando aos Seniors que o estavam criticando.
Certamente havia outras versões dos fatos que Patrício está discutindo e, por este motivo,
em várias passagens ele ressalta que está falando a verdade (Confissão: 7; 10; 18; 31; 44;
48, 54). Pelo teor da resposta de Patrício e sua insistência em dizer que foi à Irlanda em
agradecimento a Deus e por vocação e não para enriquecer-se fica nítido qual era a
acusação que estava sofrendo. Assim, nós sabemos quais são as temáticas que figuram no
discurso de Patrício.
Apesar de Thompson (1986) dizer que estes Seniors eram bretões vivendo na Irlanda,
não temos como saber ao certo se de fato o eram. Nós não temos como saber de que modo
128
foram recebidas as duas cartas de Patrício porque não nos sobrou nenhum texto do século V
que mencione esta questão. Todavia, concordamos com Dominique Maingueneau quando
ele diz que um escritor não pode se pôr nem no exterior e nem no interior da sociedade, ele
está condenado a uma difícil negociação entre o lugar e o não lugar (Maingueneau,
2006:41). Desta maneira, acreditamos que as cartas de Patrício possuem uma vocalidade
específica, estão ligadas a outros discursos, invoca outros discursos como resposta, que
não temos acesso a outras partes da rede em que os textos de Patrício estão localizados.
Todavia, isso não nos impede de ver estas cartas como algo corrente, um fluxo. Hayden
White diz que a etimologia da palavra discurso é derivada do latim discurreree sugere
movimento, deslocamento. Assim, o discurso é um empreendimento mediador, ele se volta
para a reflexividade metadiscursiva. Por isso, diz o autor, todo discurso é sempre o próprio
discurso e é também sobre os objetos que compõem o seu tema (White, 2001: 16-17).
Assim, pensamos que Patrício deve ser compreendido como fazendo parte de uma rede
simbólica e uma estrutura social localizada em alguma paratopia
67
no século V irlandês.
Esta imagem da cristianização da Irlanda celta do século V construída por Patrício a
partir das diversas representações que fez em suas cartas devia fazer sentido aos seus
leitores. Quando Patrício escreveu suas cartas, evidentemente ele sabia para quem estava
escrevendo, ele tinha planos de que elas fossem lidas por determinadas pessoas. Em nossa
opinião, devemos ter como premissa o fato de que os destinatários destas cartas seriam
capazes de identificar os referentes mencionados por Patrício e compreender as situações
evocadas por ele. Quando ele diz, por exemplo, que se recusou a “sugar as mamas” dos
homens que permitiram seu embarque no navio de sua fuga da Irlanda nos tempos de sua
67
Este é um conceito de Dominique Maingueneau (2006:41) para expressar uma incerteza quanto ao locus
discursivo de um autor. Todo texto seria proferido de uma paratopia, uma difícil negociação entre o lugar e o
não-lugar da enunciação. Paratopia é um lugar não definido, não estabilizado.
129
primeira escravidão lá, ele não explica nada sobre isso. Ou seja, ele acreditava que seus
leitores sabiam acerca do que ele estava falando. Existem diversos signos presentes em um
texto que não possuem referente algum, como, por exemplo, as palavras “sim”, “não”, “se”
etc. Mas quando Patrício usa signos que se referem a algo extradiscursivo, como no
momento em que representa o ataque de Coroticus a comunidade de cristãos que ele
discipulava, estes signos devem poder ser identificados pelo receptor da carta, neste caso,
Coroticus. Ou, em limites, pelo menos Patrício deveria acreditar que Coroticus sabia do que
se tratava. Negar isso seria afirmar uma escrita esquizofrênica, como dissemos antes, da
parte de Patrício.
Em suas cartas, como já mencionamos, Patrício faz questão de dizer que está
falando a verdade o tempo todo. Isso nos permite inferir que havia outras versões
disponíveis acerca dos mesmos acontecimentos e que Patrício está combatendo estes
discursos. Ele tenta passar a mensagem de que voltou para Irlanda em agradecimento a
Deus por tantas bênçãos recebidas e todas as representações que mencionamos ao longo
deste capítulo devem ser compreendidas neste contexto. É por isso que dissemos que todas
elas estão subsumidas ao léxico do discurso cristão. Todas as menções que Patrício faz
podem ser consideradas explicações, uma espécie de somatória que atinja seu objetivo final
que é demonstrar que ele não tinha a mínima vontade de ir para Irlanda, uma terra
longínqua, pregar o cristianismo para povos bárbaros e perigosos até ser convencido por
Deus a fazer isso por meio de um sonho em que Patrício ouve um homem de nome
Uictoricus pedindo que “caminhe novamente” entre os irlandeses.
