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Gisele Becker
A construção da imagem da prostituição e da moralidade em
Porto Alegre pelo jornal Gazetinha: Uma análise dos códigos
sociais segundo a Hipótese de Agendamento (1895-1897)
Tese apresentada como requisito
parcial para obtenção do grau de
Doutor, pelo Programa de pós-
graduação em Comunicação social
da Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul.
Orientador: prof. Dr. Antonio Hohlfeldt
Porto Alegre
2007
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AGRADECIMENTOS
A demorada construção de uma tese de doutorado é um trabalho
solitário. Mas, ao mesmo tempo, é grande a lista de pessoas queridas, cujo
incentivo foi fundamental nesta fase de grande crescimento pessoal e
profissional.
Ao meu orientador, prof. Antonio Hohlfeldt, que soube conduzir
meu trabalho, compreender as minhas dificuldades de disponibilidade e tempo,
me ajudar neste grande desafio que foi fazer o doutoramento em uma área de
investigação tão nova pra mim: a Comunicação Social.
À minha querida família: minhas irmãs, Vanessa e Taís, meu
cunhado (quase irmão), Daniel, e minha mãe, Vera, exemplo de força e vontade
de viver. Pelo apoio constante, pelo incentivo, pelo amor incondicional, por
acreditar que é possível repensar e reconstruir a vida mesmo nas horas mais
difíceis.
Aos queridos amigos que surgiram nos últimos anos, no ambiente
de trabalho: Roswithia, Márcia, Inês, Rodrigo, Luciane, Luiz Antonio, Helena e
Cleidi (minha segunda mãe). Muitas vezes, o encontro do “grupinho” era
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suficiente para tocar o trabalho adiante, após as tantas risadas que sempre
acompanham os nossos encontros.
Aos queridos colegas e amigos da van da Ciatour: René, Denise,
Luciana (as duas!- Lu da Letras e Lu surfistinha), Daniel, Luiza, Rodrigo
(Fernando), Mari, Thais, Josi, Joana, Farina, Camila (as duas! - Camila da Moda
e Camila do Design), Tio Orlando, as gurias do FISEM. Com direito a
comunidade no orkut, eventos e muitas piadinhas, sempre tornam a volta de
Novo Hamburgo mais leve, após horas de trabalho. Mais do que uma simples
volta pra casa, trata-se de um encontro diário com amigos e , até mesmo,
momento de terapia para a construção da tese – e foram horas de terapia com a
Lu, que passou pelas mesmas angústias que eu, pelos mesmos motivos...
Às minhas queridas amigas museólogas: Andréa e Cíntia, que
sempre souberam entender as minhas dúvidas, o estresse, que entenderam as
minhas ausências nos encontros desmarcados enquanto eu escrevia o trabalho,
pelo carinho.
Ao casal de amigos Kate e Thiago, sempre me recebendo com
chazinho e chocolate no finalzinho de domingo... Amigos, quase meus irmãos,
além de historiadores, com quem reparti todos os eventos da minha vida durante
este tempo e o desafio de fazer o doutorado em Comunicação. Pelo carinho
constante, pela amizade verdadeira, por acreditar no meu trabalho.
Às amigas do coração: Juliane, Mary e Viviane: amizade de muitos
anos e para a vida toda. Pela grande amizade que temos, pelo amor de família,
nem palavras para agradecer o quanto vocês foram importantes durante todo
este tempo, não apenas em função da tese, mas por todo o contexto de vida que
a rodeou. Todas nós passamos por grandes mudanças durante este período, e o
mais importante é que passamos por tudo isso juntas. Aos seus respectivos
maridos, que, juntos, são garantia de diversão; Marcelo, Cristiano e Jorge que
apostou no meu ingresso no doutorado antes mesmo que fosse divulgado o
resultado do processo seletivo.
In memorian, ao meu pai querido, Carlos Guilherme, que sempre
acreditou em mim; que comemorou, com muito orgulho, o meu ingresso no
curso, mas que não chegou a ver a tese concluída.
RESUMO
Este estudo se volta para o jornal a Gazetinha
, publicado em Porto
Alegre em fins do século XIX e que, neste momento e através de diferentes
espaços em suas páginas, construiu uma fala de que as famílias de bem
encontravam dificuldades de transitar nas ruas da cidade, ocupadas por
bêbados, vândalos e mulheres que agarravam os homens à força. É o que
alguns estudos históricos já chamaram de processo de saneamento moral.
Entretanto, a proposta de análise aqui apresentada pretende se debruçar não
apenas sobre a fala do jornal em si, mas sobre a maneira como ela foi elaborada
por meio da construção de códigos de agenciamento de poder. Somado a isso,
percebeu-se que a Gazetinha
agendou a temática da prostituição e da
moralidade entre os anos de 1895 e 1897, marco cronológico deste estudo.
Trabalha-se, portanto, com a hipótese de que a insistência de uma fala ritmada,
empregando códigos e termos semelhantes e em diferentes espaços do jornal
(textos, colunas, anúncios publicitários e caricaturas, estas publicadas somente
nas edições ilustradas da Gazetinha
) elaborou códigos que contribuíram para a
formação de uma mentalidade coletiva a respeito de um problema social,
existente, mas ampliado a partir da Abolição da Escravatura, quando muitas
mulheres negras e sem opção no mercado de trabalho se voltaram para o ofício
da prostituição. Trabalha-se, aqui, a hipótese de Agenda-Setting e sua
contribuição para a consolidação destes códigos; a aproximação entre a História
e o Jornalismo na construção de um conhecimento sobre uma sociedade que
parece tão distante dos elementos que a caracterizam hoje, mas que, ao mesmo
tempo, apresenta tantos aspectos comuns: ao contrário do que dita o senso
comum sobre a sociedade do século XIX, um universo repleto de indivíduos com
autonomia de pensamento, embora influenciadas por um discurso midiático,
como percebemos nos dias que correm.
Palavras-chave: Gazetinha; prostituição; moralidade; agenda-setting;
agenciamento de poder.
ABSTRACT
This study focuses on the Gazetinha
newspaper, published in Porto
Alegre in the end of the nineteenth century. Back then, and though different
sections on its pages, this newspaper creates a speech that good families found
it hard to circulate on the streets of Porto Alegre, for the streets were occupied by
drunk people, vandals, and women who grabbed man using force. That´s what
some studies have called moral sanitation. However, the analysis proposed in
this paper intends to discuss not only the speech of the newspaper itself, but also
the way it is built through the creation of codes of search for power in the creation
of the text. In addition, the Gazetinha
had the prostitution and morality themes on
its agenda during the period between 1895 and 1987. These years are the
chronological landmark of this study. Thus, it is considered the hypothesis that
the insistence on a rhythmated speech, using codes and similar terms and in
different sections of the newspaper (texts, columns, advertising and caricatures,
the las ones published only on the illustrated editions of the Gazetinha) leads to
the creation of codes that contribute to the formation of a collective mentality
about an existing social problem which was expanded after the Slavery Abolition,
when many black women with no professional opportunities started to work as
prostitutes. In this study, the Agenda-Setting hypothesis is analysed, and so is its
contribution for the consolidation of these codes and the approximation between
History and Journalism in the construction of knowledge about the society. This
society that seems so distant from the elements that characterize it today, and
yet, with so many aspects in common: in contrast with what common sense says
about the society of the nineteenth century, it was a universe filled with
individuals who have independent thoughts, though influenced by a media
speech, as we perceive nowadays.
Key words: Gazetinha, prostitution, morality, agenda-setting, search for power.
LISTA DE TABELAS
Página
Tabela 1: População presente, segundo a instrução, do RS – 1890
Tabela 2: Movimento na Casa de Correção em 1898
Tabela 3: preços anunciados pela Casa F. Maisonnave
Tabela 4: Refeições do Hotel e Restaurante do Comércio
Tabela 5: População recenseada em Porto Alegre – 1890
Tabela 6: População presente no RS – 1890
Tabela 7: Classificação dos gêneros jornalísticos, segundo Luiz Beltrão
32
36
76
77
114
115
141
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Página
Figura 1: Mapa – concentração de bares, bordéis e casas de jogo
Figura 2: O n. 42 da General Paranhos
Figura 3: o zelo dos senhores fiscais – parte I
Figura 4: o zelo dos senhores fiscais – parte II
Figura 5: D. Higiene
Figura 6: Logotipo da Gazetinha
Figura 7: capa da Gazetinha – o lápis e a pena
Figura 8: A Gazetinha e o Zé Povinho’
Figura 9: Jornalismo sensacionalista em fins do século XIX
Figura 10: A suicida Paulina Fuchs
Figura 11: Capa da edição especial da Gazetinha sobre o duplo
assassinato na Azenha
Figura 12: Capa da Gazetinha: Assassinados
Figura 13: O padre e a devota
Figura 14: Edição bilíngüe de maio de 1897
Figura 15: Gazetinha para piano
Figura 16: Incubação da Guarda Municipal
Figura 17: A Nova Polícia
Figura 18: Sombras visíveis e clarões presumíveis
Figura 19: Um dos muitos moralistas
Figura 20: Marquês das castanholas
Figura 21: Teatro: antiga escola da moralidade
Figura 22: Theatro-Pátria
Figura 23: Mãe abandona o filho
Figura 24: A La Fin de Siecle
Figura 25: Caporal Marion I
Figura 26: Caporal Marion II
Figura 27: Bazar Gertum
Figura 28: Negrita
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184
187
190
SUMÁRIO
Introdução
CAPÍTULO 1: PORTO ALEGRE NA VIRADA DO SÉCULO XIX:
CENÁRIOS URBANOS E SOCIAIS E O DESENVOLVIMENTO DA
IMPRENSA LOCAL
1.1 O processo de urbanização e a necessidade da higienização moral
1.2 O crescimento da imprensa local e o papel da Gazetinha
CAPÍTULO 2: HISTÓRIA E COMUNICAÇÃO: POSSÍVEIS
APROXIMÕES E QUESTÕES TEÓRICAS
2.1 O Jornalismo e a construção de realidades históricas
2.2 O agenciamento e a gramática do poder: códigos sociais
2.3 A contribuição da hipótese de agenda-setting para o reforço dos
códigos sociais
CAPÍTULO 3: CÓDIGOS SOCIAIS CONSTRUÍDOS PELO JORNAL
GAZETINHA SOBRE A MORAL E A PROSTITUIÇÃO EM PORTO
ALEGRE
3.1 As capas
3.2 As charges e as caricaturas
3.3 Os anúncios publicitários
3.4 As colunas
Considerações finais
Referências bibliográficas
11
21
21
67
99
101
108
120
143
145
158
178
195
204
211
INTRODUÇÃO
A aparentemente pacata cidade de Porto Alegre, prestes a entrar na
modernidade do século XX, guardava alguns segredos. Em meio a um
movimento ideológico, político e cultural vigente na época, o Positivismo
defensor da moral e da família –, nem tudo (ou todos) seguiam o exemplo do
bom comportamento e da moralidade desejada.
Processos-crime apontavam mulheres líderes de quadrilhas e
acusadas de estelionato, como o caso da famosa Joana Eiras, cujo
julgamento ocupou as páginas de importantes jornais da época, como A
Federação. Outros assinalavam, escandalizados, acusações a uma famosa
prostituta e cafetina da cidade, Ana Fausta, de aliciar menores de idade e
mulheres casadas a seguir a mesma profissão. Além disso, crimes como o da
Rua do Arvoredo
1
, alguns anos antes, sugerem que a calma Porto Alegre não
1
Referente a fato ocorrido em Porto Alegre em 1864, quando o açougueiro José
Ramos e sua mulher Catarina Palse foram presos como autores de crimes de assassinato. O
casal era acusado, também, de fabricar e vender, em seu estabelecimento, lingüiças feitas
com a carne das vítimas.
era tão pacata quanto se supunha. Cidadãos de atitude, mulheres que
encabeçavam processos de divórcio, pedidos de anulação de casamento,
escândalos nas páginas dos jornais: tudo insinuava uma grande
movimentação social, que acompanhava o processo de crescimento urbano e
a nova mentalidade dele decorrente.
Paralelo a isso, uma imprensa agitada estava em pleno
funcionamento. Nada que se comparasse à abrangência do jornalismo
contemporâneo, com grande extensão de páginas, cadernos, seções,
correspondentes e amplo uso da imagem por meio da fotografia.
A imprensa de Porto Alegre, ao final do século XIX, apresentava-se
bem mais singela neste sentido. Com exceção dos grandes jornais, como
Correio do Povo
, A Reforma e A Federação, os outros veículos tinham
reduzido número de páginas e menor abrangência na sociedade porto-
alegrense. Nem por isso, entretanto, eram menos barulhentos, ou nem por
isso tinham pouca receptividade do público.
Ainda que os meios de apreensão da mensagem pudessem,
possivelmente, ser outros (por o se tratarem de grandes veículos e nem
possuírem vinculação político-partidária, como era o caso de A Federação
e
de A Reforma
), também provocavam seus impactos, até mesmo pela
característica de Porto Alegre na época, uma capital com ares de cidade
interiorana, onde todos se conheciam, onde se tinha o hábito do comentário
da vida alheia, onde todos se observavam e se vigiavam mutuamente.
Essas são questões que fazem parte do cotidiano da cidade e de
sua cultura. De acordo com Clifford Geertz, as atitudes somente podem ser
entendidas dentro de um contexto maior: acreditando, como Max Weber, que
o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo
teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise
2
. A
aparência pacata e de cidade de interior que Porto Alegre apresentava no
momento diz respeito aos significados por ela própria criados:
2
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978,
p.15.
Como sistemas entrelaçados de signos
interpretáveis (o que eu chamaria de símbolos, ignorando as
utilizações provinciais),a cultura não é um poder, algo ao
qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos
sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos;
ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser
descritos de forma inteligível, isto é, descritos com
densidade
3.
A linguagem utilizada pelos jornais da época também diferia bastante
da fala empregada atualmente. o havia, por exemplo, a preocupação com
a imparcialidade. Eram correntes as campanhas, diretamente declaradas, em
prol das mais variadas causas; críticas à situação política e econômica do
estado e do país feitas sem maior polidez de palavras. De acordo com
Nelson Werneck Sodré, o jornalismo, naquele momento, era praticado ainda
por um grupo de literatos, em grande parte. Para o autor, o resultado da
mistura entre jornalistas e literatos nem sempre é positiva: aparece uma
linguagem empolada e até mesmo feia, esteticamente falando
4
.
Ainda que o panorama da imprensa sul-rio-grandense daquele
período seja muito interessante, este estudo se volta para apenas um jornal,
de publicacão inicialmente irregular, em Porto Alegre: a Gazetinha
5
, que não
apresentava a expressão e a extensão (possuía 4 páginas) dos grandes
jornais da cidade, já citados anteriormente. Dadas as características de Porto
3
GEERTZ, Clifford . Op. Cit, p.24,
4
SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad,
1999.
5
Como metodologia de trabalho, optou-se pela análise mais detalhada da Gazetinha,
ainda que os arquivos históricos de Porto Alegre/RS tenham exemplares de outros jornais da
época, pelo cunho social e de crônica cotidiana que caracterizavam a publicação. Dadas äs
dificuldades de conservação do material, em se tratando de um jornal do século XIX, não
houve acesso ä totalidade da coleção. Parte do acervo estava em fase de encaminhamento
para restauro. Ainda assim, a pesquisa se debruçou sobre grande volume das edicòes
publicadas entre os anos de 1895 e 1897, marco cronológico deste estudo, localizado no
Arquivo Histórico Municipal Moyses Velinho, em Porto Alegre/RS. Adotou-se como critério de
seleção dos textos e imagens publicados os que fizeram parte da campanha empreendida,
pelo jornal, contra a imoralidade e a prostituição na cidade, em função da delimitação do
tema deste estudo. A partir desta seleção, trabalhou-se com uma divisão de categorias:
textos de capa, textos de coluna, charges e caricaturas e anúncios publicitários. Estes, ainda
que pertençam a outro campo de estudo da Comunicação a Publicidade integram este
estudo enquanto objeto de análise por complementarem a argumentação que se busca aqui
construir: entende-se, neste estudo, que anúncios publicitários publicados pela Gazetinha
apresentavam reflexos das temáticas trabalhadas em outros campos do jornal, acerca da
prostituição e da imoralidade. Assim, nesta perspectiva, apontar a publicidade da época, em
conformidade com textos e imagens publicados, reforça a hipótese de Agendamento.
Alegre na época, entretanto, os termos utilizados pela folha e a campanha
declarada contra os focos de prostituição na Capital, pode-se pensar no
impacto dos códigos produzidos por este jornal na sociedade porto-
alegrense.
Grande parte da fala do jornal se concentrava em não apenas narrar,
mas também em criticar o que acontecia na rua General Paranhos, atual
avenida Borges de Medeiros
6
, famosa pela concentração de bordéis e casas
de jogo, escandalizando a imprensa e as famílias de bem. Em uma época em
que a cidade vivia sob a imposição dos princípios positivistas, que definiam
um modelo de mulher como mãe e esposa ideais, protetora do lar e da
família, a prática da prostituição, exatamente contrária a essa imagem
sacralizada, tornou-se um problema social amplamente discutido, ocupando
as páginas dos jornais e direcionando as ações das autoridades policiais.
Por intermédio de diferentes espaços em suas páginas, a Gazetinha
construiu uma fala por meio da qual as famílias de bem encontravam
dificuldades de transitar nas ruas da cidade, ocupadas por bêbados, vândalos
e mulheres que agarravam os homens à força. É o que alguns estudos
chamaram de processo de saneamento moral
7
. A proposta de análise aqui
apresentada, entretanto, pretende se debruçar não apenas sobre a fala do
jornal em si, mas também sobre a maneira como foi trabalhada por meio da
construção de códigos de agenciamento de poder das mensagens
elaboradas, transmitidas e recebidas. Somado a esse agenciamento de
poder, formulado mediante códigos, percebe-se que a Gazetinha agendou a
temática da prostituição e da moralidade entre os anos de 1895 e 1897,
marco cronológico deste estudo. Trabalha-se, portanto, com a hipótese de
que a insistência de uma fala ritmada, empregando códigos e termos
semelhantes e em diferentes espaços do jornal (textos, colunas, anúncios
publicitários e caricaturas, estas publicadas somente nas edições ilustradas
6
FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: Guia histórico. Porto Alegre: UFRGS,
1992, p.80.
7
MAUCH, Cláudia. Saneamento moral em Porto Alegre na cada de 1890. In:
VARGAS, Anderson Zalewski. (et.alli) Porto Alegre na virada do século 19: Cultura e
sociedade. Porto Alegre: UFRGS / ULBRA / UNISINOS, 1994.
da Gazetinha
8
) construiu códigos que contribuíram para a elaboração de uma
mentalidade coletiva a respeito de um grande problema social antes
existente, mas ampliado a partir da Abolição da Escravatura, quando muitas
mulheres negras e sem opção no mercado de trabalho se voltaram para o
ofício da prostituição.
9
Trabalha-se, aqui, a hipótese de que poder e conhecimento se
apóiam mutuamente, conforme ressaltou Peter Burke, ao fazer a retomada
histórica do Conhecimento.
10
Cria-se uma sociedade em dependência dos
meios de comunicação:
Todos nós dependemos dos produtos da
comunicação de massa para a grande maioria das
informações e diversão que recebemos em nossa vida. É
particularmente evidente que o que sabemos sobre números
e assuntos de interesse público depende enormemente do
que dizem os veículos de comunicação. Somos sempre
influenciados pelo jornalismo e incapazes de evitar esse
fenômeno. Pouco podemos ver por nós mesmos. Os dias
são muito curtos, e o mundo é enorme e muito complexo
para podermos cientificar-nos de tudo o que se passa nos
meandros dos governos. O que pensamos saber, na
realidade não sabemos, no sentido de que saber representa
experiência e observação
11.
8
Uma vez ao mês, a partir de 1895, era publicada a edição ilustrada. Nestas ocasiões,
as capas eram mais elaboradas, ilustrando os temas polêmicos em discussão ou prestando
homenagens a políticos, heróis de guerra ou grandes nomes da cultura e das artes. Também
nas edições ilustradas era reservado espaço para charges e caricaturas, bem como
elaborados anúncios publicitários. Nas outras edições, sobressai o texto.
9
A abordagem da fala da imprensa no século XIX sobre a moralidade foi alvo de
pesquisas no campo da História, utilizando jornais como a Gazeta da Tarde
, O Mercantil, o
Correio do Povo
, além da Gazetinha. Entretanto, as pesquisas de detiveram na análise da
representação do tema nas páginas dos jornais, e não necessariamente sobre possíveis
técnicas empregadas pelos veículos para criar a polêmica e um efeito sobre o espectador.
Nesse sentido, a contribuição deste estudo está em analisar a utilização, pela Gazetinha
, do
Agendamento, não importando tanto a veracidade dos registros feitos pelo jornal, mas o
efeito capaz de provocar na sociedade, tornando possível discutir que a Hipótese de
Agendamento, até então utilizada para análise dos meios de comunicação de massa,
também pode ser empregada para o entendimento do funcionamento de uma folha publicada
no século XIX.
10
BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento: De Gutenberg a Diderot.
Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
11
RIVERS, William L. & SCHRAMM, Wilbur. Responsabilidade na comunicação de
massa. Rio de Janeiro: Bloch, 1970, p..27. Os autores também salientam que uma pessoa
que aceita uma mensagem tende a interpretá-la de acordo com a sua experiência adquirida
e sua escala de valores, porque pode faze-lo apenas em termos de respostas aprendidas
anteriormente. Tendemos a interpretar as novas experiências, se possível adaptando-as à
Ainda que na sociedade porto-alegrense, em fins do século XIX,
essa dependência ainda não fosse fortemente percebida, pode-se assinalar
um papel de relevância da imprensa sobre os comportamentos, uma vez que
formulada por um discurso masculino ainda predominante. Torna-se possível
dizer, assim, que o jornal tem uma responsabilidade, um papel social.
uma expansão do conhecimento que, somado às experiências individuais dos
que recebem as mensagens e as interpretam de acordo com sua trajetória,
também emana da construção da mídia: a expansão de nosso conhecimento
dos assuntos de interesse público pode provir dos veículos de massa
12
. É
importante, portanto, ressaltar o papel das apropriações individuais, uma vez
que se considera, atualmente, a bidirecionalidade dos meios de
comunicação. Tal tarefa é mais difícil em se tratando de um jornal do final do
século XIX, mas a Gazetinha
nos fornece alguns indícios da recepção de sua
fala por intermédio de colunas que evidenciam uma preocupação com a vida
alheia. De acordo com Peter Burke,
como é óbvio, a aquisição do conhecimento depende não
da possibilidade de acesso a acervos de informação, mas
também da inteligência, pressupostos e práticas individuais.
A história das maneiras de ouvir e das maneiras de ver não
foi estudada em profundidade, mas a história da leitura
atraiu bastante atenção nas últimas duas décadas, levando,
por exemplo, a uma nova maneira de escrever a história da
ciência
13.
Este estudo também pretende ser uma contribuição nesse sentido,
levando em consideração a manipulação dos textos, de acordo com
experiência adquirida e aos valores aceitos. Isso, evidentemente, leva algumas vezes à
distorção freqüentemente selecionando as partes de uma mensagem que se adaptem
confortavelmente e descartando o restante. (p.34) Sobre esta questão, José Arbex Jr.
assinala que mais além na cadeia de relações entre o jornalista e o consumidor do produto
final, está o próprio consumidor das notícias: como, e em que medida, os tempos vividos, as
asserções ideológicas, os relatos e as memórias transmitidas pelos jornalistas e editadas
pelo jornal serão captados e experimentados pelo indivíduo exposto ao fluxo ininterrupto de
informações veiculado pela mídia? (ARBEX JR., José. Showrnalismo: A notícia como
espetáculo. 4ed. São Paulo: Casa Amarela, 2001, p. 26).
12
RIVERS, William L. & SCHRAMM, Wilbur . Op. Cit, p.28.
13
BURKE, Peter. Op. Cit., p.161.
determinados propósitos. Neste momento histórico, muitos dos padrões de
vida e de comportamento de Porto Alegre foram importados do Rio de
Janeiro, desde os tempos da Corte: modos de vestir, hábitos noturnos tudo
parecia se aproximar da moda ditada pelo Rio de Janeiro, a partir da segunda
metade do século XIX, apontando para as novas formas de sociabilidade e
para as necessidades do mercado de trabalho. Faziam parte deste grande
pacote a educação e mesmo a imprensa, feita aqui de acordo com os
padrões ditados pela então capital do país.
De acordo com Marialva Barbosa, no Rio de Janeiro daquele
momento, criaram-se as condições favoráveis para o desenvolvimento da
indústria da notícia, que já pretendia informar com neutralidade e isenção:
Editando com destaque as notícias policiais e
reportagens, sob uma capa de neutralidade, introduzindo a
entrevista nas primeiras páginas, os jornais procuraram
construir uma representação ideal da sociedad
e. A opinião
isola-se no artigo de fundo e a ilustração, posteriormente
substituída pela fotografia, publicada ao lado do texto,
cumpre também esse papel. [grifo meu]
14
Em Porto Alegre, é preciso questionar esta neutralidade, mas, de
qualquer forma, a construção de uma representação ideal da sociedade
também se fez sentir aqui. A imprensa, conforme salienta José Arbex Jr, cria
metáforas que explicam o mundo, transformando-as em convicções
individuais
15
. A linguagem e os digos empregados se encarregam desta
construção. Daí a importância da análise da forma como são utilizados:
É a linguagem que condiciona o homem, sua forma
de agir e de se relacionar com o mundo e com os outros
homens com a cultura, enfim, aqui entendida em seu
sentido mais amplo, como o ambiente construído pelos
homens e que constrói os homens segundo seus próprios
códigos, linguagens que agem sobre os corpos e delimitam o
seu campo de percepção. É o caso muitas vezes
comentado da capacidade que tem o esquimó de identificar
14
BARBOSA, Marialva. Os donos do Rio: Imprensa, poder e público. Rio de
Janeiro: Vicio de Leitura, 2000, p.24.
15
ARBEX JR. Op. Cit., p.37.
na neve várias tonalidades da cor branca, ali onde o comum
dos mortais pertencente à cultura ocidental enxergará um
extenso e monótono deserto branco. (...)
Não uma ‘linguagem total’, um sistema de
códigos que, abarcando tudo aquilo que o ser humano
produziu como linguagem, conseguisse o máximo de
aproximação entre a própria linguagem e o mundo
16
.
Para tanto, em um primeiro momento, este estudo pretende traçar
um histórico do desenvolvimento urbano e das novas formas de sociabilidade
esboçadas em Porto Alegre no momento de virada do século XIX para o XX.
Assinala-se, aqui, o crescimento da cidade em um contexto de expansão
urbana presente também no restante do país, acompanhada de uma
sociabilidade urbana e de uma vida pública igualmente em processo de
expansão. O desenvolvimento da imprensa local e do universo das Letras
(percebido pelo investimento, ainda que raso, da instrução pública, além do
surgimento de gabinetes de leitura, bibliotecas públicas e a imprensa literária)
também faz parte deste cenário, contribuindo para a construção de uma fala
a respeito de uma necessária moralidade pública.
Em um segundo momento, pretende-se fazer uma discussão teórica
a respeito dos preceitos que embasam este estudo: a construção dos códigos
e de uma gramática do poder, presente em todas as relações sociais, não
somente as contemporâneas, mas mesmo as mais remotas: códigos sociais
de poder
17
que permeiam as nossas falas, igualmente na imprensa local e
16
ARBEX JR. Op. Cit, p.85/86.
17
De acordo com Isaac Epstein, em sua Gramática do Poder, Em seu significado
mais geral, a palavra ‘poder’ é correlata à competência (atual ou potencial) para agir e
produzir efeitos. Neste sentido tanto pode referir-se às inter-relações humanas, como ao
poder sobre os fenômenos naturais. Estes dois ‘tiposde poder, porém, o imbricados’. ...
(p.35) O autor salienta que o poder exercido nas inter-relações humanas pode ser o de uma
pessoa sobre outra (agenciado em múltiplas circunstâncias), de uma categoria, de uma
classe, de um partido político, de uma empresa, de um sindicato, de um país.
Individualmente, cumprimos os sinais de trânsito, procuramos o infringir as leis do país,
obedecemos aos nossos superiores hierárquicos, mas também, em certas circunstâncias,
entregamos nossa carteira ao assaltante ou cedemos ante uma ameaça. .Boa parte da
transmissão cultural, tanto de informações e procedimentos, quanto de valores, hábitos, etc.,
está baseada no assentimento mediante sanções. Daí derivam os poderes dos pais, do
chefe de oficina, do policial da esquina. Em outros casos, acatamos o professor, o médico, o
sacerdote. ... (p.35) Finalmente, alerta que definir o exercício do poder, como circunscrito a
situações de emissão e obediência a ordens ou mandatos, deixa aparentemente de lado
neste estudo em particular na Gazetinha; a hipótese de Agenda-Setting e
sua contribuição para a consolidação destes códigos; a aproximação entre a
História e o Jornalismo, na construção de um conhecimento sobre uma
sociedade que parece, ao mesmo tempo, tão distante dos elementos que a
caracterizam hoje, mas que, ao mesmo tempo, apresenta tantos aspectos
comuns: ao contrário do que dita o senso comum sobre a sociedade do
século XIX, um universo de pessoas com autonomia de pensamento, embora
influenciadas por um discurso midiático, como percebemos nos dias que
correm. O poder, de acordo com Isaac Epstein, é elemento integrante do
tecido social:
A idéia de poder, associada ao poder coator do
Estado, sedimentou camadas de significado que foram se
superpondo na História. (...) A trajetória do poder, então,
após sua hipotética origem, desce e percola a intimidade do
tecido social em todas as suas capilaridades e ‘explica’, bem
ou mal, todas as outras formas ‘menores’ de poder do
homem sobre o homem.
18
Finalmente, em um terceiro momento, busca-se uma análise do
veículo em si e da fala construída por ele. A partir de uma perspectiva de
agendamento de temas acerca da prostituição e da moralidade pública,
capazes de gerar polêmica e atrair a atenção do público leitor, em diferentes
espaços da Gazetinha
, o jornal se colocava ao lado do povo, especialmente
como defensor da moral e dos comportamentos adequados, por meio de
textos dedicados ao tema publicados não na capa e em colunas, mas
também igualmente presentes na utilização da imagem: as caricaturas e os
anúncios publicitários que fechavam as edições.
muitas situações mais latentes onde ‘ordens’ são menos visíveis ou concretas, mas nem por
isso menos reais em seus efeitos. ... (p.36) (Gramática do Poder. São Paulo: Ática, 1993)
18
EPSTEIN, Isaac. Op. Cit, p.47.
CAPÍTULO 1
PORTO ALEGRE NA VIRADA DO SÉCULO XIX: CENÁRIOS
URBANOS E SOCIAIS E O DESENVOLVIMENTO DA IMPRENSA
LOCAL
1.1. O processo de urbanização e a necessidade da
higienização moral
Em meados do século XIX, a cidade de Porto Alegre estava em
franco processo de crescimento. Foi o período em que a cidade recebeu
melhoramentos urbanos por parte dos incentivos prestados pelos
presidentes de Província. Em meio ao crescimento urbano, as
instituições culturais da cidade tornaram-se as responsáveis pela
movimentação cultural que Porto Alegre passou a vislumbrar a partir
daquele momento. Organizaram-se os gabinetes de leitura, que
contribuiriam para o incentivo ao mundo das Letras (juntamente com a
estruturação da Instrução Pública), ainda que fossem poucos os que lhe
tivessem acesso, pelo baixo índice de alfabetizados entre a população.
A movimentação teatral também se fez bastante presente, trazendo aos
palcos discussões presentes no Brasil do século XIX, como o papel da
mulher na sociedade e a defesa do abolicionismo.
Esse não foi um momento exclusivo de Porto Alegre, quando da
virada do século XIX para o XX. O Império, no Brasil, havia
proporcionado mudanças significativas em termos de desenvolvimento e
urbanização, especialmente no Rio de Janeiro, a Capital do governo
imperial. À época, sentiu-se necessidade de maior estrutura para a vida
pública, que veio a provocar reflexos em outros centros urbanos
19
do
país. A vida na Corte pedia cafés, iluminação noturna, teatros, ruas
pavimentadas, saneamento básico. Ainda que todas essas melhorias
não fossem imediatas, formaram-se novos padrões que se
disseminaram em cidades como Porto Alegre. Esse novo panorama
possibilitou o crescimento da imprensa local. De acordo com Marialva
Barbosa, esta acumulação urbana
19
Por extensão, o termo urbanismo passou a englobar uma grande parte no que diz respeito à
cidade, obras públicas, morfologia urbana, planos urbanos, práticas sociais e pensamento urbano,
legislação e direito relativo à cidade. (HAROUEL, Jean-Louis. História do urbanismo. Campinas:
Papirus, 1990, p.8.) Novos hábitos e costumes surgem em Porto Alegre, onde o crescimento da vida
cultural torna-se parte integrante de um projeto de incremento dos equipamentos urbanos, em busca
da formação de um centro civilizado. Segundo Norbert Elias, o processo civilizador constitui uma
mudança na conduta e sentimentos humanos rumo a uma direção muito específica. (...) Na verdade,
nada na história indica que essa mudança tenha sido realizada ‘racionalmente’, através de qualquer
educação intencional de pessoas isoladas ou de grupos. A coisa aconteceu, de maneira geral, sem
planejamento algum, mas nem por isso sem um tipo específico de ordem (...) planos e ações,
impulsos emocionais e racionais de pessoas isoladas constantemente se entrelaçam de modo
amistoso ou hostil. Esse tecido básico, resultante de muitos planos e ações isoladas, pode dar origem
a mudanças e modelos que nenhuma pessoa isolada planejou ou criou (ELIAS, Norbert. O processo
civilizador: A formação do Estado e a civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1993, p.193-194.v.2).
possibilita a própria industrialização, criando condições para novas
áreas industriais e para que capitais se concentrem em setores
distintos do comércio. (...) A cidade tem, pois, todas as condições
necessárias para a ampliação e o desenvolvimento de uma nova
indústria - a de notícias - construída em moldes inteiramente
diversos do que fora, ate então, a atividade de fazer jornal
20
.
Foi como se a vida cultural fosse despertada, no Brasil, pela vida
na Corte:
O enriquecimento da vida cultural do Rio de Janeiro, e até
mesmo do país, após 1808, decorreu, sobretudo, das necessidades
da elite dominante, que nela encontrava as formas de sociabilidade
indispensáveis para sua própria existência. (...)[Entretanto] se a
civilidade, o luxo, o conforto, o gosto pelas artes, o teatro e a música
enraizavam-se nas camadas da elite, costumes rudes e violentos
persistiam, de modo geral, no cotidiano das populações rurais, e, no
próprio meio urbano, a presença da escravidão continuava a exigir o
recurso indispensável da força e da violência para garantir a ordem
e os privilégios da minoria branca. Logo após o desembarque da
Corte no Rio de Janeiro, a criação da Imprensa Régia, pelo decreto
de 13 de maio de 1808, contribuiu, como nenhuma outra medida,
para despertar a vida cultural da colônia
21
.
Formou-se, a partir de então, um circuito cultural que incluía, por
exemplo, as cidades do Rio de Janeiro, Porto Alegre, Pelotas, algumas
das mais significativas concentrações urbanas da época. A
20
BARBOSA, Marialva. Os donos do Rio: Imprensa, poder e público. Rio de Janeiro: Vicio
de Leitura, 2000, p.22 – 23.
21
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das & MACHADO, Humberto Fernandes. O Império do
Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p.47. Os autores ainda salientam que, a partir da
instalação da Imprensa gia, a censura foi atribuída à sua Junta Diretora, à qual cabia ‘examinar os
papéis e livros que se mandarem publicar e vigiar para que nada se imprima contra a religião,a moral
e os bons costumes (p.49).
apresentação de espetáculos estrangeiros, com freqüência, também
evidenciava a visibilidade cultural que se alcançou naquele momento.
Assim, a atividade jornalística acompanhou esse processo. Percebeu-se
o surgimento de jornais em profusão, em Porto Alegre, na segunda
metade do século XIX, tanto aqueles com tendências políticas, como
folhas operárias e periódicos literários. A influência de questões tratadas
nos jornais do Rio de Janeiro foi grande, ainda que houvesse maior
espaço para as questões locais.
No momento de passagem do Império
para a República, em 1889, o Rio de
Janeiro seguiu sendo exemplo a ser
seguido nas questões culturais.
Politicamente, o Rio Grande do Sul
ingressou na chamada República Velha
[1889-1930], sob forte influência dos
ideais positivistas. Porto Alegre havia
crescido, não apenas no que diz respeito
aos índices populacionais, mas até
mesmo na paisagem urbana. Os
investimentos em saneamento,
iluminação, vida noturna (com teatros e
cafés) e calçamento de ruas haviam
tornado Porto Alegre uma cidade com
ampla circulação de pessoas. durante
o século XIX, o investimento em
iluminação pública modificara os hábitos
de muitos cidadãos que, com opções de
lazer em profusão, e a possibilidade de
vivenciar uma noite tão clara quanto o
dia
22
, saíam mais à rua, evitando o
precoce recolhimento aos seus lares.
Conseqüentemente, estando mais atento
ao que acontecia fora de casa, não
apenas percebiam-se as melhorias que
a cidade vinha apresentando (fenômeno
não restrito a Porto Alegre, cabe
ressaltar, pois a segunda metade do
século XIX assinalou o crescimento das
cidades em todo o país), como os
problemas sociais e a necessidade de
22
Sobre a iluminacão pública em Porto Alegre, ver:CONSTANTINO, Núncia Santoro de. A
conquista do tempo noturno: Porto Alegre moderna. In: Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre,
v.XX, nº 2, dezembro de 1994.
segurança pública mais reforçada
também saltavam aos olhos. O momento
de virada do século, por exemplo,
marcou a transformação da capital na
sala de visitas
23
do Rio Grande do Sul,
assinalando a necessidade de limpeza,
não apenas física e urbana, mas
também moral.
Segundo Maria Eunice Moreira,
Porto Alegre é [em 1889] uma cidade de contrastes: a luz
elétrica atinge apenas o centro, não há abastecimento de água, nem
rede de esgotos, porém conta com 3 livrarias, 2 teatros e 4
faculdades Direito, Engenharia, Medicina e Farmácia, numa
população de 74 mil habitantes
24
.
Conforme assinala Sandra Jatahy Pesavento, o contraste enunciado é
o de um núcleo urbano pequeno e carente de serviços públicos, mas com um certo
‘ar cultural
25
.
Também a instrução pública
26
se configurou como uma das
preocupações centrais dos presidentes de Província que, em seus relatórios
27
,
expunham a necessidade de serem feitas melhorias no campo da educação.
Segundo Áurea Prado,
é o século XIX que vai registrar o verdadeiro início do movimento
educacional no meio rio-grandense, assistir à sua tradição em ritmo
23
BAKOS, Margaret Marchiori. Porto Alegre e seus eternos intendentes. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1996.
24
MOREIRA, Maria Eunice. Apolinário Porto Alegre. Porto Alegre: IEL, 1989, p.16.
25
PESAVENTO, Sandra Jatahy. O imaginário da cidade: Visões literárias do urbano: Paris,
Rio de Janeiro, Porto Alegre. Porto Alegre: Ed. da Universidade / UFRGS, 1999, p.288.
26
Segundo Jussemar Weiss Gonçalves, a educação pública é um elemento do processo
civilizador. O autor assinala que caberia à escola pública formar o cidadão ativo, aquele que exerce
responsabilidades políticas, dar-lhes a cultura, gosto pela discussão (GONÇALVES, Jussemar Weiss.
Decoro e decência: civilização, iluminismo e educação. In: Ciências & Letras,
Porto Alegre, 25,
1999, p.201).
27
Em 1864, o relatório do presidente de província Espiridião Pimentel, por exemplo, salientava
que a primeira necessidade deste interessante ramo de serviço público [a Instrução] é a fundação de
uma escola normal, onde se formem aqueles a quem vai se confiar a importantíssima tarefa de
desenvolver a inteligência e formar o coração da mocidade. (ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL.
Relatório do presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul Espiridião Eloy de
Barros Pimentel. sesão da 11ª Legislatura da Assembléia Provincial, Porto Alegre, 10 de março
de 1864).
lento mas ascendente, e procurar as primeiras diretrizes para uma
política educacional no plano das realizações
28
.
É importante considerar que o
desenvolvimento urbano mais
significativo, em primeira instância,
ocorreu no Centro de Porto Alegre, local
onde a cidade surgiu. Embora o
crescimento pelos arredores (como o
Menino Deus e o Moinhos de Vento)
se fizesse bastante presente, o foco das
atenções continuava sendo o Centro, no
momento da virada do século. O espaço
ainda era muito residencial, embora
concentrasse também o comércio, as
redações dos jornais, os cafés e os
teatros. Onde a vida acontecia, enfim...
Justamente em função desses ares de desenvolvimento, problemas já
antes existentes pareciam tomar, agora, dimensões maiores. De acordo com
Margaret Bakos,
no decorrer da República Velha [1889-1930], a imprensa versa
freqüentemente sobre o ‘outro lado’ de Porto Alegre, onde não
vida elegante, cafés ou cinemas repletos, revelando aspectos da
miséria anônima nas ruas e nos perímetros urbanos. Os mendigos
aumentam na cidade, tornando-se manchetes de jornais
29
.
Cortando o centro de Porto Alegre, estava a famigerada rua General
Paranhos
30
, atual avenida Borges de Medeiros. Em meio a toda a movimentação
urbana e cultural que a cidade apresentava, a rua era famosa pela concentração de
bordéis e casas de jogo, escandalizando a imprensa e as famílias de bem, como se
percebe através do mapa a seguir:
28
PRADO, Áurea. A formação do professor primário no Rio Grande do Sul. In: PRADO, Áurea.
(et.all.) Rio Grande do Sul: Terra e povo. Porto Alegre: Globo, 1964, p.227.
29
BAKOS, Margaret Marchiori. Op. Cit, p.31.
30
De acordo com Sérgio da Costa Franco, a General Paranhos era um estreito beco que subia
desde a Rua Gen Andrade Neves até a Rua Duque de Caxias e dali descia em outra fortíssima
ladeira até a Rua Coronel Genuíno. O nome de General Paranhos datava de uma resolução da
Câmara Municipal de 30/10/1871, mas a população porto-alegrense, com seu aferrado
tradicionalismo, ainda aludia àquela via pública como Beco do Poço, que fora uma de suas
denominações espontâneas. Embora houvesse planos de melhorias previstos pela Intendência
Municipal desde 1894, é em 1914 que ocorre o alargamento da rua. (FRANCO, Sérgio da Costa.
Porto Alegre: Guia histórico. Porto Alegre: Ed. da Universidade / UFRGS, 1992, p.81)
FIGURA 1: Mapa com a concentração de bares, bordéis e casas de jogo
Fonte: PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma outra cidade: O mundo dos excluídos no final
do século XIX. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001, p.208.
Antigamente, a rua General Paranhos era popularmente conhecida como
Beco do Poço, cuja alcunha trazia significado pejorativo. Conforme salienta
Sandra Pesavento,o beco é
o reduto dos excluídos urbanos e corresponde, de forma exemplar,
a uma bela demonstração do que poderíamos chamar a maneira
conflitiva de construir o espaço público. (...) o beco é, por definição,
visualizado como um espaço noturno e escuro, propriedades às
quais se acrescentam as dimensões do acanhamento, abafamento
e desorganização, sendo, por decorrência, feio, sujo, fétido e
perigoso, pois nele se concentram as socialidades condenáveis
31
.
31
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma outra cidade: O mundo dos excluídos no final do
século XIX. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001, p.32. Sobre o Beco do Poço, a autora
ainda salienta que o local, como já muito se viu, disparava na frente em número de ocorrências, uma
vez que concentrava bordéis e congregava todas as instâncias da malta dos turbulentos. Mais do que
O problema parecia ser não apenas a existência desses estabelecimentos,
apelidados na ocasião de espeluncas
32
, mas as atitudes daqueles que trabalhavam
naqueles locais. Em uma época, por exemplo, em que muito se discutia sobre o
lugar da mulher na sociedade (ainda que sua emancipação fosse maior do que se
imagina), a prática da prostituição se tornou um problema social amplamente
discutido, ocupando as páginas dos jornais e direcionando as ações das autoridades
policiais. Segundo Rachel Soihet, haveria um motivo para a vigilância estabelecida
com relação aos comportamentos femininos, em especial quanto à pratica da
prostituição:
Durante a Belle Epoque (1890-1920), com a plena
instauração da ordem burguesa, a modernização e a higienização
do país despontaram como lema dos grupos ascendentes, que se
preocupavam em transformar suas capitais em metrópoles com
hábitos civilizados, similares ao modelo parisiense. Os hábitos
populares se tornaram alvo de especial atenção no momento em
que o trabalho compulsório passava a ser trabalho livre. Neste
sentido, medidas foram tomadas para adequar homens e mulheres
dos segmentos populares ao novo estado de coisas, inculcando-lhes
valores e formas de comportamento que passavam pela gida
disciplinarização do espaço e do tempo de trabalho, estendendo-se
às demais esferas da vida
33
.
isso, tinha o seu epicentro na figura-chave da prostituta, que atraía os homens, incitava à briga, á
bebida e ao jogo, degenerando mesmo para o crime (p.176).
32
Segundo Pesavento, a espelunca designa um local escuro, mal freqüentado, sórdido,
escuso, onde se joga. Também chamada de casa de tavolagem, a espelunca é, sobretudo, um lugar
mal freqüentado, onde o aspecto feio e maltratado se associa a práticas ilícitas e realizadas às
escondidas. A espelunca é, assim, um antro do vício o jogo, no caso -, onde se potencializam e
estimulam a bebedeira, o linguajar de baixo calão, os atos obscenos e as desordens, que, por
extensão, podem degenerar para o crime. Assim, a designação de que um estabelecimento era uma
espelunca se revestia de uma agressão de sentido, tanto para o proprietário quanto para os seus
freqüentadores. Num deslizamento de significados, mas sempre a indicar um local de cios e
contravenção, a espelunca passa a designar todos aqueles locais onde se propiciava o mau
proceder, não só a bebida (PESAVENTO, Sandra Jatahy. O mundo dos excluídos. Op. Cit
.,p.49).
33
SOIHET, Rachel. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In: PRIORE, Mary Del (org).
História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997, p.362. A autora ainda salienta que
Convergiam as preocupações para a organização da família e de uma classe dirigente sólida –
respeitosa das leis, costumes, regras e convenções. Das camadas populares se esperava uma força
de trabalho adequada e disciplinada. Especificamente sobre as mulheres recaía uma forte carga de
pressões acerca do comportamento pessoal e familiar desejado, que lhes garantissem apropriada
inserção na nova ordem, considerando-se que delas dependeria, em grande escala, a consecução
Assim, novos comportamentos e formas de sociabilidade faziam-se
necessários ao projeto de modernização pelo qual passava o país. Como empecilho
para a concretização desses ideais, no entanto, estavam os problemas sociais
presentes no Brasil há mais tempo. A prostituição, por exemplo, parece ter se
agravado no contexto de Abolição da Escravatura, em função das dificuldades de
reorganização do mercado de trabalho quanto à utilização da força de trabalho
livre
34
. Antes mesmo da abolição, alguns problemas vinham sendo observados;
entretanto, com relação à mulher, o ofício da prostituição se mostrou como opção
para muitas que não conseguiram uma colocação profissional assalariada.
Conforme salienta Sandra Pesavento,
no que diz respeito aos trabalhadores livres da lavoura de
subsistência (...) estes dependiam econômica, social e politicamente
do proprietário das terras. Sua liberação para o trabalho em outra
região estava, pois, pendente da aquiescência do ‘coronel’, que
tinha naqueles elementos os seus ‘homens’. Quanto aos
trabalhadores livres dos centros urbanos de então, a opção pelo
trabalho na lavoura tinha o conteúdo de uma degradação social,
uma vez que se traduzia numa tarefa realizada por escravos negros
e, como tal, pejorativa e incompatível com elementos brancos e
livres. Para estes elementos, atingidos eles também pelo estigma da
escravidão, a alternativa válida seria antes o trabalho esporádico, o
dos novos propósitos.A organização familiar dos populares assumia uma multiplicidade de formas,
sendo inúmeras as famílias chefiadas por mulheres sós. Isso se devia não apenas às dificuldades
econômicas, mas igualmente às normas e valores diversos, próprios da cultura popular. A
implantação dos moldes da família burguesa entre os trabalhadores era encarada como essencial,
visto que no regime capitalista que então se instaurava, com a supressão do escravismo, o custo de
reprodução do trabalho era calculado considerando como certa a contribuição invisível, não
remunerada, do trabalho doméstico das mulheres (p.362).
34
Segundo Margaret Rago, as mulheres negras, após a Abolição dos escravos, continuariam
trabalhando nos setores os mais desqualificados recebendo salários baixíssimos e péssimo
tratamento. Sabemos que sua condição social quase não se alterou, mesmo depois da Abolição e da
formação do mercado de trabalho livre no Brasil. Os documentos oficiais e as estatísticas fornecidas
por médicos e autoridades policiais revelam um grande número de negras e mulatas entre
empregadas domésticas, cozinheiras, lavadeiras, doceiras, vendedoras de rua e prostitutas, e suas
fotos o se encontram nos jornais de grande circulação do período (...), ao contrário do que ocorre
com as imigrantes européias. Contrastando com o texto das notícias que relatavam crimes passionais
ou batidas policiais nos bordéis e casas de tolerância, nos jornais, as fotos ilustrativas revelavam
meretrizes brancas, finas e elegantes, lembrando muitas vezes as atrizes famosas da época. (RAGO,
Margaret. Trabalho feminino e sexualidade. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das mulheres no
Brasil. São Paulo: Contexto, 1997, p.582) [grifo meu] A autora complementa que normalmente, as
mulheres negras são apresentadas como figuras extremamente rudes, bárbaras e promíscuas,
destituídas, portanto, de qualquer direito de cidadania (p.582).
biscate ou mesmo a vadiagem, mas não um trabalho em tudo similar
ao compulsório escravista
35
.
