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OS SONHADORES DE UTOPIA NO CINEMA DE
BERNARDO BERTOLUCCI
LIGIA CLARET LORENCINI WILD
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UNIVERSIDADE PAULISTA –UNIP
PROGRAMA DE PÓS - GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
OS SONHADORES DE UTOPIA NO CINEMA DE BERNARDO
BERTOLUCCI
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Comunicação da Universidade
Paulista –UNIP, para obtenção do título de
mestre.
Orrientador: Prof.Dr. Juan Guillermo
Droguett
LIGIA CLARET LORENCINI WILD
São Paulo, dezembro de 2008
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UNIVERSIDADE PAULISTA –UNIP
PROGRAMA DE PÓS - GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
OS SONHADORES DE UTOPIA NO CINEMA DE BERNARDO
BERTOLUCCI
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Comunicação da Universidade
Paulista –UNIP, para obtenção do título de
mestre.
LIGIA CLARET LORENCINI WILD
São Paulo, dezembro de 2008
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho:
Ao meu marido Estéfano
Aos meus filhos: Gabriela, Beatriz e Marcelo
A minha mãe.
A todos que cultivam a esperança de construir um mundo
melhor
.
AGRADECIMENTOS
Juan Droguett: professor, orientador e amigo.
Professoras Bárbara Heller e Lúcia Bruno, que participaram da banca de
qualificação e defesa.
Meu filho: Marcelo Stefan Wild
Aos amigos que de muitas formas me auxiliaram:
Drª Margareth Brandini Park
Dr. Álvaro Lorencini
Professoressa Nicoletta Palla
Bibliotecária Rosaelena Scarpelini
Sônia Vetori
Marcela Moro
Paulo Ricardo Gilioli
A diretoria do Istituto San Paolo e em especial a Fátima Maciel Bindes.
RESUMO
“Os sonhadores de utopia no cinema de Bernardo Bertolucci” é o título
desta Dissertação que tem como principal objetivo demonstrar como alguns
motivos recorrentes ,entre eles os sonhos e as utopias, impulsionaram este
cineasta a criar um estilo no qual se fusionam de modo inusitado, em um ato de
expressão e sensibilidade , a política e a poesia . Problematiza sobre o suporte no
qual se inscrevem os sonhos e as utopias: o cinema de Bertolucci, o lugar por
excelência onde as ideologias travam o embate entre a idealização estética da
produção e os efeitos objetivos de sua ação social. Para isso, aplicam-se as
categorias da consciência antecipadora, a transgressão e aquilo que chamamos
de “estética da utopia” à mais recente obra Os Sonhadores (2003), na qual o
autor explora o recurso da metalinguagem para, através do meio, explorar os
valores da tradição cinematográfica ancorados no fato histórico da Primavera de
68, que marcou definitivamente o rumo de uma experiência estética, cujo fim é a
representação do tempo passado, presente e futuro do ser humano em sociedade.
As fontes bibliográficas deste trabalho são baseadas na própria obra de
Bernardo Bertolucci e nos críticos que se curvam sobre sua linguagem, assim
como nas vertentes cinematográficas das quais recebeu influência.Também nas
obras de Karl Mannheim e Ernest Bloch encontram-se novas interpretações para
o conceito de utopia amparadas na “decadência das utopias modernas”. Desta
forma, a Dissertação estrutura-se no eixo das confluências entre utopia e cinema,
nos motivos filmográficos que o cineasta utiliza na sua produção, na análise de
uma tríade de filmes e nos efeitos receptivos que até hoje fazem do cinema de
Bertolucci um exemplo de Revolução Estética em cujo cerne situam-se: a
incerteza do econômico, do político e do social como parte da condição humana.
Palavras-chave: cinema – utopia – Bernardo Bertolucci.
RIASSUNTO
“I sognatori di utopia nel cinema di Bernardo Bertolucci” é il titolo di
questa Dissertazione, che ha come obiettivo principale il dimostrare come alcuni
motivi ricorrenti, fra questi i sogni e le utopie, hanno spinto il cineasta a creare uno
stile nel quale si fondono in modo inusitato, in un atto di espressione e sensibilitá,
la politica e la poesia. Problematizza sulla base su cui si iscrivono i sogni e le
utopie: il cinema di Bertolucci, il luogo per eccellenza dove le ideologie bloccano lo
scontro fra l’idealizzazione estetica della produzione e gli effetti oggettivi della sua
azione sociale. Per questo si applicano le categorie della coscienza anticipatrice,
la trasgressione e quello che chiamiamo “l’estetica dell’utopia” alla piú recente
opera I Sognatori (2003), nella quale l’autore sfrutta il mezzo del metalinguaggio
per, attraverso il mezzo, sfruttare i valori della tradizione cinematografica, ancorati
nel fatto storico della Primavera del 68, che marcó definitivamente la meta di
un’esperienza estetica, il cui fine é la rappresentazione del tempo passato,
presente e futuro dell’essere umano nella societá.
Le fonti bibliografiche di questo lavoro sono basate sulla stessa opera di
Bernardo Bertolucci e sui critici che si piegano sul suo linguaggio, come pure le
inclinazioni cinematografiche dalle quali é stato influenzato. Anche nell’opera di
Karl Mannheim e Ernest Bloch si incontrano nuove interpretazioni per il concetto
di utopia sostenute dalla “decadenza delle utopie moderne”. In questo modo, la
Dissertazione si struttura sull’asse delle confluenze fra utopia e cinema, sui motivi
cinematografici che il cineasta utilizza nella sua produzione, sull’analisi di una
triade di film e sugli effetti ricettivi che fino ad oggi fanno del cinema di Bertolucci
un esempio di Rivoluzione Estetica al cui centro si trovano: l’incertezza
economica, politica e sociale come parte della condizione umana.
Parole chiave: cinema – utopia – Bernardo Bertolucci.
WILD, Ligia Claret Lorencini
Sonhadores de utopia no cinema de Bernardo Bertolucci/ Ligia Claret Lorencini
Wild. São Paulo(SP): [s.n.], 2008.
238 p. il.
Orientador: Dr Juan Guillermo Droguett. Dissertação (Mestrado) - Universidade
Paulista – Instituto de Ciências Humanas da Universidade Paulista
1. Cinema 2. Utopias 3. Bertolucci, Bernardo 4. Droguett, Juan Guillermo
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 02
Capítulo I: O CINEMA COMO LUGAR DAS UTOPIAS 06
1.1.O cinema na modernidade 11
1.2.Utopias e utopia 23
1.3.Os motivos filmográficos de Bernardo Bertolucci 36
Capítulo II: OS SONHADORES DE UTOPIAS NA FILMOGRAFIA DE
BERTOLUCCI 61
2.1.“Antes da Revolução” 71
2.2.“Beleza Roubada” 93
2.3.“Os Sonhadores” 108
Capítulo III: VIGÊNCIA DAS UTOPIAS NO CINEMA DE BERNARDO
BERTOLUCCI 145
3.1.Primavera de 68: “a imaginação no poder” 150
3.2.Estética da Utopia e o cinema de Bernardo Bertolucci 169
3.3.Os filmes no filme: a metalinguagem em “Os Sonhadores” 183
CONSIDERAÇÕES FINAIS 205
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 211
ANEXO I 217
ANEXO II 228
INTRODUÇÃO
“Os poderosos tentam nos fazer crer que as ideologias morreram, mas não é
verdade. E se elas morreram precisamos ressuscitá-las. Não há utopia sem ideologia
e se não existe utopia não há esperança. Se não há esperança não há futuro. Como
conviver num mundo sem futuro?”
Bernardo Bertolucci
Sonhadores de utopias no cinema de Bernardo Bertolucci,é o titulo
desta dissertação que tem por principal objetivo demonstrar como o cinema
deste conhecido produtor italiano mantém vigente o conceito de utopia,
relacionando-o com a estética cinematográfica contemporânea.
O objeto de estudo configura-se na estreita relação do cinema com os seus
modos de representar a realidade social, política e econômica no esteio da
evolução ou revolução do pensamento, da subjetividade e do comportamento que
imperam na modernidade.
Questionando sobre a aparente falta de utopias nos tempos modernos
surgiu a hipótese de que o cinema poderia ser o meio de comunicação mais
apropriado para a produção e divulgação dos sonhos e utopias. A frase, em
epígrafe, do diretor Bernardo Bertolucci corroborou nosso pensamento e chamou
a atenção para seu filme Os Sonhadores o qual apresenta um vestígio do passado,
“um excedente utópico”, que traz os ideais dos jovens da Primavera de 68, jovens
portadores das esperanças em relação a um futuro possivelmente melhor e que,
naquele momento, atuaram como protagonistas nos cenários de mudanças
percebidas pela consciência antecipadora, manifestadas na transgressão e nas
novas formas estéticas requeridas pelas utopias.
Os procedimentos metodológicos adotados partem de um pressuposto
teórico alinhavado na história do pensamento que encontra no cinema o espaço
propício para representar o imaginário, o “ainda-não” e na sua linguagem
simbólica possibilita re-criar as vivências individuais e sociais.
Para atender a esses pressupostos, buscamos nas teorias de Ernst Bloch e
Karl Mannheim, as bases das categorias com as quais pretendemos analisar e
interpretar a representação estética das utopias no cinema de Bernardo
Bertolucci. As categorias inferenciais –consciência antecipadora, transgressão e estética da
utopia
-, ancoram-se na idéia de que o filme , como suporte, fornece, do ponto de
vista dedutivo, os elementos suficientes para a construção lógica de uma estética
que parte da montagem de Os Sonhadores, passa para o contexto sócio- cultural e
se abre para horizontes de sentido na função metalingüística, uma vez que o
cinema de Bernardo Bertolucci remete às teorias e a história do cinema,
oferecendo uma gama de possibilidades ao espectador para a identificação e
interpretação seja, no plano do enquadramento , nos diálogos ou imagens em
movimento que facilitam o fluxo da diegese do filme.
Essas categorias se inter-relacionarão com as categorias referentes aos
recursos de produção cinematográfica - voz em off, close-up e metalinguagem-, e com
os traços estilísticos de Bernardo Bertolucci - o realmente acontecido, o socialmente
pensado, o poeticamente imaginado
.
No primeiro capitulo deste trabalho O cinema como lugar das utopias”,
abordaremos a origem do cinema atrelando-a ao conceito de modernidade e de
utopia, como se prefiguram no cinema de Bernardo Bertolucci.
A imagem, que em movimento é a alma do cinema, não apenas representa
a realidade, mas é um produtor de realidade quando o espectador não só vê a
imagem, algo visível, mas vê também, o que está por trás da imagem. Portanto, a
imaginação, associada à função criadora e ligada aos processos culturais de um
tempo histórico transmitido pelas imagens cinematográficas, podem contribuir
para preservar a ordem vigente ou introduzir novas configurações dos códigos
sociais, configurações essas que ao transgredirem estarão realimentando a
imaginação.
No segundo capítulo, Os Sonhadores de Utopias na filmografia de
Bernardo Bertolucci, analisaremos os filmes Antes da Revolução (1964), Beleza
Roubada
(1996) e Os Sonhadores que têm em comum o protagonismo dos jovens
em 1968 .Interpretaremos o filme Os Sonhadores a partir das categorias inferenciais
acima enunciadas com a finalidade de vislumbrara a atualidade da imaginação
utópica no cinema de Bertolucci.
No terceiro capítulo, Vigência das utopias no cinema de Bernardo
Bertolucci, ressaltará o eixo central das narrativas dos filmes analisados - a
primavera de 68 - como o momento crucial da revolução estética na qual a
imaginação ocupa lugar do poder. Trataremos das estéticas de vanguarda que
fortemente influenciaram o cineasta assim como a importante contribuição deste
diretor para o cinema italiano. Enfim, salientaremos a metalinguagem, como um
recurso estilístico usado por este diretor para reivindicar as possibilidades do meio
a favor de fins humanos e sociais colocam o ser humano em conformidade com o
tempo e o espaço que lhe são “contemporâneos”.
Esta pesquisa está inserida no campo da comunicação pela vertente da
mídia cinematográfica, na área de concentração cultura midiática e na linha de
pesquisas que favorece o protagonismo social do espectador, quando este se
reconhece no passado histórico da tradição, na vivência de um presente incerto e
em um futuro que poderá “vir a ser” e que já é possível na ficção.
Neste sentido, o cinema de Bertolucci apresenta argumentos interessantes
para se constituir em um bom roteiro a ser explorado nesta Dissertação.
CAPÍTULO I
O cinema como lugar das utopias
“O ter lugar das coisas não tem lugar no mundo.
A utopia é a própria topicidade das coisa”
G. Agamben
O cinema como lugar das utopias situa-se nos tempos modernos. Justifica-
se o uso do plural para nos referirmos a esse período da história - modernidade -
marcado por mudanças profundas e radicais advindas das Revoluções Francesa,
Industrial e Tecnológica, as quais afetaram de maneira e forma desiguais o
mundo. Como fruto e conseqüência do desenvolvimento gerado por essas
revoluções nasce o cinema, que como indústria cultural, como arte, representa e
simboliza o imaginário sócio-cultural desse período
1
.
Imagem, imaginação e imaginário radicam do latim imago-ginis, significando,
a primeira, a representação de um objeto ou a reprodução mental de uma
sensação na ausência da causa que a produziu. Essa representação mental,
consciente ou não, é formada a partir de vivências, lembranças e percepções
passadas e passíveis de serem modificadas por novas experiências. Imaginário é,
1
Indústria Cultural é aquela cuja tecnologia permite a reprodução em série e a exploração para fins
comerciais dos bens culturais. A indústria cultural não apenas adapta seus produtos ao consumo das
massas, mas, em larga escala, determina o próprio consumo. Interessada nos homens apenas
enquanto consumidores ou empregados, a indústria cultural reduz a humanidade, em seu conjunto,
assim como cada um de seus elementos, às condições que representam seus interesses. A indústria
cultural traz em seu bojo todos os elementos característicos do mundo industrial moderno e nele
exerce um papel específico, qual seja o de portadora da ideologia dominante, a qual outorga sentido
a todo o sistema. Os pensadores, textos escolhidos (1980: vol.XVI).
portanto, o vocábulo fundamental que corresponde à imaginação como sua
função e produto. Composto de imagens mentais é definido a partir de muitas
óticas diferentes, dentre as quais escolhemos a apresentada por Durand (1997),
para quem o imaginário é o “conjunto das imagens e das relações de imagens
que constitui o capital pensado do homo sapiens”, o grande e fundamental
denominador em que se encaixam todos os procedimentos do pensamento
humano. É uma faculdade intelectual que possibilita a realização e representação
da ordem da realidade-social-psíquica, sempre mediada e transformada
simbolicamente em cristalizações do sentido, pela “veemência ontológica de uma
intenção semântica”.
A imaginação individual cria mundos impossíveis e fantásticos, mundos
oníricos que na modernidade podem ser recriados ou representados no
cinema.No imaginário social as sociedades esboçam suas identidades e
objetivos, plasmam visões de mundo, modelam condutas que se expressam por
utopias ou ideologias. Portanto, imaginar, assim como sonhar, é inerente a
condição humana e se produz na relação entre o sujeito e o meio sócio-cultural e
em uma dinâmica de produzir e ser produto de imagens.
A palavra imagem, como já vimos, significa a representação de um objeto
ou a reprodução mental de uma sensação na ausência da causa que a produziu.
Essa representação mental, consciente ou não, é formada a partir de vivências,
lembranças e percepções e é passível de modificação por novas experiências.
Bem, para melhor compreensão buscamos aporte nos estudos de RECHIA
(2005:3, 22)
Partindo da conceituação normativa de que imaginar é a
possibilidade de evocar ou produzir imagens independentemente da
presença do objeto ou do ser a que se refere, por meio das lembranças e
das intuições, submetidas às coordenadas de espaço-tempo, imaginar está
diretamente associado à função criadora, e está intrinsecamente ligado
aos processos culturais e a um tempo histórico determinado.
Ancorei-me nas concepções de Durand (1983, 1989 e1998),
para quem o imaginário é uma rede de imagens que, em relação umas
com as outras, vai dando sentidos ao mundo. Necessário assinalar que
tais imagens não se organizam de qualquer modo, mas com certa lógica,
com determinada estrutura.
Assinalamos que o diretor do filme, ao contar a história, tenta
transmitir por meio de imagens cinematográficas o imaginário, tenta
atingir as aspirações, os medos, as esperanças e a alteridade do
personagem. ...O imaginário social se expressa por ideologias e utopias, e
também por símbolos, alegorias, rituais e mitos. Tais elementos plasmam
visões de mundo e modelam condutas e estilos de vida, em movimentos
contínuos e descontínuos de preservação da ordem vigente ou introdução
de novas configurações dos códigos sociais. A imaginação social, além de
fator regulador e estabilizador, também é a faculdade que permite que os
modos de sociedade existentes não sejam considerados definitivos, os
únicos possíveis, e que possam ser concebidos outros modelos.”
2
Na presente dissertação, o capitulo - O cinema como lugar das utopias
- objetiva refletir sobre como o cinema, posicionado como uma das grandes
2
RECHIA, Tânia Maria. O imaginário da violência em minha vida em cor de rosa.Tese de
doutorado em Educação. 2005. UNICAMP, Campinas.
invenções da modernidade, também é um meio eficaz para representação da
realidade a partir dos efeitos de sentido que é capaz de produzir e como, em
seu caráter “prefigurativo”, isto é, de poder representar aquilo que ainda não
existe, mas que poderá existir, pode projetar, manifestar a um outro sujeito, o
receptor, a existência de um” possível” mundo melhor. Para melhor
compreensão de tal pensamento, nos reportaremos ao filme Os Sonhadores, de
Bernardo Bertolucci, destacando-o do conjunto de sua obra que, entretanto,
também nos permitirá, por meio dos temas recorrentes, identificar a
representação do imaginário utópico que tem um seguro recurso estético nas
imagens em movimento.
Inserido nesse capitulo, o item O cinema e a utopia na modernidade
abordará o nascimento do cinema e o contexto da época em que isso ocorre: a
modernidade. O panorama que vê o nascer e o desabrochar desse meio de
comunicação vê também a transformação de um ser humano que passa a
conviver com novas estruturas sociais e econômicas, com novas formas de
produção, com o desenvolvimento tecnológico, com a mudança da detenção de
riqueza do meio rural para o urbano. As transformações propiciadas pelas
revoluções ocorridas implicaram também em mudanças nos costumes e valores
humanos, e nas percepções de um sujeito que, acostumado à tranqüilidade que
marcava a sociedade anterior, se vê submetido a um mundo dominado pela
velocidade e bombardeado pelos incrementos tecnológicos, pelas impressões e
choques que configuram as cidades às quais aflui grande fluxo de pessoas.
E nesse tempo, nessa sociedade de sujeitos padronizados,
“massificados”, alguns preconizam o fim das utopias; mas, discordando dessa
colocação, no item Utopias e utopia nos reportamos aos pensadores
Mannheim e Bloch, querendo demonstrar que esse princípio - a utopia em
diferentes formas e diversas interpretações - é inerente ao ser humano e sua
presença nas sociedades históricas é uma constante desde os milenares
tempos bíblicos. Por isso, ainda que com alteração de perspectiva, a dimensão
utópica está vigente na contemporaneidade e pode ter no cinema de Bernardo
Bertolucci, com sua capacidade de representação do imaginário social e
individual, o seu tempo e o seu lugar.
Em Os motivos filmográficos de Bernardo Bertolucci tentaremos
resgatar, na trajetória de sua filmografia composta por vinte e dois filmes até
2004, representações de motivos ideológicos - geralmente ligados a um
intelectual engajado e aos conflitos dualísticos entre as concepções políticas de
direita e esquerda - e os motivos utópicos, que diferem dos ideológicos por
provocarem rupturas com a ordem social vigente. A identificação da dimensão
utópica, da busca de um mundo melhor, que ocorre de forma latente ou
manifesta, poderá ser encontrada na representação imagética dos jovens em
suas diversas relações: social, amorosa, subjetiva, assim como nas
transgressões simbolizadas na forma de incesto, de nudez e também na poética
e em alguns tipos de experimentação narrativa ou de linguagem proposta pelo
diretor. Esses motivos podem ser identificados como elos com a realidade
situada em um contexto histórico-espacial e com a representação de uma
realidade possível de vir a ser.
1. 1. O cinema e a utopia na modernidade.
“A arte nos confirma tacitamente que o nosso modo de percepção
está hoje apto a responder a novas tarefas e como, não obstante, o indivíduo
alimenta a tentação de recusar essas tarefas, a arte se entrega àquelas que são mais
difíceis e importantes, desde que possa mobilizar as massas. É o que ela faz agora,
graças ao cinema”
(BENJAMIN, 1983:26)
O cinema, como se sabe, é uma invenção nascida no contexto da
modernidade, entendida esta não apenas como um tempo cronológico, social,
mas também como um tempo subjetivo, como uma atitude do ser humano frente
ao progresso da ciência e da técnica, os quais, aliados, permitiram o
desenvolvimento da tecnologia a favor da existência do ser no mundo.
Lembremos que, a partir da Revolução Francesa, um novo processo
caracterizado por conflitos, por mudanças estruturais profundas no campo
ideológico e filosófico, político e social, jogou por terra os marcos da sociedade
medieval dando início à Idade Moderna. Essa época iniciou-se marcada por
tensões revolucionárias, trazendo como símbolo uma nova forma de produção -
a industrial - que tira o homem do campo, da propriedade agrícola e, de certa
forma, o desterritorializa, o leva para o local onde o trabalho, a produção, passa
a acontecer: a fábrica
3
. E a produção, em larga escala, forma um mercado que,
em maior ou menor intensidade, atinge todas as partes do mundo.
3
Desterritorializar: consiste, na vertente de Deleuze, na desconstrução da integralidade, na
desumanização já que territorializar é da ordem da inscrição do sentido, é a corporificação do
conhecimento.
“Uma geração que ainda usara o bonde puxado por cavalos para ir à
escola encontrou-se sob céu aberto numa paisagem em que nada continuava
como fora antes”. Usamos essa passagem de O Narrador (1980:57), de Walter
Benjamin, por acreditarmos que sintetiza, de forma metafórica, o abrupto
advento da modernidade, o encontro de uma geração no abandono das suas
tradições com um novo tempo, em uma “paisagem” nunca antes vista, a não ser
nos sonhos noturnos ou diurnos. As experiências de cognição e percepção
oriundas desse desenvolvimento que consideramos abrupto, embora distintas e
distanciadas das experiências até então social e culturalmente vivenciadas, não
concorreram decididamente para o fim das utopias, compreendidas em
diferentes maneiras no decorrer da história, antes reforçaram seu estatuto,
manifestando a existência do “possível”.
Feita a alusão aos sonhos no parágrafo anterior, cabe aqui uma pequena
reflexão sobre os mesmos. Como produtos da vida psíquica inconsciente
constituem-se em fenômeno humano e universal. A palavra sonho provém do
noturno e pressupõe que o sonhador dorme. O sonho não só protege o sono,
mas também é uma forma de realização alucinatória de desejos, realização
fictícia de uma fantasia desejante inconsciente, representada na imagem onírica
de forma simbólica e desfigurada. A realização do desejo por meio da decifração
de seus símbolos é percorrida pela interpretação analítica dos sonhos. “O
sonhador não sabe o que sabe”, eis o paradoxo enunciado por Freud e que o
conduziu à sistematização da análise interpretativa. Contudo, o ser humano não
sonha apenas quando dorme, ele sonha também de “olhos abertos”, e esse
sonhar, que não dispõe de qualquer tipo de censura imposta por um ego moral,
pode propiciar idéias que não pedem interpretação, e sim elaboração, conforme
conclui Bloch (2005) em seus escritos sobre a utopia
4
.
Chacon (2007:19) considera em seus estudos que “o pensamento
moderno, representado pelos filósofos do século XX, compreendeu que os
fenômenos humanos são peças fundamentais na construção do conhecimento,
a partir do momento em que fazem parte da tão buscada ‘realidade
possível’”.Reforçamos que aqui se fala em “realidade possível”, isto é, uma
realidade formada pelo que “aí está” e pelo que “ainda não está”, mas que
poderá “vir a ser”. As possibilidades futuras podem ser qualificadas como
utópicas porque dependem de um “vir a ser” e como tais serão encontradas nos
filmes do diretor Bernardo Bertolucci que, principalmente em Os Sonhadores,
representam as possibilidades de uma outra realidade.
A mudança da produção demarcada pela Revolução Industrial, um dos
pilares da modernidade, atingiu também o campo da comunicação com a
invenção da imprensa, do rádio, da TV, do cinema e, desde então, o processo
de transmissão da informação passa pela produção, armazenagem e divulgação
dos produtos ou bens culturais.
No princípio do século passado, um mosaico de conotações deu
diferentes nuanças à noção de modernidade, como enuncia Cohen (2001),
4
“O que acontece em relação ao sonho é que quando dormimos há um ligeiro, mas
suficiente enfraquecimento das forças de repressão e das resistências do ego e
superego, do processo secundário, na aparição de conteúdos de natureza inconsciente
rejeitados pela consciência de maneira ‘natural’ durante o estado de vigília. De certa
forma, a tensão das forças pulsionais favorecidas pela situação geral de
relax de quem
dorme e as representações a elas ligadas expressam os desejos inconscientes do
sujeito, que encontram no estado de descanso o mais fácil e direto acesso à
consciência”.(DROGUET, 2004:68)
defendendo a tese de que o termo é motivo de debate crítico e não algo
solidamente estabelecido, o que verificaremos a seguir.
“Por modernidade refiro-me menos a um período histórico
demarcado do que a uma mudança na experiência. Essa nova configuração
da experiência foi formada por um grande número de fatores, que dependeram
claramente da mudança na produção demarcada pela Revolução Industrial.
Foi também, contudo, igualmente caracterizado pela transformação na vida
diária criada pelo crescimento do capitalismo e pelos avanços técnicos, o
crescimento do tráfego urbano, a distribuição das mercadorias produzidas em
massa e sucessivas novas tecnologias de meios de transporte e de comunicação.”
(GUNNING, 2001:39)
Habermas (1980) fala sobre o imbricamento entre ciência e técnica,
característico da modernidade, em que a técnica, dependente da ciência, a ela
retroage e determina seus rumos. A esse processo de inter-relação entre ciência
e técnica ele chama de sistema de vasos comunicantes e considera que estes
passam a ser a primeira força construtiva, subordinando todas as demais,
dirigindo e modificando o mundo. Para ele o tecnicismo e o positivismo não
passam das duas faces de uma mesma e ilusória moeda ideológica.
Outros pensadores situam a época contemporânea como pós-
modernidade, embora no panorama mundial perceba-se que a modernidade
ainda não esgotou suas transformações e tem ritmos distintos em diferentes
áreas do globo. Vejamos a seguir:
“A verdadeira revolução do séc. XIX, da modernidade, é a
destruição radical das aparências, o desencantamento do mundo e o seu
abandono à violência da interpretação e da história. Constato, aceito, assumo,
analiso a segunda revolução, a do séc. XX, a da pós-modernidade, que é o
imenso processo de destruição do sentido, igual à destruição anterior das
aparências. O que pelo sentido mata, pelo sentido morre”
(BAUDRILLAR,
1991:197).
Este trabalho é sustentado na modernidade e encontra no filme Os
Sonhadores
uma estética da utopia apoiada nos já citados referenciais de
modernidade: por Gunning (2001) - mudança de experiência configurada pelo
grande número de fatores dependentes da mudança de produção gerada pela
Revolução Industrial - por Baudrillard (1991) - desencantamento do mundo e o
seu abandono à violência da interpretação e da história - e Habermas (1980) no
reconhecimento do poder transformador da tecnologia.
Nesses novos cenários, emblemáticos das mudanças perceptivas e
ambientais de um novo domínio sobre os incrementos do tempo, de um
desmoronamento das distâncias, de uma nova experiência do corpo e da
percepção do ser humano, que também definem a experiência da modernidade,
nasce o cinema, ele próprio então visto como uma utopia, como tecnologia e
indústria de entretenimento produzida, direcionada para as massas.
Retornemos ao nascimento do cinema: a partir do desenvolvimento da
reprodução fotográfica, uma série de aparelhos com diferentes denominações,
mas nem sempre com alterações significativas, foram patenteados na Europa e
Estados Unidos com o objetivo de conferir movimento às imagens. Edson já
havia animado a fotografia e Reynaud projetado imagem animada sobre uma
tela; faltava a união dos dois processos, o que ocorreu por uma conjunção
científica das áreas de química, mecânica, fisiologia, óptica e eletricidade. Surgiu,
assim, o cinematógrafo cuja originalidade se constituiu no relacionamento da
técnica do registro e da projeção das imagens em movimento. Uma base social
permitia o investimento de tempo e dinheiro nesse tipo de experiência voltada
não só para o desenvolvimento científico, mas igualmente pela percepção de que
esse instrumento de exploração da curiosidade pública teria grande retorno
econômico. A junção da ciência, da magia e dos interesses econômicos gerou o
cinema, um signo e um emblema do imaginário da modernidade, o dispositivo
construído para materializar e reproduzir artificialmente o imaginário cultural. E,
desde seu nascimento, o cinema se configura em duas correntes estéticas
paralelas: por um lado os irmãos Lumiére
5
, produtores de filmes curtos que
retratavam a realidade - documentária, um realismo absoluto – e por outro lado, o
mágico Georges Méliès, que viu no cinema nova fonte de ilusão com
possibilidade de manipulação do material filmado - ficção - o irrealismo absoluto
6
.
Considerando essas duas correntes estéticas, assumimos que o diretor Bernardo
Bertolucci, embora sem se desvencilhar do realismo documental, apresenta
maior aproximação com Méliès no filme Os Sonhadores. Mas há outras divisões
das correntes estéticas do cinema. Truffaut declara que as considerações
estéticas o preocupam.
Acredito, por exemplo, que há dois tipos de cinema: a corrente
Lumière e a corrente Delluc. Lumière inventou o cinema para filmar a
natureza das ações,
L’Arroseur arrosé
. Delluc, que era romancista e
crítico, pensou que se podia usar essa invenção para filmar idéias, ou ações,
com um significado que ultrapassasse as evidências, e que o cinema podia
também flertar de vez em quando com as outras artes. O que veio a seguir?
Foi a história do cinema, com a corrente Lumière sendo ilustrada por
Griffith, Chaplin, Stroheim, Flaherty, Gance, Vigo, Renoir, Rosselini e,
5Louis e Auguste Lumière (1864-1948) inventaram o cinematógrafo na França e registraram o
invento em 1895. Produziram mais de 2000 filmes.
6
Georges Mélies (1861-1938), mágico criador do cinema espetáculo. Realizou perto de mil filmes,
fazendo uso de uma série de recursos para representação da fantasia e concretização dos
sonhos.
mais próximo de nós, Godard; e a corrente Delluc trazendo Epstein,
L’Herbier, Feyder, Grémillon, Houston, Bardem, Astruc, Antonioni e,
mais próximo de nós, Alain Resnais. Para os primeiros, o cinema é um
espetáculo, para os segundos, uma linguagem.”
(GILLAIN.1990:50)
7
Acatando a divisão proposta por Truffaut, incluímos Bertolucci entre os
cineastas inclusos na corrente Delluc, que utiliza o cinema para filmar idéias e
ações, embora sem um afastamento radical de Lumière e de Méliès. Uma
estética cinematográfica contemporânea acontece na fusão das correntes que
unem forma e conteúdo na película, objetivando fazer sentido para o espectador.
Bernardo Bertolucci no filme Os Sonhadores distancia-se do neo-realismo italiano e,
por meio de um cinema mais subjetivo, busca fazer sentido para uma geração
desencantada e que desconhece uma época que se tornou mítica por instaurar
uma profunda mudança de costumes. Na década de 60, diversas correntes e
movimentos juvenis de negação contribuíram para a degenerescência das formas
de dominação da época e, carentes de um suporte teórico, foram encontrá-las
nos escritos de alguns teóricos, como verificaremos abaixo:
“Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições
de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos,
entendendo-se como espetáculo a representação de tudo que era vivido
diretamente e a expressão da separação e do afastamento entre o homem e o
homem
(DEBORD, 2000:131).
7
François Truffaut (1932-1984) cineasta e crítico francês. Criador da expressão “politique dês
auteurs” e participante da Novelle Vague. Suas entrevistas concedidas, a partir de 1959, estão
reunidas no livro de GILLAIN, A. O cinema segundo François Truffaut (Nova Fronteira: 2005)
E, ainda para o mesmo autor:
”Em 1967, eu quis que a Internacional Situacionista tivesse um
livro de teoria. Naquele momento a IS era o grupo extremista que mais
contribuíra para levar a contestação revolucionária à sociedade moderna
8
.
Era fácil perceber que esse grupo, que já havia imposto sua vitória no terreno
da crítica teórica e a havia prosseguido com habilidade na agitação prática,
aproximava-se do campo culminante de sua ação histórica
(DEBORD, 1997).
França, Alemanha e Itália foram os principais palcos das mobilizações
estudantis do final dos anos 1960 que culminaram na Primavera de 1968,
movimento que, segundo Ventura (1988:53), “marca o advento da civilização da
imagem e a finalização do aprendizado intelectual e sua percepção estética,
forjados apenas pela leitura”.
Do axioma de Ventura (1988:53), inferimos que as práticas culturais até
então predominantes, sobretudo ,aquelas dependentes do letramento, se tornam
insuficientes para representar as percepções e sensações do homem
pertencente a uma sociedade que apresenta profundas mudanças no tempo, no
espaço e nas técnicas de circulação
9
. Dessa forma, a palavra escrita, que até o
século XX era o referencial das elites dominantes, ganha, com os meios de
reprodução, novos complementos. Assim como na sociedade letrada, os
conhecimentos teóricos e interpretativos passaram a prevalecer sobre os saberes
8
Société du spectacle deu suporte à Internacional Situacionista, movimento contestador surgido
em 1957 com marcante atuação na luta política, ideológica e cultural; esse livro transformou o
autor em um dos gurus da Revolução de 1968.
9
Para Gunning (2001: 38-40), as técnicas de circulação definem as transformações convergentes
na tecnologia e na indústria do que chamamos de modernidade. O cinema instala-se nessa rede
de circulação como tecnologia e indústria, e também como nova forma de experiência.
narrativos e rituais das sociedades orais, na sociedade moderna, policultural e
massiva, a cultura imagética passa a concorrer com a letrada.
A “civilização da imagem” acontece porque os prolongamentos
perceptivos dos indivíduos da modernidade estão aptos à construção de
significados mediados pela invenção técnica e, em decorrência, o cinema passa
a ser ícone de produto cultural que pode mobilizar as massas.
O cinema de Bernardo Bertolucci em Os Sonhadores simboliza o movimento
oscilatório da estética cinematográfica ao representar, de um lado o
documentário, índice da corrente Lumiére, referindo-se a Maio de 1968, e de
outro lado o irrealismo, o sonho, a ficção da corrente Méliès/Delluc indiciados na
interpretação dos três adolescentes que protagonizam uma revolução sexual
ancorada em um anseio de liberdade, cujo co-relato é a própria revolução
presentificada como documentário e como representação do que foi vivido.
Bertolucci fazia parte da vanguarda da geração de 68 que teve como
mídia preferencial o cinema. Essa vanguarda:
“... fazia cinema e o consumia em uma
aventura experimental de linguagem e de ação política”
(VENTURA, 1988:53).
A transgressão era tida como um estágio superior da percepção e a
grande obra-prima era
A Chinesa (1967), de Godard, que, assim como Os
Sonhadores
, tem como protagonistas três jovens encerrados em um apartamento,
vivendo uma utopia.
Assumido como técnica o cinema recebeu seu batismo como arte em
1911, no
Manifesto das Sete Artes, lançado na França por Ricciotto Canudo, que em
sua atividade de crítica cinematográfica e em seu trabalho de promoção do
cinema junto aos intelectuais fundou o”
Club dês amis du septième Art”. Ao promover
a entrada do cinema no mundo das artes, Canudo lhe atribuiu a sétima colocação
por considerá-lo a síntese moderna de todas as artes que o precederam:
arquitetura, música, pintura, escultura, poesia e dança.
A história das artes tem no cinema uma abertura muito peculiar: na
mediação da máquina e no modo particular de sua mediação há o maior
diferencial com as outras artes. Em um mundo em que movimento, velocidade e
intensificação dos estímulos são os elementos perceptivos dominantes e, em um
jogo de semelhanças no qual “significar” é “expressar”, a imagem em movimento
responde às necessidades de expressão do homem moderno. Por isso alguns
estetas do cinema, como Delluc, Canudo, Moussinac, acreditavam que a verdade
cinematográfica estava no futuro e a própria lógica que viam no mundo moderno
era uma garantia de que tudo estaria lá.
Reforçamos que com o nascimento dos tempos modernos ocorreram
profundas mudanças na experiência do espaço e do tempo, possibilitando,
segundo HARVEY (1993:256), uma intensa compressão do tempo e do espaço
com interferência na vida social e cultural. Em uma sociedade que se transforma
com tal rapidez, a imensa gama de situações que ocorrem a qualquer intervalo
do tempo acaba por ocasionar profundas mudanças na psicologia humana. O
homem moderno, exposto à variação de velocidade e de tempo, desligado do
tempo cíclico, correspondente ao movimento circular e perfeito dos corpos
celestes, que marcava as sociedades rurais - tempo de plantar, tempo de colher,
ciclos lunares -, torna-se um homem diferente, uma pessoa em crise, como
prefigura Nietzsche (2004), que procura nas artes o alívio para sua angústia.
Não só o cinema, mas também as utopias, geradas nos sonhos diurnos,
podem ser entendidas na circularidade do tempo, no topo do imaginário e no
alívio da angústia.
Partindo da acepção etimológica - não lugar, sem lugar ou nenhures,
portanto, negação do espaço físico - o conceito de utopia envolve algumas
considerações. Nele está contido um duplo movimento: a crítica à ordem das
coisas existentes - presente - e a construção de uma proposta alternativa que
ofereça um paradigma social em conformidade com uma situação ideal,
harmônica, justa - futura e que, algumas vezes, apresenta-se como o éden
passado. Esses movimentos, de crítica
10
e construção de um novo paradigma
vislumbrado no sonho diurno, alavancam as imaginações utópicas, construtoras
da utopia - conceito que até o início da modernidade era carente de um vocábulo
que a nomeasse. O sonhar com uma vida melhor não permite ao homem se
acomodar, se resignar, com o que aí está. É preciso transpor, transgredir, captar
o novo, o almejado, o esperado - o princípio utópico - e trazê-lo à luz, assim como
o faz o cinema, acionando e difundindo sua função e conteúdo. O que é
utopicamente desejado guia todos os movimentos libertários voltados para o
mundo no sentido de ultrapassar o curso natural dos acontecimentos. Desse
entrelaçamento da temática tempo/espaço o cinema faz um de seus pilares. Na
medida em que metamorfoseia
11
o tempo, o cinema opera o espaço pondo a
câmera em movimento e dotando-a de ubiqüidade, o que permite a circulação em
um tempo reversível. O tempo do cinema, no seu limite, desemboca na magia, e
10
Crítica, do grego krisis, que significa por em crise, isto é, distinguir, separar e decidir.
(VARELLA, 2005:305)
11
Matamorfosear o tempo significa transformá-lo, tanto nas possibilidades do passado quanto do
presente e do futuro com o fim de fazer da imagem que perpassa esse tempo uma imagem
potencial para o espectador/receptor poder se recriar.
a tela branca, sem profundidade, em um jogo de luz e sombra, se transforma em
uma realidade possível, no lugar do “estranho”, em que as imagens em
movimento presentificam o imaginário cultural.
No cinema, assim como na subjetividade, seguindo o pensamento de
Freud - que foi criticado por Bloch (2005) sob a alegação de haver negligenciado
o sonho diurno em seus estudos - “o estranho” refere-se a uma relação familiar
do sujeito vivenciada no passado que retorna ao presente na forma “recalcada”,
portanto, o estranho é o originalmente familiar que aparece sob uma nova forma
que causa estranheza
12
. Não só o “estranho” do mundo subjetivo ganha o espaço
do cinema, mas também a esperança, portadora da utopia, cuja “falta é, segundo
Bloch, tanto em termos temporais como de conteúdo, o mais intolerável, o
absolutamente insuportável para as necessidades humanas”, (BLOCH, 2005:15),
e que encontra nesse meio de comunicação o seu lugar.
12
O estranho refere-se a um efeito estético da experiência perceptiva, também conhecida por
“sinistro”, tomando-se por base a etimologia da palavra em alemão.
1.2. Utopias e utopia
Toda utopia é, depois de tudo, um projeto de reconstituição do
sentido histórico de uma sociedade. O fato de que estivesse alojado, primeiro
no reino estético, não faz senão assinalar, como sempre, que é no estético que
se prefiguram as transformações possíveis da totalidade histórica”.
Aníbal Quijano
Em 1516, o mundo ocidental ouve pela primeira vez a palavra utopia,
designando uma obra literária de autoria de More (1968). A partir de então, essa
palavra - utopia - passa a nomear movimentos filosóficos, políticos, religiosos,
sociais, estéticos, e também um novo gênero literário, exercício de literatura
fantástica e imaginação poética, gênero esse que, na contemporaneidade,
reaparece no cinema e, em um recorte pelo qual optamos, no cinema de
Bernardo Bertolucci representado no filme
Os Sonhadores.
A palavra utopia, cuja partícula “u” indica uma ausência de topos, lugar, e
que, etimologicamente, significa não lugar ou sem lugar, é da ordem do
imaginário. Em uma outra dimensão, a substituição do prefixo “u” por “eu”, leva à
eutopia, palavra designativa de um lugar, de um mundo melhor, mundo esse que
pelo próprio sentido positivo pode ser traduzido como lugar ideal e conduz à
ordem do real, entendido como o que“está aí” presente mais o que “não está aí”,
constituintes da dinâmica da realidade. Já a utopia, segundo Bloch (2005), tem
seu lugar, seu “topos”, na consciência antecipadora e na força ativa dos sonhos
diurnos. Tudo no mundo, para o autor, é movimento e gestação. Por isso, para o
professor Arno Münster (1993), o mundo é um campo de possibilidades ilimitadas
preexistentes nos sonhos, como potencialidades utópicas.
“Como o ser subjetivo do homem moderno, prisioneiro da reificação
universal da consciência e prisioneiro também de um sistema de consumo e
burocracia pode ser capaz de apoderar-se destas potencialidades utópicas?”
(MÜNSTER,1993:21).
Sem dúvida, conclui Münster (1993), que isso se dá por meio da
consciência antecipadora e dos sonhos diurnos, sonhos que, acrescentamos,
Bertolucci representa com profundo sentido em seu filme Os Sonhadores. O
cinema, “a fábrica de sonhos”, apresenta algumas aproximações com o sonho
acordado: o espectador está consciente da sua própria situação, encontra-se em
estado de semi-imobilidade, mergulhado em relativa escuridão que lhe permite
um experimento imaginário; a técnica que permite a deslocabilidade dos
detalhes; tal qual no sonho, reunindo os elementos do real, o filme mostra uma
outra realidade. BLOCH (2005:93) enuncia que um único indivíduo pode ser
precursor de uma utopia gerada no sonho acordado.
