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ZILMA BRIGHENTI
CONSCIÊNCIA E PSIQUISMO
uma investigação sobre a concepção de sujeito em Sartre
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
FLORIANÓPOLIS, SC, BRASIL
2006
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2
CONSCIÊNCIA E PSIQUISMO
uma investigação sobre a concepção de sujeito em Sartre
Por
Zilma Brighenti
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação:
Mestrado em Filosofia, área de concentração Ontologia,
do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, da
Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia.
FLORIANÓPOLIS - SC, BRASIL
2006
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4
Dedico:
A todos os meus clientes que passaram pelo meu
exercício profissional e me propiciaram a
experiência de ser existencialmente psicóloga.
5
Podemos mentir com a boca, mas com a expressão
da boca ao mentir dizemos a verdade.”
Friedrich Nietzsche
6
AGRADECIMENTOS
Ao Departamento de Filosofia, pela oportunidade de realizar este trabalho;
Aos professores, pelos ensinamentos, companheirismo e orientação;
À Pro Dra. Daniela Schneider, do Departamento de Psicologia da UFSC, pela
colaboração;
Ao colega de mestrado, Henrique Cahet, pelas discussões sartreanas;
Aos colegas do curso de pós-graduação em ontologia, pelas discussões e reflexões e
pelo companheirismo tão importante nesta experiência de curso;
À Marilene R. Varela Caldeira de Andrada, pela valiosa participação nesta
realização, como ajuda nos trabalhos de digitação e burocracia do texto de dissertação;
Aos amigos, colegas de profissão, psicólogos e filósofos, que participaram de mais
esta experiência tão importante na minha trajetória profissional e pessoal;
À Miriam, sobrinha, acadêmica de psicologia, pela participação nesta experiência
como futura colega profissional.
7
SUMÁRIO
RESUMO ........................................................................................................... 09
ABSTRACT ...................................................................................................... 10
RÉSUMÉ ........................................................................................................... 11
APRESENTAÇÃO ............................................................................................
12
INTRODUÇÃO ................................................................................................ 14
CAPÍTULO I
1
A CONSCIÊNCIA E O PSÍQUICO.................................................................
21
1.1
A fenomenologia ............................................................................................... 21
1.2
A Transcendência do Ego ............................................................................... 23
1.3
A Imaginação e O Imaginário ......................................................................... 30
1.4
Teoria das Emoções .................................. ....................................................... 44
CAPÍTULO II
2
A ONTOLOGIA FENOMENOLÓGICA ....................................................... 48
2.1
O Ser e o Nada .................................................................................................. 48
2.2
A idéia de fenômeno e de conhecimento ........................................................ 51
2.3
O “Em-si”/”Para-si” ......................................................................................... 54
2.4
A faticidade do “Para-si” ................................................................................. 55
2.5
O corpo como “Para-si” ................................................................................... 58
2.6
O “Em-si” e o “Para-si” podem sugerir um dualismo? .................................
68
2.7
O Nada ................................................................................................................
70
CAPÍTULO III
3
A LIBERDADE.................................................................................................. 76
3.1
Liberdade e faticidade: a situação ................................................................... 91
CAPÍTULO IV
4
PSICANÁLISE EXISTENCIAL COMO MÉTODO .................................... 101
CAPÍTULO V
5
SAINT GENET (uma concepção fenomenológica de sujeito) ......................
110
5.1
A metamorfose .................................................................................…..............
114
5.2
Serei o ladrão ..................................................................................................... 125
5.3
Genet: um santo do mal ....................................................................................
130
8
5.4
A obstinação pelo mal ....................................................................................... 135
5.5
A segunda metamorfose: o esteta .................................................................... 142
5.6
Terceira metamorfose – Genet/escritor .......................................................... 146
CONCLUSÃO.....................................................................................................
156
REFERÊNCIAS ................................................................................................ 169
9
RESUMO
Jean-Paul Sartre (1905-1980), filósofo francês, deixou uma obra importante para a
filosofia, a literatura, a psicologia, o teatro, a política. Foi um intelectual engajado nas lutas de
classe, para forjar mudanças importantes na perspectiva de uma sociedade e uma humanidade
mais conscientes, menos tima das crenças e dos falsos valores. O existencialismo francês
deixou um grande legado para a filosofia e psicologia, que parte da premissa: a existência
precede a essência”, e uma nova ontologia que é marco fundamental no pensamento filofico
e psicológico do século XX. Sua vasta contribuição para a filosofia e psicologia veio trazer
nova compreensão da constituição de sujeito, rompendo com os postulados da filosofia e
psicologia de sua época.
Jean-Paul Sartre entregou ao mundo seu projeto de ontologia fenomenológica, na obra
O Ser e o Nada”, rompendo com os dualismos da filosofia e formulando uma nova
compreensão da consciência e do funcionamento psíquico, com uma proposta de sujeito como
realidade humana livre e em construção ininterrupta. O ser é um constante vir-a-ser, o projeto
do Para-si” é busca jamais concluída, pois o homem está perpetuamente em construção de
seu ser. Sartre foi um intelectual que trabalhou incessantemente para forjar mudaas que
considerava importantes. Questionou os valores da racionalidade ocidental, o homem
fabricado segundo valores pré-determinados, mostrou uma nova compreensão do ser e do
nada e que o homem é um projeto pertuo em seu existir, pois constrói-se ao mesmo tempo
em que constrói a história.
A filosofia e a psicologia foram assim radicalmente reformuladas. Sartre deixou uma
análise rica e abrangente da concepção de homem, de consciência e de liberdade. Entender o
sujeito segundo Sartre é dar ao homem um futuro com alguma possibilidade real. a
liberdade pode tornar inteligível uma pessoa em sua totalidade. A liberdade em luta com o
destino e na continncia, mas sempre considerando que o mais importante não é o que
fizeram do homem, mas o que ele próprio conseguiu fazer na luta contra o dado e na
apropriação de seu espaço no mundo. O homem é condicionado, mas não é pré-determinado.
Seu movimento no mundo, por pequeno que seja, é livre. Livre para lutar e livre para fazer-se.
10
ABSTRACT
French philosopher Jean-Paul Sartre (1905-1980) has left an important body of work
in philosophy, literature, psychology, theater, and politics. He was an intellectual engaged in
the class struggle with the purpose of forging important changes in order to produce a society
and a humanity endowed with a wider awareness which would not be prey to beliefs and false
values. French existentialism has left a great legacy in philosophy and psychology based on
the premise that “existence precedes essence”, and a new ontology which is a fundamental
landmark in the philosophical and psychological thought of the 20
th
century. His vast
contribution to philosophy and psychology has brought a new way of comprehend the
constitution of the subject, parting with the philosophical and psychological postulates of his
time.
Jean-Paul Sartre deliveud the world his project of a phenomenological ontology to the
world in the work Being and Nothingness, parting with the dualisms of philosophy and
formulating a new way to comprehend conscience and the psyche, proposing the subject as a
human reality of freedom in continuous transformation. The being is in constant
transformation and the project of “being-for-itselfis an endless quest, for man is perpetually
transforming his being. Sartre was an intellectual who worked continuously to forge changes
that he considered important. He called into question the values of Western rationality,
rejected predetermined values, and offered a new comprehension of being and nothingness.
Man is a perpetual project in his own existence, transforming himself as he transforms
history.
Thus, philosophy and psychology have been radically reformulated. Sartre has left a
rich and comprehensive analysis of the conceptions of man, conscience and freedom.
Understanding the subject, according to Sartre, is giving man a future with some sort of real
possibility. Only freedom can render the subject intelligible in its totality. Freedom struggles
against fate and in the world; but always having in mind that the most important thing is not
what has been made of man, but what he himself has achieved in the struggle against what is
given and in the appropriation of his space in the world. Man is conditioned, but he is not
predetermined. His scope of action in the world, even though it is narrow, it is free. He is free
to fight and free to transform himself.
11
RÉSUMÉ
Jean-Paul Sartre (1905-1980), le philosophe français, a laissé une important œuvre
pour la philosophie, la littérature, la psychologie, le théâtre, la politique. Intellectuel engagé
dans les luttes de classe, il a envisagé des changements importants dans les perspectives d'une
société et d'une humaniplus conscientes et moins vulnérables aux croyances et aux fausses
valeurs. "L'existentialisme français" est un grand legs pour la philosophie et spécialement
pour la psychologie, en partant de la prémisse: "l'existence précède l'essence", et aussi une
nouvelle ontologie qui représente une limite fondamentale dans la pensée philosophique et
psychologique du XX
e
siècle. Son énorme contribution pour la philosophie et pour la
psychologie a apporté une nouvelle compréhension de la constitution de sujet, tout en
rompant avec les postulats de la philosophie et de la psychologie de son époque.
Jean-Paul Sartre a offert au monde son projet d'ontologie phénoménologique dans
l'œuvre "L'Etre et le Néant, à travers la rupture des dualismes de la philosophie et de la
formulation d'une nouvelle compréhension de la conscience et du fonctionnement psychique,
avec une proposition de sujet comme réalité humaine libre, en perpétuelle construction. L'être
est un continuel devenir; le projet du "Pour-soi" est une quête jamais accomplie car l'homme
est en perpétuelle construction de son être. Sartre a été un intellectuel qui a travaillé sans
cesse pour construire les changements qu'il considérait importants. Il a mis en question les
valeurs de la rationalioccidentale, l'homme fabriqué selon les valeurs prédéterminées, il a
montré une nouvelle compréhension de l'être et du néant et que l'homme est un projet
perpétuel dans son existence, il se construit et, à la fois, construit l'histoire.
La philosophie et la psychologie ont été donc radicalement reformulées. Sartre a laissé
une analyse riche et vaste des conceptions d'homme, de conscience et de liberté. Comprendre
le sujet, selon Sartre, est donner à l'homme un avenir avec quelques possibilités réelles. Il n'y
a que la liberté pour rendre intelligible une personne, en sa totalité. La liberté en lutte contre
le destin et dans la contingence, mais toujours considérant que le plus important n'est pas ce
qu'on a fait de l'homme mais ce que lui-même a réussi à faire dans la lutte contre ce qui lui est
donné et dans l'appropriation de son espace dans le monde. L'homme est conditionné, mais il
n'est pas prédéterminé. Son mouvement dans le monde, quoiqu'il soit très petit, est libre.
Libre pour lutter et libre pour se construire.
12
APRESENTAÇÃO
Este trabalho de pesquisa visa desenvolver um estudo sobre a constituição de sujeito
segundo a ontologia fenomenológica de Jean-Paul Sartre.
Iniciamos o primeiro e o segundo capítulo com um estudo sobre a trajetória que Sartre
percorreu desde o projeto de construção de uma nova psicologia partindo da fenomenologia,
com as obras que antecedem “O Ser e o Nada”, dos anos de 1930 a 1939, avançando até a
construção de uma fenomenologia partindo de Husserl e a elaboração do seu projeto de
ontologia fenomenológica, que se concretiza na obra “O Ser e o Nada”, publicada em 1943.
No terceiro capítulo, segue uma reflexão sobre o problema da liberdade como aspecto
essencial da realidade humana, como uma expressão ontológica de constituição de sujeito,
pensando o homem como condenado a uma liberdade absoluta que o coloca na sua
contingência como responsável por seu destino. A existência precede a essência e, apesar do
dado, o sujeito é livre dentro de um movimento dialético de mediação homem/mundo.
o
somos torrões de argila e o importante não é o que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos com o que
fizeram de nós
” (SARTRE, 2002, p. 61).
