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UNIVERSIDADE PAULISTA
PATRICIA ELAINE FRANÇOZO
A TRANSMUTAÇÃO DO LITERÁRIO AO TELEVISUAL EM CONTOS DA MEIA
NOITE: PRESERVAÇÃO DA ORALIDADE NARRATIVA
SÃO PAULO
2008
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PATRICIA ELAINE FRANÇOZO
A TRANSMUTAÇÃO DO LITERÁRIO AO TELEVISUAL EM CONTOS DA MEIA
NOITE: PRESERVAÇÃO DA ORALIDADE NARRATIVA
Dissertação de Mestrado para obtenção do título
de Mestre em Comunicação apresentada à
Universidade Paulista – UNIP.
Área de concentração: Configuração de
Linguagens e Produtos Audiovisuais na Cultura
Midiática
Orientadora: Profa. Dra. Anna Maria Balogh
SÃO PAULO
2008
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PATRICIA ELAINE FRANÇOZO
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA
FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
FICHA CATALOGRÁFICA
Françozo, Patricia Elaine
A transmutação do literário ao televisual em contos da
meia noite / Patricia Elaine Françozo. – São Paulo, 2008.
134 f.:il., color.
Dissertação (mestrado) – Apresentada ao Instituto de
Ciências Humanas da Universidade Paulista, São Paulo,
2008.
Área de Concentração: Comunicação e cultura midiática
“Orientação: Profª Drª Anna Maria Balogh”
1. Conto. 2. Literatura. 3. Televisão. 4. Transposição da
obra literária para a obra televisiva. 5. Adaptações. I. Título.
4
PATRICIA ELAINE FRANÇOZO
A TRANSMUTAÇÃO DO LITERÁRIO AO TELEVISUAL EM CONTOS DA MEIA
NOITE: PRESERVAÇÃO DA ORALIDADE NARRATIVA
Dissertação de Mestrado para obtenção do título
de Mestre em Comunicação apresentada à
Universidade Paulista – UNIP.
Área de concentração: Configuração de
Linguagens e Produtos Audiovisuais na Cultura
Midiática
Aprovado em: ___ / ___ / ___
Banca Examinadora
__________________________________ / ___ / ___ / _____
Prof(a) Dr(a) ______________________________________
Instituição: ________________________________________
__________________________________ / ___ / ___ / _____
Prof(a) Dr(a) ______________________________________
Instituição: ________________________________________
__________________________________ / ___ / ___ / _____
Prof(a) Dr(a) ______________________________________
Instituição: ________________________________________
5
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, Profª Drª Anna Maria Balogh, obrigada por ter
gentilmente me acolhido e, com todo o seu conhecimento e experiência, ter me
apontado os rumos para esta pesquisa.
O meu muito obrigada a Fernando Martins, da TV Cultura, por dedicar
seu tempo para me receber e fornecer preciosas informações sobre Contos da Meia
Noite e a Evandro Rogers, da Emvideo, que, “aos 45 minutos do segundo tempo,
bateu um bolão”!
Agradeço a CAPES pelo incentivo e apoio para a realização deste
trabalho, por meio da bolsa PROSUP.
Agradeço demais ao meu marido (e consultor musical nesta pesquisa),
Francisco Freitas, pelos momentos de paciência e carinho: combustíveis essências
dessa longa trajetória.
Obrigada aos meus pais (Sidenin e Nivalda) por me ensinarem desde
cedo a importância e o valor da educação.
Parafraseando Maria Adelaide Amaral, aos meus “Queridos Amigos”:
Aguinaldo dos Santos, Celina Lucas, Sandra Cara, Sônia Oliveira e Vinícius Del Fiol,
muito obrigada pela ajuda fundamental (e vinda em boa hora!), sem a qual muitas
coisas seriam bem mais difíceis.
6
“O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas
na intensidade com que acontecem. Por isso, existem momentos
inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis.”
(Fernando Sabino).
“Para que o acontecimento mais banal se torne uma
aventura, é necessário e suficiente que o narremos.”
(Jean Paul Sartre).
7
RESUMO
FRANÇOZO, P. E. A transmutação do literário ao televisual em Contos da Meia
Noite: preservação da oralidade narrativa. 2008. 134 f. Dissertação (Mestrado em
Comunicação) – Universidade Paulista, São Paulo, 2008.
A transposição e a adaptação de obras literárias constituem uma tradição que o
meio TV herdou de seu antecessor, o rádio, e que continua presente nas produções
televisivas atuais. A literatura e a televisão são produções culturais elaboradas em
diferentes suportes e (por isso) precisam de diferentes modos de apreensão e
decodificação. Mesmo com tais diferenças, o diálogo entre os dois meios resulta em
produtos de qualidade, no qual pode se incluir a série Contos da Meia Noite. O
objetivo desta pesquisa é a transposição do literário para o televisual, por meio da
série Contos da Meia Noite – TV Cultura de São Paulo –, o emprego dos recursos
audiovisuais nos Programas e a sua conservação da oralidade narrativa. Este
trabalho faz um relato da vocação do ser humano em narrar histórias. E, tal vocação,
ganha proporções grandiosas a partir da chegada da televisão, quando este veículo
assume o papel do contador de histórias, não só no sentido de transmissão das
narrativas e das informações, mas como o de detentor do conhecimento, dos
modelos e exemplos. A série Contos da Meia Noite foi idealizada sob a força da
oralidade como um de seus principais instrumentos expressivos. O unitário
apresentava algumas especificidades e características únicas, tais como, a “cabeça”
do Programa – uma introdução que tinha por objetivo preparar o espectador para a
narrativa exibida; a conservação do mesmo cenário (único) para todos os
Programas; o trabalho de iluminação, o emprego criativo das câmeras e a
concepção dos recursos audiovisuais (projeções, sombras, fusões de imagens,
trilhas incidentais, efeitos sonoros, etc.) criados especificamente para cada história
apresentada; além do desempenho e o talento dos atores-narradores com suas
expressões, gestuais e inflexão de voz. Todos estes elementos tinham o propósito
de prender a atenção do espectador e marcar partes relevantes do conto, bem
como, o de conferir à série uma de suas principais qualidades e diferencial como
produto televisivo.
Palavras-chave: conto; literatura; televisão; transposição; adaptações.
8
ABSTRACT
FRANÇOZO. P.E. The transmutation from the literary to the televisual in Contos
da Meia Noite: maintaning the oral narrative. 2008. 134 p. Dissertation (Master's
Degree in Communications) - Universidade Paulista, São Paulo, 2008.
Adaptation or transposition of literary works is a tradition the television inherited from
its predecessor, the radio, and television productions continue to use this resource
until today. Literature and television are cultural works supported by different pillars,
and, therefore, they require different approaches and decoding. Despite their
differences, the relation between these two means of communication has had good
results; among them we could include works of quality, such as, the series Contos da
Meia Noite. The focus of this research is on the transposition of literary works to
television through the series Contos da Meia Noite - TV Cultura de São Paulo -, the
use of audio-visual resources in the series, and the choice to keep the oral narrative.
This dissertation deals with the natural talent people have to tell stories. And, such
talent reaches enormous proportions with the invention of television, when it takes
the role of story teller, not only presenting narratives and information, but also
spreading knowledge and establishing trends. Contos da Meia Noite was created
using the power of oral narrative as one of its main instruments of expression. The
series was very specific in the use of its resources, and had unique characteristics.
The “head” of the program - an introduction intended to prepare the viewer for the
narrative, the single set for all episodes, the remarkable use of lighting, the creative
use of the camera, and the conception of audio-visual works (projections, shades,
dissolves, incidental sound tracks, sound effects, etc.) - made each episode a very
unique experience. In addition, the performance of the actors-narrators with their
expressions, gestures, and inflection of the voice contributed to the success of the
series. All these elements were used to maintain the viewer’s attention, to emphasize
relevant parts of the story, as well as to provide the series with one of its main
qualities and differentials as a television product.
Keywords: short stories; literature; television; transposition; adaptations.
9
Lista de ilustrações
Nº figura Enunciado
Pág.
Figura 1 – Relação contínua entre a oralidade e a escrita ....................................
34
Figura 2 – Os gestos e expressões dos atores ......................................................
43
Figura 3 – Tereza Freire apresenta a cabeça do Programa ..................................
43
Figura 4 – Ambientação dos Programas ................................................................
43
Figura 5 – Os gestos e expressões dos atores ......................................................
70
Figura 6 – Tereza Freire apresenta a cabeça do Programa ..................................
71
Figura 7 Cenário com fundo preto e o trabalho de iluminação, sombras e
projeções ...............................................................................................
73
Figura 8 – "Cantiga de esponsais": projeções que marcam a temática do conto ..
74
Figura 9 Projeções de flores e o besouro pontuam a narrativa de Mário de
Andrade .................................................................................................
75
Figura 10 – Projeções de traça: parte circundada ...................................................
75
Figura 11 – O figurino dos atores .............................................................................
77
Figura 12 Mudanças constantes nos planos e movimentos de câmera marcam
os diferentes personagens nos três contos ..........................................
78
Figura 13 – A perda voluntária do foco expressa dramaticidade às cenas ..............
79
Figura 14 – Variações de câmera dão dinamismo à narrativa .................................
80
Figura 15 Mudanças no ponto de vista da câmera mostram os diferentes
personagens .........................................................................................
81
Figura 16 – Fusões, textura e projeções reforçam o conflito do protagonista .........
82
Figura 17 – O emprego do travelling para expressar os sentimentos de mestre
Romão ...................................................................................................
82
Figura 18 – O trabalho de iluminação em "Cantiga de esponsais" ..........................
83
Figura 19 – Ênfase no gestual do ator .....................................................................
83
Figura 20 – Cenas iniciais de "O besouro e a Rosa" ...............................................
84
Figura 21 – Alternâncias de planos, luz e projeções ................................................
85
Figura 22 As três câmeras pontuam o olhar do ator para os "ouvintes da
história" .................................................................................................
85
Figura 23 – Uso do travelling para dar tensão à cena .............................................
86
Figura 24 – O uso da textura denota a ilusão e o engano dos personagens ...........
86
Figura 25 – As câmeras acompanham os gestos de Abujamra ...............................
87
Figura 26 Alternância das câmeras dá o ponto de vista do narrador e dos
personagens .........................................................................................
87
Figura 27 Uso abundante de fusões e a iluminação marcam os momentos de
tensão ...................................................................................................
88
Figura 28 – A mudança de Rosa: um clima de mistério às cenas ...........................
88
Figura 29 – Abujamra busca a cumplicidade do espectador ...................................
89
10
Figura 30 – O encerramento do conto .....................................................................
89
Figura 31 – Ponto de vista de dentro da tapeçaria ..................................................
90
Figura 32 Gestos e planos de câmera ilustram o diálogo entre os dois
personagens .........................................................................................
91
Figura 33 – Inclinamento da câmera demonstra a inquietação do protagonista ......
91
Figura 34 Primeiro e primeiríssimo planos e a iluminação: atmosfera de
suspense ...............................................................................................
92
Figura 35 – Expressões e gestos do ator para descrever a tapeçaria .....................
92
Figura 36 – Momento de inquietação em "A caçada" ..............................................
93
Figura 37 – Mudanças de plano e projeções pontuam o trecho de tensão do conto
93
Figura 38 – Trabalho de alteração das três câmeras e ênfase nos gestos de
Abujamra ...............................................................................................
94
Figura 39 – Aproximação e alterações dos planos de câmera ................................
94
Figura 40 – O trabalho de câmera traduz os sentimentos do protagonista .............
95
Figura 41 – Clímax do conto: gestos fortes e o uso de fusões e textura .................
96
11
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 13
2 ERA UMA VEZ ... NARRATIVAS: A ORALIDADE E O GÊNERO CONTO ............... 15
2.1 Narrar: uma capacidade inerente, uma necessidade humana ....................... 16
2.2 O papel do narrador ........................................................................................... 20
2.3 O gênero conto ................................................................................................... 22
2.4 Diacronia: a origem do conto e a importância da oralidade .......................... 24
2.4.1 A influência da igreja ................................................................................. 26
2.4.2 Os contadores, trovadores, jograis, menestréis e recitadores .................. 26
2.4.3 As histórias orais publicadas ..................................................................... 28
2.4.4 A contribuição de Charles Perrault ............................................................ 30
2.4.5 O trabalho dos irmãos Grimm .................................................................... 31
2.5 Considerações finais .......................................................................................... 32
3 TELEVISÃO: UM CONTADOR DE HISTÓRIAS CONTEMPORÂNEO ...................... 36
3.1 TV e oralidade ..................................................................................................... 37
3.2 Adaptações, Transposições e Transmutações – do literário ao televisual .. 39
3.3 Narrativas seriadas: o unitário .......................................................................... 41
3.4 Quem conta um conto...” ................................................................................. 44
3.5 Programa Contos da Meia Noite – da criação ao encerramento de suas
exibições .............................................................................................................
50
3.5.1 Algumas curiosidades ................................................................................ 55
3.5.2 Sobre o entrevistado .................................................................................. 55
3.6 TV Cultura de São Paulo - Fundação Padre Anchieta ..................................... 56
3.6.1 Fundação Padre Anchieta ......................................................................... 57
3.6.2 TV Cultura de São Paulo ........................................................................... 58
3.7 Considerações finais .......................................................................................... 62
4 UMA VIAGEM PELA FICÇÃO TRANSMUTADA – ANÁLISE DOS RECURSOS
VISUAIS E SONOROS UTILIZADOS EM CONTOS DA MEIA NOITE ......................
64
4.1 Contos da Meia Noite: forma, conteúdo e expressão ..................................... 68
4.2 O texto transmutado ........................................................................................... 71
4.3 A transmutação visual e os recursos empregados em Contos da Meia
Noite .....................................................................................................................
73
4.3.1 O papel das projeções de imagens, texturas e figurino ............................. 73
12
4.3.2 A iluminação e o emprego da câmera ....................................................... 77
4.3.3 “Cantiga de esponsais” .............................................................................. 80
4.3.4 “O besouro e a Rosa” ................................................................................ 84
4.3.5 “A caçada” ................................................................................................. 90
4.4 Transmutação sonora ........................................................................................ 96
4.4.1 Voz: entonação e força .............................................................................. 97
4.4.2 Trilhas incidentais e efeitos sonoros .......................................................... 102
5 CONCLUSÃO 107
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................... 109
ANEXOS
ANEXO A – “CANTIGA DOS ESPONSAIS” ......................................................... 113
ANEXO B – “O BESOURO E A ROSA” ................................................................ 117
ANEXO C – “A CAÇADA” ..................................................................................... 122
ANEXO D – PARATEXTUALIDADE ..................................................................... 126
13
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo analisar a transmutação do literário para
o televisual na série Contos da Meia Noite – TV Cultura de São Paulo –, sua
conservação da oralidade narrativa e o trabalho audiovisual empregado nos
Programas selecionados como recorte para este estudo.
As sociedades humanas através dos tempos têm feito o uso de narrativas
como um meio para a facilitação da troca e para a manutenção do convívio e dos
vínculos sociais. Neste sentido, a figura do narrador é primordial, cumprindo o papel
do sábio, daquele que detém o conhecimento e as virtudes morais necessárias para
consolar, ensinar e prestar auxílio.
Em sua trajetória, a narrativa teve como base principal a voz, proferindo a
moral, as tradições e a exemplaridade. Além dos contos maravilhosos, que a partir
do século XVII foram transpostos desta tradição oral para o suporte livro e que ao
longo dos séculos sofreu modificações, mas conservou a sua estrutura concisa,
clara, de entendimento imediato e de ações encadeadas.
O caminho percorrido pela arte de contar histórias da tradição oral e o
percurso traçado por Contos da Meia Noite expressam a relação contínua entre a
oralidade e a escrita e suas variações de suporte para a mediação das narrativas.
Posto que, a partir da década de 1950, o meio televisão vem desempenhar uma
função primordial neste ciclo – por sua característica eminentemente oral, pode ser
considerado um contador de histórias contemporâneo –, passando a absorver e a
desempenhar o papel antes exercido por instituições como a família, a educação e a
religião.
A televisão herdou do rádio muitas de suas características, algumas delas
superadas com o passar do tempo; outras, presentes ainda hoje no fazer televisual,
como é o caso das adaptações literárias, que ao longo destes mais de cinqüenta
anos, têm gerado muitos produtos audiovisuais bem sucedidos e de qualidade
superior a outros tipos de produções televisivas. Um exemplo é a série Contos da
Meia Noite que entre os anos de 2003 e 2006 trouxe para a tela da TV a
transposição de oitenta e nove contos da literatura brasileira de autoria de grandes
14
nomes clássicos e contemporâneos. Elogiado pelo público e pela crítica, o Programa
contava com qualidades e diferenciais que o tornavam moderno, criativo e ousado;
um projeto que só teria eco em uma emissora pública de caráter cultural e educativo.
Pode-se verificar nos três Programas da série que compõem o corpus desta
pesquisa - “Cantiga de esponsais” (Anexo A), “O besouro e a Rosa” (Anexo B) e “A
caçada” (Anexo C) – um trabalho altamente elaborado no que diz respeito ao
desempenho dos atores-narradores, a composição dos seus gestuais, expressões
faciais e entonação de voz, bem como sua interação com as câmeras, contribuindo
para o registro dos vários pontos de vista (personagens e narrador) ao longo do
conto exibido.
Contos da Meia Noite foi uma série pensada e concebida em detalhes, nada
nela era por acaso: a ambigüidade do nome, que remete à obra Machadiana e à
toda a mística que esta hora representa; o cenário propositadamente único, com
fundo preto – neutro – conferia ao unitário um ar misterioso, típico da meia noite; a
“cabeça” ou introdução do Programa com seu caráter didático contextualizando o
conto exibido, seu autor e período literário, preparava o espectador para a narrativa
e lhe propiciava um melhor entendimento literário. Além do trabalho primoroso de
efeitos visuais como sombras, fusões e projeções de imagens (que faziam alusão ao
núcleo temático do conto apresentado), iluminação, bem como as trilhas incidentais
e efeitos sonoros empregados nos Programas no sentido de reforçar e pontuar
trechos da narrativa apresentada. Todo este trabalho atribuiu à série características
diferenciadas e qualidade única.
15
2 ERA UMA VEZ ... NARRATIVAS: A ORALIDADE E O GÊNERO CONTO
Este primeiro capítulo procura fazer um relato epistêmico abordando os
seguintes aspectos:
narrar: uma capacidade inerente, uma necessidade humana – trata sobre a
aptidão do homem de narrar histórias como um modo de compor suas
experiências e memórias e para a manutenção do convívio e do laço social; uma
vez que estas histórias são instrumentos facilitadores da troca em sociedade. Na
comunicação humana a narrativa é uma das formas mais onipresentes e
poderosas de discurso. A estrutura narrativa está implícita à prática da interação
social antes mesmo de atingir sua expressão lingüística, posto que o senso
normativo do homem é nutrido pela narrativa;
o papel do narrador – a relevância do narrador como o criador e contador de
histórias. O conto tem por característica carregar consigo a marca da voz do
narrador, seja nos contos de tradição oral, seja nos contos literários, esta figura
se faz presente e tem um papel fundamental dentro deste tipo de narrativa;
O gênero conto serão apresentadas as principais características, estruturas e
especificidades do conto, a fim de um melhor entendimento deste gênero literário
que abarca o objeto de estudo: a transmutação do literário (conto) para o
televisual. Além da questão da concisão, a forma sintética e breve do conto;
Diacronia: a origem do conto e a importância da oralidade – propõe-se uma breve
diacronia das origens da arte de contar histórias em suas passagens mais
relevantes, na qual estão calcadas as raízes do gênero conto, para se
compreender a expressão do contar ao longo da trajetória do homem e a relação
contínua entre esta antiga tradição e o objeto deste estudo, no qual se tem o
suporte TV exercendo o papel de contador de histórias (mas que percorre uma
construção inversa).
16
2.1 Narrar: uma capacidade inerente, uma necessidade humana
Manifestação permanente nas culturas através dos tempos, a narrativa teve
suas formas de transmissão e suporte transformados. O ser humano possui uma
aptidão para a narrativa cuja função essencial é a de conservar e elaborar suas
tradições, uma forma de compreender melhor e exercitar a aceitação da sociedade
na qual está inserido.
Segundo Bruner (1997), a narrativa é empregada pelo homem desde a sua
infância e atua como instrumento necessário ao convívio social, uma vez que tal
capacidade é uma conquista mental, mas é – acima de tudo – um meio de
estabilidade da vida social e suas práticas, sublinhando a predisposição do homem
para partilhar histórias sobre as diferenças humanas e gerar um entendimento
conveniente com as obrigações institucionais e os compromissos morais divergentes
em cada cultura.
Esta capacidade humana de transmitir experiências por meio de narrativas vai
além da infância, é um instrumento de produção de significados que domina grande
parte da vida em uma cultura; seja com uma história contada para a criança dormir,
seja com o peso de um testemunho no sistema judicial.
As formas de narrativização estão calcadas na antiga herança do contar
histórias, são remanescentes dos modos tradicionais de contar. Estas narrativas
podem ser reais ou imaginárias sem perder o seu poder como história, uma vez que
o significado e a história possuem uma relação irregular entre si. A narrativa tem a
habilidade em tecer ligações entre o excepcional e o comum. É o que Bruner (1997,
p. 47) chama de “função mimética: interpretar a vida em ação”.
Nas culturas tradicionais esse tipo de comunicação possuía a função de
armazenar, difundir e perpetuar conhecimentos e valores por meio de relatos
míticos, contos e lendas, transmitidos de geração em geração, buscando manter
uma fidelidade em seu conteúdo.
A princípio, os contos da tradição oral foram criados para os adultos – ou sem
uma faixa etária específica – eram contos que expressavam de forma plena as
necessidades culturais da sua época. O papel da criança naquela sociedade era
17
igual ao das pessoas mais velhas: usavam e dividiam as roupas e cômodos com os
adultos, faziam os mesmos trabalhos e freqüentavam os mesmos ambientes,
transitando entre os mais velhos, as crianças entravam em contato com tais
narrativas e se sentiam atraídas por este universo. Em outro extrato social, as
governantas vindas da camada popular deram uma contribuição primordial nesse
contexto, narrando contos folclóricos para os filhos dos nobres que ficavam sob seus
cuidados.
Somente em fins do século XVII – e até meados do século XIX – é que se
inicia um processo de noção social da criança, graças a evoluções sociais e
econômicas como a Revolução Industrial, a diminuição da mortalidade infantil e o
aumento da expectativa de vida. A partir do estabelecimento do lugar da infância na
sociedade é que se percebeu a força educadora e disciplinadora dos contos;
sobretudo, por meio da exemplaridade, cujas histórias tinham o objetivo de passar à
criança valores e padrões morais que deveriam ser seguidos por elas, tornando-se
habitual destinar este tipo de narrativa às crianças. Razão pela qual se vê, até hoje,
o conto de fada muito mais ligado ao universo pedagógico do que ao literário.
As histórias se prestam a dar um sentido a uma atitude singular, de maneira a
expressar a intenção do protagonista como algum elemento normativo da cultura
(valores, convicções, etc.). Discutir uma interpretação narrativa implicará em assumir
uma posição moral e retórica.
[...] A função de uma história é encontrar um estado intencional que atenue
ou pelo menos torne compreensível um afastamento de um padrão cultural
canônico. É esta conquista que dá verossimilhança à história. [...] Elas se
tornam “verossímeis” em relação a um Problema moralmente explicado,
quando não remodelado. E se desequilíbrios permanecem ambiguamente
pendentes, como amiúde ocorre na ficção pós-moderna, é porque os
narradores buscam subverter o meio convencional através do qual as
histórias assumem uma posição moral. Contar uma história é
inescapavelmente assumir uma posição moral, mesmo que seja uma
posição moral contra as posições morais. [...] (BRUNER, 1997, p. 50-51).
Toda narrativa é interpretada por sua verossimilhança, ou seja, por sua
semelhança com a verdade e de constituir uma estrutura com credibilidade. Pois
este componente desperta no ouvinte e/ou leitor sua capacidade de engendrar
formas com as quais vai operar a imaginação e traçar relações com o mundo real, a
vida e seu cotidiano. Sem a verossimilhança, a narrativa torna-se pouco
18
compreensível, perde sua força enquanto história e seu poder como veículo de
expressão de uma posição moral. Edgard Allan Poe defende a verossimilhança
como um componente de máxima importância para a ficção.
As narrativas são também um meio de uso da linguagem, na qual se emprega
figuras desta linguagem (metáforas, hipérboles, metonímias, etc.) como forma de
expansão das possibilidades de se expressar, de explorar totalmente as ligações
entre circunstâncias comuns e surpreendentes; elementos estes que também
auxiliam sua capacidade de verossimilhança. Além disso, toda narrativa apresenta
propriedades responsáveis por sua qualidade dramática:
é uma sucessão de acontecimentos (seqüencialidade inerente) – há sempre algo
a narrar que é composto por uma seqüência singular de eventos, estados
mentais e acontecimentos envolvendo os personagens ou atores;
pode ser real ou fictícia – tudo está no conjunto de uma mesma ação. “[...] a
ficção freqüentemente se reveste de uma ‘retórica do real’ para obter sua
verossimilhança imaginativa. [...]” (BRUNER, 1997, p. 52). Realidade e ficção não
têm limites precisos, não se referem só ao factual ou possui um compromisso
com o real;
a narrativa é material de interesse humano – são histórias criadas pelo homem,
para o homem e sobre o homem. Uma história é a experiência do outro, o
fascínio reside na habilidade de tecer narrativas nas quais se pode “mergulhar”,
ambiguamente, em relatos de experiências reais como produto de uma ficção
culturalmente modelada. Uma narrativa é sempre a história de alguém;
tem um modo peculiar de trabalhar sua desvinculação com regras estabelecidas
(com o canônico);
a narrativa tem seus eventos e ações em um mundo “real” ocorrendo
simultaneamente com eventos mentais na consciência do protagonista, que está
relacionada com sua interpretação e o significado que dá às coisas. No conto “A
caçada
” este mundo real e seu cotidiano são pano de fundo para os conflitos do
protagonista. Para ele, a tapeçaria possui um significado único e (em princípio
indecifrável), que a dona da loja não pode compreender. Na verdade, nem o
próprio protagonista entende; daí o seu drama.