“O eu do sonho desperto pode se expandir a ponto de representar os
outros. Quem dorme está sozinho com seus tesouros, mas o ego de quem
devaneia pode se reportar aos demais. Assim, se o eu abandona a introversão
ou o relacionamento - tão só com o entorno mais imediato -, o seu sonho
diurno visa à melhoria pública” (
BLOCH, 2005:93).
Inferimos, então, que assim como o sonho diurno precursor de uma utopia
pode ser gerado por um único indivíduo e expandir-se para um determinado
grupo social, o cinema propicia que o “eu” sonhador, do cineasta, se reporte aos
demais que constituem o universo receptor.
Resumindo, entendemos que a utopia é a força catalisadora de mudanças
e da construção de experiências renovadas individuais e coletivas geradas em
sonhos diurnos e propagadas historicamente, preferencialmente, por pessoas
jovens engajadas em movimentos de busca de um mundo melhor, cujos indícios
esperamos encontrar nas representações fílmicas de Bernardo Bertolucci, um
diretor que se assume como sonhador.
Mas se na atualidade é ao cinema que imputamos a qualidade de
transportar o mundo real para a ficção, e assim representar novas realidades
possíveis, em outros tempos, essa adjetivação era conferida aos livros.
“O século das Luzes compartilhou a utopia – do livro,
da leitura, da escrita, paidéia capaz de tornar os homens melhores.”
(MATOS, 2006:8)
Também os livros, assim como o cinema hoje o faz, compartilhara
distopias, construções imaginárias de um mundo alternativo, lugar da perversão e
da desarmonia, como as sociedades apresentadas nas obras 1984, de Orwell
[l949 (1984)], e
Admirável mundo novo, de Huxley [1932 (2000)].
Nos movimentos utópicos, desde os narrados pelo Antigo Testamento até
alguns anunciados na modernidade, a utopia não se concretizou em um aqui
/agora, porém, continuou viva em uma dimensão tangível pela imaginação,
contribuindo para a permanência da esperança de uma sociedade mais justa e
igualitária. A imaginação utópica, gestante de todos os tipos de utopia, não se
deixa reger pelo tempo dos cronômetros que mede uma espera, mas sim pela
atemporalidade do desejo no aguardo de realizar sua esperança, no criar as
condições para sua realização. No mundo não há somente fatos fixos ou
consumados, ele está repleto de relações dinâmicas que contêm latência de algo,
de processos nos quais se dá a mediação entre o presente, o passado pendente
e o futuro possível
13
. Podemos então dizer que a utopia é um fenômeno que
estabelece uma relação entre a realidade vivida e a realidade desejada.
O ato de intencionar, presente no pensar e no imaginar, tem seu tom
sempre antecipatório. Também na esperança, um afeto expectante, há uma
intenção pulsional tão forte, e de tão longo alcance, que o caráter antecipatório
de sua intenção, de seu conteúdo, do seu objeto - ainda não acessível e cuja
finalização pode ou não ocorrer - implica em uma associação a um futuro
autêntico, o futuro do ainda não ser, do que objetivamente ainda não existiu
desse modo, do não manifestado. As concepções de idéias das intenções
futuras, impulsionadas por um “ainda não”, assim caracterizadas são utópicas.
Observamos que o modelo utópico abstrato e imaginário de uma
sociedade mais justa presente até o século XIX teve o seu sentido questionado
no século XX. Dois pensadores, Mannheim (1976) e Bloch (2005),
13
Possível, cognitiva ou objetivamente, segundo Bloch (2005:223), é tudo aquilo cuja ocorrência
pode ser cientificamente esperada. Apresenta 4 categorias do possível: 1- O possível formal - algo
que pode ser pensado; 2 - Possível objetivo factual: é o possível conforme o conhecimento que se
tem do objeto. Se expressa pelo juízo hipotético que pressupõe premissas não confirmadas; 3 -
Possível objetal: não diz respeito ao nosso conhecimento de algo, mas a esse algo propriamente,
que pode vir a ser de um outro modo; 4- Possível objetivo-real: constitui-se em uma determinação
portadora de futuro no real mesmo.
desenvolveram construtos de utopia nos quais buscaremos respaldar a hipótese
deste estudo. Deslocando a tônica conceitual de utopia do campo religioso, social
ou político para o campo estético, intencionamos demonstrar que no cinema de
Bertolucci se constrói uma expressão estética de utopia em que as “ressonâncias
ideológicas” são trabalhadas no sentido de liberdade e de esperança em um
futuro melhor.
Se o século das luzes compartilhou a utopia dos livros, a modernidade
compartilha a utopia das imagens em movimento. Nesse aspecto, reforçando a
força da narrativa cinematográfica na modernidade, Adélia Prado, poeta e
escritora mineira, em entrevista concedida a Antonio Gonçalves Filho, publicada
no jornal O Estado de São Paulo, em 19/08/2006, referindo-se as experiências
místicas obtidas por meio das artes diz: “acho que mais que a literatura, o cinema
é que hoje está falando das coisas”.
Dentre as muitas acepções e interpretações de utopia, Mannheim (1976) a
caracteriza como conjunto de idéias e doutrinas transcendentes, nas quais uma
força subversiva e um efeito de transformação promove um enfrentamento à
ordem histórico-social existente, ao contrário da ideologia que reforça essa
ordem. Observa os diversos tipos de mentalidade utópica, ressalvando que elas
nunca existiram de maneira simples, sendo que cada projeto utópico tendia a
organizar-se conforme um eixo estrutural. Dentre essas mentalidades destacam-
se os diversos movimentos como os quiliasmas
14
, os marcados pelas idéias
liberais e humanitárias, aqueles que, embora sonhados no futuro, são
14
Quiliasma: de quilias, vocábulo grego, que significa mil, uma referência a um período de mil anos
de felicidade na Terra, é uma das mais antigas formas de utopia. Segundo Coelho (1985:52), os
movimentos quiliásticos são uma busca de experiência, do místico, do espiritual e, embora
pretendam a realização de seus desejos no presente imediato, não se colocam o problema de
promover uma revolução social. Um marco desse movimento é o liderado por Thomas Münzer.
conservadores, e os movimentos baseados nos programas
socialistas/comunistas, utopias oriundas da teoria marxista, embora Karl Marx
recusasse a denominação de utopista e criticasse vivamente as visões utópicas
de sua época, desmascarando-as como ideologias.
Para Mannheim (1976), a desaparição do elemento utópico do
pensamento e da ação humanos resultaria em um homem transformado em
coisa. Seria, então, o maior paradoxo, ou seja, o do homem que, tendo alcançado
o maior grau de domínio racional da existência, se vê deixado sem nenhum ideal,
tornando-se um mero produto de impulsos. Sem as utopias o homem perderia a
capacidade de plasmar e compreender a história. Por isso:
“... quando secam os oásis utópicos estende-se um
deserto de banalidade e perplexidade”
(HABERMAS, apud ARANHA,
1993:269).
Trinta anos após a publicação de Ideologia e Utopia (1919), de Mannheim,
Bloch publicou a trilogia O Princípio Esperança ([1959]2005) em que são concluídas
as teses desenvolvidas desde 1918 e publicadas no livro Geist der Utopie - Espírito
da Utopia (1918), não disponível em português. Bloch forja o conceito de utopia
concreta após um estudo sistemático de todos os modelos de utopias - místicos,
religiosos, sociais - apresentados no ocidente. Das propostas antigas de Platão e
More até as doutrinas materialistas do marxismo, sonhos e utopias, tudo aquilo
que é portador de esperança, e as correntes filosóficas e psicanalíticas que
estudam esses fenômenos, são focalizados. Considerado fundador de um
pensamento neomarxista da “utopia concreta”, de uma ontologia do “ainda não
ser” e de uma fenomenologia da “consciência antecipadora”, Bloch também
revela seu pensamento neste aforismo:
“Eu sou, no entanto eu não me possuo. É por isso que nós
temos que nos fazer
nós mesmos. O homem nasceu nu, necessitando de
vestes para aquecer-se. O seu interior torna-se consciente através do
exterior. De outro modo ele permaneceria solitário”,sem o nós” e “sem
ao redor de nós”, constituintes da matéria prima da casa humana.”
(MÜNSTER 1993:81-82)
Desta forma, procura manifestar a intenção primeira de sua filosofia:
revelar e descobrir a dialética que existe entre uma subjetividade criadora, que
ultrapassa seus limites interiores, e um elemento exterior, um “ao redor de nós”
que está se aproximando do Eu sou.
A erudição demonstrada pelo autor ao atravessar o tempo e o espaço
neste estudo não ajuda na elaboração de um conceito preciso e determinado de
utopia. Mas ainda assim faz-se necessário o entendimento de alguns temas
imanentes ao conceito de utopia para melhor aplicá-lo à análise dos filmes.
Na conclusão da introdução do livro O Espírito da utopia, diz Bloch:
“É em nós mesmos que brilha esta luz e começa agora a marcha
imaginária rumo a ela, a marcha para interpretação do sonho acordado,
para utilização do conceito utópico nos seus princípios. É para procurá-
la, para procurar o que é justo, o motivo de viver, de ser organizado, de
dominar o tempo, é por isso que vamos seguindo os caminhos metafísicos
constitutivos, é por isso que chamamos o que não é, que construímos no
desconhecido e buscamos o verdadeiro, o real ali, onde a simples realidade
factual desaparece - INCIPIT VITA NOVA.”
(MÜNSTER,1993:41)
Complementamos no livro Princípio Esperança, um ensaio barroco
expressionista publicado na Alemanha, em 1959, e traduzido para o português
em 2005, a busca de alguns conceitos necessários para compreensão do
pensamento de Bloch.
1. Sonhos diurnos: entendemos que são construções imaginárias, relacionadas
ao cumprimento de um desejo, mas mantendo simultaneamente o eu, que pode
ganhar amplitude humana, pode se expandir a ponto de representar os outros. O
sonho diurno, sempre orientado para o futuro, pode proporcionar idéias que não
pedem interpretação, e sim elaboração. Sonhar com algo implica em criar a
imagem da coisa ausente, o que, em conseqüência, desencadeia o desejo de
obtê-la. As imagens assim “sonhadas” podem possibilitar a mudança de
comportamento do indivíduo, motivando-o a acionar a proposição emanada e
assim encontrar o que lhe falta, sejam idéias políticas, artísticas ou científicas.
2. Ainda não consciente o que ainda não se tornou. Uma instância da vida
psíquica capaz de produzir o sonhar para frente. Todas as épocas de mudança
estão repletas do ainda não consciente e uma classe em ascensão o leva
consigo. O ainda não consciente, como classe de consciência do novo, contém:
juventude, mudança de época, produtividade.
3. Ideologia: soma das representações em que cada sociedade se justificou ou
se transfigurou com o auxílio de uma consciência.
4. Novum: sinal despertador da consciência.
5. Inspiração: irrupção da luz no ser constituída de tendência e latência e
evocada por sua mais clara consciência.
6. Consciência antecipadora: impulso elementar que tem como origem e
fundamento um estágio de insatisfação que leva à apropriação de um “ainda
não”, em uma tensão cuja finalidade é a superação dessa carência.
7. Futuro autêntico: caracterizado pela presença de um elemento excedente
que permite a transformação da imaginação utópica em uma realidade humana
em forma de amanhã.
8. Esperança: afeto expectante positivo que frustra o medo e afoga a angústia. É
a mais humana de todas as emoções e acessível apenas aos seres humanos.
Ela tem como referência o caráter antecipatório de sua intenção (intenção
pulsional de amplo alcance), que traz em seu conteúdo a utopia.
Münster (1993:27) analisa o significado geral de utopia apresentado por
Bloch em Tübingen, no ano de 1967, quando este proclama que a diferença
fundamental entre sua definição e a dos filósofos da antigüidade é que para ele
utopia não constitui um topos idealizado ou projetado; é um topos da atividade
humana orientada para o futuro, um topos da consciência antecipadora e a força
ativa dos sonhos diurnos. Também explica que o” topos utópico” é possível
porque o mundo não é um sistema fechado ou um processo acabado, porque
possui um horizonte aberto e é cheio de possibilidades “ainda-não” realizadas.
Os homens e as mulheres ainda não são o que poderiam ser, e o mundo ainda
não atingiu sua autenticidade, tudo é movimento e gestação; por isso é um vasto
campo de possibilidades ilimitadas.
A incidência permanente da categoria de possibilidade permite, neste
contexto, a transformação do mundo, concebida esta transformação como um
processo ininterrupto do próprio devir e do devir autêntico, do sujeito
representado nas formas artísticas e culturais.
Na mesma linha, Teixeira Coelho (1985:11-12) afirma que:
Imaginação utópica é propositiva: as coisas, que devem
acontecer daquela maneira, poderão acontecer se o homem quiser. Ela
não se esgota com a realização de seu objetivo. Mesmo quando este se
apresenta como algo concreto, como resultado da ação utópica, há um
resto que permanece para ser retomado por outra imaginação utópica do
mesmo homem, do mesmo grupo social. Há sempre um excedente utópico
a funcionar como mola de um novo ciclo imaginativo, há sempre algo de
irrealizado que busca realizar-se em nova projeção”
(COELHO, 1985:11-
12).
Esse excedente que parte do real dá origem a novos projetos utópicos. O
aparecimento de um novo desejo, de um novo projeto desiderativo, cuja
realização é possível no futuro, se constitui em uma “trama” de fragmentos do
real que se dirigem a um tempo e a um espaço “ainda não” conhecidos.
Observamos também que toda revolução autêntica não pode dispensar a
imaginação utópica. Os jovens que promoveram o movimento conhecido como
Primavera de 1968 reconheceram no pensamento de Marcuse [1956 (1975)],
sobre uma dimensão estética/erótica indispensável à existência humana que
caracteriza todo projeto utópico, uma saída para o impasse então ocorrido entre
uma política tradicional e outra dita revolucionária, mas altamente burocratizada
15
.
O filme de Bertolucci, Os Sonhadores, representa a revolução de 1968 que
questionou as normas da vida social, a moral tradicional, os tabus e as
proibições; uma revolução com implicações mais consistentes nas relações de
produção, no modo de vida, no pensar, nas relações humanas do que no campo
político. A assertiva de Teixeira Coelho (IBIDEM: 94), ao afirmar que “a dimensão
da utopia estética/erótica passa a ser um eixo de presença incontornável, e cada
vez mais acentuada, em qualquer projeto utópico que procure a felicidade
positiva”, aparece sob medida para a revolução de 1968, cuja origem e
mobilização estava presente em uma demanda relacionada à liberdade sexual
como uma forma de se obter a felicidade positiva.
A partir dos pressupostos teóricos enunciados, nos reportaremos a um
pensamento utópico da modernidade cujo traço significativo é o abandono da
referência dos modelos imaginários de utopias sociais (de organização de uma
sociedade idealizada) e das religiosas - quiliásticas. Segundo Bloch, o mundo é
um horizonte aberto e cheio de possibilidades “ainda não” realizadas, e por esse
contexto “o topos utópico” se justifica
16
.
Dentre os conceitos da filosofia de Bloch, que destacamos anteriormente,
a consciência antecipadora será elevada à categoria de análise juntamente com
15
Herbert Marcuse, em Eros e Civilização, desenvolve uma teoria crítica da sociedade a partir da
dialética entre prazer e realidade, cultura e psiquismo, temas amplamente desenvolvidos por Freud
e resgatados em uma contextualização sociológica da psicanálise.
16
MUNSTER, A. considera a obra de E. BLOCH como fundadora de uma “filosofia neomarxista do
futuro”. Trata-se de um pensamento que indica as possibilidades de transformação imanente ao
ser econômico, político e social. Assim, O Princípio Esperança nada mais é que um gigantesco
inventário das imagens do desejo, dos sonhos, e das figuras de antecipação utópica tais como
emergiram na história da filosofia, da literatura, da arquitetura e da música, nas utopias dos contos
de fadas e nas utopias modernas (1993:20).
a transgressão incorporada por meio da sociologia crítica de Mannheim (1976), e
a utopia estética como um acréscimo específico da produção cinematográfica,
produção essa que também permite a projeção de suas imagens em causas
futuras.
1. Consciência antecipadora: ”O sonho diurno é o lugar privilegiado da
manifestação da pré-aparição da consciência antecipadora, uma instância do
consciente que representa o espaço de adaptação e produção do novo. Leva o
sujeito a conhecer e apoderar-se das possibilidades imanentes na matéria e no
mundo, permitindo a sua transformação no sentido da reativação e da realização
das possibilidades utópicas tendenciais ainda não exteriorizadas, ainda não
realizadas. Esses sonhos são passíveis de direcionamento e podem ser
intermediadas pelo ‘objetiva ou cognitivamente possíveis’”.
2. Transgressão: categoria das idéias que de alguma forma possua um efeito
não só de transcender a realidade, mas de “romper as amarras” da ordem social
existente, ou seja, que ocasionem um efeito transformador sobre a ordem
histórico-social. Para Bloch (2005) as épocas revolucionárias são momentos de
rejuvenescimento da história que abrem objetivamente as portas à chegada de
uma nova sociedade, vida não vivida até agora.
3. Utopia estética: uma nova visão estética, que ultrapassa o quadro conceitual
da visão classicista, destacando a processualidade da relação sujeito/objeto na
função estética e sublinhando as possibilidades de uma antecipação utópica na
obra de arte. Indica as possibilidades de transformação imanente do ser humano.
A categoria do possível permitirá fazer aparecer os conteúdos utópicos
dissimulados, ou ainda não revelados, do ente e a concretização antecipada das
imagens utópicas em uma nova prática individual ou coletiva de emancipação.
Com essas categorias, buscaremos identificar nos filmes de Bernardo
Bertolucci que tratam da Primavera de 68, especialmente no filme Os Sonhadores,
elementos utópicos em um processo de relação com o cinema como uma
possibilidade de mediação entre as formas do imaginário individual e social, e as
formas estruturais objetivadas na representação fílmica. Antes, porém, nos
reportaremos aos motivos filmográficos recorrentes na obra de Bernardo
Bertolucci, nos quais buscaremos vestígios da imaginação utópica.
1.3. Os motivos filmográficos de Bernardo Bertolucci
“Todos nós, confusos ou convictos em nossa juventude revolucionária,
queríamos filmes que falassem por nós”.
Prudenzi e Resegotti
Bernardo Bertolucci é um dos grandes nomes do cinema italiano da
geração posterior ao neo-realismo, que se destacou pela busca de novos
modelos narrativos e se empenhou em filtrar a realidade sob um ponto de vista
ético, oferecendo ao espectador a possibilidade de refletir sobre temas
considerados incômodos. Nascido em Parma, em 16/03/1940, filho do poeta,
crítico de cinema e historiador Attílio Bertolucci, desde cedo esteve em contato
com a literatura e cultura em geral, vivendo, e não somente conhecendo, a
poesia cotidianamente. Em 1958, quando cursava o segundo ano da
Universidade de Roma, por proposição de Pasolini, publicou seu primeiro livro de
poesias, In cerca del Mistero, que lhe valeu o prêmio Viareggio daquele ano. Mas
considerando a poesia escrita como a arte de seu pai, buscou outra forma de
expressar seus sentimentos e a encontrou no cinema, no qual pôde escrever
poesia com uma câmera de filmar.
Em 1961, trabalhou como assistente de Píer Paolo Pasolini em Accatone -
Desajuste Social, filme considerado obra-prima. Embora fosse o primeiro filme de
Pasolini, por ele, esse diretor passou a ser conhecido como fundador de um novo
gênero ou estilo, o pasoliniano, um cinema poético com forte preocupação social;
um cinema que gravita em torno da narração cinematográfica e da câmera
subjetiva
17
. A extensa filmografia de Bertolucci não está em sua totalidade
disponível no Brasil, por isso a análise contemplará as obras acessíveis com o
intuito de, por meio delas, constituir um corpo teórico. Sua carreira apresenta
sucessos comerciais e de crítica, obras ignoradas, proibidas, censuradas.
Assumida a dificuldade em encontrar a bibliografia específica sobre o diretor e
sua obra, embora sem a pretensão de preencher essa lacuna, procuramos
colaborar apresentando sinopses dos filmes, em ordem cronológica de
realização, no Anexo I.
Segundo Tudor (1985:137-152), em Teorias do Cinema, podemos aprender
mais acerca dos filmes de um autor considerando-os em relação uns com os
outros. O pressuposto é o de que qualquer realizador cria o seu filme com base
em uma estrutura central, e que nos filmes encontram-se variações ou o
desenvolvimento delas. O conjunto de filmes de um autor permite isolar sua
concepção de mundo e até classificá-lo em determinado gênero, considerando
este também como um conjunto de convenções tradicional e culturalmente
aceitas. Assim, por gênero, pode-se conceber o modo de formular a interação
entre a cultura, o cinema, os produtos fílmicos, seus realizadores e o espectador-
receptor. A noção de gênero pode ser usada de forma construtiva para análise da
dinâmica sócio-cultural do cinema como, por exemplo, nos chamados “filmes de
arte”, cujo gênero também se insere Bertolucci.
17
Na teoria cinematográfica a noção de gênero - comédia, drama, musical, desenho - é polêmica.
Advinda da teoria literária, a concepção de gênero foi aplicada ao cinema como um esquema fixo
de regras, uma tradição cultural dentro da qual o indivíduo luta por expressão (MENDES,
RANULFO A.M.P., 2004). Nessa mesma teoria, estilo pode ser considerado uma forma de
expressão em que os elementos afetivos manipulam e catalisam os elementos lógicos presentes
em toda atividade do espírito (GARCIA, Othon M., 1974: 85).
A citação de que um autor utiliza um gênero implica que o público
reconheça esse gênero. Mendes (2004) relata que as primeiras impressões
significativas sobre gênero estão nos artigos de Robert Warshow sobre os filmes
de gangster e western - publicados em 1948 e 1954 - e os dois artigos de André
Bazin sobre o western, na década de 50. Warshow observou o gênero como uma
manifestação de um aspecto psicológico da cultura de massa que merecia
atenção teórica justamente porque revelava algo sobre as platéias. Bazin valoriza
a coerência de “estilo” e da autenticidade de certos realizadores. A noção de
autor remete à Política dos Autores, termo criado por Truffaut enquanto crítico nos
Cahiers du Cinema, em 1954, no polêmico artigo “Uma certa tendência do cinema
francês”, no qual criticava enfaticamente a chamada tradição de qualidade do
cinema francês e assumia “que não há bons ou maus filmes, mas simplesmente
bons ou maus diretores” (GILLIAN, 1988:73). O gênero, no sentido defendido
pelos críticos dos Cahiers du Cinema é uma tradição cultural dentro da qual o
indivíduo luta por expressão. Falar de Bertolucci como autor ou enquadrá-lo no
gênero filme de arte merece alguma reflexão. De acordo com Tudor (1985), a
noção de autor teve origem na crítica de cinema e dirige a atenção para grupos
de filmes que têm algo em comum: o realizador e, nessa consideração, se
envolve uma análise textual minuciosa e não um breve comentário crítico.
Gênero advém da crítica literária muito antes do advento do cinema. O
significado e as utilizações do termo variam muito, podendo ser entendido como
um determinado gênero porque se assenta em um conjunto de convenções, se
apóia em um consenso cultural comum, porque preenche certas expectativas do
público.
Com características estilísticas individuais marcantes, as obras do autor
Bernardo Bertolucci, que classificamos como cinema de arte e também como
cinema político, apresentam vestígios do neo-realismo italiano e da Novelle
Vague francesa
18
. Ao lado das explorações provocativas do sensual e da
ideologia, o estilo visual altamente cinético e a intensa natureza pessoal são as
marcas de sua filmografia. Nas décadas de 60 e 70, na Itália, desenvolveu-se o
movimento denominado “cinema do empenho social e político” que, segundo
Prudenzi e.Resegotti, em Cinema Político Italiano, anos 60 e 70, são filmes
explícitos, diretos, que dizem a que vêm já no título; não se incomodam com as
regras do mercado, tencionam falar por nós sem nos confundir com dramas
existenciais ou sentimentais. Antes da Revolução (1964), O conformista (1970) e A
estratégia da Aranha
(1972) são os filmes de Bertolucci listados no livro por
representarem motivos políticos.
Outro motivo recorrente em seus filmes é o incesto, considerado, uma
das mais marcantes e radicais formas de transgressão. Nos filmes Antes da
Revolução
(1964), O conformista (1970), La Luna (1979), Beleza Roubada (1996) e Os
Sonhadores
o tabu do incesto é violado, o que nos conduz ao campo
psicanalítico
19
. Freud aponta que na superação e rejeição das fantasias
18
Cinema de arte, nome genérico atribuído a filmes de ficção que possuem ambições estéticas e
intelectuais. São filmes que investigam a própria linguagem expressiva do cinema e procuram
renová-la ou enriquecê-la. ARAUJO, Olívio Tavares. www.itaucultural.org. br
.
19
Incesto: intercurso sexual de pessoas tão intimamente ligadas pelo sangue, que a união entre
elas, seria moral e socialmente: ilegítima. O “Tabu do Incesto” passou a ser identificado como um
momento da passagem do “sexo natural” ao “sexo cultural”, como padrão de comportamento em
todas as culturas. Segundo Levy-Strauss (1966), a proibição do incesto foi a regra de
reciprocidade por excelência e a exogamia foi a sua expressão socialmente ampliada, que veio
assegurar a circulação total e contínua dos bens por excelência que o grupo possui, ou seja, suas
mulheres e suas filhas. Essa lei veio apaziguar a cultura, porque, a partir dela, tudo se fez para
impedir que guerras entre as tribos viessem destruir os filhos das filhas dadas em casamento a
outros grupos humanos. Assim, as especulações relativas à essência biológica e mítica da família
incestuosas ocorre um dos mais dolorosos cometimentos psíquicos da
puberdade, a emancipação da autoridade parental por meio da qual se forma
aquela oposição entre a nova e velha geração, que é tão importante para o
progresso cultural.
Para falarmos de incesto precisamos recorrer à mitologia,
especificamente ao conceito de Eros, Thanatos e Édipo, e compreendê-los à luz
dos pensadores modernos. A mitologia têm muito a ver com os estágios da vida,
com as cerimônias de iniciação e passagem da infância para as
responsabilidades do adulto, da condição de solteiro para a de casado. Todos
esses rituais são ritos mitológicos. MARCUSE (1975:81), indagando sobre esse
tabu, conclui que na horda primitiva a imagem da mulher desejada -
esposa/amante do pai - era a imagem de Eros e Thanatos em fusão. Essa imagem
era a finalidade dos instintos sexuais e também era a mãe em que o filho
desfrutara a integral paz pré-natal, isto é, a plenitude de todos os bens. Do ponto
de vista ideológico, o tempo e o espaço do ventre materno é a prefiguração do
paraíso.
Talvez o tabu sobre o incesto tenha sido a primeira grande proteção
contra o instinto da morte sobre o impulso regressivo para a suposta paz
transcendental do útero materno. Nesse interdito, mãe e esposa foram
separadas, e a identidade fundida entre Eros e Thanatos foi, portanto, dissolvida.
Mas a mitologia revela que essa dissolução trouxe dualidades: Eros passou a
corresponder ao desejo de vida, de ordem; é domínio da democracia. Thanatos:
também foram sendo definitivamente destituídas e, com o tabu do incesto, a família passa a
expressar a passagem do fato natural da consangüinidade para o fato cultural da afinidade.
morte, caos, é domínio do autoritarismo. Assim, nas relações incestuosas entre
os irmãos Theo e Isabelle, em Os sonhadores, entre o sobrinho Fabrizio e a tia
Gina, em Antes da Revolução, a manifesta transgressão aos códigos sócio-
culturais, a violação do interdito, expande-se da esfera subjetiva e familiar e
passa a representar, metaforicamente, o desejo de romper com o autoritarismo, o
desejo do gozar a liberdade.
Confrontando essa posição com a corrente revisionista neofreudiana da
psicanálise, que espiritualizou a liberdade e a felicidade, MARCUSE (1975:
228,229) cita a reinterpretação ideológica do complexo de Édipo pelo psicanalista
Eric Fromm, que o transfere da esfera do sexo para o das relações interpessoais,
isto é, considera a essência do desejo de incesto não como um anseio sexual,
mas como o desejo de conservar-se protegido, seguro - uma criança. Isso implica
em despojar a sexualidade de seu caráter transgressor, sublimando-a por
intermédio dos símbolos.
Se o desejo de Édipo, diz Marcuse (1975), nada mais fosse, em sua
essência, um desejo de proteção e segurança – o medo à liberdade – se a
criança desejasse apenas segurança e não um prazer impermissível, então
representaria um problema educacional e não o eterno desejo pelo arquétipo de
liberdade, a liberdade da carência, e a luta contra tudo aquilo que o princípio da
realidade, entendido como o mundo que bloqueia a realização dos desejos,
simboliza: a luta contra o pai, contra a dominação, contra a sublimação, contra a
resignação.
Desta forma, pensar as relações incestuosas dos filmes de Bertolucci sob
o enfoque da teoria revisionista neofreudiana da psicanálise é aceitar a
aspiração, o desejo do homem em retornar a esse nirvana, ao estado de
inocência e liberdade anterior ao cometimento do pecado original e, portanto,
acatar uma visão tradicionalista, quiliástica de utopia; analisá-lo sob o enfoque de
Marcuse é aceitar o incesto como signo de transgressão, de violação de códigos
de conduta, de luta contra todo tipo de dominação.
Não somente a escolha de temas considerados tabus revela o caráter
transgressor das obras de Bernardo Bertolucci. Tal postura também se revela na
forma como dirige seus filmes e como considera a transgressão um meio de
evolução:
“Não aprendi a dirigir filmes de modo teórico, e a noção de
gramática cinematográfica nada significa para mim. E, no entanto,
dada minha maneira de pensar, tendo a dizer que, se existe gramática, é
preciso transgredi-la. Porque é dessa maneira que a linguagem
cinematográfica evolui. É a câmera que dita minha maneira de dirigir,
porque ela se movimenta o tempo todo - e percebo que nos meus filmes
recentes, ela se move ainda mais - quase como se entrasse em cena, na
forma de um personagem invisível do filme. Sou incapaz de resistira à
tentação de fazer a câmera se mover. Creio que isso surge da necessidade
de forjar uma relação sensual com os personagens, na esperança de que
isso se transforme em uma relação sensual entre os personagens”
(BERTOLUCCI, em entrevista concedida em 24 de dezembro de 2004 , à
Italia Oggi com tradução de Paulo Migliacci para Folha de São Paulo).
Relembremos que Bernardo Bertolucci iniciou sua carreira como cineasta na
mítica década de 60, a qual acumulou, no mundo todo, grandes contradições,
gerando uma série de conflitos envolvendo principalmente intelectuais, estudantes
e filósofos com a pretensão de mudar o mundo. Fernando Solanas, produtor do
filme
La hora de los hornos (1966), que trata dos acontecimentos políticos da
Argentina e da América Latina nesse período, em carta aos espectadores da
Retrospectiva Fernando Solanas, promovida pela Cinemateca Brasileira e
Fundação Memorial da América Latina, de 17 a 23 de julho de 1993, indagou:
“Como fazer para contar aos que nasceram na fabulosa década de 60 o que foram
esses anos épicos e violentos, liberadores e repressivos, plenos de rupturas,
sonhos e utopias?”.
A resposta a esse questionamento poderá ser encontrada com a
mediação do cinema que tem na imagem fílmica seu principal elemento de
transmissão da mensagem e que, no caso de
Os Sonhadores, representa as
rupturas, sonhos e utopias dos anos 60 por meio do movimento que se tornou
conhecido como Primavera de 68.
O cineasta cubano, discípulo de Zavattini e pioneiro na realização do
cinema militante, Gutierrez Alea considera que “o exercício do cinema implica
uma responsabilidade social. Seu extraordinário alcance como meio massivo de
difusão lhe confere uma indubitável potencialidade como arma ideológica. Cada
vez que se tratou de absolutizar seu aspecto ideológico, desconhecendo que o
cinema é, em primeiro lugar, um espetáculo e, portanto, um fato estético, uma
fonte de prazer, sua eficácia como arma ideológica se reduz apreciavelmente”
(apud MENDONÇA, 1995:18).
Podemos inferir que a linguagem cinematográfica, principalmente a
linguagem poética que se faz presente na filmografia de Bertolucci, permite em
sua construção, por meio da explicitação discursiva, ler o implícito e difundir o
imaginário ideológico ou utópico do diretor “engajado”, sem reduzir ou
comprometer a qualidade artística do filme.
Contribuindo com essas reflexões sobre cinema-arte e cinema político, nos
lembramos dos pensadores da escola de Frankfurt quando enunciavam que a
arte não pode mudar a sociedade, mas é capaz de transformar a consciência
daqueles que modificam o mundo. Isso porque indica um princípio da realidade
incompatível com a coerção política e psíquica, adquirindo um tônus
revolucionário especial. Essa consciência, transformada pela arte, pode modificar
o mundo e é aquela que aciona os projetos utópicos nascidos na imaginação e
que permite o “vir a ser”, denunciando quando o princípio de realidade é
compatível com coerção social ou individual.
Desta forma, a arte é o caminho para a substituição de um princípio de
realidade por um princípio estético, como ocorreu em de maio de 1968. Essa
dimensão estética é reapropriada na filmografia de Bertolucci, que a revela na
possível intencionalidade das representações de transgressão e transcendência
de dados culturais e sociais contidos no imaginário de uma época. Os motivos
presentes na filmografia de Bertolucci, desde os anseios juvenis por um mundo
melhor, os matizes sociais de uma determinada realidade, as esperanças
revolucionárias de jovens personagens que espelhavam com fidelidade o
também jovem diretor, fazem do cinema, para Bertolucci, não apenas um veículo
de denúncia, mas um instrumento de transgressão no qual ética e estética
encontram o máximo equilíbrio, permitindo-lhe realizar o sonho professado de
mesclar a arte e a vida, ou seja, “viver películas” e “pensar
cinematograficamente”.
Em seus filmes encontramos, de forma latente ou manifesta, o conteúdo
de um futuro “ainda não” surgido, demonstrando a validade da reflexão:
“Toda grande obra de arte, abstraindo sua natureza manifesta,
repousa sobre a latência do outro lado, isto é, sobre os conteúdos de um
futuro que na sua época ainda não havia surgido, ou mesmo sobre os
conteúdos de um estágio final desconhecido
” (BLOCH, 2005: 127).
Retornemos à carreira do cineasta Bertolucci e sua estréia como diretor
em 1962, aos 21 anos, quando Pasolini o indica para, juntamente com Sérgio
Citti, fazer o roteiro de um filme baseado em um argumento de sua autoria. O
empenho do jovem Bertolucci levou-o a ser convidado pelo produtor Antonio
Cervi para dirigir o filme La Commare Secca - A morte. Esse filme apresenta uma
crítica social à falta de perspectiva e de esperança que assolam os jovens da
geração pós-guerra, um filme em que o passar do tempo não é medido na
atemporalidade do desejo, mas pelo relógio que marca o tempo da não
realização pessoal.
Sua primeira obra considerada “prima” é o filme Prima della Rivoluzione -
Antes da revolução, lançado em 1964 com roteiro de Bertolucci e Gianni Amico e
direção do próprio Bertolucci. Esse filme, que à época de seu lançamento passou
despercebido na Itália, ganhou notoriedade na França entre 67 e 68 por
aparentar ser “a consciência antecipadora” da Primavera de 68 e será motivo de
análise específica no próximo capítulo.
O ano de 1968, marcante para uma geração, foi também o ano em que
Bertolucci rodou o filme o Partner (1968) e viu a consagração, como já dissemos,
de seu filme Antes da Revolução, que à época de seu lançamento, 1964, passara
despercebido na Itália e, agora, na França ganhava o mercado internacional. Em
entrevista concedida a Luis Carlos Merten o diretor fala que, estando nessa data
na Itália a filmar o Partner, permanecia atento à França e “acompanhava tudo
pelos jornais e TV, que estava descobrindo a instantaneidade e transformava o
mundo em uma aldeia global. Telefonava todo dia para meus amigos na França.
E, na Itália, as coisas também iriam explodir em seguida. Maio de 68 virou um
protesto mundial”. A força das imagens, especialmente da televisiva, assim como
o poder da comunicação de massa, encontra um intérprete em sintonia com o
mundo.
Os filmes acima citados são considerados políticos e refletem a postura
de um intelectual engajado, distanciado do fascismo e aliado aos regimes de
esquerda. Sem duvida, Bertolucci era um intelectual engajado, comprometido,
ligado às esquerdas, e que no início dos anos 60 via “se desfazer, ou pelo menos
se complicar, o projeto de uma ligação imediata e orgânica entre seu trabalho
artístico e um movimento de emancipação popular de perspectiva revolucionária”
(SARAIVA, 2002:1).
A preocupação do cineasta em analisar, refletir e compreender a história
recente da Itália o emparelha a uma corrente de pensadores contemporâneos.
Portanto, alguns de seus filmes também podem ser classificados como históricos,
têm no diretor um agente que procurou a história e se baseou na História, sem
comprometer sua liberdade de criação. Aliando a ação artística à ação política e
histórica, foi gerada a possibilidade de parte da população, cujo repertório
pessoal permitia fazer sentido, apropriar-se da estética da utopia.
Passando tangencialmente pelos filmes La Commare Secca (1962), Antes da
Revolução
(1964), chegamos ao épico 1900 (1976), que conta os principais fatos
históricos desse século, La Luna (1979), Beleza Roubada (1996), Assédio (1998),
filmes que têm em comum o fato de serem rodados na Itália, embora nem
sempre sejam filmes produzidos pelos estúdios italianos ou protagonizados por
atores italianos. Mas são filmes que, de uma forma ou de outra, tratam de algum
aspecto da história italiana sob a ótica de um diretor italiano. São filmes nos quais
as questões políticas, culturais, sociais e ideológicas estão presentes e que
representam esteticamente os movimentos que buscam dar forma a um mundo
melhor. Nesses filmes de Bertolucci encontramos traços característicos do neo-
realismo italiano: a paisagem da Itália, a crônica do dia-a-dia, o valor de
documentário, matizados por uma forma que ultrapassa esse movimento na
apropriação de novos temas e novos modos narrativos.
Uma outra temática, a procura do pai, figura que no imaginário ocidental
corresponde à autoridade, ao poder e ao conhecimento, visto que entre eles há
uma relação de interdependência, é recorrente nos filmes
La Luna, Beleza
Roubada
e A estratégia da Aranha. Uma outra hipótese de interpretação seria o rito
de passagem; morre o adolescente ao encontrar e “sepultar” o pai herói.
Ressaltando que uma pluralidade de ideologias pode coexistir em um
mesmo contexto histórico, voltamos a Mannheim (1986) ao assumir que os
estados de espírito que rompem com a ordem existente estabelecida pela
autoridade podem ser ideológicos ou utópicos. Entretanto, o pensamento utópico
se difere do ideológico porque o primeiro, por meio da contra-atividade, poderia
transformar a realidade histórica em outras realidades. Dessa relação entre
utopia e realidade histórica, Mannheim (1986) desprende uma perspectiva
dialética entre ideologia e utopia: ”cada época permite surgir - em grupos sociais
diversamente localizados - as idéias e valores em que se acham contidas, de
forma condensada, em tendências não-realizadas que representam as
necessidades de tal época”.
Seria imprudente afirmar que os filmes de Bertolucci pertencem ao gênero
utópico, tal como fazemos com algumas obras literárias, embora ideologias e
utopias sejam motivos recorrentes. Se o gênero utópico existir no cinema, poderá
estar mais próximo ao da ficção científica do que dos gêneros professados por
Bertolucci.
No conjunto de obras deste cineasta italiano o que encontramos é a
observação e a crítica de determinadas situações historicamente dadas e a
representação dessa busca, com o encontro ou não de uma nova realidade
possível. Partindo da realidade tangível, vivida em um agora, para uma realidade
desejável, futura, mas não intangível, estabelece-se uma ponte, um estado
relacional entre o “ainda não”, estado esse que para Bloch (2005) sempre
impulsiona o homem. Assim, as representações do surgimento das doutrinas
marxistas levam o espectador a experimentar sentimentos, sensações, emoções
que são vivenciados por meio dessas imagens visuais e verbais, mas que, ainda
assim, entram na construção de seu imaginário em que um remanescente
utópico poderá dar à luz a um novo “ainda não”. Desta forma:
“A ordem existente dá surgimento a utopias que, por
sua vez, rompem com os laços de ordem existente, deixando-a livre para
evoluir em direção à ordem de existência seguinte
” (MANNHEIM,
1986:222-223)
Até mesmo nos filmes de Bertolucci que são adaptações de obras
literárias - O Partner, A estratégia da aranha e O conformista - os componentes
ideológicos e utópicos aparecem e as situações da narrativa original são
transportadas para a narrativa cinematográfica no contexto histórico-social da
política italiana, conforme veremos a seguir.
Situemos o filme O Partner, uma adaptação de O sósia, de Dostoievski, e
sua recepção pelos críticos.
“É um filme sobre a crise de identidade, sobre o duplo que é
qualquer um de nós, sobre a contestação e sobre a crise da contestação,
sobre a desmistificação do cinema como espetáculo, um filme teórico e
passional o tempo todo, lúcido e romântico, com meio caminho entre um
ensaio e um romance atual. O dissídio entre pensamento e ação, quando
alguém que apresenta consciência crítica, uma autêntica maturidade
histórica, não se arrisca a resolver sobre esse mesmo plano as diversas
situações das experiências humana e social, política e ideológica. Essa
contradição existencial, que é a base do filme e nele reflete um sutil e
misterioso fascínio, é também a causa do substancial do fracasso
artístico da obra, que não se resolve sobre o plano da forma - aberto a
qualquer experiência estética - se não como proposta, como tendência
teoricamente tão interessante quanto praticamente confusa.”
(CATÁLOGO BOLAFFI,1975:53)
Esse filme foi ignorado pela crítica e detestado pelo público, um filme que
poderia ser entendido em um futuro ou simplesmente ser esquecido. Ao ser
indagado sobre qual a interpretação válida para esse filme, Bertolucci disse que
existem tantas interpretações de um filme quantos forem os seus espectadores,
reforçando a importância que assume o imaginário da recepção no sentido de um
filme. Produzido originalmente para a televisão, o que obrigou o diretor a uma
depuração da linguagem, esse filme sobre o fascismo e o antifascismo
contemplou uma proposta político-estética, labiríntica e conturbadora. A
sincronização entre áudio e imagens, usado pela primeira vez no cinema italiano,
caracterizou uma nova experimentação, uma forma de transgressão do diretor à
ordem cinematográfica vigente.
O conformista (1970) foi adaptado do romance de Alberto Moravia e é
também um filme sobre a Itália fascista. Foi indicado para o Oscar de melhor
adaptação. Fascismo, maio de 68, morte e homossexualismo fazem parte da
trama que reflete a contradição da época fascista, que é a impossibilidade de
libertação do indivíduo dos condicionamentos sociais, a problemática da busca e
da “morte do Pai” como condição de liberdade existencial.
“Bertolucci articula em
O conformista
uma maturidade de
visão e de representação da realidade, na qual consente uma
interpretação crítica, sem renunciar às seduções do espetáculo. O filme é,
também, muito mais que uma possibilidade de leitura psicanalítica de
um personagem que reflete a contradição, a paúra, a desilusão, é a
história de uma geração que, superando o entusiasmo de 68, não arrisca
ainda a encontrar um equilíbrio justo entre as várias situações de análise
crítica as quais a realidade se submete.”