Para Sartre, é possível o homem ressignificar sua realidade global como ser dado na
realidade humana. Entende-se por ser dado a história do sujeito dentro das condições em que
foi posto no mundo: condições familiares, classe social, contexto hisrico/político, que ao
sujeito um início de formação de sua personalidade e o coloca diante de possíveis escolhas.
A liberdade de escolha dá oportunidade ao sujeito de mudar o que foi programado para
ele. Assim, nessa ontologia, a liberdade não é concebida dentro do plano moral, mas
ontológico. Não se pode não escolher, a liberdade é da condição humana. No universo da
liberdade, a criação humana é livre. Eu existo e eu sou livre.
Em Sartre, não se pode falar de psiquismo sem compreender o funcionamento da
consciência. Portanto, trata-se de falar de concepção de sujeito como um todo, como
singularidade em relação com o mundo. Por isto entende-se por subjetividade a objetividade
subjetivada.
No quarto capítulo, temos um breve estudo sobre a psicanálise de Freud com a
concepção de sujeito pré-determinado e a Psicanálise Existencial de Sartre como método de
investigação da realidade humana, o sujeito que não é pré-determinado, mas resultado de seu
projeto fundamental e seu desenvolvimento psíquico.
13
No quinto capítulo, de posse do todo de investigação da realidade humana, será
realizada a análise de uma personalidade segundo o método descrito por Sartre, na Psicanálise
Existencial. A personalidade escolhida foi a de Jean-Genet e, por meio da alise, se poderá
compreender a estrutura de um sujeito pela sua hisria e pelo seu projeto de liberdade.
Compreender um sujeito segundo a ontologia fenomenológica de Sartre é apreender o
movimento que o sujeito conseguiu fazer diante do dado e de suas escolhas, na apropriação de
seu lugar no mundo.
Assim, podemos perceber que esta pesquisa coloca questões de grande importância
para a filosofia e psicologia na compreensão da concepção fenomenológica de sujeito, com o
objetivo de elucidá-las e apresentar uma descrão filofica e psíquica, como um caminho
para compreender a constituição de sujeito como singularidade no mundo, como consciência e
como psiquismo, como ser universal, mas não plural.
14
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa tem por objetivo investigar a concepção de sujeito segundo a ontologia
fenomenológica de Jean-Paul Sartre, e assim visa desenvolver um estudo sobre a ontologia
que levou à elaboração da psicologia fenomenológica.
Sartre, em torno dos anos trinta do século passado, iniciou seus estudos com um
projeto de reformular a psicologia. Queria partir do homem concreto, seguir os fatos
objetivamente, respeitando o homem pela sua expressão no mundo como trabalho,
consciência e sentimento. Em 1934, procurou conhecer a fenomenologia de Husserl e, então,
expressou o propósito de reformular a psicologia partindo do princípio de intencionalidade.
Pelo princípio de intencionalidade Sartre garantiu seu objetivo de compreender a realidade
respeitando a plena autonomia da consciência e o determinismo das coisas. A partir desse
momento, o conceito de intencionalidade passou ser o caminho para as suas reformulações.
Sartre deve ser lido partindo rigorosamente do princípio de intencionalidade.
As obras dos anos de 1930 a 1940, “A Transcendência do Ego”, “A Imaginação”, “O
Imaginário”, Esboço de uma Teoria das Emoções”, “A Náusea”, representam uma síntese
das pesquisas de Sartre buscando levar a filosofia e a psicologia rumo ao concreto, rompendo
com as concepções abstratas, metafísicas e subjetivistas.
Sartre teve que enfrentar o grande problema da filosofia de sua época com o idealismo
e realismo. Seu projeto de ontologia fenomenológica, “O Ser e o Nada”, publicado em 1943,
apresenta um novo caminho na questão do conhecimento, do entendimento do ser do homem
e rompe com os dualismos da filosofia: alma/corpo, potência/ato, essência/apancia. Sartre
finalmente cria um projeto de ontologia fenomenológica que é uma nova ontologia, um novo
entendimento da filosofia e psicologia de seu contexto histórico. Rompe definitivamente com
a metasica. A consciência humana é poder de nadificação e liberdade, opõe-se ao “Em-si”, o
ser das coisas. O homem deve ser entendido pela relação dialética entre a consciência e o
mundo.
Sartre é um intelectual que influenciou as ciências humanas do século XX, ajudou a
construir o pensamento de seu momento histórico, com uma grande contribuição para as
ciências do homem. Propôs uma nova filosofia e psicologia, questionou seus fundamentos.
Apresentou uma valiosa crítica aos valores vigentes, valores metafísicos e alienantes. Colocou
o ser do homem na objetividade concreta e livre para fazer seus valores e seu destino. Um
filósofo que se projetou no social nas lutas de classes, não foi apenas um intelectual de
15
academias especializadas como eram os intelectuais de sua época. Sartre entendia que o
intelectual devia sair do pedestal das academias, estar seguindo a sociedade, numa produção
filofica e potica do aqui-e-agora, forjar uma nadificação do passado por uma sociedade
melhor no futuro que é o presente posto aqui, facilitando assim as mudanças sociais. Assim,
Sartre não influenciou somente o público especializado, mas também o social, como relata
Simone de Beauvoir, em “A Cerimônia do Adeus”, quando mostra o engajamento do seu
companheiro nos problemas sociais e poticos de sua época, participando de movimentos
sociais e das lutas contra a opressão da classe trabalhadora.
Pela natureza da consciência, como descrita nas características do “Para-si”, a
liberdade é uma expressão de cada consciência e não de uma consciência em relação a outra
ou outras. O entendimento de sujeito, segundo Sartre, é consciência e liberdade. Por isso,
quando se coloca a questão de que Sartre contestou os princípios e os valores da racionalidade
ocidental, significa dizer que entendeu e mostrou uma nova dialética das relações humanas,
sociais e políticas, muito distantes dos moldes de seu tempo hisrico.
Quando mostrou uma concepção de sujeito e de sociedade em que a alienação e
opressão de um pelo outro deveria ser extinta, em que a coersão e a submissão não teriam
mais espaço, mostrou que cada consciência mereceria sua existência. Como diz em seu
testamento
: “[...] nosso fim é chegar a um verdadeiro corpo constituído, em que cada pessoa seria um homem
em coletividades humanas”
(MACHADO, 1981, p. 28). Tudo isso hoje é uma grande utopia, a
consciência ainda não conquistou seu espaço, e as instituições hierarquizadas mantém seus
privilégios. Mas não são as instituições que precisam mudar, e sim as consciências, que
precisam delas se libertar. Sartre fala nas entrevistas, em Situações X”, que imagina uma
sociedade em que as pessoas não precisam mentir, em que a consciência e o corpo poderiam
ficar no mesmo nível de expressão, já que o corpo não mente. Segundo suas palavras
“[...] é
impossível admitir que entregávamos o nosso corpo como o entregamos e que esconderíamos os nossos
pensamentos, dado que, para mim, não há diferença de natureza entre o corpo e a consciência”
(SARTRE,
1977, p. 132).
Para Sartre o corpo é entregue nas relações de um modo geral. Vimos o outro pelo seu
corpo que aí se apresenta. Não há como esconder o corpo, mas há a tentativa de esconder a
consciência, embora a consciência se expresse no corpo.
Sartre concebia uma revolução diferente para haver mudanças de consciência.
Identificava-se com as lutas revolucionárias do mundo inteiro, porém, entendia que uma
revolução, para ter realmente êxito, precisaria ser duradoura:
16
Digo simplesmente que serão pelo menos necessários cinqüenta anos de lutas por
conquistas parciais de poder popular sobre o poder burguês, com avanços e recuos,
êxitos limitados e fracassos reversíveis, para se chegar finalmente à realização de
uma nova sociedade em que todos os poderes serão suprimidos, porque cada
indivíduo terá uma plena posse de si próprio. A revolução não é um momento de
derrube de um poder pelo outro, é um longo movimento de distanciamento do poder
(SARTRE, 1977, p. 200).
Sartre acredita no homem como poder de consciência. Enquanto o homem o se
realizar como liberdade, como posse de si mesmo, o projeto humano está fadado ao fracasso.
O intelectual pode trabalhar para isso. Sartre trabalhou para mostrar o poder da consciência
junto às massas e, segundo suas próprias palavras, só o futuro dirá o resultado de seu trabalho:
“Ter-lhe-ia dito que somos livres, mas que temos que nos libertar, e que, portanto é preciso que a liberdade se
revolte contra as alienações”
(SARTRE, 1977, p. 204).
Sartre é um escritor prolixo, problemas tratados na literatura também são tratados em
O Ser e o Nada”, como o problema da continncia, por exemplo, no romance “A Náusea”,
ou o conto “O Muro”, com os limites da liberdade. Sartre serviu de inspiração para peças de
teatro, para filmes, dada a múltipla produção intelectual que realizou. Sartre é um escritor
recente, ainda muito jovem para os leitores das academias. Conseguiu saturar o espaço
literário e cultural de sua época, um intelectual do s-guerra a impedir que qualquer regime
de enunciação escapasse ao seu donio. Nada lhe era estranho na expressão de seu tempo.
Assim atuava na literatura, no teatro, na filosofia; não se fixava em nenhum nero apenas,
mas praticava todos. Com tantos gêneros de expressão Sartre se diferencia dos intelectuais de
seu tempo absolutamente pela expressão diversificada. A filosofia e a literatura se misturam,
romance e filosofia, para numa expressão quase fundida apresentar-se numa obra com rigor
de conhecimento técnico. Além de se expressar pelos vários gêneros, se expressa com mais
que um ao mesmo tempo. Seja em qualquer das expressões, é sempre tomado pelas questões
de seu tempo que, ao exemplo de sua ontologia, suas reflexões estão calcadas na objetividade
hisrica e concreta.
Embora Sartre tenha se mantido mais na perspectiva filofica e literária, realizou
grandes reflexões para a psicologia e os problemas que essa ciência enfrentava em sua época.
Suas primeiras obras foram mais de cunho psicológico, especialmente as dos anos trinta a
quarenta do século passado, mas depois nas obras biográficas como “Saint Genet” e “O Idiota
da Família”, mostrou uma grande compreensão da psicologia, sendo impossível ver um Sartre
somente filósofo quando pensou o homem na sua totalidade tanto como consciência como
psiquismo, especialmente porque trabalha com uma compreensão do psíquico como
psicologia fenomenológica. Sartre procurou entender o indivíduo singular, mas colocado no
17
mundo. Para entender o ser do homem é preciso buscar seu projeto, que gera as escolhas
fundamentais do sujeito como ser singular no mundo, na objetividade. O projeto de liberdade
está na expressão do sujeito como realidade humana.
Sartre questionou o pensamento ocidental elaborando uma nova ontologia que rejeitou
os valores ou fundamentos metasicos do pensamento ocidental. “O Ser e o Nada”, ou “Ser-
em-si” e “Para-si”, são dois absolutos relativos um ao outro, embora com aspectos distintos. A
realidade é o homem e a objetividade, ou a consciência e a objetividade, ou seja, a realidade é
a relação dialética entre objetividade e subjetividade. Assim, é o homem que produz o
conhecimento e que faz a história ao mesmo tempo em que é feito por ela.
Sartre elaborou uma nova ontologia com uma nova concepção de ego objetivo, do
mundo. Colocou a consciência e as emoções como partes do ser total, como forma de relação
com a objetividade.