No meio urbano, a inserção dos libertos no mercado de trabalho também se
tornou tarefa difícil, uma vez que a predileção era sempre pelos trabalhadores
brancos para as tarefas consideradas mais importantes. Nesse sentido, houve a
insistência pela requisição da mão-de-obra européia, que teria o intuito de promover
o branqueamento social
36
. Salienta Pesavento:
Entenda-se, no caso, que o ingresso no mercado de
trabalho de indivíduos brancos de origem européia imigrante
causava, como se viu, um escalonamento dos trabalhadores:
primeiro, encontrava colocação e era considerada mais habilitada,
exercendo funções qualificadas, a mão-de-obra européia,
regeneradora; em segundo lugar, vinha a mão-de-obra nacional,
livre; por último, os libertos, de recente passado servil, herdeiros de
toda sorte de estigmas ligados à escravidão
37
.
Criou-se, portanto, um novo problema social, devido a esse
desordenamento. A prática da prostituição trazia consigo o estigma de uma série de
problemas desse cenário urbano: o preconceito, resquício de uma sociedade que
pouco deixara a escravidão de lado, que boa parte das prostitutas eram mulheres
negras, oriundas da dificuldade de colocação profissional; a contradição do papel
ideal reservado para a mulher do culo XIX, de e amantíssima e esposa fiel; a
35
PESAVENTO, Sandra. Emergência dos subalternos. Porto Alegre: Ed. Da Universidade /
UFRGS, 1989, p.10-11.
36
AQUINO, Rubim Santos Leão de. (et.al) Sociedade brasileira: Uma história através dos
movimentos sociais: da crise do escravismo ao apogeu do neoliberalismo. Rio de Janeiro:
Record, 2000, p.51. O autor ainda salienta que constitui condição básica para o Estado brasileiro a
submissão de todos à ordem por ele imposta, pois dessa forma tanto manteria funcionando a
estrutura econômica, quanto legitimaria a divisão social vigente. Nesse caso, o combate à lógica
cultural de origem afro, que oferecia inconscientemente subsídios ao negro para uma conduta à
margem da ordem legal, levou o Estado a encará-la como caso de segurança pública, como forma
de obrigá-lo ao respeito ao direito de propriedade da classe dominante. Essa situação condicionou o
negro, na estrutura da economia urbana, esmagadoramente como mão-de-obra desqualificada. A ele
destinou-se o espaço como força de trabalho complementar ligado principalmente ao setor de
serviços, como elemento de apoio no trabalho doméstico ou na própria economia formal, além da
prostituição, como alternativa de sobrevivência de muitas (p.55).
37
PESAVENTO, Sandra. Emergência dos Subalternos. Op. Cit., p.45. Segundo a autora, a elite
dominante ensaiava novas formas de dominação sobre os subalternos no processo de transição
capitalista, tentando regular o acesso do liberto ao mercado de trabalho livre. (..) Às práticas de
controle social acrescentava-se a reelaboração ideologizada do trabalho e da vagabundagem, pólos
opostos de uma mesma realidade capitalista em construção (p.45-46).
desordem, pela prostituição estar associada a uma vida de vícios, de prazeres
mundanos, de jogo, bebida e mulheres. De acordo com as falas construídas na
época, as famílias de bem encontravam dificuldades de transitar nas ruas do centro,
ocupadas por bêbados, vândalos e mulheres que agarravam os homens nas ruas (e
aliciavam inocentes mocinhas de família a seguirem o mesmo caminho), em função
da movimentação provocada pela rua General Paranhos.
Embora a General Paranhos fosse a mais atacada pela imprensa, em
função do foco da prostituição ali instalado, outros locais da cidade também
ganharam a fama pública por seus moradores fugirem ao comportamento entendido
como ideal. Nas proximidades da General Paranhos, estava a Rua dos Pecados
Mortais. De acordo com Antônio Coruja, cronista do jornal Gazeta de Porto Alegre,
em 1884, em cujas páginas abordou o cotidiano da cidade,
alguém que possuía este terreno ladeirento fez edificar sobre ele
sete casinhas, que os gaiatos daquele tempo chamaram Os Sete
Pecados, nome que lhes assentava bem, tanto pelo lado sico dos
prédios quanto pelo lado moral das moradoras
38
.
De acordo com a historiadora Cláudia Mauch, haveria um discurso
higienista montado pela imprensa porto-alegrense da época:
Da mesma forma como os higienistas lutavam por uma
desinfecção das cidades através da eliminação dos focos de
doenças [e a Rua General Paranhos acabava por se enquadrar
nestes espaços...], é também em prol do bem comum que os jornais
exigem controle policial sobre os focos de desordem. A sugestão de
medidas de controle contra as pessoas cujo modo de vida era
considerado um perigo para a sociedade justifica-se, assim, pela
associação entre desordem ou crime e doença infecciosa. Na
opinião dos jornais porto-alegrenses, a polícia deveria impedir que a
‘parte ruim da sociedade contagiasse a ‘parte sã’, proibindo a
circulação de turbulentos e prostitutas em locais freqüentados por
38
CORUJA, Antônio Álvares Pereira. Antigualhas: Reminiscências de Porto Alegre. Porto
Alegre: U.E. Porto Alegre, 1996, p.13. A Rua dos Pecados Mortais compreendia um pedaço da Rua
da Igreja, atual Duque de Caxias.
famílias, ou simplesmente eliminando o problema através do
fechamento de bordéis e botequins
39.
Conforme será visto mais adiante, entretanto, provavelmente as ações
empreendidas pela imprensa e pelas autoridades governamentais também se
davam em função da ameaça que esses espaços representavam à manutenção da
ordem social vigente. Afinal, modelos femininos e comportamentais (aqui, de
homens e mulheres) que fugiam a esse padrão, embora existissem em diferentes
exemplos, que ainda persistem nos dias atuais, evidenciavam que a sociedade
porto-alegrense da época não correspondia ao ideal propagado pelo Positivismo,
então vigente no governo estadual, e motivador de um discurso normatizador de
comportamentos, especialmente os femininos. Foi esse contexto que propiciou a
formulação de códigos fortes
40
, empregados pela Gazetinha. A fala sobre a
prostituição no jornal representou, sob essa ótica, um repúdio a essas ameaças,
mais do que uma preocupação com a higienização moral de Porto Alegre na virada
do século. Para Cláudia Mauch, a idéia era impor um determinado padrão de ordem
e comportamento para todo o espaço público através da moralização dos indivíduos
e locais perigosos
41
. Agendando a temática em suas páginas, colocando-a como
parte integrante de suas preocupações diárias, por meio da utilização de códigos
fortes, a Gazetinha
contribuiu para a formação de uma opinião a respeito da
presença daqueles que formariam o grupo de excluídos da cidade, em nome de
comportamentos de retidão
42
.
39
MAUCH, Cláudia. Saneamento moral em Porto Alegre na década de 1890. In: VARGAS,
Anderson Zalewski. (et.alli) Porto Alegre na virada do culo 19: Cultura e sociedade. Porto
Alegre: UFRGS / ULBRA / UNISINOS, 1994, p. 12.
40
De acordo com Isaac Epstein, constituem os códigos fortes as mensagens unívocas (que
admitem somente uma única interpretação). (Gramática do poder. o Paulo: Ática, 1993, p.18-19).
os códigos fracos, constituem as mensagens equívocas (que, se revelando ambíguas, permitem
mais de uma interpretação).
41
Mauch, Cláudia. Saneamento moral em Porto Alegre na década de 1890.Op. Cit., p.12..
42
Segundo Michael Kunczik, no jornalismo, o “defensor é conceituado como o paladino de
certos grupos socialmente abandonados e que, por si mesmos, não podem representar seus
interesses como o Quarto Poder, impedindo o abuso do poder. Isso pode implicar pelo menos um
esforço para mudar a estrutura social. O defensor não se sente ccmprometido com o princípio da
neutralidade de valores; identificando-se com os valores do público ou de partes do público, fazendo
uma campanha vigorosa pela difusão de certas idéias ou fatos, sem reivindicar a posse da verdade
fundamental sobre o assunto tratado. Essa concepção de jornalismo, no entanto, pode também
proporcionar a legitimação própria que provoca a supressão de informações consideradas não-
proveitosas para o público ou para certos grupos.” (KUNCZIK, Michael. Conceitos de Jornalismo:
norte e sul. São Paulo: Edusp, 2002, p.98).
Conforme será visto, esses códigos se propagaram ainda que nem todos na
cidade tivessem acesso ao mundo das Letras (em função das altas taxas de
analfabetismo, como podemos verificar pela tabela a seguir), pela própria dinâmica
da vida em sociedade:
TABELA 1: População presente, segundo a instrução, do Rio Grande do Sul
1890
Instrução
População presente
Percentual sobre o
total
Sabem ler e escrever 226.994 25,29 %
Não sabem ler nem escrever 670.461 74,71 %
De instrução não declarada - -
Fonte: De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul: Censos do RS: 1803-1950. Porto
Alegre: Fundação de Economia e Estatística, 1981, p.93.
Boa parte da fala construída pelos jornalistas de então estava centrada na
figura de Fausta Marçal, uma mulher negra dona de um estabelecimento (ou,
conforme as palavras da Gazetinha
, uma espelunca) situado no n° 42 da Rua
General Paranhos, antigo Beco do Poço, representado na ilustração publicada pela
Gazetinha
, em 1895:
FIGURA 2: O nº. 42 da General Paranhos
Fonte: Gazetinha, Porto Alegre, 27 de outubro de 1895, contracapa.
A imagem é parte componente da contracapa da edição, onde uma série de
outras imagens que serão objeto de análise neste trabalho –, compõem a idéia de
que a sociedade porto-alegrense passava por um período de transformações. O
texto que acompanha as imagens, e que culmina na ilustração do nº 42 da General
Paranhos, diz: ... Não é de estranhar, portanto, que o teatro (a antiga escola da
moralidade) seja transformado também. (...) Gostinho esse que, devido às operetas,
vai dominando muitas respeitáveis senhoras que por isso viram-se obrigadas a
penitenciar-se nos conventos livres
43
.
As operetas, a que o jornal se refere, constituíam um nero teatral, alvo de
algumas críticas no momento em que a arte dramática entrava em decadência. As
atividades teatrais estavam concentradas no teatro lírico e no gênero revista, cujas
belas coristas eram chamarizes para os espetáculos. Mulheres que, pela atividade
exercida, fugiam também aos padrões desejados. Formou-se, na época, uma
imagem negativa das atrizes, perante os moralistas, conforme salienta Margaret
Rago:
As prostitutas estavam relacionadas a várias profissões;
floristas, modistas, costureiras, vendedoras de charutos, figurantes
de teatro. Eram as viúvas, casadas, divorciadas ou solteiras que, em
sua classificação, apresentavam atributos comuns, como o tipo de
habitação ou os costumes, as horas de trânsito, o modo de se
renderem, o modo de expressão (voz, estilo, termos, gestos, etc.)
44
.
A famosa Fausta escandalizava a sociedade porto-alegrense, não apenas
por dirigir a espelunca, mas em função de outras acusações que acabaram por gerar
um processo judicial contra ela, em 1898. No momento do processo, Fausta tinha 38
anos de idade. Os autos do processo-crime se referem ao local como um
estabelecimento de prostituição, onde
existem mulheres as quais a denunciada presta auxílios e..., dando-
lhes teto e mesa mediante quantia em dinheiro, proporcionais ao
número de visitas diárias recebidas pelas prostitutas. Acresce que a
denunciada recebe adiantadamente dos freqüentadores de sua casa
o preço correspondente ao aluguel do quarto destinado ao encontro
com a meretriz. A justiça pública, senhores de Júri, tem o maior
interesse na punição da denunciada, cuja atividade criminosa tem
produzido lamentáveis desastres no seio da nossa sociedade, pois é
sabido que, além do crime acima descrito a denunciada ocupa-se
também em iniciar na prostituição moças de família e senhoras
casadas, que vítimas do prejuízo de uma educação precária nem
sempre resistem
45
[grifo meu].
43
Gazetinha, Porto Alegre, 27 de outubro de 1895.
44
RAGO, Margaret. Op. Cit, p.590.
45
Processo-crime. Ré: Fausta Marçal. Porto Alegre, Juízo Distrital da sede do município da
Capital, 1898, autos n° 3699, maço 115. Arquivo Público do Estado do RS, folha 2.
A denúncia, feita pela promotoria pública, tem base nos depoimentos de
homens que atestam a veracidade dos fatos. É interessante notar a camada social a
que pertenciam as testemunhas. Em uma cidade onde a grande parte da população
era iletrada, justamente os que deixaram suas falas registradas nos autos foram
homens com curso superior, o que indica a possibilidade de que essa camada
conhecesse os serviços prestados por Fausta, ainda que sua fama corresse as ruas.
Como exemplo disso, está o depoimento de Deoclécio de Carvalho, jornalista de 24
anos de idade, morador de Porto Alegre, que dizia ser verdade Fausta ocupar o
42 da General Paranhos, onde alugava quartos para questões amorosas
46
.
Germano Feldmann, jornalista de 44 anos de idade, casado e morador de
Porto Alegre, atestou a finalidade do endereço de Fausta, para encontros e relações
amorosas, embora não pudesse confirmar que o estabelecimento empregasse
moças de família. Entretanto, disse que poderia assegurar que sabe que a mesma
denunciada atende em seu bordel senhoras casadas, facilitando, assim, os meios
para que estas lá se encontrem com seus homens aficcionados para fins ilícitos
47
.
O advogado Argemiro Rosa, 32 anos, também morador do município,
respondeu que era público e notório que a denunciada possuía uma casa de
prostituição, onde facilitava os encontros amorosos, desempenhando o papel de
cafetina
48
. A única testemunha que reconheceu ter estado no local foi o jornaleiro
Manoel da Silveira, 60 anos de idade, homem casado, que afirmou ter sido vizinho
de Fausta, alegando ter estado no n° 42 da General Paranhos apenas em uma
ocasião, por passeio unicamente
49
. Manoel disse nada saber sobre as denúncias
feitas pela promotoria.
Após ouvir o relato das testemunhas, o Juízo reconheceu como procedente
a denúncia e como provado que Fausta recebia prostitutas e lhes prestava auxílio,
assistência e moradia, atuando como cafetina. A primeira sentença, lavrada em 24
46
Processo-crime. Ré: Fausta Marçal. Porto Alegre, Juízo Distrital da sede do município da
Capital, 1898, autos n° 3699, maço 115. Arquivo Público do Estado do RS, folha 2.
47
Processo-crime. Ré: Fausta Marçal. Porto Alegre, Juízo Distrital da sede do município da
Capital, 1898, autos n° 3699, maço 115. Arquivo Público do Estado do RS, folha 2.
48
Processo-crime. Ré: Fausta Marçal. Porto Alegre, Juízo Distrital da sede do município da
Capital, 1898, autos n° 3699, maço 115. Arquivo Público do Estado do RS, folha 10.
49
Processo-crime. Ré: Fausta Marçal. Porto Alegre, Juízo Distrital da sede do município da
Capital, 1898, autos n° 3699, maço 115. Arquivo Público do Estado do RS, folha 9.
de abril de 1899, determinou que ela fosse presa e recolhida à Casa de Correção. O
crime foi considerado afiançável em 2:000$000 [dois contos de réis]. A acusada
recorreu da sentença, logo depois. Em interrogatório, Fausta afirmou que residia no
42 da General Paranhos há cerca de 7 anos e que, como meio de ganhar a vida,
lava e engoma para fora e recebe homens
50
. Fausta pagou a fiança estabelecida
em Juízo e aguardou o restante do processo em liberdade.
Para uma cidade pequena como Porto
Alegre, naquele momento, o movimento
na Casa de Correção podia ser
considerado intenso, conforme assinala
a tabela a seguir:
TABELA 2: Movimento na Casa de Correção em 1898
Homens Mulheres
Sentenciados 206 6
Pronunciados 26 1
Processados 10 2
Detidos 1 -
Fonte: A Federação, Porto Alegre, 4 de janeiro de 1899, ano XVI, n° 4, p.2.
Com relação aos crimes cometidos em 1898, percebe-se que os quais
atentavam à moral preocupação constante aparecem listados. Em 1898, foram
242 homicídios, 62 roubos, 25 lesões corporais, 8 atentados ao pudor, 3
estelionatos, 4 por uso de moeda falsa, 1 incêndio, 1 contrabando, 1
envenenamento, 6 tentativas de morte, 1 infanticídio, 40 por jogo, 5 por desordens, 2
abusos de confiança, 1 por perjúrio, 1 por suborno, 2 por insubordinação e 7 por
gatunice
51
.
Na apelação, tentou-se mostrar que as acusações contra a negra Fausta
não possuíam fundamento, que não existiam provas que a enquadrassem como
aliciadora de menores e de mulheres casadas no estabelecimento de prostituição,
50
Processo-crime. Ré: Fausta Marçal. Porto Alegre, Juízo Distrital da sede do município da
Capital, 1898, autos n° 3699, maço 115. Arquivo Público do Estado do RS, folha 34.
51
A Federação, Porto Alegre, 4 de janeiro de 1899, ano XVI, n° 4, p.2.
acusações tão graves quanto o ofício de prostituta e cafetina. Os autos do processo,
em tempos de apelação, chegaram a sugerir que os depoimentos foram coletados
sem maiores critérios, porque haveria uma pressa da promotoria em enquadrar
Fausta como criminosa, possivelmente pelas pressões exercidas pela sociedade e
mesmo pelos jornais da época, sendo Fausta uma figura de notório e público
conhecimento. Nos autos, constam que
os jornais tudo dizem, falam e comentam, tendo noticiado que
Fausta fora pronunciada, e, dizemos, tendo sido intimada da
pronúncia em 24 de maio, se fosse criminosa, se como tal sua
consciência lhe bradasse, não teria tido tempo de sobra para,
fugindo, zombar da justiça e de seus representantes!
52
Assim, a apelação iniciada argumentou a existência de irregularidades no
processo, buscando mostrar que Fausta fora injustiçada e perseguida
53
, por ser
negra, pobre, analfabeta e, especialmente, por representar o comportamento
tipicamente contrário ao desejado no momento. A argumentação, também
construída pelos jornais, contribuiu para o processo, a partir do momento em que,
pela hipótese de agendamento, colocou a temática na agenda diária do leitor. Tanto
a questão da prostituição como a espelunca de Fausta fariam parte desta agenda
diária. Por conseqüência, possivelmente, a pressa na conclusão do processo e, em
especial, em apresentar Fausta como criminosa, e não apenas baderneira, seria o
desfecho perfeito para a questão, trabalhada pela Gazetinha
desde 1895.
As irregularidades apresentadas iam desde a improcedência das
testemunhas, não ficando claro por que aquelas, e não outras, foram intimadas a
depor; a uma supostamente falsa afirmação de que Fausta teria sido procurada
pela Justiça a prestar depoimento e se negado a comparecer, pois não constava nos
autos do escrivão que ela fora oficialmente procurada de fato: certamente, ela não
compareceu, nem poderia ter comparecido: porque não tendo sido nem procurada
nem citada não poderia adivinhar
54
. A acusação de pressa no julgamento foi
52
Processo-crime. Ré: Fausta Marçal. Porto Alegre, Juízo Distrital da sede do município da
Capital, 1898, autos n° 3699, maço 115. Arquivo Público do Estado do RS, folha 85.
53
Nas palavras dos autos, e tudo isto há de ficar de pé, com um atestado de opróbio e miséria,
de vilipêndio e perseguição feita a uma mulher como Fausta, infeliz desgraçada desde o berço, pois
quando nasceu ainda não estava escrito no constelado firmamento de nossa cara Pátria a gloriosa
Lei de 28 de setembro de 1871!
54
Processo-crime. Ré: Fausta Marçal. Porto Alegre, Juízo Distrital da sede do município da
Capital, 1898, autos n° 3699, maço 115. Arquivo Público do Estado do RS
reforçada quando foi apresentado o documento de entrada de Fausta na Casa de
Correção, datado de seis dias antes da intimação da ré. Como Fausta era
analfabeta, o documento fora assinado por duas testemunhas e não por ela própria:
isso é o cúmulo do impossível, pois como pode se ter dado esta nota de culpa a
Fausta na Casa de Correção no dia 27 de maio, quando essa deu entrada no
dia 2 de junho!
55
A acusação contra Fausta, de alugar quartos para encontros amorosos e
aliciar moças e mulheres de família, foi considerada improcedente pela apelação. O
aluguel dos quartos não foi visto como criminoso, apenas como não recomendável
pela boa moral:
Sim, habitar com prostitutas (como diz a denúncia) ou alugar
quartos a essas (como diz a testemunha), quando muito pode ser e
deve ser, verberado, estigmatizado, castigado enfim pelas leis da
moral e nunca (positivamente e afirmamos) pelas leis penais. (...)
artigo do Código Penal: ‘ninguém poderá ser punido por fato que
não tenha sido anteriormente qualificado crime.’ Quanto a esta
alegação da denúncia, isto é, que Fausta recebia adiantadamente
dos freqüentadores de sua casa o preço correspondente ao aluguel
do quarto, ou (como diz a testemunha) que Fausta tirava proveito
disso, tanto assim que cobrava certa quantia pelo aluguel do quarto,
é a irrisório dizer-se que isto é crime, porque se o fosse, não
poderia preexistir, e inda continuar em Porto Alegre, e bem assim
em todas as capitais brasileiras (a exemplo de todas as capitais dos
povos cultos), as casas de cômodos, as pensões, as casas
denominadas repúblicas e os hotéis, que entretanto existem e
existiram, e com o direito incurso de seus donos ou proprietários
cobrarem os respectivos aluguéis. E se assim não é nem deve ser
(para Fausta) isto é, se ela como qualquer outro não tem direito de
alugar quartos em sua casa, e cobrar por eles o respectivo aluguel,
então segue-se (a vergonha) que a lei não é igual para todos, ou por
outra, que na República brasileira não medra [sic] com tanto
acentuado alevantamento a Liberdade e Igualdade, pois há uma
exceção única, e este é Fausta Marçal! [grifo meu]
56
Foi considerado na apelação que não havia provas consistentes contra
Fausta na acusação de levar moças de família e mulheres casadas para seu
estabelecimento, mesmo porque não foram apresentados nomes de quem tivesse
55
Processo-crime. Ré: Fausta Marçal. Porto Alegre, Juízo Distrital da sede do município da
Capital, 1898, autos n° 3699, maço 115. Arquivo Público do Estado do RS
56
Processo-crime. Ré: Fausta Marçal. Porto Alegre, Juízo Distrital da sede do município da
Capital, 1898, autos n° 3699, maço 115. Arquivo Público do Estado do RS, folha 91.
sofrido tal abordagem. A promotoria teria feito as acusações em homenagem à
moral e pela salvaguarda da sociedade
57
. Seriam apenas alegações, e não provas.
Cabe ressaltar, entretanto, que essa não fora a primeira vez que Fausta fora
indiciada. Em 1896, ela também fora presa e encaminhada à Casa de Correção
pelos mesmos motivos. Na época, o jornal O Mercantil
apoiou a sentença:
Também era preciso que ela marchasse e marchou. Por
desordens e ofensas à D. Moral. Desordeira a Fausta... Bem-feito
foi para purgar os muitos pecados que tem. Um pedido deixem
a Fausta na gaiola um mês e ela ficará tão direita, com as coisas
direitas
58
.
O caso alcançou grande repercussão nas ruas e nos jornais,
provavelmente, em função da vigência dos ideais positivistas, que propunham
modelos de retidão
59
e comportamento, especialmente para as mulheres. A
Proclamação da República contribuiu com a atribuição, à mulher, de um papel
considerado fundamental: o da formação do cidadão. Os modelos femininos ideais
foram reforçados, promovendo transformações na vida em sociedade. Ao mesmo
tempo, o crescimento urbano, já assinalado aqui, evidenciou a segregação das
camadas populares, com a tentativa de afastamento da pobreza dos centros
urbanos:
As imagens idealizadas de mulher, possíveis para as elites
urbanas, foram cobradas das mulheres das camadas populares;
tornaram-se referências para o julgamento de suas demandas e
para a aplicação de punições por parte do poder público
60
.
57
De acordo com as palavras do processo, não existem nestes autos prova alguma de tal
aviltamento da família porto-alegrense” As palavras da acusação e das testemunhas seriam apenas
palavras ocas (Processo-crime. Ré: Fausta Marçal. Porto Alegre, Juízo Distrital da sede do
município da Capital, 1898, autos n° 3699, maço 115. Arquivo Público do Estado do RS)
58
O Mercantil, 20 de julho de 1896.
59
De acordo com Clarisse Ismério, o caráter conservador é observado no discurso referente à
mulher. Considerando a mulher responsável pela manutenção da moral e pela realização do culto
privado, Comte impôs modelos de conduta feminina baseados na mentalidade patriarcal, formada ao
longo da História da Humanidade. A mulher deveria ser a rainha do lar e o anjo tutelar de sua família
e, para atingir esses modelos, seguiria normas pré-estabelecidas pelo Catecismo Positivista, no qual
Comte codificou todo o pensamento conservador em torno da mulher. ISMÉRIO, Clarisse. Mulher: A
moral e o imaginário (1889-1930). Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995, p.19.
60
PEDRO, Joana Maria. Mulheres do Sul. In: PRIORE, Mary Del. (org.) História das mulheres
no Brasil. São Paulo: Unesp / Contexto, 1997, p.292.
O que vimos acontecer no caso da cafetina Fausta foi o que se aplicou com
relação ao discurso formado pela imprensa de Porto Alegre sobre a prática da
prostituição.
Grande parte do discurso difundido no período, quanto ao
comportamento das mulheres casadas, dizia respeito ao temor do adultério
feminino, que ficou evidente com relação a muitas das que trabalhavam no
estabelecimento de Fausta. O perigo dos amores fora do casamento também era
motivo de alerta no período colonial, a ponto de se tornar pauta constante nos
manuais de casamento. Em fins doculo XVII, a obra intitulada Armas da
castidade, de autoria do padre Manuel Bernardes, dedicou um de seus capítulos às
formas de evitar o adultério. O autor elencou uma série de regras especialmente
direcionadas às mulheres casadas para que elas não caíssem na tentação do amor
ilícito:
1º) Ao contrair matrimônio escolha quanto for possível
parelha na idade, condição e saúde e qualidade: porque das
contrárias desigualdades se originam os desgostos, aborrecimentos
e ausências, que depois vêm a parar em adultérios(...)
2º) Seja muito amiga da honra e bom nome, pois este vale
mais que muitas riquezas.
3º) Leiam e meditem exemplos de matronas castas, que
antes escolheram perder a vida que violar a fé conjugal.
4º) (...) Não aceite em casa criada de quem possa haver
suspeita má, ou desconfiança. Se alguma das que a servem
começar a fazer ofício de terceira trazendo algum escrito, ou
recado, ou louvando as prendas de tal ou qual sujeito, ou metendo-
lhe tédios e desprezos do marido próprio: dissimule por então, e
busque ou arme alguma causa de a despedir de seu serviço;
quando não lhe esteja melhor revelar a verdadeira.
5º) Nas ausências do marido convém observar mais recato e
recolhimento.
6º) De nenhum homem aceite dádivas, sem título claramente
honesto; porque esta é uma das portas principais por onde os
solicitadores entram a entabular sua pretensão. E se for cobiçosa,
há de querer mostrar-se agradecida, e depois amorosa.
7º) Não se confie levianamente de parentes por
cosangüinidade ou afinidade, ainda que a idade, e gravidade, e a
ordem sacra os acredite. Poucas visitas, e essas diante de gente, e
recebidas sempre com atenção ao decoro, e sobre os estribos da
sisudez: melhor é a rusticidade com honra, que sem ela a
cortesania (...)
8º) Se algum ocioso ao passar lhe disser razões de
galanteio, nada responda, nem ainda para se mostrar irada (...)
9º) Não queira em sua casa mais alfaias, nem aparato do
que as posses da sua fazenda sofrem. ‘A mulher perdulária e
ostentatória que sempre precisa de dinheiro é aquela que mais
facilmente cometerá adultério:’ Sobre o penhor da sua honra não
faltará quem lho empreste
61
.
É interessante ressaltar, no documento, alguns dos componentes
importantes do discurso da época, onde se inserem a fala da Gazetinha
e da
literatura romântica, tais como a importância do recato e da reclusão para evitar a
corrupção dos comportamentos; a devida atenção ao marido e os cuidados
específicos na ausência deste, ao receber pessoas no ambiente doméstico. Desse
recato requisitado também faria parte o desprezo pela ostentação, pois se chega a
sugerir que a mulher rodeada pelo luxo e com apreço pelo dinheiro seria mais
propensa a cometer adultério. A chave do bom comportamento feminino parecia
estar na simplicidade das atitudes. A polêmica em torno de Fausta, que se instaura
em torno de uma série de fatores a serem discutidos neste estudo, também ocorreu
por ela representar o oposto dessa simplicidade e desse recato: favorecendo o
adultério na sociedade porto-alegrense, poderia estar, ao mesmo tempo,
ameaçando a estrutura familiar existente (ou desejada, de acordo com o discurso
vigente).
Receio semelhante também poderia ocorrer com relação às viúvas,
mulheres de imagem muito respeitada em função do ideal positivista de viuvez
eterna
62
, defendido, também, para que prevalecesse a monogamia nos
relacionamentos
63
. Assim como meninas menores de idade e mulheres casadas se
61
BERNARDES, Manuel. Armas da Castidade. Apud SILVA, Maria Beatris Nizza da. Op. Cit.,
p.192-193.
62
De acordo com o catecismo positivista de Augusto Comte, seriam condições indispensáveis
para o casamento: o princípio da viuvez eterna, a superintendência da educação, o sustento da
mulher pelo homem, a livre supressão de dotes e heranças femininas, as faculdades de testar e de
adotar (COMTE, Auguste. Catecismo positivista. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.166).
63
Segundo os preceitos do catecismo positivista, sabe-se que a religião da humanidade
considera o estabelecimento da monogamia como o principal resultado da transição ocidental entre a
teocracia e a sociocracia. Depois de ter-se aproximado gradualmente, durante estes trinta séculos, de
sua plenitude normal, esta instituição decisiva atinge-a na regeneração positivista que faz prevalecer
livremente a viuvez eterna, sem a qual a poligamia persiste subjetivamente (COMTE, Augusto. Op.
Cit., p.164). Ainda é estabelecido que a promessa da viuvez eterna será solenemente renovada seis
meses depois do ano de luto, sem que nunca mais possa comportar dispensa alguma. Mas o
tornavam alvo cil da prática da prostituição, a exemplo do visto no processo-crime
contra Fausta Marçal, as viúvas também acabavam se tornando suscetíveis a esse
ofício, o que dava ao problema proporções ainda maiores.
Em um momento onde ainda se acreditava em casamento indissolúvel e
onde o casamento civil era extremamente recente, a figura da viúva era uma
imagem de devoção. Uma documentação da segunda metade do culo XIX mostra
viúvas atuantes no mercado de trabalho, administrando negócios, ao contrário da
imagem construída da reclusão e do sofrimento reservados a estas mulheres. Ainda
que se revelassem pessoas de vida ativa, entretanto, recaía sobre elas uma aura de
grande respeito, pois cumpriam um papel na sociedade de culto à memória do
falecido e de manutenção espiritual da família. Assim, além de todas as acusações
que recaíram sobre Fausta, ainda restava a ameaça a esse estereótipo da viúva.
Além da documentação (inventários e testamentos), os relatos dos
viajantes que passaram pelo Brasil, durante o século XIX, reforçaram a idéia de que
muitas viúvas o dependiam de outros para assumir a frente de estabelecimentos,
fazendas ou chácaras. O viajante R. Walsh, em 1828, fez a seguinte observação:
Entre os que subiam a serra, havia uma senhora com um
criado. Vestia roupa de montar, colete de nanquim, e um grande
chapéu de palha amarrado, o debaixo, mas através do queixo.
Cavalgou por longas estiradas, montada como um homem e, na
cinta, levava um par de pistolas. Não era seguida, mas precedida
por um negro vestido de libré, em outro cavalo, que era seu
anunciador. Embora não se tratasse de pessoa musculosa, parecia
grande e descuidada -–apeava como homem, diante de nós, sem o
menor acanhamento bebeu um copo de cachaça na venda, para
se fortificar contra o ar da montanha tornou a montar, examinou
as pistolas para ver que estava tudo certo para qualquer
eventualidade e partiu de novo, protegendo a si mesma. As
mulheres dos fazendeiros, freqüentemente quando ficam viúvas,
administram sozinhas as fazendas e os escravos, assumindo
integralmente as responsabilidades dos maridos
64
.
compromisso deve, mesmo então, permanecer puramente religioso, a fim de que sua dignidade não
seja jamais alterada por prescrições legais, quaisquer que venham a ser as exigências da opinião
universal, ás quais o patriarcado saberá reistir sempre pelas instâncias do sacerdócio (p.164).
64
LEITE, Miriam Moreira. A condição feminina no Rio de Janeiro do século XIX. São Paulo:
Edusp / Hucitec, 1993, p.57.
Após a morte do cônjuge, a esposa tornava-se, com freqüência, a
chefe de família e a administradora dos negócios, em função de ser a maior
beneficiária no processo de partilha dos bens do falecido. Cabia ao viúvo ou viúva o
equivalente a 50% da soma total dos bens, devendo o juiz distinguir o que
compreendia a meação (parte da herança que cabe ao viúvo (a) e a legítima – o que
cabe aos herdeiros do falecido (a)). A respeito da partilha dos bens e a participação
da mulher nesse processo, Eni de Mesquita Samara salienta que
para efeitos de partilha, por morte de um dos cônjuges, o que
sobrevivesse estaria naturalmente encarregado da divisão do
patrimônio. A mulher, como meeira dos bens, era a herdeira natural
do marido, juntamente com os filhos, desde que o matrimônio
houvesse sido consumado e gozassem os cônjuges de vida em
comum. Morrendo o marido, a esposa assumia o papel de ‘cabeça
de casal’ e ocorrendo o inverso o marido continuava a ocupar a
mesma posição, adquirida a partir da celebração do casamento
65
.
O título de cabeça de casal já acompanhava o nome da viúva no
processo de inventário ou testamento do falecido, caso ela fosse a inventariante ou
testamenteira como na situação de D. Ana Joaquina Chaves. Denominada pela dita
alcunha, em 1868 mandou proceder à partilha dos bens do marido. D. Ana foi a
segunda esposa do Capitão Antônio Rodrigues Filho, e teve com ele três filhos
menores. Assumiu as responsabilidades da administração de uma pequena chácara
onde morava, juntamente com os filhos do primeiro casamento do falecido. O
processo abarcou, em um único documento, o inventário do Capitão e sua primeira
mulher, Elisa Marciana Chaves, com quem o falecido teve outros três filhos, todos já
maiores de idade. D. Ana requereu a partilha dos bens e pediu que fosse nomeado
um curador para os filhos menores:
Diz D. Ana Joaquina Chaves, viúva do cap. Antônio
Rodrigues Chaves que se casou com a suplicante em segundas
núpcias e faleceu em 10 de ... de 1859, que querendo, como
cabeça de casal, partilhar os bens que ficaram entre os herdeiros
do e casal, vem pedir a V.Sª se digne de nomear um curador
65
SAMARA, Eni de Mesquita. As mulheres, o poder e a família: São Paulo, século XIX. São
Paulo: Marco Zero / SEC, 1989, p.146 / 147.
dos órfãos Francisca [12 anos], Leopoldo [14] e Elisa [10] e mandar
que ele juntamente com a curada Francisca, maior de 12 anos, os
herdeiros constantes no verso desta petição e o Sr. Curador Geral
sejam citados para comparecer à primeira audiência deste juízo a
fim de ser louvado em peritos, que avaliem os bens da herança...
66
.
O testamento de Ana Maria da Conceição, lavrado em cartório, em
1850, demonstrou o exemplo de uma viúva que assumiu as responsabilidades e os
negócios de uma propriedade rural, o que foi feito, declaradamente, com a ajuda de
seus criados, embora o tivesse ficado claro se houve auxílio dos filhos nesse
processo. Em suas declarações de última vontade, D. Ana Maria disse estar sob
juízo perfeito e declarou que nascera na Freguesia de Viamão e que fora casada à
face da Igreja com Manoel da Villa de Lima, já falecido no ato do testamento. Com
ele, D. Ana Maria teve oito filhos, sendo duas filhas falecidas, que lhe deixaram
netos. Seus herdeiros eram os filhos e os netos. Quanto aos seus bens, que mais
tarde seriam postos em partilha, a testadora declarou que possuía um sítio com
casas cercadas, bens móveis e quatro escravos, e que mandara tocar os campos
ao receber da herança do falecido marido
67.
D. Maria Henriqueta de Brito igualmente é exemplo de viúva que se
mostrou capaz de administrar. Assim, D. Henriqueta era viúva de José de Brito,
cujos bens foram avaliados e partilhados por intermédio do inventário que datou de
1858. O inventariado falecera em 23 de dezembro de 1856 e desde então a viúva e
inventariante requereu, em juízo, que fosse nomeado um tutor para seus filhos
menores. O juiz nomeou tutor o Dr. Antônio Pereira Prestes. Mais tarde, D.
Henriqueta pediu que ela própria fosse a tutora dos filhos e, por conseguinte,
administradora dos bens dos órfãos, o que foi avaliado então pelo Curador Geral de
Órfãos:
66
Autos de inventário em que são partes Elisa Marciana Chaves e o marido Capitão Antônio
Rodrigues Chaves Fº, inventariados, e D. Ana Joaquina Chaves, viúva, cabeça de casal,
inventariante. Porto Alegre, Cartório de Órfãos, 1868, autos nº 1953, maço 91, f.2 (APRGS).
Deste modo, abrangendo dois falecidos em um processo, os herdeiros do casal têm direito a
uma quantia superior à meação de D. Ana, pois recebem o equivalente à legítima materna e paterna.
Ainda assim, a inventariante recebeu na partilha o equivalente a 30:338$820 réis, onde estavam
incluídos metade do valor da chácara (a outra metade ficou pertencendo à Adelaide, filha do primeiro
casamento de capitão Antônio), entre outros pertences, e três escravos.
67
Autos de testamento em que são partes Ana Maria da Conceição, testadora, e Ângelo
José Goulart, testamenteiro. Porto Alegre, Cartório da Provedoria, 1850, autos 1195, maço 61
(APERGS).
O Doutor José de Araújo B., Juiz Municipal e de Órfãos
nesta Leal e Valorosa Cidade de Porto Alegre, em termo faço saber
a todos que a presente provisão virem que atendendo ao que me
requeriu D. Maria Henriqueta de Sá Brito, viúva de José de Sá Brito,
a fim de habilitar-se para servir de tutora de seus filhos menores. E
tendo procedido a referida habilitação juntando para esse fim a
escritura de fiança, e mandando ouvir ao Dr. Curador Geral dos
Órfãos, este nenhuma dúvida apresentou; por conseguinte hei a
mesma viúva por habilitada para poder reger e administrar todos os
bens que tocaram em legítima aos ditos órfãos por falecimento de
seu dito pai, dando conta nos devidos tempos de todos os seus
rendimentos; prestando o juramento do estilo...
Porto Alegre, 11 de dezembro de 1858
68
.
O valor total dos bens somava 16:437$800 réis, compreendendo
quatro casas (dois sobrados no Alto da Bronze
69
e duas casas térreas na rua da
Ponte
70
), dois escravos e bens móveis que compunham as residências. O
comportamento mostrado na documentação é, ao mesmo tempo, revelador, ao
evidenciar o papel atuante das mulheres na sociedade e a relativa independência
conquistada por elas, portanto inadequado à conduta desejada para a época. A
mulher de família deveria apresentar sempre preocupações com relação aos seus
filhos e aos seus entes queridos, buscando promover o bem-estar da família,
justamente o que poderia ser ameaçado, mais uma vez, pela prática da prostituição,
por intermédio de ações como as da cafetina Fausta.
D. Bernardina Maria da Conceição recebeu como herança do falecido
esposo José Teixeira Nunes, por meio do inventário procedido em 1866, o sítio
onde morara com o marido. Passou a administrá-lo, tendo ainda direito a uma parte
em outro sítio e terras que compunham os bens do inventariado. Juntamente com
as propriedades que assumiu por conta própria, D. Bernardina recebeu, também,
68
Autos de inventário em que são partes José de Brito, inventariado, e Maria
Henriqueta de Brito, inventariante. Porto Alegre, Cartório de Órfãos, 1858, autos 1818,
maço 86, f.27 (APERGS).
69
O Alto da Bronze corresponde atualmente à Praça General Osório, em Porto Alegre,
localizada na zona central da cidade entre as ruas Duque de Caxias, Cel. Fernando Machado e
General Portinho. Segundo Sérgio da Costa Franco (Op. Cit, p.300), o espaço teria recebido ainda
outras denominações, antes da alcunha que hoje conhecemos; Alto do Manoel Caetano, Alto do
Senhor dos Passos e Alto da Conceição.
70
A chamada Rua da Ponte corresponde à atual Rua Riachuelo, também localizada na zona
central de Porto Alegre, iniciando na Rua Gen. Salustiano e terminando na Praça Conde de Porto
Alegre. Segundo Sérgio da Costa Franco (Op. Cit.
, p.352-353), encontra-se referências à Rua da
Ponte nas atas da Câmara Municipal desde 1806.
como pagamento de sua meação, certo número de animais, de que passou a cuidar
com o auxílio de seis escravos incluídos em sua herança: uma mula, 40 ovelhas, 10
éguas, 98 reses mansas e sete cavalos. A meação da viúva somou 18:193$790
réis. Além de D. Bernardina, eram também herdeiros de José Teixeira Nunes os
seis filhos do casal, quatro deles já casados, que receberam uma parte em um sítio
localizado em Santa cula (no qual a viúva também tinha direito a uma porção),
terrenos e alguns animais de criação
71
.
no inventário de Januário Antônio de Sousa, de 1869, a viúva,
inventariante e cabeça de casal, ndida Carolina de Sousa, embora não houvesse
evidências de que tenha tomado a frente dos negócios do falecido esposo, mandou
proceder à partilha, selecionando a forma como os bens seriam administrados, pois
Januário não deixara firmadas suas declarações em testamento. Assim, as atitudes
de D. Cândida em juízo revelaram uma mulher com iniciativa e habilidade para as
finanças, de acordo com indícios que sugerem que ela sempre acompanhava a
administração dos negócios. O inventariado contava entre suas posses uma casa
de negócio, 2 iates, 35 ações do Banco da Província e 71 da Companhia Hidráulica,
além de sete escravos, bens móveis e uma soma em dinheiro. O monte mor (soma
total dos bens) alcançou a quantia de 35:910$400 réis. D. Cândida requereu, em
juízo, uma forma de não obter prejuízos para garantir o futuro dos filhos ainda
menores de idade, propondo então a venda dos iates, a fim de aplicar seu produto
em ações, com o intuito de obter vantagens mais imediatas do que a manutenção
dos barcos. Além disso, fez pequenas sugestões com relação à casa de negócio do
marido:
Requer mais a V.Sª a suplicante que, tendo sido seu finado
marido negociante, como acima disse, e por conseqüência devendo
existir, como realmente existe, uma casa de negócio com ativo e
passivo que é preciso liquidar; mas não sem pequena demora,
porque a casa tinha transações nesta praça e fora dela; e
possuindo a herança, entre outros bens, dois iates de nomes Doca
e Espírito Santo, que navegam entre esta Capital e as cidades de
Pelotas e Rio Grande; os quais não convém à herança que
continuem a navegar por conta da mesma, não pelos riscos que
71
Autos de inventário em que são partes José Teixeira Nunes, inventariado, e D.
Bernardina Maria da Conceição, inventariante. Porto Alegre, Cartório de Órfãos, 1866, autos
1920, maço 89. (APERGS)
correm e avarias que sofrem, que importam em avultadas
despesas, mas ainda porque a suplicante não pode auferir com a
sua administração as vantagens que seu marido auferia, se bem
que os possuísse ambos de sociedade com os respectivos patrões;
à vista de tais razões manda V.Sª depois de ouvido o Dr. Curador
Geral e o Dr. Curador adhoc e avaliadas as partes que tem a
herança nos dois referidos iates, passar alvará de autorização para
a suplicante fazer venda dos mesmos e aplicar o seu produto em
apólices ou ações de Companhia, que por sua estabilidade e
segurança possam oferecer à herança segurança e vantagens
reais, até que se possa concluir o inventário e fazer partilha
72
.
A viúva Eufrásia Maria da Trindade, cujo processo de inventário data
de 1877, foi mais um exemplo de mulheres capazes de tocar negócios sem
depender de outros responsáveis. D. Eufrásia administrava uma pequena
propriedade, composta de uma casa de moradia com potreiro e arvoredo, uma casa
de atafona com pertences de fazer farinha, um telheiro, uma cozinha e pedaços de
campo onde criava animais com a ajuda de quatro escravos. O monte mor da
herança somava 7:348$000 réis. Ao falecer, o filho Jerônimo assumiu o inventário e
os bens foram divididos entre os filhos e netos de Eufrásia
73
.
Luciana Maria da Conceição passou a administrar um sítio após a
morte do marido Albino José de Mattos, em 1856, sendo o inventário do casal
procedido por um dos filhos, viúvo, em 1880. Quatro anos antes de falecer, D.
Luciana fez suas declarações de última vontade em seu testamento, e repartiu o
sítio que lhe coube por herança, de acordo com sua espontânea vontade. A
pequena propriedade, avaliada em 2:340$000 réis, foi partilhada entre 22 herdeiros
– filhos e netos
74
.
O inventário de Israel Francisco Nunes, que data de 1881, demonstra
que a esposa do falecido, D. Gertrudes Maria Ignácia, também passou a administrar
a propriedade do casal. Dos bens da herança, avaliados em 4:114$500 réis, a viúva
72
Autos de inventário em que o partes Januário Antônio de Sousa, inventariado, e
Cândida Carolina de Sousa, inventariante. Porto Alegre, Cartório de Órfãos, 1869, autos
1975, maço 92, f.2. (APERGS)
73
Autos de inventário em que são partes Eufrásia Maria da Trindade, inventariada, e
Jerônimo de Sousa Rocha, inventariante. Porto Alegre, 1º Cartório de Órfãos, 1877, autos nº 2136,
maço 103 (APERGS).
74
Autos de inventário em que são partes Albino Jode Mattos e sua mulher Luciana
Maria da Conceição, inventariados, e Antônio José de Mattos, inventariante. Porto Alegre,
Cartório de Órfãos, 1880, autos nº 2203, maço 108 (APERGS).
recebeu como sua meação o equivalente a 1:936$150 réis, onde constavam a casa
de moradia, a casa de atafona, o engenho de moer cana, o cercado e o arvoredo, o
escravo Domingos, um pedaço de campo, todos os animais da propriedade e
pertences domésticos. Os únicos herdeiros do falecido, além da esposa, eram os
dois filhos, um de maior e outro de menor idade, cada um recebendo a soma de
968$075, inclusos uma parte no pedaço de campo da família, o terreno e a casa na
Capela dos Navegantes
75
.
Entretanto, conforme salienta Maria Celia Paoli, mesmo as viúvas,
para tomar posse do pátrio poder e da gerência dos bens, têm que comprovar
honradez à memória do marido – seu fantasma ainda media, juridicamente, a
manutenção dos privilégios masculinos
76
.
Também é possível encontrar, na documentação, casos em que filhas
do casal inventariado assumiam as propriedades ou os negócios dos pais falecidos.
D. Idalina Pacheco de Vargas, em 1897, foi inventariante dos bens de seus pais,
Antônio José de Vargas, falecido 23 anos, e D. Iria Ignácia de Sousa, falecida há
nove anos até então. A filha do casal era quem se achava na administração dos
bens no momento de inventariá-los, que somavam a pequena quantia de 1:700$000
réis e seriam partilhados entre nove herdeiros. As poucas posses do casal, em
poder da filha, eram um pedaço de campo e matos no distrito de Belém, uma casa
de atafona no Passo do Lamim e montes de fazer farinha, em mau estado
77
Constata-se que houve vários casos em que mulheres tomaram a
frente da administração de propriedades e posses de seus falecidos maridos ou
mesmo pais, demonstrando que houve, no período, uma iniciativa feminina no
sentido de aprender com o trabalho, entrar no mundo das finanças, ainda que não
fosse esse o papel desejado para a mulher da época.
Caberia a essas mulheres, que exerciam o ofício herdado da família,
praticá-lo com o devido recato, como era o esperado para as viúvas e mulheres de
75
Autos de inventário em que são partes Israel Francisco Nunes, inventariado, e
Gertrudes Maria Ignacia, Inventariante. Porto Alegre, Cartório de Órfãos, 1881, autos nº 2221,
maço 110 (APERGS).
76
PAOLI, Maria Celia. Mulheres: Lugar, imagem, movimento. Perspectivas antropológicas da
mulher, Rio de Janeiro, nº 4, Zahar editores, 1985, p.78.
77
Autos de inventário em que são partes Antônio José de Vargas e sua mulher D. Iria
Ignácia de Sousa, inventariados, e D. Idalina Pacheco de Vargas, inventariante. Porto Alegre, 1º
Cartório de Órfãos, 1897, autos nº 2425, maço 121. (APERGS)
família. Entretanto, era muito tênue o limite que separava o recato do desvio, de
acordo com as concepções de comportamento na virada do século XIX para o XX.
O recato desejado tinha o significado de reclusão. O espaço da rua representava o
espaço do desvio. Talvez por isso, ainda que as mulheres evidenciadas nesta
documentação mostrassem uma opção por levar adiante os negócios da família,
sem a necessidade da intervenção direta de parentes homens, ou para evitar a
venda de casa de negócios, essa situação não fosse bem vista pelo restante da
sociedade.
Uma visão construída por uma elite dominante, que privilegiava o bom
casamento e o recato feminino, provavelmente também encontrasse nestes
exemplos uma possibilidade de desvio do modelo desejado. Ao lidar com negócios
e entrar em contato com uma diversidade de pessoas no cotidiano do trabalho, a
mulher estaria convivendo com o universo da rua e com tudo o que a cercava: os
vícios, as más influências tão temidas pelo discurso masculino oficial vigente
encontrado na imprensa e na literatura da época. Em prol dessas preocupações
oficiais, a mulher que, porventura, freqüentasse a rua, deveria fazê-lo sempre
acompanhada, para evitar situações e conseqüências desagradáveis. Isso
ocorreria tanto com as mulheres que trabalhassem aos moldes da documentação
evidenciada, na gerência de bens deixados por maridos falecidos, quanto no
cotidiano da própria elite porto-alegrense, no convívio de cafés e teatros. Segundo
Rachel Soihet,
a rua simbolizava o espaço do desvio, das tentações, devendo as
mães pobres, segundo os médicos e juristas, exercer vigilância
constante sobre suas filhas, nesses novos tempos de preocupação
com a moralidade como indicação de progresso e civilização. Essa
exigência afigurava-se impossível de ser cumprida pelas mulheres
pobres que precisavam trabalhar e que para isso deviam sair às
ruas à procura de possibilidades de sobrevivência. (...) Nesse
contexto, acentuou-se a repressão contra as mulheres...