(CATÁLOGO BOLAFFI, 1975:
98)
O texto do escritor argentino Jorge Luis Borges, Tema do traidor e do herói
[1942(1999)], cuja história poderia se passar na Polônia, em Veneza, em um país
sul-americano, é transferido por Bertolucci para a Itália, especificamente para o
Vale do Pó. Nesse conto de Borges a confluência entre ética e estética se realiza
de um modo particular que permite liberar o herói da identidade de traidor, apesar
de serem a mesma pessoa. São valores antagônicos: em um mesmo
personagem coexistem a fidelidade e a traição a um ideal. A transposição do
texto escrito por Borges - Tema do traidor e do herói - para o filme A estratégia da
aranha
acarretou mudança no título sem comprometer sua dimensão mítica
20
.
Duas temáticas são tratadas a rigor no filme: a ética do herói e a estética,
esta simbolizada na alegoria da estratégia da aranha que, ao tecer a teia com o
mais fino fio existente na natureza, desvela o mistério da vida transformada em
uma intrincada teia ou, do ponto de vista narrativo, em uma trama admirável
21
.
20
A estratégia da aranha, na mitologia grega, é tecer os fios de sua vida desde que a jovem
Aracne - nome do qual deriva a palavra aranha - uma mortal, conhecida pela beleza de sua arte
de bordar e tecer desafiou a deusa Minerva a comparar suas habilidades com a dela. A audácia
de Aracne faz dela uma heroína entre os gregos da Ásia, principalmente porque não é vencida
em seu talento para as artes e sim pelo poder divino.
21
Na mitologia o herói designa o protagonista de uma obra narrativa ou dramática. Encontra-se
entre os deuses e entre os homens, tem uma dimensão semidivina marcada pela ambigüidade:
representa a condição humana na sua total complexidade e transcende a mesma condição na
medida em que apresenta, facetas e virtudes superiores as dos homens. O heroísmo caracteriza-
se por se um ato moral porque implica a opção do herói pela fidelidade a seus valores. Nessa
opção moral se constrói toda estética (CAMPBELL, J. em
A saga do Herói. Copyleft LCC
Publicações Eletrônicas.)
Embora o filme respeite a proposta filosófica do conto de
Borges, ele cria um clima de pintura metafísica. Concordar com a
manutenção do mito, ainda que simpático e populista, equivale a ficar
do lado de fora da história. Repetir sempre a mesma linha de análise é
uma estratégia tão existente quanto a da aranha, condenada a tecer
eternamente a mesma teia, mesmo que as moscas nem existam mais”
(RAMOS, 2006).
O uso da câmera subjetiva, as personagens agonizantes em cenários
decadentes, a quase totalidade de cenas gravadas em ambientes fechados, a luz
difusa, permitem caracterizar o polêmico O último tango em Paris, com traços do
estilo noir. Esse estilo apresenta uma estética fortemente influenciada pelo
expressionismo alemão, apresentando personagens obsessivos, mulheres com
sexualidade aflorada e usada conscientemente para a destruição, personagens
que se deparam com maior perigo psicológico que físico. As cenas de nu
feminino frontal, de sexo anal, são evidentes transgressões nos anos setenta, um
tempo incipiente do processo de luta pela liberdade sexual iniciada na década
precedente
22
.
Mas esse mesmo filme, seu maior sucesso comercial, foi o que maior
humilhação lhe rendeu. Escandalizou milhares de espectadores que se sentiram
moralmente afrontados com as cenas de sexo anal, principalmente aquela em
que se utilizou manteiga para facilitar a penetração, e pelo nu frontal. O diretor
22
Gênero noir: gênero cinematográfico muito popular no final do século XX e que
basicamente significa escuro. Apresenta elementos de perversão/transgressão moral,
destino, traição/ilusão, característicos das relações humanas sob risco. É um gênero
questionador, suas formas narrativas fazem uso ostensivo da voz over e da câmara
subjetiva, pondo em relevo a subjetividade de personagens agonizantes em cenas
decadentes (MENDES, Ranulfo A. M. 2004).
não só viu a destruição física das cópias que foram, como na Inquisição,
queimadas na Itália, como foi condenado a dois meses de prisão condicional e
cerceado em seu direito de voto por cinco anos por atentado violento ao pudor.
De forma explosiva, transgressora, ousou contar, para uma sociedade
ainda não preparada para essa revolução estética, a história de um homem e
uma mulher, de dois corpos que se comunicam com a linguagem do amor;
sujeitos sem identidade em uma fuga sem saída. A história de duas pessoas sem
nome, sem passado, encontrando no sexo a melhor forma de comunicação.
Toda manifestação sensual presente em O último tango em Paris poderá ser
entendida como utópica, se para isso nos afastarmos das antigas concepções
que propunham trabalho em comum, organização de espaço, educação, e
procurarmos nas concepções clássicas uma nova perspectiva, mudando para
isso o enfoque de leitura, diz COELHO (1985:90) ao mostrar que Fourier passa a
ter coisas interessantes a dizer em sua obra O Novo mundo amoroso, na qual
elaborava todo um cálculo do prazer chamado de “felicidade positiva”, cuja base
era o prazer sensual: a liberdade amorosa, uma boa mesa.
Em termos de prazer tudo é permitido na utopia de Fourrier, descrita em
Harmonia; há entrega às paixões e o exacerbamento do prazer pessoal. Nessa
concepção, Fourrier realiza a maior transgressão, reunindo contra si todas as
ideologias, contrapondo-se do Cristianismo ao Marxismo
23
. E, nesse enfoque, O
23
Charles Fourrier (1722-1837): filósofo e economista desenvolveu um projeto de reforma
econômica social e humana, uma utopia que visava a harmonia universal. Essa harmonia
seria atingida coma criação dos falanstérios, pequenas cooperativas nascidas da
associação de trabalhadores. Além de adeptos na França, Estados Unidos e Inglaterra, no
Brasil, na Colônia Cecília, estabelecida por volta de 1890 no Paraná, é de inspiração
fourierista.
último tango em Paris apresenta uma estética da utopia erótica da busca da
“felicidade positiva”.
O retorno financeiro de
O último tango em Paris permitiu a Bertolucci
realizar a filmagem do épico 1900, um filme sobre fatos marcantes do século XX
que abrange a Revolução Industrial, a ascensão do Socialismo, o Fascismo
Italiano, as duas guerras mundiais, o nascimento do Socialismo até o dia da
libertação, em 1945. É um filme que provoca reflexões e dá lugar à
representação das utopias políticas desse século e que foi para o diretor um
sonho de algo com tudo para ser.
Após L’addio a Enrico Berlinguer (1984) acontece a consagração de público
e crítica com O último imperador (1987), ganhador de nove prêmios Oscar.
Bertolucci justifica esse filme, apontado como uma concessão por alguns críticos,
pelo fascínio que essa história da China exercia sobre ele e pelo desejo de se
distanciar de uma Itália corrupta, consumista. A China era o lugar mais longe
para onde poderia ir. Para ele é um filme americano realizado fora dos estúdios
de Hollywood; é a história de uma mutação, de um imperador que se torna
cidadão como todos os outros após a tomada do poder pelos comunistas ou,
metaforicamente, de um homem que viaja da escuridão para a luz com as flores
e jardins. A pergunta latente nesse filme é: um homem pode mudar? Sim, no
mundo do cinema e no topos da imaginação ativa, sim. Os ideais transcendentes,
a morte como tema recorrente, a busca da verdade como uma “utopia” situada
fora deste mundo são temas dessa obra.
Na filmografia de Bertolucci perpassa uma atitude crítica em relação à
sociedade, principalmente aos problemas sociais, econômicos e políticos do povo
italiano. Com um estilo de narração poética, as cenas, os acontecimentos,
principalmente os ideológicos que marcaram tão profundamente a vida e a
cultura italiana, são retomados e reapresentados de forma criativa, sendo a
criatividade medida pelo critério de abrangência de seus efeitos, esclarecendo ou
propondo a releitura de uma situação.
“A linguagem cinematográfica, diz Bertolucci, não deve apenas
ilustrar o mundo dos personagens, mas sim inventá-los. Quando se fala
de linguagem, de estilo, todos os anos sessenta, pelo menos no modo em
que os vivi, eram a luz de uma revolta contra a linguagem, daquilo que
a Nouvelle vague chamou de cinema di papa. Era uma linguagem
contra as regras gerais. Recordo que, pelo enquadramento de Godard,
esse revolucionário, eu me matava” (Folha on-line Ilustrada
. 9/3/07).
Para não só ilustrar, mas inventar o mundo dos personagens, é
necessário imaginar, criar possibilidades, ver além do imediato, antecipar o que
ainda não é. A imaginação, representada no cinema por meio das imagens em
movimento leva à reflexão, à ampliação do campo real dos sentidos percebidos,
preenchendo-o com outros sentidos. A busca do enquadramento ideal, os ruídos
e o silêncio, a música, a qualidade da cor, a qualidade da luz, a movimentação da
câmera, a montagem, são essas informações estéticas que caracterizam os
filmes de Bertolucci, instaurando um universo amplo de sensações que serão
captadas de várias maneiras por diferentes pessoas. Pelas reflexões embasadas
nos motivos dos filmes, percebemos que os eventos políticos ocorridos na Itália,
que deixaram cicatrizes no povo italiano, que se configuraram como distopia,
foram abordados em muitos filmes de Bertolucci e de outros diretores como Dino
Risi, Francesco Rossi, Marco Bellocchio. A realidade italiana passa a ser história
fílmica. O fascismo predominou na Itália desde 1922 como um estado totalitário,
isto é, uma nova concepção de sociedade onde predominava a máxima: Tudo no
Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado”.
Em junho de 1940, Mussolini, Duce - aquele que conduz - aliado à
Alemanha, anunciou a declaração de guerra à França. A derrota em várias
frentes, o esquema de repressão usado pelo fascismo, o rompimento de uma
grata tradição da burguesia italiana, a dos voluntários de guerra - os partisans -,
levaram ao rompimento do povo com o governo do Duce. As greves que
começaram a eclodir em 1943, as publicações clandestinas, os bombardeios,
provocaram a destituição de Mussolini e a devolução ao rei de suas prerrogativas
e, simultaneamente, ocorreu o reaparecimento de uma extensa gama de partidos
políticos.
Internamente, a Itália, invadida, encontrava-se dividida: o sul, sob
proteção dos aliados, reconhecia o rei como chefe de Governo, o centro se
encontrava sob dominação alemã e, ao norte, Mussolini ainda estava
estabelecido com o apoio dos nazistas. Em 25 de abril de 1945, data que
segundo Cesare, personagem de Antes da Revolução, o povo italiano esquece com
facilidade, marca o fim do fascismo e da luta pela liberação. A Itália, no dizer de
Fabris (1996), “saía moralmente renovada dos acontecimentos de que fora palco
entre setembro de 1943 e abril de 1945. O país estava em ruínas, mas a tomada
de consciência das massas populares parecia ser uma garantia para o futuro
democrático da nação. Para os homens da cultura impunha-se a necessidade de
registrar o presente - e por presente entendia-se guerra e luta de libertação -,
fazer reviver o espírito de coletividade que havia animado o povo italiano. Na
cultura de imediato pós-guerra esse papel, de cronistas, seria desempenhado
pelos cineastas”, caracterizando uma revolução estética. Nesse contexto político-
social do pós-guerra desenvolveu-se o neo-realismo, movimento de amplo
espectro que abarca um conjunto de obras de diferentes autores, um
movimento/escola que influenciou gerações de diretores, entre eles Bertolucci,
que fazem cinema à maneira do neo-realismo
24
.
Para Miccichè (1995), nos filmes produzidos pós-guerra, mais
especificamente na década de 60:
Estava implícito que o fascismo fosse transformado em história
e que fosse representado com o desencanto psicológico e os distanciamentos
críticos de uma sociedade, nacional e internacional, que se julgava
definitivamente protegida em relação àquela experiência histórica”
(MICCICHÉ, 1995).
Os filmes de Bertolucci que tratam especificamente dos momentos
políticos da Itália pós-fascista, do florescimento dos movimentos de esquerda: -
Antes da Revolução, 1900, Partner, O conformista, A tragédia de um homem ridículo, A
estratégia da aranha
- apresentam uma dimensão mítica e, no caso de 1900, até
mesmo épica, e fazem uso de metáfora, metalinguagem, recorrência e analogia,
elementos da mensagem poética que transgridem os códigos consagrados e
24
Neo-realismo italiano é um tipo de produção cinematográfica que, entre 1945 e 1952, tentou em
maior ou menor medida, e com resultados mais ou menos positivos, levar o homem a refletir sobre
as relações entre o homem e a sociedade. (FABRIS, 1982:134)
habituais. As imagens dos personagens jovens, utópicos, idealistas,
contestadores, alicerçados nos elementos de identidade representados pela
linguagem e pelo território, pelo topo físico e familiar, permitem que sejam
relacionadas a desbravadores que abrem o caminho para a transgressão, para a
violação do interdito e também para a transcendência
25
.
O forte erotismo que marca o cinema de Bertolucci pode ser entendido
no limiar da transgressão, no prazer de violar as proibições decorrentes da
civilização que para sua existência necessitou do controle da instintividade
humana, instaurando a lei e a interdição. A interdição estabelece as regras do
controle do sexo e da agressividade, em um processo que leva o ser humano a
sonhar com a utopia do paraíso onde tudo seria permitido. O processo de
repressão da sexualidade torna Eros doente e a ele se sobrepõe Thanatos -
morte. Para Sócrates, Eros, descendente de Poros - riqueza e de Penia - Pobreza,
é um anelo de qualquer coisa que não se tem e se deseja ter. Platão,
subordinando Eros a Logos, o conceitua como ânsia de ajudar o eu próprio e
autêntico a realizar-se. A atividade erótica é uma busca psicológica independente
do processo de reprodução, é a possibilidade de comunicação com o outro,
rompendo a descontinuidade dos corpos; é o lugar máximo da manifestação da
individualidade. A primavera de 1968 foi um marco no processo da afirmação do
direito à sexualidade e da alegria por ela proporcionada. A dupla moral e as
25
Jovens. São muitas as discussões sobre o conceito de jovens na contemporaneidade.
Reportamo-nos aqui aos estudos do sociólogo português José Machado Pais, que considera: há
umas décadas era pacífica a associação entre uma presumível linearidade dos tempos do curso
de vida e a correspondente sucessão das gerações; à juventude correspondiam os tempos de
educação; aos adultos ativos os tempos de trabalho; à terceira idade os tempos da retirada do
mercado de trabalho. Na sociedade contemporânea o que vemos? Uma crescente interpenetração
desses tempos. Entre os jovens adultos, concretamente, combinam-se – sem qualquer
preponderância de nenhum deles – tempos de educação, de trabalho e de desativação laboral.
Machado é autor do livro Ganchos, tachos e biscates: jovens, trabalho e futuro. Porto, Âmbar,
2001.
formas hipócritas do relacionamento humano sofreram duras críticas, houve a
exigência de uma linguagem mais livre e menos preconceituosa adotada e
divulgada pelas vanguardas artísticas
26
, principalmente a cinematográfica de
Bertolucci.
Maio de 1968 aparece explicitamente na temática dos filmes Os
Sonhadores
e Beleza Roubada e implicitamente em Antes da Revolução como uma
prefiguração desse movimento. Está contido de forma latente em O Conformista e
também na liberdade ou permissividade de O último tango em Paris, cidade na qual
também se desenvolve a narrativa de Os Sonhadores.
Ao fazermos a análise dos motivos que perpassam a filmografia de
Bertolucci, buscando nas narrativas indícios da imaginação utópica, passamos a
entendê-lo como um diretor que atua como um sujeito social que, mesmo restrito
a um contexto sócio-histórico-cultural de produção, afetado pelos seus valores
éticos e estéticos , isto é, pela situação social e cultural mais imediata,
demonstra ousadia ao tratar de forma transgressora os temas polêmicos.
Herdeiro próximo do neo-realismo italiano, movimento que mudou profundamente
a gramática do cinema, o modo de conceber a encenação e também da
Nouvelle
Vague
, sua necessidade teórico-comunicativa o aproximou das temáticas sociais
e políticas sem descuido das motivações psicológicas dos personagens, com
acurada atenção ao conteúdo e principalmente à forma. Seus filmes apresentam
26
Vanguardas artísticas: grupos de artistas que abrem espaço para experimentos estéticos,
opondo-se às estruturas de poder autoritário. Deriva-se do francês
avant-garde, um termo militar que
designa o grupo de soldados que avança à frente do batalhão. Transferindo-se para a esfera
artística e cultural, designa os desbravadores, os que ampliam o espaço da linguagem artística por
meio de experimentações, rompendo estilos, propondo novos usos do código. (ARANHA, Martins.
1993: 357)
não só temas históricos, mas também coetâneos. Com muita habilidade ele
costura os dois lados da história, o político com sua pertinência social e
ideológica, e o pessoal com as dúvidas, conflitos e os sonhos dos personagens,
sonhos que podem representar uma utopia individual ou social que o cinema, por
meio de procedimentos de linguagem e de construção, comunica.
CAPÍTULO II
Os sonhadores de utopias na Primavera de 68
“Acredito que o melhor veículo para
colocar as pessoas em contato com o meio onde vivem é o cinema, porque,
ao contrário do jornal ou da televisão, ele controla inteiramente a atenção
do espectador”.
Francesco Rosi
Na empreitada de constatar que as utopias não desapareceram no mundo
moderno, optamos por estudar as representações da imaginação utópicas no
cinema, mais precisamente no cinema de Bernardo Bertolucci e, para esse fim,
elegemos os filmes Antes da Revolução, Beleza Roubada e principalmente Os
Sonhadores
que revivem na ficção o movimento “utópico” de Maio de 68, que
atingiu muitos países e marcou de forma indelével a geração que como
protagonista ou “espectador” dele participou.
Verificamos, no capitulo anterior, que o ser humano na sua mais primária
condição é um ser desejante, movido por uma força, um imperativo, uma
necessidade, uma esperança de alcançar um mundo e uma vida melhor, uma
utopia a qual de forma latente ou manifesta, é representada nos três filmes
mencionados. Gerada nos sonhos diurnos, a esperança, concebida como um
fenômeno ligado à atividade da “consciência antecipadora”, integrava o mito da
caixa de Pandora e, para melhor compreende-la, enquanto princípio, como
continente do novo, do ainda não consciente, nos valemos desse relato
mitológico.
A saga sempre notável de Pandora faz a esperança ser trazida aos
homens por uma mulher, assim como nos filmes citados as personagens
femininas - Gina, Lucy e Isabelle -trazem a esperança de uma nova realidade.
Ernst Bloch, em O Principio Esperança, apresenta duas interpretações para
a caixa que Pandora trouxe por parte de Zeus, o qual desejava vingar-se de
Prometeu por haver lhe roubado o fogo e o distribuído entre os mortais. A
primeira versão diz que a caixa continha todos os males e ao ser aberta, -
doença, deformação, fome, - voaram para fora, somente a esperança
permaneceu na caixa trancada por Zeus. A esperança nesse caso aparece
também categorizada como um mal, embora com ela Zeus pretendesse consolar
os homens. Com o passar do tempo os antigos começaram a entender a
esperança como um bem, uma virtude, um princípio. Por isso uma versão
posterior, helenista, apresenta a caixa de Pandora como uma caixa de mistérios
e não de malefícios. De acordo com esta versão, os presentes enviados por Zeus
fugiram da caixa, mas não conseguiram se espalhar entre os homens. A
esperança permaneceu na caixa, tornando-se o único bem que resta aos homens
quando os outros se perdem, pois ela sustenta o ânimo para buscar os bens
faltantes. A sua constância e não-resignação na procura dos bens que não
comparecem testemunham que a esperança não pode desaparecer porque, se
isso ocorrer, o processo em curso no mundo se perde.
A queda do mundo de Berlim em 9 de novembro de1989 marcou,
segundo NAGIB (2006:15), o fim da utopia socialista e a vitória do neoliberalismo pós-
moderno e antiutópico
. Esse fato levou alguns, como o próprio Herbert Marcuse
guru do movimento de 68, a proclamarem a morte da utopia ou o possível
desaparecimento da esperança.
Nesse contexto sócio-cultural do final do século passado o cinema, de
uma forma geral, ao representar a realidade também se revelou carente de
gestos utópicos e se apresentou nostálgico ou violento. Mas como a esperança é
o bem que não se perdeu que restou ao ser humano, a utopia nela contida
ressurge: partindo da imaginação individual o elemento utópico vai se compondo
na rede do imaginário social em um “excedente” e encontra no cinema
contemporâneo o local ideal para sua manifestação e representação visual-
estética.
O diretor Bernardo Bertolucci cujo cinema é tido como cinema de arte,
cinema político e de poesia, representa, como tema recorrente em sua
filmografia, a utopia que é tema central em Os Sonhadores, narrativa ficcional
inspirada na Primavera de 1968, ocorrida em Paris, considerada, pelo próprio
diretor e sua geração, uma utopia do século XX, mas também uma mistura de
decadência e revolução.
Assim como a Primavera de 68 outras revoluções -1789 (Revolução
Francesa), 1830(Revolução Liberal), 1848 (Primavera dos Povos), 1871 (Comuna
de Paris) -, fizeram de Paris, a cidade Luz, a sua capital e, assim “iluminadas”
continuam a atrair a atenção de estudiosos, intelectuais, políticos e artistas.
Transcorridos quase 40 anos, a Primavera de 68 se mantém atual e
suscita discussões, estudos, constitui-se em argumento para ficção literária,
cinematográfica, tanto que, apenas três anos após ter aparecido nas telas de
cinema como tema do filme
Os Sonhadores, retornou às telas com filme Amantes
Constantes
27
.Os dois filmes pretendem mostrar que em Maio de 68 o mundo sem
sonhos foi substituído por uma utopia considerada em sentido renovado;
enquanto uma revolução acontecia a céu aberto e não tomava o poder, outra,
eclodia dentro de cada um na busca de princípios individuais.
Falando sobre o filme: Amantes Constantes, de Philippe Garrel, Olgária
Matos,no artigo Paris,1968 :polis contemporânea argumenta a respeito da
Primavera de 68 que
Uma situação revolucionária não se reconhece pela tomada do
poder, mas por sua potência de sonho, por sua excedência, excedência
que é sobrevida. O que dá a conhecer que um momento transformador se
encontra em suspenso na espera”
(MATOS, 2006 D 7) “.
Encontramos forte analogia entre esse pensamento e os estudos de Bloch:
potência do sonho, excedência, espera de um momento transformador. Esses
fenômenos encontram no cinema, na sua função comunicativa de modo
geral, o espaço privilegiado do “não - lugar”, das “verdades prematuras” onde os
efeitos estéticos, assim como as utopias, transcendem e transgridem as normas
estabelecidas. Ao dispor de inúmeras técnicas, inclusive as de montagem das
27
O escritor Olivier Rolin, militante de extrema esquerda do movimento de Maio de 68, escreveu o
romance
Tigre de papel (2006), no qual discute o que sucedeu após esse movimento, quando
segmentos da juventude, sentindo-se vencidos nas urnas, formaram organizações clandestinas
que praticavam o terrorismo e a violência.
cenas, o cinema permite, tal como acontece com o sonho diurno, revelar a
imaginação criadora de um novo “mundo possível.
28
“.
A estética de um mundo possível aparece no filme Antes da Revolução
quando Fabrício busca, através do engajamento no partido comunista, uma nova
cidade de Parma onde o rio não mais a divida entre ricos e pobres e no filme Os
Sonhadores quando Matthew, um jovem que se recusara a lutar no Vietenã,
também se recusa a praticar atos violentos no movimento de Paris, pois sonha
em mudar o mundo pelo amor e não pela violência. Sem nos prendermos
rigidamente aos princípios da decupagem clássica, aplicaremos as três
categorias de análise destacadas das teorias de Bloch e Mannheim - consciência
antecipadora, transgressão e estética da utopia - na trama ficcional desses
filmes, levando em consideração que a concepção estética se manifesta como
representação simbólica no universo diegético.
Ao considerarmos Maio de 68 uma utopia, o filme Beleza Roubada - seja pela
época em que foi filmado, seja pela própria mensagem em que, simbolicamente,
ocorre a morte dos sonhos da geração de 68 ou pela própria concepção estética
quando as imagens se sobrepõem a mensagem, - é representativo de uma época
pós-utópica e envolve o receptor em uma temática na qual o rito de passagem de
uma jovem para a condição de mulher pode resgatar o excedente utópico que
estava adormecido naquela villa que almejava ser a concretude da utopia.
28
.Bloch distingue imaginação da fantasia: a primeira permite a consciência humana adaptar-se a
uma situação especifica ou mobilizar-se contra, a segunda através de um conjunto de imagens
procura compensar uma insatisfação vaga ou difusa.
Nos filmes de Bertolucci a função metalingüística, característica dos filmes
modernos é recorrente e, em Os Sonhadores, a representação estética dessa
função ocorre através dos jogos cinestésicos de seus protagonistas, o que lhe
confere grande originalidade. Nesse filme a estética da “revolução” de Maio de 68
é submetida à estética da revolução subjetiva dos três jovens protagonistas
quando as transgressões vividas pelos personagens se tornam fatores
determinantes dos recursos estilísticos capazes de gerar identificação com o
público receptor.
O cinema nos cenários convulsivos dos anos 60 foi como um correlato de
todos os anseios juvenis por um mundo melhor e mais justo. Muitos diretores ao
produzirem filmes nessa época deixaram nas suas obras as marcas de seu
engajamento político, seu desejo de justiça, suas esperanças e utopias. É nesse
contexto que Bernardo Bertolucci inicia sua carreira e, animado por um espírito
contestador e poeticamente transgressor, faz uma crítica a essa realidade
apresentando no filme
Antes da Revolução, o engajamento e a capitulação de um
jovem burguês, fato que quatro anos depois aconteceria na França com os
operários. No filme
Antes da Revolução analisa Lino MICCICHÉ (1995:207).
Bertolucci reflete, espelha, vive e em parte prenuncia, até mesmo por sua
contemporaneidade, o fenômeno da contestação que entre 1967 e o primeiro
semestre de 1968 realiza sua própria representação.
Dessa pré-visão do movimento de 68, decorrente da observação dos fatos
que aconteciam e antecediam o movimento, emanaram questões estilísticas e
técnicas que foram mantidas no filme Os Sonhadores, uma pós-visão do
acontecimento. O inicio dos dois filmes se assemelham: um jovem caminhando
pelas ruas da cidade, utilização da voz em of, close-up. Nos momentos finais os
dois protagonistas caminham em sentido contrário as bandeiras vermelhas.Esta
cena em Antes da Revolução demonstra o rompimento do jovem burguês com o
Partido Comunista Italiano e em Os Sonhadores, quando esse acontecimento
revivido na ficção já havia se tornado um “fato histórico” que culminou com o uso
violência por grupos de jovens sem perspectivas de promover mudanças em uma
nova ordem, que desprezavam o passado e temiam o futuro, esse caminhar
revela o sonho de não sufocar a individualidade às “massas”, de manter viva a
utopia de promover mudanças sem violências. Após a descrição de cenas
escolhidas dos três filmes que elegemos como os mais representativos de uma
“estética da utopia” no cinema de Bernardo Bertolucci passaremos a análise,
mas, antes, precisamos ressaltar que falamos em estética da utopia e não em um
estilo utópico, pois entendemos que se houvesse estilo utópico ele, em sua
representação, estaria mais próximo ao da ficção científica.
29
Já vimos que o cinema é uma invenção da modernidade, nascida no âmago
da revolução industrial e que perpassa a revolução técnico-científica caracterizando
- se sempre como um motivo estético que se assemelha com a utopia no seu
caráter pré-figurativo capaz de antecipar os fenômenos sociais, políticos e culturais.
A dimensão propriamente estética apresenta mudanças devido aos
fenômenos inerentes à modernidade, já analisados - reprodução mecânica e
29
A categoria “estética da utopia” foi criada pelo cineasta Aníbal Quijano quando atribui à utopia e
ao estético fundamental importância na recuperação do conceito de modernidade latino-
americano, ainda não realizado historicamente, mas vivo nas obras literárias do peruano José
Maria Arguedas (RAMALHO MENDONÇA,1995). Apropriamo-nos dessa categoria para
demonstrar a importância do cinema na representação dos mundos utópicos possíveis.
massiva, a produção em massa e a difusão ou circulação dos produtos culturais -
que, ao menos em tese, permite a acessibilidade, quase simultânea na sociedade
globalizada e afeta diretamente as produções cinematográficas, pois no seio da
revolução tecnológica emerge também uma revolução de hábitos, costumes e
valores humanos que tangem o juízo de apreciação do sujeito receptor.
O filme se constitui também em uma nova técnica da modernidade, mas
“a sua pertença à arte está decidida pela pertença a pantomina”, diz Bloch para quem:
A obra de arte, para além de sua essência manifesta, ainda foi
concebida sobre uma latência de aspecto vindouro, vale dizer, sobre os
conteúdos de um futuro que no seu tempo ainda não haviam surgido.
Essa é a única razão porque as grandes obras de cada período têm algo
a dizer, algo novo, que o período anterior não havia percebido”
(BLOCH, 2005:100). Por isso, “toda grande obra de arte,
abstraindo-se sua natureza manifesta, repousa sobre a latência do outro
lado, isto é, sobre os conteúdos de um futuro que na sua época não havia
surgido, ou mesmo sobre os conteúdos de um estágio final desconhecido
(IDEM: 127)”.
Resgatamos a similaridade entre algumas técnicas cinematográficas,
como o acompanhamento de cada lance pelo espectador, a música, a
deslocabilidade do detalhe e até de agrupamentos já fixados, e o sonho
acordado, local privilegiado do nascimento da imaginação utópica, onde o “eu”
está sempre presente - seja como sujeito ou observador - tornando justificável a
relação pretendida entre cinema, como obra de arte, e utopia, pois ambos se
sustentam na possibilidade de um futuro melhor, tangível pela imaginação e pelo
sentimento que suscita.
Dentre os recursos de que dispõe a produção cinematográfica,
destacamos como categorias de análise a serem aplicadas, - em um processo de
reciprocidade com as categorias de análise emanadas do pensamento de Bloch e
Mannheim,- a voz em off, o close-up e a metalinguagem.
A “voz em off é um recurso da linguagem do cinema moderno em que
narrador e personagem se definem em função do arranjo fílmico. Esse recurso
hiper-realista, que a principio não se distingue do monólogo interior, permite ao
espectador tomar conhecimento do que se passa na subjetividade do
personagem, precedendo a sua exposição na narrativa, o que nos leva a
relacioná-la com a categoria da “consciência antecipadora” de Bloch, ou seja,
partindo de um estágio de insatisfação chega-se a apropriação de um “ainda
não”, numa tensão, cuja finalidade é o superamento definitivo dessa carência.
O “close-up” é um movimento de aproximação da câmera, capaz de
apresentar apenas o rosto ou um detalhe da figura humana, ou de uma cena,
ocupando a quase totalidade da tela. Com esse movimento “rompe-se” a situação
original da cena ocasionando, quase que em uma invasão, uma exposição da
subjetividade pela sua objetividade. Relacionamos essa categoria com a
transgressão, definida por Mannheim como uma ruptura com a ordem
estabelecida.
O terceiro recurso, a
metalinguagem, receberá maior atenção no terceiro
capítulo, mas, para a finalidade ora proposta; podemos dizer que, a
metalinguagem
é o cinema falando do cinema , colocando em cena o “mistério” de sua essência
ôntica e será relacionado a estética da utopia pois aí o cinema se auto-reflete e
expõe “a matéria “com a qual foram tecidos os sonhos das sociedades.
Nos três filmes de Bertolucci que descreveremos a seguir, as relações
entre o realmente acontecido, o socialmente pensado - ideologias e utopias - o
poeticamente imaginado, testemunham o estilo vanguardista do diretor sempre
pronto a transgredir o uso do código cinematográfico e a escolher temas voltados
às questões sociais contingentes. Essas categorias, representativas do estilo na
produção cinematográfica de Bertolucci – o realmente acontecido, o socialmente
pensado, e o poeticamente imaginado (sempre na narrativa fílmica) - serão
aplicadas ao filme Os Sonhadores, em um processo de inter-relação com as demais
categorias, como ilustrado na tabela abaixo.
Pensamento existencial Produção cinematográfica Estilística narrativa
Consciência antecipadora
Voz em off
Realmente acontecido
Transgressão
Close up
Socialmente pensado
Estética da Utopia
Metalinguagem
Poeticamente imaginado
2.1. ANTES DA REVOLUÇÃO
Titulo:
“Antes da Revolução”
Ano de Produção: 1964
Estúdio: Iride Cinematográfica
Diretor: BERNARDO BERTOLUCCI
Roteiro: BERNARDO BERTOLUCCI
Fotografia: ALDO SCAVARDA
Montagem: ROBERTO PERPIGNANI
Trilha Sonora: GINO PAULI E ENNIO MORRICONE
Elenco Principal:
Gina: ADRIANI ASTI
Fabrizio: FRANCESCO BARILI
Agostino: ALLEN MIDGETTE
Cesare: MORANDO MORANDINI
Clélia: CRISTINA PARISETE
Um Amigo:GIANI AMICO
Sinopse : Fabrizio, um jovem de 22 anos,extremista, passa por uma fase
de indecisão afetiva e ideológica.Em torno desse personagem, um “rebelde” que
busca no engajamento político o caminho para a autenticidade, o filme articula
suas questões mais ambiciosas.
A frase do camaleônico diplomata francês, Tayllerand,
30
Quem não viveu
os anos antes da revolução não sabe o que é a alegria de viver
” foi fonte de inspiração
para o título do filme, Prima della Rivoluzione -Antes da Revolução - , um filme em
preto e branco, construído em dois tempos.Por haver sido filmado quatro anos
antes de Maio de 68 e só ter sido distribuído em Paris entre 1967 e 1968 ele fez
na França o sucesso que não conseguiu na Itália.Naquele momento a juventude
revolucionária reconhecia no discurso de Fabrizio contra a moderação, as suas
próprias palavras. O filme parece ter adiantado, prefigurado o que estava para
acontecer, constituindo-se em um fenômeno de consciência antecipadora.
Filmado em Parma, cidade natal do cineasta, este é um filme emblemático
sobre a juventude revolucionária dos anos 60. O jovem Fabrício interpretado por
Francesco Barilli vive um conflito interno de indecisão política e afetiva. Encontra-
se dividido entre a ideologia burguesa de sua família e as demandas do Partido
Comunista ao qual é filiado e cujas regras transgride por não conseguir viver na
utopia revolucionária do futuro nem no passado heróico. È uma revolução sem
armas e sem trincheiras, uma dicotomia que se faz acompanhar por forte tensão
sexual. Sobre esse filme Bernardo Bertolucci declara “é uma espécie de gesto
ritualístico que eu fazia, jogando com minha semelhança com o protagonista, que
30
Tayllerand foi um diplomata francês, extremamente hábil e em alguns casos inescrupuloso, que
se manteve próximo ao poder constituído por décadas: iniciou no movimento da Revolução
Francesa, permaneceu durante todo o Império napoleônico e, por fim, na Restauração.
vinha a ser meu coetâneo, talvez fosse algo um tanto fora de seu tempo no que
concerne à Itália, no sentido de adiantado, encontra seu momento adequado em
Paris, quatro anos mais tarde” (PRUDENZI e RESEGOTTI. 2006:126-127).
Tela preta, uma voz narrando: ”foi preciso que acontecessem muitas coisas... foi
preciso que eu sofresse, que você sofresse muito. Existia porque vocês existiam.Agora estou
quieto, agarrado às minhas raízes, parece-me que não existo mais
.” A seguir o enunciado
“num domingo de abril de 1962, pouco antes da Páscoa, em Parma” indica o espaço e o
tempo do jovem Fabrizio que corre pelas ruas a procura da noiva. As imagens
cinzentas de um cenário real são típicas dos filmes do neo-realismo documental.
Enquanto corre uma voz, a do próprio personagem, narra diegeticamente seus
pensamentos, ou mais precisamente, a poesia “La religione del mio tempo” de
Píer Paolo Pasolini.
31
.
Em
close-up, Fabrizio, um jovem burguês em crise que tenta romper com
sua condição de classe, e a cidade de Parma dividida entre ricos e pobres, na
Itália democrata-cristã dos anos 60, representa a segunda categoria analítica: a
transgressão
31
A narração diegética está explicita na narrativa através do relato feito pelo personagem e que
transcreveremos em itálico para melhor entendimento. O texto poético de PASOLINI é o seguinte:
E, entretanto, Igreja, até você eu viera.Pascal e os cantos do povo grego seguravam firmes na
mão/Varreu a resistência, com novos sonhos, o sonho das regiões federadas em Cristo e seu
doce – ardente rouxinol/Ai de quem não souber que é burguesa essa fé cristã/no signo de todo
privilégio, de toda redenção, de toda servidão/que o pecado é só um crime de lesa certeza
cotidiana/odiado por medo e aridez/que a Igreja é o desalmado coração do Estado.
Como num sonho vislumbro as portas da cidade” A câmera em plano geral
mostra a cidade e o rio que a divide entre ricos e pobres, mostra a praça, as
casas no seu entorno, os casarios burgueses à direita do rio; alterna-se com
primeiros planos do personagem e aponta para o misterioso ato do nascer de um
pensamento. A voz continua:
“E de novo a praça. Bem no meio da cidade e tão próxima
aos campos que de noite sentimos o cheiro de feno. A praça que nos dá à sensação de estarmos
numa arena murada”.
A cidade de Parma, uma cidade rural que começa a se modernizar,
também é uma protagonista do filme e não meramente paisagem. A noiva
predestinada, Clélia (Cristina Pariset), deve ser rejeitada assim como a cidade, e
seu modo de vida, conforme diz Fabrizio “ela é a parte da cidade que eu rejeitei. Aquela
alegria de viver que eu me recuso a aceitar. Encontrei-a e quero olhar para ela pela última
vez.
” Aparece Clélia saindo da igreja com sua mãe: uma jovem e bela mulher,
elegante, com roupas e penteados convencionais, conservadores; uma burguesa.
Esta narrativa em primeira pessoa indica um “eu” falando sobre algo que viveu e
o transformou. É uma voz interior de quem fala consigo mesmo e demonstra o
conflito interno, as incertezas existenciais do jovem burguês, ao mesmo tempo
em que apresenta uma velada critica ao modo de vida na Itália dos inícios dos
anos 60, época da reestruturação social e econômica. Referências a hegemonia
democrata –cristã e as teorias filosóficas-existencialismo, marxismo - associam-
se a trechos poéticos do poema de Pasolini.
Há, manifestamente, uma tensão, um estado de insatisfação cuja
finalidade é a superação de uma carência que conduz a apropriação do “ainda
não consciente”, uma instância psíquica capaz de produzir o sonhar para frente.
.
Agostino e a insatisfação com o modo de vida burguês , encarnado pela sua família, são
simbolizadas nas quedas que acontecem ao fazer malabarismo com a bicicleta.
Em outra seqüência ocorre o encontro com Agostino - Allen Midgette, que
passeia com sua bicicleta(pode ser uma alusão ao filme Ladrões de Bicicletas,
marco do néo-realismo italiano, enquanto Fabrizio se dirige à casa de Cesare -
Mirando Morandini, seu mentor na ideologia marxista
32
e acontece a primeira
referência ao cinema,- recurso metalingüístico freqüente na filmografia de
Bertolucci -, quando Fabrizio diz ao amigo:
Qualquer coisa, a política ou até a poesia
pode lhe servir. Tudo o que você faz ou diz tem sentido. Até seus erros tem sentido. Vá ao
cine Pace assistir
O rio Vermelho
33
. A utilização da função metalingüística ocorre
em relação a um filme americano, cinema considerado “menor” pelos cineastas
tradicionais europeus, mas que contava com o reconhecimento de alguns críticos
dos Cahiers du Cinema. A narrativa do filme o Rio Vermelho apresenta
32
Esse personagem pode ser uma homenagem ao mestre Cesare Zavatini.
33
Rio Vermelho: Filme de Howadr Hawks,de 1948, do gênero faroeste.Montgomery Clift era um
jovem defensor da justiça no Oeste Bravio, contrariando as convicções de seu padrasto
representado por John Wayne.
semelhanças com a situação familiar de Agostino, personagem em conflito com o
modo de vida dos pais, que encarnam os valores culturais da burguesia,
Não sabemos se há uma elipse de tempo ou se uma outra versão do
encontro mostra Agostino, bêbado, demonstrando sua insatisfação com o modo
burguês de vida de sua família, enquanto faz malabarismos com a bicicleta e
dedica cada tombo – duplicado pelos cortes em descontinuidade - a uma pessoa
de sua família e o maior a si próprio, metaforicamente falando sobre seus
fracassos e pré anunciando a autodestruição que se confirmará com o suicídio:
Você reclama e foge, tua luta deve ser interna, fala Fabrizio. E Agostino lhe responde: E
você o que faria? O que você acha que está fazendo? A Revolução?
Fabrício segue seu caminho deixando o amigo e candidato a discípulo da
ideologia de esquerda com seus conflitos, pois, como um burguês que renega
suas origens , crê na possibilidade de um mundo melhor, mundo esse que
poderá ser conquistado através de uma ideologia como a do Partido Comunista,
da qual tomou conhecimento através de Cesare. Uma revolução sem armas, mas
de evolução de idéias, de ideais, de valores, de sentimentos, traz a Fabrício a
esperança em dias melhores que se tornarão possíveis graças a sonhada “utopia
comunista” que poderá apaziguar sua angústia existencial.
Gina, uma personagem aflita e neurótica, que refuta as normas, simboliza a transgressão dos
“filhos da burguesia”ao viver uma relação incestuosa com o sobrinho e percebe que para seu
sofrimento só há um remédio:os outros. O sobrinho tenta, na esfera política, leva-la ao
engajamento que, sem sucesso, pretendia ter oferecido a Agostino.
De Milão, uma cidade moderna, chega tia Gina - Adriana Asti, irmã da
mãe de Fabrizio, para tratar-se de uma crise nervosa. Jovem, bonita, liberal é
bem recebida pela irmã, pelo cunhado, pela avó, pelos dois sobrinhos e
demonstra grande afeto pelo sobrinho mais velho, do qual se aproxima mais após
a morte de Agostino. No funeral de Agostino, estando Fabrizio em um estado
emocional de grande fragilidade, a tia começa a seduzi-lo.
É o início de uma relação incestuosa mostrada, a princípio, em uma
seqüência de cenas em que, em quartos separados, os dois corpos movimentam-
se com muita sensualidade, um indício de vidas paralelas, destinadas ao
desencontro. No dia da Páscoa, nos fundos do prédio onde a família reside, no
local anteriormente ocupado por uma tipografia, o encontro acontece em um
signo de transgressão as regras socialmente estabelecidas, como demonstram
as fotos acima. Gina, personagem ambígua, alterna momentos de extrema
angustia e transtorno com outros de leveza e infantilidade. A aproximação do
casal acontece em torno dessa ausência/ presença da morte, e talvez num
mecanismo de substituição do amigo ela passe a ser uma referência para as
formas de negação e contestação de Fabrizio no seu “aqui-agora”. A cena de
amor, às vésperas de um domingo de Páscoa, é bastante significativa
principalmente se considerarmos não somente o sentido cristão dessa festa. O
incesto se apresenta como uma das mais contundentes formas de transgressão
as regras sociais, morais e religiosas, portanto um rompimento brutal com as
amarras do mundo burguês.
