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VALDENÉSIO ADUCI MENDES
ALCANCES E LIMITES DO CONCEITO DE SOCIEDADE
CIVIL EM ANTONIO GRAMSCI
Florianópolis
2006
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
VALDENÉSIO ADUCI MENDES
ALCANCES E LIMITES DO CONCEITO DE SOCIEDADE
CIVIL EM ANTONIO GRAMSCI
Florianópolis
2006
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DEDICATÓRIA(S)
Dedico este trabalho à minha esposa Maritza Trinidad Odreman e aos meus filhos
Raony Valdenésio, Dego Valdenésio e Simón Valdenésio, os quais suportaram
amorosamente, períodos de ausência.
In memorian, a meus pais Aduci Maximiano Mendes e Henriqueta Tierfina
Mendes.
Aos meus irmãos e irmãs de sal, pedras, mar, vento, maresia, lua, sol, terra e
existência comum: Cristina, Valter, Valterlô, Dulce, Dalva, Valtair, Isabel, Vilmar, Vilson,
Valdir, Valmir, Dorvalina.
Aos amigos e ex-professores e professoras da UDESC: Everson Deon, Ari Sartori,
Marilda, Juliani, Renata, Ângela Mendes e Roseli: irmanados(as) pela luta em defesa do bem
público. Que a justiça não falhe, mesmo que tardia!
A Leandro Cisneros: amigo e irmão de idéias e sentimentos de justiça social.
AGRADECIMENTOS
Ao mestre Selvino José Assmann, com quem aprendi que a amizade e a sinceridade
intelectual são as prerrogativas da relação ensino/aprendizagem; com quem aprendi que a
academia não é toda a nossa vida, é um aspecto dela.
Aos professores Delamar Volpato Dutra e Leo Afonso Staudt, os quais fizeram parte
da banca de qualificação, e cujos comentários, observações e críticas ampliaram os horizontes
do trabalho em tela.
Agradecimento especial à professora Ivete Simionatto, que mesmo impossibilitada de
participar da banca de qualificação, devido a problemas de saúde, não poupou esforços para
contribuir no processo de qualificação do trabalho.
A todos os professores do Departamento de filosofia da UFSC que contribuíram para a
minha formação acadêmica desde a graduação.
A Mauro José Elias pelo trabalho de editoração.
À Associação de Pais e Amigos da Criança e do Adolescente do Morro das Pedras,
refúgio onde encontrei silêncio para as leituras devidas e para a organização das idéias.
Ao povo brasileiro que através de seus impostos, me deu a oportunidade de freqüentar
uma instituição de ensino Federal, Pública e Gratuita.
Déjenme decir esto antes de que la lluvia se vuelva un servicio publico
que ellos puedan planificar y distribuir por dinero.
Con "ellos" me refiero a los incapaces de entender que la lluvia es un festival,
gente que no aprecia su gratuidad,
pensando que lo que no tiene precio carece de valor
y que lo que no puede venderse no es real,
de tal modo que para que algo sea verdadero resulta preciso colocarlo en el mercado.
Vendrá un tiempo en el cual te venderán hasta tu propia lluvia.
Por el momento es gratis todavía, y estoy en ella.
Celebro su gratuidad, y su carencia de significado.
(
Thomas Merton,
La lluvia y el rinoceronte).
MENDES, Valdenésio Aduci. Alcances e limites do conceito de sociedade civil em Antonio
Gramsci. 2006. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Universidade Federal de Santa
Catarina.
RESUMO
O trabalho analisa alcances e limites do conceito de sociedade civil no pensamento político de
Antonio Gramsci. Pergunta-se em que medida as reflexões políticas de Antonio Gramsci
sobre a sociedade civil e o Estado projetam alcances teóricos e estratégias para repensar o
problema político do presente, qual seja, o da disjunção entre economia e sociedade política e
entre Estado e sociedade civil. Primeiramente apresenta a categoria sociedade civil na
história do pensamento político ocidental, desde Aristóteles ao jusnaturalismo, sinalizando a
tensão entre o burgeois e o citoyen, captada por Hegel e Marx nos alvores da modernidade.
Em segundo lugar aborda o nexo entre filosofia e política presente nas idéias do pensador
italiano, enfatizando a questão da filosofia da práxis, do intelectual como filósofo e da
hegemonia. Num terceiro momento, destaca o conceito de Estado em Gramsci numa
dimensão ampliada, ou seja, na relação entre sociedade política e sociedade civil,
evidenciando-se a proposta gramsciana de assimilação/superação da tradição hegelo-
marxiana. Enfatiza a crítica de Gramsci ao liberalismo econômico, assim como ao
economicismo presente na tradição marxista. Aqui o pensamento de Gramsci é visto no
contexto de um debate que inclui pensadores contemporâneos, dentre eles: Norberto Bobbio e
Perry Anderson. Finalmente investiga alguns aspectos do debate atual sobre a sociedade civil,
relacionando-o, sobretudo ao fenômeno da globalização, da mundializacão da economia, das
mudanças no mundo do trabalho e do consumo; das mudanças ocorridas nos fundamentos
políticos dos Estados-nações, do fenômeno da desterritorialização, da financeirização da
economia e da democracia. Conclui-se que os fenômenos descritos estão produzindo a
despolitização da sociedade civil, a qual caminha de “costas” para o Estado. Ao mesmo
tempo se reconhece que o pensamento de Gramsci continua atual como questionamento da
visão política contemporânea que procura separar a esfera econômica da esfera política.
Palavras-chave: Sociedade civil, Estado, filosofia da práxis, política, hegemonia, filósofo,
intelectual, marxismo, Moderno Príncipe, Estado-nação, democracia.
ABSTRACT
This work analysis the scope and limits the civil society concept in Antonio Gramsci political
thought. In question is the measure where in Antonio Gramsci`s political reflectives on civil
society and state impart theoretical insight an strategies that may be used to rethink the
present political problem, which is the disjunction between economy and political society and
state and civil society. In the first place the work presents the category civil society in the
history of western political thought since Aristotle to the jusnaturalisme, signalizing a tension
between the “burgeois” an the “citoyen”, discerned by Hegel and Marx in the down of
modernity. In the second place this work examines the link between philosophy an politics in
the ideas the italian thinker, emphasizing the question of the philosophy of praxis, the
intellectual as philosopher an the question of hegemony. In a third moment it underlies
Gramsci`s concept of State in a wider dimension, that is, in the relation between political
society and civil ciety, making clear the gramscian proposal of assimilation/surprassing from
the hegelian-marxian tradition. It emphasis Gramsci`s criticism on both economic liberalism
and the economicism of marxism tradition. Here Gramsci`s thougght is veiwed in the context
of a debate that envolves contemporany thimbers, amongst then Norberto Bobbio and Perry
Anderson. Finally the work investigates some aspects of the present day debate about civil
society in relation to the phenomenes of globalization, the internationalization of the
economy, changes in the labor worket and in social consumption, changes taking place in the
political foundation of the nation-states, the phenomenon of deterritorialization and the
financialization of both the economy and democracy. The conclusion is that the phenomenon
bering analysed of civil society whiche has turned its bach to the state. At the same time it
must be reconoitre that Gramsci`s thought remains an up-to-date challenge to the
contemporany political view that attempt to separate the economic from the political agenda.
Kay words: civil society, State, philosophy of praxis, hegemony, philosopher, intellectual,
marxism, nation-state, democracy.
ABREVIATURAS
C.C - Cadernos do cárcere
C- Cartas do cárcere
EP- Escritos políticos
PFD- Princípios da Filosofia do Direito
CFDH- Crítica da filosofia do direito de Hegel
Sumário
INTRODUÇÃO 11
I. UMA HISTÓRIA DO CONCEITO DE SOCIEDADE CIVIL 15
1. De Aristóteles ao jusnaturalismo
15
2. Hegel e a bürgerliche gesellschaft 19
2.1. O trabalho abstrato 22
2.2. O Divino sobre a terra 29
3. Marx e a dessacralização do Estado 34
3.1. O bourgeois e o citoyen 37
3.2. O Estado como prolongação do estado de natureza 40
4. Nem com Hegel e Marx, nem contra Hegel e Marx 43
II. O NEXO FILOSOFIA E POLÍTICA 47
1. O marxismo como filosofia da práxis 47
2 Filosofia da práxis 50
3. O intelectual como filósofo 55
4. Filosofia e política 56
5. Hegemonia: o poder como relação 60
6. “Guerra de movimento” e “guerra de posição” 70
7. Maquiavel: símbolo da vontade coletiva 73
III. ESTADO E SOCIEDADE CIVIL EM GRAMSCI 80
1. Sociedade política e sociedade civil 80
2. O Moderno Príncipe 89
3. As antinomias de Gramsci, segundo Perry Anderson 94
4. Gramsci na perspectiva de Bobbio 100
IV. ASPECTOS DO DEBATE ATUAL SOBRE A SOCIEDADE CIVIL 112
1. O Estado-nação nos limites da modernidade 112
2. Os globais e os locais 116
3. Sociedade pós-civil? 119
4. Estado e sociedade civil 121
Considerações finais 130
Referências 134
11
INTRODUÇÃO
O tema da sociedade civil regressou ao centro do debate cultural e político,
influenciado por duas vertentes sociais. Em primeiro lugar, a partir da década de 70 do século
XX, em função da chamada “revolução neoconservadora” ou “neoliberal”, que desejava o
questionamento do Estado como sujeito ‘pleno’ para sustentar a vontade de separação e de
revanche do não-estatal, do econômico e do mercado sobre a política, sobre o Estado o social.
Num segundo momento, o conceito de sociedade civil começa a desempenhar, a partir da
segunda metade da década de 90, um papel-chave no processo de redefinição de uma parte da
esquerda, “convencida da necessidade de abandonar um paradigma interpretativo que
implicava o conceito de classe” (LIGUORI, 2001: 1). O novo conceito usado pela esquerda é
o conceito de cidadania, que reivindica a idéia de autonomia presente na sociedade civil,
desvinculada do poder do Estado. No fundo, tanto a vertente liberista, baseada no mercado,
assim como a liberal, fundada nos direitos, guardam em comum, a concepção antropológica
de que o indivíduo pode ser concebido para não necessitar da sociedade, viver independente
de sua complexa rede de relações econômicas, sociais e políticas (LIGUORI, 2001: 3).
O conceito de sociedade civil que submeteremos à análise tem despertado o interesse
de vários estudiosos na atualidade, em diversas áreas, sob os mais variados aspectos e
sentidos contrapostos. Assim, a expressão pode ser evocada sob muitos prismas e diferentes
atores sociais. Para alguns, sociedade civil é entendida como “esfera autônoma ao lado do
Estado e do mercado”; para outros é vista como “um conjunto de entidades de caráter
filantrópico, para onde podem ser transferidas responsabilidades governamentais”. Há
também os que a consideram como o “espaço de manifestações culturais e de relações
intersubjetivas”, e os que a idealizam como “utopia duma sociedade sem Estado”
(SEMERARO, 1999: 13). E há, ainda, os liberais que pensam a sociedade civil como
sinônimo de economia.
O quadro político atual nos mostra uma complexidade maior do cenário social e
12
aponta para a crise da soberania, a disseminação da
cultura individualista e o desaparecimento do Welfare State, o fim das ideologias e também da
História. Resultado deste cenário é uma sociedade civil não só mais complexa e diferenciada
(SEMERARO, 1999: 236), assim como mais volátil e contraditória.
A idéia liberal de que só é possível pensar economia e política de forma dicotômica,
correspondendo à sociedade civil o “lado bom”, e cabendo ao Estado o “lado mau”, é, na
realidade, uma visão maniqueísta do político. Em outros termos, coloca-se a contradição
capitalista “entre democracia política e autocracia econômica”. Aqui, poder-se-á perguntar se
o problema da liberdade se resolve tão somente no reino da economia. Na perspectiva do
neoliberalismo o mercado parece representar a “harmonia social, o consenso e a liberdade; o
Estado – e a política -, a esfera da imposição e do conflito” (BORON, 1994: 15). Portanto,
duas esferas antagônicas, e, conseqüentemente, irreconciliáveis. Nessa perspectiva, o reino do
mercado é visto como “sacrário” da liberdade, ao passo que o Estado é a esfera da dominação,
da opressão, do autoritarismo.
Haveria hoje, no centro da ideologia dominante, um mito, segundo o qual, o
liberalismo teria gradualmente se transformado, por um impulso puramente interno, em
democracia, e em democracia cada vez mais ampla e mais rica: “o mito hoje dominante
também quer fazer crer que democracia e livre mercado capitalista se identificam”
(LOSURDO, 2004: 9). Portanto, por detrás desse mito, a idéia amplamente difundida de que
o “público não-estatal” seja escolhido como paradigma para o “bom funcionamento” do
mercado, como esfera capacitada para substituir o Estado. De espaço essencialmente político,
a sociedade civil parece ter-se configurado em espaço livre de tensões, de conflitos. Ao
disseminar-se largamente e colar-se ao senso comum, ao imaginário político das sociedades
contemporâneas, à linguagem da mídia, o conceito de sociedade civil perdeu precisão:
“empregam-no tanto a esquerda histórica quanto as novas esquerdas, tanto o centro liberal
quanto a direita fascista” (NOGUEIRA, 2003: 186).
Neste sentido, o objetivo do trabalho consiste em analisar o conceito de sociedade
13
civil no pensamento político de Antônio Gramsci
1
,
perguntando-nos por seus alcances e limites no debate político atual.
Ao procurarmos entender o que acontece no campo político atual, propomos remeter-
nos ao conceito de sociedade civil como locus de consenso e dissenso, como espaço de
tensões e de conflitos para o estabelecimento de hegemonias sociais. Visando atingir o
objetivo proposto, a dissertação apresenta a estrutura que segue abaixo.
O primeiro capítulo visa descrever, em linhas gerais, a história do conceito de
sociedade civil antes de Gramsci. Deter-se-á de forma mais pormenorizada na concepção de
sociedade civil em Hegel e em Marx, com o objetivo de entender as raízes do conceito de
sociedade civil em Gramsci. Deixa-se claro que a análise do conceito de sociedade civil estará
diretamente relacionada ao conceito de Estado, já que a análise do primeiro conceito requer
necessariamente a análise do segundo.
O segundo capítulo pretende mostrar o nexo entre filosofia e política no pensamento
de Gramsci. Procura mostrar que a atividade filosófica, conseqüentemente a atividade
intelectual, (mesmo aquela definida como atividade “neutra”), não está dissociada da ação
política. “Filosofia da práxis” seria a expressão que melhor definiria essa relação entre
saber/poder. A reflexão sobre o papel do filósofo e do intelectual está relacionada, por sua
vez, à questão da hegemonia, “guerra de movimento” e “guerra de posição”, bem como à
questão da vontade coletiva ou do Moderno Príncipe, representada pelo partido.
O terceiro capítulo procura analisar o conceito de Estado e de sociedade civil em
Gramsci. Destacar-se-á aqui a tensão dialética entre força e consenso, economia e política,
sociedade civil e sociedade política, presentes no pensamento político de Antônio Gramsci,
apontando ao mesmo tempo a crítica que este autor dirige à visão liberal que procura separar
a esfera econômica da esfera política. Procura mostrar como a temática da sociedade civil em
1
Antonio Gramsci nasceu em 22 de janeiro de 1891, em Ales (Ilha da Sardenha), sul da Itália. Era o quarto dos
sete filhos de Franscesco Gramsci e Giuseppina Marcias. Em maio de 1928 é levado ao “Tribunal Especial” de
Roma, em função de suas atividades políticas. Aos 4 de junho foi dada a Gramsci pelo regime fascista, a
sentença que o condenou a 20 anos, 4 meses e 5 dias de prisão. Foi na prisão que escreveu os Cadernos do
cárcere e as Cartas que o tornariam referencia do marxismo ocidental, falecendo aos 27 de abril de 1937 por
hemorragia cerebral.
14
Gramsci procura renovar a discussão da legitimidade e
do sentido do poder político no 'Ocidente'. Analisa em que sentido o papel da sociedade civil
é estratégico no projeto de uma sociedade socialista no “Ocidente”. O terceiro capítulo
também procura mostrar as leituras de e Perry Anderson e Norberto Bobbio sobre Gramsci. A
escolha desses autores deve-se ao fato de que são leituras importantes e controversas na
análise do pensamento gramsciano. A análise desses autores nos permitirá conhecer, por sua
vez, a contraposição aos mesmos, efetuadas por autores como Liguori, Losurdo, Vacca,
Frosini, e os brasileiros Marco Aurélio Nogueira e Carlos N. Coutinho.
O quarto capítulo quer investigar alguns aspectos do debate atual sobre a sociedade
civil, relacionando-os, sobretudo ao fenômeno da globalização, da mundializacão da
economia, das mudanças no mundo do trabalho e do consumo; das mudanças ocorridas nos
fundamentos políticos dos Estados-nações, do fenômeno da desterritorialização, da
financeirização da economia e da democracia. Quer analisar se tais fenômenos estariam ou
não produzindo a despolitização da sociedade civil? Se a sociedade civil estaria ou não
caminhando de “costas” para o Estado na atualidade? Quer saber se as reflexões políticas de
Antonio Gramsci sobre a sociedade civil e o Estado projetam alcances teóricos e estratégias
para repensar o problema político do presente, qual seja, o da disjunção entre economia e
sociedade política, entre Estado e sociedade civil.
15
CAPÍTULO I
UMA HISTÓRIA DO CONCEITO DE SOCIEDADE CIVIL
O primeiro capítulo trata do conceito de sociedade civil numa perspectiva histórica,
fazendo, primeiramente, um breve percurso no pensamento político ocidental de Aristóteles
ao jusnaturalismo. Em segundo lugar, investiga o conceito de sociedade civil no pensamento
de Hegel e Marx, com o objetivo de entender as raízes do pensamento político de Gramsci.
Analisa-se em Hegel a questão da sociedade civil associada à família, às corporações e ao
sentido ético do Estado, que exerce a função de universalização. Em Marx, destaca-se a
crítica ao pensamento hegeliano, na medida em que procura dessacralizar o papel do Estado,
que para Hegel é o divino na terra. De maneira geral, procura-se evidenciar em ambos os
autores a tensão presente na modernidade entre o bourgeois e o citoyen, o público e o privado.
1. De Aristóteles ao jusnaturalismo
Mencionar o conceito sociedade civil com é mencionar, na realidade, uma expressão
tão antiga quanto outros importantes conceitos da reflexão política herdados da filosofia
política clássica que remonta a Aristóteles. Na verdade, a societas civilis dos romanos deriva
de koinonia politiké, termo usado por Aristóteles para distinguir o oikos da polis, a esfera da
vida doméstica da esfera pública, sem que isso signifique a separação total em Aristóteles
entre a economia e a política. Para a teoria contratualista, a societas naturalis, lócus das
paixões ilimitadas e da anarquia, contrapõe-se a societas civilis, lócus da ordem, da
segurança, e por sua vez, sinônimo de sociedade política. Para corroborar suas idéias na
defesa da paz, Hobbes sustenta que,
Se fosse lícito supor uma grande multidão capaz de consentir na observância da justiça e das outras leis
naturais, sem um poder comum que mantivesse a todos em respeito, igualmente o seria supor a
humanidade inteira capaz disso. Não haveria, nem seria necessário, no caso, qualquer governo civil, ou
16
qualquer Estado, pois haveria paz sem sujeição
2.
O importante a reter aqui é que “governo civil” e “Estado” se equivalem. Hobbes
denomina Estado ou civitas
3
a multidão, unida numa só pessoa, para estabelecer a ordem e
assegurar os preceitos da paz, da liberdade, da segurança, da ciência e da sociabilidade. Locke
(1998: 458) ao fazer referência à sociedade política, resultante do contrato estabelecido para a
defesa da propriedade, define a sociedade civil nos seguintes termos nos § 87 e 89 dos Dois
tratados sobre o governo:
Aqueles que estão unidos em um único corpo e têm uma lei estabelecida comum e uma judicatura à
qual apelar, com autoridade para decidir sobre as controvérsias entre eles e punir os infratores, estão em
sociedade civil uns com os outros [...] Portanto, sempre que qualquer número de homens estiver unido
numa sociedade de modo que cada um renuncie ao poder executivo da lei natureza e o coloque nas
mãos do público, então, e somente então, haverá uma sociedade política ou civil.
É perceptível, também em Locke, que a idéia de sociedade civil e sociedade política é
utilizada para se contrapor às organizações societais dos povos primitivos, evidenciando,
dessa maneira, outro sentido para a expressão. Nesse caso, sociedade civil passa a ter o
significado, também, de sociedade "civilizada", "onde 'civil' não é mais adjetivo de 'civitas',
mas de 'civilitas'” (BOBBIO et al., 2002: 1207). Civil passa a significar ambas as coisas:
"político" e "civilizado".
Para Rousseau (1985: 84)
4
, ao contrário de Hobbes que percebe na sociedade civil a
possibilidade de condição do político, a sociedade civil tem outro sentido: seria a descrição
fidedigna do estado de natureza no seu limite, ou seja, no limite da guerra de todos contra
2
Contra a concepção política de Aristóteles, Hobbes se insurge da seguinte maneira no De cive: “A maioria dos
que escrevemos sobre política supõe que o homem é um animal nascido com disposições naturais para viver
em sociedade. O homem é um animal político, zoon politikon, dizem os gregos. Sobre essa base constroem sua
teoria política, como se para manter a paz, e governar todo gênero humano fosse suficiente que os homens se
pusessem de acordo sobre certos pactos e condições aos quais dão então o nome de leis. Este axioma não deixa
de ser falso [...]” (HOBBES, 200: 129).
3
“Essa é a geração daquele enorme leviatã, ou antes - com toda reverência - daquele deus mortal, ao qual
devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa” (HOBBES, 200: 131).
4
Onde se lê na segunda parte do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:
"O primeiro que, tendo cercado um terreno, arriscou-se a dizer 'isto é meu' e encontrou pessoas bastante
simples para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil".
17
todos. O próprio Rousseau advertiu Hobbes que a
descrição dos conflitos egoístas do suposto estado de natureza, desenvolvidas no Leviatã,
representava, na realidade, as condições conflituosas da sociedade da época de Hobbes. Isso
significa que Rousseau não só distingue sociedade civil de sociedade política, assim como
descreve aquela como reino de necessidades em conflito, ao menos no Discurso sobre a
origem da desigualdade entre os homens. Talvez, seja Rousseau, dentre os contratualistas, o
autor que mais tenha percebido a existência de uma série de oposições não evidenciadas
anteriormente, e que são constitutivas do mundo moderno, tais como: o público e o privado,
razão e paixão, egoísmo e altruísmo, indivíduo e sociedade, particular e universal.
Foi a Ilustração escocesa quem retomou o conceito de sociedade civil e o desenvolveu
a partir de uma perspectiva ética com a intenção de encontrar uma síntese entre as oposições
anteriormente mencionadas. Adam Ferguson, no Ensaio sobre a história da sociedade civil,
publicado em 1767, aponta que o desejo de fundamentar um sistema favorito “tem levado este
tema a muitas pesquisas estéreis, tem dado lugar a muitas suposições irracionais”
(FERGUSON apud MÉNDEZ, 2003: 2).
Ferguson rechaça a concepção contratualista que busca os fundamentos da sociedade
política por intermédio do contrato social, dirigindo, por sua vez, críticas ao suposto estado de
natureza da tradição jusnaturalista
5
. A fonte das instituições sociais, segundo Ferguson, tem
sua origem nos impulsos naturais e não nas especulações e estados hipotéticos. O homem
avança empregando os poderes que lhe deu a própria natureza. Portanto, não há, para
Ferguson, duas etapas separadas na evolução das comunidades humanas (estado de natureza e
estado civil), ao contrário, para o escocês, a sociedade civil é sociedade 'civilizada' que surge
com a progressiva divisão do trabalho e, desse modo, se opõe às sociedades 'incivilizadas',
primitivas ou selvagens” (MÈNDEZ, 2003: 4). Destacam-se, portanto, quatro características
importantes na descrição que Ferguson faz da sociedade civil: a idéia de progresso, de
5
Para Ferguson, “O estado de natureza é um estado de guerra ou de amizade, e os homens foram criados para
agrupar-se por um princípio de afeto, ou por um princípio de medo, segundo o sistema escolhido pelos
diferentes autores. A história de nossa espécie, na realidade nos dá abundantes mostras de que os homens são
uns para os outros ao mesmo temo de amor e de medo, e aqueles que provaram que os homens nasceram
originariamente bem em estado de aliança ou de guerra, têem argumentos de reserva para defender suas
teorias”, (FERGUSON apud MÉNDEZ, 2003: 3).
18
aperfeiçoamento do homem, o fenômeno da divisão do
trabalho e do conflito
6
. Para o jusnaturalismo, a fundação da sociedade política ou sociedade
civil decorre da necessidade imperiosa em apaziguar os conflitos existentes no suposto estado
de natureza. A sociedade civil em Ferguson não suprime o conflito nem o estado de natureza,
os quais são partes constitutivas da realidade social humana.
Os impulsos de amizade e de inimizade confluem no homem e a sociedade civil deve constituir-se
sobre este suposto [...] a sociedade civil não é o produto de uma convenção, de um contrato, senão que
é uma etapa à qual se chega depois de um longo processo de desenvolvimento que é, ao mesmo tempo,
um processo natural” (FERGUSON apud MÈNDEZ, 2003: 7-8).
Do exposto, se percebe que a visão de Ferguson sobre a sociedade civil apresenta
traços distintos, se comparada com a concepção tradicional do jusnaturalismo. Primeiramente,
nega a separação entre sociedade civil e sociedade política, logo, a sociedade civil supera o
suposto estado de natureza dos contratualistas. Por sua vez, a sociedade civil não é sinônima
de sociedade política, mas de sociedade civilizada, o que o aproxima do Rousseau do
Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens.
Depois de Adam Ferguson, Hegel é um dos poucos pensadores, no alvorecer da
modernidade, que capta, em termos conceituais, a fundamentação da autonomia do ser
humano em relação à religião, à economia e à política, ao processo de secularização. Com a
expressão bürgerliche Gesellschaft, Hegel procura descrever a nova configuração social
resultante das relações produtivas surgidas em solo europeu a partir do século XV.
2. Hegel e a bürgerliche gesellschaft
Na descrição dos princípios éticos, Kant procurou depurá-los dos elementos empíricos
e passionais, colocando em questão a moral sense dos escoceses e utilitaristas. Tais princípios
6
Sobretudo as duas últimas características descritas por Ferguson serão amplamente abordadas por Hegel na sua
descrição da sociedade, inclusive fazendo referências ao próprio Ferguson.
19
são frutos de uma Razão que ordena a boa vontade, sem
apelar para os sentimentos. Nossas ações dependeriam única e exclusivamente das condições
formais da razão. Tal perspectiva dá a Hegel a possibilidade da crítica a Kant, descrevendo a
eticidade
7
no sentido de integração dos interesses particulares e universais, representado na
figura do Estado ético. Nesse caso, a descrição feita por Hegel dos elementos da sociedade
civil está mais próxima de Adam Smith e Ferguson do que de Kant, além de ser muito mais
complexa do que a concepção de seus antecessores. Hegel está, portanto, diante de duas
importantes questões que nortearão suas reflexões políticas: de um lado a concepção política
aristotélica da polis antiga que parece não mais condizer com os tempos modernos, e de outro,
a concepção contratualista que fundamenta a vontade geral na vontade das particularidades.
Nos Princípios da Filosofia do Direito
8
, Hegel descreve a família, a sociedade civil e
o Estado enquanto instituições de uma sociedade, cujos elementos descrevem desdobramentos
da eticidade. No § 181 da obra supra, Hegel descreve a passagem da moralidade para a
eticidade nos seguintes termos:
De um modo natural, e essencialmente, de acordo com o princípio de personalidade, divide-se a família
numa multiplicidade de famílias que em geral se comportam como pessoas concretas independentes e
têm, por conseguinte, uma relação extrínseca entre si. [...] Assim, esta situação produzida pela reflexão
apresenta primeiro a perda da moralidade objetiva ou, como esta enquanto essência é necessariamente
aparência, constitui a região fenomênica dessa moralidade: a sociedade civil (HEGEL, 1998: 166).
Hegel descreve a família do seu tempo como esfera da eticidade natural, onde cada
membro liga-se ao outro por intermédio dos laços amorosos
9
. A dissolução da instituição
familiar, descrita por Hegel, ocorre por dois motivos: a) dissolução natural ocasionada com a
falência dos pais; b) maioridade dos filhos, resultante da educação recebida. A dissolução da
7
Conforme comentam LEFEBVRE & MACHEREY (1999: 21-23): “Sittlichkeit designa aquilo que “entrou
para os costumes” [...] o coroamento de todo o processo do direito. Ela própria é um processo, no qual se
sucedem dialeticamente três momentos: família, sociedade civil, Estado”.
8
Doravante PFD.
9
ARIÈS (1978: 277) descreve que "a família deixou de ser apenas uma instituição do direito privado para a
transmissão dos bens e do nome, e assumiu uma função moral e espiritual, passando a formar os corpos e as
almas". Até o século XVII a economia doméstica possibilitou a coesão social da unidade familiar, mas essa
não parece ser a situação na modernidade, pois a Revolução Industrial operará a passagem da economia de
âmbito doméstico para a esfera da “sociedade civil” e do Estado (SEMERARO, 1999: 116).
20
família significa “[...] o aparecimento de pessoas
independentes e reconhecidas como tais pela sua maioridade, bem como de uma
multiplicidade de novas famílias a serem constituídas. A inter-relação se faz então necessária
para a realização de interesses e satisfação das necessidades” (WEBER, 1993: 114).
Competiria à sociedade civil, nesse caso, constituir a mediação social da liberdade.
Hegel percebe que a economia moderna não está restrita à esfera familiar, tal como acontecera
desde a Grécia até a alta Idade Média. As novas relações econômicas da modernidade
acontecem além do âmbito estritamente familiar, e de acordo com essa dinâmica, a família é
jogada para além de si mesma. Isso significa que os círculos de sociabilidade se ampliaram,
daí a necessidade de ultrapassar o liame da particularidade ética ditada pela mesma, ou seja,
ultrapassar o estado da aparência circunscrita à esfera familiar rumo à universalidade do
Estado ético. Isso significa que o problema político, para Hegel, ao contrário do que diz
Aristóteles, “não é o da agregação das famílias, mas o da resolução numa totalidade orgânica
dos indivíduos como indivíduos autônomos” (BOBBIO e BOVERO, 1986: 115), que
constituem o primeiro princípio da sociedade civil enquanto fenômeno do ético. Compete à
sociedade civil constituir a mediação social da liberdade. No parágrafo 182 dos PDF, bem
como no adendo ao mesmo, Hegel define a sociedade civil nos seguintes termos,
A pessoa concreta, que como particular fim para si, enquanto ela é um todo de carências e uma mistura
de necessidade natural e de arbitrário é um princípio da sociedade civil, - mas a pessoa particular,
enquanto ela está essencialmente em relação à outra tal particularidade, assim que cada uma se faça
valer e se satisfaça mediada pela outra e, ao mesmo tempo, pura e simplesmente só enquanto mediada
pela forma da universalidade, é o outro princípio. [...] A sociedade civil é a diferença que intervém
entre a família e o Estado, embora a sua formação plena ocorra mais tarde do que a do Estado, pois,
como diferença, ela pressupõe o Estado, que ela, para existir, tem de ter diante de si como algo
subsistente por si. A criação da sociedade civil pertence, de resto, ao mundo moderno, que, pela
primeira vez, faz justiça a todas as determinações da Idéia (HEGEL, PDF, § 182).
Portanto, dois princípios norteiam a definição hegeliana de sociedade civil. O primeiro
é a pessoa concreta na sua particularidade (sistema da atomística), o sujeito de interesses. O
segundo momento é o da universalidade representada na relação estabelecida, inicialmente,
entre as particularidades, num contexto social dado. Nesse sentido, a sociedade civil é o
estado exterior das necessidades: "campo de batalha do interesse privado individual de todos
contra todos" (HEGEL, PFD, 115). Tal fórmula nos remete à idéia hobbesiana da guerra de
21
todos contra todos, instaurado no estado de natureza,
com o diferencial de que Hegel a situa no campo da sociedade civil burguesa, e não no
suposto estado de natureza, contra o qual dirigiu inúmeras críticas
10
. Hegel apresenta-se como
divisor no campo da filosofia política moderna, traçando a “distinção atribuída à realidade
histórica dos tempos modernos entre o bourgeois e o citoyen, entre a sociedade civil burguesa
e o Estado” (RAMOS, 2000: 157).
O bourgeois distingue o indivíduo como membro da eticidade na qual ele se afirma como sujeito livre,
e na qual ele realiza a satisfação das suas necessidades socialmente mediadas e reciprocamente
determinadas segundo os mútuos carecimentos e segundo a divisão social do trabalho. Já o citoyen
traduz o estatuto político do indivíduo enquanto membro do Estado [...]. Na época moderna emerge o
indivíduo 'civil', isto é, o sujeito constituído por uma sociabilidade que não é mais nem doméstica e nem
da civitas, mas simplesmente da sociedade civil (RAMOS, 2000: 158-159).
Se a sociedade civil é o campo no qual todos disputam seus interesses particulares,
como conciliar tanto interesse em jogo com os interesses da coletividade? A percepção
política de Hegel capta a tensão, na modernidade, entre Estado e sociedade, público e privado,
cidadão e burguês, paixão e razão, vida política e vida social, particularidade e
universalidade. Para Hegel, está em questão a tarefa da passagem da necessidade para a
liberdade, da contingência para a necessidade, ou, ainda, da particularidade para a
universalidade. Mas enquanto estado exterior, a sociedade civil não pode realizar sozinha essa
tarefa, pois é uma “universalização parcial” (WEBER, 1993: 117).
De resto, a bürgerliche Gesellschaft é resultante desse novo momento histórico,
denominado mundo moderno, adequado às relações social-econômicas distintas da esfera do
Estado, locus privilegiado do político (RAMOS, 2000: 163), cuja estrutura apresenta a
seguinte relação: por um lado, “cada um é um fim para si, tudo que é outro nada representa a
seus olhos”. Mas, por outro lado, "sem relação com outros, não pode atingir todos os seus fins
em toda a sua extensão" (WEBER, 1993: 62-63). O bem próprio ou de cada um, só avança na
10
Hegel faz um duplo deslocamento ao conceito de sociedade civil. Em primeiro lugar, "a sociedade civil não é
a totalidade política, é burguesa, isto é, econômica [...] é ao político que cabe dar norma e fundamento ao
econômico, e não o inverso. A economia não pode usurpar o Universal”. Em segundo lugar, “opor a
sociedade civil política ao 'estado de natureza' numa problemática da origem do facto social e da autoridade é
ocultar o caráter histórico do aparecimento da economia moderna, é justificá-la sub aeternitatis situando-a nos
começos míticos da história" (LEFEBVRE & MACHEREY, 1999).
22
medida em que o interesse particular é limitado pela
universalidade, pois a convivência constitui-se no parâmetro da vivência. Nesse sentido, o
quadro de orientação da teoria da sociedade civil “não é o contrato, o acordo de indivíduos
racionais, caracterizado pelo falar e pelo agir, mas o 'sistema das necessidades'”. E essa
relação recíproca, concebida por Hegel “dialeticamente”, entre objetivos privados e públicos
como base de um “nexo social”, “já havia sido refletida na filosofia moral anglo-escocesa
(Hume, Smith, Ferguson)” (RIEDEL, 1977: 50-51).
2.2. O trabalho abstrato
No § 188 dos PFD, Hegel anuncia os três momentos constitutivos da sociedade civil,
A) A mediação da carência e a satisfação do singular pelo seu trabalho e pelo trabalho e pela satisfação
das carências de todos os demais, o sistema das carências. B) A realidade efetiva do universal da
liberdade aí contido, a proteção da propriedade pela administração da justiça. C) A prevenção contra a
contingência que resta nesses sistemas e o cuidado do interesse particular como algo de comum pela
polícia e pela corporação
11
.
Na descrição do primeiro momento, Hegel evidencia a crítica dirigida aos
fundamentos do liberalismo clássico, para o qual o indivíduo se bastaria a si mesmo na
satisfação das suas carências, desvinculado de qualquer relação social de produção. Na
contracorrente da concepção liberal que concebe a liberdade do outro como limite da sua,
Hegel parece evidenciar que só tem sentido falar de liberdade enquanto relação, já presente
no plano da satisfação das necessidades naturais, as quais dependem das relações sociais, da
relação estabelecida com o outro mediante o desempenho das operações laborais. Isso
significa que a satisfação da multiplicidade das necessidades envolvidas numa dada sociedade
11
O momento da sociedade civil-burguesa, denominado sistema das necessidades (Das Sistem der Bedürfnisse),
pode ser resumido nos seguintes pontos, “(1) a ênfase no trabalho como categoria filosófico-econômica que
especifica uma nova forma de produção de bens e de relação social; 2) a racionalização (abstração) do
processo produtivo geral que inclui a abstração do próprio trabalho, das necessidades humanas e das relações
sociais; 3) a necessidade psicológica de diferenciação social dos outros indivíduos em função da posse ou do
consumo de bens diferenciados; 4) a noção de que a busca do interesse individual dos membros da sociedade
converte-se, no conjunto, na realização das necessidades sociais coletivas; 5) o princípio da liberdade
econômica como elemento gerador da desigualdade da riqueza" (RAMOS, 2000: 175).
23
implica numa "relação de dependência universal"
(WEBER, 1993: 118), embora Hegel deixe claro que esta liberdade esteja relacionada à
defesa da propriedade privada, portanto “como um atributo do indivíduo, isto é, como um
direito subjetivo” (RAMOS, 2000:8).
A questão central é a de como passar da dependência pessoal àquela impessoal da
sociedade civil. Essa forma de universalidade proveniente da satisfação das carências traduz-
se num jogo de mão dupla: os outros são meio para satisfazer minhas necessidades, mas os
outros também satisfazem suas carências através do meu trabalho. Assim, ao satisfazer
minhas carências, as satisfaço mediante o trabalho de outro também, isto é, mediante o
trabalho social. Nesse sentido, o que caracteriza a sociedade civil enquanto campo da
eticidade é a mediação. A satisfação de minhas carências não depende única e exclusivamente
de mim. É por intermédio do trabalho dos outros que consigo satisfazer minhas necessidades.