As representações que Patrício faz em suas cartas das várias circunstâncias que ele
viveu constituem, ao nosso ver, esta imagem acerca da cristianização da Irlanda celta do
130
século V que tentamos demonstrar. Thompson afirma que Paládio
68
e Patrício formam uma
espécie de ilha. Do cristianismo irlandês anterior até este tempo não podemos saber nada e
por quase dois séculos depois, nossa ignorância é também semelhante (Thompson, 1986:
161). Os textos de Patrício são os únicos que nos chegaram deste período da história
irlandesa. Estes textos nos apresentam a visão de um homem acerca de fenômenos
presenciados por ele no século V em determinada parte do mundo. São representações
feitas em sua Confissão e na Carta que escreveu aos soldados de Coroticus, que
enfrentaram processos de negociação simbólica, como mencionamos no primeiro
capítulo desta dissertação. Estas representações estão inseridas em um momento específico,
elas atendem às exigências de comunicação das sociedades da Irlanda celta do século V.
Segundo nossa opinião, não é preciso verificar se as coisas mencionadas por Patrício
em suas cartas ocorreram da forma como ele mencionou e nem preencher as lacunas da
história do cristianismo deste período, para que esta imagem acerca da cristianização da
Irlanda celta do século V feita por ele seja importante. Ela é a única que temos e deve, ao
nosso ver, ser levada em consideração, não por se tratar dos escritos do padroeiro da Irlanda,
mas por ser o único testemunho sobrevivente deste período em questão. Por meio dos
textos do próprio Patrício, podemos perceber que ele teve vários problemas em cristianizar
os irlandeses e perto do fim de sua vida descreveu uma Irlanda ainda pagã, o que vai de
encontro à teoria mais presente na historiografia irlandesa.
O que os mais diversos historiadores citados ao longo da nossa dissertação tentaram
fazer foi construir uma história dos referentes segura e de caráter realista. Assim, eles
acreditavam que por meio dos indícios deixados por Patrício e recorrendo a outros auxílios
possíveis poderíamos reconstruir o contexto da Irlanda celta do século V onde o próprio
68
O primeiro a tentar divulgar o cristianismo na Irlanda.
131
Patrício teria vivido. Houve uma Irlanda e houve um Patrício que existiu fora do texto, mas
não mais e não mais desde o século V. Será assim enquanto insistirmos em uma
dicotomia entre a “representação” e o “real”, entre o Patrício (sujeito) e a Irlanda de sua
época (objeto de representação). Entendemos que estamos falando de três coisas situadas
no passado por meio de uma que nos chegou, ou seja, o documento. Primeiramente,
Patrício. Em segundo lugar, os destinatários das cartas de Patrício. Por fim, estamos falando
das coisas as quais Patrício se refere. Quando Patrício registra por escrito seu discurso, que
envia a outras pessoas, ele constrói representações que comunicam algo aos seus leitores.
Ou seja, aqueles que vão ler suas cartas devem compreender acerca do que se fala.
Pensamos que nem Patrício, nem seus leitores e nem os referentes mencionados são
entidades fixas. Por este motivo que gostaríamos de dizer: Irlanda, Patrício e
representações. O que é que está ocorrendo? Quem é o sujeito e de onde é que ele profere
seus enunciados? Acerca de quê ele fala?
Existe um jogo simbólico, uma rede comunicativa. Trata-se de representações em
conflitos. Isso significa dizer que as representações que Patrício estava elaborando
influenciavam-no no mesmo momento em que estavam sendo construídas e em um
complexo entrelaçamento, para usar uma metáfora celta, já eram elas mesmas modificadas.
Este é o problema da paratopia. Não temos um sujeito fixo, de um lado, registrando em
uma linguagem imóvel, os objetos também consolidados, de outro. Assim, nesta dissertação
tentamos identificar uma imagem construída por Patrício a partir das representações acerca
da Irlanda celta do século V feitas por ele em suas cartas. Todavia, esta é apenas uma
imagem possível e isso deve ser levado em consideração. Por fim, isso significa dizer que
entendemos as cartas de Patrício como referentes. Elas, por si só, constituem processos
únicos que apresentam características específicas, situações determinadas, uma linguagem
132
própria e um aspecto peculiar. As cartas de Patrício são para nós, então, semióforos
69
,
repositórios de sensibilidades e, no entanto, apenas um comentário feito por um homem que
não existe mais acerca de uma Irlanda que está perdida para sempre.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
pós o século VII, surgiram várias histórias acerca do personagem da
história irlandesa estudado nesta dissertação. Não existe apenas um
Patrício, mas vários Patrícios construídos por diversas pessoas, em
vários momentos e atendendo a necessidades específicas. Da mesma maneira que temos
uma imagem predominante de um Jesus branco, de cabelos longos e de olhos claros,
representado por vezes com uma coroa de espinhos ou crucificado, também temos algo
desta natureza com relação a São Patrício. Ele geralmente aparece com um báculo na mão
direita, conduzindo várias serpentes para fora da Irlanda, trajando vestimentas verdes e
usando barba e cabelos grandes.