A angústia existencial da juventude burguesa ,conforme SARAIVA
(2002:30), leva a alternativas diferenciadas de respostas: Fabrizio busca novos
horizontes através do engajamento político,-o que o leva ao idealismo e a
reificação, Gina no conviver –que conduz a neurose e Agostino no rompimento
individual que o leva ao suicídio.
Nestas cenas da câmera ótica há uma construção de sentido entre espectador e imagem e a
enunciação de um sonho -correspondente a primeira categoria - que se rebela contra a
ordenação burguesa do tempo e que só o cinema pode realizar: o desejo de parar o tempo
.
Pouco antes do intervalo entre o primeiro e segundo tempo, na única cena
colorida do filme, Fabrizio emerge e desaparece na Praça de Parma, local de
encontro de jovens sonhadores, fazendo encenações, ao som de uma trilha de
filme mudo, observado por Gina em uma “câmera ótica”, uma sala de espelhos
que projeta, em um espelho interior, o que se passa lá fora, Quando ele retorna à
câmera ótica, beijam-se. Viu só? Gostou do filme? Pergunta Fabrizio e a tia lhe
responde: É um belo exemplo da realidade Esquece os meses de maio a setembro -
primavera- quem sabe onde estaremos no outono?
A questão da experimentação temporal é explicitada no diálogo entre o
sobrinho e a tia:
Fabrício: Tu viste? Gostou do filme?Como cinema-verdade não está mal.
Tia: Aos domingos vocês ficavam vendo as garotas irem à missa. Depois, havia a feira,
os saltimbancos, os ursos amestrados.
Fabrizio: Este momento aqui eu não trocaria por nada. E mesmo que esteja
passando, eu não me importo.
Nessa seqüência da câmera ótica há a explicitação verbal e cênica de
questões fundamentais do filme: a metalinguagem, manifestando o que em
outras seqüências era latente, o cinema – aí metaforicamente apresentado como
espetáculo, como cinema-verdade, a questão da temporalidade como uma
possibilidade utópica de “parar o tempo” num eterno presente. ”Perdoa o instante
por passar”,
diz Fabrizio.
Nas falas de Gina também é explicita sua angustia em relação à
passagem do tempo e a neurose que a ordenação burguesa provoca ao enunciar
que cada dia vivido é menos um a viver. Para SARAIVA (2002:46) esta seqüência de
cena “conjuga a lucidez sobre o caráter construtivo da obra com a crença do
cinema ser uma ponte para a comunicação autêntica em um mundo alienado, é
ao que a forma do bloco se propõe, fazendo explicita e metalingüisticamente o
que os outros blocos faziam de modo implícito”.
Na casa do mestre comunista os três confrontam idéias sobre o sentido da História
,concepção de mundo , a relatividade do tempo e, podemos deduzir, da substituição
do rádio por meios mais modernos de comunicação de massa.
O segundo tempo se inicia com a ida do casal a casa de Césare. Gina
tenta ouvir o rádio, o meio de comunicação mais popular, que só funciona após
ser esmurrado por Césare. O ativismo político, o idealismo das doutrinas de
esquerda, o repúdio ao fascismo aparecem nos textos dos alunos de Césare, um
professor que sempre insiste com o tema 25 de abril de 1945, embora ciente de
que os italianos não o entendem, ou melhor, entendem, mas o esquecem
depressa, com facilidade. Retirando aleatoriamente livros e cadernos dos alunos
que se encontram na estante Fabrizio lê: Nosso professor nos ensinou que a palavra
liberdade quer dizer justiça e democracia. No dia 25 de abril, terminado o fascismo, começou a
paz.
Também a idéia de revolução, de lutar por mudanças e, com base na
doutrina marxista, recorrer à luta armada se preciso for, presente no contexto
ideológico do professor Cesare, é passado aos alunos, pois o professor percebeu
que não é possível ensinar os adultos, somente as crianças.
Gina faz a leitura de um outro texto: “quando tivermos descoberto as leis
científicas que governam a vida veremos que o único que tem mais ilusões que o sonhador é o
homem de ação. Mas os homens são escravos das palavras. Eles investem contra o
materialismo. Lembre-se que nunca houve uma melhora material que não espiritualizasse o
mundo. E que não houve um despertar espiritual que não dispersasse a faculdade do mundo
em estéreis esperanças”.
A câmera fecha com meio plano de Gina segurando próximo
ao rosto o livro onde se lê “Oscar Wilde”.
A partir dessa cena “trava-se” um diálogo sobre história, a modificação do
individuo, do mundo e a passagem do tempo. E para ilustrar Gina , com uma
antiga brincadeira, começa a contar uma história.
Era um velho mestre como o senhor, que tinha um discípulo como ele. E os dois
caminhavam pelo campo. Certo dia o velho mestre dis
se ao jovem:
- Estou com sede pode ir buscar um copo d água?
O jovem disse sim e caminha pela estrada. Encontra uma fonte e atrás dela uma aldeia encantadora.
E o professor Cesare continua:
Nessa aldeia conheceu uma garota encantadora. Casaram-se tiveram filhos, e viveram juntos 20
anos. Após vinte anos uma terrível epidemia mata todos e ele é o único sobrevivente. Tinha envelhecido e
desesperado saiu a andar. Chegou ao ponto onde havia deixado o velho mestre. E o vê ali sentado: _ Quanto
tempo você levou para buscar um copo de água, fiquei esperando a tarde toda.
Eis porque o tempo não existe, fala Gina.
A relatividade na percepção do tempo, apontada nesse texto, conduz ao
tempo no cinema, um tempo ubíquo, circular, um pantempo - passado, presente
e futuro mesclados. - que não existe no exato sentido de
Chronos
34
.
34
Chronos -que representa o tempo objetivo, cronológico, contado, aparece na mitologia como o deus grego
que, incitado pela mãe e ajudado pelos irmãos, os titãs, castrou o pai (Urano, o céu), separando-o de sua mãe
(Géia ou Gé, a terra), e tornou-se o primeiro rei dos deuses. Seu reinado era ameaçado pela profecia segundo a
qual um dos seus filhos o destronaria. Chrónos então devorava todos os filhos que lhe dava sua mulher, Réia, até
que esta o enganou e salvou Zeus. Este, quando cresceu, arrebatou o trono do pai e o expulsou do Olimpo,
banindo-o para o lugar do tormento. Segundo a interpretação clássica, Chrónos simbolizava o tempo e por isso
Zeus, ao derrotá-lo, conferira, então, a imortalidade aos deuses. (Enciclopédia).
Barsa,1999).
Na casa de Cesare, Fabrizio sente-se protegido da vida burguesa,
parece encontrar junto ao professor seu mundo ideal.Na visita em que se faz
acompanhar por Gina e procede a leitura dos trabalhos esses manifestam o
projeto existencial, político e pedagógico deste professor de crianças, que possui
a capacidade de ordenar os pensamentos dos alunos e de seu preceptado
ideológico, Fabrizio.
A função
metalingüística
aqui é manifestada através do cartaz referente ao
filme de Godard,na imagem da sala de cinema, também vista como um refúgio e na
conversa com o amigo que faz da estética cinematográfica um modo de vida.
Em outra seqüência Fabrizio, após um desentendimento com a tia, dirige-
se ao Cine Orfeu onde o cartaz indica o filme La donna é una donna
35
.
Encontra-se com um velho amigo, um cinéfilo representado por Gianni Amico, na
mesa do bar anexo ao cinema. Este fala que para ele nada faz lembrar mais o ano de
1946 do que Humprey Bogart e Laureen Bacall no filme de Haws. Há filmes que vi oito
vezes, até 15 vezes. É possível viver sem Hitchcok e Roselini? Criticam Resnais e Godard,
mas filmam melhor que De Santis e Lizzam, até mesmo que Franco Rossi...Uma
panorâmica, por exemplo, é um estilo
e estilo é moral. Lembro-me de uma panorâmica circular
de Nicholas Ray que é um dos pontos mais altamente morais. Bem engajado na história do
cinema.
35
La donna é uma donna , filme de Godard lançado em 1964.
Nesta seqüência mais uma vez há uma alusão explicita ao cinema com o
uso da função metalingüística ao prestar homenagem aos diretores e destacar a
importância dos filmes que passam a ser referenciais na vida do espectador. O
cinema em sua função metalingüística promove uma construção de sentido entre
o espectador e a imagem e os filmes e diretores citados, além de incitar o desejo
de conhecer o desconhecido funciona como uma homenagem aos que fizeram a
história do cinema.
Um pintor, que parece simbolizar o olhar da burguesia, Puck o amigo que recebe
Gina e se reconhece como burguês falido, e o dissentimento entre Gina e Fabrizio
indicia a capitulação de Fabrizio ao conformismo
.
Na fazenda Satgno Lombardo, cujo proprietário é um velho amigo de Gina,
Puck - Crecope Barilli, ocorre a mais poética seqüência de cenas do filme,em
que, através do mergulho subjetivo do burguês Puck , Fabrizio, como em um
espelho, também se reconhece como burguês .
A paisagem, espaço topológico, filmada em diversos planos e ângulos, é
o cenário para a pungente declamação de Puck sobre a situação da burguesia
falida, sem lugar no mundo produtivo do advento da modernidade. O dique, o
pântano, o Padova, um pintor. Os planos se alteram entre esses três
personagens. Lá embaixo, quase escondido o Pó. As terras de Stagno Lombardo
estão hipotecadas e Puck, caminhando, olhando para suas terras, para a beleza
local, declama:
Desde que meu pai morreu há cinco anos tudo degringolou. Pode me
imaginar sem meu ganha pão? Que farei, começar trabalhar? Nunca trabalhei... nunca
estudei. Diziam que a terra me sustentaria. Sou um ignorante, quase uma toupeira e teria
vergonha de roubar um salário.
E Fabrizio questiona: Como tem sido até agora? Detesto a falsa sinceridade. É
muito fácil fazer exame de consciência nessa situação. Por que não o fez antes
?
Puck: : não percebe o que significam os costumes, os hábitos.
Um pescador em sua jangada vem se aproximando e Puck lhe diz:
É preciso esquecer o rio. Dizem que precisamos nos esquecer dele. Virão aqui com
suas máquinas. E trarão também suas dragas. Haverá homens de todos os tipos e barulhos
dos motores. Quem cuidará dos álamos para que eles não congelem? Não sobrará nada, não
haverá mais verão, não haverá mais inverno. Para você também será o fim, diz olhando para o
pescador. Vá para trás, afunde esse barco Não mais pescaremos o lúcio juntos. Os pássaros
não passarão mais, não mais ficarão sobre a mira de minha espingarda. E chega também de
galinha, o vôo dos gansos selvagens. É isso meus amigos
.
O barco sendo tragado pelo nevoeiro sugere o fim de um tempo, de um
modo de vida que Puck reforça dizendo: “Aqui termina a vida e começa a
sobrevivência
”, frase esta que é a literal tradução da antiutopia, da morte dos
sonhos e das utopias a que nos referimos no primeiro capítulo.
Fabrizio se reconhece, nessa declaração. Percebeu que seria igual a Puck
com o passar do tempo e teve a sensação de que para os filhos da burguesia
não haveria saída. O real, a pura existência imediata e intransitiva, na forma
captada por Fabrizio gera angústia. Para Olgária MATTOS “o real é algo estranho
ao significado. É inteiramente diverso do verdadeiro, pois o real é estranho à
linguagem e à dimensão simbólica, é o que resiste à simbolização”(2006:31)
Estas cenas ligam, talvez de forma mais forte que nas anteriores, a
análise política ao entendimento das motivações psicológicas das personagens,
sob a costura poética do diretor. Através do discurso de Puck , Fabrizio se
reconhece como burguês. As tomadas de cena durante o discurso do fazendeiro
falido e não adaptado ao modernismo, conduzem ao lirismo das atividades
naturais de uma vida bela e agradável como o último canto do cisne, quando
essa vida, atingida também nas relações sociais, se transforma em
sobrevivência. Ao ver a destruição do mundo ao qual está organicamente ligado,
Puck reconhece o seu lugar, a sua identidade e a sua incapacidade de seguir o
fluxo do tempo. Puck não buscou o novo, o “ainda não”, antes se acomodou a
uma situação, não reconheceu o dissonante, o remanescente de um excedente
utópico que funcionaria como mola de um novo ciclo imaginativo. Fabrizio,
através do discurso subjetivo de Puck se identifica e se conforma com sua
condição de burguês por sentir-se incapaz de situar-se no presente em
transformação. Há uma ruptura com sua atitude de engajamento e também um
rompimento com Gina, símbolo da liberdade e do novo.
O caminhar de Fabrizio acompanhado por Cesare em direção à câmera e em
desencontro com as bandeiras no Parque Ducalle revela no filme, de forma
estética, a anti-utopia.
Gina retorna a Milão e Fabrizio e Cesare vão ao Parque Ducalle onde está
sendo preparada a Festa Dell Unita, que acontece ao final do ano. Nessa cena
antológica vemos Fabrizio caminhando no sentido contrário ao das bandeiras,
enquadrados entre cartazes e grafismos. Esse caminhar, como alegoria, fala
mais alto que o próprio diálogo de Fabrizio com Cesare. Sinto que está tudo errado. Até
mesmo essa diversidade - apontando pra a diversidade de bandeiras. Não falamos a mesma língua e queremos
as mesmas coisas? E pensar que perdi metade do verão, está tudo indo para o brejo.
O povo acredita em tudo, isso me dá medo, diz Fabrizio ao ser inquirido sobre a
morte de Marilyn Monroe,noticiada em jornais. E Césare responde: Enquanto
acreditarem em nós
... E Fabrizio indignado: Sem contestar? E se estivermos errados?
Césare: Há indícios de uma forte consciência popular.
Ao que Fabrizio responde: Não me bastam os acontecimentos de julho de 60, as
revoluções de um dia. Não me bastam as guerras, as agitações sindicais com suas bandeiras
vermelhas. Em 48, talvez... Mas hoje, quem faria greve pela liberdade de Angola? Quem vai
combater na Argélia? Quem vai a praça protestar pela morte de um negro? Nem os protestos
me bastam mais. Quero um homem novo. Uma humanidade onde os filhos respeitem os pais.
O que o partido fez pelo Agostino?
Césare: A morte dele fez você despertar. Porque exige do partido aquilo que não foi
capaz de fazer?
Fabrizio: Certa vez você me emprestou um livro, havia uma frase sublinhada. “Os
homens fazem sua história num ambiente que os favorece”. Eu sou a exceção dessa frase, é
preciso abrir os olhos. Você tentou me abrir os olhos e era o que eu esperava. Mas sou como
uma pedra, nunca vai mudar. Queria encher Gina de vitalidade, mas só consegui deixá-la
angustiada Não quero modificar o presente, aceito-o como é. Mas meu futuro de burguês está
no meu passado de burguês, portanto, a minha ideologia foi coisa passageira. Achava que vivia
os anos da Revolução, mas estava vivendo os anos anteriores a ela. Pessoas como eu estão
sempre à frente da Revolução
.
Nesta seqüência em que se dá o debate entre consciência popular e
ideologia do Partido, os dois são enquadrados contra um fundo tomado por
cartazes de lideres da esquerda; a resignação de Fabrizio reverte-se em uma
atitude absolutamente antiutópica; o personagem que aparenta estar vivendo os
anos antes da revolução, mas estando a sua frente, não encontrou kairós, o
tempo certo, maduro, para o evento.A realidade e a fantasia se mesclam nessas
cenas, numa ousadia do diretor, assim como mesclam a articulação entre História
e realidade.
Na realidade, a filmagem dessa seqüência, foi peculiar. Todos os anos,
durante o verão, o Partido Comunista Italiano organizava uma grande festa em
diversas cidades italianas com a participação dos filiados e de quem quisesse
pagar o ingresso para assistir aos shows musicais e filmes que eram
apresentados. Esperar uma festa para filmá-la como um documentário ou
reconstituí-la, com toda riqueza de detalhes, foram às alternativas propostas a
Bertolucci. Nem uma nem outra alternativa foi aceita. O diretor acabou optando
por reconstituir a preparação da festa, os momentos organizacionais, para
diminuir os custos. O enquadramento de Cesare e Fabrizio caminhando em
sentido contrário as bandeiras vermelhas, este criticando o povo que acredita em
tudo o que “deu no jornal”, denunciando a aspiração do proletariado ao modo de
vida que até então condenava, demonstram a decepção e a ruptura do jovem
com a ideologia do partido comunista e a força que os meios de comunicação de
massa desfrutam na modernidade. Nessa época também ocorria o
distanciamento entre o jovem Bernardo Bertolucci e o Partido Comunista Italiano.
As cenas finais equacionam esteticamente as questões ideológicas demonstrando
que Fabrizio ao não romper com a ordem vigente, ao não superar a ordenação
burguesa, deu lugar ao conformismo e a resignação antiutópica.
Nas cenas finais o rompimento definitivo com Gina, ocorre quando esta
volta a Parma para assistir a ópera Macbeth, de Verdi. A tia acompanha o
sobrinho, durante o intervalo, até o camarote onde Clélia o aguarda. Cesare
encontra-se em outro camarote do qual observa Fabrizio. O reatamento com
Clélia é um emblema do fim de uma vida idealista e a resignação à vida
provinciana de Parma dividida entre o mundo camponês, arcaico e o advento da
modernidade. Numa cena, em montagem paralela, enquanto Fabrizio e Gina se
casam, Césare, cansado de ensinar adultos, usa a parábola de Moby Dick para
demonstrar às crianças que a obsessão do capitão Ahab pela baleia branca o
conduzirá a um desastre, Essa obsessão simboliza um conflito perene entre o
bem e o mal ou uma viagem ao interior de si mesmo.
Este filme, para Pasolini, seria a expressão da subjetividade obsessiva de
seu autor, mascarada sob a psicologia da personagem Gina (SARAIVA.
2002:33).
Para Bertolucci, conforme depoimento abaixo, é um filme revolucionário e
como tal recusou a linguagem e o tipo de histórias impostas pela sociedade em
que se vivia.
“Meu filme não é um tratado de história política, mas uma obra
pessoal que fala de um jovem provinciano, um tanto extremista. O fato
de esse filme estar adiante de seu tempo lembra certa transgressão
pessoal, que era o fato de eu ser politizado por um lado e muito ligado
ao cinem , por outro
” (PRUDENZI E RESEGOTTI.2006:127)
Para nós é um filme que registrou o imaginário social de uma geração e o
imaginário individual de um diretor que, com direção ousada, representou a
história coetânea posicionando-se à frente de seu tempo.Neste enfoque, o filme,
representa a categoria da “consciência antecipadora”, de um vir a ser que, de
forma muito similar, ocorreu em 1968. Um filme político que pensa o passado
histórico da ascensão do proletariado simbolizado na vida dividida, angustiada de
um jovem burguês, em torno do qual são organizados os diálogos político,
filosóficos, os sonhos de um mundo melhor, mas que se rende ao perceber que a
esperança de transformação pela qual a esquerda havia trabalhado desde a
guerra, estava sendo sufocada pelo aburguesamento da classe revoltosa.
Este filme remete também a certa transgressão pessoal do diretor, por
apresentar alguns temas muito precoces para a Itália de então. Numa
similaridade, nos acontecimentos de maio de 1968, também estudantes,
burgueses, intelectuais, artistas, proletários se uniram na luta por mais liberdade,
melhores condições de trabalho, mais justiça social. Entretanto percebendo que
se encontravam num tempo “antes da revolução”, conscientizando-se que, como
Puck, não haviam se preparado para uma nova ordem social, os operários e
burgueses recuaram e positivaram pelo voto o regime então vigente na França.
Se a realidade, no caso de maio de 68 “copiou a ficção” e tal qual o personagem
de Bertolucci esteve adiantado no tempo, ela não se resignou totalmente, antes
transformou-se em uma revolução de costumes e em uma nova ordem estética
conduzida pelos movimentos de vanguardas, e deixou um “ excedente utópico”
que, na concepção de Bloch , como todo sonho utópico, dará origem a um novo
sonho diurno onde, havendo possibilidade, o eu solitário, alienado, se v
transformará em “nós” ,sujeito coletivo de uma humanidade liberada e
emancipada.
Nos anos 60 a Itália vivia uma reestruturação ocasionada por um novo
capitalismo, que sob o conservadorismo da democracia cristã sepultou a
esperança de transformação empunhada pelas esquerdas, que, divididas, como
representadas e criticadas no filme nas cenas do Parque Ducalle, acabam se
fragilizando. Parece-nos também que, mesmo responsabilizando o Partido pelo
aburguesamento do proletariado, Fabrizio recusa o que vê. Ousamos aqui dizer
que esse comportamento de Fabrizio é ideológico, uma representação do
pensamento de Mannheim sobre ideologia e utopia: embora ambos sejam
incongruentes com o estado de realidade em um dado momento só as utopias
podem romper e transformar a ordem social existente, orientando a conduta para
elementos que a situação ainda na contém.
Nos momentos iniciais do filme já encontramos os indícios do primeiro
nível de categoria com o estatuto do que ouvimos em off - foi preciso que
acontecessem muitas coisas...foi preciso que eu sofresse ,que você sofresse muito Agora que estou
quieto, agarrado às minhas raízes, parece-me que eu não existo mais
- nos mostra um
jovem em conflito, em uma tensão que poderá levar a apropriação de um “ainda
não!
Essa voz, sobre a tela ainda preta, fala de um “eu” que busca uma
transformação, uma mudança. Esse “eu”, descobrimos a seguir, é um jovem
burguês, Fabrizio, que, na narrativa fílmica, rejeita a ordem social de sua classe
rejeitando também, como conseqüência a religião católica e a noiva Clélia e
busca uma nova realidade que poderá ser propiciada através da ideologia de
esquerda e do Partido Comunista Italiano.
Ilustrando a categoria da transgressão, um close-up da tia e do sobrinho
dá a significação psicológica e dramática à relação incestuosa, que acontecia na
narrativa fílmica.
Na seqüência, em que após desentender-se com Gina, Fabrizio vai ao
cinema e no destaque aparece o cartaz do filme de Godard, Una donna é una donna,
ao sentar-se na mesa com o amigo, interpretado por Gianni Amico, este em um
discurso extremista, fala numa panorâmica - rotação da câmera em torno de um
eixo fixo - de 360 graus aludindo ao caráter político do cinema e relacionando estilo
com moral.É possível encontrar nessa fala uma metáfora à situação ideológica do
personagem Fabrizio que deseja como em uma panorâmica girar 360 graus na
procura de um mundo melhor. Mas como, na modernidade a utopia política não tem
mais lugar, ele retorna ao ponto de partida.
Esse filme em que se unem uma sólida narrativa, um marcante estilo e uma
perturbadora poética, a representação autobiográfica do diretor-através do
personagem Fabrizio é sublimada pela biografia de uma geração. Nesse período, o
diretor Bernardo Bertolucci, um intelectual engajado, também vivenciou o
afastamento do Partido Comunista Italiano, mas embora se distanciando de uma
utopia política não abdicou dos sonhos, que permaneceram como remanescentes,
excedentes utópicos, como iremos verificar na análise do filme Beleza Roubada.
2.2 Beleza roubada
Titulo: Beleza Roubada
Ano de Produção: 1996
Estúdio: Fox Sersrchsligth Pictures
Diretor: BERNARDO BERTOLUCCI
Roteiro:SUZAN MINOT E BERNARDO BERTOLUCCI
Fotografia: DARIUS KHONDJI
Montagem: JEREMY THOMAS
Trilha Sonora: RICGARD HARTLEY
Elenco Principal:
Lucy: LIV TYLER
Alex: JEREMY IRONS
Diana: SINEAD CUSAK
Sra. Guillaume: JEAN MARAIS
Ian: DONAL MAcNN
Richard: D.W. MOFFETT
Roberto: NICOLO DONATI
Com história e direção de Bernardo Bertolucci, Beleza Roubada foi filmado
na região de Toscana, no ano de 1996, formando um diptico com Os Sonhadores,
pois ambos tratam de maio de 68, embora, no primeiro o tema principal seja
o rito de passagem da jovem Lucy Harmon, interpretada por Liv Tyler.Com
diálogos em inglês o filme apresenta uma rica trilha sonora, na qual se destacam
Billie Holliday, Nina Simone e Stevie Wonder.
Sinopse: Após o suicídio de sua mãe, Lucy, uma garota americana viaja
para a Itália onde passará algum tempo com amigos da família. Nessa viagem
ela espera rever um antigo namorado e encontrar seu pai biológico, que ela
ignora quem seja.
Ao chegar a Itália a jovem americana recebe uma fita de câmera digital de um
desconhecido que a filmou enquanto dormia , ouvindo música em fones de ouvido.Já
ocorre o uso da função metalingüística referindo-se a uma forma moderna de se
fazer cinema.
A jovem Lucy, após uma viagem aérea que tem como ponto de partida os
Estados Unidos, dorme em um trem .
Ao chegar em Siena é acordada por um estranho, do qual se ouve a voz e
se vê apenas o braço com uma pulseira exótica. Descendo do trem, percebe-se
filmada por esse cavalheiro, que lhe entrega a fita e revela que ela lhe é
familiar.Vestindo jeans, tênis, mochila nas costas, ouvindo música em fone de
ouvido, Lucy toma um táxi e chega até a vila em Chianti onde moram amigos de
sua mãe. Há quatro anos ela ali estivera em companhia da mãe, a poeta Sarah
Harmon, uma bela, elegante e contestadora mulher, formada nas lutas e anseios
de 1968.
Nas primeiras seqüências de cenas há uma referência explicita a novas
formas de filmar: a pequena câmera digital usada pelo passageiro do avião que
também se encontra no trem que chega a Siena, alude à importância do cinema
e da tecnologia que parece subordinar o mundo como força construtiva.A própria
viagem pode ter, em um sentido figurado, a conotação de mudança, da busca de
um “novum”.
A jovem chega a um mundo moldado para ser o”lugar” das utopias geradas nos
sonhos dos anos 60 e , sua presença, possibilita a descoberta de que , tal como
a história, o “paradigma” utópico também se transforma
.
Alojada em um quarto de hóspedes Lucy conhece os outros hóspedes: o
escritor Alex Parish - Jeremy Irons) que está morrendo de câncer, e que também
conhecera e fora amigo, ou até “algo mais”, de Sarah, sua mãe. Os ingleses
Diana, a dona da casa, e seu marido Ian , reconhecido artista plástico que são
os pais da menina Daisy e também hospedam um velho crítico de artes , Guy, já
perdendo a lucidez. Uma consultora sentimental, Noemy, a filha do primeiro
casamento de Diana, Miranda e o namorado também são hóspedes nessa villa e
aguardam a chegada de Cristopher -filho de Diana- que viaja com o amigo e
vizinho Niccolo Donati.
Embora filmado de forma a mostrar as paisagens da Itália, uma tendência
neo-realista, os artistas e personagens principais do filme não são italianos. A
jovem Lucy é americana, portanto, portadora de um imaginário sócio-cultural
diverso do europeu, que se traduz na sua forma de vestir, nas músicas que ouve,
no modo de dançar. Percebemos também nesse filme o contraponto entre dados
culturais que se representam nos hábitos, costumes, nas roupas. O casal de
proprietários da “villa Chianti” é inglês e o escritor, em estado terminal, também
não é italiano. Nesse núcleo apenas a consultora sentimental, Noemi, é italiana e
se expressa nesse idioma, os outros personagens se comunicam na língua
inglesa. A villa vizinha oferece um contraste por pertencer a uma família italiana
que cultiva as tradições e preza o modo de vida desse povo.
Os limites históricos, culturais e lingüísticos estão presentes na narrativa; a
hospitalidade, na forma como é apresentada, manifesta à resistência desse grupo
em conservar um modo de vida decorrente dos valores da contracultura de 1968.
As aspirações humanas e a tentativa de concretizá-las foram estudadas por
Mannheim que apontou mudanças, ao longo do tempo, na forma de estruturação
do pensamento que se voltaria para lugares ou épocas desiderativamente
construídos, em função de uma insatisfação com a realidade. Seria, neste caso,
um tipo de utopia “conservadora”, como a de Chianti.
A liberdade comportamental e os valores da contracultura, propiciaram um modelo
de “sociedade alternativa” onde os tabus, os interditos, que em um determinados
momentos da história se tornaram necessários, foram abolidos.
A chegada da jovem que, aparentemente, veio para ter seu retrato
esculpido por Ian, logo após o suicídio da mãe, mexe com o imaginário e as
emoções de todos, principalmente com as do escritor e do casal proprietários da
villa. Durante uma conversa, ao saber que a jovem era virgem aos dezenove
anos, Alex lhe pergunta:
Não é uma dessas jovens moralistas, é? Falo de sexo.
E Lucy explica
: Não é que eu nunca quis dormir com alguém. Houve o cara que eu
conheci no verão quando tinha quinze anos. Trocamos beijos e nos correspondemos. Ele disse
que tinha um animal à espreita no coração
.
A situação de esperar por um amor determinado, antagônico aos valores
da geração de sua mãe que lutara pela liberação do uso do corpo, da mente e
dos desejos, demonstra uma práxis da liberdade individual, das relações afetivas,
da concepção do corpo como comunicação, do respeito à busca da liberdade.
Esses valores são apregoados como da pós-modernidade, segundo GROPPO
(2005:275) revelou da leitura do texto de Gilles Lipovetsky ” os movimentos de 68
representam o fim do modernismo, a última manifestação da ofensiva lançada
contra os valores puritanos e utilitaristas(...), mas eles são também, o começo de
uma cultura pós-moderna.”
Ian acredita que a vinda da jovem, incentivada pelo pai esconde algo, já
que este não o conhecia e não gostara do retrato que o artista pintara de Sarah.
De qualquer forma a presença de uma jovem virgem em casa altera a rotina: o
artista sente-se inspirado para trabalhar como há tempos não o fazia, Diana
divaga enquanto o marido trabalha sem esconder sua nostalgia e preocupação,
Miranda sente ciúmes, desejaria ter de volta a juventude e, Daisy demonstra
alegria e Alex sente-se renovado.
Se para a geração de 1968 a liberdade sexual era um símbolo de
transgressão, nos anos 90, a transgressão poderia ser a própria virgindade.
A leitura dos poemas da mãe, uma intelectual engajada, assim como as
conversas mantidas com o escritor Alex ,expressam o desencanto da geração
de 68 que , no caso da poetisa, culminou no suicídio
.
A morte novamente aparece em um filme de Bertolucci: o suicídio de
Sarah, mãe de Lucy, uma jovem intelectual da geração de 68, transgressora,
livre, bem sucedida, mas que não conseguiu resolver seus problemas
existenciais. Uma filha, Lucy, cujos valores se contrapõem aos valores da mãe,
alguém que não precisa transgredir ou transcender para viver plenamente; isso já
foi feito pela geração de seus pais. Sexo não é mais um problema de ordem
moral, virgindade não é mais um tabu, um interdito é agora a liberdade de uma
escolha.
Alex, que representava a geração de Maio de 68 e o espírito libertário do
movimento,está morrendo de câncer e sua morte poderá sedimentar a morte dos
sonhos dessa comunidade onde eram preservados os valores de maio de 1968 :-
valorização da arte, convivência entre pessoas de diferentes idades, consumo de
maconha e liberdade ou permissividade sexual- e que se constituía em um
mundo tão particular que poderia até uma “vitrine da utopia realizada” e que
poderia solicitar passaporte para os que nele quiserem entrar.
Diana procura nas relações, nas conexões entre o passado e o presente,
encontrar a verdadeira razão da atual vinda da jovem.
Desconhece as razões que a trouxeram, não sabe que sua viagem é uma
busca do amor paterno e do amor romântico, sendo que o romantismo também
pode ser revolucionário.
A percepção do corpo, enquanto posa como modelo ou quando é sensualmente
beijada pelo namorado, é um motivo estético e figurativo da descoberta da própria
identidade.
Lucy, ao posar para Ian desnuda o seio e transparece o desejo sensual
de um homem mais velho por uma jovem. No seu imaginário pessoal Lucy traz a
esperança de reencontrar o garoto com o qual trocou seu primeiro beijo e cuja
paixão se manteve na troca de correspondência até pouco tempo.Lucy, em seu
sonho diurno, antevê o encontro do amor romântico, mas também procura a
figura paterna , pois na bagagem veio o diário da mãe no qual encontrou o
seguinte enigma:
Onde foram parar as sandálias verdes?
Não fui feita para ser mãe,
Tenho um coração ferido,
Então usei sandálias verdes para me afastar.
Uma noite um homem surgiu das oliveiras
Bateu na víbora até sangrar
E me pôs no chão
Só houve uma noite
Me deu uma folha de oliveira
E rasgou a alça de meu vestido.
Eu guardei, guardei as sandálias verdes
Mas não sai daquelas montanhas.
Itália, onde você me levou
Naquela noite escura e parada?
Ele tinha uma faca na mão
E uma esposa em qualquer lugar.
Ele segurou meu rosto
Dilacerou meu quadril
E plantou lá algo novo,
Estranho e próximo do amor.
Pensei que não tivesse mais nada,
Mas depois veio você
Me perdoe, eu não sabia seduzir quando tive, pobre Lucy, você.
Agosto de 1975.
A imaginação é uma forma de libertar-se do presente imediato levando a explorar
possibilidades e Lucy a cada encontro com amigos de sua mãe, imagina haver
encontrado o pai.
Lucy, em sua procura paterna simboliza o encontro de duas gerações: aquela
dos jovens que haviam vivido nos anos sessenta, que provocaram uma revolução
de costumes, liberalizaram o uso da maconha e da pílula anticoncepcional,
transgrediram nas palavras e despiram de qualquer poesia a perda da virgindade,
viveram sobre o arrebatamento de Eros e o esquecimento do Amor e da sua
geração que não necessitava da transgressão sexual, queria a liberdade de fazer de
sua primeira relação um momento inesquecível de amor.
Arte, amizade, sexo, drogas, “conquistas de maio de 68, de proibido proibir”
são preservados nessa “villa”, local onde é conservada a utopia daquela geração.
Manter-se jovem, independente da idade biológica, cronológica, da categoria etária,
presentificar o passado vivendo em um grupo etário heterogêneo em que a
identificação não acontece por idade, mas pela afinidade, os valores oriundos de um
movimento que rompeu com os modelos autoritários de relações geracionais,
prevaleciam nesse mundo fechado cujas fronteiras se abriam apenas para
convidados.
Alex torna-se um apaixonado amigo de Lucy, cuja presença tem maior efeito
sobre sua saúde que os medicamentos prescritos: ela o faz lembrar-se de si
mesmo, de sua juventude. Lucy lhe pergunta se sua mãe tinha sandálias verdes e
ele lhe responde: Pode ser ela era uma mulher muito elegante. Escrevia os mais belos poemas
entre as reportagens de moda.
Ela então lhe pergunta sobre Carlos Picci, uma pessoa
que sempre escrevia para sua mãe e fica sabendo que é um jornalista o qual logo
será convidado a visitá-los. Ao encontrar o jornalista, pela pulseira, se evidencia que
é o cinegrafista do trem. Ela conta-lhe, então, que sua mãe desenhava uma estrela
no calendário quando recebia sua carta. Pergunta-lhe se já matou uma cobra, uma
das pistas para descobrir quem era seu pai.
Lucy, usando o mesmo vestido que sua mãe usara anos atrás reconstitui um
momento passado e aguça a sensualidade dos amigos
da mãe.
Lucy vai à festa anual da família Donati com um vestido que sua mãe
usara em 1975. Na festa tenta se aproximar de Niccolo, o jovem pelo qual se
julgava apaixonada. Encontra-o com outra moça e o descobre como um jovem
muito diferente daquele idealizado, um jovem que não acredita e nem menciona a
palavra amor. A jovem convida o jornalista Carlos Picci para dançar e lhe
pergunta onde estava em agosto de 1975 e ele responde não ser difícil se
lembrar, pois nessa época ele fazia a cobertura da queda de Saigon. Exclui-se a
possibilidade que ele seja seu pai. Lucy volta a casa em companhia de um jovem
inglês embriagado e simula o acontecimento de seu primeiro encontro de amor.
Ao lado, Alex, em estado terminal, é transferido para o hospital e antes
pergunta a Diana, que lhe faz afagos, se Lucy fez boa escolha acrescentando: A
incrível frivolidade dos moribundos, ainda pensando em um rabo de saia.
Representa-se aí, segundo o diretor, a morte da geração de 1968, cujos
sonhos eram representados pelo escritor.
O maio francês profetizava o fim das ideologias, de esquerda ou
de direita; ao criticar todas as formas de autoritarismo e de
totalitarismo, indicava o que deveria lhes opor resistência: novas utopias,
dissonantes com o pensamento único e com o consenso global no que diz
respeito aos valores ligados ao mercado e ao consumo
” (MATOS,
2006:138)
Morreriam, assim, com Alex, as novas utopias, os ideais de
cosmopolitismo e o internacionalismo, que, ao contrário do globalismo, que
proclamavam os laços de solidariedade, fraternidade e da amizade.A perversão
desses ideais levou à condenação do jovem Cohn-Bendit, judeu alemão, na
realidade de 1968.
Lucy descobre que o escultor é seu pai e, para não romper a ordem da villa estabelecem
um pacto de silêncio.
Por exclusões Lucy dirige-se a Ian na tentativa de descobrir se ele é o
seu pai. Alguns dados são levantados: Sarah estivera na vila recém comprada
em 1975, foi quando fora feito o seu retrato. Diana encontrava-se em Londres
cuidando do divórcio. O óbvio apareceu e os dois se abraçam. Você guarda segredo,
não?
Pergunta Ian ambiguamente enquanto lhe mostra o retrato que está sendo
esculpido, salientando que nunca mostra a ninguém uma obra antes do término.
Aprendi com o mestre, responde Lucy correspondendo ao duplo sentido da pergunta.
Um abraço afetuoso sela, sem que nada fosse dito ou admitido, o encontro da
jovem com seu pai biológico; a identidade se manifesta silenciosamente e uma
busca se encerra.
O silêncio na linguagem é a mulher, por isso o feminino está na
origem do sentido e do novo, o encontro entre o sagrado perdido e o presente
profano, pragmático e instrumental
. (MATOS. 2006:187)”
A procura do pai acaba se confirmando como um dos motivos da vinda da
jovem americana à Itália, uma busca da identidade que, resolvida, a libera para o
verdadeiro encontro do amor. Há aí uma utopia estética baseada no desejo de
identidade, na transposição de um conceito que se transfigura da carência para a
presença; a emoção e o desejo se afiguram como instrumentos do admirável, do
êxtase, representados nesse filme pelas obras de arte e na subjetividade dos
personagens de um mundo alternativo, rodeado por montanhas que também
configuram uma obra de arte natural.
Alex, que simbolizava os anos 60, morre.Nessas cenas há uma alegoria da morte
dos sonhos e das utopias de uma geração
A morte de Alex e o desabafo de Diana dizendo-se cansada de cuidar de
tudo e de todos, desejando retornar a sua terra, representam, latente e
manifestamente, a morte dos sonhos da geração de 68 os quais, na realidade do
mundo contemporâneo, morreram com a suposta morte das ideologias na
modernidade.
O encontro com o verdadeiro autor das cartas que arrebatou o coração de Lucy
acontece. E na união dos dois corpos, na liberação da experiência sexual
metaforicamente, quebra-se a amarra da autoridade referendada na busca paterna..
Lucy encontra-se casualmente com Oswaldo, irmão de Niccolo, que por
diversas vezes tentara aproximar - se sem êxito e acaba descobrindo que ele é o
autor da carta que tanto a fascinara. Sob uma grande e velha oliveira no cume de
uma montanha, uma fogueira é acesa e os dois passam a noite juntos. “A primeira
noite de uma mulher e de um homem” marca não só um rito de passagem, mas a
possibilidade de novos sonhos.
Do ponto de vista mitológico, nesse encontro, ocorreu o processo de
iniciação que legitima o acesso do jovem ao status de adulto. É necessário deixar
as aparências e buscar o significado da metáfora prefigurada. Há um rito, um
retorno às origens, uma práxis do mito que se realiza no imediato de uma
transcendência vivida. A árvore sob a qual se dá essa passagem simboliza aquele
ponto em que se dá a união entre repouso e movimento, o bem e mal, o desejo e o
medo. É a dualidade de Eros e do Amor. Eros, o arrebatamento, Amor um ideal
puramente pessoal que deriva do encontro dos olhares que, num movimento
interno, buscam informações e significados. Eros imperou na geração de Sarah e o
Amor é a busca da geração de Lucy. A fogueira remete aos povos primitivos que ao
seu redor se reuniam para narrar feitos e glórias e simboliza também o início da
mitologia. E á purificação do rito sexual. Remete a Prometeu, um contestador, que
rouba o fogo escondido por Zeus e o distribui entre os homens. Na obra do artista
há a mitologização do mundo. Através do rito o homem reafirma e se incorpora ao
mito, repetindo o que os deuses e heróis fizeram nas origens e oferece símbolos
que fazem progredir o espírito humano.
Beleza Roubada ,como já dissemos, pode ser classificado como um filme
pós-utópico e nesse sentido, as aplicações das categorias de análise escolhidas
não são as mais pertinentes.O filme não se inicia com uma voz em
off - correlato
da consciência antecipadora - mas com uma série rápida de close-up e
afastamento da câmera, intercaladas por flash que acompanham uma música
rápida , ao estilo de um vídeo-clip. São essas imagens que apresentam a jovem
Lucy e seu estilo de vida.
Como o filme é uma representação da morte dos sonhos da geração de
68 essa alteração apresentada já no início do filme faz sentido, pois o que se
busca é a proposta de um excedente utópico que trará a luz uma nova
consciência antecipadora.Podemos dizer que nesse filme estão visualmente
representadas as considerações de Herbert Marcuse no livro
O fim das utopias
os homens sem utopia decretam o fim da história - e de Mannheim ao alertar
que se no estágio da consciência moderna o homem “abandonasse as utopias”,
seria o fim da história.
3.3. Os Sonhadores
Titulo
: “Os Sonhadores”
Ano de Produção: 2003
Estúdio: Fox Sersrchsligth Pictures
Diretor: BERNARDO BERTOLUCCI
Roteiro: GILBERT ADAIR
Fotografia: FABIO CIANCHETTI
Produtor: JEREMY THOMAS
Elenco Principal:
Matthew...................MICHAEL PITT
Isabelle.....………….EVA GREEN
Theo..... ..................LOUIS GARREL
Mãe………………....ANNA CHANCELLOR
Pai ……..…………...ROBBIN RENUCCI
Apresentado no Festival de Veneza, fora da competição do Leão de Ouro,
em 2003, o filme
Os Sonhadores, é baseado no livro de Gilbert Adair, The Holy
Inocent
.
Sinopse: Dois jovens franceses, Theo e Isabelle, conhecem o americano
Mattew, na sala de cinema. O amor ao cinema os aproxima e enquanto nas ruas
de Paris, em 1968, universitários e operários se rebelam contra a ordem social e
política estabelecida, os três amigos, em um apartamento, criam jogos sensuais e
eróticos baseados em antigos filmes.