Disso resulta também que “a necessidade não pode mais ser satisfeita imediatamente, de
maneira simplesmente natural; enquanto necessidade social, ela requer a mediação do
trabalho”
12
.
Se a família se caracteriza como lei do instinto e da paixão, a sociedade civil, por sua
vez, enquanto mediadora desses instintos, se constitui em lei do trabalho, lei do intelecto. A
sociedade civil se revela como o momento no qual a eticidade se dissolve, para recompor-se
em uma multiplicidade infinita de indivíduos; é o cenário da ação do intelecto, “que cumpre o
seu trabalho dividindo o que estava unido no instante originário”, mas ao mesmo tempo
“prepara, graças a uma universalidade ocultamente unificadora, a fatigante recomposição da
unidade e da obra da razão” (MARINI, 1979: 62).
No jogo da transposição da individualidade para a universalidade, a razão universal se
utiliza daquilo que Hegel chama de "astúcias", colocando as inclinações das paixões a serviço
do desenvolvimento do Espírito,
colocando cada membro da sociedade civil para além de algo
12
Nesta dependência e reciprocidade do trabalho e da satisfação das carências, “o egoísmo subjetivo converte-se
na contribuição para a satisfação das carências de todos os outros, isto é, na mediação do particular pelo
universal como movimento dialético, de forma que, na medida em que cada um adquire, produz e frui para si
mesmo, produz e adquire para a fruição de todos os outros. Esta necessidade, que consiste no encadeamento
omnilateral da dependência de todos, é para cada uma a riqueza universal e duradoura que contém para ele a
possibilidade de nela participar[...]” (LEFEBVRE & MACHEREY: 1999: 41-42).
24
que os ultrapasse, inserindo-os num sistema social
global. Como a natureza não está finalizada no homem, o papel da astúcia humana consiste
em “substituir progressivamente as forças naturais com as forças do homem” (BODEI, 1997:
69-74). Mas, a astúcia humana, que “nas suas relações com a natureza se havia mostrado
como aceitação de uma base natural última imodificável”, vê-se agora também “astutamente
lubridiada por uma entidade superior aos indivíduos, por uma astúcia ainda maior, que é o
resultado da imperfeita subserviência da natureza e da vingança desta
13
. Através das suas
“astúcias”, a razão, elemento não ativo da história, se serve das paixões para colocar-se como
“força dialética da inversão e da retorsão, o elemento mais fraco que caçoa do mais forte,
colocando as paixões umas contra as outras e provocando a sua eliminação e o surgimento de
algo que não estava previsto” (BODEI, 1977: 74)
14
.
A concepção de trabalho em Hegel e sua conseqüente divisão exercem um papel
fundamental na dialética entre as paixões e a razão. Sua importância reside essencialmente na
relação com a filosofia da consciência e com o valor pedagógico inerentes ao processo
laboral, já que esse processo implica sempre uma “determinação social” (RAMOS, 2000, P.
178), isto é, tal processo laboral é socializado "na medida em que é cindido entre ramos
distintos de atividades, que estão em relação recíproca no interior desse conjunto
diversificado" (LEFEBVRE & MACHEREY, 1999: 45), denominado sociedade. Para Hegel,
o universal e objetivo no trabalho reside na abstração,
que efetua a especificação dos meios e das carências e, precisamente com isso, especifica a produção e
produz a divisão dos trabalhos. Pela divisão o trabalho do singular torna-se mais simples e graças a isso
torna-se maior a sua habilidade no trabalho abstrato, bem como o conjunto das sua produções.
Ao mesmo tempo, ainda segundo Hegel,
13
“[...]sostituire progressivamente le forze della natura a quelle dell'uomo [...] nei suoi rapporti con la natura si
era mostrata come accettazione di una base naturale ultima immodificabile [...] viene a essere anch'essa
astutamente beffata da unicità superiore ai singoli, da un'astuzia a maggior esponente ancora, che è la
risultante dell'imperfetto asservimento della natura e della vendetta di quest'ultima”.
14
“[...] forza dialettica dell'inversione e della ritorsione, l'elemento piú debole che prende in giro il piú forte,
ponendo le passioni l'una contro l'altra e provocandone l'elisione reciproca e il sorgere di qualcosa che non era
previsto”.
25
essa abstração da habilidade e do meio tornam completas
até [serem] uma necessidade total a dependência e a relação recíproca entre homens em vista da
satisfação das demais carências. A abstração do produzir torna o trabalho, além disso, sempre mais
mecânico e, com isso, ao fim, apto para que o homem dele se retire e a máquina possa entrar em seu
lugar” (HEGEL, PFD, § 198).
Vemos aqui que a divisão do trabalho em Hegel equivale à abstração do mesmo, o
que, por sua vez, contribui para o processo da mecanização de produção moderna. A
abstração, racionalização ou mecanicismo são elementos que tornam possível a organização
coletiva do trabalho nas fábricas e indústrias da modernidade. Quiçá os exemplos fornecidos
por Hegel no adendo ao § 198 sejam mais esclarecedores a esse respeito. Ali, Hegel diz que
um relógio e uma toalha são um “composto”. Ou seja, no caso da fabricação de tais objetos
concretos, é necessário empregar múltiplas atividades singulares, atividades essas presentes
também na fabricação de um insignificante alfinete. Contudo, diz Hegel, mesmo no caso do
alfinete, “existem nele múltiplas determinações”. Ora, essas determinações do concreto são
tratadas abstratamente, de sorte que “uma quantidade de trabalhos pode produzir mais
produtos da mesma espécie do que se cada um só tomasse uma parte singular abstrata
enquanto objeto” (HEGEL, PFD, adendo ao § 198). Conseqüência dessa modalidade abstrata
do trabalho, segundo Hegel, é que o trabalho se torna mais simples, mas ao mesmo tempo
provoca aumento de produção, conseqüentemente, os homens que trabalham sob esse novo
paradigma, se tornam mais ligados, mais unidos por laços rigorosos, sem que isso signifique
falta de percepção de Hegel em relação aos problemas que esse processo de produção
mecânica possa causar à vida dos trabalhadores. Ao contrário, “esses trabalhadores se
embotam, eles estão ligados a uma tarefa e estão, assim, à beira do abismo; por outro lado, o
seu espírito se degrada” (HEGEL, PFD, § 198). A máquina, na aguçada percepção de Hegel,
poderia entrar no lugar do homem. Hegel antecipa de certa forma, a crítica de Marx ao
processo de alienação na vida dos trabalhadores resultante do modo de produção capitalista.
Assim, a sociedade civil inclui não só as corporações do trabalho, “mas também todas as
instituições da sociedade capitalista que organizam o trabalho abstrato. [...] a sociedade civil é
a sociedade da organização do trabalho abstrato” (HARDT, 2001: 3).
Vimos que a família enquanto instituição social constitui a primeira base da sociedade,
mas insuficiente, por si só, para tirar os seus membros da condição de átomos. O mundo do
26
trabalho e da economia na esfera da sociedade civil
parece, por sua vez, conter essa promessa de elevar os indivíduos para além da sua condição
de particularidade, apesar dos inevitáveis conflitos, do acúmulo de riquezas, da multiplicação
de desejos e de luxos, das desigualdades e misérias advindas desse composto social. De modo
que, na sua realização efetiva, o fim egoísta, condicionado pela universalidade,
funda um sistema de dependência omnilateral, tal que a subsistência e o bem-próprio do singular, bem
como o seu ser-aí jurídico, estão entrelaçados com a subsistência, o bem próprio e o direito de todos,
estão fundados nestes e só nesta conexão são efetivamente reais e assegurados. Pode-se encarar esse
sistema, num primeiro momento, como o Estado externo, - o Estado de necessidade constringente e do
entendimento (HEGEL, PFD, § 183).
Isto é, estamos, ainda, no âmbito do Estado externo, da sociedade civil baseada no
intelecto. Resumidamente, podemos dizer que apesar de a sociedade civil configurar-se como
esfera que tende a ampliar os interesses egoístas e da expansão desses mesmos interesses,
mesmo assim, Hegel tende a expor a política não só em termos de força, mas também de
consenso, de hegemonia. Ou seja, não descarta as instituições presentes na sociedade civil
enquanto instituições mediadoras de conflitos. Nesse sentido, a relação educação e Estado é
evidente, o que nos possibilita desde já aproximar Gramsci do Hegel invocado nos Cadernos
do cárcere.
As distintas formas de interesses comuns e as distintas formas de organização para a
satisfação das necessidades dão lugar ao que Hegel denomina “diferentes estados [Stände]
sociais”, que se determinam como “estado substancial ou imediato, como estado reflexivo ou
formal e, por fim, como estado universal” (HEGEL, PFD, § 202). Agricultura, indústria e
burocracia estatal correspondem respectivamente aos estados apontados por Hegel, o que
equivale a dizer que estes espaços deixados pela dissolução da família são agora preenchidos
pelas classes (WEBER 1993, p. 120), e, de forma mais especifica, pela administração da
justiça, da policia e das corporações. Pertencer a um destes estamentos equivale, segundo
Hegel, a ter consciência do pertencimento ao mesmo:
Quando dizemos que o homem tem de ser alguma coisa, entendemos que ele deve pertencer a um
estamento determinado; pois essa alguma coisa quer dizer que ele, então, é algo substancial. Um
homem sem estamento é uma mera pessoa privada e não está numa universalidade efetivamente real
(HEGEL, PFD, adendo ao § 207).
27
Portanto, ser membro de uma das classes
descritas da sociedade civil é a condição sine qua non para fazer a mediação com o universal.
Ser cidadão significa, antes de qualquer coisa, ser membro de uma classe ou subordinar-se a
ela. Mas há a possibilidade da recusa à subordinação do indivíduo particular à ordem comum.
Ou seja, não basta que a sociedade estabeleça mecanismos que absorvam o indivíduo em seus
movimentos. É necessário ainda que ela dê a si mesma os meios para obter a adesão de seus
membros, já que as leis econômicas agem por meio dessa cultura que garante que os
indivíduos lhes sejam submetidos: “essa cultura toma primeiramente a forma do direito
próprio da sociedade civil, este sanciona o pertencimento do indivíduo a um 'estado'
determinado e o controla para que ele observe suas regras” (LEFEBVRE & MACHEREY,
1999: 50-51).
Hegel define assim o caráter antagônico da sociedade civil:
A particularidade para si, enquanto ela é, por um lado, a satisfação, se expandindo para todos os lados,
das suas carências, do arbítrio contingente e do capricho subjetivo, destrói nas suas fruições a si mesma
e o seu conceito substancial; por outro lado, enquanto infinitamente excitada e em completa
dependência da contingência externa e do arbítrio, assim como restringida pela da universalidade, a
satisfação da carência, seja ela necessária, seja ela contingente, é [ela própria] contingente. A sociedade
civil oferece, nestas oposições e no seu emaranhamento, o espetáculo simultâneo da extravagância, da
miséria e da corrupção física e moral comum a ambas (HEGEL, PDF, § 185).
Na busca da origem histórica do surgimento do princípio da particularidade, Hegel o
situa no momento em que os Estados antigos entram em processo de decomposição política,
bem antes da descrição platônica do Estado. A filosofia política de Platão já seria uma
tentativa de resposta ao surgimento do princípio da particularidade. Logo, se para Hegel a
sociedade civil define-se essencialmente através do princípio da atomística, significa que a
análise da sociedade civil de sua época é a tentativa de descrever a maneira como o princípio
da particularidade – que é antigo – acontece na modernidade.
Embora seja estabelecido e conhecido o direito, e feito “desaparecer tudo o que há de
contingente no sentimento, na opinião [...]” (HEGEL, PFD, § 211), por si só, o direito não é
condição suficiente para garantir a reconciliação entre o particular e o universal; outras
28
instituições como a administração da justiça, a polícia e
as corporações concorrem para esse objetivo, sobretudo, a polícia
15
, que por intermédio de
suas tarefas de vigilância, de assistência e de educação, tratarão de assegurar a adesão do
particular ao universal. Nas palavras de Hegel, “a inspeção e a prevenção da polícia têm por
fim mediar o indivíduo com a possibilidade universal, que está disponível para alcançar os
fins individuais. Elas têm de prover a iluminação pública, a construção de pontes, a avaliação
e a determinação das carências cotidianas assim como a saúde” (HEGEL, PDF, § 236).
De um lado, a polícia exerce essa gama de atribuições, inclusive a de ser um ponto de
equilíbrio na sociedade para que as singularidades, no afã de ganhar seu pão não atropelem as
necessidades e carências daqueles que não podem fazê-lo, pois os empreendimentos
particulares não devem por em perigo o bem geral, e de outro lado, a corporação tem por
encargo, “obter e fixar o consentimento do indivíduo à pressão que a sociedade exerce sobre
ele”, descrita por Hegel, depois da família, como “a segunda das duas raízes éticas do Estado”
(HEGEL, PDF, § 255). A polícia e a corporação são as duas instituições que podem evitar,
por meio de suas atividades de sociabilidade, o desaparecimento da sociedade civil burguesa,
minada pela formação do “populacho”, da “Klasse” e da tendência ao “colonialismo”.
2.3. O “Divino” Sobre a Terra
O jogo dialético de Hegel parece ter conciliado conceitualmente as contradições
inevitáveis da sociedade civil que comprometem a unidade do corpo social, subsumindo-as no
Estado, essa “razão em atos” que procura operar uma “profunda transformação daqueles que
encarnam a soberania estatal, isto é, os governantes” (CHÂTELET, 1994: 130).
Até aqui, a sociedade civil aparece para Hegel como essa dimensão contraditória, “a
partir da qual se põe o problema da relação entre indivíduo e estado, entre autonomia dos
privados e poder do organismo político” (BOVERO & BOBBIO, 1986: 124). Isso indica, por
15
Foucault (2003: 378-79) lembra que os autores dos séc. XVII e XVII entendem por "polícia" algo bastante
diferente do que nós compreendemos com este termo. Por "polícia", segue Foucault, "eles não entendem uma
instituição ou um mecanismo funcionando no seio do Estado, mas uma técnica do governo própria ao Estado,
domínios, técnicas, objetivos que apelam à intervenção do Estado".
29
sua vez, que a sociedade civil não parece ter ido além de
um atomismo social
16
, esfera onde prevalecem, sobretudo, os interesses não universalizáveis.
Até aqui, o indivíduo, mesmo no afã da satisfação de suas necessidades, age igualmente com
outrem e para outrem. Mas, segundo Hegel, “essa necessidade não consciente não basta, só se
torna vida ética consciente e pensante na corporação”, e mesmo assim, corre-se o risco de
ossificar-se, recolher-se, prossegue Hegel, já que “nos nossos estados modernos os cidadãos
têm somente uma participação restrita nas tarefas universais do Estado”. Por isso é necessário
garantir ao homem ético, afora o seu fim privado, “uma atividade universal” (HEGEL, PFD, §
255). O Estado ético se coloca acima de qualquer interesse particular, caso contrário, as
corporações modernas não apresentariam nenhum diferencial em relação às corporações
feudais, fechadas sobre si mesmas, visando garantir apenas os interesses próprios de
determinadas parcelas da população
17
.
Vimos que a natural dissolução da família é absorvida pela sociedade civil,
introduzindo seus membros, com seus variados interesses, no jogo das mediações promovidas
pelas várias instituições aí existentes; dentre elas, destaquem-se o mundo das relações
trabalhistas e as corporações, que correspondem, por sua vez, ao momento da superação
(Aufhebung) da sociedade civil, e a partir dela, produz-se o Estado, “do qual ela é condição da
existência e antecedente racional” (LEFEBVRE & MACHEREY, 1999: 64). É no Estado, e
não em alguma outra instituição da sociedade civil que se realiza a essência ética, fundamento
da idéia de liberdade.
O Estado, segundo Hegel, teria três funções primordiais: primeiro “tem de cuidar de
que os indivíduos possam se expandir conforme o seu arbítrio”, segundo, “que eles
permaneçam ligados ao Estado”, terceiro, que esse estar-ligado “não lhes apareça como
violência externa, como triste necessidade a que é preciso submeter-se, que esse
16
Sociedade que se deixa guiar tão só por aquilo que Adorno descreve de um lado como “razão instrumental”, e
por outro, Habermas a descreve como “razão funcionalista”.
17
No § 256 dos PDF, Hegel conclui, “O fim da corporação como fim limitado e finito tem a sua verdade – do
mesmo modo que a separação que encontramos na organização exterior da polícia e sua identidade relativa –
no fim universal em si e por si e na realidade efetiva deste; daí a passagem da esfera da sociedade civil
burguesa ao Estado”.
30
discernimento se reconcilie com essa ligação e não
reconheça o estar ligado como uma cadeia, mas como necessidade ética superior” (HEGEL,
PDF, adendo ao § 185, grifo meu).
A passagem acima pode nos ajudar na desautorização de uma leitura apressada dos
princípios políticos de Hegel, no sentido de que ele seria um “conservador”, um inimigo das
sociedades abertas, para lembrarmos Popper. A passagem indica que entre Estado e sociedade
civil existe tensão, captada por Hegel na modernidade e traduzida como necessidade e
contingência, indivíduo e sociedade, ou, ainda, traduzida como a clássica questão posta por
Aristóteles entre o todo e a parte, que segundo interpretação de Hegel, não fora bem
solucionado pelo jusnaturalismo. Em outros termos, a modernidade apresenta a tensão entre
os dois modelos políticos clássicos: de um lado, o modelo de Aristóteles, para o qual “os
indivíduos se encontram desde sempre inscritos em uma ordem social que os conforma”
(BECCHI, 1993: 383). E de outro, o modelo de Hobbes, que mediante o contrato realizado
através de indivíduos isolados, faz surgir a societas civilis
18
. Portanto, Hegel tem diante si, a
tensão entre o sujeito e o Estado. Resta saber se ele a resolve.
Na esfera da eticidade em geral se realiza a união da particularidade e universalidade
(MARINI, 1979: 63), e o indivíduo tem consciência dessa união no todo. Mas, isto não
acontece de modo e com intensidade idêntica: “no início existe a união simples da família,
baseada no sentimento; no final a união perfeita do Estado, baseada sobre a razão; no meio a
união da sociedade civil, e que é baseada sobre o intelecto”
19
. O verdadeiro fundamento do
Estado, tal como indica Hegel no § 256 dos PFD, guarda uma relação direta com “esse
desenvolvimento da Sittlichkeit, da ética social imediata, que passa pela cisão da sociedade
civil burguesa e vai até o Estado”. Evidencia-se dessa forma, mais uma vez, a crítica à
concepção contratual da política, cujos princípios procuram definir “a liberdade política ao
18
Ou seja, para Aristóteles, o início era a sociedade e para Hobbes, o indivíduo. “No primeiro caso, o estado
civil deriva de um movimento aberto, gradual, que partindo da família chega à pólis. No segundo, o estado
civil unicamente pode ser conseqüência do abandono do estado de natureza, por conseguinte, da união de
indivíduos originariamente dispersos (BECCHI, 1993: 383).
19
“V'è all'inizio l'unione semplice della famiglia, basata sul sentimento; v'è alla fine l'unione compiuta dello
stato, basata sulla ragione; nel mezzo sta l'unione che è propria della società civile, e che è basata
sull'intelletto”.
31
ato de decisão da vontade individual, ela revela-se
incapaz de dar um conteúdo concreto a seu conceito e se fecha na abstração” (LEFEBVRE §
MACHEREY, 1999: 71). Ou seja, o princípio do Estado é a vontade, mas não a vontade
individual. “O Estado é o racional em si e para si [...] uma finalidade própria, imutável e
absoluta”, de acordo com Hegel no § 258. Isso significa que o Estado é a forma acabada,
completa, perfeita daquela sociabilidade que tem início no âmbito dos sentimentos (família) e
do entendimento (sociedade civil), constituindo o resultado de todo o processo do direito e da
eticidade.
Certamente que Hegel, nessa versão da sociedade civil, descreve e analisa a sociedade
burguesa de sua época, porém isto não é tudo, e tampouco seria o arremate de sua filosofia:
acima desta sociedade funcionalista existe o Estado e acima deste está outra, a saber, a
sociedade civil que aparece como absolutamente racional. Ou seja, assim como ninguém
parece ser uma ilha, e assim como o indivíduo não pode girar em torno dele mesmo, da
mesma forma, o Estado descrito por Hegel não gira em torno de si mesmo
20
, pois há algo que
o ultrapassa dentro do sistema. O Estado é o remate do espírito objetivo, mas acima dele está
o espírito absoluto. Em Hegel, a sociedade civil não é reduzida a simples sistema das
necessidades, ou momento das atividades econômicas dos homens, “mas é também o sistema
através do qual o homem, graças ao intelecto e ao trabalho, se eleva à cultura, a Bildung, à
civilização” (MARINI, 1979: 80). Na tensão entre a parte e o todo, Hegel percebe claramente
os limites e as contradições desse individualismo requisitado pela modernidade de forma
exacerbada.
Aqui, podemos apontar, desde já, a proximidade da visão de Gramsci sobre a
sociedade civil e o Estado com a perspectiva hegeliana, de quem se diz herdeiro. Mas, a
complexidade e a riqueza desses conceitos parecem se diluir em Marx. O jovem Hegel seria
um fervoroso nostálgico da “bela totalidade” helênica
21
, mudando de intenção nas obras da
20
“Os Estados como tais são independentes uns dos outros, e a relação entre eles só pode, portanto, ser exterior,
de modo que tem que existir acima deles um terceiro [elemento] que os vincule. Esse terceiro é o espírito que
se dá realidade efetiva na história mundial e constitui o juiz absoluto sobre eles” (HEGEL, PFD, § 259).
21
O “retorno” aos gregos não significaria a recuperação da pólis, mas recuperação do “princípio ético da
organicidade do Estado, da prioridade da vida política sobre a vida privada” (RAMOS, 2000: 213).
32
maturidade. Nesse sentido, a Filosofia do Direito não
pretenderia mais fazer a apologia da eticidade substancial dos gregos. Pelo contrário, “ela
quer a Aufhebung dessa eticidade na incorporação do princípio auto-referente da liberdade
subjetiva dos modernos”. Coloca-se o problema dessa maneira: se a vida orgânica implica a
unidade do organismo, “a subsistência desse organismo depende, também, da expansão e
relativa autonomia das partes [...]. Excluído da relação com a universalidade, o indivíduo
inexiste, assim como o singular sem a articulação com o conceito revela-se pura vacuidade”
(RAMOS, 2000: 210-217). Ora, entre a “parte” e o “todo” há complemento e não pura
repressão, força e intervenção desmedida por parte do “todo”. A interferência do estado só se
justificaria na medida em que o indivíduo tenda a sucumbir-se em função de sua existência
sócio-econômica desenfreada.
Essa tensão entre “parte” e “todo” tão freqüente na filosofia política de Hegel é a
mesma tensão entre a sociedade civil e burguesa e a vida política, e tem uma história
(HYPPOLITE, 1965: 138). Enuncia, na verdade, o dualismo que Hegel sempre tenta superar,
ou seja, “o dualismo do homem privado, do burguês – imerso na particularidade da própria
vida – e do cidadão que encontrou a parte eterna de si mesmo na cidade, na qual a vontade se
identifica com a vontade comum
22
. Identificação imediata, por sua vez, que se perdeu no
mundo moderno em função da predominância do bourgeois sobre o citoyen. A mesma tensão
aparece na nossa época quando se procura a “conciliação entre o liberalismo e o socialismo,
entre a liberdade individual e a unidade da vontade geral” (HYPPOLITE, 1965: 140).
Ao seguirmos as críticas de Marx a Hegel, veremos que aquele busca sustentar que a
síntese hegeliana se mantém só na medida em que camufla o jogo de interesses entre as duas
instâncias da sociedade. Na perspectiva de Marx, a sociedade civil daria a chave para a
anatomia da sociedade política, reduzida aquela a campo de intercâmbios comerciais,
determinada, por sua vez, pela produção material
23
. Marx teria resolvido a tensão delineada
22
“[...] il dualismo dell'uomo privato, del borghese – immerso nella particolarità della propria vita – e del
cittadino che ha trovato la parte eterna di se stesso nella Città, la cui volontà si identifica alla volontà comune”.
23
É importante deixar claro aqui, em concordância com Mészáros (1993: 149) que acentuar a originalidade
exemplar da abordagem marxiana não deve ser motivo para minimizar a enorme importância filosófica de
Hegel, “Tentar uma demonstração da validade das soluções de Marx apenas em termos de oposição a Hegel
distorce e subestima, inutilmente, não só a importância histórica da filosofia hegeliana, como também a real
33
por Hegel? Bobbio interpreta que, diante da tradição
jusnaturalista, a filosofia hegeliana expressa dissolução e culminação, e, a propósito de Marx,
afirma que sua concepção da relação sociedade/Estado se coloca em face da concepção
hegeliana como culminação e dissolução, sendo que a culminação “leva às extremas
conseqüências, a distinção entre o social e o político” teorizada por Hegel como traço
característico da sociedade civil moderna; e “dissolução na medida em que o resultado
interpretativo a que leva o modelo modificado e radicalizado é oposto, concluindo-se não na
justificação, mas na desmistificação racional do Estado” (BOBBIO e BOVERO, 1986: 110).
Resta-nos, então, seguir o pensamento de Marx para sabermos até que ponto a crítica
apresentada empobrece ou enriquece a complexa descrição de Hegel da sociedade civil e do
Estado, e, em que sentido responde à tensão entre o bourgeois e o citoyen delineada por
Hegel.
3. Marx e a dessacralização do estado
Marx, embora tenha em comum com Hegel a crítica ao jusnaturalismo, vê a sociedade
civil como campo no qual se dão essencialmente as relações econômicas, e em conseqüência,
campo por excelência dos conflitos de classes advindos dessas relações. Embora procure se
apresentar como instituição “neutra”, na visão de Marx, o Estado representa, na realidade dos
fatos sociais, os interesses da classe economicamente hegemônica. A anatomia da economia
política, segundo Marx, tem sua base na sociedade civil. Com "mãos de ferro", o Estado
exerce o poder em nome da classe hegemônica no campo das relações econômicas.
extensão do próprio discurso de Marx, tornando-o profundamente dependente da problemática teórica de seu
34
Se para Hegel, o Estado representa o “divino na
terra”, para Marx, esse aparelho que resulta da divisão de classes é uma esfera eminentemente
repressora. Onde Hegel vê eticidade, Marx vê força, e tal aparelho repressor existirá enquanto
a dualidade de classes imperar nas relações sociais. O socialismo é a promessa do
desaparecimento da dualidade de classes, conseqüentemente, o Estado não teria mais razão de
ser em tal sociedade. O Estado desapareceria! Marx procura não só descrever "o que é" assim
como "o deve ser", e a filosofia teria a função de dizer o futuro também, função que Hegel
teria evitado, tal como parece transparecer em seu realismo político.
No primeiro parágrafo da Introdução da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel,
Marx diz que no caso da Alemanha, a Crítica da religião chegou, no essencial, a seu fim, e “a
crítica da religião é o pressuposto de toda a crítica. [...] O homem é o mundo do homem, o
Estado, a sociedade” (MARX, 2005: 145)
24
. Essa afirmação é emblemática por dois motivos:
primeiro porque reconhece o trabalho teórico de Feuerbach, denunciando a alienação
religiosa, e em segundo lugar, porque essas críticas religiosas contêm em germe os
pressupostos para estendê-la ao campo da política, o que permitirá a Marx, por seu turno,
converter a crítica do céu na crítica da terra, evidenciando, assim, sua concepção de filosofia:
“a tarefa imediata da filosofia, que está a serviço da história, é desmascarar a auto-alienação
humana nas suas formas não sagradas, agora que ela foi desmascarada na sua forma
sagrada”, transformando a crítica da religião na crítica do direito, “a crítica da teologia na
crítica da política” (MARX, 2005: 146). Marx reconhece em Hegel a percepção de procurar
verter o presente alemão através do pensamento, com a ressalva de que em política, diz Marx,
“os alemães pensaram o que outros povos fizeram. A Alemanha foi a sua consciência
teórica” (MARX, 2005: 151).
Na visão de Marx, o problema resultante da análise conceitual realizada por Hegel
referente ao Estado moderno seria a abstração do homem real, e “o status quo do sistema
político Alemão exprime a consumação do ancien régime, o cumprimento do espinho na
grande predecessor”.
24
Doravante abreviada como CDFDH.
35
carne do Estado moderno” (MARX, 2005: 151). Marx
se pergunta se existe ou não, na Alemanha, a possibilidade positiva de emancipação. Uma
resposta positiva ao problema estaria, segundo Marx,
Na formação de uma classe que tenha cadeias radicais, de uma classe na sociedade civil que não seja
uma classe da sociedade civil, de um estamento que seja a dissolução de todos os estamentos, de uma
esfera que possua caráter universal porque seus sofrimentos são universais e que não exige uma
reparação particular porque o mal que lhe é feito não é um mal particular, mas o mal em geral, que já
não possa exigir um título histórico, mas apenas o título humano; de uma esfera que não se oponha a
conseqüências particulares, mas que se oponha totalmente aos pressupostos do sistema político alemão;
por fim, de uma esfera que não pode emancipar-se a si mesma nem se emancipar de todas as outras
esferas da sociedade sem emancipá-las a todas – o que é, em suma, a perda total da humanidade,
portanto, só pode redimir-se a si mesma por uma redenção total do homem. A dissolução da sociedade,
como classe particular, é o proletariado (MARX, 2005: 155-156).
Na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Marx interpreta o parágrafo 262 dos PDF
de Hegel
25
, afirmando que o que serve de mediação para a relação entre o Estado, a família e
a sociedade civil são as circunstâncias, o arbítrio e a escolha própria da determinação, e que,
A razão do Estado nada tem a ver, portanto, com a divisão da matéria do Estado em família e sociedade
civil. O Estado provém delas de um modo inconsciente e arbitrário. Família e sociedade civil aparecem
como o escuro fundo natural donde se acende a luz do Estado. Sob a matéria do estado estão as funções
do estado, bem entendido, família e sociedade civil, na medida em que elas formam partes do Estado,
em que participam do estado como tal. [...] A família e a sociedade civil são apreendidas como esferas
conceituais do Estado (MARX, 2005: 29).
É nesse lugar, segundo Marx, que aparece o misticismo lógico, panteísta hegeliano.
Ou seja, a especulação hegeliana apresenta a família e a sociedade civil como momentos
secundários em relação ao Estado. Marx coloca em evidência não só a família e a sociedade
civil na composição do Estado, bem como as coloca como “força motriz”, fazendo a si
mesmas Estado. Mais uma vez, a especulação hegeliana mostra, segundo Marx, que
O sujeito é, aqui, ‘a necessidade na realidade’, a ‘Idéia em si mesma’; o predicado é a disposição
política e a constituição política. Em linguagem clara: a disposição política é a substância subjetiva do
25
“A Ideía efetivamente real, o espírito que se divide a si próprio, como em sua finitude, nas duas esferas ideais
do seu conceito, a família e a sociedade civil-burguesa, a fim de ser, a partir da idealidae dessas esferas,
espírito real-efetivo infinito para si, reparte nessas esferas o material da sua realidade efetiva finita, os
indivíduos enquanto multidão, de modo que essa repartição aparece, no singular, mediada pelas
circunstâncias, pelo arbítrio e pela escolha própria da sua destinação” (HEGEL, PDF, § 262).
36
Estado e a constituição política sua substância objetiva. O
desenvolvimento lógico da família e da sociedade civil no Estado é, portanto, pura aparência, pois não
se desenvolve como a disposição familiar, a disposição social; a instituição da família e as instituições
sociais como tais se relacionam com a disposição política e com a constituição política e com elas
coincidem. O importante é que Hegel, por toda parte, faz da Idéia o sujeito e do sujeito propriamente
dito, assim como da ‘disposição política’, faz o predicado. O desenvolvimento prossegue, contudo,
sempre do lado do predicado (MARX, 2005: 32, grifos do autor).
Por conseguinte, “a condição torna-se o condicionado, o determinante torna-se
determinado, o produtor é posto como o produto de seu produto" (MARX, 2005: 30-31). Mais
adiante, Marx procura evidenciar nas suas críticas a inversão das proposições hegelianas,
reivindicando ao Estado a função de predicado e a família e a sociedade civil o papel de
sujeitos da história, colocando em questão, dessa maneira, a suposta harmonia do sistema
hegeliano, o qual procura ver no Estado o elemento conciliador das desarmonias e conflitos
resultantes da sociedade moderna. O fato, diz Marx, é que “o Estado se produz a partir da
multidão, tal como ela existe na forma dos membros da família e dos membros da sociedade
civil”. Mas, a especulação hegeliana apresenta esse fato como uma “Idéia subjetiva e do
próprio fato diferenciada” (MARX, 2005: 31). Isto é, o caminho trilhado por Hegel para
chegar à idéia de Estado parece tê-lo levado a uma rota que parece dispensar a multidão (a
família e a sociedade civil) enquanto locus constitutivo da política. Nas palavras de Marx, “a
alma dos objetos”, no caso presente, do Estado, “está pronta, predestinada antes de seu corpo,
que não é propriamente mais do que aparência”, registrados, na ‘Santa Casa’ da lógica
“(MARX, 2005: 36)”.
O que temos até aqui? De um lado, o reconhecimento da parte de Marx de que o mais
profundo em Hegel é que “ele percebe a separação da sociedade civil e da sociedade política
como uma contradição”. E de outro, o mesmo Hegel se “contenta com a aparência dessa
solução e a faz passar pela coisa mesma". [...] Hegel não teria focalizado “a controvérsia entre
constituição representativa e a constituição estamental (MARX, 2005: 93-98). Essa separação
e duplicação de significados dos estamentos, não ocorrera, segundo Marx, ”enquanto a
organização da sociedade civil era política ou o Estado político era a sociedade civil”
(MARX, 2005: 99), ou seja, não significavam uma coisa no mundo social e outra no mundo
político. A Constituição estamental visaria combater o dualismo entre sociedade civil e
Estado, jogando o homem dilacerado da modernidade para além de si mesmo.
37
Mas, onde estaria situada a crítica de Marx a
Hegel? Estaria situada nessa passagem apontada por Hegel entre a sociedade civil (estamento
privado) e a atividade legislativo-estamental, segundo Marx. Essa passagem ou ato político
em Hegel, aos olhos de Marx, é “uma completa transubstanciação” (idem. p. 94), não uma
transição gradual. Marx debate-se aí contra esse ser fantasmagórico, abstrato, “como se o
povo não fosse o Estado real! O Estado é o abstrato. Somente o povo é o concreto” (MARX,
1968, p. 38). Com essa postulação, Marx visaria combater a defesa hegeliana da monarquia:
“Soberania do monarca ou soberania do povo: eis aqui o dilema” (idem. p. 39). Se para
Feuerbach o cristianismo é o enigma revelado de todas as religiões e para Hegel a monarquia
revela a essência do Estado, para Marx, a democracia e a essência de toda constituição
revelaria o demos, reconciliaria o homem consigo mesmo.
3.1. O bourgeois e o citoyen
No ensaio A questão judaica (1843), Marx critica o Estado cristão prussiano que
negava aos judeus a igualdade de direitos perante a lei. Suas principais críticas estão
endereçadas ao equívoco de Bruno Bauer que via na negação das manifestações religiosas do
judaísmo a condição para a emancipação política dos judeus. O erro de Bauer reside em
concentrar sua crítica “somente no 'Estado cristão', ao invés de ampliá-la para o 'Estado em
geral'. Bauer não investiga a relação entre a emancipação política e a emancipação humana”
(MARX, 2002: 18).
Bauer parece não haver percebido a irreconciliável oposição entre Estado e sociedade
civil, surgida após a Revolução Francesa, fruto da emancipação da sociedade burguesa frente
à política. Por isso, segundo Marx, na Alemanha, onde não existe um Estado político, a
questão judaica é uma questão puramente teológica e a crítica de Bauer não ultrapassa os
umbrais da teologia. Algo diferente acontece na França e na América do Norte, onde o Estado
se comporta politicamente, sem as amarras religiosas. Melhor, nesses lugares, segundo Marx,
já ocorreu uma emancipação política acabada ante a religião, não a suprimindo do campo
civil, mas situando-a no seu devido lugar. Nesse caso, a emancipação do judeu, do cristão e
do homem religioso em geral, é a emancipação do Estado do judaísmo, do cristianismo, e em
38
geral da religião.
O que Bauer não parece perceber, segundo Marx, é essa antítese entre o interesse geral
e o interesse privado, “o divórcio entre o Estado político e a sociedade burguesa” (MARX,
2005: 24). Marx contrapõe-se à solução dada à questão judaica por Bruno Bauer, pois não é
suficiente uma emancipação meramente política dos judeus, amplamente apoiada pelo Estado.
Para além da emancipação política está a emancipação humana, segundo Marx. Uma vez que
os judeus tenham se emancipado politicamente, Marx se pergunta se os mesmos podem obter
os chamados direitos humanos? Segundo Marx, Bauer nega tal possibilidade, já que em nome
dos direitos gerais do homem, o judeu tem que sacrificar o “privilégio da fé”. Ao criticar essa
posição de Bauer, Marx lança uma cerrada crítica aos Direitos do Homem proclamados pela
Revolução Francesa, afirmando que,
Nenhum dos chamados direito humanos ultrapassa, portanto, o egoísmo do homem, do homem como
membro da sociedade burguesa, isto é, do indivíduo voltado para si mesmo, para seu interesse
particular, em sua arbitrariedade privada e dissociada da comunidade. Longe de conceber ao homem
como ser genérico, estes direitos, pelo contrário, fazem da própria vida genérica, da sociedade, um
marco exterior aos indivíduos, uma limitação de sua independência primitiva. O único nexo que os
mantém em coesão é a necessidade natural, a necessidade e o interesse particular, a conservação de
suas propriedades e de suas individualidades egoístas (MARX, 2005: 37).