Sartre, ao romper com o idealismo e realismo objetivou o homem, as coisas, tudo deve
ser entendido como objetividade. Com a influência da fenomenologia de Husserl e de
Heidegger e a dialética de Marx e Hegel, construiu sua ontologia, repensando e reconstruindo
o pensamento dominante de sua época e mesmo de seus mestres.
A questão da liberdade é fundamental para o entendimento do pensamento sartreano.
O problema da liberdade diz respeito ao querer e não ao poder. O querer humano é autônomo
porque a liberdade é ontológica, é da condição humana, o sujeito se escolhe, ainda que de
forma alienada. O querer é escolha. O homem é um animal que rompe com o determinismo
natural de sua espécie, pode escolher outra experiência de vida diversa daquela que lhe foi
destinada ao ser colocado no mundo. Não escolhemos a liberdade, somos lançados nela,
somos condenados a ser livres. Isso significa que o homem não pode lhe dar o ser, não pode
escolher sua existência, onde nascer, como nascer. Só liberdade em situação de
engajamento no mundo. Não se pode escolher fora da relação com o mundo, ou fora da
situação. A liberdade foi lançada no mundo sem escolha prévia; assim o sujeito está em
situação impedido de sair do mundo. É um limite a necessidade de ser em situação. A
liberdade é liberdade em situação. A liberdade é um ato, um modo de ação humana no
mundo. A liberdade é um modo de ser da consciência. Uma consciência posta no mundo, fora
de si. A liberdade como fonte absoluta de sentido se revela na angústia no plano da reflexão.
A angústia é a experiência vivida como absoluta da liberdade. O homem não se escolhe livre,
assim como não se escolhe responsável, porém, se ele é o livre projeto de si mesmo porque
escolhe seus fins, deve fazê-lo também com responsabilidade, afinal, é o autor de sua obra ou
projeto de ser. De uma forma ou de outra, assume a situação na continncia. Não
18
desculpas para assumir ou não assumir. resta assumir a responsabilidade da escolha e o
sucesso ou o fracasso como conseqüência. Responsabilidade como um ser que vive
objetivamente, junto aos outros, e seu projeto pode alienar o outro em conseqüência.
Responsabilidade de assumir o que faz independentemente do que faz. A crítica aos valores
que o existencialismo oferece, pela maneira de entender o homem como consciência no
mundo, sem valores pré-determinados, coloca a realidade humana como responsável pelos
seus atos individuais com conseqüências históricas.
Diz Sartre que uma ontologia o pode formular questões morais, deve ser apenas e
unicamente aquilo que é. Porém, a responsabilidade dita anteriormente é uma ética em face de
uma realidade humana em situação. Uma ética que diz respeito aos projetos humanos. Os
projetos humanos revelam as atitudes dos seres humanos. Então, diz Sartre que a psicanálise
existencial, por mostrar o sentido ético do projeto do homem, pode ser dita também como
uma descrição moral. Afinal, o projeto humano é uma síntese que fundamenta toda estrutura
do sujeito como uma significação da globalidade. Cada conduta do sujeito em sua totalidade
traz uma expressão do projeto originário, ou fundamental, da síntese do momento atual. A
existência humana é um meio escolhido livremente, entre outras opções, para significar uma
existência e isto envolve uma ética dentro da concepção do sujeito ou mesmo de uma moral.
Os valores, como dados, são independentes da subjetividade humana, mas a apropriação dos
valores pelo indivíduo envolve significações que ele escolhe, a qual ele um valor para si
próprio. Não estamos falando de uma moral com princípios rígidos, mas de atitudes humanas
livres, que, seja uma atitude ou outra, implica algum valor, ou alguma ética, ou mesmo
alguma moral. É por isso que a psicanálise existencial revela ao homem os objetivos reais de
suas buscas e escolhas, seja a qual direção ética ou moral o sujeito se encaminha. Não se trata
de se assegurar em conceitos ou preconceitos de valores de bem e mal, mas de assegurar que
o Para-siestá no mundo como uma significação em curso. Fato é que uma atitude humana
expressa uma significação e uma ética ou uma moral
1
. O sujeito é o ser pelo qual os valores
existem. É pela consciência de sua liberdade que se descobre como a única fonte de valor e o
nada pelo qual o mundo existe. Esta é a angústia do homem: viver como possibilidade entre
outros possíveis. A liberdade é um “Para-si” transcendente, uma condição ontológica de ser
que transcende aos valores, mas que somente se coloca na expressão de algum valor. A
liberdade é uma condição do ser na busca perpétua do ser.
1
Sartre promete, no final de “O Ser e o Nada”, uma obra sobre a questão moral, porém não chegou a ser concluída. Escreveu duas mil
páginas, mas abandou a obra para escrever “O Idiota da Família”.
19
Para refletir sobre esses aspectos, é necessário compreender, ou pelo menos
conjecturar, sobre que ética está colocado o existencialismo: como ontologia, o impõe, é
claro, nenhuma moral coletiva, mas como singularidade o sujeito não escapa de ser, ou de ter,
uma ética ou uma moral que determina sua busca de ser.
“Ser que não é o que é e que é o que não é”
(SARTRE, 1997, p. 128), como expressão de sua liberdade.
Portanto, Sartre marcou espaço para a ciência, mostrou uma nova concepção de sujeito
em cuja liberdade e responsabilidade está sua marca, seu estilo. Nada de determinismo, de
verdades ou definições prontas. Superação dos dualismos da filosofia: potência/ato,
alma/corpo, essência/aparência.
A consciência é um “Para-si”, uma dinâmica, uma condição ontológica que exige uma
nova moral de um sujeito responsável por seu destino. Uma nova moral porque não há
determinismo, não há subterfúgios, a dialética e a relação homem/mundo. uma
experiência, uma relação sujeito/mundo, para depois existir uma essência. Uma nova moral
porque o homem não é mais previsível, não há como apelar para definições prontas.
As culturas, as poticas alienantes constroem sujeitos buscando a previsibilidade. A
consciência faz o sujeito se guiar pelos fatos, pela relação objetividade/subjetividade, e nesta
relação prevalece a dialética diante do pré-estabelecido. A consciência é um ato de futuro em
aberto. Uma nova maneira de viver sendo um na coletividade de não construir vínculos
humanos em que um se aliena a outro ou a outros, sob pena de prejuízo próprio. Acabar com
as convenções com uma nova responsabilidade, a de estar engajado na sociedade sem ser
obrigado a ela, de lutar pelo que for melhor, mais humano para todos. Acima de tudo, Sartre
tirou do sujeito o direito de esconder-se de si mesmo. O sujeito se relaciona com o mundo
pela consciência e ego; a consciência precisa desobedecer ao ego para lhe conferir sua
essência, que é translucidez. Submeter o Em-si” às leis do “Para-si”. O homem, condenado a
uma liberdade absoluta, o pode mais se esconder atrás de atitudes de “má-fé” para eximir-se
de responsabilidades que são suas. A consciência exige sua transparência, consciência é e
depois de ser, não há como escapar dela. Pode-se fazer dela má-fé, alienação, reflexão,
lucidez ou negação, mas fato é que não se pode fugir dela. Sartre falou e fala para todas as
consciências, nenhuma escapa a sua descrição. Nenhum homem escapa de ser seu próprio
projeto, embora com relação ao mundo, toda liberdade seja contingência. Uma liberdade que
se faz a passos largos ou em limites extremos, não importa, o que importa mesmo é sua
existência inegável. O ser existe e ele é livre para ser, pois é um constante vir-a-ser.
Sartre marca sua época como um intelectual que não é um escritor burguês reservado,
mas um homem engajado nas lutas sociais, por uma sociedade mais consciente e mais
20
humana. Ele despertou o desejo e a irreverência na busca de um mundo melhor. Sartre
despertou no mundo a impaciência, a náusea, diante do ser que precisa se buscar, precisa se
fazer, precisa ser sua consciência em essência e sua essência em consciência.
Silva, em “Ética e Literatura em Sartre (2004), mostra em sua reflexão, que o
existencialismo é uma filosofia da existência, assim sendo, da objetividade concreta. Porém,
pela condição do Para-si”, o homem é um ser cujo próprio ser está em questão e coloca o
existencialismo como uma filosofia por excelência apesar de sua objetividade. O homem é
visto como objetividade histórica. O homem é uma totalidade nunca acabada e a realidade a
ser estudada, ou investigada, pela filosofia é o homem. A realidade humana é o centro do
pensamento filosófico. As ações ditas exteriores, em relação ao mundo, estão no agir humano,
na deliberação dos projetos. Assim, Sartre se propõe pensar a realidade humana como
expressão de um projeto ético. O sujeito vive um projeto que orienta suas ações. Segundo
Silva a ética está na base intencional de tudo o que Sartre escreveu. Pelo projeto de liberdade
de cada ser, se faz automaticamente sua ética. O homem como projeto de liberdade faz ações
livres, valor a sua escolha e, assim, está sempre diante de um compromisso ético
historicamente, pois não há essência ou natureza a priori. O existencialismo não é um diálogo
com o absoluto, é diálogo com o processo histórico, a finitude, a ordem humana como
processo.
A literatura é também uma representação imaginária da realidade, tem como ponto de
partida o diagnóstico de dramas ou dilemas dos sujeitos humanos no seu contexto histórico. A
literatura deve estimular o leitor ao exercio de sua liberdade. A ação histórica no processo
de liberdade constitui o núcleo ético da existência. É função da literatura o compromisso com
a historicidade. A continncia é realidade da existência. A continncia faz a relatividade do
homem na responsabilidade das suas escolhas. É uma relação entre subjetividade e história.
Na conduta singular da ação individual, está o valor ético por excelência.
Portanto, esta introdução quer chamar a atenção do leitor para os aspectos
fundamentais do entendimento da realidade humana em Jean-Paul Sartre, possibilitando uma
introdução aos caminhos dessa ontologia que será exposta em todo trabalho na investigação
sobre a concepção de sujeito.
21
CAPÍTULO I
1 A CONSCIÊNCIA E O PSÍQUICO
Iniciamos, então, nossa pesquisa sobre a consciência e o psíquico com as obras no
domínio da psicologia dos anos de 1930 a 1939, no primeiro capítulo, acompanhando, a cada
obra, o caminho que Sartre percorreu perseguindo seu objetivo de reformular a psicologia até
chegar a uma nova ontologia.
1.1 A fenomenologia
Desde o início de seus estudos, Sartre desejou compreender a existência humana pela
própria existência concretamente, respeitando a questão ontológica da realidade do homem e
do mundo. Durante seis anos, tentou criar seu método, desconhecia a fenomenologia de
Husserl. Em 1933, Sartre procurou por sugestão do amigo Raymond Aron, conhecer a
fenomenologia. Em 1934, estudou Husserl em Berlim e, então, expressou o desejo de
reformular a psicologia partindo do princípio de intencionalidade. A descoberta do conceito
de intencionalidade é marco histórico na obra sartreana. Pelo conceito de intencionalidade,
podia superar entendimentos como, “vida interior”, pois:
A consciência se fazia existir através de uma superação perpétua de si mesma para
um objeto; tudo se situava fora, as coisas, as verdades, os sentimentos, as
significações e o próprio eu; nenhum fator subjetivo alterava, portanto, a verdade do
mundo tal qual se dava a nós
(BEAUVOIR, 1961, vol.1, p. 166).