Se formos investigar cada um dos relatos, desde a Vita Patricii de Muirchú até
textos mais próximos de nós, veremos que as representações acerca do padroeiro irlandês
mudam e vinculam-se aos mais diversos acontecimentos e interpretações dependendo de
cada época e de seus interesses. São Patrício, assim como todos os heróis sagrados das
grandes religiões do mundo, é uma miragem na mente dos crentes e a fixação em qualquer
versão particular do padroeiro irlandês é uma questão de escolha e não uma questão de
69
Trata-se de um conceito desenvolvido por Krzysztof Pomiam. Semióforo significa “objeto visível dotado de
significado”.
A
133
verdade ou falsidade histórica. Uma história que tivesse como objetivo analisar a
construção destas imagens de São Patrício e suas várias possibilidades, tendo em vista
diversos momentos e aspectos da história irlandesa, poderia ser chamada de história das
representações. No entanto, é preciso compreender como o conceito de representação está
sendo utilizado na elaboração de uma história com tais pretensões.
dois grupos de representações bem evidentes acerca de Patrício. O primeiro é o
que analisamos nesta dissertação, em que podemos perceber que ele aparece sempre
diminuto e pecador; o segundo é posterior ao século VII, sobretudo a partir da obra de
Muirchu, no qual podemos perceber um Patrício grandioso e cheio de poder. A
historiografia irlandesa, em linhas gerais, caracterizou as representações pertencentes a este
segundo modelo como “meras ficções”. Assim sendo, existe uma marca pejorativa sobre
estes documentos escritos após o século VII. Por este motivo, as representações
encontradas neles seriam inferiores àquelas existentes nos textos escritos pelo próprio
Patrício que temos estudado até o presente momento.
O conceito de representação empregado em uma história desta natureza está claro,
trata-se da representação como um “desvio do real”, uma construção que se difere do que
teria “realmente” acontecido. Assim sendo, existiria uma história das representações,
completamente diferente de uma história dos fatos. De um lado teríamos os fatos,
fenômenos acontecidos no mundo real empírico; e de outro, teríamos as representações
destes, compreendidas como construções desviantes do real. Escrever uma história das
representações de São Patrício atendendo a estas exigências, por exemplo, seria observar
todas estas construções que foram feitas ao longo do tempo, tentando identificar nelas as
mudanças e permanências, de modo que pudéssemos constatar como certas imagens de
Patrício foram dadas a ler em determinados momentos da história de uma maneira e em
134
outros momentos de outra. Todavia, para uma história das representações elaborada nestes
termos, existiria um Patrício verdadeiro e que por inúmeros motivos foi representado de
várias maneiras distintas do que “realmente foi”. Assim, o Patrício “real” seria algo
longínquo e estas imagens ocupariam as mentes dos que o imaginam, compreendidas,
porém, apenas como representações, ou seja: não são os fatos. Estes Patrícios seriam
compreendidos apenas como miragens, eles são imagens e não o homem que um dia
caminhou por terras irlandesas.
Pelo que foi exposto ao longo desta dissertação, esperamos que tenha ficado claro
que não estamos usando o termo representação neste sentido. Não pensamos uma história
das representações em oposição a uma história dos fatos. Temos falado o tempo todo das
representações feitas por Patrício e não de representações feitas sobre ele e, como
mostramos no segundo capítulo deste trabalho, mantemos um certo afastamento com
relação ao que a historiografia irlandesa diz sobre este tema. Apresentamos a hipótese de
que em suas cartas, Patrício construiu uma imagem da cristianização da Irlanda celta do
século V a partir de várias representações que ele fez acerca de vários momentos de sua
vida e suas vivências de missionário em um tempo e lugar específico. Mostramos que
existe uma forma de ver esta questão que não prioriza os referentes e nem deseja escrever
uma história que os colete, organize e descreva tendo por objetivo a construção de um
sistema narrativo de caráter realista para competir pelo título de mais plausível ou
verdadeiro com outros enredos que elaboraram histórias com estas concepções e sentidos.