78
Em tendo se tornado a rua um espaço de ameaças, a saída seria
abrandá-lo e inseri-lo nos moldes desejados. Como se comentou anteriormente, o
século XIX, em especial a partir de sua segunda metade, havia sido um momento de
78
SOIHET, Rachel. Op. Cit, p.365.
significativo crescimento urbano, observado em várias cidades brasileiras. A virada
para o culo XX, também conhecida como Belle Epoque, foi o momento de
tentativa de elevação deste nível da vida nas ruas, conferindo-lhes ares de
civilização: houve uma tentativa de embelezamento das cidades, passando pelos
requintes dos cafés, pela elaboração do vestuário (vindo, em grande parte, da
Inglaterra e vendido em elegantes boutiques) mas, especialmente, pelo refinamento
dos comportamentos. Mulheres como Fausta e sua casa de prostituição acabavam
por representar ameaças visíveis a esse processo de requintamento da paisagem
urbana, de acordo com o que Soihet sugere:
O que fica claro é o empenho das autoridades em impedir a
presença dos populares em certos locais, no esforço de afrancesar
a cidade para o desfrute das camadas mais elevadas da população
e para dar mostras de civilização aos capitais e homens
estrangeiros que pretendiam atrair. No caso das mulheres,
acrescentavam-se os preconceitos relativos ao seu comportamento;
sua condição de classe e de gênero acentuava a incidência da
violência. O desrespeito às suas condições existenciais traduzia-se
em agressões físicas e morais
79
.
Se, para as mulheres da elite e para o discurso masculino vigente, a
rua assumia este perigoso significado, é preciso sempre lembrar que a rua constituía
o espaço de sobrevivência de muitas outras: as mulheres populares, dentre as quais
a cafetina Fausta é um exemplo. Os ideais de casamento, a conduta impecável, o
recato estavam distantes daquelas que conviviam diariamente com serviços árduos
encontrados nas ruas. Eram realidades diversas em tempos de busca pela
uniformização de comportamentos: a procura pela retidão e pelo mundo civilizado:
Como era grande sua participação no mundo do trabalho, embora
mantidas numa posição subalterna, as mulheres populares, em
grande parte, não se adaptavam às características dadas como
universais ao sexo feminino: submissão, recato, delicadeza,
fragilidade. Eram mulheres que trabalhavam e muito, em sua
79
SOIHET, Rachel. Op. Cit., p.366.
maioria não eram formalmente casadas, brigavam na rua,
pronunciavam palavrões, fugindo, em grande escala, aos
estereótipos atribuídos ao sexo frágil
80
.
Por essa razão, mulheres como Fausta chocaram tanto a opinião
pública, tantas vezes representadas nas páginas dos jornais. As prostitutas
tornaram-se o ícone dessas posturas que incluíam o uso de termos chulos, do sexo
fora do casamento (bem como da liberdade sexual), da insubmissão, da falta de
delicadeza e da fragilidade. Constituíam, portanto, imagens demonizadas na
sociedade, por se contraporem a todo um projeto esperado não apenas para o
estado, como para o país naquele momento.
A rua foi representada, nas páginas da Gazetinha
, enquanto espaço
decadente, não apenas pela circulação de indivíduos de atitudes indesejáveis, mas
pela precária estrutura urbana de Porto Alegre, ainda que o momento histórico fosse
o de crescimento da cidade e de incremento dos equipamentos urbanos. Uma série
de melhorias ainda se faziam necessárias.
Embora este estudo esteja focado na estratégia midiática de
agendamento, por intermédio do jornal A Gazetinha
, para atração do público leitor e
construção da imagem formada sobre a prostituição e a (i)moralidade em Porto
Alegre, cabe ressaltar, aqui, a fala construída sobre esta precariedade urbana, que
contribuiu com a construção da imagem de decadência provocada pela prática da
prostituição. Em charge publicada em novembro de 1895, por exemplo, a Gazetinha
criticou a falta de zelo por parte da fiscalização pública quanto à limpeza e à ordem
das ruas:
80
SOIHET, Rachel. Op. Cit, p. 367. A autora ainda considera que deve-se ter em mente que
para muitos a rua assumia ares de lar onde comiam, dormiam e extraíam o seu sustento. Também
era nos largos e praças que as mulheres costumavam reunir-se para conversar, discutir ou se divertir,
da mesma forma que se aglomeravam nas bicas e chafarizes, não raro, brigando pela sua vez. Em
grande proporção responsáveis pela manutenção da família, a liberdade de locomoção e de
permanência nas ruas e praças era vital para as mulheres pobres, que cotidianamente improvisavam
papéis informais e forjavam laços de solidariedade (p.366).
Figura 3: O zelo dos senhores fiscais – parte I
Um cidadão pode, corretamente vestido, sair a passear confiante no asseio
da cidade, porque a intendência municipal cuida muito bem da conservação
das calçadas. / Pode confiar no zelo dos srs fiscais, pois assim como
provas da limpeza das ruas e bom calçamento nas mesmas, verá que não
existem cães vagando pela cidade / e nem transitam carregadores pelos
passeios. Disto terá a prova em qualquer esquina, se for distraído,
principalmente.
Fonte: Gazetinha, Porto Alegre, 10 de novembro de 1895, ano V, n.24, contracapa.
Figura 4: O zelo dos senhores fiscais – parte II
Vê-se, portanto, que após uma excursão pela cidade, fica-se convenientemente preparado
para fazer uma visita de cerimônias.
Fonte: Gazetinha, Porto Alegre, 10 de novembro de 1895, ano V, n.24, contracapa.
Em fevereiro de 1896, o jornal continuava trabalhando com o mesmo
teor de crítica quanto ao saneamento urbano, do qual faria parte um projeto de
limpeza moral das ruas, fechando-se as espeluncas. Em charge sobre a higiene, o
jornal deixou claro seu posicionamento quanto ao desleixo e ao caos urbano
instalado em Porto Alegre:
Figura 5: D. Higiene
Oh! Sra. Dona Higiene, por quem é, diga-nos por amor de Deus, qual é a causa de nossa
morte! Isto é um flagelo, pelo outro mundo, a gente ignorar a causa do nosso
desaparecimento dentre os vivos!
Fonte: Gazetinha, Porto Alegre, 9 de fevereiro de 1896, contracapa.
Trabalha-se, neste estudo, também, com a hipótese de, por as notícias
correrem rapidamente, o discurso se tornaria homogêneo, ainda que nem todos
soubessem ler: Conforme Coruja, na vila de Porto Alegre, então como uma terra
pequena, e não se tratando de política como hoje, havia muito quem se ocupasse da
vida alheia
81
. aos poucos Porto Alegre foi tomando ares de cidade
82
, esboçando
seu desenvolvimento. Essa possível disseminação das informações permitiria a
instalação da polêmica criada em torno dos temas que envolviam a moralidade, o
que torna provável a aplicação da hipótese de agendamento: os assuntos direta ou
indiretamente relacionados podem pautar a agenda diária do leitor bem como
81
CORUJA, Antônio Álvares Pereira. Op. Cit,p.57.
82
Francisco Riopardense de Macedo apresenta uma definição de cidade: como espaço ela é
um corpo constituído por órgãos diversos, adequados (mais ou menos) para realizarem determinadas
funções. Como realidade no tempo ela é um organismo onde as funções se exercem relacionando o
homem com a terra, promovendo o desenvolvimento. Desenvolvimento é um crescimento de duplo
sentido, é aumento em quantidade e qualidade. Cresce a população, cresce o espaço, multiplicam-se
as necessidades e os equipamentos. Neste sentido, podemos afirmar que a cidade é um organismo
que se realizou no tempo pela somatória de experiências (necessidades), determinantes do
crescimento em quantidade e qualidade dos equipamentos e espaços necessários à vitalidade de sua
população (MACEDO, Francisco Riopardense de. História de Porto Alegre. Porto Alegre: Ed. da
Universidade / UFRGS, 1993, p. 9 / 10).
daqueles que o rodeiam, uma vez que se tornaram temas de conversações diárias,
diante da insistência da Gazetinha
em publicar as ocorrências.
O processo de desenvolvimento urbano, observado em Porto Alegre,
na tentativa de ordenamento e de modernização, entretanto, não ocorreu ao acaso.
Em fins do século XIX, o Rio Grande do Sul sentiria os efeitos políticos, econômicos
e sociais decorrentes da Revolução Federalista, com reflexos também em Porto
Alegre, que passava por uma sucessão de transformações. Em um momento em
que parte do mundo ocidental vivia uma fase de crescimento urbano pós-revolução
industrial, a até então pacata capital do Estado do Rio Grande do Sul revelava
movimentos, ao se aproximar do século XX.
Em termos políticos, o Brasil ingressara, há pouco, na República Velha
(também chamada de Primeira República) que se estenderia de 1889, marco da
Proclamação da República, a 1930, ano que assinalou a subida de Getúlio Vargas
ao poder, por intermédio da Revolução de 30. Os primeiros anos da República, no
Brasil, foram marcados por desavenças políticas, fraudes eleitorais e disputas de
poder. O Rio Grande do Sul, dono de uma imagem, hoje construída, de território
politizado, não ficaria fora deste processo. Assim, ao mesmo tempo em que a capital
do estado viveu um movimento de modernização, com os problemas sociais dela
decorrentes, também vivenciou episódios de violência, a partir do momento em que
Porto Alegre fora palco da Revolução Federalista, entre os anos de 1893 e 1895,
quando tem início este período de análise.
A revolta, instaurada em 1893 pela desavença entre os chamados
castilhistas (ou pica-paus) e os federalistas (ou maragatos), teve seus princípios por
volta de 1891, quando da elaboração da nova Constituição. Naquele mesmo ano, o
Rio Grande do Sul passava a ser comandado por Júlio de Castilhos, sob forte
influência dos ideais positivistas, a partir da doutrina de Augusto Comte. No entanto,
com a queda de Deodoro da Fonseca 83, que havia fechado o Congresso Nacional
83
Segundo Sérgio da Costa Franco, algumas medidas tomadas por Deodoro da Fonseca
comprometeram o governo de Júlio de Castilhos no Rio Grande do Sul, uma vez que este o vinha
apoiando: quando a 3 de novembro o Mal. Deodoro dissolveu o Congresso Nacional, a ebulição que
se seguiu à dissolução criou o clima desejado pelos adversários de Castilhos, para a desforra que
ambicionavam. Castilhos tivera responsabilidade na escolha de Deodoro. Por ele, se batera no
Congresso, e, em razão disso, cavara inimizades dentro do próprio partido. (...) Enquanto no Rio, ao
na promessa de revisão da Constituição e de fortalecimento do Poder executivo e da
União, Castilhos foi deposto em 3 de novembro de 1891. Instalou-se um governo
provisório, que ficou conhecido como governicho, formado por republicanos
dissidentes
84
, organizados no Partido Republicano Federal
85
. O frágil governicho
viria a cair pouco tempo depois, por meio de uma reação castilhista, e em 1893 Júlio
de Castilhos retomou o poder:
À medida em que se revelava a decomposição do
governicho e sua incapacidade em assegurar a ordem legal no
Estado, o Marechal Floriano, com a reserva que lhe era
característica, adotava uma atitude de cautelosa expectativa, que
inevitavelmente favoreceria a oposicão castilhista. O presidente da
Republica não admitia que Silveira Martins restabelecesse sua
hegemonia política no Estado, seja porque o suspeitasse do
partidário da restauração monárquica, seja porque repelisse a
bandeira parlamentarista do tribuno liberal, seja porque temesse sua
tremenda forca carismática.
Quando Floriano se apercebe de que a dissidência é incapaz
de comandar o barco, envia um emissário ao Rio Grande, para, entre
outros objetivos, entender-se pessoalmente com Julio de Castilhos.
Foi, então, concertado o plano que levaria novamente o Partido
Republicano histórico ao poder
86
.
A Constituição de 1891 previa, entre outros aspectos, maior autonomia
para os estados, para que pudessem elaborar a sua própria Constituição, eleger
seus respectivos governadores, realizar empréstimos no exterior, decretar impostos
tempo da Constituinte, por mais de uma vez ele instara com Deodoro por uma recomposição do
gabinete, de forma a assegurar ao Governo da União o concurso de republicanos autênticos,
afastados os adesistas da undécima hora que predominavam no Ministério de Lucena, a começar por
este mesmo. Note-se que os republicanos rio-grandenses não constavam com uma única Pasta no
gabinete. (...) No correr do ano de 91, ante o aguçamento da crise cambial e financeira, e da oposição
no Parlamento, Castilhos previra a possibilidade de um desfecho funesto para a administração de
Deodoro. Cuidara, então, de estruturar o Estado e de garantir-lhe a segurança interna, visando torná-
lo imune aos terremotos que afetassem o Governo do centro. ( FRANCO, Sérgio da Costa. Júlio de
Castilhos e sua época. Porto Alegre: ed. Da Universidade / UFRGS, 1998, p.107-108) Boris Fausto
salienta que o êxito dos planos de Deodoro dependia da unidade das Forças Armadas. Isso, como
sabemos, não ocorria. Ante a reação dos florianistas, da oposição civil e de setores da Marinha,
Deodoro acabou renunciando, a 23 de novembro de 1891. Subiu ao poder o vice-presidente Floriano
Peixoto (FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1997, p.254).
84
Formou-se uma espécie de triunvirato, formado pelo General Manoel Luís Rocha Osório,
João de Barros Cassal e Joaquim Francisco de Assis Brasil, depois substituídos pelo General Barreto
Leite, que revogou a constituição e convocou novas eleições.
85
FRANCO, Sérgio da Costa. Júlio de Castilhos e sua época. Op. Cit., p.114.
86
RANCO, Sérgio da Costa. Júlio de Castilhos e sua época. Op. Cit, p.129. Júlio de Castilhos
deu início a uma campanha para retornar ao poder, encontrando, para isso, grande espaço no jornal
A Federação, órgão do Partido Republicano Rio-Grandense. Segundo Moacyr Flores, Floriano
resolveu apoiar Castilhos porque o Partido Republicano era monolítico e disciplinado, o que não
acontecia com os liberais, que se dividiram na luta pelo poder e não tinham a orientação segura
(FLORES, Moacyr. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Nova Dimensão, 1996, p.154) .
e possuir suas próprias forças militares
87
. Dentre o grupo de políticos que assinaram
o documento, estavam Júlio de Castilhos, Antonio Augusto Borges de Medeiros,
José Gomes Pinheiro Machado e Ramiro Fortes de Barcellos.
Em 1892, foi fundado, por Gaspar Silveira Martins, um antigo
monarquista, o Partido Federalista do Rio Grande do Sul, que acabaria por incitar o
movimento. O grupo defendia a revisão da Constituição de 1891, buscando um
fortalecimento do Brasil como União Federativa e a instauração de um governo
parlamentar.
88
A constituição previa a concentração de poderes no Executivo,
ficando o Legislativo encarregado apenas de aprovar a legislação financeira. Não
existiam limites à reeleição do presidente do estado, como eram chamados os atuais
governadores, o que conferia ao governo castilhista ares de autoritarismo. Formava-
se, assim, o forte antagonismo entre lio de Castilhos e Gaspar Silveira Martins: de
um lado, os castilhistas e, de outro, os federalistas. Segundo Sérgio da Costa
Franco,
nem ele [Martins], nem Castilhos, eram homens de transigências e
de acomodações. Representavam facções que se haviam extremado
numa posição irreversível, eram o velho e o novo na política rio-
grandense, na iminência de um conflito final e decisivo. Donos de
personalidades dominadoras, ambos profundamente convencidos de
estarem com a razão e a verdade, ambos convictos de liderarem
maior parcela da opinião pública, Castilhos e Gaspar eram
inconciliáveis. Os dois se admiravam e até certo ponto se
respeitavam. Mas Júlio de Castilhos, ao menos, estava deliberado a
liquidar, de uma vez por todas, a liderança política de Gaspar suas
tradições e seus métodos
89
.
Para o autor, essa oposição não se formou apenas no momento de
implantação da nova Constituição. Afinal, como foi observado anteriormente, a
época era não apenas de movimentação urbana e cultural, mas especialmente de
87
Constituição de 1891. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%E7ao91.htm> Acesso em
12/05/2007.Exemplo da desejada autonomia dos estados era o artigo de n° 5, que incumbe a cada
Estado prover, a expensas próprias, as necessidades de seu Governo e administração; a União,
porém, prestará socorros ao Estado que, em caso de calamidade pública, os solicitar.
88
FAUSTO, Boris. Op. Cit, p.255.
89
FRANCO, Sérgio da Costa. Júlio de Castilhos e sua época. Op. Cit, p.127.
disputas no campo político. O momento de transição dos tempos de Império para a
nova República mostrou-se, portanto, tenso:
A rebelião nasceu do ressentimento do grupo gasparista
apeado ao poder em 1889, a quem Castilhos negou qualquer
possibilidade de composição ou transação política, assim como de
outras facções, lideradas por Silva Tavares, Barros Cassal e
Demétrio Ribeiro, as quais, pelo envolver dos acontecimentos , se
foram incompatibilizando com os republicanos ortodoxos. A
ascensão dos castilhistas correspondera a modificações na
hierarquia social. Boa parte do eleitorado republicano provinha de
setores da classe média, que o regime eleitoral do Império privara do
exercício do voto, por não alcançar os mínimos de renda previstos
em lei. Sendo numericamente débeis em alguns municípios, os
castilhistas tinham apelado, ao preenchimento de funções públicas,
para indivíduos de baixa classificação social, o que afrontava as
elites dirigentes locais. Outrossim, a manipulação do voto através
de um regime eleitoral que em tudo favorecia ao situacionismo,
cortara cerce as possibilidades de vitória dos antigos e prestigiosos
caciques municipais do partido gasparista
90
.
O conflito armado, deflagrado em 1893, estendeu-se pelos estados de
Santa Catarina e Paraná e sofreu interferências da presidência da República, na
figura de Floriano Peixoto, que enviou tropas ao Rio Grande do Sul. Devido à
gravidade do movimento, a rebelião adquiriu âmbito nacional rapidamente,
ameaçando a estabilidade do governo rio-grandense e mesmo do regime
republicano em todo o país. Segundo Boris Fausto, desde o início da luta, Floriano
colocou-se ao lado do PRR, embora Júlio de Castilhos tivesse sido partidário de
Deodoro. As tropas do governo federal tiveram o apoio financeiro de São Paulo e de
sua bem organizada Força Pública
91
.
90
FRANCO, Sérgio da Costa. Júlio de Castilhos e sua época.Op. Cit, p.141.O autor ainda
salienta que de outro lado, não é exato que a rebelião visasse à restauração da Monarquia, como
acreditavam e sustentavam os castilhistas. Segundo escreveu Ruy Barbosa na época, a restauração
era um cadáver, para o qual estava morta a glória e estava morto o poder. O ideal monarquista,
salvo para saudosistas empedemidos, não podia encontrar formulação prática e fundamentação
racional (p.141).
91
FAUSTO, Boris. Op. Cit., p. 256. O autor ainda salienta que Marechal Floriano encarnava
uma visão da República o identificada com as forças econômicas dominantes. Pensava construir
um governo estável, centralizado, vagamente nacionalista, baseado sobretudo no exército e na
mocidade das escolas civis e militares. Essa visão chocava-se com a da chamada 'República dos
Fazendeiros', liberal e descentralizada, que via com suspeitas o reforço do Exército e as
manifestações da população urbana do Rio de Janeiro. Mas, ao contrário do que se poderia prever,
houve na presidência de Floriano um acordo tático ente o presidente e o PRP. As razões básicas
Uma das práticas mais violentas da Revolução Federalista foi a da
Degola, já ao final do conflito. Houve pelo menos 10.000 mortos e incontáveis
feridos. A prática da degola dos prisioneiros não foi rara por ambos os opositores,
adquirindo o caráter revanchista e tornando a revolução um dos episódios mais
sangrentos da trajetória histórica do Rio Grande do Sul, que entrou para o
imaginário coletivo dos rio-grandenses.
O ano de término do conflito, 1895, coincidiu com o marco cronológico
inicial deste estudo. A Gazetinha
, naquela ocasião, se mostrava favorável aos
republicanos, embora, anos/momentos depois, em 1897, teceria críticas à forma
como a República fora estruturada no Brasil – e, em especial, no Rio Grande do Sul.
Em 1895, foram publicadas edições ilustradas da Gazetinha
, em homenagem a
mortos em episódios do conflito, tais como o Coronel Manoel Pedroso de Oliveira e
Utalis Luppi, mortos em combate no Rio Negro. Em texto que exaltava mártires da
Revolução, o jornal assinalou:
Não melhor argamassa que o sangue dos heróis! O
edifício da República a contém e por isso está seguro, fazendo
triunfante face a todas as oposições que contra ela possam
aparecer, certos de que não terão tão longo domínio como o dessa
campanha, travada nos campos rio-grandenses, desolados com seus
habitantes em fuga e seus lares incendiados pela mão criminosa dos
bandidos impunes
92
No mês de janeiro de 1896, construiu-se uma imagem bastante positiva
da república castilhista nas páginas da Gazetinha
. Ao longo do texto, que não foi
assinado, pressupõe-se que, naquele momento, o jornal estivesse ao lado do poder
público, ao dizer que a República seria nosso santo ideal, mostrando-se
esperançoso quanto ao panorama que vinha se formando no estado e no país:
O governo que temos, felicitando o país inteiro, concedendo
ao povo as mais amplas garantias na larga esfera de seus direitos
que têm vida livre de toda e qualquer peia prisioneira, levantando o
nosso crédito no exterior, frutificando em resultados de alta
relevância, pode contar, sendo defensor extremado da República
nosso santo ideal – com a nossa dedicação e vida se esta for
para isso foram os riscos, alguns reais, outros imaginários, que corria o regime republicano. A elite
política de São Paulo via na figura e Floriano a possibilidade mais segura de garantir a sobrevivência
da República, a partir do poder central. Floriano, por sua vez, percebia que sem o PRP não teria base
política para governar (p.254).
92
Gazetinha, Porto Alegre, 8 de dezembro de 1895, ano V, n° 28, pág. 2.
também exigida e precisa no momento da reação á cacete á malta
hidrófoba, de cães que latem desesperados, roídos pelo abandono
em que ficaram desprezados, sem a migalha magra atirada ao chão,
da mesa imperial onde sentavam-se aqueles que tripudiavam sobre
a dignidade e honra nacionais.
É preciso confiar muito na República, ela tem em cada
coração de brasileiro amigo da Pátria um baluarte resistente a todas
as investidas da cadela corrida, da restauração de uma monarquia
podre de vícios
93
.
em 1897, apesar de continuar ao lado da República, a Gazetinha
se
mostrava decepcionada com os rumos que foram tomados em tempos pós-
revolução. O jornal, que sempre se colocara ao lado do povo (fazendo questão de
reafirmar este posicionamento em vários espaços das edições, durante o período de
análise deste estudo), argumentou que as esperanças populares estavam sendo
perdidas. Por esse motivo, publicou-se um Manifesto do Partido Socialista Ao
Povo!, comentado em outro momento deste estudo. No texto, fica clara a frustração
das expectativas criadas momentos antes, na euforia dos tempos de revolução.
Assim, a Gazetinha
, em texto assinado por um grupo de intelectuais dentre os
quais se encontrava o diretor do jornal, Otaviano de Oliveira –, salientava que uma
minoria da população vinha sendo privilegiada pelos governantes, enquanto que os
setores populares continuavam explorados, razão pela qual seria necessária uma
profunda mudança na estrutura política do Brasil e do Rio Grande do Sul:
Quando um povo sente a derrocada terrível de suas
esperanças mais nobres, quando ele vê que o seu bem-estar é
desprezado ou combatido mesmo, quando ele encontra em cada
governante, em vez de um servidor dedicado e fiel, um senhor que
se coloca muito alto demais para que se possa ouvir suas
reclamações pacíficas, este Povo ou atira-se à rebeldia em que se
destrói inconscientemente ou vai se deixando apossar pouco a pouco
pelo desânimo, tornando-se afinal inútil a si mesmo e à humanidade.
Desgraçadamente, em circunstâncias algo semelhantes,
encontra-se o Brasil e especialmente o Rio Grande do Sul.
Povo tradicionalmente entusiasta pela Liberdade e pelo
progresso, o rio-grandense foi um dos que, sob o regime da
monarquia, bem poucas simpatias demonstraram por essa forma de
93
Gazetinha, Porto Alegre, 26 de janeiro de 1896, ano V, n° 38, capa.
governo impossível se ser tolerada com agrado pelas nações
amantes da civilização moderna porque é a anulação da soberania
popular
94
.
No mesmo texto, a Gazetinha
se posicionou sobre a situação política
nacional, clamando por mudanças. O jornal considerava que se formara, no país,
uma forma autoritária de governo, logo após a proclamação da República, em 1889,
frustrando as expectativas na medida em que as diferenças entre os tempos de
monarquia e a nova República não se mostravam tão grandes:
Crente de que somente a forma republicana poderia dar-lhe
a felicidade almejada, quando as classes armadas proclamaram-na
inesperadamente, ele, conquanto se mostrasse estupefato, não teve
um protesto, um leve movimento de desgosto sequer, ao recebe-la
como uma dádiva.
No entanto, mau grado seu, com o regime sucessor da
soberania de um homem inviolável e sagrado não lhe veio a
felicidade ansiosamente desejada, porque à esta soberania
substituiu uma outra que não é sua. (...)
A forma de governo vigente herdou muita cousa prejudicial
de sua antecessora; urge que, em vez de deixá-la a ir-se
assemelhando a esta, tratemos de influenciar para que se torne
progressista sempre, aperfeiçoando-se consecutivamente, livrando-
se da tutela das classes privilegiadas, extinguindo privilégios,
estabelecendo a igualdade, para que o mais breve possível chegue,
como convém, a ser o verdadeiro regime do Povo pelo Povo, a
República Democrática Social.
Não há outro caminho a trilhar
95
.
O período que se seguiu durante e após a Revolução federalista foi
marcado por tentativas de reestruturação e de investimento. Percebe-se, a partir de
então, um planejamento no sentido de tornar o estado do Rio Grande do Sul, como
94
Gazetinha, Porto Alegre, 1° de maio de 1897, capa.
95
Gazetinha, Porto Alegre, de maio de 1897, capa. O texto finaliza dizendo que o sistema
republicano adotado no Brasil pouco dista dos monárquicos envernizados com uma leve camada de
democracia: o presidente da República é um imperador temporário, os presidentes de Estado são uns
suseranos e o Povo é o vassalo de todos; assim como outrora nos antigos regimes influíam sobre os
governantes a nobreza e o clero também influem hoje, aqui, a espada e o capital. O vassalo afinal é
sempre o povo, o que trabalha, o que produz, o que faz o progresso, o que paga em benefício apenas
de uma insignificante minoria improdutiva para o desenvolvimento moral e material da humanidade.
sinal dos novos tempos. Ainda que Júlio de Castilhos trouxesse consigo a alcunha
de autoritário, até 1898 deu seguimento a uma proposta de reorganização do
Estado, onde faria parte um investimento em melhorias dos equipamentos urbanos.
Esse processo de modernização foi acompanhado por Porto Alegre.
Em 11 de abril de 1894, o Ato 33, de autoria da Intendência Municipal, criou o
cargo de fiscal da higiene, para atender aos problemas de saúde pública, os quais
estavam diretamente ligados ao planejamento urbano. A proposta de higienização,
na tentativa de sanar os graves problemas de saúde pública, visava a uma limpeza
total das ruas sujas e mal-iluminadas. Ao mesmo tempo, foram abertas ruas e
surgiram novos bairros. Como conseqüência desse processo, também aumentou o
desejo por uma arquitetura urbana mais elaborada, que primasse pela beleza, pela
funcionalidade do trânsito, pela segurança e pela saúde.
A preocupação com o saneamento básico e as novas construções
motivou a elaboração de um regulamento, de polícia, higiene e de Diretoria de
Obras do Município de Porto Alegre, em 1896. A partir de então, buscava-se a
extinção dos cortiços. Do processo de limpeza das ruas também faria parte tirar de
circulação os indivíduos turbulentos, desordeiros e vagabundos
96
.
O crescimento era percebido não apenas em termos de estrutura física,
mas também em termos de contingente populacional, fruto de uma dinamização da
economia local, conforme salienta Sandra Pesavento:
A população aumentava, e isto se devia tanto a sua posição
privilegiada na encruzilhada dos caminhos que ligavam o litoral ao
interior e aos Campos de Viamão, ao norte, com o sul da província -,
quanto ao desenvolvimento comercial do seu porto. Esta animação
de barcos, mercadorias e comerciantes nacionais e estrangeiros
adquiria um novo impulso com a chegada dos imigrantes: primeiro,
os alemães e, posteriormente, os italianos. Mesmo que se
destinassem prioritariamente à zona colonial, no Vale do Rio dos
Sinos e na Encosta da Serra, muitos ficaram na cidade, dando um
quê de cosmopolitismo à urbs, com seus hábitos e costumes
diferentes. Estrangeiros e gente do interior também procuravam a
maior cidade do Rio Grande, que transbordava para além da linha
primitiva das velhas fortificações do século XVIII, demolidas, mas
que persistiam no imaginário social a delimitar a verdadeira cidade
96
PESAVENTO, Sandra. O Imaginário da Cidade: Visões literárias do urbano: Paris, Rio de
Janeiro, Porto Alegre. Porto Alegre: UFRGS, 1999, p.267-269.
das zonas de arrebalde e suburbanas. O fato de ser a capital
motivava o inchamento das camadas médias, compostas de
funcionários públicos, e o desenvolvimento comercial do seu posto
avolumava os negócios, que se diversificavam em estabelecimentos
bancários e pequenas empresas
97
.
Após o conturbado momento vivido, fazia-se, portanto, necessário um
projeto de modernização. Contudo, esses ares de prosperidade e civilização
aguçaram um efeito de desigualdade social. À margem de uma classe média que
vinha sendo formada, criou-se, também, uma massa de indivíduos excluídos,
somando-se aos efeitos sociais da falta de colocação no mercado de trabalho dos
escravos libertos após a Abolição:
O mundo dos excluídos se constitui em face daqueles que
partilham da inclusão numa ordem dada, e é ante a imposição e
legitimação desta que se concebe a desordem, da mesma forma que
a noção de bárbaro ou selvagem tem por referência a concepção dos
civilizados. Como construções imaginárias de ordenamento e partilha
do mundo, cidadania e exclusão são conceitos que têm uma longa
história e que se explicitam na construção da diferença
98
.
A própria construção da cidadania, naquele momento, perpassava
pelos padrões tidos como ideais. A Primeira República trouxe entraves ao processo
de participação política, entendendo que nem todos os indivíduos se encontravam
aptos a se fazer ouvir. Mulheres, mendigos, analfabetos, vagabundos, homens de
baixa renda encontravam-se excluídos das decisões. Não se pode esquecer o forte
preconceito racial ainda remanescente na cidade: a Porto Alegre do final do século
XIX se quer bela, higiênica, ordenada e... branca
99
. O momento deflagrou uma
democracia limitada e elitizada.
Ao longo da História, os excluídos do processo civilizatório foram
ocultos pelos grandes meios de difusão da informação. O silêncio o não-dito
97
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma outra cidade: O mundo dos excluídos no final do
século XIX. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001, p.14-15.
98
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma outra cidade. Op. Cit, p.7.
99
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma outra cidade. Op. Cit, p.16.
revela preocupações em não evidenciar problemas existentes. Em determinados
momentos, contudo, as diferenças sociais se fizeram sentir. Assim o foi com a
Revolução Francesa, que eclodiu em 1789 sob influência dos ideais iluministas, e
com a Revolução Russa, de 1917, cujos princípios seguiam a cartilha socialista. Na
Porto Alegre do final do século XIX, os excluídos ocuparam as páginas dos jornais e
essas diferenças saltavam aos olhos; não por meio de revoltas armadas, mas
apontando indivíduos excluídos, desta vez, como responsáveis por um estado de
desordem. Criaram-se estigmas, especialmente pela mídia. A Gazetinha
foi parte
integrante desse processo, para o qual se utilizou do agendamento de temas
polêmicos envolvendo esses indivíduos, em cuja técnica se debruça a análise desse
estudo. Assim, os excluídos viraram pauta de um discurso midiático que, por
intermédio da hipótese de agendamento, pautaram a agenda diária do leitor que, na
próxima edição, esperava encontrar ao menos uma nota sobre o polêmico tema
em debate. Segundo Pesavento,
no momento do final do século, a visibilidade dos indesejados se
impõe. Pela sua presença crescente, pela sua expressão quantitativa
e pela ameaça de, qualitativamente, destruírem ou ameaçarem o
padrão civilizacional desejado, eles tornam-se perigosos. Passam a
ser nomeados como alvo de uma batalha sem tréguas, pois são o
inimigo na trincheira
100
.
Na fala da Gazetinha, um discurso de vagabundagem foi elaborado em
relação às mulheres, já que bordéis e casas de jogo se proliferavam, acompanhando
o crescimento de Porto Alegre. Esse tema aparecia em diferentes espaços do jornal,
construindo inferências, inclusive, sobre os anúncios publicitários, mexendo com a
mentalidade coletiva e com o conhecimento prévio já definido, culturalmente, sobre
os papéis sociais definidos para a mulher. Foram técnicas midiáticas aplicadas e
reforçadas pelos próprios ideais positivistas em voga no período, quando caberia à
mulher a função nobre e bem específica de ser mãe e esposa.
100
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma outra cidade. Op. Cit, p.12. A autora ainda salienta que a
única possibilidade de redenção destes perigosos indivíduos será pelo trabalho e a tutela de um
patrão, mas, mesmo assim, a condição de pobreza é associada aos perigos, e estes, ao cio, ao
crime e à maldade. A figura do mau pobre se constrói em termos da exposição de uma figura
inquestionável pela sua força expressiva. Se miserável, esta condição é decorrência da
vagabundagem (p.12-13).
Para que seja possível entender o emprego dessas técnicas, é preciso
conhecer o contexto cultural em que surgiu a Gazetinha
. Além de um
desenvolvimento urbano significativo, ainda que em meio a um conturbado cenário
político e social, a segunda metade do século XIX marcou, em Porto Alegre, uma
movimentação cultural interessante. Circulavam publicações independentes e
vinculadas a partidos políticos, promovendo debates acerca dos mais variados
assuntos e registrando novas formas de sociabilidade.
1.2 O crescimento da imprensa local e o papel da Gazetinha
A partir da segunda metade do século XIX, no Brasil, assinalou-se, na
trajetória da imprensa nacional, o jornalismo literário abrindo espaço para que os
homens de Letras alcançassem veiculação de suas propostas e produções literárias.
Segundo Athos Damasceno Ferreira, no Rio Grande do Sul,
a partir da metade do século XIX, uma imprensa literária,
inspirada e atuante, anima com sua presença, que se fez constante
até o fim da Centúria, a vida intelectual da província. Veículo de
difusão cultural acessível por excelência a toda classe de leitores,
esse prelo jornalístico, como também o denominado político e
noticioso convém assinala-lo desde já ganha corpo entre nós,
sobretudo na Capital, visando à valorização do povo com o estímulo
a seu gosto pelas Letras, numa época em que a natural carência de
meios de toda ordem não podia ser propícia à Indústria, comércio e
propagação do livro
101
.
A imprensa literária, que experimentou uma movimentação cultural
importante na Porto Alegre do período, constituía-se em um espaço significativo
para a publicação da produção literária de nossos autores, veiculando, na íntegra,
romances, peças teatrais, poesias e contos. Os periódicos, entretanto, não se
101
FERREIRA, Athos Damasceno. Imprensa literária de Porto Alegre no século XIX. Porto
Alegre: Ed. da Universidade / UFRGS, 1975, p.13.
restringiam aos textos literários: em suas páginas, encontravam-se crônicas da
atualidade, críticas teatrais, biografias dos grandes homens que fizeram a História
(bem como textos sobre os grandes eventos históricos, bem ao gosto da visão de
História do momento), textos de opinião (como os que discutiam a situação do
Ensino na Província, o Abolicionismo e o papel da mulher na sociedade), textos
filosóficos, além do retrato da movimentação social e cultural da época.
Percebe-se, por meio dessa pauta, que não se pretendia noticiar os
acontecimentos do Brasil e do mundo, mas dar espaço à cultura e à literatura locais.
Além do mais, encontram-se discursos moralizadores e mantenedores de uma
ordem social vigente. Os homens que faziam a imprensa literária, em grande parte,
eram professores e funcionários públicos que acumulavam as funções de jornalistas,
literatos e dramaturgos possuidores de um discurso legitimado na época: o
masculino. Suas imagens de mulher, que apareciam na produção literária veiculada
nos periódicos e nas crônicas de cotidiano, geralmente respeitavam a manutenção
dos padrões vigentes. Representavam negativamente mulheres cujo comportamento
fugia desse modelo ideal. No conteúdo daquela imprensa, a boa esposa cuja
sublime missão era a maternidade deveria se dedicar inteiramente à família. .Na
condição de mãe e de esposa amantíssima, a mulher assumiu uma imagem quase
sacralizada. No intuito de garantir a manutenção desse modelo, recomendava-se a
vigília constante das moças solteiras. De acordo com Luiz Henrique Torres,
constata-se que os moldes buscados para a criação intelectual transferem-se ao
território sulino os parâmetros do Romantismo e que servem de orientação para o
desenvolvimento da literatura brasileira
102
.
O que se pode perceber, portanto, é que a imprensa do século XIX
assumiu um papel educativo, diferentemente do representado atualmente, quando
se aproxima dos serviços e de uma visão mais ampla de mercado, onde o leitor se
torna cliente. Práticas de um jornalismo político partidário, a exemplo dos jornais A
102
TORRES, Luiz Henrique. A imprensa literária no século XIX e o lugar da Arcádia. In: ALVES,
Francisco das Neves & TORRES, Luiz Henrique (org.). Imprensa e história. Porto Alegre: APGH /
PUCRS, 1997, p.50.
Reforma
103
e A Federação
104
, conviviam com publicações de caráter literário e com
crônicas do cotidiano
105
.
Na primeira metade do culo XIX, de acordo com Francisco Rüdiger, o
princípio da liberdade de imprensa se colocou em contradição com as práticas do
período. A violência, naquele momento, tornou-se uma constante na prática
jornalística, em função de atitudes dos opositores políticos e das pressões policiais:
os processos criminais, a condenação a penas de prisão, os atentados a bala, o
empastelamento de jornais e a destruição de tipografias tornaram-se por isso
característicos do processo de formação do jornalismo no Rio Grande do Sul
106
.
Além do problema da violência, a inconstância das publicações também
era algo característico no jornalismo da época, conforme Hohlfeldt e Rausch,
elemento que perdurou até o final do século XIX: esta primeira fase se caracteriza
pela efemeridade, pela generalizada falta de qualidade das publicações (...) e pela
relação de propriedade / editoria de seus responsáveis, ou seja, o publicista é o
proprietário de um prelo e de uma coleção de tipos e divulga, em última análise, as
suas próprias idéias
107
.
A partir de 1835 ocorreu o desenvolvimento da imprensa farroupilha, que
apresentou lego de publicação durante a Revolução, representada por um
conjunto de 52 periódicos, dentre os quais se encontram O Povo
, Sentinela da
Liberdade e O Constitucional Rio-Grandense, buscando realizar uma propaganda
fecunda para os rebeldes
108
.
Foi a partir da segunda metade do século XIX, portanto, que teve lugar, no
Rio Grande do Sul, a organização da imprensa literária, como referido
103
Lançado em 1869, órgão do Partido Liberal.
104
Lançado em 1884, órgão do Partido Republicano Rio-Grandense
105
De acordo com Francisco diger, os jornais o se preocuparam concretamente com a
informação do público até o final do século XIX. O regime jornalístico dominante, que não pode ser
compreendido fora das relações sociais vigentes, seguia as regras e finalidades ditadas pela
racionalidade política. O novo jornalismo literário e noticioso procurou romper com essa situação,
especializando-se na difusão de notícias e na discussão de assuntos de atualidade sem compromisso
doutrinário (RÜDIGER, Francisco. Tendências do jornalismo Porto Alegre: Ed. da Universidade /
UFRGS, 1998, p.50).
106
RÜDIGER, Francisco. Op. Cit, p.26.
107
HOHLFELDT, Antonio & RAUSCH, Fábio Flores. A imprensa sul-rio-grandense entre 1870 e
1937: Discussões sobre critérios para uma padronização. Anais do Intercom 2006: XXIX Congresso
Brasileiro de Ciências da Comunicação, Brasília, UnB, setembro de 2006, p.3.
108
MACEDO, Francisco Riopardense de. Imprensa farroupilha. Porto Alegre: EDIPUCRS /
IEL, 1994.
anteriormente, e o jornalismo político-partidário. Para Rüdiger, os riscos da situação
violenta que se criaram para a imprensa na primeira metade do século foram
um dos fatores que provocaram o surgimento progressivo de um
conceito político-partidário de jornalismo. (...) A pasquinagem foi se
tornando cada vez mais problemática, enquanto o sistema partidário
consolidava-se como base do regime de governo do país, na medida
em que ela podia servir de pretexto para a degeneração deste
próprio regime
109
.
A imprensa se transformou, a partir de então, em agente orgânico da vida
partidária
110
. Houve uma organização editorial maior, as tiragens aumentaram e o
formato do periódico também se modificou, passando-se à publicação no formato
standard. A distribuição dos jornais também se mostrou mais eficiente,
acompanhando um processo de investimento em melhorias dos equipamentos
urbanos.
a Gazetinha
surgiu com uma preocupação mais social e educativa,
tendo como responsável Octaviano Manoel de Oliveira
111
. A publicação, de vida
curta (maio de 1891 a março de 1900), sofreu alterações ao longo de sua existência.
Se, de início, pretendia noticiar os acontecimentos locais e abrir espaço para o
desenvolvimento da literatura, aos poucos a critica e a sátira dos costumes dos
porto-alegrenses foram ocupando as páginas do jornal que, em certa medida,
tornou-se caricato, ainda que por breve período, mas especialmente a partir de
1895, quando foi lançado o primeiro número ilustrado, a edição de número 22, de 27
de outubro:
Fosse porque o público desse sinais de cansaço de
semelhante gênero de leitura [do caráter ate então apresentado
pela Gazetinha
], fosse porque o momento oferecesse as
incursões mais atuais em terreno novo, Octaviano de Oliveira
109
RÜDIGER, Francisco. Op. Cit, p.26.
110
RÜDIGER, Francisco. Op. Cit, p.28. Para o autor, os partidos encarregavam-se de montar
suas próprias empresas e lançar periódicos pelos quais assumiam inteira responsabilidade (p.28).
111
Eram também responsáveis pelo jornal: Alberto Engel, Francisco Xavier da Costa, Isaac
Lima, João Belém, Rodolfo Saint-Clair, Fausto Villanova, Edmundo Carvalho, Djalma Selistre, João
Martirena, Deoclécio Carvalho, Marques leite, Aldano Gomes, Virgílio Duarte, Lúcio Lima, Octávio
Dornelles, Juvenil Guimarães (SILVA, Jandira M. da. & CLEMENTE, Elvo & BARBOSA, Eni. Breve
histórico da imprensa sul-rio-grandense. Porto Alegre: CORAG, 1986, p.195).
resolve dar outro rumo ao periódico e a ele imprime feição mais
condizente com a época
112
.
Com as edições ilustradas, buscou-se ampliar o raio de ação do periódico
na cidade. O formato do jornal se tornou mais elaborado, mudando, inclusive, o
logotipo da publicação, o qual apareceria até o fim das edições. A partir daquele
momento, o nome do jornal passava a ter a seguinte apresentação:
Figura 6: Logotipo da Gazetinha
Fonte: Gazetinha
, Porto Alegre,13 de fevereiro
de 1896, capa
.
Apresentando o novo formato, a folha se dirigiu ao público, na edição 22:
Com a publicação desta primeira edição ilustrada,
mensal, da gazetinha, começamos a cumprir a promessa que
fizéramos aos nossos assinantes no primeiro número de outubro
corrente: melhorar materialmente o nosso periódico, o quanto
possível.
Continuando, entretanto, a haver notável falta de
tipógrafos nesta capital, é-nos impossível enquanto permanecer
este inconveniente tornar bimensal o aparecimento desta folha.
No intuito de atender mais prontamente as reclamações
dos srs. assinantes, quanto às irregularidades havidas na entrega
da Gazetinha
, estabelecemos, graças as obsequiosidades do
nosso amigo Sr. Abel Tavares dos Santos, uma agencia do nosso
periódico na alfaiateria deste cidadão, sito a rua dos Andradas
número 333, em frente à Praça Senador Florêncio
113
.
112
FERREIRA, Athos Damasceno. Imprensa caricata do Rio Grande do Sul no século XIX.
Porto Alegre: Globo, 1962, p.139.
113
Gazetinha, Porto Alegre, 27 de outubro de 1895, n 22, ano V, p.2.
Bem recebida pelo público com a nova formatação, a Gazetinha passou
a ser auto-identificada como um veículo que, além de ilustrado, estava sempre ao
lado do Zé Povinho, como indicam a ilustração de capa e a charge a seguir:
FIGURA 7: Capa da Gazetinha
– o lápis e a pena
“Viva la gracia! Leitor, eis-me aquí de ponto em branco, sem perder o riso franco, da troça
do bem humor. / E agora, expansão mais plena, o meu programa vai ter / A crayon hei de
fazer o que não fizer a prensa.”
Fonte: Gazetinha, Porto Alegre, 27 de outubro de 1895.
FIGURA 8 :A Gazetinha e o Zé Povinho
Fonte: Gazetinha
, Porto Alegre, 29 de março de
1896.
Segundo Magalhães Júnior, as sátiras, onde se enquadram as charges
da Gazetinha
, o reflexos do próprio caráter do povo brasileiro: representam
formas de desabafo da alma popular contra injustiças sociais ou um meio de aliviar
a pressão sob a qual vivemos nas horas de crise
114
.
Até o momento do surgimento das edições ilustradas, o periódico era
considerado acessível ao público, pelo preço de capa. Em julho de 1895, o número
avulso custava $500 réis. A assinatura anual, 10$000 réis; a semestral, 6$000 réis,
para um jornal, até aquele momento, publicado somente aos domingos. Em outubro
do mesmo ano, surgiram as assinaturas para fora da Capital, ao custo de 12$000
réis, a anual, e 7$500, a semestral.
O aparecimento das edições ilustradas, além de melhorar a qualidade da
folha, contribuiu para o aumento do número de assinantes. O jornal disse ter
recebido uma série de elogios quanto às inovações aplicadas, e resolveu publicar as
edições ilustradas quinzenalmente: sendo o número correspondente ao segundo
domingo de cada mês, com alguns anúncios na quarta página a qual também trará
críticas de oportunidade. Com as publicações destes anúncios ilustrados,
satisfazemos desejos de comerciantes desta praça, subscritores de nossa folha
115
.
O jornal, que construiu sua trajetória auto-intitulando-se protetor do povo
( Povinho), atribuiu também ao seu público o crescimento da qualidade da
publicação, bem como ao próprio desenvolvimento da sociedade porto-alegrense da
época, em termos de cultura e economia, como se as inovações do jornal
acompanhassem essas mudanças:
Vêem pois os leitores que o nosso intuito não é somente
fazer da Gazetinha
uma fonte de receita, porém melhorando-a dia-
a-dia, a medida do auxílio que o público vai benevolamente
concedendo-lhe, torná-la cada vez mais interessante e digna do
adiantamento da sociedade em que vivemos.
114
R. MAGALHÃES JÚNIOR. Antologia de humorismo e sátira. Rio de Janeiro: Bloch, 1998,
p.5.
115
Gazetinha, Porto Alegre, 10 de novembro de 1895, n 24, ano V, p.2.
Atualmente, nesta capital, é a Gazetinha o único jornal que
publica duas edições ilustradas, por sua vez, e, conforme temos
dito, desde que cesse aqui a falta de pessoal tipográfico que nos
últimos tempos tem se tornado excessiva, publicaremos a nossa
folha bi-semanalmente, aumentando-lhe então a parte noticiosa.
Continue o nosso público, como até hoje, a dar-nos a sua
benévola coadjuvação e, garantimos, o que prometemos será
cumprido dentro de muito pouco tempo
116
.
Em função dessas alterações, a partir de janeiro de 1896 o preço das
edições e assinaturas foi aumentado. O número avulso passou a custar $200 réis,
sendo a edição ilustrada mais cara, ao preço de $500 is. A assinatura, para a
capital, passou para 14$000 is ao ano, e 8$000 réis, o semestre. Para fora da
capital, a assinatura anual chegava a 16$000 réis, e a semestral, 9$000 réis. Esses
valores permaneceram inalterados até o ano de 1897, ano limite para o foco deste
estudo. Cabe lembrar que o jornal passou a ser publicado aos domingos e às
quintas-feiras, o que sugere o aumento do público leitor, justamente no período em
que a Gazetinha
agendou a campanha de saneamento moral. Quando ocorreram
essas alterações, o jornal se dirigiu ao público, buscando fazer as devidas
justificativas, especialmente com relação ao aumento das despesas. Prometeu, no
entanto, seguir com as temáticas sociais, as denúncias de irregularidades, sempre
no intuito de estar ao lado do povo. Naquela ocasião, portanto, a Gazetinha
fez uma
nova apresentação ao público, reafirmando seus compromissos, ao mesmo tempo
em que comentou as modificações aplicadas:
No empenho de bem servir aos nossos dignos
favorecedores tomamos no ano presente o alto compromisso de
dotar com alguns melhoramentos a nossa folha, que temos
orgulho em dizê-lo, não tem deixado até hoje de corresponder ao
favor público que nos incita a perseguir na senda traçada no
jornalismo da capital.
A Gazetinha, fora a sua feição política que é hoje a de
sempre republicana, prodigalisa aos seus numerosos
favorecedores, variada leitura, tocando diversos ramos, quer
literários, quer de poesia ou de crítica, pois para isso conta com
escolhido pessoal de colaboração. (...)
Uma vez por mês será ilustrada a Gazetinha
, que será
empenhada em fazer uma galeria de retratos de beneméritos rio-
grandenses falecidos ou vítimas, lamentadas sempre da revolução
116
Gazetinha, Porto Alegre, 10 de novembro de 1895, n 24, ano V, p.2.
que nos assoberbou durante três longos anos de morticínios os
mais cruéis e de lutas as mais acirradas [a Revolução Federalista],
onde foi posto à prova o heroísmo dos filhos desta terra gloriosa
que em dias infelizes lutuosos, não desmentiu uma vez sequer, o
passado honroso que tem. (...)