O jovem Matthew caminha em direção a cinemateca francesa, local também freqüentado
pelos irmãos Theo e Isabelle. Esse templo do cinema é “atacado” pelas autoridades
públicas que desejam admitir seu criador e administrador Henri Langlois.
Uma tomada de cena descendente sobre a Torre Eiffel pontualiza uma
unidade de espaço: Paris. Um rosto jovem, masculino, aparece em close. Em
seguida é focalizado em primeiro plano olhando para o lado: figurino e penteado
dos anos 60, uma revista na mão, o jovem loiro atravessa a ponte sobre o rio
Senna. A câmera se posiciona atrás. Ele caminha enquanto uma voz em off
enuncia: A primeira vez que eu vi um filme na Cinematheque Francais e pensei: só os
franceses para colocar um cinema dentro de um palácio.
A narração em primeira pessoa indica que o personagem é o narrador.
Durante a narração cenas em preto e branco se alternam, são as cenas de um
filme que o narrador esclarece ser Paixões que alucinam, de Sam Fuller
36
.
As imagens eram poderosas, era como estar sendo hipnotizados diz essa voz em off
enquanto aparecem imagens de cataratas. Em primeiro plano jovens
espectadores assistindo o filme.
A voz continua e pontua a unidade de tempo:
Eu tinha 20 anos de idade era o
final da década de 60
. A montagem conduz à sala do cinema e o espectador, com
base nas informações sonoras e visuais, percebe que é para a Cinametheque
que o jovem se dirigia.
.
Sentando-se nas primeiras filas do cinema, atrás de um jovem casal que
fumava, continua narrando: Porque nos sentamos tão perto?Talvez porque quiséssemos
receber as imagens primeiras, novas, frescas, antes de percorrer as filas atrás de nós, espectador
36
Os filmes citados na narrativa do filme Os Sonhadores serão objetos de análise em Metalinguagem: os
filmes no filme
, no capítulo III.
por espectador, até que gastas, do tamanho de um selo, elas voltassem à cabine do
projecionista.Talvez a tela fosse mais que a tela, ela representasse nós. Mas houve uma noite,
na Primavera de 68 em que o mundo finalmente explodiu através da tela.
Nestas cenas o personagem especula se as percepções do espectador
podem ser afetadas pela distância ou proximidade da tela. Também há uma cena
de transgressão de jovens fumando dentro de um palácio, a Cinemathéque, onde
os cinéfilos se reuniam como se fosse sagrado. Esse local era administrado por
Henri Langlois, um intelectual liberal.
As imagens em preto e branco referem-se as cenas documentais dos jovens Kalfon e
Léaud lendo um manifesto.Nas cenas coloridas a representação desse episódio na
diegese do fim.Nas duas ocasiões passado/presente, a contestação acontecia em frente
ao “Museu do Cinema
Em outra seqüência aparecem imagens em preto e branco, oriundas de
um documentário, na qual intelectuais e jovens protestam contra o fechamento da
cinémathèque. Um discurso, cujo texto foi escrito por Godard em 1968, é lido em
francês para uma aglomeração, alternando-se na leitura Jean Pierre Kalfon e
Jean Pierre Léaud , este famoso como personificação da juventude nos filmes de
Truffaut e Godard. Paralelamente cenas semelhantes são exibidas em cores
demonstrando a filmagem recente. Um movimento em dois tempos, o tempo da
realidade e o tempo da ficção. Para reforçar essa ubiqüidade temporal Bertolucci
chama os mesmos atores que fizeram essa leitura para representá-la agora no
filme.
É uma maneira de juntar passado/presente na contraposição de imagens
de ontem e hoje, a imagem dos atores jovens contrastando imagens atuais é uma
forma de mostrar visualmente a passagem do tempo, filmar hoje sonhando com
os anos 60. Imagem, realismo, representação: a justaposição de épocas
diferentes, com as mesmas situações e mesmos personagens, é uma estratégia
utilizada no cinema contemporâneo para romper a noção de épocas paralelas e
construir sincronicidade; imagens do ontem e do hoje numa presentificação,
unidas em um aqui-agora.
Na multidão a câmera focaliza um casal de jovens, mais tarde revelados
como os irmãos Theo e Isabelle, seguido de um close do “Museo do Cinema”.O
discurso denuncia a expulsão de Langlois da Cinematheque pelo ministro da
cultura Malraux. Após, há uma tomada registrada em 1968 de Langlois saindo da
Cinematheque.
Um grupo de policiais observa a manifestação preste a agir contra os que
defendem o cinema – “bastião da liberdade” -, segundo o panfleto. Há uma
inserção de imagens documentais de 68 que se destacam em preto e branco e
nas quais reconhecemos os então jovens artistas e cinéfilos: Jean Paul
Belmondo, Michel Piccoli, Alain Resnais e Barbet Schivoeder, contrapondo-se a
uma faixa na qual se lê “. A liberdade não é dada, é conquistada.”
Novamente a voz em off do narrador personagem dizendo: Henri Langlois,
que fundou a cinémathèque, tinha por opção mostrar os filmes e não deixá-los apodrecendo em
um porão subterrâneo.Mostrava todo e qualquer cine e os cineastas vinham aqui aprender o
seu ofício.Foi aqui que o cinema moderno nasceu, uma Revolução Cultural particular de todos
os cinéfilos da França.
A Revolução Estética do Cinema originou-se com os cineastas que
freqüentavam a cinémathèque: Godard, Truffaut, Bazin, Rivette, Chabrol, Resnais
os quais são mencionados no filme como participantes das manifestações de 68
e como homenageados pelo desempenho na história do cinema. Essa
manifestação é considerada pelo cineasta Truffaut como o marco inicial da
Primavera de 68.
Ao apanhar uma página do discurso que Léaud atira ao ar, o jovem loiro, ergue os
olhos e vê a bela moça (que aparece em close na tela), com vestido de veludo azul,
boina vermelha, cigarro ao canto da boca, acorrentada a uma grade da
cinémathèque em uma pose de “diva” do cinema.
Ela o chama para retirar o cigarro colado ao seu lábio e ao ser
questionada sobre o porquê de estar acorrentada a jovem ergue os braços a
altura do rosto demonstrando que apenas representava seu aprisionamento. Um
cartaz ao fundo anuncia o filme Amere Victoire.
A condição de acorrentada, uma metáfora da forma como os jovens
viviam, é uma representação que leva o outro, o receptor, ao “movimento de
libertação” da personagem.
Os jovens se identificam: Mathew, um americano que está em Paris para
estudar, Isabelle e seu irmão gêmeo, Théo, franceses por nascimento, filhos de
uma inglesa o que possibilita aos jovens conversarem nos dois idiomas: inglês e
francês. Isabelle reconhece que Matthew é uma pessoa limpa, diferente de outro
manifestante, Jacques um francês, que cheira tão mal a ponto de impregnar
quem conversa com ele.
Nestas cenas apresentam-se os traços mais distintos do imaginário
cultural do jovem americano. A sua percepção das diferenças culturais quando
fala que somente na França o cinema é instalado em um palácio, a identificação
com os outros jovens cinéfilos.
Théo, cercado por amigos, se aproxima do americano e o assunto é
cinema. São mencionados os diretores Truffaut, Godard, Chabrol, Rivette,
Resnais, Jean Rouch, Rhomer, Signoret, Jean Maras e até Marcel Carnè que ali
estão protestando.
Theo se abaixa defronte a Matthew e ao saber que ele era americano fala
:
Eu te vi por aí, veio a todos os filmes de Nicholas Ray.
37
Matthew diz: Eu gosto muito dos filmes dele.
Théo: Qual? Amarga Esperança?
Matthew: Não, gosto mais de Johnny Guitar e Juventude Transviada.
Théo diz:
Sabe o que Godard diz? Nicholas Ray é o cinema.
37
O primeiro filme de Nicholas Ray foi Amarga Esperança.
O juízo estético, cuja causa reside no sujeito, no sentimento do receptor
justifica que haja divergências mesmo em referência as obras de um mesmo
diretor.
38
Em outra cena a multidão aparece premida pelos cassetetes dos policiais.
É noite, os três jovens correm ao lado dos outros cinéfilos e estudantes
distanciando-se dos policiais que portavam escudos e cassetetes. Os
manifestantes correm por uma rua calçada de paralelepípedos e o fazem em
direção à câmera, como se pudessem se ocultar do lado de cá. ”Fascistas,
desgraçados, imbecis”, gritam os três jovens. Matthew diz: Foi assim que conheci
Isabelle e Théo.
Os três personagens se afastam juntos e nesse contexto de revolta
causada pelo fechamento da Cinamateca tem inicio uma amizade. O fundo
musical romântico prenuncia uma forte amizade.
Matthew, ainda em discurso indireto, declara que seu coração pulsa
rapidamente, não sabe se pela movimentação ou por já estar “apaixonado” pelos
novos amigos. Os três são filmados de costas caminhando às margens do Sena
falando sobre política, cinema, sobre a falta de um grupo de rock francês
,enquanto o som de harpas soa em fundo musical, e a voz em off reitera: eu não
queria que a noite terminasse.
Os irmãos dividem seu lanche com o novo amigo que conta que e de San
Diego Isabelle diz que é de Paris - Champs Eliseés -1959 e acrescenta : Minha
38
A discussão sobre o juízo estético acontecerá de forma mais incisiva no terceiro capítulo.
primeira palavra foi “New York, Herald Tribune” e, enquanto fala são projetadas
cenas do filme Acossado (1959), de Godard. A chuva cai súbita e forte e os três
se separam.
Matthew chega ao interior do apartamento que ocupa em um hotel de
baixa categoria, molhado e cantando. Usa a pia do lavatório como se fosse vaso
sanitário, numa transgressão ao uso habitual. Senta-se e começa a escrever uma
carta à mãe contando sobre os novos amigos.
O encontro entre sujeitos de cultura e experiência distintas remete as
questões de estranhamento e multicultaralismo. Matthew tem em comum com os
irmãos franceses o amor ao cinema, mas a conduta, o imaginário pessoal e
social, as experiências de vida são diferentes.No decorrer da trama aparecem
situações em que os jovens reafirmam essas diferenças e outras em que o
americano revela estar se habituando ao modo de vida dos novos amigos.
Matthew é convidado a jantar na casa dos gêmeos e nesse encontro fica patente a
situação de conflito entre Théo e o pai.
Na manhã seguinte o telefone de Matthew toca; é Theo: Não seja
desconfiado, sou eu, tive que ligar cedo porque tenho aula as nove
e o convida para um
jantar, após um drinque no Respite, Bulevar Saint German.
Na noite do jantar Matthew entra no elevador e é surpreendido pelos dois
irmãos que sobem as escadas correndo e falando “somos muito contagiosos”. No
apartamento surpreendem a mãe que prepara o jantar apenas para ela e para o
marido. Théo esquecera-se de avisá-la que jantariam em casa e teriam um
convidado. Os irmãos simulam uma briga acusando-se mutuamente pelo
esquecimento.
Isabelle procura pelo pai, que está na biblioteca tão absorto que não
percebe a aproximação da filha. O pai pergunta sobre a Cinémathèque e a filha
diz que está fechada até segunda ordem.
Á mesa, durante o jantar, o pai, identificado agora como um grande poeta,
fala da inspiração como um bebê que chega a qualquer hora, sem consideração
pelo poeta, mas... Quando vem, quando se digna a vir, daí você sabe. Enquanto isso,
Matthew se abstrai variando a colocação de um isqueiro sobre os quadrados da
toalha.Inquirido sobre o porque do distanciamento da conversa ele se desculpa
dizendo que se distraiu com o isqueiro de Isabelle e ao coloca-lo de volta à mesa
o fez sobre o diagonal de um quadrado da tolha da mesa e ele coube. Colocou-o
em outras posições e coube em todas.
“Quanto mais você olha para tudo, de repente, você percebe que
existe um tipo de harmonia cósmica entre as formas e os tamanhos,
estava imaginando o porquê, não sei por que, só sei que é assim
.”
O poeta responde
: “Quando olhamos em volta o que vemos? Caos completo caos,
porém visto de cima, como se fosse por Deus, de repente tudo se encaixa. Meus filhos acham
que as demonstrações, as reuniões, as passeatas, as manifestações tem não apenas a capacidade
de provocar a realidade, mas também de transformá-la”.
Theo responde: ”Por que você fala isso? Langlois demitido, imigrantes deportados,
estudantes espancados e nós não fazemos nada ?”
Pai: O que estou dizendo é que um pouco de lucidez não faz mal a ninguém.
Theo: França? Itália?Alemanha? América? Todos estão errados, menos você.
Pai: Antes de mudar o mundo você tem que perceber que também faz parte dele. Não
pode ficar do lado de fora olhando pra dentro
.
Isabelle é a voz que cala e, o seu silêncio, conduz aos limites da
linguagem, ele é a verdadeira fonte do sentido.
Theo: É você que fica sempre do lado de fora, você se recusou a assinar uma petição
contra a guerra do Vietnam
.
Pai: Poetas não assinam petições, assinam poemas.
Théo declama uma definição retórica contida no poema mais conhecido de
seu pai:
Uma petição é um poema
E um poema é uma petição.
Pai:
Obrigado, mas não preciso que você relembre meu próprio trabalho.
Théo
:
Isso mesmo foram as estrofes mais famosas que você já escreveu. E agora olhe
para você. -
olhando em direção ao amigo resmunga, numa transgressão retórica:-
Espero nunca ser como ele.
Mãe: George vamos nos despedir, temos um longo dia pela frente amanhã.
Pai:
Vamos dormir. Pede desculpas e atendendo ao pedido da mulher
anuncia que irão viajar e que os cheques ficarão sobre a lareira. Théo não se
despede do pai.
Matthew é convidado pela mãe a dormir na casa e aceita.
Esse diálogo conduz a reflexões filosóficas e ideológicas; a fala do pai/
poeta – talvez uma referência ao pai do próprio diretor - sobre a impossibilidade
de transformar a realidade com manifestações de cunho ideológico e se conecta
ao pensamento de Mannheim quando demonstra que as ideologias mesmo que
incongruentes como umas dadas realidades não conseguem transforma-la,
diferenciando-se nesse aspecto das utopias.
Quando o pai chama a atenção do filho pela falta de lucidez, conforme
diálogo transcrito, na sua fala está implícito o sentido pejorativo de utopia como
sonho impossível, falta de lucidez.
A demissão de Langlois, diretor da cinemateca, ocorrida em 1968 e
representada no filme significava a perda de um espaço cultural que, sob sua
administração, era um espaço de reflexão, diálogo e liberdade e esse fato
provocou protestos dos intelectuais e estudantes, um sentimento de revolta que
favorece uma mentalidade utópica.
No apartamento dos gêmeos, enquanto Isabelle apaga as luzes e acende
velas, ouve-se o som guitarra elétrica de Jimy Hendrix. Ela pergunta a Matthew
porque ele nunca lhes falou sobre suas indagações filosóficas e ele responde
“Eu não sabia que estava sendo filosófico. Vocês têm muita sorte, queria que meus pais fossem
tão
legais”.
Isabelle
:
Os pais dos outros são sempre mais legais que os nossos, mas os nossos avós
são sempre mais bacanas que os outros
.
Ao se despedir para dormir, Isabelle beija o irmão na boca, o que causa
estranhamento em Matthew que ainda diz:
Todo mundo tem um pai.
Theo, numa evidente transgressão secular, responde: Não é porque Deus
não existe que meu pai pode tomar o lugar dele.
Matthew surpreende-se com o estranho relacionamento dos irmãos e, em breve,
acaba envolvido nesse relacionamento
.
Ao ir para o quarto, no amplo apartamento, Matthew passa por corredores
repletos de livros, indícios da intelectualidade dos pais. No quarto de hóspedes,
onde dormirá, em um quadro há a releitura de uma obra sobre a queda de
Bastilha: a moça que empunha a bandeira é a atriz norte - americana Marilyn
Monroe.
Um elemento nesse cartaz, o cinema, simbolizado por uma das mais
populares atrizes empunhando a bandeira emblemática da liberdade, igualdade e
fraternidade. Isto pode ser visto com um fenômeno da consciência antecipadora,
se considerarmos a forma como esse meio de comunicação social pode propagar
esses ideais.
À noite, indo ao banheiro, Matthew espiona no quarto de Theo e vê os
dois irmãos, nus, dormindo abraçados. A transgressão sexual e a imagem do
incesto são chocantes para ele.
Na manhã seguinte Matthew acorda com Isabele retirando, com os
dedos, “o sono dos olhos”, tal como faz diariamente com Théo. Ao retirar a
secreção dos olhos com os dedos umedecidos de saliva e depois passando a
língua, como uma gata, provoca ereção em Matthew. Em seguida distancia-se e
ao aproximar-se da porta, inicia um jogo de representação.
O que você está fazendo? pergunta Matthew. Ela responde com sotaque
alemão:
Estou memorizando este quarto. No meu futuro, na minha lembrança, viverei muito
neste quarto.
Rainha Cristina
, de Rouben Mamoulian, diz Matthew, quando Greta
Garbo dá adeus ao quarto em que ela passou a noite com Gilbert (
John Hilbert). Cenas
em preto e branco do filme original são exibidas e Greta Garbo, graças a magia
do cinema, a sua ubiqüidade temporal, se torna parte do elenco de uma película
filmada após sua morte.Esse tipo ce jogo era bastante freqüente entre os
freqüentadores da cinemateca na década de 60.
Isabelle confirma o acerto e diz: Temos uma ala privativa, o banheiro fica ao
final do corredor. Se você não estiver lá em um minuto a gente vem te buscar.
Nem mesmo no banheiro os irmãos mantêm privacidade, comportado -se de forma infantil.
Matthew vestido com terno bate à porta do banheiro onde os irmãos,
quase despidos, fazem a higiene matinal. Isabelle, sensualmente, contorna com
os dedos os lábios de Matthew dizendo: São carnudos, sensuais, vermelhos.
O espelho reflete a imagem de Théo entrando nu na banheira. Uma
pequena marca vermelha no mesmo local do braço dos dois irmãos confirma o
que Théo havia contado para Mathew que não acreditara: ele e Isabelle eram
gêmeos siameses, ou seja, nós dois somos um.
Os dois irmãos convidam Matthew a morar com eles durante a ausência
dos pais que deverá se estender por um mês. Enquanto ele arruma seus
pertences para a mudança Théo vai até a cinémathèque e encontra uma amiga
que lhe oferece maconha. A mudança é feita com a mobilete de Théo. Matthew
fala sobre seu rompimento com o próprio pai.
No apartamento dos franceses Théo lê em um livro que a diferença entre
Keaton e Chaplin é a diferença entre: prosa/poesia, aristocrata/vagabundo,
excentricidade /misticismo, homem como máquina/ homem como anjo.
Matthew argumenta: Para mim não há comparação.
Théo Porque, Chaplin é incomparável?
Mathew: Não, porque Keaton é incomparável,
39
.
Théo: Com toda certeza você não está falando sério, responde Théo.
Matthew: Claro que estou Keaton é mais engraçado que Chaplin,
Théo: Você acha que o Keaton é mais engraçado que o Chaplin?
Matthew: Sim, Keaton é o mais engraçado, até quando não faz nada. E parece
Godard. Keaton é um cineasta de verdade.Chaplin só liga para sua atuação, para seu ego.
Theo: Olha aqui, ninguém é mais engraçado que Chaplin,. Quando Chaplin queria
fazer uma bela tomada ele o fazia melhor que ninguém.Lembra da última tomada de Luzes
da Cidade?Ele olha para a florista e ela olha para ele (
são projetadas as cenas do filme)
e não se esqueça que ela era cega e estava vendo ele pela primeira vez. E é como se somente
através dos olhos dela nós também o víssemos pela primeira vez,. Charles Chaplin, Carlitos, o
homem mais famoso do mundo e é como se nunca o tivéssemos visto antes.
39
Buster Keaton, ator e diretor norte-americano, que em 1924 dirigiu e atuou em Sherlock Jr. com
intenção de mostrar o cinema como possibilidade de realização de sonhos. Nesse filme utilizou a
função metalingüística para possibilitar a entrada do espectador nesse universo de fantasia.
Essa fala refere-se a identificação despertada na recepção do filme pela
projeção de uma cena em que o espectador vê com os olhos da protagonista
ao “consentir”, isto é, sentir junto. A escolha desses artistas/ diretores norte-
americanos denota a intencionalidade do diretor em reconhecer a importância do
cinema americano na historicidade do cinema e valorizar as técnicas usadas por
esses diretores que não raras vezes foram desprezados pelos críticos sob a
alegação de que faziam um cinema comercial.
Isabelle, que no mesmo quarto lê um livro, fala: Vocês americanos não
entendem nada da própria cultura. Não entendem a ironia de Jerry Lewis
.
Correr no museu Louvre como os protagonistas do filme
Bande à Part
o fizeram foi
a atitude mais transgressora dos três amigos em seus jogos de representação
.
Isabelle coloca uma música de Jane Joplins e Théo a segura. Ela joga o
livro que estava lendo, pára o disco e grita para que descubram o nome de um
filme em que o personagem sapateia até o outro enlouquecer. Matthew descobre:
O Picolino com Ginger Roges, e cenas originais desse filme são projetadas
paralelamente no filme Os Sonhadores..
Nesses jogos de representação, nos quais os personagens expõem seu
repertório imagético, o diretor encontrou uma forma lúdica para instigar a
curiosidade do espectador e prestar homenagem aos diretores e atores de
diferentes tempos e nacionalidades, apresentando filmes conhecidos apenas por
cinéfilos, mas que constituem importantes elos na corrente da história do cinema.
Olhando para Matthew os dois irmãos dizem:
Bande à Part
. Eles tinham
um sonho de encontrar alguém que os ajudasse a realizar um projeto: bater o
recorde dos três jovens que no filme Bande à Part , de Godard, correram pelo
Museu do Louvre, em 9:45h. São projetadas cenas em preto e branco do filme
original enquanto os irmãos explicam que há tempos sonham em encontrar uma
pessoa para participar desse projeto.
Correr no Louvre é uma ação que além de transgressora envolve uma
situação de conflito entre ficção e realidade. No filme, na narrativa ficcional a
ação transgressora deu certa, na realidade poderá ser uma situação de risco,
pois, se falhar, culminará na deportação do estrangeiro. Para Théo e Isabelle,
que fundem fantasia e realidade, a vida real repete a ficção. Isabelle adverte a
Matthew que muita coisa dependerá de sua resposta.
Convencido de que não haveria falha Mathew aceita participar do jogo.
Théo pega o cronômetro do pai - a autoridade, o dono do tempo - e seguem até o
Louvre onde revivem todas as cenas do filme. Batem o recorde em 17 segundos.
Enquanto correm pelo Louvre, paralelamente são apresentadas as cenas do filme
original em um recurso de sobreposição só possível na estética revolucionária do
cinema, quando “personagens de Godard” se transformam nos “personagens de
Bertolucci”.
Saem juntos e os irmãos gritam: ”
Nós os aceitamos, um de nós”. Aparecem
agora as cenas do filme Freaks.
Os três amigos tomam chuva no caminho do apartamento e ao chegar o
telefone toca. Isabelle, molhada de chuva fala:
Estou muito molhada para atender.
Théo, intuindo que seriam os pais, diz que todos os pais deveriam ser presos,
julgados, mandados para autocrítica e reeducação.Quando se decide a atender,
o telefone para de tocar. Os meninos vão ao quarto de Théo e, enquanto este
busca uma coca-cola, Matthew encontra uma foto de Isabelle e a esconde junto
ao seu corpo, sob o calção.
Isabelle aparece vestida com um casaco de peles, segurando um
espanador, dançando e cantando bom bom, bom bom bom ; pergunta: Em que
filme as coristas dançam assim?
Théo não acerta e ela diz que é Vênus Loira, com
Marlene Dietriech, Como “prenda” a ser paga por haver errado o filme ela
determina que ele se masturbe na frente de um pôster de Dietriech, observado
por ela e Matthew que discorda da ação dizendo que nunca se masturbou na
frente das irmãs nem foi obrigado a fazer o que não queria.
Novamente em off Matthew diz que
sabia que as coisas não poderiam continuar
como antes, mas, pelo menos por enquanto parecia haver uma trégua entre os irmãos.
No jogo cinestésico as apostas continuam altas. Uma noite, durante um
jogo de gamão regado a vinho, Théo simula uma síncope e cai imitando uma
cruz, a qual marcaria o local de um crime. Pergunta qual o filme e este não foi
identificado pelos parceiros. Scarface (1932) anuncia e também propõe uma
prenda para Matthew e Isabelle: devem fazer amor na sua frente, no quarto vago
da casa, em frente ao quadro de Delacroix.
Matthew reprova e diz que vai ao banheiro. Théo o encontra na cozinha,
tentando alcançar a porta da saída. Isabelle reclama pela falta de gentileza e
pergunta se fazer amor com ela é tão repugnante.
Despe-se ao som de La Mer e começa a despir Matthew. Encontra sua
foto grudada na região pubiana do rapaz que, constrangido, desmaia. Ao acordar
encontra Isabele, nua, deitada, esperando por ele.
Um mundo de total liberdade e licenciosidade acontece dentro do apartamento
enquanto nas ruas eclodem as revoltas de estudantes e operários
.
Sozinhos no apartamento os três se permitem todo tipo de jogo sensual.
Rompem com o princípio de realidade estabelecido, voltam a um estado de grupo
primevo, sem interditos, sem tabus, em total liberdade. Os jogos estabelecidos
entre os irmãos ganham agora um novo participante, Matthew.
No decorrer na narrativa, nas representações dos filmes o envolvimento
entre os três jovens se solidifica. Isabelle inicia-se na vida sexual - um rito de
passagem da adolescência para a vida adulta - relacionando-se com Matthew na
cozinha da casa, na frente do irmão que indiferentemente frita ovos.
Ao ouvir barulho nas ruas Théo vai até a janela e, ao retornar, posiciona-
se ao lado dos amantes acariciando o rosto da irmã. Desce as mãos por entre as
pernas da irmã e ao voltar há vestígios de sangue. O sangue que suja também as
mãos de Matthew pode testemunhar a virgindade da jovem, de uma jovem que
numa constante “mimese” do cinema representava um comportamento liberal e
transgressor que subjetivamente não acontecia, pois a relação incestuosa com o
irmão não se concretizava.
No dia seguinte, sem a presença do irmão, Isabelle convida Matthew para
transar no escritório do pai. Compara Matthew com Rodolfo Valentino e sussurra:
Meu primeiro amor, meu grande amor.
Há uma tomada de nu frontal de Isabelle deitada, com a câmera em
movimento ascendente dos pés para a cabeça e Matthew diz: Pensei que você tivesse
muitos amantes. Você era tão sofisticada como uma estrela de cinema
.
Eu era, responde Isabelle, só que estava representando. Théo e eu fomos amor a
primeira vista.
A sofisticação, a beleza, o status de astros e estrelas relacionados a
atrizes e atores do cinema reforçam o processo de projeção/ identificação do
espectador que no seu imaginário individual sonha com uma vida de glamour.
Matthew
- O Théo já esteve com você?
Isabelle - Ele está sempre comigo.
Matthew
- O que faria se seus pais descobrissem?
Isabelle - Eu me mataria.
A dramaticidade de Isabelle encarna o espírito das tragédias
representadas nos filmes que ela assistia.Isabelle desejava viver a vida como se
fosse um filme.
Em uma janela Théo observa a manifestação na rua.
Matthew vai a cozinha e procura algo para comer.Ao voltar, com um pote
de mel , encontra os dois irmãos abraçados; então fala:
Eu estou agradecido. Lembra o que me contou no café?Vocês têm razão, vocês são
como duas metades de uma pessoa e eu sou parte de vocês.
Théo fala: Vamos esclarecer, a coisa não era para acontecer entre nós três. A Isabelle
e eu somos gêmeos siameses, eu não estava brincando
.
A fome não saciada ameaça o mundo criado no apartamento.
Os três chegam a cozinha totalmente tomada por amontoados de louças
sujas e restos de comida. Os últimos ingredientes foram queimados quando
Isabelle os preparava. A fome fez com que a porta da casa se abrisse e Théo,
vestido apenas com um casaco verde, sai à procura de alimento. Na rua o
acúmulo do lixo invadia o espaço público, conseqüência da greve que assolava a
França. Dentre os restos de lixo amontoados, Théo recolhe algumas coisas, mas
somente uma banana é aproveitável e no apartamento ela foi dividida entre os
três por Matthew.
Sem dinheiro, sem telefone, sem comida as portas da casa precisaram
ser abertas. Esse mundo fechado, essa utopia erótica não mais se auto -
sustentava, a carência de outros elementos tornava-se forte presença. Assim, as
necessidades básicas não satisfeitas ,como a falta de comida e dinheiro,
despertam os jovens do sonho cinematográfico para as premências da realidade.
Théo, como se acordado de um sonho, dirige-se à universidade. Há
grande movimentação e ele é cobrado pela ausência nas manifestações e não
encontra argumentos para se justificar. O seu discurso revolucionário não se
transformou em ação, foi sufocado, não pelas bombas e cassetetes, mas por um
mundo fechado, licencioso, sem qualquer interdito.
A voz do personagem narrador explica que praticamente não saíam do
apartamento enquanto uma cena de beijo homo-erótico acontecia na banheira ao
som da música de Clapton e envolvidos pela fumaça da maconha.
Uma nova discussão envolvendo o juízo estético acontece no banheiro
quando Theo defende Clapton e Matthew Hendrix
40
. Théo censura Matthew por
não estar no Vietnam e este se declaram pacifista. Diz que não se pode falar ao
40
Eric Clapton, guitarrista de grande sucesso na década de 60, participou dos grupos de rock
Yardbirds e Cream. Nos muros de Londres, nos anos sessenta, apareceu a pichação
Clapton é Deus, frase que também é proferida por Theo no filme
Os Sonhadores.
governo que é contra a violência, contra a guerra, mas a situação de estudante
universitário o desobriga dessa participação.
A guerra do Vietnam, uma das causas da manifestação, é lembrada como
negação da expressão da vontade dos jovens que, ceifados de sua subjetividade,
são obrigados a participar de algo que repudiam. Não é como a manifestação
que ocorre nas ruas Paris, cuja iniciativa, participação e adesão parte dos
próprios jovens.
Li nos Cahier du Cinema, diz Matthew, que os cineastas se comportam como
bisbilhoteiros. Os diretores são comparados ao voyeur e a câmera ao buraco da fechadura do
quarto dos pais. Se os espia sentem - se culpados, mas não conseguem desviar o olhar.Os
filmes, sob esse ângulo, são como crimes e os cineastas criminosos.
Théo diz que não tem
chance de ser cineasta porque seus pais dormem com a porta aberta.
Em uma auto-referência ao fazer do cinema, ao modo como os cineastas
operam a câmera, destaca-se a posição dos críticos dos Cahiers que, de certa
forma, impulsionaram e formaram o cinema moderno com as suas teorias.
Nos espelhos do banheiro as imagens fragmentadas são refletidas quando
Isabelle também entra na banheira. Os três adormecem ao som de Hei Joe,
cantada por THE DOORS. Théo acorda primeiro e percebe a água avermelhada
pelo sangue menstrual de Isabelle.
Em outra cena Isabelle, duvidando da existência do amor, pede uma prova
a Matthew. Tal como um tabuleiro de xadrez, as imagens do chão do banheiro
são refletidas no espelho e o jogo se inicia. Ao perceber que a prova seria
consentir em sua depilação pubiana Matthew dá um xeque-mate:
Vocês são dois loucos! Isso é que chamam de prova de amor?
Um jogo, isso é o que vocês fazem entre vocês? Querem raspar meus
pêlos púbicos, tornar-me um Théo criança para brincar com meu
pipi?Querem que eu seja um pré-adolescente para vocês? Eu queria que
vocês saíssem de si mesmos e vissem. Eu amo vocês. Pensem, pensem:
dormem na mesma cama e fazem esses joguinhos. Eu olho para vocês e
penso que nunca vão crescer. Não enquanto continuarem dependendo
um do outro.
O comportamento dos irmãos, segundo Matthew, os impede de crescer
enquanto indivíduos. O fato de se fecharem em um mundo infantilizado, de mútua
dependência, restrito, onde a relação incestuosa demonstra o desejo de
conservar-se seguro compromete a formação individual que ocorre na relação
com o outro.
A dialética que, segundo Bloch, existe entre uma subjetividade criadora e
um elemento exterior, na qual o interior torna-se consciente através do exterior,
não acontece em sua plenitude num processo relacional de identificação restrita
aos personagens do mundo ficcional do cinema.
Olhando para Isabelle, estando os dois nus, Matthew pergunta: Você já
saiu com algum garoto?Conheceu alguém diferente de seu irmão?
Não, diz Isabelle, não é costume na França o baile de formatura.
Mathew e Isabelle marcam encontro em um restaurante, é uma tentativa de
separar os irmãos siameses
.
Em um restaurante Matthew aguarda sentado por Isabelle que entra,
deslumbrante, em um vestido vermelho ao som da música de Françoise Hardy
41
.
Os dois tomam coca-cola em um mesmo copo e a câmera fecha, uma referência
ao “final feliz do cinema”.
Saindo do bar vão a um cinema e, inusitadamente, sentam-se nas últimas
fileiras pois conforme diz Matthew “
na frente sentam-se apenas os desacompanhados, em
um encontro se sentarmos nos fundos, podemos namorar
.” O filme se anuncia: Senhoras e
senhores a película que irão assistir é sobre a história da música. Faço o papel de Tom Miller,
um empresário teatral que havia... Bem, vocês vão verão. Essa película foi filmada com a
grandeza do cinemascope. Alternam -se cenas do filme e do jovem casal
.O grupo The
Platters, cantando “You´ll never never know “ embala os beijos trocados no
escurinho do cinema.
Novas reflexões sobre recepção são displicentemente inseridas lembrando
que o escuro do cinema, numa similaridade com o sonho, permite não só ver o
romance na tela, mas viver um romance na platéia.
41
Tous les garçons et les filles de mon age,
41
grande sucesso na década de 60 , terá tradução da letra no
anexo II.
Na saída do cinema param sob o toldo de uma loja na qual uma TV
transmite noticias das manifestações que estavam acontecendo: comércio
fechado, a fábrica fechada da Renault em primeiro plano e os policiais contendo
os manifestantes com jatos de água. Retorna a voz subjetiva do personagem
narrador: “Quando olhei a tela lembrei-me da batalha na cinémathèque. Só que desta vez os
manifestantes não eram os amantes do cinema. Nem tampouco estudantes. Foi difícil
compreender o que estava acontecendo. Lojas fecharam as portas, fábricas entraram em greve e
começou a se espalhar por toda Paris”.
Isabelle informa: Théo e eu somos puristas, nunca
assistimos TV.
Essa tomada desperta Matthew do seu mundo de sonho para a realidade,
para o aqui/ agora ao qual se encontrava alheio.Nas ruas não mais os amantes
do cinema e nem só os estudantes se manifestavam. Os operários, enquanto
classe social, se uniram aos estudantes e apresentavam novas reivindicações
sociais, políticas e econômicas. Buscavam, pela revolução a utopia de um mundo
mais justo e mais livre. E Mattew se percebe alienado; alheio a realidade na qual
estava inserido.
Quando Isabelle se declara purista, pontua-se a o menosprezo de muitos
cinéfilos pela televisão.
Entre o amontoado de lixo os dois jovens, caminham para casa e lá
chegando encontram Théo com uma garota.Isabelle se descontrola, Matthew
propõe irem até seu quarto e ela diz: Ninguém vai fazer amor na minha cama.
Matthew, ainda assim se dirige ao quarto da namorada e se surpreende:
parece com o quarto de suas irmãs, não lembra em nada a ousadia e a
inconformidade de Isabelle. Quadros, ursinhos de pelúcia, flores,
surpreendentemente, um quarto como de qualquer adolescente.Descobre um
lado desconhecido de Isabelle que aparece enquadrada na porta, sob um fundo
escuro, com luvas longas pretas, o que lhe dá a aparência da Vênus de Milo. Ela
pergunta: Que escultura?
Ele responde: sempre quis fazer amor com a Vênus de Milo. Novamente a
música “La mer” embala o encontro amoroso de Matthew e Isabelle. Ao ouvir
ruídos, transtornada, ela bate com os punhos cerrados na porta do quarto do
irmão e manda Matthew se retirar. Extenuada deita-se na cama e dorme.
Em outra seqüência, no quarto, Theo lê: “A revolução não é um jantar de
gala, não pode ser criada como um livro, um desenho, uma tapeçaria. Não pode ser desvelada
com tal elegância, tranqüilidade e delicadeza ou doçura, amabilidade ou cortesia, moderação ou
generosidade. A revolução é um motim, um ato violento pelo qual uma classe derruba outra.
Essa é uma posição ideológica: a revolução, uma das formas de se
alcançar a utopia política que é levada por uma classe que derruba a outra, é
descrita no Livro Vermelho de Mao.
Théo dirige-se a adega do pai escolhe os melhores vinhos enquanto
Matthew deitado no chão faz flexões e Isabelle aparece deitada, fumando.
Reúnem-se, tomam vinho e Theo instiga:
Porque não pensou no Mao – ministro chinês-
como um grande diretor? Marchando com seus livros nas mãos, não armas. Por que não vê
Mao fazendo um filme, como um grande diretor, com um elenco de milhões de soldados da
guarda vermelha,marchando juntos em direção ao futuro com o livro vermelho nas mãos?
Livros, não armas.
Matthew responde: Não é verdade, não são livros, é livro. Um só livro. As guardas
vermelhas nesse grande filme épico são figurantes. Para mim existe uma contradição evidente,
porque se você realmente acreditasse estaria lá fora, nas ruas. Parece que algo importante está
acontecendo, mas você não está lá. Está aqui dentro, bebendo vinhos caros, falando sobre
filmes.
Théo aperta o pescoço de Matthew que, mesmo sufocado, continua
falando: Você prefere quando a palavra “junto” significa não um milhão, mas apenas dois...
ou três.
A crítica ao Partido Chinês e a ideologia de seu líder, admirado por muitos
cineastas, a acusação de que na China se lê apenas um livro, e que este líder, se
fosse visto como diretor teria apenas figurantes em seus filmes revela, que para o
jovem americano, os chineses vivem em um regime político onde não há
liberdade, nem respeito a subjetividade. Fala também do posicionamento de
quem prega, mas não vive as transgressões que podem levar a um novo modo
de vida.
Isabelle interrompe a discussão e os convida para ir à sala. Lá foi armada
uma tenda, com detalhes orientais, uma micro-estrutura social. Bebem mais
vinho e Isabelle diz: Fazíamos isso quando éramos pequenos.
Luzes de vela iluminam o local. A câmera se fecha em um corte abrupto,
simulando um final.
Entrando silenciosa e inesperadamente os pais se deparam com a cena inaudita: a sujeira
do apartamento e os três dormindo nus e abraçados
.
Ao retornar das férias os pais são surpreendidos pelo cenário da sala: os
três jovens, abraçados e nus, dormem sob uma tenda como faziam os irmãos em
sua infância.A formação liberal, que os levara a falar com os filhos de romances
escritos em tons fortes, no limite da obscenidade, não permite um
comportamento conformista, uma ação repressora. Por coerência com sua
conduta liberal a mãe propõe e o casal opta pela omissão; o pai deixa os
cheques sobre a mesa e silenciosamente, da mesma forma que entraram, se
retiram. Ao acordar e ver os cheques Isabelle se desestrutura.Retira a mangueira
de gás do fogão e a coloca na tenda. A câmera subjetiva projeta o que se passa
em sua imaginação: aparecem as cenas do filme Mouchette, onde a
personagem desce rolando em uma colina até se afogar no lago.
Uma pedrada quebra o vidro da janela e os rapazes despertam. Essa
pedra quebra também os sonhos dos três adolescentes e os acorda para a
realidade, é como se a rua tivesse invadido o quarto e os três Despertassem
abruptamente. Questionam sobre o cheiro de gás e Isabelle diz que é o gás
lacrimogêneo das bombas que eclodem nas ruas onde jovens estudantes e
operários lutavam pela utopia de um mundo mais livre e socialmente mais justo,
necessitando para isso conforme romper com laços da ordem existente,
conforme explica Mannheim.
Cada época permite surgir (em grupos sociais diversamente
localizados) as idéias e valores em que se acham contidas, de forma
condensada, em tendências não-realizadas e que representam as
necessidades de tal época. A ordem existente dá surgimento a utopias que,
por sua vez, rompem com os laços de ordem existente, deixando-a livre
para evoluir em direção à ordem de existência seguinte
(MANNHEIM, 1986:
222-223).
A violência se faz presente nas rebeliões da Primavera de 68 ferindo os ideais do
jovem pacifista Matthew
.
Os três saem e se incorporam ao grupo de manifestantes que têm como
armas paralelepípedos e coquetel molotove. Théo deseja lançar um coquetel e é
censurado por Matthew: Isso é fascismos dentro de uma garrafa, é violência.
Dizendo isso vira a costa ao amigo e, tal como Fabrizio em Antes da
Revolução
, caminha em sentido contrário aos manifestantes. Porém, esse jovem
leva consigo um excedente de imaginação utópica, o sonho de uma revolução
sem violência.
Ao som de uma música cantada por Edith Piaf aparece Isabelle em
conflito, dividida. Por fim, vira-se e segue o irmão que, a exemplo de outros
manifestantes, cobre o rosto com um lenço e atira a bomba que explode
afastando os policiais. De mãos dadas Isabelle e Théo, dois personagens na
multidão, correm em direção a câmera, emblema do cinema e do imaginário, que
dá vida e lugar as utopias.
Ao longo das narrativas fílmicas, mesmo que ancorada na realidade de um
fato como acontece com Os Sonhadores, cria-se outro mundo, feito de imagens e
palavras capazes de construir diferentes percepções, um mundo onírico que tem
alcance muito mais amplo que a reprodução precisa da realidade.
Isso ocorreu com o filme Os Sonhadores, baseado no livro de Gilbert Adair,
The Holy Inocent, que também se responsabilizou pelo roteiro, e foi
apresentado,como já foi dito, no Festival de Veneza, fora da competição do Leão
de Ouro, em 2003. Em sua trama ficcional a forma prevaleceu sobre a
mensagem, o que prejudicou a expectativa daqueles que aguardavam um filme
documentário, uma reprodução e não uma “construção da realidade” onde o
passado é interpretado e o futuro imaginado e, talvez por isso, as polêmicas
suscitadas garantiram as manchetes dos jornais.
Em conseqüência a Fox Searchhlight Pictures, distribuidora do filme,
propôs cortes nas cenas de nudez frontal e relações sexuais entre os jovens
estudantes, mas acabou cedendo e mantendo o filme na íntegra, mas censurado,
nos Estados Unidos para 17 anos e no Brasil para 18 anos.
O crítico de cinema Luis Carlos Merten, no Blog do Estadão, por ocasião
do lançamento do filme, escreveu:
....” De Bertolucci o filme de que mais gosto não é O
Conformista nem O Último Tango, mas Beleza Roubada e Os
Sonhadores. A volta à utopia. Beleza Roubada é o Nós Que
Amávamos a Revolução do Bertolucci. A morte do Jeremy Irons, a
destruição do sonho de Maio de 68, me dói mais do que... Deixa pra lá.
Vou terminar”.
