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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL
CELSO OSÓRIO DA SILVA DIAS
COMUNICAÇÃO, EPISTEMOLOGIA E TECNOLOGIA EM EDGAR
MORIN
Porto Alegre
2007
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CELSO OSÓRIO DA SILVA DIAS
COMUNICAÇÃO, EPISTEMOLOGIA E TECNOLOGIA EM EDGAR
MORIN
Tese apresentada como requisito parcial à
obtenção do grau de Doutor em
Comunicação ao Programa de Pós-
graduação da Faculdade de Comunicação
Social da Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul.
Orientador: Prof. Dr. Juremir Machado da Silva
Porto Alegre
2007
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
D541c Dias, Celso Osório da Silva
Comunicação, epistemologia e tecnologia em Edgar
Morin / Celso Osório da Silva Dias. Porto Alegre, 2007.
211 f.
Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação
em Comunicação Social, PUCRS, 2007.
Orientador: Prof. Dr. Juremir Machado da Silva.
1. Comunicação. 2. Epistemologia. 3. Paradigma
da Complexidade. I. Silva, Juremir Machado da. II.
Título.
CDD 301.14
Bibliotecária Responsável
Isabel Merlo Crespo
CRB 10/1201
3
AGRADECIMENTOS
Ao completar esta etapa importante de minha formação, quero agradecer a
todos que torceram e alguns que participaram deste esforço, encorajando,
questionando, duvidando, incentivando os propósitos perseguidos por esta tese.
Quero, agora, ao final desta jornada, renovar meu agradecimento ao meu orientador,
Prof. Dr. Juremir Machado da Silva, pelo apoio em todos os momentos e pela
confiança depositada. Um outro agradecimento especial vai pro meu filho, Maurício,
pela parceria, amizade, companheirismo, pela disposição para ouvir longas
divagações sobre Edgar Morin, a Complexidade e a Epistemologia da Comunicação
e, também, pela primeira revisão do texto final entregue para a defesa.
“Para progredir é preciso reencontrar a fonte geradora. Para
manter o que se conquistou, é preciso incessantemente regenerá-
lo. Para cada um e para todos, para si mesmo e para outrem, no
amor, na amizade, no passar dos anos, é preciso a regeneração
permanente. Tudo o que não se regenera, degenera. ‘Quem não
está nascendo está morrendo’, canta Bob Dylan.”
Edgar Morin
“Todo o paradigma novo, ‘a fortiori’ um paradigma de
complexidade, aparece sempre como confuso aos olhos do
paradigma antigo, já que ele une o que era evidência repulsiva,
mistura o que era de essência separado e quebra o que era
irrefutável por lógica.”
Edgar Morin
RESUMO
O objetivo deste trabalho é discutir alguns aspectos essencias da
epistemologia da comunicação, privilegiando os tópicos discutidos por
pesquisadores do GT de Epistemologia da Comunicação da Compós desde 2001
quando foi criado. Qual é a delimitação do campo da comunicação? Qual é objeto da
comunicação? Pode-se considerar que as revoluções tecnológicas orientam a
comunicação? Estas são algumas das interrogações nodais que enfrentam aqueles
que se dedicam a investigar teoricamente as questões referentes às ciências da
comunicação, a Comunicação e a comunicação.
A partir da identificação destes dilemas epistemológicos apontados por
pesquisadores da área da Comunicação, procura-se fazer dialogar tais questões
com às idéias apresentadas pelo paradigma da complexidade, proposto por Edgar
Morin, nos seis volumes de O Método escritos e publicados entre 1977 e 2004. São
obras que refletem a preocupação com a produção do conhecimento cienífico,
sendo concebida pelo próprio autor como uma síntese de seu pensamento
epistemológico. O paradigma da complexidade de Morin, que se contrapõe a
epistemologia moderna, tem sido um instrumento útil na revisão de pressupostos
teóricos e metodológicos em diversas áreas do saber a partir da segunda metade
das últimas décadas o século XX. Acredita-se nesta pesquisa que o mesmo pode
acontecer em relação à reflexão sobre os fenômenos e as teorias da comunicação.
Após analisar o que poderia ser a resposta Morineana para os quetionamentos
epistemológicos da comunicação, busca-se refletir sobre a relevância do
pensamento tecnológico no pensamento comunicacional pautado por uma
epistemologia complexa da comunicação.
Palavras-chave: Comunicação. Epistemologia. Paradigma da Complexidade
e Tecnologia.
ABSTRACT
The objective of this work is discussing some essential aspects of the
epistemology of communication, being privileged the topics argued by researchers of
the Work Group Epistemology of Communication of Compós since 2001 when it was
created. What are the limits of the field of communication? What is the object of
communication? What is the importance of the medias for the effective
communication? Can it be considered that the technological revolution guides
communication? These are some of the knotty interrogations that face those who
dedicate themselves to investigate theoretically the referring questions to the
sciences of communication.
From the identification of these epistemological dilemmas pointed by
researchers of the communication area, is tried to make such questions to dialogue
with the ideas presented by the paradigm of complexity, proposed by Edgar Morin, in
the six volumes of The Method written and published between 1977 and 2004. These
are works that reflect the concern with the production of the scientific knowledge,
being conceived for the author himself as a synthesis of his epistemological thought.
The paradigm of complexity of Morin, which opposes the modern epistemology, has
been an useful instrument in the revision of theoretical and methodological
presuppositions in many areas of knowledge since the last two decades of the 20th
century. It is assumed here that the same may happen in relation to the reflection on
the communication phenomena. After analyzing what Morinean reply to the
epistemological questions of communication could be, it is tried to think about the
relevance of the technological thought in the communication way of think marked by
a complex epistemology of communication.
Keywords: Communication, Epistemology, Paradigm of Complexity and
Technology
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS ..................................................................................................3
RESUMO.....................................................................................................................5
ABSTRACT.................................................................................................................6
SUMÁRIO....................................................................................................................7
1 INTRODUÇÃO .........................................................................................................8
2 REVISÃO DA LITERATURA..................................................................................22
2.1 A invenção da ciência .........................................................................................28
2.2 Os sentidos da comunicação ..............................................................................36
2.4 Comunicação e tecnologia..................................................................................64
3 A COSMO-ECO-SOCIO-ANTROPO-PSICO- BIOGRAFIA DE EDGAR MORIN ...74
3.1 No início: sobre improváveis eventos..................................................................74
3.2 A cosmo-eco-socio-antropo-psico-biografia de Edgar Morin...............................77
3.3 Antropologia fundamental, cultura de massa e comunicação .............................82
3.4 A perda de um paradigma...................................................................................84
3.5 A saga dos métodos............................................................................................89
3.5.1 A instabilidade da natureza...........................................................................90
3.5.2 A improbabilidade da vida...........................................................................100
3.5.3 A vulnerabilidade do conhecimento............................................................105
3.5.4 O mundo das idéias....................................................................................122
3.5.5 O homo complexus.....................................................................................128
3.5.6 A antropoética.............................................................................................139
3.6 A produção morineana a partir de O Método ....................................................144
4 METODOLOGIA E OS MÉTODOS......................................................................149
5 EPISTEMOLOGIA COMPLEXA DA COMUNICAÇÃO.........................................162
5.1 Edgar Morin e as grandes epistemologias modernas .......................................163
5.1.1 Complexidade e cartesianismo: Discurso do Método e Os Métodos..........163
5.1.2 Complexidade e kantismo...........................................................................166
5.1.3 Complexidade e marxismo .........................................................................170
5.1.4 Complexidade e perspectivismo.................................................................176
5.2 Questões atuais em Epistemologia da Comunicação .......................................179
5.3 Os sete saberes necessários á Comunicação do futuro ...................................190
5.4 O lugar do pensamento tecnológico na construção de uma epistemologia
complexa da Comunicação.....................................................................................193
6 OS CINCO NÍVEIS DE COMUNICAÇÃO EM EDGAR MORIN............................200
REFERÊNCIAS.......................................................................................................205
1 INTRODUÇÃO
Desde os mais remotos vestígios da presença humana na terra, a
necessidade e a evidência da comunicação se impõem. Ao contrário de se entender
a comunicação como sendo uma conquista do homem em seu processo evolutivo,
parte-se aqui da hipótese que a comunicação foi essencial pela emersão humana da
realidade dos primatas junto aos quais evoluiu. Atingir um estágio semiótico, inédito
aos que o antecederam, passando a atribuir sentidos a sua existência e, também, ao
mundo a sua volta foi uma conquista que dependeu da comunicação, mas também
da consciência e da linguagem, instâncias pertecentes ao mesmo fenômeno e que
se interpenetram e confundem-se.
O homem é um ser que se comunica (de uma forma particular) desde que
adquiriu consciência de si e aperfeiçou cada vez mais à linguagem, não sendo,
dessa forma, exagero afirmar que a comunicação, consciência e a linguagem podem
ser consideradas como criadoras do humano. Longa foi a trajetória do homem até se
tornar consciente de si, de sua situação e inserção como um indivíduo no mundo e
há indícios lógicos e palentológicos que permitem pensar que a linguagem e a
comunicação se estabeleceram concomitantemente a este processo. Como
perguntar à Lucy
1
, como ela fazia para compartilhar o seu universo com os iguais e
para prover a sobrevivência dos seus. É algo impossível, pois Lucy não está entre
nós há mais de três milhões de anos, ela agora constitui-se num fóssil valioso para a
compreensão da evolução humana, e se encontra à disposição dos especialistas
que investigam suas particularidades usando para isto a razão e a imaginação.
Quatro aspectos são considerados essenciais na constituição do homo na sua
independização dos grupos primatas que antecederam e com os quais evoluiu. São
elas, de forma suscinta: terrestrialidade, bipedia, encefalização e a cultura (LEWIN,
1999, p. 11). Descer das árvores, andar sobre os membros inferiores de forma ereta,
apresentar um aumento substancial da caixa craniana e do volume cerebral e, por
fim, produzir representações simbólicas sobre o mundo material e sobrenatural
sintetizam, em poucos passos, milhões de anos de evolução. Se para
paleoantropólogos a ordem destes eventos, sua seqüência ou simultaneidade são
1
Fóssil 40% completo do Australopithecos Afarensis, de 3,2 milhões de anos, encontrado em 1975,
no Leste africano, por muito tempo considerado nosso ancestral mais antigo.
9
temas de grandes discussões para a reflexão sobre a comunicação que ora se inicia
a convergência de opiniões a respeito da importância destes passos é o que deve
ser levado em conta.
O exemplo dos avanços tecnológicos – usados a exaustão nas pesquisas
arqueológicas – pode servir aqui como ilustração. A utilização da pedra, tanto em
sua forma natural (pedra lascada) ou, mesmo, alterado (pedra polida) para a
construção de ferramentas, aponta para um necessário aprendizado e para um
ensinamento de como fazer, de como proceder. Este ensinamento transmitido de
geração à geração, de forma intencional ou não, evidencia a existência, desde muito
cedo, de atos simples e cotidianos de comunicação que possibilitaram, entre outras
coisas, a invenção e difusão de objetos e procedimentos básicos à sobrevivência.
Ao contemplar algum desafio da vida, compreender que ele necessita da
colaboração de outrem pra realizá-lo e que o resultado desta cooperação poderia
ser útil para os envolvidos, estava ali presente a a consciência, a linguagem e
sobretudo a comunicação.
Analogamente à distinção aceita entre História e história – onde a primeira diz
respeito à um disciplina escolar e a segunda a articulação entre os fatos, fenômenos
e processos que dizem respeito a memória de um povo – é possível partir-se da
distinção entre Comunicação e comunicação: a ciência (teoria) e o mundo ( a
prática). Comunicação é um conceito muito extenso e um fenômeno, ou uma gama
de fenômenos dotados de muita complexidade, difíceis de serem abrigados em uma
definição simplista. Pode significar muitos objetos bastante diferenciados, e pode ser
também definido de diversas formas.
Em primeiro lugar, por comunicação pode ser compreendida toda a forma de
interação, isto é, de ações em comum entre todos os seres da natureza e do
cosmos. Martino (2001) divide a comunicação, de acordo com entes nela envolvidos
em três grupos: entre os seres brutos, entre os seres vivos e entre os homens.
Assim, numa acepção inicial a comunicação pode ser considerada como o elemento
que permite a relação entre os diferentes elementos de um sistema qualquer. A
existência de qualquer sistema – sistema solar, sistema ecológico/social ou sistema
digestivo – pressupõe a comunicação entre os seus elementos. A interação, por
exemplo, entre o sol e os diferentes planetas do sistema solar pode ser entendida
como uma forma de comunicação. Ela é física na medida em que determina o
10
movimento dos planetas, suas diferentes órbitas bem como está ligado à
transmissão de luz e calor que são elementos decisivos à vida, no que diz respeito à
terra e a sua variedade biológica. Este autor no entanto entende que apenas as
comunicações entre os homens em sociedade e mediados pela cultura sâo aquelas
que interessam à relexão comunicacional.
Além deste macro-conceito de comunicação, onde todos os sistemas da
natureza, e do cosmos podem ser enquadrados, o termo comunicação compreende,
outros sentidos que devem ser referidas neste momento inicial. A comunicação diz
respeito às trocas simbólicas entre seres humanos sendo elemento decisivo do
processo cultural. Atua, assim, como um sistema de compartilhamento de símbolos,
de memória de identidade e de tradição. A comunicação pode ser interpessoal, entre
indivíduos e grupos, entre indivíduos e instituições. E no âmago destas interrelações
semióticas intui-se a presença de uma seleção social de sentidos, impulsionados
pela diferentes forças que atuam nestas instâncias sócio-culturais.
É importante ter-se o cuidado ao se referir à comunicação humana, que é
semiótica, como sendo a forma mais complexa de códigos existente em detrimento
das formas comunicativas de outras espécies. Em primeiro lugar nunca se teve uma
compreensão completa dos códigos utilizados por outras espécies e, também,
nenhuma outra espécie teve uma compreensão total de nossa comunicação para
informar-nos de nossa complexidade. Somos produtores, tradutores e críticos de
nossos próprio código, por isto nossa comunicação é bastante “compreendida” e, ao
mesmo tempo, comprometida.
A Comunicação pode ser também uma ciência e esta idéia é defendida em
encontros e debates epistemológicos da disciplina. Os estudos realizados nas
faculdades de comunicação – os que estudam os meios de comunicação, os que
procuram estudar as influências destes meios na sociedade, os estudos semióticos,
sociológicos e filosóficos – são elencados como sendo a evidência da existência e
da robustez deste campo de investigação. Mas apesar de apresentar uma grande
produção de conhecimento, formar profissionais, organizar encontros nacionais e
internacionais, os teóricos da comunicação convivem com um certo
ceticismo acerca da identidade desta disciplina.
A reflexão comunicacional constituí-se de uma forma de especialização das
ciências sociais a partir da segunda metade século XIX e fundamentalmente no
11
século XX que, a partir de certo momento, passou a reivindicar a autonomia como
área do conhecimento.
Desde muito cedo, em sua evolução, o homem caracterizou-se como um ser
que se relaciona – interage, se comunica – com a realidade movido por uma série de
razões. Identifica-se imediatamente aquelas necessidades determinadas pelo
instinto de sobrevivência: seu sustento e a perpetuação da espécie, mas outras
demandas provavelmente também era atualizada através da comunicação. Procurar
entender o mundo que o cerca a partir da construção de cosmologias, teogonias, e
antropologias – comuns à totalidade das tradições míticas de todas as culturas
tradicionais e complexas – são exemplos significativos desta característica. Noções
como cosmos, phisis ou antropos, cunhados no mundo clássica, são a expressão
racional destes conceitos fundadores da cultura.
Atribuir sentidos às coisas, mantendo-as na memória através de símbolos são
conquistas definitivas, limítrofes, porta de entrada à condição humana. Estabelecer o
ponto de partida, o amanhecer semiótico após à interminável noite pré-simbólica,
para se utilizar os termos de Piaget, coincide com o processo de hominização ao
qual se submeteram os ancestrais do homem. O aprendizado, mesmo nos períodos
mais remotos, somente pode ser pensado a partir de um determinado grau de
consciência de si, do outro e do mundo. Consciência e comunicação que no
entendimento de Nietzsche, encontram-se estreitamente relacionadas. Em uma
passagem de Gaia Ciência, este filósofo alemão enfatiza a relação entre ambas.
Entende que a consciência desenvolveu-se, pela pressão da necessidade de
comunicação. É a consciência, na visão deste autor, uma rede de relação entre as
pessoas, algo que era desnecessário a um ser solitário e predatório, enfatiza.
Assim, comunicação é um conceito que define a relação existente entre os
diferentes elementos dos sistemas naturais e sociais. É também o murmúrio das
interações semióticas humanas através das diferentes linguagens em seus grupos
sociais, bem como sua veiculação. É, por fim, os estudos das formas e dos meios
tecnológicos utilizados para estas relações comunitárias e institucionais. Os três
sentidos de comunicação aqui destacados dizem respeito a realidades diversas –
empíricas e teóricas – mas a compreensão de qualquer uma destas instâncias
depende do entendimento das outras duas. Esta interdependência é um dos pontos
de partida desta reflexão sobre a comunicação.
12
O estudo sobre as teorias produzidas para invesigar os fenômenos
comuniacionais, isto é, as formulações epistemológicas da comunicação, têm como
primeira tarefa fundamentar a legitimidade deste campo, problematizando os seus
elementos formadores, destacando os extensão fenomênica que este abarca. Uma
epistemologia da Comunicação pressupõe um estatuto científico da disciplina,
implica em tomar a o estudo da comunicação cotidiana como uma ciência, sendo
para alguns uma crença e para outros uma hipótese de trabalho.
A perspectiva da comunicação como um conhecimento cientificamento válido
leva-nos a refletir um pouco sobre a gênese das ciências. O surgimento de uma
nova disciplina, de uma nova ciência ou área de conhecimento no universo dos
saberes, pode ocorrer devido a vários fatores. Em linhas gerais, estes fatores são
intrínsecos e/ou extrínsecos à própria atividade científica. O mapeamento de uma
nova série de fenômenos, até então desconhecidos; um avanço tecnológico
importante, que permite ampliar as condições de percepção para além das
existentes até então.
O surgimento de uma nova área do conhecimento pode acontecer pela
reapropriação de um corpo conceitual de uma disciplina já existente por uma outra
ainda não tão bem estruturada. Pode também ser responsável pelo surgimento de
uma nova ciência, as transformações históricas, sociais e econômicas de grandes
dimensões que propiciem revoluções no pensamento. Pode se constituir, ainda, um
novo campo do conhecimento científico pela reapropriação do estudo de fenômenos
já investigados em outras áreas do conhecimento, e que a partir de uma nova
abordagem possa redefinir estes fenômenos criando novos conceitos.
A constituição de um novo campo do saber decorre, enfim, da capacidade dos
homens se espantarem com os eventos de seu tempo e da criatividade destes seres
humanos em inventar prováveis respostas para tais dilemas. O nascimento da
Antropologia, em sua forma clássica no século XIX, nos oferece um exemplo
importante. Estes estudos pioneiros constituem-se nas narrativas de europeus ao
entrarem em contato com povos desconhecidos de outros continentes e a percepção
de um Outro que, segundo as concepções etnocêntricas da época, teriam, por
alguma razão, ainda inexplicada, parado no tempo. O não-europeu, não-branco e
não-cristão estaria num estágio civilizatório bem inferior ao que se encontrava
europeu, segundo crença da época. Mesmo que tenha com o passar dos séculos
13
relativizando seus pontos de vista, num exercício de desetnocentrização, a origem
da Antropologia se sustentou no exercício de um preconceito.
A área de pesquisa em comunicação é bastante recente, remete às primeiras
décadas do século XX, vindo a expandir-se, a configurar-se como um campo de
pesquisa com o advento da comunicação de massa, a partir do desenvolvimento
tecnológico que potencializou enormemente a possibilidade de troca de informações.
Mas as primeiras reflexões sobre o tema se encontram presentes em pensadores do
século XIX, que já podiam vislumbrar a grandiloqüência dos fatos que passavam a
ter sua importância nas sociedades industriais urbanas em fase de expansão.
A pesquisa comunicacional, propriamente dita, vai se desenvolver no decorrer
do século XX, momento em que as novidades tecnológicas se multiplicam e
modernizam-se. É quando os meios de comunicação passam a fazer parte da vida
de um número cada ver mais acentuado de pessoas, passando a ter, um papel
importante nas sociedades. Assim as formulações teóricas sobre comunicação, em
certa medida, só se configuraram a partir do grande desenvolvimento tecnológico
que impulsionaram os meios de comunicação de massa.
A Comunicação, assim, tornou-se campo de reflexão teórica para o
pensamento afirma Rüdiger (2003) em razão desenvolvimento das tecnologias de
comunicação verificadas no século XX. No entanto, acentua o autor, que não se
pode confundir o fenômeno comunicação com o papel que as mídias representam e
com a importância destas. No decorrer do século XX desenvolveram-se importantes
teorias da comunicação, que a seu tempo, diante dos desafios que se apresentavam
sugeriram explicações e mapearam procedimentos.
Mesmo que ainda não se possa identificar claramente uma teoria da
comunicação, Mattelart (2003) defende a existência de um pensamento
comunicacional no século XIX. A massificação da tecnologia, que permitiu a
explosão das comunicações no século seguinte, ainda não se encontrava instalada
nem as grandes empresas de produção e veiculação dos “bens simbólicos” haviam
se formado. Mas o novo ambiente das cidades nas décadas que se sucederam às
Revoluções Industriais, criou sociedades multifacetadas, onde a comunicação entre
os indivíduos e os novos grupos sociais, nas metrópoles recém formadas, tornou-se
tema das ciências sociais. São através das reflexões de Durkheim, Max Weber,
Simmel, entre outros – que constituíram o alvorecer da sociologia –, onde Mattelart
14
situa o que ele denomina pensamento comunicacional do século XIX. Porém é
somente no século XX que proliferaram as várias teorias comunicacionais que de
acordo com o contexto – época, o local, as influências do ambiente intelectual em
que se desenvolveu – seguiram rumos diferentes.
Nos Estados Unidos, nas primeiras décadas do século, desenvolveram-se
pesquisas na Universidade de Chicago que refletiram a perplexidade causada pelos
novos mundos urbanos e sub-urbanos. Em 1903 Robert Park apresenta a sua tese
de doutorado sobre “a massa e o público”, cujo título remete imediatamente à
realidade deste novo locus de morada, de vida: a cidade. Especializado em
reportagens investigavas e militante da causa negra, Park, ao ser admitido na
Universidade de Chicago dedica-se a pesquisas sociológicas na periferia desta
cidade. Fundamentada teoricamente nas abordagens de Simmel e Tarde. De certa
froma, ou autores da Escola de Chicago conceberam a cidade como um laboratório
social. “A cidade com seus signos de desorganização, de marginalidade, de
aculturação; a cidade como lugar de ‘mobilidade’ “ (Mattelart, 2000, p. 30). A partir
da década de 20, Park e outros autores passsam a valorizar o conceito de ecologia
humana na análise do seu objeto de estudo.
No final da década de vinte, uma importante vertente na pesquisa
comunicacional começa a se estruturar, é a corrente funcionalista que tem como
ponto de partida a obra Propaganda Tecnique in the Word War de Harold D.
Lasswel, que reflete sobre os usos dos novos recursos tecnológicos da
comunicação na primeira guerra mundial. Lasswel mostra a importância dos meios
de comunicação existentes na época – o telégrafo, o telefone, o cinema e a
radiocomunicação – para os estados/governos envolvidos no conflito. A pesquisa de
Harold D. Lasswel foi responsável pela formalização da estrutura do processo
comunicativo que se tornou paradigma para as distintas tendências da pesquisa
Norte-Americana. As idéias de Lasswel sobre a gestão governamental das opiniões,
técnicas de comunicação a partir da motivação das funções da comunicação de
massa na sociedade tiveram grande repercussão. Em síntese, preocupa-se com as
relações entre os indivíduos, a sociedade e os meios de comunicação de Massa.
Deste ponto de vista não é a dinâmica interna dos processos comunicativos que
mais o interessa, mas sua relação com o sistema social.
15
A partir da década de 1940 uma guinada nas pesquisas coloca em evidência
uma nova perspectiva de pesquisa comunicacional, de vertente empirista, o mass
communication research. Na realidade estes limites cronológicos sofrem uma certa
variação de acordo com o ponto de vista de quem analisa. Para alguns autores
2
a
própria corrente funcionalista faz parte da mass communication research.
Caracterizou sobretudo esta perspectiva teórica, o forte apelo empirista das
pesquisas.
Paralelamente a teoria matemática da comunicação de Shannon & Weaver,
com sua abordagem puramente formal, mas opondo-se diametralmente às principais
premissas desta, desenvolveu-se nos anos 40 a Escola de Palo Alto ou Colégio
Invisível, que agrupava pensadores e pesquisas de diferentes áreas como a
lingüística, a antropologia, a matemática, a sociologia e a psiquiatria. Participavam
deste viés teórico, entre outros autores, o antropólogo Gregory Bateson e estes
adotaram como paradigma o modelo circular e retroativo de Wiener. “A
complexidade da menor situação de interação é tal que é inútil reduzí-la a duas ou
mais variáveis trabalhando de maneira linear” (MATTELART, 2003, p.15). A
conseqüência imediata desta ruptura é a percepção de que o receptor tem um papel
tão importante no processo comunicacional quanto o emissor.
Constituindo-se, também, numa vertente importante da reflexão da cultura e
da comunicação, em meados do século XX, a Escola de Frankfurt era integrada por
autores alemães de origem judaica, fundamentalmente, e que se exilaram nos
Estados Unidos diante do avanço do perigo do regime nazista. Theodor Adorno, Max
Horkheimer, Walter Benjamin e o herdeiro desta corrente, filósofo Jurgen Habermas
são expoentes desta escola em que emerge a teoria crítica. O grupo formou-se a
partir do Instituto de Pesquisa Social ligado à Universidade de Frankfurt em plena
República de Weimer, em meados da década de 1910, e seguía os pressupostos da
filosofia marxista. No entanto a leitura marxista dos integrantes do grupo se afastava
de uma ortodoxia economicista tomando de empréstimo conceitos da filosofia, da
sociologia da cultura e da psicologia. Uma confluência entre às teorias de Marx e
Freud estava no horizonte teórico do grupo.
A economia capitalista e a história do movimento operário estavam entre os
objetos estudados inicialmente pelo grupo. Já nos Estados Unidos, Theodor Adorno
2
Mattelart – História das Teoria da Comunicação.
16
participa de pesquisas com Paul Lazarsfeld sobre os efeitos culturais dos programas
musicais de rádio. A tentativa de Lazarsfeld de fazer confluir em uma pesquisa o
empirismo americano com a reflexão filosófica européia não vai se efetivar na
medida em que o filósofo alemão não cocebia a possibilidade de mensurar a cutura.
O conceito de indústria cultural, noção de extrema abrangência e que se tornou
central em muitas pesquisas por muito tempo, vindo a caracterizar-se como uma das
mais importantes produções intelectuais sobre a cultura do século XX foi tecido
pelos autores desta escola.
Os estudos culturais originaram-se na Inglaterra do pós-guerra e tiveram (e
ainda têm) muita importância na reflexão comunicacional na medida que tomaram os
meios de comunciação como objeto de estudo por entender a cultura como lugar de
disputa do sentido social. Tendo se desenvolvido por inspiração de três textos
fundadores que vieram à luz a partir nos últimos anos da década de 50. São eles:
The uses of literacy (1957) de Richard Hoggart, Culture and society (1958) de
Raymond Williams e The making of the english working-class (1963) de E. P.
Thompson, os Estudos Culturais criaram raizes na análise da cultura Latino-
americana. A partir destes estudos abriu-se uma nova perspectiva de análise da
cultura vindo a ter importantes reflexos nos estudos voltados a análise dos meios de
comunicação de massa, em oposição a abordagem funcionalista, adotando uma
metodologia qualitativa.
Em seu artigo Uma Introdução aos Estudos Culturais, publicado na Revista
FAMECOS nº 9 de 1998, Ana Carolina D. Escosteguy destaca a opinião de Stuart
Hall para o qual os estudo culturais não se caracterizam como uma nova disciplina
sendo, isto sim, “um campo de estudos onde diversas disciplinas se interseccionam
no estudo de aspectos culturais da sociedade contemporânea (...)uma área onde
diferentes disciplinas interatuam, visando o estudo de aspectos culturais da
sociedade.” (HALL et al. 1980: 7 apud ESCOSTEGUY,1998).
Por fim vale destacar as idéias de Edgar Morin sobre comunicação, contidas
em sua “Teoria Culturológica”, também compreendida como sendo a versão
francesa do pensamento frankfurtiano, e que Morin define como sendo uma Antropo-
sociologia da cultura de Massa. Considera-se, aqui, como uma possibilidade de
17
desenvolvimento futuro, estudar a correlação entre algumas preocupações de Morin
nas décadas de 50 e 60 e os estudos culturais acima referido.
3
Ainda que se considere relevante aqui a contribuição de Morin no estudo da
cultura de massa, tema recorrente em seus estudos comunicacionais, a atenção
aqui se volta para sua obra O Método, composta por seis volumes – onde o autor
propõe uma reforma no pensamento e que se encontram os dilemas
epistemológicos das ciências a partir dos quais questões específicas da
comunicação são aqui estudadas. A complexidade rompe com a herança dos
pressupostos científicos do cartesianismo – calcados na fragmentação da realidade,
na simplificação dos fenômenos pára medições e observações de partes cada vez
menores, particulas elementares – para tentar compreendê-los num universo mais
amplo a partir da complexidade, isto é, das diversas articulações e aparições
fenomênicas possíveis.
A obra de Edgar Morin já foi dividida em diferentes momentos por aqueles
que sobre ela se debruçaram, dependendo do ponto de vista adotado. Para esta
tese, a produção teórica do autor é pensada a partir de três momentos: a primeira
corresponde a antropologia fundamental, onde se pode destacar O homem diante da
morte (1951), e os estudos sobre a cultura de massa quando escreve O Espírito do
Tempo (Vol.1 Neurose, 1955 e Vol.2 Necrose 1963). Esta fase se estende até os
primeiros anos da década de 1970 quando Edgar Morin lança O Paradigma perdido
(1973). Esta obra se constitui num verdadeiro divisor de águas e ao escrevê-la,
Morin já tinha em mente o projeto original do Método que se constituiria de três
volumes. No entanto o projeto se ampliou e O Método foi publicado em seis volumes
– mais de 2100 páginas – entre 1977 e 2004. Por último, a terceira fase é a que
corresponde à produção paralela e posterior ao método, mas que não fazem parte
do ciclo das seis obras. Sobre este momento, é a obra pedagógica de Edgar Morin,
com destaque para Os sete saberes necessários para educação do futuro, resultado
de um estudo realizado pelo autor como proposta para uma reforma da educação
secundária e superior na França, no governo de Miterrand, que merece um destaque
especial.
3
Considera-se uma pespectiva produtiva futuramente discutir alguns dos pontos em comuns entre
estas duas perspectivas teóricas para a comunicação.
18
A Saga dos Métodos é o acontecimento central na obra de Edgar Morin,
sendo que este trabalho pode ser considerado como uma obra de vocação
epopeica. O Método contém ao mesmo tempo uma teogonia, uma cosmogonia e
uma antropologia. Os títulos dos volumes que compõem a obra já aponta para a
grandiosidade do projeto: volume nº1 A natureza da Natureza, vol.nº2 A vida da
vida, vol.nº3 O conhecimento do Conhecimento, vol. nº4 As idéias, vol. nº 5 A
humanidade da Humanidade e vol. nº 6 Ética. Estes títulos, de certa forma, retomam
a divisão das três críticas de Kant e, não por acaso, a psicogênese da ação, do
conhecimento, e da moral em Jean Piaget.
4
Desta ordem proposta pelo Método pode-se facilmente depreender, como já
foi colocado, a dimensão do vôo do pensador francês. A nantureza da Natureza
convida a uma revolução copernicana ao propor a desordem como sendo a regra na
natureza em contraposição a perfeição propugnada pela fé e a certeza evocada pela
razão cartesiana. A natureza se reorganiza a cada instante e nestas constantes
reorganizações algumas ordens se estanbelecem aleatoriamente passando a
funcionar assim até que por razões internas ou externas venha a cessar a energia e
a cinergia que a sustentavam. Como muitos destes processos ocorrem em escalas
civilizacionais, geológicas ou cosmológicas, o vivente humano com a dimensão de
poucas décadas de vida tende acreditar que as coisas que funcionam bem a seu
tempo sempre foram assim e para sempre o serão. A satisfação com a ordem do
mundo oferece alguma segurança que não vale a pena, em nivel de senso comum,
pensar-se o contrário.
Desvendada e reinventada, a natureza abriga em seu seio o mais elevado e
misterioso dos eventos, a existência da vida. A vida da Vida, tema do Método nº 2
discute as condições de surgimento, manutenção e reprodução da vida há quatro
bilhões de anos, sendo que destes apenas os últimos 500 milhões na superfície da
terra, antes disto a vida estava restrita aos oceanos. A questão do conhecimento do
Conhecimento ocupa o Método nº 3 e se constitui em uma revisão dos
conhecimentos a partir das rupturas já efetuadas que promoveram uma reinvenção
da natureza e a busca de um outro sentido à vida. Esta temática é ampliada no livro
nº 4 As Idéias. Por fim a humanidade da Humanidade, livro nº 5 e a Ética, livro nº 6
4
Explicar esta relação: a) em que mundo vivo, b) quem sou, c) o que posso fazer
19
complementam a reflexão, explicitando o lugar e o papel do humano na concepção
deste mundo e os limites da validade de suas ações.
Com este trabalho pretende-se compreender em que medida a proposta de
um novo paradigma – a complexidade – engendrado por Edgar Morin, em sintonia
com as revoluções científicas do século XX, permitem elaborar respostas aos
impasses epistemológicos presentes no campo da comunicação. Tal objetivo é
buscado fazendo dialogar os preceitos teóricos desenvolvidos na obra de Morin com
os dilemas apresentados pelos teóricos da comunicação no que diz respeitos aos
problemas epsitemológicos. Procura-se também identificar os pressupostos teóricos
que permitiram a Morin propor uma ruptura paradigmática e propor um novo modelo
de abordagem científica.
Para dar conta da proposta desta tese, foram desenvolvidos maais cinco
capítulos além desta introdução, por isto é referido inicialmente o segundo capítulo,
depois o terceiro e assim por diante. Um breve apanhado dos principais pontos que
compõem cada uma destas partes é esboçado aqui no intuito de adiantar alguns
pressupostos relevantes para a compreensão da seqüência do trabalho.
O segundo capítulo, Revisão da Literatura, procurou-se elencar alguns
aspectos que foram considerados essenciais na reflexão epistemológica sobre a
comunicação no Brasil. Uma parte significativa dos textos aqui discutidos foram
apresentados nas reuniões da Compós no GT Epistemologia da Comunicação
criado no ano de 2001. Contudo deve-se salientar que esta opção não pressupõe
que a reflexão epistemológica da comunicação se restringe a este grupo, estando
presente em diferentes medidas, em praticamente toda a produção teórica do campo
da comunicação.
Merece uma ressalva, ainda, as idéias contidas neste o conjunto de textos
agrupados sob o título de Revisão da Literatura, o fato dele ser a um só tempo, uma
parte significativa do que pode-se chamar do estado da arte da discussão
epistemológica no Brasil e ser, ao mesmo tempo, o corpus do trabalho. A produção
bibliográfica em epistemologia da comunicação aqui discutida apresenta os limites
da investigação comunicacional, sendo ao mesmo tempo o corpus investigado.
O título do capítulo terceiroro Cosmo-eco-socio-antropo-psico-biografia Edgar
Morin se propõe a ser uma indicação metodológica da complexidade do ser vivo na
compreensão do autor. Procurou-se indicar esta complexidade ao propor uma
20
Cosmo-eco-socio-antropo-psico-biografia pois uma biografia do autor seria uma
limitação na apresentação do humano, do indivíduo, da pessoa, do sujeito, do
pensador.
O evento do aparecimento da vida no planeta, cujo ponto de partida data de
aproximadamente 4 bilhões de anos – sua evolução, as espécies que engendrou e
estingüiu – tem no acaso um elemento importante. Da mesma forma que o longo
processo que culminou com o surgimento da humanidade também foi marcado pela
mesma improbabilidade que originou à vida. A existência de um país chamado
França, e de lá haver nascido um pensador de nome Edgar Morin e que tem sua
obra pesquisada por um estudante de doutorado do outro lado do planeta, da
mesma forma, não passa de um evento improvável, urdidos nas encruzilhadas onde
as coisas se decidem e jogam-se os dados. Mas de quem são os dados, quem criou
as regras do jogo e, principalmente, a questão: é possível alterar os resultados?
O capítulo quarto Metodologia e métodos é uma tentativa de mapear os
descaminhos teórico-metodológicos propostos e exercitados neste trabalho. E
porque descaminhos? Porque a concepção de metodologia como sendo o estudo
dos caminhos e dos instrumentos usados para fazer ciência operam segundo a
lógica do método científico uma dialética entre a racionalidade e um empirismo
hegemônica desde as primeiras luzes da modernidade. A metodologia neste
trabalho é o caminho mas é também o ponto de chegada, precisa dela para andar,
mas o objetivo é conhecê-la. A segunda (des)razão de se nominar descaminhos a
metodologia aqui exercida é que do ponto de vista da complexidade os elementos
como uma “evidência estatística” – tratada como evidência absoluta – um dos
alicerces dos paradigmas da modernidade, sobretudo nas ciência da natureza,
possui em outros paradigmas um valor relativo.
No capítulo quinto, procura-se discutir os elementos essenciais que poderiam
contribuir para a constituição de uma epistemologia complexa da comunicação, de
acordo com os pressupostos de Edgar Morin em O Método. Entende-seque a
constituição de uma epistemologia complexa da comunicação pode contribuir para:
a) formação da área como um campo delimitado; b) o reconhecimento de um objeto
específico da comunicação e c) adoção de teorias da comunicação.
Finalmente no sexto capítulo, Por uma epistemologia complexa da
comunicação: as cinco esferas da comunicação em Edgar Morin, procura-se cogitar
21
que elementos fundamentaria uma epistemologia guiada por alguns dos
pressupostos abrigados por Edgar Morin no barco da complexidade. Iniciando por
um princípio fundamental da complexidade que é concepção de natureza – da sua dialógica
ordem/desordem – Morin, ao contrário da concepção Cartesiana/Newtoniana compreende
que o cosmos e da mesma forma a phisis nele contida caracterizam-se primordialmente
pela desordem sendo a ordem ilhas, momentos de organização fundadores de
eventos singulares. Na parte final dete capítulo, realizou-se uma breve reflexão
sobre a importância da tecnologia numa eventual construção de uma epistemologia
complexa da comunicação.
2 REVISÃO DA LITERATURA
Como ficou definido, metodologicamente, o conjunto de textos escolhidos
para este trabalho foram apresentados, em sua grande maioria, no GT
Epistemologia da Comunicação da Compós. Já foi destacado ressaltado que esta
opção não significa a afirmar que este grupo monopolizava o pensamento
epistemológico da comunicação contemporânea no Brasil, mas que ele representa,
sem dúvida, uma referência importante nesta discussão. Além destes textos, foram
acrescidos ao corpus outros três artigos que não foram apresentados no referido GT
da Compós, mas que se julgou importante incluí-los. EPISTEMOLOGIA EM RUÍNAS: A
IMPLOSÃO DA
TEORIA DA COMUNICAÇÃO NA EXPERIÊNCIA DO CYBERSPACE
5
, do professor
Eugênio Triviños, por ser um texto pioneiro em relação à preocupação com este
tema, tendo sido publicado cinco anos antes da criação do GT. O segundo é O
Campo da Comunicação: sua constituição desafios e dilemas
6
de Maria Immacolata
Vassalo de Lopes, por ser bastante recente e, também, pela representatividade
inconteste da autora neste campo. Incluíu-se também nesta análise FORMAÇÃO DE
UMA EPISTEMOLOGIA DA COMUNICAÇÃO POR AUTORES NACIONAIS
7
por apresentar um
estudo breve e instigante sobre a constituição dos trabalhos apresentados no GT
Epistemologia da Comunicação em 2002, 2003 e 2004.
Se há questões que são controversas na contituição do campo da
Comunicação, quando se trata da epistemologia da comunicação estas questões
tornam-se mais complexas ainda. Por esta razão, questiona-se que critérios –
estritamente espistemológico – poderiam ser arrolados para indicar a legitimidade de
se tomar a produção teórica deste grupo como representativa do campo. Dois
caminhos são aqui seguidos para enfrentar este dilema, uma visão externa ao grupo
e outra pertencente a um dos autores do próprio grupo. Nos dois casos o
questionamento prático recai em definir se determinado texto é ou não uma reflexão
epistemológica. Ser ou não uma discussão epistemológica aceitável já é uma
objeção de segunda ordem, depende necessariamente da primeira.
5
(Triviños, 1996) publicado na Revista Famecos nº 05
6
Revista FAMECOS nº 30, agosto, 2006.
7
DINIZ,T.R.. Formação de uma epistemologia da comunicação por autores nacionais. In:
CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 28., 2005. Rio de Janeiro. Anais...
São Paulo: Intercom, 2005. CD-ROM.
23
Em um artigo produzido por um grupo de pesquisadores da Faculdade de
Pernambuco, coordenados pelo Prof. Dr. Eduardo Duarte, FORMAÇÃO DE UMA
EPISTEMOLOGIA DA COMUNICAÇÃO POR AUTORES NACIONAIS
, os pesquisadores fazem um
levantamento do número de comunicações apresentadas no GT Epistemologia da
Comunicação em 2002, 2003 e 2004 e a partir de determinados critérios ressaltam
que apenas uma parte desta reflexão é, verdadeiramente de cunho epistemológico.
Não cabe aqui nenhum juizo acerca da pertinência ou não dos critérios adotados
para tal definiçao e sim a colocação da dispersão das idéias. Computaram os
autores um total de 37 trabalhos apresentados nos anos 2002, 2003 e 2004 sendo
que destes “somente 16 tratavam fundamentalmente da epistemologia da
comunicação com a abordagem de questões/polêmicas suscitadas para a
constituição desse campo”
8
.
A segunda discussão sobre as características dos trabalhos apresentados no
GT Epistemologia da Comunicação foi escrita por um de seus mais assíduos
participantes, o professor Dr. Luis Carlos Martino. Ainda que se busque preservar o
critério cronológico na apresentação dos artigos do GT a serem analisados, quebra-
se momentaneamente esta regra para destacar a crítica de Martino (2003) em
relação a alguns textos apresentados neste Grupo e que o autor afirma não
apresentarem um cunho epistemológico.
Martino (2003) parte do malogro do debate inexistente entre Popper e
Adorno
9
para ressaltar a necessidade de se ater a algumas premissas, quando
alguém se propõe a discutir questões de epistemologia, pois enfatiza o autor “discutir
epistemologia é necessariamente uma tomada de posição” (pp. 70-1). A discussão
epistemológica começa a partir da problematização da investigação objetiva do real,
mas não pode recuar nestes pressupostos sem colocar em risco a própria condição
de possibilidade de um saber de tipo científico, ou sem que haja uma dissolução da
questão epistemológica. É isto que Popper necessitou “esclarecer” a Adorno, ao
contrário de discutir suas 27 teses e responder a interlocução do seu potencial
oponente, o pensador Frakfurtiano. Longe de avançar em problemas
epistemológicos, Popper necessitou reivindicar um espaço de legitimidade da
disciplina, ou seja, a defesa da pertinência epistemológica. Ele aposta que os
8
Diniz et al.
9
Ver em Martino (2003)
24
aspectos epistemológicos não estão determinadas por outras instâncias sociais e
culturais, mesmo que sejam influenciadas por estas determinações históricas,
sociais e culturais, eles têm condições de um debate frnacamente epistemológico. A
objeção aos pressupostos de Adorno, que na visão de Popper, adotada por Martino,
inviabiliza o debate, é a alegação de ser a produção do conhecimento
intrinsecamente determinada pelo conflito de interesses sociais, e,
conseqüentemente, o conhecimento seria apenas uma extensão e um
desdobramento dos interesses aí presentes. Adorno rejeitaria a produção do
conhecimento enquanto tal, denunciando-a como efeito do jogo de poder, e, por
conseguinte, nega ao conhecimento científico qualquer autonomia em relação ao
conflito de interesses sociais.
A impossibilidade de levar às últimas conseqüências a posição de Adorno, a
inviabilidade de tirar todas as implicações de sua tese, é uma das razões
que autoriza a instauração da ciência e a possibilidade de que uma reflexão
epistemológica venha a se instaurar. Não quero dizer com isso que a
posição de Popper e dos que defendem a ciência seja mais bem
fundamentada, ela também terá sua brechas, seus pontos de inflexão e
obscuridade, apenas quero frisar que o ponto de vista adotado por Adorno
permanece um ponto de vista e como tal ele não pode desautorizar ou
desqualificar a perspectiva de uma ciência objetiva (MARTINO, 2003, p. 70).
Cabe destacar que para existência de um debate epistemológico, as partes
envolvidas devem aceitar algumas idéias como ponto de partida, ao contrário, não
tem como o debate avançar, aliás foi o que ocorreu no aguardado debate Adorno e
Popper. Martino acentua que não há nada mais urgente hoje, para um seminário de
epistemologia em nossa área, que zelar para que as condições de um debate
epistemológico sejam possíveis. Porque antes de mais nada, discutir epistemologia
é necessariamente uma tomada de posição.
Adorno tem como premissa a determinação da produção do conhecimento
pelo conflito de interesses sociais, sendo assim o conhecimento seria apenas uma
extensão de interesses aí presentes. Aceitar alguns pressupostos como a existência
de uma espaço preponderantemente epistemológico de discussão, a possibilidade
de conhecer o real a partir de determinados critérios de investigação científica
marcados pela reflexão crítica, a objetividade e a produção da verdade pela
argumentação e comprovação.
25
Martino (2003) destaca as características de outras disciplinas que trabalham
com a ciência e procura mostrar como os trabalhos nestas áreas acabam por se
confundir com a espistemologia. São estas: História da ciência, Psicologia da
ciência, Sociologia da ciência, Filosofia das ciência, Gnosiologia, ou Teoria do
conhecimento. Nos exemplos que se seguem dois trabalhos apresentados no GT
Epistemologia da Comunicação, e segundo a crítica, eles não se constituem reflexão
epistemológica, apesar de terem sido apreesentados no grupo. Em dois exemplos.
Faz uma crítica forte à presença da subjetividade, como fazendo parte de uma
tendência irraconalista, ilustrando seu ponto de vista tendo como referência o texto
de Denilson Lopes A EXPERIÊNCIA NA ESCRITURA: UMA ESTÓRIA E UM IMPASSE, no qual
constata o uso da linguagem como sendo o critério por excelência da manifestação
da verdade.
Uma segunda crítica importante Martino (2003) é em relação ao pouco
prestígio da reflexão teórico-científica na comunicação. Ilustrando esta crítica, se
refere ao artigo PESQUISA EM MULTIMEIOS:SONS E IMAGENS NA ENCRUZILHADA DAS
ARTES E DAS CNCIAS de Marcius Freire. Neste caso, apesar do termo epistemologia,
segundo esta crítica, se trata apenas de uma análise institucional.
O que Martino não levou em conta é que conforme definiu a PROPOSTA DE
ATUALIZAÇÃO DA CATEGORIZAÇÃO DO CAMPO DA COMUNICAÇÃO
10
, as subáreas que
constituem Epistemologia da Comunicação se referem a: 1) processos e eventos da
comunicação; 2) história da comunicação; 3) teorias da comunicação e 4) História
das teorias da comunicação. Pode-se afirmar que o próprio GT Epistemologia da
Comunicação define a presença do grupo de trabalhos que em tese não se
refeririam a este tema.
Assim, mesmo percebendo alguns entraves na aceitação de parte dos textos
do GT Epistemologia da Comunicação, como sendo parte de uma verdadeira
reflexão epistemológica, passa-se a partir deste momento a pontuar as questões
consideradas mais significativas do grupo selecionado. Neste aspecto concordo com
Martino que antes de desisistirmos da questão de uma epistemologia da
Comunicação é preciso trabalhar e levantar seus principais pontos de discussão. É o
que se procura fazer nas próximas páginas.
10
(LOPES, BRAGA e SAMAIN, 2001, p.103)
26
Para se discutir alguns aspectos essenciais da epistemologia da
comunicação, é importante conceber o processo comunicativo pelo menos a partir
de duas perspectvas, do ponto de vista filosófico e da perspectiva histórica. Sob
certo aspecto, a reflexão nietzscheana – para ilustrar-se o ponto de vista filosófico –
nos propõe a tese de que a comunicação guarda uma estreita correlação com o
aparecimento da consciência.
Complementa Nietzsche afirmando que o desenvolvimento da linguagem e o
desenvolvimento da consciência (não da razão, mas somente do tomar consciência-
de-si da razão) andam de mãos dadas. Em uma passagem de Gaia ciência, este
folósofo alemão enfatiza a relação entre consciência e comunicação e destaca que a
consciência desenvolveu-se, pela pressão da necessidade de comunicação.
Supondo que esta observação seja correta, posso apresentar a conjectura
de que a consciência desenvolveu-se apenas sob a pressão da
necessidade de comunicação – de que desde o inicio foi necessária e útil
apenas entre uma pessoa e outra (entre a que comanda e a que obedece
em especial), e também se desenvolveu apenas em proporção ao dessa
utilidade (NIETZSCHE, 1987, p. 162).
O homem conquista a consciência na relação com o Outro: outro humano,
outra natureza, outro universo. A pressão da necessidade de comunicação
funcionaria, no entender de Nietzsche, como o motor que acionaria à consciência.
No entanto o filósofo não atribui à consciência um papel fundamental na produção
do conhecimento, mas ressalta-a em relação à comunicação. Neste sentido ele
chama a atenção, com algumas décadas de antecedência, à formulação do conceito
de inconsciente de Freud.
Nós é que só temos consciência das últimas cenas de reconciliação e
cômputos finais desse longo processo, pensamos portanto que intelligere
seja algo conciliador, justo, bom, algo essencialmente oposto aos impulsos;
enquanto é somente uma certa proporção de impulsos entre si. Através dos
mais longos tempos considerou-se o pensar consciente como o pensar em
geral: só agora desponta para nós a verdade, de que a maior parte de
nossa atuação espiritual nos transcorre inconsciente, não sentida; penso,
porém, que esses impulsos, que aqui combatem uns com os outros,
saberão muito bem fazer sentir uns aos outros e se fazer mal – : aquela
violenta exaustão súbita, que põe a prova todos os pensadores, pode ter
nisso sua origem (é uma exaustão no campo de batalha) (NIETZSCHE,
1987, p. 162).
27
Apesar disto, Nietzsche ainda atribui uma importância ao “trabalho” feito pela
consciência influenciando na capacidade de se comunicar do animal humano. O
pouco do que apreendemos do que somos e do que as coisas são, foram decisivos
para o arremate, para a definição do tipo de ser que somos. Mesmo que a
comunicação tenha esta dimensão individual, sua atualização somente se expressa
em nível social, e a sociedade urbana e industrial que floresce no século XVIII
quando alcança um nível de complexidade importante, é o espaço onde ela é
questionada cientificamente pela primeira vez como um conjunto de fenômenos com
alguma identidade entre si e que viria compor um campo teórico independente.
Inicialmente identificada com as preocupações das ciências sociais, a comunicação
passa a se preocupar com a inserção social e a construção de uma nova esfera
comunicativa como ressalta Rüdiger:
As ciências humanas não passaram a se preocupar com o tema apenas por
razões científicas mas, sim, porque o mesmo se tornou fonte de diversos
tipos de cuidado social. A formação da esfera comunicativa moderna, que
se estruturou com o nascimento dos modernos meios de comunicação,
provocou o surgimento de uma série de fenômenos novos, no contexto dos
quais esses meios foram se tornando cada vez mais poderosos,
despertando a preocupação das mais diversas disciplinas do conhecimento
humano para com a comunicação (2003, p. 15).
Mais do que uma simples preocupação teórica, os questionamentos sobre a
natureza e as funções da comunicação refletem um momento de complexificação
das relações sociais nas zonas urbanas. A urbanidade social característica da
sociedade industrial que se formara, rompera com muitos dos laços sociais
existentes nas antigas comunidades e a necessidade de um rearranjo social tomou
impulso.
A civilização humana, seja ela material ou mental, só foi possível pelo
acúmulo de experiências, informações e conhecimentos transmitidos no decorrer do
tempo, através dos grupos sociais, de civilização à civilização, de geração à
geração. Tudo isto, por diferentes formas de tecnologias disponíveis, desde os mais
remotos períodos. A vida sedentária a que alguns grupos humanos passaram a
experimentar há aproximadamente 12 mil anos, vindo a constituir aldeias, povoados,
cidades e nações, constitui-se numa ruptura nas formas de vida e necessidade de
uma comunicação mais efetiva. Rupturas de envergadura similar, acredita-se ser a
urbanização de uma grande camada da população na sociedade industrial entre os
28
séculos XVIII e XIX e que colocou frente a frente grupos sociais de tradições
culturais bastante diferenciadas num exíguo espaço geográfico, a cidade. Em ambos
os momentos, no primeiro em escala de milênios, e o segundo num espaço de
décadas criaram novos mundos. Tais mudanças representaram um impulso decisivo
para aumentar a complexidade das relações semióticas entre os homens. A
complexidade das relações que se estabeleceram, resultado da criação de
instituições mais perenes, ao que tudo indica, é responsável pela ampliação da
necessidade de comunicação entre os homens.
Assim, desde as sociedades arcaicas até as civilizações mais complexas, a
existência de agrupamentos humanos é o resultado de uma trajetória que inclui a
criação de procedimentos comuns materializados nas instituições sociais, produções
materiais, regras de conduta etc., e estes são construídos (e destruídos) através de
atos comunicativos. São estes atos, e o conhecimento produzido sobre os mesmos,
que vieram a constituir a área de interesse da comunicação. É a partir do século XIX,
com as transformações cruciais da sociedade e o desenvolvimento dos estudos na
área das ciências sociais que o conceito de comunicação começa a ser forjado.
Assim nos últimos dois séculos a preocupação dos fenômenos a partir daí
categorizados de comunicacionais, as teorias produzidas pra explicar tais
fenômenos e a reflexão sobre estas teorias vêm compondo a problemática da
epistemologia da comunicação; é neste universo que este trabalho se insere.
2.1 A INVENÇÃO DA CIÊNCIA
A discussão sobre a cientificidade da comunicação remete-nos a um
parêntese que, mesmo sendo um tanto longo, acredita-se ser bastante elucidaditivo.
Trata-se de um mergulho na origem e evolução do pensamento científico,
destacando alguns momentos que se entende terem sido decisivos. Esta regressão
tem por objetivo pontuar os elementos essenciais do pensamento científico para
identificar, como estes se apresentam na constituição do campo da comunicação.
Como ponto de partida vale destacar que a ciência no ocidente apresentou
dois grandes saltos evolutivos, onde seus principais elementos foram definidos,
29
organizados, construídos, reconstruídos e questionados. O primeiro momento tem
como cenário os séculos VI e V na Grécia Antiga e o segundo a partir do apogeu da
Renascensa no alvorecer da modernidade européia, com ênfase a partir do século
XVI. Opondo-se às formas de produção de conhecimento existentes até então, a
lógica científica triunfou nestes dois períodos, no confronto com outras formas de
representação da realidade. É a partir da apresentação de aspectos essenciais da
produção, discussão e herança teórico-metodológica destes dois momentos que se
entende ser possível discutir, à luz do paradigma da complexidade de Edgar Morin,
os impasses epistemológicos da comunicação.
O desenvolvimento da ciência no mundo antigo é contemporâneo a um
processo de grandes mudanças da sociedade grega que, em dois séculos (entre o
séc VIII e o VI a.c, passou um grupo de comunidades rurais com a predominância da
atividades agrárias, para uma realidade econômico-social mais complexa, onde o
comércio interno e externo se desenvolve e enceta a constituição de uma vida
“urbana” em expansão. O alcance do poderio dos gregos vem, inclusive, a rivalizar
com potencias vizinhas como os Persas, com os quais envolve-se em duas grandes
guerras nas quais sairam vencedores. Estas transformações, em seu viés cultural,
ocasionaram uma explosão intelectual que fragmentou a forma mitológica de
representação do mundo, abrindo espaço para outras narrativas de cunho racional:
investigação científica, reflexão filosófica, exasperação literária, etc. que se
agregaram a estilhaços da tradição mitológica, formando o universo intelectual do
mundo grego antigo e que perdurou até os primeiros séculos da era cristã. O
pensamento científico na antigüidade, tanto a filosofia como a tragédia grega são as
diversas faces de um mesmo poliedro. São desenvolvimentos paralelos de uma
realidade cultural em expansão.
Os questionamentos nodais da existência humana sintetizadas nas três
questões essenciais: quem somos? de onde viemos? e para onde vamos? foram
fartamente colocados e respondidos pelos gregos sob várias formas, desde à
mitologia – que por muitos séculos foi a referência cultural dos concidadãos de
Sócrates – até os primeiros séculos da era cristã, quando o Helenismo ainda era um
referencial científico e filosófico importante no crepúsculo do mundo antigo. A ciência
grega foi um dos modelos de resposta a tais questionamentos, sendo que muitas
30
das soluções propostas por seus sábios permaneceram por séculos, algumas delas
um tanto equivocadas, devido à sua força e radicalidade.
Os primeiros passos do pensamento científico no mundo antigo podem ser
encontrados nos pensadores que ficaram conhecidos como pré-socráticos,
denominação que os coloca como precursores da grande produção filosófica do
século V. No entanto, para se compreender melhor este período do florescimento e
maturação do conhecimento científico entre os gregos, é importante que o
pensamento destes sábios, que buscavam trilhar os mistérios do mundo sem a
muleta da mitologia, era ainda algo indefinido, nem filosofia nem ciência, ou as duas
coisas ao mesmo tempo.
Apesar das reflexões ainda incipientes, presentes na filosofia e na ciência
nascente, como formas de representação da realidade, já se formulara neste
momento, noções como as de cosmos e de átomo. Foram pensadores como Tales
que ao buscarem um princípio geral para o cosmo atribuíram-no à uma causa física:
este acreditava ser a água tal princípio; Anaxímenes, propugnava ser o ar o
elemento primordial constituinte elementar da natureza, e que era a rarefação ou
condensação dessa substância que produzia as transformações do mundo.
Anaximandro, por sua vez, entendia que era o ilimitado o indeterminado o princípio e
que todos os processos naturais se desenvolviam em termos da combinação de
coisas opostas, como por exemplo, "frio" e "quente". Pitágoras foi outro expoente do
pensamento pré-socrático e sua diferença fundamental para os autores já citados é
que ele partia do princípio que eram os números o fundamento de todas as coisas.
No entanto, estes ponto de vista não se materializaram em teorizações científicas
imediatamente. O pensamento grego seguiu o caminho da racionalização tendo no
século V atingido seu apogeu com Sócrates, Platão e Aristóteles.