O nosso noticiário será mais vasto d`ora avante,
prometendo uma reportagem digna deste nome, além das
diversas seções sobre ocorrências policiais, diversões, teatros,
prados, conselhos úteis, etc
117
.
O jornal terminou sua apresentação dizendo acreditar que sempre
poderia contar com o apoio dos poderes públicos em sua nova empreitada:
Tão bem intencionados como estamos é de crer que a
proteção pública não nos falte, antes venha em nosso auxílio, de
modo a causar-nos um justíssimo orgulho sobre o nosso
merecimento de lutadores que não conhecem espécie alguma de
fadiga, a tolher-nos os passos na estrada por onde enveredamos
certos dos deveres que nos assistem e das obrigações que temos
tomado para com o público
118
.
O preço do jornal, se comparado com o de produtos vendidos na época
e o de serviços oferecidos, sugere sua acessibilidade à população. Era recorrente a
publicação de tabelas de produtos vendidos em armazéns e os valores cobrados por
hotéis e restaurantes na contracapa da Gazetinha
. Esses dados permitiram
estabelecer uma confrontação de valores e perceber que o preço de capa o
ultrapassava o custo de produtos alimentícios consumidos diariamente pelo público
em geral. Ao se comparar o preço da edição ilustrada do jornal ($500 réis, o que
permaneceu inalterado entre os anos de 1896 e 1897) com os produtos do armazém
de secos & molhados Casa F. Maisonnave, percebe-se, por exemplo, que se
aproximava do custo de 1kg de farinha de trigo. O preço da edição tradicional era
ainda mais baixo ($200 réis), o que tornava o periódico bastante acessível:
Tabela 3: Preços anunciados pela Casa F. Maisonnave
Produto Preço
117
Gazetinha, Porto Alegre, 5 de janeiro de 1896, n 32, ano V, p.2.
118
Gazetinha, Porto Alegre, 5 de janeiro de 1896, n 32, ano V, p.2.
Arroz Nacional – 10 kg 5$900
Azeite dendê – 1kg 2$000
Lata de atum $600
Cerveja Baviera – garrafa 1$800
Farinha de trigo – 1 kg $600
Lata de leite condensado 1$400
Fonte: Gazetinha, Porto Alegre, 6 de maio de 1897, n 2, ano VII, contracapa
Quando comparados os custos das edições com os serviços prestados,
por exemplo, pelo Hotel e Restaurante do Comércio que anunciava os valores das
refeições oferecidas para hóspedes e público geral na contracapa da edição 83 da
Gazetinha
percebe-se que o valor unitário do jornal era bastante módico. Pode-se
tomar como exemplo, também, um bilhete de loteria cujo valor anunciado no jornal
somava 3$000 réis:
Tabela 4: Refeições do Hotel e Restaurante do Comércio
Serviço oferecido Preço
Almoço e jantar para 1 pessoa (público externo) 55$000
Almoço (público externo) 30$000
Jantar com sobremesa (público externo) 35$000
Almoço e jantar para 1 pessoa (público interno) 50$000
Almoço uma vez por dia (público interno) 30$000
Jantar (público interno) 30$000
A la minuta, prato $800
Fonte: Gazetinha, Porto Alegre, 14 de fevereiro
de 1897, n 83, ano VI, contracapa.
Em 1896, ao entrar em seu sexto ano de existência, a Gazetinha
comemorou as vitórias alcançadas e os apoios recebidos, especialmente do público
leitor, que teceu elogios e parabenizou a redação do jornal pelo seu aniversário. Na
capa da edição comemorativa, ressaltaram as dificuldades da prática cotidiana da
imprensa no Brasil, o que tornou o entusiasmo em torno da data ainda maior. O que
se percebe, em várias edições e, naquele momento, salientado mais uma vez, o
espaço sempre reservado no jornal para sua auto-apresentação ao blico: um
reforço de suas propostas, de suas características, de seu papel social, da inovação
de suas edições ilustradas:
mesmo quem sabe o que é vida de imprensa, quem
conhece as vicissitudes por que passa um jornal do caráter deste,
pode compreender amplamente a intensa alegria que inunda-nos
a alma ao publicarmos o número inicial do sexto período anual da
Gazetinha
. (...)
Dos jornais sul-brasileiros de feição humorística, dizemos
sem o mínimo temor de contestação, tem sido o nosso o único que
em cinco anos de existência conseguido progredir com
segurança, sem renegar a sua missão característica
119
.
A partir de 1897, o jornal sofreu novas alterações, não mais sendo
publicado com as edições ilustradas, mas voltando-se a temáticas de cunho mais
político, atacando constantemente o partido de Júlio de Castilhos. A circulação do
jornal, porém, aumentava. Se antes a folha circulava às quintas-feiras e aos
domingos, agora se tornava publicação diária. Uma questão, entretanto, permanecia
ser o centro das atenções da Gazetinha
naquele espaço de dois anos: a
preocupação com o avanço da imoralidade, a fraca segurança blica e a
prostituição em Porto Alegre.
A abordagem de temas semelhantes ganhou força em meados do ano
de 1895, em função da utilização do material visual de que a publicação passa a
dispor naquele momento. Demonstrou-se uma preocupação muito grande com as
mudanças que a cidade vinha sofrendo: com seu crescimento, modificaram-se os
comportamentos. Com o incremento da vida noturna, proliferaram os bordéis, parte
deles servindo de espaço de trabalho para mulheres negras em um período pós-
abolição da escravatura (ocorrida em 1888). Ao mesmo tempo, surgiram críticas à
limpeza urbana e à manutenção da ordem nas ruas. As temáticas passaram a ser
veiculadas de forma interligada: o problema social, de saúde pública e de segurança
onde se incluía a prostituição, de acordo com a representação feita pela
Gazetinha
. A crítica ao vício, à desordem nas ruas, à moral do cidadão porto-
alegrense eram questões abordadas em textos de capa, colunas, charges e mesmo
119
Gazetinha, Porto Alegre, 3 de maio de 1896, n 1, ano VI, capa.
propagandas do jornal entre os anos de 1895 e 1897. Ainda que a Gazetinha se
intitulasse como jornal sempre ao lado do Povinho, muitas vezes criticava sua
conduta e suas atitudes.
Em 1897, o jornal deixou de publicar as seções ilustradas, embora o tom
crítico em outros espaços do veículo continuasse presente. Conforme assinala
Athos Damasceno Ferreira, entretanto, a fala do jornal se tornava mais política, o
que acabou por contribuir para o fim da publicação. Os constantes ataques a Júlio
de Castilhos atraíram a ira das autoridades e as ameaças a Octaviano de Oliveira
começaram a aparecer, levando-o a fechar o jornal em 1900:
Recolhendo a armadura amassada, levou também a seu
arquivo privado o popular título da folha com que, durante sete anos
e tanto, dera à população de Porto Alegre literatura e charge de
apreciável qualidade
120
.
O fato de a Gazetinha
não apresentar longo período de publicação não foi
exceção na época. Foram muitos os jornais, de pequeno e grande porte, que
tiveram espaço de publicação, mas a grande maioria não alcançava longa vida. Isso
muito se deveu às próprias características de Porto Alegre no decorrer do século
XIX, aos moldes do que também ocorria no restante do país. O jornalismo se
apresentara como uma atividade em plena expansão, mas ainda com alguns
limites, conforme assinala Francisco Rüdiger:
Os leitores eram limitados pela falta de escolarização, pelo
baixo poder aquisitivo e pelo próprio sistema escravista vigente até
1888. A montagem de uma tipografia e o lançamento de um
periódico não era difícil, mas o curso de manutenção das
publicações era relativamente alto. As despesas com papel, matéria-
prima importada, mão-de-obra (composta por trabalhadores
assalariados e especializados) e o porte de circulação gravoso
prejudicavam a sustentação dos jornais
121
.
Some-se, a esses fatores, a própria violência, elemento integrante do
cotidiano de alguns jornais daquele momento. O caráter crítico e partidário de muitos
120
DAMASCENO, Athos. Imprensa caricata do Rio Grande do Sul no século XIX. Op. Cit,
p.143.
121
RÜDIGER, Francisco. Op. Cit, p.31.
jornais acirrava discussões e provocava mal-estares políticos nos principais centros
urbanos. A Gazetinha
, por seu lado, embora não possuísse filiação partidária,
mantinha teor crítico dos textos publicados, apontando irregularidades e
responsabilidades, bem como a auto-imagem construída de protetora do povo (ou
Povinho, como chamava...), o que também atraiu olhares desgostosos. No
entanto, de acordo com a fala do jornal, parecia não haver grande preocupação com
possíveis antipatias conquistadas nesse processo, como se, em primeiro lugar,
viesse sempre o papel educativo da folha e a proteção ao povo. Assim, a Gazetinha
parecia se orgulhar do seu status de publicação independente:
Somos pobres, a Gazetinha é um humilde bi-semanário
que não aspira às honras de grande imprensa; porém, é preciso que
se saiba, que digamos pela vez milésima talvez, não queremos fazer
fortuna a troco de nossa dignidade e independência, não
precisamos de honrarias emprestadas nem de elogios interesseiros.
(...)
Que nos importa a animosidade, de Pedro ou Paulo,
Sancho ou Martinho, agentes ou espoletas de qualquer partido?
Merecemo-lhes isto porque usamos a linguagem franca de
independentes, que somos, porque para alvo de censuras
merecidas não escolhemos especialmente membros de uma facção
política.
Pois é o mesmo! A Gazetinha
não é política e nem servirá
jamais, para a satisfação de interesses de politicagem; uma única
vontade a domina: é a de sua direção e redação.
Seja quem for que em nossa opinião torne-se merecedor
de censura, havemos de censura-lo, quer em artigo sério ou por
meio de sátira.
A Gazetinha tem vivido assim; e assim continuará a viver,
tendo em mira unicamente isto: servir ao povo que é quem a
sustenta e para quem ela foi fundada
122
.
Essa forma de produzir jornal sofreu influência do que era realizado no
Rio de Janeiro. Se antes, como foi assinalado nos tempos do Império , a Corte
serviu de modelo cultural para o restante do país, no momento em que o modelo
político sofrera transformações, outras padronizações eram colocadas em voga. De
122
Gazetinha, Porto Alegre, 10 de Janeiro de 1897, n 73, ano VI, capa.
acordo com Marialva Barbosa, seguiu-se um novo jornalismo a partir da cada de
1880, criado no Rio de Janeiro, que mudaria o formato editorial das publicações:
Os textos pretendem sobretudo informar, com isenção,
neutralidade, imparcialidade e veracidade, sobre a realidade. E
esses adjetivos se repetem sem cessar nos periódicos. Editando
com destaque as noticias policiais e reportagens, sob uma capa de
neutralidade, introduzindo a entrevista nas primeiras paginas, os
jornais procuraram construir uma representação ideal da sociedade.
A opinião isola-se no artigo de fundo e a ilustração, posteriormente
substituída pela fotografia, publicada ao lado do texto, cumpre
também esse papel. A edição ganha novo caráter: o sentido de
ordenar a sociedade. Os dramas cotidianos e os mexericos devem
provocar tanto ou mais interesse quanto os temas políticos
discutidos diariamente nos cafés pelos repórteres [grifo meu]
123.
A autora salienta os recursos de escrita utilizados nos jornais da época
para conquistar os leitores, em meio a tantas publicações, com diferentes propostas.
A exemplo do que marca muitos periódicos de hoje, os textos de natureza policial
conseguiam maiores repercussões:
Para conquistar maior mero de leitores, os jornais
dedicam espaço a um tipo de noticia que, ate, ate então, estivera
relegada a segundo plano: as de natureza policial. Com o mesmo
objetivo assiste-se à difusão do folhetim. Quase todas as
publicações do Rio de Janeiro abrem espaço ao gênero, classificado
por Machado de Assis como ´nova identidade literária´.Os jornais
publicam também charges diárias, os escândalos sensacionais, os
palpites do jogo do bicho, as notícias dos cordões e blocos
carnavalescos, entre uma gama variável de assuntos, com a
preocupação de atingir um universo significativo, vasto e
heterogêneo de leitores
124.
A Gazetinha
, dentro deste formato, sob a titulação de protetora do
Povinho, abusava dessa prerrogativa: assassinatos mereciam a capa do jornal, bem
como as batidas policiais nas espeluncas, o bordel de Fausta e a defesa da
123
BARBOSA, Marialva. Op. Cit., p.24.
124
BARBOSA, Marialva. Op. Cit., p.24-25
moralidade. Talvez não seja possível falar, ainda, em sensacionalismo
125
naquele
momento, uma vez que a tiragem e o público eram infinitamente inferiores aos
padrões atuais; entretanto, encontram-se, naquela época, alguns elementos que
reportam ao sensacionalismo. Essa característica é uma ressalva que ajuda a
explicar o porquê de tanto espaço destinado à prostituição da cidade no jornal. Uma
charge publicada pela Gazetinha, em 1896, estabelecia uma crítica a esse
posicionamento por alguns jornalistas, embora ela própria se utilizasse de tais
artimanhas para difundir a Folha
. Na charge, representou-se um jornalista à procura
de alguma notícia policial interessante, para fins de exposição da história. Um caso
de suicídio parecia ser o ideal:
FIGURA 9: Jornalismo sensacionalista em fins do século XIX
125
De acordo com o jornalista Danilo Angrimani, O sensacionalismo aparece nos meios de
comunicação como uma espécie de balança, oscilando em determinado momento para a punição e,
em outro, para a transgressão. O veículo, que envereda pelo caminho sensacionalista, chama a
atenção para si por meio desses dois fatores: a punição e a transgressão. Não se trata de um
fenômeno novo. É talvez a mais antiga ferramenta para aumentar as vendas de produtos de
comunicação e implica em uma opção editorial. O produto sensacionalista baseia-se em uma
linguagem específica, que será chamada aqui de clichê. Já os veículos apenas informativos e não
sensacionalistas – utilizam-se de uma linguagem que oferece distanciamento, chamada aqui de
sígnica. Então, em resumo, o leitor percebe que está entrando em terreno sensacionalista quando
existe a intenção de punir ou transgredir s vezes, as duas ao mesmo tempo), tendo como base a
linguagem clichê. O sensacionalismo coloca uma espécie de lupa sobre um determinado fato e o
amplia, sensacionalizando aquilo que nem sempre é sensacional. A melhor âncora para o jornal
sensacionalista é o fait divers, que vai utilizá-lo como seu principal nutriente. Fait divers implica
aquela notícia especial que vai provocar empatia no leitor (ANGRIMANI, Danilo. Espreme que Sai
sangue: Um estudo do sensacionalismo na imprensa. São Paulo: Summus, 1995).
- Boa tarde, tia Maria, quando se suicida?
- Vê, sô moço, cruzi, credo, arruda e salsa!...
Nada, nada; é que sou jornalista, e se você quizer é dar cabo da pelle que eu exponho a sua
photographia no meu escriptorio...
Fonte: Gazetinha, Porto Alegre, 20 de setembro de 1896, contracapa.
O caso de Paulina Fuchs, uma moça que cometeu suicídio em função de
um amor não correspondido, também merecera espaço, pouco tempo antes. Ao que
parece (e de acordo com a fala construída pelo jornal), Paulina teria sido vítima de
abuso e de promessas de amor infinito. Ao ser abandonada, resolvera dar cabo da
própria vida. A totalidade da capa da edição de 10 de novembro de 1895 foi
destinada ao caso:
FIGURA 10: A suicida Paulina Fuchs
Fonte: Gazetinha
, Porto Alegre,10 de novembro de 1985, capa.
Em 1897, a Gazetinha publicou uma edição especial sobre o duplo
assassinato de um jovem casal na Avenida Azenha, que escandalizou a cidade na
época. Além da edição especial, o caso ainda repercutiu em edições posteriores, até
que se procedesse o julgamento de Ozório Cazuza, acusado do crime. A capa da
edição de 5 de setembro representou o casal e sua casa – onde ocorrera o crime – e
o assassino :
FIGURA 11: Capa da edição especial da Gazetinha
sobre o duplo assassinato
na Azenha
Fonte: Gazetinha
, Porto Alegre, 5 de setembro de 1897, capa.
Aproveitando o ensejo, no mesmo s, a Gazetinha dedicou outra capa a
assassinatos, possivelmente com o intuito de atrair leitores (que já se mostrariam
interessados em acompanhar o andamento das investigações do caso da Azenha),
ou mesmo com o propósito de estabelecer críticas às autoridades policiais, como era
do feitio do jornal. A capa de 12 de setembro daquele ano representou as feições de
homens ilustres assassinados no mês de agosto:
FIGURA 12: Capa da Gazetinha
: Assassinados
Fonte: Gazetinha
Porto Alegre,12 de setembro de 1897, capa.
A própria fala da Gazetinha,
na edição de 12 de janeiro de 1896, discutia o
caos que atingia a vida da Capital naquele momento: uma cidade tomada por
escândalos, assassinatos, crimes. Em suma, não havia tranqüilidade. A capa do
jornal, cabe ressaltar, geralmente era reservada para trabalhar esses assuntos. Na
referida edição, foi dito que o habitante de Porto Alegre era diariamente
surpreendido por incidentes freqüentes:
Depois dos distúrbios lamentáveis provocados por duas
facções partidárias e sujeitas à predileção por esta ou aquela
companhia dramática ou de operetas em jogo de merecimento que
isoladamente cada uma tinha, após o vil e bárbaro assassinato de
um espectador na platéia do S. Pedro, pungente remate de todos os
conflitos provocados e dados temos tido dentro dos limites da cidade
onde vivemos, seguindo aqueles acontecimentos, os fatos mais
vergonhosos, os episódios mais extravagantes que colocam a nossa
civilização abaixo do nível seguro de sua existência.
Repetidas agressões, assaltos, assassinatos, etc., etc., tem
ocupado a atenção popular, tomada de muita surpresa
126
.
Para acompanhar esses acontecimentos, também eram trabalhados pela
Gazetinha
os escândalos envolvendo párocos e bispos, em atitudes nada
convenientes às pregadas pelo catolicismo. Os famosos “Escândalo das Dores”
127
e
o “Escândalo da Igreja do Carmo” tiveram ampla repercussão nas ruas e,
obviamente, nas páginas da Gazetinha
, ao flagrar sacerdotes envolvidos em
embaraçosas situações com moças de família, nas suas respectivas sacristias.
Casos assim motivaram uma charge
128
publicada em 1895 assinalando a
possibilidade de que eventos semelhantes não seriam novidade na cidade:
126
Gazetinha, Porto Alegre, 12 de janeiro de 1896, capa.
127
O Escândalo das Dores ocupou as páginas da Gazetinha por longo período, abordando o
caso de abuso sexual de uma menina pelo pároco da Igreja das Dores. O jornal aponta o nome do
responsável, confirmado tempos depois. Em 1896, a Gazetinha publica
: O miserável, o infame, o
crapuloso luxurien toque roubou a Clementina pobre criança de menos de doze anos de idade,
pureza de virgem, foi realmente o padre Bartholomeu Fietsch, vigário da Igreja de Nossa Senhora das
Dores! (...) O criminoso é o que apontamos. E dentro da casa de oração, em uma igreja, deu-se o
infame delito! E o réu, o miserável estuprador, é um padre católico, é um doutrinador do Evangelho, é
o vigário de um dos principais templos desta capital! Miséria! Infâmia! Mil vezes infâmia! (Gazetinha
,
Porto Alegre, 11 de outubro de 1896, n 45, ano VI, capa) Ao afirmar que havia apontado o
responsável antes que viesse a sua confirmação, o jornal sugere sua influência nas discussões dos
temas sociais e na criação de polêmicas a respeito na sociedade porto-alegrense, ainda que
consideremos as características da publicação e do público leitor (jornal pequeno, que não circulava
diariamente, e restrita parcela da população que tivesse acesso à leitura). Na edição de mero 48 a
Gazetinha
anuncia, de acordo com o que fora publicado pelo Jornal do Comércio, a interdição da
Igreja das Dores, decretada pelo bispo dessa diocese: os atos religiosos que ali aconteciam passam
a ser celebrados na catedral.(Gazetinha
, Porto Alegre, 15 de outubro de 1896, n 48, ano VI, capa). O
anúncio também sugere uma consonância entre os veículos de informação da época no trato do
tema, o que reforça a prática da hipótese de agendamento no período.
128
Pouco depois da publicação da charge, a polêmica com relação ao comportamento dos
padres continua em pauta na Gazetinha
, que publica, em dezembro do mesmo ano: os religiosos
foram ao seu governo pedir providências por causa da campanha de certos jornalistas contra os
urubus de batina. (...) O padreco abriu o dedo mas foi abixornado por não ter conseguido os fins
religiosos que andou querendo fazer calar no corpo de algumas devotas...(Gazetinha
, Porto Alegre,15
de dezembro de 1895)
FIGURA 13: O padre e a devota
- Padre! Pelo Senhor dos Passos! O que é isto? Me deixe!
- Ora, minha querida devota! ‘quem boa cama faz, nela se deita... Isto não é
pecado.’
Fonte: Gazetinha, Porto Alegre, 10 de novembro de 1895.
Tais abordagens, como foi assinalado anteriormente, não eram
exclusividade da Gazetinha
, ainda mais se for considerado o momento vivido pelo
jornalismo brasileiro, ainda em fase de consolidação. Os jornalistas, reconhecidos
socialmente como os portadores da verdade e defensores da população, críticos das
autoridades (ou ainda ao lado de determinadas facções políticas, no caso do
jornalismo político-partidário), procuravam conduzir os pensamentos e atitudes de
acordo com padrões tidos como civilizatórios. Possivelmente, a predileção pela
publicação dos escândalos e pela campanha montada contra a prostituição, na
Gazetinha,
também fosse regida por esse fator, aliada aos demais (a cientificidade
da virada do século XIX para o XX em função do Positivismo; a busca pela
ampliação do público leitor; etc.). O fato é que se estabeleceu uma realidade
construída pelo jornal:
A valoração da ciência levada ao extremo, a missão de
condutor dos pensamentos e das ações da população - que deve se
submeter às novas normas de conduta, alcançando naturalmente a
civilização e o progresso a idealização de uma nação, identificando-
se suas diferenças, para a partir dai estabelecer uma unidade são,
em resumo, o pensamento corrente nesses periódicos e que
refletem os esquemas e sistemas de pensamento da academia de
onde esses dirigentes são produto. Os jornais do período
apresentam a nação como moderna, industriosa, civilizada e
cientifica e divulgando o ideário evolutivo-positivista de Darwin,
Spencer e Comte associam conceitos como ciência e modernidade
129
.
De qualquer maneira, a predileção pelos temas polêmicos, o que sugere a
prática incipiente do sensacionalismo, também poderia se dar em função de um
gosto popular pelo gênero, uma vez que a Gazetinha
estava direcionada ao Zé
Povinho, como ficou estigmatizado pelo seu padrão discursivo – o que o excluía o
público leitor elitizado. Tal princípio é importante para o reforço da hipótese de
agendamento, aqui em estudo, pois, de acordo com suas concepções, é preciso
continuar aguçando a curiosidade e o interesse do leitor, por meio da pauta de sua
agenda diária, para que continue a buscar novidades e informações a respeito e a
consumir o jornal. Levando em consideração o aumento da circulação da Gazetinha
e as melhorias feitas no jornal, conforme comentado em momento anterior neste
estudo, essa estratégia parecia estar funcionando.
Em estudo sobre os excluídos de Porto Alegre que considera as falas da
Gazetinha e da Gazeta da Tarde, Sandra Pesavento questiona:
129
BARBOSA, Marialva. Op. Cit., p.68.
Estaríamos, com relação à A Gazetinha e à Gazeta da
Tarde, diante de um gosto popular? Ou, em outras palavras, de
jornais que têm como leitores camadas populares urbanas,
consumidoras de tais notícias, que mesclam e alternam a crítica de
costumes de tom moralizante com um estilo picaresco e irreverente?
Que levanta a bandeira dos bons costumes ao mesmo tempo que
expõe a sordidez e o detalhe picante dos relatos detalhados?
Parece que tais jornais vão ao encontro de expectativas
sociais de leitura e também expõem e indicam o que incomoda, o
que se teme, o que se deseja, e que se vende como notícias
130
.
Se o público leitor do jornal era elitizado ou pertencente às camadas
populares, o que importava é que pareceu ocorrer o consumo de notícias,
atendendo, como salientou a autora, às expectativas de leitura, o que, mais uma
vez, reforça a hipótese de agendamento. O gosto popular pelos temas polêmicos e
pelos escândalos, pauta constante na Gazetinha
no período em foco, justifica a
presença de um suposto sensacionalismo, na tentativa de continuar atraindo a
atenção do público.
Também é importante lembrar o peso do diretor do jornal na construção
dessa realidade. Nas falas da Gazetinha,
em que sua auto-imagem foi construída,
salientou-se que a única vontade a ser seguida era a de sua direção e redação,
como foi mostrado anteriormente. Pouco se sabe, entretanto, sobre seu
proprietário e diretor, Octaviano de Oliveira, somente citado nas poucas obras que
trabalham a história da imprensa no Brasil que mencionam a existência da
Gazetinha
. O próprio jornal forneceu algumas pistas, que permitem entender melhor
a abordagem dos temas sociais e as críticas feitas na Gazetinha
.
Um indício interessante foi a edição especial em comemoração à data de
1 de Maio de 1897, de número 103. A edição bilíngüe em português e alemão
publicou, na capa, um “Manifesto do Partido Comunista”. Não se tratava, no entanto,
do texto publicado por Marx e Engels em 1848, e sim um texto construído por um
grupo de brasileiros que reivindicavam uma série de mudanças na organização
social, política e econômica do Brasil. Dentre as assinaturas ao final do texto,
constava o nome de Otaviano de Oliveira, proprietário da Gazetinha
. A edição foi
apresentada da seguinte forma:
130
PESAVENTO, Sandra. Uma outra cidade. Op. Cit., p.40-41.
Figura 14: Edição bilíngüe de maio de 1897
Fonte: Gazetinha
, Porto Alegre, 1 de maio de 1897, p.3.
No manifesto, foram colocadas questões referentes ao papel da República
no Brasil e as benéficas transformações oferecidas pelo Socialismo, ainda que, cabe
lembrar, em momento imediatamente anterior, como foi mostrado, o jornal tenha se
declarado republicano:
O problema político é urgente que seja resolvido ou que se
encaminhe para isso, porque, indubitavelmente, como o afirmou
Benoit Malon referindo-se a ele na generalidade dos países, sua
solução é condição imprescindível da necessária ao problema
econômico.
E este, no Brasil, vai assumindo, cada vez mais, proporções
complicadíssimas e assustadoras.
Está escrito, os fatos provam à saciedade que a República
tal como foi estabelecida e vigora não pode resolvê-los.
E por quê?
Porque é ela o regime do predomínio da minoria, e sim, vai
dividindo a população em dois povos adversos: um que trabalha,
paga e sofre o povo pobre, o proletariado; outro que usufrui do
trabalho deste, recebe e goza, compõe-se do capitalismo e do
militarismo, a que Magalhães Lima intitula: capital-dinheiro e capital-
soldado.
Modifique-se o sistema governamental; extingua-se esse
predomínio; eis a solução política oferecida pelo socialismo
131
.
Na mesma edição, intitulada Edição do Proletariado, também havia um
texto do próprio Otaviano Oliveira direcionado aos leitores, em consonância com o
manifesto. A fala do proprietário do jornal permite entender por que a Gazetinha
sempre foi projetada como uma publicação que defendia o Povinho, oprimido
pelas políticas públicas, e a existência de uma sociedade moralizada. O povo e a
moral seriam os propulsores do progresso, da democracia:
Cumprindo o maior desejo de meu coração deliberei fazer
sair a Gazetinha
em número especial e consagrada àquele que são
os verdadeiros obreiros do progresso e do engrandecimento de
nossa cara pátria, pois são eles os fatores proeminentes do grau
elevado que lhe pertence entre as nações civilizadas. (...)
Abandonarei essa sociedade nefanda que almeja contar-vos como
seus lacaios e junto a vós arvorarei o pavilhão da verdadeira
democracia, pois esta nos trará Liberdade, Igualdade e
Fraternidade! (...) Por sua vez a Gazetinha
como genuíno órgão
dessa grande massa que se chama Povo e da qual sois vós a maior
falange, reveste-se de galas e rende os seus mais sinceros preitos a
esses enobrecidos gentios de liberdade e almeja que todos os seus
esforços sejam coroados do mais feliz êxito tornando-se assim a
muralha poderosa que resistirá a todos os golpes que lhe forem
arremessando.
Avante, operários! (...)
Salve o primeiro de maio como o grito repercussor de vossas
liberdades a conquistar!
É por esta forma que a Gazetinha
julga ter cumprido o seu
dever para com aqueles de quem tem sido eco; unida a todos os
seus coadjutores neste dia memorável, grita bem alto:
Salve o primeiro de maio!
Salve os heróis do trabalho!
132
131
Gazetinha, Porto Alegre, 1 de maio de 1897, n 103, ano VI, capa.
132
Gazetinha, Porto Alegre, 1 de maio de 1897, n 103, ano VI, capa.
De acordo com Pesavento, eram notórias as tendências socialistas do
jornal, bem como sua oposição ao Partido Republicano Rio-Grandense. Além de um
posicionamento político, isso também revelava uma preocupação em atender às
expectativas populares, com seu cunho moralista de defesa do cidadão, atuando
também como uma espécie de censura social que controlava os padrões de conduta
de uma sociedade muito pequena ainda
133
. Cláudia Mauch reafirma essas
tendências socialistas da Gazetinha
, ao assinalar que o diretor-proprietário do jornal,
Otaviano de Oliveira, era cio da Liga Operária Internacional de Porto Alegre, que
congregava militantes socialistas da cidade ao final do século XIX. A autora ainda
menciona que eram colaboradores do jornal alguns dos principais líderes socialistas
da cidade. Dentre eles, o mais destacado era Francisco Xavier da Costa, tipógrafo
que teria iniciado sua carreira jornalística na Gazetinha
134
.
O tom de entusiasmo da edição do trabalhador teve continuidade na
edição do dia 3 de maio de 1897, data que marcou a entrada da Gazetinha
em seu
sétimo ano de publicação. Mais uma vez, tal como se percebeu em momentos
anteriores, a Gazetinha
reservava grande espaço para reafirmar seu papel na
sociedade. Naquele momento, entretanto, foram várias as notas que parabenizaram
o jornal, em falas que se somavam às construídas na Edição do Proletariado, como
se fossem discursos unívocos. As cartas e telegramas eram direcionados
diretamente a Otaviano de Oliveira, desejando-lhe sucesso na continuidade da
empreitada e salientando que a Gazetinha, assim como a luta dos proletários,
também estava empenhada na luta pelos direitos, pela honestidade, pela igualdade.
Foi publicado, nesse sentido, um poema por A. de Abreu, colaborador do jornal e
amigo de Otaviano de Oliveira, em homenagem ao 3 de maio, intitulado “A
Imprensa”:
Qual uma deusa ingente e imortal
Docemente imperando entre as nações
Instituindo as multidões
133
PESAVENTO, Sandra. Uma outra cidade. Op. Cit., p.40-41.
134
MAUCH, Cláudia. Ordem pública e moralidade: Imprensa e policiamento urbano em
Porto Alegre na década de 1890. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004, p.52.
É a missão augusta do jornal
Fonte da luz, do bem e do amor
Que tem vôos heróicos de condor!
Altiva, independente, majestosa
A nobre filha da Alemanha antiga
A corajosa amiga.
Defenderá nas lutas afanosas
O direito, o dever, a honestidade
Arvorando a bandeira da igualdade.
É o brasão da imprensa paladina
Dos belos e sublimes ideais
Daquela que jamais
Vendeu a causa justa e mais divina
E que transpondo os bravos oceanos
Dita conceitos salutares, i hamos! [sic]
Ela, que educa e civiliza o povo.
Que ao comércio e às artes dá valor
Ao talento e ao fulgor
Há de servir aos crápulas de estorvo
Incensando a nobreza da virtude
De esperanças coroando a juventude.
E assim a modesta Gazetinha
A traçar a vereda da verdade
Pregando a liberdade
Não se afasta do bem uma só linha.
Há de seguir a trilha pressurosa
Seja embora essa linha procelosa!
Avante, pois, oh! Filha dos labores
Que sobes os degraus do sacrifício
Do fraco em benefício
Rendendo-lhe os teus íntimos amores!
Que te guie na estrada da existência
As rosas mais gentis da inteligência!
135
A mesma edição, de caráter comemorativo, encerrou-se com uma
homenagem à Gazetinha
: uma música composta para piano, que levava o nome do
jornal, cuja pauta foi impressa na contracapa:
Figura 15: Gazetinha
para piano
Fonte: Gazetinha
, Porto Alegre, 3 de maio de 1897, contracapa.
A construção de uma dada realidade pelo jornal, entretanto, não pode ser
considerada isoladamente. Existem princípios teóricos balizadores dessas práticas.
135
Gazetinha, Porto Alegre, 3 de maio de 1897, n 1, ano VII, p.2.
Trabalha-se, neste estudo, com a hipótese de que esta fala da Gazetinha, e sua
assimilação pela sociedade porto-alegrense do período, ainda que fosse
considerada a carência da instrução pública daquele momento, davam-se por meio
de códigos de agenciamento de poder somados ao agendamento da temática pela
mídia: elementos que se pretende discutir a seguir.
CAPÍTULO 2
HISTÓRIA E COMUNICAÇÃO: POSSÍVEIS APROXIMAÇÕES E
QUESTÕES TEÓRICAS
Falar de História e de Comunicação é falar sobre áreas gêmeas do
conhecimento. Ainda que cada uma guarde suas particularidades, métodos e
técnicas e utilize formas de discurso diversas, o foco de trabalho permanece o
mesmo: as ações humanas e os acontecimentos implicados por elas. A História e o
Jornalismo
136
, mais especificamente, têm procurado aliar seus estudos, entendendo
136
Para José Marques de Melo, o jornalismo é concebido como um processo social que se
articula a partir da relação (periódica / oportuna) entre organizações formais (editoras / emissoras) e
coletividades (públicos receptores), através de canais de difusão, (jornal / revista / rádio / televisão /
cinema) que asseguram a transmissão de informações (atuais) em função de interesses e
expectativas (universos culturais ou ideológicos). Trata-se, portanto, de um processo contínuo, ágil,
veloz, determinado pela atualidade. O fio de ligação entre emissor e receptor é o conjunto dos fatos
que estão acontecendo. (MELO, José Marques de. A opinião no jornalismo brasileiro. Petrópolis:
Vozes, 1994, p.14-15).
que um pode se utilizar das contribuições do outro. A historiografia tem seguido os
princípios da Nova História
137
, desde meados dos anos 1930, trabalhando
abordagens a partir de documentos não-oficiais (a contragosto dos princípios
tradicionais e positivistas que a regiam até então) e entendendo que tudo aquilo que
registra a passagem do homem na trajetória histórica também é documento:
literatura, imagens, obras de arte, fotografia, cinema, imprensa, etc. O Jornalismo,
por sua vez, ao trabalhar a atualidade e a dinâmica da vida social, também está
lidando com a História e, mesmo, construindo a História, por construir realidades
138
.
Cada vez mais se compreende que a História não se preocupa apenas com o
passado, mas com o presente, que a escreve continuamente.
De acordo com Marialva Barbosa, a aproximação entre os estudos
históricos e os estudos de jornalismo pode ser assinalada da seguinte forma:
O que estamos enfatizando é o fato de a história se
preocupar com as razões, as causas, os porquês: e a inclusão dos
porquês nos estudos de jornalismo pode levar as pesquisas a um
outro patamar. Não se trata apenas de dizer que a mídia pode
determinar como pensar ou sobre o que pensar; mas porque isso
137
O entendimento da História começou a sofrer modificações especialmente a partir da cada
de 30, com a revista dos Annales.A História consolida-se como ciência a partir de meados do século
XIX, mas somente no século XX surgem as preocupações com a problematização e a formação de
um corpo teórico da disciplina. Se antes a História estava centrada na narrativa dos grandes eventos
e dos heróis da Nação, compondo narrativas de grandes batalhas, conquistas e governantes, com
base em uma documentação oficial, agora surgem novos olhares e uma preocupação teórico-
metodológica. Aparece, portanto, a História que problematiza os eventos e o próprio cotidiano. O uso
explícito de diferentes teorias permitiu discutir os pressupostos da investigação, ao invés do uso
irrefletido, acrítico, destes pressupostos. O campo a ser seguido está delimitado e o leitor
claramente qual é a perspectiva teórica do historiador. A chamada Nova História é a história escrita
como uma reação deliberada contra o paradigma tradicional (história produzida pela escola metódica,
paradigma do senso-comum da história). Segundo Francisco Falcon, nas primeiras décadas do
século XX, quando a História Política reinava soberana nos meios acadêmicos, havia poucos
espaços abertos a outros tipos de histórias, como por exemplo a História Econômica. Naquela época
a História cultural era certamente muito prestigiada mas, na verdade, tratava-se da
Geistesgeschichte, ou seja, uma História da Cultura profundamente enraizada em Hegel e muito mais
filosófica do que propriamente histórica. As novas histórias surgidas ou consolidadas a partir dos
anos 30, como a dos Annales, a New History e a History of Ideas, não significaram, de imediato, a
reorientação mais ou menos sistemática do campo da História Cultural. A rigor, apenas a partir da
década de 1970, em função do crescimento quase avassalador da História das Mentalidades (no
âmbito da Nouvelle Histoire) novos temas culturais passaram a ser objeto de investigação histórica,
simultaneamente à divulgação de abordagens e concepções teóricas distintas da tradicional História
da Cultura (FALCON, Francisco, História cultural: Uma nova visão sobre a sociedade e a cultura.
Rio de Janeiro: Campus, 2002, p.12).
138
O jornalismo investigativo é essencial para a construção pública de discursos de memória
nacional. Seu enquadramento temporal, contudo, é necessariamente limitado ao presente e ao
passado recente. Por isso é que ele precisa ser complementado pelo trabalho historiográfico
(HUYSSEN, Andreas. Mídia e discursos da memória. Revista Brasileira de Ciências da
Comunicação, São Paulo, vol.XXVII, n°1, jan/jun 2004, p. 103.)
acontece num espaço social considerado com determinadas
especificidades, que difere fundamentalmente do que ocorre em
outro espaço
139
.
Assim, as aproximações teóricas e práticas entre a História e a
Comunicação Social têm se tornado cada vez mais freqüentes, permitindo novos
olhares sobre conhecimentos até então entendidos como consolidados, tais como o
que temos sobre a sociedade em que vivemos. Trata-se, aqui, de revisões
necessárias que possibilitam a quebra de estereótipos construídos sobre os agentes
e os papéis sociais que permeiam as diferentes esferas do cotidiano.
2.1 O Jornalismo e a construção de realidades históricas
É na construção de diferentes realidades pelo jornalismo que este trabalho
encontra sua proposta: na necessidade do exercício da subjetividade do
pesquisador, que interpreta as representações do mundo estabelecidas pelas falas
das diferentes fontes, neste caso em específico, o jornal. Busca-se abordar,
entretanto, a construção feita sobre uma outra realidade, mais distante da atual: a do
século XIX, em uma época em que a imprensa ainda tinha uma função mais
139
BARBOSA, Marialva & RIBEIRO, Ana Paula Goulart. O que a História pode legar aos estudos
de Jornalismo. In: Anais Intercom 2005: XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação:
Ensino e Pesquisa em Comunicação, Rio de Janeiro, UERJ, setembro de 2005. A autora salienta que
considerar a história não é necessariamente realizar estudos históricos, mas se valer da teoria da
história para empreender a análise. E o principal postulado da historiografia refere-se ä questão da
interpretação; não se trata de recuperar o que ocorre, mas interpretar a partir da subjetividade do
pesquisador as razões de uma determinação social. A autora ainda apota que História e Jornalismo
trabalham com tempos diferentes: a presunção dos atos jornalísticos é ocorrer no tempo presente, o
tempo real, razão pela qual é necessário construir textualidades que se valem fundamentalmente da
argumentação. Se o presente prova, em certa medida, o futuro, ele precisa ser conhecido, descrito e,
ao mesmo tempo, constitui-se como objeto de reflexão. Daí também a importância dos estudos que
envolvem questòes jornalísticas, encharcados dessa consciência do presente e, portanto, da
consciência da universalidade refletida, se considerarmos como norteadora da análise a teoria da
história.
educativa e o mercado não chegava a nortear seus princípios
140
. O século XIX, no
Brasil e no Mundo, foi um período de formação de estruturas que permeiam a
sociedade nos dias atuais. As próprias noções de jornalismo ou comunicação ainda
precisavam ser mais bem definidas, uma vez que a imprensa brasileira tivera seus
primórdios, por exemplo, apenas no início daquele século, com D. João VI, que
trouxe para o país a imprensa régia, em 1808. Para Armand Mattelart,
período de invenção dos sistemas técnicos básicos da comunicação
e do princípio do livre comércio, o século XIX viu nascer noções
fundadoras de uma visão da comunicação como fator de integração
das sociedades humanas. Centrada de início na questão das redes
físicas, e projetada no núcleo da ideologia do progresso, a noção de
comunicação englobou, no final do século XIX, a gestão das
multidões humanas. O pensamento da sociedade como organismo,
como conjunto de órgãos desincumbindo-se de funções
determinadas, inspira as primeiras concepções de uma ‘ciência da
comunicação’
141
.
Se, no Rio de Janeiro, logo no início do século XIX, já circulava o primeiro
jornal do país, a Gazeta do Rio de Janeiro
, no Rio Grande do Sul a imprensa
somente se desenvolveria na segunda metade daquele século. Em ambos os
estados, no entanto, o sistema de distribuição dos periódicos era semelhante, por
meio de venda avulsa e de postos de distribuição, tais como os estabelecimentos de
comércio. Somente na cada de 1870 os jornais se transferiram para quiosques e,
destes, para as bancas
142.
Daqueles tempos para a constituição de uma imprensa
com uma maior visão de mercado, ocorreram transformações. De acordo com
Juarez Bahia, a imprensa compõe um universo plural: Até a sua consolidação como
140
Os indicadores para a compreensão do jornalismo seriam os vínculos com o mercado dos
patrocinadores e dos consumidores e a equação do vivido num espaço editável. Alguns jornais
tendem a uma postura mais independente e, assim, menos submetidos à intenção de lucro e ao
comprometimento com o poder. Porém, a tendência predominante e que veio se acentuando ao longo
do desenvolvimento do capitalismo é sua função mercadológica e o estreitamento de seus vínculos
com o poder econômico e político (BERGER, Christa. Do Jornalismo: Toda notícia que couber, o
leitor apreciar e o anunciante aprovar, a gente publica. In: MOUILLAND, Maurice & PORTO, Sérgio
Dayrell. (org.) O jornal: Da forma ao sentido. Brasília: UnB, 2002, p.274.).
141
ARMAND & MATTELART. História das teorias da comunicação. São Paulo: Loyola, 2004,
p.13.
142
BAHIA, Juarez. Jornal, história e técnica: História da imprensa brasileira. São Paulo:
Ática, 1990, p.16.
indústria e empresa, a imprensa brasileira fará conviver na redação o publicista
(misto de jornalista e político) e o repórter que depende só do jornal
143
.
O final do século XIX marcou um tempo de publicações efêmeras, com
focos diversos. Enquanto jornais como A Federação
trabalhavam questões político-
partidárias, publicações como O Guaíba
e a Revista do Partenon Literário
assinalavam a vida cultural de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul. A Gazetinha
,
centro deste estudo, apesar de sua vida curta, representou em suas páginas tanto a
vida cultural como a economia e a política da cidade e do estado, bem como a crítica
destas, enquadrando-se em modelos de jornais distribuídos no país e não muito
diferente do perfil assinalado por Juarez Bahia:
O que há, portanto, é uma pequena imprensa.
Exclusivamente, simples jornais. E um jornalismo feito por
panfletários, por autores que polemizam, divergem, desafiam,
conciliam, lutam, instigam, ensinam, constroem, destroem. Eles
sobrevivem por muitas gerações como jornalistas apenas, alguns
como estadistas. Seus efêmeros jornais também
144
.
O autor também enfatiza que a influência de um jornal na sociedade da qual
ele fazia parte, naquele momento, não é medida necessariamente pelo tamanho do
periódico ou pelo seu prestígio na comunidade. Em uma cidade ainda pequena
como Porto Alegre o era, parece ser este o fator que fez a diferença no impacto
provocado pela publicação:
O que faz a medida é a força da opinião, e esta tanto pode
aparecer em uma página como em várias páginas. Não é o título
que conta. Tampouco a tradição, o peso econômico. Prevalece a
idéia. O que se imprime é o que vale
145
.
Sendo importante a idéia veiculada, torna-se necessário analisar a formação
das mensagens construídas em diferentes espaços do jornal. Isaac Epstein, em
143
BAHIA, Juarez. Op. Cit., p.60.
144
BAHIA, Juarez. Op. Cit p.86.
145
BAHIA, Juarez. Op. Cit p.86.
Gramática do poder, deteve-se em estudar os códigos fortes e fracos presentes
nas mensagens dos diferentes meios.
146
Para o autor, se os percursos através das
ruas e praças exibem as paisagens urbanas, também os discursos, através das
palavras e dos conceitos, podem exibir (ou descrever) a paisagem dos ‘fatos
147
.
Assim, o texto jornalístico também exibe a paisagem dos fatos, representando-a
148
à
sua maneira. A linguagem é permeada de códigos recebidos pelo público de
diferentes maneiras: a linguagem, portanto, cria realidades:
Os materiais de uma ideologia são a linguagem e seus
recortes práticos, denominados ‘discursos’. Quase sempre se achou
que a linguagem refletia uma realidade dada a priori e que os
discursos organizavam os ‘reflexos’, com vistas à comunicação, à
compreensibilidade. Hoje, todavia, fica bastante claro que a
linguagem cria, mais do que reflete, a realidade. Em outras palavras,
não é apenas designativa, mas principalmente produtora de
realidade
149
.
Podemos falar, então, em uma prática jornalística que o reflete a
realidade, mas que a representa e constitui por meio de uma série de artifícios. Ela
146
Segundo Epstein, esta linguagem é nova porque não está escrita em parte alguma, mas é
simultaneamente uma linguagem ‘velha’, porque tem sido efetivamente utilizada pelos atores em
determinados marcos socioculturais. Em suma, a novalinguagem formulada nada mais faz do que
tornar explícito o que de muito está inscrito e implícito por um lado, em registros da memória
cultural, e por outro, em atitudes e desempenhos dos atores. Em verdade, os atores considerados
(agentes e pacientes) podem ser desde indivíduos em relações legitimadas como as familiares de
pais e filhos, ou interações no interior das organizações burocráticas, onde superiores emitem ordens
a seus inferiores hierárquicos, até relações ilegítimas como as de um assaltante e sua vítima. Mas os
atores também podem ser representados por comunidades, grupos ou categorias que estão em
relação de dominantes e dominados e possuidores de certos traços de caráter ou de atuação que são
correlatos àqueles desempenhos que são descritos em nosso modelo teórico. (...) Mas, se o exercício
do poder é ubíquo, qualquer esquema teórico que se pretenda abrangente terá, necessariamente, um
alto grau de abstração. (EPSTEIN, Isaac. Gramática do poder. São Paulo: Ática, 1993, p. 14-15).
147
EPSTEIN, Isaac. Op. Cit., p.9.
148
Roger Chartier, em diálogo com autores como Marcel Mauss e Emile Durkeim, discute os
princípios norteadores do conceito de representação, onde este implica as práticas que visam a fazer
reconhecer uma identidade social, a exibir uma maneira própria de ser no mundo, a significar
simbolicamente um estatuto e uma posição; enfim, as formas institucionalizadas e objetivadas em
virtude das quais ‘representantes’(instâncias coletivas ou indivíduos singulares) marcam de modo
visível e perpétuo a existência di grupo, da comunidade ou da classe. (CHARTIER, Roger. O mundo
como representação. Revista Estudos Avançados
, 11(5), 1991, p.183.)
149
SODRÉ, Muniz . Op. Cit, p.22. De acordo com Márcia Janete Espig, a imprensa deve, neste
sentido, ser pensada como uma representação construída sobre o real, sobre a qual incidem
determinados filtros deformadores que cabe ao historiador determinar e equacionar em suas análises.
Esta representação luta para impor-se frente a outras, e passará a compor o imaginário social de
determinado grupo caso possua a virtude de fazer sentido para este grupo (ESPIG, Márcia Janete. O
uso da fonte jornalística no trabalho historiográfico: O caso do Contestado. In: Estudos Ibero-
Americanos, Porto Alegre, PUCRS, v. XXIV, nº 2, p.269-289, dezembro de 1998).
se torna socialmente relevante, na medida em que contribui para a existência
pública dos acontecimentos e para a construção de significações. O jornalismo,
nesse sentido, é uma representação social paradoxal: ao mesmo tempo em que os
jornalistas são vistos como responsáveis pela distorção das informações, de acordo
com Jorge Pedro Sousa, em seu exercício de objetividade eles deixarão, de algum
modo, os atores sociais representados nas notícias ditar a forma das mesmas, pois
serão as afirmações desses atores a fabricar a história (a representação) do que
aconteceu
150
.
De acordo com o autor, uma hegemonia da mídia que pode deslegitimar
as vozes alternativas, não existindo, portanto, a necessidade da coerção pelos
veículos de comunicação. O público tende a aceitar a versão oficial dos
acontecimentos. Ao mesmo tempo, o jornalismo legitima uma ordem social: os
meios de comunicação social, apesar de não serem um monólito ideológico,
serviriam uma função hegemônica por continuamente produzirem uma ideologia
que, integrando valores e normas do senso-comum, serviria para reproduzir e
legitimar a estrutura e ordem sociais
151
. O sistema cultural, por intermédio dessa
lógica, influencia o conteúdo dos meios de comunicação, e não apenas o contrário.
Segundo Sousa,
os meios jornalísticos são o principal veículo de comunicação
pública através das quais a estrutura de poder se comunica com a
sociedade. Aliás, os meios jornalísticos tomam parte da estrutura
política dessa sociedade tanto quanto tomam parte da estrutura
social, econômica, histórica e cultural da comunidade em que se
inserem e na qual se desenvolveram. Mas trata-se de uma
comunicação mediada. Ou seja, as realidades que os news media
nos dão a conhecer são realidades mediatizadas por esses mesmos
meios
152.
