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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
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Modernidade – Uma leitura da identidade cultural da geração dos anos 80
GOIÂNIA
2008
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CRISTIANO VINICIUS DE OLIVEIRA GOMES
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Modernidade – uma leitura da identidade cultural da geração dos anos 80
Dissertação, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
História da Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia da
Universidade Federal de Goiás, para obtenção título de mestre em
História.
Área de Concentração: Cultura, Fronteiras e Identidades
Linha de Pesquisa: Identidades, Fronteiras e Culturas de
Migração
Orientadora: Prof.ª Drª Libertad Borges Bittencourt
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DEPOIS DO COMEÇO – AS COMPOSIÇÕES DE RENATO RUSSO
Modernidade – uma leitura da identidade cultural na geração do anos 80
Dissertação defendida pelo Programa de Pós-Graduação em História,
nivel mestrado, da Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia da
Universidade Federal de Goiás, aprovado em ____________ de
__________ de __________ pela banca examinadora constituída pelos
seguintes professores:
_______________________________________________
Presidente: Profª Drª Libertad Borges Bittencourt
_______________________________________________
Examinadora: Profª Drª Maria Amélia Garcia de Alencar
________________________________________________
Examinador: Profª Drª Maria Therezinha Ferraz de Mello
________________________________________________
Suplente: Profª Drª Fabiana de Souza Fredrigo
GONIA
2008
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Dedico este trabalho a Leonor Barbosa Gomes e a
Almerinda Dias Fonseca, minhas avós e alicerces sempre
vivos na minha vida; a Iran Barbosa Gomes e a Almerinda
Rosa de Oliveira Gomes, meus pais, aos quais sou
eternamente grato; a Carmem Lúcia de Oliveira Gomes,
minha “madrinha-mãe”, zelosa em todos os momentos da
minha vida; a Fernanda Rodrigues Alves de Oliveira
Gomes, esposa, amante e companheira de todas as horas;
e a Caius Vinicius de Oliveira Gomes, irmão, amigo e
conselheiro inseparável.
13
AGRADECIMENTOS
Agradeço, sinceramente, a todos aqueles que de qualquer forma
contribuiram para a realização desta pesquisa dissertativa. Humildemente,
venho enaltecê-las, pois suas observações possibilitaram direta ou
indiretamente da confecção deste trabalho. Antes de enumerar as pessoas
indispensáveis para a realização dessa dissertação, peço desculpas pela não
citação de nomes que neste momento me escapam, pois, para mim, enumerar
é, por si só, excludente e, portanto, injusto. Diante disso, venho, nesse breve
agradecimento, enaltecer a participação de alguns sem os quais esse trabalho
talvez não teria sido realizado, pelo menos da maneira como o foi.
Primeiramente, gostaria de agradecer a orientação da Profª Libertad
Borges Bittencourt. O carinho, a dedicação, a paciência e a atenção ao me
orientar foi de um brilhantismo indescritível. Não palavras para mensurar a
relevância das observações, das “puxadas de orelha” e, principalmente, dos
apontamentos feitos à pesquisa, não nos momentos em que era
requisitada, mas em todo o processo, quase que integralmente. Em todos os
momentos me senti acompanhado e norteado naquilo que deveria ser feito
para a melhor construção da pesquisa ante o nosso objeto. Sou muito grato
pela dedicação e orientação.
Ainda a título de gratidão, gostaria de prestar meus préstimos às Profªs
Maria Amélia Garcia de Alencar e Fabiana de Souza Fredrigo pelas leituras
atenciosas e suas devidas observações, as quais muito me valeram para a
realização da pesquisa. Nesse sentido, agradeço tamm ao Profª Maria
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Therezinha Ferraz de Mello pela predisposição em apreciar a pesquisa que me
dediquei a fazê-la.
Rendo, ainda, enorme gratidão às contribuições feitas pelos Professores
Noé Freire Sandes, Élio Cantalício Serpa e, especialmente, a Carlos Oiti
Berbert nior pelas provocações intelectuais oportunas no desenvolvimento
de uma pesquisa, sobretudo no que tange à Teoria da História.
Deixo tamm, à guisa de gratidão, o registro fundamental na
colaboração, na amizade e no carinho de amigos que problematizaram, de
modo crítico, perante nosso objeto, contribuindo, numa gradação ímpar, para o
enriquecimento da nossa pesquisa. Dentre os amigos que se encaixam na
premissa elencada acima, impossível não citar a presença sempre marcante
de Dayane Sousa Macelai de Oliveira Gomes, Cristiano Alexandre dos Santos,
Américo Henrique Marques do Couto e Jutorides Alves Damascena.
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DEPOIS DO COMEÇO
Vamos deixar as janelas abertas
Deixar o equilíbrio ir embo
Cair como um saxofone na calçada
Amarrar um fio de cobre no pescoço
Acender um intervalo pelo filtro
Usar um extintor como lençol
Jogar pólo-aquático na cama
Ficar deslizando pelo teto
Da nossa crga e medieval
Cantar canções em línguas estranhas
Retalhar as cortinas desarmadas
Com a faca suja que a fé sujou
Desarmar os brinquedos indecentes
E a indecência pura dos retratos no salão
Vamos beber livros e mastigar tapetes
Catar pontas de cigarros nas paredes
Abrir a geladeira e deixar o vento sair
Cuspir um dia qualquer no futuro
De quem já desapareceu
Deus, Deus, somos todos ateus
Vamos cortar os cabelos do príncipe
E entregá-los a um deus plebeu
E depois do começo
O que vier vai começar a ser o fim.
(Depois do Começo, 1987)
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Sumário
Resumo ------------------------------------------------------------------------------------------09
Abstract ------------------------------------------------------------------------------------------10
Introdução ---------------------------------------------------------------------------------------11
Capítulo I – A Cidade – O Cenário da Legião Urbana -------------------------------33
Capítulo II – Modernidade – Crise da Razão Hegemônia: Do Indivíduo
Universal ao Fragmentado ------------------------------------------------------------------57
Capítulo III – Outras razões – Novas alternativas e outros problemas ----------97
Capítulo IV – A valorização da lógica doméstica: a percepção do outro (ou dos
outros) na vida privada ----------------------------------------------------------------------117
Capítulo V – Do desespero, da desilusão à busca de um(s) sentido(s) -------144
Considerações Finais -----------------------------------------------------------------------177
Discografia -------------------------------------------------------------------------------------182
Referências Bibliográficas -----------------------------------------------------------------183
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Resumo
A década de 1980, no Brasil, constituiu-se num cenário que envolveu
uma abertura açambarcadora de uma realidade que não se limitou tão somente
ao âmbito político, mas trouxe um conjunto de realidades capazes de
redinamizar, inclusive, a produção historiográfica. Nesse sentido, um novo
campo de possibilidades emergiu, redimensionando a produção historiográfica
ao trazer à tona uma gama de objetos, com novas abordagens, até então
negligenciados pela pesquisa acadêmica.
Trabalhar com letras de música, como uma abertura para elucidar os
caminhos para a construção da identidade cultural, é reforçar a emergência
dessa redefinição metodológica e perceber objetos competentes em ressaltar
novas perspectivas perante a pesquisa a qual se destina.
Partindo dessa premissa, o estudo acerca do conceito identidade ganha
a dimensão de perceber nas composições de Renato Russo indícios de uma
constituição identitária ainda não experimentada, multilateralizando sujeitos
pela fragmentação dos mesmos.
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Abstract
The 1980s in Brazil was made of scenery that depicted a wide opening of
a reality that was not limited only to the political issue, but created many
realities able to rebuild the historiography productions. Thus, a new field of
possibilities grew, rebuilding the historiography production by creating many
objects, with new uses, until then neglected by the academic research.
Working with music words, as a form to create ways to build the cultural
identity, means to emphasizes the emergency of this methodological
redefinition and realize the compound objects in creating new perspectives
about the research to which it is designed.
Taking this into account, the study about identity gains the dimension of
realizing in Renato Russo’s songs evidences of an identity construction which
was not seen yet, giving the subjects many meanings by their own
fragmentation.
11
Introdução
Ponto de discussão difundido na historiografia atual é o que abarca a
redefinição paradigmática ocorrida na produção da pesquisa histórica. Certo,
nessa discussão, é conceber uma série de transformações as quais
suscitaram novas concepções históricas entendidas, tanto como processo e,
na mesma intensidade, como produção de conhecimento objetivo, o qual
pressupõe metodologias e problemáticas novas, num quadro de abordagens
até então secundarizados, quando não descartados, pela pesquisa
acadêmica. Posto isto, houve quem argumentasse no sentido de uma
bipartição no sistema referencial, calcada numa perspectiva moderna e s-
moderna. (Cardoso,1997)
Dado o reconhecimento da relevância de se travar embates
historiográficos acerca dessa questão, faz-se mister um enfoque acerca
das concepções sobre identidade, pondo em relevo uma perspectiva de se
enxergar a produção de pesquisa. Por esse caminho, cabe ressaltar a
impossibilidade de se conceber a modernidade nos moldes de como era
entendida até meados do século XX.
Uma série de alterações de fundo histórico repercutiram sobremaneira
na percepção da modernidade. Alguns pensadores das vertentes voltadas
para pesquisas envolvendo questões sociais sustentam a idéia de que a
modernidade já foi superada. Assim, inaugurou-se uma nova abordagem
social atrelada a um alicerce pós-moderno, de fragmentações de culturas,
de um individualismo consumista e que se consome na dimensão social,
cultural e econômica, de uma multiplicidade identitária e de um desapego a
12
grandes modelos ideológicos e até mesmo teóricos. ( Hall, 2003, p. 18-22)
Nesse prisma, cabe pensar a modernidade no âmbito das transformações
oriundas da conotação dada às instituições ideológicas, políticas, culturais,
entre outros, inseridas num campo representacional capaz de elucidar um
novo estado de coisas que captou uma percepção de mobilidade
identificada, sobretudo, na segunda metade do século XX.
Acerca da modernidade, tanto para os que consideram ainda estar o
mundo inserido na modernidade quanto para os que defendem uma
transposição da mesma, uma série de alterações, desnudadas a partir do
ponto temporal tomado acima por referência, deram uma nova configuração
ao sentido referido como moderno e de como o mesmo enquadrou-se com
esse rearranjo. A modernidade, como assevera Marshall Berman, é o
envolvimento de adventos que a inserem num turbilhão no qual as fontes
foram alimentadas por:
grandes descobertas nas ciências físicas, com a mudança
da nossa imagem do universo e do lugar que ocupamos
nele; a industrialização da produção, que transforma
conhecimento científico em tecnologia, cria novos
ambientes humanos e destrói os antigos, acelera o próprio
ritmo de vida, gera novas formas de poder corporativo e de
luta de classes; descomunal explosão demográfica, que
penaliza milhões de pessoas arrancadas de seu habitat
ancestral, empurrando-as pelos caminhos do mundo em
direção a novas vidas; rápido e muitas vezes catastrófico
crescimento urbano, sistemas de comunicação de massa,
dinâmicos em seu desenvolvimento que embrulham e
amarram, no mesmo pacote, os mais variados indivíduos e
sociedades; Estados nacionais cada vez mais poderosos,
burocraticamente estruturados e geridos, que lutam com
obstinação para expandir seu poder; movimentos sociais de
massa e de nações, desafiando seus governantes políticos
ou econômicos, lutando por obter algum controle sobre
suas vidas;.... No século XX, os processos sociais que dão
vida a esse turbilhão, mantendo-o num perpétuo estado de
vir-a-ser, vêm a chamar-se ‘modernização’. (Berman,1995,
p. 16)
13
As concepções de modernidade se firmaram, paradoxalmente, no
âmbito de pressupostos que a negavam anteriormente, numa perspectiva
capaz de renovar antigos conceitos, recriando-os e negando-os. A negativa
da concepção do homem coletivo perante o individualismo proposto pela
noção antropocêntrica humanista, aflorada no Renascimento, foi uma mola
propulsora para fundamentar mudanças, as quais ensejaram um novo tipo
de sujeito.
Um processo ainda em definição implicou na fragmentação de um
conjunto de valores, determinantes na formação de um novo tipo de
acepção no mundo ocidental. A descaracterização do sentido da verdade,
revelada pela emergência de uma noção racionalista visando obtê-la pela
demonstração, inserida, numa perspectiva cientificista, trouxe na concepção
do indivíduo uma abertura para um conhecimento, até então jamais
experimentado. Ainda que ocorresse, por parte dos renascentistas, uma
retomada dos valores da Antiguidade Clássica, esse novo estágio do
pensamento não significou uma filiação automática ao processo iniciado
pelos gregos e romanos. Ademais, essa inversão paradigmática, que
passou a enxergar o homem inserido no universo que o constitui enunciava
uma infinidade de suportes nos quais os homens se estabeleceriam e
possibilitariam os questionamentos inerentes à própria dinâmica de
transformação que envolveu o Ocidente.
A sustentação do conhecimento, que teve em René Descartes um
dos pioneiros, ao fundamentar uma noção racional através da qual o
método firma-se como indispensável para a demonstração de um objeto
cognoscente, abriu possibilidades para que as esferas políticas, sócio-
14
econômicas e culturais fossem avaliadas sob outro parâmetro. Este
intencionava evidenciar uma infinidade de possibilidades aentão negadas
pelos cânones tradicionais.
Assim, o Iluminismo, como prefere Falcon, ou a Ilustração, como
prefere Rouanet, foi o ápice de um movimento, no qual a razão foi colocada
como centro, tornando-se, pois, vitoriosa na universalização de um
paradigma que intentava justificar seu exercício e a emancipalção do
indíviduo. A reorientação da concepção de mundo, pondo abaixo a base de
sustentação absolutista, sustentada por Maquiavel, Hobbes, Bossuet e
Bodin, possibilitou a emergência de uma gama de pensadores iluministas,
ou ilustracionistas, do século XVIII. Esses, alicerçados numa emancipação
do indivíduo que estava em curso desde a Renascença, teorizaram as
bases que desatrelava o Estado dos limites monopolistas e
intervencionistas, criando uma noção liberal tanto na seara política quanto
na econômica. Nessa base de argumentação, o pensamento do século
XVIII teve em Locke, Rousseau e Montesquieu, no âmbito político, o
sustentáculo do pensamento que filosoficamente propôs, numa construção
racional, a substituição do modelo de poder totalizante. A descentralização
política assumia, na representação política de uma classe ou do povo, o
elemento capaz de exercer a soberania e de ditar o destino de uma nação.
na vertente econômica, que se imbrica diretamente àquela, a Escola
Fisiocrata e a Clássica, tendo por principal expoente Adam Smith, deram,
num primeiro momento, as diretrizes de como a economia deveria despir-se
das amarras monopolistas protecionistas.
15
No século XIX, no entanto, esse conjunto de teorias, capazes de
derrubar o regime rotulado como antigo, viu-se incapaz de colocar como
sujeitos grande parte da população, a qual, com a modernidade, encontrou-
se destituída dos valores tradicionais e incorporada por uma noção
contratual que não a admitia como signatária. Ao contrário, a apartava e
impossibilitava a concretude tão sonhada pelos filósofos liberais, dando
vazão para um novo conjunto de idéias que, concomitantemente, afirmavam
e negavam a antecessora modernidade, possibilitando o surgimento de
outros modelos explicativos universais. No dezenove, acrescendo-se às
teorias liberais, houve o surgimento de pensadores como Hegel, Freud,
Marx, Bakunin, dentre outros, os quais trouxeram novos questionamentos
às problemáticas que não se esgotavam nos limites da primeira construção
iluminista. A base socialista de pensamento, seja na sua vertente utópica,
seja na marxista, o anarquismo e o positivismo enquadram-se como
negativas do pensamento liberal na sua fase inicial; todavia, mesmo que
assumindo posicionamentos diferenciados na articulação do indivíduo com
a perspectiva universal, estão fincados na base racional iluminista e
reforçam sobremaneira a modernidade.
Nesse compasso de mudanças ideológicas dinamizadas
historicamente inserem o indivíduo no turbilhão sustentado por Marshall
Berman. A organização dos trabalhadores em Trade Unions, o excedente
de capitais acumulados nas primeira e segunda fases da Revolução
Industrial, as crises de 1830 e do último quartel do século XIX, bem como a
mudança do capitalismo concorrencial para o monopolista e financeiro são
alguns ingredientes que reforçam as contradições da modernidade no seu
16
proceso de construção. O imperialismo do século XIX, a metodização da
produção num modelo Fordista-Taylorista, a instrumentalização da
pseudoinfalibilidade da Belle Epoque, dentre outros, são fatores que
constituem a modernidade, os quais, dentro da dinamicidade que lhe é
inerente, a deixam incompleta na sua auto sustentação.
No culo XX, a modernidade caminhou num sentido que, apesar de
várias faces, culminava numa equação na qual o indivíduo foi a resultante
dos projetos. Assim, esse século foi responsável por uma grande, mas não
a única, inversão dos parâmetros da modernidade e do sujeito moderno. Os
projetos, que ganharam força sobretudo na segunda metade do dezenove,
entram em colapso na segunda metade do vinte, desencadendo crises
econômicas e sociais, guerras fratricidas e mundiais, bem como a não
inclusão dos países pobres nos parâmetros sugeridos do desenvolvimento
capitalista, instrumentalizando uma noção de razão que aniquila o humano,
como preceitua Habermas.
A cada de setenta do século XX foi palco de uma fragmentação
que se vincula a uma crise reorientadora da modernidade. A falência do
Estado socialista, construído nas bases stalinistas, a crise no capitalismo
oriunda da cartelização do preço do petróleo pelos países membros da
OPEP, a redefinição no sistema produtivo, gerando a especialização
complexa da mão de obra e a pesquisa de novas fontes energéticas o
alguns elementos que fizeram parte desse novo quadro de acontecimentos.
Nesse processo, a modernidade se estabelece em novas bases
justapondo-se e interpenetrando esse conjunto de alterações inseridas num
conjunto de mudanças que abarcam também a percepção do sujeito
17
moderno. Os movimentos de maio de 1968, o hippie, o dos Panteras
Negras e a Primavera de Praga o alguns, dentre uma rie, que
ressaltam alterações, desilusões e ausência da crença nos modelos ditados
tanto pelo capitalismo quanto pelo socialismo. Numa nova subjetividade que
produz uma esécie de catarse coletiva, os movimentos da década de
sessenta foram o mote para uma construção identitária desvinculada das
utopias articuladas e exercitadas na modernidade. A sociedade como um
todo e, particularmente, a juventude, talvez por ser ela a vítima mais
contumaz do processo que não a incluia, estiveram na esteira dos
acontecimentos. Jovens, gays, jovens mulheres, jovens negros, dentre
outros, senão na idade, na atitude, foram a mola mestra das
transformações. Nesse sentido, Ridenti enuncia as caracterísitcas dos
movimentos libertários de 1968, as quais, se não abarcavam o mundo todo,
eram a mola propulsora de uma mudança que não se encaixaria no modelo
identitário de até então. Uma série de novas situações e posturas
assumidas perante elas contribuiram para a formação da identidade que se
estabeleceria a partir da década de 1960 e 1970:
Foram características dos movimentos libertários de 1968
no mundo todo: inserção numa conjuntura internacional de
prosperidade econômica; crise no sistema escolar;
ascenção da ética da revolta e da revolução; busca do
alargamento dos sistemas de participação política, cada
vez mais desacretitados; simpatia pelas propostas
revolucionária alternativas ao marxismo soviético; recusa
de guerras coloniais ou imperialista; nagação da sociedade
de consumo; aproximação entre arte e política; uso de rec
ursos de desobediência civil; ânsia de libertação pessoal
das estruturas do sistema (capitalista ou comunista);
mudanças comportamentais; vinculação estreita entre lutas
amplas e interresses imediatos das pessoas; aparecimento
de aspectos precursores do pacifismo, da ecologia, da
antipsiquiatria, do feminismo, de movimentos
homossexuais, de minorias étnicas e outros que viriam a
desenvolver-se nos anos seguintes. (Reis filho, Ferreira e
Zenha, 2000 , p. 156)
18
A Guerra Fria na sua situação bipolar, no contexto da modernidade
que se anunciava firme em direção da emancipação do indivíduo pela razão
seja liberal ou socialista, discriminou anseios que se esboçavam no fim da
segunda guerra mundial. Nesse mister, mostrou-se factível com as crises
das instituições políticas, as quais determinaram preceitos culturais que, na
década de setenta, viram-se rechaçados pela sociedade, sobretudo pela
parcela jovem. Essas alterações puseram em dúvida, dentre outras coisas,
as diretrizes econômicas, a ponto de substituir, pela inviabilidade do
mesmo, o welfare state, de promover a abertura do socialismo soviético e
de lançar as bases para uma política teorizada, mas até então
engavetada: o neoliberalismo.
Diante dessas mudanças, a razão, como peça justaposta aos
acontecimentos históricos, também redefine suas bases, denotando, na
acepção de muitos pensadores das ciências humanas, uma crise aberta a
discussões e a projetos outros ou, ainda, levando alguns a entendê-la como
marco de uma nova passagem que transcende a modernidade e abre
caminho para a pós-modernidade.
As vertentes que divergem acerca de estar o Ocidente na modernidade,
ou além dela, se coadunam ao perceber que a mesma sofre transformações e
que a revisão é uma realidade abarcadora de uma situação não acadêmica.
Desse modo, é inviável a abordagem da dimensão social, seja no âmbito
sociológico, historiografico, antropológico ou filosófico, para citar alguns, que
discrimina a interação umbilical entre o dinamizado nas vias históricas e o
produzido na pesquisa
19
No estudo acadêmico, uma assertiva, hoje, é contundente: a de que, a
partir do último quartel do século XX, a percepção do sujeito histórico moderno
trouxe à tona uma rie de perspectivas, adquirindo uma nova dinâmica. Tanto
para os que concebem a condição pós-moderna(Harvey, 2004), quanto para os
que entendem a necessidade da construção de uma modernidade em
parâmetros racionais inéditos, até então negligenciados (Rouanet,1999), a
situação do sujeito histórico-social, na sua interação com o tempo e as
inúmeras relações que se desdobram dela, postula uma infinidade de novos
anseios, projetos, os quais denotam a filiação a uma identidade que não mais
se funda na identidade construída durante os culos XIX e grande parte do
XX.
A identidade, percebida na diferença, assume a postura de emblematizar
questões que se relacionam diretamente a um fundo histórico. A modernidade,
na sua projeção, tendente à universalidade, ao não se realizar, por deixar à
deriva uma série de anseios, abriu um conjunto de caminhos alternativos frente
aos projetos globalizantes, os quais mostravam-se incapazes de perceber no
indivíduo a subjetividade e a objetividade que uma nova constituição
indentitária requeria. A crise tornou-se inevitável aos paradigmas modernos
universais e universalizantes. A falência do Estado socialista soviético, a
consolidação do referêncial neoliberal e suas contradições são apenas alguns
elementos que abalizam a revisão experimentada, principalmente a partir do
último quartel do século XX. As alterações nessa situação de fronteiras
identitárias elegeram as velhas estruturas como incompetentes para dirimir o
sentido tutelado e defendido pelas mesmas, pondo-as num descrédito que
tipifica a constituição de uma nova identidade, a qual sai do eixo fixo, rígido,
20
para configurar-se na interação multilateralizada, na qual a multiplicidade é a
mola mestra engendrada da ausência de grandes modelos norteadores de
projetos universais.
Nesse cenário, a obra de Renato Russo torna-se um objeto de analise
rico, ao buscar elucidar a crise da modernidade e sua definição identitária
perante as novas situações experimentadas. Suas composições indiciam a
complexidade dos referenciais identitários construidos em novos paradigmas,
como representação de carências e interpretações das relações estabelecidas
entre os indivíduos e destes com as instituições que teoricamente os definem
como cidadãos.
A discussão teórica acerca da modernidade, suas crises ou superações,
conforme os ângulos de análise, passa pela percepção de uma identidade que
discerne daquela projetada anteriormente, ainda que nela fundamentada, por
negação ou afirmação. Há uma diferença que alicerça novos sujeitos históricos,
redimensionado a noção de projeto, verdade e razão, alavancando uma
situação na qual a fragmentação do indivíduo ganha conotações jamais
atingidas.
Sendo assim, neste trabalho, serefletida uma discussão teórica sobre
perspectivas da modernidade e a revisão, ou crise, advinda da mesma.
Analisar-se-á as letras de Renato Russo a partir de cinco pontos referenciais.
Num primeiro plano, buscar-se-á situar a relação estreita entre o meio urbano e
o indivíduo da geração dos anos oitenta, tomando como pano de fundo o
cenário brasiliense. Num segundo momento, será posta em pauta a discussão
acerca da razão hegemonizada e suas falibilidades frente às demandas
suscitadas por uma geração que se sufocou pela inépcia de um conjunto de
21
fatores que não reconheciam o sujeito como partícipe, mas sim como um
espectador ou vítima de um processo político-econômico excludente. Nesse
sentido, buscar-se-á, nas letras do compositor, como decalque e fundamento, a
negação da modernidade, tomando particularmente o Brasil, na sua imbricação
com o mundo, sobretudo sob a ótica da ditadura militar. Assim, avaliar-se-á a
perspectiva para novas aberturas racionais, diferentes das hegemonizadas
pelos veículos modernos. Num terceiro capítulo, essa pesquisa se pautará em
possibilitar uma analise do doméstico, de sua gica, dialogando estreitamente
com as teses de Mafesoli, que enfatiza a estética doméstica, tribal, nas
relações do indivíduo nessa fase da modernidade. E por fim, no último capítulo,
será abordada a transição do desespero à busca de um, ou mais, sentidos
capazes de nortear o indivíduo nessa perpectiva identitária.
Feitas essas observações, a obra de Russo possibilita a reflexão de sua
força de penetração na geração de 1980 e 1990, conferindo relevância a esse
objeto de pesquisa que se coaduna com as novas abordagens históricas.
No campo da produção de pesquisa, as mudanças advindas com a
renovação da modernidade também fizeram-se sentir. Os referenciais
modernos de pesquisa, na seara historiográfica, possiblitaram uma nova gama
de abordagens, as quais ganharam particularidades no trato dado à pesquisa,
tanto na percepção do objeto quanto no posicionamento do sujeito perante o
mesmo. Nessa perspectiva, tomando por base um diálogo não acadêmico,
mas que trava embates com a realidade histórica que o Brasil experimentava,
sustenta Carlos Fico:
Os impasses teóricos e a renovação temática vividos por
nossa disciplina, durante os últimos anos, talvez expliquem
aquilo que poderíamos chamar de “diluição das abordagens
metodológicas escritas”, isto é, um bom mero de
pesquisas que não são exclusivamente de História Social,
22
História Política ou História Econômica, mas que - num
possível esforço de renovação situam-se em áreas de
fronteira. (Fico, 2001, p. 26)
A produção histórica no Brasil, sobretudo a partir da década de oitenta,
sofre uma alteração no referencial teórico-metodológico, abrindo possibilidades
para que novos objetos fossem passivos de abordagens historiográficas. Um
novo quadro de mudanças, que ganharam relevo no Brasil mais tardiamente,
já vinha se desenhando há um bom tempo na Europa, no que se convencionou
chamar de terceira geração dos Annales. Novos objetos, novos problemas e
novas abordagens, como bem preconizou Jacques Le Goff em trabalhos, que
traziam à tona esse novo conjunto de possibilidades de análise histórica,
deram vazão para que, também, no Brasil, essa renovação fosse realizada.
A mudança no referencial paradigmático de abordagem histórica,
colocado por muitos como uma “crise da História”, chama a atenção para
novas abordagens de análise histórica. Desde a primeira geração dos
Annales, encabeçada por Marc Bloch e Lucien Febvre, houve uma substantiva
alteração na abordagem dada ao objeto bem como em relação aos métodos
utilizados para a apreensão do mesmo. Com a segunda geração, sob a
liderança de Fernand Braudel, traçando a perspectiva de entender o objeto
histórico numa dimensão que considerasse o tempo na sua curta, média e
longa duração, não descartando, pois, o sistema referencial de entender a
História sob a ótica holística, houve um novo fôlego no trato dado ao modelo
teórico-metodológico. No entanto, foi a terceira geração que abriu,
concomitante à crise da modernidade a perspectiva de uma transformação
tamm nas pesquisas, atualmente, realizadas.
23
[...] a renovação (inclusive conceitual) de abordagens
tradicionais vem-se dando pela diluição de seus antigos
objetos de estudo. Dificilmente, como já disse outrora,
alguém defini a Nova História Cultural identificando seu
objeto, isto é, esclarecendo qual é o caráter fixo e estável
do objeto de estudo da abordagem (como, no passado, os
‘grandes grupos sociais’ foram definidos como objeto da
História Social. ( Fico, 2001, p.30)
Portanto, essa renovação historiográfica, possibilita incluir uma gama
de objetos até então tidos como afastados da possibilidade de uma
pesquisa histórica, os quais, numa perspectiva metodológica, que também
passava por renovações, dinamizam a pesquisa em parâmetros outros dos
adotados até então.
No âmbito dessas significativas transformações por que
passou a história no Brasil nos últimos 20 anos, o conceito
e a prática com as fontes também se alteraram
expressivamente. Com o volume da produção que vai se
instituindo e a multiplicação dos recortes e problemas, as
pesquisas passaram a lançar mão dos mais diversos tipos
de fontes tentando tratá-las com rigor técnico e
metodológico[...] Os historiadores agora não se utilizam
apenas de documentos depositados em arquivos, mas se
tornam igualmente sensíveis a outras modalidades de
informação, como fotografias, depoimentos orais e registros
sonoros, propagandas, programas de televisão, filmes,
artes plásticas, memórias, literatura. (Fico, 1996, p. 203-
204)
Portanto, entender a história como passível de apreender o real, dentro
das limitações tanto do sujeito quanto do objeto, num novo modelo
paradigmático, oportuniza uma série de trabalhos que trazem para a seara de
compreensão histórica objetos que até então eram desconsiderados. Inserir,
na historiografia hodierna, novos objetos, consiste numa prova cabal da
redefinição que projetou uma mudança das linhas de pesquisas acadêmicas
no Brasil.
24
Perceber nas letras de músicas
1
uma perspectiva de análise
historiográfica trouxe a possibilidade de pensar a relação da História com as
suas manifestações e como essas passam a ser parte de uma realidade
nova, dentro de um quadro de perspectivas até então afastados das
pesquisas acadêmicas. O referencial indiciário, proposto por Ginsburg,
reorienta o trato dado ao objeto, constituindo-se numa ferramenta relevante
para apreender nas letras de música uma objetividade indiciária, que respeite
a fragmentariedade do apresentado nas composições sem incorrer numa
mutilação da subjetividade de quem compôs. Nesse diapasão, buscar
indícios, sinais, a partir de uma leitura, das muitas outras possíveis, das
composições de Renato Russo possibilita avaliar, em certa medida, a
construção de uma abordagem que envolva a identidade na modernidade.
(Ginsburg, 1986, p. 143-180)
Nesse sentido, situar a obra de Renato Russo, suas letras, sua
intensidade e sensibilidade social, cultural, perante esse conjunto de
problemáticas elencadas acima, a manifestação artística através de suas
letras com uma construção identitária, torna-se uma contribuição nesse
quadro renovado. Na obra de Renato Russo há uma estreita ligação da
juventude da qual ele foi um significativo representante, no rock brasileiro dos
anos de 1980, com os dilemas incrustados na realidade brasileira. Acerca de
Renato Russo:
“O compositor conseguiu captar os anseios e inquietações
dos jovens e filtrá-los para a linguagem das letras das
canções. Temas peculiares ao universo jovem tais como a
1
No corpo da pesquisa foi feita a opção por analisar as letras das músicas, abrindo mão da pesquisa das
músicas, o arranjo do Rock e suas derivações. Não houve por parte da pesquisa a intensão de fazer uma
construção do movimento roqueiro no Brasil e no mundo. As informações sobre o rock não tiveram o
condão de rastrear o movimento musical, mas tão somente situar o leitor perante o objeto.
25
crise de identidade, a relação entre sujeito/mundo, a
geração ‘perdida’, a problemática amorosa, entre outras,
constituem o que poderia ser chamado de ‘marca
registrada da Legião Urbana’. (Fernandes Júnior, 2002, p.
53)
Nesse contexto, analisar como a geração dos anos oitenta encarna no
rock um meio de manifestar sua indignação põe em relevo uma problemática
até bem pouco tempo negligenciada.
Ao relacionar a frustração oriunda do desmanche de uma noção
moderna, que se projetava ao futuro, seja pelo vs liberal ou socialista,
desnudou um quadro de inéditas situações, as quais foram fundamentais
para a desilusão experimentada no final da década de setenta.
Particularmente, no que se refere à queso econômico-social, o Brasil
atingiu picos de inflação jamais experimentados e as repercussões
econômicas da consolidação da globalização, decalcada sobretudo com as
duas crises do petróleo na década de setenta, foram responsáveis por uma
avalanche de desilusões que, nesse instante, atingia todas as classes sociais
e colocava o Brasil numa posição desfavorável perante a dinâmica do
capitalismo.
O rock brasileiro não foi uma simples difusão e confirmação da
penetração do capital na produção artística, como apregoa José Ramos
Tinhorão. (Tinhorão, 1998, p. 340-341). Foi, antes, um movimento da
juventude de classe média urbana, ansiosa por dar vazão às suas
indignações, negando a razão modernizadora e apontando caminhos
alternativos.
A revogação do Ato institucional n.º 5 e a criação da Lei de Anistia são
pontos fulcrais para a liberalização cultural que se desencadeou no inicio da
26
década de oitenta. A lacuna, agora, não seria mais encoberta, mas
respondida com um escárnio desafiador, capaz de encontrar em
compositores como Cazuza, Arnaldo Antunes, Herbert Vianna e Renato
Russo porta-vozes de uma geração que redefinia-se no papel a ser
desempenhado frente às novas demandas. Acerca do movimento roqueiro e
sua contextualização na década de 1980, Renato Russo argumentou em
1985:
Os anos 80 o esse liqüidificador, justamente, para
mostrar que você pode usar o entretenimento e, dentro do
aspecto de massa, fazer uma coisa que vai ser considerada
arte. Por exemplo, os Beatles nunca foram lá de fazer
coisas muito profundas, existenciais. Eu acho que você
pode fazer uma coisa divertida, para cima, e ser uma coisa
que vai ter o seu valor. O que pinta muito no aspecto da
crítica, no Brasil, é justamente que eles se apegam muito a
essa coisa do triste, do Sartre, dessas coisas
existencialistas, do pessimismo da coisa dark. Claro, se
você está angustiado, se você es sozinho, numa
superparanóia e esquizofrenia e, se você tiver um pouco de
talento, vai sair uma coisa belíssima. Mas, espera ! Você
também pode usar o seu lado positivo para fazer uma coisa
legal. O nosso impasse é justamente este: fazer uma coisa
honesta e sincera e que seja para cima, para dar um força
para as pessoas. Porque, tamm, se você faz uma coisa
que é para cima, as pessoas não vão levar você a sério.
Nesse caso, elas exigem que você parta ou para a sátira,
ou para a ironia, ou para o humor. (Assad, 2000, p. 133)
Cumpre salientar que a obra de Renato Russo foi uma expoente nesse
emaranhado de novas situações. Suas composições trouxeram uma
identificação com a geração dos anos oitenta, sendo capaz de traduzir as
incertezas, as desilusões e as perspectivas de uma geração influenciada por
uma mescla do novo com o velho, pelo desmanche do que era tido como
verdade, pela invasão da velocidade da informação e da fragmentação de
idéias, doutrinas e correntes de pensamento.
As letras de Russo o um exemplo inconteste de como a identidade
cultural passa a ser concebida de modo renovado. Suas abordagens tratam
de assuntos os quais faziam parte do cotidiano de sua geração, trazendo
27
uma especificidade: a de traspassar as questões gerais, dentro de uma
gica que se mostrava envolta pelo individualismo fragmentado. Russo,
nas suas letras, soube como lidar, com seu toque poético, com temas novos,
mas, ao mesmo tempo, construídos com uma argamassa antiga, os quais, na
década de oitenta, mostravam-se impossíveis de serem camuflados, pela
própria situação na qual a modernidade se inseriu.
Nessa esfera de análise, buscar situar as letras de Renato Russo é, antes
de tudo, colocá-las dentro de uma ótica que dialogue com o novo referencial
teórico-metodológico, tomando-o como referência para contrastar suas letras.
A crise identitária, como objeto de análise de uma realidade que se perfez na
década de oitenta e noventa do culo XX, constitui-se num objeto rico ao
possibilitar caminhos para interpretações de contexto no qual a obra de
Russo foi confeccionada.
A derrocada da ditadura no Brasil e o processo de redemocratização
que se estabelecia com um grau de incertezas abarcava tanto o
esfacelamento interno dos militares, faccionados principalmente em
castelistas e linha-dura, quanto a pluralidade de perspectivas no rumo político
a ser tomado no país. Esse panorama contribuiu para uma sintetização de
rebeldia que não se esmerava mais nas ações do Centro de Produção
Cultural, na Tropicália ou na expressão poética cotidiana de Chico Buarque.
No início da década de oitenta, sobretudo nos rculos da juventude de
classe média urbana, o rock, numa postura inédita, tomou a dianteira do
repúdio ante a ordem estabelecida e vinculada a interesses, os quais eram
tomados como traidores do povo e do Brasil. Andando por um caminho, num
primeiro momento marginal, com o uso de uma linguagem fácil, direta e, em
28
certa medida, capaz de verdadeiramente contestar, o rock assumiu a
dianteira num quadro de questionamentos.
Uma configuração identitária emergia e fazia do rock, naquele
momento, o principal porta voz da geração de 1980, sequiosa de projetar
para a sociedade anseios que não mais estariam vinculados a noções
ideológicas engajadas num partido ou num movimento ideológico amplo,
comprometido com uma ótica a ser seguida e instrumentalizada.
O rock nacional foi unânime num aspecto: não trouxe consigo a idéia de
criar uma avalanche de mudanças dentro de uma ideologia coesa e uniforme.
Ao contrário, até pela heterogeneidade dos músicos, o movimento roqueiro
brasileiro foi capaz de trazer nomes que marcaram de modo substantivo a
musica brasileira, mas, ao mesmo tempo, como movimento de
representatividade explosiva, que muitos entendiam como passageira, o rock
conviveu com uma leva de músicos de pouca expressão e capacidade. O
movimento não criou uma identidade coesa, fator que demonstra uma
pluralidade típica da construção identitária que já se fazia presente.
O jornalista Arthur Dapieve(1995), argumenta que as mais relevantes
cabeças do movimento foram Cazuza, Arnaldo Antunes e Renato Russo,
sendo que, para ele, o último foi o de maior profundidade, pela capacidade
de filtrar os anseios e frustrações da geração dos anos oitenta.