É também em meados do século V que vai se observar o nascimento da
História, quando Heródoto escreve e apresenta em praça pública para aos cidadãos,
as peripécias dos soldados gregos da defesa do território na invasão dos Persas.
Com esta nova forma de narrativa eram louvadas as ações humanas, sem a
presença e a interferência dos deuses e sem heróis da estirpe de Hércules e
Ulisses, por exemplo.
Além das questões de cunho metafísico, investigações em áreas como a
botânica, a medicina, matemática, astronomia, física – que eram disciplinas ainda
31
nem sequer sistematizadas –, faziam parte das preocupações da época. A botânica
teve grande desenvolvimento na Grécia antiga com Platão que se interessou e
especulou exaustivamente sobre as espécies, e classificou os animais em diversas
classes. Mas foi Aristóteles quem na antiguidade deu a maior contribuição a estes
estudos. Aristóteles escreveu um tratado sobre a anatomia dos animais, onde mais
de 500 espécies são referidas. Outra ciência com grande desenvolvimento na
Antigüidade foi a astronomia. Esta ciência que tivera um importante progresso entre
os egípcios, e os povos da Mesopotâmia, que registraram suas observações sobre o
sol, a lua e os planetas até então conhecidos.
As maiores contribuições dos gregos, porém, foram as descrições de
sistemas racionais para apresentar o movimento aparente dos corpos celestes e a
elaboração de modelos da estruturação do universo. O modelo de universo aceito na
antigüidade, e que perdurou até a Idade Média foi o sistema geocêntrico, imaginado
e desenvolvido pelos pensadores gregos. Nessa concepção, a Terra era
considerada o centro do universo conhecido. Mesmo que muitas destas idéias
“científicas” desenvolvidas pelos gregos tenham sido superadas pelo tempo, não há
dúvida que elas representaram um momento revolucionário ao submeterem toda a
realidade conhecida e desconhecida a um tipo de análise calcada na razão, sem o
apoio dos deuses, estes já de saída do mundo dos homens.
Também a medicina se desenvolveu na Grécia, desde o fim do período
arcaico, quando o médico já atuava em proto-consultórios e nos domicílios. Ao
compartilhar interesses com os filósofos da natureza, a Medicina passou a adotar
critérios mais racionais e a desvincular-se da religião. Investigações com o objetivo
de explicar o funcionamento do corpo humano, tanto na saúde quanto na doença,
que passaram a se difundir por esta época, já adotavam princípios racionais de
diagnóstico e prognóstico de tratamento. Considerado o pai da medicina, Hipócrates,
foi mais famoso médico da Grécia Antiga, sendo a História da Medicina dividida em
pré-hipocrática e hipocrática. A influência dos textos de Hipócrates foi de enorme
importância e continuaram com validade até o século XVIII.
A física também deu importantes passos já com os filósofos pré-socráticos
mas foi entre os séculos VI a.c. e o século V a.c. que as especulações sobre a
constituição da matéria e os fenômenos naturais avolumaram-se. Empédocles com a
teoria dos quatro elementos, Leucipo e Demócrito com uma proto-teoria atômica,
32
Platão que também especulou sobre a constituição da matéria e, fundamentalmente,
Aristóteles, cujo pensamento e investigações podem ser apresentadas como sendo
a síntese de seu tempo.
Verdadeiro “herói” da ciência e do conhecimento no mundo antigo, Aristóteles
estendeu sua curiosidade por diversos campos do saber como a lógica, a física, a
biologia, a filosofia, a política e a linguagem (Retórica e a Poética). Discípulo de
Platão, Aristóteles tem seus primeiros textos ainda muito influenciado pelo autor de
A República. No entanto seu pensamento produz, também, uma ruptura radical com
o platonismo encetando uma dicotomia – idealismo/realismo – que, certa forma,
desenhou os contornos do pensamento ocidental. No que diz respeito à Política, por
exemplo, enquanto Platão sonhou com uma República governada pelos filósofos, e
com a expulsão dos poetas. Aristóteles tratou de analisar as variadas formas de
constituição existentes para conceber aquela que lhe parecia ser a mais adequada
às pólis, e a Atenas particularmente.
Mas foi sem dúvida no campo da Física que o gênio de Aristóteles alçou seus
maiores vôos, conseguindo construir um modelo de universo que perdurou até o final
da idade média.
Aristóteles acreditava que a Terra era estática e que o Sol, a Lua, os
planetas e as estrelas se deslocassem, em órbitas circulares, à sua volta.
Acreditava nisto por supor, apoiado em razões místicas, que a Terra fosse o
centro do universo e a órbita circular, e mais perfeita. Tal idéia fora
formulada por Ptolomeu no século II, dentro de um modelo cosmológico
completo. A terra ficaria no centro, circundada por oito esferas que seriam a
Lua, o Sol, as estrelas e os cinco planetas conhecidos à época: Mercúrio,
Vênus, Marte, Júpiter e Saturno (HAWKING, 1988, p. 19).
Na obra A Dança do universo, Marcelo Gleiser enfatiza a grandiosidade sem
par do gênio grego.
Aristóteles (...) construiu um modelo mecânico de cosmos a partir de esferas
reais, e não imaginárias. O movimento dos objetos celestes era causado
pelo contato direto com as esferas. Para que seu modelo descrevesse os
vários movimentos celestes, Aristóteles teve que usar nada menos de 56
esferas! Mesmo assim, o modelo não tentou explicar a variação aparente do
brilho dos planetas e não foi considerado muito seriamente, apesar da
enorme fama de Aristóteles (GLEISER, 1997, p. 72).
Ainda que este modelo apresentasse tais limitações, o pensamento científico
de Aristóteles sobre astronomia perdurou por quase dois mil anos. Ao tentar
33
responder a razão de tal permanência, Gleiser (op. cit), acaba por dar uma noção da
verdadeira abrangência do “universo” intelectual do autor.
Quais as razões para enorme persistência das idéias aristotélicas por tanto
tempo? (...) Aristóteles tinha uma abrangência incomparável, cobrindo
tópicos desde a teoria política e ética até física, biologia e teoria poética.
Junto com seus pupilos, Aristóteles não só compilou, classificou e organizou
praticamente todo o corpo de conhecimentos desenvolvido até o século V
a.C. como também criou novas áreas de conhecimento, incluindo a biologia
(1997, p. 72).
Assim, na Grécia antiga, fundamentalmente por volta do século V, as ciências
já se encontravam bem desenvolvidas e este pode ser considerado o momento em
que esta forma de representação faz sua entrada em cena no universo do
conhecimento. Tendo se organizado a partir da articulação com do pensamento
filosófico, como herança dos pré-socráticos, a ciência tem no apogeu do
desenvolvimento da sociedade grega seu primeiro momento de grande expansão.
Um segundo momento de explosão científica importante que aqui é
considerado ocorreu a partir da renascença, caracterizando a modernidade da
Europa ocidental nos séculos que se seguiram, séculos XVI e XVII. Aqui,
novamente, como já ocorrera na Grécia antiga, a atividade científica e a reflexão
filosófica interpenetram-se e dialogam, influenciando-se mutuamente.
A modernidade, onde uma nova ciência é engendrada, tem no pensamento
de Renè Descartes um dos pilares e, nesse sentido, uma pista importante para se
captar esta profunda transformação, na cultura e no pensamento.
Situado na encruzilhada entre a tradição medieval e o mundo moderno,
Descartes contribuiu decisivamente para delimitar as fronteiras entre a tradição e a
modernidade, ao desenvolver uma filosofia centrada na racionalidade humana como
instância fundadora da verdade. “(...) a razão não nos dita que tudo quanto vemos
ou imaginamos, assim, seja verdadeiro, mas nos dita realmente, que todas as
nossas idéias ou noções devem ter algum fundamento de verdade” (DESCARTES,
1987, p. 51). Descartes desenvolveu um método que revolucionou o conhecimento
passando a ser referência para toda a ciência moderna. Caracterizado por sua
postura crítica, beirando ao ceticismo, o pensamento de Descartes ficou conhecido
pela dúvida sistemática a qual submetia suas observações, até chegar a uma
34
certeza única: cogito ergo sum, da qual ele não pode mais duvidar: penso logo
sou(existo). Afirma o filósofo:
Mas logo em seguida, adverti que, enquanto eu queria assim pensar que
tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse
alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu penso, logo eu existo, era
tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos
céticos não seriam capazes de abalar, julguei que podia aceitá-la, sem
escrúpulo, como primeiro princípio da filosofia que procurava (DESCARTES,
1987, p. 46).
A filosofia cartesiana fecundou de tal forma o pensamento ocidental, que nos
séculos seguintes, o método cartesiano passou a ser sinônimo de método científico,
e mesmo que este método, desde o final do século XIX e, principalmente, no século
XX venha sofrendo duras críticas dos herdeiros de Nietzsche, pós-modernos de toda
ordem, ele não pode ser reduzido a um grande equívoco, como fazem querer crer
algumas teorias críticas da modernidade.
A ciência moderna rompeu drasticamente com princípios, teorias e
paradigmas já há muito enraizados na cultura ocidental. Esta verdadeira revolução
teve em Copérnico, Galileu, e Newton, além do já citado Descartes, seus principais
pensadores na ciência e na filosofia. A emancipação da reflexão humana para além
do rigor do pensamento teológico acua de forma drástica a influência de Deus no
mundo, mesmo que esta não fosse a intenção destes pensadores. Ao contrário do
que apregoam alguns esquemas simplistas da história das ciências, as novas
descobertas proporcionadas pelo racionalismo moderno, como mostra esta opinião
de Sagan sobre Kepler
11
, não tinham como objetivo desacreditar o conhecimento
religioso.
Mas Deus, para ele [Kepler], não era apenas o que punia. Era também, o
poder criador do universo. E a curiosidade do jovem Kepler era ainda maior
que seu temor. Ele queria conhecer os planos de Deus pára o mundo.
Queria ler a mente de Deus. (...) A geometria já existia antes da criação. (...)
A geometria forneceu à Deus, um modelo de criação. A geometria é o
próprio Deus.
12
O antropocentrismo, condição necessária do individualismo moderno, e o
geocentrismo, que destronou a humanidade e seu planeta para a condição
11
SAGAN, Carl. A harmonia dos mundos. Série Cosmos (DVD 1). São Paulo: Abril, 2005.
12
SAGAN, Carl. A harmonia dos mundos. Série Cosmos (DVD 1). São Paulo: Abril, 2005.
35
coadjuvante de um sistema planetário – prisioneiro de uma estrela menor,
insignificante, na periferia da galáxia –, foram sem dúvida duas marcas definitivas na
cultura ocidental.
Até Copérnico desenvolver suas idéias sobre astronomia no final do século
XV e início do XVI, a terra repousava tranqüila no centro do universo tendo, entre
outros astros, o Sol orbitando em seu redor. Era um universo finito desenhado por
Aristóteles e redesenhado por Ptolomeu e que por quase dois mil anos era aceito,
mesmo havendo a teoria rival de Aristarco, que desde o final da Antigüidade,
afirmava ser o “astro rei” o ator principal de nosso sistema planetário.
Um modelo mais simples, entretanto, foi proposto em 1514 por um padre
Polonês, Nicolau Copérnico (no início, talvez por medo de ser considerado
herege por sua igreja, Copérnico divulga seu modelo anonimamente). Sua
idéia era de que o Sol fosse o centro estático em torno do qual a Terra e os
planetas se deslocavam em órbitas circulares. Quase um século se passou
antes que sua hipótese fosse considerada com seriedade. Então dois
astrônomos – o alemão Johannes Kepler e o italiano Galileu Galilei –
começaram a defender publicamente a teoria de Copérnico, a despeito do
fato de que os movimentos previstos não se adequassem àqueles
observados (HAWKING, 1988, p. 21).
Neste novo arranjo celeste, com o sol ocupando o lugar de honra não é só
nosso mundo planetário que vira de ponta cabeça, pois esta disposição dos astros
refletia também crenças para além da ciência. Afirma Gleiser que:
Com este arranjo, Copérnico literalmente destruiu o universo aristotélico,
baseado na divisão do cosmos nos domínios sublunar e celeste. Se a Terra
não ocupa mais o centro do Universo, a divisão do cosmos nos domínios do
ser (a Lua e tudo acima) e do devir (abaixo da Lua) deixa de fazer sentido,
assim como a hierarquia moral adotada pela teologia medieval cristã, que
parte do Inferno, no centro da Terra, ponto de maior decadência e
corrupção, e vai até a esfera empírea, ponto da mais alta virtude. O centro
do cosmo não é mais o diabo, mas sim a fonte de toda a luz e energia, o
responsável pela geração de vida na Terra, “o deus visível” (1997, p. 103).
Com Galileu é a própria atividade científica em reconstrução que segue um
novo rumo a partir da adoção da experimentação. Eventos naturais passam a ser
reproduzidos em condições controladas, com variáveis isoladas, simulando
fenômenos da natureza e, a partir destes, construindo suas hipóteses e teorias. A
observação sistemática da natureza através de instrumentos recém criados, como o
telescópio em 1609, também impulsionou o estudo de Galileu, sobre as manchas
solares, sobre as fases de Vênus e da Lua que, de certa forma, iam de encontro à
36
concepção geocêntrica defendida pela Igreja e corroborando com a concepção
copernicana do heliocentrismo.
O sopro da morte atingiu a teoria aristotélico-ptolomaico em 1609. Neste
ano Galileu começou a observar o céu à noite, através de um telescópio
que acabara de ser inventado. Ao focalizar o planeta Júpiter, Galileu
descobriu que ele se fazia acompanhar de vários pequenos satélites, ou
luas, que giravam à sua volta. Isto implicava em que nada precisava
necessariamente girar em torno da Terra como Aristóteles e Ptolomeu
haviam pensado (HAWKING, 1988, p. 21).
Se a revolução copernicana recolocou o Sol no seu devido lugar, Galileu,
observado às órbitas dos planetas e Kepler ter descoberto que tais órbitas não eram
circulares mas elípticas, faltava ainda ter entender como tudo isto se movia.
Contrapondo diametralmente a noção de lugar natural de Aristóteles, Isaac Newton
enuncia em 1687 em sua obra Principia Matemática, a Lei da Gravitação que propõe
a explicação do processo de atração e repulsão dos diferentes corpos celestes e
que se aplica a todos os corpos físicos. As leis de Newton foram o coroamento de
dois séculos de reordenamento do pensamento racional moderno. É a ele, ou
melhor, a seu pensamento, que Imanuel Kant dedica sua monumental obra Crítica
da Razão Pura.
O século XIX levou ao limite a crença nas possibilidades da ciência, tornando-
a, de certa forma, a religião da modernidade. Esta tendência que ficou conhecida
como cientificismo constituiu, em certa medida, o ambiente intelectual onde se
forjaram as ciências sociais. Duas vertentes da pesquisa social se abriram naquele
momento, por um lado as idéias de Durkheim, herdeiro da tradição de Comte, que
partia da premissa que os fatos sociais eram coisas e como tais tinham que ser
estudados, privilegiando o objetivismo e, por outro lado, a vertente aberta pelo
pensamento do sociólogo alemão Georg Simmel. À perspectiva objetivista de
Durkheim, este sociólogo alemão contrapõe a idéia de um social procedente das
trocas, das relações e ações recíprocas entre indivíduos, um movimento
intersubjetivo, uma ‘rede de filiações’ (MATTELART; MATTELART, 2003, p. 25).
2.2 OS SENTIDOS DA COMUNICAÇÃO
37
Desde meados do século XIX, quando as atenções das ciências sociais se
voltaram para estudar alguns eventos da vida urbana – realidade fenomenal recente
e inédita que a partir daquele momento passava a desafiar a compreensão do
público em geral e dos estudiosos pela novidade que representavam os temas – a
comunicação floresceu como preocupação das ciencias sociais, que se constituia
naquele momento. Desde então, o termo comunicação se tornou cada vez mais
usado, da mesma forma que as práticas comunicacionais ampliaram-se e a reflexão
teórica, metodológica e epistemológica sobre esta produção intelectual ampliou-se
significativamente.
O termo comunicação origina-se na palavra latina communis e significa
pertencente a todos ou a muitos. É a mesma origem da palavra comum. Ainda do
Latim temos o termo comunicare de onde derivam comungar e comunicar. Outro
termo também da língua de Dante é comunicationis que indica tornar comum. Assim,
encontra-se na palavra comunicação a idéia de tornar comum.
Uma reflexão sobre comunicação e a Comunicação implica inicialmente na
distinção entre o primeiro elemento, o fenômeno social (psico-antroposocio-eco-
cósmico) e, por outro lado, a disciplina, o conjunto dos saberes mobilizados para
investigar tais fenômenos. Quando nos defrontamos com a dificuldade em perceber
a distinção destes elementos em algum momento, nos escapa a possibilidade de
uma conceituação de C(c)omunicação.
Os primeiros estudos sobre comunicação datam do século XIX e, como
destaca, Rüdiger, estão relacionados aos progressos tecnológicos que permitiram a
expansão das comunicações, numa sociedade de recente industrialização e
formação da vida urbana moderna.
Considerando a expressão mais de perto, verifica-se que comunicação é um
conceito histórico e polissêmico e que evoluiu entre o século XIX e o XX, da
designação do conjunto de canais e meios de transporte (“comunicação”)
[grifos do autor] para o processo social de interação e, finalmente, para o de
positividade formada pelas práticas, discursos e idéias instituídas à volta
dos meios e técnicas de veiculação social de mensagens, das chamadas
tecnologias da comunicação (RÜDIGER, 2003, p. 11).
Destaca ainda o autor que comunicação é vivida e representada de formas
diversas de acordo com o tempo e o local onde evoluiu. Inicialmente era uma
38
conceito relacionado principalmente às questões relacionadas aos meios de
transporte tendo evoluído, posteriormente, para o conceito relacionado às práticas,
discursos e idéias sobre os meios e técnicas de veiculação social de mensagens.
Entretanto, comunicação social e meios de comunicação, não obstante se
confundam cada vez mais em nosso tempo, não são a mesma coisa;
remetem a problemática de estudo, que não se reduzem uma à outra na
esfera do saber. A comunicação, não resta dúvida, tornou-se campo de
reflexão teórica para o pensamento em virtude do formidável
desenvolvimento das tecnologias de comunicação verificado no século XX
(RÜDIGER, 2003, p. 15).
O universo da comunicação – fenômenos e eventos comunicacionais e as
pesquisas em comunicação – apresentam-se perpassados por uma série de dilemas
teóricos, empíricos e metodológicos que apontam para questões cruciais deste
campo de investigação. O que é comunicação? Qual o objeto da Comunicação?
Qual o estatuto desta disciplina: é ou não é uma ciência? São questionamentos
nodais que se dispersam em outras tantas questões.
Assim, para analisar a dimensão epistemólógica da Comunicação, como se
propõe este trabalho, parte-se da análise bibliográfica da produção e reflexão
contemporânea desta área a partir da produção intelectual representada por
trabalhos apresentados nos encontros anuais da Associação Nacional dos
Programas de Pós-graduação – Compôs, no Grupo de Trabalho Epistemologia da
Comunicação, criado a partir de 2001. Ressalta-se aqui, como já foi feito
anteriormente que não se parte do princípio que o “mais significativo” das discussões
de cunho epistemológico se restrinjam a este GT; tais questionamentos perpassam,
em diversos graus, todas as pesquisas realizadas na área. Mas pelo fato do GT
Epistemologia da Comunicação ter assumido para si o dever (mas não o monopólio)
de se ocupar de tal problemática entendeu-se da legitimidade de tomar-se uma parte
destes texto como sendo relevante na discussão epistemológica da comunicação.
A seguir, com este objetivo, passa-se a mapear algumas destas contribuições
para as discussões da epistemologia da comunicação. A forma de seleção dos
textos aqui estudados, deveu-se a uma primeira condição básica que é ter sido
apresentado no GT Epistemologia da Comunicação da Compós. No entanto, como
este critério não representa uma definição epistemológica e sim institucional,
acresceu-se outros três artigos não apresentados nestes eventos acadêmicos. O
39
que se procurou fazer foi identificar os principais pontos em torno dos quais se
estruturam as discussões da epistemológica da comunicação. Este conjunto de
artigos, arregimentados assim, sem um critério mais científico, lógico ou racional
reinvindica a legitimidade de uma escolha que não pressupõe categorias, correntes
teóricas, linhas de pesquisas. Isto se deve a duas razões fundamentais: a primeira é
que não se pretendeu partir de categorias previamente definidas, situando os textos
neste naquele “lugar” eloqüente de onde fala. E em segundo porque se entendeu
que tal procedimento limitaria a análise ao categorizá-lo a priori.
Conforme definiu a Proposta de Atualização da Categorização do Campo da
Comunicação
13
, as subáreas que constituem Epistemologia da Comunicação se
referem a: 1) processos e eventos da comunicação; 2) história da comunicação; 3)
teorias da comunicação e 4) História das teorias da comunicação, ou seja, análise
dos fundamentos teórico-metodológicos que servem de princípio às diferentes
teorias da Comunicação, sua autonomia e sua condição como ciência (LOPES;
BRAGA; SAMAIN, 2001).
Estudos e pesquisas voltados para o desenvolvimento, a sistematização, a
história e a crítica das teorias e métodos do campo da comunicação,
isoladamente ou nas suas interfaces com outras áreas de conhecimento
humano. (...) Em conseqüência, inclui também os estudos que se
preocupam com a própria constituição do campo, suas estruturas internas e
suas relações com outras ciências e disciplinas que estudam objetos
similares, ou adotam perspectivas complementares sobre estes objetos.
Cabem também nesta subárea os estudos que tematizam os problemas
teóricos-conceituais e as abordagens metodológicas encontráveis nos
trabalhos de pesquisa e desenvolvimento da comunicação (LOPES;
BRAGA; SAMAIN, 2001, p. 103).
Ao apresentarem o conteúdo do livro da reunião do ano de 2001 da Compós,
os organizadores da obra destacaram este como sendo os principais elementos das
temáticas abordadas pelos autores
14
cujos trabalhos foram selecionados para
apresentação.
a) (...) pensar a mídia como forma devida adequada a uma nova etapa da
organização social em dimensão social, no sentido de que o campo
13
LOPES; BRAGA; SAMAIN, 2001, p.103.
14
FAUSTO NETO, Antônio; PRADO, José Luiz Aidar; PORTO, Sérgio Dayrrel (orgs). Campo da
Comunicação: caracterização, problematizações e perspectivas. João Pessoa: Universitária/UFPB,
2001.
40
comunicacional oferece-se como plataforma para um novo tipo de reflexão
sobre o homem;
b) lembrar que a forma econômica da sociedade da informação é capitalista,
mas o modo pelo qual ela se produz está cada vez mais sobredeterminada
pelas lógicas dos processos informacionais, manifestações que se
evidencia, em período recente, quando os processos informativos se
instalam no âmbito da sociedade;
c) lembrar as diferentes possibilidades de discutir o fenômeno do campo de
diferentes perspectivas sobre o ângulo do estatuto acadêmico formal; sua
existência enquanto campo social; sua natureza interdisciplinar,
problematizando a opção pelos estudos sobre os meios e considerar este
campo da perspectiva das interações mais amplas;
d) propor uma analise entre a interdisciplinaridade e o objeto da
comunicação, a partir dos meios, mas ao contrário de um fechamento da
problemática, tratar a questão de uma perspectiva que compreenda os
meios a partir de uma relação complementar com a cultura de massa,
entendida enquanto sentido histórico de uma organização social singular;
propor uma atualização de categorização do campo da comunicação em
sub áreas de conhecimento que contemplem os diferentes percursos e
esforços teóricos e metodológicos para pensar os diferentes processos e
práticas desenvolvidas no continente do campo das mídias, como
possibilidade de produzir num futuro breve respostas sobre a constituição
do campo (FAUSTO NETO; PRADO; PORTO, 2001, pp. 5-6).
Estas questões, de certa forma, sintetizam as preocupações presentes no
campo da comunicação, naquele momento inaugural da constituição do GT em
2001. Nos anos subseqüentes a colocação dos problemas complexificou-se, mas de
certa forma permanecem estes pontos fundamentais já esboçadas desde o início do
grupo.
Bem antes da formação deste GT da Compós que se dedica a estudar as
questões relacionadas a espistemologia da comunicação no ano de 1996 o
professor Eugênio Trivinho apresentou no GT de Teoria da Comunicação do
INTERCOM o trabalho EPISTEMOLOGIA EM RUÍNAS: A IMPLOSÃO DA TEORIA DA
COMUNICAÇÃO NA EXPERIÊNCIA DO CYBERSPACE. Parte-se deste texto como sendo um
conhecimento prévio sobre as questões que passaram a ser discutidas a partir de
2001 em João Pessoa.
Triviños (1996) parte de um fenômeno comunicacional do fim do século XX,
caracterizado por uma explosão tecnológica comunicacional que tem no surgimento
da Internet, na massificação do uso de telefone celular, entre uma miríade de
inovações, para argumentar que todas estas novidades tecnológicas com as
mudanças radicais no modo de viver e conceber o mundo que proporcionaram
impõem uma retomada radical da Teoria da Comunicação na medida em que seus
elementos essenciais emissor, receptor, mensagem, código etc. se fragmentaram.
41
Triviños define cyberspace como sendo uma estrutura infoeletrônica
transnacional de comunicação, ressalta o fato desta ser de dupla via, em tempo real,
multimedia e “que permite a realização de trocas (personalizadas) com alteridades
virtuais (humanas ou artificial-inteligentes) ou, numa só expressão conceitual, a uma
estrutura virtual transnacional de comunicação interativa” (TRIVIÑOS, 1996, p. 74)
(...) o recente surgimento histórico do cyberspace, seu modo técnico de ser
e sua acelerada expansão e consolidação social trazem significativas
implicações para a Teoria da Comunicação. (...) é o cyberspace que, na
esteira das tecnologias informáticas, impõe a essa teoria um ultimato,
convidando-a a fazer uma dura prova do real. (...) desde as teses de Adorno
e Horkheimer sobre a Indústria Cultural no pós-guerra, nunca se viu
transformação tão profunda nessa àrea do saber (TRIVIÑOS, 1996, p. 73).
Triviños elenca algumas características como a mudança de suporte dos
processos socioculturais e políticos, a abolição do território geográfico, a
interatividade com a máquina, com o software e com a imagem virtual para dar conta
da rupturas sociais propiciadas pela tecnologia nascente. A importância do
computador para o acesso a esse universo comunicacional pelo qual se frui a vida
social no pós-guerra, como afirma o autor, propicia, também, a emergência de
eventos como o teleurbanismo infogeográfico, a transpolítica on-line nas cidades
virtuais, o sedentarismo comunicacional nômade como habitus cultural, etc.
Frente a essa estrutura de comunicação, todos os procedimentos práticos,
as categorias e esquemas teóricos que pretenderam, no século XX, dar
fundamentação científica à Comunicação experienciam, mais que nunca, o
momento de sua própria inviabilidade. Em outras palavras, o cyberspace,
embaralhando os dados do real, contribui para minar a logicidade e a
cientificidade dessa teoria (TRIVIÑOS, 1996, p. 74).
Assim, a realidade do avanço tecnológico constitui-se no fator decisivo que
propugna e permite uma ruptura paradigmática e aponta para novos rumos, objetos
e conceitos à Comunicação. Esta proliferação de materialidades tecnológicas, na
visão do autor, contribui para asfixar os fluxos da comunicação e comprometer seus
pressupostos originais. As noções de emissor e receptor são, por exemplo, dois dos
conceitos implodidos com a nova realidade, como já foi destacado pelo autor.
O conceito de indivíduo teleinteragente cyberspatial pressupõe um traço
participativo-interventor cuja plenitude jamais foi verificada, por exemplo,
num receptor da comunicação de massa. Nesse sentido, dizer “receptor”
42
parece realmente pouco. Este conceito equivale a um ente que,
desempenhando função de recepção e decodificação, relaciona-se com o
objeto de uma maneira que exclui qualquer experiência compatível com a
interatividade proporcionada pela tecnologia informática. À diferença do
simples ato de ligar a TV ou rádio e sintonizar a emissora para receber seus
conteúdos, o usuário do cyberspace, após acessar o endereço eletrônico
desejado, precisa absorver-se num processo contínuo de intervenção na
virtualidade da info-rede e na hipertextualidade dos cyberspatial products
para reativar em e extrair de ambas aquilo que elas podem oferecer
(TRIVIÑOS, 1996, p. 76).
Também o conceito de mensagem, que classicamente era definido com
contornos de precisão, diante do novo mundo que se descortina carece de
fundamento e se metamorfosea em algo indefinido
Trata-se, pois, não só de interatividade, mas também de intra-atividade, não
só de interferência, mas também de “intraferência” — o que não soma ao
usuário senão a característica de indivíduo teleintra-atuante. Tal ocorre
quando o infouniverso do “ponto” acessado está disponível em três
dimensões. Em outras palavras, aquilo que, na Teoria da Comunicação, é
chamado genericamente de mensagem é, no cyberspace, susceptível de
acolher em seu interior os próprios usuários, por meio de seus espectros
imagéticovirtuais (TRIVIÑOS, 1996, p. 77).
Enfim, o que é essencial aqui, enfatiza Triviños, para a reflexão acadêmica é
que não se trata de uma simples atualização metodológica e epistemológica das
análises, o necessário rearticular o papel fundamental da crítica, a fim de que se
tenha uma função intelectual tão importante quanto a que tiveram, (...) os
pensadores da Escola de Frankfurt, em relação à consolidação da então Indústria
Cultural (TRIVIÑOS, 1996, p. 77).
A questão que remete a existência e/ou legitimidade do campo da
comunicação encontra em CONSTITUIÇÃO DO CAMPO DA COMUNICAÇÃO de José Luiz
Braga
15
a afirmação de que é ocioso tal debate a respeito do estatuto do campo da
comunicação. Para o autor este campo já está constituído e a produção intelectual é
a constatação disto.
(...) constatação inarredável, na presente situação histórico-social, da
objetivação de um espaço de estudos, reflexões e pesquisas percebidos
largamente como relevantes, espaço este que ao ser nomeado pelo termo
‘Comunicação’ ou pela expressão ‘Comunicação social’ encontra forte
consenso quanto ao que se está falando – ainda que o contorno e a
15
Texto apresentado na reunião da Associação Nacional de Programas de Pós-graduação em
Comunicação, na cidade de João Pessoa em 2001.
43
organização interna desse espaço estejam longe demais de ser
consensuais (BRAGA, 2001, p. 11).
Braga (2001) defende que o campo da comunicação já funciona plenamente e
sendo assim, não vê espaço para tal discussão de cunho ontológico. Neste
momento chegamos à uma denominação confortável – Campo da Comunicação –, e
esta tem “servido adequadamente a todos os nossos propósitos práticos de
designação “(BRAGA, 2001, p. 11). A partir deste ponto de vista ele entende ser
mais adequado o uso da expressão constituição do campo de comunicação ao invés
de construção do campo da comunicação, pois este já se encontra construído,
mesmo que esteja em permanente constituição.
Quatro aspectos da reflexão de Braga (2001) sobre a comunicação são
importantes de reter, pois se inserem entre as questões fundamentais da disciplina,
sendo, também, recorrentes em outros autores, como será visto a seguir. Tais
aspectos são: a) a centralidade da mídia no processo comunicacional, b) a
interdisciplinaridade, c) questão da constituição do campo e d) definição do objeto da
comunicação.
Estes aspectos encerram questões importantes postas e repostas sobre a
epistemologia da comunicação e que são retomadas com pequenas variações em
outros autores e constituem o núcleo da problemática que será posteriormente
discutida em interação com a complexidade de Edgar Morin.
A temática da construção do campo da comunicação é também discutida por
Luis Carlos Martino em ELEMENTOS PARA UMA EPISTEMOLOGIA DA COMUNICAÇÃO
16
,
onde este autor destaca as três vias abertas pela epistemologia moderna como
caminhos possíveis para definições importantes sobre o estatuto acadêmico da
comunicação: a) definição empírica; b) definição formal ou ideal e c) gênese do
campo (2001,p.64). Nestes, o autor vai buscar explicitar sua posição acerca da
comunicação como uma ciência.
Assim, o autor se pronuncia sobre a possibilidade de estabelecer a
particularidade do campo da comunicação, o que ora aparece como o fundamento
das ciências do homem, ora aparece como uma síntese do produto dessas ciências.
“(...)o que se vê hoje em dia é a Comunicação passar diretamente do sentido
16
Texto apresentado na reunião da Associação Nacional de Programas de Pós-graduação em
Comunicação, na cidade de João Pessoa em 2001.
44
filosófico para o sentido radicalmente interdisciplinar”, sem que se crie um espaço
para a constituição de uma disciplina autônoma (MARTINO, 2001, p. 79). Mais
adiante:
Em outras palavras: a natureza interdisciplinar dos estudos de comunicação
deve ser interpretada como o concurso das disciplinas independentes
(Sociologia, Psicologia, Lingüística...), que guardam seus interesses
específicos, ou como uma síntese desses saberes, fundando portanto um
objeto particular? Não resta dúvida que somente esta última alternativa
pode servir à implantação da Comunicação, se se trata realmente de falar
de uma disciplina autônoma e não de um certo tema recorrente, comum a
um certo número de disciplinas independente (MARTINO, 2001, p. 87).
Desta forma, para Martino (2001), o processo comunicativo é psicológico,
sociológico, político, etc. Ainda que colocado desta forma, este problema, segundo o
autor, parece insolúvel. Pois do mesmo modo que a dimensão física está presente
na dimensão biológica, que por sua vez se encontra presente na dimensão
psicológica, e esta na dimensão social.
Hohlfeldt (2001), ao procurar estabelecer a função e a importância da
comunicação em diferentes contextos sociais, como na Grécia e em Roma, na
Antigüidade, afirma: “O fenômeno da comunicação obedece a diferentes
características de acordo com as sociedades em que se inscrevem”. Na Grécia
antiga, a comunicação, afirma o autor, “contribuía, dia-a-dia para constituir e
formalizar a comunidade grega, integrando todos os seus participantes” (2001, p.
80). Através do teatro, das artes plásticas e da literatura, entre outras atividades, o
mundo helênico clássico veiculou seus valores e os ideais de sua cultura.
A análise da comunicação na civilização romana, com ênfase no período do
império, observa Hohlfeldt (2001), já aponta, para algumas ações de Estado
intencionalmente articuladas no sentido de promover a comunicação. Tais ações
contribuíram, sobremaneira, para que o império romano atingisse o seu objetivo, isto
é, usar os processos de comunicação visando o controle social. A adoção de um
idioma único nas atividades públicas, a criação das actas diurnas, o estabelecimento
de correios regulares e a construção de estradas de Roma para todo império,
apontam para a efetivação deste propósito. É a presença do poder público, pela
primeira vez na história, sustenta o autor, com uma preocupação de promoção das
condições de comunicação.
45
Hohlfeldt destaca, ainda, outros dois momentos importantes da história da
comunicação. O primeiro, no início da modernidade, na Itália dos séculos XV e XVI
através da combinação da descoberta do papel e a invenção do tipo móvel deram
um impulso à produção, em escala até então sem precedentes. Obras como a Bíblia
foram “popularizadas” como também outros clássicos da literatura, da ciência e da
filosofia. A subseqüente publicação de tais obras nas línguas nacionais nascentes
decretou uma revolução na comunicação das idéias, criando com isto as condições
para o advento do iluminismo.
O segundo momento, que o autor considera como fundamental na histótia da
comunicação é a transição do século XVIII para o XIX, na França, com os
enciclopedistas, com as conquistas da revolução industrial e o conseqüente advento
da civilização urbana. O crescimento das cidades propiciou a criação de um público
consumidor de cultura. A explosão do romance-folhetim na imprensa diária, há
poucas décadas estruturada, é um dos símbolos deste novo momento. Mas é só a
partir do final do século XIX e no decorrer século no XX que o mundo entra,
realmente, na era das comunicações, que tem no desenvolvimento tecnológico um
de seus alicerces. Tal periodização apresentada por Hohlfeldt, pressupõe um
conceito de comunicação, em que esta se apresenta de forma diferenciada nas
diversas culturas.
Outro momento importante da discussão epistemológica do objeto da
comunicação é trazido por França (2001a) ao reconhecer que a constituição de
qualquer domínio de conhecimento, a definição de seu objeto de estudo é fundadora
e acrescenta que “é em torno de um objeto, que é ao recortar um objeto próprio e
distinto, que se constitui um novo domínio de conhecimento. Assim, questiona: o
objeto da comunicação, qual é?” (2001a,p. 39) E, posteriormente observa que
depois de um século dos seus primeiros estudos, esta questão essencial ainda seja
posta e cause polêmicas.
Para França, os meios de comunicação e o processo comunicativo podem ser
apontados como sendo objetos da comunicação. No entanto a própria autora mostra
que tal escolha apresenta algumas limitações.
O problema da eleição desse objeto é que ela está assentada no
pressuposto de uma ilusória autonomia e precisão dos contornos da
empiria. Os objetos do mundo não estão dados de antemão, nem são
46
recortados por suas leis intrínsecas – mas constituídos e dispostos pelo
olhar e intervenção dos homens. Assim, os meios de comunicação ou a
mídia, na sua aparente objetividade e simplicidade, não o são tanto assim,
mas se desdobram em múltiplas dimensões – tais como a técnica, a política,
a economia, o consumo, a vida urbana, as práticas culturais, a sociabilidade
etc. Dimensões estas que não apenas irão “compor” o nosso objeto, mas se
desenvolvem por caminhos próprios. À guisa de exemplo poderíamos
perguntar: um cientista político que, fazendo uma análise política de uma
eleição, tem como uma de suas variáveis a presença e uso da mídia, está
fazendo um estudo de comunicação? Um economista que inclui a
publicidade e os fluxos de informação na dinâmica atual dos modelos
econômicos, está fazendo um estudo de comunicação? E um psicólogo que
analisa a sexualidade infantil relacionada com o erotismo na tv (FRANÇA,
2001a, p. 53)
Restringir o objeto da comunicação ao campo das mídias se constitui numa
drástica redução que exclui muitas práticas comunicativas presentes na vida social e
que não estão atreladas ás mediações tecnológicas, o rumor das ruas é um exemplo
disto assim como as relações de vizinhança e outras formas comunicativas como a
representação teatral etc.
Partindo de outras perspectivas os limites do que vem a ser o objeto da
Comunicação podem ser muito ampliados dos processos comunicativo para além da
produção e circulação de informações. Contempla esta visão um objeto de grande
amplitude, que pode ser encontrado em todas as dimensões do mundo biológico,
social e, mesmo, do mundo físico. Há o risco da perda da especificidade da
comunicação, na medida em que venha se reivindicar que os mais diversos estudos
podem pertencerem à esta área.
A transdisciplinaridade, por sua vez, compreenderia um movimento
diferente: uma determinada questão ou problema suscita a contribuição de
diferentes disciplinas, mas essas contribuições são deslocadas de seu
campo de origem e se entrecruzam num outro lugar – em um novo lugar.
São esses deslocamentos e entrecruzamentos, é esse transporte teórico
que provoca uma iluminação e uma outra configuração da questão tratada.
É esse tratamento híbrido, distinto, que constitui o novo objeto (FRANÇA,
2001a, p. 55).
Em um questionamento fundamental, nesta discussão sobre o objeto da
comunicação, França (2001a) destaca que proliferam hoje os estudos
comunicativos, baseados em distintas filiações teóricas, vindas de diferentes
lugares. O objeto, ou partes do objeto comunicativo são recortados e tratados
conforme as perspectivas escolhidas. A questão que se impõe para a autora é que
se estes podem ser considerados estudos de comunicação.
47
Apesar de discutir sobre a necessidade de definição do objeto da
comunicação, a autora entende que é saudável e enriquecedor a abertura dos
pesquisadores da comunicação que aceitam as contribuições de outras áreas do
conhecimento como a Filosofia, Sociologia, Psicologia, Lingüística, Semiótica,
Antropologia, Educação, Ciências da Informação, e até de campos mais distantes,
como a Física ou a Biologia. Mas do que isto, ela defende que a reivindicação ou
preocupação com a especificidade, pode significar um fechamento e a criação de
fronteiras impermeáveis a influências.
A contribuição de Vera Veiga França pode ser situada em dois blocos de
questões formuladas pela autora. As primeiras mais fundamentais da disciplina: 1)
Qual é a situação da Comunicação? 2) Depois de um século de estudos, não
constituímos ainda uma área “interdisciplinar”? e, por fim, 3) se a Comunicação
permanece um lugar de entrecruzamento de diferentes perspectivas e tradições?
Estes questionamentos podem ser repostos nos seguintes termos: 1) o lugar da
Comunicação permite/apresenta um olhar próprio? 2) os pesquisadores da
Comunicação, apenas recolhem e repetem análises feitas nas outras áreas? 4)
existe esse “lugar”, essa “perspectiva da Comunicação” ou, como alguns autores
defendem, há apenas o objeto empírico – os meios de comunicação, ou a mídia –
analisada pelo olhar das muitas disciplinas existentes?
Ainda que reconheça a permeabilidade do campo da Comunicação, França
(2001a) entende que há uma especificidade na Comunicação, nos estudos dos
processos comunicativos que devem ser perseguidos pelos operadores da área.
O problema da nossa área – o problema do objeto da comunicação – é que
ela tem sido muito pouco atenta àquilo que lhe é peculiar. Trabalhando com
muitos aportes, os estudos respondem e analisam muitos aspectos,
iluminados pelas teorias escolhidas mas, com freqüência, conduzidos por
essas teorias, tratam de elementos presentes no processo comunicativo e
deixam de responder e apreender a comunicação. A noção de
comunicação, de processo comunicativo deve ser suficientemente sólida e
articulada de forma a poder ser aplicada e permitir a análise das mais
diferentes situações: a cobertura jornalística de um evento; as estratégias
eleitorais de um político; a política interna de comunicação de uma pequena
empresa; uma campanha publicitária de cunho social; a performance
alcançada pelos membros de um ritual religioso; a relação comunicativa
entre médico e paciente, e assim por diante (FRANÇA, 2001a, p.55).
O final do século XX e o limiar do novo século está sendo marcado por
profundas convulsões nos sistemas de pensamento; o próprio modelo da ciência se
48
encontra abalado. Busca-se o pensamento complexo; os leitos disciplinares
mostram-se estreitos – a transdisciplinaridade não diz respeito apenas à
Comunicação, mas à prática científica contemporânea como um todo. Em um dos
três textos analisados neste trabalho e que não foram apresentados no GT
Epistemologia da Comunicação, O CAMPO DA COMUNICAÇÃO:SUA CONSTITUIÇÃO,
DESAFIOS E DILEMAS
, a autora, Maria Immacolata Vassalo de Lopes, manifesta esta
opinião sobre a crise do conhecimento na limitação disciplinar. Este fenômeno,
acentua, se dá mais especificamente nas Ciências Sociais.
Na pesquisa em comunicação, as diversas tradições teórico-metodológicas,
tal como as ciências sociais em escala mais ampla, tem sido postas em
revisão nos últimos anos. Em trabalhos anteriores (Lopes, 2000, 2003),
registrei o aumento da análises auto-reflexivas no campo da Comunicação.
A multiplicação de propostas de reformulação teórica dos estudos de
comunicação manifesta uma insaisfação generalizada com o estado atual
do campo e a urgência de repensar seus fundamentos e de reorientar o
exercício de suas práticas. São análises convergentes, se bem que em
sempre complementares, análises que realizam, revisões, redefinições,
reestruturações, reinterpretações e rupturas com categorias analíticas,
esquemas conceituais, métodos de investigação (LOPES, 2006, p. 19).
A construção ou constituição de uma reflexão teórica sobre a Comunicação,
sua epistemologia, se estrutura enquanto as condições tecnológicas e conseqüente
onipresença da comunicação se desenvolve. Para definir os elementos essenciais à
uma epistemologia da Comunicação pode-se apreender o fenômeno desde os
sistemas cósmicos como o sistema solar em que habitamos ou ainda a biosfera no
planeta terra, a vida da vida como sublinha Morin. No entanto a comunicação
humana, independente de outros usos deste termo, é aquela que mais intriga pois a
todos interpela.
A comunicação como espaço de interdisciplinaridade encontra aqui um
sentido até então não explorado pelos autores até aqui apresentados. Mesmo em
Morin, onde se encontra a inspiração para esta postulação não há a explicitação do
sentido interdisciplinar que aqui se expõe. Na parte final deste trabalho, OS CINCO
NÍVEIS DE COMUNICAÇÃO EM EDGAR MORIN
, encontrar-se-á uma explicitação do que aqui
é anunciado. A comunicação é interdisciplinar como toda a ciência, mas o é
concomitantemente de uma forma que o olhar científico ainda não flagrou
devidamente.
49
A defesa e a explicitação dos elementos da comunicação assumindo
plenamente sua condição de ciência é o que propõe Martino (2001b) pois apregoa o
autor que é somente apropriado uma investigação epistemológica em relação a uma
disciplina científica. Não é qualquer investigação científica como a Filosofia da
Comunicação, mas sim de certos elementos estruturantes da reflexão científica.
Três são os critérios que têm sido usados, segundo por Martino (2001b), para
definir a comunicação como ciência autônoma 1) resposta de cunho empírico; 2)
definição lógico-formal e 3) análise diacrônica, da gênese do campo. Das três
perspectivas, Martino reporta-se às duas primieras de forma sumária detendo-se e
apostando na terceira perspectiva como sendo aquela a partir da qual se pode
chegar a uma caracterização da ciência da Comunicação.
A resposta de cunho empírico aponta para o produção de pesquisas, para a
existência de instituições de ensino superior, para a realização de eventos e
encontros para discussões comunicacionais é apontado como sendo a evidência de
uma disciplina da comunicação. No entanto a amplitude da produção que
compreende pesquisas em áreas como Turismo e Artes dentre outros temas
enfraquecem, sobremaneira, por que pulverizaria o campo. Por outro lado, a
definição lógico-formal que permite explorar de maneira mais profunda o debate
também não basta para definir o limites da comunicação.
Estes dois tipos de paradigmas acabam por formar um sistema em que eles
se complementam e se realimenam indefinidamente, mesmo que constantemente os
dois possam estar colocados em oposição. No entanto, sustenta Martino, que
nenhum dos dois paradigmas é suficiente para definir da questão da especificidade
da disciplina da comunicação. Ele, enfatiza que pode ser a partir da análise da
gênese do campo da comunicação que é possível chegar-se a especificidade da
disciplina.
Nos parece de extrema importância salientar este ponto, já que a pesquisa
em Comunicação muitas vezes segue alheia à importância da historicidade
para as ciências do homem, principalmente no tocante às conseqüências
epistemológicas, como se os processos comunicacionais pudessem
permanecer indierentes à ação do tempo e à variedade cultural (MARTINO,
2001b, p. 69).
Entende Martino que a variação dos meios não se resume ao progresso
material para realizar uma necessidade que é para sempre a mesma do ser humano,
50
de se comunicar. Não são apenas os meios que se transformam num processo
histórico de mudança, a comunicação também se metamorfoseia, adquiri novos
sentidos nas suas transformações.
Dois aspectos são citados como sendo elementos que intervêm na
historicidade da comunicação: o primeiro deles é a mercantilização da informação e
o segundo a intervenção técnica nos processos comunicacionais. Assim, a idéia de
uma disciplina que defina a peculiaridade dos processos comunicacionais a luz das
transformações originadas na modernidade.
Contrariamente aos que entendem ser as discussões sobre o objeto da
comunicação apresenta muitas acepções, é de difícil definição, Sodré (2003)
entende que este ponto possui uma clara definição. Segundo este autor “(...) a
Comunicação tem como objeto a vinculação entre o eu e o outro” (p.46) e isto se dá
tanto do ponto de vista do indivíduo quanto do coletivo. Sodré ressalta que vale a
pena destacar, inicialmente, dois aspectos inaugurais da reflexão sobre a
Comunicação, uma abordagem filosófica e uma abordagem sociológica.
Kant serve de fundamento para a perspectiva filosófica, Sodré recorre
categoria a priori do entendimento de ‘relação’ que traduziria a possibilidade que o
indivíduo que tem de pôr-se em disponibilidade para algo em comum. A comunidade
afirma Kant (apud SODRÉ, 2001) “é a causalidade de uma substância na
determinação de outras, todas as reciprocidades”. Esta definição não objetiva a
comunicação humana mas define a sobremaneira.
Historicamente a preocupação com os sistemas comunicacionais já marca
sua presença no pensamento antigo, na filosofia Aristóteles e Platão há alusões a
problemas que hoje classificaríamos de comunicacionais, ainda que o conceito de
comunicação não tenha sido definido. Mas a incorporação definitiva de sua
relevância social é da segunda metade do século vinte em diante, daí a presença
massiva da informação na estruturação das representações e ações sociais vai ser a
regra. A Comunicação aparece inicialmente como subtema do conhecimento
disciplinarizado do século dezenove: da sociologia, da psicologia e da antropologia e
posteriormente reivindicando a sua autonomia.
A especificidade da vinculação social é o objeto de uma ciência da
comunicação, isto é, o que Sodré denomina de bios midiático.
51
Antes de mais nada a especificidade da vinculação social que, em sentido
lato, é o objetivo de uma ciência da comunicação.Em sentido estrito, a
evidência de que as práticas sócio-culturais ditas comuncacionais oi
midiáticas vêm se instituindo como um campo de ação social
correspondente a uma nova forma de vida que propomos chamar de bios
midiático [grifo do autor] (SODRÉ, 2001, p. 111).
Ainda segundo Sodré, o campo da Comunicação oferece-se para um novo
tipo de antropologia e sociologia. Por ser o bios midiático algo relativamente externo
diante do real-histórico, não constitui para o autor num empecilho epistemológico.
O campo comunicacional apresenta-se como uma forma de pensar a
organização atual da sociedade de uma maneira mais abrangente que a noção de
modo de produção, pois permite estabelecer a distinção entre o societário e o
sociável. O primeiro que dá conta da oficialidade da sociedade, seus mecanismos
reguladores impostos verticalmente por ação de diferentes formas de poder e que
procura se expandir até as zonas menos determinadas da socialidade. A ciência da
Comunicação na concepção de Sódré visa analisar as novas formas “de
subjetividade, de relacionamento interpessoal, de produção simbólica desenham-se
no horizonte da história contemporânea, marcada pela crise dos mecanismos
sociais de identificação e trocas intersubjetivas” (2001, p. 115).
Além de objetos e problemas, um campo científico também se caracteriza
pelos olhares e perguntas que lança à realidade, do seu interesse investigativo. A
partir desta proposição, Barbosa (2002), avalia que a característica mais evidente do
campo da comunicação hoje seja a afirmação de que “seus estudos demarcando o
desenvolvimento dos meios e as relações que as sociedades estabelecem com eles,
determinando configurações particulares de gêneros e discursos” (2002, pp. 73-5).
A autora procura chamar a atenção para a centralidade das questões
relacionadas as sociabilidades, ritualidades e institucionalidade existentes nos
processos de comunicação. Ela considera a Comunicação como uma relação de
natureza social, e como tal está imbricada com o lugar, com a história e os
mecanismos que permitiram a constituição da peculiaridade da visão de mundo do
espaço social que a originou.
A comunicação diz respeito a um ato comunicativo, a uma linguagem, a
uma construção, a um sujeito e a uma história, com todas as implicações –
culturais e políticas – que estas correlações engendram. Uma linguagem
que não é suporte de mera representação do mundo, mas de compreensão
de um mundo real e repleto de sujeitos (BARBOSA, 2001, p. 74).
52
Segundo Barbosa está ultrapassada a visão de disciplinaridade que deve ser
paulatinamente mudada para campos de estudo e conhecimento. Neste caso a
transdisciplinaridade deixa de ser procedimento e atua como uma visão
paradigmática. A realidade, mais complexa que os esquemas explicativos, estaria
reivindicar uma verdade num registro mais geral além dos limites que a
compartimentação acadêmica impôs sob a forma de disciplina.
Falar em comunicação é privilegiar a crítica à materialidade dos processos
comunicacionais, entendidos como fluxos, no sentido de haver uma
interação permanente entre a produção, o meio que a difunde e o mundo
social que se apropria das mensagens, reelaborando-as devolvendo-as sob
novas miradas (BARBOSA, 2001, p. 74).
Barbosa (2002) propõe para a pesquisa em comunicação um modelo de
investigação análogo aos pressupostos que adota Michel De Certeau na análise da
historiografia. 1) singularidade de cada análise é questionar a possibilidade de uma
sistematização totalizante 2) constroi-se um discurso que fala da comunicação mas
que está ele também situado no lugar da comunicação e 3) os discursos estão
indubitavelmente, ligados a um contexto e são definidos por funcionamentos.
São originários, portanto, de dois lugares: falam sobre alguma coisa e são,
ao mesmo tempo, uma prática. Articulam um conteúdo a uma operação
discursiva. E, finalmente, em terceiro lugar, a pesquisa comunicacional se
constitui em uma prática (a comunicação), sendo o seu resultado (o
discurso), uma produção (BARBOSA, 2001, p. 76).
Esta visão aponta necessariamente para uma situação de complexidade onde
o conceito de comunicação é tecido a partir de muitas instâncias que o influenciam e
até o determinam. Para prensar a epistemologia da Comunicação Ferrara (2003)
inicialmente define este termo. Segundo a autora, falar da epistemologia de uma
ciência é destacar os passos seguros para caracterizar um objeto científico e os
elementos que possibilitam identificá-lo. Significa, ainda, epistemologia, no seu
sentido dicionarizado, ‘o estudo crítico dos princípios, hipóteses e resultados da
diversas cências, destinados a determinar sua a origem lógica (não psicológica ),
seu valor e sua dimensão objetiva’ ”(LALANDE apud FERRARA, 2003, p. 55).
53
Poderia também ser definida a epistemologia como a teoria acumulada na história
de uma área do conhecimento.
Portanto, o estatuto científico da comunicação exigiria uma epistemologia
que nos levasse a explicar a comunicação a partir de paradigmas
estabelecidos. O domínio, o estudo, o ensino, a definição destes
paradigmas seriam os elementos indentificadores de uma ciência da
comunicação e, mais do que isto, definidores de uma comunidade científica
que, na convicção de seus paradigmas, estabeleceria competências,
adequações, legitimidade e, sobretudo, avaliações a justificar uma estranha
prática que se consome em citações de produções que nos precedem ou
que nos sucedem estabelecendo a competência reconhecida de uma
ciência (FERRARA, 2003, p. 58).
A tecnologia revolucionou a capacidade de mediação pela possibilidade de
manipular, multiplicar, expandir, tocar, reter a informação acentua. Tecnologias da
comunicação transformaram o desafio do conhecimento em expansão do
conhecimento.
Se esta superposição sujeito/objeto faz com que o conhecimento ultrapasse
o sujeito para atingir à complexidade do objeto que o desafia e não se deixa
esgotar, a epistemologia deste conhecimento precisa desenhar-se além do
sujeito e aquém do objeto para aderir às mediações que se estabelecem
entre os dois pólos e que, por hipótese, podem sugerir um caminho a ser
percorrido pela produção científica (FERRARA, 2003, pp.60-1).
Ferrara salienta que é necessário para que haja relação social a presença
mediação e esta se faça através de signos. Imagina-se, enfatiza a autora, que uma
epistemologia das relações comunicativas venha a superar a natureza das mídia e
suportes enquanto núcleos temáticos, mas que ao mesmo tempo se interrogue
sobre as características processuais das mídias que nutrem as relações
comunicativas.
Fausto Neto (2002), ao se propor em fazer um balanço sobre as pesquisas
em comunicação no artigo A PESQUISA VISTA DE DENTRO DE CASA[grifo do autor], se
preocupa em tomar como referência “questões que são suscitadas em nossa
contidianeidade – a realidade dos nossos programas , edificada em suas diferentes
estratégias e produtos, procurando examinar neste espaço, os exercícios-
tentativos(sic) que se fazem e de onde podem resultar os nossos objetos da
pesquisa.
54
Segundo Fausto Neto, os campos se estruturam históricamente, através de
competências, especificidades, rituais, etc. Eles se diferenciando-se da noção de
sistemas, pois são espaços históricos que são atravessados por conflitos e
tensionamentos.
(...) os campos se estruturam históricamente, através de competências,
especificidades, rituais, etc. Buscam, a seu modo, realizar os processos de
sua legitimidade bem como criar as condições de lidar com realidades e
legitimidades de outros campos. Nisso, reside a possibilidade dos campos
estruturarem suas relações e instituírem as suas perspectivas possibilidades
de interação, mediante procedimentos de mediação. Contrariando a noção
funcional, os campos deferenciado-se da noção de sistemas são espaços
históricos que são atravessados por dinâmicas conflituais e tensionais
internas e externas às suas fronteiras (FAUSTO NETO, 2002, p. 22-3).
A historicidade, que está contida no conceito de campo, confere-lhe uma
condição de vantagem em relação à idéia de sistema que é estática e atemporal,
postula Fausto Neto.
Em O ESTRANHO CASO DE CERTOS DISCURSOS EPISTEMOLÓGICOS QUE VISITAM A
ÁERA DE COMUNICAÇÃO, Gomes (2003) se refere determinadas idéias que circulam na
comunicação, como se constituíssem uma fundamentação epistemológica, mas que
na verdade não se sustentam. Em realidade Gomes desconsidera o valor
epistemológico de tais assertivas. Ele afirma que:
Não é uma epistemologia propriamente dita, porque dificilmente reflete de
forma crítica sobre os seus pressupostos, é raramente conseqüente e
rigorosa, nunca demonstra e dificilmente sobreviveria, portanto, a um exame
rigoroso de epistemologia filosófica. Nem por isso deixa de ser eficiente.
Gerou, pela repetição, um conjunto de consensos compartilhados por
grupos extensos, um conjunto de pressupostos aos quais se adere sem
exame e que passam a ser repetidos sem que aparentemente apresente-se
dúvida ou oposição (2003, p. 314).
Apesar da crítica, o autor não explicita inicialmente qual é o alvo de suas
críticas, mas observa que nem toda a disciplina se deixou levar por esta tendência.
Como tentaremos mostrar ao final dete trabalho, tal discuro, em certa medida,
apresenta algumas ressalvas a perspectiva aqui adotada.
Por fim, antes que me seja objetado — muito justamente — que posso estar
tomando a parte pelo todo e cometendo a injustiça de, como dizem os
italianos, reunir toda erva em um único feixe, destaco três aspectos(é
verdade que nem toda a área se entregou às veleidades “epistemológicas”
55
que descrevo. Sempre houve núcleos mais preocupados com fazer uma
boa e honesta pesquisa em comunicação do que com sutilezas epistêmicas
plantadas no ar, embora o prestígio distribuído no campo intelectual da
comunicação tenha sempre ido em cotas mais generosas para os nossos
“filósofos” do que para os pesquisadores que fazem o trabalho cotidiano da
ciência (GOMES, 2003, p. 315).
Gomes (2003) resume em três tópicos o conteúdo dos “certos dircursos
epistemológicos” que o autor identifica rondando o campo da comunicação: a) crise
dos paradigmas e fantasias da crise; b) ensaio como forma de expressão e c) o fim
da disciplina.