Porém, Sartre encontrou problemas na fenomenologia de Husserl e, para dar
continuidade a seu projeto, precisou reescrevê-la noutros moldes. O ponto crucial em que
Sartre fez a ruptura com Husserl foi na evolução do pensamento husseliano com uma filosofia
que segue o idealismo.
Damon (1995) mostra que, quando Husserl adotou a tese idealista de constituição do
ser, rompeu com a possibilidade da dupla contingência, do ser da consciência e do ser do
mundo, e foi para continuar com esses dois absolutos que Sartre precisou reescrever a
fenomenologia. Quando Sartre venceu a tese idealista do pensamento husseliano começou a
esboçar sua ontologia fenomenológica em O Ser e o Nada”.
22
Nos anos trinta do século passado, até 1939, Sartre estudou a fenomenologia e
produziu as seguintes obras: “A Transcendência do Ego”, Esboço de uma Teoria das
Emoções”, “A Imaginação”, “O Imaginário”, que antecedem a obra “O Ser e o Nada”,
publicada em 1943, como Ensaio de Ontologia Fenomenológica”.
No capítulo I, faremos uma análise das obras de Sartre que antecederam "O Ser e o
Nada” pela importância que estas representam na construção de uma nova psicologia que
levou a uma nova ontologia. Diz Sartre em “Esboço de uma Teoria das Emoções”: “[...]
assim
se quisermos fundar uma psicologia, impor-se-á remontar além do psíquico, além da situação do homem no
mundo, até à origem do homem, do mundo e do psíquico
” (SARTRE, 1972, p. 14).
Quando Sartre começou trabalhar em “A Transcendência do Ego”, já estava no
momento de começar a repensar a psicologia. Vemos, então, que o conceito de
intencionalidade da consciência assume nesse espaço uma orientação central na pesquisa de
Sartre, o qual mostra o caminho para a reformulão dos conceitos da psicologia.
A autonomia da consciência e o determinismo das coisas é o que Sartre procurou
demonstrar com toda sua obra, mas no início de seus estudos de fenomenologia, Sartre o
colocava a filosofia em primeiro lugar, e sim a psicologia, que era centro de suas atenções.
Porém, entendeu que deveria partir da consciência, do movimento do sujeito no mundo livre
como consciência, que deveria centrar suas atenções indo além do psíquico. Sartre mostrou
que é a consciência que comanda toda relão do sujeito com o mundo; o psiquismo é,
ontologicamente, conseqüência e não pode ser pensado independentemente da consciência,
por isso partiu da filosofia para reformular a psicologia.
Assim, suas pesquisas levaram, como veremos, a uma nova ontologia, e reformula a
filosofia e a psicologia e começou pelo entendimento da intencionalidade da consciência. O
conceito de intencionalidade provocou uma revolução no entendimento do pensamento
filofico ocidental. Com os dois absolutos, a supremacia da consciência e do mundo, era
preciso repensar a realidade sob uma orientação filofica diferente. Assim, antes de chegar à
obra “O Ser e o Nada”, precisamos percorrer o caminho que Sartre fez da psicologia à
fenomenologia e da fenomenologia à ontologia, as mudanças que aconteceram com a
psicologia e a fenomenologia até chegar ao conceito de continncia. Começamos por A
Transcendência do Egoe veremos que o desejo de Sartre de reformular a psicologia o levou
a uma nova ontologia.
23
1.2 A Transcendência do Ego
Sartre iniciou a obra “A Transcendência do Ego” argumentando que a maioria dos
filósofos entende o ego como um habitante da consciência e a maioria dos psicólogos
entendem o ego como presença material, e outros, como presea formal. Porém, Sartre
entende o ego como fora da consciência, no mundo, ou seja, não está na consciência nem
formal, nem materialmente. Nessa obra Sartre apresentou uma ontologia do eu e dos
processos de constituição da personalidade e da diferenciação entre consciência e ego.
Sartre começa a reflexão sobre o eu com a afirmação de Kant da crítica da razão pura:
O
Eu penso deve poder acompanhar todas as minhas representações
” (SARTRE, 1994, p. 43).
Kant não queria dizer com isto que um eu habitava a consciência, Kant entendia que
[...]
havia momentos de consciência sem “Eu”, pois ele diz: “deve poder acompanhar
(SARTRE, 1994,
p. 44). O que Kant queria mostrar era unicamente as condições da experiência que poderia ser
considerada “minha”. Assim vimos que Kant não afirmou a exisncia do eu do Eu penso”,
afirmou sim, as condições de possibilidades.
A consciência transcendental para Kant é “[...]
o conjunto das condições necessárias para a
existência de uma consciência empírica
” (SARTRE, 1994, p. 44).
Husserl, com a fenomenologia, mostrou o problema do eu sob nova perspectiva e a
relação entre o eu e a consciência é um problema existencial. Em Husserl, a consciência
deixou de ser um conjunto de condições lógicas, como em Kant, e se revelou como fato
absoluto. É uma consciência real acessível a cada um dos sujeitos quando se executa a
redução”. Para Husserl, a consciência transcendental constitui o mundo e aprisiona-se na
consciência empírica (SARTRE, 1994). Mas Husserl e Kant recorreram a idéia de um eu
transcendental como individualidade da consciência e formalmente presente nela. Esse é um
problema que Sartre procurou resolver em “A Transcendência do Ego”. O outro aspecto é
que, pelo princípio de intencionalidade, o eu transcendental que Husserl concebe se torna
desnecessário, a intencionalidade é a fórmula fundamental do pensar fenomenológico. Os atos
de consciência visam um objeto, não operam no vazio. A consciência se determina por essa
relação com alguma coisa.
Descartes considerava a consciência como sendo uma substância, e Sartre criticou essa
noção ao considerá-la como uma capacidade de ser consciência, de interagir com o mundo,
uma fatalidade da liberdade. A consciência tem consciência de alguma coisa, ao mesmo
tempo em que tem consciência de si, que não é este algo que percebe. Se não sou esse objeto,
tenho consciência de mim e desse objeto. Quando a consciência intenciona um objeto, se põe
24
em presença da coisa, separada por um nada que permite não se confundir com a coisa.
Somos consciência que visamos algo. A consciência não é o coincidir consigo, mas o visar o
objeto.
Sartre negou radicalmente o solipsismo. Sartre fez uma crítica sobre a questão do eu
na consciência tanto formal quanto materialmente para, depois, trabalhar a constituição do
ego. Assim, procurou fundamentar uma subjetividade concreta que fugisse dos construtos
lógicos, e foi a fenomenologia de Husserl que inicialmente lhe mostrou o caminho pela
intencionalidade da consciência. Moutinho (1995), observa que em Investigações de
Husserl”, o eu era produção sintética e transcendente da consciência, mas em Idéias” Husserl
retornou a tese clássica do eu transcendental que estaria por trás de cada consciência. Sartre
entendia que o papel do eu transcendental de Husserl seria para garantir a individualidade da
consciência, papel assegurado pela própria consciência: consciência intencional e fluxo de
consciência já são garantia de individualidade da consciência e não precisam de eu. A
consciência em Sartre é um absoluto não substancial que se afirma a si mesma diante do
objeto. A consciência tem autonomia do eu e é entendida pela relação dialética com o mundo.
Em “A Transcendência do EgoSartre mostrou que o campo da consciência deve ser
purificado, sem eu, e somente o psíquico permanece como objeto transcendente da
consciência, o ego
2
.
Para compreender a constituição do ego na concepção de Sartre, é necessário uma
reflexão sobre os níveis consciência, pré-reflexiva e reflexiva. (Schneider, 2002), em anexo,
apresenta um gráfico que tem por referência Sartre, “A Transcendência do Ego” (1994) e
Bertolino, em “As Emoções” (1998), que resume o entendimento dos níveis de consciência
pré-reflexiva e reflexiva.
Segundo o gráfico, na consciência pré-reflexiva temos a percepção e imaginação. Na
percepção, a consciência é posicional de um objeto existente e presente, é não posicional de
si, e o eu o aparece. Na imaginação, é posicional de um objeto, ausente e inexistente, não
posicional de si, e o eu não aparece. São consciências irrefletidas de primeiro grau.
No domínio das consciências reflexivas, temos a reflexão espontânea, irrefletida de
primeiro grau que, é posicional de um objeto existente ou inexistente, presente ou ausente, e o
eu aparece no horizonte. As consciências reflexivas podem ser ou não posicionais de si. Na
reflexão crítica, consciência reflexionante de segundo grau, o eu aparece.
2
Sartre usa o termo ego para o conjunto dos termos Je (face ativa da personalidade) e Moi (face passiva da personalidade), que ambos se
traduz por eu. O ego é o termo que unifica, Sartre usa ego em vez de eu.
25
A compreensão dos níveis de consciência demonstrada emA Transcendência do
Ego” é fundamental para compreendermos toda a estrutura do pensamento sartreano. A
autonomia da consciência e a realidade do objeto passam pela compreensão dos níveis de
consciência. Sem esse donio, a obra sartreana fica incompreensível.
Os níveis de consciência mostram que o homem estabelece relações com o mundo
com consciências pré-reflexivas, percepção, imaginação, e reflexiva.
As consciências pré-reflexivas (imaginação e percepção) são não-posicionais-de-si.
As consciências reflexivas podem ser ou não posicionais-de-si dependendo da relação
que estabelecem consigo mesmas e com o objeto.
As consciências o-posicionais-de-si são consciências imediatas de primeiro grau e
são irrefletidas porque não se tomam a si mesmas como objeto.
As consciências irrefletidas podem ser pré-reflexivas ou reflexivas espontâneas e são
objeto para uma consciência de segundo grau.
As consciências irrefletidas de primeiro grau são sem eu. O eu aparece como objeto
nas consciências de segundo grau, consciências reflexivas críticas, ou reflexionantes. A
mudança que ocorre do plano irrefletido ao reflexivo é a aparição do eu. O eu aparece a
consciência reflexiva, é seu objeto, mas é distinto dela, é um habitante do mundo e é concreto.
O eu tem existência concreta e se dá como transcendente.
Ele não aparece senão por
ocasião de um ato reflexivo
” (SARTRE, 1994, p. 55).
O que acontece em “A Transcendência do Egoé que Sartre lança as bases de sua
ontologia que reformula, em conseqüência, a psicologia.
Sartre trabalha consciência e ego como consciência e objeto transcendente. O ego é
um transcendente, não pertence ao campo da imanência.
O ego é unidade dos estados e das ações. Os estados são como unidades
transcendentes de consciência, o estado aparece à consciência reflexiva, constitui o objeto de
uma percepção concreta, um estado presente, o real, (SARTRE, 1994).
Quando o sujeito sente ódio, o ódio é um objeto transcendente, uma síntese de muitas
consciências de ódio, o apenas uma consciência individual. O ódio está fora da consciência,
ele é um objeto. A ação é um transcendente, é uma realização concreta. Tocar piano, dirigir,
escrever são ações claramente transcendentes. Porém, ações puramente psíquicas, como
duvidar, raciocinar, meditar, também são transcendências, são realizações concretas. A dúvida
metódica é uma ação, é objeto transcendente da consciência reflexiva. O ego é a unidade
transcendente dos estados e ões, que podem encontrar no ego a unidade que reclamam.
Quando sentimos várias vezes ódio diante de diferentes pessoas, rancor ou mesmo cólera,
26
unificamos essas manifestações em uma disposição psíquica de produzi-las, são qualidades e
objeto transcendentes.
