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LIANA ARRAIS SERÓDIO
A MÚSICA, A NARRATIVA E A FORMAÇÃO
DE PROFESSORES
PUC-CAMPINAS
2007
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1
LIANA ARRAIS SERÓDIO
A MÚSICA, A NARRATIVA E A FORMAÇÃO
DE PROFESSORES
Texto apresentado para defesa de
Mestrado em Educação junto à Banca
Examinadora do Programa de Pós-
Graduação em Educação da Área de
Ensino Superior do Centro de Ciências
Sociais Aplicadas da Pontifícia
Universidade Católica de Campinas.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Eugênia L.
M. Castanho.
PUC-CAMPINAS
2007
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BANCA EXAMINADORA
Presidente e Orientador Prof (a) Dr. (a) Maria Eugênia de Lima e Montes
Castanho
1º Examinador Prof. Dr. Guilherme do Val Toledo Prado
2ª Examinadora Prof. (a) Dr. (a) Adriana Varani
Campinas, 12 de fevereiro de 2008.
3
Antes do exame de Qualificação, incidentes me levaram a apressar a redação do texto. Envolta
nos estudos, estabelecendo relações, amadurecendo idéias, registrando inspirações, obedecendo
ao tempo e os prazos acadêmico-institucionais, construí um texto apressado com as convicções
que me animam e o enviei na 'garrafa virtual', como um náufrago cibernético, para os amigos e
para minha mãe.
Vivi a maior emoção da minha vida: recebia de volta o texto comentado, com os conselhos tão
esperados. Houve momentos que quase não podia enxergar de tanto que meus olhos se
embaçavam na profunda felicidade de desvelar a doação que há no amor da amizade.
E não é tudo. Depois disso, novo pânico se apoderou de mim, como lidar com tantas palavras,
sons e sentidos? Então, como que para não abalar a minha fé, um amigo especial se sentou à
frente do computador comigo, organizando, por assim dizer, a minha vida narrativo-musical-
formadora - e informática. Deu-me por um espaço de tempo infinito a sua própria vida, com
paciência, generosidade e afeto.
Isso são coisas que nos dão os amigos, e o que recebemos é muito mais.
A eles dedico este trabalho.
4
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, Maria Eugênia Castanho, que soube dar-me a autonomia
que eu precisava para adentrar um mar pouco navegado.
Ao Prof. Dr. Guiherme do Val Toledo Prado, por seu silêncio, repleto de música.
Professando uma inabalável na capacidade dos professores produzirem
conhecimentos, estimula a narrativa-pedagógica como um instrumento que os
faça contar quais são eles. Seu apoio foi essencial.
À Prof. (a) Dr. (a) Adriana Varani, que sempre esteve disponível, atenta aos
interesses e necessidades da pesquisa.
À Prof. (a) Dr. (a) Márcia Guimarães, por sua minuciosa leitura da narrativa. O
ponto de vista de alguém com a sua compreensão e sensibilidade musical, aliado
à experiência de professora de canto foram de um valor inestimável ao
acabamento estético que pude construir.
À toda a equipe do PPGE, por sua competência e seriedade.
Ao Diretor do Colégio PIO XII, Sr. Benedito Maurício, que acreditou em mim e
afiançou este projeto junto à pró-reitoria de Pós-Graduação.
Aos parceiros e parceiras do Colégio PIO XII, pois foi entre eles e elas que a
chama do desejo de pesquisar se fortaleceu.
Às crianças que me deram a chance de acreditar no impossível, no indizível, no
inimaginável e num mundo que acolhesse seus sonhos.
Aos jovens que me recuperam os sentimentos da juventude a cada ano, com sua
indignação, seu senso de justa, seu inconformismo, sua revolta. Sua dedicação,
sua atenção, seu coração aberto, sua necessidade de contar e de ouvir.
Aos vinte formandos da turma de 2005, a primeira turma do curso de Licenciatura
de Educação Musical da UNESP, que no seu propósito de aprender para ensinar,
forneceram o material que a formadora passou a olhar com olhos de
pesquisadora para consagrá-lo à Música.
À Cláudia Ferreira, que foi olhando os caminhos por onde eu andava e me
mostrando o que eu mesma não podia ver, desde a busca de um lugar onde
pudesse dialogar até o encadeamento triplo do tema desta pesquisa.
À Márcia Leardine que me acompanhou e amparou por entre os prazeres e as
angústias de todo o processo da pesquisa, emocionando-me por sua
disponibilidade.
À Rosaura Soligo, que me alertou sobre perigos, ajudou-me a me decidir sobre
rumos a tomar nos momentos decisivos desta pesquisa, nas questões envolvendo
linguagens e ainda encontrou beleza em meus achados!
5
À Glória Cunha, porque me deu parte preciosa de meu passado de volta e agora
passa a integrar este meu presente voltado para o futuro.
À minha filha Marina Arrais Gerola, por iluminar os cantos mais escuros que às
vezes aparecem em minha vida. Por ouvir as peripécias da pesquisa e me
acalmar quando entrava em pânico.
Ao Newton Luz Regina Júnior, companheiro da vida e de cada pensamento
musical, cada decisão e cada dúvida que me acompanhou durante e muito antes
desta pesquisa.
À minha mãe, pela confiança que sempre afirmou depositar em mim e dividir
comigo seus conhecimentos da escrita.
Ao meu pai, por repartir comigo o prazer de aprender a viver.
A todas as melodias, todos os ritmos, todas as texturas, todas as dissonâncias e
consonâncias da vida.
6
Aquele que apreende a comunicação de outrem não é um ser mudo,
privado de palavra, mas, ao contrário, um ser cheio de palavras interiores.
Toda a sua atividade mental, o que se pode chamar 'fundo perceptivo', é
mediatizado para ele pelo discurso interior e é por aí que se opera a junção
com o discurso apreendido do exterior.
BAKHTIN, 1981, p.148
7
RESUMO
SERÓDIO, Liana Arrais. A música, a narrativa e a formação de professores.
Campinas, 2007. 162 f. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Educação da
Pontifícia Universidade de Campinas. Campinas, 2007.
Pesquisa sobre o uso da narrativa na formação do educador musical. É baseada
na convicção de que a argumentação verbal importa para o diálogo sobre o
ensino de música e que este potencialmente leva à democratização da
compreensão de seu vasto e especializado campo de conhecimento. A
pesquisadora é triplamente implicada na temática, como aluna, professora e
formadora, o que amplia a potência da narrativa como conteúdo e forma da
pesquisa, além de trabalhar com dados igualmente narrativos. Os textos
produzidos pelos estudantes de Licenciatura em Educação Musical na
Universidade Estadual Paulista (UNESP) -São Paulo como parte do contrato
didático, são narrativas pedagógicas tomadas como dados da pesquisa, e dão a
ver conceitos como o talento, o aprender 'para' outro, o entrelaçamento de
linguagens - verbal e musical - , enquanto narram as próprias histórias.
Termos de indexação: música, narrativa, formação de professores, talento,
estética, ética, aprendizado 'passivo', prazer de aprender, entrelaçamento de
linguagens verbal e musical.
8
ABSTRACT
SERODIO, Liana Arrais. Music, narrative and teacher’s formation.
Campinas, 2007. 162f. Dissertation (Mastership). College of Education of the Catholic
University of Campinas (Pontifícia Universidade Católica de Campinas). Campinas, 2007.
Research about the use of the narrative on the musical educator formation. It is based on
the conviction that the verbal argumentation is relevant for the dialog about the music
teaching and that this potentially leads to the democratization of the comprehension of its
wide and specialized knowledge field. The researcher is implicated on this thematic in
triplicate, namely, as a student, as a teacher and as a teacher's educator, and this
amplifies the narrative power as content and research style, besides working with
narrative data as so. The text created by students of Musical Education at Universidade
Estadual Paulista (UNESP) São Paulo as part of a didactic contract, they are
pedagogical narratives taken as research data, and result in concepts such as talent, the
ability to learn ‘to' other, languages intertwining - verbal and musical -, while they narrate
their own histories.
Indexation terms: music, narrative, teacher’s formation, talent, esthetics, ethics, ‘passive’
learning, pleasure of learning, intertwning of verbal and musical languages.
9
FIGURA
GUIMARÃES, Humberto. Obra exposta na Galeria de Artes da CEMIG. Disponível
em:<file:///C:/text-teorias/cemig-partitura-asp.htm>. Acessado em: 11-11-2007
DVD VÍDEOS
BARENBOIM, Daniel. Barenboim on Beethoven: masterclasses volume I. BEETHOVEN, Ludwig
van. Sonata nº16 em Sol Maior. Op.31. I Movimento: Allegro Vivace - David Kadouch. Direção e
edição: Allan Miller. Produção: Margaret Smilow; François Duplat. Educational Broadcasting
Corporation, Bel Air Media Paris e Nhk. DVD Vídeo. EMI classics: 2006. Veiculado e gravado no
canal de televisão FILM & ARTS, 2007.
JANSONS, Mariss. In rehearsal: Oslo Philarmonie Orchestra. BÁRTOK, Béla, O mandarim
Miraculoso. Produtor musical: Krzysztof Drab. Produtor executivo: Arild Erikstad. 1997. Veiculado
e gravado no canal de televisão FILM & ARTS, programa Ensaio, 2006.
10
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO: ACABAMENTO ESTÉTICO ....................................................12
2. MEMÓRIAS DE FUTURO.................................................................................24
2.1. Desde as lembranças mais remotas..............................................25
2.1.1. O desejo de aprender. ................................................................25
2.1.2. Aprendizado passivo'. 'Co-partilhamento estético'. .....................27
2.1.3. Aula de piano. Memórias de como aprendia o que me ensinavam
..............................................................................................................36
2.2. Formação universitária. Profissão..................................................47
2.2.1. Aprender entre amigos ou a con-vivência musical......................49
2.2.2. O que significa, para mim, ensinar música para crianças? .........51
2.2.3. E ensinar música para crianças no ensino fundamental? ...........57
2.2.3.1. Nunca vou me esquecer ..........................................................60
2.2.3.2. Outra lição................................................................................61
3. A POTÊNCIA DA NARRATIVA.........................................................................63
3.1. A narrativa -: conteúdo, forma e sentido ........................................64
3.2. Um pequeno histórico ....................................................................70
3.3. Porque a narrativa como instrumento de formação? .....................72
3.4. Narrativa pedagógica: dados da pesquisa. ....................................78
3.5. As narrativas pedagógicas.............................................................86
4. A FORMAÇÃO DE EDUCADORES MUSICAIS E AS NARRATIVAS
PEDAGÓGICAS....................................................................................................89
4.1. Ensinar música e introduzir a narrativa. .........................................90
4.2. A produção das 'narrativas pedagógicas'.......................................93
4.3. A arte e a linguagem no ensino de música. ...................................96
4.4. PCNs e a escolha do que-como-para que ensinar.........................99
4.5. Implementação da narrativa na Oficina de Som e Movimento.....103
11
5. UMA ESCUTA DE PROFESSORA.................................................................109
DE MÚSICA. .......................................................................................................109
5.1. As vozes: quem veio aprender a ensinar? ...................................110
5.2. Aprender 'para' o outro.................................................................121
5.3. Talento: pesado adjetivo. .............................................................131
5.4. Entrelaçamento de duas (?) linguagens.......................................138
6. POR VIR ÉTICO .............................................................................................144
7. REFERÊNCIAS...............................................................................................153
12
1. INTRODUÇÃO: ACABAMENTO ESTÉTICO
13
O poeta deve compreender que a sua poesia tem culpa pela prosa trivial da vida,
e é bom que o homem da vida saiba que a sua falta de exigência e a falta de
seriedade das suas questões vitais respondem pela esterilidade da arte.
BAKHTIN, 2003, XXXIV
Que graça tem, falar de uma menina católica-apostólica-romana
1
de batismo e
primeira comunhão, estudante exemplar na escola e no piano
2
. Uma menina
como tantas outras. Crescida em Leme
3
, que lhe traz marcas burguesas
4
de
educação. Uma menina que tinha a liberdade que a vida nas cidades pequenas
permitia, de ir e vir, de bicicleta pelas ruas, com uma grande turma de amigos e
amigas, jogando queimada e 'conversa fora' nas quentes noites de verão.
O que justifica dar importância a esta história? Este é o resumo da infância e
juventude de muitas outras meninas 'do interior'
5
, hoje mulheres que viram
(quase) meio século passar.
Mesmo assim entendo que contar a que venho, recordar certas memórias é
imprescindível quando se acredita, como acredito, que cada pensamento tem a
sua origem numa rede de acontecimentos que torna cada vida única, tanto porque
1
Importa nesse momento informar ao leitor que as notas de rodapé comporão, em muito, o texto da pesquisa.
Fazem parte de escolhas durante o trajeto da escrita deste texto, muitas vezes para não cortar o discurso.
Outras, de necessidades de explicação, informação adicional, conforme o esperado para um texto desta
natureza. E em outras ainda, para indicar um diálogo possível com observações e estudos inalcançáveis no
tempo estipulado para a duração desse curso e concretização da pesquisa.
Sobre a primeira nota de roda-pé: em 2000, os católicos representavam 73,9% dos brasileiros. Disponível em
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u83030.shtml>. Acessado em: 14-11-2007.
2
O piano era um símbolo de educação da aristocracia e conforme foi ficando acessível, povoava o sonho da
classe média, desde o início do Segundo Império, (...) ao final do século XIX, o piano fazia parte apenas
de residências de nobres (...) e, posteriormente, burguesas (...). A partir do início do século XX, pessoas de
classes mais baixas (...) começaram a ter acesso ao instrumento, que passou a estar acessível às classes alta
e média. Nessa época, o ensino de piano era realizado principalmente por professores particulares e a
função do piano era essencialmente voltada às moças (...). Com a deflagração dos conservatórios musicais
pelo país (a partir das décadas de 30/40), o piano passou a ser ainda mais difundido e admirado (FUCCI
AMATO, 2007, p. 8-9). Disponível em:
<http://www.anppom.com.br/anais/17%20anais%20SP%202007/musicologia/musicol_RCFAmato_1.pdf>
Acessado em: 14-11-2007. As citações dentro de notas de roda-pé estarão apresentadas em itálico, com a
intenção de dar destaque à palavra de outrém. Esta foi a primeira dessas citações, que por vezes me soam
melhores fora do corpo do texto, uma tentativa de dialogar com o próprio texto.
3
Cidade do interior de São Paulo originária da estação de trem do Manuel Leme que foi inaugurada em
1877, em terras desertas do fazendeiro de mesmo nome que logo foi reduzido para Leme. Em torno dela foi
se formando o município que manteve o nome.
Disponível
em:
<
http://www.estacoesferroviarias.com.br/l/leme.htm> Acessado em: 18-10-2007
4
Como a de fazer as meninas estudarem piano.
5
Interior do estado de São Paulo. Apresento entre aspas por seu sentido figurado. Nesse caso, de vida
simples, de pouco trânsito de automóveis, onde as pessoas se conhecem e a você desde o dia em que nasceu.
Infelizmente, Leme não é mais assim.
14
os acontecimentos são singulares, como única é a maneira de cada reação a
eles.
Mas não é tudo. Ao contar, esses acontecimentos/pensamentos se multiplicam
pelos sentidos que lhes são atribuídos, fazendo cada ser único, ao mesmo tempo
ser ltiplo. Como cada ser único em sua vida múltipla de sentidos pode se
ver em sua totalidade pelos olhos dos outros e da visão que tem dos outros, põe-
se a dialogar, partilhar o que viu. Uma maneira de dialogar é apresentar-se, dizer
quem pensa que é e a que veio, enquanto busca a confiança do leitor.
E assim, esperar que este conto do trabalho de uma professora de música seja
aceito como contribuição aos estudos sobre o ensino para que entre outros
objetivos, estimule a pensar sobre como as pessoas se tornam no que são, como
encontram e escolhem caminhos humanos tão particulares de aprender.
Sendo uma história comum
6
(embora única e múltipla de sentidos), seus ecos e
reverberações potencialmente amplificam os sentidos do comum da vida das
pessoas e tiram da invisibilidade as produções de conhecimentos concretizadas
nas ações. O que nos tira da invisibilidade é a nossa obra
7
. Em casos
excepcionais a ponto de se perpetuar por séculos, são as obras que têm
projeção. As vidas? Elas são simples, múltiplas, únicas vidas, ainda que sejamos
especiais para quem nos ama.
No caso de Mozart (diferentemente de Beethoven, por exemplo) a
relação entre o "homem" e o "artista" tem sido um elemento
especialmente desconcertante para muitos estudiosos, porque o
quadro que emerge das cartas, relatórios e outras evidências
combina mal com o ideal preconcebido de um gênio. Mozart era um
homem simples, sem nada particularmente impressionante para
quem o visse na rua, muitas vezes infantil e, nas conversas
particulares, estava muito longe de poupar metáforas relativas a
excrementos (ELIAS, 1995, p.55).
Pois é, surpreendente, não? Por outro lado, também óbvio, sem vida não há
obras ou quem as observe, ouça, frua.
6
Mas esses mundos concretamente individuais, irrepetíveis, de consciências que realmente agem (...)
incluem momentos comuns - não no sentido de conceitos universais ou leis, mas no sentido de momentos
constituintes comuns em suas várias arquitetônicas concretas (BAKHTIN, 2003, p. 56).
7
Segundo Heidegger (1977, p. 11) o artista é a origem da obra (de arte). A obra é a origem do artista.
Nenhum é sem o outro. E, todavia, nenhum dos dois se sustenta isoladamente. Artista e obra são, em si
mesmos, e na relação recíproca, graças a um terceiro, que é o primeiro, a saber, graças àquilo a que o
artista e a obra de arte vão buscar o seu nome, graças à arte.
15
No caso das professoras e professores nas salas de aula, as obras são o como, o
quê, o porquê ensinam os saberes que ensinam. Curriculares ou não, atos
esperados ou desesperados, emoções contidas ou liberadas, conhecimentos
informados, explicados, construídos ou partilhados, todos escondidos na
invisibilidade do sem-registro, do sem-diálogo, do sem-importância, que na escola
aconteceram. Lugar onde se ensina e se aprende sem que se alardeiem esses
feitos: comuns. Tão especiais e únicos. Tão in-visíveis e in-diferentes para seus
autores/atores/professores como os atos cotidianos mais in-significantes, por
rotineiros, que nem se dá conta de sua existência na sala de aula.
Dessa forma de olhar não devem causar conflitos. A grande tensão, para mim, a
que convulsiona a vida e dá desejo de criação e resolução
8
é a percepção de si
como consciência real e criadora imersa no mundo da vida e da cultura. É a
percepção de que aquilo que sente tem força mobilizadora e que os instrumentos
nem sempre estão à mão. Oferecem a resistência que anima, por exemplo, a obra
de arte e com certeza está nos atos de muitas pessoas comuns.
Este é o outro motivo de contar desta forma minha vida: o fato de ter enfrentado a
tensão me levou a esta pesquisa e acabou se tornando o que escrevo e que
nessa ação me tirou do comum da vida que conto ao produzir uma obra que o
leitor amavelmente lê. Sou, ao mesmo tempo autora e personagem. Uma autora
que enfrenta a resistência dos materiais, instrumentos, ações - dos outros e de si
- para contar uma vida comum.
Escrever é parte de um processo complexo. Enquanto não termino este texto, a
cada leitura encontro outro desejo de palavra, outro sentido não tão bem
abordado.
Vou a busca dos indícios
9
de minha formação
10
em meus guardados, aqueles que
não estavam oficializados em documentos ou não eram curriculares, como as
8
A questão abordada, da tensão causada pelos conflitos que vivemos e nos levam a problematizá-los,
fornecem-me uma metáfora para compreensão das mesmas palavras usadas na Música. Falo do sistema tonal.
É um sistema de construção musical que domina o discurso ocidental até os nossos dias. Baseia-se na
produção de células, motivos, frases e desenvolvimento, encadeados de maneira a levar à tensão e na fatal
resolução provocada pelo relaxamento. Tanto a tensão quanto o relaxamento são obtidos por uma
combinação de notas potencialmente presente no próprio sistema.
9
Quando o tamanho da citação não exige extração do corpo do texto, diminuição da fonte e recuo, prefiro
usar o itálico como destaque às palavras de outros, ao invés das aspas dúplices, que quando aparecem são
retiradas do texto original, para não confundir com o uso das aspas simples. O mesmo procedimento será
utilizado nas retomadas das citações em diferentes partes do texto. Digo indícios, no sentido de sinais que
levam a outras buscas ou a comprovações de memórias, conceitos utilizados por Ginzburg (1989, p.177).
16
leituras da adolescente que fui, e descubro mais um motivo para as escolhas que
me trouxeram até esse momento de recordar e inventariar minhas lembranças: o
livro Biplano (BACH, 1975). Os registros de viagem de um aviador que afirma que
a vida tem muito mais graça quando se toma gosto pelos riscos. Ele, o
personagem de enfrentar os céus e as pistas de pouso sem instrumentos de
navegação. Esta que aqui escreve, de mergulhar nos 'perigos' da narrativa, e se
perguntar, como se fosse ela o aviador-personagem ao levar aos us o avião
que estava destinado ao museu, como é, aeroplano, o que você ia preferir, um
assoalho lustroso de linóleo e uma vida tranqüila atrás de uma corda de veludo
cor de púrpura, ou esta incerteza da lama e do luar, das pás tortas e das pontas
das asas rasgadas? (Id., 1975, p.32)
Hoje, na recuperação das memórias, confirmo ao leitor o desejo de sobrevoar
trovejando (est)as paisagens, de enfrentar situações difíceis e desconhecidas (ou
comuns e invisíveis), quando poderia ficar a salvo atrás da escrivaninha (Id., ibid.,
p.23), com a convicção que estes outros modos de buscar, talvez apontem estas
outras formas de, ainda, buscar. Mas deixando as pistas, partilhando as emoções
e os aprendizados do caminho. E quem sabe encontrar outros conteúdos,
aprisionados pela corda de veludo.
No entanto, 'os outros' modos estão se mostrando muitas vezes, entremeados
pelos paradigmas do ensino nos quais me eduquei - tradicional, pós-moderno e
emergente (TAVARES; ALARCÃO, 2001, p. 98-114) -, que não se eliminam uns à
entrada dos outros, no tempo. Antes se determinam uns aos outros e coexistem
nos processos e contextos de minhas atitudes, por isso é possível que o leitor
identifique no texto indícios desses modelos de educação que me formaram, mais
do que aquilo que da proximidade de meu olhar pude enxergar.
Logo de largada, nas iniciativas (tradicionais?) da família - musical e escolar -,
como se canta na letra/música de Abel Silva/ Edu Lobo, é lá, o início de tudo, o a-
bê-cê-dê, de lá caminhos da vida e você (...) é lá, o início de tudo, o Dó-Ré-Mi-Fá,
de mistérios do mundo, viver... (A família, 1984. CD Rá-Tim-Bum) e nos jeitos
(pós-modernos?) de escolher as palavras, nos modos de contar emoções e
razões, disciplinas e desorganizações, tensões e relaxamentos.
10
Conceito de formação entendido de um ponto de vista amplo, como o conjunto de experiências formativas
ao longo da vida, ou seja, todas as experiências que produziram aprendizagens (SOLIGO, 2007, p. 11).
17
Conforme vou escrevendo enxergo-me atravessada pelos modelos da tradição
com sua função de modelar, docilizar e disponibilizar o cidadão para receber e
reproduzir os ensinamentos dos mestres para viver numa sociedade conhecida a
priori (TAVARES; ALARCÃO, 2001, p. 97-101). Pela pós-moderna dúvida de
todas as certezas (dialética), me vejo pensar o sujeito como alguém que pode
construir a partir de si mesmo (maiêutica) as suas representações sensoriais,
perceptivas, lógicas, mas em interação permanente com a realidade construída
que lhe serve de referente e cuja interpretação permite-lhe estabelecer
significados, produzir sentido(s) (Idem, ibidem, p. 97-101). Porém, o que o leitor
encontrará?
Assistimos a um desnorte cada vez mais acentuado em termos de
referenciais. Embora o homem continue à busca de valores
absolutos, em sua experiência cotidiana encontra valores
relativos. (...) é preciso analisar essa nova sociedade, compreendê-
la, avaliá-la, tomar decisões informadas por uma inteligência menos
cerebral e mais emocional. (...) Em relação aos percursos de
formação e aprendizagem é preciso (...) combinar, em uma lógica
de articulação (...), a produção e a aquisição de saberes, a tradição
e a inovação, as lógicas racionais e as criativas, as lógicas da razão
e do coração (TAVARES; ALARCÃO, 2001, p.102-103).
Na vivência da música espero ir conseguindo, com as lógicas do coração e da
razão, imprimir sentido a esse conto enquanto me con-formo na escrita e
recupero o que aqui me traz, uma pesquisa sobre a formação (SOLIGO, 2007,
p.11) do/a educador/a musical partindo das primeiras lembranças e dos caminhos
imbricados de tradição e inovação que levaram a pesquisadora, então aprendiz
de piano, à profissionalização.
E finalmente, a partir dos conflitos iniciais na/da música com a vida, o encontro da
valorização interpessoal e relacional, no diálogo - responsável e responsivo
11
(BAKHTIN, 1989, 1993, 2003) para com a alteridade do outro -, que permite
partilhar os modos de enxergar-ouvir-ler os sujeitos e suas produções
historicamente situadas, delinear e aprender com eles outros percursos. Uma vida
11
Conceitos de Bakhtin, 1989, 2003, 2007. Do radical responsa vem as palavras resposta, responsabilidade,
responsividade, respondibilidade. A responsabilidade é um ato em duplicidade, pois é fundado na
responsividade com a alteridade ou o outro para quem eu sou eu; um outro que é duplo: quem me sucedeu e
quem me sucederá, portanto é histórico (anotações próprias das aulas de Wanderley Geraldi, em outubro de
2007, na FE-UNICAMP).
18
que é vivida com a música num mundo onde a ciência e a tecnologia tornaram-se
valores que se sobrepõem à arte.
Desde as MEMÓRIAS DE FUTURO, quando as lembranças que são acionadas
tomam minha voz para um fim determinado, por valores e princípios, (...) falar de
uma menina (...) como tantas outras (...), jogando queimada e 'conversa fora' nas
quentes noites de verão, nas noites frias de inverno, e nas tardes chuvosas de
março limpam-me o suor e a alma - e me colocam uma responsabilidade: as
projeções presentes do passado com olhos para o projeto de pesquisa; passando
pela construção historicamente pessoal e profissional DA NARRATIVA
12
que é um
instrumento que implica o pesquisador em sua pesquisa, o professor em sua
prática, o músico em sua música, o professor de música em sua prática-teoria
musical e pedagógico-didática POTENCIAlizando esta escrita e o enfrentamento
dos materiais - palavras-sons-sentidos-outros-si - levando a UMA ESCUTA DE
PROFESSORA DE MÚSICA sobre os anseios de aprender/ensinar dos jovens
estudantes de Educação Musical (UNESP - 2005) e fechando com uma abertura,
um POR VIR ÉTICO, onde trago as considerações sobre o processo da escrita
pesquisa-narrativa.
MEMÓRIAS DE FUTURO é o capítulo que contém o memorial de formação. No
Programa de s Graduação em Educação (PPGE) stricto sensu, o memorial de
formação é costumeiramente um documento que conta sucintamente a história de
vida do/a pesquisador/a, muitas vezes não é incorporado ao corpo do texto da
pesquisa, tem a intenção de saber o que o/a levou a esse lugar. No caso deste
texto avantajou-se principalmente depois do Exame de Qualificação, com o
acordo firmado verbalmente entre os convidados da banca, a orientadora e a
pesquisadora, justificando-se porque me apresento em busca de fundamentar o
conflito causado nos anos de formação.
O memorial introduz o meu conto-pesquisa imitando a forma que sugeri em nosso
primeiro encontro, à novela de formação dos rapazes e moças, futuros
professores e professoras do curso de Licenciatura em Educação Musical,
produtores de narrativas-dados da pesquisa, com objetivo de saber como pensam
o que os trouxe a este curso. Não havia, então, qualquer pretensão de torná-la
12
Título emprestado das falas de Guilherme do Val Toledo Prado, em aulas e encontros, desde 2001, no
Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Continuada (GEPEC), Universidade de Campinas - UNICAMP.
19
pesquisa acadêmica, mas sim a posição de pesquisadora
13
que tem o ser
professora, que indagava suas experiências para planejar os semestres/anos
letivos que porventura ocorressem, ou seja, a formadora buscava aprender com
suas práticas para - sempre - melhorar suas aulas. Conhecer melhor os
estudantes, procurar sinais em suas palavras de um(s) caminho(s) para aproximar
o ato didático entre a ementa curricular e o panorama das necessidades e
interesses da turma.
O desafio do/a professor/a pesquisador/a que investiga o cotidiano
de sua prática é, portanto, tentar superar - em alguns momentos - a
heterogeneidade e as ultrageneralizações, dar conta de
"suspender" o cotidiano e interrogar seu trabalho, fazer a crítica e a
auto-crítica, estabelecendo novas relações, dialogando com a
realidade e convocando interlocutores nesse movimentode
criação/produção/quaestionamento de conhecimento (PRADO;
CUNHA, 2007, p.65).
O meu memorial foi elaborado de maneira a dar visibilidade aos acontecimentos
que se tornaram categorias especiais desta narrativa, como um recorte
necessário de uma vida comum, naturalmente complexa como qualquer outra,
que as vidas não se resumem a categorias de pesquisa. Um recorte do passado
com olhos para o futuro.
Desde as lembranças mais remotas: o desejo de aprender, desde as
primeiras relações com a música na vida em família tradicional, burguesa e na
escola pública tecnicista dos anos sessenta e seis a setenta e quatro, nos anos
da ditadura militar, a formação de uma identidade fundada na escolha de arriscar-
se como quem levanta um troféu, como algo de que se orgulhar, semelhante às
histórias dos heróis, muitas vezes anônimos, vítimas das atrocidades militares. O
cerne desse capítulo está na busca das origens conscientes do desejo de
aprender e a atribuição a meus pais desta dádiva. Da inevitável comparação com
minhas irmãs, sendo que o mesmo modelo de educação não as influenciou,
lembrando-me como que nós, professores/as, não atingimos, motivamos,
incentivamos, instigamos de maneira idêntica numa classe nossos alunos/as, em
13
A pesquisa do professor tem seu espaço/tempo de construção no cotidiano da escola. Um cotidiano de
encontros, desencontros, expectativas, juízos de valores, contradições, conflitos, afetos, planos, projetos. Um
cotidiano com muitas solicitações e demandas, imprevisível, diverso (PRADO; CUNHA, 2007, p.63).
20
nossas ações ltiplas de sentidos. Porque desistência? Ou ainda, porque
insistência? Trago Charlot (2005) para me ajudar a deixar essa pergunta.
Aprendizado 'passivo'. 'Co-partilhamento estético', traz a tensão que semeou
esta pesquisa, a partir da busca do exercício da narrativa durante a formação dos
estudantes de Licenciatura em educação musical, retomando o passado, tentando
buscar sua origem, o sentimento de isolamento que o desejo de falar sobre a
música e as sensações que produziam com outras pessoas. Alguém que não teve
contato com conhecimentos musicais pode não conseguir avaliar seus processos
específicos, como se expressou recentemente uma coralista
14
nos primeiros
meses de ensaios: eu não sabia que para cantar era preciso pensar tanto.
Conto um episódio que marcou a escrita da pesquisa: o isolamento talvez não
existisse de fato. Com uma manifestação saudosa do 'meu piano', minha mãe me
faz olhar de outro modo meus sentimentos e atribuir à relação 'passiva' com o
meu estudo ou a uma provável iniciação musical, nos tempos em que fez o
magistério, no Canto Orfeônico (GUIMARÃES, 2003) uma companhia, mesmo
que não tenha me deixado perceber. Daí encontro Pelinsky (2006), para discutir a
naturalização do som, que o cala, contrariamente à percepção intencional que o
torna um fenômeno estético; acessando nosso imaginário (MARTON; ALMEIDA,
2007); inaugurando as Tertúlias Musicais (CHAIB, 2006); reavaliando meus
conceitos. Estes atravessamentos são possibilitados pelo método de pesquisa.
Faço uma incursão às experiências estéticas com a música e os mundos que ela
traz em sua dimensão sonora do pensamento.
Ter aulas de piano é muito parecido com ter um leitor que retorno para este
texto. Alguém ouve a música que estudei e diz o que sentiu do que ouviu, faz
sugestões, percebe potências, aponta o que eu não havia visto; percebe
desconhecimentos. Conta o que sentiu do que ouviu, incentiva a continuidade,
alimenta o prazer de estudar e voltar na próxima aula e mostra que mais a
aprender. É um caminho sem fim, é um processo que não acaba e isso é bom.
Mas o tempo acaba. que voltar depois. que encerrar por enquanto. Ao
demonstrar a abertura à expressão de 'minha' sica, o professor/leitor consola,
apóia, incentiva, ensina. E aprende. Ao tentar contar minhas aulas de piano
enfrento a dificuldade que tenho em me aproximar desse algo que me é tão
14
Uma das atividades que realizo é a regência coral. Esta experiência relatada é a de um grupo que iniciou
suas atividades em abril de 2007, no qual a maioria dos/as coralistas nunca havia cantado em corais.
21
comum. É de onde me é mais difícil ficar a uma mínima distância que permita
enxergar o que é mais relevante para o encaminhamento desta pesquisa. Fui
buscar detonadores para minhas lembranças - uma caderneta de aulas ainda
conservada entre meus guardados, gravações de master-classes (BAREMBOIM,
2006), ensaios de orquestra (JANSEN, 1997), re-construções de minhas práticas
como professora e habilidades que conheço como necessárias ao aprendizado de
qualquer instrumento musical, ou da voz
15
. Busco em professores de música,
pesquisadores e musicólogos (ARONOFF, 1974; MENEZES, 2003; REQUIÃO,
2001; BASTOS; PIEDADE, 2007; CANO, 2006; RIBEIRO, 2005) apoio e
fundamento às minhas perceões.
Formação universitária. Profissão. Nesta segunda parte do primeiro capítulo
conto como se deu a minha formação acadêmica em música e a formação
profissional. Mostro a importância do aprendizado no círculo de amizades entre
músicos e musicistas, mas fora do meio universitário. Os conhecimentos
específicos dessa área de atuação, também entraram em minha vida por os
amigas, aos poucos fui encontrando meus caminhos nas bibliotecas. Conto como
se deu a entrada no ensino regular, para o ensino de crianças em classes, muito
diferente das habituais aulas individuais de instrumento, ou em pequenos grupos
que se dirigiam por interesse espontâneo para o aprendizado musical. As marcas
que me deixaram duas experiências que definitivamente me conquistaram para
esse campo da educação musical nas escolas. E finalmente conto como fui
sentindo necessidade de buscar novamente ajuda para dialogar sobre os conflitos
pessoais, profissionais, humanos da busca de conhecimento e descobri a
pesquisa. E a pesquisa narrativa.
No segundo capítulo, A potência da narrativa, falo sobre o método de pesquisa
a partir da característica humana de narrar-se. Conto como os exercícios
narrativos se tornaram dados desta pesquisa sobre o uso da narrativa no
processo de formação do licenciando em educação musical. Desde seu
nascimento numa consciência musical que buscava expressar-se verbalmente.
Tanto criando dados para uma análise posterior como servindo de próprio corpo
da pesquisa, como gênero de linguagem. Aqui, a narrativa é informação e
15
Cada vez que me referir a instrumentos musicais, a voz está entre eles, como o instrumento do/a cantor/a.
22
formação. É dado de pesquisa e meio ou instrumento de pensamento e
comunicação. Assim como o pensamento permite que se invertam as ordens do
tempo, no sentido de que uma necessidade ou descoberta presente pode nascer
quando se recorda o passado ou se vislumbra um futuro desejado, permite que
diversas linhas de tempo se interpenetrem e dessa forma, ajudam a ir
organizando o pensamento - verbal - conforme o próprio pensamento se organiza
no exercício da palavra escrita, nesse caso. Tanto se escreve nesse processo
que outros aprendizados acontecem e acabam por ajudar na organização o
do texto, mas do pprio pensamento. Iniciam-se buscas não delimitadas pelo
método, mas no método, que nem se imaginava a necessidade, se tornaram
conscientes na escrita - narrativa. Foram feitos estudos para descobrir
dialogicamente como outras pessoas pensam ou pensaram a respeito de
acontecimentos e dramas semelhantes no passar dos tempos e foram produzindo
arquitetonicamente sua teoria e história. A história pessoal produzida na interação
e se tornando história humana.
Em seguida, no terceiro capítulo, A formação de educadores musicais e as
narrativas pedagógicas, especifico os acontecimentos de cada tipo de exercício
que deu origem ao material que se tornou dado desta pesquisa e em quais
circunstâncias foram produzidos. Também a relação entre aprender música e falar
sobre isso para ensinar: assunto germinal deste trabalho.
Uma escuta de professora. De música, é o capítulo da análise desses dados
fundamentados pela história de uma professora de música que se incomodou
com os conflitos do dia-a-dia da escola e do ensino de música. Partiu de volta à
universidade para estudar, discutir, desvendar coisas que por não saber
incomodam. Ingressou então como professora num curso acadêmico de formação
de educadores musicais e quis se aprofundar nas descobertas e nas perguntas
deixadas nesta experiência, por compreender a força de nossas vidas relatadas.
Re-construo-me no ato da escrita e me mantenho dentro dos objetivos desta
dissertação a duras penas, para justificar uma vida comum sendo
despudoradamente contada como especial, peculiar, aconselhadora, histórica
numa unicidade coletiva.
23
Assumo-me pesquisadora 'aventureira', abrindo picadas na mata. Mas ao mesmo
tempo, contadora ancestral de histórias. E peço licença à minha orientadora, que
tem a sabedoria dos meandros da formação acadêmica e das dimensões
cognitivas e emocionais de seus orientandos/as e se esmerou para me deixar
livre na minha determinação, observando-me buscar autonomia. Papel de
professora.
Eu aconselho sempre aos estudantes pouco aventureiros que
optem por caminhos mais clássicos e que sigam uma via
monodisciplinar bem balizada por uma figura de proa,
intelectualmente irrepreensível no quadro da cidade sábia (Barbier,
1996, p. 18-19 apud CORTESÃO, 2004).
Talvez saiba que não havia como sossegar meu espírito, misto das tantas almas
que me compõem: a música, o risco, a paixão, o atrevimento, a ousadia, os
equívocos; também a sinceridade, o estudo, a convicção e respeito pelos outros a
ponto de mostrar-me como sou/estou nesse provisório momento da minha
existência.
24
2. MEMÓRIAS DE FUTURO
25
(...)efetivamente nunca creio até o fim que sou apenas o que de fato sou aqui e
agora, completo-me com o vindouro, o desejado, o devido; só no futuro está o
centro real de gravidade da minha determinação de mim mesmo.
BAKHTIN, 2003, p.115
A maioria dos seres humanos atua como os historiadores: só em retrospecto
reconhece a natureza de sua experiência.
HOBSBAWN, 1995, p. 253
2.1. Desde as lembranças mais remotas.
2.1.1. O desejo de aprender.
Em minha família éramos quatro irmãs 'em escadinha', com um degrau vazio
entre a primeira e a segunda menina e um irmão 'temporão' que deixava quatro
degraus vazios: em dez anos, minha mãe teve seis filhos, perdeu um.
Mamãe, professora formada na Escola Normal, foi a primeira de sua família a
avançar nos estudos, dando aulas particulares para colegas para financiar a
viagem para Araras, pois não havia em Leme curso secundário. Mas se casou
para ser 'dona-de-casa', cortava, costurava, cozinhava, tricotava, cantava,
contava, fazia bolinhos de chuva. Agora virou escritora: de contos, poemas e
crônicas, que ninguém é de ferro e o dia-a-dia precisa de alguém disposto a 'botar
a boca no trombone' senão para provocar mudanças, pelo menos para dizer o
que viu.
Papai foi para um internato, em Campinas, no Colégio Cesário Mota, onde fez os
primeiros dois anos do que hoje é o Ensino Fundamental II, pois em Leme
havia 'Primário' (Fundamental I). Segundo minha mãe, quem 'trouxe' o Ginásio
'Newton Prado' foi o avô Petit (pai de meu pai).
Essas conquistas ligadas ao ensino sempre foram extremamente valorizadas em
casa. No Secundário, papai foi morar numa pensão em São Paulo para estudar
química industrial no Instituto Mackenzie. Havia ares de orgulho pelo estudo de
meu pai além do secundário. tirou o brevê, que é a licença para voar
16
. Se
um motivo que pode conectar-se à história da jovem leitora de Biplano?
16
No Centro acadêmico do curso de engenharia do Instituto MacKenzie, chamado 'Horácio Lame', tinha um
aeroclube e um avião para os alunos que queriam se brevetar! As histórias que embalam e
dão sentidos às
26
Nós, as quatro irmãs, fomos 'colocadas no piano', cada uma à sua hora, em
tempos que havia relativa tranqüilidade financeira em casa. O caçula, o irmão que
nasceu quando eu já tinha completado dez anos e que dizem que ajudei a cuidar,
não pode aproveitar dos tempos de abastança.