Também o jornalista Tony Pugliese, em 30/04/2004, escreve:
...” contando ainda com uma boa trilha sonora e com a
competente direção de arte por parte da equipe de Bernardo Bertolucci,
Os Sonhadores é um colírio para os olhos, um filme que pega um
conflitante cenário político da década de sessenta e ensaia uma ardente
história de amor vivida por esses três amigos. O filme acaba por
provocar o público ao invés de passar uma sensação de tranqüilidade
após tanta beleza exibida. O resultado é uma obra envolvente e
completamente surpreendente” .
O fato de o filme contemplar muito mais as cenas de transgressão sexual
dentro do apartamento do que as cenas referentes à revolução, assim como
contraposição de imagens documentais como as de Kalfon e Léaud lendo em
1968 um panfleto de autoria de Godard e a representação que esses atores
fazem de si mesmo na trama ficcional, são imagens que denotam a passagem do
tempo e demonstram que o significado realista foi submetido ao processo
criativo, comprometendo a evocação do tema por parte do público receptor.
Nesse sentido Vittorio Taviani argumenta que:
há muitas vezes confusão entre trama e o sentido de um
filme.Não é na trama e em sua ambientação – uma série de
acontecimentos que movem uma série de personagens - que encontramos a
verdade do filme: a verdade está no sentido, nos sentimentos, nas reações
que aqueles acontecimentos provocam no espectador; enfim, está
justamente naquela lasca de sentido que um autor procura extrair da
vida que experimenta na convivência com os demais
” (PRUDENZI e
RESEGOTTI , 2006:112).
Isso nos leva a relacionar o filme com o próprio acontecimento, Primavera
de 68, que até hoje continua sendo motivo de especulações e interpretações
diferentes e conflitantes.
A montagem tem um significado realista quando os fragmentos
isolados produzem, em justaposição, o quadro geral, a síntese do tema.
Isto é, a imagem que incorpora o tema. Passando desta definição para o
processo criativo, veremos que este ocorre do seguinte modo. Diante da
visão interna, diante da percepção do autor, paira uma determinada
imagem, que personifica emocionalmente o tema do autor. A tarefa com
a qual ele se defronta é transformar essa imagem em algumas
representações parciais básicas que, em sua combinação e justaposição do
espectador, leitor ou ouvinte forma a mesma imagem geral inicial que
originalmente pairou diante do artista criador
” (EISENSTEIN, 1990: 26 -
27).
As imagens, no presente caso, parecem não ter conseguido despertar no
espectador, a imagem geral inicial. O diretor, segundo declarou, temia a morte do
espírito de Maio de 68.
”É o momento de lembrar quão maravilhosa foi aquela
experiência que vivemos há menos de 40 anos. Em termos de história da
humanidade, o prazo é mínimo, mas o espírito de maio começava a se
desvanecer e isso, para mim, era uma traição a tudo aquilo pelo que
lutamos, ou no que acreditávamos.Não tento recuperar o tempo perdido,
mas mostrar aos jovens atuais, que parecem nada saber sobre Maio de
68, o que foi aquela época e porque se tornou mítica.....Esse filme já
nasceu na minha cabeça como Os Sonhadores.Era o que
éramos.Queria justamente reviver aquele sonho”
”(2004:D3).
Por se prender mais a descoberta da sexualidade dos três jovens que
acontecia dentro do apartamento, com menor enfoque para a revolução externa,
acreditamos que o sentido de Maio de 68, nesse filme, ficou restrito e tornou
esmaecida a representação do movimento contestatório. Para finalizarmos
aplicaremos a este filme as categorias de análises já enunciadas.
P
ensamento existencial
P
rodução cinematográfica Estilística narrativa
C
onsciência antecipadora
Voz em off
Realmente acontecido
F
uturo das Teorias do Cinema
Abertura do Filme
Fechamento da
C
inemateca e Primavera de 68
Transgressão
Close up
Socialmente pensado
Rompimento com a ordem
comportamental
Três jovens no interior da casa
Revoltas estudantis
Estética da Utopia
Metalinguagem
Poeticamente imaginado
Representações da historia do
cinema
Os filmes representados através de
jogos
O próprio filme
Os Sonhadores
A primeira categoria, consciência antecipadora, situa-se no paradigma do
pensamento existencial moderno como uma possibilidade psíquica capaz de dar
conta das determinantes do tempo e do espaço da realidade, atrelados a uma
discussão política sobre o futuro das teorias do cinema que se debatem sobre a
decupagem clássica e as vanguardas artísticas prevalecentes naquele momento
histórico singular.
Entendida como a seqüência dos fatos, a realidade na produção
cinematográfica do filme
Os Sonhadores, abre com uma voz em off, do jovem
personagem Matthew, para informar sobre a nova ordem estabelecida - o
fechamento da cinemateca e o efervescer do movimento da Primavera de 68- e
se projeta na estilística narrativa pela linguagem do narrador onisciente e nas
qualidades do sentir “do realmente acontecido”, como uma espécie de
documentário perpassado nas imagens poeticamente ordenadas para atingir
esse fim.
A segunda categoria, da transgressão, acontece no rompimento com a
ordem comportamental dos protagonistas impulsionados pelos ideais que
sustentam seus pensamentos.Os sonhadores são, de acordo com o filme, três
jovens que se encontram na cinemateca e participam de um movimento em
defesa da liberdade de expressão que ela representa.
O recurso do close-up permite que o espectador se localize em espaços
socialmente pensado seja na esfera pública ou privada, focalizando a ação
destes três protagonistas.Assim, por exemplo, no espaço público a aproximação
da câmera em torno de Isabelle, supostamente acorrentada às grades da
cinemateca, marca o momento em que o jovem americano, atraído pela
interpretação glamourosa da “diva”, aproxima-se instigado pelo mistério na
tentativa de decifra-lo, isto representa o desejo de liberdade dos jovens ante a
repressão ideológica do Estado.
Já no espaço privado esse mesmo recurso pode ser visto com freqüência
no enquadramento de cada jovem, mas destacamos o momento em que Theo
aparece, de costa para um espelho, recusando-se a atender ao chamado
telefônico de seus pais em um ato de rebeldia em relação à “velha” geração.
Estilisticamente, a narrativa, desenha a alegoria do jovem que sente,
pensa e vive de acordo com seus ideais e suas contradições. Um jovem
americano que defende o cinema europeu, um jovem europeu que defende o
cinema americano e uma mulher que representa o puramente sensual através da
arte e sua imagem em movimento.
A terceira categoria, estética da utopia, aparece claramente representada
nas cenas de rua quando a policia armada com cassetetes e bidules investe
contra os estudantes revoltados, a principio com o fechamento da cinemateca,
depois com o movimento estudantil que se estendeu a outros segmentos da
sociedade. Não dispondo os manifestantes de armas, fazem barricadas de carros
incendiados e atiram coquetel molotove contra a policia ao som da música de
Charles Aznavour, cantada por Edith Piaf, Rien de Rien. Nessas cenas, para
aparentar um grande número de participantes o diretor utiliza-se de recursos
digitais para duplicar inúmeras vezes as imagens.
Tal como já havia acontecido em Antes da Revolução, quando Matthew
sem conseguir convencer Theo a não praticar atos de violência, vira-se e
caminha em sentido contrário à manifestação também aparece a estética da
utopia.
A metalinguagem desabrocha nos jogos propostos pelo casal de irmãos na
representação dos filmes preferidos de cada um.Por exemplo: A Vênus Loira no
qual Isabelle encarna a interpretação de uma corista, nem mais nem menos que
Marlene Dietrich, Théo dramaticamente representando a encruzilhada de Scarface,
deixando a adivinhação para Matthew que, junto com os irmãos, revive cenas do
filme
Bande a Part, no museu de Louvre.
A estilística narrativa, o poeticamente imaginado por Bernardo Bertolucci
em Os Sonhadores é a vivência de um cineasta contemporâneo aos movimentos de
vanguarda artísticas no cinema, principalmente em A Primavera de 68 que os
recria neste filme, procurando resgatar os motivos ideológicos que pautam a ação
deliberada de jovens sonhadores.
CAPÍTULO III
Vigência das utopias no cinema de Bernardo Bertolucci
"A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se
afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos.
Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia?
Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar."
Eduardo Galeano
O tema utopia e seus correlatos aparece, como já vimos, em muitos filmes
de Bernardo Bertolucci. Dentre eles, elegemos para análise os três filmes que o
próprio diretor aponta como os mais representativos da utopia de Maio de 68.
No início de nosso trabalho, alertamos que a Primavera de 68, embora
tenha sido um dos movimentos juvenis mais estudados, analisados,
interpretados, ainda permanece polêmico, e de certa forma misterioso, não
havendo mesmo consenso nem mesmo para categorizá-lo. Político, social,
mítico, utópico? Não vamos nos esquecer que nessa primavera foi reafirmado,
por comportamentos, o que preconizava os slogans: que “todo e qualquer gesto é
político”, que ”é sempre preciso ser realista e exigir o impossível”, que “embaixo
do asfalto se encontra a praia”. Portanto, muito além da conjugação de questões
políticas, ideológicas, institucionais, os jovens - ao exigirem o impossível -,
queriam mudar o mundo, o que permite caracterizá-los como sonhadores, como
utópicos. E são esses jovens representados que possibilitam “A vigência da
estética da utopia no cinema de Bertolucci”, título deste terceiro e último capítulo.
No desenrolar de “Primavera de 68: a imaginação no poder”, faremos um
relato sobre esse movimento trazendo a visão, não só de historiadores, mas
também de cineastas, com destaque para François Truffaut. Buscamos, ao
identificar os jovens como protagonistas da história do século XX, contextualizar
esses movimentos e reconhecer que a modernidade, nesse momento, é
percebida não apenas na vida econômica, na produção industrial, na política, isto
é, na esfera pública, mas se volta para a esfera das relações privadas, íntimas,
sexuais, etárias e daí se depreende um novo princípio de realidade que, ao
contrário do industrial positivista, não impõe formas determinadas de pensar e
agir, mas pratica a espontaneidade criadora.
A seguir, em “A estética da utopia e o cinema italiano de Bertolucci”,
especularemos sobre a influência das vanguardas, principalmente o neo-realismo
italiano e a
Novelle Vague francesa na estética cinematográfica do diretor.
O cinema, ao permitir que a forma prevaleça sobre a mensagem, torna
viável a possibilidade do sonhar, torna “real” a matéria do sonho e coloca o
espectador em contato com uma outra realidade possível. Em outras palavras, há
similaridade entre a psique ao projetar, liberar nos sonhos as emoções, tensões,
sentimentos que fermentam na escuridão do inconsciente, com a projeção
cinematográfica ao projetar, por meio das imagens em movimento, uma
representação onírica do imaginário, sobre a tela branca na sala também escura.
Essa função projetiva se completa no processo da identificação: o espectador,
identificando-se com as personagens que, no entanto, lhe são estranhas, se
sente vivenciando experiências que, contudo, não pratica, e dessa forma libera,
por empatia, tensões e emoções e assim, tal como no sonho, são simbolicamente
liberados os desejos reprimidos
42
.
MORIN (1977:80) diz que as projeções/identificações se relacionam a toda
esfera do interesse humano - prática, mágico-religiosa, estética - mas essa
última, a estética, se destaca principalmente no imaginário. Considera imaginária
a estrutura antagonista e complementar daquilo que chamamos de real e sem a
qual não haveria realidade humana. O imaginário é também um sistema projetivo
que se constituiu em um universo espectral e que permite a projeção e
identificação mágica, religiosa ou estética. Todo esse processo de
identificação/projeção é responsável pela magia do cinema e por sua semelhança
com a faculdade humana do sonhar.
Se o cinema é parente consangüíneo do sonho e o
sonho é a malha em que o inconsciente se tece, então, cinema e
inconsciente se irmanam
” (SANTAELLA, 2004:16).
Ao assistirmos a um filme nos identificamos com as personagens e as
técnicas de filmagem - planos, corte, posicionamento da câmera, fusão,
iluminação, trilha sonora, a sala escura - colaboram para estimular o processo de
42
Projeção é o nome de uma tendência para supor que os outros experimentam as mesmas idéias
e sentimentos que alimentamos.
Identificação é um mecanismo psicológico pelo qual o indivíduo assume, permanentemente ou
não: as características de personalidade investidas na imagem de outra pessoa. CABRAL e NICK.
IN:
Dicionário Técnico de Psicologia. São Paulo: Cultrix, 1989.
identificação/projeção entre espectador e diegese do filme. A imaginação
individual cria mundos impossíveis e fantásticos, mundos oníricos que também
são recriados no cinema. No imaginário social as sociedades esboçam suas
identidades e objetivos, plasmam visões de mundo, modelam condutas que se
expressam por utopias ou ideologias. Sabendo que imaginar, assim como sonhar
é inerente à condição humana e se produz na relação entre o sujeito e o meio
sócio-cultural, buscamos aporte nos estudos de Rechia (2005) para fundamentar
essa premissa do parentesco enunciado do sonho e cinema.
Partindo da conceituação normativa de que imaginar é a
possibilidade de evocar ou produzir imagens independentemente da
presença do objeto ou do ser a que se refere, por meio das lembranças e
das intuições, submetidas às coordenadas de espaço-tempo, imaginar
está diretamente associado à função criadora, e está intrinsecamente
ligado aos processos culturais e a um tempo histórico determinado.
Assinalamos que o diretor do filme, ao contar a história, tenta
transmitir, por meio de imagens cinematográficas, o imaginário, tenta
atingir as aspirações, os medos, as esperanças e a alteridade do
personagem. ....O imaginário social se expressa por ideologias e utopias,
e também por símbolos, alegorias, rituais e mitos. Tais elementos
plasmam visões de mundo e modelam condutas e estilos de vida, em
movimentos contínuos e descontínuos de preservação da ordem vigente
ou introdução de novas configurações dos códigos sociais. A imaginação
social, além de fator regulador e estabilizador, também é a faculdade
que permite que os modos de sociedade existentes não sejam
considerados definitivos, os únicos possíveis, e que possam ser concebidos
outros modelos
43
.”
A imaginação que Rechia (2005) chama de social, tendo Bloch (2005) por
alicerce, chamamos de utópica; acreditamos que é essa imaginação que permite
conceber outros modelos de realidade, os quais muitas vezes foram representados
ou até prefigurados nas imagens do cinema e que, nos filmes de Bertolucci,
aparecem na função metalingüística. Uma pesquisa sobre os filmes que, em
metalinguagem, são representados nos jogos criados pelos protagonistas de Os
Sonhadores
, dos quais conseguimos identificar doze, deu forma ao último item, “A
metalinguagem: os filmes no filme”, em que o cinema, por si, fala de si ou, como
propõe Luiz Nazário, ”a metalinguagem coloca em cena o mistério profundo do
cinema na sua essência ôntica” (IN: Andrade, 1999).
43
RECHIA, Tânia Maria. O imaginário da violência em minha vida em cor de
rosa. Tese de doutorado em
Educação. UNICAMP. Campinas, 2005.
1.1. Primavera de 68: a imaginação no poder.
Somente a juventude une os diversos movimentos que abalaram
as convicções e as certezas na década de 60’.
L.A.Groppo
A filósofa Olgária Matos (2006), uma estudiosa do
movimento de 1968, argumenta no ensaio Tardes de Maio
que “o maio de 1968 advertia o mundo unidimensional na
uniformidade dos sonhos e dos desejos - ao que respondia com o lema ‘tome
seus desejos por realidade e creia na realidade de seus desejos’”. Acreditar na
realidade dos desejos e nos sonhos, levar a imaginação ao poder, fazer amor e
não a guerra, foram algumas das bandeiras levantadas pelos jovens que estavam
insatisfeitos com a ordem social e política vigente no final da década de 60.
Mas o que foi na realidade o mítico “maio de 68”, tema central do filme Os
Sonhadores
, filmado em 2003 por Bernardo Bertolucci? Denominamos mítico por
que, acontecido há quase 40 anos, é ainda lembrado, discutido, estudado,
rememorado como uma utopia e paradigma para outros movimentos sociais ou
políticos de contestações comportamentais. Quem foram esses sonhadores? O
que desejavam? O que repudiavam?
Ano matricial presente em todos os movimentos que recusam a
submissão ao status quo, ainda hoje se hesita na denominação de 1968: levante,
revolta, revolução? Talvez possamos dizer que foi uma improvisação, uma
simulação da revolução, imitação sincera de revolução, conforme MATOS
(2006:135). Ainda não há uma explicação consensual, sociológica ou política
sobre esse fato que não se desenvolveu na tomada do poder, no número de
mortos, na lógica do vencedor e do vencido. “Acontecimento”, segundo o filósofo
Alain Fienkielkraut, participante das manifestações, é o termo mais adequado
para esse episódio, que acelerou um processo ligado ao “individualismo”.
Aconteceu no tempo das cerejeiras em flor, o tempo do amar e do
renascer contido em cada primavera. Primavera, estação das flores, da origem
dos novos frutos, ciclo de tempo que o senso comum associa à alegria, à
juventude, à marcação cronológica anual. E foi em Paris, capital não só do
Capital, mas dos grandes tratados de paz e dos êxtases revolucionários, que o
mundo assistiu àquela que talvez possa ser considerada a última utopia do
século XX, uma utopia não caracterizada pela busca de um lugar ideal no campo
político ou religioso, mas uma utopia gerada pela consciência antecipatória, pelos
sonhos diurnos de uma vida com mais liberdade.
Lembremos que a década de sessenta foi marcada pela “guerra fria”, pelos
desdobramentos da divisão do mundo entre capitalismo e comunismo, cujo
símbolo maior foi o muro de Berlim. Na América do Sul, inclusive no Brasil,
vingavam regimes políticos totalitários e, contra alguns, se insurgiam os
guerrilheiros de Che Guevara, líder que tombou morto em 1967 e que ganhou a
aura de “mito”.
Na América do Norte, sob o governo de Lyndon Johnson, ocorreu o
bombardeio ao Vietnã do Norte e o desembarque de tropas americanas no Vietnã
do Sul. Para os jovens essa era a invasão de um grande país capitalista
querendo impor-se a um pequeno país asiático. A não conformação com esses
fatos levou a juventude americana à transgressão e pequenos grupos se
organizaram em movimentos que passaram a ser conhecidos como
contracultura. No centro das contraculturas ocorriam diferentes experiências
comportamentais, surgiam novas correntes artísticas, culturais, filosóficas e
místicas; estados alterados de consciência obtidos por métodos de meditação de
origem oriental ou pelo uso drogas, principalmente a maconha e as alucinógenas,
como o LSD, na busca da chamada “experiência psicodélica”, isto é, exploração
da consciência e busca de novos compartimentos de espírito. Essa busca de
estados alterados de consciência, constituída por alguns grupos apenas pelo
consumo de drogas, resultou em um mercado dominado apenas por interesses
comerciais, em uma aproximação com a criminalidade e na dependência de
substâncias químicas. Dentre esses grupos de contracultura destacou-se o
movimento “hippie”, que tinha por ídolo literário Herman Hesse, por mestre
pensante o estudioso da sexualidade Wilhelm Reich (1897-1956) - que associava
a repressão sexual como forma de o sistema absorver as energias vitais do
indivíduo, e argumentava que a quebra dessa repressão romperia as amarras da
autoridade, solapando a legitimidade do poder e da tradição -, tendo por lema a
frase “faça amor, não faça guerra”.
“Apesar de seu caráter muito amplo e heterogêneo, as
contraculturas foram a grande fonte de influências para os jovens dos
anos 60, ao lado do terceiro-mundismos e das novas esquerdas. Quase
todos os movimentos tinham em comum a aspiração à liberdade de
comportamentos
” (GROPPO, 2005:243).
Em muitas partes do mundo os movimentos juvenis conquistaram espaço.
Na China, a Grande Revolução Cultural Proletária de Mao Tse Tung, que
pregava a revolução nas relações sociais, levou a juventude a ocupar as praças e
ruas, manifestando-se também contra os chineses simpatizantes do capitalismo.
Esse movimento tinha traços em comum com as revoltas ocidentais: idade e
condição dos protagonistas, insatisfação com o cotidiano escolar, renovação das
letras e das artes, intervenção nas esferas dos costumes e da cultura, e a
aplicação da idéia maoísta de que os estudantes deveriam agitar as classes
trabalhadoras.
Em Praga, a Primavera que trouxe o sonho da transição entre um regime
comunista ortodoxo para uma condição de social democracia ocidentalizada foi
sepultada em vinte de agosto de 1968 pelas tropas do Pacto de Varsóvia, sob
liderança dos tanques russos.
Na Itália, no primeiro semestre de 68, ocorreram quase 60 manifestações
e dois grandes eventos no Vaticano. No final de 67, os alunos ocuparam a
Universidade de Turim com propostas radicais de autocontrole e profundas
críticas à Instituição. Em dezembro, houve a ocupação da Universidade de
Gênova e, no mês seguinte, ocorreu a ocupação da Universidade de Veneza. Em
seguida, o centro de protestos migrou para Roma, o que ocasionou o fechamento
da universidade e centenas de presos, entre fevereiro e maio. Nesse mês, a
rebelião espalhou-se para Florença, Milão, Nápoles, Pádua, Palermo, Bolonha,
Bari, enfim, a crise estudantil afetou todo país, o que colaborou para a queda do
primeiro ministro Aldo Moro. Em novembro ocorreram diversas greves de
trabalhadores em apoio aos estudantes. Podemos perceber que esses
movimentos de contestação, ainda que pudessem parecer isolados, atingiram
quase que o mundo todo.
Em 1969, espelhando-se na Primavera de 68 da França, os ativistas
italianos colocaram em greve dois milhões de operários que tentaram, sem êxito,
desestabilizar os sindicatos. A decepção ocorrida com o novo governo que se
deixou corromper e destruiu os sonhos e esperanças de uma nação que trazia as
cicatrizes da guerra e de um regime totalitário - o fascismo -, levou os estudantes
a romperem com o Partido Comunista Italiano sob acusação de que se conciliava
com a burguesia e, posteriormente, parte dessa nova esquerda aderiu à violência
revolucionária, integrando as Brigate Rosse - Brigadas Vermelhas.
Esses fatos remetem à trama do filme Antes da Revolução, e o jovem
Fabrizio, que busca no engajamento político o caminho para autenticidade e que
denuncia o aburguesamento dos proletários, em uma crítica ao Partido
Comunista que proporcionou essa postura. A temática de Antes da Revolução é
antecipadora de um futuro que irá “acontecer” quatro anos depois.
Apesar da distância entre Antes da Revolução e os filmes
de narrativa clássica que se organizam em função do desenvolvimento do
enredo, há nele um fio narrativo, acompanhando o que acontece com
Fabrizio, desde sua proposição a romper com sua classe até sua
capitulação.”
(SARAIVA, 2002:47)
Voltemos a Paris, na primavera de 68. A capital do país, presidida tornou-
se símbolo da possibilidade histórica de transpor a fronteira entre o possível e o
impossível, entre a realidade e a utopia, sendo esta considerada como
representação/expressão do almejar uma nova ordem social emergida dos fatos
que se seguem.
Em 10 de maio de 68, na cidade de Paris as luzes de néon foram
sufocadas pelas chamas das labaredas. Seriam apenas carros queimando
naquelas barricadas ou os sonhos latentes dos jovens que lutavam por expressar
sua realidade mais contingente também estavam sendo queimados? Vamos
verificar, sob o ponto de vista de um cineasta, o que então ocorria
44
.
Só à luz de outros eventos percebi que o caso da Cinémathèque,
ocorrido em 19 de março de 68, foi uma espécie de prólogo aos
acontecimentos de Maio. Os intelectuais contestando a decisão
governamental de demitir Henri Langlois, fundador e alma da
Cinémathèque, desceram à rua e foram agredidos com cassetetes. Foi feito
com essa instituição o mesmo que com o resto da França: subvencionaram
e depois tentaram minar o trabalho que vinha sendo realizado, declara
Francois Truffaut
” (GILLIAN, 1990:207).
Também em março, na periferia de Paris, mais precisamente na
Universidade de Nanterre - uma instituição com 12 mil alunos formada para
receber aqueles que não conseguiram ingressar nas escolas mais tradicionais –
iniciou-se uma rebelião quando a reitoria baixou norma disciplinar proibindo aos
rapazes visitas às moças em seus dormitórios. Já havia um precedente para o
44
Sonho latente, formado pelos desejos reprimidos que só indiretamente se expressam no
conteúdo manifesto convertidos em símbolos (Dicionário Técnico de Psicologia. Cultrix.). No
contexto acima consideramos como latente aquele que está no inconsciente e ainda não se
manifestou.
que os estudantes consideravam arbitrariedades da instituição: o veto das
autoridades à vinda de Wilhelm Reich, que havia sido convidado pelos
estudantes para proferir palestra.
Um jovem de descendência alemã e cabelo ruivo, bolsista daquele
governo, “esquerdista independente”, Daniel Cohn-Bendit, conhecido como
Daniel Lê Rouge, reuniu um grupo de cem colegas e invadiu a secretaria em
protesto contra a norma que regulamentava a conduta dos estudantes e que,
como conseqüência, reprimia o comportamento sexual. Os estudantes gritavam e
“grafitavam” que era Proibido Proibir”, lei de 10 de maio de 1968, ironizando uma
lei de 10 de julho de 1881, que proibia colar cartazes em muros.
Assustado com a represália, o então reitor, Pierre Grappin, suspendeu as
aulas e chamou a polícia. Foi esse o estopim que levou à manifestação de uma
crise que se encontrava latente na sociedade marcada por tensões, tédio e
insatisfações. Levou os jovens à busca de mudanças na forma e no próprio
conceito de fazer política, exercitando uma nova estética de expressão livre e
juvenil das artes, em particular da Sétima Arte, que também havia alavancado o
movimento.
Após marcar o campo em Nanterre, os estudantes partiram, em três de
maio, para a Universidade de Sorbonne. A liderança continuava com Daniel le
Rouge e, a pedido da União Nacional dos Estudantes Franceses (UNEF), que
desejava registrar
45
as manifestações, o fotógrafo de moda Willian Klein empunhou
uma filmadora e durante dez dias e dez noites registrou os acontecimentos. Esse
45
Registro, produção e divulgação, conforme são os três pressupostos de comunicação que
interferem no processo social.
registro gerou o documentário. A luta continua que, fiel e sem retoques, apresenta
os principais fatos da época.
Na manifestação seguinte, na rua Courcelles, os
cassetetes de borracha haviam sido substituídos por ‘bidules’, cassetetes
infernais. Foi nessa ocasião que vi Daniel Cohn-Bendit pela primeira
vez. Estava trepado em um poste de iluminação e nos chamando de
camaradas. Um rapaz foi preso e ao final da manifestação, quando nos
preparávamos para ir embora, Le Rouge discursou: ‘Não partiremos
enquanto o nosso camarada não for libertado. Na Bretanha os
camponeses esperaram seis horas até que libertassem um de seus
companheiros. Quanto tempo aguardarão os parisienses’? Decidiu-se que
a forma de luta seria lá permanecer até a libertação do rapaz e um
grupo de cineastas foi negociar a libertação do estudante com os policiais
(GILLIAN,1990:207).
O reitor da Sorbonne, Jean Roche, ao se deparar com a desordem
organizada na instituição, solicitou ao Comissariado da Polícia do Quartier Latin
medidas para conter os jovens. No dia seguinte, a UNEF e o Sindicato Nacional
de Ensino Superior declararam greve por tempo indeterminado.
Em seis de maio a violência se tornou maior em Paris. Uma multidão subiu
a Rua St. Jacques e foi detida por uma tropa de choque. As primeiras barricadas
apareceram no Quartier Latin, antigo centro universitário parisiense, e a batalha
começava: de um lado moças e rapazes fazendo dos paralelepípedos, sob os
quais estava a “imaginária praia”, as suas armas; do outro lado, o grupo de
policiais usava bombas de gás.
O governo retrocedeu no caso Langlois, uma
demonstração de que é preciso exigir nas ruas o que não se consegue nos
gabinetes, diz Tuffaut. Em 17 de maio acontecia o Festival de Cannes e
até esse dia mantive-me informado sobre as manifestações pelo rádio. No
aeroporto de Orly, os aviões estavam parados. Aluguei um carro e
atravessei a França ouvindo o boletim informativo noticiando a ocupação
de mais uma fábrica. Foi nesse dia que tudo paralisou o país, para
terminar na paralisia total do domingo, 19. Jacques Rivette me procurou
e disse: - Pois é, decidimos parar o Festival de Cannes. A sala estava
cheia de jornalistas e cineastas. Li um texto de cinco linhas explicando
que a assembléia havia decidido pedir a suspensão do festival. Na sala
havia muita gente da região e alguns produtores insistiam em exibir os
filmes. As autoridades chegaram às 15 horas, iriam iniciar o filme de
Saura
6
quando alguém gritou: ‘Todo mundo para a cortina’. Era uma
tentativa de impedir que a cortina elétrica se abrisse. Saura lutando
para que seu filme não fosse exibido
46
. Alguém desconectou os fios do
alto-falante e as imagens eram exibidas sem som. Houve uma grande
balburdia gritos, socos e pontapés. Retornei a Paris. Nunca me engajei
politicamente, mas cheguei a desfilar no dia primeiro de junho. Num
primeiro momento o que me emocionou nos estudantes é que respondiam
aos golpes da polícia. Então acompanhei toda a sua ação. Tenho uma
profunda admiração pelos jovens que ousaram desfilar cantando ‘somos
todos judeus-alemães
.’”. .(GILLIAN,1990:208-211)
Os “enra-gés” - os enraivecidos - como os estudantes se intitulavam,
tentavam cooptar os operários e, em 22 de maio, 10 milhões de pessoas
46
Carlos Saura, cineasta espanhol, nascido em Huexas, Aregon em 04/ 01/1932, dirigiu mais de
40 filmes entre eles
Bodas de sangue, Carmem, Amor Bruxo. O filme produzido em 1967 foi Peppermint
Frappé.
paralisaram o país, participando da greve geral. Os operários, mesmo não
simpatizando com os estudantes “burgueses”, também saíram às ruas:
reivindicavam um acordo em que estivesse previsto aumento de salários,
redução de horas de trabalho e participação na gestão das empresas.
Os estudantes que a princípio lutaram pela reabertura de Nanterre
ampliaram suas reivindicações: lutavam também pela mudança de costumes, por
uma reforma mais democrática de ensino, contra a guerra do Vietnã e contra o
governo conservador de De Gaulle, influenciados pela contracultura
47
e novas
esquerdas. Para Hobsbawn (1995), os valores de maio de 68, na França,
estiveram mais próximos do anarquismo do que de outras correntes marxistas
evocadas conscientemente. Tratava-se de uma recusa a todo tipo de autoridade,
traço característico do anarquismo.
Na noite de 24 de maio, logo após De Gaulle propor um referendo para
decidir se permaneceria ou não no governo, aconteceu a segunda noite das
barricadas. Em conseqüência, Le Rouge foi proibido de permanecer na França e
a Assembléia Nacional propôs uma Moção de Censura a Georges Pompidou, o
primeiro ministro.
Mediante o silêncio e a ausência de De Gaulle, que se encontrava na
Alemanha, seu adversário mais constante, François Miterrand, em 28 de maio,
propôs a formação de um governo provisório dirigido pelas esquerdas coligadas.
Desafiando o sistema, Le Rouge, agora com os cabelos pintados de preto,
convocou a imprensa para mostrar o óbvio: que, apesar da proibição, estava
47
Contracultura é aqui entendida como uma série d experiências comportamentais de indivíduos e
grupos, correntes artísticas e culturais de vanguarda, novas modalidades filosóficas, religiosas e
místicas, experimentações com drogas e estados alterados de consciência, discussões e
contestações cotidianas a respeito de valores, normas, tradições.
instalado na Sorbonne. Em discussões posteriores sobre Maio de 1968, muitos
intelectuais falam da espetacularização do movimento e Morin reclama da
vedetização feita pela mídia de determinados personagens - Le Rouge, Geismar,
Pompidou - e de certos locais como Sorbonne e Nanterre; de duas classes
sociais - universitários e operários, deixando na obscuridade os estudantes
secundaristas, os recém-graduados e outras classes trabalhadoras.
O medo de que uma subversão totalitária viesse a governar o país, fez
com que os operários começassem a explicitar que seus objetivos não eram os
mesmos dos estudantes. Interessante notar a força dos meios de comunicação
de massa nesse contexto: a princípio foram censurados, prejudicando a devida
divulgação dos fatos. Em contrapartida, os estudantes organizados utilizaram e
reconheceram as possibilidades da moderna câmera de filmar portátil e o poder
dos meios de comunicação, pois a primeira frase do documentário é ”Lênin não
tinha o rádio nem a reportagem ao vivo. A França de 68 não é a Petrogrado de
17”, diz um estudante.
O General De Gaulle, da cidade de Baden, na Alemanha, pediu o apoio
incondicional do Exército e foi atendido. Surpreso com o movimento, que
suscitava entre a burguesia o medo da instalação de um regime anárquico
vermelho, o presidente dirigiu-se a uma rede de televisão e anunciou a
dissolução da Assembléia, convocando novas eleições gerais para 23 e 30 de
junho. A realização dessas eleições tinha por objetivo apaziguar a rebelião e
consultar o povo sobre o destino político da França.
Os anos 60, e seus movimentos juvenis refletiram também os processos
de institucionalização dos jovens, a massificação das universidades, o
crescimento da indústria cultural e, para alguns pensadores como Baudrillard,
“marcaram o início da pós-modernidade, uma práxis da liberdade individual, um
incentivo para viver o presente” (GROPPO, 2005:275).
Destacamos que é no decorrer dos tempos modernos que surge a
cronologização do curso da vida individual, determinando os estágios da vida
humana, delimitando faixas etárias. Entre o estágio de vida da criança e do adulto
ganha espaço a juventude, fase do sonho, de aventuras bem sucedidas, de
beleza a descobrir, da busca do protagonismo. Segundo Groppo (2005), a
discussão de juventude ganha novos enfoques na pós-modernidade e,
desvinculando-se de faixas etárias, passa a ser entendida como “estado de
espírito”, estilo de vida, forma de ser
48
.
Ainda sobre a condição dos jovens, encontramos em Mannheim (1976) a
explicação de que ela permite que indivíduos e grupos vivenciem uma relação
experimental, no sentido de proporcionar um primeiro contato do indivíduo como
protagonista, com valores e estruturas sociais. Essa experimentação pode ser
compreendida como a dessacralização dos saberes acumulados e pela busca do
novo.
Conceitos como o de juventude na pós-modernidade sustentam os
anseios libertários da geração que fez a revolução cultural nos 60 e, hoje, mesmo
com alguns representantes ocupando importantes cargos no poder, reconhecem
que só podem reivindicar realizações modestas. Na Alemanha, onde o principal
líder estudantil de 1968, Daniel Le Rouge, foi prefeito de Frankfurt e ocupa
atualmente uma cadeira de deputado, só foi possível a reforma econômica, a
48
GROPPO, L.A. “Dialética das juventudes e educação”. IN: MORAIS, R.; NORONHA, O.M.;
GROPPO, L. A. Sociedade e Educação: Estudos sociológicos e interdisciplinares. Campinas:
Átomo e Alínea, no prelo, cap.9.
desativação gradual da energia nuclear, a implantação de sistema de tributação
favorável aos produtos ecológicos, a reformulação das leis de cidadania que
concedem esse direito a residentes não-alemães.
Na França de 68, tendo as urnas reabilitado o presidente De Gaulle com a
ajuda dos partidos Comunista Francês e Socialista, a vanguarda estudantil se
organizou em facções clandestinas, como a esquerda proletária, que chegou a
ter mais de 200 militantes presos na década de 70. A primavera de 68 não logrou
grandes modificações no campo político, até porque não houve nem partido, nem
líderes que anunciassem um projeto político. Mas a força desse acontecimento
transparece e transgride até hoje, como podemos inferir pela frase proferida em
campanha política pelo recém-eleito presidente francês, Nicolas Sarkozy: ”Vamos
bater o último prego no caixão da Primavera de 68”.
Maio de 68, ao propor a ruptura com os modelos autoritários de relações
geracionais, abriu espaços para as discussões de idéias e práticas educacionais,
propondo uma universidade não reservada apenas à formação dos jovens, mas
aberta a todos, estudantes e trabalhadores, na defesa da necessidade de uma
educação constante e permanente.
Os slogans em faixas e grafites que tomaram as ruas informavam as
reivindicações dos estudantes:
“É proibido proibir”
“Não troque de emprego, troque o emprego de sua vida.”
“A imaginação ao poder”
“Façam amor, não façam a guerra”
As maiorias silenciosas, constituintes do “Partido do Medo”, sepultaram a
Rebelião de Maio. As eleições de 23 e 30 de junho deram vitória esmagadora aos
gaullistas, diz o jornalista Flávio Alcaraz Gomes, que estava em Paris na época
como correspondente do Jornal “Correio do Povo”, e escreveu o livro A Rebelião
dos Jovens
(1968).
Matos (2006), no ensaio Tardes de Maio, diz que 1968 questionou as
burocracias totalitárias do leste europeu por um lado, e a sociedade do
espetáculo por outro
49
. Questionou o que significa viver para pessoas exauridas
pelo dia cronometrado sob o ponteiro do relógio. Criticaram-se todas as formas
de alienação, não só material como também a estética e a moral. Ampliou-se o
espaço público, ocupando as ruas e transformando os teatros em Assembléias:
”quando a Assembléia Nacional se torna um teatro burguês, todos os teatros
burgueses tornam-se Assembléias Nacionais”. Contra a ideologia da ação eficaz
e do realismo político que proscrevem os pensamentos, os jovens proclamavam
“chega de atos, queremos palavras”. Constituiu-se um princípio da realidade
diferente do industrial produtivista, cujo poder impõe formas determinadas de
pensar e agir. Um princípio estético substituiu o princípio de realidade. Houve a
liberação psíquica para a arte de amar - o que transformaria toda a vida social.
“O indivíduo que surge deste mês de maio constitui o
contrapeso político do nascimento do Eu na filosofia de Descartes.
49
Tardes de Maio. IN: Discretas Esperanças. MATOS, Olgária. Nova Alexandria, São Paulo, 2006.
Emancipado de qualquer atavismo escolástico ou teológico, o indivíduo
formulado em maio de 68 definiu-se menos por sua relação com o
trabalho, a família, a pátria, a sociedade e o Leviatã e mais na relação
estabelecida consigo mesmo. A autonomia, em sentido etimológico, isto é,
a capacidade de ser para si mesmo seu próprio fim, causa e razão,
desponta como a busca essencial de tudo em cada um que se sente
concernido pelos acontecimentos dessa época
” ([ONFRAY,1997], IN
MATOS, 2006:138).
Para o historiador e filósofo francês Alexandre Roche (Rabisco, maio de
68), esses movimentos nasceram do abandono dos ideais de liberalismo e
comunismo - uma característica que permeia toda sociedade que já não dá conta
daquilo que poderia ser um conceito ideal de convivência, uma utopia - da
revolução sexual, buscando a igualdade entre os sexos, da luta pela liberdade de
expressão e de uma abordagem existencial da vida.
Os métodos de Foucault, Lacan, Barthes, Levi-Strauss, Marcuse e Sartre
exerciam grande influência nas universidades e serviram, enquanto suporte
teórico, para que os estudantes criticassem o comodismo e a mistificação sobre o
modelo de sociedade que estava sendo constituído. Roche entende que o
movimento se dividiu em três partes: abril - fase otimista, maio - fase política,
junho - fase de contestação.
Relacionamos essas fases com as categorias utópicas propostas.
Abril: fase inicial do movimento, quando os estudantes lutam pela livre
expressão, pela mudança de comportamento, pelo repúdio à hipocrisia. Iniciado
na pequena universidade de Nanterre, a consciência antecipadora de um mundo
mais livre ganha outros espaços.
Maio: fase da transgressão. O movimento ganha as ruas e os operários se juntam
aos estudantes. Acontece uma greve geral na França, contando com o apoio de
vários partidos políticos e de intelectuais e leva à subversão da ordem social e
política. A política se desestabiliza e o erotismo, antes aprisionado entre paredes,
ganha as ruas onde os jovens se beijam com licenciosidade, confirmando a teoria
de Marcuse (1975) para quem Eros pertence à democracia. Há transgressão em
relação aos costumes e à ordem moral.
Junho: fase da contestação sistemática e da utopia do advento de um mundo
melhor. Os contestadores pressionam de tal forma o governo conservador de De
Gaulle, que este anuncia e realiza eleições parlamentares e reorganiza o
secretariado. Chega ao final a primavera, mas as possibilidades concretas de
transformação da realidade se anunciam, permitindo o aparecimento dos
conteúdos utópicos ainda não revelados.
Como pudemos verificar, são muitas as interpretações possíveis para maio
de 68. Le Rouge, enquanto deputado europeu, avaliando o movimento 30 anos
depois, reconheceu que foi pego de surpresa pelos acontecimentos de então e
acredita que a rebelião de 1968 abriu uma brecha para um movimento social
heterogêneo que procurava manifestar-se e que, ao final, os mesmo operários
que participaram das greves acabaram reelegendo o general De Gaulle.
Outros participantes, nessa mesma época, avaliaram que se perdeu a
batalha no campo político, mas ganhou-se no social com a liberalização do
comportamento - quando a vanguarda assumiu o uso da pílula anticoncepcional e
a liberação sexual, o consumo de drogas, a destruição de tabus e, no campo das
artes, com o prenúncio, como diz Ventura (1988), do advento da civilização da
imagem. A conformação de uma nova sociedade pós-industrial, em que saberes,
informação e conhecimentos tornam-se produtivos em razão da abundância na
produção material e necessidade de desenvolvimento do setor de serviços, é
dessa forma que o sociólogo Touraine (1970) também interpreta o movimento.
Mais uma vez, em 2006, as ruas de Paris se transformaram na Ágora da
modernidade. Jovens de ascendência árabe e africana, excluídos potenciais do
mundo de trabalho e atingidos pela lei do primeiro emprego, que nega a
estabilidade nos dois primeiros anos de trabalho, tomaram as ruas de Paris,
fazendo-se ouvir em suas reivindicações. Apesar das barricadas e da
participação da juventude, os objetivos destes jovens não são os mesmos de
1968. O que move a atual população dos subúrbios franceses são as frustrações
do dia-a-dia, a carência diária da justiça social, problemas que, apesar da
Primavera de 68, assolam o mundo contemporâneo.
Sobre os movimentos de 68, Groppo (2005:279) aponta que essa onda de
rebeliões revelou uma diversidade nacional, étnica e política, com alguns temas
comuns como: forte crítica ao imperialismo americano, vivência radical da
democracia na sociedade e na universidade, propostas de reestruturação e
transformação da vida cotidiana e da cultural conjuntamente e não após as
transformações políticas. Relata a posição de G. Lipovetsky, para quem os
movimentos de 68 representam o fim do modernismo e o começo de uma cultura
pós-moderna, na qual há uma práxis de liberdade individual, um incentivo para
viver o presente. A marca dessas mobilizações poderia ser a busca do
autoconhecimento, um olhar para o subjetivo, a concepção de corpo como
comunicação e a busca da felicidade.