A relação da qualidade ao estado é uma realização de atualização. A qualidade se dá
como potencialidade. A atualidade dessa potencialidade é o estado, ou a ação concreta.
Assim, o estado é uma unidade noemática
3
de espontaneidade, a qualidade é uma unidade de
passividade objetiva. Então, podemos distinguir o psiquismo da consciência: o psiquismo é
objeto transcendente da consciência reflexiva e objeto da psicologia.
O Ego aparece à reflexão
como um objeto transcendente que realiza a síntese permanente do psíquico
” (SARTRE, 1994, p. 65).
Na constituição do ego como pólo das ações, estados e qualidades, entendemos
inicialmente que o ego é “Em-si” transcendente, como uma existência do mundo humano, o
como da consciência, que é Para-si”.
O ego existe entre a consciência e o mundo, se transcende e constitui o psíquico. O
Ego é comprometido com seus estados, o é nada fora da totalidade concreta das ações e dos
estados que suporta. O ego é transcendente a todos os estados e ações. O ego participa do
caráter duvidoso da transcendência. Posso ver com evidência que estou colérico, mas também
posso enganar-me. O ego intenciona, por isso pode ocorrer o caráter de falsidade. É da
natureza do ego ser objeto duvidoso, mas o ego é a unificação transcendente espontânea de
nossos estados e ações. Com efeito, a relação do ego com os estados, qualidades e ações é de
produção e criação.
O ego se manifesta na produção de nossos estados, e cada estado está ligado
diretamente ao ego como à sua origem. Assim, o ato unificado da reflexão liga cada estado
novo de uma maneira especial de totalidade concreta do ego. O ego mantém suas qualidades
por uma criação contínua, é opaco, é um objeto. O ego é espontâneo, não como a consciência,
porque o ego como objeto é passivo. O laço do ego com seus estados permanece sendo uma
espontaneidade ininteligível, porque pela espontaneidade, o ego escapa a si mesmo, o ódio do
ego o pode existir por si, apesar de ter certa independência em relação a ele.
O ego é um objeto apreendido, porém, também constituído pela consciência reflexiva.
Primeiro, acontece às consciências e, por meio delas, surgem os estados e depois o ego. A
consciência projeta sua própria espontaneidade no objeto; o ego, para conferir-lhe seu poder
de criação. Assim, essa potência criadora se faz ao mesmo tempo passiva.
3
Noema para Husserl é o aspecto objetivo da vivência, o objeto considerado pela reflexão em seus diversos modos de ser dado, percebido ou
imaginado. O Noema se distingue do próprio objeto; é o conjunto dos predicados dos modos de ser dados pela experiência. Por ex.: a árvore
é o objeto, ser lembrada ou iluminada é adjetivo noemático.
27
Pela passividade, o ego é suscetível de ser afetado, porém, nada pode atuar sobre a
consciência, porque ela é causa de si. O ego é o contrário, é o produtor que suporta o choque
de volta do que produz, porque está comprometido com o que produz.
O ego é um objeto que não aparece mais que para a reflexão. É ntese irracional de
atividade e de passividade, de interioridade e de transcendência. Para a consciência é um ser
cuja essência implica a existência.
O ego se entrega como uma potência desnuda ao contato dos acontecimentos e absorve
uma multiplicidade de interpretações. O ego em relação ao passado é multiplicidade de
interpretações e, com relação ao futuro, é potência desnuda.
O ego permanece desconhecido para nós. Ele se como um objeto. O que permite
adquirir conhecimentos reais sobre o ego é sua maneira especial de dar-se à consciência
reflexiva. Se volto meu olhar sobre o ego sem passar pelas experiências vividas, o ego
desaparece. O ego aparece sobre o plano irreflexivo, mas de uma forma vazia. Por natureza, o
ego é fugidio. O ego, ao sair do plano reflexivo para o irreflexivo, perde sua familiaridade.
Se toda experiência é acessível à reflexão, isso implica uma renovação da psicologia
pelo método descritivo fenomenológico, um estudo reflexivo sobre o irreflexivo, das
emoções, do imaginário. O amor de um sujeito qualquer pertence, para outros, à categoria de
objeto, pois o ego é um objeto transcendente. Não nada de impenetrável no sujeito a não
ser sua própria consciência. Não podemos pensar a consciência como interioridade.
O ego o é propriedade da consciência, é seu objeto.s constituímos nossos
estados, nossas ações, como produção do ego. Então, nossos estados e ões são objetos e os
entendemos pela sua significação. A função essencial do ego é mais prática que teórica. É
graças ao ego que se pode efetuar a distinção entre possível e real, entre aparência e ser.
Essa filosofia recolocou o homem no mundo com suas anstias, sentimentos e
revoltas. É preciso fazer do ego um existente contemporâneo no mundo, com características
essenciais do mundo. Basta que o ego seja contemporâneo do mundo, ambos são objetos para
a consciência. A consciência liberada do ego não tem mais nada que pareça a um sujeito, é
uma condição primeira e uma fonte absoluta de existência. uma relação de
interdependência entre o ego e o mundo, que é seu conteúdo.
Assim concluímos que a concepção de ego que Sartre propõe realiza a libertação do
campo transcendental de toda estrutura egóica e todos os objetos físicos, psíquicos e
psicofísicos não fazem parte da consciência, a consciência de todos esses objetos é um nada.
Não objeto que possa fazer parte da consciência e, partindo desse entendimento, os
sentimentos, os estados, o ego deixa de ser propriedade exclusiva do sujeito.
28
A fenomenologia mostrou que os estados psíquicos são objetos. Até então o sujeito
tinha posão privilegiada a respeito de seus próprios estados e se fazia distinção entre os
objetos e os estados psíquicos. O ego é um objeto transcendente, o ódio de Pedro pertence a
outros sujeitos como categoria de objeto, não há nada impenetrável em Pedro que não seja sua
consciência mesma.
Essa concepção do ego se mostra como a possibilidade de refutação do solipsismo
4
. O
ego é um transcendente, é um existente como os outros, não é um absoluto, e cria como os
outros pela epoché
5
. Se o eu não tem posição privilegiada, o solipsismo se torna impensável.
Só a consciência absoluta existe como absoluto. Meu ego o é uma certeza maior
para minha consciência que o ego dos outros e o ego é um acontecimento do mundo porque
o faz mais parte da estrutura da consciência, é um transcendente que participa do mundo
como os outros egos.
“A Transcendência do Ego” foi publicada em 1938, apresentando uma ontologia do eu
e dos processos de constituição da personalidade, com uma descrição de consciência e ego
diferente do que era entendido pela filosofia e psicologia até então, mostrando o ego como
o imanente à consciência, mas como um transcendente e objeto do mundo. As posições
defendidas em “A Transcendência do Ego”, Sartre manteve em toda a trajetória de sua obra.
Simone de Beauvoir, em “Na Força da Idade”, argumenta sobre as posições teóricas
de “A Transcendência do Ego” de Sartre:
[...] entre a consciência e o psíquico, ele estabelecia uma distinção que manteria
sempre; enquanto a consciência é uma imediata e evidente presença ante si, o
psíquico é um conjunto de objetos que só se apreendem mediante a operação
reflexiva e que, como os objetos da percepção, se dão por perfil; o ódio, por
exemplo, é um transcendente que se apreende através de Erlebnissen e cuja
existência é tão somente provável
(BEAUVOIR, 1961, p.162).
Beauvoir mostra que, com “A Transcendência do Ego”, Sartre já mostrou como
escapar ao solipsismo, pois se o ego, o psíquico, existe para mim e para o outro da mesma
4
Solipsismo a tese de que eu existo e de que todos ou outros homens ou coisas o apenas idéias minhas. Para Sartre, a concepção de
Ego como transcendente, do mundo, reformula a tese de que “só eu existo como absoluto”, para “só a consciência existe como absoluta”, e o
eu é do mundo como o eu de outros homens e para mi m meu eu é apenas mais íntimo.
5
Epoché é a suspensão do juízo que caracterizava a atitude dos céticos antigos. Consiste em não aceitar, nem rejeitar, ou não afirmar nem
negar. Para Husserl na epoché colocamos fora de ação a tese geral própria da atitude natural e colocamos entre parênteses tudo o que ela
compreende. Permanece como realidade para a consciência, mas a colocamos entre parênteses. Faz-se isto com plena liberdade para fazê-lo.
Não nego o mundo, não ponho em vida seu existir. Exeo a epoché fenomenológica que veta qualquer juízo sobre o existente espaço-
temporal. Faz do filosofar uma atitude puramente contemplativa, revela na sua genuinidade, a própria essência das coisas. Visa efetuar a
redução da experiência. Por redução fenomenológica Husserl entendeu a epoché fenomenológica. A redução fenomenológica é a reflexão
interna sobre o ato, em busca de captar o ato em sua intencionalidade. Em Sartre, a redução fenomenológica é resposta à espontaneidade da
consciência, ou seja, nós não efetuamos a redução, ela acontece.
29
maneira objetiva, o solipsismo se torna impensável. Se é possível escapar ao solipsismo, é
também possível escapar ao idealismo. O mundo tem suas bases na realidade. Em “A
Transcendência do Ego”, Sartre coloca as bases de seu pensamento, seu entendimento sobre a
consciência e o psíquico, sobre a autonomia da consciência e da realidade do mundo, que
permanecem em toda sua obra.
É o próprio Sartre que argumenta nas entrevistas já no final de sua vida quando se
refere ao seu entendimento sobre o eu dizendo: s
abe como concebo e EU – e não mudei: é um objeto
que está diante de nós
(SARTRE, 1977, p. 93). Sua tese apresentada é verdadeira até sua última
obra sobre Flaubert, “O Idiota da Família”.
Schneider também comenta sobre o desenvolvimento do pensamento sartreano:
Atentemos para o conjunto do pensamento de Sartre, tendo em vista que em seu
primeiro livro, de 1936, aparece a discussão acerca do materialismo histórico que
aprofundará somente em suas últimas obras, Questão de Método e Critique de La
Raison Dialectique, publicados em 1960. As suas últimas pesquisas, como querem
alguns de seus críticos, não negam suas teses anteriores; na verdade as
complementam, acrescendo aspectos menos explorados anteriormente. Portanto,
consideramos um equívoco a afirmação de que existem “dois Sartres”, o de O Ser e
o Nada e o de A Crítica da Razão Dialética (SCHNEIDER, 2002, p.34).
Portanto, “A Transcendência do Ego” é uma obra histórica e fundamental na grande
obra sartreana. Ali ele apresentou uma nova psicologia por meio de uma nova ontologia.
Consciência e ego, como consciência e transcendente, consciência que comanda toda relação
do homem com o mundo. Não existe mais eu na consciência, está suprimida a exisncia de
qualquer substância na consciência, que passa a ser um absoluto na relação com o mundo.
Supremacia da consciência e do mundo. E talvez o mais importante é que foi estabelecida a
diferença entre consciência e ego, que automaticamente demonstra a diferença entre
consciência e pquico. E assim começa a ser colocada a nova ontologia. Dizíamos, no início
desta reflexão, que Sartre desejava reformular a psicologia, mas como acabamos de ver,
Sartre chegou a uma nova ontologia e, como conseqüência, a uma nova compreensão do
psíquico. É preciso partir da consciência para chegar ao psiquismo.