Conto de Lygia F. Telles que faz parte do corpus desta pesquisa.
19
A narrativa tem uma predisposição para organizar a experiência em uma
forma com estruturas de enredo encadeadas: é a seqüência de suas sentenças que
dá o corpo geral do enredo. Bruner observa que para que a narrativa seja
efetivamente realizada requer quatro constituintes gramaticais:
um meio para enfatizar a ação humana;
estabelecer e manter uma ordem seqüencial dos eventos;
sensibilidade às normas, condutas e valores sociais e ao que pode violá-los;
precisa “ter uma voz”, o ponto de vista do narrador.
A narrativa possui cinco elementos responsáveis por seu dramatismo: o ator,
a ação, a meta, o cenário e o instrumento. Um desequilíbrio em qualquer um desses
elementos levará ao Problema.
Segundo Bruner (1997), o Problema que impulsiona a narrativa literária se
tornou mais vinculado à colisão de significados alternativos e menos envolvido com
as realidades estabelecidas de uma paisagem de ação. Em outras palavras, pode
ser mais subjetivo e/ou psicológico, como no conto de Lygia F. Telles, “A caçada”,
que conta a angústia do protagonista em sua relação com uma velha tapeçaria que
retrata uma caçada. Qual sua ligação com aquela imagem: o artesão, o caçador, ou
a caça? O desenrolar desta narrativa traz um peso essencialmente psicológico e
subjetivo; é um drama interior do protagonista que se desenvolve a partir da
tapeçaria para “dentro” do personagem e retorna do personagem para “dentro” da
tapeçaria.
Ainda sobre o Problema, este componente fundamental da narrativa, irá gerar
o que Jerome Bruner chama de desvios canônicos, resultando em uma mudança de
percurso dos compromissos morais e dos valores. As narrativas sempre (ao longo
dos tempos) se relacionaram com o que é moralmente valorizado, apropriado ou
incerto. Exemplo disso é a história de Rosa uma moça ingênua, quase infantil para
os seus 18 anos que, após um besouro entrar em seu quarto e atacá-la
(Problema), transforma-se a ponto de querer casar (e casa-se) com o primeiro que
vê: Pedro Mulatão, um mau caráter beberrão, subvertendo toda a moral com a qual
fora educada e também a da época na qual se passa a história: a década de 1920.
20
Os cinco elementos descritos anteriormente (ator, ação, meta, cenário e
instrumento), para o narratólogo russo Vladimir Propp correspondem às ações, aos
personagens e suas funções. Por função entende-se a ação de um personagem
definida do ponto de vista do seu significado no desenvolvimento da história; tais
funções são constantes. As mesmas ações podem ser praticadas por personagens
diferentes e de formas diferentes. Propp desenvolveu ao todo trinta e uma funções,
dentre elas: afastamento, proibição, transgressão, interrogatório, informação,
engano, carência ou dano, mediação, ação contrária, partida, etc. E sete
personagens para executar tais funções com sua esfera de ação: 1) agressor; 2)
princesa e seu pai; 3) mandatário; 4) herói; 5) falso herói; 6) doador; 7) ajudante
mágico.
Greimas, como vários outros teóricos, conduziu adiante as conquistas de
Propp e, através da criação atuacional, levou as esferas de ação de personagem
criada por seu antecessor a um nível de abstração e genialidade muito maiores:
Destinador
Objeto
Destinatário
Ajudante
Sujeito
Oponente
É importante ressaltar que não é intenção deste estudo se deter em cada
tema, apenas aplicar o instrumental que seja propício para a análise do
desenvolvimento das narrativas.
2.2 O papel do narrador
Todas as histórias têm uma voz narrativa: os acontecimentos são vistos
através dos olhos e do ponto de vista do narrador e de seus prismas pessoais. A
narrativa sendo oriunda de uma forma artesanal de comunicação traz consigo a
marca do narrador, cujas raízes estão no povo e seus estratos: o camponês, o
21
marítimo e o urbano tornando múltiplas as formas com que estas experiências
chegaram aos ouvintes.
A relação entre narrador e ouvinte é pautada pelo interesse em conservar o
que foi narrado. Quem ouve uma história, ou quem a lê, está na companhia do
narrador (BENJAMIN, 1984, p. 198). Uma habilidade comum a todos os bons
narradores é a de transitar pelas diversas camadas da experiência humana e
também da sua própria experiência pessoal.
[...] A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram
todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que
menos se distinguem das histórias orais contadas por inúmeros narradores
anônimos. [...] (BENJAMIN, 1984, p. 198)
Segundo Benjamin (1994), “[...] o narrador é um homem que sabe dar
conselhos, posto que a narrativa possui um caráter utilitário, seja um ensinamento
moral, uma sugestão prática, seja um provérbio ou norma de vida.” Para ele, “[...] o
primeiro narrador verdadeiro é o do conto de fadas, pelo fato de ser um conto
adequado para dar um bom conselho, oferecer uma ajuda em caso de emergência.”
Bruner coloca que as narrativas fazem a manutenção da paz ilustrando
situações que atenuam os conflitos. Seu objetivo é, antes de tudo, explicar. Tais
explicações nem sempre são condescendentes com o protagonista retratado, mas
sim o narrador que sai melhor.
Ambos estabelecem o que se pode constatar – inclusive nas três histórias que
fazem parte do corpus desta pesquisa – que a figura do narrador onipresente e
onisciente é capaz de olhar para a trajetória do protagonista, retratá-la e retirar desta
trajetória todas as lições com as quais vai “ensinar” aos leitores e/ou ouvintes.
Obviamente, tais lições não são, necessariamente, explicitadas ao receptor, mas
podem ficar nas entrelinhas, na forma e no tom como o narrador conta a história
destes personagens.
A partir do momento em que o conto sai dos domínios da oralidade e passa
para o registro escrito, o narrador assume a função de contador. A voz deste
contador se transforma na voz do narrador. No conto literário, o narrador é uma
22
criação do escritor e o escritor é o arquiteto da narrativa, o sujeito empírico da
enunciação.
[...] Assim definido, o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe
dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos
casos, como o sábio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma
vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a
experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo
que sabe por ouvir dizer). [...]. O narrador é o homem que poderia deixar a
luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida.
[...] (BENJAMIN, 1994, p. 221).
2.3 O gênero conto
Embora existam correntes divergentes quanto às teorias acerca do gênero
conto, há um ponto em comum entre todas: sua definição como narrativa, uma forma
de se contar alguma coisa. E pode-se verificar, dentro das características apontadas
por Lopes apud BALOGH (2002), sua organização e estruturação nas quais um
objeto cultural é considerado uma narrativa:
ser finito: começo, desenvolvimento e fim;
ter um esquema mínimo de personagens com protagonista e antagonista
(Cinderela versus Madrasta; Rosa versus besouro);
que os personagens tenham alguma qualificação para as ações realizadas ao
longo da narrativa;
que as ações dos personagens possam criar relações entre estes e dar
andamento à narrativa;
ter uma temporalização perceptível, um antes e depois da ação, que
caracterizará a narrativa;
possuir um arcabouço narrativo – a correlação entre temporalização e conteúdos,
considerando como narrativa qualquer objeto que possua as características
citadas, seja qual for o seu suporte e sua forma de organização.
23
O conto, cujo nascimento se remete às tradições orais, carregava em seus
primeiros registros escritos ainda uma estrutura oral, com a presença do narrador e
de espectadores. Esta forma oralizada perdurou em algumas obras até o século XIX.
Entretanto, em sua evolução, o conto abandonou tal estrutura do domínio coletivo da
linguagem e passou ao universo do estilo individual de um determinado escritor, com
uma formulação artística e literária.
Segundo Nádia Gotlib (1991), o movimento do conto através dos tempos
mostra que ao longo de sua história houve uma mudança na técnica de tecer este
gênero narrativo, mas que sua estrutura foi conservada. Em seu modo tradicional, o
conto operava com a ação e o conflito passando pelo desenvolvimento até o seu
desfecho com a crise e a resolução final. Os contos modernos desmontam este
esquema ocorrendo uma fragmentação em sua estrutura.
A principal característica do conto é a sua brevidade, uma economia dos
meios narrativos. Tudo o que não estiver relacionado com o efeito da história, para
conquistar o interesse do leitor, deve ser suprimido. Por esta razão, precisa ser
claro, de entendimento imediato, sem deixar lacunas entre uma ação e outra; o
excesso de detalhes torna-se prejudicial, desorienta o leitor, levando-o a múltiplas
direções. É um gênero que deve ser compacto e a objetividade confere um maior
impacto a este tipo de narrativa.
É a condensação que dá o diferencial do conto como gênero narrativo, o autor
condensa a matéria para apresentar os seus melhores momentos, podendo ocorrer
de uma ação longa, em seu modo de narrar, tornar-se breve, como também uma
ação rápida merecer uma descrição mais pormenorizada. O autor faz esta escolha
diante dos efeitos que deseja provocar em seu leitor por meio do ponto de vista do
narrador e da combinação de elementos dos recursos narrativos, os quais podem
omitir, expandir ou contrair.
O conto é por essência um gênero cuja natureza é a unidade de impressão,
devido à singularidade dos elementos que o compõem, além da unidade de tempo,
lugar e ação; opera com o foco voltado particularmente para um elemento,
personagem, acontecimento/situação e emoção.
Em sua forma concisa, o conto é capaz de recortar um fragmento da
realidade, captando-o na sua instantaneidade sem um antes ou depois. Este recorte,
24
como afirma Nádia Gotlib (1991), atua como uma “explosão” que resultará em uma
realidade muito mais ampla.
Os personagens do conto possuem um mundo autônomo, não são
caracterizados pela momentaneidade da narrativa, mas pelo Problema ou acidente
que enfrentam. Tais propriedades fazem do conto uma forma contemporânea de
narrar histórias.
Edgar Allan Poe (1973) atesta que o conto é o gênero literário em prosa que
melhor exercita o talento do escritor. Segundo Poe, a narrativa breve do conto
possibilita a sua leitura de uma única vez, sem pausas ou intervenções que podem
anular ou atrapalhar as impressões do leitor sobre a obra, sua concentração; além
de permitir que o escritor desenvolva plenamente suas intenções – sejam elas quais
forem – operando o efeito único e singular, poderá inverter os eventos e combiná-los
da maneira que cause melhor impacto.
[...] el escritor de cuentos en prosa puede incorporar a su tema una
variadíssima serie de modos o inflexiones del pensamiento y la expresión
(el razonante, por ejemplo, El sarcástico, el humorístico), [...], pues la
Belleza puede ser mejor tratada en el poema. No ocurre esto con el terror,
la pasión, el horror o multitud de otros elementos. [...] (POE, 1973, p.136-
137).
2.4 Diacronia: a origem do conto e a importância da oralidade
[...] Não há arte sem voz.
A idéia do poder real da palavra, idéia profundamente ancorada nas
mentalidades de então, gera um quadro moral do universo. Todo discurso é
ação, física e psiquicamente efetiva. Donde a riqueza das tradições orais,
contrárias ao que quebra o ritmo da voz viva. O Verbo se expande no
mundo, que por seu meio foi criado e ao qual dá vida. Na palavra se origina
o poder do chefe e da política, do camponês e da semente. O artesão que
modela um objeto pronuncia as palavras que fecundam seu ato.
Verticalidade luminosa que jorra das trevas interiores, fundadas sobre os
paganismos arcaicos, ainda marcadas por esses traços profundos, a
palavra proferida pela Voz cria o que ela diz. No entanto, toda palavra não é
só Palavra. Há a palavra ordinária, banal superficialmente demonstradora, e
a palavra-força; uma palavra inconsistente, versátil, e uma palavra mais
fixada, enriquecida por seu próprio fundo, arquivo sonoro de massas que,
em sua imensa maioria, ignoram a escrita e são ainda mentalmente inaptas
a participar de outros modos de comunicação que não o verbal; inaptas –
por isso mesmo – a racionalizar suas modalidades de ação. A palavra-força
tem seus portadores privilegiados: velhos, pregadores, chefes, santos e, de
25
maneira pouco diferente, os poetas; ela tem seus lugares privilegiados: a
corte, o quarto das damas, a praça da cidade, a borda dos poços, a
encruzilhada da igreja. [...] (ZUMTHOR, 2001, p.72).
Paul Zumthor (2001) expõe três tipos de oralidade correspondentes a três
situações da cultura de uma determinada fase e/ou sociedade:
a primária e imediata – a qual não comporta nenhum contato com a escritura;
a oralidade mista – possui influência da escrita, mas permanece externa e
parcial, precedendo à cultura escrita;
oralidade de segunda – quando a escrita é a base e tende a esgotar a voz no
uso e no imaginário, precede a cultura letrada.
Esta diacronia destaca dois tipos: a oralidade mista – entre os séculos X e XIII
– período no qual se destaca o trabalho dos cantores e contadores profissionais. E,
posteriormente (entre os séculos XVII e XIX), a oralidade de segunda, com a
transposição de fábulas, contos e lendas das tradições orais para os livros.
Na era Medieval, o contar histórias torna-se uma arte – muitas vezes
requisitada e bem remunerada – por meio das vozes de jograis, recitadores,
menestréis, cantores e contadores. A Literatura Medieval – situada
aproximadamente entre os anos de 1150 a 1250 e 1450 a 1550, ou mais, em
algumas regiões – é o conjunto de formas poéticas que participaram das crises
deste período: a emergência das “línguas vulgares” distintas, e deriva da crise que
levou a outra: o começo da imprensa. Posto que estas formas poéticas foram,
também, produto e um dos principais agentes de tais crises.
Uma vez que toda sociedade humana possa ser considerada um sistema de
comunicações, deve ser levar em conta a voz e a escrita como as técnicas utilizadas
para a transmissão das mensagens e a forma de diferenciação destas mensagens,
as diversas estruturas sociais, ou, políticas e estéticas.
Aqui serão relatadas algumas destas estruturas que permitirão ilustrar melhor
a importância e a força da oralidade e do contar histórias, bem como a relevância
política, social, cultural e estética da oralidade através dos tempos.
26
2.4.1 A influência da igreja
[...] No princípio era o Verbo e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era
Deus... Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito... [O Verbo] era a
verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem. [...] (SÃO JOÃO,
1).
Até a Reforma, e depois dela, grande parte do clero tinha um preconceito
contra as comunicações orais. Consta que, até o século XII, o monopólio da palavra
verídica, palavra com valor e força de verdade incontestável, era a do bispo – muito
mais hábil na retórica do que o próprio rei.
O mais antigo poema “francês” remonta a um período um pouco anterior ao
ano de 900 e intitulava-se Eulalie, composta por um monge letrado para os fiéis da
igreja de Saint Armand. Por sinal, a religião foi um dos grandes temas transmitidos
pela voz nesta época. Chamada de “religião popular” misturava histórias de santos,
doutrinas e práticas sacerdotais com lendas, fábulas e até receitas. Era uma espécie
de cristianismo com elementos de animismo, muito próxima à bruxaria (também de
tradição oral), cuja coexistência se dava de forma conflituosa, na qual ambas sofriam
influências uma da outra.
Nos séculos XIV e XV, os intérpretes de poesia, cantores e recitadores – que
causavam grande arrebatamento em todas as cortes principescas – têm na igreja
uma poderosa e secreta rival, ocasionando um conflito de culturas, cujas fórmulas
condenatórias eram declarações, regulamentos e editos (eclesiásticos e algumas
vezes dos próprios reis). Esta situação perdurou até a época moderna na qual,
então, o teatro passa a ser perseguido.
2.4.2 Os contadores, trovadores, jograis, menestréis e recitadores
Dos séculos XV a XVII, em grande parte da Europa, havia uma quantidade
numerosa de “cantores de gesta” de jograis cegos, chamados em Portugal e na
Espanha de arte de ciego e romances de ciegos. Tais artistas fizeram muitos
27
discípulos, como é o caso do cego Niccolo d’ Arezzo que cantava para o povo de
Florença as guerras de Rolando e de outros cavaleiros andantes.
Além dos cegos, houve um sem número de profissionais que se dedicaram
por meio da voz a narrar e cantar diversas histórias religiosas e místicas, de
cavaleiros e de reis. Tais práticas ganharam espaço devido à expansão da língua
vulgar no uso da escrita; muitos letrados achavam duro o trabalho da leitura direta. A
partir desse fato, começaram a surgir – tanto entre os clérigos, quanto entre os
burgueses – pessoas especializadas nessa arte. Rapidamente foi preciso formar
uma classe de intérpretes para tais leituras que, nas vozes desses novos
profissionais, começaram a se transformar em espetáculo.
Há alguns registros de nomes importantes da época, entre os quais o
exemplo mais antigo é o do cantor Caedmon, um camponês iletrado que alegava ter
recebido por milagre o dom da improvisação. Há também um cavaleiro-poeta da
região de Carmarthen, cujo nome há mais de uma versão: o famosus ille fabulator
Bréri, ou Bleheri, Bledhericus, ou ainda, Bledri. Além de outros nomes da época
como o de Élias de Barjols, que deixou o pai (um mercador) para tornar-se jogral
com seu companheiro Olivier. Mais dois Élias trilharam o mesmo caminho: um filho
de um burguês de Bergerac; o outro, de um ourives de Sarlat. Podemos ainda citar
Uc de Pena, filho de um mercador; Raimbaut de Vaqueiras, filho de um cavaleiro de
provençal; o alfaiate Guilem Figueira; Gausbert que deixou de ser monge e foi em
busca de seu equipamento de jogral, e outros nomes, como o monge de Montaudon,
Gui d’ Ussel, Peire Roger e Guilem Magret. A Itália teve o célebre cantarino Antonio
de Guido. Já na Espanha, há registros de nomes como os de Juan, um judeu
convertido, conhecido como El Poeta e de Román Ramírez detido pela Inquisição,
acusado de feitiçaria por julgarem que necessitava da ajuda do diabo para recitar de
memória romances inteiros de cavalaria. De alguns intérpretes sobraram apenas
seus nomes registrados nas iluminuras de manuscritos e esculpidos em relevos
decorativos.
Outra forma de contar era a que, num pequeno grupo aristocrático, uma das
pessoas presentes – homem ou mulher – fazia a leitura para os demais reunidos em
volta.
Nas guerras, também era comum que os comandantes estivessem
acompanhados de cantores épicos preparados para as lutas, cuja função era a de
28
transmitir, com a sua voz, uma virtude e também transferir uma valentia ancestral
aos guerreiros que se preparavam para o combate.
Todos esses contadores e cantores (em sua grande maioria homens)
proferiam a palavra necessária à manutenção do laço social, alimentando o
imaginário, propagando e reafirmando mitos, com uma autoridade própria a de um
juiz, pregador ou sábio. E justamente por isso, o poder vigente procurou fazer uso
desta força, engajando como divulgadores os jograis ou leitores clérigos.
Na Europa, entre os séculos X e XV, os intérpretes têm uma posição central,
à medida que sua palavra consegue ganhar espaço e o coração em uma sociedade,
na qual a sua identidade destaca-se das outras identidades sociais que, comparadas
à sua, são segundo Zumthor (2001, p. 68), dispersas, incompletas, laterais.
Entretanto, as figuras dos recitadores e cantores profissionais começam a
perder o prestígio em fins do século XII, devido à disseminação do uso da escritura,
a lenta queda das estruturas feudais e a chegada da imprensa. Sua época de ouro
foi entre os séculos X e XII, período no qual a literatura medieval foi mais brilhante.
2.4.3 As histórias orais publicadas
Dois Irmãos é o conto mais antigo de que se tem registro, escrito em um
papiro há mais de trinta séculos. Encontrado em 1852, na Itália, por Mrs. D’Orbiney,
trata-se de uma história escrita pelo escriba Anana (ou Enene) para o príncipe Seti
Mermeftá, filho do faraó Ramsés Miamum, da 19ª dinastia do Egito Antigo, no ano
de 1200 a.C., também chamado de papiro de Orbiney e conhecido em todo o mundo
como The Tale of the Two Brothers.
Trata-se de um conto popular que reúne elementos miraculosos os quais se
acreditava na época e da onipotência do rei, da imaginação comentando tradições
locais, do registro real do espírito egípcio, além de possuir uma forte abordagem
psicológica.
Na Europa as tradições escritas têm origem a partir do século XI. Porém, até
meados do século XII, a escrita é o único veículo do saber mais elevado, já a voz é
29
quem exerce o poder. A partir dos séculos XII e XIII, ocorre o inverso: o poder vem
da escrita e, da voz, a transmissão viva do saber. Nos séculos XV e XVI, até o
século XVII, ambas as forças ainda existiam sem que uma eliminasse totalmente a
outra. Somente a partir desse período irá existir uma oposição entre forma pura – a
Arte e a Ciência – e sujeito, o artista, que exigirá a mediação didática do livro.
O que Zumthor denomina de “nomadismo” da tradição oral irá contribuir com
a publicação de textos semelhantes em várias partes da Europa. A oralidade retém
fragmentos de romances, contos, poesias, numa espécie de caos no qual a escrita
não consegue dar conta.
Dentre os diversos trabalhos realizados de transposição de contos populares
das tradições orais para o literário, este estudo destacará as produções de Charles
Perrault e dos irmãos Grimm. A escolha se deve ao fato de que as suas
contribuições são de grande relevância, uma vez que as narrativas coletadas por
estes estudiosos transcenderam as fronteiras de tempo e espaço, indo além de seus
países, atravessando os séculos para chegar aos nossos dias. Perrault socializou os
contos da tradição oral, transportando-os das bocas dos camponeses para a
aristocracia francesa. Os Grimm tornaram os contos populares alemães objeto de
estudo científico, retirando da cultura popular seu vasto material de pesquisa.
O pioneirismo de Perrault foi capaz de driblar o preconceito e desprezo das
camadas letradas pela cultura popular, transportando suas histórias até os salões
nobres da sociedade francesa da época. Enxergou além e foi capaz de adaptar
contos, eliminando partes que pudessem denotar obscenidades ou que contivessem
situações incestuosas, de sexo grupal ou canibalismo, dando às histórias um caráter
pedagógico, no qual a moral e os valores são transmitidos de forma sutil para serem
eficientes. Perrault é responsável pela introdução dos desprivilegiados nos salões da
nobreza, por meio de contos cujos personagens e narrativas apresentam o confronto
entre bons e maus, belos e feios, fracos e fortes, como uma espécie de crítica à
corte.
Já os irmãos Grimm são os primeiros a congregar as tradições populares com
a filologia e a história. A contribuição de Jacob Grimm foi de extrema importância no
reconhecimento das culturas populares trazidas para campo da história da cultura.
30
Os Grimm, com seu trabalho, deram importantes subsídios que
proporcionaram que grande parte das histórias – até então transmitidas oralmente –
fossem coletadas, estudadas e transpostas para a forma escrita, permitindo que tais
histórias pudessem chegar até a atualidade.
[...] Estar em uma cultura viável é estar inserido em um conjunto de histórias
conectadas, capazes de estabelecer vínculos mesmo que essas histórias
não representem um consenso. [...] (BRUNER, 1997, p. 84-85).
2.4.4 A contribuição de Charles Perrault
Frequentador da corte do rei Luis XIV, Perrault – na segunda metade do
século XVII – recolheu da tradição oral contos folclóricos (narrados por camponeses,
governantas e serventes dos palácios) e os editou para que tais narrativas se
adequassem ao público da corte francesa e aos salões letrados parisienses. Tais
histórias já circulavam entre a classe nobre pelo seu contato com pessoas “do povo”
por meio do comércio, das governantas e serviçais que trabalhavam em suas
residências.
Em 1667, Charles Perrault publica seu primeiro livro, Histórias ou contos de
outrora, com suas moralidades: Contos da mãe Gansa. A obra inclui contos em
prosa que se tornaram clássicos bem como contos em verso, cuja narrativa mais
importante é Pele de Asno.
O autor opõe-se ao estilo dos Grimm, uma vez que trabalhou mais com
questões trágicas, “numa busca pela fidelidade ao real”. Um claro exemplo, é o final
de Chapeuzinho Vermelho; para os irmãos Grimm a menina e sua avó – engolidas
pelo lobo mau – são resgatadas de sua barriga por um caçador; já na versão do
escritor francês, ambas são devoradas pela fera.
Charles Perrault entrou para a Academia Francesa de Letras em 1671. Seu
trabalho merece também relevância por adaptar contos do indo-europeu,
estabelecendo um modelo de conto de fadas seguido por diversos autores.
31
Alguns dos contos maravilhosos, resgatados da cultura popular francesa por
Charles Perrault:
Chapeuzinho Vermelho;
Pequeno Polegar;
A Bela Adormecida do Bosque;
Cinderela;
Gato de Botas;
Barba Azul.
2.4.5 O trabalho dos irmãos Grimm
O cenário histórico alemão no início do século XIX foi um fator determinante
para ilustrar a juventude, a formação e o trabalho desenvolvido pelos irmãos Jacob e
Wilhelm Grimm. Era uma Alemanha mantida sob regime napoleônico e tal situação
veio afetar a estrutura político-social do país neste período.
Wilhelm Grimm seguiu os mesmos passos do irmão mais velho, Jacob
Ludwig Karl Grimm. Ambos atuaram como filólogos, folcloristas, estudiosos da
mitologia alemã e da história do direito alemão e, também, como professores.
A intenção dos Grimm era a de recuperar a realidade histórica alemã,
resgatando elementos lingüísticos com os quais seria permitido o estudo da língua e
também recolher textos da tradição oral como expressão da cultura popular.
Em 1812, Jacob e Wilhelm Grimm escrevem Contos da Criança e do Lar
(Kinder und Hausmärchen), trabalho resultante das pesquisas realizadas pelos
irmãos. Wilhelm deu a forma definitiva para esta coleção de contos populares, que
viria a se tornar a mais conhecida em todo o mundo. A primeira edição possuía um
total de 85 contos da tradição popular alemã. A partir das edições posteriores
Wilhelm acrescentou novos contos e fez modificações estilísticas e de conteúdo e
traduções dos diferentes dialetos para o “alemão culto”, passando ainda, por
32
mudanças de conteúdo moral. Esta obra foi traduzida para 160 línguas.
Os principais contos resgatados pelos Irmãos Grimm:
Chapeuzinho Vermelho;
Joãozinho e Mariazinha;
Pequeno Polegar;
Branca de Neve;
Rapunzel;
O Gato de Botas;
Cinderela;
A Bela Adormecida;
Os músicos de Bremen.