Em relação às crises dos paradigmas e fantasias da crise, o autor entende
que se trata de uma crise dos paradigmas da ciência moderna. É um problema que
o autor detecta nos encontros acadêmicos, como teses vistosas destinadas ao
agrado do público, e em certo número de publicações acadêmicas, como
pressupostos indiscutíveis. As discussões sobre o pós-moderno, conforme Gomes
(2003), são um exemplo deste tendência e apresenta interfaces com outras
questões como crise da modernidade, crise da civilização da técnica, fim do
progresso, da racionalidade moderna e modelos críticos da razão, reencantamento
do mundo.
O segundo aspecto destacado por Gomes (2003) que, de certa forma,
desacredita determinadas visões epistemológicas é a escolha do ensaio como forma
de expressão. O autor leva em conta um célebre texto de Adorno, no qual o filósofo
alemão destaca esta forma do ensaio como modo de apresentação do pensamento.
O ensaio apesar de ser uma forma secular, desde o início da modernidade com os
“Ensaios”, de Michel de Montaigne conhecidos desde 1580.
Ora, a escolha do ensaio como forma dominante é para mim sintoma de
recusa — recusa do padrão discursivo do artigo e recusa das formas-padrão
dos rituais de apresentação da descoberta, que o campo das ciências
humanas e sociais apresenta num jargão de epistemologia revolucionária.
Não me parece uma recusa conseqüente nem que se possa defender numa
argumentação demonstrativa, mas é uma recusa que alcança consensos
sólidos e extensos (GOMES, 2003, p. 324).
A propensão do ensaio a malabarismos verbais, difere completamente do
artigo, da tese e do relatório de pesquisa, que são textos, por sua própria natureza,
muito mais sóbrios. Estes textos, apóiam-se em procedimentos demonstrativos, na
56
cadeia de razões, no modus ponens, numa lógica rigorosa e em procedimentos
semânticos cujo objetivo é propiciar distinções sutis.
O último aspecto destacado como sendo responsável por desvios
epistemológicos na comunicação é o discurso que procura dar conta do fim da
disciplina.
O terceiro álibi epistemológico da área situa-se ao redor do discurso sobre o
fim das disciplinas, do elogio da porosidade metodológica e da flexibilidade
das ferramentas conceituais. Tudo vazado num jargão revolucionário, um
discurso que gira sobre si mesmo, coerente enquanto texto e eficiente
enquanto fórmula, sem que precise, entretanto, confrontar-se com a
realidade. O que temos é uma grande variedade de argumentos referidos a
epistemologias contemporâneas, normalmente apoiados no louvor
indiscutível de práticas científicas designadas por categorias como
“interdisciplinaridade”, “transdisciplinaridade”, “multidisciplinaridade” e outras
assemelhadas (GOMES, 2003, p. 326).
Por fim, destaca Gomes (2003), alguns dos termos e das categorias
presentes nas discussões epistemológicas, referentes a alguns fenômenos
específicos e que nestes autores aparecem como palavras de ordem com o objetivo
de produzir convencimento sem precisar se preocupar com a demonstração e com o
encadeamento de razões. Este procedimento servem, acima de tudo, no
entendimento do autor, para justificar a ausência de especialidade, de conhecimento
de alta complexidade sobre objetos e métodos num campo específico de problemas
nas mais diversas áreas de conhecimento.
A origem e a formação do campo comunicacional e sua relação com os
problemas das teorias desenvolvidas nesta área encontra em Martino (2005) uma
reflexão bastante pertinente. Destaca inicialmente que os estudos de histórias da
teoria da comunicação oscilam entre duas tendências. Alguns deles recuam as
análises até o mundo antigo e há os que se preocupam apenas com o “passado
recente”, o século XX.
Para Martino, a obra História das Teorias da Comunicação, de Armand
Mattelart, se preocupar com os fluxos e refluxos, rupturas e continuidades das
formas comunicacionais assim como os imaginários da qual advém. Mas se trata de
uma compilação de autores e correntes, sem explicitar critérios e justificativas da
escolha. Assim, sua visão das teorias da comunicação é um rápido panorama do
pensamento ocidental do século XX.
57
Entenda-se bem, não discuto se o campo é ou não variado, mas que
identidade do campo não pode ser dada a priori por uma “definição” não
discutida: supostamente “sabemos” que o campo é diverso, e comprovamos
isto pelos dados históricos, eles mesmos organizados pelo pressuposto que
queremos comprovar. Em outras palavras, sem negar o valor das pesquisas
sobre a emergência e desdobramento do pensamento comunicacional,
precisamos reconhecer a pouca serventia desta para as investigações
epistemológicas, particularmente para os problemas relativos a definição do
campo, pois raramente podemos retirar delas mais do que ali foi
implicitamente colocado. Por conseguinte, não é desta forma que uma
história da comunicação pode nos ajudar no problema do estabelecimento
do campo e de suas fronteiras (MARTINO, 2005, p. 45).
A questão do campo comunicacional ou, melhor, do campo interdisciplinar da
comunicação encontra neste autor uma oposição firme e definitiva. Se se considerar
que a comunicação “acontece” num espaço teórico interdisciplinar, o campo da
comunicação, a história da comunicação seria, ressalta o autor, o somatório dessas
histórias parciais que das quais dependem a comunicação, a saber a psicologia,
sociologia, ciência política etc.
Para justificar sua oposição a tal concepção do campo interdisciplinar da
comunicação, Martino, propõe que se explicite a diferença entre campo e disciplina.
Tal distinção permite compreender que se trata de entes que remetem a realidades
muitos dispares e que não permite a confusão ou a justaposição dos dois conceitos.
A noção de campo diz respeito a um objeto empírico, a disciplina é uma perspectiva
teórica.
Neste sentido a noção de campo indicaria os saberes correlatos a um certo
objetivo empírico e por “interdisciplinaridade” deveremos entender apenas
um truísmo: todo objeto empírico pode ser estudado por diversos saberes.
Não obstante, uma observação importante pode ser tirada: enquanto a
noção de campo se funda no objeto empírico, a noção de disciplina, ao
contrário, diz respeito à perspectiva teórica que constrói um certo objetivo.
Então o objeto empírico está para a noção de campo assim como o objeto
teoricamente construído, ou simplesmente objeto de estudo, está para a
noção de disciplina. Portanto, quando falamos em campo comunicacional
não designamos um domínio de conhecimento preciso, mas os vários
saberes que podem ser reunidos em torno de processos empíricos,
tomados enquanto uma manifestação no mundo (MARTINO, 2005, p. 49).
A noção de “campo”, segundo salienta Martino, designa de maneira muito
vaga agrupamentos de disciplinas ao redor de um objeto empírico, mas também ao
redor de um problema empiricamente colocado. Por ser um campo de amplitude
máxima, entende este autor que, de alguma forma, todas as ciências em alguma
58
medida apresenta interfaces com a comunicação. É inconcebível, deste ponto de
vista a conclusão de alguns autores que vêem na comunicação apenas um
sinônimo para interdisciplinaridade (reunião de todos os saberes), conclui.
Deste ponto de vista a Comunicação é um – talvez o – processo social
fundamental, afirma Martino, mas entende-se neste trabalho que pode ser ampliado:
é processo cósmico, um processo natural, processo humano é processo psíquico. A
comunicação pode ser compreendida como sendo o que expressa a dinâmica de um
sistema. Sem a comunicação, as sociedades e grupos humanos não existiriam.
Dificilmente alguém pode projetar uma pesquisa ou fazer teoria em qualquer campo
do comportamento humano sem fazer alguma suposição sobre a comunicação
humana.
Quanto a aqueles que procuram privilegiar a noção de campo, acabam por
deslocar o problema da formação de uma disciplina para o da constituição de um
campo, fazem-no sem, muitas vezes, dimensinarem as conseqüências de tal
consideração.
Então, ao aceitarem a idéia de uma natureza interdisciplinar para a
comunicação, criando um certo tipo de identidade para o campo, os
investigadores adotam muito prontamente uma perspectiva “epistemológica”
(ou antiepistemológicas) muito mais discutível que discutida e sob muitos
aspectos injustificada. Assim fazendo, eles primeiramente negam a
possibilidade de traçar a história de uma disciplina ou de saber
propriamente comunicacional. Por conseguinte, ele passam a se interessar
por outros saberes e acabam esvaziando a confrontação das discrepantes e
desconcertantes versões sobre a origem de nosso domínio de estudo,
abandonando assim toda tentativa de extrair sua significação (MARTINO,
2005, pp. 53-4).
Ao tratar das questões da identidade da disciplina Comunicação, aparece o
quanto a visão interdisciplinar envolve um problema da conceituação do termo
comunicação. A análise histórica opõe dois sentidos que se apresentam ao
historiador da comunicação. Por um lado uma história dos processos e por outro,
uma história do saber comunicacional, mas estes dois eixos têm desdobramento
desiguais. Enquanto a história dos processos comunicacionais se confunde com a
emergência do ser humano, pertencendo neste sentido ao alvorecer da humanidade,
o nascimento de um saber comunicacional vai estar relacionado a idéia que temos
de comunicação naquele momento.
59
Alguns teóricos da comunicação aceitam muito bem os trabalhos da
sociologia da ciência, tratando destas questões como se fossem de cunho
epistemológico. Tal procedimento é criticado a seguir nas palavras de Martino.
Afirma o autor que:
(...) o deslocamento do plano de epistemologia para o da sociologia da
ciência, ainda que possa lançar luz sobre determinados aspectos do
problema, deixa intacta a questão central de definir o saber comunicacional
a partir de suas teorias, quer dizer, a partir da fundamentação, da validade e
do tipo de conhecimento que é capaz de gerar. Pois afinal, é isso que está
em jogo no debate da definição do termo, e não apenas um capricho de
nomenclatura (MARTINO, 2005, p. 55).
A carência de uma problematização epistemológica se manifesta na falta de
uma reflexão sobre a definição do termo comunicação, o que faz com que algumas
vezes, mesmo os especialistas, não consigam evitar a confusão entre a dimensão
empírica com o a área de conhecimento. Isto faz com que a história do saber
comunicacional seja confundida com a dos processos comunicacionais.
Martino (2005) enfatiza que a abordagem sociológica toma o saber
comunicacional não por suas idéias, mas como sendo “aquilo que os comunicólogos
fazem”; o que, para o autor, pode servir aos interesses dos sociólogos mas não faz
sentido para a nossa discussão comunicacional. Muitos pesquisadores não
acreditam na possibilidade de interpretar uma base empírica a partir de definições do
saber comunicacional, não percebem que este procedimento apenas desloca o
problema. Pior do que isto, deixa-se o campo epistemológico para trabalhar em um
problema de cunho sociológico. Uma questão aqui é fundamental, segundo sustenta
Martino (2005), a compreensão do problema epistemológico da comunicação deve
dizer respeito ao conhecimento comunicacional enquanto tal.
A Comunicação para Martino (2005) constitui-se num objeto óbvio e num
saber urgente. No entanto, a ausência de uma definição sobre os fundamentos da
disciplina inviabiliza uma reflexão epistemológica verdadeira. Sem uma reflexão
epistemológica que permita compreender os fundamentos e a singularidade da
Comunicação, os especialistas ficam desprovidos do instrumental que permita
separar o que é ou não é um trabalho em Comunicação.
Por não terem esse parâmetro fundamental, a “disciplina” se abre a todo e
qualquer problema que resvale em algum processo comunicacional. Ela
60
está aberta a toda e qualquer teoria, como verdadeiro buraco negro a
dragar o conhecimento, de modo a não poder separar o que é seu e o que é
de outros (MARTINO, 2005, p. 61).
A ausência destes parâmetros favorecem a definição do que vem a ser
Comunicação a partir do critério empírico, isto é, que a Comunicação é o que os
comunicólogos fazem ou, ainda, de uma definição a priori. A conseqüência inevitável
desta, no entanto, é a incapacidade de afirmar o que é e o que não é Comunicação
e/ou comunicação. A história da Comunicação seria apenas um novo nome para o
que já existe com outras denominações: História da civilização, História das relações
sociais, História da transmissão cultural, História da politica, História das
mentalidades etc.
Apesar de apontar os prejuízos à Comunicação que representa a falta de uma
reflexão epistemológica, Martino (2005) sustenta que esta é a regra nos estudos
comunicacionais, e que a maior parte destes estudos sobre a história do campo
pouco é o material aproveitável. Isto se deve à falta de sentido histórico e pela
crença que se tem de uma visão do campo como algo muito extenso e variado e,
assim sendo, insondável.
Partindo de três questões essenciais: a) como o que é comunicação? b) para
que serve a comunicação e c) qual é o campo da comunicação? Ferrara (2005) se
questiona o modo como estas perguntas se relacionam entre si e os elementos que
caracterizam cada uma, os paradigmas que as sustentam e nos permitem nelas
encontrar as raízes de uma epistemologia da Comunicação. Neste sentido, ela
desenvolve uma análise da Comunicação enquanto cultura epistemológica definindo
e identificando as diferentes etapas.
Admitindo-se que conhecimento diz respeito a relação entre o homem e o
mundo, o qual é tomado como objeto, Ferrara destaca que se pode observar “uma
tendência mais ou menos ritmada, de privilegiar, ora o sujeito do conhecimento, ora
o objeto, porém sempre com faces autônomas, quando não divergentes”.
(FERRARA, 2005, p. 28). As duas posições são reducionistas assegura a autora,
pois submete a realidade a uma simplificação em qualquer uma das situações. A
Comunicação, assevera, não é exceção em relação a esta regra.
Exige-se distinguir e aprender entre os fatos e a cultura da história aquela
relação epistemológica da dinâmica interpretativa que superpõe o sujeito e
61
o objeto do conhecimento, ao mesmo tempo em que os tornam mutuamente
dependentes. Desse modo, define-se epistemologia, não só como conjunto
de paradigmas que estabiliza o conhecimento e a lógica da produção
cientifíca, mas sobretudo, como diretriz que a orienta, ao mesmo tempo, em
que é superado pela ação cognitiva (FERRARA, 2005, p. 29).
Numa primeira abordagem, Ferrara aborda a Comunicação como cultura
epistemológica da identidade isto é, segundo ela, a comunicação seria responsável
pela criação de paradigmas capazes de equilibrar o social e inibir desvios. O que é
levado em conta neste caso é o código estabelecido pelas relações sociais e que
passa a se incorporar a identidade científica da área. Duas perspectivas se
apresentam como possíveis neste sentido. Numa primeira, a Comunicação a
exemplo da Antropologia e da Sociologia se constituiria em mais uma ciência social,
por outro lado atribui-se a ela um caráter mais utilitário, pragmático do que
conceitual. Sublinha Ferrara (2005) que é esta perspectiva que originou, por
exemplo, a Escola de Chicago.
Outra perspectiva é da Comunicação como cultura epistemológica da
manipulação social. A epistemologia da Comunicação, neste caso, como controle
social privilegiava uma interação face a face, sendo que os “sujeitos que se
relacionavam em coletividades de tamanho controlado pelas próprias instituições
sociais que planejavam e operavam as estruturas de controle (FERRARA, 2005, p.
30). Esta situação transforma-se, sobremaneira, com a emergência das novas
possibilidades tecnológicas que permitem a produção a reprodução de imagem e da
restrita dimensão da relação comunicativa face à face passa a uma extensão que
entre outros aspectos vai transformar indivíduos em massa anônima.
A assunção da imagem corresponde ao isolamento do indivíduo banido da
esfera pública pelo adensamento urbano e condenado a inércia nos
domínios privados do ócio ante a televisão: desse modo, substitui-se a
relação social pela sedução da imagem, a multidão pela massa, o flaneur
pelo voyeur, o ser visto como categoria social pelo ser que dá origem ao
anonimato que desobriga a comunicação de qualquer compromisso ou ação
éticos (FERRARA, 2005, p. 31).
Neste caso observa-se uma ruptura, onde o sujeito da comunicação sofre
exposição e a mesmo tempo isolamento como conseqüência da realidade social que
se complexificou e para os quais as midias começam a ter uma influência decisiva.
62
A presença cotidiana dos meios de comunicação de massa promove, uma
intoxicação de comunicação com a naturalização desta. Este processo vai ainda
tornar a comunicação “opaca nas suas determinações semióticas” (FERRARA,
2005, p. 31) e “ausente como matriz epistemológica” (idem).
Nesse contexto, a transformação da relação comunicativa como critica
social se transforma em objeto epistemológico, em conseqüência, a
comunicação se aproxima dos seus nexos científicos, a sociologia e a
antropologia entendidas como ciências da critica social. Mais do que nunca,
o objeto cientifico da comunicação se expande e ultrapassa a relação social
para atingir sua qualidade interativa através do verbal e da sua arma básica,
a tradicional argumentação (FERRARA, 2005, p. 32).
A Comunicação vai assim concentrar-se no estudo das inserções
comunicativas mas que ocorrem “sem midializar as mediações que mesmo que
estejam presentes na mídia, são consideradas no seu vetor eminentemente verbal”
(FERRARA, 2005, p. 34). Essa epistemologia como cultura de inserções temáticas,
segundo a autora, é responsável por uma limitação científica. Pois circunscreve a
comunicação aos limites dos estudos dos temas celebrados como objetos científicos
adequados área.
A cultura de uma epistemologia midiática da comunicação a qual se refere
Ferrara (2005) é uma marca das derradeiras décadas do século XX e proporciana
grande visibilidade aos veículos tecnológicos, atribuindo, indevidamente, a eles um
valor cognitivo que não possuem. Ao mesmo tempo, substitui o estudo das relações
comuniativas pelo nexo comunicativo.
Assim, se de um lado, a incessante e rápida evolução tecnológica torna o
objeto científico da comunicação ainda mais instável de modo que toda
tentativa de defini-lo redunda em provisória parcialidade, por outro lado, a
relação entre emissor e receptor como agentes internos e constitutivos dos
nexos midiáticos, faz com que o sujeito do processo cognitivo se distancie
das suas exclusivas e peculiares determinações sócio-históricas e passa a
ser entendido como indivíduo conectado tecnologicamente embora, mais do
que nunca, globalizado e mundializado comunicativamente (FERRARA,
2005, p. 35).
As novas tecnologias da comunicação podem alterar alguns valores e hábitos,
modos de vida e socialidades e Ferrara (2005) concorda com Muniz Sodré que
estamos ante o que ele chama de biosmidíatico, uma nova dimensão psicossocial
para o homem. Esta nova epistemologia vai preterir uma explicação das relações
63
comunicativas em função da compreensão mais realista do complexo mecanismo
cultural da comunicação.
O processo de desnaturalização da comunicação implica em considerá-la a
partir dos seus meandros semióticos, privilegiando um duplo sentido de análise: em
primeiro lugar a semiose é tomada nas articulações sintáticas dos signos e, em
segundo, a análise do próprio processo interpretante. A complexidade midiática vai
fazer com que a ciência da comunicação venha perder seus antigos referenciais
epistemológicos. Ela fica impedida de falar em centralidade teórica ou de
paradigmas, urge criar uma outra epistemologia.
Agora, o objeto científico da comunicação é visto como conjunto fraturado
por forças de nexos midiáticos contraditórios que salientam a evidência da
indeterminação de todo os processos comunicativos. A idéia de pensamento
complexo pode ser retomada por uma epistemologia da comunicação como
complexidade que considera o objeto científico como heterogeneidade. “Se
o conhecimento existe é por ser organizacionalmente complexo. Trata-se de
uma organização complexa ao mesmo tempo fechada e aberta, dependente
e autônoma, capaz de construir traduções a partir de uma realidade sem
linguagem. Essa complexidade organizacional comporta as maiores
aptidões cognitivas e os riscos ininterruptos e múltiplos de degradação
dessas aptidões, ou seja, as possibilidades extraordinárias e as fragilidades
inacreditáveis do conhecimento humano (Morin, 1999, p. 281)” (FERRARA,
2005, p. 39).
Tendo a complexidade como um traço fundamental da atual cultura da
comunicação, torna-se inviável o exercício de pensar numa epistemologia monolítica
ou explicativa. É cada vez mais urgente prestar-se a atenção e enfrentar a
heterogeneidade de fragmentos de sentidos presentes nas relações e nos nexos
comunicativos em rede. Trata-se, portanto, de um conhecimento fragmentado,
porque ultrapassado na rapidez informativa. Diante dessa fragilidade, não se pode
falar em uma epistemologia que consagre os paradigmas e pelos quais se confere
confiabilidade e produtos cognitivos. Mais vale, ao contrário, a reinvenção
epistemológica, a cada aventura da produção científica que desafia o conhecimento
já estabelecido.
Perspectiva epistemológica comunicacional tributária da sociologia marxista, a
Crítica da Economia Política, ou mais propriamente a Economia Política da
Comunicação, pode, na opinião de Bolaño (2005), apresentar-se como sendo “uma
poderosa alternativa para a constituição de um paradigma geral, adequado à
compreensão do fenômenos cultural e comunicacional”, tal proposição se sustentaria
64
na medida em que os fenômenos comunicacionais têm seus contornos moldados,
atualmente, pelo sistema capitalista. Para este autor:
A definição de comunicação, assim, como a de informação, não parte da
Física, ou da Biologia, mas da Crítica da Economia Política; não é
determinista, nem organicista, mas dialética; não se adequa à análise da
informação entre as células ou da comunicação entre os animais, mas
apenas às relações sociais vinculadas à forma mercadoria e suas
contradições. Não se limita, por outro lado, aos meios, mas dá alta
relevância e prioridade às mediações (BOLAÑO, 2005, p. 3).
Derivada desta matriz, a Economia Política da comunicação (EPC) propõe-se
a trabalhar o problema da extensão da lógica capitalista para terreno da
Comunicação e da Cultura. Mais do que uma opção teórica, sustenta Bolaño, trata-
se de uma necessidade que os fenômenos comunicacionais exigem.Tanto a palavra
episteme quanto logos vêm do grego e significam respectivamente ciência e estudo.
Assim pode-se dizer que epistemologia se constitui num conjunto de conhecimentos
teórico-metodológicos destinados a construir e investigar um objeto de pesquisa.
Refere-se este estudo às decisões crucias e aos princípios de investigação que
direcionam um olhar para os diferentes temas. É o estudo crítico dos princípios,
hipóteses e resultados das diversas ciências. Dos procedimentos destinados a
contemplar à dimensão lógica e não psicológica das pesquisas.
2.4 COMUNICAÇÃO E TECNOLOGIA
Comunicação e tecnologia andaram sempre juntas desde o início da
caminhada da humanidade; devem ter evoluído e se desenvolvido simultaneamente
em algum momento da trajetória do processo de hominização. Qualquer forma de
comunicação que se intua pressupõe algum recurso técnico, seja oriundo do próprio
homem ou dos recursos disponíveis no meio ambiente. Só bem mais tarde, é que os
instrumentos de produção de condições de sobrevivência e comunicação passaram
a ser concebidos pelos próprios homens. A presença da técnica na hominização e
65
da humanidade na tecnização do mundo constitui-se num mesmo processo de
origem perdida, e de histórias contadas e recontadas em diferentes versões.
Para tentar dar conta destas relações entre comunicação, técnica e tecnologia
dois são os caminhos seguidos a partir deste momento. Em primeiro lugar,
privilegiamos algumas definições conceituais no que diz respeito à técnica e à
tecnologia e sua relação com a comunicação e, num segundo momento, passa-se a
enfocar as discussões sobre as influências, os impactos sociais da tecnologia nos
meios comunicação.
Estudiosos da história da Comunicação (RÜDIGER, 2003) (MARTINO, 2003),
(SILVA, 2003) adotaram como sendo a partir da segunda metade do século XIX –
com os avanços tecnológicos acontecidos naquele momento –, que tenha surgido o
interesse em investigar a presença dos fenômenos comunicacionais na sociedade.
Deve-se, em termos, a esta origem das reflexões comunicacionais uma confusão,
entre a problemática relacionada à Comunicação e a relacionada aos meios de
comunicação. A presença da técnica e da tecnologia na comunicação é tão
importante, que oportunizou uma perspectiva teórica fundamentada no determinismo
tecnológico, que hiperdimensiona o papel dos grandes avanços tecnologicos para a
comunicação.
Desde a comunicação em pequena escala – imediata, interpessoal, em um
território exíguo – até a comunicação de longa distância – mediada, em sociedades
industrializadas e urbanizadas –, a presença da técnica impôe-se. Em ambas as
modalidades, o ser humano desenvolveu e tomou da natureza utensílios que
potencializaram, o processo de produção, envio e recepção das mensagens,
redimensionando, sobremaneira, a duração e a participação dos sujeitos envolvidos
nos processos comunicativos.
Assim, desde as paleolíticas representações pictóricas de animais e outras
figuras nas paredes das cavernas – quando por razões que até hoje se investiga,
nossos antepassados expressaram ali algumas idéias –, até o mundo que desfila na
tela de um computador, um quantum de técnica (ou de tecnologia) foi mobilizado
para capturar, organizar e apresentar o mundo aos homens e os homens ao mundo.
A técnica moderna, ou o que chamamos hoje de tecnologia, é produto da
radicalização dessa segunda natureza, da naturalização dos objetos
técnicos e da sua fusão com a natureza, da naturalização dos objetos
66
técnicos e de sua fusão como ciência. Não sabemos mais onde começam e
onde terminam a ciência e a técnica. Estamos aqui no coração da
modernidade. Aqui, a natureza e a vida social serão requisitadas como
objetos de intervenção tecno-científicos (LEMOS, 2002, p. 40).
O primeiro aspecto que se pretende destacar aqui é o entendimento da
técnica como sendo um elemento – da mesma forma que a linguagem – como
definidor da humanidade. Ou seja, a técnica, como destaca André Lemos, não é um
mero produto da humanidade mas é, também, produtora desta.
(...) o fenômeno técnico nasce com a aparição do homem, depois será
enquadrado pelo discurso filosófico e a noção de tekh(arte, os saberes
práticos) para, enfim, entrar no processo de cientificização com o
surgimento da tecnociência, ou o que chamamos hoje de tecnologia. Vamos
insistir nas diferenças entre a tecnocultura e a cibercultura. O surgimento da
cibercultura não é só fruto de um projeto técnico, mas de uma relação
estreita com a sociedade a cultura contemporâneas (LEMOS, 2002, p. 28).
Com objetivo de explicar o surgimento da cibercultura, Lemos (2002), enfatiza
que esta está estreitamente vinculado à sociedade na qual ela acontece.
A palavra técnica tem sua derivação etimológica no grego tekhnè que pode,
sob certo aspecto, ser traduzida por atividade prática e criativa (arte). A tekhnè grega
compreende desde a elaboração de leis, o trabalho do artesão, do médico, as artes
plásticas, literárias. Segundo Lemos (2002), a tekhnè, em sua origem, se define
como um conceito filosófico cujo objetivo é descrever o saber fazer humano em
contraposição ao princípio de geração das coisas naturais. Segundo o autor:
O conceito de tekhnè é, assim, fruto de uma primeira filosofia da técnica que
visa distinguir o fazer humano do fazer da natureza, este último autopoético,
guardando em si os mecanismos de sua autoreprodução. A tekhnè é a arte
que coloca o homem no centro do fazer poético, em confronto direto com as
coisas naturais. A tekhnè é uma poiésis no sentido de revelar todo o fazer
humano. Como mostra Steigler, “a dança é tekhnè, a cozinha é tekhnè
(LEMOS, 2002, p. 29).
Além da visão filosófica, o fenômeno técnico apresenta-se como uma
manifestação em nível zoológico da formação e da evolução dos primeiros humanos.
Ele vai mesmo caracterizar, juntamente com o surgimento de um pensamento
mágico-religioso, o surgimento do homo sapiens. A gênese do homem que somos
hoje enfatiza Lemos (2002) é tributária da gênese da técnica.
67
O homem é um ser técnico por definição. A perspectiva etnológica de André
Leroi-Gourhan propõe analisar a técnica como uma tendência universal e
determinante da evolução da espécie humana, inspirada na idéia de
evolução de Bergson. A técnica se situa, assim, como uma solução
zoológica da espécie humana na sua confrontação com a natureza. A
tecnicidade humana aparece como uma tendência universal e hegemônica,
sendo a primeira característica do fenômeno humano. A antropogênese
coincide com a tecnogênese, já que o homem não pode ser definido
antropologicamente sem a dimensão da tecnicidade (LEMOS, 2002, pp. 30-
1).
A formação do córtex cerebral, a evolução da técnica e o desenvolvimento da
linguagem encontram-se, segundo Lemos (2002) imbricadas na co-evolução
zoológica da espécie humana. Sob este aspecto, a definição da “essência da
natureza humana” se expressa através do processo de desnaturalização do homem.
Isto se dá em simbiose com a técnica e na sua formação da cultura com o
surgimento da linguagem.
Na modernidade, é toda a tecnicidade humana que se vê reduzida à pura
instrumentalidade da tecnociência, autônoma, racionalista e objetivista. Não é à toa
que esta mesma tecnologia vai ser rotulada de fria, artificial, oposta à toda e
qualquer forma de realização nobre do espírito humano (LEMOS, 2002, p. 39).
A partir do século XVII, a atividade técnica vai estar ligada ao conhecimento
científico. Este processo vai culminar no século XX, com os Centros de
Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) determinando a junção definitiva da
ciência com a técnica. Podemos dizer que a técnica pré-histórica é o
produto de uma experiência empírica do mundo, sem necessidade de
explicações científicas (as primeiras ferramentas, instrumentos e máquinas).
A técnica é o fazer transformador que prepara a natureza à formação da
espécie e da cultura humana. Ela é uma provocação da natureza gerando
um processo de naturalização dos objetos técnicos na construção de uma
segunda natureza povoada de matéria orgânica, de matéria inorgânica e de
matéria inorgânica organizada (objetos técnicos) (LEMOS, 2002, p. 40).
Com o advento da tecnologia moderna vai acontecer um progressivo avanço
da técnica sobre à natureza. De certa forma, a ação técnica mudou a natureza,
transformando-a em uma tecnosfera, acentua Lemos (2002), como também a
natureza do homem, associando o potencial inventivo humano ao potencial
destrutivo da técnica. A modernidade, assim, mostrou o lado perverso do
desenvolvimento tecnológico.
Este mesmo aspecto é enfatizado por Morin. Ele afirma que a tecnociência
restringiu a compreensão do que vem a ser máquina reduzindo-a a um instrumento
68
de produção. A ampliação substancial do conceito de máquina permite a Morin
definir o átomo, os homens, as estrelas como máquinas. Máquina é toda a instância
criadora; a linguagem é máquina, o estado é máquina. As máquinas caracterizam-se
por “interações, reações, transações, retroações geram as organizações
fundamentais que povoam nosso universo, átomos e estrelas” (MORIN, 2003, p.
197). São bilhões de seres, chama a atenção Morin, não junções de elementos fixos,
organizações em repouso; estão em atividade permanente.
A idéia de produção, tornada prisioneira de sua conotação tecnoeconômica,
se tornou contrária á idéia de criação. Ora, é preciso restituir ao termo
produção seu significado pleno e diverso. Produzir, que significa
fundamentalmente, como acabamos de lembrar, conduzir ao ser ou à
existência, pode significar alternativamente: causar, determinar, ser a fonte
de, engendrar, criar. O termo produção guarda em seu significado o caráter
genésico das interações criadoras. Assim, as estrelas e os seres vivos são
seres poiéticos (eu usarei o termo poiésis toda vez que darei uma
conotação criadora ao termo produção): eles produzem ser e existência a
partir de materiais brutos. A geração de um ser por um outro ser é a forma
biológica final da poesia (MORIN, 2003, p. 200).
Para se acessar o pensamento tecnológico de Edgar Morin é fundamental ter-
se em mente a noção de máquina apresentada pelo autor (a qual já se fez menção
anteriormente), isto é, dispositivos responsáveis pela criação/produção que elevam
as potencialidades de realização das tarefas, diferentemente da noção de máquina
que tende naturalmente reduzir ao modelo da racionalidade. As máquinas
automatizadas, funcionalizadas, purgada de todas as desordens constituem-se num
dos desdobramentos possíveis do processo de desenvolvimento industrial.
O que é uma máquina? Podemos e devemos considerar nossas máquinas
artificiais como instrumentos fabricados (pelo homem, pela sociedade) e
cumprindo operações mecânicas. Dissociamos geralmente esses dois
traços, remetendo a máquina-instrumento ao homo faber e à sociedade
industrial e a máquina-mecânica à pratica do engenheiro. O átomo é um
quase-turbilhão particular. Tudo é turbulência, fluxo, chamas, colisões no
sol. Tudo está em ação no sol. A terra gira, convulsiona-se, racha-se,
endurece, amolece, umecta-se, seca, os fundos marinhos viram montanhas
niveladas e se tornam fundos marinhos; a superfície é regada, irrigada por
águas correntes, cingidas de ventos ascendentes, descendentes,
turbulentos, e toda vida que se imobiliza sobre esta terra vira cadáver. (...).
Os sóis são maquinas formidáveis ao mesmo tempo precisas, motrizes e
criadoras. Eles produzem átomos pesados, quer dizer, organizações
complexas, e irradiações, ou seja, alimento da vida. Resumindo, tudo o que
no cosmos é ordem e organização, tudo o que ainda produz mais ordem e
organização tem por fonte um sol (MORIN, 2003, pp.197-98).
69
Edgar Morin apresenta uma imagem grandiosa da fabulosa máquina que é o
Sol; da diminuta estrela da via-láctea, onde num sistema planetário específico brotou
uma forma de vida com inteligência e consciência. E que imagem é esta?
Ora, não se pode esquecer: esta máquina de fogo está em chamas. O sol
está pegando fogo. Nosso sol não ilumina como uma lâmpada. Ele cospe o
fogo, ele expele o fogo em uma autoconsumição insensata, em uma
despesa louca que não havia previsto nenhum traço de economia cósmica.
Seu núcleo é caos puro. É uma bomba de hidrogênio permanente, é um
reator nuclear em fúria. Criado em catástrofe, ascendendo-se na
temperatura de sua própria destruição, ele vive em catástrofe, já que a sua
regulagem é feita do antagonismo de uma retroação explosiva e de uma
retroação implosiva. Ele vai mais cedo ou mais tarde, rumo a uma dessas
duas: destruição ou à hiperconcentração ou ao último feixe de fogo da nova
ou supernova. Assim, os bilhões de bilhões de sóis são, ao mesmo tempo, a
ordem suprema, a organização física admirável e o caos vulcânico de nosso
cosmos (MORIN, 2003, p. 83).
O conceito de máquina para Morin é um conceito genérico, ele permite
conceber os diversos tipos de organizações ativas “as máquinas biológicas e sociais,
das máquinas espontâneas às máquinas programadas, das máquinas poiéticas às
máquinas de copiar, dos seres máquinas existenciais às máquinas somente
funcionais” (MORIN, 2003, p. 217).
A idéia de circuito não significa apenas reforço retroativo do processo sobre
si mesmo. Ela significa que o fim do processo alimenta o início: o estado
final se tornando de alguma forma o estado inicial, mesmo permanecendo
inicial. É dizer que o circuito é o processo em que os produtos e os efeitos
finais se tornam elementos e características primordiais. Isto é um processo
recursivo: todo processo cujos estados ou efeitos finais produzem os
estados iniciais ou as causas iniciais (MORIN, 2003, p. 231).
Morin, aqui, apresenta uma solução piagetiana, segue os passos do
pesquisador de Genebra, quando este deriva a gênese da capacidade cognitiva da
criança de suas primeiras ações exploratórias, e que evoluem – no contato com o
real -, até se tornarem intencionais, constituindo-se assim em uma forma primária de
conceituação.
Em Piaget, na organização cognitiva, e em Morin, na geração das
organizações, a ação criou organização, que cria ação. Isso significa que interações,
transformações, gerações se dão na organização, pela organização e constituem
esta organização. Os processos selvagens de gênese se transformam em processos
organizacionais de produção. Dizer que uma organização é ativa, é dizer que ela
70
gera ações e/ou que ela é gerada por ações. Conseqüentemente, é dizer muito
mais, afirma Morin:
Diferentemente das ações selvagens, que efetuam ao acaso encontros
entre processos separados, as ações de um ser-máquina, mesmo quando
comportam um caráter aleatório, são produzidos em função de propriedades
organizacionais. A fim de distinguir as ações/transformações/produções que se
efetuam em, por e para uma organização das ações/transformações/produções que
se efetuam somente em encontros ao acaso (o que, eu repito, não exclui de
forma alguma por princípio o caráter aleatório das ações no interior de uma
organização), chamo de competência a aptidão organizacional para
condicionar ou determinar uma certa diversidade de
ações/transformações/produções, e eu chamo de práxis o conjunto de
atividades que efetuam transformações, produções, performances a partir
de uma competência (MORIN, 2003, p. 199).
O mais importante destes processos de transformações é que eles originam
novas formas de organização. Assim, uma maquina pode produzir organizado e
organizante a partir do não organizado, e melhor organizado a partir do menos
organizado (MORIN, 2003, p. 201). Desta forma, a transformação vai aparecer como
fabricação mas, também, como criação. Ainda é preciso notar que a idéia de criação
está longe de ser contrária à de produção; enfatiza Morin (2003, p. 201) que “toda
produção não é necessariamente criação, mas toda criação é necessariamente
produção”. Chama a atenção o autor para o fato de que organizações produtivas ou
máquinas podem produzir não apenas outras organizações, mas organizações
produtivas.
Assim como o conceito de produção, hoje mecanizado e industrializado, o
conceito de máquina é pesadamente onerado por suas restrições e seus
pesos tecnoeconômicos. Ele denota somente, na sua acepção corrente, a
máquina artificial e conota seu ambiente industrial. Sendo assim, para bem
conceber a máquina como conceito de base, precisa nos desipnotizar das
máquinas que povoam a civilização da qual estamos imersos. Não é preciso
ser prisioneiro dessas imagens que surgem em nós: eixos, balanças, barras,
bielas, botões, botaréus, cames, cardas, blindagens, correntes, carrinhos,
chapeletas, correias, cremalheiras, culatras, cilindros, embreagens, hélices,
alavancas, manivelas, pinhões, pistões, molas, torneiras, engrenagens,
válvulas, munhões, triângulos, alcaravizes, válvulas, volantes (MORIN,
2003, p. 203).
A produção, ao contrário, pode ser sentida na sua dimensão poiêutica,
dimensão esta em que a produção é criação, é prática e poesia. Não é preciso
apagar a possibilidade de criação na idéia de produção. Pensemos que a idéia de
produção ultrapassa em muito seu sentido tecnoeconômico dominante, que ela
71
também pode significar: dar existência, ser fonte de, compor, formar, procriar, criar.
Na máquina, não há somente o maquinal (repetitivo), há também o maquinante
(inventivo).
Ela nos leva ao coração das estrelas, dos seres vivos, das sociedades
humanas. É um conceito solar; é um conceito de vida. As idéias-chave de
trabalho, práxis, produção, transformação, atravessam a physis, a biologia e
vêm fermentar no coração das nossas sociedades contemporâneas.
(MORIN, 2003, p. 203).
Em nosso sistema é o Sol, sem dúvida, a nossa grande e fundamental
máquina que produz há bilhões de anos a existência e momentânea estabilidade do
sistema. Mais do que isto, as estrelas – e o Sol, particularmente para nós –, são
máquinas antigas produzindo maravilhas, inclusive à maravilha humana que a
descobriu e a contempla.
Os sóis são então seres plenamente físicos e organizadores. Eles são
dotados de propriedades ao mesmo tempo ordenadoras, produtoras
fabricativas, criadoras. Eles são muito mais do que os centros de uma
máquina precisa constituída de planetas. São, ao mesmo tempo, o mais
arcaico dos motores, a mais arcaica das máquinas, o mais arcaico dos
sistemas reguladores (MORIN, 2003, p. 204).
E são estes astros a quem Morin chama de motores selvagens – turbilhões e
redemoinhos a partir do qual se desenvolveram as primeiras máquinas motrizes
antropossociais: o moinho de vento e a azenha. Domesticado e dominado, o
turbilhão/redemoinho tornou-se motor.
A brutal ampliação da noção de máquina produzida pela revolução morineana
alcança também os seres vivos e, dentre estes, o ser humano. Somos máquina,
afirma a máquina Edgar Morin, cabe-nos maquinar para saber que tipo de máquina
somos.
A idéia de máquina viva não é nova. A teoria dos animais-máquinas foi
formulada por Descartes, e o materialismo de um La Mettrie generalizou-a
ao homem. Mas esta idéia de máquina era mecânica e precisa. Hoje
devemos conceber a máquina não como mecanismo, mas como práxis,
produção e poiésis. Nesse sentido, os seres vivos são existentes
autopoiéticos (MATURANA, VARELA, 1972), formulação pela qual a vida
não se reduz à idéia de máquina, mas comporta a idéia de máquina, em seu
sentido mais forte e mais rico: organização ao mesmo tempo produtora,
reprodutora, auto-reprodutora (MORIN, 2003, p. 208).
72
A diversidade é o ingrediente e o produto de toda organização viva. A vida
celular nasceu de encontros entre entidades moleculares extremamente diversas, e
o desenvolvimento da organização celular aumentou esta diversidade
desenvolvendo diferenciações e especializações das moléculas e dos organismos. O
desenvolvimento dos organismos policelulares é inseparável da
diversificação/diferenciação/especialização das células e dos órgãos que formam
estes organismos (assim temos 200 tipos celulares nos nossos organismos
humanos) (MORIN, 2003, p. 343).
O computador e o cérebro são duas máquinas, mas uma é produzida,
fabricada, organizada pela mente humana, saída de uma máquina cerebral
inerente a um ser dotado de sensibilidade, de afetividade e de
autoconsciência. Nenhum espírito emerge do computador, mesmo numa
cultura; já o cérebro tem capacidade, pela mente, de reconhecer-se como
máquina e mesmo de saber que é mais do que uma máquina.
O cérebro é uma máquina bio-químico-elétrica. Ao contrário do computador,
a mente/cérebro trabalha num jogo combinando precisão e imprecisão,
incerteza e rigor, e cruza rememoração, computação, cogitação. Como é
extraordinariamente complexo, o espírito/cérebro trabalha com, por e contra
o ruído, o que acarreta riscos enormes de erros, de ilusões, de loucura, mas
também chances prodigiosas de invenção e de criação (MORIN, 2002, p.
98).
A lógica do vivo difere-se, relativamente, da lógica formal, apresentando-se
como infra, extra, supra ou metalógico. A lógica do vivo ultrapassa à lógica formal e,
os fracassos desta lógica traem a riqueza e não a carência da organização viva. O
vago, a eventualidade, a incerteza, a contradição que se infiltram nas nossas
proposições exprimem não a fraqueza, mas a excelência da auto-eco-re-
organização (MORIN, 2003).
Abrir a antropologia para a vida é abri-la também para as nossas vidas. As
ciências do homem retiraram toda a significação biológica a estes termos: ser,
jovem, velho, mulher, homem, nascer, existir, morrer, ter pais, uma família. Estas
palavras remetem para categorias socioculturais que variam no tempo e no espaço.
As idéias de jovem, velho, homem, mulher, família, pais, nascimento, morte só têm
sentido vivo; só readquirem o sentido biológico quando as concebemos na nossa
vida privada, isto é, subjetivamente. Mas a ciência que remete a vida para o privado
é uma ciência privada de vida, efetivamente, esta ciência não sabe, não pode dar
lugar à solidão, à comunhão, à amizade, ao ódio, ao amor, à piedade, à gargalhada,
73
ao soluço, ao berro, ao arquejo, ao êxtase, a antropologia para deixar entrar a vida.
(MORIN, 2003).
3 A COSMO-ECO-SOCIO-ANTROPO-PSICO- BIOGRAFIA DE EDGAR MORIN
3.1 NO INÍCIO: SOBRE IMPROVÁVEIS EVENTOS
Há aproximadamente quinze bilhões de anos uma grande explosão deu
origem ao universo, evento que propiciou o surgimento de galáxias, estrelas,
planetas, satélites etc. A Via Láctea, galáxia em que habitamos, pode contar com 9
bilhões de anos, enquanto os sistemas estelares, com seus planetas e luas etc.
formaram-se entre 7 e 5 bilhões de anos; o sol e a terra surgiram neste período
aproximadamente. O tempo que se acredita existir vida na terra é de quatro bilhões
de anos antes do presente, o registro do surgimento da vida, um evento singular e
definitivo para a humanidade, um episódio banal na marcha do universo.
Lidar com milhões e bilhões de anos escapam de nossa experiência
cotidiana, nossa capacidade de mensuração. Nosso quantum de tempo de vida na
terra – aproximadamente 75 anos – torna quase impossível dimensionar que séries
de eventos podem se desenvolver e se suceder em milhões, em bilhões de anos.
Até mesmo as noções de século e de milênio com a quais lidamos nos estudos de
história, são de difícil abstração. Darwin em sua clássica obra, ORIGEM DAS ESPÉCIES,
ao conceber a teoria da evolução das espécies, observou que uma das maiores
dificuldades dos homens de seu tempo em entender suas idéias, mesmo os mais
letrados, é que estes tinham muita dificuldade de abstrair que tipo de fenômenos
podiam desenvolver-se em milhões de anos.
Mas a causa principal da nossa repugnância natural em admitir que uma
espécie deu origem a outra espécie distinta é o estarmos sempre pouco
dispostos a admitir uma grande alteração sem vermos os graus
intermediários. A dificuldade é a mesma que a que tantos geólogos
experimentaram quando Lyell demonstrou que as longas linhas de declive
interiores, assim como a escavação dos grandes vales, são o resultado de
influências que vemos ainda agir em torno de nós. O espírito não pode
conceber toda a significação deste termo: um milhão de anos, nem saberia,
demais, adicionar nem perceber os efeitos completos de muitas variações
ligeiras, acumuladas durante um número quase infinito de gerações
(DARWIN, 2003, p. 546).
Esta dificuldade de apreensão do tempo em escalas geológicas e cósmicas
levou o astrônomo Carl Sagan a propôr oque ele chamou de calendário cósmico.
75
Nele, o astrônomo imaginou como seria se comprimíssemos toda a história do
universo em um ano, o que permitiria, indiretamente, intuir o significado de medidas
de tempo de milhões e bilhões de anos.
Desta forma, a Grande Explosão que deu origem ao universo – espaço e o
próprio tempo – fenômeno chamado de Big Bang, teria ocorrido no primeiro segundo
do dia 01 de janeiro do ano cósmico, e o dia 31 de dezembro seria hoje, o último
instante, quando ocorre a leitura deste texto. O recurso à esta medida de tempo – do
ano cósmico – se deu por Sagan reconhecer que o ano (espaço e 365 dias) ser uma
das principais medidas de tempo utilizada por nós humanos. Por este calendário,
cada mês corresponderia a aproximadamente 1 bilhão e 250 milhões de anos. Cada
dia corresponderia a 40 milhões de anos, cada segundo 500 anos.
Impulsionados por esta escala, pode-se afirmar que, se o big bang
corresponde ao primeiro segundo do mês de janeiro do ano cósmico, as galáxias
(conjunto de estrelas próximas submetidas a uma mesma força gravitacional) se
formaram só no mês de maio, isto é, por volta de nove bilhões de anos. Os sistemas
planetários teriam aparecido em julho, sendo que o sol e a terra formam-se na
metade de setembro, cerca de 4,5 bilhões de anos. Pouco antes do fim de setembro,
a vida teria surgido neste planeta. Entre as espécies ainda vivas na terra, o homem
foi um dos últimos a chegar, teria aparecido no dia 31 de dezembro as 22h 30mim. A
conquista do fogo teria se dado às 22h 44min; as 23h 59min e 20seg, do derradeiro
dia do ano cósmico surge a agricultura e criação de animais, bem como o talento
humano para produzir ferramentas. Às 23h 59min e 35seg as aldeias neolíticas
evoluem e passam a formar as primeiras cidades. Prosseguindo nesta seqüência, a
totalidade da História escrita da humanidade ocupa os últimos segundos, do último
minuto, da última hora de 31 de dezembro do ano cósmico. Por fim, afirma Sagan:
Toda a pessoa de que já ouvimos falar viveu em algum ponto aqui. Todos
aqueles reis, batalhas, migrações, invenções, guerras; tudo o que há nos
livros de História aconteceu aqui, nos últimos dez segundos do calendário
cósmico. Nós da Terra, acabamos de acordar para o grande oceano do
espaço e do tempo de onde emergimos. Somos o legado de 15 bilhões de
anos de evolução cósmica (SAGAN, 2005).
Apesar de haver imperfeições no modelo apresentado por Sagan, ele tem o
mérito de permitir uma determinada relativização da noção dos tempos cósmico e
geológicos; pode, precariamente, situar os homens na imensidão do quase infinito e
76
da quase eternidade. A humanidade ocupa, sob calendário cósmico, poucos minutos
desta longa odisséia, do cosmos, do planeta, da vida do homem e de sua mente.
Mas os dois capítulos finais desta história são o que nos diz mais respeito;
eles se referem à criação da vida e, mais especificamente a uma forma de vida que
se tornou inteligente, consciente, curiosa e semiótica: a vida humana. Sua
capacidade de produzir ciência e tentar explicar a vida, a natureza e o próprio
cosmos.
Todo ser vivo, conforme mostra a biologia, são feitos de moléculas orgânicas
e estas moléculas se formaram a partir de um material orgânico presentes no
espaço interestelar. Substância formada basicamente a partir dos átomos de
carbono encontrou na terra condições favoráveis para a inauguração e
desenvolvimento da vida, das mais variadas formas de vida.
A vida no planeta teria surgido só em setembro no calendário cósmico, numa
Terra ainda muito primitiva com sua crosta recém resfriada. Resultado de complexas
relações bio-químicas a vida se expandiu e adquiriu as formas mais complexas. A
forma humana, evoluída de primatas, provavelmente dos confins da África, é a única
a produzir um conhecimento sobre si e sobre as demais. E foi por “saber” e,
também, por “não saber” muitas coisas, que a espécie humana se espalhou pelo
planeta criando inicialmente aldeias, depois cidades, impérios, reinos e mais
recentemente estados. Produziu religiões, filosofias, artes, ciências e,
principalmente, formas de vida e formas de perpetuar a vida. Formas de contar a
vida como esta narrativa acadêmica que aqui se realiza.
Não importa aqui se as coisas ocorreram mesmo desta forma como foi
narrada, esta é apenas mais uma forma de contar e explicar um mundo de onde
vieram os seres humanos e que alguns destes adotaram como verdadeira; sendo
que outros, no entanto, jamais deram ouvidos e estas. Os seres humanos, prodígios
em tantas habilidades, destacam-se, sobretudo, em inventar histórias, contá-las e,
principalmente, acreditar nestas histórias.
E no último segundo, da última hora, de 31 de dezembro do ano do calendário
cósmico, nasceu em 1921, na França, Edgar Nahoun que se fez sociólogo e filósofo
e tornou-se Edgar Morin; ele propõe uma outra forma de contar esta história.
Frações de segundos após, em 1958, nasce em Porto Alegre no paralelo 30 ao sul
do equador, por uma conjunção de fatores insignificantes Celso Dias, autor deste
77
projeto; algumas frações de segundo (47 anos) mais tarde os caminhos se cruzam: o
conjunto de seis obras de Morin, que compõem O Método, é tomado como corpus
da pesquisa de uma tese: desta tese de doutoramento. Assim, poder refletir sob
alguns temas da epistemologia da comunicação iluminado pelas contribuições de
Morin é o que justifica as referências sobre o mesmo a partir daqui.
3.2 A COSMO-ECO-SOCIO-ANTROPO-PSICO-BIOGRAFIA DE EDGAR MORIN
Ao se tentar explicar o sentido da produção intelectual de um autor a partir de
sua biografia pode-se cometer simplificações grosseiras, mas ignorar a trajetória
pessoal, em determinados casos, pode se transformar numa falha bastante grave.
Quando se trata de Edgar Morin, apresentar obra ignorando o contexto histórico e
pessoal elimina-se uma peça importante do quebra-cabeça complexo que é a vida e
obra do autor. Na realidade, a vida e a obra de Morin, fazendo uma analogia com
seu próprio pensamento, funciona como dois sistemas em constantes retroações.
O caso de Edgar Morin possui uma peculiaridade: além dos seus ‘interpretes’,
os que se fizeram seus leitores, estudiosos e biógrafos, o próprio autor – em VIDAL E
OS SEUS
e em MEUS DEMÔNIOS, por exemplo –, se encarrega de fazer estas relações
biobliográficas.
Edgar Nahoun nasceu em 1921, no oitavo dia do mês de julho em Paris. Filho
único de um casal de judeus sefarditas – descendentes de judeus expulsos da
península ibérica no final do século XV. Filho de Vidal Nahum, nascido 1894 em
Salônica, cidade grega, na época sob domínio otomano, e posteriormente
naturalizado francês. Sua mãe Luna Beressi se constitui num capítulo a parte de sua
existência. A imagem de sua mãe constrói-se para ele da fusão das lembranças
imprimidas em sua mente até os dez anos de idade, quando esta morre. Ajudaram
ainda compor o “desenho” de Luna, os traços desenhados pelo Pai e pela tia (irmã
da mãe, que casa com seu Pai) que assume sua educação. Sobre a presença de
aspectos biográficos em seus estudos, o estudioso da obra de Morin, Heinz
Weimann, assim manifesta:
78
Longe de serem independentes, a autobiografia subjectiva e os estudos
sociológicos, antropológicos, objectivos encontram-se na interface entre a
vida e obra de Edgar Morin. Mostrando, assim, a unidade complexa, unitas
multiplex, entre a subjectividade da autobiografia e a objectividade dos
ensaios e dos estudos, entre o vivo do sujeito e o vivo do objecto,
explicando como essa subjectividade se infiltra na objectividade, uniremos o
sujeito e o objecto de Edgar Morin na unidade da sua vida e da sua obra. A
relação parasitária entre a águia e o Prometeu gideano é um modelo da
intricação complexão da obra e da vida de Edgar Morin (WEIMANN apud,
BIANCHI, 2001, p. 43).
No mito de fundação da personagem Edgar Morin, a impossibilidade do seu
nascimento, uma doença colocava em risco a vida de sua mãe se esta
engravidasse, era um dado impeditivo de sua sobrevivência, mas um improvável
evento permitiu que tanto ele quanto a mãe sobrevivessem. O risco de morte que a
mãe corria pela gravidez que conduziu ao seu nascimento, foi uma memória que o
fustigou incessantemente, quando tornada consciente. Sua mãe tinha um grave
problema no coração, o que a impedia de ter filhos. Luna que escondera a gravidez
do marido e Edgar nasceu em difíceis condições, estrangulado pelo cordão
umbilical, tendo sido preciso muito esforço do médico para que conseguissem
arrancar-lhe o primeiro choro.
Ainda decorrente dos problemas de saúde que a impediam de engravidar,
morre, Luna Nahum, quando Edgar tinha apenas dez anos. Este fato, independente
do que se pode depreender dele na sua obra de Morin, é extremamente valorizado
pelo autor quando reflete sobre sua vida. Ficando aos cuidados do Pai e de uma tia,
Corina (com quem posteriormente o Pai se casará) ele vai cada vez mais se afastar
do mundo e mergulhar na literatura e, mais tarde no cinema, como uma forma de
fugir ao compromisso de participar das relações familiares.
Impõe-se, agora, que eu tente compreender a minha compreensão geral
que me reexamine para concluir a origem do meditador. Eu nasci morto. A
minha mãe tinha uma lesão no coração e qualquer gravidez corria o risco de
lhe ser fatal. Assim que se viu grávida, ela ingurgitou clandestinamente
produtos abortivos aos quais eu resisti [...]. nasci sentado, estrangulado pelo
cordão umbilical, sem respiração. Foi precisa meia hora para que o doutor
S., que me segurava pelos pés e me esbofeteava com toda força me
arrancasse, o primeiro grito (MORIN apud BIANCHI, 2001, p. 21).
A verdade sobre a perda da mãe não é colocada claramente ao menino
gerando-lhe uma vaga esperança de retorno. Bianchi conta como foi o dia da morte
79
da mãe, quando apenas com o silêncio dos adultos, do pai especificamente, fez ele
compreender que havia tido a maior perda de sua vida.
Mais adiante, é a place Martin-Nadaud e suas encostas nervosas onde
brincava a criança, nesse dia de Junho, enquanto a mãe era enterrada ali
ao lado, por detrás do muro do Pére Lachaise que os arbustos escondem.
A criada levara-o a brincar ali; quando viu surgir repentinamente dois
sapatos e as calças pretas do pai, compreendeu tudo num relâmpago de
catástrofe interior, enquanto que o pai, quanto a ele, nada lhe dizia, a não
ser a interdição de brincar no relvado: «Não fiques aí a brincar na relva.» e a
criança resmunga, rabugenta, atravessada por essa verdade que lhe é
roubada e, por sua vez, porque ninguém lhe falou, recusará durante anos
falar desse luto impossível de que lhe é impedido socorrer-se. Nas semanas
que seguiram, a tia Corine, a irmã da morta, será encarregada de lhe dizer
que, por vezes, há pais que desaparecem no céu, quando os filhos lhes
causam penas. Alguns voltam, outros não. Mesmo na escola, ele nada diz,
mas procura ainda hoje em vão, no fundo de si mesmo, a voz da mãe, de
que se recordam com tudo aqueles que a reconheceram (BIANCHI, 2001, p.
18).
Estes episódios são narrados por Edgar Morin em VIDAL ET LES SIENS e
analisados Heinz Weinmam, que enfatiza o processo de mitificação interior da mãe
que se operou na criança, e que o acompanha pelo resto da vida e vai estar
presente de algum modo na atividade intelectual. Um último aspecto, que de certa
forma, dá os contornos trágicos, no seu sentido forte da palavra, como os gregos
vivenciavam, é o fato do pai, ao sair do sepultamento e ver o filho brincando na
praça, diante do cemitério. Vidal, não sabendo que o filho não havia sido avisado da
morte da mãe, desgosta-se ao vê-lo indiferente ao acontecido. O menino, ao mesmo
tempo, reprime as lágrimas talvez uma forma de se contrapor ao silêncio sobre a
morte da mãe.
A partir disto esconde seus soluços e aprofunda cada vez mais sua solidão. A
literatura e o cinema, como já foi dito, passarão a constituir-se a partir daí, suas mais
freqüentes companhias.
O meu amor pela leitura veio desde os primeiros anos, em que tinha
devorado a condessa de Ségur, a coleção Nelson, os romances em que os
heróis são animais, como Michael chien de cirque ou Corc Blanc. A minha
paixão pela leitura exarcebou-se depois da morte da minha mãe e eu
mergulhava no imenso universo romanesco. “Eu lia romances quase
initerruptamnete, em casa à mesa durante as refeições, na cama, no metrô,
protegendo-os com um porta-canetas ou escondendo-os nos joelhos
(MORIN apud BIANCHI, 2001, p. 46).
80
A ausência da mãe e a presença da tia – que Morin via como querendo tomar
o lugar daquela (Luna) – ao lado do seu pai, compunham a não-família de Morin.