[...] era música feita por jovens homens brancos de classe
média alta para seus pares. Exceções que confirmam a
regra de admissão neste Clube do Bolinha Branco e
Remediado: Paula Toller, mulher; e Clemente, negro e
proletário. Os outros eram filhos de empresários ( como
Cazuza), políticos ( Roberto Frejat, Sérgio Britto), militares (
Lulu Santos, Herbert Vianna, Paulo Ricardo Medeiros),
funcionários públicos (Renato Russo), diplomatas (Bi
Monteiro), professores universitários ( Arnaldo Antunes,
André Mueller). A elite sofisticada bem informada sobre os
rumos do rock lá fora e inconformada com os descaminhos
da música aqui dentro. Sem conseguir se reconhecer nem
29
em Gil nem em Caetano, nem em Chico e nem mesmo na
“roqueira” Rita Lee. ( Dapieve, 1995, p. 195-196)
O rocK não tinha de fato uma noção que abordasse questões regionais
ou étnicas como bandeira de luta. O movimento no Brasil, nos anos oitenta,
assumiu uma feição urbana intensa, que foi além da identificação com
regionalismos folclóricos ou questões de fundo étnico. Representou, sem
dúvida, os anseios de uma classe média que, se não era intelectualizada, era
informada. Nesse sentido, a identidade no seu processo de construção se
perfaz numa lógica urbana, mas ao mesmo tempo atenta a questões que são
postas como universais, capazes de solucionar, ao menos, nos projetos dos
compositores do Rock, problemas que açambarcam um contingente que não é
somente urbano, mas ampliado a outros segmentos.
No que tange à filiação, o rock brasileiro teve um intercâmbio tmico
muito mais cimentado à produção estrangeira do que qualquer produção
musical brasileira. Como afirmou Renato Russo: “era um corte proposital em
relação à MPB, era a valorização da juventude nos anos 80.” (Dapieve, 1995, p.
196)
Esse rompimento se deu por um conjunto de transformações pelas quais
o Brasil passava. Alguns elementos fizeram parte desse mosaico ao qual o rock
nacional se filiou. Fatores tais quais a redemocratização, que caminhava a
passos inseguros, a crise econômica na qual o país se inseriu nos anos 1970 e
o crescimento de movimentos culturais de diversos matizes, dentre eles o rock o
qual, dentro de um parâmetro mundial, rompeu as barreiras e estabeleceu, pela
aceleração da informação, uma comunicação mais intensa com regiões
diferentes das originárias. Acrescendo a esses fatores, um outro a ser
ressaltado está imbricado à sofisticação e à força da indústira fonográfica a
30
partir de meados da década de 1970 e que, com a abertura política em trânsito,
abria espaço para uma diversificação temática capaz de atingir o meio urbano.
Esses pontos subsidiam na caracterização desse movimento que se
fundamentava numa ótica nova, na qual a intensidade, apesar de global,
apresentou peculiaridades em diversas partes do mundo. Em entrevista a Celso
Araújo, em 1985, manifestando sua impressão acerca do Rock, Renato Russo
ponderou:
Eu não sei. Acho que o rock não pode ser delineado,
assim, música brasileira, porque rock é música universal.
Por ser uma música de massa tecnológica do pós-guerra, é
uma música feita por e para jovens, e é um pessoal que
sempre esteve ligado em televisão, sempre esteve ligado
em videogame, fliperama – hoje em dia é videogame -, mas
sempre foi uma coisa muito elétrica, muito urbana, é a
música de cidade. Você vê beleza numa certa situação que
se você não se adaptar a essa situação você vai
enlouquecer. Então é você ver música na fumaça, você ver
música no ritmo ddas pessoas, nos arranha-céus, na
própria vida rápida da cidade. E eu acho que o rock estaria
muito mais ligado também na questão etária. Rock é um
tipo de música que atende à necessidade de um
determinado grupo de uma determinada faixa de idade. (
Conversações com Renato Russo, 1996, p. 20)
A obra de Renato Russo, analizada dentro da perspectiva indicria
proposta por Ginsburg, constitui um objeto rico não pelas notas de
vendagem
2
dos discos da Legião Urbana, banda da qual foi integrante, mas
pela interação entre as letras e a geração dos anos oitenta, que encontrou
correspondência nas abordagens colocadas pelo roqueiro. Como afirma o
próprio Renato Russo, numa entrevista concedida em 1989:
A única coisa que eu sei é o seguinte: as pessoas
acompanham o que a gente faz não porque mostramos
uma grande novidade – porque o rock não é nem um pouco
original -, e sim porque o que nós fazemos estava dentro
delas. Então, um garoto compra um disco da Legião dos
2
Emi-Odeon: Legião Urbana(1984) 710 mil; Dois(1986) 1.420 mil; Que País é Este(1987) 1.000 mil; As
Quatro Estações(1989) 1.600 mil; V(1991) 700 mil; Música p/ Acampamento(1992) 500 mil; O
Descobrimento do Brasil(1993) 700 mil; A Tempestade(1996) 500 mil; Um Outra Estação(1997) 610 mil;
Acústico MTV(1999) 700 mil (em 1 mês)
31
Titãs, do Lobão, ou de quem quer que seja e, antes de ir
para o colégio, ele vai ouvir aquela múcica, vai pensar na
vida, no país, no governo, na situação caótica, em ecologia,
em crimes, medos, angústias, felicidade. É legal você ter
uma trilha sonora. (Assad, 2000, p. 130)
O indivíduo e a identidade construída nesse estágio da modernidade,
numa imbricação inexorável, possibilitam analisar a obra de Renato Russo
como manifestação, ainda que inconclusa, de anseios e frustações da geração
dos anos oitenta. Renato Russo foi intelectual, ativista político, homossexual
declarado
3
, temperamental e contraditório para alguns. Numa autodefinição,
em 1982, Russo assim se declarou:
Teve a iia de formar o Aborto Elétrico, que JAERA.
Acabou, fim, adeus, good-bye. Continuou escrevendo e
cantando músicas para quem quisesse ouvir. Sabe de cor
mais de 42 músicas dos Beatles (o que não é um grande
feito) e é fã incondicional dos Vigaristas de Istambul (a
banda mais honesta a aparecer e, depois, desaparecer).
Escreve uma peça de teatro, é professor. ‘Todos os
professores e professoras, sejam bem-vindos!’. Não gosta
de dentista, filas de espera, música de elevador, nem de
gente falsa e/ou sem criatividade. Gosta muito de cinema e
esatualmente preocupado com boatos de que a Terceira
Guerra pode começar antes que ele cumpra a promessa de
ir a Mogi das Cruzes para se encontrar com seres
extraterrestres. Como todo ser humano, é falso em casos
de emergência, e todos sabem que não é nem um pouco
criativo. Ninguém sabe, mas foi ele quem matou Sid Vicious
em 1432 a.C. [Trecho de um texto escrito por ele para
registrar os primeiros passos da Legião Urbana] (Assad,
2000, 215-216)
A ironia e o escárnio no trato a algumas questões que envolvem sua
geração, tanto no cotidiano quanto na perspectiva sócio-política, foi uma marca
nas composições de Russo. Nesse sentido, sua obra é marcada pela
fragmentação incrustada na identidade do indivíduo das últimas cadas do
século XX. “Um indivíduo simultaneamente uno e múltiplo, e que, por sua
3
Renato Russo lançou um disco em solidariedade à causa homossexual – The Stonewal Celebration-,
num contexto de disseminação da AIDS. Nessa pesquisa não houve a exposição do envolvimento de
Russo com essa problemática, pois não há, nesse trabalho dissertativo, a intenção de fazer um busca
biográfica de Renato Russo, ainda que seja inevitável uma vinculação entre suas composições e sua vida,
contudo, nosso objetivo é tomar as letras por objeto de análise.
32
fragmentação, experimenta temporalidades diversas em sentido diacrônico e
sincrônico” (Gomes, 2004, p. 13). Desse modo, esse mosaico de situações,
desejos e sujeitos manifestam-se nas letras de Russo, ressaltando o complexo
de identidades que multiplicam, intercomunicam e completam sujeitos.
33
CAPÍTULO I
A CIDADE- O CENÁRIO DA LEGIÃO URBANA
URBANA LEGIO OMNIA VINCIT
BRASÍLIA- síntese da modernidade e palco de contestações
Um dos sentidos atribuidos ao termo legião, tomado na acepção
figurada, segundo o dicionário Aurélio, consiste na “multidão de seres reais ou
imaginários”. Nesse sentido, o movimento roqueiro no Brasil foi uma legião
urbana, tributária da expressão latina em epígrafe, colocada no final de muitos
Cds da banda da qual Renato Russo foi o letrista, que na sua tradução
significa: “a legião urbana a tudo vence”. Se a vitória não era certa, a vontade
de se fazer vencedora foi uma bandeira empunhada pela geração dos anos
oitenta, a qual, situada no meio urbano e enxergando o mundo sob esse
prisma, encontrou uma meio de dar vazão às subjetividades da classe média
“remediada”, na acepção de Dapieve. O meio urbano e o rock dos anos oitenta
estiveram estreitamente imbricados. O cenário político de abertura iniciada por
Geisel e continuada por Figueiredo, concomitante à massificação da indústria
fonográfica, possibilitou à classe média do setor urbano acesso à informações
e à cultura. Essa identidade urbana foi fundamental para a construção de
subjetividades, as quais se incluiram numa legião urbana dos grandes centros
do país. São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília capitanearam esse movimento
que, guardadas as devidas peculiaridades, catalizou um sentimento de rebeldia
juvenil, possibilitando o esboço de um perfil a partir dos indícios enunciados
nas composições. Em Brasília, bandas como Paralamas do Sucesso, Plebe
34
Rude, Capital Inicial e Legião Urbana lideraram o movimento que sintetizou
grande parte do sentimento de sua geração, repetindo versos nem sempre
rebuscados, de arranjos nem sempre bem elaborados. Era um movimento
juvenil urbano para seus pares e para todos que, independente da classe
social, de uma forma ou de outra, se sensibilizassem com as idéias expostas
nas letras.
Brasília possuia uma particularidade ligada a seu projeto arquitetônico
urbanístico. A classe média residente no plano piloto teve uma relação mais
estreita, no dia-a-dia, às influências culturais. Dentro de um contexto político
próximo, as mudanças sentidas no Palácio do Planalto ou no Congreso
Nacional eram temas de rodas que afetavam também a juventude. Como
declara Russo:
Sabíamos, antes do resto do país, das declarações
políticas do Congresso Nacional. Minha tribo também
buscava informações sobre os acontecimentos não os
políticos, como artísticos e culturais. Brasília proporciona
essa facilidade de acesso. amos filmes estrangeiros um
ano antes de entrarem em circuito nacional,
freqüenvamos o Instituto Goethe. Enfim, estávamos
informados sobre tudo, e isso permitiu um trabalho musical
mais honesto e sincero. (Assad, 2000, p.42)
Herbert Vianna, seu irmão Hermano, Dado Villa-lobos, Ico Ouro Preto,
André Mueller e Renato Russo são alguns nomes dessa juventude que se
beneficiaram dessas condições e encontravam no rock nacional um veículo
capaz de dar vazão às demandas que tocavam a juventude. Na Colina, uma
mini-quadra dentro da UnB, geralmente habitada por professores, essa turma
pertencente a diferentes tribos, com suas influências particullares, trocavam
experiências e rusgas. Foi nesse ambiente, restrito ao Plano Piloto que uma
parcela significativa do rock nacional ganhou um universo amplo de ouvintes,
extrapolando os limites da capital federal e da própria classe média da qual era
35
legítima representante. O Renato Russo roqueiro, primeiro ligado ao
movimento punk, inseriu-se nesse contexto. Nas palavras de Russo, que
admirava a capital federal, mas estava atento acerca das particularidades de
Brasília:
A gente fazia rock por necessidade lá. Além de ser uma
necessidade de você ir contra o tédio da cidade, é uma
necessidade física mesmo, de você se expressar. Ao passo
que, se eu tivesse aqui no Rio, ia à praia, ia comer um
sanduiche natural, e não teria tanta necessidade assim.
Acho que Brasília é importante por causa disso, você tem
essa motivação. É uma cidade que te inspira, é uma coisa
muito dela, é uma cidade muito bonita. Tem um certo astral,
não parece uma cidade brasileira. Agora, acho que as
pessoas em Brasília poderiam se organizar, ter uma
espécie de organização comunitária, talvez até a vel
político, para ajudar as satélites. Acho que o Plano Piloto
vive numa ilha, isso é uma coisa muito negativa. Não é tão
difícil você prever que possam surgir problemas, num futuro
próximo, por causa do desse disparate social que existe.
(Assad, 2000, p. 41)
Foi nesse ambiente que o movimento roqueiro em Brasília ganhou
fôlego, sendo que Renato Russo, ciente de que a postura política e social das
pessoas poderia projetar a capital federal a uma socialização mais justa, tinha
por hábito escrever força sempre” nos seus autógrafos antes do seu nome,
reverberando a epígrafe de que a legião urbana a tudo vence enunciada no
título do capítulo.
Eu sou Renato Russo
Eu escrevo as letras, eu canto
Eu nasci no dia 27 de março
Eu tenho 23 anos
Sou áries, ascendente em peixes
Eu trabalhava com jornalismo, rádio
Era professor de inglês também
E comecei a trabalhar com dezessete anos e tudo
Mas que de repente
Tocar rock era uma coisa que eu gostava mais de fazer
E como deu certo eu continuo fazendo isso até hoje.
Meu nome é Dado Villa Lobos
Eu sou guitarrista da Legião Urbana
Nasci dia 29 de junho de 1965, tenho 21 anos
Cheguei em Brasília em torno de 1979,
Cursei meu 2º grau
Consegui entrar na faculdade de Sociologia
36
que não era exatamente o lance que estava a fim de
fazer
Muito teórico, não tem nada de praticidade
Aí meu lance era, de repente, fazer música.
Eu sou Renato Rocha
Baixista do Legião Urbana
Tenho 25 anos
Adoro esporte, adoro corrida de automóveis
Sou de Brasília também
Adoro música, jazz, rock
Adoro Dead Kennedys
Cursei metade do meu 2º grau
Parei de estudar por que gostava de fazer esporte
Oi, meu nome é Marcelo Bonfá
Nasci em 1965, sou do signo de aquário
Gosto de esportes aquáticos
Gosto de desenhar
Gosto de música
Saí da escola depois que eu terminei o 2º grau
E agora toco bateria na Legião Urbana
Eu já sei o que eu vou ser
Ser quando eu crescer
(Riding Song, 1996)
Essa composição, uma das únicas tocadas pela Legião Urbana que não
foi composta por Renato Russo, teve na elaboração de Dado Villa Lobos, um
dos integrantes da Legião Urbana, um emblema elucidativo dos integrantes da
banda, suas preferências, típicas dos setores médios da sociedade. Os
membros simbolizam uma identificação, na peculiaridade dos seus gostos, com
os anseios da juventude de classe média urbana, sendo Renato capaz de
canalizar esses desejos com a sensibilidade daquele que foi considerado por
muitos como contraditório, polêmico, irreverente, mas tamm, na acepção de
Arthur Dapieve e de tantos outros, o rebro mais potente do Brock, apelido
dado pelo jornalista ao Rock nacional.
Renato Manfredini Júnior, o Renato Russo, apelido incorporado pela
admiração aos pensador Jean-Jacques Rousseu e Bertrand Russel, bem como
a Henri Rousseu, pintor francês, foi um dos principais nomes do movimento
roqueiro dos anos 80. Teve no meio urbano o cenário decisivo na sua
37
constituição pessoal, da identidade da qual ele era sujeito, sintetizando os
anseios da geração a qual ele pertencia. Filho de um economista do Banco do
Brasil e de uma professora de Inglês, Renato era o irmão mais velho de uma
menina. Ainda na infância passou alguns anos nos EUA por conta da
transferência de seu pai, o que lhe rendeu fluência na língua inglesa,
tornando-se mais tarde, já no Brasil, professor da Cultura Inglesa. De formação
Católica, estudou no Colégio Marista e mais tarde cursou jornalismo na UnB.
Desde muito jovem se mostrou um leitor inveterado, o que contribuiu,
sobremaneira, para sua formação intelectual, acentuando a dimensão poética e
política de suas composições. Ainda adolescente, aos quinze anos, sofreu de
uma grave doença, epifisiólise, que corroeu grande parte da cartilagem que
ligava o femur à bacia, tendo que implantar uma platina para lhe garantir
suporte. Nesse meio tempo, Renato acamado aprofundava suas leituras e seu
gosto artístico muito variado, por influência do pai e dos parentes mais
próximos. Ao terminar o Ensino Médio e ingressar na faculdade de Jornalismo,
Renato mergulhou no movimento Punk-rock de Brasília, formando, em parceria
com mais dois integrantes, o Aborto Elétrico, banda punk que rendeu
composições como Tédio [com um T bem grande pra você], Geração Coca-
Cola, Que País é Este e Conexão Amazônica. Com a dissolução do Aborto
Elétrico, por desavenças pessoais, de 1982 até 1983, Renato Russo fez
apresentações solo em aberturas de shows para outras bandas, mas em
1983, na companhia de dois outros integrantes, que se firmaram após algumas
rápidas passagens de alguns outros, surgiu a formação do trio que consagrou a
Legião Urbana, composto por Renato Russo, Dado Villa-Lobos e Marcelo
38
Bonfá. A esse grupo somou-se o baixista Renato Rocha, possibilitando a
Russo, que tamm era baixista, liberdade para compor e cantar.
Foi nesse contexto, de efervecênica cultural em Brasília, que filhos da
classe média urbana letrada lançaram-se no rock com uma expressão inédita,
que não se filiava, no Brasil, nem à Jovem Guarda nem a Raul Seixas e nem a
Rita Lee. O rock dos anos oitenta teve em Brasília um dos seus principais
palcos e na Legião Urbana uma de suas principais bandas. Renato Russo,
nesse cenário, foi, para muitos, o principal letrista, ou poeta, de sua geração.
O meio urbano- a sistematização da violência
No Brasil, a segunda metade do século XX foi marcada por uma intensa
política de modernização, a qual havia se iniciado na Era Vargas,
intensificada por Juscelino, culminando no período da Ditadura Militar.
Durante os governos militares, o trato dado à questão agrária se tornou
ainda mais conservador. Os módulos rurais garantidos pelo Estatuto da Terra, a
construção das rodovias transversais, as quais garantiram um escoamento mais
dinâmico da mercadoria, a mecanização no campo, cada vez mais excludente
de mão de obra, bem como a ausência de uma política agrária e social que
possibilitasse a permanência do homem no campo são alguns fatores que
contribuíram para a inversão demográfica brasileira verificada na década de
1970.
A conjuntura internacional que desvinculava o Estado das questões
sociais e a crise brasileira que já se anunciava forte gerou uma exclusão social
39
que repercutiu sobretudo no meio urbano, como decorrência também do êxodo
rural; violência, injustiça social, são ingredientes constituintes dessa nova
realidade. A marginalidade assolou sobretudo as parcelas oriundas do campo. A
ausência de alternativas encontrou na delinqüência uma lvula de escape.
Renato Russo, atento a essa conjuntura, tratou da questão numa das sua letras
mais cantadas.
Não tinha medo o tal João de Santo Cristo,
Era o que todos diziam quando ele se perdeu.
Deixou pra trás todo o marasmo da fazenda
Só para sentir no sangue o ódio que Jesus lhe deu.
Quando criança só pensava em ser bandido,
Ainda mais quando com um tiro de um soldado o pai
morreu
Era o terror da cercania onde morava
E na Escola até o professor com ele aprendeu.
(Faroeste Caboclo,1987)
A personagem João de Santo Cristo pode ser, guardadas as devidas
peculiaridades, a sina assumida por muitos migrantes, ao saírem de sua região,
por falta de opção ou pela violência instaurada no campo com o processo de
modernização. Num entrevista, em 1988, Renato ressaltou essa situação:
Eu acho legal que as pessoas gostem da história. Um
motorista de táxi, outro dia, me disse que tinha um amigo
que comprou a fita porque era, exatamente, a história do
irmão dele. O cara tinha saído de Mato Grosso e ido para
Brasília, e morreu num tiroteio no Nordeste. E a música é
totalmente fictícia. (Assad, 2000, 103)
Brasília era um cenário, que se o era exclusivo, realçava a exclusão
espacial e econômica vigente no Brasil. A negação de instituições
sustentáculos da sociedade brasileira, seja pelo viés religioso, ao questionar a
cristandade, seja pelo Estado Liberal de Direito, ao se indignar perante a
violência policial, indicam uma situação na qual a marginalidade e a
40
transgressão da ordem tornou-se, nesse personagem, uma alternativa à
violência instituída no cotidiano brasileiro.
Ia pra igreja só pra roubar o dinheiro
Que as velhinhas colocavam na caixinha do altar[...]
Ele queria sair para ver o mar
E as coisas que ele via na televisão
Juntou dinheiro para poder viajar
E de escolha própria, escolheu a solidão [...]
Aos quinze foi mandado para o reformatório
Onde aumentou seu ódio diante tanto terror [...]
Não entendia como a vida funcionava-
Discriminação por causa da sua classe ou sua cor [...]
Ele ficou bestificado com a cidade
Saindo da rodoviária, viu as luzes de Natal [...]
(Faroeste Caboclo, 1987)
A ausência de oportunidades, combinada com o esfacelamento de
padrões morais, projeta no personagem dessa composição uma dose do
espírito individualista de um justiceiro. Daquele que, no âmbito de suas
desilusões e na busca de caminhos outros que não a miséria na qual se situa,
busca realizar seu caminho.
O inchaço dos meios urbanos, a falta de infra-estrutura, projetou uma
problemática nova, sentida a partir do último quarto do século XX. Com o
aumento da população nos grandes centros, cresceram os índices de violência
e uma nova roupagem legal no trato desse criminoso começou a ser articulada
no Congresso Nacional.
Os crimes comuns, roubo, furto, homicídios, latrocínios, tráfico de drogas,
a extorsão mediante seqüestro, dentre outros, atingiram índices
impressionantes. O tráfico ilícito de entorpecentes assumiu uma posição de
destaque no cenário marginal dos grandes centros, a ponto de o crime ser
organizado, criando nas favelas ou em outros redutos marginalizados
verdadeiros locais de exercício de um poder paralelo. Renato filtrou essas
demandas de modo a elucidá-las na sina de um marginal.
41
A ausência de oportunidades, as discriminações de toda sorte, bem como
o descaso do poder público induziram uma camada da sociedade das
metrópoles à criminalidade. Quando não diretamente, como foi o caso da
personagem de Russo, indiretamente, à medida que o tfico realiza-se na
periferia para atender a um público, que o alimenta e o reproduz. A droga possui
um comprador específico que torna o negócio lucrativo, principalmente os
membros das classes média e alta.
Ei menino branco o que é que você faz aqui
Subindo o morro pra tentar se divertir
Mas já disse que não tem
E você ainda quer mais
Por que você não me deixa em paz?
(Mais do Mesmo, 1987)
O critério de obtenção da justiça assumiu uma conotação inversa aos
preceitos modernos, reforçando a criminalidade em duas faces reprodutoras do
ilícito: a de quem vende a droga, excluído e marginalizado como traficante; e a
de quem compra a droga, componentes da classe média e alta, mas que com o
vicio reproduz o sistema de violência que permeia o tráfico. Em Brasília, como
em outras grandes capitais, essa realidade tornou-se comum, fazendo parte do
cotidiano do qual Renato Russo era membro.
No ano-novo eu começo a trabalhar.
Cortar madeira, aprendiz de carpinteiro
Ganhava três mil por mês em Taguatinga [...]
E o Santo Cristo até a morte trabalhava
Mas o dinheiro não dava pra ele se alimentar
E ouvia às sete o noticiário
Que sempre dizia que o seu ministro ia ajudar [...]
Mas ele não queria mais conversa e decidiu que,
Com Pablo, ele ia se virar
Elaborou mais uma vez seu plano santo
E, sem ser crucificado, a plantação foi começar
Logo logo os malucos da cidade souberam da novidade:
- Tem bagulho bom!
E João de Santo Cristo ficou rico
E acabou com todos traficantes dali.
Fez amigos, freqüentava a Asa norte
E ia pra festa de rock, pra se libertar.
42
(Faroeste Caboclo, 1987)
Na composição de Russo, a cidade funciona como uma moeda com duas
faces: uma inclusiva e outra excludente. O herói marginal, santificado na
composição, postou-se diante das duas situações, mas a inviabilidade da
primeira, pela ausência de oportunidade concreta, digna e justa o projetou à
marginalização, ao tráfico, ao ilícito. A cidade linda, a projeção do trabalho
assim que o ano começar, a busca da inclusão por meio do trabalho não se
efetivou na realidade de João de Santo Cristo, simbolizado universalmente pelo
sobrenome. A simbologia pode ser entendida como uma tentativa de normalizar
a marginalidade pela ausência de perspectivas. O fim da via-crúcis de João foi o
mais trivial para essa situação marginal.
Santo Cristo não sabia o que fazer
Quando viu o repórter na televisão
Que deu notícia do duelo na TV
Dizendo a hora e o local e a razão.
Um homem que atirava pelas costas e acertou o Santo
Cristo
E começou a sorrir.
Sentindo o sangue na garganta,
João olhou pras bandeirinhas e pro povo a aplaudir
E olhou pro sorveteiro e prasmaras e
A gente da TV que filmava tudo ali.
E se lembrou de quando era uma criança e de tudo que
vivera até ali
E decidiu entrar de vez naquela dança
- Se a via-crúcis virou circo, estou aqui.
E a alta burguesia da cidade não acreditou na estória que
eles viram na TV
E João não conseguiu o que queria quando veio pra
Brasília, com o diabo ter
Ele queria era falar pro presidente,
Pra ajudar toda essa gente
Que só faz sofrer.
(Faroeste Caboclo, 1987.)
A cidade e a televisão constituem emblemas da modernidade capitalista,
a qual projeta a idéia de superação dos limites permitidos pela lógica do
consumo.
43
Como objeto de massificação, a televisão assenhorou-se da ética
capitalista e reforçou suas práticas ao interferir na formação de uma
consciência, de incutir idéias passíveis de fundar novas verdades, mas tamm
de reforçar verdades antigas, tidas como basilares na fundamentação da
modernidade. A publicidade, como instrumento largamente utilizado pela
televisão, constitui um relevante artifício na consolidação de uma estética da
qual a modernidade é tributária.
La estetización tiene um canal de difusión privilegiado en la
publicidad. Em ella no se ofrece sólo um producto sino um
estilo de vida a él asociado. La estética utilizada no es sólo
um vehículo de transmisión sino que se ofrece como uma
esencia de la vida. La reivindicación social de que la
felicidad entre a formar parte de la belleza tiene aq su
cumplimiento, pero bajo la teoría de los efectos indeseados:
en el producto que se anuncia hay incluida uma promesa
de felicidad como su esencia. No es que se dé más, ni que
haya más, sino que en la producción de mundos artificiales,
al manipular la materia hasta extremos inconcebibles se
demuestra qué poco real es lo real mismo. No se trata ya
de embellecer lo real para hacerlo habitable o soportable,
sino de crear outra realidad virtual que lo sustituye.
(Molinuevo, 2002, p. 18)
A televisão, por esse caminho de analise, posiciona-se em duas frentes
complementares. Numa perspectiva, a televisão e os recursos de persuasão
advindos dela dinamizam uma estética, a qual, ainda que virtual, internaliza
projetos pessoais e coletivos.
Os sujeitos receptores de tais instrumentos de convencimento
incorporam tais projeções, as quais se fazem reais e norteadoras de uma
prática cotidiana que reforça os meios utilizados na e pela televisão. Noutra
abordagem, a televisão simplifica, rotiniza, banaliza uma gama de situações,
dentre as quais as que mais se destacam se vinculam a sexo e violência, a fim
de obter uma resposta imediata nos aparelhos medidores de audiência. Russo,
em 1993, antenado ao poder de penetração de idéias dominantes, afirmou:
44
“Acho que existe um grande confronto entre a ética e a estética. A ética, em
algum momento, foi substituída pela estética. Isto é mais uma forma de
controle”. (Assad, 2000, p. 98)
O poder de persuasão e de criação de correntes repetidoras da ética
televisiva mostrou-se significativa, sobretudo a partir da segunda metade da
década de 1970, quando esse meio de comunicação ganhou uma dimensão
ainda mais popular. O poder da notícia e da ideologia embutida na televisão
reforçou seu poder de solidificação nas camadas populares.
As discriminações históricas no Brasil, as quais combinam a exclusão
social e racial, manifestam-se na composição de Russo, sensível ao poder de
penetração da televisão no cotidiano e nas relações sociabilizadas a partir dela,
denotando uma situação que não era nova. Entretanto, assumia uma dimensão
ainda não presenciada no Brasil, sendo que a crise e a exclusão exposta por
esse meio difusor de notícia, na década de 1980, pôs às claras esse novo
estado de coisas, trouxe problemas antigos numa outra dimensão e outros
numa intensidade inédita.
[...] o espetáculo dos desastres apresentados nos meios de
comunicação também sustenta e reforça de outra maneira
a indiferença ética rotineira, cotidiana, além de descarregar
as reservas acumuladas de sentimentos morais. (Bauman,
1999, p. 83)
O duelo para resolver a demanda entre dois traficantes, um inocentado e
outro demonizado na composição, reforça o tom de espetáculo circense,
produzido para impressionar e satisfazer a relação de dominação daquele que
não é vítima. O poder de postar-se numa situação em que dois degladiam-se
para divertir uma platéia impressionada, ansiosa por um resultado que não a
45
afete além da novidade de ver o espetáculo pela TV, remonta, guardadas as
devidas peculiaridades históricas, ao Panis et Circenses romano. No entanto, os
pseudogladiadores da modernidade deveriam estar incluídos e o blico,
sequioso de um espetáculo de sangue, mais conscio da perspectiva excludente.
O martírio do herói marginal, João de Santo Cristo, ao experimentar sua via-
crúcis tal qual Jesus, universaliza a personagem. E se não tem por fito assumir
uma postura redentora, identifica-se a muitas sinas estabelecidas na
contemporaneidade.
O papel da televisão na constituição das identificações projetadas nesse
estágio da modernidade leva Maffesoli a argumentar acerca do imaginário
gerado pela e na televisão, reforçando a banalidade:
[...]não se pode ignorar que essa faculdade cinematográfica
aplica-se também ao mundo televisivo. Isso pode parecer
paradoxal, quando se sabe que a televio está, de início,
encerrada ao domínio familiar. Mas, de um lado, é preciso
lembrar que ela propõe a todos os níveis de idade, modelos
de identificação. O imaginário, no seu sentido dinâmico,
representa um papel primordial. (Maffesoli, 1999, p. 344)
João de Santo Cristo emblematizou a exclusão, que, no Brasil, resultou
numa violência capaz de construir seus excluídos sociais e econômicos, mas ao
obter seus minutos de fama, ainda que seja para morrer no final do espetáculo,
reforça a exclusão pela via mais trágica.
Ainda sob a premissa de analisar a relevância do espetáculo dinamizado
por meios cada vez mais velozes e que, com uma intensidade ainda maior, não
pedem licença para invadir a privacidade alheia, a tese da estética emocional,
apresentada por Maffesoli, ratifica o espetáculo e a banalização da violência:
A catástrofe, o triunfo esportivo, a parada militar, o festival
musical, a explosão de uma nave espacial, o encontro
político, o engarrafamento urbano, a tomada de refém, a
viagem papal, a AIDS oferecida como espetáculo, etc., tudo
contribui para uma espécie alegre de apocalipse que, pelo
46
menos, fragiliza nossas razoáveis certezas. O que é certo é
que a efervescência coletiva torna banal, incita-nos a voltar
ao mais próximo do que designa, no seu sentido
etmológico, a banalidade: O que é vivido, experimentado
em comum, o que me liga essencialmente ao outro. Eis
todo o segredo da estética. (Maffesoli, 1999, p. 51)
Nesse mister, o espetáculo fez parte da construção de uma identidade
que se relacionava com o meio urbano, sua dinâmica de comunicação, seu
isolamento. Nesse campo, o espetáculo é capaz de, pela fragmentação dos
espaços de convivência a núcleos cada vez menores, introjetar no sujeito
urbano uma ambigüidade: a de viver rodeado de pessoas sem que isso
significasse uma integração efetiva. As particularidades, amalgamadas pela
solidão, tornaram-se a mola mestra dessa nova identidade. Renato Russo, na
sua subjetividade, esteve atento à questão da carência nos meios urbanos, ao
projetar um sentido de solidão que permeia as relações pessoais, recebendo a
ratificação de seu público ouvinte pela receptividade às suas composições.
A violência é tão fascinante
E nossas vidaso tão normais
E você passa de noite e sempre vê
Apartamentos acesos
Tudo parece ser tão real
Mas você viu esse filme também.
Andando nas ruas
Pensei que podia ouvir
Alguém me chamando
Dizendo meu nome.
Já estou cheio de me sentir vazio
Meu corpo é quente e estou sentido frio
Todo mundo sabe e ninguém quer mais saber
Afinal, amar o próximo é tão démodé.
(Baader-Meinhof Blues, 1984)
A cidade, o meio urbano, possibilitou em esferas distintas e
complementares, a emergência de duas bases caras à modernidade: o aumento
da velocidade da temporalidade cotidiana das informações e a racionalização
de uma tecnologia moderna planejada sob os auspícios da razão arquitetônica e
de engenharia. O meio urbano industrial acelerou a informação, possibilitou a
47
popularização dos meios de comunicação midiáticos, políticos e
propagandistas.
É improvável pensar a modernidade desvinculada do meio urbano,
sobretudo se tomar por base a modernização instrumentalizada na
modernidade. Na consolidação do capitalismo, os movimentos que se
contrapuseram ao Estado liberal fundamentaram-se, pelo menos num primeiro
instante, no meio urbano.
No Brasil, a estética capitalista mesclou-se à dinamização de uma
racionalidade fundada em anseios políticos autoritários, ansiosa por tirar o Brasil
do “atraso colonial” e colocá-lo nos trâmites da modernização.
A reformulação do espaço urbano foi uma das estratégias
adotadas por este Estado, no início do século XX. A cidade,
com sua organização física- espacial, seus rituais de
“progresso”- como no caso das exposições nacionais e
internacionais-, passa a ter um caráter pedagógico. Torna-
se símbolo por excelência de um tempo de aprendizagem,
de internalização de modelos. Assim, quando estes
especialistas-cientistas se propunham a reformar, a
organizar, mesmo que em nível superficial, a esperança
que tinham era de que essa projeção externa, pública,
citadina, pudesse orientar os indivíduos. (Herschmann e
Pereira, 1994, p. 27)
O meio urbano estabelece um novo padrão de convivência entre as
pessoas. Na Primeira República, ampliou-se o afã de tornar o Brasil moderno,
à medida que o meio urbano racionalizado serviria de base à construção de
uma identidade que afastaria o Brasil do atraso. Nesse esboço, o Rio de
Janeiro foi incluído no processo de modernização almejado pelo presidente
Rodrigues Alves (1902-04), o qual no seu discurso de posse salientou a
necessidade de modernizar a cidade. Assim, tornou-se palco de uma reforma
que discriminou as necessidades quotidianas da população mais pobre
residente em cortiços os quais, além de dar um aspecto estético pouco
48
moderno para os padrões da bélle epoque, impossibilitavam uma política
sanitarista efetiva.
O controle social numa sociedade capitalista procura
abarcar todas as esferas da vida, todas as situações
possíveis do cotidiano: esse controle se exerce desde a
tentativa do estabelecimento da disciplina rígida do espaço
e do tempo na situação do trabalho até a tentativa de
normatizar ou regular as relações de amor e de família,
passando, nos interstícios, pela vigilância e repressão
contínuas dos aparatos jurídico e policial. (Chalhoub, 2001,
p. 148)
Outras capitais, num outro momento histórico, vinculado a uma
intervenção do Estado nas diretrizes econômicas do país, a partir da era
Vargas, trouxeram à tona essa vocação moderna. A modernidade construiu
uma identidade a qual, em nome do “progresso”, entendeu o espaço urbano
como a representação da modernização.
As composições de Russo, a guisa de estabelecer essa relação tão
próxima entre a cidade e a modernidade, colocaram o meio urbano na
dinâmica da identidade que se construiu na segunda metade do culo XX. A
dinamização da informação, a qual ganhou contornos e velocidade novos, os
tipos de violência com uma intensidade diferente da vivificada no meio rural, a
insatisfação externada mais rapidamente, são alguns elementos os quais
compuseram a formação de uma identidade que assumia na cidade seu
sentido. Nesse ambiente, Russo, em 1985, argumentou sobre o movimento
roqueiro e sua sintonia entre a dinâmica da cidade e as especificidades
esboçadas nesse contexto:
Acho que o rock não pode ser delineado música brasileira,
por que rock é música universal. Por ser uma música de
massa da sociedade tecnológica do pós-guerra, é uma
música feita por e para jovens, um pessoal que sempre
esteve ligado em televio, sempre esteve ligado em
videogame. É música da metrópole, é música da cidade, é
um fenômeno universal, do planeta Terra. Onde tiver uma
metrópole, vai ter rock, por que rock, na verdade, é você
49
tentar se expressar artísticamente, de uma certa forma,
falando da beleza da cidade. É você realmente ver música
onde as pessoas mais antigas não vêem, por que não
estão acostumadas com isso. Então, é você ver música na
fumaça, é você ver música no ritmo das pessoas, nos
arranha-céus. (Assad, 2000, p. 223)
O Brasil, que trazia especificidades as quais marcaram a parcela social
não incluída na modernização conservadora, a qual concentrou capital e renda
numa fração cada vez menor da sociedade, encontrou na cidade o ponto de
inflexão da identidade moderna, da crença à desilusão, do projeto nacional ao
isolamento, da inclusão à marginalidade.
Brasília, capital construída como baluarte da modernização do nacional-
desenvolvimentista, colocado em prática por Juscelino, não se restringia a um
projeto político que pudesse ser catalizado num mandato de cinco anos. A
nova capital do Brasil era uma síntese elaborada de uma modernidade na qual
a prática política de Juscelino contemplava um projeto maior.
Nesse sentido, o meio urbano planejado, erguido no cerrado, do natural
à civilização, ao moderno, ao progresso, representava um futuro, capaz de
alavancar no Brasil o caminho do desenvolvimento. O planejamento da nova
capital, como continuidade da integração dos espaços brasileiros, como
almejava Vargas, significava, simbolicamente, o rompimento com o arcaico,
com uma capital, o Rio de Janeiro, que não fora pensada com o fito de exercer
a atividade administrativa. O projeto de Lúcio Costa, vencedor da disputa
arquitetônica, trazia uma combinação de praticidade funcional e suavidade ao
mesclar espaços verdes, os quais amenizavam o peso do concreto alicerçado
no planalto central.