Mamãe dizia - diz até hoje, quando quer declarar que deu a todas a mesma
chance de aprender música - que música é tão importante quanto outras
matérias, opinião que a vida tem mantido intacta em minhas convicções também.
Quando surge esse assunto, segue a ele a história do tombo que ela levou de
uma balança, batendo a cabeça e 'perdendo' o ensinamento das aulas de piano
que ela recebeu. Sempre acho muito esquisito isso e me surpreendo ao ouvir esta
história que nunca é a mesma da vez anterior, mas não adianta protestar: como
nunca se sabe se é um problema de quem ouve ou quem conta, vira lenda, com o
direito de quem conta um conto. E aumenta um ponto.
Talvez a chance igual para todas tenha sido a multiplicação por quatro das
chances de realização de um seu desejo.
De qualquer modo, não houvesse o seu desejo, talvez hoje o meu ato não seria
escrever estas palavras. Seja como for, o que quero contar são os acasos e
indeterminações que me levaram a estudar piano e às minhas irmãs de
desistirem. De não aproveitarem as mesmas chances. Provavelmente tiraram
delas outras lições.
Tenho uma lembrança vaga dos momentos que elas começavam as aulas de
piano e de algum comentário da mamãe e também da professora quando
desistiam. A atual ocupação de pesquisadora é que me faz recuperar esses fatos,
por causa da escrita deste memorial e das semelhantes desistências que vejo
acontecerem como professora nas as aulas que têm caráter opcional: não há
possibilidade de desistência quando as aulas fazem parte da grade curricular (no
caso da escola em que trabalho, no Ensino Fundamental I). Quais seriam os
motivos de desistência?
O que me fez persistir quando outros desistem? O que aconteceu para que eu
estabelecesse laços com a música e minhas irmãs não? Porque crianças com
histórias que produzimos: sempre andou no meu imaginário uma façanha dele, nos tempos que ainda
namorava uma mocinha que acabou se tornando minha mãe. Numa bela tarde, levou a namorada para passear
e deu uma pane no motor. Ele teve que fazer um pouso forçado na Rodovia Anhanguera, por volta de 1955,
quando se constatou depois que um papel impedia a passagem de combustível para o monomotor do
Paulistinha CAP-4.
27
extrema facilidade de aprendizado musical não encontram prazer nesse saber?
Porque outros, que parecem ter tanta dificuldade, inclusive expondo-se à crítica
dos colegas, insistem sem perder o interesse? Parece que todas as combinações
são possíveis.
Charlot (2005, p.37-38) me ajuda a pensar em sentidos para isso. Mostra que o
desejo humano de aprender nem sempre é atendido no prazer pontual do objeto
do saber, como aprender tocar ou cantar. Que a singularidade de cada sujeito é
tal que da mesma humanidade e da mesma sociedade outras relações são feitas
pelo sujeito com o desejo do saber.
A relação com o saber é o conjunto de relações que um sujeito
estabelece com um objeto, um conteúdo de pensamento, uma
atividade, uma relação interpessoal, um lugar, uma pessoa, uma
situação, uma ocasião, uma obrigação, etc., relacionados de
alguma forma ao aprender e ao saber - conseqüentemente, é
também relação com a linguagem, relação com o tempo, relação
com a atividade no mundo e sobre o mundo, relação com os outros
e relação consigo mesmo, como mais ou menos capaz de aprender
tal coisa, em tal situação (CHARLOT, 2005, p.45).
uma quantia muito grande de variáveis e não uma simples relação entre a
desistência do estudo com a facilidade de aprendizado. De qualquer maneira,
sem o desejo pontual de aprender, a facilidade é um instrumento sem uso para a
realização de um ato.
Ao falar sobre o início de meu contato com a música surgiu esse tema que voltará
a aparecer nas novelas de formação dos estudantes da UNESP, que é a questão
dos motivos que levam alguém a aprender música e continuar nela,
profissionalizando-se ou caminhando nessa direção. E as desistências que são,
com certeza, um dos conflitos para qualquer professor/a de música.
2.1.2. Aprendizado passivo'. 'Co-partilhamento estético'.
Desde o esforço de adquirir um instrumento muito caro para o 'departamento
financeiro' familiar, até a disponibilização de um cômodo de cada casa que
moramos, vejo o quanto meus pais foram providentes, generosos e amorosos, se
protegendo da invasão sonora ao mesmo tempo em que davam liberdade. Logo
28
que ninguém mais estudava piano am de mim, fiquei com toda essa estrutura
para meu benefício e desenvolvimento.
Quem tiver estudante de piano
17
em casa sabe com que força o seu volume
invade todos os cômodos da casa, é um instrumento musical pós Revolução
Industrial, quando o barulho das cidades exigia maior volume nos instrumentos
musicais. E a técnica acompanhou a necessidade
.
A revolução Industrial na Inglaterra, o país que, por uma infinidade
de razões, tornou-se o primeiro a se mecanizar, ocorreu
aproximadamente entre 1760 e 1840. As principais mudanças
tecnológicas que afetaram a paisagem sonora incluíam o uso de
metais, como o ferro e o estanho fundidos, bem como novas fontes
de energia, como o carvão e o vapor (SCHAFER, 2001, p.107).
Além de que estudar é ato íntimo, de busca de si, mesmo que acusticamente
exteriorizado, ou dizendo de outra maneira, que faça muito barulho. Para o estudo
de um instrumento há que fazer inúmeras tentativas até que se consiga tocar uma
música que quem toca e quem ouve reconheça como música. Isto quando o
gênero estudado reflete ambos os gostos. Alguma vantagem nesta ação, pelo
menos os 'ouvintes passivos' de casa desenvolvem alguma ligação com a música
pela escuta, como pude constatar de uma fala da minha mãe pouco tempo.
Com o que não concorda a pequena estudante de flauta doce, Giovanna, de seis
anos: tocar é muito melhor que ficar ouvindo
18
.
O estudo pode levar os demais membros da família ao 'aprendizado passivo' da
escuta da música. Se como afirma Pelinsky (2005), baseado em estudos
17
Descendente do dulcimer nos sistemas de cordas e martelos e do cravo e clavicórdio no que diz respeito
ao teclado, o piano moderno tem uma armação de metal para suporte e tensão das cordas e pode ser de
cauda (com as cordas em posição horizontal) ou de armário (com as cordas na posição vertical). Embora
haja um consenso que tenha sido inventado entre 1798 e 1800 por Bartolomeo Cristofori, ganhou a
armação de ferro que possibilita usar as cordas com maior tensão que a da armação de madeira que
substituiu, produzindo sonoridade mais cheia a cerca de 1835 (Dicionário Oxford de Música, 1994, p. 546-
548).
18
Tenho por hábito convidar as crianças para entrar na sala de aulas de instrumento ou coral enquanto
esperam a sua vez, como uma maneira de observarem os/as colegas aprendendo aquilo que conseguem
fazer, ou por outro lado, algo que percebem ainda não conseguirem. Esta possibilidade ocorre num projeto
especial no Colégio que ensino, que chamamos Escola de Arte, e que funciona no período contrário ao das
aulas regulares para quem deseja, se inscreve e assume o compromisso por pelo menos um semestre letivo. A
Giovanna é uma dessas crianças.
29
fenomenológicos e suas próprias pesquisas, acontece com os ruídos de uma
fábrica, na vivência diária, posso inferir que também com a música, na casa de
quem estuda regularmente e submete a família a esse hábito.
Si trabajo en una fábrica y oigo de lunes a viernes los ruidos más o
menos estridentes que producen las máquinas, puedo, aparte de
taparme los oídos, hacer al menos dos cosas: oírlos en actitud
natural como lo que son, una sucesión más o menos imprevisible y
molesta de ruidos; o bien, puedo escucharlos en actitud estética,
como una sucesión de sonidos con principio, medio y fin (¡aunque
no siempre en el mismo orden!), organizados según alturas,
colores, texturas y ritmos determinados. En el primer caso los
ruidos pertenecen al mundo real, objetivo; en el segundo, ingresan
al mundo fenoménico de la percepción intencional en la cual se
convierten para en fenómeno estético, como una totalidad
organizada, distinta de su materialidad natural. En cuanto objetos
de percepción estética, cesan de pertenecer tanto al mundo físico
de los ruidos como a un mundo platónico ideal en el que se
manifestarían como idea pura. Su existencia es intencional, dado
que en dicha calidad lo existen en cuanto yo los percibo como
objetos de contemplación o placer estético (PELINSKI, 2005, p.11).
Algo parecido com o que acontece com os fumantes passivos, mas não é nocivo
à saúde
19
, e permite conversas sobre a experiência num 'co-partilhamento' das
emoções conduzidas pela música.
Minha mãe contou outro dia que sentia saudades de ouvir o 'meu piano'. Essa foi
uma declaração que abalava a leitura que eu fazia, sobre não ter com quem
partilhar minhas experiências musicais. E que este sentimento levou a
estabelecer uma busca constante de encontrar maneiras para falar sobre e da
música
20
: foi o principal motivo deste projeto e que me trazem a essa dissertação!
19
Ainda tenho que consultar se essas brincadeiras sérias, como diz Larrosa (2000) são elegantes numa
dissertação de mestrado. Se a narrativa traz em si uma atmosfera criativa, abre janelas para a criação, fico
pensando que sim.
20
tempos estudiosos da educação musical, quando tratam do discurso da e sobre a música, referem-se
respectivamente à prática e à teoria musical. Como se pode ver, hoje existem correntes contrárias a essa
opinião: A tendência da educação musical contemporânea aponta para um ensino unitário de música,
desprovido da separação entre o fazer música e o falar sobre sica, pois considera que ambos pertencem
ao universo do conhecimento musical. A literatura sobre educação musical nos dias de hoje advoga que a
única maneira de se chegar ao conhecimento musical é através dos parâmetros práticos da experiência, sem
os quais o indivíduo não terá acesso à música propriamente dita (HENTSCHKE, 1995). Disponível em:
<http://www.anppom.com.br/anais/08%20anais%20PB%201995/edmusmesa2.htm>. Acessado em: 10-11-
2006. Também Aronoff (1974) trata do assunto: La disciplina de la música incluye conceptos musicales,
30
Refletia: Como assim, mãe? Que tipo de saudade é essa? Não fazia sentido eu
nunca ter percebido essa ligação, muito menos que um dia lhe fizesse falta.
Além das cantigas de roda e brincadeiras que ela trazia de sua infância ou dos
tempos de magistério com seus três anos de Orfeão
21
(GUIMARÃES, 2003) e nos
ensinava, quase não ouvíamos música em casa. Tinha, também, alguns Long
Plays (discos de vinil) com músicas de Natal e me lembro de uma coleção
comprada nas bancas de revistas de histórias infantis carregadas de canções.
Mas as brincadeiras que envolviam música foram mais marcantes.
A mais constante forma de contato com música em casa
22
era o meu estudo de
piano. Talvez ao ser 'ouvinte passiva' enquanto eu estudava por horas e horas,
ela sentisse um prazer do qual não me dei conta. Talvez, ao ouvir-me estudando
acontecesse algo que, no fundo, para minha surpresa, co-partilhávamos.
Participávamos
(...) de um evento que a música previamente determina, livrando-a
(nos) dos recursos da representatividade e das representações,
acessando diretamente o seu (nosso) imaginário e sua (nossa)
intimidade, como estratégia cognitiva que mobiliza diversos estados
de ser e funciona como um revitalizador das energias psíquicas do
imaginário, porque proporciona processos de projeção e
identificação e duplicação do real, o que permite suportar a
insuportável realidade (itálico da autora) a que se refere Morin
(MARTON; ALMEIDA, 2007, p.3-4).
Nesse sentido, é compreenvel que sinta saudade de ouvir meu piano, acrescida
da lembrança de um tempo que estávamos toda a família em casa ainda, muito
práctica y conocimientos para ser aplicados, y conceptos sobre la música vinculados ao uso de la música en
las culturas pasadas y actuales (p 17-18).
21
Movimento coral implantado em nível nacional, O canto coletivo na Educação Infantil e no ensino
fundamental, título da Tese de Doutorado de Márcia Guimarães, por Villa-Lobos, e que fazia parte da
formação do professorado.
22
Além da TV. Felizmente nem tudo era ruim, como os Festivais da Canção (Disponível em:
<http://www.geocities.com/altafidelidade/festicancao.htm>.Acessado em: 25/11-2007), mas que não nos
enganemos: Em um estudo pioneiro publicado na década de 1970 no Journal of Communication, Patricia
Edgar, uma especialista australiana, pesquisou 296 famílias sem televisão. O grupo estudado constituía uma
elite econômica e cultural. Os adultos eram mais escolarizados e ganhavam mais do que a média da
população. Mais de 90% eram membros de clubes e outras organizações e 96% afirmavam ter muitos livros
em casa. Mais de 40% tocavam instrumentos musicais e mais de 60% apreciavam música clássica. (...)
Alguns dos entrevistados registraram o sentimento de frustração e inutilidade que sentiam quando passavam
algum tempo diante da pequena tela. Outros compararam a sensação de assistir à tevê ao consumo de
drogas: a atividade reduz a sensibilidade e provoca uma preguiçosa inércia, além de restringir e
condicionar a dinâmica familiar. (THOMAS WOOD JR. Carta Capital. Disponível em:
<http://www.cartacapital.com.br/edicoes/468/pulmoes-e-cerebros/> Acessado em: 25-11-2007).
31
diferente de seu atual estado de morar só. Ouvir piano representa mais que ouvir
música, mas, de certa forma, não é sempre assim? O que importa, não é o que se
sente quando se escuta música? E o que fica mesmo que não se tenha
consciência?
experiências denominadas 'tertúlias musicais' desde 2003 na Espanha que
partem desse princípio e vão para o diálogo, com o objetivo de tornar consciente
a experiência, que denominam Escuta Dialógica.(CHAIB, 2006, p.1).
Em escolas de adultos espanholas, através de discussões
promovidas pelo Aprendizado Dialógico, perguntou-se se seria
possível fazer com que aqueles alunos pudessem compreender o
repertório da música erudita. Desta questão a partir de 2003 surgiu
uma forma mais democrática de apreciação musical, as Tertúlias
Musicais (CHAIB, 2006, p.1).
Aprendi com minha mãe que o saber era óbvio, necessário, importante. Com meu
pai, era uma aventura, uma descoberta, uma emão.
Meu pai, quando presente, mostrava encantamento ao ouvir-me contar os novos
aprendizados que me chegavam, mas vim a conhecê-lo assim quando eu
estudei em Limeira, no COTIL
23
e no Conservatório São José. Ele me ajudava a
dar conta dos afazeres, me levando de carro e encurtando o tempo e a distância
dos ônibus intermunicipais nas idas e vindas pela Rodovia Anhanguera.
Reclamava, mas no fundo sei que gostava daquela hora de conversa. Ia para
Leme nos finais de semanas e feriados para estudar, cinco, seis, oito horas por
dia para dar conta do repertório do Conservatório, que o piano ficou. O tempo
passou, e seus olhos ainda brilham quando falo do meu prazer de aprender nesta
outra fase de aluna, neste contínuo aprendizado que se prolonga no mestrado,
concentrando leituras de 'cinco anos em dois' (assim me senti).
É o boa a sensação recuperada pela memória durante esta escrita, de um pai
para ouvir-me contar descobertas e a mãe dando conselhos e costurando uma
roupa nova para cada fim de semana. Ambos supriam as necessidades e as
vontades assimiladas de bom grado pela classe média, no ambiente familiar de
uma adolescente equilibrada e ajustada aos hábitos e à ideologia do consumo,
onde a música era uma vivência diferenciada.
23
Colégio Técnico de Limeira - UNICAMP, Edificações. Entre 1984 e 1986.
32
A satisfação era limitada pelo sentimento de incompreensão que tinham da
música as pessoas que me importavam, o que revestia o prazer com uma capa
de decepção, que me isolava na música, criando um outro mundo.
Não é bom saber que alguém que amamos leu o mesmo livro que lemos,
conheceu os mesmos personagens, riu e chorou das mesmas passagens?
Se a música nos oferece a possibilidade de ascender a um imaginário sem tempo
e lugar determinados(...) Liberta fantasmas, desejos, receios, necessidades e cria
um mundo de possíveis (MARTON; ALMEIDA,
2007, p. 3)
era de esperar que
sonhasse levar quem mais me importava a esse mundo musical de possibilidades
imaginárias.
Ao sentir uma dificuldade que não compreendia, isolei uma parte de mim e
mantive o mundo da música afastado. Era uma tristeza mesclada com decepção.
Como não a nomeava, ficava junto com outros sentimentos também sem palavras
do mundo da música.
As chances que me foram dadas pela família, de desenvolver a percepção da
música e do fazer musical construída no estudo de piano, me levaram à
universidade e acabei por tornar-me educadora musical e formadora de
professores. Além disso, conduziram-me ao conflito e à frustração do não co-
partilhar as interpretações decorrentes de experiências com os conhecimentos e a
percepção da música. Ao mesmo tempo plantaram um ensinamento, mais ou
menos como a idéia mágica de Sartre (apud MARQUES, 2001, p.45-46):
(...) uma idéia gica que nos faz escrever por escrever (...); faz-se
uma palavra como se faz um castelo de areia quando se é criança,
pelo gosto de o fazer, não para o mostrar; ou então, se o
mostramos, os leitores são em todo o caso inessenciais,
exatamente como o são os pais a quem o garoto diz: 'vejam como
eu fiz um lindo castelo na areia', e a quem os pais respondem: 'mas
que lindo castelo de areia!'. Não sem certa decepção esbate-se
depois esse caráter mágico da palavra que tem uma história dentro
da história da língua e uma relação histórica com o escrevente.
Dizendo de outro modo, não sem certa decepção esbate-se depois esse caráter
mágico do som que tem uma história dentro da história da música e uma relação
histórica com quem toca.
33
Ao tentar falar sobre isso, encontro constantemente um muro de
(in)compreensões
24
sobre o assunto que barra minha argumentação e mobiliza
perguntas e estudos, a procura de maneiras de tratar desse assunto. Bakhtin
(1981) diz que nenhum signo cultural, quando compreendido e dotado de um
sentido, permanece isolado: torna-se parte da unidade da consciência
verbalmente constituída. A consciência tem o poder de abordá-lo verbalmente.
(...) A palavra está presente em todos os atos de compreensão e em todos os
atos de interpretação (p.38). Mas o conhecimento da música 'cria' uma outra
cultura em que nem todos estão imersos. Dá outros sentidos ao que se ouve.
Além disso, a dificuldade vem de que não se pode - isso compreendo de dentro
de minha participação responsável no mundo da vida e da cultura e da unicidade
do Ser e de todo e qualquer evento (BAKHTIN, 2003) -, afirmar o que outra
pessoa sente quando escuta uma música. Posso intuir. E falar sobre isso. Embora
seja um assunto ideologicamente delicado.
Também não posso dizer, sob esse ponto de vista, que alguns escutam bem e
outros, mal, ou que as emoções decorrentes da escuta são superiores ou
inferiores. Muito menos que, por exemplo, a música culta européia está acima da
música regional nordestina, ou do samba de morro carioca. Cabe perguntar:
acima ou abaixo de que? Do nível do mar?
Ironias à parte, é um assunto presente em conversas informais, mas a não ser em
complexos estudos na área da estética é mais provável que músicos evitem esse
assunto se não estão entre conhecidos, pois barreiras ideológicas permeando
a questão. Penso, no entanto, que quanto mais se cala, mais aumenta a distância
de chegar a um acordo que permita o diálogo. Quem sabe a partir da tentativa de
evidenciar essa diferença cultural estimule o partilhamento.
A verdade é a verdade, diga-a Agamenon ou seu porqueiro.
Agamenon: De acordo.
O porqueiro: Não me convence.
Antonio Machado/Juan de Mairena apud LARROSA, 2000,
p.149
24
Compreender um objeto é compreender meu dever em relação a ele (a atitude ou posição que devo tomar
em relação a ele), isto é, compreendê-lo em relação a mim mesmo no Ser-evento único, e isso pressupõe
minha participação responsável, e não uma abstração de mim mesmo. É apenas de dentro de minha
participação que o Ser pode ser compreendido como um evento, mas esse momento de participação única
não existe dentro do conteúdo, visto em abstração do ato como ação responsável (BAKHTIN, 1993, p. 19)
34
Ao tratar do 'ser ' da verdade e do 'dizer' da verdade, estes versos recordam a
verdade da cultura tradicional do ensino de sica erudita, que determinou a
ênfase no domínio da leitura e escrita musicais e da técnica instrumental
virtuosística como padrão, enquanto isso, diversificadas manifestações musicais
têm intensa presença na vida cotidiana do mundo contemporâneo, onde cumprem
diferentes fuões significativas, constituindo diversificado patrimônio musical
(PENNA, 2006, p.3) e que produzem diferentes verdades, a partir de diferentes
mundos de cultura.
Todo ato produz outros atos como resposta e ser responsável pelo meu ato e pela
maneira que ele responde ao passado, assim como pelas respostas que dele
virão a partir de minha memória de futuro
25
e meus projetos éticos
26
me
conduzem a falar da experiência ou contemplação estética, a não calar minha
opinião responsável.
A experiência estética da música é possível desde que ela seja (compreendida
como) um ambiente que não se contrapõe à personagem no horizonte dela, é
percebido como integral e pode ser como que contornado por todos os lados
(BAKHTIN, 2003, p.90). Desde que não traga as emoções de quem ouve para
dentro da obra e se confundam com ela, antes o direito ao ouvinte de fruir a
obra como objeto fora de si, acrescentando-lhe outros horizontes de
possibilidades.
Ou quando na música, as frases, texturas, e ritmos,
quando as cores, as linhas e a massa (na pintura ou na escultura),
em seu tratamento estético, são as fronteiras do objeto, do corpo
vivo, onde o objeto está voltado para fora de si mesmo, onde ele
existe axiologicamente apenas no outro e para o outro, é partícipe
desse mundo em que ele não existe dentro de si mesmo. [...]
(BAKHTIN, 2003, p.90)
.
O que faz o intérprete ou ouvinte defender as sensações (des)agradáveis
recebidas é a forma que não encontra fundamentação interna de dentro do seu
25
Conceito de Bakhtin (2003), são as memórias recordadas por objetivos que se projetam no futuro. Como as
memórias de infância iluminadas pela escrita dessa pesquisa.
26
Conceito de Bakhtin (2003), são éticos os projetos que respondem implicadamente aos atos que os
antecedem e se responsabilizam pelos que virão.
35
pensamento, de sua emoção. E que acontece entre o momento da realização
musical, empatia, e o momento da objetivação, cognitivo, que na música são
simultâneos.
Quando as sensações são recebidas passivamente como expressão de emoções,
como uma interpretação puramente expressiva da imagem externa, (imagem
sonora, no caso), quando não delimitação de fronteira entre a obra e o
intérprete/ouvinte, restando um horizonte vivido cognitivamente no presente de
uma obra que busca a satisfação do prazer (um ato de busca de prazer) e
deve degenerar fatalmente em algo hedonicamente agradável,
simplesmente 'bonito' e imediatamente agradável para mim, assim
como eu sinto diretamente frio ou calor, o autor cria tecnicamente o
objeto do prazer, o contemplador se proporciona passivamente
esse prazer (BAKHTIN, 2003, p.87-88).
A música envolve o ouvinte/intérprete, mas ele se entregará à fruição estética
se ela fizer parte de seu horizonte de compreensões, de modo que produza
sentido externo a ele, como contraposição a seu propósito de vida ético-cognitivo
no acontecimento aberto e ainda arriscado da existência, cujos sentido, valor e
unidade não são dados, mas sugeridos (BAKHTIN, 2003, p.89). Sem
compreender a música, não há fruição da arte, há sensações de calma, de
excitação, de transe, de alienação, de tristeza...
Ainda vejo um problema.
A partir da verdade exposta por Bakhtin, com a qual concordo, posso afirmar que
o hedonicamente agradável e simplesmente 'bonito' não é o mesmo que o
compreendido como arte. Mas em nome de que o outro que reconhece o objeto
do prazer como o prazer passivamente proporcionado irá aceitar um acordo para
o diálogo? E por meio de que instrumentos, se a compreensão da música não se
da noite para o dia? Se a percepção auditiva se constrói no desenvolvimento
lento de conceitos fundamentados em procedimentos e atitudes? (ZABALA, 1998,
2007)
Nesta seção, falei sobre a experiência estética, a compreensão da música e da
arte como objetos externos à vida e produtos da cultura, da verdade e da
responsabilidade dos atos, que respondem ao passado e que só podem ser
36
intuídos no confronto com os acontecimentos, as obras e os outros, na partilha
das emoções, no diálogo.
Tenho contado sobre os sentidos de aprender música, a intimidade do estudo e a
surpreendente vivência musical de minha mãe por meio de escuta passiva,
embora tenha vivido sua iniciação musical nos anos de Orfeão. Quando sentia
que não 'me' compreendiam quando queria conversar sobre música e me
afastava, provocando-me dor e solidão
27
, se formataram perguntas sobre o co-
partilhamento de emoções nas diferentes linguagens: música e conversa sobre
música. Hoje vejo que a dor e a solidão, talvez fossem devido a outros motivos, e
não vem ao caso me alongar sobre essas suposições, pois não têm relação com
esse conto.
2.1.3. Aula de piano. Memórias de como aprendia o que me ensinavam
(...) una correspondencia entre lo que se sabe de la partitura, lo que se quiere oír
y el gesto que debe provocar ese fenómeno.
BOULEZ apud PELINSKI, 2005, p. 18
Aprendi a tocar piano lendo partituras. Não muito mais do que chegar na casa da
professora, sentar-me no banquinho e começar a tocar, e de preencher, como
lição de casa, folhas e folhas com exercícios de colocar nomes nas notas das
pautas
28
, ou o contrário; soma e subtração de valores rítmicos
29
. Eram feitas
apresentações anuais, tenho fotos destas datas, mas só me lembro de uma delas,
em que 'deu branco', me esqueci da música! Recordo-me das aulas de teoria e
percepção com grupos de colegas de mesmo nível de conhecimento. Foram as
minhas primeiras experiências de solfejo a duas e três vozes e também de
27
Parece que certa espécie de solidão, mesmo quando nós mesmos nos impomos, continuam durante a
vivência profissional: A nossa experiência diária como profissionais de ensino superior evidencia que os
professores das mais diversas áreas de música acabam concentrando-se nas suas especialidades, muitas
vezes ignorando o que está sendo ensinado na sala ao lado. É provável que este fenômeno seja decorrente do
avanço do conhecimento e da conseqüente "clausura" que nos é imposta pela necessidade da super-
especialização (HENTSCHKE, 1995). Disponível em
<http://www.anppom.com.br/anais/08%20anais%20PB%201995/edmusmesa2.htm> Acessado em 10-11-
2006.
28
Pauta é um conjunto de cinco linhas paralelas, onde se escrevem as sete notas musicais, sinais redondos
colocados nas linhas e nos espaços.
29
Valores de duração do som, proporcionais uns aos outros e relativos ao andamento e à interpretação da
música em questão, ao estilo e à época.
37
realização de ditados rítmicos e melódicos. Ela me preparava para o
conservatório. Crescia e o estudo avançava quando, por volta de 12 anos, fui
chamada para substituí-la temporariamente nas aulas para os alunos mais novos.
Com o tempo nos tornamos amigas, conversávamos sobre a vida e até hoje
temos algum contato. Mas assuntos que tratavam de música e sobre a música
permearam nossas conversas depois que fiz a faculdade e me profissionalizei.
No Conservatório São José (Limeira) o procedimento das aulas não foi diferente.
A professora ia até a porta no fim do corredor de um casarão antigo com suas
portas imensas de duas folhas, sorria, chamava pelo nome, eu entrava na sala,
sentava-me ao piano, entregava-lhe a caderneta de notas e ela ia dizendo o que
queria ouvir. Mas nem precisava: começava-se pelas escalas
30
e arpejos
31
, em
seguida os estudos
32
, que variavam de acordo com o grau (sexto, sétimo oitavo
ou finalmente, o nono ano), Bach
33
, as sonatas
34
, as peças estrangeiras,
geralmente do chamado período Romântico europeu (aprox.1830-1900) e a peça
brasileira (uma por ano). Não me formei nesse conservatório, pois os horários das
matérias teóricas coincidiam com as aulas do Colégio Técnico.
No ano seguinte fiquei sem aulas de piano no primeiro semestre. Quando voltei a
estudar morava em Campinas, e tive aulas com a professora mais
recomendada do novo conservatório
35
. Era uma senhora alemã de avançada
idade - para os meus dezoito anos - e tocava maravilhosamente. Foi a primeira
vez que uma professora tocou 'mais que dois compassos' para mim. E como
tocava! Am disso, contava sua história, conversava comigo, falava da vida e do
30
Escalas são seqüências de notas. Podem delimitar o sistema tonal, por exemplo. Escala é uma série de
notas isoladas que sobem ou descem por graus conjuntos. Assim, o termo designa uma série de notas dessa
natureza dentro de uma oitava usada como base de composição. As escalas são arbitrárias e o número
usado em todo o mundo é incalculável (Dicionário Oxford de Música, 1994, p.236).
31
Arpejos são acordes executados de maneira sucessiva. Acorde é qualquer combinação simultânea de notas
(...). O uso dos acordes é a base da harmonia (Dicionário Oxford de Música, 1994, p.19). Harmonia é o
sistema que estuda a relação entre os acordes. Realizar arpejos constitui uma dificuldade técnica instrumental
para o pianista ao mesmo tempo em que é muito utilizado nas composições e arranjos em geral, portanto
fazem parte do aquecimento/preparo para o estudo.
32
Estudo é uma forma de composição musical voltada para o desenvolvimento das habilidades para realizar
as dificuldades técnico/motoras, geralmente. Porém, há verdadeiras obras-primas musicais, como os de
Chopin, de Scriabine, de Liszt. Ou os Mikrokosmos de Bártok, etc.
33
Johann Sebastian Bach (1685-1750). Toquei sua música em cada um dos anos desde o início do estudo de
piano e eu adorava. Lembro-me de tentar dizer a essa professora que estudar Bach me permitia divagar
durante a interpretação, mas não houve resposta, como sempre, ela calava.
34
Nos anos iniciais estudei as Sonatinas de Clementi (1753-1832). A partir do quinto ano estudei as sonatas
de Schubert (1797, 1828), Mozart (1756-1791) e nos anos finais as de Beethoven (1770-1827). (Dicionário
Oxford de Música, 1994).
35
Conservatório Carlos Gomes.
38
mundo e me ajudava a entender as músicas que eu estudava! Depois ela apoiou-
se em metáforas e em análises conceituais e técnicas. Ahoje a sensação que
tive ao conseguir compreender como modificar o modo de interpretar o estudo
7, op. 25 de Chopin
36
me acompanha. Foi ela que me fez acreditar nas primeiras
mudanças que eu ia implementando nas aulas para meus alunos.
Abro parênteses para falar da grafia musical
37
, pois é muito forte a compreensão
de que aprender música é aprender a ler música. Este é um marco nos modelos
de ensino, e naquele que me formou, além disso, ela representou uma evolução
tecnológica para a linguagem musical.
Achava lindas as partituras de se ver. No princípio me pareciam desenhos como
esse de um artista plástico
38
que também se apaixonou pelos signos musicais.
Ter aulas de piano significava compreender os sinais da partitura e a desenvolver
os movimentos corporais para tocar músicas. Todo o processo me encantava!
Nunca achei chato fazer as lições.
Mas não era fácil, era uma conquista diária. A professora tocava, às vezes, os
pequenos trechos da música que eram mais difíceis, o que ajudava a tarefa de
decifrar os segredos do código escrito e ao mesmo tempo vencer a precariedade
do controle motor. No começo, a leitura atrasava o corpo, os dedos ficavam à
espera de instruções significantes. Depois, o corpo é que era o desafio.
entendia os símbolos e notava que certos sentidos se dariam a entender
sonoramente depois de atingir uma velocidade que os músculos
39
ainda não
36
Fryderyc Chopin (Polônia, 1810-1849) (Dicionário Oxford de Música, 1994).
37
Desenvolvida na Europa a partir dos neumas, no século VII, com as primeiras notações proporcionais no
século X, por necessidade das obras polifônicas (Dicionário Oxford de Música, 1994, p. 500)
38
Obra exposta na Galeria de Artes da CEMIG. Humberto Guimarães (Disponível em:<file:///C:/text-
teorias/cemig-partitura-asp.htm> Acessado em: 11-11-2007)
39
Ia dizendosculos, nervos e tendões, mas consultei minha filha, que é fisioterapeuta e ela me deu um
'puxão de orelhas': mãe, nervos e tendões não fazem movimentos, só os músculos!
39
acompanhavam. E por último, vencidas ou superadas as dificuldades, veio a
compreensão e interpretação do discurso musical.
A notação substituiu a assimilação pela memória e permitiu grande
desenvolvimento no discurso da música. É possível fazer uma equivalência à
literatura, pensando na dificuldade de memorização de um poema em relação a
de um romance. Teve/tem a função de dar autonomia para ler sicas de
diversos estilos e épocas. Tanto a leitura quanto a memória depende da
percepção da sica e do desenvolvimento da percepção auditiva e de
habilidades corporais, porém, a leitura possibilita a decodificação dos signos em
sons e amparo visual simultâneo à interpretação. Cada instrumentista de um
grande grupo - orquestras, big bands, conjuntos de câmera - chegam, ou podem
chegar para os ensaios com suas partes estudadas, lidas. A memória depende de
habilidades sensório-motoras e auditivas e depende de alguém que ensaie/ensine
a respectiva parte cantando, tocando, servindo de modelo para o instrumentista.
Uma carta de Jacob do Bandolim a Radamés Gnatalli enviada em
1964 ilustra bem este fato:
“Meu caro Radamés:
Antes de “Retratos”, eu vivia reclamando: “preciso ensaiar...”. E a
coisa ficava por aí: ensaios e mais ensaios. Hoje minha cantilena é
outra: “Mais do que ensaiar, é necessário estudar!” E estou
estudando. Meus rapazes também (o pandeirista não fala mais
em paradas: “Seu Jacob! O sr. quer aí uma fermata?Avise-me,
também, se quer adágio, moderato ou vivace!...”). Veja, Radamés,
o que V. arrumou!”.
(REQUIÃO, 2001, p. 8-9).
O meu aprendizado do piano se amparou na leitura de partituras e não na busca
de memorização auditiva. Não me estimularam a tocar músicas populares, 'tirar
de ouvido'. Isso não quer dizer que não decorava as músicas. Baseada na leitura,
a memorização era ancorada na 'fotografia' que o cérebro fazia da partitura
simultaneamente aos movimentos corporais e à memória auditiva. Jacob do
Bandolim, fazendo a sua observação sobre o estudo (aprendizado e leitura da
partitura) no lugar do ensaio (memorização por repetição), abre espaço para a
reflexão sobre 'método de ensino de música'. Se ahoje para ensinar música
popular a repetição de modelo ainda é usada, é importante não descartá-la, ao
contrário, aprender com ela. Há um educador japonês, Shinichi Suzuki (1983) que
40
baseou todo o seu todo de ensino de violino exatamente na repetição, na
memória e no acompanhamento familiar.
Aliou a isso a sua percepção das atitudes das crianças ao aprender falar sua
língua materna, do prazer da descoberta reconhecido e 'aplaudido' pelos
familiares em seu estímulo afetivo, que talvez também um certo sentimento de
vantagem para as pessoas que convivem com músicos na família, pois fatalmente
terão uma vivência ampliada do repertório pela escuta, dando sentido ao
aprender: é um aprendizado antes do ensino propriamente dito. É uma iniciação
musical doméstica, coisa da qual não pude tirar vantagens.
Ribeiro (2005) baseia-se no sentimento de que a leitura de partitura da maneira
que ela aprendeu, semelhante à minha, é um desestímulo ao aprendizado da
música e pensando principalmente na criança e em criar para ela um ambiente
propício para o aprendizado desde os primeiros contatos com o piano até o que
chama de uma segunda etapa, a compreensão da partitura,
documenta num livro o fruto da investigação que (a) levou um
processo diferente de iniciação musical, de maneira que a criança
que passou por esse caminho e cumpriu uma segunda etapa,
sempre diferente, sempre pessoal, quando visualiza a partitura, não
um conjunto de notas a decifrar, mas algo feito de blocos
sonoros e vivos que se somam para erguer a arquitetura da peça
musical (como) o pintor tira das suas cores, que vê, a forma que
cria
(RIBEIRO, 2005, p.158).
O desenvolvimento de esquemas corporais para o saber fazer, junto da vivência
musical e da formação dos conceitos da música e sobre a música é a base para
compreender a grafia musical, isto é, a música deveria vir antes da escrita da
música: a leitura da notação musical não faz sentido sem sua contextualização.
Minha experiência com a iniciação musical de grupos de crianças, que vinha
pondo em prática desde 1982 aproximadamente, em aulas de música dentro de
escolas especializadas ajudou-me a ir modificando o ensino de piano, mas não
consegui me desvencilhar da essência e do fim que se busca atingir. Mesmo que
nem seja mencionada pela obviedade, o objetivo que tem séculos de um
sedimentado método de ensino de piano que indiscutivelmente leva a tocar com
eficiência é a performance. que se problematizar o virtuosismo, nascido para
impressionar o público e vender ingressos nos teatros, e objetivar a percepção
41
auditiva, a memória musical e a leitura, que proporcionam os meios mais
importantes para autonomia e a experiência estética.
Alcanzar conceptos musicales generales es el proceso
(cognoscitivo) de identificar los atributos que caracterizan los
elementos aislados de la música considerados en su forma más
simple. La meta inherente a las experiencias planeadas en materia
de música es la percepción, por parte del niño [e do aprendiz de
qualquer idade, penso], de esos elementos musicales.(...) Los
conceptos acerca de la música se encuentran intimamente
entrelazados con la respuesta estética del niño, con su capacidad
apreciativa (ARONOFF, 1974, p. 21, 25).
No entanto, como se pode ver, venho construindo essas conclusões junto da
leitura de pesquisadores-professoras-educadores e da minha experiência como
pesquisadora-professora-educadora e não da memória de aluna de piano, que é
muito pouca. O tema que parecia tão fácil tratar nessa pesquisa, parte constituinte
da pessoa, da professora de piano, da educadora musical e da formadora
aparece distante da consciência. me lembro dos fatos que relatei no início
deste tópico e que foram se formando aos poucos durante esta escrita. Talvez
porque o aprendizado se fundamentou no tocar e não no pensar sobre ele.
Reproduzo aqui um ensaio
40
de orquestra
41
. Penso que ouvir este ensaio permite
avaliar esteticamente a complexidade que por vezes é preciso contornar o
professor-maestro-educador. Os diferentes timbres
42
dos instrumentos podem
ajudar a perceber os contrastes e a reconhecer os elementos musicais.
Podem tocar agora os primeiros-violinos
43
? Os baixos não precisam
tocar. Setenta e três? [numeração do compasso, identificação para
40
Chama-se a ensaio às sessões de montagem das obras de grupos instrumentais em geral. Jacob do
Bandolim refere-se a ensaio o mesmo, porém, assim como nos ensaios de coral onde os cantores não lêem
partitura, o maestro ou regente ensina cada uma das partes a cada um dos integrantes, que a memoriza para
realizar a interpretação.
41
. Vídeo que a NRK Productions em associação com RM Arts produziu em 1997.
42
Timbre é o nome que se às cores que caracterizam a fonte sonora e depende da forma particular da
onda. Cada som parcial (som fundamental ou som harmônico) tem a sua onda particular, e o conjunto de
ondas dos sons parciais, cujas combinações podem variar até ao infinito, uma forma [mais ou menos]
complexa, que caracteriza cada instrumento, cada voz humana, cada vogal ou as diversas fontes sonoras.
Vários processos permitem as imagens gráficas destas vibrações (WILLEMS, 1970, p.46-47).
43
As orquestras eruditas se organizam em ' famílias' de instrumentos conforme suas origens e semelhanças
de modo produção sonora São três grandes famílias: cordas, sopros e percussão. Nas cordas, há uma
42
iniciarem de um ponto determinado na música]
44
Cordas, segundos
[refere-se aos segundo-violinos], violas, violoncelos, setenta e três.