[...] O primeiro narrador verdadeiro é e continua sendo o narrador de contos
de fadas. [...] O conto de fadas nos revela as primeiras medidas tomadas
pela humanidade para libertar-se do pesadelo mítico. [...] (BENJAMIN,
1994, p. 215)
2.5 Considerações finais
Este capítulo relatou a necessidade inerente ao ser humano de contar
histórias como uma forma de compreensão das relações e regras do convívio social,
procurando demonstrar que tal necessidade pode – ao longo dos tempos – se
utilizar de meios diversos (da tradição oral, passando pelo livro e chegando à TV)
para a propagação de suas narrativas, mas que, independentemente do suporte,
sempre conservará este ato indispensável ao homem.
Foi apresentado um panorama das características que compõem as
narrativas e das especificidades do gênero conto (uma vez que o objeto deste
estudo é a transmutação do literário, em particular do conto, para o televisual).
Relatando a evolução deste gênero por meio de um breve resgate da diacronia da
33
arte de contar histórias (na qual está presente a origem do conto) e a força da
oralidade em suas frentes mais expressivas – a fim de registrar a importância deste
suporte primário (a oralidade) para a elaboração e propagação das narrativas –, por
meio do trabalho de cantores, poetas, jograis e menestréis, alcançando status social
por toda a Europa medieval. E, a partir do século XVII, quando a tradição oral
popular torna-se objeto de estudo e registro por parte de folcloristas, filólogos e
escritores, como é o caso do pioneiro Charles Perrault e dos intelectuais irmãos
Grimm, permitindo-se considerar que os contos e fábulas vindos da tradição oral
possam ter sido um dos primeiros tipos de transmutação, uma vez que foram
recolhidos, adaptados e transpostos da oralidade para o literário.
O Programa Contos da Meia Noite virá, no século XXI, a percorrer o caminho
inverso do realizado pelos contos da tradição popular, porém, resgatando a força e a
importância da voz, posto que em nossa contemporaneidade as aldeias e rodas para
ouvir tais histórias [de Contos da Meia Noite] se fazem possíveis com o
telespectador diante da televisão, cujos contos são extraídos da literatura nacional e
transmutados para o suporte TV com o intuito de serem contados a um maior
número possível de pessoas. Acredita-se que o propósito do Programa – entre
outros – além de dar às narrativas apresentadas uma maior visibilidade, seja
também o de trabalhar com a fantasia, a imaginação e a ficção, elementos já
tradicionais na teledramaturgia brasileira.
A televisão é um meio que se utiliza, sobretudo, da imagem como forma de
expressão, mas é também um veículo eminentemente oral, como ressalta bem
Arlindo Machado (2000, p. 71): “Herdeira do rádio, ela [televisão] se funda
primordialmente no discurso oral e faz da palavra a sua matéria-prima principal”.
Sendo assim, há a necessidade premente do dueto imagem-som para a
comunicação se dar de um modo integral e efetivo no suporte TV; o que Mikhail
Bakhtin denominou de “totalidade acabada de um enunciado”.
O Programa Contos da Meia Noite pôde alcançar milhares de
telespectadores-ouvintes pela abrangência da mídia TV, transformando as rodas ao
pé da fogueira nos sofás das residências sob a luz que emana o monitor do
aparelho. Permitindo, deste modo, que um maior número de pessoas tivesse acesso
a estes contos, até então, restritos às páginas dos livros e voltados a um público, por
assim dizer, mais “elitizado”.
34
Sabe-se que o público da TV Cultura de São Paulo – emissora que transmitia
o Programa – não pode ser comparado a uma audiência como a das emissoras
majoritárias; trata-se, é verdade, de um público diferenciado, com interesses em
programas educativos e/ou culturais. Entretanto, com este projeto, a TV Cultura
visou alcançar um maior acesso e visibilidade a textos que eram do conhecimento
de um público ainda mais restrito até o momento: as pessoas que possuem o hábito
da leitura e que têm um maior contato com os livros.
O diagrama abaixo procura ilustrar melhor o caminho percorrido pela arte de
contar histórias da tradição oral e o percurso traçado pelo Programa Contos da Meia
Noite, revelando um contínuo na relação oralidade-escrita e suas variações de
suporte para a mediação das narrativas; sendo que a televisão, a partir da segunda
metade do século XX, tem desempenhado uma função primordial neste ciclo.
Figura 1 – Relação contínua entre a oralidade e a escrita
Para finalizar, é oportuno colocar o sábio parecer de Lotman (2005), que
relata sobre as mudanças ocorridas nos textos e nos paradigmas culturais através
do tempo.
TRANSMUTAÇÃO
PARA A TV
=
Maior Alcance de Público
PROGRAMA CONTOS DA
MEIA NOITE
ESCRITOÎORAL
Suporte TV
TRANSPOSIÇÃO PARA O
LITERÁRIO
ORALÎESCRITO
Suporte Livro
=
Abrangência do
Conhecimento
NARRATIVAS DA
TADIÇÃO ORAL
35
[...] A partir do ponto de vista da semiótica, a cultura é uma inteligência
coletiva e uma memória coletiva, isto é, um mecanismo supra-individual de
conservação de certos textos e da elaboração de outros novos. (...) Cada
cultura define seu paradigma do que deve recordar (isto é, conservar) e o
deve esquecer. (...) Sem objeção muda, não somente a composição do
conjunto de textos, como também mudam os próprios textos. (...) Os textos
que formam a memória coletiva cultural, não somente servem como um
modo de decifrar os textos que circulam na fragmentação da cultura
contemporânea, como também geram novos textos. [...]
*
(LOTMAN, 2005)
*
Citação original em espanhol.
36
3 TELEVISÃO: UM CONTADOR DE HISTÓRIAS CONTEMPORÂNEO
Este capítulo faz um relato da trajetória do meio televisão e sua relação com o
objeto de estudo desta pesquisa, por meio dos seguintes temas:
TV e oralidade – a TV a partir da década de 1950 passa a desempenhar um
papel fundamental na comunicação de massa no Brasil. A contemporaneidade
traz uma série de mudanças sociais nas quais há uma alteração na força
exercida por instituições como a Igreja, o setor público e o privado e
principalmente a família. Partindo-se da hipótese de que a televisão (é uma das
mídias que) passa a absorver funções antes desempenhadas por estas
instituições e por sua característica eminentemente oral, este veículo pode ser
considerado como um contador de histórias na contemporaneidade;
Adaptações, Transposições e Transmutações – do literário ao televisual – retrata
sobre a tradição, que a TV possui em trabalhar com produções oriundas de
adaptações de gêneros literários. Este fértil diálogo livro-televisão propicia a
criação de vários produtos audiovisuais bem sucedidos, como é o caso do objeto
deste estudo: a série Contos da Meia Noite – TV Cultura/SP, cujo trabalho de
transposição do literário para o televisual conta com a fidelidade integral ao texto
original;
Narrativas seriadas: o unitário – este tópico trata dos tipos de narrativas seriadas
existentes na televisão e seus principais formatos e tipos de programas que
utilizam estes formatos diversos; trata, também, das características e
especificidades do formato unitário – do qual faz parte o Programa Contos da
Meia Noite – e seus diferenciais dentro deste contexto unitário;
Quem conta um conto ... – faz uma exposição sobre a história (data da estréia e
sua duração), descrição e características da série (atores e autores
participantes), sua recepção junto ao público, crítica e comentários publicados
em veículos impressos e on-line na época de sua exibição;
Programa Contos da Meia Noite – da criação ao encerramento de suas exibições
– por meio de uma entrevista realizada com o responsável pela seleção dos
contos, Fernando Barros Martins, traz um relato sobre o Programa com
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informações sobre a opção pelo formato unitário, os critérios utilizados para a
escolha dos contos e seus respectivos autores, além de outros fatores
relevantes, tais como: o número de contos produzidos e exibidos, os limites
orçamentários da produção, o porquê do título do programa, qual o grau de
fidelidade das transposições em relação ao texto original, se houve uma
elaboração de roteiro, questões ligadas à produção, objetivos do Programa em
relação ao telespectador.
TV Cultura de São Paulo – Fundação Padre Anchieta – sua grade de
programação, seus telespectadores, um breve histórico serão itens que farão
parte deste capítulo, com o intento de demonstrar o perfil da emissora e sua
relação com o objeto, seus critérios para alteração na programação e sua relação
“comercial/educativa”.
3.1 TV e oralidade
Se o contar histórias é uma habilidade e uma vocação inerente ao ser
humano, pode-se dizer que tal vocação ganhou escalas industriais e proporções em
um volume gigantesco a partir da chegada da televisão. Por meio deste suporte
tornou-se possível “contar uma mesma história” a milhões de pessoas
simultaneamente e, também, em várias partes do mundo, como é o caso de nossas
novelas para exportação.
A partir da segunda metade do século 20, a TV entra nos lares brasileiros
para ocupar seu lugar de destaque (e central, pois na maioria das casas está bem
no meio [centro] da sala-de-estar) para nunca mais sair de lá. A contemporaneidade
é caracterizada por transformações sociais as quais instituições que exerciam
influência e poder como a religião, a educação e, sobretudo, a família passam a ser
incorporadas pelas sociedades de massa, que possui um forte controle sobre todos
os membros de uma comunidade – antes era o chefe da família que comandava e
representava o interesse comum de seus membros – na contemporaneidade a mídia
passa a ser o mediador, que tem o poder de reformatar uma mensagem, copiar
elementos rituais, criar hábitos, ocasionando o que Walter Benjamin (1994)
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conceitua como recepção e que se compõe de duas formas: recepção tátil – se
efetua menos pela atenção do que pelo hábito, ou seja, está ligada ao manuseio, ao
toque, uso e hábitos e a recepção ótica – contemplação, visualização, percepção;
realiza-se pela recepção tátil, através do hábito.
Neste contexto, a sociedade contemporânea adquire por meio dos veículos
de comunicação a capacidade de transcender o corpo, a habitação, a luz ...
Ultrapassar os muros e paredes das casas, ter o corpo se expandindo pelo mundo,
ouvir diferentes línguas; não há barreiras para esta expansão, para ir além da
extensão do próprio corpo. Tem-se hoje o que Mcluhan (1997) chamou de simulação
elétrica sob a forma da Internet, transmissões via satélite (TV – e nos programas ao
vivo), as vídeos-conferência, celulares “3G”, etc. É o corpo se expandindo além das
casas, roupas, cidades: é o corpo-mundo, planetário, global.
Não é a intenção, aqui, de pormenorizar ou polemizar sobre as questões
referentes entre a contemporaneidade e o poder da mídia. A este capítulo basta
relatar o lugar do meio televisão e sua importância para o público brasileiro. Uma
vez que é do interesse deste estudo colocar a hipótese de que a TV é uma das
mídias que – por sua abrangência e disponibilidade de aquisição – desempenha o
papel de contador contemporâneo em nossa sociedade; um veículo de alta
circulação para a propagação e manutenção das narrativas.
Ao contrário do cinema, cujo acesso é bem menos abrangente (em se
tratando do Brasil), a televisão faz parte do cotidiano de milhões de brasileiros os
quais têm neste veículo a sua companhia, seu amigo e conselheiro e uma grande
influência. O status do chefe da aldeia, do ancião, do sábio, do artesão, do
camponês, daqueles que davam conselhos e passavam os valores e a moral por
meio da exemplaridade das narrativas, foi assumido e incorporado pela televisão,
atribuindo a este veículo o papel do contador de histórias, não só no sentido da
transmissão de histórias e informações, mas em um sentido mais amplo, o de
detentor da informação, do conhecimento, dos modelos e exemplos.
E com esta missão de contar, a televisão herdou do rádio sua força oral, com
suas mensagens fortemente calcadas na oratória verbal. Como assinala Arlindo
Machado (2000), a disposição da TV para o discurso oral mostra as duas faces de
uma mesma moeda: de um lado leva a televisão para o caminho de produções com
custos mais baixos e que primam pelo gosto popularesco, como os reality shows
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(com intrigas domésticas, brigas e agressões), programas de auditório e os talk
shows nos quais a emissora traz convidados do seu próprio casting. Já por outro
lado, propiciou formatos mais fundamentados no diálogo incorporado em várias
modalidades: entrevistas, debates, monólogos, teleteatros, cuja grandeza e
qualidade irão variar de acordo com a produção, emissora, apresentadores,
entrevistados, protagonista, etc.
[...] O retorno à oralidade – ou, mais exatamente, o advento de uma
segunda fase da oralidade, mediada por tecnologias de gravação e
transmissão -, proporcionado pelo rádio e pela televisão, abriu um espaço
novo para o ressurgimento do diálogo em condições muito próximas do
modelo socrático. Mas essa possibilidade teórica só rendeu resultados reais
em algumas propostas mais ousadas de programas, em geral praticadas
por televisões que fogem do esquema das grandes redes nacionais ou
internacionais. [...] (MACHADO, 2000, p. 74)
Pode-se afirmar que Contos da Meia Noite se insere exatamente no que
Arlindo Machado atesta, foi um Programa idealizado sob a força da oralidade como
um de seus principais instrumentos expressivos; era inovador e ousado, bem como
fazia parte do mosaico da programação de uma emissora pública, a TV Cultura de
São Paulo.
3.2 Adaptações, Transposições e Transmutações – do literário ao televisual
É importante destacar que, apesar do surgimento constante de novos
suportes, devido a uma tecnologia cada vez mais sofisticada e acelerada, o livro
continua desempenhando um papel primordial na sociedade contemporânea, cujas
histórias freqüentemente são transpostas para outros suportes. Haja vista o cinema
e a televisão que todos os anos trazem novos projetos (muitos deles bem sucedidos)
resultantes de adaptações literárias.
A literatura e a televisão são produções culturais constituídas em meios ou
suportes diferentes e, por isso, forjam e necessitam de diferentes modos de
apreensão, decodificação e fruição. Embora haja tais diferenças, o diálogo entre os
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dois meios é extremamente frutífero, resultando em produtos de qualidade e
sucesso como novelas, minisséries, entre outros formatos, no qual pode se incluir a
série Contos da Meia Noite.
A transposição literária para o televisual constitui uma tradição presente neste
veículo desde o seu início – uma vocação também herdada do rádio – que
emprestou formatos e técnicas provenientes das radionovelas, radioteatro,
romances da literatura nacional e estrangeira. Por adaptação entende-se o produto
[televisual] que possua uma história igual ao texto literário e que esta história
possibilite identificar a obra da qual foi inspirado.
[...] Uma adaptação de um texto literário para um programa televisivo é, em
primeira instância, um processo de mudança de suporte físico. Trata-se da
passagem de sinais e símbolos gráficos assentados em papel para um
conglomerado de imagens e sons captados e transmitidos eletronicamente.
[...] (REIMÃO, 2004, p. 107).
Embora Contos da Meia Noite não se trate de uma adaptação, mas sim de
uma transposição – como será visto neste capítulo – o que Sandra Reimão coloca é
oportuno, pois ilustra o procedimento de sincretização em que o Programa encontra-
se inserido: a passagem dos sinais e símbolos gráficos do suporte livro para um
conglomerado de imagens e sons do suporte TV. Para que haja esta sincretização, o
Programa opera a transmutação ou tradução inter-semiótica
1
a qual se estima a
passagem de um texto caracterizado por uma substância da expressão homogênea
(a palavra) para um texto cujas expressões são heterogêneas, no que diz respeito
ao visual e ao sonoro. É oportuno colocar que neste estudo são usadas duas
expressões para designar o processo de “passagem” do texto literário para o
televisual: transmutação e transposição.
O texto literário é por natureza uma produção individual, na qual está
calcada a relação autor-obra; já uma produção televisiva é sempre coletiva, implica
em uma série de “mediações e mediadores que agem como co-autores da produção
audiovisual”, contando com uma equipe que envolve vários profissionais (o diretor,
operadores de câmeras, figurinistas, produtores musicais, maquiadores, etc.). É o
1
O conceito desenvolvido por Roman Jakobson é aplicado por Anna Balogh com muita propriedade para
designar de forma mais abrangente e coerente a operação de adaptação literária para o televisual e
cinema, in Conjunções, Disjunções, Transmutações. Annablume, 2005.
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que Sandra Reimão se refere como a diferença entre os dois suportes no âmbito da
questão da autoria.
É interessante ressaltar que no caso de Contos da Meia Noite não existe o
que alguns autores – quando tratam do tema adaptação – colocam sobre “a perda e
até a destruição” da obra literária. Isto porque o Programa realiza uma transposição,
na qual permanece a fidelidade integral ao texto original; há uma conjunção
(similaridade) entre o texto literário e o televisual. Pode-se constatar que não há o
perigo da “frustração” de ver a obra literária adaptada aquém das expectativas do
autor, do público ou da crítica.
Entretanto, a série conta ainda com uma vantagem comum a todas as
adaptações: a socialização do texto, torná-lo visível a um número de pessoas
infinitamente maior do que o número de leitores da obra e proporcionar Literatura de
qualidade ao grande público. As transposições da literatura para a televisão
possuem uma força educacional e valor didático que são incontestáveis, assim como
fazem parte da seleta casta de produções de alto nível da teledramaturgia brasileira,
como bem assinala Anna Maria Balogh (2001).
Já foi dito anteriormente no capítulo 2, que a audiência da TV Cultura de São
Paulo não é igual a das emissoras comerciais; ainda assim, com Contos da Meia
Noite a emissora cumpriu sua missão de democratizar a cultura, multiplicando e
formando novos leitores, sobretudo o público jovem, que em sua maioria está muito
mais voltada aos aparatos eletrônicos e tecnológicos à sua disposição (MP3, i-pods,
vídeo-games, internet, etc.) do que às páginas dos livros com os grandes nomes da
Literatura Brasileira.
3.3 Narrativas seriadas: o unitário
[...] Normalmente, os programas televisuais são denominados pelo formato,
mas o modelo que se forma para o espectador nasce das relações entre as
estruturas de produção e a realização, as estruturas narrativas e discursivas
presentes nos textos e o conjunto de mediações, competências e
expectativas dos destinatários. [...] (BALOGH, 2002, p. 97).
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Existem três modalidades de narrativa seriada na televisão (ARLINDO
MACHADO, 2000, p. 84): a narrativa única ou várias que se entrelaçam e as
paralelas, que se sucedem linearmente ao longo dos capítulos; está fundamentada
em um ou mais conflito(s) básico(s) e no desenvolvimento da trama a fim de
restabelecer o equilíbrio. Exemplos: telenovelas, teledramas e minisséries; o
segundo tipo trata de histórias completas e autônomas com começo, meio e fim,
repetindo apenas os mesmos personagens principais e uma mesma situação
narrativa, na qual um episódio anterior não interfere nos que virão a seguir. A maior
parte dos seriados se utilizam desta estrutura (“Toma Lá Dá Cá” – Rede Globo,
Cold Case” – Warner Chanel); o terceiro tipo de serialização é o unitário (que
particularmente interessa a este capítulo – uma vez que Contos da Meia Noite
integra esta modalidade de narrativa seriada). É um formato que está presente na
tradição televisiva desde o seu começo, mais ligado ao teatro. O unitário preserva
apenas seu tema, um fio que une os programas entre si; porém, tais programas são
independentes. O formato unitário adota uma estrutura na qual cada programa é um
exercício de variações em torno do tema central, ou seja, o que é preservado em
cada programa ou episódio é o espírito geral da história, sua temática central. Sua
principal característica é a que em cada unidade tudo é diferente: a história, os
personagens, os atores, cenários e, muitas vezes, até os roteiristas e diretores.
Em Contos da Meia Noite, seu formato unitário, apresenta algumas
especificidades, tais como, o mesmo ator/atriz para mais de um conto
. Além de
preservar a equipe de produção, conserva também o cenário, pois se trata de um
cenário único para todas as histórias (fundo preto); o que irá diferenciar em cada
Programa é a iluminação e o trabalho dos recursos visuais criados especificamente
para cada história apresentada
. Pode-se verificar que sua temática também é
preservada por meio de alguns elementos principais que caracterizam a série,
dentre eles, a vinheta de abertura
com o logotipo do Programa e seu tema musical
(Figura 2); a introdução do Programa realizada por Tereza Freire (Figura 3), a qual
lembra um prefácio de um livro, realizando a preparação do receptor (telespectador)
para a narrativa que será apresentada; a ambientação do Programa: o ar misterioso
Conforme será explicado mais adiante neste capítulo no tópico Programa Contos da Meia Noite – da
criação ao encerramento de suas exibições.
Estes componentes serão aprofundados no capítulo 4 que relatará os efeitos audiovisuais do
Programa.
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que a [hora] meia noite traz consigo, o tom dos narradores ao contar as histórias e a
cor preta sempre presente no cenário, nas roupas de Tereza Freire, nos créditos e
encerramento (Figura 4).
Figura 2 – Os gestos e expressões dos atores
Figura 3 – Tereza Freire apresenta a cabeça do
Programa
Figura 4 – Ambientação dos Programas
Outro componente que diferencia Contos da Meia Noite de outros unitários é
a ausência da “quebra” do Programa para o intervalo comercial, devido a sua curta
duração (Programas com média de dez minutos). Sendo introduzido o break
comercial somente na fase em que a TV Cultura passou a reprisar o Programa
exibindo dois contos por noite, perfazendo um total de trinta minutos na sua grade
de programação, com aproximadamente dois tempos de quinze minutos e um
intervalo comercial ao final da apresentação do primeiro conto. Pode-se constatar
que Contos da Meia Noite quebra o modelo televisivo fragmentário o qual remete ao
folhetim, comum às narrativas (telenovelas, minisséries, seriados, etc.) e se
aproxima – neste sentido – com seu formato unitário ao modelo do cinema, baseado
no romance oitocentista, como designa Arlindo Machado (1995). O formato unitário
sem intervalos torna-se viável para um programa breve, de curta duração como é o
caso de Contos da Meia Noite. Narrativas mais extensas, com capítulos diários (e
mesmo unitários com maior duração) necessitam de breaks comerciais e/ou de
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ganchos para os próximos capítulos ou blocos, sem os quais a apresentação em
seqüências ininterruptas perderia o interesse do público, pois quebraria “os nós de
tensão que viabilizam o corte” (p. 110).
3.4 “Quem conta um conto ...
A série Contos da Meia Noite estreou em 08 de dezembro de 2003 e foi
exibida até 31 de maio de 2006. O Programa tratava de ficções da Literatura
Brasileira em episódios com duração média entre dez e vinte minutos – que eram
exibidos de segunda à sexta-feira, à meia noite – apresentando a transposição de
contos de grandes nomes clássicos e contemporâneos da literatura nacional tais
como Antônio Alcântara Machado, Arthur Azevedo, Clarice Lispector, Dalton
Trevisan, Lygia Fagundes Telles, Machado de Assis, Rubem Fonseca, entre outros;
com a participação de atores brasileiros consagrados do teatro, cinema e da
televisão, dentre os quais: Antônio Abujamra, Beatriz Segal, Beth Goulart, Giulia
Gam, Maria Luisa Mendonça, Marília Pêra, Matheus Nachtergaele, Paulo César
Pereio.
Grande parte das adaptações da literatura para a televisão é caracterizada
por elementos que por si só colaboram para prender o interesse do espectador,
entre elas: mais de um personagem para contar sua trajetória narrativa
contracenando entre si, temporalidade e espacialização visuais traduzidas em
internas e externas, intervalos comerciais, trilhas sonoras, além de serem narrativas
de maior duração com “ganchos” para os próximos capítulos.
No caso da série havia um receptor exposto a várias informações durante
todo o dia. Contos da Meia Noite era exibido em um horário em que a maioria das
pessoas já está se preparando para dormir, houve uma jornada de um dia inteiro e
há a preparação para o dia seguinte; enfim, a televisão trabalha com um público
diverso, que possui necessidades diversas e para se ter a o mínimo de dispersão
deste público o Programa lançou mão de técnicas que auxiliaram a “afinar” o
espectador, “trazendo-o” para a narrativa apresentada.
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Em sua composição, a série soube emprestar e aproveitar para a
transmutação televisiva técnicas sonoras e visuais empregadas pelos contadores de
histórias profissionais, tais como figurinos, as expressões faciais, entonação de voz,
gestual e linguagem corporal dos atores, além da preparação do ambiente:
iluminação, objetos que podem auxiliar no contar a história, etc. Verifica-se que a
apreensão de tais recursos – incluindo os audiovisuais, somados ao talento e
experiência dos atores que formaram o elenco do Programa – uma forma de “afinar”
o público, ou seja, os contadores profissionais antes de iniciar a história sabem que
seus ouvintes vêm de lugares distintos, estados de espírito variados, estão – como
dizem – “desafinados”; por isso, utilizam recursos que vão criar uma sintonia e torná-
los aptos para ouvir.
Outro diferencial do Programa era sua abertura, com uma forte característica
didática, na qual a atriz e apresentadora, Teresa Freire, fazia uma contextualização
da obra transposta em termos de autoria, obra e recepção de público e crítica; como
uma espécie de prefácio ou orelha de livro. Sendo assim, o público cativo e atento
de Contos da Meia Noite – por meio desta introdução – tinha a possibilidade de
traçar comparações e entender melhor os períodos literários, autores e obras,
proporcionando uma melhor compreensão sobre a Literatura Brasileira e seus
principais autores, ao mesmo tempo em que desfrutava de um entretenimento de
qualidade.
Quanto à paratextualidade da série, na época de sua exibição, Contos da
Meia Noite possuía grande aceitação por parte do público jovem. Gerando, inclusive,
comentários postados em blogs
, muito acessados por adolescentes e jovens.
Abaixo, exemplos de comentários postados em dois blogs sobre Contos da Meia
Noite, na época de sua exibição:
[...] às vezes, a leitura de um poema por parte de um ator pode não soar
bem, pelo fato de que o poema pede para ser lido, cantado, gritado ou
simplesmente visto, mas não pede para ser “interpretado”. contém em si
todo seu universo, seu sentido (um deusinho, eu diria) e, também, sua
interpretação. acréscimos o diminuem.ressalva: o grande artista
surpreende. [...] (ALMEIDA, A., 2004).
Weblog - trata-se de qualquer registro freqüente de informações, usado também como diários de Internet,
mas pode ter qualquer tipo de conteúdo e ser utilizado para diversos fins, dentre os quais as pessoas
dão opiniões e comentários sobre os temas apontados na página.