Esses elementos são percebidos por meio de diferentes instâncias: em
relações cotidianas, em situações de exercício de poder, no âmbito familiar, o que se
150
SOUSA, Jorge Pedro. Teorias da notícia e do jornalismo. Chapecó / Florianópolis: Argos /
Letras Contemporâneas. 2002, p.77.
151
SOUSA, Jorge Pedro. Op. Cit, p.76.
152
SOUSA, Jorge Pedro. Op. Cit, p.122.
faz muito presente, cabe ressaltar, nos meios de comunicação, conforme salienta
Celsi Silvestrin:
Partindo-se da convicção de que a preocupação dos meios
de comunicação não se reduz a simples veiculação de conteúdos,
mas trata de produzi-los de tal forma a manter ou não uma situação,
garantindo sua continuidade, e, tendo presente que o gênero é um
primeiro modo de dar significado às relações de poder, conclui-se
que as questões de gênero ainda são um desafio, exigindo uma
postura por parte dos meios de comunicação social
153
.
O jornal é fonte de sua própria história e das situações mais diversas;
meio de expressão de idéias e depósito de culturas. Nele, encontram-se dados
sobre a sociedade, seus usos e costumes; informe sobre questões econômicas e
políticas; entretanto, por meio da representação feita pelo jornal em suas palavras e
imagens criadas, a imprensa permite captar uma história viva e em movimento,
relacionando personagens com práticas sociais do período. O fato jornalístico é
construído
154
, sendo a objetividade relativa. O jornalista participa dos fatos, criando-
os quando lhe convier.
De acordo com Maria Helena Capelato, em estudos sobre a história do
Brasil através da imprensa, todos os jornais procuram atrair o blico e conquistar
seus corações e mentes. A meta pode ser conseguir adeptos para uma causa, seja
ela empresarial seja política, e os artifícios utilizados para esse fim são ltiplos
155
.
A leitura dos discursos expressos nos jornais permite acompanhar o movimento das
idéias que circulam em diferentes épocas de publicação. A análise do ideário e da
prática política dos representantes da imprensa revela a complexidade da luta
social. Grupos se aproximam e se distanciam segundo as conveniências do
momento; seus projetos se interpenetram, mesclam-se e são matizados. Como
153
SILVESTRIN, Celsi Brönstrup. Gênero nos meios de comunicação. In: Revista Brasileira de
Ciências da Comunicação, São Paulo, vol.XX, n°1, jan/jun 1999, p.165.
154
Entretanto, conforme salienta José Arbex Jr, mesmo sendo a interpretação algo ‘construído’,
ela nunca é completamente independente do fato a que se refere. Sempre é possível verificar, em
alguma medida, a materialidade dos fatos (estes sempre deixam vestígios, resíduos, testemunhos),
mesmo quando o fato em questão for um ‘fato textual’, um outro texto. (...) o narrador (historiador,
jornalista, cientista político) escolhe e singulariza determinado fato, motivado por aquilo que pretende,
estrategicamente, demonstrar (ARBEX JR., José. Showrnalismo: A notícia como espetáculo. o
Paulo: Casa Amarela, 2005, p.108-109).
155
CAPELATO, Maria Helena Rolim. Imprensa e história do Brasil. o Paulo: Contexto,
1988, p.15-17.
fenômeno de grande alcance, portanto, o jornal formula uma linguagem que lhe é
particular, conforme estudado neste trabalho:
Todo fenômeno social de largo alcance gera linguagem
própria ou, pelo menos, uma prática discursiva pela qual se montam
e se difundem as significações necessárias à aceitação
generalizada do fenômeno. Esta é uma operação de grande
importância porque, como todos nós sabemos, inexiste um princípio
universal de interpretação das particulares conexões simbólicas que
definem a significação como categoria analítica
156.
Esta linguagem, posta de diferentes formas e lançando mão tanto do texto
quanto dos elementos visuais, formou imagens sobre a prostituição em Porto Alegre
às portas do século XX, por meio de anúncios publicitários, charges, caricaturas,
textos de capa e colunas publicados pela Gazetinha
. Cada um deles, à sua maneira,
constituiu mensagens, interpretações e repercussões para a sociedade de então.
Torna-se elemento particular, neste processo, o conceito de auto-
referencialidade nos meios de comunicação. A Gazetinha
, alvo deste estudo, a
exemplo de outros veículos de imprensa, também construiu realidades reportando-
se, constantemente, a si mesma e ao papel que acreditava representar na
sociedade porto-alegrense da virada do século. A partir dessa perspectiva, a
produção do acontecimento ocorreu no interior do próprio meio de comunicação.
Assim, torna-se possível questionar que o jornal tivesse criado mecanismos para
que o fato que desejava destacar (neste objeto de estudo, a prostituição na cidade)
tomasse dimensões ainda maiores do que corresponderia verdadeiramente.
Haveria, então, uma função auto-referenciadora ou ficcional em relação à realidade.
A construção feita pelo jornal favoreceria o embaralhamento entre realidade e ficção,
pois foram produzidos efeitos de sentido, ao mesmo tempo em que a mídia falava de
si mesma.
Essa auto-referencialidade, ao mesmo tempo em que pareceu buscar o
destaque da temática a ser enfatizada, também favoreceu a fragilização desse tema
156
SODRÉ, Muniz. O globalismo como barbárie. In: MORAES, Denis de. (org.) Por uma outra
comunicação: Mídia, mundialização cultural e poder. Rio de Janeiro / São Paulo: Record, 2004,
p.21.
e do próprio jornal. Regis Debray em Vida e morte da imagem, discorda de Gide,
que enaltecia a questão da auto-suficiência. Para Debray, esta auto-suficiência torna
a arte vazia de sentido:
André Gide corria um sério risco defendendo que a obra de
arte deve encontrar em si a sua suficiência, seu fim e sua razão
perfeita (a sobrevivência de seu Journal e não de Corydon estaria
testemunhando o contrário, relativamente à sua própria
posteridade). Com certeza, estava falando de literatura. Mas o
exame das produções plásticas sugere antes o efeito inverso. Como
se a aspiração à auto-suficiência tornasse a arte inóspita, fria ou
fugidia, com a qual não fosse possível fazer aliança, na medida
em que estaria desprovida de afeto e de repercussão em nós
157
.
2.2 O agenciamento e a gramática do poder: Códigos sociais
O agenciamento de poder
158
se soma à Hipótese de Agendamento. Ao
mesmo tempo em que digos fortes e fracos são produzidos, coloca-se a temática
157
DEBRAY, Régis. Vida e morte da imagem: Uma história do olhar no Ocidente. Petrópolis:
Vozes, 1993, p.66. O autor ainda salienta que a arte constituiu-se lutando contra a alienação,
engrandeceu-se com a autonomia, acabou morrendo devido à auto-referência. Isto também é válido
para esta ou aquela arte particular cujo declínio é anunciado através da reflexão que faz sobre si
mesma. E se termina pela desmistificação geral de si por si. O ponto de inflexão da curva,
exatamente entre a autonomia e a auto-referência, seria talvez a autocitação. A ser manuseada com
prudência porque ela faz justamente passar cada arte da maturidade para a virtuosidade. O espelho
no espelho acaba por esvaziar salões. A pintura da pintura, assim como o teatro do teatro, o filme do
filme, a dança da dança, a publicidade da publicidade, etc, tudo isso começa com sorrisos e termina
com esgares. A imagem é vida, logo ingenuidade. Ironia demais pode matá-la. Narciso é um ser do
crepúsculo e o narcisismo um vício fúnebre. Por muito rondar o abismo, acaba-se por escorregar nele
(p.67).
158
o agenciamento de poder é estudado a partir do objeto ´ordem´ ou comando´ e as entidades
mínimas constituintes deste objeto molecular: Agente (A), Paciente (P), Ordem 1 (Código) e Ordem 2
(comando propriamente dito)." (EPSTEIN, Isaac Op. Cit, p.17) um poder de criar um código e
poder de comandar segundo um código estabelecido. ““Em seu significado mais geral, a palavra
‘poder’ é correlata à competência (atual ou potencial) para agir e produzir efeitos. Neste sentido tanto
pode referir-se às inter-relações humanas, como ao poder sobre os fenômenos naturais. Estes dois
‘tipos’ de poder, porém,o imbricados. Afirma Epstein, para acrescentar: O poder exercido nas inter-
relações humanas pode ser o de uma pessoa sobre outra (agenciado em múltiplas circunstâncias),
de uma categoria, de uma classe, de um partido político, de uma empresa, de um sindicato, de um
país. Individualmente, cumprimos os sinais de trânsito, procuramos não infringir as leis do país,
obedecemos aos nossos superiores hierárquicos, mas também, em certas circunstâncias,
entregamos nossa carteira ao assaltante ou cedemos ante uma ameaça. Boa parte da transmissão
cultural, tanto de informações e procedimentos, quanto de valores, hábitos, etc., está baseada no
assentimento mediante sanções. Daí derivam os poderes dos pais, do chefe de oficina, do policial da
esquina. Em outros casos, acatamos o professor, o médico, o sacerdote (p.35).
em questão na agenda diária do leitor. Um estabelece a forma como a fala é
organizada, e o outro discute a repercussão dessa fala no meio em que é produzida:
o alcance do discurso na sociedade, estabelecendo relações de poder entre quem
elabora a fala e a difusão desta. Torna-se relevante o estudo do agenciamento de
poder uma vez que, de acordo com Epstein, é esta utilização do poder que favorece
o mandante, o que emite a fala, quando se o cumprimento de uma ordem. Neste
sentido, no caso específico da Gazetinha
, a aceitação pública da fala construída em
suas páginas, mesmo que não de forma consciente por parte do público leitor,
beneficiava a manutenção de um discurso moralizador vigente até então. O
exercício do poder nem sempre é tão visível ou explícito:
Definir o exercício do poder, como circunscrito a situações
de emissão e obediência a ordens ou mandatos, deixa
aparentemente de lado muitas situações mais latentes onde ordens
são menos visíveis ou concretas, mas nem por isso menos reais em
seus efeitos
159
.
Haveria uma realidade filtrada, construindo estereótipos e preconceitos
160
. A
Gazetinha
, por sua vez, construiu a imagem de uma Porto Alegre tomada pelo vício
e pela devassidão, repleta de perigos para as famílias de bem, por suas ruas sujas,
mal-iluminadas, com o trânsito de elementos suspeitos. Havia uma forma de poder
agenciada de maneira a constituir o discurso do senso-comum: acabava se tornando
o que todos pensavam a respeito da cidade naquele momento. Se nem todos tinham
acesso ao mundo das Letras, o pequeno universo que compreendia Porto Alegre,
naquele momento, encarregava-se de levar os comentários, as críticas e mesmo os
159
EPSTEIN, Isaac. Op. Cit., p.36. Para o autor, a ordem beneficia em maior proporção os
interesses do Agente do que os do Paciente em cada de decisão da árvore hierárquica de uma
organização empresarial ou burocrática. Isto advém da desigual distribuição dos proventos
decorrentes dos produtos da organização (p.37)
160
A construção de estereótipos e preconceitos denota a formação de um imaginário coletivo
acerca dos papèis sociais. Conforme salienta Juremir Machado, o imaginário é uma rede etérea e
movediça de valores e de sensações partilhadas concreta ou virtualmente. O autor ainda aponta que
o imaginário é um reservatório / motor. Reservatório, agrega imagens, sentimentos, lembranças,
experiências, visòes do real que realizam o imaginado, leituras da vida e, através de um mecanismo
individual / grupal, sedimenta um modo de ver, de ser, de agir, de sentir e de aspirar ao estar no
mundo. O imaginário é uma distorção involuntária do vivido que se cristaliza como marca individual
ou grupal. Diferente do imaginado projeção irreal que poderá se tornar real -, o imaginário emana
do real, estrutura-se como ideal e retorna ao real como elemento propulsor. (MACHADO, Juremir.
Tecnologias do Imaginário: esboços para um conceito. Texto produzido como integrante da pesquisa
Rede de idéias: tecnologias do imaginário e comunicação.)
preconceitos para dentro de todos os lares, pela própria dinâmica da vida em
sociedade na época. A fala se disseminava e transcendia as páginas do jornal, o
que permite refletir sobre o alcance do código criado naquele momento.
Mostra disso foram as cartas publicadas pela Gazetinha
. Ainda que não
abrisse grande espaço para o blico leitor, eventualmente a coluna “Apanhados”,
que se dedicava aos deslizes cometidos pelos cidadãos de Porto Alegre, recebia
contribuições dos leitores, assinalando que as pessoas, pela proximidade e pelo
pequeno número de habitantes da cidade, conheciam-se umas as outras, vigiavam
seus atos e comportamentos, fazendo com que Porto Alegre tomasse ares de uma
pequena cidade do interior. Nesse espaço, comentava-se o comportamento de
mocinhas e de mulheres casadas, homens que cometiam adultério, os
acontecimentos nas espeluncas do Beco do Poço, entre outros elementos diários da
vida da cidade que pudessem provocar alguma polêmica. Os telegramas enviados à
redação sugeriam a dimensão alcançada, contribuindo para as denúncias morais:
Do Moinhos de Vento
Viúva continua freqüência 42, procura marchante.
Mulher casada fingiu-se cansada, mandou marido comprar
doces, enquanto amante passou e entregou-lhe bilhetinho... Mora
Rua da Margem.
Marido baixo, gordo, não sei nome, procurarei descobrir
para informação. Ela, alta, bonita. D. Juan é guarda-livros casa de
negócio importante
161
.
Elemento interessante no telegrama recebido foi a utilização do termo D.
Juan, enquanto definição do amante. A palavra seria constantemente empregada na
fala do jornal, como sinônimo daquele que atende aos apelos das meretrizes e se
entrega aos prazeres mundanos, atentando contra a moral. Seja verídica, como
161
Gazetinha, Porto Alegre, 16 de fevereiro de 1896, nº. 44, p.3. O jornal publica cartas
enviadas à redação, ainda que em número reduzido. Uma delas chega a utilizar a Gazetinha
como
meio de se comunicar com o Intendente José Montaury, pedindo a ele que faça melhorias nas ruas
de Porto Alegre, especialmente no Arraial do Menino Deus. A carta, de um grupo de moradores, se
dirige ao jornal dizendo: Amigo e sr. Redator: como seja o vosso jornal um dos únicos que pugna
pelos oprimidos, pelos fracos e pelo direito conforme se vê diariamente é o motivo pelo qual vos peço
um pouco de atenção... (Gazetinha
, Porto Alegre, 8 de agosto de 1897, capa)
contribuição de um leitor da Gazetinha, seja elaborada pelo próprio jornal, como
estratégia midiática de aproximação da folha com o público leitor, o fato é que o
telegrama publicado provocou um efeito: a imagem de que o problema era sentido
as ruas e de que havia um engajamento pela erradicação dos pontos de imoralidade
nas ruas de Porto Alegre. Provocou-se um efeito de vigilância, fruto da polêmica
instalada especialmente pela mídia. Envolvendo-se o público leitor como partícipe do
processo de vigilância, percebe-se, portanto, o efeito da prática de agendamento.
Em 19 de janeiro de 1896, o colunista, escandalizado, relatou o que vira em
um domingo à tarde: que em um passeio que fizemos no domingo passado vimos
coisinhas de arregalar o olho: uma jovem deitada no colo do namorado, na rua do
Arvoredo. Que atividade, menina!
162
Mesmo o comportamento de mulheres tidas como respeitáveis face ao seu
papel na sociedade, como as professoras, era vigiado, como se, não importando o
posicionamento social, não fossem confiáveis, pela própria natureza de mulher.
Caberia ao homem tomar as rédeas da ordem e da moral. Na mesma coluna essa
idéia foi sugerida:
Que a professora sem cadeira andou lecionando
centímetros em casa de uma casadinha da rua da Igreja. O marido
que ponha-se em guarda, senão quando procurar a cara esposa ela
estará no serviço ativo do reformismo. Estas Adelinas quando
atiram-se a inovações são perigosas
163
.
O colunista, auto-intitulado Beija-Flor, reconheceu que seu papel no jornal
era o de falar da vida alheia, entretanto, via esse papel como de grande importância
social. Sempre a postos, denunciava os comportamentos irregulares, no intuito de
manter a ordem
164
. Chegava a comentar, com ares de triunfo, que recebia cartas de
pessoas incomodadas por se verem citadas em suas colunas, especialmente as
162
Gazetinha, Porto Alegre, 19 de janeiro de 1896, nº. 36, p.3.
163
Gazetinha, Porto Alegre, 26 de janeiro de 1896, nº. 38, p.3.
164
Em 1896, o papel social da coluna é reforçado, bem como os indícios do alcance do jornal na
sociedade: Sabem o que dizem por ? Que uma jovem dissera em uma roda de amigos: ‘Essa
Gazetinha
é uma linguaruda; o que tinha ela de publicar que Fulana teve um bom sucesso; na
Pintada? Os outros jornais o disseram nada... É para V. Ex. ver, minha senhora, assim
poderemos conseguir mais um pouco de jzo para as desmioladas. Como V. Ex. que não trepidam
em envergonhar nossas famílias, e a s todos que pertencemos à mesma sociedade que
habitamos. (Gazetinha
, Porto Alegre, 5 de abril de 1896, nº. 58, p.3.)
mulheres, indício do alcance do código estabelecido pelo Beija-Flor. Exemplo disso
foi a coluna publicada em 3 de fevereiro de 1896:
Que uma viúva da rua da Varzinha anda muito perturbada
com a Gazetinha
, chegando a mandar pedir-lhe que não continue,
senão ela é capaz de perder certa pepineira...
Olhe, tem um remédio especial: trabalho em casa, com
decência... mas, na casa da crioula Fausta, não tem oficinas de
roupa feita...
165
Caso semelhante foi mencionado pelo colunista na edição de 25 de julho de
1897, quando, satisfeito com a repercussão da coluna, ao mencionar os deslizes de
uma mulher casada que se incomodou ao se ver representada na coluna
“Apanhados”, não perdeu a oportunidade de fazer novamente as suas críticas,
acreditando ser este seu papel:
A tal casada da Rua da Praia está furiosa com o Beija-Flor.
Não seja má de gênio porque eu não tenho nada com a sua vida,
acho indecente a srª. abandonar o instrumento que tem em casa
para afinar alheios. Se gosta tanto de música arrebente as cordas
do violino do esposo e deixe-se de dar notas agudas em flautim
166
.
Ainda que não fossem mencionados nomes, possivelmente o leitor
soubesse quem seria o indivíduo alvo dos comentários, pela própria maneira como o
texto fora estruturado, conforme sugeriria outra coluna, publicada em 30 de maio de
1897 :
165
Gazetinha, Porto Alegre, 3 de fevereiro de 1896, nº. 40, p.3. A Rua da Varzinha parece ser
alvo constante do colunista; em março do mesmo ano a coluna “Apanhados” publica: que certa
casadinha da rua da Varzinha tem feito uns passeios noturnos pelo Alto da Bronze... Irá ela em
alguma excursão higiênica? Mas, sem o marido, é grave; e depois esses militares são
revolucionários...(15 de março de 1896, p.3) O Alto da Bronze era outro local famoso no imaginário
coletivo de Porto Alegre: de acordo com Juremir Machado, o próprio nome, Bronze, é uma
contestação, profana, obviamente profana, da história oficial. (...) uma senhora, Dona Felizarda, vinda
de S. Borja, depois de 1850, venceu o catolicismo e o positivismo dos militares. Impôs o seu nome ao
lugar. Mulher bonita, sensual, de ‘feições indiáticas’, devassa, sexualmente insaciável, cartomante,
benzedeira e protetora das prostitutas, ela apaixonou a marginalia da época. O resto criou-se aos
poucos. A Felizarda tornou-se a iniciadora dos garotos, a desvirginadora dos incautos espertos e dos
assustados. Dava-se. Era generosa (SILVA, Juremir Machado da. A noite dos cabarés. Porto
Alegre: Mercado Aberto, 1991, p.8).
166
Gazetinha, Porto Alegre, 25 de julho de 1897, ano 7, nº. 23, p.2.
Que a viúva da rua que não é ‘escura’ [em referência à
Rua Clara] anda seriamente envolvida em matérias amorosas com o
sr. A ... aceitando conferências das 11 às 5 sendo estas feitas às
escuras. Cuidado que assim não certo e muito menos resultará
casório.
(...) Que pelo ‘novo caminho’ [referindo-se ao Caminho
Novo] houve um casório de grande estrondo e depois dos festejos
nupciais o moço devolveu a ‘cara metade’ visto que o gênero estava
avariado... que o resultado disso tudo foi ficar o ‘recebo a vós’ sem
nenhum efeito.
167
Na edição de 3 de maio, comemorativa do aniversário do jornal, o colunista
se viu diante da incumbência de desviar sua temática predileta, os escândalos e a
vigília social, para desenvolver um texto relativo à data comemorativa. Considerava
sua função no jornal tão importante, que essa breve pausa foi vista por ele como
uma interrupção de denúncias. Por poucos dias, os indivíduos de comportamento
duvidoso puderam respirar aliviados:
Nunca me senti tão doente e acabrunhado como hoje!
Nunca sofri tanto como hoje! E sabem por quê? Porque o patrão
roubou-me e roubou-me desavergonhadamente! Roubou-me o
direito de neste número falar da vida alheia e quer que eu somente
diga alguma coisa sobre o 3 de maio [aniversário da Gazetinha
]. (...)
Parabéns ó populacho, ficareis hoje em paz. Parabéns escândalos,
porque descansareis uma semana. Parabéns, finalmente, a todos
quanto descansam quando não sai esta seção...
168
A imagem construída pelo colunista foi a de que ninguém, na Capital,
escaparia ileso de seus comentários, por mais que a polêmica tomasse as ruas da
cidade:
Fiquem certos que clamem como clamar, esbravejem
muito embora, porque eu jamais calar-me-ei e continuarei sempre
sem temor algum a arrancar as máscaras que encobrem tipos de
sentimentos baixos, de donzelas falsificadas, de senhoras honradas
que iludindo os esposos vão para os lupanares banquetearem-se
nos braços dos amantes. O mais importante de tudo isso é que
167
Gazetinha, Porto Alegre, 30 de maio de 1897, ano 7, nº. 9, p.2.
168
Gazetinha, Porto Alegre, 3 de maio de 1897, ano 7, nº. 1, p.2.
muitos daqueles que censuram m a cola um tanto comprida e se
eu começasse a desenrolá-la seria um horror que espantaria a todos
169
.
Conforme se pode perceber, de acordo com as tabelas abaixo, a população
de Porto Alegre, em finais do século XIX, ainda era pequena:
TABELA 5: População recenseada em Porto Alegre – 1890
População recenseada – total: 52.421 Percentual sobre o total
Homens: 26.409 50,38 %
Mulheres: 26.012 49,62 %
Fonte: De Província de o Pedro a Estado do RS: Censos do RS: 1803-1950.
Porto Alegre: Fundação de Economia e Estatística, 1981, p.94.
TABELA 6: População presente no Rio Grande do Sul – 1890
População RS – total: 897.455 Percentual sobre o total
Homens: 459.118 51,16 %
Mulheres: 438.337 48,84 %
Fonte: De Província de o Pedro a Estado do RS: Censos do RS: 1803-1950.
Porto Alegre: Fundação de Economia e Estatística, 1981, p.93.
O cronista Antonio Álvares Pereira Coruja aborda o cotidiano neste sentido,
trabalhando o fato de que todos se conheciam e se tratavam por apelidos. Os nomes
169
Gazetinha, Porto Alegre, 26 de agosto de 1897, ano 7, nº. 35, p.3.
das ruas, de acordo com Coruja, seriam dados a partir de pessoas comuns e
pequenos fatos da vida cotidiana.
170
Dentro desse sistema, a fala produzida envolvia os Agentes (que emitiam os
comandos; no caso do jornal Gazetinha
, objeto deste estudo, na figura dos
colunistas, diretores, anúncios publicitários); os Pacientes (os que obedeciam a
essas ordens, como o publico leitor da Gazetinha
); o Código Forte (que se constitui
em mensagens unívocas, as que permitem somente uma interpretação) e o Código
Fraco (composto de mensagens equívocas, permitindo mais de uma interpretação).
Epstein assinala que existem duas formas de agenciamento de poder: o
modo normal e o modo inverso. O modo normal se estabelece quando uma
relação assimétrica de poder, uma complementaridade entre o papel exercido pelo
Agente e pelo Paciente. Já o modo inverso, para o autor,
é aquele no qual o Agente é equívoco, ambíguo, seja na edição de
normas confusas, seja na sucessão da edição e revogação de
normas unívocas
171
. Desorientado, o paciente pede univocidade. O
filho, o aluno, o cidadão, pedem alguma ordem no mundo que, por
diversas circunstâncias de contexto, são dependentes ou
submetidos ao Agente equívoco
172
.
Aqui, uma ordem paradoxal permite respostas confusas.
Epstein trabalha com a hipótese de que os semas
173
, construídos no mundo
das idéias, têm uma relação com padrões de comportamento e instâncias de poder.
A estes semas são atribuídos significados, que podem ser adequados / próprios;
inadequados / impróprios; normais / patológicos, entre outras possibilidades de
entendimento. Para o autor, essas atribuições são dadas pelo senso comum, pelo
170
CORUJA, Antônio Álvares Pereira. Antigualhas: Reminiscências de Porto Alegre. Porto
Alegre: Unidade Editorial de Porto Alegre, 1996.
171
Mensagem unívoca permite apenas uma interpretação: quando um Agente do poder emite
um comando ou ordem, este pode ser obedecido (ou ter negada a obediência) na medida em que
é correlato a uma ordem 1 anteriormente assimilada pelo Paciente. De modo idêntico, uma
mensagem só é decodificada se correlata a um código previamente assimilado (EPSTEIN, Isaac).
172
EPSTEIN, Isaac. Op. Cit, p.21)
173
Os Semas são os signos particulares cujos significados correspondem a um enunciado da
língua. A exibição de que os semas ou modos canônicos são efetivamente falados pelos autores
emerge em vários níveis: desempenhos padronizados de indivíduos, grupos ou categorias, registros
de memória cultural, letras de musica popular, artigos de imprensa, textos literários, ximas do
senso comum, etc. [Epstein, p.81] Atores e pacientes falam por meio de semas. Esta fala ocorre no
agenciamento de poder através dos comandos (p.23).
saber popular e pelas várias manifestações implícitas ou explícitas na memória
cultural. Os semas são, assim, figuras estilizadas, tipos ideais, marcos fixos para
diferentes situações. São, enfim, modos de agenciamento de poder. Para o autor, é
da combinação dos fatores da natureza do código e do estilo dos atores que se pode
dizer que agentes e pacientes falam códigos fortes e fracos através dos semas
Modo Normal, Modo Inverso.
O agenciamento de poder, portanto, faz parte de um sistema cultural
permeado por códigos sociais, presentes na mentalidade coletiva. O processo acaba
por legitimar uma hegemonia existente, sem que haja necessidade de uma coerção
explícita para que determinadas ordens (ou digos fortes) sejam aceitos. O poder
não significa, necessariamente, a coerção, o que, na visão de Epstein, constitui um
reducionismo: a multiplicidade de situações em que ocorre o exercício do poder
torna oportuno e necessário o estabelecimento de alguns parâmetros. De acordo
com a gramática do poder, em geral a ordem legítima é dada em um certo contexto
(burocrático, patriarcal, carismático), com seus matizes de coerção, influência,
autoridade, força e manipulação, ocorrendo em proporção variável, mas
assegurando que o custo da desobediência, para o Paciente, é superior ao da
obediência
174
: uma ordem, nestas condições, implica a não extração de benefícios
por parte do Agente e derivados de seu cumprimento
175
.
De qualquer forma, o que se pretende é a aceitação da ordem estabelecida,
o que pode estar relacionado com a finalidade própria da mídia, em especial a
imprensa do século XIX, muito mais direta e mesmo engajada do que a
contemporânea, não se utilizando de meias palavras, nem pretendendo a
neutralidade quanto aos posicionamentos: o cumprimento da ordem é um meio para
obtenção de um fim almejado pelo agente, uma vez que este tem a iniciativa da
mesma, e, portanto, é o maior beneficiário de seu cumprimento
176
.
Neste sentido, para Epstein, pode haver a positividade ou a negatividade do
poder, evidenciando que existem outras facetas além do imaginário de repressão
que o termo implica:
174
EPSTEIN, Isaac. Op. Cit p.53.
175
EPSTEIN, Isaac. Op. Cit . p.53.
176
EPSTEIN, Isaac. Op. Cit , p.76.
A positividade do poder consiste na capacidade para o
estabelecimento de uma ordem 1, onde anteriormente ela não
existia. Em um segundo sentido do termo ‘ordem’, que
designaremos por ordem 2, esta é um comando, um ato imperativo
de um Agente, que dispõe em determinado contexto de competência
para tanto, e da qual a Ordem 2 também é um efeito
177
.
O que fica evidente é a existência, no sistema de comunicação, de códigos
que envolvem conhecimentos prévios, armazenados em blocos, na memória de
cada indivíduo, e ativados no momento da comunicação. A partir dos elementos
trabalhados pelo texto e pela imagem, são realizadas conexões e estabelecidos
conceitos. O leitor faz inferências, construindo o sentido do texto
178
. De acordo com
Epstein,
o que, todavia, suporta e dá vida e sentido à tríade básica da
comunicação, constituída por emissor, receptor e mensagem, é algo
invisível no trânsito da mensagem, da fonte ao destinatário. Algo
que já participava do universo do emissor e do receptor antes da
transmissão da mensagem
179
.
A carta do pai de uma menina de 14 anos, deflorada pelo tio, assinalou as
confluências entre as preocupações da população e as idéias defendidas pela
Gazetinha
, em seu intuito moralizador. Os telegramas e as cartas recebidas pela
redação deram uma dimensão de como o código era recebido pelo público,
fornecendo pistas desses comportamentos ao pesquisador. O conteúdo desses
textos (ainda que a quantidade não seja muito grande) sugere a aplicação de um
código forte acerca dos comportamentos da sociedade, uma vez que o
entendimento do leitor com relação às questões publicadas não se mostrava
ambíguo. O caso havia sido comentado pelo jornal em 1896, mas foi retomado no
177
EPSTEIN, Isaac. Op. Cit ,p.38.
178
TREVISAN, Eunice. Leitura: Coerência e conhecimento prévio: Uma exemplificação
com o frame carnaval. Santa Maria: UFSM, 1992.
179
EPSTEIN, Isaac. Op. Cit, p.88. Para o autor, ocorre, então, que se por um lado existe um
significado mais evidente da mensagem, aceito por consenso, que responde pela denotação do
signo, os ltiplos significados conotativos podem não imprimir um segundo, terceiro ou mais
significados às mensagens, como também pode ocorrer de emissor e receptor atribuírem significados
diferentes à mesma mensagem, por operarem em códigos diferentes (p.90).
início de 1897, com o envio de carta à redação, a qual afirmava: saibam os chefes
de família que lhes cumpre arredar suas filhas desse miserável, ainda mesmo que a
seu lado esteja a esposa
180
.
A edição seguinte continuou abordando as repercussões do estupro da
menina pelo tio. Uma carta de leitor comentou as palavras do pai revoltado. As
observações do leitor condiziam com o discurso defendido pela Gazetinha
, de que
caberia à autoridade policial apresentar soluções para o controle da ordem e da
moral em Porto Alegre:
À vista daquela carta exposta à luz da publicidade, parece-
me que compete apenas às autoridades formarem o processo e
trancar o réu na cadeia, que e o lugar em que se pode melhor conter
as sanhas sensuais de um ente que é uma parasita venenosa de
nossa sociedade. Quarto escuro e a pão e água, para refrear-se as
paixões lascivas desse homem que, passeando impune, ofende com
a sua presença o nosso grêmio social e as castas virgens do lar
doméstico
181.
Quando existiam as intervenções do leitor, elas se davam no sentido de
concordar com a fala do jornal ou simplesmente temer as repercussões da verdade
publicada, como ocorrera com a viúva que se sentira atingida pelos comentários do
Beija-Flor.
Ainda que apresentando um jornalismo incipiente, pode-se considerar, no
século XIX, uma relação entre emissor e receptor, constituindo uma
bidirecionalidade do processo comunicacional. Havia, portanto, uma interação.
Entende-se, aqui, que um indivíduo atua sobre o outro em um sistema social: A
sociedade é um produto humano. A sociedade é uma realidade objetiva. O homem é
um produto social
182
. Assim, o emissor, no caso a Gazetinha, constituiu um código
forte a ponto de contribuir para a normalização das atitudes, das falas e dos
comportamentos. O receptor, o público leitor (e mesmo aquele que recebia a fala
indiretamente, por intermédio dos impactos percebidos na vida cotidiana), no
entanto, era o alvo das preocupações do jornal, de maneira que esse público
180
Gazetinha, Porto Alegre, 25 de março de 1897, ano 6, n° 94, p.2
181
Gazetinha, Porto Alegre, 28 de março de 1897, n° 95, capa.
182
LIMA, Jorge Augusto & MOTTA, Luiz Gonzaga & COSTA, Gustavo Borges. Notícia e
construção de sentidos: Análise da narrativa jornalística. In: Revista Brasileira de Ciências da
Comunicação, São Paulo, vol. XXVII, nº 2, julho / dezembro de 2004, p.33.
também intervinha na pauta da folha. Assim, quando a mensagem atingia o receptor,
ele se tornava emissor e repassava a mensagem ao emissor inicial (e que, a partir
daquele momento, tornava-se receptor). Entretanto, os códigos estabelecidos por
um e por outro eram diferentes, porque cada um ocupava papéis distintos, ainda que
complementares. Esse sistema acabou por criar um senso comum acerca dos
comportamentos e condutas adequados à vida em sociedade e sobre a
representatividade da prostituição em Porto Alegre: a visão de um mal do universo
urbano que, além de controlado, deveria ser expurgado da cidade, em nome da
tranqüilidade, da boa convivência e da saúde pública.
2.3. A contribuição da hipótese de agenda-setting para o reforço dos
códigos sociais
A influência da mídia sobre o público receptor e a construção de uma
realidade constituem impactos dos meios de comunicação por meio da hipótese da
Agenda-Setting, constituindo efeitos a médio e longo prazos. A imagem da realidade
é realizada a partir dos meios de comunicação, que a criam ou mesmo a provocam,
criando imagens
183
. O campo de análise da hipótese de Agenda considera que os
meios pautam o conteúdo da agenda do leitor, sugestionando sobre o quê ele vai
pensar (não impondo necessariamente um enfoque), afetando, sobretudo, os
indivíduos que não possuem posicionamento sobre a temática em questão. Mesmo
que inconscientemente, a temática agendada passa a interferir no cotidiano do leitor,
que se encarrega de fazer com que a questão não se limite às páginas dos jornais.
De acordo com a hipótese de Agenda, a imprensa pode até não controlar
fortemente as atitudes, crenças e comportamentos do público receptor, mas traz
183
Para Motta, Lima e Costa, o discurso jornalístico é permeado de sentidos que podem ser
observados e interpretados tanto pelo que evidencia quanto pelo que insinua, sugere ou oculta. Este
discurso renova as percepções de mundo. Assim, o jornalismo atua além da mera produção de
notícias: configura-se em veículo de reinserção da audiência no universo social. (LIMA & MOTTA &
COSTA. Op. Cit, p.33)
para a sua atenção uma seleta agenda de tópicos para se pensar a respeito
184
. O
leitor da coluna “Apanhados”, que enviara o telegrama, por exemplo, não apenas
pareceu ter colocado na sua agenda diária o tema abordado pelo colunista, como
ainda buscou contribuir, dando-se ao trabalho de coletar informações para envio
imediato e, caso necessário, também posterior, como deixou claro o final do
telegrama. O caso não fora uma exceção: The press may not be successful much of
the time in telling people what to think, but it is stunningly successful in telling its
readers what to think about
185
.
A percepção que se tem da realidade é mediada por imagens
trabalhadas pelos veículos de comunicação
186
. Assim, um pressuposto básico da
Agenda é o de que se sofre influência da mídia a médio e longo prazo, não nos
impondo determinados conceitos, mas incluindo em nossas preocupações certos
temas que, de outro modo, não chegariam a nosso conhecimento e, muito menos,
tornar-se-iam temas de nossa agenda
187
. A sociedade do século XIX moldou um
estereótipo que ainda hoje se percebe com relação aos comportamentos femininos,
sobre a prostituição, sobre a moral e sobre a família. Certamente, não se constituía
em um olhar isolado da imprensa da época, uma vez que a contribuição da literatura
para tal também foi grande. É possível, entretanto, se pensar em veículos da época
que pautaram interesses do grupo de leitores, tais como a Gazetinha. De acordo
com Margaret Bakos,
a freqüência de crítica na imprensa porto-alegrense faz com que o
Exemplo
, que se intitula porta-voz dos grupos oprimidos, alerte
insistentemente a sociedade política para a necessidade de intervir
na civil, a fim de atenuar os males que afligem o povo. A sociedade
civil, não raro, nega-se a contribuir para minimizar a miséria alheia
184
The Agenda-Setting function of press: Telling us what to think about. In: LOWERY, S.A. &
DEFLEUR, M.L. Milestones in mass communication research. New York: Longman, 1993, p.327-
328.
185
LOWERY, S.A. & DEFLEUR, M.L.Op. Cit p.329.
186
Para Motta, Lima e Costa, há uma mediação da realidade pelo jornalismo, empregando
impressões reveladoras não apenas das intenções ideologicamente direcionadas, mas elementos
antropológicos como crenças, valores, desejos, éticas, morais e diversas outras nuanças que fazem
parte da cultura onde estão inseridos todos os membros deste processo de mediação (p.35). A
construção desta realidade se dá através de uma mescla de elementos da realidade com o imaginário
social: “esse processo narrativo do cotidiano surge impregnado de elementos provenientes do
imaginário e da memória cultural coletiva e mistura-se com a realidade objetiva dos fatos reportados.”
(p.34) (LIMA & MOTTA & COSTA. Op. Cit)
187
HOHLFELDT, Antonio. Os estudos sobre a hipótese de agendamento. In: Revista Famecos,
Porto Alegre, nº. 7, novembro de 1997, p.45.
queixando-se por ver-se a toda hora solicitada a cooperar com
instituições de caridade, idealiza pessoas representativas da
sociedade política, em quem exaltam qualidades capazes de
resolver os problemas
188
.
Os jornalistas que constroem as falas dos jornais, caso em que se inclui
a Gazetinha
, acabam se tornando mediadores da realidade em função da
credibilidade neles depositada, por meio de uma espécie de contrato de veracidade,
que produz um efeito de real. É de reconhecimento do público leitor que ao jornalista
cabe o papel de apurar os fatos e torná-los públicos, da maneira mais objetiva
possível, limpa de juízos de valor. Entretanto, uma vez que os textos são produzidos
por indivíduos, que possuem suas crenças e visões de mundo, é possível questionar
esse posicionamento, pela simples dificuldade que todos têm de se despir
absolutamente de tudo aquilo em que acredita. Ainda que a proposta de um jornal
possa ser a da imparcialidade, essa deve ser colocada em discussão
189
.
Os temas polêmicos são aqueles capazes de receber agendamento,
apresentando duração (presença nos veículos) variável: sensitive observers of the
media and their audiences continued to feel that people were influenced in their
beliefs and actions because of repeated exposure to the content of mass
communication
190
. A prostituição, por si só, constitui-se em tema polêmico e tomou
grande espaço na Gazetinha,
a partir de 1895, até o início de 1897. A situação foi
agravada pelas constantes denúncias de que moças de família, viúvas e mães
solteiras acabavam entregues ao vício e à devassidão, uma vez atraídas por
mulheres de baixo nível, à vida nas espeluncas.
A mídia moderna apresenta, como uma de suas mais importantes
características, o fato de selecionar: a indústria da mídia se interessa mais por
alguns assuntos do que por outros. Dessa forma, exerce certa influência sobre as
pessoas, o que vem se tornando, atualmente, alvo das pesquisas no campo da
188
BAKOS, Margaret Marchiori. Porto Alegre e seus eternos intendentes. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1996, p.33.
189
Para Motta, Lima e Costa, no processo de mediação da realidade social realizado pelas
notícias componentes simbólicos atuantes que interpelam os sujeitos durante os seus esforços de
compreensão da realidade caótica e contraditória. É neste esforço de apreensão da realidade que o
imaginário dos leitores penetra no ato de leitura preenchendo as lacunas deixadas pelo texto. (LIMA
& MOTTA & COSTA. Op. Cit
)
190
LOWERY, S.A. & DEFLEUR, M.L Op. Cit,, p.327.
comunicação
191
. De qualquer sorte, o que identifica a comunicação de massa, nos
dias que correm, também tem relação com o momento em que a imprensa ainda
procurava sua consolidação no Brasil: o século XIX. O fluxo contínuo de informações
para a audiência, parte desse processo, também é, aqui, encontrado: a imprensa
provém os leitores com informações por meio de uma lista de tópicos e assuntos
que parecem importantes para os que administram os veículos midiáticos.
Embora não se enquadrasse ainda na categoria de Jornalismo
Informativo Moderno
192
, a Gazetinha apresentava, ao final do século XIX, alguns
elementos semelhantes. Se são características da mídia moderna o fluxo contínuo
de notícias, quando se considera a televisão o veículo por intermédio do qual as
pessoas tomam conhecimento a respeito do que está acontecendo; o interesse da
indústria de notícias por determinados assuntos, mais do que por outros; o fluxo
constante de informações, da imprensa para a audiência, provida por uma lista de
tópicos e assuntos desenvolvidos que parecem importantes aos olhos da própria
mídia
193
, a Gazetinha se caracterizava por esse fluxo contínuo e o interesse por
uma determinada gama de assuntos, em especial os que envolviam a moralidade
pública, no período em foco.
Assim, a imprensa pode até não controlar fortemente as atitudes do
público nem seus comportamentos, mas pode trazer para a sua atenção uma seleta
agenda de tópicos para pensar a respeito
194
. Um questionamento pertinente aos
dias atuais
195
, de acordo com essa lógica, também se aplica à imprensa da virada
do século: se a imprensa dava a entender que algumas questões eram, de fato,
mais relevantes do que outras, os leitores passavam a acreditar que o eram, na
realidade? A formulação da fala dos jornais, mediante os códigos sociais
empregados, sugere que sim. Afinal, conforme De Fleur, a mídia não é bem-
sucedida o tempo todo em dizer no que se pensar, mas é bem-sucedida em dizer
aos seus leitores sobre que temas pensar: trabalha-se, aqui, a hipótese de que a
imprensa não apenas aplica o agendamento de determinadas questões em pauta,
mas de que é esta a sua principal função
196
. Os estudos da hipótese de
191
LOWERY, S.A. & DEFLEUR, M.L Op. Cit, p.327.
192
categoria estabelecida por Francisco Rüdiger em Tendências do Jornalismo (Op. Cit.)
193
LOWERY, S.A. & DEFLEUR, M.L Op. Cit,, p.327-328
194
LOWERY, S.A. & DEFLEUR, M.L Op. Cit , p.328.
195
LOWERY, S.A. & DEFLEUR, M.L Op. Cit , p328.
196
LOWERY, S.A. & DEFLEUR, M.L. Op. Cit, p.329.
agendamento, portanto, trabalham com a idéia de que o que se sabe provém, em
primeiro lugar, da construção feita pela mídia. Hoje se considera que a Agenda-
setting não diz apenas no que pensar a respeito, mas como pensar
197
.
Em 1897, o foco era o policiamento urbano, temática que vinha sendo
relacionada com a da prostituição desde 1895. Ambas, em seu processo de
campanha, sempre mereceram a primeira página: A major story for newspaper was
defined as any that appeared on the front page or any that appeared under a three-
column headline in witch at least a third of the story was devoted to political news
198
.
Também cabe lembrar que a temática enfocada pela Gazetinha,
no
período em estudo, não era exclusividade do momento histórico, e nem tampouco
deste jornal, especificamente. O tema da moralidade e a relação entre a mulher e a
prostituição eram abordados pela imprensa e pela literatura desde a segunda
metade do culo XIX e o início do XX, o que, mais uma vez, parece reforçar a
hipótese de Agenda: percebe-se que os veículos de comunicação e as diferentes
formas de discurso e alcance do público influenciam-se uns aos outros.
A literatura, que chegava ao público leitor, em grande parte, por
intermédio dos jornais (e, em especial, por meio da imprensa literária, gênero
característico da segunda metade do século XIX) se torna uma grande aliada do
pesquisador, ao revelar que as discussões que inspiravam os literatos eram, muitas
vezes, semelhantes às que instigavam os jornalistas. É importante lembrar, neste
caso, que muitos dos literatos eram, inclusive, jornalistas, como já se salientou
anteriormente, o que torna íntima a relação entre literatura e jornalismo, na época.
Uma das mais importantes representantes da imprensa literária na
década de 1860 / 1870 foi a Revista do Partenon Literário
. Ainda que seu período
de publicação não coincidisse com o da Gazetinha
, é por intermédio dos textos e
das peças teatrais publicadas por ela que se percebe a incidência das polêmicas
criadas quanto aos comportamentos femininos, os preconceitos, a existência de
imoralidades como os jogos, os vícios, a devassidão e a prostituição na cidade.
Questões, estas, que continuariam em pauta através das cadas de 1880 e 1890,
197
McCOMBS, Maxwell. The evolution of agenda-setting research: Twenty-five years in the
marketplace of ideas. In: Journal of Communication
, 43 (2), Spring 0021 – 9916, 1993, p.62.
198
LOWERY, S.A. & DEFLEUR, M.L. Op. Cit p.331.
chegando aos primeiros anos do século XX. É provável, portanto, que a recorrência
desses temas tenha influenciado a insistência da Gazetinha
nessas discussões.
Em 1872, por exemplo, a revista publicou, na íntegra, e dividida em atos,
a peça Risos e grimas, Hilário Ribeiro
199
. As personagens femininas presentes no
eixo central da trama salientam elementos como a voluptuosa vida em alta
sociedade, que se mostra falsa e hipócrita; a desilusão amorosa, que pode levar os
homens a uma vida de vícios (como os jogos, a bebida e as mulheres); o amor
impossível; o casamento por interesse, visto como uma degradação moral; o
desdém por mulheres cujos únicos interesses estão ligados a uma vida de luxo e
riqueza; o padrinho que assume o papel de pai; a crítica ao nobre e ao burguês
endinheirado, enquanto figuras opressoras da trama; a imagem da moça pura e
ingênua, quase intocável; o homem que não tem escrúpulos por não ter tido acesso
a uma boa educação de família; a missão divina da mulher, de ser mãe e esposa,
exatamente o oposto pelo representado pela figura de Fausta e pelas prostitutas que
assombravam as famílias de bem, de acordo com as polêmicas abordadas pela
Gazetinha
.
As figuras centrais de Risos e Lágrimas são as femininas. Adelaide, a
protagonista do drama, é uma moça rica, cansada da vida luxuosa e hipócrita que
leva. Órfã de mãe, ama Júlio de Aguiar; este é um guarda-livros, que também ama
Adelaide, mas acredita ter sido iludido por ela. Fernando de Magalhães é irmão da
Baronesa e padrinho de Adelaide, de quem cuida como um pai. Otávia é filha do
negociante Ricardo da Silva e moça ingênua, que sofre pelo amor impossível que
sente por Júlio. A Baronesa e o Comendador Torres o as figuras opressoras da
trama. Finalmente, a figura do médico Dr. Paulo de Benjamim que, por não ter
noção de família e por ser órfão desde a infância, afundou-se na vida de vícios, nas
casas de jogo e nos bordéis, embora seu desejo maior fosse o casamento com
Adelaide.
A imagem de Adelaide, como predisposta a abrir mão da vida luxuosa
que leva em nome de um verdadeiro amor, bem de acordo com o estereótipo
feminino criado pela estética romântica, é reforçada diversas vezes ao longo da
trama: Homens vis! Julgam que a mulher é uma mercadoria e que se impõe ao
199
RIBEIRO, Hilário. Risos e lágrimas. Revista Mensal da Sociedade Partenon Literário, Porto
Alegre, segunda série, número 1, julho de 1872.
coração! (arrancando as jóias e atirando-se ao chão) Pois bem, eu não preciso mais
do que um claustro... de hoje em diante desfaço-me destas sedas, renuncio às
esmeraldas e diamantes!
200
A personagem salienta que prefere as virtudes de mãe
e de esposa, justamente os elementos salientados pela imprensa do século XIX
como as missões da mulher na sociedade.
Dr. Benjamim, que sofrera uma desilusão amorosa, passa a representar
uma personagem que desconfia de todas as mulheres, considerando-as falsas,
razão pela qual somente se relaciona com as mulheres dos bordéis. Apesar de amar
Adelaide (embora isso somente fique claro ao espectador ao final da trama),
considera-a vulgar, em função do luxo que cerca a vida da moça.
Conversando com Júlio de Aguiar, que cai de amores por Adelaide, Dr.
Benjamim lhe informa sobre o pedido de casamento pelo Barão, o Comendador
Torres. O casamento por interesse recebe o apoio da Baronesa, que não admite que
Adelaide se case com um homem de condição social diferente da sua. A moça é
forçada a se casar com ele.
Logo em seguida, na trama, surge a figura de Otávia, a imagem da boa
moça, pura e ingênua. Em conversa com lio, o moço lhe confessa sua desilusão
amorosa com Adelaide, mas que, mesmo assim, não consegue esquecê-la. Ele
entende que seu amor por Adelaide será condenado pela alta sociedade, pela
diferença social que existe entre eles. O autor da peça critica a hipocrisia da alta
sociedade e a idéia de que é preciso ser nobre para ter valor. O ambiente é
comparado com o mundo da devassidão e do vício, tão criticados pela Gazetinha
,
como nas palavras de Júlio no segundo ato: Sociedade maldita! Proclamas a virtude
e no entanto vendes a alma e a consciência como a miserável cortesã de Roma
vendia o corpo com o teu despotismo. Erguendo da lama o milionário, cortejando o
agiota que vela, escutando o soluçar das vítimas!
201
A hipocrisia criticada pela
personagem representa, também, a hipocrisia da própria sociedade porto-alegrense
do período, que condenava as atitudes consideradas inadequadas frente aos
padrões desejados de comportamento, mas que, ao mesmo tempo, parecia
acobertar indivíduos que desfrutavam dos locais de jogo, de bebida e de mulheres.
Como se comenta neste estudo, a situação percebida é a de que os mesmos
200
RIBEIRO, Hilário. Op. Cit, ato 1, cena 4.