Setenta e três. Este é um lugar enganoso... Um, dois ... [dá a
entrada e os músicos tocam. Corta. Percebe-se que não soa bem e
as expressões dos músicos confirmam. O maestro retoma] Cinco
semínimas lentamente. Lentamente... Um dois ...[orquestra toca]
Mais uma vez ... [o maestro ainda não fica satisfeito] Isto é difícil, o
compasso antes do setenta e quatro [faz referência ao compasso
seguinte, penso porque os músicos continuam todas as vezes e
são cortados] porque de repente aparece um ritenuto e isso
atrapalha muito [a legenda traduz assim o termo que o maestro
usa: inconfortable] Setenta e três ... Um, dois ...Infelizmente não
estamos juntos no tempo. Mais uma vez ... Um, dois [desta vez o
regente tenta outra forma gestual, que parece que funciona] Agora,
podemos tocar? Madeiras: primeiro faremos o setenta e três com
vocês e o trompete Outra vez... [esse momento é gravado em
outra circunstância, percebe-se que o maestro responde a um
entrevistador] A técnica de ensaio é muito difícil. Tenho muito
cuidado com ela. Acompanhei ensaio e até hoje acompanho, se
estou com tempo de ir a ensaios e concertos dos meus colegas
porque eu gosto. Acho que é muito importante o modo como você
ensaia porque é uma combinação de coisas emocionais e técnicas,
de imaginação, de união, de muitas coisas (JANSONS; BÁRTOK;
OSLO PHILARMONIE ORCHESTRA, 1997)
Quando assistia esta gravação, nesse processo de busca formativa do diálogo na
pesquisa, ia recordando como eram as aulas de piano, a partir da minha
professora alemã. Eu tocava as lições encomendadas, assim como os músicos
realizam o pedido do maestro. O retorno é baseado no conhecimento musical:
analisa-se se o estudo trouxe resultados, corrige-se imprecisões, sugere-se
diferentes interpretações, procura-se esclarecer e provocar mudanças na
interpretação por meio de palavras, atos, expressões corporais. Como o maestro
e seus músicos, a professora de piano devia saber que eu dependia em grande
parte de como ela encaminhava a aula. Muitas vezes separava as linhas (frases
musicais) para maior compreensão do conteúdo musical que compõem a peça,
assim como o maestro separa os violinos, violas e violoncelo do contrabaixo e do
restante da orquestra. A seu modo, a professora dizia que trechos enganosos
e pedia que os realizasse lentamente. Todo esse conteúdo, fragmentado no
subdivisão: primeiros e segundos violinos, violas, violoncelos e contrabaixos. Nos sopros, as madeiras
(flautas, oboés, clarinetas e fagotes) e os metais (trompetes, trompas, trombones e tubas) Nessa formação
orquestral o compositor utilizou-se da clarineta (uma clarineta baixo), o corne-inglês (similar ao oboé, mais
grave que ele) e a harpa.
44
Entre chaves coloco meus comentários e tento passar ao leitor a minha leitura das imagens que vejo e do
som que ouço.
43
estudo-ensaio-aprendizagem vão se compor na realização-interpretação musical,
que é de outra natureza, demanda outro envolvimento, uma quase anulação da
consciência de si, substituída pela consciência da obra.
Aprendemos coisas das quais não nos damos conta de como nos acontecem.
Todas as ondas resultantes e que correspondem cada qual
isoladamente a um dado evento sonoro, resultando em uma
intrincada interação (que) ainda tem grande parte de tais
capacidades extraordinárias sem explicação pela acústica, a física
dos sons (MENEZES, 2003, p.65).
Ao aprender tocar piano, fenômenos que não se tem consciência, como a
incrível capacidade humana de selecionar um som - ou uma linha melódica -
dentre um emaranhado de outros e dar-lhe destaque, ou restringir-lhe a força. A
música tem força sobre a humanidade em geral e teve sobre mim em particular,
para citar um exemplo, que mesmo sem consciência e a despeito da dita aridez
do ensino 'por partitura', não desisti de aprender a tocar piano. Nem mesmo
desde os nove anos até os dezoito com aulas individuais semanais, cumprindo o
extenso repertório de cada ano, sujeita a exames semestrais com banca e
sineta
45
. Assim como o ouvido e o cérebro fazem coisas sem que se tenha
consciência coisas que não tenho consciência do como aprendi e porque me
mantive aprendendo, esta narrativa me ajuda a buscar.
Conto a criação de uma personagem baseada na convivência do professor que a
criou com seus estudantes da Escola Superior de Música de Catalunya entre
2003 e 2006 que uma noção da intensa mobilização que acontece quando se
entra em contato com a música, mesmo quando muitos eventos acontecem sem
que se dê conta.
Su escucha no es pasiva. [Mesmo assim] Paula no sabe que
muchos fenómenos de la música que escucha no están en el
45
No dia do exame, reunia-se uma banca com três professoras, uma delas era a diretora do conservatório que
ficava com uma sineta para anunciar quando parar. Tirava-se a sorte. Aquele número servia para selecionar
uma entre dentre cada parte da aula: as escalas, os estudos, Bach, o movimento da sonata, a peça estrangeira.
A música nacional era obrigatória. A sineta soava quando eu tocava bem. Quando 'caía' alguma que não
tinha dado tempo de estudar, ficavam sofrendo junto comigo, ou será que se deleitavam com o meu
sofrimento? Às vezes me perguntava e outras vezes quis discutir essa lógica durante o exame. Como nada
disso me fez desistir?
44
ambiente: ocurren en su mente. Incluso la sensación de tono o la
identificación de timbres tienen que ver con esquemas o mapas
conceptuales, con representaciones mentales, o cómo se prefiere
pensar hoy en día, con estrategias y contingencias sensoriomotoras
que forman parte de sus competencias y que se activan y
complementan cuando entran en contacto con entornos o
situaciones musicales específicas. Tampoco es enteramente
consciente de que sus habilidades cognitivas musicales se han
desarrollado en el marco de un haz de constricciones que incluye:
constricciones biológicas (compartidas con otras especies),
antropológicas (compartidas con otros miembros de su especie),
psicológicas (constreñidas a su vez tanto biológica como
culturalmente), socioculturales (exclusivas de su comunidad),
personales (idiosincrasias particulares) y circunstanciales
(estrategias que implementa a su propio gusto en momentos
puntuales).(...) Ella no sabe todo esto. Sólo sabe que la experiencia
musical que acaba de vivir la arrebata, la transporta a niveles
extáticos, de trance, de experiencia única, irrepetible,
intransferible… inefable… Ella y sus compañeros salen del
concierto visiblemente conmovidos: se les ve en las miradas, en su
modo de hablar, en la forma en que caminan. No hace falta
escuchar lo que comentan. La intensa experiencia musical se les
nota en su tono y actitudes corporales. Es como si flotaran por la
acera (CANO, 2006, p.6).
Em longo prazo tanto o caminho da leitura como a transmissão oral tem seus
entraves e benefícios e da mesma forma que muitos educadores, opto pelo
equilíbrio entre os dois modos e pela introdução da reflexão sobre a origem das
obras estudadas, o que dá um patamar para pensar na situação geral da música
no momento de sua criação e o modo com a vemos na atualidade e submete o
aluno a diferentes práticas e experiências de aprendizado, mas não abro mão,
pelo menos até o momento, de que o ensino de música só pode acontecer
fazendo música: tocando ou cantando, inicialmente. Criando tão logo se queira.
O corpo 'aprende' a tocar a sica - por leitura de partitura, ou memorizadas por
transmissão 'oral' -, e para compreendê-la apóia-se nas metáforas que surgem da
sensação em comparação com outras que vem à tona, e que co-laboram na
análise e compreensão do discurso.
Cada um dos (...) sistemas de signos é específico de algum campo
particular da criação ideológica. Cada domínio possui seu próprio
material ideológico e formula signos e símbolos que lhe são
específicos e que não são aplicáveis a outros domínios (BAKHTIN,
1981, p.36).
45
Estudar música
46
, para mim, tem alguma semelhança com montar um quebra-
cabeça. Com a ajuda da partitura, embora saiba os destinos das 'peças', elas
muitas vezes se desmancham ao toque, como pedras de açúcar: não
desenvolvemos a técnica necessária ainda, ou a memória falhou, ou 'calculamos'
mal o peso, a velocidade, a distância do gesto, etc. Pode-se começar
assegurando as partes menos complexas e deixar por último aquelas que
parecem não encaixar em lugar nenhum, e que, desmanchando-se ao toque,
necessitam reconstrução. Reduzir a velocidade, olhar com mais atenção, marcar
novo dedilhado, etc. Este processo pode custar um grande investimento em
tempo, enquanto amadurece a compreensão do todo, que ajuda na
(re)construção da peça. Pode-se descobrir onde poderá haver problemas e
trabalhá-los simultaneamente, de maneira que a peça fique pronta ao mesmo
tempo em que a noção da totalidade se revele. Mas na música o jogo não acaba
quando se domina a partitura. Ela continua, respira e pulsa ao lado das emoções
numa dádiva de sentidos que na rotina dos estudos, pode-se nem reparar. Daí a
importância de buscar palavras para o diálogo, para a compreensão - parece que
não perco a chance de dizer isso. Na relação da palavra com o som, a metáfora é
bastante utilizada.
As minhas aulas como aluna se confundem com os momentos de professora
então pensei em trazer este recorte de uma aula pública, uma master-class
47
,
onde me reconheci tanto como professora como aluna. Esta foi gravada,
documentada em DVD. Penso que seguia esta mesma linha de trabalho que me
influenciou. Somos herdeiros, afinal, da mesma tradição.
O trecho que trago mostra um diálogo a quatro vozes: o aluno, um rapaz francês
cujos pais não são músicos; a sonata de Beethoven (Sonata nº16 em Sol Maior.
Op.31. I Movimento: Allegro Vivace) que interpreta; o professor-maestro-pianista
argentino Daniel Barenboim; a sua interpretação da mesma - outra, portanto -
sonata: a situação de diálogo entre professor e aluno sobre as interpretações
provocam risos na platéia e surpresa no professor pela espontaneidade do aluno,
46
Estudar um instrumento ou cantar, que a voz, para o cantor é seu instrumento. No decorrer do texto, quando
me referir a tocar um instrumento, peço ao leitor que seja assumida esta noção. Quando digo estudar
instrumento me refiro a estudar no instrumento uma obra musical, uma composição, ou mesmo uma
sequência de exercícios. Assim pode-se dizer que vai estudar o 'Tico-tico no fu' (música no estilo Chôro,
de Zequinha de Abreu, que ficou conhecida na voz de Carmen Miranda)
47
Termo inglês que designa uma aula ministrada por um reconhecido professor de instrumento, voz ou
regência e que é aberta ao público.
46
que não se intimida ao estar diante de uma figura internacionalmente conhecida
pelas suas obras, ou de ter uma platéia presente.
(28:00) [DB] Então, porque está tocando mais [forte]? [DK] Porque
eu gosto. [Esta é a resposta que provoca risos da platéia] Desculpe,
com todo o respeito, não é bom o bastante. Se você estivesse
dizendo que tocou forte assim porque há uma nona abaixo que tem
que ser resolvida, eu teria dito: 'Chapeau'. Posso não concordar,
mas você teria pensado uma boa razão. Dizer 'porque eu gosto',
não é suficiente. [DK o interrompe] Claro, eu posso explicar...[DB]
Então vamos apagar esse 'eu gosto' e começar de novo. Porque
está tocando mais forte? [DK] Porque harmonicamente é muito
importante. [DK toca um mi bemol e mais uma ou duas notas para
situá-la] Esta nota. [DB pergunta] É a primeira vez que o mi bemol
está aí?[DK toca] Não, esteve aqui. [DB responde sem que DK
pare] Bom. [DK continua] Mas nós estamos aqui, esperando, e
pensamos que é [toca um acorde, forte].... Mas temos isto pela
última vez [toca de novo] E acho que é bastante importante tocar
isso com mais volume e dada a caracterização, eu penso, para mim
faz sentido. Desculpe se para o senhor não faz. [DB demonstra
satisfação com os argumentos e parece gostar da personalidade
criativa de DK] Não, não, não. Não precisa se desculpar. Não, não,
não. Acho que estamos fazendo muito bem... estou tentando
entender, olhe, não estou querendo comparar o que você está
tentando fazer com o que eu acho que é. Estou tentando me
assegurar de que eu talvez possa ajudar você para alcançar mais
do que você mesmo quer. [DK] Sim. [DB] Por isso é importante
para mim, saber o porquê. Você me disse que quer isso por causa
da tensão. Eu marquei que o mi bemol estava aí, portanto
tocando mais alto não faz nada de especial com isso. Estou
bancando o 'advogado do diabo'. Não tira nada especial disso,
repete esse intervalo tenso mais baixo, e nós o conhecíamos.
Por isso eu acho que, se você quer mostrá-lo, é porque tem algo
especial por causa do peso, se você tocar mais suave, o efeito será
bem mais forte. Eu concordo com você que ele precisa de algo
especial, que não pode ser a mesma coisa. Mas preciso dizer que
eu acho que a opção que você escolheu não um resultado tão
bom para o que está querendo, quanto tocar mais suave. Está
bom? [DK] Está bom.[DB] Estamos de acordo nisso? [DK] Sim, sim,
completamente [Recomeça. Ao terminar, sua expressão facial
demonstra a satisfação de conseguir o que queria, mas não sabia
como] Sim, funciona mesmo. [DB mostra visível satisfação diante
da inusitada atitude do aluno] Obrigado.(31')
Escolhi um recorte de aproximadamente três minutos (3') da gravação de uma
aula muito rica em exemplos das inúmeras possibilidades de acontecimentos
numa situação semelhante nas aulas de instrumentos, mesmo sem os holofotes e
a filmadora.
47
Penso que é bom retomar e sintetizar o que fui contando nessa parte de minha
história, da relação entre as aulas e o estudo de piano, das primeiras experiências
com o aprendizado de música, da relação com a leitura de partitura, os elementos
básicos da música, a transmissão oral, além de evidenciar que quando alguém
aprende música não fica consciente de todas as mobilizações corporais,
fisiológicas, emocionais, estéticas, etc., que envolvem este aprendizado, como a
compreensão do discurso musical. que esta, que é apresentada como uma
fase a vencer, é onde, para mim, se encontra o fundamento do prazer estético,
porque é sempre singular, único em cada momento, como os modos que olho
quem amo. Busco ajuda no repertório midiático, de outras aulas, outros ensaios
que me permitam dar ao leitor uma visão que da proximidade de meu olhar, o
tinha condições de contar ainda.
2.2. Formação universitária. Profissão.
Um trabalho de investigação inscreve-se sempre numa história de vida. Podemo-nos
interrogar sobre a profundidade ou sobre a extensão dessa relação, mas dificilmente
podemos afirmar que ela não existe.
SÁ-CHAVES, 2002. p. 29
À medida que escrevo, vai ficando mais clara a indicação apontada no exame de
qualificação
48
, que importa para este trabalho uma abordagem mais detalhada da
memória da pesquisadora em processo de escrita formativa
49
, que mostre o
entrelaçamento da educação musical com a formação da professora de música e
com a posterior constituição da formadora de professores/as de música, para que
traga à luz para o leitor o tipo de pessoa que conta o que foi encontrando. E vai
potencializando a narrativa como instrumento de formação, de aprendizado, de
diálogo.
Também vai me mostrando que o projeto de pesquisa tem continuidade na
escrita.
48
Exame de Qualificação é um importante momento do programa de pós-graduação, onde o texto é
submetido parcialmente elaborado, de forma a se corrigirem equívocos, ou produzirem outros entendimentos,
ao mesmo tempo em que sugerirem percursos a partir de experiências singulares de cada leitor/a,
examinador/a.
49
O processo de narrar a pesquisa tem, para mim caráter formativo, assim como para outros autores que
serão citados no próximo capítulo.
48
Passo agora a uma outra fase de vida, onde as lembranças são mais próximas e
já imbricadas diretamente à formação da professora que fui me tornando.
A UNICAMP divulgou que abriria o Curso de Bacharelado em Música no ano de
1979 depois do período convencional dos vestibulares, fazendo assim um exame
seletivo à parte, o que foi a realização de um sonho de menina de interior, agora
mãe, com a Marina-menina nos braços.
Parecia brincadeira, era tudo o que eu mais queria: fiz provas de harmonia e
composição sentada nas sombras das árvores, nunca vou esquecer do olhar de
satisfação do Almeida Prado
50
, ao ver essa cena bucólica, tão 'anos sessenta',
como me lembro de ouvi-lo dizer e me marcou profundamente, era a primeira vez
que alguém estranhava a cultura onde eu cresci. Fui entrevistada. Queriam saber
se eu estava disponível para estudar. Parecia sonho. Ou brincadeira. Matriculei-
me então, em 1979, na primeira turma de Bacharelado em Música da UNICAMP.
Muitos dos colegas eram profissionais em música, regentes ou instrumentistas.
O contato com cada um deles, as trocas, a convivência com as mais variadas
formas de fazer musical e condições sociais-trabalhistas, desde ser instrumentista
na Orquestra Sinfônica de Campinas com segurança de concurso municipal, até
ser músico da noite, enfrentando a insalubridade dos locais e horários de
trabalho, os bares, ou os anônimos professores particulares de instrumento. Os
quatro primeiros anos foram os mais importantes para a minha formação musical.
Todas as matérias estavam devidamente separadas como na época dos
Conservatórios, mas agora alguns professores - eram todos homens -
transgrediam o suficiente para dar a ver algumas meias verdades, a meia luz, a
meio tom (Preguiçosa, Edu Lobo, C.D. Rá-tim-bum, 1984).
Não se faziam provas, nem se computavam faltas, aprendia quem quisesse e da
maneira que pudesse por meio de seu modo de aprender 'cada um constrói o seu
próprio conhecimento', diziam alguns. Livrava-se assim, esse era o meu
sentimento, de pensar no 'como ensinar' com o argumento de que se aprende
o que se sabe. Dava certos resultados em mim, o discurso se confirmava no
ato (MATURANA, 2000, 91), sentia-me estendendo redes com o que sabia.
Ouvi isso dessa maneira e quando tentei entender do que tratava, pois até que
50
Compositor brasileiro de renome internacional que foi meu professor de Estruturação Musical e
Composição na UNICAMP, daí o tratamento informal.
49
gostei da idéia, recebi um solene 'não vem ao caso'. Acho que vem também daí a
minha opção pelo diálogo.
Depois de dois anos não podia estudar para a faculdade. Passei a aceitar
aulas e mais aulas: tanto particulares de instrumento, isto é, os alunos vinham à
minha casa receber lições de piano, ou em escolas de música, onde além das
aulas de piano me incumbia de matérias chamadas teóricas, como História da
Música, Percepção Musical, Teoria, Música de Câmara. Escolas de música em
Pirassununga e Araras - S. P., - e num trabalho independente no Rio de Janeiro,
em colaboração com um grande amigo e baterista, Pascoal Meirelles. Foram pelo
menos dez anos nessa vida de estudos e estradas.
Nem sempre em todas as cidades nos mesmos anos. Fui desistindo aos poucos,
pois em 1988, ao entrar no colégio que trabalho até os dias de hoje, a
estabilidade relativa permitia que me fixasse, necessidade para a criação de
minha filha.
Ao recordar o ingresso na profissão desde os tempos de formação universitária,
posso ver que o prazer de aprender ficou em segundo plano diante da praticidade
da vida, do trabalho e condições que levavam a me distanciar da educação de
minha filha em horas perdidas nas estradas. Mas também me traz o olhar do
Almeida Prado, a entrevista para saber se eu queria estudar, as transgressões de
certos professores, o vislumbre da liberdade de fronteiras entre as matérias e
ensino, a relação com colegas de todas os tipos de formões musicais e
trabalhos com e por ela.
2.2.1. Aprender entre amigos ou a con-vivência musical.
Por essa época conheci meu companheiro, Newton Regina Júnior. Ele tocava
guitarra num grupo que ensaiava na casa de amigos comuns, o Intervenções
Urbanas, tocando guitarra. Improvisando emoções. 'Assimilei-o empaticamente' à
primeira vista, às primeiras 'frases'. Conto esses detalhes íntimos para evidenciar
as trocas dialógicas, o co-partilhamento, a co-participação co-implicada na com-
preensão musical que se sucederam, para afirmar que essa companhia era tão
necessária como com-plementar. contei da falta que me fazia alguém que
50
tivesse a música na mais alta conta por perto e quanto essa intimidade nos deu o
direito de falar sobre ela e as emoções que nos causa.
Se não podia me dedicar tanto à faculdade, por outro lado, estudava com
outros objetivos agora.
Apresento aos leitores alguns dos amigos e amigas, como relação 'ao cubo': do
dia-a-dia, da relação com a música e do aprender/ensinar, porque aprendendo
aprendo também a ensinar. Amigos e amigas que passaram a me ajudar a
produzir muito mais significados formativos do que a faculdade de música,
embora se não fosse a entrada na universidade, nenhum deles eu tivesse
conhecido, o que faz desse lugar um centralizador do ensino, pelos
conhecimentos e saberes que produz, e os contatos e diálogos que proporciona.
A não ser que as coisas mudem efetivamente por causa da internet.
Luís Carlos Justi, que nem sabe da importância que teve na minha formação,
quando me deu o seu instrumento de iniciação musical, uma flauta doce, para
tentar me ensinar o dedilhado do oboé, que eu ainda tenho (não o oboé, a flauta)
e a uso, junto de xilofones, pratos, carrilhões, metalofones, etc., para introduzir
outras, muitas crianças à música.
Ensinou-me muito com o seu olhar compreensivo e o seu afeto quando percebia o
meu esforço em aprender a tocar sem estudar, modo de dizer, é claro que eu
estudava, mas não o quanto era necessário, que este é um instrumento que exige
muito preparo físico para a obtenção de técnica de respiração, sem a qual não se
produz o som. Não com oboé. Algumas palavras que me deixou: 'se você deixa o
instrumento um dia, ele te deixa dois'.
Outro amigo, o Marco Antonio Ferrari, nas pausas que fazia no meio da tarde e do
constante estudo de piano me ensinou uma coisa que vem ao caso agora: 'que
contar histórias só tem graça com uma caneca de café nas mãos e se a gente
puder contar cada caso sempre de outra maneira'. Eu perguntei porque fazia
assim, afinal em oito anos de convivência diária (morava numa pequena edícula
nos fundos de sua casa) podia ter o atrevimento de perguntar por que mentia
deslavadamente, ainda que, tinha que reconhecer, com tanta elegância. Ele dizia
que não tem a menor importância embolar os fatos, os lugares e os sujeitos, pois
de alguma maneira cada história serve para o momento que foi feita. Com
51
certeza, levará em conta isso quando ler o que escrevi sobre ele, principalmente
se lhe disser que provavelmente Benjamin (1996, p.201) concordaria com ele.
Pelas mãos de Glória Cunha
51
, e de José Eduardo Gramani: conheci certos
pedagogos musicais da Europa do início do século XX. Também, mas de outra
maneira, a Rítmica
52
(GRAMANI, 1988) porque essa me ajudava a pensar no ato
de aprender, do qual vou tratar mais tarde.
O Zé, assim todos o chamavam, [e ele olhava e sorria,...que saudade!], me deu
de presente essa jóia: 'no estudo se encontra todo o prazer de tocar uma
música, o prazer está no processo, não se adia para o fim (para o dia do
concerto), que é muito pouco'.
A Glória me entregou nas mãos - e no coração - livros, partituras e discos e foi me
mostrando aos poucos como ir entrando no universo da iniciação musical das
crianças.
Nossas conversas sobre o ensino foram o meu curso para trabalhar com elas.
Márcia Guimarães (2003), colega de faculdade, amiga há quase trinta anos,
interrogando-se sobre a escolha de seu pprio caminho na música como cantora
[acertadíssima, sou sua fã de carteirinha], me fazia pensar no meu e ainda hoje,
em sua constante busca de superação me ensina a apaixonadamente mergulhar
nos objetivos e desejos. Foi ela que recebeu, em 1988, o convite para dar aulas
no colégio em que trabalho ainda hoje, e como não queria dar aulas para
crianças, me deu de presente o que tomou grande parte da minha vida
profissional.
2.2.2. O que significa, para mim, ensinar música para crianças?
A criança.
Fantasia é a verdade que não quis acontecer.
É fascinante e assustadora.
Dá ao homem a feição do divino.
51
No terceiro ano da faculdade fui morar nos fundos da casa da Glória e do Marco Antonio. Lá conheci O Zé
e a Dani, filha deles.
52
Livro de estudos e propostas Rítmicas, de maneira a transcender a mecanização do processo de
aprendizado do ritmo e colaborar numa interpretação mais musical da música.
52
(...) A escola me puxava os pés para a realidade.
O mundo à minha volta era objetivo e frio.
Só os escritores e os poetas, (...)
alimentavam a minha alma e aqueciam a minha imaginação.
RIBEIRO, 2005, p. 31
Qual o significado de ensinar música para crianças? As aulas de piano me
mantinham tradicionalmente no lugar das professoras que tive, mas nunca com a
mesma paciência de seguir somente os 'métodos', porque sentia que as crianças,
salvo exceções, fugiam, esquivavam-se, para procurar outros caminhos em busca
da integração com o instrumento (RIBEIRO, 2005, p.121). Ou então desistiam.
Eu fui fortemente influenciada pelos modelos tradicionais de educação e a
funcionalidade dos conhecidos 'métodos de piano'
53
e pela introdução dos
'métodos ativos', vinculados à corrente da educação denominada Escola Nova
(FONTERRADA, 2001, p.241), representados principalmente por Edgar Willems
(1890-1978), Carl Orff (1895-1982), Jacques-Dalcroze (1865-1950) e Zoltan
Kodaly (1882-1967)
54
e que viriam a fazer toda a diferença em minhas
concepções de ensino musical.
Pelas mãos da Glória e do Zé. Sim, não foram os anos na faculdade
55
, mas pelas
mãos de amigos, conheci As bases psicológicas da educação musical de
Edgar Willems (1970). Logo na apresentação do trabalho, ele traz essa relação da
tradição com uma nova proposta.
No passado ensinava-se em vez de educar, tirava-se proveito dos
talentos em vez de os desenvolver, favorecia-se a pura virtuosidade
por meio de uma técnica cerebral ou exclusivamente instrumental, e
tudo isso em detrimento dos valores vitais auditivos e rítmicos. Mas
particularmente desde o início do século tem-se esboçado uma
53
Durante muito tempo, do início do aprendizado de música aos nove anos até a adolescência, por volta dos
treze, método era o livro que continha os exercícios, etapas a vencer dentro do aprendizado de piano.
54
Segundo o Dicionário Oxford de sica (KENNEDY, 1994).
55
Apesar destes problemas, o aluno de licenciatura é um dos poucos privilegiados dentre os estudantes de
música, pois durante a sua formação superior ele tem a oportunidade de rever certos pressupostos
educacionais, o que não acontece nos cursos de formação instrumental, ou nos bacharelados em geral como
mencionado anteriormente. Isto de certa maneira não exclui a possibilidade do futuro professor não conseguir
estabelecer as inter-relações necessárias (HENTSCHKE, 1995).
Disponível em <http://www.anppom.com.br/anais/08%20anais%20PB%201995/edmusmesa2.htm>
Acessado em 10-11-2006.
53
reação. Os métodos tornam-se mais activos: desde a infância
apela-se para as possibilidades criadoras; passa-se a vida antes da
perfeição formal; tende-se para uma técnica mais espiritualmente
artística que materialmente racional, baseada tanto sobre a acção
sensível como sobre o saber. Procura-se também estabelecer
bases novas mais amplas e mais profundas que as do passado
(WILLEMS, 1970, p.8).
Os três elementos que considera fundamentais da música, ritmo, melodia e
harmonia são relacionados com a natureza humana respectivamente em seus
aspectos físico e sensorial (rítmo), afetivo (melodia) e mental (harmonia). Até aí,
tudo bem para mim. Mas logo traz meus conflitos de volta, quando determina a
eficiência da seqüência do ensino, isolando os elementos fundamentais uns dos
outros: os estudos dos elementos primeiros e fundamentais, e particularmente
das ordenações que eles apresentam, é indispensável para dar à psicologia da
música uma eficiência prática na educação (WILLEMS, 1970, p. 16).
Eu não tinha, na época, condições de avaliar o pensamento dele a partir dos
conceitos sobre os estudos culturais, que priorizam o olhar sobre os pensamentos
e conceitos desde o referencial de quem fala e como diz o que pensa.
A convicção que tinha, de que uma sica traz em sua materialidade todos os
elementos que a constituem simultaneamente, ao isolá-los poderia diminuir
sua força. As crianças se afastariam, eu pensava.
Ainda penso assim, mas com o tempo fui olhando certas condutas racionalistas
de Willems (1970), como a necessidade de traçar etapas de evolução da criança,
como a passagem da vida natural e instintiva à vida consciente (id., p.20) e como
traduziu o pensamento em seu método de solfejo
56
. Fui valorizando idéias, como
quando afirma que a criança muitas vezes nos espanta e nos fornece elementos
novos, preciosos para o estudo psicológico do desenvolvimento auditivo (id. p.19),
quando assume que na prática é o fenômeno do som que será o ponto de partida
dos esforços pedagógicos (id., p.18); que os progressos no campo da cnica
56
O método de Edgar Willems, de maneira coerente e progressiva, aborda os vários parâmetros da sintaxe
musical, tais como: escalas, contratempo, síncopa, expressão, tonalidades, leituras rítmicas e melódicas. Em
igualdade de importância, exercita a memória, a sensibilidade musical, a consciência auditiva e a execução
musical, através de melodias bem construídas a serem cantadas pelos alunos. Disponível em
<http://www.siciliano.com.br/livro.asp?orn=LCAT&Tipo=2&ID=617501#sinopse> Acessado em 28-10-
2007.
54
instrumental, separada da musicalidade, dão flores em número maior do que
aquele que as raízes podem alimentar (id., p.20).
Posso afirmar, analisando, que muitas dessas idéias ambientaram meus
pensamentos e se materializam em minhas práticas, em meus modos de encarar
a educação musical.
Elas se entrelaçam também com os blocos sonoros de Orff
57
, que são estruturas
musicais celulares baseadas numa escala de cinco notas, também chamada
escala pentatônica, que ele acredita ser natural para as crianças, pois observa
que as primeiras notas que elas cantarolam em chamamentos e brincadeiras são
o sol-mi (intervalo de uma terça menor), depois vem o e em seguida o e o
dó, que fazem parte de muitas melodias e brincadeiras infantis, e quando tocadas
em um instrumental especialmente desenvolvido para esse processo didático
compõem um significante material sonoro-estético, permitindo que a criança se
desenvolva com confiança de um estágio não consciente para ser consciente do
fazer musical.
Os blocos sonoros, além de permitirem o fazer musical coletivo, valorizando a
prática coletiva e a integração das crianças num objetivo comum, não necessitam
de cnica altamente desenvolvida, durante anos de prática, até chegar perto
daquilo que tem sido reconhecido como música. Levam as crianças a produzir
noções de tempo, espaço, quantidade, textura, rie, seqüência, sistema,
complementaridade, discurso, etc. e a estender seu olhar para o mundo com a
perspectiva de quem ouve, e a incluir em suas experiências a potencialidade de
passar pela experiência estética da música.
Há, na atualidade, estudos na área da musicologia que se preocupam em estudar
a corporeidade da música, alvo dos mencionados métodos ativos
58
. O corpo
está envolvido em todos os processos de produção, percepção e compreensão
musical, um complexo sistema de fazer-saber-sentir-incorporar que necessita do
57
Blocos sonoros são estruturas diminutas, também chamadas de células rítmicas quando compostas de notas
sem afinação definida ou melódicas quando usa notas propriamente ditas juntamente de ritmo. Orff parte do
princípio que se aprende música fazendo música e que os elementos musicais estão presentes em suas
menores estruturas, das quais as crianças podem se apropriar e realizar música e não exercícios que um dia
conduzirão a ela.
58
Principalmente Dalcroze.
55
silêncio e do aprender a ouvir, para escutar as preces, os lamentos, os êxtases,
as emoções inomináveis do ser humano traduzidos em música.
Desde a influência com a qual me comprometia e a relutância da formação
tradicional de deixar fluir as atividades do corpo algumas batalhas foram travadas
para levar à criança a possibilidade de aprender música quando 'traduz' o som em
movimento, já que é a maneira mais concreta de 'manipular' esse fenômeno
acústico e com ele aprender. Os estudos da corporeidade da música vieram
acrescentar:
(...)1. Actividad motora productora de sonido musical; 2. Actividad
motora que acompaña la producción de sonido musical; 3.
Propiocepciones; 4. Acciones, posturas o patologías corporales
desarrolladas con/en música; 5. Neurología, fisiología,
sensoriomotricidad y niveles cognitivos superiores en de la
audición; 6. Actividad motora manifiesta en la percepción musical;
7. Actividad motora encubierta en la percepción musical; 8.
Proyección metafórica de esquemas cognitivos corporales; 9.
Emociones musicales; 10. Semiotización corporal de la música y
11; Discursos corporizados sobre la música (CANO, 2005, p.5-6).
Tentarei me aproximar das atividades, dos fazeres do corpo como um complexo
sistema a que se referem os tópicos:
1. De quem faz música, do executante;
2. Dos movimentos que embora nem sejam necessários, acompanham a
música quando se toca ou canta;
3. Dos 'cálculos' feitos em tempo real da trajetória, força, velocidade e outros
parâmetros para a realização do movimento;
4. Desenvolvendo posturas, deixando marcas no corpo, como os calos;
5. Realizando uma série de atividades que empregam todo o potencial
neurológico, fisiológico, cognitivo e corporal, percebendo o entorno e se
apropriando dele, por exemplo, quando alguém com conhecimentos
musicais identifica algo como música e todo o seu corpo se prepara para
buscar um certo tipo de informação e não outra;
6. Colaborando na apreensão musical, devido à qualidade etérea da música,
como se fosse uma 'metáfora corporal';
7. Desenvolvendo a 'imaginação motora';
56
8. Desenvolvendo a capacidade de transcender o espo físico, numa ponte
entre a espacialidade real e a imaginada;
9. Se 'derretendo em lágrimas', por exemplo;
10. Criando signos musicais para a representação de sentidos e sensações
corporais;
11. Determinando características culturais.
Coisas que eu não sabia então, mas que Orff, Dalcroze, Gramani me ajudavam a
compreender e agora Cano as dispõem em picos. Fui aprendendo na prática e
buscando teorias. Conhecimentos musicais eu tinha, mas e os conhecimentos de
professora? Meu corpo realizava sica, mas como saber como funcionava para
aprender? Poderia transmitir a partir do que eu sentia em mim, e cada equívoco
pedia uma resposta, uma busca: estudar, ler, pedir ajuda, conversar.
Atualmente encontro algum conforto quando leio nas pesquisas sobre formação
de professores que a principal influência no comportamento do professor é sua
própria história como aluno e que, para além das teorias pedagógicas que ele
aprende, o que marca seu comportamento são as práticas de seus antigos
professores (CUNHA, 2005, p 24-25).
Tomar ciência dessas pesquisas me aliviou o espírito. Mas certamente não
ajudou aos alunos que por mim passaram. O que os ajudou, talvez, foi a relação
que com eles fui estabelecendo.
No começo da profissão, de qualquer modo, as preocupações que eu tinha
versavam sobre o conteúdo da matéria (BARROS, 2007), e me organizava para
não deixar informações relevantes de lado, planejando o trabalho, mas deixando
que o fluxo da correnteza-aula levasse nossa embarcação, mantendo um controle
somente relativo.
As (pre)ocupações com as aulas aconteciam tantas vezes nas viagens de
Campinas até as cidades onde lecionava, lendo e refletindo, de tal maneira que
até agora, quando me ponho a pensar sobre o ensino, ainda tenho flashes na
memória de paisagens correndo sob o meu olhar, o horizonte observado no
atravessamento de árvores ou placas de sinalização de estrada a partir da janela
do ônibus em movimento.
57
A minha tradicional formação inicial em música, provocou conflitos e
(im)paciências em mim e em algumas crianças - que iam me ensinando a
procurar modificações - quando comecei a ensinar música como músico-
professor, na definição de Requião (2001), alguém com formação de músico que
aulas. Depois, ao encontrar pessoas que me indicavam caminhos - literatura,
conselhos e práticas - abracei a oportunidade implementando em minhas aulas o
que me chegava e que mais as crianças e eu gostávamos. A consciência de que
a mente e o corpo são instrumentos da música, de que muito do que se aprende a
fazer é fazendo; de que sempre que não se sabe pode-se pedir ajuda e aprender,
de que todo o conteúdo que se sabe não é suficiente, mas se se ouvir as
perguntas dos alunos pode-se ampliá-lo tem me mantido até hoje nessa relação
com a música e com o ensino.
2.2.3. E ensinar música para crianças no ensino fundamental?
Aula de música em escolas básicas da rede particular de ensino não é tão
incomum em Campinas, as mais conhecidas inserem-na de alguma forma em seu
currículo
59
.
Numa pesquisa feita em quatro escolas do ensino fundamental em Porto Alegre
(RS), Salvador (BA) e Florianópolis (SC) entre 1996 e 1998, foram entrevistadas
37 professoras das séries iniciais, buscando discutir três questões: quais os
caminhos percorridos pela música como disciplina escolar? O que pensam os
professores sobre o ensino? O que se ensina de sica na escola? (SOUZA,
1995, p 8)
Verificamos que, nas quatro escolas estudadas, o ensino de música
no currículo é tido como periférico no processo de educação
escolar, apesar de as professoras e membros da administração
enfatizarem em seus discursos a importância da música na
formação dos alunos. Em termos gerais, todos os entrevistados
59
Colégio PIO XII - PUC-Campinas (R. Boaventura do Amaral, 354); Instituto Educacional Imaculada (Av.
Barão de Itapura, 1735); Colégio Madre Cecília (Av. Coronel Silva Telles, 700); Escola Curumim (R. Santa
Maria Rossello, 141); Escola Sítio Faz-de-conta (R. Uirapuru, S/N); Colégio Progresso Campineiro (Av.
Julio Mesquita, 840); Escola Rio Branco (R. Cecília Feres Zogbi, 315); Escola Salesiana São José (Av.
Almeida Garret, 267) são escolas que alguma forma, seja por contato direto ou indireto tenho conhecimento
pessoal da existência de aulas de música na grade curricular do Ensino Fundamental I.
58
demonstraram uma atitude positiva em relação à educação musical,
reconhecendo a importância de a música fazer parte do currículo
escolar desde as primeiras séries ou ciclos escolares do ensino
fundamental. (IDEM, p.114)
Afirmam que a música é importante como entretenimento, extravasador de
emoções e para auxiliar no desenvolvimento de outras disciplinas. Por exemplo,
as figuras rítmicas
60
, que dão noção de proporção por terem subdivisões binárias
ou ternárias e serem de fácil percepção sensorial são uma forma concreta de
perceber proporções matemáticas do estudo de frações, o que a mim não basta.
A abordagem figuras rítmicas/sistema fracionário é usada por músicos-
professores de maneira geral, mas é uma grosseira simplificação das questões
que envolvem o tempo
61
na música, que qualquer criança, na curiosidade de sua
especulação percebe. Talvez por isso tantos relatos que afirmam dificuldades
com a leitura rítmica: essa dicotomia entre o que se fala do tempo e o que se
percebe no corpo. Muito mais porque diminuem as experiências que podem vir do
aprendizado da escuta e/ou da prática musical.
Do ponto de vista pedagógico, (...) o fazer arte é um poderoso
instrumento no desenvolvimento do indivíduo. Utilizando os dois
hemisférios do cérebro, a arte estimula ao mesmo tempo, de um,
lado a coordenação motora fina e ampla, o raciocínio matemático e
abstrato, a destreza, o senso de proporção e equilíbrio; de outro, a
afetividade, a sensibilidade, a criatividade, a sociabilidade, a crítica
e a autocrítica, entre outros aspectos (PROSSER, 2005, p.30)
Mas nenhuma dessas habilidades decorrentes do aprendizado musical supera a
experiência estética de fruir uma obra de arte.
Logo que assumi o trabalho na 'minha' escola, percebi a enorme diferença
horizontal entre as séries, principalmente em relação às atitudes das crianças.
60
Representação gráfica dos valores de duração dos sons.
61
O tempo não pode ser medido, é inapreensível, porque é impossível medir algo que vive desaparecendo. O
que caracteriza o tempo é contínuo emergir e afundar na não-existência. O presente não tem extensão, é
apenas uma tensão entre o não ser e o já não ser. No entanto, em algum lugar em nossa alma, o tempo deve
se transformar em uma extensão espacial, caso contrário não poderia ser medido. De onde podemos
calcular a extensão do tempo , e enxergar as formas no tempo? Onde encontra repouso a linha melódica,
que na realidade física é apenas um desmanchar-se de sons sucessivos? Deve existir um lugar na alma onde
o passado, presente na memória, pode ser medido com o presente da atenção atual e com o futuro da
expectativa. Eis que o tempo se transforma na contemporaneidade de três atitudes espirituais: lembrar,
prestar atenção, esperar. fazemos isso em cada momento e cada momento contém, portanto, as três
articulações temporais (MAMMÍ, 1994. p.52).
59
Conforme fui observando no dia-a-dia, cada professora tinha seu próprio modo de
conduzir as aulas e de relacionar-se com as crianças. Ao mesmo tempo ia
conhecendo o caráter de cada uma, dando-lhes acabamento estético (BAKHTIN,
2003). A partir das relações com os conflitos e descobertas surpreendentes e
envolventes e emocionantes do contato, primeiro com as crianças e depois com
os jovens, e das amizades que foram se construindo, ia tateando cada fato, cada
surpresa, cada decepção, cada frustração.
Aprender não é apenas adquirir saberes, no sentido escolar e
intelectual do termo, dos enunciados. É também apropriar-se de
práticas e de formas relacionais e confrontar-se com a questão do
sentido da vida, do mundo, de si mesmo. A relação com o aprender
é também relação com o mundo, com os outros, consigo mesmo.
(CHARLOT, 2005, p.57).