Mesmo morta, o desejo da mãe de vê-lo como um homem das letras, se impôs ao
desejo do pai que não conseguiu conduzir o filho para atividade comercial. Vidal não
conseguiu realizar o sonho de colocar diante do seu negócio a placa Nahum e filho.
Os anos de escola serão importantes para Morin tomar consciência de que
era diferente dos outros, para alimentar a consciência de si mesmo. A
indeterminação de sua condição levou a afastar-se de todos: “eu não tenho cultura”,
afirmava. A cultura salienta ele no sentido etno-sociológico do termo. Foi na escola
que, judeu, fez-se Francês para depois Nahum fazer-se Morin.
Nos bancos da escola, enraízo-me à história de França e incorporo-me a
Vercingétorix, Joana d’arc, Bouvines e, à Revolução e a Napoleão. Le
Chant du départ e Le revê passe, mas então, enquanto por um lado recuso
deixar-me integrar numa família, recusam-me a hóstia da integração na
família nacional. Para os outros, eu sou o dissemelhante, o judeu. Não
rejeitado, mas subtilmente mantido a margem do ponto ontológico da
identidade comum. Descubro a minha diferença, sem conseguir, durante
muito tempo, compreendê-la, concebê-la e desde logo sou marginal, isto é,
com um pé aqui e outro lá, neomarrano, isto é, filho dum sincretismo cultural
entre o mundo judeu e o mundo gentil, mas um tanto estranho a um e a
outro (MORIN apud BIANCHI, 2001, p. 27).
A década de 1940 – dos 19 aos 29 anos de Morin – é vital para a formação
política e intelectual do autor. O mundo vive a Guerra e o pós-guerra; o Nazismo tem
seu ápice e declínio; a França é invadida pelos nazistas e uma articulação de
políticos e de intelectuais constituem a oposição à ocupação e Morin participa desta
“resistência” ativamente. Estes fatos vão contribuir decisivamente a adesão de Morin
ao marxismo e, também, ao Partido Comunista Francês. Tanto a adesão teórica
quanto a militância no PC francês ocuparam poucos anos de sua vida; entendeu
com o tempo que ambas acabavam constituindo-se em limitadores da liberdade e do
diálogo necessários.
Morin mostra sua discordância e a dificuldade de adesão incondicional ao
pensamento e a pratica de esquerda, pois a idéia de classe trabalhadora era
destituído de subjetividade, de afetividade, de amor, de loucura, de poesia. Era
essencialmente um homo faber e economicus. Sobre este aspecto, Carvalho (2004)
assim se refere:
81
Sua adesão ao ideário contido na utopia revolucionária era nessa época
irreversível, mesmo que depois a auto crítica ao realismo socialista e,
principalmente ao Stalinismo seja contundente. Nos Manuscritos
econômicos-filosóficos, fonte de inspiração de sua antropologia geral, soube
extrair a universalidade da condição humana, assim, como as bases
cosntitutivas do homem genérico, que não separa a natureza da cultura
(CARVALHO, 2004, p. 14).
Nas palavras do próprio Edgar Morin, a crítica à dialética marxista faz-se a
partir da ênfase na noção de superação.
(...) a síntese dialética, certamente, um momento privilegiado, mas de modo
algum merece ser inflada como um balão. Muito mais do que síntese, o
termo essencial e fecundo da dialética é a superação. Principalmente
porque as contradições humanas essenciais nunca encontram sua síntese,
mas são, podem ser, cotidianamente superadas, sem todavia se suprimirem
(MORIN, 2004, p. 29).
Apesar de “superar” o marxismo, Morin não descarta Marx, ele o coloca
juntamente aos grandes pensadores da nossa cultura. O autor de O Capital, deixa o
trono das ciências humanas para se tornar mais um cidadão-autor nas assembléias
do conhecimento.
Do final da década de quarenta do século XX até nossos dias a incessante
produção intelectual de Edgar Morin acumula dezenas de obras que se estendem
por vários campos do conhecimento: a antroposociologia fundamental, a cultura de
massa, a política, a educação e o ciclo de O Método. Com o objetivo de estabelecer
alguma ordem nesta vasta produção, na medida em que o pensamento e obra de
Edgar Morin já se prolongam por quase cinco décadas – estando ainda inacabada –
procura-se, a seguir, fazer um apanhado dos principais temas e conceitos discutidos
até então. Os estudiosos da obra de Edgar Morin têm, para efeito de analise,
dividido-a em diferentes momentos, de acordo com diferentes critérios. De acordo
com os interesses desta pesquisa, a produção morineana é dividida em três
momentos, que obedece, também, a um critério cronológico: 1) as obras que
antecederam a O Método (1946-1977), 2) a saga do Método (1977-2004) e 3) obras
pós-método, escritas após o início de O Método, mas sem fazer parte deste. Antes
de se dedicar especificamente a apresentação do conjunto de obras que formam O
Método, é importante detalhar alguns aspectos das obras situadas nos anos 50 e 60
e parte dos 70, pois é só em 1977 que é publicado o primeiro volume de O Método:
a natureza da natureza.
82
3.3 ANTROPOLOGIA FUNDAMENTAL, CULTURA DE MASSA E COMUNICAÇÃO
Desde a publicação de L’AN ZÉRO DE L’ALLEMAGNE, que se constituía numa
reportagem antroposociológica do pós-guerra, uma etnografia de destruição, em
1946, até a primeira edição de O MÉTODO 1, em 1977 Edgar Morin publicou uma
série de obras em que predominam análises de cunho socio-antropológico, as
análises relativas à cultura de massa, sobretudo sobre o cinema.
A experiência da Morte – de sua quase morte ao nascer – e da perda precoce
da mãe aos nove anos impulsionou-o certamente na concepção de L'HOMME ET LA
MORT
, 1951, obra típica do que Morin denominava de antropología fundamental,
partindo de categorías marxistas e freudianas, autores fundamentais mas que Morin
entendia ser insuficientes para a formulação da sua antropología. Segundo
Bianchi:
L’Homme et la Mort constitui o acto fundador que abre o caminho do escritor
e do investigador. É a obra que transcende em criação a experiência
dolorosa dos lutos e da ação, cuja vertente romanesca seria L’année a
perdu son printemps. Edgar Morin faz aí a sua escolha. A partir daqui, ele
não será mais romancista, ainda que permaneça um criador para quem o
ato de escrever só se refere a si mesmo, o gênero que ele escolherá mais
naturalmente nesta ordem da escrita será o diário, que baliza toda a sua
vida. Ele aspirava a tornar-se um erudito, um marxista, ele será
investigador, simultaneamente tomado pelas eternas questões: o que é o
homem?, Quem somos nós?, De onde viemos?, Para onde vamos?, o
abandono do marxismo não, como o receou, o fim do mundo, é a conquista
de uma liberdade intelectual nova que lhe vai permitir elaborar o seu objecto
de estudo, o seu método, sem nada negar do caminho vivido, mas
repensando-o num quadro antropológico mais vasto, onde o marxismo não
constituirá mais do que capitulo de uma interrogação sobre á vida das
idéias, dos mitos, das religiões, das ideologias (BIANCHI, 2001, p. 319).
Em O CINEMA E O HOMEM IMAGINÁRIO (1956) As Estrelas (1957), Morin explora
alguns aspectos da sedução das estrelas de Hollywood, que ele eleva a categoria de
mitos da modernidade. Esta temática está presente em outras análises importantes
L'ESPRIT DU TEMPS, 1962 V.1 NEUROSE, L'ESPRIT DU TEMPS, 1975 V.1 NECROSE.
83
Morin define inicialmente o que ele está tratando quando se refere à cultura
de massa. Para o autor, esta se caracteriza por produções veiculadas em larga
escala pelos meios de comunicação de massa, sobretudo os audiovisuais. Ela
constitui um corpo complexo de normas, símbolos, mitos e imagens que penetram o
indivíduo em sua intimidade, estruturam os instintos, orientam as emoções. Tal
operação efetua-se a partir de trocas mentais de projeção e identificação,
consubstanciado nos símbolos, mitos e imagens da cultura como nas
personalidades míticas ou reais que encarnam os valores (os ancestrais, os heróis,
os deuses).
Morin vai centrar nos conceitos de identificação e projeção, do campo
semântico da psicanálise, e não mais em alienação, por exemplo, oriundo de sua
antiga crença no marxismo que era o seu viés teórico. No entanto, o homem de
Edgar Morin, já naquele momento não se reduzia ao trabalhador, ao membro da
classe, ao explorado. A dialética humana da projeção-identificação permite, por um
lado, o acesso ao imaginário através dos mitos e dos "modelos" e, por outro lado,
um sistema projetivo. Nestas projeções, há identificação na medida em que o
receptor libera, através do "herói" ou do "modelo", as virtualidades psíquicas e
identifica-se com esses personagens, quando se sente como a vivenciar as
experiências que não fazem parte da sua realidade.
Quando declarei, por volta de 1960, que gostava de western, diante de um
areópago de intelectuais de esquerda, em Florença, Lucien Goldmann,
indignado, tomou a tribuna para explicar que western era a pior das
mistificações capitalistas destinada a adormecer a consciência
revolucionária da classe trabalhadora, suscitando com estas lúcidas
palavras uma torrente de aplausos. Bons tempos?
Foi a partir de minha experiência que me fascinei pelo fato de Chaplin ou
Piaf poderem ser amados por pessoas de todas as classes sociais e de
todas as nações, coisa inconcebível para o sociólogo que quer demonstrar
que os gostos musicais, literários, etc. são conseqüências exclusivas de
categorias sociais, classes e aspectos exteriores.
17
Morin constrói uma antropologia na qual o homem e o mundo estão
intimamente co-implicados e fundamentados na natureza caótica do mundo e na
natureza «histérica» do homem. Ele denomina sua reflexão de antropocosmologia,
ou ainda, de antropologia fundamental. A construção desta disciplina tem em
influencias de Marx de Freud: o primeiro descrevendo e explicando os estádios
84
históricos estruturados, enquanto o segundo, pai da psicanálise, tem a contribuição
na elucidação dos estádios afetivos e em terceiro de Jean Piaget com a idéia da
antropogenética.
3.4 A PERDA DE UM PARADIGMA
Ao empreender uma análise de sua obra em sintonia, evidentemente, com
sua trajetória de vida, Edgar Morin se refere a três rupturas primordiais em seu
pensamento, os quais ele denomina de reorganizações genéticas. Tal noção não
possui nenhuma referência às revoluções da biologia que o autor testemunhou na
Califórnia no final da década de sessenta, Morin usa aqui o termo genética da
mesma forma que Jean Piaget, pensador suíço, onipresente em seu pensamento,
quando se refere à Epistemologia Genética.
Para se contrapor às epistemologias empiristas e as racionalistas/idealistas
Piaget desenvolve pesquisas no sentido de mostrar, a partir de uma inspiração
kantiana, que a inteligência humana tem uma gênese ontológica e vai se construindo
apartir de assimilações e reorganizações. Assim as Reorganizações Genéticas de
Morin são momentos decisivos em que este autor experimentou alterações drásticas
na sua forma de pensar de perceber e de reconstruir teóricamente o mundo.
A primeira reorganização genètica de Edgar Morin teria acontecido, segundo
ele, em 1941 quando aderiu ao pensamento marxista, encantado com a dialética
hegeliana, a expressão filosófica de um aprendizado que o mundo lhe mostrara: que
o avanço, o progresso e as mudanças acontecem pela conflito entre os opostos e
com o nascimento de uma síntese que compreenderia o essencial de ambos. Além
da dialética, a utopia revolucionária do marxismo também o cativara. Tal encanto foi
no entanto se dissipando com o socialismo real do Stalinismo e com o
engessamento das discussões no PC francês; a realidade ou aspectos essenciais
da teoria estavam equivocados, Morin começa a perceber que o marxismo já
encontrava-se “vazando” que o mundo seguia o seu curso – não previamente
definido – mas independente da teoria. A década de cinqüenta é de ruptura e em
17
MORIN. Disponível em: <http://www2.uol.com.br/JC/_1999/2006/cc2006e.htm>.
85
1959, com a publicação de AUTOCRÍTICA, Morin está vivendo a sua segunda
Reorgnização Genética. Esta segunda ruptura ainda preserva alguns aspectos do
marxismo, mas abole fundamentalmente à dilética trocando-a pela dialógica; descrê
do papel das classes trabalhadoras como protagonista da revolução que vai “salvar”
a humanidade, livrando-a da exploração e, como conseqüência disto a desilusão
com a revolução redentora do proletariado. Esta ruptura tem ainda uma idéia
essencial do marxismo, que é a idéia do homem genérico.
Todos estes traços se dispersam, se compõem, se recompõem, consoante
os indivíduos, as sociedades, os momentos, aumentando a incrível
diversidade da humanidade. Esta diversidade só pode ser compreendida a
partir de um princípio simples de unidade. A sua base não pode estar numa
plasticidade vaga, modelada ao sabor das circunstâncias, pelos meios e
pelas culturas. Ela só pode encontrar-se na unidade de um sistema
hipercomplexo. Essa unidade é o conjunto de princípios generatívos — em
que não esquecemos o princípio biogenético original — a partir do qual se
efectuam todos os desenvolvimentos ramificantes do Homo sapiens. Isto
corresponde bem ao que Marx entendia pela noção do homem genérico, e
que se confunde aqui, para nós, com a noção de natureza humana (MORIN,
1973, p.145).
Esta noção, por exemplo, já se eencontrava presente em obras do início da
década de 1960: O ESPÍRITO DO TEMPO (1962).
É na década que se situa entre os anos 1965 e 1975, ou se preferir-se uma
data mais precisa, em 1973 com o livro O PARADIGMA PERDIDO que Edgar Morin
passa pela sua terceira e fundamental reorganização genética. É quando ele amplia
enormemente seu arcabouço teórico, incorporando à antropologia fundamental e ao
que sobrou do marxismo, contribuições de pesquisadores e obras de diversas áreas
do conhecimento, sobretudo das ciências naturais.
Edgar Morin vislumbra uma relação existente entre as muitas disciplinas por
cujos conteúdos se atrai e nas quais percebe um movimento de ruptura com os
principais alicerces que sustentaram a configuração do pensamento moderno.
Apesar das rupturas que representaram os pensamentos de Descartes, de Galileu,
de Kepler, de Newton, sobremaneira, os modernos herdaram do pensamento
teológico que dominou a idade média: a crença na ordem, na perfeição da natureza
na medida em que esta era obra de um supremo criador. A perfeição de Deus
estaria impressa na natureza estando apenas o homem alijado desta perfeição pelo
pecado original que o expulsou do paraíso.
86
Em 1969 Edgar Morin é convidado a passar um ano no Instituto Salk na
Califórnia, onde é testemunha de verdadeiras revoluções científicas na Biologia, na
genética especificamente, como a descoberta estrutura em dupla hélice da molécula
do DNA. Também vai se interessar pelos avanços na Cibernética, da Teoria da
Informação e na Teoria dos Sistemas. São estas três disciplinas que vão promover
uma ruptura sem precedentes no seu pensamento. Algumas leituras foram
fundamentais para Morin, efetuar este seu giro epistemológico, sendo que o
paradigma da complexidade não se trata de uma formulação que surge pronta e
acabada em determinado lugar e em determinado momento.
Foram as influências de muitos pensadores, fundamentalmente cientistas e
filósofos que levaram Morin a tal formalização. O termo complexidade, Morin informa
que é Gaston Bachelard (1884-1962) em O NOVO ESPÍRITO CIENTÍFICO quem usa pela
primeira vez, sendo que este também está presente no artigo de Weaver de
1948 Ciência e Complexidade.
Uma das contribuições mais valiosas para o pensamento de Edgar Morin vem
da Teoria dos Sistemas de Ludwig von Bertalanffy no que se refere o
desenvolvimento da noção de organização. É a partir de Bertalanffy que Morin
sustenta a afirmação que o todo é mais do que a soma das partes, ou seja, que
determinadas propriedades como a organização de um sistema e da propriedade de
retroação sobre as partes do sistema.
A Cibernética de Norbert Wiener, que se refere às máquinas autônomas,
desempenha, também, um papel central nas formulações teóricas sobre a
complexidade. É a partir de Wiener que Morin introduz a idéia de retroação
impensável numa perspectiva que adota uma causalidade linear, o que significa,
neste caso, que o efeito de uma causa pode se tornar uma nova causa produzindo,
também, um novo efeito e assim, sucessivamente. É este tipo de mecanismo que
pode permitir uma maior ou menor estabilidade de um sistema.
A Teoria da Informação de Claude Shannon, Warren Weaver também tem um
lugar importante na reforma do pensamento que apregoa Morin. A noção de que
uma informação verdadeira e nova é produzida a partir do ruído. Com isto a
desordem passa a ter um papel importante na organização.
John von Neumann e sua teoria dos autômatas vão desempenhar um papel
importante quando este autor busca destacar a diferença entre as máquinas
87
artificiais e máquinas vivas. Enquanto as artificiais são feitas de peças que têm um
desgaste lento, mas definitivo, as máquinas vivas são compostas de elementos que
se degradam com mais facilidade, estas possuem capacidade de auto-regenerarem-
se, de desenvolver-se, de reproduzir-se renovando a partir da troca constante de
moléculas e de células. A máquina artificial enfatiza Von Neumann, não pode
consertar-se voluntariamente, enquanto a máquina viva se renova o tempo inteiro.
O princípio de ordem a partir do ruído de, onde o movimento de um conjunto
desordenado de objetos pode advir uma determinada ordem que a partir daí passa a
se reproduzir organizadamente, o que significaria a obtenção da ordem a partir da
desordem. A teoria da auto-organização de Henri Atlan, de certa forma, também vai
neste sentido. Sustenta que desde o nascimento do universo ocorre uma relação
dialógica entre ordem, desordem e organização; encontros e desencontros a partir
da agitação térmica, uma explosão em que os choques e encontros aleatórios
originam princípios de ordem que permitiram e permitem, ainda, a formação de
núcleos, átomos, galáxias, estrelas, planetas, luas, etc. À esta mesma lógica, ou
melhor, dialógica, desenvolveu-se o surgimento da vida, através de encontros entre
moléculas que converteram-se em auto-organização viva. Este mesmo esquema
essa dialógica entre ordem/desordem/organização está presente, também, nas
esferas físicas, biológicas e antropológicas.
Além destes, outros autores também se constituíram em importantes
contribuições para a formulação do pensamento morineano. Deve-se ainda
acrescentar a adoção da noção de estruturas dissipativas de Ilya Prigogine.
Segundo Prigogine, existem organizações que, ao atingirem alto nível de agitação,
passam a se constituir como estruturas coerentes e que se auto-sustentam. Estas se
mantêm consumindo, pra tal certa quantidade de energia. Os seres vivos
desenvolvem sua autonomia apropriando-se de energia do entorno. Esta noção se
aproxima do que Morin define como auto-eco-organização.
Outras contribuições importantes para a complexidade foram as teorias
cognitivas de Humberto Maturana y Francisco J. Varela, o formalismo de Jean
Ladrière, a teoria dos fractais de Benoit Mandelbrot, bem como, o pensamento
filosófico sobre a ciência e técnica de Edmund Husserl y Martin Heidegger. Numa
passagem de O MÉTODO Morin assim sintetiza tais influências:
88
(...) na época contemporânea, o pensamento complexo começa seu
desenvolvimento na confluência de duas revoluções científicas. A primeira
revolução introduz a incerteza com a termodinâmica, a física quântica e a
cosmofísica. Essa revolução científica desencadeou as reflexões
epistemológicas de Popper, Kuhn, Holton, Lakátos, Feyrabend, que
mostraram que a ciência não era a certeza, mas a hipótese, que uma teoria
provada não o era em definitivo e se mantinha 'falsificável', que existia o
não-científico (postulados, paradigmas, themata) no seio da própria
cientificidade". A segunda revolução científica, mais recente, ainda
indetectada, é a revolução sistêmica nas ciências da Terra e a ciência
ecológica. Ela não encontrou ainda seu prolongamento epistemológico (que
os meus próprios trabalhos anunciam (MORIN, 1999, p. 87).
A emergência da complexidade passa a se esboçar a partir do momento de
enfraquecimento os pilares da certeza que sustentaram a ciência 'clássica'
cartesiana. Estes pilares são 1°) a ordem, 2°) a separabilidade, 3°) princípio de
redução e o 4°) lógica indutiva-dedutiva-identitária. Observemos a discussão desses
quatro pilares segundo Morin.
A julgar pelo pragmatismo, normatividade e hermetismo desses quatro pilares
do conhecimento, poder-se-ia supor que eles permaneceriam inabaláveis para
sempre. Suposição equivocada: a ciência do século XX, em meio ao conjunto
desordenado de seus avanços, provocará um abalo sísmico que os atingirá. "Os
quatro pilares são desse modo sacudidos pelo surgimento da desordem, da não-
separabilidade, da não-redutibilidade, da incerteza lógica (ALMEIDA, 2006).
18
O empreendimento ao qual Morin passa a se dedicar, a partir dos anos 70,
leva o autor a deixar o terreno seguro da pesquisa disciplinar para mergulhar numa
realidade fragmentada e prenhe de complexidade. Para tal, passa a realizar um
trabalho de transposição de aparatos conceituais de uma disciplina a outras,
ressignificando, assim, conceitos. Além da migração conceitual, Morin também vale-
se da construção de metáforas. Este exercício permite religar às noções homem e
mundo; sujeito e objeto; natureza e cultura; mito e logos; objetividade e
subjetividade; ciência, arte e filosofia; vida e idéias.
A fecundidade da construção do Método por Edgar Morin está no fato de
tentar religar, no domínio da ciência, o que já se encontra direta ou
indiretamente interconectado no mundo das materialidades e das topologias
imaginárias. Longe, pois, das transposições mecânicas de conceitos,
oriundos da biologia, da física ou da teoria da informação, trata-se mais
propriamente de aproximar, relacionar, fazer dialogar e buscar pontos de
18
ALMEIDA. Maria da Conceição de. Um itinerário do pensamento de Edgar Morin. Disponível em
<http://www.ufrn.br/grecom/ideias2.htm>. Acessado em 16 jul 2006.
89
confluência entre as complexas singularidades da matéria e do espírito,
mesmo que não se deva descuidar dos perigos da extrapolação indevida
das metáforas (ALMEIDA, 2006).
19
Tais influências aqui destacadas apontam para uma característica importante
do pensamento de Edgar Morin, a saber, que ele se constitui de uma síntese, e de
uma rica reelaboração a partir de importantes teorias científicas do século XX.
Adianta-se aqui uma diferença crucial entre o pensamento desbravador de Edgar
Morin e a ruptura epistemológica que também caracterizou o pensamento de
Descartes, no amanhecer da modernidade. Descartes abriu um novo caminho. Os
séculos que se sucederam tornaram-no “o caminho”. Já o pensamento de Edgar
Morin se caracteriza por ser uma síntese (não dialética) das principais teoria que no
decorrer do século XX desorganizaram os paradigmas constituídos nos últimos três
séculos.
3.5 A SAGA DOS MÉTODOS
O MÉTODO constitui-se de seis livros escritos e publicados por Edgar Morin,
entre 1977 e 2004. Constituem a obra o volume 1 A NATUREZA DA NATUREZA; o
volume 2: A VIDA DA VIDA; volume 3: O CONHECIMENTO DO CONHECIMENTO; volume 4:
A
S IDÉIAS - HABITAT, COSTUMES, ORGANIZAÇÃO; volume 5: A HUMANIDADE DA
HUMANIDADE E O VOLUME
6: ÉTICA. Nestes, o autor se propõe a rediscutir i) a natureza
do cosmos, ii) a vida na natureza; iii) o conhecimento do conhecimento das idéias
dos homens e iv) o humano que abstraiu e construiu esta noção de natureza onde
ele próprio está imerso.
Segundo o próprio autor:
O trabalho que realizei chamado de “O Método” objetiva enfrentar esse
desafio cognitivo, elaborar e encontrar operadores – instrumentos do
conhecimento, que efetivamente permitem abordar a complexidade. Esses
instrumentos não foram inventados, mas, em alguns aspectos, foram
desenvolvidos e sobretudo reagrupados por mim (MORIN, 2002, p. 17).
19
Idem.
90
As condições para realizar este propósito, conceber o projeto de reforma do
pensamento, de uma nova abordagem da compreensão da natureza, do fazer
científico, do entendimento do que é a vida e o ser humano é resultado das mais
variadas e inusitadas interações dos diversos sistemas: cósmico, ecológico-natural,
social, humano e mental.
3.5.1 A Instabilidade da Natureza
Uma das primeiras premissas de O Método, já expressa no Método 1 (em
1977)
20
é que toda realidade antroposocial, – presença e atuação humana na
natureza e na sociedade – depende da ciência física, mas, também, toda ciência
física depende, da realidade antropossocial. É o circuito: Física - Biologia -
Antroposociologia com o qual Morin busca reconstruir o sujeito fragmentado na
modernidade.
O homem se esfarela: fica uma mão-ferramenta aqui, uma língua-que-fala
lá, um sexo acolá e um pouco de cérebro em algum outro lugar. Quanto
mais miserável a idéia de homem, mais eliminável ela é: o homem das
ciências humanas é um espectro suprafísico e suprabiológico. Como
homem, o mundo é desmembrado entre as ciências, esfarelado entre as
disciplinas, pulverizado em informações (MORIN, 2003, p. 26).
Uma percepção diferenciada de homem, como propõe Morin, convida a uma
nova forma de pensar vários aspectos da realidade, entre os quais o fazer científico.
Morin questiona o porquê da inexistência de uma ciência que tenha como objeto a
própria ciência.
Mas então, o que é a ciência? Aqui, nós devemos perceber que esta
questão não tem uma resposta científica: a ciência não se conhece
cientificamente e não tem nenhum meio de se conhecer cientificamente. Há
um método científico para considerar e controlar os objetos da ciência. Mas
não há um método científico para considerar a ciência como objeto de
ciência e muito menos o científico como tema deste objeto. Há tribunais
epistemológicos que, a posteriori e do exterior, pretendem julgar e medir a
capacidade das teorias científicas; há tribunais filosóficos onde a ciência é
condenada à revelia. Não há uma ciência da ciência. Pode-se até dizer que
20
As datas referidas no interior do texto, são da primeira edição francesa. No entanto as citações
explícitas, conforme referencias Bibliográficas, são das edições brasileiras.
91
toda a metodologia científica, inteiramente voltada à expulsão do sujeito e
da reflexão, se impõe esta ocultação (MORIN, 2003, p. 27).
Referindo-se a Rénè Descartes, Morin ironiza, afirmando que “Este ‘cavaleiro
francês’ começou rápido demais” (MORIN, 2003, p. 29). E que hoje, decorrido mais
de três séculos, só é possível abordar à verdade a partir da incerteza sobre a dúvida.
O que esta sendo colocado em xeque hoje é o próprio princípio do método
cartesiano. Este método deve, segundo o autor de O PARADIGMA PERDIDO, “ser
metodicamente posto em dúvida, além da disjunção dos objetos entre si, das noções
entre elas (as idéias claras e distintas) e da disjunção absoluta do objeto e do
sujeito”(MORIN, 2003, p. 29). Existe, hoje, na concepção do autor, uma necessidade
de se encontrar um método “que detecte e não que oculte as ligações, as
articulações, as solidariedades, as implicações, as imbricações, as
interdependências, as complexidades” (idem, p.29).
Assim, no que diz respeito à relação física/biologia/antropologia, cada um
destes termos foi isolado, e a única ligação concebível foi a redução da
biologia à física, da antropologia à biologia. Assim, o saber que liga um
espírito a um objeto reconduzido, seja ao objeto físico (empirismo), seja ao
espírito humano (idealismo), seja a realidade social (sociologismo). Assim, a
relação sujeito/objeto é dissociada, a ciência se apodera do objeto, a
filosofia do sujeito (MORIN, 2003, p. 31).
Esta questão aproxima de problemas gerais da construção do conhecimento,
sustenta Morin, quais sejam, dos princípios de oposição, distinção, relação e
associação nos discursos, nas teorias, nos pensamentos, nos paradigmas, enfim. A
exemplificação através da transição do paradigma ptolomaico para o copernicano no
século XVI exemplifica esta questão.
A revolução do pensamento é sempre fruto de um abalo generalizado, de
um turbilhão que vai da experiência fenomenal aos paradigmas que
organizam a experiência. Assim, para passar do paradigma ptolemaico ao
paradigma copernicano – que, devido à permuta terra/sol, mudava o mundo
nos banindo do centro à periferia, da soberania à satelitização –, foram
necessários inúmeros vaivens entre as observações que perturbam o antigo
sistema de explicação, os esforços teóricos para melhorar o sistema de
explicação e a idéia de mudar o próprio princípio de explicação. Ao final
deste processo, a idéia em princípio escandalosa e insensata vira normal e
evidente, já que o impossível encontra a sua solução de acordo com um
novo princípio e em um novo sistema de organização de dados fenomenais
(MORIN, 2003, p. 34).
92
Duas outras articulações destacadas por Morin: physis antropossociologia
e, também, a articulação objeto sujeito, que acionam um paradigma muito mais
fundamental que o princípio copernicano, se dão ao mesmo tempo no campo dos
dados fenomenais, das idéias teóricas, dos princípios básicos do raciocínio. Tal
postulado morineano conduz a um método, um método sempre em construção.
Eu não trago o método, eu parto em busca do método. Eu não parto com o
método, eu parto com a recusa, totalmente consciente, da simplificação. A
simplificação é a disjunção em entidades separadas e fechadas, a redução
a um elemento simples, a expulsão do que não entra em um esquema
linear. Eu parto com a vontade de ceder a estes modos fundamentais do
pensamento simplificador (MORIN, 2003, p. 35).
A apresentação do pensamento de Edgar Morin neste momento do trabalho
procura seguir, mesmo que de forma precária, as conquistas do pensamento, de O
MÉTODO, obra após por obra, cronologicamente. No entanto, em alguns momentos,
esta tentativa se perde, pois o autor, além de adiantar nos primeiros volumes alguns
aspectos somente desenvolvidos posteriormente, necessita, a cada novo livro
retomar as primeiras lições. Segue-se, em certa medida, a máxima eu não trago o
método, eu parto em busca do método, quando remetido a macro e micro universos
palmilhados atentamente pelo pensamento de Edgar Morin.
O próprio autor encarrega-se de expressar este ponto de vista quando afirma
que:
Este livro é uma progressão em espiral; ele parte de uma interrogação e de
um questionamento; ele vai adiante através de uma reorganização
conceitual e teórica em cadeia que, atingindo enfim o nível epistemológico e
paradigmático, chega à idéia de um método que deve permitir um avanço do
pensamento e da ação que pode reunir o que estava mutilado, articular o
que estava separado, pensar o que estava oculto (MORIN, 2003, p. 37).
O Método, da forma em que Morin aqui se refere, opõe-se à conceituação
tradicional de metodologia, quando esta se apresenta enquanto receita técnica de
elaboração de pesquisas. Da mesma forma que o cartesianismo, o método que
Morin concebe inspira-se num novo paradigma, no paradigma da complexidade, que
rompe com os pilares que sustentaram a revolução moderna matriz do mecanicismo.
Apesar de um tanto longa vale aqui citar na integra os quatro passos que Descartes
enumera em Discurso do Método, e que se tornaram o método científico absoluto
nos dois séculos que se seguiram e válidos, sob certo aspecto, ainda hoje.
93
O primeiro era o de nunca aceitar algo como verdadeiro que eu não
conhecesse claramente como tal; ou seja, de evitar cuidadosamente a
pressa e a prevenção, e de nada fazer constar de meus juízos que não se
apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito que eu não tivesse
motivo algum de duvidar dele.
O segundo, o de repartir cada uma das dificuldades que eu analisasse em
tantas parcelas quantas fossem possíveis e necessárias a fim de melhor
solucioná-las.
O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, iniciando pelos
objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para elevar-me, pouco a
pouco, como galgando degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e
presumindo até mesmo uma ordem entre os que não se precedem
naturalmente uns aos outros.
E o último, o de efetuar em toda parte relações metódicas tão completas e
revisões tão gerais nas quais eu tivesse a certeza de nada omitir
(DESCARTES, 1987,p. 37).
Tais pressupostos são sistematicamente questionados pelo novo paradigma
enunciado por Edgar Morin em sua suma filosófico-científica para o novo milênio.
Não se trata mais de obedecer a um princípio de ordem (eliminando a
desordem), de claridade (eliminando o obscuro), de distinção (eliminando as
aderências, as participações e comunicações), de disjunção (excluindo o
sujeito, a antinomia, a complexidade), ou seja, obedecer a um princípio que
liga a ciência a simplificação lógica. Trata-se, ao contrário, de ligar o que
estava separado através de um princípio de complexidade (MORIN, 2003, p.
36).
Apesar de toda a crítica ao pensamento cartesiano e sua decorrência
mecanicista, o paradigma da física moderna, é ainda nesta disciplina que Edgar
Morin busca um dos modelos para melhor expressar seu ponto de vista. Morin
recorre à segunda lei da termodinâmica, para expressar a forma de continuidade e
auto-suficiência, não só do universo, mas também nos diversos sistemas analisados.
Enquanto o primeiro princípio da termodinâmica sustentava que a quantidade de
energia do universo não se altera na media em que esta pode se transformar muitas
vezes; energia mecânica em elétrica e por sua vez em química etc. No entanto, o
segundo princípio, esboçado por Nicolas Léonard Sadi Carnot e formulado por
Rudolf Clausius (1850), introduz a idéia não de desperdício, que contradiria o
primeiro princípio, mas de degradação de energia.
Enquanto todas as formas de energia podem se transformar integralmente
uma na outra, a energia que toma forma calorífica não pode se reconverter
inteiramente perdendo então uma parte de sua aptidão para efetuar um
trabalho. Ora, toda transformação, todo trabalho libera calor, contribuindo
para esta degradação. Essa diminuição irreversível da aptidão de se
94
transformar e de efetuar um trabalho, própria do calor, foi denominada por
Clausius de entropia (MORIN, 2003, p. 53).
Morin entende que na escala humana e social também se observa, a exemplo
da natureza, a corrosão propiciada pelo segundo princípio se identifica como por
uma vitória da ordem científica (sob o aspecto da mecânica estatística) e da
organização tecnoindustrial sobre a desordem calorífica.
A descoberta da existência de outras galáxias, de milhões destas, em 1923,
cada uma pululando de um a cem bilhões de estrelas ampliou absurdamente o
universo. Sem parar desde então, o infinito recua ao infinito e o visível dá lugar ao
extraordinário, a descoberta em 1963 dos quasares, em 1968 dos pulsares e
também dos buracos negros ampliou sobremaneira nossa noção de universo infinito.
Mas a grande revolução, enfatiza Morin, é a descoberta de que o universo se
estende a distâncias incríveis e que ele contém corpos estelares bizarros. E que a
sua extensão é conseqüência de uma expansão que é de origem explosiva.
(MORIN, 2003, p. 58). Em 1965 foi captada a irradiação isótropa que chega a nós
vinda de todos os horizontes do universo.
Este “barulho de fundo” térmico pode ser interpretado logicamente como o
resíduo fóssil de uma explosão inicial. Esta mensagem balbuciada, vinda do
fim do mundo, atravessou de dez a vinte bilhões de anos para nos anunciar
enfim a extraordinária notícia: o universo está em migalhas. Desde então, as
descobertas astronômicas de 1923 até hoje se articulam para nos
apresentar um universo cuja expansão é fruto de uma primeira catástrofe e
que tende a uma expansão infinita (MORIN, 2003, p. 59).
Um problema que se coloca a partir desta observação de que o universo é
diáspora explosiva, que seu tecido microfísico é desordem indescritível, sendo que o
segundo princípio só reconhece uma probabilidade: a desordem. Ou seja, como
investigar e descobrir as regularidades existentes. Como se chegou e idéia de que
Via Láctea é apenas uma entre bilhões de galáxias e que cada galáxia comporta
bilhões de estrelas? Como é que conseguimos calcular em 10
73
o número de átomos
no universo visível? Como é que conseguimos descobrir as leis que regem os
astros? Os átomos e todas as coisas existentes? Como se organizou o cosmos, os
átomos e às moléculas? Como se organizaram as células vivas, os seres
multicelulares, as sociedades e, até mesmo, aponta Morin, o espírito humano que se
coloca essas questões? (MORIN, 2003).
95
A ordem, a desordem, a potencialidade organizadora, devem ser pensadas
juntas, ao mesmo tempo, em seus caracteres antagônicos bem conhecidos
e seus caracteres complementares bem desconhecidos. Esses termos se
remetem um ao outro e formam uma espécie de circuito em movimento.
Para concebê-lo, é preciso muito mais do que uma revolução teórica. Trata-
se de uma revolução de princípio e método. A questão da cosmogênese é,
portanto, ao mesmo tempo, a questão-chave da gênese do método
(MORIN, 2003, p. 65).
Morin chama a atenção para a importância das condições genésicas -
determinações ou imposições, que fazem surgir a Ordem e o universo
concomitantemente. É através das possibilidades de interação entre as diferentes
partículas que vão formar os processo físicos, entre eles os de organização. As
interações, afirma, são uma espécie de nó górdio de ordem e desordem. Mesmo
sendo os encontros aleatórios os efeitos destes tornam-se necessários e fundam a
ordem das “leis” (MORIN, 2003).
As interações, neste sentido, são geradoras de formas e de organizações que
fazem nascer e permanecer, sob certo tempo, os sistemas fundamentais que são os
núcleos, os átomos, os astros. Sobre a caracterização das interações assim Morin
se pronuncia:
As interações são ações recíprocas que modificam o comportamento ou a
natureza de elementos, corpos, objetos, fenômenos em presença ou em
influência. As interações:
1. supõem elementos, seres ou objetos materiais que podem se encontrar;
2. supõem condições de encontro, quer dizer, agitação, turbulência, fluxo
contrário, etc.;
3. obedecem a determinações/imposições ligadas à natureza dos
elementos, objetos ou seres que se encontram;
4. tornam-se, em certas condições, inter-relações (associações, ligações,
combinações, comunicações, etc.), ou seja, dão origem a fenômenos de
organização.
Assim, para que haja organização, é preciso interações: para que haja
interações é preciso encontros, para que haja encontros é preciso desordem
(agitação e turbulências) (MORIN, 2003, p. 72).
Uma vez constituídas as organizações, que são os átomos e as estrelas, as
regras do jogo das interações podem aparecer como leis da natureza. (MORIN,
2003). O circuito tetralógico significa que as interações são inconcebíveis sem
desordem, ou seja, sem desigualdades, turbulências, agitações, etc., que provocam
os encontros. Significa, ainda, que não se poderá isolar ou hipostasiar alguns
desses termos, pois cada um adquire o seu sentido na relação com os outros. É
96
necessário concebê-los juntos, ou seja, como termos ao mesmo tempo
complementares, concorrentes e antagônicos (MORIN, 2003).
O átomo é o tijolo com o qual o universo organizado é construído, suas
ligações formam os líquidos, os sólidos, os cristais; os edifícios de átomos
diversos são moléculas, a partir das quais se edificam as macromoléculas e,
em seguida, em nossa terra, as células vivas, os organismos, as
sociedades, os humanos. Entretanto, quanto às partículas constitutivas do
átomo, tudo é indistinção e confusão; a partícula não tem identidade lógica;
ela oscila entre elemento e acontecimento, ordem e desordem. Se
considerarmos o universo na escala microfísica, o universo não passa de
uma “agitação de elétrons, prótons, fótons, todos seres com propriedades
maldefinidas em perpétua interação” (Thom, 1974, p. 205) (MORIN, 2003, p.
82).
Os sóis (as estrelas), do ponto de vista apresentado por Morin, são “maquinas
formidáveis ao mesmo tempo precisas, motrizes e criadoras” (MORIN, 2003, p. 82).
Os sóis produzem átomos pesados, quer são formas de organizações complexas –
que só nestes podem acontecer –, e irradiações fundamentais como alimento da
vida. A importância dos sóis no cosmos é resumido por Morin na seguinte
observação: “tudo o que no cosmos é ordem e organização, tudo o que ainda produz
mais ordem e organização tem por fonte um sol” (idem).
Ora, não se pode esquecer, esta máquina de fogo está em chamas. O sol
está pegando fogo. Nosso sol não ilumina como uma lâmpada. Ele cospe o
fogo, ele expele o fogo em uma autoconsumição insensata, em uma
despesa louca que não havia previsto nenhum traço de economia cósmica.
Seu núcleo é caos puro. É uma bomba de hidrogênio permanente, é um
reator nuclear em fúria. Criado em catástrofe, ascendendo-se na
temperatura de sua própria destruição, ele vive em catástrofe, já que a sua
regulagem é feita do antagonismo de uma retroação explosiva e de uma
retroação implosiva. Ele vai, mais cedo ou mais tarde, rumo a uma dessas
duas destruições, à hiperconcentração ou ao último feixe de fogo da nova
ou supernova. Assim, os bilhões de bilhões de sóis são, ao mesmo tempo, a
ordem suprema, a organização física admirável e o caos vulcânico de nosso
cosmos (MORIN, 2003, p. 83).
Esta visão de nossa estrela-mãe nada tem a ver com o universo herdado de
Kepler, Galileu, Copérnico e Newton, pois aquele era um universo frio, gelado, de
medida, de equilíbrio. Morin entende que esta visão deve mudar, que é preciso
trocá-la por outra de um universo quente, de nuvem ardente, de bolas de fogo, de
movimentos irreversíveis, de ordem misturada à desordem, de despesa, de
desperdício, de desequilíbrio. O universo herdado da ciência clássica era centrado.
97
O novo universo é acêntrico, policêntrico. No entanto o universo Morineano é
inorganizado, incandescente e instável.
A quase totalidade do universo, cujo volume cresce sem parar, só existe no
estado de inorganização e de dispersão. Não se pode jamais esquecer que
todos os fenômeno organizacionais dos quais depende a ordem do mundo –
átomos, moléculas, astros – são minoritários, marginais, locais, temporários,
improváveis, desviados (MORIN, 2003, p. 86).
A emergência e a saga dos humanos no planeta é situada em termos de um
acaso. Um evento que aconteceu em meio a milhares, milhões de coisas que não
aconteceram, e que por não terem se dado a existência não percebemos a
ausência.
Sabe-se que até um pequeno planeta de um pequeno sol periférico surgiu
uma forma organizada com uma complexidade extraordinária. Mas ela
nasceu de um acaso quase que miraculoso: na verdade, nada sugere a
existência de uma outra vida no cosmos, tudo sugere que o seu nascimento
foi um evento único (já que todos os seres vivos são da mesma constituição
molecular e se organizam exatamente de acordo com o mesmo código
genético). A vida se propagou porque o acaso a dotou do poder de
multiplicação dos cristais. A vida progrediu graças ao acaso das mutações
genéticas. A vida é de qualquer forma minoritária na physis terrestre; as
formas mais complexas de vida são minoritárias com relação às formas
menos complexas; e isso ocorre enquanto a diáspora cósmica continua,
enquanto a desordem geral cresce (MORIN, 2003, pp. 86-7).
A nova visão de mundo que se inaugura, abre-se para o desconhecido, para o
insondável, em vez de rechaçá-lo, de exorcizá-lo. E constrói, pela primeira vez,
afirma Morin, uma visão de mundo que não se fecha em si mesma. Tal mudança de
percepção levará muito além da mudança de uma “imagem” do mundo, deverá
alterar profundamente mudanças nos conceitos, questionando os conceitos-mestres
com os quais nós pensamos e aprisionamos semioticamente o mundo. Nesta nova
visão, o segundo princípio da termodinâmica apresenta-se como a “expressão parcial
e amputada de um princípio cosmológico complexo (...) de um princípio físico
fundamental que associa e dialetiza ordem/desordem e organização” (MORIN, 2003, p.
93). Mais adiante, Morin complementa esta noção.
Concebido em termos organizacionais, o conceito de entropia designa uma
tendência irreversível para a desorganização, própria a todos os sistemas e
seres organizados. Ela representa uma tendência universal, ou seja, não
98
limitada aos abstratos “sistemas fechados”, mas diz respeito também aos
“sistemas abertos”, inclusive os seres vivos (MORIN, 2003, p. 94).
Este sistema é valido também para toda a organização viva, pois conforme
entende Morin, esta forma de organização reproduz a mesma dinâmica das outras
estruturas.
(...) toda regressão de entropia (todo desenvolvimento organizacional), ou
toda manutenção (através de trabalho e transformações) de entropia
estacionária (ou seja, toda atividade organizacional), é paga no e pelo
crescimento de entropia no meio ambiente que engloba o sistema (MORIN,
2003, p. 95).
A partir daí, uma regressão local de entropia (ou neguentropia) vai aumentar a
entropia no universo, conclui Morin.
O universo e todas as coisas que nele são estão fadadas a deixar de ser.
Tudo tem sua gênese e sua corrupção, já afirmara o filósofo Heráclito, tanto na ida
quanto na volta do rio. A desordem está espalhada por tudo, que existe e está por
vir: “rupturas, cismas, desvios são as condições de criações, nascimentos,
morfogêneses” encontram-se no currículo do planeta Terra. Na perspectiva da
complexidade, vale sempre ressaltar que o sol – assim como todas as estrelas –
nascem em catástrofes e morrem em catástrofe, a terra, ao mesmo tempo em que
dança sobre seu eixo enquanto faz seu caminho anual calma e regularmente em
volta do sol, produz em profusão cataclismos, desabamentos, desdobramentos,
erupções e inundações.
Clandestina, a desordem reivindica no paradigma da complexidade de Edgar
Morin, o seu lugar; “toda teoria deve trazer a marca da desordem, dar o mais amplo
lugar à desordem, transformada no princípio cósmico por inteiro e no princípio físico
imanente” (MORIN, 2003, p. 100). Daí a necessidade de colocar em pleno destaque
a desordem – mesmo levando-se em conta o fato desta sempre ter sido fator de
discórdia – e promovê-la ao novo princípio absoluto do Universo.
O que vemos surgir aqui é uma espécie de nebulosa espiral genésica de
“concepção do mundo”, no sentido de que este termo significa ao mesmo
tempo os princípios de organização de inteligibilidade (paradigma, epistemê)
e a organização da própria teoria. E toda a aventura deste trabalho, ao
longo desses três volumes, será seguir, e desenvolver esta gênese em
generatividade e produtividade – ou seja: método (MORIN, 2003, p. 110).
99
Desordem, instabilidade: incerteza. Em primeiro lugar Morin suspeita que a
incerteza se deve à “incerteza de nosso devir social que se projeta no cosmos”
(Idem); em segundo, a incerteza seria “uma correnteza do devir cósmico que se
acelera e perturba-se localmente no e pelo devir antropossocial” e, em terceiro lugar,
poderia ser também “o meu espírito que, incerto por natureza e por cultura, projeta
incerteza sobre a sociedade e sobre o cosmos” (idem). Ou ainda, vai cogitar Morin:
“não é tudo isso ao mesmo tempo” (idem). “Articular-se-ia, aqui, de forma solidária e
inextrincável a dimensão cósmica, a dimensão antropossocial e a dimensão de
consciência própria ao sujeito” (MORIN, 2003, p. 119).
Ao situar a incerteza no coração da operação cognitiva, Morin questiona-se
sobre três desdobramentos desta sua proposição: 1) saberemos fazer da incerteza a
semente do conhecimento complexo? 2) saberemos englobar o conhecedor no
conhecimento e entender este último em seu enraizamento multidimensional?
3) saberemos elaborar o método da complexidade?
A organização é a maravilha do mundo físico. Como se explica que de uma
deflagração incandescente, como se explica que de um mingau de fótons,
elétrons, prótons, nêutrons possam se organizar pelo menos 10
73
átomos,
que milhões de bilhões de sóis pululam nas 500 milhões de galáxias
inventariadas (e que para além de dois ou três bilhões de anos-luz, não se
ouça mais grande coisa )? Como do fogo puderam surgir estes bilhões de
máquinas a fogo? E, claro: como surgiu a vida?
Sabemos hoje que tudo o que a antiga física concebia como elemento
simples é organização. O átomo é organização; a molécula é organização; o
astro é organização; a sociedade é organização. Mas ignoramos tudo do
sentido deste termo: organização (MORIN, 2003, p. 122).
A partir da percepção da incerteza, mas também da noção de sistema, o
átomo, por exemplo, surge como um objeto novo, um objeto organizado, sendo que
sua explicação deve transcender a natureza de suas partículas elementares,
fixando-se agora em sua natureza organizacional e sistêmica e sua relação com os
seus componentes.
Todos os objetos-chave da física, da biologia, da sociologia, da astronomia,
átomos, moléculas, células, organismos, sociedades, astros, galáxias,
constituem sistemas. Fora dos sistemas, há apenas a dispersão particular.
Nosso mundo organizado é um arquipélago de sistemas no oceano da
desordem. Tudo que era objeto tornou-se sistema. Tudo que era até mesmo
uma unidade elementar, inclusive e, sobretudo, o átomo virou sistema
(MORIN, 2003, p. 128).
100
Nós podemos partir das seguintes constatações iniciais: o sistema tomou o
lugar do objeto simples e substancial e ele é rebelde à redução em seus elementos;
o encadeamento de sistemas rompe com a idéia de objeto fechado e auto-suficiente.
Sempre se trataram os sistemas como objetos; trata-se de agora em diante de
conceber os objetos como sistemas. É preciso então conceber o que é um sistema
(MORIN, 2003, p. 129).
O que é a organização? Primeira definição: a organização é o
encadeamento de relações entre componentes ou indivíduos que produz
uma unidade complexa ou sistema, dotada de qualidades desconhecidas
quanto aos componentes ou indivíduos. A organização liga de maneira
inter-relacional os elementos ou acontecimentos ou indivíduos diversos que
desde então se tornam os componentes de um todo. Ela assegura
solidariedade e solidez relativa a estas ligações, assegurando então ao
sistema certa possibilidade de duração apesar das perturbações aleatórias.
A organização, portanto: produz religa e mantém (MORIN, 2003, p. 133).
Como se procurou evidenciar nestes primeiros tópicos sobre o projeto de O
MÉTODO de Edgar Morin, este é refratário a qualquer forma de simplificação, em
sintonia com o autor procurou-se não esgotar e esquematizar neste momento os
principais conceitos e articulações teóricas do autor, de forma que viesse supor um
sistema fechado. Muitas idéias importantes devem ter escapado desta primeira
incursão sobre o livro de 1977, mas pela espiralidade da obra poderemos alcançar
tais noções mais adiante. Na seqüência, avança-se sobre os outros volumes,
apresentando novas postulações, refazendo as eventuais lacunas, repassando
temas já expostos.
3.5.2 A Improbabilidade da Vida
Em 1980 Edgar Morin publica o segundo volume de seu projeto: O MÉTODO 2:
A VIDA DA VIDA
, A IDENTIDADE HUMANA. Para quem não leu o primeiro volume está
garantida a plena compreensão, pois Edgar Morin retoma as premissas
desenvolvidas anteriormente, no primeiro Método A NATUREZA DA NATUREZA de 1977.
Para quem já começou o diálogo com Morin desde esta obra, a continuidade da
explicitação, bem como, a expansão das idéias lançadas sobre o universo (cosmos)
101
e da natureza (physis) para a dimensão da vida, manifestação exótica da natureza
que se desenvolveu na terra nos últimos 4,5 bilhões de anos e da qual somos os
representantes inteligentes. Morin redimensiona a sua perspectiva da complexidade
no que ela pode explicitar sobre as organizações vivas e sua inserção como um
elemento do sistema ecológico, onde se originou, e se desenvolveu e evoluiu em
múltiplas formas.
Com a perspectiva ecológica, a vida na terra passa não ser um elemento
isolado que se manifesta através de indivíduos de diferentes espécies, estes
pertencem a um lugar que os constituiu e também os constitui, entende Morin.
A dimensão ecológica constitui, de qualquer modo a terceira dimensão
organizacional da vida. A vida só era conhecida sob duas dimensões,
espécie (reprodução) e indivíduo (organismo) e, por impressionante que
seja, o meio parecia ser o envelope exterior. Ora, a vida não é apenas a
célula constituída de moléculas; nem somente a árvore de múltiplas
ramificações da evolução constituída em reinos, ramos, ordens, classes e
espécies (MORIN, 2003, p. 34).
A dimensão ecológica, assim como a natureza, foi idealizada, teologicamente,
como obra da suprema criação “com a invariância e uma de relojoaria”(idem),
sempre pensada como o reino da ordem e da perfeição divina. Sublinha Morin:
Contudo quando se olha, seja a muito longo termo, seja de muito perto,
essa ordem, de súbito, vacila e trinca-se. Na escala de centenas de
milhares de anos, o subsolo racha e desloca-se, a crosta terrestre dobra-se,
levanta-se, afunda-se, os continentes derivam, as águas inundam as terras
e terras emergem das águas, as florestas tropicais e as calotas glaciais
avançam ou recuam, as erosões cavam, nivelam, pulverizam. Ao olhar de
muito perto e a curto termo, vê-se uma confusão de seres unicelulares e de
animáculos, um amontoado e uma mistura de plantas que se parasitam nas
florestas, selvas, savanas, matagais, insetos agitados de movimentos
desordenados, animais da terra ou do céu de comportamento
desconcertante, e por toda parte uma autofagia permanente da vida
comendo a vida, uma luta feroz de todos contra todos, em que uns caçam,
devoram, combatem, destroem os outros, numa desordem sem lei
ridiculamente chamada de lei da selva (MORIN, 2003, p. 35).
Como em toda forma de organização, no ecossistema encontram-se
sucessivas desorganizações/reorganizações onde a presença das desordens,
destruições e antagonismos constituem-se em eventos menos impressionantes do
que os fatores de ordem, de construção, de complementaridade nos ecossistemas.
102
Paradoxalmente tudo concorre para a desorganização do sistema ecológico, mas
tudo, também, concorre para a sua organização.
Assim se desenha os contornos do anel eco-organizador e este indica que
uma reorganização permanente responde à desorganização permanente, sendo que
este processo reorganizador encontra-se no próprio processo de desorganização.
Afirma Morin:
Assim, a cadeia trófica mostra-nos que toda podridão se torna alimento, que
todo desejo se torna ingrediente, que todo subproduto se torna matéria
prima, que todo resíduo morto é reintroduzido no ciclo da vida. As
decomposições e excreções são o festim de um fervilhar de insetos e de
microorganismos; engordam e remineralizam os solos que alimentam a
vegetação. O ecossistema come não somente a sua própria vida e a sua
própria morte, mas também a própria merda, e o excremento pode tornar-se
o alimento do alimento de quem o defecou. O ecossistema renasce e revive
incessantemente porque é, ao mesmo tempo, autófago (alimentando-se de
si mesmo) e entrófego (alimentando-se de entropia), biófago, coprófago e,
em suma, eurifago (ou seja, alimentando-se de tudo) (MORIN, 2003, p. 47).
Uma das esferas da comunicação destacadas por Edgar Morin, e que é
tematizada neste Método 2, é a ecocomunicação. Ela compreende todas as redes
de comunicação vivas que se relacionam nos mais diversos ecossistemas, mesmo
que todas os subsistemas não se comuniquem diretamente.
A ecocomunicação é tão complexa, tão eficaz, tão refinada, tão bem
temperada e regulada, que tudo acontece como se fosse uma organização
computacional/informacional/comunicacional recebendo informações e
emitindo instruções.
Ainda que um ecossistema não tenha cérebro, memória, rede de
comunicação, quero mostrar que constitui uma máquina
computacional/informacional/comunicacional de caráter policêntrico e
acêntrico (cf. a teoria dos autômatas acentrados, Rosentiehl, Peitot, 1974),
cujas comunicações se realizam de modo extremamente original (MORIN,
2003, p. 53).
Os ecossistemas são formados por inúmeras redes de comunicação entre
congêneres, especialmente constituídos pelas sociedades animais (insetos, peixes,
pássaros, mamíferos). Cada uma dessas sociedades constitui e é constituída por
uma gama muito variada de signos ou de sinais – olfativos, sonoros, gestuais –, e
até por linguagens ricas como a das abelhas. Tais comunicações, no entanto são
fechadas, estanques, sendo que a linguagem das abelhas é ininteligível as não-
103
abelhas. Nesse sentido, alerta Morin (2003), parece que a regra do ecossistema seja
a não comunicabilidade entre sistemas de comunicação.
Todo sistema integra e organiza a diversidade numa unidade. Todo sistema
nasce de uma unidade que se diferencia ou de uma diferença que se
unifica. A originalidade do ecossistema é que ele nasce de ambas. A vida
surgiu num meio somente físico. A biocenose nasceu da proliferação da
vida, e eco-organização desenvolveu-se com a diferenciação da vida. Essa
diferenciação criou diversidade nos unicelulares; nessa diversidade
puderam surgir associações policelulares que, elas mesmas, se
diversificaram em miríades de espécies vegetais e animais (MORIN, 2003,
p. 57).
Com base nestes pressupostos, Morin formula o principio de que em
determinadas condições e limitações, a diversidade das espécies em um
ecossistema, aumenta em relação à sua resistência, a vitalidade e complexidade,
isso sobre os dois eixos da eco-organização (MORIN, 2003).
As conseqüências para o pensamento ecológico são relevantes, pois a
ecologia compreendida apenas a partir da ciência natural torna-se mutilada.
Não só as sociedades humanas sempre fizeram parte dos ecossistemas,
mas, sobretudo, os ecossistemas, depois dos desenvolvimentos universais
da agricultura, da criação de gado, da silvicultura, da cidade, fazem agora
parte das sociedades humanas que fazem parte deles a ecologia geral
deve, portanto, ser uma ecologia que integre a esfera antropossocial na
ecosfera e, ao mesmo tempo, a retroação formidável dos desenvolvimentos
antropossociais sobre os ecossistemas e a biosfera (MORIN, 2003, p. 88).
Assim, a humanidade passou da atividade integrada nos ecossistemas à
conquista da biosfera, mas não escapou à biosfera. A sociedade humana é
constituída e constitui os ecossistemas, é parte integrante e está integrada aos
princípios da relação ecológica. O homem se arvorou a dominador da natureza sem
perceber que sofre, também, a ecodeterminação que toda a vida sofre.
A complexidade contida no paradigma ecológico não pode produzir
plenamente seus frutos senão num pensamento que já reconheceu o
problema e a necessidade da complexidade. Em outras palavras, o
paradigma ecológico não produz “automaticamente” complexidade. A
complexidade do principio ecológico degrada-se numa ecologia mental
simplificadora, redutora, “cartesiana” ou “maniqueísta”, a qual já degradou o
pensamento sistemático (cf. O Método 1) (MORIN, 2003, p. 100).
104
Neste sentido a diversidade é um componente fundamental de toda
organização viva. Sem ela a degradação da energia vital é inevitável, dependendo
para tanto das condições de equilíbrio do sistema.
A vida celular nasceu de encontros entre entidades moleculares
extremamente diversas, e o desenvolvimento da organização celular
aumentou esta diversidade desenvolvendo diferenciações e especializações
das moléculas e dos organismos. O desenvolvimento dos organismos
policelulares é inseparável da diversificação/diferenciação/especialização
das células e dos órgãos que formam estes organismos (assim temos 200
tipos celulares nos nossos organismos humanos) (MORIN, 2003, p. 343).