As cartas que escreveu são representações do que Patrício viu, a Irlanda vista por ele
mesmo está perdida para sempre. No entanto, não são meras representações. Nem as
representações posteriores ao século VII, desenvolvidas a partir da obra de Muirchú, e nem
as elaboradas pelo próprio Patrício, devem ser compreendidas desta maneira. Estas
135
representações não são nem inferiores e nem superiores umas as outras e nem em relação a
uma história que se diz factual, de pretensões realistas. São apenas discursos possíveis, que
fazem parte de uma rede argumentativa específica estabelecida para preencher as
necessidades da época em que estes enunciados surgiram. Representação deve ser
compreendida em voz média. Não se trata apenas de dizer se a representação representa ou
não. Existiu uma Irlanda que não dependia da mente de Patrício para ter seu lugar no tempo
e no espaço. Nos tempos que Patrício era uma criança bretã vivendo com seus pais em
Banauem Taburniae, a Irlanda já existia, independentemente dele representá-la ou não. Pela
interpretação textualista, não podemos conhecer esta Irlanda porque não temos mais acesso
a ela devido a situar-se no passado. Segundo um modo realista de pensar, nós poderíamos
conhecê-la por meio de indícios, neste caso, o problema é que só temos as cartas de Patrício
para ser nossas testemunhas.
Levando em consideração apenas estas duas maneiras de compreender o problema
da representação, estaremos presos em uma disputa dual que promete demorar tempos
infindos. De um lado está o sujeito que representa algo por meio das palavras que escreve e
de outro está o objeto que é representado por ele. Este tipo de interpretação tem como
premissa o fato de que a mente é estabelecida e dotada de uma razão potente capaz de
conhecer os fenômenos do mundo empírico e representá-los por meio de pensamentos,
idéias ou palavras. Acreditamos que quando Patrício escreveu suas cartas, ele representou a
Irlanda celta do século V e construiu uma imagem da cristianização. No entanto, ele está
situado em uma negociação entre lugar e não lugar. Patrício não está nem no interior e nem
no exterior da sociedade irlandesa, ele está, portanto, em uma paratopia, em algum tempo-
espaço entre a Bretanha e a Irlanda celta do século V. Com isso, queremos dizer que as
coisas não eram claras e objetivas nem para o Próprio Patrício. Ao refletir e escrever sobre
136
a Irlanda, sobre os celtas, sobre a escravidão, a fé, as mulheres irlandesas, os reis, a
cristianização e sobre si mesmo, ele estava falando para outro e para si ao mesmo tempo.
Patrício estava envolvido em algo maior que ele, uma época e todas as suas
peripécias. Neste sentido, não precisamos de referentes e nem de defender a veracidade ou
não dos mesmos para atribuir sentido às cartas de Patrício. Se compreendermos em voz
média as representações feitas por Patrício, veremos que na tentativa de convencer outros,
ele estava se convencendo também, querendo justificar sua vida para seus acusadores, ele
também a estava justificando para si mesmo. Justificando-se para outro e para si. Desta
maneira, acreditamos que Patrício não deve ser compreendido como um sujeito que
representou, como se o ato de representar fosse algo objetivo, claro, direto e simples. Ao
contrário, pensamos que ele estava envolvido em negociações semióticas complexas e em
processos que ele mesmo desconhecia. Não existem situações fixas, estáveis e
determinadas a priori. Trata-se da experiência da negociação simbólica. Da escolha entre
signos possíveis em uma determinada cultura de uma época específica. Por isso dissemos
no primeiro capítulo que gostaríamos de expressar esta relação complexa por meio da frase:
“Há representações, há Patrício e há Irlanda”.
Patrício construiu uma imagem da cristianização da Irlanda celta do século V por
meio das representações que fez de várias situações em suas cartas. Esperamos que ao
longo destes capítulos tenhamos conseguido apresentar bem esta hipótese. Neste sentido,
esta dissertação é uma representação de representações. Ela pretendeu representar
textualmente alguns fenômenos ocorridos no passado humano e estes fenômenos, por sua
vez, envolvem um ente realíssimo, e envolve também um lugar realíssimo, e os escritos
deste ente sobre este lugar. Acreditamos que estas representações não devam ser
compreendidas separadamente ou até mesmo como sendo opostas ao real. O pensamento e
137
a realidade são intrínsecos, um não pode ser abstraído sem o outro. Nas cartas de Patrício
temos uma opinião acerca de uma época e de um lugar específico na história da Irlanda e as
representações que fez deveriam poder ser compreendidas minimamente por seus leitores.
Assim, se por um lado, Patrício configurou com toda subjetividade que lhe cabe uma certa
imagem da cristianização da Irlanda; por outro, não é qualquer imagem que ele poderia
construir. Como estava dialogando com outros entes realíssimos, ele deveria lhes falar
acerca de elementos que poderiam ser reconhecidos por eles mediante uma invocação dos
mesmos por meio de representações textuais. Se estas noções foram compreendidas, esta
dissertação conseguiu se aproximar do objetivo proposto.
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