Aos poucos fui estabelecendo certas ligações a partir da observação das
professoras em suas aulas e da vivência com as mesmas crianças, quando ia
buscá-las em suas salas de aula
62
e assistia a finalização dos encaminhamentos
da professora; quando me atrasava e encontrava a sala em alguma atividade
alternativa, esperando-me; quando alguma atividade coletiva me permitia ver
como eram as relações das professoras com as crianças, e das crianças com elas
e das crianças entre si.
Queria saber se eu estava agindo 'certo' em meus discursos, em minhas
escolhas, em minha didática, com uma realidade tão diferente das escolas
especializadas. Na medida em que observava, aos poucos fui agregando novas
práticas, recusando algumas, estudando muito pouco, pois não sabia onde
procurar na área da educação, até ouvir de alguém com cargo superior ao meu,
que estudar não era importante. Na tentativa de fazer em 'Roma como os
romanos', reproduzi certas práticas que hoje condeno.
Então, tiro daí uma lição, com Paulo Freire (2001), que ensinar necessita de
professores dispostos a aprender sem abandonar o posto, ou se esconder,
sabendo que vai encontrar dificuldades, não medindo esforços para encontrar
62
As aulas de música acontecem em sala própria. As crianças são conduzidas pela professora polivalente,
professora titular da classe, mas algumas vezes aconteciam atrasos, então eu ia até a classe, e muitas vezes
pude observar a condução peculiar de cada professora. Logo a seguir podia relacioná-los ao perfil da turma.
60
modos de ouvir o aluno e procurar dar-lhes resposta, ainda que seja um sincero
'não sei, vou tentar descobrir'.
Constante e militantemente (SOLIGO, 2007), com uma dedicação que supera a
noção da obrigação, torna-se uma responsabilidade ética.
Sem deixar de levar em consideração o sujeito (professor) na singularidade de
sua história e as atividades que ele realiza dentro de um mundo social,
estruturado por processos de dominação (...) (CHARLOT, 2005, p.40), onde toda
a estrutura que o rodeia, muitas vezes o cega, tanto quanto a mim, o que não
alivia a situação a que está submetida a educação, mas paciência e
generosidade de julgamento tanto de si quanto dos outros, que vivendo e
contando o que viu...
Logo que percebi que de um modo geral cada professora tinha construído suas
maneiras particulares de lidar com as crianças e com o ensino, tive outra grande
lição, que não há o modo 'certo', vários modos e alguns dão mais resultado
para certos assuntos que para outros. Enxergando nos educandos legítimos
outros na convivência (MATURANA, 2000) revela-se essa disponibilidade de se
analisar e avaliar as escolhas.
Pode parecer, da maneira como conto, que todo este processo aconteceu
tranqüilamente. Mas não.
Acontece constantemente inclusive no processo desta escrita, onde encontro
Goodson (2007)
63
, que trata da alteração das necessidades formativas de
trabalhadores para o novo mercado emergente comparando à formação baseada
no currículo prescritivo
64
, e sugerindo a narrativa de aprendizagem como uma
alternativa à prescrição formal. Como era de se esperar e eu o apóio, como um
instrumento alternativo de buscar modos de olhar a música e o ensino.
Retomo uma dessas dificuldades de que falava.
2.2.3.1. Nunca vou me esquecer de uma tarde, logo no primeiro ano, que me
sentia doente, e decidida a não enfrentar uma classe especialmente complicada
para as minhas iniciantes habilidades: trinta alunos de aproximadamente oito
63
Que trata da alteração das necessidades formativas de trabalhadores para o novo mercado emergente.
64
Sendo um “planejamento possível” da aprendizagem, o currículo prescritivo é, então, totalmente
inadequado para a ordem flexível do trabalho – nessa análise, ele es condenado e requererá uma
substituição pida por novas formas de organização da aprendizagem. Vamos, então, examinar algumas
noções novas sobre currículo, tais como as narrativas de aprendizagem, uma forma de aprender que vem
sendo explorada por inúmeros projetos de pesquisa (GOODSON, 2007, p. 247).
61
anos, segunda série do Fundamental I, a maioria meninos com muito mais
energia do que minha capacidade de utilizá-la em seu benefício.
Havia uma inspetora de alunos, que era também quem fazia muitas vezes papel
de coordenadora pedagógica, intermediava conversas com pais de alunos,
'medicava' as crianças que reclamavam de dores de cabeça e de barriga, com um
chá bem doce, e dava as 'broncas' quando as professoras não agüentavam mais
e mandavam para ela algum aluno (coitado!) e também era a quem nós,
professoras, nos dirigíamos para comunicar algum incidente, enfim, foi a ela que
comuniquei que me sentia mal, que não podia dar aulas para a tal classe (coitada
de mim!).
Ela me tratou de um jeito tão horrível, que era para eu sair dali e nunca mais
voltar. Mas nesse dia, depois de me julgar impotente para entrar na sala de aula,
de ouvir tudo o que ouvi, penso que as crianças perceberam o quanto eu estava
me sentindo mal, e a aula aconteceu sem problemas, superando as minhas
expectativas.
Essa é uma das lições mais marcantes que as crianças me deram no início de
carreira que quase me pôs 'às carreiras'. Eu estava disposta a partir para outra
atividade, que esta parecia ir além de minhas capacidades. Marcou-me
definitivamente ensinar e ver que quem aprende, aprende além dos planos, em
diversos sentidos e direções. É sempre surpreendente. Elas me disseram, com
suas atitudes: : não fique triste, professora... e me fizeram ver que com
tamanha sensibilidade e ateão podiam aprender sica e tudo o que mais
quisessem.
Mesmo que o objetivo a ser alcançado pelos planejamentos que eu mesma
elaborava
65
, fosse basicamente 'desenvolver o gosto pela música', os meios
utilizados para atingi-los eram a vivência da música como um todo, indicando
seus elementos, até montar um pequeno repertório musical que passou a ser
apresentado para a família das crianças.
2.2.3.2. Outra lição muito marcante que me deram as crianças, também foi numa
classe de segunda série, no ano de 1993, a realidade da experiência estética na
sala de aula.
65
O trabalho de planejamento escolar para a área de música é muito solitário nas escolas regulares. A
compreensão dos conteúdos musicais por parte dos pedagogos é limitada por que o conhecimento musical se
baseia no saber-fazer.
62
Nessa época, havia conquistado uma certa confiança por parte dos
administradores e coordenadores da escola, pois adquiriram os primeiros
xilofones e metalofones
66
, e todas as crianças experimentavam tocar as canções
que cantavam. Nota-se que esta é, por si só, uma experiência importante:
descobrir que as palavras cantadas podem ser 'cantadas' pelas os que
seguram as baquetas que fazem soar um instrumento. Que aquilo que era tão
natural, cantar para brincar de roda, para pular corda, para fazer brincadeiras de
mão, para torcer pelo time, para mostrar para o outro, pode ser imaginado antes
de conduzir a mão que vai tirar o som que vai fazer a sica, problematizando a
ação anterior e proporcionando outros aprendizados.
Mas um dia esta classe, num momento mágico, ao acabarem de tocar e cantar
uma canção muito singela, tiveram uma surpresa tão grande com o resultado
musical, que ficaram por cinco a dez segundos imóveis, estarrecidos a ponto de
acontecer um grande suspiro coletivo, e uma menina ficar com os olhos cheios de
lágrimas que molham os meus até hoje.
A lição? Depois desse dia, muitos outros aconteceram em diversos momentos
diferentes, pois a professora aprendeu, eu aprendi, que a experiência estética
com a sica pode acontecer na escola, onde é comum imaginarmos que o que
ali se faz é um simulacro da vida. Não precisa ser. Pode ser a própria vida, com
tudo o que ela tem fora dos portões da escola.
aí a estética da obra de arte vem a ganhar existência em minha relação com a
educação, em contraste com a expectativa funcionalista e utilitarista da música
nas escolas, de ser terapia, auxiliar no desenvolvimento de outras disciplinas,
mecanismo de controle, prazer e divertimento, meio de trabalhar práticas e
valores sociais (SOUZA et al, 1995, p.72). Ao deixar de ser óbvia, ganha um lugar
nas reflexões da professora que se torna formadora de professores/as.
66
A solução mais viável para música na escola é a voz, como instrumento natural de toda criança, mas
instrumentos pedagógicos como os xilofones e metalofones são potencializadores muito importantes, porque
a vivência é muito direta e simples.
63
3. A POTÊNCIA DA NARRATIVA
64
3.1. A narrativa -: conteúdo, forma e sentido
Porque a própria escolha de uma determinada forma gramatical pelo falante é um
ato estilístico.
Bakhtin, 2003, p.269
Una misma persona está ocupada, al mismo tiempo, en vivir, en explicar, en re-
explicar y en re-vivir historias.
Connely; Clandinin, 1995, p.22
Os caminhos da narrativa são caminhos quase extintos, como diz Benjamin
(1996, p. 197-198), mas que têm sido cogitados quando fui procurar 'aqueles que
sabem mais', segundo minhas convicções, na Academia (desde 2001, na
UNICAMP-FE-GEPEC), e que se baseiam na criação e produção de teorias e
conhecimentos a partir da prática. Por escolha e necessidade dão continuidade
nesta pesquisa (PPGE-PUC-Campinas).
Quase extintos para Benjamin, re-nascendo nos ambientes de pesquisa na área
da educação, embalando um sonho de que por ela a vida comum dos
professores, dentro de suas escolas e salas de aula, seja contada, pois eles
podem contar como fazem o que fazem.
A narrativa começou a fazer parte de minha vida de estudos no (antigo) Primário,
como parte das lições de aprender a escrever.
Lembro-me particularmente de uma fase em que me encantei com a possibilidade
de inventar histórias. Quem leu a História sem fim, de Michael Ende (1986),
pode ter uma idéia aproximada dos aspectos fantásticos que gostava então (ainda
gosto).
Depois, no Ginásio, tive um professor de português que fez do ato de escrever um
sofrimento, pois ele anunciava que não gostava do que lia. Segundo ele, faltava
objetividade, não vou me esquecer desse veredicto. Só me pergunto se ele tentou
me ajudar a buscar o que faltava, disso não me lembro.
Depois disso, como contei, fiz colegial técnico na área de ciências exatas e a
faculdade de sica, a única escrita era a grafia musical, com exceção para as
aulas de Estética
67
, e de uma disciplina optativa, História da Arte
68
.
67
Com o professor, filósofo e esteta, Iulo Brandão
65
Retomada de alguns anos para cá, a narrativa foi acrescida de outras fuões,
quando aceitei o convite de registrar
69
os encontros, as idéias, imaginações e
intuições que iam acontecendo.
... esse caminho apaziguava minhas dúvidas na época em que essas dúvidas nem tinham forma.
Não tinham. Só ganharam corpo quando comecei a (d)escrever-me e às coisas que me aconteciam
nas aulas, nos encontros e desencontros da vida nas escolas. Quando olho para trás, vejo que a
incongruência de minhas angústias está situada entre o padrão de sucesso social (sustentado pelo
modelo de nossa sociedade capitalista e a indústria cultural) e o inacabado sucesso emocional (na
Arte, produzindo sentidos estéticos). São a essência de minha vida, que se tornou vida profissional.
Ou virou profissão porque já andava nessa busca?
Esta nota foi produzida quando estudava os diferentes métodos científicos de
pesquisa no PPGE da PUC-Campinas pouco antes da escrita do texto para o
Exame de Qualificação, e (re)retomava meus passos: trago-a agora para
evidenciar o caráter formativo da narrativa e mostrar o passado que se projeta na
Dissertação, como fundamento da pesquisa. Encorajava-me a convicção de que
por meio da pesquisa produzo conhecimento que pode abrir portas para
emancipar a mim e aos alunos que por mim passarem.
Fiz um caminho inverso para não ser contagiada e diminuída - demais - pelos
bem redigidos e argumentados todos científicos de pesquisa e a exigência de
compreensão de muitos conceitos de outros pesquisadores. Qual seria o meu
método? Pressionada pelo tempo - será que eu percebo a duração determinada
para este curso de mestrado, 24 meses, muito pequena para a realização dos objetivos
pretendidos?
-
fui buscando nos caminhos que usava para estudar e guardar
idéias, nos meus escritos, respostas para essa angústia, porque parecia não sair
do lugar, embora estudando muito.
A partir do senso comum, mais próximo de minhas experiências no mundo da
vida, nos registros dos cadernos num entrelaçado de desabafos, teorias,
indicações de textos, resumos, relatos de encontros, lembretes, narrativas e mais
narrativas que me faziam reconhecer, me afastando um pouco, as tramas dos
entre-laços, entrevi sínteses, compreensões, isto é, os contornos do método que
68
Professor do Instituto de Artes da UNICAMP, José Roberto Teixeira Leite.
69
(...) valorizamos o registro como forma de reflexão sobre o que se faz e sobre o que se pensa e a publicação
(...) como condição de democratização de conhecimento e como garantia de que ele se põe em movimento
para, inclusive, ser questionado (PRADO; CUNHA, 2007, p. 16)
66
eu, sem dar-me conta usava para produzir o conhecimento que estava dando
forma e selecionando conteúdo para a pesquisa.
Para ainda ficar próxima do senso comum, porque pesquisadores são pessoas
comuns, porque quando eu entro em pânico, assumo os modos mais arraigados
no meu modo de aprender, busquei 'método' no dicionário.
1.Método é uma palavra que vem do grego, méthodos, caminho
para chegar a um fim. (...) 2. Programa que regula previamente
uma série de operações que se devem realizar, apontando erros
evitáveis, em vista de um resultado determinado. (...)3. Processo de
ensino (...). 4. Modo de proceder, maneira de agir; meio (...). (Novo
Dicionário Aurélio,1986, p.1128).
Não pude usar um programa que ajuda a evitar erros, pois entendi que este teria
que ser anterior à coleta dos dados da pesquisa, o que não é meu caso, nem
tinha resultados determinados aos quais chegar. Com processo de ensino me
identifiquei mais. Também caminho para chegar a um fim é proposta aberta
suficientemente para abrigar escolhas e propósitos variados e se aproxima mais
do que pensava: partir de minhas experiências relatadas na escrita, buscar
interlocutores e voltar à escrita, numa compreensão passível de generalização, de
síntese, na produção do texto 'final'.
O que eu queria era
compreender a dinâmica da vida dos sujeitos reais, dos seus
saberesfazeres [itálico das autoras] cotidianos e os modos como
aprendem, criticamente, com suas práticas, transformando-as
permanentemente a partir do que com elas e com a reflexão sobre
elas aprendem, individual e coletivamente, de modo permanente,
buscando perceber no mesmo processo as marcas que os
processos anteriores deixaram e que podem 'cegar' e colocar
'limites' ao que precisa ser compreendido e proposto [aspas das
autoras] (OLIVEIRA; ALVES, 2006, p. 583).
Estas premissas eram as minhas, quando adentrei a universidade para trabalhar
com a formação de professores de educação musical! Continuavam vivas e fortes
em meus objetivos mesmo agora, na posição de pesquisadora e de tantas
leituras, tantas buscas.
67
Neste sentido, fui notando que o 'meu método de pesquisa' faz parte de um
grande aprendizado em que o que denomino 'meu método' é parte de uma etapa
de desenvolvimento cognitivo, que inventaria, no sentido de levantamento dos
objetos de um inventário, o que sei e o que preciso saber, um acabamento
estético, ao contar aquilo que sinto, como vejo o que enxergo, como escuto o que
ouço, quais aromas consigo distinguir ao evidenciar um caminho, para, num ato
ético, chegar a contar para que é que foram feitas as escolhas: responsável e
responsivamente
70
.
O pronome possessivo 'meu' é menos para evidenciar a posse do que para
esclarecer para o/a leitor/a que este processo foi revelado na busca constante de
res-postas, a cada re-leitura, a cada re-encontro, a cada re-flexão, de caracterizar
o meio observado e observável em cada um de meus escritos durante a s-
graduação (2006-2007).
Todas as narrativas produzidas desde que me mobilizei a refletir sobre a prática
no sentido de ampliar meus conhecimentos sobre aprender a ensinar
71
- meus
escritos, pequenas anotações ou reflexões recorrentes - são vistas como atos aos
quais busco responder, pensamentos em relação a diversos acontecimentos e me
ajudam a refletir e olhar para o que penso(ei) por meio de outros olhares que vão
me compondo, para tomar consciência do quanto sabemos e nem sabemos que
sabemos. E do quanto ainda não sabemos, mas podemos com certeza aprender
(PRADO; SOLIGO, 2005, p.61).
Esse 'método', que se revela enquanto conjugo na primeira pessoa do singular -
espaço-tempo do aprender - e que consiste em registrar as idéias a respeito de
ações ordinárias como conversar, andar, perceber, tocar, ouvir, concebidas no
passar do tempo de formação, é o 'meu método de pesquisa', como instrumento
de conhecer o mundo, desde que se passou
72
em mim a experiência narrativa.
Ao mesmo tempo em que o modo de expressão que encontrei para conduzir o
pensar. E dificilmente vou me desvencilhar dele em tempo de concluir esta
pesquisa acadêmica sem me des-singularizar.
70
Ver nota nº11, p.9.
71
Desde 2001 no GEPEC de Terça (FE - UNICAMP), as reflexões registradas sobre as produções no Colégio
PIO XII (desde 2001), as produções que envolvem os alunos da LEM (UNESP-2005) e as mais recentes do
PPGE da PUC-Campinas (2006-2007)
72
No sentido de experiência de Larrosa (2001), como algo que quando nos acontece nos modifica.
68
A percepção de compreender que estes múltiplos instantes em que digo: —
“...entendi!”, que tem me acontecido na leitura de minhas narrativas é um modo de
aprender que tem possibilidade, nesta minha atualidade, de se desenvolver e
se corresponder pela e na narrativa.
Olhar para as coisas que escrevo e notar que fazem parte de uma estrutura mais
ampla e geral de um modo de ser humana é dar voz ao processo de
compreensão, ao caminho, e, (in)esperadamente, compreender como se
compreende e olhar o outro, o aluno, com outros olhos.
As narrativas do dia-a-dia da professora de música que me tornei, como os
registros de uma aula, as descrições de atitudes de alunos, modos de escrever
que evidenciam certas relações entre pares em reuniões pedagógicas, como
reflexões sobre continuidade ou mudança de conteúdo programático ou
desabafos de simples e passionais discussões domésticas (afinal, professor tem
vida pessoal), aos poucos vão se transformando em noções, em conceitos, que
conservam em seu interior todo o processo, todo o método vivenciado.
Falo das noções de talento, dos sentidos de aprender a ensinar, do conceito da
necessidade da dupla capacidade argumentativa do/a professor/a de música, que
nasceram da construção e da consulta das narrativas produzidas, anunciadas e
dialogadas por motivos variados e acabam sendo trazidas, algumas como
memória, documentação histórica
73
, enquanto outras se transformaram em dados
para a pesquisa acadêmica.
Depois dessa regressão literária, fui chegando à narrativa como método de
pesquisa, apoiada pela disciplina cursada em 2006 na UNICAMP e sua
bibliografia central proposta
74
e dirigida pelo coordenador do GEPEC -FE, Prof.
Dr. Guilherme do Val Toledo Prado.
Privilegiada pelo contato com pesquisadores de diferentes instituições de ensino,
na PUC-Campinas e na UNICAMP, segundo me referi, passei a fundamentar
minhas conviccções experienciais no cruzamento de estudos de diferentes áreas
da educação como psicologia, metodologias de ensino superior, currículo,
políticas públicas, filosofia antropológica, sociologia, fornecendo parâmetros para
confirmar a escolha.
73
No sentido de história de vida.
74
Disciplina realizada na UNICAMP pelo Prof. Dr. Guilherme do Val Toledo Prado. A bibliografia central
consta das referências: LARROSA et al, 1995; CHAVES, 2000;
BROCKMEIER & HARRÉ, 2003.
69
Como contava, a narrativa me apareceu não como um
esquema geométrico, uma espécie de organograma, um encaixe
[onde forçaria] os dados para que eles se adequassem bem [mas
como] um impulso criador que aquela metodologia [dá e que]
quando adequadamente usada, vai ser um apoio para a
criatividade, um apoio que realmente fecunda o espírito levando-o a
novas descobertas e a novos conhecimentos (SEVERINO. 1992, p.
32-33).
O adequadamente usada conta com o apoio de minha orientadora, da banca
examinadora e amigas leitoras. Embora qualificaria melhor cada um desses
apoios como leituras generosamente críticas, conscientes, teoricopraticamente
embasadas e mais que tudo, amorosas.
A pesquisa narrativa, sendo ao mesmo tempo técnica e metodologia, mantém um
diálogo constante entre a prática, a experiência e a atividade de busca de
palavras para melhor se contar. Talvez se tornando uma pesquisa dentro da
pesquisa. E questiona o adequado, o certo e o verdadeiro de maneira narrativa,
contando.
(...) a narrativa é uma estrutura particular aberta e flexível que nos
permite avaliar precisamente esses aspectos da experiência
humana.(...); (a narrativa) designa uma variedade de formas
inerentes em nossos processos de alcançar conhecimento,
estruturar a ação e ordenar as experiências. Para estudar a
narrativa, devemos, então, examinar tais práticas discursivas, seus
textos culturais e seus contextos. (...); (a narrativa) funciona como
uma estrutura aberta e maleável, que nos permite conceber uma
realidade em constante transformação e constante reconstrução.
Isso inclui a opção de dar ordem e coerência às experiências da
condição humana fundamentalmente instável e alterar tal ordem e
coerência à medida que nossa experiência – ou seus significados
se transformam. (BROCKMEIER; HARRÉ, 2003, p.11).
Talvez o mais complicado desta escolha seja a característica da concepção da
realidade em constante transformação e reconstrução que se referem os autores
e que, sem dúvida incluem até mesmo a pesquisadora enquanto
arquitetonicamente projeta e edifica a dissertação em contínua procura de
respostas na leitura, na observação, na consciência de seu próprio estado.
70
3.2. Um pequeno histórico
O processo da investigação narrativa inclui variedade de práticas de pesquisa,
como as autobiografias, as biografias, as histórias de vida, os relatos pessoais, as
histórias orais, a memória popular, por exemplo (CASEY, apud CHAVES, 2000,
p.90), que dependem do contexto em que são escritos, como para lembrar depois
do fato registrado, ou para ter elementos para reflexão de assuntos ligados a
forma que será usada e por quem.
Narrativa é método de pesquisa qualitativa. Na área da educação, tem sido aceita
com certa naturalidade, talvez por ser intuitivo para um professor reconhecer a
relevância da prática e da experiência de vida para a Educação.
Se utiliza cada vez mais a investigação narrativa em estudos sobre
a experiência pedagógica. Tem uma grande história intelectual
tanto dentro como fora da educação. A razão principal para o uso
da narrativa na pesquisa educacional é que os seres humanos
somos organismos contadores de histórias, organismos que,
individual e socialmente, vivemos vidas relatadas. O estudo da
narrativa, portanto, é o estudo da forma pela qual os seres
humanos experimentamos o mundo (CONNELLY; CLANDININ,
1985, p. 11-12).
O método narrativo se baseia em análises subjetivas e não em leis, regras,
números, estatísticas; aceita a existência de valor científico nos contos, nas
histórias orais; reconhece o saber contido nos mitos, nas fábulas;
o saber, que vinha de longe do longe espacial das terras
estranhas, ou do longe temporal contido na tradição - , dispunha de
uma autoridade que era lida mesmo que não fosse controlável
pela experiência (BENJAMIN, 1994, p. 202);
considera as autobiografias e admite que a memória reconstrua o passado
conforme necessidade ou desejo, e que o esquecimento e o silêncio podem ser
objeto de estudo; compreende que conhecimento na prática no dia-a-dia de
qualquer professor na escola; permite que a verdade seja, como o amor: infinita
enquanto dure (parafraseando Vinícius de Moraes).
A narrativa é também o fenômeno que se investiga, os dados da pesquisa, o que
coloca grande importância na existência e na cultura da ética, a ser observada
71
mais do que como responsabilidade ou obrigação, como aceitação legítima do
outro como um outro na convivência (MATURANA, 2004, p.104).
Essa abordagem amplia a possibilidade de enxergar o mundo da ciência e das
artes com outras lentes e quem sabe encontrar o que sempre esteve e não
podíamos ver, ou ouvir, ou sentir; para analisar as coisas da vida além dos
binarismos, certo-errado, sim-não, o que depende de quem ou de onde se
aquilo que se vê, através de que ângulo de visão. O talvez, o por enquanto, ou até
o que é certo e errado ao mesmo tempo podem ser aceitos não só porque essa é
uma circunstância do que é humano, mas porque essa é uma circunstância aceita
e desejada na própria pesquisa como elucidativa de situações tornadas invisíveis
pela proximidade de visão que dá a rotina e que, ao escrever tomam corpo
observável.
Uma das mais difundidas justificativas [para as pesquisas
qualitativas, de um modo geral] consiste na constatação de uma
desilusão para com a metodologia convencional, cujos resultados,
apesar de sua aparente precisão, estão muito afastados dos
problemas urgentes da situação atual da educação (THIOLLENT,
1988, p. 74).
Nos anos 60, na Ciência da Educação, percebendo-se que a Ciência não
conseguia realizar as promessas de progresso econômico e social, se iniciaram
as buscas de alternativas aos discursos oficiais, cientificamente corretos, que
para provar uma lei, uma hipótese, descartavam resíduos de igual ou maior
importância que as próprias teorias cientificamente provadas.
Nos dias de hoje, embora haja muitas pesquisas em diversas áreas
do conhecimento aplicado, sente-se falta de uma maior segurança
em matéria de metodologia quando se trata de investigar situações
concretas.(...) um crescente descompasso entre o
conhecimento usado na resolução de problemas reais e o
conhecimento usado apenas de modo retórico ou simbólico na
esfera cultural (THIOLLENT, 1988, p. 10).
Assim venho afirmar que a disseminação da narrativa nos centros de formação
inicial
75
e/ou
continuada de professores/as como uma escolha válida, que pode
desembocar em experiências no reconhecimento de si em relação com a escola,
75
Formação inicial no sentido de licenciatura.
72
com os pares, com os alunos e com o lugar onde se vive. Não o afastamento
da escrita, quando da re-leitura, mas o partilhamento e a identificação com os
outros trazem dados e experiências que cada vez mais confirmam esta direção.
3.3. Porque a narrativa como instrumento de formação?
Não é a atividade mental que organiza a expressão, mas, ao contrário, é a
expressão que organiza a atividade mental, que a modela e determina sua
orientação.
BAKHTIN, 1992, p.112
A narrativa do ponto de vista de quem tem a música em sua formação.
Ser professora de música indica que provavelmente antes tive formação musical e
que na dimensão cognitiva que organiza minha atividade mental há também a
linguagem musical
76
, que não busca palavras para organizar o pensamento, mas
não deixa de apresentar suas 'mensagens' por um meio altamente sistematizado
de expressão de emoções e sentidos.
No entanto não instrumentaliza para um mundo objetivamente verbal, papel que
pode ter o exercício de narrar que, afinal, é um instrumento para qualquer
educador.
A formão dos educadores baseada em currículos prescritos, onde se definem
imparcialmente os principais ingredientes do desenvolvimento do estudo, e então
se ensinam os vários segmentos e seqüências de uma forma sistemática
(GOODSON, 2007) minimiza, senão elimina a implicação pessoal na produção do
próprio conhecimento. Ao contrário,
76
A primeira conclusão a que quero chegar é a de que, de fato, estamos diante de uma metáfora quando
encontramos a afirmação de que música é linguagem. A afirmação não tem nenhuma força ontológica. No
fundo, a afirmação funciona como uma sugestão heurística: trate a música como trataria a linguagem e veja
a que resultados você chega (destaque do autor). Na medida em que as metáforas são recursos cognitivos
usados para reduzir noções desconhecidas (ou cognitivamente complexas) a noções conhecidas (ou
cognitivamente simples), e na medida em que se supõe que a lingüística já conseguiu uma descrição razoável
das formas
subjacentes da linguagem, e que parece portanto, conhecer essas formas, torna-se aceitável
aplicar o mesmo tratamento teórico dispensado às formas subjacentes da música (BORGES, 2005)
Disponível em: < http://www.rem.ufpr.br/REMv9-1/borges.html> Acessado em: 19-10-2007.
73
(...) ver a aprendizagem como algo ligado à história de vida é
entender que ela está situada em um contexto, e que também tem
história tanto em termos de histórias de vida dos indivíduos e
histórias e trajetórias das instituições que oferecem oportunidades
formais de aprendizagem, como de histórias de comunidades e
situações em que a aprendizagem informal se desenvolve
(GOODSON, 2007, p. 10).
Essas reflexões me ajudam a defender a idéia da narrativa na formação do
educador musical, na medida em que ao exercitar a escrita sobre os
acontecimentos em que está implicado amplia as possibilidades de pensar em
seu papel no aprendizado e nas escolhas que tem feito.
Se a narrativa dá ao sujeito que escreve a oportunidade de entrar em contato com
a sua própria identidade qualifica esse exercício também para qualquer
profissional do ensino, mas me manterei na relação com a música.
Os alunos que produziram as narrativas pedagógicas aqui analisadas são
músicos
77
, que como se sabe têm uma educação geral que depende de sua
origem sócio-cultural e das energias empenhadas no estudo e têm uma educação
musical que varia entre dois gêneros musicais: o tradicional ou erudito e o
popular. Pode-se afirmar que um quesito em comum entre eles: aprende-se a
fazer fazendo; a tocar, tocando; a cantar, cantando; a realizar música, realizando
música. Um valoriza de início a leitura das partituras (escrita musical) e outro a
memória.
Entre parênteses: parece que ensinar também só se ensina ensinando.
Aprender música é desenvolver a capacidade de tocar um instrumento ou cantar
na cultura em que se vive (com o uso de um instrumento musical) desenvolvendo
conhecimentos e vivências musicais por meio de atitudes e procedimentos. O
ensino de música dá existência a um conflito de linguagens. Dizem alguns,
semelhante a falar de matemática para leigos em matemática. Sinto que uma
diferença que não sei se terei fôlego para abordar nessa pesquisa. Para isso vou
conduzir os leitores às palavras de Deleuze e Guatarri (2001): além de conceitos
a arte - a música - cuja grande definição é o enfrentamento do caos, para esboçar
77
Fazem provas de conhecimentos específicos musicais para concorrer às escassas vagas nas faculdades
públicas, são músicos no sentido de terem conhecimentos musicais e no sentido de atuarem
profissionalmente, em muitos casos, como afirmam em suas novelas de formação.
74
num plano sobre o caos (p. 253), trabalha com perceptos e afectos. As três
grandes formas de pensamento - arte, ciência e filosofia - se entrelaçam, cada
uma mantendo firme seu território, criando as dificuldades que são peculiares a
cada um dos campos como confirmam os autores.
Pensar é pensar por conceitos (na filosofia), por funções (nas
ciências) ou por sensações (nas artes), onde nenhum é melhor que
o outro, ou mais plenamente, mais completamente, mais
sinteticamente "pensado".(...) Um rico tecido de correspondências
pode estabelecer-se entre os planos. Mas a rede tem seus pontos
culminantes, onde a sensação se torna ela própria sensação de
conceito, ou de função; o conceito, conceito de função ou de
sensação; a função, função de sensação ou de conceitos. E um dos
elementos não aparece, sem que o outro possa estar ainda por vir,
ainda indeterminado ou desconhecido. Cada elemento criado sobre
um plano apela a outros elementos heterogêneos, que restam por
criar sobre outros planos: o pensamento como heterogênese
(p.254-255).
Partindo do princípio que o modo de conhecimento da sica é a 'imersão', é
semelhante, para brincar com uma metáfora, à natação: não se aprende nadar, a
não ser que seja dentro de uma piscina, mar, rio, lago. Falar sobre a música
implica usar a linguagem para falar das sensações do mergulho. E não temos
meios para explicar sensações, a não ser pelos relatos das sensações, ou a não
ser estimando-as, mergulhando no mesmo rio, mas não haverá duas sensações
iguais desse mergulho. Dada esta dificuldade inicial, o ensino de música tem se
voltado a mostrar as funções e os conceitos e deixa as sensações a cada um.
Tudo bem por enquanto.
Mas se essas sensações quem as tem é quem vivenciou o mergulho, então é
na intersecção, nos nós dos pensamentos que a sedução do mergulho por
necessidade de partilhamento ou generosidade pode chegar ao outro.
Ao aprender música (vou chamar de aprender música o estabelecimento de uma
relação criativa com ela, seja tocando, regendo ou cantando, compondo ou
improvisando) entra-se em contato com uma linguagem textual diferente da
linguagem das palavras e dos discursos, pois não representam coisas, ações e
emoções, elas são músicas.
Cada texto pressupõe um sistema universalmente aceito (isto é,
convencional no âmbito de um dado grupo) de signos, uma linguagem
75
(ainda que seja linguagem da arte). Se por trás do texto não uma
linguagem, este já não é um texto, mas um fenômeno das ciências naturais
(semiótico) (BAKHTIN, 2003, p.309).
São textos, e quando aprendemos música freqüentamos, mente-corpo, os dois
ambientes textuais. Isso se não levarmos em conta os gestos, olhares,
entonações verbais que formam textos dentro dos textos, como na sica as
diferentes interpretações.
Faço aqui uma chamada de atenção para que não se confunda o transporte da
palavra pela música na canção
78
. Este é o gênero musical mais difundido,
juntamente com a performance ou interpretação, a tal ponto que muitas pessoas
ao falarem de música estão se referindo às letras que nela estão presentes. Isto é
senso comum, pois o instrumento musical mais usado para estabelecer o
conhecimento musical é a voz, instrumento também da produção das palavras. É
com a voz que se cantam músicas.
Enquanto palavras têm existência, sentidos e significados, a música tem somente
existência e sentidos, ainda que evoque sentimentos, nos permita vivenciar
esquemas corporais como equilíbrio, distância, relaxamento e tensão, etc.
Enquanto existe no tempo ou na memória produz emoções, (re)construções
culturais e sociais, e até memórias de pessoas, épocas, idéias, nos conecta
com outros mundos esquecidos ou nem sonhados através da imaginação. Um
lugar, no limite, onde não se precisa das palavras para encontrar sentidos para a
existência. Nem palavras, nem pessoas, nem épocas, nem idéias, nem mundos,
nem imaginação. Só a sensação da música.
Existe uma variável que o vou discutir, a de um professor sem conhecimentos
musicais que venha a ensinar música
79
- baseada na afirmação de que não
78
A canção, composição em verso (ANDRADE, 1989, p.87), pequena composição vocal, com ou sem
acompanhamento (JACOBS, 1978, p.95), é um objeto de estudo de grande interesse musicológico. Para
alguns autores, na canção a sica está sobreposta por uma letra, servindo essencialmente como base
significativa para a declamação desta (TATIT, 1994). O uso de estratégias musicais para enfatizar o
conteúdo proposto pela letra acaba por ser algo muitas vezes empregado. Calvisius, tratadista barroco,
afirmou em 1592 que a música vocal é superior à música instrumental porque, com duas classes de figuras
retóricas atuando simultaneamente, “oferece prazer em dobro(CALVISIUS apud CANO, 2000, p.41)1. É
interessante pensar a canção como produto de um encontro entre musicalidade e linguagem que,
dialogando, produzem uma narratividade que é guiada pela letra, mas não se orienta unicamente por ela.
Ou seja, na canção, a sica tem letra tanto quanto a letra tem música (BASTOS, 1996; FRITH, 1988). O
que pretendemos aqui é buscar um sentido retórico em partes destas peças, utilizando alguns conceitos
diretamente dos tratadistas barrocos (PIEDADE; FALQUEIRO, 2007, p.2-3).
79
Possibilidade desejada, por exemplo, planos municipais, entre eles o da Prefeitura de Campinas, ao incluir
cursos de banda rítmica para os professores generalistas do Ensino Fundamental I, do qual eu mesma fui
76
como alguém não saber música, afinal ela faz parte de nossa cultura. Este caso
incrementaria as discussões, afinal introduziria um elemento novo, um pedagogo,
conhecedor das teorias do ensino ensinando música, mas sem os conhecimentos
básicos da música, na maior parte dos casos
80
. Vou me ater a esta pesquisa, que
fala de sujeitos músicos, ainda em estágio de desenvolvimento de conhecimentos
musicais e pedagógicos na universidade.
A expressão que organiza a atividade mental (BAKHTIN, 2003), como o exercício
da escrita narrativa de um sico que desenvolve seus conhecimentos
pedagógicos poderá ampliar, confirmar, criticar, avaliar o seu próprio fazer
didático-musical. Um sico que ao traduzir, ou tentar traduzir sua compreensão
musical e proceder a narrá-las numa didática musical com palavras por meio de
metáforas e alegorias verbalmente escritas, ao partilhar suas idéias com a
comunidade de músicos educadores ou educadores musicais na língua da ciência
ganha confiaa para discutir a sua presença política no país e no mundo. E
quem ganha é a humanidade, desenvolvendo outra habilidade, outra forma de
expressão e comunicação.
Esta foi a fonte da convicção na escolha da narrativa pedagógica como didática
de formação do educador musical.
Porque ela e não outra? Porque a minha história de vida assim me convenceu. Os
conhecimentos musicais ancorados no fazer formam excelentes músicos no
decorrer dos tempos, mas a educação necessita de excelentes educadores para
que todos os sujeitos possam (usu)fruir da criação musical da história da
humanidade e acredito que um olhar amplia o outro. Uma escuta esclarece a
outra.
Os conhecimentos musicais ancorados no fazer sica afastam os músicos
(assim como aqueles que se licenciam para a educação) do conteúdo ideológico
que fundamenta a educação (FREIRE, 1996, p.141) e do exercício do discurso
lingüístico, deixando-se estar no mundo sonoro das idéias e emoções e do mundo
prático do desenvolvimento de habilidades técnicas.
coadjuvante, ministrando aulas (2007, julho) e tentando levar as cursistas a compreender as bases do que
iriam-queriam ensinar da música, um ponto de partida.
80
Esta afirmação é válida até para os formados em Educação Artística, cuja habilitação em música tem
deixado muito a desejar. Estou amparada em minhas experiências em turmas de Musicalização, UNESP,
2004 e 2005, cursos de Educação Continuada - Teia do Saber, São José dos Campos, 2005;'O papel da banda
rítmica na educação musical' na prefeitura de Campinas, 2007.
77
A narrativa, ao buscar as palavras que contam sobre a educação musical
incrementam na formação de professores o desenvolvimento da percepção do
próprio aprendizado e da partilha desse entendimento que leva a outras tomadas
de consciência, incluindo a de que cada um aprende ou percebe o que aprende
de modos diferentes.
Essa percepção pode ser um patamar de construção de um conceito básico para
todo professor, de qualquer área do conhecimento: que não possibilidade de
que um único método de ensino sirva a todos.
A consciência desta e de outras compreensões podem encontrar a sua semente
na busca da sistematização da(s) descoberta(s) sob a forma de narrativa
pedagógica (PRADO; CUNHA, 2007).
Ao ser iniciada o mais precocemente possível, é uma prática que potencializa o
diálogo, abre uma porta para o re-conhecimento de si, do outro e das matérias
que estuda; das relações com os professores, com a instituição universitária, com
o estado, etc.
Faz-se novas amarrações, novos nós na rede da vida, na contínua espiral que
começa a se desenrolar no nascimento e vai fornecendo pontos de observação e
dando idéias de continuidade na construção histórica da(s) formação(ões), que,
no entanto
não é um tempo linear e cumulativo. Tampouco é um movimento pendular
de ida e volta, de saída ao estranho e de posterior retorno ao mesmo. O
tempo de formação, como o tempo da novela, é um movimento que
conduz à confluência de um ponto mágico (situado, assim, fora do tempo)
de uma sucessão de círculos excêntricos. (LARROSA, 2000, p.78-79).
Não é um processo de várias fases, é a identificação de vários pontos mágicos da
transfiguração (LARROSA, 2000), onde os interesses, os estudos, as buscas se
convergem numa presença (PENIN, 1994), ou então na experiência (LARROSA,
2001; SMOLKA, 2006).
É um processo de acontecimentos únicos em que informação, método e con-
vivência co, inter, intra, re, pró, sub, sob, super, sobre existem. A um tempo, é
composto e singular, pessoal, coletivo, intransfevel, que não se adquire ou se
constrói e que embora aconteça em cada um de vários momentos, tem uma
78
dimensão atemporal, não é sucessivo ou simultâneo e leva-nos ao passado ao
mesmo tempo em que nos projeta ao futuro.
Quando isso acontece, talvez a palavra que mais gosto seja compreensão, é
como se as lembranças, as práticas, os concebidos, os vividos, as imaginações,
as associações, as aproximações, as impressões pudessem finalmente se
conectar e se concretizar em idéias e pensamentos ou como músicas, pinturas,
poemas, aulas, inventos: Filosofia, Ciência, Arte.
Resumindo, a narrativa na formação de professores de música potencializa
transitar nas linguagens musical e verbal, onde a busca de palavras para
conceituar, definir, expressar sentidos para a música a partir de objetivos didático-
pedagógicos, leva a conviver com a busca de compreensão e de comunicação de
seu entendimento, onde percebe-se igual a seus alunos e alunas. Além de ser:
Informação, notícia, explicação teórica, no sentido em que expõe conteúdo
programático que encerra na língua contingências sociais, culturais de
quem as informa e as contingências sociais e culturais de quem as recebe.