Morin sustenta a importância da polêmica, do conflito, da concorrência, dos
antagonismos como sendo de fundamental importância para conceber o complexo
vivo. Neste ponto, Morin busca esclarecer o que ele entende como sendo o um mal-
entendido com René Thom. Este autor recusa o princípio de um conhecimento
complexo, afirmando que este pode ser reduzido a alguns princípios simples, como a
“luta dos contrários” que, segundo Thom, é um princípio simples. Mas Morin
compreende este princípio como sendo do pensamento complexo, da mesma forma
que o conceito thomiano de catástrofe (MORIN, 2003).
A vida é a união da união e da não-união. A vida é um fervilhar de
heterogeneidade, de desmedidas, de dispersões, de desordens, de
antagonismos, de egoísmos, de erros, de cegueira, onde tudo deveria
“naturalmente” decompor-se, dissociar-se, desintegrar-se, dispersar-se e,
efetivamente, tudo se decompõe, se dissocia, se desintegra, se dispersa
naturalmente na e pela morte. Mas também, não menos “naturalmente”,
tudo se recompõe, se reassocia, se reintegra, se agrupa, se solidariza nos
anéis, ciclos, circuitos inúmeros, encadeados, entrecruzados, auto-eco-
organizadores (MORIN, 2003, p. 413).
Morin defende que a complexidade uma exigência, uma exigência lógica e a
aceitação de um ilogismo em função desta exigência. A exigência lógica complexa,
explica Morin, parte do reconhecimento que os fenômenos não só são
simultaneamente unos/múltiplos, mas comportam dialógica e polilógica (MORIN,
2003, p. 425).
Quando a lógica que controla as operações do nosso pensamento tropeça e
escorrega diante da lógica do vivo, os fracassos desta lógica traem a
riqueza e não a carência da organização viva. O vago, a eventualidade, a
incerteza, a contradição que se infiltram nas nossas proposições exprimem
não a fraqueza mas a excelência da auto-eco-re-organização. A lógica
105
formal não é “viva”: não é biodegradável. A imperfeição lógica da vida é uma
das faces da sua complexidade (MORIN, 2003, p. 429).
Esta noção de organização viva, segundo Morin, ele já anunciara numa obra
de 1973, O PARADIGMA PERDIDO, onde ele já desenvolvia algumas teses que vieram a
desembocar no Método.
(...) sabemos que somos animais de classe dos mamíferos, da ordem dos
primatas, da família dos hominídeos, do gênero homo, da espécie dita
sapiens, que o corpo é uma máquina com trinta bilhões de células,
controlada e procriada por um sistema genético, o qual se constitui no
decurso de uma evolução natural com dois ou três bilhões de anos, que o
cérebro com que pensamos, a boca com que falamos, a mão com que
escrevemos, são órgãos biológicos, mas o saber é tão inoperante quanto o
que informou de que o nosso organismo é constituído de combinação de
carbono, de hidrogênio, de oxigênio e de azoto (MORIN, 2003, p. 458-59).
Neste segundo momento do Método Morin reinsere na vida a antropologia. As
ciências do homem haviam retirado toda a significação biológica dos termos “ser,
jovem, velho, mulher, homem, nascer, existir, morrer, ter pais, uma família”. Tais
palavras, aponta Morin, remetem a categorias socioculturais que variam no tempo e
no espaço, sendo ainda que esta ciência remete a vida e para o privado (MORIN,
2003, p. 461).
3.5.3 A Vulnerabilidade do Conhecimento
Após questionar as imagens de natureza sobre as quais se constituiu o
conhecimento na modernidade, em MÉTODO 1 - A NATUREZA DA NATUREZA (1977), e
analisar a vida em sua acidentalidade, organização e complexidade em MÉTODO 2 -
A VIDA DA VIDA (1980), Edgar Morin ocupa-se em O MÉTODO 3 - O CONHECIMENTO DO
CONHECIMENTO
(1986) de discutir as inúmeras variáveis epistemológicas que compõe
o fazer científico e, também, a necessidade de um conhecimento auto-reflexivo,
além das idéias que desenvolvemos sobre cosmos, a natureza, a vida, a sociedade,
o homem seu cérebro, seu espírito. Tal conhecimento que é produzido por sua
mente, seu cérebro, numa sociedade organizada, na natureza e inserido no cosmos.
106
Segundo Morin, “o conhecimento é, ao mesmo tempo, atividade (cognição) e
produto dessa atividade” (1999, p.247), em O MÉTODO 3, são analisadas as
condições e os aspectos bio-socio-antropológicos da atividade cognitiva. Neste
terceiro, volume o caráter hologramático e quase labiríntico da visão de natureza e
de realidade para Morin se faz sentir, também, na estruturação da obra. Ela
apresenta uma certa recursividade, não-linearidade de leitura, freqüentemente
remissivas, confere-a uma estrutura análoga aos links e ao caráter hipertextual
presentes na contemporaneidade.
O conhecimento é um produto único da máquina humana, um atributo típico
desta espécie, produção espiritual que a constitui e, ao mesmo tempo, constitui o
mundo que a contém.
O conhecimento espiritual é o conhecimento propriamente humano. Mas o
conhecimento espiritual é a última emergência de um desenvolvimento
cerebral, no qual termina a evolução biológica da hominização e começa a
evolução cultural da humanidade. O conhecimento cerebral é um
desenvolvimento particularmente original de um conhecimento inerente a
qualquer organização viva (MORIN, 1999, p. 247).
21
Este “artefato” único da maquinaria humana, praticamente, define a forma de
ser desta espécie: é a atividade computante, como qualifica Morin, capaz de produzir
esta inserção semiótica do ser-no-mundo.
A atividade computante, com efeito, caracteriza de modo original e
fundamental toda organização biológica e comporta uma dimensão
cognitiva. Nesse sentido, só se pode viver com conhecimento: 1) a vida só
pode organizar-se com e através da computação; 2) o ser vivo só pode
sobreviver num meio com e através desse meio. A vida não é viável nem
passível de ser vivida sem conhecimento (MORIN, 1999, p. 247).
O espírito humano, deste ponto de vista, só pode emergir do seio de uma
cultura, sendo inconcebível sem o cérebro com suas inter-retro-poli-computações. A
complexidade do conhecimento humano está no fato de ele ser ao mesmo tempo
cultural, espiritual, cerebral e computante.
Como todo conhecimento vivo, o conhecimento humano é um conhecimento
de um indivíduo ao mesmo tempo produto e produtor de um processo
auto(geno-feno-ego)-eco-re-organizador. Como todo conhecimento
21
Ainda em relação às datas de publicação das obras de Edgar Morin, por usarmos edições
diferentes, O Método três, tem data inferior aos Métodos um e dois.
107
individual, o conhecimento humano é ao mesmo tempo subjetivo
(caracterizado pelo ego-geno-sócio-centrismo) e objetivo (caracterizado pela
operacionalidade e pela eficácia no tratamento dos seus objetos). Como
todo conhecimento cerebral, o conhecimento humano organiza em
representações (percepções, rememorações) as informações recebidas e
os dados disponíveis. Mas, ao contrário de qualquer conhecimento humano,
associa reflexivamente atividade computante e atividade cogitante,
pensante); e produz correlativamente representações, discursos, idéias,
mitos, teorias; dispõe do pensamento, atividade dialógica da concepção,
atividade reflexiva do espírito sobre si mesmo e sobre as suas atividades; o
pensamento e a consciência utilizam necessariamente os dispositivos
lingüístico-lógicos, ao mesmo tempo cerebrais, espirituais e culturais
(MORIN, 1999, p. 248).
Em O
CONHECIMENTO DO CONHECIMENTO Morin enfatiza a natureza eco-bio-
antropossocial do processo cognitivo: não é uma parte do homem que é responsável
pela atividade intelectual, o homem se move na natureza em diferentes arranjos
culturais e de um ponto privilegiado – o seu lugar – (sua história/memória), de onde
só ele tem acesso ao mundo. Assim, Morin retoma os aspectos centrais
desenvolvidos em O MÉTODO nos volumes 1 e 2, reconstruindo as bases do
pensamento complexo. Morin compõe um novo quadro do conhecimento que tem
como fundamento a crítica radical ao paradigma da simplicidade, construído a partir
da filosofia cartesiana e que guiou o pensamento ocidental desde a renascença.
Para pensar o conhecimento e, mais ainda, conhecer o conhecimento como
propõe Morin, é necessário partir-se de uma noção de conhecimento, pois esta,
segundo o autor, parece-nos evidente por si. Mas quando questionamos sobre sua
natureza, ela se fragmenta, diversifica-se, multiplica-se em inúmeras noções, cada
uma gerando uma nova interrogação. Muitas são idéias que ocorre, quando se
procura definir o que é conhecimento. Morin enumera algumas delas:
- Os conhecimentos? O saber? Os saberes? A informação? As
informações?
- A percepção? A representação? O conhecimento? A conceituação? O
julgamento? O raciocínio?
- A observação? A experiência? A indução? A dedução
- O inato? O adquirido? O aprendido? O adivinhado? O verificado?
- A investigação? a descoberta? Inculcar? O arquivamento?
- O cálculo? A computação? A cogitação?
- O cérebro? O espírito? A escola? A cultura?
- As representações coletivas? As opiniões? As crenças?
- A consciência? A lucidez? A clarividência? A inteligência?
- A idéia? A teoria? O pensamento?
- A evidência? A certeza? A convicção? A prova?
- A verdade? O erro?
- A crença? A fé? A dúvida?
108
- A razão? A desrazão? A intuição?
- A ciência? A filosofia? Os mitos? A poesia? (MORIN, 1999, p. 19).
A noção de conhecimento, como mostra Morin, aparenta ser um tanto óbvia,
num primeiro momento, complexifica-se despedaça-se caso se queira considerá-la
em profundidade. Torna-se cada vez mais enigmática, acrescenta o autor. Ela é um
reflexo das coisas? Construção do espírito? Desvelamento? Tradução? Que
tradução? Qual é a natureza do que traduzimos em representações, noções,
teorias? São questionamentos, interrogações que se aproximam do irrespondível.
Desde o início, estamos situados diante do paradoxo de um conhecimento
que não somente se despedaça desde a primeira interrogação, mas que
também descobre o desconhecido em si mesmo e ignora até mesmo o que
significa conhecer. As competências e atividades cognitivas humanas
necessitam de um aparelho cognitivo, o cérebro, que é uma formidável
máquina bio-físico-química; esta necessita da existência biológica de um
indivíduo; as aptidões cognitivas humanas só podem desenvolver-se no
seio de uma cultura que produziu, conservou, transmitiu uma linguagem
lógica, um capital de saberes, critérios de verdade (MORIN, 1999, p. 20).
O paradigma moderno do conhecimento – que se estende, em certa medida,
até os nossos dias – além de aviltar o conhecimento da realidade, carece de uma
abordagem que contemple o conhecimento do conhecimento. Enquanto as ciências
baseiam-se no princípio disjuntivo, que exclui o sujeito (o cognoscente) do objeto (a
ser conhecido), o conhecimento do conhecimento enfrenta uma dificuldade
paradoxal que é o fato de ser o de um conhecimento que só é o seu próprio objeto
porque emana de um sujeito, como já apontara Kant. Na observação de Von
Foerster, necessitamos “não somente de uma epistemologia dos sistemas
observados, mas também de uma epistemologia dos sistemas observadores” (VON
FOERSTER, 1980, p. 17) (MORIN, 1999, p. 33).
Sustenta Morin, que se necessita reintegrar o que foi esquecido nas ciências
e nas mais importantes epistemologias, ou seja, a relação sujeito/objeto. Sem cair
num subjetivismo, mas encarando o problema complexo do sujeito cognoscente, que
permanecendo sujeito, torna-se objeto do conhecimento. O sujeito não é o ego
metafísico, fundamento e juiz supremo de todas as coisas. É o sujeito vivo aleatório,
insuficiente, vacilante, modesto, que menciona a sua finitude. Não é portador da
consciência soberana que transcende os tempos e os espaços, ele ao contrário,
introduz a historicidade da consciência (MORIN, 1999).
109
A epistemologia complexa terá uma competência mais vasta que a
epistemologia clássica, sem, todavia dispor de fundamento, de lugar
privilegiado, nem de poder unilateral de controle. Estará aberta para certo
número de problemas cognitivos essenciais levantados pelas
epistemologias bachelardiana (complexidade) e piagetiana (a biologia do
conhecimento, a articulação entre lógica e epistemologia, o sujeito
epistêmico). Propor-se-á a analisar a não somente os instrumentos do
conhecimento, mas também as condições de produção (neurocerebrais,
socioculturais) dos instrumentos de conhecimento. Nesse sentido, o
conhecimento do conhecimento não poderá dispensar as aquisições e os
problemas dos conhecimentos científicos relativos ao cérebro, à psicologia
cognitiva, à inteligência artificial, à sociologia o conhecimento, etc. mas
estes para ter sentido, não poderão dispensar a dimensão epistemológica: o
conhecimento dos componentes biológicos, antropológicos, psicológicos,
culturais não poderia ser privado de um conhecimento derivado sobre o
próprio conhecimento (MORIN, 1999, p. 35).
O conhecimento é resultado das condições físio-bio-antropo-sócio-histórico-
culturais, de produção e de condições sistêmico-lógico-lingüístico-paradigmáticas de
organização, por isso é que permite tomar consciência das condições físicas,
biológicas, antropológicas, sistêmicas, lingüísticas, lógicas, paradigmáticas de
produção e de organização do conhecimento.
O conhecimento do conhecimento se constrói a partir dos conhecimentos
científicos dedicando-lhes pelo fato destes serem os únicos que sabem resistir à
prova da verificação-refrutação. O método efetivamente se autoproduziu, a partir da
necessidade de por em comunicação os conhecimentos dispersos para desembocar
num conhecimento do conhecimento, superar as alternativas e concepções
mutiladoras que contribuíram para a auto-elaboração de um método voltado para o
pensamento menos mutilador possível e a maior consciência e a maior consciência
das mutilações inevitavelmente operada para dialogar com o real (MORIN, 1999, pp.
40-1).
Tudo que precede só pode ser admitido, reconhecido, concebido,
compreendido se precedemos a uma reorganização conceitual em cadeia. O
conhecimento em Edgar Morin se estrutura em diferentes níveis, fato que leva o
autor a problematizar e enfrentar questões relacionadas, por exemplo, à biologia do
conhecimento, seguindo os passos de Jean Piaget e dialogando com Francisco
Maturana.
Piaget tentou a aventura interrogando a biologia. Ele tinha a profunda
sensação de que as condições do conhecimento, inclusive os dados a priori
e as categorias, têm por fonte os princípios fundamentais da organização
viva. Por isso, buscava conceber o “isomorfismo estrutural entre as
110
organizações biológicos e cognitivas” (Piaget, 1967, p. 231). “Cedo ou tarde,
será preciso que a biologia nos ajude a compreender como as estruturas
lógico-matemáticas são possíveis e como se adaptam com eficácia ao meio
exterior” (MORIN, 1999, p. 49).
A concepção do ser vivo como uma forma de computação viva coloca como
devir resolver incessantemente os problemas do viver; e os problemas do viver
entende Morin, na esteira de Piaget, são os do sobreviver. Ou, ainda, repelir a morte.
A computação viva, neste sentido “regenera e reorganiza sem parar a máquina viva,
cujo trabalho ininterrupto determinam, em conformidade com o segundo princípio da
termodinâmica, a sua desorganização permanente” (MORIN, 1999, p. 55).
Em contraposição a esta:
A máquina artificial, mesmo a mais evoluída, foi concebida e construída por
humanos. A máquina viva, mesmo a mais arcaica – a bactéria -, saiu da
cisão de uma bactéria que é ao mesmo tempo sua mãe, a sua irmã e ela
mesma. A máquina artificial recebeu o seu programa dos humanos. O
programa da bactéria transmite-se de bactéria em bactéria sem que se
conheça ou conceba-se a origem. O programa das máquinas artificiais
evolui em virtude de um processo evolutivo complexo no qual não intervém
nenhum deus ex-machina. A máquina artificial produz objetos, peças,
resultados que lhe são exteriores na materialidade e/ou na finalidade. A
máquina viva produz os seus próprios componentes, produz a sua própria
produção, isto é, autoproduz-se. A máquina artificial não pode reproduzir e
multiplicar-se. A máquina artificial é organizado do exterior. A máquina viva
auto-organizar-se (MORIN, 1999, p. 56).
A computação viva própria ao ser celular, é uma computação de si, a partir de
si, em função de si, para si e em si. Por isso Morin propõe a noção de cômputo para
definir ao computante de si/para si.
O cômputo é o operador chave de um processo ininterrupto de auto
produção/constituição/organização de um ser-máquina que é ao mesmo
tempo um indíviduo-sujeito (cf. Méthode 2, pp.177-200). Esse processo
constitui um circuito autogerativo que produz o cômputo que o produz. O
cômputo não é, portanto nem a noção primeira (não precede o surgimento
da vida; acompanha-o, nem a noção final; opera num circuito que constitui e
o constitui. Constituinte/constituído num complexo no qual devemos
considerar como independentes, interprodutos e interprodutores o conjunto
de fenômenos designados pelas noções utilizadas aqui de auto-
organização, autoprodução, ser máquina, computação, indivíduo, sujeito...
(MORIN, 1999, p. 59).
111
Mesmo que seja extraordinário a forma como os vegetais conseguem
inventar soluções surpreendentes para resolver problemas vitais, para desenvolver o
modo de reprodução, para associar-se, combater-se, lutar contra os parasitas a
capacidade de encontrar soluções para a sobrevivência, é no reino animal que este
conhecimento assume suas características mais complexas. Há um traço comum
fundamental do processo de conhecimento entre a forma de conhecer destes dois
reinos que é o computar. Mesmo que o conhecimento não se limite à computação,
pode se afirmar que ela está sempre presente nestes processos (MORIN, 1999).
O aparelho neurocerebral é, digamos, um mega computador, em segundo,
terceiro, enésimo grau, que computa as intercomputações das regiões
cerebrais, as quais computam as computações das células oculares,
olfativas, etc. Os neurônios são computantes por computações sensoriais
originárias das suas computações. A partir pois das computações
sensoriais, constitui-se uma hierarquia computante, com níveis de
emergência de propriedades computantes novas, até o conhecimento global
do cérebro, emergindo como realidade dotada de qualidades próprias. A
cada nível computacional, qualidades, inexistente no nível englobado,
emergente ao nível englobante, até o nível macroenglobante da atividade
perceptiva e inteligente (MORIN,1999, p. 73).
A megacomputação cerebral se constitui num cômputo, que é “um ato auto-
exo-referente que se autocomputa, computando os estímulos vindos do mundo
exterior” (MORIN, 1999, p. 74), e esse ato é ao mesmo tempo um ato egocêntrico
que unifica o conhecimento do indivíduo como sendo o seu conhecimento. Por esta
razão, aprender não é somente adquirir um savoir-faire, mas saber como fazer para
adquirir saber.
A aptidão para aprender, propriamente dita, está ligada à plasticidade
bioquímica do cérebro. Um conhecimento adquirido pode inscrever-se
duravelmente sob a forma de uma propriedade associativa estável entre
neurônios. Desde o nascimento do animal, as experiências adquiridas
inscrevem-se em circuitos e em redes interneuroniais e o crescimento
considerável das lâminas do córtex, entre os pássaros e mamíferos, e do
neocórtex, nos primatas, aumenta ao mesmo tempo a possibilidade de
aprender a inscrição cerebral das aquisições (MORIN,1999, pp.76-7).
Desenvolvimento solidário e em interação com os da socialidade, a
multiplicação das comunicações de todos os tipos entre indivíduos tece uma rede
social cada vez mais complexa, a qual permite o crescimento das comunicações e
favorece o desenvolvimento dos indivíduos, o qual favorece o desenvolvimento da
112
complexidade social. Tanto nos mamíferos quanto nos primatas, e ao longo da
hominização, é inseparável o desenvolvimento do conhecimento e da inteligência do
desenvolvimento das interações sociais. O conhecimento é um fenômeno biológico
original que se torna original com o desenvolvimento dos aparelhos neurocerebrais.
As operações da computação artificial e da computação viva são de mesma
natureza: de associação (conjunção, inclusão, identificação, implicação) e
de separação (diferenciação, oposição, seleção, exclusão), lógicas no
primeiro caso, pré-lógicas no segundo (porque não enunciadas e somente
implícitas). A diferença entre os dois tipos de computação é, não lógica, mas
programática, isto é, conforme princípio/regras que dirigem a lógica das
operações (MORIN, 1999, p. 65). O cômputo celular é a fonte, ainda
indistinta (na atividade organizadora) e limitada (quanto ao meio de
apreensão do mundo exterior), de todos os desenvolvimentos do
conhecimento vivo, inclusive dos do conhecimento humano (MORIN,1999,
p. 79).
A inteligência pode ser reconhecida como arte estratégica no conhecimento e
na ação. É a arte de associar as qualidades complementares/antagônicas da análise
e da síntese, da simplificação e da complexificação, bem como a arte das operações
condicionais (elaboração de quase hipóteses a partir informações adquiridas).A
humanidade do conhecimento ultrapassou muito a animalidade do conhecimento,
mas não a suprimiu: nosso conhecimento é cerebral.
“Somos monstros cerebrais” (Claude Gregory). O homem dispõe de 30
bilhões, ao menos, de neurônios, logo quatro vezes mais neurônios corticais
do que os macacos mais evoluídos. Dispõe de 10
14
ou 10
15
sinapses. A
organização desse cérebro ainda se complexificou. Os seus dispositivos
cognitivos têm novas competências. As suas possibilidades de
aprendizagem e de memorização são enormes. O desenvolvimento
extraordinário das estratégias de conhecimento e de ação realiza-se desde
então num nível radicalmente novo, no qual apareceram a linguagem, o
pensamento, a consciência (MORIN, 1999, p. 84).
A questão envolvendo a relação espírito e cérebro recebe de Morin um
tratamento que expressa de forma muito instigante a relação de dependência e
relativa autonomia destas duas instâncias envolvida na produção do conhecimento.
Eis aqui duas noções, o cérebro e o espírito, ligadas por um nó górdio que
não se pode desatar, em torno do qual giram as visões de mundo, do homem, do
conhecimento, em relação ás quais só se pode decidir com um bárbaro golpe de
espada.
113
O espírito nada sabe, por si mesmo, do cérebro que o produz, o qual nada
sabe do espírito que concebe. Há ao mesmo tempo abismo ontológico e
opacidade mútua entre, de um lado, um órgão cerebral constituído de
milhares de neurônios ligados por redes, movidos por processos elétricos e
químicos, e, de outro lado, a Imagem, a Idéia, o Pensamento. Contudo é
juntos, mas sem se conhecer, que eles conhecem (MORIN, 1991, p. 88).
Como então compreender e explicar a dupla subordinação espírito/cérebro e
a relativa autonomia de ambos? Assim, como viu com muita lucidez André
Bourguignon,
(...) a solução do problema corpo-espírito só pode ser contraditório: o corpo
(atividade nervosa encefálica) e o espírito (atividade psíquica) são ao
mesmo tempo idênticos, equivalentes, diferentes, distintos. Tal solução
impõe nunca privilegiar um dos termos da contradição em benefício do
outro, sobretudo quando se trata de pesquisa científica (BOURGUIGNON
apud MORIN, 1991, p. 88).
A contradição remete-nos ao círculo paradoxal entre as noções de cérebro e
de espírito. Com efeito, se o cérebro pode ser concebido como instrumento do
pensamento, este pode ser concebido como instrumento do cérebro. A noção de
cérebro foi, efetivamente, o produto de um longo trabalho do espírito, mas o espírito
é o produto de uma ainda mais longa evolução do cérebro. A atividade do espírito é
uma produção do cérebro, mas a concepção do cérebro é uma produção do espírito
(MORIN, 1991, p. 93). Tudo isso se exprime no paradoxo essencial: o que é um
espírito que pode conceber o cérebro que o produz, e o que é um cérebro que pode
produzir um espírito que o concebe (MORIN, 1991, p. 94)?
O espírito, que depende do cérebro depende de outra maneira – não menos
necessariamente – da cultura. É preciso que os códigos lingüísticos e simbólicos
sejam gravados e transmitidos numa cultura para que se possa dar a emergência do
espírito. A cultura é indispensável para a emergência do espírito e para o
desenvolvimento total do cérebro, os quais são indispensáveis à cultura e à
sociedade humana, as quais só existem e ganham consistência na e pelas
interações entre os espírito/cérebro dos indivíduo.
Enfim, a esfera das coisas do espírito é continua e inseparável da esfera da
cultura: mitos, religiões, crenças, teorias, idéias. Essa esfera submete o espírito,
desde a infância, através da família, da escola, da universidade, etc., a um imprinting
114
cultural; influência sem volta que criará na geografia do cérebro ligações e circuitos
intersinápticos, isto é, seus caminhos, vias, limites. Assim, a cultura deve fazer parte
da unidualidade espírito/cérebro, transformando-a em trindade. Ela é, não um
estranho, mas um terceiro incluído na identidade do espírito/cérebro (MORIN, 1991,
p. 95).
Como vimos também, a atividade cognitiva do cérebro animal pode ser
considerada como uma megacomputação envolvendo, analisando e
sintetizando computações de computações. A originalidade do aparelho
neurocerebral do homem, em relação ao de seus predecessores, consiste
em dispor de uma complexidade organizacional que lhe permite desenvolver
e transformar as computações em “cogitações” ou pensamento, através da
linguagem, do conceito e da lógica, o que exige um campo sociocultural. Em
conseqüência, o cômputo torna-se cogito ao ter acesso à reflexividade do
sujeito capaz de pensar o seu pensamento pensando-se a si mesmo, isto é,
desde que alcança correlativamente a consciência do que sabe a
consciência de si mesmo. A linguagem e a idéia transformam a computação
em cogitação. A consciência transforma o cômputo em cogito. A cogitação
emerge da computação, mas sem que esta cesse. Os dois fenômenos são
inseparáveis (MORIN, 1991, p. 98).
Assim, o espírito surge com a cogitação (pensamento) e com a consciência.
O espírito é, pois, uma emergência, no sentido que definimos, isto é, um complexo
de propriedades de qualidades que, originário de um fenômeno organizador,
participa dessa organização e retroage sobre as condições que o produzem. O
espírito é uma emergência própria do desenvolvimento cerebral do homo sapiens,
mas somente nas condições culturais de aprendizagem e de comunicação ligadas à
linguagem humana – condições humanas –; condições que só puderam surgir
graças ao desenvolvimento cerebral/intelectual do homo sapiens ao longo dessa
dialética multidimensional que foi a hominização (MORIN, 1991, p. 99).
O espírito é produto – produtor de cogitação e a partir disso o conjunto da
unidualidade cérebro – espírito controla as partes e retroage sobre elas.
Esse conjunto, não o esqueçamos, é ele mesmo uma parte altamente
qualificada e diferenciada na atividade inter-poli-computante de todo ser;
fabulosa república de milhares de células repartidas, parece, quase tanto no
cérebro quanto no corpo. Assim, podemos começar a conceber o vínculo
entre os fenômenos de auto-organização biofísica do ser corporal e as mais
altas especulações do espírito (MORIN, 1991, pp. 99-100).
Por isso, podemos entrever as mediações, transformações, metamorfoses
que produzem na mesma cadeia as interações moleculares e as associações de
idéias. Os acontecimentos físico-químicos e as experiências conscientes integram o
115
mesmo complexo. Assim, pode-se compreender que o cérebro, produtor do espírito,
seja ao mesmo tempo uma descrição-representação produzida pelo espírito
emergente (MORIN, 1991).
O cérebro é definido por Morin como sendo uma máquina hipercomplexa,
resultado tardio da evolução que permitiu ao homem realizar uma série de
operações, exercita ao extremo a computação e a cogitação. O homem é inteligente,
mas seu cérebro desafia a sua inteligência. Esse cérebro já era, há mais ou menos
cem mil anos, portador de possibilidades intelectuais, culturais e sociais que só se
realizam bem mais tarde, sendo que a maior parte delas ainda nos é talvez,
inimaginável (MORIN, 1991).
Eis uma máquina totalmente físico-química nas suas interações; totalmente
biológica na sua organização; totalmente humana nas suas atividades
pensantes e conscientes. Ela associa todos os patamares do que
chamamos realidade (MORIN, 1991, p. 108).
A computação artificial, que nos guiou para conceber a natureza computante
do conhecimento e para reconhecer o cérebro como um computador gigante, coloca-
nos às portas da originalidade específica da máquina cerebral humana.
Ao contrário da máquina cognitiva artificial, exterior ao homem que a produziu
e organizou, o cérebro faz parte do ser humano. Eles são, juntos, o fruto evolutivo de
dezenas de milhões de anos da vida animal. A evolução auto-eco-organizadora
propriamente animal e a consubstancialidade do cérebro ao ser estabelecem a
diferença entre o computador cerebral humano e o computador artificial.
O cérebro é uno na sua constituição neuronal e diverso morfológica,
organizacional e funcionalmente. A organização cérebral combina especialização e
não especializações, localizações e não-localizações. Assim, existem neurônios,
centros e zonas especializadas, mas há igualmente vastas regiões não
funcionalmente especializadas no neocórtex. Por outro lado, a alteração de zonas
funcionalmente especializadas pode ser compensada por deslocamento e
reconstrução das funções numa zona não especializada (há, nos surdos,
recuperação do córtex auditivo pela função visual) (MORIN, 1991, p. 109-10).
Assim, o cérebro é, ao mesmo tempo, acêntrico (“o espírito não tem centro”,
diz delgado) e policêntrico (pois dispõe de múltiplos centros). As regiões
mais importantes do ponto de vista do pensamento são também as mais
116
periféricas (córtex e neocórtex). Da mesma forma, vimos (Méthode 2,
pp.309-315), e reveremos, que existem simultaneamente anarquia,
heterarquia e hierarquia entre as diferentes regiões do cérebro. Essas
poucas indicações mostram, por evidência, que a organização do aparelho
cognitivo obedece, não aos princípios cêntricos/hierátquicos/especializados,
que governam até agora as nossas máquinas artificiais, mas aos princípios
complexos de organização biológica que combinam
acentrismo/policentrismo/centrismo, anarquia/poliarquia/hierarquia e
especilização/policompetência/não-especialização (cf.Méthode 2, pp.305-
323) (MORIN, 1991, pp. 110-11).
O princípio dialógico pode ser definido como a associação complexa
(complementar/concorrente/antagônica) de instâncias necessárias em conjunto à
existência, ao funcionamento e ao desenvolvimento de um fenômeno organizado (cf.
Méthode 1, pp379-380, Méthode 2, p.372) (MORIN, 1991, p. 122).
Em resumo, o processo da percepção, que produz e necessita de uma
representação, é ao mesmo tempo:
1) dialógico, pois é o fruto de uma dialógica entre o aparelho neurocerebral,
logo o espírito, e o meio exterior, logo o mundo (examinaremos mais adiante
as condições dessa dialógica;
2) autogerativo, pois constitui um circuito construtor (no qual cada momento
é ao mesmo tempo gerado e gerador, efeito e causa) que parte do olho
(estímulos fotônicos) para retornar ao olho (visão tridimensional)
reconstruindo um mundo a partir das “amostras coletadas”;
3) holoscópico, pois produto das visões panorâmicas que invadem o
horizonte mental e tiram do olhar, da audição, do olfato, a forma, as formas
e a consistência do mundo exterior; é igualmente, pode-se supor,
hologramático nos modos de inscrição e rememoração (MORIN, 1991, pp.
133-34).
A idéia de tradução somente se torna insuficiente, pois remete a operações
que se realizam entre duas linguagens. Quanto à percepção, o primeiro processo
neuro-sensorial transforma acontecimentos que em si mesmos não constituem
signos de uma linguagem (embora aptos a se tornarem signos, pois se manifestam
sob a forma de diferenças, variações, constâncias, repetições, etc.); transforma-os
em informações codificadas dependentes de uma primeira linguagem que será
objeto de novas traduções, até uma ultima e maior transformação, a representação
(MORIN, 1991, p. 135).
Computar e cogitar são duas operações que contribuem para a efetivação do
conhecimento, mas que se diferenciam drasticamente, sendo que o primeiro é o
responsável por toda a forma de conhecimento produzido, enquanto que a cogitação
diz respeito apenas ao conhecimento humano. A cogitação (pensamento),
emergente das operações computantes da máquina cerebral, retroage sobre essas
117
computações, utiliza-as, desenvolvendo-as e transforma-as formulando-se na
linguagem.
A cogitação formula-se pela linguagem, que permite à cogitação tratar não
somente o anterior à linguagem (a ação, a percepção, a lembrança, o
sonho), mas também o que depende da própria linguagem, os discursos, as
idéias, os problemas. (...) A cogitação não recalca a computação, mas
desenvolve a partir desta, levando-a a um novo nível de organização: a
linguagem é ao mesmo tempo computada (no primeiro nível da articulação
dos sons ou fonemas e das estruturações sintáticas profundas) e cogitada
(ao nível da formação das palavras e da emergência do sentido). O discurso
forma-se num circuito de computação – cogitação (MORIN, 1991, p. 143).
Além de informar, ou seja, dar forma ao pensamento, organizando-o através
de palavras, a cogitação produz uma nova dimensão da compreensão, um novo
modo de organização do conhecimento.
A cogitação traz e desenvolve, em simbiose com a computação, o repertório
das palavras, a organização do discurso, a possibilidade de considerar
palavras e discursos como objetos que podem ser flexivamente
considerados (quanto a sentido, adequação, coerência) e tratados (com
outras palavras e discursos). Dito de outra forma, a cogitação produz uma
nova esfera, um novo modo de organização do conhecimento, ao qual a
computação fornece seu modo de organização próprio. Há portanto um
circuito reflexivo indissociável: computação cogitação (MORIN, 1991, p.
144).
A lógica, quando se formula e formaliza, constitui não o “programa” da
cogitação (o qual está constituído pelo conjunto dos princípios/regras/categorias de
entendimento), mas, dentro e a serviço deste “programa”, um sistema de
princípios/regras destinados a guiar e verificar a consistência e o rigor das
operações que determinam os enunciados; controla, enfim, a consistência e o rigor
de encadeamentos computacionais que dão sentido às proposições (MORIN, 1991,
p. 146).
Vimos que existe uma inteligência animal desprovida de linguagem e que uma
parte do nosso pensamento é sublingüística. Mas podemos seguir, a afirmação ao
mesmo tempo seguras e avançadas de Chomsky e de Quine: “para boa parte do
pensamento, necessitamos da mediação da linguagem” (CHOMSKY, in Piaget,
Chomsky, 1979, p. 258). (...) “entre a linguagem e o pensamento, existe (...) um
círculo genético de maneira que cada um dos termos se apóia necessariamente no
outro numa formação solidária e em permanente ação recíproca” (Piaget, 1966,
p.113). (MORIN, 1991, p. 147).
118
A linguagem é tão necessária à constituição, à perpetuação, ao
desenvolvimento da cultura quanto à inteligência, ao pensamento e à consciência do
homem; tão consubstancial ao humano que se pode dizer que a linguagem faz o
homem. Mas essa idéia mutila uma verdade complexa: a linguagem fez o homem
que a fez: assim como fez a cultura que a produziu (MORIN, 1991).
A crise começou na filosofia. Mesmo permanecendo pluralista nos seus
problemas e concepções, a filosofia dos tempos modernos foi animada por
uma dialética que remetia um ao outro a busca de um fundamento seguro
para o conhecimento e o perpétuo retorno do espectro da incerteza o
acontecimento decisivo do século XIX, nessa dialética, foi a crise da idéia de
fundamento. Depois que a crítica Kantiana retirou do entendimento a
possibilidade de atingir a “coisa em si”, Nietzsche anunciou, de outra
maneira não menos radical, a inexorabilidade do niilismo; no século XX,
Heidegger questionou o fundamento dos fundamentos, a natureza do ser, e
sua reflexão foi consagrada à problemática de um “fundamento sem fundo”
(MORIN, 1999, p. 23).
No entanto, ao longo do século XIX e no começo do século XX, a ciência
entendia que havia encontrado o indubitável fundamento empírico/lógico de toda
verdade. As teorias cintíficas pareciam emanar da própria realidade, via indução, a
qual legitimava as verificações/confirmações empíricas como prova lógica e
ampliava-as enquanto leis gerais. Ao mesmo tempo, os princípios lógicos-
matemáticas que asseguravam a coerência interna das teorias verificadas pareciam
refletir as próprias estruturas do real.
Desde então, nem a verificação empírica nem a verificação lógica são o
suficientes para estabelecer um fundamento seguro ao conhecimento. Este
se acha condenado a carregar no coração uma ferida aberta. (MORIN,
1999, p. 25). Se o conhecimento é radicalmente relativo e incerto, o
conhecimento do conhecimento não pode escapar a essa relatividade e a
essa incerteza. Mas a dúvida e a relatividade não são somente corrosões;
podem tornar-se também estímulo (MORIN, 1999, p. 26).
O esforço para dar um fundamento ao conhecimento não parou de ocupar a
investigação filosófica. Mas o conhecimento do conhecimento só emergiu como
problema fundamental com a “revolução copernicana” de Kant, que fez do
conhecimento o objeto central do conhecimento. A reflexividade Kantiana realiza
uma objetivação fundamental da atividade cognitiva, qual se torna objeto de um
conhecimento de “segunda ordem”, conhecimento referente ao conhecimento,
estabelecendo princípios e categorias relativas às categorias.
119
Como toda grande filosofia, o kantismo passa uma mensagem com
múltiplas faces, dentre as quais três nos interessam. A primeira encerra o
conhecimento em limites intransponíveis (pois não conseguiria atingir as
“coisas em si”, mas somente os “fenômenos”; a segunda revela-nos a
unidade indestrutível das possibilidades e dos limites do conhecimento, pois
são as nossas estruturas mentais que, ao limitá-la a estes, permitem nosso
conhecimento dos fenômenos; a terceira abre ao conhecimento um campo
novo e privilegiado, o das estruturas do conhecimento: se só podemos
conhecer uma realidade exterior de segunda escolha, podemos, ao menos,
conhecer uma realidade interior de primeira escolha, a da organização do
nosso conhecimento (MORIN, 1999, p. 30).
O problema das possibilidades e dos limites do conhecimento parou já faz um
século de restringir-se ao terreno somente filosófico, como indicam os
desenvolvimentos das neurociências, das psicologias cognitivas e, nos seus
contextos próprios, das histórias e sociologia do conhecimento (MORIN, 1999, p.
30). De fato, enquanto os deslocam e renovam, as pesquisas científicas relativas ao
conhecimento retomam o problema posto por Kant e, aquém, o problema filosófico
clássico da relação entre corpo/cérebro e espírito. Achamo-nos, portanto, em
território científico sem abandonar a interrogação filosófica. Não se trata aqui, como
vimos, de dividir o território ou de reservar uma esfera inviolável à filosofia. O
conhecimento do conhecimento deve tornar-se com legitimidade cem por cento
científico, objetivando ao máximo todos os fenômenos cognitivos.
No seu princípio igualmente, a psicanálise freudiana é uma ciência do
complexo – não somente no sentido banalizado do termo (“eu tenho complexos”) -,
mas sobretudo no sentido da complexidade bio-antropo-social, justamente a que
tentamos conceber em nossa investigação. Foi bem essa complexidade que Freud
reconheceu no sujeito na psique. Assim, o sujeito freudiano é o produto e o centro
de uma dialógica complexa bio-sócio-individual 1) o Id (esfera biopulsional); 2) o
Superego (esfera da autoridade paterna e além-social); 3) a esfera propriamente
individual do ego. da mesma forma, Freud captou a relação (complementar,
concorrente, antagônica) entre Eros e Psique que comanda as suas comunicações e
transformações secretas (MORIN, 1999, p. 157).
Nessas condições, não é somente uma feliz e evidente harmonia que
estabelece entre a teoria e o real, mas também uma identificação secreta, por magia
analógica, que se opera entre o análogo teórico e o mundo real. Por isso, a teoria dá
120
ao espírito, em sua comunicação que se torna comunhão com o mundo, o
sentimento evidente de possuir o mundo e de ser possuído por ele. Assim, a
contemplação teórica da verdade alia-se com a posse possuída dessa verdade
(MORIN, 1999, p. 163).
Todo conhecimento comporta aspectos individuais, subjetivos e existenciais.
As idéias que possuímos nos possuem. Nosso apega às nossas idéias, ainda que
não se reduza a este único aspecto, tem caráter passional/existencial. Como
qualquer paixão, a do conhecimento pode suscitar um engajamento total do ser.
Como qualquer amor, o amor da, na, pela, com a verdade pode proporcionar o gozo
mais exaltado e conduzir ao êxtase (MORIN, 1999, p. 166).
Assim como o conhecimento humano não conseguiria prescindir do sujeito,
mas deve lutar vitalmente contra o egocentrismo, tem necessidade vital e de
afetividade (paixão de conhecer, sede de verdade), mas precisa lutar vitalmente
contra a afetividade, pois esta extravia e falseia a paixão de conhecer e a sede de
verdade que suscitou. O conhecimento humano não saberia desvincular-se da
existência, mas não deveria deixar acorrentar-se a esta.
O amante da verdade deve analisar a sua idiossincrasia intelectual e o
significado das suas obsessões cognitivas; deve tentar elucidar as suas próprias
questões ansiogênicas e as suas próprias respostas calmantes. A necessidade de
auto-análise, que não só englobaria, mas ultrapassaria a investigação psicanalítica,
impõe-se para cada um, inclusive as altas autoridades intelectuais e universitárias,
que deveriam ser as primeiras a preocupar-se com tal auto-exame.
A pulsão exploradora do mamífero transformou-se em paixão humana de
conhecer, paixão que vive os seus sofrimentos, alegrias, gozos, coitos. No coração
dessa paixão há, em alguns, a pulsão infinita, insaciável, que leva o sujeito a
procurar a/sua verdade fora dele mesmo, além de si mesmo, além do conhecido,
além do cognoscível (MORIN, 1999).
O desejo infinito de conhecimento e o desejo imperativo de verdade, que
levam a conhecer por conhecer, sem preocupação com as conseqüências éticas,
políticas ou religiosas, são, sem dúvida, o motor mais potente da aventura do
conhecimento; tendem a superar todos os obstáculos e a liberar-se dos imprinting
socioculturais.
121
As noções de compreensão e de explicação parecem, destaca Morin, numa
primeira análise, justapor-se; a primeira distinguindo-se talvez por uma conotação
sintética; a segunda por uma conotação analítica. Tentaremos mostrar que esta
categorização (que formularemos de maneira um pouco diferente) tem valor
antropológico e que a relação compreensão/explicação comporta uma
complementaridade não menos fundamental que a sua oposição (o que nos fará
mais uma vez evocar a configuração (yin-yang) (MORIN, 1999, p. 174).
Num primeiro sentido, a compreensão é o conhecimento que aprende tudo
aquilo que podemos fazer uma representação concreta, ou que podemos captar de
maneira imediata por analogia. Assim, a representação é compreensiva, pois
proporciona um conhecimento no próprio ato, gerando um análogo do fenômeno
percebido (o que não impede de forma alguma que a representação possa ser
logicamente analisada e, se for o caso, torne-se matéria de explicação como
veremos em seguida). A explicação é um conhecimento adequado aos objetos,
aplicável aos seres vivos quando estes são percebidos, concebidos, estudados
como objetos.
No estádio evolutivo atual, o conhecimento por computador continua uma
apêndice operacional do conhecimento humano; ainda não se trata do
primeiro modelo de um conhecimento sobre-humano. Não é proibido
imaginar, para o futuro, máquina cognoscentes, artificiais no começo, e
depois auto-organizativas e dotadas de individualidade. Mas elas se
tornariam então novos seres-sujeito que gozariam e sofreriam com os seus
conhecimentos, produziram. Talvez, os seus próprios mitos e poderiam
então manipular as coisas ou mesmo os seres humanos (MORIN, 1999,
p.249).
Mais do que qualquer outro conhecimento, o humano pressupõe inerência,
separação e comunicação. A inerência implica pertencer a um mesmo mundo; o
conhecimento das coisas físicas pressupõe pertencer ao mundo físico; o
conhecimento dos fenômenos vivos pressupõe a filiação biológica; o conhecimento
dos fenômenos culturais pressupõe a filiação a uma cultura. Sem inerência, há
separação absoluta, logo nenhuma comunicação possível. Contudo, nessa
inerência, há necessariamente separação entre o cognoscente e o cognoscível, ou
seja, uma dualidade prévia e insuperável.
Há, também, entre indivíduos de uma mesma sociedade, uma relação de
inerência/separação/comunicação que permite não somente o conhecimento mútuo,
122
mas também a partilha, a troca e a verificação do conhecimento. De maneira ainda
mais surpreendente, a separação/comunicação está no interior do ser cognoscente
e é anterior ao próprio conhecimento. Assim, na comunicação entre o cérebro e o
resto do organismo a “barreira hemato-encefálica” filtra as pequenas moléculas de
oxigênio, impedindo a maioria das moléculas maiores, presentes no sangue, mas
tóxicas para os neurônios, de passar no cérebro (MORIN, 1999, pp. 250-51).
3.5.4 O Mundo das Idéias
Se há aproximadamente 15 bilhões de anos uma grande explosão deu origem
ao universo e se a terra tem cinco bilhões de anos tendo vida surgido no planeta há
aproximadamente 4,5 bilhões de anos, então tudo isto é incompreensível para nós,
que em nossa experiência de espíritos/máquinas contemplamos individualmente
este espetáculo cósmico por não mais que setenta anos na media. Temos a
experiência do minuto, do segundo, da hora, dia, meses, semanas, anos, décadas.
Séculos, milênios, milhões e bilhões de anos se nos apresentam como uma ficção,
uma crença, quase fé. Desta forma, afirmar que a vida surgiu aqui na terra pouco
depois do próprio planeta, pode não significar quase nada. O que é pouco tempo
depois quando estamos lidando com numa escala cósmica? Quinhentos milhões ou
um bilhão de anos pode ser considerado pouco, a partir de nossas vivências
humanas?
A experiência cósmica não tem testemunhas, apenas seus vestígios podem
ser perscrutados a partir dos rastros que esta produziu e produz. Desde as primeiras
formas incipientes de vida – as primitivas cadeias de RNA – até os organismos mais
complexos como os mamíferos, dentre eles os homens, a vida não parou de se
reproduzir, de se complexificar: a vida apegou-se à vida. E todo este universo
disperso, hermético, quase insondável encontra-se organizado somente no âmbito
das idéias, matéria exclusiva produzida por um das formas de vida que a natureza
engendrou: o ser humano.
Ainda que a Antropologia e Arqueologia colecionem “pegadas” de
antropóides, hominídeos e humanos por milhares e milhões de anos, são – sem
123
dúvida alguma –, as pinturas rupestres por volta de 30 mil anos atrás, no interior das
cavernas, presentes em todos os continentes, os indícios mais recuados que
possuímos das primeiras idéias humanas intencionalmente produzidas e
representadas plasticamente. Desde então, estes seres “evoluídos”, com ancestrais
comuns aos símios, passaram a deixar marcas voluntárias de sua existência e de
seu mundo. E são estas marcas deixadas, a princípio nas paredes das cavernas,
depois em “tabuinhas” de argila, mais tarde em papiro, papel e, por fim, na memória
e nas telas dos computadores é que vão formar a noosfera – a esfera das idéias.
Produto por excelência do pensamento humano; da máquina de computar e cogitar,
a máquina maquinante, as idéias se alastram pelas vias do planeta, capilarizando-se
entre as mentes/cérebros.
Os mitos adquiriram forma, consciência, realidade, a partir de fantasmas
formados pelos nossos sonhos e pela nossa imaginação. As idéias
ganharam forma, consistência, realidade, a partir dos símbolos e dos
pensamentos das nossas inteligências. Mitos e idéias voltaram-se para nós,
invadiram-nos, deram-nos emoção, amor, ódio, êxtase, fúria. Que vitalidade
espantosa, parte das nossas vidas, a da noosfera! Efetivamente, é parte da
nossa substância que aí vive, somos seres humanos, não apenas por causa
das nossas filiações genéticas, anatômicas, psíquicas, culturais, sociais,
mas também porque todas essas vinculações alimentaram juntas essa
fabulosa noosfera que nos pertence e a qual pertencemos desde as nossas
origens de Homo sapiens/demens. (MORIN, 1998, p. 306).
Devemos estar muito consciente de que, desde a aurora da humanidade, a
linguagem, a cultura, as normas de pensamento, agarraram o ser humano e nunca
mais o largaram. Desde essa alvorada, ergueu-se a noosfera, com a proliferação
dos mitos, dos deuses, cujo formidável levante empurrou o Homo Sapiens a delírios,
massacres, crueldades, adorações, êxtases, maravilhas desconhecidas do mundo
animal.
O Método trata da vida, do espírito, das ideologias, do imaginário, da luta
entre escolas diferentes de pensamento e da necessidade de tolerância. Precisamos
aprender a contextualizar e a globalizar os conhecimentos. Devemos saber que a
revolução atual não se dá no terreno do combate mortal das boas e verdadeiras
idéias contra as más e falsas, mas no campo da complexidade do modo de
organização das idéias.
124
Assim, à antropologia do conhecimento, que considera o conhecimento do
ponto de vista das suas condições psicocerebrais de formação, sucede
naturalmente a ecologia do conhecimento, que o considera do ponto de
vista de suas condições sócio-culturais-históricas de formação: depois vem
o exame “noológico”, que o toma sob o prisma da existência e da
organização do mundo das crenças e das idéias. Esses dois pontos de vista
aparecem em seqüência neste volume intitulado As idéias, hábitos, vida,
costumes, organização (MORIN, 1998, p. 13).
Em contrapartida, ressalta Morin (1998), vê se muito bem por que uma
sociologia de ideal determinista não pode conceber nem a complexidade social, nem
a complexidade cognitiva, nem a necessidade de um pensamento sociológico
complexo.
É verdade que todo conhecimento, inclusive o científico, está enraizado,
inscrito no e dependente de um contexto cultural, social, histórico. Mas o
problema consiste em saber quais são essas inscrições, enraizamentos,
dependências, e de perguntar-se se pode aí haver, e em que condições,
uma certa autonomização e uma relativa emancipação do conhecimento e
da idéia (MORIN, 1998, p. 20).
Ainda que as condições socioculturais do conhecimento sejam de natureza
totalmente diferente das condições biocerebrais, estão ligadas de forma
insepareável. As sociedades só existem e as culturas só se formam, conservam,
transmitem e desenvolvem através das interações cerebral-espirituais entre os
indivíduos.
A cultura, que caracteriza as sociedades humanas, é
organizada/organizadora via veículo cognitivo de linguagem, a partir do
capital cognitivo coletivo dos conhecimentos adquiridos, das competências
apreendidas, das experiências vividas, da memória histórica, das crenças
míticas de uma sociedade. Assim se manifestam “representações coletivas”,
“consciência coletiva”, “imaginário coletivo”. E, dispondo de seu capital
cognitivo, a cultura institui as regras/normas que organizam a sociedade e
governam os comportamentos individuais. as regras/normas culturais geram
processos sociais e regeneram globalmente a complexidade social
adquirida por essa mesma cultura. Assim, a cultura não é nem
“superestrutura” nem “infra-estrutura”, termos impróprios numa organização
recursiva onde o que é produzido e gerado se torna produtor e gerador do
que produz ou gera. Cultura e sociedade estão e relação geradora mútua;
nessa relação, não podemos esquecer as interações entre indivíduos, eles
próprios portadores/transmissores de cultura, que regeneram a sociedade, a
qual regenera a cultura (MORIN, 1998, p. 23).
Para conceber a sociologia do conhecimento, é necessário, portanto,
conceber não apenas o enraizamento do conhecimento na sociedade e a interação
125
conhecimento/sociedade, mas, sobretudo, o anel recursivo no qual o conhecimento
é produto/produtor de uma realidade sociocultural que comporta intrinsecamente
uma dimensão cognitiva. Os homens de uma cultura, pelo seu modo de
conhecimento, produzem a cultura que produz o seu modo de conhecimento. A
cultura gera os conhecimentos que regeneram a cultura. O conhecimento depende
de múltiplas condições socioculturais as quais, em retorno, condiciona.
Ao considerar-se a que ponto o conhecimento é produzido por uma cultura,
depende de uma cultura, integrado a uma cultura, pode-se ter a impressão de que
nada seria capaz de libertá-lo.
Mas isso seria ignorar as potencialidades de autonomia relativa, no interior
de todas as culturas, dos espíritos individuais. Os indivíduos não são todos,
e nem todos, e nem sempre, mesmo nas condições culturais mais fechadas,
máquinas triviais obedecendo impecavelmente à ordem social e às
injunções culturais (MORIN, 1998, p. 30).
Assim, o conhecimento está ligado, por todos os lados, à estrutura da cultura,
à organização social, à práxis histórica. Ele não é apenas condicionado,
determinado e produzido, mas é também condicionante, determinante e produtor (o
que demonstra de maneira evidente e a aventura do conhecimento científico). E
sempre e por toda a parte, o conhecimento transita pelos espíritos individuais, que
dispõem de autonomia potencial, a qual pode, em certas condições, atualizar-se um
pensamento pessoal (MORIN, 1998, p. 31).
O imprinting cultural inscreve-se cerebralmente desde a mais tenra infância
pela estabilização seletiva das sinapses, inscrições iniciais que marcarão
irreversivelmente o espírito individual no seu modo de conhecer e de agir. À
marca indestrutível das primeiras experiências, acrescenta-se e combina a
aprendizagem indelével, que elimina ipso facto outros modos possíveis de
conhecer (Mehler,1974). Desde então, o imprinting impede de ver
diferentemente do que mostra. Mesmo quando se atenua a força do tabu,
que proíbe, como nefasta e perversa, toda idéia não-conforme, o imprinting
cultural determina a desatenção seletiva, que nos faz desconsiderar tudo
aquilo que não concorde com as nossas crenças, e o recalque eliminatório,
que nos faz recusar toda informação inadequada às nossas convicções, ou
toda objeção vinda de fonte considerada má. O imprinting manifesta os seus
efeitos mesmo em nossa percepção visual. “somos culturalmente
hipnotizados desde a infância”, foi possível com justiça, exclamar. (MORIN,
1998, p. 35).
A primeira condição de uma dialógica cultural é a pluralidade/diversidade dos
pontos de vista. Essa diversidade é potencial em toda parte: toda sociedade
126
comporta indivíduos genética, intelectual, psicológica e afetivamente muito diversos,
aptos, portanto, a pontos de vista cognitivamente muito variado. São, justamente,
essas diversidade de pontos de vista que o imprinting inibe e a normalização reprime
(MORIN, 1998, p. 38).
Em qualquer sociedade, qualquer comunidade, qualquer grupo, qualquer
comunidade, qualquer família, existente diferenças muito grandes de um
indivíduo para outro enquanto à aceitação, integração, interiorização da lei,
da Autoridade, da Norma, das Verdades estabelecidas. Por isso, há em
qualquer lugar uma minoria de desviantes potenciais e, dentro dessa
minoria, uma minoria pode marginalizar-se ou, eventualmente rebelar-se
(MORIN, 1998, p. 42).
O processo de formação de uma tendência é ao mesmo tempo o da
legitimação cultural dessa tendência: a nova concepção torna-se respeitável e
respeitada, institucionaliza-se, estabelece a regra, ou mesmo o seu princípio de
normalização, na sua esfera de influência. Assim, a “mentalidade científica”,
inicialmente marginal e desviante, muito prudente, até mesmo astuciosa em relação
aos poderes coligados do espiritual e do temporal, progressivamente autonomizou-
se no interior da sociedade, criando suas associações e instituições e, em dois
séculos, tornou-se a nova ortodoxia no conhecimento do mundo, mas uma ortodoxia
de novo tipo, pois comporta o debate e o conflito de idéias (MORIN, 1998).
Desde essa alvorada, ergueu-se a noosfera, com a proliferação dos mitos,
dos deuses, cujo formidável levante empurrou o Homo Sapiens a delírios,
massacres, crueldades, adorações, êxtases, maravilhas desconhecidas do
mundo animal. Desde essa aurora, vivemos no meio de uma floresta de
símbolos, da qual não podemos sair. Ainda no fim do segundo milênio,
como o daimons dos gregos e, por vezes, como os demônios do evangelho,
nossos demônios ideais arrastam-nos, submergem nossa consciência,
dando-nos a ilusão de seremos hiperconscientes (MORIN, 1998, p. 305).
A noosfera está em nós da mesma forma em que estamos nela. Ela saiu das
nossas almas e dos nossos espíritos. Os mitos adquiriram consistência e realidade,
pelos nossos sonhos e pela nossa imaginação. As idéias ganharam forma,
consistência, realidade, a partir dos símbolos e dos pensamentos das nossas
inteligências. Mitos e idéias voltaram-se para nós, invadindo-nos, deram-nos
emoção, amor, ódio, êxtase, fúria etc., sustenta Morin (1998).
127
Ao final da análise das três instâncias, antropológica, sociocultural e
noológica, cada uma delas sendo co-produtora de conhecimento e de
idéias, vemos que se acham ligadas num nó górdio, pois cada um depende
da outra, cada uma é necessário ao conhecimento do conhecimento, o qual
é necessário ao conhecimento complexo (MORIN, 1998, p. 306).
Aprendemos que a seleção sociológica, cultural, noológica, das idéias só
raramente obedece à sua verdade, podendo, ao contrário, ser impiedosa com a
busca da verdade. Não se trata da seleção das melhores, mas das mais
impressionantes. Como na selva humana, quantas mortes, assassinatos de idéias
desarmadas na selva noosférica. Aprendemos que as idéias se fixam celebralmente
por estabilização seletivas das sinapses, inscrevem-se fisicamente por imprinting,
adquirem vida e poder noológico alimentando-se com nossas necessidades, desejos
e temores (MORIN, 1998, p. 309).
Podemos até mesmo utilizar a apropriação a que nos submetem as idéias
para nos deixarmos possuir, justamente, pelas idéias de crítica e auto
crítica, abertura, complexidade. As idéias complexas defendidas por mim
não são tanto idéias que eu possua, mas sobretudo idéias que me
possuem. Essa relação me leva a buscar formas complexas de dupla posse,
que se assemelhariam aos fenômenos de semipossessão estudados por
Michel Leiris (1958) (MORIN, 1998, p. 311).
Seria necessário, de preferência, desejar um campo de comunicações entre
esfera científica e as esferas epistemológicas, filosóficas e éticas, até então
separadas. É indispensável que as teorias científicas se abram aos problemas
epistemológicos, filosóficos e éticos que levantam ou supõem, e que as filosofias se
abram ao conhecimento científico que modifica e renova a sua problemática
(MORIN, 1998, pp. 313-14). Nesse sentido, seria preciso que toda teoria, quer seja
científica, epistemológica, filosófica:
-pudesse se autoconhecer, isto é, comportar o conhecimento de sua
organização, dos seus antagonismos internos, das suas zonas de sombra e,
sobretudo, do seu próprio núcleo, de onde comandam os paradigmas
ocultos, os valores escondidos, os genes mitológicos;
-pudesse consagrar o seu dispositivo imunológico à detecção e à luta conta
sua própria tendência à doutrinarização;
-pudesse estabelecer diálogo e convivialidade com as outras formas de
conhecimentos;
-pudesse reconhecer a noosfera, a cultura e a sociedade que constituem o
ecossistema:
-pudesse abrir-se para o a-teórico e talvez irracionalizável.
