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ENTRE A CRUZ E O CAPITAL:
MESTRES, APRENDIZES E CORPORAÇÕES DE
OFÍCIOS NO RIO DE JANEIRO (1808-1824)
MÔNICA DE SOUZA NUNES MARTINS
Tese de Doutorado apresentada
ao Curso de Pós-Graduação em
História Social da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como
requisito parcial para obtenção do
título de Doutora em História.
Orientador: Prof° Dr. José Murilo de Carvalho
Rio de Janeiro
2007
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ENTRE A CRUZ E O CAPITAL:
MESTRES, APRENDIZES E CORPORAÇÕES DE
OFÍCIOS NO RIO DE JANEIRO (1808-1824)
MÔNICA DE SOUZA NUNES MARTINS
Orientador: Prof. Dr. José Murilo de Carvalho
Tese de Doutorado apresentada
ao Curso de Pós-Grduação em
História Social da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como
requisito parcial para obtenção do
grau de Doutora.
Aprovada em Abril de 2007:
Banca Examinadora
Prof. Dr. José Murilo de Carvalho – Orientador
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Prof. Dr. Caio César Boschi
Pontifícia Universidade Católica – MG
Prof. Dr. Carlos Gabriel Guimarães
Universidade Federal Fluminense
Prof. Dr. Luiz Antonio Cunha
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Prof. Dr. João Luis Ribeiro Fragoso
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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FICHA CATALOGRÁFICA
MARTINS, Mônica de Souza Nunes.
Entre a Cruz e o Capital: Mestres, aprendizes e corporações de
ofícios no Rio de Janeiro (1808-1824) / Mônica de Souza Nunes
Martins. – Rio de Janeiro: U.F.R.J./I.F.C.S., 2007.
238p., 30 cm.
Orientador: José Murilo de Carvalho
Tese de Doutorado - UFRJ / Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais / Programa de Pós-Graduação em História Social, 2007.
Referências Bibliográficas: p. 226-238
1. Corporações de Ofícios. 2. Mestres. 3. Aprendizes. 4.
Irmandades. 5. Constituição de 1824. 6. José da Silva Lisboa. I.
Carvalho, José Murilo de. II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-
Graduação em História Social. III. Título.
4
RESUMO
ENTRE A CRUZ E O CAPITAL:
MESTRES, APRENDIZES E CORPORAÇÕES DE OFÍCIOS NO RIO DE
JANEIRO (1808-1824)
O objetivo desta pesquisa é analisar os elementos que levaram à decadência das
corporações de ofícios no Brasil no início do Século XIX. Analisando as relações
tecidas no interior das corporações - a partir dos vínculos pedagógicos, econômicos,
políticos e religiosos , este estudo busca traçar a forma de organização dessas
associações, enfocando a cidade do Rio de Janeiro. Esta análise se concentra,
especialmente, nos elementos internos e externos que contribuíram para o seu declínio,
após a chegada da família real ao Brasil, vinculados, sobretudo, à ascensão econômica e
política dos homens de negócios e dos interesses mercantis. Após a proibição legal das
corporações de ofícios na Constituição de 1824, analiso ainda a permanência da prática
pedagógica no interior das fábricas no Rio de Janeiro, onde se mantiveram os vínculos
entre mestres e aprendizes até, pelo menos, a década de 1840.
Palavras-Chave: Corporações de ofícios; Mestres; Aprendizes, Irmandades;
Constituição de 1824; José da Silva Lisboa.
5
ABSTRACT
BETWEEN THE CROSS AND THE CAPITAL:
MASTERS, APPREENTICES AND GRAFT GUILDS IN RIO DE
JANEIRO (1808-1824)
The purpose of this dissertation is to analyze the factors that led to the decay of
the craft guilds in early XIX century Brazil. Through the examination of the pedagogic,
economic, religious and political relations weaved in the interior of the guilds the study
tries to trace the organizational nature of these associations, with special attention to the
city of Rio de Janeiro. The analysis concentrates on the internal and external factors
that contributed to their decline after the arrival of the real family in Brazil in 1808,
particularly on the economic and political ascension of businessmen and mercantile
interests. It is further established that the legal prohibition of the craft guilds by the
Constitution of 1824 did not end their pedagogic practices within the plants where they
preserved the bonds between masters and apprentices until, at least, the 1840’s.
Key-words: Craft guilds; Masters; Apprentices; Brotherhoods; Constitution of 1824;
José da Silva Lisboa.
6
Agradecimentos
Concluo a tese ao som dos tamborins, revendo os parágrafos mal escritos e as
passagens pouco claras do texto. Inicio um outro périplo, de me encontrar com todos
aqueles que contribuíram para a conclusão desta pesquisa; o que precisa ser feito em um
tempo infinitamente menor do que os quatro anos em que o trabalho foi desenvolvido.
Primeiramente, agradeço a quem tornou a pesquisa e todo o desenvolvimento do
tema possível junto comigo: meu orientador, José Murilo de Carvalho. Quatro anos em
que nos conhecemos e compartilhamos boas conversas, ele sempre com sua paciência e
tranqüilidade de mestre. Como professor, suas aulas suscitaram discussões
fundamentais para o desenvolvimento dessa pesquisa. Como orientador, com ele
aprendi a seguir com convicção os trilhos da pesquisa histórica.
Agradeço aos professores que fizeram parte da minha banca de qualificação,
Marcelo Badaró Mattos e Renato Lemos, pelas críticas e sugestões que foram
fundamentais para as reflexões acerca do tema. Especialmente ao Professor Marcelo
Badaró, agradeço as indicações bibliográficas e sugestões temáticas com as quais
contribuiu nas nossas conversas, desde que eu ainda pensava em um projeto para o
doutorado.
Com Vitor Fonseca tive longas e formidáveis discussões acerca da temática que
desenvolvíamos em comum, com quem compartilhei muitas dúvidas que se tornaram
questões importantes para a pesquisa. Também Marcello Basile, com sua rara
habilidade nos arquivos, agradeço a permanente disposição em ajudar na pesquisa e nas
discussões sobre o período. Também a Ricardo Salles, com quem tive o prazer de
trabalhar junto, aprender e descobrir caminhos nos arquivos da Biblioteca Nacional.
Momentos de ótimas discussões temáticas e teóricas eu encontrei nos simpósios
desenvolvidos pelo grupo de estudos sobre Estado e Poder. Sob a coordenação da
7
professora Sônia Mendonça - sempre instigante pesquisadora relacionei o meu tema
com os questionamentos e pesquisas de outros estudiosos: com Dilma Andrade de
Paula, Esther Kupperman, Pedro Marinho, Antônio Rabello, Maria Letícia Corrêa e,
especialmente, com Théo Piñeiro as discussões costumam se estender.
Junto ao gosto pela pesquisa, o prazer de lecionar me trouxe gratos amigos. Com
Luiz Otávio Ferreira as longas discussões sobre História, Educação e sobre os nossos
ofícios. A ele agradeço as boas indicações bibliográficas e reflexões sobre o tema.
Também na Faculdade de Educação da Baixada Fluminense as gratas companheiras que
estiveram sempre me estimulando: Joana de Angelis, Mônica Ribeiro, Karina Pinto e
Gabriela Salomão.
Àqueles todos que partilharam carinho, amizade e companheirismo nesse longo
período: André Villela, pelas mãos companheiras. Viviane Rodrigues, Rosângela
Guimarães, Vilma Pereira, Wander Paulus, Felipe Magalhães e Maika Carocha pela
força constante. Andréa Albano, amiga indispensável. Cristiane Azevedo e Fernando
Fragozo, sempre acolhedores naquele recanto fresco de Itaipava. William Martins,
irmão, amigo e interlocutor sobre a História e sobre a vida.
Aos meus pais, sempre por perto. À minha avó Rita, que muito me ajudou
nesses quatro anos, o meu exemplo de força. Ao meu filho Pedro, presente ao meu lado
em todo esse caminho percorrido, e quem mais está feliz com o fim da tese!
Por fim, os agradecimentos ao CNPq, que possibilitou o desenvolvimento da
pesquisa, concedendo a bolsa de doutorado. Também ao Programa de Pós-graduação
em História Social da UFRJ, que facilitou todos os caminhos para a realização da
pesquisa.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................ 10
CAPÍTULO 1
Mestres e aprendizes: o trabalho nas corporações de ofícios
1.1. Origem e desenvolvimento das corporações de ofícios.............................. 22
1.2. Mestres e aprendizes no Brasil.................................................................... 36
1.3. Mestres e aprendizes no Rio de Janeiro: as irmandades, os ofícios e o
comércio ....................................................................................... 56
1.4. Oficinas, fábricas e Indústria: a diversidade da língua e da prática............ 71
CAPÍTULO 2
Irmandades e corporações de ofícios na Corte: construção das relações de
trabalho no século XIX ..................................................................................... 75
CAPÍTULO 3
A Pedagogia do Artesanato: relações de ensino e aprendizagem nas corporações
de ofícios ........................................................................................................ 108
CAPÍTULO 4
Corporações versus liberdade de indústria: o pensamento liberal, o aprendizado e
a extinção das corporações de ofícios
4.1. O pensamento econômico liberal e o aprendizado.................................. .132
4.2. A extinção do aprendizado na Inglaterra................................................... 143
4.3. A proibição das corporações no Brasil e a defesa de José da Silva Lisboa na
Constituinte de 1823
a) Sobre José da Silva Lisboa........................................................................... 152
9
b) A extinção das corporações no Brasil e a defesa de José da Silva Lisboa... 161
CAPÍTULO 5
Ascensão dos homens de negócios e o fim das corporações no Brasil
5.1. Corporações e irmandades dos ofícios: a decadência econômica .........179
5.2. Corporações e irmandades dos ofícios: a decadência política ............ 196
5.3. A permanência dos aspectos pedagógicos: mestres e aprendizes nas
fábricas ..................................................................................................... 208
5.4. Outras formas de mutualismo ....................................................... 217
CONCLUSÃO .............................................................................................. 223
FONTES E BIBLIOGRAFIA ..................................................................... 226
10
Introdução
A prática de associar-se parece remontar às civilizações mais antigas,
manifestando-se nas mais diversas formas de contratos que garantiam a ajuda mútua e a
solidariedade entre os partícipes, fossem eles mercadores ou artífices. Eis aqui duas
expressões fundamentais para o entendimento do significado do associativismo através
dos tempos, dado que a existência das associações e sua sobrevivência são garantidas
pela importância que assumiram na vida dos indivíduos e das sociedades, na proteção e
defesa dos grupos, no auxílio mútuo, no desempenho de funções no campo social que
durante muito tempo não foram exercidas por nenhuma esfera de poder. Desta forma, o
“associar-se” embutiu-se de vários significados ao longo do tempo nas diferentes
regiões do mundo.
Apesar das divergências de análise do período em que surgiram as primeiras
formas associativas mais organizadas entre trabalhadores geralmente conhecidas
como corporações de ofícios -, os estudos parecem ser unânimes em identificar os
séculos XI e XII como um marco no despertar dessas corporações, bem como da
importância e do reconhecimento que adquiriam junta às cidades e ao poder público
local na Europa.
1
O período entre os séculos XI e XIII foi identificado por vários historiadores
como característico de uma verdadeira revolução comercial, que esteve relacionada a
diversos fatores, tais como: o fim das invasões, a retomada do comércio e o crescimento
econômico, como efeito da diminuição da periculosidade das rotas terrestres e do surto
demográfico. Esta “revolução” teria tido seu ponto alto com as cruzadas, com a
intensificação do comércio e todo este movimento esteve ligado, por sua vez, ao
1
PIRENNE, Henri. “European”. In: SELIGHAN, E.R.A. e JOHNSON, A. Encyclopedia of the social
sciences, vol. 7. N. Y.: Macmillan, 1949, pp. 208-214.
11
crescimento e desenvolvimento das cidades.
2
A produção de excedentes permitiu que
as cidades se desenvolvessem e os trabalhadores pudessem se dedicar a outras
atividades; a mão-de-obra deslocava-se para os centros urbanos e neles crescia o
número de mercadores e artífices.
3
Com o renascimento urbano e comercial o papel das
associações foi revestido de novos significados e uma forma específica de sociabilidade
tornou-se importante para agregar os trabalhadores de diferentes ofícios na tentativa de
se protegerem. As associações ressurgiam lentamente como fruto da necessidade de
associar-se.
A expansão comercial, desencadeada pelas cruzadas, e o aumento do comércio
entre a Europa e a Ásia possibilitaram o crescimento das cidades e uma diversificação
das atividades profissionais oferecidas no meio urbano. No entanto, fazia-se necessário
que os trabalhadores se reunissem em grupos específicos a fim de que o trabalho fosse
organizado nas cidades. Ao mesmo tempo, a falta de qualquer amparo aos
trabalhadores urbanos por parte do poder institucional - já que estavam fora das relações
de proteção controladas pelos senhores feudais -, os tornavam vulneráveis a todo tipo de
prejuízo. Com o passar do tempo nasceriam as associações entre trabalhadores artesãos,
que adotaram diferentes denominações nas várias regiões onde se formaram, conhecidas
entre nós como corporações de ofícios ou guildas.
Este novo sentido atribuído às associações urbanas não se manteve, por sua
vez, estático. Elas representavam os interesses dos mestres de ofícios mais destacados e
garantiam a permanência de um relativo poder onde o mestre atuava. Aprendizes e
artesãos simples, cujo deslocamento entre ofícios era algo raro e restrito, mantinham-se
sob a esfera de controle daqueles que, de alguma forma, detinham o monopólio do
2
LE GOFF, Jacques. Mercadores e banqueiros da Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1991. Sobre
isso ver também Lopez, Robert S. Op. cit., pp. 67-90.
3
Lopez, R. Op. cit, pp. 67-68.
12
conhecimento, do ensino, da profissionalização e a prerrogativa de comercializarem as
obras executadas em suas oficinas.
O que nasceu como fruto da necessidade, passou ao longo do tempo a ser
defendido como direito. As transformações sociais ocorridas na Europa nos séculos
seguintes e as revoluções burguesas apontavam para a permanência e valorização de
variadas formas de associativismo, passando a simbolizar também uma possibilidade de
defesa do trabalhador contra a exploração e contra as injustiças. Atrelada à defesa de
ideais de cunho universal surgia a noção de direitos e de deveres, resgatavam-se novos
significados para a noção de cidadania e postulava-se a substituição de uma sociedade
de privilégios por uma sociedade baseada na igualdade, ainda que restrita ao aspecto
jurídico. Para a garantia dos benefícios e do amparo, surgia com força a noção do
direito de associar-se, que passava a ser defendido nas esferas política e jurídica.
Essa mudança de enfoque se deu também como resposta a uma nova
formulação sobre a concepção de trabalho. A consolidação do capitalismo - que
lentamente se estabelecia desde o período de transição, com a economia mercantilista,
até às mudanças mais bruscas verificadas a partir do século XVIII, com os progressos
industriais -, trazia no bojo essa nova concepção. O mundo do trabalho deveria ser
ajustado às mudanças do capital e conformar-se com a preeminência que ele adquiria na
vida social e econômica. As relações de produção eram modificadas com a construção
de um novo universo de códigos que seriam seguidos, onde o trabalho tornava-se cada
vez mais individualizado, mesmo fazendo parte do tumultuado e ruidoso contexto da
fábrica, onde parecia haver coletividade. O trabalho perdia significado para quem o
executava e o tempo tornava-se algo precioso e, ao mesmo tempo, o maior inimigo:
13
máquina do tempo era ajustada para controlar o mundo da fábrica e o cotidiano dos
trabalhadores; o relógio adquiria outro significado.
4
Neste contexto de transformações sofridas no mundo do trabalho, as
corporações também passaram a ser questionadas. As discussões em torno da
importância dos ofícios e do aprendizado estavam relacionadas às transformações de
ordem política e ideológica que cresciam com força desde o século XVIII. As críticas
ao papel das corporações de ofícios emergiram em um período de mudanças sociais e
políticas profundas e foram particularmente difundidas por Adam Smith após a
publicação de A Riqueza das Nações, onde o pensador esboçou sua crítica ao
aprendizado, formulando importantes argumentos contra a permanência das guildas na
Inglaterra.
5
Os embates de Smith contra o protecionismo e contra todos os tipos de
monopólio foram as bases de suas críticas ao aprendizado e à maneira como as
corporações exerciam seu controle sobre o desempenho das atividades profissionais,
impedindo qualquer tipo de concorrência, exercendo monopólio sobre determinados
mercados. Suas teses combatiam a continuidade de tais organizações na Inglaterra;
visto que, em sua opinião, elas encarnavam a oposição ao laissez-faire - preconizado
pelos filósofos do liberalismo -, antes que uma política econômica liberal se instalasse
de fato e de maneira definitiva na Inglaterra.
Essas críticas ecoaram em rios países e as corporações de ofícios, aos
poucos, iam se modificando ou adquirindo novas funções no mundo do trabalho.
Algumas foram extintas, mas é importante verificar que nas mais variadas regiões elas
exerceram uma função importante no estabelecimento dos elos de sociabilidade entre os
4
Sobre a mudança da concepção de tempo entre os trabalhadores ingleses no início da revolução
industrial ver: THOMPSON, Edward P. “Tempo, disciplina do trabalho e capitalismo industrial”. In:
Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras,
1998.
5
SMITH, Adam. Inquérito sobre a natureza e as causas da riqueza das nações. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkeian, 1980, vols.I eII.
14
trabalhadores, fornecendo as bases para a elaboração de novas formas de organização
que foram se dando ao longo do século XIX e no século XX. As associações e
sociedades de ajuda mútua - que se disseminaram tanto em países europeus quanto na
América recém-independente, a partir do primeiro quartel do XIX -, aproveitavam a
vivência das associações de outrora, ao mesmo tempo em que procuravam romper com
aspectos característicos do Antigo Regime presentes naquelas, adequando-se às
mudanças pelas quais passava o mundo do trabalho. Seguindo a laicização das esferas
sociais e políticas - que progressivamente se dava no Ocidente -, essas associações
também se tornaram laicas, desvinculando-se das obrigações religiosas e distanciando-
se das irmandades e confrarias.
Na fala de Jean-Pierre Rioux, “a associação colocou assim desde 1848 a
primazia do trabalho em todas as formas de experimentação social e em todos os sonhos
de um futuro melhor”.
6
Seus significados ampliavam-se e suas funções ultrapassavam o
interesse de simplesmente suprir as necessidades cotidianas dos trabalhadores:
somavam-se a ela os sonhos, os ideais, as utopias. Como símbolos de resistência e
combatividade ou como elementos apaziguadores da luta de classes,
7
elas eram
imbuídas da função de defender os interesses ligados à exploração do trabalho.
Protagonizaram as primeiras formas de resistência mais radicais e as manifestações
mais organizadas de reivindicação e luta dos trabalhadores: as greves. Defendidas pelos
sonhos socialistas e “incorporadas” à Internacional, elas carregavam em suas fileiras os
ideais de centenas ou milhares de trabalhadores. Suas funções estavam inevitavelmente
atreladas às relações de trabalho e ao mundo da produção, qualquer que fosse sua
posição ou aspiração política. Sua presença na sociedade se fazia pelas noções de
6
RIOUX, Jean-Pierre. “A associação em política”. In: Rémond, René (org.) Por uma História política. 2
a
ed. Rio de Janeiro: FGV, 2003, p. 117.
7
Idem. Segundo o autor, “[a associação] era também uma estrutura que garantia a paz social e a harmonia
política arruinando a luta de classes, como acreditavam, sem distinção, o cristianismo social, o
liberalismo e o solidarismo radical”, p. 117.
15
justiça e de defesa dos trabalhadores; encarnando o direito de associar-se, expressava as
garantias necessárias de defesa dos seus interesses frente às novas relações de trabalho e
de poder.
O estudo das associações não pode prescindir, no entanto, de cuidados teóricos
e metodológicos. A verificação da gênese da sociabilidade associativa, conservando
traços de continuidade com as associações que floresceram ao longo dos séculos, não
significa enquadrar o fenômeno, esquematizando sua análise. É preciso reconhecer as
rupturas que fizeram parte do longo e diversificado processo de formação de diferentes
“culturas associativas” ao longo do tempo. Urge que se identifiquem os vínculos que
essas “culturas” estabeleceram ao longo do tempo com a vida política, com os hábitos
sociais, com a vida religiosa e com determinadas relações de produção e de trabalho. É
necessário, enfim, que sejam apontados os traços de ruptura tanto quanto os de duração
e de continuidade no associativismo, distinguindo os elementos que marcaram a
sobrevivência e a mudança dessas entidades ao longo dos séculos.
***
Aos fins deste estudo interessa o desenvolvimento das primeiras formas de
mutualismo no Brasil, caracterizada pelas corporações de ofícios, objetivando analisar o
processo que levou à decadência dessas formas de organização do trabalho nas
primeiras décadas do século XIX.
Os ofícios estiveram presentes desde os primeiros tempos da colonização
portuguesa na América. A montagem de um aparato colonizador não prescindiu da
busca por formas de artes necessárias para a instalação dos colonos. Os primeiros
ofícios foram desenvolvidos por jesuítas e, aos poucos, foram sendo ensinados aos
16
nativos na tentativa de formar trabalhadores aptos para os serviços essenciais. Os
diários de bordo das primeiras expedições colonizadoras registraram a vinda de oficiais
religiosos, que eram imbuídos da responsabilidade de ensinar o ofício e, ao mesmo
tempo, de catequizar os índios.
8
Ao longo do tempo esses ofícios mecânicos passaram a apresentar formas
próprias de organização no meio urbano. Cidades como Bahia e Rio de Janeiro
acompanharam o lento desenvolvimento dessas associações em torno dos ofícios desde
o seiscentos, amparadas no modelo de organização das corporações ibéricas. Com a
intensificação das atividades comerciais e da vida urbana na região mineira no final do
setecentos, a cidade do Rio de Janeiro inflou sua importância econômica e política e,
uma vez que havia se tornado a capital, desde 1763, teve suas atividades multiplicadas,
passando a representar um atrativo para trabalhadores que vinham das mais diversas
regiões da colônia e da Europa. Os ofícios mecânicos também cresceram em
importância e o número de trabalhadores na cidade aumentava tanto quanto a população
urbana.
9
A importância adquirida pelos comerciantes fluminenses desde o século XVIII
– período em que se identificou a formação de uma elite mercantil no Rio de Janeiro
10
-
atingia todas as esferas da vida econômica e estimulava a diversificação de atividades
artesanais na cidade, exercidas por trabalhadores livres, libertos e cativos. Os mestres
de ofícios tornavam-se muitos deles também comerciantes, na medida em que tinham
autorização para abrir lojas ou vender suas obras nas ruas, preocupando-se com o
estabelecimento dos preços e com a qualidade da obra. Nas oficinas maiores, os
8
LEITE, Serafim. Artes e ofícios dos jesuítas no Brasil (1549-1760). Lisboa, Rio de Janeiro: Edições
Brotéria, Livros de Portugal, 1953, pp. 19-22.
9
Segundo os dados de Mary Karasch, em 1799 a população total da cidade do Rio de Janeiro estaria
estimada em aproximadamente 43.376 habitantes. Entre 1808 e 1821, a população total da cidade
aumentou de 60.000 para 79.321 habitantes. Dados fornecidos por: KARASCH, Mary. A vida dos
escravos no Rio de Janeiro. 1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 106.
10
FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de Grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça
mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.
17
mestres chegavam a ter vários aprendizes e uma estrutura bem maior de produção, de
compra e de venda de produtos, destacando-se entre os mestres artesãos da cidade.
Estas diferenças estabeleciam uma hierarquia no interior da própria mestrança: estes
podiam ter apenas uma oficina doméstica com poucos recursos, ou serem responsáveis
por fábricas maiores, movimentando o serviço de vários artesãos e detendo maior poder
e prestígio sócio-econômico.
Nas primeiras décadas do oitocentos, os debates na Europa acerca do
aprendizado e da manutenção das corporações de ofícios foram intensos. As polêmicas
se deram principalmente após a publicação da obra de Smith, em 1776, e mantinham
estreita relação com as mudanças políticas pelas quais passava o ocidente, a partir dos
eventos da Revolução Francesa e da Independência Norte Americana. Na França, o
aprendizado já havia sido alvo de críticas e foi abolido no final do XVIII. Na Inglaterra,
os debates se deram a partir das controvérsias político-filosóficas que envolviam os
argumentos a favor da extinção do aprendizado estatutário - que vigorou até 1814 e que
regulamentava as relações de trabalho ou, por outro lado, daqueles que viam nas
corporações uma importante utilidade social, destacando-se na formação dos
trabalhadores.
11
No Brasil, esses debates tomaram força após o processo de Independência,
desencadeado em 1822. Na Assembléia Constituinte de 1823 a polêmica em torno da
proibição das corporações de ofícios girava em torno das restrições ao livre comércio e
dos prejuízos causados à economia. Por outro lado, teve como astuto defensor José da
Silva Lisboa, futuro Visconde de Cairu, que se debruçou arduamente contra a extinção
das corporações, defendendo sua importância social - principalmente para os filhos de
famílias pobres - e a sua utilidade no processo de disciplinarização e de formação dos
11
ROTHSCHILD, Emma. Sentimentos Econômicos: Adam Smith, Condorcet e o Iluminismo. Rio de
Janeiro: Record, 2003.
18
trabalhadores. Esses debates foram encerrados com a dissolução da Assembléia
Constituinte e a outorga da Carta Magna pelo Imperador, em 1824, que ratificava a
extinção das corporações de ofícios no Império.
Qual teria sido a extensão da proibição dessas corporações na década de 1820,
consolidada pela Carta de 1824? Que interesses estiveram em torno da extinção das
corporações de ofícios na primeira metade do século XIX? Com o desaparecimento da
influência das irmandades sobre os ofícios, abriu-se espaço, a partir da cada de 1830,
para a proliferação de associações de auxílio mútuo,
12
que estavam alicerçadas na
prática mutualista desempenhada pelas antigas corporações. A importância dessas
entidades foi de tal monta que, a partir da metade do culo XIX, identifica-se um
progressivo aumento dessas associações mutualistas na Corte,
13
que passaram a
desempenhar inclusive novas funções políticas para os trabalhadores.
Nossa pesquisa teve como objetivo analisar o processo de decadência dessas
corporações de ofícios nas primeiras décadas do século XIX no Brasil, que teriam
levado à sua extinção legal em 1824. Para isso, buscamos analisar as relações
econômicas, políticas, sociais e culturais que elas mantiveram na cidade do Rio de
Janeiro, para entender os fatores que levaram à sua desagregação na primeira metade do
século.
No primeiro capítulo desenvolvi uma breve análise sobre o surgimento e
desenvolvimento das corporações de ofícios na Europa, a partir da Idade Média,
12
Ver BASILE, Marcello Otávio. Ezequiel Corrêa dos Santos: um jacobino na Corte imperial. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2001, p. 107. O autor apontou o surgimento de mais de cem sociedades em todo
o Império somente no ano de 1831, tendo a maioria delas surgido logo após a Abdicação. É importante
notar, que estas sociedades citadas pelo autor tinham fins diversos, não apenas de assegurar auxílio a
associados de uma mesma profissão.
13
Sobre as associações fundadas durante o período imperial no Rio de Janeiro, ver: CONNIFF, Michael.
“Voluntary associations in Rio, 1870-1945: a new approach to urban social dynamics”. Journal of
Interamerican Studies and World affairs, volume 17, Issue 1 (FB. 1975), 64-81. Um mapeamento das
diversas associações fundadas ao longo do século XIX foi apresentado por CARVALHO, José Murilo
de. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras,
1987, pp. 143-145.
19
analisando o surgimento da Casa dos vinte e quatro lisboeta e as relações de mestrança e
aprendizado que manteve na sociedade portuguesa do período, bem como a extensão de
sua atuação política através da figura do Juiz do Povo. Embora não tenha sido o nosso
objetivo esmiuçar as questões relacionadas às corporações medievais, não sendo
possível acompanhar todas as discussões historiográficas produzidas sobre o tema, fez-
se importante indicar a importância temporal de seu surgimento, para entender o que
permaneceu dessa estrutura de trabalho nos séculos seguintes e no mundo colonial. Na
seqüência, o mesmo capítulo aborda a organização dos ofícios mecânicos na América
portuguesa, a formação das irmandades embandeiradas, buscando ainda traçar o perfil
relativo à formação dessas corporações no Rio de janeiro e o seu crescimento na cidade
a partir dos setecentos. Procurei indicar neste capítulo as principais abordagens
historiográficas sobre o tema.
No segundo capítulo discuto os vínculos entre a organização corporativa dos
ofícios e as irmandades, buscando analisar ainda as relações sociais tecidas pelas
irmandades no meio urbano. Através da abordagem historiográfica sobre o assunto,
busquei averiguar os nexos estabelecidos entre Estado, Igreja e Sociedade no processo
de formação e desenvolvimento dessas associações profissionais na sociedade colonial.
O terceiro capítulo desenvolve o tema da Pedagogia do artesanato, analisando
as relações entre mestrança e aprendizado no interior das oficinas, a sua prática de
controle sobre o processo de produção e a importância pedagógica para a confiança que
o público estabelecia em relação à qualidade das obras. E é exatamente o processo
pedagógico e as discussões que levaram às suas mudanças o cerne da análise neste
capítulo, uma vez que mesmo após a extinção das corporações na Lei de 1824, essas
relações se mantiveram dentro das oficinas e fábricas.
20
No quarto capítulo, a análise sobre o pensamento liberal e sua posição acerca
do aprendizado e das corporações de ofícios na Europa foram a base para a discussão
sobre argumentos de Adam Smith a respeito do assunto; bem como para a análise dos
debates parlamentares ocorridos na primeira década do século XIX, na Inglaterra, em
torno da extinção das principais cláusulas relacionadas ao aprendizado no estatuto dos
artífices. Na segunda parte deste capítulo, a análise sobre as discussões parlamentares
na Constituinte de 1823, nos remeteu ao pensamento e obra de José da Silva Lisboa, e a
sua curiosa posição de defesa da permanência das corporações de ofícios nos debates da
assembléia. Considerando que José da Silva Lisboa foi um dos precursores do
pensamento de Adam Smith no Brasil, foi fundamental traçarmos os pontos de encontro
entre as idéias desses dois pensadores, a realidade em que viveram e a extensão dos seus
argumentos sobre o aprendizado nas oficinas, considerando ainda a decisiva influência
das idéias de Lisboa na vida política e econômica brasileira.
No último capítulo, finalmente, objetivei analisar os fatores que levaram à
decadência das corporações de ofícios e a sua progressiva extinção, na primeira metade
do século XIX. Retomando a historiografia que pesquisou o processo de reprodução da
economia colonial, busquei alicerçar as hipóteses que relacionam a ascensão dos
grandes negociantes no Rio de Janeiro com a perda da importância econômica e política
das corporações de ofícios. A ascensão deste segmento social é abordada mediante o
vínculo com o declínio das irmandades ligadas aos ofícios, bem como das relações
econômicas e políticas que mantinham com os segmentos profissionais das artes
mecânicas, na tarefa de assegurar, proteger e favorecer os irmãos no exercício de seu
ofício.
As principais fontes utilizadas para a pesquisa foram encontradas em fundos
documentais do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (AN), da Biblioteca Nacional do
21
Rio de Janeiro (BN), do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ).
Também os documentos de época impressos, tais como a legislação do período, bem
como os debates parlamentares da Constituinte de 1823, as obras de José da Silva
Lisboa e de Adam Smith, e as fontes secundárias impressas, foram fundamentais para o
desenvolvimento da pesquisa.
22
Capítulo 1
Mestres e aprendizes: o trabalho nas corporações de ofícios
1.1. Origem e desenvolvimento das corporações de ofícios
O surgimento das corporações de ofícios remete-nos às similares entidades
surgidas na Roma antiga. Na Lei Romana, corpora ou collegia eram as associações
voluntárias de indivíduos que compartilhavam a mesma profissão ou função na
sociedade.
14
As corporações foram extintas no período das invasões bárbaras e
voltaram a renascer por volta do século XII, a partir das mudanças vividas pelo sistema
feudal, recebendo diferentes designações nas várias regiões da Europa: mercadantia ou
collegia notariorum, na Itália; confréries, na França; guilds, na Inglaterra, Suécia e
Holanda; Innungen, Gilden ou Zünfle, na Alemanha; grêmios, na Espanha.
15
Segundo Pirenne, a origem das guildas medievais repousa, provavelmente, nas
associações religiosas da Antigüidade germânica, havendo registros delas no século IX,
no Império Carolíngio, bem como nos países anglo-saxões. Essas guildas funcionavam
como associações de proteção e defesa numa época em que o comércio era realizado
essencialmente com os estrangeiros e dependia do deslocamento dos mercadores para
regiões longínquas. Os mercadores viam no agrupamento em caravanas uma forma de
se defenderem e de se protegerem. Nessas caravanas eles escolhiam seus chefes,
aqueles que iriam liderar a viagem e decidiam que regras seriam seguidas pelo grupo,
uma espécie de regulamento. Todas as contribuições que eram feitas destinavam-se a
um fundo, onde o que era arrecadado era repartido entre todos e utilizado para os
14
MOKYR, Joel (ed.) The Oxford Encyclopedia of Economic History. Oxford, University Press, 2003,
vol. 2, pp. 8-11.
15
Idem.
23
interesses dos mercadores durante a viagem. Os vínculos de solidariedade eram criados
a partir da ajuda e proteção mútua, necessários para uma atividade que exigia grandes
deslocamentos e sujeição a inúmeros riscos. Uma vez estabelecidos durante o período
da viagem, esses vínculos de solidariedade continuavam vigorando quando os
comerciantes retornavam às suas cidades de origem, tornando-se um traço marcante
desta atividade profissional e sendo posteriormente seguida por outros grupos
profissionais.
16
Se inicialmente as associações de mercadores eram meras associações
voluntárias, no século XII elas adquiriram também o monopólio sobre o mercado
interno das cidades, revestindo-se de maior importância na esfera sócio-econômica
local.
17
Isso ocorreu porque os mercadores que o estavam associados ou atrelados a
uma corporação foram sendo paulatinamente isolados, ficando impossibilitados de
desempenharem suas atividades profissionais fora das guildas, ou mesmo de competir
com os profissionais vinculados a elas. Por outro lado, o poder das guildas também
aumentava, com o controle sobre a atividade profissional correspondente. Elas
passavam a restringir aos seus associados o estabelecimento de comércio fora das suas
cidades, isolando ainda mais aqueles que não faziam parte da corporação. Cada vez
mais essas associações passavam a ter prerrogativas no exercício da atividade dentro da
cidade, organizando regras que favorecessem os seus associados e que restringissem
gradualmente as atividades aos seus membros. Para tanto, foi importante o
reconhecimento que logo alcançaram junto aos poderes locais e nas cidades, revestindo-
se com o tempo de funções municipais importantes em algumas regiões da Europa.
16
PIRENNE, Henri. “European guilds”. In: SELIGHAN, E.R.A. e JOHNSON, A. (eds.). Encyclopedia of
the social sciences, vol. 7. N.Y: Macmillan, 1949, pp. 208-214.
17
Ibidem, p. 209.
24
Segundo Lopes Gonçalves,
18
as corporações teriam desaparecido da Europa por
volta do século IV, e “o lento retorno do povo à liberdade acaba por produzir no século
X o claro aparecimento das corporações, forma aperfeiçoada das associações mútuas de
outrora”. Dessa forma, as guildas e as organizações sociais e religiosas reuniam
fundamentalmente artesãos e comerciantes, atividades profissionais que tiveram papel
decisivo no processo de desenvolvimento comercial e renascimento das cidades.
Assim, ao mesmo tempo em que o desenvolvimento das guildas contribuía para a
ampliação e organização das atividades artesanais urbanas, o desabrochar das
corporações de ofícios via-se inevitavelmente atrelado ao processo de expansão das
cidades e do comércio.
A Revolução Comercial dos séculos XI e XIII esteve relacionada a vários fatores
que engendraram as mudanças da sociedade feudal: o fim das invasões; o crescimento
econômico; a diminuição da periculosidade das rotas terrestres, que se constituiu em
estímulo à retomada do comércio; a melhoria nas condições de alimentação e das
possibilidades de subsistência, que foram importantes fatores para a ocorrência de um
surto demográfico. A Revolução teve seu ponto alto com as cruzadas e a todo este
movimento esteve ligado o crescimento e desenvolvimento das cidades medievais.
19
Por sua vez, as mudanças decorrentes do crescimento demográfico e do
progresso agrícola possibilitaram a produção de um excedente alimentar que permitia
que os camponeses, bem como o restante dos trabalhadores, pudessem se dedicar a
outras atividades profissionais. Surgiam as condições favoráveis para o
desenvolvimento das cidades e da intensificação da vida comercial, ao mesmo tempo
18
GONÇALVES, Lopes. “As Corporações e as Bandeiras de Ofícios”. In: Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1952, vol. 206/ jan-mar,
pp.171-191.
19
LE GOFF, Jacques. Mercadores e banqueiros na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1991, pp.
7-9.
25
em que se assistia ao crescente deslocamento de mercadores e artífices para as
cidades.
20
Como foi apontado, a crescente imigração de aprendizes e trabalhadores à
procura de emprego nas oficinas dos burgos parece indicar que as condições de trabalho
tornavam-se mais atraentes nos ofícios urbanos do que no campo.
21
De qualquer forma,
o ambiente urbano fornecia condições de liberdade e autonomia ao servo e de
mobilidade social ao homem livre, que não poderiam ser comparadas às da vida rural; e
nas cidades um número cada vez maior de pessoas via-se disposta a integrar as guildas:
Estas [guildas urbanas], tal como as guildas de mercadores de rios
tipos que apareceram em diversas cidades entre o século X e o século
XII, eram associações profissionais que procuravam monopolizar um
ramo do comércio e promover os seus interesses. Todavia, as guildas
de ofícios tiveram uma utilidade e uma vida mais longa que as guildas
de mercadores, que passado algum tempo se fundiram no governo de
mercadores que constituía a comuna, ou degeneraram em conluios de
grandes homens de negócios e de pequenos comerciantes.
22
Com o passar do tempo, os trabalhadores urbanos passaram a seguir o exemplo
dos comerciantes e a formarem entidades similares, que se reuniam com base em
diferenciação profissional ou distinguindo-se por ofício a fim de se protegerem. Suas
relações eram estabelecidas igualmente por nculos de solidariedade e de auxílio
mútuo, onde todos contribuíam para a proteção e o amparo de todos os associados.
Estas corporações
23
reuniam artesãos e comerciantes, que em diversas regiões foram
20
LOPEZ, Robert S. A Revolução Comercial da Idade Média 950-1350. Lisboa: Editorial Presença,
1976, pp. 67-68.
21
Ibidem., p. 137.
22
Ibidem, pp. 137-138.
23
Segundo a definição de Joel Serrão, em seu dicionário: “A corporação representou em Portugal a
necessidade de solidariedade de profissão e das comuns necessidades de todos os mesteirais. Pelo
regimento se fixavam regras orientadoras da profissão a que ficavam submetidos os respectivos
26
unidos mediante a interferência de irmandades religiosas, que desempenharam
importante papel de auxílio social e econômico a partir do século XI.
24
No entanto,
nota-se uma diferença fundamental entre as guildas de mercadores e de ofícios fundadas
naquele período: as primeiras aceitavam seus membros em base de igualdade, mas
aceitavam a individualização dos ganhos; enquanto as corporações de ofícios reuniam
“patrões e empregados, mestres e aprendizes, como parceiros desiguais, mas
esforçavam-se por assegurar a todos os membros iguais oportunidades de progresso e
êxito.
25
Para Le Goff, assim nasceu também o intelectual da Idade Média,
26
como um
dos homens de ofício que se instalam no meio urbano em crescimento, fazendo parte de
uma nova divisão do trabalho. E, neste caso, ao surgimento dos intelectuais teria
correspondido o surgimento das Universidades Medievais e, com ela, o surgimento das
corporações de ofícios. Ambas nasceram sob a ambigüidade da liberdade e/ou do
privilégio, no entanto, a Universidade “não tem, como as demais corporações, o
monopólio do mercado local. O seu terreno é a Cristandade”.
27
Assim como as demais
corporações, as universidades também se submetiam a estatutos que determinavam as
obrigações religiosas, tais como obras de piedade, caridade, devoção para os
respectivos santos padroeiros - fosse dos estudantes, dos médicos, etc. -, observância de
cerimônias religiosas e procissões. Assim, encontrava-se frequentemente na imagética
mesteirais após aprovação da Coroa ou do Senado Municipal definindo o que mais interessava dentro
do ponto de vista da técnica, o regimento prescrevia também os princípios disciplinadores respeitantes à
ascensão na escala hierárquica. Esta regulamentação das atividades profissionais e sua organização
corporativa são evidentes pelo final do século XV.” Ver: SERRÃO, Joel. “Corporação”. In: Pequeno
Dicionário de História de Portugal. Porto: Figueirinhas, 1993.
24
Pirenne, H. Op. cit., p. 209.
25
Lopes, R. Op. cit., p.138.
26
LE GOFF, Jacques. Os Intelectuais na Idade Média. Lisboa: Gradiva, 1983.
27
Ibidem, p. 76.
27
universitária a tendência corporativa para ligar intimamente o mundo sagrado ao mundo
profano dos ofícios”.
28
A influência das irmandades é outro interessante aspecto a ser destacado. A
esfera religiosa exerceu um papel preponderante na vida das corporações de ofícios
durante séculos. Contudo, essa influência não se dava apenas em torno da defesa do
ofício e de seus membros, mas também nos valores embutidos ao universo destes
trabalhadores, relacionados à moral e ao exercício da “ética” na profissão, à execução
de obras com qualidade e do respeito ao comprador. Desta forma, as guildas marcaram
suas posições favoráveis à produção de bons artigos a baixos preços, o que conservaria
a qualidade e a procura por seus produtos, contribuindo para perpetuar os seus negócios.
Assim, “o caráter religioso e patriarcal das guildas e a pressão do que era
essencialmente um mercado de consumidores constituíam influências que se reforçavam
mutuamente, sendo inútil discutir qual era mais forte.
29
Mesmo em relação às corporações que se formaram fora da Europa a única
característica que parece ter sido ao mesmo tempo única e universal foi a do
aprendizado, cujo principal objetivo era a transmissão da experiência do artesão-mestre.
As corporações européias parecem ter se diferenciado em relação às demais por conta
de sua autonomia, elas caminhavam fora da hierarquia, constituindo-se em associações
autônomas que negociavam com o governo o seu reconhecimento, mas rejeitavam a
sujeição à autoridade ou ao mando do poder público.
30
Apesar das diferenças entre as
corporações surgidas nas diversas regiões da Europa, a sua estrutura seguia os mesmos
28
Ibidem, p. 85.
29
Lopes, R. Op. Cit., p. 140.
30
Idem.
28
princípios e a mesma divisão interna: os trabalhadores eram divididos por três
categorias, a saber: mestres, aprendizes e operários (ou companheiros).
31
No início dos tempos modernos as corporações de ofício representavam uma
importante forma de proteção e defesa do trabalho, forma central de organização dos
artesãos dos mais diversos ofícios, elemento decisivo para a organização das novas
relações de trabalho que se estabeleciam na Europa nos séculos de transição para o
capitalismo. Foi a partir do crescimento das cidades e das necessidades criadas no meio
urbano que as corporações foram tomando vigor e incorporando seu papel de proteção e
de defesa do trabalho e dos trabalhadores. Tiveram importante contribuição no processo
de desenvolvimento das cidades e expansão comercial, sendo um elemento importante
na formação de trabalhadores. Com o passar do tempo, o rigor com a formação dos
artesãos e do exercício dos mestres foi se tornando cada vez maior.
Estão formadas as corporações, entidades em que aos propósitos de
mutualidade é acrescida a função de órgão responsável por rigorosa
fiscalização do trabalho, com a hierarquização tão do espírito
medieval, dos trabalhadores. Mas no princípio ainda não existe esse
rigor. (...) Essa evolução para a rigidez, consagrada nos regimentos de
ofícios, só terminou no século XVI.
32
É preciso destacar, no entanto, que as corporações desempenhavam um papel
fundamental na manutenção dessa hierarquia profissional, assegurando a autoridade do
mestre junto aos demais artesãos. Não se constituíam em estruturas que primavam pela
igualdade entre seus membros e estavam longe de garantirem que não houvesse
exacerbação dos mestres na cobrança em relação ao trabalho dos aprendizes. Contudo,
31
BONNASSIE, Pierre. Dicionário de História Medieval. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1985,
p.60.
32
Ibidem, p. 172.
29
mantinham uma estrutura de trabalho que garantia a manutenção de vínculos entre os
artesãos, vínculos esses relacionados à transmissão do conhecimento e ao bom
desempenho profissional, onde a confiança nos saberes e práticas de ambos seriam as
únicas garantias para o reconhecimento de suas obras para regiões além de suas cidades.
Em Portugal, no século XIV, se estruturou uma organização peculiar dos
ofícios junto ao domínio local. Criada como órgão central dessas corporações, em
1383, foi inaugurada, em Lisboa, a Casa dos vinte e quatro. Essa organização reunia
vinte e quatro homens, dois mestres de cada ofício, e tinha a incumbência de fiscalizar a
administração municipal, tomando parte dos interesses do povo. Cada ofício era
representado por uma Bandeira, tendo a referida Casa doze bandeiras definidas e
representadas pelos mestres. A Casa dos vinte e quatro funcionou como importante
instituição na vida social, econômica e administrativa lisboeta, se tornando o “supremo
local dos ofícios”. Segundo Lopes Gonçalves, o colégio passou a ser uma câmara
corporativa junto a vereação municipal, “efeito do aparecimento de freqüentes questões
de alto interesse profissional na administração do município.”
33
Segundo esta organização, os artesãos eram divididos em vinte e quatro
corporações, distribuídos de acordo com o ofício que desempenhavam em sua cidade.
Cada uma delas tinha a incumbência de eleger um juiz. Era a reunião desses juizes
eleitos que formava a Casa dos vinte e quatro. Tais juizes elegiam ainda um presidente,
denominado juiz do povo, e um escrivão e ambos tinham assento no senado. Seus
estatutos e regulamentos (compromissos), embora fossem feitos de forma autônoma e
33
Ibidem, p.180. Lopes Gonçalves informa que não é conhecido o regimento da Casa dos vinte e quatro
de Lisboa, tendo permanecido intacto o da Casa de Guimarães, cujo regimento deveria ser igual ao
das outras casas, tirando o detalhe de possuir apenas doze mestres, pp. 181-182.
30
independente, poderiam ser reconhecidos junto ao poder público local e seguidos
pelo grupo mediante a aprovação do rei.
34
O Juiz do Povo se destacou como uma figura de especial função política nas
cidades portuguesas, especialmente em Lisboa. Era o presidente da Casa do vinte e
quatro e eleito no Senado da Câmara, não tendo o seu cargo vínculo por nomeação ou
hereditariedade. Era escolhido por representação das vinte e quatro guildas que
constituíam a Casa, tendo acesso direto à Coroa, da mesma forma que os ministros do
reino. Tornou-se importante articulador e representante político dos ofícios mecânicos e
dos interesses das corporações de artesãos, tendo tido papel de destaque em momentos
políticos importantes do país e opinando sobre assuntos de interesse econômico,
especialmente em âmbito regional.
35
Segundo Joel Serrão, entre as múltiplas
obrigações do Juiz do Povo, cabia-lhe lembrar ao rei quilo que era conveniente para o
bem comum, convocar as reuniões e, como presidente, cabia-lhe guardar e zelar pelo
bem da Casa dos Vinte e Quatro, “trabalhando noite e dia no bem do povo”, tendo ainda
a função de apresentar ao Senado da Câmara todos os casos que necessitassem de
providências.
36
A emergência das corporações e da representação através da Casa dos vinte e
quatro significou uma importante mudança política no sistema representativo,
inicialmente em Lisboa, se espalhando posteriormente para as outras cidades
portuguesas. Se não era possível alterar uma estrutura secular de composição da
Câmara, definida pelas três ordenações, a incorporação desses juizes do povo aumentou
34
FAZENDA, José Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro, As Bandeiras dos Ofícios. Revista
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t. 86, v. 140, pp. 152 –158. Informa que a Casa dos
vinte e quatro foi extinta em Portugal por Decreto, em 31 de maio de 1834.
35
BERNSTEIN, Harry. O Juiz do Povo de Lisboa e a Independência do Brasil: 1750-1822, ensaio sobre
o populismo Luso-brasileiro. In: KEITH, Henry H. e EDWARDS, S. F. (Orgs.) Conflito e continuidade
na sociedade brasileira ensaios. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1970, pp. 226-265.
36
Serrão, Joel. Op. Cit., ver o verbete “Juiz do Povo”, p. 183.
31
a importância das corporações junto à vida administrativa dos municípios onde
atuavam.
37
Com o passar do tempo foram sendo fundados colégios desse tipo em outros
municípios de Portugal, sendo que com doze mestres. Vários conflitos envolveram
essas Casas e as vereações municipais na atribuição que essas instituições
desempenharam de fazer petições junto às câmaras. No entanto, o seu prestígio e poder
político podem ser atribuídos ao crescente aparecimento de questões relacionadas aos
ofícios e interesses profissionais na vida administrativa dos municípios, imbuindo os
mestres de maior reconhecimento inclusive junto à realeza, que precisava cada vez mais
do apoio popular.
Ao crescente papel político das corporações correspondeu um maior controle
sobre as atividades dos mestres. Esse controle foi se tornando cada vez mais intenso
por parte do governo, que se aproveitava das organizações de assistência e solidariedade
profissional ou de moradias instituídas para exercer a fiscalização sobre a atividade
mesteiral.
38
Ao mesmo tempo em que os mestres passaram a ser representados junto as
vereações, estas aumentavam sua fiscalização e controle sobre as atividades mecânicas
controlando os produtos, os preços e as condições de fabricação dos artigos. Portanto, a
inclusão dos mestres nas representações tinha também um papel controlador sobre as
corporações:
A participação camarária dos mesteres tinha uma função de controle
social evidente: prevenir a permeabilidade desta gente miúda, vil, e
mecânica às conjunturas adversas, que podiam descambar em
agitação. No caso de Lisboa isso também se mostrava como resultado
37
Gonçalves, Lopes. Op. cit.,, pp. 179-180.
38
MAGALHÃES, Joaquim Romero. “A forte presença dos mesteres”. In: MATTOSO, Jo (dir.).
História de Portugal: o alvorecer da modernidade. Lisboa: Editorial Estampa, 1993.
32
de precauções políticas e sociais. Não convinha nada que se abrisse
caminho a amotinações e manifestações de desagrado pelo que o rei e
os poderosos iam fazendo.
39
Essas preocupações começaram a se evidenciar na letra da Lei a partir do século
XVI, quando a prática dos ofícios deixou de ser exercida exclusivamente pelos
costumes e tradições e passou a ser oficializada através de leis escritas. Apesar de
algumas corporações terem registrado seus regimentos ou compromissos em período
anterior, a partir do século XVI a organização legal dos ofícios tornou-se obrigatória,
dando-lhes maior solidez.
40
Elas passaram a ter que fazer a escolha de um padroeiro ou
patrono e agremiarem-se a irmandades ou confrarias, sendo consideradas a partir de
então entidades embandeiradas, recebendo a Bandeira dos Ofícios.
Nas Corporações de Ofícios mecânicos, com representação na ‘Casa
dos 24’ de Lisboa, havia ofícios embandeirados: Bandeira de S.
Miguel, grupo de ofícios de que os sombreiros (chapeleiros) eram a
cabeça ao menos algum tempo; Bandeira de S. Jorge, de ferreiros e
afins; de S. Crispim, de sapateiros e afins; de S. José, de carpinteiros
(e pedreiros), etc. Na bandeira estava pintado o santo, patrono de cada
qual. Junto com as bandeiras havia as confrarias, de sentido mais
restrito Bandeira, grupo de ofícios; Confraria, de um ofício e tinha
o fim primordial de beneficência e auxílio mútuo (incluindo a
princípio hospitais), e também cada qual com o seu santo patrono
pintado na bandeira, porque as confrarias também possuíam as suas
próprias.
41
39
Ibid, p. 312.
40
Gonçalves, L. Op. Cit, p. 172.
41
Leite, S.Op.Cit., p. 28.
33
Segundo Franz-Paul Langhans,
42
em estudo sobre as corporações de ofício em
Portugal, somente no final do século XV começaram a aparecer documentos escritos da
vida corporativa. Nesta época, por todo o velho continente as corporações tinham
atingido seu apogeu. Segundo ele, antes do último quartel do século XVI poucas
profissões lisboetas possuíam regimento escrito, e as mais antigas leis que se conhece
relacionadas a mestrança são do reinado de D. João I e foram inseridas nas Ordenações
Afonsinas. Contudo, somente no século XVI a organização dos ofícios tornou-se mais
definida, tanto em sua estrutura quanto nas suas funções, ao mesmo tempo em que a
participação dos mestres na vida pública tomava vulto em municípios de todo o país.
Até que se consolidasse a organização dos regimentos, os ofícios desprovidos de
estatutos tinham suas normas regidas pelos costumes, atos gios ou pelas posturas
municipais.
43
No mesmo estudo, o autor questionou que elementos teriam contribuído para a
necessidade de organização dos ofícios a partir do século XVI, quais teriam sido as
razões para que somente a partir daquele momento houvesse uma preocupação do
governo com a organização jurídica das corporações. Sua hipótese foi de que até o final
do século XV a economia urbana portuguesa teria sido pouco complexa e a expansão
ultramarina teria agido como um elemento modificador dessa organização econômico-
social vigente. Isso porque, até então, cada profissão contava com um pequeno número
de praticantes, formados na rotina do aprendizado dentro da própria cidade ou na
localidade onde viviam. Com o crescimento urbano apareceram artífices de outras
regiões, ampliando a oferta de mão-de-obra e alargando o consumo. Diante desse
contexto de mudanças a disciplina tradicional também teria se revelado insuficiente para
manter as regras do ofício com o mesmo rigor, assim como se modificariam também as
42
LANGHANS, Franz-Paul. As corporações de ofícios mecânicos: subsídios para a sua história. Lisboa:
Imprensa Nacional de Lisboa, 1943, 2 vols.
43
Ibid, pp. XIII-XIV.
34
relações entre os mestres e entre os diferentes ofícios. Tentando restaurar a ordem na
organização dos ofícios do reino foram organizados os estatutos profissionais a partir do
quinhentos, com o intuito de reestruturar o aprendizado de maneira que as mudanças
políticas pelas quais se passava não desorganizassem as relações de trabalho.