Os filmes de Bertolucci (2004: D3) demonstram a importância que esse
movimento de 68 teve para a geração dos anos 60, visto e vivido como uma
possibilidade de mudar o mundo, “maio de 68 pode não ter selado a aliança dos
estudantes com os operários, que acreditávamos fundamental para mudar o
mundo, mas muita coisa mudou depois daquele ano, daquele mês e, por isso, ele
se tornou mítico”.
Acreditamos que os movimentos de 1968 apresentaram ações de
contestações mundiais tão heterogêneas que torna difícil sua análise em um
processo único, mesmo quando apresentam um denominador comum: a juventude,
categoria social estruturante gerada pela modernidade, presumida ou assumida
pelos integrantes, e os sonhos de um mundo melhor. Dentro deste trabalho, o
interesse maior voltou-se para a rebelião ocorrida na França, por ser tema de Os
Sonhadores
e, palidamente, traçamos um esboço do movimento na Itália, terra do
diretor do filme
50
. Para sistematizar, vamos levantar algumas configurações que
permearam essas manifestações:
A condição juvenil ou estudantil;
Os socialismos heterodoxos e as novas esquerdas;
Os movimentos de contracultura;
A liberação sexual e experiências com drogas (culminando em desvios
sociais);
50
Sugerimos a leitura de GROPPO, L.A., Uma onda mundial de revoltas: Movimentos estudantis de
1968, Piracicaba. SP Editora UNIMEP: 2005.
A nova classe média pós-guerra;
A influência da mídia e da indústria cultural.
Na verdade, deve-se ver aquela onda (de revoltas) como um
exemplo de que alternativas aos caminhos tomados pela civilização
global são plausíveis e, a meu ver, desejáveis e necessárias. Ademais, a
rebeldia juvenil dos anos 1960 aponta a possibilidade de essas novas
proposições engajarem-se em uma futura corrente mundial de contestação
criativa
“ (GROPPO, 2005:284)
Entendemos que com essas palavras reforça-se a teoria de Bloch (2005)
da imaginação utópica, da consciência que antecipa uma nova realidade ou
novas realidades possíveis. Na capacidade que tem o cinema de reproduzir a
realidade por meio dos efeitos de sentido, que neste trabalho tem por suporte as
obras do diretor Bernardo Bertolucci, indagaremos sobre como da utopia “o vir a
ser” pode ser traduzido na linguagem fílmica.
3.2. A estética da utopia e o cinema italiano de Bertolucci
“O cinema não tem fronteiras nem limites. É um fluxo constante de
sonho”.
Orson Welles
Para entendermos a estética da utopia no cinema italiano de Bernardo
Bertolucci precisamos falar de estética antes de enquadrá-lo em seu contexto
histórico, político e cultural e, a partir daí, sondar as ascendências históricas das
principais correntes e escolas cinematográficas que influenciaram a sua
formação.
O termo “estética foi empregado originalmente por Alexander Gottlieb
Baumgarten (1714-1762) para dar título à sua obra Aesthetica, de 1750, obra
inacabada que tinha por objeto a análise e a formação do gosto; trata-se de um
neologismo que provém do grego aisthesis, cujo significado é sensação, sentimento
51
.
A própria história da estética obriga-nos a fazer uma pausa. Além da
existência de várias teorias, parece não estarmos hoje mais perto da sua
conceituação do que estávamos no tempo de Platão. Cada época, cada
movimento artístico, cada filosofia da arte, tentou vezes sem conta estabelecer o
seu ideal para depois ser sucedida por uma teoria nova ou revista, a qual se
baseou, pelo menos em parte, na rejeição das teorias precedentes. Mesmo hoje,
não por unanimidade, estética é entendida como um ramo da filosofia que estuda
51
Sentimento: espaço individual de onde aflora a afetividade. Posterior a emoção e sensação e se
associa diretamente ao caráter relacional do ser humano (Bloch, 2005).
racionalmente o belo e o sentimento que este suscita nos homens ou como
encontramos no dicionário: estética é “o estudo dos julgamentos de apreciação
quanto ao belo e ao feio. Teoria do belo, sua natureza e condições. Divide-se em
teórica ou geral (estudo da nossa percepção do belo), e prática ou particular
(estudo das diversas formas de arte)”
.
Da escola platônica ao romantismo, os filósofos tentaram fundamentar a
objetividade da arte e da beleza. Na modernidade um movimento de ordem
filosófica e ideológica, que se iniciou no séc. XVIII e se estendeu até meados do
séc. XX, conhecido como a revolução estética, se caracterizou pela
independência da obra de arte em relação à intenção do autor e aos valores e
propósitos não necessariamente estéticos. Traduziu-se em novas atitudes
estéticas. A nova atitude estética confrontou as teorias como classicismo,
naturalismo
52
, e romantismo
53
, com o princípio do juízo estético de Kant. O
filósofo Kant tomou a palavra noutro sentido na obra Crítica da Razão Pura, pois
designou a estética como sendo o estudo das “Formas a priori de sensibilidade”,
mas na Crítica do Juízo considerou estética como “sendo o juízo de apreciação
relativo ao belo”, uso que permaneceu constante.
Então, para Kant o belo é aquilo que agrada universalmente, ainda que
não se possa justificá-lo intelectualmente. O grande diferencial do juízo estético
em relação às outras concepções foi a mudança de foco: o objeto belo visto
como uma ocasião de prazer desinteressado, cuja causa reside no sujeito; o juízo
52
Naturalismo: concepção que tinha por objetivo colocar diante do observador uma semelhança
convincente das aparências reais e das coisas. Apresenta duas variações: o realismo que mostra
o mundo como ele é e o idealismo que retrata o mundo nas suas condições mais favoráveis
(ARANHA e RTINS. 1993:362).
53
Romantismo: estética desenvolvida no séc. XVIII e meados do séc. XIX e que concebe a arte
como expressão das emoções pessoais de uma artista cuja personalidade genial se torna o centro
do interesse (idem: 6).
estético é o sentimento do sujeito e não o conceito do objeto. Entretanto, embora
subjetivo, há a possibilidade de universalização desse juízo porque as condições
subjetivas de julgar são as mesmas para todos os homens. Sendo assim não há
uma idéia de belo nem regras para produzi-lo. Belo é uma qualidade que
atribuímos aos objetos para exprimir certo estado de nossa subjetividade. Muda-
se o foco da imitação da natureza, da genialidade do autor, para o sujeito
receptor.
Ressaltamos que, apesar dessa ruptura que condicionou grande parte da
produção artística, as discussões sobre estética ainda não se esgotaram e as
posturas do classicismo, naturalismo e romantismo ainda são econtradas
principalmente nas produções mediatizadas da televisão e cinema. Surge uma
questão: de qual forma a produção cinematográfica depende das transformações
ou da re-evolução estética?
Como vimos no primeiro item, o cinema é uma invenção da modernidade
nascido no âmago da revolução industrial e que perpassa a revolução técnico-
científica, caracterizando-se sempre como um motivo estético que se relaciona
com a utopia no seu caráter pré-figurativo capaz de antecipar os fenômenos
sociais, políticos e culturais.
A dimensão propriamente estética apresentou mudanças devido aos já
analisados fenômenos inerentes à modernidade - reprodução mecânica e
massiva, a produção em massa e a difusão ou circulação dos produtos culturais -
que, ao menos em tese, permite a acessibilidade quase simultânea na sociedade
globalizada, e afeta diretamente as produções cinematográficas, pois no seio da
revolução tecnológica emerge também uma revolução de hábitos, costumes e
valores humanos que tangem o juízo de apreciação do sujeito receptor.
Convencionou-se fixar o dia 28 de dezembro de 1895 como a data do
nascimento do cinematógrafo, simplesmente porque naquele dia, em Paris, no
legendário Salon Indien del Grand Café, foi realizada a primeira projeção de um
programa de dez filmes breves para um público pagante de não mais que trinta e
seis espectadores
54
. Nascia, assim, na Europa, o espetáculo cinematográfico. E
a Itália, desde os primeiros passos, esteve presente nessa caminhada.
Em 1904, Filoteo Alberini realizou um filme curto de duzentos e cinqüenta
metros - La presa di Roma ovvero.La breccia di Porta Pia - e o projetou,
simbolicamente, em 20 de setembro de 1905 na praça de Porta Pia para uma
aglomeração de curiosos. Esse curta-metragem deu início a uma produção que
obteve notável sucesso comercial, especialmente no campo dito “histórico”, isto
é, baseado em personagens, episódios e eventos históricos como
Messalina e
Spartaco, Giulio Cesare e Cleópatra etc.
Por volta de 1910, as companhias italianas Ambrosio e Cines lançaram
com sucesso comercial alguns filmes como A queda de Tróia (1911), Os últimos dias
de Pompéia
(1913, Mario Caserini) e os melodramas protagonizados pelas
famosas divas do cinema Lyda Borelli e Francesca Bertini, de grande importância
para o mercado interno. Gabriele D’Annunzio registrava inovações na produção
dos filmes: luz artificial, a panorâmica, o primeiro plano. Cabiria (1914, Giovanne
54
Esse breve resumo sobre a história do cinema italiano é baseado no livro Storia del cinema italiano
(1995), de Mario Verdoni.
Pastroni) apresentou uma das primeiras músicas para filme com a Sinfonia do
fogo de Ildebrando Pizetti. Cabiria foi estudada e imitada na América, que já se
aventurava na produção de western. A eclosão da primeira guerra bloqueou a
produção cinematográfica italiana que já tinha conquistado o mercado mundial, e
cujos atores e diretores já tinham reconhecimento.
O final da primeira guerra encontrou o cinema italiano despreparado
tecnicamente, enquanto crescia a concorrência da produção norte-americana. No
início do cinema sonoro, o cinema italiano esboçava seu recomeçar. Era época
do fascismo e o regime aplicou recursos para proteger o filme nacional, criando a
Cinecittá (29/01/1936) e a Escola para atores, diretores e técnicos do centro
experimental de cinematografia, investindo na realização das obras de gênero
heróico, histórico, melodramático, longe da verdadeira realidade social e humana
do país
55
. A arte, para o regime fascista, deveria ser um meio para a divulgação
de seu ideário e, para tanto, precisaria atingir não uma elite privilegiada, mas ser
acessível ao povo como uma ferramenta que ajudaria na formação de uma nova
sociedade. O cinema, com seu poder de ”persuasão“ e penetração, era a arma
de propaganda do regime fascista.
Nesse período, o mito de Hollywood, codificado como indústria e
espetáculo, começa a se expandir e a conquistar novos mercados.
“O que fascinava na cinematografia americana era a
capacidade que esta tinha de reduzir ao denominador comum de
55
Protagonizado por Al Jolson, The Jazz Singer (1927) foi o primeiro longa-metragem com
seqüências em que o som tanto de seus números musicais como de seus diálogos estão
sincronizadas com a imagem.
epopéia” tanto o presente quanto o passado - ao inventar o papel de
crônicas da atualidade, de um, e de reconstrução do outro -,
transformando qualquer acontecimento individual num fato emblemático
de toda sociedade americana
.” (FABRIS, 1982:41)
Dessa forma, a Itália perdia sensivelmente o mercado internacional que
havia conquistado ao apresentar filmes desenhados pela estética fascista.
Quando o cinema dos anos 30, identificado com o fascismo, estava em
declínio um novo cinema, inspirado na luta pela libertação surgia. Nessa
realidade que se desenhava após a queda do fascismo, na qual o cinema italiano
não mais se conciliava com a profunda virada determinada pelo pós-guerra, se
manifestará o fenômeno cinematográfico hoje conhecido por neo-realismo que,
sem sombra de dúvida, se constituiu na maior contribuição italiana pra estória e
desenvolvimento do cinema.
A palavra neo-realismo se antecipa ao movimento por esse nome
conhecido. Em 1943, o crítico Mario Serandrei, referindo-se ao filme
Ossessione, de
Luchino Visconti, usa o epíteto neo-realístico
56
. No mesmo ano, em cinco de
junho, o crítico Umberto Bárbaro reutiliza esse termo ao resenhar o filme
Quai dês
Brumes
(1943) do francês Marcel Carnè. Surgia assim o nome de um movimento
estético que se convencionou ter por marco inicial o filme
Roma Cidade Aberta
(1944-1945) e que se estendeu até 1952, havendo divergências entre os críticos
56
Ossessione, para Fabris (1982:46) era a realidade italiana que explodia nas telas de forma
inusitada.
sobre essas datas. Entretanto, alguns filmes - de 1935 a 1944 - prenunciam
características estilísticas atribuídas ao neo-realismo, tais como:
1. Paisagem italiana focalizada como algo vivo e determinante à ação (Darò un
milione
- Mario Camerini: 1935);
2. Uso dos dialetos (a partir de 1938);
3. Valor documentário de filme (
Acciaio: 1933);
4. Uso de atores não profissionais (
Camicia Nera:1933);
5. Gosto pela crônica do dia-a-dia (diversos filmes).
6. Ênfase no archai-arcaíco, isto é, no primordial, original.
Em setembro de 1945, foi exibido o filme Roma Cidade Aberta, de Roberto
Rosselini e roteiro de Frederico Fellini. Um filme que despojou tudo o que era
secundário na sua concepção. Em razão dos estúdios da Cinecittá estarem
sendo utilizados para abrigar os refugiados e também impelidos pela busca de
novas soluções estéticas, os cineastas saíram para as ruas para contar histórias
sobre a resistência e a vida cotidiana do pós-guerra. O filme tornou-se
emblemático para o neo-realismo. Na busca de uma linguagem cinematográfica
capaz de reinventar seus códigos a cada obra, Rosselini, opondo um
procedimento expressivo a um procedimento moral ou ideológico, parte do
imaginário para o real e se pauta mais em “como olhar” do que “em que olhar”.
Entre 1944 e 1946, a luta antifascista, da resistência, foi tema constante de filmes
italianos, quase em uma forma de expurgar esse fato da história.
Pouco tempo depois, a equipe de diretor-roteirista, formada por Vittorio de
Sica e Cesare Zavattini, realizou o famosíssimo Ladrões de bicicletas (1948),
considerado um dos melhores filmes da história do cinema. Mais do que datar -
1945 a 1952 para alguns, 1945 a1948 para outros - ou estabelecer juízos
categóricos, a reflexão sobre o contexto político-cultural em que nasceu e se
desenvolveu esse movimento é mais pertinente. Retomamos que seu surgimento
ocorre em concomitância com a queda do fascismo e com o pós-guerra,
agrupando sob uma mesma bandeira diferentes diretores e temas.
As bases teóricas do cinema renovado em sua
técnica e conteúdo cultural do neo-realismo tem como característica mais
importante e a novidade mais importante [...] a de termos percebido que
a necessidade da “estória” nada mais era que uma forma inconsciente de
mascarar uma nossa derrota humana, e que a imaginação, da maneira
como era exercitada, nada mais fazia que sobrepor esquemas mortos a
fatos sociais vivos
.” (FABRIS.1982:64)
Verdone (1995) entende por neo-realismo “um realismo à italiana, de
origem documentarista e de forte consciência social. É um realismo humano, ou
mais que humano, um realismo de valores humanos, tal que se pode defini-lo
melhor, como cinema do homem”.
Para Micciché (1994) o neo-realismo foi,sobretudo o nome de uma
batalha na qual se promoveu o confronto entre a “ética da estética” e de uma
“estética aparentemente sem ética”, isto é, uma prática artística que se fingia
autônoma em relação às coisas do mundo, mas que na realidade estava a
serviço de sua preservação. Essa “ética da estética” não se transformou em
“estética”, e por isso ocasionou a posterior dispersão do conjunto de obras, que
apesar das diferenças estilísticas que caracterizaram seus realizadores, quase
sempre engajados política e socialmente, se reuniu sob o nome de neo-realismo.
A verdade e naturalidade do cinema neo-realista, opondo-se à banalidade
e ao artificialismo de produções americanas, ofereceram um modelo estético ao
derramar sobre a realidade local, o mundo popular, o cidadão do povo como
protagonista, um novo olhar deflagrador de uma busca incessante de identidade
nacional, encurtando a distância entre a arte e a vida. Entretanto, fatores como a
distribuição deficiente, a hostilidade frontal de um governo preocupado com a
imagem que esses filmes transmitiam da Itália, as dificuldades financeiras para
realização e a restrita receptividade do público contribuíram para a decadência do
neo-realismo.
Se na Itália, ainda na década de 1950, começou a realização das
comédias populares, filmes de gênero, projetos mais ambiciosos, financiados por
meio de acordos de co-produção com outros países europeus, na França, em
1954, um artigo de François Truffaut provocava novas reflexões sobre o cinema.
“Uma certa tendência do cinema francêsfoi o artigo publicado em Cahier
du Cinema
pelo jovem crítico Truffaut, no qual apresenta uma posição estética em
defesa da necessidade de uma visão ou estilo pessoal nos filmes de um diretor.
Truffaut diz que esse era menos um artigo sobre La Politique des auteurs. É muito
mais um texto destrutivo sobre o cinema francês chamado de tradição de
qualidade, que reunia um grupo de pessoas famosas desempenhando diferentes
funções: um músico famoso para compor a trilha musical, alguém famoso para os
cenários, um romance famoso inspirando a obra em detrimento de filmes feitos
por pessoas mais exigentes. Para isso defendia a idéia de que não há bons e
maus filmes, mas bons e maus diretores. Com esse artigo tem início o “cinema
de autor”, um cinema voltado para o estilo visual e para o modo de recepção do
espectador. Formou-se um movimento de contestação ao modelo de cinema
dominante, que evoluiu para a Nouvelle Vague francesa. A partir de 1958, os
novos e jovens cineastas passaram a contestar o poder político, social e cultural
do cinema norte-americano e a combater o conformismo do cinema europeu pós
neo-realismo. Godard, que admirava o cinema de Rossellini, foi um dos principais
protagonistas dessa “nova onda”, segundo GILLAIN (1990:71).
A terminologia Nouvelle Vague designava uma pesquisa oficial da França
publicada na revista L’Express e referindo-se aos futuros advogados,
engenheiros, médicos. Como os festivais do cinema do início dos nos 60
reuniram mostras de filmes de jovens autores, os jornalistas passaram a usar
esse termo para designar um grupo de cineastas que trabalhavam com total
liberdade de criação como, por exemplo, Jacques Rivette em
Le coup du berger.
Podemos considerar como principais características da Nouvelle Vague:
1. Sua base crítica e sua estética fundamentada na política dos autores.
2. Priorizar filmes pessoais concebidos pelos diretores.
3. Apresentar baixo custo de produção.
4. Ter como suporte a obra
O que é cinema, do teórico e crítico André Bazin.
5. Estar comprometida com o público sem fazer concessões.
Para Truffaut, esse cinema que tinha como principais qualidades a graça,
leveza, elegância e rapidez também apresentava defeitos como a futilidade, falta
de consistência e ingenuidade.
No início dos anos 60, o mercado italiano, tendo como aporte o capital
americano, se volta para o mercado internacional com obras como
A doce vida
(1960), A Aventura (1960), O eclipse (1962) e O Leopardo (1963), e também com o
western spaghetti. Também é nesse período que uma nova geração de autores-
diretores, com figuras do porte de Pier Paolo Pasolini, Bernardo Bertolucci, Ettore
Scola e Marco Bellocchio, despontam.
Tendo como paradigma Godard e como grande influência Pasolini,
Bertolucci substitui a pena de escrever pela máquina de filmar, e se expressa em
um cinema acima de tudo poético. Um olhar crítico sobre o conjunto de sua obra
revela os traços autorais de um diretor capaz de provocar reflexões a respeito da
subjetividade, do erotismo, dos problemas sociais, culturais e políticos. Remete
ao próprio cinema e a sua história ao utilizar a metalinguagem. Apresenta a
estética da utopia às vezes como expressão plena, outras vezes como pálidas
nuanças. No cinema de Bertolucci a herança do neo-realismo e da Nouvelle Vague
permanece viva e operante, mas sem ofuscar um certo inconformismo, uma
busca incessante por novas formas de expressão.
A primeira reação que se tem à palavra utopia no final do século XX é
negativa, uma expressão para desacreditar propostas. Uma rápida passagem
pelos estágios da história humana revela, contudo, que jamais a humanidade
dispensou a constituição de utopias que funcionam como forças motrizes do
desenvolvimento.
Voltando, mais uma vez, ao conceito de utopia veremos que ele nasce em
uma época de mudanças estruturais, da busca de um novo tempo, o
Renascimento, tempo que transgride as normas e o status quo da Idade Média.
Para tornar possível o surgimento desse tempo novo é preciso voltar o
pensamento para a Antigüidade, cujo conhecimento é cuidadosamente guardado
e acessível apenas a poucos. Empunharam também a bandeira da esperança de
um novo tempo, de um novo homem: Giordano Bruno, Galileu, Newton, Francis
Bacon, Maquiavel, chegando a Thomas Morus (1480 -1535), que escreveu em
1515 um romance UTOPIA, criando a palavra a partir do grego ou topos, o país
que não existe em lugar nenhum. A esperança de favorecer a criação de uma
comunidade de bem que pudesse reger a sociedade, a igualdade, a melhor
distribuição do que já se tem, propiciando a satisfação de todos, tomaria o lugar
da ambição de conseguir sempre novas conquistas, tornando as guerras
absolutamente dispensáveis. Nesse sentido, Morus encarnou não somente o
Humanismo, mas também o Idealismo.
Em nosso século, Mannheim (1976) e Bloch (2005) vão resgatar os
estudos sobre utopia. O primeiro, dentro da Sociologia do Conhecimento,
estabelece um estudo em que aponta as similaridades e diferenças entre
ideologia e utopia e constata que só a última rompe com a estrutura vigente. O
segundo, em seu vasto inventário sobre o tema, conclui que as utopias se
formam nos sonhos diurnos, com projetos acionados pela intenção de criar uma
vida ou um mundo melhor. Esses sonhos têm como princípio básico a esperança,
um pensamento antecipador, voltado para o futuro. O que move, o que traz o
novo, o que não se conforma, o que enfrenta a resistência da acomodação é a
utopia. A esperança como princípio, que contém a utopia, reúne forças para
iniciar um processo de busca de uma vida melhor para antecipar um estado
melhor de coisas em uma época em que ele ainda não existe. Sem utopia não se
iniciaria nenhum processo para se viver melhor.
Uma consciência antecipadora, por meio do sonho diurno, acionou as
grandes revoluções, e mesmo quando não realizadas de forma concreta ou
realizadas de forma transitória ou efêmera, não foram em vão, trouxeram nova
necessidade de propiciar novas utopias e acionararam excedentes utópicos que
as geraram.
“As próprias épocas de mudança são os períodos de juventude
na história, isto é, estão objetivamente diante dos portões de uma nova
sociedade em mudança”
(BLOCH, 2005:119)
Entretanto, alguns mecanismos psicológicos, chamados por Freud de
resistência, atuam como “defesas” contra a esperança. O medo, o pessimismo, o
desânimo precisam ser anulados pelos afetos expectantes positivos e o
“otimismo militante” precisa ser acionado. Vivemos movidos por utopias porque
somos seres desgarrados do paraíso, em função do “pecado original”, isto é, da
inconformação com o estabelecido, com a natureza, com o instinto, com o
imposto, e para protestar criamos utopias que são endereços dos nossos
desejos. Trabalhar impulsos proibidos e perigosos significa reconhecer-lhes as
origens na história emocional do sujeito e da humanidade para poder gerenciá-
los por meio da simbolização. Simbolizar é justamente criar um horizonte que não
existe em lugar nenhum, mas que revela o feixe de desejos do ser humano. As
utopias não se objetivam no plano concreto, mas revelam o nosso universo
desejante.
No filme Os Sonhadores há a aproximação de dois tipos de sonhos: os
produzidos nas ruas e os produzidos no cinema. Na filmografia de Bertolucci a
estética da utopia se revela no seu estilo, na forma como representa, com os
recursos da produção, a realidade poeticamente imaginada.
3.3. Os filmes no filme: a função metalingüística
“Fazer um filme significa melhorar a vida, sistematizá-la a
seu modo, significa prolongar os jogos da infância”
François Truffaut
O termo metalinguagem agrupa a palavra linguagem com o prefixo meta,
que significa transformação, transposição, transcendência, posteridade e
sucessão. Portanto, metalinguagem é um fenômeno da linguagem porque a
linguagem tem função metalingüística quando transpõe, transcende, sucede,
discorre sobre o seu próprio conteúdo. Durante séculos, aponta BARTHES
(1997:28), “a literatura não tecia reflexão sobre si mesma, não se dividia em
objeto ao mesmo tempo olhante e olhado; em suma, ela atuava como reflexão
sobre o universo, mas não se refletia”. Transferindo esse pensamento para a
linguagem cinematográfica concluímos que a função metalingüística ou a
metalinguagem também ocorre no cinema e a auto-reflexão, a auto-referência, se
manifesta quando o cinema fala sobre o cinema, quando o filme é utilizado como
um meio de fragmentar ou recriar a realidade por meio de uma consciência
criadora que esboça sua visão e participação no mundo.
A função metalingüística no cinema, segundo ANDRADE (1999:16, 63,
21), assume dois aspectos distintos: o filme sobre cinema e o filme dentro do
filme. No primeiro a metalinguagem se dá como elemento narrativo temático em
que a auto-referência implica reconhecimento ou identificação por parte do
público. Já o filme dentro do filme depende de sua complexa estrutura para se
articular a metalinguagem. Mais do que um elemento narrativo é parte essencial
para que a trama se desenvolva.
Bertolucci faz da função metalingüística um recurso freqüente em seus
filmes. Por meio dessa função, os dois mundos - o ficcional e a realidade -,
interseccionam-se, interpenetram-se e, paradoxalmente, é criado um
distanciamento, uma descontinuidade que evita que o espectador os confunda,
que misture realidade e ficção, o que lhe permite perceber seu sentido simbólico.
A polêmica que marcou a estréia do filme Os Sonhadores no Festival de
Veneza acompanhou sua apresentação para o grande público. Um filme como
este, com amplo uso da metalinguagem, permite diversos tipos de “leitura”,
variando conforme o imaginário do espectador diante da magia do cinema e de
seu repertório imagético, isto é, de quantos filmes ele assistiu e como os assistiu.
Para verificarmos como foi a recepção do filme Os Sonhadores no Brasil,
além dos artigos publicados em jornais, utilizamos “blogs” e “sites” voltados para
cinéfilos com inserção da “crítica do espectador.” No site Adorocinema
encontramos 77 participantes, os quais deveriam atribuir notas de zero a dez aos
filmes e também escrever uma pequena crítica. Três participantes atribuíram nota
zero. Há também uma nota três, uma nota cinco, uma nota seis, três notas sete,
nove notas oito, catorze notas nove e 45 notas dez. Entre as críticas, recortamos
uma mais extremista que atribui zero e duas que se concentram na média com as
notas sete e nove.
O cinéfilo MARCELO MOREIRA QUINTARELLI, atribuiu nota zero:
Simplesmente a história é totalmente sem sentido! O pano de
fundo envolvendo cinema é totalmente desnecessário, podiam trocar
cinema por revistas, por tipos de carne, por palitos de fósforo... Se o que
o diretor queria era mostrar sexo com um pano de fundo "cult", deve ter
conseguido. Mas não pra mim. Fora que o filme tem seqüências podres e
TOTALMENTE desnecessárias, envolvendo menstruação, cuspes na
mão, masturbação na parede... E o final é patético, tentando dar um ar
"sério" pro fiasco que foi o filme todo... lixo! Bernardo Bertolucci já fez
um punhado de filmes BEM melhores que esse, não perca o seu tempo
."
O espectador, ao considerar desnecessário o cinema como pano de fundo
demonstra que, em razão do seu repertório individual, para ele, a metalinguagem
não produziu sentido.
SÉRGIO LUIZ DOS SANTOS PRIOR, que atribui a
nota sete:
"A revolução de 68 em Paris é revisitada pelo mestre italiano de uma
maneira tangencial. Através do trio formado pelo norte-americano
Matthew (Michael Pitt) e os irmãos gêmeos Theo (Louis Garrel) e
Isabelle (Eva Green) vivem no epicentro da revolução mais charmosa
na história do século XX. Isso não quer dizer que eles sejam
revolucionários propriamente ditos. A paixão pelo cinema fez com que
o americano recém-chegado a Paris e os gêmeos viessem a se conhecer. O
radicalismo do trio não está nas passeatas e nos confrontos com os
policiais franceses, mas sim na relação que eles estabelecem entre si
dentro do apartamento dos gêmeos franceses. Eles discutem cinema
(Matthew prefere Buster Keaton a Charles Chaplin enquanto Theo
aprecia este último), política (Theo é maoísta enquanto Matthew é
contrário a um regime que permite que todos leiam apenas o livro
vermelho), música (Matthew idolatra Jimi Hendrix, já Theo venera
Eric Clapton). É em direção de Isabelle que a paixão de ambos
converge. Esse triângulo tem inevitavelmente um tempo de duração
limitado. Trata-se de uma homenagem explícita a François Truffaut,
mais especificamente a seu filme "JULES E JIM". Por sinal,
inúmeros filmes e diretores recebem deferência do diretor de "O
ÚLTIMO TANGO EM PARIS" (com o qual "OS
SONHADORES" guarda várias semelhanças). As transgressões do
trio dentro do apartamento são muito maiores do que aquelas dos
estudantes e trabalhadores franceses que transformaram as ruas de
Paris num palco de ebulição política. Esta é uma característica do
cinema de Bertolucci; a sensualidade como uma das formas de
expressão mais poderosas do ser humano. A atuação do trio central é
excelente, particularmente a belíssima Eva Green e o cover do
Leonardo DiCaprio, Michael Pitt. É com ele que nos tendemos a
simpatizar, por ser inteligente, articulado, diria, sensato. Já Theo com
sua aparência blasé e suas atitudes típicas de radicais-chique, não
ganha o nosso afeto. Enfim, estamos diante de um raio-X da
adolescência européia no final dos anos 60. E ao som de The Doors,
Jimi Hendrix e Janis Joplin nos tornamos admiradores e cúmplices
destes sonhadores inocentes
.”
A crítica, abrangendo a narrativa, a função metalingüística, a relação com o
filme Julies e Jim, de Truffaut e a atenção voltada à trilha sonora corroboram à
hipótese de que o filme, pelo seu estilo, pode ter o sentido comprometido conforme
o repertório do espectador. Quantos filmes o espectador assistiu e como os
assistiu parece ser fundamental na recepção desse tipo de filme, considerado
também como “cinema de arte”.
RICARDO PEREIRA atribuiu ao filme a nota nove. Apresentamos excertos
da crítica.
"Bernardo Bertolucci fez o filme que, para
além de polêmicas e equívocos, se consolidou na história do cinema como
uma espécie de crônica terminal sobre as ilusões seculares do amor e a
insondável ambigüidade dos corpos e dos sexos: "O Último Tango em
Paris" (1972). Com "Os Sonhadores", ele regressa a Paris para
ajustar contas com as raízes de tudo isso. Maio de 68? Sim, sem
dúvida. Está tudo lá: os estudantes, as greves, as barricadas, a violência
da polícia. Mas está também algo que confere um outro sentido a tudo
isso: o amor ao cinema. Isto porque o diretor italiano, um dos primeiros
a assumir a herança da Nouvelle Vague francesa (lembremos o
emblemático ‘Antes da Revolução’, rodado em 1964), consegue essa
coisa rara e preciosa que é filmar a cinefilia como uma verdadeira
filosofia de vida.
Daí o fascinante paradoxo formal de ‘Os Sonhadores’. Por um lado,
este é um filme fabricado a partir das componentes mais vulneráveis da
memória; por outro lado, há nele uma vontade de realismo que reage,
implicitamente, contra as ilusões ‘naturalistas’ dos nossos tempos
televisivos. Bertolucci conseguiu a proeza de filmar a matéria dos sonhos,
não como uma hipótese ‘lírica’ de redenção, antes como permanente
convulsão do amor, do desejo e da carne.
Bertolucci cria uma ousada e enérgica experiência cinematográfica que
não teme explorar os limites e tensões das personagens, ilustrando a
complexa teia de relações que se desenvolve entre os três adolescentes. O
filme tem gerado polêmica e reações contraditórias um pouco por todo o
lado, e essa ausência de unanimidade deve-se, em parte, às
descomplexadas e cruas cenas que focam as relações carnais entre o trio
de personagens centrais (um pouco como aconteceu há trinta anos com ‘O
Último Tango em Paris). De fato, durante a fase inicial do filme,
parece estarmos perante um eventual descendente de ‘Ken Park’, o
controverso filme de Larry Clark que ofereceu um retrato brutal e
vertiginoso do sexo na adolescência. Contudo, ‘Os Sonhadores’ não
aposta em um conjunto de cenas de voyeurismo gratuito, antes utiliza
momentos íntimos e de considerável erotismo para reforçar o ambivalente
e instável elo que se adensa progressivamente entre os três jovens. ‘Os
Sonhadores’ é uma obra maior de Bertolucci, um filme que se transcende
a cada novo plano e que combina subliminarmente as imagens, os sons e
a matéria. E faz do espectador um cúmplice de uma fascinante viagem
de evocarão na consciência e nos sentimentos, prazeres obscuros, de
celebração de uma memória cinéfila ilimitada e de descoberta de tudo e
de nada. O tempo e o espaço são únicos e irrepetíveis e vibram
permanentemente nas imagens deste sonho de cinema. Se para uns essa
viagem corresponde a uma revisitação nostálgica de um tempo vivido,
para outros - das gerações mais novas - esse rewind temporal personifica
a nostalgia impossível do que não foi, de um espaço e de um tempo
consumido antes que pudesse ser provado. Mas, para uns e para outros,
essa nostalgia latente é irresistível e indeclinável: as próprias personagens
já a carregam antes de a viverem. É como se elas próprias, ao viverem o
presente de uma época extraordinária, estivessem já intimamente a viver
o princípio de um passado. Urgia viver, experimentar, amar, sonhar...
Sonhar: o título que o filme tão bem ostenta é a tradução perfeita para
duas horas de cinema de hoje com vibrações de um cinema de outros
tempos.
Com ‘Os Sonhadores’, Bertolucci quis mostrar aos jovens de hoje um
tempo em que o futuro ainda era algo de positivo. Talvez por causa
dessa nostalgia em relação a um tempo em que ainda se acreditava na
revolução dos ideais, este filme tenha sido tão atacado por saudosismo
esquerdista ou por epítetos mais desconexos ainda
.”
Esse “espectador crítico” transita com facilidade pela trama ficcional,
estabelecendo paralelos, relações, enfim, demonstrando possuir conhecimento
teórico que contribui para uma maior produção de sentido.
Como verificamos, a divisão presente entre os críticos também se fez
sentir na recepção com ênfase no fato do filme contemplar muito mais as cenas
de transgressão sexual dentro do apartamento do que as referentes à revolução
que acontecia nas ruas de Paris. E também pela produção de sentido que oscila
conforme o repertório cultural imagético.
A montagem tem um significado realista quando os fragmentos isolados
produzem, em justaposição, o quadro geral, a síntese do tema. Nesse caso, ao
submeter o tema ao processo criativo, como visto em Os Sonhadores, Bertolucci
comprometeu a síntese, exigindo maior esforço do espectador para estabelecer
uma relação de sentido.
Ao fazer uso, de forma original, da metalinguagem com jogos
desenvolvidos pelos protagonistas em uma trama sensual e ousada, perpassa o
universo dos três protagonistas e representa como fundo a História do Cinema e
seu envolvimento com as questões sociais.
Dessa forma, o próprio cinema é uma das personagens do plano fílmico; é
ao mesmo tempo um fim e um meio. Pela metalinguagem é proposto um jogo de
construção e reflexão sobre o tema do filme, sobre o cinema e sua história,
aprimorando o repertório do público, o que leva ao reconhecimento do próprio
discurso cinematográfico.
57
No filme Os Sonhadores a metalinguagem, além de
funcionar como um código de auto-referencialidade e de auto-reflexão, é também
um meio de homenagear aqueles que participaram da história do cinema,
aperfeiçoando suas técnicas e linguagens por intermédio da transgressão contida
nos movimentos de vanguarda e no processo criativo.
Apresentaremos, como uma contribuição, os filmes que conseguimos
identificar na função metalingüística do filme
Os Sonhadores, com a consciência de
que outros filmes, apresentados de forma sutil, não foram percebidos.
58
Embora sem explicitar, mas em uma auto-
homenagem, o filme
Os Sonhadores é iniciado de forma muito
semelhante ao filme Antes da Revolução. É inevitável a
comparação. Um rapaz louro, jovem, vestido com calças
57
O tipo de jogo proposto nesse filme era usual entre os cinéfilos na década de 60.
58
Há referências também ao filme The Cameran -O homem das novidades,1929 de Buster Keaton e
The Girl Cant Help it,1956, Frank Fashlin.
justas, paletó, gravata, cabelos levemente compridos, caminha pela ponte do Rio
Sena em direção ao Palácio de Chaillot. No porão funciona a cinémathèque
francaise. Uma voz, a do próprio personagem, narra: “A primeira vez que eu vi um
filme na cinémathèque pensei: só os franceses, só os franceses para colocar um cinema dentro de
um palácio. Eu tinha 20 anos e na década de 60 estava passando um ano em Paris para
aprender francês. Mas foi aqui que eu recebi minha verdadeira educação. Eu me tornei um
membro de uma espécie de maçonaria do cinema. Mas teve uma noite, na Primavera de 68, em
que o mundo explodiu através da tela”.
A narrativa aponta um personagem-narrador: Mattew, assim como o filme
Antes da Revolução apontava Fabrizio. Aqui há uma unidade de espaço: Paris e
uma unidade de tempo, a primavera de 68. No outro filme pontua-se a unidade
de espaço: Parma e a unidade de tempo, abril de 1962. Em ambos os filmes há
jovens burgueses descobrindo a sexualidade e a ideologia de esquerda. O
burguês de Parma filia-se ao Partido Comunista Italiano, o burguês de Paris
acredita na Revolução Cultural.
Neste filme a manifestação acontece no Parque de Chaillot; em Parma, os
preparativos para a festa Della Unitá acontecem no Parque Ducalle. Os dois
filmes, além da função metalingüística tratando de filmes europeus e americanos,
remetem à Marilyn Monroe. Na Itália fala-se sobre sua morte, em Paris ela
empunha a bandeira da liberdade em um quadro representando a Tomada de
Bastilha. Nos dois filmes há um triângulo amoroso, relação incestuosa e uma
personagem feminina forte e transgressora: Gina, naquele filme e Isabelle neste.
A utopia de um mundo melhor, sustentada na ideologia de esquerda, faz parte da
trama ficcional dos dois filmes, os quais trazem imagens e idéias direcionadas
para a mudança de mundo e municiam com informação esse desejo.
As cenas do filme Paixões que alucinam (Shock Corridor no original -1963),
do diretor americano Samuel Fuller, são apresentadas como imagens poderosas
e hipnotizadoras conforme diz Matthew.
O filme conta a história de um jornalista que tem por objetivo
ganhar o prêmio Pulitzer. Para tal pretende solucionar um
assassinato cometido em um hospício e presenciado por três
internos, dos quais a polícia não conseguiu tirar nenhuma
informação. Com o apoio de um psiquiatra amigo ele se faz
passar por insano e é internado no hospício com o intuito de desvendar o
mistério. No elenco assistimos Peter Breck como o jornalista Johnny Barret,
Constance Towers (Cathy), Gene Evans (Boden) e James Best (Stuart), entre
outros.
Por que a escolha desse filme, uma parábola sobre jornalismo, psicanálise
e loucura, em uma alegoria agressiva à sociedade norte-americana, perdida, nos
anos 60, entre a Guerra Fria e onda de racismo? Além da explícita homenagem
prestada ao diretor, alguns quesitos podem ter influenciado na escolha: a
transgressão do diretor ao tratar de assunto polêmico, o tema anos sessenta, a
complexa subjetividade - os sentimentos, emoções, percepções - dos doentes
mentais, os “tênues” limites da “normalidade”, a exposição do lado sombrio da
alma humana, a crítica social, o uso de recursos cinematográficos criativos e de
valor estético fino. Assim como ocorreu com O último tango em Paris, com La Luna
e com o próprio Os Sonhadores, o conteúdo do filme também foi considerado
“imoral” para sua época. Alguns recursos e técnicas utilizados por Samuel Fuller
também estão presentes em
Os Sonhadores, como a inserção de cenas em preto e
branco, montagem fragmentada, não desconsiderando que o comportamento
licencioso dos jovens protagonistas também esbarra nos limites do que se
considera “normalidade” na sociedade contemporânea. Paixões que alucinam, como
os filmes de Bertolucci aqui citados, é um filme transgressor e portador do sonho
de um possível futuro mais justo. A reapresentação das cenas poderosas do filme
Paixões que alucinam deu visibilidade a esse diretor que sempre procurou inovar na
a linguagem cinematográfica, incluindo seu nome no rol dos que consolidaram a
revolução estética do cinema nos anos 60.
Na parede da cinémathèque, atrás das grades onde
Isabelle simula estar, aparece o cartaz do filme Amère
Victoire
(1957) traduzido como Amargo Triunfo, do
diretor Nicholas Ray. Esse diretor permeou a discussão entre os dois jovens
adolescentes protagonistas do filme Os Sonhadores, que somente divergiam em
relação ao filme do diretor que mais gostavam, mas reconheciam, assim como
Godard, sua importância na história e no desenvolvimento da estética do cinema.
Com roteiro de Paul Galico, o filme foi baseado no romance de René Hardye e
conta no elenco com: Richard Burton, Curd Jurgens, Ruth Roman. As marcas
distintivas do diretor são fortes: heróis frágeis, palpáveis, que tentam sobreviver
em um mundo cuja chave de decifração eles não detêm. Os jovens críticos da
revista Cahiers du Cinéma o classificaram como o mais importante cineasta do pós-
guerra e, considerando-se a importância que esses críticos tiveram na formação
do jovem diretor Bertolucci, percebe-se, por meio das citações intertextuais, que
essa idéia é corroborada por ele. Dentre seus filmes, Juventude Transviada, com
James Dean (1955), é um dos mais populares.
Godard, uma das mais fortes influências na formação dos cineastas da
atualidade, tanto por sua atuação como crítico e como teórico, pontua diversas
falas das personagens de Os Sonhadores. A referência, segundo o diretor,
acontece na fala de identificação de Isabelle ao dizer que nasceu falando: “New
York, Herald Tribune”, uma frase dita pela personagem de Acossado.
Acossado (À bout de souffle no original) foi realizado no
outono de 1959 nas ruas de Paris, a partir de um
argumento de Truffaut. Godard o realizou no
esquema de produção de um estúdio independente,
ou seja, nas ruas, com equipamento leve e luz natural. Esse filme de matriz “noir”
foi um grande sucesso de bilheteria e funcionou como catalisador da
Nouvelle
Vague
porque levou à prática a estética proclamada nos escritos dos Cahiers du
Cinemá
.
O filme conta a história de Michel Poiccard, um jovem “cafajeste”, como se
auto-denomina, que rouba o automóvel de um casal de militares norte-
americanos com a cumplicidade de uma jovem que lhe dá a dica. É a jovem
americana que anuncia pelas ruas o jornal “New York, Herald Tribune”.
Com a jovem, cujo nome é Patrícia, Michel deseja fugir para
a Itália, país que assume no filme o papel da última fronteira
do universo dos valores morais, sociais e culturais, dos quais
ele quer se desgarrar, ou seja, valores de vaga utopia.