Civilizar as teorias significaria, portanto, antes de tudo complexificá-las e
abri-la mais (MORIN, 1998, p. 314).
128
Enfim, ressalta Morin que o essencial é selecionar nossos mitos e evitar de
transformar nossa relação em submissão e cegueira que pode levar a devorar o real
e a nos possuir. Temos necessidade, continua o autor, de socorrer o real, assim
como devemos socorrer tudo o que não é idealizável nem racionalizável. A razão
deve criticar o mito, mas sem dissolvê-lo, pois se ela acredita tê-lo dissolvido, é
porque, então, ela própria tornou-se mito (MORIN, 1998, p. 315).
3.5.5 O Homo Complexus
Não há dúvida que somos animais diferentes de todos os demais, tão
surpreendentemente diferente que em alguns momentos chega-se a esquecer tal
premissa: da humanidade do ser humano. Característica auto-esculpida no reino
animal, o homem guardou para si sempre um lugar privilegiado no reino criação. O
do animal que pensa; filho do criador feito a imagem e semelhança do Pai.
Emancipado da natureza pela invenção da cultura; o criador da cultura tornou-se
criatura de sua própria invenção.
“Quem somos?” é inseparável de ‘onde estamos, de onde viemos, para
onde vamos?’ Conhecer o humano não é expulsá-lo do universo, mas aí
situá-lo. Pascal já nos tinha corretamente situado entre dois infinitos, o que
foi amplamente confirmado pelo duplo desenvolvimento, no século XX, da
microfísica e da astrofísica (MORIN, 2002, p. 25).
Para Edgar Morin, o ser vivo é uma máquina físico-química organizada de
maneira mais complexa, pois possui determinadas qualidades e propriedades
ausentes no mundo molecular em que se originou. Estas diferenças o fazem
completamente diferente dos demais animais, mas paradoxalmente, com poucas
diferenças de seus irmãos de natureza que não acessaram ao conhecimento e ao
saber. Em O MÉTODO 5: A HUMANIDADE DA HUMANIDADE IDENTIDADE HUMANA, Edgar
Morin mostra alguns passos do processo de hominização e humanização do
homem, a partir da ordem viva.
Um pouco de substância física organizou-se de modo termodinâmica na
terra; através de imersão marinha, fervura química, descargas elétricas,
ganhou vida. A vida é solar: todos os seus ingredientes foram forjados num
129
sol e depois reunidos num planeta cujos componentes foram cuspidos por
uma explosiva agonia solar; ela é transformação de um corrimento fotônico
oriundo de flamantes turbilhões solares. Nós, seres vivos, por conseqüência
os humanos, filhos da água, da terra e do sol, somos uma formiga, talvez
um efeito da diáspora cósmica, algumas migalhas da existência solar, um
frágil broto da existência terrestre (MORIN, 2002, pp. 26-7).
O ser humano não é físico somente nas suas partículas, átomos e moléculas:
sua auto-organização origina-se de uma organização físico-química tendo produzido
qualidades emergentes que constituem a vida, sendo que todas as suas atividades
auto-organizadoras necessitam de processos físico-químicos. Trata-se, assim,
também de uma máquina térmica funcionando a 37
º
C.
O mundo físico do qual saímos não obedece uma ordem submetida a leis
escritas; também não está inteiramente entregue às desordens do acaso. É levado
por um grande jogo entre ordem/desordem/interações/organização. As organizações
nascem de encontros aleatórios e obedecem a um certo número de princípios,
determinando a ligação dos elementos desses encontros num todo. Esse é o jogo do
mundo. Realiza-se conforme um anel em que cada termo está em
complementaridade e em antagonismo com os outros:
Depois de ter acreditado num universo perfeitamente determinista, a física
descobriu nele furor, violência e guerra, com implosões e explosões de
astros, galáxias asfixiadas, estrelas que se parasitam e devoram de forma
canibal; foram avistadas, desde o final dos anos 1960, monstruosas bolas
de fogo extragalácticas, chamadas “sobressalto gama”, com um diâmetro 85
vezes maior que o do nosso sistema solar e que se inflam em velocidades
loucas. São cataclismos afetando estrelas de nêutrons e supernovas
(MORIN, 2002, p. 27).
O desenvolvimento da hominização não constitui uma interrupção das
desordens e dos acasos, mas uma aventura submetida a desafios ecológicos,
acidentes, conflitos entre espécies primas, que terminam pela liquidação física dos
vencidos.
Há, certo, auto-organização do cosmo a partir de uma desordem
extraordinária e de alguns princípios de ordem; o cosmo se faz destruindo-
se, desfaz-se construindo-se. Mas não consigo acreditar que a aventura
cósmica seja animada por algum desígnio providencial que a guiaria rumo a
salvação final. O universo parece ter nascido na catástrofe e parece rumar
para a dispersão generalizada. Somos solidários desse destino insensato.
(MORIN, 2002, p. 28).
130
Á nossa ascendência cósmica e à nossa constituição física, devemos
acrescentar nossa inserção terrestre. A terra se auto-produziu e auto-organizou na
sua dependência ao sol e tornou-se biofísica complexa a partir do momento em que
se desenvolveu a biosfera. Da Terra, efetivamente, originou-se a vida, e do
desenvolvimento multiforme da vida policelular originou-se a animalidade; por fim, o
recente desenvolvimento de um ramo do mundo animal tornou-se humano. O ser
humano mortal, como todo ser vivo, possui a unidade bioquímica e a unidade
genética da vida (MORIN, 2002).
Ainda que muito próximo de chimpanzés e de gorilas, tendo 98% de genes
idênticos, o ser humano traz uma novidade na animalidade. Os 2% de genes
originais indicam uma reorganização, com certeza muito importante, do patrimônio
hereditário. É a pequena diferença que faz a grande diferença (MORIN, 2002).
A hominização é uma aventura começada ao que atualmente parece,
sete milhões de anos. Ela é descontínua pela aparição de novas espécies –
habilis, erectus, neandertal, sapiens e desaparecimento das anteriores,
bem como pela domesticação do fogo, pelo surgimento da linguagem e da
cultura. É descontínua na sua dialógica entre desenvolvimento da
bipetização, da manualização, verticalização (do corpo), cerebralização,
juvenilização, complexificação social (Moscovici); processos ao longo dos
quais aparece a linguagem propriamente humana, ao mesmo tempo que se
constitui a cultura, capital transmissível de geração, saberes, savoir-faire,
crenças, mitos, costumes (MORIN, 2002, p. 32).
Depreende-se, assim, que a humanidade não se reduz, de modo algum, à
animalidade, mas sem animalidade não há humanidade. O proto-humano só se
torna plenamente humano, quando o conceito de homem comporta uma dupla
entrada: uma entrada biofísica e uma entrada psico-sócio-cultural, uma remetendo a
outra. Na ponta da aventura criadora da vida, a hominização resulta num novo
começo (MORIN, 2002).
A cultura é, repitamos, constituída pelo conjunto de hábitos, costumes,
práticas, savoir-faire, saberes, normas, enterditos, estratégias, crenças,
idéias, valores, mitos, que se perpetua de geração em geração, reproduz-se
em cada indivíduo, gera e regenera a complexidade social. A cultura
acumula o que é conservado, transmitido, aprendido e comporta vários
princípios de aquisição e programas de ação. O primeiro capital humano é a
cultura. O ser humano, sem ela, seria um primata do mais baixo escalão
(MORIN, 2002, p. 35).
131
A cultura preenche um vazio deixado pela juvenilização e pelo inacabamento
biológico. Nesse vazio, instauram-se as suas normas, princípios e programas. Coisa
curiosa, ela pode até mesmo, em certos casos, prolongar o trabalho incompleto da
natureza, completando, artificialmente, a bipolarização sexual destaca Morin (2002);
assim, em inúmeras culturas arcaicas e religiosas (judaísmo, islã), a circuncisão
libera a glande viril do prepúcio e, noutras, a excisão cruel opera a ablação do
elemento masculino do sexo feminino.
A linguagem é uma máquina, no sentido já definido por nós. Funciona
fazendo funcionar outras máquinas que fazem funcionar. Assim, está
vinculada à engrenagem da maquinaria cerebral dos indivíduos e da
maquinaria cultural da sociedade. É uma máquina autônoma-dependente
numa polimáquina. Depende de uma sociedade, de uma cultura, de seres
humanos que, para se realizar, dependem da linguagem. Seja qual for a
linguagem, há, em cada enunciado, um Eu implícito ou explícito (o emissor),
dois Id (a maquinaria lingüística e a maquinaria cerebral), nós (a maquinaria
cultural). Eu, Id, Nós falam ao mesmo tempo (MORIN, 2002, pp. 36-7).
A linguagem está em nós e nós estamos na linguagem. Somos abertos pela
linguagem, fechados na linguagem, abertos ao outro pela linguagem (comunicação),
fechados ao outro pela linguagem (erro, mentira), abertos às idéias pela linguagem,
fechados às idéias pela linguagem. Abertos ao mundo e expulsos do mundo pela
linguagem, somos, conforme o nosso destino, fechados pelo que nos abre e abertos
pelo que nos fecha (MORIN, 2002).
Os três termos, cérebro-cultura-espírito, são inseparáveis. Uma vez que o
espírito emergiu, retroage sobre o funcionamento cerebral e sobre a cultura.
Forma-se um circuito entre cérebro-espírito-cultura, no qual cada um desses
termos necessita dos outros. O espírito é uma emergência do cérebro que
suscita a cultura, a qual não existiria sem cérebro (MORIN, 2002, p. 38).
Os pássaros e os mamíferos testemunham uma arte estratégica individual,
comportando astúcia, a utilização da oportunidade, a capacidade de corrigir erros, a
aptidão para aprender, qualidade que, reunidas num feixe, constituem a inteligência.
A mente humana desenvolve essas formas de inteligência em novos campos e cria
outras. Estas serão especialmente aplicadas na práxis (atividade transformadora e
produtiva), na tekhnè (atividade produtor de artefatos). Na theôria (conhecimento
contemplativo). A inteligência própria à mente humana eleva-se ao nível do
pensamento e da consciência, que também precisam do exercício da inteligência.
132
Pelo pensamento (cf. Segunda parte, capitulo 3), a inteligência humana questiona e
problematiza, encontra soluções, inventa, é capaz de criar.
Desde suas origens, a técnica procurou remediar as carências humanas. O
ser humano dispõe de mãos hábeis, mas fracas em pressão e batida. Corre, mas a
baixa velocidade. Não sabe voar. Não dispõe de capacidade dos pássaros para
captar informações magnéticas e visuais para os seus deslocamentos. É também a
técnica que realizará artificialmente as ambições e sonhos dele. A união da ciência e
da técnica deu poder soberano sobre a matéria física.
Assim, o ser menos provável, o mais desviante, o mais marginal de toda
evolução biológica, tornou o lugar central, impôs a sua ordem ao planeta
Terra e dispõe de um poder doravante, ao mesmo tempo, dimiúrgico e
suicida (MORIN, 2002, p. 41).
Tão importante quanto a técnica para a humanidade é a criação de um
universo imaginário e a multiplicação fabulosa dos mitos, crenças, religiões; o
desenvolvimento técnico e racional, de resto, mostrou-se, até hoje, muito pouco apto
a eliminá-los (MORIN, 2002).
Todas as sociedades humanas engendram uma noosfera, esfera das coisas
do espírito, saberes, crenças, mitos, lendas, idéias, onde os seres nascidos do
espírito, gênios, deuses, idéias-força, ganham vida a partir da crença e da fé. A
noosfera, meio condutor e mensageiro do espírito humano, põe-nos em
comunicação com o mundo, ao mesmo tempo em que serve de tela entre nós e o
mundo. Abre a cultura humana ao mundo enquanto encerra na sua nebulosa.
Extremamente diversa de uma sociedade para outra, encadeia todas as sociedades.
A noosfera é uma duplicação transformadora e transfiguradora do real que
recobre o real e parece se confundir com ele. A noosfera envolve os seres humanos
ao mesmo tempo em que faz parte deles. Sem ela, nada do que é humano poderia
realizar-se. Mesmo sendo dependente dos espíritos humanos e de uma cultura,
emerge de maneira autônoma na e por essa dependência (MORIN, 2002).
Deuses, mitos e idéias se autotranscendem a partir da formidável energia
psíquica que retiram de nossos desejos e de nossos temores. Podem,
então, dispor de nossas vidas ou nos incitar ao crime. Não são apenas os
humanos que guerreiam por deuses e as religiões que guerreiam através
dos homens (MORIN, 2002, p.45).
133
Quando se lança um olhar psicológico, o indivíduo aparece na sua autonomia
e nas suas característica distintas e, no limite, a sociedade desaparece; mas quando
lançamos um olhar sociológico, o indivíduo apaga-se ou, geralmente, não passa de
um instrumento, um zumbi de determinismo social. Em O MÉTODO 5: A HUMANIDADE
DA HUMANIDADE
IDENTIDADE HUMANA, Edgar Morin aborda alguns aspectos da trindade
indivíduo/espécie/sociedade:
Neste livro, mobilizamos em conjunto três olhares que nos permitem abordar a
trindade indivíduo/espécie/sociedade sem que nem a realidade do indivíduo
nem a realidade da sociedade nem a realidade da espécie biológica sejam
relegadas a um segundo plano (MORIN, 2002, p.51).
O ser humano define-se, antes de tudo, como trindade indivíduo/sociedade/espécie: o
indivíduo é um termo dessa trindade. Cada sociedade poderá ampliar ou reduzir a
possibilidade de erupção da individualidade e, mesmo, do individualismo.
Os três termos são meios e fins uns dos outros. Por isso, o indivíduo é, ao
mesmo tempo, o fim da espécie e o fim da sociedade, permanecendo meio
para ambas. Contudo as finalidades do indivíduo humano não se reduzem
nem ao viver para a espécie nem ao viver para a sociedade. O indivíduo
aspira a viver plenamente a sua vida. Finalidades individuais
desenvolverem-se ao longo da história: felicidade, amor, bem estar, ação,
contemplação, conhecimento, poder, aventura (MORIN, 2002, p. 52).
Como conceber o anel reflexivo entre biológico e o cultural, pois os conceitos
da biologia reducionista não podem ser aplicadas ao propriamente humano no
humano, e os conceitos da antropologia, da sociologia e da psicologia humana não
podem ser aplicados à organização biológica? Questiona apontado as contradições
Morin (2002).
Morin reconhece o papel do inconsciente e do imaginário na criatividade, que
nos leva a aceitá-la no seu mistério. Propõe o autor que o grande mistério do espírito
"está, de fato, na criatividade, nas capacidades criadoras [...] que concretizaram
gigantescos ectoplamas de real imaginário, e nesta aventura, todo o criador "é
possuído pela obra que cria [...] em que dá existência a emanação do espírito"
(2002, p. 107).
Nosso espírito é um complexo que comporta nosso psiquismo, que revela a
pessoa e suas subjetividade afetivas. Para tanto, a educação, em consonância com
o conhecimento, inclui a compreensão, a consciência, a transformação social
134
manifesta no olhar, na emoção, no sorriso, além da prosa, além da poesia, além da
música, organizando o pensamento como energia de vontade, pois "nossa alma, e
espírito, são emergências de virtudes complexas, de fenômenos de totalidade"
(Ibidem, pp. 108-09).
O Homo sapiens provavelmente exterminou os neandertalenses que viviam
na Europa desde dezenas de milhares de anos atrás. O sapien devem ter aparecido
entre 40 mil e 100 mil mais tarde que os neandertalenses. Tudo indica que tinham a
mesma consciência da morte que sapiens, a mesma crença numa vida póstuma e a
mesma capacidade de fazer ornamento e enfeites.
Morin se vale do que ele chama de estado poético no qual se vive a alegria,
embriaguez, festa, gozo, volúpia, delícia, deslumbramento, fervor, fascínio,
satisfação, encantamento, adoração, comunhão, entusiasmo, exaltação, êxtase para
caracterizar à complexidade humana que é sapiens e demens.
Se o homo é, ao mesmo tempo, sapiens e demens, afetivo, lúdico,
imaginário, poético, prosaico, se é um animal histérico, possuído por seus
sonhos e, contudo, capaz de objetividade, de cálculo, de racionalidade, é
por ser homo complexus. (...) O ser humano não vive só de racionalidade e
de instrumentos; gasta-se, dá-se, entrega-se nas danças, transes, mitos,
magias, ritos; crê nas virtudes do sacrifício; viveu o suficiente para preparar
a sua outra vida, além da morte. As atividades do jogo, de festa, de rito, não
são simples distrações para se recuperar com vistas à ida prática ou do
trabalho; as crenças em deuses e nas idéias podem ser reduzidas a ilusões
ou superstições: têm raízes que mergulham nas profundezas humanas
(MORIN, 2002, p. 141).
A unidade humana primeira é genética. O termo genérico, aqui, ultrapassa e
engloba o termo “genética”. Diz respeito a fonte geradora e regeneradora do
humano, aquém e além das especializações, dos fechamentos, dos compartimentos.
O mesmo patrimônio hereditário de espécie é comum a todos os seres humanos e
garante todos os caracteres de unidade (anatômicos, morfológicos, cerebrais);
permite a fecundação entre todos os seres humanos, europeus, pigmeus, cada
individuo vive e experimenta-se como sujeito singular; essa objetividade singular,
que diferencia cada um, é comum a todos.
A unidade cerebral é um dos aspectos distintivos mais extraordinários da
identidade humana. Sejam quais forem as variações de volume de indivíduo
para indivíduo, sejam quais forem as diferenciações raciais e étnicas, o
cérebro humano dispõe de uma organização fundamentalmente comum.
Qualquer cérebro humano dispõe das mesmas competências fundamentais,
135
que permitem uma diversidade infinita de performances e de aplicações
(MORIN, 2005, p. 59).
Isso vale para a linguagem: qualquer ser humano dispõe da aptidão para falar
a linguagem de articulação dupla, o que é um traço fundamental da unidade
humana, e essa aptidão permitiu e produziu com essa base estrutural única, uma
diversidade infinita de línguas (MORIN, 2005, p. 59).
Diz-se justamente “inteligência humana”, mas esta se concretiza em
inteligências muito diversas. Podemos ligar essa unidade e essa multiplicidade: cada
ser humano dispõe cerebralmente de todas as potencialidades inteligentes, mas
predisposições hereditárias, determinações familiares, culturais, históricas,
acontecimentos ou acidentes pessoais limitam-nas, inibem o exercício ou, ao
contrário, estimulam-nas.
Deve-se justamente reconhecer a existência de universais psicoafetivos.
Mas eles só se manifestam em indivíduos concretos e mostram potencial
diferente segundo as culturas e os indivíduos. Alguns seres humanos serão
sensíveis às relações de amizade; outros, às paixões amorosas; outros
serão, sobretudo, devorados pelo ódio e pela inveja. (...) não há medida
comum; mas é esquecer que cada ser humano carrega, em potencial, o pior
e o melhor do humano, que a desumanidade faz parte da humanidade e,
como bem disse Romain Gary, essa desumanidade é atualizada segundo a
força da pulsão ou inibida conforme a força do interdito; esquece-se também
que o tirano desumano é capaz de sentir amor, ternura, amizade. Conforme
os indivíduos e as culturas, a prática da vingança é virtual em cada um de
nós, sendo mais fraca a capacidade de perdoar (MORIN, 2005, p.63).
Diz-se justamente “a sociedade”, mas efetivamente só percebemos as
sociedades, os diferentes tipos de sociedades. Os tipos de sociedade foram diversos
na história humana e, em cada tipo, a diversidade dos costumes, hábitos, modos de
vida.
Assim, a cada vez, em cada ocorrência, podemos observar a unidade
primeira e genérica, a extraordinária proliferação de multiplicidade e concluir que a
unidade permite a multiplicidade. A diversidade individual, cultural e social são
apenas modulações em torno de um gênero singular, atualizam, na própria
singularidade, a potência diversificadora infinita do modelo singular afirma Morin.
A diáspora da humanidade, a partir dos tempos pré-históricos, não produziu
cisão genética durante 100 mil anos ou mais. Pigmeus, negros, amarelos,
índios, brancos remetem à mesma espécie, dispõem dos mesmos
caracteres fundamentais; mas a diáspora permitiu a expressão da
136
diversidade; a variedade de indivíduos, de espíritos, de culturas, tornou-se
fonte de inovações e de criações em todos os campos. O tesouro da
humanidade está na diversidade criadora, mas a fonte da sua criatividade
está na sua unidade geradora (MORIN, 2005, p.66).
O indivíduo humano não pode escapar da sua sorte paradoxal: é uma
pequena partícula de vida, um momento efêmero, uma formiga, mas, ao mesmo
tempo, carrega a plenitude da realidade viva – a existência, o ser, a atividade – e,
assim, contém o todo da vida sem deixar de ser uma unidade elementar da vida. Ao
mesmo tempo, carrega a plenitude da realidade humana, com a consciência, o
pensamento, o amor, a amizade. Comporta o todo da humanidade sem deixar de ser
a unidade elementar da humanidade.
É, portanto, por conter todo, mesmo sendo parte desse todo, comportando
não apenas o complementar da trindade individuo/sociedade/espécie, mas também
os seus antagonismos e contradições, que, como disse Montaigne, cada homem
carrega a forma inteira da condição humana (MORIN, 2005).
Ser sujeito supõe um indivíduo, mas a noção de indivíduo só ganha sentido
ao comportar a noção de sujeito. A definição primeira do sujeito. A definição
primeira do sujeito deve ser bio-lógica. Trata-se de uma lógica de auto-
afirmação do indivíduo vivo, pela ocupação do centro do seu mudo, o que
corresponde literalmente à noção de egocentrismo. Ser sujeito implica
situar-se no centro do mundo para conhecer e agir (MORIN, 2005, p.74-75).
Por apego intersubjetivo, o sujeito pode, por amor, dedicar-se a outro, como
numa relação mãe/filho ou de apaixonados. Assim, o egocentrismo do sujeito
favorece não somente o egoísmo, mas também o altruísmo, pois somos capazes de
dedicar o nosso Eu a um Nós e a um tu.
Assim, “o sujeito estrutura-se pela mediação dos outros sujeitos antes
mesmo de conhecê-los de fato”. O sujeito surge para o mundo integrando-
se na intersubjetividade, no seu meio de existência, sem o qual perece.
Assim como o indivíduo não se dissolve na espécie nem na sociedade, que
estão nele como ele está nelas, o sujeito não pode dissolver-se na
intersubjetividade, que lhe garante a plenitude. O Eu do sujeito não passa
de uma estação de transmissão no tecido de intersujetividade. Guarda a
sua auto-afirmação irredutível (MORIN, 2005, p.78).
Peço permissão para tomar a bactéria, nosso ancestral de vida, como
metáfora; ela contém um princípio que lhe permitem dividir-se em duas bactérias,
cada uma se tornando, ao mesmo tempo, mãe, irmã e filha da outra. Além disso, por
137
diferentes que sejam, as bactérias comunicam-se entre elas oferecendo o que têm
de mais precioso, filamentos de DNA, no seio de seus inúmeros nós.
A possibilidade de compreensão permite reconhecer o outro como outro
sujeito. Afirma Morin:
Eu-sou-eu – esta fórmula, aparentemente tautológica, exprime nossa
possibilidade de auto-objetivação: O Ego é uma objetivação do eu para si
mesmo que permite ao Eu “refletir-se” e reconhecer-se objetivamente. Esse
Ego diferente do Eu é, ao mesmo tempo, idêntico a ele. É essa capacidade
do sujeito de ver-se com objeto (Ego) sem deixar de ser sujeito (Eu) que lhe
permite assumir, ao mesmo tempo, seu ser subjetivo e objetivo, tratar
objetivamente o seu problema subjetivo como uma doença. É o que lhe dá
capacidade de sobrevivência no mundo, ou seja, de confrontar, em todas as
circunstâncias, um princípio de realidade e um princípio de desejo (MORIN,
2005, p.78).
Foi a partir desta aptidão que o indivíduo humano tomou consciência de si,
objetivando-se no seu “duplo”, pois o espírito humano pôde se auto-examinar,
praticar a introspecção, a auto-análise, o diálogo consigo mesmo.
O ponto capital é que cada sujeito humano pode considerar-se ao mesmo
tempo, como sujeito e como objeto e objetivar o outro enquanto o
reconhece como sujeito. Infelizmente, é capaz de parar de ver a
subjetividade dos outros e considerá-los somente como objetos. A partir daí,
torna-se “inumano”, pois deixa de ver a humanidade deles ou, ao contrário,
só pode amar ou odiar cegamente (MORIN, 2005, p.80).
Embora sendo inexoravelmente singular, o sujeito individual é um ponto de
holograma contendo toda a trindade humana (indivíduo – sociedade – espécie).
Vimos que, em cada enunciado do eu, há o cérebro biológico e a cultura social.
Quando o sujeito pode abrir o seu Nós para o outro, os semelhantes, a vida, o
mundo, torna-se rico em humanidade.
Egocentrismo, altruísmo, objetivação, subjetivação, tudo isso cresce ou
decresce dialogicamente, com grandes diferenças conforme as épocas, as culturas,
os indivíduos.
O sujeito humano é complexo por natureza e por definição. Sujeito
engraçado, portanto, pois, ao mesmo tempo, apresenta-se como singular e
comum, comunicador e incomunicável. Além disso, precisamos incorporá-lo
à trindade humana, situa-lo numa cultura, numa história... (MORIN, 2005,
p.81).
138
Um viajante do século passado dizia do nativo africano algo que, de fato,
descreve bem a complexidade do ser humano: “Ele tem, ao mesmo tempo, bom
caráter e coração duro; é batalhador e circunspecto; bom num momento, cruel, sem
piedade e violento, em outro; supersticioso e grosseiramente sem religião; bravo e
covarde, servil e opressor, teimoso e, contudo, volúvel, apegado à honra, mas sem
rastro de honestidade em palavras e ações, avaro e econômico, porém irrefletido e
imprevidente”. Cada um carrega esse tecido de contradições que Pascal tão bem
reconheceu e do qual surgem múltiplas personalidades (MORIN, 2005).
A mente humana revela-se no exercício de um pensamento racional (logos)
e no exercício de um pensamento mítico (mithos). O primeiro, presente
desde as origens, desenvolveu-se, sobretudo, nas ciências; trata-se de um
pensamento apto a colher e a verificar sistematicamente informações; utiliza
a lógica, a idéias, o cálculo e desenvolve as suas estratégias cognitivas na
relação com o mundo empírico. O segundo, presente também desde as
origens, desenvolve-se no mito, utiliza as analogias e os símbolos,
transgride a lógica e alastra-se num mundo onde o imaginário entrelaça-se
com o real (MORIN, 2005, p.103-104).
Por outro lado, tende, absolutizando, a automiticar-se em quase “Deusa
razão”. Por seu lado, a narrativa mitológico mais fantástica necessita de um mínimo
de coerência, obedece, em partes, á lógica, nem que seja para articular o seu
discurso, e os grandes mitos carregam, escondida, uma lógica bem como uma
racionalidade secreta. Há também logos por trás do mito, assim como há mito sob a
razão.
Mesmo sendo diferentes e opostos, os dois pensamentos estão imbricados
em nossa vida e na linguagem; formam um tecido complexo: nossa
linguagem é tão mais rica quanto mais pode se servir, ao mesmo tempo, da
disjunção e da argumentação, da analogia e da evocação. Bem entendido,
ela pode ser subdesenvolvida tanto lógica quanto analogicamente. A maior
pobreza não é somente a de um discurso analógico privado de lógica, mas
a de um discurso puramente lógico que, unicamente formal, está privado do
concreto e da complexidade (MORIN, 2005, p.105).
O anel reflexivo engendrado pela consciência produz, conforme a atenção do
sujeito, a consciência de si, a consciência dos objetos do seu conhecimento, a
consciência do seu conhecimento, a consciência do seu pensamento, a consciência
da sua consciência. Esse anel reflexivo constitui um metanível que permite um
pensamento do pensamento capaz de retroagir sobre o pensamento, assim como a
consciência de si permite retroagir sobre si. Esse metanível que estabelece ao
139
mesmo tempo, ligação e distanciamento de si, das idéias e dos pensamentos,
instaura uma condição primeira do exame crítico de qualquer idéia, pensamento, a
começar pelos próprios. O metanível supera e engloba as atividades cognitivas
fazendo parte delas. A consciência, duplicada em consciência da consciência, pode
assim considerar-se um metaponto de vista.
A consciência da unidade/diversidade humana, à qual aspiramos neste
trabalho, necessita, vimos, múltiplos conhecimentos e de um esforço de
pensamento para articular esses conhecimentos, ainda mais que estes são
separados e dispersos em várias disciplinas. A consciência do que é a
consciência necessita da utilização do anel para reconhecer a sua natureza
reflexiva e da dialógica para reconhecer a sua natureza subjetiva/objetiva. A
consciência da unidade/diversidade da própria consciência encontra a
dificuldade primeira de pensar junto o uno e o múltiplo (MORIN, 2005,
p.113).
A idéia simplista ainda impera, não só de que homo é essencialmente sapiens
e faber, mas que nós, seres humanos, fora dos períodos de guerra ou de
revoluções, vivemos num universo normal, racional, regular. Ignoramos segundo
Morin (2005) que, embora nos mantenhamos na faixa média da existência, vivemos
também aquém e além dessa faixa média quando amamos, odiamos, sofremos,
oramos, sonhamos.
Vivemos, de fato, num circuito de ralações interdependentes e retroativas que
alimenta, de maneira, ao mesmo tempo, antagônica e complementar, a
racionalidade, a afetividade, o imaginário, a mitologia, a neurose, a loucura e a
criatividade humanas.
3.5.6 A Antropoética
O projeto original de O MÉTODO, concebido nos primeiros anos da década de
setenta, previa três livros, mas o empreendimento extrapolou à concepção inicial e,
passados trinta anos, Edgar Morin, em 2004, conclui o sexto volume de O
MÉTODO:
ÉTICA. Segundo Juremir Machado da Silva – tradutor da obra – comenta na
apresentação deste livro que Edgar Morin, o autor
140
(...) faz a ponte entre o século XX, do qual foi ator engajado e analista
permanente, e o século XXI em cuja rede planetária continua a disseminar
as suas idéias, entre coletor de imaginários, caçador de falsas certezas,
cronista encantado com as pequenas coisas, filósofo intemporal, historiador
do pensamento, sociólogo do presente, semeador do futuro, epistemólogo e
antropólogo. Numa palavra, pensador.
Uma ética que contemple a perspectiva da complexidade, é o que se propõe
Edgar Morin a discutir nesta derradeira obra que é o sexto volume da série.
O indivíduo humano, mesmo na sua autonomia, é 100% biológica e 100%
cultural. Apresenta-se como o ponto de um holograma que contém o todo
(da espécie, da sociedade) mesmo sendo irredutivelmente singular. Carrega
a herança genética e, ao mesmo tempo, o imprinting e a norma de uma
cultura (MORIN, 2005, p.19).
A ética, para o autor, manifesta-se de maneira imperativa para a comunidade,
como exigência moral (p.19), e esta proposição está fundamentada em três fontes
interligadas entre si: uma fonte interior ao indivíduo, que se manifesta como um
dever; outra externa, constituída pela cultura, e que tem a ver com a regulação das
regras coletivas; e, por fim, uma fonte anterior, originária da organização viva e
transmitida geneticamente.
Esse argumento que abre a Introdução do Método 6 de Edgar Morin, é crucial
nas interpretações filosóficas e sociológicas sobre ética. E isso porque, essas
interpretações encarceram a ética num mundo noológico autônomo, dirigido por uma
consciência transcendente e uma razão ideal; ou numa axiomática da moral
coletivista, difusa e universal; ou no domínio das contingências individuais e das
singularidades subjetivas, que acabam por degenerar a ética.
Segundo Morin, a concepção da condição humana extirpada dos domínios da
vida e da matéria, e na noção antropocêntrica de sujeito, ou seja, limitada à
experiência humana, as interpretações clássicas da ética apresentam hoje suas
brechas e insuficiências.
No novo patamar inaugurado por Edgar Morin, fundamentada na tríade
indivíduo-sociedade-espécie, tanto quanto a dialógica natureza-cultura e individual-
coletivo servem de tela para reconstruir a idéia de ética no intercruzamento da
história da vida, da história da cultura e da história individual. Isso só é possível
porque a concepção de sujeito elaborada pelo autor ao longo de toda sua obra vale,
como ele próprio anuncia no Método 6, para todo ser vivo. Mesmo que o sapiens-
141
demens opere uma diáspora sem prescedentes no interior da história do vivo pela
complexificação do padrão de inacabamento e pela propensão à diversidade e
conseqüente singularização do sujeito bio-social.
Composto por cinco partes, o sexto volume de O MÉTODO: ÉTICA, divide-se
entre as seguintes temáticas: o pensamento da ética e a ética do pensamento; ética,
ciência e política; auto-ética; sócio-ética e antropoética. Este pode ser considerado,
em termos, o mais acessível dos seis volumes, se não pela temática que desenvolve
mas pelo fato dos pressupostos já terem sido discutidos exaustivamente nos livros
anteriores.
Um aspecto essencial desenvolvido por Morin nesta obra é considerar que no
binômio intenções-ações se encerra num paradoxo. Isto é, nada garante à partida
que uma boa intenção não se degenere em atrocidades futuras. As boas ações
podem gerar maus resultados e o inverso. Assim como o pensamento complexo, a
ética complexa não escapa ao problema da contradição. Há sempre a incerteza
escondida sob a aparência unívoca do bem e do mal. É preciso romper com o
código binário bem-mal, justo-injusto.
É no interior do paradoxo que se situa a ética para Edgar Morin. É distante da
fragmentação, dos determinismos, da universalidade, do culpado único, do
estereótipo do ‘homem bom’ e acima de qualquer suspeita, que situa a ética
complexa. Em várias partes do livro, a reflexão sobre a ética na ciência volta à tona.
Não porque o autor privilegie esse dispositivo da cultura em detrimento dos outros,
mas porque se esmera em demonstrar os elos que ligam ciência, sociedade, política,
técnica, sujeito.
A necessidade de compreender a ecologia da ação é um argumento central e
ao mesmo tempo uma proposta que perpassa o livro. A ecologia da ação supõe a
compreensão da relação estreita entre convicções e ações, entre teoria e ação,
entre individual e coletivo, entre política e vida cotidiana. Trata-se de uma rede que
interconecta o mais fugaz de todos os atos ao mais esplêndido produto da ciência.
Ter consciência de que não somos o centro de tudo, mas sujeitos ligados a
outros sujeitos e de que, conforme ensina a cosmologia contemporânea,
além da identidade terrestre, temos uma identidade cósmica (porque somos
constituídos de partículas formadas desde o começo do universo, de
átomos forjados num sol anterior ao nosso e de moléculas que se juntaram
na Terra), muda certamente a forma de ver a nós e ao mundo, de
142
compreender nossa ligação com todas as coisas. Isso tem a ver com a arte
de saber viver (MORIN, 2005, p.110).
Uma ética complexa como um metaponto de vista comportando uma reflexão
sobre os fundamentos e o princípio da moral torna-se, pois, urgente para enfrentar
os desafios, os paradoxos e o imponderável que emergem da complexa teia entre o
juízo pessoal, os princípios morais cristalizados socialmente e a simbiótica relação
entre bem e mal que parasita os fenômenos sociais e históricos porque,
adormecidos, acometem a todos nós. Se o ponto de partida a ser acionado,
permanentemente e sem trégua, se situa na auto-análise, que se abre à análise do
outro, essa auto-análise “deveria ser ensinada desde o começo do ensino
fundamental para se tornar uma prática tão costumeira quanto a cultura física”. Ela
“deveria e poderia ser desencadeada e estimulada por uma pedagogia.
A concepção de auto-ética se gesta, no livro, no interior de um
desdobramento argumentativo que inclui as noções de cultura psíquica, ética da
responsabilidade, da religação, de liberdade, amor, compreensão, magnanimidade e
perdão, arte de viver.
Num dos centros difusos da ética está a questão do perdão. Mas o perdão é
um ato limite. Comporta uma dessimetria essencial, indo além da renúncia à
punição: no lugar do mal pelo mal, devolve o bem pelo mal. Não se limita a um ato
de indulgência, supõe ao mesmo tempo compreensão e recusa da vingança.
Citando Victor Hugo que disse ‘esforço-me em compreender para perdoar’ e Morin
complementa: compreender um ser humano significa não reduzi-lo a sua pessoa à
falta ou ao crime cometido.
O pior da crueldade e o melhor da bondade do mundo estão no ser humano.
Somos um misto de barbárie e ‘ilhas de bondade’. Mas esse complexo de bem e mal
não ensaia nenhum horizonte imobilista e derrotista. Ao contrário, num argumento
desafiador, Edgar Morin conclui que, mesmo que as forças de ligação sejam
minoritárias em relação às forças de dispersão, mesmo que a crueldade e a barbárie
sejam majoritárias, é preciso de forma obstinada e incansável apostar nas ilhas de
bondades. A ética de resistência à crueldade do mundo é também ética de aceitação
do mundo. A referência, por duas vezes no livro, à expressão de Beethoven – Muss
es sein? Es muss seins! Será que isso pode/deve ser? Isso pode/deve ser! – condiz
143
com o perfil de uma ética da aposta nos fragmentos do bem imersos no oceano de
barbárie e maldade.
O princípio da exclusão garante a identidade singular do indivíduo; o
princípio de inclusão inscreve o Eu na relação com o outro, na sua linhagem
biológica (pais, filhos, família), na sua comunidade sociológica. O princípio
de inclusão é instintivo, como no passarinho que sai do ovo e segue a mãe.
O outro é uma necessidade vital interna (...). Todo olhar sobre a ética deve
perceber que o ato moral é um ato individual de religação; religação com um
outro, religação com uma comunidade, religação com uma sociedade e, no
limite, religação com a espécie humana (MORIN, 2005, p.21).
Ao contrário, as conseqüências de um ato imoral podem ser morais. Tanto
Mandeville, na fábula das abelhas, quanto Adam Smith, na teoria da “mão invisível”,
e Hegel, na concepção da “astúcia da razão”, acentua Morin (2005), indicam que as
conseqüências de atos individuais egoístas podem ser benéficas para uma
coletividade.
A ecologia da ação indica-nos que toda ação escapa, cada vez mais, à
vontade do seu autor na medida em que entra no jogo das intro-retro-ações
do meio onde intervém. Assim a ação corre o risco não somente de
fracassar, mas também de sofrer desvio ou distorção de sentido (MORIN,
2005, p.41).
Assim como o pensamento complexo, a ética não escapa ao problema da
contradição. Não há imperativo categórico único em todas as circunstâncias.
Imperativos antagônicos surgem, com freqüência, de maneira simultânea e
determinam conflitos de deveres; as grandes dificuldades éticas estão menos numa
insuficiência do que num excesso de imperativos (MORIN, 2005, p.47).
A incerteza ética depende não somente da ecologia da ação (uma boa
intenção não pode produzir o mal?), das contradições éticas, das ilusões do
espírito humano, mas também do aspecto trinitário pelo qual a auto-ética e a
antropoética são ao mesmo tempo, complementares, concorrentes e
antagônicas. Deve-se em cada ocasião estabelecer uma prioridade e fazer
uma escolha (aposta) (MORIN, 2005, p.57).
Na contingência de todas as pequenas e grandes decisões e escolhas,
reatualizamos, permanentemente, aprendizagens do passado não propriamente
humano e, a partir delas, construímos novos padrões de escolhas e respostas cada
vez menos estigmatizadas, cada vez mais complexas e indeterminadas. O sujeito
144
humano se engendra, no interior das contingências sócio-históricas e bio-culturais -
outra forma de dizer que ele emerge do interior de reorganizações não
exclusivamente humanas, históricas e sociais. Para Morin, é possível distinguir, mas
não isolar, nem contrapor, os domínios individuais, sociais e biológicos que juntos
configuram o paradigma aberto e inacabado da espécie humana, do sujeito e da
ética.
Somente porque parte de uma concepção complexa do sujeito, é possível ao
autor reconsiderar a noção de ética num patamar epistemológico igualmente
complexo. Se oscilamos entre pulsão, razão e afetividade se oscilamos entre
egoísmo e altruísmo, a ética só pode ser pensada como estratégia, aposta
provisória, decisão e risco, convicção pessoal que admite auto-engano. A ética é
complexa por ter sempre de enfrentar a ambigüidade e a contradição’; por estar
exposta a incerteza; por se situar no limite difuso entre o bem e o mal.
3.6 A PRODUÇÃO MORINEANA A PARTIR DE O MÉTODO
Entre 1977 e 2004, Edgar Morin trabalhou na construção das mais de duas
mil páginas de O Método. Se nestes 27 anos que decorreram entre o primeiro e o
sexto volume, o autor tivesse se dedicado exclusivamente a este projeto já teria
realizado um feito memorável. Mas no decorrer deste tempo e nos anos seguintes
ele também escreveu mais de duas dezenas de outras obras em muitas áreas do
conhecimento. São reflexões onde se destacam questões realacionadas à
Educação, à Polítca, a Ética, a Filosofia, etc.; nestas disciplinas as problemáticas
são tratadas a partir da complexidade.
Por sua preocupação com questões relacionadas à Educação, Morin tem seu
nome lembrado pela UNESCO e, posteriormente, pelo governo francês para
coordenar pesquisas com vista a reformas na educação. Pelo governo francês é
chamado para coordenar uma pesquisa objetivando promover reformas no ensino
médio e superior da França do qual resultou sua obra Os sete saberes para uma
educação do futuro. Para fazer frente a este desafio, inicialmente Edgar Morin
145
promove encontros As jornadas temáticas onde um mesmo tema era discutido por
pensadores das mais diversas áreas do conhecimento. A prerrogativa é que
questões da relevância da Educação para a sociedade não podem ficar restritas a
um segmento de especialistas. Tal compreensão faz parte da construção da
trajetória intelectual própria de Edgar Morin. Sua terceira “reorganização genética”,
processo em que se operou mudanças drásticas de seu pensamento relacionada a
sua estada nos Estados Unidos no final da década de 1960. No Instituto Salk na
Califórnia tomou contato com pesquisadores renomados realizando pesquisas de
ponta nas ciências da natureza. Seu contato com outras áreas do conhecimento que
se encontravam, naquele momento, em pleno desenvolvimento aproximou-o da
Cibernética, da Teoria da Informação e da Teoria dos Sistemas, Genética etc.
A mudança começa pouco antes de 1950: Shannon 1949) com a teoria da
informação, Wiener com a cibernética (1948), abrem uma perspectiva
teórica aplicável simultaneamente às máquinas artificiais, aos organismos
biológicos, aos fenómenos psicológicos e sociológicos. Um pouco mais
tarde, em 1953, o esforço marginal da biologia molecular consegue realizar
a brecha decisiva que abre a biologia para «baixo», pela descoberta da
estrutura química do código genético (Watson e Crick). O acto inicial da
«revolução biológica» está bem reconhecido: é essa abertura da biologia
para «baixo», isto é, para as estruturas físico químicas. Mas só muito
raramente se compreendeu que a abbertura para «baixo» era ao mesmo
tempo uma abertura para «cima» (MORIN, 1973, p.20).
O
S SETE SABERES NECESSÁRIOS PARA A EDUCAÇÃO DO FUTURO não se trata de
uma receita, de uma fórmula a ser adotada nas escolas, é uma tentativa de
estabelecer com as mudanças de uma base para a reforma do pensamento, que na
opinião de Morin deve iniciar pelos próprios professores. Um dos primeiros aspectos
abordados é a questão da relativa à interdisciplinaridade, mas é só com um
pensamento que se sobreponha o nível da ciência é que pode constituir uma
metavisão. É só com esta metavisão sobre as ciências é que vai se perceber a
dimensão da complexidade. Na educação, baseada no paradigma cartesiano, a
ênfase é colocada na separação, na simplicização que conduziu à disciplinarização
do conhecimento, abrindo espaço ao surgimento de novas ciências,
fundamentalmente as da natureza. A física se tornou neste sentido, em sua
formulação newtoniana, o paradigma.
Constituem-se nos sete saberes necessários para a educação do futuro os
seguintes aspectos:
146
o primeiro diz respeito ao erro e a ilusão no conhecimento;
o segundo se refere ao conhecimento pertinente;
terceiro é o que privilegia a condição humana;
o quarto enfatiza a identidade humana terrestre;
o quinto fala sobre a presença da incerteza como constituinte do saber;
o sexto é da compreensão
o sétimo é o da ética do gênero humano.
O primeiro saber diz respeito ao conhecimento, naquilo que tradicionalmente
é desprezado e escondido; a presença do erro no conhecimento. A ciência moderna
habituou-se a expelir o erro na construção do conhecimento. No entanto, o erro,
assim como a ilusão, são elementos componentes da verdade do mundo e, portanto,
devem estar presente na verdade científica. A busca pelo saber evolui do atrito com
os erros e as ilusões, e da incorporação de elementos destes em menor ou maior
medida. Integrar os erros na constiuição no conhecimento é fazê-lo avançar por
caminhos até então ainda não pensado.
O segundo saber trata do conhecimento pertinente que anda na contramão da
fragmentação, da especialização, da disciplinarização, mesmo sem negar a
importância das disciplinas. Disciplinas como a ecologia, por exemplo, onde se
encontram envolvidos, biólogos, antropólogos, físicos etc. poderia ser considerado
um padrão de abordagem transdisciplinar e complexo. Reorganizar a disciplinas em
torno de temas ou objetos é uma das alternativas para revivificar o conhecimento.
A condição humana é o terceiro dos saberes e diz respito a necessidade de
ampliação da compreensão do que é o humano ser. A concepção do homem como
um ser cultural ignora que ele é também um ser natural – físico, químico – e, ainda,
mítico, imaginário, lúdico. Assim, o ser humano necessita reaprender sua própria
condição. De certa forma, este aprendizado do humano pelo próprio humano inicia
pela ruptura do monopólio do homo sapiens, que é como se acostumou a
autorepresentar, mas ele também o é demens, ou seja, além de ser o ser que sabe,
o homo é também movidos por forças naturais de descontrole, irracionalidade e
insanidade. É o homo sapiens demens estatuto redefinido pela sua complexidade.
O quarto saber necessário para uma educação do futuro enfatizado por Edgar
Morin diz respeito à identidade humana terrestre. A terra deve ser compreendida
como sendo a terra-pátria. É necessário ensinar a idéia da terra-pátria um planeta
147
que deve ser defendido com todos as nossas forças, que pertence a nós que
pertencemos a ele. Assim sendo, a humanidade tem obrigação de se empenhar
para manter o planeta terra como sendo auto-sustentável.
O quinto saber, a exemplo do primeiro que trata do erro e da ilusão, também
pontua um aspecto que possui uma relevância epistemológica grandiosa, diz
respeito à incerteza. Ou melhor, contempla a questão da incerteza como elemento
sempre presente na natureza e, por conseqüência, a necessidade de se fazer
presente, também, na representação científica desta. A incerteza é um dado da
natureza ignorado, ou deixado de lado, mas nas primeiras décadas deste século
quando a física através de Einstein e, posteriormente, Werner Heisenberg o princípio
da relatividade e da incerteza passaram a ser considerados como elelementos
constituintes do pensamento científico.
A compreensão é o sexto saber que propugna Edgar Morin como sendo
necessário para a educação no futuro, ela deve ser o meio e o fim da comunicação
humana. A constante disputa de espaço na sociedade moderna, urbana competitiva
acentua a oposição ao outro, a negação do outro e a incompreensão é responsável
por este afastamento. Quanto menos eu me identifico com o outro, menor é a minha
necessidade de cooperação, de solidariedade com as dificuldades do outro. A
incompreensão radical do outro pode levar tentativa de aniquilar de extermínar este
desconhecido e ameaçador Outro.
Por fim, o sétimo saber propalado por Edgar Morin é o que se refere a ética
do gênero humano. A Antropoética, destaca Morin em sua análise, sustenta-se
sobre três elementos: a espécie, o indivíduo e a sociedade.
Somos seres humanos e também indivíduos; somos uma pequena parte da
sociedade e também o fragmento de uma espécie. No seio de nossa
espécie individiual. A sociedade se apresenta com sua cultura, normas e
leis na nossa própria espécie individual. A espécie encontra-se igualmente
presente (MORIN, 2002, p.100).
A partir destes três elementos expõe as relações indivíduo/sociedade e
indivíduo/espécie e mostra como a Antropoética se manifesta nos dois pontos.
A relação relação indivíduo/sociedade encaminha problemas e soluções
referentes ao mundo político, conduz ao pensamento da democracia, o sistema
onde os controlados podem aspirar a controlar aos controladores.
148
Para o primeiro, a ética nos conduz à idéia de democracia, ou seja, ao
sistema no qual os controlados controlam seus controladores. Isso implica
que, pelas eleições, os próprios cidadãos possam mudar seus
controladores. A plenitude do cidadão supõe que ele seja uma pessoa
responsável e solidária que possua direitos solidários. Se ele os despreza a
democracia se enfraquece e se empobrece. Uma democracia que seja
apenas formal não é viva (MORIN, 2002, p.108).
Já no que diz respeito à relação indivíduo/espécie nos encaminha para o
mundo da moral, ou seja, a necessidade de civilizar a terra. Algo como um contrato
antropológico em que todos se comprometessem a reconhecer no outro um igual e
unidos lutarem pela pátria-terra.
Trata-se de movimentos que têm por objetivo a cidadania terrestre. Ao
pensar sobre isso, identifico uma causa gigantesca, mesmo que muitos
dentre nós considerem que não há mais grandes causas como no passado.
Na verdade, há poucas pessoas capazes de desencadeá-la e tomar
consciência dela (MORIN, 2002, p.115).
Além das obras em que realizou uma profunda reflexão sobre a Educação,
paralelamente a feitura de O Método, Morin produziu também obras sobre a política
e sobre ética. Dizem respeito a questões políticas às obras AS GRANDES QUESTÕES
DE
NOSSO TEMPO, os PROBLEMAS DO FIM DO SÉCULO e TERRA PÁTRIA que poderia
pertencer a ambos os grupos. Entre as obras em que apresentam uma reflexão ética
podem ser destacadas A SOCIEDADE EM BUSCA DE VALORES escrito em e A CABEÇA
BEM FEITA.
4 METODOLOGIA E OS MÉTODOS
Todo o empreendimento que extrapola os limites do cotidiano e que têm uma
repercussão importante para um indivíduo ou grupo de indivíduos, demanda um
certo planejamento se se quer que o resultado seja o esperado. Pré-determinar
etapas, maneiras de proceder, instrumentos, materiais e recurso teóricos (no caso
dos projetos acadêmicos) a serem adotados são passos necessários e que
permitem vislumbrar o sucesso nos objetivos. Nas tarefas científico-acadêmicas
esta regra é essencial e deve ser realizada de forma precisa, pois é crucial para a
credibilidade do resultado a ser alcançado.
Uma pesquisa científica, como toda pesquisa, necessita também de um bom
projeto, de seguir uma lógica que deve ser expressa em termos de uma
metodologia. A aparente estranheza e inacessibilidade, que muitas vezes caracteriza
um projeto científico, pode estar relacionada ao fato da ciência não ser uma
atividade cotidiana, algo com a qual as pessoas têm uma relação cotidiana e de
proximidade. Em termos gerais um projeto de pesquisa acadêmico pontua, de forma
obsessiva, procedimentos que se adota rotineiramente em decisões sobre eventos
importantes.
Em sua reflexão obra METODOLOGIA CIENTÍFICA EM CIÊNCIAS SOCIAIS, Pedro
Demo, define alguns aspectos essenciais da metodologia, ele afirma que:
(...) significa, na origem do termo, estudos dos caminhos, dos instrumentos
usados para fazer ciência. É uma disciplina instrumental a serviço da
pesquisa. Ao mesmo tempo que visa conhecer caminhos do processo
científico, também problematiza criticamente, no sentido de indagar os
limites da ciência, seja com referência à capacidade de conhecer, seja, com
referência à capacidade de intervir na realidade (DEMO, 1995, p.11).
Mais do que defender esta ou aquela metodologia específica, salienta o autor
que a metodologia deve se pautar pela racionalidade no tange a sua capacidade de
ser comunicada e repetida em outros empreendimentos investigatórios. Mas
escolher a metodologia vai muito além disto, pelo menos é o que explica Barbosa
(2002).
Escolher o método é eleger uma ferramenta que permita a análise dos
dados de forma inteligível. Mas escolher o método significa priorizar teorias,
150
criadas e/ou desenvolvidas no interior do próprio campo, que articulem a
experiência determinante da pesquisa a uma teoria que fundamenta a
análise. E o mais importante: escolher o método é escolher um olhar, no
qual o lugar social do pesquisador e o lugar de construção do campo de
conhecimento têm papéis preponderantes. Metodologia supõe
questionamento epistemológico, isto é, uma crítica aos procedimentos de
análise, já que se considera que as ciências são produtos de determinadas
condições já dadas, sendo uma prática social que traz impressa a própria
praxis humana (BARBOSA, 2002, p.78).
As condições a que estão submetidas as decisões teórico-epistemológicas
não acontecem fora da realidade social, cultural e institucional onde se
desenvovolvem as pesquisas.
A metodologia a ser adotada em uma pesquisa acorda necessariamente com
as questões que são objetos do conhecimento. Quando se opta por determinada
metodologia pressupõe-se que esta e não outra, é capaz de melhor conduzir o olhar
para uma realidade que se quer descrever, desvendar e apresentar. A metodologia
adotada na pesquisa, dessa forma, é cúmplice da realidade a ser desvendada. Ela
não é um corpo estranho à pesquisa, ela faz parte do esforço da explicação ela já é
uma resposta antecipada sobre certos aspectos da problemática estudada. Por este
motivo, a metodologia é uma parte da solução do problema e a escolha do melhor
enquadramento para a cena que vai se desvendar; a escolha e a delimitação dos
procedimentos metodológicos vão depender, também, das crenças do pesquisador,
que determinam, dentre outras coisas, qual a sua concepção de pesquisa, ou
melhor, da pesquisa que está efetivando.
Neste ponto a contribuição de Demo é também importante, ele apresenta
suscintamente as diferentes perspectivas de pesquisa científica possível.
Alguns entendem por pesquisa o trabalho de coletar dados, sistematizá-los
e, a partir daí, fazer uma descrição [grifo do autor] da realidade. Outros
fixam-se no patamar teórico e entendem por pesquisa o estudo e a
produção de quadros teóricos de referência, que estariam na origem da
explicação [grifo do autor] da realidade. Descrever restringe-se a constatar o
que existe. Explicar corresponde a desvendar por que existe [grifo do autor].
Outros mais acreditam que pesquisar inclui teoria e prática, porque
compreender a realidade e nela intervir formam um todo só, tornando-se
vício oportunista ficar apenas na constatação descritiva, ou apenas na
especulação teórica (DEMO, 1995, p.11).
De acordo com estas possibilidades descritas por Demo (1995) este trabalho
define-se, como sendo um exercício teórico exploratório, que busca encontrar no
151
ciclo Método de Edgar Morin elementos para compreender os impasses teórico-
epistemológicos acerca da possível construção de uma ciência da comunicação. A
metodologia adotada para a efetivação da análise textual a qual será submetido o
corpus formado pelas contribuições epistemológicas da comunicação é a
hermenêutica, inspirada nos postulados de Hans-Georg Gadamer. É a partir desta,
que se busca na confrontação do inventário intelectual de Edgar Morin – os seis
volumes da obra O MÉTODO. Esta pesquisa tem como corpus os textos produzidos
na reflexão recente sobre epistemologia da comunicação, defendidas nos encontros
de profissionais da área, nas duas últimas décadas e, com mais ênfase, a partir da
criação o GT Epistemologia da comunicação na Compós.
Segundo Pedro Demo:
(...) a hermenêutica é a metodologia da interpretação, ou seja, dirige-se a
compreender as formas e conteúdos da comunicação humana, em toda a
sua complexidade e simplicidade. O intérprete é sempre alguém dotado de
bagagem prévia, porque ninguém consegue compreender a comunicação
sem deter algum contexto relativo a ela, em sentido prévio (1995, p.249).
Mais adiante, o autor enfatiza:
Assim, o que o homem toca deixa de ser apenas “dado” para emergir como
referência histórica prenhe de sentido. Compreender tais sentidos,
depreender tais significados, apreender preferências culturais é tarefa da
hermenêutica, que precisa saber equilibrar capacidade formal com
percepção política (DEMO, 1995, p.249).
Demo também ressalta que através da hermenêutica pode-se resgatar algum
sentido escamoteado da obra, seja por esperteza do autor, por ideologia ou outra
forma de velamento qualquer. Nesta pesquisa, o uso da hermenêutica não se
propõe a ir em busca de algo escondido, do oculto. O que se busca na obra de
Edgar Morin pode não estar completamente exposto na superfície do texto, mas de
forma alguma está oculto. Questões referentes a epistemologia da comunicação não
são tematizadas por Morin, mas podem ser encontradas e deduzidas a partir dos
seus propósitos de reforma do pensamento, a partir do questionamento do
paradigma cartesiano, da simplificação e fragmentação do conhecimento e da
natureza pesquisada. A hermenêutica, da forma em que se pretende adotar nesta
pesquisa, tem por objetivo mapear a produção no que esta diz respeito a aspectos
152
relacionados à comunicação, tecnologia e epistemologia. Procurou-se não definir
categorias a priori, adotando uma perspectiva da complexidade, qual seja que a
metodologia “é o caminho que faz caminhando”. Vale aqui, mesmo que um tanto
longa, explicitar esta pressuposição de Edgar Morin.
Eu não trago o método, eu parto em busca do método. Eu não parto com o
método, eu parto com a recusa, totalmente consciente, da simplificação. A
simplificação é a disjunção em entidades separadas e fechadas, a redução
a um elemento simples, a expulsão do que não entra em um esquema
linear. Eu parto com a vontade de não ceder a estes modos fundamentais
do pensamento simplificador: (...)
idealizar (acreditar que a realidade possa se reabsorver pela idéia, que o
real é inteligível);
racionalizar (querer encerrar a realidade na ordem e na coerência do
sistema, proibir qualquer transbordamento deste, ter a necessidade de
justificar a existência do mundo, conferindo-lhe um certificado de
racionalidade);
normalizar (quer dizer, eliminar o estranho, o irredutível, o mistério)
(MORIN, 2003, p. 36).
Mais adiante, Morin enfatiza definitivamente esta posição ao afirmar que:
O método só pode se construir durante a pesquisa; ele só pode emanar e
se formular depois, no momento em que o termo transforma-se em um novo
ponto de partida, desta vez dotado de método (...).