201
RIBEIRO, hilário. Op. Cit, ato 2, cena 5.
cidadãos/homens que criticavam esses espaços eram os que os freqüentavam, bem
como os que possuíam condições financeiras para cobrir os gastos com esses
prazeres mundanos.
No drama de Hilário Ribeiro, bem de acordo com a estética romântica da
literatura do século XIX, sempre é salientada a moça ingênua e que sofre por amor.
A personagem Otávia, que atende a essas qualidades, desconfia de Adelaide que, a
princípio, contraria essas características. Somente o público sabe que ela também
sofre e que estaria disposta a largar a vida de luxo por um grande amor. Otávia, logo
a seguir, reconhece o engano quanto ao caráter de Adelaide. Esta diz amar Julio de
Aguiar, mas fora enganada por ele. Otávia diz que seu sentimento é recíproco e que
ambos foram vítimas de alguém interessado em impedir o casamento. A Baronesa e
o Dr. Paulo de Benjamim são apontados como responsáveis pelo mal-entendido. A
personagem, portanto, sacrifica seus próprios sentimentos em favor da felicidade de
outras pessoas.
A Baronesa Otávia deixando a casa e fica furiosa quando Adelaide
lhe diz que se trata de uma parenta de Julio de Aguiar. As duas discutem, pois
Adelaide jamais aceitará um casamento forçado. Na cena seguinte, o Dr. Paulo de
Benjamim vai ao encontro de Adelaide para pedi-la em casamento. Ela recusa a
proposta por não saber da grave condição financeira de Fernando de Magalhães.
Nesse momento da peça, são trabalhados a missão divina da mulher de ser mãe
e esposa –, a importância da educação e dos valores familiares, o que vai ao
encontro da formação do próprio autor, Hilário Ribeiro, homem dedicado ao
magistério elementos fundamentais para a difusão dos modelos femininos
considerados ideais Em prol da manutenção desse modelo é que foram feitas tantas
críticas a Fausta e às espeluncas citadas pela Gazetinha
, pois uma das maiores
acusações feitas nos textos do jornal foi o fato de Fausta aliciar não apenas moças
ingênuas e menores de idade, mas também mulheres de família, casadas, inclusive.
A existência de bordéis como o de Fausta passa a constituir uma grande ameaça à
estrutura de família, o valorizada pela sociedade da época (ainda que
contradições existissem, como foi salientado no que tange à suposta hipocrisia da
sociedade porto-alegrense do século XIX), bem como pela estética romântica. O
tema, portanto, estava em pauta constante ao final do século XIX.
Fernando de Magalhães junta-se às personagens na cena seguinte e o
Dr. Benjamim faz-lhe a cobrança de suas dívidas, dizendo que seu credor não é
mais o Comendador Torres. Adelaide passa a entender, então, a proposta de
casamento do médico e se oferece para salvar o padrinho da ruína, mesmo que isso
implique sua felicidade. Fernando recusa-se a sacrificar a afilhada, preferindo a
miséria do que o peso que representaria tal consentimento. O padrinho de Adelaide
tira do bolso uma carta que pertence ao Dr. Benjamim, que passa mal ao ler seu
conteúdo. A carta revela que Adelaide e Dr. Benjamim são irmãos e traz felicidade a
ambos, que agora possuem uma família, e livra Adelaide da obrigação do
casamento indesejado.
Volta à cena Otávia, desesperada com o casamento de lio e
Adelaide. Otávia sofre, mas tenta ajudar o amor do casal. Adelaide pede que a
amiga lhe conte o motivo pelo qual está sempre triste, mas ela se recusa,
prometendo apenas que um dia lhe dirá toda a verdade. A cena final apresenta o
casamento de Júlio e Adelaide, onde Otávia enlouquece de ciúmes.
Ainda que com enfoques um pouco diferentes, observa-se que o centro
das discussões, tanto na Gazetinha
quanto na peça de teatro, publicada em revista,
era o papel da mulher na sociedade.
É preciso considerar ainda os preceitos trabalhados pelo campo da
Análise do Discurso, a qual permite compreender melhor de que maneira a
argumentação do jornal foi construída. Segundo Michel Pêcheux, o sentido de uma
palavra, expressão, proposição, não existe em si mesmo, mas é determinado pelas
posições ideológicas, colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que são
produzidos
202
. A natureza do público leitor também é fator importante:
The agenda-setting hypothesis assumes that there is some
casual relationship between the selective emphasis given to a list of
issues by the media and the development of corresponding audience
beliefs about their hierarchy of relative importance. The nature of this
influence is not understood, but there is clearly a time factor
involved. The media must do their part first, and the influence on the
audience comes later
203
.
202
GADET, F. & HAK, T. (org.) Por uma análise automática do discurso: Uma introdução à
obra de Michel Pêcheux. Campinas: Unicamp, 1990.
203
LOWERY, S.A. & DE FLEUR, M.L. Op. Cit, p.335.
Para Márcia Janete Espig, um dos problemas mais freqüentes no trato
do jornal como fonte, com a utilização de matérias, charges e reportagens para a
pesquisa na História é a ausência de uma crítica interna ao conteúdo jornalístico,
bem como sua utilização como se fosse uma fonte precisa, no qual a informação é
válida por si mesma
204
. É neste momento que se faz necessária uma atenção maior
à análise de discurso. A charge e o texto impresso no jornal constituem
representação de uma época, de um interesse, de uma visão coletiva.
Por meio dessa perspectiva, não são os sujeitos físicos e nem o lugar
que ocupam na sociedade que determinam necessariamente o discurso, mas suas
imagens e a projeção dessas enquanto protagonistas de uma cena discursiva. O
imaginário produz imagens dos sujeitos, assim como do objeto do discurso, dentro
de uma visão cio-histórica. Também é importante se ter presente que o discurso
nunca é totalmente explícito, pois se constitui em algo essencialmente
argumentativo.
Assim, além do texto, a charge (também motivo de análise neste estudo)
tem sido utilizada pela imprensa brasileira desde meados do século XIX como
instrumento de fácil assimilação pelo público, apresentando objetividade e ironia que
podem servir aos mais diferentes propósitos. Os estudos de Patrick Charaudeau,
com enfoque centrado sobre os procedimentos da gica argumentativa, permitem
compreender, por meio da análise do discurso, o desempenho argumentativo de
suas afirmações, que contribuem para a constituição de um elemento de persuasão.
Para Patrick Charaudeau, o discurso formulado se dá a partir das
enunciações, ou seja, a fala em ação, de uma interação e encenação entre dois
sujeitos / parceiros. Haveria uma interação em três dulos: o módulo lingüístico (o
que está explícito no discurso); o módulo extralingüístico (o que está implícito no
texto, ou seja, suas marcas e evidências); e, por último, o módulo representacional,
204
ESPIG, Márcia Janete. O uso da fonte jornalística no trabalho historiográfico: O caso do
Contestado. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, PUCRS, v. XXIV, n.2, p.274,dezembro de
1998.
isto é, o lugar que o sujeito participante do discurso ocupa na sociedade em que ele
foi produzido
205
.
Assim, é por intermédio da relação entre esses dois sujeitos / parceiros,
em um contrato de fala, que são produzidos os discursos e as formações
imaginárias. O conhecimento prévio dos sujeitos envolvidos também é determinante
neste processo, pois demonstra a concepção de mundo do indivíduo, bem como
suas vivências pessoais.
Os estudos de Patrick Charaudeau para o entendimento dos
procedimentos da lógica argumentativa, presentes na imprensa, apresentam grande
contribuição para a análise de discurso. Segundo o autor, o discurso compreende
duas afirmações: afirmação de partida (fala sobre o mundo, por um dos sujeitos do
discurso; ou seja, uma enunciação) e uma afirmação de chegada (o que é aceito do
enunciado desta enunciação inicial). A interação e a troca existente entre ambos
permitem compreender, portanto, o discurso formulado nas charges e textos
publicados pela Gazetinha
, foco deste estudo
206.
Uma das primeiras questões levantadas pelo autor, no que se refere aos
procedimentos da lógica argumentativa, é a presença da dedução no discurso
207
. A
dedução seria a conseqüência mental da afirmação de partida. Portanto, a
afirmação de partida é a causa da afirmação de chegada. A dedução se dá por
encadeamento, que, para o autor, a dedução poderia se dar de diferentes
maneiras. Primeiramente, haveria a dedução por silogismo
208
: há uma conseqüência
implicativa (se... então, logo); há uma ligação de necessidade (o argumento da
lógica).
na chamada dedução pragmática
209
uma conseqüência
explicativa. Na dedução por cálculo
210
, uma conseqüência implicativa com
afirmações referentes à qualificação. Conclui-se (deduz-se) a partir de dados
apresentados. É o que parece acontecer no caso da fala construída pela Gazetinha
.
O jornal não se resumia a apresentar os fatos, mas tecia uma análise sobre eles,
205
CHARAUDEAU, Patrick. Grammaire du sens et de l’expression. Paris: Hachette, 1992,
p.780.
206
CHARAUDEAU, Patrick. Op. Cit, p.787-789.
207
CHARAUDEAU, Patrick. Op. Cit, p.794.
208
CHARAUDEAU, Patrick. Op. Cit p.795.
209
CHARAUDEAU, Patrick. Op. Cit, p.795.
210
CHARAUDEAU, Patrick. Op. Cit, p.795.
poucas vezes deixando espaço para que o leitor tirasse suas próprias conclusões,
não parecendo haver imparcialidade. Deduzem-se soluções, problemas,
conseqüências, apresentadas ao leitor por meio de diferentes artifícios. Pela
dedução condicional, apresenta-se a idéia de condição e conseqüência.
De acordo com os princípios de Charaudeau, toda a afirmação pode ser
argumentativa, a partir do instante em que ela se insere em um dispositivo
argumentativo
211
. O sujeito, que se insere nesse dispositivo, é levado a tomar
posição em relação ao contexto e ao desenvolvimento da argumentação. Como
dispositivos argumentativos, tem-se, em primeiro lugar, o propósito
212
:
encadeamento de afirmações. Em segundo lugar, a proposição
213
, entendida como
uma tomada de posição. O sujeito está em acordo ou desacordo com o propósito. É
o que se percebe estar colocado em prática pela Gazetinha
: a todo momento,
uma tomada de posição do veículo com relação à prostituição e à moralidade de
Porto Alegre; um encadeamento de afirmações por meio de diferentes espaços
(os textos de capa, as colunas, os anúncios publicitários e as caricaturas) e um
posicionamento assumido frente às questões.
Finalmente, é importante considerar a importância de se estabelecer
relações entre o discurso formatado e o contexto no qual ele se forma. Aqui se
ressalta a necessidade do conhecimento prévio para o entendimento do conteúdo
dos textos e imagens apresentados. Precisa-se ter em mente as críticas feitas
naquele momento (o contexto histórico de desenvolvimento urbano e os problemas
sociais da cidade na época) e considerar o próprio posicionamento do jornal e das
pessoas que as faziam a respeito. O discurso é uma constante relação de forças. É
preciso ter um conhecimento de mundo, por intermédio do qual estruturas cognitivas
são ativadas no momento da leitura, permitindo a configuração de conceitos e
relações subjacentes.
211
Neste momento cabe ressaltar que o autor ainda trabalha a organização do ato de
linguagem, constituindo-se o necessariamente em uma comunicação, mas num processo
resultante do jogo entre o implícito e o explícito. O ato de linguagem pode ser considerado, aqui,
como uma forma de expedição e aventura, participando sempre de um projeto global de comunicação
concebido pelo sujeito que comunica (chamado de Eu comunicante). Para produzir essa expedição, o
sujeito que comunica se utiliza de um contrato, supondo que o outro tem uma competência lingüística
de reconhecimento semelhante à sua. Espera-se, portanto, uma contrapartida de conivência. Através
de uma noção de estratégia, o sujeito que comunica concebe, organiza e põe em cena suas
intenções, conforme podemos observar nas charges (CHARAUDEAU, Patrick. Op. Cit
., p.803).
212
CHARAUDEAU, Patrick. Op. Cit,p.804.
213
CHARAUDEAU, Patrick. Op. Cit, p.804-805.
CAPÍTULO 3
CÓDIGOS SOCIAIS CONSTRUÍDOS PELO JORNAL A GAZETINHA
SOBRE A MORAL E A PROSTITUIÇÃO EM PORTO ALEGRE
A partir de 1897, a Gazetinha
sofreu alterações, não mais sendo
publicadas edições ilustradas, voltando-se a temáticas de cunho mais político,
atacando constantemente o partido de Júlio de Castilhos. A circulação do jornal,
porém, aumentava: se antes a folha circulava às quintas-feiras e aos domingos,
desde então tornou-se publicação diária. Entretanto, uma questão permanecia
sendo o centro das atenções da Gazetinha,
desde 1895: a preocupação com o
avanço da imoralidade, a deficiente segurança pública e a prostituição em Porto
Alegre. Em função do prosseguimento desses problemas, sob a ótica da imprensa
local, seriam necessárias medidas de saneamento da moral pública. Nesse sentido,
construíram-se falas disciplinadoras, buscando a manutenção de uma ordem
desejada
214
.
214
Para Michel Foucault, esse processo vem de meados do culo XVIII, contexto que tem um
especial interesse na docilidade; na formação do que o autor chamou de corpos dóceis: o soldado
tornou-se algo que se fabrica; de uma massa informe, de um corpo inapto, fez-se a máquina de que
A abordagem de temas semelhantes ganhou força em meados do ano
de 1895, em função da utilização do material visual de que a publicação passou a
dispor naquele momento. Demonstrava-se uma preocupação muito grande com as
mudanças que a cidade vinha sofrendo: com o crescimento da localidade,
modificam-se os comportamentos. Com o incremento da vida noturna, proliferaram
bordéis na cidade, parte deles servindo de espaço de trabalho para mulheres negras
em um período pós-abolição da escravatura (ocorrida em 1888). Ao mesmo tempo,
surgiram críticas negativas à limpeza urbana e à manutenção da ordem nas ruas. As
temáticas passaram a ser veiculadas de forma interligada: o problema social, de
saúde pública e de segurança ameaçada pela prostituição –, de acordo com a
representação feita pela Gazetinha
, a crítica ao vício, à desordem nas ruas, à moral
do cidadão porto-alegrense. Essas questões foram abordadas em textos de capa,
colunas, charges e até mesmo propagandas do jornal, entre os anos de 1895 e
1897. Ainda que a Gazetinha
se intitulasse como jornal sempre ao lado do
Povinho, muitas vezes criticava sua conduta e algumas de suas atitudes ... O povo
se tornou alvo do escárnio.
Como assinalado anteriormente, a Gazetinha
construiu a imagem de
uma Porto Alegre tomada pelo vício e pela devassidão, repleta de perigos para as
famílias de bem, por suas ruas sujas, mal-iluminadas, com o trânsito de elementos
suspeitos. A fala foi construída em diferentes espaços do jornal: a presença do tema
nas capas, colunas, anúncios publicitários e charges, reforça a hipótese da agenda
setting, a partir da constituição de códigos fortes que pautavam as discussões na
sociedade.
Trabalha-se, aqui, com a hipótese de que os códigos morais
estabelecidos foram, também, reforçados por estereótipos existentes na sociedade,
com relação a papéis sociais assumidos, que regulavam os comportamentos em
sociedade e a fala oficial (representada, aqui, pelo jornalismo). Estereótipos, estes,
que dizem respeito ao imaginário social construído tanto pela literatura sul-rio-
grandense quanto pelo próprio jornalismo.
se precisa; corrigiram-se aos poucos as posturas; lentamente uma coação calculada percorre cada
parte do corpo, se assenhora dele, dobra o conjunto, torna-o perpetuamente disponível, e se
prolonga, em silêncio, no automatismo dos hábitos; em resumo, foi‘expulso o camponês e lhe foi
dada a fisionomia de soldado. (Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2005,
p.117-118) Também para o autor, “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado,
que pode ser transformado e aperfeiçoado” (p.118).
Walter Lippmann discute a questão dos estereótipos ao abordar o tema
da opinião pública
215
. Os estereótipos, assim, envolvem o problema da aquisição do
significado pelas coisas, ou de dar forma a hábitos de uma simples apreensão. Mas
o tipo da definição e da consistência sobre os significados atribuídos depende de
quem o introduz
216
.
Assim, os estereótipos o produtos de uma fala hegemônica.
Problematizando-se a Gazetinha
, que se considerar, portanto, que o discurso
hegemônico na sociedade porto-alegrense do século XIX era o masculino, uma vez
que os homens de Letras eram os que produziam os jornais. Poucas, ou raras,
foram as participações femininas, como a de Luciana de Abreu, que encontrou
destaque na Revista do Partenon Literário
, publicada anos antes. A
profissionalização do jornalismo e a ampliação das noções de mercado que cercam
este ambiente somente encontrariam lugar no culo XX. Em se tratando de um
discurso predominantemente masculino, tanto a literatura quanto o jornal veiculavam
estereótipos em relação a comportamentos e papéis sociais. Em ambos, a figura da
prostituta ou a imagem sensualizada da mulher eram repudiadas por intermédio dos
códigos morais de fala utilizados, que atribuíam significados a essas figuras.
Lippmann trabalha o entendimento de que se define, primeiramente, e,
somente então, se
217
. Existia um conhecimento prévio que se antecipa ao nosso
olhar: um preconceito. No caso da Gazetinha, os atos das pessoas acabam
balizados por essa fala estereotipada que se espalhou na sociedade e que se tornou
hegemônica, ainda que nem todos tivessem o acesso à leitura, por razões
anteriormente discutidas. Para o autor, se não se pode compreender inteiramente os
atos de outras pessoas, antes de saber o que elas pensam que sabem, a fim de
fazer então a justiça, tem-se que identificar não somente a informação que esteve
em sua eliminação, mas as mentes que as filtraram. uma informação
interceptada para estabelecer os tipos aceitos, os padrões atuais, as versões padrão
218
.
215
LIPPMANN, Walter. Public opinion. New York / London: Free Press / Collier-Macmillan,
1966.
216
LIPPMANN, Walter. Op. Cit, p.45.
217
LIPPMANN, Walter. Op. Cit, p.55.
218
LIPPMANN, Walter. Op. Cit,, p.57.
O que importa no caráter dos estereótipos é a forma como é
empregado, em conformidade com as padronizações que constituem a filosofia da
vida de cada um. Se, nessa filosofia se supõe que o mundo está codificado de
acordo com um código que se possui, tende-se a fazer entendimentos sobre o que
está acontecendo, ou uma descrição de um mundo de acordo com o código
individual. Mas, conforme adverte Lippmannm, se a filosofia particular diz que cada
homem é somente uma parte pequena do mundo, que é parte de uma rede
grosseira das idéias, então, quando se usam estereótipos próprios, tende-se a saber
que são somente estereótipos, para os modificar. Percebe-se, então, mais e mais
claramente quando as idéias pessoais começaram, onde começaram, como vieram,
por que são aceitas. Permite-se, enfim, saber que contos de fadas, livros de escola,
tradições e frases, plantaram um preconceito na mentalidade coletiva
219
.
O estereótipo, por conseqüência, é altamente carregado com os
sentimentos a que lhes são unidos. São a fortaleza da tradição e ,atrás de suas
defesas, pode-se continuar a se sentir seguro na posição em que se ocupa
220
. O
olhar é treinado para ver da maneira como o estereótipo formou
221
. Se o que se
está olhando corresponde com sucesso ao que se antecipa, os estereótipos o
reforçados para o futuro
222
. Afinal, não se o que os olhos não estão acostumados
a considerar
223
. Às vezes conscientemente, mas com freqüência sem sabê-lo, fica-
se impressionado pelos fatos que cabem na filosofia individual de vida, ou seja, os
estereótipos. Essa filosofia constitui, mais ou menos, uma série organizada de
imagens para descrever o mundo despercebido, mas não somente para explicá-
lo/descrevê-lo, para julgá-lo também. E, conseqüentemente, os estereótipos são
carregados com as preferências, a afeição ou o desagrado, unidos aos medos, à
luxúria, aos desejos fortes, ao orgulho, à esperança. O que quer que invoque o
estereótipo, é julgado com o sentimento apropriado
224
. Enquanto o ajuste ao
código individual, há o ajuste dos fatos que se vê nesse código.
As abordagens dos jornais são construídas como narrativas. Buscam
atingir o leitor, através da piedade, do horror, ou seja, pelo envolvimento emocional.
219
LIPPMANN, Walter. Op. Cit,, p.60.
220
LIPPMANN, Walter. Op. Cit,, p.64.
221
LIPPMANN, Walter. Op. Cit, p.65.
222
LIPPMANN, Walter. Op. Cit,, p.65.
223
LIPPMANN, Walter. Op. Cit, p.75.
224
LIPPMANN, Walter. Op. Cit,, p.78.
A narrativa dada torna-se fundamental; a intriga, uma constante. Elementos que se
constituem em imitações das ações humanas, como previra Aristóteles em sua
Poética. Esses elementos estavam presentes, portanto, nos textos e imagens
trabalhados pela Gazetinha
em uma época onde Jornalismo e Literatura
encontravam-se muito próximos
225
. A estrutura do texto literário encontra suas bases
de entendimento nos estudos de Aristóteles.
Aristóteles (384 AC 322 AC) dedicou-se, na sua Poética, a estudar o
fenômeno do teatro. Explicita os elementos componentes da poesia a partir da
análise de três grandes gêneros: a tragédia, a comédia e a epopéia. Privilegia a
tragédia, como forma superior aos dois outros gêneros literários
226
.
Aristóteles sugere que o teatro, envolvendo o ato de representação, é
algo natural no ser humano, uma vez que, para representar, é preciso imitar algo.
Para o autor, poesia é imitação: ao que parece, duas causas, e ambas naturais,
geraram a poesia: o imitar é congênito no homem (e nisso difere dos outros
viventes, pois, de todos, é ele o mais imitador, e, por imitação, aprende as primeiras
noções), e os homens se comprazem no imitado
227.
A partir desta perspectiva, a
formação dos estereótipos e dos elementos intrigantes, de apelo emocional, também
seriam um produto dessa capacidade de imitação inerente ao ser humano.
Segundo Aristóteles, por intermédio de uma peça teatral, imitam-se
ações humanas, utilizando-se o recurso da mímese
228
. A transposição das ações
225
Segundo Manuel Medel, resulta inegável a influência de pautas de escritura e modelos
literários para a construção de determinados discursos jornalísticos, não é de menor importância a
presença do jornalismo (com seus temas, recursos, procedimentos e técnicas) na criação literária
(especialmente no século XX), sem esquecer o fato de que as figuras do escritor e do jornalista
(sobretudo de opinião) às vezes coincidem com a mesma pessoa (MEDEL, Manuel Angel Vasquez.
Discurso literário e discurso jornalístico: convergências e divergências. In: CASTRO, Gustavo de &
GALENO, Alex. Jornalismo e literatura: a sedução da palavra. São Paulo: Escrituras, 2002, p.15).
226
Especula-se que o autor teria escrito uma obra específica sobre a comédia, razão pela qual
na Poética muito pouco se refere a ela.
227
ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.445.
228
Entretanto, Marvin Carlson, em estudo acerca das teorias teatrais da Antigüidade aos dias
atuais, aponta que não definição exata quantos aos conceitos-chave existentes na Poética de
Aristóteles, o que ocorre, por exemplo, com o termo mímese: Aristóteles emprega nitidamente a
palavra para significar o simples ato de copiar no começo do capítulo 4, diz que o homem aprende
suas primeiras lições por meio da imitação –, mas também nitidamente, logo acrescenta algo mais:
no capítulo 15, por exemplo, os bons pintores retratistas o aqueles que reproduzem os traços
distintivos de um homem, mas, ao mesmo tempo, fazem-no mais belo do que de fato o é. O que se
acrescenta não é embelezamento e sim preenchimento; o que se imita é um ideal de que o exemplo
tende a aproximar-se, porém ainda não atingiu (CARLSON, Marvin. Teorias do teatro: Estudo
histórico-crítico dos gregos à atualidade. São Paulo: Unesp, 1997, p.14 / 15). Segundo Patrice
humanas para o meio verbal é feita pelo modo narrativo ou dramático. Na mímese,
um importante elemento da representação, pois ela envolve um conhecimento
original do representado, sem o qual não há imitação.
Outro elemento fundamental para o pensador grego é a catarse, que
pode ser entendida como a purgação do espectador / leitor mediante sua
identificação com os personagens, com a história, quando considera que aquilo que
está sendo representado poderia acontecer com ele próprio
229
. Haveria, portanto,
uma espécie de purificação da alma ou das emoções por meio da descarga
emocional provocada por um drama. Na tragédia grega, a catarse ocorreria quando
o herói da trama passasse da felicidade para a infelicidade, não ao acaso, mas
como conseqüência de ações ou escolhas malfeitas por ele. Essa situação pode
suscitar, no leitor, o terror e a piedade, especialmente se os envolvidos na tragédia
possuírem laços de sangue, razão pela qual a catarse estaria mais relacionada aos
textos trágicos do que aos cômicos.
Roger Chartier, abordando a História das Mentalidades
230
, utiliza a
noção de representação coletiva, sendo que a idéia de representação de algo, de
uma idéia, de um pensamento, de aspectos da mentalidade de uma época,
interessam ao historiador. Segundo Chartier,
Pavis, a mímese é a imitação ou a representação de uma coisa (PAVIS, Patrice. Dicionário de
teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999. p. 241).
229
O termo catarse pode ser entendido tanto em seu significado médico, como metafísico ou
estético, este último relacionado à literatura dramática. Platão designou-a como termo de acepção
moral e metafísica, entendendo-a como a libertação em relação aos prazeres; em segundo lugar, a
libertação da alma em relação ao corpo, no sentido de que a alma se separa ou se retira das
atividades físicas, em vida, a separação total, que é a morte. Aristóteles teria empregado o termo
para designar um fenômeno estético, uma espécie de libertação ou serenidade que a poesia e, em
particular, o drama e a música provocam no homem. (...) algumas pessoas, fortemente abaladas por
emoções como piedade, medo e entusiasmo, ao ouvirem cantos sacros que impressionam a alma,
‘encontram-se nas condições de quem foi curado ou purificado. (ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de
filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.120) Conforme Pavis, Aristóteles descreve na Poética a
purgação das paixões (essencialmente terror e piedade) no próprio momento de sua produção no
espectador que se identifica com o herói trágico. Há catarse também quando é empregada a música
no teatro (PAVIS, Patrice. Op. Cit., p.40).
230
A História das Mentalidades concilia novos domínios de investigação com a fidelidade aos
postulados da história social. Desta forma, aborda as atitudes perante a vida e a morte, as crenças e
os comportamentos religiosos, os sistemas de parentesco e as relações familiares, os rituais, as
formas de sociabilidade, entre outros objetos, para reconstruir a história de uma dada sociedade,
utilizando-se inclusive de elementos de disciplinas vizinhas. Segundo Jacques Le Goff, o nível da
história das mentalidades é o do cotidiano e do automático, é aquilo que escapa aos sujeitos
individuais da história porque revelador do conteúdo impessoal do seu pensamento.(LE GOFF,
Jacques. Apud. CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa:
Difel, 1990,p.41).
pode-se pensar uma história cultural do social, que
tome por objeto a compreensão das formas e dos motivos ou, por
outras palavras, das representações do mundo social que, à
revelia dos atores sociais, traduzem as suas posições e interesses
objetivamente confrontados e que, paralelamente, descrevem a
sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse
231
.
Chartier também trabalha com a idéia de forma simbólica, que abrange
todas as categorias e processos que constroem o mundo como representação. A
função simbólica é uma função mediadora que informa as diferentes modalidades de
apreensão do real: fornece-se uma organização conceitual ao mundo social e
constrói-se, assim, uma realidade apreendida e comunicada
232
.
Estes elementos são melhor trabalhados, no jornal, no espaço opinativo.
É importante, portanto, para o entendimento da influência dos estereótipos na
assimilação da informação trabalhada nos jornais, compreender o papel do
jornalismo opinativo. Segundo José Marques de Melo, o jornalismo se articula com
os veículos que tornam públicas suas mensagens, o que não significa que o
conteúdo seja, necessariamente, jornalístico
233
. Assim, um jornal pode ter diferentes
formatos e diferentes propostas. O seu peso pode recair sobre a imagem, sobre a
denúncia, sobre os anúncios publicitários. Pode ter caráter informativo, opinativo,
interpretativo, conforme está relacionado na tabela a seguir:
TABELA 7: Classificação dos gêneros jornalísticos, segundo Luiz Beltrão:
INFORMATIVO INTERPRETATIVO OPINATIVO
1. Notícia 5. Reportagem em
profundidade
6. Editorial
2. Reportagem 7. Artigo
3. História de interesse humano
8. Crônica
231
CHARTIER, Roger. Op. Cit,p.19.
232
CHARTIER, Roger. Op. Cit.., p.19.
233
MELO, José Marques de. A opinião no jornalismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1994,
p.12.
9. Opinião Ilustrada
4. Informação pela imagem 10. Opinião do Leitor
Fonte: MELO, José Marques de. A opinião no jornalismo brasileiro. Petrópolis: Vozes,
1994
Assim, pode desenvolver dos temas mais amenos aos investigativos.
Entretanto, seja qual for a abordagem trabalhada, existe um ponto comum, que é o
apego ao real, fazendo-se, porém, a ressalva de que, ao representar o real,
trabalha-se com versões dos fatos. A partir daí, o jornalismo desenvolve o elemento
persuasivo.
Para Melo, com o desenvolvimento maior da imprensa, a partir do final
do século XIX, (período, cabe aqui ressaltar, da publicação da Gazetinha
), o
jornalismo opinativo passou a ficar mais restrito ao espaço dos editoriais
234
. Antes
disso, o informativo e o opinativo, de certa forma, foram trabalhados juntos. Foi o
que pareceu ocorrer com a Gazetinha
em suas ginas: o elemento opinativo não
estava restrito àquele espaço, transpondo-se aos demais, entre textos de colunas e
ilustrações. Ao mesmo tempo em que o jornal informava sobre os acontecimentos
em Porto Alegre, emitia opiniões sobre eles, especialmente sobre as temáticas que
envolviam comportamentos, papéis sociais e estereótipos criados. Tal
encaminhamento reforçava leituras sobre a campanha contra a prostituição,
podendo ser articulada com a Hipótese de Agendamento.
O jornalismo opinativo desenvolve a proposta de influenciar o leitor
235
, exercitando o
elemento opinativo do jornal. Os meios de comunicação se tornam aparatos
ideológicos: agem influenciando pessoas, comovendo grupos, mobilizando
comunidades, dentro das contradições que marcam as sociedades. São, portanto,
veículos que se movem na direção que lhes é dada pelas forças sociais que os
234
MELO, José Marques de. Op. Cit., p.23.
235
O Jornalismo articula-se em função de dois núcleos: a informação (saber o que se passa) e a
opinião (saber o que se pensa sobre o que se passa): Daí o relato jornalístico haver assumido duas
modalidades: a descrição e a versão dos fatos. É neste ponto que reside a autonomia do processo
jornalístico (MELO, Jo Marques de. Op. Cit
, p.63). Para o autor, os meios de comunicação se
movem na direção que lhes é dada pelas forças sociais que os controlam e que refletem também as
contradições inerentes às estruturas societárias em que existem (p.67).
controlam e que refletem também as contradições inerentes às estruturas societárias
que existem
236
.
Foi o que se percebeu no caso da Gazetinha
que, ao abordar um tema
tão polêmico, como o que envolvia a moralidade da sociedade porto-alegrense,
buscava a comoção do blico leitor e o envolvimento emocional, ao apelar para os
perigos que a questão representava para as famílias de bem.
A abordagem construída pelo jornal permitiu vislumbrar aspectos
expostos pelo veículo, ao mesmo tempo em que insinuava os que estavam ocultos,
sugerindo alguns silêncios. Em que medida a fala da Gazetinha
não faz refletir sobre
comportamentos e mentalidades dos porto-alegrenses na virada do culo não
retratados, necessariamente, nos jornais? Em que medida a insistência pela
erradicação das casas de má fama, como uma pretensa fala generalizada, não
sugere a existência de um comportamento exatamente oposto, mas que, justamente
por isso, não poderia vir à luz explicitamente, oficializado, por não se encaixar no
modelo de retidão comportamental estereotipado? Assim, o dito, no jornal, acabava
por revelar o não-dito, conforme salienta Mouillaud:
No próprio momento em que o acontecimento é
projetado, um processo inverso o põe a distância como algo
que é impossível de atingir-se ou, pelo menos, do qual a
totalidade escapa. Todo acontecimento pressuporia que fossem
desdobrados, um saber e um não-saber, um mundo e um fim de
mundo. Os grandes acontecimentos da mídia sejam aqueles
que permitem não somente ver, mas não ver. Seria aqui o caso
de uma estratégia da mídia que injeta mais-valia à informação,
fazendo recuar o acontecimento em um fundo de trevas; menos
este é suscetível de ser conhecido, mais ele contém valor
informativo. O acontecimento seria um recurso cujo valor
residiria menos no que ele é do que no que não é. O excesso
não estaria do lado onde se o deplora ordinariamente (um
excesso de informações, de palavras e de imagens). Seria um
excesso no não-saber; existiria um excesso a conhecer
atribuído ao acontecimento, uma sobrecarga de sentido
adicionada a seu sentido
237
[grifo meu].
236
MELO, José Marques de. Op. Cit, p.67.
237
MOUILLAUD, Maurice. A crítica do acontecimento ou o fato em questão. In: MOUILLAUD,
Maurice & PORTO, rgio Dayrell. (org.) O jornal: Da forma ao sentido. Brasília: UnB,2002, p.81. O
autor ainda salienta que seria ingênuo imputar à mídia uma estratégia da qual ela fosse a grande
maquinadora. Deve-se preferencialmente vislumbrar uma correspondência entre as estratégias da
mídia e das fontes. As fontes tendem a reter a informação como um buraco negro atrai para si a luz.
Isto ocorre porque a imprensa constrói imagens. Para Mouillaud,
promover uma imagem é destacar do real um simulacro. O que se construído,
portanto, não é a realidade em si, mas um simulacro dela, a partir do momento em
que foram feitas opções pelo veículo, pelo colunista, uma vez trabalhados seus
pontos de vista: O gesto de pôr adiante é inseparável de um olhar que vem a seu
encontro
238
. Percebe-se, neste ponto, a capacidade de mobilização da imprensa,
pois pôr em visibilidade implica poder: decide-se o que pode ser visto e o que não
pode ser
239
.
O próprio formato do jornal e aqueles que o produzem comandam o que
será publicado posteriormente. É o que Mouillaud chama de genética do texto: o
jornal é a matriz que existe antes do texto e que acaba por defini-lo, antes mesmo
que ele exista, na prática. Ao mesmo tempo, é preciso considerar que o texto
produzido também contribui com o jornal, também pode precedê-lo, assim como a
forma precede ao texto, conforme salienta o autor:
Se agora considerarmos a relação do dispositivo e
do texto de um ponto de vista genético, vemos que existe uma
antecedência invertida de um para o outro, em que cada qual
desempenha, de forma alternada, o papel de gerador.
Descrevemos os dispositivos como sendo matrizes (muito mais
que suportes) em que se vinham inscrever os textos. Neste
sentido (livro, jornal, canção, disco, filme etc.) existe antes do
texto, ele o precede, comanda sua duração e a extensão. A
antecipação do dispositivo não significa, contudo, a passividade
do texto. Se o jornal gerou os títulos, como a cidade gerou a
vitrine e as tabuletas, os títulos fazem’ o jornal e as tabuletas a
Qualquer que seja o sistema (e não unicamente os sistemas políticos), ele tende a ocultar seu
funcionamento em sua função: ocultando-se, produz um efeito de segredo (p.81).
238
MOUILLAUD, Maurice. A informação ou parte da sombra. In: MOUILLAUD, Maurice &
PORTO, Sérgio Dayrell. (org.) Op. Cit
., p.37.
239
MOUILLAUD, Maurice. A informação ou parte da sombra. In: MOUILLAUD, Maurice &
PORTO, Sérgio Dayrell. (org.) Op. Cit
, p.38. Para o autor, produzir uma informação supõe a
transformação de dados que estão no estado difuso, em unidades homogêneas. Um processo que
não é a propriedade da mídia. Esta apenas representa o fim de um trabalho social, uma formação
que começa a montante dos aparelhos propriamente da mídia. A manifestação é apenas um dos
múltiplos operadores pelos quais uma sociedade se torna visível a si própria (p.42). Dizer o que
ocorreu obriga a uma seleção de dados, a partir de uma variável grande de critérios (do veículo,
daquele que produz o texto, a partir de noções de mercado, de público-alvo, espaço no jornal na
comunidade): a intriga supõe uma escolha arbitrária dos dados e dada uma das escolhas induz a
uma história diferente. Múltiplos outros cenários permanecem virtuais e nunca serão escritos (p.43).
cidade, da qual elas o a receita. (...) Em outro sentido, o texto
precede o dispositivo
240
.
Foi levando em consideração essas questões que serão analisados os
códigos morais construídos na Gazetinha. A partir dos textos de capa, das colunas
publicadas (como “Apanhados” e “Pela Imoralidade”), e das charges, a fala da
Gazetinha acabou se referindo não apenas à conduta de alguns, em particular, mas
à própria organização do espaço urbano. O momento social parecia ser o da
necessidade da disciplina. Para que o mérito fosse alcançado, não bastaria
sugestionar como o indivíduo deveria conduzir sua vida privada; a partir do momento
em que ele tinha uma vida pública, esta também deveria ser monitorada. As
abordagens trabalhadas e os códigos empregados produziram reflexos em anúncios
publicitários que se utilizaram de imagens femininas para vender seus produtos.
Assim, também esses anúncios se constituirão em objeto de análise neste estudo.
Foi justamente uma fala tão direta e tão pouco polida que possibilitou a
formação de um código forte, como sugere Epstein. Afinal, foram repetidas as vezes
em que a temática da moralidade e da prostituição foi abordada, em diferentes
espaços. Assim, pode-se trabalhar a hipótese de que foi essa insistência e a
presença constante do tema nas páginas da Gazetinha, somadas à abordagem em
outros veículos (outros jornais, o teatro, a literatura) que formaram o código forte que
permitiu a constituição de uma mentalidade coletiva a respeito do tema e a
construção de estereótipos a respeito da mulher da época e dos comportamentos
ideais. O agenciamento do poder (por meio de uma fala pensada e ritmada), tanto
quanto o agendamento pela mídia, construíram os códigos necessários para a
consolidação de uma mentalidade cujos elementos ainda hoje são sentidos.
Buscou-se, por intermédio da formação desse código forte, o
envolvimento emocional do leitor com as narrativas (visuais e textuais)
apresentadas, uma vez que eram discutidas cenas presentes no cotidiano, portanto,
240
MOUILLAUD, Maurice. A informação ou parte da sombra. Op. Cit, p.33. O dispositivo impõe
forma ao texto. Para o autor, os dispositivos são os lugares materiais ou imateriais nos quais se
inscrevem (necessariamente) os textos (despachos de agências, jornal, livro, rádio, televisão, etc.)
(p.34). O texto é qualquer forma de inscrição. Considerados do ponto de vista genético, o dispositivo
e o texto se precedem e determinam-se de maneira alternada (o dispositivo pode aparecer como uma
sedimentação do texto, e o texto, como uma variante do dispositivo, por exemplo, um número do
jornal diário e sua coleção) (p.35).
próximas do público leitor. A atmosfera supostamente sensacionalista, como foi dito
em momento anterior deste estudo, com abordagens constantes de assassinatos e
casos de abuso sexual, contribuiu para a criação de uma imagem de caos em uma
cidade que se queria civilizada. A proximidade das ocorrências com a vida do
público leitor, até mesmo se for considerada o quão pequena era a cidade de Porto
Alegre naquele momento, facilitava a identificação ou o temor dos leitores com
relação aos temas discutidos, viabilizado pelo conceito de catarse de Aristóteles.
3.1. As capas
A Gazetinha
, conforme foi visto anteriormente, e pelo que pôde ser
percebido por meio das cartas dos leitores, consolidou-se, em Porto Alegre, como
um veículo crítico, e mesmo de denúncia. O espaço da capa tinha características
fortes nesse sentido. Enquanto as colunas e charges eram reservadas,
aparentemente, para uma crítica do cotidiano, era na capa que os comentários sobre
a situação política e econômica do Rio Grande do Sul e do país eram tecidos. Em
meio a essa concepção, foi também na capa que estavam estampadas as maiores
críticas às autoridades locais, quanto ao controle das espeluncas e aos
comportamentos nas ruas de Porto Alegre.
Formou-se um espaço, na capa, específico para isso: a seção “Pela
Imoralidade”, se detinha, em muitos momentos, a narrar os episódios escandalosos
que envolviam o bordel da cafetina Fausta. Na maioria das vezes, a abordagem não
era feita somente no sentido de denunciar o que ocorria nesses locais, mas a
ressaltar o quanto a guarda municipal parecia inoperante frente às ocorrências.
Sob a ótica de Michel Foucault, a disciplina envolve o cerceamento,
separando-se os corpos em espaços diferentes. Trabalha-se a idéia de cada
indivíduo no seu lugar e, em cada lugar, um indivíduo. Na Gazetinha
, além da
solicitação de maior ação das autoridades policiais para a disciplina, solicitava-
se/pregava-se pelo o desejo pela limpeza da cidade, dos indivíduos e dos locais que
promoviam a devassidão, conforme o salientado por Foucault:
A disciplina às vezes exige a cerca, a especificação
de um local heterogêneo a todos os outros e fechado em si
mesmo. Local protegido da monotonia disciplinar. Houve o grande
‘encarceramento’ dos vagabundos e dos miseráveis, houve outros
mais discretos, mas insidiosos e eficientes
241
.
Assim, para o autor, a idéia da disciplina vem acompanhada da
concepção de espaço útil. A mesma concepção parece se aplicar em Porto Alegre,
na virada para o século XX:
Lugares determinados se definem para satisfazer
não só à necessidade de vigiar, de romper as comunicações
perigosas, mas também de criar um espaço útil. (...) Pouco a
pouco um espaço administrativo e político se articula em espaço
terapêutico; tende a individualizar os corpos, as doenças, os
sintomas, as vidas e as mortes; constitui um quadro real de
singularidades justapostas e cuidadosamente distintas
242
.
O controle far-se-ia necessário sobre todas as formas de conduta. Se
era forte a fala contra a prostituição naquele momento, ela era complementada por
uma série de outros discursos elaborados, de forma a dar ênfase ao que se
pretendia com relação às posturas sociais do período. A idéia, provavelmente, era a
de conferir retidão a esses comportamentos. Assim, ainda que a prostituição fosse o
alvo maior na fala dos jornalistas, também havia espaço reservado para as
denúncias de escândalos morais de outros cidadãos, como mocinhas que buscavam
namorar às escondidas, mulheres que recebiam homens em sua casa, na calada da
noite (mesmo as casadas...), ou ainda sofredoras, com o coração partido... De
qualquer forma, a mulher era figura central, naquele momento, dos discursos
moralistas da Gazetinha
. A vigilância de suas atitudes seria uma constante, na
tentativa de formar corpos dóceis, conforme salienta Foucault:
241
FOUCAULT, Op. Cit. p.122 e 123.
242
FOUCAULT, Op. Cit. p.122 e 123.
Forma-se então uma política das coerções que são
um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus
elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo
humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o
desarticula e o recompõe. Uma anatomia política, que é também
igualmente uma mecânica do poder, está nascendo, ela define
como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não
simplesmente para que façam o que se quer, mas para que
operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a
eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos
submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as
forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui
essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)
243
.
O propósito parecia ser, ao escandalizar e criar polêmica em torno de
questões relacionadas, criar a obediência da população aos comportamentos
desejados. Assim, conforme enfatiza Foucault, a busca de técnicas para coerção
individual e coletiva, em uma espécie de disciplina militar:
Pode-se dizer que a disciplina produz, a partir dos corpos que controla,
quatro tipos de individualidade, ou antes uma individualidade dotada de quatro
características: é celular (pelo jogo da repartição espacial), é orgânica (pela
codificação das atividades), é genética (pela acumulação do tempo), é combinatória
(pela composição das forças). E, para tanto, utiliza quatro grandes técnicas: constrói
quadros; prescreve manobras; impõe exercícios; enfim, para realizar a combinação
das forças, organiza táticas
244
.
Os recursos para a boa obediência e o que o autor chamaria de bom
adestramento passariam por jogos de olhar, sendo, portanto, visíveis. Esse olhar
seria constantemente exercitado pela Gazetinha
, em campanhas declaradas pela
moralidade pública, com o foco centrado na prostituição: O exercício da disciplina
supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um aparelho onde as técnicas
que permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de
coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam
245
. A vigilância
se tornou fator decisivo. Foi colocando-se ao lado do povo, com o dever de protegê-
243
FOUCAULT, Op. Cit. p.119.
244
FOUCAULT, Op. Cit, p.141.
245
FOUCAULT, Op. Cit p.143.
lo, que o jornal empreendeu sua jornada contra as chamadas espeluncas, as casas
de prostituição e de jogos que tomavam conta da atual Borges de Medeiros.
O que se percebe é que o contraste entre modelos ideais de
comportamento e as condutas vistas nas ruas de Porto Alegre, onde se cruzavam
representantes de uma elite, que ditava normas, e representantes das camadas
populares da sociedade, criou uma atmosfera de violência que, conforme a fala da
imprensa, deveria ser freada. Adotou-se, portanto, nessa fala, e nas cobranças feitas
aos poderes públicos, uma postura de coerção, conforme sugere Rachel Soihet:
A violência seria presença marcante nesse
processo. Ainda mais que naquele momento a postura das
classes dominantes era mais de coerção do que de direção
intelectual ou moral. A análise do caráter multiforme da violência
que incidia sobre as mulheres pobres e das respostas por elas
encontradas para fazer face às mazelas do sistema ou dos
agentes de sua opressão é fundamental. Cabe considerar que
não a violência estrutural que incidia sobre as mulheres, mas
também aquelas formas específicas decorrentes de sua condição
de gênero; esses aspectos se cruzam na maioria das situações
246
.
Cabe, também, salientar o papel ativo do receptor nos atuais estudos de
comunicação e nesta análise, em particular. Assim, ainda que aspectos subjetivos
sejam considerados na recepção dos dados veiculados, o campo de análise da
hipótese de agenda considera que os meios pautam o conteúdo da agenda do leitor,
sugestionando-o sobre o que pensar (não impondo necessariamente um enfoque),
afetando, sobretudo, os indivíduos que o possuem posicionamento sobre a
temática em questão.
Tendo seu início em 1895, a campanha ficaria mais acirrada em 1896,
quando as cobranças das autoridades pelo controle disciplinar do Centro da cidade
e pela punição dos agitadores tornou-se também mais intensa. Em março daquele
ano, o jornal reforçou esse seu papel social na capa:
246
SOIHET, Rachel. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In: PRIORE, Mary Del (org).
História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997, p. 363.
Embora o nosso esforço em benefício da moralidade
pública, isto é, a campanha que levamos travada contra a
existência das espeluncas desta Capital tenha sido estéril, pois até
hoje a autoridade competente não dignou-se considerar
devidamente o quanto temos publicado nestas colunas a respeito
daquele assunto, embora estejamos clamando no deserto,
prosseguiremos mostrando à população honesta desta cidade a
podridão do vício que aqui alastra-se cada vez mais,
continuaremos a denunciar os covis, as espeluncas onde perdem-
se para a vida honrada mulheres que se deixam vencer pelas
cantilenas falsárias dos ‘D. Juans’ de todas as condições sociais
247
.
A vigilância, portanto, recaía não apenas sobre aqueles que poderiam
ser apontados como criminosos, por instigar o vício e a imoralidade, mas também
sobre as atitudes inoperantes das autoridades, a quem caberia a obrigação da
vigilância. É como se a vigilância fosse transferida à Gazetinha, mostrando-se a
Intendência Municipal ineficaz neste sentido.
Em janeiro de 1896, a capa da Gazetinha
foi dedicada a fazer um
panorama da vida de Porto Alegre na virada do século. Reportando-se a assaltos,
assassinatos, barbáries, agressões e desordens, o jornal se perguntava: Onde
vamos parar com esta continuidade de fatos?
248
Reconheceu-se que existiam
autoridades policiais e que tomavam determinadas atitudes para manter a ordem na
cidade, entretanto, as medidas pareciam não ser suficientes. O jornal afirmava,
claramente, que não temos satisfatória resposta para o imprevisto que todos os dias
nos assalta, apresentando as cenas mais requintadas de perversidade levada ao
excesso
249
.
A fala da Gazetinha
, naquele momento, era de revolta, e os termos
empregados acabaram por constituir um código forte, aliado ao agendamento da
mídia sobre a questão:
A lei garante o indivíduo, de que modo? Fazendo a
polícia operar, ter exercício dentro dos limites de suas atribuições.
A ela compete, pois, fazer justiça e privar para todo o sempre a
sociedade dos maus elementos, que se põem em ativa
247
Gazetinha, Porto Alegre, 15 de março de 1896.
248
Gazetinha, Porto Alegre, 12 de janeiro de 1896, capa.
249
Gazetinha, Porto Alegre, 12 de janeiro de 1896, capa.
conspiração contra a sua tranqüilidade e foros incontestes de
civilizada
250
.
A paz da cidade, de acordo com a Gazetinha
, parecia ser quebrada pela
atividade imoral exercida em determinadas ruas, como o Beco do Poço, Rua Clara,
Rua Dr. Flores, Rua dos Pecados Mortais e Alto da Bronze, dentre outros
famigerados espaços
251
. As palavras do jornal culpavam as autoridades pela
manutenção da desordem nestes lugares:
Bastará que a autoridade competente responsabilize
os proprietários das mesmas [as chamadas espeluncas] pelos
desvarios que os seus fregueses praticarem, porque nestes casos,
os ditos proprietários, no intuito de salvaguardarem-se da ação
policial, serão os primeiros a evitar que em suas casas
aglomerem-se aqueles que, por efeito do álcool ou por veso
arraigado possam dar causa a conflitos
252
.
O jornal, portanto, apontava uma solução: tornar os proprietários dos
bares, bordéis e bodegas responsáveis por todas as irregularidades cometidas pela
clientela. Para a Gazetinha
, se isso fosse colocado em prática, diminuiria
sensivelmente o encaminhamento de vândalos e bêbados à Casa de Correção, pois
o jornal argumentava que a maior parte das arruaças cometidas era provocada pelo
tipo de atividade promovida naqueles locais.