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[...] com a prosa parece ser diferente. a idéia sendo sempre a mesma,
contar histórias (a menos que o escritor complique as coisas, o que não é
incomum), o ator desliza em campo mais amigável. [...] (ALMEIDA, A.,
2004).
[...] prova disso são os contos da meia noite da tv cultura. programa com
dez minutos diários em que grandes atores brasileiros interpretam alguns
dos nossos melhores contos. já há alguns meses, programo meu vídeo para
gravar as leituras. minha preferida é a maria luísa mendonça. ontem, ela
extrapolou com o conto “aranha”, de orígenes lessa e o visual de mortícia
que lhe cai tão bem. [...]. (ALMEIDA, A., 2004).
[...] a televisão é definitivamente uma coisa quase emburrecedora. quase.
fora as virtudes de informar, alguma vida inteligente aqui ou ali, qdo se
chega em casa cansado, a gente liga tv. e fuma um cigarro, disparado, o
melhor do dia. mas pq os miolos, já esgotados do final do dia, pedem um
descanso. [...] (AMBROSINI, L. B., 2004).
[...] não é preciso pensar, só assistir. os telejornais são um capítulo a parte,
notícias espremidas entre comentários, os mais idiotas, e conclusões, as
mais óbvias, zombam da nossa inteligência. exceção feita àquele da tv
cultura de são paulo, q é interessante, a maioria é bem sofrível. aqui no
estado, assistir a cristina ranzolim e a rejane marcheti fazendo comentários
imbecis a meio dia é uma coisa cretina, quase um deboche. no brasil,
agüentar o arzinho de inteligência da ana paula padrão concluindo q o
iraque está pior agora, do q antes da invasão dos eua, é dose... isso sem
falar nas coberturas esportivas. pelamordedeus! não consigo saber como se
perde tanto tempo falando de futebol nesse país. td bem q é o circo do
brasileiro. aliás, de longe muito mais importante q o pão, q comam brioches
afinal. [...] (AMBROSINI, L. B., 2004).
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[...] [é bem observação de gente azeda e ranzinza, eu reconheço. mas
pensem comigo, se o tempo e as sinapses gastos de uma forma tão
compenetrada, q pra mim é um mistério, em táticas e escalações fossem
usados para ensinar um pouco de economia pra massa? q tal? ou discutir
pq se governa abaixo de medidas provisórias nesse país? não sei, posso
estar completamente enganada, mas ingenuamente acredito q esses temas
são mais relevantes q se o fulaninho ou ciclaninho serão escalados,
brigaram c presidente do clube, tomaram um porre uma noite antes da
partida... fora a minha irritação sobrenatural qdo, 6h45min., o noticiário da
manhã é interrompido por uma guria sorridente, quase às gargalhadas – a
essa hora da manhã...??? – pra falar q a acbf de carlos barbosa vai jogar
com não sei quem e blábláblá... ah, ninguém merece. a acbf q vá pra pqp...]
[...] (AMBROSINI, L. B., 2004).
[...] ai... agora, to vendo o jô, cada vez mais chatinho - não na forma, mas
no conteúdo - competindo c a carmina burana no som [intervalinho pra
maria bethânia q já estava ficando rouca]... propaganda do big brother 3,
vixe! ver o pedro bial fazendo fofoca de lavadeira em horário nobre é outro
papelão inacreditável. certo, não tenho net, sky e nada desses atenuantes.
não, não desligo a tv. mania, eu tenho uma ilusão, eu e o elvis, q a tv faz
companhia. dá um movimento na casa... mesmo q eu faça uma competição
tão injusta como essa: jô soares x carl orff... [bom, ele perderia pra qqer um
dos meus cds mesmo... agora vai tomar um laço do vitor – o ramil...] [...]
(AMBROSINI, L. B., 2004).
[...] anyway, tdo isso é só pra dizer q tem um programa surreal perdido na
tv. contos da meia noite. todo dia, como o nome diz, à meia noite, um conto
de pesos pesados da literatura brasileira é apresentado por um peso
pesado das artes dramáticas. vale pra qdo vc estiver a essa hora de bobeira
em casa. tv cultura, of course. já ouvi, mario de andrade, orígenes lessa,
rubem fonseca [o mestre], e outros q eu ainda não conhecia [assim vou
domando a minha ignorância...]. acabo de assistir a julia gam apresentar o
solfieri, do álvares de azevedo. [maldito, q eu aprecio tanto. aliás, como
todos os da geração dele.] [...] (AMBROSINI, L. B., 2004).
Além do segmento mais jovem, Contos da Meia Noite recebeu elogios da
crítica em veículos impressos e online (Anexo D) em todo o país, dentre eles Folha
de São Paulo e O Estado de São Paulo, dois dos maiores e mais importantes jornais
do Estado de São Paulo e do Brasil. A seguir, críticas publicadas pelos dois
veículos:
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Terça-feira, 15 de Julho de 2003, 11:24 | Online
TV Cultura desengaveta série de contos brasileiros
Em Conto da Meia-Noite, Marília Pêra e Antônio Abujamra interpretam textos de
João do Rio, Dalton Trevisan e Clarice Lispector, entre outros.
Em meio a reprises e à falta de verba para produção de novos programas, fruto da
crise que atravessa há tempos, a TV Cultura surge com uma novidade. A série
Conto da Meia-Noite, que estava engavetada desde o ano passado, ganha atenção
especial da emissora e deve ir ao ar até o final do ano. A série mostra contos de
autores brasileiros interpretados pelos atores Marília Pêra e Antônio Abujamra – que
também apresenta o programa Provocações na Cultura.
Cerca de 20 edições já foram gravadas no ano passado. Em cena, os atores
declamam os contos, destacando algum personagem central do texto. Faltava a pós-
produção, o que inclui apresentação, edição e formatação do produto, mas a
emissora não tinha verba para finalizar a série, apesar de os programas serem
curtinhos, com duração de cinco a sete minutos cada. O projeto, coordenado pelo
diretor de Programação da TV Cultura, Walter Silveira, foi retomado este mês e
começou a tomar forma. Mesmo assim, a emissora ainda não sabe quando a série
irá ao ar. Garante apenas que o lançamento não passará deste semestre.
Na semana passada, Silvinha Faro, que apresentava o programa Fazendo Escola e
está com contrato suspenso desde maio, também em conseqüência da crise na
emissora, gravou um piloto para uma parte da série. "Na verdade, minha função é
dar uma introdução ao episódio, apresentando o conto e um breve histórico do
autor", explica ela. Segundo Silvinha, ela foi convidada para apresentar os contos
dirigidos para o público jovem. "Um dos objetivos desta série é incentivar os jovens a
ler", acredita. A apresentadora gravou a introdução dos contos de Moacyr Scliar,
João do Rio, João Antônio, Clarice Lispector, Luiz Jardim, Dalton Trevisan, Carlos
Sussekind e Mário Neme. A série terá ainda contos de Rubem Fonseca, Machado
de Assis e Mário de Andrade, entre outros.
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21/04/2004 - 04h00
Análise: TV pública deve mostrar independência
ESTHER HAMBURGER especial para a Folha de S.Paulo
A TV pública no Brasil é mais importante do que parece e deveria oferecer
parâmetros independentes de governos e anunciantes.
Em um momento em que as emissoras comerciais, em crise financeira, se dedicam
a repetir fórmulas superficiais e sensacionalistas, caberia às TVs públicas –
estaduais e federais – atender o interesse dos espectadores.
Acompanhamos apreensivos mais um capítulo na crise da TV Cultura. O conselho
da Fundação Padre Anchieta, que mantém o canal de televisão e as emissoras de
rádio, optou, na última segunda-feira, por evitar o confronto entre o atual presidente,
candidato a um terceiro mandato, e o ex-Secretário da Cultura do Estado, seu antigo
superior, que lhe opôs resistência.
O que chegou a ser anunciado como um embate entre defensores de concepções
diferentes da coisa pública acabou em um acordo de cavalheiros.
Uma rápida mudança de estatutos garantiu a criação de remuneração para o
Presidente do Conselho, abrindo a possibilidade de acomodação dos dois
candidatos. As eleições foram adiadas para o dia 10 de maio.
Certamente bem-intencionado, o Conselho Curador composto por representantes de
organismos estaduais e municipais ligados à educação e à cultura, além de
personalidades, se dispôs a colaborar mais intensamente com a emissora.
O comunicado oficial da reunião, à qual compareceram 32 dos 40 membros,
menciona comissões consultivas de trabalho compostas por profissionais idôneos e
de reconhecida competência. Uma lista completa dos membros do Conselho
Curador está disponível no site da emissora (www.tvcultura.com.br
).
Infelizmente, no entanto, nada foi mencionado quanto ao programa de gestão e/ou o
conceito de programação que se pretende com a reformulação. O modelo de
parceria funciona? Programações de qualidade como "Contos da Meia-Noite"
deveriam ser pensadas para o horário nobre?
Na ausência de conteúdos substantivos, a criação do cargo remunerado aparece
como a informação mais relevante, o que é constrangedor.
A sociedade espera que o Conselho da Fundação Padre Anchieta e os candidatos à
direção tomem a iniciativa de propor rumos substantivos para superar uma crise que
se arrasta.
Esther Hamburger é antropóloga e professora da ECA-USP.
50
O artigo da professora Esther Hamburger é extremamente oportuno e
verdadeiro; a mudança da direção da Fundação Padre Anchieta assumida em 2004
por Marcos Mendonça resultou, não no desejo que a antropóloga expressou de
Contos da Meia Noite ocupar o horário nobre na emissora, mas no encerramento da
série, como será detalhado no próximo item deste capítulo. Vale ressaltar que, além
de ter sido interrompida a produção de novos programas e, posteriormente, a
exibição de Contos da Meia Noite, a Cultura Marcas não produziu DVDs da série
para comercialização, o que denota o profundo desinteresse por parte da direção da
emissora pelo projeto. Privando o público de novos programas e também de poder
adquirir o rico material já produzido, valioso para pesquisadores, professores,
instituições de ensino, estudantes e amantes da literatura em geral.
3.5 Programa Contos da Meia Noite – da criação ao encerramento de suas
exibições
No dia 29 de novembro de 2007 foi realizada uma entrevista com Fernando
Barros Martins, responsável pela seleção dos escritores e seus respectivos textos
apresentados em Contos da Meia Noite.
Fernando Martins ofereceu importantes informações para a compreensão da
criação e concepção do formato, critério de seleção dos autores e dos contos e
demais questões ligadas à produção do Programa. O texto abaixo é o resultado
desta entrevista.
A série Contos da Meia Noite foi produzida entre os anos de 2002 – com um
período de interrupção – 2003 e 2004, perfazendo um total de oitenta de nove
contos produzidos e exibidos, estreando no dia 8 de dezembro de 2003.
O programa foi concebido pelo vídeo maker mineiro Eder Santos que
inicialmente apresentou à TV Cultura um projeto para um interprograma (programete
exibido nos intervalos comerciais) com poesias. Mas por questões ligadas ao SBAT
(Sociedade Brasileira de Autores Teatrais), direitos autorais e também pelo fato de a
poesia sofrer algumas resistências por parte do público, buscou-se uma alternativa,
uma evolução em relação à idéia inicial; Walter Silveira – na época o diretor de
51
programação da TV Cultura – e Eder Santos transformaram o projeto em um
programa de prosa de ficção com o gênero conto, exibindo atores variados e autores
diversos, mas cujas obras não excedessem o tempo de duração estabelecido.
Fixou-se uma limitação entre cinco e oito minutos
de Programa (conveniente para
ser inserido à grade de programação da emissora).
O nome do programa foi criado por Eder Santos e Walter Silveira e Fernando
Martins acha excelente a idéia de ambigüidade que “Contos da Meia Noite” possui,
fazendo uma alusão à obra Machadiana. Inclusive, o selecionador (amante confesso
da obra do escritor), alega que – com exceção de Paulo César Pereio – deu a todos
os atores ao menos um conto de Machado de Assis para interpretar.
A escolha dos contos realizada por Fernando procurou dar ênfase em um
maior número possível de autores e com um leque bem variado entre clássicos,
modernos e contemporâneos, que vão desde Álvares de Azevedo (no Romantismo)
até o contemporâneo Marcelino Freire. Contudo, sempre considerando que tal
escolha deveria obedecer a dois requisitos indispensáveis: 1) o tempo da narrativa e
2) a questão dos direitos autorais, sendo que, para autores, cujas obras já são de
domínio público, não havia restrições na quantidade de contos a serem transpostos.
Mas sempre primando pela qualidade da obra e por autores de grande expressão da
literatura nacional.
Por outro lado, Fernando revela que a questão da cessão dos direitos autorais
para o Programa teve suas particularidades, pois havia circunstâncias variadas: em
alguns casos os próprios autores detinham seus direitos; outros, a editora e, ainda,
situações em que autores já falecidos os detentores dos direitos autorais são os
seus familiares/herdeiros. E o selecionador relata que houve ocasiões em que não
foi possível a exibição de determinados contos, por questões orçamentárias, pois a
Fundação Padre Anchieta dispunha de poucos recursos para pagar direitos autorais
que “extrapolavam” o orçamento do Programa. Como foi o caso de Guimarães Rosa,
cujas filhas queriam um valor elevado para a cessão dos direitos do escritor e de
Graciliano Ramos – não pela cobrança de uma alta soma pelos familiares –, mas por
questões burocráticas no espólio do autor. Já os herdeiros de autores como
Monteiro Lobato e Mário Neme, foram amplamente receptivos ao projeto, assim
Na prática existem Programas mais extensos, com média de duração de dez a vinte minutos, incluindo a
introdução (cabeça) do Programa.
52
como a maioria dos autores (vivos) ou seus familiares/herdeiros. A TV Cultura
realizava um pagamento simbólico de R$ 500,00 (quinhentos reais) para a cessão
dos direitos pelo conto, pois seu interesse era o de promover a literatura e, como se
trata de uma emissora pública, dispunha de poucos recursos.
Não foram traduzidas em números as dificuldades orçamentárias, mas sabe-
se que Contos da Meia Noite tinha um custo elevado para a TV Cultura, uma vez
que o Programa era gravado nos estúdios da emissora e Eder Santos levava para a
produtora Emvideo de Belo Horizonte / MG – para a edição e finalização (o que
encarecia bastante os custos da produção). Em seguida, o material pronto era
enviado à emissora para ser exibido.
A equipe era muito enxuta com três pessoas que vinham de Belo Horizonte: o
próprio Eder Santos – que ficava no switcher –, Marcelo Braga, que conferia os
textos, pois não havia roteiros e Evandro Rogers, diretor de cena (e fotografia), além
de Fernando Martins – responsável pela seleção dos contos – e alguns poucos
funcionários da TV Cultura de apoio à produção.
É de extrema importância destacar a informação de que não houve uma
roteirização do Programa, uma vez que os contos não foram adaptados, mas sim
lidos na íntegra. Apenas em alguns contos houve a necessidade – pela questão do
tempo – de se fazer um pequeno corte no texto, como é o caso de “Bugio
Moqueado”, de Monteiro Lobato, “Noite do Almirante’, de Machado de Assis, “O
Besouro e a Rosa” de Mário de Andrade (Anexo B) e alguns outros contos.
A preocupação em manter o texto original na íntegra sempre esteve presente,
com a leitura completa do texto, salvo os casos citados; não cabendo de modo
algum, em Contos da Meia Noite, o termo adaptação e sim a transposição (termo
que vem sendo empregado ao longo deste estudo).
A composição do cenário era feita com um projetor ao fundo e luzes, não
foram utilizadas músicas pela questão do direito autoral, daí a opção pelos efeitos
sonoros. Outra questão importante era o cuidado em adequar o figurino do ator à
história narrada. Exceto na primeira fase do Programa, na qual Antonio Abujamra
interpretou dezenove contos sem este item, posto que ainda não havia o uso de
figurinos nestes primeiros programas. Somente depois com a participação da atriz
Marília Pêra é que se passou a compor os atores e atrizes de Contos da Meia Noite
53
com roupas alusivas à narrativa apresentada, uma vez que a sugestão para tal foi da
própria atriz.
No que pode se denominar de primeira fase foram gravados um total de vinte
Programas com o ator Antônio Abujamra, sendo exibidos deste total dezenove, pois
um deles tratava-se de um conto de Graciliano Ramos, cujas questões de espólio
(citadas anteriormente) impediram a sua exibição. Posteriormente, por julgarem um
número excessivo de contos para um único ator foi reduzido para um total de dez
contos para os intérpretes, passando depois para cinco; esta terceira fase conta com
os atores: Paulo César Pereio, Beatriz Segal, Walmor Chagas, entre outros. Para
Fernando Martins, este quadro gerou uma desigualdade na quantidade de atores por
contos. Entretanto, a experiência no decorrer dos programas, levou a equipe
perceber que cinco contos por ator era uma quantidade que permitia uma maior e
melhor mobilidade dos intérpretes.
Quanto à escolha dos escritores, a seleção foi realizada, sobretudo, pelo nível
de excelência e qualidade dos autores. Foram eleitos aqueles cujas obras são de
extrema relevância em nossa literatura.
Contudo, a escolha da quantidade de autor e o número de contos para cada
um deles, não obedeceu a uma regra. Fernando Martins conta que houve autores
cujos contos – por serem de domínio público – foram mais utilizados. Machado de
Assis é um exemplo deles, não só por este motivo, mas principalmente pela
importância deste autor e da sua obra, bem como pelo nome do Programa e gosto
pessoal do selecionador – fã confesso do escritor. Outro nome muito requisitado
para Contos da Meia Noite foi o de Alcântara Machado. Segundo Fernando, com a
sua linguagem ítalo-paulista – inovadora para a década de 20 – Alcântara Machado
conseguia registrar muito bem as expressões populares dos bairros fabris de São
Paulo. Arthur Azevedo foi outro escritor que teve vários de seus contos escolhidos.
O selecionador comenta que as narrativas leves, divertidas, picarescas e muito
inteligentes do autor merecem ser resgatadas, pois muitas pessoas conhecem mais
Aluízio Azevedo do que o Arthur Azevedo e esta foi uma oportunidade de fazer com
que se tornasse mais conhecido.
Mediante a dificuldade da localização dos herdeiros e/ou detentores dos
direitos das obras de autores falecidos, alguns contos ficaram sujeitos à morosidade
no processo de divulgação. Era um verdadeiro “trabalho de Sherlock”, segundo as
54
palavras do próprio Fernando Martins, que relatou um caso interessante sobre o
escritor Mário Neme em que localizaram no Instituto Histórico-Geográfico de
Sorocaba um sobrinho do escritor, que por sua vez, deu a indicação de um outro
parente morador do bairro do Bosque da Saúde, na cidade de São Paulo.
Felizmente, a família do escritor cedeu de bom grado a obra para ser exibida em
Contos da Meia Noite.
A introdução do Programa, apresentada por Teresa Freire, chamada de
“cabeça”, teve seus textos escritos por Fernando Martins, cujo objetivo era o de
contextualizar a obra, seu autor e o período literário em que se encontram, para que
o telespectador entendesse não só a obra, mas também pudesse situar a narrativa
dentro dos parâmetros da literatura e “[...] da história literária, quer dizer linguagens
diferentes, registros de linguagens e sintaxes diferentes, situados devidamente no
tempo e no espaço, faziam com que o telespectador inteligente fizesse um mapa
disso tudo e localizasse bem essas diferenças todas [...]”, explica Fernando.
Em Contos da Meia Noite teve-se o claro intento de resgatar a atenção do
telespectador, para “o ouvir” bons textos e narrativas; trazer de volta “o parar para
escutar” uma boa história, um bom “causo”, com o objetivo de prender o público sem
cansá-lo e/ou extrapolar o seu tempo – com sua breve duração – sabendo-se que
era o suficiente para entretê-lo, levando o melhor da literatura nacional e um produto
de qualidade.
Em junho de 2004, com a chegada de Marcos Mendonça na administração da
TV Cultura, houve o corte da produção de novos Programas da série Contos da
Meia Noite. A emissora exibiu apenas os que já haviam sido gravados e aqueles que
se encontravam em fase de finalização, sendo que as gravações se encerraram
neste período e a produção estendeu-se, ainda, até o final de 2004. A série foi
exibida (em reprises) até o final de maio de 2006.
Sobre as possibilidades de um retorno da produção de Contos da Meia Noite,
Fernando Martins conta que a idéia será sugerida à nova administração de Paulo
Marcum, ou ainda à recém-inaugurada emissora Federal – antiga TVE do Rio de
Janeiro – TV Brasil (canal 3 em parabólicas para a cidade de São Paulo), a qual
contará com a colaboração de Walter Silveira, um dos criadores do Programa
juntamente com Eder Santos.
55
3.5.1 Algumas curiosidades
O ator Raul Cortez ficou entusiasmado com o projeto e quis participar de Contos
da Meia Noite. Na ocasião isso não foi possível, pois a emissora estava
aguardando recursos para voltar a produzir os Programas. Tempos depois a
agenda de Raul não batia com as datas das gravações e ele nunca gravou ...
Já Paulo Autran, recebeu o convite quando esteve na TV Cultura participando do
programa Provocações, mas se recusou atuar em Contos da Meia Noite.
Walter Silveira, após ter todos os programas gravados, fez uma parceria com a
Editora Abril e a Imprensa Oficial do Estado para a comercialização em bancas
de jornal de Contos da Meia Noite. O material seria composto por um livro com o
texto do autor (a princípio os de domínio público), com uma explanação sobre
autor e obra, entre outros dados, elaborada pelo corpo pedagógico da Editora
Abril e o DVD, com o respectivo conto exibido no Programa. A parceria envolvia a
Fundação Padre Anchieta – TV Cultura, que entraria com o DVD, a Editora Abril,
com o conteúdo do livro pedagógico e a Imprensa Oficial do Estado faria a
impressão do material. Tinham sido selecionados os dez primeiros contos que
formariam o 1º volume da coleção. Entretanto, com a chegada de Marcos
Mendonça na direção da emissora, o projeto foi cancelado, sendo que já havia
sido confeccionado um “boneco” (protótipo) do 1º volume, que apenas aguardava
aprovação final para a impressão e posterior comercialização.
3.5.2 Sobre o entrevistado
Fernando Martins trabalha na TV Cultura há 33 anos, é formado em Direito
pela Faculdade do Largo São Francisco – USP e teve uma forte formação literária,
trabalhando por muito tempo na editora do seu pai, a Editora Martins.
56
Habituado a lidar com escritores e a elaborar contratos, esta experiência
facilitou muito seu trabalho na seleção de contos, no contato com escritores e
herdeiros e na criação dos contratos para cessão de direitos para o Programa,
evitando burocracias e demoras neste processo.
Dentro da TV Cultura, Fernando passou por vários setores e funções, entre as
quais foi chefe de gabinete do Prof. Amora e chefe de patrimônio interno; trabalhou
na teledramaturgia e atualmente é responsável pela qualidade das traduções dos
textos apresentados nos programas legendados, evitando que ocorram erros
gramaticais e ortográficos e na versão para o português de filmes e de
documentários exibidos pela emissora.
Como projeto futuro, Fernando pretende organizar um especial para o escritor
Machado de Assis, aproveitando os programas Contos da Meia Noite ocasião em
que foram exibidos textos do autor (pelo menos um para cada ator), além de
crônicas e poesias Machadianas e leitura de trechos das suas peças, perfazendo
uma semana em homenagem ao centenário da morte de um dos maiores nomes da
literatura nacional.
3.6 TV Cultura de São Paulo – Fundação Padre Anchieta
Faz-se necessário expor um breve histórico da Fundação Padre Anchieta e
da TV Cultura, bem como, informações sobre a emissora, a fim de compreender
como atua a gestão e o gerenciamento de seus recursos para a produção e exibição
de seus programas, assim como o perfil da audiência.
57
3.6.1 Fundação Padre Anchieta
Com o objetivo de promover a educação e a cultura por meio do rádio e da
televisão foi criada em 23 de setembro de 1967 a Fundação Padre Anchieta (FAPA),
que teve como primeiro presidente José Bonifácio Coutinho Nogueira.
A FAPA tem como missão, desde a sua fundação, “a defesa e o
aprimoramento integral da pessoa humana” e a “formação crítica do homem para o
exercício da cidadania”.
A Fundação Padre Anchieta – Centro Paulista de Rádio e TV Educativas,
instituída pelo governo do Estado de São Paulo, é uma entidade de direito privado
que goza de autonomia intelectual, política e administrativa. Custeada por dotações
orçamentárias legalmente estabelecidas e recursos próprios obtidos junto à iniciativa
privada, a Fundação Padre Anchieta mantém uma emissora de televisão de sinal
aberto, a TV Cultura; uma emissora de TV a cabo por assinatura, a TV Rá-Tim-Bum;
e duas emissoras de rádio: a Cultura AM e a Cultura FM.
As emissoras de sinal aberto da Fundação Padre Anchieta, segundo consta,
não são nem entidades governamentais, nem comerciais. São designadas como
emissoras públicas, cujo principal objetivo é oferecer à sociedade brasileira uma
informação de interesse público e promover o aprimoramento educativo e cultural de
telespectadores e ouvintes, visando a transformação qualitativa da sociedade.
A gestão da Fundação Padre Anchieta é composta por uma Diretoria
Executiva como o apoio de um Conselho curador formado por 47 membros, entre
eles, representantes de universidades, institutos de pesquisa, entidades culturais e
funcionários da Fundação, cabendo a este Conselho participar de decisões
estratégicas e garantir a autonomia da FAPA.
Já à Diretoria cabe a organização e direção das atividades da Fundação. A
Diretoria tem uma gestão de três anos com a possibilidade de ser reeleita.
Em sua filosofia a Fundação prega o apoio à produção independente, aos
programas regionais e à exibição de obras cinematográficas brasileiras pela TV,
58
posicionando-se como uma alternativa concreta ao modelo centralizado e vertical de
produção da mídia eletrônica.
As emissoras que compõem a Fundação Padre Anchieta são: TV Cultura de
São Paulo, canal infantil – da TV por assinatura – TV Ra Tim Bum; rádios Cultura
AM e FM e o licenciamento e site de vendas de produtos Cultura Marcas.