44
A partir de 1572 foi organizada a estrutura jurídica da vida corporativa
portuguesa. Passavam a ser regulamentadas as questões a respeito da assembléia dos
ofícios e das eleições, bem como foram estabelecidos os critérios para o fornecimento
da carta de exame, documento que daria ao mestre a aptidão para o exercício da arte e
para o estabelecimento de seu ofício por conta própria, tornando-o apto a formar
aprendizes e empregar obreiros em sua loja. De posse da carta de exame, o profissional
passava a ser designado como um mestre de tenda. Definiam-se com maior precisão as
funções desempenhadas por cada profissional e os limites para a execução de cada uma
das atividades, bem como estabeleciam-se as distinções entre os oficiais, mestres,
obreiros e aprendizes:
oficial é todo aquele que exerce o ofício; oficial examinado o que tem
aprovação no exame; mestre de tenda chama-se o oficial examinado
com estabelecimento próprio; obreiro ao que trabalha numa tenda de
outrem, sob as ordens do mestre, sem ter sido examinado e recebendo
salário.
45
Quanto ao aprendizado, as regras continuavam sendo estabelecidas pelos
costumes, tornando-as distintas de acordo com as leis e tradições de cada município.
Sobre o desempenho profissional, fixavam-se normas relativas às matérias-primas a
serem empregadas na produção da obra e à qualidade exigida do produto, prevenindo
44
Ibid, pp. XIV-XV.
45
Ibid, pp. XX-XXI.
35
ainda a concorrência entre os ofícios e os produtos e tomando medidas relativas à
proteção contra as fraudes na execução das obras.
46
Essa organização jurídica dos ofícios feita em 1572 foi a que esteve em vigor até
o século XVIII. Até este período algumas alterações foram introduzidas, fruto das
necessidades locais de que uma ou outra norma se modificasse para adequar-se às
condições regionais e aos tempos, mas a essência da reforma se manteve até o
setecentos, quando os novos ventos políticos cuidariam de reestruturar a vida jurídica
dos ofícios.
As Bandeiras de Ofícios tiveram uma organização definitiva em Portugal no
século XVIII, quando o juiz do povo Clemente Gonçalves dirigiu representação à
Câmara a fim de que ela solicitasse ao rei uma reforma da Casa dos vinte e quatro.
Essa reforma teria por fim a distribuição das corporações por bandeiras e a organização
da representação dos respectivos ofícios na Casa. Assim, a partir de 1771 as bandeiras
passaram a ser minuciosamente organizadas, definindo-se com precisão os ofícios
ligados a cada uma delas.
47
Cada uma das Bandeiras representava um padroeiro e tinha
a responsabilidade de cuidar dos festejos e procissões da cidade ligadas ao respectivo
santo.
Harry Bernstein, em seu estudo sobre o Juiz do Povo, destacou que em mais de
450 anos de existência a Casa manteve, perdeu e recuperou uma vasta gama de poderes,
geralmente ligados aos aspectos sócio-econômicos e à liderança política, que se
constituiu como uma marca constante, especialmente nos momentos mais conflituosos e
de afirmação política do país. Assim, eles enfrentaram a Coroa em defesa de seus
interesses, desempenhando ainda fundamental papel nas cerimônias e rituais públicos,
especialmente os religiosos. O Juiz do Povo apresentou, em 1788, um Mappa Geral das
46
Ibid, p. XXI.
47
Gonçalves, L. Op. cit, pp. 183-185.
36
Corporações de Lisboa, onde delineava com precisão os mestres, aprendizes e
jornaleiros e as respectivas bandeiras para as quais trabalhavam. Por este motivo e por
sua ousadia política, o juiz foi preso pelo Senado, tendo obtido liberação após apelo
feito pela Casa dos Vinte e Quatro diretamente ao Rei.
48
1.2. Mestres e aprendizes no Brasil
Na América portuguesa foi fundada uma entidade similar à Casa dos vinte e
quatro, sem que tivesse, no entanto, esta denominação. Segundo Lopes Gonçalves, a
mais antiga referência da qual se tem notícia é de 1641, com a eleição de doze mestres
na Câmara municipal de Salvador. Outra referência a isso indica, em 1624, um pedido
da Câmara do Rio de Janeiro ao rei, através do ouvidor Joan de Sousa Cardenas, para
que fossem eleitos dois mestres, “por haver nesta cidade muito crescimento de gente e
de pobreza da terra, que de tudo tem necessidade”.
49
Mas a crescente participação dos
mestres nos assuntos da câmara foi a razão de sua extinção em 1713, devido à sua
atuação junto aos assuntos de interesse do povo, que os fazia opinar “acerca dos preços
dos gêneros em geral, dos impostos, e a lutar pelos direitos dos brasileiros (...)”.
50
Após
a dissolução da organização dos mestres, permaneceram como representantes dos
artesãos apenas o Juiz e o Escrivão do ofício.
48
Bernstein, Harry. Op. Cit., pp. 227-228.
49
Auto de Correição dos Ouvidores do Rio de Janeiro, Prefeitura do Distrito Federal, vol. I, pág. 6.
Apud. Lopes Gonçalves, Op. cit, p. 191.
Quanto à existência de entidade similar à Casa do Vinte e Quatro no Brasil, Lopes Gonçalves contraria
autores como Vieira Fazenda, que afirmou não ter existido Casa do Vinte e Quatro no Rio de Janeiro
nem em cidade alguma do Brasil. Gonçalves afirma que existiu, mas sem esta denominação. Cita a
vereação de 10 de setembro de 1625, como o mais antigo documento baiano que se conhece sobre o
assunto. Assim como as demais Casas de Portugal, com exceção de Lisboa, a da Bahia também tinha a
representação de apenas doze mestres. Ele atribui isso ao pequeno mero de artesãos que existia na
cidade.
50
FLEXOR, Maria Helena. “Ofícios, manufaturas e comércio”. In: SZMRECSÁNYI, T. (org.) História
Econômica do Período Colonial. São Paulo: ABPHE/HUCITEC, 1996, pp. 173-194.
37
Segundo Vieira Fazenda, na colônia os operários não tomavam parte nas
câmaras municipais, como era praxe na Casa dos vinte e quatro lisboeta. A
representação era exercida por parte dos oficiais mecânicos que se reuniam junto aos
“homens bons” e ao povo, sendo ouvidos nos negócios importantes, por intermédio dos
mestres.
51
Segundo o autor, “na correcção, feita em 1624 pelo ouvidor desembargador
João de Sousa Cadenas, prova elle que a Camara do Rio de Janeiro pedira licença ao rei
para o povo poder eleger dous mesteres” e ainda que o governador José da Silva Paes,
em 1736, dirigiu-se à Câmara “procurando saber como nella se costumava ouvir o povo.
A Camara respondeu que por meio de procuradores da nobreza, mercancia e
MECHANICA, eleitos neste Senado”.
52
Com base nos estudos de Vieira Fazenda, Heitor Ferreira Lima
53
também
argumentou não ter existido a Casa dos vinte e quatro no Brasil, reconhecendo,
entretanto, o papel de destaque exercido pelos ofícios mecânicos ao longo do período
colonial: “Os ofícios mecânicos, no entanto, eram ouvidos nos negócios importantes,
por intermédio dos misteres, unidos aos homens bons e ao povo”.
54
Segundo ele, na
colônia os vereadores eram eleitos pelo “povo” e a Câmara compunha-se dos “juizes da
terra”, três vereadores e um procurador. Assim, descreveu a existência de Bandeiras nas
principais e mais populosas cidades da colônia no século XVIII, apontando a extrema
importância tomada pelas bandeiras nas procissões e festejos públicos:
A Câmara do Rio de Janeiro, em 1704, ordenou que para as procissões
os mercadores dessem a figura de Davi e duas tourinhas, os ferreiros,
51
Fazenda, José Vieira. Op.cit. p. 155.
Sobre as artes e ofícios no século XIX, ver: FILHO, Adolfo Morales de los Rios. O Rio de Janeiro
Imperial. 2
ª
ed. Rio de Janeiro: Topbooks/ UNIVER CIDADE, 2000.Segundo o autor, “Os juízes e
escrivães faziam parte do grupo de personalidades chamadas homens bons, ou bons do povo; o que
quer dizer, de categoria profissional, moral ou social”, p. 306.
52
Fazenda, J. V. ibid, p. 155.
53
LIMA, Heitor Ferreira. Formação Industrial do Brasil: Período Colonial. Rio de Janeiro: Fundo de
Cultura, s/d.
54
Ibid, p. 251.
38
a de São Jorge, os sapateiros, o Dragão, os alfaiates, a Serpente, os
pescadores e arrais de rêde, as lanças. E que não sejam coisas ridículas
advertia a postura municipal. Aos que faltassem ou se
apresentassem com ridicularias, multa de seis mil réis.
55
Dentre os primeiros registros de oficiais mecânicos no período colonial estão
aqueles que vieram com as primeiras expedições para auxiliar na montagem do aparato
para a colonização, chegando em maior abundância a partir de 1549. Os oficiais
vinculavam-se à Companhia de Jesus e os ofícios eram de responsabilidade dos jesuítas.
Na Companhia eles se dividiam em duas espécies de ofícios: os ofícios domésticos
comuns e os ofícios mecânicos alfaiates, sapateiros, pedreiros, barbeiros, ferreiros,
torneiros, carpinteiros ou entalhadores, livreiros, encadernadores, agricultores,
enfermeiros, cirurgiões, construtores navais e outros. Tais ofícios eram desempenhados
inicialmente por irmãos da Companhia, padres que com o passar do tempo
preocuparam-se em doutrinar os índios e ensiná-los alguma arte.
56
Consta que em 1570 um grupo de jesuítas teria vindo para a América
portuguesa, desempenhando ofícios próprios: um roupeiro, um tecelão, um pintor, um
ourives, um bordador, um marceneiro, um carpinteiro e dois alfaiates e entre os oficiais
seculares encontravam-se dois carpinteiros, quatro pastores, três tecelões um sapateiro,
quatro trabalhadores, um teleiro e dois peleiros. Quase um século depois, em 1660,
Vieira pedia que fossem enviados “Irmãos coadjutores oficiais, principalmente pintores,
alfaiates, sapateiros, ferreiros, carpinteiros e pedreiros.”
57
55
Ibidem, p. 253. Heitor Ferreira Lima destacou que para custear as procissões realizadas no Rio de
Janeiro pelas Bandeiras dos ofícios, os mestres com loja aberta deveriam pagar uma jóia de 1$ 920 ao
entrarem para a Irmandade e 640 réis anualmente., sob pena de ter sua loja fechada por determinação da
irmandade do ofício.
56
LEITE, Serafim. Artes e ofícios dos jesuítas no Brasil (1549-1760). Lisboa, Rio de Janeiro: Edições
Brotéria, Livros de Portugal, 1953, pp. 19-20.
57
Idem.
39
Para que se desse a doutrinação e formação para o trabalho foram montados
seminários – responsáveis pela formação missionária – e escolas de catequeze e de artes
e ofícios, que eram responsáveis pela cristianização e pelo ensino e formação para o
trabalho. Os jesuítas cuidavam para que os índios livres aprendessem ofícios. Isso
ocasionava, por vezes, alguns problemas: depois de aptos para exercerem o ofício, esses
índios despertavam o interesse de moradores e governantes locais, que tentavam aliciá-
los e acabavam, dessa forma, desorganizando as aldeias. Somente em 1727, o
governador do Maranhão determinou que “nas Aldeias de índios houvesse sempre
alguns que fossem oficiais ferreiros, tecelões, carpinteiros e oleiros, e que não pudessem
ser tirados delas por nenhuma pessoa (...) sem ordem dos padres.”
58
Os ofícios organizavam-se, portanto, atrelados ao aparato colonizador português,
visando atender às necessidades da estrutura colonial. Embutido ao ideal doutrinário e
cristianizador colava-se o objetivo de organizar o trabalho e formar os nativos para os
ofícios “necessários” ao estabelecimento desse aparato. Dessa forma, a mesma
hierarquia dos ofícios existente nas corporações européias, especialmente a portuguesa,
foi adaptada para a organização dos ofícios no Brasil: ao longo do aprendizado do ofício
os artesãos eram denominados aprendizes; o artesão que obtinha perfeita preparação
técnica era denominado oficial; aqueles que conduziam e ensinavam os serviços eram
chamados mestres.
Ainda que a escravidão desse um caráter distinto às associações de mestres
constituídas por homens livres na colônia, dado que a maior parte da mão-de-obra
existente era cativa, foi montada uma organização do trabalho bastante similar àquela
existente nos municípios lusitanos. Assim,
58
Ibidem, pp. 23-25.
40
nas câmaras municipais um dos cargos eletivos era o ‘Pelouro dos
Mesteres’. Descreve-se que em 1611, quando a estátua de S. Inácio
chegou a Pernambuco, foram ostentados também os homens do
trabalho manual na festa de recepção. (...) Logo a seguir aos soldados
(...) iam os ‘oficiais mecânicos’ com as suas bandeiras e as mais
confrarias de Pernambuco, com vestes também de seda e os seus
diversos distintivos, e com as suas 18 cruzes de prata e oiro.
59
Alguns estudos indicam o início dessa organização corporativa na colônia em
período posterior. Exemplo disso pode ser apontado no estudo sobre o Rio de Janeiro
setecentista, no qual Nireu Cavalcanti afirmou que as Bandeiras dos Ofícios (ou
Irmandades embandeiradas) surgiram no Rio de Janeiro no século XVIII, articulando-se
ao Estado através das Câmaras locais. Segundo o autor, cada ofício mecânico tinha sua
atividade vinculada a uma irmandade, que controlava o processo de formação dos
artesãos, de produção e de comercialização das obras e tudo isso era registrado e
controlado pelas câmaras municipais.
60
Com a organização das Bandeiras de ofícios ocorrida em Portugal, a partir do
século XVIII, as irmandades embandeiradas do Brasil também sofreram novo
ordenamento. Para este período, Nireu Cavalcanti identificou seis Bandeiras de ofícios
em funcionamento: Irmandade do Patriarca São José (pedreiros, carpinteiros e outros
ofícios anexos), Irmandade do Glorioso Mártir São Jorge (ferreiros, serralheiros e outros
ofícios), Irmandade do Senhor Bom Homem (alfaiates), Irmandade do Glorioso Santo
Elói (ourives de ouro e prata), Irmandade de São Crispim e São Crispiniano
(sapateiros), Irmandade da Gloriosa Virgem Mártir Santa Cecília (músicos).
61
59
Ibidem. pp. 27-28.
60
CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista: a vida e a construção da cidade da invasão
francesa até a chegada da Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, pp. 208-209.
61
Ibidem, p. 209.
41
Estudos sobre os ofícios em São Paulo mostram que não houve naquela região
organização dos artesãos em corporações, associações ou irmandades, se diferenciando
de regiões como Salvador e Rio de Janeiro. Isso não significa que inexistissem oficiais
mecânicos exercendo atividades correlatas ali, mas não havia organização e
representação de mestres na Câmara ou distribuição de ofícios em bandeiras.
62
De
acordo com Maria Helena Flexor, isso se explica pelo “espírito paulista de não se fixar
ao solo”, que teria representado um empecilho ao desenvolvimento de uma acelerada
infra-estrutura urbana tal qual ocorreu na Bahia -, dificultando a organização dos
ofícios mecânicos em corporações ou irmandades. No entanto, embora não houvesse
em São Paulo uma representação dos artesãos, eles tinham participação ativa como
oficiais do Senado ou como funcionários, “gozando do mesmo prestígio e privilégios
que os demais componentes da sociedade paulista.”
63
Curiosamente, mesmo não tendo
se organizado em confrarias, os artesãos adotaram os mesmos santos protetores
designados em Portugal, participando das festas e procissões dos padroeiros dos
respectivos ofícios.
64
Segundo o estudo demográfico de Elizabeth Rabello, o peso dos ofícios manuais
na vida social e econômica de São Paulo era muito pequeno, dado que a predominância
das atividades estava na agricultura. A análise estatística que desenvolveu mostrou que
havia em algumas vilas um grande número de pessoas que não estava presa à terra e que
sequer exercia algum ofício. Assim, o alto índice de fogos presos à atividade agrícola,
seguia-se daqueles que se denominavam “carentes de recursos”; e na seqüência vinham
aqueles que se declaravam pobres, sem nada possuir, mendigos, dependentes de
62
Flexor, Maria Helena. Op. cit, pp.174-175.
63
Idem, p. 176.
64
LIMA, Heitor Ferreira. Op. Cit., pp. 251-252. Segundo o autor, as principais e mais populosas cidades
da colônia apresentavam a presença de bandeiras dos ofícios no século XVIII, como foi o caso de São
Paulo. Para a análise do caso de São Paulo, Ferreira Lima se baseou nas descrições de Afonso de
Taunay sobre a História da cidade de São Paulo no século XVIII, considerando que, apesar das
Bandeiras dos Ofícios não terem sido ali tão numerosas quanto as de Portugal, eram bastante atuantes
na vida urbana.
42
familiares ou vadios.
65
Este índice de “carentes de recurso” era, em muitas vilas,
superior ao índice de profissionais. Segundo afirma a autora, os ofícios mecânicos
“constituíram um número inexpressivo dentro de uma maioria de homens vivendo da
lavoura, de uma minoria vivendo do comércio (...), de tropa, de profissões liberais, da
pecuária, de cargos públicos, militares ou eclesiásticos”.
66
No entanto, havia o exercício
de um controle municipal sobre os ofícios mecânicos, bem como de eleição para juizes
e escrivães do respectivo ofício que, a partir do século XVIII, se tornaram regulares.
Em 1778, já se realizavam eleições de juizes e escrivães para todos os ofícios mecânicos
de São Paulo.
67
Apesar da aparente restrita organização de ofícios em São Paulo, parece clara a
participação dos artesãos na administração e na vida pública, ao contrário do que estava
previsto na Ordenação lusa, que impedia que homens de “nação” e oficiais mecânicos
ocupassem serviços públicos. Assim como nas demais regiões, os artesãos “paulistas”
deveriam pedir licença à Câmara para exercerem a atividade ou vender suas obras nas
ruas, devendo portar sempre a Carta de Exame como prova de sua habilidade e
permissão para o desempenho do ofício.
Descrição mais rica desses ofícios mecânicos e de formação de bandeiras
encontra-se para o caso mineiro e baiano. No artigo de Salomão de Vasconcelos
68
foi
realizado um levantamento dos ofícios mecânicos existentes em Vila Rica, no século
XVIII, analisando os três processos de exercício dos ofícios mecânicos no tempo da
colônia na região: o trabalho livre, as licenças com fiador e as licenças com exames.
65
RABELLO, Elizabeth Darwiche. Os ofícios mecânicos e artesanais em São Paulo na segunda metade
do século XVIII. Revista de História, São Paulo, n. 55, v. 112, 1977, pp. 575-596.
66
Ibid, p. 577.
67
Ibid, p. 579.
68
SALOMÃO DE VASCONCELOS. Ofícios mecânicos em Vila Rica durante o século XVIII. Revista
do Serviço do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 4, Rio de Janeiro, 1940.
diversos estudos sobre os ofícios em Minas Gerais e, alguns deles, serão citados ao longo deste trabalho.
Ver também o estudo de TRINDADE, Raimundo. Ourives de Minas Gerais nos séculos XVIII e XIX.
Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, n.12, 1955.
43
Embora tenha chegado a poucas conclusões, fez um levantamento de vasta
documentação relativa aos oficiais mecânicos na cidade naquele século, apontando a
diversidade de situações de trabalho envolvendo os artífices, descrevendo-os de acordo
com fontes diversas colhidas no Arquivo Público Mineiro e no Arquivo Colonial de
Ouro Preto.
Para o caso baiano há a importante referência do estudo de Maria Helena
Flexor,
69
sobre os oficiais mecânicos em Salvador, mostrando a multiplicidade de
situações envolvendo os ofícios na Bahia que os distinguiam dos de Portugal, inclusive
pela permanência em alguns casos de ofícios distintos dos da metrópole. Além da
descrição dos ofícios existentes na cidade, no final do século XVII, mostra que nem
todos se constituíram em bandeiras, caso também muito comum no Rio de Janeiro.
Nas regiões onde houve atuação organizada dos mestres essas entidades tiveram
também uma importante tarefa relacionada à formação, aprendizado e disciplinarização
dos trabalhadores. Um aprendiz precisava de pelo menos quatro anos de prática do
ofício, sendo obrigado posteriormente a passar pelo exame na Mesa da Bandeira e
então poderia exercer a atividade, adquirindo junto ao escrivão do ofício uma Carta de
Exame que o habilitava a exercê-lo. Cada mestre, por sua vez, poderia ter em casa no
máximo quatro aprendizes. Os ofícios eram exercidos por artesãos e eram denominados
ofícios mecânicos, com exceção dos pintores, escultores, engenheiros e “arquitetos”.
70
69
FLEXOR, Maria helena. Ofícios mecânicos na cidade de Salvador. Salvador: Prefeitura Municipal de
Salvador, Departamento de cultura, 1974.
70
Idem.
GIMPEL, Jean. “Villard de Honnecourt, Arquiteto e engenheiro”, in: A Revolução Industrial da Idade
Média. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977, pp. 103-126. O autor associa o sentido dos termos
arquiteto e engenheiros como similares ou coincidentes desde a antiguidade, destacando-os como
privilegiados na escala social: “Um pequeno grupo de especialistas privilegiados, os arquitetos-
engenheiros, situava-se não só no ápice da escala de salários em vigor na indústria medieval da
construção, mas tinha ainda a possibilidade de exigir e obter uma espécie de privilégio vinculado a essa
profissão. ‘Num canteiro de obras da Idade Média, o arquiteto era também o engenheiro porque, nessa
época, nesse domínio, ignorava-se a especialização de funções como se pratica nos escritórios de
estudos e projetos do mundo moderno. O arquiteto medieval dominava realmente o conjunto de
trabalhos e todas as operações lhe eram familiares’. Mais tarde, na época da Renascença, o papel do
arquiteto e seu status social serão modificados.” Ele aponta que os arquitetos ocupavam lugar social de
44
O exercício profissional dos mestres era rigorosamente controlado pela câmara
municipal, sendo estabelecido através dos exames que autorizavam ou não o
desempenho da função por parte do artesão. À câmara cabia também a fiscalização do
cumprimento das posturas e das atividades desempenhadas pelos mestres, bem como a
regularização de suas funções junto à vida religiosa citadina, tais como a participação
em procissões e o carregamento da bandeira do santo padroeiro dos ofícios durante as
procissões, sob pena de pagarem multa para a câmara e à irmandade da qual fizesse
parte o seu ofício.
71
No Rio de Janeiro, as artes mecânicas desde cedo se organizaram em ofícios,
com a eleição de juizes da mesa da irmandade correspondente. Foram identificados na
cidade, no ano de 1792, dez juizes de ofícios, a saber: Manoel José da Silva, mestre de
obras e juiz do ofício de pedreiro; João Ferreira de Mattos, juiz do ofício de carpinteiro;
José da Fonseca Torres, juiz do ofício de ourives; José Thomáz de Aquino Vieira,
[constrate] de ouro e prata; Estanislao José Rodrigues Barata, Juiz do ofício de
marcineiro; Faustino José Monteiro, juiz do ofício de alfaiate; José Velozo, juiz do
ofício de sapateiro; José Antonio da Silva, juiz do ofício de barbeiro e sangrador;
Francisco Álvares dos Reys, juiz do ofício de caldeireiro; João Lourenço de Souza, juiz
do ofício de serralheiro e ferreiro.
72
Entre os oficiais examinados e com lojas abertas trabalhando na cidade do Rio
de Janeiro, foram identificados 103 para o mesmo ano: dois serralheiros, cinco
espingardeiros, sete carpinteiros, oito marceneiros, sete pedreiros, nove barbeiros e
sangradores, dois tanoeiros, dois caldeireiros e um funileiro. Entre os marceneiros
destaque, a mudança nesse status ocorreu a partir do século XIII quando se passou a referir aos
arquitetos como Mestres e Mestres-pedreiros.
71
RABELO, Elizabeth Darwiche. “Ofícios, corporações de”. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (cord.).
Dicionário da História da Colonização portuguesa no Brasil. Lisboa e São Paulo: Verbo, 1994, p. 591.
72
7,4,4. Artes Mecânicas: Relação geral de todos os juízes dos diferentes ofícios mecânicos existentes
nesta Cidade, te ao princípio do prezente anno de 1792. Biblioteca Nacional, Divisão de manuscritos,
fls. 2-4v.
45
foram apontados dois oficiais mulatos forros e entre os barbeiros e sangradores apenas
dois eram brancos, sendo seis deles escravos e um deles forro.
73
O Almanaque,
publicado pelo IHGB, registrou para o mesmo ano a existência de 1037 lojas e oficinas
diversas em funcionamento na cidade, sendo 111 delas de sapateiros, 90 de alfaiates, 35
de marceneiros, 23 de ferreiros, 21 de latoeiros, 18 de tanoeiros, 7 de entalhadores e 7
de caldereiros.
74
Somadas, estas oficinas de ofícios mecânicos abertas na cidade
chegavam a 725 lojas, o que nos aponta a importância econômica que exerciam na vida
comercial da cidade.
A participação política exercida pelos mesteres e o poder de peticionar
demonstram que havia espaços de organização dos trabalhadores que não se dava
apenas de maneira vertical, através do controle do poder público sobre as relações de
trabalho. Havia também um exercício político no sentido da organização através dos
ofícios de forma a defenderem seus interesses, demonstrado inclusive pela acentuada
atuação que os mestres tiveram durante o período colonial, até o primeiro quartel do
século XIX. Mesmo que representados por seus mestres os artesãos acabaram
encontrando espaços para uma participação política mais ampla junto ao Senado, o que
era não somente reservado aos “homens bons” como também era negado aos oficiais
mecânicos pela legislação portuguesa.
Consta ainda que a eleição para Juiz e escrivão do Ofício, presidida e provida
pelo Senado da Câmara, era cercada por intensas disputas políticas em torno da qual o
eleitorado chegava a ficar dividido entre os candidatos, mobilizando cada categoria
profissional em torno de suas questões particulares e a representatividade delas. Em
73
Idem.
74
Almanaque Histórico da Cidade do Rio de Janeiro para o ano de 1792, in: Revista do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro, vol. 266, jan/mar 1965, pp. 159-217.
46
algumas ocasiões foi mesmo necessária a paralisação do pleito até que houvesse
arrefecimento das disputas entre os candidatos.
75
Essa disputa pela representatividade perante a Câmara era fundamental para os
ofícios, uma vez que cabia ao Senado intervir na regulamentação de todos os aspectos
ligados a vida comercial das cidades, inclusive determinando os preços dos artigos,
sendo vedado a qualquer ofício a determinação do valor de uma obra à revelia da
decisão do Senado.
Em 1817 o ouvidor da Câmara enviava ao Senado um ofício a respeito de um
requerimento que foi a ele solicitado pelo Tribunal do Desembargo, em nome do Juiz e
Mestres do Ofício de corrieiro, solicitando “hua Lista e Relação dos Officios
embandeirados desta Cidade, as denominações dos Santos Cargos das Bandeiras e os
nomes dos juizes delles”.
76
Os juizes também solicitavam ao Senado licenças para os
mestres dos respectivos ofícios, a fim de estabelecerem loja na cidade ou intercediam
em alguma queixa específica. No caso de Simão Gonçalves, o Juiz solicitava que ele
tivesse a sua casa aberta para o exercício do ofício de ferrador, solicitando a licença do
Senado da Câmara,
77
e também intercedia por Manoel Rozario, mestre ferreiro que
precisava renovar a licença para continuar exercendo o seu ofício.
78
Ainda em 1823, o
Juiz do ofício de alfaiate solicitava que Manuel Francisco da Vera Cruz, oficial de
alfaiate, continuasse com sua porta aberta para trabalhar no ofício, solicitando a
licença.
79
O juiz do Ofício de carpinteiro informava, em maio de 1823, que Bento
75
Lima, Heitor Ferreira. Op. Cit., p. 258.
76
(2099) 46-4-44. Classes de ofícios: alfaiates, corrieiros, seleiros. AGCRJ, 21 de fevereiro de 1817, fl.
12.
77
(2099) 46-4-44. Classes de ofícios: Ferreiros e ferradores. AGCRJ, 23 de junho de 1821, fl. 18.
78
(2099) 46-4-44. Classes de ofícios: Ferreiros e ferradores. AGCRJ, 14 de março de 1821, fl. 17.
79
(2099) 46-4-44. Classes de ofícios: alfaiates. AGCRJ, 30 de julho de 1823, fl. 9.
47
Severa e Lima era sumariamente pobre e que precisava da concessão da licença para
poder trabalhar como mestre.
80
Sobre os artífices e a mestrança havia ainda a fiscalização das irmandades.
Eram elas que fiscalizavam os juizes e cuidavam de todos os aspectos legais que
envolviam a contratação de mão-de-obra, a habilitação e licença dos artesãos para o
exercício da atividade. Cobravam jóias e mensalidades aos mestres de loja aberta e
tinham o poder de impedir a habilitação dos artífices que não tivessem cumprido suas
obrigações junto à irmandade.
81
As irmandades e ordens terceiras
82
exerciam junto aos ofícios um papel crucial
na vida sócio-econômica do Rio de Janeiro. Primeiramente porque eram importantes
referências para os trabalhadores dos mais diversos ofícios mecânicos: tanto exerciam
controle sobre as corporações como defendiam seus interesses, funcionando inclusive
como bancos em benefício dessas entidades. Além disso, elas empregavam artífices de
diversas categorias profissionais e a elas eram solicitados trabalhos e obras dos artesãos
com freqüência. Aquelas irmandades que estavam ligadas a um ofício ou corporação
passavam a ter a responsabilidade pela proteção e defesa dos seus artesãos, ao mesmo
tempo em que tinham a prerrogativa de monopolizarem todas as atividades ligadas
80
(1893) 46-2-22. Carpinteiros. AGCRJ, 31 de maio de 1823, fl. 40.
81
Lobo, Eulália. “Estudo das categorias sócio-profissionais, dos salários e do custo da alimentação no Rio
de janeiro de 1820 a 1930”. Revista Brasileira de Economia, 27, out. 1973, pp. 136-137.
82
As irmandades e ordens terceiras se diferenciavam das confrarias por estarem subordinadas às ordens
religiosas, enquanto as confrarias eram compostas por leigos. Sobre o assunto ver: BOSCHI, Caio
César. Os leigos e o poder. São Paulo: Editora Ática, 1986.
Essas associações apresentavam importantes diferenças, embora fossem bastante sutis: As ordens
terceiras eram ligadas à Igreja, através do Clero Regular. As irmandades ligavam-se ao Clero Secular,
sendo compostas por leigos e tinham a característica de serem formadas a partir da elaboração de um
compromisso, que seguia padrões jurídicos e eclesiásticos e aprovados pelo bispado e somente depois
pelo rei. Uma confraria se diferenciava de uma irmandade por não ter subordinação religiosa, sendo
organizada exclusivamente por leigos. Desta forma, as irmandades podiam ser consideradas também
confrarias, mas nem todas as confrarias podiam ser denominadas irmandades.
Segundo Maria Beatriz Nizza da Silva, as confrarias se constituíam como agrupamentos no qual
indivíduos se uniam com interesses variados ligados a uma devoção, a uma atividade profissional, por
laços de identidade étnica, por riqueza ou prestígio. Elas eram compostas da seguinte forma: O capelão,
um juiz, um escrivão, um tesoureiro, um procurador, doze irmãos de mesa, um andador. Sobre o
assunto ver: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. “Formas de religiosidade”. In: Cultura e sociedade no Rio
de Janeiro (1808-1821). São Paulo: Editora Nacional; Brasília: INL, 1977, pp. 81-83.
48
àquele ofício, agindo no controle, fiscalização e inspeção tanto das atividades dos
“irmãos” do ofício como restringindo a atuação daqueles que não estivessem ligados à
irmandade. Assim, estabelecia-se um forte elo de relações que se estendia aos
compromissos religiosos mantidos pelos artesãos com a irmandade, o que também
representava para eles garantia da manutenção desse vínculo de proteção. Elas eram
ainda responsáveis pelas festas mais concorridas da cidade, onde o sagrado e o profano
misturavam-se, arrastando gente das mais diferentes origens sociais.
83
Essas entidades exerciam especial papel em relação aos mecanismos de acesso
ao trabalho e exercício da vida profissional na cidade, preservando os interesses
próprios de cada um dos grupos étnicos ou profissionais por elas defendidos, reservando
ainda os empregos e atividades disponíveis para seus filiados:
Assim, as [irmandades] dos ofícios mecânicos, como os alfaiates,
pedreiros, carpinteiros e músicos, favoreciam seus associados quanto
às vagas no mercado de trabalho, controlavam o ensino e o exercício
profissional da categoria, enquanto a dos pretos e pardos livres se
propunha ajudar os irmãos escravos a conseguirem sua liberdade.
84
Exemplo disso foi o regimento do ofício de 1764, que proibia a venda de sapatos
pelas ruas da cidade. Em 1771 e 1772, a Irmandade de São Crispim e São Crispiniano
recorreu à justiça a fim de que fosse cumprido o regimento, exigindo ainda a
fiscalização sobre o número de aprendizes por mestre. Em 1813, outra representação da
mesma irmandade ao rei criticava a venda em praça pública de obras feitas por “cativos,
83
Sobre essas informações ver: Lobo, Maria Eulália. Op.Cit., pp 136-137; ABREU, Martha. O Império
do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira; São Paulo: Fapesp, 1999, pp. 33-127;Cavalcanti, Nireu. Op.Cit, pp. 206-208.
84
Cavalcanti, Nireu. Op. Cit, p. 208.
49
mulheres e pessoas imperitas” dentro de casa. A irmandade continuou criticando a
persistência de tais práticas nas ruas da cidade ao longo da década de 1820.
85
De acordo com ofícios encontrados nos Autos de Apelação e Agravo de oficiais
de sapateiro do ano de 1780, a Irmandade de São Crispim e São Crispiniano criticava
que a venda de sapatos nas ruas fosse exercida por indivíduos que não pertencessem à
Irmandade do ofício. Solicitavam que tais “transgressores” fossem presos em cadeia,
pagassem uma multa, que teria parte destinada para a Irmandade e a outra deveria ser
designada para as obras do Conselho, tendo este “transgressor” a prisão decretada por
desobediência ao Senado e à Relação.
86
Em 1813, os mestres de loja aberta do ofício de
sapateiro e os mesários da Irmandade de São Crispim e São Crispiniano fizeram um
abaixo-assinado onde relatavam
os inconvenientes, que se seguião à mesma Irmandade, aos mais
suplicantes, e athe ao Publico de se venderem pelas ruas obras feitas
em cazas particulares por escravos captivos, mulheres e pessoas
imperitas.
87
Ao todo se somavam cento e uma assinaturas a favor de que fossem fixados
novos editais pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro proibindo a venda de calçados. A
reivindicação dos mestres do ofício e o poder de pressão que exerciam sobre o Senado
são demonstrativos não apenas de sua relativa organização, mas também dos interesses
comuns que defendiam. Permitir a venda de calçados pelas ruas por artesãos que não
estivessem ligados à irmandade atentava contra os interesses daqueles que contribuíam
regularmente para a entidade, que desempenhavam suas obrigações junto aos irmãos e
85
Lobo, Eulália. Op. cit, p. 137.
86
39-4-48, Auto de Apelação e Agravo de Manoel Francisco da Silva e outros do ofício de sapateiro,
novembro/1780, AGCRJ, fls.1-2.
87
(2890) 50-1-12, Sapateiros, 08 de maio de 1813, AGCRJ, fls. 1-4.
50
oficiais, que obedeciam as regras do compromisso e aos costumes do ofício e,
sobretudo, feria a prática do controle de “mercado” exercido pelas irmandades junto ao
ofício. Significava ainda prejuízo comercial na venda de suas obras, que sofriam por
esses anos forte concorrência também dos artigos estrangeiros que entravam na colônia.
Embora os argumentos dos mestres girassem predominantemente em torno da
qualidade das obras, tentando imputar aos oficiais mecânicos “não irmãos” a designação
de “imperitos”, havia outras implicações na reivindicação dos sapateiros. Elas
envolviam distinções de caráter étnico, inclusive na admissão de determinados artesãos
à irmandade. Isso foi expresso em um capítulo do compromisso da mesma irmandade,
que previa que não fossem examinados pardos ou pretos cativos, com a justificativa de
que assim pudessem ser evitados os “furtos” e a “falta de qualidade das obras”
88
e ainda
proibia que escravos abrissem lojas públicas pela cidade. Assim, pedia-se que:
sejão examinados os que tiverem Loja ou Tenda publica nesta Cidade
usando do dito officio, porque desta falta [rezaltado] hum notavel
prejuizo a fabrica da dita Irmandade e ainda a Res publica pela em
capacidade das Obras que fazem falcificadas, e feitas por pessoas
sujeitas a escravidão e por outros motivos expressados, no Termo feito
no Consistorio da dita Irmandade no dia 12 de agosto de 1764 que nos
foi aprezentado, e sendo da nossa obrigação evitarmos todo o prejuizo
que se segue ao povo. Mandamos que da publicação deste a oito dias
senão venda mais pelas ruas publicas todo o genero de calçado e
fazendo o contrario serem tomadas por perdidas e pagarem seis mil
reis de condenação, metade para as despezas da Camara e metade para
a dita Irmandade, como tambem se prohibe, que nenhum preto ou
pardo captivo tenha loja publica, ou particular do dito officio (...).
89
88
(2890) 50-1-12, Sapateiros, 07 de maio de 1813, AGCRJ, fls. 5-7v.
89
(2890) 50-1-12, Sapateiros, 1813, AGCRJ, fls. 7v-9v.
51
As restrições à presença de pardos e pretos nas irmandades - especialmente se
fossem escravos e a sua admissão como membro ou irmão, não se relacionavam
apenas com a venda de obras nas ruas ou a abertura de lojas públicas na cidade. De
acordo com a publicação de editais do Senado, desde o século XVIII estava proibida a
admissão de não livres ao aprendizado do ofício de sapateiro. Relatava-se, em edital de
12 de dezembro de 1770, que fossem permitidos “meninos brancos, ou ao menos
pardos livres, e nunca pretos, e pardos captivos”
90
como aprendizes. Desta feita, o
aprendizado ficava restrito não apenas àqueles que fossem livres, mas preferencialmente
àqueles que fossem brancos. Embora tenha havido desde os remotos tempos coloniais a
tentativa por parte de artesãos e mestres brancos de impedir o exercício do ofício por
pardos e pretos, ela foi largamente utilizada no meio urbano, inclusive estimulada por
senhores que adquiriam, através dos seus artesãos-cativos, parte ou toda a renda
mensal.
91
O forte apelo político desenvolvido com o tempo pela organização dos
sapateiros, influenciou a ação de outras corporações na defesa de seus interesses
comerciais. Em abril de 1813, a Irmandade de São José, dos ofícios de marceneiro e
carpinteiro, fazia petição ao rei para que, seguindo o exemplo da proibição da venda de
calçados pelas ruas da cidade, proibisse também que fossem vendidas as obras de
marceneiro pelas ruas:
P. a V. A R. se digne determinar ao Senado da Camara que fassa por
Editaes para se prohibir a vendagem de Obras de marceneiro pelas
90
(2890) 50-1-12, Sapateiros, 1813, AGCRJ, fls. 10v-11v.
91
Ver: Lima, Heitor Ferreira. Op. Cit., pp. 264-266.
52
Ruas desta cidade, da mesma forma que praticou a respeito da
vendagem dos çapatos em consequencia do mencionado avizo
92
A irmandade desempenhava assim seu papel vital junto aos ofícios: a proteção e
garantia de controle do comércio de suas obras pela cidade. A esse controle somava-se
um conjunto de imbricados interesses comerciais que orientavam a ação dessas
irmandades junto aos seus artesãos. A Irmandade de São José chegou a expressar
claramente em ofício ao Senado que a venda de obras de marcenaria nas ruas estava
sendo um empecilho para as suas atividade e que eles sentiam-se “gravemente
prejudicados nos seus lucros, e, que he mais, no credito do seu ofício”. Argumentavam
sobre a imperícia e a falta de qualidade das obras por que muitas pessoas, que tem
escravos marceneiros mandão por estes fazer obras do offício, e depois bem, ou mal
trabalhadas as expoem a vendagem publica
93
. A Irmandade obteve do rei a autorização
para que ficasse proibida a venda de obras pelas ruas, deixando-se livre apenas a venda
de obras que chegassem de fora:
Passe-se a ditas em que e prohibida a vendagem pelas ruas das obras
de marcineiro feitas neste Pais, ficando livre a franca venda aos que
vierem de fora e derem entrada na Alfandega, obtendo-se deste objeto
o que sua Alteza Real determinou no Avizo de [...] de abril de 1813
respectivo aos çapateiros ficando o suplicante na mesma situação que
estes. Rio de Janeiro, 11 de outubro de 1815.
94
O papel das irmandades era crucial na manutenção das relações entre os irmãos
do ofício, assim como entre estes e a sociedade. À irmandade era dispensada certa
92
(1893) 46-2-22, Marceneiros e Carpinteiros, 1813, AGCRJ, fls. 3-3v.
93
Idem.
94
(1893) 46-2-22, Marceneiro e Carpinteiros, 1813, AGCRJ, fls.4.
53
confiança que se confirmava pelo aval dado às obras executadas pelo ofício, bem como
pela garantia em relação ao bom desempenho do trabalho daqueles profissionais. O
papel religioso, os valores morais e as obrigações desempenhadas pelas irmandades
junto às corporações não significavam a ausência de interesse pelo ganho ou pelo
aperfeiçoamento e qualidade das obras do ofício. Os valores religiosos e econômicos se
misturavam e se traduziam em uma forma específica de lidar com o trabalho e com as
relações de produção e comércio desempenhadas por estas entidades, para as quais o
costume e a palavra exerciam papéis fundamentais.
A irmandade tinha o poder de decidir e estabelecer aqueles que seriam
admitidos no ofício. Buscavam constantemente um espaço político junto às vozes
influentes no Senado na defesa de seus interesses, favorecendo a respectiva Bandeira.
Essa prática dos ofícios nos remete ao significado das irmandades no universo colonial,
ao papel que desempenhavam na vida pública e ao conjunto de interesses que
defendiam, uma vez que elas sintetizavam a forma desses trabalhadores se organizarem,
de se solidarizarem e, ao mesmo tempo, de expressarem seus conflitos e diferenças ao
longo de todo o período colonial.
Um dos exemplos mais significativos de irmandades inauguradas no mundo
ibérico foi a Santa Casa de Misericórdia. A primeira Santa Casa portuguesa foi fundada
em Lisboa, em 1498. Entre 1550 e 1584, sedes da Santa Casa foram estabelecidas nas
principais cidades do Brasil colonial.
95
A função mais importante dessas entidades era
atuar como hospitais públicos nas cidades, cuidando de pessoas doentes, especialmente
os mais pobres, sem distinguir raça, classe ou religião. A caridade da Santa Casa
95
MULVEY, Patricia Ann. The Black Lay Brotherhoods of colonial Brazil: a History. City University of
New York, Ph. D., 1976, p. 165.
Sobre o papel da Santa Casa na colônia portuguesa, ver também: RUSSELL-WOOD, A J. R. Fidalgos e
Filantropos: a santa Casa de Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília, Ed. Universidade de Brasília,
1981.
54
direcionava-se ao auxílio de pessoas doentes e necessitadas, auxiliando ainda no enterro
dos mais pobres, inclusive de escravos. Segundo Mulvey, da Idade Média aos tempos
modernos as irmandades foram associações voluntárias nas quais homens e mulheres
agrupavam-se para auxílio mútuo, tanto material quanto espiritual.
96
A mesma autora apontou para os conflitos de interesses envolvendo a Santa
Casa de Misericórdia e as demais irmandades fundadas na Colônia Portuguesa na
América. Analisando especificamente o caso das irmandades negras e o papel que
tiveram no Brasil colonial, ela afirmou que os brancos da Santa Casa revelavam o
desprezo pelas entidades negras, argumentando que a Santa Casa teria sozinha o direito
de realizar o trabalho de caridade que vinha sendo feito por outras irmandades, que
tinha a prerrogativa de ser a mais antiga de todas elas.
97
Dessa forma, a Santa Casa
preocupava-se com a disputa de concessões e privilégios dados a outras irmandades,
vigiando de perto tudo o que era oferecido às demais, sobretudo às irmandades negras.
A experiência dessas irmandades é particularmente interessante por indicar o
papel inaugural na idéia de cooperação e auxílio mútuo que elas tiveram no Brasil.
Além disso, desde sua origem na Europa, essas entidades sempre desenvolveram
atividades de assistência social e benefício mútuo que não eram desempenhadas pelo
Estado.
O caso exemplar das irmandades negras aponta para a formação de laços de
solidariedade entre seus integrantes que ocupassem um espaço onde o poder público não
desempenhava nenhuma função. Estas eram organizações de negros livres, escravos
africanos e mulatos dedicadas à educação religiosa e benevolência social em regiões
como Península Ibérica, América espanhola, África portuguesa e Brasil. Essas
entidades proporcionavam certa proteção aos escravos, tinham ainda o papel de
96
Ibidem, pp. 240-244.
97
Ibidem, pp. 186-187.
55
promover a confraternização entre os escravos recém-chegados.
98
As irmandades
parecem ter dado ainda uma contribuição para a coesão dos escravos no Brasil,
ajudando na coesão cultural dos grupos étnicos, mantendo vivos os costumes africanos,
danças, língua e os rituais religiosos.
99
Neste sentido, se as diferenças lingüísticas e culturais, bem como as hostilidades
entre negros nascidos no Brasil e os negros originários da África os impediam de
manter maior coesão e organização a ponto de unirem-se contra senhores ou contra a
escravidão, as associações parecem ter respondido a essa possibilidade de coesão entre
eles. As irmandades negras eram as únicas associações legitimadas e permitidas à
população não branca no período colonial. Ou seja, no meio urbano, as irmandades
negras representavam a possibilidade de estabelecer vínculos de solidariedade e manter
as referências culturais da população de origem africana.
A organização do trabalho no Brasil apresentou várias diferenças em relação à
Europa. Aqui o entrelaçamento entre as corporações de ofícios e as irmandades foi de
tal monta, que alguns autores chegaram a levantar a hipótese de que a proibição das
corporações de ofícios - que se deu com a outorga da Constituição de 1824 - teria
levado ao lento desaparecimento também das irmandades fundadas sobre os ofícios.
100
Questão que ainda será desenvolvida, o certo é que elas andaram pari passu ao longo de
todo o período colonial no Brasil e a existência das corporações de ofícios não pode ser
entendida sem a compreensão da dinâmica e do funcionamento destas com as
irmandades.
98
Ibidem, pp. 4-10.
99
Ibidem, p. 5.
100
Ver: BATALHA, Cláudio H. M. “Sociedades de trabalhadores do Rio de Janeiro do século XIX:
algumas reflexões em torno da formação da classe operária”. In: Cadernos AEL: Sociedades operárias e
mutualismo. Campinas: UNICAMP/IFCH, v. 6, n. 10/11, 1999, p.50.
56
1.3. Mestres e aprendizes no Rio de Janeiro: as irmandades, os ofícios e o
comércio
Em seu estudo sobre as categorias sócio-profissionais no Rio de Janeiro no
período entre 1820 e 1850, Eulália Lobo demonstrou a forte presença do trabalho
escravo no campo e nas cidades como um fator importante para a falta de estímulo ao
investimento e desenvolvimento de atividades manufatureiras no Brasil, embora a partir
da década de 1840 o governo tenha apresentado maior interesse pelo desenvolvimento
das fábricas. Mostrou também o aumento paulatino de estabelecimentos comerciais no
Brasil e a franca expansão do comércio na cidade do Rio de Janeiro, que vinha
ocorrendo desde fins do século XVIII, evidenciada pelo aumento das casas de comércio
e pela crescente presença de negociantes estrangeiros na cidade.
101
A autora apontou para a crescente importância econômica da atividade artesanal
no meio urbano, importante fator de suprimento do mercado interno. Tais atividades
eram predominantemente controladas pelas corporações de ofícios, que pareciam ter
inclusive um sistema de crédito organizado pelas irmandades. Segundo a autora, “As
irmandades e as corporações desempenhavam importante papel mesmo depois do
fechamento oficial das corporações, em 1824. As irmandades funcionavam como
bancos, defendiam os interesses das corporações.”
102
101
LOBO, Maria Eulália. Op. cit., pp.132-149.
102
Ibid, p 137.
Em outro estudo a autora reforça a mesma tese, afirmando que mesmo depois do fechamento oficial
das corporações, as irmandades continuaram desempenhando importante papel. Discutirei esta questão
nos capítulos seguintes. Sobre esse tema ver: LOBO, Eulália Maria Lahmeyer. História do Rio de
Janeiro (do capital comercial ao capital industrial e financeiro). Vol. 1. Rio de Janeiro: IBMEC, 1978,
PP. 105-121.
Neste sentido, não se justifica a análise de que a predominância de artesãos escravos e forros teria
tornado o sistema corporativo muito fraco no Brasil. Os estudos a respeito dessas entidades no Rio de
Janeiro apontam em outra direção, como foi demonstrado pelos estudos de Eulália Lobo. Sobre isso,
ver: BROWN, Larissa V. “Manufacturas”, in: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Op. cit (1994), pp. 512-
513.
57
De acordo com os estudos de Luiz Carlos Soares,
103
a partir da revogação do
alvará proibitivo às manufaturas na colônia revogação esta assinada por D. João, em
1808, muitos estabelecimentos industriais teriam sido formados no Brasil, inclusive sob
incentivo do próprio governo. No caso do Sudeste, onde o “movimento de fundação de
estabelecimentos industriais” fora sempre maior, somente no Rio de Janeiro e áreas
circunvizinhas, poderiam ser identificados entre 1808 e 1840 setenta e sete
estabelecimentos classificados como “fábricas” ou “manufaturas” pela Junta de
Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação.
O autor ressalta, entretanto, que a maioria desses estabelecimentos se constituía
como “oficinas artesanais independentes”, assim classificadas pela Junta de Comércio.
Neste caso, ele identificou para o mesmo período a existência de 56 estabelecimentos
artesanais de diversos ramos, sendo os mais importantes aqueles das artes do ramo de
sabão e velas de sebo, alimentos, rapé, fiação e tecelagem de algodão, e seda e
fundição de ferro e metais. Os estabelecimentos manufatureiros constatados pelo autor
somavam 21, entre estes 13 foram fundados entre 1831 e 1840 e, de forma geral,
tiveram curto período de duração.
104
Sendo assim,
os estabelecimentos artesanais constituíram-se, então, na forma
dominante da atividade industrial não só na cidade do Rio de Janeiro e
suas cercanias, como também em outros núcleos urbanos de menor
importância da formação do Sudeste, e entre 1808 e 1840 foram muito
mais compatíveis com a estrutura da produção escravista-mercantil do
que a manufatura.
105
103
SOARES, Luiz Carlos. A Manufatura na Formação Econômica e Social Escravista do Sudeste: um
estudo das atividades manufatureiras na região fluminense. Niterói: UFF, Dissertação de Mestrado,
1980, 2 vols.
104
Ibidem, pp. 115-116.
105
Ibidem, pp. 116-117.
58
Neste caso, Soares estabelece uma diferença entre os tipos de artesanato
existentes no meio urbano naquele período: o artesanato independente, que teria
surgido a partir de 1808, daquele artesanato gremial ou corporativo, implantado na
cidade do Rio de Janeiro, segundo as tradições portuguesas, desde pelo menos o culo
XVII. Destacou ainda que enquanto em Portugal o artesanato gremial calcava-se
segundo a organização da produção mercantil simples, no Rio de Janeiro utilizavam-se
largamente os escravos como aprendizes..
106
A sociedade da Corte entre fins dos setecentos e início dos oitocentos estava
marcada pela continuidade de características típicas do Antigo Regime português,
107
mesclando-se no entanto com as novas idéias filosóficas que varriam a Europa. As
relações de comércio foram também marcadas por esta ambigüidade. O tom da
mudança começou a se estabelecer de fato com a chegada da Corte portuguesa, em
1808, e com os decretos reais subseqüentes favorecendo a abertura do comércio. Até o
início do século XIX, as práticas econômicas mantinham-se sob o controle estrito do
Senado da Câmara, reguladas pelas irmandades embandeiradas dos ofícios e
respaldadas pelos costumes. O estabelecimento de preços e de salários, bem como a
garantia de qualidade das obras, tudo dependia da perpetuação das práticas seculares do
ofício.
Thompson apontou a manutenção dessas relações econômicas na sociedade
inglesa do início do século XIX.
108
Naquele caso, o prestígio social e o costume muitas
vezes eram os princípios reguladores dos salários dos profissionais qualificados, ao
106
Idem.
107
MALERBA, Jurandir. A Corte no exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da Independência
(1808 a 1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Acredito que a referência a existência de uma
sociedade de Antigo Regime no Brasil deva ser feita com cautela, na medida em que a colônia herdou
elementos europeus característicos desse período, mas as relações políticas e sociais construídas aqui
devem ser vistas em suas peculiaridades com o contexto colonial.
108
THOMPSON, E.P. A formação da classe operária inglesa: A maldição de Adão, v. II. ed. Rio de
Janeiro: paz e Terra, 1987, p. 73.
59
invés de serem estabelecidos pelas leis da “oferta e procura” no mercado de trabalho.
Também os preços dos produtos eram freqüentemente designados segundo normas
consuetudinárias, sem que a concepção do lucro fosse a única orientação na hora de
serem estabelecidos os preços. Assim,
As tradições dos ofícios estavam normalmente associadas a alguns
vestígios das noções de preço ‘adequado’ e salário ‘justo’. Os critérios
morais e sociais (...) destacaram-se tanto quanto os argumentos
estritamente ‘econômicos’ nas primeiras disputas sindicais.
109
Thompson fala de uma concepção de trabalho cujo ideal não era motivado
exclusiva ou prioritariamente pelo lucro, onde este apenas se dava em trabalhos de
“empreitada” ou reparos e a qualidade do serviço era algo precioso para o artesão. Nas
relações econômicas baseadas no costume para o estabelecimento do preço, muitas
vezes o artesão não tinha clara noção sobre o custo do produto ou exatamente o quanto
retirava de lucro sobre ele. A divulgação do produto estabelecia-se pelo conhecimento
do selo do “produtor”, da marca; os contratos eram firmados sobretudo com base na
confiança.