Zigmunt Bauman, ao analisar os processos de racionalização dos
urbanistas, faz uma menção a Le Corbusier. Para Bauman, o sonho de
50
Corbusier de estabelecer um espaço urbano calcado no Plano Diretor- “Plan
dictateur”- seria estabelecido através do domínio completo e inquestionável
sobre os moradores. Como enfatiza Bauman:
A autoridade do Plano, decorrente das verdades objetivas
da lógica e da estética e nelas fundada, não tolera
dissensão e controvérsia; não aceita argumentos que se
refiram a ou busquem apoio em nada além dos rigores
lógicos e estéticos. As ações do planejador urbano são
pois, por natureza, imunes à comoção dos entusiasmos
eleitorais e surdas às queixas de suas vítimas efetivas ou
imaginárias. (Bauman, 1999, p. 50)
Bauman argumenta que se de fato Corbusier não chegou a colocar suas
idéias em prática, Oscar Niemeyer teve a oportunidade para criar um espaço
urbano racionalizado nos parâmetros de uma modernização capaz de inserir no
plano urbanístico e arquitetônico a profundidade e praticidade racional que a
modernidade requeria.
A oportunidade no caso foi uma comissão para erguer do
nada, num vazio desértico e sem o fardo da história, uma
nova capital que combinasse com a vastidão, a
grandiosidade, os imensos recursos inexplorados e as
ambições sem limite do Brasil [...] No despovoado planalto
central do Brasil seria possível moldar à vontade os
habitantes da futura cidade, preocupando-se apenas com a
fidelidade à lógica e à estética; e fazê-lo sem precisar
comprometer, quanto mais sacrificar, a pureza de princípios
a circunstâncias irrelevantes mas obstinadas de tempo e
lugar. Podia-se calcular com precisão e bastante
antecedência as “necessidades unitárias” ainda
inarticuladas e incipientes; era possível compor, sem
empecilho, os ainda inexistentes e portanto silenciosos e
politicamente impotentes moradores da futura cidade como
agregados de necessidades cientificamente definidas e
cuidadosamente medidas de oxigênio, luz e energia.
(Bauman, 1999, p. 51)
A assertiva de Bauman se constitui numa análise convincente acerca do
projeto modernizador no meio urbano. A racionalização de uma lógica a qual
ao dinamizar-se desconsidera a espontaneidade, caminhou repetidas vezes
pari passo com os anseios modernos.
51
Harvey argumenta acerca dos efeitos da modernização assumida na
cidade como um dos seus principais símbolos:
Sinais, estilos, sistemas de comunicação rápida altamente
convencionalizada são o sangue vital da cidade grande. É
quando esses sistemas entram em colapso - quando
perdemos o nosso domínio da gramática da vida urbana
que a [violência] assume o controle. A cidade, nossa
grande forma moderna, à suave, acessível à estonteante e
libidinosa variedade de vidas, de sonhos, de interpretações.
Mas as próprias qualidades plásticas que fazem da grande
cidade o liberador da identidade humana também a tornam
especialmente vulnerável à psicose e ao pesadelo
totalitário. (Harvey, 1992, p. 18)
A geração de Russo foi integrante desse espaço e o rock dinamizado em
Brasília e estendido ao Brasil trouxe essa angústia urbana. Nesse sentido, o
tédio de viver numa cidade instrumentalizada pela lógica administrativista,
desatenta, projetou na juventude de classe média da qual Russo era
integrante, sensações que ratificam a premissa de Bauman:
Era, como “Tédio”, a idéia stoneana do what can a poor
boy do except to sing for a rock’n’roll band? aplicado
àquela cidade que o antropólogo Hermano Vianna, irmão
de Herbert, descreveria assim num texto pioneiro sobre o
rock local, chamado “Ai de ti, Brasília”, publicado no
número 1 da revista Mixtura Moderna, de 1983: “ Morar lá é
barra pesada. Brasília é fria, monótona, depressiva. A
capital da esperança ocupa lugares de destaque em
estatísticas pouco comuns: é o local, no Brasil, onde
ocorrem mais suicídios e onde se consomem mais drogas”.
(Dapieve, 2006, 52-53)
Nesse sentido, esse tédio introjetado no cotidiano implica diferentes
perspectivas:
Moramos na cidade, também o presidente
E todos vão fingindo viver decentemente
Só que eu não pretendo ser tão decadente não
Tédio com um T bem grande pra você (grifo nosso)
Se eu não faço nada, não fico satisfeito
Eu durmo o dia inteiro e aí não é direito
Porque quando escurece, só estou a fim de aprontar
Tédio com um T bem grande pra você.
(TÉDIO (com um T bem grande pra você),1979)
52
Em Brasília, devido às cidades satélites que receberam a migração de
segmentos o desejados dentro dos moldes administrativistas, houve uma
desconcentração populacional, que criou um perfil isolacionista e excludente
nos ambientes urbanos, dependendo da distância e dos limites financeiros do
local de morada dos seus habitantes. Como ressalta Bauman:
Para seus moradores, porém, Brasília revelou-se um
pesadelo. Logo foi cunhado por suas infelizes vítimas o
conceito de “brasilite”, nova síndrome patológica de que
Brasília era o protótipo e o mais famoso epicentro até
então. Os sintomas mais notáveis de “brasilite, na opinião
geral, eram a ausência de multidões e ajuntamentos, as
esquinas vazias, o anonimato dos lugares as figuras
humanas sem rostos a entorpecente monotonia de um
ambiente desprovido de qualquer coisa que intrigasse,
excitasse ou causasse perplexidade. (Bauman, 1999, p. 52)
Brasília, como emblema, da ordenação do espaço urbano, representou
no Brasil uma nova era. Tanto que o executor do plano de construir uma nova
capital, a qual aliás já estava prevista na Constituição de 1946
4
, Juscelino
Kubitschek, foi o símbolo da modernização ao propor seu Plano de Metas, na
qual a nova Capital seria a 31ª meta, a meta-síntese, incorporada em
campanha eleitoral.
O símbolo da modernidade brasileira foi tamm num contraponto o
espaço da exclusão arquitetada, simbolizada numa temporalidade não mais
encravada no meio rural, mas circunscrita a um novo ambiente, capaz de
elevar um novo paradigma identitário, excludente e solitário. As mazelas da
vida urbana puderam ser sentidas e externadas numa velocidade típica do
avanço dos meios de comunicação. Brasília, como decalque de todos os outros
4
O projeto de transferência da Capital do Brasil para o interior já fazia parte das discussões imperiais.
sé Bonifácio deixou uma série de escritos sobre essa necessidade, por motivo de segurança estratégica.
Na Constituição de 1981 houve o registro legal da mudança, ainda que tenha sido letra morta. Na Carta
Constitucional de 1946, dentro da perspectiva integracionista e modernizadora, havia também a previsão
da nova capital, já com o nome definido: Brasília.
53
grandes centros urbanos, ainda que com menos intensidade de outros,
catalisou a violência e o fascínio do meio urbano, caracterizado pelos
paradoxos. Num depoimento dado logo após o incidente num show em
Brasília, Renato Russo, que em muitas outras ocasiões depôs positivamente
acerca da capital federal, conclui:
Essa cidade deixa as pessoas malucas. Tinha um boyzinho
que pegava o carro e ficava dando voltas em torno de uma
mastro emfrente a um bar no Gilberto Salomão. Um dia, ele
perdeu a direção e invadiu o bar. Uma merda. (Dapieve,
2000, p. 1940)
A cidade é um emblema da violênica pública ou privada no qual Renato
Russo, metaforicamente, realça sua indignação.
Em cima dos telhados as antenas de TV tocam música
urbana,
Nas ruas os mendigos com esparadrapos podres
Cantam música urbana,
Motocicletas querendo atenção às três da manhã-
É só música urbana.
Os PMs armados e as tropas de choque vomitam música
urbana
E nas escolas as crianças aprendem a repetir a música
urbana.
Nos bares os viciados sempre tentam conseguir a música
urbana.
O vento forte seco e sujo em cantos de concreto
Parece música urbana
E a matilha de crianças sujas no meio da rua-
Música urbana.
E nos pontos de ônibus estão todos ali: música urbana.
Os uniformes
Os cartazes
Os cinemas
E os lares
Nas favelas
Coberturas
Quase todos os lugares.
(Música Urbana 2, 1986)
A realidade no Brasil, trouxe a possibilidade de uma construção
identitária que reforçava a desilusão com os grandes referenciais políticos e
ideológicos que sustentaram a modernidade e a novidade trazida pela
generalização do espaço urbano. Este trazia uma dinamicidade diferente da
54
rural, que se mostra pela convivência próxima dos excluídos favelados com os
incluídos moradores de cobertura. Assim, revela uma nova dimensão do uso
do poder de polícia do Estado, mais ostensivo, menos tolerante com a
multidão.
A música urbana, na composição de Renato Russo, sugere uma crítica
não aos paradigmas modernos ao realçar a sistematização da educação,
na construção de um sujeito que será a base do projeto político do futuro.
Entretanto, estende a indignação à violência, pelo abuso de autoridade,
indiciado na letra pelo cumprimento do dever legal da polícia ao debelar uma
manifestação. Nesse sentido, argumentou Russo, em 1988:
Eu acho que a questão da violência é uma questão do
planeta. A humanidade é violenta. Mas, quando o Estado
consegue fazer com que o cidadão se sinta útil, quando o
cidadão confia no Estado, esses momentos de violência
ficam mais esparsos. Sobe a violênica do psicótico, a do
ladrão, mas não é uma violência contra o cidadão. No
Brasil, essa violência contra o cidadão, além de ser
traduzida como violência, como na Rocinha ou nos jogos
de futebol, envolve a agressão ao cidadão, no sentido de
você não ter uma base, uma segurança. A questão da
inflação, a própria Constituinte não resolvida. Quando a
perplexidade se confronta como ela mesma, [...], num lugar
onde ela é naturalmente exarcebada por causa da
proximidade do poder e das próprias características de
Brasília como cidade ou seja um feudo cercado de Brasil
por todos os lados -, a coisa se torna realmente uma panela
de pressão. (Assad, 2000, p. 271)
Assim, os viciados, os mendigos, os esparadrapos podres, a matilha de
crianças sujas no meio da rua e os pontos de ônibus como sinônimo de
exclusão sinalizam uma modernidade restrita, incapaz de dar ao indivíduo
condições dignas de existência, a qual, aliás, lhe é garantida pelos dispositivos
legais. Ao se indignar perante as disparidades contingenciadas em Brasília,
Renato Russo era sensível a ponto de fazer de suas letras as vozes e os
sentimentos de muitos que os cantavam.
55
A sensação de conviver num espaço que reúne várias pessoas, mas
não as integra, impossibilitando uma relação que transpasse a esfera do
indivíduo, tamm foi uma vertente dessa identificação do indivíduo com o
meio urbano, suscitada nas composições de Russo.
A busca de transparência (do meio urbano) teve um preço
espantoso. Num ambiente artificialmente concebido,
calculado para garantir o anonimato e a especialização
funcional do espaço, os habitantes da cidade enfrentaram
um problema de identidade quase insolúvel. A monotonia
impessoal e a pureza clínica do espaço artificialmente
construído despojaram-nos da oportunidade de negociar
significados e, assim, do Know-how necessário para chegar
a um acordo com esse problema e resolvê-lo. (Bauman,
1999, p. 53)
A música urbana, na identidade da juventude, tendo por base a letra de
Russo, remete a uma estetização musical, de uma temporalidade,
discriminatória, que isola ao invés de integrar. Essa temporalidade anuncia as
antenas de TV, as motocicletas querendo atenção, o vento forte e seco e sujo
em cantos de concreto, os uniformes, símbolo da padronização e da
autoridade, os cartazes, os cinemas, os lares, as favelas, as coberturas, dentre
outros, simbolizando uma estética que abarca a todos, mesmo que alguns
produtos de consumo só estejam ao alcance de uma minoria.
A década de 1980 foi fundamental na inversão que se fazia desde
Vargas. Nessa década, não havia mais como negligenciar o novo padrão
societário estabelecido no Brasil. A identidade construída nesse contexto, a
qual dialogou com as vicissitudes históricas do passado brasileiro e com as
transformações ideológicas no mundo, trouxe à tona problemas, sujeitos e
projeções novos.
A cidade foi uma dentre outras nteses dos novos contextos, capaz,
nesse sentido, de dar vazão a construções identitárias, diversificadas,
56
indefinidas no seu critério constitutivo. Líquidas, como assevera Bauman, ao
assumirem uma forma de recipientes diferentes para cada situação, ensejando
uma continuidade indefinida pelos antigos padrões de modernidade.
E mais uma criança nasceu.
Não há mentiras nem verdades aqui
Só há música urbana.
(Música Urbana, 1986)
Situar esse cenário urbano, constituinte de uma identidade que se
construiu num quadro de relações intensas, sugere a necessidade de
estabelecer um nexo entre as individualidades advindas desse contexto e as
transformações pelas quais a modernidade passou. Nesse sentido, relevante
se faz situar o indivíduo e sua subjetividade na modernidade, desde a gênese
de sua construção, no século XVI, culminando nas três últimas décadas que
encerraram o século XX. Assim, estabelecer uma ponte entre a interpretação
do objeto - as letras de música - e a modernidade é um caminho para a
situação daquele frente a um quadro que não era. Pensar a modernidade é um
exercício invariavelmente inconcluso, mas indispensável na perspectiva de
situar o sujeito nas demandas contingenciadas historicamente.
57
Capítulo II
Modernidade - Crise da Razão Hegemônica: Do Indivíduo
Universal ao Fragmentado
O questionamento às instituições fundamentais da modernidade e da
razão que a come traz à tona uma preocupação que não se restringe ao
campo político ou social, mas que trouxe uma revisão do próprio estatuto da
modernidade. Nesse contexto, as assertivas das letras de Russo, cantadas
e repetidas pela geração dos anos oitenta, ao tomar o meio urbano por
referência, coloca em questão não o Brasil, de modo mais profundo,
questiona a gica de funcionamento dos alicerces da modernidade.
Perceber esses questionamentos como indícios de uma negação enseja
uma revisão de conceitos e de práticas calcados na modernidade. As
composições de Renato Russo realçam uma situação na qual a indignação
fere os pressupostos fundamentais da perspectiva política moderna.
Ao descentrar a razão, símbolo da modernidade, e os instrumentos
de consolidação da mesma, teorizada e defendida pelas vertentes
européias dos séculos XVIII e XIX, as letras golpeiam uma construção que
foi racionalizada e, pela via filosófica, sustentada como a garantia maior do
Estado moderno. Destacar a modernidade como objeto de análise se
apresentou como pressuposto dessa reflexão.
Nesse diapasão, a modernidade passou a ser discutida nas várias
vertentes do conhecimento, assumindo uma conotação de que a razão, pelo
58
questionamento das grandes teorias que o se realizaram no século vinte,
experimentou uma crise, a qual é oriunda de sua própria gênese.
A crise da razão pôs assim em concorrência, desde o
início, vários campos de racionalidade distintos. Jamais
houve uma maneira de estabelecer racionalmente
verdades, mas necessariamente várias. (Wolff, 1996, p. 78)
O autor concebe a isonomia de direitos, consituida pela isegoria
locutiva”- igual direito de fala- e a isocrítica interlocutiva”- igualdade de
direitos em críticar a fala de quem a assume-
5
como alicerces interligados à
sistematização racional. Nesse sentido, confere à racionalidade uma
problemática insolúvel e incapaz de se acomodar a preceitos estabelecidos.
Com base nessa hipótese, Wolff entende a razão e a crise advinda dela
como endógena, natural e inevitável, contudo ao desfrutá-la, como a toda
ilusão necessária, torna-se passível construir-se caminhos de analises
alternativos. (Wolff, 1996, p. 78-82)
Nesse percurso, a concepção de que a modernidade, dentro de
uma acepção iluminista ampla, redimensionou-se pela inesgotabilidade do
moderno, o qual o seria o mesmo depois de vários pensadores, como
Marx, Foucault e Adorno. A modernidade é antes um ponto a ser discutido,
posto em constante revisão do que um referencial a ser superado. Os que
versam na ruptura em relação à modernidade descartam a possibilidade
indissociável da crise que está incrustada nela mesma. Por essa linha de
racicíonio, que se ressaltar que a superação do referencial moderno não
é algo senão a redefinição de uma lógica moderna vinculada à lógica
5
Esses conceitos desenvolvidos por Francis Wolff remetem ao exercício da democracia na Grécia antiga,
que se baseava na participação direta dos cidadãos nos demos, superando a explicaçãotica e abrindo
espaço para a pluralidade racional através do igual direito de fala- isegoria locutiva-, bem como da
igualdade em criticar a fala de outro cidadão- isocrítica interlocutiva. Desse modo, a razão, sistematizada
a partir do século V a.C., experimenta uma crise desde sua gênese, afastando a idéia de que a crise seria
do século XIX ou do XX.
59
passada, mas que nem por isso ganha suporte de independência ao ponto
de pleitear uma cisão com o moderno. Como afirma Sergio Paulo Rouanet:
Mas, se não ruptura, vontade de ruptura. Se tantos
críticos e artistas perfeitamente inteligentes acham que
estamos vivendo uma época pós-moderna, é porque
querem distanciar-se de uma modernidade vista como
falida e desumana. O desejo de ruptura leva á conclusão
de que essa ruptura já ocorreu. A consciência pós-moderna
é crepuscular, epigônica. Ela quer exorcizar uma
modernidade doente, e não construir um mundo novo,
embalado em seu berço pelo bip de uma utopia eletrônica.
Ela tem razão quando critica as deformações da
modernidade, como a administração crescente da vida a
aplicação cega da ciência para fins destrutivos e um
progresso econômico transformado em seu próprio
objetivo. Porém não tem razão de distanciar-se da própria
modernidade. (Rouanet, 1999, p. 25)
Também com o objetivo de entender essa crise como inerente à
modernidade e traçar a insuficiência da tese pós-moderna, Alfredo Bosi
argumenta que o auge da modernidade, ainda que a mesma esteja em
crise, é tida pelos pós-modernistas como a negação do moderno. A
sustentação de Bosi destaca que a base da descaracterização da
modernidade, tal qual preceitua os que não crêem ainda estarmos nela,
parte de uma premissa falsa, pois a premissa usada pelos anti-modernos
está estreitamente imbricada a uma construção cientifica e de pensamento
que aflorou na modernidade, ainda remanescente do século XIX.
(Bosi,1992, p. 358)
De um outro ponto de vista, Luciano Carneiro Alves, que também
trabalhou na análise das composições de Renato Russo em seu artigo As
Canções da Legião Urbana e a Perspectiva Pós-Moderna, citando Ítalo
Moriconi, afirma:
Em seu estudo acerca do discurso pós-modernista, Italo
Moriconi concluiu que o prefixo ‘pós’ não remete a ‘após’ ou
‘não modernidade e, sim, a um período posterior em
constante diálogo com a modernidade. A importância da
modernidade não é negada, dada sua manutenção como
60
“palavra-núcleo’, mas a necessidade de repensá-la e
buscar ir além é premente. (Patriota e Ramos, 2002, p.
326)
Não aprofundando no mérito da questão de ser moderno ou pós, haja
vista não ser esse o objeto dessa pesquisa, ainda que haja uma posição
adotada no corpo dela, a de entender esse momento como uma revisão da e
na modernidade, é reconhecido o esforço e a necessidade em teorizar,
problematizar e discutir essa perspectiva, seja no plano das realidades
práticas seja no da produção das pesquisas acadêmicas.
Isto posto, nessa pesquisa, fica assentado que a modernidade, inserida
numa crise na qual os grandes modelos explicativos se fazem insuficientes
para nortear os projetos estabelecidos no âmbito valorativo-subjetivo,
possibilita a emergência de um novo sujeito histórico, uma nova identidade.
Essa afastou-se dos ideais universais nos seus vários matizes e concentrou-
se num individualismo que fragmenta o sujeito na medida em que o multiplica
nas suas relações.
A segunda metade do século XX foi determinante na construção de
uma noção identitária de raízes e matizes que não se pautam nos antigos
modelos assumidos como soluções para as demandas que a própria
modernidade alavancou no início do século. A inconsistência dos
pressupostos a então sustentados acarretou a desconstrução dos
paradigmas identitários, ao ressaltar uma gama de preocupações que
acentuou o indivíduo na sua mais crua acepção, o nos seus direitos e
deveres, mas nas suas propostas de vida política, social e cultural.
A partir da década de 1970, na esteira da modernidade, uma nova
identidade aflorou, ampliando a relevância do entendimento sobre esse novo
61
sujeito crítico e definível por vários ângulos. Nesse sentido, ganha espaço a
dinamização do cotidiano e a redução dos objetivos ou projetos desse novo
sujeito. As práticas cotidianas ganham espaço e colocam a identidade numa
situação na qual o emblema o é mais a bandeira de transformação do
mundo e das relações humanas em parâmetros universais, seja pela
alternativa liberal ou marxista.
Esse processo, como preceitua Stuart Hall, fez emergir uma condição
ainda não vivificada, da qual pontificam identidades múltiplas, grande parte
delas possíveis pela negação dos antigos modelos ou pela afirmação de algo
que é novo, identificável num passado recente ou num presente que busca
definir-se com as devidas reservas.
Assim, para Hall, a identidade no seu jogo já não mais se filia a uma
noção de classe, grupo ou partido; filia-se a uma noção singular,
deslocando-se e modificando-se de acordo com a interpelação ou
representação à qual o sujeito é exposto. (Hall, 2003, p. 20-21) Portanto, a
modernidade, conjeturada a partir do culo dezenove até a crise que se
desencadeou na segunda metade do século XX, possibilitou identidades
que se filiavam a uma noção capaz, seja ela partidária ou ideológica, de
fazer com que o indivíduo abrisse mão de sua perspectiva individual para
abraçar uma causa de transformação que não se resumia nele enquanto
indivíduo, mas que colocava uma idéia como um alvo a ser atingido.
Houve, pois, um ponto de inflexão na situação do indivíduo e uma
transformação nos projetos traçados por esse mesmo indivíduo. Essas
projeções assumiram um caráter diferenciado daquele tão exaltado. Nessa
valorização do indivíduo o mesmo não mais se filia a identidades rígidas e
62
os projetos assumiram uma conotação diferenciada, reportando-se à nova
gica identitária.
[...] A identidade, por conseguinte, depende dessa relação
do seu sujeito com a sociedade, em um permanente
processo interativo. Sem vida, um sujeito pode ter mais
de um projeto, mas, em princípio, existe um principal ao
qual estão os outros que o têm como referência. De forma
aparentemente paradoxal em uma sociedade complexa e
heterogênea, a multiplicidade de motivações e a própria
fragmentação sociocultural ao mesmo tempo que produzem
quase que uma necessidade de projetos, trazem a
possibilidade de contradição e de conflito. Por isso mesmo,
o projeto é dinâmico e é permanentemente reelaborado,
reorganizando a memória do ator, dando novos sentidos e
significados, provocando com isso repercussões na sua
identidade. ( Velho, 1988, p.10)
Cabe enfatizar que a identidade não mais se encampa numa
apropriação da realidade com uma única projeção. A multipolaridade do
sujeito coaduna-se com uma multiplicidade de situações que projetam no
mesmo possibilidades identitárias capazes de inseri-lo em várias
modalidades e, contraditoriamente, em nenhuma.
Analisando a modernidade e as mudanças inerentes à mesma, como
período marcado por uma dinamicidade jamais vicejada em outro momento
histórico, no qual a velocidade tornou-se a tônica das estruturas de
pensamento, do mundo cotidiano e das relações humanas marcadas pelo
relógio, a identidade assumiu uma face nova, múltipla e, às vezes,
inconclusa. Como argumenta Bauman:
No admirável mundo novo das oportunidades fugazes e
das seguranças frágeis, as identidades ao estilo antigo,
rígidas e inegociáveis, simplesmente não funcionam.
(Bauman, 2005, p. 33)
Stuart Hall argumenta que, diante de uma série de transformações
oriundas da modernidade, houve uma eleição dos pontos de
descentramento advindos de marcos importantes, na lógica do pensamento
63
moderno ocidental, estreitamente vinculada aos acontecimentos históricos.
Ao entender esse sujeito atual como pós-moderno, Hall elenca pontos
fundamentais para discutir a fragmentação inerente à questão das
identidades. Assim, emerge uma condição, a qual suscita identidades
múltiplas, grande parte delas pela negação dos antigos modelos ou pela
afirmação de algo que é novo, definível por um passado recente ou num
presente definido-se com as devidas reservas.
A modernidade, tal qual se afigurou, levou a questionamentos de várias
ordens, seja pela descrença nos modelos consagrados, os quais se
mostraram esgotáveis, seja pela situação nova a partir da falência dos
referidos modelos e que possibilitou uma construção de identidades
multifacetadas.
Com base nesse raciocínio, a diferença ganhou novas conotações na
modernidade em crise, num constante diálogo entre o que se identifica e, no
mesmo grau de intensidade, pelo que não se identifica com a sua noção de
pertencimento. A definição de um parâmetro identitário fixo é inviável pela
fragmentação do sujeito, responsável por uma inadaptabilidade a uma noção
fechada do que vem a ser identidade. (Hall, 2003, p. 20-21) Nesse racicíonio,
entender o homem na sua composição identitária, é, antes, estabelecê-lo
numa dinâmica histórica.
A relação entre o homem e sua identidade depende, assim,
de um processo dialético de construção. Na dinâmica
desses processos se vão definindo ou as possibilidades de
afirmação positiva dos sujeitos culturais, ou a negação dos
mesmos quando se estabelecem com o mundo relações
alienadas. Afirmação ou negação na qual se jogam tamm
os espaços de reconhecimento do próprio e do alheio.
(Giorgis, 1993, p.5)
64
Essa proposta, de reconhecer a diferença numa perspectiva de
constructo identitário, remete a uma aporia fundamentada dentro da própria
modernidade, qual seja: a de que é inviável, ou para alguns a impossível,
pensar um caminho de construção da modernidade que impossibilite as práticas
modernizadoras. Entretanto, essas instrumentalizações, de operacionalizar os
processos de modernização, não foram capazes de realizar no indivíduo os
projetos sustentados pela modernidade, intensificando no sujeito um estágio de
dúvida e questionamento.
Ao projetar a libertação do sujeito, a modernidade secundariza o
indivíduo, ainda que no seu discurso seja ele o alvo pelo qual se luta e para qual
a modernidade se realiza. Esse arranjo estético está projetado nos ideais e nas
práticas modernas. Bauman trabalha com a ambivalência dinamizada na
modernidade, ao conceber a necessidade desta de instituir a ordem visando
eliminar a diferença.
A luta pela ordem não é a luta da uma definição contra a
outra, de uma maneira de articular a realidade contra uma
proposta concorrente. É a luta da determinação contra a
ambigüidade, da precisão semântica contra a ambivalência,
da transparência contra a obscuridade, da clareza contra a
confusão. A ordem como conceito, como visão, como
propósito, só poderia ser concebida para o discernimento
da ambivalência total, do acaso do caos. A ordem es
engajada na guerra pela sobrevivência. (Bauman, 1999, p.
14)
A necessidade de afirmação da modernidade partindo da afirmação da
ordem, garantida pela legitimidade do Estado como instituição capaz de
formalizar políticas de governo, cria uma lógica estetizante que busca aniquilar
a ambivalência. Ainda que esta prática resulte num processo inconcluso,
demasiadamente autoritário e capaz de alimentar no indivíduo um sentimento
de não pertencimento a esse projeto, longe de incluir, a ordem, tão cara à
65
modernidade pelo estatuto da razão, trouxe uma concepção frustrante e
desalentadora.
Nas composições de Russo essa perspectiva se mostra clara; a rebeldia,
a desilusão, a busca por um espaço pouco concedido, a negativa das
instituições e a afirmação de uma práxis cotidiana, de pequenos grupos
destacam uma revisão necessária e uma indignação perante o moldado pela e
na modernidade. Desalento e insatisfação são a tônica da juventude.
Parece cocaína, mas é só tristeza, talvez tua cidade.
Muitos temores nascem do cansaço e da solidão
E o descompasso e o desperdício herdeiros são
Agora da virtude que perdemos.
(Há Tempos, 1989)
A reflexão na qual o par descompasso/desperdício são herdeiros de uma
virtude já não mais existente, traz à luz uma identidade marcada por uma
racionalidade incapaz de possibilitar sua inserção nos diversos espaços da
urbe. Milton Santos, usando o argumento de Weber, ressalta o paroxismo
previsto por este no momento em que a racionalidade capitalista tornar-se-ia
ilimitada, pondo em xeque o próprio projeto racional dela tributário.
Tudo indica que estamos atingindo essa fronteira, agora
que, nos diversos níveis de vida econômica, social,
individual, vivemos uma racionalidade totalitária que vem
acompanhada de uma perda da razão. O deboche de
carências e de escassez que atinge uma parcela cada vez
maior da sociedade humana permite a realidade dessa
perdição. (Santos, 2000, p. 120)
Essa totalidade da razão se faz presente na construção identitária
vinculada nas composições de Russo. O descompasso e o desperdício como
herdeiros de uma virtude que o mais se faz presente é a sustentação de
uma idéia sobre a situação do sujeito no mundo, a qual denota uma identidade
66
descrente com a sistemática racionalizada, capaz de aniquilar faces desse
indivíduo, contribuindo para sua fragmentação:
Há tempos tive um sonho
Não me lembro não me lembro
Tua tristeza é tão exata
E hoje o dia é tão bonito
Já estamos acostumados
A não termos mais nem isso
(Há Tempos, 1989)
A projeção de uma modernidade que não se realizou e que se fez sentir,
em maior ou em menor grau no Ocidente, gerou na geração a qual Russo
pertencia uma desilusão e apego a saídas tidas como prejudiciais ao
desenvolvimento da razão emancipadora. Impulsionada a acreditar no futuro e
na realização dos sonhos tão caros à formulação de uma estética, de uma
ética e de uma lógica modernas, essa geração se reorientou. A exatidão da
tristeza remete, pelo menos num referencial indiciário, à predominância de
uma racionalidade, mas que se mostrou insuficiente para dirimir questões
tidas como fundamentais pela própria lógica moderna. A projeção de um futuro
melhor, emancipador, capaz de realizar o indivíduo, foi um discurso
largamente difundido pelos instrumentos formadores do que se convencionou
chamar de modernidade. No Brasil, numa interelação com as contingências
mundiais, essa realidade, a da insuficiência dos projetos modernos ante um
contexto que se apresentava autoritário e excludente, tamm se fez sentir.
A modernização no Brasil fez-se num modelo autoritário, de pouco
dialogo com os diversos segmentos sociais. Seja no viés nacionalista
intervencionista, no nacional-desenvolvimentismo ou no militar, a
modernização teve por característica estabelecer verdades utilitaristas a
grupos ou a ideologias, na grande maioria, conservadoras. Desse modo,
67
sufocada pela ditadura, a geração dos anos oitenta enxergou uma perspectiva
diferenciada e o Estado jardineiro, para usar uma expressão de Bauman, não
logrou êxito em plantar e colher flores capazes de superar o aspecto do
embelezamento.
O movimento de maio de 1968 foi talvez o mais relevante emblema
desse novo arranjo de questionamentos à modernidade e seu processo de
modernização. As características dos movimentos que estiveram na esteira da
crítica aos pilares modernos repercutiram na formação de uma identidade que
culminou na formação de uma juventude desvinculada da modernidade e suas
ambições universalizantes.
se disse, com propriedade: o ano de 1968 não deve ser
mitificado, mas sua importância não pode tampouco ser
minimizada. As contestações de 1968 marcaram a História
contemporânea. A profundidade e a extensão dassas
marcas são até hoje objeto de muita discussão. Talvez o
fascínio de 1968 venha de sua ambiguidade na promessa
de construir formas de futuro renovadas, quer de um novo
tipo de capitalismo, quer de socialismo. (Ridenti, 2000, p.
157)
A classe média letrada, na década de 1980, experimentou a sensação
de que algo lhe faltou e que o Estado, a lei, a ordem, a família liberal cristã
ocidental moderna não supriu as lacunas visíveis no discurso modernizador.
Desse modo, projetar os sonhos numa situação efêmera concorre para
elucidar o descrétido posto em voga nos valores, no sentido de luta, pois as
fissuras fizeram-se sentir, descaracterizando a mola propulsora das mudanças
e da consolidação do progresso e da ordem liberal.
Se no meio urbano as informações circulam com maior dinamicidade, ela
tamm é capaz de frustrar projetos, situando o sujeito num labirinto onde o
fio de Ariadne não se mostrou capaz de apresentar saídas. Os caminhos
multiplicaram-se descentrando noções e projetos. Assim, a modernidade
68
construiu um labirinto sem o fio da meada e os minotauros reproduziram-se,
mostraram-se multifacetados - como destaca Bauman -, dispersos, sem,
contudo, apresentar uma saída satisfatória. Ao contrário, trouxe perspectivas
várias, as quais não se encaixaram no projetado como ideal no âmbito da
modernidade ocidental.
Os sonhos vêm
E os sonhos vão
O resto é imperfeito
(Há Tempos, 1989)
As utopias produzidas pela modernidade, ao se mostrarem incapazes
nos seus projetos universais, projetam no indivíduo uma complexidade
identitária forjadora de descrença.
Russo, ao colocar os sonhos num fluxo de ida e volta, tendo a
imperfeição como aquilo que resta, traz à tona a verossimilhança entre o
esboçado e o não cumprido e a decepção dos jovens frente a um Estado
moderno que se projetou redentor e não cumpriu o discurso. O Brasil chegava
às duas últimas décadas do século XX em crise, com uma distribuição de renda
desigual, sem perspectivas de solução a médio prazo, atolado num processo de
redemocratização autoritário e que não apresentava alternativas concretas.
Dissestes que se tua voz tivesse força igual
À imensa dor que sentes
Teu grito acordaria
Não só a tua casa
Mas a vizinhança inteira.
(Há Tempos, 1989)
A dor resume, na ausência de uma perspectiva, que se anuncia presente,
a desilusão por se colocar o indivíduo numa posição desconfortável no mundo e
em suas relações. Como pontua Santos, discutindo sobre a totalidade da razão:
69
Cria-se um verdadeiro totalitarismo tendencial da
racionalidade - isto é, dessa racionalidade hegemônica, -
dominante-, produzindo-se a partir do respectivo sistema
certas coisas, serviços, relações e idéias. Esta, aliás, é a
base primeira da produção de carências e de escassez,
que uma parcela da sociedade não pode ter acesso às
coisas, serviços, relações, idéias que se multiplicam na
base da racionalidade hegemônica. (Santos, 2000, p. 128)
A descrença se estabelece como regra e o desânimo denuncia uma
situação na qual o pessimismo situa-se na própria relação de abandono frente
às novas vicissitudes que o mundo sugere. Desespero, dor, desilusão são
alguns ingredientes dessa nova conformação identitária. Nesse sentido, Russo
respondeu numa entrevista a Renato Lemos, em 1988, o qual perguntou “por
que a juventude está tão paralisada?”, obtendo como resposta:
Quem não tem uma rede embaixo, não vai tentar um triplo
mortal. O movimento das esquerdas nos anos 60 o deu
em nada. Agora tentar um novo sem ter nenhuma saída: o
povo está sem educação, sem alimentação e a estrutura
política está totalmente sem base ética, então fica muito
difícil. Não tem modelo, nem referencial, nem mentores que
indiquem o caminho. Porque as gerações anteriores, além
de estarem totalmente desiludidas, jogam toda essa
desilusão em cima dos próprios jovens. Um cara como o
Ferreira Gullar dizer que a gente é uma geração sem
caráter, é de perder a confiança [...] O máximo que você
pode fazer é tentar se interiorizar, buscar algo mais tribal,
de sobrevivência mesmo, tanto a vel psíquico-emocional
como intelectual, informativo, social, político, sexual, tudo.
(Letra Livre, 1996, p. 56)
A ausência de um norte constrói uma identidade a qual a geração da
década de 1980 passou a reconhecer como sua: a do tribalismo. O descrédito
nos projetos da razão moderna, projeta a juventude a uma busca não mais
abalizada no macro, na mudança do mundo pela transformação ampla, mas, de
modo mais fragmentado, na acepção do indivíduo; vincula-se a uma pratica que
trouxe uma acepção bem menos ampla de mudança, de trânsito político, ético e
social.
70
E há tempos nem os santos têm ao certo
A medida da maldade
Há tempos são os jovens que adoecem
Há tempos o encanto está ausente
E há ferrugem nos sorrisos
E só o acaso estende os braços
A quem procura abrigo e proteção.
(Há Tempos, 1989)
O desencanto atinge o ápice com a maldade, a doença, a ausência, a
ferrugem e na predominância do acaso, ressaltando a impossibilidade da
inserção da juventude nos parâmetros racionais institucionalizados nas esferas
pública e privada. A insistência na conjugação do verbo haver no passado
aponta um deslocamento, e o que havia de bom ficou nalgum tempo ou lugar
inacessível para a geração presente, postando a juventude no ponto culminante
dessa situação, na qual o acaso torna-se o meio e o fim da falência humana,
sobretudo, dos jovens.
[...] a história, como realidade, constitui-se nos processos
do agir intencional com os quais os homens superam as
condições e circunstâncias dadas de sua vida prática, a fim
de realizar, na prática, a transformação do tempo natural
em humano [...] Como conteúdo da consciência histórica,
história é a suma das mudanças temporais do homem e de
seu mundo no passado [,...,] ela se inscreve no quadro de
referências de orientação da vida prática atual, no qual
pode abrir perspectivas de futuro. (Rüsen, 2001, p. 84)
A conversão do tempo natural em humano, na composição de Russo,
assume uma conotação de desânimo e de distância quase inalcançável,
projetando no tempo a desilusão da vida humana. Desse modo, a consciência
histórica na vida prática, nessa composição de Russo, que, na acepção de
Rüsen, se na relação da experiência histórica com a intencionalidade do
agir, ganhando impulso pelo superávit intencional, desperta uma situação de
incapacidade dos sujeitos diante das demandas cotidianas. Na assertiva de
Rüsen, o fluxo temporal, determinante da relação inseparável entre passado,
71
presente e futuro para a constituição da consciência histórica, na perspectiva
identitária dessa composição, é interrompido pela ausência de futuro, pela
vitória do acaso, da razão sociabilizada que não engloba, ao contrário, exclui, e
impossibilita uma projeção.
A impossibilidade de dar vazão a outra razão que possibilite um quadro
de anseios até então descartados denuncia o descontentamento desse sujeito
com as relações travadas e estabelecidas pela sociedade que ele compõe.
As composições de Russo trazem no seu bojo uma mescla de desilusão.
A sensação de abandono, de descaso, de traição, esboçada na música realça
uma identidade que se constrói na encruzilhada dos anseios modernos
irrealizados e do que fazer ante o que se apresenta.