Na edição seguinte, o jornal reconheceu e salientou que estava
realmente em campanha pela moralidade em Porto Alegre e contra as atividades
das espeluncas, vistas como as maiores causadoras de todos os casos de
desordem na cidade. A fala, que continuaria a ter o mesmo tom até meados do ano
de 1897, e que já dava sinais de campanha em 1895, por meio de charges e
caricaturas, encontrava repercussão nas ruas e tomava espaço também em outros
veículos de comunicação. Jornais como a Gazeta da Tarde
e O Mercantil passaram
a ter preocupações semelhantes e atacavam os mesmos alvos: as ruas, a
250
Gazetinha, Porto Alegre, 12 de janeiro de 1896, capa.
251
Na coluna “Apanhados” de 8 de março de 1896, publica-se: que resultado obtém-se com a
existência desses ínfimos antros em nosso centro comercial e decente?
252
Gazetinha, Porto Alegre, 12 de março de 1896, capa.
prostituição e a figura de Fausta. Naquela ocasião, a Gazetinha atacava duramente
as autoridades policiais, o que assinala um comportamento da imprensa da época
bastante diferente dos dias atuais. Se, nos tempos que correm, existe uma
preocupação em demonstrar uma suposta imparcialidade por parte dos próprios
veículos (ainda que seja dificilmente alcançada), a imprensa do século XIX (e
mesmo em transição para o culo XX) estava claramente posicionada frente a uma
série de questões. O veiculo, assim, acabava se prontificando a também receber
ataques, tanto de autoridades, quanto de políticos e, por que não, do próprio público,
que poderia se sentir atacado em alguns momentos (a exemplo dos que eram
citados na coluna do Beija-Flor).
Na edição de 15 de março de 1896, portanto, como foi comentado
anteriormente, a Gazetinha
publicou na capa, com o título de “Pela Imoralidade”,
artigo que daria início a uma série de textos com o mesmo teor:
É preciso que compreendam que o nosso intuito
não é unicamente atirar à execração social o criminoso de lesa-
moral; a nossa intenção é mais extensa, alcança um fim mais
vasto e tão vasto quanto nobre: queremos que se evite a
facilidade com que a imoralidade abriga-se e desenvolve-se por
todos os pontos de Porto Alegre
253
.
No mesmo texto, a Gazetinha
argumentou com o caso de um homem
acusado de agenciar uma menina no mundo da prostituição, tendo a polícia sido
absolutamente inoperante na questão. Mais uma vez, o jornal fez duras acusações
quanto aos procedimentos das autoridades. Ao que pareceu, o que ocorria em Porto
Alegre não era culpa somente das atividades das espeluncas, mas da própria
polícia, pela sua falta de atenção, como se permitisse os desvios de comportamento:
Não muito tempo, andou pelas ruas da cidade
um miserável polaco negociando com o corpo de uma
desgraçada menina, sua compatriota. A polícia lançou mão deste
nojento cáften e da menina e então esta, à autoridade, fez
revelações importantes nas quais deduzia-se facilmente que o
Hotel Portugal, sito na rua 24 de Maio, era uma das tantas casas
públicas onde quartos e camas para alugar a tanto por hora a
qualquer casal desconhecido. Foi intimado pela polícia o
253
Gazetinha, Porto Alegre, 15 de março de 1896, capa.
proprietário daquele hotel a restringir o seu sistema de ganhar
dinheiro? Não. E talvez não o intimassem porque a constituição
garante a liberdade profissional... E ainda servindo-se desta
mesma garantia, o citado proprietário insiste no mesmo sistema,
aperfeiçoou-o, desenvolveu-o até, fazendo aquisição de uma ou
duas mulheres orgíacas para atrair freguesias e dispensar-lhe
certas amabilidades extremas. [grifo meu]
254
O texto foi finalizado por meio de uma cobrança às autoridades:
Se porventura não é ilegal um dono de hotel ter
quartos em seu estabelecimento para certos fins que a decência
obriga a não dizer-se claramente quais são – o fato dele domiciliar
messalinas para ganhar dinheiro com elas, não parece isento de
criminalidade. E julgamos, neste caso, à polícia cumpre fazer
alguma coisa
255
.
A imoralidade abordada pelo jornal, por intermédio da coluna, dizia
respeito, especialmente, à conduta feminina, tida como inadequada, praticada nas
chamadas espeluncas. A questão que parecia realmente incomodar a sociedade
porto-alegrense, de que a Gazetinha era uma representação (por meio da difusão do
discurso masculino vigente) era a liberdade sexual das mulheres populares, como
nos aponta Rachel Soihet. O casamento, defendido pela imprensa da época e por
outros meios, como o teatro e a literatura, não convinha a essas mulheres criticadas
pela Gazetinha
, em especial a Fausta. A rua passou a ter esse significado de
liberdade sexual: o controle sobre os comportamentos femininos dar-se-ia na esfera
privada, motivo pelo qual o casamento era visto como destino certo para as
mulheres de elite e como uma prioridade para a fala oficial da época. Segundo a
autora,
a liberdade sexual das mulheres populares parecia
confirmar a idéia de que o controle intenso da sexualidade
feminina estava vinculado ao regime de propriedade privada. A
preocupação com o casamento crescia na proporção dos
interesses patrimoniais a zelar. No Brasil do século XIX, o
254
Gazetinha, Porto Alegre, 15 de março de 1896, capa.
255
Gazetinha, Porto Alegre, 15 de março de 1896, capa.
casamento era boa opção para uma parcela ínfima da população
que procurava unir os interesses da elite branca. O alto custo das
despesas matrimoniais era um dos fatores que levavam as
camadas mais pobres da população a viver em regime de
concubinato
256
.
Logo em abril, de 1896, a Gazetinha
festejou estar sendo ouvida pelas
autoridades, reconhecendo que tinha poder de alcance na sociedade porto-
alegrense. O jornal, então, noticiava que as autoridades pareciam ter compreendido
o dever de reprimir os lupanares estabelecidos no centro da cidade. Na fala,
aproveitou-se a oportunidade para fazer sugestões das atitudes devidas às
autoridades com relação ao trânsito das mulheres de mau proceder:
Entendemos, pois, que em primeiro lugar as visitas
policiais àquelas casas de má reputação devem ser feitas à noite,
e de surpresa, e em segundo lugar, que essa providência seja
realizada em todas elas na mesma noite para que assim os
interessados não possam a tempo precaver-se da ação da Justiça
257
.
A Gazetinha
considerava que, graças à campanha empreendida em
suas páginas, a polícia então se dignara a tomar providências a respeito. As
mulheres de mau proceder, além da liberdade sexual vista como ameaça à ordem
desejada, também possuíam a autonomia tanto temida para a época. Viviam
precariamente e improvisavam continuamente suas fontes de subsistência, diante de
uma variada gama de possibilidades de trabalho, sob o alvo das críticas da
sociedade. Tinham, porém, naquele momento, maior possibilidade que os homens
de venderem seus serviços: lavando ou engomando roupas, cozinhando, fazendo e
256
SOIHET, Rachel. Op. Cit., p.368. Sobre a questão do casamento, a autora ainda salienta
que: A vida familiar destinava-se, especialmente, às mulheres das camadas mais elevadas da
sociedade, para as quais se fomentavam as aspirações ao casamento e filhos, cabendo-lhes
desempenhar um papel tradicional e restrito. Quanto àquelas dos segmentos mais baixos, mestiças,
negras e mesmo brancas, viviam menos protegidas e sujeitas à exploração sexual. Suas relações
tendiam a se desenvolver dentro de um outro padrão de moralidade que, relacionado principalmente
às dificuldades econômicas e de raça, contrapunha-se ao ideal de castidade. Esse comportamento,
no entanto, não chegava a transformar a maneira pela qual a cultura dominante encarava a questão
da virgindade, nem a posição privilegiada do sexo oposto (p.368).
257
Gazetinha, Porto Alegre, 5 de abril de 1896, nº. 58, capa.
vendendo doces e salgados, bordando, prostituindo-se, empregando-se como
domésticas, sempre davam um jeito de obter alguns trocados
258
.
A questão da prostituição e da moralidade voltou a ocupar a capa da
Gazetinha
em setembro do mesmo ano. Até lá, o tema continuava sendo
desenvolvido em outros espaços do jornal, especialmente nas colunas, como
“Hipóteses” e “Apanhados”. Provavelmente, o deslocamento da preferência do
assunto para outros espaços tenha se dado em função da parcial vitória alcançada
pela Gazetinha
, no que dizia respeito à pressão estabelecida sobre as autoridades.
Em abril, o jornal se considerava ouvido pelos policiais. em setembro, no texto de
capa, a Gazetinha
construiu uma fala por meio de uma comparação entre os
procedimentos adotados na Europa e os seguidos pelo Rio Grande do Sul, quanto à
prática da prostituição. Argumentava, nesse sentido, que, na Europa, ao contrário do
que ocorria aqui, a polícia intervinha na expansão da miséria social: a mulher de vida
livre tinha seu nome, local de trabalho e residência registrados na polícia. Assim, ela
ficava sujeita ao controle das autoridades.
Quanto aos procedimentos aqui adotados, a Gazetinha
se reservava a
dizer: o que pode fazer a polícia? Nada, porque justamente o que nos falta é uma
providência que assinale a sua intervenção benéfica nesse assunto
259
. As críticas
ao que ocorria em Porto Alegre não pararam por aí: o jornal denunciava que boa
parte das arruaças eram praticadas por moços de boa sociedade, logo, aqueles que
deveriam dar o exemplo do bom comportamento... Eles também seriam
responsáveis pela manutenção da prática da prostituição. Se a polícia não tomasse
providências com relação às prostitutas, com relação aos que contribuíam com a
prática também não parecia fazer nada que surtisse maiores efeitos.
Assim, argumentava que deveriam ser seguidos os exemplos do que
era feito em São Paulo e no Rio de Janeiro, realidades mais próximas do que a
européia: as nossas autoridades deveriam imitar em benefício da população
honesta. Comentou-se, então, que a polícia de São Paulo estabeleceu o
Regulamento de Costumes
260
e que em Porto Alegre deveria ser proposto algo
258
SOIHET, Rachel. Op. Cit., p.379.
259
Gazetinha, Porto Alegre, 6 de setembro de 1896, nº. 37, capa.
260
São exemplo do que é estabelecido pelo Regulamento os seguintes artigos: Art. 3º: não são
permitidos os hotéis e conventilhos, podendo as mulheres públicas viver unicamente em domicilio
particular em nº. nunca excedente de três. Art. 4º: as janelas de suas casas deverão ser garantidas,
semelhante, para controle maior da vida blica. O jornal publicou o documento na
íntegra, na capa da edição, e pediu que as autoridades atentassem para o que era
proposto, no sentido de refletir sobre a prática de algo semelhante na cidade, face
aos inúmeros hotéis e casas onde se praticava a prostituição.
A mesma abordagem continuaria a ser feita nas edições posteriores,
sempre no sentido de atacar a falta de segurança pública nos locais onde os
problemas eram mais recorrentes. O problema do policiamento e o crescimento dos
focos de prostituição continuavam ocupando a primeira página. Se, antes, a
Gazetinha
parecia se vangloriar dos resultados alcançados, o que se percebe, a
partir do mês de setembro de 1896, é, não apenas uma profunda decepção com o
estado em que Porto Alegre se encontrava no momento, mas principalmente a fala
de um jornal que sempre alertara para os perigos mas que não via suas
reivindicações atendidas. Era como se a folha se colocasse em um papel de rtir:
sofria críticas de quem atacava e, ainda assim, ao lado do Zé Povinho, prestava-se a
fazer as solicitações e apontar as irregularidades: já por tantas vezes temos falado
dessas espeluncas que por existem que não só ofendem a moral como dão
margem a sérios desatinos, porém todo o trabalho tem sido inútil
261
. Denunciando,
mais uma vez, que as espeluncas continuavam a funcionar nos becos da cidade,
livremente, sem ação da polícia, e que as pessoas que ali trabalhavam não tinham
maiores interesses em buscar outra atividade (mais rentável, limpa e honesta e
menos ociosa), a Gazetinha
prometia continuar lutando contra essa verdadeira
ameaça à imoralidade: e nós não cessaremos de gritar destas colunas contra todos
os lupanares, enquanto não vermos as autoridades tomarem-se as mais enérgicas
providências para o completo desaparecimento de tais casas
262
.
Na edição de 10 de setembro, a Gazetinha
já havia reforçado seu dever,
dedicando a capa do jornal, não ao combate aos focos de prostituição, mas a
por dentro, de cortinas e por fora de persianas. Art.5º: deverão guardar toda a decência no trajar, uma
vez que se apresentem na janela ou saiam à rua, para o que deverão usar vestuários que
resguardem completamente o corpo e o busto. Art. 6º: não é permitido chamar ou provocar os
transeuntes por gestos e palavras e entabular conversas com os mesmos. Art. 8º: é proibido receber
nas suas casas menores e alunos de escolas civis ou militares uniformizados. Art. 9º: nos teatros e
divertimentos públicos que freqüentarem deverão guardar todo o recato (Gazetinha,
Porto Alegre,6 de
setembro de 1896, capa).
261
Gazetinha, Porto Alegre, 17 de setembro de 1896, ano 6, nº. 40, capa.
262
Gazetinha, Porto Alegre, 17 de setembro de 1896, ano 6, nº. 40, capa.
detalhar o nobre papel da imprensa na sociedade, o que viria, provavelmente, a
resumir o posicionamento assumido pelo veículo até então:
A imprensa, julgamos nós, deve ser uma boa
conselheira, direta ou indiretamente a ação que ela desenvolve é
digna de aplauso, porque é civilizadora, unicamente quando
produz ou tende a produzir efeitos benéficos. Desde porém que
não seja assim, o jornalismo falseia sua missão, desvirtua-se
consideravelmente tornando-se sua origem de resultados
condenáveis. ...
263
Somente em dezembro do mesmo ano o jornal se mostrou um pouco
mais satisfeito com as últimas ações policiais frente ao caso, uma vez que o
encontro de casais desconhecidos, por poucas horas, passou a ser proibido em
alguns hotéis e casas. Embora parecesse uma boa notícia, o jornal assumiu seu
posicionamento pessimista a respeito, não acreditando que a norma permanecesse
em voga por mais de três meses...
em janeiro de 1897, a folha considerou a hipótese de organizar um
espaço específico no jornal para tratar da deficiência do policiamento urbano com
relação aos focos de prostituição. Os termos utilizados sugeriam que a Gazetinha
,
na defesa do Povinho, estava aos gritos, fazendo graves denúncias em todas as
edições, enquanto não houvesse resposta das autoridades. Chegou-se a sugerir que
haveria uma proteção aos baderneiros, tal era a falta da atuação policial, na opinião
do jornal. A insistência sobre assunto foi grande, desde 1895, o que pode formular
uma fala consistente e um digo forte influente na mentalidade coletiva da
população porto-alegrense sobre os males que atingiam a cidade no momento. Ao
final do mês de janeiro de 1897, sob o título de “Ainda Mais!” a Gazetinha
, mais uma
vez, colocou diretamente o seu protesto por intermédio do texto de capa:
evidentemente ou muita proteção aos
delinqüentes naquelas casas ou um pyrrhonismo tolo, em
oposição a que se executem providências no sentido de cercear
as ilegalidades que temos denunciado em cogitar de que com isso
possamos prejudicar o Fulano ou Sicrano porque acima das
individualidades está o bem geral, o bem do povo para quem, em
263
Gazetinha, Porto Alegre, 10 de setembro de 1896, ano 6, nº. 38, capa.
compensação ao dever de pagar policiais, deve haver o direito de
ser atendido e respeitado por estas
264
.
A partir de agosto, o jornal começou a utilizar ironias para satirizar a
situação do fraco policiamento, o que parecia se repetir sem maiores alterações.
Passou a publicar uma série de textos de capa, sob o título “Água mole em pedra
dura”, abordando os ditados populares que aproximariam o texto do leitor
265
. A
série de textos teve espaços nas edições de 5, 12, 15 e 19 de agosto de 1897,
sempre apresentando a idéia de que transitar depois das 10h da noite pelas ruas da
cidade é apresentar-se candidato à sepultura
266
.
Verifica-se que o código foi construído a partir da insistência quanto ao
uso do texto escrito, mas também se assinala que esse não foi o único meio
utilizado pela Gazetinha
. As charges, publicadas mensalmente na contracapa do
jornal (na última edição do mês, a “Edição ilustrada”), eram dedicadas a uma
retomada das questões mais polêmicas discutidas pela folha, no mês anterior.
Assim, boa parte das caricaturas versava sobre os comportamentos urbanos, desde
deslizes políticos cometidos a problemas recorrentes, dentre os quais, o
funcionamento das espeluncas e o caos (na fala da Gazetinha) em que Porto Alegre
se via mergulhada naquele momento.
3.2. As charges e as caricaturas
É preciso lembrar, nesta etapa, que a fala da Gazetinha
não estava
isolada do próprio momento histórico que Porto Alegre viveu então. Como se
considerou anteriormente, trata-se, aqui, do período de vigência do movimento
positivista no Rio Grande do Sul. Enquanto o estado se encontrava sob as rédeas de
264
Gazetinha, Porto Alegre, 21 de janeiro de 1897, ano 6, nº. 76, capa.
265
O próprio jornal diz: qual dos nossos leitores não conhece o popular anexim que serve de
epígrafe a estas linhas? (Gazetinha,
5 de agosto de 1897, ano 7, nº. 28, capa) No mesmo texto,
irônico mais uma vez, publica-se: Deus fez a noite para o descanso e para o tranqüilo funcionamento
das casas de tavolagem e dos ‘moralíssimos’ estabelecimentos conhecidos pelos amadores por ’42,
101, 123 e 4[numeração das espeluncas], e não para que os nossos municipais se aventurem a um
encontro com o homem do cacete.
266
Gazetinha, Porto Alegre, 19 de agosto de 1897, ano 7, nº. 32, capa.
Júlio de Castilhos, a Chefatura de Polícia era ocupada por Borges de Medeiros, que
tomaria posse da presidência do estado em 1898, como sucessor de Júlio de
Castilhos
267
.
Conforme Margaret Bakos, de acordo com o contexto, pretendia-se que
Porto Alegre se tornasse uma espécie de sala de visitas do Rio Grande do Sul. Era
preciso definir os limites da cidade e o que poderia ser considerado urbano e
suburbano. O próprio Borges de Medeiros classificava a cidade como uma cidade-
aldeia ou uma povoação de categoria inferior
268
. O policiamento se fazia necessário
para colocar o município dentro da ordem pretendida. Além disso, seriam
implementados melhoramentos urbanos, como o investimento em saneamento
básico, iluminação pública, criação de depósitos de lixo urbano, fornecimento de
transporte elétrico (em substituição aos carros puxados por burros), construção de
prédios e planos de remodelação de Porto Alegre, com o intuito de torná-la mais
moderna, para acompanhar as mudanças do estado. Esses investimentos,
entretanto, não seriam aplicados na cidade como um todo: apenas nas áreas
consideradas mais nobres, deixando-se o suburbano em segundo plano. A limpeza
da área reservada às espeluncas faria parte desse grande projeto como se a
limpeza urbana fosse acompanhada do asseio moral dos habitantes de Porto Alegre.
A Gazetinha
, como integrante desse cenário, cobrou da Intendência a
reorganização de uma Guarda Municipal, promessa que poderia contribuir para o
trabalho da vigilância e do controle da ordem. A questão do policiamento era
discutida por meio dos textos publicados, como foi assinalado em outro momento.
Mas, utilizando-se da ironia e do fácil entendimento permitido pela representação
gráfica, a temática foi transferida para as caricaturas do Intendente, como se pode
ver na figura que segue:
267
MAUCH, Cláudia. Ordem pública e moralidade: Imprensa e policiamento urbano em
Porto Alegre na década de 1890. Santa cruz do Sul: Edunisc, 2004. p.167.
268
BAKOS, Margaret Marchiori. Decorando a sala de visitas: Porto Alegre na virada do século
19. In: VARGAS, Andreson Zalewski. Porto Alegre na virada do século 19: cultura e sociedade.
Porto Alegre: UFRGS/ ULBRA / UNISINOS, 1994, p.144.
FIGURA 16: Incubação da Guarda Municipal
“A famosa incubação:
[no ovo lê-se ‘Reorganização da Guarda Municipal]: Quando o dr. Intendente
acabará de chocar?”
Fonte: Gazetinha
, Porto Alegre, 20 de setembro de 1896.
Representou-se, aqui, a idéia de uma Intendência acomodada com
relação aos aspectos que urgiam na cidade. Apesar das investidas feitas pelo
governo da época, de acordo com a fala da Gazetinha,
não parecia haver a
velocidade necessária para que os problemas da moralidade pública, em especial a
questão da prostituição, fossem resolvidos. O intendente parecia esperar
pacientemente que a nova Guarda Municipal se reorganizasse, como se fosse
independente, enquanto que deveria partir do próprio governante a iniciativa para
colocá-la em ação.
Um mês após a publicação da charge, fora definida a nova Polícia
Administrativa. Com a nova organização, viriam também novos regulamentos,
conforme salienta Cláudia Mauch:
Em junho de 1896 ficou estabelecido que os
indivíduos postos em custódia pelas autoridades municipais não
deveriam mais ser enviados à casa De Correção, pois o
estabelecimento era o único de que dispunha o estado para a
execução das penas dos sentenciados e se encontrava
superlotado. Desde modo, os 'turbulentos que, por palavras ou
ações ofendam à moral e bons costumes', os 'bêbados por hábito'
e as 'prostitutas que perturbem o sossego público' deveriam se
detidos em xadrezes municipais construídos nos postos policiais.
Estas detenções não poderiam em hipótese alguma ultrapassar
as 24horas previstas em lei. Caso depois de decorridas 24 horas
não fosse expedida portaria de soltura, os encarregados dos
xadrezes municipais seriam obrigados a fazer apresentar na
Intendência ou na Sub-Intendência do distrito a pessoa recolhida
sob custódia para que fosse imediatamente posta em
liberdade
269
.
A questão remete-se à promessa de extinção da Guarda Municipal,
então existente, em prol da criação de um Corpo de Vigilantes, que abarcaria a
mesma função. A medida entraria em vigor a partir de 09 de novembro de 1896,
como um dos últimos atos do intendente Faria Santos antes de transmitir o cargo
para seu sucessor. A Gazetinha
demonstrava preocupação quanto ao sucesso da
empreitada, conforme sugeria a nota publicada em 8 de novembro daquele ano, às
vésperas das modificações:
A Guarda Municipal sob o comando do coronel
Andrade é deficiente para o policiamento, porém quanto à
269
MAUCH, Cláudia. Op. Cit., p.172-173.
moralidade de suas praças bem nos parece que não se lhe podia
exigir mais. Sucederá o mesmo a respeito da nova guarda que vai
substituí-la? É difícil saber ao certo. Pode ser, e Deus permita que
assim aconteça, que consigam pessoal muito ativo, e dotado de
idoneidade precisa. Para este ponto, que é o principal, deve
convergir toda a atenção dos cidadãos que se acham
encarregados do alistamento das praças
270
.
Um mês após a implantação das mudanças, a Gazetinha
denunciava os
abusos cometidos pelo Corpo de Vigilantes, confirmando as preocupações
anteriores: Melhoramentos de policiamento na cidade? Não. Os mesmos defeitos, os
mesmos inconvenientes da polícia que havia nesta cidade existem ainda; e o pior é
que acresce agora a eles outro que não sofríamos, o exorbitamento das funções por
parte de algumas praças
271
.
Michel Foucault salienta a necessidade de pessoas especializadas para
a organização do controle social, a partir do momento em que o desenvolvimento do
mundo do trabalho e urbano torna a sociedade mais complexa. Ainda que Porto
Alegre, na virada do século XIX para o culo XX, não fosse uma grande metrópole
se comparada aos modelos europeus, pode-se considerá-la como um município em
franco processo de desenvolvimento, pelo menos desde meados dos anos 1850.
Como se comentou anteriormente, com o crescimento da cidade, vieram os novos
comportamentos, criando uma sociabilidade urbana que tornou o cotidiano mais
complexo do que o vivido momentos antes. Com essas novas formas de
sociabilidade, que incluíam procedimentos inovadores de ação cultural (teatros,
cafés...) e o incremento de uma vida urbana noturna, e a comercial, a necessidade
da vigilância far-se-ia mais presente, papel este reservado à Intendência e à Guarda
Municipal. Para Foucault,
à medida que o aparelho de produção se torna mais
importante e mais complexo, à medida que aumentam o nº. de
operários e a divisão do trabalho, as tarefas de controle se fazem
mais necessárias e mais difíceis. Vigiar torna-se então uma
função definida, mas deve fazer parte integrante do processo de
produção; deve duplicá-lo em todo o seu cumprimento. Um
pessoal especializado torna-se indispensável, constantemente
presente, e distinto dos operários
272
.
270
Gazetinha, Porto Alegre, 8 de novembro de 1896, nº. 55, ano VI, capa.
271
Gazetinha, Porto Alegre, 6 de dezembro de 1896, nº. 63, ano VI, capa.
272
FOUCAULT, Michel. Op. Cit, p.146.
Na mesma edição de publicação da caricatura relativa à reorganização
da Guarda Municipal, outra imagem foi publicada com abordagem do mesmo tema:
a Guarda Municipal. Os membros da Guarda, de aspecto nada confiável, de acordo
com os traços do jornal, portavam vassouras, acompanhando o discurso escrito das
páginas do jornal.
A instabilidade e a pouca credibilidade representada na imagem
refletiam a própria trajetória da Guarda Municipal, criada em 3 de novembro de
1892, por meio do Ato nº. 6, do intendente Alfredo Augusto de Azevedo. Desde
então, até o ano de 1893, ficou atrelada à Brigada Militar do estado. Durante esse
período, o pagamento dos oficiais, dos praças e do aluguel do quartel coube às
contas do município. Mas a partir de 1896, surgiram as reformas às quais as
caricaturas teceram as críticas. Em 10 de outubro de 1896, o novo intendente, João
Luiz de Farias Santos, organizou a Polícia Administrativa do Município. Em 17 de
novembro de 1896, o intendente interino Febeliano da Costa, decretou a extinção da
Guarda Municipal e corpo de fiscais, incorporando a Guarda Municipal à Polícia
Administrativa até 1928
273
.
Tanto no discurso escrito, quanto no gráfico, a idéia representada era a
falta de confiança e de esperança da Gazetinha
na polícia que se organizava no
momento, ineficiente frente aos verdadeiros problemas, dentre os quais a
prostituição parecia ser um dos mais sérios. Eram questões que, nas páginas do
jornal, andavam juntas: não havia solução aparente para o meretrício sem
investimento no policiamento urbano setor responsável por controlar o
funcionamento das espeluncas e punir responsáveis pelas imoralidades cometidas.
Ao mesmo tempo, a imagem, publicada em setembro de 1896, representou uma
falsa expectativa em torno daqueles que comporiam futuramente a Guarda Municipal
pela organização do intendente, o que somente viria a acontecer alguns meses
depois:
273
Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Disponível em: <http://www.portoalegre.rs.gov.br>.
Acesso em: 01/07/2006.
FIGURA 17: A Nova Polícia
“A nova polícia, que o gigantesco Sr. Coisada está organizando. Gente toda
escolhida... começando pelo próprio organizador.”
Fonte: Gazetinha
, Porto Alegre, 20 de setembro de 1896, contracapa.
A charge fez uma alusão bastante irônica ao Sr. Francisco de Paula
Louzada, subintendente do distrito, em um contexto de críticas e de ataques
constantes, que se tornariam ainda mais acirrados a partir do final de 1897, às
autoridades policiais. Dentre o corpo de apreciações desfavoráveis, conforme
salienta Cláudia Mauch, estava a condenação às arbitrariedades policiais. Tendo
publicado o episódio em que um homem negro fora preso, aparentemente sem
motivos, por Louzada, e que fora submetido a castigos por palmatórias, a Gazetinha
sofreu reprimendas uma semana depois: dizendo-se ameaçada de processo pelo
Subintendente Louzada e ofendida por ter siso por este chamada de jornaleco sem
importância, desafiava-o a ter coragem de levar adiante tal ameaça
274
.
A charge, possivelmente, referiu-se também ao processo de
recrutamento de policiais, realizado na época, o que causara algumas controvérsias.
O tema ganhou grande espaço na Gazetinha
ao longo do segundo semestre de
1896 e início de 1897. Em janeiro daquele ano, novamente o jornal demonstrou
preocupações e teceu críticas relativas à questão, abordando seriamente o tema
que fora objeto de sátira nas caricaturas publicadas:
alguns dias, um dos nossos companheiros ouviu
dizer que se estava procedendo o recrutamento nesta cidade e
que os cidadãos presos por este modo eram destinados a
preencher os claros desertos batalhões da Brigada do Estado. (...)
Se realmente o Sr. Louzada anda recrutando, é bom que se lhe
faça compreender que isto é ilegal, a fim de evitar que alguém,
perfeitamente conhecedor de seus direitos de cidadão livre, não
querendo sujeitar-se a coações criminosas, seja-se obrigado a
recorrer a qualquer meio mais fácil para se livrar e que também
seja ilegal
275
.
Uma charge, divulgada um ano antes, em outubro de 1895, dava
conta das confusões ocorridas nas ruas. Sugerindo que as desordens não partiam
apenas das pessoas que se encontravam à margem da sociedade, a Gazetinha
representou dois homens distintos da sociedade porto-alegrense em
desentendimento em plena rua, sendo apartados por outros dois indivíduos que os
acompanhavam:
274
MAUCH, Cláudia. Op. Cit., p.154.
275
Gazetinha, Porto Alegre, 7 de janeiro de 1897, n 72, ano VI, capa.
FIGURA 18: Sombras visíveis e clarões presumíveis
“Sombras... visíveis / clarões... presumíveis”
Fonte: Gazetinha,
27 de outubro de 1895, contracapa.
Devido às novas necessidades urbanas, portanto, a cobrança da
Gazetinha
se dava não apenas clamando pela organização da Guarda Nacional,
mas principalmente sobre o papel que esta teria no controle das chamadas casas de
prostituição. Eram constantes as chamadas no jornal sobre batidas das autoridades
a esses locais, mas as ações sempre se mostravam ineficientes (na fala do jornal,
cabe lembrar), uma vez que não era dada continuidade às iniciativas. A cobrança
era pela organização e pela vigilância constante, e o papel a que o jornal se atribuiu
era o de empreender uma campanha, zelando pelo bem do povo. Neste sentido a
Gazetinha
também se utilizava da ironia para insinuar que os mesmos homens da
alta sociedade porto-alegrense, que tanto criticavam a prostituição em nome da
moral, eram os que usufruíam dos cuidados prestados pelas mulheres das
espeluncas, como sugeriu a charge abaixo, exemplar da crítica feita pelo jornal. O
indivíduo, bem apresentado, ficou horrorizado com a notícia publicada pela
Gazetinha:
FIGURA 19 : Um dos muitos moralistas
“Um dos muitos moralistas:
Oh! Pedir à autoridade que proíba uma espelunca! Que injustiça! Nunca!
Nunca viu-se tal barbaridade.”
Fonte: Gazetinha,
29 de março de 1896, contracapa.
A obediência e o controle, portanto, também deveriam passar por essas
pessoas, que formavam um discurso moralizante, ao mesmo tempo em que
pareciam apenas ficar no papel, sugerindo a hipocrisia da sociedade porto-alegrense
daquele período. Pouco antes da publicação da charge relativa aos moralistas, a
Gazetinha
insinuava que, além dos serviços prestados pelas espeluncas, mais
acessíveis à população de baixa renda, de acordo com o discurso apresentado, os
cidadãos de alta estirpe também estariam dispostos a pagar altas quantias pela
companhia de moças de mais alta categoria, como sugeriu a outra caricatura
publicada em fevereiro de 1896:
FIGURA 20 : Marquês das castanholas
“Sim; feliz Berto, ora bolas,
Custou cara a bailarina.
Qual! Marquez das castanholas,
Si é coisinha papafina...”
Fonte: Gazetinha
, 09 de fevereiro de 1896.
As charges “Um dos muitos moralistas” e “Marquês das castanholas”
também iam ao encontro das supostas tendências socialistas do jornal. A hipocrisia
da sociedade porto-alegrense, denunciada nas páginas da Gazetinha, ficava
vinculada a uma camada elitizada da sociedade, ao serem representados homens
muito bem vestidos, em contraste com a imagem caricata do Povinho,
mostrada anteriormente. A participação de um setor elitizado também ficava
evidente ao representar, na primeira imagem, um indivíduo letrado, em uma
sociedade de acesso deficiente ao mundo das Letras, e, na segunda, a insinuação
de que custou cara a bailarina..
Se se pode considerar a cidade de Porto Alegre daquele momento
como inserida em um estado de vigilância, vê-se que as atitudes dos cidadãos eram
permanentemente fiscalizadas, pois ocupavam as páginas dos jornais, buscando a
educação pelo exemplo e incentivando a punição dos que provocavam desvios na
ordem da vida em sociedade. Instalou-se um poder disciplinar, como salienta Michel
Foucault, que perpassava todas as instâncias. A disciplina se tornou uma forma de
poder, por meio da qual foi elaborado um estereótipo de comportamentos,
especialmente os femininos e os pertencentes aos círculos familiares, que fez parte
da mentalidade coletiva a pouco tempo atrás. O estereótipo de retidão foi
reforçado, entre outros veículos, pela literatura e pela imprensa. A moral, o bom
comportamento e a disciplina tornaram-se inerentes:
O poder disciplinar, graças a ela [a vigilância], torna-
se um sistema integrad’, ligado do interior à economia e aos fins
do dispositivo onde é exercido. Organiza-se assim como um poder
múltiplo, automático e anônimo; pois, se é verdade que a
vigilância repousa sobre os indivíduos, seu funcionamento é de
uma rede de relações de alto e baixo, mas também até um certo
ponto de baixo para cima e lateralmente; essa rede sustenta o
conjunto, e o repassa de efeitos de poder que se apóiam uns
sobre os outros; fiscais perpetuamente fiscalizados. O poder na
vigilância hierarquizada das disciplinas o se detém como uma
coisa, não se transfere como uma propriedade; funciona como
uma máquina. (...) O que permite ao poder disciplinar ser
absolutamente indiscreto, pois está em toda a parte e sempre
alerta, pois em princípio não deixa nenhuma parte às escuras e
controla continuamente os mesmos que estão encarregados de
controlar; e absolutamente discreto, pois funciona
permanentemente e em grande parte em silêncio
276
.
276
FOUCAULT, Op. Cit, p.148. O poder discretque é criado através da disciplina acaba sendo
exercido sobre todos de maneira nem sempre perceptível. Para o autor, a disciplina cria entre os
indivíduos um laço‘privado, que é uma relação de limitações inteiramente diferente da obrigação
contratual; a aceitação de uma disciplina pode ser subscrita por meio de contrato; a maneira como ela
O momento pelo qual Porto Alegre vinha passando, em meio ao
desenvolvimento urbano e aos problemas sociais, era explicável, de acordo com a
fala da Gazetinha
, pelas transformações que o país e o mundo também vinham
sofrendo. Na edição ilustrada de outubro de 1895, essa idéia foi trabalhada por meio
de uma série de figuras na contracapa, onde as caricaturas se complementavam. Os
desenhos se referiam a esse período de transformações, e até mesmo o Teatro foi
apontado como colaborador para o surgimento da imoralidade. É importante lembrar
que se tratou também do momento em que o Cinema surgiu no cenário cultural.
Ainda que, em Porto Alegre, ele tenha encontrado espaço a partir de 1896, no
mundo, a arte cinematográfica fazia sentir seus efeitos: dentre eles, a acusação
de ser uma arte menor. Junto a isso, também surgiram provocações de que o teatro
perdera qualidade, apelando para as operetas que mostravam as pernas das belas
dançarinas. Na imagem representada, as operetas parecem ter caído no gosto
popular, especialmente das mulheres que, de acordo com a Gazetinha
, sentiam-se
mais à vontade de freqüentar os conventos livres, em uma clara alusão ao bordel de
Fausta (o nº. 42 da General Paranhos, representado na caricatura). A figura à
esquerda, com a caneta na mão, representava a Gazetinha,
que narrou a história:
é imposta, os mecanismos que faz funcionar, a subordinação não reversível de uns em relação aos
outros, o mais-poder que é sempre fixado no mesmo lado, a desigualdade de posição dos diversos
parceiros em relação ao regulamento comum opõem o laço disciplinar e o laço contratual, e permitem
sistematicamente falsear este último a partir do momento em que tem por conteúdo um mecanismo
de disciplina (p.183).
FIGURA 21: Teatro: antiga escola da moralidade
“Meus caros assinantes: não admirem-se desta minha transformação. É época
de transformismos. Tanto que, no norte, mister John (...) quer transformar o Brasil em seu
protegido. Mais perto ainda, em Pelotas, houve transformismo inexplicável: a cabeça da
guerra tornou-se pacificador a brandir pela paz. Não é para estranhar, portanto, que o teatro
(a antiga escola da moralidade) seja transformado também. (...) Gostinho esse que, devido a
operetas, vai dominando muitas respeitáveis senhoras que por isso viram-se obrigadas a
penitenciar-se nos conventos livres.”
Fonte: Gazetinha, 27 de outubro de 1895, contracapa.
As ilustrações foram publicadas junto a um anúncio do espetáculo do
Grupo Moccia, em cartaz em Porto Alegre. O grupo apresentou na cidade um
conjunto de peças líricas, atraindo grande público. Foram encenados os espetáculos
A viúva das Camélias, Um tigre de bengala, A filha do primeiro casamento, O
barbeiro de Sevilha, entre outros:
FIGURA 22: Theatro – Pátria
Fonte: Gazetinha, Porto Alegre, 27 de outubro de 1895, contracapa.
Percebe-se que o foco das caricaturas publicadas pela Gazetinha
estava concentrado, ora na guarda municipal e em sua organização, ora sobre as
mulheres. A fala construída era a de que as mulheres eram seres muito volúveis,
instáveis, sujeitas às más influências e aos galanteios. Cabe lembrar, aqui, a capa
dedicada à suicida Paulina Fuchs, vítima de um amor não correspondido. Se, nas
caricaturas, vê-se mulheres corrompidas pelo teatro (que teria abandonado seu
papel moralizador) e ruas tomadas pela desordem, a Gazetinha
também dedicava
suas páginas ilustradas ao que vinha fazendo nas ginas de texto: as lições de
moral. Sabe-se que, tão escandalizador quanto à prática da prostituição (e, é claro, a
presença de mulheres casadas e moças de boa família nas casas de prostituição)
era a gravidez indesejada, fora do ambiente do casamento. Destino certo das
crianças nascidas nessas condições era a Santa Casa de Misericórdia, que, a
exemplo das entidades homônimas existentes no restante do país, mantinha em
funcionamento a Roda dos Expostos, que recolhia crianças por ocasião de
abandono. Ficava claro o posicionamento crítico da Gazetinha
a respeito, como se
pode verificar pela charge abaixo. Entretanto, a imagem construída pela ilustração
era a de que a grande culpada pelo abandono da criança nascida de mãe solteira
seria a própria sociedade, e não apenas a moça:
FIGURA 23: Mãe abandona o filho
“Deus me perdoe... este sacrifício de minha vida é mais uma prova do respeito
que devo a esta sociedade em que vivo. Ela saberá compensar este esforço sobrenatural a
que me obriga os preconceitos sociais! Vai, meu filho, aqui encontrarás quem te faça o que
tua desgraçada mãe se enoja de praticar... Deus me perdoará, porque de certo
compreenderá meu sacrifício. Eu te abençôo.”
Fonte: Gazetinha,
Porto Alegre, 9 de fevereiro de 1896, contracapa.
O preconceito social a que a personagem caricata se referiu poderia
estar relacionado ao modelo de família desejado no momento. Eni de Mesquita
Samara, utilizando as Ordenações Filipinas de 1850, que ditaram as causas pelas
quais os pais poderiam deserdar seus filhos, destaca um dos artigos relacionados à
lealdade das moças aos pais:
Se alguma filha, antes de ter vinte e cinco anos,
dormir com algum homem, ou se casar sem mandado de seu pai,
ou de sua mãe, não tendo pai, por esse mesmo feito será
deserdada e excluída de todos os bens ou fazenda do pai, ou
mãe, posto que não seja por ele deserdada expressamente
277
.
Seria, provavelmente, o destino da moça representada na ilustração,
caso o abandonasse o filho. O medo maior das famílias de bem era a gravidez
das filhas antes do casamento e o seu encaminhamento para as casas de
prostituição, como o bordel da cafetina Fausta, por pessoas de índole. Muitos
dos casos provavelmente eram abafados em função da grande repercussão social
que gerariam, razão pela qual é recorrente a pouca quantidade de documentação
histórica que ateste a existência desses acontecimentos.
Os anúncios publicitários da época também reforçavam a existência
dessas mulheres cuja conduta fugia aos padrões desejados. Relacionadas a
produtos direcionados ao público masculino, eram vinculadas a uma idéia de prazer,
juventude e liberdade, regalias permitidas somente àquelas que não estavam
restritas ao lar e à vida em família.
3.3 Os anúncios publicitários
Em meados do século XIX, a propaganda na imprensa brasileira
apresentava-se ainda muito incipiente. Em um país onde a plena industrialização
não era uma realidade, as páginas dos jornais resumiam-se a anunciar
estabelecimentos de comércio com venda de produtos importados, restaurantes,
cafés, denúncias de escravos fugidos, etc. Poucos eram os produtos nacionais. Na
transição do século XIX para o XX, a maioria dos anúncios se referia a
medicamentos, farmácias e artigos de vestuário e fumo.
277
SAMARA, Eni de Mesquita. As mulheres, o poder e a família: São Paulo, século XIX. São
Paulo: Marco Zero / Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 1989, p.94.
Na Gazetinha, os anúncios o eram freqüentemente muito elaborados,
com exceção dos publicados nas edições ilustradas, colocados lado a lado com as
caricaturas. A figura da mulher era associada a produtos como roupas,
medicamentos e fumo. Entretanto, foram diferentes as imagens de mulher
trabalhadas. As imagens associavam os tipos femininos considerados ideais com o
conforto da família e o bem-estar, enquanto que os comportamentos provavelmente
inadequados eram vinculados com produtos que vendiam os prazeres mundanos,
como o fumo e um tônico estimulante. Essas representações se somavam aos
discursos veiculados pela Gazetinha
em outros espaços do jornal. Um somatório de
falas – visuais ou textuais – contribuiu para a formação de um código forte de
agenciamento de poder, acerca da grande temática em debate: a moralidade,
especialmente representada pelo problema social criado pela prostituição.
Agenciamento, este, que se tornou possível por meio da grande insistência do jornal
com relação ao tema, durante tempo considerável, mediante o agendamento.
A publicidade é elemento importante no processo de comunicação. Ela
se inscreve em um circuito de trocas de bens de produção, utilizando-se de
parcerias unidas por contratos de interesse: fabricantes, anunciantes
278
e
consumidores, conforme salienta Rosane Monnerat:
A publicidade é, portanto, uma das várias forças de
comunicação que deve levar o consumidor através de vários
níveis (desconhecimento conhecimento compreensão
convicção – ação) ao objeto visado – a compra do produto (ação).
Nela, um emissor onisciente e onipotente, através do qual se
dissimula habilmente a figura do publicitário (verdadeiro emissor,
que normalmente permanece ausente do circuito de fala), confere
a um receptor – o consumidor – a fórmula 'mágica' para conseguir
determinado atributo que ele, consumidor, ainda não possui
279
.
278
Segundo Rosane Monnerat, existiriam diferentes faces do termo anunciante: aparece sempre
sob a máscara de um enunciador. (...) Pode representar a empresa, o publicitário, um terceiro
ausente, detentor do saber ou ainda desempenhar diversos papéis como de conselheiro, solicitador,
apresentador, testemunha, etc. (...) qualquer que seja a forma de apresentação do anunciante, ele
deverá sempre se mostrar como um benfeitor, doador de um bem que permite satisfazer desejos e
necessidades pessoais (MONNERAT, Rosane S.M. O discurso publicitário e o jogo de máscaras das
modalidades discursivas. Revista do GELNE
Grupo de Estudos Lingüísticos do Nordeste, UFC,
Fortaleza, vol.2, n° 2, 2000, p.36).
279
MONNERAT, Rosane S.M. Op. Cit, p.35.
Para a autora, a publicidade é capaz de alterar comportamentos,
lidando com desejos e expectativas do ser humano:
Os objetos que ela toca conferem prestígio, porque o
produto anunciado extrai seu valor menos de sua utilidade objetiva
do que de um sentido cultural, servindo para manter um status
efetivo, ou sonhado. Torna-se, então, um fenômeno econômico e
social capaz de influenciar e modificar os hábitos de uma
população no seu conjunto
280
.
O prazer do fumo, por exemplo, ficava associado, nos anúncios
publicados pela Gazetinha
, às mulheres a quem o prazer era permitido: mulheres
como as que davam vida ao bordel de Fausta. A loja especializada em fumos,
cigarros e artigos para fumantes “A La Fin de Siécle”, localizada na rua dos
Andradas, em Porto Alegre, vinculava seus produtos a uma mulher sensualizada,
livre para os prazeres da vida. Diferentemente das mulheres de boa família, ela era
mostrada com o corpo à mostra e em posição sugestiva, aproveitando os prazeres
do fumo:
280
MONNERAT, Rosane S.M.,Op. Cit, p. 35.
FIGURA 24: A La Fin de Siecle
Fonte: Gazetinha,
Porto Alegre, 3 de dezembro de 1895, contracapa.
A imagem feminina também atendia aos padrões estéticos da Belle
Epoque, quando espartilhos afinavam a cintura e salientavam os quadris, marcados
por roupas ajustadas ao corpo. Em uma época onde a mulher ainda não se libertara
das longas vestes, a figura feminina praticamente desnuda para os padrões do
período, como a que ilustra o anúncio da casa de artigos para fumantes, acabava
vinculada à idéia de prazer, permitido para poucos. O cenário para o anúncio
também favorecia esse conceito, sugerindo o calor da cena litorânea.
Assim, o fumo foi associado ao universo masculino, a quem o anúncio
parecia ser dirigido. Atende-se, aqui, ainda, ao princípio, na publicidade, da
satisfação de desejos pessoais, representados tanto pelo cenário quanto pela
imagem da mulher, que parecia fumar tranqüilamente e com ares de satisfação... O
texto do anúncio se resumiu a identificar o estabelecimento que vendia artigos para
fumantes e a localizar seu endereço, contudo, a imagem, por si só, já transmitia uma
mensagem vinculada ao tema da moralidade.
De certa forma, essa abordagem complementa o que vinha sendo
discutido nos outros espaços do jornal: o comportamento devido às mulheres, a
moralidade pública. Ainda que, na realidade, pudessem ser muitas as mulheres
fumantes, a associada ao vício era a mulher da vida. Deve-se levar em conta que o
anúncio seria direcionado aos homens e que essa imagem de mulher sugeria a idéia
de prazer, ao contrário da imagem da mulher casta, mãe e esposa.
Uma outra imagem também trabalhada nos anúncios –, entretanto,
acompanhada de homens bem mais velhos, forma uma idéia de família. O anúncio
do Caporal Marion, de 1897, mostrava uma mulher de família, adequadamente
vestida (ao contrário da imagem extremamente sensualizada da moça representada
no anúncio da loja “A La Fin de Siecle”), acompanhada de uma menina
(provavelmente sua filha) e um senhor idoso (de acordo com essa mesma lógica, o
avô da menina):
FIGURA 25: Caporal Marion I
Fonte: Gazetinha,
edição ilustrada de agosto de 1897, contracapa.
Uma vez que a mulher de família não aparecia associada ao prazer, da
mesma forma que a mulher da vida, o anúncio foi apresentado em um tom bem
diferente, ao dizer que o Caporal Marion não tem rival: é puro, fraco, higiênico e
saboroso. O tipo feminino ideal, ao contrário do que foi representado no anúncio da
loja A La Fin de Siécle foi vinculado, nesse anúncio, não apenas à família, mas à
segurança, ao cuidado com o lar e com os entes queridos, com a saúde, com a
higiene e com o bem-estar. Esse era o papel feminino esperado, alcançado
mediante o controle e a vigilância. O mesmo produto, do mesmo estabelecimento (a
Casa Primavera) era mostrado com outra conotação quando se retirou a imagem
da mulher de família do anúncio, como no que foi publicado em 20 de setembro de
1896:
FIGURA 26: Caporal Marion II
Fonte: Gazetinha, 20 de setembro de 1896, contracapa.
Desta vez, foi representado um homem bem mais jovem do que o do
anúncio anterior, de boa aparência, conferindo status social ao consumidor do
produto. Mais do que uma utilidade objetiva, portanto, havia um sentido cultural no
anúncio, assim como nos demais publicados na contracapa das edições ilustradas
da Gazetinha
. Em relação ao primeiro anúncio da Casa Primavera e o Caporal
Marion, também o texto, nesse segundo anúncio, mostra-se diferente: Caporal
Marion é a delícia dos fumadores de bom gosto, diferente da fala comportada do
outro anúncio, que buscou associar o produto a algo higiênico... O termo puro
permaneceu, mas associado aos adjetivos aromático e saboroso, que passaram a
ser vinculados ao prazer de consumir o produto.
Ambas as imagens de mulher trabalhadas salientavam tanto a mulher
idealizada, por princípios como os do Positivismo, evidenciando a dedicação ao
meio familiar, como a mulher que desviava a boa moça desse caminho, a exemplo
da cafetina Fausta, parâmetro desta discussão: há, portanto, certa ambigüidade da
mulher nas imagens construídas. Nota-se uma onipotência do ser feminino para o
bem e para o mal, pois exerceria poderes muito mais fortes, na sociedade da época,
do que se pode supor. Havia o poder de formação do cidadão, o poder de união da
família, uma vez que caberia a ela os cuidados com o lar, com o marido e com os
filhos; e existia ainda um poder sexual, representado, aqui, pela figura de Fausta.
Caso contrário, que outros motivos levariam a tanta polêmica em torno da cafetina e
daquelas que trabalhavam em seu bordel, além do fato de fugirem ao estereótipo
formado quanto aos papéis femininos desejados?
Michelle Perrot, em estudo sobre os excluídos da História, analisando
os papéis de operários, mulheres e prisioneiros no século XIX, salienta essa
ambigüidade: observemos quão atual é essa problemática da inversão. Ela é
reforçada pela importância conferida à sociedade civil e seus atores, à dimensão
privada da vida. Em época de privatização, para retomar as formulações de
Hirschman, o pólo feminino da sociedade se torna prioritário
281
.