110
Tratava-se de uma época em que o antigo e o novo conviviam lado a lado
nas relações de trabalho urbanas, em permanente conflito: os costumes disputavam e
conviviam com as modernas concepções liberais; a prática associativa diferenciava os
trabalhadores de variados ofícios.
O estabelecimento dos preços dos produtos foi por diversas vezes alvo de
conflitos na cidade do Rio. Exemplo disso pode ser verificado pelos Autos de apelação
e agravo dos taverneiros do Rio de Janeiro, em 1796, que reivindicavam sobre os
109
Ibidem, p. 74.
110
Idem.
60
rigores estabelecidos em relação à venda do pão. Sebastião Leonardo Correa, João
Vieira Borges e outros vendeiros da cidade escreveram um abaixo-assinado pedindo que
o senado remediasse as “vexações que continuadamente lhes fazem os juizes
almotacés”. Tais “vexações” decorriam da cobrança do cumprimento das posturas
determinadas pela câmara, que proibiam que fossem vendidos pães sem o peso
designado. Os suplicantes exigiam que os es fossem marcados com a massa crua e a
marca do padeiro fosse registrada, a fim de que se tornasse conhecida por todos. Assim,
se evitaria a falsificação do peso do pão
111
e a responsabilidade recairia unicamente
sobre os fabricantes da massa e não sobre os compradores, ou seja, sobre os vendeiros e
taberneiros.
Os agravos suscitaram discussões e resultaram na declaração do senado a favor
dos suplicantes. Nela, justificavam a importância de que fosse seguida a lei que
determinava que se mantivesse o peso do pão, a fim de que não resultasse em prejuízo
para o público. Reconheciam que “quem fabrica o pão sem o pezo necessário he o que
deve sofrer a pena, e o quem o compra, e se os aggr° não o fabricão, e se sim o
comprão aos Fabricantes, esses se não compactuam [...] de culpa (...)”.
112
O preço do
pão, por sua vez, era regulado pelo preço do trigo e determinava-se que o mesmo valor
fosse atribuído ao produto. O desacato às posturas incidiria em pena de seis mil reis e
trinta dias na cadeia.
No caso dos ofícios vinculados às irmandades embandeiradas, havia uma
preocupação permanente também com a qualidade das peças, garantia de
reconhecimento e confiança nas obras do ofício. Numa época onde as relações
comerciais pautavam-se principalmente pelos vínculos de confiança e pelo empenho da
palavra, preservar a qualidade na produção e impedir as falsificações eram algumas das
111
39,4,47. Apellação e Agravo: Autos (1771-1808). Autos dos Taverneiros desta Cidade e o Senado da
Câmara sobre a venda de pão. AGCRJ, fl. 5.
112
Idem.
61
principais atribuições da irmandade. A Irmandade de Santo Eloy, protetora dos ourives
de ouro e prata, empenhou-se em proteger seus irmãos que foram notificados da
necessidade de marcarem sua peças de ouro e prata. Em 1781, em auto de apelação do
ensaiador das peças de ouro e prata, declarava-se que havia muitas falsificações de
exames e de peças, com prejuízos do interesse público. Assim o escrivão da irmandade
era designado a acompanhar o alcaide da cidade nas buscas em lojas de peças de prata,
sempre que fosse necessário.
113
A preocupação com as falsificações foi uma constante. As próprias irmandades
atuavam no sentido de coibir a prática de falsidade das peças fiscalizando as lojas, bem
como controlando rigidamente a autorização para o exercício do ofício, através da carta
de exame. Em maio de 1812, a Irmandade de São Crispim e São Crispiniano requereu
ao Senado da Câmara mandado para que pudesse usar dos meios disponíveis a fim de
que o juiz do ofício executasse as correições necessárias para apreensão de obras
falsas.
114
Em um capítulo do compromisso da irmandade, em 1813, se confirmava o
temor em relação à falsificação: não seriam admitidos oficiais que não fossem irmãos da
irmandade de São Crispim e São Crispiniano, e que não tivessem pago a ela sua
obrigação. Deveriam ainda ser examinados para ver se tinham feito tais peças,
mostrando perícia, fazendo-se digno de aprovação “mediante o qual consiga faculdade
para usar de loja aberta”. No mesmo compromisso, permitia-se que a irmandade
pudesse fazer em outras ocasiões - além daquelas determinadas pelo Senado -,
correições a fim de evitarem as fraudes que continuassem porventura a existir, tudo a
benefício do Público, aprehendendo as que se acharem falsificadas.
115
Assim,
resguardava-se no regimento dos sapateiros, de 1817, que todos os juizes do ofício que
113
39,4,48. Auto de Apelação e Agravo. Autos de José Gonçalves dos Santos, ensaiador atual das peças
de ouro nesta cidade... AGCRJ, 1781, fls. 25-29.
114
(2890) 50-1-12. Sapateiros. AGCRJ, 1812, fl. 14.
115
Ibidem, fls. 17-18v.
62
começassem a servir, deveriam visitar as lojas de todos os oficiais da cidade para verem
se as obras estavam adequadas ao ofício e achando-se algumas falsificads, ou que se
achão defeitos como não devião ser, farão logo emendar as que poderem ter emmenda
(...).
116
A defesa do bem e do interesse público, no entanto, revelava intenções mais
amplas. A garantia de controle do “mercado” para os irmãos do ofício e, sobretudo, a
restrição deste para aqueles que fossem livres, revelava as distinções estabelecidas pelas
irmandades na execução dos ofícios. A condição de liberdade parece ter sido uma
permanente preocupação das irmandades, que restringiam a entrada de não livres ao
ofício e procuravam resguardar o ingresso preferencialmente para os brancos.
A corporação dos sapateiros apresentou estas distinções, expressas inclusive em
seus estatutos. Em edital de 12 de dezembro de 1770, o Senado determinava como
deveriam ser escolhidos os aprendizes do ofício, enfatizando que os “três aprendizes
permitidos a cada Mestre, sejam meninos brancos, ou ao menos pardos livres, e nunca
pretos, e pardos captivos”.
117
No mesmo regimento citado anteriormente, do ano de
1817, determinava-se que
não poderão os Examinadores examinar a pardos, nem a pretos, sem
que estes lhe mostrem por certidão em como são livres, e forros; e o
que fizer o contrario, pagará da cadeia dez cruzados, metade para as
despezas do officio, e outra metade para as obras da cidade.
118
A Irmandade de São José, dos ofícios de marceneiros e carpinteiros,
representava através de seu juiz o impedimento ao ingresso de determinados indivíduos
116
Códice 773. Regimento do Governo Economico da Bandeira e Ofício de Sapateiro do Rio de Janeiro.
1817. Arquivo Nacional.
117
(2890) 50-1-12. Sapateiros. AGCRJ, s/ data, fls. 10v-11v.
118
Códice 773. Regimento do Governo Econômico da Bandeira e Ofício de Sapateiro do Rio de Janeiro.
1817. Arquivo Nacional.
63
que não estivessem de acordo com o que era determinado pelo compromisso da
irmandade. Assim, eram proibidos de ingressarem os mulatos, os mouros ou judeus,
segundo o capítulo 28 do compromisso.
119
Eles eram impedidos de exercerem o ofício
e de abrirem lojas, dado que eram proibidos de ingressarem na irmandade e somente os
irmãos poderiam exercer o ofício. Esta última determinação havia sido expressa em
decreto de 20 de dezembro de 1730, segundo o qual poderia abrir loja de marceneiro
e carpinteiro quem mostrasse que havia entrado para a Irmandade de São José.
120
Na
tentativa de resolver os impasses criados a partir dessas restrições a Irmandade
modificou suas diretrizes, acatando o ingresso de não-brancos à irmandade e procurando
adequar suas normas tradicionais à realidade do trabalho no Brasil, que dispunha
majoritariamente de mão-de-obra não-branca em suas fileiras. Assim,
(...) o official de qualquer dos mencionados ofícios, que fosse mulato,
não podendo ser examinado, e abrir logea sua por não poder ser
admittido na Irmandade, tinha de ser sempre official em Logea
estranha, se não viesse a seu favor o seguinte meio: a Irmandade
conduzida pelo Espírito de beneficência buscou desviar os
inconvenientes admitindo a cada hum dos examinados daquella
qualidade pela Esmolla de 19$200 d’entrada, para ficar remido de
servir os cargos da Irmandade, e gozar dos officios Divinos,
conciliando por este meio, a inhabilidade da pessoa reprovada pelo
Compromisso, e a suficiência do individuo para exercer o officio. Este
meio beneficio adoptado, e observado constantemente a tantos annos
passou à costume com privilégio da prescrição.
121
119
(1893) 46-2-22. Marceneiros e Carpinteiros. 1812-1831. AGCRJ, 04/10/1820, fls. 19-19v.
120
(1893) 46-2-22. Marceneiros e Carpinteiros. 1812-1831. AGCRJ, 10/10/1820, fls. 17-18v.
121
Idem.
64
Buscava-se um meio de conciliar as restrições étnicas, diminuindo os conflitos
dentro do ofício com a incorporação dos mulatos e de permissão para que oficiais
mulatos pudessem abrir lojas. No entanto, ficava clara a repulsa à entrada de não
brancos e à possibilidade de verem tais indivíduos aspirarem a cargos da Irmandade.
Em relação a isso, posicionavam-se dizendo que
Se os taes indivíduos desejão examinar-se para abrir logea, e também
participar os officios Divinos da Irmandade, a que o seu officio esta
anexo, mas a sua qualidade repugna, o conseguem por aquelle meio,
mas se [...] de vaidade aspirão a servir os Cargos da Irmandade para
figurarem hombreando com os de superior qualidade, he digna de
repulsa sua ousadia, busquem alistar-se na Irmandade que lhes he
própria.
122
Concedia-se, portanto, a prerrogativa para que artesãos não-brancos pudessem
abrir lojas nas cidades sob pena dos ofícios terem dificuldade em se constituírem. No
entanto, tal prerrogativa era concedida como uma espécie de favor da “Irmandade
branca” aos membros o-brancos, que estariam incidindo em um ato de arrogância e
desrespeito ao expressarem qualquer pretensão em ocuparem cargos na entidade.
As restrições, de ordem social e étnica, foram amplamente discutidas nas
primeiras décadas do século XIX, quando se deu grande polêmica sobre a proibição de
venda das peças de determinados ofícios nas ruas. Tal proibição atingia principalmente
os escravos ou aqueles oficiais que tinham escravos como aprendizes e como artesãos.
É preciso lembrar que as corporações de ofícios no Brasil procuraram adaptar os
compromissos estabelecidos em Portugal e muitas regras estavam respaldadas pelos
costumes, o que fazia inclusive com que muitos artífices vindos de Portugal seguissem
122
Idem.
65
as regras do ofício tal como as exerciam em sua cidade. No entanto, a sociedade
brasileira tinha uma economia escravista e relações sociais e de trabalho com uma
hierarquia pautada na lógica e na prática escravista, o que impedia que tais
regulamentos fossem cumpridos na íntegra, devendo-se ajustarem a realidade
econômico-social da colônia.
Segundo Maria Beatriz Nizza da Silva, somente ao homem livre era
possibilitada a ascensão na hierarquia artesanal, ao grau de mestre. Contudo, tanto o
escravo urbano quanto o escravo rural aprendiam ofícios e podiam se tornar oficiais,
como ela constatou analisando os anúncios de venda de escravos nas gazetas do Rio de
Janeiro e na Baía: aparecem, como oficiais de alfaiate, de calafate, de canteiro, de
carpinteiro, de cabouqueiro, de ferreiro, de latoeiro, de pedreiro, etc. e
proporcionavam aos seus senhores, quando alugados, bons jornais.
123
Esta preocupação pode ser demonstrada pelo pedido do Senado, em 1825, para
que Francisco José da Silva, oficial de latoeiro, declarasse se era escravo ou livre; ao
que o suplicante respondeu declarando-se homem branco.
124
Parece, no entanto, que
nas ruas do Rio de Janeiro as normas de desfizessem diante da garantia da
sobrevivência, que fazia com que muitas vezes os escravos circulassem vendendo obras
de seus senhores pela cidade, ou que pretos e mulatos assumissem uma oficina em
determinadas circunstâncias. Este foi o caso de Pedro Joze, homem preto forro, oficial
de carpinteiro, porém, não examinado. Ele foi pego conduzindo uma construção de
casas de sobrado na rua da Alfândega, obra na qual intitulava-se como o mestre,
dizendo-se munido de licença do senado que o autorizava como mestre a construí-las.
125
Foi exigida também a informação da irmandade de São José sobre a identidade de um
123
SILVA, Maria Beatriz Nizza da (Coord.). Nova História da Expansão Portuguesa: O Império Luso-
brasileiro (1750-1822). Lisboa: Editorial Estampa, 1986, vol. III, pp. 251-252.
124
(1443) 44-1-24. Latoeiros e funileiros: ofícios de juízes e escrivães de ofícios. 1807-1822. AGCRJ,
27/03/1815, fl. 16v.
125
(1893) 46-2-22. Marceneiros e Carpinteiros. 1812-1831. AGCRJ, 19/06/1812, fl. 33.
66
oficial, a qual ela respondia que era bom e hábil e destacava ainda ser ele de cor
parda.
126
Jozé Joaquim dos Santos remeteu ofício ao Senado contra o juiz do ofício de
marceneiro, João Luis de Melo, que não quis examinar o suplicante sem que ele pagasse
19$200 réis, usando o pretexto de ser esta quantia para a Irmandade de São José e de ter
o suplicante “acidente de cor”.
127
Muitas vezes o trabalho nas oficinas se sustentava graças ao conhecimento que
os escravos tinham do ofício. Nos casos em que o mestre falecia, desenrolavam-se
longas discussões acerca do direito de continuidade do ofício e de venda das obras da
oficina. Como ocorreu com Matheus da Cruz Xavier Paragrana, que se casou com uma
mulher que havia recentemente ficado viúva de um mestre latoeiro. Ela herdava uma
loja do ofício, aberta na cidade treze anos, mas Matheus não era mestre do dito
ofício. Contudo, argumentava ao Senado que todos os seus escravos eram do ofício e
que sempre se conservarão no trafico e trabalho publico na mesma logea aberta.
128
A
pendenga se arrastou desde 1815 e encontramos um ofício de permissão do rei para a
abertura da tal loja, que data de 20 de junho de 1822, na qual S. A. R. o Príncipe
Regente remeteu requerimento ao Senado da Corte pedindo para que fosse conservada
aberta a sua loja de latoeiro, sem embargo de não apresentar carta de exame.
129
Em centros urbanos como o Rio de Janeiro era difícil estabelecer uma clara
distinção entre mercadores varejistas e os oficiais artesãos, porque todos os artesãos que
tinham carta de exame e autorização para o exercício do ofício poderiam obter licença
para ter loja aberta na cidade. Ali vendiam seus produtos que, freqüentemente, eram
fabricados em oficinas que funcionavam na própria loja. Como foi demonstrado pelos
126
(1893) 46-2-22. Marceneiros e Carpinteiros. 1812-1831. AGCRJ, 01/02/1820, fl. 39.
127
(1893) 46-2-22. Marceneiros e Carpinteiros. 1812-1831. AGCRJ, s/data, fl. 7.
128
(1443) 44-1-24. Latoeiros e Funileiros. Ofícios de juízes e escrivães do ofício. 1807-1822. AGCRJ,
10/03/1815, fl. 16.
129
(1443) 44-1-24. Latoeiros e Funileiros. Ofícios de Juízes e escrivães do ofício. 1807-1822. AGCRJ,
20/06/1822, fl. 21.
67
dados do almanaque da cidade do Rio de Janeiro, havia uma enorme variedade de lojas
artesanais no Rio de Janeiro, sendo a maior parte delas pertencente ao ofício de
sapateiro; para o ano de 1794 foram identificadas 111 somente deste ofício, seguida por
90 lojas de alfaiates. Esses dados apontam um enorme crescimento das lojas existentes
na cidade visto que a relação dos oficiais examinados com lojas abertas na cidade
indicou, para o ano de 1792, a existência de 103 lojas, sendo 28 de sapateiros, 16 de
ourives e 12 de alfaiates.
130
Assim, as relações e os interesses de comerciantes e de
mestres muitas vezes entrelaçavam-se e se confundiam, na medida em que distintas
posições sociais eram encontradas entre os diversos artesãos da cidade.
O estudo de Carlos Alberto Medeiros Lima
131
elaborou uma interessante
descrição dos ofícios urbanos artesanais existentes na cidade do Rio de Janeiro naquele
período. Buscando o entendimento da estrutura da posse de cativos, o autor analisou a
importância decisiva desempenhada pelos esquemas produtivos e comerciais marcados
pelo pequeno comércio ou pela pequena produção na cidade do Rio de Janeiro e seus
arredores, entre o final do século XVIII e a primeira metade do século XIX. Neste
sentido, analisou a existência de uma “demanda consistente por trabalho livre
autônomo”, buscando entender a composição social do artesanato urbano a partir da
composição de livres e escravos em diversos ofícios.
130
7,4,4. Artes Mecânicas. Relação Geral de todos os Officiais examinados, que se achão trabalhando ao
Publico com Logeas abertas dos differentes officios mecânicos existentes nesta Cidade, te ao principio
do prezente anno de 1792, Biblioteca Nacional, fls. 2-4v.
131
LIMA, Carlos Alberto Medeiros. Pequenos patriarcas: pequena produção e comércio miúdo, domicílio
e aliança na cidade do Rio de Janeiro (1786-1844). Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, Tese de Doutorado,
1997, 2 vols.
68
Tabela I. Distribuição dos mestres artesãos examinados e dos cativos com ofícios
artesanais do Rio de Janeiro segundo profissões selecionadas.
OFÍCIOS LIVRES EXAMINADOS (a) ESCRAVOS (b)
número percentual número percentual
alfaiate 144 22.1 21 8.8
alveitaria 1 0.2 1 0.4
amassador 2 0.8
aparelhador 1 0.4
calafate 5 2.1
caldereiro 10 1.5 9 3.8
candeeiro 1 0.4
canteiro 3 0.5 13 5.5
carpinteiro 25 3.8 40 16.8
carpinteiro da ribeira 2 0.8
cavouqueiro 12 5.0
chapeleiro 1 0.4
chocolateiro 4 0.6
crivos 1 0.4
cuteleiro 8 1.2
doceiro 4 1.7
espingardeiro 12 1.8
ferrador 9 1.4
ferreiro 49 7.5 13 5.5
forneiro 2 0.8
funileiro 3 0.5
lapidário 2 0.8
latoeiro 30 4.6
malhador de ferreiro 4 1.7
marceneiro 58 8.9 2 0.8
ourives 4 1.7
padeiro 11 4.6
pedreiro 29 4.5 48 20.2
rendeiro 8 3.4
sapateiro 179 27.5 20 8.4
segeiro 1 0.2
seleiro e coreeiro 29 4.5
serrador 2 0.8
serralheiro 28 4.3
surrador de couros 2 0.8
tanoeiro 29 4.5 1 0.4
velas 6 2.5
total 651 100 238 100
Apud: LIMA, Carlos Alberto Medeiros. Op. Cit., pp. 36-37. O autor considerou os mestres artesãos
examinados por suas corporações de ofícios, entre os anos de 1793 e 1816 (a). Foram considerados os
escravos com ofícios artesanais arrolados em inventário post-morten nos anos de 1789 a 1792, 1795 a
1797, 1800 a 1802, 1805 a 1807, 1810 a 1812 e 1815 a 1817 (b). Esses dados foram extraídos, pelo
autor, das seguintes fontes: Livro de Registros e Provisões do Senado da mara da cidade do Rio de
Janeiro, 1793-1816. AGCRJ; e dos Inventários post-morten, 1790-1835 Secção Poder Judiciário,
ANRJ.
69
De acordo com a significativa existência de livres ou escravos em atividades
específicas, ele buscou analisar a possibilidade de uma competição entre livres e
escravos no artesanato urbano. Segundo o autor, além de grande parte dos negócios
mais amplos pertencerem a livres, fica explícito nos dados que as ocupações nas quais
os escravos aparecem como únicos praticantes “eram subordinadas, e não
independentes”,
132
mostrando uma concentração de trabalhadores cativos em ofícios que
desempenhavam função complementar . E neste caso, ele aponta ainda a existência de
“nichos” no interior da produção artesanal, no tocante à permanência de livres e
escravos, uma vez que atividades como as de sapateiro e alfaiate eram as que
concentravam maior número de trabalhadores livres. Assim, “(...) os artesãos livres
predominavam nos ofícios encaminhados independentemente, ao passo que os escravos
artesãos eram mais freqüentes nas ocupações subordinadas, ou exercidas como parte
anexa a negócios de outra natureza”.
133
No entanto, esses dados levam o autor à conclusão de que não havia uma
competição explícita entre livres e escravos na produção artesanal, uma vez que muitos
artesãos inclusive possuíam os seus escravos trabalhando na oficina. Mesmo entre os
ofícios com maior concentração de escravos, apresentava-se uma complexa
composição, que apontava para a predominância desses cativos como pertencentes a
artesãos livres, apontando para a complementaridade da atividade, mais do que para
uma concorrência. E, neste caso, longe do trabalhador artesanal cativo representar uma
ameaça ao trabalhador livre, constatou-se que “a difusão da posse de escravos permitia
tanto a expansão dos negócios artesanais de artesãos livres, quanto a diversificação dos
negócios de livres não-artesãos”.
134
132
Ibidem, p. 38.
133
Ibidem, p. 39.
134
Ibidem, p. 40.
70
As relações entre as corporações de ofícios, que buscavam a proteção em sua
esfera profissional, e o restante da sociedade, nem sempre se fazia de maneira cordial.
Visto que a prática dos ofícios mecânicos era muitas vezes exercida no ambiente
doméstico para o consumo doméstico ou pequenas vendas destinadas à subsistência da
família, não era incomum que pessoas comuns se vissem prejudicadas pelo monopólio
exercido pelas corporações. É provável que essas insatisfações tenham aumentado
conforme o declínio que tais associações foram sofrendo ao longo do tempo e a partir de
um contexto mais adverso à sua atuação no meio urbano, como foi demonstrado por
pedidos para que escravos pudessem vender calçados nas ruas feitos em casa de seus
senhores, a fim de manter a subsistência da família.
135
Essas petições iam de encontro
aos interesses das corporações, especialmente daquelas que tinham maior poder de
pressão e maior organização política, como era o caso da Bandeira de São Crispim e
São Crispiniano, dos ofícios de sapateiro.
1.4. Oficinas, fábricas e Indústria: a diversidade da língua e da prática
É importante atentarmos para o sentido do termo e do significado das oficinas no
período estudado, quando geralmente era usado para designar as atividades
desenvolvidas em pequenas indústrias artesanais. Essas oficinas funcionavam muitas
vezes no ambiente doméstico ou ganhavam estabelecimento próprio, por vezes
vinculado a uma loja, desde que houvesse permissão da Câmara para que o mestre
abrisse. O trabalho artesanal era a atividade predominante no período colonial e
permaneceu como tal até o desenvolvimento fabril, verificada na segunda metade do
135
(2890) 50-1-12. Sapateiros. AGCRJ, novembro de 1821, fls. 31-32.
71
século XIX. Neste sentido, como cita Luiz Carlos Soares,
136
“o trabalho industrial ou o
trabalho mecânico de modo geral eram vistos como uma arte” e estes trabalhadores
eram considerados artistas, artífices ou artesãos. Segundo o autor, “o termo artesanato
surgiu quando foi sentida a necessidade de estabelecer uma distinção entre o trabalho
industrial puramente manual e suas variações artesanato e manufatura e o trabalho
industrial realizado por meio do maquinismo (...)”.
137
Importante também notar que o termo ofício adquiria múltiplos sentidos de
acordo com o contexto em que era utilizado. Como marcou Luiz Antonio Cunha, no
sentido estrito ofício era utilizado para designar o conjunto de práticas que definiam
uma determinada profissão, assim como os artesãos que pertenciam a tal profissão eram
chamados de oficiais. Em sentido mais amplo, o termo também poderia referir-se ao
conjunto mais geral de trabalhadores da mesma profissão. Alargando ainda mais o
sentido do termo, ele também era utilizado como sinônimo de corporação, abrangendo
mais de uma profissão ou o conjunto de profissionais.
138
o termo fábrica adquiriu um sentido novo no contexto urbano do Brasil do
século XIX, na medida em que representava um estabelecimento maior onde se
encontravam reunidas várias oficinas ou diversos ofícios para uma produção específica.
Embora o termo fábrica fosse sinônimo do termo officina, de forma genérica a palavra
fábrica acabava sendo utilizada para designar aquilo que hoje denominamos oficinas
artesanais, manufaturas e as grandes indústrias.
139
Neste caso, concordo com Soares
sobre o vasto leque de significados do termo encontrado na documentação da época,
abrangendo um diversificado conjunto de significações que foram se modificando ao
136
SOARES, Luiz Carlos. Op. Cit, pp. 95-96.
137
Ibidem, p. 97.
138
CUNHA, Luiz Antonio. Aspectos sociais da aprendizagem de ofícios manufatureiros no Brasil
colônia. Fórum Educacional, Rio de janeiro, 2 (4): 31-65, out./dez.1978, pp. 46-47. O autor esclarece,
no entanto, que os ofícios ou corporações também recebiam a designação de bandeiras e estabelece sua
diferenciação, como apontarei no capítulo 2.
139
Idem.
72
longo do tempo. Os documentos citados ao longo desta tese confirmam essa
interpretação dos significados do termo, uma vez que era usado pra designar oficinas
que possuíam divisão da produção, ou seja, pequenas manufaturas. Em alguns casos,
essas fábricas contavam com máquinas rudimentares, algumas sendo importadas da
Europa.
Essa diferença no uso do termo pode ser verificada na leitura do Dicionário da
Língua Portuguesa, de Antonio de Moraes e Silva, publicado em 1813.
140
Nele, o termo
fabrica
141
poderia ter o sentido de “casa onde se trabalhão, e fabricão, v. g. pannos,
chapeos,, sedas e outras manufaturas”. Poderia também significar “o necessário para a
construção de um edifício”; ou ainda “artifício, trabalho, lavor”; “idéias, desenhos,
traços, projectos” ou simplesmente “o ato de fazer alguma acção que demanda artifício,
astúcia”. Assim, amplia-se o seu entendimento na época, em nada parecido com os
atuais usos, que modernamente são usados quase como sinônimo de indústria. Toda a
prática de elaborar, inventar, criar algo, poderia ser denominada como uma fábrica. E,
neste caso, também o fabricante,
142
segundo Antonio de Moraes e Silva, significava
aquele que “fabrica manufacturas, tanto o mestre, como os officiaes”. Ou seja, também
um artesão que não fosse mestre poderia ser caracterizado como fabricante. E a
utilização do termo maquina, pelo fabricante, referia-se a qualquer engenho mecânico
que fosse utilizado para elaborar obras mecânicas.
143
As manufaturas também tinham um significado mais restrito ao mundo da
oficina, caracterizando um estabelecimento com divisão da produção. Assim, o termo
manufatura era definido no mesmo dicionário como “fabrica, mecânica, e officina de
artefactos; v.g. de lanifícios de sedas, chapéos, pannos. V. fabrica; a obra feita nellas; e
140
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario de Língua Portuguesa. Fac-símile da segunda edição (1813).
Rio de Janeiro: Oficinas da S. A. Litho-typographia Fluminense, 1922. 2 tomos.
141
Ibidem, p.1, tomo II.
142
Idem.
143
Ibidem, p. 266, tomo II.
73
neste sentido é mais usual; mecanica”.
144
Curiosamente, o termo Arte, no mesmo
dicionário, é considerado como sinônimo de “officio mecanico ou manufactura”.
145
O
termo manufatura e suas derivações, aproximavam-se sempre do significado de elaborar
uma obra de arte, como podemos notar pelo significado da palavra manufaturar: “fazer
certas manufacturas, trabalhar as produções da natureza, dando-lhe forma acomodada
aos usos da vida, v.g. manufaturar a seda.”
146
Assim como manufacturado poderia
significar o verbo no passado de manufaturar, mas também algo que tivesse sido “feito,
obrado, trabalhado ou lavrado”.
147
Assim, os termos brica, manufatura e oficina, no início do século XIX,
seguiam trajetórias paralelas, poderiam ser corriqueiramente usados como sinônimos.
Com o tempo, tais termos ganharam diferenciações estabelecidas pela dinâmica da
língua, assim como pelas próprias transformações ocorridas no processo produtivo e nas
relações de trabalho no Brasil, adotando usos e significados diferentes. Exemplo disso
pode ser dado pelas famosas fábricas da Irmandade ou da igreja, que não passavam de
oficinas de artesãos vinculados aos religiosos ou leigos; cujo fabriqueiro ficava
responsável por cobrar todas as rendas ligadas a ela.
148
Portanto, ao analisarmos a
documentação deste período, não podemos prescindir do cuidado com a forma como
estes termos foram empregados e os seus significados para a época.
O termo indústria foi apontado em diferentes estudos por sua multiplicidade
de sentidos no século XIX.
149
Neste caso, Antonio Moraes o define como “arte,
destreza, para grangear a vida; engenho, traça em lavrar, e fazer obras mecânicas, em
144
Ibidem, p. 264, tomo II.
145
Ibidem, p. 199, tomo I.
146
Ibidem, p. 264, tomo II.
147
Idem.
148
Ibidem, p. 2, tomo II.
149
Sobre o uso termo indústria no século XIX e os estudos que abordaram o assunto, ver: VAINFAS,
Ronaldo (dir.). Dicionário do Brasil Imperial (1822-1889). Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
74
tratar negócios civis”.
150
Assim, poderia utilizar-se o verbo no infinitivo, o ato de
industriar, como sinônimo de ensinar arte”.
151
Na prática, o termo indústria poderia
referir-se a um amplo leque de atividades desempenhadas pela economia, incluindo o
artesanato, a agricultura, manufatura e o comércio; ou para referir-se à produção e
riqueza de um país, como foi frequentemente apontado nos documentos da época.
152
Por exemplo, para definir o termo artezano, o dicionarista recorre ao termo indústria,
para definir aquele “artífice, que lavra obras de industria mecânicas, manuaes”;
153
bem
como o artezão se definiria como aquele “official de qualquer officio”.
154
150
Silva, A. M. Op. Cit., p. 153, tomo II.
151
Ibidem, p. 154, tomo II.
152
Sobre isso ver: Oliveira, Geraldo de Beauclair Mendes de. Op.Cit, pp. 10-11.
153
Silva, Antonio Moraes. Op. Cit., p. 199, tomo I.
154
Idem. No dicionário de 1813, ainda não havia o feminino para o termo artezão.
75
Capítulo 2
Irmandades e Corporações de Ofícios na Corte: construção das relações
de trabalho no século XIX
As irmandades despontaram como importantes associações de proteção mútua
desde o período medieval, como vimos anteriormente. Com função protetora e, ao
mesmo tempo caritativa, tais entidades surgiram concomitantemente ao
desenvolvimento das cidades que ocorria na Europa desde o século XI, destacando-se
como instituições peculiares ao mundo urbano. Suas funções se ampliaram de acordo
com as necessidades locais e dos irmãos que passavam a integrá-las, embora
obedecessem a um modelo e forma comuns, tanto em seus objetivos, em sua estrutura,
como em suas ações junto às diversas sociedades onde se estabeleceram.
A forte presença do aspecto religioso e espiritual na mentalidade medieval
marcou a gênese e o papel dessas entidades, definindo suas funções religiosas e
protetoras - o que hoje denominamos função social que na época não eram distintas.
À medida que elas se espalharam pelo mundo, ao longo dos tempos modernos, a
referência aos aspectos transcendentais permanecia sempre em evidência, marcando o
próprio sentido de sua existência.
155
Dada esta forte preponderância do caráter religioso
permeando todas as relações sociais, as irmandades passaram a ser o elo entre o mundo
material e o mundo espiritual, entre o imanente e o transcendente. Tornaram-se parte do
cotidiano das pessoas, embrenhando-se por todo o tecido social, instalando-se em todas
as relações sócio-econômicas, estabelecendo elos com o mundo político e indicando os
parâmetros das virtudes e dos valores a serem seguidos culturalmente, organizando a
155
Importante análise sobre a multiplicidade de aspectos que envolviam as irmandades religiosas
encontra-se na seguinte obra: SCARANO, Julita. Devoção e Escravidão: a Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no século XVIII. 2ª ed. São Paulo: Editora
Nacional, 1978. (Brasiliana, v. 357)
76
esfera do lazer e posicionando-se como elemento integrador e mediador entre a esfera
pública e a privada. Para a sociedade colonial portuguesa o vínculo religioso tinha um
significado próprio, “onde a cristã é não afirmação religiosa (referência a Deus)
mas fermento de solidariedade, cimento cultural”.
156
Na sociedade colonial na América portuguesa essas relações também se
estabeleceram. As Irmandades se constituíram como parte da vida cotidiana dos
indivíduos, participando de todos os aspectos ligados a ela. Isso significa dizer que
todas as esferas da vida social pertenciam também à vida religiosa e que o não
pertencimento a uma irmandade religiosa poderia constituir até mesmo motivo de
vergonha ou de desprestígio social. Nas relações de trabalho isso não poderia se dar de
forma diferente: aqueles que não pertencessem ao universo cativo também deveriam
estabelecer seus elos de trabalho a partir de uma irmandade, tornando-se membro e
irmão de uma associação profissional, a partir de onde eram estabelecidos
compromissos em comum. Dessa forma, os ofícios mecânicos não se constituíam como
exceção ao se organizarem junto às irmandades religiosas, usufruindo de seus benefícios
e de sua proteção. Pelo contrário, eram peças importantes de um mecanismo social
onde toda a engrenagem funcionava a partir do viés religioso, onde aquele que
porventura não fosse partícipe de uma irmandade estaria, possivelmente, marginalizado
e excluído de várias relações sociais. Esta importância religiosa foi analisada por Julita
Scarano para o caso Diamantino:
todos os acontecimentos, do nascimento à morte, eram comemorados
nas confrarias e quem estivesse fora delas seria olhado com
desconfiança, privado do convívio social (...).
156
PAIVA, José Maria de. “Igreja e Educação no Brasil”, in: STEPHANOU, Maria e BASTOS, Maria
Helena Câmara. História e Memórias da Educação no Brasil. Vol I. culos XVI-XVIII. Petrópolis/RJ:
Editora Vozes, 2004, pp. 77-92.
77
O desligamento de uma confraria representava grave problema,
colocando a pessoa à margem da sociedade, significando um tremendo
castigo. Não parecia admissível que alguém pudesse viver sem estar
unido a um desses grupos e, castigo ainda maior, morrer fora de um
deles.
157
No mesmo sentido, Antonia Aparecida Quintão destacou que “a religião era o
núcleo de convivência da sociedade”
158
e que por ela passava todo o tecido social. No
caso do catolicismo implantado no mundo colonial, Portugal valorizou fortemente as
irmandades leigas, dando a elas funções destacadas em relação às práticas sociais, que
não eram comumente desempenhadas pelo Poder Público. Isso significou a
proeminência de entidades leigas organizando os mais variados aspectos ligados à vida
religiosa, ao mesmo tempo em que desempenhavam funções protetoras de seus
associados, caritativas e de auxílio tuo, além de participar fortemente da vida
familiar colonial.
Mariza Soares também destacou a forte religiosidade que acompanhava a
sociedade colonial do século XVIII, uma religiosidade “barroca”, marcada por forte
participação dos leigos, “que realizam cerimônias religiosas em suas casas, nas capelas
e igrejas por eles construídas.” A intensa participação social nos rituais religiosos
promovidos pelas irmandades e a variedade de devoções instituídas por elas, as
transformavam em espaços privilegiados de sociabilidade.
159
Contudo, segundo a
autora, tanto as determinações do Concílio de Trento quanto as iniciativas inerentes ao
iluminismo europeu não chegaram a vingar no Brasil, fruto da forte influência do
Padroado e do jurisdicionalismo, predominante da Igreja na colônia, incidindo num
157
Idem, p. 37.
158
QUINTÃO, Antonia Aparecida. vem o meu parente: as irmandades de pretos e pardos no Rio de
Janeiro e em Pernambuco (século XVIII). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2002.
159
SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da Cor: Identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio
de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 133.
78
“distanciamento das orientações de Roma”, que recairiam sobre todos. Neste sentido, a
autora destacou que “na perspectiva do catolicismo tridentino, no século XVIII, a cidade
do Rio de Janeiro é um exemplo de cristianização incompleta.”
160
A formação de associações profissionais é apontada como o mote inicial da
formação das irmandades no período medieval, quando elas teriam se formado ligadas
aos ofícios, buscando atender aos interesses profissionais de seus integrantes e, ao
mesmo tempo, protegê-los. No entanto, ao longo do tempo os interesses dessas
entidades se diversificaram, passando a atender diferenciados grupos sociais. Na
colônia portuguesa, o intuito religioso agia mais fortemente no sentido de manter o
domínio da religião católica em terras ultramarinas, ao mesmo tempo em que
mantinham suas características fundamentais inspiradas nas congêneres européias,
tomando-as como exemplo para a elaboração de seus compromissos e estatutos.
Os compromissos e estatutos eram os documentos escritos que regiam essas
instituições, devendo ser aprovados pela autoridade eclesiástica e régia para que
adquirissem existência legal. Todas as ações das irmandades eram controladas pela
autoridade régia, desde o estabelecimento de seus regimentos, passando pela cobrança
de anuidades, até as determinações tomadas pelas entidades. Essas medidas de controle,
no entanto, não tinham completa eficácia numa sociedade tão vasta e dispersa quanto a
colonial, aonde muitos compromissos não chegaram a ser remetidos para a Coroa,
sendo autorizados apenas pelo poder local e eclesiástico. Em decorrência dessas
dificuldades de controle, em 1765 as irmandades foram comunicadas sobre uma
Provisão Real que determinava que o Rei devesse ser notificado sobre a existência e
sobre a vigência dos compromissos de todas as confrarias existentes na colônia,
notificando-o através do Tribunal da Mesa da Consciência e Ordens.
161
160
Ibidem, pp. 133-134.
161
Sobre estas questões, para o caso diamantino ver: Scarano, Julita. Op. Cit, p. 22.
79
Criada em 1532 pelo rei D. João III, a Mesa da Consciência e Ordens regia
assuntos relativos às práticas religiosas e ao clero, sendo um importante instrumento
jurídico da Coroa portuguesa. A partir de 1551, a Coroa assumiu o mestrado das três
ordens militares, incorporando à Mesa da Consciência os assuntos relativos às Ordens
de Cristo, passando a ser denominada Mesa da Consciência e Ordens.
162
Essa bula
incorporava os privilégios eclesiásticos concedidos pelo papa à Ordem de Cristo, que
ficou conhecida como Padroado Real, onde a monarquia portuguesa passava a
desempenhar a dupla função de administrar o reino português, além de atuar como
“governadores e administradores perpétuos da Ordem de Cristo.”
163
Desta forma, o Rei
exerceu cada vez um controle maior sobre as irmandades religiosas que se instalaram na
colônia, condicionando a permissão de funcionamento das irmandades mediante a
condição de que os seus regimentos fossem submetidos à aprovação real.
Russel-Wood destacou três características comuns partilhadas pelas irmandades
portuguesas
164
: a administração extremamente centralizada, o encorajamento da Coroa a
favor da transferência de responsabilidade pelos serviços espirituais e sociais do setor
público para o privado, e o conservadorismo da Coroa em suas políticas relativas às
colônias ultramarinas. Neste caso, aquelas instituições que se mostraram importantes
em Portugal, tais como a Câmara Municipal e a Relação, acabaram sendo transferidas
para o ultramar sem grandes modificações. Outro exemplo importante foi o da Santa
Casa de Misericórdia a maior entidade caritativa do mundo -, cujos estatutos foram
adotados em todo o mundo, sendo seguidos inclusive por entidades fundadas nas
colônias que não possuíam matriz na metrópole. Em sua opinião, mesmo as entidades
162
NEVES, Guilherme Pereira das. E Recebe Mercê: A Mesa da Consciência e Ordens e o Clero
Secular no Brasil: 1808-1828. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997. Prêmio Arquivo Nacional de
Pesquisa 1995. O autor informa que a Mesa da Consciência e Ordens atuou durante vinte anos no Brasil,
estando ao longo de todo este período estreitamente ligada ao Desembargo do Paço.
163
RUSSEL-WOOD, A. J. R. Escravos e Libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005, pp. 201-202.
164
Ibid, p. 192.
80
de negros e mulatos na América portuguesa, acabaram “seguindo à risca” os estatutos
elaborados por entidades portuguesas, destacando os mesmos objetivos e regras
preconizados pelas irmandades lusitanas.
165
O extremo controle exercido sobre as irmandades religiosas foi maior na colônia
do que sobre as entidades que existiam em Portugal. Segundo Julita Sacarano, em
decorrência de muitos problemas cotidianos acabarem se resolvendo nos salões da
irmandade, ela passava a ter uma presença muito particular na vida privada das famílias,
tornando-se uma entidade poderosa na veiculação de idéias junto à população local.
Igualmente, o papel social que desempenhava incluía o agrupamento e a politização,
uma vez que se constituíam no único ponto social de convergência de interesses e de
reuniões entre pessoas que defendiam interesses comuns. Assim, a autora ressaltou que
durante muito tempo a ausência de participação social mais ativa ou de espaços públicos
que patrocinassem a socialização dos indivíduos, contribuiu para fortalecer a
importância social e política das irmandades, o que levou a que essas entidades se
tornassem com o tempo focos importantes na disseminação de idéias que poderiam em
determinados momentos ser consideradas perigosas ou suspeitas, vistas como potenciais
ameaças:
As reuniões desses grupos, centros de debates das pessoas mais ativas
e empreendedoras da comunidade, que ali discutiam os temas de mais
vivo interesse no momento, políticos ou não, eram vistas como fonte
de perigo. As confrarias procuravam de todas as maneiras fugir à
interferência de qualquer autoridade, fosse ela eclesiástica ou civil.
166
165
Idem, pp. 192-193. As divergências em relação a esta posição de Russel-Wood serão apontadas ao
longo do texto.
166
Scarano, Julita. Op. Cit., p. 32. Sobre a fiscalização das irmandades ver páginas 79-80.
81
Caio César Boschi destacou o papel peculiar que a irmandade desempenhava
como “força auxiliar”, complementando e substituindo a Igreja católica na tarefa de
facilitar a vida social e de desenvolver inúmeras tarefas que deveriam ser da alçada do
poder público. Segundo o autor, “desse modo, intermediaram o contato Estado-Igreja”,
constituindo-se como “associações de expressão orgânica e local” representando um
canal privilegiado de participação social “numa sociedade onde a livre formação de
entidades políticas era proibida como condição básica para a própria sobrevivência do
sistema colonial.”
167
As irmandades passavam a agir como o elo de sociabilidade
possível numa sociedade onde a expressão de idéias restringia-se à vontade religiosa ou
do poder régio, não devendo essas idéias deslocarem-se do eixo ordenador social ligado
a essas duas instituições.
É preciso lembrar, no entanto, que as irmandades eram instituições agregadoras
de interesses de grupos sociais e profissionais diversos, o que era utilizado como
justificativa para a atuação estreita das autoridades para tentar controlar o que seria
veiculado por elas junto à população da colônia. Os sermões da missa e as reuniões nos
salões das irmandades foram, durante um bom tempo e em boa parte da colônia, os
únicos meios dos indivíduos manterem-se em contato com o que acontecia no resto do
mundo. Era importante que essas entidades colaborassem com os objetivos do projeto
colonial, não devendo disseminar idéias que criassem empecilhos ao governo português.
É importante destacar também que numa sociedade onde o trabalho baseava-se
majoritariamente na escravidão considerava-se imprescindível que houvesse um estreito
controle sobre entidades que exerciam uma prática protetora junto à população mais
pobre, agregando em alguns casos interesses específicos dos cativos e libertos.
Exemplo disso foram as irmandades negras que surgiram no período colonial e se
167
BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o Poder: Irmandades leigas e política colonizadora em Minas
Gerais. São Paulo: Editora Ática, 1986, p. 3.
82
proliferaram pela colônia, especialmente a partir do século XVIII. Embora estas
entidades tenham procurado atuar de forma independente, a própria base de sua
existência atrelava-se ao poder régio, afinal a autorização para sua fundação era
outorgada pelo soberano. Isto tornava o papel das irmandades negras ainda mais
delicado no contexto colonial escravista, onde desempenhavam importantes funções
mutualistas e protetoras em relação aos cativos, tornando-se importantes referências
para estes indivíduos. Não emergiu como objetivo dessas entidades, no entanto, a
bandeira abolicionista ou antiescravista, o que não impedia que atuassem como
defensoras das condições de humanidade dos cativos, defendendo junto ao poder local
questões de violência e de injustiças cometidas contra escravos, bem como ajudando os
escravos a conquistarem sua alforria, atuando como defensoras dos ideais de liberdade,
restringindo-se sempre à esfera individual.
168
Essas entidades buscavam “amenizar o
jugo do cativeiro”, nas palavras de Scarano, procurando mediar os conflitos e atuar em
favor dos escravos na defesa de alguns interesses que não chegassem a ameaçar a ordem
escravista.
Segundo Patrícia Mulvey,
169
as irmandades negras no Brasil teriam também
contribuído para a manutenção de elementos culturais e para a coesão entre os escravos
no Brasil, permitindo a prática de ritos africanos a guisa do catolicismo. Segundo a
autora, cidades importantes da América Latina tais como Caracas, Havana, Lima,
Buenos Aires, Montevideo, Bahia e Rio de Janeiro foram centros de crescimento de
associações religiosas, onde eram tidas como referência religiosa e cultural para a larga
população africana presente nestas cidades; entidades nas quais predominava a
solidariedade como elemento de integração e onde se providenciava o auxílio mútuo, a
assistência social e a caridade em relação aos seus integrantes. A autora apontou
168
Sobre essas reflexões ver a obra já citada de Julita Scarano, especialmente o capítulo II.
169
MULVEY, Patrícia Ann. The black lay brotherhoods of colonial Brazil: a History. City University of
New York, Ph. D, 1976, chapter I.
83
também que no Brasil essas entidades acabaram exercendo funções bem mais amplas do
que nas outras colônias, possivelmente em decorrência de grande parte de a população
ser de origem africana ou descendente.
De acordo com essa perspectiva, Mulvey aponta que as irmandades tenderam a
travar uma luta pela defesa da igualdade entre as religiões dos pretos e a dos brancos,
perante a Igreja católica. A autora, no entanto, adota uma posição exagerada em relação
a esse papel que desempenharam no período colonial, chegando a compará-las aos
modernos sindicatos, devido ao bem-estar social que proporcionavam aos seus
associados.
170
Esse posicionamento superestima o papel dessas irmandades no contexto
escravista, deixando de lado os nculos estabelecidas por estas entidades em relação à
manutenção da ordem religiosa e moral da sociedade, onde atrelavam-se os demais
elementos sociais. A função protetora ou de defesa de alguns interesses dos cativos não
pode nos levar a uma interpretação de que essas entidades tivessem tido atitudes de
ruptura em relação à ordem existente, ou mesmo que atuassem de forma
transformadora. O papel das irmandades religiosas no contexto colonial foi limitado e
atrelado aos objetivos traçados pelo projeto colonizador, não tendo criado ou proposto
uma nova consciência em relação ao cativeiro. Mesmo as práticas sociais que
desempenhavam limitavam-se às obrigações comuns a todas as irmandades leigas
existentes, que atuavam no sentido de proteger, auxiliar e ajudar financeiramente os
irmãos, objetivos basilares dessas entidades. No entanto, isso não anula o importante
papel que desempenharam na criação de elos entre diversos grupos sociais, agindo
como centro de socialização e de disseminação de idéias.
Também é questionável o posicionamento da autora em relação ao contraponto
urbano desempenhado pelas irmandades em relação aos quilombos: “Confraternities
170
Mulvey, Patrícia Ann. Op. Cit., pp. 77-78.
84
were the urban counterparts to the rural quilombos or fugitive slave comunities.”
171
Os
quilombos representaram na sociedade escravista a possibilidade de ruptura em relação
à ordem escravista existente: eram ilegais, estabeleciam relações clandestinas para
sobreviverem e viviam escondidos das autoridades. Os quilombos exerceram um papel
de ruptura em relação ao cativeiro, uma real possibilidade de libertação sem negociação
com os senhores, onde se agregavam interesses de cativos e de grupos ou indivíduos
pobres, rejeitados e discriminados pela sociedade. Mesmo que mantendo relações e
vínculos de interesses com outros elementos sociais, tais como vendeiros, taverneiros e
mascates,
172
o quilombo não negociava com os senhores de terras ou com as autoridades
régias a sua sobrevivência. As irmandades, por outro lado, viviam sob a égide do
Estado e da Igreja, estavam dentro da lei, mantinham-se dentro da ordem e não ousavam
contestar a escravidão. Por mais que tenham desempenhado funções importantes no
âmbito cultural e no processo de integração desses africanos à sociedade colonial, e
atuado algumas vezes protegendo cativos e defendendo-os de castigos severos, não
devem ser consideradas como o outro lado da moeda dos quilombos, ou como uma
alternativa urbana à escravidão.
Mariza Soares alerta para a inexistência no século XVIII de uma mentalidade
que levasse à defesa abolicionista, tal como teria se configurado posteriormente, no
século XIX. Mas as irmandades representavam uma possibilidade de “fuga” dos
171
Idem, p. 125.
172
GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de Quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio
de Janeiro século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, capítulo 1. O autor destaca que “Na
maioria dos lugares onde se fixaram comunidades de escravos fugidos no Brasil, parecem ter sido
comuns estas relações entre quilombolas e comerciantes locais, como vendeiros, taberneiros etc”. O
autor chega mesmo a mostrar a conivência de monges beneditinos ou uma tolerância com relação à
permanência de quilombolas em suas terras, na região de Iguaçu, sem que se posicionassem contrários
ou se mobilizassem para retirá-los. Pelo contrário, sabia-se que os cativos do mosteiro mantinham
estreitas relações com os quilombolas.
85
espaços de controle socialmente impostos, onde se permitiam experiências de liberdade
no meio urbano além de adquirirem algum grau de reconhecimento social.
173
A própria lógica de existência dessas irmandades contrariava qualquer
perspectiva mais radical em relação à sua atuação: pertencer à irmandade significava
estar em comum acordo com as regras sociais, era comungar dos mesmos valores e
práticas daquela estrutura social, significava aceitar os laços de pertencimento que os
tornavam irmãos em um grupo onde ninguém se conhecia. Uma entidade onde os laços
de coesão e de solidariedade não se estabeleciam pelo parentesco ou por origens
comuns, mas por interesses que os aproximavam e, ao mesmo tempo, os tornavam
partícipes de uma mesma ordem social e religiosa. Pertencer à irmandade era condição
importante para um bom pertencimento à sociedade, era uma garantia de cumprimento
das obrigações e dos princípios que deveriam ser zelados por todo o corpo social.
Pertencimento, aliás, é o termo apropriado para definir a necessidade de estar
ligado a uma irmandade no período colonial; entidade agregadora de sentimentos e
interesses coletivos, que possibilitava a ação em comum para atender aos diversos
anseios e temores econômicos e sociais. No caso que nos interessa para os fins deste
estudo, os grupos profissionais também buscaram se associar para defender seus
objetivos e interesses ligados à prática dos ofícios e às regras comerciais relacionadas a
cada um deles. E cada associação profissional teve, desde cedo, sua existência atrelada
a uma irmandade, entidade que representasse o santo padroeiro e a Bandeira do ofício
correspondente.
A forte influência religiosa junto às corporações e as obrigações religiosas que
os oficiais mecânicos das diversas profissões passaram a exercer - especialmente pela
representação desempenhada nas procissões, onde cada ofício carregava a bandeira do
173
Soares, Mariza. Op. Cit, p. 166.
86
respectivo santo protetor -, explica a designação que receberam de bandeiras.
174
E,
neste caso, as bandeiras dos ofícios funcionavam com uma rigorosa hierarquia
profissional, onde alguns desempenhavam o papel de cabeças, enquanto outros ofícios
eram considerados anexos.
Em relação às bandeiras dos ofícios, tinha-se para os ofícios de pedreiros,
carpinteiros e marceneiros a proteção da irmandade de São José; para os ferreiros e
serralheiros, latoeiros, funileiros, seleiros e outros,, a irmandade de São Jorge; para os
alfaiates, a irmandade do Senhor Bom Homem; para os ourives de ouro e prata, a
irmandade de Santo Elói; para os sapateiros, a irmandade de São Crispim e São
Crispiniano; dentre outras
175
. Assim, para cada ofício havia uma irmandade
correspondente, que carregava a insígnia de um santo padroeiro para o qual os membros
do ofício deviam obrigações. Desta forma, os oficiais mecânicos de cada corporação se
tornavam responsáveis pelos rituais e obrigações relacionadas à Bandeira de sua
irmandade, cuidando dos rituais, procissões e festas do respectivo santo padroeiro, bem
como se responsabilizando pela construção da igreja da irmandade. Os ofícios anexos
sem bandeira, no entanto, podiam formar irmandades próprias distintas, desempenhando
as mesmas obrigações religiosas, mas não ocupavam lugar de destaque nas procissões.
É importante destacar que as responsabilidades dos oficiais mecânicos ligados à
entidade não tinham o sentido de uma “moeda de troca” pela proteção que recebiam da
irmandade, dado que as relações sociais naquele momento se processavam com a
174
“As irmandades e as folias assim como as corporações de ofício, têm seus estandartes e também sua
bandeira, que fica hasteada durante os dias de festa. Segundo Câmara Cascudo, nas festas de São
Gonçalo, em Recife, a bandeira sai pelas ruas à frente do séqüito. Na folia do Divino, ela é carregada
pelo alferes, que corre as ruas recolhendo contribuições para a festa. A bandeira traz a insígnia da
irmandade, e é por estas que as irmandades são identificadas no cortejo.” Apud: Soares, Mariza. Op.
Cit., p. 155.
175
Sobre isso se pode consultar a obra de CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista: a vida e
a construção da cidade da invasão francesa até a chegada da Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2004; ou o artigo de LOBO, Eulália Maria Lahmeyer e outros. Estudo das categorias
socioprofissionais, dos salários e do custo da alimentação no Rio de Janeiro de 1820 a 1930. Revista
Brasileira de Economia, Rio de Janeiro, 27 (4):129-176, out./dez. 1973. Consultar também os códices
do Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro relacionados aos ofícios urbanos.