O Brasil saiu da década de 1970 com uma perspectiva pouco animadora
até para os mais otimistas. A economia dava sinais claros de fragilidade perante
as mudanças internacionais, sobretudo com as crises da década de setenta.
Concomitante a esse cenário econômico, havia uma incerteza política oriunda
do esgotamento da ditadura conduzida por militares, os quais faziam questão de
liderar o processo que resultaria numa redemocratização na qual a participação
popular foi secundária.
6
A obra de Renato Russo, pela sua arguta sensibilidade, expressou,
ainda que de maneira fragmentada, como a própria identidade em constructo,
essa manifestação de anseios e projetos. A grande vendagem das obras de
Russo, sem enumerar as cópias circuladas pela pirataria, é um indício
relevante da correspondência entre o cantado e o vivido.
6
O movimento Diretas Já, pela grande participação popular, foi uma demonstração do esgotamento do
Regime Militar. No entanto o determinou a redemocratizão, pois a mesma ocorreu pela via das
eleições indiretas, como almejavam os militares ligados a Figueiredo.
72
Se no continente europeu o Estado liberal atingiu um plano mais amplo
de realização do que era defendido pelos arautos da modernidade, ainda que
tamm se observasse um crescimento da desigualdade com o desmanche do
socialismo e a consolidação do processo de globalização, o mesmo não
ocorreu no Brasil. Aqui, a inclusão, se restringiu a setores da elite consolidada
ou de uma classe média beneficiária da modernização, como a rêmora em
relação ao tubarão no comensalismo típico do qual uma parcela da classe
média aufere vantagens econômicas ou políticas.
Meu amor,
Disciplina é liberdade.
Compaixão é fortaleza.
Ter bondade é ter coragem.
E ela disse: - em casa tem um poço mas a água é muito
limpa.
(Há Tempos, 1989)
Os contrastes se fazem presentes ante a inconformidade, que busca uma
filiação, negando a instituição de uma razão generalizante e insuficiente em
atender uma gama de carências e necessidades dessa redefinição, na qual o
paradigma antigo de disciplina/compaixão/bondade seja suplantado pelo novo
de liberdade/fortaleza/coragem. As combinações são caras a esse novo
complexo identitário, pois percebe na razão sistematizada sua esgotabilidade e
ingerência dos individualismos e de sua fragmentação, a qual se sustenta em
valores que descartam a razão, que castrou outras vias de acesso ao sujeito.
Nesse sentido, a afirmação de Santos, acerca da globalização e sua dimensão
racional discriminante, é basilar:
Uma boa parcela da humanidade, por desinteresse ou
incapacidade, não é mais capaz de obedecer a leis,
normas, regras, mandamentos, costumes derivados dessa
racionalidade hegemônica. Daí a proliferação de ilegais’,
‘irregulares’, ‘informais’. (Santos, 2000, p. 120)
73
A não-correspondência às demandas, a partir dessa razão
modernizadora, que se alicerçou na modernidade em crise, trouxe à tona uma
inconformidade típica da descrença nas instituições e na instrumentalização da
razão que deriva delas. A informalidade, ressaltada por Santos (2000), é a
convergência de uma infinidade de situações, nas quais o sujeito é posto numa
segunda linha, na qual a negação da disciplina, da compaixão e da bondade
postula uma transformação. A ausência de uma forma, emblematizadas na
liberdade, na fortaleza e na coragem, sugere uma alteração, todavia não diz
qual, fazendo do último verso, numa combinação de desânimo e insatisfação, a
síntese do que se propõe:" - em casa tem um poço, mas a água é muito
limpa.
A geração dos anos de 1980- inconformismo sem direção definida
Nesse contexto, o de pensar o rock brasileiro da cada de 1980,
nas suas manifestações identitárias, faz-se mister pensar a América Latina,
visando por em relevo um conjunto de particularidades que, entretanto, o
a apartam da modernidade, mas que, inevitavelmente, numa combinação
desigual e fragmentária, fazem com que a mesma seja percebida como uma
experiência diferente da que pontificou nos países inauguradores das
concepções de modernidade. Cabe enfatizar que, na acepção de alguns
autores, a América Latina jamais experimentou a modernidade. Como
expõe Ibañez,
[...] temos as teorias bem mais pessimistas ou negativas
com respeito à modernidade, que duvidam que a América
Latina se tenha modernizado ou que realmente possa
modernizar-se ou que seja bom que se modernize no
sentido das teorias anteriores. (Ibañez, 1996, p. 224)
74
O autor pontua que a dúvida recai sobre duas questões de ordem
bem definidas: uma relacionada à autenticidade, suscitada por Octávio Paz,
Carlos Fuentes, Richard Morse; e uma outra relacionada à identidade
cultural, destacada por Cláudio Veliz, E. Bradford Burns e Pedro Morandé.
Ibañez se posta contrário às teorias pessimistas acerca da modernização,
por entender que uma gama de aspectos que envolvem não a Europa,
mas todo o mundo, permeiam a noção do que vem a ser modernidade.
Em geral as teorias pessimistas são incapazes de apreciar
que a modernidade, ainda que nasça na Europa,
precisamente por ser um fenômeno globalizante, é ativa e
não passivamente incorporada, adaptada e
recontextualizada na América Latina na totalidade de suas
dimensões institucionais mencionadas.(Ibañez, 1996, p.
234)
Nesse diapasão, os processos que fizeram parte da modernidade
européia caracterizam uma contextualização que é inerente à realidade
daquele continente, o que não deprecia a idéia de que a modernidade,
inserida num âmbito diferente, tenha ocorrido na América Latina.
[...] nestes mesmos processos e instituições diferenças
importantes com a Europa, não cabe dúvida. Nossa
modernidade não é exatamente a mesma modernidade
européia; é uma mescla, é híbrida, tem problemasrios; é,
em suma, uma modernidade precária, subordinada ou
periférica, nem puramente endógena nem puramente
imposta.(Ibañez, 1996, p. 236)
A modernidade, na América Latina, constituiu-se numa dinâmica que
dentro de uma lógica própria e relacional à Europa logrou uma série de
atributos importantes ao enunciar pressupostos que o são os mesmos
arrolados para analisar a modernidade européia.
Canclini (1997), tamm sustenta que não há uma ausência de
modernidade na América Latina, ao defender a tese da hibridização como
75
elemento indispensável para elencar os pontos a serem discutidos sobre a
capacidade de penetração da modernidade na América Latina.
Os países latino-americanos são atualmente resultado da
sedimentação, justaposição e entrecruzamento de
tradições indígenas (sobretudo nas áreas mesoamérica e
andina), do hispanismo colonial católico e das ações
políticas educativas e comunicacionais modernas.
(Canclini, 1997, p. 73)
Ao considerar as acepções pessimistas, que salientar a
impossibilidade de perceber a questão da modernidade no que é peculiar na
América Latina. Colocado dessa maneira, que se considerar uma
assertiva da qual não cabe fuga: a de que a modernidade, malograda ou
não, fez parte da construção do que se considera latino-americano e foi
capaz de repercutir de modo significativo na elaboração da modernidade no
continente.
Tomar por pressuposto uma modernidade que na Latinoamérica
desenvolva-se numa correlação igualitária com a modernidade européia ou
até mesmo norte-americana está fora de cogitação até para os mais céticos.
Entender a modernidade como ausente na América Latina significa uma
exclusão de uma problemática que se faz forte não pela inexistência, como
querem os pessimistas, mas pela peculiaridade dos princípios estabelecidos
como modernos. Na medida em que a modernidade se fez presente na
América Latina, inevitavelmente, uma nova roupagem identitária foi
dinamizada, mesclando elementos que são próprios da América e que,
portanto, são impares em dar uma dimensão identitária renovada, a qual
difere da experimentada pelos europeus.
Um outro fator foi determinante na construção de uma nova identidade
na América Latina. Inserida em meio à guerra fria, na qual duas grandes
76
potências disputavam a hegemonia mundial, a América Latina foi
influenciada por uma ideologia que não se atrelou tão somente a um projeto
salvacionista, típico dos militares, mas teve influências de forças capazes
de mobilizarem os militares a posicionarem-se ora contra ora a favor da
ótica capitalista liberal proposta pelos EUA.
O Brasil, acompanhado por Chile e Argentina, entre outros, situou-se
numa posição clara de afastamento a qualquer proposta de cunho nacional
que se alinhasse com o proposto pela vertente socialista soviética ou
maoísta. O golpe de 1964 foi o primeiro passo de um caminho tortuoso.
Nesse contexto, o Brasil, como grande parte da América Latina,
experimentou uma ditadura violenta, a qual atrelou o país a uma inércia,
sobretudo nos campos ligados às artes e às pesquisas nos seus vários
campos do conhecimento, isso para não ressaltar o retrocesso político. As
ditaduras militares constituiram-se em contradições fundamentais ao próprio
projeto moderno haja vista golpearem duramente instituições caras à
modernidade, dentre as quais a democracia e a tripartição dos poderes.
Como apregoa Octávio Ianni:
Durante a ditadura militar, o Estado foi colocado no centro
da produção cultural do país. Mais do que isso,
praticamente todas as condições de produção,
comunicação e debate das produções artísticas e
científicas (quanto a estas refiro-me ao campo das ciências
sociais) passaram a ser controladas ou influenciadas pelos
ministérios, conselhos, comissões, institutos ou outros
órgãos do estado(Ianni, 1978, p.174)
A revisão da modernidade, a partir da década de 1970, no Brasil,
assumiu algumas feições peculiares, haja vista concorrer, em intensidades
de penetração diferentes, problemas atinentes a uma ótica global e
particulares aos brasileiros, tal qual o processo traumático de
77
redemocratização. A implantação da ditadura no Brasil e em outros países
da América Latina subsidiada pelos EUA, como um artifício para impedir a
proliferação de ideais que se assemelhassem aos parâmetros socialistas ou
no intuito de fazer com que o exemplo cubano não fosse imitado, soou para
boa parcela da sociedade brasileira como uma traição a qual, ainda que não
fosse questionada com pressupostos marxistas, deveria ser repudiada e
alijada pela efervescência democrática, ou pseudodemocrática,
experimentada com a redemocratização.
Por esse prisma, a instauração de um regime ditatorial, ainda que
numa primeira fase houvesse um discurso de transitoriedade, trouxe uma
gama de possibilidades na reflexão sobre a identidade nacional. O
acirramento das manifestações, o início da luta armada, com a guerrilha
urbana, a ação da Vanguarda Popular Revolucionária e o MR-8 ensejaram
que Costa e Silva implantasse o AI-5, que, do ponto de vista social e legal
soava como uma atrocidade, pois feria um conjunto de pressupostos, nos
quais o ocidente se balizava, de defesa da democracia com base liberal,
que respeitava a liberdade na sua mais larga acepção.
O Ato Institucional n.º 5 foi o golpe mais duro à sociedade brasileira.
Tolheu a liberdade de expressão, de ir e vir, com a retirada do hábeas
corpus do corpo jurídico brasileiro, retirou a garantia da inviolabilidade do
lar, do contraditório e da ampla defesa nos processos judiciais, os quais,
com o AI-5, tornavam-se também passivos de alteração, possibilitando que
a tortura fosse um meio usado na obtenção de confissões, fazendo com que
um simples boato mobilizasse as pessoas a agirem dentro da esfera de
interesse dos militares. Como afirmou certa feita o próprio Golbery de Couto
78
e Silva, uma das significativas cabeças pensantes da ditadura, boatos
que são melhores do que a realidade.” (Ianni, 1978, p. 171)
Com a crise do petróleo, em 1973, e com ascensão de Ernesto
Geisel, em 1974, o processo de abertura que ocorria dentro de um esboço
lento, gradual e seguro emaranhava-se a uma crise que abarcava não
somente a realidade brasileira, mas todo o mundo, emergindo uma situação
da qual não havia mais como fugir: a resolução dos problemas brasileiros
não passava mais pelo projeto militar. Nesse contexto, a ditadura, para
desgosto dos “linha-dura”, precisava, até pela insuficiência do próprio
modelo econômico que foi estabelecido e a projeção do Brasil a uma
rotunda crise, criar novos parâmetros de discussão acerca da continuidade
da ditadura.
Mesmo que num equilíbrio entre o anseio precavido de
redemocratização dos Castelistas e a resistência dos “linha-dura”, o
processo de abertura deu-se num clima de incertezas e de exclusão da
participação efetiva do povo no processo eleitoral. A Lei Falcão e os
“pacotes de abril” são provas contundentes de que a abertura postulada
pelos Castelistas não previa uma inclusão capaz de transformar
radicalmente o projeto traçado pelos militares.
Havia, sobretudo, um receio de que essa abertura pudesse resultar
numa incompatibilidade que, uma vez não presumida, poderia colocar o
Brasil numa gica distante daquilo que mesmo os Castelistas mais
otimistas temiam. Isto posto, a revogação do AI-5, em 1979, e a decretação
da lei de Anistia, perdoando os envolvidos no processo, inclusive os que
teriam cometido abusos nos porões dos quartéis, foi mola propulsora na
79
redemocratização. Todavia, a derrota da emenda Dante de Oliveira,
impossibilitando a realização de eleições diretas para a presidência, depois
de ampla mobilização popular, trouxe à tona a insatisfação de muitos
setores da sociedade ao verem obstados seus anseios de vestir no Brasil
uma roupagem nova.
A obra de Renato Russo foi sensível a esse conjunto de
transformações pelas quais o Brasil passava. Suas composições o
veementes em afirmar a indignação perante a situação na qual o povo se
encontrava. A geração de 1980 ficou a deriva, sem perspectiva,
recepcionando os fracassos dos autoritarismos instrumentalizados no seio
de um Estado que se esvaia em crise. Desse modo, a necessidade de
mudança da geração referida, seja pela energia que emanava de seus
projetos, seja pela insatisfação de se situar frente a um Estado que lhe dizia
não, buscou na manifestação artística roqueira da cada de 1980, o
veículo de sua indignação. A redemocratização, mesclada com uma gama
de novas mudanças pelas quais o mundo passava, sobretudo a crise do
socialismo soviético, projetava setores da sociedade a uma descrença na
modernidade. A pedra angular na sustentação da geração, que abraçava a
crítica como meio de se indignar perante as instituições, foi o
questionamento aos instrumentos modernizadores do mundo globalizado,
em geral, e do Estado Brasileiro, em particular.
Que país é este
Nas favelas, no Senado
Sujeira pra todo lado
Ninguém respeita a Constituição
Mas todos acreditam no futuro da nação
(Que País é Este, 1978)
80
A construção identitária que caracteriza a obra de Renato Russo
parte da premissa da oposição às instituições configuradas pela modernidade
ocidental liberal capitalista, projetada como o melhor caminho para o
desenvolvimento de uma nação. Desse modo, a Constituição sugere um
contraste com a sujeira e a favela; estes indicativos de que o projeto da
modernidade resultou em malogro, trazendo à tona, além de uma ocupação
urbana desordenada, a exclusão social digna de fazer com que o Brasil fosse
tido como sujo- sujeira pra todo lado -, apartando a grande massa da população
de desfrutar do que há de bom na proposição do moderno. A respeito da
corrupção, Russo expõe sua indignação em 1988:
Eu sou de família italiana, e meu pai sempre disse: “Meu
filho, você vai começar a trabalhar cedo, que nem eu, não
faz mal a ninguém. Não vou ficar sustentando vagabundo”.
Aí, eu fui. Comecei dando aulas de Inglês, passei no
vestibular com 17 anos, para Comunicação, e consegui me
sindicalizar como jornalista antes mesmo de me formar.
Cobria a parte política, e todas as minhas ilusões, de
querer salvar o mundo, ser o bastião da verdade, acabaram
ali. Porque era muita treta, muita enganação, muita coisa
por baixo do pano; você escrevia as coisas e o editor não
deixava. Fui ficando muito desiludido, e isto foi me puxando
cada vez mais para o rock, pois os punks estavam falando
justamente disso, da hipocrisia. Você faz tudo direitinho,
estuda, trabalha, e depois vê que é essa corrupção, não
a nível governamental, mas em tudo. (Assad, 2000, p. 62)
Arthur Dapieve, em seu livro biográfico Renato Russo- o trovador solitário,
argumenta acerca dessa composição de Russo:
Quando o LP homônimo foi lançado, em dezembro de
1987, trazia um texto não-assinado de Renato, explicando
por que, apesar do sucesso absoluto da música nas
apresentações ao vivo do Aborto e da Legião, “Que país é
este” nunca havia sido gravada antes: “por que sempre
havia a esperança de que algo iria realmente mudar no
país, tornando-se a música então totalmente obsoleta”. Até
hoje ela continua atual, infelizmente. (Dapieve, 2006, p. 52)
As composições de Renato Russo, tais como a de outros compositores
que o movimento roqueiro produziu, nos anos 80, são marcadas por um
81
rompimento que abarcou não a perspectiva de como fazer música.
Simultaneamente, significou uma revisão das letras da música popular brasileira
dos anos 1960 e 1970, ainda que tenha havido influências dessa geração sobre
aquela.
A negativa do afirmado como correto e eficiente marca as letras de
Russo de tal modo que situá-las ressalta a necessidade de primeiro perceber
que a construção identitária passava, e passa, pelo descrédito no concebido até
então. Nesse sentido, as letras, através de uma postura contundente assumem
uma crítica mordaz ao estado de coisas no qual o Brasil se encontrava, fazendo
com que o futuro fosse concebido, dentro de uma lógica de projeto, numa
oposição ao estabelecido. Nesse espaço de oposição ao estabelecido, Bauman
assevera acerca da exclusão derivada das identidades, o que remete a uma
crise de situação do sujeito frente à razão institucionalizada, arraigada num
projeto identitário que, diante da esteira global, inclui e exclui, estereotipando e
excluindo.
Permita-me, comentar que a identificação é também um
fator poderoso na estratificação, uma de suas dimensões
mais divisivas e fortemente diferenciadoras. Num dos pólos
da hierarquia global emergente estão aqueles que
constituem e desarticulam as suas identidades mais ou
menos à própria vontade, escolhendo-as no leque de
ofertas extraordinariamente amplo, de abrangência
planetária. No outro lo se abarrotam aqueles que tiveram
negado o acesso à escolha da identidade, que não têm
direito de manifestar as suas preferências e que no final se
vêem oprimidos por identidades aplicadas e impostas por
outros identidades de que eles próprios se ressentem,
mas não têm permissão de abandonar nem das quais
conseguem se livrar. Identidades que estereotipam,
humilham, desumanizam, estigmatizam [...] (Bauman, 2005,
p. 44)
Ao analisar as letras de Russo, a negativa impõe-se de modo
determinado a transformar a realidade sem, no entanto, variadas vezes, apontar
um caminho. As exclusões e distorções, colocadas por Bauman, nos dois pólos
82
acima enunciados, ao trabalhar numa perspectiva receptora, não descredencia
a construção identitária constituída pela e na modernidade, inclusive a partir da
recepção, a qual na crise de uma razão institucionalizada tornou-se
insustentável.
Que país é este?
No Amazonas, no Araguaia, na Baixada Fluminense
Mato Grosso, nas Gerais e no Nordeste tudo em paz
Na morte eu descanso, mas o sangue anda solto
Manchando os papéis, documentos fiéis
Ao descanso do patrão
Que país é este?
(Que País é Este, 1978)
Uma situação que, para Renato e para a geração que estava nas
dimensões social, política e econômica da vida do brasileiro, afetava as
esferas da cultura pública e privada no Brasil.
Terceiro mundo se for
Piada no exterior
Mas o Brasil vai ficar rico
Vamos faturar um milhão
Quando vendermos todas as almas
Dos nossos índios no leilão
(Que País é Este, 1978)
A profundidade das críticas feitas por Russo não descarta qualquer
esfera de relação da modernidade com os setores que a envolvem. A
perspectiva de futuro é nebulosa, capaz de ressaltar na letra um pessimismo
com o rumo que o país tomava, assumindo na figura emblemática do índio a
síntese do repúdio perante o rumo institucional da nação. A incisividade do
verso “Que país é este”, repetido como refrão demonstra a descrença no país,
as instituições e a orientação política do Brasil. Em 1989, Russo se manifestou:
Nosso trabalho, além de ser uma forma de expressar
nossas mazelas, nos deu a chance de viajar o país inteiro.
As pessoas estão dormindo! Eu detesto conformismo! Es
todo mundo sendo enganado. Quem faz anúncio para
salvar o Brasil, hoje em dia, é banco ou bebida alcoólica.
Eu tenho que encontrar alguma coisa que me leve adiante
e, certamente, não é esse leite de magnésia que todo
83
mundo está tomando. Por que, se eu tomase leite de
magnésia, não teria feito essa banda. (Assad, 2000. p. 60)
Faz parte das composições de Russo uma interação com os problemas
que o Brasil enfrentava. Os desvios do país eram ressaltados nas letras,
demonstrando, de modo contraditório e irônico, como o projeto de modernidade
almejado e propagandeado resultava numa derrocada desanimadora ao por em
relevo um sentimento de traição dos dirigentes ao povo e à nação.
A percepção de Russo não passa por uma questão subjetiva. Ela parte
de um ponto particular, na forma de expressar, mas abraça uma perspectiva
ampla, a qual atinge a todos, sobretudo os mais alheios aos favorecimentos que
um tipo de modernização corrupta e excludente possibilita. Na letra em questão
quem assumiu esse emblema foram os índios, os quais, aliás, o muito
evocados por Russo nas suas manifestações de indignação.
Quem me dera , ao menos uma vez,
Ter de volta todo ouro que entreguei
A quem conseguiu me convencer
Que era prova de amizade
Se alguém levasse embora até o que eu não tinha.
Quem me dera, ao menos uma vez,
Esquecer que acreditei que era por brincadeira
Que se cortava sempre um pano-de-chão
De linho nobre e pura seda.
Quem me dera, ao menos uma vez,
Explicar o que ninguém consegue entender:
Que o que aconteceu ainda está por vir
E o futuro não é mais como era antigamente
Quem me dera, ao menos uma vez,
Provar que quem tem mais do que precisa ter
Quase sempre se convence que não tem o bastante
E fala demais por não ter nada a dizer.
Quem me dera, ao menos uma vez,
Que o mais simples fosse visto como o mais importante,
Mas nos deram espelhos
E vimos o mundo doente.
Quem me dera, ao menos uma vez,
Entender como um só Deus ao mesmo tempo é três
E esse mesmo Deus foi morto por vocês
É só maldade então, deixar um Deus tão triste.”
84
(“Índios”, 1986)
O índio, como personagem mbolo da história do Brasil, esteve
vinculado ao processo de colonização na extração de metais preciosos, senão,
no caso brasileiro, como mão de obra utilizada macissamente na extração, pois
para esta se utilizou predominantemente a africana, foi útil aos portugueses na
prospecção dos veios auríferos. Acrescendo, seguindo a orientação da música,
a referência ao escambo, relação econômica baseada em trocas naturais,
que no caso da colonização portuguesa na América se caracterizou pelo
oferecimento de quinquilharias portuguesas espelhos, pedaços de tecidos,
machados de metal, pinças, miçangas, dentre outros -, por produtos locais,
dentre os quais o de maior destaque foi o pau-Brasil. Ainda a título de referência
histórica, a letra de Russo refere ao processo de catequisação perpetrado pela
Igreja Católica, dentro das diretrizes do concílio tridentino, o qual se perfez
violento e unilateral na sua execução, contribuindo, em menor ou maior grau,
para o genocídio indígena, que teve nas epidemias sua principal veículo.
Trazer à tona a situação indígena e o sentimento de perda oriundo da
relação entre os índios e os europeus indiciam, tomando por referência o ponto
através do qual Russo se norteia para fazer a sua crítica, a indignação perante
um quadro que se apresenta antigo, mas que coloca sua geração numa
condição de descrença perante o mundo.
O índio, como sujeito emblema inaugural de uma outra face da
modernidade, a do dominado e a do solapado na sua dinâmica sócio-cultural,
teve a voz quando não deturpada, silenciada pelos meios instrumentalizados
pela cultura européia em solo americano. Seja pelo vs catequisador ou
civilizatório, fazer um paralelo entre a condição indígena e a da geração, da
85
qual Russo era um representante, assumindo a fala em primeira pessoa como
se o sentimento de desolação fosse semelhante, ressalta a indignação frente a
uma razão moderna. Nesse sentido, não houve uma correspondência entre os
alvos da juventude e as práticas modernizantes do Estado.
A incisividade dos versos Quem me dera ao menos uma vez”, repetidos
no início de cada estrofe, denota a insatisfação ante o estado de coisas
estabelecidas no Brasil, no seu processo modernizador. Assumindo o tempo de
quem fala, ou seja, de Russo, o índio é assumido como mbolo da
precariedade da relação sócio-cultural estabelecida na modernidade ocidental.
Por esse trâmite, o verso “E o futuro não é mais como era antigamente” remete
à condição de carência de sentido frente às vicissitudes de uma vida que não se
apresenta digna, justa.
[...] caminho que conduz à verdadeira modernização:
ocidentalização e reconexão com a tradição. [...] A mente
colonizada abomina o passado não-colonizado dos povos
indígenas; mais ainda, a obsessão do descompasso
impede-a de reconhecer o que é válido na tradição, pois ela
sempre espartindo do que falta, e não do que realmente
existe. Os olhos colonizados não podem ver valor algum no
país principalmente o valor de sua biodiversidade. Num
certo sentido, o Brasil ainda está para ser descoberto ou
redescoberto[...] pelos brasileiros e, acima de tudo, por uma
elite que parece não saber onde ela está. (Santos, 2003, p.
57)
Ao colocar o índio num ponto de realce, a posição de uma identidade
traída que deve ser reavivada, num contraponto ao que é colocado na citação
de Santos, busca no passado brasileiro a descoberta a partir de um elemento
construido como emblema, fundador da nacionalidade brasílica. Como
construção, portanto, o índio é resgatado no seu estado puro, ausente do
contato com o homem branco, da novidade da modernidade. A falência
indígena é correlacionada com a da modernidade ocidental brasileira para com
86
seus concidadãos num tempo que o mais o do século XVI, mas do XX. Seria
como se a agonia fosse a mesma num contexto diferente.
Eu quis o perigo e até sangrei sozinho.
Entenda – assim pude trazer você de volta para mim.
Quando descobri que sempre é só você
Que me entende do início ao fim
E é só você que têm a cura para o meu vício de insistir
De insistir nessa saudade que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi.
(“Índios”, 1986)
O índio é representado como redentor de uma identidade mutilada,
porém viva, latente, que busca identificar-se, situar-se.
Quem me dera, ao menos uma vez,
Acreditar por um instante em tudo que existe
E acreditar que o mundo é perfeito
E que todas as pessoas são felizes.
Quem me dera, ao menos uma vez,
Fazer com que o mundo saiba que seu nome
Está em tudo e mesmo assim
Ninguém lhe diz ao menos obrigado.
Quem me dera, ao menos uma vez,
Como a mais bela tribo, dos mais belos índios,
Não ser atacado por ser inocente.
(“Índios”, 1986)
A fusão de temporalidades, proposta na música, assume vozes do
passado e do presente como integrantes de um mesmo índivíduo, emblematiza
a situação do o correspondido nos seus anseios, massacrado em seus
parâmetros culturais, solapado na sua vida. Esse estado de pureza suscitado
por Russo refere-se ao estado no qual a juventude, inocente e desprotegida
frente às nuanças da vida, encararia uma modernidade injusta, incapaz de
reconhecê-la no seu valor e nas suas diretrizes.
Em “Índios quem canta é um índio que se dirige a um
vocês’, que somos nós (incluindo os prórprios
componentes da Legião), ‘civilizados brasileiros. Quem
canta ocupa o lugar de outsider, daquele que vem para
fazer ver. (Vianna, 1995, p. 21)
87
Ao tomar o personagem comombolo da possibilidade de construção da
identidade da juventude, Russo ressalta o fracasso do Brasil e, naturalmente,
dos homens que constituíram tal estado, endossando um sentimento que era
amplo. Nesse ponto, no qual se ressalta a negativa da modernidade nas
composições de Russo, fica claro como a oposição aparece de modo explícito,
muitas vezes destituída de qualquer preocupação com a forma ou com uma
perspectiva metafórica. A crítica à realidade político-social do Brasil ressalta
uma identidade marcada pela diferença de projetos, mas que, para a juventude,
à qual as composições de Russo eram caras, não se alicerçava nos modelos
clássicos, seja na versão capitalista ou socialista.
Contextualizar e atingir com versos ferinos e conscientes a situação
política e social presenciada no Brasil foi um caminho consagrado por Russo
em suas composições. Por esse viés, as marcas do regime militar e de um
tempo que não abandonava o cenário nacional estiveram presentes no drama
enfocado por Russo, tamm no campo cultural.
Quando nascemos fomos programados
A receber o que vocês nos empurraram
Com os enlatados dos USA, de 9 às 6.
Desde pequenos nos comemos lixo
Comercial e industrial
Mas agora chegou a nossa vez-
Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês.
(Geração Coca-Cola, 1984)
A indignação emergia de modo a questionar o atrelamento do Brasil aos
países desenvolvidos, sobretudo os EUA, capazes de numa relação bilateral
colocar os países subdesenvolvidos numa situação de dependência já de longa
data. O “lixo comercial e industrial” ressalta um lema contra o consumismo,
demonstrando que Russo tinha uma leitura de autores, os quais entendiam ser
o consumo desenfreado a massificação de uma ideologia. “As massas não são
88
a medida mas a ideologia da indústria cultural, ainda que esta última não possa
existir sem a elas se adaptar.” (Adorno,1986, p. 93)
Na argumentação da Sevcenko, a relação entre o indivíduo e o contexto
que gera um mosaico de imagens se fez de mão dupla, um condicionando o
outro:
Câncer, turbilhão, vampiros, vírus – a maneira como os
críticos se referem à invasão de imagens não deixa dúvidas
sobre seu estado de alarme total. Como chegamos a esse
estado? Como sempre, a fonte está nos potenciais
desencadeados pela Revolução Científico-Tecnológica da
virada do século XIX para o XX. [...] Mas claro que não foi a
tecnologia que impulsionou o turbilhão das imagens; antes
o contrário. Tal é seu potencial de capturar os sentidos, o
desejo e a atenção dos seres humanos, que logo os
estrategistas as elegeram como meio ideal para difundir
idéias, comportamentos e mercadorias, pressionando por
novas e melhores técnicas para reproduzi-las. (Sevcenko,
2001, p. 124)
Nesse contexto, Russo salienta a percepção dessas imagens numa
revolta que mescla a “invasão” da cnica e uma leitura centrada das opções
feitas pelos que governavam o país. A vingança ao cuspir de volta o lixo em
cima de vocês tem um destinatário, eleito não poucas vezes como a própria
representação da diferença, do atraso, da prepotência e da maldade. No sentido
de perceber a penetração da massificação oriunda dos veículos formadores de
opinião, Russo afirmou, em 1995:
O que existe, hoje, é consumismo desenfreado. É a TV
dizendo qual o seu sonho de consumo. Isso existe
décadas, mas não como hoje. Tanto que, agora, existe uma
discussão sobre valores éticos no país, e não se chega a
conclusão nenhuma.” (Assad, 2000, p. 60)
A referência aos EUA, ao ressaltar a posição que o Brasil assumiu nos
tempos que marcaram a bipolarização do mundo, no bojo da guerra fria,
destaca a estreita relação do regime militar com os EUA, assumindo, no projeto
89
político brasileiro da ditadura militar, uma posição liberal capitalista definida
perante os projetos apresentados.
Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Nós somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola
Depois de vinte anos na escola
Não é difícil aprender
Todas as manhas do seu jogo sujo
Não é assim que tem ser?
Vamos fazer nosso dever de casa.
E aí então, vocês vão ver
Suas crianças derrubando reis
Fazer comédia no cinema com as suas leis.
(Geração Coca- Cola, 1984)
A ditadura militar teve presença marcante nas letras de Russo. A década
de 1970, sobretudo a partir da segunda metade, inaugura um período em que o
Brasil, depois de passada a euforia da classe média pelo milagre econômico do
Governo Médici, vive a acentuação da crise econômica, abarcando amplos
setores da sociedade, inclusive a classe média, da qual Russo, filho de
funcionário público, originava. A imbricação dos projetos militares com os norte-
americanos, concomitante à predominância dos EUA, faz com que a Coca-Cola,
um dos mbolos do poder de penetração do capital, seja questionada ao
apelidar uma geração marcada pela crise e por um projeto considerado
alienante.
O tolhimento da liberdade de expressão durante a ditadura confrontava
com uma crise que dava ao Brasil posições nada satisfatórias nas pesquisas de
índices de desenvolvimento humano. Nessa situação, Russo declarou em 1989:
“Agora, a repressão existia em vários níveis, em todos os lugares. Tinha de se
ter muito cuidado com o que se falava não podia falar mal do governo, nada.”
(Assad, 2000, p. 20). O sentimento de traição e a recusa em aceitar a situação
90
foram marcas presentes nas letras de Russo, projetando o vivido no militarismo
como o grande inimigo a ser observado, criticado e vencido.
Cortaram meus braços
Cortaram minhas mãos
Cortaram minhas pernas
Num dia de verão
Podia ser meu pai
Podia ser meu irmão
Não se esqueça
Temos sorte
E agora é aqui
(1965 (Duas Tribos), 1989)
A ditadura militar marcou sobremaneira as manifestações de Russo. A
instauração do regime e a sua radicalização nos governos Costa e Silva e
Médici, os quais amparados pelo AI-5 retiraram uma série de direitos e
garantias fundamentais do cidadão, como pontua o próprio Russo, ao comentar
o disco As Quatro Estações:
O lado dois, sim, abre com uma música que deve ser a
mais política de todas. Fala de tortura e se chama 1965
(Duas Tribos)’. É sobre aquela época em que fazíamos
redação sobre o país maravilhoso que o Brasil seria no
futuro, de achar que os presidentes eram o maior barato
(Conversações com Renato Russo, 1996, p. 83)
A observância de direitos que resguardavam a pessoa humana, que na
modernidade ocidental ganhou relevância na Declaração Universal dos Direitos
Humanos, foi minimizada pela Constituição de 1967, posta em segundo plano
com a instrumentalização do regime militar, constituindo-se em pontos a serem
criticados em muitas letras.
Pés e mãos cortados o ataques diretos a uma organização social e
política que possibilita a emergência de uma identidade reativa do novo
brasileiro, que não mais tolere o autoritarismo, que, na acepção de Russo,
assumia a forma de hipocrisia e maldade.
91
Quando querem transformar
Dignidade em doença
Quando querem transformar
Inteligência em traição
Quando querem transformar
Estupidez em recompensa
Quando querem transformar
Esperança em maldição:
É o bem contra o mal
E você de que lado está?
(1965 (Duas Tribos), 1989)
O Estado autoritário, ao impedir manifestações que contrariassem a
gica dos governantes, foi responsável pela delimitação do que poderia ser
aceito e reproduzido; impossibilitou discursos, que não fossem os oficiais, nos
meios de telecomunicação e de jornalismo, combinando o silenciamento das
oposições com a violência do regime. Os contrastes na letra sinalizam parte da
experiência da juventude: dignidade/doença, inteligência/traição,
estupidez/recompensa, esperança/maldição. A premissa de questionar de que
lado um indivíduo está reside na determinação do estado ditatorial de definir os
amigos e os inimigos do Estado. E ainda sobre a composição 1965(Duas
Tribos), Renato Russo, em 1994, argumenta sobre a situação gerada na
ditadura:
Esta música é sobre um momento do nosso país, em que,
de repente, fechou tudo. Eu acho sempre importante
lembrar eu, pelo menos, gosto de me lambrar que hoje
a situação pode estar difícil para caramba, mas a gente tem
um coisa muito preciosa, que é a liberdade. Então, eu
posso vir aqui cantar, vocês fazem o que vocês quiserem.
Isso eu acho muito, muito importante. A gente se esquece
de que, até bem pouco tempo atrás, dependendo das
idéias que seu tivesse, seu irmão, seu namorado, ia bater
na sua casa, eles iam pegar essa pessoa, e você nunca
mais ia saber o que tinha acontecido como essa pessoa. E
ficou por isso mesmo, e não se fala nisso. É uma coisa
muito perigosa, eu acho, a idéia: “Não, a gente era feliz
naquela época”. Gente, eu não me lembro de ser feliz
naquela época, não! Fazer redação dizendo que o
presidente é maravilhoso, quando, muito tempo depois, a
gente descobre que as pessoas estão sendo mortas, em
nome de uma grande coisa que não se sabe o que é. Eu
acho isso péssimo. E a música é sobre isso. A música fala
especificamente de tortura, e fala dessa idéia toda de o
Brasil ser o país do futuro. É sobre como seria legal se a
92
gente encaminhasse o Brasil para ser um lance legal,
porque chega de ser o país do futuro! A gente tem que sr o
país do presente, a gente tem que viver agora. (Assad,
2000, p. 86)
O regime militar e sua base legal, arbitrária e contrária aos preceitos de
um Estado Democrático de Direito, teve no Ato Institucional 5 a maior
representação da repressão perpetrada pelos militares, constituindo uma
perspectiva sócio-política presente na identidade da juventude através das
composições de Russo:
Se dez batalhões viessem à minha rua
E vinte mil soldados batessem à minha porta
À sua procura
Eu não diria nada
Porque lhe dei minha palavra
Teu corpo branco já pegando pêlo
Me lembro o tempo em que você era pequeno
Não pretendo me aproveitar
E de qualquer forma quem volta
Sozinho pra casa sou eu
Sexo compra dinheiro e companhia
Mas nunca amor e amizade, eu acho
E depois de um dia difícil
Pensei ter visto você
Entrar pela minha janela e dizer:
- Eu sou a tua morte
Vim conversar contigo
Vim te pedir abrigo
Preciso do teu calor
Eu sou
Eu sou
Eu sou a pátria que lhe esqueceu
O carrasco que lhe torturou
O general que lhe arrancou os olhos
O sangue inocente
De todos os desaparecidos
A revolta latente manifesta-se no depoimento de Russo:
Muitas vezes, eu penso que morre gente boa, gente que
faz bem ao mundo. No entanto, a morte desse ditador me
conforta e, creio, conforta a todas as pessoas que sonham
com um Brasil livre e bonito. Então, vamos fazer deste
show a celebração da morte de mais uma fascista.