O método aqui se opõe à conceituação dita “metodológica”, em que ela é
reduzida a receitas técnicas. Como o método cartesiano, deve inspirar-se de
um princípio fundamental ou paradigma. Mas a diferença é justamente o
paradigma. Não se trata mais de obedecer a um princípio de ordem
(eliminando a desordem), de claridade (eliminando o escuro), de distinção
(eliminado as aderências, as participações e as comunicações) de disjunção
(excluindo o sujeito, a antinomia, a complexidade), ou seja, obedecer a um
princípio que liga a ciência à simplificação lógica. Trata-se, ao contrário, de
ligar o que estava separado através de um princípio de complexidade
(MORIN, 2003, p. 36).
Pode-se afirmar, então, que a metodologia adotada neste trabalho acresce,
em certa medida à hermenêutica alguns princípios da complexidade. Por isso, a
seguir, passa-se a destacar alguns aspectos da hermenêutica, da forma em que foi
concebida por Gadamer. A palavra hermenêutica tem origem no grego hermeneuein,
e no contexto que aqui está sendo usada significa filosofia da interpretação. O termo
também é relacionado ao deus grego Hermes, que era o mensageiro. Segundo a
mitologia, Hermes seria o deus capaz de transformar tudo o que a mente humana
não compreendesse para poder alcançar o significado das coisas. Um deus
153
intérprete, que por ser uma entidade sobrenatural tinha a capacidade de traduzir,
decifrar o incompreensível.
Desde o pensamento antigo – desde os gregos – à modernidade, a
expressão hermenêutica está ligada a idéia de compreensão e interpretação. Num
tratado de Aristóteles, Peri hermeneia, o filósofo preocupava-se com os juízos e as
proposições. Ao comentar esta obra, Tomás de Aquino ressalta que a interpretação
se refere à oração enunciativa, aquela que pode pronunciar a verdade ou a
falsidade. Aplicada exaustivamente para entender o sentido do texto bíblico, a
hermenêutica na modernidade é a ciência que interpreta as sagradas escrituras. A
origem da hermenêutica moderna pode ser encontrada em disciplinas filológicas
dedicadas à leitura e compreensão dos textos antigos como as epopéias homéricas
e os textos religiosos. Tal análise restringia-se inicialmente a questões lexicais e
gramaticais, a busca de erros resultantes das sucessivas cópias ou, ainda,
restituindo certa “moral da história”, que, pelas mais diversas razões, havia se
perdida com o tempo. Esta tarefa, em última análise, caracterizava-se como uma
busca de restituição da verdade, por alguma razão, oculta no texto.
Publicado em 1960, VERDADE E MÉTODO é a obra mais importante de Hans-
Georg Gadamer, nela se encontram sintetizadas as principais idéias deste que foi
um dos grandes pensadores do século XX. Produzida a partir do diálogo com o
legado heideggeriano, cuja ênfase na compreensão e na temporalidade é
sistematicamente sustentada. A hermenêutica de Gadamer, partilha da analítica
temporal de Heidegger que postula ser a compreensão uma maneira de ser do eis-
aí-ser, Dasein, e não como um modo de comportamento do sujeito. É por ser finito e
histórico, o que condiciona sua experiência no mundo, que o homem é
hermenêutico. Dar sentido as coisas não é obra da subjetividade isolada e separada
da história, só explica-se pela relação de pertencer a uma instância que o
pressupõe: a tradição. A reflexão hermenêutica é sobre a influência da história, tanto
do objeto da compreensão quanto da situação de quem compreende, vindo a
constituir-se, segundo Gadamer, como o verdadeiro transcendental.
Gadamer apresenta, em V
ERDADE E MÉTODO, um percurso da relação entre o
pensamento e a linguagem – palavra e objeto – na tradição ocidental, discutindo as
principais abordagens, desde os filósofos antigos até pensadores da primeira
metade deste século. A exposição que o autor oferece-nos, mais do que
154
simplesmente expor autores e idéias constitui-se num ato de perscrutar as condições
de produção de tais conteúdos constituindo-se por si só no próprio exercício
hermenêutico.
Na filosofia grega, ele parte do diálogo Crátilo de Platão para investigar as
duas teorias lingüísticas ali presentes. Em primeiro lugar, a teoria convencionalista
que sustenta ser a única fonte dos significados das palavras o uso lingüístico que
delas se faz por convenção e no exercício. Por outro lado, a teoria da semelhança
que defende a existência de uma coincidência natural da palavra com o objeto.
Apesar de se tratarem de posições extremas, enfatiza Gadamer que ambas não
precisam excluir-se completamente. Mas ressalta o autor que é, sem dúvida alguma,
através do contexto do emprego do signo, que se pode aproximar de sua essência;
realiza com isto uma crítica sobre a relação direta entre as palavras e as coisas.
Na filosofia medieval, Gadamer identifica no pensamento de Agostinho, entre
outros aspectos, uma distinção importante entre a palavra interna a palavra externa.
A palavra interna seria puro pensamento, a própria essência do ser, enquanto a
externa seria as diferentes manifestações na multiplicidade das línguas. Gadamer
questiona esta formulação ao interrogar, “que palavra seria esta que se mantém
como conversação interior do pensamento sem adquirir uma forma sonora”, na
medida em que nosso pensamento produz-se sempre no interior de uma
determinada língua. “El hecho de que el verbo se diga en cada lengua de otra
manera sólo significa sem embargo que a la lengua humana no se le manifiesta en
su verdadero ser” (GADAMER, 1993, p. 504). Esta noção, de certa forma já se
encontrava em Platão que descrevia o pensamento como uma conversa interior da
alma consigo mesma, conclui.
Gadamer assim se refere a esta questão:
El proceso y surgimiento del pensar no es, pues, un proceso de
trasformación (motus), no es una transición de la potencia al acto, sino un
surgir ut actus ex actu: la palabra no se forma una vez que se ha concluido
el conocimiento (...) en esta medida la palabra es simultánea con esta
formación (formatio) del intelecto (GADAMER, 1993, p. 508).
Enfatiza, Gadamer, ainda, a distinção feita pelo bispo de Hipone, entre a
palavra divina e a palavra humana opondo a unidade da primeira em detrimento à
155
multiplicidade da segunda. Apenas a palavra divina teria a condição de pronunciar a
Verdade, enquanto que e humana restringir-se-ia às contingências.
São as concepções de Humboldt, afirma Gadamer, que vão ser fundamentais
para a lingüística moderna, pois é com esse autor que o pensamento sobre a
linguagem toma um rumo divergente. Humboldt privilegia o estudo da diversidade
lingüística humana, encarando cada língua como um organismo único, um arranjo
diferenciado assim como acontece com as diversas culturas. Ele, no entanto, não
despreza a busca da essência da linguagem, a "verdade da palavra", pois suas
idéias, que têm como objeto a multiplicidade empírica das línguas, não têm como fim
apenas investigar a peculiaridade individual das comunidades lingüísticas e sim
entender a verdadeira expressão humana.
Su punto de partida es que las lenguas son productos de la "fuerza del
espíritu" humano. Allí donde hay lenguaje está en acción la fuerza
lingüística originaria del espíritu humano, y cada lengua está en condiciones
de alcanzar el objetivo general que se intenta con esta fuerza natural del
hombre. Esto no excluye sino más bien legitima el que la comparación de
las lenguas busque un baremo de perfección según el cual pueda
considerarse la diferenciación de éstas (GADAMER, 1993, p. 527).
Mesmo que o interesse de Humboldt seja normativo, já que ele procede a
uma comparação entre as estruturas lingüísticas das diferentes línguas humanas,
isto não cancela o reconhecimento da individualidade e da perfeição relativa de cada
uma. Outro aspecto essencial do pensamento de Humboldt e que vai influenciar
Gadamer é a compreensão de que a cada língua corresponde a uma determinada
visão de mundo. É importantíssima também a colocação de Humboldt acerca do
papel da linguagem na humanização de nossa espécie, segundo ele é incorreto
pensar-se um mundo humano sem linguagem, onde lingüisticidade teria início em
determinado momento.
Neste sentido, assim Gadamer pronuncia-se a respeito:
El lenguaje no es sólo una de las dotaciones de que está pertrechado el
hombre tal como está en el mundo, sino que en él se basa y se representa
el que los hombres simplemente tengan mundo. Para el hombre el mundo
está ahí como mundo, en una forma bajo la cual no tiene existencia para
ningún otro ser vivo puesto en él. Y esta existencia del mundo está
constituida lingüísticamente (GADAMER, 1993, p. 531).
156
A linguagem, em relação ao indivíduo pertencente a uma comunidade
lingüística, atua como se tivesse uma existência autônoma, afirma o filósofo,
situando o indivíduo no mundo. O próprio mundo também só faz sentido ao ser
alcançado pela linguagem e esta, por fim, só possui verdadeira existência ao
representar o mundo.
É importante destacar que a noção de compreensão a qual se refere o filósofo
não significa pura captação da realidade a partir da ótica de um sujeito, ela é
resultado da inserção deste em uma tradição com a qual estabelece um diálogo, de
uma conversação a partir de um sentido. A estrutura de toda sentença apresenta-se
como uma resposta a uma pergunta. Com isto a compreensão é uma mediação
entre conceitos. Esta mediação só pode ser pensada no interior de um determinado
grupo humano, pois toda comunidade é uma comunidade lingüística e nesta já
estamos de antemão de acordo, pois a lingüisticidade pressupõe a compreensão.
Segundo Gadamer:
Todas las formas de la comunidad de vida humana son formas de
comunidad lingüística, más aún, hacen lenguaje. Pues el lenguaje es por su
esencia el lenguaje de la conversación. Sólo adquiere su realidad en la
realización del mutuo entendimiento (GADAMER, 1993, p. 535).
A perspectiva histórica adotada por Gadamer confere à tradição uma
importância crucial, não a entende como simples entrega, transmissão, ou seja,
apenas o que restou do passado. A tradição, que o autor de Verdade e Método
ressalta, e que possui uma significativa importância para a experiência hermenêutica
é quando esta se faz escrita, pois só assim o que é transmitido pode fazer de
qualquer passado o presente, permitindo, inclusive, a coexistência de ambos. A
escrita vai permitir, assim, o alargamento e enriquecimento dos horizontes
transcendendo o sentido para além da contingência histórica de origem.
Pues toda revisión del primer proyecto estriba en la posibilidade de anticipar
un nuevo proyecto de sentido; es muy posible que diversos proyectos de
elaboración rivalicen unos con otros hasta que pueda establecerse
unívocamente la unidad del sentido; la interpretación empieza siempre con
conceptos previos que tendrán que ser sustidos progresivamente por otros
más adecuados. Y es todo este constante reproyectar, en el cual consiste el
movimiento de sentido del comprender e interpretar, lo que constituye el
proceso que describe Heidegger (GADAMER, 1993, p. 333).
157
A busca da verdade está limitada e determinada pelas expectativas de
sentido que estão colocadas pela tradição. Os pré-conceitos aí veiculados não são
pré-conceitos de um sujeito, mas a realidade histórica de seu ser.
Diante de um texto que se pretende interpretar, não podemos apenas
submetê-lo às nossas convenções e hábitos lingüísticos e, sim, buscar a
compreensão a partir dos hábitos lingüísticos do tempo e do autor deste.
Una conciencia formada hermenéuticamente tiene que mostrarse receptiva
desde el principio para la alteridad del texto. Pero esta receptividad no
presupone ni «neutralidad» frente a las cosas ni tampoco autocancelación,
sino que incluye una matizada incorporación de las propias opiniones
previas y prejuicios. Lo que importa es hacerse cargo de las propias
anticipaciones, con el fin de que el texto mismo pueda presentarse en su
alteridad y obtenga así la posibilidad de confrontar su verdad objetiva con
las propias opiniones previas (GADAMER, 1993, p. 335).
Esta observação deve-se ao fato de que mesmo o método cientifico operando
na busca da verdade, estando, assim, pautado pela racionalidade, ele não está
isento da presença dos pré-conceitos; não existe compreensão livre destes por mais
que se queira livra-se deles.
Prejuicio no significa pues en modo alguno juicio falso, sino que está en su
concepto el que pueda ser valorado positivamente o negativamente. La
vecindad con el «praejudicium» latino es suficientemente operante como
para que pueda haber en la palabra, junto al matiz negativo, también un
matíz positivo. Existen «préjugues légitimes”. Esto está ahora muy lejos de
nuestro actual sentimiento lingüístico (GADAMER, 1993, p.337).
Gadamer, sob certo aspecto, questiona o espírito racionalista do iluminismo
que busca desacreditar toda a forma de pré-conceitos em detrimento do
conhecimento científico. A superação de toda a forma de pré-conceito, pré-requisito
da ilustração revela, na visão do filósofo, uma nova forma de pré-conceito. Pertencer
a uma tradição com os pré-conceitos que esta nos impõe não significa uma limitação
da liberdade que só a razão iluminista poderia nos livrar. Segundo Gadamer, a razão
está limitada e condicionada de muitas maneiras sendo, antes de tudo, uma
possibilidade da história da humanidade.
En realidad no es la historia la que nos pertenece, sino que somos nosotros
los que pertenecemos a ella. Mucho antes de que nosotros nos
comprendamos a nosotrso mismos en la reflexión, nos estamos
comprendiendo ya de una manera autoevidente en la familia, la sociedade y
158
el estado en que vivimos. La lente de la subjetividad es un espejo
deformante. La autorreflexión del individuo no es más que una chispa en la
corriente cerrada de la vida histórica. Por eso los prejuicios de un individuo
son, mucho más que sus juicios, la realidad histórica de su ser (GADAMER,
1993, p. 344).
No entanto resta questionar-se qual a legitimidade dos pré-conceitos, o que
na verdade distinguem os legítimos dos inumeráveis pré-conceitos que necessitam
ser superados por uma razão crítica. A tradição desempenha um papel decisivo na
produção do conhecimento científico, é através dela que se determina a pauta dos
temas e das condições prévias de toda e qualquer investigação. Estas condições
prévias são das mais diversas ordens, seja epistemológica, teórica, gramatical,
contextual entre outras. O processo de construção do conhecimento está, assim,
determinado por expectativas de sentido advindas do contexto que o precede.
Gadamer, a partir da influência de Heidegger, refere-se ao círculo da
compreensão hermenêutica, ressaltando a dinâmica antecipatória da pré-
compreensão. Afirma o autor que o círculo não é de natureza formal, que não é
subjetivo nem objetivo, apenas descreve a compreensão como a interpretação do
movimento da tradição no movimento do sujeito. Ressalta, ainda, o papel
preponderante da comunidade de pertença no que se refere à antecipação do
sentido na compreensão de um texto, não sendo esta tarefa do unicamente do
sujeito.
La anticipación de perfección que domina nuestra comprensión está sin
embrago en cada caso determinada respecto a algún contenido. No sólo se
presupone una unidad inmanente de sentido que pueda guiar al lector, sino
que la comprensión de éste está guiada constantemente por expectativas
de sentido transcendentes que surgen de su relación con la verdad de lo
referido por el texto (GADAMER, 1993, p. 364).
Apenas com o decorrer do tempo é que é possível determinar quais são os
pré-conceitos verdadeiros, responsáveis pela compreensão, daqueles que são
responsáveis por mal entendidos, daí a necessidade de por em suspensão os
próprios pré-conceitos. Isto se deve, sob certo aspecto, a incompletude da
experiência humana o que não pode ser considerado um problema do pensamento
e, sim, de nossa historicidade.
159
Todo presente finito tiene sus límites. El concepto de la situación se
determina en que representa una posición que limita las posibilidades de
ver. Al concepto de la situación le pertenece esencialmente el concepto del
horizonte. Horizonte es el ámbito de visión que abarca y encierra todo lo que
es visible desde un determinado punto. Aplicándolo a la conciencia
pensante hablamos entonces de la estrechez del horzonte, de la posibilidad
de ampliar el horizonte, de la apertura de nuevos horizontes. La lengua
filosófica há empleado esta palabra, sobre todo desde Nietzsche y Husserl,
para caracterizar la vinculación del pensamiento a su determinatividad finita
y la ley del progreso de ampliación del ámbito visual (GADAMER, 1993,
p.373).
A noção de horizonte em Gadamer é importante pois da conta do processo
constante de verificação de todos os pré-conceitos. A compreensão assim pode ser
explicada como um encontro com o passado, com a tradição a qual pertencemos. O
horizonte do presente se constrói no diálogo com o passado. Compreender é, na
hermenêutica gadameriana, uma fusão de horizontes.
Uma característica essencial da representação lingüística das coisas do
mundo, em seus aspectos essenciais, é o fato desta apresentar-se da forma de uma
conversação, de um diálogo, na estrutura pergunta e resposta. Produzir um texto é
saber responder continuamente às perguntas implícitas em cada afirmação. É
importante o que Gadamer afirma neste sentido:
Esta es la razón por la que la dialéctica se realiza en preguntas y
respuestas, y por la que todo saber pasa por la pregunta. Preguntar quiere
decir abrir. La apertura de lo preguntado consiste en que no está fijada la
respuesta. Lo preguntado queda en el aire respecto a cualquier sentencia
decisoria y confirmatoria. El sentido del preguntar consiste precisamente en
dejar al descubierto la cuestionabilidad de lo que se pregunta (1993, p. 440).
Há uma distinção inicial formulada por Gadamer entre o que ele considera a
verdadeira e a falsa pergunta, sendo que apenas a primeira permite a abertura para
a verdade ao contrário da outra que se trata apenas de uma interrogação aparente,
distante do sentido real da pergunta. A possibilidade da verdadeira pergunta está
delimitada pelo que Gadamer chama de horizonte da pergunta, isto tem que ser
observado para que esta não caia no vazio.
Un texto sólo es comprendido en su sentido cuando se há ganado el
horizonte del preguntar, que como tal contiene necesariamente también
otras respuestas posibles. En esta medida el sentido de una frase es
relativo ala pregunta para la que es respuesta, y esto significa que va
necesariamente más allá de lo que se dice en ella. Como se muestra en
160
esta reflexión, la lógica de las ciencias del espíritu es una lógica de pregunta
(GADAMER, 1993, p. 447).
A compreensão, portanto, situa-se na busca da palavra numa determinada
tradição e que requer sempre que a pergunta seja colocada à tradição. No entanto
nossa pergunta não é mais a mesma que recebemos e, sim, a que formulamos a
partir do que herdado. Assim a verdadeira compreensão vai reelaborar os conceitos
tomados a um passado histórico traduzindo-o a partir da concepção de quem
pergunta. A isto Gadamer vai denominar fusão de horizontes. Compreender nessa
perspectiva supera uma simples retomada da opinião alheia.
La dialéctica de pregunta y respuesta que hemos descubierto en la
estructura de la experiencia hemenéutica nos permitirá ahora determinar
con más detenimiento la clase de conciencia que es la conciencia de la
historia efectual. Pues la dialéctica de pregunta y respuesta que hemos
puesto al descubierto permite que la relación de la comprensión se
manifieste por sí misma como una relación recíproca semejante a la de una
conversación (GADAMER, 1993, p.456).
É a partir da noção de fusão de horizontes que se estabelece a compreensão
e com esta a conversação que se caracteriza como uma tentativa de chegar-se a um
acordo. Valorizar o ponto de vista do outro, procurando colocar-se em seu lugar é
condição fundamental para tentar-se chegar a um acordo sobre as coisas. No
entanto, a acesso ao sentido do texto sempre estará perpassado pelas idéias de
quem interpreta.
O fenômeno hermenêutico, na concepção de Gadamer, apresenta-se como
um caso especial da relação geral entre o pensamento e a fala através da dialética
da pergunta e resposta. A busca da verdade por meio da linguagem configura-se
como interpretação de textos. Esta tradição escrita e insistentemente reinterpretada,
não é só uma interpretação de um mundo passado, está sempre além deste na
medida em que participa do sentido de quem enuncia.
Todo lo escrito es, como ya hemos dicho, una especie de habla extrañada
que necesita de la reconducción de sus signos al habla y al sentido. Esta
reconducción se plantea como el verdaero sentido hermenéutico porque a
través de la escritura le ocurre al sentido una especie de auto
extrañamiento. El sentido de lo dicho tiene que volver a enunciarse
únicamente en base a la literalidad trasmitida por los signos escritos
(GADAMER, 1993, p. 472).
161
Em sintonia com esta afirmação, qualquer texto ou livro só vai encontrar seu
sentido na medida em que possa compartilhar com o outro. Daí a impossibilidade de
referir-se a uma interpretação correta de um texto que deve ser alcançada por todo
aquele que o interpela. Impõe-nos, a tradição, divergentes e sempre novas
apropriações e interpretações, o que impede de se chegar a uma interpretação ideal,
pois toda interpretação reflete a situação hermenêutica que a originou.
5 EPISTEMOLOGIA COMPLEXA DA COMUNICAÇÃO
A constituição de um grupo de estudos de Epistemologia da Comunicação, a
partir de 2002, na Associação Nacional de Pesquisadores em Comunicação –
Compós – evidencia o amadurecimento das discussões sobre a possibilidade e a
especificidade de uma ciência da comunicação. Marcados mais por divergências e
desencontros do que pelo consenso (não que este seja essencial), as idéias desde
então expressas têm refletido as discussões de cunho epistemológicos já presentes
na disciplina ainda que não de forma sistematizadas. Neste capítulo, procura-se
discutir os elementos fundamentais que poderiam servir de fundamento para a
construção de uma epistemologia complexa da comunicação, de acordo com os
pressupostos de Edgar Morin em O Método.
A constituição de uma epistemologia da comunicação pode contribuir para: a)
formação da área como um campo delimitado; b) o reconhecimento de um objeto
específico da comunicação e c) adoção de teorias da comunicação.
Questões epistemológicas da comunicação estão ligadas à recente história do
campo e sua tentativa de se estabelecer.
O estudo de uma teoria pode contribuir na formação de novos espaços de
conhecimento. Epistemologia é o estudo crítico de novos espaços de
conhecimentos, um conjunto de conhecimentos teóricos-metodológicos interligados
que permitem elaborar formas de investigação para um objeto. Epistemologia, então,
seria o estudo dos princípios de investigação que direcionam o olhar para o tema.
A criação do Grupo de Trabalho Epistemolgia da Comuncação em 2002
constitui-se num momento importante dos estudos epistemológicos da comunicação
no Brasil. No entanto, há quem sustente que dos 37 trabalhos apresentados no GT
entre 2002 e 2005, muitos deles teriam uma inserção duvidosa no que seriam
reflexões epistemológicas. Entende-se aqui, que isto se deve ao fato do GT
Epistemologia da Comunicação acolher discussões e temas de História da
Comunicação, Sociologia da Comunicação, entre outros, o que não se
caracterizariam como sendo especificamente como reflexões de cunho
epistemológicos.
163
5.1 EDGAR MORIN E AS GRANDES EPISTEMOLOGIAS MODERNAS
Antes de analisar os dilemas epistemológicos da comunicação a partir do
paradigma da complexidade de Edgar Morin, procurou-se situar como este
paradigma dialoga com construtos teóricos consagrados da epistemologia moderna.
A relação com o pensamento de Descartes é explícita, mais do que isto é o fundo, a
cultura filosófico-metodológica em contrapoição a qual Morin desenha seu
pensamento. A autonomia do sujeito, como se expressa na filosofia trancendental,
sofre um abalo no pensamento de Morin e é neste sentido que se estabelece o
diálogo com Kant. Desvendar aspectos da interface com o pensamento marxista é
também essencial, mas é de Nietzsche a principal influência moderna do
pensamento complexo.
5.1.1 Complexidade e Cartesianismo: Discurso do Método e os Métodos
A separação sujeito-objeto cartesianamente estabelecida na aurora da
modernidade colocou, naquele momento, um abismo entre o ser e o conhecer
situando em dois mundos diferentes e quase incomunicáveis o humano e o
cognoscível. Desde então, o ser que contempla o mundo, e o fragmenta em
conceitos se situa fora da natureza, da realidade que se propõe a definir. O caminho
privilegiado pelo cartesianismo foi a separação: a separação do sujeito do objeto; a
separação do homem da natureza, a separação corpo e da alma. Ao conceber o
acesso ao conhecimento a partir da maior fragmentação possível dos objetos
estudados, Descartes abre o caminho para o nascimento, ou Renascimento, de
diversas disciplinas.
E é este movimento de objetificação da natureza que retira os objetos dos
seus contextos ignorando o sistema nos quais eles operam. Morin retoma o sistema,
mais do isto, ele o coloca-o no lugar do objeto.
164
Todos os objetos-chave da física, da biologia, da sociologia, da astronomia,
átomos, moléculas, células, organismos, sociedades, astros, galáxias,
constituem sistemas. Fora dos sistemas, há apenas a dispersão particular.
Nosso mundo organizado é um arquipélago de sistemas no oceano da
desordem. Tudo que era objeto tornou-se sistema. Tudo que era até mesmo
uma unidade elementar, inclusive e, sobretudo, o átomo virou sistema
(MORIN, 2003, p.128).
Descartes, após construir sua cadeia de raciocínios, o que o levou à síntese
cogito ergo sun, fecha o seu sistema (sistema fechado) colocando Deus como
desfecho do caminho. Pode-se considerar, nesse sentido, que o autor de DISCURSO
DO
MÉTODO realizou, com seu pensamento, uma revolução incompleta. A existência
de Deus é, a partir dele, afirmada pela racionalidade humana, sofrendo uma
inversão radical em relação à lógica medieval cristã que concebia a razão humana
como sendo apenas mais um dos atributos concedidos pela divindade.
Mas é a separação do sujeito do objeto, e a conseqüente valorização da
consciência como o que de mais sublime há no humano, que determina o abismo
entre estes autores. A hegemonia da consciência na cultura ocidental tem, sem
dúvida, em Descartes seu herói fundador, no entanto tal perspectiva já vem
amadurecendo desde a releitura e tradução dos clássicos na idade média. Nietzsche
destaca que essa transição que inaugura a modernidade é um momento específico
de um processo mais amplo, que busca disciplinar e controlar, a partir de uma
metafísica, a presença do caos, oferecendo ao mundo, pelo menos um ponto de
apoio. Assim sendo, a crítica ao imperativo da consciência é um dos principais
motes da posição anticartesiana de Nietzsche. Ele afirma:
A consciência é o último e derradeiro desenvolvimento do orgânico e, por
conseguinte, também o que nele é mais inacabado e menos forte. Do
estado consciente vêm inúmeros erros que fazem um animal, um ser
humano, sucumbir antes do que seria necessário, “contrariando o destino”,
como diz Homero. Não fosse tão mais forte o vínculo dos instintos, não
servisse no conjunto como regulador, a humanidade pereceria por seus
juízos equivocados e seu fantasiar de olhos abertos, por sua credulidade e
improfundidade, em suma, por sua consciência; ou melhor: sem aquele, há
muito teria desaparecido (NIETZSCHE, 2001, p.62).
Nietzsche ressalta que Descartes representa o momento em que estas duas
vertentes basilares do pensamento ocidental se amalgamaram no elogio à razão e à
consciência. Para o autor de A FILOSOFIA NA ÉPOCA TRÁGICA DOS GREGOS, o
165
platonismo representava um perigo para a vida da polis, como manifestações de
decadência. Impelidos pelo que Nietzsche denominou de vontade de verdade, o
pensamento de Sócrates e Platão ganhou ressonância decisiva na civilização
ocidental.
A reflexão epistemológica de Edgar Morin é, sem dúvida, uma exposição
marcada pelo anticartesianismo. Compreender os postulados deste autor implica
necessariamente, relacioná-lo ao ideário do formulador do cogito, com o qual
estabelece um diálogo e uma oposição em aspectos essenciais.
A filosofia cartesiana fecundou de tal forma o pensamento ocidental que por
mais três séculos, praticamente, o método cartesiano passou a ser sinônimo de
método científico, e mesmo que este, desde o final do século XIX e, principalmente
no século XX venha sendo alvo de inúmeras e fundadas críticas, tal pensamento
não pode ser reduzido a apenas um grande equívoco.
No entanto esta ordem, derivada e fundamentada no cartesianismo era fruto
de uma simplificação, de um funcionamento mecânico do mundo, uma possibilidade
de compreensão entre tantas outras, mas que se concebia como a única.
Observador e interpretante da realidade, o homem se demite desta para se
distanciar e melhor compreendê-la. Mas é exatamente este distanciamento que vai
contaminar a sua visão de mundo. Tal percepção só foi possível pelo esforço de
Descartes para, naquele momento, sobrepor a razão à tradição medieval.
Morin argumenta fundamentalmente contra o método científico – de
inspiração cartesiana –, que foi hegemônico no pensamento ocidental por três
séculos (sem ter perdido ainda sua força). A simplificação dos fenômenos
cosmológicos, da natureza, da vida e do ser humano foi responsável pela abertura e
solidificação de uma perspectiva teórica a qual Morin denominou de paradigma da
simplicidade. Neste sentido Morin é um anticartesiano.
Como principais aspectos do cartesianismo, Morin destaca a redução ao
manipulável e a separação entre sujeito e objeto.
A separação sujeito/objeto é um dos aspectos essenciais de um paradigma
mais geral de separação/redução, pelo qual o pensamento científico ou
distingue realidades inseparáveis sem poder encarar sua relação, ou
identifica-as por redução da realidade que é mais complexa à menos
complexa. Assim, física, biologia, antropologia tornaram-se ciências
totalmente distintas, e quando se quis ou quando se quer associá-las é por
166
redução do biológico ao físico químico, do antropológico ao biológico
(MORIN, 2003, p. 138).
A ciência, a partir das características que o pensamento cartesiano a impõe,
permite vislumbrar a possibilidade de uma verdade absoluta. Para contrapor a tal
caminho, Morin vai destacar algumas características do fazer científico e que foram
suprimidas, ou não permitidas, pela moderna concepção de ciência. Segundo Morin,
o viés reducionista do paradigma cartesiano que dominou a pesquisa científica
estava baseado em princípios de simplificação, disjunção e redução. Mas
fundamentalmente o monopólio da ordem como princípio explicativo, restringindo a
causalidade á uma causalidade linear.
Ao contrário de Descartes, que partia de um princípio simples de verdade,
ou seja, que identificava a verdade com as idéias claras e distintas, e por
isso podia propor um discurso do método em poucas páginas, eu faço um
discurso muito longo à procura de um método que não se revela por
nenhuma evidência primária e que deve ser elaborado com esforço e risco
(MORIN, 2003, p. 140).
Morin entende que a ordem do universo e a capacidade da racionalidade
humana em abarcá-la, produzindo verdades absolutas, não passa de uma ilusão,
pois estas – verdade e consciência –, não passam de acidentes, ilhas ou, quem
sabe, arquipélagos de ordem, em meio ao oceano, onde a desordem constitui a
regra. Contrapondo-se ao paradigma da simplificação, Morin propõe um paradigma
fundamentado em princípios da complexidade, da relação, da emergência, da auto-
eco-explicação, princípio hologramático, dialógico, da retroação e recursão, cujo
objetivo é explicar os fenômenos a partir da relação dialógica entre ordem, desordem
e organização.
5.1.2 Complexidade e Kantismo
A revolução copernicana de Kant promoveu, em certa medida, uma ruptura na
ordem do conhecimento da natureza. A verdade, a partir daí, deixa de ser um
atributo das coisas, mas uma construção da subjetividade. Em linguagem kantiana,
desaparece a coisa em si e a verdade possível é a do fenômeno. A revolução
167
copernicana traz o sujeito do conhecimento para a frente da cena e de seu atrito
com o mundo resulta uma realidade engendrada por representações antropologica e
subjetivamente constituídas.
A existência de um mundo cognoscível pode ser explicada, em primeiro lugar,
pela concepção de que o conhecimento é possível na medida em já nascemos com
condições para tal e, em segundo lugar, a postulação de que o conhecimento
humano só ocorre a partir do contato deste com a realidade. Na filosofia Grega
clássica, a primeira perspectiva está relacionada ao pensamento de Platão, a partir
do qual se desenvolveu a tradição idealista, enquanto a segunda posição, tem em
Aristóteles seu primordial baluarte, vindo a inaugurar uma tendência que desemboca
no empirismo moderno. Kant encontra tal dicotomia entre idealismo e empirismo, na
modernidade, representada pelas reflexões epistemológicas de Descartes e Hume
respectivamente, e se situa na superação destes através de sua filosofia
transcendental
A teoria do conhecimento de Kant se situa na confluência do pensamento
moderno, onde o empirismo e o racionalismo, alicerces da nova ciência, constituíam-
se nos paradigmas epistemológicos estabelecidos. Influenciado pelo
desenvolvimento da ciência, principalmente da física newtoniana, Kant se preocupa
em responder uma questão crucial: como é possível o conhecimento?
É na Crítica da Razão Pura, obra publicada em 1781, na qual o filósofo
apresenta suas principais idéias e que estão na base das mais importantes teorias
do conhecimento modernas. De certa forma, pode-se afirmar que a argumentação
da Crítica constrói-se no diálogo com as tradições das perspectivas epistemológicas
criticadas.
Crucial para o pensamento de Kant é a primeira resposta que ele oferece a
questão “o que é o conhecimento?”, e que ele considerou como tendo a importância
de uma revolução copernicana. Não é possível responder o que é conhecimento em
si, mas apenas o que é o conhecimento para um sujeito, e isso se dá porque o que
se tem acesso, na realidade, é ao fenômeno, e não à coisa em si. Constitui-se o
fenômeno, na definição kantiana, como “um objeto indeterminado de uma intuição
empírica”, ou seja, aquilo que se oferece à nossa capacidade de conhecer, o que,
para o ser humano, só é possível através da sensibilidade e do entendimento.
168
Seja de que modo e com que meio um conhecimento possa referir-se a
objetos, o modo como ele se refere imediatamente aos mesmos e ao qual
todo o pensamento como meio tende, é a intuição. Esta, contudo, só ocorre
na medida em que o objeto nos for dado; a nós homens pelo menos, isto só
é possível pelo fato do objeto afetar a mente de certa maneira. A
capacidade (receptividade) de obter representações mediante o modo como
somos afetados por objetos denomina-se sensibilidade (KANT, 1987, p. 39).
Fazer uso de um conceito, no entender de Kant, é fazer um juízo através
deste conceito, enquanto o entendimento é a faculdade de usar conceitos. Pode-se
afirmar, também, que é a faculdade de emitir juízos; todo o pensamento, o
conhecimento e possibilidade de exprimir este conhecimento estão relacionados à
criação e ao uso dos conceitos. Kant se refere à conceitos empíricos e conceitos a
priori, destacando que são estes últimos que ele tematiza, pois é através deles que o
conhecimento se torna possível.
O entendimento não pode fazer outro uso desses conceitos a não ser julgar
através deles. Visto que nenhuma representação se refere imediatamente
ao objeto, mas a alguma outra representação qualquer deste (seja ela
intuição ou mesmo já conceito). Logo o juízo é o conhecimento mediato de
um objeto, por conseguinte a representação de uma representação do
mesmo (KANT, 1987, p. 64).
O conhecimento é, assim, resultado de uma construção do sujeito a partir das
formas a priori da sensibilidade – tempo e espaço – e das categorias a priori do
entendimento – quantidade, qualidade, relação e modalidade. Por entender que a
experiência, por si só, não pode ser a fonte do conhecimento, na medida em que os
seus juízos não podem ser universalizados, o filósofo critica o empirismo. Critica
também à metafísica na medida em que ela se eleva sobre o mundo sensível e,
portanto, não pode estar na base do conhecimento científico.
Assim a epistemologia kantiana ao destacar a relevância do sujeito na
produção do conhecimento do mundo cria as condições de possibilidade para as
apropriações piagetiano-morineanas que enfatizam a interação como o que produz o
conhecimento. No entanto, há, ainda, entre o filósofo alemão e os epistemólogos de
nosso século, que trabalham na senda aberta pela filosofia transcendental,
divergências importantíssimas a serem explicitadas.
Destacam-se aqui algumas destas divergências, pois ao mesmo tempo em
que emerge da ordem kantiana contesta suas principais premissas. Em primeiro
lugar, as noções de sujeito e de mundo, na filosofia transcendental, ainda totalmente
169
imersas no paradigma da simplificação, compreendem-os (sujeito e mundo) como
seres estáticos, absolutamente racionais funcionando em perfeita harmonia. O
sujeito kantiano ainda pertence ao cartesianismo, sob vários aspectos, e o mundo do
“filósofo de Königsberg” encontra-se preso a ordem da física newtoniana;
Mais ainda: por todos os lados, opera-se ao longo deste século, a corrosão
da universalidade e do absolutismo do Tempo e Espaço; estes se fundiram
numa escala macroscópica em que a relatividade eisteiniana demonstrou
não haver um Tempo universal independente dos observadores. Na
seqüência, a astrofísica levou-nos à contradição genésica de um mundo
espaço-temporal originário de um não-mundo sem espaço nem tempo
(teoria do big bang) (MORIN,1999, p.262).
É importante, também, para esta discussão, a transfiguração das noções de
espaço e tempo, também newtoniamente concebidos, e que já não conseguem dar
conta de inúmeros eventos tanto do universo macroscópico quanto da dimensão
subatômica. Segundo Morin:
Cabe acrescentar: a inerência não faz parte apenas da nossa participação
integral na natureza física deste mundo, mas também da presença do Todo
enquanto Todo nas ínfimas parcelas cósmicas que somos. Com efeito, se a
organização ecológica está inscrita na auto-eco-organização viva, o Todo
cósmico, em conseqüência, inscreve-se, de certa forma (desconhecida, mas
permitindo o conhecimento), na organização cerebral dos conhecimentos. O
cosmos estaria presente hologramaticamente em minha organização
cognitiva, a qual seria, ao mesmo tempo, a coisa mais singular, original, ou
mesmo estranha, existente no cosmos. Eis porque seríamos os seres mais
cognoscentes do mundo (MORIN,1999, p.253).
Enquanto Kant entende, como já foi salientado, que existem categorias a
priori do conhecimento, a partir das quais os fenômenos adquirem significados
diante dos sujeitos, ele não tem a preocupação de questionar como estas categorias
desenvolveram-se filo e ontogeneticamente.
Kant ao contrário, entendia que a força de sua “revolução copernicana” estava
no fato de que o conhecimento racional não integra de forma alguma no espírito as
formas e as estruturas do mundo exterior; mas é impondo ao mundo as suas
próprias estruturas que o espírito conhece. Desta forma, o Tempo e o Espaço não
são aspectos intrínsecos da realidade, mas formas a priori da sensibilidade (MORIN,
1999).
170
Ora, este problema é essencial. De onde vêm as nossas estruturas
mentais? De onde vem o nosso espírito capaz de informar a experiência?
Não vem do mundo natural? Não teve uma evolução natural/cultural
formadora do espírito formador? O metaponto de vista kantiano do espírito
considerando o espírito permanece cego às condições não espirituais da
existência e da atividade do espírito. O kantismo conduz-nos somente ao
primeiro termo do paradoxo fundamental do conhecimento: o nosso mundo
é produzido pelo nosso espírito; mas ignora que este foi coproduzido pelo
mundo (MORIN,1999, p.258).
Assim, as categorias a priori são, segundo Morin, filogeneticamente a
posteriori. O a priori Kantiano, enfatiza, é um a posteriori evolutivo. O princípio de
auto-eco-organização explica, justifica, limita critica e supera o a priori kantiano.
Permite imaginar uma evolução criadora que integre e transforme as potências de
ordem e de organização ecológicas, biofísicas, cósmicas, em potências
psicocerebrais organizadoras do conhecimento.
5.1.3 Complexidade e Marxismo
No início da década de 1940, com aproximadamente vinte anos, Edgar Morin
já se encontra vinculado ao pensamento de esquerda – militância e reflexão – e,
neste aspecto, como em nenhum outro, sua vida e sua obra articulam-se e se
retroalimentam-se incessantemente. Com o início da Segunda Guerra Mundial, a
ascenção do Nazismo pela Europa e a ocupação da França Edgar Morin se junta ao
movimento de resistência à dominação estrangeira. Dominação que não
representava apenas – e já significava uma perda incomensurável – a supressão da
cidadania, mas a negação de valores universais da democracia ocidental que o
nazismo enxovalhava.
Neste contexto a presença do pensamento marxista na formação de Morin é
decisiva, os fundamentos desta doutrina forneceram uma primeira e grande
explicação para uma leitura do passado e uma utopia revolucionária. A adesão ao
marxismo representou a primeira grande ruptura na concepção de mundo de Morin.
Ele se refere a este momento momento como sendo sua primeira reconstrução
genética, uma ruptura existencial que o ajuda a construir (gênese) tanto o autor
171
quanto o seu pensamento. A dialética – inicialmente hegeliana e por fim marxista –
redesenhou-lhe o mundo, suas convicções e as convicções dos seus mundos.
As idéias de Marx forjaram o lastro teórico para a atuação na “resistência” e,
também, formatou a leitura e visão de mundo, de natureza e sociedade do autor nos
anos quarenta. Terminada a guerra, Edgar Morin passa a trabalhar em alguns
jornais de esquerda, ligados ao partido comunista francês ao qual aderira no
momento da ocupação estrangeira. No entanto, já nos primeiros anos da década de
1950, Edgar Morin começa a entrar em atrito com os ideais comunistas
materializados no Stalinismo na União Soviética e com uma crescente estagnação
do partido que se afundava num momento dogmatismo sem precedente e
autodestrutivo.
As obras inicias dos anos 1950 expressam, como foi destacado anteriormente
3.3 Antropologia fundamental, cultura de massa e comunicação – o crescente
distanciamento da análise de Morin da ortodoxia marxista. Este afastamento não é
total mas se abala grandemente nesta década até que em 1959, ao aproximar-se
dos cinqüenta anos e fazer uma primeira revisão de sua obra e sua vida em
AUTOCRÍTICA(1959), Morin estabelece uma ruptura com este ideário. Isto não
representa, num primeiro momento, uma negação da doutrina, mas a descrença na
possibilidade do materialismo histórico ser “a resposta” para importantes fenômenos
da política, da economia da sociedade e da cultura naquele momento.
Morin admite que as categorias hegelianas, com seu dogma que a verdade
esta na totalidade, não percebe as armadilhas da dialética, de sua tendência em sair
da realidade com contorcionismos retóricos, como passe de mágica. Muito
influenciado pela antropologia marxista, não conseguia perceber o quanto a
aparente cietificidade escondia um resíduo mitológico, de um dever ser e uma
mística de salvação como fosse uma religião. Morin abre mão da idéia de reconstituir
o homem total, o qual o autor passa a considerar um mito filosófico, mas mantém a
necessidade de tomar o ser humano em sua multidisciplinaridade procurando evitar
assim o determinismo.
É na análise de obras como O
HOMEM DIANTE DA MORTE(1951) e ESPÍRITO DO
TEMPO (1962) que já se percebe o afastamento de Morin da ortodoxia marxista. Na
primeira obra, escrita no final década de 1940, publicada no início dos anos 1950
manifesta sua formação transdisciplinar, incorporando conhecimentos da Geografia
172
humana, História, Psicologia infantil, Psicanálise, Etnografia. História das religioes,
Mitologia e Filosofia. Em ESPÍRITO DO TEMPO, a presença dos pressupostos e dos
conceitos marxistas estão ainda mais distantes. Obra dedicada a análise da cultura
de massa, onde ele procura investigar a adesão do público ao imaginário
cinematográfico, embarcando nesta viagem a partir dos conceitos de identificação e
projeção. São estes os conceitos centrais, oriundos da reflexão psicanalítica que
remete à noção de catarse da poética aristotélica.
Mesmo tendo se distanciando do marxismo, o pensamento complexo de
Morin possui um significativo débito com a obra de Marx. Herda do ideário marxista
uma dialética – até certo ponto combalida, na visão de Morin – mas que permitiu-lhe,
ao abolir a síntese necessária, intuir a dialogicidade. Ao contrário de ter como
fundamento a perspectiva que a resolução das contradições se resolve numa
síntese a partir das contribuições do marxismo, a dialógica intuída por Morin aposta
na superação das contradições pela coexistência das antíteses. Morin acresceu o
imaginário – estrutura mágica da consciência – a relatividade e a contradição como
elementos intrínsecos à realidade. Seu método vai privilegiar uma visão
multidimensional, uma crítica sem fronteiras e com a atenção às ciências.
Na apresentação da obra já citada, EM BUSCA DOS FUNDAMENTOS PERDIDOS,
Maria Lúcia Rodrigues, uma das organizadoras da livro, comenta a especificdade da
adesão ao marxismo por Edgar Morin. Ela surpeendia-se com o “marxismo
integrador” [grifo da autora], denominação dada pelo próprio autor, cujas
características fundamentais é não ser exclusivo nem excludente, que pode
desenvolver a formação de seu espírito contestador, que admite o inconcebível que
conserva a tolerância herdeiro de uma racionalidade iluminada. A presença
constante da dúvida, de uma racionalidade aberta, a expansão dos limites, a
presença das contradições compõe aspectos importantes desta teoria da que se
organiza a partir destas características, um teoria da complexidade.
Do marxismo, enfatiza a autora, Morin não privilegiou as relações ecônomicas
e sociais mas a noção de homem genérico; concepção tramada na dialética entre
ciência do homem e ciência da natureza e na articulação entre teoria e práxis.
(...) tinha sido tomado pela energia singular com que Marx havia unido em
uma só concepção teoria e práxis. O que me tocava e me impressionava
era ele ter conseguido arrumar na visão dialética da história humana,
173
portanto inacabável por princípio, a idéia de que um salto revolucionário
radical poderia provocar a abolição da exploração do homem pelo homem”.
Marx influenciou definitivamente’ Edgar Morin tanto em sua trajetória
pessoal e intelectual quanto em suas reflexões e produções, consignadas
princj. palmente em sua obra La Méthode (I,II,III,IV,V) (MORIN apud
RODRIGUES, 2004, p.8).
Morin não escreveu nenhuma obra “de folêgo” abordando teoricamente o
marxismo, a única parte da produção intelectual deste autor é uma série de textos
publicados entre os anos 1956 e 1963. São eles DIALÉTICA E AÇÃO, O ALÉM-
FILOSÓFICO DE MARX, FRAGMENTOS PARA UMA ANTROPOLOGIA, (entre 1956 e 1962) e
MARXISMO E FILOSOFIA, E EM BUSCA DO FUNDAMENTO PERDIDO (1963). Estes textos
foram recentemente publicados, com o título de EM BUSCA DOS FUNDAMENTOS
PERDIDOS
22
. Na apresentação deste livro, Edgard de de Assis Carvalho
23
,
antopólogo e conhecedor da complexidade observa em relação à peculiaridade do
marxismo de Morin:
Sua adesão ao ideário contido na utopia revolucionária era nessa época
irreversível, mesmo que depois a autocrítica ao realismo socialista e,
principalmente, ao stalinismo tenha sido contundente. Nos Manuscritos
econômico-filosóficos de Marx, fonte de inspiração de sua antropologia
geral, soube extrair a universalidade da condição humana, assim como as
bases constitutivas do homem genérico, que não separa a natureza da
cultura (CARVALHO, 2001, p. 14).
Recentemente, em 2001, na apresentação da obra já citada e que reúne seus
textos sobre o marxismo e no qual autor discute o seu afastamento desta doutrina,
Morin afirma que se rejeitou esta teoria porque ele carecia de certos conceitos
desenvolvidos, posteriormente, entre a década de sessenta e setenta e que se
tornaram indispensáveis na estruturação do seu pensamento. São os conceitos de
dialógica substituindo a dialética, o de circuito recursivo, o de princípio hologramático
e, enfim, o conceito de complexidade.
Hoje, a Antropologia não pode abster-se de uma reflexão sobre: o princípio
de relatividade einsteiniano; o princípio de indeterminação de Heisenberg; a
descoberta da “antimatéria” desde o anti-elétron (1932) até o anti-nêutron
(1956); a cibernética, a teoria da informação; a química biológica; o conceito
de realidade. Tudo o que diz respeito ao homem nos revela ao mesmo
tempo o homem em movimento e o homem permanente; o homem diverso e
o homem uno. O mistério da interioridade do homem encontra-se em suas
22
MORIN, Edgar. Em busca do fundamento perdido. Porto Alegre: Sulina, 2005. (idem, 27)
23
CARVALHO, Edgard de Assis.
174
obras, seus mitos, suas projeções; procurar o interior no exterior. Seria
preciso mostrar que há menos materialidade no real do que parece, mais
realidade no imaginário do que acreditamos e, através desta aproximação,
tentar considerar seu estofo comum: a realidade humana (MORIN, 2004,
p.64).
A necessidade da superação da dialética, cuja limitação Morin vislumbrava,
consiste na supressão desta em favor de outra perspectiva: a dialógica. Entre ambas
a difereneça relacionada à questão síntese, enquanto na dialética há uma síntese
necessária na dialógica a abertura para a convivência de antagonismos nos
sistemas. Esta questão é discutida por Morin em DIALÉTICA E AÇÃO. Neste artigo
prouzido na segunda metade dos anos cinqüenta, destaca que a dilética é um
valioso instrumento de compreensão das coisas do mundo, mas adverte para
algumas incongruências que esta apresenta.
A síntese dialética é certamente, um momento privilegiado, mas de modo
algum merece ser inflada como um balão. Muito mais doque síntese, o
termo essencial e fecundo da dialética é operação. Principalmente as
contradições humanas essenciais nunca encontram sua síntese, mas são,
podem ser, cotidianamente superadas, sem todavia se suprimirem. A
dialética progride a custo, no esforço perpetuamente recomeçado. As
contradições acabam por alcançar o dialético tendo-as considerado como
meras obstruções, com demasiada facilidade as superou (MORIN, 2004,
p.29).
Foi somente com o fim da gerra fria, isto é, com o degelo político que Morin
começou a perceber o quanto a dialética foi congelada. Segundo o autor, a dialética
nascera parcialmente amputada: ignorava a realidade semi-imaginária do homem e
desprezava o dever-ser. A dialética foi atrofiada, defende Morin, esterilizou a
negação e, por conseguinte, petrificou a positividade. Também como equívoco, pode
ser citado o fato de que esta foi mitificada e acabou inflando o momento da síntese.
Por ter desprezado o dever-ser, confundiu o seu próprio dever-ser, o homem total e
o universal concreto, com a realidade. Surpreendeu-se com sua própria função, que
consiste em pensar e produzir o devir.
No final da década de 1970, Morin afirma: Marx tornara-se pra mim uma
estrela, entendia naquele momento Morin, uma estrela entre tantas outras.
“Ultrapassei” Marx, afirma, mas integrando-o e não desintegrando.
Com efeito, meu marxismo era singularmente aberto, como testemunha
L’Homme et la mort, escrito em 1948-50. Eu aí integrava a contribuição de
175
diversas ciências humanas, o pensamento de Freud, Rank, Ferenczi, Jung,
e alimentava-me de Heidegger e Sartre. Meu marxismo era caracterizado
justamente por este traço integrador que visava a apreender a
multidimensionalidade do problema humano da morte; buscava uma
“totalidade” que não fosse aditiva. Foi durante a caminhada de Arguments
que liguei minha aspiração à “totalidade” com a consciência adorniana,
complementar e contraditória, de que a totalidade é a não-verdade (MORIN,
2001, p. 20).
“Completei” Marx, reitera, onde julgava haver insuficiência em relação ao que
vinha construindo desde o final dos anos 1970 e que chamou de pensamento
complexo. Complementa Morin afirmando que a “ultrapassagem” [grifos do autor] do
marxismo continua a ser uma das vias para chegar ao pensamento complexo.
O homem genérico em Marx era destituído de subjetividade, de afetividade,
de amor, de loucura, de poesia. Era essencialmente um homo faber e
economicus. É preciso enriquecer o genérico. Assim entendido, o genérico é
o primordial, l’arkhé, ao mesmo tempo origem e princípio. Neste sentido
pode-se interpretar a palavra de Heidegger: “O Começo está aí. Não jaz
atrás de nós ... mas estende-se diante de nós”. Esta verdade havia sido
descoberta de outro modo por Rousseau em sua tese sobre o estado de
natureza, reciclada por Marx na tese do homem genérico e completada no
mesmo Marx pela verdade contrária. Esta dupla verdade dialógica nos diz
que a finalidade humana (télos) passa pela origem genérica (arkhé),
segundo um circuito arkhé-télos; o progresso só pode advir do retorno à
arkhé, não do seu esquecimento (MORIN, 2001, pp. 21-2).
A idéia da necessidade de reencontrar a fonte geradora para progredir torna-
se um pressuposto fundamental da complexidade. Para manter o que se conquistou,
é preciso incessantemente regenerá-lo, afirma.
Para cada um e para todos, para si mesmo e para outrem, no amor, na
amizade, no passar dos anos, é preciso a regeneração permanente. Tudo o
que não se regenera, degenera. “Quem não está nascendo está morrendo,
canta Bob Dylan (MORIN, 2001, p.22).
No artigo FRAGMENTOS PARA UMA ANTROPOLOGIA, Edgar Morin coleciona uma
série de pequenos textos, parágrafos na verdade, com idéias sobre sobre sua
antropo-sociologia fundamental onde aparece a influência do marxismo e, ao mesmo
tempo, a influência da crise do marxismo, entenda-se: de um certo marxismo.
Observa-se, ainda, uma crítica à fragmentação do homem moderno, e também,
constitui-se, ainda, uma revisão de alguns aspectos das ciências.
Estamos na época triste das ciências humanas: homem cortado em fatias.
O que é necessário lamentar não é nem a matematização nem a estatística,
176
mas a atrofïa do espírito de hipótese. As hipóteses arrastam-se, exangües.
Mas consideremos, antes, a pesquisa nas ciências físicas: aí a ciência é
poesia; desreifica o real, relança sob formas de hipóteses os devaneios,
verifica as maiores audácias do espírito, se arremessa em direção ao
impossível (MORIN, 2001, p.36).
A crise de paradigma, da meta-narrativas dos sistemas fechados e absolutos
é percebida e questionda por Morin que vai buscar nas ciências da natureza, na
Física e, principalemente, na Biologia a orientação para um novo caminho: a
complexidade.
5.1.4 Complexidade e Perspectivismo
O questionamento que aqui propomos em relação ao pensamento Morineano
não se refere aos postulados basilares de sua reflexão. Busca entender como este
autor propôs uma ruptura radical com o paradigma cartesiano ignorando
solenemente o “estrago” perpetrado a este modelo explicativo pelo ataque
nitzscheano. Em suma, o que se defende é a necessidade de colocar um o
paradigma perpesctivista entre o cartesianismo e a complexidade, pelo fato de que
muito da pregação morineana é fruto do esforço e enfrentamento realizado por
muitos autores e consubstanciado no pensamento de Friedrich Nietzsche, o que é
ignorado por Morin, principalmente nos Métodos.
Saudada por Nietzsche como uma verdadeira revolução, a morte de Deus pos
fim de a dois séculos de agonia. Tal fato “de que ‘Deus está morto’, de que a crença
no Deus perdeu o crédito – já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a
Europa” (NIETZSCHE, 2001, p. 233), afirmou o autor, acrescentando que este
evento trouxe conseqüências até então impensadas para o conhecimento.
De fato, nós, filósofos e “espíritos livres” ante a notícia de que “o velho Deus
morreu” nos sentimos como iluminado por uma nova aurora; nosso coração
transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa – enfim o
horizonte nos aparece novamente livre (...) (NIETZSCHE, p. 234).
A liberdade – ao mesmo tempo orfandade –, conquistada pelo homem tem
como conseqüência o aprofundamento de sua condição de solidão no mundo.
Antigo habitante do centro do universo, despejado para um planeta insignificante;
ex-criatura feita a imagem e semelhança do divino criador, agora apenas mais uma
espécie num processo evolutivo que o irmanou aos símios; o homem que, por fim, já
177
não gozava de uma situação privilegiada de pura consciência – sendo esta tomada
como um acidente, mesmo que útil –, agora perdeu de vez seu guia e mentor.
Tal perspectiva nietzscheana vai encontrar eco no pensamento morineano e,
por conta desta sintonia, a concepção de conhecimento que os aproxima. Após a
missa de um século da morte de Deus, Morin assim se pronuncia:
De resto, eu excluo tanta a consciência particular como a grande
consciência macroscópica, isto é, Deus. (...) Seria espantoso que neste
universo trágico, que se desintegra ao mesmo tempo que se constrói,
houvesse um todo onisciente e criador, ou mesmo que esse universo
pudesse ser considerado uma totalidade organizadora e superpensante. A
maior parte do universo, senão sua quase totalidade está, pelo contrário,
destinada ao caos, à dispersão e à desintegração. Os sujeitos estão,
portanto, completamente perdidos no universo (MORIN, 2003, p. 327).
Abandonado na natureza, sem Deus e sem sentido algum, resta como único
fundamento de conhecimento possível, aquele que é resultado da própria
construção humana. O fim da metafísica, a morte Deus, a intangibilidade da coisa
em si apontam para uma nova condição de possibilidade do conhecimento, sua
essência humana demasiadamente humana. A reativação do sujeito, que de braços
cruzados contemplava a natureza, sonhando com suas formas absolutas, passa
agora a ser novamente medida e a qualidade da realidade kantianamente
desenhada.
Apesar da ausência de uma teoria do conhecimento sistematizada, a exemplo
de Descartes e Kant, os pilares do que viriam ser esta empreitada estão explicitados
por Nietzsche. E esta sua virtual epistemologia, caracteriza o conhecimento como
uma atividade de um determinado tipo de animal, o ser humano, empenhado, como
todos os outros, na sua sobrevivência. E é a sua necessidade de viver em sociedade
e de se comunicar que leva os homens a produzir conhecimento. Como os demais
animais, com suas disposições naturais, o homem tem no conhecimento a condição
de sua sobrevivência.
Não somos batráquios pensantes, não somos aparelhos de objetivar e
registrar, de entranhas congeladas – temos de continuamente parir nossos
pensamentos em meio a nossa dor, dando-lhes maternalmente todo o
sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, destino e
fatalidade que há em nós. Viver – isto significa, para nós, transformar
continuamente em luz e flama tudo o que somos, também tudo o que nos
atinge; não podemos agir de outro modo (NIETZSCHE, 2001, p.13).
178
Na medida em Nietzsche entende que a consciência é uma parte ínfima da
subjetividade, é possível traçar um paralelo entre esta característica dos sujeitos e a
“percepção” que Morin tem em relação aos fenômenos como sendo ilhas de ordem
(ou organização) num mar de desordem: fenômenos naturais e sociais e, ainda, a
forma como apreendemos a realidade. Assim pode-se conceber a hipótese que não
há uma quebra de paradigma entre Nietzsche e Morin, ao contrário, o filósofo
francês trabalha sob as ruínas do edifício da cultura ocidental, platônico-cristã,
implodidos pelo próprio “anti-cristo”.
A subjetividade individual, embora se considere o centro do universo, é
efêmera, periférica, pontual. Mas é nesse ‘ponto’ que interferem os
processos organizadores e que emergem as qualidades da vida. (...) Os
indivíduos-sujeitos são os seres emergindo na realidade fenomenal. É nos
indivíduos sujeitos que se operam todos os processos de reprodução.