Marx põe de manifesto a contradição entre a prática e a teoria revolucionária
vislumbrada pela burguesia, que coloca a vida política como simples meio, cujo fim é a
própria vida da sociedade burguesa, ficando evidente a primazia do fator econômico em
detrimento do político. Marx traduz a inversão da seguinte forma: o homem real só é
reconhecido sob a forma do indivíduo egoísta (bourgeois); e o verdadeiro homem, só sob a
forma do cidadão abstrato (citoyen). Ademais, a revolução política que derrubou o poder
senhorial medieval, todos os estamentos e corporações, “rompeu com ela, o caráter político da
sociedade civil. Rompeu a sociedade civil em suas partes integrantes mais simples: de um
lado os indivíduos; do outro, os elementos materiais e espirituais que formam o conteúdo de
vida, a situação civil destes indivíduos” (MARX, 2005: 40). Ou seja, a emancipação política,
segundo Marx, promovida pela burguesia, reduz o homem por um lado a membro da
sociedade burguesa, a indivíduo egoísta e, de outro, a cidadão do estado, a pessoa moral. E
como se promove a emancipação humana?
39
Somente quando o homem individual real recupera em si o
cidadão abstrato e se converte como homem individual, em ser genérico, em seu trabalho individual e
em suas relações individuais; somente quando o homem tenha reconhecido e organizado suas forces
progress” como forças sociais e quando, portanto já não separa de si a força social sob a forma de força
política [...] (MARX, 2005: 42).
O que Marx descreve aqui nos faz lembrar novamente a tensão percebida e descrita
por Hegel entre o indivíduo e o todo. Em 1845, nas enunciadas teses sobre Feuerbach, Marx
critica o materialismo contemplativo de Feuerbach e chama a atenção para o fato de que a
teoria materialista “esquece que são precisamente os homens que transformam as
circunstâncias e que o próprio educador precisa ser educado”. Defende na VI tese que “a
essência humana não é algo abstrato inerente a cada indivíduo. É, em sua realidade, o
conjunto das relações sociais”. Na IX tese, enuncia que o máximo a que pode chegar o
materialismo contemplativo é “[...] a contemplação dos indivíduos isolados e da sociedade
civil”. E que o ponto de vista desse antigo materialismo, segundo a X tese, é a “sociedade
civil”; e o ponto de vista do novo materialismo é a “sociedade humana ou a humanidade
socializada” (MARX, 1998: 100-103), tese essa que colocou uma das mais admiráveis
inovações da filosofia marxiana, pois, o conjunto da filosofia burguesa “tratava enquanto
axioma auto-evidente a constituição da sociedade humana como ‘sociedade civil’, fundada no
antagonismo irreconciliável de seus membros individuais”, o que por sua vez afirmava, “com
validade igualmente axiomática, a necessidade inquestionável do estado como gerente
benévolo de antagonismos pré-existentes, e, conseqüentemente, como condição prévia da vida
social enquanto tal” (MÉSZAROS, 1993: 147). O que Marx procura mostrar é exatamente o
caráter de tensão existente entre as esferas, aparentemente separadas, da sociedade civil e do
Estado.
Marx e Engels expõem na Ideologia Alemã a concepção materialista da história,
criticando a visão idealista da mesma. Aí buscam percorrer o caminho inverso trilhado pela
filosofia alemã que procurara descer do céu sobre a terra, para ascender da terra ao céu. A
nova concepção da história,
[...] tem por base o desenvolvimento do processo real da produção, e isso partindo da produção material
de vida imediata; ela concebe a forma dos intercâmbios humanos ligados a esse modo de produção e
por ele engendrados, isto é, a sociedade civil em seus diferentes estágios como sendo o fundamento de
toda a história, o que significa representá-la em sua ação enquanto Estado, bem como em explicar por
ela o conjunto das diversas produções teóricas e das formas da consciência, religião, filosofia, moral,
40
etc. [...] (MARX, 1998: 35, grifo meu).
3.2 O Estado como prolongação do estado de natureza
Importa-nos destacar essa nova perspectiva esboçada por Marx em relação ao conceito
de sociedade civil e de Estado. Para Bobbio não parece haver nenhuma dúvida quanto à
mudança operado por Marx na relação entre sociedade civil e Estado. Bobbio afirma que
Marx representa uma verdadeira ruptura com toda a tradição da filosofia política moderna,
pois enquanto a filosofia da historia dos escritores anteriores até Hegel (e especialmente no
próprio Hegel) caminha para um aperfeiçoamento cada vez maior do Estado, “a filosofia da
história de Marx caminha, ao invés, para a extinção do Estado” (BOBBIO, 2002: 740).
Também neste sentido, Gramsci seria mais hegeliano que marxiano.
Para Marx, com a emancipação da propriedade privada em relação à comunidade, “o
Estado adquiriu uma existência particular ao lado da sociedade civil e fora dela”, e este
Estado não é senão a “organização que os burgueses dão a si mesmos por necessidade, para
garantir reciprocamente sua propriedade e os seus interesses” (MARX, 1998: 74). Na
interpretação de Bobbio, o Estado descrito por Marx não aboliria nem superaria o suposto
estado de natureza, ao contrário, é a prolongação do estado de natureza, isto é o estado de
natureza como estado histórico, ou pré-histórico. Os princípios do projeto político da
sociedade burguesa e do jusnaturalismo são criticados por Marx na seguinte passagem:
Indivíduos produzindo em sociedade – portanto uma produção de indivíduos socialmente determinada,
este é, naturalmente, o ponto de partida. O caçador e pescador individuais e isolados, de que partem
Smith e Ricardo, pertencem às inocentes ficções do século XVIII. São ‘robisonadas’ que não exprimem
de forma alguma, como parecem crer alguns historiadores da civilização, uma simples reação contra os
excessos de requinte e um regresso a um estado de natureza mal compreendido. [...]. Na realidade,
trata-se de uma antecipação da ‘sociedade burguesa’ que vem se preparando desde o século XVI e que,
no século XVIII, caminha a passos de gigante para a sua maturidade [...]. Quanto mais se recua na
história, mais o indivíduo – e, por conseguinte, também o indivíduo produtor – se apresenta num estado
de dependência, membro de um conjunto mais vasto [...]. O homem é, no sentido mais literal, um zôon
politikon, não só um animal sociável, mas um animal que só em sociedade pode isolar-se” (MARX,
1983: 201-202).
41
Marx se aproxima mais uma vez de Hegel na
medida em que lança a crítica contra o jusnaturalismo enquanto modelo de fundamentação
política. Ainda em 1846, em uma carta dirigida a Pável Vasílievich, Marx analisa a Filosofia
da Miséria de Proudhon, criticando-o devido ao hegelianismo superficial, que recorre à razão
universal para explicar o desenvolvimento econômico. Dirige-se a Pável perguntando-se o
que é a sociedade, qualquer que seja sua forma. Responde que é o “produto da ação recíproca
dos homens”. Poderiam os homens escolher livremente esta ou aquela forma social? Nada
disso, responde. Pois a um determinado nível de desenvolvimento das faculdades produtivas
dos homens, corresponde uma determinada forma de comércio e de consumo. A determinadas
fases de desenvolvimento da produção, do comércio, do consumo, “correspondem
determinadas formas de constituição social, uma determinada organização da família, dos
estamentos ou das classes”; ou seja, uma determinada sociedade civil. “A uma determinada
sociedade civil, corresponde uma determinada ordem política, que não é mais que a
expressão oficial da sociedade civil” (Grifo meu).
Contra a concepção de Proudhon de uma “história sagrada, história das idéias”, Marx
pretende falar de uma “história profana”. Para Marx, Proudhon só pode fazer uma crítica
dogmática, compreendera a origem nem o desenvolvimento das instituições sociais como
históricas. O próprio Marx reconhece no Prólogo à Contribuição à Critica da Economia
Política, em 1859, que todas essas reflexões sobre o Estado e a sociedade civil, iniciada com a
revisão crítica da filosofia hegeliana do direito, o levara à conclusão de que não se pode
compreender as relações jurídicas, assim como as forma de Estado por si mesmas,
[...] nem pela dita evolução geral do espírito humano, inserindo-se pelo contrário nas condições
materiais de existência de que Hegel, à semelhança dos ingleses e franceses do século XVIII,
compreende o conjunto pela designação de 'sociedade civil'; por seu lado, a anatomia da sociedade civil
deve ser procurada na economia política (MARX, 1983: 24).
No mesmo texto, Marx formula a tese segundo a qual, “o modo de produção da vida
material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral”
(MARX, 1983: 24). Tal tese daria margem a uma infindável gama de interpretações
economicistas provindas do marxismo, que abusou mais que usou da metáfora arquitetônica
da base e a superestrutura, que conduziu a uma visão dicotômica da sociedade. A este
42
respeito, Bobbio afirma que o Estado em Marx é o
momento secundário em relação à sociedade civil, posição essa que surge desde 1843 e se
manterá ao longo de todo o trajeto teórico de Marx. Mas as obras da maturidade de Marx
apresentam elementos que apontam para uma leitura mais complexa da dicotomia Estado-
sociedade civil. O Marx da maturidade usa o termo “sociedade” ao invés de “sociedade civil”.
Marx critica a dicotomia entre esfera pública e privada, em certa medida “rechaça o
confinamento do político no Estado e do sócio-econômico na sociedade, mostra como poder
(e política) atravessam ambos momentos” (LIGUORI, 2003: 3).
4. Nem com Hegel e Marx, Nem Contra Hegel e Marx
26
Do rol das obras da juventude, quiçá sejam as Glosas críticas o texto através do qual
Marx coloque de forma mais clara a tensão entre Estado e sociedade civil, sobretudo, a tese
de que o Estado e a política devem ser extintos numa sociedade socialista (enunciando ao
mesmo tempo a polarização entre emancipação política e emancipação humana), e a tese de
que o trabalho é o fundamento ontológico do ser social. Em busca da raiz dos males sociais e
seus antídotos, Marx procura desvendar a natureza do Estado e da sociedade civil. Quando o
Estado se ocupa do pauperismo, pode comportar-se de outra forma além de medidas
administrativas e de assistência?
Para Marx, todos os Estados procuram a causa do pauperismo em deficiências
acidentais intencionais da administração, exatamente “porque a administração é a atividade
26
Parafraseando aqui, o título de um livro de Bobbio: “Nem com Marx, nem contra Marx”.
43
organizadora do Estado”. Ora, não se encontram as
causas do pauperismo social exatamente porque o Estado “repousa sobre a contradição entre
vida privada e pública, sobre a contradição entre os interesses gerais e os interesses
particulares” (MARX, 1995: 80). O Estado é o próprio “ordenamento da sociedade [...] O
intelecto político é político exatamente na medida em que pensa dentro dos limites da
política” (MARX, 1995: 81). É o mesmo intelecto político que se cega diante das causas das
misérias sociais. Logo, o próprio Estado não seria, na visão de Marx, potente para alterar as
mazelas sociais reinantes no âmbito da sociedade civil, no caso, a situação dos tecelões
prussianos. Só a revolução social “com alma política” promovida por tais trabalhadores
coloca no epicentro da sociedade a radical diferença entre emancipação política e a
emancipação humana, que é tema também recorrente na Questão judaica.
Mas a comunidade da qual o trabalhador está isolado, é uma comunidade inteiramente diferente, e de
uma outra extensão, da comunidade política. Esta comunidade, da qual é separado pelo seu trabalho é a
própria vida física e espiritual, a moralidade humana. A essência humana é verdadeira comunidade
humana (MARX, 1995: 89).
Marx anuncia no final das Glosas críticas a necessidade ontológica da extinção do
Estado, já que em relação à situação dos trabalhadores e dos problemas sociais o máximo que
poderia alcançar é um paliativo, traduzido em ações de tipo assistenciais. Marx não visa um
aperfeiçoamento do Estado, mas sua extinção. Tese que o aproxima dos liberais, segundo a
instigante interpretação de Manacorda (2001). Ou seja, na clássica questão da relação entre
indivíduo e Estado, parte e todo, a posição de Marx é anti-estatista, defendida tanto nas obras
da juventude como nas da maturidade. Esta é a sua idéia liberal, para não dizer anárquica, de
Estado, “ao qual ele contrapõe a 'sociedade civil', em que cada indivíduo vive a sua diferente
identidade, já não essencial para a política”. Portanto, “é anti-estatismo porque é anti-
hegeliano, mesmo que a dialética hegeliana lhe sirva, em todo caso, contra a visão
esquemática dos economistas” (MANACORDA, 2001: 285).
Se essa é uma tese defensável, significa que marxismo e socialismo se põem como
“herdeiros, sem dúvida críticos, mas não como negadores da tradição liberal”
(MANACORDA, 2001: 275). Nesse sentido, a “solução” para a tensão entre o todo e a parte é
diferente em ambos os teóricos. Hegel procura amenizar as contradições da sociedade
44
moderna por intermédio de um Estado ético, cuja
filosofia do direito acompanha “o surgimento e a formação do Estado moderno, de Hobbes
em diante, proclamando o Estado ou como a forma racional da existência social do homem,
garante da ordem e da paz social [...] ou como árbitro imparcial acima das partes [...]”
(BOBBIO, 1986:59)
27
, prevalecendo uma visão positiva do Estado. Marx, por sua vez, ao
dirigir a crítica ao Estado hegeliano, desemboca numa visão negativa daquela concepção.
Visaria, portanto, a emancipação humana ancorada na extinção do Estado. Para além de
descrever “o que é”, Marx também pretende dizer “o que deve ser”, e nisso se diferencia
radicalmente de Hegel, para quem a filosofia não deve ultrapassar o umbral “do que é”,
evidenciando, tal como o fará Gramsci, de que se pode anunciar teoricamente só possibilidade
e não necessidade. Marx adere a uma “concepção negativa” da política: ali onde Hegel
confiava no desprendimento da eticidade e como representante do interesse universal, Marx
vê o Estado como uma “instituição classista”, que se serve de um conjunto de práticas,
instituições e crenças “(BORON, 1994: 254).
Sem a pretensão de esgotar o tema da sociedade civil em Hegel e Marx, procurou-se
evidenciar até aqui, de certa maneira, que ambos os autores ao descreverem a “anatomia” das
relações sociais, o fazem de modos diferentes, sem que se perca de vista, porém, aquilo que os
une, a saber, a crítica à concepção política jusnaturalista
28
.
O que na bürgerliche Gesellschaft aparece acrescentado em relação àquele modelo
jusnaturalista é que o modelo hegelo-marxiano apresenta-se como “momento de sociabilidade
com relação ao politischer Staat” (BOVERO & BOBBIO, 1986: 139. Em ambos os autores,
embora a sociedade civil se apresente como campo das necessidades, não significa que se
27
Cf. a crítica de Losurdo (1998: 113-128) a Bobbio por defender que Hegel é um “conservador em vez de
liberal"; “preza mais o Estado que o indivíduo”.
28
Em outros termos, não perder de vista que “a sociedade civil do modelo hegelo-marxiano cobre a área de uma
primeira e fundamental dimensão da sociedade moderna, em cujo interior os sujeitos singulares, tornados
livres como indivíduos autônomos graças à dissolução dos antigos vínculos de dependência pessoal, ligam-se
necessariamente entre si, para aquém da dimensão política, com base em seus próprios carecimentos, interesses
e finalidades privadas. Nesse sentido, a bürgerliche Gesellschaft é 'por natureza', e não 'por convenção' como a
societas civilis, a qual, por isso, aparece como uma instituição artificial” (BOVERO & BOBBIO, 1986: 147).
45
possa caracterizá-lo como estado de natureza
29
. O
campo da sociedade civil, mesmo sendo o âmbito do direito privado se constitui como esfera
eminentemente social, para além do arbítrio dos indivíduos do suposto estado de natureza
hobbesiano.
Assim, alguns pontos aproximam Marx de Hegel e este daquele, assim com outros
pontos os separam. Quanto aos pontos que os unem podemos destacar: a) o vínculo social tem
sua raiz nos carecimentos de cada indivíduo; b) o trabalho apresenta-se como fundamento da
sociedade; c) a sociedade civil constitui-se em campo de tensões, sendo que aqui começariam,
de certa forma as diferenças entre ambos, já que: c.i) para Hegel, a sociedade civil não se
reduz ao campo meramente econômico. Além disso, apresenta-se como esfera da
administração e da justiça social, ao passo que para Marx, a sociedade civil é locus da disputa
pelo domínio da produção, a qual extrapola a “troca simples”. É no seio da sociedade civil
que a relação de troca entre capital e trabalho se evidencia; c.ii) para Hegel a solução dos
conflitos advindos da sociedade civil dar-se-ia através do Estado, forma suprema da
comunidade ética. Nesse caso, Hegel descreve o Estado propriamente político como peça
fundamental no equilíbrio das tensões no seio da sociedade civil. Para Marx, ao contrário, o
Estado não só revela as contradições e tensões resultantes das disputas em torno do domínio
da produção, assim como as torna mais agudas. Na perspectiva de Marx, o Estado não é algo
que se possa definir como neutro, pois sempre exerce o poder em prol de uma classe
hegemônica. A luta para a sua extinção é a luta para a emancipação humana.
Nesse sentido, se o ponto de partida para a definição do sistema liberal é a presença
mínima do Estado na gestão social, então não podemos “acusar” Hegel de liberal, já que sem
este elemento superior, a sociedade desfaz seus tecidos no egoísmo. Marx, ao contrário,
critica o Estado hegeliano por não resolver a contradição da formação social moderna. A
superação das tensões estaria no futuro e não no presente, segundo a tese da extinção do
Estado em Marx. Portanto, a tese da extinção do Estado parece desaguar numa visão
29
Na perspectiva jusnaturalista: “1) o sujeito livre é posto como anterior à sociedade e essa deriva dele como
uma sua livre criação; 2) o vínculo social é subordinado à unidade política, e essa o torna efetivo”
(BOVERO, 1986: 146).
46
messiânica, escatológica de sociedade, ou seja, de uma
sociedade sem conflitos e, conseqüentemente, “sem necessidade de normas jurídicas capazes
de limitá-las e regulamentá-las” (LOSURDO, 2004: 76). De modo geral pode-se dizer que,
em Marx e Engels, “a política parece dissolver-se junto com o Estado e o poder político”
(LOSURDO, 2004: 77),
depois de desempenhar um papel fundamental na conquista do poder.
Visão que remeteria, por sua vez, ao anarquismo. Devemos, então, pensar o futuro pós-
capitalista como “o total desaparecer não só dos antagonismos de classe, mas também do
Estado e do poder político e da norma jurídica enquanto tais, e também das religiões, das
nações, da divisão do trabalho, do mercado, da cada possível fonte de conflito?” (LOSURDO,
2004: 121). Como veremos mais adiante, a idéia de “sociedade regulada” em Gramsci não
parece comportar essa visão messiânica do projeto comunista. No máximo, o Estado seria
reabsorvido na sociedade civil. Nisso, seu realismo o aproxima de Hegel, inclusive da idéia de
“Estado ético”.
CAPÍTULO II
O NEXO ENTRE FILOSOFIA E POLÍTICA
O segundo capítulo pretende mostrar a relação entre filosofia e política no pensamento
de Gramsci. Procura mostrar que a “filosofia da práxis” expressa a relação entre filosofia e
política; que filosofia da práxis é a expressão que melhor define a relação entre saber/poder.
A reflexão sobre o papel do filósofo e do intelectual está relacionada, por sua vez, à questão
da hegemonia, conceito relevante no arcabouço teórico político de Gramsci para entendermos
os conceitos de sociedade civil e Estado. Relacionados a esse importante conceito tem-se os
conceitos de “guerra de movimento” e “guerra de posição”, bem como a questão da vontade
coletiva ou do Moderno Príncipe, representada pelo partido.
1. O marxismo como filosofia da práxis
47
Michael Hardt (co-autor com Toni Negri da obra Império), no artigo O
enfraquecimento da sociedade civil, afirma que nos últimos anos as condições de
possibilidade de ação para a sociedade civil, assim como dos Estados-Nação ficaram
enfraquecidas em várias partes do mundo. Diante de tais condições, a sociedade civil corre o
risco de se tornar destituída de significado semântico e político. A questão central para Hardt
é saber se as instituições sociais necessárias para a construção e o funcionamento da
sociedade civil ainda estão presentes nas formações sociais contemporâneas. Deriva daí sua
tese de que a sociedade que estamos vivendo mais propriamente é caracterizada como
“sociedade pós-civil” (HARDT, 2001:1). Dizendo de outra forma, transpomos a condição da
sociedade disciplinar rumo à “sociedade de controle”, onde as posições são “incessantemente
apagadas” (HARDT, 2001: 8).
Uma vez analisado o conceito de sociedade civil em Hegel, Gramsci e Foucault, o
autor conclui que na realidade política das sociedades contemporâneas da Europa ocidental e
da América do Norte, estas “diferentes, ricas, promissoras e temíveis visões teóricas da
sociedade civil”, seja na versão hegeliana, seja nas revisões gramsciana e foucaultiana, “não
são mais grávidas”, ou seja, já não são capazes de dar conta dos mecanismos dominantes ou
dos esquemas da produção e do ordenamento sociais: o declínio do paradigma da sociedade
civil estaria vinculado "a uma passagem, no interior da sociedade contemporânea, para uma
nova configuração das relações sociais e para novas condições do domínio” (HARDT, 2001:
6).
Parte dessas “diferentes”, “ricas”, “promissoras” e “temíveis” visões teóricas da
sociedade civil mencionadas por Hardt, já fora vista quando analisamos Hegel e Marx.
Passamos, então, a analisar os desdobramentos da sociedade civil no pensamento de Gramsci,
a qual, segundo Hardt, também não é mais “grávida” para entendermos a realidade política
contemporânea.
Cabe-nos perguntar, primeiramente, para onde se dirige à atenção do pensador
italiano, tendo presente as vertentes da tradição (Hegel-Marx) e a realidade com a qual se
depara. Se se pode falar de um “giro” conceitual de sociedade civil esboçado por Gramsci,
este só parece ter sentido na medida em que se tem presente à idéia dialética de unidade-
48
distinção entre sociedade política e sociedade civil. Idéia
que nos brinda o conceito “ampliado” de Estado. A análise do conceito de sociedade de
sociedade civil em Gramsci nos levará, por sua vez, à pergunta do seu sentido na atualidade.
A idéia de sociedade civil é uma idéia que provém do liberalismo, passa pelo crivo
crítico de Hegel e Marx. Na sua época, Gramsci procura estudar seus elementos “com
profundidade”, retendo do conceito dois elementos: um de cunho teórico que lhe servirá de
fundo para a análise das “trincheiras” das complexas realidades sociais do século XX, o outro
de cunho estratégico político. Interessaria a Gramsci não só entender a complexidade das
redes de relações de poder de sua época, mas também traçar estratégias políticas para a defesa
dos “simples”. Vejamos antes, alguns conceitos do arcabouço teórico de Gramsci
diretamente relacionados ao conceito de sociedade civil.
Ao descrever seu projeto de pesquisa, que será realizado nos anos de prisão, Gramsci
revela, em carta endereçada à sua cunhada Tatiana, os temas que o ocuparão no resto dos
anos de sua vida:
Eu amplio muito a noção de intelectual, não me limitando à noção corrente que se refere aos grandes
intelectuais. Este estudo leva também a certas determinações do conceito de Estado, que comumente é
entendido como Sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo para amoldar a massa popular
ao tipo de produção e à economia de dado momento) e não como um equilíbrio da Sociedade política
com a Sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre a sociedade nacional inteira exercida
através das chamadas organizações privadas, como a Igreja, os sindicatos, as escolas, etc.), e
justamente na sociedade civil em particular operam os intelectuais (GRAMSCI, Cartas do cárcere,
2005, v. 2: 84).
O conceito de intelectual amplia-se na medida em que o relaciona ao de Estado, e este,
por sua vez, ao de hegemonia e de sociedade civil. Mas o importante a destacar aqui é que o
conceito de intelectual está diretamente relacionado ao conceito de filosofia. Segundo
Gramsci, julgar todo o passado filosófico como um delírio e uma loucura não é apenas um
erro de anti-historicismo, mas é “um verdadeiro resíduo de metafísica”, já que pensar dessa
forma, supõe um pensamento dogmático “válido em todos os tempos e em todos os países,
através do qual se julga todo o passado” (C. C 11, § 18, v. 1: 135). Para não incorrer nesse
erro metafísico e não correr o risco de ser anacrônico em relação ao seu tempo, Gramsci
dialoga com a tradição da filosofia e da política, buscando entender o presente, contraposto a
um passado que se lhe apresentava de modo bem determinado. Nesse caso, não há como
49
negar o peso da tradição marxista no pensamento de
Gramsci, e um dos sentidos atribuído por este à filosofia, certamente guarda uma relação
direta com o marxismo, traduzido por Gramsci como filosofia da práxis
.30
. O marxismo
renasceria em Gramsci como filosofia da práxis (BADALONI, 1987: 87).
Filosofia da práxis não é um expediente lingüístico. É uma concepção assimilada
como unidade entre teoria e prática: primeiro porque, “nem a filosofia da práxis nem
nenhuma ciência a ela ligada nos permitem fazer previsões que tenham caráter determinista”.
Há um único modo possível de prever: “aquele que vê a previsão como um ato prático que
implica a formação e a organização de uma vontade coletiva”. Em segundo lugar, a práxis de
que fala Gramsci não é algo em estado puro, mas “contém os elementos materiais que o
próprio homem objetivou”. Isso significa que a filosofia da práxis é, para Gramsci, “a
consciência plena das contradições da sociedade que lhe era contemporânea”. E em terceiro
lugar, Gramsci define o homem como uma série de relações ativas, de modo que “ele não
entra em relação com a natureza simplesmente pelo fato de ser ele mesmo natureza, mas
ativamente, por meio do trabalho e da técnica” (BADALONI, 2004: 11).
2. Filosofia da práxis
O caráter tendencial de filosofia de massa, “só pode ser concebida em forma de
polêmica, de luta perpétua” (C.C 11, v. 1, § 13: 116), e a filosofia da práxis, "longe da
suposta dissolução de toda filosofia, por parte da filosofia da práxis, sucede nesta uma
revalorização da filosofia como tal mesma" (KANOUSSI, 2000: 63), levada a cabo nos
Cadernos do cárcere. A reflexão de Gramsci concerne ao conceito de filosofia e não apenas à
própria filosofia marxista, como ocorre na maioria dos autores marxistas (DEBRUN, 2001:
30
Segundo a análise de Fabio Frosini (2004: 93), a expressão não foi cunhada por Gramsci. Foi usada na Itália
por Labriola, em 1897, quando traduzidas e apresentadas as Teses sobre Feuerbach e depois por Gentile, em
1899 quando escreve o ensaio La filosofia di Marx. Depois de Gentile o termo passou a ser também utilizado
por Mondolfo e Capograssi. Gramsci utiliza a expressão para superar as interpretações da vulgata
economicista e determinista marxista. Tal conceito também está associado ao de imanência, através do qual
procura contrapor-se a Croce na discussão sobre o materialismo e o idealismo.
50
2.5). Para Gramsci a perenidade da filosofia é a de uma
função, já que em cada época surge, “a partir de carências situadas na infra-estrutura,
problemas econômicos, sociais, políticos e culturais” que a atividade política sozinha não
poderia resolver, daí a função da filosofia. Mas a reflexão sobre a filosofia em geral não pode,
segundo Debrun, na perspectiva de Gramsci, deixar de “pôr a ênfase sobre o marxismo” [...]
(DEBRUN, 2001: 26-27). Razão porque a filosofia surge como o princípio da "organização
da cultura". Ou seja, a chave dos problemas que nascem na área econômica está na
informação filosófica: “é inventada aos poucos, na medida em que os agentes sociais tomam
consciência das tensões entre ela e a superestrutura, e procuram superar essas tensões"
(DEBRUN, 2001: 25-33).
Residiria aí, talvez, a peculiaridade da perspectiva de Gramsci sobre a filosofia, isto é,
a filosofia de uma época não é a filosofia deste ou daquele filósofo, deste ou daquele grupo de
intelectuais, desta ou daquela grande parcela das massas populares: “é uma combinação de
todos estes elementos, culminando em uma determinada direção, na qual essa culminação
torna-se norma de ação coletiva, isto é, torna-se 'história completa'” (C.C 10, § 17, v. 1: 325-
326). A filosofia definir-se-ia não só como interpretação do próprio tempo, mas também
como projeto, para lembrarmos Hegel e Marx. Isto é, a nova concepção de mundo, deve ser
buscada, segundo Gramsci, por intermédio da filosofia da práxis, entendido como
historicismo absoluto
31
, “terrenalidade absoluta do pensamento”. A filosofia da práxis
continua a “imanência”, mas com um significado preciso, “depurando-a de todo o seu aparato
metafísico e conduzindo-a ao terreno concreto da historia” (C.C, v. 1, § 28: 156), sem
deserdar desse terreno a política e a economia.
A filosofia da práxis é, precisamente, "a historização da natureza e do espírito, a
superação de um dualismo que condena o homem à repetição e à abstração" (GRAMPA,
1978: 265-268). A filosofia da práxis superaria tal dualismo "mediante um programa político
e uma concepção da história e cria conseqüentemente uma nova subjetividade histórica".
Reconhecida como “um momento da cultura moderna” (C.C, v. 4, § 9: 31). Interpretar a
31
Aqui, o termo historicismo absoluto significa, ao que me parece, "historicismo conseqüente. Mas é possível
supor que Gramsci fale de historicismo absoluto também num outro sentido: quando afirma que história e
51
filosofia dessa maneira é interpreta-la como atividade
não neutra: é aposta de que a situação possa ser diferente, por isso aparece como
possibilidade; o que a filosofia consegue propor é uma teoria como possibilidade, e nunca
como necessidade; é aposta inovadora porque procura a difusão da filosofia entre as massas e
na idéia de que essa difusão sempre ocorre de alguma maneira ao longo da história
(DEBRUN, 2001: 36), a qual tem duas tarefas fundamentais: “combater as ideologias
modernas em sua forma mais refinada, para poder constituir o próprio grupo de intelectuais
independentes, e educar as massas populares, cuja cultura era medieval” (C.C 16, v. 4, § 9:
35).
A inovação de Gramsci, apontada por Debrun, se dá tanto em relação à tradição
filosófica, como dentro do próprio marxismo, Lênin incluído. Deve-se explicar como ocorre
que em cada época coexistam muitos sistemas e correntes de filosofia, como nascem, como se
difundem, porque, nessa difusão seguem ‘certas linhas de separação e certas direções”. Isto
mostra, segundo Gramsci, o quanto é necessário “sistematizar crítica e coerentemente as
próprias intuições do mundo e da vida, fixando com exatidão o que se deve entender por
‘sistema’, a fim de evitar compreendê-lo num sentido pedante e professoral (C.C 10, v. 1, §
12: 97-98). Mas esta elaboração deve ser feita, e somente pode ser feita, no quadro da história
da filosofia,
que mostra qual foi a elaboração que o pensamento sofreu no curso dos séculos e qual foi o esforço
coletivo necessário para que existisse o nosso modo atual de pensar, que resume e compendia toda esta
história passada, mesmo em seus erros e em seus delírios, os quais, de resto, não obstante terem sido
cometidos no passado e terem sido corrigidos, podem ainda se reproduzir no presente e exigir
novamente a sua correção (C. C 10, v. 1, § 12: 97-98).
Gramsci mostra, portanto, a vinculação entre filosofia e história com tudo o que ela
pode comportar. A filosofia da práxis está na base de toda a concepção moderna da vida: o
Renascimento e a reforma, a filosofia alemã e a revolução Francesa, o calvinismo e a
economia clássica inglesa, o liberalismo laico e o historicismo: ela é “o coroamento de todo
este movimento de reforma intelectual e moral, dialetizado no contraste entre cultura popular
filosofia identificam-se (GRUPPI, 1978: 133).
52
e alta cultura” (C.C 16, v. 4, § 9: 37). Trata-se, nas
palavras de Gramsci, de “uma filosofia que é também uma política” e de “uma política que é
também uma filosofia”, sintetizada assim: “Hegel mais David Ricardo” (C.C 10, v. 1, § 9:
317). A filosofia da práxis é resultante, enfim, das relações entre filosofia alemã, política
francesa e economia clássica inglesa. Conceber a filosofia como práxis é no fundo concebê-la
de uma maneira historicista, isto é, “como um fase transitória do pensamento filosófico”
32
.
Nesse sentido, o filósofo não só compreende as contradições postas, “mas coloca a si
mesmo como elemento da contradição, eleva este elemento a princípio de conhecimento e,
conseqüentemente, de ação” (C.C 11, v. 1, § 62: 203-204). A filosofia da práxis constitui-se,
dessa maneira, em expressão das contradições históricas. Se assim é, significa que ao
desaparecerem as contradições no mundo, tal como Marx pensa que irá acontecer ao se
extinguirem as lutas de classes, a filosofia da práxis seria também superada. Para Gramsci, o
filósofo da práxis pode apenas fazer esta afirmação genericamente, já que no tempo presente
não se pode evadir do atual terreno das contradições, “não pode afirmar, a não ser
genericamente, um mundo sem contradições, sem criar imediatamente uma utopia” (C.C 11,
v. 1, § 62: 205). Aqui, Gramsci evidencia a questão do “ser” e do “dever ser”, procurando não
fazer da filosofia da práxis uma “ideologia no sentido pejorativo”, “um sistema dogmático de
verdades absolutas e eterna”, pura “aparência, inútil; estúpida (C.C 7, v. 1, § 19: 237). Para
Gramsci a utopia tem seu valor filosófico e político, desde que salvaguardado seu devido
entendimento, isto é, aplicando a vontade na criação de um novo equilíbrio das forças
realmente existentes e atuantes, no terreno da realidade efetiva, no sentido de dominá-la e
superá-la (C.C 13, v. 3, § 16: 35).
A filosofia da práxis como visão de mundo não pretende dizer o futuro no nível
gnosiológico. Ela se restringe ao campo das possibilidades presentes, já que não haveria a
32
“Da decomposição do hegelianismo resulta o início de um novo processo cultural, de caráter diverso dos
precedentes, isto é, no qual se unificam o movimento prático e o pensamento teórico (ou buscam unificar-se,
através de uma luta teórica e prática) [...] O que é importante é o nascimento de uma nova maneira de
conceber o homem e o mundo, bem como o fato desta concepção não mais ser reservada aos grandes
intelectuais, mas tender a se tornar popular, de massa, com caráter concretamente mundial, modificando
(ainda que através de combinações híbridas) o pensamento popular, a mumificada cultura popular. [...] A
filosofia da práxis como resultado e coroamento de toda a história precedente” (C.C 15, v. 1, § 61: 264).
53
possibilidade de afirmar peremptoriamente que o mundo
será melhor. Para Gramsci a filosofia da práxis “não é instrumento de governo de grupos
dominantes para obter o consentimento e exercer a hegemonia”. Dessa forma, Gramsci parece
questionar o conceito de filosofia como simples interpretação do que é. Para Gramsci, o
filósofo só pode apontar um futuro diferente como possível e até desejável, mas nunca como
necessário ou inevitável, tal como vaticinava a corrente economicista da vulgata marxista. A
filosofia da práxis é a expressão “destas classes subalternas, que querem educar a si mesmas
na arte de governo de grupos e têm interesse em conhecer todas as verdades – inclusive as
desagradáveis – e em evitar os enganos (impossíveis) das classes superiores e, ainda mais, de
si mesmas” (C.C 10, v. 1, § 41: 388).
Para Gramsci, compreender a identificação do racional com o real é de fundamental
importância, para poder “prever”, mas previsão, apenas da luta, e não os momentos concretos
dela, “que não podem deixar de ser resultados de forças contrastantes em contínuo
movimento, sempre irredutíveis a quantidades fixas, já que nelas a quantidade transforma-se
continuamente em qualidade”. Na realidade, pode-se “prever” na medida em que se atua, “em
que se aplica um esforço voluntário e, desta forma, contribui-se concretamente para criar o
resultado 'previsto'”. A previsão revela-se, portanto, “não como um ato científico do
conhecimento, mas como a expressão abstrata do esforço que se faz, o modo prático de criar
uma vontade coletiva” (C.C 11, v. 1, § 15: 121-122). Sem a compreensão de tal relação, seria
praticamente impossível compreender a filosofia da práxis, a “sua posição em face do
idealismo e do materialismo mecânico, a importância e a significação da doutrina das
superestruturas” (C.C 11, v. 1, § 20: 138). Mas a previsão não resulta, segundo Gramsci, de
uma ação puramente 'objetiva': “conhece-se o que foi ou é, não o que será”, diz Gramsci, e
nesse sentido, “prever é um ato prático” (C.C 11, v. 1, § 15: 122), já que, quem faz a
previsão, na realidade tem um 'programa' que quer fazer triunfar, e esta é exatamente um
elemento desse triunfo.
Nesse sentido, poderíamos nos perguntar se o conceito de filosofia tem o mesmo
sentido tanto em Gramsci como em Marx. Para Marx, a filosofia é “dever ser” e se acaba
depois de realizada. Ou seja, na melhor das hipóteses, Marx poderia dizer apenas que
sociedade é conveniente, e qual a melhor, mas não poderia afirmar que terá que ser assim
54
necessariamente. Gramsci, por sua vez, estaria situado
no grupo dos que pensam que o máximo que pode a filosofia (nesse caso se aproxima de
Hegel) é dizer “o que é”, demonstrando um realismo político muito mais aguçado do que o
próprio Marx. Se há um “dever ser” em Gramsci, em sentido não moralista, esse algo, “é algo
concreto, ou melhor, somente ele é historia em ato e filosofia em ato, somente ele é política”
(C.C, v. 3, § 16: 35). O “dever ser” para Gramsci não é ato arbitrário associado a
“veleidades”, “desejos”, “miragens”, mas define-se como possibilidade, como previsão. Para
Gramsci, o filósofo da práxis não pode se evadir do atual terreno das contradições. A relação
entre presente e futuro não pode, ser constituída da inércia da previsão, mas unicamente da
atividade da predisposição: “em lugar de um conceito de necessidade que engloba toda a
realidade humana e extra-humana, o atento juízo sobre as possibilidades reais e a consciência
da necessidade como consciência dos limites” (SALVADORI, 1977: 227).