[Dirigindo-se ao público, ao abrir o show da Legião no
Circo Voador, no Rio de Janeiro, em 10 de outubro de
1985, dia da morte de Médici] (Assad, 2000, p. 90)
93
A indignação com a ditadura militar e as arbitrariedades cometidas pela
mesma ganhou a conotação de que a negação do Estado enquanto instituição
não se restringia somente ao período em que os militares estiveram no poder
Eu sou
Eu sou
Eu sou a tua morte
Vim lhe visitar como amigo
Devemos flertar com o perigo
Seguir nossos instintos primitivos
Quem sabe não serão estes
Nosso últimos momentos divertidos
Eu sou a lembrança do terror
De uma revolução de merda
De generais e de um exército de meada
Não nunca poderemos esquecer
Nem devemos perdoar
Eu não anistiei ninguém
Abra os olhos e o coração
Estejamos alertas
Porque o terror continua
Só mudou de cheiro
E de uniforme
Eu sou a tua morte
E lhe quero bem
Esqueça o mundo, vim lhe explicar o que virá
Porque eu sou, eu sou, eu sou
,
(La Maison Dieu, 1996)
A fala de um morto por motivos políticos, que assumiu a locução na
primeira pessoa do singular, denota uma desilusão não com o autoritarismo
reinante no período em que os militares estiveram no poder, mas que
continuava autoritário depois da passagem do mesmo- Abra os olhos e o
coração/ Estejamos alertas/ Porque o terror continua/ Só mudou de cheiro/ E de
uniforme.
Desse modo, tomando uma leitura possível de construção identitária a
partir das composições de Renato Russo, a sociedade se encontrava ainda
desprotegida e sufocada por um regime autoritário, agora numa perspectiva
outra, que não a da ditadura, mas que num outro plano também constituia-se
autoritário, violento e repressivo. A negativa aos expedientes da modernização
94
autoritária e conservadora, a qual antecedeu, inclusive, à ditadura militar, foi
uma crítica presente na classe média urbana, letrada e mais informada, nas
suas representações artísticas e políticas.
Contrariar a lógica não era tão somente trazer à luz uma conjuntura
sufocante; todavia tinha a proposta de atingir para mudar, com a ressalva de
que o caminho não estava claro, definido. Aqui, portanto, o projeto identitário no
Brasil se constituía pela negação ao instituído, no qual os jargões dos governos
apontavam inexoravelmente uma avanço em direção a um futuro promissor e
inclusivo.
O Brasil é o país do futuro
Em toda e qualquer situação
Eu quero tudo pra cima
Pra cima
Pra cima
(1965 (Duas Tribos), 1989)
A identidade projetada para o futuro assume nas composições de Russo
a dimensão de enraizar-se pela descrença, pela decepção perante uma série de
valores, defendidos pelo Estado Liberal, os quais são postos de lado, apesar de
serem buscados na própria modernidade. Os conceitos de dignidade,
inteligência e esperança são também construídos por Russo dentro de
acepções modernas.
Negar, pois, esse emaranhado de situações, nas quais a ditadura
assumiu uma postura determinante, baliza o projeto de uma nova construção
identitária.
[...] o projeto existe no mundo da intersubjetividade. Por
mais velado ou secreto que possa ser, ele é expresso em
conceitos, palavras, categorias que pressupõem a
existência do Outro [...] O projeto não é abstratamente
racional, como já mencionei, mas é resultado de uma
deliberação consciente a partir das circunstâncias, do
campo de possibilidades em que está inserido o sujeito.
(Velho, 1988, p. 103)
95
O autoritarismo ocupou um grande espaço na sociedade brasileira
durante o regime militar, abarcando as esferas públicas e privadas. A desilusão,
diante das instituições, possibilitou à juventude uma revolta que colocou em
realce o desafio de negar os valores e criar outros que pudessem de fato ser
justos. Entretanto, nas identificações de juventude um projeto de construção
que se pela negação: o uma definição do que pode ser bom, mas fica
explícito o que não se almeja .
É sangue mesmo, não é mertiolate
E todos querem ver
E comentar a novidade
É tão emocionante um acidente de verdade
Estão todos satisfeitos com o sucesso do desastre:
Vai passar na televisão.
Por gentileza, aguarde um momento.
Sem carteirinha, não tem atendimento-
Carteira de trabalho assinada, sim senhor.
Olha o tumulto: façam fila por favor.
Todos com a documentação
Quem não tem senha, não tem lugar marcado.
Eu sinto muito, mas já passa do horário.
Entendo seu problema mas não posso resolver:
E contra o regulamento, está bem aqui, pode ver.
Ordens são ordens.
Em todo caso, já temos sua ficha.
Só falta o recibo comprovando residência.
Pra limpar todo esse sangue, chamei a faxineira
E agora eu já vou indo senão perco a novela
E eu não quero ficar na mão.
(Metrópole, 1986.)
O descaso com o drama do cidadão comum, o mau funcionamento do
serviço público, o autoritarismo e a submissão subjacentes na expressão
“ordens são ordens”, dentre outros, são algumas das insatisfações postas em
destaque na letra. O não atendimento na fila do hospital simboliza umarie de
situações nas quais o Estado, colocado na letra como o responsável por
solucionar essa questão dentre outras também presentes, não conseguiu
eficncia, representando, assim, sua incapacidade de gerir com eficácia as
políticas públicas. O Estado, na composição, torna-se incapaz de garantir
96
direitos elementares ao cidadão e essa situação praticamente se
institucionaliza. Esse descaso desperta a indignação na composição que traduz
um sentimento amplo no país. O fracasso combinado com autoritarismo
constituem o cerne indiciário da identidade, que se propõe inclusiva, a qual
nesse momento refuta a situação de exclusão social presente no Brasil.
Caminhos alternativos para o exercício da racionalidade foi a temática de
algumas composições de Russo, refutando a razão hegemonizada na
modernidade e no Estado, instituição que abalizou - ora como difusor ora como
elo de conservação - lógicas modernas, instrumentalizadas com o fito de
dinamizar uma pseudoneutralidade frente as demandas contingenciadas
historicamente.
97
Capítulo III
Outras razões- Novas alternativas e outros problemas
Estou cansado de ouvir falar
Em Freud, Jung, Engels, Marx
Intrigas intelectuais rodando em mesa de bar
Yeah, Yeah, Yeah,
O que eu quero eu não tenho
O que eu não tenho eu quero ter
Não posso ter o que eu quero
E acho que isto não tem nada a ver
(Conexão Amazônica, 1980)
A crítica valoriza a insuficiência de uma razão que defina universalmente
o indivíduo, sujeitando-o a um conjunto de generalidades que discriminam sua
subjetividade. Denota um esgotamento dos grandes modelos explicativos diante
das novas demandas do presente. Freud, Jung, Marx e Engels; os dois
primeiros, teóricos da psicanálise, e os dois últimos, expoentes do socialismo
histórico materialista dialético, são baluartes da construção da razão moderna a
partir do século XIX.
As ideologias são, com bastante freqüência, acadêmica e
socialmente respeitáveis e em muitos casos ocupam
posições de absoluta validade, de modo que a discordância
é considerada desrespeitosa e radical e corre o risco de ser
rotulada como irresponsável, não esclarecida e desprezível.
(Bauman, 1999, p. 49)
Questionar as idéias desses teóricos, como faz Renato Russo na
composição em epígrafe, não no sentido de confrontá-las cientificamente, mas
no de pouco considerá-las, enfatizando que as mesmas o respondem às
necessidades individuais mais urgentes, remete à desilusão frente a razão
produzida pela modernidade. Reflete, com isso, uma crise na qual esses
paradigmas, referências indispensáveis da construção da identidade moderna,
são negligenciados, pois nessa perspectiva de leitura são considerados
98
insuficientes para dar suporte às necessidades emergidas nesse contexto que
se intensificou a partir da década de 1970. A desilusão diante desses modelos
e a angustia que se instaura pela ausência daquilo que quer e que não pode ter,
põem em destaque, na composição, a desilusão perante o indefinido.
Esse contexto, que envolve a descrença para com baluartes da razão
moderna é a contrapartida da criação de um novo arcabouço, eivado de uma
racionalidade que não mais se insere nos grandes modelos explicativos, ao
contrário coloca-as numa situação de ineficácia ante as demandas anunciadas.
Nesse contexto, em 1988, Renato Russo se posiciona para além das
composições.
Eu, na verdade, nunca me liguei em nada de política, e um
dos motivos que me levaram a entrar mais fundo no
rock´n´roll foi o pessoal da UnB, o pessoal supostamente
politizado. Por que eles eram um bando de fascistas...
Eram muito legais, idéias muito legais, mas, se você não
agisse como eles, não te aceitavam. Então, eles ficavam
ouvindo Milton Nascimneto e Fagner e discutindo Marx,
defendiam o negro, o homossexual, os pobres carentes,
mas eram muito fechados entre si. (Assad, 2000, p. 262)
Assim, a revisão da modernidade mescla-se com a da razão, pois as
duas esferas são elementos indissociáveis de uma realidade garantidora da
emancipação do sujeito frente às lacunas da vida, as quais seriam preenchidas
por uma perspectiva utópica, de um lugar definível no futuro, de melhor situação
da humanidade, abalizada pela razão. Por sua vez, Gerd Bornheim (1996)
assevera:
[...] o conflito pertence à própria gênese da cultura
ocidental; trata-se de uma cultura matrizada pela crise, a
crise é como que o seu endereço normal; ela não deve ser
entendida meramente como o resultado de um processo,
que faria o todo desse processo incorrer em perigo; ela
também não vem depois. Ao modo de uma excrescência,
ou de um acréscimo advindo de uma infecção oportunista
estabelecida desde fora, como que a perturbar e mesmo
ameaçar a integridade de uma grande cultura. Antes, tudo
é habitado pela crise enquanto chão último, e pipocam
99
então aqui e ali as suas mais diversas manifestações.
(Bornheim, 1996, p. 59)
Todavia, ao tomar por pressuposto uma razão que se originou em
crise na cultura ocidental, torna-se forçoso estabelecer um elo no qual a
dimensão histórica não pode ser entendida do ponto de vista meramente
fundacional como se a história ocidental estivesse inexoravelmente numa crise,
da qual seria refém.
A modernidade desvela uma infinidade de novas possibilidades, as quais,
dentro de uma perspectiva histórica ocidental, trava uma série de relações que
particularizam não a razão, mas a maneira como essa se fez e se faz sentir nos
diversos limites que o postos por ela e para ela. A crise da modernidade
imbrica-se à da razão não por uma pressuposição fatalista; contudo a crise
redefinidora dos paradigmas se caracteriza por trazer à tona a complexidade de
sujeitos históricos capazes de dar vazão aos seus anseios. Na modernidade,
observada numa acepção histórica, a crise revelou novas subjetividades,
capazes de relevar múltiplas situações, geradoras de novos projetos individuais,
inseridos em diferentes perspectivas.
Na expectativa de abrir possibilidades para razões outras que não as
assentadas na modernização autoritária da qual o ocidente como um todo foi
protagonista, há que se destacar:
Weber alegava que a esperança e a expectativa dos
pensadores iluministas era uma amarga e irônica ilusão.
Eles mantinham um forte vínculo necessário entre o
desenvolvimento da ciência, da racionalidade e da
liberdade humana universal. Mas, quando desmascarado e
compreendido, o legado do Iluminismo foi o triunfo da
racionalidade [...] proposital instrumental. Essa forma de
racionalidade afeta e infecta todos os planos da vida social
e cultural, abrangendo as estruturas econômicas, o direito,
a administração burocrática e até as artes. O
desenvolvimento da [racionalidade proposital-instrumental]
não leva à realização concreta da liberdade universal, mas
à criação de uma ‘jaula de ferro’ da racionalidade
100
burocrática da qual não há como escapar. (Bernstein, 1985,
p. 5)
A razão na sua instrumentalização, nos limites da modernidade e da
modernização, na qual o Brasil se inseriu, assumiu a relevância de
racionalização das instituições, seja no âmbito da produção ou das relações que
dela derivam. Numa dinâmica de interpenetração, fundamentou-se um
monólogo, projetando uma jaula de ferro” que afetou os setores públicos e
privados.
A sistematização de um projeto diferenciado estabeleceu na construção
identitária uma redefinição dos referenciais da própria racionalidade. Entendida
como crise da própria razão, essa nova fase da modernidade trouxe, nas
composições de Renato Russo, um deslocamento da razão tida como
proveniente da modernidade.
A geração dos anos oitenta, vinculada ao meio urbano, sentiu a
instrumentalização da razão, com a sistematização de uma modernização que
discrimina a razão comunicativa do indivíduo, ou outras esferas racionais que
não as do Estado modernizante, no quadro de suas relações interpessoais.
Nessa fase da modernidade instalou-se, dentre outros, um dilema: a descrença
na universalização dos ideais modernos, seja numa ou noutra vertente, tornou-
se a tônica de um processo no qual a identidade, relacionando-se com a
modernidade, fragmenta-se. Desse modo, põe em xeque a noção de razão
libertadora pela via da generalização, a qual reconhecia no indivíduo moderno o
grande beneficiário.
A posição dessa nova fase da modernidade é construir um referencial
identitário que reconheça no indivíduo, que constrói e reconstrói
identitariamente, por negação e afirmação, uma lógica racional, uma alternativa
101
frente às demandas da razão que individualiza sem que se permita dar voz ao
indivíduo. Como assevera Rouanet:
Opor-se ao sistema equivalia, assim, a opor-se à própria
razão. A razão não pode deixar de ser vista como
opressora, quando o poder que oprime fala em nome dela e
quando ela é percebida como a única posvel.
(Rouanet,1999, p.16)
Esse monólogo da razão, nica da sedimentação dos projetos da
modernidade, no Brasil, é pontuado por Rouanet (1999):
Durante os vinte anos de regime autoritário, a razão parecia
encarnar-se exclusivamente em duas lógicas, ambas
radicadas na esfera sistêmica- a razão de Estado e a razão
econômica. Os tecnocratas falavam em nome de uma
razão sistêmica global, maciça, que não deixava espaços
para uma racionalidade alternativa. Se o modelo político e
econômico no Brasil representava a razão, não era possível
contestá-lo senão contestando a própria razão.
(Rouanet,1999, p. 16)
A década de oitenta, com a redemocratização do Brasil, trouxe uma
definição da racionalidade, aflorando novas subjetividades, que não mais se
pautavam na ótica pragmática da ditadura.
A identidade racional modernizadora trouxe em contraposição sua
negação, na qual a tentativa de uma outra opção reavalia o próprio conceito de
razão. Desse modo, parodiando Blaise Pascal, que afirmou “O coração possui
razões que a própria razão desconhece”, Renato Russo demonstrou as
contradições:
Quem um dia irá dizer
Que existe razão
Nas coisas feitas pelo coração?
E quem irá dizer
Que não existe razão?
(Eduardo e Mônica, 1982)
O jogo de palavras elucida uma dimica através da qual a razão, tida
como instrumental, é colocada em descrédito diante da razão que não mais
102
aflora das instituições, do sistema, da lógica modernizadora. A subjetividade
sustentada na composição passa pela inclusão de uma razão questionadora,
que se realiza no indiduo, determina sua vida, seus conceitos e sua projeção
de futuro. O caso amoroso representa a fragmentação mais ampla do indivíduo,
o qual não mais se considera inserido nessa sistemática e busca guarida numa
perspectiva menos racional que o considere na sua particularidade, aqui
ressaltada no romance de Eduardo e Monica.
Eduardo abriu os olhos mas não quis se levantar:
Ficou deitado e viu que horas eram
Enquanto Monica tomava um conhaque,
Noutro canto da cidade,
Como eles disseram [...]
Eduardo e Mônica um dia se encontraram sem querer
E conversaram muito mesmo pra tentar se conhecer.
Foi um carinha do cursinho do Eduardo que disse:
- Tem uma festa legal e a gente quer se divertir.
Festa estranha, com gente esquisita:
- Eu não estou legal. Não aguento mais birita.
E a Mônica riu e quis saber um pouco mais
Sobre o boyzinho que tentava impressionar
E o Eduardo, meio tonto, pensava em ir pra casa:
- É quase duas, eu vou me ferrar.
(Eduardo e Mônica, 1982)
Acentua-se, nessa composição, a abertura para uma razão que foge das
elaborações tradicionais. Ao contrário, enfoca um relacionamento de pessoas,
idades e sexos diferentes. A subjetividade construída pela modernidade, grande
parte instrumentalizada numa lógica tecnocrática, descarta um conjunto de
realidades que se anunciavam e traziam à tona uma gama de sujeitos múltiplos.
A rigidez da regras enquadrando o sujeito que protagonizava uma
relação amorosa é contrastada com esse novo sujeito que passa por
transformações capazes de desafiar o padrão de convivência. A hegemonia da
tradição é desafiada por uma noção que entende no cotidiano e na diferença
entre os sujeitos a alavanca para a emergência de um novo tipo de razão que
1
03
percebe no sujeito o ente capaz de atingi-la e não somente ser tocado e
instrumentalizado pela mesma.
Como assevera Milton Santos, ao tecer considerações sobre os limites
da globalização, que, na sua ótica, é o ponto nevrálgico desse acirramento das
razões:
[...] no cotidiano, a razão, isto é, a razão de viver, é
buscada por meio do que, face a essa racionalidade
hegemônica, é considerado como irracionalidade’, quando
na realidade o que se são outras formas de ser
racional(Santos, 2000, p. 126)
A inversão dos papéis, na qual o homem preocupa-se com a hora de
chegar em casa, perante uma mulher que esboça um padrão de comportamento
independente, não sinaliza somente uma elaboração poética de Russo, num
contraponto é confirmação de uma relação alicerçada numa nova subjetividade
e em paradigmas identitários novos. Não se trata de uma inversão. É, ao
contrário, a constituição de um viés identitário, que reconhece nessa relação a
possibilidade de ter razão, a qual se não é sistematizada racionalmente assume
um outro sentido semântico.
Ponto interessante na narrativa de Russo, como representação de uma
identidade juvenil, está na insubordinação, decalcada por um relacionamento
amoroso, aos preceitos legitimados na e pela sociedade como o padrão de
convivência. A relação entre duas pessoas diferentes, de idades dispares,
fugindo dos padrões tradicionais, tomando como aporte o trocadilho feito em
torno da palavra razão, sugere uma contraposição não aos padrões
identitários de um casamento monogâmico heterossexual e patriarcal cristão
ocidental, mas uma proposta de revisão da própria noção da racionalidade
ocidental, a qual por fragmentos, acomodou elementos pré-modernos, dentre os
104
quais o casamento e sua formatação cristã serviram, em menor ou em maior
grau, aos preceitos da modernidade.
Eduardo e Mônica trocaram telefone
Depois telefonaram e decidiram se encontrar.
O Eduardo sugeriu uma lanchonete
Mas a Mônica queria ver o filme do Godard.
Se encontraram então no parque da cidade
A Mônica de moto e o Eduardo de camelo.
O Eduardo achou estranho e melhor não comentar
Mas a menina tinha tinta no cabelo.
Eduardo e Mônica eram nada parecidos -
Ela era de Leão e ele tinha dezesseis.
Ela fazia Medicina e falava alemão
E ele ainda nas aulinhas de inglês.
Ela gostava do Bandeira e do Bahaus,
De Van Gogh e dos Mutantes,
De Caetano e de Rimbaud
E o Eduardo gostava de novela
E jogava futebol-de-botão com seu avô.
Ela falava coisas sobre o Planalto Central,
Também magia e meditação.
E o Eduardo ainda estava
No esquema "escola-cinema-clube-televio"
(Eduardo e Monica, 1982)
A diferença dos sujeitos e dos gostos que eles cultivam denota uma
identidade que se multiplica e não mais entende a diferença como algo que foge
da ordem universal, de pressupor grandes projetos que ressaltem no indivíduo
ou na ordem sistêmica um veículo para sua realização. As muitas relações
estabelecidas, tanto na esfera interpessoal quanto na do sujeito com as coisas,
descartam a premissa de uma razão que negligencie esse novo conjunto de
questões.
Não mais monitorados e protegidos, cobertos e revigorados
por instituições em busca de monopólio- expostas, em vez
disso, ao livre jogo de forças concorrentes-, quaisquer
hierarquias ou graus de identidades, e particularmente os
lidos e duráveis, o são nem procurados nem fáceis de
construir. As principais razões de as identidades serem
estritamente definidas e desprovidas de ambigüidade (tão
bem definidas e inequívocas quanto a soberania territorial
do Estado, e de manterem o mesmo formato reconhecível
ao longo do tempo, desapareceram ou perderam muito do
poder constrangedor que um dia tiveram. As identidades
ganharam livre curso, e agora cabe a cada indivíduo,
homem ou mulher, capturá-las em pleno vôo, usando
os seus próprios recursos e ferramentas.(grifo nosso)
(Bauman, 2005, p. 35)
105
Essa perda do monopólio do Estado, salientada por Bauman,
concomitante ao livre curso adquirido pelas identidades, reconhecendo no
gênero feminino, por citar “homem ou mulher”, fugindo da concepção
androcêntrica, ao tratar a generalidade pelo sentido masculino, projetam em
Monica e Eduardo a representatividade de um complexo identitário no qual a
novidade reside na multiplicidade de gostos e numa infinidade de padrões de
comportamento.
O sujeito moderno Eduardo sugeriu uma lanchonete, andava de camelo
(ônibus), tinha dezesseis anos, freqüentava aulinhas de inglês, gostava de
novela, jogava futebol-de-botão com seu avô e estava no esquema “escola-
cinema-clube-televisão”. Por outro lado, o sujeito também moderno Monica
queria ver o filme do Godard, andava de moto, tinha tinta no cabelo, era de
Leão, fazia medicina e falava alemão, gostava do Bandeira, do Bahaus, de Van
Gogh, dos Mutantes, de Caetano, de Rimbaud, falava coisas sobre o Planalto
Central, sobre magia e meditação. Esses dois sujeitos, com todas as
diferenças, coabitam um ambiente no qual ainda espaço para a
convergência, numa inversão de papeis típica da modernidade.
A combinação de medicina e alemão com magia e meditação ressalta
uma peculiaridade desse arranjo identitário, o qual aponta alternativas à razão
instrumentalizada, fazendo com que o pensamento mágico assuma uma
dimensão que ao mesmo tempo estabeleça uma fuga e uma nova inserção
frente à discriminação da razão, que, ao invés de clarear, ofusca. Como salienta
Chauí:
[...] ao chegarmos ao máximo de capacidade de razão
instrumental ou tecnológica, isto é, ao objeto tecnológico
como autômato baseado na idéia de informação e capaz de
se auto-alimentar e se autocorrigir, esse objeto máximo de
cristalização do que chamávamos de racionalidade, produz
106
como efeito o retorno ao pensamento mágico [...] Assim, o
ressurgimento da astrologia, dos duendes e das fadas no
universo dos autômatos não é um paradoxo inexplicável,
mas a reunião, numa nova articulação do
misterioso.(Chauí, 1996, p.22-23)
Essa confluência de bitos sugere uma identidade na qual o mágico
mistura-se ao racional. Os contrários, pela amplitude da informação e pela
lacuna deixada na razão instrumentalizada, conduzem os sujeitos a filiações
que preenchem um espaço não correspondido pela ciência e, portanto, incapaz
de responder aos anseios suscitados por essa pluralidade de relações.
E, mesmo com tudo diferente,
Veio mesmo, de repente,
Uma vontade de se ver
E os dois se encontravam todo dia
E a vontade crescia,
Como tinha de ser.
(Eduardo e Monica, 1982)
A diferença desses dois sujeitos- Eduardo e Monica -, que se realizam
numa relação amorosa, ressalta uma multilateralidade de perspectivas que se
fragmentam e, concomitantemente, possibilitam uma relação na qual o diálogo
pela via da diferença descarta a lógica padronizada. “E quem irá dizer que o
existe razão nas coisas feitas pelo coração?” (grifo nosso). A indagação sugere
uma redefinição do conceito de razão, dos motivos geradores da consciência
histórica, como assevera Rüsen, fazendo dos sujeitos Eduardo e Monica, com o
sucesso de sua relação amorosa, porta-vozes de uma outra possibilidade, ao
identificar-se com um novo espectro de situações, as quais incluem as coisas
do coração.
Eduardo e Mônica fizeram natação, fotografia,
Teatro e artesanato e foram viajar.
A Mônica explicava pro Eduardo
Coisas sobre o céu, a terra, a água e o ar:
Ele aprendeu a beber, deixou o cabelo crescer
E decidiu trabalhar;
107
E ela se formou no mesmo mês
Em que ele passou no vestibular.
E os dois comemoraram juntos
E também brigaram juntos, muitas vezes depois.
E todo mundo diz que ele completa ela e vice-versa,
Que nem feijão com arroz.
Construíram uma casa uns dois anos atrás,
Mais ou menos quando os gêmeos vieram -
Batalharam grana e seguraram legal
A barra mais pesada que tiveram.
Eduardo e Mônica voltaram pra Brasília
E a nossa amizade dá saudade no verão.
Só que nessas férias não vão viajar
Porque o filhinho do Eduardo
Tá de recuperação.
(Eduardo e Monica, 1982)
Percebe-se a convergência dos sujeitos que se relacionam
amorosamente e que, com todas as dificuldades, conseguem obter uma relação
de afeto, de construção de família, na qual a relação matrimonial recebe uma
nova roupagem. Os papéis o redimensionados e a subordinação da mulher
em relação ao marido, pica de uma sociedade com fortes ranços de
patriarcalismo, é posta de lado nesse novo quadro de situações. “A Monica
explicava pro Eduardo coisas sobre o céu, a terra, a água e o ar”, participando
de seu processo de formação, dividindo com ele responsabilidades e
dificuldades, numa relação que se democratiza.
O cotidiano é ressaltado como a realização do sujeito e a vitória se
num outro referencial. Nessa construção, a superação das brigas, a batalha do
dia-a-dia, a casa e a criação dos filhos ressaltam uma nova identidade, na qual
o sonho de realização da vida sofreu uma guinada, apresentando o modelo, que
encontrou no amor por um homem mais jovem, com singularidades que
teoricamente os afastariam, a razão de sua vida e de seu projeto. O cotidiano
assume, assim, a significância de situar esse novo sujeito, que não mais se
realiza nas grandes perspectivas. A subjetividade desse sujeito moderno pede
108
dignidade, inclusão, autonomia e enxerga valor onde aentão não existia ou a
razão não foi capaz de mostrar.
Quase morri
Ha menos de trinta e duas horas atrás
Hoje a gente fica na varanda
Um dia perfeito com as crianças.
São as pequenas coisas que valem mais
É tão bom estarmos juntos
E tão simples: um dia perfeito.
(Um Dia Perfeito, 1993)
A casa, a família se apresenta como a perfeição frente à tragicidade de
quase morrer um tempo atrás. O dia perfeito está diretamente entrelaçado
numa dimensão particular, na qual o individualismo assume na fragmentação o
trajeto de sua vida.
Até pelo meu histórico familiar, eu preservo a família. Falo
mal das instituições. Eu já fiz estádio vir abaixo e tomei
várias atitudes rebeldes, mas dou muito valor à família.
Porque é ela que me segura. (Assad, 2000, p. 103)
A valorização das pequenas coisas, opõe-se às grandes teorias que
movimentaram os homens durante boa parte dos séculos XIX e XX. A
simplicidade contrasta com a identidade complexa, que enxerga no indivíduo
um instrumento de realização da modernidade paradoxal.
Não vou me deixar embrutecer
Eu acredito nos meus ideais
Podem até maltratar meu coração
Que meu espírito
Ninguém vai conseguir quebrar.
(Um Dia Perfeito, 1993)
Ideais, no plural, combinado ao verbo acreditar, conjugado em primeira
pessoa, trazem duas assertivas: primeira, a de que possivelmente não existe
um único ideal, havendo, pois, uma infinidade de valores; e uma segunda, que
reside na crença de uma perspectiva de futuro, na qual o maltrato do coração
não quebra o espírito. Uma identidade, portanto, que esboça uma noção de
109
projeto, ainda que indefinido, ciente de que há uma plêiade de valores nos quais
se apoiar.
A negativa dos valores construídos pela razão moderna, que foi capaz de
levar o mundo à guerras, à miséria, ao descaso diante a subjetividade,
colocando a generalização do indivíduo como regra maior de convivência social,
produziu o seu antagonismo: a descrença combinada com a revolta, cimentada
pela dúvida.
Tenho andado distraído,
Impaciente e indeciso
E ainda estou confuso.
Só que agora é diferente:
Estou tão tranqüilo
E tão contente.
Quantas chances desperdicei
Quando o que eu mais queria
Era provar pra todo o mundo
Que eu não precisava
Provar nada pra ninguém.
(Quase sem querer, 1986)
A dúvida faz parte dessa identidade diferenciada na medida em que a
fragmentação do sujeito e a pluralidade de imagens, ressaltada pela desilusão
perante a institucionalização da razão moderna, tornam-se marcas presentes
nos dilemas os quais não emblematizam uma nova situação do sujeito, mas
fazem parte da composição deste. A insegurança denota um sentimento de
repulsa a projetos que negligenciem a parcela de subjetividade que esse novo
sujeito requer.
Distração, impaciência, indecisão, confusão são elementos constitutivos
desse novo arranjo identitário. A pluralidade de padrões incorporados numa
transição entre o velho e o novo fazia-se presente na definição desse novo
padrão. A demarcação do lugar do sujeito no prisma identitário moderno trouxe
a reboque uma idéia de projeto que fazia parte dos anseios individuais. O novo
110
trazia consigo uma multiplicidade que a partir da diferença fazia emergir, à luz
da letra, a tranqüilidade e o contentamento, ainda que não correspondente à
situação hegemônica.
A desvinculação do antigo sujeito, tido como retrógrado e opressor,
trouxe uma noção na qual a manifestação do indivíduo faz-se na demonstração
de uma sensibilidade muitas vezes desprezada pelo apelo modernizador que
pressupunha referenciais que, ao universalizar, massacrava outras faces do
individualismo:
Já não me preocupo
Se eu não sei porquê
Às vezes o que eu vejo
Quase ninguém vê
E eu sei que você sabe
Quase sem querer
Que eu vejo o mesmo que você.
(Quase sem querer, 1986)
Quase sem querer, na composição de Russo, expressa um
desprendimento em relação aos valores tutelados pela sociedade moderna e
realça uma sensibilidade de enxergar o que ninguém como uma resposta à
generalização do indivíduo.
Andando nas ruas
Pensei que podia ouvir
Alguém me chamando
Dizendo meu nome.
Já estou cheio de me sentir vazio
Meu corpo é quente e estou sentindo frio
Todo mundo sabe e ninguém quer mais saber
Afinal, amar ao próximo é tão démodé.
(Baader-Meinhof Blues, 1984)
7
A noção de controle social, tão cara à consolidação do Estado Moderno,
passou por uma reordenação a qual aparentemente indica uma perda de
7
Andreas Baader e Ulrike Meinhof, líderes da RAF( Fração do Exército Vermelho), que se constituiu
num movimento de jovens idealistas alemães, que teve muitos simpatizantes e que chegou a realizar atos
tidos como terroristas. O movimento foi duramente reprimido pelo Estado Alemão e os dois líderes acima
citados suicidaram-se na prisão.
111
controle da situação por parte das instituições modernas. Hoje, uma
indeterminação do sujeito, inclusive, pela inadmissibilidade de uma identidade
fixa, rígida. Nesse sentido, sustenta Bauman, tomando por referência a
globalização e seus efeitos:
Em poucas palavras: ninguém parece estar no controle
agora. Pior ainda não está claro o que seria, nas
circunstâncias atuais, “ter o controle”. Como antes, todas as
iniciativas e ações de ordenação são locais e orientadas
para questões específicas; mas não mais uma
localidade com arrogância bastante para falar em nome da
humanidade como um todo ou para ser ouvida e obedecida
pela humanidade ao se pronunciar. Nem uma questão
única que possa captar e teleguiar a totalidade dos
assuntos e impor a concordância global. (Bauman, 1999, p.
66)
A identidade construída e dinamizada numa relação com a globalização
descredencia as antigas formas de controle social. Nas letras de Russo, a
crítica às instituições basilares da modernidade são recorrentes.
Essa justiça desafinada
É tão humana e tão errada
Nós assistimos televisão também
Qual é a diferença?
Não estatize meus sentimentos
Pra seu governo,
O meu estado é independente.
(Baader-Meinhof Blues, 1984)
A razão moderna apresenta seus limites, a generalização dos
sentimentos são refutados por um sujeito que pede espaço. Nisso, a
composição de Russo é pertinente, haja vista ser a estatização dos
sentimentos instrumentos de uma racionalização que descarta o indivíduo:
Na esfera da racionalidade hegemônica, pequena margem
é deixada para a variedade, a criatividade, a
espontaneidade. Enquanto isso, surgem outras esferas de
contra-racionalidades e racionalidades paralelas
corriqueiramente chamadas de irracionalidades, mas que
na realidade constituem outras formas de racionalidade.
(Santos, 2000, p. 120-121)
112
A contra-racionalidade insere-se no contexto de indignação com as
vicissitudes geradas pela racionalidade moderna, as quais elucidaram uma
percepção de ausência, de abandono e de controle típico da modernização
que exclui a subjetividade dos indivíduos.
Cheio/vazio e quente/frio sugerem contrastes de um conflito
recorrente. O vazio e o frio elucidam uma carência manifestada na não
correspondência a uma infinidade de reivindicações, nas quais o pano de
fundo é uma situação de imprecisão frente ao mundo que anunciou e
perpetuou uma série de novos contextos, formadores de sujeitos plurais. A
negação a um valor único, universal, seja na esfera racional ou religiosa,
compõe a tônica desse novo sujeito, que se indigna com a concepção de ser
fora de moda (démodé) amar o próximo (MT 22:39)
8
, sendo o recurso
religioso largamente utilizado nas composições de Russo, e, por outro lado,
rebela-se contra a justiça desafinada, humana e errada. Clama, pois, pela
justiça o-humana, mas, ao fazê-lo, reconhece a existência da humana,
negando-lhe legitimidade e competência de solucionar seus problemas.
A dificuldade de aceitação de uma realidade única, devido à
multiplicidade de relações estabelecidas entre os sujeitos e na relação
destes com o mundo, traz, num contraponto, o tipo de razão a afastar bem
como questionar-se diante dessa razão esmagadora que aniquila a pessoa
humana na promessa de sua redenção social ou política. Como ressalta
Ibañez:
Este novo modo de sentir se conecta como fato de que
vivemos numa sociedade de comunicação generalizada.
Rádio, televisão e jornais se têm convertido nos agentes de
uma verdadeira explosão e proliferação geral de imagens e
8
Referência ao Evangelho de Mateus.
113
visões de mundo. Isto volta à sociedade mais complexa e
caótica. O aumento da informação e das imagens possíveis
acerca das variadas formas da realidade torna mais difícil a
concepção de uma realidade única. (Ibañez, 1996, p.
245/246)
A guerra fria, que ocupou grande parte do cenário mundial na segunda
metade do século XX, foi o ponto máximo de uma razão que define e despreza,
que abusa da premissa do poder e impera nos países e nas pessoas a
expressão do medo, da desilusão e da frustração do projeto utópico.
Renato Russo, com severidade e escárnio, salienta o quão a dimensão
da razão que produz a guerra é restritiva nos valores e aguçada na ambição.
Existe alguém esperando por você
Que vai comprar a sua juventude
E convencê-lo a vencer
Mais uma guerra sem razão
(E já são tantas as crianças com armas na mão)
Mas lhe explicam novamente que a guerra gera emprego
E aumenta a produção
Uma guerra sempre avança a tecnologia
Mesmo sendo guerra santa, quente, morna ou fria
Pra que exportar comida
Se as armas dão mais lucro na exportação?
(A Canção do Senhor da Guerra,1992)
A guerra é criticada como veículo de solidificação de uma razão que
menospreza o indivíduo e sua escolha é posta num segundo plano, ressaltando
o aspecto materialista dos motivos que ensejam a mesma. O avanço da
tecnologia, o aumento da produção, pensada dentro de uma lógica de
interesses de uma parcela da população, o os motivos materiais que
justificam a guerra. Por outro lado, o conteúdo ideológico que a envolve é
relevado, dando mostras claras da finalidade da realização, projetando no
soldado-cidadão a solução de um problema que ele não criou.
As grandes guerras que movimentaram o século XX , a primeira e
segunda guerras mundiais, bem como a guerra fria, as quais na tese
114
desenvolvida por Hobsbawm (1995) compuseram e determinaram o breve
século XX, sopesam nessa identidade pontos impossíveis de serem
esquecidos, pelo trato que deram à pessoa humana:
Existe alguém que está contando com você
Pra lutar em seu lugar já que nessa guerra
Não é ele quem vai morrer
E quando longe de casa
Ferido e com frio o inimigo você espera
Ele estará com outros velhos
Inventando novos jogos de guerra
E belíssimas cenas de destruição
(Não teremos mais problemas com a super população)
Veja que uniforme lindo fizemos pra você
E lembre-se sempre que Deus es
Do lado de quem vai vencer
O senhor da guerra
Não gosta de crianças
(A Canção do Senhor da Guerra,1992)
A guerra faz parte do velho, do arcaico, que atende a uma razão que não
mais é aceita por esse sujeito. A resolução dos problemas sem pensar nas
conseqüências, na qual a instrumentalização da guerra assume uma vertente
burocrática e finalista, corrobora a desilusão perante os artifícios utilizados pela
sociedade para solução dos conflitos.
Se antes havia um sujeito capaz de matar ou morrer pela defesa de uma
idéia, nessa nova identidade uma percepção mais crítica da relação
ideologia/ambição de que toda guerra é composta.
Nossas meninas estão longe daqui
Não temos com quem chorar e nem pra onde ir
Se lembra quando era isso brincadeira
Fingir ser soldado a tarde inteira?
(Soldados, 1984)
O dilema da distância das suas namoradas é contraposto à formulação
ideológica que normaliza a guerra, acostumando as crianças a, ao brincarem
com armas, internalizar uma naturalidade em algo que, ao se realizar de fato,
afeta a própria vida.
115
Mas agora a coragem que temos no coração
Parece medo da morte mas não era então
Tenho medo de lhe dizer o que eu quero tanto
Tenho medo e eu sei porque:
Estamos esperando.
(Soldados, 1984)
A ideologia teve como um dos seus principais aspectos o enraizamento
da alienação que, não raras vezes, buscava, por caminhos essencialistas, a
defesa de seus ideais, fundamentando ações violentas em discursos rasos, que
convenciam e enviavam milhares de jovens à guerra, sendo, neste caso, até
pela influência dos movimentos contra-culturais, a guerra contra o Vietnã o
exemplo mais elucidativo.
Aceite o desafio e provoque o desempate:
Desarme a armadilha e desmonte o disfarce.
Se afaste do abismo –
Faça do bom-senso a nova ordem;
Não deixe a guerra começar
Pense só um pouco,
Não há nada de novo.
Você vive insatisfeito e não confia em ninguém
E não acredita em nada
E agora é só cansaço e falta de vontade,
Mas faça do bom-senso a nova ordem:
Não deixe a guerra começar.