Um 'método de formação de professores' ou meio que aquele que ensina
usa para levar as informações aos estudantes como parceiro; e também
um 'método que o aluno usa para aprender', ou o conjunto de estratégias
que desenvolve para concretizar, imaginar, refletir sobre os dados
recebidos; é um método processual e partilhado por objetivos comuns.
Meio de diálogo sobre a música, palavras sobre sons, ambas formas da
expressão humana e atuantes em sua condição formativa.
Modo de transmitir, construir, criar valores estéticos e éticos,
cognitivamente.
3.4. Narrativa pedagógica: dados da pesquisa.
A espiral
81
de formação em que me encontrava trabalhando na formação de
professores de música - no curso de Educação Artística seja no de LEM, seja nos
81
O contato do personagem com a Universidade, os amigos, os amores, o medo, o cuidado, a acumulação
mansa de silêncios(LARROSA, p. 86), os conflitos éticos, a busca da própria voz transfigurada em outra
voz que ainda é a própria, me parece essa busca apaixonada que faço em aulas, em leituras que abrem outros
universos, em necessidade de partilhar os primeiros esboços do que encontro nessa vida relatada que
vivemos. Quem sabe se, ao se tornarem Dissertações e Teses, os meus e os nossos silêncios, medos, riscos,
saltos de asa deltase transfigurem em Narrativa, aquela forma de escrever que não obriga a ler, convida;
79
cursos de formação continuada
82
; ou mini-cursos/oficinas
83
tem me levado a
valorizar mais e mais a escrita como instrumento de reflexão fundamental para
confrontar a prática e a teoria, o concreto e o abstrato, a vivência e a virtualidade,
a realidade e a projeção, a ciência (e seus conceitos) e a arte (e seu ser).
Também ajuda a analisar, pela distância entre o momento da escrita e o momento
da leitura que permite um olhar panorâmico das construções/reflexões/produções
e uma noção da gama de saberes que muitas vezes acessamos para realizar atos
rotineiros como dar uma aula, além de documentos importantes para fazer
avançar as pesquisas nesse duplo campo: educação e música - educação
musical.
Aprendi que aqueles pares de palavras (teoria-prática, etc.) e seus sentidos não
são antagônicos, mas complementares. E tal compreensão surgiu e continua
presente na busca constante de tradões da prática, da vivência, da realidade e
da arte em teoria, abstração, projeto, ciência, ou vive-versa, onde o caminho, a
busca, o processo assumem função de fim, de objetivo alcançado - eternamente
em criação. Como diz Oscar Niemeyer, em artigo de 2006 e exibido numa das
salas da mostra dos últimos dez anos sua obra - comemoração de 100 anos do
arquiteto:
Não acredito numa arquitetura ideal, por todos adotada. Seria a
repetição, a monotonia. Cada arquiteto deveria ter a sua
arquitetura, não criticar os colegas, fazer o que lhe agrada e não
aquilo que os outros gostariam que fizesse. E, ainda, ter a coragem
de procurar a solução diferente, mesmo quando sentisse que era
radical demais para ser aceita (NIEMAYER in QUEIROZ, 2007,
p.27).
Vi nos resultados registrados pela narrativa que a prática contém teoria, quando
descubro pelos estudos que o tipo de musicista que me tornei não é devido
que não dá respostas, mas deixa que o ouvinte/leitor responda; que “outorga um destino (...), orienta e coloca
em marcha em direção daquilo que alguém é”, “que oferece a liberdade mais profunda, (...) aquela que
entrega (...) a possibilidade de desvelar o que (...) (alguém) é na transfiguração de si mesmo (LARROSA,
p.87). (SERÓDIO, 2007 in FUJIKAWA et alli. Disponível em:
<file:///E:/IV/Monica%20Matie%20Fujikawa.HTM. Anais do II CIPA-Congresso Internacional sobre
Pesquisa (Auto)biográfica. Salvador-Bahia, 2006)
82
Cursos/mesas redondas para/com regentes, sobre coral (Campinas, 2000, Piracicaba, 2006), para
professores/as de educação artística, projeto Teia do Saber (São José dos Campos, 2005), para professores/as
da rede estadual de São Paulo, projeto PETMÚSICA da UNESP, (São Paulo, 2006) ou para as professoras da
rede municipal de Campinas (2007).
83
Oficinas promovidas pela equipe pedagógica do Colégio de Aplicação PIO XII - PUC-Campinas para
crianças da Educação Infantil de escolas parceiras
80
somente à minha singularidade, mas à cultura em que vivo; que a vivência de
professora se assenta (também) na abstração do modelo de professora que fui
criando a partir de uma singularidade cultural e da necessidade humana -
biológica - de busca de perfeição e subsistência; que a realidade imutável do
passado projeta um futuro desejado que é construído a cada momento do
presente; que ciência em cada um dos 'poros' da arte; e finalmente que a
multiplicação de sujeitos nesse exercício de narração das coisas que preocupam
os humanos, nesse caso assuntos referentes à música, à educação e mais
especificamente à educação musical pode ser um caminho para se avançar
nessa área do conhecimento.
(...) as ciências do homem e da sociedade não avançam segundo o
mesmo modelo das ciências "duras" (física, química, biologia...). Estas
últimas avançam a partir de seus pontos de chegada (...), as primeiras
progridem a partir de seus pontos de partida (...). Quando há avanço
nessas ciências é porque foi proposta uma outra forma de começar que
produz resultados (CHARLOT, 2006, p.17).
A simples tentativa ou mobilização feita como ponto de partida, para o exercício
de narrar esses acontecimentos, de 'congelar' sensações, 'fotografar'
sentimentos, 'relatar' percepções, 'descrever' texturas, 'contar' sons são co-labor-
ações na formação do professor de música principalmente no aspecto da
tradução de uma linguagem em outra, ao criar frases e textos, explicações com
palavras dos elementos sonoros da música, por exemplo.
Também, embora não tratar disso, vejo semelhanças principalmente em sua
complexidade, na tradução dos saberesfazeres (OLIVEIRA; ALVES, 2006) que
professores invocam em sala de aula, que tornam a ciência da educação, falando
metaforicamente, uma arte.
Foi desse modo, vi que 'tinha' que fazer um convite à escrita.
Da aceitação do convite à narrativa, fez-se um instrumento duplo na formação de
educadores musicais, pois ao mesmo tempo em que coloca os praticantes em
situação de ordenação de suas idéias põe os leitores, entre os quais me encontro,
em posição de avaliação, por analogia, comparação, de nossas próprias práticas,
nossas narrativas e mais especificamente no meu caso, nos passos de formadora
que eu dava e como eram aceitos e que resultados mostravam.
81
Quando um músico se torna professor, geralmente anteriormente foi orientado
para o exercício de atividades artísticas na área de música (REQUIÃO, 2001).
Esta foi a minha formação inicial em música.
Quando adentra um curso de licenciatura, há uma intenção de compreender além
da linguagem musical, os atributos, conhecimentos e práticas necessários à
formação do professor.
A linguagem verbal que organiza o pensamento é usada para falar de música e
para falar da linguagem musical
84
. E, claro, dos saberesfazeres do campo da
educação.
A narrativa como caminho didático, am de exercício de formação, conta das
histórias dos sujeitos que escrevem e provocam perguntas relativas à dupla
posição que transitam: estudantes de música e professores por vir.
Qual é o tratamento que, enquanto formadores, lhes damos? Quem são estes
sujeitos, professores/as de sica em formação ou estudantes de sica
desenvolvendo suas habilidades e compreensões da música?
De outro lado do mesmo problema está quem projeta a pesquisa neste texto, a
pesquisadora/formadora, que é quem se esforça para que o leitor se sinta
convidado a transitar entre alguns termos técnicos da sica. Talvez seja
reconfortante saber que embora tenha a aparência de que os iniciados
poderiam interpretá-los, são termos emprestados, todos eles de outros campos de
conhecimento e até de outros idiomas e por analogia pode-se imaginar do que se
trata sem grandes margens de equívoco, embora pretenda trazer o significado
deles. um ensaio escrito em revista de música
85
, que mostra que nossas
práticas musicais estão ligadas a hábitos motores, por exemplo. As palavras e os
significados que a música se apropriou, muitas delas vêm dessa experiência
corporal.
Aunque la percepción sea primariamente un proceso cerebro-corporal, sus
rasgos de preconceptualidad y prerracionalidad se extienden sobre
nuestras prácticas musicales a través de hábitos motores, esquemas
corporales de acción, imágenes auditivas, metáforas, etc., que no
dependen de una racionalidad deliberada. La corporeidad desempeña, a
84
Por analogia vou afirmar que há uma linguagem musical, ainda que este seja um tema controverso tanto na
área da lingüística como da música, como afirmam Goldemberg (2005), Borges (2005), Piedade (2006,
2007).
85
Revista Transcultural. Disponível em: <http://www.sibetrans.com/trans/index.htm>. Acessado em 25-10-
2007.
82
su vez, un papel decisivo en la producción de significados musicales que,
aunque primordialmente vividos en la experiencia musical subjetiva, están
abiertos al entorno social y natural e informados por él (PELINSKI, 2005, p.
2).
Os atributos da música, falar da música pede imaginação e a circulação e
diferentes campos e culturas. Daniel Baremboim (2006) numa master class (já
havia citado essas aulas) recebe uma pergunta de um menino com idade
aproximada, pela aparência, de 12 anos: Quando vocês tocam, vêm imagens? O
aluno que se apresentava, um jovem chinês chamado Lang Lang, diz que
freqüentemente vê imagens, sim. Baremboim conta que com ele acontece o
contrário, que ao ver certas paisagens 'ouve' músicas ou passagens musicais, e
devolve a pergunta ao menino, que diz: às vezes penso numa história de acordo
com o que estou tocando e com o que penso. Ao que Baremboim diz que, no
final, no final, a música conta uma história. Seja que imagine a sua própria história
em palavras ou em sons, no final não importa. O que importa é que, quando você
toca, está contando a história e o ouvinte escuta essa história (2006).
Do ponto de vista de pessoas que trabalham com música, parece que uma
duplicidade, uma paráfrase, ou uma metaforização entre campos de
conhecimento ou minimamente um empréstimo de conceitos é um conforto, até
uma necessidade. Que tem certa semelhança com o modo de pensar útil na atual
situação da emergência de um novo paradigma. A aprendizagem narrativa
(GOODSON, 2007, p.242) surge como uma possível forma onde caiba um outro
conteúdo, para outro modelo de educação e tem sido apontada por
pesquisadores da educação porque
Mais do que escrever novas prescrições para as escolas, um novo
currículo ou novas diretrizes para as reformas, elas [as buscas de
soluções para as crises dos currículos prescritivos e da educação]
precisam questionar a verdadeira validade das prescrições
predeterminadas em um mundo em mudança. Em resumo,
precisamos mudar de um currículo prescritivo para um currículo
como identidade narrativa; de uma aprendizagem cognitiva
prescrita para uma aprendizagem narrativa de gerenciamento da
vida (GOODSON, 2007, p 242).
É como se a partir dos conhecimentos científicos, ao darem sustentação a
impressões e vivências que experimentamos, a narrativa impulsionasse a
83
observação de que há ciência na prática e os modelos se entrelaçassem e ambos
os paradigmas se enriquecessem.
Assumir que estamos em presença de uma outra visão epistemológica que
resulta não apenas na interação entre vários paradigmas de conhecimentos,
como também pressupõe um perfil de formação inacabado, um conceito de
formação permanente, contínua, especializada, em ação (TAVARES; ALARCÃO,
2001, p.101) ao menos a mim a paz de saber que não um fim para os
objetivos de um curso de licenciatura, nem talvez de uma vida, que não irá se
acabar quando vier o diploma ou a aposentadoria, quando houver um
afastamento dos colegas da faculdade no caso dos formandos, ou das crianças
nas salas de aula, que o saber é uma conquista diária de entrelaçamentos de
experiências e perene prazer. Não se trata mais de conseguir realizar algo e
pronto, a felicidade acontece. A felicidade passa a ser um processo contínuo de
busca e revelações, como esta busca de articular as traduções da música, da
educação e da prática em teorias e conceitos a partir de uma identidade
historicamente situada.
O quadro teórico no qual o investigador se move e que
corresponde ao seu próprio quadro conceptual constitui um
referente que pode ser duplamente perspectivado. Em primeiro
lugar e, se numa visão retrospectiva, ele constitui a síntese
pessoal do seu percurso social de vida, quer naquilo que foi a
dimensão formal e intencionalmente formativa desse percurso,
quer na dimensão informal e multidimensional do próprio acto
natural de viver, tendo por isso uma determinação histórica e
individual e uma natureza instável, dependente e complexa.
Em segundo lugar e, se numa perspectiva prospectiva, esse
mesmo quadro conceptual é um sistema aberto às circunstâncias
que, num futuro imediato, o questionem nos seus fundamentos, na
sua organização interna e na sua racionalidade intrínseca, criando
desse modo as condições para a sua mudança e reorganização.
Digamos então que nessa abertura e nessa dependência do por vir
se concretizam as condições da sua própria evolução e
desenvolvimento (SÁ-CHAVES, 2002, p. 29-30).
A produção das narrativas dos alunos da LEM teve intenção formativa, como
venho afirmando: são narrativas pedagógicas com intenção formativa. o
registros de impressões das aulas e de si nas aulas; descrições dos exercícios
práticos desenvolvidos na aula com objetivos de ensino de música, tanto dos
saberes específicos da música como do ensino; (auto)críticas de procedimentos;
84
resenhas/análises de textos indicados/pesquisados; novelas de formação;
avaliação de compreensões.
Como convenção as chamarei narrativas pedagógicas, e foram conduzidas pela
perspectiva que então fazia parte meu repertório de professora-pesquisadora, isto
é daquilo que tem de pesquisadora o 'ser' professora (CUNHA; PRADO, 2007, 47-
70).
Partindo da premissa que um todo de ensino não abrange a totalidade dos
alunos, a não ser por mera coincidência, sorte ou porque não se enxerga devido à
excessiva proximidade ou predisposição a não ver de quem olha, a narrativa seria
o instrumento principal de re-construir os acontecimentos, contar os
acontecimentos passados e quem sabe dar energia a idéias.
Preocupava-me ao mesmo tempo em que ansiava por esta vivência em atividade
tão pouco convencional no campo do estudo de música.
Penso ou quero alimentar essa fantasia, que tive como aliada neste propósito
uma eventualidade especial: ser esta uma turma de primeiro ano, numa disciplina
nunca ministrada por mim anteriormente, num curso estreante. tantos anos
lamentava a inexistência quase total de licenciaturas em educação musical. Agora
há na USP, na UFSCar (2004), na UNESP (2005) e na UNICAMP (2006).
De qualquer modo, os acontecimentos das aulas registrados foram uma
conquista, pois foram frutos de aceitação de um convite - ainda que persuasivo
pela sedução, e mesmo sem querer fazer uso, do poder que o cargo me atribuía -
e ao mesmo tempo um rico material para socialização, que incrementou o
aprendizado e dados de pesquisa, assunto para o próximo capítulo.
Penso ser importante deixar bem claro que não foram produzidas especificamente
para uma pesquisa acadêmica, mas sim para finalidades didáticas, as quais
subentendem um outro tipo de investigação, no sentido de que a docência
envolve pesquisa (FREIRE, 2001).
Desde o primeiro dia foi afirmada esta convicção: o fundamento investigativo de
tudo o que é produzido numa aula.
Tal convicção é elevada à potência num curso de formação de professores, onde
o interesse de todo e qualquer envolvido, teoricamente, é o aprendizado do
educador e dos estudantes para quem se mobilizará, com o intuito de aprender a
ensinar, enquanto a própria formadora, numa abordagem aberta ao diálogo,
enquanto professora-formadora-pesquisadora (FREIRE, 2001) também aprende
85
continuamente no processo, principalmente porque cada compreensão e cada
dúvida pode ser estendida à compreensão ou dúvida das crianças ou jovens e
mesmo adultos que se ensinará.
Cada interpretação nebulosa, cada paradoxal certeza, cada postura duvidosa,
cada olhar de censura ou de elogio são elevados à potência nas relações entre o
ensino e a aprendizagem de três sujeitos-tipo: alunos nas escolas, formandos em
educação musical e formadora de professores de educação musical, na cena do
sistema de ensino-aprendizagem.
Ou como prefere Charlot (2006, p. 16), tripla articulação de atividades:
aprendizagem do aluno, formação do professor e políticas de educação, num
triplo processo de objetivação do campo de pesquisa e que procuro não perder de
vista, a subjetivação ou singularização; a socialização; a humanização.
Sem esquecer que quando se trata de ensinar música, outra tradução, a dos
sentidos que ela provoca, causa, expressa é mais um dado na mesa.
La traducción, por tanto, es inherente a la expressión y la
compreensión humana, a cualquier forma de intersubjetividad, y
hay traducción de una lengua a otra, pero también de un momento
a outro de la misma lengua, de un grupo de hablantes a otro y, al
limite, de cualquier texto (oral o escrito) a su receptor (LARROSA,
2001b, p.7
86
).
Sustento que as áreas artísticas do conhecimento são diferentes das áreas das
ciências exatas e mesmo das humanas por que nelas uma qualidade estética
intrínseca à sua existência. Só há arte se existir uma busca de expressão artística
no conteúdo que se cria, produz, veicula. Das outras áreas não. Espera-se a
lógica, a verdade, o direito. Ainda que seja possível, a vida responder pela arte,
assim como a arte responder pela vida (BAKHTIN, 2003, p.XXXIV). Vem daí,
talvez, que de algumas aulas, nunca se esquece....
Acabo de indicar que as narrativas pedagógicas produzidas na disciplina Oficina
de Som e Movimento, no ano letivo de 2005, foram fruto de aceitação de um
convite para usar este instrumento didático como exercício de tradão de
pensamentos sobre o ensino, a aprendizagem; a música; o ensino/aprendizagem
de música; a reflexão da trajetória de vida inserida na sociedade que partilhamos;
e a documentação dos acontecimentos nas/das aulas.
86
Conferência pronunciada no COLE - Congresso de Leitura, em 2001.
86
Nos últimos meses do ano letivo de 2005 contei aos formandos sobre a
possibilidade de usar os nossos trabalhos produzidos, socializados e analisados
com objetivo inicial de avaliar/interrogar o modo que o plano de ensino da
disciplina caminhava e as indicações de alterações que se insinuavam nos textos,
pelas falhas ou por mudança de expectativas, garantindo que uma parte
significativa disponibilizasse cópias das narrativas.
Quem não o fez foi por motivos vários, nem sempre comunicados, já que cada um
dos trabalhos era um convite e não uma imposição, a não ser as denominadas
'avaliações', para a garantia de haver alguma documentação, por uma
eventualidade burocrática da universidade, além de re-pensar o andamento do
curso.
Mas uma das narrativas, num desabafo, indica que sobrecarga de leituras e
resenhas e seminários, etc., confirmando pesquisa de Chambers (1992, p.145,
apud TAVARES; ALARCÃO, 2001, p.112), que
os professores deveriam limitar a matéria a ensinar, especialmente
com os alunos do primeiro ano, afim de lhes conceder mais tempo
para pensarem, para compreenderem os conceitos fundamentais,
para alargarem os seus quadros de referência e para
desenvolverem enquadramentos fomentadores de uma
aprendizagem significativa (...) (porque) se os alunos não têm
tempo para fazer essas coisas, se são sempre pressionados pelas
exigências de um currículo pesado, não lhes damos grandes
alternativas a não ser passarem superficialmente pelas coisas.
Ao trans-formar trabalhos com finalidades didático-formativas ou narrativas
pedagógicas em dados de pesquisa acadêmica, as narrativas de um ano letivo se
elevaram novamente à potência, permitindo um estudo mais minucioso, que
muitas vezes o cotidiano limita e uma maior divulgação, objetivo último dos
trabalhos acadêmicos de pesquisa de partilhar as vivências, as dúvidas além das
paredes de uma sala de aula.
3.5. As narrativas pedagógicas.
No processo de escolher as trilhas a seguir sem perder o objetivo da pesquisa, as
produções textuais durante o ano letivo de 2005 na LEM da UNESP- o Paulo
87
não foram analisadas sistematicamente, foram ambientes de criação, germens
87
de reflexões sobre a formação, sobre sica, sobre as relações que se
estabelecem entre escola/ensino e música, etc.
Cada um dos presentes contou de si, de sua formação - musical e/ou geral - e
dos motivos que os conduziram à escolha pela licenciatura. Observou-se, já nesta
primeira conversa o aparecimento de um conceito, de que esta escolha teria o
caráter de segunda linha profissional em relação ao prestígio de quem realiza as
atividades de músico ou musicista.
A novela é a problematização incessante do que contar e do como
contá-lo, quando aquele que conta atenta para essa vida concreta
que, por um lado tem de ser transformada e que, por outro lado,
constitui o elemento vivo do discurso; também quando atenta para
que o discurso não permaneça permanentemente fossilizado em
doutrina e mantenha sempre a liberdade de seu jogo; e quando
atenta, por último, para responsabilidade trica e moral que está
implícita em todo o ato de fala e que obriga a falar e escrever
justamente, ou seja, com o olhar posto tanto na verdade quanto na
justiça (LARROSA, 2000.p. 123).
A primeira escrita narrativa dos estudantes foi sobre a sua formação musical -
uma novela no sentido que escreve Larrosa a partir de Platão - onde a
(re)construção das aventuras de formação vieram a fazer parte dos materiais de
reflexão sobre o efeito de encorajar o uso da narrativa no processo de formação
de Educadores Musicais.
Nos textos, as semelhanças e dessemelhanças de experiência de formação
escolares ou familiares confirmam constatações de Teresa Cristina Rego (2003)
que o destaque e/ou o apagamento de acontecimentos narrados dependem muito
do que se busca narrar a partir do presente (p. 349) e da visão individual ou
coletiva dos grupos de convívio e de referências peculiares a cada indivíduo e
esta, por sua vez, à memória coletiva de cada sociedade (p. 351-352).
87
O sentido de 'semente e fruto ao mesmo tempo', retirado de Schiller por Leuchter (1977, p. 11) é uma
imagem que teve (tem) muita força neste texto, e que passou a compor os sentidos de minha vida desde sua
leitura, na época da faculdade: La división en "épocas" de la historia del espíritu humano y de sus
manifestaciones, es una hipótesis a la que recurre la limitada inteligencia humana. Al desintegrar lo infinito
de la evolución y poryectarla así en espacio finto, la ciencia histórica pone estos fragmentos al alcance de
tal inteligencia.
Pero dado el nexo causal de los acontecimientos, toda la delimitación en "épocas" resulta hasta cierto punto
arbitraria, ya que cada fase de la evolución infinita se presenta "sub specie aeternitattis", como heredera del
acervo de todo el passado y engendra a su vez uma serie aparentemente nueva de manifestaciones, infinita
como la que ella parece limitar. Así, la evolución, en su esencia, es única e indivisible, ya que "todo es fruto
y germen al mismo tiempo" (Schiller).[as duplas aspas são do autor]
88
Sem deixar de levar em consideração que a maneira de evidenciar aquilo de sua
identidade que quer mostrar depende da habilidade de usar as palavras para
contar sem perder o foco e sem perder o sentido do que se busca comunicar.
Houve uma dinâmica de apresentação que aconteceu numa circunstância
duplamente especial: esta seria a primeira turma de Licenciatura em Educação
Musical desta Universidade, os primeiros 20 Educadores Musicais que seriam -
deverão ser - formados na UNESP; nesta turma ninguém ainda tivera a chance de
dizer de si aquilo de sua identidade que gostaria de dar a conhecer aos novos e
desconhecidos colegas, amigos em potencial. A expectativa era quase audível.
Visível, sem sombra de dúvida.
Talvez devesse dizer triplamente especial, que a minha própria emoção de
participar desta inauguração era um personagem de presença marcante. Tanto
por participar desta conquista da formação especializada em Educação Musical
no lugar da anterior Licenciatura em Educação Artística, cuja opção entre
Cênicas, Visuais, Dança e Música acontecia no quarto e último ano do curso,
como de compartilhar deste momento de realização de um sonho: a entrada na
Universidade como um caminho para trabalhar na área que escolheram, a
Música. Não fiz nenhum movimento no sentido de alertá-los para os desafios
políticos, econômicos e culturais que os aguardariam. Vamos guardar as pedras
para outros passos do caminho, pensei.
A escrita da novela de formão sofreu, assim, a influência dos olhares, a reação
observada e sentida na riqueza comunicativa da relação dialógica.
89
4. A FORMAÇÃO DE EDUCADORES MUSICAIS E AS
NARRATIVAS PEDAGÓGICAS
90
A compreensão simpática recria todo o homem interior em categorias
esteticamente afagantes para uma nova existência em um novo plano do
mundo.
BAKHTIN, 2003, p.94
4.1. Ensinar música e introduzir a narrativa.
Ou melhor, dar aulas de música e introduzir a narrativa como forma de
problematizar o aprendizado e o ensino.
Essa frase foi me dada por quem acompanhou diariamente meus preparativos, a
criação de atividades, a digitação de textos, a escrita de registros, a escolha de
repertório para ler, cantar, tocar, etc. Também me ouviu contando o que os alunos
diziam, o que retrucavam, como reagiram às sicas escolhidas ou às formas
que fui dando ao conteúdo; o quanto sabem de música; o quanto se interessam
pela educação; as idéias tão diferentes que têm sobre as duas coisas, etc. E a
insônia da véspera pelo medo de perder hora e pela ansiedade de ver a reação
dos alunos ao planejado.
É isso mesmo, com todo o envolvimento, eu não faria melhor um resumo que
interessasse a essa história: ensinar música e introduzir a narrativa para pensar o
aprendizado.
Junto de uma turma de 20 alunos e alunas, alguns educadores, colegas
professores; outros ainda com visão de estudantes de música foi tecida uma
vivência que se tornou esta pesquisa, e que tem como objeto as impressões que
causaram, por meio dos textos que contam as aulas e as relações de ensino.
O ano foi 2005; o lugar, o Instituto de Artes (IA) da Universidade do Estado de
São Paulo (UNESP), capital; a razão, o curso de Licenciatura de Educação
Musical, mas é preciso contar que as escolhas que nortearam o uso de narrativas
como instrumento didático foram plantadas no ano anterior, sem que eu
planejasse. Pode-se dizer que a experiência no ano de 2004 foi a minha
inauguração dentro de sala de aula em curso regular de formação de professores
em universidades.
No ano de 2004 fiz as primeiras tentativas de instigar os alunos a pensar na
vivência musical e traduzir esse pensamento em palavras, em texto escrito e
91
falado. Ou seja, falar/escrever sobre/da música, para simplesmente conversar
sobre ela e no limite, para registrar o como-se-aprende e o como-se-ensina.
Foi que percebi a potência da narrativa para a educação musical. O esforço de
tradução dos sentidos que produzimos por meio dos impulsos sonoros da sica
em palavras provoca pensar de outras maneiras o ensino da música. No limite, o
ensino em geral. Provoca pensar o quanto na música, a compreensão se dá sem
a interface da linguagem verbal. Principalmente diante de uma verdade
amplamente divulgada e aceita, desde Aristóteles:
Todo mundo sabe que Aristóteles definiu o homem como zôon
lógon échon. (...). O homem é um vivente com palavra. E isto não
significa que o homem tenha a palavra ou a linguagem como uma
coisa, ou uma faculdade, ou uma ferramenta, mas que o homem é
palavra, que o homem é enquanto palavra, que todo humano tem a
ver com a palavra, se dá em palavra, estecido de palavras, que o
modo de viver próprio desse vivente, que é o homem, se na
palavra e como palavra (LARROSA, 2001).
Pareceu-me instigante estabelecer um diálogo do pensamento musical com o
pensamento verbal, porque a música não diz nada (segundo os parâmetros de
Aristóteles trazidos por Larrosa). Na música, o homem pensa, mas sem palavras.
Ela evoca imagens, sentidos e até palavras, mas sem palavras.
Pois bem, em 2004 fui contratada como palestrante
88
, para uma disciplina
chamada Técnicas de Musicalização destinada a atender alunos e alunas de
quarto ano do curso de Licenciatura em Educação Artística (LEA) que optaram
pela Habilitação em Música. Servia também a estudantes de outros cursos, como
de Instrumentos (piano, flauta, canto, por exemplo), de Composição e Regência
(CR) que tinham interesse no ensino e diferentes visões a seu respeito.
O curso de EA foi extinto em 2005 e a universidade fica obrigada a manter a
disciplina até que todos os alunos se formem.
A disciplina Técnicas de Musicalização tem como pré-requisito o cumprimento de:
Práticas Instrumentais II, Estrutura Musical, Teoria e Percepção II, o que significa
que necessariamente os alunos passaram por experiências anteriores na
88
Este contrato acontecia sob a alegação de não haver verba para professores e tinha um caráter especial: a
partir do nonagésimo dia, ficaria consolidada uma ligação trabalhista, então o contrato expirava no 8dia.
Os alunos tiveram nesse ano duas professoras diferentes e algumas lacunas preenchidas com aumento de
aulas por semana para compensar o tempo sem aulas. Conto tal situação para mostrar a que ponto chega o
sucateamento e o desinteresse do governo para o ensino de qualidade.
92
universidade. Outra característica é que os alunos de EA estão no último ano e
fazem estágios supervisionados, o que justifica o interesse e alguma prática
pedagógica. Os alunos de outras áreas têm também uma especificidade,
escolheram livremente matricular-se na disciplina, embora não tenham vivência
em salas de aula. Uso a fala de Rodrigo, aluno de Composição e Regência no
último ano de bacharelado, retirada da sua novela de formação, em que
reconhece o benefício da troca que as diferentes práticas fora da escola permite.
As aulas de musicalização estão me proporcionando uma nova visão da educação musical
com as técnicas e conceitos que desde o início do ano estou aprendendo. Mais que isso, o
relacionamento com os colegas que trouxeram cada um, um pouco de sua vida prática
fora da escola pra dentro da sala de aula acredito que foi uma grande troca de
aprendizagem.
Assis, outro aluno desta mesma turma diz algo semelhante de outra forma:
Comentários finais:
A participação em conjunto, de pessoas de duas áreas distintas relacionadas à
música, porém, interligadas entre si, que são os bacharéis em música e os
licenciados em música, refletiu o distanciamento que existe entre o músico e o
professor de música. Ratificou a diferença entre essas atividades, demonstrando
mais uma vez duas coisas: que um bom músico não é necessariamente um bom
professor de música, e que um professor de música não pode ensinar sica que
desconheça. Por isso, houve um importantíssimo intercâmbio de conhecimento
entre essas duas áreas. Que os licenciados em música possam crescer enquanto
músicos e os bacharéis em música possam crescer enquanto pedagogos. Esse
casamento é crucial para a formação equilibrada das culturas musicais que cada
um desses profissionais irá formar por suas vidas profissionais.
Música e Pedagogia assim como qualquer outra forma de conhecimento, não se
pode parar de estudá-las jamais. São estudos contínuos e ininterruptos para
aqueles que desejam trabalhar nessas áreas.
Lamento a falta de um coro infantil para que pudéssemos praticar nossas hipóteses
e sínteses, bem como de vivenciá-lo.
Gostaria que a música fosse abordada também como um entre tantos tipos de
comunicação sutil (Quis mencionar este conceito mesmo sem explicá-lo.
Desculpem-me, mas minha intenção é uma mistura de desabafo, lamento e convite
aos curiosos).
Considero as simulações de aulas como práticas importantíssimas. Com elas
podemos aprender com os nossos colegas também, além de nos colocar em
verdadeira situação de prova ou avaliação.
Gostei do levantamento cultural realizado pela professora sob a forma de novelas
pessoais. Percebo que tal coleta é potencialmente muito rica podendo servir de
base a inúmeras atividades.
93
Uma interessante alternância ocorreu entre as atividades propostas por outros
professores e as propostas deste semestre da disciplina Técnicas de Musicalização,
entre a posição de alunos de ensino fundamental e a de 'professores', nas
simulações de aulas.
Estes comentários, feitos ao final dos três meses equivalentes ao semestre letivo,
ecoaram em outras vozes e sugeriram caminhos, indicando carências e pontos
positivos. Como o levantamento cultural sob a forma de novelas pessoais, por
exemplo. Ou então a problematização da situação de prova ou avaliação.
No ano seguinte, foi criado o curso de Licenciatura em Educação Musical, a LEM,
com edital de exame para contratação
89
em caráter temporário de professora
substituta, demonstrando, me parece, o interesse do estado na mudança das leis
trabalhistas.
Estas são as disciplinas pelas quais fui responsável naquele ano de 2005: Oficina
de Som e Movimento I e II (LEM), Linguagem Sonora (Licenciatura em Artes
Cênicas - LAC) e Técnicas de Musicalização.
Na Linguagem Sonora, de LAC, o objetivo era dar as primeiras noções da
linguagem dos sons e da música e sua função no teatro. o vem ao caso
detalhar, mas a produção de textos dos alunos de teatro chamou minha atenção.
O fato de usarem a palavra, , no conteúdo de sua área de estudo é notado nas
características e no fluir dos textos em comparação com os casos em que a
linguagem verbal é circunstancial e necessária como para os alunos de música.
Espero que este levantamento histórico das circunstâncias que me levaram à
UNESP, da submissão às 'regras' instituídas para as disciplinas e das relações
que fui experimentando sejam as necessárias para que informe a partir de quando
e de que circunstâncias o caminho didático da narrativa foi escolhido.
4.2. A produção das 'narrativas pedagógicas'.
A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social.
BAKHTIN, 1981, p.36
Logo no primeiro encontro de 2005 sugeri que se registrassem as aulas por
escrito, determinada a problematizar o uso da linguagem do músico para falar de
89
A contratação era de maio a novembro, isto é, um ano letivo espremido em seis meses corridos, ou melhor,
cinco, pois em julho há férias, gerando expectativas de ambos os lados do ensino-aprendizagem.
94
suas práticas, justificando, como os leitores sabem, ser esta uma necessidade
dos educadores em geral, incluindo os musicais, pois ensinam falando, escrevem
textos para seus alunos, etc.
Penso que é importante deixar bem claro que não se trata de antagonismos
semânticos do tipo: discurso musical vs. discurso sobre a música, relações entre
a prática vs. teoria, o músico vs. o teórico sobre música (HENTSCHKE, 1995,
p.1). Não estou tratando da dissociação existente entre o ensino de disciplinas
teóricas e práticas de música e nem entre as formações musical e pedagógica
dos alunos de licenciatura (Id., Ibid., p.1), embora seja este o lugar de onde vem o
que quero tratar.
A música tem todo um conjunto de códigos escritos, não verbais, e
terminologia específicas. Não é possível identificar e descrever um
documento musical sem recorrer a elementos de linguagem
musical, e sem recorrer a um músico profissional e ao musicólogo
altamente preparados (MANNIS et al, 2006, p. 2).
O conflito vem desse conceito de alta especialidade dos signos musicais vs. o dia-
a-dia do professor de música, onde os códigos que exigem alta especialização
não serão abordados, a não ser quando os alunos se tornem pares,
músicos/musicólogos altamente preparados. Ou, sendo mais rigorosa, os códigos
escritos, não verbais e as terminologias específicas irão se inserindo à medida
que a linguagem musical propriamente dita assim as justifique. Depois que a
música seja incorporada, vivenciada em escuta ativa. Se música necessita de
uma grafia especial é porque não tem existência nas palavras.
Estou tratando de algo que não é exclusivo da música, pois cada área do
conhecimento tem seus conceitos próprios e também seus códigos. Como este
trabalho se sustenta na experiência de uma musicista, será desta geografia que
pretendo tratar. Como a musicista se tornou professora, esta pesquisa me levou
para o uso da língua para ensinar música, cujo vocabulário remete ao
desenvolvimento das percepções musicais, que não são da dimensão verbal,
estabelecendo um conceito de educadores musicais como músicos com
conhecimentos pedagógicos.
O profissional que se pretende formar diferencia-se do músico no
sentido estrito da palavra, pois utiliza a música como um meio para
95
o desenvolvimento do potencial humano em sua totalidade. Desta
forma é um educador musical, porém, um educador musical que
especificamente utiliza recursos variados para obter seus intuitos
(Departamento de Educação da Universidade Federal de São
Carlos. Disponível em:
<http://www2.ufscar.br/interface_frames/index.php?link=http://www.
ufscar.br/%7Eded> Acessado em: 22-11-2007).
Busco minimizar conflitos de vocabulário, por meio do exercício da escrita e da
sua posterior socialização na leitura.
No ano anterior (2004), como contei, o relato escrito foi abordado com interesse
de todos numa turma heterogênea, e esta experiência me mobilizou, como
disse. Em um primeiro momento, convidei-os a contar da maneira que
pudessem/quisessem os acontecimentos, as compreensões, as dúvidas sobre as
aulas conforme fossem surgindo, como instrumento formativo. Tinha a convicção
de que escrevendo, recriaria o ambiente em que a relação música-ensino tem se
fortalecido em minha própria vivência.
Durante o ano letivo de 2005 muitas perguntas vão se insinuando, e sem registro
se perderiam. Na leitura dos registros ia encaminhando as aulas de maneira a
cobrir a maior parte do território, isto é, criando e adaptando atividades, conteúdos
e procedimentos que tivessem uma abrangência dentro das necessidades de
todos os alunos, ou da maioria. Quem não fosse contemplado numa aula, seria na
outra, e assim por diante.
Procurava trazer atividades que levariam a perguntas, ou a procedimentos que
potencializavam produções de conceitos, estava decidida a não trazer respostas
diretamente, explicativamente. Queria estimular o diálogo. A experiência com as
disciplinas que vêm acontecendo concomitantemente neste ano somadas às de
2004 mais a prática ininterrupta com crianças me indicava que importava essa
escolha.
Trabalhava com a possibilidade de que dificilmente atingiria a todos devido à
singularidade de cada um e às humanas potencialidades e limitações.
Infelizmente alguns não se entregaram ao instrumento narrativo.
De posição privilegiada na sala de aula como professora pude alterar ou manter
as rotas planejadas, com responsividade e responsabilidade, respondendo pelo
que via nos textos ou percebia na realização das aulas, no contato direto com os
alunos, ainda que não se reflita em seu rosto, na expressão de seu olhar (...),
96
apenas captado do contexto (BAKHTIN, 2003, p. 93). Da minha própria
experiência de formação pela narrativa e diálogos saiu a lição que vem
modificando meu modo de ser professora, com a confiança de quem passou por
uma experiência e assim produziu um saber, permitindo que se abra em mim e de
mim para os outros retribuir o convite ao diálogo e à narrativa como expressão do
amor humano, pois os seres humanos somos o que conversamos, e é assim que
a cultura e a história se encarnam em nosso presente. É conversando as
conversações que constituem a democracia que constituiremos a democracia
(MATURANA, 2000, p.91).
Vou dizer de outro modo: é nas conversações que nos constituem e procurando
modos de acomodá-las a um repertório
90
de saberes como professora que
pensava produzir meu 'ser professora', a cada momento.
Essa descoberta ou lição, da produção de saberes advindos da rede de
conversações elencadas pelo/no exercício inusitado da escrita na formação de
quem optou pela música, me impele à sua divulgação. Tanto no exercício da
professoralidade quanto - e elevada à potência - na produção da pesquisa, assim
como toda a produção pedagógica que vem a lhe dar origem e sustentação.
4.3. A arte e a linguagem no ensino de música.
Quem convive com as matérias da música desde criança ou pelo menos desde a
juventude, o que é o meu caso, possivelmente deixará de ver, notar certas
questões, como a diferença que existe entre compreender uma música e
compreender um enunciado. Não é necessário pensar nesse assunto, óbvio, para
se aprender música ou para compreender o tal enunciado. o questões como
essas que se tornam invisíveis no sentido de a sua presença não ser notada.
Assim também o convívio com a arte quando se realiza música. Pode-se usu-fruir
o prazer estético tão constantemente, se a matéria de trabalho é a arte, que
90
Repertório é um termo muito usado em música, para designar as peças que compõem um concerto, mas
também as peças que fazem parte daquelas que um intérprete escolhe em sua vida como peças de sua
especialidade e que lhe confere certo caráter musical. Nessa escolha as características físicas, como tipo de
voz e as composições que a limitam é um critério, mas, certamente a identidade do músico com a obra,
construída indeterminada e casualmente é o principal definidor. Como agora, ao escolher usar esta palavra
comum a outras práticas discursivas me remeto a este uso, que gosto porque penso que assim acontece com
os saberes.
97
deixa-se de atribuir-lhe existência, na medida que se abstém de falar ou pensar
sobre ela.