Além disso, ao afirmar que “todos os homens são 'filósofos'” (definindo os limites e
características desta 'filosofia espontânea'), Gramsci esboça um modo de conceber a filosofia
enquanto “visão de mundo”, contida na linguagem, no senso comum e no bom senso, na
religião popular e no folclore. Ao definir a filosofia nesses termos não sustenta que todos
venham a se ocupar da filosofia enquanto atividade específica “para filósofos”, como algo
para “técnicos”. Depreende-se daí que não existe apenas um sentido do que seja a filosofia
para Gramsci, da mesma maneira que não existe apenas um sentido para o que seja o
intelectual. Ambos os conceitos guardam uma relação muito próxima. Assim como há um
sentido estrito e outro amplo para a definição de filosofia, de igual maneira acontece com o
conceito de intelectual.
3. O intelectual como filósofo
O problema do que seja a própria filosofia e de quem mereça a titularidade de filósofo
(também retomado por Gramsci) esteve presente ao longo da história da filosofia, descrita
primeiramente (ao que parece) por Platão na República. Em tese, o curriculum delineado por
Platão preveria a oportunidade a todos ascenderem ao cume do Mundo das Idéias, mediante o
55
exercício da filosofia, mas a divisão das classes que
compõe a comunidade descrita pelo próprio Platão parece indicar que o alcance da vida
teorética é privilégio de poucos. Na descrição da história dos intelectuais no Caderno 8,
Gramsci diz que, na sonhada 'República de filósofos', o termo 'filósofo', deve ser entendido
'historicamente', o qual poderia ser traduzido, hoje, por 'intelectual'. Naturalmente, segue
Gramsci, abrindo um longo parêntese:
(Platão referia-se aos 'grandes intelectuais', que eram, ademais, o tipo de intelectual de seu tempo, além
de conceder importância ao conteúdo específico da intelectualidade, que poderia concretamente
chamar-se de 'religiosidade': os intelectuais de governo eram aqueles determinados intelectuais mais
próximos da religião, isto é, cuja atividade tinha um caráter de religiosidade, entendida no sentido geral
da época e sentido especial de Platão – e, por isso, atividade de certo modo 'social', de elevação e
educação da polis, de direção intelectual, e, portanto, com função de hegemonia). Por isso, seria
possível afirmar que a 'utopia de Platão antecipa o feudalismo medieval, com a função que neste é
própria da Igreja e dos eclesiásticos, categoria intelectual daquela fase do desenvolvimento histórico-
social (C.C 8, v. 2, § 22: 162).
Mesmo que seja impossível negar em Platão o fato de que a filosofia é atividade
reservada a um reduzido grupo, isso não constitui um problema relevante para Gramsci. O
que está em questão é a organicidade de uma sociedade que resulta da vinculação dos
intelectuais (orgânicos e tradicionais) e os membros dessa sociedade, no sentido de que
contribuam para o desenvolvimento da hegemonia da classe a que pertencem. Nesse caso, se a
filosofia é o princípio de estruturação da experiência coletiva, isto significa que “suas
sugestões concernem direta ou indiretamente a todos. Logo, é razoável supor que ela possa ou
deva interessar a muitos, ou talvez a todos” (DEBRUN, 2001: 36).
Para Gramsci, de partida, "todo homem é filósofo"
33
. Ainda que inconscientes do
fato, todos manifestam uma determinada concepção de mundo, expressa na linguagem, no
senso comum, no bom senso e na religião popular. Ou seja, o senso comum já é “filosofia”,
contém certa concepção do mundo, mesmo que incipiente, o que, por sua vez, revela o
'nascimento' dessa nova espécie de filósofo que se realiza 'historicamente, que se pode chamar
de 'filósofo democrático', isto é, do filósofo “consciente de que a sua personalidade não se
33
Em outro lugar, Gramsci completa “Todo homem é cientista” (C.C 10, § 54: 411) e "Todos os homens são
intelectuais" (C.C 12, §1).
56
limita à sua individualidade física, mas é uma relação
social ativa de modificação do ambiente cultural" (C.C 10, v. 1, § 44), é porta-voz e intérprete
das contradições de uma dada época, como já assinalado acima.
4. Filosofia e política
Segundo Gramsci, sempre somos conformistas de algum conformismo, somos sempre
homens-massa ou homens coletivos (C.C 11, v. 1, §12: 94). O problema consiste em saber
qual é o tipo histórico de conformismo, de homem-massa do qual fazemos parte, para a partir
daí, iniciar o processo de auto-conhecimento de si mesmo. O início da elaboração crítica,
segundo Gramsci, é a consciência daquilo que é realmente, isto é,
um 'conhece-te a ti mesmo' como produto do processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti
uma infinidade de traços acolhidos sem análise crítica. Deve-se fazer, inicialmente, essa análise. Não se
pode separar a filosofia da história da filosofia, nem a cultura da história da cultura. No sentido mais
imediato e determinado, não se pode ser filósofo – isto é, ter uma concepção do mundo criticamente
coerente – sem a consciência da própria historicidade, da fase de desenvolvimento por ela representada
e do fato de que ela está em contradição com outras concepções ou com elementos de outras
concepções (C.C 11, v. 1, § 12, p. 94-95).
O ato da “descoberta de si mesmo” não se dá senão envolto numa rede de relações e
de concepções que estão, muitas vezes, em conflito na mesma sociedade em que o indivíduo
está “submerso”. O “conhece-te a ti mesmo” não é resultado de uma escalada por “trilhas”
limpas e claras. Ao contrário, Gramsci indica que é um processo árduo, resultante do
entrechoque com diversas filosofias ou concepções do mundo. É também a consciência da
historicidade. Uma escolha entre as várias concepções de mundo que se nos apresentam é
inevitável, e a escolha é fruto, por sua vez, do crivo da crítica, logo, da filosofia que questiona
a própria história da filosofia, a cultura dada. Se a escolha é inevitável, não é possível, por sua
vez, separar a filosofia da política: "pode-se demonstrar que a escolha e a crítica de uma
57
concepção de mundo são, também elas, fatos políticos"
(C.C 11, v. 1, § 12: 97)
34
.
Portanto, a filosofia da práxis apresenta-se em dois planos: primeiramente como
atitude polêmica e crítica do "senso comum", e, posteriormente, como crítica da filosofia dos
intelectuais. Assim como Gramsci define a todos os homens como filósofos, sem que na
sociedade todos exerçam a filosofia no seu aspecto técnico, da mesma forma, “todos os
homens são intelectuais”. Na realidade, a posição da filosofia da práxis, segundo Gramsci,
não busca manter os “simples” na sua filosofia primitiva do senso comum, na subalternidade
e heteronomia. Busca, ao contrário, colaborar na elaboração de uma concepção de vida
superior, da autonomia. Trata-se, portanto, para Gramsci, de a partir do senso comum
35
, poder
se desenvolver o Bom Senso. Daí sua crítica contra o idealismo que se manifestou contrário
aos movimentos culturais de ida ao povo, mostrando, assim, a “incapacidade de dialetizar o
contraste entre cultura popular e alta cultura”. A filosofia da práxis é a filosofia que expressa
esse amálgama de toda a concepção moderna da vida, é ela que melhor traduz este
“movimento de reforma intelectual e moral”. Na realidade, Gramsci coloca em evidência a
dialética intelectuais-massa, alta-cultura, cultura-popular, e sem a qual, esta relação é
meramente burocrática ou formal.
Para Gramsci, a possibilidade de autonomia dos “simples” está intimamente associada
à filosofia da práxis; daí a necessidade de descobrir o sentido do idealismo de Croce, para
poder pensar, então, formas de intervenção do povo na política e na história. O idealismo de
Croce parece não responder a esse anseio popular de autonomia, assim como outros tantos
movimentos culturais ocorridos na Itália.
Gramsci entende que o pensamento de Croce deve ser apreciado como valor
instrumental, no sentido de que “atraiu energicamente a atenção para a função dos grandes
intelectuais na vida dos Estados, para o momento da hegemonia e do consenso como forma
34
Para Gramsci, “a filosofia da práxis compreende a realidade como unidade do homem e do mundo em ação,
em permanente formação, onde o homem não é engolido pelo mundo e este não é dissolvido dentro da
subjetividade humana” (SEMERARO, 1999: 108).
35
"Materialismo", "dogmatismo" e "incoerência", constituem os aspectos do complexo que representa o senso
comum.
58
necessária do bloco histórico concreto” (C.C 10, v.1:
283). Ao tratar do conceito de história ético-política desenvolvido por Croce, Gramsci diz que
o mais importante problema a ser discutido é o seguinte: “se a filosofia da práxis exclua a
história ético-política, isto é, não reconheça a realidade de um momento de hegemonia, não dê
importância à direção cultural e moral e se julgue realmente os fatos da superestrutura como
'aparências'" (C.C 10, v. 1, §7: 295). Contra a visão de Croce que considera a ideologia como
aparência - de certa essa perspectiva está presente em Marx também - Gramsci diz que a
filosofia da práxis não exclui a história ético-política. A filosofia para Gramsci, segundo
interpretação de Gruppi, não mais procede simplesmente através de conceitos, de uma espécie
de partenogênese dos próprios conceitos, mas “a partir da estrutura econômica, das
transformações ocorridas nas relações de produção, numa contínua relação dialética entre
base econômica, estrutura social e consciência dos homens” (GRUPPI, 1978: 4).
A crítica de Gramsci a Croce visaria dois objetivos: mostrar que o conceito de
filosofia, defendido por este, é um conceito que contempla a si mesma como “verdade
eterna”, e que o “historicismo absoluto” vê a história apenas como a história do progresso do
pensamento e do ético-político, do pensamento emanando do Espírito (FONTANA, 2001: 8).
Se a criação de uma hegemonia requer necessariamente as formas de interpretar o mundo,
nem o idealismo estabelecido por Croce, nem o marxismo mecanicista da vulgata marxista
poderia fazê-lo, já que entre intelectuais e os “simples” estabeleceu-se um fosso. A passagem
do saber ao compreender e do sentir ao compreender, tem relação com o que se falou até aqui:
“O elemento popular 'sente', mas nem sempre compreende ou sabe; o elemento intelectual
'sabe', mas nem sempre compreende e, menos ainda, 'sente'. Os dois extremos são, portanto,
por um lado, o pedantismo e o filisteísmo, e, por outro, a paixão cega e o sectarismo” (C.C 11,
v.1, § 67: 221-222). O critério para evitar tal distanciamento consiste em relacioná-los
dialeticamente “com as leis da história”. Sem a conexão entre intelectuais e povo-nação não
se faz “política-história”, segundo Gramsci.
Da descrição de Gramsci sobre os intelectuais, depreende-se, de certa maneira, que os
mesmos não existem senão como expressão de uma visão de mundo, sem “neutralidade”
59
possível, já que saber e poder coexistem
36
. Se assim é, o
intelectual é alguém que não consegue se colocar num “mundo à parte”, porque ele também
faz parte do mundo no qual intervém. Passaria algo de diferente com o filósofo? Negaria
Gramsci o valor da filosofia dos filósofos e da filosofia exercida pelos especialistas? Parece
que não. O que nega é o estatuto da filosofia elevada à “profecia desarmada”, à filosofia
especializada, à margem da fonte que a estatui, ou seja, da cultura em sentido amplo,
entendida como plataforma da produção de todos os saberes e não como lócus privilegiado de
um pequeno grupo que poderia dizer tranquilamente: “não tenho nada haver com isso”.
5. Hegemonia: o poder como relação
Buttigieg lembra oportunamente que Gramsci jamais pensou em reunir as inúmeras
notas que tratam direta e explicitamente sobre a hegemonia num caderno temático especial,
tal como o faz, por exemplo, com as Notas sobre Maquiavel, o Risorgimento, Americanismo e
fordismo. Da mesma forma, não se encontram, nos Cadernos, grupos de notas sob a
denominação hegemonia. O conceito é “enriquecido, ampliado, e reforçado pelo exame
crítico de uma ampla variedade de questões e problemas”.
Em outros termos, o conceito de
hegemonia não é conceito pronto e acabado. A hegemonia
37
na perspectiva de Gramsci é um
36
Pensando numa possível aproximação entre Gramsci e Foucault, lembre-se a conversa sobre os intelectuais e o
poder travada entre Foucault e Deleuze, em 1972. Foucault observa que o papel do intelectual não é mais o de
se colocar 'um pouco na frente ou um pouco de lado' para dizer a muda verdade de todos: “é antes o de lutar
contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do
saber, da 'verdade' da 'consciência', do discurso. É por isso que a teoria não expressará, não traduzirá, não
aplicará uma prática; ela é uma prática (FOUCAULT, 1979: 71).
37
Hegemonia – decalque latino da palavra grega egemonía, que significa 'direção suprema', "usada para indicar
o poder absoluto conferido aos chefes dos exércitos, chamados precisamente egemónes, isto é, condutores,
guias – a supremacia de um Estado-Nação ou de uma comunidade político-territorial dentro de um sistema"
(BELLIGNI, 2000: 579). Para Eagleton (1997: 107-105-106), "a hegemonia é uma noção inerentemente
relacional, além de prática e dinâmica, e oferece, nesse sentido, um avanço notável diante das definições de
ideologia mais ossificadas, escolásticas, encontradas em certas correntes 'vulgares' do marxismo.” [...] não é
apenas um tipo bem sucedido de ideologia, mas pode ser decomposta em seus vários aspectos ideológicos,
culturais, políticos e econômicos".
60
conceito não separado do conceito de ideologia,
levando-se em consideração que é necessário distinguir entre ideologias historicamente
“orgânicas” e as ideologias “arbitrárias”
38
. De igual maneira, o conceito de hegemonia
vincula-se ao conceito de sociedade civil. O sentido forte do termo ideologia em Gramsci
combina com fatores objetivos e se fixa historicamente em instituições, sendo que o primeiro
momento é aquele econômico-corporativo, o segundo momento é o da consciência de
solidariedade de interesses entre os membros de um grupo social, e por fim, aquele momento
representado pela superação dos corporativismos dos grupos sociais em função de uma nação:
“este último e mais alto momento, no qual se condensa a possibilidade da hegemonia de uma
classe, nos indica não só uma contínua formação e superação de equilíbrio entre os grupos”,
mas também a “apresentação de novas variáveis que determinam um devir histórico e até
mesmo um possível progresso” (BADALONI, 1988: 59-60)
39
. Em outros termos, a esse
processo, Gramsci o denomina catarse.
A maioria dos intérpretes das idéias de Gramsci defende que o conceito de hegemonia
estaria presente de forma mais elaborada em Questão Meridional (Mezzogiorno) de 1926
40
.
Há, entretanto, uma gama de intérpretes que defende a presença do conceito, em germe, no
período jornalístico de Gramsci, portanto, a partir de 1917
41
. Sem que fale explicitamente em
38
Enquanto são historicamente necessárias, “as ideologias têm uma validade que é validade 'psicológica': elas
'organizam' as massas humanas, formam o terreno no qual os homens se movimentam, adquirem consciência
de sua posição, lutam, etc. Enquanto são 'arbitrárias', não criam mais do que 'movimentos' individuais, etc.”
(C.C 7,v. 1, § 19: 237).
39
“Quest'ultimo e più alto momento, in cui si condensa la possibilità dell'egemonia di una classe sociale, ci
indica non solo un continuo formarsi e superarsi di equilibri tra i gruppi ovvero il fissarsi di tali equilibri a
livelli più stabili, ma anche il presentarsi di nuove variabili che determinano un divenire storico e persino un
possibile progresso”.
40
Gruppi, um dos pioneiros no estudo do conceito, diz que “A hegemonia é o ponto de confluência de Gramsci
com Lênin” (1978: 1). Simionato (1999: 37) comenta que no ensaio sobre A questão meridional, o enfoque da
análise e as indicações de estratégia para a construção da hegemonia “oscilam entre o velho e o novo, entre a
estratégia de inspiração leninista fundada na aliança entre operário e camponeses pobres aliada à estratégia do
consenso de massa”, levando Gramsci, desde aí, a ampliar suas reflexões para a esfera da cultura.
41
Edmundo Fernando Dias (2000), na obra Gramsci em Turim, advoga a tese de que o conceito de hegemonia
faz parte de um processo longo, e que as temáticas da cultura e da política, amplamente debatida por Gramsci
antes de 1926, apontam os elementos da hegemonia, não concordando, dessa maneira, que Gramsci tivesse que
ter contato com o pensamento de Lenin para, a partir daí, elaborar seu conceito de hegemonia. Não
procuraremos fazer o vôo percorrido dos que advogam a tese do conceito presente já no jovem Gramsci. Nos
61
hegemonia, ao dirigir sua atenção ao proletariado na
Questão Meridional, Gramsci lança suas dúvidas quanto à capacidade desta classe para
governar, enquanto esta não souber se despojar de todo resíduo corporativo, de todo
preconceito “ou incrustação sindicalista”. O que isso significa?
Que não só devem ser superadas as distinções entre as diferenças profissionais, mas que é preciso –
para conquistar a confiança e o consenso dos camponeses e de alguns segmentos semiproletários das
cidades - superar alguns preconceitos e vencer determinados egoísmos que podem subsistir e subsistem
na classe operária enquanto tal, mesmo quando já desapareceram em seu seio os particularismos de
profissão [...]. Se não conseguir isso, o proletariado não se torna classe dirigente [...] (GRAMSCI,
2004, EP, v. 2, p. 416)
42
.
Está se falando, aqui, de certo sentido de hegemonia, ou seja, a hegemonia do
proletariado, que para triunfar naquela estratégia de “longo alcance” não pode restringir suas
ações apenas ao âmbito econômico, mas “deve também exercer sua direção político-cultural”
(COUTINHO, 1999: 64). Sobre o conjunto das forças sociais que se opõem ao capitalismo. A
hegemonia tem relação, portanto, tanto com a luta para a conquista do poder, quanto pela luta
para a sua manutenção (GERRATANA, 1997: 121)
43
. Mas, a ação desencadeada pela
burguesia para assegurar o poder, também é hegemonia. De qualquer forma, a hegemonia em
ambos os casos é capacidade de guiar. Entretanto, a hegemonia só tem sentido para a classe
operária enquanto estratégia para a transição a outro modo de produção que não o capitalista e
outro tipo de relação social e política. De certa forma a hegemonia nasce nas fábricas, mas se
estende além delas, algo que Gramsci evidencia com muita clareza nos Cadernos. O que está
em questão para Gramsci é a forma como ambas as classes procuram exercer essa capacidade
hegemônica. Trata-se de saber o que as diferencia quando se trata do exercício do poder.
Em diversos momentos das Notas sobre Maquiavel, Gramsci procura distinguir os
ateremos tão somente aos Cadernos do cárcere, uma vez que o objetivo aqui é o de entender, mais adiante, o
entrelaçamento desse conceito com o conceito de sociedade civil e de Estado.
42
Escritos políticos, doravante E.P.
43
“[...] ugualmente valido sia quando la classe operaria, esclusa dal potere, lotta per conquistarlo, sia quando,
dopo averlo conquistato, lotta per mantenerlo”.
62
princípios políticos pensados por Maquiavel em
contraposição ao maquiavelismo
44
. Relacionado ao anteriormente exposto, do ponto de vista
político, Gramsci insiste sobre a “diferença entre revolução burguesa e revolução proletária, e
considera a revolução proletária como revolução não maquiavélica” (SANGUINETI, 1981:
23)
45
. Gramsci já anunciara que a doutrina da hegemonia é complemento da teoria do Estado-
força. Da parte de Gramsci, o reconhecimento de elemento força, por si só, não é garantia de
domínio de classe. Portanto, Gramsci se esforça para esclarecer outros elementos que
concorrem para equilibrar a dinâmica do poder (GERRATANA, 1997: 122). A conclusão da
série de nexos como: “reforma intelectual e moral, concepção de partido, crítica do
parlamentarismo, se realiza na teoria da hegemonia” (SALVADORI, 1977: 60).
Complementando seu argumento de que a filosofia da práxis busca conduzir os
“simples” a uma concepção de vida superior, Gramsci salienta que a compreensão crítica de si
mesmo é obtida “através de uma luta de 'hegemonias' políticas, de direções contrastantes,
primeiro no campo da ética, depois no da política, atingindo, finalmente, uma elaboração
superior da própria concepção do real” (C.C 11, v. 1, § 12: 103). Pertencer a uma determinada
força hegemônica ('consciência política'), segundo Gramsci, é condição para uma ulterior
autoconsciência, na qual teoria e prática finalmente se unificam, afirmando, por sua vez, que
o ato da autoconsciência ou da visão unitária e coerente do mundo não é um ato mecânico,
elaborado no vazio. A hegemonia é um processo em grau, e contínuo.
Perguntar-se pela forma (ou formas) “como” se difundem as novas concepções do
mundo, tal como Gramsci o faz na Introdução ao Estudo da Filosofia, no Caderno 11, § 12, é
colocar novamente o problema da hegemonia, que representa “um grande progresso
filosófico, já que implica e supõe necessariamente uma unidade intelectual e uma ética
adequada a uma concepção do real que superou o senso comum e tornou-se crítica, mesmo
que dentro de limites ainda restritos” (C.C 11, v. 1, § 12: 104).
44
Nos Cadernos do cárcere Gramsci estuda o pensamento de Maquiavel em relação a Marx, distinguindo
“Maquiavel do maquiavelismo e Marx do marxismo corrente” (SANGUINETI, 1981: 64).
45
Dal punto di vista politico, Gramsci insiste però sulla differenza tra rivoluzione borghese e rivoluzione
proletaria, e considera la rivoluzione proletaria come rivoluzione non machiavellica”.
63
Para Gramsci, hegemonia é unidade entre teoria
e prática, como já sublinhado. Mas Gramsci critica exatamente o mecanicismo prevalecente
na conduta daqueles que se intitulam revolucionários. Daí a necessidade de “combater o
economicismo não só na teoria historiográfica, mas também e, sobretudo na teoria e na
prática política. Neste campo, a luta pode e deve ser conduzida desenvolvendo-se o conceito
de hegemonia [...]” (C.C 13, v. 3, § 18: 53), sobretudo desse vulgar economicismo presente
em certas correntes marxistas de sua época, o qual “fala da teoria como 'complemento' e
'acessório' da prática, da teoria como serva da prática” (C.C 11, v. 1, § 12: 104). A vulgata
economicista “só reflete – de maneira imediata e mecânica – o predomínio monolítico da
classe dominante” (BORON, 1994: 250), resultando dessa interpretação “a impossibilidade de
pensar teoricamente as relações entre Estado e sociedade civil”. Nesse tipo de marxismo
“instrumentalista”, o Estado e a vida política, da mesma forma que a ideologia, são
concebidas “como simples reflexos do desenvolvimento das forças produtivas, fechando a
possibilidade de recuperar a dialética complexidade dos nexos entre economia e política”
(BORON, 1994: 251). Poder-se-ia afirmar, então, que esse reducionismo presente no
marxismo seria resultado da concepção de hegemonia prevalecente
46
. Se o homem é um ser
que se define por suas possibilidades (GOLDMANN, 1984: 99-73), estas não se efetivam
senão num mundo “ambiente de realidades econômicas, sociais e políticas, intelectuais,
religiosas”. A relação dialética define-se pelas ações que o homem sofre no contato com o
mundo e pelas reações que é capaz de deflagrar sobre aquele, no sentido de transformá-lo.
Ao pensar novas estratégias de lutas políticas para o proletariado, Gramsci procura se
apoiar numa teoria geral da hegemonia, de uma teoria “referida tanto à hegemonia proletária
quanto à hegemonia burguesa, como, em geral, em cada relação de hegemonia”. O combate
de Gramsci, portanto, é o de procurar superar o impasse teórico em torno da questão do
Estado, colocado pela tradição marxista. O conceito de hegemonia se constitui no pensamento
de Gramsci “através da diferenciação entre a função da direção e da função do domínio”
46
Para Lucien (1984: 94, 1978: 33), os partidários positivistas, admitem a consciência “unicamente como
consciência real, atualmente existente”, relegando o conceito de “consciência possível”, elaborado por Marx,
o qual tem uma importância primordial no campo político, já que “apresenta-se como uma tentativa consciente
de intervir na vida social para nela produzir transformações”.
64
(GERRATANA, 1997: 122 )
47
. Esse caminho seguido
por Gramsci na reflexão dos Cadernos do cárcere o levaria ao conceito geral de hegemonia,
definida como “capacidade de guiar, na medida em que esta capacidade se traduz em efetiva
direção política, intelectual e moral” (GERRATANA, 1997: 123-124)
48
, ou ainda, como
estrutura do poder com capacidade de duração (PAGGI, 1984: VIII).
Gramsci liga o processo de autoconsciência com a questão dos intelectuais, pois “não
existe organização sem intelectuais, isto é, sem organizadores e dirigentes, ou seja, sem que o
aspecto teórico da ligação teoria-prática se distinga concretamente em um estrato de pessoas
'especializadas' na elaboração conceitual e filosófica” (C.C 11, v. 1, § 12: 104). Isso significa
que a luta pela hegemonia não aceita improvisações, embora possam ocorrer erros de cálculo,
coisa que o materialismo histórico mecânico não considera, segundo Gramsci, pois
“interpreta todo ato político como determinado pela estrutura, imediatamente, isto é, como
reflexo de uma real e duradoura (no sentido de adquirida) modificação da estrutura” (C.C 7,
v. 1, § 24: 239). Portanto, não levar em conta a possibilidade do erro, no campo político,
poderá ser fatal para um grupo que almeja tornar-se hegemônico na sociedade, seja o
proletariado ou a burguesia, seja essa ação de âmbito nacional ou internacional.
Gramsci retoma a questão da relação teoria-prática (C.C 7, v. 1, § 33: 242-244), dessa
vez, por intermédio do binômio ciência-ação, relacionando-a novamente à questão da
hegemonia: “a fundação de uma classe dirigente (isto é, de um Estado) equivale à criação de
uma Weltanschauung”. Gramsci afirma que Marx é um criador de Weltanschauung, isto é, de
visão de mundo, e Ilitch (Lenin) um organizador, homem de ação, embora ambos expressem
duas fases que são simultaneamente homogêneas e heterogêneas. Ou seja, historicamente é
absurdo traçar um paralelo entre ambos, no sentido de buscar-se uma hierarquia, da mesma
forma que se mostra absurdo o paralelo entre Cristo e São Paulo: “Cristo - Weltanschauung,
São Paulo - organização, ação, expansão da Weltanschauung; ambos são necessários na
47
[...] riferibile tanto all'egemonia proletaria quanto all'egemonia borghese, come, in genere, ad ogni rapporto di
egemonia. [...] Questo concetto generale di egemonia si constituisce nel pensiero di Gramsci attraverso la
differenziazione della funzione della direzione dalla funzione del dominio”.
48
“Egemonia in generale è solo capacità di guidare, nella misura in cui questa capacità si traduce in effettiva
direzione politica, intelettuale e morale”.
65
mesma medida, mas têm uma mesma estatura
histórica”
49
. Gramsci reconhece em Croce também essa visão de mundo que tiveram Cristo e
Marx, já que o pensamento desse autor atraiu energicamente a atenção para o estudo dos fatos
de cultura e de pensamento “como elementos de domínio político, para a função dos grandes
intelectuais na vida dos Estados, para o momento de hegemonia e do consenso como forma
necessária do bloco histórico concreto” (C.C.10, v. 1: 283). Nesse sentido, Gramsci afirma
que a filosofia da práxis não exclui a história ético-política; ao contrário, sua mais recente
fase de desenvolvimento consiste precisamente na “reivindicação do momento de hegemonia
como essencial à sua concepção estatal e à 'valorização' do fato cultural, da atividade cultural,
de uma frente cultural como necessária, ao lado das frentes meramente econômicas e
políticas”( C.C 10, v. 1, § 7: 295).
Embora Gramsci reconheça a enorme contribuição de Croce quanto à concepção da
história em termos ético-políticos, nem por isso deixa de ressaltar a oposição evidente entre
filosofia da práxis e crocianismo, oposição traduzida por Gramsci contra o caráter
especulativo deste. Decorre daí que o princípio teórico-prático da hegemonia, além do valor
psicológico e moral, possui também “um alcance gnosiológico [...] A realização de um
aparelho hegemônico, enquanto cria um novo terreno ideológico, determina uma reforma das
consciências e dos métodos de conhecimento, é um fato de conhecimento, um fato filosófico”
(C.C 10, v. 1, § 12: 320). Gramsci evidencia, dessa forma, o que exporá, com riqueza de
detalhes, nas Notas sobre o Estado e a política no Caderno 13, através de uma nova
concepção de Estado, do conceito de sociedade civil, 'guerra de movimento' e 'guerra de
posição'.
Para a filosofia da práxis,
as superestruturas são uma realidade (ou se tornam, quando não são meras elucubrações individuais)
objetiva e operante; ela afirma explicitamente que os homens tomam consciência da sua posição social
(e, conseqüentemente, de suas tarefas) no terreno das ideologias, o que não é uma mera afirmação de
realidade; a própria filosofia da práxis é uma superestrutura, é o terreno no qual determinados grupos
sociais tomam consciência do ser social, da própria força, das próprias tarefas, do próprio devenir (C.C
49
“Em outro local, assinalei a importância filosófica do conceito e da realidade da hegemonia, devido a Ilitch
[leia-se Lenin]. A hegemonia realizada significa a crítica real de uma filosofia, sua real dialética” (C.C 7, v. 1,
§ 33: 242).
66
10, v. 1, § 41: 388)
50
.
Para além do sentido até então atribuído pela tradição
51
, de que a ideologia é visão
falsa do real, Gramsci afirma que para a filosofia da práxis, as ideologias não são de modo
algum arbitrárias:
são fatos históricos reais, que devem ser combatidos e revelados em sua natureza de instrumentos de
domínio, não por razões de moralidade, etc., mas precisamente por razões de luta política: para tornar
os governados intelectualmente independentes dos governantes, para destruir uma hegemonia e criar
uma outra, como momento necessário da subversão da práxis (C.C 10, v. 1, § 41: 387).
Se há em Gramsci a aposta em novo tipo de sociedade, aqui parece se revelar, de
forma clara, o seu realismo político. Praticamente repete a mesma questão referente à
formação dos dirigentes, quando se pergunta se a existência de governantes e governados faz
parte de uma divisão perpétua do gênero humano ou se é apenas um fato histórico. Ora,
querer “tornar” os governados independentes intelectualmente é tarefa árdua, e, isso exige
tomar o campo ideológico que os tornam subalternos, numa outra perspectiva. De início, não
se pode continuar pensando a ideologia como quimera na cabeça dos “dominados”. É preciso
combatê-la no campo das relações sociais, historicamente. Ou seja, a reversão do quadro que
se apresenta aos “dominados” se daria em várias frentes: frente da cultura, das idéias e da
política, da linguagem e da educação, no seu sentido mais amplo possível
52
, não restrita às
50
É importante assinalar novamente a vinculação entre hegemonia e ideologia feita por Gramsci nessa nota, cujo
sentido diverge imensamente da visão marxista tradicional, presente, inclusive, na Ideologia Alemã, quando
ideologia quase se confunde com falsa visão da realidade.
51
Importante reter aqui, a idéia, segundo Eagleton, de que o conceito de hegemonia em Gramsci, além de
expandir a noção de ideologia, também empresta a esse termo, “um corpo material e um gume político”, pois
é com Gramsci que se efetua “a transição crucial de ideologia como 'sistema de idéias' para ideologia como
prática social vivida, habitual – que, então deve presumivelmente abranger as dimensões inconscientes,
inarticuladas da experiência social, além do funcionamento das instituições formais” (1997: 107).
52
“A escola como função educativa positiva e os tribunais como função educativa repressiva e negativa são as
atividades estatais mais importantes neste sentido: mas, na realidade, para este fim tende uma multiplicidade de
outras iniciativas e atividades chamada privadas, que formam o aparelho da hegemonia política e cultural das
classes dominantes” (C.C 8, v. 3, § 179: 284). Ou como pontua Debrun (2001: 207), ampliando, quiçá, o leque
de instituições anteriormente citadas por Gramsci: “O Bom Senso é o pivô, ao mesmo tempo, da expansão de
uma civilização, da hegemonia progressista exercida por determinado grupo e dos movimentos nacional-
populares. Como desenvolve-lo? A arte e a literatura constituem um meio privilegiado para fortalecer a
unidade popular, mas a expansão da civilização e da hegemonia requer uma educação propriamente dita”.
67
relações especificamente 'escolares'. Prova de que
existe, no entendimento de Gramsci, "um nexo entre produção ideológica e condição
histórica, uma coerência entre a representação da imaginação social e a situação social,
política, econômica” (GRAMPA, 1979: 260)
53
. Como visto, nexo que não é mero reflexo da
estrutura econômica.
Para Gramsci, toda relação de hegemonia é necessariamente uma relação pedagógica,
que se verifica não apenas no interior de uma nação, entre as diversas forças que a compõem,
“mas em todo o campo internacional e mundial, entre conjuntos de civilizações nacionais e
continentais (C.C 10, v. 1, § 44: 399). Mas a hegemonia pode ser tanto uma relação
pedagógica existente, assim como uma outra desejada. E quando está em questão uma
formação de consenso, este não deveria ser resultado de manipulações. Daí a preocupação de
Gramsci com a questão do “dizer a verdade” na política: “em política pode-se falar de
discrição, não de mentira no sentido mesquinho em que muitos pensam: na política de massa,
dizer a verdade é precisamente uma necessidade política” (C.C, v. 3, § 19: 225). Coloca-se
aqui o nexo entre poder e conhecimento, bem como a transformação dos interesses
corporativos em universais, como sendo as duas faces da hegemonia.
Ou seja, é uma necessidade política “dizer a verdade” quando se trata de autonomia
das massas, marcando assim a diferença entre a “pedagogia política” proletária e o modus
operandi da classe burguesa diante da política. Isso significa que “o primeiro interesse do
proletariado é exatamente o desvelamento dos enganos ideológicos que ocultam a dialética da
realidade”, enquanto que a burguesia, procurando conciliar interesses opostos e contraditórios
“é estruturalmente incapaz de transparência porque deve mascarar o antagonismo das
relações econômicas e ocultar de algum modo a realidade” (GERRATANA, 1997: 124 )
54
. A
filosofia da práxis, ao contrário, não tende a resolver pacificamente as contradições existentes
na história e na sociedade,
53
[...] un nesso tra produzione ideologica e condizione storica, una coerenza tra le rappresentazioni
dell'immaginazione sociale e la situazione sociale, politica, economica".
54
“[...] il primo interesse del proletariato è proprio il disvelamento degli inganni ideologici che occultano la
dialettica della realtà . [...] è strutturalmente incapace di trasparenza perchè deve mascherare l'antagonismo
dei rapporti economici e nascondere in qualche modo la realtà [...]”.
68
ela é a própria teoria de tais contradições; não é o
instrumento de governo de grupos dominantes para obter o consentimento e exercer a hegemonia sobre
as classes subalternas; é a expressão destas classes subalternas, que querem educar a si mesmas na arte
de governo e que têm interesse em conhecer todas as verdades, inclusive as desagradáveis, e em evitar
os enganos (impossíveis) da classe superior e, ainda mais, de si mesmas (C.C 10, v. 1, § 41: 388).
A “catarse”, no sentido de superação de corporativismos de classe, promovida pelo
proletariado, não teria sustentação, caso fosse forjada no campo da mentira e do engano; ela é
à vontade de não mentir a si próprio, querer conhecer todas as verdades. Colocados frente a
frente os dois modos – proletário e burguês - de operarem no campo político, Gramsci
sublinha o aspecto da qualidade do consenso que resulta quando uma ou outra classe exerce a
hegemonia: “enquanto para a hegemonia de uma classe que tende a ocultar o antagonismo dos
interesses é suficiente obter um consenso passivo e indireto – e é esta a forma normal do
consenso político nos regimes democrático-burgueses ou autoritários” (GERRATANA, 1997:
126), na perspectiva da hegemonia do proletariado, o consenso não deve ocorrer de forma
passiva e indireta. O proletariado enquanto Moderno Príncipe não tem como superar
“corporativismos”, propor a “reforma moral”, senão de forma “ativa e direta”, mesmo antes
da “conquista do poder”, reforma que segue adiante, após a “conquista do poder”
55
. Portanto,
a ação qualitativa do partido proletário em relação à classe burguesa é a ação no sentido de
superar a divisão entre dirigentes e dirigidos. A atuação da reforma moral e intelectual nas
massas “é a manifestação ideológica principal antes da luta pelo socialismo e, depois, da sua
plena realização”. Ela coincide, portanto, “com o grau de hegemonia alcançado pelo
proletariado revolucionário e com a capacidade de autogoverno” (SALVADORI, 1977: 55
)
56
.
Colocar a questão dessa maneira é colocar em questão a própria democracia, seus
significados e seu modus operandis. Para a burguesa, “a democracia se realiza como sufrágio
55
Nesse processo de construção da hegemonia, não se pode, como observa Gramsci, ter medo de enfrentar as
polêmicas e cisões e superá-las, pois elas são inevitáveis, e “evitá-las significa somente adiá-las para quando já
forem perigosas ou mesmo catastróficas, etc” (C.C 6, v. 2, § 79: 232).
56
“L'attuazione della riforma morale e intellettuale nelle masse è la manifestazione ideologica principale prima
della lotta per il socialismo e poi della sua piena realizzazione. Essa coincide con il grado di egemonia
raggiuntto dal proletariato rivoluzionario e con la capacità di autogoverno”.
69
universal sobre a base da propriedade”; para os
socialistas, a democracia se realiza na medida em que se “transfere sobre o plano social”
(SALVADORI, 1977: 6)
57
. O Moderno Príncipe, mesmo que identificado ao partido único
58
,
não poderia ser a expressão da democracia moderna enquanto não colocasse no centro da vida
social a questão da própria burocracia (“jaula de fero”), tal como a descreve Weber. Ao
contrário do que normalmente se difunde, para Gramsci o partido é um organismo que
contribui para a “formação e o crescimento de uma sociedade poliárquica” (MONTANARI,
1997: XXXVII). Tal associação, “concebe-se a si mesma como ligada por milhões de fios a
um determinado agrupamento social e, através dele, a toda a humanidade”. Portanto, esta
associação não se considera como algo definitivo e enrijecido, mas como “tendente a ampliar-
se a todo um agrupamento social, que é também considerado como tendente a unificar toda a
humanidade”. A política, nesse sentido, é concebida como “um processo que desembocará na
moral, isto é, como tendente a desembocar numa forma de convivência na qual a política e,
conseqüentemente, a moral serão ambas superadas” (C.C 6, v. 2, § 79: 231).