(Plantas Embaixo do Aquário, 1986)
A nova ordem ressaltada na canção contrasta com a guerra e o medo,
sentimento presente em qualquer campo de batalha, sinaliza o abandono de
uma razão que manda um soldado à guerra, mas é incapaz de solucionar suas
necessidades mais prementes. Medo que, no Brasil, assumiu sua face obscura
na ditadura. Esse estado de medo, que é, por si só, a representação de uma
razão repressora, seja no campo de batalha ou no cotidiano autoritário e
sufocante, põe em dúvida o reconhecimento da pessoa humana, a qual, ao ser
reprimida no extremo da guerra perde a certeza do sentir, do pensar, e, enfim,
do ser:
116
Quem é o inimigo?
Quem é você?
Nos defendemos tanto, tanto sem saber
Porque lutar.
Nossas meninas estão longe daqui
E de repente eu vi você cair
Não sei armar o que eu senti
Não sei dizer que vi você ali.
Quem vai saber o que você sentiu?
Quem vai saber o que você pensou?
Quem vai dizer agora o que eu não fiz?
Como explicar pra você o que eu quis
Somos soldados
Pedindo esmola
E a gente não queria lutar.
(Soldados, 1984)
A dúvida e a ausência de respostas a muitas perguntas ressaltam um
sentimento que desembocou numa desilusão frente às instituições e à
racionalização derivada delas. A desilusão abre espaço para uma situação na
qual a realidade não se pautava pela razão hegemonizada pelos
instrumentais modernos, estatais ou correlatos, como no caso da veiculação
midiática, a qual reforça os expedientes estatais no seu desejo de perpetuação.
A percepção da dinâmica doméstica, na constituição de um referencial que
redimensiona a noção de projeto, de anseios, foi largamente sustentada nas
letras de Renato Russo, abrindo fendas no ideal unificador de uma parcela da
racionalidade moderna instrumentalizada através tamm do Estado.
117
Capítulo IV
A valorização da lógica doméstica: a percepção do outro (ou dos
outros) na vida privada
Estamos indo de volta para casa.
(Renato Russo)
A percepção do outro ganhou nas composições de Russo uma dinâmica
elucidativa do novo pela objeção ao velho. Não é a busca de transpassar os
valores consagrados pela modernidade e enquadrados na realidade brasileira.
Ao contrário, nas letras de Russo, de modo intenso, fica a marca de uma
construção que destrói parcialmente o conceito de identidade discursada na
esfera pública. Como pontua Ibañez:
Os critérios para definir a identidade cultural na esfera
pública o sempre mais estreitos e mais seletivos que os
complexos e diversificados hábitos e práticas culturais de
um povo. (Ibañez, 1996, p. 210)
A analise de Ibañes se faz pertinente à medida que possibilita uma
problematização da temática identitária num caminho de duas vias: projetando
na identidade uma internalização do produzido na esfera pública, o que não
descredencia uma contraproposta da esfera particular.
Nas composições de Renato Russo, a proposta não é confrontar a
tentativa de construção identitária do setor público ao ponto de aniquilá-la;
entretanto objetiva buscá-la de um modo mais inclusivo. A crítica ao
estabelecido pelo Estado, nas letras de Russo, como uma possível leitura da
identidade que se constitui a partir delas, toma proporções que não o
descaracterizam na sua instituição política e jurídica, mas recobra uma situação
118
social não correspondida, deixada de lado por negligência a um projeto, ou
ainda, o que soa como mais grave, pela inexistência de um.
Essa perspectiva, de enxergar o questionamento da modernidade nas
composições de Russo, imbrica-se às repercussões da instrumentalização da
democracia, que excluiu parcelas consideráveis da população brasileira,
contudo não faz a defesa de um outro modelo. Desse modo, a ineficácia não se
concentra no modelo democrático, mas na consecução incompleta do mesmo.
Nas letras de Renato, a voracidade de seu particularismo, que a todo
instante constrói-se e reconstrói-se, é percebida numa relação direta com o
público, na qual a família, a solidão, a desilusão, entre outros, são inter-
relacionados com uma esfera bem mais abrangente. Nesse sentido, a
identidade cultural assume uma postura:
[...] que está em permanente construção e reconstrução
dentro de novos contextos e situações históricas, como
algo do qual nunca pode afirmar-se que esfinalmente
resolvido ou constituído definitivamente como um
conjunto fixo de qualidades, valores e experiências
comuns. (Ibañez, 1996, p. 218)
A identidade assume dinamicidade nas composições de Russo. Ora
percebe-se uma desconstrução de tal modo que questionamentos a instituições
eivadas de tradição, tais como família e religião, são contrapostas com ataques
diretos ou com fugas, nas quais Renato Russo, e a geração dos anos oitenta, da
qual ele foi talvez o mais significativo porta voz, manifestou-se através do
deslocamento para um outro tempo e para um outro espaço ou, num extremo,
para o consumo de drogas.
Sentir-se preso ao ambiente familiar e educacional reflete a
representação de uma cultura, que no âmbito privado é salientada, contudo
sinaliza um sentimento que não se resume tão somente aos laços familiares. A
119
construção da identidade social, então, com a construção de uma sociedade, é
feita de afirmativas e de negativas diante de certas questões.(DaMatta, 1984, p.
17) É uma insatisfação na qual a família torna-se válvula de escape perante os
problemas que afloram a todo instante na sociedade moderna.
Questões que até então eram postas de lado pelo ranço patriarcal,
autoritário e conservador da sociedade brasileira, as quais refletiam nas relações
familiares, eram, na década de oitenta, impossíveis de negligenciar, sendo,
portanto, catalisadoras de revoltas, as quais assumiam no núcleo familiar uma
dimensão que não lhe era exclusiva, pois a esfera sócio-cultural era ressaltada e
colocada em xeque.
Nesse contexto, as criticas tomam um volume que não se restringe à
família, figurando, pois, num conjunto de instituições, possibilitando uma
identidade que faz parte de “[...] uma inter-relação dinâmica do pólo público e do
pólo privado, como dois momentos de um processo circular de interação
recíproca”. (Ibañez, 1996, p. 218)
Ainda me lembro aos três anos de idade
O meu primeiro contato com as grades
O meu primeiro dia na escola
Como senti vontade de ir embora
(O Reggae, 1984)
As imposições da sociedade e o dever de ir à escola ganham na
representação da juventude uma função pouco lúdica, que se assemelha mais
ao aprisionamento do educando frente a instituições autoritárias. O “contato com
as grades” aos três anos de idade foi apenas a primeira experiência de uma
ruptura dolorosa. A escola, não mais como mbolo de uma razão que liberta,
120
que possibilita exercer com consciência os caminhos da cidadania, mas que
amordaça e tolhe a liberdade.
Fazia tudo que eles quisessem
Acreditava em tudo que eles me dissessem
Me pediram para ter paciência
Falhei
Então gritaram: - cresça e apareça!
Cresci e apareci e não vi nada
Aprendi o que era certo com a pessoa errada
Assistia o jornal da TV
E aprendi a roubar pra vencer
Nada era como eu imaginava
Nem as pessoas que eu tanto amava
Mas, e daí, se é mesmo assim
Vou ver se tiro o melhor pra mim
(O Reggae, 1984)
As grandes questões o redimensionadas numa órbita que não é
abstrata e imparcial, como apregoa o ideal moderno. Aqui, a lógica continua
sendo moderna, todavia as questões que eram a então postas de lado
assumem uma conotação na qual o particular e o geral se interpenetram. Russo
aborda questões que ferem as pessoas nas suas subjetividades, mas
concomitantemente traz à tona um conjunto de questões da vida pública desse
indivíduo. Em 1995, versou sobre essas impressões que abarcam a
adolescência e a transição para a fase adulta:
Vivi em Brasília dos 13 aos 23 anos, e ali, depois de algum
tempo, meu mundo da infância, que era muito seguro,
começou a mudar. Se entrar aqui o Júnior [uma auto-
referência], com 8 anos de idade, é a mesma pessoa.
Talvez eu estranhe se entrar o Júnior com 16, 18 anos de
idade. Mas os valores são os mesmos. Eu era muito
confuso. Foi uma fase que durou muito tempo, até o
comecinho da Legião Urbana. Eu me perdi. Eu tinha uma
vida de sonho. Aos 17 anos, acabou, sabe? Fui para o
mundo. Surgiram aquelas confusões sexuais da
adolescência e dúvidas. (Assad, 2000, p. 21)
Há, nessa projeção identitária, uma intensa relação entre a intimidade e a
casa, os laços de família e a rua, o estranho e as contradições típicas de
121
qualquer sociedade, mas que em Russo assumiam uma insatisfação bastante
refletida nas suas composições, as quais encontraram repercussão numa legião
urbana perplexa e descrente. A própria denominação do conjunto ao qual
pertencia -Legião Urbana-, denota essa percepção que o compositor
demonstrava do alcance do seu libelo contra a asfixia imposta pelas regras
sociais.
Ninguém me perguntou se estava pronto
E eu fiquei completamente tonto
Procurando descobrir a verdade
No meio das mentiras da cidade
Tentava ver o que existia de errado
Quantas crianças Deus já tinha matado.
Beberam o meu sangue e não me deixam viver
Têm o meu destino pronto e não me deixam escolher
Vêm falar de liberdade pra depois me prender
Pedem identidade pra depois me bater
Tiram todas as minha armas
Como posso me defender?
Vocês venceram esta batalha
Quanto à guerra,
Vamos ver
(O Reggae, 1984)
Nessa perspectiva, o mundo toma uma forma injusta, sendo os contrastes
trabalhados como a anunciação dos anseios da juventude, representada em
primeira pessoa do singular. Verdade e mentira constituem um emparelhamento
nas composições de Russo, questionando instituições como a igreja, a família, o
governo e as convenções culturais.
Bourdieu, fundamenta a relação estreita entre o símbolo, encarado sob a
perspectiva daquilo que pode ser mercantilizado enquanto bem, e a
internalização do mesmo num contexto de violência simbólica a qual cimenta a
relação citada. Nesse sentido, Bourdieu, argumenta acerca dos sistemas de
ensino que reforçam o símbolo e suas trocas:
relações objetivas entre os produtores e as diferentes
instâncias de legitimação que consistem em instituições
específicas - por exemplo,[...], os sistemas de ensino -,
capazes de consagrar por sanções simbólicas e, em
122
especial, pela cooptação (princípio de todas as
manifestações de reconhecimento), um gênero de obras e
um tipo de homem cultivado. (Bourdieu, 2005 , p. 118-119)
Nesse sentido, os exames pré-vestibulares de ingresso ao ensino
superior produziram, com a massificação do acesso às universidades pela
classe média letrada, uma situação conflituosa. Na medida em que houve a
possibilidade de ascensão profissional, vinculada aos dispêndios pecuniários
para uma formação de qualidade, o jovem de classe média sentiu a pressão
social por uma alternativa que se mostrava restritiva.
O sentimento de aprisionamento, os quais os sistemas de acesso às
universidades trazem, assume a própria lógica social, retirando da juventude a
opção de um caminho alternativo, mas a “guerra” final ainda não estava
decidida. Era, portanto, fundamental ultrapassar essa fronteira para usufruir as
benesses de uma carreira bem sucedida.
Estou trancado em casa e não posso sair
Papai já disse, tenho que passar
Nem música eu posso mais ouvir
E assim não posso nem me concentrar
Não posso nem tentar me divertir
O tempo inteiro eu tenho que estudar
Fico só pensando se vou conseguir
Passar na porra do vestibular
Ter carro do ano, TV a cores, pagar imposto, ter pistolão
Ter filho na escola, férias na Europa, conta bancária,
comprar feijão
Ser responsável, cristão convicto, cidadão modelo, burguês
padrão
Você tem que passar no vestibular
(Química, 1981)
O libelo toma uma conotação na qual o projeto de um curso superior pela
via meritocrática, ainda que se fundamente num pressuposto que se postula
justo, faz-se conflituoso, pois compõe uma incongruência com o desejo de
alternatividade que a geração dos anos 80 almejava. A negativa de aceitar o
vestibular não se resume à oposição aos fundamentos de seleção para o
123
ingresso numa carreira universitária. Ao contrário, o questionamento solidifica-se
perante toda ordem de consumo tutelada pela classe média, bem como os
padrões de felicidade, de projeto individual ou social.
O vestibular é visto, pois, como uma alternativa colocada ideologicamente
por um simbolismo muito maior do que a esfera pré-universitária. Como
argumenta Bourdieu:
Dentre os efeitos ideológicos produzidos pelo sistema de
ensino, um dos mais paradoxais e mais determinantes
reside no fato de que ele consegue obter dos que lhe são
confiados (isto é, sob um regime de escolaridade
obrigatória, todos os indivíduos) o reconhecimento da lei
cultural objetivamente implicada no desconhecimento do
arbitrário desta lei. Não obstante, tal reconhecimento não
envolve de modo algum um ato de consciência fundado no
conhecimento da lei reconhecida, e muito menos uma
adesão eletiva. (Bourdieu, 2005, p. 131)
O ponto nevrálgico das letras de Russo o era descredibilizar a
educação ou a possibilidade de realização da vida das pessoas através da
mesma, mas, sobretudo, denunciar o sistema autoritário no qual a educação
brasileira se ancorava.
Russo põe em cheque a própria lógica de valores e consumo que o
capitalismo liberal oferece. “Ter carro do ano, TV a cores e férias na Europa”
constituem modelos vendidos e repetidos pelo consumo capitalista como ideais
de vida. “Ter filho na escola, conta bancária e pistolão caracteriza uma gama
de favorecimentos que as benesses do vestibular, como caminho mais seguro
de sucesso da classe média, pode oferecer ao cidadão que se realiza no
esboço da modernidade liberal.
Para ser, portanto, responsável, cristão convicto, cidadão modelo,
burguês padrão, o jovem teria que passar no vestibular. Esse divisor entre a
124
adolescência e a vida adulta, projetado no ensino universitário, constitui-se no
pesadelo dos jovens, retratado na composição.
Percebe-se nas letras de Renato Russo, como em boa parte da geração
da qual ele foi um dos porta-vozes, sinais de uma possível leitura da identidade
construída pela negação de um outro, não correspondente aos anseios da nova
identidade que emergia. A pressão de ser um vencedor desperta um tom de
rebeldia no qual aquilo que, muitas vezes, soava para os pais como sinônimo do
melhor a seguir, era tomado pela juventude como um enquadramento simplista
e violento das vidas e dos desejos da geração dos anos de 1980 e 1990. Estes
estavam no limiar de um novo século e milênio, os quais se projetavam como
similares a tudo que estava dado anteriormente. Como reforça Russo, em 1988,
argumentando sobre a identificação do blico jovem com a Legião Urbana:
“Nós somos iguais aos jovens que ouvem a gente: sensíveis, inteligentes,
rebeldes e de saco cheio. (Assad, 2000)
A relação com a sociedade, tomando como ponto de partida a relação de
oposição aos preceitos estabelecidos pela família, alicerça-se no
questionamento. Na composição Pais e Filhos fica evidente a relação que se
enraíza numa dimensão que não é de mão única, contudo é envolvida por uma
teia na qual a relação é plural, multifacetando sujeitos que acertam e erram
numa relação na qual ninguém sagra-se vencedor.
Estátuas e cofres
E paredes pintadas
Ninguém sabe o que aconteceu
Ela se jogou da janela do quinto andar
Nada é fácil de entender.
Dorme agora:
É só o vento lá fora.
Quero colo
Vou fugir de casa
Posso dormir aqui com vocês?
Estou com medo
Tive um pesadelo
125
Só vou voltar depois das três
(Pais e Filhos, 1989)
Nas relações familiares, Russo aborda a tragicidade de um suicídio
juntamente com as carências típicas da infância e a rebeldia da adolescência. A
falta de atenção dos pais resulta em catástrofe, típica de uma relação, na qual o
tempo escasso, para responder a reivindicações do desenvolvimento pessoal
de uma criança e de um adolescente, é o ponto culminante de uma relação na
qual o núcleo familiar passa por transformações que fogem ao mero
entendimento de um jovem. Como sustenta Russo, sobre a composição Pais e
Filhos, numa entrevista concedida em 1994:
Esta música é sobre suicídio. Ela é muito, muito séria. Me
desgasta para caralho quando a gente toca e as pessoas
não percebem. É sobre uma menina que tem problemas
com os pais, ela se jogou da janela do quinto andar, e não
existe amanhã. (Assad, 2000, p. 190)
Querer colo, fugir de casa, estar com medo, ter um pesadelo são vozes
esparsas, polifônicas, como ressalta Hermano Vianna, as quais se mesclam
com o aviso de que vai voltar depois das três, sinônimo de uma idade que
não mais pede permissão ou auxílio, ao contrário, confronta os pais, denotando
que a relação familiar inscreve-se num prisma de uma identidade nova.
A principal força motora por trás desse processo tem sido
desde o princípio a acelerada ‘liquefação’ das estruturas e
instituições sociais. Estamos agora passando da fase
‘sólida’ da modernidade para uma fase ‘fluida’[...] o se
deve esperar que as estruturas, quando (se) disponíveis,
durem muito tempo. Não serão capazes de agüentar o
vazamento, a infiltração, o gotejar, o transbordamento –
mais cedo do que se possa pensar, estarão encharcadas,
amolecidas, deformadas e decompostas. (Bauman, 2005,
p. 57-58)
As décadas de setenta e oitenta do século XX foram o palco, para usar a
conceituação de Bauman, da liquefação das estruturas sociais e políticas no
126
Ocidente. Com isso, a situação temporal, na qual a geração de Russo viveu,
marcou, na classe média urbana, uma redefinição dos papéis na estrutura
familiar. Na cada de oitenta houve a consolidação da técnica e do capital
transnacional com o advento da terceira fase da Revolução Industrial, que
afetava sobremaneira a perspectiva de trabalho e consumo. Combinada a esse
contexto, a modernização implantada por Juscelino kubistchek e pelo “milagre
econômico” do Governo Médici projetou a mulher à cena como um sujeito não
só potencial, mas real no mercado de trabalho.
Com o aumento significativo do setor de serviços, o gênero feminino
assumiu uma posição de equiparação ao homem, que se o ocorreu na
valorização salarial, confirmou-se no que tange à carga de trabalho, realizando,
pois, uma jornada dupla, escasseando o tempo para a dedicação à família. Com
isso, houve uma redefinição do papel da mulher no seio familiar e o tempo
destinado à criação dos filhos tornou-se menor.
O conflito surge numa avalanche de transformações pelas quais o Brasil
e o mundo passavam. No plano interno, a ditadura agonizava e dava claros
sinais de que não perduraria por muito tempo. Concomitante a essa transição, a
crise econômica alavancou uma série de mudanças que se efetivaram na
sociedade. Acrescendo a isso, o Brasil atingia índices negativos de
desenvolvimento sócio-econômico, os quais o equiparava aos piores do mundo.
A composição Pais e Filhos mostra um quadro de vicissitudes, tratando a
pessoalidade como se fosse um problema geral, haja vista a utilização de vozes
as quais assumem a fala sem, no entanto, definir-se como sujeito interlocutor. A
família, com todas as suas contradições e conflitos, muitas vezes capazes de
resultar em tragédia, como a exposta na composição, funciona como um núcleo
127
do qual emana os problemas que extrapolam o núcleo familiar. Como reflete
Russo, em 1990, acerca das questões que envolvem a família e sua relação
com seus pais e na sua relação com seu filho:
Para mim, o mais importante, com a chegada do meu filho,
foi a mudança da minha relação com meus pais. Passei a
ver toda a situação de uma maneira diferente. Pintou mais
respeito, pintou mais consideração. Os pais são sempre
pais e, às vezes, a gente tem que se distanciar um pouco
para perceber que eles o pessoas normais. É tão forte a
relação da gente com eles que, quando criança, você acha
que são heróis; na adolescência, nega tudo, acha que o
horrorosos. Até o momento em que meu filho nasceu, eu
nunca havia percebido meus pais como indivíduos. Talvez
eu pensasse nisso antes, tamm. Mas, para mim, eles
sempre foram pai e mãe. Agora, não. Existem o Renato, a
Carminha e eu. (Assad, 2000, p. 189)
O conselho repetido incansavelmente de que “É preciso amar as pessoas
como se não houvesse amanhã [...]” constitui a nica da composição e
expressa o sentimento presente na juventude e na identidade que se constituía
naquele momento. O cotidiano respeitando uma ordem cronológica afasta a
perspectiva de estabelecer a vida como uma metanarrativa que se aparte da
história:
Ditos que nos encorajam a desfrutar o dia de hoje,
aproveitar a ocasião, viver como se não houvesse
amanhã (grifo nosso), colher a rosa ainda em botão,
comer, beber e ser feliz estão destinados a nos soar como
algo simplório. É o próprio fato de viver no presente para
nós, o presente é sempre parte de um projeto inacabado
o que faz nossas vidas serem como crônicas, e não
narrativas. Não nada de particularmente precioso em
viver como um peixinho de aquário. Não podemos escolher
viver fora da história: ela é nosso destino, tanto quanto a
morte. (Eagleton, 2005, p. 282)
O conceito de amor pregado por Russo não é novo, mas é difícil de se
encontrar, “por que se você parar para pensar na verdade não . A urgência
do amor, por não haver amanhã, revela o pessimismo diante do futuro que se
anuncia. Na argumentação de Rüsen, quando versa sobre o pensamento
128
histórico na vida prática, sobretudo na especificação da narrativa na constituição
de uma consciência histórica, surge uma abordagem que inscreve as mudanças
num quadro de continuidade.
As mudanças no presente, experimentadas como carentes
de interpretação, são de imediato interpretadas em
articulação com os processos temporais rememorados do
passado; a narrativa histórica torna presente o passado, de
forma que o presente aparece como sua continuação no
futuro. Com isso, a expectativa do futuro vincula-se
diretamente à experiência do passado: a narrativa histórica
rememora o passado sempre com respeito à experiência
do tempo presente, articula-se diretamente com as
expectativas do futuro que se formulam a partir das
intenções e das diretrizes do agir humano. Essa íntima
interdependência de passado, presente e futuro é
concebida como uma representação da continuidade e
serve à orientação da vida humana prática atual. (Rüsen,
2001, p. 64)
Na composição Pais e Filhos, o refrão É preciso amar as pessoas como
se não houvesse amanhã/ Por que se você parar pra pensar na verdade não
há”, o futuro é supostamente irrealizável. A dinâmica na qual o passado é
percebido no presente para gerar uma projeção ao futuro é, na letra de Russo,
traumática, sintetizada pelo suicídio. A experiência familiar ganha conotação
histórica à medida que nela, ou a partir dela, o futuro é visto com pessimismo,
impossibilitado pela inexistência do amanhã. A ausência de projeto é substituída
por um amor incondicional, urgente e sem restrições.
A proposta de Russo, ambiciosa para alguns e ingênua, sentimentalista,
com lampejos messiânicos, para outros, bem como de grande parte da geração
que cantava suas poesias em repetidos versos, era trazer à tona sinceridade e
respeito ao próximo. Ainda assim, a premissa pessimista frente às diretrizes
do mundo.
Me diz por que é que o céu é azul.
Me explica a grande fúria do mundo
São meus filhos que tomam conta de mim
Eu moro com minha mãe mas meu pai vem me visitar
Eu moro na rua, não tenho ninguém.
129
Eu moro em qualquer lugar
Já morei em tanta casa que nem me lembro mais.
Eu moro com meus pais.
(Pais e Filhos, 1989)
A multiplicidade de sujeitos põe à mostra uma complexidade identitária
que, se não acredita numa perspectiva de futuro, relaciona em diferentes
situações uns com os outros. A moradia, a casa, concebe a idéia de abrigo,
refúgio, nem sempre disponível, ainda que existente, a uma identidade
deslocada, muitas vezes sentindo-se estranho dentro de sua morada. Contudo,
como sustenta DaMatta;
quando falamos da “casa”, não estamos nos referindo
simplesmente a um local onde dormimos, comemos ou que
usamos para estar abrigados do vento, do frio ou da chuva.
Mas- isto sim- estamos nos referindo a um espaço
totalizado numa forte moral social. Uma dimensão da vida
social permeada de valores e de realidades múltiplas [...]
Não se trata de um lugar físico, mas de um lugar moral:
esfera onde nos realizamos basicamente como seres
humanos que têm um corpo físico, e tamm uma
dimensão moral e social. (DaMatta, 1984, p.24/25)
A tragicidade da vida e das relações interpessoais estão num compasso
no qual a impossibilidade de dissociar uma esfera mais ampla de uma
doméstica, privada, traduz-se em várias vozes que almejam seu espaço e
trazem para o debate uma problemática que não é somente familiar, mas sócio-
cultural. O mundo, sintetizado na casa, na moradia, como representação das
relações familiares, denota uma complexidade na qual a carência de abrigo
esgota-se num ponto no qual a solução passa pelo apelo ao amor universal. A
compreensão do outro no espaço do lar assume uma condição indispensável na
resolução dos conflitos que se internalizam nas relações familiares e,
concomitantemente, ressaltam uma historicidade nas práticas constitutivas de
uma experiência e consciência históricas. Paradoxalmente, a composição
130
dimensiona as vicissitudes paternas numa abordagem em que há uma
transferência de responsabilidades.
Você me diz que seus pais não entendem
Mas você não entende seus pais
Você culpa seus pais por tudo
E isso é absurdo
São crianças como você
O que você vai ser
Quando você crescer?
(Pais e Filhos, 1989)
Há, portanto, um redimensionamento da razão, que se efetiva numa
relação pessoal, de anseios, de angustias e desilusões, que se constrói no dia-
a-dia, na luta diária pela felicidade, a qual não é mais depositada nos grandes
projetos modernos. A discussão do geral passa pelo pessoal, o conceito de
razão se perfaz noutra base de sustentação. Como argumenta Bourdieu no
reforço de sua tese:
A universalização é a estratégia de legitimação por
excelência, estamos sempre no direito de suspeitar que
uma conduta formalmente universal é produto de um
esforço para garantir o apoio ou a aprovação do grupo,
para tentar apropriar a força simbólica que representa o
koinon, o senso comum, fundamento de todas as escolhas
que se apresentam como universais[...] E isso nunca é tão
verdadeiro como na luta propriamente política pelo
monopólio da violência simbólica, pelo direito de dizer o
certo, o verdadeiro, o bem, e todos os valores ditos
universais, na qual a referência ao universal, ao justo, é a
arma por excelência. (Bourdieu, 1994, p. 220)
A perspectiva tribalista
Se eu soubesse lhe dizer qual é a sua tribo/ Saberia lhe
dizer qual é a minha também”(Russo, 1984)
As composições de Russo denotam uma internalização do universal
operado no ocidente; todavia, trazem no seu bojo uma articulação descrente
131
com uma gama de enunciações colocadas como mbolo do justo, do
relevante. A inversão do referencial simbólico, não no intuito de negá-lo por
inteiro, mas para reestruturá-lo, constituiu um ponto elencado pela geração
dos anos 80 na sua construção identitária, das quais as letras de Russo são
um referencial indiciário. Numa interação direta com as diretrizes assumidas
na revisão da modernidade pós-década de 1960, as estruturas basilares da
modernidade encerram uma dimensão em trânsito, portanto, indefinida.
9
As reviravoltas da modernidade, por sua dinamicidade inerente,
trouxeram uma percepção do doméstico, do tribal, de um sujeito que se
resguarda num tribalismo flexível, que lhe possibilite assumir identidades
múltiplas. A esse respeito, Bauman reforça a tese de Maffesoli acerca de um
novo tipo de tribalismo, intitulada por este como Neotribalismo.
as tribos do mundo contemporâneo, ao contrário, são
formadas como conceitos, mais do que corpos sociais
integrados- pela multiplicidade de atos individuais de auto
identificação[...] O mais comum é as “tribos serem
desatentas com a adesão, e a própria adesão é fraca. Ela
se dissipa tão rápido quanto aparece[...] As neotribos são,
em outra palavras, os veículos (e sedimentos imaginários)
da auto definição individual. Os esforços de autoconstrução
as geram: a inevitável inconclusividade e frustração desses
esforços levam ao seu desmantelamento e substituição.
Sua existência é transitória, em fluxo contínuo. Inflamam
mais a imaginação e atraem a lealdade mais ardente
quando ainda residem no reino da esperança. São
formações frouxas demais para sobreviver ao movimento
da esperança para a prática. (Bauman, 1999, p. 263-264)
Esse tribalismo consolida uma identidade que não se confirma numa
sólida base de apoio a que se filiar. Desse modo, há uma transferência
constante de identificações, como assevera Michel Maffesoli, as quais se
estabelecem em curso, em trânsito, destituída de um modelo global. Por mais
9
Na composição “Índios”, que foi analisada numa outra perspectiva, dentro das diretrizes assumidas na
pesquisa, um verso que denota essa transitoriedade temporal é o que afirma que “E o futuro não é mais
como era antigamente”
132
ardente que seja a filiação momentânea, sobretudo pelo primeiro encanto, a
fragmentação do indivíduo, a qual o coloca em situações relacionais diversas,
flexibiliza suas relações. A tribo, ou Neotribo, como destaca Maffesoli, constitui
um refúgio, um ponto de equilíbrio numa era de indefinições. Aqui, nesse
instante no qual a modernidade não mais é capaz de inserir os indivíduos
numa perspectiva transformadora do mundo por uma iia ou corrente
política, as tribos portam-se como moradas, ainda que transitórias, desses
sujeitos.
Sem um fim preciso, elas [as massas populares] não o
sujeitos de uma história em marcha. A metáfora da tribo,
por sua vez, permite dar conta do processo de
desindividualização, da saturação da função que lhe é
inerente, e da valorização do papel que cada pessoa
(persona) é chamada a representar dentro dela. (Maffesoli,
1987, p. 8)
Isto posto, tomando por alicerce a analise de Maffesoli e o endosso de
Bauman, a tribo é uma alternativa, mas não uma determinação ideológico-
política ao ponto de colocar o sujeito como porta-voz direto e incondicional
dessa ideologia. Na filiação a uma tribo, inclusive pela mesma o ser
referendada como um projeto de Estado ou de Governo não , portanto,
perenidade, quando muito são garantidas nas suas manifestações como
exercícios legítimos da liberdade de escolha, credo ou noção filosófica. Na
base de argumentação de Hall, as identidades, nessa fase da modernidade,
ao se multiplicarem, assumem um estatuto de fluxo constante entre
preferências sem que no entanto defina uma como mais importante que a
outra, mas as coloca em ângulos complementares. Como argumenta Russo:
Sempre gostei de tchurma. Desde pequeno eu era ligado
em filmes de tchurmas e, aí, armei a nossa turma. Eu era
um pentelho- juntava as pessoas, tipo “o que vamos fazer
hoje, vamos mudar o mundo”, e não-sei-o-quê. (Assad,
2000, p. 259)
133
Os sujeitos nesse mister buscam balizar-se em algo ou em algumas
situações.
Ah, se eu soubesse lhe dizer o que eu sonhei ontem à noite
Você ia querer me dizer tudo sobre o seu sonho também.
E o que é que eu tenho a ver com isso?
Ah, se eu soubesse lhe dizer o que eu vi ontem à noite
Você ia querer ver mas não ia acreditar.
E o que é o que eu tenho a ver com isso?
Filósofos suicidas
Agricultores famintos
Desaparecendo
Embaixo dos arquivos
Ah, se eu soubesse lhe dizer qual é a sua tribo
Também saberia qual é a minha
Mas você também não sabe (grifo nosso)
E o que é que eu tenho a ver com isso?
Ah, se eu soubesse lhe dizer
O que fazer pra todo mundo ficar junto
Todo mundo já estava há muito tempo
E o que é que eu tenho a ver com isso?
Sou brasileiro errado
Vivendo em separado
Contando os vencidos
De todos os lados.
(Petróleo do Futuro, 1984)
A modernidade ocidental legou às gerações que foram receptoras dessa
construção uma idéia norteadora capaz de atribuir ao moderno e às
instituições que lhe instrumentalizaram um sentido, um caminho de
emancipação, de realização do sujeito pela via racional.
No Brasil, a geração dos oitenta se posicionou na modernidade, visando
discutir os processos modernizadores da razão iluminista. A irrealização das
diretrizes modernas, advindas de crises trouxe um dilema, que não era
brasileiro, mas Ocidental: o que fazer diante dessa carência de sentido.
Rüsen, na sua obra A Razão Histórica, analisa o sujeito histórico como
partícipe no processo de produção científica. Nas palavras de Rüsen:
134
[...] o agir é um procedimento típico da vida humana na
medida em que, nele, o homem, com os objetivos que
busca na ação, em princípio se transpõe sempre para além
do que ele e seu mundo são a cada momento [...] Pode-se
caracterizar e explicar essa constatação antropológica de
um superávit de intencionalidade do homem como agente e
paciente de mil e uma maneiras. Nosso interesse aqui se
restringe ao fato de que esse superávit inclui uma relação
do homem com seu tempo, na qual se enraízem as
operações práticas da consciência histórica que são
pesquisadas. Pois esse superávit tem uma relação
temporal: ele se manifesta sempre de modo todo especial
quando os homens têm de dar contra das mudanças
temporais de si e do mundo mediante seu agir e sofrer.
(Rüsen, 2001, p. 57-58)
Especular acerca de como o homem norteou seu superávit intencional
nessa fase da modernidade é uma empresa inconclusa e de difícil
delineamento. Diante desse emaranhado de novas situações, as quais se
fizeram sentir no Brasil sobretudo a partir do final da década de 1970, a
carência de um norte projetou o sujeito histórico ao tribalismo, ou ao
neotribalismo, mas também o desvinculou de anseios maiores, de projetos
globais, para valorizar o espaço privado, cotidiano, doméstico.
Quase morri
Há menos de trinta e duas horas atrás
Hoje a gente fica na varanda
Um dia perfeito com as crianças
São as pequenas coisas que valem mais
É tão bom estarmos juntos
E tão simples: um dia perfeito.
Corre corre corre
Que vai chover
Olha a chuva!
Não vou me deixar embrutecer
(Um Dia Perfeito, 1993)
A composição Um Dia Perfeito indicia um alinhamento estreito entre a
perspectiva de futuro e o vivificado no presente, não a título de suplementação,
mas, ao contrário, de opostos que se identificam nessa contradição. Maffesoli
argumenta acerca do predomínio do espaço doméstico na configuração de uma
ética estética, a do estar-junto:
135
De fato, momentos em que, por uma espécie de
“impulso” da base, percebe-se que a sociedade não é
apenas um sistema mecânico de relações econômico-
políticas ou sociais, mas um conjunto de relações
interativas, feito de afetos, emoções, sensações que
constituem, stricto senso, o corpo social [...] Essa temática
da “atração”, [...], é certamente das mais úteis para
compreender esses fenômenos de sociedade que são as
diversas agregações sociais. Quer sejam elas
espontâneas, como as formas teatrais urbanas [,.,] quer
sejam vividas no cotidiano no trabalho ou na vizinhança,
não faz a menor diferença. Em cada um desses casos,
além das simples causalidades racionais, observa-se um
desejo de estar-junto(grifo nosso) que, sendo não-
consciente, não deixa de ser poderoso. (Maffesoli, 1996, p.
73-74)
A valorização da dimensão privada ganha contornos na redefinição do
sujeito, o qual, nesse contexto, não almeja uma transformação do mundo que o
cerca, sobretudo se esse mundo estiver além do seu espaço doméstico . A
fragmentação desse sujeito o levou a um tipo de individualismo não mais
atrelado aos preceitos modernos clássicos de individualismo. Nessa fase da
modernidade o individualismo assume um contorno complexo, fragmentário,
múltiplo e descentrado.
Não, não, não
Não preciso de modelos
Não preciso de heróis
Eu tenho meus amigos
E quando a vida dói
Eu tento me concentrar
Num caminho fácil.
(Comédia Romântica, 1996)
A dimensão doméstica assumiu, pois, uma situação de resguardo da
vida. A amizade, nessa construção, ganha relevo à medida que a dimensão de
convivência pessoal é salientada. Como declara Russo:
Para ficar mais fácil de a gente sobreviver ou, então, o
ficar tão difícil, é importante você ter, justamente, uma rede
de amigos. E o que acontece é que você vai descobrir, às
vezes, que esses seus amigos e amigas são mais do que a
gente chamaria de amigos e amigas. São pessoas que
realmente fazem parte da tua vida, com quem você tem um
contato físico, com quem você tem uma troca espiritual.
(Assad, 2000, p. 26)
136
A casa é um refúgio, o contraponto a um mundo que trata os indivíduos
como estrangeiros, mesmo que pertencente a uma determinada nação
instituída num Estado que lhe reconheça, no entanto o mais é garantidor
de uma identificação que resuma na ordem racionalizada o seu fundamento.
Seu Cristo é judeu. Seu carro é japonês. Sua pizza é
italiana. Sua democracia, grega. Seu café, brasileiro. Seu
feriado, turco. Seus algarismos, arábicos. Suas letras,
latinas. o seu vizinho é estrangeiro. (Bauman, 2005, p.
33)
Esse cartaz espalhado pelas ruas de Berlim dá uma idéia do novo
espaço identitário, no qual o outro é seu vizinho. Guardadas as devidas
peculiaridades atinentes ao continente europeu, cabe frisar que nessa fase
globalizada a identidade estranha até o reconhecido como legitimo detentor de
uma identidade nacional. Reconhecer o estrangeirismo das coisas e das
pessoas, que cercam o cotidiano, remete ao âmbito doméstico, à casa, um
potencial de identificação, estabelecendo uma nova lógica de pertencimento.
Ser chamado pelo nome e ser identificado como pessoa garante
sobrevida e um poder de identificação. Para a geração dos oitenta e noventa
do século XX, a casa volta a funcionar como símbolo do cotidiano, como um
ponto de apoio para situações novas, resguardando as subjetividades.
Gosto de ver você dormir
Que nem criança com a boca aberta
O telefone chega sexta feira
Aperta o passo por causa da garoa
Me empresta um par de meias
A gente chega na sessão das dez
Hoje eu acordo ao meio-dia
Amanhã é a sua vez
Vem cá meu bem, que lhe ver é bom
O mundo anda tão complicado
Que hoje eu quero fazer tudo por você.
Temos que consertar o despertador
137
E separar todas as ferramentas
A mudança grande chegou
Com o fogão e a geladeira e a televisão
Não precisamos dormir no chão
Até que é bom, mas a cama chegou na terça-feira
E na quinta chegou o som [...]
O Mundo Anda Tão Complicado (1991)
O doméstico assume uma conotação que o se vincula ao
tradicionalismo pré-moderno e moderno, da grande família de base patriarcal,
mas, ao contrário, surge como ponto de apoio a uma nova construção
identitária que iguala os gêneros, que identifica o papel dos seres humanos. O
indivíduo emancipador e emancipado refugia-se no lar e nas vicissitudes que o
cercam no seu cotidiano. O casamento, o trabalho, as relações de amizade
tomam relevo. Esse, num passado recente, era tido como insuficiente, mas,
agora, constitue a regra de transformação do cotidiano.