Silva (2004), argumenta sobre a transcendência do ego da seguinte forma: Sartre
objetivou também o ego, tirando-o das condições transcendentais de Kant e Husserl. O ego é
produto de uma exterioridade interiorizada. A subjetividade é objetividade subjetivada. É na
historicidade que o homem se produz como totalização. A constituição do ego é produto dessa
relação entre a consciência individual e a realidade histórica do sujeito. O ego é individual,
mas é do mundo. O ego transcende a consciência como a realidade dos objetos singulares. O
30
ego aparece no ato reflexivo, é objeto transcendente do ato reflexivo. Em Husserl, o eu
transcendental se unifica, se sintetiza e permanece no interior da consciência como núcleo
invariável. Em Sartre, o ego é a síntese dos estados, uma síntese psíquica transcendente à
consciência. O ego é a totalidade concreta dos fenômenos psíquicos. Sobre a objetividade e
transcendência do ego, diz Silva:
Sendo o EU exterior, não estou mais seguro do meu próprio EU do que da Egoidade
dos outros, pois o meu Ego é um ser no mundo, assim como o de todos os outros.
Mas, seguramente porque a espontaneidade da consciência aparece como originária,
isto é, a liberdade aparece como se fosse uma fatalidade, algo que não podemos
escapar, a consciência constitui o Ego e nele se projeta como para escapar de si
mesma, da própria espontaneidade que, por não se reportar a nenhum solo fundador,
é angustiante pelo que apresenta de instável e movediça. Há, portanto, uma questão
ética envolvida na representação do Ego; uma motivação moral para que
representamos o Ego como a condição de nós mesmos, aquilo a partir do qual somos
o que somos
(SILVA, 2004, p. 45).
1.3 A Imaginação e O Imaginário
Os textos “A Imaginação” e O Imaginário”, a princípio, eram, um texto. O tema
sobre a imagem foi trabalhado por Sartre para sua “agregation” e, em 1934, o professor
Delacroix solicitou o trabalho. Em 1936, aceitou somente a primeira parte, que é o texto
conhecido como “A Imaginação”. A segunda parte foi editada, em 1940, com o título, O
Imaginário”. Porém, é importante considerar os dois livros como uma só obra.
Simone de Beauvoir argumenta a esse respeito:
Sartre redigia a parte crítica do livro sobre L’ Imagination, que lhe solicitara o
professor Delacroix, para Alcan; iniciara uma segunda parte muito mais original em
que reestudava desde a raiz o problema da imagem, utilizando as noções
fenomenológicas de intencionalidade e de hylé; foi então que acertou as primeiras
idéias-chave de sua filosofia: a absoluta vacuidade da consciência, seu poder de
“nadização
(BEAUVOIR, 1961, vol. 1 , p. 185).
Beauvoir comenta ainda que Sartre se interessava naquele momento pelos sonhos,
pelas imagens, pelas anomalias de percepção. Nessa época, Sartre se submeteu a uma
experiência com mescalina, uma droga que provocava alucinação para observar esses
fenômenos em si próprio. Essa experiência foi sugerida por Lagache (psiquiatra), mas
segundo os relatos de Beauvoir (1961), Sartre começou a ter angústias, depressão e teve medo
de entrar em crise psicótica, mas os médicos afirmaram que a mescalina não poderia ter
provocado a crise.
31
Sartre, em “A Imaginação”, fez uma reflexão sobre a imagem a partir dos sistemas
metafísicos modernos, seja em filosofia ou em psicologia, e procurou mostrar as contradições
dessas concepções, a começar por Descartes, que diferenciava a metafísica da mecânica, ou
seja, com a separação entre espírito e matéria, a alma consistia no domínio do entendimento, e
o corpo, do mecânico.
A imaginação, ou o conhecimento da imagem, vem do entendimento aplicado à
impressão material produzida no cérebro, que nos uma consciência da imagem (SARTRE,
1973).
Na análise que Sartre fez da tese de Descartes, concluiu que a metafísica moderna não
garantia a tese da separação entre espírito e matéria, ou corpo e alma.
Depois da análise minuciosa em Descartes, Spinosa, Leibniz, Hume e Bergson, torna-
se decisiva a sua refutação dos sistemas metafísicos, apontando as contradições desses
sistemas. Mostra que as teorias cssicas da imagem não foram além de Descartes se
restringindo a uma compreensão metafísica, sem contundo, apresentar respostas adequadas ao
problema da imagem, pelas próprias contradições dos sistemas metafísicos. Sartre entendeu
que, pelas teorias metafísicas, não poderia chegar a uma psicologia científica. Portanto, era o
momento de uma ruptura com esses sistemas de pensamento.
As teorias clássicas da imagem, de Descartes, a Bergson, caminharam de malogro em
malogro, porque tiveram em mente sempre a questão metasica. Como se pode observar,
todas essas teorias partiram “[...]
de elementos fornecidos pela análise a priori de certos conceitos
metafísico-lógicos
” (SARTRE, 1973, p. 113).
Se a metasica não deu conta do problema, então era preciso partir de outra ontologia.
Era preciso partir dos femenos e procurar explicar percepção e imaginação partindo dos
próprios fenômenos. As preocupações metafísicas impediram que a psicologia entendesse a
consciência como fato absoluto. O idealismo e materialismo eram o foco e não os fatos. E
então, nesse momento, entrou em cena a fenomenologia, é o conceito de intencionalidade que
servitambém para trabalhar a questão da imagem, como consciência imaginante de alguma
coisa.
Não há, o poderia haver imagens na consciência. Mas a imagem é um certo tipo de consciência. A
imagem é um ato e não uma coisa. A imagem é consciência de alguma coisa
” (SARTRE, 1973, p. 113).
Esse problema é tratado emO Imaginário”, com a descrão fenomenológica da
estrutura da imagem e com a função imaginária na vida psíquica.
Em “O Imaginário”, obra em que Sartre trata do caráter psicológico em favor de uma
psicologia fenomenológica, a função imaginativa é tratada com objetivo de captar o ser da
consciência como função irrealizante.
32
A imaginação é uma forma de consciência. No imaginário se reflete o problema da
liberdade, situação e concepção do sujeito. A idéia de imagem está diretamente ligada à idéia
de consciência. O problema tratado em “O Imaginário” é a grande função irrealizante da
consciência.
Quando o sujeito produz uma imagem de um determinado objeto ausente, essa
imagem é objeto da consciência atual. Uma consciência reflexiva produz dados confiáveis.
Assim sendo, num ato de reflexão toma consciência de que tem uma imagem. É pelo ato
reflexivo que o sujeito reconhece a existência da imagem, uma vez que o objeto não está
presente naquele momento. A essência da imagem é a mesma para qualquer sujeito. Porém, é
preciso classificar consciência e imagem e diferencia-las das outras consciências.
O método para estudar a fenomenologia da imagem consiste em produzir imagens,
refletir sobre elas, descrevê-las e classificá-las segundo suas características. A imagem é uma
consciência, ou um tipo de consciência, e é assimilada ao objeto material que ela representa.
A imagem é uma consciência, mas não está na consciência. O objeto tamm não está
na imagem. A imagem é a consciência do objeto que está fora da consciência, do objeto que
ela representa. Quando o sujeito tem a percepção de uma árvore, essa percepção é uma
consciência, e a árvore é objeto dessa consciência. Mas se imagina a árvore, a imaginação não
pode ser a árvore. Tanto na percepção quanto na imaginação, a árvore está fora da
consciência. Está no espaço, no mundo, o na consciência. O objeto da percepção e da
imaginação é o mesmo, porém, a consciência se relaciona com as duas situações de maneira
diferente. Nos dois casos, a consciência visa a árvore na sua individualidade concreta. Na
percepção, a árvore concreta é encontrada pela consciência, na imaginação não. Mas a árvore
o está na consciência nem mesmo na imagem. São duas formas diferentes de relação entre a
consciência e a árvore, que está concretamente no mundo e fora da consciência. A imagem é a
relação da consciência com o objeto. É o objeto que aparece à consciência de duas maneiras
diferentes. É a consciência de percepção diante da árvore objetivamente e, na imagem, é
consciência imaginante da árvore.
A consciência imaginante que o sujeito tem da árvore é consciência de um objeto.
Porém, a consciência imaginante se organiza, se desagrega, ao passo que o objeto árvore
permanece, ou pode permanecer, íntegro o tempo todo.
Um objeto pode nos ser dado de três formas diferentes: pela percepção, pelo conceber,
pela imaginação. Na percepção, o sujeito apreende o objeto por perfis, o objeto é uma síntese
de todas as suas aparições. No conceber, há uma elaboração da percepção pelo pensamento
que se faz como aprendizagem, e a forma de conceber depende da intenção da consciência.
33
Na imaginação, o objeto é concebido por inteiro de uma só vez. O objeto da percepção excede
a consciência, o objeto da imagem é apenas a consciência que se tem dele.
No ato de apreensão da imagem, como objeto, está incluído o conhecimento que se
tem dele. A percepção pode enganar, a imagem não. Na imagem a consciência um certo
objeto, o objeto é um ato sintético com saber e intuição. A consciência intenciona e visa o
objeto que o constitui pelo que ele é.
Assim, constituir uma consciência da árvore como imagem é constituir a árvore como
objeto da consciência imaginante. O saber da consciência é o saber do objeto que toca o
objeto. O mundo das imagens é um mundo onde nada acontece. Na imagem, a consciência
o precede o objeto, e a intenção se revela ao mesmo tempo em que se irrealiza.
A consciência imaginante também e o seu objeto como um nada. A consciência
imaginante da árvore, que está fora da consciência, sai de si mesma e se transcende.
Toda consciência coloca seu objeto à sua maneira de ser. A percepção coloca seu
objeto como existente. Na imagem, existem um ato de crença e um ato posicional, mas deve-
se levar em conta um objeto não existente. O objeto intencional da consciência imaginante
nos indica que o objeto o está aí posto como tal, ou não existe, ou é colocado como
inexistente, ou não é colocado de nenhum modo.
A imagem é um dado destituído de intuição. Assim, a imagem envolve um certo nada
e seu objeto como o sendo. A imagem não é um estado, um resíduo sólido ou opaco, ela
é uma consciência.
A consciência da imagem é uma forma sintética que aparece em certo momento de
uma ntese temporal entre outras formas de consciência. A consciência imaginante é
representativa da percepção da realidade sensível. A consciência imaginante é espontânea e
criadora, é uma atividade consciente. O objeto como imagem nada mais é do que a
consciência que se tem dele, ou a imagem é a consciência de um objeto ausente.
Na vida imaginária, o ato imaginário é a possibilidade que temos de fazer aparecer um
objeto que desejamos. De fato, esses objetos não aparecem como na percepção, mas do
desenho da consciência imaginante. Os objetos, imagens, são vistas na sua totalidade, de
rios ângulos ao mesmo tempo, apesar de serem irreais.