Percebe-se, portanto, que o que estava em discussão, nas páginas da
Gazetinha,
não era somente o escândalo provocado pelas imoralidades das
espeluncas, mas a própria distinção e os limites estabelecidos entre o público e o
privado
282
. Os comportamentos privados, no ambiente doméstico, poderiam ser
281
PERROT, Michelle. Os excluídos da história: Operários, mulheres, prisioneiros. São Paulo:
Paz e Terra, 2001, p.169.
282
Na série organizada por Georges Duby, sobre a história da vida privada, discute-se conceitos
de público e privado, salientando-se o quão tênues são as fronteiras entre ambas as esferas. O autor,
em apresentação à obra, diz que: nos dicionários de língua francesa compostos no século XIX, ou
seja, no momento em que a noção de vida privada adquiria seu pleno vigor, descubro de início um
verbo, o verbo privar, significando domar, domesticar, e o exemplo dado por Littré, um pássaro
privado, revela o sentido: extrair do domínio selvagem e transportar para o espaço familiar da casa.
(...) Entre os exemplos que escolheu, Littré cita a expressão que se impunha em seu tempo: a vida
controlados, teoricamente, a partir dos princípios defendidos pelos jornais, pelo
teatro, pela literatura. Mas, como controlar os comportamentos públicos, que
pareciam ser tão diversos da esfera privada? De acordo com os indícios que o jornal
forneceu, haveria diferentes condutas, tanto para homens quanto para mulheres:
homens que, na esfera pública, condenavam a vida de vícios representada pelas
mulheres das espeluncas, pelo jogo e pela bebida; enquanto que, na vida privada,
se entregavam aos prazeres mundanos que contradiziam a fala oficial. E imagens de
mulheres que se dividiam entre o ofício nesses estabelecimentos e, na vida privada,
exerciam também o papel de mãe, de irmã, dedicadas à família. Afinal, conforme
salientaram muitas falas da Gazetinha
e o processo-crime movido contra Fausta,
uma das acusações à cafetina fora o aliciamento de mulheres de boa índole.
No caso das abordagens feitas na Gazetinha
sobre a prática da
prostituição e o problema social por ela gerado, percebe-se que o público e o
privado passaram a se misturar: torna-se blico, e de interesse público, o que
ocorria na esfera privada dos bordéis e dos que os freqüentavam. O privado, aqui,
ocupava a esfera pública, mesmo em tempos em que essa distinção parecia estar
mais bem definida do que nos dias que correm.
O anúncio do Bazar Gertum, tal como o primeiro do Caporal Marion,
também construiu a imagem da mulher de família, ao colocá-la, novamente bem
vestida, rodeada de familiares, em uma festa de final de ano, no aconchego do lar,
uma vez que assinalava o recebimento de artigos para as festividades de Natal e de
Ano Novo. A cena representada sugeria recato, tradição (ao mostrar as pessoas
reunidas ao redor do piano), algo intimista, que envolvia laços mais fortes, ao
contrário da imagem da moça deitada na rede, na beira de uma praia, livre desses
vínculos, como sugestionava o anúncio da “A La Fin de Siécle”, comentado
anteriormente:
privada deve ser murada. (...) Eis-me então remetido à palavra público. Definição de Littré: o que
pertence a todo um povo, o que concerne todo um povo, o que emana do povo. Portanto, as
autoridades e as instituições que sustentam essa autoridade, o Estado. Esse primeiro sentido evolui
para uma significação paralela: diz-se público o que é comum, para o uso de todos, o que, não
constituindo objeto de apropriação particular, está aberto, distribuído, resultando a designação no
substantivo o público, designando o conjunto daqueles que se beneficiam dessa abertura e dessa
distribuição (DUBY, Georges. Poder privado, poder público. In: ARIÈS, Philippe & DUBY, Georges
(org.). História da vida privada: da Europa feudal à renascença. São Paulo: Cia das Letras, 1990,
p.19-20).
FIGURA 27: Bazar Gertum
Fonte: Gazetinha,
Porto Alegre, edição ilustrada de dezembro de 1896.
Uma imagem bem diferente foi trabalhada no anúncio de um tônico
estimulante. O próprio nome do produto, considerando-se o contexto da vida social
de Porto Alegre no momento, onde uma mulher negra era alvo de crítica dos jornais
(em especial na Gazetinha
) a negra cafetina Fausta e seu polêmico bordel –, era
bastante sugestivo: “Negrita”, uma bebida tônica estimulante. A mulher que
anunciava o produto usava decotes e roupas provocantes, dando a entender o
prazer que poderia ser alcançado com a utilização do tônico. Certamente, roupa
inadequada para uma mulher de família, ao deixar o corpo tão à mostra. Um detalhe
importante foi o texto escrito na perna da mulher representada no anúncio: o tônico
“Negrita” seria o segredo do Tio Pedro, em uma clara alusão ao folhetim publicado
pelo Jornal do Comércio entre os meses de outubro e dezembro de 1895, A casa do
Tio Pedro.
A novela, de três autores gaúchos que atendiam pelos pseudônimos
Júlio, Lemos e Lauro Rosa, obteve sucesso. Segundo Antonio Hohlfeldt: a partir do
início de sua publicação, A casa do Tio Pedro haveria de ter enorme repercussão.
Pelo menos, essa é a suposição que nos querem levar os editores do Jornal do
Comércio, quando resolvem repetir a dose, antecipando o próximo lançamento de A
Tasca
283
.
O texto abordava questões cotidianas, comportamentais e de cunho
sexual, preocupando os pais de família, à época. O Tio Pedro era um velho feiticeiro
que fora procurado por uma adolescente, Sarita (segundo sua mãe, em idade para
se casar), que pretendia arrumar um marido, a exemplo do que haviam feito suas
amigas. O pai da moça arranjou-lhe o casamento com o Comendador Eustáquio, um
homem de 50 anos que, com problemas de indisposição sexual, e preocupado em
bem atender à noiva após a cerimônia, também procurara os serviços de Tio Pedro.
O velho feiticeiro lhe receitou algumas pastilhas para resolver a situação e viabilizar
o relacionamento. Segundo Hohlfeldt, concluídas as bodas, durante o jantar,
Eustáquio se mostra cada vez mais nervoso e, em dado momento, joga-se sobre
Sarita, devorando-a aos beijos e tentando despi-la à vista de todos
284
.
A relação entre o anúncio do tônico estimulante e a publicação do
folhetim, durante o mesmo período, sugere a incidência de outros veículos de
comunicação, como o Jornal do Comércio
, sobre a Gazetinha, e reforça a hipótese
de agenda, uma vez que uma mesma temática passou a ocupar diferentes
instâncias em diversos veículos. Também é interessante notar, com relação ao
anúncio de Negrita, que a mulher, associada ao prazer, não era simplesmente a
283
HOHLFELDT, Antonio. Deus escreve direito por linhas tortas: o romance-folhetim dos
jornais de Porto Alegre entre 1850 e 1900. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003, p.196.
284
HOHLFELDT, Antonio. Op. Cit, p.202.
mulher da vida, mas essencialmente a mulher negra, uma vez que muitas
recorreram ao ofício da prostituição pelo problema social criado para muitos
escravos libertos em 1888, pela falta de oportunidades de emprego criada com a
Abolição da Escravatura:
FIGURA 28: Negrita
Fonte: Gazetinha, Porto Alegre, 10 de novembro de 1895, contracapa.
De acordo com a hipótese de agendamento, como foi discutida
anteriormente, a temática agendada por um determinado veículo é transposta para
seus diferentes espaços de outro. O mesmo vale para um único veículo. Além dos
textos de capa e dos elementos ilustrativos, presentes em charges e nos anúncios
publicitários, um espaço privilegiado da Gazetinha
, para discutir a prostituição e a
moralidade, tornou-se a coluna “Apanhados”, escrita sob o pseudônimo de Beija-
Flor, comentada em outro momento deste estudo, como estratégia de vigilância
da sociedade porto-alegrense do período. Uma prevenção quanto ao bom
comportamento, ao bom cumprimento dos papéis sexuais estabelecidos e aos
espaços a serem devidamente ocupados por homens e mulheres. Conforme Perrot,
o século XIX acentua a racionalidade harmoniosa
dessa divisão sexual. Cada sexo tem sua função, seus papéis,
suas tarefas, seus espaços, seu lugar quase predeterminado, até
em seus detalhes. Paralelamente, existe um discurso dos ofícios
que faz a linguagem do trabalho uma das mais sexuadas
possíveis. (...) A economia política reforça essa visão das coisas,
ao distinguir produção, reprodução e consumo. O homem assume
a primeira e a mulher o terceiro, e cooperam na segunda
285
.
Como salienta a autora, a definição desses papéis e a questão do
matriarcado foram o grande alvo das discussões filosóficas e antropológicas do
século XIX
286
. A grande polêmica em torno de Fausta estava no simbolismo que
essa mulher representava: o distanciamento do papel civilizatório reservado às
mulheres, uma vez que a elas caberia a formação dos futuros cidadãos: a mulher
seria igualmente investida de um imenso poder social, para o melhor e para o pior
287
. Discute-se, portanto, a ambivalência entre esse poder civilizatório, idealizado por
intermédio de uma série de linguagens que representaram um discurso tipicamente
masculino, à época, e o poder do sexo, que deveria ser controlado e que
encontrava, como um ícone, a figura de Fausta.
Essa mulher para o melhor e para o pior – a mulher para o bem e para o
mal não formou discurso exclusivo na Gazetinha
. Se em momentos anteriores,
285
PERROT, Michelle. Op. Cit., p.178.
286
PERROT, Michele. Op. Cit.,, p.175.
287
PERROT, Michele. Op. Cit, p.179.
como se viu, foram construídas imagens de mulheres por meio da literatura (aqui
representada pela literatura dramática), cabe lembrar que esses textos também
estabeleciam esta divisão de papéis. Peças teatrais como Mulheres, de Apolinário
Porto Alegre, abordavam a diferença entre a mulher para casamento e a que tinha o
perfil de amante.
A peça Mulheres foi publicada pela Revista do Partenon Literário
, em
1873, contando com 4 atos, distribuídos em 4 edições da publicação (de janeiro a
abril daquele ano), como era de costume na imprensa literária do período. O rol de
personagens era composto pela parteira Pancrácia; Landulfo, jovem dividido entre
os amores de Antônia e Henriqueta; Panúrgia, grande amiga de Pancrácia, a quem
confiara um segredo, e mãe de Henriqueta; Henriqueta, jovem mimada e
namoradeira; Antônia, jovem trabalhadeira e amável, que dividia com a mãe Mariana
o ofício de costureira; Manoel Lobeira, marido de Panúrgia, que tinha mania de
doença e acreditava estar à beira da morte; Quitéria e Anastácia, parteiras, apenas
mencionadas na trama, não atuaram diretamente; Anacleto, um boticário que
também não atuou na peça, mas que tinha função fundamental para o desenrolar
dos acontecimentos; Dr. Lélio, médico em quem Manoel depositara suas esperanças
de cura; os empregados de Manoel, o cozinheiro Rattazani e o escravo José.
As protagonistas do drama a parteira Pancrácia e a adúltera Panúrgia
concentraram a atenção do leitor durante toda a trama. Pancrácia era a mulher
forte e decidida da peça, enquanto que Panúrgia, na sua condição de infiel, foi
trabalhada de forma mais fragilizada, sempre com a consciência culpada por seus
atos.
Mulheres traz temas com relação à mulher e à sociedade em que se
inseriu: o adultério (feminino e masculino); os deveres da mãe de família; o que se
constituía um casamento; o preparo da moça para o papel de mãe (ou seja, a
importância da educação familiar); a mulher solteira; a violência de Porto Alegre, em
meados do século XIX; a mulher ideal para esposa e para amante; o noivo,
escolhido pelo pai da moça; o comportamento feminino ideal na ausência do marido;
a mãe solteira; a honra da família; a sabedoria materna; a mãe adotiva; o namoro no
século XIX.
A trama de Mulheres se passa na Porto Alegre da segunda metade do
século XIX, no período em que o próprio autor, Apolinário Porto Alegre, escreveu a
peça. Ele descreveu uma cidade que passava por transformações, em especial a
descoberta do mundo noturno, onde os episódios violentos se tornavam mais
freqüentes, obrigando os seus habitantes a modificarem certos hábitos.
Em cena da trama, Landulfo confessou à mãe que amava Henriqueta e
Antônia de forma diferenciada, mesmo porque, elas apresentavam perfis distintos.
Nesse momento da peça, trabalhou-se a idéia de que existiriam mulheres diferentes
para determinados papéis na sociedade, perfil que foi reforçado pelo tipo de
educação que receberam da família. Assim, existia a mulher para o casamento e
aquela cujo comportamento a conduzia para a amante. O amor pela esposa deveria
ser recatado, respeitoso; o amor ardente seria reservado para a amante:
Pancrácia Como é isto? Ama todas as mulheres!
Já se viu coisa igual?
Landulfo Não, somente Henriqueta e Antônia.
Diante da primeira sinto o sangue incendiado correr-me pelas
veias, ardo, não fico em mim, tenho vontade... não sei de que...
Diante da segunda, minha linda companheira de infância, tenho
timidez, guardo-lhe todo o respeito e acatamento, se anjos da
guarda, se adorações para eles, é o que sinto para Antônia.
(...)
Pancrácia – É um engano. Voltas a Henriqueta o
ardor dum amante e a Antônia o respeito dum esposo; mas
quanto a primeira, não podes ser, nem uma, nem outra coisa,
principalmente havendo entre ti e ela, como te disse, um mistério
288
.
Ressaltava-se, portanto, a importância do recato, da educação familiar,
do acompanhamento constante da mãe aos filhos, do bom comportamento feminino,
o que formaria o perfil desejado para a mulher do século XIX. A conduta libertina
deveria ser desencorajada, uma vez que desviaria a mulher desse seu nobre papel,
razão pela qual a prostituição pareceu ser tão criticada nas páginas da Gazetinha
.
Pancrácia, que somente mais tarde revelaria o mistério a que se referia,
insistiu que Henriqueta não seria uma moça adequada para o casamento,
288
PORTO ALEGRE, Apolinário. PORTO ALEGRE, Apolinário. Mulheres. Revista Mensal da
Sociedade Partenon Literário, Porto Alegre, ano 2, nº. 1, janeiro de 1873 ato 1 , cena 4, p.17
procurando fazer o filho mudar de idéia quanto às suas intenções futuras. Segundo a
parteira, a origem da diferença entre as duas estava na educação que receberam. A
mulher para o casamento, conforme o modelo feminino ideal difundido no período,
era aquela afeita às prendas do lar, preparada para os afazeres domésticos, para o
trabalho, para o zelo da família e, principalmente, não muito apegada aos prazeres
mundanos, que a desvirtuariam de tais propósitos. Na visão da personagem, Antônia
serve para tua mulher, pois foi criada no trabalho; e Henriqueta, uma leviana que te
seduz, como julgo, por passatempo, e te aconselha toda a sorte de doidices, afeita
ao luxo, não sabe, nem pode dar um pesponto, e muito menos cortar uma camisa
289
.
Na cena seguinte, o mistério que impedia a união de Landulfo e
Henriqueta foi revelado ao espectador, mas não às personagens, o que fez com que
o espectador/leitor se tornasse uma espécie de confidente, interagindo com as
personagens, o que poderia ser uma tática do autor para aproximá-los, provocando
empatia. Esse momento trouxe à tona uma terceira idéia: a temática do adultério
feminino, como era visto pela sociedade do período, a culpa que acarretava e as
formas de evitar que tal tipo de escândalo viesse a público.
Pancrácia recebeu a visita da amiga Panúrgia e sua filha Henriqueta.
Landulfo, não querendo rever a amada, escondeu-se na cozinha. Por meio do
diálogo que se estabeleceu entre as personagens, o espectador ficou ciente de que
Panurgia tinha um filho fora do casamento – Landulfo –, e que o dera para Pancrácia
criar, pois o adultério era algo imperdoável perante a sociedade. Não querendo
perder o amor do marido, foi que se instaurou toda a farsa
290
.
Na literatura do século XIX, inclusive na dramática, percebe-se um
discurso relacionado à manutenção dos padrões vigentes, assim como continuaria
sendo percebido na imprensa local, a exemplo da Gazetinha
: no que dizia respeito à
mulher, o discurso se direcionava à padronização dos papéis femininos, calcada no
modelo feminino ideal da sociedade. A crítica literária do século XIX foi uma
produção através da qual os homens construíram o mundo à sua imagem
291
,
289
PORTO ALEGRE, Apolinário. Op. Cit.. p.18
290
A farsa era prática usual nas comédias do período, construída sobre bases realistas. É
elemento das comédias de costumes, a exemplo das peças de Martins Pena.
291
SCHMIDT, Rita Terezinha. Cultura e dominação: O discurso crítico do século XIX. Letras de
Hoje, Porto Alegre, v.32, n3, setembro de 1997, p.90.
valorizando as obras de autoria masculina, que veiculava modelos e padrões tidos
como universais. Discurso masculino, este, conforme mencionado, predominante
na imprensa da época.
As colunas da Gazetinha
se tornaram um dos principais veículos do
jornal e desse discurso masculino sobre os papéis femininos, na campanha contra
Fausta, os bordéis e os infelizes deslizes, tão inadequados quando a prostituição,
nas ruas de Porto Alegre.
3.4 As colunas
A coluna “Apanhados”, como foi dito, dedicava-se a vigiar os desvios e
as escorregadelas cometidos pelos cidadãos, em especial as mulheres: as que
tinham comportamentos suspeitos; as que eram vistas na companhia de homens
estranhos; as mulheres jovens em atitudes públicas inadequadas com seus
namorados. Como se viu, em alguns momentos, a coluna chegou a receber a
contribuição do público para as suas denúncias. Entretanto, mais do que falar da
vida alheia, a coluna “Apanhados” também contribuía para reforçar o discurso
construído no restante das páginas do jornal, com relação aos focos de prostituição
em Porto Alegre.
As colunas publicadas na Gazetinha acabavam por construir crônicas
do cotidiano, por abordar tanto os temas de interesse público, como os escândalos e
confusões ligados à prática prostituição, como situações isoladas, como os deslizes
de moças solteiras. De pequenos eventos, freqüentemente, surgiam histórias que
ecoavam pelas ruas. Esses breves relatos contribuíram, em muitos momentos, para
aumentar a repercussão e a polêmica de temas ligados à mulher, na busca de atrair,
também, o interesse do público leitor. É como se, por intermédio de crônicas, o
jornal estivesse vendendo mercadorias, como salienta Sandra Pesavento:
um viés que se insinua e que, de certa forma, é
filho da crônica: a tendência a fazer, de um nada, de um
fragmento de acontecimentos, um assunto. Na narrativa do
cotidiano, esse é talvez o desafio que se apresenta ao escritor. O
cronista tem a missão de falar da vida de cada dia e dela fazer seu
artigo. É claro que os acontecimentos notáveis também podem
animar a sua escrita e inspirá-lo a redigir sua crônica, mas não é
sempre que tais eventos irrompem no cotidiano. Por outro lado, o
jornal vende mercadorias, e o seu artigo é a notícia. É ingênuo
pensar que o jornal possa apresentar como artigo, através da
crônica, a vida como ela é, sem maquiagem alguma, sem criação
ou elaboração. O artigo de jornal é uma representação que se
propõe no lugar daquilo que se passou, apresentando uma
imagem que, no mínimo, prenda a atenção, fazendo desaparecer
a distância entre a representação e o representado. Ela vende um
'pedaço' do real manipulado e tendencialmente sedutor, porque
um público a captar
292
.
A cada edição da coluna, uma série de questões eram tratadas, por
meio de tópicos. Logicamente, a maioria deles se referia aos comportamentos
cotidianos. Mas alguns se reservavam a assinalar os acontecimentos das
espeluncas. No início do ano de 1896, por exemplo, um trecho da coluna se
preocupou em questionar qual o papel da zona de prostituição: traria algum
benefício para a cidade?
Conforme temos demonstrado às nossas
autoridades, está perfeitamente evidenciado que essas
espeluncas, com especialidade a do Beco do Poço, Rua Clara e
da decantada Marte, da rua Dr. Flores, etc, etc, só nos tem trazido
o detrimento, a vergonha para nossos focos civilizados! Que
resultados obtém-se com a existência desses ínfimos antros em
nosso centro comercial e decente?
293
[grifo meu]
O termo vergonha era utilizado com freqüência nessas colunas,
sugerindo a preocupação com a construção da moral e da boa conduta do cidadão
porto-alegrense. O que se percebe também é o intuito de mapear
294
os locais onde
essta falta de vergonha acontecia, fazendo a ressalva de que a General Paranhos
não tinha exclusividade no foco da prostituição (embora fosse o maior alvo de
críticas, em função do bordel de Fausta):
292
PESAVENTO, Sadra. O Imaginário da cidade: visões literárias do urbano: Paris, Rio de
Janeiro, Porto Alegre. Porto Alegre: UFRGS, 1999, p.336.
293
Gazetinha, Porto Alegre, 8 de março de 1896, p.2.
294
O colunista justifica a atitude: é mister que fique mais uma vez acentuado: não falamos por
vício, nem temos intenção alguma de magoar quem quer que seja, pelo fato de querermos nos
tornar grandes no jornalismo da Capital; mas, é que, não obstante termos alguns insignificantes
desafeiçoados, sempre conservamos esta mania de pugnar pelo progresso moral da sociedade em
que vivemos. (Gazetinha
, 13 de abril de 1896, p.3)
Que os lupanares das ruas da Alegria, Ladeira,
Andradas, Santa Catarina, General Paranhos e Beco do Rosário
continuam cada vez mais fortes em seus tremendos desígnios. E
a tudo isso as autoridades da terra não dão sinal de si... um
cúmulo!
295
Na coluna de 28 de junho do mesmo ano, Beija-Flor não se resumiu a
apontar as ruas em que as atividades imorais aconteciam, mas identificou os hotéis
e bares mais suspeitos. O tom de denúncia foi assinalado quando os locais foram
grifados em letra maiúscula pelo jornal:
Quantas vezes temos ajustado ao largo peito as
fortes armaduras de aço, para denunciarmos publicamente, com
todos os dados, um antro de perdição que se abre triunfante para
a morte do pudor / quantas vezes temos nós, sem desmerecer de
forças clamando por justiça, a quem de direito compete! (...) E
agora, ainda para maior vergonha dos autoritaris senhores,
deixaremos aqui, gravadas em letras negras, os sinistros nomes
dos sinistros antros de impudicícia e desonra:
O Nº. 42, RUA GENERAL PARANHOS
O HOTEL UNIÃO
O HOTEL PORTUGAL
O 101 DA PRAÇA DO PORTÃO
AS BODEGAS DA RUA GENERAL PARANHOS
O 130 DA RUA DA PONTE
HOTEL PICCOLA
HOTEL ROMANO
E... até outra vista, senhores. O espelho alifica.
Mirem-se...
296
A “Apanhados” trabalhava idéia semelhante à da caricatura publicada
dois anos antes, relacionando o teatro, a decadência do princípio moralizador dos
espetáculos e a migração das mulheres para a prostituição. O colunista relatou,
horrorizado que, nos locais antes dedicados exclusivamente à cultura se
295
Gazetinha, Porto Alegre,10 de maio de 1896, p.2.
296
Gazetinha, Porto Alegre, 28 de junho de 1896, p.3.
encontravam anúncios das casas de prostituição, indício, segundo ele, da
decadência da sociedade porto-alegrense. Também se pontuou a falta de educação
pública como responsável pela situação, pois as moças, de instrução limitada,
cairiam facilmente nas armadilhas da prostituição:
Oh! Moralidade! Moralidade onde estás tu? Ela
desapareceu por inteiro dentre as virtudes mais belas e aparece
um caos medonho onde a prostituição desdobra o seu manto e
quer absorver tudo quanto lhe aparece. Imaginem, meus caros
leitores, que até no teatro aparecem os anúncios dos antros de
perdição? (...) Aí está o mote para pobres moças, fracas de idéias,
impressionarem-se e quererem imiscuir-se no que queriam dizer
aqueles dísticos...
297
O colunista ficou ainda espantado com a explicação dada pelas
mulheres para o que faziam nos locais de prostituição. A fala do colunista sugeriu
que ele próprio perguntara a elas o ofício praticado nas espeluncas. Entretanto,
como poderia ele saber, de fato, suas atividades? Como defensor
298
da moralidade e
dos bons comportamentos, seria ele um freqüentador desses espaços? É importante
assinalar aqui, mais uma vez, uma provável hipocrisia da sociedade porto-alegrense
à época, quando os discursos proclamados com paixão nem sempre eram seguidos
no cotidiano, na vida prática dos que os defendiam. Homens defensores da moral e
da família, com freqüência, mantinham relacionamentos fora do casamento. Do
contrário, quem manteria funcionando, por exemplo, as bodegas da General
Paranhos?
Os lupanares continuam a funcionar com a mesma
concorrência de mulheres. Todas elas dizem ter ocupações
nessas casas sendo umas cozinheiras, outras criadas, umas
companheiras, outras copeiras, no entanto é certo que elas vivem
para mercadejarem com o corpo e o proprietário usufruir dos
respectivos lucros desse comércio nefando.
297
Gazetinha, Porto Alegre, 18 de julho de 1897, p.2.
298
Em maio de 1897, o colunista realça, mais uma vez, a nobreza de sua tarefa: quantos
cronistas por aí que deixam de rabiscar por lhes faltar assunto, porém aqui não acontece o
mesmo, infelizmente. Teria o prazer de fazer desaparecer essa seção porque assim poderia gritar
bem alto que a sociedade está moralizada. Mas isto jamais se dará, pois em cada minuto que
atravessamos neste planeta chamado Terra mais um escândalo surge em seus domínios. E é dessa
forma que eu nunca poderei concluir essa seção (23 de maio de 1897, p.2).
Entre as que assim procedem citaremos uma que
existe na rua Santa Catarina e sobre a qual temos recebido
muitíssimas reclamações. As mulheres que ali existem vêm à
janela em trajes menores e proferem palavras que a moral manda
calar, o que já deu motivo, segundo nos consta, a um abaixo
assinado dos moradores das vizinhanças pedindo a extinção da
mesma. ...
299
[grifo meu]
A coluna “Imoralidades” também apontava os locais de prática da
prostituição, entretanto a ironia não era tão grande como a empregada pelo Beija-
Flor. Cabe aqui o questionamento quanto à fonte de informações do colunista: teria
ele presenciado diretamente os acontecimentos? O colunista, não identificado,
resumia-se a revelar que os dados chegaram até ele. Os elementos apresentados
complementavam os publicados pela coluna “Apanhados”:
Chegam ao nosso conhecimento informações de que
na Rua do Arvoredo, entre os becos Meireles e Império, a
depravação tem subido a seu apogeu, de uma forma
completamente escandalosa. É o fato que naquelas imediações
existem várias vielas entre as quais o celebérrimo Beco do Céu,
onde mulheres e homens da última camada social ali juntam-se
para cometer as maiores obscenidades. (...) Como é sabido
existem naquela quadra da rua citada grande quantidade de
vielas, dentro as quais quartos ocupados na sua totalidade por
mulheres de maus costumes. Essas mulheres, já por sua índole, já
pela péssima educação que receberam, não trepidam em
pronunciar as palavras mais repulsivas diante das famílias que ali
moram a quem insultam acremente, muitas vezes.
300
Sobre a ação policial nesses casos, a coluna assinalava, no mesmo
texto: É notório que em quase todos os postos policiais são recolhidas diariamente
Fulana, Beltrana, Sicrana, esta por ofensas à moral e aquela por embriaguez. Porém
de que serve isso, desde que não obriguem a delinqüente em tais casos assinar
termo de bem viver?
301
Era explícita, portanto, na fala do jornal, a idéia de que a
garantia da honra da mulher estaria na reclusão do ambiente doméstico, e não nos
prazeres mundanos, simbolizados pelo jogo, pela bebida e pela prostituição, que
299
Gazetinha, Porto Alegre, 25 de abril de 1897, ano 6, nº. 103, p.2.
300
Gazetinha, Porto Alegre, 24 de janeiro de 1897, p.2.
301
Gazetinha, Porto Alegre, 24 de janeiro de 1897, p.2.
ameaçariam essa reputação. Tal comportamento se tornaria fundamental para as
mulheres, conforme salienta Maria Beatriz Nizza da Silva, em estudo sobre o Brasil
Colonial, que apresenta elementos que permaneceriam ainda no século XIX:
Os moralistas aconselhavam, a fim de evitar às mulheres a
tentação do adultério, poucas visitas e estas sempre diante de
outras pessoas; também poucas saídas, pois a própria freqüência
das igrejas poderia tornar-se perigosa. A reclusão da mulher era,
portanto, a melhor garantia para sua honestidade e boa fama,
como se a própria sociabilidade e a participação na vida da
comunidade constituíssem outras tantas ocasiões de pecado
302
.
Além do recato, também se desejava que aquele que se casasse ou
que pretendesse se casar, tivesse a exclusividade total da mulher. Conforme
salienta Thales de Azevedo,
um motivo de orgulho e mesmo uma prova de
dignidade para a mulher e, nos meios mais conservadores, para o
rapaz, é haver casado com o primeiro namorado, o que significa
que não houve partilhamento da afeição, nem simultânea nem
sucessivamente com outrem. Esse é, por assim dizer um atributo
moral da virgindade perfeita e um elemento da monogamia. O
romance, a crônica, o conto do século XIX e do atual ressaltam
freqüentemente esse exclusivismo. A repetição de namoros, ainda
que sucessivos, denuncia uma característica negativa da
personalidade que a cultura rejeita, como volubilidade e
inconstância
303
.
A exaltação do recato, requisito fundamental para o comportamento
feminino, ficava claro na imprensa da época. Além da ressalva feita pela Gazetinha
,
em vários espaços do jornal (se se considerar que a crítica aos prazeres mundanos
representava um desejo pelo decoro e pelo bom proceder), outros veículos,
anteriores à Gazetinha
, publicavam concepções semelhantes, a exemplo da
crônica publicada pelo Colibri
que, em termos de estrutura e de informalidade da
linguagem utilizada, em muito se aproximava das colunas do jornal aqui em estudo:
302
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil Colonial. São Paulo:
Edusp / TA Queiroz, 1984, p.197.
303
AZEVEDO, Thales de. As regras do namoro no Brasil. América Latina, Rio de Janeiro, nº. 2-
3, ano 13, abril – setembro de1970, p.140.
Estrondosa novidade! Na retreta de Quinta-feira o Sr.
P. fez proezas de arrepiar os cabelinhos de minhas pestanas... O
Sr. P... abismem-se todos! Recebeu da sua deidade uma cartinha
e depois... depois... (Creio em Deus padre, etc.) e depois retribuiu-
lhe com um ... beijo!
E ela de dia é tão recatada, ele tão sisudo...
Tenham paciência... Não é com essas..
304
Ao apontar comportamentos inadequados, o cronista do Colibri
se
aproximava das ironias empregadas pelo Beija-Flor da Gazetinha
, salientando,
também, a hipocrisia da sociedade da época: o recato que não correspondia à
postura pública, tão imprópria para as mulheres.
Em 1897, a Gazetinha
considerou ter cumprido seu papel de vigilante
da moral e de protetora da população porto-alegrense com relação às casas de
prostituição, embora ainda houvesse necessidade de que as ações policiais
continuassem investindo. As ditas espeluncas foram proibidas de continuar
funcionando, e o jornal atribuiu o fato à campanha empreendida. Hoje, sabemos
que, após a publicação desse texto, as casas voltaram a abrir, ao mesmo tempo em
que o jornal parara de circular. Em fala pelo fim da campanha pela moralidade
pública, a Gazetinha
colocou:
MUITO BEM! Finalmente, após uma campanha
tenaz contra a longanimidade policial quanto à permanência fixa
de mulheres de costumes reprováveis em pequenos hotéis e
bodegas do centro da cidade, podemos cantar vitória.
Finalmente, a coisa moralizadora de que muito
somos os únicos arautos na imprensa porto-alegrense, acaba de
ser tomada em consideração, séria e profícua, pela policia.
Afinal, está proibido aquele desrespeito à moral,
contra o qual batemos resolutos e escudados na crença firme de
que assim prestamos um valioso serviço à sociedade decente
305
.
A partir do desfecho, segundo a Gazetinha, vitorioso, com relacão aos
lupanares e meretrícios, o foco do jornal passou a ser a atenção à ação do
policiamento urbano, constituindo-se em uma nova temática, entretanto, nem tão
304
O Colibri, Porto Alegre, 23 de setembro de 1877, ano 1, nº24, p.8.
305
Gazetinha, Porto Alegre, 28 de janeiro de 1897.
diferente daquela trabalhada entre os anos de 1895 e 1897. O enfoque da Gazetinha
poderia não ser mais a mulher como prostituta nem as espeluncas, mas essas
questões continuariam presentes em outros veículos da imprensa da época. A
preocupação com a moralidade porto-alegrense seria sempre uma constante,
naquele momento de transição política e social, embora a pauta passasse a ser a
polícia. Ao exigir melhorias do policiamento urbano, a partir de 1897, a Gazetinha iria
continuar exercendo seu papel de vigilante ao lado do povo, buscando uma nova
forma de abordar a necessidade da disciplina, em uma cidade que chegava ao
desenvolvimento e se tornava a sala de visitas do Rio Grande do Sul.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No momento em que Porto Alegre passava por um processo significativo de
transformações sociais, políticas e econômicas, na virada para o século XX, a
imprensa local apresentava maior interesse sobre as questões socioculturais.
Jornais, como a Gazetinha,
abriam espaço para crônicas de cotidiano, assinalando a
movimentação urbana da cidade. Identificada como um veículo que estava sempre
ao lado do povo, a quem chamava de Povinho, a Gazetinha
passava a
desenvolver, durante um período de três anos de publicação, uma campanha aberta
contra a prostituição e os focos de imoralidade de Porto Alegre. O alvo central do
jornal era a figura da cafetina Fausta, acusada de aliciar menores e mulheres de
família para trabalharem em seu estabelecimento: o famoso n
º.
42 da Rua General
Paranhos.
Durante o período de estudo da publicação, percebeu-se que a insistência
de uma fala repleta de códigos sociais fortemente construídos, presentes em vários
espaços do jornal, colaborou para a formação de uma mentalidade coletiva a
respeito da prostituição e dos comportamentos ideais para se viver, saudável e
harmoniosamente, em sociedade.
Em um processo de desenvolvimento que Porto Alegre vinha vivenciando,
ao lado da prosperidade comercial e dos investimentos, ainda incipientes, em
melhorias dos equipamentos urbanos, formou-se uma massa de indivíduos
excluídos. Fausta integrava esse grupo e escandalizava porto-alegrenses pelas
ocorrências no bordel que dirigia. O caso também alcançava repercussão em função
da vigência dos ideais positivistas que, além da proposta modernizadora para o
Estado, também propagavam um padrão de comportamento feminino, o ideal da
mulher enquanto portadora da divina missão de ser mãe e esposa, cabendo a ela a
formação do futuro cidadão. As mulheres de mau proceder representavam o desvio
de comportamento, sugerindo a consolidação de estereótipos femininos. Ações da
imprensa e das autoridades locais se davam em função da ameaça que a rua,
representada negativamente pelas espeluncas, simbolizava frente à manutenção da
ordem social vigente.
A abordagem de temas como a desordem, a imoralidade e as questões
sociais relacionadas à prática da prostituição ganhou força, nas páginas da
Gazetinha
, em meados do ano de 1895, em função da utilização do material visual
de que a publicação passava a dispor naquele momento. Demonstrou-se uma
preocupação muito grande com as mudanças que a cidade vinha sofrendo; com o
crescimento da capital, modificaram-se os comportamentos. Com o incremento da
vida noturna, proliferaram bordéis como o de Fausta, parte deles servindo de
espaço de trabalho para mulheres negras em um período pós-abolição da
escravatura, ocorrida em 1888. Ao mesmo tempo, surgiram críticas negativas à
limpeza urbana e à manutenção da ordem nas ruas. As temáticas passaram a ser
veiculadas de forma interligada: de um lado, o problema social, a saúde pública e a
segurança ameaçada pela prostituição –, de acordo com a representação feita
pela Gazetinha;
a crítica ao vício, à desordem nas ruas e à moral do cidadão porto-
alegrense. Além disso, seria preciso erradicar da cidade os focos de desvio dos
modelos comportamentais considerados ideais. Ao lado desse processo
modernizador, apontou-se para estratégias midiáticas que, ainda que caracterizem a
mídia contemporânea, já se faziam sentir ao final do século XIX.
Assim, foi possível compreender que o entendimento da sociedade
porto-alegrense do final do culo XIX passa, necessariamente, pelo olhar
construído sobre ela por intermédio da imprensa, conforme se discutiu em um
segundo momento deste estudo. Formaram-se, ao longo dos anos, estereótipos que
colaboraram para a consolidação de um senso comum, presente ainda hoje, acerca
dos comportamentos da época. Na atualidade, ainda se acredita no predomínio,
durante o século XIX, de mulheres que não tinham outra opção de vida que não
fosse a reclusão do lar. Esse estereótipo foi reforçado pela Gazetinha
, bem como
por outros veículos de imprensa (tais como a imprensa literária) e pela literatura,
onde se inclui a dramaturgia. São fontes de imaginário que salientaram a
negatividade de outros papéis sociais, associando a prostituição à desordem, ao
caos e à falta de higiene. As mulheres de mau proceder representavam o desvio do
comportamento feminino ideal.
Para tanto, buscou-se entender, neste estudo, a colaboração mútua
entre dois suportes teóricos: a Agenda-Setting e o Agenciamento de Poder. De
acordo com a perspectiva de agenda, a comunicação é considerada como um fluxo
contínuo, sob a perspectiva de que os fatos estão encadeados. Os acontecimentos
não se esgotam em um espaço de 24 horas, mas são sentidos os seus efeitos a
médio e longo prazo.
Os temas polêmicos, como os apresentados pela Gazetinha
, em sua
reconhecida campanha pela moralização de Porto Alegre, são capazes de promover
o agendamento nos meios de comunicação. Não se impõe ao público exatamente o
que pensar, mas sugere-se sobre que temas pensar a respeito, pautando a agenda
diária do leitor. Por meio de uma grande insistência sobre o tema, provocando o seu
agendamento, ao longo de três anos, a Gazetinha
parece ter contribuído para a
formação de uma mentalidade coletiva acerca de padrões morais. O agendamento
foi reforçado pelo agenciamento de poder do jornal, que elaborou códigos fortes, de
acordo com a perspectiva de Isaac Epstein, na tentativa de evitar dissonâncias.
Ao mesmo tempo em que códigos foram construídos mediante a fala da
Gazetinha
, pautaram-se temas para a agenda diária do leitor, por meio do
agendamento das questões ligadas à moralidade dos porto-alegrenses. A utilização
de poder favoreceu o mandante, o emissor do código: neste estudo, a Gazetinha
.
Houve uma aceitação pública da fala construída, ainda que essa aquiescência não
fosse consciente por parte do público, embora passasse a fazer parte da estrutura
da mentalidade coletiva, conforme sinalizaram os estereótipos criados quanto aos
padrões comportamentais. Essa assimilação, não consciente, surgida a partir da
insistência quanto à polêmica gerada na época, também favoreceu a possibilidade
do agendamento, uma vez que o jornal sugeria temas para se pensar a respeito.
Códigos foram construídos e passaram a repercutir. Agenciar o poder, portanto,
implica em agir e produzir efeitos.
Na Gazetinha
, os códigos se tornaram fortes, o apenas pela
insistência em trabalhar o tema, ou pela repetição dos termos empregados tais
como espeluncas e mulheres de mau proceder , mas também pela contribuição
para a formação de um conhecimento prévio, que permitia ao leitor fazer
associações quando da leitura do jornal. Instalaram-se estereótipos femininos por
meio de códigos estabelecidos, cujas ordens ou comandos acabaram sendo
acatados pela população. Havia um conhecimento prévio que colaborava com uma
fala estereotipada. Assim, parecia não haver dissonâncias quanto ao conteúdo das
cartas enviadas pelos leitores, (de acordo com o que sugeriam as poucas
contribuições dos leitores à Gazetinha,dadas as próprias características dos
veículos de imprensa da época, de espaço reduzido proposta que se difere da
contemporânea). Com a formação de um código forte, acatava-se a ordem emitida,
ainda que o se percebesse esse processo. A ordem legítima, conforme salientou
Epstein, é emanada segundo um contexto; e o que se percebeu, neste estudo, foi
que o próprio momento histórico vivido pela sociedade porto-alegrense favoreceu a
campanha moralizadora empreendida pela Gazetinha,
havendo um projeto
modernizador para o Estado. Estabeleceu-se, assim, o modo normal de
agenciamento de poder, decorrente de uma relação assimétrica de poder, entre o
papel exercido pelo Agente (a Gazetinha
) e pelo Paciente (o público leitor da
Gazetinha
, que recebeu as ordens emitidas).
Em um terceiro momento deste estudo, buscou-se analisar mais
especificamente de que maneira a Gazetinha
articulou os códigos fortes construídos
em diferentes espaços e momentos do jornal. Conforme mencionado, percebeu-se
uma grande insistência sobre a temática da moralidade e da prostituição, cujos
efeitos foram sentidos a médio e longo prazo, caracterizando o agendamento
dessas questões.
Em meio a textos que discutiam a situação política e econômica do
Brasil e do Rio Grande do Sul, espaço significativo foi dedicado, nas capas, às
denúncias de casos polêmicos, escândalos e às ocorrências na Rua General
Paranhos. Ressaltava-se a necessidade da disciplina. Abordagem semelhante era
feita por colunas como a “Apanhados”, assinada pelo Beija-Flor, que denunciavam
maus comportamentos e deslizes morais dos porto-alegrenses. Ao mesmo tempo,
as reportagens de capa buscavam fazer as mesmas denúncias. Entretanto, nesse
caso, o tom irônico, que marcava as colunas, cedeu lugar a uma fala que contestava
o papel das autoridades frente aos problemas: buscou-se salientar, nesses textos,
uma intendência municipal e sua guarda igualmente inoperantes.
Acompanhava essas falas certa tendência ao sensacionalismo: ainda
que maior espaço fosse reservado às questões que envolviam a moralidade (ou sua
ausência...), temas como assassinatos, casos de abuso sexual, suicídios e
escândalos públicos também ganhavam repercussão, e a chamada de capa, como
se percebeu em algumas das edições ilustradas, destacavam-nas. Foi o caso de
capas que retratavam os assassinados ou a suicida Paulina Fuchs, temas que
continuariam sendo trabalhados em edições seguintes. Esse apreço pelos
escândalos e pelas denúncias cotidianas revelou uma intencionalidade de
aproximação do jornal com o público, uma vez que, cabe lembrar, a Gazetinha
sempre se intitulou como o jornal que estaria ao lado do Povinho, defendendo
seus interesses e protegendo-o das imoralidades que tomavam conta das ruas da
cidade. As tendências socialistas da publicação também colaborariam neste sentido.
Trabalhou-se, assim, com a hipótese de que um atendimento ao gosto
popular o se deu ao acaso. Buscou-se, por intermédio dos temas publicados e
dos termos empregados nos textos e nas imagens, uma estratégia de manutenção
do consumo do jornal, de interesse pela folha. Seria necessário manter o interesse
do blico e aproximar o texto do leitor, por isso mesmo, o tom irônico era elemento
sempre presente em diferentes espaços, especialmente nas colunas assinadas pelo
Beija-Flor. Cabe lembrar, aqui, das palavras empregadas, que iam ao encontro
desse propósito. Além de uma preocupação em tornar Porto Alegre uma cidade
civilizada, ao gosto das pretensões políticas da época, o que estava em questão,
também, era uma proposta de consumo do jornal, no sentido de promover o
aumento de sua circulação. Esta é uma estratégia midiática que acaba aproximando
o Jornalismo da História: o jornal constrói realidades a partir dos mais variados
propósitos, sejam eles políticos, de cunho civilizador, moralizador, sejam, ainda,
interesses particulares da própria publicação.
Na Gazetinha, além dos textos veiculados em torno de temas
polêmicos, tais como a prostituição, também os elementos ilustrativos do jornal
contribuíram para a campanha contra a imoralidade em Porto Alegre. Charges e
caricaturas sintetizavam as idéias publicadas textualmente, ao mesmo tempo em
que as tornavam mais acessíveis ao público leitor, pela sua objetividade. O
Povinho, sempre representado com ares de sofredor, constantemente era amparado
pela figura que simbolizava a Gazetinha
. As caricaturas publicadas, muitas vezes,
possuíam caráter político, cobrando maior atuação das autoridades locais quanto às
ocorrências denunciadas pelo jornal. Paralelo a essas cobranças, as caricaturas
também representaram o 42 da General Paranhos, freqüentado por mulheres
bem-vestidas; padres seduzindo moças inocentes em salas paroquiais; abandono
de crianças (fruto da gravidez indesejada de moças solteiras); a desordem das ruas
de Porto Alegre, a sujeira da cidade. Por intermédio de imagens que corroboraram
os textos de capa e as colunas publicadas semanalmente, a Gazetinha
trouxe à luz
uma cidade real em contraponto ao ideal modernizador e civilizador desejado para a
época. A onipresença dessas questões, bem como o interesse em continuar
abordando-as negativamente, foi que tornaram possíveis tanto a possibilidade do
agendamento quanto a prática do agenciamento de poder por parte da Gazetinha
.
Os reflexos do tema debatido na sociedade (uma vez que a questão
também fora discutida em outras instâncias favorecendo, assim, a hipótese de
agendamento do tema) eram sentidos, também, nos anúncios publicitários. O tema
saiu do espaço formal da redação do jornal e acabou trabalhado, mesmo que
indiretamente, nos anúncios publicados. O anúncio do tônico Negrita fazia clara
alusão à Fausta e às prostitutas negras, ao conferir caráter sexual ao produto,
revelando que se tratava do segredo do Tio Pedro (em referência ao folhetim
publicado na mesma época, sugerindo a incidência de um meio de comunicação
sobre o outro; o que, também, reforça a possibilidade do agendamento). As imagens
construídas sobre as prostitutas, nos textos publicados nas capas e colunas,
referiam-se àquelas que provocavam arruaça, causadoras da desordem ao arrastar
os homens para o interior dos estabelecimentos. Mas, ao mesmo tempo, pareciam
portadoras de uma liberdade de conduta negada às mulheres de família, que
carregavam o estigma da boa mãe e da boa esposa. Essa imagem sensualizada,
portanto, cabia a poucas, e estava em acordo com as figuras construídas pelos
anúncios de produtos direcionados ao universo masculino. Os anúncios se
aproveitavam desta imagem. A propaganda do tônico estimulante dava a dimensão
dessa construção, ao elaborar a figura de uma mulher esteticamente fora dos
padrões de bom comportamento. Outros anúncios trabalharam diferentes imagens
femininas: enquanto figuras de mulheres sensualizadas eram associadas ao prazer,
as mulheres de família eram representadas recatadamente, sugerindo conforto,
confiança e segurança.
Em 1897, a Gazetinha
considerava que sua missão de defender a
civilização e os bons costumes em Porto Alegre fora reconhecida pelas autoridades.
Uma vez que sempre alinhavara o problema da prostituição com a questão da saúde
e da segurança pública, a notícia da organização de um novo corpo de polícia na
cidade encheu o jornal de orgulho. Pouco tempo depois, o julgamento de Fausta, em
processo-crime instaurado em 1898, pareceu coroar a campanha moralizadora da
Gazetinha
.
A partir desse momento, o foco do jornal passaria a enfatizar a ação do
policiamento urbano, constituindo-se em uma nova temática a fazer parte da agenda
do leitor. Ainda que a preocupação com a moralidade porto-alegrense ainda
estivesse presente, a pauta passou a ser a polícia. Se, antes, a freqüência de textos
com o título “Pela Imoralidadeera grande, indicando uma série de reportagens que
enfatizavam sempre o mesmo assunto, a partir de 1897 surgia uma nova série, com
o título “Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”..., indícios de uma
possível nova iniciativa de agendamento pela Gazetinha
.
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Legislatura da Assembléia Provincial, Porto Alegre, 10 de março de 1864.
Processos – Inventários e Testamentos
Autos de inventário em que são partes Elisa Marciana Chaves e o marido Capitão
Antônio Rodrigues Chaves , inventariados, e D. Ana Joaquina Chaves, viúva,
cabeça de casal, inventariante. Porto Alegre, Cartório de Órfãos, 1868, autos nº
1953.
Autos de testamento em que são partes Ana Maria da Conceição, testadora, e
Ângelo José Goulart, testamenteiro. Porto Alegre, Cartório da Provedoria, 1850,
autos nº 1195.
Autos de inventário em que são partes José de Sá Brito, inventariado, e Maria
Henriqueta de Sá Brito, inventariante. Porto Alegre, Cartório de Órfãos, 1858,
autos nº 1818.
Autos de inventário em que são partes José Teixeira Nunes, inventariado, e D.
Bernardina Maria da Conceição, inventariante. Porto Alegre, Cartório de Órfãos,
1866, autos nº 1920.
Autos de inventário em que são partes Januário Antônio de Sousa, inventariado, e
Cândida Carolina de Sousa, inventariante. Porto Alegre, 1º Cartório de Órfãos, 1869,
autos nº 1975.
Autos de inventário em que são partes Eufrásia Maria da Trindade, inventariada, e
Jerônimo de Sousa Rocha, inventariante. Porto Alegre, Cartório de Órfãos, 1877,
autos nº 2136.
Autos de inventário em que são partes Albino José de Mattos e sua mulher Luciana
Maria da Conceição, inventariados, e Antônio Jo de Mattos, inventariante. Porto
Alegre, 1º Cartório de Órfãos, 1880, autos nº 2203.
Autos de inventário em que são partes Israel Francisco Nunes, inventariado, e
Gertrudes Maria Ignacia, Inventariante. Porto Alegre, Cartório de Órfãos, 1881,
autos nº 2221.
Autos de inventário em que são partes Antônio Jode Vargas e sua mulher D. Iria
Ignácia de Sousa, inventariados, e D. Idalina Pacheco de Vargas, inventariante.
Porto Alegre, 1º Cartório de Órfãos, 1897, autos nº 2425.
Processo-crime
Processo-crime. Ré: Fausta Marçal. Porto Alegre, Juízo Distrital da sede do
município da Capital, 1898, autos 3699, maço 115. Arquivo Público do Estado do
RS.
Jornais:
A Gazetinha
, Porto Alegre, 1895 a 1897.
A Federação
, Porto Alegre, janeiro de 1899.
O Colibri
, Porto Alegre, setembro de 1877.
Livros Grátis
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