Portanto, o conceito de sujeito não deve ser considerado epifenômeno, mas
sim inscrito ontologicamente em nossa noção de ‘vida’ (MORIN, 2003,
p.320).
O conceito morineano de sujeito, bem como sua relação com o conhecimento,
elemento central do paradigma da complexidade, não é uma contraposição direta,
linear ao sujeito cartesiano que contempla e desvenda a ordem da natureza. O
sujeito da complexidade é o sujeito órfão de Deus; fragmentado, descentrado,
múltiplo. Não é mais o cogito e é mais que a unidade da apercepção kantiana.
Assim, vemos esboçar-se um conceito de sujeito radicalmente diferente do
dos filósofos do Ego transcendental ou da consciência fundadora. O sujeito
vivo emerge do processo complexo de auto-eco-organização e, nesse
processo, ser, máquina, cômputo, sujeito, constituem noções ao mesmo
tempo inseparáveis e fundadoras (MORIN, 1999, p. 58-9).
Assim, a concepção de conhecimento que funda o paradigma da
complexidade e, concomitantemente, sua concepção de sujeito, não se constitui
como uma simples oposição ao que Morin denomina como sendo o paradigma da
simplicidade.
O diálogo de Nietzsche e Morin, que aqui é proposto, cumpre o papel de
relacionar estes autores como sendo esforços epistemológicos que, cada um a sua
maneira, rompem com o paradigma cartesiano vislumbrando, assim, novas
possibilidades metodológicas. Mas tal caminhada apresentou inicialmente uma
dificuldade, qual seja, um “silêncio bibliográfico” de Morin em relação a Nietzsche,
179
isto é, o fato de não se encontrar de forma explícita nas referências ao autor de
CIÊNCIA COM CONSCIÊNCIA nas obras reunidas sob o título de Método.
5.2 QUESTÕES ATUAIS EM EPISTEMOLOGIA DA COMUNICAÇÃO
A partir da extensa exposição realizada no sub-capítulo 2.2 – Os sentidos da
comunicação – em que se procura selecionar alguns aspectos da reflexão
epistemológica presentes nos artigos selecionados para comporem este trabalho,
pretende-se, a partir deste momento, mapear aqueles pontos que se entendeu
fundamentais. Nestas discussões, muitas são as alternativas e pouco o consenso.
Assim, antes de retomar a exposição, é importante ressaltar novamente os critérios
adotados para seleção dos artigos pesquisados, bem como da escolha dos aspectos
que foram ressaltados.
A escolha dos trabalhos apresentados no GT Epistemologia da Comunicação
se deveu fundamentalmente ao fato destes se proporem a fazer a discussão
epistemológica. É certo que não é este o critério que determina o que é uma reflexão
epistemológica. E isto evidencia-se quando se percebe que tanto interna quanto
externamente ao Grupo de Trabalho pode-se encontrar críticas acerca da
epistemologicidade das contribuições. Ou seja, muitos dos trabalhos apresentados
neste GT não são considerados por seus pares como sendo produções de cunho
epistemológica.
Como a escolha dos trabalhos GT decorreu por se entender que estes
possuem alguma legitimidade, mesmo que seja institucional e não um critério
epistemológico, acresceu-se ao conjunto de textos do GT outros três artigos que,
mesmo não tendo sido apresentados no mesmo forum dos demais, foram incluídos
no corpus pesquisado.
No mapeamento que aqui se propõe, procurou-se apenas manter a seqüência
cronológica já obedecida anteriormente, por ocasião da apresentação dos artigos
nos encontros, enquandrando os que não faziam parte do GT aos demais. Este
critério cronológico de apresentação não pressupõe evolução, transformação e
derivação de idéias ou ponto de vista no decorrer do tempo. Pode haver, inclusive,
um nexo cronológico na evolução teórica, conceitual, paradigmática neste grupo que
180
é dinâmico pois mantém uma interlocução constante. No entanto, acredita-se que
estas derivações e interlocuções poderiam ser tema de outra pesquisa.
É importante observar ainda, em relação ao material investigado, é que não
se buscou organizar os autores em tendências, grupos ou qualquer outra forma de
categorização. O que se pretendeu aqui foi identificar e destacar as questões
fundamentais, os autores significativos para a área, a adesão e a discordância entre
estas idéias, bem como a explicitação e a vinculação com outras teorias que
compõem os principais embates comunicacionais.
Deste universo de problematizações, procura-se aqui pontuar as questões
recorrentes do ponto de vista epistemológico, abrindo assim o caminho para os
demais questionamentos. Como foi destacado na seção 2.2 obedeceu-se, na
disscussão dos artigos, a um critério cronológico de apresentação nos encontros do
GT, sem no entanto procurar identificar qualquer influência recíproca ou evolução
das idéias apresentadas.
Sobre o papel tecnologia na Comunicação
A questão da tecnologia é um dos temas que inaugura a discussão teórica na
pesquisa sobre comunicação. O interesse significativo pela comunicação como uma
área do comnhecimento só se concretizou com o advento da revolução industrial, da
urbanização, do desenvolvimento capitalista e das necessidades criadas em um
mundo novo. As recentes demandas socias de produção material, de deslocamento
nos mercados, tanto interno quanto externo, ampliaram as “comunidades” fazendo
com que as velhas formas de comunicação viessem a ser tornar obsoletas.
Não se trata aqui de aderir a um sociologismo determinista que só vê em tudo
uma só causalidade econômica. No entanto, o que deve ser ressaltado neste
momento é que os avanços tecnlógicos não são simplesmente obra de gênios
criativos que, por inspiração subjetiva, decidiram inventar o telefone, o telegrafo, e a
eletricidade etc. Há um contexto sócio-cultural-tecnológico que incentiva, permite e
exige que determinadas soluções se adeqüem às situações que se apresentam.
Feitas estas breves ressalvas cabe destacar o reconhecimento da centralidade da
discussão sobre a presença da tecnologia na comunicação.
O advento da Internet, por exemplo, serviu de mote para Triviños (1996)
ientificar, neste fenômeno comunicacional do fim do século XX, uma explosão
181
tecnológica comunicacional. Marcada pelo uso massivo do computador, pelo
surgimento da Internet, banalização do uso de telefone celular, teleconferências etc.,
mudanças radicais no modo de viver e conceber o mundo, este fato propiciou uma
ruptura na Teoria da Comunicação, na medida em que seus elementos essenciais
emissor, receptor, mensagem, código etc. se fragmentaram.
Mas do que a simplesmente um recurso tecnológico com a Internet, é a
constituição do ciberespaço – que Triviños define como sendo uma estrutura
infoeletrônica transnacional de comunicação, ressalta o fato desta ser de dupla via,
em tempo real e multimedia – provocou maior impacto nas comunicações,
desfigurando emissor e receptor, dissolvendo noções como de código e mensagem.
A nova estrutura de comunicação do fim do milênio pôs por terra, alguns dos
procedimentos práticos, das categorias e esquemas teóricos que eram válidos no
século XX. A cientificidade da comunicação atravessa neste momento o risco de sua
inviabilidade. O ciberespaço, enfatizou Triviños, foi fundamental complementa o
autor, para a realidade do avanço tecnológico e constituiu-se no fator decisivo que
propugna e permite uma ruptura paradigmática e aponta para novos rumos, objetos
e conceitos à Comunicação.
A tecnologia revolucionou a capacidade de mediação pela possibilidade de
manipular, multiplicar, expandir, tocar, reter a informação, acentua. Tecnologias da
comunicação transformaram o desafio do conhecimento em expansão do
conhecimento.
As novas tecnologias da comunicação podem alterar alguns valores e hábitos,
modos de vida e socialidades destaca Ferrara (2005) que concorda com Muniz
Sodré que estamos diante do que ele chama de biosmidíatico, uma nova dimensão
psicossocial para o homem.
Sobre a Existência do Campo da Comunicação
Crucial nas discussões epistemológicas, a existência ou não de um campo da
comuncação é tema dos mais acirrados debates. Para Braga (2001), o campo da
comunicação já existe e funciona plenamente. Neste caso, não vê sentido na
necessidade do debate ontológico. Ele entende que já se tem uma denominação
confortável – Campo da Comunicação – e que esta tem servido aos propósitos das
pesquisas na área.
182
A defesa e a explicitação dos elementos da comunicação assumindo
plenamente sua condição de ciência é o que propõe Martino (2001b), ele defende
que é somente apropriado uma investigação epistemológica em uma disciplina
científica, não de qualquer investigação científica como a Filosofia da Comunicação,
mas de certos elementos estruturantes da reflexão científica.
Três são os critérios que têm sido usados, segundo por Martino (2001b), para
definir a comunicação como ciência autônoma: 1) uma resposta de cunho empírico;
2) uma definição lógico-formal e 3) uma análise diacrônica, da gênese do campo.
Das três perspectivas, Martino reporta-se às duas primeiras de forma sumária,
detendo-se e apostando na terceira perspectiva como sendo aquela a partir da qual
se pode chegar a uma caracterização do campo da comunicação.
A especificidade da vinculação social é, segundo Sodré (2001), o objeto de
uma ciência da comunicação, é o que ele denomina de bios midiático. É a evidência
de que as práticas sócio-culturais ditas comuncacionais ou midiáticas vêm se
instituindo como um campo de ação social.
O campo comunicacional apresenta-se como uma forma de pensar a
organização atual da sociedade de uma maneira mais abrangente que a noção de
modo de produção, o que permite permite estabelecer a distinção entre o societário
e o sociável. O primeiro que dá conta da oficialidade da sociedade, impostos
verticalmente por ação de diferentes formas de poder que busca abarcar a
socialidade. A ciência da comunicação na concepção de Sódré visa analisar as
novas formas “de subjetividade, de relacionamento interpessoal, de produção
sombólica.
Segundo Fausto Neto, os campos se estruturam históricamente, através de
competências, especificidades, rituais, etc. Eles se diferenciam da noção de
sistemas, pois são espaços históricos que são atravessados por conflitos e
tensionamentos. A historicidade, que está contida no conceito de campo, confere-lhe
uma condição de vantagem em relação à idéia de sistema que é estática e
atemporal, postula o autor.
A questão do campo comunicacional, ou ainda, do campo interdisciplinar da
comunicação encontra neste autor uma oposição firme e definitiva. Se se considerar
que a comunicação “acontece” num espaço teórico interdisciplinar, o campo da
comunicação, a história da comunicação seria, ressalta o autor, o somatório dessas
183
histórias parciais que das quais dependem além da comunicação, a psicologia,
sociologia, ciência política etc.
Para justificar sua oposição a tal concepção do campo interdisciplinar da
comunicação, Martino, propõe que se explicite a diferença entre campo e disciplina,
o que permite conpreender que se trata de entes que remetem a realidades muitos
dispares e que não permite a confusão ou a justaposição dos dois conceitos. A
noção de campo diz respeito a um objeto empírico, a disciplina é uma perspectiva
teórica. A noção de “campo”, segundo salienta Martino, designa de maneira muito
vaga agrupamentos de disciplinas ao redor de um objeto empírico, mas também ao
redor de um problema empiricamente colocado.
Entenda-se bem, não discuto se o campo é ou não variado, mas que
identidade do campo não pode ser dada a priori por uma “definição” não
discutida: supostamente “sabemos” que o campo é diverso, e comprovamos
isto pelos dados históricos, eles mesmos organizados pelo pressuposto que
queremos comprovar. Em outras palavras, sem negar o valor das pesquisas
sobre a emergência e desdobramento do pensamento comunicacional,
precisamos reconhecer a pouca serventia desta para as investigações
epistemológicas, particularmente para os problemas relativos a definição do
campo, pois raramente podemos retirar delas mais do que ali foi
implicitamente colocado. Por conseguinte, não é desta forma que uma
história da comunicação pode nos ajudar no problema do estabelecimento
do campo e de suas fronteiras”. (MARTINO, 2005, p.45).
A questão do campo comunicacional, ou melhor do campo interdisciplinar da
comunicação, encontra neste autor uma oposição firme e definitiva. Quanto a
aqueles que procuram privilegiar a noção de campo, acabam por deslocar o
problema da formação de uma disciplina para o da constituição de um campo,
fazem-no sem, muitas vezes, dimensionarem as conseqüências de tal consideração.
Isto se manisfesta substancialmente quando se aceita a idéia de um campo
interdisciplinar. Nega-se, com esta deserção do objeto, a possibilidade de traçar a
história de uma disciplina ou de saber propriamente comunicacional.
Sobre o objeto da Comunicação
A necessidade de se definir um objeto da comunicação, de restringir o objeto
da comunicação ao campo das mídias se constitui numa drástica redução que exclui
muitas práticas comunicativas presentes na vida social e que não estão atreladas ás
mediações tecnológicas. O rumor das ruas, das praças é um exemplo disto assim
como as relações de vizinhança e outras formas comunicativas como as
184
representações simbólicas como teatro etc. Assim, os limites do que vem a ser o
objeto da Comunicação podem ser muito ampliados, para os processos
comunicativos para além da produção e circulação de informações.
Em um questionamento fundamental, nesta discussão sobre o objeto da
comunicação, FRANÇA (2001a) destaca que proliferam hoje os estudos
comunicativos, baseados em distintas filiações teóricas, vindas de diferentes
lugares. O objeto, ou partes do objeto comunicativo, são recortados e tratados
conforme as perspectivas escolhidas. A questão que se impõe para a autora é:
estes podem ser considerados estudos de comunicação?
Contrariamente aos que entendem serem inúteis as discussões sobre o
objeto da comunicação, pois esta apresenta muitas acepções e é de difícil definição,
Sodré (2003) entende que sobre este ponto não repousa qualquer dúvida. Segundo
este autor “ (...) a Comunicação tem como objeto a vinculação entre o eu e o outro” e
isto se dá tanto do ponto de vista do indivíduo quanto do coletivo. Ressalta o autor
que dois são os aspectos inaugurais da reflexão sobre a Comunicação: o fato de
apresentar uma abordagem filosófica e uma abordagem sociológica.
Kant serve de fundamento para a perspectiva filosófica, Sodré recorre
categoria a priori do entendimento de ‘relação’ que traduziria a possibilidade que o
indivíduo que tem de pôr-se em disponibilidade para algo em comum. A comunidade
afirma Kant (apud Sodré, 2001) é a causalidade de uma substância na determinação
de outras, todas as reciprocidades. Esta definição não objetiva a comunicação
humana mas a define sobremaneira.
Além de objetos e problemas, um campo científico também se caracteriza
pelos olhares e perguntas de interesse investigativo que lança à realidade. A partir
desta proposição, Barbosa (2002), avalia que a característica mais evidente do
campo da comunicação, hoje, é a afirmação de que “seus estudos, demarcando o
desenvolvimento dos meios e as relações que as sociedades estabelecem com eles,
determinam configurações particulares de gêneros e discursos.” (p.73).
A autora procura chamar a atenção para a centralidade das questões
relacionadas às sociabilidades, ritualidades e institucionalidade existentes nos
processos de comunicação. Ela considera a comunicação como uma relação de
natureza social, e como tal está imbricada com o lugar, com a história e os
185
mecanismos que permitiram a constituição da peculiaridade da visão de mundo do
espaço social que a originou.
A Comunicação constitui-se num objeto óbvio para Martino (2005) e num
saber urgente. No entanto, a ausência de uma definição sobre os fundamentos da
disciplina inviabiliza uma reflexão epistemológica verdadeira. Sem uma reflexão
epistemológica que permita compreender os fundamentos e a singularidade da
comunicação, os especialistas ficam desprovidos do instrumental que permita
separar o que é ou não é um trabalho em Comunicação. A ausência destes
parâmetros favorecem a definição do que vem a ser Comunicação a partir do critério
empírico, isto é, que a Comunicação é o que os comunicólogos fazem ou, ainda, de
uma definição a priori. A conseqüência inevitável desta, no entanto, é a
incapacidade de afirmar o que é e o que não é Comunicação e/ou comunicação.
A questão relativa ao objeto da comunicação perpassa as quatro questões,
mas quando se fala em objeto de estudo da comunicação, pode haver confusão
aponta Martino.
Em sintonia com a revolução copernicana de Kant, ressalta Martino que o
objeto é correlato ao termo sujeito e significa, sobretudo, aquilo que se dá a ver e
conhecer para um sujeito. As coisas em si não são objetos, elas se tornam objetos a
partir da ação de um sujeito. O objeto cognoscente é tudo o que se apresenta a um
sujeito. Não se trata do fenômeno, mas aquilo que a teoria consegue abstrair do
fenômeno. O que difere no objeto de uma disciplina, de um objeto do ponto de vista
mais geral, é que aquele é responsável pelo recorte e pela abordagem por meio da
qual o fenômeno se apresenta ao trabalho da teorização.
Uma outra abordagem bastante criticada por Martino é a que enfatiza a
subjetividade como sendo o acesso privilegiado à realidade (MARTINO, 2003, p.92).
A linguagem passa a ter um papel decisivo como instrumento do sujeito capaz de
pronunciar a verdade, momento da verdade é a intimidade do sujeito. Martino faz
uma crítica forte à presença da subjetividade, como fazendo parte de uma tendência
irraconalista, mas não chega a refletir sobre a importância deste viés na
Comunicação. Sustenta sua crítica tendo como referência “empírica” o texto de
Denilson Lopes A EXPERIÊNCIA NA ESCRITURA: UMA ESTÓRIA E UM IMPASSE, o qual
acusa de tomar a linguagem como sendo o critério por excelência da manifestação
da verdade.
186
Uma segunda crítica importante Martino (2003) é em relação ao pouco
prestígio da reflexão teórico-científica na comunicação. Ilustrando esta crítica,
Martino se refere ao artigo PESQUISA EM MULTIMEIOS: SONS E IMAGENS NA
ENCRUZILHADA DAS ARTES E DAS CIÊNCIAS de Marcius Freire. Neste caso, apesar da
pesquisa “se dizer” epistemológica, trata-se de de uma análise institucional, segundo
Martino.
Sobre a interdisciplinaridade na Comunicação
O discurso científico só se estabeleceu e evoluiu a partir da democracia grega
pois ele é intrinsecamente polifônico, depende da liberdade de opinião e do
reconhecimento da verdade alheia, avaliada a partir de determinados critérios
aceitos comumente. No entanto com a evolução do conhecimento, o saber foi se
tornando compartimentado em ciências em disciplinas. Com o tempo, percebeu-se
que as disciplinas necessitam umas das outras para solucionarem determinados
tipos de problema. Percebeu-se, também, que a união de duas ou mais ciências
poderia abarcar um segmento fenomênico até então sem contornos definidos. Daí as
perspectivas científicas que se formaram: interdisciplinaridade, multidisciplinaridade
e transdisciplinaridade entre outras.
Na Comunicação, a questão da interdisciplinaridade é discutida sob vários
aspectos, dois dos quais aqui são destacados. O primeiro é o que aceita a
interdisciplinaridade, pois esta é a condição de qualquer ciência, mas procura manter
e sustentar a especifidade da Comunicação. Por outro lado, há os que entendem
que a interdisciplinaridade faz parte da essência disciplina, sendo que entendem ser
a Comunicação intrinsecamente um campo interdisciplinar. Braga (2001) ao definir
as questões epistemológicas fundamentais da disciplina destaca: a) a centralidade
da mídia no processo comunicacional, b) a interdisciplinaridade, c) questão da
constituição do campo e d) definição do objeto da comunicação. Isto demonstra, de
certa, forma a centralidade da discussão sobre a interdisciplinaridade na
Comunicação. Sua presença e importância.
A presença acentuada da perspectiva interdisciplinar na Comunicação sofre a
crítica de Martino (2001) pois ele entende que “o que se vê hoje em dia é a
Comunicação passar diretamente do sentido filosófico para o sentido radicalmente
interdisciplinar”, sem que se crie um espaço para a constituição de uma disciplina
187
autônoma (MARTINO,2001,p.79). Neste caso, a interdisciplinaridade seria um
obstáculo para a construção do pensamento comunicacional, da definição de um
objeto da Comunicação e afirmação do campo. A interdisciplinaridade da pesquisa
comunicacional, ao contar com a contribuição de disciplinas como Sociologia,
Psicologia, Lingüística etc. fica a serviço destas que guardam seus interesses
específicos. Apenas quando a Comunicação opera como uma síntese desses
saberes, fundando portanto um objeto particular é benéfica a implantação da
Comunicação no sentido de falar de uma disciplina autônoma.
A transdisciplinaridade constitui-se num movimento diferente em que uma
determinada questão ou problema, afirma (FRANÇA, 2001a), suscita a contribuição
de diferentes disciplinas. Neste caso tais contribuições ao serem deslocadas de seu
campo acabam por entrecruzar-se em um novo lugar. Estes deslocamentos e
entrecruzamentos têm a possibilidade de provocar uma iluminação e uma outra
configuração da questão tratada. É esse tratamento híbrido, distinto, que constitui o
novo objeto: a comunicação.
O final do século XX e o limiar do novo século está sendo marcado por
profundas convulsões nos sistemas de pensamento; o próprio modelo da ciência se
encontra abalado. Busca-se o pensamento complexo; “os leitos disciplinares
mostram-se estreitos” – a transdisciplinaridade não diz respeito apenas à
Comunicação, mas à prática científica contemporânea como um todo. (FRANÇA,
2001a).
A comunicação como espaço de transdisciplinaridade encontra aqui um
sentido até então não explorado pelos autores aqui estudados. Mesmo em Morin,
onde se encontra a inspiração para esta postulação, entende-se que não há a
explicitação do sentido transdisciplinar que nesta tese se propõe. A comunicação é
transdisciplinar como toda a ciência mas o é de uma forma que o olhar científico
ainda não flagrou suficientemente.
Segundo Barbosa, está ultrapassada a visão de disciplinaridade que deve ser
paulatinamente mudada para campos de estudo e conhecimento. Neste caso a
transdisciplinaridade deixa de ser procedimento e atua como uma visão
paradigmática. A realidade, mais complexa que os esquemas explicativos, estaria
reivindicar uma verdade num registro mais geral para a autora, além dos limites que
a compartimentação acadêmica, impôs sob a forma de disciplina.
188
Um derradeiro aspecto da inter, multi, transdisciplinaridade é a percepção que
alguns autores têm destas “novas” alternativas de abordagem do objeto do
conhecimento. Gomes (2003) identifica estas abordagens com “o discurso sobre o
fim das disciplinas, do elogio da porosidade metodológica e da flexibilidade das
ferramentas conceituais” (p.326). Mais adiante, complementa: “um discurso que gira
sobre si mesmo, coerente enquanto texto e eficiente enquanto fórmula, sem que
precise, entretanto, confrontar-se com a realidade”. (idem)
Se se considerar que a Comunicação “acontece” num espaço teórico
interdisciplinar, o campo da Comunicação, a história da Comunicação seria, ressalta
o autor, o somatório dessas histórias parciais das quais dependem a Comunicação,
a saber a psicologia, sociologia, antropologia etc. A noção de campo indicaria os
saberes correlatos a um certo objetivo empírico e por “interdisciplinaridade”
deveremos entender apenas um truísmo. A noção de campo diz respeito ao objeto
empírico, enquanto a noção de disciplina diz respeito à pesrpectiva teórica.
(MARTINO, 2005).
Sobre a discussão epistemológica na Comunicação
A discussão epistemológica constitui a totalidade deste trabalho e o que se
pretende aqui, neste momento, é enumerar algumas proposições que marcaram
posição de destaque na reflexão comunicacional. Algumas reflexões dos
especialista sobre a epistemologuia geral permitem intuir o que eles compreendem
quando se trata especificamente da Comunicação. Para Japiassu, a epistemologia
não é uma ciência, nem uma metaciência é uma disciplina filosófica. Em seu sentido
geral, designa o estudo da ciência: ela é uma disciplina filosófica que toma a ciência
como objeto. Epistemologia pode também aparecer como o estudo das ciências.
Neste sentido esta disciplina encontra a filosofia, isto é, desenvovolve-se como
disciplina filosófica. No entanto, num sentido mais estrito, ao ser tomada como um
saber “aplicado”, a epistemologia se apresenta como parte de cada disciplina
científica.
A teoria da comunicação é farta em modelos epistemológicos: matemáticos,
sistêmicos, lingüísticos, semânticos, pragmáticos, cognitivos etc. (FERRARA, 2003,
p.57). Uma epsitemologia complexa da comunicação não está assentada em uma
disciplina, ela opera em outro nível, no nível da organização do conhecimento.
189
Ante a complexidade midiática, a ciência da comunicação perde seus antigos
referenciais epistemológicos e já não é possível falar em centralidade teórica ou de
paradigmas, porque urge criar uma outra epistemologia como performance crítica de
uma metamídia da multicomunicação em rede. Estamos em outro momento cultural
que supera toda simplificação e permite, a Muniz Sodré, falar em pós-epistemologia
(FERRARA, 2005, p. 38).
Gomes (2003) resume em três tópicos o conteúdo de “certos dircursos
epistemológicos” que o autor identifica rondando o campo da comunicação: a) crise
dos paradigmas e fantasias da crise; b) o ensaio como forma de expressão e c) o fim
da disciplina. Em relação às crises dos paradigmas e fantasias da crise Gomes
entende que se trata de uma crise dos paradigmas da ciência moderna. O último
aspecto destacado como sendo responsável por desvios epistemológicos na
comunicação é o discurso que procura dar conta do fim da disciplina. O terceiro álibi
epistemológico da área situa-se ao redor do discurso sobre o fim das disciplinas, do
elogio da porosidade metodológica e da flexibilidade das ferramentas conceituais.
Este enontra-se perpassado por um jargão revolucionário e constitui-se num
discurso autoreferente que apresenta uma coerênia textual interna sem contudo
confrontar-se com a realidade.
O que temos é uma grande variedade de argumentos que se referem às
epistemologias contemporâneas, apoiadas em práticas científicas designadas por
categorias como “interdisciplinaridade”, “transdisciplinaridade”, “multidisciplinaridade”
entre outras. (GOMES, 2003, p.326).
Alguns teóricos da comunicação, aceitam muito bem os trabalhos da
sociologia da ciência, tratando destas questões enfatiza Martino (2005) como se
fossem de cunho epistemológico. Tal procedimento é criticado por este autor, pois
entende que o deslocamento do plano de epistemologia para o da sociologia da
ciência, mesmo que possa esclarecer alguns do problemas, não chega a definir o
saber comunicacional. A investigação epistemológica, para o autor refere a quatro
problemas ao saber comunicacional: a) como definir o saber comunicacional; b)
quais os fundamentos desse saber; c) qual o estatuto do conhecimento
comunicacional; d) qual a relação desse saber com outros saberes.
190
5.3 OS SETE SABERES NECESSÁRIOS Á COMUNICAÇÃO DO FUTURO
Ao aproximar-se o final deste percurso, pretende-se fazer traçar um breve
paralelo à guisa de conclusão, da proposta de Morin em relação à educação com
nossa reflexão sobre a comunicação fundamentada no pensamento deste autor.
Parafraseou-se para tanto uma das mais importantes obras de Edgar Morin sobre a
educação, OS SETE SABERES PARA A EDUCAÇÃO DO FUTURO, com o objetivo de
relacionar os princípios arrolados nesta obra com alguns aspectos da comunicação.
Na referida obra, Morin discute aqueles aspecto que ele entendem serem
necessários adotar, ou refletir a respeito, no que tange à educação, aqui se pretende
discutir a pertinência destes saberes no que diz respeito à comunicação, a partir da
análise realizada. Paráfrase, metáfora, inspiração ou plágio, muitas são as maneiras
de compreender esta aproximação, consumar esta relação.
Constituem-se nos sete saberes necessários para a educação do futuro,
como já foi destacado, os seguintes aspectos: 1) o primeiro diz respeito ao erro e a
ilusão; 2) o segundo refere-se ao conhecimento pertinente; 3) o terceiro é o que
privilegia a condição humana; 4) o quarto é o que enfatiza a identidade humana
terrestre; 5) o quinto fala sobre a incerteza; 5) o sexto é da compreensão; 6) o
sétimo é o da ética do gênero humano.
O primeiro saber que diz respeito ao erro e a ilusão conhecimento, que é
ignorado em relação às ciências e também na Comunicação, bem como em outras
manifestações culturais. Tal situação pode ser aproximada da noção de ruído da
Comunicação. A Comunicação como uma disciplina acadêmica tradicionalmente
desprezou a presença do erro no conhecimento sem levar as últimas conseqüências
a importância deste nos processos comunicativos. Numa epistemologia complexa da
comunicação está implícita a idéia que a Comunicação “correta” pode desinformar
da mesma forma que a Comunicação contendo “erro” pode informar. O processo
comunicativo, em larga escala, produzida por instituições e empresas de
comunicação cria a ilusão de hegemonia e, muitas vezes, o monopólio da produção
e emissão de informações sem perceber que as redes de contrainformação
sobrevivem a miúde, oferecendo resistência à comunicação disponível. A
comunicação é vivenciada e refletida como se todo o seu conteúdo efetivamente
191
comunicasse, como se todo o aparato tecnológico a disposição ampliasse e
melhorasse as suas formas de comunicação: erro, ilusão.
O segundo saber que trata do conhecimento pertinente poderia aqui também
servir de guia à comunicação. Segundo Morin, esta forma de conhecimento está na
contramão da fragmentação, da especiaização, da disciplinarização (sem negar a
importância das discplinas). A construção de uma ciência da comunicação, por mais
que se reconhecesse a necessidade e aplicabilidade desta, não restringiria a esta o
poder de definir o fenômenos comunicacional, a contribuição de especialistas –
biólogos, antropólogos, físicos etc – que estudam os outros níveis de comunicação
que não a humana e social seria, também, essencial. Uma abordagem,
transdisciplinar, complexa da comunicação pode reorganizar a disciplina em torno de
temas ou objetos.
A condição humana se constitui no terceiro dos saberes e possui uma
importância crucial para a comunicação, vindo ao encontro de uma das proposições
fundamentais desta reflexão, qual seja, a possibilidade de se indentificar cinco níveis
de comunicação no pensamento de Edgar Morin. A compreensão de que a
concepção do homem como sendo simplesmente um ser cultural ignora que ele é,
ao mesmo tempo, um ser natural – físico, químico – e, ainda, mítico, imaginário,
lúdico etc. Neste sentido, o aspecto essencial que diferenciaria a comunicação
humana das demais, qual seja, o fato de ser simbólica, produtora da cultura,
esconde as outras virtualidades que, se não são definidoras, possuem um papel
decisivo para o entendimento da dinâmica comunicacional.
Não se apregoa, aqui, que para enteder a comunicação humana tenhamos
que conhecer a comunicação celular ou, ainda, a comunicação entre os corpos
celestes que participam de um sistema estelar como o nosso sistema solar, ou das
estrelas que compõem uma galáxia. O que se defende é que o entendimento da
dinâmica comunicacional destas instâncias referidas podem ser úteis como
hipóteses na configuração dos pressupostos da comunicação humana.
O quarto saber necessário para a educação do futuro e que aqui se pleiteia
relacionar com a comunicação privilegia à identidade humana terrestre. A terra deve
ser compreendida como sendo a terra-pátria. Como tal, a diversidade cultural da
espécie não pode ser um empecilho para uma perfeita comunicação. É necessário
ensinar, enfatiza Morin, a idéia da terra-pátria, que nosso planeta deve ser defendido
192
com todos as forças na medida em que este nos pertence da mesma forma que
pertencemos a ele. Assim sendo, a humanidade deve fazer esforços por uma
comunicação global, por um maior compartilhamento simbólico de objetivos, e se
empenhar para manter o planeta terra como sendo comunicacionalmente auto-
sustentável.
O quinto saber, a exemplo do primeiro que trata do erro e da ilusão, também
pontua um aspecto que possui uma relevância epistemológica grandiosa, aborda a
questão da presença da incerteza como constituinte da construção da verdade
cientifica, por conseguinte, comunicacional. A questão da incerteza, assim como da
relatividade ou, mesmo, da teoria do caos, conhecimentos incorporado por Morin, na
década que antecedeu a construção dos métodos, apresenta-se como elemento
sempre presente na natureza e como tal também na representação científica desta.
A incerteza é um dado da natureza ignorado, ou deixado de lado, até as primeiras
décadas deste século quando Werner Heisenberg trouxe a público o seu princípio da
incerteza e, também, Einstein com a proposição da relatividade.
A compreensão é o sexto saber que propugna Edgar Morin que vai ser
fundamental para uma educação no futuro, ela deve ser o meio e o fim da
comunicação humana. A constante disputa de espaço na sociedade moderna,
urbana, competitiva, que acentua a oposição ao outro, a negação do outro e a
incompreensão é responsável por este afastamento. Quanto menos eu me identifico
com o outro, menor é a minha necessidade de cooperação, de solidariedade com as
dificuldades do outro. Isto é, quanto menos se comunicar com o outro maior será a
incompreensão, fenômeno que levado a um patamar radical pode resultar na
tentativa de aniquilar, de extermínar o outro.
Por fim, o sétimo saber propalado por Edgar Morin é o que se refere a ética
do gênero humano. A antropoética, como destaca Morin em sua análise, sustenta-se
sobre três elementos: a espécie, o indivíduo e a sociedade. Nestes níveis, a
comunicação humana se apresenta com suas peculiaridades, mas preservando
aqueles elementos essenciais apresentados e discutidos no decorrer deste trabalho
a luz da complexidade.
193
5.4 O LUGAR DO PENSAMENTO TECNOLÓGICO NA CONSTRUÇÃO DE UMA
EPISTEMOLOGIA COMPLEXA DA COMUNICAÇÃO
A possibilidade, ou necessidade, de construção de uma epistemologia
complexa da comunicação enfrenta uma série de desafios na medida em que se
estruturaria na contramão do pensamento científico dominante, da herança
cartesiana que moldou todo este e, fundamentalmente, os seus aspectos
metodológicos. Pensar a comunicação deste ponto de vista não significa apartá-la
do mundo ou priviligiar um dos seus aspectos como por exemplo a questão da
tecnologia.
Agora, o objeto científico da comunicação é visto como conjunto fraturado
por forças de nexos midiáticos contraditórios que salientam a evidência da
indeterminação de todo os processos comunicativos. A idéia de pensamento
complexo pode ser retomada por uma epistemologia da comunicação como
complexidade que considera o objeto científico como heterogeneidade. “Se
o conhecimento existe é por ser organizacionalmente complexo. Trata-se de
uma organização complexa ao mesmo tempo fechada e aberta, dependente
e autônoma, capaz de construir traduções a partir de uma realidade sem
linguagem. Essa complexidade organizacional comporta as maiores
aptidões cognitivas e os riscos ininterruptos e múltiplos de degradação
dessas aptidões, ou seja, as possibilidades extraordinárias e as fragilidades
inacreditáveis do conhecimento humano (MORIN, 1999, p.281).
(FERRARA, 2005, p. 39).
24
De certa forma pode-se traçar um paralelo entre a noção de máquina
concebida pelo pensador francês e a de tecnologia. Já foi abordado anteriormente
esta noção de máquina, para Morin o Sol é uma máquina, o homem é uma máquina
viva, que a linguagem humana é também máquina, da mesma forma que a célula e
o átomo também. Não serão aqui retomados os argumentos e as ponderações
morineanas para este alargamento quase infinito deste conceito, o que já feito
anteriormente.
Desta forma, para se acessar o pensamento tecnológico de Edgar Morin é
importante ter-se em mente esta noção de máquina apresentada pelo autor, isto é,
dispositivos responsáveis pela produção e que propiciam a ampliação das
potencialidades de realização das tarefas.
O que é uma máquina, se questiona Morin? Instrumentos fabricados pelos
homens para dar conta de demandas sociais. Entes que cumpriem operações
194
mecânicas. No entanto, em nível de senso comum, a máquina é concebida como um
instrumento de produção da sociedade industrial. É uma máquina o Sol,
diferentemente daquela estrela quase estática no centro do sistema solar e que
comanda uma orquestra de planetas; esta máquina, na descrição do autor, é pura
turbulência. O sol cospe o fogo, ele expele fogo.
O conceito de máquina para Morin (2003) é um conceito genérico que procura
dar conta das organizações ativas. O autor, entretanto, deferencia as máquinas
biológicas e sociais, as máquinas espontâneas das máquinas programadas, as
máquinas poiéticas das máquinas de copiar, os seres máquinas existenciais das
máquinas somente funcionais.
Da mesma forma que após a Revuloção Industrial, com o advento do
capitalismo, o conceito de produção se vinculou ao produto mecanizado e
industrializado, o conceito de máquina também ficou restrito ao sentido
tecnoeconômico: privilegia à máquina artificial. No entanto a produção possui uma
dimensão poiêutica, relaciona, além da produção também à criação, o fazer
poiêutico. A produção deste ponto de vista, transpõe o sentido tecnoeconômico
dominante. Na máquina, afirma Morin, não há somente o maquinal (repetitivo), há
também o maquinante (inventivo).
A da noção de máquina produzida pela revolução morineana, também diz
respeito aos seres vivos. Somos máquinas e cabe ao homem maquinar para saber
que tipo de máquina somos. Para facilitar esta identificação, Morin estabelece uma
comparação entre o cérebro e o computador:
O cérebro é uma máquina bio-químico-elétrica. Ao contrário do computador,
a mente/cérebro trabalha num jogo combinando precisão e imprecisão,
incerteza e rigor, e cruza rememoração, computação, cogitação. Como é
extraordinariamente complexo, o espírito/cérebro trabalha com, por e contra
o ruído, o que acarreta riscos enormes de erros, de ilusões, de loucura, mas
também chances prodigiosas de invenção e de criação (MORIN, 2002, p.
98).
A lógica do vivo difere-se substancialmente da lógica formal, ela é segundo
Morin infra, extra, supra ou metalógico. Neste sentido, ela, a lógica do vivo
ultrapassa à lógica formal e o que para muitos pode significar a fraqueza da máquina
viva é na verdade sua excelência, seu poder de da auto-eco-re-organização. Assim,
24
A referência (MORIN, 1999, p.281) faz parte da citação (FERRARA, 2005, p. 39)
195
a partir destas considerações sobre a máquina que se entende dever pensar a
tecnologia para Edgar Morin e por conseqüência sua importância na comunicação. O
homem antes de ser inteligente já se comunicava e dominava uma série de técnicas
indispensáveis para a sua sibrevivência e, ao mesmo tempo, era necessário
repassar ao seus descendentes.
A tecnologia sempre foi aliada da civilização, de sua construção e destruição,
mas sua expansão, valorização e aplicação, em maior ou menor escala não pode
ser separada da sociedade que a engendrou e acolheu.
Toda a tecnologia é neutra e ao mesmo tempo nenhuma tecnologia é neutra.
Esta é uma idéia antitética, contraditório e paradoxal. A criação de determinada
técnica e sua conversão em tecnologia responde via de regra, a demandas sociais,
não a gênio inventivos como muitas vezes é colocado. No entanto, por ser esta uma
realização humana, ela esconde potencialidades que somente quando em prática
pode se manifestar.
Em relação às novas tecnologias da comunicação, desenvolvidas nas duas
últimas décadas do século passado, onde pontua a Internet, rede mundial de
computadores, questiona-se se estas novidades se constituem em uma ruptura
substancial para a discussão sobre o estatuto da técnica na relação com o homem
ou se limitam-se a corroborar posicionamentos já enraizados? Comunicação e
tecnologia andaram sempre juntas desde o início da caminhada da humanidade;
devem ter evoluído e se desenvolvido simultaneamente em algum momento da
trajetória do processo de hominização. Qualquer forma de comunicação que se intua
pressupõe algum recurso técnico, seja oriundo do próprio homem ou dos recursos
disponíveis no meio ambiente. Só bem mais tarde, é que os instrumentos de
produção de condições de sobrevivência e comunicação passaram a ser concebidos
pelos próprios homens. A presença da técnica na hominização e da humanidade na
tecnização do mundo constitui-se num mesmo processo de origem perdida, e de
histórias contadas e recontadas em diferentes versões.
A questão da interatividade permite pelo menos duas abordagens opostas,
antagônicas. As novas tecnologias, ao mesmo tempo que permitem a interação
entre pessoas de continentes diferentes, podem favorecer a que as velhas formas
de e interação comunitária se enfraqueçam. É um salto de qualidade para o mundo
e, em alguns casos pode ser um retrocesso em relação à participação presencial no
196
mundo imediato. Um retrocesso ao nível de isolamento e da simulação de
participação tem sido muitas vezes a forma de aproriação da fortuna tecnológica,
fenômeno que é mais de ordem psicológica do que tecnológica.
Também tornou-se com o decorrer do tempo importante de se pensar a
relação entre tecnologia e conhecimento. O patamar tecnológico da comunicação
hoje alcançado permite a aquisição de a mais conhecimento ou se limita a propiciar
relações superficiais sem valor cultural mais consistente?
As relações entre comunicação, técnica e tecnologia são os caminhos
seguidos a partir deste momento. Em primeiro lugar, privilegiamos algumas
definições conceituais no que diz respeito à técnica e à tecnologia e sua relação
com a comunicação e, num segundo momento, passa-se a enfocar as discussões
sobre as influências, os impactos sociais da tecnologia nos meios comunicação.
Estudiosos da história da comunicação adotaram como sendo a partir da
segunda metade do século XIX – com os avanços tecnológicos acontecidos naquele
momento –, que tenha surgido o interesse em investigar a presença dos fenômenos
comunicacionais na sociedade. Deve-se,em termos, a esta origem das reflexões
comunicacionais uma confusão, entre a problemática relacionada à comunicação e a
relacionada aos meios de comunicação. A presença da técnica e da tecnologia na
comunicação é tão importante, que oportunizou uma perspectiva teórica
fundamentada no determinismo tecnológico, que hiperdimensiona o papel dos
grandes avanços tecnologicos para a comunicação.
Desde a comunicação em pequena escala – imediata, interpessoal, em um
território exíguo –, até a comunicação de longa distância – mediata, em sociedades
industrializadas e urbanizadas –, a presença da técnica impôe-se. Em ambas as
modalidades, o ser humano desenvolveu e tomou da natureza utensílios que
potencializaram, o processo de produção, envio e recepção das mensagens,
redimensionando, sobremaneira, a duração e a participação dos sujeitos envolvidos
nos processos comunicativos.
O primeiro aspecto que se pretende destacar aqui é o entendimento da
técnica como sendo um elemento – da mesma forma que a linguagem – como
definidor da humanidade. Ou seja, a técnica, como destaca André Lemos, não é um
mero produto da humanidade mas é, também, produtora desta.
197
(...) o fenômeno técnico nasce com a aparição do homem, depois será
enquadrado pelo discurso filosófico e a noção de tekh(arte, os saberes
práticos) para, enfim, entrar no processo de cientificização com o
surgimento da tecnociência, ou o que chamamos hoje de tecnologia. Vamos
insistir nas diferenças entre a tecnocultura e a cibercultura. O surgimento da
cibercultura não é só fruto de um projeto técnico, mas de uma relação
estreita com a sociedade a cultura contemporâneas (LEMOS, 2002, p. 28).
Com objetivo de explicar o surgimento da cibercultura, Lemos (2002), enfatiza
que esta está estreitamente vinculado à sociedade na qual ela acontece.
A palavra técnica tem sua derivação etimológica no grego tekhnè que pode,
sob certo aspecto, pode ser traduzida por atividade prática e criativa (arte). A tekhnè
grega compreende desde a elaboração de leis, o trabalho do artesão, do médico, as
artes plásticas, literárias. Segundo Lemos (2002), a tekhnè, em sua origem, se
define como um conceito filosófico cujo objetivo é descrever o saber fazer humano
em contraposição ao princípio de geração das coisas naturais. Segundo o autor:
O conceito de tekhnè é, assim, fruto de uma primeira filosofia da técnica que
visa distinguir o fazer humano do fazer da natureza, este último autopoético,
guardando em si os mecanismos de sua autoreprodução. A tekhnè é a arte
que coloca o homem no centro do fazer poético, em confronto direto com as
coisas naturais. A tekhnè é uma poiésis no sentido de revelar todo o fazer
humano. Como mostra Steigler, “a dança é tekhnè, a cozinha é tekhnè”
(LEMOS, 2002, p. 29).
Além da visão filosófica, o fenômeno técnico apresenta-se como uma
manifestação em nível zoológico da formação e da evolução dos primeiros humanos.
Ele vai mesmo caracterizar, juntamente com o surgimento de um pensamento
mágico-religioso, o surgimento do homo sapiens. A gênese do homem que somos
hoje enfatiza Lemos (2002) é tributária da gênese da técnica.
O homem é um ser técnico por definição. A perspectiva etnológica de André
Leroi-Gourhan propõe analisar a técnica como uma tendência universal e
determinante da evolução da espécie humana, inspirada na idéia de
evolução de Bergson. A técnica se situa, assim, como uma solução
zoológica da espécie humana na sua confrontação com a natureza. A
tecnicidade humana aparece como uma tendência universal e hegemônica,
sendo a primeira característica do fenômeno humano. A antropogênese
coincide com a tecnogênese, já que o homem não pode ser definido
antropologicamente sem a dimensão da tecnicidade (LEMOS, 2002, pp. 30-
31).
A formação do córtex cerebral, a evolução da técnica e o desenvolvimento da
linguagem encontram-se, segundo Lemos(2002) imbricadas na co-evolução
198
zoológica da espécie humana. Sob este aspecto, a definição da “essência da
natureza humana” se expressa através do processo de desnaturalização do homem.
Isto se dá na simbiose com a técnica e na sua formação da cultura com o
surgimento da linguagem.
Na modernidade, é toda a tecnicidade humana que se vê reduzida à pura
instrumentalidade da tecnociência, autônoma, racionalista e objetiva. Não é à toa
que esta mesma tecnologia vai ser rotulada de fria, artificial, oposta à toda e
qualquer forma de realização nobre do espírito humano (LEMOS, 2002, p. 39).
A partir do século XVII, a atividade técnica vai estar ligada ao conhecimento
científico. Este processo vai culminar no século XX, com os Centros de
Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) determinando a junção definitiva da
ciência com a técnica. Podemos dizer que a técnica pré-histórica é o
produto de uma experiência empírica do mundo, sem necessidade de
explicações científicas (as primeiras ferramentas, instrumentos e máquinas).
A técnica é o fazer transformador que prepara a natureza à formação da
espécie e da cultura humana. Ela é uma provocação da natureza gerando
um processo de naturalização dos objetos técnicos na construção de uma
segunda natureza povoada de matéria orgânica, de matéria inorgânica e de
matéria inorgânica organizada (objetos técnicos) (LEMOS, 2002, p. 40).
Com o advento da tecnologia moderna, vai acontecer um progressivo avanço
da técnica sobre à natureza. De certa forma a ação técnica mudou a natureza,
transformando-a em uma tecnosfera, acentua Lemos (2002) como também a
natureza do homem, associando o potencial inventivo humano ao potencial
destrutivo da técnica. A modernidade, assim, mostrou o lado perverso do
desenvolvimento tecnológico.
Este mesmo aspecto é enfatizado por Morin. Ele afirma que a tecnociência
restringiu a compreensão do que vem a ser máquina reduzindo-a a um instrumento
de produção. A ampliação substancial do conceito de máquina permite a Morin
definir o átomo, os homens, as estrelas como máquinas. Máquina é toda a instância
criadora; a linguagem é máquina, o estado é máquina. As máquinas caracterizam-se
por “interações, reações, transações, retroações geram as organizações
fundamentais que povoam nosso universo, átomos e estrelas” (MORIN, 2003, p.
197). São bilhões de seres, chama a atenção Morin, não junções de elementos fixos,
organizações em repouso; estão em atividade permanente.
199
A idéia de produção, tornada prisioneira de sua conotação tecnoeconômica,
se tornou contrária á idéia de criação. Ora, é preciso restituir ao termo
produção seu significado pleno e diverso. Produzir, que significa
fundamentalmente, como acabamos de lembrar, conduzir ao ser ou à
existência, pode significar alternativamente: causar, determinar, ser a fonte
de, engendrar, criar (MORIN, 2003, p. 200)..
O termo produção, para Morin, está relacionado com o caráter genésico das
interações criadoras. As estrelas e os seres vivos são seres poiéticos enfatiza o
autor, isto porque a partir de materiais brutos, eles produzem a existência. Conclui
Morin que a geração de um ser por um outro ser se constitui no ato derradeiro, a
forma biológica final da poesia.
200
6 OS CINCO NÍVEIS DE COMUNICAÇÃO EM EDGAR MORIN
“O que é comunicação?” Esta é a pergunta em torno da qual se organiza este
trabalho. É uma pergunta que se faz incessantemente. Nesta tese, a preocupação
se estende à variedade de respostas que têm sido oferecidas por especialistas a
esta indagação. Para analisar estas respostas – todas (necessariamente) provisórias
e incompletas –, com seus desdobramentos, expressas na seção anterior,
caracterizado como sendo a reflexão atual sobre a epistemologia da comunicação,
procurou-se fazer dialogar dialogar com o pensamento de Edgar Morin expresso na
obra O Método.
No decorrer deste trabalho, em diferentes momentos, apresentou-se
pensamento de Edgar Morin, incorporando paulatinamente novos aspectos, de
forma a tornar mais compreensível o paradigma da complexidade. Agora faz-se aqui
um último exercício de revisão pontuando os principais aspectos.
A palavra complexidade se origina do latim complexus significa aquilo que é
tecido junto. E esta é a idéia central do pensamemnto complexo, voltar a juntar o
que o pensamento racionalista separou. O homem da natureza, o corpo da alma, o
objeto do sujeito etc.
Para compreeder a complexidade, pode-se partir de três operadores: o
operador dialógico, o operador recursivo e o operador hologramático. O operador
dialógico, que substitui o dialético, diz respeito a junção de aspectos que
aparentemente estariam separados e que desapareciam na síntese. A tese em
contraposição à antítese resultava numa síntese no pensamento dialético, ou seja,
os opostos se reuniam num denominador comum e desapareceriam como entidades
autônomas. Na síntese dialética, os opostos ficavam subsumidos no novo, na
síntese, entretanto na dialógica isto não vai ocorrer, a síntese e os opostos passam
a conviver lado a lado. Razão e emoção, sensível e inteligível e, também, real e
imaginário não necessitam unirem-se em direção a um amálgama.
O operador recursivo nos permite avançar para além do pensamento linear. O
conhecimento tradicional ensinou que todo evento se desenvolve a partir de causas
que geram efeitos, isto é, a causa A vai gerar o efeito B. Do ponto de vista da
complexidade o é que a causa A vai gerar o efeito B que por sua vez vai novamente
201
gerará causa A. Desta recursividade, por exemplo, é gerada a vida, onde o ser que é
gerado como efeito de uma união será a causa da geração de outros seres.
O terceiro operador é o operador hologramático e ele diz respeito à relação
entre parte e todo. Através do operador hologramático Morin vai mostrar que o todo
encontra-se nas partes e que estas partes contém, também, o todo. Assim o
pensamento complexo vai se caracterizar por juntar o que está separado, por em
circulação causa e efeito e por fim, a relação entre o todo e a parte, isto é, não
consegue separar o todo da parte nem a parte do todo.
Um outro aspecto importante do pensamento complexo é o que diz respeito a
noção de homem que este apresenta. Tradicionalmente o homem é definido como o
ser dotado da razão, aquele que sabe, o homo sapiens, produto de uma evolução de
milhares e milhões de anos. Morin advoga que além de sapiens o homo é também
demens, homo sapiens demens, ao mesmo tempo em que é movido pelo razão, pelo
saber, o homem é também um ser da desmedida, do exagero, da demência, da
loucura. E estas froças antagônicas que nele se encontram agem de forma dialógica;
não é a dialética hegeliano-marxista, nem o caminho de meio do Budismo. Não
somente tão racional e nem tão louco, o homem é simultaneamente as duas coisas,
agindo desta ou daquela maneira de acordo com o momento e as condições que
estão postas. Tudo o que é ser humano é fruto da cosntiuição de diferentes sistemas
cosmológico, físico-químico, biológico, social, animal até manifestar-se sobre a
forma de homo, de homo sapiens demens.
Em sintonia com estas pressuposições morineanas, delinea-se a proposição
central desta tese que na obra O Método de Edgar Morin pode especular a
existência de cinco níveis de comunicação, isto é, níveis de interação: 1) a
comunicação cósmica; 2) a comunicação ecológica; 3) a comunicação viva; 4) a
comunicação social 5) a comunicação humana. Tais niveis de comunicação são
simultâneos, interdependentes e interativos, não representam niveis de
complexidade e, sim, niveis de acontecimento. Para compreender o que significa a
comunicação humana, hoje, deve ser levado em conta estes diferentes níveis de
comunicação.
Para se compreender a comunicação cósmica é necessário entender como
funciona a comunicação humana que propiciou o conhecimento sobre o cosmos.
Compreender a comunicação ecológica é necessário conhecer alguns códigos da
202
comunicação cósmica de onde este planeta se despreendeu. Entender a
comunicação viva que desde seu primeiro evento, há aproximdamente 3,8 bilhões
de anos, não deixou de se comunicar produzindo seus próprios códigos genéticos,
nos mais variados sitios ecológicos e submetidos à comunicação destes ambientes.
Um dos segredos desta produção ininterrupta de bilhões de anos é a organização da
vida e do homem em grupos e, posteriormente, em sociedade. A vida é um evento
societário; desde as formas mais simples às mais evoluídas acontece no interior de
grupos.
Na discussão relativa à existência de um campo da comunicação pode-se
encontrar desde as opiniões que afirmam sobejamente a atualidaade deste como a
negativa radical que se refere via de regra a um espaço interdisciplinar onde se
estabelece e se estruturam os discursos sobre a comunicação. O campo da
comunicação pode ser um espaço interdisciplinar, ou mesmo, transciplinar como
pode também se cosntituir das investigaçóes acerca das trocas simbólicas, da
interação humana. Numa perspectiva da complexidade, o campo da comunicação
até pode ser limitado por razões acadêmicas às relações sócio-culturais, simbólicas
mas este não possui regras próprias de funcionamento que engendrem o
absolutamente específico. Ele é um caso particular de um grande processo
comunicativo que é cósmico, ecológico, vivo, social, antropológico e psíquico.
A construção do campo da comunicação, isto é, a possibilidade de definir esta
disciplina como ciência autônoma pode, para Martino (2001b) obedecer a três
critérios 1) resposta de cunho empírico; 2) definição lógico-formal e 3) análise
diacrônica, da gênese do campo, um perspectiva complexa pode, por uma lado,
conciliar estas três percpectivas e, por outro, até, mesmo, desconsiderar tal
tentativa. O campo da comunicação, desta perspectiva, pode ser total ou
parcialmente pertencente a outros campos, ou, ainda, formar uma totalidade
A noção de sujeito e objeto permanecem importante numa epistemologia
complexa da comunicação, mas perdem sua centralidade como elementos
constituintes do esforço intelectual de produzir a verdade científica. Nesta
perspectiva, os objetos do conhecimento comunicacional se ampliam sobremaneira
compreendendo os outros níveis de comunicação que não apenas a comunicação
social. O sujeito cognoscente, produtor da verdade científica é, ao mesmo tempo,
um objeto criado fruto de uma evolução cósmica, biológica, físico-química que
203
antecede e incorpora o ser humano que ao mesmo tempo foi responsável por toda
esta elaboração intelectual
O objeto da Comunicação, dependendo do conceito de Comunicação adotado
pode compreender desde os movimentos estelares até a vida intracelular, passando
pela comunicação humana. Esta é uma visão complexa, um pressuposto desta
pesquisa.
Já nos referimos neste trabalho ao frustrado debate entre os pensadores
Theodor Adorno e Karl Popper onde este último colocaria em discussão suas 27
teses sobre epistemologia. A razão do malogro de tal empreendimento intelectual,
segundo a versão popperiana, teria sido a incompreensão por parte do filósofo
frankfurtiano da autonomia de alguns postulados epistemológicos. As determinantes
sócio-econômica conteria, segundo o autor da DIALÉTICA DO ESCLARECIMENTO, o
essencial da interpretação epistemológica, não constituindo esta um pensamento
independente. (MARTINO,2003).
Uma epistemologia complexa da comunicação não está assentada em uma
disciplina, ela opera em outro nível, no nível da organização do conhecimento.
Ferrara (2005) ressalta que ante a complexidade midiática, a ciência da
comunicação perde seus antigos referenciais epistemológicos e já não é possível
falar em centralidade teórica ou de paradigmas, razão pela qual ela entende que há
a urgência em criar uma outra epistemologia.
O final do século XX e o limiar do novo milênio está sendo marcado por
profundas convulsões nos sistemas de pensamento; o próprio modelo da ciência se
encontra abalado. A busca por novos paradigmas, entre eles o pensamento
complexo, mostra como os leitos disciplinares apresentam-se estreitos; a
transdisciplinaridade não diz respeito apenas à comunicação, mas à prática científica
contemporânea como um todo.
De certa forma é possível afirmar que na reflexão contemporânea da
epistemologia no campo da Comunicação encontram-se elementos da
complexidade. Considerar a possibilidade de uma epistemologia complexa da
comunicação não pode ser pensado como uma redução de horizontes a maneira
como acontece quando se propõem que uma disciplina seja o parâmetro que expõe
e enfrenta a problemática da comunicação.
204
Um esboço do que viria a ser uma epistemologia complexa da comunicação
em sintonia com os aspectos apresentados anteriormente através da perspectiva do
paradigma da complexidade desenvolvido por Edgar Morin, já pode ser perecebida
neste campo. Constitui-se numa tentativa potente de construir os fundamentos para
uma epistemologia da Comunicação.
Essa capacidade invasiva da comunicação faz com que a mediação que a
caracteriza se tranforme em objeto de várias modalidades da ciência, ou
seja, fazer ciência é, sobretudo, identificar seus elementos da mediação e,
quase sempre confundir mediação com o tema da pesquisa, visto que
aquela identificção não é imediata e, muito menos, auto evidente. Em
conseqüência a mediação é um difuso interesse de investigação de
inúmeras áreas do conhecimento e permite a Morin(1999:33) falar em
‘rotação comunicativa’ que permite a todas as áreas do conhecimento se
atritarem à procura de um eixo epistemológico que as autorize e as
fundamente. Trata-se da relação sujeito/objeto que a razão iluminista
confinou nos domínios do sujeito para, de modo antropocêntrico, ordenar e
controlar o mundo (FERRARA, 2003, p.59).
Se esta superposição sujeito/objeto faz com que o conhecimento ultrapasse o
sujeito para atingir à complexidade do objeto que o desafia e não se deixa esgotar, a
epistemologia deste conhecimento precisa desenhar-se além do sujeito e aquém do
objeto para aderir às mediações que se estabelecem entre os dois pólos e que, por
hipótese, podem sugerir um caminho a ser percorrido pela produção científica
(FERRARA, 2003, p.60-61).
De certa forma pode se considerar que está ultrapassada a visão de
disciplinaridade, que deve ser paulatinamente mudada para campos de estudo e
conhecimento. Neste caso, a transdisciplinaridade deixa de ser procedimento e atua
como uma visão paradigmática. A realidade, mais complexa que os esquemas
explicativos, estaria a reivindicar uma verdade num registro mais geral além dos
limites que a compartimentação acadêmica impôs sob a forma de disciplina.
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