O sujeito pode criar, pelo seu desejo de matar, a cena de um crime. Pode ver o crime
ser realizado pela produção espontânea de seu desejo e de sua consciência. A consciência é
formada sobre o objeto da imagem. Nas obsessões, por exemplo, o sujeito, pelo sintoma, se
força a reproduzir o objeto do qual tem medo: “A
obsessão é uma consciência; em conseqüência, tem
as mesmas características de espontaneidade e autonomia de todas as outras consciências
(SARTRE, 1996,
34
p. 202). Dessa forma, o sujeito constrói um objeto irreal para enganar por alguns instantes o
desejo para exasperá-lo ou reprimi-lo depois. É o desejo que constrói o objeto e projeta o
irreal diante de si, ao mesmo tempo em que reforça o desejo. O objeto irreal pode limitar ou
exasperar o desejo. Assim, o desejo, no ato imaginante, nutre-se a si mesmo. O objeto como
imagem é uma falta definida que se desenha no vazio. É como perceber algo que falta naquele
momento no espaço e tempo que o objeto deveria estar. Embora o objeto seja real, o está
presente, como a árvore, mas se apresenta como consciência imaginante da árvore que existe.
existe a árvore real, mas a imagem também é real quando constata a ausência da árvore
que existe em determinado lugar. A imagem é a irrealidade da árvore naquele local e
momento. Se a imagem se em espaço e tempo diferentes, não o objeto da imagem, mas
também todo seu contexto, participa da irrealidade, do ato imaginário. O objeto da
consciência, no ato imaginário, difere por natureza da consciência da qual é correlativo.
Existem objetos irreais que aparecem à consciência sem determinação temporal.
Exemplo disso é se o sujeito cria um personagem irreal para si mesmo, que o tem passado,
nem presente, nem futuro. Está apenas no presente da consciência, mas o personagem em si é
atemporal. É um personagem transitório criado pela consciência num determinado momento.
O sonho estaria no extremo oposto, pois transcorre mais rápido do que a consciência.
Um drama do sonho pode ter rios dias de duração, embora para a consciência ele tenha
duração muito curta. O tempo dos objetos irreais é também irreal e o tem nada em comum
com o tempo na percepção. O mundo imaginário é isolado, e o sujeito pode entrar nele
irrealizando-se. Assim, o há mundo irreal, objetivamente falando, pois nenhum objeto irreal
pode preencher a dupla condição real/irreal. Existe o mundo real e o mundo imaginário
apresentado ou representado pela consciência imaginante.
Os objetos irreais não são individualizados. A idéia de mundo significa que seus
objetos estão em lugar determinado e manm relação com outros objetos, cada qual
individualmente. Os objetos imaginários escapam ao princípio de individualização, são
dotados de pobreza essencial. Eles existem enquanto o sujeito sabe deles e os deseja e
intenciona. Sua estrutura desmorona e desagrega, não tem vida longa. O ato imaginário
mostra que a espontaneidade da consciência é capaz de conseguir o que a vontade não
consegue no real.
No objeto irreal, há uma única potência, que é negativa. O irreal não se destitui com
o mundo pelo fato de ter existência passiva e não ter individualidade. O objeto irreal provoca
comportamentos como na percepção. E, visto assim, o objeto irreal faz parte do mundo real.
Uma imagem é um pedaço, ou uma peça, do mundo real, apesar de não ter as características
35
da percepção que tem em si o objeto real. O irreal pode ser visto, tocado, irrealmente,
embora em toda imagem exista uma parte real, que é a consciência imaginante. Existem
elementos reais que para a consciência correspondem ao objeto irreal, como por exemplo,
inteões, movimentos, sentimentos, os quais entram em jogo na formação da imagem que
representa a reação espontânea da consciência ao irreal. A consciência real visa o objeto como
imagem, e pode haver uma dilatação da pupila diante de um objeto irreal porque a imagem
remete a dados que foram reais ao sujeito noutro momento em que esse objeto foi real. A
imagem não é somente uma forma de consciência, mas uma forma psíquica. Assim, vemos
que o corpo inteiro colabora na constituição da imagem. Não há sentimento sem configuração
corporal. Na formação da imagem, entram sentimentos agradáveis ou desagradáveis que
levam a uma reação do organismo como um todo: salivar diante da imagem de pratos
saborosos, ou ter náuseas diante da descrição de uma cena de horror. As consciências se
sucedem, a consciência do objeto irreal repugnante que leva ao ato real do vômito real, que é
conseqüência do objeto repugnante irreal. É importante lembrar que o objeto irreal que leva à
consciência do vômito tem como autor do vômito um objeto real, apenas irreal nesse
momento, imagem, objeto irreal, conseqüência de objeto real. Uma imagem irreal que passa
pela consciência e a torna efetiva como causa efetiva dos fenômenos psicológicos e/ou
fisiológicos. A consciência imediata distingue o objeto irreal, mas a memória confunde esses
dois tipos de existência, porque a imagem irreal revive o objeto real como uma lembrança
viva do passado que se torna presente, embora o objeto irreal não seja uma causa. Na
qualidade afetiva incorporada ao objeto, fica difícil distinguir o que é sentido do que é
percebido. O sentimento se incorpora à constituição do objeto irreal, que existe como irreal,
mas sua existência irreal é inegável. Assim, o sentimento comporta-se diante do irreal da
mesma forma que diante do real. Embora o irreal seja vazio, é o simples reflexo do
sentimento. Desse modo o sentimento se alimenta do seu próprio reflexo, e o sujeito fica
comovido ou nauseado aparentemente por causa de nada, apesar de que, ao reproduzir hoje
uma cena de ontem, não tem como ser igualmente valorizada pelos sentimentos, porque a
imagem de hoje é revivida pelo saber reflexivo, e o sentimento é visado sob a consciência
reflexiva. O objeto é reproduzido, mas o sentimento não tem como ser a mesma coisa.
Podemos dizer, então, que há uma diferença de natureza entre os sentimentos diante do real e
do imaginário. Podemos distinguir duas classes de sentimentos: os reais e os imaginários. Os
sentimentos irreais, cuja essência é estarem desagregados, descontínuos ou esquemáticos, se
servem do “não-ser” para existir. O irreal está presente para permitir que o sujeito odeie, mas
diante do objeto real odiável não sabe como se relacionar com ele. Com o objeto irreal, o
36
sujeito projeta ações sobre as quais têm controle. Porém, diante do objeto real esse controle
lhe escapa. Assim, vemos que existe, pela consciência, duas possibilidades de se relacionar
com o real, levando em conta também as condições de personalidade:
[...] o eu imaginário com suas tendências e desejos e o eu real. sádicos ou
masoquistas imaginários, violentos em imaginação. A cada instante, em contato
com a realidade, nosso eu imaginário explode e desaparece, dando lugar ao eu real.
Pois o real e o imaginário, por essência, não podem coexistir. Trata-se de dois tipos
de objetos, de sentimentos e comportamentos inteiramente irredutíveis
(SARTRE,
1996, p. 193).
Existem sujeitos que, pelas condições de sua personalidade, preferem mais a vida
imaginária ou uma vida real. Preferir o imaginário não é somente desejar uma vida melhor e
diferente. É adotar comportamentos imaginários por seu caráter imaginário. A escolha não é
por uma imagem, mas por um estado imaginário. O sujeito não foge apenas do conteúdo real,
mas do próprio real, da própria maneira como seus sentimentos se desenvolvem. O sujeito que
vive no imaginário, o faz numa pobreza de relação com o mundo e não o enfrenta como tal.
Existe um abismo que separa o real do imaginário. O imaginado é previsto, programado, o
real é imprevisível, porque envolve o outro, envolve relação e, acima de tudo, porque é
sempre novo. Os sentimentos do sonhador mórbido o cristalizados, têm uma forma pobre de
espontaneidade, e os traços dos objetos irreais são paralisados, previsíveis. A pobreza
essencial dos objetos na qualidade de imagens não pode surpreender ou decepcionar. Assim, o
mundo do esquizofrênico é meticuloso, pobre, composto de cenas que se repetem, como se
tudo já estivesse decidido.
Sartre diz que “[...]
se o esquizofrênico imagina tantas cenas amorosas, não é porque seu amor real
foi frustrado; mas, antes de tudo, é porque não é mais capaz de amar
” (SARTRE, 1996, p. 195).
Na patologia da imaginação, Sartre concebe o sujeito como sabendo que seu mundo é
imaginário, porém não pode escapar dele, pois perdeu a espontaneidade, a mobilidade
diante do novo, a dialética do movimento do ser como ser-no-mundo.
O esquizofrênico vive no mundo imaginário, mas é preciso entender a dinâmica do
sujeito que perde a mobilidade emocional com o real e se refugia no imaginário.
Sartre diz que [...]
o cogito cartesiano conserva seus direitos mesmo entre os psicopatas
(SARTRE, 1996, p. 196).
Na concepção de Sartre, o esquizofrênico sabe que os objetos de que faz uso são
irreais, incluindo
os objetos que ele cria. Os sujeitos conhecem suas imagens. Mesmo no
relato das alucinações, com partes verdadeiras e outras imaginárias, existe ainda algum
37
contato com a realidade. A impossibilidade de reconhecer a imagem como tal caracteriza o
patológico.
Uma imagem caracteriza um relativo transcendente. A consciência se por ela
mesma. O objeto da imagem é diferente do objeto da percepção e não vive no espaço
percebido comum, entre outros objetos.
Na percepção, existe uma pretensão do objeto à realidade. Na irrealidade do objeto,
existe uma consciência “não-tética”
6
como atividade criadora.
A consciência imaginante e a percepção são duas atitudes alternadas e nada prova que
a patologia realize a fusão do real com o imaginário. Sartre questionou a concepção de que o
doente perde totalmente seu contato com o real mesmo durante a alucinação, mas parece
indicar uma alternância de percepção e de derio. A alucinação coincide com o aniquilamento
da realidade percebida. A alucinação exclui o mundo real, não acontece no real. Um ato
alucinatório é um momento em que o doente faz um corte com o real e suas percepções
desaparecem. A alucinação tem semelhança com a imagem, é irreal. Quando a alucinação
passa, o mundo e o real reaparecem. Mas tanto na consciência mórbida ou o, a tese sobre a
imagem não é alterada. O objeto irreal é constituído como irreal.
A obsessão é um sintoma que se expressa numa consciência espontânea e autônoma
como todas as outras consciências. É o medo imaginário que faz o processo de obsessão
acontecer. A consciência é tima de si própria, e num círculo vicioso o sujeito não consegue
abandonar o pensamento obsessivo. O eu o está mais em síntese harmoniosa com o
mundo exterior. Seu investimento sobre o mundo é sofrido num processo de busca
ininterrupta por harmonia, por caminhos que não encontra. A consciência é tima do próprio
sujeito.
Outra categoria do imaginário é o sonho, que é imaginário por excelência. No sonho, a
consciência está privada da categoria do real. Sonho não é percepção, não é reflexão, é
expressão de puro imaginário. No sonho, a consciência não pode sair da consciência
imaginante para a percepção. Não há a dinâmica entre percepção e imaginação, é puro
imaginário. No mundo do sonho, a consciência está privada da faculdade de perceber, está
privada também da reflexão. A consciência que sonha o tem a noção da realidade, é um
mundo puramente imaginário. O sonho realiza uma função imaginária fechada em si mesmo.
Segundo Sartre “[...] o
sonho constitui a realização perfeita de um imaginário fechado. Quer dizer, um
6
A consciência tética posiciona seu objeto como existente. A consciência não-tética é uma consciência não posicional de si.
38
imaginário do qual não podemos sair e sobre o qual é impossível adotar nem o menor ponto de vista exterior
(SARTRE, 1996, p. 217).