3.6.2 TV Cultura de São Paulo
A TV Cultura foi ao ar no dia 15 de junho de 1969, às 19h30. A princípio, a
emissora transmitia quatro horas diárias de programação. E, em 1969, este quadro
começa a ser ampliado, tendo como primeiro programa a apresentação de “Planeta
Terra”.
Na década 1970, a TV Cultura exibe jornalísticos, programas voltados para o
público jovem, como o pioneiro “TV 2 Pop Show”, primeiro programa a exibir vídeo
clipes de música jovem no Brasil e o infantil “Vila Sésamo”, atualmente reeditado
pela emissora.
Os anos 80 são marcados pela ampliação das transmissões da TV Cultura
para o interior do Estado de São Paulo e a aquisição do Teatro Franco Zampari –
fomentando a criação de programas de auditório. Na programação há a presença de
atrações como “Viola Minha Viola”, que permanece no ar até hoje e o retorno da
teledramaturgia com os programas Tele Romance e Tele Conto.
Já na década de 1990, tem a estréia do infantil “Rá-Tim-Bum” – cuja marca é
a primeira a ser licenciada pela FAPA –, do programa de variedades “Vitrine” e do
musical “Bem Brasil”, além de sucessos como “Mundo da Lua”, “Glub, Glub” e
“Cocóricó”, o educativo “Nossa Língua Portuguesa” e o premiado “Confissões de
Adolescentes”. A TV Cultura ganha o Emmy Awards – UNICEF pela melhor
programação do Dia Internacional da Criança da TV no ano de 1997. Recebe, em
1998, os seguintes prêmios: Emmy, como melhor programação do Dia Internacional
da Criança da TV; Prix Télévision Jeunesse, da Alemanha, como a melhor
59
programação de TV pública do planeta e 25º Prêmio Japão (TV NHK), pelo
documentário “Planeta Bienal”.
No final da década (1999) a emissora integra, juntamente com a TVE – TV
Educativa, Rio de Janeiro – a Rede Pública de Televisão (RPTV), formada por 20
emissoras públicas, educativas e culturais e 938 retransmissoras, conciliando os
horários das atrações das duas emissoras (TV Cultura e TVE), podendo ser
assistidas em 1.300 municípios em todo o país. Neste período, a TV Cultura
incorpora aos intervalos da sua programação a propaganda comercial em filmes de
30 segundos.
O início do século 21 traz a introdução do processo de digitalização da
emissora. Em 2004, é criado o primeiro canal infantil brasileiro de TV por assinatura:
a TV Rá Tim Bum e também a Cultura Marcas para atuar no licenciamento de
produtos e personagens ligados às emissoras da FAPA.
A teledramaturgia ganha espaço com programas como “Senta que lá vem
comédia”, além do destaque para os esportivos e atrações de entretenimento como
“Senhor Brasil” e “Planeta Cidade”. Em 2006, a TV Cultura recebe o Emmy –
UNICEF melhor programação do Dia Internacional da Criança da TV na América
Latina e Caribe. Já no ano de 2007, a emissora passa a ser organizada de acordo
com faixas de programação, procurando fidelizar seus telespectadores. O infantil
”Vila Sésamo”, atração da década de 1970, retorna à tela da emissora.
A emissora tem uma cobertura ampla no Estado de São Paulo alcançando
93,4% da população, num total de 31 milhões de pessoas, em mais de 400
municípios, além de uma cobertura potencial de 98 milhões de telespectadores em
todo o Brasil por meio da Rede Pública de Televisão (RPTV).
De uma forma global, o telespectador da TV Cultura possui o seguinte perfil
2
:
Tabela 1 – Classe social
Classe social Porcentagem
A/B 22%
C 44%
D/E 26%
2
Fonte: Site TV Cultura.
60
Tabela 2 – Sexo
Sexo Porcentagem
Masculino 48%
Feminino 52%
Tabela 3 – Faixa etária
Faixa etária Porcentagem
04-11 22%
12-17 7%
18-24 7%
25-34 18%
35-49
21%
50+ 24%
A partir destes dados pode-se considerar que, em média, a emissora tem
como telespectador homens e mulheres – uma vez que a diferença entre o público
feminino em relação ao masculino é de apenas 4 pontos percentuais –, com idade
acima dos 50 anos e crianças entre 4 e 11 anos, com predominância na classe
social C. Embora seja uma emissora de caráter educacional, percebe-se que a TV
Cultura não consegue atrair o público formado por adolescentes e jovens, uma vez
que a faixa que compreende dos 12 aos 17 e dos 18 aos 24 anos, apenas 7% em
cada faixa assiste a emissora, revelando-se uma carência de atrações para este
público.
Pode-se constatar que completados recentemente seus quarenta anos, a TV
Cultura é uma emissora reconhecida nacional e internacionalmente, com mais de
200 prêmios ao longo de sua existência. Carrega o lema constante de fazer uma
programação de qualidade que alie educação, entretenimento, cidadania e que leve
o telespectador à reflexão e à ampliação dos seus conhecimentos. Entretanto, este
compromisso parece esbarrar em uma delicada relação: programação de qualidade
versus recursos financeiros. Sua receita se difere das demais emissoras privadas,
mas ao mesmo tempo, não são obtidas apenas das verbas provenientes do Estado.
Como se pode observar no texto abaixo:
61
A partir do ano de 2004 a Fundação Padre Anchieta lançou-se mais
agressivamente no mercado, com o objetivo de gerar e ampliar receitas através de:
Mídia Promocional e Institucional: venda de patrocínios e apoios culturais.
Venda de produtos e sub-produtos criados a partir de elementos da
programação. Para tanto, criou-se a Cultura Marcas que, de forma profissional,
moderna e arrojada encarregou-se desse trabalho, mantendo hoje parcerias com
grandes empresas fabricantes e de comércio eletrônico.
Licenciamento e prestação de serviços específicos, como produção de vídeos
institucionais. (Site Fundação Padre Anchieta – Receitas).
Há neste particular uma espécie de “mix” de receitas cujas fontes são
públicas e privadas, mas que parece não suprir de forma adequada as necessidades
financeiras da emissora, tanto em termos de custos de programação/produção,
quanto de recursos humanos. Verifica-se que nos últimos anos, sobretudo a partir de
2006, a TV Cultura pouco investiu em produções próprias – exceto as que já estão
no ar e o retorno de Vila Sésamo – no mais, tratam-se de produções vindas de fora,
como por exemplo, os programas exibidos graças à parceria com a emissora BBC
de Londres. Não é pretensão desse estudo deter-se nas questões financeiras da
emissora, entretanto, cabe citar este aspecto, uma vez que tal questão [a financeira]
foi um dos principais motivos do encerramento da série Contos da Meia Noite.
Outro dado importante, a TV Cultura recentemente elaborou uma organização
de faixa da programação em uma tentativa de segmentar e fidelizar seu público, nos
moldes das emissoras comerciais, procurando estipular faixas da programação do
seu mosaico específicas para cada público; em outras palavras, pensar na
programação – não como fonte de cultura e educação em si –, mas como produtos
voltados aos públicos-alvo determinados para a geração de dividendos à emissora.
Fica a pergunta se tal decisão é de fato acertada – já que a TV Cultura se posiciona
(e é) uma emissora educativa – vale utilizar instrumentos de marketing aplicados as
emissoras comerciais? Provavelmente, o tempo e/ou a mudança desta atual direção
para outra dará (ão) tal resposta.
Por hora, o espectador fica no aguardo de uma programação que realmente
se enquadre no lema e filosofia da emissora, que tenha o objetivo de trazer cultura,
educação, entretenimento e qualidade, quesitos preenchidos por produções como a
série Contos da Meia Noite.
62
3.7 Considerações finais
Este capítulo procurou tecer algumas relações entre a trajetória da televisão
como um meio para contar narrativas, abarcar gêneros (como o literário) e
transmutá-los para a linguagem televisual e, particularmente, fazer uma
aproximação analítica partindo do genérico ao específico, do unitário Contos da
Meia Noite, sua história e características e chegando à emissora que o exibiu, a TV
Cultura de São Paulo.
Em sua herança e vocação oral, o suporte TV vem exercendo nestes mais de
cinqüenta anos o papel do grande narrador. Herança e vocação também
provenientes do rádio, a adaptação de obras literárias para produtos televisuais é
um dos grandes instrumentos usados pela televisão para propagar narrativas e
estabelecer a manutenção do laço e do convívio social (como visto no capítulo
anterior), produzindo, transmitindo e contando as mais diversas histórias ficcionais
ou reais, a televisão entretém, informa, acompanha, cria modelos, regras, forma
conceitos, opiniões e padrões.
Levando em consideração algumas características da cultura atual, como a
fragmentação da sociedade contemporânea que exige cada vez mais interações
mediadas pela tecnologia, seus encontros se dão no plano virtual ou por meio dos
veículos de comunicação e Contos da Meia Noite possibilitava o encontro de
milhares de ouvintes-telespectadores com uma história diferente a cada dia, na qual
o contador contemporâneo – a televisão (que ocupa o centro dos lares) e a luz que
emana do seu monitor – proporcionava um simulacro das antigas rodas ao pé da
fogueira, nas quais os contadores e ouvintes reuniam-se para ouvir histórias.
Todavia, não se pode deixar de ressaltar que a contemporaneidade traz o paradoxo
de se ter milhares de pessoas ouvindo/assistindo a mesma narrativa, contudo estas
pessoas encontram-se em lugares diferentes e não têm a oportunidade de interação
com o contador e os demais ouvintes; um privilégio desfrutado por aqueles que
ouvem a contação de histórias da forma tradicional. Entretanto, se por um lado não
há a interação, por outro existe a reação – segundo Bakhtin (2000) – a compreensão
responsiva, ou seja, a fase inicial e preparatória para uma resposta seja qual for sua
forma de realização.
63
[...] O locutor postula esta compreensão responsiva ativa: o que ele espera,
não é uma compreensão passiva que, por assim dizer, apenas duplicaria
seu pensamento no espírito do outro, o que espera é uma resposta, uma
concordância, uma adesão, uma objeção, uma execução, etc. [...]
(BAKHTIN, 2000, p. 291)
Contos da Meia Noite era caracterizado pelo sintetismo e seu formato
diferenciado, o unitário, apresentando a dramatização de um conto com um único
ator que narrava histórias breves, com elementos de sincretização (o desempenho
dos atores, figurinos e adição de recursos audiovisuais), cujos objetivos, entre
outros, diz respeito ao envolvimento do ouvinte-espectador. Tais elementos
exerciam, também, funções alusivas às técnicas de “afinamento” empregadas pelos
contadores de histórias profissionais.
Apesar de seus diferenciais, qualidades e aceitação positiva do público,
Contos da Meia Noite sucumbiu à crise financeira na qual a TV Cultura está
envolvida. Embora a emissora tenha reformatado seus modelos de captação de
recursos, tal fato não parece gerar efeitos (aparentes), uma vez que praticamente
não se tem feito investimentos em produções próprias. No mais, fica patente a
submissão da programação aos sabores das mudanças na diretoria da emissora
que ocorrem a cada três anos.
Das pesquisas realizadas, ficou a impressão de que os realizadores do
Programa são muito orgulhosos de seu trabalho e dos resultados obtidos, mas a TV
Cultura não soube enxergar e valorizar o potencial da série, que caiu no mais
absoluto esquecimento, não havendo se quer menção de Contos da Meia Noite no
histórico das produções da emissora.
64
4 UMA VIAGEM PELA FICÇÃO TRANSMUTADA – ANÁLISE DOS RECURSOS
VISUAIS E SONOROS UTILIZADOS EM CONTOS DA MEIA NOITE
Este capítulo tem por objetivo fazer uma análise de conteúdo dos recursos
audiovisuais presentes no Programa. Tais recursos – diferentemente de outros
formatos televisivos – se prestam a ancorar o texto narrado e servem para enfatizar
e apoiar determinadas passagens do conto. O recorte para a realização desta
pesquisa é formado por três contos da série cujos autores são nomes de grande
relevo da Literatura Brasileira, pertencentes a épocas e períodos literários distintos:
“Cantiga de esponsais” – Machado de Assis – publicado em A Estação, no ano
de 1883;
“O besouro e a Rosa” – Mário de Andrade – de 1923, conto que faz parte da
segunda edição do livro Contos de Belazarte;
“A caçada” – Lygia Fagundes Telles – conto que integra o livro Antes do Baile
Verde de 1965.
[...] O importante, pois, é que haja algo especial na representação desta
parte da vida que faz o conto, isto é, que haja um acidente que interesse e
que ele “seja ou pareça-nos realmente um ‘caso’ considerado pela
novidade, pelo repente, pelo engraçado, ou pelo trágico”. [...] (GOTLIB,
1991, p. 50)
Há nessas obras exatamente o que Nádia Gotlib coloca como o acidente – ou
Problema, visto no capítulo 2 – que gera o interesse e traz nas três histórias a
novidade pela via da tragédia. Os protagonistas são tomados por situações que
escapam de seu controle e os levam a desencadeamentos dramáticos:
Mestre Romão – personagem principal de “Cantiga de esponsais” – não
consegue criar suas próprias composições, sequer terminar o canto esponsalício
começado logo depois que se casou; ironicamente, algo que parece
extremamente fácil para a vizinha apaixonada que inconscientemente cantarola
as notas que mestre Romão nunca conseguiu encontrar. O protagonista, já
doente, acaba morrendo de desgosto e tristeza.
65
Rosa – heroína do conto de Mário de Andrade – moça muito ingênua, tem medo
e se recusa a casar com João, um padeiro apaixonado, o “bom moço”. Mas
transforma-se totalmente após o ataque do besouro; termina a história casando-
se com o pior dos homens, Pedro Mulatão, um bêbado e cafajeste e, como o
próprio narrador conta, foi muito infeliz.
Já o protagonista de “A caçada” começa a se enveredar por caminhos
sinuosos que o levam à tênue linha entre o real e o imaginário e à controversa
questão de vidas passadas; toda a angústia que envolve o personagem culmina na
trágica descoberta: ele era a caça e foi abatido ... Revivendo este momento entre um
passado remoto e o presente, ambos se mesclam e se fundem levando o
personagem à morte.
Esta é, também, a razão pela qual os três contos foram selecionados para
fazer parte do corpus desta pesquisa. São narrativas pautadas por temas instigantes
e originais, cujos componentes principais são o mistério e a solidão. Tecidas de
forma criativa e envolvente, as três narrativas conseguem extrair da essência
humana sentimentos que falam a todas as pessoas, que suscitam em seus leitores e
ouvintes/espectadores elementos que operam e nutrem sentimentos e mitos como o
medo, o fracasso, o belo e o feio, o bom e o mau, a dor, a solidão, a tristeza, o
casamento, o desespero e a morte.
A maneira singular com que cada um destes grandiosos escritores concebeu
a trajetória comovente de seus protagonistas e suas conclusões surpreendentes
conferem às histórias características e qualidades marcantes, com os requisitos de
originalidade colocados por Edgar Allan Poe:
[...] Pero la auténtica originalidad – auténtica con relación a sus propósitos –
es aquella que, al hacer surgir las fantasías humanas, a medias formadas,
vacilantes e inexpresadas; al excitar los latidos más delicados de las
pasiones del corazón, al dar a luz algún sentimiento universal, algún instinto
en embrión, combina com el placentero efecto de una novedad aparente un
verdadero deleite egotístico. [...] (POE, 1973, p. 128-129)
Outro fator determinante para a escolha destes contos é a questão da
verossimilhança, a tragédia pessoal do protagonista de “Cantiga de esponsais”,
mestre Romão, que pode deixar a dúvida de que se tratou da história real de um
66
maestro habilidoso em reger composições alheias, mas sem a menor vocação para
criar as próprias, ou ainda, pode-se fazer a seguinte indagação: “Quem já não
conheceu um ‘mestre Romão’?”; trata-se de uma ficção perfeitamente crível. Em “O
besouro e a Rosa” permite-se imaginar uma história que pode ser a mescla de
fantasia e realidade. Teria mesmo existido uma “Rosa”, que de uma decepção
sofrida (leia-se na história de Mário de Andrade ser deflorada por um besouro!)
decidiu se entregar a um cafajeste, a um Pedro Mulatão? Já o conto “A caçada” traz
a marca da ficção em toda a sua construção, mas é de uma riqueza narrativa
imensa na qual o fantástico vai envolvendo o leitor e tornando a narrativa
completamente verossímil, realizando o que Bruner coloca sobre a especialização
da narrativa em construir ligações entre o excepcional e o comum.
Nos três contos, as trajetórias de seus personagens principais os levam a um
desfecho em que não há o famoso “happy end”. Os três protagonistas encerram
suas histórias dentro de um programa narrativo (PN), no qual estão em disjunção
com seu objeto de desejo (S O), tendo-se uma narrativa de virtualização: Mestre
Romão não consegue criar suas próprias composições, tampouco o canto
esponsalício iniciado, adoece e morre; Rosa depois de ser atacada pelo besouro
tem medo da solidão, casa-se com Pedro Mulatão e é muito infeliz; o protagonista
de “A caçada” em um percurso circular (através dos tempos e de outra vida)
descobre-se como um dos personagens da tapeçaria: é a caça – e retorna à
tapeçaria, volta a ser a caça e é abatido.
De fato, nestas histórias é o narrador que fica bem. Como visto no segundo
capítulo, Bruner fala sobre o objetivo das narrativas ser, antes de tudo, o de explicar
e tais explicações nem sempre são condescendentes com o protagonista retratado,
mas sim o narrador que sai melhor. Nos três contos o narrador relata os fatos, mas
não participa das tragédias dos protagonistas. No caso de “O besouro e a Rosa”, a
postura do narrador (na figura do ator Antônio Abujamra) é até bem irônica ao contar
as desventuras da jovem Rosa.
As características descritas acima, o horário de apresentação dos Programas
– a meia noite que traz consigo o mistério, o misticismo, o surreal – e o núcleo
temático das três narrativas (bem como da maior parte dos contos exibidos) são
extremamente oportunos aos propósitos da emissora que transmitia a série, uma
vez que a TV Cultura tem a tradição de uma constante inovação, apresentando
67
produtos diferenciados, que saem da linha de produção e das mesmices vistas nas
grandes emissoras.
Em Contos da Meia Noite, “Cantiga de Esponsais” é narrada por Lázaro
Ramos; “O besouro e a Rosa” e “A caçada”, têm como narrador o ator Antônio
Abujamra. Os três Programas foram produzidos em 2004, com direção de Eder
Santos, direção de fotografia de Evandro Rogers, seleção dos contos de Fernando
Barros Martins, efeitos sonoros e trilhas musicais de Paulo Santos e Stephen Vitiello.
A partir do corpus selecionado, este capítulo fará uma análise de alguns
aspectos da imagem em movimento e da importância da marcação do texto com
efeitos sonoros, considerando a hipótese de que tais recursos são elementos que
auxiliam na apresentação da narrativa e na transmutação dos contos, contribuindo
para que a sincretização dos recursos audiovisuais ocorra de maneira efetiva no
Programa. Tal análise será realizada por meio dos seguintes tópicos:
o texto transmutado – propõe-se a apresentar considerações no que diz respeito
aos cortes e/ou acréscimos de frases ou palavras nos contos transmutados para
a televisão (“Cantiga de esponsais, O besouro e a Rosa e A caçada”) e suas
implicações para a compreensão destes textos por parte do espectador;
Contos da Meia Noite: forma, conteúdo e expressão – trata da composição de
plano de conteúdo e expressão e como opera a percepção de efeitos visuais das
imagens em movimento dentro dos contos selecionados, por meio de alguns
conceitos ligados às técnicas de comunicação visual, de Dondis A. Donis. A
metalinguagem empregada nos Programas será considerada por meio da
semiótica sincrética, adotada por Anna Maria Balogh em seu livro Conjunções,
Disjunções e Transmutações;
a transmutação visual e os recursos empregados em Contos da Meia Noite – por
meio da decupagem clássica (decomposição das cenas em planos) serão
verificados os efeitos visuais e o emprego das câmeras nos três Programas da
série. Para tanto, busca-se entender e interpretar questões relevantes, tais como,
a imagem em movimento, a bidimensionalidade, a limitação da imagem em
quadros, enquadramento, espaço de cena, os movimentos de câmera, seu ponto
de vista e papel criador, iluminação e figurinos usados nos Programas, a partir
dos referenciais teóricos de Ismail Xavier, J. Aumont e Marcel Martin;
68
Transmutação sonora – trata de examinar os elementos sonoros que integram o
corpus desta pesquisa, tais como, trilhas incidentais, efeitos sonoros, sua
freqüência (volume), ritmo e inflexões de voz dos atores e suas intenções
expressivas para cada conto apresentado.
Este quarto capítulo, conta ainda, com informações obtidas por meio de uma
entrevista por telefone – realizada em 03 de março de 2008 – com Evandro Rogers,
um dos proprietários da produtora mineira responsável pela finalização de Contos da
Meia Noite, a Emvideo. Evandro foi sócio de Eder Santos por vinte anos e (junto
com ele) um dos idealizadores do Programa, além de assumir a direção de fotografia
da série.
Todos os componentes citados serão observados a fim de elucidar as
particularidades da linguagem televisual e as modificações ocorridas na
transposição dos contos do suporte livro para o suporte televisão. Sendo assim,
partiu-se da análise dos elementos que transmutam o texto literário para o televisual
e a utilização de várias linguagens simultaneamente (imagens, músicas, textos,
etc.). Tais elementos irão compor o plano de conteúdo e o de expressão dos textos
analisados (o significado e o significante). Posto que no plano de expressão está
presente o nível discursivo, mais concreto; já no plano de conteúdo tem-se os
elementos da enunciação, uma vez que está ligado a um plano mais abstrato.
4.1 Contos da Meia Noite: forma, conteúdo e expressão
Os elementos sincréticos utilizados em Contos da Meia Noite são
amplamente utilizados pelo cinema, TV e na realização de vídeo-clipes. Este fazer
televisual contemporâneo no qual trabalha-se a bricolagem de gêneros possui uma
função diversa das aplicações usuais em outros formatos televisivos, pois na série
estes recursos têm a finalidade de reforçar certas passagens da narrativa que
precisam ser destacadas, além de ancorar o texto narrado.
Toda mensagem é composta com o intuito de contar, expressar, inspirar e
afetar. Com esta intenção, são feitas escolhas que visam reforçar e intensificar os
69
objetivos expressivos, de modo a manter o máximo de controle sobre as respostas
(DONDIS, A. DONIS, 1997). Levando-se em conta que não há no Programa
temporalidade e espacialidade visual, traduzidas em internas e externas (neste
sentido, o Programa se aproxima e se assemelha ao teatro), o unitário se vale dos
recursos audiovisuais com estratégias de enunciação, para transmitir ao
telespectador as características de mudanças de personagens e/ou tempo e
situações dentro da narrativa, como também operar estes recursos com o intento de
reforçar e fazer alusão à história narrada, visando despertar o interesse do
espectador em uma espécie de “indicação de leitura”.
O Programa conta, ainda, com o desempenho de atores experientes que
empregam gestos, expressões faciais e corporais, além da entonação de voz que
dão o tom da narrativa exibida e servem como outro meio de prender a atenção do
público. Tais estratégias (gestual e voz) são elaboradas segundo a temática
apresentada em cada um dos contos exibidos na série (Figura 5).
Considerando que toda informação de Contos da Meia Noite (em termos de
plano de conteúdo e plano de expressão) é transmitida ao receptor-espectador da
mesma maneira – pois constituem uma força única, uma vez que visualmente a
percepção destes planos ocorre simultaneamente –, este espectador é o sujeito que
recebe a mensagem e que perceberá o Programa segundo suas interpretações, de
acordo com suas experiências de vida, repertório, estado de espírito e humor.
[...] Las estructuras no son cosas inertes ni objetos estabes. Surgen a partir de
una relación que se estabelece entre el observador y el objeto (...) Al contacto
con mi pregunta es cuando las estructuras se manifestan y se hacen sensibles
en un texto fijado hace mucho sobre la página del libro. Los diversos tipos de
lectura eligen y sacan del texto estructuras “preferenciales”. [...]
(STAROBINSKY, 2005, p.28).
Os planos de conteúdo e de expressão são componentes básicos, irredutíveis
e responsáveis pela heterogeneidade de todos os meios: a música, a poesia, a
dança e, no caso do objeto deste estudo, a prosa. O conteúdo pode ser o mesmo
para vários suportes ou formas, que deve possuir correspondência à configuração
de cada um destes suportes. Em Contos da Meia Noite, há a transposição de um
plano de conteúdo e de expressão (a palavra escrita), oriundo do suporte livro, para
uma nova forma ou suporte: a televisão, na qual se tem uma atualização destes
70
planos de conteúdo e de expressão a partir das escolhas realizadas em termos de
som, imagem, palavra (oral), luz, etc. Trata-se de estruturas narrativas que possuem
um código comum, o que justamente favorece a transposição do literário para o
televisual.
Figura 5 – Os gestos e expressões dos atores
O discurso audiovisual em Contos da Meia Noite opera com elementos que
deixam implícitas as marcas do enunciado. Nas três narrativas, as estratégias de
enunciação estão centradas no narrador, posto que esta figura é a grande detentora
“do saber” a qual lhe confere a qualidade autoral: é ele quem tudo vê, conhece todos
os personagens e todos os detalhes da trajetória dos protagonistas. É o responsável
pela produção do discurso – o sujeito da enunciação – e está projetado para fora da
instância de produção; é o narrador onisciente e onipresente, aquele que não se
confunde com o homem real, o escritor ou autor (o sujeito pragmático), está
constituído no “conceito do autor implícito, criado pela própria escrita, por um ‘ele-lá-
então’ ” (BALOGH, 2002, p. 70).
O relato de apresentação é constituído pela vinheta de abertura e pela
“cabeça” do Programa, que confere à série um caráter didático preparando o
telespectador para a história que será apresentada, trazendo uma contextualização
do conto, de seu autor e de sua obra, bem como período literário em que está
inserido (Figura 6).
Contos da Meia Noite tem por base o formato unitário e, na verdade, opera
com a própria natureza do gênero conto: unidade de tempo, lugar e ação e o foco
voltado para um elemento, personagem, acontecimento/situação e emoção. Além
disso, há um único ator para interpretar a história e a espacialização emprega um
espaço único, tópico e utópico.