Ora, é certo que para que o diálogo entre Artes e Pensamento seja
possível é preciso reconhecer com o Heidegger de A origem da
obra de arte que arte e pensamento dizem a mesma coisa, mas o
dizem de outra maneira. Dizendo a mesma coisa, arte e
pensamento participam do mesmo campo histórico: é necessário
que digam a mesma coisa para que o pensamento possa trazer um
esclarecimento à poesia. Mas, ao dizer de outra maneira, arte e
pensamento fogem da redundância e das teorias que sustentam
que a arte é também reflexo do pensamento e da realidade. Assim,
dizendo a mesma coisa de diferentes maneiras, Arte e Pensamento
permanecem fieis à essência de cada um, mas os dois postulando,
ao mesmo tempo, uma unidade essencial: "Todo pensamento que
desdobra o sentido é poesia; mas toda poesia é pensamento". Arte
e Pensamento são, portanto, duas maneiras diferentes de
expressão, como escreveu Valéry a propósito da relação desses
dois termos, citando Da Vinci: [...] 'O sorriso da Monalisa' não pensa
em nada. Ela diz: 'Não penso em nada é Leonardo que pensa
por mim'..." . Em outra passagem sobre sica e pensamento: "
Quem melhor que Richard Wagner soube interrogar através dos
sons? Interrogar não alguém, mas a si mesmo; mais a natureza das
coisas; mais - em síntese - os destinos". O que, de certa maneira,
equivale à célebre definição de Cèzanne: "Eu sou a consciência da
paisagem que se pensa em mim" (NOVAES,1994. p.12).
Essa longa citação me pareceu necessária, porque eu não faria melhor essa
ponte entre a arte e o pensamento, o pensamento e a poesia, a pintura e a
música, o pensamento e a realidade, o autor e a obra. Não posso deixar de
valorizar e projetar essa visão como conhecimento necessário, parafraseando
Cèzzanne, como a consciência da música que se pensa em mim.
O componente artístico da música é um valor esquecido com facilidade durante a
educação musical, principalmente se se descuidar de falar, criticar, analisar,
contemplar, 'metaforizar' a música e a arte com o aluno, o que é muito cil
acontecer, principalmente pelas características procedimentais do aprendizado da
música, que se aprende fazendo, e que o aluno, na aula e durante o estudo, não
conversa com palavras, mas com e na música que reproduz. Se o critério for o
certo e o errado observado na performance, e não a conversa, o ouvir falar, deixa-
se de lado o poético, a sensibilidade para objetivar as determinações da partitura,
a reprodução dos modelos culturais e a não exploração da dinâmica e singular
expressão humana.
98
No entanto,
En cuanto pertenecientes al mundo intencional de la imaginación,
los contenidos “musicales“ de nuestras experiencias perceptivas
son preconceptuales y prelingüísticos, esto es, “inefables“: no se
dicen, se viven. Esta tesis trae consigo implicaciones teóricas
referentes a la relación entre lenguaje y música. En efecto, nuestra
experiencia cotidiana es testimonio de que, a menudo, hablamos de
música y de que, para escribir sobre ella textos verosímiles e
intersubjetivamente comprensibles, nos situamos en el terreno de la
racionalidad conceptual. Para resolver esta aparente contradicción,
se nos presenta una alternativa: apelar al “pensamiento no
lingüístico,“ o bien valernos de un lenguaje basado en metáforas
conceptuales (PELINSKI, 2006, p.22).
A problematização da linguagem que se usa para falar da música não costuma
aparecer nos livros básicos de música. Não preocupação com a linguagem
verbal ou reflexão sobre metáforas conceituais nos discursos de educadores
(Nicole Jeandot, Aparecida Mahle, Lilia Rosa, Maria Cateura Mateu), ou outros
que buscam dar bases em pedagogia ou psicopedagogia (Violeta Gainza, Edgar
Willems, Dalcroze, Suzuki, Carl Orff) ou mais recentemente da ecologia sonora
(Murray Schafer). No entanto observa-se uma produtiva conversa entre a
musicologia e a educação, instigada por interesses educacionais.
Ao mesmo tempo, professores de música continuam seu fazer, usando um misto
de exemplos sonoros, conceitos específicos da matéria musical, conversa regada
de metáforas, gestos, expressões faciais e verbais, respirações, suspiros
(PELINSKI, 2006), isto é, tocando para o aluno os trechos que quer tratar,
fornecendo o modelo sonoro que se intercala com os artifícios que todos usamos
ao conversar para levar ao outro as coisas que pensamos.
Uma obra musical é sobre integrar todos os elementos. Se
podemos dizer que esta é uma parte muito tmica, esta é uma
parte muito emocional, esta é uma parte muito cnica, esta é muito
atmosférica, não estamos fazendo música. (...) a diferença entre
som e música é que quando se faz musica tudo deve estar
integrado e não se é capaz de detectar os diferentes elementos
(BAREMBOIM, 2006).
Pode-se ver a linguagem metafórica de que fala Pelinski. Se refere a parâmetros
utilizados nas aulas de música em geral e são muito subjetivos. É deste tipo de
99
linguagem que, tanto o professor que não é atingido pelos estudos de musicologia
como os que têm acesso, se utiliza para ensinar música.
Este meio oferece reação de qualquer um que não tenha se tocado da mesma
forma pela experiência musical, ou que não tenha a mesma base cultural, ou que
não esteja presente no contexto que justificou a fala, a aula, que subentende o
conjunto de saberes sobre os quais será feita, por exemplo, a fala que citei
anteriormente. Abordagens técnicas se justificam e acontecem em muitos
momentos que não citei.
4.4. PCNs
91
e a escolha do que-como-para que ensinar.
Se a linguagem musical só faz sentido para quem dela se apropria, a formação de
educadores musicais multiplicará as defesas deste propósito, ao menos com o
objetivo de subsistência e garantia de trabalho. Os movimentos pela
obrigatoriedade da música nas escolas desde o ensino infantil, como direito de
cada pessoa de incluir a música como área de conhecimento na sua
escolaridade, como ouvinte ativo no mínimo, ou como praticante, compositor-
criador é uma utopia? Prefiro dizer que trabalho pela realização desse sonho, faço
dele meu projeto.
Vamos aos fatos.
Nos PCNs: arte (Brasil, Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF,
1997), há três grandes enfoques para o ensino de Música nas escolas:
Comunicação e Expressão interpretação, composição,
improvisação;
Apreciação Significativa em Música escuta, envolvimento e
compreensão da linguagem musical;
A Música como Produto Cultural e Histórico música e sons do
mundo. (p.78-81).
Podem proporcionar ao aluno uma formação musical geral consistente, em teoria.
O discurso cai por terra ao tentar responder a pergunta: quanto tempo será
dedicado à disciplina em cada um dos agora nove anos do Ensino
Fundamental? E quais os meios e recursos previstos para formação de
91
Parâmetros Curriculares Nacionais.
100
professores de música - educadores musicais? Mesmo com críticas às posições
político-pedagógicas, este é um documento básico para iniciar a construção dos
objetivos para o ensino de Música nas escolas e do critério para formação de
professores/as.
Os currículos não são o objeto deste trabalho, mas não posso deixar de propor
esta reflexão para os educadores musicais, músicos, musicólogos, e educadores
em geral, pois professores e professoras têm um papel social, político e cultural
que a justifica e porque minha experiência nos espaços da escola regular, do
ensino especializado, da formação universitária em bacharelado e na formação de
educadores musicais são vivências em espaços-tempos que me mobilizam nesse
interesse.
Se um professor - desde que iniciou seu aprendizado escolar na Educação
Infantil, passando pelo Ensino Fundamental, Médio e Superior - forma-se num
currículo que desenvolve conhecimentos de todas as áreas de ensino, por
exemplo, professores de matemática aprenderam português, biologia, geografia,
etc., e matemática; professores de inglês aprenderam física, química, história,
etc., e inglês; isto faz com que tenham construído um modelo de educação que
gostaram ou não, mas que marcaram por meio de seus professores e do modo
como apresentaram os conteúdos (CASTANHO, 2006) seu modo de pensar o
ensino por meio de sua própria sistematização e significação do aprendizado.
um professor de música não passou, obrigatoriamente, por um modelo de
professor de música em seu ensino regular. Geralmente estudou música de
formas alternativas, e se os professores de música que teve marcaram de alguma
maneira sua formação, são circunstâncias diferentes daquelas observadas numa
escola regular, onde a sica fizesse parte do currículo. Em primeiro lugar
porque nos meios alternativos de ensino de música estuda quem
anteriormente foi levado a desejar aprender sica, possivelmente pela família e
nos meios culturais em que vivia. Em segundo lugar, porque essas aulas
geralmente são individuais ou em pequenos grupos e não coletivas.
Penso que, se fortemente arraigada no ensino regular, professores de música
passarão a ter uma história de ensino de música baseada na prática de aprender
música desde a iniciação escolar, assim como professores de outras
especialidades e, quem sabe (?) contribuir com a sua forma de aprender e
101
ensinar especialmente desenvolvida para o conteúdo-prática de seu campo do
saber, pois muitos
(...) sublinham a importância da história de vida dos professores,
em particular a de sua socialização escolar, tanto no que diz
respeito à escolha da carreira e ao estilo de ensino quanto no que
se refere à relação afetiva e personalizada no trabalho. Eles
mostram que o “saber-ensinar”, na medida em que exige
conhecimentos de vida, saberes personalizados, competências que
dependem da personalidade dos atores, de seu saber-fazer
pessoal, tem suas origens na história de vida familiar e escolar dos
professores de profissão. Mostram também que a relação com a
escola se encontra firmemente estruturada no professor iniciante
e que as etapas ulteriores de sua socialização profissional não se
dão em um terreno neutro. Indicam, finalmente, que o tempo de
aprendizagem do trabalho não se limita à duração da vida
profissional, mas cobre também a existência pessoal dos
professores, os quais, de um certo modo, aprenderam seu ofício
antes de iniciá-lo (TARDIF, 2000).
Encontro, assim, mais um motivo para propor a (re)composição narrativa na vida
dos jovens adultos em formação, um aprendizado que se faz fazendo, como a
música, para que tenham uma idéia de si: quem é, como e de onde veio aquele/a
que ensinará (potencialmente) música nas escolas, ainda que se lamentem e que
se percam no estudo (no sentido de Larrosa, 2000).
(...) o estudo é a única distração do estudante que com nada mais
se distrai; é a suprema distração: aquela que o distrai
completamente; aquela que o distrai, inclusive da causa ou da
finalidade do seu estudo; aquela que o distrai, inclusive de si
mesmo. Por isso, o estudo é o que interrompe, é o dom ambíguo,
fascinante e perigoso, do estupor que produz a suprema
interrupção (LARROSA, 2000, p.200).
Talvez essa seja a melhor denominação do plano de ensino que propus neste ano
em que atuei como formadora de educadores musicais: um estudo da formação
musical para a pedagogia ou um estudo da pedagogia para a formação musical
incrementada pela narrativa, que:
leve em conta o outro e a si mesmo como sujeitos do ensino e
aprendizagem como seres 100% singulares, 100% sociais e 100%
humanos (CHARLOT, 2005);
102
comunique as necessidades de sua matéria de ensino. Abaixar a cabeça e
submeter-se às migalhas oferecidas pelos financiadores da miséria
humana não é opção, há que se reverter estrategicamente essa situação;
considere a propriedade artística da música, inclusive aquela feita nas
escolas;
busque constantemente o sentido do aprender e do ensinar.
A música, quando faz parte de nossa formação, constitui nosso modo de ser e
pensar. Não se pode dizer, 'agora vou esquecer que tenho a música dentro de
meus modos de pensar e ver e ouvir o mundo', pois se torna parte do que somos
de tal modo que não pode ser deixado de lado.
Cláudia Ferreira (2004), narrando na sua dissertação as marcas que lhe deixaram
o aprendizado de piano como parte significativa de suas experiências de
formação mostra esse 'fazer parte do que somos' que não se deixa de lado, pois
nos integra.
Outra experiência significativa foi o aprendizado do piano. Não sei
precisar a idade, mas possivelmente foi entre os meus 19 a 16 anos
que fiz um curso de piano clássico com uma professora particular
(...).Aprendi a ler partitura e a preparar peças para apresentações
(audições) periódicas. Foram quatro anos. Tinha muita facilidade
em 'tirar' as músicas de ouvido, o que me dava a chance de 'tirar'
músicas populares, em detrimento de ficar estudando partituras
clássicas. Muitas broncas por não estudar e veio a desistência.
Dessa experiência decorreu um gosto especial por músicas dos
mais variados gêneros, que me encanta, me atravessa, também me
marca (FERREIRA, 2004, p.23-24).
Como para Ferreira(2004), a vivência da/na/com a música se refletiria nesse
estudo da formação musical para a pedagogia ou da pedagogia para a formação
musical instrumentalizada pela narrativa. Suas palavras se concretizam em sua
ação profissional como coordenadora pedagógica no colégio que trabalho, no
valor que atribui e na sustentação que às áreas de formação artística,
especialmente na construção dos sentidos de meu olhar, da música, indicando
que algo a trocar além das práticas pedagógicas, quando se abre à busca de
compreensão 'musical' que a linguagem verbal 'esconde'.
Se os profissionais da sica e da educação musical não falarem uns com os
outros, talvez se chegue à conclusão que, afinal, não era nada tão relevante.
103
Será? Tenho certeza que não é assim. E que há que se encontrar um modo de
comunicar esses achados para a sociedade.
Se alguém me perguntar: mas a música, ela própria não é a sua maior
divulgadora? Eu respondo: sim, no momento em que ela for de fato e de direito
distribuída democraticamente a todos, como produto cultural e não produto de
mercado. Não vou tratar sobre mercado aqui. Nem do potencial da internet, pois
deveria tratar dos excluídos digitais, que incluem uma complexidade de outra
natureza de pesquisa. Meu trabalho abriria uma porta que demandaria mais
tempo. Mais tempo...
As seguintes conceões a respeito da educação musical foram traçadas partindo
de depoimentos e observações de professores das séries iniciais do ensino
fundamental e de membros da administração escolar sobre as suas relações com
o ensino de música (SOUZA, 2002, p.8) nas cidades de Porto Alegre (RS),
Salvador (BA) e Florianópolis (SC), entre os anos de 1996 e 1998.
(...) a concepção de sica como auto-expressão ou expressão
das emoções. (...) o valor da música como um meio para acalmar e
tranqüilizar os alunos. (...) a noção de saúde mental, ou seja, a
função terapêutica da música.. (...) como auxiliar no
desenvolvimento de outras disciplinas ou como pano de fundo para
a realização de outras atividades. (...) como um recurso e não como
área de conhecimento com conteúdos próprios. (...) como
divertimento, lazer, prazer. (...) o último aspecto a ser destacado
refere-se à visão de que o ensino de música deveria ser reservado
para a minoria talentosa, ou seja, para estudar música é preciso ter
dom ou 'tendência' (...) (SOUZA; HENTSCHKE et alli, 2002, p.114-
115).
Quando se refere ao ensino de música de um modo que atribui valor ao campo da
música em si, faz a ressalva do talento, dom, ou tendência, o que instaura dentro
do projeto as causas de seu fracasso e as desculpas para esquivar-se dele. Não
se leva em conta nem o ensino, nem o estudo, nem o trabalho, nem o
conhecimento, nem o investimento. Dá o que pensar, não?
4.5. Implementação da narrativa na Oficina de Som e Movimento.
O senso prático é uma das características de muitos narradores natos. (...) O
conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria
BENJAMIN, 1996, p.200.
104
Quando o ensinar 'tem intenção' de ensinar para que o outro aprenda a ensinar e
outros aprendam, o diálogo faz parte de afagos estéticos. O outro é um legítimo
outro na convivência, quem sabe a narrativa ganhe força de aconselhamento, de
contos ao do fogão enquanto a avó sova um pão, ou está ao da cadeira
onde trama um lindo crochê?
Este é o sentido do exercício do registro do que acontece nos espos de
formação e do que acontece dentro de nós, que ganha lugar de memória, de
afastamento de si, de estudo, de documentação, de diálogo e de conselho.
A confiança no caráter formativo, experiencial (gerador de experiências),
discursivo e de direito do memorial de formação é outra das confianças que tenho
e que considero importante na formação de um/a professor/a de música, como o
primeiro passo para pensar na educação como constante formação.
Lastreada nessa convicção, entrei na sala de aula com um plano e um convite.
O plano de ensino seria colocado em prática, pois ele era baseado na ementa da
disciplina, continha o conteúdo, a bibliografia de base, os objetivos prescritos pelo
currículo.
Cada tópico deveria ser abordado de uma maneira ou de outra. A maneira é que
dependia da aceitação ou recusa do convite.
No entanto, não era ingênua a ponto de não saber que dificilmente encontraria
aluno ou aluna que dissesse não justo no primeiro encontro do primeiro ano de
faculdade com uma professora recém conhecida.
Certeza. Foi o que aconteceu. Todos concordaram.
Logo, logo, começaram a aparecer vidas do tipo: _ao que seria mesmo que a
professora se referia quando falou sobre registro?...
Alguns (onze, de vinte) entregaram os registros de cada dia de aula em que
compareceram, outros foram entregando espaçadamente, mas com regularidade
(cinco), e outros (quatro) praticamente compareceram às aulas e fizeram as
avaliações e trabalhos coletivos.
Teve especialmente um rapaz que fez questão de se referir a essa espécie de
atitude, que seletiva e estrategicamente esquece os procedimentos combinados
em nosso acordo didático.
105
Apresentação da aula de Mário e Justus.
Ao som de músicas no piano, pede-se que o grupo se mova de acordo com uma célula
rítmica. Quando uma variação fora da célula rítmica o grupo deve parar de se mover.
Trabalhou-se a concentração e identificação de células rítmicas específicas (memória).
O tema é um tanto vago e a aula foi ministrada de forma medíocre, o que talvez possa ser
justificado pela (novamente) ausência de bibliografia. Teríamos em seguida a
apresentação do trabalho do Dante, que não havia compreendido a proposta para as
aulas (mesmo após diversas semanas de apresentação iniciadas), querendo utilizar-se de
um 'método próprio', embasado em 'seus conhecimentos e experiências' (e não em
bibliografia) e com música popular (o que não é necessariamente positivo ou negativo)
(Gabriel, reg., 26-09).
Tivemos a oportunidade de conversar sobre esses procedimentos todo o ano,
principalmente porque a atitude influenciava diretamente os trabalhos individuais
ou de grupos.
Mas na questão dos registros das aulas eu não tinha nenhum interesse em
trabalhos escritos sem implicação, por isso, o que fiz durante o ano foi provocá-
los mostrando as minhas anotações e reflexões sobre as aulas, discutindo, depois
de autorizada, as narrativas que eu havia lido para comentarmos.
Mesmo assim, ainda recebia relatos, listas de eventos, muito parecidos como as
cadernetas de aulas de piano que encontrei entre meus guardados.
Houve comentários a esse modo de se expressar.
A aula começou com a leitura do registro da Bianca (que, aliás, estava muito legal)
relatando a aula passada. Após isso, a professora comentou o registro, mas o assunto que
ela (a Bianca) falou. Bom, observei que eu tenho escrito os registros de forma descritiva e
não ao escutar a Evelina ler o seu registro. A Liana começou a ler seu registro e com isso
observei que temos que evitar usar tópicos, mas sim registros analíticos
(Saulo, reg.
21-06).
As narrativas pedagógicas que foram produzidas no ano de 2005 na disciplina
OSM do curso de LEM na UNESP, foram as seguintes: as novelas de formação
(nov.), os registros de aula (reg.), auto-avaliações (a. av.), plano de aula (pl.),
avaliação da aula planejada (av. pl.), análise de bibliografia específica de
educação musical (an. bibl.), leitura e impressões do texto sobre experiência, de
Jorge Larrosa (exp.) e reflexão sobre os exercícios de rítmica de Gramani (Gr.).
As novelas de formação não eram obrigatórias, porém todos, sem exceção
entregaram-nas.
106
Os registros de aulas também não eram obrigatórios, assim como a leitura de
Larrosa, que foi indicada depois de conversarmos sobre a experiência de fazer
música, que é transformadora e eu indicar a escrita como algo semelhante,
citando o texto. Alguns alunos pediram o texto, leram e escreveram seus próprios
textos baseados nele (dez). Todos tiveram acesso.
Sobre as aulas, como havia dito, fiz um convite com 'segundas intenções': que
eles pensassem na/sobre/com a escrita quando narrassem os acontecimentos
das aulas, ampliando seus modos de se referirem à música, aos sentimentos e
sensações que provoca e também a exercitarem as traduções de uma a outra
linguagem, usando palavras e não sons. Falar sobre a música pode ser muito
complicado, como uma tradução ou imitação. Segundo Stravinsky
92
(1996), em
termos de música, como são desnorteantes todas as descrições literárias de uma
forma musical (p. 9). Ou ainda como Schoenberg
93
,
(...) em todos os níveis, a imitação do modelo, da sensação ou do
conjunto de sensações, é apenas de uma precisão relativa: por um
lado, pelas limitações de nossa capacidade, e, por outro
consciente ou inconscientemente –, porque o material da
reprodução é diferente do material ou materiais da causa (2001,
p.55).
que desenvolver uma forma de se fazer entender quando o tema for música,
sem pegar o instrumento e mostrar, ouça do que estou falando:...
A 'segunda' intenção foi anunciada, as narrativas seriam como um mapa por onde
eu iria dirigindo os itinerários para o cumprimento do plano curricular. À medida da
compreensão trazida na escrita, em confronto com as performances do grupo nas
aulas, os diálogos e a avaliação pessoa da formadora.
Todas as outras narrativas tinham as mesmas intenções, mas como fui
percebendo que nem todos entregavam qualquer material, comecei a ficar
preocupada com a documentação de seus trabalhos. E se, por acaso me
acontecesse algo às vésperas de entrega de notas na secretaria, apesar de que,
como diz uma amiga 'porque haveria de acontecer justo comigo?'
92
Compositor, maestro, pianista e ensaísta russo (1882-1971) (Dicionário Oxford de Música, 1994).
93
Compositor, maestro e professor austríaco (1874-1951) (Dicionário Oxford de Música, 1994).
107
Mas como era responsável por outros, inventei, seguindo conselhos de que
ensinar exige liberdade e autoridade, do mestre Paulo Freire (2001, p.117-118),
que as auto-avaliações eram obrigatórias.
Isso não estava no nosso contrato: como era de se esperar, nem todos
entregaram. Mas quem não entregou tinha outros textos. Ainda bem. Então, não
foi criado nenhum desentendimento e foi garantido o posicionamento de alguns
(três) rapazes que mantinham à distância.
Os planos de aula, devidamente baseados em algum conhecimento anterior ou
bibliografia, era produção conjunta. Todos participaram da produção e da
implementação junto aos colegas, simulando serem alunos, e não tive nenhuma
informação de atitude irresponsável em relação a um colega. Como aluna
participei dos 'contratos implícitos' (LERNER, 2002, p.36-38) que se estabelecem
nas escolas, tanto entre professores e alunos, como entre pares, sei que havia
poucas chances de alguém levar a mim um problema que apontasse para um
colega como irresponsável.
Mas não tive nenhuma percepção de ambiente pesado entre eles. Assumo,
assim, que responderam ao nosso acordo e ao deles.
Inclusive as auto-avaliações sobre a atuação do grupo foram entregues,
demonstrando que alguns alunos estavam, mesmo, evitando escrever, o que não
me surpreende.
A linguagem verbal, como sabemos, tem diferentes dimensões:
possibilita ao homem representar a realidade física e social,
expressar e organizar o pensamento, refletir sobre o que conhece,
vive e pensa, regular a ação, comunicar idéias, intenções, opiniões,
sentimentos e tudo o mais que queira dizer, estabelecer relações
com o outro, influenciá-lo... Mas é certo também que o domínio da
linguagem especialmente a escrita não é uma conquista
generalizada da população, inclusive dos educadores (PRADO;
SOLIGO, 2005, p. 17).
Quem se sentia constrangido em expor sua escrita, o que todos me viam fazer,
deveria mesmo evitar se expor. Embora eu pedisse autorização seria difícil negar
o pedido, que, aliás, não era feito particularmente. Foi falta de sensibilidade a
minha. Pode ser, mas ainda prefiro que assuntos como esse sejam tratados com
a naturalidade dos problemas do dia-a-dia. Com cuidado, sinceridade e
integridade.
108
A análise de bibliografia específica era indicada para estabelecer modos de
comparação da linguagem dos diferentes autores com a comunicação dos
objetivos especificados e com o modo que cada um usou para expressar os seus
planos de aula. Os objetivos dessas análises não foram atingidos. Serviram, no
entanto, para abrir o foco de visão dos alunos e para o estabelecimento de
ligações entre a aparentemente aleatória organização das aulas de caráter
procedimental, onde o corpo se tornava instrumento musical de, segundo Saulo,
'músicos rígidos'(...)
As análises dos exercícios de rítmica de Gramani (1988) - Fifrilin, 6a2ea3 e a
Série 2-1 - foram o último trabalho do ano letivo.
Com as leituras das narrativas, fui enxergando possibilidades de percurso que
indicavam que, se o conteúdo musical os provocava a aprender algo 'novo', algo
que exigisse maior concentração e empenho, passavam também a pensar no
outro: como seria ensinar algo que é tão difícil? Aproveitei ainda essa percepção
e sugeri que uns ajudassem os outros e fizessem propostas nesse sentido.
Vou mostrar somente uma das observações que fizeram:
Hoje eu pedi ajuda, superei meu erro e ajudei um amigo, que tinha dificuldade diferente
num exercício. Surpreendi-me ensinando alguém que tem um conteúdo musical
equivalente ou maior que o meu. Que prazer quando o conhecimento é compartilhado e
acrescido de leituras alheias, e não passado de um indivíduo que, supostamente, detém o
conhecimento, para um outro que não (Evelina, exp.).
Assim, aos poucos, via que o que aconteceu comigo, em meu mergulho narrativo,
e que me fez olhar para todo o processo desse ano letivo e enxergar nas
produções dos alunos uma potência para sua própria formação, e portanto para a
Educação Musical, e portanto para a música, e portanto para nossas crianças,
nossos jovens e a cultura que construímos no conviver. Compreendi o que disse
Mia Couto
94
: infância é quando ainda não é tarde.
Esta é a minha infância.
Não é tarde.
94
Anotações pessoais da palestra proferida no COLE, em Campinas, 10-07-2007
109
5. UMA ESCUTA DE PROFESSORA DE MÚSICA.
110
A afirmação de um juízo como juízo verdadeiro é relacioná-lo a uma certa unidade
teórica, e essa unidade não é de modo algum a unidade histórica única de uma
vida.
Bakhtin, 1993, p.5
5.1. As vozes: quem veio aprender a ensinar?
Meu enleio vem de que um tapete é feito de tantos fios que não posso me
resignar a seguir um fio só: meu enredamento vem de que uma história é feita de
muitas histórias. E nem todas posso contar...
Clarice Lispector
Com as narrativas produzidas e recolhidas abre-se um panorama amplo de
realidades, de pensamentos e vivências do cotidiano de um ano letivo e lidar com
elas é lidar com inumeráveis sentidos e os peculiares modos de contar, todos
abrindo janelas à imaginação, ao estudo, à análise, à investigação.
Fazer delas objeto de pesquisa e pensamento as coloca num patamar diferente
daquele circunscrito às aulas, que muito embora seja um instrumento do ensinar e
do aprender e possa vir a deixar marcas na memória e nos atos, acabam por se
tornarem guardados num caderno velho que podeou não ser reaberto um dia.
E, desta maneira, trocando de lugar na estante, saindo dos 'guardados' e
entrando para a 'seção' de dados de pesquisa transformaram-se em conselhos,
idéias, informações, explicações, lembranças, listas, opiniões, relatos, memoriais,
etc. Desta maneira, no meio da pesquisa acadêmica vão circular, serão
socializados, evidenciados, analisados, avaliados.
De acordo com Bakhtin (2003)
O texto (escrito ou oral) é o dado primário de todas as disciplinas
das ciências humanas, é a realidade imediata (realidade do
pensamento e das vivências), a única da qual podem provir (as)
disciplinas e esse pensamento. Onde não há texto não há objeto de
pesquisa e pensamento (p. 307).
Ao ler e reler as novelas de formação escritas pelos alunos/as, vejo que o
primeiro parágrafo foi a procura de responder, cada um/a a seu modo, como,
quais coisas aconteceram nas suas vidas que os levaram à música e à
111
licenciatura. Mais ou menos o jeito que escolhi ao narrar o meu memorial de
formação.
Apresento o primeiro parágrafo de cada novela de formação, que dá um sobrevôo
no material e mostra a riqueza que cada sujeito traz para a pesquisa.
Faz ver, também, a decorrente necessidade de 'afinar'
95
o foco de visão das
narrativas pedagógicas com a realidade, a possibilidade e a necessidade da
pesquisa sem, no entanto, fechar os olhos, abafar a escuta de suas vozes.
Aí estão:
Iniciei meus estudos de música aos sete anos, em 1996, na seção de Lazer Municipal do
colégio Sesi situado próximo de onde moro (não era necessário ser aluna do Sesi para
fazer parte deste curso livre de música, eu estudava no Colégio Futuro) (ANA, 30-06-
05).
Minha infância foi feliz, jogava futebol o tempo inteiro, parava para ir à escola. Nesse
meio a 'veia musical' se fazia presente, pois pegava o violão da minha irmã e tentava
'arranhar' alguns acordes (Antonio, 2005).
Aqui posso fazer uma parada para anotar uma observação e duas perguntas.
Ter uma infância feliz atribuída às brincadeiras na rua, interrompida para ir à
escola, ou a felicidade de ter podido usufruir o ensino dentro de uma escola para
estudar música desde cedo: Carlos pensa que pessoas dedicadas ao estudo
desde a infância perderam algo? Ana pensa que quanto mais cedo começar a
estudar melhor será a formão?
Posso dizer que sou uma pessoa muito privilegiada.
Acredito que a parcela mais importante da formação de uma pessoa seja obtida em casa,
com a família. Minha mãe é doutora em letras - português e francês - e meu pai é
engenheiro. Tive uma formação cultural muito sólida, estudei num bom colégio a vida
toda. A família de minha mãe é de músicos amadores, violonistas, pianistas e cantores.
Ganhei meu primeiro violão aos seis (6) anos e no mesmo ano ingressei no conservatório.
Alguns anos mais tarde passei a ter aulas particulares de violão com Ewerton Gloeden,
um dos maiores violonistas que eu conheço (Bedina, 29-06-05).
95
Afinação faz parte das preocupações musicais. É comum que as crianças pensem nela como algo que tenha
que se tornar fino, então, com relação à voz ou ao uso de um instrumento, a primeira idéia é emitir um som
agudo, tanto quanto possam. Com o tempo e o trabalho percebem que só se afina alguma coisa em relação a
uma outra. Afinação existe na relação. Uma pessoa se afina com a outra. Alguém se afina com a matéria
de estudo. Uma outra pessoa afina sua voz com o padrão culturalmente construído de afinação, e por vai
este conceito.
112
Este depoimento confirmaria, talvez, o que Ana apontou, sem invalidar a outra
hipótese de Carlos que a influência da família é muito forte nesses assuntos de
aprender música, embora não seja uma questão de sangue, mas de cultura
determinada pelo nível de formação acadêmica.
Parar para pensar nas coisas que influenciaram minha formação é muito difícil. Em
alguns momentos da vida a gente acha que nasceu pronto, com opinião formada e
caminho certo para seguir. Mas fiz algumas tentativas para descobrir como adquiri tudo
que tenho como princípio e formação hoje.
Quando 'decidi' que queria estudar música, aos três anos de idade, não havia motivos
para que alguém imaginasse que isso duraria muito tempo. Meu irmão, com seis anos
começava seus estudos de violão erudito, e eu mostrava minha paixão pelo piano.
Depois de convencer a diretora do conservatório de me aceitar como aluna, aos cinco
anos fui obrigada a parar os estudos, porque meu pai havia perdido o emprego e teria
condições de manter um de nós estudando...é claro que o escolhido foi o meu irmão
(Carol, 2005).
Já no primeiro parágrafo, Carol se mostra crítica em relação às coisas que
pensava de si, questiona as suas antigas certezas e aponta as dificuldades para
realizar como que um destino a partir de uma opinião formada e caminho certo
para seguir. Se não exaltou a formação musical desde a infância, talvez seja por
que tem a questão como óbvia.
A música na minha vida começou cedo, ainda aos nove anos, quando meu pai comprou um
violão da marca Del Vechio, para eu e meu irmão mais velho aprendermos a tocar, meu
pai era músico, quando jovem tocava em bailes no interior (nasceu em Franca), o que
gerou o gosto pela música, apesar de não gostar de música sertaneja, a paixão pela
música estava no sangue (Carlos, 2005)
96
.
Novamente a questão do sangue mais a noção cultural da influência da família.
Minha formação auditiva começou bem cedo. Desde pequeno ouvia muito as músicas do
meu pai, que é compositor e tocava violão também. Sempre estive em contato com o
CORALUSP, que minha tia faz parte até hoje Meus pais fizeram comigo e meu irmão, uma
'ditadura auditiva do bem'. O que era ruim não entrava em casa (Dante, 2005).
96
Carlos traz muitas informações pessoais de sua falia, talvez para mostrar sua influência e da forte
ligação com ela, mas prefiro evitar alguns detalhes em certo grau de intimidade. Era o caçula de três irmãos e
depois de dez anos "perdeu o trono". Nasceram mais uma irmã e um irmão.
113
Mais uma atribuição valorativa à idade de princípio da formação, desta vez
auditiva. Valoriza a audição e a escolha por parte dos pais ou responsáveis do
repertório para esse fim.
Desde que me conheço por gente existe um piano na casa de meus pais. Eu e minha irmã
sempre gostamos de brincar de tocar com meu pai "O Bife" e "Blue Moon". Fazíamos só o
acompanhamento e ele fazia a melodia. Tínhamos uma vizinha de prédio, que se chamava
Adriana, que tocava muitíssimo bem piano. Quando ia em casa, tocava para a gente e
ensinava algumas músicas que sabia (Luna, 2005).
Evidências de influências culturais somadas à possibilidade de experimentar, por
ter um piano em casa e tocar com o pai para distração e confraternização,
diferentemente da forte influência da cultura escolar, no caso de Gabriel:
Estudei desde a Pré-Escola até o Ensino Médio num colégio católico. Lá, além de tudo
que se aprende nas escolas normais
97
, conheci os valores católicos, a Bíblia e tudo mais. o
colégio nos impunha diversas regras. Abominavam o diferente (cabelos coloridos, roupas
não usuais, piercings) e eram muito rígidos quanto a horários, além de controlar a
circulação dos alunos pelo prédio no horário das aulas. Isso desde cedo me incomodava
muito. Sempre achei que uma escola que tem muitas proibições prejudica a percepção do
aluno em relação às prioridades e à construção de sua responsabilidade (Gabriel,
27/05/2005).
onde na maior parte do texto-memorial conta seus múltiplos interesses e da
consciência que tem de onde pensa que vieram e como desenvolve aquilo que
recebe na cultura onde se forma.
Talvez por influência da escola, na série tive uma vida de católico (!!!). Fui à igreja
durante todo o ano, fiz a comunhão e crisma... Logo, por formação sou católico, mas
não sigo mais a religião. Acredito em alguma forma de força superior, seja ou não
racional, mas não consigo seguir a religião porque vejo em todas um passado que as
condena e nada tema ver com 'deus'. Outra, bastante distinta, é seguir regras criadas por
outros homens tão falhos e egoístas quanto eu. (...) Interesso-me muito por religiões em
geral. Gosto de estudar o espiritismo, o judaísmo e a Cabala, por exemplo. Considero e
respeito às visões religiosas do mundo e interpretações de vida, e acredito que a religião
é, muitas vezes, a motivação para lindas coisas que o ser humano faz. No entanto, como
disse, não sigo nenhuma religião atualmente. Prefiro ter no respeito e na harmonia
entre os homens (que é como uma religião; acreditar no que parece impossível).
97
Se refere à escola básica.
114
Penso que é interessante dizer que Gabriel fala sobre a sua formação musical
no último parágrafo das duas páginas de sua novela de formação:
Quanto à música, estudei dois anos de violão erudito (solo). Nunca estudei em
conservatórios e essa minha formação meio deficiente está me fazendo penar um pouco na
faculdade. Por outro lado, tenho aprendido muita coisa nova, o que me faz sentir feliz e
preenchido. As grandes dificuldades sempre me proporcionam as melhores vitórias.
Diferentemente de todos os outros memoriais, que evidenciam seu modo de ser,
como um modo de ser na música, seja por ambiente cultural familiar ou no círculo
de amizades.
Meu interesse pela música começou aos oito anos de idade quando um amigo me
apresentou um disco de uma banda de rock que, na época, era das que fazia mais sucesso
(portanto era muito difundida nos meios de comunicação). Tive desde então um contato
muito grande com outras bandas do gênero e logo me interessei em tocar um instrumento,
depois de passar por muitos acabei optando pela guitarra (Matias, 2005).
A influência que Matias recebeu, segundo este parágrafo, foi da mídia e do
convite de um amigo: influência do meio sócio-cultural. É um dos alunos que
menos histórias contou, mas sempre se mostrou interessado nas aulas.
Desde quando eu não tinha memória nem consciência dos meus atos, muitos diziam que eu
tinha uma sensibilidade musical aguçada, pois sempre quando eu ouvia uma música, eu
expressava os sentimentos (me emocionava como diziam as pessoas) da música que era
tocada (Blah! O que agora vejo que muitos têm aula de música, mostra que todos
possuem essa sensibilidade). Porém, as pessoas percebiam que a música era o meio de
expressar-me com as pessoas e com o meu mundo ao redor (Saulo, 2005).
Saulo tem duas provocantes questões. A perda do que pensava ser exclusividade
sua, da sua identidade, de ser alguém especial por se emocionar ao ouvir música,
Blah!, diz, como se tivesse sido iludido, pois esse era o excedente de visão a
partir do qual se enxergava. Dava acabamento estético ao seu ser e organizava
seus projetos, seu devir ético (BAKHTIN, 1993). Ao supor que todas as pessoas
que estudam música têm o mesmo tipo de sensibilidade, deixa de se sentir
especial, mas compreende porque era o neto que ganhava colo da avó, onde
ouvia histórias e músicas, onde estava envolvido de afeto, quando diz, no mesmo
parágrafo, Um fato curioso é que agora percebo o porquê de eu ser o neto que a minha
avó materna colocava no colo para cantar várias músicas....
115
A outra é a relação com a obra de arte desde muito pequeno, de quando não tem
memória nem consciência, representada pela emoção que lhe causa, mas mantendo
a afirmação de que são os outros que definem qual é a sua forma de expressar-
se com o mundo e as pessoas, sem assumir-atribuir valor a sua própria emoção-
ação.
Afirma e me dá chance de confirmar a suspeita de que é comum que músicos não
partilhem verbalizando o prazer estético e a emoção decorrente da música em
comparação às pessoas em geral, das quais em última instância fazem-faço-
fazemos parte. Colocam o prazer estético objetivado histórica, técnica ou
estruturalmente no lugar das expressões de prazer ou repulsa. Quando
professores, o fazem afastando-se de transferir-partilhar (BAKHTIN, 1993),
contando, essas emoções para seus alunos.
É um tanto difícil falar sobre tudo aquilo que ajudou a me formar o que sou hoje.
A minha família sempre foi muito ligada em música, todos nós (somos seis) tocamos
instrumentos e minha mãe é regente; certamente essa influência foi o estímulo mais forte
que eu tive, sempre assistíamos a diversos tipos de apresentações; desde pequena fui
orientada para a arte e, em especial, a música.
Iniciei meus estudos musicais na ULM
98
aos seis anos, onde eu me formo, provavelmente,
no próximo ano. Meus professores de iniciação musical foram muito bons, tinham muita
didática ao nos ensinar; apesar de vaga lembrança, lembro-me com carinho das aulas de
teoria e coral (Wanda, 30-06-05).
Este é o primeiro parágrafo da última novela. Os assuntos trazidos são a
influência da família e a importância do estudo. Ninguém tocou na palavra talento
a partir da sensação de resistência maior ou menor, comparativamente a outros,
ou da própria percepção de facilidade ou dificuldade de realização do trabalho
musical. Eu penso que é muito assustadora, pois na sua falta, não da palavra,
mas do próprio, seria fatal o afastamento do estudo de música. Ou continuar nele
carregando um peso. pensaram se com toda a determinação e emoção que a
Carol demonstra quando tem uma chance de falar de si e sua relação com a
música, como ela seria infeliz se alguém colocasse nela um carimbo? "SEM
TALENTO!"
98
Para homenagear seu fundador, em 2002 o nome da escola foi alterado de Universidade Livre de Música
para Centro de Estudos Musicais Tom Jobim, mas informalmente alunos e professores continuaram a chamá-
la de ULM. Disponível em <http://www.ulm.org.br/ulmgp.asp?pgitem=pp> Acessado em 04-11-07.
116
Dói e mais ainda se esse rótulo é colocado por nós mesmos. Diz-se que talento é
condição sine qua non para tocar um instrumento ou cantar e como viram, de um
modo geral se pensa que o talento poderia vir 'no sangue', ou que a família deu-
lhe o que precisava, isto é, é uma condição a priori.