Michel, impensadamente, mata um policial. Desconsiderando
as convenções formais da arte de fazer um filme, nesse seu primeiro longa-
metragem, Godard apresenta uma narrativa fragmentada e, valendo-se da
mobilidade fácil das câmeras, bem como da possibilidade de trabalhar com pouca
luz, conseguiu uma grande espontaneidade no trabalho de câmera e dos próprios
atores, com destaque para seus famosos “plano-seqüência”. As cenas entre
Michel (Jean Paul Belmondo) e Patrícia (Jean Seberg) fluem com uma delicadeza
e verdade bastante interessantes, especialmente quando se contrapõem com as
coisas mais absurdas que suas personagens dizem. Nesse filme Godard também
faz uso da metalinguagem, referindo-se ao cinema com algumas participações
especiais, como a do conhecido diretor Jean-Pierre Melville, que interpreta uma
celebridade; Daniel Boulanger aparece como um inspetor de polícia; o próprio
Godard como um informante e, ainda, Truffaut e Chabrol em pequenos papéis.
Há também evocações a respeito do filme The Lady from Shangai (1948) de Orson
Welles. Godard e Truffaut são emblemáticos no impulso e na imaginação utópica
de toda geração da Nouvelle Vague
59
.
Rainha Cristina (1933) também foi reapresentada em Os Sonhadores. É um
filme do diretor Rouben Maumolian com a atriz Greta Garbo, que aparece no
filme de Bertolucci como participante do elenco. É considerado um dos melhores
59
Truffaut, François, crítico e diretor de cinema, também é homenageado no filme com o tema
musical de
Quatre cent coups (Os incompreendidos).
filmes da atriz, que interpreta a célebre rainha sueca. No século XVII, Cristina é
ainda uma criança quando é coroada rainha, depois da morte de seu pai. O
reinado é tranqüilo e tão liberal quanto o comportamento da moça que, como
manda o cargo, deve se casar. E para descobrir as reais intenções de um
pretendente, o embaixador espanhol Antonio, ela se disfarça de homem e vai ao
encontro dele na Espanha e os dois acabam vivendo uma paixão intensa. Com
a escolha desse filme presta-se dupla homenagem: ao diretor e a atriz, que faz
par com John Gilbert. Para o público, de um modo geral, foi uma ótima
oportunidade de conferir uma minúscula parte do trabalho dessa atriz que se
tornou um mito. É um filme em que a marca da transgressão está presente no
ousado comportamento da futura rainha.
Motivo de longas discussões entre Matthew e Théo, em que
é comparado a Keaton, Charles Chaplin é recordado com as
imagens de Luzes da Cidade (City Lights no original). Uma
comédia com 87 minutos de duração lançada em 1931 pelo
Estúdio Charles Chaplin Productions com direção, roteiro,
produção e edição de Charles Chaplin. A música é de Chaplin e José Padilha.
Chaplin protagoniza o vagabundo e Virginia Cherril a florista cega. Uma das
grandes obras-primas da sétima arte, Luzes da Cidade é também uma das mais
belas histórias de amor do cinema, e foi o primeiro filme de Chaplin após o
advento do cinema sonoro. Mesmo assim, ele fez o filme mudo como protesto.
No filme, Carlitos (Chaplin) se apaixona por uma florista cega, que pensa que ele
é rico. E ele vai tentar de todas as maneiras ajudar sua amada a se curar da
cegueira. Para isso, fica amigo de um milionário alcoólatra, entra numa luta de
boxe, é preso, enfim, se mete em várias trapalhadas. A magia desta história
fascina até hoje, e Chaplin se doa completamente ao seu personagem,
mostrando todo seu talento e genialidade com um roteiro maravilhoso, que cria
cenas inesquecíveis como a cena final, quando Carlitos reencontra sua amada e
ela consegue enxergá-lo. Essa cena é comentada por Théo ao argumentar que
vemos Chaplin como se o víssemos pela primeira vez, por meio dos olhos da
florista.
Em relação a esse filme, é latente a questão da recepção, o uso de
técnicas cinematográficas e a própria história do cinema. O público cinéfilo sabe
que Chaplin filmou 342 vezes essa cena para atingir um estado que possibilitasse
ao espectador a percepção de “ver o vagabundo” da mesma forma que a atriz,
que o via pela primeira vez. Esse filme também marca o tempo do advento do
cinema sonoro. A respeito da resistência de Chaplin em aceitar a sonoridade do
cinema Antonio COSTA escreve: ”O aparecimento do cinema sonoro implicou
uma verdadeira revolução não só na estética do filme, mas principalmente nas
técnicas de produção e nos níveis econômicos da indústria cinematográfica. É
compreensível que os cineastas que tinham feito da ausência da palavra e do
som o princípio estrutural da expressão fílmica, tenham resistido a tais inovações:
foi o caso de Chaplin”.
Nos jogos cinestésicos, Matthew deveria associar uma
representação dos irmãos a um filme, e este elucidou
rapidamente
O Picolino (1935). O musical, baseado em peça de
Alexander Faragó e Aladar Laszlo, cujo título original é Top Hat,
recebeu quatro indicações para o Oscar. A história se passa em
Londres. O dançarino americano Jerry Travers (Fred Astaire), está ensaiando um
número de sapateado em seu quarto de hotel e, com o barulho do sapateado,
acaba incomodando a hóspede do quarto de baixo, Dale Tremont (Ginger
Rogers), que aparece para reclamar. Jerry fica apaixonado e, aos poucos,
começa a conquistá-la. Referência do sapateado no cinema, Fred Astaire e
Ginger Rogers realizaram mais de dez filmes juntos e este é considerado um dos
melhores. Normalmente os filmes musicais abordavam os bastidores da
montagem de um espetáculo. Neste também ocorre a situação do ensaio do
espetáculo. Assim, o musical é uma obra didática que dá ao público as regras da
sua produção. As cenas musicais de Ginger e Fred são perfeitamente
sincronizadas e precisas, um verdadeiro deleite para aqueles que apreciam os
bons musicais, um gênero que conta com uma platéia mais restrita e apaixonada,
e que só funciona integralmente quando o público se entrega ao “estado do
cinema”.
60
O gênero musical, que já foi muito popular, hoje agrada a um público
restrito, mas ao ser apresentado em metalinguagem provoca uma interatividade
imaginária no receptor.
A realidade copiando a ficção: correr no Museu Louvre
como fizeram os protagonistas, Odile, Franz e Arthur, de
Bande à Part, foi a proposta feita por Théo e Isabelle a
Matthew. No filme de Godard, mais do que qualquer outro,
as personagens vivem correndo. Adaptado do romance
policial americano Fool’s Gold, Bande à Part acompanha as peripécias de uma
60
Estado de cinema: terminologia utilizada pelo psicólogo alemão Hugo Mauerhoff para referir-se
a condição de uma pessoa em uma sala escura, vendo imagens surgirem sem uma cronologia
real, em estado muito parecido com o sonho.É um estado entre a vigília e a inconsciência em que
se observa ávida alheia com a segurança do anonimato.
moça e dois rapazes que, enquanto flertam entre si, preparam um grande golpe
cujas conseqüências pouco a pouco se anunciam como trágicas. Os Sonhadores
reúne algumas das seqüências mais famosas da filmografia de Godard, como a
corrida pelas salas do Museu do Louvre, em Paris (França). Transgressão e
sonho estão simbolizados nessa corrida pelo Louvre.
A saída do Louvre, após bater o recorde de Bande à Part, os
dois irmãos abraçam Matthew e cantam: “nós os aceitamos,
um de nós”. Enquanto caminham são apresentadas as
cenas em que as personagens de Freaks (1932) entoam
esse mesmo refrão. Sob a direção de Tod Browning, Freaks
é um clássico cult que abalou a sociedade da época, e somente após 30 anos, na
década de 60, é posto à mostra no mundo todo em exibições de festivais
amadores. O motivo de tanta polêmica e rejeição está na essência da trama, nas
críticas e nos personagens atípicos. Em Freaks, o diretor cria um elenco de
pessoas realmente deficientes físicas, as indelicadamente chamadas de
“aberrações”. Há no máximo cinco atores que não possuem deficiência. O resto
do elenco é composto por anões, um homem sem braços nem pernas e tudo
mais que se consiga imaginar. A crítica do filme é gritante, bem explícita. Tod
Browning mostra com clareza o que existia e que ainda hoje existe. Exibe a
relação entre os chamados “normais” e os chamados “anormais”. Uma relação de
preconceito, gozações, ofensas, exclusão social e medo. Entretanto, o filme
mostra que as “figuras grotescas” são portadoras de amor, alegria, prazer,
bondade, enquanto os ditos “normais” exibem, por dentro da tal “perfeição física”,
sentimentos primitivos, ganância, ódio, maldade, preconceito.
Filmado em 1932 pelo diretor Josef von Sternberg, e com o
título original Blonde Vênus, a Vênus Loira também é
reapresentada em Os sonhadores quando Isabelle canta e
dança, imitando coristas. Théo, mesmo sendo um cinéfilo,
não reconhece a cena do filme que conta com elenco de
primeira grandeza: Cary Grant e Marlene Dietrich nos papéis principais, seguidos
de Herbert Marshall, Dickie Moore, Gene Morgan, Rita La Roy. Uma linda mulher
é obrigada a voltar a cantar em um cabaré para conseguir pagar o tratamento do
marido doente. Um milionário apaixona-se por ela e lhe dá a quantia necessária
para cuidar da saúde do esposo. Curioso folhetim que mistura melodrama e
sensualidade e explora o tema adultério de uma forma muito inteligente. Esta
produção apresenta cenas muito ousadas para a época como, por exemplo, a
seqüência em que Marlene canta Hot Voodoo fantasiada de gorila. É ela, aliás, a
grande razão de ser do filme, já que o roteiro, os diálogos, a iluminação e todos
os cuidados estão voltados para ela, que é vista e lembrada como a grande diva.
Enquanto jogavam gamão, Theo simula um ataque e cai ao
chão gritando: “advinhem o filme em que uma cruz marca o
lugar do crime”. Falava sobre Scarface, título original do filme
de Brian de Palma, com roteiro de Oliver Stone e produção
de Martin Bregman, lançado em 1983 pela Universal
Pictures. Os atores principais são Al Paccino (Tony Montana) e Michelle Pfeiffer
(Elvira Hancock). Trabalham também: Steven Bauer, Mary Elizabeth
Mastrantonio, Robert Loggia, Miriam Colon, entre outros. Conta a história de um
criminoso cubano exilado (Al Pacino) que vai para Miami e em pouco tempo está
trabalhando para um chefão das drogas. Sua ascensão na quadrilha é meteórica,
mas quando ele começa a sentir interesse pela amante do chefe (Michelle
Pfeiffer) este manda matá-lo. No entanto, escapa do atentado, mata o mandante
do crime, fica com a amante - mas simultaneamente sente desejos incestuosos
por sua irmã (Mary Elizabeth Mastrantonio) - e assume o controle da quadrilha.
Em pouco tempo ganha mais dinheiro do que jamais sonhou. Mas está na mira
dos agentes federais, que o pegam "trocando" dinheiro. Seu problema pode ser
resolvido se fizer um "serviço" em Nova York para um grande traficante e
pessoas influentes, que podem manipular o poder para ajudá-lo. O filme trata de
temas recorrentes na filmografia de Bertolucci como a questão ideológica (exilado
cubano) e o incesto que, como já vimos, é uma forma emblemática de
transgressão.
Ao perceber-se “descoberta” pelos pais no jogo erótico com o irmão e o
amigo, Isabelle, se inspira no filme Mouchette, a virgem possuída (1967), e liga a
mangueira de gás com o objetivo de causar a morte dos três. Mouchette é um filme
em preto e branco dirigido por Robert Bresson e tem como atores: J.C. Guilbert,
Maria Cardinal, Nadine Nortier, Paul Hebert.
O filme conta a história de uma menina solitária que é
violentada por um caçador. É uma menina sem perspectiva,
em uma realidade de extrema violência. Por um lado, há a
ausência de qualquer sentimento materno em todas as
mulheres que surgem ao longo da narrativa. Por outro lado, a
onipresença masculina, que se verifica no rigor da aplicação da Lei, se omite em
proporcionar carinho. Indiferença, crueldade e injustiça são magistralmente
retratadas no filme. Arsène, um jovem, estupra ou parece estuprar Mouchette,
adolescente despertando para a sexualidade, que confessa ter se interessado
pelo rapaz no parque de diversões. Uma série de enigmas e suspeitas compõem
a trama.Não há perspectiva para Mouchette. Seu mundo é a própria distopia,
lugar da perversão.Fugindo das vicissitudes da vida, ela brinca como uma
criança, rolando pelo gramado em declive. Nesse constante descer e subir,
carregando não as pedras, mas o peso de sua falta de esperança, tal como o
mito de Sissifo, Mouchette cai na água ao encontro da morte. O filme, feito com o
uso de poucos recursos técnicos, utilização do discurso indireto livre,
fragmentação do espaço, com trilha sonora composta mais de ruídos do que de
música, marca o estilo bressoniano.
Por ser extremamente referencial ao próprio cinema, Os Sonhadores pode
ser considerado, como se dizia na década passada, pós-moderno. Um cinema
repleto de citações de outros filmes e cineastas, com reprodução de cenas,
personagens similares, reutilização de trilhas sonoras, imbricamento visual de
histórias paralelas, que permite análises contraditórias. De um lado, amplia o
repertório do espectador atual e o instiga a respeito de uma filmografia anterior
que ele não conheceu, permitindo-lhe acompanhar a história do cinema que lhe
era desconhecida. Por outro lado, restringe o sentido para esses mesmos
espectadores porque algumas cenas remetem a filmes conhecidos apenas em
círculos muitos restritos
61
.
O espectador mais crítico, capaz de reconhecer o código, consegue maior
interatividade com a narrativa, cria maior empatia no o processo de projeção-
61
Reconhecemos 12 filmes apresentados por meio da metalinguagem, mas certamente não
esgotamos todo o elenco de filmes ao qual Bertolucci remete implícita ou explicitamente.
identificação, o que lhe permite apreciar “a construção” do jogo narrativo.
Voltamos aqui à fala de Matthew referindo-se ao fato de Langlois exibir todo tipo
de filme, o que contribuiu para a formação dos cineastas contemporâneos e de
uma geração de cinéfilos. Esse ecletismo e paixão atingiram não só os franceses,
mas se expandiu pela Europa e pelas Américas, e fez da década de 60 aquela
que propiciou o advento da civilização da imagem e da revolução estética do
cinema. Uma outra leitura possível para um filme como Os Sonhadores, que utiliza
demasiadamente a metalinguagem, é apontada por alguns cinéfilos como um
filme com extensos vácuos de criatividade” que são dessa forma preenchidos.
O filme Os Sonhadores, emblemático do cinema de Bernardo Bertolucci, traz
na sua temática motivos importantes para entendimento da realidade social de
um período no qual nasceu a revolução estética promovida pelo cinema. Sendo
uma produção relativamente recente, ela sintetiza as preocupações com as
teorias do cinema e do reflexo que este exerce sobre as novas gerações de
receptores, aos quais é possibilitado ver a representação do passado feita por
quem não somente viveu naquele tempo, como também a experiência de fazer
cinema na época.
Com a função metalingüística por meio da qual o cinema refere-se a si
mesmo e reflete sobre si e, no uso de tal recurso promove uma interatividade
imaginária entre o cinema e espectador, quando chama a atenção mais para a
forma como a trama é narrada, tornando o modo de narração tão interessante
quanto a própria trama, Os Sonhadores é motivo de destaque pela originalidade e
ousadia de sua produção. Na função metalingüística o cinema revisita seu próprio
código e referenda o passado, prestando homenagem àqueles que sonharam
com a “utopia” do cinema.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um dia, em 2004, ao ler em um jornal uma entrevista com o diretor
Bernardo Bertolucci no qual falava sobre o seu filme Os Sonhadores, uma frase,
que hoje resulta no epígrafe da introdução deste trabalho, em que ele falava que
sem utopia não há esperança e sem esperança não há futuro, atraiu nossa
atenção.
Após o lançamento do filme, que aconteceu alguns meses depois,
começamos a busca por críticas e resenhas, pois o tema nos parecia
fascinante.Surgiu assim o interesse pela pesquisa que no projeto apresentado
para seleção de alunos recebeu o título de Cinema: o berço das utopias. No decorrer
dos estudos o tema revelou-se muito amplo e de difícil sustentação sendo
substituído por Cinema: berço das utopias estético-eróticas e, posteriormente sentimos a
necessidade de estabelecer limites mais precisos, o que resultou em especificar
a escolha do cinema de Bernardo Bertolucci.
Para apresentação no processo de qualificação, a pesquisa foi
apresentada como Jovens sonhadores de utopias no cinema de Bernardo
Bertolucci
.Algumas considerações da banca levaram-nos a excluir a categoria
“jovem” do título que, a partir de então, passou a ser Sonhadores de Utopias no
cinema de Bernardo Bertolucci
e com esse título pretendemos sintetizar o conteúdo
desta dissertação ao colocar os sonhadores como protagonistas de uma narrativa
cinematográfica engajada nas questões sociais ressaltadas no cinema de
Bertolucci.
Para isso consideramos “sonhadores” aqueles que permitem o surgimento
das potencialidades utópicas do ser, que abrem as portas à chegada de uma
nova sociedade que, segundo Bloch, assim como a juventude se encontra no
limiar de uma vida não vivida até agora. .
A repercussão do filme na mídia não foi consensual por isso ver e rever o
filme, ler as críticas na mídia impressa, visitar sites e blogs, assistir outros filmes
desse diretor buscando um melhor entendimento do desejo desse cineasta,
acontecia concomitantemente as pesquisas sobre a evolução do conceito de
utopia.
Muitas foram as concepções e as interpretações encontradas para esse
conceito. No começo do século XVI, o advento da modernidade implicou em novas
leituras de mundo, da sociedade e do homem.Foi nesse contexto que Thomas
More escreveu o livro Utopia, dando nome a um desejo, uma esperança de algo,
de um mundo melhor que sempre esteve presente no imaginário das sociedades,
desde as relatadas no Antigo Testamento.
Em seu livro, More refere-se a um topos fora do tempo e do espaço, mas
que, paradoxalmente, está em constante diálogo com o espaço e o tempo da
realidade, postulando-se criticamente em relação a situação social da Inglaterra de
então quando, devido ao cerceamento das terras comunais, muitos camponeses
fugiram para as cidades na esperança de aplacar a fome e à procura de trabalho.
. O livro Utopia resulta simultaneamente numa crítica à situação da
Inglaterra, um modelo de sociedade da época e na descrição de uma sociedade
idealmente construída, livre de todos os problemas vividos pelos ingleses os quais
são identificados no inicio do livro.
A história da civilização, em seu processo contínuo, sofreu constantes e
abruptas transformações as quais são lembradas por uma seleção de idéias e
imagens que se instituem como marcos sociais da memória coletiva.Em todas
essas mudanças os paradigmas utópicos também sofreram transformações
apresentando-se como uma alternativa a ordem vigente ou a uma ideologia.
A imaginação utópica conduziu a construções racionais de mundos
perfeitos, políticos, religiosos - quiliásticos, milenares - alcançando no início do
século passado a mentalidade socialista-comunista. Chegamos, então, a junção do
pensamento sociológico de Karl Mannheim e de Ernst Bloch, um referencial nos
estudos sobre utopia que em uma perspectiva uma filosofia neomarxista do futuro
desenvolve a fenomenologia da consciência antecipadora que utilizamos como a
primeira categoria de análise do filme Os Sonhadores.
Com Bloch, entendemos que o ser humano sempre foi impulsionado por um
“ainda não” fenômeno que tem por característica estabelecer uma ponte entre “o
que é” e “o que ainda não é”.
Do pensamento de Mannheiem extraímos a categoria transgressão, que
juntamente com a categoria que inferimos, - a estética da utopia-, foram aplicadas
ao filme Os Sonhadores, selando a relação da modernidade com o surgimento dos
meios de comunicação social.
Encontramos um singular diferencial entre utopia e ideologia: embora sejam
incongruentes a uma dada realidade somente as utopias são capazes de romper
com essa ordem social estabelecida.Essa ruptura pode ter ocorrido quando os
“sonhadores” que protagonizaram a Primavera de 68 proclamaram mudanças na
ordem comportamental e abalaram a ordem política dando inicio, a um novo
tempo: a pós-modernidade.
Assim entendemos que as manifestações do pensamento utópico ao longo
da História repercutiram em uma progressiva complexidade desse fenômeno e, na
década de 60, conjunturas especificas, despertaram sonhos que reconhecemos
como utópicos e que Bernardo Bertolucci os representa em seus filmes. Dentre os
muitos filmes desse diretor escolhemos, para análise/decupagem, três que tratam
da Primavera de 68: Antes da Revolução, Beleza Roubada e Os Sonhadores, sendo o
primeiro uma prefiguração desse movimento, o segundo a representação do tempo
posterior ao fato e o terceiro uma representação poética da revolução.
A estrutura resultante apresentada neste trabalho contemplou a utopia e o
cinema na modernidade, - esta entendida mais como um conjunto de experiências
do que por um tempo demarcado -, a descrição e analise de três filmes, a vigência
da utopia no cinema de Bertolucci e a sua insistência em resgatar o passado
histórico do cinema como uma revolução estética.
Essa revolução estética foi representada no filme
Os Sonhadores em debates
sobre a tradição e o moderno, sobre o cinema europeu e o cinema americano que
permearam os diálogos estabelecidos pelos três jovens personagens.Também as
correntes estéticas do cinema, foram contempladas neste trabalho em que foi
apresentada uma pretensa dualidade entre Lumiére, representando a objetividade
da invenção cinematográfica e Méliès/Delluc representando os feitos que o invento
é capaz de produzir, de forma latente aparece em Os Sonhadores na metalinguagem.
Essa dualidade parece-nos, encontrou nos filmes de Bertolucci o seu ponto de
fusão.
Os movimentos de vanguarda, em especial o neo-realismo italiano e a
nouvelle vague francesa, tiveram forte influência na formação do cineasta Bernardo
Bertolucci e, seus vestígios, podem ser rastreados em toda sua obra assim como
alguns temas recorrentes: política, ideologia, incesto, questões de identidade,
muitas vezes ligadas alegoricamente à história da Itália e ao próprio cinema.
Também no cinema, visto como um aparelho reprodutor do imaginário com
capacidade de representar a apropriação do tempo em favor dos sonhos, a
dialética entre pulsão e censura, que tem na teoria freudiana a sua principal
possibilidade de interpretação, se faz presente.
Reflexões sobre o imaginário foram pertinentes para compreensão do que
foi, do que é a história e do sentido do agir humano a partir das imagens
provenientes da interação filme - espectador.
Nesse sentido, consideramos os temas recorrentes no conjunto da obra de
um diretor como fundamentais para a sua classificação em um ou mais gêneros,
como ocorreu com Bertolucci, e ousamos enquadrar seu cinema não só como de
arte, mas também como um cinema político e transgressor. Por esses fatores,
acreditamos que uma análise estética e social precisa compreender o filme, com
suas qualidades e seus defeitos, como uma reunião de evidências de um
momento, as quais puderam ser verificadas nos filmes representados nos jogos
inseridos na narrativa e na função metalingüísticas.
Ao analisarmos os filmes de Bertolucci, as potencialidades do olhar
registradas nos filmes, a predileção por determinados temas e por determinados
recursos, a intenção vista através das imagens, e não nas imagens, deixa como
resultante a persistência de um passado recente submetido a outra temporalidade
que, através de um complexo jogo de recursos plásticos, -entendidos como luz,
forma, cor,enquadramento,velocidade – conduz à representação poética.
Reconhecemos que nenhuma interpretação esgota-se, pois sempre é
possível criar novos sentidos, mas ao concluir esta dissertação podemos assumir
que o cinema de Bernardo Bertolucci, com seu caráter prefigurativo e pela sua
força como meio de comunicação social na contemporaneidade, exerce sua função
utópica na construção do imaginário cultural, especialmente nas poeticamente
relacionadas ao movimento da Primavera de 68. Por isso, acreditamos que se as
utopias políticas estão em decadência, as utopias nascidas nos sonhos diurnos, na
consciência antecipadora continuam vigentes numa estética utópica em vigor no
cinema, conforme tentamos demonstrar com este trabalho.
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Cultura: D7,15/09/2006.
ANEXO I
Sinopses dos filmes de Bernardo Bertolucci em ordem cronológica.
Relembramos que, em decorrência da escassez de material disponível, alguns
filmes não formam encontrados e, por isso, serão apenas citados.
LA TELEFONICA (1959)
Primeiro curta-metragem, geralmente não aparece em sua filmografia.
LA MORTE DEL PORCO (1960)
Curta-metragem.
LA COMMARE SECA - A morte (1961)
Roteiro: Pier Paolo Pasolini.
Elenco:Giancarlo De Rosa, Vincenzo Ciccora, Gabriella Giogelli, Wanda Rocci,
Alan Midgette.
O filme, seu primeiro longa-metragem, trata de uma prostituta (Wanda
Rocci) não muito jovem encontrada morta à margem do Rio Tevere, em um
parque romano. A polícia começa a interrogar todas as pessoas que estiveram
perto do local do crime. Os suspeitos são cinco: um cafetão, dois garotos prontos
a extorquir dinheiro de um homossexual, um pequeno ladrão que surpreende as
vítimas em pleno ato sexual e um soldado sulista, flanando
62
pela cidade. São
indiciados e todos aparentam ter algo a esconder. A narrativa do filme é
apresentada no relato forjado dos suspeitos aos quais se contrapõem em
flashback o verdadeiro itinerário dos investigados. É um filme sobre a natureza
da verdade e o processo de memória. O diretor fala, em making off, que é um
filme sobre a simples passagem do tempo e, embora tivesse filmado com a
câmera em constante movimento para se distanciar do modelo Pasolini, o filme é
considerado como pertencente a esse estilo.
THE GRIM REAPER (1962)
. LA VIE DEL PETROLIO (1965)
Filme para a TV.
IL CANALE (1966)
Documentário para a Shell.
PRIMA DELLA RIVOLUZIONE - Antes da Revolução (1964)
62
Flanando: refere-se ao caminhar do flâneur, figura cantada por Baudelaire no século XIX e reapropriada
por Walter Benjamin. É aquele que perambula pelas ruas da cidade como se fizesse a sua leitura, encantando-
se com a floresta de símbolos urbanos. Em seus estudos sobre Baudelaire e a modernidade, Walter Benjamin
mostrou como a cidade criou, como tipo, o flâneur. Ele é o detetive da cidade, “detentor de todas as
significações urbanas, do saber integral da cidade, do seu perto e do seu longe, do seu presente e do seu
passado”. A cidade que o flâneur percorre é a das transformações urbanas que ocorrem no século XIX.
(ABREU, J.L.N.in Revista Virtual de Humanidades, n.10, v.5,abr/jun de 2004).
Esse filme, o segundo longa-metragem, foi analisado no segundo
capítulo.
O PARTNER (1968)
Elenco principal: Pierre Clementi, Stefania Sandrelli, Tina Aumont, Sergio
Tofano, Giuliocesare Castello.
Terceira direção em longa-metragem, e teve como cenário o mercado de
Trajano, local onde foi encenada a revolução. Foi o primeiro filme italiano com
gravação sincronizada de voz, pois até então a filmagem de cenas ocorria sem o
áudio. É a história de um intelectual italiano, Giacobbe (Pierre Clementi) que,
apesar das idéias, é impotente para liderar uma revolução, fato que se altera ao
encontrar um partner, um sósia, um duplo, que realiza seus objetivos. O Partner
permite o ingresso no mundo simbólico; é o conteúdo latente que se faz
manifesto. Um filme aparentemente abstrato, sobre a contestação fundamentada
nos slogans da Primavera de 68: “é proibido proibir”, “poder à imaginação”. Em
sua narrativa não linear e no estilo visual homenageia a novel vague.
LOVE AND ANGER - AMORE E RABBIA (1969)
Uma autêntica experiência avant-garde de inspiração libertária de maio de
68. Um filme de Carlo Lizzani que reúne Jean-Luc Godard, Marco Bellocchio,
Bernardo Bertolucci, Pier Paolo Pasolini. Com Nino Castelnuovo, Ninetto Davoli,
Julian Beck, Tom Baker, Marco Bellocchio, Catherine Jourdan. Uma interessante
experimentação lingüística que conta cinco episódios dos Evangelhos narrados
como parábola: A indiferença; Agonia; Flores de papel; O amor; Discutimos,
discutimos. Curiosamente o filme foi apresentado no XIX Festival di Berlim
(1969) como "Vangelo 70", apenas com o episódio de Valerio Zurlini chamado
Sentado a sua direita.
O CONFORMISTA (1970)
Elenco principal: Jean-Louis Trintignant e Stefania Sandrelli.
No final dos anos 30, em um quarto de hotel de Paris, Clerici aguarda um
telefonema. Ao atravessar a fronteira entre Itália e França, ele recebe uma arma
para assassinar um velho professor que fugiu da Itália quando os fascistas
subiram ao poder. A partir daí, o filme, em flashbacks, mostra de forma linear a
vida de Marcello Clerici - vivido por Jean-Louis Trintignant. Uma relação
homossexual ocorrida na infância, um assassinato na juventude e a filiação ao
partido de Mussolini conduzem a desintegração psíquica dessa personagem. O
estilo da película, no movimento e no projeto, é simbólico da ascensão e queda
do fascismo. Filmado na Itália e na França, se assemelha à estrutura essencial
de Antes da Revolução e o protagonista é dividido entre o marxismo e o fascismo
conservador.
A ESTRATÉGIA DA ARANHA (1970)
Elenco principal: Giulio Biogi e Allida Valli.
Athos Magnani retorna a sua cidade natal, Tara, dominada pelos fascistas
de Mussolini, e encontra depredado o monumento que homenageia seu pai. Isso
o leva a se envolver na busca da verdade sobre sua vida e suas idéias. Descobre
seu pai como um antigo líder da resistência. O mundo que Athos explora é
saturado de mistérios, premonições, ambigüidades e sinais de incipiente loucura.
Descobrir a verdade pode ser a sua utopia. Esse filme, produzido pela RAI -
Radiotelevisione Italiana - joga com uma mistura de passado e presente, com
uma estética enigmática de toques surrealistas, estimulados pela fotografia de
Vittorio Storaro. Incorpora a música de Verdi e a pintura de Magritte.
LA SALUTE É MALATA - Os pobres morrem primeiro (1971)
O filme, um documentário média-metragem, é uma crítica à atual
sociedade consumista, na qual a desigualdade social nos faz pensar que não só
a capacidade de sonhar, de plasmar o futuro, pode estar comprometida, mas até
saúde, mental e física, é afetada na quebra de vínculos tradicionais e na
consagração de aliança com valores antagônicos.
12 DICEMBRE (1971)
Documentário idealizado por Pasolini que entrevista pessoas sobre o dia
12 de dezembro de 1969, quando ocorreu um ato terrorista na Piazza di Fontana.
O ÚLTIMO TANGO EM PARIS (1972)
Elenco principal: Marlon Brando e Maria Schneider.
O filme tem início com representações das pinturas de Francis Bacon, pois
Bertolucci justifica que levou Brando até uma exposição do pintor e lhe pediu que
fixasse o olhar no quadro por um bom tempo; a tela perdia o naturalismo e se
tornava a expressão do que se passa nas tripas - ou no inconsciente - do autor.
Deu ao ator a única, ou pelo menos, a principal orientação: que ele criasse
aquela massa de dor
63
. Paul - um americano que havia lutado boxe, trabalhado
como ator, participado da revolução na América do Sul, atuado como jornalista no
Japão há cinco anos, vivia em Paris, onde se casara com uma jovem proprietária
de hotel que, além dos “hóspedes”, locava quartos para encontros fortuitos de
casais. Ele a encontrou morta em uma banheira com os pulsos cortados por
navalha. Encaminhado o corpo para autópsia, Paul sai caminhando pelas ruas de
Paris. Sua expressão é, sem dúvida, a massa de dor que lhe fora solicitada. Uma
jovem, de aproximadamente 20 anos, passa por ele e se impressiona, mas
continua seu caminho à procura de um apartamento onde pretende morar com
seu noivo. Em um apartamento deteriorado e sujo, disponível para locação, os
dois - Paul e a jovem Jeanne - se encontram e se entregam a um jogo sexual, no
qual extravasam seus temores e angústias. É a estética de um mundo ressentido,
de vidas destroçadas por traições e falsidades, desilusões e crimes.
LA LUNA ( 1979)
Elenco principal: Jill Clayburgh, Matthew Barry, Alida Valli.
Esta é uma das obras mais polêmicas de Bertolucci. A cantora lírica nova-
iorquina Caterina Silveri, após a morte do marido, viaja com seu filho adolescente
para a Itália e descobre que ele está viciado em heroína. Joe sofre em conflito
com a ausência do pai morto. Nesse filme também se desenvolve o interesse
63
Francis Bacon (1909-1992 ) - pintor irlandês que em suas pinturas, buscava o real, aquele do corpo
humano em sua inteireza e mistério. Explorava a realidade interna, regiões desconhecidas do homem. Em sua
obra há o desejo de intensificar e quase consumir a presença viva do corpo, quer o dele mesmo, quer o do
outro. Para ele a imagem importava mais que a beleza da pintura, por isso infligia ao seu trabalho ofensa e
distorção. (in Fundação Bienal htpp://www1.uol.com.br/bienal/)
recorrente do diretor em quebrar tabus, neste caso, mais uma vez, de uma
relação incestuosa em que a sexualidade é mostrada sem preconceito. A
ambigüidade da relação, a elaboração da estrutura psicológica e emocional das
personagens, torna a história original e distante de qualquer estereótipo. A beleza
da paisagem italiana se insere de modo a ocasionar certo distanciamento do
espectador em relação à identificação com os dramas vividos pelas personagens.
As cenas iniciais são premonitórias do conflito que irá se desenvolver: a mãe e
pai dançando twist, a avó tocando piano e o bebê chorando, sendo o seu choro
abafado pela música. La Luna é uma tragédia dos nossos dias, um filme
polêmico sobre o presente e pensado para incomodar e provocar reflexões.
A TRAGÉDIA DE UM HOMEM RIDÍCULO (1981)
Elenco Principal: Ugo Tognazzi, Anouk Aimée, Laura Morante, Victor
Cavallo.
É a história de um cidadão que, ao chegar à cidade grande, fica fascinado
com a transformação do líquido em sólido, do leite em queijo. Esse fascínio o
transforma em um grande industrial responsável pela manutenção da economia
do país. Seu filho foi raptado por um grupo de terroristas, e esse é o ponto de
partida para uma narrativa que inverte a busca do filho pelo pai, presente em
alguns dos filmes de Bertolucci. Na tentativa de salvar sua empresa da falência,
após o pedido de dinheiro para pagamento do resgate do filho, o empresário
arma um plano para usar o dinheiro deste resgate e investir na própria fábrica.
O ÚLTIMO IMPERADOR (1987)
Elenco Principal: John Lone, Peter O’Toole, Joan Chen.
Nesse épico vemos a trajetória de PuYi, o menino imperador da China,
que aos 3 anos subiu ao trono, ficando trancafiado na Cidade Proibida e
prisioneiro de todo luxo, fausto, obrigações e responsabilidades de um império
em constante ameaça e decadência. Na Cidade Proibida continuou como
prisioneiro dos invasores japoneses, sendo julgado traidor pelos próprios
chineses após a tomada do poder pelos comunistas. O rompimento com a
tradição abre os portões da Cidade Proibida para uma utopia extramuros. E aí,
fora dos muros em que como imperador e como “traidor” fora prisioneiro, PuYi
encontrou forças para reconstruir sua vida, uma vida nova para um homem
comum que se ocupa com flores. Uma obra que foca uma vez mais a questão da
identidade política, com a ironia de que foi imposta a um garoto aos três anos. O
filme foi rodado durante quatro anos na Cidade Proibida em Beijing e foi o
primeiro filme a obter autorização para tal. Transformou-se em uma das obras
mais amadas de Bertolucci. Foi vencedor de nove Oscars e quatro prêmios Globo
de Ouro.
O CÉU QUE NOS PROTEGE (1990)
Elenco Principal: Debra Winger, John Malkovich.
Baseado no romance de Paul Bowles, para rodar esse filme foi necessário
recriar o norte da África, mais especificamente o deserto de Sahara, em
condições similares a 1947, para se tornar o cenário da história de amor de um
casal de artistas milionários apaixonados. O casal viaja pela África logo após o
término da segunda guerra mundial, a qual desencadeia a crise do homem na
modernidade. Ambos procuram na viagem a feliz sensação que já sentiram no
casamento, mas que não conseguem identificar e cuja ausência está destruindo
a relação. Um amigo que os acompanha pode ser o terceiro personagem de um
triângulo amoroso. Na viagem, quanto mais adentram no deserto, quanto mais se
buscam, mais se distanciam.
O PEQUENO BUDA (1993)
Elenco Principal: Keanu Reeves e Brigite Fonda.
Rodado no Nepal e no Himalaia, em 1992, a linguagem do filme o
aproxima das fábulas. Construído como um entrelaçamento entre duas histórias
que terminam por convergir, por um lado, monges saem do Nepal à procura de
três garotos que poderiam ser a reencarnação do lendário e místico Lama Doye.
Por outro lado, em Seattle, o pequeno americano Jesse (Alex Wiesendanger),
filho do arquiteto Dean Conrad e de sua esposa Lisa, é procurado para
confirmação ou não dessa reencarnação. Para tanto, o menino deve ir para o
Butão, o que, a princípio, é negado pelos pais. Entretanto, a morte do sócio do
arquiteto faz com que mudem de idéia e o pai acompanha o filho na viagem. A
narrativa, que traça um paralelo entre a cultura oriental e a ocidental, discutindo o
ceticismo presente no cotidiano moderno, é intercalada com a história do príncipe
Sidarta, que se transforma em Buda.
ASSÉDIO (1998)
Elenco principal: Thandie Newton e David Thewlis.
O filme deixa perceber a interpretação afinada do ator e a montagem
ritmada do diretor. Na África, um professor, marido da enfermeira Shandurai, é
preso acusado de propagar idéias subversivas a seus alunos. Receosa das
conseqüências, a enfermeira foge da África, local onde impera o caos político, e
vai morar na Itália. Lá trabalha como empregada do Mr. Kinsky, um excêntrico
compositor e pianista inglês, para custear seus estudos na faculdade de
medicina. O músico, apaixonado pela empregada, silenciosamente passa a
assediá-la com músicas e presentes, ignorando que ela era casada. Quando cria
coragem para declarar seu amor, ela lhe fala sobre seu casamento, a prisão do
marido e lhe suplica que a ajude a libertá-lo. Discretamente, ele estabelece
contato com pessoas da África e, pouco a pouco, vai se desfazendo de seu
mobiliário, dos objetos de arte, até que, por último, se desfaz do piano para
custear um processo de julgamento legal do professor. Ao perceber o que estava
acontecendo, Shandurai fica dividida e a notícia de que seu marido foi solto e
está a caminho da Itália a faz repensar seus sentimentos. É a mesma estrutura
temática de O último tango em Paris: um homem, uma mulher, uma casa. A
diferença está nas nuances. Nesse filme há uma delicada sensualidade, um
erotismo menos óbvio, diferente da sexualidade explosiva e violenta do filme de
1972. Bernardo Bertolucci faz a polarização entre mundos complementares: o do
“conquistado” e o do “conquistador”, e no interstício desses mundos é instalada a
utopia.
BELEZA ROUBADA ( 1996)
Este filme foi objeto de análise do segundo capítulo.
12 REGISTI PER 12 CITTÀ (1998)
Documentário com participação de Michelangelo Antonioni, Bernardo
Bertolucci, Franco Zeffirelli, Francesco Rosar, apresentando, entre outras, as
cidades de Roma, Bologna, Palermo, Gênova, Cagliari, Verona e Firenzi.
PARADISO E INFERNO (1999)
TEN MINUTS OLDER THE CELLO (2002)
Um curta-metragem de episódios, todos eles com dez minutos e o tema
comum da passagem do tempo, filmado em 2002.
THE DREAMERS - Os Sonhadores (2003)
ANEXO II
TOUS LES GARÇONS ET LES FILLES
Interprete: Françoise Hardy.
Musique: Françoise Hardy, Roger Samyn [1962]
Tous les garçons et les filles de mon âge
se promènent dans la rue deux par deux
tous les garçons et les filles de mon âge
savent bien ce que c’est d’être heureux
et les yeux dans les yeux et la main dans la main
ils s’en vont amoureux sans peur du lendemain
oui mais moi, je vais seule par les rues, l’âme en peine
oui mais moi, je vais seule, car personne ne m’aime
Mes jours comme mes nuits sont en tous points pareils
sans joies et pleins d’ennuis personne ne murmure “je t’aime”
à mon oreille
Tous les garçons et les filles de mon âge
font ensemble des projets d’avenir
tous les garçons et les filles de mon âge
savent très bien ce qu’aimer veut dire
et les yeux dans les yeux et la main dans la main
ils s’en vont amoureux sans peur du lendemain
oui mais moi, je vais seule par les rues, l’âme en peine
oui mais moi, je vais seule, car personne ne m’aime
Mes jours comme mes nuits sont en tous points pareils
sans joies et pleins d’ennuis oh! quand donc pour moi brillera le soleil?
Comme les garçons et les filles de mon âge connaîtrais-je
bientôt ce qu’est l’amour?
comme les garçons et les filles de mon âge je me
demande quand viendra le jour
où les yeux dans ses yeux et la main dans sa main
j’aurai le cœur heureux sans peur du lendemain
le jour où je n’aurai plus du tout l’âme en peine
le jour où moi aussi j’aurai quelqu’un qui m’aime
TODOS OS RAPAZES E MOÇAS
Tradução: Alvaro Lorencini
Todos os rapazes e moças da minha idade
Passeiam na rua aos pares
Todos os rapazes e moças da minha idade
Sabem bem o que hão de ser feliz
E olhos nos olhos e de mãos dadas
Eles caminham amorosos sem medo do amanhã
Sim, mas eu, eu caminho sozinha pelas ruas, de alma dolorida
Sim, mas eu, eu vou sozinha, porque ninguém me ama
Meus dias como minhas noites são em todos os pontos semelhantes
Sem alegrias e plenos de tédio porque ninguém murmura ah eu te amo
Ao meu ouvido
Todos os rapazes e moças da minha idade
Fazem juntos projetos para o futuro
Todos os rapazes e moças da minha idade
Sabem muito bem o que quer dizer amar
E olhos nos olhos e de mãos dadas
Eles caminham amorosos sem medo do amanhã
Sim, mas eu, eu caminho sozinha pelas ruas, de alma dolorida
Sim, mas eu, eu caminho sozinha porque ninguém me ama
Meus dias e noites são iguais em todos os pontos
Sem alegrias e cheios de tédio, oh! Quando o sol brilhará para mim?
Como os rapazes e moças da minha idade, logo conhecerei o que é o amor?
Como os rapazes e moças da minha idade eu me pergunto
Quando chegará o dia em que olhos nos olhos e de mãos dadas
Eu terei o coração feliz sem medo do amanhã
O dia em que não terei mais a alma dolorida
O dia em que também terei alguém que me ama.
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