71
A temporalidade é expressa somente com base no texto literário (no conto
narrado), não há a utilização de outros elementos da linguagem televisual para
compor as mudanças de tempo nas histórias. Uma vez que o discurso audiovisual
tem recursos bem mais restritos em relação à literatura para relatar as passagens e
alterações de tempo, contando apenas com as três temporalidades básicas:
passado, presente e futuro, além dos recursos de flashback e flashforward; já a
literatura opera com os tempos verbais e todas as suas nuances (BALOGH, 2002, p.
74).
O ritmo do unitário tem como orientador o próprio ritmo do texto literário,
atuando com os elementos rítmicos compostos pela marcação e entonação da voz
do ator, os efeitos sonoros e trilhas incidentais, bem como a edição do Programa e
seus efeitos visuais.
Figura 6 – Tereza Freire apresenta a cabeça do Programa
4.2 O texto transmutado
Na entrevista feita com Fernando Martins, responsável pela seleção dos
textos, foi relatado que alguns contos sofreram cortes – feitos tanto por ele
[Fernando], quanto pelo ator Antônio Abujamra – para se adequarem ao tempo
médio do Programa (entre 8 e 20 minutos). Do corpus analisado, dois contos
passaram por este processo: “O besouro e a Rosa” (Anexo B).e a “Caçada” (Anexo
C).
No conto “O besouro e a Rosa”, o de maior extensão dentre os três
analisados, Antônio Abujamra suprimiu parágrafos inteiros da narrativa, alguns deles
72
sem muito ou nenhum prejuízo ao entendimento da história. Entretanto, vale
ressaltar uma passagem que foi retirada (negligenciada?) e que pode ser
considerada relevante. Trata-se da parte na qual João fica sabendo que Rosa irá se
casar com Pedro Mulatão:
[...] Quando João soube que a Rosa ia casar teve um desespero na barriga.
Saiu tonto para espairecer. Achou companheiros e se meteu na caninha.
[...] sentado na guia da calçada [...] podre de bebedeira. [...] Ele partiu
chorando alto, falando que não tinha a culpa. Depois deitou-se no capim
duma travessa e dormiu. [...] Dor-de-cabeça, gosto ruim na boca... E a
vergonha.”
o parágrafo que descreve as mazelas de João é extremamente grande na história
e de importância igual; podendo, ao menos, ter sido consideradas algumas
passagens, posto a sua evidente relevância, uma vez que Rosa preteriu o padeiro
ao cafajeste para casar-se.
Neste conto, porém, o ator acrescenta uma frase que não faz parte do texto
original: “Pedro Mulatão era um infame, até gatuno, Deus me perdoe! Rosa não
escutou nada. [Ela queria Pedro Mulatão]. Bateu o pé.” A frase em destaque não
faz parte da obra original de Mário de Andrade, foi acrescentada ao texto para que o
ator-narrador desse maior ênfase à situação em que a protagonista irá ingressar.
Já na obra “A caçada”, o ator omite curtas passagens, algumas vezes,
apenas palavras. Em outras, para dar uma maior ênfase à narração, acrescenta
pequenos termos ao texto original, como no trecho abaixo: “– Que seta? O senhor
está vendo alguma seta? – Aquele pontinho branco ali no arco [...]”. No conto de
Lygia Fagundes Telles a palavra branco não existe, foi acrescentada por Abujamra.
Contudo, a narrativa não sofre grandes intervenções a ponto de terem sido extraídos
da história trechos importantes para a sua compreensão e/ou para o seu
desenvolvimento.
Em “Cantiga de Esponsais” – o texto mais curto deste corpus – não há
espécie alguma de alteração de palavras (cortes ou acréscimos), frases ou
parágrafos. Lázaro Ramos narra integral e originalmente o conto machadiano tal
como o escritor o criou.
73
4.3 A transmutação visual e os recursos empregados em Contos da Meia Noite
[...] O que se denomina de modo impreciso de “linguagem televisual”, nada
mais é do que um vasto amálgama das linguagens prévias do rádio, do
cinema, dos quadrinhos, ou daquelas que foram surgindo paralelamente à
TV ou junto com a TV, como a do vídeo-clip, e da computação gráfica, entre
outras. Todas elas foram incorporadas ao quotidiano da TV em sua
insaciável voracidade. [...] (BALOGH, 2005, p. 141).
Há em todos os Programas da série um cenário único com um fundo preto, o
qual facilita a aplicação das projeções, sombras, sobreposição de imagens e
texturas. Os refletores que compõem este cenário são responsáveis pelo contraste
de luz e sombra sobre os atores que narram os contos (Figura 7). Segundo Evandro
Rogers, optou-se por não produzir um cenário, mas sim trabalhar muito mais a
interpretação do ator e o uso de tecnologia. Utilizou-se apenas um fundo preto,
pensado exatamente para ser um cenário neutro e diferente a cada programa, no
qual eram usados os projetores de imagens.
Figura 7 – Cenário com fundo preto e o trabalho de iluminação, sombras e projeções
4.3.1 O papel das projeções de imagens, texturas e figurino
Evandro Rogers conta que as projeções utilizadas em Contos da Meia Noite
eram elaboradas previamente de acordo com a temática do conto e garantiam ao
Programa seu formato diferenciado e inovador. Após serem criadas, estas projeções
eram inseridas no cenário por meio de um projetor, o qual refletia a imagem de
acordo com a história apresentada.
74
As projeções utilizadas nas três histórias vão se repetir ao longo das
narrativas com a finalidade de reforçar o conteúdo do texto e, sobretudo, as
circunstâncias e/ou passagens importantes do conto, ou ainda, características do
personagem principal. Trata-se de um trabalho em computação gráfica e edição,
realizado com o objetivo de formular intervenções criativas, que gerem o efeito
esperado na sua funcionalidade a partir da idéia central da obra realizada
(MACHADO, 1995).
Estes efeitos exercem uma função metafórica na imagem. A inserção de
projeções, texturas e fusões estão para a imagem em Contos da Meia Noite, assim
como a metáfora está para o texto. Em outras palavras, não exprime o sentido literal
das coisas, mas o enriquece, cria associações de idéias e simbologias.
Em “Cantiga de Esponsais” as projeções utilizadas são de imagens de
partituras musicais e violoncelo, que durante todo o Programa entram e saem, se
sobrepõem à imagem do ator, mixam-se e fundem-se, marcando trechos do conto e
sublinhando a temática da história (Figura 8).
Figura 8 – "Cantiga de esponsais": projeções que marcam a temática do conto
“O besouro e a Rosa” é um Programa no qual as projeções e fusões de
imagens são empregadas fartamente para pontuar a trajetória de Rosa, moça
ingênua e infantil, que tem sua vida transformada após o ataque do “bicho maligno”.
A imagem de flores acompanha todo o transcorrer da narrativa, numa clara
referência à protagonista e, no momento em que o besouro entra na história: “Um
besouro entrou. Zzz, zzz, zzzuuuuuummmm, pá.” – aparece o inseto sobrevoando
as flores que são projetadas ao longo do conto (Figura 9).
75
Figura 9 – Projeções de flores e o besouro pontuam a narrativa de Mário de Andrade
A narrativa de Lygia Fagundes Telles, “A caçada”, é marcada por efeitos
visuais mais discretos se comparados aos outros dois Programas que fazem parte
deste corpus. A ênfase da narrativa fica por conta do trabalho da câmera (que será
detalhado mais adiante neste capítulo) e da expressividade do ator Antônio
Abujamra. A história do homem que se encanta pela imagem de uma caçada, na
velha tapeçaria, em uma loja de antiguidades traz os efeitos visuais sutis, porém de
extrema pertinência, como é o caso das projeções de traças voando que marcam o
início do conto: “A loja de antiguidades tinha o cheiro de arca de sacristia com seus
panos embolorados e livros comidos de traça.” – e da textura que dá o ponto de
vista de quem está enxergando de dentro da tapeçaria para fora (vendo a loja de
antiguidades). Esta textura marcará várias passagens da narrativa, reforçando o
sentimento do protagonista de que faz parte da imagem, até o momento em que é
totalmente “sugado” por ela (Figura 10).
Figura 10 – Projeções de traça: parte circundada
Considerando as projeções e fusões de imagens nos três contos, podemos
classificá-las por algumas das estratégias de comunicação apontadas por Donis A.
Dondis nas quais estabelece que a percepção das formas está vinculada a uma
organização visual em que a imagem se impõe à percepção humana por sua
configuração mais conhecida diante das condições possíveis.
76
Dentro dessa organização proposta por Dondis, têm-se nos três Programas a
presença da instabilidade, uma vez que as projeções concorrem para uma
formulação visual extremamente inquietante e provocadora, bem como a
irregularidade, que busca dar ênfase ao insólito e ao inesperado. Há, ainda, a
fragmentação, na qual existe uma decomposição dos elementos visuais em partes
separadas, conservando sua individualidade, mas que mantém uma relação entre si.
As projeções caracterizam-se, também, pela espontaneidade, cuja técnica traz
emoção, impulsividade e liberdade. Além disso, perceber-se a existência da ênfase,
que procura realçar apenas um elemento contra um fundo em que predomina a
uniformidade. Pode-se considerar, também, que as fusões de imagens são
responsáveis por denotar, nas três narrativas, os estados passionais dos
personagens.
No tocante ao figurino, em “Cantiga de esponsais” o ator Lázaro Ramos
traveste-se de fraque (como um maestro à época de Machado de Assis, no século
XIX) e com uma batuta em punho conta a história de mestre Romão, um regente
sem vocação para criar as suas próprias composições. Os contos “O besouro e a
Rosa” e “A caçada” fazem parte da primeira fase de Contos da Meia Noite – na qual
Antônio Abujamra narra dezenove contos – nesta ocasião ainda não existia a
composição de figurinos para o ator (conforme relatado no capítulo 3), sendo que o
ator traja em todos os contos calça e camisa, roupas que de certa forma são
neutras; embora não aludam à história narrada, também não interferem na atenção
do espectador para os contos apresentados. Contudo, há uma atenção do ator no
que diz respeito à cor das camisas usadas nos dois Programas. No conto “O
besouro e a Rosa”, Abujamra traja uma camisa de mangas compridas (arregaçadas)
num tom de rosa; uma menção à protagonista do conto de Mário de Andrade. Já no
conto de Lygia Fagundes Telles, “A caçada”, o ator veste calça com suspensório e
uma camisa (igualmente de mangas compridas e arregaçadas) na cor verde-musgo,
uma das principais matizes utilizadas na imagem de uma floresta (Figura 11).
77
Figura 11 – O figurino dos atores
4.3.2 A iluminação e o emprego da câmera
No que tange à iluminação, os Programas operam com a intensidade, a
temperatura e a distância – fatores que irão determinar a cor da luz – e também com
mudanças na variação desta intensidade e na direção da fonte de luz, que conferem
os efeitos de iluminação. Este trabalho é elaborado de modo a compor uma
magnificação dos narradores. O jogo de iluminação aplicado nos três contos atua
em consonância com a distância focal, que opera a quantidade de luz que penetra
no diafragma da câmera e também com a quantidade de luz emitida pelo objeto, no
caso, os atores em cena.
Na televisão, diferentemente do cinema, o primeiro plano é o mais utilizado,
uma vez que a insuficiência de profundidade de campo não possibilita o
aproveitamento de quadros abertos e o emprego de paisagens amplas, propiciando
à TV um recorte mais fragmentado e fechado dos planos, baseado no modelo do
primeiro plano. Além disso, é preciso limitar o número de personagens em uma
cena, trabalhar com espaços pequenos e o emprego dos elementos que fazem parte
da composição dos cenários necessitam de parcimônia. Neste sentido, Contos da
Meia Noite se privilegia destas “desvantagens” da televisão em relação ao cinema,
sabendo aproveitar a presença de um único ator em cena e o cenário minimalista
adotado pelos idealizadores da série bem como os planos de câmera: close-up
(primeiríssimo plano), o primeiro plano, o plano médio e o plano americano.
Evandro Rogers revelou que, em Contos da Meia Noite eram utilizadas três
câmeras, cada qual tinha o papel de mostrar um ponto de vista diferente: o do
narrador (escritor) e dos diferentes personagens presentes em cada história, bem
78
como o diálogo entre estes personagens. Havia um trabalho de direção para que os
atores interagissem com as câmeras, todo o tempo, com o objetivo de expressar
estes pontos de vista.
Nos três Programas há mudanças rápidas e constantes de planos e nos
movimentos das três câmeras que vão se alternando para marcar as falas dos
personagens e as do narrador, como também, para dar o tom da história e sublinhar
passagens que necessitam de ênfase (Figura 12). Observa-se, neste trabalho de
câmera, um jogo com a terceira dimensão do espaço para a obtenção de um efeito
dramático. Estas alterações constantes (presentes nos três Programas analisados)
modificam a todo instante o ponto de vista do espectador sobre a cena e, segundo
Martin (2003), exercem um papel semelhante ao da montagem (em se tratando de
cinema), além de ser um dos elementos essenciais que confere estilo à obra.
[...] Quando o homem intervém, coloca-se, por menor que seja, o problema
daquilo que os estudiosos chamam de equação pessoal do observador, ou
seja, a visão particular de cada um, suas deformações e suas
interpretações, mesmo que inconscientes. Com muito mais razão, quando o
diretor pretende fazer uma obra de arte, sua influência sobre a coisa filmada
é determinante e, através dele, o papel criador da câmera (...) é
fundamental. [...] (MARTIN, 2003, p. 24).
Figura 12 – Mudanças constantes nos planos e movimentos de câmera marcam os diferentes
personagens nos três contos
79
[...] A escolha de cada plano é condicionada pela clareza necessária à
narrativa: deve haver adequação entre o tamanho do plano e seu conteúdo
material [...] e seu conteúdo dramático. A maior parte dos dois tipos de
planos não tem outra finalidade senão a comodidade da percepção e a
clareza da narrativa. [...] (MARTIN, 2003, p. 37).
Em Cantiga de Esponsais”, “O besouro e a Rosa” e “A caçada” há um campo
único, que se passa em um só quadro. Aumont (1995) define campo como a porção
do espaço imaginário que está contida no quadro, que limita a extensão da imagem
e dá a impressão de que captamos uma porção do espaço imaginário. Como espaço
ou cena, o autor designa o campo e o fora de campo que pertencem a um mesmo
espaço imaginário, perfeitamente homogêneo.
Há várias cenas nos três Programas nas quais são utilizadas o primeiro plano
do rosto humano. Este recurso é mais adequado para expressar o poder de
significação psicológico e dramático do conto apresentado. O primeiro plano do rosto
é, neste caso, o ponto de vista do espectador por intermédio da câmera, é utilizado,
também, um enquadramento anormal, no qual existe o objetivo de passar impressão
de desconforto e angústia diante do fato narrado. E, como assinala Martin, (2003, p.
39): “[...] a câmera sabe bem esquadrinhar as fisionomias, lendo nelas os dramas
mais íntimos [...]”.
Em determinadas cenas dos três Programas temos o que Aumont chama de
flou artístico”, uma perda voluntária do foco em parte do quadro, com finalidades
expressivas, como mostra a seqüência de imagens abaixo (Figura 13):
Figura 13 – A perda voluntária do foco expressa dramaticidade às cenas
[...] Isto quer dizer que a programação de tevê, mesmo a de caráter
narrativo, não pode ser linear, progressiva, com efeitos de continuidade
rigidamente amarrados como no cinema, se não o espectador perderá o fio
da meada cada vez que a sua atenção se desviar da pequena tela. Pelo
contrário, a televisão logra melhores resultados quando sua programação é
do tipo recorrente, circular, reiterando idéias e sensações a cada novo
80
plano, ou então quando ela assume a dispersão, estruturando sua
programação em painéis fragmentários e híbridos [...] (MACHADO, 2000, p.
52)
Partindo-se para as especificidades de cada um dos três Programas,
elaborou-se a observação dos planos, movimentos e enquadramentos de câmera,
bem como os ângulos de filmagem, além das fusões e projeções de imagens e as
intenções expressivas de cada um destes componentes dentro das três narrativas:
4.3.3 “Cantiga de esponsais”
Os efeitos visuais empregados no conto “Cantiga de esponsais” operam com
o jogo de luzes (branca, verde e vermelha), as fusões de imagens, as aplicações de
projeções e texturas, além dos movimentos de câmera variados.
O conto inicia com o ator entrando em cena – plano médio – como se fosse o
regente de uma orquestra: “Imagine a leitora que em 1813, na Igreja do Carmo,
ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que eram em todo o recreio público e
toda a arte musical” e, em seguida, o plano de conjunto (ou médio) alterna-se com
closes do narrador, que variam entre o lado esquerdo e direito, conferindo
dinamismo à cena (Figura 14).
Figura 14 – Variações de câmera dão dinamismo à narrativa
81
Em termos de enquadramento, existe uma alteração no ponto de vista normal
do espectador, quando a imagem de Lázaro Ramos se alterna (Figura 15) para
marcar as mudanças nas falas dos personagens (mestre Romão, pai José, o
boticário e o médico) havendo closes e plano americano alternados entre direita e
esquerda, demonstrando a mudança destes personagens no momento de sua fala:
[..] – Pai José, disse ele ao entrar, sinto-me hoje adoentado. [...]
[...] – Sinhô comeu alguma coisa que fez mal... [...]
Figura 15 – Mudanças no ponto de vista da câmera mostram os diferentes personagens
É importante ressaltar que em várias dessas cenas há, também, o jogo com
as projeções de partituras e violoncelo, texturas e fusões de imagens, marcando
partes do conto em que o conflito do protagonista é evidente, sugerindo o mesmo
sentimento ao espectador (Figura 16):
“[...] Ah! se mestre Romão pudesse seria um grande compositor. Parece
que há duas sortes de vocação, as que têm língua e as que não têm. [...]”
82
Figura 16 – Fusões, textura e projeções reforçam o conflito do protagonista
Tem-se, ainda, quando da fala do narrador, um movimento de câmera – o
traveling, procurando dar o ponto de vista de que espectador está na “platéia da
orquestra”. Este afastamento da câmera para trás dá a impressão de solidão,
desânimo impotência e, também, exprime o desfecho da narrativa, a morte.
Sentimentos que tomam conta de mestre Romão (Figura 17):
[...] Nada, não passava adiante. E, contudo, ele sabia música como gente.
[...]
[...] Mestre Romão, ofegante da moléstia e de impaciência, tornava ao
cravo, mas a vista do casal lhe suprira a inspiração, e as notas seguintes
não soavam. [...]
Figura 17 – O emprego do travelling para expressar os sentimentos de mestre Romão
No que diz respeito ao emprego das luzes, em certas passagens deste conto
é operado de modo a dar impressão de uma apresentação musical (no começo do
Programa, como visto na Figura 14). Há a presença de uma luz branca ao fundo do
cenário que ocupa o canto esquerdo do quadro, conferindo às cenas uma atmosfera
83
de sobriedade. O trabalho de iluminação conta, ainda, com luzes verdes e
avermelhadas (variação de cores quentes e frias), como o ir/vir da narrativa, tal
como o protagonista que busca, em vão, inspiração para compor (Figura 18).
Figura 18 – O trabalho de iluminação em "Cantiga de esponsais"
Em certas passagens do conto, existe ênfase nas imagens que mostram as
mãos do ator e todo o seu gestual; em outras palavras, mostra apenas um detalhe
significativo ou simbólico no enquadramento (MARTIN, 2003, p. 35) (Figura 19),
reforçando o mote da narrativa: o regente mestre Romão e seu conflito com a
criação musical.
Figura 19 – Ênfase no gestual do ator
84
4.3.4 “O besouro e a Rosa”
Esta produção é marcada por um forte trabalho de aplicação de projeções
que são constantes durante todo o Programa. Há o emprego da iluminação gerando
os contrastes de sombra e luz ao fundo do cenário e também sobre o rosto de
Antônio Abujamra, que marcam os momentos de suspense e tensão da narrativa,
além da dinâmica das câmeras que alternam planos e movimentos que irão dar o
tom dramático à história apresentada.
O conto inicia com o Abujamra em plano americano com os olhos fechados,
projeções de flores sobre o ator (uma clara alusão à protagonista, Rosa) e uma luz
branca atrás de sua cabeça, dando “a deixa” para o narrador começar história. Na
seqüência, passa para um close do lado direito do ator com a fusão da imagem
anterior e as projeções de flores: a história já está em andamento (Figura 20).
Figura 20 – Cenas iniciais de "O besouro e a Rosa"
Na passagem do conto: “Rosa viera para a companhia delas aos sete anos
quando lhe morreu a mãe. Morreu ou deu a filha que é a mesma coisa que morrer.”
– há uma pequena distorção e um aumento na imagem do rosto do narrador. A
ênfase neste trecho da narrativa dá pistas ao espectador de um dos principais
fatores que marca a personalidade de Rosa. Os planos de câmera vão se alternando
à medida que o narrador descreve a protagonista com plano americano, projeções
de luz sobre o ator, passando para um plano mais descritivo (plano médio) e o plano
geral, deixando à mostra o cenário (Figura 21).
85
Figura 21 – Alternâncias de planos, luz e projeções
O olhar do ator alterna-se para as três câmeras utilizadas e, ao longo da
narrativa vai-se operando com esta alternância como se o narrador estivesse
voltando o seu olhar para todos os “ouvintes que estão à sua volta em torno da
fogueira”, até o momento em que Antônio Abujamra olha para a câmera e busca a
cumplicidade do espectador, que é também integrante desta “roda ao pé da
fogueira” (Figura 22).
Figura 22 – As três câmeras pontuam o olhar do ator para os "ouvintes da história"
Neste Programa há o emprego constante do travelling para exprimir de modo
subjetivo a projeção do olhar – em certas passagens, de um dos personagens, em
outras, a do próprio espectador – conferindo às cenas o movimento de atenção e de
tensão mental (Figura 23).
86
Figura 23 – Uso do travelling para dar tensão à cena
Observa-se que as cenas nas quais há a aplicação de textura (Figura 24)
correspondem a partes do texto em que um dos personagens está envolvido por
sentimentos ou sensações ilusórios:
[...] Quando descobriu que não podia mais viver sem a Rosa, confessou
tudo pro pai.
– Pois casa, filho. É rapariga boa, não é?
– É, meu pai.
– Rosa!
– Vem cá!
– Já vou, sim senhora! [...]
Figura 24 – O uso da textura denota a ilusão e o engano dos personagens
As câmeras acompanham o gestual de Abujamra (Figura 25), expondo seu
significado simbólico, pontuando bem certos trechos do conto. Um deles é a
descrição de Rosa, segundo o olhar de João. Outro momento é o do ataque do
besouro:
[...] Foi então que João pôs reparo na mudança da Rosa. Estava outra.
Inteiramente mulher com pernas bem delineadas e dois seios agudos se
contando na lisura da blusa que nem rubi de anel dentro da luva. [...]
87
[...] O besouro passeava lentamente. Encontrou o orifício da camisola e
avançava pelo vale ardente entre morros. [...] Com o movimento o besouro
se despregara da epiderme lisa e tombara na barriga dela, zzz, tzzz... etc.
[...]
Figura 25 – As câmeras acompanham os gestos de Abujamra
Nos diálogos há um jogo com enquadramentos (Figura 26) no qual se
pretende operar a alteração do ponto de vista do espectador, utilizando o que Ismail
Xavier (1984) denomina de campo/contra-campo, alternando as posições das
câmeras com o intuito de assumir o ponto de vista do narrador e dos personagens
que estão dialogando, nas seguintes passagens do conto:
[...] Mas daí em diante não jogou mais os pães no passeio. Esperava que a
Rosa viesse buscá-los da mão dele.
– Bom dia!
– Bom dia. Por que não atirou?
– É... Pode sujar.
– Até amanhã.
– Até amanhã, Rosa!”
– Rosa, olhe aqui. O moço veio pedir você em casamento.
– Pedir o quê!...
– O moço diz que quer casar com você. [...]
Figura 26 – Alternância das câmeras dá o ponto de vista do narrador e dos personagens
88
Nos momentos dramáticos e/ou de maior tensão da narrativa, observa-se o
uso da câmera subjetiva como uma forma de assumir o olhar sobre o personagem,
“observando os acontecimentos com os seus olhos” (XAVIER, 1984, p. 26), os
movimentos denotam a tensão mental de Rosa; além da iluminação e um amplo uso
de fusões de imagens (Figura 27) que vão se sobrepondo umas às outras,
pontuando e acompanhando a tensão sugerida pelo texto:
[...] Dona Ana e dona Carlotinha vieram encontrá-la assim espasmódica
com a espuma escorrendo do canto da boca. [...] Rosa não falava se
contorcendo. [...] orientada pelo gesto que a pobre repetia descobriu o
bicho. Arrancou-o com aspereza [...] Ia sossegando sossegando... de
repente voltava tudo era tal-e-qual ataque [...].
Figura 27 – Uso abundante de fusões e a iluminação marcam os momentos de tensão
A partir da mudança de Rosa, após ser atacada pelo besouro, o ritmo das
fusões de imagens e das mudanças de câmera são impostas pelo clima de mistério
que domina esta parte da narrativa (Figura 28):
[...] Agora caminha mais pausado. Traz uma serenidade nunca vista ainda
na comissura dos lábios. [...] Com efeito Rosa mudou. É outra Rosa. É uma
Rosa aberta. [...]. Dona Carlotinha tem medo de lhe perguntar si passou
bem a noite. Dona Ana tem medo de lhe aconselhar que descanse mais. [...]
Figura 28 – A mudança de Rosa: um clima de mistério às cenas
89
Já quando Pedro Mulatão entra na história, o ritmo das imagens e dos
movimentos de câmera denotam o tom de gravidade ao fato narrado e a figura do
narrador (Antônio Abujamra) gira no vídeo em semicírculos, em um emprego não
realista da câmera com o intuito de expressar uma espécie de vertigem: “Isso para
ele [Pedro Mulatão] é indiferente: casar ou não casar... Irá pedir.”
A interpretação do ator tem uma função primordial nas passagens finais do
texto. Como narrador onisciente sabe do destino de Rosa e no trecho do conto em
que fala em um tom irônico, beirando o cinismo: “Ela queria Pedro Mulatão.”
Olha
para a câmera e pisca, buscando o olhar do espectador (Figura 29).