6. "Guerra de movimento" e "guerra de posição"
Gramsci procura esclarecer a distinção entre "guerra de movimento" e "guerra de
posição" nos seguintes termos:
[...] com a expansão colonial européia, todos os elementos se modificam, as relações de organização
internas e internacionais do Estado tornam-se mais complexas e robustas; e a formula da 'revolução
permanente', própria de 1848, é elaborada e superada na ciência política com a formula de 'hegemonia
civil'. Ocorre na arte política o que ocorre na arte militar: a guerra de movimento torna-se cada vez mais
guerra de posição; e pode-se dizer que um Estado vence uma guerra quando a prepara de modo
minucioso e técnico no tempo da paz. A estrutura maciça das democracias modernas seja como
57
“per i democratici borghesi la democrazia si realizza con il suffragio universale sulla base della proprietà; per i
socialisti la democrazia si realizza solo se viene trsferita sul piano sociale”.
58
É importante destacar que Gramsci nunca deixou de defender a idéia de alianças entre os partidos e
movimentos populares que reivindicavam formas de emancipação política e sociais, haja vista a sua ênfase
na idéia de que os problemas vivenciados pelo próprio proletariado não estavam dissociados dos problemas
dos pobres campesinos.
70
organizações estatais, seja como conjunto de associações
na vida civil, constitui para a arte política algo similar às 'trincheiras' e às fortificações permanentes da
frente de combate na guerra de posição: faz com que seja apenas 'parcial' o elemento do movimento que
antes constituía 'toda' a guerra, etc (C.C 13, v. 3, §7: 23-24).
A passagem indica o reconhecimento da maior complexidade no arcabouço das
análises teórico-políticas, o que faz Gramsci distinguir-se da perspectiva política marxista
clássica. Sem desmerecer as análises de Marx sobre o Estado, Gramsci ressalta que, além do
elemento força, o Estado no século XX é fruto também do elemento consensual, proveniente
das 'trincheiras' da sociedade civil. Isso significa que Gramsci não considera a política algo
ruim ou negativo, algo apenas dependente da economia. Assinala, dessa maneira, um desafio
teórico para entendermos o campo político no “ocidente”: a mudança ocorrida na tática de
'guerra de movimento' para a tática de 'guerra de posições'. Dessa forma, a melhor tática
política para aqueles movimentos sociais que propõem mudanças na sociedade, no sentido de
emancipá-la política e socialmente, talvez não seja o 'aventurismo', antes requer uma
criteriosa leitura dos elementos que operam como “solda” das relações sociais na esfera da
sociedade civil. Isso significa que o social e o político tomados do ponto de vista da
totalidade, “congregam uma dialeticidade” com outros conceitos essenciais do pensamento
político de Gramsci, para pensarmos, ainda, “as novas determinações da realidade
contemporânea” (SIMIONATTO, 2001: 4).
Dito de outro modo: a complexa rede de poder que se estabelece no Ocidente se
traduz em termos de força e consenso, tal como Maquiavel havia descrito no final da Idade
Média. Gramsci resgata nesse autor e nos antigos, as duas faces do poder entrelaçadas,
descritas separadamente pelos liberais. Portanto, as estratégias possíveis no campo político
para a mudança das sociedades ocidentais na contemporaneidade não se situam no tempo da
fulminação e do ataque frontal, mas na estratégia do tempo longo, exigido pelas mudanças
culturais. Isso dá lugar ao cenário de conflito social, complexo e múltiplo. A “guerra de
posição” na perspectiva de Gramsci é uma guerra “prolongada no tempo, travada num espaço
social amplo e heterogêneo, que inclui mais de uma frente simultânea, com avanços e
retrocessos parciais, numa situação de assédio recíproco”, dado que ataques e contra-ataques
podem surgir a qualquer momento. O conceito de Revolução é resgatado por Gramsci, “mas
sob a laboriosa gestação” e não de um “acontecimento único e irreversível”. Ao contrário, é
71
um fenômeno aberto à ruptura de todas e de cada uma
das relações marcadas pela opressão e pela desigualdade. A disputa de classes fica assim
explicada como “um fenômeno multívoco, cujas diversidades e complexidade aumentam com
a diversidade e a complexidade das sociedades” (CAMPIONE, 2003: 54).
Nesse caso, a “guerra de posição” entendida como campo de conflitos culturais,
religiosos, de sistemas de valores e ideológicos, é expressão tanto da sociedade civil (um
complexo de associações voluntárias), quanto das organizações do Estado. Ou seja, “o nível
de articulação e complexidade na sociedade civil se espelha na sociedade política”, porque as
organizações do Estado, “apesar de jurídica e analiticamente distintas daquelas da sociedade
civil”, se enraízam e baseiam na sociedade civil, a qual fornece “os recursos educacionais e
culturais que determinam o caráter das organizações do Estado” (FONTANA, 2003: 117).
Mesmo que houvesse aqui uma distinção legal e jurídica entre ambas as esferas, “no nível
político, social e econômico a distinção é puramente analítica e formal”, isto porque, a força
material e moral do Estado decorre precisamente da sua “capacidade de assimilar a atividade
cultural e ideológica (eleitoral, educacional, política, econômica e até mesmo religiosa) que
acontece na sociedade civil e transformá-la em apoio legitimador”. Desse modo, a guerra de
posição ocorre no interior da sociedade civil. Ela pressupõe o consenso no interior dessa
“estrutura cultural/política e organizacional dos protagonistas, e o conflito e a luta entre eles”.
Trata-se assim, de uma série de “batalhas morais e intelectuais, cujo objetivo é a construção
da realidade social e política” (FONTANA, 2003: 118-119).
Isso significa que entre domínio e direção não há contraposição, mas complementação,
mesmo que tensa. O jogo político não seria um jogo do tipo “oito ou oitenta”, “isto ou
aquilo”, “tudo ou nada”. Gramsci foi o autor que melhor compreendeu, no campo marxista, a
nova relação entre Estado e sociedade que se realiza na modernidade do século XX, “seja sob
a forma do Estado fascista ou do Estado keinesiano, do Estado bolchevique ou do Estado
social-democrata" (LIGUORI, 2003: 174). É o fenômeno da "ampliação do conceito de
Estado" que Glucksmann (1980) descreve extensamente; esta expressão foi alcunhada pelo
72
próprio Gramsci
59
. A ampliação do conceito ocorre em
dois planos. De um lado, a nova relação entre política e economia, iniciada com a Primeira
Guerra Mundial e reforçada depois da crise de 1929; e, por outro, a compreensão da nova
relação entre sociedade civil e sociedade política, entre hegemonia e coerção (LIGUORI,
2003: 175). Contra várias interpretações que tendem a separar em Gramsci sociedade política
de sociedade civil, Liguori defende a tese de que "a peculiaridade dialética do pensamento de
Gramsci impede uma 'distinção orgânica' entre Estado e sociedade" (LIGUORI, 2003: 175).
Certamente, sua crítica é duramente direcionada à interpretação que Norberto Bobbio faz de
Gramsci, a qual se tornou, de certa maneira, a mais difundida e conhecida a partir da década
de 70 do século XX.
7. Maquiavel: símbolo da vontade coletiva
Nos Cadernos 13 e 19 Gramsci apresenta novos contornos da questão da hegemonia.
Na análise do Príncipe Moderno, Gramsci afirma que Maquiavel examina, sobretudo as
“questões de grande política: criação de novos Estados, conservação e defesa de estruturas
orgânicas em seu conjunto; “questões de ditadura e de hegemonia em ampla escala”, isto é,
em toda a área estatal, para em seguida mencionar a análise de Russo, nos Prolegomeni, o
qual faz do Príncipe,
o tratado da ditadura (momento da autoridade e do indivíduo) e, dos Discorsi, o tratado da hegemonia
(momento do universal e da liberdade). A observação de Russo é exata, embora também no Príncipe
não faltem referências ao momento da hegemonia ou do consenso, ao lado daquele da autoridade ou da
força. Assim, é justa a observação de que não há oposição entre principado e república, mas se trata,
sobretudo da hipótese dos dois momentos de autoridade e universalidade (C.C 13, v. 3, v. 3, § 5: 22).
59
Ao menos na passagem do C.C 6, § 87.
73
Ou seja, contra certa interpretação do conceito de
hegemonia, que procura destacar tão somente o aspecto consensual
60
, ou outra que conta só
com o aspecto da força, Gramsci lembra aqui a figura do centauro aludido por Maquiavel,
enquanto alegoria para demarcar o campo político, interpretando-o como sinônimo de paixão
e razão, homem e animal, força e consenso, autoridade e universalidade. Ou, ainda, a 'dupla
perspectiva' na ação política e na vida estatal:
Vários graus nos quais se pode apresentar a dupla perspectiva, dos mais elementares aos mais
complexos, mas que podem ser reduzidos teoricamente a dois graus fundamentais, correspondentes à
natureza dúplice do Centauro maquiavélico, ferina e humana, da força e do consenso, da autoridade e
da hegemonia, da violência e da civilidade, do momento individual e daquele universal (da 'Igreja' e do
'Estado'), da agitação e da propaganda, da tática e da estratégia, etc. Alguns reduziram a teoria da 'dupla
perspectiva' a algo mesquinho e banal, ou seja, a nada mais que duas formas de 'imediaticidade', que se
sucedem mecanicamente no tempo, com maior ou menor 'proximidade'” (C.C 13, v. 3, § 14, v. 3: 33-
34).
Ou seja, não há relação de poder sem a imbricação da natureza dúplice do Centauro,
mesmo que possa ocorrer, em determinada época ou tempo, a sobreposição de uma face
(força) sobre a outra (consenso), ou vice versa, daí podermos falar de democracia ou ditadura.
Gramsci não vê para o proletariado possibilidades de uma ação política efetiva senão coloca
para si mesma, enquanto classe, “o problema da unidade territorial, que é condição para a
realização da hegemonia” (SANGUINETTI, 1981: 38)
61
. Em outras palavras, se o
proletariado não coloca desde o início, a aliança com os campesinos para superar a luta
regional (rumo ao nível nacional-popular), tenderá ao fracasso político. Ou seja, o problema
teórico-prático da hegemonia “é de fato aquele da fundação de um novo Estado através do
consenso que a classe hegemônica deve obter a nível nacional” (SANGUINETTI, 1981:
41)
62
. Se para Maquiavel o problema central da política é a fundação do Estado, o mesmo não
60
“[...] a hegemonia nunca é simples direção de um grupo sobre outros – direção quem em tese, seria compatível
com uma perfeita simetria dos dois pólos, já que existe um em função do outro –, mas também dominação,
mesmo quando o elemento de coação é reduzido a um mínimo. Nessas condições, a dominação não é apenas
um limite externo da hegemonia e do consenso, mas algo inscrito, em parte, na sua própria definição”
(DEBRUN, 2001: 283).
61
“[...]non si pone il problema dell'unità territoriale, che è condizione per la realizzazione dell'egemonia.”
62
“Il problema teorico-pratico dell'egemonia è infatti quello della fondazione di un nuovo Stato attraverso il
consenso che la classe egemone deve ottenere a livelo nazionale.”
74
deixa de ser verdadeiro para Gramsci. É certo que a
hegemonia nasce na fábrica, como diz Gramsci, mas ao mesmo tempo a transcende, na
medida em que busca ser Estado integral, procurando unificar Estado e sociedade civil. Dessa
forma, a estrutura do moderno Príncipe é resultante da formação de uma vontade coletiva
nacional-popular e reforma intelectual e moral, isto é, Reforma e Renascimento, movimentos
culturais e políticos, que indicam no pensamento de Gramsci as qualidades que deveria
possuir o proletariado enquanto representante de uma vontade orgânica.
Nos Cadernos do cárcere "a filosofia da práxis é a filosofia de Marx + a práxis de
Lenin", sendo que a primeira coisa a colocar, do ponto de vista teórico (Maquiavel e Marx),
“é o problema da 'política como ciência autônoma'”, e, do ponto de vista histórico-político
(Maquiavel e Lenin), “é o jacobinismo de Maquiavel” (SANGUINETTI, 1981: 65)
63
.
Maquiavel é o filósofo da práxis a partir de uma interpretação marxista e leninista de
Maquiavel. Gramsci é o primeiro estudioso a colocar de forma concreta o problema nos
seguintes termos: a) problema teórico: uma reforma intelectual e moral do marxismo; b)
problema prático: formação de uma vontade política coletiva, nacional-popular
(SANGUINETTI, 1981: XI). O problema é teórico e político ao mesmo tempo.
O conceito gramsciano de hegemonia implica dois níveis complementares: "1) o tipo
de relação que pode conquistar a direção 'cultural moral' e a direção política das massas
populares; 2) a articulação da classe através da qual o partido organiza sua hegemonia"
(PIOTTE, 1970: 77-78)
64
. A questão é evidenciada quando Gramsci analisa a questão da
'relação de forças', até então colocada de forma abstrata. Pode-se distinguir aí, diversos
momentos ou graus, segundo Gramsci: 1) Uma relação de forças sociais estreitamente ligada
à estrutura objetiva, independente da vontade dos homens; 2) Momento das relações políticas,
63
"[...] la filosofia della práxis è la filosofia di Marx + la práxis di Lenin [...] è il problema della 'politica come
scienza autonoma. [...] è il giacobinismo di Machiavelli”.
64
"1) le type de rapport qui peut assurer au parti la direction 'culturelle-morale' et la direction politique des
masses populaires; 2) l'articulation de classe par laquelle le parti organise son hégémonie [...]”. A partir dessa
leitura de Piotte, Laclau (1979: 147) comenta que a grande maioria dos estudiosos de Gramsci não se
aperceberam dos traços originais e específicos do pensamento do autor, exatamente, porque teriam se
eclipsado pela relação Lenin-Gramsci. Para Laclau, os grandes temas do comunismo italiano - o partido de
massas, a democracia progressiva, as tarefas nacionais da classe operária, dentre outros- tal como os
desenvolveu Togliatti, por exemplo, seriam incompreensíveis à margem do conceito de hegemonia.
75
que segundo Gramsci, pode ser analisado e diferenciado
em vários graus: a) o primeiro e mais elementar é o econômico-corporativo; b) aquele em se
atinge a consciência da solidariedade de interesses entre os membros do grupo social no
campo meramente econômico; c) a fase mais estritamente política, que assinala a passagem
nítida da estrutura para a esfera das superestruturas complexas, é a fase em que as ideologias
geradas anteriormente se transformam em 'partido', as quais entram em confrontação e lutam.
Lutam até que uma delas, ou pelo menos uma combinação delas, tenda a prevalecer, a se
impor, a se irradiar por toda a área social,
determinando, além da unicidade dos fins econômicos e políticos, também a unidade intelectual e
moral, pondo todas as questões em torno das quais ferve a luta não no plano corporativo, mas num
plano 'universal', criando assim a hegemonia de um grupo social fundamental sobre uma série de
grupos subordinados (C.C 13, v. 3, § 17: 40-4)
65
.
A hegemonia “se exercita por um ato de vontade coletiva” (FERREIRA, 1986: 113),
função que os partidos procuram realizar na sociedade enquanto organizam o saber e
produzem cultura, no sentido de “organizar e produzir democracia” (MONTANARI, 1977:
XLV). Processo que Gramsci define através da já mencionada categoria "catarse": ação
através da qual uma classe supera seus interesses econômico-corporativos imediatos "e se
eleva a uma dimensão universal, ético-política, que está na origem de 'novas iniciativas'"
(COUTINHO, 2001: 71). "Catarse" e "bloco histórico" equivalem, no vocabulário
gramsciano, à relação entre e estrutura-superestrutura em Marx. Equivale, ainda, segundo
Gramsci, à passagem do "objetivo ao subjetivo" e da "necessidade à liberdade”
66
. Também é
“o que configura uma relação de hegemonia” (COUTINHO, 1999: 277). O conceito em
Gramsci é fruto de inspiração na crítica de Croce, o qual sustenta o caráter economicista e
fatalista do marxismo “por sua pretendida separação entre estrutura ('o deus desconhecido') e
65
“O desenvolvimento do jacobinismo (de conteúdo) e da formula da revolução permanente aplicada na fase
ativa da Revolução Francesa encontrou seu 'aperfeiçoamento' jurídico-constitucional no regime parlamentar,
que realiza – no período mais rico de energias 'privadas' na sociedade – a hegemonia permanente da classe
urbana sobre toda a população” (C.C 13, v. 3, § 37: 93).
66
Fala-se aqui não mais de necessidade no caso teórico, mas no fato de que a história passada estabelece um
ponto de partida indispensável como tal para construir-se algo novo, e esse novo, repitamo-lo, é apenas
possível, e não necessário. E enquanto é possível, é também vinculado à liberdade.
76
superestrutura (meras aparências e na realidade
enganos)” (KANOUSSI, 2000: 57).
Para Gramsci, a classe burguesa põe-se a si mesma como um organismo em contínuo
movimento, capaz de absorver toda a sociedade, “assimilando-a a seu nível cultural e
econômico; toda a função do Estado é transformada: o Estado torna-se 'educador', etc” (C.C 8,
v. 2, § 2: 271). O objetivo do proletariado não deveria ser diferente, já que “a fundação de
uma classe dirigente (isto é, de um Estado) equivale à criação de uma Weltanschauung" ( C.C
7, v. 1, § 33: 242)
, de uma visão de mundo. Nesse sentido, a afirmação e a persistência da
hegemonia de um grupo só têm sentido e pode ser compreendida se estiver presente “o
processo histórico que permitiu a cristalização dessa supremacia, isto é, a transformação da
'filosofia' em senso comum”. A hegemonia, além de ser a maneira de refletir sobre o
equilíbrio do mundo, “é um sistema de organização das condutas” (FERREIRA, 1986: 126).
Ou, dito de outra forma: "maneira de pensar e sentir a vida que expresse com coerência um
determinado sistema de valores culturais", já que "a agonia humana não se resume no esforço
de superação das necessidades humanas como o objetivo de trabalhar e acumular para viver"
(FERREIRA, 1986: 57-63-64). Isto é, fazer frente às carências materiais (para lembrarmos Marx)
não constitui o único aspecto da sociabilidade humana.
A crítica de Gramsci ao economicismo
67
da vulgata aponta a maneira como ele
procura entender as complexas relações envolvidas na supremacia de uma concepção do
mundo sobre outra. A formação de uma hegemonia, na perspectiva de Gramsci, não é um
fenômeno que se explique tão somente pelo viés da relação homem-produção
68
. Sem dúvida,
é um fator importante, mas não é único. Um grupo é hegemônico, na medida em que
consegue fazer com que o outro grupo, ou outros grupos adiram a três coisas
concomitantemente: um modo de vida, um modo de pensar e um modo de agir. O campo em
67
“A pretensão (apresentada como postulado essencial do materialismo histórico) de apresentar e expor
qualquer flutuação da política e da ideologia como uma expressão imediata da infra-estrutura deve ser
combatida, teoricamente, como um infantilismo primitivo [...]” (C.C 7, v. 1, § 24: 238).
68
Tal como assinala Gramsci, a relação elementar do homem com a natureza nunca procede de forma mecânica:
o homo faber não é separado do homo sapiens: "em qualquer trabalho físico, mesmo no mais mecânico e
degradado, existe um mínimo de qualificação técnica, isto é, um mínimo de atividade intelectual criadora
[...]" (C.C 12, v. 2, § 1: 18).
77
que se exerce a hegemonia, aceitando-se a definição
sugerida, de ser ela a supremacia de uma conduta sobre outra, "não é especificamente o da
economia, mas o da política enquanto conjunto de práticas destinadas a assegurar a
manutenção do aparelho de Estado, (ou sua conquista) associado ao de cultura" (FERREIRA,
1986: 37). Nisso consistiria a originalidade de Gramsci, que considera a realização de um
aparelho hegemônico, enquanto "criação de um novo terreno ideológico, como fato de
consciência, como reforma cultural [...] o princípio teórico-prático da hegemonia tem um
alcance orgânico e gnosiológico [...]" (SANGUINETI, 1981: 61)
69
.
Não seria o poder como relação que Gramsci procura descrever através do conceito de
hegemonia? Sem desconsiderar o fundamento ontológico da economia
70
, Gramsci procura
superar a concepção tradicional que limita a concepção do poder e da política aos aparelhos
de coerção do Estado. Mas, além do debate com a concepção marxista tradicional de poder,
Gramsci também debate com a concepção liberal de poder. O texto que segue nos remete à
ampliação da noção de poder que estamos tentando explicitar:
O critério metodológico sobre o qual se deve basear o próprio exame é este [do poder, é claro]: a
supremacia de um grupo social se manifesta de dois modos, como 'domínio' e como 'direção intelectual
e moral'. Um grupo social domina os grupos adversários, que visa a 'liquidar' ou a submeter inclusive
com a força armada, e dirige os grupos afins e aliados. Um grupo social pode e, aliás, deve ser dirigente
já antes de conquistar o poder governamental (esta é uma das condições principais para a própria
conquista do poder); depois, quando exerce o poder e mesmo se o mantém fortemente nas mãos, torna-
se dominante, mas deve continuar a ser também 'dirigente' (C.C, 19, v. 6, § 24: 62-63).
Isto é, um grupo não se torna hegemônico em função do mero exercício repressivo de
69
"[...] creazione di un terreno ideologico, come fatto di conoscenza, come riforma culturale [...] il principio
teorico-pratico dell'egemonia ha una portata organica e gnoseologica".
70
Foucault, no que tange a essa preocupação de fazer uma análise não puramente economicista do poder. Talvez
se possa aproximar a descrição da capilaridade do poder em Foucault com a descrição feita pelo próprio
Gramsci do poder das “trincheiras” da sociedade civil no "Ocidente". Pergunta-se Foucault:“O poder está
sempre em posição secundária em relação à economia? Tem essencialmente como razão de ser e fim servir a
economia, está destinado a fazê-lo funcionar, a solidificar, manter e reproduzir as relações que são
características desta economia e essenciais ao seu funcionamento?” (FOUCAULT, 1979: 175). Para se fazer
uma análise não econômica do poder, de que instrumentos se dispõem hoje? "Creio que de muitos poucos.
Dispomos da afirmação de que o poder não se dá, não se troca nem se retoma, mas se exerce, só existe em
ação, como também da afirmação que o poder não é principalmente manutenção e reprodução das relações
econômicas, mas acima de tudo uma relação de força. Questão: se o poder se exerce, o que é este exercício,
em que consiste, qual é sua mecânica?" (idem. p. 175).
78
sua força, ou tão somente em função de um amplo
debate de uma comunidade de falantes. Ao contrário, um grupo se torna hegemônico numa
relação de forças política, cultural e econômica. Na relação de poder, política, cultura e
economia, força e consenso operam dialeticamente. Portanto, toda ação é hegemônica na
medida em que um grupo social muda à conduta de outro, tendo em vista um fim e um
objetivo: "estabelecer a supremacia de uma nova concepção de mundo e como objetivo
apoderar-se do aparelho de Estado", para a partir dele, "estabelecer novas condições legais de
definição de status, na esperança de que a imposição legal se transforme em social"
(FERREIRA, 1986: 225). A hegemonia é movimento que vai do “subjetivo ao
intersubjetivo”, um movimento que é “epistemológico e político ao mesmo tempo”
(FONTANA, 1977: 79). Ao analisar o problema da direção política na formação e no
desenvolvimento da nação e do Estado moderno na Itália, Gramsci define a hegemonia nos
seguintes termos:
O exercício 'normal' da hegemonia, no terreno tornado clássico do regime parlamentar, caracteriza-se
pela combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo variado, sem que a força suplante
em muito o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da
maioria, expresso pelos chamados órgãos da opinião pública – jornais e associações – os quais, por
isso, em certas situações, são artificialmente multiplicados (C.C 13, v. 3, v. 3. § 37: 95).
Numa ação hegemônica, trata-se de desarmar o inimigo, apoderando-se do aparelho de
Estado, condição necessária, mas não suficiente para que um grupo se torne hegemônico. É
sobre essas 'relações invisíveis' que a ação hegemônica ("ação polar", "relação de constante
hostilidade") se desdobra "no campo social latu sensu", e não apenas do político (FERREIRA,
1986: 230), num jogo de destruição e criação ao mesmo tempo, pois não se trata de destruir
coisas materiais, “trata-se de destruir 'relações' invisíveis, impalpáveis, mesmo que se
escondam por detrás das coisas materiais (C.C 6, v. 4, § 30: 105). Na descrição do Príncipe
moderno, Gramsci fornece uma descrição da nova realidade política do período posterior a
1870 através da fórmula 'hegemonia social', apontando também para outra noção de Estado,
no sentido de que o período posterior a 1870, todos estes elementos se modificam, “as
relações de organização interna e internacional do Estado tornam-se mais complexas e
robustas; e a formula da 'revolução permanente', própria de 1848, é elaborada e superada na
79
ciência política com a formula de 'hegemonia civil'”
(C.C 13, v. 3, § 7: 24).
Isto é, a estratégia da “revolução permanente” ou da “guerra de movimento” utilizada
pelos grupos políticos que reivindicavam emancipações sociais e políticas (próprias da
Comuna de Paris, por exemplo) já não serviria como exemplo de estratégias políticas no
século XX. A passagem da “guerra de movimento” (e do ataque frontal) à “guerra de
posição” também no campo político “parece ser a mais importante questão de teoria política
colocada pelo período do pós-guerra e a mais difícil de ser resolvida corretamente (C.C 6, v.
3, § 138: 255). Não resta dúvidas que a compreensão dessa importante questão teórico-
política, sublinhada por Gramsci está relacionada à questão do Estado e sua relação com a
economia e a sociedade civil, espaços onde se elabora a hegemonia de um grupo sobre outro.
CAPÍTULO III
ESTADO E SOCIEDADE CIVIL EM GRAMSCI
O terceiro capítulo apresenta o conceito de sociedade civil em Gramsci, perguntando-
se pó seus alcances e limites. Tal conceito não está separado do conceito de Estado, que
Gramsci o concebe numa dimensão ampliada, ou seja, a junção entre a sociedade política e a
sociedade civil. Aqui, dar-se-á também destaque à leitura que Perry Anderson e Norberto
Bobbio fazem do conceito gramsciano de sociedade civil e de hegemonia. Serão apresentadas
as principais críticas a essas leituras através de estudiosos do pensamento político de Gramsci,
dentre eles, os italianos Guido Liguori, Domenico Losurdo, Giuseppe Vacca, e os brasileiros
Marco Aurélio Nogueira e Carlos Nelson Coutinho.
80
1. Sociedade política e sociedade civil
Por que, ao ampliar a noção de Estado, Gramsci inclui aí a sociedade civil? Que
funções têm a sociedade civil numa sociedade do tipo 'ocidental', do capitalismo
desenvolvido? Que função desempenha a sociedade política? E nas sociedades do Leste, que
função tem ambas as esferas?
Na política, diz Gramsci “o erro acontece por uma inexata compreensão do que é o
Estado (no significado integral: ditadura+hegemonia)” (C.C 13, v. 3, § 155: 257). Ou seja,
incompreensão de que o campo político, para além dos elementos de força, domínio,
repressão, "guerra de movimento", constitui-se também de consenso, direção, persuasão,
"guerra de posição". Para Gramsci, “o Estado é todo o complexo de atividades práticas e
teóricas com as quais a classe dirigente não só justifica e mantém seu domínio, mas consegue
obter o consenso ativo dos governados [...]” (C.C 15, v. 3, § 10, 331). Assim, Gramsci opõe-
se a duas concepções passivas de Estado: tanto a concepção liberal de Estado, cuja
característica é ser guardião da lei e protetor dos proprietários, o qual procura evitar o mal
maior, sem promover o bem. A outra concepção é a de que o Estado é mero resultado de uma
luta de classes. Para Gramsci, ao contrário, nenhum Estado desenvolve o conjunto complexo
de atividades práticas e teóricas sem ser 'educador', 'civilizador'. Se todo Estado tende a criar e
a manter um certo tipo de civilização e de cidadão, diz Gramsci, tende também,
a fazer desaparecer certos costumes e atitudes e a difundir outros, o direito será instrumento para esta
finalidade [...] Na realidade, o Estado deve ser concebido como 'educador' na medida em que tende
precisamente a criar um novo tipo ou nível de civilização [...] O Estado, também neste campo, é um
instrumento de 'racionalização', de aceleração e de taylorização; atua segundo um plano, pressiona,
incita, solicita e 'pune' (C.C 13, v. 3, v. 3, § 11: 28).
A concepção gramsciana de Estado procura dar conta, teoricamente, de uma “intensa
socialização da política”, que resultou, entre outras coisas, da “conquista do sufrágio
universal, da criação de grandes partidos de massa, a ação efetiva de numerosos e potentes
81
sindicatos profissionais e de classe”. A esfera política
'restrita' que era própria dos Estados elitistas – tanto autoritários como liberais – “cede
progressivamente lugar a uma nova esfera pública ‘ampliada’, caracterizada pelo
protagonismo político de amplas e crescentes organizações de massa” (COUTINHO,1985:
59).
Metodologicamente, Gramsci sugere que se distinga bem a sociedade civil, no sentido
entendido por Hegel, e no sentido em que é muitas vezes usada nas notas, isto é, “no sentido
de hegemonia política e cultural de um grupo social sobre toda a sociedade, como conteúdo
ético do Estado”. E agrega,
[...] se deve notar que na noção geral de Estado entram elementos que devem ser remetidos à noção
de sociedade civil (no sentido, seria possível dizer, de que Estado = sociedade política + sociedade
civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção)[...] Mas isto significa que por 'Estado' deve-se
entender, além do aparelho de governo, também o aparelho 'privado' de hegemonia ou sociedade
civil' (C.C 13, v. 3, § 24: 225)
71
.
Em outra passagem (III ponto do § 41, do Q10), ao descrever os pontos de referência
para um ensaio sobre Croce, Gramsci toca na questão da hegemonia relacionando-a, por sua
vez, à noção de crise, nos seguintes termos:
A aproximação dos dois termos ética e política para indicar a mais recente historiografia crociana é a
expressão das exigências nas quais se move o pensamento histórico crociano: a ética se refere às
atividades da sociedade civil, à hegemonia; a política se refere à iniciativa e à coerção estatal-
governamental (C.C 10, v.1, § 41: 371)
72
.
Para Gramsci toda ciência e a arte políticas baseiam-se num fato primordial e
irredutível: “existem efetivamente governantes e governados, dirigentes e dirigidos”. A
questão primordial para Gramsci é saber se tal divisão do gênero humano é perpétua, ou é
apenas um fato histórico (C.C 15, v. 3, § 4: 324-325)
73
. Por isso, ao perguntar-se quando um
71
Cf. Q 13, § 88: 244; Q 13, § 137: 254-255.
72
“[...] fala-se de 'crise de autoridade': e isso é precisamente a crise de hegemonia, ou crise do Estado em seu
conjunto” (C.C 13, v. 3, v. 3, § 23: 60).
73
Para Vacca (1996: 108), em linguagem habermasiana, o postulado aqui, é que, diversamente do que ocorrera
até então, "as relações entre governantes e governados podem tornar-se plenamente comunicáveis e
82
grupo faz sua visão de mundo ser a dos demais, coloca-
se, em certo sentido, o problema das organizações que sustentam essa visão de mundo ou essa
hegemonia, que, na perspectiva de Gramsci, não se reduz ao campo nacional-popular
74
. Em
outras palavras, há que se perguntar pelo “portador material da função social da hegemonia”
(COUTINHO, 1999: 69). A hegemonia tem na sociedade civil seu “par lógico e político”, e
esta, por sua vez, “não se sustenta fora do campo do Estado e muito menos em oposição
dicotômica ao Estado” (NOGUEIRA, 2003: 222-223). Procuraremos pensar essa relação,
mais adiante, em termos dialéticos, como sugere o próprio Gramsci. A opção pela pesquisa do
tema do Estado em Gramsci, pouco tratado até então, deve-se ao fato de que o tema obriga de
imediato a retomar sistematicamente as grandes questões políticas que se colocaram para
Gramsci, em função da conjuntura nacional e internacional das lutas de classe dos primeiros
trinta anos do século XX, quais sejam: a crise do Estado liberal, a natureza do fascismo e do
Estado fascista, a novidade do Estado dos Soviets, sua evolução na URSS, a experiência dos
Conselhos, os problemas do Estado socialista. Sem esquecer o pivô da análise: “essa
surpreendente 'resistência do aparelho de Estado', própria às sociedades ocidentais, nos países
capitalistas desenvolvidos” (BUCI-GLUCKSMANN, 1980: 26-27).
Resumidamente, dois fatores gerais parecem conduzir o interesse de Gramsci na
pesquisa do Estado, questão que o incomoda teoricamente desde os anos da juventude: o
fracasso do liberalismo com suas 'promessas não cumpridas' e a impossibilidade de realização
do socialismo na Itália, em uma época, em que, aparentemente, apresentava todas as
condições possíveis para tal, cuja situação gestou o fenômeno do fascismo, resultante de uma
dupla crise: 1) crise do bloco de poder, "incapaz de absorver e neutralizar suas contradições
com os setores populares através dos canais tradicionais"; 2) crise da classe operária, "incapaz
de hegemonizar as lutas populares e de fundir uma prática política e ideológica coerente à
ideologia popular-democrática e seus objetivos revolucionário de classe" (LACLAU, 1979: 120-
discursivas. E que se deseja explorar suas condições”.
74
No centro da teoria da hegemonia estão presentes, dois processos concomitantes: “a crise do princípio de
soberania (a idéia moderna de soberania territorial absoluta) e a busca de soluções adequadas a ela”. A
direção em que Gramsci se move, segue o autor, “é a da superação do Estado-nação e a sua integração em
agrupamentos supranacionais coordenados entre si” (VACCA, 1996: 120).
83
121)
. Inclua-se nesse contexto, a preocupação e tentativa
de Gramsci em compreender como foi possível o socialismo na União Soviética, e não em
outros países.
Portanto, Gramsci enfrenta a questão do Estado desde duas perspectivas: como
problema teórico e como problema prático. Uma operação aparentemente simples, essa de
conceber o Estado de forma integral ("hegemonia revestida de coerção"). Mas, na verdade,
não é nada disso, pois "esta recuperação/enriquecimento de Lênin coincide com o desvio
economicista do marxismo tal como ele se produz, na época, na URSS e na IIIª Internacional"
(BUCI-GLUCKSMANN, 1977: 60). No fundo, trata-se de um reexame da parte de Gramsci,
das relações entre infra-estrutura e superestrutura, problema central do materialismo histórico,
isto é, incapacidade da classe operária de, nos momentos de crise, poder expandir as lutas
sociais para além do campo econômico-reivindicatório e de transpor a barreira entre ela e o
resto da sociedade
75
.
O nazismo, o fascismo e a ditadura militar no Brasil, por exemplo, não refletem senão
a face do Estado de exceção, que surge nesses momentos em que o povo procura o
protagonismo diante da percepção de que as coisas vão mal, dos momentos de crise. Gramsci
aparece como antípoda dessa forma autoritária de apropriação do campo político, que reduz o
protagonismo das classes subalternas. Para Gramsci não teria sentido pensar a política sem os
protagonismos da sociedade civil e juntamente seus conflitos e tensões, algo fora de cogitação
nos regimes de exceção, os quais entendem a revolução sempre “pelo alto”, como sinônimo
de força. Pensar a política em Gramsci é pensar desde uma perspectiva de emancipação e não
de instrumentalização, tal como a pensam os regimes de exceção.
Mas, o que significa o Estado? “Só o aparelho estatal ou toda a sociedade civil
organizada? Ou a unidade dialética entre o poder governamental e a sociedade civil” (C.C 15,
v. 1, § 33: 263). Em uma carta escrita no cárcere de Turi para a cunhada Tatiana em 1931,
75
Nesta perspectiva, “toda autonomia possível das lutas popular-democráticas era excluída ab initio: a luta
democrática podia, quando muito, ser um indício de uma tarefa burguesa não realizada e, em conseqüência,
a oportunidade para a constituição de uma frente de classes com a burguesia, de objetivos limitados [...] O
reducionismo classista funcionava em torno das relações de produção e da prioridade de facto da luta
econômica” (LACLAU, 1979: 131-132).
84
Gramsci nos dá a idéia dos estudos que está
desenvolvendo e dos planos que pretende seguir em termos de pesquisa. A partir do conceito
de intelectual, Gramsci revela uma cadeia de conceitos, não tão novos na teoria política, mas
portadores de novos significados, os quais farão parte de seu “desinteressado” projeto,
denominado Cadernos do cárcere.
Conforme visto acima, a concepção marxista tradicional de Estado manteve, ao longo
de décadas, a visão de Estado como aparelho coercitivo de uma classe sobre outra, como
forma de salvaguardar unicamente os interesses da classe hegemônica, resultante do processo
produtivo, derivando daí uma visão economicista e determinista da política. Nessa
perspectiva, o Estado não é ativo, apresenta-se muito mais como efeito do que como
protagonista. O que Gramsci escreve à cunhada Tatiana esboça um projeto de prestação de
contas com a tradição, no sentido de criticar o economicismo. Contra essa concepção
prevalecente na sua época, defende que o âmbito da política é fruto de força e consenso, e não
mero reflexo do mundo econômico.
A crítica gramsciana do economicismo na teoria e na prática política diz respeito
"principalmente a uma concepção instrumental do Estado como exterior a uma classe ou
fração de classe, que a manobra 'de modo diabólico, para perpetuar seu poder e enganar o
proletariado'" (BUCI-GLUCKSMANN, 1977: 61). A atenção de Gramsci não se esgota na
temática tradicional da 'denúncia' da dominação classista coativa do Estado moderno, “mas
estende-se a todas aquelas articulações através das quais se exerce sob o resto da sociedade a
hegemonia duma classe. [...] do Estado como organização política e jurídica” (CERRONI,
1976: 160-161). Nas Notas sobre Maquiavel, Gramsci diz que,
Estamos sempre no terreno da identificação de Estado e Governo, identificação que é, precisamente,
uma reapresentação da forma corporativo-econômica, isto é, da confusão entre sociedade civil e
sociedade política, uma vez que se deve notar que na noção geral de Estado entram elementos que
devem ser remetidos à noção de sociedade civil (no sentido, seria possível dizer, de que
Estado=sociedade política+sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção). Numa doutrina do
Estado que concebe este como tendencialmente capaz de esgotamento e de dissolução na sociedade
regulada, o tema é fundamental (C.C 13, v. 3, v. 1, § 88: 244-245).