Desse modo, mescla-se uma redireção das relações sociais com a
acentuação do ambiente privado, o que contribui para a fragmentação do
indivíduo ainda mais intensa.
Ela me disse que trabalha no correio
E que namora um menino eletricista
- Estou pensando em casamento,
Mas não quero me casar [...]
A gente quer um lugar pra gente
A gente quer é de papel passado
Com festa, bolo e brigadeiro
A gente quer um canto sossegado
A gente quer um canto de sossego.
O Descobrimento do Brasil (1993)
Essa construção identitária advinda do último quartel do século XX
esteve estreitamente vinculada a um fenômeno que se o é novo,
consolidou-se nesse período. A compressão espaço-tempo estabeleceu uma
velocidade a qual ainda não tinha sido instrumentalizada, refletindo-se nos
diferentes campos. O trabalho insere-se nessa perspectiva e a noção de
138
sobrevida advinda do trabalho ganha novos contornos. Esse cenário foi
refletido por Renato Russo:
Sem trabalho eu não sou nada
Não tenho dignidade
Não sinto o meu valor
Não tenho identidade
Mas o que eu tenho é só um emprego
E um salário miserável
Eu tenho o meu ofício
Que me cansa de verdade
Tem gente que não tem nada
E outros que têm mais do que precisam
Tem gente que não quer saber de trabalhar
(Música de Trabalho, 1996)
O trabalho assume uma dimensão múltipla que antecede a
modernidade. Esse teor diverso imbrica-se à situação de compatibilidade entre
a ideologia do trabalho, reavivado e dinamizado no capitalismo, e a
necessidade do mesmo, ao dissociar-se do capital, como baluarte da
acumulação moderna, essa excludente, mas propulsora de uma ética que se
assenta no dever de trabalhar.
A positividade do ato de trabalhar mantém-se uma
constante; ela se apóia no argumento da dimensão
humanizante e regeneradora do trabalho[...] a trilha do
humano se regenera pela constância da virtude do
trabalho, “lei humana santa e viril”, via oposta à do ócio e
da decorrente tristeza da inutilidade. O homem se encontra
no trabalho, elemento depositário de seu espírito, da sua
vida, da sua humanidade. O ato de trabalhar lhe serve de
medida da avaliação da sua própria condição existencial:
“O homem vale o que vale seu trabalho e o seu trabalho
vale o que ele lhe dá de si mesmo”. (Lenharo, 1986, p. 87)
A geração de Russo foi protagonista de uma intersecção entre a
ideologia moderna do trabalho - arraigada da indispensabilidade do mesmo
para a inserção social, para a dignidade do cidadão - e da expectativa da
realização de projeto de vida pessoal para a construção de uma sociedade
mais justa e igualitária. Entretanto, esse ideal o é concebido como a via
realizadora do projetos individuais. Há, num contraponto, a realização de uma
139
atividade que fatiga, cansa, desanima, exclui e não indicia um sentido de luta,
de transformação na formação da consciência de classe, mas retoma o lar, o
cotidiano, o doméstico, o estar-junto.
Essa acentuação dos laços de solidariedade e de microlutas intestinais
são percebidas em certa medida nas composições de Russo. Como a perda do
sentido emancipatório do trabalho, num contraponto uma internalização da
ideologia dominante sem que necessariamente significasse um sentido de luta
para transformá-la, mas, ao incorporar elementos dessa lógica de controle
social, redimensiona a insatisfação frente às exigências cotidianas.
Vamos chamar nossos amigos
A gente faz uma feijoada
Esquece um pouco do trabalho
E fica de bate-papo
Temos a semana inteira pela frente
Você me conta como foi seu dia
E a gente diz um pro outro:
-Estou com sono, vamos dormir!
(O Mundo Anda Tão Complicado, 1991)
O privilégio do espaço doméstico, da definição de um ambiente amistoso
vincula-se a uma auto-exclusão, a qual de maneira complementar e, de certo
modo, paradoxal, imbrica-se a uma inclusão a ambientes menores, diferentes
da universalidade característica da modernidade. Como preconiza Maffesoli:
[...] o recentramento no “território” não significa, de modo
algum, um fechamento para com o outro, muito pelo
contrário. É, pura e simplesmente, uma outra maneira de
colocar as relações simbólicas que constituem toda
sociedade. Uma outra estratégia, de um certo modo: o
território seria a base de que nos asseguramos, antes de
partir ao encontro dos outros. Pode tamm servir de lugar
de recesso, de necessidade. É nesse sentido que se pode
falar de uma lógica do doméstico, oposta à lógica do
político , tal como, se impôs progressivamente durante a
modernidade. (Maffesoli, 1999, p. 99)
Essa fase da modernidade requer uma redimensão do doméstico haja
vista ser este o porto seguro ante um ambiente externo indefinido, que não se
140
traduziu em justiça, em igualdade e em dignificação do ser humano, visto sob o
prisma universal.
Mas quando chega o fim do dia
Eu só penso em descansar
E voltar pra casa, pros teus braços
Quem sabe esquecer um pouco
Todo o meu cansaço
Nossa vida não é boa
E nem podemos reclamar
Sei que existe injustiça
Eu sei o que acontece
Tenho medo da polícia
Eu sei o que acontece
Se você não segue as ordens
Se você não obedece
E não suporta o sofrimento
Está destinado à miséria[...]
(Música de Trabalho, 1996)
Sei que existe injustiça, tenho medo da polícia, se você não segue as
ordens, se você não obedece e não suporta o sofrimento, sugerem uma
situação desalentadora do trabalhador que, agora, encontra na sua morada o
contraponto da situação que lhe retira a dignidade. Música de Trabalho, como
título da canção, dá o tom de uma condição na qual o trabalho é uma atividade
que projeta a dignidade, que identifica, mas que nem sempre realiza o
indivíduo. Contrariamente, a casa, o afeto do lar e da mulher amada é o ponto
de apoio frente às pressões da vida cotidiana.
A modernidade construiu, ao longo de sua trajetória, uma estética a qual
variou em menor ou maior grau no sentido de legitimar causas particulares ou
gerais, salientando aqui a relação inexorável entre o público, representado pela
dimensão estatal, e o privado. Assim, a modernidade é composta de uma série
de argumentos para legitimar causas. No entanto, Maffesoli encara a estética
de um ponto de vista emocional, calcada nas relações domésticas, no trabalho
141
na casa ou em outros ambientes menores nos quais os sentidos assumem
uma outra dimensão:
A emoção não mais como um simples fenômeno
psicológico, ou como um suplemento da alma sem
conseqüência, mas também como estrutura antropológica,
cujos efeitos ficam por apreciar. Isso nos leva a considerar
a idéia obsedante do estar-junto como sendo
essencialmente uma ‘religação’ mística sem objeto
particular [...] É nesse sentido que a emoção estética pode
servir de cimento. Com certeza, este cimentará a partir de
elementos ‘objetivos’: trabalho, ação militante, festas
grupais, uniformes, ações de caridade ,etc., mas esses
serão pretextos que legitimem a relação com outrem.
(Maffesoli, 1999, p. 29-30)
Na estruturação do desemprego intensificado sobremaneira pela
revolução tecno-científica, houve uma perda no sentido coletivo de luta - pelo
menos numa escala de predominânca -, que perpassava uma consciência
coletiva, agora esvaziada pela desarticulação do sindicato, redefinindo seu
papel perante o grande capital. O individualismo fragmentado dessa fase da
modernidade está presente, de modo não menos intenso, nas relações de
trabalho, dando a este uma conotação de sobrevivência muito mais acentuada
do que uma perspectiva de mudança.
Nosso dia vai chegar,
Teremos nossa vez.
Não é pedir demais:
Quero justiça,
Quero trabalhar em paz.
(Fábrica, 1986)
A expectativa de um outro tempo mesclado com um outro lugar, diferente
do proposto pela lógica da “Fábrica”, sinaliza uma insatisfação que transcende a
relação empregatícia do sujeito que fala em primeira pessoa do plural. A
coletividade ressalta uma identidade insatisfeita, que busca uma outra situação
tempo-espaço, diferente do controle que afeta a vida das pessoas na suas
relações públicas e privadas.
142
O tempo no capitalismo, diz Thompson, é o tempo
integralmente utilizado, consumido e comercializado. A
febre do trabalho que o consome, assevera Foucault,
incrementa no capitalismo a cobiça do tempo, não apenas
o tempo comprado no mercado de trabalho, mas também o
tempo de vida, o tempo de existência dos homens. A fobia
pela extração máxima do tempo induz à criação de
dispositivos de controle fora do ato de trabalho. A sansão
moral de quem vale pelo que faz e pelo que poderá fazer,
constitui um poderoso instrumento psicológico de coerção e
controle. (Lenharo, 1986, p. 93-94)
Nesse sentido, a manifestação de desalento:
Não é muito o que lhe peço-
Eu quero trabalho honesto
Em vez de escravidão.
Deve haver algum lugar
Onde o mais forte
Não consegue escravizar
Quem não tem chance.
De onde vem a indiferença
Temperada a ferro e fogo?
Quem guarda os portões da fábrica?
(Fábrica, 1986)
A dúvida e o não reconhecimento no trabalho indigno sugerem uma
revolta latente frente a quem comanda, detém o capital, o organiza e o
reproduz não como aquele que o produz, mas como quem usufrui dele na
maior e melhor parcela que o constitui. A exclusão, vista nesse prisma, não é o
instrumento de luta, de salvaguarda de uma bandeira ideológica ampla, de
articulação política seja pela via do sindicato ou de um partido que
representasse a luta dos trabalhadores. Por essa leitura, revolta mescla-se à
indecisão. O desalento sinalizado na música evidencia uma problemática
dessa construção identitária. O coletivo é usado como porta-voz de uma
insatisfação que não significa a realização de uma luta coletiva, de uma filiação
partidária ou qualquer outra coisa que o valha, mas luta para despertar a
consciência fundamentada na própria modernidade, que lhe corpo e
alicerce. A revolta do cidadão que assume a fala na primeira pessoa do plural
143
está incrustada na sociedade como um todo sem que no entanto signifique que
a mudança parta de um referencial revolucionário. Talvez a grande mudança
almejada nessa identificação seja despertar uma consciência vinculada à
própria modernidade, no amadurecimento do censo de justiça que não projete
no cidadão e, sobretudo, na parcela jovem que compõe a sociedade, nada
além que a noção alienante do trabalho.
Diante dessa assertiva, que reconhece a relevência do privado nessa
fase da modernidade, a identidade assume uma carência de orientação de
sentido, para utilizar mais uma vez uma premissa de Rüsen, que projeta o
indivíduo numa desilusão para qual as saídas se fazem múltiplas.
144
Capítulo V
Do desespero, da desilusão à busca de um(s) sentido(s)
“Acho que a função do artista es mais ligada ao pão e
circo. Mesmo que sejam pão e circo emotivos.”
(Renato Russo)
As letras de Renato Russo contemplaram uma realidade experimentada
pela geração dos anos oitenta e noventa do século vinte: a desilusão diante
das instituições, dos projetos e a uma noção mais ampla que sua realidade
individual. Esse individualismo fragmentário, característica forte do novo
rearranjo identitário presenciado nessa fase da modernidade, projetou o
indivíduo ao que se convencionou denominar tribalismo, todavia tamm
produziu um sentimento muito salientado nas composições de Russo, a
solidão. A esse respeito, Renato Russo coloca sua impressão acerca de um
tema recorente em muitas das suas composições ao longo de sua carreira
artística: “Não adianta nada você ter um disco de platina se você está
sozinho.(1987)”
Desilusão e solidão, portanto, estão marcantemente presentes na obra
de Russo. Entendendo que suas composições foram cantadas e repetidas por
milhares de jovens, como se observa pelos meros de vendagem; essa
solidão tocou fundo no seu público. Viver o presente com mais segurança
reforçou a perspectiva de identidade portadora de um individualismo até então
desconhecido.
Para Russo, o mal do século seria a solidão (Esperando por mim, 1994),
cada qual resolvendo seus problemas e afundando nos seus dilemas.
Interessante é ressaltar o quanto essa temática, a da solidão, esteve presente
na obra de Russo e o quanto houve correspondência do seu público. Se a
145
geração de outros tempos estava vinculada a alguma instituição para fazer
valer aquilo que concebia como importante, visando transformar o mundo pela
paz ou pela via revolucionária, acreditando ser sua ideologia o passaporte para
uma transformação na qual a sua bandeira seria o estandarte da transição,
agora, nessa representação, elucidada pelas composições de Renato Russo, a
juventude estava num outro patamar de convivência, num outro padrão ético.
Como reforça o próprio Russo:
Sim, eu me baseio numa ética normativa, que diz o que é
certo ou errado fazer. É bom deixar claro que isso passa
por uma avaliação interior, e não por uma imposição, afinal
já se matou muita gente com essa justificativa [...] Acho que
o básico para essa avaliação é a Declaração dos Direitos
Humanos. E isso teria que partir do núcleo da sociedade,
que é a família. É uma questão de educação![...] Por
exemplo: como a nova geração vai ter respeito pela mais
velha, se esta a ataca e está cheia de preconceitos?
(Conversações com Renato Russo, 1996, p. 44-45)
Esse padrão ético passa por uma revisão cara a uma parcela da
sociedade. Para a geração dos oitenta rever significava por em relevo uma
série de pressupostos tidos como basilares para a construção de um mundo
melhor. O líder da Legião Urbana propunha uma revisão que partiria de cada
um, do particular para o geral e, por isso, encontrou eco em parcela
significativa do público ouvinte.
O referencial de mudança, nas letras de Russo, pressupõe uma atitude
individualista, compondo um todo nos seus anseios, no qual a valorização da
família reforça a premissa de que a busca por uma “ética normativa” pressupõe
uma reavaliação dos preceitos que a engendra.
A fragmentação do individuo leva a um isolamento capaz de fazer com
que a multidão represente um agrupamento sem que necessariamente seja
uma identidade fixa. O caminho ofertado pela solução dos problemas
individuais foi uma temática salientada na obra de Russo.
146
Não sou escravo de ninguém
Ninguém senhor do meu donio
Sei o que devo defender
E por valor eu tenho
E temo o que agora se desfaz.
Viajamos sete léguas
Por entre abismos e florestas
Por Deus nunca me vi tão só
É a própria fé o que destrói.
Estes são dias desleais.
Reconheço o meu pesar
Quando tudo é traição,
O que venho encontrar
É a virtude em outras mãos.
Mas minha terra é a terra que é minha
E sempre será minha terra
Tem a lua, tem estrelas e sempre terá.
Quase acreditei na sua promessa
E o que vejo é fome e destruição
Perdi a minha sela e a minha espada
Perdi o meu castelo e a minha princesa.
É a verdade o que assombra,
O descaso o que condena,
A estupidez o que destrói.
Eu vejo tudo o que se foi
E o que não existe mais.
Tenho os sentidos já dormentes,
O corpo quer, a alma entende.
Esta é a terra de ninguém
E sei que devo resistir-
Eu quero a espada em minhas mãos.
(Metal contra as Nuvens, 1991)
A independência, ou pseudoindependência, das coisas que lhe cercam
sustenta uma identidade que se constrói solitária, que se sente traída nos seus
valores e no seu sentido de luta. A espada, indiciando a luta pela vida, nos
seus quadros de virtude, de justiça de lealdade e respeito, denota a impotência
perante as demandas da vida. Nesse espaço, o da construção de uma
identidade solitária, a descrença, a fome, a deslealdade, a traição, o assombro
ante o mundo que se anuncia, a ausência de virtude, dentre outros, são alguns
componentes dessa configuração social e econômica, a qual se combina
estreitamente com a identidade forjada no último quartel do século XX. Colocar
no indivíduo solitário o ponto de convergência da sociedade e do próprio
sentido de luta fez parte da temática de Russo.
147
A perda da espada, do castelo, da princesa, simbolizam uma transição,
como representação de um cavaleiro medieval a cavalgar pelo mundo,
empunhando sua espada numa Idade Média que se esvaia nas Cruzadas.
Mergulhada nas contradições da Baixa Idade Média, pelas contingências
históricas advindas da fragilidade do feudo, ante o renascimento urbano,
comercial e cultural e o surgimento da burguesia, que muito contribui para a
alteração nas relações sociais de produção. Mas, sobretudo, pelo
esfacelamento da relação feudo-vassálica, do juramento de fidelidade que
sustenta tal relação, possibilitando a emergência dos Dons Quixotes a
empunhar suas espadas em busca da verdade, da honra, da ordem passada
que já não mais existia.
A solidão do cavaleiro medieval, metaforicamente, é realçada na
possível relação desta com o mundo no qual a geração de Russo se
encontrava na década de 1980. A solidão mesclou-se a uma ausência de
norte, de sentido e de perdas. Encontrar-se não com alguém, mas consigo
mesmo foi uma temática recorrente nas composições de Russo.
Sou meu próprio líder: ando em círculos
Me equilibro entre dias e noites
Minha vida toda espera algo
Meio-sorriso, meia-lua, toda tarde.
Minha papoula da índia
Minha flor da Tailândia
És o que tenho de suave
E me fazes tão mal.
(A Montanha Mágica, 1991)
A alusão à papoula da Índia, da qual se extrai o ópio, como refúgio
suave para a rotina de uma vida a que não se atribui sentido ando em
círculos, Me equilíbro entre dias e noites- . Esse estado gera uma combinação
presente no cotidiano da juventude de classe média urbana contemporânea a
Renato Russo: a da ausência de um norte e o aumento do consumo de drogas.
148
Posicionando em relação as drogas, entre apologias e a consciênca do poder
em influenicar sua geração, afirmou o roqueiro, em 1989: Você o pode ter
uma boa relação com as drogas. As drogas são uma coisa muito negativa.”
(Assad, 2000, p. 83)
As drogas ganharam um potencial de consumo no seio da classe média
sobretudo na transição da década de 1970 para a de 1980, o que denota uma
ligação, a qual não é automática, mas indiciária, que se apresenta como
alternativa ao indivíduo solitário, abrindo espaço para uma situação depressiva,
desalentadora.
O deslocamento das responsabilidades de escolha para os
ombros do indivíduo, a destruição dos sinalizadores e a
remoção dos marcos históricos, rematadas pela crescente
indiferença dos poderes superiores em relação à natureza
das escolhas feitas e à sua viabilidade, foram duas
tendências presentes desde o início no “desafio da auto-
identificação”. No decorrer do tempo, as duas tendências,
fortemente interligadas e mutuamente revigorantes,
ganharam força ainda que desaprovadas, deploradas e
censuradas como desenvolvimentos preocupantes e
até mesmo patológicos (grifo nosso). (Bauman, 2005, p.
57)
Uma outra composição denominada Natália (1994)
10
, ressalta a
combinação entre solidão e consumo de drogas. Nos anos noventa essa
realidade era impossível de ser negligenciada. As clinicas de recuperação de
viciados tornaram-se comuns na vida de muitos jovens. O desespero, o
consumo de drogas, a solidão, imbrincam-se nas composições de Russo. Num
contexto contraditório, entre a glamourização
11
e as repercussões negativas do
consumo, Renato Russo, que foi viciado durante boa parte da sua vida,
argumentou em 1991:
10
Outras composições de Russo, tais como Conexão Amazônia, Mais do Mesmo, Clarisse e Faroeste
Caboclo abordam a temática das drogas.
11
“Existe uma glamourização da droga, principalmente no rock’n’roll. É lindo Janis Joplin, é lindo Jimi
Henrix... Não é lindo, não! É horrível, é uma tristeza, vo fica deprimido, é uma coisa desagradável.
(Assad, 2000, p. 113)
149
Eu não sei se seria a favor da liberação total, mas acho que
não pode continuar como está. A droga é mais um sinal
de que as pessoas são manipuladas. Porque, se as
pessoas tivessem mais dignidade, mais respeito entre si,
eu acho que a droga ficaria no seu devido lugar. Acredito
que existem pessoas que gostam de usar drogas, gente
que sente prazer com isso, mas elas devem ser uns três
por cento da população. Hoje em dia, todo mundo usa, e
quer, porque não se tem saída para nada. Ninguém se
encontra. (Assad, 2000, p. 84)
O consumo desenfreado afetou sobretudo a juventude urbana na
geração dos anos oitenta, possibilitando avaliar como o esboço traçado de uma
sociedade melhor, pela modernização autoritária brasileira, malogrou perante
as contingências políticas e históricas nas quais o Brasil estava mergulhado.
Como ressalta Renato Russo:
Hoje em dia, eu sinto muito mais necessidade de estar
perto do meu filho, necessidade de estar perto das pessoas
que gostam de mim. Em geral, eu procuro muito a
companhia dos meus amigos, das pessoas próximas. Eu
acho que isso tem a ver um pouco com a forma como a
sociedade está estruturada. Antigamente, existia muito
mais a vida em comunidade, as pessoas participavam
mais; hoje em dia, a vida nas grandes cidades está uma
coisa muito compartimentalizada, as famílias são menores,
os pontos de encontro são outros. Até por causa da
violência, as pessoas têm se fechado um pouco mais.
(Russo, 2000, p. 243)
A dimensão individual, desse estágio da modernidade ampliou o
sentimento de abandono, de carência, típico de um momento em que os
sentidos se fragmentam, adormecem frente a uma realidade que não se
identifica num único modelo.
Essa carência, sintetizada na solidão, na lógica de um mundo mais
próximo das pessoas, do cotidiano, de seu estreito laço de amizade ou familiar,
apresenta alternativas essenciais à medida que busca um resgate ético, como
o próprio autor das canções afirmou.
Sempre precisei de um pouco de atenção
Acho que não sei quem sou
150
Só sei do que não gosto
E destes dias tão estranhos
Fica a poeira se escondendo pelos cantos.
Este é o nosso mundo:
O que é demais nunca é o bastante
E a primeira vez é sempre a última chance.
Ninguém vê onde chegamos:
Os assassinos estão livres, nós não estamos.
Vamos sair – mas não temos mais dinheiro
Os meus amigos todos estão procurando emprego
Voltamos a viver como há dez anos atrás
E a cada hora que passa
Envelhecemos dez semanas.
Vamos lá, tudo bem- eu só quero me divertir.
Esquecer, dessa noite ter um lugar pra ir
Já entregamos o alvo e a artilharia
Comparamos nossas vidas
E esperamos que um dia
Nossas vidas possam se encontrar
Quando eu me vi tendo de viver comigo apenas
E com o mundo
Você me veio como um sonho bom
E me assustei [...]
(Teatro dos Vampiros, 1991)
Esse estado de isolamento, de estranhamento, de abandono e de
descrença ante um mundo que se apresenta de modo violento, impreciso e
novo remete a uma identidade em trânsito, no qual as mudanças ocorridas
projetam um sentimento de perda, de indecisão, de não saber quem se é,
classificando os dias como estranhos.
O valor atribuido a coisas simples, pela ausência de oportunidades,
como o emprego, sustentáculo básico das diretrizes modernizadoras, contrasta
com a situação de ter de viver consigo apenas e com o mundo. Essas
situações, elencadas na composição de Russo, sugerem a possibilidade de
perceber como a identidade construída nesse contexto teve de lidar com
situações nas quais as alternativas ficaram demasiadamente escassas. Essa
situação, nas composições de Renato Russo, realça uma indignação próxima
do desespero, da ausência completa de alternativas.
151
O tom hiperbólico das composições talvez não seja ratificador da
realidade tal qual ela se projetou, inclusive pela tonalidade e licença poética
das mesmas, mas, como sinalização de uma situação real, denota um
sentimento que constitui um ingrediente importante na identificação
multipolarizada da geração dos anos de 1980.
Será que ninguém vê o caos em que vivemos
Os jovens são tão jovens e fica tudo por isso mesmo
A juventude é rica, a juventude é pobre
A juventude sofre e ninguém parece perceber
Eu tenho um coração
Eu tenho ideais
Eu gosto de cinema
E de coisas naturais
E penso sempre em sexo, oh yeah!
Todo adulto tem inveja dos mais jovens
A juventude está sozinha
Não há ninguém para ajudar
A explicar por que é que o mundo
É este desastre que aí está
Eu não sei, eu não sei
Dizem que eu não sei nada
Dizem que eu não tenho opinião
Me compram, me vendem, me estragam
E é tudo mentira, me deixam na mão
Não deixam fazer nada
E a culpa é sempre minha, oh yeah!
E meus amigos parecem ter medo
De que fala o que sentiu
De quem pensa diferente
Nos querem todos iguais
Assim é bem mais fácil nos controlar
E mentir mentir mentir
Matar matar matar
O que eu tenho de melhor: minha esperança
Que se façam o sacrifício
E cresçam logo as crianças.
(Aloha, 1994)
A pressão da qual a juventude foi vítima à luz da composição,
concomitante à ausência de oportunidades, trouxe a baila o sentimento que
realça uma traição, um descaso para com os pensamentos processados pela
juventude. Como se a esperança guardada na caixa de Pandora fosse a maior
de todas as virtudes para alavancar um mundo melhor, mas diante das
152
mazelas do mundo a mesma se encontrasse aprisionada e distante de ser
liberada.
A revisão ética, nas letras de Russo, pressupõe uma fundamentação
norteadora de um sentido que o se fechava somente aos limites da razão
moderna. A temática recorrente às questões religiosas foi intensa nas
composições. Sua preocupação com um alicerce moral capaz de dar sentido à
existência humana, no contexto em que o autor escreveu suas canções, tendo
em vista o público para o qual eram destinadas, projetou muitas de suas
composições a um sentimento universal. Esse era mais antigo que moderno,
porém, agora, com uma intensidade ética que postulou preencher os vazios
ampliados pela modernidade.
Da Solidão a Outras Alternativas: o universalismo espiritual e o
deslocamento para um tempo futuro,[...]
O sentimento religioso ganhou nas composições de Russo, uma
conotação ímpar, de tal modo que muitas vezes as citações a textos religiosos,
com destaque para a Bíblia, tornaram-se comuns para a fundamentação de
uma moral universal, como se o grande problema estivesse na não execução
do que já estava posto para a humanidade há tempos.
São as incertezas concentradas na identidade individual,
em sua construção nunca completa e em seu sempre
tentado desmantelamento com o fim de reconstruir-se, que
assombram os homens e mulheres modernas, deixando
pouco espaço e tempo para as inquietações que procedem
da insegurança ontológica. É nesta vida, neste lado do ser
(se é que absolutamente outro lado), que a insegurança
existencial es entrincheirada, fere mais e precisa ser
tratada. Ao contrário da insegurança ontológica, a incerteza
concentrada na identidade não precisa nem das benesses
do paraíso, nem da vara do inferno para causar insônia.
(Bauman, 1998 , p. 221)
153
Esse quadro de incertezas, vivificado nessa perspectiva identitária nas
letras de Renato Russo, abalizou alternativas ante a insegurança apresentada
por um contexto delineado num quadro de exclusões inerente ao próprio
estatuto da modernização concebida no Ocidente. Particularmente no Brasil,
engendrou a incompletude de propostas tidas como indispensáveis na
construção de um mundo mais igualitário.
A premissa religiosa de Russo apresenta-se mais como uma busca de
sentido ético, como foi ressaltado pelo autor, oportunizando uma revisão a qual
se mostrava incapaz de ser feita apenas pelas instituições ou pelas iias
apontadas na fala de Renato Russo.
Assim, era necessário que houvesse, na proposta colocada em muitas
composições do autor, uma inversão no exercício dos referenciais éticos, os
quais buscavam nos seres humanos modernos um senso de justiça
emancipador. A revisão individual, para Russo, internalizada pela geração que
lhe fazia eco, constituía o pressuposto basilar de renovação da sociedade.
Essa revisão passava pela afirmação de um conteúdo ético universal, dos
quais valores universais, modernos ou pré-modernos, faziam parte.
A assertiva de fundo religioso, pois, nas interpretações de Russo,
ocupava um espaço fundamental no resgate desse valor ético e, na sua não
consecução, abriu caminhos para uma religiosidade desprendida da
necessidade de se filiar a uma instituição religiosa. Adotando um preceito, que
se era colocado numa vertente religiosa, não negava a modernidade à medida
que o trato dado por Renato Russo às suas abordagens religiosas buscam um
ethos tamm moderno, de justiça, de fraternidade, de igualdade.
154
Nesse sentido, a valorização da temática religiosa não é paradoxal aos
valores sustentados pela própria modernidade, haja vista que o contraponto
colocado pelo viés espiritual funda-se numa dinâmica na qual o exercício da
cidadania é pré-condicionado por uma crítica, que ao olhar para si mesmo,
reforçava um individualismo que defendia pressupostos universais, mola
mestra para a transformação social, na qual os homens seriam os grandes
agentes na sua ação individual.
Tirando a política, acho que a força motriz da sociedade é a
religião. Não confundir religião com igreja. Eu concordo
cem por cento com o que Cristo falou. Aliás, eu tenho
dificuldade com isso, por que sou um pecador. (1990).
(Russo, 2000, p. 214)
Muitas composições de Russo trataram de uma temática deixada à
deriva pelos anais da modernidade haja vista esta construir-se no alicerce que
elenca a razão como o baluarte emancipador do ser humano, seja pelo trâmite
de pensá-lo como politicamente universal, seja pelo de dinamizar o
conhecimento científico e legitimá-lo nessa base, que o sustenta e o completa.
Todavia, mesmo diante dessa premissa moderna, as letras de Russo indicam
uma identidade que está atenta a um padrão ético que não é novo, mas revela-
se nas suas composições em tom de desespero ou na esteira de uma solução
utópica. Como sustentou Russo, em 1988:
Eu acho que a única revolução possível é a espiritual. A
gente até tenta deixar isso aparente, mas é uma coisa
muito antagônica ficar falando de coisas espirituais através
de vculos de massa. Eu deixei de me preocupar demais-
passo o dia pensando nas pessoas de que eu gosto. E
pensar que, quando eu bebia demais, ficava lendo Sartre,
Nietzche, Kierkegaard, e achando o mundo horroroso[...] E
os menores abandonados, a sujeira do poder, meu Deus? (
Assad, 2000, p. 95)
155
Das leituras possíveis das composições de Russo, o teor religioso
refunda uma necessidade humana, uma carência, a qual não enseja
necessariamente um recorte fundamentalista. Denota, em graus diversos, um
desnorteamento perante a novidade moderna que se apresentava e projetava
na sua geração, sujeita a uma identidade em transformação ou em construção,
a procura de um sentido que fizesse da contemporaneidade, oportunidade de
uma vida menos permeada por conflitos.
A dimensão temporal nas composições de Russo situa o sujeito histórico
num fluxo em que o presente amargo, destituído de compaixão, algumas vezes
projeta uma idéia de futuro, de um mundo que pode se construir em outros
alicerces. A insatisfação com o presente põe à mesa de discussão um mosaico
no qual as cores não estão definidas. Aquilo a que negar está muito claro, no
entanto a possibilidade de afirmar a sua identificação pauta-se num ecletismo
na seleção, por parte do autor, de suas temáticas, as quais vão de política a
religião. Por esse viés, como pontua Harvey:
O impulso de preservar o passado é parte do impulso de
preservar o eu. Sem saber onde estivemos, é difícil saber
para onde estamos indo. O passado é o fundamento da
identidade individual e coletiva; objetos do passado é o
fundamento da identidade individual e coletiva; objetos do
passado são a fonte da significação como mbolos
culturais. A continuidade entre passado e presente cria um
sentido de seqüência para o caos aleatório e, como a
mudança é inevitável, um sistema esvel de sentidos
organizados nos permite lidar com a inovação e a
decadência. O impulso nostálgico é um importante agente
do ajuste à crise, é o seu emoliente social, reforçando a
identidade nacional quando a confiança se enfraquece ou é
ameaçada. (Harvey, 1992, p. 84)
O sentido religioso, talvez nostálgico como preceitua a citação acima,
em Russo, se faz presente por uma perspectiva de leitura de suas letras, como
uma alternativa, uma proposta de se situar frente ao novo estado de coisas
inaugurado no último quartel do culo XX. Não parece haver, nas
156
composições de Russo, uma negativa da razão. Ao contrário, o
estabelecimento de uma saída universal para o labirinto de oportunidades e de
indecisões, frutos da modernidade.
A fragmentação do indivíduo nesse processo de construção identitária,
típica da modernidade em curso não invalida o universal como base da
situação do sujeito na sua relação temporal que garante o fluxo do passado,
presente e futuro.
Nas composições de Russo, a perspectiva religiosa esteve ligada a uma
matriz a qual, longe de negar a modernidade, a integra, refutando práticas
dinamizadas na modernidade. Pierre Bourdieu, ao argumentar acerca da
universalidade que cerca o ocidente no seu pensar e, por extensão, no seu
agir, argumenta:
A maior parte das obras humanas que temos o hábito de
considerar como universais- o direito, a ciência, a arte, a
moral, a religião etc.- são indissociáveis do ponto de vista
escolástico e das condições econômicas e sociais que as
tornaram possíveis que não têm nada de universal. Elas
o engendradas nesses universos muito específicos que
o os campos de produção cultural (campo jurídico,
campo científico, campo artístico, campo filosófico etc.) e
nos quais estão engajados agentes que têm em comum o
privilégio de lutar pelo monopólio do universal, contribuindo
assim para levar avante, aos poucos, verdades e valores
tidos, em cada momento, como universais, isto é, eternos.
(Bourdieu, 1996, p. 209)
O argumento de Bourdieu ressalta a eleição feita na modernidade pelo
referencial universal, ainda que adotando uma corrente filosófica de fins da
Idade Media, a Escolástica.
A religiosidade ressaltada nas composições de Russo herdou um
sentimento que, ao surgerir caminhos, ratifica uma proposta que pretende ser
abrangente. Para Russo, a religião organizada, no seu sentido institucional,
perdeu legitimidade ao ser instrumentalizada pela política; todavia, para ele, o
157
sentimento religioso continuou forte e apresenta-se como o caminho mais
viável de construção de um mundo melhor.
[...] eu acho que a religião sempre foi utilizada como
instrumento político. Toda a estrutura social do mundo foi
ocidental, foi a igreja que organizou a Europa na época. Eu
li em algum lugar que a maior contribuição do século XX
não vai ser nada disso que todo mundo fala: a maior
contribuição vai ser a união do Ocidente com o Oriente. E
eu acho que é para isso que a gente está caminhando,
acho isso uma coisa muito importante. (Conversações com
Renato Russo,1996, p. 72)
A religião assume relevância à medida que o universalismo de valores
alavanca critérios para a justiça, a solidariedade e a fraternidade. Um caminho
de análise para indicar esse apego do compositor a essa temática, como
capaz de dar vazão aos problemas pelos quais a humanidade passava no seu
tempo reside num desapego dos valores modernizadores.
Essa situação trazida nas composições de Renato possibilitou uma
outra construção identitária, calcada numa individualidade a qual suscitava a
idéia de que a verdadeira revisão estava no sujeito, no indivíduo e que, nesse
sentido, a mais séria revisão que deveria ser feita era a dos próprios
referenciais éticos, não nos seus fundamentos, mas no seu exercício. A
ausência de vinculação a uma instituição religiosa confere às letras de Russo
uma ressonância, de tal modo que da filosofia oriental ao Cristianismo as
temáticas de enriquecimento pessoal foram utilizadas com freqüência nas suas
composições.
Os anos oitenta significaram para o Brasil uma experiência instigante do
ponto de vista social, econômico e político. A desilusão que acompanhou a
crise na qual o Brasil mergulhou foi desalentadora para os anseios de uma
geração que sentia o peso do presente pelas marcas de um passado recente e
158
a responsabilidade de se situar perante um novo quadro cheio de novas
variantes.
A mensagem religiosa e o fato dela tocar com tanta intensidade o público
ouvinte o se fez sem que houvessem conflitos na própria geração da qual
Renato Russo era interlocutor. As grandes vendagens de Renato Russo podem
estar relacionadas às melodias de suas canções; todavia o fator que garantiu às
suas composições o poder de penetração estava na identificação do grande
público com o que era refletido, como se a voz de Russo fosse a voz de parcela
importante da geração dos anos oitenta e noventa. Como afirma o compositor:
Eu gosto de acreditar que as pessoas compram nossos
discos por que sentem e percebem que eu sinto e percebo
exatamente aquilo que elas sentem e percebem. Se a
Legião tiver uma força, é a de ser igual ao público. (Russo,
2000, p. 76)
Situar-se no tempo e no espaço, tomando a primeira categoria na
expectativa de estabelecer uma consciência histórica a partir da dimensão
temporal e a segunda na intenção de postar-se com segurança num espaço
movediço no final do século XX, foi uma abordagem típica nas composições de
Russo.
Todos os dias quando acordo,
Não tenho mais o tempo que passou
Mas tenho muito tempo:
Temos todo o tempo do mundo.
Todos os dias antes de dormir,
Lembro e esqueço como foi o dia:
‘Sempre em frente,
Não temos tempo a perder’.
Nosso suor sagrado
É bem mais belo que esse sangue amargo
E tão sério
E selvagem.
Veja o sol dessa manha tão cinza:
A tempestade que chega é da cor dos teus olhos castanhos
Então me abraça forte
E me diz mais uma vez
Que já estamos distantes de tudo:
Temos nosso próprio tempo.
159
Não tenho medo do escuro, mas deixe as luzes acesas
agora.
O que foi escondido é o que se escondeu
O que foi prometido,
Ninguém prometeu.
Nem foi tempo perdido;
Somos tão jovens.
(Tempo Perdido, 1985)
A dimensão temporal converte um tempo natural, cronológico, numa
temporalidade na qual o processo de transformação coloca o sujeito histórico
como agente, inserido num fluxo temporal estabelecido pela experiência do
presente, dinamizada pelo passado como perspectiva no futuro. A dinamicidade
do tempo encarado num paradigma moderno, típico da compressão tempo-
espaço, experimentada sobretudo com as revoluções tecnocientíficas e com a
dinâmica modernizadora de caminhar em direção ao progresso, é uma marca
fundamental de uma identidade. Essa assumiu como parâmetro uma relação na
qual o tempo físico, cronometrado, é convertido num tempo humano, inserido
numa temporalidade histórica moderna, a qual ao metodizar o tempo,
organizando, dando sentido em direção a um futuro, projeta no sujeito moderno
a idéia de emancipação. A compressão do tempo pelos avanços tecnológicos
contrasta com o desejo de descompromisso, sobretudo nas práticas cotidianas
não relacionadas diretamente com o trabalho.
A mescla de um tempo humano- sempre em frente, não temos tempo a
perder: - com um tempo natural- tempestade que chega é a cor dos seus olhos
castanhos, coloca a possibilidade de se construir uma identidade que toma a
modernidade e a temporalidade sustentada por ela na não espera por algo difícil
de ser alcançado pelas variantes do presente tempestuoso, sombrio,
obstaculizado na sua visualização.