87
proeminência dos símbolos e valores religiosos. A vinculação a uma irmandade e a
proteção de um padroeiro era muito significativa para o desempenho do ofício e a
certeza de que os artesãos exerceriam sua função em consonância com os princípios e
práticas cristãs. Essa maneira de pensar era parte fundamental da vida social e fazia
parte do cotidiano, o que tornava a função da irmandade fundamental para o
desempenho profissional e o bem-estar social desses indivíduos.
Desse modo, pode-se constatar que várias solicitações feitas à Câmara incluíam
demandas que diziam respeito à corporação e irmandade de determinado ofício, onde
ambas aparecem com interesses interligados, mostrando seus elos de interseção. Esse
foi o caso do relato encontrado nos autos dos oficiais das Bandeiras de carpinteiros e
pedreiros, de 1805, no qual eles apresentavam um agravo ao “Dr. Juiz Prezidente e mais
Officiais da Camara Desta Cidade”, em nome dos agravantes juízes e oficiais das
Bandeiras dos ofícios de carpinteiro e pedreiro novos e velhos da Irmandade de São
José, se queixando a respeito dos artigos da postura de 10 março, que possuía vários
aspectos “prejudiciaes aos Officiais, Corporação e Irmandade dos agg
ees
”, acusando
ainda os artigos de se mostrarem incertos e não estarem de acordo com o compromisso
da irmandade.
176
Esse compromisso, estabelecido entre irmandade e a corporação do ofício
correspondente, dava conta de todos os aspectos ligados ao exercício da profissão,
produção e comercialização das respectivas obras, estando a irmandade responsável
ainda pelas questões ligadas à proteção e garantias de ajuda aos seus irmãos do ofício,
constituindo-se como a base da organização dos ofícios a nível local. Assim, na mesma
documentação referente aos “Autos dos Officies das Bandeiras de Carpinteiros e
176
40-3-93. Autos dos Officiaes das Bandeiras de Carpinteiros e Pedreiros, 1805, fls. 51-51v. AGCRJ.
88
Pedreiro”, um ofício do Escrivão do Senado da Câmara Joaquim Joze Freire Pereira
Soares certificava que:
O Mestre que assistir a fatura de qualquer obra como diretor dela,
ganhará seis centos e quarenta reais por dia, não podendo tomar outra,
(...) tempo necessário para concluir a obra de que estiver encarregado
(...). Qualquer oficial que tiver Carta de Exame, e que trabalhar em
alguma obra, não como Mestre diretor, mas sim como oficial, tendo
Carta de Exame, ganhará quinhentos e sessenta réis. Todo o aprendiz
que será de quatorze annos feitos para principiar a aprender qualquer
ofício, nos primeiros dois anos, será reputado como servente da obra,
e ganhará cento e sessenta réis, nos dois segundos duzentos e quarenta
réis e nos terceiros segundos a trezentos e vinte réis, vindo a ser o
prazo determinado para aprender qualquer ofício o de seis anos,
findos os quais, aqueles que segundo o costume do País terão Carta de
Exame, a poderão tirar, procedendo para isso a exame, e aprovação do
Juiz do Ofício, tirando Carta do Senado, para com ella vencer o
salário, assima taxado: aquelles porem, segundo o costume do País,
que não podem ter Carta de Exame, ou aquelles que a não quizerem
tirar, tendo completos os sobreditos seis anos, fazendo o seu exame,
mostrando aprovação dele a este Senado, vencerão quatro centos e
oitenta réis, e enquanto não apresentarem o dito exame vencerão
quatrocentos réis. Todo o oficial de Carpinteiro e Pedreiro, cujos dois
ofícios vão envolvidos nesta Postura, que excederem os preços nela
determinados, ficarão sujeitos às denúncias dos Proprietários das
obras, ou de qualquer pessoa do povo, impondo-se contra os
transgressores as penas que a Lei estabelece.
177
A imposição de limites ao exercício do ofício era função da irmandade do
respectivo ofício, mas controlada de perto pelo Senado da Câmara. Ao escrivão do
177
40-3-93. Autos dos Officiaes das Bandeiras de Carpinteiros e Pedreiros, 1805, fls. 31-34, AGCRJ.
89
Senado deveriam remeter-se tanto aqueles oficiais que quisessem receber sua Carta de
Exame, aqueles que quisessem se tornar aprendizes, quanto aqueles mestres que
solicitassem autorização para abrir loja na cidade. Ao escrivão cabia também averiguar
o cumprimento das posturas - síntese das normas exigidas pelas autoridades
portuguesas, das demandas dos setores profissionais ligados aos ofícios mecânicos e das
cláusulas estabelecidas pelos compromissos das irmandades. Portanto, as ações das
autoridades junto aos ofícios e aos artífices da cidade não representavam simples reflexo
da vontade do poder régio, mas uma complexa interseção de demandas conquistadas por
esses setores profissionais ao longo do tempo, aliadas às necessidades das populações
locais, que paulatinamente se transferiam para a letra da Lei, até se tornarem um direito.
Num artigo publicado pela revista do patrimônio histórico e artístico nacional,
em 1942, Noronha Santos analisou os autos de execução de 1759 a 1761 entre juízes
dos ofícios de carpinteiros e o réu entalhador Francisco Félix da Cruz. Verificou que a
irmandade de São José, ligada aos ofícios embandeirados de carpinteiros e marceneiros,
pretendia impedir que o entalhador Francisco Félix da Cruz continuasse fazendo obras
de marcenaria, alegando que o seu ofício apenas lhe concedia a competência de executar
trabalhos em talha, oratórios, retábulos e lanternas. Em 1748 - após Francisco Félix da
Cruz ter sido penhorado através do meirinho, condenado a pagar três mil réis por ter
loja aberta de marceneiro e ter quatro aprendizes, sendo o seu ofício o de entalhador e
por não ter sido examinado ou licenciado pela municipalidade -, foi divulgado
provimento que determinava os limites das funções a serem desempenhadas por
carpinteiros e marceneiros e por entalhadores. Em 1754, o compromisso da Irmandade
90
de São José passava a obrigar os juízes de carpinteiros e pedreiros a procederem a
vistoria nas obras da cidade.
178
Sendo assim, a irmandade também deveria designar exatamente a extensão das
funções e do exercício profissional dos artífices, tais como estabelecer as diferenças
entre as diferentes artes mecânicas. Nos Autos de Execução são apresentadas essas
funções no que diz respeito à arte dos marceneiros, carpinteiros e entalhadores, que
muitas vezes se confundiam no dia-a-dia das ruas. No mesmo Auto aparecem
apresentadas as funções que devem ser exercidas pelo tal Francisco Félix da Cruz que
“he Mestre Official do Officio de Entalhador” e que essa função deveria exercer, não
podendo praticar outra para o qual não obtivesse licença. Diz ainda que “Por que ao dito
oficial de entalhador compete, e pertence fazer talha para Igrejas, Capellas,
Oratórios”, esclarecendo que “encaixilhar e sambrar” eram trabalhos que não
pertenciam ao ofício de entalhador, mas sim ao de sambrador.
179
Apesar de grande parte
desses autos de execução estarem pouco legíveis, com partes dos documentos
perdidos pela deterioração do papel, podemos perceber claramente a preocupação dos
agravantes e das autoridades com o estabelecimento de limites para o exercício dos
ofícios nas ruas, funções desempenhadas pelas irmandades dos ofícios, através de seus
juízes. Assim, em outro trecho dos autos, procurava-se apontar as diferenças entre as
funções de marceneiros, entalhadores e emsambladores, e a qual deles era permitida a
talha.
No caso especial desse processo, destacam-se questões que nos saltam aos olhos.
Primeiramente, o acusador de Francisco Félix da Cruz, o entalhador Manoel de Araújo
Furriel , de trinta e três anos, declarava há vinte e um anos exercer o ofício de
178
SANTOS, Noronha. “Um litígio entre marceneiros e entalhadores no Rio de Janeiro. Autos de
execução de 1759-1761”. Rio de Janeiro, Revista do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, n. 06, 1942, pp. 295-371.
Ver também: 40-3-91. Autos de Execução: Carpinteiros e Marceneiros, fls 1202-1776v. AGCRJ.
179
40-3-91. Autos de Execução: Carpinteiros e marceneiros. 1759, fls. 1202-1203. AGCRJ.
91
entalhador tanto na cidade de Lisboa, como no Rio de Janeiro, nunca tendo visto que se
proibissem
fazerem-se nas lojas dos entalhadores qualquer gênero de ornato de
caza nas ditas lojas de entalhadores, levando as ditas obras talha, e
outras sem ela, tendo nellas publicamente os mestres entalhadores
oficiais de marceneiros aos quais se dirigião os ditos entalhadores,
para que pelo seu risco os marceneiros trabalhassem, assim como
também em todo o sobredito tempo em que ele testemunha visto
praticar terem os mestres marceneiros nas suas lojas oficiais de
entalhador para se fazerem as talhas das obras que fazem de
marceneiro.
180
Este processo levantou um grande número de testemunhas, todos artesãos,
elucidando aspectos à respeito do desempenho dos ofícios de marceneiros, entalhadores,
carpinteiros e pedreiros, cujas atitudes pautavam-se pelo que era costumeiramente
estabelecido pelas irmandades do ofício lisboetas e que acabavam sendo seguidas da
mesma forma no Rio de Janeiro. Assim, Manoel de Araújo Furriel, que levantou a
acusação contra Francisco Félix da Cruz, declarava ser lisboeta e ter trabalhado “nas
lojas mais exaltadas” de Lisboa e Rio de Janeiro, destacava seguir o que era executado
pelos oficiais em Lisboa. Na réplica dizia saber que
os entalhadores nesta cidade não são obrigados ao exame, nem
examinados, e o foram em Lisboa, por se anexarem a Bandeira, e
Irmandade dos Marceneiros para entrarem na Caza dos vinte e quatro
alternativamente com os ditos marceneiros.
180
Idem, fls. 1225-1229.
92
As testemunhas de Francisco Felix, por sua vez, declaram que Manoel de Araújo
tinha querelas pessoais e por isso levantava acusação contra Francisco, que era pobre e
possuía mulher e filhos. Luiz da Fonseca Roza, tendo sessenta anos mais ou menos,
declarava que há mais de quarenta e oito anos principiou a aprender o ofício de
entalhador em Lisboa, onde exerceu o ofício durante muitos anos; sabendo que os
mestres entalhadores faziam nas suas lojas toda a qualidade de ornato de Caza, levando
ou não talha, e toda a qualidade de madeira,
sem que nunca os marceneiros se opusessem a isso, porque erão os
que costumavão fazer, e não os marceneiros, porque estes de ordinário
se ocupavão fazer leitos, bancos, bofetes, e que era somente o que lhe
pertencia, ainda que algum se intrometesse a fazer algum ornato de
Caza, que lhe desfarçavam os entalhadores, e nesta cidade
costumavão os entalhadores também fazerem os ditos ornatos de caza
lisos, ou com talha, e não sabe ele testemunha que os marceneiros se
intrometessem.
Domingos de Britto, oficial de marceneiro, tendo por volta de quarenta e quatro
anos, dizia trabalhar muito tempo em Lisboa em casas de muitos mestres
entalhadores, “os quais fazião todo o gênero de ornato de cazas de madeiras, sem que
fossem nunca impedidos pelos marceneiros, porque lhe não pertencião as ditas obras”.
Declarava ainda que estando há mais ou menos vinte anos no Rio de Janeiro, presenciou
que os entalhadores nas suas lojas, faziam e fazem obras de talha, assim como muitos
marceneiros tinham nas suas lojas oficiais de entalhador, e que até o momento ele não
sabia que os marceneiros impedissem os entalhadores de fazerem as obras.
181
Por sua
vez uma testemunha de sobrenome Rodrigues, oficial de marceneiro, com mais ou
181
Idem, fls. 1225-1229.
93
menos trinta e três anos, dizia não saber e nunca ter ouvido dizer que o Compromisso de
São José ou da sua Irmandade tratasse ou falasse dos entalhadores, “porque estes não
são, nem nunca forão examinados”, acrescentando ainda que os pedreiros e carpinteiros,
ourives e artesãos de outros ofícios se valiam muitas vezes dos entalhadores e chegavam
a ter deles dependências para alguns riscos, enquanto os entalhadores não dependiam
dos ditos ofícios para coisa alguma. Antonio Correa de Carvalho, oficial entalhador,
com mais ou menos trinta anos, com loja de entalhador na cidade onze anos, dizia
sempre ter visto que estes que moviam a ação contra Francisco Félix da Cruz e outros
tiveram em suas lojas os oficiais que fizessem toda a qualidade de ornato de Cazas lisas,
ou com talha, e da mesma sorte os mestres marceneiros, tendo em suas lojas
entalhadores e limpadores, tendo feito obras lisas e de talhas, sem que tivessem tido
proibição alguma. Esclareceu também “que o sabe nem ouviu nunca dizer, que os
Entalhadores, fossem Examinados, nem sujeitos a Bandeira, ou Irmandade alguma”. Da
mesma forma, Francisco da Silva, oficial de entalhador com mais ou menos vinte e sete
anos, declara que nove anos trabalhando como entalhador “nesta terra” nunca tinha
sido proibido aos marceneiros terem nas suas lojas oficiais de entalhadores ou
limpadores de talha, assim como nunca soube que os entalhadores fossem proibidos de
fazerem em suas lojas ornato de cazas lisas ou com talha. Declarou ainda ter exercido
seu ofício de entalhador de talha nas cidades de Braga e do Porto, locais em que viu
serem feitas “toda a casta de ornato de caza liza e com talha, sem que se opusessem os
Mestres marceneiros.”
182
Neste processo importa menos as divergências entre as testemunhas e
acusadores, nos interessando alguns aspectos referentes à relação entre esses artesãos na
cidade do Rio de Janeiro. Primeiramente, é importante destacar que estes autos datam
182
Idem, fls. 1229-1232v.
94
dos setecentos, se estendendo entre 1769 e 1771, período em que estas associações
profissionais se proliferavam e se organizavam na cidade. A própria cidade do Rio, que
recentemente havia se tornado capital, adaptava-se ainda às mudanças abruptas
decorrentes do fluxo intenso de imigrantes e de comércio para a região das minas, e de
toda a importância econômica que a região fluminense despertara nas últimas décadas.
Aliado ao crescimento populacional e econômico, esteve também o crescimento de
entidades que representavam interesses dos diversos grupos profissionais da cidade,
sobremaneira dos artesãos, que secularmente se reconheciam organizados em suas
Bandeiras em Portugal.
A partir da análise historiográfica que vem sendo desenvolvida desde a década
de setenta, relativa ao estabelecimento de negociantes e o seu crescimento e sua
importância na região fluminense,
183
é importante atentarmos para o fato de que outros
grupos profissionais também apareceram ou tiveram um aumento significativo na
cidade a partir da segunda metade dos setecentos. Ao longo desse período o aumento da
demanda por serviços de variadas espécies, tornou necessária não apenas a vinda de
trabalhadores de Portugal que trouxessem na bagagem sua experiência profissional,
como também uma maior procura por artífices que já viviam na colônia e praticavam as
artes mecânicas. Neste aspecto, o caso dos ofícios mecânicos na cidade do Rio de
Janeiro foi exemplar, demonstrado pelo aumento do número de lojas e oficinas que
funcionavam na cidade, como vimos no primeiro capítulo.
183
Refiro-me à ampla produção historiográfica dos últimos anos, que têm como base os estudos de:
DIAS, Maria Odila da Silva. “A interiorização da metrópole (1808-1853)”, in: MOTTA, Carlos
Guilherme (Org.). 1822: Dimensões. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972, pp 160-184;
GORENSTEIN, Riva. “Comérico e política: o enraizamento de interesses mercantis portugueses no Rio
de Janeiro (1808-1830)”. In: Negociantes e caixeiros na sociedade da Independência. Rio de Janeiro:
Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, DGDIC, Divisão de Editoração, 1993;
FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de Grossa aventura: acumulação e hierarquia na Praça do Rio
de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992. Importante também a análise sobre o
a intersecção entre o modelo implementado pelo projeto colonizador português e os interesses mercantis
e agrários no Rio de Janeiro entre final dos setecentos e início dos oitocentos: FRAGOSO, João Luís
Ribeiro e FLORENTINO, Manolo. O Arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e
elite mercantil no Rio de Janeiro, c. 1790-1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
95
Em segundo lugar, destaca-se nos autos a importância dada pelos depoentes às
práticas desempenhadas pelos oficiais mecânicos e pelos mestres em Lisboa,
representando um exemplo para o desempenho dos profissionais aqui na colônia. Por
mais que o surgimento dessas associações entre profissionais tenha respondido às
demandas internas, tanto pelos serviços quanto pela organização desses profissionais, é
inegável que a experiência trazida na bagagem desses artesãos era fundamental como
referência das práticas profissionais a serem adotadas na colônia. Além disso, é preciso
lembrar que como em todos os aspectos seguiam-se os costumes e leis adotadas na
metrópole, a tendência é que no aspecto profissional a sociedade agisse da mesma
forma, pautando-se pelas práticas profissionais seguidas em Portugal. Assim, não
estranhamento no fato desses mestres se pautarem pelos costumes dos artífices
lisboetas.
Analisando estes mesmos depoimentos, nota-se a delicada rede de organização
que precisava envolver essas associações para que os conflitos fossem amenizados.
Afinal, eram incontáveis as diferenças minuciosas entre as funções a serem
desempenhadas por mestres de diferentes ofícios. Além disso, muitas vezes, as funções
desses oficiais e as necessidades práticas acabavam tornando necessárias que eles
sofressem uma intersecção, que entrassem um pouco na esfera do outro, a fim de
concluírem a produção de sua obra, mostrando também a dependência que tinham uns
dos outros. Neste sentido, as irmandades exerceram o papel fundamental de
organização de normas e direcionamento da produção, garantindo o cerco ao público
específico consumidor de cada obra e aos aspectos diferenciadores das diversas artes
mecânicas.
A importância de ter o conhecimento do regimento, em alguns ofícios, fazia-se
essencial para a própria segurança do artífice junto ao governo e as leis. Esse foi o caso
96
dos ourives, artesãos que sofreram estrito controle ao longo dos séculos XVIII e XIX
devido à manipulação direta dos metais preciosos e as enormes possibilidades das quais
dispunham de falsificação e contrabando.
Um caso interessante, descrito por Raimundo Trindade
184
no levantamento da
documentação referente aos ourives de Minas Gerais, mostra a reivindicação de João de
Lana, ourives da cidade de Vila Rica no século XVIII, que emigrou para o Brasil depois
de exercer o ofício de ourives na França, na cidade de Baiona, por herança de sua
família de artífices. Ele pleiteava junto ao Senado da Câmara o regimento do ofício dos
ourives do Rio de Janeiro, para que pudesse exercer o ofício de ourives ensaiador, para
o qual tinha habilitação comprovada em sua cidade natal, havendo solicitação do
Senado para que houvesse provação de dois ensaiadores (um de ouro e um de prata).
185
Para tanto, declarou ter conhecimento do regimento lisboeta e pressupunha que os
capítulos seguissem o mesmo regimento, para isso solicitava o daqui para constatar se
conferia com o de Lisboa:
(...) Dis Joáo de Lana morador da Freguesia de Nossa Senhora da
Conceyçáo de Antonio Dias de Villa Rica, que por beneficencia do
ilustre Senado dadita Villa foi aceyto emsayador dos Ourives, ecomo
para exercer odito officio lhe he necessário regimento doqual havendo
de ser provido, necessita deque este que aprezenta seconfira com
odeLisboa, pelo qual se rege oEnsayador desta Cidade, portanto//
184
TRINDADE, Raimundo. Ourives de Minas Gerais nos séculos XVIII e XIX. Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 12, 1955.
185
Ibidem, p. 113. Segundo os termos do escrivão, era preciso que “o senado prouvesse dous officios de
emsayadores elegendo para estas occupaçóes hum Ourives de Ouro, e outro daprata, pessoas de toda
averdade, econfiança com a sciencia ncessaria pera cada hum delles, pelamparte que lhe tocar examinar
todas as partes que os Ourives de hum e outro officio Lavrar, apurandose setem os quilates dinheyros, e
gráos que na Ley seespecificáo (...)”. Ou seja, nem todo ourives tinha a habilitação para ser ensaiador.
Este tinha a incumbência de ensaiar e marcar as peças dos outros ourives, recebendo autorização
especial da mara para o desempenho desta função. Pelo regimento, os ourives deveriam pôr a sua
marca em cada uma das barras, levá-las ao ensaiador para ensaia-las, e achando que tivessem os quilates
estipulados em lei ele as marcaria com a marca do ensaiador, entregando-as aos vazadores (Regimento
dos contrastes e ourives do Rio de Janeiro no século XVIII, capítulo 5°).
97
Pede avossa mercê que como digníssimo-Prezidente daCamara seja
servido mandar que oprezente regimento seja visto, econferido
comodesta cidade pelo ensayador della, eestando conforme passe
certidão para que reconhecida possa darse inteyra aodito regimento
no Senado dadita Villa (...).
186
Mesmo tendo recebido a autorização para exercer o ofício, fazia-se necessário o
pleno conhecimento das normas regimentais vigentes no ofício local. Isso reforça a tese
de que os ofícios não se constituíram aqui como mera reprodução das congêneres
européias, apresentando peculiaridades relacionadas ao contexto local. Além disso,
mostra também a força dos regimentos para o exercício cotidiano dos ofícios no meio
urbano.
Assim, as corporações de ofícios existentes na cidade foram também se
organizando internamente e passando a exercer funções cada vez mais amplas e mais
complexas no meio urbano, adequando-se a mudança dos tempos. O crescimento do
número de artesãos, da demanda pelos seus serviços, da quantidade de lojas e da
enormidade de obras falsificadas, fazia com que as autoridades se preocupassem e as
irmandades buscassem estratégias para unificar regras e exercer maior controle sobre o
trabalho dos artífices no meio urbano. Por outro lado, também as necessidades dos
artesãos aumentavam nos novos tempos, em que cada vez mais era preciso se proteger
profissional e economicamente, a fim de que se mantivessem seguros no exercício do
ofício. Neste processo de crescimento e desenvolvimento urbano, as irmandades junto
aos ofícios desempenharam um papel fundamental de organização da vida social,
profissional e econômica na cidade.
A irmandade destacava-se como a base econômica de sustentação das
corporações e para o desempenho dos ofícios. Isto porque eram elas que organizavam
186
Ibidem, p. 122.
98
toda a estrutura econômica ligada ao exercício profissional dos artífices, cuidando desde
a autorização para a prática do ofício, através da concessão da carta de exame, até o
preço dos produtos comercializados pelos artesãos. Assim, era a irmandade responsável
por fiscalizar os ofícios, cuidando de todas as condições para o exercício da mão-de-
obra do artífice na cidade; cobrava jóia dos mestres que possuíam loja aberta na cidade
e puniam aqueles que o cumprissem suas obrigações; determinavam as regras para o
exercício do ofício e para a admissão de aprendizes, através do estabelecimento de um
compromisso ou regimento, que muitas vezes baseavam-se nos princípios de suas
congêneres européias. Neste caso, a irmandade da colônia, junto aos juízes dos ofícios,
tinha o poder de adequar essas regras “originais” às condições locais de trabalho e da
mão-de-obra. Não podemos entender esses procedimentos como se essas irmandades se
constituíssem em mero reflexo das congêneres européias, que as razões para a sua
fundação foram criadas a partir de demandas e características locais. Além disso, com
compromissos e estatutos que deveriam ter aprovação régia, elas precisavam adequar-se
formalmente às normas seguidas em Portugal.
Outro aspecto de ordem econômico-social das irmandades era a função de
assistência e auxílio mútuo que garantiam a proteção e segurança dos artífices,
mantendo a irmandade como a provedora de auxílio nos momentos de doença, morte ou
de necessidades. Essas irmandades também exerciam a função de bancos, concedendo
empréstimos e créditos, além de ajuda material aos irmãos que precisassem,
constituindo-se em uma das principais responsáveis pelos empréstimos em uma época
em que o sistema financeiro não havia se consolidado:
Na primeira metade do século XIX, o sistema de crédito e financeiro
estava ainda numa fase de transição. Compunha-se das irmandades
ligadas às corporações e ofícios, da Mesa do Bem Comum, espécie de
99
associação dos comerciantes, depois absorvida pela Junta do
Comércio, pelos vales emitidos pelos negociantes e pelo Banco do
Brasil em que o governo dominava e bancos comerciais.
187
Em uma cidade como o Rio de Janeiro, onde as irmandades ligadas aos ofícios
proliferaram desde o século XVIII, essas entidades tornaram-se fundamentais para a
sustentação econômica dos ofícios mecânicos na cidade. O desenvolvimento do
comércio e o crescimento urbano eram acompanhados pelo progressivo aumento de
poder e de influência dessas entidades junto à vida social e econômica local. Sua
proeminência nessas esferas aumentava também a necessidade do poder régio espiar de
perto suas atividades, coibindo a extensão do seu poder além do permitido pelo
governo.
A partir da análise desenvolvida a respeitos dos elos que ligavam essas
associações profissionais de oficiais mecânicos às irmandades, podemos pôr em questão
as opiniões de Russell-Wood a respeito do assunto. Em duas de suas principais
obras
188
, o autor apontou uma diferenciação entre as associações de natureza
profissional e as irmandades leigas, considerando uma “visão estreita” de acordo com
suas palavras a idéia de que as associações profissionais apresentariam uma face civil
e uma faceta religiosa. Segundo Russell-Wood, as corporações profissionais ligadas a
uma irmandade teriam sido extremamente raras, uma vez que as irmandades
orgulhavam-se de sua independência. Segundo ele,
187
Lobo, Eulália et alii, op. cit, p. 141.
188
Refiro-me aos seguintes livros: RUSSELL-WOOD, A.J.R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa de
Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1981 (Coleção Temas
Brasileiros, 20), pp. 9-12; Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2005, p. 203.
100
as associações de artesãos seguiam um ‘regimento’, ou corpo de
normas, aprovado pelo conselho municipal ou pela Coroa, enquanto
que as irmandades tinham a flexibilidade de um ‘compromisso’, ou
estatuto, baseado na confiança mútua.
189
De acordo com esta opinião, o autor diferencia as associações profissionais das
irmandades religiosas, chegando a alertar o leitor para que não as confunda com as
corporações ou guildas de artesãos “cujos membros tinham que cumprir exigências
profissionais”, distinguindo assim os interesses profissionais dos interesses específicos
ligados às irmandades.
190
Conforme vimos anteriormente, os interesses profissionais,
assim como todos os demais aspectos da vida social, estavam umbilicalmente ligados às
irmandades religiosas, não havendo nítida dissociação entre o material e o espiritual,
pelo menos até a metade do século XIX. Somente a partir do segundo quartel dos
oitocentos, as irmandades começaram a entrar em lenta decadência junto aos ofícios e, a
partir de então, as diferenças entre os interesses profissionais e os interesses religiosos
passaram a ser mais claramente delineados. Portanto, até este momento, os interesses
em torno das questões profissionais, étnicas, econômicas ou culturais não estavam
completamente dissociados das preocupações espirituais.
Outro aspecto em relação à análise desenvolvida por Russel-wood, diz respeito à
origem dessas corporações profissionais, quando elas se formaram em torno dos ofícios,
ligando-se com o tempo às respectivas irmandades dos santos protetores. O autor
estabelece uma distinção que sugere uma completa separação entre essas entidades,
como se fossem absolutamente diferentes, não havendo relação entre elas. No entanto,
os ofícios estavam imbuídos de responsabilidades religiosas que diziam respeito às
festividades e aos rituais do calendário católico relacionados aos seus santos, além das
189
Russell-Wood, A. J. R. Op. Cit.(1981), p. 9.
190
Ibid (2005), p. 203.
101
obrigações religiosas que possuíam junto à população onde residiam. Ele distingue
ainda as sociedades de artesãos das confrarias, apontando que as primeiras tinham como
objetivo proporcionar auxílio social aos artesãos da respectiva corporação, enquanto as
confrarias buscavam a ajuda mútua e seus membros provinham de classes sociais
diferentes, desempenhando funções caritativas mais amplas
191
. No entanto, desde sua
gênese, os ofícios nunca se entenderam divorciados da esfera religiosa e das
preocupações espirituais, estando ambas as preocupações estreitamente relacionadas.
Tal era a importância local das confrarias e irmandades, que elas exerciam funções
expressivas inclusive na organização da vida urbana, tendo surgido a partir das
especificidades de cada localidade e das necessidades de cada ambiente urbano e grupo
social específico, não deixando de fazer-se presente, portanto, entre os artesãos.
As irmandades possuíam largas funções na esfera econômica da cidade,
vinculando suas obrigações religiosas às práticas exercidas junto aos irmãos, o que
justificava a sua existência. Elas floresceram no meio urbano exatamente porque
podiam agregar aos seus fins religiosos as preocupações dos variados setores sociais
que conviviam nas cidades, bem como possuíam instrumentos para agir em torno de
suas demandas. Assim, se formaram ao longo do período colonial da América
portuguesa irmandades com diversas finalidades, atendendo à variada gama de
interesses que passava a fazer parte do cotidiano das pessoas. O incremento comercial
de cidades como Salvador, Rio de Janeiro e da região das Minas Gerais se deu
paralelamente ao surgimento de irmandades religiosas, que passaram a cuidar de todos
os aspectos ligados à vida social, tornando-se ainda responsáveis pela construção de
templos e pela contratação de religiosos para a prática dos ofícios, em alguns casos.
192
191
RUSSEL-WOOD, A.J.R. Op. Cit, pp. 2-10.
192
BOSCHI, Caio César. Op. Cit., p. 2.
102
Essa análise esbarra em duas importantes posições de Caio César Boschi com
respeito às irmandades montadas na sociedade colonial. Primeiramente, o autor
contestou as posições de Russel-Wood e de Julita Scarano, que partiram do princípio de
que as irmandades foram adaptações locais de instituições européias ou que elas teriam
aparecido no Brasil ligadas às instituições medievais. E, neste caso, o autor optou pela
ênfase às peculiaridades e singularidades das fraternidades mineiras, apontando que em
Minas elas nasceram e se organizaram extrapolando meramente as funções espirituais,
mas tornando-se responsáveis pelas diretrizes de uma nova ordem social que se
instalava naquela região, precedendo o Estado e, até mesmo, a Igreja.
193
Neste sentido,
mostrou que as irmandades, com suas respectivas devoções e padroeiros, surgiram
mediante a necessidade, a partir da constituição de grupos com demandas e interesses
específicos:
Enquanto não se estratificou a sociedade mineira, praticamente
inexistiram irmandades sob a invocação de São Gonçalo e/ou São
Gonçalo Garcia, protetor dos homens pardos. O mesmo sucedeu com
o surgimento das Ordens Terceiras, instituídas basicamente por
comerciantes, funcionários graduados, militares e intelectuais, que
também se organizaram em meados da centúria. (...) Nos
momentos em que o militarismo e a opressão repressiva foram mais
efetivos, não foi por acaso que surgiram irmandades do Senhor dos
Passos. Quando se desenvolveu um surto artístico, não deve causar
estranheza o advento de irmandades de São José, protetor dos
artífices.
194
Essa observação abre uma perspectiva de análise que nos leva a refletir sobre a
extensão dessas relações entre as irmandades coloniais e as congêneres européias. Na
verdade, Boschi apontou para o fato dessas irmandades não terem sido montadas na
193
Ibidem, pp. 22-24.
194
Ibidem, p. 25.
103
colônia puramente como obra dos interesses da metrópole, mas como resultado também
de demandas internas e pressões endógenas específicas, que teriam propiciado o
florescimento dessas entidades na colônia. Portanto, embora teoricamente a
invocação e o culto dos santos tenham sido incentivados por decretos reformistas do
Concílio de Trento, eles correspondiam a reivindicações essencialmente imediatistas e
temporais, retratando o caráter intimista e familiar do culto”.
195
Em muitos casos,
segundo o autor, nem mesmo teria chegado a se constituir um compromisso pela
irmandade, embora elas não deixassem de ter suas normas e de exercerem suas funções
junto à população local.
Neste sentido, Boschi reforça o caráter espontâneo das confrarias fundadas na
sociedade colonial. A multiplicidade de confrarias que surgiram, especialmente no caso
de Minas, a partir do século XVIII, aponta para um processo espontâneo e com alto grau
de iniciativa popular no sentido de fundar entidades que correspondessem às suas
expectativas sociais, em um movimento “de baixo para cima, de livre vontade dos
habitantes e não algo imposto pela metrópole”, o que também as tornaram alvos do
controle estreito e de suspeição por parte das autoridades coloniais e metropolitanas.
196
Um segundo aspecto refere-se à peculiaridade do processo associacionista
português, no qual as irmandades tiveram esse espírito como parte de sua origem, onde
a população buscava proteger-se das dificuldades sociais, mediante a ausência de
atuação do poder público nessa esfera. Neste sentido, a sociedade portuguesa teria
mesmo desenvolvido como traço marcante um caráter mutualista, através do qual as
associações defendiam interesses comuns e se formavam aleatoriamente, “sem que
houvesse uma força comum a reuni-los”. As associações de profissionais do mesmo
ofício apareceram como as primeiras formas de mutualismo, onde reuniam interesses
195
Idem.
196
Ibidem, pp. 28-30.
104
específicos e demandas de grupos que tinham interesses e clareza de suas dificuldades e
objetivos em comum. Neste caso, ainda segundo Boschi,
a conseqüência natural foi que elas somente se solidificaram em
determinados agrupamentos sociais onde existiam traços de afinidade
mais precisos e estreitos, verbi gratia, entre profissionais domiciliados
e estabelecidos numa mesma rua.
197
Destaca-se nessas idéias o princípio de que a assistência mútua foi exercida
desde o início vinculada às profissões, originando-se desde então os primeiros hospitais
portugueses e, posteriormente, os “hospitais de ofícios”. Assim, embora essas primeiras
associações portuguesas, ligadas aos ofícios, fossem laicas, elas não teriam nascido sob
inspiração da Igreja Católica e passaram a desempenhar com o tempo funções mais
amplas do que as das corporações, pois que contando com o apoio eclesiástico e Real,
tornaram-se “instrumento da reforma das atividades assistenciais.”
198
Esta análise levou Boschi a refletir que o estímulo à fundação das irmandades da
misericórdia na metrópole e nas colônias se deu pela importância que elas passaram a
desempenhar junto aos povos, não como mera imposição de cima para baixo. Também
no sentido de manter sob controle a diversa gama de associações que se proliferavam, o
poder régio acabou tratando essas irmandades como importantes “órgãos auxiliares”,
constituindo-se em “elementos mediadores entre as associações e os limites do controle
real.”
199
O autor destacou que as confrarias desempenhavam a função de “catalisadoras
de individualidades atemorizadas pela morte e pela doença e ávidas por um espaço
político”. Essas funções as tornavam reconhecidas pelo corpo social como
197
Ibidem, p. 51.
198
Ibidem, pp. 52-53.
199
Ibidem, p. 55.
105
amenizadoras das tensões sociais, entidades onde os anseios individuais e sociais
poderiam ser canalizados para práticas de ajuda mútua. Para o autor, especialmente as
irmandades de negros sentiam esta dimensão de liberdade da irmandade, na medida em
que esta se tornava o núcleo local onde ele poderia viver como um ser humano,
esquecendo sua condição cativa. “Em síntese, as irmandades funcionavam como
agentes de solidariedade grupal, congregando, simultaneamente, anseios comuns frente
à religião e perplexidades frente à realidade social.”
200
Neste caso, elas também não
poderiam ser vistas, de acordo com a opinião do autor, como simples expressão dos
centros desenvolvidos, mas como representação de uma demanda desencadeada no
interior da própria sociedade colonial, com sua cultura, seus anseios e suas contradições,
tendo se constituído como entidades representativas dos interesses das populações
locais.
201
A partir dessa análise é possível inferir ainda uma outra questão a respeito do
papel das irmandades na sociedade colonial. Numa sociedade escravista, as irmandades
acabaram se tornando importantes elos de coesão entre trabalhadores não escravos
para os quais não era nada fácil conseguir trabalho -, bem como para os cativos, que
tinham nelas não apenas um refúgio que alimentava esperança e geria possibilidades de
atuar junto aos processos de alforria, mas também a manutenção de laços culturais
importantes para a sobrevivência emocional desses trabalhadores em suas condições
adversas. O trabalho dos oficiais mecânicos e dos artesãos se constituía em uma
possibilidade de especialização do trabalho, onde livres pobres e os libertos poderiam
atuar sem que fossem equiparados aos escravos. No entanto, sabemos também que
conflitos de várias ordens ocorreram quando entravam em contato, no mesmo ofício,
oficiais artesãos de diferentes origens étnicas. Ao mesmo tempo, as irmandades
200
Ibidem, p. 14.
201
Ibidem, p. 31.
106
também se constituíam em importantes canais de adequação à ordem, impedindo
manifestações mais radicais de qualquer espécie.
Nesta linha de preocupação das autoridades com as práticas das irmandades no
cotidiano da população da colônia, A Irmandade de Santa Rita dos Homens Pardos
enviou ao rei o seu compromisso, solicitando aprovação, informando não haver nada
nos capítulos que fosse contrário às providentes Leis e Pias Intençoens de Vossa
Alteza”, dizendo ser importante que semelhantes corporações tivessem uma lei peculiar
por que se vejão, e governem os Irmãos da referida Irmandade”, a fim de que
evitassem as desordens.
202
Visualiza-se nesta solicitação que a designação dada às corporações estendia-se
além daquelas associações vinculadas aos ofícios, ligando-se às demais associações
protegidas pelas irmandades. Na realidade, o termo corporação foi recentemente
designado àquelas associações de mercadores e artesãos, que no período medieval eram
denominadas “Artes”, e vastamente utilizado a partir do século XVIII e XIX para
designar essas associações profissionais conhecidas como grêmios ou guildas. Assim, o
significado atribuído a tais associações acabou sendo prenhe dos significados modernos
atribuídos à palavra corporação. Segundo Antonio Santoni Rugiu, antes do final do
século XIX, o termo corporação era raramente utilizado para designar as artes
mecânicas, e “essas ‘artes’ foram não ‘simples associações de produtores de bens’, mas
‘ligas profissionais caracterizadas por direitos e deveres particulares, por privilégios
ou por vínculos reconhecidos e garantidos pelo poder público, ele mesmo, em medida
mais ou menos sensível, condicionado pelas organizações das artes presentes no
território”.
203
Portanto, é preciso ressaltar que o sentido associativo e mutualista dessas
entidades eram tão fortes e importantes quanto a importância de se protegerem
202
Códice 952, vol. 47. Cartas Régias, provisões, alvarás... Arquivo Nacional, s/d, fl. 292.
203
RUGIU, Antonio Santoni. Nostalgia do mestre artesão. Introdução de Demerval Saviani. Campinas,
SP: Autores Associados, 1998 (coleção memória da educação), pp.23-24.
107
economicamente e garantirem a manutenção de direitos e de privilégios. Sobretudo a
partir das críticas iluministas às guildas européias, essas associações passaram a ser
lembradas muito mais pelo aspecto monopolista - ligado aos empecilhos econômicos
que representavam ao livre cambismo -, do que por suas funções assistencialistas, de
ajuda mútua e pelo papel social que desempenharam.
As irmandades do ofício, portanto, desempenharam um papel importante nas
relações sociais e de trabalho do período colonial; ajustavam-se à sociedade escravista,
mantendo em suas fileiras a garantia de controle sobre o trabalho manual e sobre o
comércio artesão pela cidade. Se para os trabalhadores que se integravam às
irmandades elas representavam proteção, o papel que tiveram a desempenhar na ordem
sócio-econômica foi bem mais amplo: salvaguardavam o trabalho livre, mantendo
tradições seculares de disciplina e organização dos ofícios, nas quais as corporações
espelhavam as desigualdades e hierarquias da ordem social colonial escravista. Os
conflitos entre o regime corporativo e a progressiva liberalização do comércio e das
manufaturas,
204
acabaram levando aos debates que inflamaram na década de 1820 a
respeito da proibição das corporações de ofícios no Brasil.
204
Silva, Maria Beatriz N. da (Coord.). Nova História da Expansão Portuguesa: O Império Luso-
brasileiro (1750-1822). Lisboa: Editorial Estampa, 1986, vol. III, pp. 251-252.
108
Capítulo 3
A Pedagogia do Artesanato: relações de ensino e aprendizagem nas
Corporações de Ofícios
Viva e presente no cotidiano dos trabalhadores das oficinas estava também a
narrativa, que teve as oficinas artesãs como berço e escola, onde o conhecimento era
transmitido aos mais novos, como saber adquirido e reconhecido pelo grupo social, e
traduzido para a prática do ofício através da figura do mestre. Como belamente
descreveu Walter Benjamim,
205
a respeito da “experiência que anda de boca em boca”
sendo a fonte onde todos os narradores bebem, lembrou-nos a decadência da narrativa
ao longo dos séculos. E, neste caso, ele distinguiu o papel exercido por ela nas
corporações de ofícios medievais, alçando-a ao pedestal onde se dava a “extensão real
do mundo das narrativas, na sua plena dimensão histórica”. Essa tradição oral, aos
poucos declinante com a ascensão do romance e da informação, desempenhou também
precisa função pedagógica no processo de desenvolvimento do trabalho artesanal.
E a própria linguagem parece ter sido um forte elemento para romper os muros
das oficinas, os códigos indecifráveis dos artífices, rompendo-se os segredos dos ofícios
com o concomitante rompimento do “segredo da linguagem”. Não existiam manuais
para os aprendizes ou textos escritos deixados por mestres e oficiais, e mesmo os
compromissos das corporações não tinham a função de servirem como manuais para o
ofício. Neles, procuravam-se sobremaneira os deveres dos artesãos do ofício e os
205
Benjamim nos presenteia com a análise da obra de Nikolai Lesskov, refletindo sobre a decadência da
narrativa. Ver: BENJAMIN, Walter. “O Narrador”, in: Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política.
Lisboa: Relógio D’Água, 1992, pp. 27-57.
109
compromissos firmados com os demais membros da corporação. Assim, mantinha-se a
partir da tradição oral a preservação dos segredos ou mistérios do ofício.
206
Ao que parece, o domínio dos segredos da linguagem dos artesãos foi
a porta pela qual se entrou no domínio dos próprios segredos dos
ofícios. Dentre os mistérios dos misteres, a linguagem foi o primeiro
a ser desvendado, decifrado e jogado na rua pelas portas e janelas
arrombadas das oficinas – numa espécie de ação de despejo – para ser
vista por todo mundo.
207
E essa porta de entrada para os segredos dos ofícios, propiciada pela linguagem,
esteve atrelado um modo particular de preocupação com a técnica, concebida enquanto
ciência, em determinado momento histórico. Assim, o mesmo autor aponta que “ao
descobrimento e ao domínio da linguagem e dos segredos técnicos seguem-se as
iniciativas de sistematização desses conhecimentos e de sua incorporação ao processo
produtivo nitidamente capitalista.”
208
Ao mestre não cabia unicamente a função instrutora do ofício, mas o caráter
educativo do processo de aprendizagem profissional, individual e social do aprendiz. O
estabelecimento da relação entre mestre e aprendiz era, em alguns casos, determinado
pela família deste último, que designava a um mestre o menino que aprenderia o ofício,
206
GAMA, Ruy. A Tecnologia e o Trabalho na História. São Paulo: Nobel/ Editora da Universidade de
São Paulo, 1986, p. 86.
207
Idem, p. 48. O autor cita como exemplo da permanência da tradição oral os Companheiros franceses,
movimento que teria se constituído a partir das cruzadas, quando os pedreiros, canteiros e carpinteiros
que acompanhavam os cruzados constituíram “uma espécie de corpo de engenheiros militares”, tendo
introduzido na França a geometria (usada no corte) de pedras e a estereotomia (arte que fundamenta a
técnica de construção gótica). Não tinham a prática escrita como fator para difundir seus deveres, tendo
sido tudo transmitido oralmente, por teoremas e memorização. Segundo o autor, mesmo após a
extinção oficial das corporações, em 1791, “os Companheiros se mantêm na única organização de
trabalhadores que se desenvolve até a Restauração e que entra em decadência na segunda metade do
século XIX” (Ver: pp. 92-94).
208
Ibidem, pp. 57-59. Segundo o autor, um importante passo adotado em relação ao domínio das técnicas
foi a criação da Escola Politécnica francesa, em 1795. Segundo ele, à criação da Escola Politécnica,
correspondeu, na mesma cada, na França, à promulgação da “Lei da Liberdade do Trabalho”
tornando-se proibida, a partir de então, qualquer forma de organização dos trabalhadores, sendo extintas
as corporações de ofícios e suprimidos os privilégios das profissões (lei de 1791). Em 1793, por sua
vez, dava-se vida ao Licée des Arts, propondo o ensino de artes dirigido ao “mercado de trabalho”.
110
que serviria para toda a sua vida. Neste sentido, todo o processo de transmissão do
conhecimento era mantido através da cultura oral, onde a narrativa desempenhava
importante função social e profissional na formação dos jovens artífices. Além disso, o
processo pedagógico extremamente rígido era inteiramente conduzido pelo mestre
artesão, a quem o aprendiz devia algumas obrigações até que concluísse o seu período
de aprendizado e se tornasse oficial. Entre as obrigações estava incluído o exercício do
ofício, livre de remuneração durante o período compreendido pela fase do aprendizado.
A extensão simbólica do leque de saberes e da importância social atribuída ao
mestre pode ser apreendida através da definição do termo, encontrada no dicionário de
Antonio de Moraes Silva, para o qual Mestre é o homem que ensina alguma sciencia, ou
arte. O que sabe bem qualquer coisa.
209
O desempenho pedagógico do mestre não estava sujeito a controle ou
regulamentação externa, dando-se fundamentalmente nas relações do âmbito privado e
familiar. No entanto, uma dimensão pública desse processo pedagógico acabou sendo
viabilizada pelas irmandades ligadas aos ofícios nas regiões onde elas tiveram atuação
significativa - que garantiam a existência de alguns procedimentos comuns para que
houvesse uma relativa homogeneidade no processo de trabalho no interior das oficinas.
Assim, através das medidas régias - mantenedoras do controle estatal sobre os
compromissos – todos os aspectos que envolviam a sua elaboração passavam pelo crivo
real, inclusive mínimos aspectos tais como as anuidades cobradas e qualquer eventual
alteração que fosse feita nessa cobrança.
210
Nenhuma medida que se referisse ao
funcionamento e cotidiano das irmandades dos ofícios estava fora dos limites de
controle do rei.
209
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario de Língua Portuguesa. Fac-símile da segunda edição (1813).
Rio de Janeiro: Oficinas da S.A. Litho-typographia Fluminense, 1922, p. 294, tomo II.
210
Sobre esse assunto, ver SCARANO, Julita. Devoção e Escraviddão: a Irmandade de Nossa Senhora
do Rosário dos Pretos no Distrito Diamntino no século XVIII. 2ª ed.. São Paulo: Ed. Nacional, 1978, pp.
21-23.
111
No Rio de Janeiro, no primeiro quartel do século XIX, uma auto da corporação
dos marceneiros e carpinteiros revelava um artifício criado por um mestre artesão para
“prender” um aprendiz no ofício, e como alguns contratos eram feitos à revelia do
aprendiz, com contratos firmados com a família deste. No auto, revela-se o acordo feito
entre o mestre e os pais de um menino de doze anos, em 1816, para que aprendesse o
ofício, acordando-se sobre a falsificação da sua idade. Ao longo do tempo, o aprendiz
quis desistir do ofício, tendo sido preso pela Intendência Geral de Polícia e obrigado a
completar o tempo da “obrigação”, sendo absolvido em 1819 e tendo decorrido três
annos, inda nelle alegava ter o suplicante (...) treze para quatorze anos, quando pela
certidão junta mostra ter vinte annos. O pedido do suplicante Agapito Joze de Abreu
era para que José Joaquim dos Reis tivesse a sua carta de exame cassada, em
decorrência da falsificação de idade do aprendiz.
211
Ainda mais interessante, foi o relato incluso no auto que denotava a falta de
controle sobre o trabalho dos aprendizes na Corte. Curiosamente, revela-se também uma
noção peculiar de direito da criança que nos parece, à primeira vista, estranha ao
período:
Obrigações de aprendizes por tempo determinado, he inteiramente
novo nesta Corte, aonde não está entroduzido semelhante costume,
por falta de braços forros, e quando houvesse semelhante uso, elle
deveria prevalecer debaixo das formalidades da Lei, com cujo caracter
não se acha a accusada obrigação, pois que para ella poder surtir o seu
effeito, era essencialmente necessário que o suplicante a assinasse
para deste modo ligar o contracto, sem o que he inquestionável, que o
suplicante possa ser obrigado a cumprir (...). He de direito poder se
realizar hum contrato quando elle he formado entre a Lei, logo não se
211
(1893) 46-2-22. Marceneiros e carpinteiros. 1812-1831. fl. 9-9v. Arquivo Geral da Cidade do Rio de
Janeiro.
112
pode obrigar o suplicante a cumprir esta, para que não foi ouvido, nem
ao menos consultado. Os pais podem sim fazer contrato a favor de
seus filhos, mas sempre se exige o consentimento delles sem o que
não fica o filho legado a cumpri-los, principalmente quando lhes são
prejudiciais, cuja defeza lhe confere o direito natural.
212
Primeiramente, faz-se notório no relato a dificuldade de estabelecimento de
regras tão rígidas em relação ao aprendizado no Brasil, mediante a dificuldade em se
conseguir mão-de-obra livre, uma vez que muitos dos que trabalhavam nas oficinas
eram cativos. E, neste caso, não havia legislação específica para lidar com as questões
do aprendizado, quando a questão pedagógica passava ao âmbito particular do
proprietário de escravos ou mesmo do mestre que “acolhia” o liberto. Se pensarmos
que esta relação não se caracterizava exatamente como de empregador, o mestre
acabava desempenhado essa função de acolher o trabalhador forro, que com ele
aprenderia o ofício em troca do seu trabalho não remunerado por alguns anos. Por
outro lado, no universo escravista essas oficinas podiam representar uma possibilidade
para o escravo aprender um ofício e galgar perspectivas para a vida em liberdade.
Outro aspecto interessante, é que se defende a necessidade da aceitação do
aprendiz em relação às condições acordadas entre o mestre e a sua família, mesmo
sendo ele “menor de idade”. Aspecto curioso, especialmente quando analisamos que
naquele momento não havia qualquer legislação específica de proteção à criança ou
garantindo-lhe direitos, nem mesmo na Europa. A historiografia referente ao tema
localiza apenas no século XX a elaboração de uma legislação de proteção à infância, se
verificando também uma produção nas diversas áreas das ciências humanas sobre o
212
Idem.
113
tema da infância.
213
No documento nos deparamos com a referência final ao “Direito
Natural” para justificar a liberdade do aprendiz-criança em se negar ao exercício do
ofício, podendo se recusar a cumprir o que for acordado pelos pais, especialmente lhe
sendo este acordo prejudicial. Nota-se também que poderia ser uma recusa feita
verbalmente, uma vez que ele não menciona a necessidade de uma assinatura ou um
documento escrito para ratificar o “pacto”.
Embora não possamos tomar um documento isoladamente como único elemento
para o entendimento da forma de pensar e agir de uma época, é notória a preocupação
evidenciada sobre a criança, uma vez que nenhum dos regulamentos sobre os ofícios se
refere a algum cuidado específico neste sentido. O que havia, e devemos considerar
importante, era o estabelecimento de uma idade mínima para que o aprendiz ingressasse
na oficina, designada aos quatorze anos. Mesmo quando isso não se explicitava no
regimento da corporação, as leis e posturas municipais se incumbiam de estabelecer a
idade mínima para o aprendizado, e as próprias irmandades puniam aqueles que não
seguissem as leis. Isso pode ser constatado, por exemplo, nos Autos dos Oficiais das
Bandeiras de carpinteiros e pedreiros, em 1804, onde havia uma “Certidão com theôr de
Postura de que trata estes autos”, onde constavam várias regras para o exercícios do
ofício e a respectiva remuneração, destacando-se para o caso que aqui mencionamos, o
de que
todo o aprendiz, que se de quatorze annos feitos para principiar
aprender qualquer officio, nos primeiros dois annos, será reputado
213
Obra precursora no estudo sobre o nascimento da noção e do sentimento de infância na modernidade
foi desenvolvido por Philippe Ariès, onde o autor analisa as mudanças sociais verificadas no final da
Idade Média que levaram ao surgimento de um sentimento de proteção em relação à criança, e ao
surgimento da noção de infância ou o que ele denomina de “descoberta da infância”. ARIÈS, Philippe.
História Social da Criança e da Família. Trad. Dora Flaksman. 2ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981.
Algumas análises sobre o estudo da infância no Brasil foram desenvolvidas em: FREITAS, Marcos
Cezar de. (Org.). História Social da Infância no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Editora Cortez, 1997.
Um interessante estudo a respeito das diferentes abordagens sobre a criança desenvolvidas pela
antropologia, pode ser encontrado no livro de COHN, Clarice. Antropologia da Criança. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
114
como servente da obra, ganhará dos digo ganhará cento, e sessenta
reis, nos dois segundos, duzentos, quarenta reis, nos terceiros
segundos, trezentos, e vinte reis, vindo a ser o prazo determinado para
aprender qualquer offico, o de seis annos, findo os quaes, aquelles que
segundo o costume geral do Pais, terão Carta de Exame, a poderão
tirar, procedendo para isso a Exame, e aprovação do Juiz do Oficio,
tirando Carta do Senado para com ella vencer o salário assim taxado
(...).
214
Em 1819, o mesmo Agapito Joze de Abreu, solicitava ao Senado que lhe
passasse a certidão da Carta de Exame do ofício de marceneiro, lançada no livro dos
Sacramentos do Senado da Câmara. Na certidão consta que sua Carta foi liberada em
onze de novembro de 1818, tendo sido examinado pelo Juiz e Escrivão do ofício de
marceneiro, achando-o capaz de fazer qualquer obra do ofício:
Havemos por bem de approvar como por esta fazemos ao dito Agapito
Joze de Abreu e lhe concedemos licença geral (...) para livremente
usar do seu officio de marcineiro com lojea publica nesta Corte e seu
termo tendo nella officiais e aprendizes, assim como fazemos mais
Mestres Examinados, e para que da mesma forma possa fazer em
qualquer parte que bem lhe parecer requeremos as justiças de sua
Magestade a quem o conhecimento desta pertenciar, o cumprão, e
gurdão, e façam cumprir e agoardar como nella se contem.