Gramsci distingue duas esferas no interior das superestruturas: "sociedade civil" e
"sociedade política". À sociedade civil corresponde o conjunto das instituições encarregadas
85
não só de elaborar, assim como de difundir os valores
simbólicos e ideológicos gestados numa sociedade. Dela fazem parte o sistema escolar, os
meios de comunicação, os sindicatos, as Igrejas, os partidos políticos, as instituições de
caráter científico, etc. À sociedade política corresponde a instância de que o grupo
hegemônico lança mão para fazer uso legal da força. Polícia, armas, leis são os recursos ou
aparelhos utilizados neste âmbito político.
Gramsci procura entender a complexidade política das sociedades capitalistas
ocidentais que carregam dentro de si as "trincheiras" e "casamatas" da sociedade civil, que
não permitem, muitas vezes, as transformações e mudanças da sociedade, mesmo diante de
irrupções imediatas do elemento econômico. A revolução popular que foi possível na Rússia
da primeira década do séc. XX não se repetiu em solo italiano e europeu-ocidental, mesmo
havendo naquele momento os elementos de catástrofe econômica provenientes da pós-
primeira guerra mundial. Portanto, há dois momentos importantes no pensamento de Gramsci:
o da reflexão sobre o fracasso da revolução no Ocidente, e aquele da reflexão sobre as
estratégias revolucionárias para a formação de uma nova sociedade.
Para além do elemento força ou do Estado em sentido "restrito", Gramsci acentua o
elemento do consenso, embora faça uma distinção metodológica ao ressaltar a unidade
orgânica entre sociedade política e sociedade civil, ampliando assim, a noção de Estado. Nas
Notas sobre Maquiavel, Gramsci esclarece que, nos Estados mais avançados, a sociedade
civil tornou-se uma estrutura muito complexa e resistente às "irrupções" catastróficas do
elemento econômico imediato (crises, depressões, etc.): "as superestruturas da sociedade civil
são como o sistema das trincheiras da guerra moderna” (C.C 13, v.3, § 24: 73), algo que
Gramsci enuncia já no artigo A revolução contra o capital, em 1917, onde diz que “as
vontades se puseram em uníssono, primeiro mecanicamente, e, depois primeira revolução,
ativa e espiritualmente” (GRAMSCI, EP, v. 1, p. 128).
Gramsci utiliza-se do exemplo das mudanças ocorridas na tática da guerra como
parâmetro para entender o campo político na modernidade. Da mesma maneira que o êxito
das estratégias militares do mundo moderno depende de posições, manobras e estratégias,
antes mesmo de ataques frontais contra o inimigo, de igual maneira, o êxito no campo político
ocidental parece fadado ao fracasso se se apóia exclusivamente na 'guerra de movimento'. Ou
86
seja, nos tempos de crises capitalistas no Ocidente, a
classe burguesa não se desmoraliza, não abandona suas defesas, nem suas "trincheiras"
cravadas no coração da sociedade civil, nem diminui a confiança na própria força. Por outro
lado, o proletariado não consegue se organizar de modo fulminante, tal como teria ocorrido na
Rússia, por exemplo, que utilizou ataques frontais contra o poder do Estado burguês. Uma
possível vitória do proletariado no Ocidente, em termos políticos, pede a mudança de tática,
segundo Gramsci. Em outros termos, a partir de 1924, Gramsci deduz que a guerra de ataque
frontal funcionou nos anos revolucionários de 1917-1921 na Rússia, onde o "Estado era tudo
e a sociedade civil primitiva e gelatinosa". Esta estratégia frontal, porém, "não pode se repetir
do mesmo modo nos países capitalistas desenvolvidos" (GLUSCKSMANN, 1977: 45).
Trata-se, diz Gramsci, de "estudar com 'profundidade' quais são os elementos da
sociedade civil que correspondem aos sistemas de defesa na guerra de posição"
76
. Gramsci
sinaliza, dessa maneira, para o fato da burguesia não ter a força como único recurso para a
manutenção do status quo; para o fato de não se subestimar o aparelho de Estado em tempos
de crise. Ao contrário, o fenômeno político tornou-se mais complexo e seu significado há que
se buscar nas complexas e moleculares redes de instituições da sociedade civil, dentre elas, o
sufrágio universal, os parlamentos, partidos de massa, sindicatos obreiros, os meios de
comunicação, as escolas, igrejas, etc, além dos aparelhos repressivos do Estado. Neste
sentido, o Estado passa a ser "um projeto de cultura" (FERREIRA, 1986: 209), e a base da
hegemonia ou a base histórica do Estado se manifesta através da soldagem da sociedade civil
com a sociedade política. Gramsci reconhece Lenin como o político que compreendeu a
necessidade de uma mudança na “guerra manobrada”, a qual foi aplicada vitoriosamente no
Oriente em 1917, para a “guerra de posição”, que poderia ser a única vitoriosamente no
Ocidente. O problema de Lenin [Ilitch, no linguajar dos Cadernos), segundo Gramsci, é que
não teve tempo de aprofundar a sua fórmula,
[...] a tarefa fundamental era nacional, isto é, exigia um reconhecimento do terreno e uma fixação dos
76
Esta guerra "mais complexa", a longo prazo, "esta guerra do povo democrático capaz de investir a 'justa
relação' do estado e da sociedade civil própria aos países ocidentais e de desenvolver a todos os níveis da
sociedade uma dialética permanente entre as massas e o Estado" (BUCI-GLUSCKSMANN, 1977, p. 46).
87
elementos de trincheira e de fortaleza representados pelos
elementos da sociedade civil, etc. No oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e
gelatinosa; no Ocidente, havia entre o Estado e a sociedade civil uma justa relação e, ao oscilar o
Estado, podia-se imediatamente reconhecer uma robusta estrutura da sociedade civil. O Estado era
apenas uma trincheira avançada, por trás da qual se situava uma robusta cadeia de fortalezas e
casamatas [...] (C.C7, v. 3, §16: 262).
Isto significa que diante dessa nova realidade de complexidade da sociedade civil e de
socialização da política no ocidente, as estratégias de lutas por mudanças sociais também
deveriam mudar. Para Gramsci, uma estratégia política calcada em ataques frontais ao Estado,
tal como aconteceu na Rússia, por exemplo, parece não constituir uma boa estratégia política,
uma vez que o "Ocidente" desenvolveu fortes "trincheiras" políticas, as quais os proletários
não poderiam ignorar na proposta de mudanças sociais.
Ao contrário, a atividade revolucionária, a partir desse novo cenário mundial de crise,
consiste, "em um processo penoso de disseminar e infundir, inculcar uma forma mentis
alternativa" (BUTTIGIEG, 2001: 53-54), por meio da preparação cultural, do
desenvolvimento intelectual e educacional em escala massiva. Tais atividades se concretizam
materialmente nas "trincheiras" da sociedade civil e no campo das idéias, para não dizer das
'ideologias'. O que significa dizer, que a operação de construção de uma nova hegemonia é
levada a cabo de forma mais lenta do que a mudança operada no uso da força. A base para a
afirmação de uma nova autoridade política, não poderia se limitar à conquista do aparato
governamental, da dominação, pois uma classe em luta pela própria afirmação política “deve
ser dirigente antes de ser dominante, deve dirigir para poder governar”. Nesse sentido, “o
consenso torna-se o fundamento e garantia de uma dominação duradoura e, acima de tudo,
democrática” (NOGUEIRA, 1988: 87).
De fato, analisadas as condições em que se encontravam Rússia e Itália após a
primeira guerra mundial, percebe-se que em ambos os países havia perspectivas
revolucionárias parecidas. Entretanto, as mudanças não ocorreram automaticamente, tal como
acreditavam os marxistas mecanicistas da época, ao menos na Itália. As forças políticas
progressistas italianas saem derrotadas pelo regime fascista. Gramsci se interroga sobre as
causas que produziram este fenômeno político. Diante das novas condições colocadas pelo
pós-guerra, a pobreza política desencadeada no seio da sociedade civil poderia evidenciar
conseqüências irreparáveis. Gramsci desdobra a partir daí uma reflexão sobre a possibilidade
88
de uma nova estratégia revolucionária para o
"Ocidente”. Entra em cena o conceito de "guerra de posição" como possibilidade de uma nova
estratégia na arte política
77
. Gramsci coloca-se, portanto, como antípoda da idéia prevalecente
de sociedade civil reduzida à massa e de Estado em sentido estrito.
2. O Moderno Príncipe
Na sociedade civil, campo de elaboração e de consolidação de hegemonias existe uma
infinidade de instituições que concorrem para que ocorra a consolidação da hegemonia, e
dentre todas aquelas instituições que atuam para isso ocorra, o partido se destaca, o qual é
precisamente “o mecanismo que realiza na sociedade civil a mesma função desempenhada
pelo Estado, de modo mais vasto e mais sintético, na sociedade política’, ou seja,
“proporciona a soldagem entre intelectuais orgânicos de um dado grupo, o dominante, e
intelectuais tradicionais. [...]” ( C.C 12, v. 2, § 1: 24).
Gramsci está falando de partido no sentido organizacional e pedagógico; do partido
enquanto 'ideologia geral', o qual deseja fundar o Estado. A preocupação de Gramsci,
portanto, é a de que a associação política sensível às “transformações morfológicas da
sociedade” deve saber “captar as mudanças da 'estrutura do mundo', mas deve também saber
constantemente confrontar o próprio projeto político (e a razão mesma da sua existência) ao
processo de unificação do gênero humano” (MONTANARI, 1977: XXXVII )
78
.
77
COUTINHO (1999: 148) observa que a 'ocidentalidade' de uma formação social não é, para Gramsci, um fato
puramente geográfico, mas, sobretudo “um fato histórico. [...] não se limita a registrar a presença sincrônica
de formações de tipo 'oriental' e 'ocidental', mas indica também os processos histórico-sociais, diacrônicos,
que levam uma formação social a se 'ocidentalizar'”.
78
“[...]trasformazioni morfologiche della società [...]. deve saper cogliere i mutamenti della 'strutura del mondo',
ma deve anche saper costantemente commisurare il proprio progetto politico (e la ragione stessa della sua
esistenza) al processo di unificazione del genere umano”.
89
O caráter fundamental do Príncipe de
Maquiavel, diz Gramsci, é o de não ser um tratado sistemático, mas um livro 'vivo',
no qual a ideologia política e a ciência política fundem-se na forma dramática do 'mito' [...] Maquiavel
deu à sua concepção a forma da fantasia e da arte, pela qual o elemento doutrinário e racional
personifica-se em um condottiero, que representa plástica e 'antropomorficamente' o símbolo da
'vontade coletiva'.[...] O Príncipe de Maquiavel poderia ser estudado como uma exemplificação do
'mito' soreliano, isto é, de uma ideologia política que se apresenta não como fria utopia nem como
raciocínio doutrinário, mas como uma fantasia concreta que atua sobre um povo disperso e pulverizado
para despertar e organizar sua vontade coletiva (C.C 13, v. 3, § 1: 13-14 )
79.
A política em Maquiavel é uma atividade intelectual e ao mesmo tempo prática. O
alvo central a ser combatido, segundo as lições apresentadas por Maquiavel no Príncipe, é o
pontificado romano, instituição que deitara suas raízes no corpo social há séculos,
constituindo-se em entrave político para a formação de um Estado-nação. Na Itália, o
Moderno Príncipe, segundo Gramsci, traduz-se em uma vontade coletiva (partido) que
“queira ser Estado”, independentemente da moral e da religião - tal como vaticinara
Maquiavel - não em nome de um niilismo moral, mas em nome, quiçá, do combate aos
corporativismos
80
, que tem seu fundamento na própria sociedade civil. O partido constitui,
para Gramsci, elemento do "momento catártico”, célula que procura transformar a
"necessidade" em "liberdade”, a "individualidade" em "universalidade". Ao contrário do
Príncipe de Maquiavel que reivindica para si próprio o papel do exercício do poder político
em nome de uma nação, o Moderno Príncipe constitui a primeira célula na qual se sintetizam
germes de vontade coletiva que tendem a se tornar universais e totais, o qual deve e não pode
deixar de ser “o anunciador e o organizador de uma reforma intelectual e moral, o que
significa, de resto, “criar o terreno para um novo desenvolvimento da vontade coletiva
nacional-popular no sentido da realização de uma forma superior e total de civilização
79
“Pode-se estudar como Sorel, partindo da concepção da ideologia-mito, não atingiu a compreensão do partido,
mas se deteve na concepção do sindicato profissional (C.C 13, § 1: 14).
80
Nas palavras de Coutinho (1999: 169) a tarefa do 'Moderno Príncipe' consistiria em "superar os resíduos
corporativistas (os momentos 'egoístico-passionais') da classe operária" e contribuir para a "formação de uma
vontade coletiva nacional-popular, ou seja, de um grau de consciência capaz de permitir uma iniciativa
política que englobe a totalidade dos estratos sociais de uma nação, capaz de incidir sobre a universalidade
diferenciada do conjunto das relações sociais”.
90
moderna” (GRAMSCI, C.C 13, v. 3, § 1: 16-18).
Na verdade, o Moderno Príncipe não é resultado de uma coletividade caótica e
indistinta, algo resultante de forças “misteriosas” e metafísicas. Esse corpo associativo deve
ser entendido como produto de “uma elaboração de vontade e pensamentos coletivos” (C.C 6,
v. 2, § 79: 230). Nessa perspectiva, a política tende a “desembocar” na moral, segundo
Montanari (1997, XXXVII); tende a se tornar o instrumento para que a moral “não seja mais
um inoperante e vazio 'dever ser' ou uma grande e autoritária pretensiosa de colocar 'ordem
no mundo', mas força ativa e interna à própria vida política”
81
. Existe uma ética interna no
agir político, já que para Gramsci, conforme enuncia no Caderno 13, § 16, o político é um
“criador”, um “suscitador”. Assim como a ética tende ao “universal” como fim
82
, de igual
maneira o Moderno Príncipe tende a esse fim na construção da democracia. Mas de uma
democracia que ultrapasse os umbrais do parlamentarismo e de meros procedimentos.
Cabe aqui um breve esclarecimento no sentido de que a não compreensão da
concepção de partido em Gramsci pode tornar-se o "cavalo de batalha de todos os críticos que
afirmam existir nela um presumível integralismo e totalitarismo", o que poderia reduzir a
concepção de hegemonia de Gramsci a uma "variante 'suavizada' da 'ditadura do
proletariado'" (VACCA, 1994: 151).
Quando se quer acusar Gramsci de antidemocrático, basta afirmar simploriamente que
ele via no Partido Comunista uma tipologia. Evidentemente, se a classe operária é quem toma
para si a tarefa da elaboração da vontade nacional-popular, e talvez não pudesse deixar de
assim fazer naquele período histórico, a mesma não poderia governar da mesma forma que
fizera a classe burguesa até então, e muito menos distanciada da idéia de alianças com as
frentes populares. A essa forma superior e total de civilização moderna corresponderia uma
nova reforma política e moral.
81
“[...] tende, cioè, a divenire lo strumento perché la morale non sia più un inoperante e saccente 'dover essere' o
una massimalistica e autoritaria pretesa di 'mettere ordine'nel mondo, ma forza attiva e interna alla stessa vita
politica”.
82
Algo entredito na correspondência de 1926 direcionada ao Comitê Central do PC da URSS: “Mas o
proletariado não pode se tornar classe dominante se não superar esta contradição, sacrificando seus interesses
corporativos em nome dos interesses gerais e permanentes da classe [...] mas a unidade e a disciplina, neste
caso, não podem ser mecânicas e coercitivas” (E.P, v. 2:391-392).
91
Para Gramsci está muito claro que o proletariado
moderno, ao menos na Itália, não se constituiria como bloco político dominante enquanto não
superasse os corporativismos de classe, e isso significava para Gramsci a constituição de
alianças políticas com os campesinos, tese já esboçada quando trata da questão meridional.
Que sentido teria para Gramsci o partido se o mesmo não fosse porta voz de uma nova
concepção de política, de Estado e de sociedade? O partido não é um programa ideal em
busca duma máquina executiva, mas “um organismo funcional que exprime, verifica e adapta
o seu próprio programa ideal. É uma máquina integralmente histórica e, por isso mesmo,
elástica: uma não máquina” (CERRONI, 1976: 166).
Numa nota instigante (Maquiavel. Partidos políticos e funções de polícia) que aparece
no § 34 do Caderno 14, Gramsci afirma que a vida de um partido político procura, de certa
forma, também exercer uma função de polícia, isto é, de defesa de uma determinada ordem
política e legal. Mais adiante Gramsci levanta a seguinte questão: essa função que
supostamente exercem os partidos é de caráter repressivo ou expansivo? Um determinado
partido exerce sua função de polícia para conservar uma ordem externa, extrínseca, no sentido
de colocar freios às forças vivas da história, ou a exerce no sentido de levar o povo a um novo
nível de civilização, da qual a ordem política e legal é uma expressão programática? Ou seja,
a função de polícia de um partido pode ser “progressista” ou “reacionária”: “é progressiva
quando aspira a manter na órbita da legalidade as forças reacionárias alijadas do poder e a
elevar ao nível da nova legalidade as massas atrasadas”. E é reacionária “quando aspira a
reprimir as forças vivas da história e a manter uma legalidade ultrapassada, anti-histórica,
tornada extrínseca” (GRAMSCI, C.C 14, § 34, v.3, p. 308). Nesse caso, quando um partido é
reacionário, funciona exercendo um centralismo burocrático, e quando é progressista, o
centralismo exercido é democrático e deliberante, e no outro caso, ele é meramente executor.
No § 6 do C.C 26 Gramsci diz que o Estado "veilleur de nuit" ("Estado guarda-
noturno") corresponde em italiano a Estado carabiniere e quer significar "um Estado cujas
funções se limitam à tutela da ordem pública e do respeito às leis [...] a direção do
desenvolvimento histórico cabe às forças privadas, à sociedade civil, que também é Estado,
aliás, é o próprio Estado". O oposto desse tipo de Estado seria o "Estado ético", de origem
filosófica e intelectual. Ao comentar sobre o Estado ético ou de cultura, Gramsci diz que todo
92
Estado é ético “na medida em que uma das suas funções
mais importantes é elevar a grande massa da população a um determinado nível cultural e
moral, nível (ou tipo) que corresponde às necessidades de desenvolvimento das forças
produtivas” (C.C 8, v. 3, § 179: 284), e portanto, aos interesses das classes dominantes. Nesse
sentido,
A escola como função educativa positiva e os tribunais como função educativa repressiva e negativa
são as atividades mais importantes neste sentido: mas, na realidade, para este fim tende uma
multiplicidade de outras iniciativas e atividades chamadas privadas, que formam o aparelho da
hegemonia política e cultural das classes dominantes. A concepção de Hegel é própria de um período
em que o desenvolvimento extensivo da burguesia poderia parecer ilimitado e, portanto, a eticidade ou
universalidade desta classe podia ser afirmada: todo gênero humano será burguês. Mas, na realidade, só
o grupo social que propõe o fim do Estado e de si mesmo como objetivo a ser alcançado pode criar um
Estado ético, tendente a eliminar as divisões internas de dominados, etc., e a criar um organismo social
unitário técnico-moral (C.C 8, v. 3, § 179: 284).
A passagem acima resume, de certa forma, tudo o que se expôs até aqui sobre o
pensamento de Gramsci, referente ao tema da sociedade civil e do Estado. Gramsci coloca em
evidência as relações diversas entre Estado e sociedade civil. Define o Estado liberal como
"Estado carabiniere", o qual define arbitrariamente os rumos da política para todo o corpus
social. Nessa perspectiva, o Estado absorve totalmente as manifestações políticas advindas da
sociedade civil, reduzindo-a a simples massa. Por outro lado, o 'Estado ético' é aquele que
reflete a configuração de uma nova sociedade, ou seja, da sociedade socialista, “regulada”,
idéia essa que reabre, ao mesmo tempo, a antiga discussão marxista sobre a extinção do
Estado. O que parece claro para Gramsci é que tal extinção não seria possível, tendo o Estado,
em sentido restrito, como ator principal. Numa sociedade de cunho socialista, a sociedade
civil tenderia a absorver os elementos coercitivos do Estado.
A ex-URSS é um exemplo de que a promessa da extinção do Estado não pôde ser
concretizada, exatamente porque não conseguiu avançar as fronteiras de uma sociedade civil
débil, "gelatinosa". De qualquer forma, a burocracia partidária reinante dissociou (de uma
forma talvez prevista por Gramsci), a sociedade civil do Estado burocrático, os dirigentes dos
dirigidos. Na acepção de Gramsci, uma "sociedade regulada" não acontece sem revolução e a
mesma dá mostra de sua eficácia política quando feita "por baixo" e não "pelo alto", ou seja,
quando esta mesma sociedade é capaz de promover gradualmente a extinção dos elementos e
mecanismos da coerção, quando a sociedade civil reabsorve a sociedade política e seus
93
elementos coercitivos.
Voltamos aqui, novamente à questão central para Gramsci: a de que uma sociedade
política, quando democrática, deveria criar as condições nas quais desaparecesse a divisão
entre governantes e governados. A socialização do poder não significa cair na utopia de uma
sociedade sem governo. O realismo político de Gramsci é resultante das dificuldaddes que
conheceu na prática para organizar uma vontade coletiva. Gramsci parece não se deixar levar
pela crença de que uma vontade coletiva se reconstitua tão facilmente assim, depois que ela se
desagregou. Procura, ao contrário, não pensar “que as vontades coletivas sejam um dado de
fato naturalista, que desabrocham e se desenvolvem por razões inerentes às coisas” (C.C, 15,
v. 3, § 35: 335-336).
3. As antinomias de Gramsci, segundo Perry Anderson
Ao analisar antinomias no pensamento político de Gramsci, Perry Anderson visa
quatro aspectos essenciais: a) analisar as formas precisas e as funções do conceito de
hegemonia nos Cadernos do cárcere; b) avaliar a coerência interna dos Cadernos enquanto
discurso unificado; c) avaliar a validade do conceito de hegemonia como uma explicação das
estruturas típicas de poder de classe nas democracias burguesas ocidentais; d) pesar as
conseqüências estratégicas para a luta da classe operária, visando à emancipação e o
socialismo. Em outras palavras, o autor procura descrever o verdadeiro contexto teórico da
obra de Gramsci, condição indispensável, no seu entendimento, para fazer qualquer avaliação
profunda da teoria da hegemonia.
Para Anderson, duas passagens essenciais (“Oriente/Ocidente” e “guerra de
posição/guerra de movimento”) estão centradas na relação entre o Estado e sociedade civil na
Rússia e na Europa Ocidental, respectivamente. As passagens expressariam vários elementos
que formam uma série de oposições, conforme descrição: no Ocidente
83
, a sociedade civil é
83
Conforme esclarece Coutinho, os conceitos de “Oriente” e de “Ocidente, no sentido gramsciano, é sobretudo,
político-social: “sociadade 'ocidental' é aquela sociedade onde há uma disseminação do poder pelos múltiplos
aparelhos da sociedade civil, sem uma concentração exclusiva no Estado-coerção” (1986: 145).
94
desenvolvida/sólida, o Estado é equilibrado e a
estratégia de mudanças sociais estaria associada a “guerra de posição”, através de ritmos
prolongados. No Leste, a sociedade civil apresenta características primitivas, é gelatinosa,
sendo que o Estado é preponderante. Nesse caso a estratégia de mudança é rápida, associada à
“guerra de movimento”.
No seu conjunto, os textos dos Cadernos citados por Anderson apontam uma oscilação
entre, pelo menos, três posições do Estado: ele está em uma relação equilibrada com a
sociedade civil; é apenas uma “trincheira” avançada da sociedade civil; é a estrutura sólida
que abole a autonomia da sociedade civil. Em outras palavras, diz Anderson, o próprio Estado
oscila entre três definições: “Estado se contrapõe à sociedade civil [.] Estado engloba a
sociedade civil [.] Estado é idêntico à sociedade civil [.]” (ANDERSON, 1986: 15). Em função
dessa variação de definição, o autor conclui que a relação entre os termos está sujeita a
bruscas variações ou mudanças, prelúdio para Anderson adentrar na análise do conceito de
hegemonia, o qual está associado, por sua vez, ao conceito de “guerra de posição”
84
.
Anderson esclarece que a história do conceito revela que houve uma ilusão largamente
difundida, fazendo-nos acreditar que o conceito de hegemonia civil é algo original no
pensamento de Gramsci, o que ficaria amplamente contestado pela recorrência do termo no
pensamento político russo. O conceito vem sendo utilizado a partir de 1883, inclusive por
Lênin. Segundo Anderson, Gramsci “descende em linha direta” das definições elaboradas
pela tradição da III Internacional Comunista, embora não deixe de reconhecer, que Gramsci
ampliou o conceito “a partir de sua aplicação original, das perspectivas da classe operária em
uma revolução burguesa contra uma ordem feudal, para os mecanismos de dominação da
burguesia sobre a classe operária em uma sociedade capitalista estabilizada” (ANDERSON,
1986: 21)
. Gramsci teria dado o passo decisivo em relação ao conceito na medida em que o
emprega para analisar as estruturas do poder burguês no Ocidente, reportando-se à obra
política de Maquiavel, cujo símbolo maior é o centauro. Nessa perspectiva, a ação política é
pensada em termos de um duplo viés: força/consentimento, dominação/hegemonia,
violência/civilização.
95
Anderson reconhece, também, o mérito de
Gramsci em colocar a questão do local onde são exercidas as duas funções da “dominação” e
de “direção/hegemonia”, assim como responder que a hegemonia (direção) pertence à
sociedade civil e a coerção (dominação) ao Estado. Resulta daí, um conjunto de oposições
sem ambigüidades: “hegemonia = consentimento = sociedade civil; dominação = coerção =
Estado” (ANDERSON, 1986: 23). Mas a crítica de Anderson a Gramsci é a de que este não
mantém coerência nos textos do cárcere ao falar de hegemonia, já que o autor fala de
hegemonia tanto em termos de oposição (“consentimento” em oposição à “coerção”), assim
como de síntese de “consentimento” e de “coerção”, nesse caso, Gramsci define hegemonia
em dois termos: Estado = hegemonia política e sociedade civil = hegemonia civil.
Ou seja, há um deslocamento do conceito de hegemonia em Gramsci, na medida em
que, na segunda definição, “a hegemonia é firmemente situada no interior do Estado – não
mais na sociedade civil”. Isto é, na primeira versão, Gramsci oporia a hegemonia à sociedade
política ou ao Estado, enquanto na segunda “o próprio Estado torna-se um aparelho de
hegemonia”. Em uma terceira versão, “a distinção entre sociedade civil e sociedade política
desaparece totalmente: tanto o consentimento como a coerção tornam-se extensões do
Estado” (ANDERSON: 1986: 24)
85
. A tese de Anderson é a de que esse permanente
deslocamento efetuado por Gramsci não é nem acidental nem arbitrário.
Interessa a Anderson analisar em Gramsci a constituição do consentimento como
elemento da questão do poder no Ocidente e no Oriente. Assim, na primeira versão da
hegemonia em Gramsci, o objetivo preliminar da formula Oriente/Ocidente, é o de
“estabelecer uma óbvia e fundamental diferença entre a Rússia czarista e a Europa ocidental –
a existência de uma democracia política representativa” (ANDERSON, 1986: 26). Anderson
atribui a Gramsci o mérito por ter sido o primeiro teórico marxista a reconhecer a presença da
democracia parlamentar no Ocidente e sua ausência no Leste, mas nem por isso deixa de lado
a crítica dirigida ao intelectual italiano, pois a primeira solução que Gramsci esboça nos
84
Cf. C.C 13, v. 3, § 7: 24.
85
A terceira versão mencionada por Anderson pode ser expressa na seguinte fómula de Gramsci: “O Estado (no
sentido integral) é ditadura = hegemonia” ( C.C 6, v. 3, § 155: 257).
96
Cadernos seria absolutamente inviável, porque de
acordo com esta concepção, o sistema é mantido pelo consenso, via parlamentar, não através
da força. Na realidade, enfatiza Anderson, a verdade é exatamente o oposto: a forma geral do
Estado representativo – em uma democracia burguesa – “é ela própria à arma ideológica
principal do capitalismo ocidental, cuja própria existência priva a classe operária da idéia do
socialismo como um tipo diferente de Estado”. A existência do Estado parlamentarista
“constitui assim o quadro formal de todos os outros mecanismos ideológicos da classe
dirigente”. A forma fundamental do estado parlamentar ocidental – a soma jurídica de seus
cidadãos – “é ela própria o eixo dos aparelhos ideológicos do capitalismo” (ANDERSON,
1986: 26).
O primeiro erro, na ótica de Anderson, que Gramsci cometera através desta primeira
acepção de hegemonia localizada na sociedade civil, teria sido o de dar demasiada
importância (sem com isso subestimá-los) aos complexos ramificados do sistema de controle
cultural no seio da sociedade civil, em detrimento do papel que exerce o Estado parlamentar
no plano ideológico cultural da sociedade Ocidental. Enfatiza Anderson que não se pode
entender o poder capitalista nos países capitalistas avançados sem antes compreender “a
natureza e papel da democracia burguesa”.
Na análise de Anderson, a segunda versão da hegemonia fornecida por Gramsci não
mais atribui à sociedade civil a preponderância sobre o Estado, como foi visto acima. Ao
contrário, a sociedade civil é apresentada como contrapeso do Estado ou “em equilíbrio com
ele”, e a hegemonia “é distribuída entre o Estado – ou a ‘sociedade política - e a sociedade
civil, sendo ela mesma redefinida como combinando coerção e consentimento”
(ANDERSON, 1986: 31). Para Anderson nessa versão da hegemonia delineada por Gramsci
transparece uma consciência mais aguda quanto ao papel ideológico do Estado capitalista no
Ocidente, principalmente das funções ideológicas da educação e da lei, ou seja, do sistema
escolar e do sistema judiciário. Se na primeira versão da hegemonia há uma ênfase em
relação ao papel da sociedade civil, aqui, na segunda versão a hegemonia também é exercida
pelo Estado. O que haveria de diferente aqui é a definição de hegemonia numa combinação
de coerção+consentimento. Ou seja, para além do fator cultural, a hegemonia também é
resultante da força, o que leva Anderson a afirmar que Gramsci comete um outro equívoco, já
97
que “o exercício da repressão é juridicamente ausente da
sociedade civil”. O Estado o reservaria como seu domínio exclusivo. Para Anderson, há
sempre uma “assimetria estrutural na distribuição das funções de consenso e de coerção
deste poder. A ideologia é partilhada entre a sociedade civil e o Estado: a violência pertence
somente ao Estado” (ANDERSON, 1986: 32).
Em outras palavras, na difícil equação entre consenso e força, “o Estado está sempre
presente duas vezes”; daí a incapacidade de Gramsci, na análise de Anderson, para definir a
assimetria entre Estado e sociedade civil no jogo da distribuição das funções de consenso e de
coerção do poder no Ocidente capitalista. Segundo Anderson, Gramsci apresenta uma terceira
versão sobre a hegemonia: nessa versão, o Estado inclui a 'sociedade política' e a 'sociedade
civil'. Aqui, entre Estado e sociedade civil não haveria distinção, ficando suprimida a mesma.
Esta solução tem graves conseqüências, diz Anderson, “que minam qualquer tentativa
científica de definir a especificidade da democracia burguesa no Ocidente” (ANDERSON,
1986: 34).
Anderson não abre mão do conceito de sociedade civil como conceito indicativo
prático que serve para traçar uma linha demarcatória no seio das superestruturas político-
ideológicas do capitalismo, mesmo que, no seu entendimento, Gramsci tenha abandonado a
distinção entre sociedade civil e Estado e tenha proclamado a sua identidade. O problema
mais grave se apresenta na medida em que “o nó górdio das relações entre Estado e sociedade
civil nas formações sociais ocidentais, em oposição à Rússia czarista, é cortado quando
Gramsci declara peremptoriamente que o estado é, de toda forma, co-extensivo à formação
social” (ANDERSON, 1986: 39). Se assim é, qual seria, então, a natureza do poder de classe da
burguesia, segundo Anderson? Sem descaracterizar os avanços das reflexões de Gramsci,
Anderson advoga que se voltarmos à problemática original do italiano, “a estrutura normal
do poder político capitalista nos estados democrático-burgueses é, com efeito, simultânea e
indivisivelmente dominada pela cultura e determinada pela coerção”. O fato é que esta
dominação cultural, segundo o autor, “é encarnada em certas instituições cujo caráter
concreto é irrefutável: eleições regulares, liberdades civis, direitos de reunião”, todos eles
existentes no Ocidente e nenhum deles ameaçando diretamente o poder de classe do capital. E
que, o sistema cotidiano do domínio burguês é assim “baseado no consentimento das massas,
98
na forma de uma crença ideológica que elas mesmas
exercem o governo nos Estados representativos” (ANDERSON, 1986: 41, grifo do autor).
Para Anderson, o domínio do capital no Ocidente, comporta necessariamente, tanto o
consentimento como a coerção. Neste caso, as variáveis do conceito de hegemonia
formuladas por Gramsci contêm, nas palavras de Anderson, um potencial político “perigoso”,
já que as formulações de Gramsci “nunca foram bem-sucedidas em localizar de maneira
definitiva ou precisa seja a posição seja a interconexão da repressão e da ideologia no seio da
estrutura de poder do capitalismo avançado” (ANDERSON, 1986: 43).
O problema do consentimento é segundo Anderson, o que constitui o cerne real da
obra de Gramsci, o que o fez lutar ferrenhamente durante seu encarceramento entre a coerção
e o consentimento, mas ao mesmo tempo é o ponto crítico deste processo, pois suas reflexões
tenderam a ressaltar o tema do consentimento em detrimento da coerção. Tal desvio
conceitual se deve, pontua Anderson, à influência de Maquiavel sobre Gramsci. Entretanto,
Gramsci adotou o mito de Maquiavel do centauro como o símbolo emblemático da sua
investigação. Enquanto Maquiavel efetivamente mergulhou o consentimento na coerção, em
Gramsci “a coerção foi progressivamente eclipsada pelo consentimento”. O Príncipe e o
Príncipe Moderno são, neste sentido, “espelhos deformantes um do outro. Há uma
correspondência oculta invertida entre as fraquezas dos dois (ANDERSON, 1986: 48).
Anderson aponta em Gramsci outra antinomia, desta vez relativo à doutrina de
estratégia política de Gramsci. Uma vez feitas as análises teóricas da dominação burguesa no
Ocidente, Gramsci enalteceria a estratégia da “guerra de posição”, ao contrário da “guerra de
movimento”. De acordo com esta estratégia, “a guerra de posição de Gramsci correspondia à
fase na qual o partido revolucionário procura ganhar as massas ideologicamente
(consensualmente) para a causa do socialismo, antes da fase em que ele dirigirá politicamente
para uma revolta final (coerção) contra o estado burguês” (ANDERSON, 1986: 65). A luta
deflagrada pela classe operária para obter o consenso ou hegemonia se dá, supostamente, nas
entranhas do sistema de “trincheiras” e “casamatas” da sociedade civil. Por ter relegado a
“guerra de movimento” a um segundo plano, Anderson diz que o autor italiano perdeu seu
caminho no labirinto dos Cadernos do cárcere, podendo-se extrair de sua obra, mesmo contra
a sua própria intenção, “conclusões que se afastam do socialismo revolucionário”
99
(ANDERSON, 1986: 68).
A inadequação da fórmula da “guerra de posição” tinha uma relação clara com as
ambigüidades da sua análise do poder de classe da burguesia, o que faz Gramsci igualar a
“guerra de posição” à “hegemonia civil”. Tanto num caso como no outro, conclui Anderson,
“o papel da coerção – repressão da parte do Estado burguês e da insurreição da parte da classe
operária – tendem a desaparecer. A fraqueza da estratégia de Gramsci é simétrica à de sua
sociologia” (ANDERSON, 1986: 72).
4. Gramsci na perspectiva de Bobbio
Para Bobbio, a teoria da sociedade civil esboçada por Gramsci introduz uma profunda
inovação em relação a toda a tradição marxista, já que aquela “não pertence ao momento da
estrutura, mas ao da superestrutura" (BOBBIO, 1999: 5, grifo do autor). A afirmativa de
Bobbio apóia-se em uma célebre passagem do Caderno 12, na qual Gramsci
86
faz
apontamentos e notas dispersas para um grupo de ensaios sobre a história dos intelectuais.
Bobbio defende a tese de que tanto em Marx como em Gramsci, "a sociedade civil – e não
mais o Estado como em Hegel - representa o momento ativo e positivo do desenvolvimento
histórico" (BOBBIO, 1999: 55). No entanto, a diferença entre Marx e Gramsci reside no
seguinte: para o primeiro, o momento ativo e positivo é estrutural, e para o segundo, este
momento é superestrutural.
E como entender pontos de vistas tão diferentes, se ambos os autores derivam o
conceito de sociedade civil de Hegel? A tese de Bobbio é que Marx manteve de Hegel a idéia
de que a sociedade civil tem a ver com o conjunto das relações econômicas, com o momento
estrutural, ao passo que Gramsci vincula o conceito de sociedade civil com o momento
superestrutural, não econômico, mas político-cultural. A análise detida de tais conceitos nos
86
“Por enquanto, podem-se fixar dois grandes 'planos' superestruturais: o que pode ser chamado de 'sociedade
civil' (isto é, o conjunto de organismos designados vulgarmente como 'privados') e o da 'sociedade política ou
Estado', planos que correspondem, respectivamente, à função de 'hegemonia' que o grupo dominante exerce
em toda a sociedade e àquela de 'domínio direto' ou de comando, que se expressa no Estado e no governo
'jurídico'” (C.C 12, v. 2, § 1: 20-21).
100
levará a perceber as diferenças fundamentais entre a
concepção deste e a concepção marxiana, que na ótica de Bobbio são essencialmente duas.