Por isso também a declaração do Saulo ao perceber-se uma pessoa como as
outras causou-me tanto impacto. Não ser mais especial que ninguém nesta área
de conhecimento em que ela é pressuposta pode causar algum incômodo. A
percepção deste incômodo que Saulo trouxe à tona, pois eu também fazia/faço
parte desta coletividade de músicos e tenho alguns óbvios devidamente
invisibilizados
99
, ou poderia dizer silenciados, foi um dos fatores da inteão de
fazer um pequeno estudo
100
sobre o talento dentro desta dissertação, que talvez
falar, discutir, problematizar alivie algumas pessoas desta imposição mitificada,
endeusada.
No entanto, acontece de detalhes ficarem de fora dos registros.
Estou nomeando 'detalhes' sem a intenção de diminuir sua relevância, são
acontecimentos do espaço-tempo das aulas e seu entorno, como os que vou
contar.
Um caso: alterar a geografia da sala de aula, isto é, a (re)distribuição das
cadeiras-de-braço e montar espaço para o diálogo e para a realização da Oficina
de Som e Movimento. Sobre este caso não uma palavra nos textos dos
alunos sendo que este pequeno 'detalhe' fez parte de todos os dias do ano letivo.
Mais um caso: lidar com os atrasos, como conta uma das estudantes que tiveram
o seu exercício prejudicado.
Percebi que na minha apresentação da aula que preparamos, Saulo e eu, tive muitas
dificuldades (...) e também (percebi) que a dispersão causada pela falta de pontualidade
dos colegas atrapalhou bastante (Carol, 12-09-05).
99
Anotações pessoais feitas na palestra de Idália Sá-Chaves em julho de 2007, no Centro de Convenções da
UNICAMP.
100
Quando digo 'pequeno estudo sobre o talento' fico imaginando o que projetarão dessa promessa, os
leitores, e não seguro a minha vontade de dizer que a mim, esta palavra faz ouvir sons que me acompanham,
no piano, desde os primeiros estudos de técnica, como Czerny, depois Cramer para chegar em Chopin, e
Debussy, e Scriabine, cada 'estudo' objetivando o desenvolvimento de um quesito técnico - sempre
entrelaçado a outros -: por exemplo, para a agilidade da mão esquerda. Como bem lembram Deleuze e
Guattari, a visão existe pelo pensamento, e o olho pensa, mais ainda do que escuta (2001, p.250), mas a
mim, estudo soa. O difícil é traduzir.
117
Refere-se às faltas decorrentes de motivos vários, desde o trânsito ou das
inundações de São Paulo, quando a cidade impermeabilizada não conta de
liberar as águas. O seguinte fato aparece em alguns registros sobre esse dia:
Como três quartos da classe tinha faltado na aula anterior - a do dia 24 -, os cinco alunos
que compareceram ficaram encarregados do preparo da aula seguinte - a do dia 2. A aula
deste dia foi uma 'releitura' da aula anterior para a classe completa, através da qual
pudemos perceber e corrigir nossos erros acerca da compreensão e interpretação dos
exercícios propostos (e estas constatações foram de grande valia não apenas para nós que
havíamos participado daquela aula como também para a professora, que afirmou ter visto
suas próprias falhas nas que nós cometemos) (Ana, 02 - 06 - 2005).
Ela indica que havia um quarto dos alunos na aula, mas não que nesse dia
houve uma chuva de enormes proporções, provavelmente porque do lado da
cidade que ela veio não houve impedimento, não se sabe, pois ela nem cita a
questão.
Como também ninguém fala sobre o (trans)torno das cadeiras - nem eu em meus
registros deixo transparecer -, escrevendo este texto me dei conta das
negociações que foram feitas para, senão resolver, ao menos minimizarem seus
efeitos.
Certa vez, atrasamos para finalizar a aula e toda a turma do horário seguinte
estava esperando na porta, inclusive, com razão, a colega professora que me
olhava enviesado dizendo que não era preciso arrumar para evitar um atraso
ainda maior meio que batendo o de raiva (a questão da relatividade do tempo:
para nós eram 'só' de cinco 'minutinhos'...).
Resultado inesperado, um acaso com final feliz, porque a partir deste dia
adoraram a nossa (des)arrumação.
Esses acontecimentos que mobilizam o professor e a professora em sua rotina,
produzem conhecimentos, pois a (con)vivência com eles alerta os implicados na
questão do tratamento de suas próprias questões na hora e no lugar do
acontecimento e não aparecem em registros porque são 'invisíveis'.
Além de ser provável que dê muito mais trabalho para (d)escrever rotinas do que
lidar com elas presencialmente, quando algumas palavras e certo tom de voz, um
olhar, um silêncio, um gesto encurtaria caminhos. Vou retomar este assunto mais
tarde, para falar sobre (d)escrever acontecimentos musicais.
118
Convido então a levar em conta: as entrelinhas da narrativa, o momento-aula
como um micro-cosmos da cultura humana, as relações singulares, e 'invisíveis'
nos conhecimentos, para dizer que olho para os dados por um buraco de
fechadura (sem a chave), percebo os entornos, mas nem sempre dou à luz,
deixando-lhes uma parte essencial e que cabe ao leitor, e como me lembra Soligo
(2007) no posfácio de sua dissertação, de onde meus pés pisam.
Como os registros contam aquilo que teve para quem escreveu algum significado
em contar, algumas vezes disponho-nos de um modo que compõe um novo texto,
onde os textos 'conversam' entre si e completamentam-se uns aos outros, dando
uma visão de diferentes lugares-de-pisar no acontecimento-aula, inclusive o modo
de ver-se e ao outro em situações-propostas idênticas.
Com o objetivo de mostrar os dados numa certa organização, apontando os
recortes delineados pelo contorno do que fui reconhecendo como parte de minha
própria trajetória de formação, monto um super-texto, a partir de minha super-
visão de pesquisadora
101
, no sentido de ter uma posição privilegiada ao olhar
todos e cada texto.
Cito os passos que segui nesta inserção das narrativas pedagógicas tornadas
dados de pesquisa acadêmica por desejo de trazer a público e ampliar os
diálogos, portanto também os conhecimentos: anotações que foram redigidas
após as aulas do primeiro dia de aula [no caderno 'laranja'] aparecem antes das
'apresentações dos alunos', ainda com os insubstituíveis detalhes do contato
pessoal
102
vivos na memória, e como haviam sido digitalizados, ctrl c-ctrl v
103
,
vieram para cá. Eventualmente corto o texto com colchetes, para dialogar com as
categorias, ou para me lembrar de um lugar ou um acontecimento.
12-05-2005
Dia frio.
Aula na sala da turma de teatro.
101
Nenhuma relação com os heróis super divulgados e super desejados inclusive pelo meu imaginário para
algumas situações que superam nossa capacidade. Ou tem?
102
O contato pessoal implicado na comunicação do ponto de vista biológico como diz Maturana (200, p.15),
é um domínio das ações emocionais. Quando mudamos de emoção, mudamos de domínio de ações. Na
verdade, todos sabemos isso na práxis da vida cotidiana, mas o negamos porque insistimos que o que define
o humano é a razão, quando todo sistema racional se constitui no operar com premissas previamente aceitas,
a partir de uma certa emoção.(IDEM, p.16), o que me faz argumentar a favor da interpretação que se ao
diálogo presencial como reforço à produção textual.
103
Terminologias de informática, que querem dizer que foram copiados e transferidos dados de um arquivo
para o outro.
119
Todos sentados no chão, radiantes por estarem no primeiro ano de uma nova fase de suas
vidas: a Universidade!
São dezenove rostos: falta um dos matriculados. Porque será? Um dos alunos da lista de
chamada trancou a matrícula, soube durante as semanas seguintes
Apresentei-me, contei um pouco da minha trajetória de professora de música na rede de
ensino regular e de regente de corais infanto-juvenis. Enfatizei muito o fato de ser esta a
primeira turma de licenciatura da UNESP, uma grande conquista para a Música.
Disse que acredito no diálogo como produtor de conhecimento, e pedi que cada um se
apresentasse da maneira que achasse melhor, contando o que gostaria que todos
soubessem; e também que partilhassem a sua formação musical.
Escrevi conforme foram falando, as coisas que conseguia 'pegar'. De uma maneira geral,
as apresentações giraram em torno de contar porque escolheram licenciatura.
Interessante que a questão da idade apareceu muitas vezes. [E não o talento...]
Depois das apresentações, falei sobre a ementa da disciplina, seu caráter procedimental e
a abordagem que eu acreditava, de refletir sobre a prática e registrar os acontecimentos,
as conversas e os pensamentos que surgirem nas aulas, sobre as aulas, das aulas, com as
aulas...
[Apresentação:]
Antonio: 36 anos. S.P. Interesse, pois preciso de formação em Licenciatura. Comecei
na USP, não gostei. Toco piano e violão.
Dante: 20 anos. S.P. Prestei várias, me interessei por esta. Não sou da área do
erudito. Toco violão e 'cavaco'.
Cândido: São Bernardo. trabalho desde garoto. Estudei Regência Coral e Canto,
violão e baixo elétrico. Dei aulas de canto. Sou regente de coros adultos, infantis e
fanfarra. Prestei Regência e Composição, mas achei que iria atender mais a minha
profissão de professor na Licenciatura.
Justus: S.P. comecei instrumento, piano em faculdade. Ser instrumentista não é a
minha cara.
Bianca: S.P. Não sei porque entrei aqui. Queria fazer bacharelado. Já trabalho, dando
aulas de música - flauta.
Evelina: S.P. Toco piano. Escolhi licenciatura embora quisesse composição. É
complicado viver de composição no Brasil, como campo de trabalho. Gosto de dar
aulas.
Ana: S.P. Acabo de fazer aniversário e completar 17 anos. Toco flauta doce,
transversal. Resolvi que faria alguma coisa na música, ou na filosofia.
Márcia: Campinas. Toco piano desde pequena. Licenciatura poderia ser bom para
meu futuro.
Mário: São Bernardo. Queria composição e regência. Fiz Licenciatura pelo campo de
trabalho.
Briana: S.P. Não sou pianista, sou cantora.
Danilo: S.P. Violinista e guitarrista, tentando aprender canto e piano. Licenciatura foi
fruto de uma decisão que tomei em dez minutos.. Entrei na ULM aos 11 anos. Para
violão não tinha vaga. Fiz violino. Quis composição e regência para fazer trilha
sonora.
Boris: S.P. Estudo desde 12 anos, violão, sem seriedade. Quis ser engenheiro: 'nem a
pau' que vou fazer tanto cálculo. Preparação para vestibular...
Carol: S.P. Queria piano desde os três anos. Com cinco parei, meu pai não podia
pagar, voltei dos seis até os doze. Trabalho desde cedo, não quis trabalhar em loja de
roupa. Com 13 anos dava aulas de música: nas primeiras vezes que aparecia um
120
aluno, ao me olharem tão criança não voltavam mais. Aí, minha mãe recebia as
pessoas enquanto eu tocava piano na sala ao lado, para mostrar às pessoas que eu
sabia tocar!
Simone: Presidente Prudente. Desde pequena adorava jazz. Aprendi clarineta. Estudei
oboé. Sou professora de crianças. Fiz flauta, canto lírico na Escola Municipal. Fiz
letras.
Luna: 33 anos. Fiz Ciências Sociais e música paralelamente, por prazer: canto, violão
e flauta doce. Fiz 3 anos de jornalismo. Trabalhei no Almanaque Abril e vi que não era
isso... trabalhei na Teca Oficina de Música, com educação. Sou mãe de uma filhinha.
Gosto de teatro.
Wanda: 18 anos. Estudo desde seis anos - educação musical. Vou me formar em piano.
Passei na UNICAMP, piano.
Saulo: Rio Claro. 22 anos. Toco violoncelo. Comecei órgão, teclado, que achei meio
chocho. Piano, a professora era brava. Tentei (tocar) bateria, fui para cordas. Baixo
elétrico. Entrei numa orquestra da qual saí por causa do jogo de ego, competição,
disputa... A minha família queria que eu estudasse música.
Matias: São José dos Campos. Toco violão, erudito. Com treze anos me chamaram na
igreja para tocar.
Gabriel: Santo André. Gosto também de cênicas e plásticas. O curso tem uma margem
bem ampla de escolhas. Tenho dois anos de violão.
Havia planejado uma vivência corporal da música reproduzida no aparelho de som, que
foi feita. Em seguida, perguntei se algum aluno poderia experimentar dirigir uma
atividade semelhante. Danilo topou.
Luna: atividade para desenvolver a relação entre o movimento e o andamento. Bom
para começar: levam à vivência de todas os parâmetros do som.
Antonio: exercício para compreender andamento.
Danilo: preferiria ouvir o coração, por exemplo
104
.
Ana: a atividade trabalha ambas as coisas, andamento e pulsação. Exercício ajuda a
ouvir. Ouvir é o mais importante para a música.
Mário: acharia mais interessante através de uma melodia já conhecida.
Bianca: forma correta e divertida de aprender.
Carol: é um teste bater palma no tempo e pés no contratempo. Penso que primeiro
deveria se mostrar as diferenças. O pulso não é o primeiro elemento.
Briana: a atividade proporciona concentração.
Saulo: ansiedade. Quando vai mudar? Quando é rápido?
Wanda: expectativa.
Estes são os depoimentos feitos ao final da atividade por alunos que a
observavam. Para esclarecer, a proposta tinha entre seus objetivos a socialização
do olhar para a ação dos colegas de fora do exercício, para pensar nas respostas
que dariam ao serem questionados sobre qual o fundamento da atividade:
104
Alusão ao pulsar do coração, relação que se costuma fazer para desenvolver nas pessoas o conceito de
unidade de tempo, uma percepção de uma pulsação que sentimos nas músicas. Eu particularmente gosto da
metáfora.
121
O registro das dinâmicas temperadas pelas impressões que me marcaram, e que
foi feito a partir das anotações na aula, completadas pela memória, leva, ou
procura dar ao leitor uma idéia do ambiente que marcou todas e cada aula,
geografia e história da produção das narrativas.
Outro ponto que pode ter ficado obscuro, como me disse Cláudia, leitora
privilegiada deste texto (Ferreira, 2004; 2007), é o motivo da surpresa que
demonstrei pelo fato da questão do talento não aparecer no momento das
apresentações das novelas de formão. Haverá todo um tópico dedicado a ele,
mas como me ensinou outra leitora, também privilegiada, a Rosaura (Soligo,
2005, 2007), é bom ir indicando por onde o leitor terá que passar, se quiser
continuar caminhando ao nosso lado.
Leitor/a privilegiado/a é um termo que temos usado entre um grupo de amigos
para as pessoas que generosamente lêem aquilo que amorosamente
escrevemos, Reconheço nesse hábito o exercício pleno do conceito de excedente
visão: quando ao lermos o mesmo livro, ouvirmos a mesma música, ou olharmos
um para o outro,
nossos horizontes concretos efetivamente vivenciáveis não
coincidem. Porque em qualquer situação ou proximidade que esse
outro que contemplo possa estar em relação a mim, sempre verei e
saberei algo que ele, da sua posição fora e diante de mim, não
pode ver: as partes do seu corpo inacessíveis ao seu próprio olhar -
a cabeça, o rosto e sua expressão -, o mundo atrás dele, toda uma
série de objetos e relações que, em função dessa ou daquela
relação de reciprocidade entre nós, são acessíveis a mim e
inacessíveis a ele. Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se
refletem na pupila de nossos olhos (BAKHTIN, 2003, p.21).
Ao escrever a dissertação, oficialmente dois anos dedicados a pensar, estudar,
analisar outros pensamentos, estudos e análises, como é o caso desta pesquisa,
é natural esperar que me envolva de tal modo que algo escape de meu campo de
visão, embora o próprio texto seja o outro que está em meu horizonte. Outros
leitores me fornecerão a medida do que emerge da leitura. E eu, dialogicamente
agradeço.
5.2. Aprender 'para' o outro.
122
A percepção de aprender para ensinar - excedente de visão estética, por vir ético.
A compreensão é emocional, verbal e intelectual, é completa e instantânea.
José Pacheco
Este tema, o prazer de aprender, que tantas vezes o leitor acompanhou no meu
contar, até o ano deste envolvimento com a formação de professores eu deixava
escondido entre guardados, num misto de orgulho e vergonha, pois a
denominação dada pelos colegas para quem gosta de estudar e tira boas notas
na escola não é das mais agradáveis e nem muito elegante num texto como uma
dissertação de mestrado.
Durante as buscas de continuidade de estudos, fui (re)descobrindo esse prazer
sem nomeá-lo, mas no memorial ele aparece, como disse, despudoradamente,
durante os vários meses trabalhando e tratando dele como algumas das raízes de
minha história de vida.
Uso aspas quando digo aprender 'para' o outro, porque acabei entendendo, com
Bakhtin (2003) que não é possível aprender para o outro. quem aprende é o
próprio sujeito do aprendizado.
Refiro-me ao sentido de aprender daquele que está envolvido com o ensino e é
(re)avaliado, (re)formado, (re)visto, (re)dirigido ao sujeito do aprendizado no
instante em que se conta, que percebe o aprender daquele que aprende algo,
que mergulha num instante único nessa corrente (PACHECO, 2007, p.86) e que,
ao (tra)vestir-me de investigadora impõe a divulgação da percepção do seu
significado.
Compreender não é algo meramente intelectual. Para o
investigador envolvido na comunicação, a compreensão de
significados ultrapassa o domínio de uma intelectualidade
fragmentada e fragmentária. Quando um investigador presume
compreender, isso significará ouvir e compreender a palavra, mas
nada tem a ver com a compreensão propriamente dita.
Compreender implica apreensão do conteúdo semântico, mas
também a consciência do seu significado aplicada ao próprio
investigador. E, quando a proximidade do objecto é mínima, essa
consciência simultaneamente individual e colectiva, fugidia,
dinamicamente reformulada, é ultrapassada numa corrente 'em que
não é possível mergulhar duas vezes'. (Idem, Ibidem).
123
A proximidade de uma professora com seus alunos, muito mais que geográfica, é
de consciência, como diz Pacheco, individual e coletiva simultaneamente
105
. Nos
anos em que iniciei como formadora de professores de música, nos grupos de
Técnicas de Musicalização, de 2004 e de 2005 e se somaram à Oficina de Som e
Movimento (2005), ainda na UNESP, e nos cursos de pequena duração que têm
acontecido em lugares diferentes (2006 e 2007) vêm me mostrando que essa
disposição, esta abertura para o que o outro diz por palavras, atos e omissões
·
incrementa a percepção de aprender, que tenho chamado de aprender 'para' o
outro. Aprender a ensinar tem, para mim, outro sentido. Refere-se a
aprendizagens de teorias, métodos, procedimentos disponíveis em bibliografias
especializadas que estruturam os saberes. O aprender 'para' o outro acontece
presencialmente, no tempo, como a experiência estética da obra de arte.
Isso é uma coisa, é o aprender do professor como alguém que se supõe, com
Paulo Freire (2001), comprometido com ensino, que assume a exigência da
pesquisa, da criticidade, da curiosidade, da tomada consciente de decisões, pois
sabe que é uma forma de intervenção no mundo e que para isso precisa saber
escutar e querer bem àqueles com quem trabalha, e eu acrescento aqui o
subentendido de suas palavras, tanto alunos como colegas, parceiros de
profissão.
Agora, isso é outra coisa, tem o como isso acontece. Da forma como entendo e
que me ajuda a pensar Bernard Charlot (2005) não se tem curiosidade sem
sentido de atender a um desejo de saber. Aproveito suas palavras para perguntar:
O que no ato de aprender, no saber visado por esse ato, provoca
desejo, produz desejo (do gozo obtido através de uma série de
mediações), faz sentido (faz sentido para um sujeito, isto é, satisfaz
desejo e produz prazer)? Portanto, também: por que, às vezes, o
desejo de saber, desse saber, não se manifesta, por que o sujeito
manifesta o desejo de não aprender, de não saber - no sentido
pleno das palavras, ou seja, distinguindo a ausência do saber e o
desejo de não saber? (IDEM, p.38)
105
Pensando que enquanto professora sou pesquisadora e que os alunos, juntos aprendemos investigando
nossas descobertas e aprendizados e que ambos temos os mesmos interesse, que se aprenda, que se ensine e
que se ensine como se aprende no mesmo campo da música que uniu a todos no mesmo curso de formação:
Cuando ambos, investigadores e practicantes, cuentan historias sobre su relación entre os investigadores y
practicantes que está construida como uma comunidad de atención mutua ( caring community)
(CONNELLY; CLANDININ, 1995, p.19)
124
Estas perguntas, que fiz-faço como formadora não solucionam, embora indiquem
caminhos feitos por um epistemólogo da educação fundamentado na antropologia
e apareceram nos ditos dos sujeitos formandos em educação musical da turma de
OSM. Não em forma de perguntas, mas quando declaram em suas narrativas
levados a representar papéis ora de quem ensina, ora de quem aprende, pela
estratégia da formadora, mas que provavelmente um dia iria se colocar em suas
vidas profissionais.
A diferença fundamental foi declarada e criticada, como quando afirmam a
dificuldade de representar quem não sabe nada de música.
A principal constatação foi a de que temos atitudes ainda complexas demais nas
propostas. O grupo deve, primeiramente, se despojar dos pré-conceitos e competições
adultas e liberar a expressividade instintiva da criança a fim de melhor compreender os
resultados provenientes do uso de tais práticas (da Oficina de Som e Movimento) com
alunos da educação Infantil (a criança) (Gabriel, reg. 12-06).
Aos poucos, possibilitada pela indicação dos registros, como professora de posse
desse material pedagógico, observadora e avaliadora das propostas usadas pelos
próprios alunos e dos meus próprios refletidos neles, delineando outros caminhos
no decorrer do ano letivo, sempre com a intenção de atingir cada um e todos pelo
desejo de aprender a ensinar e ensinar a aprender: instaurar nos alunos a
necessidade de se empenhar para aprender, como algo que lhes diz respeito, que
lhes interessa, lhes importa. Assim, seria incorporado o papel de aluno, depois de
representarem o papel de professor.
Na aula passada, fizemos papel de alunos para que alguns de nossos colegas botassem
seus planos em prática conosco, sendo nossos professores (Briana, Reg.).
Como dizia, a atividade propunha assumir um papel que têm, nas escolas, desde
que chegaram, mas agora seriam alunos de seus colegas. No próximo recorte,
o relato de uma aluna no papel de professora.
Aquecimento vocal: fiz uma nova proposta de aquecimento. Dou uma base harmônica
maior - F, Gm, G7, C7 o que oferece uma dificuldade de afinação da terça menor/maior
entre os acordes de Gm e G7 que foi percebida pelos integrantes. Cada um propôs uma
seqüência improvisando sobre a base harmônica e o grupo seguia repetindo. Isso
aumentou o repertório, o grupo percebeu a dificuldade e os últimos improvisos foram
ficando mais ricos (Bedina, Reg.).
125
Aqui, a Bedina, que já tem experiência como regente de coros, dá a ver o assunto
deste tópico sobre aprender - para si e 'para' o outro - que atribui ao interesse a
aceitação do desafio de enfrentar uma dificuldade.
O primeiro exercício, conduzido pela Bedina, consistia em repetir uma harmonia no piano
e cantar improvisos com as sílabas 'ta', 'te', e 'ti'. No começo, apenas repetíamos o que ela
fazia, o que é bom para que se familiarize à harmonia ao mesmo tempo em que 'nos
soltemos' para depois improvisar com segurança. Cada um de nós, em ordem aleatória,
cantou seu próprio improviso para os outros repetirem (Briana, Reg).
a Briana que boa para aprender foi a repetição dos modelos, que ajudou a
'soltar-se' para a improvisação e a 'familiarizar-se' com a harmonia, mas não do
desafio da dificuldade.
O exercício feito pela Bedina, que ajuda a desenvolver a afinação e improvisação, foi por
alguns facilmente executado, e por outros, com alguma dificuldade. Nós, músicos, temos
facilidade de reproduzir, mas a improvisação ainda nos custa (Carol, reg 12-09).
Carol, pelo que conta, aproveitou o exercício por um aspecto ainda não
mencionado nos trechos escritos, que foi o desenvolvimento da afinação. O que
não quer dizer que o assunto não tenha surgido em aula. Aponta para uma
dificuldade que atribui a 'nós, músicos', de custo para a improvisação que não foi
mencionada pela Briana. A questão do aprendizado aparece constantemente nos
registros, onde foi determinado que são livres, isto é, escreve-se o que foi mais
relevante, ao ponto de provocar lembranças; ou então de acordo com anotações
durante a aula. A determinação era de não determinar. Carol poderia ter
discorrido sobre outros aspectos, como a qualidade das frases improvisadas, o
timbre das vozes, mas o aprender, o compreender a utilizar, assumir como suas
as novas construções é enfatizada nesta e em outras produções.
Na aula da Márcia, Evelina e Gabriel, achei que a sala teve uma percepção melhor do
exercício. A música escolhida para o exercício, sem muitas variações, foi interessante, e a
postura da Evelina ao ministrar a aula prendeu a atenção dos colegas, o que facilitou a
execução do trabalho (Carol, reg).
O registro de Carol indica uma crítica aos planos de aulas como proposta de
atividades. Como indica, compara a outras aulas menos eficientes ou claras à
126
postura de Evelina e seu bom sucesso ao ministrar a aula de maneira a prender a
atenção dos colegas - alunos.
Luna e Danilo: Trabalho sobre percepção de alturas. Tocou algumas notas no piano para
que fosse indicado se eram sons graves ou agudos. A partir de sons de animais
percebemos quais eram graves ou agudos. 'Brincamos' de vivo ou morto (quando o som
era grave, abaixávamos, e quando agudo, levantávamos). Depois, em duplas ou trios
deveríamos imitar um animal ou objeto, fazendo seu som. A classe deveria adivinhar qual
o objeto/animal era e se seu som era grave ou agudo.
Gabriel: "se que as crianças não sabem isso?" Às vezes não, por isso é sempre
melhor começar com os movimentos (não se deve partir da explicação) (Marcia, Reg. 05-
09).
Márcia analisa a aula atribuindo os objetivos à atividade e indicando uma
pergunta que sugere que este colega, o Gabriel, considera tão simples mesmo
para as crianças. É interessante perceber que certos conceitos já estão tão
incorporados, como a noção de grave-agudo, que se infere que toda e qualquer
pessoa - mesmo criança - já os tem. E também que alunos como Márcia e
Gabriel, que contam em seus memoriais nunca terem vivido situações de ensino,
preocupam-se e projetam-se nessa realidade por vir a partir de suas próprias
experiências e percepções.
Na quarta aula, comecei ensinando, ou dando um alongamento e tentando cumprimentar
os colegas de classe.. Após isso, eu e minhas colegas colocamos a peça "Finlândia"
106
de
Jean Sibelius
107
e pedimos para os colegas moverem-se tentando interpretar essa música,
ou seja, o que ela poderia oferecer ou dizer. Porém, percebi que eu não consegui
expressar direito (o que me faz refletir que preciso ser mais claro no que digo) aos alunos
(colegas), pois eles ficaram parados sem se movimentarem (Saulo, reg. 02-06).
Saulo confessa que as suas propostas ficaram frustradas e atribui a isso à sua
condução, à falta de clareza ao se expressar, indicando o desejo se fazer
compreender.
Foi uma experiência bastante interessante conduzir esta aula junto a meus colegas, senti
dificuldades em alguns pontos (por exemplo: o que fazer quando o exercício não está mais
'redondo?'), mas foi muito legal ver alguns exercícios serem bem correspondidos,
certamente terei mais sensibilidade com o tempo (Wanda, Reg. 02-06).
106
Peça para orquestra composta em 1899 (Dicionário Oxford de Música, 1994, p.255)
107
Compositor finlandês (1865-1957) (Dicionário Oxford de Música, 1994, p.662)
127
Aqui fica clara a satisfação do desejo de aprender na realização do desejo de
ensinar. A compreensão do entendimento de suas propostas, refletida na
realização dos exercícios e a introdução da idéia do desenvolvimento da
sensibilidade como algo que também se aprende com o tempo.
Houve a apresentação da aula do Bruno e do Daniel. Pretendiam trabalhar compasso,
percussão corporal, ritmo (leitura rítmica). Porém, houve confusão na proposta: enquanto
um grupo fazia uma coisa, o outro tinha feito muitas outras. Houve, com isso, muita
conversa e falta de atenção. Assim, a proposta nem conseguiu ser concluída (Marcia,
reg.10-10-09).
Márcia indica que a falta de clareza nos enunciados das propostas provocam
desatenção, conversas e inviabiliza os objetivos. Esta afirmação foi socializada. A
'crítica' - esta e outras - produziu alguns conflitos, como darei a ver mais à frente,
no discurso de Gabriel. Em seguida, mostro mais um recorte que conta de uma
atividade, e da impressão de frustração pela não produção dos resultados
esperados.
A seqüência das fases da 'tempestade' (do incêndio aos passarinhos) também foi muito
rápida e, no princípio, um tanto desorganizada. A rapidez com que foi feita esta atividade
tornou o efeito geral menos verossímil, o que foi acentuado pelo tumulto das conversas e
pela falta de concentração da maioria (Ana, reg.).
Este relato é construído após a segunda aula. Aqui, o conceito de desorganização
se refere aos movimentos e tempos que simulam uma tempestade acentuados
pelas conversas. O assunto foi tratado ao final da aula. Era de se esperar que as
conversas substituíssem movimentos corporais. rios relatos mostrarão o que
sente alguém tradicionalmente concentrado no estudo de um instrumento, quando
é levado a usar de maneira expressiva o corpo - sem que o movimento seja
necessário à produção do som. Além disso, mostram a consciência da
desconcentração como inibidora do aprendizado e da expressão e o
enfrentamento de uma situação inusitada e por muitos evitada. Essa verificação,
durante as aulas, da qual era convicta, que ao aceitar o convite se insere
num contexto de aprendizado, se aliava cada vez mais que para aprender a
ensinar, para se colocar no lugar daquele que será levado a aprender, que se
colocar no problema de aprender. que passar pela experiência de aprender,
128
no sentido de Larrosa (2001) atravessada transversalmente pela urgência de
ensinar, de quem o que contar, como nos ensina Benjamin (1996).
A regência, a pulsação e a execução das figuras nos obrigam a trabalhar com várias
atenções e conseguir executar com precisão. Isso acontece não porque somos músicos,
mas porque gradualmente fica fácil compreender a proposta. (A minha dúvida ainda é
como introduzir este tipo de exercício, e quando, mas acredito que as respostas vão surgir,
principalmente com a prática) (Carol, 24-10).
O recorte anterior e o seguinte falam das dificuldades encontradas em si para a
realização de um exercício, mas também a preocupação com o outro que deverá
ensinar. É interessante observar que o conflito aparece ora quando o assunto -
atividade, exercício - é considerado extremamente fácil, óbvio ou difícil até mesmo
para eles. A medida é a ppria percepção de si. E também como, na dúvida de
como ensinar, ela mesma aponta a resposta, quando diz que aprende não porque
somos músicos, mas porque o fazemos gradualmente.
Devo confessar que não me apropriei da execução dos exercícios, embora os tenha
tentado fazer. Para mim ainda está difícil realizá-los com naturalidade, pois nunca havia
treinado rítmica dessa forma.
Tentei realizá-los de forma lenta, marcando a pulsação com os pés, não consegui incluir
outros movimentos a essa maneira de executá-los.
Acho que fica difícil indicar aos outros um exercício, se eu mesmo não me apropriei deles.
Comigo funcionou melhor de forma lenta, com movimentos compassados, tentei utilizar as
laterais do corpo para marcar o pulso, balançando de um lado para outro, enquanto
cantava os desenhos rítmicos.
Dessa maneira os exercícios fluíram mais, mas ainda tenho muitas dificuldades para a
compreensão e utilização de uma proposta corporal. Devo estudar mais, para que obtenha
maior desenvoltura, e assim transmiti-lo com segurança para os alunos, pois fiz apenas o
fifrilin em sala (Antonio, Gr.).
Antonio afirma não conseguir apesar de ter tentado. Mas no final diz que fez
apenas o Fifrilin em sala. Diz, assim, que coisas que realiza à primeira vista,
na primeira leitura, de repente, sem ser necessário muito investimento. Esta
atitude, se generalizada, poderia distanciá-lo da (pre)ocupação com os modos de
aprender e de ensinar. Ao dizer que não conseguiu porque não tentou, minimiza
uma sua dificuldade que assume depois.
Ao agir desse modo, mostra indícios do sofrimento causado por ser cogitada uma
precariedade: talento. Não vou me alongar, pois é um tema que pretendo
trabalhar em seguida.
129
Em outro momento, ao confessar falta de entrega nas atividades assume medo de
ridículo que o leva à necessidade de vencer esta situação, criando um ambiente
mais propício, onde a sua identidade não fosse constrangida, e pudesse ser
enfrentada conceitual e procedimentalmente.
Porém ao enunciar como melhor funcionou para ele, elabora, sem dar mostras de
perceber, um método para si. Essa foi uma das idéias de Gramani (1988), da
busca do resultado por meio da vivência e satisfação do desejo de aprender com
o próprio processo. Possivelmente Antonio usará esse método quando for
ensinar.
Ao mesmo tempo, ao se justificar pela não apropriação dos exercícios, afirmando
que não havia treinado rítmica dessa forma, indica que foi outra a cultura na qual
tem se formado. Cultura essa que não nega, ao contrário, pois é a do mundo com
o qual se identifica. A maneira que se formou no mundo com o qual se identifica
não lhe deu instrumentos para solucionar o problema e acaba por criar um
método, ainda que não tenha se dado conta.
a sensibilização corporal para mim, foi um pouco mais difícil, pois sempre fui meio
'travado' em relação ao corpo, senti dificuldade em associar movimentos abstratos ao
som, é muito a idéia que, será que minha interpretação gestual está correta em relação ao
som? Achei um pouco abstrato demais, talvez pela falta de prática corporal (pensar em
movimento), ou mesmo pela falta de entrega nas atividades (medo do ridículo) (Antonio,
a.
av.)
Fazendo avaliação pessoal, diz que a sua noção de abstração dos movimentos
corporais, ou de pensar neles relativamente ao som é justificada pela distância de
uma vivência que fornecesse prática corporal: apresenta a questão da identidade,
da cultura e da história. Mostra mais uma vez que os olhos enxergam de onde os
pés pisam, ou, vamos lá, os ouvidos escutam o que reverbera na sua volta.
Ao buscar (d)escrever sobre sensações que seu corpo informa, com a
preocupação de fornecer dados para que a formadora avaliasse sua conduta ou
sinais da apropriação do conteúdo da disciplina, afirma que os movimentos é que
são abstratos, certos ou errados em relação ao som. E que isto para ele é óbvio e
concreto. Esta postura coloca-o no lugar de aluno, mas também mostra que ele
se coloca no lugar da formadora. Imagina-se e ao seu aprendizado e mesmo que
não se aperceba, o seu aluno por vir.
130
Ao confirmar que não se entregou aos exercícios também mostra que, se por um
lado a realização tinha algo de interessante em si, o ambiente em sala não foi
propício para que ele se mostrasse aos outros nessas tentativas de realização da
atividade, afastando-o, inclusive do desejo. Ainda não havia se identificado com a
classe e, talvez, com os afazeres.
Deve ficar claro que o sujeito que tratamos aqui tem uma história e
vive em um mundo humano, isto é, tem acesso à ordem do
simbólico, à da lei e à da linguagem, constrói-se através dos
processos de identificação e desidentificação com o mundo. Para
esse sujeito, a questão do desejo e do prazer não se confunde com
a do gozo imediato, pontual, lúdico, das situações, em um mundo
sem exigências. O sujeito se constrói pela apropriação de um
patrimônio humano, pela mediação do outro, e a história do sujeito
é também uma das formas de atividade e de tipos de objetos
suscetíveis de satisfazerem o desejo, de produzirem prazer, de
fazerem sentido (CHARLOT, 2005, p.38).
E o que fazer com este aprendizado?
Agora que sei nesse saber compartilhado de formadora que se declara aos
formandos e que recebe a declaração de outros (pesquisadores, amigos e
amigas, orientadora) tenho que, responsável primeiramente pelo ato de aprender-
ensinar-procurar-formar, seguido por entrar num PPGE, responsivamente
(BAKHTIN, 2003) atuar.
Uma construção que, para mim, foi dando asas a uma noção que é a
compreensão do próprio aprendizado no momento de intuir quando-como o outro
aprende, e que tem mais chances de acontecer quando se aprende novos
saberes enquanto se (trans)forma (em) professor, enquanto aprende a ensinar.
São essas percepções de aprender no momento de formação de educador muito
importantes, no sentido de importarem a quem vai ser educador, por projetar a
compreensão que faz no outro e o objeto de apreensão ser o próprio aprendizado
do outro.
Não sei se fui clara. É o que se entrelaçou em meu ser nesse momento e a partir
dele. E para que o leitor pudesse ter uma noção do que digo, precisaria ser
poetisa, já que aqui o instrumento são as palavras.
131
Essa dificuldade é semelhante a contar o que senti certa vez ao ouvir Antonio
Meneses
108
tocando Bach ao violoncelo e faz parte de minha vida há muito
tempo, foi aquela que me inspirou a levar o exercício da escrita para essa função
que considero das que mais importam aos seres vivos, o ensino, multiplicado
quando se forma outros educadores: a competência argumentativa para lidar com
essas duas linguagens, talvez três, o conto, a música e o ensino.
5.3. Talento: pesado adjetivo.
Let us think of somebody who listens for the first time to a four-voice
fugue by Bach, or to dense orchestral polyphonic textures such as
Schoenberg’s Pélleas et Mélisande (1903), Stravinsky’s Le Sacre
du Printemps (1913), Ives’s Symphony no. 4 (1925), Stockhausen’s
Gruppen (1958), Ligeti’s Atmosphères (1961), Boulez’s Pli Selon Pli
(1962), etc. Or maybe she/he simply listens to a four-part motet by
Josquin des Prez. Will this listener be able to distinguish the multiple
polyphonic layers of these compositions? Can she/he follow the
individual sequences of events occurring simultaneously? The
answer will be undoubtedly negative, unless we are dealing with an
exceptionally talented listener (CHAGAS, 2005, p.7)
109
Este trecho que escolhi para iniciar esta reflexão faz parte de um ensaio - no
sentido de gênero literário - de Paulo C. Chagas apresentado na Revista
Transcultural de Música (n.9) denominado Polyphony and embodiment: a critical
approach to the theory of autopoiesis . Faço questão de dar estes detalhes porque
o usarei nesse momento de uma forma que pode ser avaliada negativamente:
retiro dele uma qualidade atribuída a um ouvinte excepcional, o talento.
Quem conhece as obras a que o autor se refere é uma pessoa com uma
formação musical excepcional, mesmo em nossa cultura ocidental. Criar um
personagem-ouvinte estreante capaz de ouvir simultaneamente as diversas
ocorrências polifônicas dessas obras é no mínimo um exagero, pois mesmo
estudando com atenção esta não é uma tarefa das mais fáceis, por assim dizer.
108
Violoncelista brasileiro de renome internacional.
109
Vamos pensar em alguém que ouve pela primeira vez uma fuga a quatro vozes de Bach, ou uma densa
textura polifônica orquestral como (...). Ou pode ser que ela/ele ouve simplesmente um moteto [forma de
estrutura musical] a quatro partes de Josquin des Prez [compositor franco-flamengo, (1440-1521)
(Dicionário Oxford de Música, 1994)] Estaria esta/e ouvinte capacitado a distinguir as múltiplas linhas da
polifonia nestas composições? Ela/ele poderia seguir as individuais seqüências de eventos ocorrendo
simultaneamente? A resposta será indubitavelmente negativa, a menos que estivermos lidando com um
ouvinte excepcionalmente talentoso [minha tradução]
132
Com certeza o autor sabe disso e o mostra quando junta o talento à exceção e a
uma certa dose de ironia. Será que quem me concorda com esse acabamento
estético que dou?
Mas o que mais importa para o que estou considerando como uma categoria que
se formou durante o processo de construção narrativa dessa pesquisa é o uso
indiferente do termo, pois o ensaio não versa sobre o talento
110
. Quando usa o
adjetivo talentoso, o faz como uma pessoa comum, de dentro do senso comum,
mesmo tendo excepcional formão musical. E é o que de certa forma justifica
esta categoria ter ganhado força dentro da pesquisa propriamente dita.
Vou fazer uma breve retomada do surgimento do interesse: no PPGE da PUC-
Campinas e numa disciplina cursada na UNICAMP apresentei mais de uma vez o
assunto que esperava (ainda era um projeto) tratar. Depois da explanação, ainda
em (des/re)construção, as pessoas presentes eram convidadas a discutir,
contribuir, criticar, perguntar, duvidar, enfim era aberto o diálogo. Como prometi, e
- lembrando Maturana - palavras faladas têm força porque arrastam consigo seus
afazeres, não vou me alongar nessas elucubrações, mas acho importante contar.
Nessas três vezes que aconteceram
111
, o foco da pesquisa que é, como tenho
dito, a narrativa na formação de educadores musicais, se desviava para as
experiências pessoais frustradas na relação com a música e a convicção de que a
causa seria a falta de talento; também alguma atribuição ao ensino equivocado e
à professora antiquada, que no fim era relativizada, porque outras pessoas, com
os mesmos professores continuavam os estudos; tais pessoas afinal foram
adjetivadas como possuidoras desse algo chamado talento.