215
A importância do valor pedagógico dos ofícios artesanais e a nostalgia em
relação a essa experiência artesanal dos séculos anteriores foram analisadas por Antonio
214
(479) 40-3-93. Autos dos Officiaes das Bandeiras de Carpinteiros e pedreiros e officiaes dos ditos
officios. 1805, fls. 11v -12. 16/07/1804. Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. (Grifo meu)
Nos mesmos Autos das Bandeiras de Carpinteiros e pedreiros, o escrivão do Senado da Câmara
Joaquim Joze Freire Pereira Soares certificava sobre as quantias recebidas por mestres e oficiais do
referido ofício e a idade mínima para ingressar no aprendizado – confirmando a idade mínima de
quatorze anos. Ver fls. 31-34.
215
46-2-22. Marceneiros e Carpinteiros. 1812-1831. Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, fls.10-
12.
115
Santoni Rugiu. O autor seguiu a trilha de vários pensadores modernos que, a partir do
século XVII, procuraram de forma “nostálgica”, segundo ele, explicar o declínio das
corporações de ofícios e resgatar valores no mundo do trabalho intrínsecos às antigas
relações de aprendizado. Desta forma, ele citou estudos como os de Rousseau,
Pestalozzi e Dewey, mostrando como o aspecto da nostalgia se evidenciava na
contradição em se manter um sonho de “humanização” da sociedade industrial,
buscando numa educação progressiva o antigo espírito artesanal. Especialmente no
caso das análises de Dewey, esses aspectos ficariam mais evidentes e, em sua opinião,
contraditórios, uma vez que se antagonizavam até mesmo com o processo sócio-
econômico que ele testemunhava ao vivo, o auge do taylorismo. Assim, de acordo com
o autor:
De resto, a nostalgia do artesanato não é restrita a educador e
pedagogos de vanguarda. Também autores de diferentes moldes como
A. Smith, a. Ferguson, A. Genovesi, R. Owen, K. Marx e tantos
outros, em um arco de pouco mais de cinqüenta anos, lamentam
fortemente aspectos essenciais e perdidos da formação artesã, vista
como experiência ideal para se instruir e se educar, para tornar-se hábil
com as mãos e rápido com a cabeça, para desenvolver juntar a precisão
e a originalidade do projeto e da execução, para fornecer belos
produtos, fortes e úteis.
216
Neste sentido, o autor analisa na obra de Dewey que aquilo que a indústria
destruiu de pedagogicamente válido no artesanato (raciocinar, fixar objetivos da
atividade, verificá-la e retificá-la constantemente através da avaliação do produto, o
domínio sobre todo o ciclo da produção e venda), só poderia ser recuperado através da
ação organizada pela comunidade, ou seja, era a defesa da pedagogia artesã com vistas à
216
RUGIU, Antonio Santoni. Nostalgia do Mestre Artesão. Introdução de Demerval Saviani. Campinas,
SP: Autores Associados, 1998 (Coleção memória da educação).
116
formação da educação democrática, que passava pela supervalorização dos aspectos
intrinsecamente ligados ao universo pedagógico da vida artesã como modelo para o
desenvolvimento de educação ideal.
Mas quais seriam essas prerrogativas pedagógicas das quais as corporações de
ofícios se faziam valer para terem sobrevivido durante séculos, mantendo tradições e
costumes de origem medievais, fazendo-os vivos também nas colônias? O processo de
formação de uma corporação relacionava-se com os vínculos profissionais,
estabelecidos entre o artesão-mestre com o processo de ensino e aprendizagem, no qual
ele garantia o desempenho desse aprendizado em uma oficina. Por outro lado, esse
processo relacionava-se também com o estabelecimento de laços e vínculos religiosos
com uma irmandade religiosa - especialmente nas regiões de tradição ibérica - que a
tornava uma protetora do ofício, cujo santo representante era padroeiro daquele ofício e
daqueles artesãos. O entendimento do corpo de trabalhadores denominado “corporação
de ofícios” nas colônias portuguesas não pode ser feito com ausência de um desses
elementos: a) o compromisso mestre-aprendiz; b) relações entre o ofício e a irmandade
correspondente (Bandeira do ofício); c) o controle régio sobre a respectiva irmandade,
através da aprovação dos seus compromissos.
O compromisso fundava-se no estabelecimento de uma série de regras que
regulavam essas relações de aprendizado e os limites da atuação de mestres e
aprendizes. Todo o processo de produção, previamente determinados os critérios para
aceitação da obra, era rigorosamente fiscalizado pelas irmandades do ofício e tinham
que ser respeitados os limites determinados para a confecção e distribuição da obra. O
controle sobre o falseamento de obras, sobre a invasão na área de atuação de outro
ofício – situação frequentemente problemática para oficiais de ramos profissionais
similares, tais como os serralheiros, marceneiros e carpinteiros –, sobre a cópia dos
117
segredos de outro ofício, etc. eram alguns dos elementos de importante averiguação e
fiscalização por parte das irmandades a respeito do processo de produção.
Os segredos do ofício se constituíam como uma das armas mais poderosas e
importantes para garantir a originalidade das obras: assim, o Mister (o mistério,
segredo) foi um dos mais fortes e importantes elementos pedagógicos no processo de
aprendizagem ao longo dos séculos. Ele garantia que a reprodução daquele
conhecimento do ofício fosse deixada às outras gerações através da oralidade, sem que
jamais nenhum desses “segredos do ofício” tenha se deixado registrar pela linguagem
escrita.
217
Desta forma,
todas as formas pedagógico-didáticas das Corporações permaneceram
envoltas no próprio mistério com o qual, na época, eram tutelados os
relativos procedimentos. As circunstâncias nas quais se trabalhava e
se aprendia favoreciam o segredo, principalmente o prevalecer quase
absoluto da tradição oral ou intuitivo-gestual (...) unida à ausência de
textos escolares escritos e de subsídios didáticos ad hoc.
218
O processo de aprendizagem nas corporações esteve baseado em métodos
rigorosos e uma estrutura organizacional que permitiu que suas tradições se
mantivessem durante séculos e que fossem disseminadas nas colônias. Tal estrutura
fundamentava-se na figura exemplar do mestre como o condutor das atividades do
ofício, constituindo-se em um “verdadeiro patriarca na comunidade formativa”
219
e
sendo o referencial para a delimitação da passagem do aprendiz a mestre, depois de
submetido a exames para a obtenção da Carta. Ao longo de alguns anos do processo de
aprendizagem, o aprendiz era introduzido nos segredos do ofício, estando em contato
217
Ibidem, pp. 33-34.
218
Ibidem, p. 38.
219
Ibidem, 39-41.
118
com artesãos mais experientes no ofício, estando grande parte do aprendizado baseado
na dedução, intuição e na iniciativa individual do artífice, buscando cada qual escolher
os próprios métodos de trabalho. Dependendo das condições da oficina o trabalho
poderia se tornar uma experiência altamente socializante, bem como o ambiente familiar
no qual o aprendiz convivia e onde tinha mais facilmente o acesso aos “segredos do
ofício” junto ao mestre. Isso acabava, segundo Antonio Santoni Rugiu, caracterizando
essas relações que se desenvolviam dentro das corporações como tipicamente
familiares, onde frequentemente ocorriam casamentos entre o ex-aprendiz e a filha do
mestre.
220
Portanto, as relações patriarcais e de cunho autoritário desenvolvidas no
interior das oficinas eram características das relações familiares das diferentes épocas e
lugares onde se desenvolveram, apresentando ainda uma difusa linha pedagógica
orientada por um misto de convivência pessoal, familiar e profissional. Essa relação
estendia-se ainda, na medida em que os mestres recebiam geralmente uma espécie de
mensalidade da família do aprendiz pelos anos de aprendizado no ofício do jovem.
A partir do século XVIII o regime de corporações começou a ser energicamente
varrido da Europa, como um símbolo de supressão dos resquícios do Antigo Regime
representado por elas. Concomitante à nova filosofia econômica, que rejeitava os
pressupostos básicos do controle de toda a esfera da produção por parte das
corporações, acusadas por isso mesmo de monopolistas, emergiram idéias acerca do
arcaísmo representado pela prática pedagógica exercida por essas entidades, vistas
como uma ultrapassada forma de educação para o trabalho ou de formação do
trabalhador a partir de uma dimensão didático-pedagógica arcaica. E neste sentido,
algumas práticas começavam a mudar no cotidiano, como os deslocamento de
artesãos para manufaturas e a transmissão do título de mestre cada vez mais atrelada à
220
Idem.
119
condição hereditária do artífice.
221
A contratação para o trabalho na manufatura
também parecia, aos poucos, ultrapassar as habilidades adquiridas e aprendidas ao longo
do tempo, dando-se ênfase às habilidades naturais dos indivíduos.
Segundo o autor, a padronização das operações tornou-as acessíveis à mão-de-
obra “despreparada e imatura”, com uma estrutura de trabalho “infalivelmente prescrita
e pré-estabelecida”, onde nenhum trabalhador da manufatura estabelecia contato com os
clientes, submetia projetos ou idéias, nem seria livre para organizar individualmente
qualquer parte da produção. Neste ponto diferenciavam-se agora pela ausência de
participação na idealização e realização organizativa do processo produtivo,
homogeneizando os trabalhadores, que passavam a desempenhar basicamente as
mesmas funções com pouco ou nenhum poder de intervenção ou de criação sobre elas.
Neste sentido, o autor aponta que o artesanato, naquele antigo modelo corporativo,
sobreviveu ao longo do século XIX naqueles espaços onde a manufatura não havia
ainda tido força no processo produtivo, sendo a cultura artesanal progressivamente
desvalorizada socialmente.
222
E, neste sentido, as manufaturas teriam se constituído
como o grande empecilho à continuidade das corporações de ofícios, contrariando as
teses de que o modelo pedagógico-didático do aprendizado nas corporações teria sido o
responsável por sua lenta decadência:
Não é, portanto, o enfraquecimento progressivo da função
pedagógico-didática que fez declinar a competitividade do Regime de
Corporações. Nem foram os novos Mestres, menos hábeis e
preparados que os antecessores, que desqualificaram suas Corporações
e abriram o caminho para o, assim chamado, sistema de fábrica. Foi,
ao contrário, este último que eliminou, primeiro em dimensão
manufatureira e depois na forma de grande indústria, os resíduos de
221
Rugiu cita essas mudanças no capítulo “Fim e transfiguração da educação mecânica”, Op. Cit., p. 127.
222
Ibidem, pp. 128-129.
120
vitalidade do associativismo corporativo e, portanto, também das suas
formas reprodutivas.
223
O mesmo autor aponta então um conjunto de elementos responsáveis pelo
aniquilamento da pedagogia das Corporações no século XVIII, elementos estes que
atuaram durante séculos e encontraram no setecentos as condições políticas, sócio-
econômicas e jurídicas definitivas para se afirmarem em oposição ao modelo de
aprendizagem das corporações. Primeiramente, desde o século XIII se desenvolvia a
“secularização e valorização monetária do tempo”, ou seja, a instrução e o adestramento
dos mestres artesãos cada vez mais condicionada pela gica mercantil. Outro
componente importante para tais transformações é que tomava corpo a noção de que a
produção e distribuição das mercadorias deveriam desvincular-se dos vínculos estatais,
passar a esfera do corpo mercantil representado pelos comerciantes e negociantes. Com
o advento do liberalismo econômico, essas idéias ganharam ainda mais força, com a
defesa de um mercado livre onde a produção devesse cada vez estar mais atrelada aos
talentos individuais, desprezando-se gradualmente os componentes do domínio da arte
adquiridos ao longo dos anos no processo de aprendizagem. Neste caso, o artesão era
gradualmente substituído pelo operário, que não necessitava mais ter instrução para o
ofício ou vínculo formativo ideológico e racional ao qual fosse capaz de transformar e
criar ao longo do processo de produção.
224
Aspecto importante destacado pelo autor é que em várias regiões houve uma
tendência à conservação das nomenclaturas e um ordenamento baseado nas associações
artesãs, mantendo resíduos das corporações até mesmo nos ambientes tomados pela
manufatura no século XIX. Assim, teria havido uma tendência a que muitos dos antigos
223
Idem.
224
Ibidem, pp. 130-131.
121
artesãos continuassem a chamar de mestres aqueles que agora desempenhavam a
função de empreendedores ou comerciantes. Também os meninos continuaram a ser
chamados de aprendizes, sendo frequentemente mais explorados “como serventes que
não eram adestrados, sem sombra de remuneração nem de atenção pedagógico-didáticas
em relação a eles”.
225
Embora seja preciosa a análise sobre a formação e desenvolvimento dessas
corporações européias para o estudo das corporações no Brasil - guardando as devidas
diferenças que mantinham em cada uma das regiões da Europa -, é preciso grifar traços
fundamentais que tornavam os ofícios aqui instalados diferentes das congêneres
européias no que diz respeito ao papel que desempenhavam no universo pedagógico do
trabalho. Dentre os elementos mais importantes para traçar as diferenças se encontra a
escravidão, que produzia uma maneira distinta da sociedade se relacionar com o
trabalho, especialmente com o trabalho manual. Além disso, o tipo de colonização aqui
implementada pelos portugueses e a exclusividade do ensino mantido durante séculos
nas mãos dos jesuítas, também criou aqui um tipo específico de relação com o
aprendizado para o trabalho, que se atrelava ao aparato religioso.
Neste sentido, os estudos de Luiz Antonio Cunha
226
buscaram dar ênfase à
importância do trabalho escravo no processo de desenvolvimento das atividades
manufatureiras no Brasil colônia, apontando como o desprezo pelos ofícios mecânicos,
aliado ao desinteresse por desenvolver na colônia atividades manufatureiras, levou à
criação de um tipo específico de associação profissional que mantinha distinções em
relação às européias. Assim, embora a organização do artesanato lisboeta tenha servido
225
Ibidem, p. 162.
Veremos no capítulo 5 que no Brasil também houve a continuidade da atividade e nomenclatura de
mestres e aprendizes nas fábricas, mesmo após a extinção das corporações de ofícios na Constituição
em 1824.
226
CUNHA, Luiz Antonio. O ensino de ofícios artesanais e manufatureiros no Brasil escravocrata. 2ª ed.
São Paulo: Ed. UNESP; Brasília, DF: ELACSO, 2005.
122
de exemplo para a organização colonial, três fatores teriam contribuído para alargar as
diferenças entre elas: a relativa estreiteza do mercado colonial para bens manufaturados
e serviços, as freqüentes proibições de exercício de certos ofícios a fim de que se
mantivessem os privilégios metropolitanos e a prática generalizada da escravidão.
Segundo o mesmo autor, a aprendizagem dos ofícios manufatureiros na colônia
era realizada segundo padrões assistemáticos”, através dos quais os ajudantes ou
aprendizes desempenhavam função fundamental no processo técnico de trabalho e o seu
aprendizado não se constituía como intencional, nem mesmo necessário.
227
No entanto,
a organização em corporações tornava essas relações de aprendizado diferentes!
As corporações de ofício, ao contrário, programavam a aprendizagem
sistemática de todos os ofícios ‘embandeirados’, estipulando que
todos os menores ajudantes devessem ser, necessariamente,
aprendizes, a menos que fossem escravos. Determinavam o número
máximo de aprendizes por mestre, a duração da aprendizagem, a
remuneração dos aprendizes e outras questões.
228
Apenas aqueles ofícios ensinados e exercidos dentro dos arsenais poderiam ser
praticados sem regulamentações ou exames, mesmo que fossem ofícios com bandeiras
próprias e organização corporativa. Somente a elas o Estado garantia a prerrogativa de
poderem exercer autonomamente o ensino das artes mecânicas sem sofrerem o
monopólio e o controle das corporações de ofícios.
229
A importância do mestre era tão destacada no processo pedagógico nas oficinas,
que mesmo com o surgimento de estabelecimentos mais complexos, com uma divisão
da produção mais acentuada – que, frequentemente, recebiam denominações de fábricas
227
Ibidem, p. 29.
228
Idem.
229
Ibidem, pp. 38-39.
123
-, o mestre continuava a ter um papel de destaque na garantia de qualidade da obra. Isso
pode ser contatado no caso destacado por Antonio Velozo Xavier, morador da Comarca
do Rio das Mortes, que havendo ali estabelecido uma “Fábrica de Louça Fina vidrada
de branco e de outras cores, e também de pós de pedra”, alegava não terem chegado
ainda à perfeição as suas obras, em decorrência da morte do mestre, que ele mesmo
havia trazido de Lisboa.. Assim, alegava estar perseguindo esta perfeição, empregando
na fábrica “oito oleiros de roda, além da Escravatura nos demais serviços dela”.
230
Entretanto, o desenvolvimento das artes mecânicas no final do século XVIII e
início do XIX adquiriam algumas dificuldades, uma vez que todo o sistema de ensino
deveria ter sido reformado com a expulsão da Companhia de Jesus, empreendida pela
política Pombalina.
231
A pretensão de se realizar aqui na colônia portuguesa um novo
aparato escolar, tal como teria havido uma reforma educacional em Portugal, não foi
empreendida na prática. O desfecho dessa expulsão significou, no aspecto pedagógico,
o desmantelamento do sistema educacional criado pelos jesuítas, calcado nos princípios
230
Caixa 427, pacote 1. Junta de Comércio, agricultura, fábricas e navegação. Arquivo Nacional. 23 de
março de 1811.
231
Segundo Dauril Alden, desde o século XVIII havia um nítido interesse da Coroa em diminuir o poder
das Ordens religiosas e irmandades na colônia, como fora demonstrado ao longo da década de 1750
com as investidas contra as ordens, especialmente contra os loyolistas, praticadas pela Coroa. Essas
práticas revestiam-se de diversas razões, questões conflituosas que se mantinham séculos contra o
grande poder dotado a tais ordens no mundo colonial, principalmente à Companhia de Jesus. Os
conflitos exacerbavam-se, contudo, no que dizia respeito às questões econômicas, que incomodavam
comerciantes e artesãos portugueses, uma vez que os jesuítas praticavam amplo comércio de especiarias
(na Amazônia) e mantinham o domínio de importantes mercados comerciais, bem como a produção
artesanal em oficinas próprias. Em geral, as reclamações davam-se também por conta dos preços das
mercadorias, que eram vendidas por valores superiores àqueles cobrados por mercadorias similares em
Lisboa. O autor levanta a hipótese ainda da expulsão dos jesuítas ter sido motivada por considerações
econômicas, uma vez que elas eram instituições extremamente influentes, que gozavam de isenção de
impostos ou os não pagavam, e cujas atividades eram impeditivas ao desenvolvimento econômico
colonial, além de privar a metrópole de enormes receitas. O governo de D. José I, ciente das rendas
adicionais que precisava angariar, tornou-se sensível às críticas e oposições feitas às ordens religiosas
que exerciam poder na colônia, destacando-se à dos jesuítas tanto pela extensão de suas atividades
econômicas, como pelo papel cultural, social e pedagógico que desempenhava junto aos colonos. Ver:
ALDEN, Dauril. Aspectos econômicos da expulsão dos jesuítas do Brasil: notícia preliminar. In:
KEITH, Henry e EDWARDS, S.F. Conflito e continuidade na sociedade brasileira ensaios. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1970, pp.58-66.
Sobre a política econômica implementada por Pombal e seus aspectos mercantilistas e uma prática
política ilustrada, ver: FALCON, Francisco José Calazans. A Época Pombalina (Política Econômica e
Monarquia Ilustrada). 2ª ed. São Paulo: Editora Ática, 1993.
124
do Ratio Studiorum,
232
e a desorganização do sistema escolar que ansiava por uma nova
estruturação política e pedagógica. Somente com a chegada da família real ao Brasil,
deu-se início de fato à tentativa de realizar modificações no processo de ensino e
aprendizagem.
A chegada da família real expressou a implementação de várias das reformas
pretendidas por Pombal no século XVIII e, mesmo depois de 1808, várias delas foram
timidamente introduzidas e algumas não obtiveram completo êxito. Segundo a
pretensão pombalina, deveria ter havido na colônia uma renovação do ensino, que se
baseava na execução de “aulas régias” espécies de aulas que ocorriam isoladamente,
sem relação entre si, tratando de humanidades, ciências e primeiras letras -, ministradas
por professores designados e pagos pelo governo. O plano pombalino pressupunha
ainda uma reforma com base no Plano Stockler, um sistema de ensino considerado mais
moderno e arrojado, com influência direta das idéias revolucionárias francesas:
233
Em virtude de encontrar-se a corte portuguesa estabelecida no Brasil e
como se pretendia fundar aqui um grande número de instituições
públicas, Stockler, que tivera seu plano rejeitado em Portugal, foi
encarregado de formular o plano geral sistemático de instrução
pública para o Brasil.
234
232
PAIVA, José Maria de. “Igreja e educação no Brasil colonial”. In: SEPHANOU, Maria e BASTOS,
Maria Helena Câmara. História e Memórias da Educação no Brasil. Vol. 1 Séculos XVI-XVIII.
Petrópolis: Vozes, 2004, pp. 77-92.
Ver também: VASCONCELOS, Maria Celi Chaves. A Casa e os seus Mestres: a Educação do Brasil de
Oitocentos. Rio de Janeiro: Gryphus, 2005. Segundo a autora, a partir do século XVIII, o Estado
progressivamente tomava o lugar da Igreja, buscando a institucionalização e a estatização da educação.
233
CASTRO, Cláudio de Moura; FRIGOTTO, Gaudêncio e COSTA, Darcy. A criação do Jardim
Botânico do Rio de Janeiro: reflexões sobre a reforma educativa, investimento em educação e
transferência de tecnologia.. Fórum Educacional, Rio de Janeiro, 1 (4):3-29, out./dez. 1977, pp. 14-15.
234
Idem.
125
De acordo com o “Plano Geral Sistemático de Instrução” (Plano Stockler), a
instrução nacional seria dividida em quatro graus: 1) Pedagogias, responsável pelo
ensino de leitura, escrita, aritmética e rudimentos de física, economia e moral; 2)
Institutos, com desenvolvimento mais intenso dos conhecimentos da primeira por meio
de escolas especiais de aplicação a agricultores, industriais e comerciantes; 3) Lyceus,
escolas preparatórias para o estudo geral ou especial das ciências, compreendendo os
estudos humanísticos (análise das faculdades e operações do entendimento, gramática
geral e retórica), diplomáticas, línguas vivas – européias e orientais-, numismática,
hermenêutica, geografia, cronologia e história; 4) Academias, compreenderiam o
conjunto de escolas especiais ou de aplicação e das escolas de ciências abstratas e suas
relações com a sociedade (ciências matemáticas, ciências naturais, ciências sociais,
literatura e belas-artes).
235
A chegada da Corte propiciou significativa mudança na vida colonial. A política
joanina procurou formar uma estrutura mínima para o desenvolvimento da produção e
do comércio, estabelecendo as bases para uma regulamentação a partir da elaboração de
uma legislação específica, integrando o ensino de atividades manuais ao corpo de
ensino formal.
236
No âmbito educacional, um novo aparato tentou ser montado,
baseando-se em princípios da reforma desenvolvida desde o século XVIII em Portugal.
Assim, a partir de 1808 começaram a ser fundadas Academias - tais como a Academia
de Marinha e a Academia Militar -, especialmente no Rio de Janeiro e na Bahia. Cursos
de anatomia e de cirurgia, aos quais se acrescentou o de medicina, a partir de 1809. Foi
fundada a cadeira de economia, na Bahia, em 1808, o curso de agricultura, em 1812, o
235
O plano Geral de Instrução de Stockler pode ser encontrado pormenorizado em Castro, Frigotto e
Costa. Op.Cit., pp. 25-27.
236
FARIAS, Mônica Ferreira de. Aprendizes do Ofício: profissionalização e reprodução familiar.
Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, Departamento de Sociologia, 1997, p. 34.
126
de química e o de desenho técnico, respectivamente em 1817 e 1818.
237
Uma
importante iniciativa em relação às artes foi empreendida para a formação de uma
Companhia dos artífices pelas mãos de Varnhagen de Ipanema, criando uma companhia
de soldados artífices a fim de que fosse dispensada a importação de trabalhadores
estrangeiros e profissionalizando a mão-de-obra nativa.
238
As aulas régias parte
essencial do novo aparato escolar português, que pressupunha um ensino de ler e
escrever e o de humanidades também foram instituídas por D. João, embora nem
todas tenham de fato vingado.
239
Um exemplo foi a precursora aula régia de Economia
Política instituída pelo Regente, que seria ministrada por José da Silva Lisboa, futuro
Visconde de Cairu, e nunca chegou de fato a sair do papel.
As instituições de ensino criadas a partir da chegada da Corte formaram a base
do aparato escolar institucionalizado neste momento na colônia e foram destinadas à
difusão do ensino superior, tendo se localizado, prioritariamente, no Rio de Janeiro.
Segundo Cunha, além desses cursos formarem os especialistas necessários à produção e
à guerra “formavam, também, prestadores de serviços às classes dominantes locais, sem
a intermediação do aparelho de Estado, atuando como profissionais liberais”,
representados tanto por aqueles que atuavam na transmissão do saber e do
conhecimento, tais como médicos, cirurgiões e professores, quanto por “aqueles que se
especializavam na produção de bens simbólicos próprios do consumo das classes
dominantes, como os pintores, desenhistas, escultores e gravadores (...)”.
240
Uma das instituições mais importante fundadas por D. João ligada aos ofícios
mecânicos naquele momento foi o Colégio das Fábricas. Embora não tenha sido objeto
237
Sobre essas informações ver: Castro, Frigotto e Costa. Op. Cit., pp 22-23.
238
Cunha, Luiz Antonio. Op. Cit.,, pp. 69-72.
239
CARDOSO, Tereza Fachada Levy. “As aulas régias no Brasil”. In: SEPHANOU, Maria e BASTOS,
Maria Helena Câmara. História e Memórias da Educação no Brasil. Vol. 1 Séculos XVI-XVIII.
Petrópolis: Vozes, 2004, pp 179-191.
240
CUNHA, Luiz Antônio. As raízes da escola de ofícios manufatureiros no Brasil 1808-1820. rum
Educacional, Rio de Janeiro, 3 (2):5-27, abr./jun. 1979, pp. 14-15.
127
de largos estudos historiográficos, é importante demarcarmos no processo de
entendimento da organização do trabalho e de suas mudanças na primeira metade do
século XIX a criação do Colégio das Fábricas. O Decreto de 23 de março de 1809
instituía o Colégio, no esteio da política de abertura dos portos e conseqüente fim da
proibição das manufaturas e da venda livre de artigos artesanais nas ruas das cidades.
Mandava que se instalasse na “Casa do Antigo Guindaste” do Porto do Rio de Janeiro o
Colégio das Fábricas, constituído em sua formação por artífices e aprendizes vindos de
Portugal. Segundo o decreto, esses aprendizes seriam pagos com o produto das obras
por ele fabricadas e vendidas, e “ao que parece, a idéia original era de que o Colégio das
Fábricas se dissolvesse tão logo surgissem os estabelecimentos manufatureiros
esperados, empregando-se os artífices e os aprendizes nas empresas particulares”.
241
Constituído por artífices e aprendizes oriundos de Portugal, o objetivo da criação
do Colégio das fábricas era formar artífices até que esses trabalhadores pudessem se
empregar em estabelecimentos manufatureiros particulares. Pagos com recursos do
governo, artífices e aprendizes receberiam de acordo com as obras por eles próprios
fabricadas e vendidas, até que, aprendendo o ofício, pudessem trabalhar em uma
manufatura. Essa finalidade, não alcançada, fez com que tanto a idealização formativa
desta instituição quanto todo o maquinário destinado a ela deixasse de atender a
contento. Abandonados, os utensílios comprados pelo governo para serem utilizados no
colégio, acabaram sendo solicitados por empreendedores de fábricas nos anos seguintes,
que buscavam angariar tais instrumentos por preços mais baixos ou empréstimos das
mãos do governo.
Assim, encontramos o requerimento de Rodrigo Antonio de Lamare, Suplicando
à Junta que por se achar extinto o Real Colégio de Fabricas: Querendo o Suplicante
241
Cunha, Luiz Antonio. Op. Cit. (2005), p. 77.
128
augmentar as suas manufaturas de Tecidos, pede a V.A.R. a graça de lhe mandar
emprestar quatro theares (...). Descreve ainda os variados tipos de teares necessários
para sua fábrica:
Hum thear volante para tecer fazendas de doze palmos de Largo, hum
dito mais estreito, hum thear de Palão de Fitas e outro dito para seda
com toda a sua competente armação, igualmente pede os utensílios
seguintes, huma calandra, huma imprensa, hum pregador, e hum
Bolidor, o que tudo se porá no mesmo estado em que o receber huma
vez que sejão preciza à Real Fazenda.
242
Por outro requerimento feito à Junta pelo mesmo Rodrigo Antonio de Lamare,
vemos que havia a intenção ou proposta do governo em dar continuidade ao Colégio das
Fábricas, o que não ocorreu na prática. A falta de perspectiva de uso das máquinas e
utensílios utilizados no Colégio, fez com que vários indivíduos que intencionavam
estabelecer fábricas, solicitassem-nas ao governo. Rodrigo Lamare expõe isso,
afirmando que havendo V.A.R. instituído hum Colégio das fabricas, para subsistência
dos artífices, que se achavão nesta Corte, foi V.A.R. servido encarregar a Leal Junta do
Commercio dos Estado do Brazil deste novo estabelecimento, e como athe agora não se
tem continuado com os trabalhos do sobredito Colégio das fabricas.
243
Rodrigo
solicitava que lhe fossem emprestados os diferentes teares, máquinas e demais
utensílios do sobredito Colégio das fábricas, fazendo-se um inventário e, indo ainda
mais longe, alegava que por não ter achado casas com proporções e arranjos próprios
para huma semelhante fábrica , solicitava que lhe fossem emprestadas as casas da Rua
da Misericórdia, aonde se instalou o Colégio e, como estas se achavam danificadas, ele
242
Caixa 424. Junta de Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação. Arquivo Nacional, s/d.
243
Caixa 424, Junta de Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação. Arquivo Nacional. s/d.
129
também solicitava que do cofre da Leal junta do commercio, se lhe mandem esperar
concertar e completar as pressas dos Theares, que se tiverem extraviado.
Menos ambicioso, Vicente Pedro Quintino também solicitou o maquinário do
antigo Colégio para “ganhar a vida”. Alegando ser Mestre Fabricante, pretendia
estabelecer e procurar meios de sustentar sua família, o que não pode fazer sem que
V.A.R. o socorra com o seu Patrocínio. Argumentando ainda a existência de vários
teares sem utilização da antiga fábrica, e que por isso estavam se danificando com o
tempo, solicitava o empréstimo de um ou dois teares para o suplicante principiar a
ganhar sua vida.
244
Também se revela na documentação da Junta a penúria na qual os antigos
artífices do Colégio das fábricas foram jogados depois da sua extinção. Foi o caso de
Antonio Ribeiro Bastos, Mestre Fabricante de Sedas, e examinado para todas as obras
que lhe são relativas, que alegava ter trabalhado com zelo e querendo mostrar sua
máquinas e engenhos se viu sem proteção porque foi V.A.R. servido demolir o Collegio
das Fabricas, ficando o suplicante em total desarranjo e desamparo sem ter de que se
mantenha por não haver fábricas, em que se possa ocupar, e mostrar o seu préstimo, e
agilidade. Alegava não ter como garantir sua subsistência, e estar na indigência e sem
ter do que se alimentar, colocando-se à disposição da Real Junta de Comércio para
trabalhar onde se lhe designassem, recebendo algum sallario semanal. No mesmo
documento em que fazia tal solicitação, a Junta assinava lhe designando um emprego no
Real Arsenal.
Essas tentativas frustradas não significaram, no entanto, a ausência da
implementação da formação artesã para a prática de ofícios manufatureiros naquele
momento. Algumas experiências comprovam a implementação destes objetivos, como
244
Caixa 424. Junta de Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação. Arquivo Nacional, 28/07/1812.
130
a admissão de mestres e aprendizes para o trabalho na Imprensa Régia, em 1808. Além
disso, projetos como o de Lebreton, apresentado em 1816
245
, foram bem vistos pelo
governo, embora não tenho se tornado realidade.
A proposta de Lebreton para o ensino das artes no Brasil, enfatizava a
importância das aulas de desenho
246
para aqueles que se dedicavam às artes liberais e às
artes mecânicas. Ruy Gama, no entanto, classificou a iniciativa de Lebreton como
“civilizadora”, uma vez que não haveria em suas escolas o destaque para artistas e
artesãos nativos, dando-se ênfase a imigração estrangeira “especializada”. E, neste
sentido, a dupla escola idealizada por Lebreton encontrou os entraves dos custos de
instalação de uma escola técnica, bem mais onerosa do que a de uma academia, dado
que a primeira necessitaria de um aporte técnico de ferramentas, maquinários diversos,
além de matéria-prima. Assim, apenas a academia de artes foi fundada, tendo iniciado
seus trabalhos somente em 1820.
247
É bom reforçarmos que para o autor evidencia-se
245
Ver: BARATA, Mário. Manuscrito inédito de Lebreton sobre o estabelecimento de uma dupla escola
de artes no Rio de Janeiro, em 1816. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de
Janeiro, n.14, 1959. Lebreton apresentou neste projeto a proposta de unir o ensino de belas artes com o
de ofícios mecânicos, aproximando-se pelo desenho, inspirada na Academia de Belas-Artes e da Escola
de Artes e Ofício de Paris. Pressupunha, contudo, distinções sociais que diferenciassem o ensino de
desenho para aqueles que viessem de famílias pobres e “sem talento”, que deveriam ser encaminhados
para o aprendizado dos ofícios mecânicos.
Luiz Antonio Cunha aponta, no entanto, que embora tendo tido boa receptividade na Corte, apenas em
1820 foi dado início às aulas na Academia de Artes, sem que se falasse mais a respeito do ensino de
ciências ou de desenho para as artes mecânicas. Segundo o autor, esta foi talvez uma chance perdida de
ter um estabelecimento que exercesse significativa influência sobre a aprendizagem dos ofícios
manufatureiros. Ver a respeito disso: Cunha, Luiz Antonio. As raízes da escola de ofícios
manufatureiros no Brasil, 1808-1820. Op. Cit, pp. 23-26.
Sobre o assunto ver também: REIS JÚNIOR, José Maria. História da pintura no Brasil. São Paulo:
Editora “L.E.I.A.”, 1944.
246
É interessante a análise sobre a valorização dada ao desenho, como representação gráfica, e à
matemática, desenvolvida por Ruy Gama. Nela, o autor explicita que “(...) pareceu-me legítimo admitir
que a adoção de uma técnica apoiada na objetividade da matemática era essencial para o
estabelecimento de novas formas de divisão do trabalho. Explicando melhor: a adoção de desenhos
(representação gráfica das peças a serem cortadas) permitiria a divisão do trabalho em várias etapas,
sendo a própria solução geométrica dos problemas e sua representação gráfica a primeira delas”. Neste
sentido, dividido em etapas, o trabalho poderia ser desenvolvido por vários trabalhadores
simultaneamente, não mais pelo mesmo artesão. Gama, Ruy. Op. Cit. p. 98.
247
Ibidem, pp. 134-137.
131
a vinculação do ensino técnico escolarizado com a superação do
sistema corporativo medieval. A escola se propõe a substituir a
oficina. A escola profissional gratuita ocupando o espaço deixado pelo
aprendizado nas oficinas, pago em dinheiro ou em tempo de
“servidão” do aprendiz.
248
Parece, portanto, que a falta de incentivos ao desenvolvimento manufatureiro
passou precisamente pelo campo educacional, pelo falta de estímulo ao
desenvolvimento de escolas e de uma educação profissional que rompesse com as
práticas pedagógicas que concentravam o saber nas mãos de um trabalhador/artesão,
que dominava todo o processo de produção. Neste sentido, o ensino artesanal, por outro
lado, também não se manteve ao longo dos séculos e mesmo após a extinção legal das
corporações de ofícios, em 1824 apenas pelo costume dos trabalhadores, mas
especialmente porque não havia mão-de-obra suficiente e preparada para adequar-se a
essa outra forma de produção (a manufatura), que tentava se impor na cidade. A
permanência de mestres e aprendizes nas fábricas da Corte - que pode ser notada na
documentação da Junta de Comércio, Fábricas e navegação (Arquivo Nacional), até a
década de 1840 - mantinham-se não apenas por força do hábito, mas pela necessidade
de difusão de conhecimento e saberes sobre os ofícios mecânicos, que mais tarde
passaram a ser difundidos por modelos pedagógicos específicos no Liceu de Artes e
Ofícios e nas escolas profissionalizantes.
248
Ibidem, p. 166.
132
Capítulo 4
Corporações versus liberdade de indústria:o pensamento liberal, o
aprendizado e a extinção das corporações de ofícios
4.1. O pensamento econômico liberal e o aprendizado
Em um estudo sobre a História Intelectual do Liberalismo, Pierre Manent
249
analisou a formação e a consolidação das idéias liberais, que encontram sua origem na
questão teológico-política, em cuja matriz está o pensamento hobbesiano. A partir da
revolução francesa um “segundo liberalismo” teria emergido, aprofundando suas
críticas ao radicalismo revolucionário, mas absolutamente contrário aos privilégios da
nobreza e ao poder político do clero, ao retorno, enfim, do Antigo Regime.
O liberalismo clássico teve sua gênese em meados do século XVIII,
concomitante a duas outras importantes doutrinas: a doutrina do Direito Natural e o
Utilitarismo. A teoria do Direito Natural “pré-liberal” caracterizava-se pela noção de
contrato legítimo, ou seja, os homens nasciam livres e iguais, mas somente a partir do
contrato seriam determinadas as relações sociais (partindo desse pressuposto, distinguir-
se-ia inclusive a escravidão legítima ancorada na razão e na justiça da escravidão
ilegítima contrária à justiça). A corrente utilitarista entendia que uma relação social,
tal como a escravidão, poderia se estabelecer para suprir as necessidades de um povo e
ser útil ao seu desenvolvimento e ao seu crescimento.
250
Ao longo do século XVIII, as duas correntes de pensamento sofreram mudanças,
decorrentes das transformações pelas quais vinham passando as idéias políticas, sociais
249
MANENT, Pierre. História Intelectual do Liberalismo: Dez lições. Rio de Janeiro: Imago Editora,
1990.
250
VERGARA, Francisco. Introdução aos fundamentos filosóficos do liberalismo. São Paulo: Nobel,
1995, pp. 14-16.
133
e econômicas na Europa. Do Direito Natural nasceu a Doutrina dos Direitos do
Homem, defendidas por pensadores como Turgot, Condorcet e Paine. Por outro lado, o
utilitarismo emergia com idéias favoráveis a irrestrita noção de liberdade nos vários
âmbitos: político, econômico e das idéias, estando associado fundamentalmente a
nomes como os de Adam Smith, Benthan, Hume e Stuart Mill.
251
Para os utilitaristas o maior bem de uma sociedade consistiria na felicidade
coletiva e a liberdade deveria estar sempre subordinada ao interesse geral, qual fosse, o
da felicidade: “[o utilitarismo] é uma doutrina que identifica o bem comum com a
felicidade.”
252
Ou seja, a liberdade seria benéfica se ela fosse capaz de exercer uma
utilidade para a coletividade, caso contrário ela serviria unicamente aos interesses
particulares, se tornando indesejável e prejudicial: “a liberdade é assim rejeitada quando
entra em conflito com a felicidade; portanto é ‘subordinada’ à felicidade, que é o bem
supremo.”
253
No entanto, os pensadores liberais dessa corrente expressaram uma noção
de felicidade que se fundamentava principalmente na prosperidade material, na
possibilidade de ter e de usufruir. Neste sentido, ainda segundo esta doutrina, “o valor
moral de uma ação depende exclusivamente da quantidade de prazer que ela
produz.”
254
O cálculo dos prazeres desenvolvido pelos utilitaristas referia-se ao tipo de
prazer capaz de gerar a maior felicidade coletiva.
O aspecto que nos interessa para os fins deste trabalho é o que diz respeito à
idéia de liberdade econômica. Para o utilitarismo, a liberdade econômica representava
251
O liberalismo clássico teve com Adam Smith, em 1776, sua inauguração, representando um marco na
disseminação da economia clássica inglesa, que se distinguia da fisiocracia francesa. Ver, sobre o
liberalismo clássico e a diversidade de idéias entre as doutrinas econômicas: LIMA, Heitor Ferreira.
História do Pensamento Econômico no Brasil. ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1978. (Brasiliana; v.
360).
252
Vergara, F. Op. Cit., p. 24.
253
Ibidem, p. 27.
254
Ibidem, p. 29.
134
um contrato de liberdade concedida pela sociedade, sobre a qual ela teria o direito de
intervir sempre que sentisse necessidade. Neste sentido:
(...) os regulamentos restritivos que dizem respeito ao comércio ou à
produção de mercadorias são indiscutivelmente entraves; e qualquer
entrave, enquanto entrave, é um mal; mas essas restrições particulares
dizem respeito a essa parte da conduta que a sociedade é autorizada a
restringir.
255
Para esta corrente de pensamento, a dinâmica da economia guiar-se-ia por ela
mesma, sendo a sociedade a única habilitada a intervir e impor seus limites, garantindo
uma dinâmica “natural” às atividades econômicas, que não precisariam da intervenção
estatal para se desenvolverem. Neste caso, as atividades econômicas deveriam existir
com plena liberdade, não sendo necessários regulamentos para que elas bem
funcionassem. Desta forma, os limites da ação do Estado seriam bastante estreitos,
ficando a cargo da sociedade a decisão de regular suas relações econômicas, que se
dariam com o exercício da liberdade nas relações de comércio.
Em sua obra Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das Nações,
Adam Smith
256
defendeu a idéia de que a liberdade econômica seria o elemento
propulsor do enriquecimento das nações. A permanência de uma prática protecionista na
esfera econômica seria empecilho ao seu pleno desenvolvimento; as leis do comércio
seriam naturalmente reguladas, sem que houvesse a necessidade de uma intervenção
estatal, a economia se auto-regularia por suas próprias leis. Argumentou contra os
255
MILL, John Stuart. Utilitarism. The collected works of J. S. Mill, Lonmdres: Toronto e University of
Toronto Press e Routledge Kegan Paul, 1963, pp. 210-218. Apud Vergara, Francisco. Op. cit., p. 41.
256
SMITH, Adam. Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkeian, 1980, 2 vols.
135
mercantilistas, defensores do Estado intervencionista e de práticas protecionistas e teceu
duras críticas à existência de monopólios, à extrema regulação do Estado e aos entraves
à liberdade de comércio. Para ele, a riqueza de uma nação seria medida por suas terras
e pelos bens de consumo que fosse capaz de obter e, acima de tudo, pelo
desenvolvimento de sua manufatura e de seu comércio.
257
As corporações e o aprendizado ocuparam papel de destaque em suas críticas,
que apontavam os prejuízos decorrentes do monopólio exercido por tais entidades e os
malefícios causados pela falta de liberdade dos trabalhadores, quando submetidos ao
aprendizado. A prática secular dos ofícios, as regras rígidas de aprendizado, a garantia
de privilégios e de restrições comerciais aos membros dos ofícios significavam, na
concepção de Smith, duros golpes às práticas de livre comércio e às leis da oferta e da
procura. Neste sentido, suas críticas mais duras se deram em relação ao aprendizado
que se mantinha na Inglaterra, especialmente ao aprendizado estatutário, que vigorava
desde o século XVI. Em sua análise sobre as taxas naturais de salário, de lucro e de
renda apontou a importância de se manter a liberdade de comércio a fim de que o preço
de todos os bens tendesse ao preço natural.
258
Assim, na sua opinião, o preço do
monopólio seria o mais alto que se poderia obter, enquanto o preço da livre
concorrência seria o mais baixo ao qual se poderia chegar um bem:
257
Verifica-se na obra de Fernando Novais uma interessante discussão a respeito das diferentes posições
de mercantilistas, fisiocratas e os clássicos a respeito do colonialismo. Para Novais “No quadro da vida
espiritual da Ilustração européia, (...) o anticolonialismo configurou uma das dimensões mais
acentuadamente revolucionárias.” Ele destacou que para Smith e os fisiocratas, o monopólio levaria
sempre a uma alocação dos fatores produtivos, pois travava o crescimento da riqueza, que o
comércio livre teria condições de promover e, neste caso, no sistema colonial mercantilista os interesses
particulares dos mercadores se sobrepunham aos interesses gerais da nação. Ver: NOVAIS, Fernando
A. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). 2ª ed. São Paulo: HUCITEC,
1983, PP. 145-150.
258
Segundo Smith, preço natural é “quando o preço de um bem não é superior nem inferior ao necessário
para pagar, segundo as taxas naturais, a renda da terra, os salários do trabalho e os lucros do capital
empregados (...)”. O preço de mercado, por sua vez, é aquele pelo qual uma mercadoria é vendida e
pode ser igual, inferior ou superior ao seu preço natural. Ver: SMITH, Adam. Inquérito sobre a
natureza e as causas da riqueza das nações. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkeian, 1980, vol. I,
Livro I, Capítulo VII, pp. 159-160.
136
Os privilégios exclusivos das corporações, os estatutos de
aprendizagem, e todas aquelas leis que, em empregos determinados,
restringem a concorrência a um número de indivíduos inferior ao que,
noutras circunstâncias, nela entrariam, tendem a produzir idênticos
efeitos (...). Constituem uma espécie de monopólio em sentido lato e
podem, muitas vezes, durante gerações, e para vastos grupos
profissionais, manter o preço de mercado de certos bens acima do seu
preço natural (...).
259
Ao argumento de que as corporações tinham um importante papel na
aprendizagem dos artesãos, Smith contrariava afirmando que esta relação de trabalho
desenvolvida pela política européia nos últimos tempos estaria dando origem a
desigualdades importantes entre os trabalhadores ao impedir a liberdade de comércio,
constituindo os privilégios corporativos no maior dos entraves a tal liberdade. Para ele,
o privilégio exclusivo de um ofício regido por uma corporação impedia a concorrência
no local onde ela estivesse estabelecida, restrita exclusivamente àqueles que fossem
autorizados a exercer tal ofício. Além disso, esta prática acabava impedindo que os
trabalhadores tivessem plena liberdade de escolha de trabalho, uma vez que tendo sido
aprendizes eram obrigados a manterem o vínculo com o mestre que lhes havia ensinado
o ofício por longos anos.
De acordo com Smith, as vantagens e desvantagens tenderiam para uma situação
de igualdade quando houvesse “liberdade perfeita” e a primeira forma de política
desigual seria criada a partir da restrição econômica a alguns empregos, principalmente
pela concessão de privilégios exclusivos às corporações: estas exigiam um longo
período de aprendizagem do ofício e atuavam com limitação do número de aprendizes,
determinado pelo compromisso ou estatuto da corporação. Para ele, os longos períodos
259
Ibidem, p.169.
137
de aprendizagem não constituíam garantia contra a qualidade do trabalho, assim
como não “habituavam a gente jovem a ser industriosa”:
A instituição de longos períodos de aprendizagem não pode constituir
garantia de que não sejam apresentados para venda ao público
artefactos de qualidade inferior. Quando isto sucede, é normalmente
por efeito de fraude e não de incapacidade e nem a mais longa das
aprendizagens pode constituir garantia contra a fraude. É muito
diverso o tipo de regulamentação necessário para evitar estas
infrações. A marca do esterlino no metal, e os carimbos nos tecidos de
linho e de proporcionam muito maior segurança ao comprador do
que qualquer estatuto de aprendizagem. Ele procura normalmente tais
marcas, mas nunca acha necessário inquirir se o operário cumpriu os
sete anos de aprendizagem.
260
A aprendizagem não correspondia para Smith, necessariamente, a um caminho
para a disciplinarização do jovem trabalhador, na medida em que haveria por base um
desestímulo gerado pela não aquisição de salário imediato nos anos de aprendizagem.
Ou seja, um aprendiz não teria nenhum interesse em não ser “indolente” ou “ocioso”,
visto que se dedicava durante anos ao aprendizado de um ofício sem receber nada por
isso e que o hábito do trabalho somente seria adquirido mediante o interesse do
trabalhador em ser recompensado pelo seu trabalho.
261
De acordo com os seus
argumentos, a origem das corporações residia na necessidade de manutenção dos
preços, dos salários e dos lucros, conseguindo ganhos às custas do campo, que ficava
sempre em situação desfavorável, inclusive pela dificuldade de maior associação dos
260
Smith, A. Op. cit., livro I, parte II, capítulo X, p. 269.
261
Ibidem, pp. 269-270.
138
habitantes do campo. Concluiu suas críticas às corporações, afirmando que além de
serem absolutamente desnecessárias, elas corrompiam o trabalhador.
262
Smith, um dos principais pensadores liberais da corrente utilitarista, era
absolutamente contrário a qualquer prática econômica exercida por corporações de
ofícios, defendendo que tais associações mantinham sob a sua tutela o exercício de
determinados ofícios e atividades profissionais, garantindo a defesa dos interesses de
seus artífices, mas também garantindo para si o mercado, monopolizando as atividades.
O sistema regido por corporações era, em sua opinião, profundamente monopolista na
medida em que procurava garantir a exclusividade comercial para suas obras e produtos
e impedir a concorrência. Outro aspecto importante para ele é que as corporações eram
rigorosamente organizadas a partir de regulamentos que tinham a aprovação do rei para
o seu funcionamento; neste caso, a presença do Estado tornar-se-ia fundamental.
De acordo com Emma Rothschild, Smith foi um “incansável crítico das
organizações de aprendizes de ofícios”,
263
para quem o aprendizado era ineficiente e
injusto. Segundo a autora, essas idéias apontadas por Smith na riqueza das Nações se
constituíram no cerne das controvérsias iniciais sobre a obra, poucas semanas antes de
sua publicação, que ocorreu em março de 1776. O manuscrito teria sido apreendido
pela polícia na véspera e destinado à fogueira.
Segundo Rothschild, os argumentos de Smith contra o aprendizado faziam parte
de um conjunto bem mais amplo de críticas à manutenção de instituições corporativas
na Inglaterra e à sua “jurisprudência incerta”. Esta crítica, por sua vez, inseria-se em
uma visão específica sobre o comércio e o sobre o papel do Estado na economia. Neste
sentido, Rothschild agrupou os argumentos de Smith em quatro blocos de análise.
262
Ibidem, pp. 263-304.
263
ROTHSCHILD, Emma. Sentimentos Econômicos: Adam Smith, Condorcet e o Iluminismo. Rio de
Janeiro: Record, 2003, p. 101. Ver especialmente o capítulo 4: “Aprendizado e Insegurança”.
139
No primeiro bloco, ela analisou os argumentos de Smith relacionados à ausência
de competitividade. Na visão de Smith, os estatutos do aprendizado se constituiriam em
privilégios exclusivos das corporações, sintetizando “tipos de monopólios expandidos”,
onde a permanência de aprendizes exclusivos tenderia a obstruir a competitividade e a
prejudicar o interesse blico, ao manter altos os lucros das oficinas e fábricas. Esta
relação de trabalho impedia a livre circulação dos trabalhadores de um emprego para
outro e as restrições impostas pelas corporações teriam a intenção de restringir a
competição, acabando por manter os preços altos. Neste sentido, a extinção do
aprendizado beneficiaria o público, pois o trabalho dos artífices chegaria bem mais
barato aos consumidores e a prescrição de Smith indicava a derrubada dos privilégios
corporativos e a revogação do Estatuto do aprendizado - “ambos verdadeiras usurpações
à liberdade natural”-,
264
acrescentando a isso a revogação da Lei do assentamento
(settlement law) na Inglaterra.
O segundo bloco de argumentos baseia-se na eficiência: para Smith o
aprendizado se constituía em um meio insatisfatório para o treinamento dos
trabalhadores em habilidades ou hábitos de indústria. Para ele não era tão evidente que
a extensa educação fosse necessária na maioria das funções manufatureiras, o que
tornava os longos anos de aprendizado “desnecessários e inúteis”. O fato dos
aprendizes passarem longos anos aprendendo o ofício sem receberem por isso nenhum
salário, em vez de torná-los hábeis e industriosos, pelo contrário, agiam para torná-los
indolentes e preguiçosos, na visão de Smith. Aos argumentos de que o aprendizado
evitaria a fraude nas obras, Smith rebateu argumentando que risco maior corriam em
estarem as obras sob tutela das corporações, já que o aprendizado não se constituía em
total garantia contra a fraude:
264
Ibidem, pp. 104-104.
140
A venda de mercadorias de qualidade, diz ele, ‘é geralmente o
efeito da fraude, e não da inabilidade, e o aprendizado mais longo não
pode oferecer nenhuma garantia contra a fraude’. O risco de fraude é,
de fato, maior nas corporações exclusivas e privilegiadas. Para os
trabalhadores sem privilégios, é o temor de perder os clientes ‘que
restringe suas fraudes’; os trabalhadores nos subúrbios fora das cidades
incorporadas ‘não dependem senão de seu próprio caráter.
265
O terceiro bloco de argumentos refere-se à eficiência e eqüidade, na qual aponta
os argumentos de Smith sobre a injustiça decorrente do aprendizado para os
trabalhadores. De acordo com afirmação do pensador, “a propriedade que todo homem
tem em seu próprio trabalho é a base original de toda outra propriedade, por conseguinte
é a mais sagrada e inviolável”. De acordo com este pressuposto, Smith argumentava
que o sistema de aprendizado impedia os trabalhadores mais pobres de usarem seu
trabalho da forma que julgassem apropriada, devendo sempre se sujeitarem à vontade
do mestre do ofício, para quem todo o produto do trabalho seria destinado.
266
No quarto bloco de argumentos destacados pela autora ela analisa as críticas de
Smith ao caráter injusto e inseguro da jurisprudência em relação ao aprendizado. Para
ele, esta injustiça refletia uma combinação opressiva das leis públicas com os estatutos
corporativos, sendo as leis decretadas em benefício daqueles que estivessem no poder,
inclusive beneficiando fundamentalmente os mestres de ofícios. Os estatutos
reguladores das corporações vigoravam mediante confirmação pela “lei pública do
reino” e, segundo ele, o objetivo do estatuto elisabetano, instituído em 1563, era que os
265
Ibidem, p.110.