Ainda que estrutura e superestrutura sejam consideradas em relação recíproca, o primeiro é
em Marx “o momento primário e subordinante”, ao passo que o segundo “é o momento
secundário e subordinado”. Bobbio ressalta que Gramsci sempre teve uma clara consciência
da complexidade das relações entre estrutura e superestrutura, destacando várias passagens
em que ele expressa essa trama através de uma de série de importantes antíteses: momento
econômico/momento ético-político, necessidade/liberdade, objetivo/subjetivo. Em todas essas
antíteses, “o termo que indica o momento primário e subordinante é sempre o segundo”
(BOBBIO, 1999: 59). Quanto ao primeiro termo, é sempre subordinado. Bobbio resume
esquematicamente as passagens de um significado para outro da antítese
estrutura/superestrutura da seguinte maneira: em primeiro lugar, “o momento ético-político”,
enquanto momento da liberdade “domina o momento econômico através do reconhecimento
que o sujeito ativo da história faz da objetividade”, reconhecimento este que permite
“transformar as condições materiais em instrumento de ação e, portanto, alcançar o objetivo
desejado” (BOBBIO, 1999: 60).
Em segundo lugar, à antítese principal entre estrutura e superestrutura, Gramsci
acrescenta uma antítese secundária, que se desenvolve na esfera da superestrutura, entre o
momento da sociedade civil e o momento do Estado. Desses dois termos, o primeiro é sempre
o “momento positivo, e o segundo o “momento negativo" (BOBBIO, 1999: 60). Na visão de
Bobbio, Gramsci não só opera uma inversão no modo de entender o pensamento de Marx e
Engels, privilegiando a superestrutura com relação à estrutura, como também privilegia o
âmbito da superestrutura como momento ideológico em detrimento do momento institucional.
Portanto, o esquema gramsciano é mais complexo, no sentido de que utiliza duas dicotomias
que só em parte se superpõem: “entre necessidade e liberdade, que corresponde à dicotomia
estrutura/superestrutura, e entre força e consenso, que corresponde à dicotomia
instituições/ideologias”. Nesse esquema mais complexo, “a sociedade civil é, ao mesmo
tempo, o momento ativo (contraposto a passivo) da primeira dicotomia e o momento positivo
(contraposto a negativo) da segunda” (BOBBIO, 1999: 63). Para Bobbio, residiria aí o
elemento central do sistema gramsciano.Certamente, a interpretação de Bobbio parte do § 1
101
do Q12.
Colocada a questão nos termos descritos por Anderson e Bobbio, poder-se-ia aceitar
tão facilmente que Gramsci não teria dado demasiada importância ao elemento do consenso
quando procura descrever a forma como se estrutura o poder político no ocidente no seu
tempo? Haveria essa acentuada dicotomia em Gramsci, segundo Bobbio, entre estrutura e
superestrutura?
Tendo presente as análises de Anderson, o fato é que mesmo que o Estado seja o
detentor legítimo para o uso da violência, sua existência depende, por outro lado, de suas
funções ativas presentes nas instituições sociais. Segundo Francioni, Anderson não teria
interpretado de forma adequada os diferentes textos nos quais Gramsci faz referências à noção
de Estado. Isto é, Estado integral e Estado (em sentido restrito) teriam o mesmo sentido na
perspectiva de Anderson. Para Francioni, ao não perceber a operação teórica que Gramsci
efetua por intermédio de seu caráter dialético, Anderson “é levado a confundir dois momentos
teóricos diferentes” que aparecem nos Cadernos: num momento o Estado (sociedade política)
aparece contraposto a sociedade civil, mas em outro momento, Estado (integral) aparece
como unidade dialética de sociedade política e sociedade civil, os quais não são contraditórios
entre si, porque o segundo momento abrange o primeiro como "seu momento e especificação"
(FRANCIONI, 1984: 198-199).
Por outro lado, conforme visto, e seguindo a tradição maquiaveliana, Gramsci
comparte da idéia de que o poder é tensão entre força e consenso, e dependendo da situação
política de cada época, pode-se ter mais ou menos consenso, mais ou menos força, e isso não
depende da vontade de Gramsci que assim o seja, é uma constatação do fenômeno político. E
que outro tipo de Estado prevalece no entre guerras, senão o Estado-força? O que é o
fascismo e o nazismo senão a prevalência da força e da exceção (para lembrar Agamben)
sobre o consenso, a ditadura sobre a democracia?
Tendo presente a análise de Bobbio, Liguori diz que Gramsci é o maior estudioso
marxista das superestruturas, "precisamente a 'sociedade civil' e a 'sociedade política ou
Estado'", a qual procura conhecer em profundidade, mas nem por isso, Gramsci perde de vista
o papel determinante da estrutura, prevalecendo uma concepção dialética da relação; uma
relação de unidade/distinção, o que coloca Gramsci, longe de uma teoria estrutural-
102
funcionalista, já que tanto o Estado como a sociedade
civil estão atravessados pela luta de classes. Os processos nunca são unívocos: “a dialética é
real, aberta, não determinada. O Estado é instrumento (de uma classe) e, ao mesmo tempo,
(lugar de luta pela hegemonia) e processo (de unificação das classes dirigentes)” (LIGUORI,
2003: 180-181).
O equívoco do individualismo metodológico
87
, conforme Vacca, presente no
pensamento político de Bobbio tem origem na 'grande dicotomia' que o autor põe como
fundamento de sua 'teoria geral da política', qual seja, a antítese entre Estado e sociedade
civil. Pode-se sustentar que a relação entre Estado e sociedade civil seja, para Gramsci, uma
antítese? E que corresponda à antítese entre estrutura e superestrutura? Na análise de Vacca,
para Gramsci, entre Estado e sociedade civil não há antítese, mas unidade-distinção. “A
unidade é dada pelo fato de que o Estado, se reduzido a pura coerção, não teria como se
manter. O Estado é sempre uma combinação de hegemonia e coerção, na qual a hegemonia é
o elemento determinante”. A distinção serve para esclarecer, que “o lugar da hegemonia é a
sociedade civil”, entendida como “o conjunto das relações sociais tematizadas pelas formas
de consciência que grupos, indivíduos e camadas elaboram de seus interesses, de seus
contrastes e dos limites [...]” (VACCA, 1996: 43-44).
O importante para Vacca - o que Bobbio não parece perceber - é que o conceito de
Estado, em relação ao qual se define o de sociedade civil, é um conceito "histórico-dialético e
não típico-classificatório" (VACCA, 1996: 44). Vacca diz que não pode haver espaço para
uma antítese entre ambas os conceitos, e que a única antítese admissível, ao contrário do que
defende Bobbio, é no momento em que Gramsci polemiza com o liberalismo. Para Gramsci o
nexo entre ideologias livre-cambistas e sindicalismo teórico é evidente na Itália, sendo que o
significado de ambas as tendências é muito diverso: a primeira “é própria de um grupo social
dominante e dirigente”; a segunda, “de um grupo ainda subalterno, que não adquiriu ainda
consciência de sua força e de suas possibilidades e modos de desenvolvimento e, por isso, não
sabe sair da fase de primitivismo” (C.C 13, v. 3, § 18: 47, 48). Para Gramsci, a formulação do
87
Ao contrário do paradigma organicista, o individualismo metodológico "esvazia qualquer noção de conjunto e
torna impossível uma análise da sociedade que não seja aquela, uma pura simulação, da soma dos indivíduos
103
movimento do livre-cambismo baseia-se num erro
teórico cuja origem prática não é difícil identificar, ou seja,
baseia-se na distinção entre sociedade política e sociedade civil, que de distinção metodológica é
transformada e apresentada como distinção orgânica. Assim, afirma-se que a atividade econômica é
própria da sociedade civil e que o Estado não deve intervir em sua regulamentação. Mas, dado que
sociedade civil e Estado se identificam na realidade dos fatos, deve-se estabelecer que também o
liberismo é uma 'regulamentação' de caráter estatal, introduzida e mantida por via legislativa e
coercitiva: é um fato de vontade consciente dos próprios fins, e não a expressão espontânea,
automática, do fato econômico (C.C 13, v. 3, § 18: 47, 48).
Contra o espontaneísmo econômico, ou contra a concepção que tende a naturalizar a
economia, Gramsci lança a crítica ao liberismo econômico, enfatizando que sua efetivação
está sujeita a regulamentações provenientes da esfera política. Na "realidade efetiva dos
fatos”, sociedade civil e Estado se identificam, conforme o processo dialético de unidade-
distinção apontado por Liguori e Vacca. A crítica de Gramsci não continuaria válida também
nos dias de hoje? Basta termos presente os apelos do mercado no sentido de que a política
deva manter-se o mais afastado possível de sua regulação. Basta de Estado, basta de política!
Deve-se evitar cair na tentação de ler a sociedade civil como sinônimo de relações meramente
econômicas. Portanto, o liberalismo é um programa político, e isso é válido para os dias atuais
também, mesmo que o ideal liberal apele para o valor da neutralidade, “destinado a modificar,
quando triunfa, os dirigentes de um Estado e o programa econômico do próprio Estado, isto é,
a modificar a distribuição da renda nacional” (C.C 13, v 3, § 18: 47, 48). Mas, diverso é o
caso do sindicalismo teórico, na medida em que se refere a um grupo subalterno, o qual, por
meio desta teoria, “é impedido de se tornar dominante, de se desenvolver para além da fase
econômico-corporativo a fim de alcançar a fase de hegemonia ético-política na sociedade
civil e de tornar-se dominante no Estado (C.C 13, v.3, § 18: 47, 48).
Para Gramsci o liberalismo é "o arquétipo do 'economicismo'. É incapaz, por
definição, de elaborar a autonomia da política" (VACCA, 1996: 44). Bobbio não percebe no
pensamento de Gramsci aquilo que é mais importante: “a não separação, a unidade dialética
entre política e sociedade, entre economia e Estado” (LIGUORI, 2000/2001: 45). Gramsci
que a compõe (VACCA, 1996: 42).
104
recusa toda hipótese liberista e livre-cambista de
possível separação entre os campos político e social, pois escreve que “os liberistas e os livre-
cambistas se baseiam num 'erro teórico'
88
.
Vacca reconhece em Bobbio a afirmação de que a dupla Estado-sociedade civil
corresponda a uma das formas em que se apresenta a antítese fundamental do sistema, entre
estrutura e superestrutura, mas não reconhece a afirmação de Bobbio, de que em Gramsci
haja dicotomia entre estrutura e superestrutura. Ou seja, a mesma conclusão de Vacca acerca
do par Estado-sociedade civil é válida também para o par estrutura-superestrutura, pois, trata-
se aqui de uma relação também dialética, que se constitui em "possibilidade de conceber a
realidade como processo, sem a qual a análise histórica e o agir político ficariam sem
fundamento" (VACCA, 1996: 46). E para endossar sua tese de que em Gramsci não haveria
espaço para pensar o paradigma do individualismo metodológico, tal como propõe Bobbio a
partir da oposição entre Estado e sociedade civil, a sociedade civil separada do Estado não é
em absoluto “o verdadeiro lar, o teatro de toda a história”. A sociedade civil pensada nesses
termos é apenas desagregação: “a relação orgânica entre Estado e sociedade civil não é de
antítese, mas de unidade-distinção. É a relação que define a subjetividade histórico-política. É
ela, portanto, o único terreno em que se constitui o sujeito" (VACCA, 1996: 48).
E se a interpretação de Bobbio de que em Gramsci o momento “ativo” é
superestrutural, estiver correto, não se poderia afirmar que Gramsci é um idealista, ou que
desemboca na metafísica? Pareceria não haver a menor dúvida, segundo a interpretação de
Bobbio. Para Coutinho a conclusão de Bobbio não procede porque é falsa. Ou seja, na ótica
de Bobbio, a alteração efetuada por Gramsci o levaria “a retirar da infra-estrutura essa
centralidade ontológico-genética, explicativa [que Marx a situa na base econômica como fator
primário na explicação da história], para atribuí-la a um elemento da superestrutura,
precisamente a sociedade civil” (COUTINHO, 1999: 122). A interpretação de Bobbio incorre
88
Talvez sejam os italianos os únicos que dão vários sentidos para o termo liberal. Nicola Matteucci (2002: 688-
689) descreve um Liberalismo jurídico “que se preocupa principalmente com uma determinada organização
do Estado capaz de garantir os direitos do indivíduo”, um Liberalismo político, “onde se manifesta com mais
força o sentido da luta política parlamentar”, e um Liberalismo econômico, que acredita que “o máximo de
felicidade comum dependeria da livre busca de cada indivíduo da própria felicidade”.
105
em erro por dois mal-entendidos: em primeiro lugar,
Bobbio não poderia atribuir a Gramsci a mesma função de "determinação em última
instância" que tinha na análise metodológica de Marx, já que o conceito de sociedade civil em
Gramsci não é o mesmo que aquele desenvolvido por Marx. E, em segundo lugar, Bobbio não
percebe que o conceito de 'sociedade civil' é o meio privilegiado através do qual Gramsci
enriquece, "com novas determinações, a teoria marxista do Estado. [...] Gramsci não inverte
nem nega as descobertas essenciais de Marx, mas 'apenas' as enriquece, amplia e concretiza,
no quadro de uma aceitação plena do método materialista histórico” (COUTINHO, 1999:
122-123).
A disjunção entre os campos estatal e social não seria possível exatamente porque o
Estado desvinculado da sociedade civil caminha para o âmbito da mera força e repressão,
assim como a sociedade civil sem sua contra-face (o Estado), caminha para a desagregação. É
dessa imbricação que Gramsci fala na passagem que segue:
A unidade histórica das classes dirigentes acontece no Estado e a historia delas é, essencialmente, a
historia dos Estados e dos grupos de Estados. Mas não se deve acreditar que tal unidade seja puramente
jurídica e política, ainda que também esta forma de unidade tenha sua importância, e não somente
formal: a unidade histórica fundamental, por seu caráter concreto, é o resultado das relações orgânicas
entre Estado ou sociedade política e 'sociedade civil'. As classes subalternas, por definição, não são
unificadas e não podem se unificar enquanto não puderem se tornar 'Estado': sua história, portanto, está
entrelaçada à da sociedade civil, é uma função 'desagregada' e descontínua da história da sociedade
civil e, por este caminho, da história dos Estados ou grupos de Estados (C.C 25, v. 5, § 5:139-140).
Trata-se de uma passagem fundamental por dois motivos: marca um diferencial nítido
em relação a concepção de Estado da tradição marxista, evidenciando mais detalhes da
ampliação do conceito, e descreve, por sua vez, a forma como as classes antagônicas se
relacionam com o Estado. E mais importante ainda, Gramsci sugere as dicas a qualquer
historiador que queira estudar a formação dos grupos subalternos, o que pode, por sua vez,
possibilitar o entendimento da hegemonia das classes dirigentes
89
.
89
Portanto, deve-se estudar, sugere Gramsci, “(1) a formação objetiva dos grupos sociais subalternos, através
do desenvolvimento e das transformações que se verificam no mundo da produção econômica [...]; 2) sua
adesão ativa ou passiva às formações políticas dominantes, as tentativas de influir sobre os programas destas
formações para reivindicações próprias [...]; 3) o nascimento dos novos partidos dos grupos dominantes,para
manter o consenso e o controle dos grupos sociais subalternos; 4) as formações próprias dos grupos
106
Conforme visto, Bobbio é de opinião que, em
Marx, o Estado é momento secundário em relação à sociedade civil. Liguori (2001: 2) ressalta
que esse ponto de vista de Bobbio é reedição de uma “leitura mecanicista da relação
estrutura-superestrutura
90
em Marx”, e dependendo do autor que Bobbio esteja analisando
(Marx ou Gramsci), associará ao primeiro o momento ativo na estrutura, e em relação ao
segundo, o momento ativo relaciona-se à superestrutura, desaparecendo na visão de Bobbio, a
possibilidade de ação recíproca entre os dois níveis de realidade. A visão de Marx em relação
ao Estado, assim como de Engels e Lenin, em oposição à perspectiva de Hegel, é de
“dessacralização”, cuja origem está na divisão da sociedade em classes, razão por que a
função do Estado “é precisamente a de conservar e reproduzir tal divisão, garantindo assim
que os interesses de uma classe particular se imponham como o interesse geral da sociedade”
(COUTINHO, 1999: 123-124).
Marx como produto de uma época, não pode perceber o surgimento da densa "trama
privada", dos "aparelhos privados de hegemonia" da sociedade capitalista desenvolvida, tal
como os descreve Gramsci. O Estado que Gramsci percebe era já um 'outro' Estado: "mais
forte, mais 'complexo' e articulado". A política socializou-se através da "formação de sujeitos
políticos coletivos de massa" (COUTINHO, 1999: 125).
Para Gramsci a ampliação do conceito de Estado tem duas direções. Uma direção
compreende a nova relação entre política e economia, traço peculiar do século XX. Sob essa
perspectiva Gramsci reflete sobre o 'corporativismo' fascista, a experiência da URSS, sobre a
situação que se fez seguir à crise de Wall Street (LIGUORI, 2004: 209). Outra direção está
relacionada à compreensão da nova relação entre 'sociedade política' e 'sociedade civil', locus
de lutas e de consenso. Gramsci se situaria inteiramente sobre em terreno marxista, já que não
substitui a economia pela política; ao contrário reafirma tal relação dialética entre ambas as
subalternos para reivindicações de caráter restrito e parcial; 5) as novas formações que afirmam a autonomia
dos grupos subalternos, mas nos velhos quadros; 6) as formações que afirmam a autonomia integral” (C.C
25, v. 5, § 5,p. 140).
90
Segundo Gramsci, o problema da relação da estrutura com a superestrutura é o problema crucial do
materialismo histórico: “Se o conceito de estrutura é concebido 'especulativamente', torna-se certamente um
'deus oculto'; mas ele não deve ser concebido especulativamente, e sim historicamente, como o conjunto de
condições objetivas que podem e devem ser estudadas com os métodos da 'filologia' e não da 'especulação'”
107
esferas, interessando-se pelo fenômeno, agora novo, da
obrigação estatal, que faz do Estado “um potente pulmão financeiro a serviço do capital”
(COUTINHO, 1999: 209-212).
Está se falando aqui, do momento em que, diante das crises advindas do pós-guerra,
quando Estado intervém na organização produtiva como forma de evitar o colapso geral do
sistema capitalista, e conseqüentemente intervém direta ou indiretamente sobre a sociedade,
produzindo-a, de certa maneira
91
. No período do pós-guerra, “o aparelho hegemônico se
estilhaça e o exercício da hegemonia torna-se permanentemente difícil e aleatório” (C.C 13, v.
3, § 37: 95). Essa percepção de Gramsci sobre o Estado capitalista do pós-guerra é uma
leitura pluralista de Hegel, “sobre o fato de que a força do Estado capitalista está na grande
variedade e articulação do sistema dos interesses e da representação (a 'trama privada'), e na
sua capacidade em fazer coexistir o universal com a difusão mais extrema do particular”
(PAGGI, 1984: XV)
92
. A catástrofe esperada pelos setores de esquerda da época (do
capitalismo e conseqüentemente do Estado que o representa no alto da depressão de 29)
parece não ter se concretizado. Ao contrário, foi o próprio Estado que se adaptou à nova
realidade, e a involução no sistema político ocidental não acontecera tal como as vertentes da
II e III Internacional prognosticaram.
A outra direção da ampliação do conceito de Estado em Gramsci aparece na teoria da
relação Estado-sociedade civil: relação dialética de unidade-distinção. Mas, sociedade civil
como campo de lutas de classes, de disputas de alguns grupos sociais sobre outros, espaço da
hegemonia com todos os elementos “impuros” que possa comportar o campo político, e não
simplesmente como campo idílico, de consensos e acordos, campo de um agir comunicativo
livre dos campos de força. Gramsci não só redefiniu o conceito de Estado, como também
"ampliou o conceito de política" (LIGUORI, 2001: 20).
(C.C 10, v. 1, § 8: 297).
91
“Eram justamente os processos que – a partir da fábrica fordista – se haviam imposto nas sociedades
capitalistas avançadas, e que Gramsci, por muito tempo único entre os marxistas, havia colhido em primeiro
lugar” (LIGUORI, 2000/2001: 44).
92
“[...] su fatto Che la forza dello Stato capitalistico sta nella grande varietà e articolazione del sistema deglli
interessi e della rappresentanza (la ´trama privata`), e nella sua capacità di fare coexistiré l´universale con la
difussione piú estrema del particolare”.
108
O Estado em sentido amplo: “O Estado (no
sentido integral: ditadura + hegemonia)”
93
; e Estado como “sociedade política + sociedade
civil, isto é, hegemonia escudada na coerção”, comporta duas esferas principais: a sociedade
política e a sociedade civil. O 'Estado em sentido estrito' ou 'Estado-coerção' é formado pelo
conjunto dos mecanismos através da classe hegemônica “que detém o monopólio legal da
repressão e da violência e que se identifica com os aparelhos de coerção sob controle das
burocracias executiva e policial militar" (COUTINHO, 1999: 127). A segunda, "formada
precisamente pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão das
ideologias, compreendendo o sistema escolar, as igrejas, os partidos políticos, os sindicatos,
as organizações profissionais, a organização material da cultura (revistas, jornais, editoras,
meios de comunicação de massa), etc" (COUTINHO, 1999: 127). Duas problemáticas
distinguem essas esferas, relacionadas à função e ao modo. Ambas as esferas servem para
“conservar ou promover uma determinada base econômica, de acordo com os interesses de
uma classe social fundamental" (COUTINHO, 1999: 127-128). Mas, o modo de encaminhar
essa promoção ou conservação varia nos dois casos: tanto na esfera da sociedade civil que
busca exercer sua hegemonia através do consenso e da direção política, como por meio da
sociedade política, esfera através da qual “as classes exercem sempre uma ditadura, ou, mais
precisamente, uma dominação mediante a coerção” (COUTINHO, 1999: 128).
Ou seja, a descrição gramsciana do fenômeno político insiste no elemento ético do
Estado que chega dos clássicos até Hegel, ou seja, do Estado como educador que expandirá
suas raízes, de forma molecular, através dos "portadores materiais da sociedade civil" ou dos
"aparelhos [ditos, vulgarmente chamados] privados", incluída aí a “opinião pública”, ponto de
contato, segundo Gramsci, entre a “sociedade civil” e a “sociedade política”, entre o consenso
e a força: “O Estado, quando quer iniciar uma ação pouco popular, cria preventivamente a
opinião adequada, ou seja, organiza e centraliza certos elementos da sociedade civil” (C.C 7,
v. 3, § 83: 265). Para Coutinho, Gramsci registra o fato novo de que a esfera ideológica, nas
sociedades capitalistas avançadas, mais complexas, ganhou uma autonomia material (e não só
funcional) em relação ao Estado em sentido restrito, e é essa independência material que
109
funda ontologicamente a sociedade civil como uma
esfera própria, dotada de legalidade própria, e que funciona como mediação necessária entre a
estrutura econômica e o Estado-coerção. Nesse sentido, “não há hegemonia, ou direção
política e ideológica, sem o conjunto de organizações materiais que compõem a sociedade
civil enquanto esfera especifica do ser social” (COUTINHO, 1999: 129).
O universo maior em que se inscreve o plano das superestruturas da sociedade civil
não é apenas o das formas de propriedade, mas também o das formas de direção – cultural
intelectual e política da sociedade global, entre a liberdade e a autoridade. Só aceitando ser a
sociedade civil, “enquanto factum sociológico, plano em que se situam as organizações
privadas e reino da autonomia”, onde as classes dominantes e subalternas “elaboram sua
concepção do mundo, é que se entenderá por que a disputa hegemônica se dá na sociedade
civil e não no Estado”. Na verdade, “as formas em que se expressam as posses essenciais –
alma, sexo, excedente e poder – decorrem das e se traduzem nas relações sociais antes de
refletir-se no Direito estatal positivo” (FERREIRA, 1986: 153).
Isso não significa a defesa da hipótese da separação entre sociedade civil e sociedade
política no pensamento político de Gramsci. Indica, ao contrário, que é no seio da sociedade
civil, entendida como conjunto de associações e os organismos ditos “privados”, como campo
da práxis voluntária, onde se dá a luta pela hegemonia, e pelo estabelecimento de uma visão
de mundo, da supremacia das condutas. Se existe alguma separação possível entre ambas as
esferas, esta ocorre no momento em que a hegemonia entra em crise, momento de separação
entre o 'ético' e o 'político': “Entre a estrutura econômica e o Estado com a sua legislação e a
sua coerção está a sociedade civil”, diz Gramsci, e acrescenta que a mesma deve ser
radicalmente transformada em concreto e não apenas sobre a carta da lei e dos livros. O
Estado, nesse caso, seria o instrumento para adequar a sociedade civil à estrutura econômica,
mas “é necessário que o Estado 'queira' fazer isso, isto é, que a guiar o Estado estejam os
representantes da mudança havida na estrutura econômica” (C.C 10, v.1, § 15: 324). Aqui,
mais uma nota onde Gramsci fala do papel ativo do Estado no processo civilizatório.
Mas a crítica de Anderson dirigida a Gramsci parece ir mais além. Se a teoria política
93
Cf. C.C 6, v. 3, § 155: 257; C.C 6, v. 3, § 88: 244-245.
110
gramsciana é débil, débil seria sua estratégia para
propor mudanças sociais. Anderson parece ser adepto, ainda, do “ataque frontal” ou da
“guerra de movimento” quando pensa o processo revolucionário para o ocidente, atitude que
segundo Gramsci, não corresponderia à realidade política do ocidente, já que por esses lados
o capitalismo teria dado mostras de sua capacidade de recuperação diante das graves crises
que sofreu ao longo do século XX. Há que se pensar estratégias de longo alcance, segundo
Gramsci. E aí o aspecto ideológico e cultural é determinante nesse processo de elaboração do
novo diante do velho. Nesse sentido, Bobbio teria um pouco mais de razão, sem que isso
signifique, por outro lado, imobilismo político ou determinismo, só que dessa vez cultural.
111
CAPÍTULO IV
ASPECTOS DO DEBATE ATUAL SOBRE A SOCIEDADE CIVIL
O quarto (e último) capítulo procura investigar alguns aspectos do debate atual sobre a
sociedade civil, relacionando-a, sobretudo ao fenômeno da globalização, da mundializacão da
economia, das mudanças no mundo do trabalho e do consumo; das mudanças ocorridas nos
fundamentos políticos dos Estados-nações, do fenômeno da desterritorialização, da
financeirização da economia e da democracia. Por sua vez, essa análise será confrontada ao
conceito de sociedade civil gramsciano, perguntando-nos por seus alcances e limites na
atualidade.
Aqui, Zygmunt Bauman, Michael Hardt e Ellen Wood são três autores importantes
para entendermos o debate contemporâneo sobre o papel do Estado e da sociedade civil.
1. O Estado-nação nos limites da modernidade
O fenômeno da globalização, associado a todos os problemas inerentes a esse processo
estaria produzindo a despolitização da sociedade civil? A sociedade civil estaria caminhando
de “costas” para o Estado?
Na década de 30 do século XX, Gramsci coloca algumas questões nas Notas sobre
Maquiavel, cujo teor, ao que parece, não deixará de ter seu pleno vigor por um longo tempo.
Gramsci fala da disjunção entre força e consenso, economia e política, perguntando-se se
ainda é possível, no mundo moderno, a hegemonia cultural de uma nação sobre as outras? Ou
112
o mundo, segue se questionando,
já está de tal modo unificado em sua estrutura econômico-social que um país, mesmo podendo ter
'cronologicamente' a iniciativa de uma inovação, não pode, porém conservar o monopólio político dela
e, portanto, servir-se desse monopólio como base de hegemonia? Então, que significado pode ter hoje o
nacionalismo? Não será ele possível apenas como 'imperialismo' econômico-financeiro, e não mais
como 'primado' civil ou hegemonia político-intelectual? (C.C 13, v. 3, § 26: 75-76).
De partida, essas questões colocadas por Gramsci - que em muito ultrapassam uma
reflexão voltada para o âmbito meramente nacional - nos remete a outras importantes
questões:: seria o Estado-nação atual o mesmo Estado descrito por Gramsci? O império
econômico-financeira atual depende ainda da existência dos Estados-nações, ou teria vida
própria?
Ao citar Sennet, Bauman (1999: 63) diz que, numa geração anterior, a política social
baseava-se na crença de que as nações, e dentro delas as cidades, podiam controlar suas
riquezas: "agora, abre-se uma divisão entre Estado e economia”. O processo de globalização,
ao que parece, fenômeno social e econômico irreversível, “afeta a todos na mesma medida e
da mesma maneira”, pois estamos “todos sendo 'globalizados'” (BAUMAN, 1999: 7).
Bauman, ao analisar a modernidade no sentido de captar a natureza da sua origem e
conseqüentemente a fase que estamos vivenciando, utiliza a seguinte metáfora: “os fluidos se
movem facilmente. Eles 'fluem', 'escorrem', 'esvaem-se', 'respingam', 'transbordam', 'vazam',
'inundam', 'borrifam', 'pingam'; são 'filtrados', 'destilados'”, os quais, diferentemente dos
sólidos, não são facilmente contidos, pois “contornam certos obstáculos, dissolvem outros e
invadem ou inundam seu caminho”. 'Leveza' e ‘liquidez’ são as características para definir a
mobilidade dos fluídos. Associamos 'leveza' ou 'ausência de peso' à mobilidade e à
inconstância: sabemos pela prática que “quanto mais leves viajamos, com maior facilidade e
rapidez nos movemos” (BAUMAN, 2001: 8).
Para Bauman, procurar captar a natureza da realidade social e política nos termos
acima descrito não constitui muita novidade, já que a modernidade, desde a sua origem, foi
“fluida”. Algo que não destoaria daquilo que pensara Marx no Manifesto Comunista ao
afirmar que “tudo que é sólido se desmancha no ar”, exatamente para referir-se à condição da
modernidade em relação à solidez e ao peso da tradição, das crenças e lealdades.
113
O que quer que a história da modernidade seja
no presente, diz Bauman, “ela é também e talvez acima de tudo, pós-Panóptica”. E, as
principais técnicas do poder são agora “a fuga, a astúcia, o desvio e a evitação, a efetiva
rejeição de qualquer confinamento territorial” (BAUMAN, 2001:18). É o poder relacionado a
sinais eletrônicos, reduzido a instantaneidade.
Conforme Bauman, o desmantelado 'modo tradicional de vida' de que o trabalhador
era parte antes de sua emancipação estava para ser substituído por uma nova ordem. Desta
vez, porém, “uma ordem pré-projetada, uma ordem 'construída', não mais o sedimento do
vagar sem objetivo”. Ao descobrir que o trabalho era a fonte da riqueza, “a razão tinha que
buscar utilizar e explorar essa fonte de modo mais eficiente que nunca”. A liberdade recém-
descoberta deveria ser utilizada no esforço de gerar a ordenada rotina futura: “nada deveria
ser deixado em seu curso caprichoso e imprevisível, ao acidente e à contingência; nada
deveria ser mantido em sua forma presente, se essa forma pudesse ser aperfeiçoada e tornada
útil e eficaz” (BAUMAN, 2001: 164-165).
Ao mesmo tempo em que a modernidade, de um lado, procura “derreter os sólidos” da
tradição, de outro lado, ela procura estabelecer a nova ordem. O capitalismo “pesado” é a
idéia de ordenação desses fins pretensamente soltos, à deriva. Henry Ford é a expressão desse
novo modelo que aspira à ordem, duração, volume, dominação do espaço, certezas,
territorialidade, “fidelidade” do empregado à empresa, imobilidade, grandes e pesadas
indústrias, investimentos locais
94
. Os horizontes temporais dessa modalidade de capitalismo
eram de “longo prazo”, cuja característica vital era a estabilidade, tanto da parte de quem
vendia a força de trabalho como de quem a comprova. Mas, essa situação mudou, “e o
ingrediente crucial da mudança múltipla é a nova mentalidade de ‘curto prazo’” (BAUMAN,
2001: 169)
, substituindo a anterior.
Diferentemente da situação descrita anteriormente, o capitalismo “leve”, “liquefeito”,
“disperso”, apresenta as características da volatividade, flexibilidade, incertezas, separação
94
Em Americanismo e fordismo, Gramsci (C.C, 22, v. 4) expõe com riqueza de detalhes o taylorismo, esse novo
modo de gerenciar capital e trabalhadores surgido nos EUA após a depressão econômica de 1929 e da
Segunda Guerra Mundial.
114
entre capital e trabalho, predomínio do âmbito privado,
enfraquecimento de laços entre os trabalhadores, desterritorialização. O capital se tornou
“extraterritorial, leve, desembaraçado e solto numa medida sem precedentes [...] O capital
viaja leve, apenas com a bagagem de mão – pasta, computador e telefone celular”
(BAUMAN, 2001: 172-173). Conseqüência de tudo isso é que a política hoje, “se tornou um
cabo-de-guerra entre a velocidade com que o capital pode se mover e as capacidades cada vez
mais lentas dos poderes locais”. Na prática, na vida das pessoas, isso significa “baixos
impostos, menos regras e, acima de tudo, um 'mercado de trabalho flexível'”. Em termos mais
gerais, significa “uma população dócil, incapaz ou desejosa de oferecer resistência organizada
a qualquer decisão que o capital venha a tomar”. Paradoxalmente, “os governos podem ter a
esperança de manter o capital em seu lugar apenas se o convencerem de que ele está livre para
ir embora – com ou sem aviso prévio” (BAUMAN, 2001: 172-173).
Ou seja, a “estratificação social e a hierarquia da dominação” da sociedade atual não
existem independentes da velocidade de movimento, e, este é, talvez, o fator mais importante
dessa nova configuração social. Se se pode falar de alguma dependência mútua hoje em
alguma esfera, ela só existe no “compromisso do capital com os consumidores”. No cume da
pirâmide do poder do capitalismo leve, “circulam aqueles para os quais o espaço tem pouca
ou nenhuma importância – os que estão fora de lugar em qualquer lugar em que possam estar
fisicamente presentes” (BAUMAN, 2001: 174-175-176). Ou seja, a leveza desses novos “sem
fábricas” e sem posições administrativas se iguala às características da nova economia que os
gestou.
Mas, a globalização, para se manter e fortalecer necessita “conservar-se e expandir-se
como cultura” (BAUMAN, 1998: 32), como ideologia, no sentido assinalado por Gramsci. A
cultura e a ideologia da globalização vem se firmando no campo das relações sociais com
base nos seguintes aspectos: a) mito do progresso, no sentido de que “tudo o que é técnico é
visto como avançado, como automaticamente bom”; b) ênfase dada à velocidade como
sinônimo de inclusão social e de produção; c) dogma da comunicação; d) a religião do viver o
próprio tempo (ASSMANN, 1998: 34-35). Isso por sua vez, nos remete à incapacidade para
gerir a globalização, à economia. Mas, essa incapacidade ou impotência “não é uma
incapacidade de princípio”, ao contrário, ela mesma é conseqüência de “escolhas políticas”,
115
ou seja, há uma “gestão política da globalização”,
necessita “molduras jurídicas”, as quais são, ainda, oriundas da política (PINZANI, 2001: 507).
O fato inegável é que enquanto os sujeitos econômicos se movem na velocidade dos cabos
transmissores e satélites, afastando-se da “originária dimensão nacional”, atingindo um
caráter transnacional, os Estados seguem tratando-os como se fossem ainda empresas
nacionais, “seguem identificando o interesse nacional com o interesse de empresas que já não
estão mais ligadas aos interesses do país em que elas, todavia, tem, formalmente, a sua sede”
(PINZANI, 2001: 507). Ou seja, estamos novamente diante do fato de que “a política está
sempre atrasada em relação à economia”, algo percebido por Gramsci na análise da
recomposição da economia americana em Americanismo e fordismo. O que Gramsci dissera
talvez para o âmbito dos Estados-nações, não deixa de ser aplicável na atualidade, momento
da mundialização da economia.
2. Os globais e os locais
Bauman argüi que a mobilidade tornou-se o fator de estratificação mais poderoso e
mais cobiçado no mundo pós-Panóptico. Em outros termos, “surge uma nova assimetria entre
a natureza extraterritorial do poder e a contínua territorialidade da 'vida como um todo'”,
assimetria essa no sentido de que o poder econômico sente-se livre para explorar e abandonar
às conseqüências dessa exploração: “alguns podem agora mover-se para fora da localidade –
qualquer localidade – quando quiserem. Outros observam, impotentes, a única localidade que
habitam movendo-se sob seus pés” (BAUMAN, 1999: 16-17-25). Recorrendo novamente à
analogia de Bauman para explicar as contradições da modernidade, para alguns a vida segue
seu curso de forma fluída, líquida, para a grande maioria do planeta, a vida se arrasta como o
peso dos metais.
O mundo divide-se, dessa maneira, em dois: o global e o local, evidenciando, assim,
que apenas no campo do discurso a globalização acabou com as diferenças de classes, que
estamos todos emersos na bolha da vida fluida; que a pobreza é apenas uma questão técnica,
assim como a política; que o desemprego, por exemplo, é uma questão pessoal, privada. O
116
fosso entre pobres e ricos se acentuou, quiçá, com
outras roupagens, e o "darwinismo social" parece ganhar forças novamente quando se procura
explicar tal fosso.
Ao contrário do Panóptico (que procurava promover a disciplina e impor um padrão,
uma linearidade, garantindo que ninguém fugisse pelas frestas dos espaços vigiados), o pós-
Panóptico define-se essencialmente a partir dos “bancos de dados”, que é “um veículo de
mobilidade, não grilhões a imobilizar pessoas” (BAUMAN, 1999: 59). Sinóptico é o termo
que substitui perfeitamente o Panóptico. Se o Panóptico “forçava as pessoas à posição em que
podiam ser vigiadas”, o Sinóptico não precisa de coerção: “ele seduz as pessoas à vigilância”.
No Sinóptico, “os habitantes locais observam os globais” (BAUMAN, 1999: 60-61), sendo
que a autoridade e a garantia dos últimos residem na condição do distanciamento: “o que quer
que se mova a uma velocidade aproximada à do sinal eletrônico é praticamente livre de
restrições relacionadas ao território de onde partiu, ao qual se dirige ou que atravessa
(BAUMAN, 1999: 63).