Figura 29 – Abujamra busca a cumplicidade do espectador
O narrador encerra o conto sem os óculos, abaixando a vista e a cabeça,
expressando bem o final da protagonista: “Rosa foi muito infeliz.” (Figura 30).
Figura 30 – O encerramento do conto
Esta frase não consta no texto original de Mário de Andrade.
90
4.3.5 “A caçada”
A narrativa de Lygia Fagundes Telles tem efeitos visuais mais comedidos (se
comparado aos outros dois contos aqui analisados), possui um destaque maior na
interpretação de Antônio Abujamra e no emprego das câmeras. Os gestos do ator,
bem como os planos, movimentos e ângulos de câmera, além da iluminação,
demonstram que, neste Programa, optou-se por uma produção e atuação mais
“artesanais”, lembrando a figura tradicional do contador de histórias.
O conto inicia com os efeitos de textura e planos de câmera a partir do ponto
de vista do espectador como se estivesse dentro da tapeçaria, com projeções de
traças. Este ponto de vista vai se alterando à medida que os movimentos e os
planos de câmera vão mudando, se aproximando (com a saída da textura) para
conferir à cena um realce dramático sobre o papel do narrador (Figura 31):
[...] A loja de antiguidades tinha o cheiro de uma arca de sacristia com seus
panos embolorados e livros comidos de traça. Com as pontas dos dedos, o
homem tocou numa pilha de quadros. Uma mariposa levantou vôo e foi
chocar-se contra uma imagem de mãos decepadas. [...]
Figura 31 – Ponto de vista de dentro da tapeçaria
Nas cenas em que o protagonista dialoga com a dona da loja, Abujamra
utiliza de gestos e expressões para marcar os diferentes papéis e a câmera opera
com travelling, close e primeiro plano (Figura 32) para representar os diferentes
pontos de vista: narrador, protagonista e a velha dona da loja:
91
[...] – Bonita imagem – ele disse.
A velha tirou um grampo do coque e limpou a unha do polegar. Tornou a
enfiar o grampo no cabelo.
– É um São Francisco.
Ele então voltou-se lentamente para a tapeçaria que tomava toda a parede
do fundo da loja. [...]
[...] – Já vi que o senhor se interessa mesmo é por isso. [...]
Figura 32 – Gestos e planos de câmera ilustram o diálogo entre os dois personagens
No momento em que o protagonista olha para a tapeçaria o ângulo da câmera
opera com um inclinamento em plongée (Figura 33), o qual expressa a impressão do
personagem em relação à imagem da caçada, sugerindo uma inquietação, um
desequilíbrio. Já os planos, alternam-se para pontuar as diferentes falas dos
personagens e narrador:
[...] – O homem estendeu a mão até a tapeçaria, mas não chegou a tocá-la.
– Parece que [hoje] está mais nítida...
– Nítida? – repetiu a velha, pondo os óculos.
– As cores estão mais vivas. A senhora passou alguma coisa nela? [...]
Figura 33 – Inclinamento da câmera demonstra a inquietação do protagonista
[...] – O homem estava tão pálido e perplexo quanto a imagem.
– Não passei nada, imagine... Por que o senhor pergunta?
– Notei uma diferença.
92
– Não, não passei nada, essa tapeçaria não agüenta a mais leve escova, o
senhor não vê? [...]
Esta seqüência da narrativa atua com planos de câmera voltados para o
primeiro e primeiríssimo planos do rosto de Abujamra, procurando dar um poder de
significação psicológico e dramático a este trecho do conto, além de repetir as
inclinações com o intuito de tornar o espectador sensível ao mal-estar do
protagonista. Quanto à iluminação, ao longo do Programa há um jogo constante de
luz e sombra que auxiliam na atmosfera de mistério e tensão que a história traz
(Figura 34).
Figura 34 – Primeiro e primeiríssimo planos e a iluminação: atmosfera de suspense
Os gestos e expressões marcantes de Antônio Abujamra pontuam a
descrição da tapeçaria, cujo trabalho é estabelecido pela alternância de câmeras,
sugerindo que o “contador fala aos vários ouvintes à sua volta” (Figura 35).
[...] Era uma caçada. No primeiro plano, estava o caçador de arco retesado,
apontando para uma touceira espessa. Num plano mais profundo, o
segundo caçador espreitava por entre as árvores do bosque [...]
Figura 35 – Expressões e gestos do ator para descrever a tapeçaria
[...] – Parece que hoje tudo está mais próximo – disse o homem em voz
baixa. – É como se... Mas não está diferente?
A velha firmou mais o olhar. Tirou os óculos e voltou a pô-los.
– Não vejo diferença nenhuma.
– Ontem não se podia ver se ele tinha ou não disparado a seta.
– Que seta? O senhor está vendo alguma seta? [...]
93
Esta passagem da narrativa traz de volta o efeito de textura com o travelling
que marca o ponto de vista de dentro da tapeçaria, porém um ponto de vista mais
próximo do que o das imagens anteriores (a imagem está cada vez mais nítida para
o protagonista), o emprego do enquadramento inclinado para as falas do herói e as
mudanças de plano mais rápidas sublinham o momento de tensão e inquietação do
personagem (Figura 36).
Figura 36 – Momento de inquietação em "A caçada"
A parte do conto em que o protagonista tem certeza de que a imagem da
caçada lhe é familiar: “Conhecia esse bosque, esse caçador, esse céu – conhecia
tudo tão bem, mas tão bem! Quase sentia nas narinas o perfume dos eucaliptos [...]”
– é caracterizada por um trabalho com alternância dos planos de câmera e travelling
e com a presença de fusão de imagens do ator em algumas cenas, conferindo um
tom de suspense e tensão à narrativa (Figura 37):
[...] E por que tudo parecia mais nítido do que na véspera, por que as cores
estavam mais fortes apesar da penumbra? Por que o fascínio que se
desprendia da paisagem vinha assim vigoroso, rejuvenescido? [...]
Figura 37 – Mudanças de plano e projeções pontuam o trecho de tensão do conto
[...] Saiu de cabeça baixa, as mãos cerradas no fundo dos bolsos. [...]
Sentiu o corpo moído, as pálpebras pesadas. [...] Levantou a gola do paletó.
Era real esse frio? Ou a lembrança da tapeçaria? ‘Que loucura!... E não
estou louco’ [...].
94
Observa-se, neste trecho da narrativa, o contraponto de ritmos entre a
entonação do narrador, os acontecimentos ocorridos no texto e os movimentos de
câmera. Uma vez que o fato descrito no texto [escrito] é o de extrema tensão e
angústia do protagonista; o narrador (Antônio Abujamra) oscila sua entonação entre
a tensão e a calma; já os movimentos de câmera são leves, com mudanças entre
tomadas do lado direito, esquerdo e frente, com o uso de closes (conferindo um
realce dramático ao narrador), primeiros planos e ênfase nos gestos do ator (Figura
38).
Figura 38 – Trabalho de alteração das três câmeras e ênfase nos gestos de Abujamra
Quando o narrador descreve o sofrimento do herói ao se deitar tomado pelas
sensações daquela tapeçaria: “Quando chegou em casa, atirou-se de bruços na
cama e ficou de olhos escancarados, fundidos na escuridão.” – há um travelling para
traz com uma abertura do cenário, no qual Abujamra é focalizado do lado direito e a
luz fica abaixo do lado oposto do ator (esquerdo). Tal movimento expressa a
impressão de solidão e impotência do personagem diante da situação. A cena
posterior traz uma aproximação da câmera, passando do plano geral para o
americano, seguindo-se de alternações constantes de planos entre as três câmeras
utilizadas (Figura 39).
Figura 39 – Aproximação e alterações dos planos de câmera
95
O protagonista volta à loja de antiguidades na manhã seguinte e no seu
diálogo com a velha – dona da loja – há uma definição clara dos pontos de vista
destes personagens e do narrador por meio das câmeras e dos planos utilizados,
bem como o travelling com um discreto movimento circular na câmera para pontuar
a fala do personagem principal e exprimir a sensação de vertigem deste
personagem (Figura 40):
[...] Encontrou a velha na porta da loja. Sorriu irônica:
– Hoje o senhor madrugou.
– A senhora deve estar estranhando, mas...
– Eu já não estranho mais nada, moço. Pode entrar. [...]
Figura 40 – O trabalho de câmera traduz os sentimentos do protagonista
A narrativa tem o seu ritmo desacelerado no momento em que o protagonista
adentra a loja:
[...] Parou. Dilatou as narinas. E aquele cheiro de folhagem e terra, de onde
vinha aquele cheiro? E porque a loja foi ficando embaçada, lá longe?
Imensa, real só a tapeçaria a se arrastar sorrateiramente pelo chão, pelo
teto, engolindo tudo com suas manchas esverdinhadas.[...]
Esta parte do conto é extremamente descritiva e sinestésica, caracterizada
por um ar enigmático que é elucidado pelos movimentos de câmera (que
acompanham o gestual do narrador) e pelos enquadramentos, além de discretas
fusões de imagens, que se seguem no trecho em que o personagem entra na
tapeçaria:
96
[...] Seus dedos afundaram por entre os galhos e resvalaram pelo tronco de
uma árvore [...]: penetrara na tapeçaria [...]
– chegando ao clímax do conto e, conseqüentemente, na aceleração do ritmo da
narrativa:
“Era o caçador ou a caça? Não importava, não importava sabia apenas que
tinha que prosseguir [...] caçando ou sendo caçado. ‘Não... ’ – gemeu, de
joelhos. Tentou ainda agarrar-se à tapeçaria. E rolou encolhido, as mãos
apertando o coração. [...]
É pautado pelo o emprego da textura (agora, quem vê de dentro da tapeçaria
para a loja é o protagonista), pelos gestuais e expressões faciais marcantes de
Antônio Abujamra e pela utilização de fusões de imagens e mudanças de plano que
se alternam entre close, primeiro plano e plano americano (Figura 41).
Figura 41 – Clímax do conto: gestos fortes e o uso de fusões e textura
4.4 Transmutação sonora
O som em um produto audiovisual (cinema, televisão, videoclipe, filme
publicitário, etc.), pode ser classificado em três categorias: efeitos sonoros, música e
fala.
97
Estes três componentes podem ser empregados em várias combinações. Em
Contos da Meia Noite há a presença destas três categorias, na qual são utilizados
os sons formais – aqueles que são separados de suas fontes, normalmente atuam
em contraste com a imagem e, algumas vezes, dissociado do seu significado
original.
Os efeitos sonoros, cuja função primordial é a de criar uma atmosfera à cena,
é também uma rica fonte de significados que operam com a imaginação do receptor.
O volume e o tempo de duração de um dado efeito sonoro são responsáveis por
reações determinadas no espectador.
O Programa trabalha com estratégias que alteram o volume (freqüência) do
som, tanto das trilhas, quanto dos efeitos sonoros. A alta freqüência tem o intento de
criar seqüências de suspense – particularmente antes ou durante o clímax. As
baixas freqüências sonoras – intensas e completas, porém menos tensas – são
usadas para enfatizar dignidade, solenidade às cenas/passagens do conto; também
são empregadas para denotar mistério e ansiedade. Normalmente, o suspense inicia
com uma freqüência mais baixa que gradualmente vai aumentando à medida que a
narrativa avança para o clímax.
A sonoridade apresentada nos três contos é elaborada por um teclado com
sintetizador que simula os sons dos instrumentos musicais das trilhas incidentais e
dos efeitos sonoros, como os sons do cravo e violoncelo, em “Cantigas de
esponsais”; a trilha elaborada com piano, baixo acústico, violoncelo e outros
instrumentos menos definidos na obra “O besouro e a Rosa” e os efeitos sonoros de
corrida na floresta e tempestade e o sons de harpa e piano no conto “A caçada”.
Constata-se que tais efeitos e/ou trilhas são responsáveis pela demarcação
do ritmo e por intensificar alguns trechos da narrativa, contudo sem que tais recursos
se sobreponham ao texto narrado e à voz dos atores.
4.4.1 Voz: entonação e força
98
Nas três histórias que compõem este estudo, verificou-se as intenções
expressivas presentes nas entonações de voz, nos destaques dados a determinadas
partes do conto, à marcação dos atores no que se refere às mudanças de fala dos
vários personagens dentro da narrativa e também da fala do narrador (onipresente e
onisciente).
No conto “Cantiga de esponsais”, o ator Lázaro Ramos assume tons de voz
diferenciados para marcar as falas do narrador e, dentro destas falas, inflexões que
variam de acordo com o momento da narrativa. Como no início da história, o ator
usa de um tom solene para apresentar o protagonista:
[...] Chama-se Romão Pires; terá sessenta anos, não menos, nasceu no
Valongo, ou por esses lados. É bom músico e bom homem; todos os
músicos gostam dele. Mestre Romão é nome familiar, e dizer familiar e
público era a mesma coisa em tal matéria e naquele tempo. [...]
Ou ainda, quando o narrador relata a ausência de inspiração do mestre em
compor o canto esponsalício inacabado:
[...] Impossível! nenhuma inspiração. Não exigia uma peça profundamente
original, mas enfim alguma coisa que não fosse de outro [...] Voltava ao
princípio, repetia as notas, [...] lembrava-se da mulher [...]
– o tom vai da agitação em um crescente até chegar ao desespero:
[...] Mestre Romão, ofegante da moléstia e de impaciência, tomava o cravo;
mas a vista do casal não lhe suprira a inspiração, e as notas seguintes não
soavam. [...]
Há também entonações de voz alteradas para marcar a fala dos
personagens:
[...] – Mestre Romão lá vem o pai José, disse a vizinha.
– Eh! Eh! Adeus, sinhá, até logo. [...]
99
O ator encerra o conto em tom sóbrio e triste para finalizar – não só a
narrativa – como a vida do protagonista: “O mestre ouviu-a com tristeza, abanou a
cabeça e, à noite, expirou.”
Em “O besouro e a Rosa”, Antônio Abujamra elabora a mesma técnica, porém
o tom do narrador, na maior parte do tempo, é jocoso, chegando, em certos
momentos, à ironia. Possivelmente para marcar a própria ironia que há por trás da
história da jovem molestada por um besouro. Um exemplo é o trecho em que João
se encanta pela protagonista: “João reparou apenas que tinha um malestar por
dentro e concluiu que o malestar vinha da Rosa.”
No conto há a presença de diálogos entre os personagens e o ator se vale de
sua grande experiência (principalmente no teatro) para marcar bem as falas de cada
personagem e suas reações. Como é o caso do trecho em que João (já interessado
pela protagonista) conversa com Rosa:
[...] – Bom-dia!
– Bom-dia. Por que não atirou?
– É... pode sujar.
– Até amanhã.
– Até amanhã, Rosa! [...]
O momento em que Rosa é atacada pelo besouro, Abujamra narra o fato de
maneira acelerada, conferindo uma mistura de desespero e drama a esta passagem
do conto:
[...] Dona Ana e dona Carlotinha vieram encontrá-la assim espasmódica
com a espuma escorrendo do canto da boca. [...]. Rosa não falava se
contorcendo. Porém dona Ana orientada pelo gesto que a pobre repetia
descobriu o bicho. Arrancou-o com aspereza [...]. E foi uma dificuldade
acalmá-la... [...]
Deste ponto em diante (até o seu desfecho da narrativa), o ator assume um
tom que se alterna entre o soturno e o irônico para marcar a mudança no
comportamento de Rosa e a sua desesperada vontade de se casar com Pedro
Mulatão:
100
[...] As informações são as que a gente imagina, péssimas. [...]. Rosa chora.
[...]. Dona Ana e dona Carlotinha cedem com a morte na alma. [...] As duas
solteironas choraram muito quando ela partiu casada e vitoriosa [...]. Rosa
foi muito infeliz. [...]
No terceiro conto também narrado por Antônio Abujamra, “A caçada”,
percebe-se que o ator compõe um narrador mais próximo à figura do contador de
histórias, empregando o poder da oralidade voltado para a contação tradicional, com
menos ênfase na dramatização – como ocorre nos outros dois contos analisados –
conferindo um maior vigor ao texto narrado e a possibilidade de menos dispersão,
pois – além do destaque ao texto – há um uso mais parcimonioso dos recursos
visuais.
Este Programa tem suas passagens marcadas pelas mudanças de inflexão
de voz do ator para registrar o narrador que relata o drama do protagonista: “Era
uma caçada. No primeiro plano, estava o caçador de arco retesado, apontando para
uma touceira espessa.” – e os diálogos do herói com a velha, dona da loja de
antiguidades:
[...] – Não vejo diferença nenhuma.
– Ontem não se podia ver se ele tinha ou não disparado a seta.
– Que seta? O senhor está vendo alguma seta?
– Aquele pontinho [branco] ali no arco... [...]
Há um contraponto entre o tom de voz do narrador e os acontecimentos
ocorridos no texto:
[...] Saiu de cabeça baixa, as mãos cerradas no fundo dos bolsos. [...]
Sentiu o corpo moído, as pálpebras pesadas. [...] Levantou a gola do paletó.
Era real esse frio? Ou a lembrança da tapeçaria? ‘Que loucura!... E não
estou louco’ [...].
É um fato que demonstra a tensão e a ansiedade do protagonista, porém
Antônio Abujamra oscila sua entonação entre a tensão e a calma.
101
O ator marca bem o tom irônico da velha ao rever o protagonista no dia
seguinte em sua loja:
[...] – Hoje o senhor madrugou. [...]
– Eu já não estranho mais nada, moço. Pode entrar, pode entrar, o senhor
conhece o caminho. [...]
O clímax da história é marcado por um narrador que alterna entre uma voz
sóbria e desesperada, até a conclusão da narrativa:
[...] Lançou em volta um olhar esgazeado: penetrara na tapeçaria, estava
dentro do bosque, os pés pesados de lama, os cabelos empastados de
orvalho. [..] Era o caçador ou a caça? Não importava [...] tinha que
prosseguir correndo [...], caçando ou sendo caçado. [...] Ouviu o som da
seta varando a folhagem, a dor! [...] E rolou encolhido, as mãos apertando o
coração. [...]
O trabalho de inflexão de voz destes atores-narradores, nos três Programas,
requer um equilíbrio entre os componentes lingüísticos e a entonação coloquial,
articulando sua oralidade, envolvendo e conquistando a atenção do espectador-
ouvinte.
A forma como o narrador conta irá conferir à história sua grandiosidade; a
maneira como cria melodias com as frases, diminui e eleva o tom da sua voz e
compõe a oralidade de um modo natural, dá uma expressão que traduz a euforia ou
a disforia à narrativa apresentada.
Nos três Programas analisados observa-se que os atores proferem a
linearidade articulada do texto e seus pontos de dramaticidade e tensão
transformando o caráter do conto, operando com desacelerações e acelerações
pontuais, nas quais há o intento de exprimir mais do que um relato ou uma ação dos
personagens; há o intento de exprimir paixão.
O instrumento oral dos atores – Lázaro Ramos (“Cantiga de esponsais”) e
Antônio Abujamra (“O besouro e a Rosa” e “A caçada”) importa-se com a forma do
dizer, do contar, possui a função de tornar o que foi narrado perene.
102
Em muitas circunstâncias a fala se aproxima do canto e vice-versa. No
capítulo 2 foi apontada uma breve diacronia sobre as origens da tradição oral e
pode-se perceber o constante diálogo entre a oralidade e a canção. É neste aspecto
que o ritmo da fala dos narradores pode ser comparado à canção, sendo que as
pausas, as entonações, a continuidade e a desaceleração do narrar, muitas vezes,
beiram a fronteira entre o cantar e o falar. Tal situação oferece um terreno propício
para o trabalho de efeitos sonoros e trilhas incidentais dos Programas que auxiliam e
integram a fala e a inflexão dos atores-narradores no decorrer das três histórias.
4.4.2 Trilhas incidentais e efeitos sonoros
“Cantiga de esponsais”
O conto inicia com acordes de um cravo para compor o fundo musical da
história narrada. À medida que Mestre Romão – protagonista – é apresentado,
incorpora-se ao som do cravo outro instrumento, o violoncelo, que dá um tom solene
ao começo da narrativa e à figura do personagem estimada e conhecida por seu
trabalho.
“[...] a causa da melancolia de mestre Romão era não poder compor, não
possuir um meio de traduzir o que sentia.” Nesta passagem em que é relatada a
tristeza do personagem principal em não ter vocação para compor suas próprias
músicas, ocorre uma inversão dos instrumentos que fazem parte da trilha incidental,
na qual o violoncelo faz o solo e o cravo o acompanhamento, conferindo um tom de
sofrimento que traduz o sentimento do protagonista.
Quando a narrativa retrata sobre o canto esponsalício iniciado por mestre
Romão logo após seu casamento, o solo do violoncelo destaca-se em alta
freqüência, conferindo dramaticidade a esta passagem do conto, reforçando o
próprio drama do personagem: a ausência de inspiração.
103
Na seqüência: “Quando a mulher morreu, ele releu essas primeiras notas
conjugais, e ficou ainda mais triste [...]” – a trilha retoma o cravo e ambos os
instrumentos (violoncelo e cravo) atuam em sincronia.
O protagonista adoece e neste trecho do conto a trilha sonora ganha uma
freqüência mais intensa e eleva-se o tom sofrido que a música sugere.
O fundo musical é alterado na parte da história em que mestre Romão decide
retomar o canto esponsalício, passando a ser utilizada uma nova seqüência de
acordes do cravo. Porém, tal seqüência tem uma intensidade maior do que a
executada no início do conto. É um momento de suspense da narrativa.
No crescente conflito do personagem em não avançar na composição, os
acordes do cravo alternam-se em alta e baixa freqüência, denotando o desespero do
protagonista: “Impossível! nenhuma inspiração. [...] – Lá... Lá... Lá...”
A trilha incidental entra em baixa freqüência no momento em que mestre
Romão desiste da composição – “Desesperado, deixou o cravo, pegou do papel e
rasgou-o.” – seguindo neste tom até o final da narrativa.
A música acompanha os derradeiros instantes do personagem, cujo
abandono diz respeito à sua criação musical e à própria vida; “expira” como o
próprio texto diz.
“O besouro e a Rosa”
Esta narrativa tem o seu começo pontuado por uma seqüência de notas de
um acordeom, que à medida que a protagonista, Rosa, é apresentada passa a se
alternar com uma mistura de outros instrumentos, dos quais se destaca o som de um
piano.
No momento em que João (apaixonado por Rosa) é citado na história: “Só
quem pôs reparo nisso foi o João. [...] [Porém] duma feita quando embrulhava os
pães na carrocinha percebeu que Rosa voltava da venda.” – a trilha incidental passa
a ter a predominância do piano, cuja melodia remete à polca (ritmo freqüente em fins
do século XIX), expressando um tom jocoso a esta passagem da narrativa.
Quando na história os sentimentos de João ficam claros, a trilha tem
predominância do piano e é composta, também, por algumas notas utilizadas na
104
“polca”, com um ritmo cadenciado que gera um clima de expectativa, traduzindo a
sensação do personagem que irá pedir a mão de Rosa.
No ato do pedido de João às tias da protagonista, a “polca” retorna, trazendo
de volta o tom alegre à história. Embora Rosa rejeite João, a trilha jocosa [“polca”]
permanece.
A freqüência da trilha incidental aumenta no trecho em que o besouro entra
na camisola de Rosa: é o clímax do conto. Na parte em que a protagonista tem o
mal-estar, devido ao ataque do besouro, são acrescidos ao fundo musical os
acordes de um baixo acústico, que pontuam o sofrimento da moça.
Esta mesma trilha acompanha a mudança no comportamento de Rosa:
“Agora caminha mais pausado. [...] “Não a reconhecem mais e têm medo da
estranha. Com efeito Rosa mudou.”. A música segue até o momento em que a
personagem está prestes a se casar com o marginal Pedro Mulatão e se conclui em
uma dinâmica (aumento do volume); tem-se o ápice do suspense.
Posteriormente, há uma brevíssima pausa na trilha – ficando apenas a voz de
Antônio Abujamra narrando: “Rosa chora. Há-de casar com Pedro Mulatão e si não
deixarem ela foge.” Deste trecho em diante, ouve-se numa freqüência extremamente
baixa a trilha incidental, na qual há a predominância dos acordes do violoncelo –
cujo sentimento traduz uma grande e intensa tristeza – que seguem até o término da
narrativa; pois Rosa, devido a sua escolha, fora realmente “muito infeliz”.
“A caçada”
No início do conto pode-se constatar a presença de um efeito sonoro, que a
princípio, é caracterizado por certa indefinição, aludindo às incertezas do
protagonista diante da imagem da tapeçaria. Tal efeito sonoro, aos poucos vai se
familiarizando à audição e se assemelhando ao ruído de um ser correndo entre
folhagens com fortes pisadas num chão de terra e mato.
À medida que o personagem principal se fixa na imagem da caçada da
tapeçaria, ouve-se, também, em baixa freqüência – juntamente com o som de
corrida na floresta – efeitos sonoros de uma tempestade, como uma pesada chuva e
105
trovões. Uma clara referência às alucinações e confusões que ocorrem na mente do
protagonista.
Na parte do conto em que o personagem começa a ter uma visão mais clara
da tapeçaria entra o som de uma harpa – que a princípio é dedilhada – denotando a
intenção de uma revelação, que é explicitada na fala do personagem: “Parece que
[hoje] está mais nítida...”
Posteriormente, ouve-se um glissando de uma harpa e entram outros
instrumentos para compor a trilha incidental, que dão um tom angustiante às cenas
em que o protagonista vai se identificando com a caçada ilustrada na velha tapeçaria
da loja de antiguidades. Neste ponto da narrativa, há uma mistura de sons, cujo
objetivo é o de criar uma atmosfera tensa, no qual está presente a trilha incidental da
cena anterior e os efeitos sonoros aplicados no início do conto (ruído de um ser
correndo entre folhagens com fortes pisadas num chão de terra e mato e os sons da
tempestade); este clima de tensão vai sendo elevado para introduzir a parte seguinte
da história.
A trilha incidental tem o seu volume aumentado e os efeitos sonoros das
passadas e da tempestade vão e vem em baixa freqüência; tais recursos são
utilizados para marcar a parte do texto na qual o herói percebe que, de alguma
forma, faz parte (é um dos personagens ilustrados) do cenário da caçada.