266
Ibidem, pp. 116-117.
141
estatutos das corporações se tornassem na Inglaterra “a lei pública e geral das cidades
mercantis” e essa lei pública encarregava-se da assistência aos pobres.
267
Os argumentos acerca da eficiência do aprendizado foram especialmente
retomados ao longo das décadas seguintes na Inglaterra. Uma onda de debates foi
travada em relação à revogação do aprendizado estatutário ou uma revogação parcial de
algumas cláusulas sobre o aprendizado. Os argumentos de Smith foram retomados
pelos críticos do estatuto, sobretudo a partir dos argumentos que combatiam as
corporações e suas relações de ensino profissional. Também foram retomadas com
força as posições contrárias às visões de Smith e à reforma do estatuto, que procuravam
argumentos em defesa da formação do aprendiz e da importância do aprendizado nas
relações de trabalho.
Um crítico contundente da obra de Adam Smith foi William Playfair que,
curiosamente, organizou a 11
a
edição da Riqueza das nações, tecendo duras críticas às
posições de Smith nas notas de rodapé e em capítulo suplementar sobre a educação. No
seu entender, o aprendizado representava uma forma dos mestres manterem certo
controle sobre os jovens, era uma fonte de “boa conduta moral”.
268
Na sua opinião, a
extinção do aprendizado poderia desencadear um deterioramento da ordem moral da
sociedade, onde o jovem trabalhador não teria mais a referência do mestre em sua
formação e os vínculos com as regras de um ofício. Desta forma, ele apontava em
Smith uma maneira de ver o aprendizado como uma escolha entre dois modos de vida,
qual fossem, o de uma sociedade reunida por meio da educação ou uma sociedade
267
Ibidem, p. 123.
268
Esta interpretação das posições de Playfair foram desenvolvidas por Rothschild. Op.cit., p.114.
142
formada por meio do treinamento; este segundo sendo aquele com o qual Smith se
identificava. E na opinião de Playfair, os dois sistemas eram contraditórios.
269
William Playfair foi também autor de uma importante obra, publicada em 1807,
na Inglaterra, intitulada Inquirição das permanentes causas da declinação e queda das
nações poderosas e ricas,
270
obra na qual discutia com Smith a respeito do papel do
aprendizado no processo de educação para o trabalho da população jovem e pobre da
Inglaterra.
O tema da educação também gerou infindáveis controvérsias acerca do que teria
sido defendido na riqueza das Nações. Novamente, Rothschild lembrou que as
posições de Smith inspiraram os projetos revolucionários de instrução pública de 1788 e
de 1791, na defesa da “igualdade de talentos naturais”. Para Smith, a maneira como as
relações da sociedade se impunham em torno do comércio geravam novas demandas
relacionadas à educação, que “seria boa em si mesma”, não devendo servir apenas aos
fins comerciais ou a interesses específicos de um mestre de ofício.
271
Tais posições
foram o cerne dos debates do início do século XIX sobre a permanência ou não do
aprendizado e, especialmente, sobre a função e utilidade social que cumpria. As
posições consideradas mais “progressistas” na época tendiam a identificar no
269
Ibidem, p. 111.
Na segunda metade do século XIX a crítica de Marx foi a mais contundente em relação as perdas
decorrentes da transformação no processo de produção, quando os trabalhadores perderam o domínio
sobre o instrumento de trabalho a ferramenta e tornaram-se condutores de uma máquina que
manejava seus próprios instrumentos: “Na manufatura e no artesanato, o trabalhador se serve da
ferramenta na fábrica, serve à máquina. Naqueles, procede dele o movimento do instrumental de
trabalho; nesta, ele tem de acompanhar o movimento do instrumental. Na manufatura, os trabalhadores
são membros de um mecanismo vivo. Na fábrica, eles se tornam complementos vivos de um
mecanismo morto que existe independente deles.” Essa crítica está na base da idéia de alienação
desenvolvida por Marx, para quem a máquina destituía o trabalhador de sua capacidade inventiva e
transformadora no processo de produção, à medida em que na produção mecanizada desaparece o
princípio subjetivo da divisão do trabalho, tornando-se todo o processo examinado objetivamente em si
mesmo. MARX, Karl. O Capital. Crítica da Economia Política. Livro I., vol. 1. Trad. Reginaldo de
Sant’Anna. 24a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, pp. 427-487.
270
PLAYFAIR, William. Na Inquiry into the permanent causes of the decline and fall of powerful and
wealthy nations. London: printed for Greeland and Norris, Booksellers, Finsbury-square, 1807.
271
Ibidem, pp.111-115.
143
aprendizado um modelo arcaico de formação do trabalhador, que não respondia mais
as demandas de uma sociedade que evoluía para a industrialização e para uma inevitável
modificação das relações de produção.
Dois outros importantes aspectos sobre a discussão em torno da revogação do
estatuto do aprendizado foram levantados por Rothschild: o primeiro foi de que entre
1800 e 1810 os debates travados no parlamento refletiram “um doloroso conflito entre
os diferentes tipos de direitos”, bem como os direitos dos diferentes tipos de
trabalhadores. Num segundo aspecto, ela ressaltou que o período de expansão das
manufaturas entre 1780, 1790 e 1800, coincidiu com a derrubada das perspectivas
positivas em relação ao aprendizado.
272
Partamos destas duas observações para
analisarmos a revogação do estatuto do aprendizado na Inglaterra, que ocorreu em 1814.
4.2. A extinção do aprendizado na Inglaterra
No século XIX, Londres constituía-se no maior centro artesanal do mundo,
contando com mais de cem mil artesãos dos mais variados ofícios, dentre os quais os
mais numerosos eram os sapateiros,
273
seguidos pelos alfaiates. O termo artesão, no
entanto, ocultava grandes disparidades entre os mais diversos ofícios, segundo apontou
Thompson, em análise sobre os artesãos na Inglaterra do século XIX. A mesma
designação incluía desde a mestrança mais próspera, que contava com seus próprios
empregados, até aqueles trabalhadores de oficinas em más condições de trabalho e de
moradia, que sobreviviam com baixos salários.
274
Neste caso,
272
Ibidem, p.118.
273
HOBSBAWN, Eric. “Sapateiros politizados”, In: Mundos do Trabalho: novos estudos sobre História
Operária. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. Segundo o autor, na Grã-Bretanha o número de homens
adultos no ofício aumentou de 133 mil para 243 mil entre 1841 e 1851.
274
THOMPSON, E. P. “Artesãos e outros”. In: A formação da classe operária inglesa. A maldição de
Adão, Vol. II. 3
a
ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, pp. 71-72.
144
a primeira metade do século XIX deve ser considerada como um
período de subemprego crônico, no qual os ofícios especializados
pareciam ilhas ameaçadas de todos os lados pelas inovações
tecnológicas e pelo afluxo de mão-de-obra jovem ou não qualificada.
275
Thompson notou uma diferenciação entre as novas especialidades que surgiram
no período de formação das primeiras sociedades mutualistas e dos sindicatos. Para ele,
os clubes de ofícios que agrupavam artesãos industriais no final do século XVIII deram
lugar a uma explosão de associações de auxílio mútuo, tais como a sociedade de auxílio
mútuo dos moldadores de ferro (de 1809) e a sociedade de beneficência e auxílio mútuo
dos torneiros mecânicos.
276
Na sua avaliação, o desenvolvimento desse associativismo
não deve ser visto como um processo de avanços contínuos, na medida em que as novas
habilidades se fortaleciam profissional e politicamente. Além disso, ao longo do tempo
estabeleceu-se uma nova hierarquia entre os “novos” e os “antigos” oficiais, entre os
“qualificados” e os “não qualificados”.
Essa nova hierarquia era oriunda das mudanças das relações de trabalho que
vinham ocorrendo, especialmente a partir da revogação de várias cláusulas do estatuto
do aprendizado. Segundo K.D.M. Snell, os historiadores consideram o aprendizado na
Inglaterra analisando-o em três períodos distintos: o do aprendizado das guildas (guild
apprenticeship), que teria começado por volta do século XII até 1563; o período do
aprendizado estatutário, que vigorou de 1563 até 1814 - quando as guildas foram
desaparecendo após a revogação do estatuto -; e a diversidade de formas assumidas no
275
Ibidem, p. 83.
276
Ibidem, pp. 85-86.
145
associativismo com o aprendizado voluntário (voluntary apprenticeship), desde 1814
até os dias atuais.
277
O autor analisou as mudanças que afetaram as duas últimas fases do sistema de
aprendizado na Inglaterra, as formas de controle do aprendizado na fase “pré-
industrial”, o declínio do sistema tradicional por volta de 1750 e a continuidade e as
reformas do estatuto do aprendizado no século XIX. Segundo ele, as cláusulas mais
importantes do estatuto elisabetano foram revogadas em 1814, quando uma onda de
mudanças ofuscava as diretrizes do aprendizado, quando um novo entendimento sobre
estas relações tendia a reduzir o papel do Estado junto aos ofícios. Este papel havia sido
ampliado exatamente a partir da instituição do estatuto, em 1563, que teria unificado o
sistema de guildas e inserido-as na esfera legal, obrigando o Estado a exercer um papel
que antes não passava de um controle local sobre as guildas. Através da legalização dos
compromissos e estatutos, passava-se a regulamentar a respeito de todas as relações que
comportassem os ofícios: o número de aprendizes, a qualificação dos trabalhadores,
idade, tempo de aprendizado, etc. Desta forma, “apprenticeship was used to enforce an
extensive conception of social order, control and loyalty”.
278
A discussão em torno da revogação das cláusulas do estatuto do aprendizado
trazia no bojo as críticas à lei do assentamento,
279
que proporcionava garantias ao
aprendizado após sete anos de treino, atuando também com a função de ajuda aos
pobres, em um sistema de bem-estar público que funcionou entre 1662 e 1834, quando
foi “substituída” pela Lei dos Pobres.
280
Através do assentamento o trabalhador jovem
ligava-se a uma família por meio do trabalho, estabelecendo um elo entre os vários
277
SNELL, K.D.M. “The apprenticeship system in British history: the fragmentation of a cultural
institution”, (mimeo), pp. 1-2. Agradeço a gentileza do professor K. D. Snell por me enviar o artigo.
278
Ibidem, pp. 3-4.
279
Em algumas traduções, settlement law aparece como “lei do estabelecimento”.
280
Ibidem, pp. 7-8.
146
aspectos da vida social, familiar e econômica local. Os jovens trabalhavam como
aprendizes durante anos e conservavam em suas expectativas o desejo de se tornarem
mestres. A competição não se dava entre empresas, mas entre trabalhadores
especializados para obterem o direito de exercer o ofício de forma independente,
281
e
essa competição e o treinamento desempenhavam um importante papel para a
comunidade e eram essenciais para a manutenção da vida econômica e administrativa
local. Aqueles jovens que eram treinados na localidade, assim que se estabeleciam se
tornavam ao mesmo tempo trabalhadores e contribuintes.
282
Por isso, o aprendizado
tornava-se responsabilidade de toda a comunidade e qualquer falha no “treinamento”
também atingia a todos, pois a falha incidiria na queda da qualidade dos produtos, em
declínio do artesanato local, aumento dos preços, etc. Desta forma, estabelecia-se um
“delicado balanço” entre especialização, treinamento e a lei dos pobres e todos seriam
prejudicados caso as regras do aprendizado falhassem.
283
As dificuldades em torno das leis do aprendizado e de sua aplicação
contribuíram para a ocorrência de dois períodos marcantes de conflitos em relação aos
ofícios artesanais. A primeira delas foi entre 1812 e 1814, fase de debates em torno da
revogação das cláusulas sobre o aprendizado do estatuto até a sua revogação, a partir de
quando se deu um embate entre os ofícios de trabalhadores organizados, que
conseguiram defender suas posições, como foi o caso dos sapateiros e dos alfaiates,
enquanto os demais trabalhadores cada vez mais passavam a integrar os setores
“indignos” e serem prejudicados em seus direitos. Um segundo período pode ser
indicado entre os anos de 1833 e de 1835, quando aumentaram as exigências dos
trabalhadores em torno de posições mais radicais, com ascenso das mobilizações
281
Ibidem, pp. 8-11.
282
Ibidem, p. 12.
283
Ibidem, p. 13.
147
sindicais. Contudo, tais tentativas não resistiram às pressões do governo e dos
empresários e “provocaram uma deterioração, ao menos temporária, na situação dos
trabalhadores sindicalizados”.
284
A revogoção das cláusulas do estatuto, em 1814, foi vista por muitos estudiosos
como um marco na história do laissez-faire, como apontou T. K. Derry.
285
As leis
elizabetanas, instituindo o aprendizado em sete anos, evidenciavam um dos maiores
exemplos políticos de regulação do Estado sobre as questões sociais. No entanto, no
final do século XVIII, o estatuto havia se tornado inoperante, mostrando sinais de
declínio desde 1740. Estas mudanças tornaram-se mais intensas ainda no início do
século XIX, apesar dos movimentos em defesa da lei, encabeçadas sobretudo pelas
organizações de trabalhadores qualificados.
286
A instituição do estatuto dos artífices, portanto, deve ser percebida como uma
importante forma concebida pelo Estado de regulação das relações econômicas e
sociais, através da qual o governo reconhecia seus interesses e seu dever em garantir o
aprendizado dos jovens, estabelecendo os limites de atuação dos mestres. Ficava a
cargo do estatuto também o estabelecimento de quotas de aprendizes nas oficinas, os
limites de idade e o tempo de aprendizado. Através do estatuto fora exercido o controle
sobre toda a produção artesanal desenvolvida no reino, ao unificar e regulamentar o
sistema de guildas. A partir de 1814, modificou-se o enfoque sobre a questão e o
Estado deixava de assumir responsabilidade sobre as relações de aprendizado, que
assumiram diversas formas a partir da instituição do Estatuto Voluntário. Além das
limitações do antigo estatuto, a inflexibilidade da lei do assentamento foi indicada como
um fator importante para o declínio do aprendizado e da revogação de suas cláusulas
284
Thompson, E. P. Op. cit., p. 101.
285
DERRY, T. K. “The repeal of the apprenticeship clauses of the statute of apprentices”. The Economic
History Review, vol. 3, n.1 (Jan., 1931), 67-87.
286
Ibidem, pp. 67-70. Alguns exemplos de movimentos são descritos pelo autor.
148
relacionadas ao aprendizado, devido ao desengajamento que adquiriu em relação aos
propósitos sociais anteriormente estabelecidos.
287
A revogação das cláusulas do estatuto elizabetano dos artífices parece, portanto,
ter levado os trabalhadores a uma séria competição, além de tê-los exposto à
insegurança. Segundo Thompson, as novas relações instituídas após a revogação do
estatuto indicavam no sentido do estabelecimento de uma nova hierarquia entre os
trabalhadores e de novas formas de associação, identificando-se uma alta rotatividade da
mão-de-obra nas oficinas mecânicas.
288
Segundo o autor, um dos mais importantes
empresários do setor de maquinaria de Londres, Alexander Galloway, em 1824,
mostrou que a revogação quebrou a espinha dorsal das associações, ao permitir que os
trabalhadores atuassem em qualquer atividade independentemente de quanto tempo
tivessem de experiência. Neste caso, apontou-se a ocorrência de um processo de
desvalorização do artesanato, do lento desaparecimento dos oficiais mecânicos e a
afluência de mão-de-obra jovem e desqualificada para as cidades.
289
No entanto, este
processo não se deu sem a atuação e a pressão dos trabalhadores em defesa de seus
direitos; caminhava-se para os conflitos em torno da elaboração e instituição dos novos
direitos:
Os últimos anos de guerra assistiram à erosão geral das restrições
corporativas ao ingresso de aprendizes, na prática e na legislação,
culminando com a revogação das cláusulas do Estatuto Elisabetano dos
Artífices, relativas ao aprendizado, em 1814. Cientes dos seus
interesses, os artesãos agiram vigorosamente contra esta ameaça.
Devemos recordar que nessa época havia pouca instrução escolar,
inexistindo os institutos de mecânica ou as escolas técnicas:
praticamente toda a habilidade ou ‘mistério’ do ofício era transmitido
287
Snell, Op. cit., p.18.
288
Thompson, E. P. Op. cit., pp. 86-87.
289
Idem.
149
pelo oficial ao seu aprendiz, através de preceitos e exemplos, nas
oficinas. Os artesãos consideravam este ‘mistério’ como sua
propriedade (...). Consequentemente, não se combateu a revogação,
como também se formou em Londres um ‘incipiente conselho de
ofícios’, sendo coletadas 60.000 assinaturas por toda a nação, numa
petição para fortalecer as leis sobre o aprendizado. Como resultado
desses atos, há evidências de que os clubes de ofícios foram realmente
fortalecidos, de maneira que muitos artesãos londrinos emergiram das
guerras numa posição comparativamente forte.
290
O que estava em jogo era a defesa do direito de exercer seu ofício mantendo a
tradição e, de alguma forma, a garantia da propriedade sobre o seu trabalho. A
revogação das cláusulas do estatuto promoveu uma conflitante convivência entre as
antigas e as novas formas de trabalho, entre os novos trabalhadores e os antigos
mecânicos que haviam se dedicado ao aprendizado por longos anos. A luta por direitos
acalentava a perda da maior aspiração dos artesãos, ou seja, do sonho de se tornarem
mestres independentes. Desta forma, Thompson mais uma vez traduziu essas
aspirações dos artesãos, interpretando a radicalização política que teria marcado suas
ações, indicativa das revoltas dos trabalhadores com as perdas obtidas: “a perda de
prestígio, a degradação econômica direta, o desaparecimento do orgulho pelo ofício, na
medida em que ele se aviltava, o fim da aspiração de se tornar mestre”.
291
A elaboração desses novos direitos ocorria concomitante às transformações na
esfera produtiva, enquanto desenvolviam-se entre os artesãos as possibilidades de
defesa de tradições e costumes que fortaleciam suas associações. Mesmo entre aqueles
ambulantes, que passavam a vida correndo de uma à outra cidade a procura de trabalho
ou de vender seus produtos, lutava-se arduamente pela permanência de mínimos direitos
290
Ibidem, p. 95.
291
Ibidem, p.107.
150
e pela aquisição de outros. Eric Hobsbawn apontou o movimento itinerante desses
aprendizes, que se deslocavam constantemente, como um dos elementos disseminadores
do sindicalismo, levando às diversas áreas informações a respeito dos salários e das
condições de trabalho, o que os caracterizava como uma verdadeira “enciclopédia
ambulante do conhecimento sindical comparativo”.
292
Essa itinerância, de forma
alguma, foi parte integrante da formação dos artesãos, mas agia como importante
artifício para se enfrentar a falta de trabalho nas cidades ou a busca por mais
consumidores fora da esfera local.
Ampla discussão sobre a variação no padrão de vida e nos níveis salariais e de
consumo dos trabalhadores ingleses pode ser verificada a partir de meados do século
XX entre os historiadores econômicos ingleses. Hobsbawn sintetizou e incendiou este
debate em um artigo intitulado O padrão de vida inglês de 1790 a 1850, apontando as
limitações tanto das abordagens econômicas que tenderam a exacerbar os aspectos
positivos da revolução industrial para a melhoria de vida dos trabalhadores e de suas
condições materiais, assim como daqueles clássicos que tenderam a ver de uma maneira
pessimista estes avanços.
293
Desta forma, rejeitou tanto a visão de que o começo da
industrialização teria sido uma catástrofe para os trabalhadores ou que seu padrão de
vida tivesse declinado naquele período, quanto contestou os dados e as estatísticas que
mostravam que o padrão de vida dos trabalhadores teria dado uma enorme guinada
naqueles anos. Segundo ele, apesar das condições materiais das pessoas terem
indubitavelmente melhorado a partir do século XVIII, ele lembrou que no começo da
industrialização não havia nenhum mecanismo que garantisse uma distribuição de renda
mais eqüitativa entre a população, além de grande parte do capital acumulado não ser
292
HOBSBAWN, Eric. J. “O Artesão Ambulante”. In: Os Trabalhadores: estudos sobre a história do
operariado. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000, pp. 51-82.
293
HOBSBAWN, Eric J. “O padrão de vida inglês de 1790 a 1850”. In: Os Trabalhadores...Op. cit, pp.
83-129. Neste artigo, Hobsbawn apontou para um enorme crescimento do número de trabalhadores
ambulantes nos primeiros anos do século XIX, chegando a 7.000 no ano de 1820.
151
direcionado para a indústria. Para ele, não pareceu também improvável que em algum
momento após o deslanchar da revolução industrial estes padrões tenham declinado e,
sendo assim, os períodos mais críticos poderiam ser apontados em 1790 e
posteriormente em meados da década de 1840.
294
Os primeiros anos do século XIX marcaram, portanto, um declínio do
aprendizado e de uma concepção positiva em relação a este; por um lado em
decorrência das novas vertentes filosóficas que influenciavam decisivamente as idéias
no campo político e econômico, por outro em conseqüência das transformações que se
apontavam na esfera produtiva. É preciso lembrar ainda que por volta de 1750 a
Europa havia consolidado sua supremacia tecnológica sobre o restante do mundo
295
e
que a Inglaterra apresentou condições fundamentais para o deslanche do processo
revolucionário industrial, incentivado pela enormidade de inventos tecnológicos que o
antecederam, apresentando um processo de mudanças tecnológicas acelerado e sem
precedente na história.
296
As invenções, descobertas e mudanças no campo tecnológico
marcavam, a partir da segunda metade do século XVIII de forma tão definitiva a
história européia que todas as relações econômicas e sociais haveriam de ser repensadas
e refeitas a partir disto. Neste contexto, as relações entre mestrança e aprendizado
tornavam-se - aos olhos dos contemporâneos - algo estranho, um modelo arcaico de
produção que tenderia lentamente ao declínio.
294
Ibidem, p.111.
295
MOKYR, Joel. The Lever of Riches: Technological Creativity and Economic Progress. New York,
Oxford: Oxford University Press, 1992, p. 81.
296
Ibidem, pp.82-83.
152
4.3. A proibição das corporações no Brasil e a defesa de José da Silva Lisboa
na Constituinte de 1823
a) Sobre José da Silva Lisboa
Na Constituinte de 1823, José da Silva Lisboa gozava dos seus sessenta e sete
anos. Nasceu em Salvador, filho de pai lisboeta e de mãe baiana. Não consta que sua
vida tenha sido de riquezas, ao contrário, a família perece ter vivido com grandes
dificuldades. Ainda assim, José da Silva Lisboa estudou em Portugal e cursou os
estudos “jurídicos e filosóficos” na Universidade de Coimbra. Em 1778, tornou-se
professor substituto de hebraico e grego na mesma Universidade e obteve bacharelado
em Direito Canônico e Filosofia.
297
Em Portugal teve suas duas primeiras obras publicadas: Princípios de Direito
mercantil e leis da Marinha e Princípios de Economia Política. Este último foi o
primeiro livro em língua portuguesa a dissertar sobre os princípios da Economia Política
clássica, fruto da admiração que nutria pelo liberalismo econômico e pelas idéias de
Adam Smith, a partir da leitura de Uma investigação sobre a natureza e as causas da
riqueza das nações.
298
De volta ao Brasil, José da Silva Lisboa lecionou na Bahia até 1797, ocupando
este ano a função de Deputado e Secretário da Mesa da Inspeção da Agricultura e
Comércio da Bahia. Foi um importante propagador da política econômica adotada pelo
rei D. João e desfrutava de um privilegiado trânsito entre os homens de governo, tendo
sido um dos articuladores e principais defensores das leis que precipitaram na abertura
297
Ver informações sobre a vida de José da Silva Lisboa em: ROCHA, Antonio Penalves (organização e
introdução). José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu. São Paulo: Ed. 34, 2001.
298
Ibidem, p. 12
153
do comércio e da navegação a partir de 1808.
299
Para tanto, suas obras buscavam
justificar as ações do governo, propagar suas idéias e a sua defesa da política econômica
adotada, e acalmar os ânimos daqueles que se sentiam prejudicados com as
determinações régias, utilizando-se para isso de um poderoso instrumental intelectual: a
economia política.
É importante destacar que a economia política foi colocada em evidência por D.
João ao determinar a criação de uma “aula de economia política” em 1808, que consta
nunca ter de fato existido, mas para a qual José da Silva Lisboa foi designado professor.
Para exercer tal função mudou-se para o Rio de Janeiro, aproximando-se
geograficamente do cleo do poder, assumindo a função de Censor Régio pela Mesa
do Desembargo do Paço e da Consciência e Ordens juntamente à função de membro da
primeira Junta Administrativa da Impressão Regia. À frente desse órgão apareceram no
Brasil as primeiras impressões tipográficas, tendo sido também o primeiro autor a
publicar um livro na colônia, Observações sobre o comércio franco no Brasil, cujo
assunto se referia à economia política.
Economia política não era tema de cursos na Europa e nem mesmo Portugal
tinha uma cátedra relativa ao assunto, no início do século XIX. O fato parece curioso,
já que figurou entre uma das primeiras medidas adotadas por D. João ao chegar com sua
Corte ao Brasil, apontando também a relevância que o assunto tinha para a monarquia
naquele momento. Relevância esta que se evidenciou pela necessidade de incorporação
das idéias e práticas econômicas disseminadas na Europa com uma realidade bem
diferente existente no Brasil; necessidade que se apresentava na urgência em abarcar
junto à nobreza aqueles intelectuais que pudessem ser formuladores e difusores das
práticas adotadas pelo governo e também pelo “(...) esforço da monarquia portuguesa
299
ROCHA, Antonio Penalves (Org.). José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu. São Paulo: Editora 34,
2001, p. 14.
154
para agregar alguns intelectuais brasileiros aos quadros administrativos do Estado” bem
como pela necessidade de “ampliar suas bases políticas na colônia”.
300
Portanto, a
iniciativa de instalação de um curso de economia política tinha, por si só, importante
função na estruturação de uma política do Império português que buscava ampliar seu
quadro burocrático na esfera colonial e recorrer aos intelectuais para conjugar e
conciliar interesses dos setores abastados da colônia junto às políticas econômicas
adotadas pelo governo.
Neste sentido, as primeiras obras publicadas pela impressão régia apresentavam
a marca do governo em seu discurso e na função que tinham a desempenhar; como porta
vozes de uma política econômica que pretendia conciliar interesses divergentes de
setores econômicos que tinham muito a perder ou ganhar com a instalação da Corte no
Rio de Janeiro. A teoria disseminada por essas obras buscava a sofisticação de um
discurso e a disseminação de idéias que não seriam facilmente adaptadas a uma
realidade escravista. Para desempenhar este papel, confiou-se especialmente em José da
Silva Lisboa que, em 1825, recebeu o título de Visconde de Cairu.
Nos seus estudos, Lisboa apresentou forte influência dos economistas europeus,
destacando especialmente as obras de Adam Smith. Seu contato com a obra de Smith
parece ter se dado em 1795, a partir da publicação da primeira tradução para o
português de Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações,
301
feita por Antonio de Moraes e Silva. Pode-se dizer que Lisboa foi um importante
divulgador das suas idéias no Brasil, sendo também verdade que ele buscou adequar
vários de seus princípios à realidade brasileira.
300
ROCHA, Antonio Penalves. Economia Política na Sociedade Escravista (Um estudo dos textos
econômicos de Cairu). São Paulo: Departamento de História – FFLCH – USP/HUCITEC, 1996, pp. 36-
37. (Série Teses, 2).
301
Rocha,Antonio Penalves. Op. Cit., 2001, p. 12.
155
As idéias de Lisboa acerca da economia política difundida por Smith nortearam
suas posições com relação à forma como se daria o enriquecimento do Brasil, bem
como o progresso “da indústria e das artes”; constituindo-se a própria disciplina como
base de um conhecimento que teria como fim o desenvolvimento e a produção da
riqueza do país através do estudo das leis que regulam a economia, fornecendo ao
governo um arcabouço teórico que facilitasse a implementação de políticas econômicas.
Neste caso, os propósitos de Lisboa se aproximavam da idéia desenvolvida por Smith
com relação ao papel da economia política, para quem o estudo dessa ciência tinha o
mesmo significado da busca do entendimento sobre a natureza e as causas da riqueza
das nações.
302
Segundo Penalves Rocha, Lisboa teria incorporado várias idéias de
Smith procurando adaptá-las à sociedade brasileira sem que, no entanto, tivesse
construído uma teoria econômica ou apresentado originalidade em sua análise,
conseguindo no máximo reproduzir algumas idéias econômicas desenvolvidas por
Adam Smith.
303
Segundo Antonio Paim,
304
Cairu concebeu a economia política como uma
ciência com princípios ético-normativos, para a qual figurava como dever do soberano
reger as relações sociais e assegurar o enriquecimento da nação, sem lhe criar
empecilhos. Segundo Paim, Cairu demonstrou ao longo de sua obra uma intenção
essencialmente moral em relação aos princípios reguladores da sociedade civil,
destacando inclusive a importância da religião na formação do povo, que se evidenciou
especialmente nas obras dos seus últimos dez anos de vida. No entanto, essa postura era
coerente com o restante de sua produção intelectual e com a visão que disseminou sobre
o papel da economia política, na qual precisou e diferenciou os papéis a serem
desempenhados pela política e pela economia, ou seja, a primeira estaria preocupada
302
Essa análise foi desenvolvida por Rocha, op. cit., 1996, pp. 52-55.
303
Ibidem, p. 64.
304
PAIM, Antonio. Cairu e o Liberalismo Econômico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968.
156
com a forma de governo, enquanto a segunda seria responsável pela esfera produtiva.
Daí entende-se que para Cairu a economia representava o caminho para “a conquista de
uma vida social eminentemente moral”,
305
desde que a ciência fosse posta aos “pés do
trono”. Assim, Paim esclarece que “A intenção ético-normativa da ciência econômica
de Silva Lisboa decorre não apenas de seu próprio objeto (...) mas também da doutrina
que aponta o trabalho como fonte de toda a propriedade e valor”.
306
Dentre os mais importantes princípios da economia política e da produção da
riqueza nacional desenvolvidos por Cairu estão a franqueza de comércio e a liberdade
das relações de trabalho, que pareciam notas dissonantes numa economia que tinha a
escravidão como base e era ainda colonial!
A manifestação favorável à franqueza de comércio não apareceu na obra de
Cairu como nota dissonante, ao contrário, foi cuidadosamente ajustada às condições
sociais e de trabalho brasileiras. A condição de colônia modificava-se face à presença
da família real e às necessidades que se faziam sentir pela imensa Corte que havia se
instalado no Brasil. A franqueza do comércio atendia, assim, a um projeto que deveria
ser levado a cabo pela Coroa para solucionar problemas criados pelos abalos nas
relações de comércio ocorridas no período napoleônico, bem como criar uma estrutura
para suprir as demandas da monarquia instalada na colônia.
Como interlocutor privilegiado do poder, Cairu preocupou-se em defender e
justificar as medidas econômicas adotadas pelo governo. Logo que a abertura dos
portos foi determinada, ato imediatamente deliberado com a chegada da Corte, ele
escreveu Observações sobre o comércio franco no Brasil,
307
apontando a
inevitabilidade do Decreto de 1808 face à invasão do Reino e a necessidade da
305
Ibidem, p. 64.
306
Idem.
307
LISBOA, José da Silva. Observações sobre o comércio franco no Brasil. Rio de Janeiro: Impressão
Régia, 1808. In: Rocha, op. cit, 2001, pp. 61-118.
157
monarquia em manter os elos de comércio com as demais nações, especialmente com a
Inglaterra. Assim, afirmava que “a franqueza de comércio no Brasil será de progressivo
interesse à Coroa, e à nação”, o que se justificava pelo benefício criado devido com o
aumento das exportações dos gêneros coloniais, do aumento da arrecadação na colônia e
da animação da indústria do Reino. Isso deveria ocorrer sem que houvesse
protecionismo crítica explícita que travou ao longo de seus textos contra o
mercantilismo -, pois “o verdadeiro espírito do comércio é social; ele quer ajudar, e ser
ajudado, ele aspira a dar socorro e recebê-lo, ele carece um benefício recíproco, e não é
fecundo (...) senão quando é repartido”.
308
Para desenvolver esta análise, baseou-se
explicitamente em Adam Smith, referindo-se a ele como o Sacerdote da Justiça Civil,
pelas lições de regime social e de filantropia que difundiu na Europa, segundo as quais
o comércio deveria ser base de amizade e união entre as nações e entre os indivíduos.
309
Os malefícios causados pela adoção do sistema colonial, para Lisboa, se deram
especialmente em relação ao comércio e à divisão do trabalho, pois tal sistema não
estimulava a introdução de manufaturas, limitando as possibilidades de sua indústria e
produzindo uma forçada divisão do trabalho, não permitindo outros empregos que não
fossem aqueles destinados a agricultura, a mineração e as artes.
310
O monopólio
comercial teria, em última instância, impossibilitado o crescimento econômico do
Brasil, que ocorreria mediante o estímulo à introdução de fábricas e com a liberdade
de comércio. Lisboa defendeu, portanto, a adoção no Brasil de práticas semelhantes às
européias para incentivar a indústria e baseou-se nos princípios de Edmund Burke -
teórico e político inglês e membro do Partido Whig, cujas obras se destacaram pelo
cunho conservador –, cuja doutrina deveria ser adotada no Brasil seguindo os seguintes
308
Ibidem, p. 72.
309
Idem, p. 74.
310
Essas idéias foram desenvolvidas em: LISBOA, José da Silva. Observações sobre a franqueza da
Indústria e estabelecimento de fábricas no Brasil. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1810. In: ROCHA,
A. Penalves. Op. Cit, 2001, pp. 211-321.
158
princípios: a) seguir o exemplo da América do Norte, no tocante às fábricas; b) busca de
indústria e riqueza sem ter necessariamente as fábricas refinadas e de luxo européias; c)
convêm ao Brasil as fábricas que se associam à agricultura, comércio, navegação e artes
da geral acomodação do povo; d) não convém dar privilégios exclusivos aos que não
são inventores e introdutores de novas máquinas, mas dar-se auxílios especiais e favores
aos primeiros introdutores das grandes máquinas; e) toda fábrica introduzida por
rivalidade com objetivo de diminuir a importação, tende a diminuir a exportação; f) o
princípio da franqueza de indústria e comércio. Na defesa dessa doutrina, Cairu
demonstrava sua preocupação com o desenvolvimento da indústria no Brasil buscando,
no entanto, um crescimento gradual destes estabelecimentos, tal como se dera na
América do Norte.
Vale ressaltar que o termo Indústria para Lisboa refere-se ao conjunto de
atividades produtivas existentes em um país. Sendo assim, defende que essa idéia seja
empregada para referir-se a um amplo ramo de atividades que uma nação desenvolve e
que se constituem como fundamentais para o país: a indústria agrícola, a indústria
mercantil, a indústria da navegação, a indústria das artes mecânicas, etc. Neste caso,
mesmo que não existam manufaturas ou fábricas mais refinadas, existirão sempre
muitas espécies de indústrias: rural, fabril, comercial, náutica, etc.; e o país pode ter
muita indústria e riqueza sem possuir as “artes manufaturadas superiores”, sendo os
empregos mais rentáveis e mais importantes para se empregar no Brasil naquele
momento a agricultura, a mineração, o comércio interior e exterior e as artes
mecânicas.
311
A introdução das fábricas no país não poderia prescindir de algumas medidas
fundamentais, baseadas nos preceitos formulados pela economia política para lhe darem
311
Idem, p. 225.
159
base e assegurarem uma benéfica iniciativa do governo ao autorizá-las e viabilizar seu
funcionamento, na opinião de Lisboa. Sendo assim, apontou oito condições
fundamentais para o estabelecimento de fábricas em grande, principalmente se
dedicadas à produção de objetos de luxo: capital disponível; vasta população;
abundância de subsistência e de matérias-primas; demanda do país (demanda efetiva);
superioridade aos estrangeiros em barateza e perfeição da obra; difusão de inteligência;
franqueza de comércio e indústrias; concessão de privilégios, prêmios e honras aos
inventores nas artes e ciências
312
. Tais atividades deveriam ser incentivadas pelo
governo, mas Lisboa deixava claro que o Brasil deveria desenvolver primeiro as
indústrias de que dispunha, para gradualmente desenvolver e sofisticar sua produção
manufatureira, estimulando especialmente a invenção. Para tal afirmação, comparou a
condição do Brasil com a ex-colônia inglesa na América, que mesmo depois de sua
emancipação não buscou imediatamente o desenvolvimento de manufaturas, tendo
“prudência e cautela” neste empreendimento. Questionou, ainda no mesmo argumento,
se o Brasil deveria rivalizar com a indústria manufatureira dos países mais avançados,
com séculos de atividade fabril e maior habilidade da mão-de-obra, considerando “que
ainda estamos, por assim dizer, com o machado e a enxada na mão, lutando com
desertos e matos”, e que o trabalho agrícola ofereceria no momento todos os recursos e
riquezas das quais o Brasil precisava.
313
No que tange à franqueza de comércio e indústria, Lisboa afirmava ainda que
estas devessem ter o efeito de produzir vantagem para o emprego de estabelecimentos
no país, não se deixando que os monopólios ou corporações de qualquer espécie
obstruíssem tal liberdade. Neste caso, afirmava que
312
Ibidem, p. 236.
313
Ibidem, pp. 221-222.
160
Os estatutos das Mestranças, ou dos Grêmios ou Corporações dos
Ofícios, e o terrível sistema de monopólios que tem predominado na
Europa, tem até ao presente obstado a desenvolver-se a indústria com
toda a sua natural elasticidade e indefinida força expansiva.
314
Criticava assim a manutenção dos monopólios corporativos na Europa, visto que
eles impediriam a franqueza e liberdade de comércio. Para ele, o que não poderia
ocorrer era a prévia determinação, garantida pelos estatutos e pelo Rei, que controlasse
os salários, a produção e o número de empregados. Desta forma, defende o sistema
liberal como meio mais eficaz de se manter a progressiva e natural marcha do
desenvolvimento e opulência da nação sem atingir os interesses e o bem comum; os
monopólios tenderiam a privilegiar apenas os interesses de alguns grupos ou indivíduos,
representando um prejuízo para a economia de toda a nação.
Em 1820 José da Silva Lisboa iniciava sua trajetória política, sendo nomeado
deputado da Junta das Cortes, por D. João VI. Ao longo dos anos, manteve-se atuante
na publicação de pasquins, onde fazia sua defesa do regime, bem como divulgava as
idéias liberais, mantendo a atitude de defesa do Imperador e do regime monárquico.
Como deputado constituinte em 1823 conquistou muitos desafetos, mantendo-se mesmo
assim fiel ao governo imperial.
b) A extinção das corporações no Brasil e a defesa de José da Silva Lisboa
Em sete de novembro do ano de 1823 a Assembléia Constituinte no Brasil
reunia-se, em uma de suas últimas sessões antes do fechamento definitivo por D. Pedro
I. As discussões em torno de artigos do projeto constitucional foram longas e
314
Ibidem, p. 243.
161
relacionavam-se a temas diversos. Dentre eles, discutiu-se o artigo 17, no qual se dizia
que “Ficão abolidas as corporações de ofícios, juizes, escrivães e mestres”.
315
A forte influência do pensamento liberal sobre os grupos políticos que se
formavam em torno do poder desde antes da emancipação, em 1822,
316
foi um elemento
importante para as críticas travadas por políticos e pensadores “brasileiros” naquele
momento à permanência das corporações de ofício no Brasil.
O aspecto interessante a ser salientado em torno dessa discussão é que o único
argumento contrário à proibição das corporações de ofício foi exatamente o de José da
Silva Lisboa.
317
Como foi dito, ele foi um dos primeiros a disseminar no Brasil o
pensamento liberal através de publicações, introduziu a economia política e foi um
fervoroso defensor da liberdade de indústria (comércio) no Brasil. Defendeu com
veemência a abertura dos portos, realizada em 1808, e seus argumentos calcavam-se
sempre na defesa da liberdade econômica como meio de aumentar a indústria e os
recursos no Brasil e de enriquecer a Coroa:
A franqueza do comércio no Brasil será de progressivo interesse à
Coroa, e nação. Aquela terá mais rendas, em proporção à maior
quantidade dos valores importados e exportados, que pagarem os
direitos estabelecidos; e esta aumentará continuamente os seus
recursos, despertando a letargia, em que jazem as indústrias do país, e
introduzindo-se outras por novas direções, que a energia do interesse
particular, deixada à sua natural elasticidade, removidos todos os
315
ANNAES DO PARLAMENTO BRASILEIRO. Assembléia constituinte 1823. Tomo VI. Rio de Janeiro:
Typographia H. J. Pinto, 1879, p. 267
316
Ver OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles. A Astúcia liberal: relações de mercado e projetos políticos
no Rio de Janeiro (1820-1824).Bragança Paulista: EDUSF e ÍCONE, 1999.
317
Sobre a posição de Joda Silva Lisboa a respeito das manufaturas, escravidão e das corporações de
ofícios no Brasil ver: MARTINS, Mônica de Souza Nunes. “O Pensamento de José da Silva Lisboa:
Manufaturas, Escravidão e Corporações de Ofícios no Brasil Oitocentista”. In: MENDONÇA, Sônia
Regina de (Org.). Estado e Historiografia no Brasil. Niterói: EdUFF, 2006, pp. 33-53.
162
obstáculos, deve achar, até pela constante emulação e conflito dos
competidores nacionais e estrangeiros.
318
Esses argumentos atacavam o mercantilismo, como meio de criticar a base do
sistema colonial. Esse foi o objetivo perseguido fervorosamente por Lisboa até a
década de 1820: o combate ao colonialismo. José da Silva Lisboa deu continuidade às
críticas desenvolvidas pelos utilitaristas desde o século anterior e criticava a prática
protecionista, que seria o impedimento ao crescimento das nações, garantindo
benefícios financeiros que se limitavam a um curto prazo. Segundo ele, o verdadeiro
espírito do comércio é social; ele quer ajudar, e ser ajudado, ele aspira a dar socorro, e
recebê-lo, ele carece um benefício recíproco, e não é fecundo, e constantemente útil,
senão quando é repartido”. Na sua opinião, as relações econômicas só poderiam gerar
benefícios para todos e favorecer o crescimento se fossem livres, se não houvesse
entrave às atividades econômicas. Teceu sua crítica ao princípio da balança comercial
favorável, um dos pilares do mercantilismo, afirmando que “a vantagem de sempre
vender caro aos estrangeiros, e comprar-lhes barato as suas mercadorias, é
necessariamente odiosa, e precária”.
319
Em Observações sobre a franqueza da Indústria e Estabelecimento de Fábricas
no Brasil, José da Silva Lisboa apontou que a política de proteção às atividades
econômicas e da liberdade de indústra teria criado condições favoráveis ao
desenvolvimento econômico e para o crescimento dos Estados Unidos. Segundo ele,
nos Estados Unidos haveria a possibilidade de desenvolvimento das artes e ofícios,
havendo ainda trabalho para os que quisessem se estabelecer, pois “os artistas, em geral,
318
Exemplo desse pensamento encontra-se em: LISBOA, José da Silva. Observações sobre o comércio
franco no Brasil. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1808, p. 70.
319
Ibidem, p. 72.
163
vivem melhor na América que na Europa (...)” e “os homens pois que têm na Europa
alguma arte, e sabem fazer alguma coisa útil, podem achar emprego e vantagem na
América, e aí estabelecer-se”.
320
Segundo Lisboa, o desenvolvimento das artes era
necessário até que uma nação tivesse condições de desenvolver fábricas e concorrer
com as demais e, neste caso, o Brasil estaria nas condições de investir na terra, na
agricultura, no comércio interior e exterior e nas artes. No entanto, ele advertia:
Não se segue do exposto que não se devam ir introduzindo algumas
fábricas até agora não existentes, e que possam convir ao país, se para
isso houver proporções da parte dos projetistas. Mas é justo fazer um
reparo. Faz-se geral queixa, e sem dúvida fundada, que no Brasil ainda
as artes mais grosseiras e ordinárias se acham em grande atraso, e
imperfeição, e que todavia os artistas, e obreiros, ainda ínfimos,
demandam altos salários, e preços exorbitantes de suas obras. Isto
prova o pouco número de braços, e a tênue perícia dos que não são
empregados na lavoura, e outras ocupações. Aluguéis de casas, e
artigos de alimentos e matérias-primas ainda são muito caros, como
pois será possível ter manufaturas superiores, e em concorrência
com os estrangeiros?
321
Neste sentido, defendia que a liberdade de indústria abriria caminho para que
pouco a pouco as fábricas fossem se estabelecendo no Brasil, estimulando o
crescimento econômico.
Naquela discussão parlamentar em 1823 José da Silva Lisboa se opôs aos
redatores do projeto no que dizia respeito ao artigo 17, que previa a abolição das
corporações de ofícios no Império. Solicitava que fosse suprimido este artigo e que se
320
LISBOA, José da Silva. Observações sobre a franqueza da Indústria e Estabelecimento de fábricas no
Brasil. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1810. In: ROCHA, Antonio Penalves (Org), Op. Cit, 2001, p.
219.
321
Ibidem, p.226.
164
procurasse conciliar a existência de tais corporações com o espírito de liberdade de
indústria. Em outro artigo do projeto ficava estabelecida a não admissão de monopólios
- ao que Cairu argumentava dizendo que aquelas corporações não constituíam
“rigorosos monopólios”, embora os economistas as considerassem monopolios latos,
porque restringiam a “concorrência dos artistas, diminuindo a possível quantidade,
perfeição, e barateza das obras, sendo (como dizem) conloios para defraudarem ao
público”.
322
Para ele, o monopólio exercido por tais associações no Brasil o chegava
a ser prejudicial ao desenvolvimento das atividades comerciais e argumentava que “no
Brazil o mal dellas é inconsiderável; porque não compõe a casa dos 24 de Lisboa, que
com os seus estatutos das classes quasi chegavão ao ridículo nas suas restrições
economicas, que tanto comprimirão a industria do povo.”
323
Argumentava ainda que por
elas estarem estabelecidas no Brasil, não convinha que de uma hora para outra elas
fossem extintas.
Em sua opinião, mesmo as representações de mestres no Brasil, composições
que se inspiraram na referida Casa lisboeta, não chegavam a causar grandes males aqui,
por não adotarem uma prática excessivamente monopolista e restritiva do mercado.
Seguia os argumentos apresentando a composição dessas corporações e sua divisão
interna:
Aqui apenas tem poucos gremios com seus mestres e escrivães do
offício, sob a inspecção do senado da camara, sendo o seu instituto
também condecorado com actos religiosos, fazendo alguns a sua festa
annual á santos, que em devoção pia têm por protectores, e por isso
não convém occasionar-lhes descontentamento, quando aliás os
respectivos artistas estão hoje sujeitos á concurrencia dos industriosos,
322
ANNAES DO PARLAMENTO... Op. Cit., p. 267.
323
Idem.
165
e dos produtos importantes de todos os paizes, em virtude da nossa
grande charta da franqueza do commercio.
324
Lisboa afirmava que as corporações não representavam entrave ao livre
comércio e ao desenvolvimento no Brasil. Além do rígido controle estabelecido pelo
Senado da Câmara sobre as corporações de ofícios e da mediação das irmandades, a
importância social delas deveria ser visto como algo relevante, que deveria ser levado
em consideração mediante a possibilidade de proibição. Seria mais adequado, de
acordo com o político, que se mantivessem tais entidades “sem o vício do monopólio”,
por não haver sobre eles queixa do público. Além disso, as artes tão importantes para
o desenvolvimento das cidades – eram edificadas pela sua atuação. Para ele, a liberdade
de indústria - assegurada pelo Alvará de 1808 -, impedia a qualquer estabelecimento a
prática do monopólio, o que era garantido por Decreto do Rei. Daí se apreende que
Silva Lisboa considerasse justo, de acordo com o princípio de liberdade de indústria
assegurado, que fosse dada continuidade a essa prática, sob risco de que a sociedade
angariasse maiores problemas:
Pelo nosso systema deve ficar sem efeito a contraria disposição, que,
pela despotica politica dos avizos da secretaria de estado, no
ministerio do marques de Aguiar, se infrigio esta lei, á requerimento
da corporação dos sapateiros, que pretenderão obstar a venda dos
sapatos estrangeiros, e ainda dos feitos neste paiz pelos escravos, e
livres que usavão desta indústria domestica. É bem sabido o vão
esforço, que os economistas da França, fizerão para abolir taes
estabelecimentos, com as regras geraes da liberdade de indústria,
324
Idem.
166
pelas quaes começarão a desorganisação do systema civil, sem
preverem as consequencias.
325
Com base nesses argumentos Lisboa alertava que seriam imprevisíveis as
conseqüências da proibição desses estabelecimentos para a sociedade civil. Utilizando
o exemplo de países onde essa proibição gerou sérios problemas ele mostrou que em
alguns lugares os governos tinham retrocedido na Lei. Assim ocorreu com Luiz XVI
que, em 1776, fez o edicto da proibição das corporações de ofício e no mesmo ano foi
obrigado a aprovar outro edicto em contrário, “reconhecendo os inconvenientes
praticos, e a complicação dos interesses de muitos individuos”. Entretanto, ressaltou os
benefícios que tais estabelecimentos proporcionaram à Europa, criando possibilidades
para o posterior desenvolvimento das manufaturas:
Quaesquer que fossem os abusos dessas corporações, o fato é, que a
França tinha subido à eminencia em todas as artes, de sorte que a
industria franceza era proverbial na Europa, para exprimir
excellencias nas obras. Não cansarei a esta assembléia com a história
economica das corporações das artes, cujo instituto, na origem, foi de
grande auxílio à civilisação, e de obstaculo ao despotismo dos
potentados barbaros do tempo do governo feudal.
326
Destacou um aspecto de fundamental importância para a manutenção dessas
corporações que dizia respeito à formação e aprendizado dos trabalhadores,
especialmente dos filhos de famílias pobres: as corporações davam-lhes a chance de
aprenderem um ofício e de terem uma profissão, o que não poderiam garantir sem a
existência delas. Neste sentido, ele argumentava que essas corporações tinham o
325
Idem.
326
Idem.
167
benefício de facilitar o ensino dos pobres naqueles ofícios essenciais para a sua
formação e educa-los para uma disciplina em relação ao trabalho:
Que maior bem se póde fazer aos filhos dos pobres, do que o dar aos
pais a oportunidade de os oferecerem aos mestres das corporações,
para aprenderem aos seus ofícios, e perceberem aquelles o fructo do
trabalho destes, (...) sob a inspecção de algum magistrado ?
Defendendo ainda o aprendizado dos ofícios como forma de disciplinarização
dos trabalhadores, José da Silva Lisboa evidenciava a defesa de um projeto que
privilegiava a educação para o trabalho, defendido por vários críticos de Adam Smith na
Europa. Para ratificar sua oposição aos princípios de Smith, destacou a obra de um
importante crítico inglês que à época da discussão sobre a revogação das cláusulas do
estatuto do aprendizado inglês (1814) teceu duras críticas à Smith -, William Playfair,
que através de sua obra Inquirição das permanentes causas da declinação e queda das
nações poderosas e ricas mostrou que
Smith sendo aliás tão perspicaz, olhou a industria do povo pelo
lado da concurrencia dos artistas, e barateza dos suprimentos, sem
considerar (o que é de summa, e ainda superior importancia) a
moralidade dos aprendizes, sendo entregues á disciplina do mestre da
corporação, e o hábito da subordinação, que dahi resulta depois, para a
sociedade. É certo que não se carece de longo aprendizado para o
laboratorio de qualquer arte ordinaria, e ainda do relogio, que elle traz
por exemplo. Mas, para o aprendiz adquirir habito de trabalho,
reverencia ao superior, destreza manual para quantidade e perfeição da
obra, é preciso tempo diuturno.
327
327
Ibidem, p. 268.
168
Ele utilizou um exemplo ocorrido na própria Inglaterra, para mostrar a
importância do aprendizado para os ofícios, mostrando em que direção o abandono
dessas artes estava levando a sociedade:
Tem sido notado que nas cidades ou villas de Inglaterra, onde não há
rigor de se darem muitos annos á offício, os jovens habeis, que entrão
logo a ganhar mais do que carecem para o necessário, são pródigos,
vestem-se finos, e dissipão tudo em conveniências, e, em breve, não
têm crédito, nem salario, e se fazem ratoneiros, pessimos membros da
sociedade, e incapazes de serem pais de familia (...).
328
O exemplo ratificava sua posição contrária à proibição das corporações, como
forma de manter os estabelecimentos a fim de que houvesse algum tipo de aprendizado
para esses trabalhadores jovens e fosse neles inculcado o hábito do trabalho e o ensino
de um ofício. Neste caso, José da Silva Lisboa aprovava até mesmo a possibilidade de
se restringir um pouco da liberdade de comércio em prol do bem social, de um benefício
que serviria a coletividade, mantendo nos casos necessários possíveis restrições
econômicas em prol do bem público. Finalizou sua fala destacando a importância de se
restringir a liberdade econômica em prol do bem público, se fosse necessário:
Não creio em vagos direitos individuaes no estado civil, mas sim em
praticos direitos sociaes, em que se fazem necessarias as restrições da
liberdade natural pelos interesses do bem público. Estou pela regra do
estadista pratico Edmundo Burke ‘Os princípios abstractos da
liberdade são como os raios de luz, que, entrando em um meio denso,
se refragem, desviando-se da sua direção rectilinea:’ O mesmo digo da
liberdade da industria, que, em varios casos, devem ter justas
restricções, quando se conpensão com a utilidade geral.
329
328
Idem.
329
Idem.
169
Não demoraria a que em algumas semanas a Assembléia Constituinte fosse
dissolvida pelo Imperador D. Pedro I. Os argumentos de Silva Lisboa não tiveram eco e
a outorga da Constituição, em 1824, apagou também a riqueza desses debates, abolindo
legalmente a permanência das corporações no Império.
Em sua obra Estudos do Bem Comum e Economia Política,
330
José da Silva
Lisboa fez maiores reflexões acerca da economia política nas nações européias, das
diversas opiniões a respeito da Indústria e dos princípios fundamentais da economia
política e cooperação social. Mas explicitou com mais clareza algumas posições que
divergiam das idéias de seus precursores, criticando, por exemplo, o fato de Smith não
ter atribuído um papel de destaque à inteligência no processo de desenvolvimento e
enriquecimento das nações.
331
Apresentou ainda argumentos nitidamente inspirados nos
críticos das reformas da Lei do Aprendizado na Inglaterra, que travaram longos debates
sobre as corporações de ofício no primeiro decênio dos oitocentos.