É a partir dessa nova configuração mundial da informação instantânea que podemos
nos perguntar sobre o papel do Estado-nação frente ao propalado processo de globalização,
cujo significado mais profundo é o do “caráter indeterminado, indisciplinado e de
autopropulsão dos assuntos mundiais; ausência de um centro, de um painel de controle, de
uma comissão diretora, de um gabinete administrativo” (BAUMAN, 1999: 67). Se até então,
ao longo de toda a era moderna fomos acostumados com a idéia de que a ordem equivalia
“estar no comando”, sob a égide de um Estado ordenador, agora a imagem que se nos
apresenta é a “nova desordem mundial”. Ou seja, “ninguém parece estar no controle agora
(BAUMAN, 1999: 66, grifo do autor). Portanto, estaria em questão aquele Estado definido
por Max Weber como o agente, que na circunscrição de um território, reivindica à
legitimidade do monopólio dos meios de coerção, além do uso desses meios. Ao que parece,
se a soberania não está com os dias contados, já dá mostras de que está andando “de muletas”,
temos, então, a seguinte situação: a economia é progressivamente isentada do controle
político; com efeito, “o significado primordial do termo 'economia' é o de 'área não política'”.
Diante dessa nova configuração mundial, o Estado não deve tocar em coisa alguma
relacionada à vida econômica: “qualquer tentativa nesse sentido enfrentaria imediata e furiosa
117
punição dos mercados mundiais” (BAUMAN, 1999:
74). Por outro lado, a predominância da economia de mercado na atualidade não acontece de
forma aleatória, sem “um poder capaz de manter as condições do seu funcionamento natural”.
É certo que o liberal procura dispensar o poder, mas não pode faze-lo de forma definitiva, e o
deseja mesmo como “válvula de segurança da economia”. Ou seja, o liberal é um homem às
voltas com um problema insolúvel: “determinar até que ponto pode serrar o galho no qual está
sentado, sem correr o risco de quebrá-lo” (LEBRUN, 1984: 81-82).
A partir da década de 80 do século passado, vários foram os exemplos de países que
sofreram verdadeiros “castigos” por insistirem numa política de bem estar social, conquistada
a duras penas pelas lutas trabalhistas ao longo do século XX. Tiveram que obrigatoriamente
incorporar na agenda de suas pautas políticas domésticas termos da correnteza global, tais
como: desregulamentação, flexibilização, leveza, fluidez, etc. E quais as conseqüências de
tudo isso, até o momento? Os habitantes do Primeiro Mundo “vivem no tempo; o espaço não
importa para eles, pois transpõem instantaneamente qualquer distância”. E os habitantes do
segundo mundo, ao contrário, “vivem no espaço, um espaço pesado, resistente, intocável, que
amarra o tempo e o mantém fora do controle deles. O tempo deles é vazio: nele 'nada
acontece'” (BAUMAN, 1999: 97). Em termos mais rebuscados, “a fragmentação e o
isolamento 'na base' continuam sendo os irmãos gêmeos da globalização 'no topo'” (BAUMAN,
1999: 136)
.
De um lado, o poder econômico que flui extraterritorialmente, o qual não reconhece
barreiras espaciais, não se deixa captar. De outro, a política e o Estado-nação com todas as
suas instituições locais, reduzidas, muitas vezes, a meras formalidades e procedimentos. Ante
essa situação teríamos perdido a humanidade e o encanto? Os sofrimentos que costumamos
experimentar a maioria das vezes não se somam e, portanto “não unem suas vítimas. Nossos
sofrimentos dividem e isolam, nossas misérias nos separam, rasgando o delicado tecido das
solidariedades humanas” (BAUMAN, 2000, p. 61).
É certo que os Estados nacionais não estão, apesar de toda propaganda contrária,
caminhando para a sua extinção de forma instantânea. Assim como a teoria da “implosão”
não nos ajuda a ter uma compreensão mais apurada do que aconteceu com o socialismo no
Leste Europeu, por exemplo. De igual maneira, explicar o fenômeno da globalização através
118
da tese de que todos os Estados nacionais (que aí estão)
já implodiram é, no mínimo, cometer graves erros no campo político e ceder facilmente a uma
propaganda muito forte de parte daqueles que pensam o Estado sempre como algo que coloca
entraves no curso do capital financeiro mundial.
Por outro lado, para realizar aquilo que os cidadãos ainda esperam de um Estado, o
Estado da “segunda modernidade deve ativar-se simultaneamente em vários níveis locais e
transnacionais e dentro de instituições muito afastadas dos seus confins” (BECK & ZOLO,
1997-1998: 7). Colocar o problema nesses termos é, na realidade, colocar a mais importante
controvérsia no campo da teoria política contemporânea: é possível uma democracia para
além do âmbito do Estado nacional? Deve o Estado Nacional ser considerado o único âmbito
institucional dentro do qual se pode realizar o Estado de direito? Se não se pode resolver mais
nada através do Estado nacional, a quem competirá a tutela dos direitos humanos? E os
gládios do mercado, por exemplo? Correremos ou não o perigo de transformar futuramente os
Estados supranacionais, também em sociedades do espetáculo? Diante desse quadro, quais são
as condições do desenvolvimento da sociedade civil na atualidade?
3. Sociedade pós-civil?
Retomemos novamente o artigo O desaparecimento da sociedade civil de Hardt.
Dessa vez para mostrar sua tese principal, já que nem Hegel, Marx, Foucault e Gramsci não
seriam suficientes para dar conta da realidade política contemporânea. Para Hardt as novas
condições do domínio estão associadas à passagem de uma sociedade disciplinar para uma
sociedade de controle. Isto não significa dizer, esclarece o autor, que as formas e as estruturas
do intercâmbio social, da participação e domínio tenham desaparecido. A sociedade de
controle define-se por uma nova configuração de aparatos, dispositivos. Em outras palavras,
“o espaço social foi diluído ('levigado')", não no sentido de que tenham sido aparadas as
arestas das estrias disciplinares, "mas sim no sentido de que aquelas linhas foram
generalizadas por toda a sociedade”. O espaço social não foi esvaziado das instituições
disciplinares: foi sim enchido completamente com “as modulações de controle” (HARDT,
119
2001: 7).
E quais metáforas podem nos ajudar a compreender e definir este novo paradigma da
sociedade de controle? Certamente, nem a metáfora que inclua “estrutura e superestrutura”,
nem a imagem dos “túneis da toca ligados entre si”, nem a metáfora de “trincheiras” que
suportava a guerra de posição, amplamente utilizada por Gramsci. Tampouco o panopticon
descrito por Bentham e apropriado por Foucault. As características predominantes desse novo
modelo são: mobilidade, velocidade e monitoração. O espaço metafórico das sociedades de
controle, diz Hardt, é mais bem definido através das “ondulações da serpente” e das “areias
do deserto”, pois se deslocam continuamente. Neste sentido, “o controle funciona no plano
das imagens da sociedade. O anonimato e o caráter do 'qualquer um' das sociedades de
controle é o que precisamente marca aquelas suas superfícies levigadas” (HARDT, 2001: 8).
As condições de mediação da sociedade civil estariam perdendo importância. Nessa
Perspectiva, Hardt defini a nossa época como pós-civil e não como pós-moderna. A época do
comando está se extinguindo. Fazemos parte de uma época, cujas qualidades elementares são
a mobilidade, a velocidade e a flexibilidade, isto é, fazemos parte da sociedade pós-civil, das
"sociedades de controle”. Para Hardt as mudanças ocorridas nas práticas sociais devem ser
observadas, sobretudo, a partir da natureza do trabalho e do biopoder.
Não é nosso objetivo adentrar na rica discussão sobre a nova configuração política do
domínio imperial, mas na obra Império Hardt e Negri dão detalhes minuciosos desta nova
configuração das relações sociais e do domínio imperial, sobretudo, quando falam da trama da
sociabilidade e da nova constituição política do presente. Essa nova lógica e estrutura de
comando, essa nova forma de supremacia é o “império”, que se traduz como a nova
substância política que, de fato, "regula essas permutas globais, o poder supremo que governa
o mundo” (HARDT & NEGRI, 2001:11).
De fato, pareceria não haver nenhuma saída possível diante dessa nova realidade
denominada império. Mas, no mínimo é curiosa a saída antevista pelos dois autores nessa
obra, diante dessa nova realidade política, invocando a figura paradigmática de São Francisco
de Assis do século VIII, como referencial do novo militante do século XXI. Assim como São
Francisco, que propôs uma vida de alegrias, incluindo aí todos os seres, o militante comunista
120
deveria fazer o mesmo, “identificando na condição
comum da multidão sua enorme riqueza”, propondo contra a “miséria do poder”, a “alegria do
ser” (HARDT & NEGRI, 2001:437). A forma apropriada da ação do militante comunista é
essencialmente “constituinte”, e não representativa. É uma militância que só conhece o lado
de dentro, traduzida em “cooperação produtiva da intelectualidade das massas”, segundo
Hardt e Negri (2001: 437).
Ou seja, o militante atual estaria numa desvantagem absurda se comparada à missão
de São Francisco. Se este, por uma arte desenvolvida consegue acalmar os lobos das florestas
com bastante tranqüilidade, os dons de nossos militantes comunistas, de longe terão a
segurança que teve São Francisco em acalmar seus bichos, já que as feras e os leviatãs da
globalização não se acalmarão tão pacificamente ao som de violinos, tocando belas melodias
numa praça pública. Não que o ideário de vida proposto por São Francisco não tenha tido o
seu devido valor para ele próprio, e para aqueles que supostamente o tenham seguido, e
naquele contexto também capitalista. Mas o contexto do qual fazem parte os militantes
comunistas é de capitalismo avançado. Além do que, a ação política que almeja mudanças no
seio da sociedade não compete a um, dois ou três. No mínimo, essa tarefa cabe a uma vontade
coletiva que queira faze-lo, tal como pensara Gramsci. A questão que se coloca é se tal, além
de desejável, é possível?
4. Estado e sociedade civil
As dramáticas visões políticas atuais tais como as descritas acima, parecem indicar
não só que não há “o que fazer”, e se houvesse o que fazer, por outro lado, estaríamos como
que impossibilitados a fazê-lo. Uns insistem que é hora de retomarmos o ideal iluminista.
Bastaria reacender as tochas da razão e a história correria dentro dos trilhos novamente.
Outros simplesmente apregoam um conformismo: cuidemos de nossos quintais, não abramos
mãos do status quo, não permitamos que nossa situação individual venha a piorar! Por outras
palavras, do ponto de vista teórico, parece que se vai desde a retomada de um otimismo
teórico até um reconhecimento de que já não podemos ter argumentos para alimentar alguma
121
iniciativa social que melhore a situação local e global.
E nesse caso, vale a pena perguntar: temos como agir sem cair num espaço vazio?
Na tentativa de renovação do materialismo histórico na atualidade, Wood (2003) na
obra Democracia contra capitalismo procura mostrar a tese do nexo entre a esfera econômica
e política, Estado e sociedade civil, projeto teórico que muitas vezes o marxismo perdeu de
vista. A questão central é "explicar como e em que sentido o capitalismo enfiou uma cunha
entre o econômico e o político", como e em que sentido questões essencialmente políticas,
como “a disposição do poder de controlar a produção e a apropriação", ou "a alocação do
trabalho e dos recursos sociais foram afastadas da arena política e deslocadas para uma outra
esfera" (WOOD, 2003: 28).
A autora reconsidera a "velha" questão da "base" e da "superestrutura" e se pergunta
por uma alternativa teórica ao "economicismo vulgar" que tenta preservar a integridade do
"modo de produção". Nesse sentido afirma que, depois de Marx, só alguns historiadores
marxistas teriam conseguido se aproximar daquele. Lembremos a tese de Wood para
sabermos se o próprio Gramsci já não teria dado uma resposta à altura para o problema da
disjunção entre economia e política.
Para Marx, o segredo último da produção capitalista é político, mas isso nem sempre
foi verdade no marxismo depois de Marx, já que, de uma forma ou de outra e em graus
variados, os marxistas adotaram modos de análise que, implícita ou explicitamente, “tratam
'base' econômica e a 'superestrutura' legal, política e ideológica que a 'reflete' ou 'corresponde'
a ela como coisas qualitativamente diferentes, esferas mais ou menos fechadas e
'regionalmente' separadas” (WOOD, 2003: 28).
Embora a visão descrita acima seja condizente com as teorias marxistas ortodoxas, a
parte que reivindica a superestrutura como determinante também não ficaria imune de uma
dicotomia, ao reforçarem a separação "espacial entre as esferas". No máximo, um poder
político "espacialmente separado pode intervir na economia, mas a economia em si é
despolitizada e esvaziada de conteúdo social (WOOD, 2003: 29). Ou seja, parece que uma
posição intransigente não resolveria a questão colocada, pois o modo de produção não parece
existir em oposição aos "fatores sociais". O "marxismo político" não despreza a produção,
"nem lhe estende os limites para abraçar indiscriminadamente todas as atividades", apenas
122
leva a sério o princípio de que "um modo de produção
é um fenômeno social" (WOOD, 2003: 31-32,-33-35, grifo da autora) e enquanto tal, “um
modo de exploração é uma relação de poder”. Wood argüi que a esfera econômica se apóia
firmemente na política, e a esfera econômica “tem em si uma dimensão jurídica e política”, as
quais não são menos reais do que as formas econômicas, tal como esclarece Gramsci ao falar
das ideologias, por exemplo.
Voltando ao tema da separação entre economia e política, Wood diz que na
antiguidade clássica não existia “liberalismo” (constitucionalismo, governo limitado, 'direitos'
individuais' e 'liberdades civis'). A democracia antiga - esclarece a autora- em que o Estado
não tinha existência separada como entidade isolada da comunidade de cidadãos, não
produziu nem uma concepção clara da separação entre 'Estado' e 'sociedade civil', e, nenhum
conjunto de idéias nem de instituições para controlar o poder do Estado ou para proteger a
'sociedade civil' e o cidadão individual da interferência dele. Tal fenômeno se deve ao fato de
que “o 'liberalismo teve como precondições fundamentais o desenvolvimento de um Estado
centralizado separado e superior a outras jurisdições mais particularizadas”. O liberalismo
entrou no discurso político moderno “não apenas como um conjunto de idéias e instituições
criadas para limitar o poder do Estado, mas também como um substituto da democracia”
(WOOD, 2003: 193-198, grifo do autor).
Ao mesmo tempo, quem tornou possível essa redefinição da democracia e sua redução
ao liberalismo foi o capitalismo: de um lado, passou a existir “uma esfera política separada na
qual a condição 'extra-econômica' – política, jurídica ou militar – não tinha implicações
diretas para o poder econômico, o poder de apropriação, de exploração e distribuição”. Do
outro lado, passou a existir “uma esfera econômica com suas próprias relações de poder que
não dependiam de privilégio político nem jurídico”. Resultado dessa perspectiva democrática
liberal é que ela deixa intocada toda a nova esfera de dominação e coação criada pelo
capitalismo, “sua transferência de poderes substanciais do Estado para a sociedade civil, para
a propriedade privada e as pressões do mercado” (WOOD, 2003: 201). Democracia e
mercado acabam se identificando, e proteger a invulnerabilidade do poder econômico em
relação à democracia passou a ser tarefa da própria democracia nos termos descritos até aqui.
Dessa maneira, torna possível evocar a democracia “em defesa da redução dos direitos
123
democráticos em outras partes da 'sociedade civil' ou
do domínio público, se isso for necessário para proteger a propriedade e o mercado contra o
poder democrático” (WOOD, 2003: 202).
O que seria necessário para recuperar a democracia da separação formal entre o
“político” e o “econômico”? A partir daqui Wood procura resgatar o conceito de sociedade
civil, sem, contudo, deixar-se levar pelo risco de transformá-lo “num álibi para o
capitalismo”. Depois de um breve esboço histórico do conceito, a autora reconhece que em
Gramsci, o conceito deveria ser, sem ambigüidades, "uma arma contra o capitalismo, nunca
uma acomodação a ele”, reiterando, por outro lado, que o conceito, no uso corrente, “já não
exibe a mesma intenção inequivocadamente anticapitalista”. Ou seja, o conceito apresentaria
impulsos contrários para os movimentos emancipatórios de esquerda, pois de um lado, “os
defensores da sociedade civil fortalecem nossa defesa de instituições e relações não-estatais
para enfrentar o poder do Estado; de outro lado, “tendem a enfraquecer nossa resistência às
coerções do capitalismo (WOOD, 2003: 208). Portanto, duas antíteses significativas se
apresentam: o Estado e o não Estado, ou ainda, o político e o social. É importante destacar,
portanto, a observação de Wood, no sentido de “não se pagar um alto preço pelo conceito
abrangente” de 'sociedade civil'. Esse abrigo conceitual, segundo a autora, “que a tudo cobre,
desde os lares e as associações voluntárias até o sistema econômico do capitalismo”, e
“confunde e disfarça quanto revela” (WOOD, 2003: 210).
Wood mostra a preocupação de que o capitalismo se esfumace na noite conceitual em
que todos os gatos são pardos, diluindo-o numa “pluralidade desestruturada e indiferenciada
de instituições e relações sociais”. Isso não ajuda, “apenas enfraquece, a força analítica e
normativa da 'sociedade civil', sua capacidade de enfrentar a limitação e legitimação do
poder, bem como sua utilidade na orientação de projetos emancipatórios” (WOOD, 2003:
212). A advertência da autora, mais uma vez, diante do novo pluralismo e da política de
identidade anunciadas a partir do campo da sociedade civil é que as relações de exploração e
dominação que se dão na esfera da sociedade civil, tendem a desaparecer. O culto da
sociedade civil tende também a “reproduzir as mistificações do liberalismo, mascarando as
coerções da sociedade civil e ocultando as maneiras pelas quais a opressão se enraíza nas
relações de exploração e de coação da sociedade civil”. Conseqüentemente, as relações
124
sociais do capitalismo “se dissolveram numa
pluralidade fragmentada e desestruturada de identidades e diferenças” (WOOD, 2003: 219-
223).
Ao analisar o conceito de sociedade civil entre o político estatal e o universo gerencial
Nogueira o faz sob a perspectiva de que o mesmo está perdendo precisão. Acaba sendo um
conceito larga e fartamente utilizado por todos os partidos e movimentos sociais, mas
propenso sempre a denotações distintas. A ele recorre tanto os que ainda procuram se opor ao
capitalismo, assim como aqueles que vislumbram possibilidades de ganhos particulares e
corporativos. Nas palavras de Nogueira, o apelo a essa figura conceitual “serve tanto para que
se defenda a autonomia dos cidadãos e a recomposição do comunitarismo perdido”, assim
como para que “se justifiquem programas de ajuste e desestatização, nos quais a sociedade
civil é chamada para compartilhar encargos até então eminentemente estatais”. Transitou-se
de uma imagem de sociedade civil como "palco de lutas políticas e empenhos hegemônicos”,
para uma imagem de sociedade que converte a sociedade civil “ou em recurso gerencial, um
arranjo societal destinado a viabilizar tipos específicos de políticas publicas”, ou “em fator de
reconstrução ética e dialógica da vida social” (NOGUEIRA, 2003: 1). É necessário dizer
também que, em nome de uma certa descentralização, o Estado tem estabelecido com a
sociedade civil uma relação de desresponsabilização de certas atribuições. Por outro lado,
contraditoriamente, a sobrevivência da maioria das organizações não governamentais está
diretamente relacionada à captação recursos do setor público estatal. As ações políticas da
maioria delas chega até onde existe uma reserva de mercado a ser distribuída pelo Estado,
fator de tutela da sociedade civil por parte do próprio Estado, e muitas vezes, de desvio de
verbas públicas.
Nogueira parte da idéia de sociedade civil presente em Gramsci, cuja complexidade
tanto pode subsidiar elementos para entender a realidade contemporânea, assim como servir
de referência enquanto projeto político. O referencial teórico-prático de Gramsci tem a
qualidade, segundo o autor, de reunir precisamente a “dialética de unidade/distinção” de duas
instâncias constitutivas do social, a saber: a sociedade civil e a sociedade política. E a
sociedade civil “não é um mero terreno de iniciativas 'privadas', mas tem desde logo uma
'função social”. Em termos gerais, essa recomposição do conceito de sociedade civil estaria
125
associada a quatro vertentes principais: à fragmentação
das sociedades contemporâneas, às redes de informação, à crise da democracia representativa
e o ativismo comunitário expresso na terceira esfera. Em outros termos, o político-estatal
deixou de poder funcionar como "pólo magnético”. Assim, a questão da sociedade civil na
atualidade poderia ser pensada a partir de duas vertentes teóricas distintas, mas que não se
contrapõem entre si, a saber: sociedade civil “liberista”, onde “SC + Mercado # Estado”
95
, e
sociedade civil “social”, onde “SC – SP # Estado? # Mercado” (NOGUEIRA, 2001: 12-13).
No primeiro modelo é o mercado quem ditas as regras, não há lugar para a questão da
hegemonia e a sociedade civil é externa ao Estado. Esse modelo é, por sua vez, a base teórica
do terceiro setor, locus onde as energias sociais não se encontram, somente correm em
paralelo. Aqui a sociedade arca com o ônus da despolitização.
No segundo modelo, a política estaria presente, mas nem sempre comanda e seus
personagens procuram operar nas fronteiras de um Estado mínimo e ao mesmo tempo de
costas para este e para o parlamento, evitando mencionar as classes e seus interesses. A
característica essencial desses movimentos é a autonomia, enquanto procuram agir em redes
informáticas, despojando-se do político e separando-se do Estado. Aqui se fala de um Estado
cosmopolita em contraposição ao Estado nacional. Nessa concepção, portanto, “a sociedade
civil é um espaço situado além da sociedade política, do Estado e do mercado”. Nele, “age-se
para contestar o poder e o sistema, mas não para articular capacidades de direção ético-
política ou fundar Estados” (NOGUEIRA, 2003:194).
Ambos os modelos nessa perspectiva se autoproclamam independentes e autônomos
diante do Estado, ficando excluída a idéia de tensão política, algo caro ao pensamento
gramsciano. Assim, dá-se passagem a uma idéia de sociedade civil “vazia de tensões, disputas
ou contradições, uma sociedade civil que 'luta' mas não está atravessada por lutas e que, por
isso, não se estrutura como um campo de ações dedicadas a organizar hegemonias”
(NOGUEIRA, 2003: 195). Portanto, a dualidade que se apresenta na atualidade entre
sociedade civil e Estado, que por sua vez é resultado de uma concepção liberal do político,
95
SC =sociedade civil e SP = sociedade política.
126
aponta para o que Gramsci já havia sinalizado, ou seja,
a critica de que toda a tradição liberal é contra o Estado. Mas, a ideologia neoliberista não só
proclama a destituição e a inoperância do Estado, como têm apostado na idéia de que “são os
atores sociais que devem assumir nas próprias mãos o próprio destino [...], como tudo isso se
liga com a ideologia paralela do 'triunfo da sociedade civil' e, para alguns, até mesmo da
'sociedade civil internacional'” (LIGUORI, 2000/2001: 39).
Resulta daí uma visão política dicotômica no sentido de que a sociedade civil carrega
sempre o germe da bondade e o Estado o da maldade. Nesse caso, a sociedade civil é o templo
de todas as reservas morais, “como âmbito não corrupto de pulsões inovadoras capaz de
resgatar a política de seus vícios” (ARDITI, 2004: 4). Não seria a sociedade civil, muitas
vezes incivil? O que dizer, por exemplo, da TPF (Tradição, Propriedade e Família) no Brasil
ou mesmo da Ku Klux Klan nos EUA? Ou mesmo do poder mundial do narcotráfico, que
está fincado no coração da sociedade civil, muitas vezes cumprindo o papel do próprio
Estado? O que pensar das grandes operações financeiras internacionais e cujos efeitos
deletérios são vivenciados pela sociedade como um todo? Ou seja, assim como pode existir,
de um lado, um Estado democrático que guarda relação com uma sociedade civil também
democrática, também pode existir ocorrência antidemocrática de ambos os lados, ou de um
dos lados. Governos que foram eleitos democraticamente podem exercer seus mandatos com
“mãos de ferro” sobre os ombros da sociedade civil. E a visão contrária de que a sociedade
civil seria apenas um apêndice da “boa” política, da política partidária, também não parece ser
acertada. Em outros termos, ao se reivindicar a importância da sociedade civil, significa que
se tenha que fazê-lo em detrimento da ação e da existência do Estado? E ao se reivindicar a
presença do Estado há que se fazê-lo à custa das liberdades civis? Em outros termos, seria
demasiado angelical imaginar que a sociedade civil seja “a extensão mecânica da cidadania
política ou da vida democrática”. Ao contrário, longe de ser um “âmbito universal”, pode ser
tranqüilamente, um “território de interesses que se contrapõem e que só podem compor-se
mediante ações políticas deliberadas” (NOGUEIRA, 2005: 111).
A crise que vem se aprofundando nas últimas décadas trouxe como conseqüência o
esvaziamento do espaço político. Essa nova realidade começa a generalizar “um estado de
espírito favorável à descoberta de algum pólo 'bom' capaz de se opor exitosamente ao pólo
127
'mau' encarnado pela política”, vale dizer, esclarece
Nogueira, “pelos políticos, pelos governos, pelas instituições, pelo Estado”. E, perdidas as
esperanças na capacidade de intermediação e ordenamento das instituições citadas, “todo
empenho deveria ser jogado na ativação da pureza associativa dos movimentos sociais e da
sociedade civil” (NOGUEIRA, 1998: 215). Ou seja, parece ter-se instaurado uma visão
antitética das relações entre Estado e sociedade civil, uma visão maniqueísta no pensamento
político, prevalecendo, assim, uma demonização do espaço político institucional. O brado
seria mais ou menos esse: menos política! Menos Estado! Retornemos ao social, locus da
redenção de todas mazelas sociais. A “pureza” das forças societais residiria na sociedade
civil. Essa reivindicação partiria tanto dos neoliberais como dos neo-comunitaristas.
Mas, dada a tese de que não haveria outra maneira de pensarmos a realidade política
futura senão mediante a transição do Estado-nação para a configuração de uma “sociedade
civil internacional”, há, então que se cruzar os braços, e esperar o “admirável”, “prodigioso”
e “ordenado” “mundo novo”? Não é o determinismo e o mecanicismo político que se instala
novamente em outras roupagens? Aquele mesmo determinismo que combatera Gramsci?A
sociedade do futuro será uma sociedade sem tensões, sem conflitos, isenta de relações de
poder? A sociedade civil ainda comporta alguma relevância heurística para pensarmos a
política? Não estaríamos diante de uma fase de des-emancipação, uma daquelas fases que
caracterizam o caminho longo e tortuoso da democracia, e cuja superação por ora não se
consegue entrever? (LOSURDO, 2004: 333).
Temos aqui o seguinte quadro: a) a sociedade civil se diferencia do Estado, mas isso
não significa um “jogo de soma zero”. Pensar ambas as esferas em termos dialéticos significa
pensar a dependência de uma esfera em relação à outra, já que uma sociedade civil sem
Estado “suporia uma comunidade de homens e mulheres homogênea, sem interesses, desejos
nem aspirações contrapostas”. De outro lado, pensar o Estado sem a sociedade civil, seria
supor o “triunfo do poder a custa da derrota da sociedade civil” (CESAR & SERGIO, 1997:
14.); b) se há um outro sentido para a democracia que não seja apenas a democracia
“procedimental” (CASTORIADIS, 2002: 257), esse sentido deveria, talvez, compreender a
democratização das instituições do Estado de direito e a democratização das instituições da
sociedade civil; c) defender, como o fazem as correntes políticas liberais, que ao Estado
128
mínimo corresponde uma sociedade civil grande ou ao
Estado grande corresponde uma sociedade civil mínima
96
, é, no mínimo, colocar o problema
da separação entre ambas as esferas, o que representa um falso problema. Portanto, a fórmula:
Estado ou mercado não é um dilema verdadeiro.
Tampouco se mostra acertado o dilema “cidadania republicana e democracia moderna,
participação e representação, ou comunidade política, pluralismo e liberdade individual”, e a
tensão entre ambas as perspectivas políticas estaria longe de desaparecer, pois qualquer destas
visões que se arrogue o direito de interpretar a sociedade moderna e seus desafios “não tem
como colocar a democracia representativa e a democracia direta em relação de antagonismo
excludente”, já que “a liberdade negativa não precisa excluir a participação política e a
virtude cívica” (NOGUEIRA, 2005: 137)
Considerações finais
Não se compreende Maquiavel se não se leva em conta que ele
supera a experiência italiana com a experiência européia
96
CESAR & SERGIO, op. cit., p. 15.
129
(internacional,
naquela época): sua vontade seria o tópico sem experiência
européia (C.C 6, v. 3, § 86: 241).
O objetivo do trabalho foi apresentar a noção de sociedade civil no pensamento de
Antônio Gramsci. Uma questão norteou o trabalho: quais os alcances e limites que o conceito
comporta, tendo em vista a nova configuração social e política da atualidade, denominada
globalização?
O conceito de sociedade civil foi recuperado por Gramsci nos alvores do século XX,
refletindo, de certa forma, a nova configuração social, econômica e política do período em
que viveu: época de duas guerras mundiais, das intensas lutas sociais e políticas travadas
pelos trabalhadores de todo o mundo, do surgimento do nazismo e o fascismo na Europa, da
revolução Russa propondo alternativas ao sistema capitalista. Nesse contexto, o conceito de
sociedade civil e de Estado reflete uma época de guerras, debates e de socialização da
política. Está em questão a criação de novas hegemonias no cenário político mundial.
A que tradição estaria ligada o conceito de sociedade civil em Gramsci: a Hegel ou a
Marx? Pode-se afirmar que suas formulações não estão simplesmente em oposição a um ou a
outro. Ao contrário, apresenta aspectos de ambos e os supera ao mesmo tempo, num jogo
dialético. A noção de sociedade civil em Gramsci não tem sentido senão vinculada à idéia de
Estado e de economia. Procuramos demonstrar essa peculiaridade do pensamento gramsciano
ao apresentarmos as várias passagens onde Gramsci se contrapõe a vertente liberal. O
conceito de bloco histórico, por exemplo, é o que melhor define essa relação dialética, posta
em evidência pelos entes sociais na luta pela superação dos interesses particulares e
corporativistas, visando interesses universais. Essa luta que não se contenta em reduzir-se à
“pequena política”, mas em “fundar Estado”, o que nos faz remeter a Maquiavel e a Hegel. A
sociedade civil vincula-se, portanto, à economia e à produção material, realizando-se como
espaço de hegemonia, como “possibilidade de elevação política” como “possibilidade de
imprimir ao conjunto dos homens uma nova forma de consenso e consentimento”
(NOGUEIRA, 2000/2001:20).
Ora, um grupo ou uma classe ao colocar para si a tarefa de dirigir a inteira sociedade
não poderá fazê-lo desvinculado-se da idéia de Estado. Em outros termos, não tem sentido
130
pensar a sociedade civil em Gramsci, lócus de criação
de visão de mundo (consenso), desvinculada do Estado (força), daí a noção de hegemonia.
Isto é, não há hegemonia que se consolide somente pelo viés do consenso, tampouco só pela
força. A figura do centauro descrita por Maquiavel nos dá a noção precisa do que venha a ser
hegemonia: paixão e razão, metade homem e metade animal, objetividade e subjetividade. A
noção gramsciana de Estado ampliado comporta estes elementos: sociedade civil + sociedade
política.
Nesse sentido, Gramsci coloca-se como antípoda dessa visão do Estado que se
sustenta somente pela força, daí falar de um Estado ativo, que busca na sociedade civil o
consenso e não a repressão. Se assim é, o proletariado enquanto Moderno Príncipe, e,
enquanto portador de uma nova visão de política e de mundo comporta uma reforma política,
moral e intelectual ao mesmo tempo. Assim, a hegemonia é a noção que expressa esse salto
qualitativo na forma de conceber a política. E se há uma esfera onde a hegemonia evidencia-
se, esse espaço é a sociedade civil. Aqui podemos nos perguntar, então, pelos alcances e
limites da noção de sociedade civil em Gramsci. Ora, Gramsci pensou e analisou o conceito
de sociedade civil numa época em que a tensão política era evidente, de modo que a relação
sociedade política e sociedade civil não escamoteavam seus conflitos. O fascismo, o nazismo,
a revolução Russa e os períodos entre guerras são prova disso. Restam-nos dúvidas quanto à
crise da soberania, a “reiteração” da cultura individualista, a ascensão da sociedade de
espetáculo e a redução da política à técnica na atualidade? Nesse sentido, que lugar pode e
deve ocupar a sociedade civil na reorganização das sociedades contemporâneas, “na
formatação dos modos de convivência e nas funções de governo e gestão?” E, a respeito, de
“qual sociedade civil devemos nos interrogar”? (NOGUEIRA, 2005: 242-87).
As potencialidades do novo mundo no contexto do oceano da mundialização parecem
querer jogar fora a política nas águas, muitas vezes, revoltas e turvas dos mercados. Lidamos
com a idéia de que as únicas fronteiras a serem eliminadas são só àquelas referentes às
fronteiras econômicas, relegando as “cortinas de ferro” políticas, jurídicas e ética. Lidamos
com a idéia de que a economia é boa em si, e a política um mal em si (ASSMANN, 1996: 28),
ou de que diante das leis do mercado nada há a fazer senão obedecer, pois o que interessa é
apenas ser ou não competente para obedecer ao mercado. Isso significa, por sua vez, que o
131
limite da sociedade civil, no sentido da despolitização,
de campo livre de tensões, é próprio de nossa época.
De qualquer forma, e ante os limites que as condições atuais apresentam para a configuração de novas
formas de direção política, a idéia de sociedade civil só faz sentido se for pensada em “termos dialéticos”, uma
visão que procure articular todas as dimensões e circunstâncias que são amplas e complexas, que “têm a ver com
legados históricos, tradições, culturas e também correlações de forças, padrões de desenvolvimento econômico,
relações internacionais, equilíbrios políticos, decisões governamentais, marcos jurídicos (NOGUEIRA,
2000/2001: 246). Nesse sentido, se ainda resta alguma aposta na luta política, essa aposta não pode se sustentar
numa visão fechada ou circunscrita a pequenos grupos que lutam por seus interesses corporativos, que lutam
pela elaboração da hegemonia visando o Estado em sentido estrito. Ora, a sociedade civil que pensa a fundação
de Estados não se coloca como “o outro lado do Estado, mas como o coração do Estado”. E não há como se
lançar nessa batalha sem a batalha de idéias, que é essencialmente “uma batalha pelo poder, pela autoridade,
pela direção” (NOGUEIRA, 2000/2001: 247-248), e também por maior liberdade, de um número cada vez maior
de pessoas.
Da mesma forma que Maquiavel não pensara em superar a experiência política italiana deixando de
lado a experiência européia, a realidade internacional de sua época - caso contrário permaneceria uma ação
política reduzida ao campo do tópico -, da mesma forma não se compreende Gramsci se não se leva em conta
que ele procura superar a experiência italiana apontando para uma experiência política mundial. Mesmo que a
questão do 'que fazer?' persista, e não se tenha clareza na apresentação de alternativa possível, talvez possamos,
ainda assim, analisar rigorosamente “o que existe”(ADORNO, Apud ZIZEK, 2005: 176). É certo que o Príncipe
nos moldes bolcheviques não parece ser mais desejável do ponto de vista político. Sua existência não deu
mostras de que pudesse aglutinar uma vontade coletiva, já que se compôs apenas de um dos elementos do
centauro maquiaveliano. Simplesmente perdeu sua característica de partido para tornar-se total e voraz,
enterrando as forças vivas e democráticas dos soviets, cravadas no coração da sociedade soviética. Como em
nenhum outro lugar, na Rússia aconteceu exatamente aquilo que Marx e Gramsci não desejariam enquanto
defensores do comunismo: ou seja, a separação entre Estado e sociedade civil, economia e política,
desenvolvendo naquele sistema todas as características do capitalismo de Estado, ao invés do socialismo.
Por outro lado, é claro também que as sociedades capitalistas e de democracias representativas
demonstraram seu lado da força nos momentos de crises. Desse lado, a tentativa dos liberais é a de separar
também Estado e sociedade civil apoiados nos argumentos de que a sociedade civil é um espaço neutro e não
político, ou seja, espaço das trocas meramente comerciais. Procuram afirmar que a única liberdade é a liberdade
negativa, segundo a qual a existência do outro seria necessariamente o inferno para mim. Nesse caso não seria
diferente dizer “que a minha vida exige a morte do outro, ou que o mundo só suporta alguns seres humanos”
(ASSMANN, 1996: 35). Se não é isso que desejo para mim e para o outro, parece que a crítica à utopia liberal,
mantém-se acesa, conseqüentemente, a chama do ideal de um mundo para todos, também se mantém acesa, e
132
assim será, quem sabe, enquanto na noite da economia global
existirem gatos que não são “pardos”.
Em outras palavras, se a promessa de uma sociedade humana perfeita, anunciada pela modernidade não
se realizou -já que nem a liberdade conduziu à igualdade, nem a igualdade à liberdade, resta-nos, que
m sabe, a
aposta na solidariedade, “de uma cumplicidade com outra liberdade individual”, a qual não pode ser
negociada em qualquer mercado, bolsa ou pregão. Enfim numa solidariedade que seja caminho para
um reforma moral e cultural, mas ao mesmo tempo, “contraditória, tensa, sem resultado garantido”
(ASSMANN, 1998: 37). Aqui podemos anunciar, sem dúvida, os limites apresentados pelo conceito
de sociedade civil em Gramsci para entendermos o que acontece na atualidade. Por outro lado, o
mesmo conceito continua a lançar luzes e projetar alcances, fomentando uma relação mais equilibrada
entre Estado e sociedade civil, já que Gramsci não chega nunca a afirmar: basta de política! Basta de
Estado! Que reine o social! Ou vice-versa. Ao contrário, em Gramsci, política é sinônimo de tensão e
de resultados não garantidos, tal como afirmado antes. Se tiver sentido redefinir a política na
atualidade, então podemos afirmar tranqüilamente que Gramsci continua a projetar alcances.
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