“Saiu de cabeça baixa, as mãos cerradas no fundo dos bolsos. Parou meio
ofegante na esquina.” É um momento do conto em que o protagonista está
atormentado e cheio de dúvidas. Os efeitos sonoros saem de cena e há um aumento
na freqüência da trilha incidental, cujo som que mais se destaca é o glissando
vigoroso da harpa.
Quando o personagem é tomado pelo cansaço, a trilha incidental muda
passando a utilizar um piano apoiando alguns acordes, resultando em uma trilha que
faz lembrar sons para relaxamento. Esta trilha incidental segue o momento em que o
protagonista entra na tapeçaria e acompanha todo o resto da narrativa até o seu
desfecho, criando um contraponto entre o clímax do conto e a música serena
extraída dos acordes do piano. Pode-se concluir que a intenção da trilha musical é a
de que, apesar de, o herói ter sido tragado pela imagem da caçada – e ser ele a
própria caça – há uma serenidade em meio a esse turbilhão de acontecimentos,
106
serenidade esta vinda de o personagem finalmente ter suas dúvidas respondidas e,
ao mesmo tempo, a tranqüilidade trazida após sua morte: a caça abatida pela seta
desferida do arco do caçador.
107
5 CONCLUSÃO
Ao longo desta pesquisa verificou-se que o unitário era dotado de qualidades
e característica peculiares das demais adaptações televisivas, dentre elas, a
transposição fiel ao texto original do suporte livro, preservando – na maior parte dos
Programas – o conto integral, propiciando uma conjunção entre o texto literário e o
televisual, evitando a perda e/ou destruição da obra literária.
Os elementos sincréticos empregados nos Programas: cenário, sombras,
texturas, projeções, fusões de imagens, iluminação, indumentária dos atores, efeitos
sonoros e trilhas incidentais possuíam a finalidade de ancorar o texto narrado,
sublinhar e apoiar trechos significativos do conto e que necessitavam de maior
ênfase. Bem como o trabalho das três câmeras utilizadas nos Programas – e a
interação dos atores com estas câmeras – contribuíam para dar uma dinâmica à
história apresentada e pontuar os personagens e narrador presentes nos contos.
Concluindo-se desta forma, que todos estes elementos sincréticos são efetivos aos
propósitos do unitário e também à transmutação do conto do suporte livro para o
suporte TV. No mais, todo este trabalho é responsável pela qualidade inovadora,
ousada e moderna e pelas características que diferencia Contos da Meia Noite de
outros formatos televisivos.
Além disso, a estratégia de enunciação da série opera com os recursos
audiovisuais, a performance dos atores (expressões faciais, gestual e entonação de
voz) e a “cabeça” do Programa para manter a concentração do espectador,
utilizando-se da técnica que os contadores profissionais de história denominam de
“afinação do público”, preparando o espectador para a narrativa apresentada com o
intento de prender sua atenção, procurando evitar dispersões.
Por meio desta pesquisa concluiu-se, também, que a série Contos da Meia
Noite no período em que foi exibida trouxe contribuições sociais importantes, tais
como a conservação e a propagação da oralidade em sua concepção mais próxima
à contação de histórias tradicional, acrescida de recursos audiovisuais. Apresentou
literatura nacional de qualidade a um maior número de pessoas, ainda que em uma
108
emissora segmentada, contribuiu para a disseminação de textos e autores (muitas
vezes desconhecidos por parte do público) e fomentou o gosto pela leitura.
Apesar das contribuições, do orgulho de seus realizadores e da boa aceitação
por parte da crítica e do público, a emissora – cujas alterações na programação
ocorrem ao sabor das mudanças administrativas – não conseguiu enxergar na série
seu potencial como produto televisivo e mercadológico, abandonando por completo
o projeto, bem como a transformação dos Programas em DVDs pela Cultura Marcas;
não havendo, sequer, menções à série no histórico da programação da emissora.
109
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111
Audiovisuais
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<http://www.friccoes.redezero.org/>. Acesso em: 13 dez 2007. Publicado em
Outubro 2nd, 2004
113
ANEXO A – “CANTIGA DOS ESPONSAIS”
Cantiga de Esponsais, de Machado de Assis
Fonte:
ASSIS, Machado de. Volume de contos. Rio de Janeiro : Garnier, 1884.
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
Edição eletrônica produzida pela Costa Flosi Ltda.
Revisão: Sandra Flosi/Edição: Edson Costa Flosi e Nancy Costa
Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que
as informações acima sejam mantidas. Para maiores informações, escreva para
CANTIGA DE ESPONSAIS
Imagine a leitora que está em 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas
boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical. Sabem o
que é uma missa cantada; podem imaginar o que seria uma missa cantada daqueles
anos remotos. Não lhe chamo a atenção para os padres e os sacristães, nem para o
sermão, nem para os olhos das moças cariocas, que já eram bonitos nesse tempo,
nem para as mantilhas das senhoras graves, os calções, as cabeleiras, as sanefas,
as luzes, os incensos, nada. Não falo sequer da orquestra, que é excelente; limito-
me a mostrar-lhes uma cabeça branca, a cabeça desse velho que rege a orquestra,
com alma e devoção.
Chama-se Romão Pires; terá sessenta anos, não menos, nasceu no Valongo, ou por
esses lados. É bom músico e bom homem; todos os músicos gostam dele. Mestre
Romão é o nome familiar; e dizer familiar e público era a mesma coisa em tal
matéria e naquele tempo. "Quem rege a missa é mestre Romão" — equivalia a esta
outra forma de anúncio, anos depois: "Entra em cena o ator João Caetano"; — ou
então: "O ator Martinho cantará uma de suas melhores árias." Era o tempero certo, o
chamariz delicado e popular. Mestre Romão rege a festa! Quem não conhecia
114
mestre Romão, com o seu ar circunspecto, olhos no chão, riso triste, e passo
demorado? Tudo isso desaparecia à frente da orquestra; então a vida derramava-se
por todo o corpo e todos os gestos do mestre; o olhar acendia-se, o riso iluminava-
se: era outro. Não que a missa fosse dele; esta, por exemplo, que ele rege agora no
Carmo é de José Maurício; mas ele rege-a com o mesmo amor que empregaria, se a
missa fosse sua.
Acabou a festa; é como se acabasse um clarão intenso, e deixasse o rosto apenas
alumiado da luz ordinária. Ei-lo que desce do coro, apoiado na bengala; vai à
sacristia beijar a mão aos padres e aceita um lugar à mesa do jantar. Tudo isso
indiferente e calado. Jantou, saiu, caminhou para a rua da Mãe dos Homens, onde
reside, com um preto velho, pai José, que é a sua verdadeira mãe, e que neste
momento conversa com uma vizinha.
— Mestre Romão lá vem, pai José, disse a vizinha.
— Eh! eh! adeus, sinhá, até logo.
Pai José deu um salto, entrou em casa, e esperou o senhor, que daí a pouco
entrava com o mesmo ar do costume. A casa não era rica naturalmente; nem alegre.
Não tinha o menor vestígio de mulher, velha ou moça, nem passarinhos que
cantassem, nem flores, nem cores vivas ou jocundas. Casa sombria e nua. O mais
alegre era um cravo, onde o mestre Romão tocava algumas vezes, estudando.
Sobre uma cadeira, ao pé, alguns papéis de música; nenhuma dele...
Ah! se mestre Romão pudesse seria um grande compositor. Parece que há duas
sortes de vocação, as que têm língua e as que a não têm. As primeiras realizam-se;
as últimas representam uma luta constante e estéril entre o impulso interior e a
ausência de um modo de comunicação com os homens. Romão era destas. Tinha a
vocação íntima da música; trazia dentro de si muitas óperas e missas, um mundo de
harmonias novas e originais, que não alcançava exprimir e pôr no papel. Esta era a
causa única da tristeza de mestre Romão. Naturalmente o vulgo não atinava com
ela; uns diziam isto, outros aquilo: doença, falta de dinheiro, algum desgosto antigo;
mas a verdade é esta: — a causa da melancolia de mestre Romão era não poder
compor, não possuir o meio de traduzir o que sentia. Não é que não rabiscasse
muito papel e não interrogasse o cravo, durante horas; mas tudo lhe saía informe,
sem idéia nem harmonia. Nos últimos tempos tinha até vergonha da vizinhança, e
não tentava mais nada. E, entretanto, se pudesse, acabaria ao menos uma certa
peça, um canto esponsalício, começado três dias depois de casado, em 1779. A
115
mulher, que tinha então vinte e um anos, e morreu com vinte e três, não era muito
bonita, nem pouco, mas extremamente simpática, e amava-o tanto como ele a ela.
Três dias depois de casado, mestre Romão sentiu em si alguma coisa parecida com
inspiração. Ideou então o canto esponsalício, e quis compô-lo; mas a inspiração não
pôde sair. Como um pássaro que acaba de ser preso, e forceja por transpor as
paredes da gaiola, abaixo, acima, impaciente, aterrado, assim batia a inspiração do
nosso músico, encerrada nele sem poder sair, sem achar uma porta, nada. Algumas
notas chegaram a ligar-se; ele escreveu-as; obra de uma folha de papel, não mais.
Teimou no dia seguinte, dez dias depois, vinte vezes durante o tempo de casado.
Quando a mulher morreu, ele releu essas primeiras notas conjugais, e ficou ainda
mais triste, por não ter podido fixar no papel a sensação de felicidade extinta.
— Pai José, disse ele ao entrar, sinto-me hoje adoentado.
— Sinhô comeu alguma coisa que fez mal...
— Não; já de manhã não estava bom. Vai à botica...
O boticário mandou alguma coisa, que ele tomou à noite; no dia seguinte mestre
Romão não se sentia melhor. É preciso dizer que ele padecia do coração: —
moléstia grave e crônica. Pai José ficou aterrado, quando viu que o incômodo não
cedera ao remédio, nem ao repouso, e quis chamar o médico.
— Para quê? disse o mestre. Isto passa.
O dia não acabou pior; e a noite suportou-a ele bem, não assim o preto, que mal
pôde dormir duas horas. A vizinhança, apenas soube do incômodo, não quis outro
motivo de palestra; os que entretinham relações com o mestre foram visitá-lo. E
diziam-lhe que não era nada, que eram macacoas do tempo; um acrescentava
graciosamente que era manha, para fugir aos capotes que o boticário lhe dava no
gamão, — outro que eram amores.
Mestre Romão sorria, mas consigo mesmo dizia que era o final.
— Está acabado, pensava ele.
Um dia de manhã, cinco depois da festa, o médico achou-o realmente mal; e foi isso
o que ele lhe viu na fisionomia por trás das palavras enganadoras: — Isto não é
nada; é preciso não pensar em músicas...
Em músicas! justamente esta palavra do médico deu ao mestre um pensamento.
Logo que ficou só, com o escravo, abriu a gaveta onde guardava desde 1779 o
canto esponsalício começado. Releu essas notas arrancadas a custo e não
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concluídas. E então teve uma idéia singular: — rematar a obra agora, fosse como
fosse; qualquer coisa servia, uma vez que deixasse um pouco de alma na terra.
— Quem sabe? Em 1880, talvez se toque isto, e se conte que um mestre Romão...
O princípio do canto rematava em um certo ; este , que lhe caía bem no lugar,
era a nota derradeiramente escrita. Mestre Romão ordenou que lhe levassem o
cravo para a sala do fundo, que dava para o quintal: era-lhe preciso ar. Pela janela
viu na janela dos fundos de outra casa dois casadinhos de oito dias, debruçados,
com os braços por cima dos ombros, e duas mãos presas. Mestre Romão sorriu com
tristeza.
— Aqueles chegam, disse ele, eu saio. Comporei ao menos este canto que eles
poderão tocar...
Sentou-se ao cravo; reproduziu as notas e chegou ao ....
Lá, lá, lá...
Nada, não passava adiante. E contudo, ele sabia música como gente.
Lá, dó... lá, mi... lá, si, dó, ré... ré... ré...
Impossível! nenhuma inspiração. Não exigia uma peça profundamente original, mas
enfim alguma coisa, que não fosse de outro e se ligasse ao pensamento começado.
Voltava ao princípio, repetia as notas, buscava reaver um retalho da sensação
extinta, lembrava-se da mulher, dos primeiros tempos. Para completar a ilusão,
deitava os olhos pela janela para o lado dos casadinhos. Estes continuavam ali, com
as mãos presas e os braços passados nos ombros um do outro; a diferença é que
se miravam agora, em vez de olhar para baixo.
Mestre Romão, ofegante da moléstia e de impaciência, tornava ao cravo; mas a
vista do casal não lhe suprira a inspiração, e as notas seguintes não soavam.
Lá... lá... lá...
Desesperado, deixou o cravo, pegou do papel escrito e rasgou-o. Nesse momento, a
moça embebida no olhar do marido, começou a cantarolar à toa, inconscientemente,
uma coisa nunca antes cantada nem sabida, na qual coisa um certo trazia após si
uma linda frase musical, justamente a que mestre Romão procurara durante anos
sem achar nunca. O mestre ouviu-a com tristeza, abanou a cabeça, e à noite
expirou.
117
ANEXO B – “O Besouro e a Rosa”
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121
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ANEXO C – “A Caçada”
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ANEXO D – PARATEXTUALIDADE
Contos à meia-noite
Publicado por Pedro Maio 27th, 2005 em literatura and televisao.
Descobri ontem um programa sensacional que, incrível!, é transmitido pela TV
Nacional (conhecida como TV Cultura em São Paulo e sei lá que outras cidades do
país): chama-se, como acusa o título do post, Contos à meia-noite.
Sei que não deveria, mas vou explicar do que se trata: à meia-noite (como parece
óbvio) um ator lê um conto. Não posso dizer que todos os contos são bons, ou que a
escolha dos atores é digna de nota, nem nada disso. Só assisti o programa uma vez,
e foi às 00:00 de hoje, quando Antônio Abujamra (que não me agrada muito, na
verdade, mas dessa vez se saiu muito bem) leu um conto intitulado “Uma vela para
Dario“, do Dalton Trevisan.
Texto sensacional, preciso ressaltar.
Têm me surpreendido, esses dias, a quantidade de bons programas transmitidos
pela TV Nacional (ou Cultura, o nome é o de menos). Eu costumava dizer que o
canal era um porre (e é mesmo, a maior parte do tempo), com suas nuances
“intelectuais” e suas dinâmicas “culturais”. Mas algumas coisas que tenho visto por lá
(a saber: Re-corte Cultural, Zoom e, agora, Contos à meia-noite) estão me fazendo
mudar de idéia, em termos. Deixei de achar a programação toda uma merda, agora
apenas parte dela não presta. Uns 80%, digamos.
Os outros 20% merecem toda atenção.
O conto de hoje será narrado pela Beatriz Segall. Estarei atento diante da TV, quero
ver se o quadro realmente presta ou se eu apenas tive sorte de pegar um episódio
muito bom.
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1. 1 Arno Anderson Mi 28th, 2005 at 8:48 am
Porra, faz anos que não assisto TV Cultura. Costumava colocar minha irmã
para assistir Castelo Ra-Tim-Bum e acaba vendo junto. Lembro uma vez que
minha irmã perguntou porquê determinado personagem chamava-se Beth
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Frígida.
- É como você deve ser até se casar - respondi.
2. 2 Samanta Mi 28th, 2005 at 12:32 pm
Bah, eu assisto o Contos todo dia… vira e mexe tem uns textos do M+ario de
Andrade ou mesmo do Oswald muito bons… Eu gosto dos com o Pereio. M-á-
x-i-m-o
3. 3 Thiago Fialho Mi 29th, 2005 at 2:31 pm
Eu gosto do Alto-Falante, já faz um tempo que não assisto, mas costuma ser
legal..
4. 4 Vinicius Mi 30th, 2005 at 10:57 am
vitrine é legal tb rg tb era
5. 5 mi Mi 30th, 2005 at 3:11 pm
Eu sempre achei que chamasse “Contos DA meia-noite”. Realmente
excelente. Eu também gosto do Roda Viva, principalmente em época eleitoral.
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Contos da Meia-Noite desta semana é dedicado ao escritor Machado de Assis
Segunda-Feira, 08 de Novembro de 2004 às 12:10
O programa Contos da Meia-Noite, da TV Cultura, da próxima semana será
dedicado exclusivamente ao escritor Machado de Assis. Nesta segunda-feira
(08/11), à meia-noite, a atriz Beth Goulart interpreta o conto Três Conseqüências.
O texto narra a história de Mariana, viúva há mais de um ano, que permanece fiel à
memória do finado marido e recusa sistematicamente qualquer possível
pretendente.
Os próximos contos são:
Terça-feira – 09/11 – Cantigas de Esponsais, com Lázaro Ramos
Quarta-feira – 10/11 – O Dicionário, com Giulia Gam
Quinta-feira – 11/11 – O Apólogo, com Marília Pêra
Sexta-feira – 12/11 – Idéias de Canários, com Maria Luisa Mendonça
Por: Redação
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Terça-feira, 31 de Agosto de 2004, 12:30 | Online
"Contos da Meia Noite" volta com Antônio Abujamra
Com A Caçada, de Lygia Fagundes Telles, apresentado por Antônio Abujamra, a TV
Cultura volta a exibir edições inéditas do programa
A TV Cultura vai voltar a exibir edições inéditas do projeto Contos da Meia-Noite.
Para quem ainda não conhece, o programa tem duração de 10 minutos e é exibido
diariamente à meia noite. A cada episódio, um ator diferente declama um texto de
algum escritor brasileiro importante.
Depois de Maria Luíza Mendonça, Mateus Nachtergaele, Marília Pêra e outros, a TV
Cultura renovou seu time de atores e começa a divulgar contos narrados por outros
famosos. Nesta nova fase serão apresentadas obras de consagrados escritores
como Lygia Fagundes Telles, Ignácio de Loyola Brandão, Machado de Assis e Mário
de Andrade, por meio de interpretações de Antônio Abujamra, Beatriz Segall, Lázaro
Ramos, Paulo César Pereio e Walmor Chagas.
Desta vez, cada ator interpretará cinco contos e não 10, como anteriormente. O
programa reúne recursos de projeção de imagens sobre atores e aplicação de
texturas e sombras. Hoje será exibido A Caçada (Lygia Fagundes Telles), com
Antônio Abujamra. Vencedor na França, do Grande Prêmio Internacional Feminino
para Estrangeiros, A Caçada faz parte de uma coletânea de contos da autora, entre
1949 e 1969, e publicado posteriormente no livro Antes do Baile Verde, de 1970.
Amanhã, Três Tesouros Perdidos (Machado de Assis), com Beatriz Segall. Quinta é
a vez de Os Músculos (Ignácio de Loyola Brandão), com Walmor Chagas. E sexta
vem Passagem (Léo Trombka), com Paulo C. Pereio.
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Mossoró-RN, de 2003
Um conto à meia-noite
Tobias Queiroz
Da Redação
Não há programa melhor para um fim de noite. E adjetivá-lo de imperdível, não seria
nenhum exagero. A literatura perfeitamente casada com a TV, num dos mais bem-
sucedidos programas de teledramaturgia surgido no ano passado. "Contos da Meia-
Noite", série dirigida por Eder Santos, apresenta mais uma nova fornada de
programas inéditos pela TV Cultura, a partir de amanhã.
Prepare o vídeo cassete para ficar por dentro do que há de melhor na literatura. São
mais de 100 contos interpretados (ou lidos, se preferir) por um seleto time de atores.
São nomes como os de Marília Pêra, Antônio Abujamra, Matheus Nachtergaele,
Maria Luisa Mendonça, Beth Goulart ou Giulia Gam, que fazem toda a diferença.
Eles fazem a leitura dos contos, a partir de padrões cenográficos inusitados.
Sentado numa cadeira, balançado-se num trapézio, ou até mesmo em pé, o
ator/atriz usa e abusa de todos os recursos cênicos dispostos. Se expressam,
gesticulam, movimentam-se, gritam, falam, mexem com o tronco, e naturalmente,
Capa Poesia Recitanda Artigos Especial Informática
Arte & Idéias Paulo Locatelli Literatura Entrevista
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extraem do texto toda a ação e emoção que possa contê-lo. Uma breve nota
introdutória, apresentada por Teresa Freire, com os nomes do autor e do conto dão
a abertura do programa. A receita parece simples. Mas é exatamente por isto que é
eficaz.
A diferença nesta salutar experiência (já que, desde tempos remotos, a TV insiste
em fazer adaptação literárias) é que o ator/atriz não se apossa do personagem. Ele
apenas fica no lugar do autor. Em vez de transpor o universo do escritor e
transformá-lo em conteúdo, aproxima o espectador a maravilhosa experiência da
leitura. E mais: a falta de cenário e de caracterização do ator/atriz exigem o máximo
de imaginação. O mérito da série é transformar-se, de fato, numa ferramenta para o
espectador olhar aquele texto em particular.
A crítica de TV da Folha de São Paulo, Bia Abramo, disse que o programa é "um
achado no sentido pedagógico, que sempre foi associado à idéia de usar textos da
literatura para a televisão. Para ela, esta seja talvez a experiência mais bem-
sucedida de todas.
Para complementar o quadro, as idéias de Evandro Rogers, homem responsável
pela belíssima fotografia, entram em perfeita sintonia com a montagem, que ora,
sobrepõe imagens, ora explora a aplicação de texturas e de sombras, criando um
clima cenográfico alusivo aos textos. Com tantos êxitos o programa, "Contos da
Meia-Noite", tem somente um ponto negativo: o horário. Exibido de segunda a sexta-
feira, sempre à meia-noite.
Para quem não tem assinatura de TV a cabo (já quem em Mossoró o sinal da
Cultura não é aberto), e possua antena parabólica, a única opção de assistir a este
"achado", de no máximo 10 minutos de duração, é a TV Educativa ou pela Paraná
Educativa. As duas repetem o sinal da Fundação Padre Anchieta.
‘Biscoitos finos para as massas’
Hoje podemos registrar um repertório considerável de obras-primas na televisão e
não é por acaso que elas seduzem o público em diversas partes do planeta.
As telenovelas podem ser interessantes e despertar o telespectador pelo expediente
da surpresa, fugindo ao lugar-comum de uma realização muito longa e repetitiva,
apresentando-se como uma espécie de "biscoito fino para as massas". É sob este
prisma que podemos compreender a sua importância, isto é, elas permitem ao
público que não pode ler, receber uma elaboração estética de qualidade. Elas são,
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assim, vetores de um tipo de despertar para as multidões que partilham as imagens
fantásticas; elas fazem sonhar cotidianamente milhões de pessoas. A catarse
experimentada pelo público do cinema se refaz hoje, sob outras modulações, no ato
de acompanhar os capítulos das telenovelas.
Dentre inúmeras adaptações de livros para a televisão, Escrava Isaura merece uma
apreciação particular. Exibida primeiramente em 1976, é uma produção para o vídeo
de um dos livros mais populares do romantismo brasileiro, escrito por Bernardo
Guimarães, em 1875, o qual já fora aproveitado duas vezes para o cinema, em 1929
e 1949.
*(Por, Cláudio Cardoso Paiva, professor)
Programação
Segunda, 16: A Moça no Trapézio (Luis Jardim), com Marília Pêra
Terça, 17: História de Judas (João Alphonsus), com Matheus Nachtergaele
Quarta, 18: O Dicionário (Machado de Assis), com Giulia Gam
Quinta, 19: Onofre, o Terrível (Marques Rebelo), com Antônio Abujamra
Sexta, 20: De Como Nenzinho Chegou a Homem (Miroel Silveira), com Beth Goulart
.::HOME::.
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TV em Transe
Christian Moreno
14/12/2003
Contos da meia-noite
Quem disse que televisão e literatura não combinam? Provando que essa união é
perfeitamente possível, a TV Cultura estreou na segunda-feira (dia 8) a série Contos
da Meia-Noite, onde grandes atores interpretam, em formato de monólogo, textos de
autores brasileiros consagrados - Machado de Assis, Lygia Fagundes Telles, Dalton
Trevisan, Orígenes Lessa, entre outros.
Mesmo em meio a uma grave crise, a emissora mostra que possui fôlego para se
r
criativa e oferecer programas de bom nível ao telespectador (a série é uma parceria
com a Imprensa Oficial do Estado de SP). Ao todo serão cem contos, exibidos de
segunda a sexta, sempre à 0h.
Não pense que temos aqueles monólogos chatos e entediantes. Os textos são
curtos, por vezes bem densos, valorizados pelas atuações dos atores e por um
trabalho primoroso de produção e edição.
Os artistas foram escolhidos a dedo: Antonio Abujamra, Marília Pêra, Maria Luisa
Mendonça, Matheus Nachtergaele, Giulia Gam e Beth Goulart. Na terça-feira,
A
bujamra interpretou com a costumeira maestria o conto ZAP, de Moacyr Scliar, que
fala justamente da relação doentia e de dependência entre homem e televisão.
O diretor Eder Santos conseguiu encontrar o ponto de equilíbrio. A edição, que
dispensa a linguagem alucinante de videoclipe, valoriza ainda mais o texto.
Completa-o ao invés de desviar o foco da narrativa - um risco que se corria numa
adaptação desse tipo.
O Contos da Meia-Noite merece muito ser conferido. Poucos minutos que valem
mais, por exemplo, que horas e horas de Boa Noite Brasil (aquele troço que o
Gilberto Barros comanda na Band).
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Flashbacks
Já que falei em linguagem de videoclipe, em uma hora o programa 107,7 na TV, da
Santa Cecília TV, passa mais clipes dos anos 70 e 80 que a MTV numa semana
inteira. Enquanto o dito ‘canal musical’ deixa seu rico arquivo mofar, o 107,7 na TV
não esquece os flashbacks - e também reserva bons especiais, como o da banda
Marillion (que eu nunca vi em destaque na MTV), levado ao ar recentemente.
O pior do esporte
Neste domingo termina a temporada futebolística. No período de férias, é normal a
dificuldade para pautar os telejornais esportivos, nos quais o futebol aparece
invariavelmente como carro-chefe. Mas imagino que isso não seja problema para o
Globo Esporte, já que sua especialidade são as piadinhas sem graça em detrimento
da informação – o que obriga os apresentadores a seguir o estilo ‘bobo alegre’. O
auge foi na semana passada, quando se fez o maior alarido para eleger o mascote
do programa! O telespectador podia escolher entre Gato Mestre, Raposinha e
Pitaco. Putz! Notícia que é bom, nada.
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