Para os fins deste estudo, nos interessa entender o pensamento político
econômico de José da Silva Lisboa, a influência do liberalismo econômico sobre as suas
idéias e a importância e força que elas tiveram no Brasil no início do século XIX.
Interessa-nos também analisar que razões teriam levado o deputado a polemizar na
Constituinte de 1823 a respeito da manutenção das Corporações de Ofício no Brasil,
apesar de suas idéias terem sido consideradas francamente liberais e ser ele mesmo um
adepto das teorias de Adam Smith e Bentham. Para esses pensadores representantes
330
LISBOA, José da Silva. Estudos do bem comum e economia política, ou ciência das leis naturais e
civis de animar e dirigir a geral indústria, e promover a riqueza nacional, e prosperidade do Estado.
Rio de Janeiro: IPEA/INPES, 1975 (Publicada a 1
a
edição pela Imprensa Régia, em 1819-1820).
331
Sobre o papel da inteligência na obra de Cairu, uma análise muito interessante desenvolvida por
Penalves Rocha sobre a tradução feita pelo Cairu do termo original de Smith e o significado do
conceito desenvolvido ao longo de suas obras. Ver: Rocha, Antonio Penalves. Op. Cit., 1996, pp. 41-
43.
170
da corrente utilitarista -, as corporações representavam um empecilho indiscutível à
liberdade de comércio.
O perfil de Cairu foi debatido por vários autores que se dedicaram a estudar
sua obra e seu pensamento. Assim, as opiniões a respeito de suas posturas políticas
variaram entre um liberal conservador - altamente influenciado pelas idéias de Burke
332
-, um Cairu liberal adepto “incondicional da economia política preconizada por Adam
Smith”
333
- ou mesmo como um político conciliador.
334
A face conciliadora de Cairu foi observada por Novais e Arruda, para os quais o
político teria optado por uma “alternativa cautelosa, mais própria de um homem
público”. Apesar de José da Silva Lisboa ter sido um ferrenho defensor da liberdade de
comércio como possibilidade de crescimento, via na escravidão um elemento restritivo à
formação e desenvolvimento do mercado interno, o que incidiria na impossibilidade de
se pensar na ampliação do mercado consumidor no Brasil. Desta forma, e justificando
seus argumentos, Lisboa propunha um desenvolvimento “natural” e “gradual” do setor
manufatureiro,
335
que se daria sem rupturas ou transformações radicais nas relações de
trabalho.
Esta interpretação nos possibilita pensar a respeito das posições de Lisboa -
aparentemente contraditórias a respeito das corporações de ofícios. Todas as suas
idéias, em seus discursos e em suas obras, nos mostram um político e um ideólogo
preocupado com as restrições econômicas impostas pelo Estado, com a defesa da
liberdade econômica e com a crítica a qualquer tipo de monopólio comercial. As
332
MONTENEGRO, João Alfredo de Souza. “O liberalismo conservador de Cairu”. In: Revista Tempo
Brasileiro, n. 65/66, 1981, pp. 82-91.
333
CARDOSO, José Luís. “O liberalismo econômico na obra de José da Silva Lisboa”, In: História
Econômica e História de Empresas, ABPHE, v.1, 2002, pp. 147-164.
334
NOVAIS, Fernando e ARRUDA, José Jobson. “Introdução: Prometeu e Atlantes na forja da nação”,
in: LISBOA, José da Silva. Observações sobre a franqueza da Indústria e estabelecimento de fábricas
no Brasil. Brasília: Senado Federal, 1999, Coleção Biblioteca Básica Brasileira.
335
Ibidem, pp. 24-25.
171
posições esboçadas por Adam Smith marcaram a trajetória intelectual de Cairu e
significaram uma importante demarcação de espaço na arena política, uma vez que ele
foi responsável pela disseminação dessas teses no Brasil; tendo sido estas visões
norteadoras da vida econômica de Portugal e do Brasil, e das políticas ligadas ao livre-
cambismo e à extinção dos monopólios. Sua adesão a tais idéias e sua influência junto
ao governo podem ser verificadas pelos tratados implementados a partir da chegada da
Corte portuguesa ao Brasil, especialmente pela Carta Régia de 1808, que decretou o fim
do exclusivismo comercial entre Brasil e Metrópole, da qual foi o principal ideólogo.
336
Sua preocupação com o desenvolvimento “natural” e “gradual” também dizia
respeito à extinção das corporações de ofícios, que se consumou a seu contragosto -
com a Constituição de 1824. A discussão no Brasil não parece ter passado pela
extinção do aprendizado ou de regras dos ofícios, mas da completa extinção das
corporações pelo menos na letra da lei. É importante lembrar que Cairu não era um
defensor dos monopólios mantidos pelas corporações, mas reconhecia nestas entidades
uma importância social, marcada pelo papel que exerciam na disciplinarização e na
formação dos trabalhadores, sobretudo dos mais jovens e pobres, segundo os seus
argumentos. Além disso, ele não considerava a atuação das corporações de ofícios no
Brasil uma ameaça ao livre comércio ou a qualquer incompatibilidade entre a
manutenção do aprendizado e da implementação das leis de franqueza de comércio e da
indústria.
Esta opinião, por sua vez, nos remete àquele antigo debate travado na Inglaterra
na década anterior em relação ao aprendizado. Curiosamente, para defender a
manutenção das corporações de ofícios no Brasil e a permanência do aprendizado, Cairu
retomou argumentos utilizados por um dos maiores críticos de Adam Smith naqueles
336
Cardoso, J. L. Op.cit., p.150.
172
anos, William Playfair. Aliás, este parece ter sido o único aspecto no qual Cairu
divergiu terminantemente das idéias de Adam Smith, apontando o que ele considerava
um equívoco de sua análise quanto às restrições que previu em relação ao aprendizado.
Playfair se valeu das noções de “ordem” e de “moral” para sustentar seus
argumentos em 1814. Tal como Lisboa optou por usar em sua retórica na Constituinte
dez anos depois, defendeu a manutenção do aprendizado como possibilidade de se
manter os jovens trabalhadores sob controle, evitando a “desordem” do trabalho e
mantendo-os com os parâmetros de conduta moral” oferecidos por seus mestres no
processo de aprendizado. O que parecia diferenciar a ambos, no entanto, eram as
origens sociais: Playfair havia sido aprendiz de um construtor de moinhos,
337
enquanto
Lisboa representava os interesses dos setores dominantes próximos ao governo, ligados
à escravidão. As posturas de ambos baseavam-se na interpretação sobre a utilidade
social desempenhada pelos ofícios, que garantia o acesso a uma formação profissional e
a algum tipo de educação e treinamento dos trabalhadores.
Esta postura de Lisboa pode ser analisada também à luz dos argumentos
levantados por Antonio Paim a respeito do caráter ético-normativo que via na economia
política e do aspecto fortemente moral que sustentou todos os seus argumentos.
338
Segundo ele, esse entendimento da economia política desenvolvido por Cairu baseou-se
na formulação do próprio Adam Smith, que esboçou os princípios da ética na sua obra
Teoria dos Sentimentos Morais (1759). Sob influência desse clima intelectual ele
formulou idéias que buscaram adaptar-se às peculiaridades do sistema político e
econômico brasileiro, tecendo uma obra fortemente marcada pelos aspectos morais da
economia política e pela necessidade de preservação da ordem a ser garantida pelo
sistema de leis.
337
Rothschild, E. Op.Cit., p.119.
338
Paim, Antonio, Op. Cit, pp. 67-68.
173
Estes argumentos apresentavam uma posição explícita de Cairu a respeito da
extensão dos monopólios exercidos pelas irmandades dos ofícios no Brasil que, em sua
opinião, pareciam não ser tão grandes e prejudiciais à economia nacional. A despeito de
todas as desvantagens que via na eliminação imediata dessas entidades o que o fazia
defender uma extinção gradual -, não as considerava um perigo à liberdade de comércio
no Brasil. Este posicionamento ficou claro na crítica que teceu ao sistema monopolista
europeu, afirmando que “temos campo raso e livre de estorvos e estancos nas artes, o
que não acontece na Europa, onde os mais iluminados governos são obrigados a
contemporizar com as corporações”.
339
Essa postura revelava a conduta de um
intelectual do Estado, que via na dissolução imediata de tais entidades um perigo à
estabilidade social e à ordem, especialmente em se tratando de ser esta sociedade
escravista.
Nas posições de Cairu verifica-se um temor de que a extinção dos ofícios
pudesse ser elemento desagregador para as relações de trabalho no Brasil e para
defender suas posições utilizou-se dos pressupostos teóricos liberais, adequando-os à
sua interpretação da realidade brasileira e aos interesses dos setores dominantes
próximos ao governo. Apesar de ter sido um conhecido defensor do pensamento de
Adam Smith e do liberalismo econômico, suas idéias não foram disseminadas aqui
como mera reprodução do pensamento econômico europeu; antes formulou novas
formas de pensar a economia e a política brasileira. A face conciliadora de Cairu se
impunha como representante que era do pensamento liberal, ligado no Brasil aos setores
escravistas e, ao mesmo tempo, procurando aliar seu tom conservador e avesso a
mudanças bruscas e ao medo da “desordem”.
339
Lisboa, José da Silva. Observações sobre...,Op.Cit, p. 221.
174
Sua face conciliadora pode ser notada também nas opiniões que expressou sobre
a escravidão e na sua conduta política em relação à questão. Sobre o tema, Lisboa
escreveu um artigo intitulado Da Liberdade do Trabalho, onde apresentou um
posicionamento contundente contra a escravidão, argumentando que para que o trabalho
fosse benéfico ele deveria ser livre, não podendo em nenhuma hipótese o trabalhador
estar sob domínio de outro, pois assim ele seria menos produtivo e não renderia os
frutos que poderiam advir da indústria desenvolvida com o trabalho livre. Isso porque o
escravo não teria interesse em realizar um trabalho árduo sem que houvesse algum
benefício ou recompensa pessoal, além de ser pressionado ao trabalho através da
violência direta ou do controle do seu proprietário.
340
Neste sentido, ele ressalta que à obrigatoriedade do trabalho escravo somavam-
se os maus tratos, tornando este trabalho bem menos produtivo do que o trabalho livre.
Considerando a importância que os maus tratos exerciam sobre a produtividade do
escravo, na opinião de Cairu sua obra jamais poderia competir com a de um homem
livre em “quantidade, perfeição e valor”, pois o havia em sua base estímulo para que
o trabalho fosse desenvolvido com perfeição e habilidade. Isso desencadeava a
impossibilidade do trabalho escravo poder em qualquer hipótese concorrer com o
trabalho livre no tocante ao preço: “a experiência de todas as idades e nações mostra
que a obra do homem livre vem, enfim de conta, mais barata ao mercado, do que a feita
por escravo”.
341
Para desenvolver as idéias sobre a baixa produtividade do trabalho escravo,
baseou-se nas posições de Adam Smith sobre o assunto, segundo o qual os escravos
raramente eram inventores e que todos os melhoramentos que andavam acontecendo
340
LISBOA, Joda Silva. “Da Liberdade do Trabalho”. In: ROCHA, Antonio Penalves (org.). José da
Silva Lisboa, Visconde de Cairu. São Paulo: Editora 34, 2001.
341
Ibidem, p. 326.
175
eram obras de homens livres. Neste caso, sua suposição sobre a possibilidade de um
escravo propor ao senhor uma invenção que facilitasse e agilizasse a produção era de
que ele seria tachado como preguiçoso e indolente e provavelmente seria castigado pelo
senhor.
342
Ou seja, em sua base a escravidão carregava a impossibilidade de animação
da indústria através do incentivo às invenções e melhorias técnicas.
No mesmo sentido, argumentava que onde era utilizado o trabalho escravo era
necessário que se utilizasse, geralmente, mais trabalho para ser elaborada a mesma obra
do que se ela fosse feita por homens livres, pois eram inúmeros os males do trabalho
exercido sob tirania. Assim, enumerou os malefícios derivados do trabalho executado
sob cativeiro: exalta-se o barbarismo e a insolência do homem pelo constrangimento e
opressão; habitua-se a desenvolver o trabalho pelo impulso do medo e da violência;
estabelece-se hostilidade entre o poderoso e o desvalido; estimula a violência e a
humilhação que endurece os ânimos; o homem livre não estabelece parceria com o
escravo, ficando restrito ao desempenho de funções onde o escravo não atua ou
concorrendo com libertos.
343
Embora os argumentos de Lisboa apontassem uma enorme restrição à liberdade
de comércio e ao desenvolvimento de manufaturas devido à escravidão, não se nota em
seus argumentos uma postura abolicionista ou disseminadora de ideais antiescravistas.
Em seus estudos, não entrou no mérito sobre o caráter lícito ou ilícito, justo ou injusto
do cativeiro, mas em suas restrições ao desenvolvimento da indústria e do mercado
consumidor como impedimentos ao desenvolvimento manufatureiro. O tom de seu
discurso foi antes de tudo conciliador, apontando as limitações do sistema produtivo
baseado no trabalho escravo, buscando formas de “acomodação dessas idéias a uma
342
Ibidem, p. 327.
343
Ibidem, pp. 328-329.
176
sociedade escravista”.
344
Assim, as suas leituras dos economistas europeus adaptadas à
realidade brasileira justificavam que a instalação de fábricas e o desenvolvimento das
manufaturas no Brasil estava impossibilitado em decorrência da utilização da mão-de-
obra escrava, ou seja, “para combater a instalação de fábricas no Brasil, adaptava uma
idéia antiescravista a uma sociedade escravista e, ao mesmo tempo, fornecia subsídios
ideológicos para a preservação de uma estrutura agrário-exportadora escravista”.
345
Para que os problemas decorrentes do trabalho em cativeiro fossem amenizados,
Lisboa apontava como saída a proteção dos soberanos e a garantia de uma eficaz
proteção ao escravo contra a tirania exercida por alguns senhores. A afirmação dessa
necessidade de proteção régia sobre os escravos, acalentava um desejo ao mesmo tempo
humanista contra a extrema violência empreendida em relação ao escravo e, por outro
lado, a preocupação com o aproveitamento desse trabalhador, que era a base
fundamental do sistema produtivo: “Enfim, onde se tolera ou se considera indispensável
ter escravos, é preciso que o jugo seja doce, para não ser inútil”.
346
Predominava o
princípio de manutenção dos escravos nas melhores condições possíveis, para que no
mínimo, a escravidão se justificasse economicamente.
Além do argumento relacionado à improdutividade do trabalho escravo, Lisboa
defendeu também a idéia de que ele não era lucrativo, apontando que havia um erro
econômico em se dar seqüência ao trabalho escravo, na medida em que a riqueza
produzida não compensaria os gastos exorbitantes em se manter o cativeiro,
demonstrado por um “simples cálculo de interesses” que mostra que “quem compra
escravos põe o seu cabedal em fundos perdidos”.
347
Este argumento foi desmentido pela
própria expansão do comércio ultramarino de africanos e pela alta lucratividade dos
344
Rocha, Antonio Penalves. “A escravidão na economia política brasileira”, op. cit, 1996, p. 119.
345
Ibidem, p. 123.
346
Lisboa, José da Silva, “Da Liberdade...”, op. cit., p. 330.
347
Ibidem, p. 332.
177
comerciantes de escravos nas praças de cidades importantes da colônia, mostrando uma
gritante inconsistência de argumentos, que se contradiziam com a própria realidade.
348
A crítica ao trabalho escravo coadunava-se com a preocupação que Cairu
esboçou sobre o gradual desenvolvimento do mercado interno para possibilitar um
futuro desenvolvimento das artes manufatureiras. Na sua opinião isso seria possível
se as relações de trabalho fossem ajustadas ao conjunto de mudanças empreendidas no
sentido de se garantir a aplicação dos princípios da economia política no que dizia
respeito à liberdade de comércio. Não haveria, no entanto, extensão dessa liberdade de
comércio sem a “gradual” ampliação da liberdade de trabalho, o que o levava a defender
a necessidade não apenas de que o trabalhador fosse livre, mas de que ele tivesse a
liberdade de escolher o seu trabalho “de acordo com suas pretensões e talentos
naturais”.
349
A obra e o posicionamento político de Cairu estiveram fundamentados na
expressão dos interesses dos setores dominantes escravistas, cujos princípios
respaldavam-se na manutenção da escravidão e das possibilidades de ampliação do
comércio que garantissem a abertura dos seus produtos a um maior número de
consumidores interna e externamente. Embora alguns de seus argumentos tenham
apontando relativa independência em relação às posições do governo, como a defesa de
permanência das corporações de ofícios no Brasil , sua produção intelectual foi
altamente marcada pelo seu posicionamento de classe e pelo papel que desempenhou
como um intelectual vinculado aos interesses da monarquia, colocando em prática a
perspectiva que disseminou em seus textos que considerava a economia um elemento
propulsor das práticas econômicas do governo. Menos reconhecida pela
348
Rocha, Antonio. Op. Cit, 1996, p. 128.
349
Lisboa, José da Silva. “Da liberdade de trabalho...”, op. cit, 2001.
178
originalidade
350
ou pela fidelidade às demais produções intelectuais às quais se filiou na
época,
351
sua obra apresentou, contudo, uma enorme capacidade de adaptar uma teoria
econômica pensada para a realidade européia em uma sociedade bastante diversa,
tornando-a um elemento difusor ainda assim das novidades da ilustração européia e
exercendo enorme influência sobre as medidas políticas e econômicas adotadas pela
monarquia no Brasil.
350
Rocha, Antonio Penalves. Op. Cit, 1996, p. 35. Para o autor é “trabalho perdidoprocurar qualquer
originalidade na obra de Cairu.
351
Ibidem, capítulo 2. O autor mostra que em diversos trechos de sua obra Cairu fez interpretação ou
errônea tradução de textos que divulgava e, em alguns casos, chegou a reproduzir trechos de textos não
citados em sua obra.
A referência a uma “tradução malfeita” do texto de Adam Smith que teria culminado na formulação de
um dos principais conceitos na obra de Cairu, o de inteligência, pode ser encontrada em: HOLANDA,
Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 83-85.
179
Capítulo 5
Ascensão dos homens de negócios e o fim das corporações no Brasil
5.1. Corporações e irmandades: a decadência econômica
Nos últimos anos, as pesquisas acadêmicas têm aberto um vasto leque de estudos
relativos à dinâmica da economia colonial, verificando suas possibilidades de
acumulação e de reprodução, ainda que inserida num contexto escravista e baseada
numa economia predominantemente agro-exportadora. A partir dos clássicos debates
que pautaram a historiografia brasileira na segunda metade do século XX
representadas pelas análises sobre o funcionamento do “Antigo sistema colonial”
352
ou
das explicações concernentes ao “modo de produção escravista colonial”
353
–, rios
foram os estudos que se basearam nessas duas vertentes para entender o processo de
colonização e a escravidão no Brasil, bem como as relações que diferenciavam a
constituição política e econômica brasileira mediante a característica de colonização
aqui implementada. Conceitos formulados a partir desses esquemas explicativos, tais
352
Pioneiros nessa abordagem foram os estudos de Caio Prado Júnior, que buscou entender o “sentido da
colonização” a partir do papel desempenhado pela colônia no processo de expansão mercantil européia,
no qual a colônia se constituía como uma peça na engrenagem do sistema colonial e sua função agro-
exportadora se desempenhava plenamente com a combinação da grande propriedade, da escravidão e da
monocultura. Sobre isso, ver: PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1977. Na mesma perspectiva, mas com diferentes contribuições, os estudos de
Celso Furtado e de Fernando Novais se constituíram como os mais importantes seguidores das análises
de Caio Prado. Ver: FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. Rio de Janeiro: Fundo de
Cultura, 1959; NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-
1808). 2ª ed. São Paulo: Editora HUCITEC, 1983.
353
Dentro dessa abordagem encontram-se os estudos de Ciro Cardoso, propondo os elementos definidores
do modo de produção escravista desenvolvido no mundo colonial, rompendo com o esquema proposto
por Caio Prado, onde a acumulação mercantil engendraria todo o processo de acumulação com vistas à
manutenção do sistema mercantilista, sem levar em conta os mecanismos de reprodução internos à
colônia, bem como uma movimentação econômica forjada também no contexto colonial. Ver:
CARDOSO, Ciro. F. “As concepções acerca do s’sistema econômico mundial’ e do ‘antigo sistema
colonial’; a preocupação obsessiva com a ‘extração de excedente”. In: LAPA, José do Amaral (Org.).
Modos de produção e realidade brasileira. Petrópolis: Vozes, 1980. Seguindo o mesmo recorte
conceitual e analítico, mas com diferente abordagem, outro importante estudo nesta vertente foi de:
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Editora Ática, 1978.
180
como “Sentido da Colonização”, calcada na idéia do “tripé” colonial,
354
sustentáculos
do modelo econômico colonial brasileiro; a idéia “Crise do Antigo Sistema
Colonial”;
355
ou de “modo de produção escravista colonial”; tornaram-se importantes
referências para a historiografia, constituindo-se nas maiores abordagens explicativas
sobre a formação política e econômica do Brasil.
Partindo das conclusões desenvolvidas por estas duas vertentes historiográficas,
o estudo de Fragoso e Florentino foi desenvolvido, na década de 1990,
356
baseando-se
em uma análise diferenciada para o processo de constituição, manutenção e reprodução
das formas de acumulação no interior da economia colonial de base escravista. Partia-
se do pressuposto de que havia uma formação colonial arcaica, cuja apropriação do
excedente servia para perpetuar as bases econômicas e sociais portuguesas do Antigo
Regime. Esta economia fundava-se enquanto uma “economia colonial tardia e arcaica”,
que mantinha certa autonomia frente às variações do mercado internacional,
possibilitando espaços para uma acumulação endógena, reproduzindo uma hierarquia
excludente. A formação dessa hierarquia evidencia-se quando vista na perspectiva de
constituição de uma “elite senhorial”, consolidada mediante o domínio da distribuição
de cargos políticos e administrativos e através de alianças, que acabavam resultando em
possibilidades de “apropriação de parte substantiva da riqueza social em detrimento do
restante da sociedade”. Tal “elite senhorial”, contudo, teria se constituído nessa
formação sócio-econômica, mediante a vigência daquilo que os autores denominaram
como um “mercado imperfeito”; a saber, “não regulado pela oferta e a procura, mas sim
354
Prado Jr., Caio. Op. Cit., pp. 19-22.
355
Tese de Fernando Novais sobre Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial, entre os anos de
1777 e 1808, conceito que o autor definiu como um conjunto de tendências políticas e econômicas que
forcejaram no sentido de romper os laços de subordinação que vinculavam as colônias ultramarinas às
metrópoles européias, coexistindo, no entanto, no contexto de crise do Antigo regime, com momentos
de expansão da produção e do comércio colonial, como foi representado pelo sistema colonial português
no período. Novais, F. Op. Cit., pp. 57-60.
356
FRAGOSO, João e FLORENTINO, Manolo. O Arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade
agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia. Rio de Janeiro, c.1790- c.1840. ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
181
por privilégios obtidos na esfera política”.
357
Neste cenário dominado pelos privilégios
da esfera política e pela concentração de riqueza, vislumbrou-se o início da atuação dos
comerciantes na economia colonial.
A mineração elevou o Rio de Janeiro a importante porto comercial, com
destacado papel nas relações comercias do ultramar, papel que se destacava mesmo
frente ao comércio realizado em Lisboa. Desta feita, na primeira metade do culo
XVIII, o Rio de Janeiro despontava como o principal centro comercial da América
Portuguesa.
358
À decadência da importância econômica da plantation, que teria se
verificado na primeira metade do século XVIII, não correspondeu o crescimento da
importância mercantil auferido pela capitania ao longo do mesmo século.
359
A partir da verificação dos contratos sobre circulação de mercadorias, os autores
constataram que em 1730 o Rio de Janeiro tinha a maior parte do abastecimento da
Capitania de Minas Gerais e que, entre 1754 e 1757, a praça carioca era responsável
pelo fornecimento de quase metade das mercadorias que chegavam. Logo, “entre
outras implicações, este dado sugere que ao redor da cidade do Rio de Janeiro teríamos,
já na primeira metade do século XVIII, circuitos mercantis regionais e locais”,
360
tendo
o período do setecentos assistido à “consolidação da economia e sociedade fluminense
nos marcos do mercado atlântico”. De acordo com a análise mostrada, as mudanças que
se deram nas formas de acumulação do recôncavo da Guanabara teriam resultado, em
médio prazo, no predomínio do capital mercantil e de seus mecanismos de acumulação
desde fins do século XVIII. O aumento do comércio carioca de africanos, estimulado
357
Ibidem, pp. 65-68.
358
Ibidem, p. 75.
359
Idem.
360
Ibidem, p. 77.
182
pelo incremento comercial da região mineradora, acabou transformando o Rio de
Janeiro em um “núcleo de acumulação interna verdadeiramente importante”.
361
A estrutura agrária colonial possuía enorme elasticidade face às conjunturas
externas, graças ao baixo custo de suas bases principais, como demonstraram os autores.
Ao mesmo tempo, apontou-se para uma menor demanda por investimento neste setor,
em relação à demanda requisitada pelo setor mercantil. Os baixos custos dos fatores
constitutivos dessa economia, no entanto, fizeram-na crescer e assim estruturados a
reprodução econômica ampliada prescindia do retorno integral do seu excedente à
produção”. E, segundo a análise, “todos esses fatores apontariam para a existência de
um mercado restrito, com destacada posição exercida pelos negociantes coloniais, que
controlavam a liquidez e submetiam os pequenos comerciantes e varejistas, “dado que
os negociantes de grosso trato controlavam o crédito”.
362
Esse mesmo sistema de
créditos era altamente monopolizado, uma vez que o topo da hierarquia econômica,
representada por essa elite senhorial, detinha o controle da economia , chegando a
monopolizar entre fins do século XVIII e a primeira metade do XIX, até 95% dos
empréstimos realizados.
363
Em estudo anterior, João Luís Fragoso havia abordado algumas questões que
foram rediscutidas à luz de outras hipóteses e objetivos - na obra Arcaísmo como
projeto.
364
Desenvolvido no início da década de 1990, na obra intitulada Homens de
grossa aventura, seu estudo enriqueceu uma linha de análise sobre o desenvolvimento
do mercado interno colonial - em estudos que desde a década de 1970 apontavam para
a existência e desenvolvimento de um mercado interno -, consolidando a idéia de que a
361
Ibidem, pp. 78-79.
362
Ibidem, p. 164.
363
Ibidem, p. 179.
364
Fragoso, João Luís Ribeiro. Homens de Grossa Aventura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
183
“economia colonial é um pouco mais complexa do que uma plantation escravista,
submetida aos sabores das conjunturas internacionais”.
365
Ao realizar um percurso pelas análises historiográficas brasileiras que
procuraram explicar o funcionamento da economia colonial, o autor afirmou a
inexistência de uma incongruência entre a economia agro-exportadora e a acumulação
endógena, uma vez que eram complementares. Partindo-se da análise da produção de
alimentos ligados à dieta de base da escravaria e das camadas populares, chegou-se à
conclusão de que a produção que contemplava a essa enorme parcela da população era
produzida internamente, estando claro que “em relação ao abastecimento, as áreas
exportadoras eram caudatárias de regiões não exportadoras”.
366
Essa singularidade da economia colonial levou ao surgimento de áreas ligadas
precipuamente ao comércio de abastecimento local, convivendo lado a lado com a
produção agrícola exportadora, estimulando e sendo ao mesmo tempo estimulada pelo
desenvolvimento de um mercado interno.
367
Neste sentido, o autor reafirmou o seu
posicionamento contrário a tese de incompatibilidade da economia colonial com a
acumulação endógena, mostrando a capacidade de relativa autonomia dessa economia
interna frente às variações econômicas internacionais. Assim se formaria a economia
colonial, tal como um mosaico de formas de produção, no qual havia perfeita interação
e reprodução das diversas formas de produção geradas em seu interior.
368
Verificou-se que o crescimento e enriquecimento dos Negociantes da Praça do
Rio de Janeiro no início do século XIX se deram de maneira vertiginosa, a partir de um
processo de acumulação baseado tanto na agro-exportação, no tráfico e nos
mecanismos internos de acumulação oriundos da produção interna. Neste aspecto, a
365
Ibidem, p. 21.
366
Ibidem, pp. 100-101.
367
Ibidem, pp. 105-109.
368
Ibidem, pp. P. 119.
184
questão do crédito exerceu peculiar importância enquanto mecanismo de acumulação
da alta hierarquia mercantil, que viu a multiplicação de seu capital originar-se em
grande parte do endividamento de parcela dos pequenos e médios negociantes e de
outros setores da população, uma vez que os Negociantes garantiam o funcionamento
das atividades empresariais através do “adiantamento de mercadorias e créditos, isto é,
os negócios se faziam por meio de uma infinita cadeia de dívidas ativas e passivas”.
369
Seguindo esta linha de entendimento, os mecanismos de endividamento dos
credores ligados a essa elite mercantil” se explicariam, em parte, pela “inexistência de
fortes instituições financeiras, públicas ou privadas, que garantissem linhas de
crédito”,
370
tendo o próprio Banco do Brasil restrições ao seu funcionamento, embora
os seus gastos fossem prioritariamente utilizados no socorro aos problemas do Estado e
não para o atendimento às demandas do mercado. Assim, as atividades mercantis
financiavam-se mediante um mecanismo de empréstimo regulado dentro do próprio
meio mercantil.
371
A respeito da interferência das irmandades religiosas nas atividades
de crédito,
372
Fragoso afirmou que esse processo de autofinanciamento colonial não foi
caso específico do Rio de Janeiro, uma vez que estudos anteriormente teriam apontado
para a existência de uma larga rede de autofianciamento da produção e do comércio
baiano, que se encontraria nas mãos das irmandades e instituições religiosas desde os
séculos XVII e XVIII.
373
Considerando que a influência das irmandades religiosas sobre a vida social e
econômica tinha singular importância na sociedade colonial, não é de surpreender que
suas relações excedessem a esfera religiosa. Sua interferência nas relações econômicas
369
Ibidem, pp. 241-243.
370
Ibidem, p. 246.
371
Ibidem, p. 249.
372
Isso foi abordado no estudo de Maria Eulália Lobo, anteriormente citado.
373
FLOURY, Era. Bahian society in the mid-colonial period: the sugar planters, tobacco-growers,
merchants and artisans os Salvador and the Recôncavo, 1680-1725, Tese de Doutorado, University of
Texas, 1978. Apud: Fragoso, João Luís Ribeiro. Op. Cit., p. 249.
185
se dava especialmente pela possibilidade de crédito concedido para os irmãos a ela
ligados e pela possibilidade de garantir auxílios e previdência. A prática corporativa
era tecida numa rede de proteção e auxílio onde se reproduziam os interesses e vínculos
religiosos, junto a uma esfera de seguridade não garantida pelo Estado. Até o final do
século XVIII e início do XIX, a forte presença das irmandades no Rio de Janeiro as
tornou importantes referências em alguns mecanismos de “autofianciamento colonial”.
A partir do século XIX, com o crescimento da esfera da ação econômica e
política desses Negociantes do Rio de Janeiro, novas redes de relações começaram a
ser tecidas e disputadas. A ação desse setor econômico teve decisiva influência no
mercado de créditos - ampliando uma ão nesse setor que parecia estar em
crescimento desde fins do século XVII -, quando os mecanismos de financiamento
passaram a se constituir na base da acumulação da alta hierarquia mercantil. Neste
sentido, podemos inferir que a forte presença das irmandades no setor de crédito e de
financiamento, representaria a partir de então um significativo empecilho a esse
processo de acumulação, que se ampliava à medida que aumentavam também as
atividades mercantis na cidade. o cedo se deu o poder dos Negociantes nas
atividades de crédito na Praça do Rio de Janeiro, eles entenderam o quão lucrativa e
vantajosa era essa atividade. Essa hipótese ainda pode ser ratificada a partir dos lucros
verificados na concessão de empréstimos, que excediam e superavam aquele obtido
com a produção agrícola:
Os juros cobrados nas operações em letras em geral eram de 1% ao
mês; portanto, 12% ao ano. Isso dava ao capital mercantil, apenas por
meio da usura, uma rentabilidade superior ao retorno líquido das
186
plantations açucareiras, que dificilmente ultrapassavam o teto de 10%
ao ano.
374
No mesmo sentido, Théo Piñeiro notou que no início do século XIX, a partir dos
incentivos dados pela Coroa, houve um crescimento no setor de investimentos em
seguros, propiciando o surgimento de condições favoráveis aos negócios, observando-
se neste momento o aparecimento de uma “típica associação de capitais” se
apropriando de uma atividade altamente lucrativa, qual fosse, a do ramo de seguros.
375
Segundo o mesmo autor, esses investimentos realizados pelos negociantes foram
possíveis a partir do início do século XIX, em decorrência das mudanças ocorridas na
economia com o estabelecimento da família real no Brasil, uma vez que a riqueza dos
grandes homens de negócios antes dirigida ao fisco lusitano começaram a aparecer
na colônia. Dessa forma, ele mencionou o surgimento de importantes Companhias de
Seguros e de Previdência naquele momento, tais como a Companhia de Seguros
Marítimos (1810), a Companhia de Seguros Previdente e a Companhia de Seguros
Permanente. Ou seja, os Negociantes agiam para o estabelecimento de uma ampla
rede de interesses econômicos que ultrapassavam os limites regionais e os interesses
meramente comerciais.
376
A existência de uma dinâmica própria em “certas linhas de beneficiamento e
transformação da economia colonial”,
377
aponta, para além de uma complexidade
dessa economia, a necessidade de garantias de mecanismos internos de financiamento
confiáveis. Assim, Geraldo Beauclair também ressaltou a participação das irmandades
374
Fragoso, J. Op. Cit., p. 247.
375
PIÑEIRO, Théo Lobarinhas. “Os Simples Comissários”: negociantes e política no Brasil Império.
Tese de Doutorado. Niterói: Universidade Federal Fluminense, ICHF, Departamento de História, 2002,
pp. 53-54.
376
Ibidem, p. 56.
377
BEAUCLAIR, Geraldo de. A Construção Inacabada: a economia brasileira, 1822-1860. Rio de
Janeiro: Vício de Leitura, 2001, p.63.
187
e Santa Casas como as principais fontes de crédito agrícola, mostrando que o processo
de formação de fundos da Santa Casa de Misericórdia também era, por sua vez,
motivado pelas doações de plantadores, criadores e comerciantes.
378
Com a chegada da Corte e a fixação da Coroa no Rio de Janeiro, houve uma
política de incentivos fiscais praticadas nas atividades produtivas e mercantis,
garantindo-se maior estabilidade, dado que a maioria dos negociantes de grosso trato
do Rio de Janeiro, com a entrada do capital inglês investido no comércio, voltou-se
ainda mais para o exercício de outras atividades, “tais como o abastecimento interno, a
arrematação de contratos da Coroa e o setor de seguros.
379
A partir do século XVIII a mineração propiciou um impulso nas
atividades de alguns ofícios mecânicos, como pode ser constatado pelo exemplo dos
ferreiros,
380
levando ao crescimento das oficinas e à dinamização do comércio das
obras e do incremento dos ofícios mecânicos no Rio de Janeiro. É importante notar
que as artes mecânicas no Brasil surgiram, desde cedo, ligadas às necessidades locais e
de acordo com as especificidades regionais. Assim, desenvolveu-se desde o período
colonial um tipo de economia que não se restringiu à grande lavoura agro-exportadora,
embora mantivesse intrínseca relação com ela, estabelecendo elos onde as atividades
mecânicas também ajudavam na dinamização agrícola e na exportação. Como
exemplo, podemos descrever aquelas obras de madeira que serviam às embarcações
marítimas ou mesmo o trabalho dos ferreiros, que atendiam à demanda por
instrumento agrícola.
A esse respeito Beauclair analisou que desde o início do século XVII o “porto do
Brasil” dispunha de um razoável número de mestres carpinteiros e calafates, e que a
Câmara de Salvador desempenhara importante papel ao avaliar, por intermédio dos
378
Ibidem, p. 77.
379
Ibidem, p. 80.
380
Beauclair, Geraldo de. Op. Cit., p. 44.
188
juízes, a necessidade de reparo dos navios solicitados pelos capitães.
381
O mesmo autor
ressaltou ainda que todo este trabalho não poderia ser desempenhado apenas por
escravos, tendo sido fundamental a participação de elementos livres “particularmente
nas atividades de pesca, de escolha e corte de madeiras e de mestrança de modo geral na
construção naval”.
382
Vemos assim que a indústria agrícola dinamizava um vasto leque de atividades
que se propunha a ir além do restrito mundo da plantation escravista, estabelecendo elos
de dependência com outras atividades que se davam no interior da colônia e sem as
quais ela não sobreviveria facilmente. Com os mecanismos internos de acumulação
possibilitados pela existência de uma dinâmica própria de produção na economia
colonial, esta ficaria menos vulnerável às mudanças que se deram a partir do século
XVIII. Portanto, se por um lado o desenvolvimento da economia colonial não favorecia
as atividades manufatureiras, por outro eram fartamente estimuladas pela produção e
consumo a nível local. Neste sentido, Beauclair afirma que
(...) deve ser tida em conta não a produção de ferro para a utilização
na própria fazenda e a atividade doméstica de subsistência: a presença
de oficinas (ferrarias) nas povoações e vilas está a indicar o sentido de
um comércio de curta distância voltado para o atendimento das mais
diversas necessidades, em regiões tão isoladas dos portos de centros
comerciais de maior porte, tornando difícil e irregular o abastecimento
de utilidades como lamparinas, chaves, ferraduras e tantas outras peças
de uso doméstico ou na atividade de ouro.
383
381
Ibidem, p. 41.
382
Ibidem, p. 42.
383
Beauclair, G. de. Op. Cit., p. 44.
189
Apesar da existência e relativo desenvolvimento das atividades mecânicas nos
primeiros séculos de colonização mantidas especialmente em instituições religiosas,
onde se colaborava para o ensino e também para a produção de artigos para a
manutenção institucional apenas com o acelerado processo de diversificação das
atividades urbanas e maior complexidade da estrutura social, as artes mecânicas
ganharam impulso e adquiriram maior importância, surgindo “novas linhas de produção
de exportação”, com estímulo à produção interna de forma que vários segmentos
“adquirem movimentos e dinâmicas próprios”.
384
Seguindo a trilha deixada pelos
historiadores que nos apontaram um processo de acumulação e de fixação de
comerciantes e negociantes portugueses na colônia
385
mesmo antes da transferência da
Corte portuguesa, em 1808
386
podemos constatar que existia uma estreita rede de
relações comerciais internamente e uma crescente dinamização do comércio, garantida,
em grande parte, pela produção artesanal.
No entanto, a autonomia dessas atividades foi possibilitada mediante o vínculo
que estabeleceram com as instituições religiosas, fundamentalmente com as irmandades.
Lembrando que as irmandades representavam na colônia a grande mediação entre a
sociedade e a Coroa,
387
é importante destacarmos o papel que tiveram como
dinamizadoras dos diferentes ofícios, atuando nas mais diversas esferas da produção
artesanal nas áreas urbanas.
384
Ibidem, p. 65.
385
Referimos-nos aos estudos de DIAS, Maria Odila da Silva. “A interiorização da metrópole”, in: Carlos
Guilherme Motta (Org.) 1822: Dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1972; MARTINHO, Lenira e
GORENSTEIN, Riva. Negociantes e caixeiros na sociedade da Independência. Rio de Janeiro:
SMC/DGIDC/Divisão de editoração, 1993; FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Obra citada.
386
Na obra de FRAGOSO& FLORENTINO, os autores se contrapõem à perspectiva apontada por Maria
Odila da Silva Dias do enraizamento dos interesses mercantis portugueses ter se dado desde a chegada
da Corte, em 1808. Eles afirmaram que os grandes negociantes já se achavam instalados na Praça do
Rio de Janeiro desde, pelo menos, as últimas décadas do século XVIII, P. 201.
387
BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o Poder. Irmandades leigas e política colonizadora em Minas
Gerais. São Paulo: Editora Ática, 1986.
190
É importante notar que as irmandades garantiam a nível local a possibilidade de
reprodução econômica através do financiamento e crédito, “em uma época em que o
sistema financeiro ainda não estava consolidado”, como nos lembrou Eulália Lobo.
388
Por outro lado, os fundos dessas irmandades eram formados mormente pelos recursos
garantidos pelos proprietários ou comerciantes dessas regiões, e inclusive a Santa Casa
de Misericórdia da Bahia
Tinha seus fundos formados por doações de plantadores, criadores e
comerciantes. Ser “irmão maior” de tal irmandade significava adquirir
posição de prestígio no interior de uma sociedade que guardava
zelosamente a sua hierarquia social.
389
Alguns estudos recentes têm apontado uma relativa movimentação em torno de
financiamento na praça do Rio de Janeiro no século XVIII, orientada pela demanda por
crédito para atividades artesanais. Essa questão foi levantada no artigo de Daniela
Barreto,
390
que afirmou que num contexto restritivo às atividades manufatureiras na
colônia tornava-se problemática a aquisição dos meios de produção, tais como as
ferramentas e a matéria-prima para os artesãos. Conseguir empréstimos poderia
representar a possibilidade de sobrevivência como “mão-de-obra livre qualificada”.
Esses empréstimos teriam contribuído, sobretudo, para tornar esses profissionais mais
autônomos, obter uma relativa independência econômica e potencializar estratégias de
388
LOBO, Maria Eulália. “Estudos das categorias sócio-profisisonais, dos salários e do custo da
alimentação no Rio de Janeiro de 1820-1930”. Revista Brasileira de Economia, 27, out. 1973, pp. 133-
135.
389
Beauclair, G. de, Op. Cit., p. 77.
390
BARRETO, Daniela Santos. “A despeito do defeito. Artesãos na cidade do Rio de Janeiro, c. 1690-
c.1750”. ACERVO, Rio de Janeiro, v.5, n.2, pp. 69-86, jul/dez 2002. Ver da mesma autora: BARRETO,
Daniela Santos. A qualidade do artesão: contribuição ao estudo da estrutura social e mercado interno na
cidade do Rio de Janeiro, C. 1690-C.1750. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ IFCS,
2002.
191
promoção na hierarquia social.
391
Neste caso, a autora destacou que os pontos de
estrangulamento” dos ofícios mecânicos incidiam fundamentalmente na necessidade de
dinheiro e “na dependência em que se encontravam face ao capital rentista urbano”.
Desta forma, a capacidade de sobreviver do artesanato, com a necessária reposição dos
meios de produção, bem como “o acesso a prédios urbanos adequados à produção e
comercialização das mercadorias artesanais constituíam as condições básicas de
instalação da atividade na cidade”.
392
Segundo a mesma autora, o grande crescimento populacional do período,
associado à forte imigração do reino e das demais regiões da América portuguesa, além
do considerável aumento do tráfico de escravos proporcionava um constante
fornecimento de mão-de-obra que, provavelmente, era superior ao contingente
necessário ao artesanato da região. Essa crescente demanda fez com que houvesse
freqüentes pedidos de empréstimo a juros a negociantes, por parte dos oficiais
mecânicos da cidade. Neste caso, pesquisando as escrituras públicas do Arquivo
Nacional, a autora identificou vários casos de artesãos que fizeram pedidos de
empréstimos, identificados desde fins do século XVII: Miguel Lopes, oficial pedreiro,
que solicitou 73$000 ao licenciado Cristóvão da Fonseca, em 1690; o ourives Diogo de
Morais, que tomou o empréstimo sem juros ao mercador Antonio do Vale Mesquita,
em 1710; em 1714, José Barreto devia 80$000 ao mercador José da Silva; e outros.
Concluiu, portanto, que essa participação dos artesãos no mercado de crédito e
de bens urbanos foi decisiva para o desenvolvimento dos ofícios mecânicos no Rio de
Janeiro, “o que é facilmente percebido pela presença de diversos artesãos nas operações
de empréstimo, sensivelmente na condição de devedores”.
393
Analisando ainda os
Códices do Arquivo Nacional relacionados as fianças de embarcações, a autora apontou
391
Ibidem, p. 70.
392
Idem.
393
Ibidem, pp. 71-73.
192
a forte presença dos oficiais mecânicos que, para o intervalo entre 7 de outubro de 1727
e 2 de abril de 1728, foram responsáveis por 24% das fianças chanceladas.
394
Neste sentido, teria ocorrido uma maior mercantilização da economia,
propiciada pela mineração, e foram os próprios homens de negócios do Rio de janeiro
que controlaram o fluxo monetário “que a exploração das áreas mineradoras orienta
para a praça carioca”. Assim, apontou-se ainda que, na primeira metade do século
XVIII, se dava o surgimento de “um mercado interno apto a disponibilizar produtos e
serviços para crescentes parcelas da população”, reafirmando ainda que a atividade
artesanal no contexto colonial não se apresentou como um “lugar de passagem”, ou
como uma atividade complementar ou marginal na economia urbana. Ao contrário, o
artesanato representava, a esta altura, um setor orgânico e vivo da atividade
econômica.
395
O caso do sapateiro Antunes foi exemplar: descreve-se que ele apareceu em uma
confissão de dívida de 1727, solicitando empréstimo a um homem de negócios e, ao
longo dos anos, ele próprio aparecia em outros registros solicitando empréstimos
maiores, mantendo-se na posição de devedor, mas mostrando-se capaz de realizar
dívidas de porte, além de ser “bem articulado com aqueles agentes sociais capazes de
fornecer dinheiro a terceiros”. Sua boa reputação teria lhe rendido a prerrogativa de ser
o fiador do seu cunhado junto à Santa Casa de Misericórdia “instituição das mais
ativas no mercado de dinheiro e das mais rigorosas na execução dos credores”.
396
Segundo Antônio Jucá de Sampaio,
397
percebe-se que como um todo, os mais
diversos extratos sociais da colônia viram no sistema de contas-correntes, ou seja, do
endividamento, uma forma de lidar com a falta de moedas, problema que marcou
394
Ibidem, pp. 81-83.
395
Ibidem, p. 72.
396
Idem.
397
SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Crédito e circulação monetária na colônia: o caso fluminense,
1650-1750 ( mimeo).
193
fortemente a colônia portuguesa a partir de fins do século XVII. E, segundo ele, até
mesmo aquisições cotidianas de mercadorias eram frequentemente feitas a prazo,
permitindo-se assim que esse pagamento fosse realizado com a própria mercadoria
produzida pelo devedor, ou em moedas, mas sendo saldado ao longo do tempo. Ou
seja, segundo ele, “o endividamento generalizado era ao mesmo tempo causa e
conseqüência da escassez de moedas”.
398
Neste sentido, os Negociantes apareciam
como os principais credores, com larga vantagem em relação aos demais extratos
sociais, desde a primeira metade do século XVIII, chegando a aparecer como credores
em cerca de 43% dos empréstimos realizados. Novamente, vemos uma forte
presença também da Santa Casa de Misericórdia como credora, embora não superasse o
montante representado pelos Negociantes. A partir desses elementos, chega-se à
conclusão a respeito não apenas da destacada ação desses homens de negócio na
formação do “único grupo de credores líquidos da praça carioca”, mas de que “são eles
que controlam a liquidez da economia fluminense, estando em condição de arbitrar que
grupos, e em que condições, teriam acesso ao crédito, o verdadeiro ‘sangue’ do sistema
colonial”.
399
Verifica-se, portanto, que a ação dos homens de negócios se apresentava de
forma expressiva na primeira metade do século XVIIII, tendo se consolidado de forma
cada vez mais contundente ao longo do setecentos. A chegada da família real e a
consequente aprovação de decretos e alvarás de abertura do comércio colonial e de
privilégios fiscais para a Inglaterra, tornavam a atuação desses negociantes cada vez um
elemento mais vivo e necessário para a movimentação econômica da colônia. O
aprofundamento dos interesses mercantis a partir da instalação da Corte consolidou
definitivamente a atuação desses setores mercantis junto às demais esferas da
398
Ibidem, p. 14.
399
Ibidem, p. 15.
194
sociedade, buscando a preeminência de seus interesses junto ao poder real e o
convencimento dos demais setores a respeito de sua destacada importância social.
Neste contexto, a criação do Banco do Brasil, a formação de Companhias de seguros e
a forte presença no mercado de créditos, foram importantes elementos para dinamitar as
estruturas “arcaicas” da sociedade, ligadas aos empréstimos e financiamentos de
pequenos artesãos ligados aos ofícios, garantindo a proteção local sobre determinados
setores profissionais. Os negociantes, aos poucos, precisavam retirar de cena os
“credores menores”, a fim de pudessem definitivamente exercer o completo controle
sobre a economia.
Uma vez que essas irmandades desempenhavam funções importantes na esfera
econômica, como vimos nos capítulos anteriores, e à medida que os interesses
mercantis se sobrepunham aos interesses agrários - no sentido da reprodução
econômica e das possibilidades de acumulação -, as irmandades passavam a
representar um empecilho ao pleno desenvolvimento dos negócios, especialmente no
meio urbano. No caso das irmandades dos ofícios, onde se vinculavam também os
interesses e privilégios econômicos ligados à determinada categoria profissional, os
empréstimos se faziam mediante a regulamentação e normas estabelecidas pelo
próprio compromisso, onde a elas era designada a função de ajudar os irmãos em
casos de necessidades, agindo como credora e seguradora dos profissionais. Portanto,
ao crescimento da ação dos Negociantes em seu processo de acumulação de capital
econômico e político correspondeu o necessário declínio da ação das irmandades
nesses mesmos setores. Importava aos negociantes que fossem rompidos os elos de
dependência econômica com as instituições religiosas várias delas propulsoras das
atividades artesanais urbanas -, a fim de que se ampliasse o leque de possibilidades de
atuação dos homens de negócios na esfera financeira.
195
Trata-se, portanto, de uma transição entre diferentes formas de conceber a
própria prática do crédito, mediante as transformações no campo ideológico que se
difundiam desde fins do século XVIII. A prática secularmente desenvolvida pelas
irmandades baseava-se na ajuda mútua e nos elos de solidariedade estabelecidos
socialmente. Embora não possamos descartar a importância dos juros nessas
transações para a própria manutenção dessas entidades, essa prática não se
movimentava primordialmente pela lógica mercantil. Mesmo com a lenta ascensão
dos negociantes da Praça do Rio de Janeiro desempenhando essas funções desde o
século XVII, como fora marcado pelas recentes pesquisas, mantinham-se relações que
não estavam estritamente vinculadas à lógica racional capitalista, que possibilitavam a
acumulação por parte do pequeno grupo de comerciantes que dominavam essa
atividade, ao mesmo tempo, possibilitavam o estabelecimento de vínculos através dos
quais os mais pobres conseguiam estruturar suas atividades para manter sua
sobrevivência. Em muitas transações, como foi verificado, não se cobravam os juros e
os empréstimos não eram respaldados prioritariamente pelo documento escrito, mas
pelo estabelecimento de compromissos pessoais, com a confiança na palavra. A
transição que se deu - com a ascensão desses homens de negócios e a correspondente
expansão de suas atividades neste ramo - foi a de uma lógica solidária, de ajuda mútua
em relação ao crédito concedido pelas irmandades e da reciprocidade estabelecida
nessas relações econômicas, para uma lógica racional capitalista, onde os empréstimos
se tornavam uma das fontes mais lucrativas de investimento, através dos altos juros,
que garantiam uma rentabilidade maior do que o investimento na agricultura.
Portanto, o crédito deixava de pertencer a uma prática cotidiana das relações
econômicas urbanas, para ser apropriado unicamente pelos detentores do capital
naquele momento, impondo-se sobre as relações mantidas dentro das corporações,
196
mediante o compromisso das irmandades. Portanto, o fim das irmandades dos ofícios
correspondia, no plano econômico, ao apagamento da influência e ingerência que
essas instituições exerciam sobre as relações econômicas na cidade, abrindo espaço
para o estabelecimento pleno de relações marcadas e monopolizadas pelos grandes
negociantes.
5.2. Corporações e irmandades: a decadência política
A partir de 1808, com a transferência da Corte portuguesa para o Brasil e o
imediato decreto de abertura dos portos, houve a concentração de uma política de
maiores incentivos por parte da Coroa na dinamização da economia colonial, criando
mecanismos de desenvolvimento das atividades produtivas e mercantis e estimulando a
circulação de mercadorias. Neste sentido, a transferência da Corte possibilitou o
incentivo econômico de três formas: garantindo um abrupto crescimento urbano e o
deslocamento definitivo da sede administrativa da colônia para o Rio de Janeiro,
fazendo com que houvesse uma enorme demanda por produtos e serviços na cidade;
garantindo a vinda de enorme leva de artífices e mestres de ofícios, que se dedicaram a
fundar oficinas ou trabalhar em fábricas; implementando uma política de incentivos às
atividades econômicas embora muitos tenham se sentido largamente prejudicados
pelos acordos comerciais que favoreceram a Inglaterra.
400
Toda a alteração da vida colonial, bem como de sua organização administrativa e
econômica, concorreram para uma rápida mudança também nas relações de comércio
no meio urbano. No Rio de Janeiro, os ofícios mecânicos tinham significativa
400
Os conflitos entre os interesses das frações da classe dominante e do governo em relação aos acordos
comerciais firmados com a Inglaterra ao longo do século XIX mereceram uma interessante análise de
PIÑEIRO, Théo Lobarinhas. Op. Cit, cap. 1.
197
organização desde o século XVIII, tendo representatividade inclusive junto ao Senado
da Câmara, como mostramos nos capítulos anteriores. As petições, queixas, protestos
e abaixo-assinados encaminhadas à Câmara ou à Coroa por parte de irmandades
como foi demonstrada pelo forte poder de pressão dos sapateiros através da irmandade
de São Crispim e São Crispiniano, por exemplo demonstram a persistência de uma
atuação política por parte destas em defesa dos aspectos econômicos relacionados aos
seus ofícios ou solicitando privilégios ou manutenção de status quo dos mesmos.
Os embates entre os juizes de ofícios e os interesses econômicos da Coroa e de
negociantes e proprietários ligados a ela, demonstra que a segunda década do século
XIX fora marcada por essas disputas no campo político e econômico. De um lado a
sociedade, ainda colonial, convivia com uma estrutura de trabalho urbano com forte
presença das atividades mecânicas, exercidas tanto por escravos como por homens
livres, brancos ou não; por outro se impunham os homens de negócios, que passavam a
se organizar em torno dos interesses fundamentais que os uniam, ora convergindo, ora
divergindo dos interesses dos grandes proprietários de terras e de escravos.