160
As expressões - temos todo tempo do mundo, nosso suor sagrado, temos
nosso próprio tempo, somos tão jovens- oportunizam uma combinação, a de
relacionar o tempo e a temporalidade no seu fluxo, tomando o sujeito histórico
como portador de uma consciência que o leva a estabelecer na sua experiência
histórica um superávit intencional à medida que o coloca no ponto de
intersecção, que é o presente, entre o passado e o futuro. Nesse sentido,
argumenta Rüsen:
Pode-se caracterizar e explicar essa constatação
antropológica de um superávit de intencionalidade do
homem como agente e paciente de mil e uma maneiras.
Nosso interesse aqui se restringe ao fato de que esse
superávit inclui uma relação do homem com seu tempo, na
qual se enraízam as operações práticas da consciência
histórica que são pesquisadas. Pois esse superávit tem
uma relevância temporal: ele se manifesta sempre de modo
todo especial quando o homem tem de dar conta de
mudanças temporais de si e do mundo mediante seu agir e
seu sofrer. (Rüsen, 2001, p. 57-58)
A necessidade de se situar no tempo para determinar-se diante dele é
uma constante do homem na constituição de uma consciência histórica. A
geração do último quartel do século XX construiu um referencial identitário,
numa situação na qual o passado, por sua constante revisão e readequação,
que não era do fim de século, mas que nesse recorte ensejou uma inversão
paradigmática e abalou o que era tido como unívoco.
A geração de Russo foi envolvida por essa redimensão do tempo e do
espaço modernos, tomando essas categorias nos sentidos históricos e
antropológicos. A composição Tempo Perdido dialoga com a incerteza e as
dificuldades da juventude com a herança do passado e abre, num sentido
otimista, perspectivas para um futuro melhor, de transformação, que se
enquadra no plano ideal, na busca de efetivar valores universalizados na
ideologia construída no ocidente, seja pelo viés religioso ou pela razão
161
moderna. Mesclando essa concepção otimista com a revisão ética proposta nas
letras de Russo, Christian Vargas, reforçado na tese de Maffesoli, argumenta:
A evidente valorização de um vínculo social hedonista e
tribal, de um estar-junto que não pressupõe um objetivo
comum a ser atingido em um futuro glorioso, reatualizaria,
assim, uma solidariedade social de outro tipo, mais
interiorizada, mais familiar, relacional e orgânica, marcada
por um sentimentalismo exarcebado. (Vargas, 1999, p. 190)
O tempo projetado no futuro é a mola mestra da revisão do presente.
Nessa identidade, com suas devidas identificações em trânsito, em mudança, o
jovem se posta como agente de transformação, assumindo a carga de um
passado nebuloso num futuro incerto e desafiador.
O homem necessita estabelecer um quadro interpretativo
do que experimenta como mudança de si mesmo e de seu
mundo, ao longo do tempo, a fim de poder agir nesse
decurso temporal, ou seja assenhorear-se dele de forma tal
que possa realizar as intenções de seu agir. Nessas
intenções há igualmente um fator temporal. Nelas o homem
vai além, também em perspectiva temporal, do que é o
caso para si e para seu mundo; ele vai, por conseguinte,
sempre além do que experimenta como mudança temporal,
como fluxo ou processo do tempo. Pode-se dizer que o
homem, como suas intenções e nelas projeta o tempo
como algo que não lhe é dado na experiência. (Rüsen,
2001, p. 58)
A projeção do tempo para algo que não lhe é dado pela experiência, nas
letras de Renato Russo, considerando-as como instrumento de interlocução dos
anseios da parcela da juventude da década de 1980, deu-se de modo a buscar
um sentido que o estivesse vinculado ao tempo presente ou a um lugar
determinado. Nesse sentido, a expectativa de assumir uma perspectiva de
mudança sem que necessariamente estabeleça uma filiação a uma corrente
ideológica.
Assim, a busca de uma transformação ética, inserida numa perspectiva
tamm religiosa, que se pautava em valores universais, tais como compaixão,
162
justiça, amor, solidariedade, dentre outros, levou a uma busca de maior
inclusão.
Nosso dia vai chegar
Queremos nossa vez
Não é pedir demais
Quero justiça.
(Fábrica, 1986)
O presente leva a uma concepção desnorteadora frente ao mundo. Era
necessário, diante da falta de opções, encarar uma perspectiva de construção
que negasse o lugar e o tempo dinamizados pela modernidade.
A revisão ética, proposta nas letras de Russo, encara o mundo
estabelecido pela razão modernizadora com indignação; a partir desse ponto
um lugar distante ou um tempo no futuro fundamenta a escolha por um novo
modelo espacial e temporal, capaz de preencher a lacuna deixada pela
incompletude das experiências modernas.
Ainda nessa linha de raciocínio, a de perceber como essa relação se
estabelece, David Harvey, citando Bourdieu, argumenta sobre a significação do
espaço e do tempo na representação social da coletividade:
As ordenações simbólicas do espaço e do tempo fornecem
uma estrutura para a experiência mediante a qual
aprendemos quem ou o que somos na sociedade. ”A razão
pela qual a submissão aos ritmos coletivos é exigida com
tanto rigor”, escreveu Bourdieu (1977, 163), “é o fato de as
formas temporais ou estruturas espaciais estruturarem não
somente a representação do mundo do grupo, mas o
próprio grupo, que organiza a si mesmo de acordo como
essa representação.” A noção de senso comum de que “há
um tempo e um lugar para tudoé absorvida num conjunto
de prescrições que replicam a ordem social ao atribuir
sentidos sociais aos espaços e tempos.(Harvey, 2004, p.
198)
Houve, numa leitura das composições de Russo, na ordenação simbólica
do tempo e do espaço, sugerida por Bourdieu, o estabelecimento de um
referencial que buscava deslocar o tempo e o espaço para um outro ponto
163
norteador. Certo é o sentimento de fuga para um tempo futuro ou para um lugar
distante, no qual haveria um baluarte de valores capaz de dar vazão às
transformações necessárias à sociedade. A assertiva de Russo foi também a de
parte de sua geração. Suas colocações diretas e aparentemente simples nunca
foram uma rebuscada linguagem poética e estavam longe das metáforas
utilizadas pelos principais compositores da música popular brasileira no período.
A fusão de uma insatisfação com o lugar e o tempo nos quais habita e a
fundamentação de um sentido moral, ético, inserido numa lógica religiosa ou
moderna foi um aspecto ressaltado como freqüência nas suas
composições.
Em suma, a busca por uma perspectiva religiosa não invalida a
percepção desse arranjo. Não do ponto de vista de quem produz e assume
a posição de analisar o objeto posto em realce, mas, tamm, na perspectiva do
indivíduo que produz as letras, bem como o que ouve e a internaliza, imerso nas
vicissitudes históricas motivadoras dessa noção religiosa, num mundo que não
apresentava à juventude um sentido universal passível de incluí-la e projetá-la a
um futuro melhor.
Quero me encontrar mas não sei onde estou
Vem comigo procurar algum lugar mais calmo
Longe dessa confusão
E dessa gente que não se respeita
Tenho quase certeza que eu
Não sou daqui.
Acha que gosto de São Paulo
E gosto de São João
Gosto de São Francisco
E São 1989) Sebastião
E eu gosto de meninos e meninas.
(Meninos e Meninas,
A referência dada no título da canção e também ressaltada no corpo da
letra demonstra uma liberalidade que o negligencia o senso ético de respeito
às opções sexuais, sejam elas homo ou heterossexuais. Renato Russo chegou
a produzir um trabalho em inglês, no qual manifestou claramente, além de sua
164
homossexualidade, sua refutação ao preconceito, sobretudo num contexto de
irradiação da AIDS, da qual, inclusive, foi vítima, contra uma postura assumida
por alguns meios midiáticos e pelo senso comum de atribuir aos homossexuais
uma pseudoresponsabilidade pela difusão da mesma na sociedade. Sua via
recorrente é a perplexidade e o questionamento.
Me deixa ver como viver é bom
Não é a vida como está e sim as coisas como são
Você não quis tentar me ajudar
Então, a culpa é de quem?
A culpa é de quem?
(Meninos e meninas, 1989)
A perspectiva de Russo seria a de vitalizar uma consciência universal,
ao gerar sujeitos preocupados com o próximo, pois, assim, abrir-se-ia
possibilidade de oportunizar no futuro uma vida mais digna, longe de incertezas
da situação presente.
As coisas mais básicas são as seguintes: quem acredita
sempre alcança, respeite ao próximo, não faça aos outros
aquilo que você não quer que te façam[...] é meio por aí.
(Conversações com Renato Russo, 1996, p. 37)
Essa proposta de renovação, que remete a uma condição ético-religiosa,
aponta uma direção futura negadora do passado por ser essa capaz de
proporcionar experiências que, para Russo e para grande parte da geração da
qual ele foi um emblema, eram básicas para o exercício de uma cidadania
inclusiva, a partir da premissa da revisão individual.
O que há de errado comigo?
Não consigo encontrar abrigo
Meu país é campo inimigo
E você finge que vê mas não vê
Lave suas mãos que é à sua porta que irão bater
Mas antes você verá seus pequenos filhos
Trazendo novidades.
Quantas crianças foram mortas desta vez?
Não faça com os outros o que você não quer
Que seja feito com você (grifo nosso)
Você finge não ver
E isso dá câncer.
165
(A Fonte, 1993)
Colocar a ética em pauta foi a tônica das letras de Russo num compasso
que abrangia a mudança coletiva pela perspectiva individual. A revisão ético-
moral do indivíduo era, desse modo, fundamental para uma transformação da
sociedade. Por essa via de raciocínio, a postura religiosa nas composições de
Russo não a aparta da política. Ao contrário, o exercício consciente dessa
pressupunha um condicionamento moral e o exercício da religiosidade seria um
caminho para obtê-lo. Como argumenta o próprio Renato Russo acerca de uma
interpelação que induzia ser suas composições, a partir da obra As Quatro
Estações, destituídas de um conteúdo político:
Eu não sei, por que o novo disco é todo político. Nesse
disco a gente esfalando do espiritual e hoje em dia não
existe nada mais político para mim do que o espiritual.
Aliás, acho que essa é a questão crucial hoje em dia, a
questão de você com teu lado religioso. Atualmente, o rock
vai mudar alguma coisa se puder servir de instrumento
para seus ouvintes. Você pode pegar o rock como uma
disciplina e crescer, conhecer o mundo, conhecer a si
mesmo. Entrar num processo intelectual. (Conversações
com Renato Russo, 1996, p. 71)
As letras de Russo remontam a uma essência do Ser em contradição com
a conjuntura do Estar- “Não é a vida como está e sim as coisas como são”.
Nesse sentido, que se ressaltar sua premissa a qual sustenta que a postura
política é, acima de um sistema ideológico, uma postura individual, ética, moral,
religiosa.
1
Vamos celebrar a estupidez humana
A estupidez de todas as nações
O meu país e sua corja de assassinos
Covardes, estupradores e ladrões
Vamos celebrar a estupidez do povo
Nossa política e televisão
Vamos celebrar nosso governo
E nosso Estado, que não é nação
Celebrar a juventude sem escola
As crianças mortas
166
Celebrar nossa desunião
Vamos celebrar Eros e Tânatos
Perséfone e Hades
Vamos celebrar nossa tristeza
Vamos celebrar nossa vaidade.
(Perfeição, 1993)
A crítica ironiza instituições basilares da sociedade. O Estado e a Nação,
dois pilares da constituição do Estado Liberal moderno, são colocados em
xeque. Ao salientar que o primeiro seria, ou deveria ser, a representação do
segundo, Russo questiona a modernidade, sinalizando a não identificação do
sujeito histórico com o Estado que o representa. Sua assertiva está talvez mais
vinculada à tese de Benectid Anderson, para o qual a constituição de Nação
pressupõe uma comunidade pensada e imaginada, capaz de romper como as
ordenações legais oriundas do Estado moderno.
Perfeição, uma das canções de Russo mais veiculada pelos meios
fonográficos, é uma crítica à modernidade, à sua lógica, à sua construção,
colocando o Brasil e suas instituições falidas” como palco para o fracasso da
modernidade. A saída, para Russo, apresentar-se-ia por outro caminho, qual
seja: o da religião em sentido universal.
2
Vamos comemorar como idiotas
A cada fevereiro e feriado
Todos os mortos nas estradas
Os mortos por falta de hospitais
Vamos celebrar nossa justiça
A ganância e a difamação
Vamos celebrar os preconceitos
O voto dos analfabetos
Comemorar a água podre
E todos os impostos
Queimadas, mentiras e seqüestros
Nosso castelo de cartas marcadas
O trabalho escravo
Nosso pequeno universo
Toda hipocrisia e toda afetação
Todo roubo e toda indiferença
Vamos celebrar epidemias:
É a festa da torcida campeã.
3
Vamos celebrar a fome
167
Não ter a quem ouvir
Não se ter a quem amar
Vamos alimentar o que é maldade
Vamos machucar um coração
Vamos celebrar nossa bandeira
Nosso passado de absurdos gloriosos
Tudo que é gratuito e feio
Tudo que é normal
Vamos cantar juntos o Hino Nacional
(a lágrima é verdadeira)
Vamos celebrar nossa saudade
E comemorara nossa solidão.
4
Vamos festejar a inveja
A intolerância e a incompreeno
Vamos festejar a violência
E esquecer a nossa gente
Que trabalha honestamente a vida inteira
E agora não tem mais direito a nada
Vamos celebrar a aberração
De toda a nossa falta de bom senso
Nosso descaso por educação
Vamos celebrar o horror
De tudo isso- com festa, velório e caixão
Está tudo morto e enterrado agora
Já que tamm podemos celebrar
A estupidez de quem cantou esta canção.
(Perfeição, 1993)
O carnaval e os feriados como mbolos de um circo trágico, à romana,
pelos mortos nas estradas mal conservadas e mal sinalizadas; a falta de
hospitais, a ineficácia da justiça, os preconceitos, o voto dos analfabetos
aprovado por uma emenda constitucional em 1985; impostos, queimadas,
seqüestros, trabalho escravo como prática em muitas fazendas brasileiras;
epidemias, fome, a celebração de uma bandeira e de um hino nacional como
referências de um passado inglório; saudade, solidão, inveja, intolerância,
incompreensão, violência, descaso com os trabalhadores e com a educação,
dentre outros, denotam a insatisfação frente ao instituído pela razão moderna.
A recusa da modernidade, posta até então, é a afirmação de uma
identidade interessada em reconhecer que o ponto nevrálgico estava numa
guinada na postura ético-moral do sujeito histórico.
168
5
Venha, meu coração está com pressa
Quando a esperança está dispersa
Só a verdade me liberta
Chega de maldade e ilusão.
Venha, o amor tem sempre a porta aberta
E vem chegando a primavera-
Nosso futuro recomeça:
Venha, que o que vem é perfeição.
(Perfeição, 1993)
A contraposição com a realidade anunciada como imperfeita, possibilita
um paralelismo entre um plano sensível, sombrio e imperfeito com um outro
ideal, iluminado e perfeito. Esse paralelismo, o qual remete à Alegoria da
Caverna de Platão, vincula-se a um viés espiritual através de uma citação,
quase que expressa de dois livros de Paulo: o de Romanos e o de I Corintios.
Na correlação da obra platônica com uma idéia religiosa, sedimentada na
Bíblia, Renato valeu-se de uma tese largamente sustentada pela patrística de
Santo Agostinho, que garantiu sustentabilidade ao Cristianismo, dialogando e
legitimando a Cidade de Deus com base em pressupostos platônicos ao colocar
os Livros de Paulo como a principal ponte dessa ligação. A perspectiva que a
letra apresenta vincula-se a um mundo incapaz de atender às demandas da
sociedade frente aos problemas que se anunciavam. Um outro plano, o ideal,
fazia-se necessário na projeção do futuro.
Meu caro Glauco, este quadro deve agora aplicar-se a tudo
quanto dissemos anteriormente, comparando o mundo
visível através dos olhos à caverna da prisão, e a luz da
fogueira que lá existia à força do Sol. Quanto à subida ao
mundo superior e à visão do que lá se encontra, se a
tomares como a ascensão da alma ao mundo inteligível,
não iludirás a minha expectativa, que é teu desejo
conhecê-la. O Deus sabe se ela é verdadeira. Pois,
segundo entendo, no limite do cognoscível é que ela se
avista, a custo, a idéia do Bem; e uma vez avistada,
compreende-se que ela é para todos a causa de quanto
de justo e belo; que, no mundo vivel, foi ela que criou a
luz, da qual é senhora; e que , no mundo inteligível, é ela a
senhora da verdade e da inteligência, e que é preciso vê-la
para se ser sensato na vida particular e pública. (Platão,
2003, p. 212-213)
169
A atualidade desse texto platônico em relação à canção de Russo,
tomando a Bíblia como fonte de entendimento através da citação dos livros de
Paulo e João, sinaliza uma não filiação automática aos preceitos modernos, à
maneira como estes foram instrumentalizados. A tese sustentada na letra reside
na incompatibilidade ideológica entre a geração dos anos oitenta e o sistema
excludente. Russo tomava as cartas de Paulo como inspiração, talvez por ser
ele o mais universalista dos apóstolos, pelo menos se adotar por referência seu
esforço no processo de conversão dos infiéis e de solidificação da Igreja, ao
debater temas controversos no seio da própria Igreja.
A perspectiva espiritual nas canções de Renato Russo aponta um
alicerce platônico, inserido numa estética política:
El individuo, ser de limites, siempre se entendido desde
de lo ilimitado. Desde el espectador omnisciente, figura de
lo divino. El mito platônico nos enfrenta a la paradoja
intemporal de que, según él, nuestra existencia cotidiana es
la de vivir prisioneros em uma sociedad de imágenes.
Ahora bien, antes como ahora, desconocemos que és vivir
en uma sociedad de imágenes si lo vemos desde esas
categorias ontológicas. El mito de la caverna es uma pieza
fundamnetal de la educación estética del gênero humano.
Comienza com um <<imagínate>>, uma apelación a la
imaginación como faculdad representativa de la condición
humana para después renegar de ella y de las imágenes.
Esa educación estética se revela como educación política.
Es uma estética política, que explica lo que debe ser el
Estado.(grifo nosso) La caverna platónica, donde se
decide qué es real o no y cuál es o no la existencia
auténtica, es un mito de poder. Para los que están em la
caverna, la realidade tiene um carácter estético, consiste
em imagens, no tienen otro punto de vista distinto. Pero
también se les obliga (ahora sí, ya no se invita) a adoptar
outro punto de vista sobre la realidade. No es el punto de
vista del individuo (que siempre está dentro), sino de
alguien, um espectador ominisciente, que está a la vez
fuera y dentro. La realidad va ligada aquí no a la reflexión
sino a la decisión, y ésta, a la imposición. La realidad no es
fruto del consenso entre los prisioneros[...] La realidad es lo
que se decide que sea realidad desde um punto de vista
ético, social y político. (Molinuevo, 2004, p. 22-23)
Renato Russo, ao citar o livro de I Coríntios, capítulo 13, no qual o amor
é a redenção do ser humano pelo caminho cristão, trouxe, mais uma vez, um
170
recurso que foi largamente utilizado nas suas composições, o de relacionar
questões de fundo político como alternativas universais. Os versículos 08, 09,
10, 11, 12, e13, do capítulo 13 de I Coríntios, salientam o amor como porta para
a redenção, sinalizando uma perfeição que não está nesse plano, mas sim num
outro, deslocado no futuro, como perspectiva paradisíaca.
8 O amor jamais acaba; mas , havendo profecias,
desaparecerão; havendo línguas, cessarão; havendo
ciência, passará.
9 porque em parte conhecemos, e em parte profetizamos
10 Quando, porém, vier o que é perfeito, então o que é
em parte será aniquilado. (grifo nosso)
12 Por que agora vemos como em espelho obscuramente,
então veremos face a face; agora conheço em parte, então
conhecerei como também sou conhecido.
13 Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor,
estes três: porém o maior destes é o amor.(A Bíblia
Anotada, 1994, p.1449)
Ao enunciar o caráter dispersivo da esperança, uma das três virtudes
elencadas por Paulo, ressalta a perfeição como algo que se dará num outro
plano, ideal, futuro, imortal, pois enxergar em parte traduz uma concepção pelas
sombras. A insegurança que o mundo oferece leva a um deslocamento da
realidade terrena para outra, eterna, constituída de valores universais,
independentes da filiação religiosa. O amor, como a principal das virtudes
eleitas por Paulo, sobrepondo-se à e a esperança, ao ser ressaltado, sinaliza
carência de orientação, de sentido nesse estado de coisas que é colocada na
modernidade como emancipador do ser humano.
A complementação com a citação do Evangelho de João 8:32, o qual
prega a necessidade de se conhecer a verdade como caminho da libertação,
ratifica a pregação bíblica de Jesus, que no mesmo Evangelho de João 14:6
anuncia: Eu sou o caminho, a verdade e a vida, realça de modo ainda mais
intenso a negativa nos parâmetros modernos.
171
O universalismo da linguagem de Russo não se restringe a uma noção
espiritual. Nas suas composições, os ideais de justiça, liberdade, compaixão e
amor constituem o receituário para projeção de um mundo melhor, tomando a
identidade na situação do sujeito histórico no fluxo temporal, de passado,
presente e futuro.
Quando o sol bater na janela do teu quarto
Lembra e vê que o caminho é um
Por que esperar se podemos começar tudo de novo
Agora mesmo
A humanidade é desumana
Mas ainda temos chance
O sol nasce para todos
Só não sabe quem não quer
Quando o sol bater na janela do teu quarto
Lembra e vê que o caminho é um
Até bem pouco tempo atrás
Poderíamos mudar o mundo
Quem roubou nossa coragem?
Tudo é dor
E toda dor vem do desejo
De não sentirmos dor
Quando o sol bater na janela do teu quarto
Lembra e vê que o caminho que o caminho é um só.
(Quando O Sol Bater Na Janela Do Teu Quarto, 1989)
A perspectiva espiritual é apresentada num contraponto à perda de
coragem e da capacidade de mudança. A oportunidade de alteração no estado
das coisas aponta num único sentido, o sensorial. Renato, ao comentar esse
disco, no qual o tom místico foi largamente utilizado, afirmou:
[...]no caso da Primeira Epístola de São Paulo aos
Corintios, umas coisas bonitas. O disco tem referências
também à doutrina de Buda e ao Livro do Caminho
Perfeito, que é uma coisa bonita, escrita muito tempo,
como se fosse um texto bíblico oriental, pré-Jesus. Nós não
estamos falando da religião, estamos falando do lado
espiritual do ser humano. o estamos falando que Deus
existe ou não [...] O disco não é de catecismo religioso. Nós
não temos o nosso lado espiritual resolvido. (Conversações
com Renato Russo, 1996, p. 83- 84)
Encarados nesse prisma, as composições de Renato, situadas no âmbito
de uma possibilidade de representação identitária da juventude, trouxeram, no
172
seu bojo, as incertezas de uma modernidade que o mais projetava os
jovens à defesa de grandes ideologias transformadoras da sociedade. A poesia
de Russo encarava os valores universais anteriores à modernidade como os
verdadeiros baluartes da transformação do presente. Não interessava a
denominação religiosa, o fundo era o universalismo presente nas doutrinas,
fosse cristã, hindu, budista ou do Livro do Caminho Perfeito, de Lao-Tsé.
As críticas às instituições e a apresentação de uma saída espiritual
oportuniza uma leitura na qual o ponto de inflexão para uma sociedade melhor
estaria no próprio ser humano, na sua revisão pessoal, moral, sendo o amor
entendido numa acepção genérica, universal, a chave para tal mudança.
Monte Castelo
Ainda que eu falasse a língua dos homens
E falasse a língua dos anjos,
Sem amor eu nada seria,
É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade
O amor é bom, não quer o mal
Não sente inveja ou se envaidece
Amor é fogo que arde sem se ver
É ferida que dói e não se sente
É um contentamento descontente
É dor que desatina sem doer
Ainda que eu falasse língua dos homens
E falasse a língua dos anjos,
Sem amor eu nada seria
É um não querer mais que bem querer
É solitário andar por entre a gente
É um não contentar-se de contente
É cuidar que se ganha em se perder
É um estar-se preso por vontade
É servir a quem vence, o vencedor
É um ter com quem nos mata lealdade
Tão contrário a si mesmo é o mesmo amor
Estou acordado e todos dormem todos dormem todos
dormem
Agora vejo em parte
Mas então veremos face a face
É só o amor, é só amor
Que conhece o que é verdade.
Ainda que eu falasse a língua dos homens
E falasse a língua dos anjos,
Sem amor eu nada seria.
(Monte Castelo, 1989)
173
O título da música é sugestivo ao fazer alusão à batalha da Segunda
Guerra Mundial na qual o Brasil participou e foram mortos o maior mero de
brasileiros na campanha da Itália. Em contrapartida, o autor cita a Primeira
Epistola de Paulo aos Corintios 13:1-13 combinada com o Soneto 11 da obra
Os Lusíadas, de Luiz de Camões. Esses dois textos ratificam o amor na sua
expressão máxima, seja pelo viés universal seja pelo individualismo
experimentado numa relação amorosa. Os antônimos guerra e amor reforçam a
tese de uma sociedade conflituosa, insatisfatória nos seus projetos e nas suas
realizações.
A correlação de um texto antigo, a Bíblia, e um renascentista, Os
Lusíadas, denota a projeção que Russo faz do amor, o qual é o veiculo
transformador da realidade. A fusão de tempos e de ideologias, a antiga e a
moderna, indicia o caráter universal do amor como mbolo da emancipação do
sujeito e de negação do instituído.
Na adaptação feita por Renato Russo, o amor é apresentado como
alternativa ao ponto máximo de contradições da modernidade: a guerra. O
conflito se estabelece de tal modo que numa batalha final entre o amor e a
guerra, a vitória do amor seria inconteste. O teor absoluto do amor está eivado
de uma conotação negadora da modernidade e suas instrumentalizações.
Diante da falência do mundo moderno e de suas instituições, Russo, numa
abordagem espiritual, e como ele próprio afirma política, propõe um expediente
universal, o qual mescla os sentidos do amor, seja na perspectiva individual seja
na universal. Bíblia e Camões constituem uma combinação aparentemente
contraditória, mas que traz muito de similaridade nos seus propósitos à medida
que o resgate religioso feito pelo Renascimento, como ponto inaugural da
174
modernidade, enseja uma abertura para entendimentos universais e
universalistas. Em 1989, Renato Russo argumentava acerca da relação entre a
religiosidade presente nas suas músicas e o procedimento atitudinal
proveniente da interação homem-Deus:
Tem uma frase em que acredito: “Quem procura Deus já o
encontrou”. E tem uma outra: “ Foram os homens que
inventaram Deus”. E eu fico entre estas duas frases. Existe
a idéia de Deus, independente de Deus existir ou não, que
esdentro do espírito humano. E essa coisa a gente não
resolve nunca. O interessante é desmistificar tudo isso.
Seria pretensão de minha parte tentar explicar isso. Mas
coisas que foram ditas e coisas que sei de experiência.
Uma delas é: se você ajudar alguém, sinceramente mesmo,
você se sente muito bem. (Assad, 2000, p. 76)
Nesse diapasão, o título de um de seus CDS, A Tempestade, remete a
uma obra de Shakespeare, na qual o novo mundo apresenta-se num cenário
tempestuoso, incerto, de personagens indefinidos, alguns ambíguos. Numa
possível relação da obra de Shakespeare com a geração da qual Russo foi um
dos porta-vozes mais relevantes, tal qual na perspectiva do dramaturgo inglês, a
obra do cantor brasileiro está imbricada em uma série de contingências
históricas de redefinição de paradigmas, pois se para Shakespeare a
modernidade se inaugurava, gerando situações, problemas e desafios novos,
para Russo a mesma modernidade está redefinindo seus referenciais. Assim,
novos caminhos o apresentados projetando o resgate de uma espiritualidade
negligenciada na modernidade.
Renato Russo declara abertamente sua religiosidade numa entrevista,
concedida em 1988, combinando o exercício de religação a Deus com uma
atitude sócio-política:
Deus é tudo. É vida, amor. Se, em alguma época, pensei
não ter acreditado, estava mentindo. O que sei é o
seguinte: me sinto bem quando ajudo alguém. Bem piegas,
não é? Mas, felizmente ou infelizmente, é isso mesmo. Ver
uma flor se abrindo, uma criança sorrindo. Se um décimo
175
da população cristã fizesse o que tem que ser feito, o
mundo seria melhor. Acredito na minha fé. É algo que não
se explica. Por isso estamos tão mal. No momento em que
deixamos de acreditar na humanidade, deixamos de
acretidar em Deus. (Assad, 2000, p. 75)
Na composição, Se Fiquei Esperando Meu Amor Passar, Renato faz
novamente a combinação entre o amor universal, que não faz acepção de
gênero, dentro de uma abordagem individual, com a perspepctiva imaterial,
universalizando seu exercício através da espiritualidade. Diante da insegurança,
o amor eleva o sujeito a um outro plano, o religioso. A citação da liturgia
Católica, que faz referência ao Livro de João 1:29, encerra a canção sugerindo
a constatação de que o sentido estaria num outro plano.
Se fiquei esperando meu amor passar
Já me basta que então eu não sabia
Amar e me via perdido e vivendo em erro
Sem querer me machucar de novo
Por culpa do amor
Mas você e eu podemos namorar
E era simples: ficamos fortes.
Quando se aprende a amar
O mundo passa a ser seu.
Sei rimar româ com travesseiro
Quero minha nação soberana
Com espaço, nobreza e descanso.
Se fiquei esperando meu amor passar
Já me basta que estava então longe de sereno
E fiquei tanto tempo duvidando de mim
Por fazer amor fazer sentido
Começo a ficar livre-
Espero.
Acho que sim.
De olhos fechados não me vejo
E você sorriu pra mim
Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo
Tende piedade de nós
Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo
Tende piedade de nós
Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo
Dai-nos à paz.
(Se Fiquei Esperando Meu Amor Passar, 1989)
O sentido, ou os sentidos, atribuido por Renato Russo à espiritualidade
enraiza uma noção que vincula várias dimensões, dentre as quais a perspectiva
de uma alternativa ético-valorativa combinando o amor e a religião dentro de um
176
pano de fundo que abarque a revisão do indivíduo. Essa noção situa o sujeito
num contexto no qual sua identidade desvincula-se do parâmetro reforçado
pelas bandeiras ideológicas dos séculos XIX e do XX. Russo foi sensível às
vicissitudes do seu tempo, soube catalisar sentimentos e projetá-los nas suas
composições, emblematizando, numa certa medida, a complexidade das
subjetividades da geração a que pertenceu. A legião urbana da qual Renato
Russo foi membro encontrou nas composições desse roqueiro a mais ampla
expressão de seus dilemas, os quais abarcavam questões que fluíam do público
para o privado, e deste para aquele, como se a intersecção fosse uma constante
alternativa frente ao novo conjunto de situações que projetava uma revisão
intermitente na manifestação da identidade.
177
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As composições de Renato Russo, divulgadas por meio do movimento
roqueiro, que no Brasil se consolidou na década de 1980, esteve diretamente
imbricada às vicissitudes presenciadas no mundo, no tempo e espaço, nos
quais o Brasil também se constituiu em palco de um conjunto de manifestações,
que se fizeram sentir nos caminhos para a construção de uma nova identidade.
O desapego de Renato Russo, nas suas letras, aos padrões identitários
difundidos e reforçados no âmbito da modernidade e, peculiarmente, no Brasil,
devido ao modelo de modernização acentuado durante o regime militar,
propiciou uma variedade de novas possibilidades e projetos.
Sob o enfoque ressaltado na pesquisa, a negativa da modernidade, na
obra do artista, assume uma conotação que redimensiona a noção de projeto,
no qual a questão nacional se interrelaciona com as transformações pelas
quais o mundo passava. Situar as composições de Renato Russo, naquilo que
elas possuem de original, é, sobretudo, estendê-las sob um ângulo que requer o
redimensionamemto em relação ao projeto nacional específico. A relação Brasil-
cultura-ocidente se institui nas composições de Russo numa interação que,
longe de ser excludente, ressalta a diversidade oriunda da emergência de novos
sujeitos-históricos, protagonistas de demandas e necessidades que se fizeram
sentir a partir do último terço doculo XX, mas que foram construidas ao longo
da modernidade.
Nas suas letras fica evidente uma transposição, para a representação
musical, de uma subjetividade que abarcava a realidade de grande parte da
geração das décadas de 1980 e 1990. A negativa da modernidade é ao mesmo
178
tempo a afirmação de uma identidade que clama por uma outra conjuntura. As
marcas da ditadura, emblematizadas pela repressão e pela institucionalização
da violência, fizeram da geração, que almejava ser ouvida, a porta-voz de
insatisfações canalizadas pelo rock, síntese de rebeldia descomprometida com
os arautos da politização ratificada no Brasil.
No início dos anos de 1980, autorizada pela abertura política, acentuada
pela emergência de movimentos em prol da democracia, dentre os quais o que
almejava a aprovação da emenda que autorizava eleições diretas talvez tenha
sido o mais relevante, essa geração, encampou o rock dos anos de 1980 com
uma peculiaridade marcante perante outras manifestações musicais. No Brasil,
foi atingido um grau de insatisfação, no qual a negação era uma face da moeda
que na outra exigia um conjunto de afirmações pela transformação de valores,
de projetos e, interativamente, de identidades.
A ditadura trouxe à tona, numa relação direta com os acontecimentos
históricos experimentados no mundo globalizado, o esgotamento das estruturas
que a sustentava e o sufocamento do sujeito. A hegemonia de um tipo de
racionalidade, que foi negligente frente às subjetividades do indivíduo, fez da
relação público-privado uma problemática que envolveu uma redefinição dos
próprios paradigmas perante o mundo. Estes se anunciavam múltiplos,
multilateralizados e desacreditados frente aos grandes modelos explicativos, os
quais foram capazes de movimentar multidões, mas incapazes de realizar os
projetos tutelados pela mesma modernidade. A descrença ante esse processo,
nas composições de Renato Russo, suscita a emergência de um quadro de
alternativas possíveis para, não mais na razão genérica e excludente, elevar
uma nova razão, uma nova relação, num parâmetro que possibilite a cada qual
179
uma situação mais justa, na qual o indivíduo fosse presente por sua
subjetividade, sendo, portanto, sujeito do processo no qual se insere.
Desse modo, o privado, o cotidiano, ganha uma conotação singular nas
composições de Renato Russo, nas quais o verbo conjugado em primeira
pessoa trata de um individualismo, no qual a fragmentação aparece tamm
como repúdio a um emaranhado de instrumentalizações incapazes de perceber
o indivíduo fora da ordem generalizante. Assim, a obra de Russo é uma
manifestação de transição e de definição, na qual fica obscuro o que se quer,
mas evidencia o que não se quer, numa lógica de construção e reconstrução
constante, conferirindo a sua obra uma sensibilidade e interação com o público
que fez de Renato Russo o porta-voz de uma legião urbana.
A modernidade, na dinamicidade que lhe é constitutiva, propicia a
emergência de uma configuração que se amolda à crise de paradigmas, na qual
o indivíduo globalizado é projetado a uma possibilidade variada de situações
que o definem e são definidas por ele. As letras de Russo são ilustrativas ao
elucidar essa multiplicidade de sentidos, nos quais os sentimentos, as filiações
políticas, a esfera privada representada pela família e o projeto individual na sua
relação com o público são carentes como toda identidade em transição. O
questionamento dos paradigmas universais modernos é a ponta de lança de um
conjunto de transformações que se fazem presentes não nas manifestações
artísticas - o objeto da presente pesquisa, por exemplo - , mas que se mostram
presentes em tantos outros segmentos que compõem a modernidade. A
angústia de Renato Russo não foi dele, talvez não tenha atingido à
pluralidade inerente a essa constituição identitária, mas é suficiente para
denotar uma gama de possibilidades presentes nas composições de Cazuza,
180
Herbert Vianna, Zeca Balero, Chico Cesar e Arnaldo Antunes, entre outros.
Esse último traduz numa letra a permanência de tal sentimento de indefinição e
de ausência de sentido frente a multilateralidade que se faz presente.
Socorro
Socorro, não estou sentindo nada
Nem medo, nem calor, nem fogo,
Não vai dar mais pra chorar
Nem pra rir
Socorro, alguma alma, mesmo que penada,
Me empreste suas penas
Já não sinto amor nem dor,
Já não sinto nada
Socorro, alguém me de um coração,
Que esse já não bate nem apanha
Por favor, uma emoção pequena,
Qualquer coisa
Qualquer coisa que se sinta,
Tem tantos sentimentos, deve ter algum que sirva
Socorro, alguma rua que me dê sentido,
Em qualquer cruzamento,
Acostamento,
Encruzilhada.
Todos esses aspectos, sob a égide de uma identidade que se constrói
pela fuga, pela mutilação do sujeito e pela definição do Eu frente a uma
infinidade de Outros, o passivos de serem analisados com o apreço que
requer a pesquisa histórica. Nesse sentido, as letras de Renato Russo se
tornam um campo fértil para um bom mero de leituras. Trazê-las à tona,
tomando como referência suas composições, as quais foram incorporadas por
grande parte de sua geração, constitui numa empreitada que se completa pelo
esforço conjunto da comunidade produtora de pesquisa. Ao reconhecer novas
possibilidades de relacionar o sujeito e o objeto, as composições, seja na
analise da letra ou da letra-música, figuram-se como interessantes caminhos
indiciários para a reconhecer pela via artística a construção da identidade nos
seus múltiplos caminhos.
181
Renato Russo emblematizou os dilemas de sua geração, suas
composições se fazem atuais e cantadas com frequencia não pelos que lhe
foram contemporâneos. O ecletismo de suas temáticas e de suas abordagens
reflete uma gama de situações que estariam vinculadas ao começo da jornada
da modernidade, combinado otimismo, pessimismo e multiplicidade de sentidos
nos vários aspectos da vida humana. E depois do começo, como afirmou Russo
num tom pessimista, “o que vier vai começar a ser o fim.
Vamos deixar as janelas abertas
Deixar o equilíbrio ir embo
Cair como um saxofone na calçada
Amarrar um fio de cobre no pescoço
Acender um intervalo pelo filtro
Usar um extintor como lençol
Jogar pólo-aquático na cama
Ficar deslizando pelo teto
Da nossa crga e medieval
Cantar canções em línguas estranhas
Retalhar as cortinas desarmadas
Com a faca suja que a fé sujou
Desarmar os brinquedos indecentes
E a indecência pura dos retratos no salão
Vamos beber livros e mastigar tapetes
Catar pontas de cigarros nas paredes
Abrir a geladeira e deixar o vento sair
Cuspir um dia qualquer no futuro
De quem já desapareceu
Deus, Deus, somos todos ateus
Vamos cortar os cabelos do príncipe
E entregá-los a um deus plebeu
E depois do começo
O que vier vai começar a ser o fim.
(Depois do Começo, 1987)
182
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