Assim como para Chagas (2005), para mim era um assunto que não merecia
maiores atenções. Para mim, o bom sucesso em qualquer área do conhecimento
tem muito mais coisas em comum com o desejo, o esforço e a cultura em que
vivemos do que com algo como o talento.
A experiência vivida na formação de educadores musicais e refletida nas suas
narrativas foram impondo presença, quando (re)lidas sob as novas impressões.
Outro motivo que me leva a tratar dessa noção, am do fato de que fecha muitas
110
Não é esse o tema, está fazendo uma aproximação crítica, baseado na autopoiesis, entre a polifonia e a
incorporação
111
Aula da Profa. Dra. Dulce Pompêo de Camargo, Grupo de Pesquisa coordenado pela Profa. Dra. Maria
Eugênia de L.e M. Castanho, intervalo de aula do Prof. Dr.Guilherme do Val Toledo Prado.
133
portas nas discussões sobre a arte em geral e a música em particular é a
invisibilidade do naturalizado.
Do que se trata é de mostrar que o que somos é arbitrário,
específico e contingente, de pôr em questão o habitual, aquilo que
é o mais difícil de ver como problemático porque se tem convertido
em hábito, em costume, em identidade. Tem-se de converter o que
somos em problema, o habitual em insuportável, o conhecido em
desconhecido, o próprio em estranho, o familiar em inquietante
(LARROSA apud JARAMILLO, 2003, p.24).
Nas justificativas dadas para a entrada na área musical e que eu apresento como
os primeiros parágrafos das novelas, várias vezes a noção de talento se confunde
com a 'veia musical', com o 'sangue', com um 'dom' e mesmo com a 'cultura', com
a 'influência da família' e a 'educação privilegiada', que seriam inúteis se não
houvesse a vocação, o talento.
A impressão que tenho, lembrando de tudo isso, é que desde
os três anos já sabia qual era
minha vocação, e que ao contrário de muitos amiguinhos meus de infância, quando me
perguntavam: "O que você vai ser quando crescer?", eu respondia prontamente;
"Professora... de música!" (...) Nunca tive vidas da minha vocação, e fico muito feliz
hoje por ter a oportunidade de tornar essa vocação uma profissão
(Carol, nov.).
Portanto, agora me volto para análise dos textos dos alunos. Em primeiro lugar
apontado a auto-consciência da presença do talento, desse nome que estampa
um rótulo, informa o que há no 'conteúdo da embalagem'.
Apenas aos dezesseis anos comecei a estudar em escolas e com professores, dentre os
quais destaco um professor de guitarra e violão que me dava aulas particulares, e cuja
presença foi decisiva em alguns rumos que a minha vida tomou; primeiramente quando
decidi por trabalhar com música profissionalmente (já que antes era apenas um hobby),
pois tal professor, julgando que eu tinha talento muito grande para a área, me incentivou
a buscar uma universidade e aprofundar meus estudos musicais
(Mário, nov).
Esta aceitação/identificação com a atribuição dada por alguém tem força de
convencimento e de mobilização na sua realização, principalmente se ampara
nossas próprias expectativas e sonhos. Uma pesquisa conhecida nos Estados
Unidos, baseada em profecia auto-realizadora, ao afirmar às professoras que uma
classe seria ssima e a outra excelente, invertendo as avaliações anteriores,
houve influência no resultado do trabalho obedecendo a designação dada.
134
Por mais que pareça pouco objetivo e meio esotérico, é
fundamental que estejamos sempre vigilantes porque nos
deixamos, sim, influenciar o tempo todo pelas crenças e
expectativas que temos. Isso é, na verdade, natural. O que não é
natural é que crenças e expectativas sejam o norte de nossas
ações, de forma irrefletida, principalmente no espaço educativo,
onde a reflexão sobre a realidade deve estar na base de todas as
decisões tomadas (SOLIGO, 1997, p.2).
Talvez por que de um modo geral se têm internalizadas ambas as experiências,
isto é, a naturalização de hábitos e crenças e a necessidade de ficar em alerta
reflexivo para não perder a noção da realidade, o talento sempre é um nó
apertado nas discussões em reuniões, sejam elas pedagógicas ou sociais,
quando o assunto é a música - geralmente música, por causa da minha presença.
Acredito que seja porque o talento (diga-se de passagem, é originária da
designação de uma moeda romana, como o dólar, o real, o euro, o yen, a prata, a
libra) é uma medida tão subjetiva quanto a medida de nossos sentimentos. É o
valor corporificado.
O momento que o pensamento teórico discursivo (nas ciências
naturais e na filosofia), a descrição-exposição histórica e a intuição
estética têm em comum, e que é de particular importância no nosso
estudo, é este: todas essas atividades estabelecem uma cisão entre o
conteúdo ou sentido de um dado ato-atividade, e a realidade histórica
do seu ser, a real e única experiência dele. E é em conseqüência disso
que o ato dado perde sua validade e a unidade de seu real devir e
auto-determinação. Este ato é verdadeiramente real (ele participa do
Ser-evento único) apenas em sua inteireza. Apenas esse ato inteiro
está vivo, existe completa e inescapavelmente vem a ser, é
completado. Ele é um participante real vivo no evento em processo do
Ser: ele está em comunhão com a unidade única do Ser em processo.
Mas essa comunhão ou participação não penetra seu aspecto de
conteúdo-sentido, que pretende ser capaz de alcançar plena e
definitiva auto-determinação dentro da unidade deste ou daquele
domínio de sentido ou significado (ciência, arte, história), embora,
como mostramos, esses domínios objetivos, separados do ato que os
põe em comunhão com o Ser, não são realidades com respeito ao seu
sentido ou significado. (BAKHTIN, 1993, p. 2)
Se talento, para mim, 'vale' Vladimir Horowitz
112
, significa que, para me igualar a
ele devo conseguir mover as minhas mãos ao piano a uma velocidade que se
112
Pianista russo (1904). (Dicionário Oxford de Música, 1994).
135
pode enxergar em câmera lenta (lembranças impressionadas de muitos anos
atrás de imagens de TV, ou de imaginação). Se talento 'vale' uma pequena aluna
(a Larissa, de seis anos) que canta naturalmente com uma afinação e clareza
'angelical', então os demais alunos deveriam, para se igualar a ela, desenvolver
esse conhecimento, ou ganhar 'asas'.
É uma barreira que sempre me incomodou, porque fecha a questão. Se a medida
é a de nossos sentidos, são intransferíveis (BAKHTIN, 2003). Se descobrimos
que é um valor que nos atribuímos ou outros nos atribuem e o aceitamos, como
profecia auto-realizadora, pode até ser que funcione para definir as escolhas de
uma pessoa, ou re-interpretá-las (lembram-se de Saulo? - Blah!) afinal, o outro
não pode avaliar o esforço de realização das atividades que demandam (segundo
que sentido?) talento.
Ora, em declarações do tipo, 'acho linda a arte em geral, mas não tenho talento,
não é para mim'. Ponto final. Fecha-se a porta ao diálogo!
Admiro a Carol por ter mais experiência na área da música do que eu, e ao vê-la na
situação de risco tomei um pouco de coragem para submeter-me à experiência. Será que
ela compartilha meus medos, o medo de errar, o medo dos outros saberem que eu erro?
(Evelina, exp.)
Entre colegas supostamente com o mesmo talento musical, expor-se à própria
avaliação, pode significar risco. Risco de que? Como diz Evelina, medo de falhar,
de não corresponder às expectativas que mantém juntas as peças que formam a
identidade que os outros lhe atribuem e que assume para si como o seu
acabamento estético, que indica seu por vir ético, sendo o talento o instrumento
que acredita ajudá-los a enfrentar as situações, os objetos, os fenômenos que lhe
resistem.
Em uma classe de 'músicos rígidos', presos em seus movimentos expressivos, uma aula
corrente despertou uma liberação.
Como um dos colaboradores - no caso, criando um ritmo para um poema com métrica
incomum - percebi que é, além de outras coisas, muito satisfatório observar o movimento
espontâneo.
Em princípio considerei arriscada a idéia.
Porque me meti?
Resolvi então que como havia sugerido minha participação, ir em frente
(Danilo, reg.
19-05)
136
Dessa maneira os exercícios fluíram mais, mas ainda tenho muitas dificuldades para a
compreensão e utilização de uma proposta corporal
(Antonio, Gr.).
Achei um pouco abstrato demais, talvez pela falta de prática corporal (pensar em
movimento), ou mesmo pela falta de entrega nas atividades (medo do ridículo).
(Saulo,
reg.)
Assumir a dificuldade nos movimentos corporais não esfacela a identidade
musical, pois há um consenso de que músicos fazem música, não dançam.
Porém, quando (Antonio) submete a impressão de abstração da expressão
corporal dos sons à falta de prática e de entrega às atividades e assume o medo do
ridículo. Ou quando (Danilo) admite correr um risco confessa a origem das suas
atitudes, o talento que irmana os músicos desde a época de estudos.
Entre os diálogos, as leituras das narrativas produzidas durante a LEM-UNESP e
a reflexão de minha própria experiência, numa outra aula do PPGE que estudava
as políticas de educação, tomou proporções que não mais poderia recusar: o
Plano de Instrução Nacional que Condorcet
113
redige para o Comitê de Instrução
Pública da Assembléia Legislativa Francesa em 1792.
No berço do Liberalismo, com o intuito racional filosófico de elaborar um plano de
escolarização capaz de fazer justiça às classes menos privilegiadas da população
(BOTO, 2003, p.741), premiavam-se os talentosos com estudo gratuito e laico em
todos os níveis, dando a eles o direito de atingir a Liberdade por meio da
Autonomia de pensamento. Buscava:
obter progressivamente a minimização das desigualdades
produzidas pelo artifício humano pela promoção da única
desigualdade natural e, portanto, legítima: a desigualdade de
talentos dos dons, das aptidões, dos potenciais, enfim, das
capacidades de cada um perante os demais. A preparação cultural
acentuaria a força meritória dos mais capazes, o que era, por si, um
elemento corretor dos próprios embaraços de uma sociedade
liberal, que tinha em mente assegurar, com firmeza, o direito à
propriedade, e, portanto, à herança (BOTO, 2003, p.742).
E o talento a falta dele, segundo tem sido difundido como lugar comum
(SMOLKA, 2006) entre nós pelo menos desde o pensamento Liberal - torna a
incapacidade do governo de dar instrução laica e gratuita para todos justificada
113
Marquês de Condorcet, presidente do
Comitê de Instrução Pública da Assembléia Legislativa Francesa
em 1792.
137
pela redução natural do esforço por falta de talento das pessoas para alçar
estudos mais avançados.
A (desculpa da) falta de talento
114
justifica a falta de capacidade daqueles que não
puderam resistir à avaliação severa do mérito de sua existência e seus feitos
segundo os códigos culturais e meios da época. O talento, quando atribuído a
alguns e não a outros, permite alimentar um processo de uso pelas políticas
educacionais, culpabilizando os fracassados, as vítimas.
A ideologia neo-liberal capitalista que impera em nossos dias faz uso de um
discurso muito parecido com aquele que está muito bem documentado no Plano
de Instrução Nacional que Condorcet.
As incoerências e inconsistências do discurso começam na demonstração de que
havia consciência da incapacidade financeira de oferecer tal benefício para toda a
população naquele momento e mesmo a preocupação, afirmada por Voltaire que
desorganizaria os afazeres e os ofícios manuais, prejudicando a economia pública
e fomentando rebeliões políticas. (BOTO, 2003, p.739).
A meritocracia, governo dos que tem mérito, dos que tem talento, está aí instituída
como jogo de cena: qualquer um pode ser o que quiser e fazer tudo o que sonhar.
Ao mesmo tempo diz: se tiver talento!
O culto à personalidade, um certo anseio de idolatrar aqueles que se admira faz-
me pensar na imensa quantidade e qualidade de obras e discursos que não são
conhecidos pela quase totalidade humana enquanto outros são escolhidos para
serem distribuídos pela mídia e até por meio do sistema político-curricular da
educação, que como diz Foucault (2006, p.43-4),
embora seja, de direito, o instrumento graças ao qual todo o
indivíduo em uma sociedade como a nossa pode ter acesso a
qualquer tipo de discurso, em sua distribuição, no que permite e no
que impede, as linhas estão marcadas pela distância, pelas
oposições e lutas sociais. Todo sistema de educação é uma
maneira política de manter ou modificar a apropriação dos
discursos, com os saberes e poderes que eles trazem consigo.
Os meios de comunicação estão nas mãos do poderio econômico, então está a
seu dispor a divulgação de ideologias que alimentam a ampliação de seu poder,
114
Talento é atribuído ao sucesso nas mais diversas áreas de atuação humana, mas aqui estou falando da
música.
138
como este uso do conceito de talento de que falo. Como é cruel a estratégia de
culpar os des-talentosos, que aceitam a qualificação e se afastam dos riscos de
passar por um processo de aprendizado, para o qual não se acreditam bem
dotados, portanto, não seriam premiados com um bom lugar na sociedade. Por
outro lado, podem viver cultuando os que foram bem sucedidos, trazendo-os em
seu imaginário como seres especiais, com talento. O talento é um adjetivo-
conceito que se retro alimenta e é tão positivo para os que o considerados
possuidores quanto nocivos para os considerados despossuídos.
Tais homens saberiam que ninguém nasce com mais inteligência
do que seu vizinho, que a superioridade que alguém manifesta é
somente a aplicação o encarniçada ao exercício de manejar as
palavras quanto a aplicação de outro de manejar instrumentos; que
a inferioridade de outrem é uma conseqüência de circunstâncias
que não o obrigaram a buscar mais (RANCIÈRE, 2002, p.80).
Ao falar sobre a noção de talento, não posso deixar de dizer que acontece de
algumas crianças demonstrarem uma facilidade maior em certas áreas do
conhecimento, inclusive da música, de forma até bem comum numa sala de aula.
Existe. É um fenômeno real como a chuva. Como a pequena Larissa.
A aceitação da existência de pessoas com talento e outras sem, ou menor, ainda
que para certos afazeres, me preocupa por ter ouvido inúmeras vezes
depoimentos de crianças e jovens que se julgavam sem talento para música. A
disputa, a exibição, o orgulho e a prepotência por um lado, e por outro, a
frustração, a baixa auto-estima, o desânimo são os dois lados da presença ou
falta de talento. E o que agrava este quadro é o uso sócio-político-cultural dessa
fragilidade conceitual.
Um mito alimentado pela mídia, que transforma a maior parte das pessoas em
arte-excluídas (emprestando conceito de exclusão digital). Ocupa-se de colocar
palavras em nossas bocas, ou pior, dopa pela repetição nossas imaginações, que
são o berço dos pensamentos e expressões artísticas.
5.4. Entrelaçamento de duas (?) linguagens.
Os signos só podem aparecer em um terreno interindividual. Ainda assim (...) não
basta colocar face a face dois homo sapiens quaisquer para que os signos se
139
constituam. É fundamental que esses dois indivíduos estejam socialmente
organizados, que formem um grupo (uma unidade social).
BAKHTIN, 1981, p. 35
Desde semente, esta pesquisa nasceu da inabilidade de conversar sobre as
minhas vivências musicais e se tornou desejo de oferecer assunto para conversa
sobre a formação do Educador Musical como um sico com conhecimentos
pedagógicos (sociais, históricos, psicológicos, políticos, cognitivos). 'Pano para
manga', ou melhor dizendo: dados para pesquisa.
Como disse, quando era semente, daquelas que não sabemos que planta vai
germinar, o sentimento era o desejo de me fazer entender. Penso que não me
sentia fazendo parte de uma unidade social.
Depois, professora em escolas regulares, quando precisava (aconteceu
inúmeras vezes) partilhar, por exemplo a dificuldade de uma criança cuja memória
não retém uma única frase musical inteira, mesmo depois de todo o ano de
investimentos, não encontrava maneiras de trocar suposições ou traçar
estratégias de avaliação e análise com as colegas. Minhas prerrogativas não as
atingia. Éramos incapazes de partilhar, pois a música e a pedagogia pareciam
mundos culturais, ou como diz Bakhtin, unidades sociais diferentes. As palavras
que nos tocam são distintas. O valor que atribuo à forma de expressar-me
exteriormente é determinado desde as relações com os outros, inclusive meus
aprendizados.
Os diversos atos de atenção, amor e reconhecimento do meu valor
a mim dispensados por outras pessoas e disseminados em minha
vida como que esculpiram para mim o valor plástico de meu corpo
exterior. De fato, mal a pessoa começa a vivenciar a si mesma de
dentro, depara imediatamente com atos de reconhecimentos e
amor de pessoas íntimas, da mãe, que partem de fora ao encontro
dela: dos lábios da mãe e de pessoas íntimas a criança recebe
todas as definições iniciais de si mesma. Dos lábios delas, no tom
volitivo-emocional do seu amor, a criança ouve e começa a
reconhecer o seu nome, a denominação de todos os elementos
relacionados ao seu corpo e à vivências e estados interiores; são
palavras de pessoas que ama as primeiras palavras sobre elas, as
mais autorizadas, que primeira vez lhe determinam de fora a
personalidade e vão ao encontro da sua própria e obscura auto-
sensação interior, dando-lhe forma e nomeiem que pela primeira
vez ela toma consciência de si e se localiza como algo (BAKHTIN,
2003, p. 46).
140
Da mesma forma que ouvir seu nome determina todos os elementos relacionados
ao seu corpo e às vivências e estados interiores, assim também a relação com a
música, que na maior parte das vezes não se encontra denominada, neste
contexto, junto aos pedagogos, assim como o mundo cultural do pedagogo não
habita a formação do músico. Volto a fazer uso de um pensamento citado
(p.13) para referir-me aos desejos de me fazer compreendida: (...) una
correspondencia entre lo que se sabe de la partitura, lo que se quiere oír y el
gesto que debe provocar ese fenómeno (BOULEZ apud PELINSKY, 2005, p. 18),
uma correspondência entre os conhecimentos concretizados, a busca de
respostas e os atos - falas, perguntas, argumentos, pensamentos - que devem
provocar tais fenômenos.
Esta pesquisa não poderá abranger exatamente essa relação entre uma
professora de música que se implicou com o ensino, por um lado, e pedagogos -
professoras em sala de aula - pelo simples motivo que os dados recolhidos foram
construídos na relação de aula entre estudantes de curso de LEM e a formadora,
ambos com formação musical e ambos em busca de conhecimentos e
aprofundamentos do ensino de música. Mas sem dúvida pode-se extrapolar,
imaginar, refletir sobre.
Pois bem, mais uma vez, as narrativas dos alunos, ainda que provocadas pela
formadora, são dadas a ver numa intersecção entre um sujeito, aquele que
propôs um exercício e de como viu os outros a partir dele, e dos sentidos que
'alguns desses outros' produziram a partir do mesmo exercício, na intenção de
mostrar alguns possíveis des-multi-meta-entendimentos emboscados pela
palavra, mas também pelo som, pela cultura.
Ao observar que a idéia funciona [de induzir movimentos corporais pelos sons],
comecei a explorar possibilidades que imaginei serem válidas como uma noção geral:
silêncio = sem movimentot
115
; ritmo = movimentação. Explorei também o progressivo
dobramento do ritmo, sem alterar a pulsação (Danilo, reg. 19-05).
(...) houve outro exercício de ritmo, acompanhando notas de um piano executado por um
orientador [refere-se ao Danilo] (...). a primeira aula foi para entendermos os ritmos das
vozes e expressarmos de acordo com ela para ter a consciência disso. Embora tentássemos
passar a noção de pulso, o que acabou marcando foi o ritmo e o tempo das notas (Saulo,
reg.)
115
O aluno usa o símbolo matemático para dizer 'igual a'.
141
Danilo apresentou uma proposta de movimento com essa poesia que foi de difícil
compreensão no discurso, mas que na realização obteve-se êxito (Antonio, reg.).
Proposta de ensino de andamento; uma nota é tocada, a partir de diferentes ritmos
(acelerado ou lento) os movimentos corporais são compostos, sempre acompanhando de
som (Matias, reg.).
Um aluno [ainda o Danilo] tocava uma única nota várias vezes mantendo um ritmo que
íamos seguindo com passos curtos se o andamento era rápido, e largos se o andamento
era lento. A mudança brusca de um andamento lento (mantido por bastante tempo) para
um rápido surpreendia-nos e forçava a nossa concentração (Evelina, reg.)
Observei que para alguns, que estavam concentrados na pulsação original e imersos
nas linhas do poema
116
, o dobramento não alterou suas movimentações. Outros, mais
atentos ao meu comando, passaram a executar movimentos mais repentinos e mais rápidos
(Danilo, reg. continuação)
Não há evidências entre as vozes dos colegas da compreensão do ritmo =
movimentação e silêncio = sem movimentação, que era a sua intenção. De fato
nem mesmo ele problematizou essa falta. Provavelmente se enlevou, com o
impacto visual que lhe causou, alterando a potência do exercício, mas essas são
minhas inferências ao ler a seguinte expressão.
Esta diferença produziu, ao meu ver, uma movimentação regular composta de vários
movimentos, que formou uma cena com bastante impacto visual (Danilo, cont.).
Estes depoimentos confirmam a minha convicção de que ser clara quando se
elabora a linguagem verbal para que se compreenda as atividades que
potencializam a compreensão dos elementos da sica, e, portanto, no porvir da
própria música, incluindo a movimentação corporal, objetivo desta disciplina
(OSM, da LEM-UNESP), mostram, como diz bem Antonio, que muitas vezes não
se entende no discurso o que na prática fica compreensível. O que, para não
deixar passar, demonstra que força têm os professores em suas classes, que se
não elaboram teorias, as criam e põem em prática.
A compreensão sem o vivenciamento prático é altamente complexa e muito mais
quando a construção do problema não facilita a elaboração, nem mesmo a
imaginação, no sentido de que
116
O trabalho que deu origem à proposta de Danilo foi a partir da percepção do ritmo da leitura de uma trova
de origem popular.
142
compreender um objeto é compreender meu dever em relação a ele
(a atitude ou posição que devo tomar em relação a ele), isto é,
compreendê-lo em relação a mim mesmo no Ser-evento único, e
isso pressupõe minha participação responsável, e não a abstração
de mim mesmo (BAKHTIN, 2003, p.19).
A compreensão pela linguagem verbal de objetos cujos materiais são tão distintos
da linguagem verbal, como o movimento corporal e a música é um exercício a ser
vivenciado pela prática, de maneira que eu tome uma posição diante dele.
(...) a linguagem, sendo um fenômeno que nos envolve como seres
vivos e, portanto, um fenômeno biológico que se origina na nossa
história evolutiva, consiste num operar recorrente, em coordenação
de ações, e não representantes abstratos de uma realidade
independente dos nossos afazeres. É por isto que as palavras não
são inócuas, e que não é indiferente usarmos uma ou outra numa
determinada situação. As palavras que usamos não somente
revelam nosso pensar, como também projetam o curso de nosso
fazer. Ocorre, entretanto, que o domínio em que se realizam as
ações que as palavras coordenam não é sempre claro num
discurso e é preciso esperar o devir do viver para sabê-lo.
Entretanto, não é este último ponto que pretendo ressaltar, mas o
fato de que o conteúdo do conversar numa comunidade não é
inócuo para esta comunidade, porque arrasta consigo seus
afazeres (MATURANA, 2001, p.91).
Serão facilmente identificáveis nas narrativas dos alunos as minhas falas nas
aulas. Havia, de minha parte uma preocupação constante de que o que meu dito
tivesse seu devir em atos, mas a dificuldade de comunicação dos acontecimentos
é 'inversamente proporcional'
117
aos acontecimentos em si. Sem querer me
desculpar pela provável inabilidade de comunicação amargamente
experimentada tantas vezes e que me implico arduamente em superar. Mas
trazem complexidades múltiplas, 'exponencialmente proporcionais' ao número de
pessoas e fenômenos a contar e as respectivas compreensões - musicais ou não
- dos envolvidos.
Referindo-se à música se a narrativa for dirigida a não sicos ampliam-se os
problemas, pois cada termo cnico específico necessita explicação. E é comum
que as ex-plicações em música com-pliquem. Mesmo para falar de música
entre músicos, como já foi demonstrado, que descobrir formas. Metáforas
provavelmente, porque as explicações físicas ou fisiológicas também
117
O uso dessas figuras matemáticas é de sentido totalmente metafórico.
143
subentendem ouvintes/leitores especializados e porque parte de nuestra forma de
entender el mundo es metafórica en cuanto a que implica proyectar patrones de
un dominio cognitivo a otro (PEÑALBA, 2005, p. 1).
Ter conhecimentos especializados em Música não garante que se saiba falar
sobre esses conhecimentos, espécie de tradução de música em fala, tal como
disseram Stravinsky e Schoenberg.
Desenvolver percepções importantes para a compreensão de música não garante
que se possa encontrar metáforas que estimulem a imaginação a ponto de
partilhar das experiências da escuta.
Na arte literária, no poema talvez, mas qual professor de música,
corriqueiramente, numa sala de professores partilha suas emoções em forma de
poemas? E qual, no fim, o benefício desse esforço?
Para escrever de maneira que o outro compreenda, necessita implicação com o
escrever. Implicação que pode ser psico-afetiva, histórico-existencial, profissional,
mas sempre associada à noção de interacção considerada como objecto de
conhecimento (PACHECO, 2007, p.88).
144
6. POR VIR ÉTICO
145
É como se o homem e a mulher se tivessem lançado na aventura de conhecer os
objetos mais distantes e diferentes de si próprios, para, uma vezchegados, se
descobrirem refletidos como num espelho.
SANTOS, 1988, p.60
Durante a escrita deste texto, cada vez que um ensaio
118
, um livro, uma conversa,
uma sica me falava algo que dava sentidos a esta pesquisa, ia ver e ouvir
melhor, mais de perto, procurando um bom ângulo de visão e a melhor acústica
possível e me olhava através deles.
Quando encontrava refletidos a paixão, o risco e a responsabilidade pelo ensino e
pela arte, arrebanhava-os. Por mais de uma vez me expus desastradamente em
aulas, seminários e mesmo encontros informais no anseio de discutir os temas
expostos, por sentir necessidade de diálogo, de mostrar as conexões que
pareciam se construir em meu discurso interior (BAKHTIN, 1981, p.146-148).
Muitas vezes pronunciei frases incompletas, desconexas, sem chegar aos
sentidos pretendidos, ao contrário: me sentia interrompida ao interpretar o
desconforto nas expressões dos interlocutores. As idéias, as sensações e as
emoções compreendidas conscientemente são imediatas, mas não a construção
de frases, que necessita traduzir esses signos a outros. O 'como falar', a
entonação, a argumentação verbal necessita do exercício prático - o diálogo.
Quantas vezes o mesmo não acontece com nossas crianças e jovens?
Assim, aceitando os riscos, coloco a partir de agora as considerações finais desta
pesquisa sobre um tema triplo inter-relacionado na experiência real única e
comum de uma professora de piano, educadora musical e formadora de
professores - de música.
Ao traduzir ou implicar em traduzir a compreensão narrativo-didático-musical em
palavras, metáforas e alegorias verbalmente escritas e partilhar idéias com outros
músicos, educadores e educadores musicais amplio, confirmo, critico, avalio,
enfim, questiono e analiso o meu próprio fazer didático ao mesmo tempo em que
ganho confiança para discutir a minha presença nas salas de aula, não como
conquista de mercado de trabalho (embora seja este um ponto de vista), mas
118
Desta vez, ensaio pode ser visto também em outro sentido, como o de estudo de sica, preparação de
uma obra, individual ou coletivamente como numa orquestra, num coral ou num pequeno grupo de
instrumentos.
146
como garantia de direito ao conhecimento musical que têm nossas crianças e
jovens.
Iniciar qualquer análise de escolarização aceitando sem questionar, ou
seja, como pressuposto, uma forma e conteúdo de currículo debatidos e
concluídos em situação histórica particular e com base em outras
prioridades sociopolíticas, é privar-se de toda uma série de entendimentos
e insights em relação a aspectos de controle e operação da escola e sala
de aula (GOODSON, 1995, p. 27)
É sempre bom lembrar que o ensino de música foi retirado do sistema de ensino
brasileiro em pleno período da ditadura militar
119
e que está em vias de voltar (o
ensino musical), depois de aproximadamente quatro décadas de ausência quase
que total na rede pública. Urge pensar como será essa volta.
Gerações têm se formado sem oportunidade curricular
120
de desenvolver seu
conhecimento musical, ampliando a distância da entrada da Música pelos ouvidos
sem pestanas, (Murray Schafer, 1991; 2001) e a capacidade de parar para
escutar, de fazer opção pelo ato da escuta crítica e ativamente fruidora.
Menos se exige dela enquanto arte, caminho de passagem do instituído para
instituinte, transfiguração do existente em outra realidade (CHAUÍ, 1995, p.316).
Assim também dificulta, se não impede, que um sujeito potencialmente instituinte
(SOLIGO, 2007) considere suas práticas e idéias de relevância e se mobilize
nessa direção.
Mais se amplia a distância quando se prescreve um currículo que forma um
Educador Musical sem dar-lhe a chance de ver que a dimensão do ensino exige
um esforçar-se para que os outros compreendam sua fala (imaginando que se
deseje fazer essa fala) sobre a natureza da música e as especificidades do seu
ensino.
Cada educador/a musical é, potencialmente, um/a defensor/a e negociador/a
político/a de seu trabalho. A argumentação sobre a música, no ensino, é
necessária sob pena de eternizar o pensamento que a banaliza: como facilitadora
da aprendizagem, sensibilizadora de espíritos agressivos, socializadora de jovens
119
A educação musical transformou-se em disciplina curricular até o início da década de 1970, quando, com
a LDB 5692/71, o Conselho Federal de Educação instituiu o curso de licenciatura em educação artística
(Parecer nº 1284/73), alterando o currículo do curso de educação musical. Esse currículo passou a compor-se
de quatro áreas artísticas distintas: música, artes plásticas, artes cênicas e desenho (CASTANHO, 1984).
120
Oportunidade de ter incluído no currículo em vigor à época da escolarização.
147
em situação de risco, disciplinadora de corpos. Enquanto isso, acredita no
surgimento de um 'talento genial' que mereça o investimento de um mecenas, ou,
aos moldes neo-liberais, terceirize essa ação isenta de impostos e taxas na
produção de uma cigarra para os tempos de inverno (...).
Essa necessária argumentação é feita por palavras e palavras são construções
culturais, signos ideológicos, além de que constituem o discurso interior e refletem
a vida social humana.
Cada signo ideológico é o apenas um reflexo, uma sombra da realidade,
mas também um fragmento material dessa realidade. Todo fenômeno que
funciona como signo ideológico tem uma encarnação material, seja como
som, seja como massa física, como cor, como movimento do corpo ou
como outra coisa qualquer. Nesse sentido, a realidade do signo é
totalmente objetiva e, portanto, passível de um estudo metodologicamente
unitário e objetivo. Um signo é um fenômeno do mundo exterior. O próprio
signo e todos os seus efeitos (todas as ações, reações e novos signos que
ele gera no meio social circundante) aparecem na experiência exterior
(BAKHTIN, 1981, p. 33).
A argumentação musical necessita de interlocutores que compreendam o signo
musical, e compreender um signo consiste em aproximar um signo apreendido de
outros conhecidos; em outros termos, a compreensão é a resposta a um signo
por meio de signos (Id., Ibid., p.33-34).
A fala sobre a música não substitui a própria música, nem é esse o desejo, longe
disso. Mas se os músicos que pretendem trabalhar com o ensino querem ampliar
o seu conhecimento sobre este e o de seus alunos sobre a música, poderiam
utilizar parte de seus esforços na expressão por meio da fala, ou num modo mais
abrangente, da escrita, de pensamentos e ações sobre a sua experiência estética
da música e do ensino. que procurar o diálogo, a socialização, a partilha dos
achados, que ao repartir se multiplica.
A narrativa foi o gênero literário que me serviu durante esta pesquisa e me deu
confiança para contar essa pesquisa-ode à formação de educadores musicais
escritores da própria história. E à democratização da compreensão da música por
nossas crianças e jovens, como passagem da realidade instituída para um poder
criativo instituinte de uma realidade outra, uma realidade por vir éticamente a
construir-se.
148
Pode ser um incentivo pensar que a própria Música teve condições de evoluir sua
forma, sua estrutura, seu discurso enfim, depois do desenvolvimento da notação,
que permitiu elaboração, análise e re-elaboração dos argumentos do discurso
musical. Além disso, mais sicos puderam se encontrar e tocar juntos sem
qualquer ensaio, aumentando o poder de divulgação e partilha da obra.
Assim também já se vê a narrativa abrindo espaço para as professoras falarem de
suas práticas nas salas de aula e estudantes de um curso de licenciatura em
educação musical exercitarem-se na tarefa de intercambiar diferentes signos.
Essa produção narrativo-pedagógica constitui-se de elaboração cognitiva de
conceitos, idéias, novos aprendizados, ou registro para um potencial futuro, ou até
guardados na estante dentro de um caderno velho, no entanto se transformaram
em 'dados de pesquisa': motivos da escolha da profissão ou modo de vida,
motivos de se manter estudando, percepção/conscientização do aprendizado da
música, percepção/conscientização de si na relação com o aprendizado da
música, percepção/conscientização da relação com o outro e o ato de aprender,
o outro e o ato de ensinar.
Motivos da escolha da profissão ou modo de vida:
sentidos da presença da música na vida;
influências da cultura familiar;
influências da cultura escolar, ou do círculo de amizades.
Motivos de se manter estudando:
desejo causado pelo prazer da música;
enfrentamento de desafios e dificuldades - adversidades econômicas,
superação de si, busca do instrumento musical de maior identidade;
Percepção/conscientização do aprendizado da música como:
inserção no mercado de trabalho;
confraternização com a família;
linguagem de expressão e impressão do mundo.
Percepção/conscientização de si na relação com o aprendizado da música como:
sensibilidade excepcional versus sensibilidade natural aos músicos em geral;
relação entre a música e a afetividade;
o talento invisibilizado pela obviedade e escondido pela dúvida da sua
presença;
149
conexão entre conteúdos especializados e a incorporação de seus
significados.
Percepção/conscientização da relação com o outro e o ato de aprender, o outro e
o ato de ensinar:
a partir do aprendizado com professores e professoras;
a partir do aprendizado com irmãos/irmãs mais velhos;
a partir da problematização da concentração/desconcentração devido a
conversas paralelas, a ambientes não propícios para aprender/ensinar;
a partir da percepção que a forma escolhida para ensinar levou o outro a
aprender;
a sensibilidade como conhecimento que se aprende/ensina.
Os signos sonoros-musicais, os todos e teorias de ensino, os sentimentos, os
conflitos da (des)confiança do talento; são traduzidos em palavras narrativas e
nessa tradução os estudantes se formam. Assim como eu que falo do meu lugar
espácio-temporal único de aprendiz-amadora. Amadora, no sentido que usa
Marco Ferrari (1999), que antes de significar 'não-profissional', significa aquele (a)
que ama: aquela que ama aprender.
Se me formam, é porque tirei lições ou metas. Vou citar algumas, à guisa de
acabamento. Estético. Não posso deixar uma dúvida sequer que essas lições
pretendam ser finalizadoras. O acabamento estético, segundo Bakhtin abre as
portas para a atitude responsável, a ética do por vir. Se gostei ou não do que li,
minhas atitudes ficarão comprometidas com a leitura, responderão eticamente a
ela. Para o bem ou para o mal.
As lições que encontrei:
Se o desejo de aprender é motivado pelo prazer de aprender, que levar
os estudantes a amar o objeto de estudo;
Se o desejo de aprender é motivado pela cultura que o circunda, que
levar a que seja criada nas salas de aulas, nas escolas, uma cultura na
qual o aprender faça parte das relações sociais dos estudantes e enxergar
as suas próprias tentativas nesse sentido sem perder de vista que a
incompreensão e a inconsistência epistemológica deixa aberto um espo
para a invasão do mercado;
150
Se a narrativa implica o narrador em suas histórias, que incentivar sua
prática como um importante meio de construção de identidade e de
afirmação de liberdade criativa;
Se a tradução de signos ideológicos leva à compreensão, há que re-
dimensionar os currículos de forma a beneficiar o intercâmbio dos
diferentes meios culturais levando em consideração a construção de um
currículo-narrativo, como sugere Goodson (2007);
Se a arte em geral e a música mais especificamente, porque permite o
desenvolvimento de um discurso sem palavras extremamente organizado
sujeito a regras e escritas próprias, porém criados nos modos racionais
humanos de pensar, tanto lógico-matemáticos como lingüísticos, tanto
metafóricos como sensório-motores, tanto abstratos quanto históricos,
portanto um discurso conectado com a essência narrativa humana, há que
se empenhar em ampliar a visibilidade do seu valor na formação de nossas
crianças e jovens.
Minha experiência com o ensino da música me faz ver que por mais amplo que
seja um campo de conhecimento, é possível alterar as ordens tradicionais (ou
curriculares) sem comprometer o aprendizado, ao contrário, muitas vezes é em
seu próprio benefício.
Isso não quer dizer começar a iniciação musical de uma criança propondo que se
discuta os textos de Adorno sobre estética, ou montar logo nas aulas iniciais de
prática vocal, corais a duas ou mais partes, ou esperar que se toque na flauta
doce os chorinhos de Pixinguinha. Seria o equivalente a ensinar matemática
começando pelas equações de segundo grau, ensinar inglês lendo Shakespeare
ou ciências pelas reações químicas. E, além disso, desconsiderar todos os
estudos científicos da cognição.
Mas pode-se contar a história de Romeu e Julieta e dizer como se pronunciam em
inglês as juras de amor; pode-se fazer um bolo, saborear e ver acontecerem as
reações químicas; pode-se discutir sobre as impressões de uma música que se
ouviu enquanto caminhava ao tempo de sua rítmica (ir)regular, ou sonhava
deitado no chão de olhos fechados, imaginando as loucas (não)histórias que ali
se escondem. São discussões estéticas, vivências cienficas, pensamentos
lógico-matemáticos, sem dúvida, e se inserem na vida, são conversas entre
151
amigos, são produtos do próprio trabalho sabor morango, cenoura ou chocolate.
São, ou não, promessas de amor...
Como aprender música significa fazer música, de alguma forma o produto do
aprendizado se insere na vida, portanto tem sentido social. Seja como intérprete,
como compositor, improvisador, ou mesmo ouvinte - a escuta ativa tem papel
semelhante à leitura, (re)construindo a obra a partir da história do leitor - a
realização musical tem sentido no mundo da vida e não só no mundo da escola.
Talvez o ensino de música tenha, afinal se elitizado ainda mais do que sempre,
pois o se trata somente de pertencer a uma elite econômica, mas a uma
parcela cultural de exceção dentro da sociedade de consumo e prazer imediato
com a qual convivemos, contrariamente à nunca antes imaginada e paradoxal
possibilidade tecnológica de divulgação e produção musical.
A música é uma área do conhecimento humano, mas enquanto as pessoas têm
conhecimento, é a música que nos tem. O que quero dizer é uma metáfora, claro.
Como se a música pairasse nos ares com todos aqueles que nela se
identificassem dentro, imersos numa outra atmosfera, onde se respira pelos
ouvidos.
Mas na sociedade atual, onde a tecnologia permite o que antes só era possível ao
vivo e na mesma câmara, ela se banaliza.
Sem o aprendizado de seus conteúdos específicos, sem o desenvolvimento da
percepção auditiva, sem os rituais do estudo, sem o conhecimento da
sensibilidade, sem a preparação para ouvi-la ela se naturaliza e ensurdece. é
onde entra o ensino de música e onde entra a formação de educadores musicais
que sejam também advogados de defesa da educação musical.
Tendo como instrumento de investigação a própria escrita da pesquisa, como
resultado do método a descoberta do reflexo no espelho, me vejo agora na fase
final, no acabamento estético que dou a esse texto, pelo qual me responsabilizo,
para que esta escrita possa abrir-se em cada um dos leitores num por vir ético.
Numa seleção de memórias que projetem outros futuros.
Porque o outro me faz desejar aquilo que de melhor me acontece: aprender e
vivenciar a música. A quem tiver a chance de experimentá-la, ao experimentar-se
nela e a partir d fazer que aquilo que passa pelos ouvidos seja fruto de uma
escolha consciente.
152
Encontrei muito mais do que inicialmente me propus, mas mesmo assim não
disse tudo o que pretendia. Talvez nem tenha toda a dimensão das minhas
próprias pretensões. A cada re-leitura do meu texto outros sentidos surgem como
por encanto, o encanto da vida querendo viver seu próprio milagre da existência.
Essa é, para mim, a imediata representação dessa pesquisa, a sua função
sensibilizadora, educativa, formativa, que espera ser levada pelo papel e
finalmente pelo ar, como a música, ao encontrar quem a leia, quem a ouça.
Afinal, que a pesquisa se realize em sua função natural, como disse minha
orientadora, de abrir outros horizontes, outras pesquisas.
153
7. REFERÊNCIAS
154
ALARCÃO, Isabel (Org.). Escola reflexiva e nova racionalidade. Porto Alegre:
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