As diferentes posições entre os membros da pequena parcela de proprietários da
sociedade do início do século XIX concorreram para uma intensa disputa pela
hegemonia entre as frações da classe dominante. Esse processo de disputas revelava o
farto jogo de interesses que giravam em torno dos vários setores ligados a ela, não
podendo ser dimensionado apenas pelos interesses em torno da propriedade. Théo
Piñeiro, visualizando a política imperial como um produto de alianças de classe na
qual estavam envolvidos os interesses dos proprietários de terras e de escravos, por um
lado, e os interesses dos negociantes, por outro -, analisou a construção de uma
hegemonia no processo de disputa de interesses pelas várias frações da classe
dominante, afirmando que “não se pode colocar, no mesmo lugar social todos os grupos
198
que se caracterizam pela propriedade”.
401
Neste sentido, a partir da chegada da Corte
portuguesa ao Brasil, acentuou-se o crescimento da Praça mercantil com a expansão
das atividades ligadas aos negócios e ao grande comércio, ampliando a influência e o
prestígio dos Negociantes, possibilitando, segundo o autor, “o seu papel fundamental na
construção de uma unidade nacional”, tanto pela crescente influência que adquiria
junto a vida econômica como pelas relações que passaram a estabelecer com
negociantes e comerciantes de outras regiões.
402
Essa crescente organização dos
Negociantes no Rio de Janeiro levou à criação de corpos representativos dos seus
interesses, tais como o Corpo de Comércio, tendo sido mais tarde sucedido por outras
entidades de classe. A própria criação da Junta de Comércio pelo governo, em 1809,
atestaria o forte poder de pressão e o prestígio exercido pelos Negociantes fluminenses
no período.
403
É importante notar que a representação a partir da formação do Corpo de
Comércio denota uma significativa modificação na organização política de setores
ligados às atividades urbanas. Se até então as irmandades dos ofícios se apresentavam
como um importante elo sócio-político, agindo como mediadora dos conflitos
existentes na esfera do trabalho livre urbano e a instância governamental ou
administrativa, as mudanças na organização econômica e social viabilizaram o
aparecimento de outras instituições que desempenhavam um papel que antes era
preponderantemente religioso. Partindo da análise de Piñeiro, podemos supor que o
Corpo de Comércio passou a representar interesses que iam além dos defendidos
apenas pelos grandes comerciantes.
401
Piñeiro, Théo. Op. Cit., pp. 8-11.
402
Ibidem, pp. 32-33.
403
Ibidem, pp. 48-49.
O mesmo autor aborda o tema sobre a associação de interesses de classe dos Homens de Negócios na
primeira metade do século XIX no seguinte artigo: PIÑEIRO, Théo L. A Organização dos
Negociantes: do Corpo de Comércio à Associação Comercial do Rio de Janeiro”, in: MENDONÇA,
Sônia Regina de (Org.). O Estado Brasileiro: Agências e Agentes. Rio de Janeiro: EdUFF/Vício de
Leitura, 2005, pp. 103-126.
199
Assim, quando o Corpo de Comércio apresentava uma solicitação,
sugestão ou reclamação, não falava apenas por um punhado de
homens, por mais ricos que eles pudessem ser, falava também por
uma infinidade de pessoas ligadas à atividade comercial,
fundamentais para o funcionamento da economia urbana.
404
Podemos assim inferir que os setores ligados aos ofícios mecânicos na cidade
também se fizeram representar, ao longo do tempo, pelo Corpo de Comércio. Este, por
sua vez, se colocava como mediador junto ao governo dos interesses desses setores.
Representado politicamente pelos Negociantes, agiam como “verdadeiros líderes do
Corpo de Comércio, não apenas se colocavam como interlocutores de todo o setor de
atividades urbanas como procuravam dirigir e dar sentido às ações políticas do
comércio”.
405
À medida que os negociantes ganhavam prestígio no meio urbano e avançavam
em seu processo de construção de uma hegemonia junto aos setores urbanos, com forte
caráter representativo e organizacional, dava-se por outro lado o decréscimo de poder
de intervenção dos oficiais urbanos junto ao poder. O lento enfraquecimento do poder
das corporações de ofícios no início do século XIX coincidiu com o vertiginoso
prestígio adquirido pelos Negociantes do Rio de Janeiro neste mesmo período.
O processo de declínio das corporações de ofícios na Europa remontava aos
últimos séculos, tendo o século XVIII apresentado os golpes finais com o pensamento
e a crítica econômica liberal ao modelo corporativo, associando-as a perversos
monopólios que impediriam a expansão do livre comércio. Como vimos no caso da
Inglaterra, esse processo ocorreu após longas discussões parlamentares que levaram à
404
Ibidem, p. 46.
405
Idem.
200
revogação de cláusulas do estatuto do aprendizado, implodindo aos poucos várias das
seculares conquistas dos trabalhadores artesãos. No Brasil essas discussões ocorreram
na Constituinte de 1823, e foram ratificadas na Carta Magna outorgada em 1824,
pondo legalmente o fim às Corporações de Ofícios no Brasil.
Podemos salientar - de acordo com a análise de Luis Antonio Cunha
406
- que o
golpe fatal contra as corporações de ofícios foi dado com a chegada da Corte ao Brasil,
representando de fato o marco inicial do processo de extinção, a partir do Decreto de
Abertura dos Portos, sendo consolidada juridicamente na Carta de 1824. Neste
sentido, o processo de decadência das irmandades dos ofícios já estava ocorrendo
desde 1808, com a perda dos privilégios monopolistas das irmandades, e esteve
relacionado a vários fatores, segundo o autor: a estreiteza do mercado interno, as
limitações da economia colonial, a falta de incentivos resultante do trabalho escravo e
as restrições da ideologia econômica liberal. Para Cunha, a abertura dos portos em
1808, o alvará para a permissão de manufaturas no Brasil e os Tratados de 1810,
eliminaram definitivamente o controle corporativo sobre a produção e distribuição de
bens no Brasil. Neste caso,
Com esse alvará [de revogação da lei que proibia as manufaturas
têxteis no Brasil], as corporações de ofícios começaram a perder o
privilégio de garantir para seus associados o monopólio do exercício
de qualquer que fosse a artes. Em 1810, dois alvarás (...) revogaram
as proibições de venda de certas mercadorias pelas ruas, desde que
tivesse pago os impostos devidos. Essa liberdade de comércio foi
ampliada pelo alvará de 28 de setembro de 1811, o qual restringiu
o comércio dos gêneros denominados estancados.
407
406
Sobre essas conclusões ver: CUNHA, Luis Antonio. O ensino de ofícios artesanais e manufatureiros
no Brasil escravocrata. ed. São Paulo: Ed. UNESP; Brasília, DF: ELACSO, 2005, pp. 50-52.
407
Ibidem, p. 55.
201
Segundo Cunha, as limitações constitucionais “provavelmente não tiveram
muito o que fazer”, porque “à época da Independência os artesãos esperavam mais
proteção do Estado do que das suas próprias organizações profissionais”,
408
ressaltando ainda que o projeto não propunha a eliminação das bandeiras dos ofícios,
que mantiveram suas antigas atribuições de examinar os candidatos a mestre, mas
diminuía consideravelmente o alcance de seu poder e suas prerrogativas econômicas.
Assim, propunha-se a criação da Casa da Inspeção, sob controle do governo, que
funcionaria como verificadora da qualidade do trabalho dos artífices, em instância
superior ao da Corporação. Assim, depois de 1824, somente as irmandades teriam
sobrevivido, perdendo, no entanto, o seu papel de controladoras da prática e da
aprendizagem dos ofícios manufatureiros.
Esse posicionamento contraria, portanto, as conclusões de Eulália Lobo e Luiz
Carlos Soares
409
com relação a uma suposta permanência das corporações de ofícios,
mesmo após a proibição na Constituição de 1824. Segundo esses autores, elas teriam
continuado atuantes até pelo menos a década de 1840, o que seria demonstrado pela
permanência de mestres e aprendizes nas fábricas, que pode ser constatado na
documentação da Junta de Comércio até o período citado, como demonstraremos mais
à frente. No entanto, o que de fato permaneceu foram as práticas pedagógicas no
universo do trabalho relacionadas à mestrança e ao aprendizado, além da importante
referência que o status de mestre continuava exercendo em determinados ofícios e no
meio artesanal. Contudo, tanto as irmandades perderam suas prerrogativas no campo
408
Ibidem, p. 57.
Sobre isso ver artigo anterior, do mesmo autor: Aspectos sociais da aprendizagem de ofícios
manufatureiros no Brasil colônia. Op. Cit, pp. 64-65.
409
LOBO, Eulália. “Estudo das categorias sócio-profissionais, dos salários e do custo da alimentação no
Rio de Janeiro de 1820 a 1930”. Revista Brasileira de Economia, 27, out. 1973 e SOARES, Luiz
Carlos. A manufatura na formação econômica e social escravista do sudeste: um estudo das atividades
manufatureiras na região fluminense. Niterói: UFF, Dissertação de mestrado, 1980, 2 vols.
202
econômico, quanto os juizes representantes dos ofícios perderam neste processo o seu
papel político, a partir de 1828.
A esses argumentos soma-se ainda a análise desenvolvida por Harry Bernstein
na década de 1970 sobre o papel do Juiz do Povo no mundo Luso-brasileiro. Para o
autor, a ascensão e queda do Juiz do povo, com respectiva decadência de seu papel
político, sofreram duros golpes com o advento da indústria, acompanhados pelo
decrescente poder econômico e profissional das corporações de ofícios, tanto em
Portugal quanto no Brasil: “As relações das Guildas, de sua Casa dos Vinte e Quatro e
de seu Juiz do Povo, com o advento da indústria em Portugal entre 1750 e 1825 são da
máxima importância, que explicam a ascensão e queda do Juiz do Povo durante
esses mesmos setenta e cinco anos”.
410
Entre a segunda metade do século XVIII e o início do XIX, a função do Juiz do
Povo passou por profundas alterações: alçado ao posto de importante articulador das
resoluções para melhorar a vida da população após o terremoto de 1755, foi após a
vinda da Corte portuguesa para o Brasil, em 1808, que o Juiz se viu ungido de imensos
poderes políticos. Lembrando, de acordo com o que apontou Bernstein, que uma vez
que o Rei, a Corte, o presidente do Senado e o superintendente achavam-se ausentes
de Portugal, o Juiz emergiu como a única autoridade eleita e capaz de falar em nome
do povo, vendo-se “cara a cara com sua velha inimiga, a Junta de Comércio”.
411
Ao Juiz do Povo teria ficado, portanto, a incumbência de ser o intérprete do
povo na esfera política. Em março de 1808 o Juiz participava da Junta dos Três
Estados, posicionando-se ousadamente em defesa de uma Constituição para Portugal.
Recebeu apoio da Suprema Junta local e da Casa do Porto. As Guildas e a Casa dos
410
BERNSTEIN, Harry. “O Juiz do Povo de Lisboa e a Independência do Brasil: 1750-1822 - Ensaio
sobre o populismo Luso-brasileiro”, in: KEITH, Henry H. e EDWARDS, S. F. (Orgs.). Conflito e
continuidade na sociedade brasileira ensaios. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1970, p.
230.
411
Ibidem, p. 242.
203
Vinte e Quatro foram responsáveis pela criação dos ministros de bairro, que deu
origem à Legião Portuguesa. Passava a desempenhar o papel de “delegado das
guildas” e de “líder político da cidade”. Entre 1815 e 1820 a figura do Juiz do Povo de
Lisboa teria ainda ampliado os seus interesses, chegando mesmo a propor um sistema
escolar diferenciado para os artesãos, diferente do ensino mantido pela Corte através
da Casa Pia. Sua ação política teve papel decisivo entre 1808 e 1822, destacando-se
especialmente nos eventos que levaram à Revolta do Porto de 1820.
412
O prestígio e o poder político atribuídos à figura do Juiz do povo naqueles anos,
no entanto, não foram suficientes para que ele mantivesse sua “utilidade” para a vida
econômica portuguesa, juntamente à Casa e às guildas. Os conflituosos interesses que
envolviam as corporações e a sua proteção e monopolização do mercado de trabalho e
a nascente e poderosa Junta de Comércio, não se sustentaram apesar do forte apelo
político do Juiz:
(...) havia, entre 1750 e 1825, dois interesses manufatureiros paralelos
em Portugal. A Real Junta de Comércio era a intérprete da mais
moderna indústria mecânica do século XVIII, a Casa e o juiz eram os
guardiãs das antigas manufaturas artesanais e corporativas. Das duas
forças parece que a Junta de Commercio, mais do que o Juiz, era a
fonte direta de queixa contra o banimento da indústria no Brasil.
413
Após a Independência, segundo Bernstein, a figura do Juiz do Povo desapareceu
da Bahia, assim como de Lisboa, deixando, contudo, sua marca em ambos os lugares:
“uma insólita figura luso-brasileira, às vezes democrática, às vezes liberal, e influente
líder popular”. Segundo ele ainda, a Lei de 1828 que aboliu o Senado da Câmara e o
412
Ibidem, pp. 245-250.
413
Ibidem, pp. 237-238.
204
cargo de Juiz do Povo no Brasil foi assinada pelo Imperador Pedro I que, quando
chegou a Lisboa, em 1834, também aboliu a Casa dos Vinte e Quatro e o cargo de Juiz
do Povo. No caso do Brasil, o autor considerou que o Juiz do Povo, especialmente na
Bahia, em Recife e no Rio de Janeiro, mostrou disposição em desfiar situações entre
1800 e 1822, apoiando revoltas importantes como a Revolução Pernambucana e a
Revolta do Porto de 1820. Assim, ele conclui que “por um momento essas duas
metades transatlânticas formaram um todo na história luso-brasileira”.
414
O Regimento da Bandeira do Ofício de Sapateiro do Rio de Janeiro, de 1817,
atesta o poder que essas corporações exerciam e a intenção de constituir uma Casa dos
vinte e quatro na Corte, inspirada na corporação lisboeta. Assim, descrevia no capítulo
terceiro do regimento que
Serão os Irmãos da Mesa da Irmandade obrigados debaixo de um
juramento dos Santos Evangelhos de ellegerem dous officiais, que
aquelle anno sirvão de juiz, e o outro para que sirva de Escrivão do
dito officio, os quais serão taes, que possão depois ser eleitos para
irem à Caza dos vinte e quatro, no cazo que esta se venha a
estabelecer nesta Corte no Rio de Janeiro.
415
Á vista do exposto por Bernstein, em relação à força que a Casa lisboeta
adquiriu com a saída da Corte de Portugal e a importância política retomada pelo Juiz
do Povo, era provável que ela agisse como exemplo para as corporações mais
organizadas aqui no Brasil, especialmente na Corte. No capítulo quinto, o regimento
voltava ainda a citar a referida Casa para designar que “Esta mesma forma se guardará
na Eleição que se de fazer dos Officiais que hão de servir de Procuradores do
414
Ibidem, p. 241.
415
dice 773, Arquivo Nacional. Regimento do governo Econômico da Bandeira e Oficio de Sapateiro
do Rio de Janeiro. 1817.
205
Officio na caza dos vinte e quatro”, que seriam sempre aqueles que tivessem no ano
anterior servido como juízes do ofício, por terem os requisitos para o mandado
que na mesma Caza dos vinte e quatro se remeter, e os que votarem
em outra qualquer pessoa, serão os seus votos nullos, e pagarão da
cadeia, onde estarão quinze dias, dez cruzados (...).
416
Lendo o regimento é notória a preocupação e a clareza de que estaria próximo o
estabelecimento de uma Casa dos Vinte e quatro no Rio de Janeiro. Os demais
capítulos do regimento prosseguiam na descrição dos critérios para a eleição dos juízes
e procuradores, mantendo toda a tradição dos regimentos corporativos em sua
dimensão protetora e, ao mesmo tempo, normatizadora dos ofícios no meio urbano.
Essa referência à formação da Casa, talvez explique um pouco do temor expresso
pelos deputados na Constituinte seis anos depois, temendo que se consolidasse
instituição semelhante no Brasil.
Ao mesmo tempo, a pressão dos negociantes contra o monopólio exercido pelas
corporações de ofícios tomava corpo. Em 1821, alguns negociantes assinavam um
documento contra a proibição da venda de calçados por pequenos artesãos nas ruas,
uma vez que a venda para produtos estrangeiros havia sido liberada, deixando ao
controle dos juízes do ofício de sapateiro a repressão contra a prática de pequenos
artesãos na cidade, que tinham esse como o único meio de sobrevivência. Na petição,
eles defendiam que
Levamos a consideração de Vossa Alteza Real o Régio Aviso (...) que
se proíbe a liberdade de se fazerem ocultamente, e venderem pelas
ruas desta cidade çapatos e mais todo o gênero de calçados: por que
416
Idem.
206
esta disposição nos parece contraditória com a franqueza do Alvará de
27 de março de 1810 pois se em virtude deste he permitido vender
uma quantidade incalculável de calçado estrangeiro, que diariamente
entra de fora com prejuízo da industria nacional e da classe de
çapaterios, como pode ser prohibida a venda de poucos pares de
çapatos, que alguns dos mais pobres moradores desta cidade mandão
fazer no interior de suas cazas, por seus escravos a fim de tirarem
delles um jornal mais vantajoso. Acresce que motivo a esta
Representação o temerário procedimento a que os juízes deste offício
se tem atrevido de prenderem por sua imediata authoridade, sem haver
Lei Geral, nem municipal, que tal mande, os escravos que encontrão a
vender alguns pares de çapatos como ofensa manifesta da Lei e dos
direitos de propriedade dos Senhores dos Escravos e prejuízo grave de
muitas famílias pobres, que daqui tirão toda a sua subsistência.
417
Na virada do século XVIII para o XIX, portanto, uma nova correlação de forças
se estabelecia no cenário político e econômico, que tornava a organização do trabalho
pela via das corporações e irmandades dos ofícios um processo arcaico e insustentável
em ambas as esferas. A representação política que se fez sentir com força pelos
setores dominantes ligados à monarquia e que se fortaleceram junto com o processo de
Independência do Brasil – abraçava idealmente todos os projetos existentes e as
demandas dos setores urbanos. Apresentava-se como a porta-voz ou representante de
setores que se organizavam com particularidades ligadas aos interesses locais e
profissionais que passaram, a partir de então, a diluírem-se num amplo leque de
interesses mercantis representados pelos homens de negócios.
Podemos inferir que o fim das corporações no Brasil, legalmente estabelecido a
partir de 1824, respondeu a duas demandas significativas do período: por um lado, o
apagamento do domínio religioso sobre os ofícios mecânicos e das relações
417
(2890) 50-1-12. Sapateiros. AGCRJ, novembro de 1821, fls. 31-32.
207
econômicas que exercia no meio urbano, especialmente sua função credora; por outro
lado, o esvaziamento do poder político do Juiz do ofício nas Câmaras Municipais
como representantes das corporações, uma vez que novos interlocutores dos setores
urbanos emergiam na esfera política. No entanto, a extinção das corporações enquanto
unidades profissionais vinculadas às irmandades religiosas não significou o fim das
relações entre mestrança e aprendizado no interior das oficinas. Ao contrário: os
mestres, os aprendizes e oficiais continuaram sendo largamente requisitados nas
manufaturas e fábricas do Rio de Janeiro, pelo menos até a década de 1840.
Desta forma, o século XIX caracterizou-se pelo declínio das funções sócio-
econômicas e políticas das irmandades junto aos ofícios. As suas funções na esfera
econômica foram eficientemente substituídas por corpos organizados e afinados para
levar à frente um outro projeto político, que passava a englobar os interesses mercantis
ligados à dinamização do processo industrial, na mais ampla acepção do termo na
época, referindo-se a todas as esferas da produção. Abria-se espaço para as disputas
internas dos setores dominantes, ligados à terra e às atividades mercantis, tanto quanto
aos conflitos ligados ao próprio desenvolvimento manufatureiro no Brasil.
5.3. A permanência dos aspectos pedagógicos: mestres e aprendizes nas
fábricas
Mesmo Após o fim das corporações de ofícios legalmente determinado, foi
necessária a estruturação de mecanismos de controle da produção artesanal e do
aprendizado dos ofícios, que eram anteriormente exercidos pelas irmandades e
estabelecidos por seus compromissos. Para tanto, a criação da Casa da Inspeção, ao
longo da década de 1820, correspondeu a esta necessidade de substituir o papel que
208
antes era exercido pelas irmandades no controle sobre a prática do artesanato e da
aprendizagem e no exame dos mestres e concessão das cartas. Continuava necessária a
comprovação do exame e a posse da carta para o exercício do ofício e para a abertura
de lojas no meio urbano. Embora não tenha feito parte dessa pesquisa a averiguação
das práticas adotadas pela Casa de Inspeção para exercer tal controle, é importante
demarcarmos que ela representou um importante instrumento do governo para manter
as práticas cotidianas dos ofícios e a execução das obras mecânicas pelos artífices
examinados e conhecidos do público, e ao mesmo tempo impedir a continuidade da
atuação de instituições que o estivessem na esfera “estatal”
418
neste processo.
Assim, em dezembro de 1831, José Maria Trindade, mestre carpinteiro, examinado na
freguesia de Santa Rita, falava sobre a criação de um avaliador do ofício, atividade
para a qual ele se candidatava por ser “cidadão brasileiro, e mestre examinado”.
419
Também o ofício encaminhado ao Senado, em 1828, pelo oficial de pedreiro Ignácio
de Jezus Pinto Caldas, solicitava uma carta de exame de alfaiate.
420
À extinção das corporações de ofícios não correspondeu o fim das relações
pedagógicas de aprendizado e mestrança. As próprias oficinas continuaram a se impor
nos centros urbanos - algumas maiores e mais sofisticadas começavam a surgir
recebendo, geralmente, a alcunha de fábricas -, especialmente destacadas em uma
cidade com crescente urbanização, como o Rio de Janeiro no início do oitocentos.
418
Refiro-me ao termo estatal entre aspas, pois na década de 1820 começaram a ser estruturadas as bases
para a montagem de um aparato estatal que teria se consolidado a partir do segundo reinado, como
atesta a clássica historiografia sobre o tema. Sobre a construção do estado imperial, com diferentes
perspectivas de análise, ver os estudos de: CARVALHO, José Murilo de. A construção da Ordem: a
elite política imperial. Teatro de Sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização brasileira,
2003; MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: a formação do Estado Imperial. 3ª ed. Rio de
Janeiro: ACCESS, 1994; FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político
brasileiro. 2vs. 9ª ed. São Paulo: Globo, 1991; URICOECHEA, Fernando. O Minotauro imperial: a
burocratização do estado patrimonial brasileiro no século XIX. Rio de Janeiro/ São Paulo: DIFEL,
1978.
419
(1893) 46-2-22. Marceneiros e carpinteiros. AGCRJ, 03 de dezembro de 1831, fl. 42.
420
(2099) 46-4-44.Classes de ofícios: alfaiates, coveiros, seleiros. AGCRJ, 12 de setembro de 1828, fl.
10.
209
Em abaixo-assinado e juramento dos negociantes do Rio de Janeiro, que atestava
58 assinaturas, revela o empenho dos negociantes em referendar na Junta de Comércio
a importância de uma fábrica, atestando a sua produção e importância econômica,
solicitando os necessários socorros para que ela continuasse funcionando:
Os negociantes abaixo-assinados, e jurarão se for precizo, em como a
Fabrica de fazer sabão, estabelecida na Praia de S. Christovão 6 no
ano de 1839 pelo Sr. Antonio Joze Pereira de Carvalho da qual he
proprietário, administrador e Mestre, se for digna de todos os
louvores, não só pelo seu edifício, como também pelo seu maquinismo
asseio, e latação de caldeiras, das quais huma nica do presente no
Rio de Janeiro) abraça para mais de mil caixas, ou quarenta mil libras
de sabão por fornada, em conseqüência do que semelhante fabrica he
de grande utilidade, não so por tornar nacional hum gênero importado
por estrangeiros, mas também por que o preço he mui diminuto, e a
qualidade superior, porem cremos ser impossível a sua estabilidade, e
duração, se não for favorecida de socorros.
421
Lembremos que as fábricas naquele momento representavam oficinas maiores,
com vários trabalhadores artífices, mas desempenhando uma produção manual, porém
apresentando divisão de tarefas. Os negociantes, neste caso, se uniram para representar
politicamente os interesses do “fabricante”, reafirmando a importância de sua atuação
política junto às instâncias governamentais. Nota-se no abaixo-assinado o destaque
para a condição de mestre do referido dono da fábrica, o que vimos que poderia
significar um mbolo de status profissional, que continuou sendo mantido pela figura
do mestre.
421
Caixa 425, pacote II. Junta de Comércio, agricultura, fábricas e navegação. Arquivo Nacional, 06 de
maio de 1844.
210
Contudo, para além dos elementos simbólicos e do prestígio atribuído à função,
registra-se uma efetiva continuidade no emprego de mestres nas fábricas, agindo
inclusive como garantia de uma produção confiável e de qualidade. Muitos desses
mestres tornavam-se conhecidos no meio urbano pela realização de boas obras e pela
qualidade da sua mercadoria, o que lhe garantia prestígio e uma clientela cativa. Como
vimos, o prestígio de um mestre era divulgado oralmente e sua reputação tornava-se
conhecida do público consumidor e isso parece ter desempenhado semelhante
significado no emprego desses mestres nas fábricas, uma vez que representava a
garantia de boa qualidade das obras.
Também recorrente se tornou a admissão de aprendizes nas fábricas da cidade,
empregando-os nos mais diversos ofícios, atuando geralmente ao lado de escravos.
Assim, vários foram os casos registrados na Junta de comércio que atestam a sua
permanência no universo manufatureiro. Em 1833, Targini Jozé da Rosa, aprendiz na
fábrica de sedas de Fructuoso Luiz da Motta, localizada na “Rua de traz do Hospício N
249”, pedia para se matricular no Tribunal como aprendiz da fábrica.
422
No documento
enviado à Junta de Comércio por Antonio Affonso Vellado, este descrevia
minuciosamente o montante de sua produção, e apontava a mão de obra utilizada em
seu interior: “(...) ocupa oito pessoas brancas, sendo o Administrador, 3 Caixeiros, 3
Trabalhadores e 1 Mestre Carpinteiro. Tem mais 80 escravos todos próprios”.
423
A fábrica de sabão Francisco Fernadez Castro, possuía significativa produção de
1000 caixas de sabão de 38 a 40 libras “de perfeita qualidade”, embora a dita fábrica
tivesse condições de produzir de sete a oito mil caixas mensalmente e podendo também
fabricar o sabão mármore, de qualidade superior. Apresentava em seu quadro a
422
Caixa 424. Junta de Comércio, agricultura, fábricas e navegação. AN, 17 de maio de 1833.
423
Caixa 425. Junta de Comércio, agricultura, fábricas e navegação. AN, 30 de agosto de 1840.
211
presença de “20 escravos e 7 pessoas brancas, sendo 1 diretor, 3 trabalhadores, 2
carpinteiros e 1 feitor, digo, caixeiro”.
424
Também a fábrica de sabão da Praia do Saco do Alferes, que chegava a produzir
mensalmente com três caldeiras de sabão, 1008 caixas “reguladas de 38 a 40 libras”,
apresentando condições de produzir ainda mais “logo que se torne necessario para o
consumo”. Esta fábrica tinha em seu quadro de trabalhadores cinco pessoas brancas,
sendo um administrador, um caixeiro, dois trabalhadores e um carpinteiro, seis
escravos dos quais dois eram próprios e os outros quatro alugados.
425
A difundida visão de imperfeição ou menor qualidade das obras produzidas por
escravos agia como argumento para qualificar as fábricas que dispunham de maior
número de trabalhadores brancos. Este foi o caso de um esclarecimento feito por
Carlos Felipe, que “com oficina de chapeos de diversas qualidades [requer] que se lhe
conceda Provisão de Fabrica nacional para gozar das imunidades e favores que a Lei
concede aos assim authorizados”. O parecer de Joaquim Gonçalves Ledo afirmava que
a oficina do suplicante apresentava a mesma qualidade e capacidade que as demais
oficinas de chapéus instaladas na corte, não apresentando nenhum melhoramento em
relação às outras estabelecidas na corte, afirmando ainda que a maior parte de seus
operários eram africanos e que considerava injusto que lhe fosse concedida tal
provisão. Em outro ofício, no mesmo fundo, Carlos Felippe esclarecia e retificava o
parecer de Gonçalves Ledo, afirmando que “o número dos operários empregados no
estabelecimento do suppe. subindo a vinte e oito unicamente dez são africanos
enquanto que as outras fabricas, relativamente possuem maior número de trabalhadores
desta clase”.
426
Ainda em outro ofício, no qual se concedia a matricula para que Carlos
424
Caixa 425. Junta de Comércio, agricultura, fábricas e navegação. AN, 18 de setembro de 1846.
425
Caixa 425. Junta de Comércio, agricultura, fábricas e navegação. AN, 29 de maio de 1849.
426
Caixa 425, pacote I. Junta de Comércio, agricultura, fábricas e navegação. AN, 30 de novembro de
1840.
212
Felippe assim gozasse do indulto concedido aos fabricantes, esclarecia-se que a fábrica
tinha trinta e seis oficiais e aprendizes. Nota-se que neste ofício ele ressaltava a
presença dos oficiais e aprendizes, não especificando a presença de escravos, que
parece ter sido um elemento levantado por Gonçalves Ledo para reforçar o argumento
contrário à concessão do privilégio.
427
Afirmando produzir entre trinta e quarenta mil chapeos por ano, Joze de
Carvalho Pinto, com “Fabrica Nacional de chapeos de Pelo de Seda, castor e lebre”,
pedia isenção dos direitos de matéria-prima consumida em sua fábrica. Afirmava
empregar trinta operários, entre oficiais e aprendizes.
428
Em outro documento,
reiterava-se que a dita fábrica empregava trinta e quatro pessoas, entre homens e
mulheres, nacionais e estrangeiros, e alguns escravos, “além de outras muitas pessoas
que trabalhão fora das officinas em suas casas para a mesma Fabrica, em objetos, que
admitem um trabalho izolado”.
429
A qualificação dos oficiais brancos e a preferência pelo emprego de
trabalhadores livres em suas fileiras tornavam o trabalho dos artesãos nas fábricas
atividade preferencialmente destinada aos livres e brancos. Isso pode ser percebido
pelas anteriores descrições a respeito dos trabalhadores das fábricas, bem como pelo
mapa apresentado por Braga e Rocha, com estabelecimento que fabricava mais de
quarenta e três mil chapéus, em 1848:
Fábrica de Chapeos cita na Rua de S. Pedro 54. Mappa dos Officiaes e seos
Trabalhos Demonstrado mensalmente como abaixo
427
Caixa 425, pacote I. Junta de Comércio, agricultura, fábricas e navegação. AN, 04 de outubro de
1840.
428
Caixa 425, pacote I. Junta de Comércio, agricultura, fábricas e navegação. AN, 30 de outubro de
1840.
429
Caixa 425, pacote I. Junta de Comércio, agricultura, fábricas e navegação. AN, 11 de abril de 1842.
213
Ano e
mês
Officiaes
brancos
Officiaes
escravos
Chapeus de
Castor
Chapeus de
Lebre
Chapeus de
Seda Total
Jan/1846
24 4 522 1235 1425 3533
fevereiro
34 5 350 1514 1102 3182
março
34 7 749 1195 872 2966
abril
35 9 666 1528 1332 2816
maio
39 9 611 1385 1588 3526
junho
40 9 705 2079 1251 3584
julho
38 11 852 1726 1183 4035
agosto
39 11 912 1726 1728 3761
setembro
36 11 839 2278 1039 4366
outubro
38 12 849 2081 1258 4156
novembro
36 12 895 1762 1055 4188
dezembro
38 12 1179 1397 957 3712
9:129 19:906 14:790 43:825
Ano e
mês
Officiaes
brancos
Officiaes
escravos
Chapeus de
Castor
Chapeus de
Lebre
Chapeus de
Seda
Total
Jan/1847
24 4 522 1235 1425 3533
fevereiro
34 5 350 1514 1102 3182
março
34 7 749 1195 872 2966
abril
35 9 666 1528 1332 2816
maio
39 9 611 1385 1588 3526
junho
40 9 705 2079 1251 3584
julho
38 11 852 1726 1183 4035
agosto
39 11 912 1726 1728 3761
setembro
36 11 839 2278 1039 4366
outubro
38 12 849 2081 1258 4156
novembro
36 12 895 1762 1055 4188
dezembro
38 12 1179 1397 957 3712
Fonte: Caixa 425, pacote I. Junta de Comércio, agricultura, fábricas e navegação. Arquivo Nacional, 15
de fevereiro de 1848.
Salta aos olhos a diferença no número de oficiais brancos em relação aos
escravos, chamando a atenção ainda o fato de a descrição ser relativa à cor e não à
condição social, ou seja, a referência não foi feita em relação à “oficiais livres e
214
oficiais escravos”, mas a oficiais brancos ou escravos.
430
Embora o emprego da mão
de obra branca livre tenha sido maior do que a utilização dos cativos ao longo dos
dois anos, como está demonstrado no mapa, é importante verificar que a variação do
número de escravos cresceu em uma proporção muito maior do que a variação do
número de trabalhadores brancos.
O emprego de larga mão de obra garantia aos fabricantes a certeza da concessão
de privilégios e isenções, motivo pelo qual eles descreviam minuciosamente nessas
petições feitas à Junta de Comércio a extensão dos trabalhadores que empregavam.
Assim, dois fabricantes estrangeiros, um francês e o outro português, havendo
estabelecido uma fábrica de chapéus na rua do sabão, também pediam privilégios,
dizendo que empregavam nela quarenta oficiais, sendo vinte e três brancos, cinco
“livres de cor” e doze escravos.
431
Também a fábrica de Antonio Joze Bernardes,
inspecionada por Jose Antonio Lisboa, que declarava ter para a sua produção de
chapéus o número de 20 oficiais, sendo quatorze brancos e 6 escravos, fabricando
cerca de vinte e um mil chapéus anualmente;
432
e a de Jose Antonio Guimarães, que
empregava trinta oficiais, a serem dezessete livres e os demais, escravos.
433
As produções artesanais caseiras, extremamente difundidas na cidade,
continuaram sendo largamente utilizadas, embora muitas vezes precisassem do
consentimento do governo para instalar-se e funcionarem dentro das próprias casas.
430
No estudo de Gladys Sabina Ribeiro, sobre os últimos anos do Primeiro Reinado, a autora mostrou que
na primeira metade do século XIX havia um mercado de trabalho em formação na Corte, que se
distinguia de um mercado tipicamente capitalista, uma vez que convivia com a escravidão e apresentava
suas especificidades. Esse “mercado de trabalho” estava marcado por forte presença de imigrantes
portugueses, e a convivência deles com os cativos e libertos não foi pacífica. Segundo a autora, as
disputas entre esses diferentes segmentos pobres da sociedade apresentavam-se como uma luta por
maior inserção nesse mesmo mercado, expressando as diferentes noções de liberdade almejadas por
eles. Ver: RIBEIRO, Gladys Sabina. A liberdade em construção: identidade nacional e conflitos
antilusitanos no Primeiro Reinado. Rio de Janeiro, Relume Dumará: FAPERJ, 2002.
431
Caixa 425, pacote I. Junta de Comércio, agricultura, fábricas e navegação. AN, 02 de agosto de 1848.
432
Caixa 425, pacote I. Junta de Comércio, agricultura, fábricas e navegação. AN, 11 de março de 1848.
433
Caixa 425, pacote I. Junta de Comércio, agricultura, fábricas e navegação. AN, 29 de janeiro de
1848.
215
Mesmo para o caso de pequenas produções caseiras voltadas para a subsistência ou
consumo da própria família, exigia-se a concessão de licenças para a elaboração do
material. Foi o caso de Laurianna Roza de Jesus, que vendo terem sido abolidas as
fábricas de sabão na cidade, ainda em 1831, e tendo ela três “pretas no rio a lavarem
roupa para sua subsistência e de sua pobre família”, costumava mensalmente produzir
em casa cerca de 20 libras de sabão para a lavagem da roupa. Assim, ela solicitava
licença para continuar fazendo em sua própria casa uma pequena quantidade de
sabão, “para poder viver com sua família visto o estado, em que se achão os gêneros
da primeira necessidade, e alugueis de casas”.
434
Tendo o fiscal da Freguesia do
Sacramento averiguado se a sua produção incomodava a vizinhança, e atestando que
não, foi concedida a ela a requerida licença.
435
O fim do controle das corporações sobre os ofícios tornou também recorrente os
pedidos de atenção do Senado da Câmara em relação aos artesãos sem trabalho, que
solicitavam providências do governo em relação à sua condição de penúria. Assim,
Thomé Matheos, que vivia com o ofício de pedreiro e tendo se empregado durante
anos em “serviços para a Nação” exercendo a mestrança de várias obras importantes,
pedia para que fosse atendido no serviço de alguma repartição de obras onde pudesse
exercer sua função de mestre, por precisar sustentar sua família.
436
É curioso perceber também que aos poucos as oficinas passavam a representar o
que havia de ultrapassado, antigo, impondo-se um novo modelo de produção baseado
em unidades maiores, mas que também contavam com outra estrutura de trabalho. O
diferencial fundamental, contudo, dava-se pela ausência de controle sobre a produção
434
43-2-91. Fábricas. AGCRJ, 02 de junho de 1831.
435
43-2-91. Fábricas. AGCRJ, 01 de agosto de 1831.
436
(2099) 46-4-44. Classes de ofício: Pedreiros. AGCRJ, 14 de julho de 1831, s/n. Descrição mais
detalhada das obras que realizou, encontra-se no mesmo livro, fl. 29. Em nome do mesmo mestre foi
enviado um certificado ao Senado atestando a qualidade do seu trabalho em várias obras, em um ofício
enviado por Joaquim Norberto Xavier de Brito, Brigadeiro comandante do Imperial Corpo de
Engenheiros, diretor do Arquivo Militar, Inspetor Geral das obras das fortalezas e da Imperial
Academia Militar.: ver no mesmo livro, fl. 31.
216
e circulação das obras, antes exercidos pelas corporações, liberando também a mão-
de-obra dos artífices que deixam de ter um compromisso restrito a um mestre, ligado
permanentemente a uma oficina. Isso possibilitou o deslocamento dos trabalhadores
para o emprego em funções diferentes, conforme os seus interesses, embora ele fosse
restrito em uma sociedade com baixo poder de consumo e um mercado consumidor e
de produção manufatureira restrita.
Se os Negociantes e suas formas de organização começavam a atuar como
representatividade política dos mais variados setores urbanos, representando os seus
interesses, por outro lado, novas formas de organização começaram a ganhar corpo a
partir da independência, substituindo na esfera política e sócio-cultural os elos
estabelecidos pelas bandeiras, ao mesmo tempo criando mecanismos de mutualidade,
assegurando a previdência e assistência aos associados sem que, contudo, defendesse
privilégios. Assim se formava a partir da Independência uma nova forma de
mutualismo no Brasil, através das associações e sociedades de auxílio mútuo e de
beneficência.
5.4. Outras formas de mutualismo
É importante apontarmos que após a outorga da Carta Magna a década de 1820
aparece como o momento de consolidação em torno do processo de Independência do
Brasil,
437
tanto na afirmação perante as demais nações quanto nas disputas internas
437
NOVAIS, Fernando A. e MOTA, Carlos Guilherme. A Independência Política do Brasil. 2ª ed. São
Paulo: HUCITEC, 1996.
Sobre as discussões e embates políticos entre os deputados “brasileiros” nas Cortes, representando os
diferentes interesses que levaram à ruptura, em 1822, ver: BERBEL, Márcia Regina. A Nação como
Artefato: deputados do Brasil nas Cortes Portuguesas, 1821-1822. São Paulo: HUCITEC/ FAPESP,
1999. Sobre os rituais simbólicos e o estabelecimento de um pacto em torno da figura do Imperador
com a formação de um “corpo político autônomo”, ver: SOUZA, Iara Lis Carvalho. tria Coroada: o
Brasil como corpo político autônomo, 1780-1831. São Paulo: Unesp, 1999. Sobre a cultura política que
se formava no período da Independência, a expressiva influência religiosa e as bases fundadas no
217
com relação às províncias que não aprovaram a ruptura. No entanto, a afirmação de
um primeiro reinado com características extremamente autoritárias na esfera política –
demonstradas mormente pela dissolução da Assembléia Constituinte de 1823 e
posterior outorga da Constituição, em 1824, e pela instituição do Poder Moderador
provocaram insatisfações que levaram à ruptura da base de apoio dos grupos ligados à
D. Pedro I. Além disso, a dissolução da Constituinte de 1823 representou um golpe
aos interesses dos grandes negociantes, uma vez que
(...) previa indissolubilidade da Câmara dos Deputados e proibia a
acumulação de coroas, além de prever, com base na organização do
Império, a Comarca e não a Província, colocando o poder diretamente
nas mãos dos proprietários regionais. Os Negociantes, além deste
último aspecto, não podiam gostar da ‘liberdade comercial’ prevista
no projeto, que lhes retirava a proteção do estado e o sistema eleitoral,
não por ser censitário, mas porque privilegiava os proprietários de
terras, praticamente proibindo-lhes o acesso aos principais cargos
eletivos.
438
A Carta outorgada alterava aspectos importantes do texto constitucional de 1823,
não concluído. Representava os interesses dos Negociantes ligados a D. Pedro, além
dos interesses do próprio monarca expressos no texto, que respaldavam o seu
ilimitado exercício político através do poder moderador. Afirmou-se a preeminência
dos negociantes no processo político através do sistema eleitoral, que criava regras
que favoreciam os interesses desse setor, como, por exemplo, a possibilidade de que
Antigo Regime: NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e constitucionais: a cultura
política da Independência (1820-1822). Rio de Janeiro: Revan: FAPERJ, 2003.
438
Piñeiro, Théo L. Op. Cit. (2002), p. 88.
218
os guarda-livros e os caixeiros se tornassem eleitores, “o que aumentava a capacidade
dos Negociantes de influir nas escolhas”.
439
No entanto, não demoraria a que a cisão no interior do próprio núcleo dominante
se fizesse, revelando seus diferentes interesses, uma vez que a ratificação dos tratados
comerciais com a Inglaterra - como contrapartida ao reconhecimento da
Independência, e que foram ainda ampliados em 1827 -, e a assinatura da convenção
que suprimia o tráfico negreiro, em 1826, representaram o crescente afastamento dos
negociantes da esfera governamental ligada ao monarca, sentindo-se prejudicados e
traídos em seus intentos. Nesse processo de afastamento, outro importante setor
econômico ganhava poder na esfera política e aproximava-se do governo: os
proprietários de terras e escravos.
440
Essa cisão marcou o processo de rompimento de setores importantes ligados a D.
Pedro I, marcando o processo que levou à Abdicação, em 1831. Estudos acadêmicos
recentes têm apontado a forte instabilidade política que marcou os últimos anos da
década de 1820 e que se expressou com fervor nas ruas, crescendo e ganhando apoio
de mais amplos setores, conforme aumentava o desgaste do governo do Primeiro
Reinado.
441
Especialmente após a Abdicação, variados conflitos tomaram conta do
Império, mormente na capital, revelando as variadas insatisfações que tomavam conta
da sociedade e que se expressavam também nos projetos das diferentes facções
políticas,
442
expressando-se nos primeiros anos da Regência nas disputas pelo poder
439
Ibidem, p. 91.
440
Ibidem, p. 96.
441
Abordagem sobre os conflitos no final do primeiro Reinado e o processo de Abdicação ver: Ribeiro,
Gladys Sabina. Op. Cit., 2002; IDEM. “Pés de chumbo” e “Garrafeiros”: conflitos e tensões nas ruas no
Rio de Janeiro no Primeiro Reinado (1822-1831). In: Política e Cultura Revista Brasileira de
História. São Paulo: ANPUH/Marco Zero, vol. 12, n. 23/24, set.1991-ago./1992.
442
Sobre os conflitos políticos e os vários projetos defendidos pelas facções que disputavam o poder no
período regencial, ver os estudos de: BASILE, Marcello Otávio Neri de Campos. Anarquistas,
rusguentos e demagogos: os liberais exaltados e a formação da esfera pública na Corte Imperial (1829-
1834). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ /IFCS/PPGHIS, 2000; IDEM. O Império em
Construção: Projetos de Brasil e ação política na Corte Regencial. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro:
219
entre os liberais moderados, os liberais exaltados e os caramurus e na defesa que eles
apresentavam de diferentes projetos para o país.
A vitória do projeto representado pelos liberais moderados representou a
exclusão de outras possibilidades de se pensar os rumos da política naquele momento,
uma vez que a repressão aos grupos políticos contrários aos moderados também agia
com freqüência. No entanto, como já foi apontado por Marcello Basile,
443
esse
contexto também foi positivo para o ressurgimento de manifestações e instituições de
natureza pública, com forte participação de variados setores da sociedade. Assim, ele
ressaltou que após a Independência, “verifica-se um processo de retraimento da esfera
pública na Corte”, em decorrência do forte autoritarismo que teria marcado o governo
de D. Pedro I, que reprimia “o livre desenvolvimento das idéias e as manifestações
públicas de apoio e protesto”, tendo assim praticamente desaparecido os jornais, as
sociedades secretas e as associações livres. A reabertura do Congresso e o
ressurgimento da imprensa mudavam esse panorama a partir de 1826, sem que tenha,
contudo, impedido a ruptura da base de apoio ao governo, em 1831. Segundo o autor,
a partir de 1826, começava-se a notar “sinais de revitalização da esfera pública na
Corte”.
444
Foi exatamente neste contexto que a década de 1830 testemunhou um
ressurgimento das associações, destacando-se a formação de variadas associações de
auxílio mútuo com fins e atividades diversas.
445
É preciso que se delimite, no entanto, em que sentido o fim das corporações de
ofícios possibilitou a abertura de espaços para o surgimento dessas novas formas de
UFRJ /IFCS/ PPGHIS, 2004. Estudos anteriores sobre o tema, com uma abordagem historiográfica
diferenciada foram os clássicos: CASTRO, Paulo Pereira de. “A experiência republicana, 1831-1840”.
In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difusão
européia do Livro, 1971, tomo II, v. 2, pp. 9-6; SOUSA, Otávio Tarquínio de. História dos fundadores
do Império do Brasil. 10vs. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957.
443
Basile, Marcello. Op. Cit.( 2000), p. 301-302.
444
Idem.
445
Idem.
Sobre o tema ver também: BASILE, Marcello. O. Ezequiel Corrêa dos Santos: um jacobino na Corte
Imperial. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.
220
associativismo, que para além das diferentes características que apresentavam,
carregavam em seus propósitos intenções de proteção e auxílio mútuo. Esse foi o
caso da fundação da Imperial Sociedade Auxiliadora das Artes Mechanicas, Libeares
e Beneficente,
446
que pretendia reunir os artistas residentes no Rio de Janeiro, tendo
aprendido ou que exercesse na época alguma arte mecânica ou liberal. A finalidade
apontada em seus estatutos estava ligada à :
§1°. melhorar as artes quanto em si couber
§ 2°. Socorrer seus membros e suas famílias.
Permanecia a prática do pagamento de jóia quando o candidato era aceito na
sociedade, e somente após este pagamento ele recebia o seu diploma. Mediante um
apagamento que variava o valor de acordo com a idade, todos os sócios passavam a ter
o direito de receber ajuda e “a ser socorrido pelo Monte-Pio da sociedade”.
Importante notar, que a sociedade também exercia a função de seguradora, no caso de
alguma eventualidade ocorrer com o estabelecimento, bem como ficava responsável
por arcar com as despesas de enterro do sócio que falecesse indigente. Cobria
também as despesas do sócio que ficasse doente e daquele que falecesse, socorrendo
ainda a família deste, recebendo o direito à beneficência a viúva, os filhos, os pais e
os irmãos. Além disso, a Sociedade assegura também o socorro dos sócios efetivos
que fossem presos, buscando sua soltura ou modificação da pena, “lançando mão de
todos os meios para o seu allivio”.
Os fundos da Sociedade se formavam mediante o pagamento das jóias e da
mensalidade, que eram colocados em “giro para a compra de apólices da dívida
446
V- 253, 2, 8, n. 33. Biblioteca Nacional Seção de obras Gerais. Estatutos da Imperial Sociedade
Auxiliadora das Artes Mechanica, Liberaes e Beneficente da qual é Augusto protector Sua Magestade o
Imperador O Senhor D. Pedro II. Promovida nesta Corte do Rio de Janeiro por Joaquim JoPinto,
instalada em 25 de março de 1835.
221
fundada, ou de quaesquer emprezas por companhias, que o conselho julgue
sufficientemente seguras”.
Alguns aspectos concorriam para diferenciar profundamente esse tipo de
sociedade, especialmente pela liberdade estabelecida entre os membros de se
desligarem da sociedade casos não se dedicassem mais às artes. Assim, estabelecia
que “todo o sócio pode demitir-se dos empregos da Sociedade, participando ao
conselheiro os motivos que a isso lhe deram lugar e fazendo entrega de tudo quanto
tiver em seu poder pertencente à sociedade”. Sugeria-se, portanto, que a sociedade
fosse responsável pela distribuição de atividades ligadas a essas artes pela cidade,
dando garantias em relação ao trabalho dos artífices.
O que podemos inferir é que as corporações de ofícios, em toda a dimensão
política, econômica e sócio-cultural que estabeleciam no meio urbano, foram
definitivamente extintas do Império com a proibição de sua atuação, em 1824. O seu
processo de decadência, no entanto, começara bem antes, tendo ocorrido
concomitantemente ao ascendente prestígio e poder político adquirido pelos
negociantes do Rio de Janeiro. Mas as sociedades de auxílio mútuo, que proliferaram
a partir da década de 1830, teriam ainda muito a dizer sobre a história da prática
associativista inaugurada pelas antigas corporações de ofícios que, embora apagadas
em suas características originais, deixaram sua influência nas práticas e objetivos das
sociedades mutualistas com fins profissionais inauguradas no segundo quartel do
século XIX.
222
Conclusão
As limitações ao comércio artesanal colonial, criadas pelos Tratados de 1808 e
de 1810 após a chegada da família real, não se constituíram em fatores únicos para o
declínio das corporações de ofícios no Brasil, mas indubitavelmente, contribuíram para
acelerar a sua extinção. A facilidade de entrada dos produtos estrangeiros em uma
economia com frágeis características de consumo, dado que grande parte era escrava ou
livre pobre, representou realmente um duro golpe às corporações de ofícios naquele
período. Não obstante, os debates no campo ideológico que condenavam a prática
secular de privilégios e monopolização por parte das corporações começaram a ganhar
terreno na colônia, à medida que começavam estar em oposição aos interesses de outros
setores sociais.
Se para muitos autores, essa proibição na constituição teria representado a
faceta liberal de D. Pedro I, na tentativa de aproximá-la das cartas mais avançadas
promulgadas na Europa. As idéias liberais apresentaram-se muito bem definidas no
contexto brasileiro, adequadas às condições específicas da sociedade brasileira naquele
momento, ajustando-se ao modelo de sociedade escravista em pleno século XIX.
447
No
entanto, constatamos que a extinção das corporações de ofícios não representou
exatamente uma faceta liberal da primeira Constituição brasileira, mas sintetizou o
estabelecimento de um novo conjunto de acordos e interesses dos grupos econômicos
dominantes, na consolidação dos seus interesses junto ao governo.
447
A contradição ou inadequação entre o liberalismo e a escravidão no Brasil foi largamente debatida pela
historiografia das décadas de 1970/80: SCHARTZ, Roberto. “As idéias fora do lugar”. In: Ao vencedor
as batatas: formas literárias e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas
Cidades, 1981 e FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho.”As idéias estão fora do lugar?” In: Cadernos de
História Debates. São Paulo: Editora Brasiliense, 1976. Sobre esta discussão ver: COSTA, Emília
Viotti da. “Liberalismo: teoria e prática”. In: Da Monarquia à República: momentos decisivos. ed.
São Paulo: Editora da Unesp, 1999.
223
A eliminação das corporações de ofícios do Brasil, portanto, se constituiu num
marco da consolidação dos próprios grupos dominantes ligados aos interesses
mercantis, mais próximos do regente naquele momento. Portanto, sua extinção na
Constituição expressou os interesses dos setores ligados ao Regente, que se opunham
ideológica e politicamente às ações dessas entidades. Nesse sentido, toda a influência
do pensamento liberal que informou essa geração da Independência, agiu no sentido de
convencer sobre os males advindos da permanência de monopólios comerciais e do
trabalho na esfera econômica.
Verificamos, portanto, que a decadência das corporações de ofícios se deu
lentamente desde a abertura dos portos no Brasil, pressionada em seus interesses
econômicos pelos Tratados assinados com a Inglaterra e que tornavam livre a venda de
objetos nas ruas, por nacionais e estrangeiros. À essa iniciativa somaram-se ainda o
poder político e econômico dos homens de negócios, que se impunham com força na
Praça mercantil do Rio de Janeiro, desde o século XVIII, e que agiram decisivamente
para eliminar importantes aspectos da atuação das irmandades dos ofícios no Rio de
Janeiro. Quanto maior se tornou a atuação desses homens de negócios nos setores de
crédito e de seguros, maior se tornava o interesse em eliminar a influência das
irmandades no meio urbano, e a sua ingerência econômica junto aos oficiais mecânicos.
Por outros lado, a ascensão política desse grupo concorreu para o
desaparecimento gradual da importância política das corporações de ofícios, através da
criação de corpos representativos dos homens de negócios, que acabariam por se fazer
porta vozes dos demais setores profissionais da cidade. Conforme se verificou a
consolidação de interesses e de organização política em torno dos seus interesses,
perdiam força polítca as organizações dos mestres artesãos. Após a extinção das
corporações, em 1824, a extinção do Senado da Câmara e da figura do Juiz do Povo, em
224
1828, ratificaram definitivamente esse processo de atuação política dos mestres
artesãos.
A partir da década seguinte essa atuação ganharia outras formas. Por um lado
com a representação dos corpos de comércio ligados aos negociantes; por outro, através
de sociedades de auxílio mútuo, independentes, que adquiriram livre poder de
organização no período regencial, desde que autorizadas pelo governo. Portanto, a
proliferação das associações e sociedades que ocorreu após a década de 1830,
correspondeu também à ausência das práticas de ajuda mútua e de associação em torno
de interesses diversos, que as irmandades embandeiradas representaram até o fim do
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