Entretanto, convém mencionar que, no mundo imaginário do sonho, a consciência
projeta no imaginário tudo o que se constitui como mundo, como noções de mundo dessa
consciência. A consciência joga-se inteira no imaginário e, durante o sonho, não poderá entrar
em reflexão, o imaginário é seu mundo. O simbolismo orico na concepção de Sartre mostra
que:
Se a consciência só pode apreender suas próprias preocupações, seus próprios
desejos sob a forma de símbolos, não se trata, como Freud acredita, por causa de
uma repressão que os obrigaria a disfarçar-se: é porque ela está incapacitada de
apreender o que quer que seja real sob sua forma de realidade. Ela perdeu
inteiramente sua função de real, e tudo quanto sente, quanto pensa, só pode pensar e
sentir sob a forma de imagens
(SARTRE, 1996, p. 220).
O sonho é um momento em que a consciência está privada de reflexão e, como
conseqüência, tudo fica por conta do imaginário. O sonho é uma aventura imaginária em que
quem sonha faz seu papel, mas como imaginário apenas. Quem sonha perdeu seu estar-no-
mundo, porém, [...]
uma consciência imaginária é apenas um certo objeto para uma consciência real
(SARTRE, 1996, p. 223).
Assim, vemos que, de certa maneira, no mundo imaginário do sonho se conserva uma
consciência de mundo, mas um mundo imaginário, porque no sonho a categoria do real não
existe. O jogo todo permanece no plano do irreal. O sujeito que sonha está mergulhado no
mundo imaginário e somente imaginário, porque: a consciência que sonha se determinou a
produzir o imaginário; e suas preocupações são projetadas diante dela sob uma forma
simbólica.
O sonho não pode ser pensado como a partir da realidade do mundo, da percepção, da
ação reflexiva. O sonho, pelo que se pode compreender na obra “O Imaginário” leva à
seguinte conclusão: existem dois mundos, um real e um imaginário. No sonho não há
reflexão, não percepção do real, mas uma consciência que se determina como imaginário.
O sonho é vivido por uma ficção, e a consciência vive a ficção impossibilitada de sair dela.
Assim todo esforço da consciência é para produzir o imaginário, pois não há reflexão. O
sonho é uma expressão privilegiada do imaginário, de uma consciência privada da categoria
do real.
Podemos, então, mostrar agora o entendimento de Sartre sobre o sonho, e de Freud,
contestado por Sartre, como vimos anteriormente: para Freud, os conteúdos do sonho seriam
os conteúdos reprimidos em nível inconsciente que reivindicariam uma forma ou outra de
expressão. Mas, para Sartre, os sonhos, apesar de serem expressão de uma consciência e de
39
uma personalidade, são uma forma de consciência que assim se expressa como imaginário,
porque não como acontecer à percepção e a reflexão durante o espaço orico. A
consciência se liberta do real, ou se aprisiona no irreal, mas imaginário, e vive uma expressão
de categoria imaginária apenas. Vive a ficção pela ficção, pois não reflete sobre o que
acontece no sonho, simplesmente o vivencia.
A possibilidade de imaginar é uma qualidade entre tantas outras de nossas
consciências. Porém, o que uma consciência deve ser para poder imaginar? Como vimos, a
tese da consciência imaginante é radicalmente diferente da tese da consciência realizante.
Um objeto apreendido como real é diferente do objeto imaginado. Então como uma
consciência pode apreender objetos reais e imaginários? Real é, ao mesmo tempo dado, o
objeto que confere significação por sua própria natureza. Perceber o dado é percebê-lo sobre
um fundo de realidade total como um conjunto e o ato realizante é o inverso do ato
imaginante. O ato imaginante é aniquilador ao contrário do realizante. Toda existência real se
apresenta como presente, passado e futuro, no momento presente, que como estruturas
essenciais, são reais, são correlativas do realizante. Como significação do universo há um
futuro e um passado reais na atualidade da consciência, mas para que a consciência possa
formar uma imagem é preciso que coloque uma tese de irrealidade, um certo caráter de nada
em relação à totalidade do real. O ato negativo é constitutivo da imagem, é sua estrutura mais
íntima. O objeto irreal está fora de alcance em relação à realidade. Para a consciência produzir
um objeto irreal, ou imagem, precisa poder negar a realidade tomando distância dela em sua
totalidade, libertar-se do real, para poder negá-lo.
A condição para que uma consciência possa imaginar é dupla: ao mesmo tempo em
que se coloca o mundo em sua totalidade sintética, como real, de forma que se possa colocar o
objeto imaginado fora dessa realidade sintética, coloca o mundo como um nada em relação à
imagem. Para que uma consciência possa imaginar, ela precisa ser livre, por que sua própria
natureza precisa escapar do mundo, manter uma posição de recuo em relação ao real. Assim, a
tese de irrealidade tem a negação como sua condição e isso é possível por meio da nadificação
do mundo como totalidade. A nadificação parece contrariar a liberdade da consciência,
porém, a liberdade como um conjunto sintético e como ato de distanciamento já implica uma
consciência livre. O ato de distanciar-se implica separar-se, ser livre de. O ato de separar-se
implica liberdade. Para poder imaginar, a consciência deve ultrapassar o real como mundo, e a
nadificação está sempre implicada nesse separar-se. Constituir uma imagem não é
simplesmente negar o mundo, é negá-lo de certo ponto de vista, sob certo aspecto que permita
colocar a inexistência do objeto. O objeto desejado nesse momento não pode fazer parte do
40
real, e é possível intencioná-lo, como irreal, como imagem. Desejar ver um amigo que está
ausente do mundo real, mas que existe noutro lugar do mundo pode ser o motivo para a
consciência criar a imagem, ou a presença do amigo como irreal. O mundo se apresenta para o
sujeito como vazio da presença do amigo imaginado. Assim, o irreal é constituído ou
apreendido nas diferentes situações do mundo. Diante do real existe um irreal. É condição
essencial da consciência para produzir um objeto irreal que ela esteja no mundo em situação,
apreendido como realidade concreta e individual da consciência e que serve de motivação
para criar o objeto irreal, ou imaginário.
O imaginário faz parte da consciência do sujeito particular que está no real. Não é
propriamente uma abstração da consciência. Existe, assim, uma ligação do real com o irreal,
mas como já vimos, na vivência real no mundo do sujeito, mesmo que nenhuma imagem
tenha sido criada naquele momento, toda apreensão do real como mundo tende a completar-se
com a produção de objetos irreais, por ser a consciência nadificação livre do mundo de um
ponto de vista particular.
Assim, se a consciência é livre, o correlativo noemático de sua liberdade deve ser o
mundo que traz consigo a possibilidade de negação, a cada instante e a cada ponto
de vista, por uma imagem, ainda que a imagem deva ser constituída logo em seguida
por uma intenção particular da consciência
(SARTRE, 1996, p. 241).
A imagem é negação do mundo pela consciência particular e aparece como um fundo
de mundo, pela intenção da consciência. A imagem aparece mediante o recuo da percepção
que constitui como um fundo do qual o objeto irreal se destaca. Pela produção do irreal, a
consciência aparece livre de seu estar-no-mundo, mas é esse estar-no-mundo que se constitui
como condição fundamental para que aconteça o ato imaginário. A consciência nadifica o
real, se faz livre como consciência e imagina, mas o faz sob o pano de fundo do mundo real.
Assim, é condição para a consciência imaginante que: a consciência deve ser livre do real, e
essa liberdade se define por um estar-no-mundo como constituição e nadificação do mundo. A
situação da consciência como ser no mundo deve servir de motivação singular para a
construção do irreal. O irreal é um duplo nada. Nada de si em relação ao mundo e nada do
mundo em relação a si mesmo. O irreal é criado sobre o mundo que ele nega, um fundo
sintético vivido como situação. É da natureza da consciência ser consciência de alguma coisa,
e esta se constitui diante do real ao mesmo tempo em que o ultrapassa.
A imaginação não é um poder empírico que se acrescenta à consciência, é a
consciência mesma na medida em que realiza sua liberdade. O imaginário faz parte da
41
situação real e concreta da consciência no mundo na medida que ultrapassa o real. E es
seu poder de nadificação.
A consciência está sempre em situação, é sempre livre e está sempre diante da
possibilidade de produzir o irreal. A cada instante, a consciência está diante de uma
motivação que, pela sua intenção, pode ser realizante ou imaginante. O sujeito é transcendente
e livre, por isso faz parte dele a condição imaginante. O irreal é constituído fora do mundo por
uma consciência no mundo. Todo dado existente é colocado e ultrapassado, mas em relação a
alguma coisa. O imaginário representa um sentido implícito do real, o imaginário é uma
condição essencial e transcendente da consciência. É tanto difícil conceber uma consciência
sem capacidade de imaginar, como seria difícil não poder efetuar o cogito. Assim, podemos
ver que a idéia de imagem está intimamente ligada à iia de consciência. É a consciência que
se relaciona com o mundo de duas formas diferentes: como capacidade de imaginar e de
efetuar o cogito.
Em O Imaginário: psicologia fenomenológica da imaginação”, por ser uma obra de
caráter psicológico, em favor de uma psicologia fenomenológica, Sartre abordou com muita
clareza a importância de compreender a dinâmica da consciência, levando em conta a
constituição do ego, do eu psíquico e do eu psicofísico. Essa concepção de sujeito como
totalidade, com todas as formas de consciência, faz de Sartre não só um filósofo, mas também
um conhecedor da esfera psíquica, sendo a junção das duas áreas, filosofia e psicologia, uma
característica fundamental de toda sua obra, até mesmo no campo da psicopatologia, pois se
preocupou em abordar todas as formas de consciência, inclusive no âmbito patológico,
mostrando uma concepção de sujeito entendido no seu todo.
Sartre escreveu O Imaginário num momento em que a psicologia se tornara
experimental para ser tratada como ciência e, para isso, nascera independentemente da
filosofia. Mas para Sartre, sua obra não mostra essa separação; pelo contrário, a consciência e
o psíquico o estão em condições de serem entendidos separadamente. Parece estar a
grande importância da obra de Sartre: um sujeito concebido como consciência e como
psiquismo, como um todo. Fica claro que ele desejava reformular a psicologia, apresentando
uma concepção de sujeito livre como consciência e, em conseqüência, como ser, livre em
situação, com poder de criar, nadificar e recriar a sua realidade. Um ser concebido como não
pré-determinado, construído na sua relação com o mundo, como existência que precede a
essência. Condicionado sim, pré-determinado não, mas como agente ativo na hisria.
42
O método fenomenológico foi fundamental para sua construção teórica, pois foi na
filosofia e, mais precisamente na fenomenologia, que conseguiu fundamentar todo seu projeto
do ser do homem.
Embora a filosofia sartreana seja a mais conhecida, fica difícil não reconhecer o valor
de sua obra para a psicologia, até mesmo para compreensão da sua filosofia como dimensão
de consciência e de sujeito. A compreensão histórica e dialética da vida do sujeito, o modo de
investigação da realidade humana, a formação da personalidade, são aspectos que envolvem
conhecimentos tanto da filosofia quanto da psicologia. Os problemas que Sartre enfrentava
com a filosofia e a psicologia francesa foram resolvidos com a fenomenologia e, mais
especificamente, com o conceito de intencionalidade da consciência. Assim, construiu sua
tese sobre a liberdade da consciência como aspecto fundamental da realidade humana, que é
núcleo de todo seu pensamento.
Pelo método fenomenológico, Sartre fundamentou um método de investigação da
realidade humana, com a psicanálise existencial, propondo uma psicologia nos moldes da
ciência, mas muito diferente da psicologia de sua época. O processo de liberdade não pode ser
entendido apenas como dimensão de consciência, a menos que se entenda como consciência
toda dimensão de sujeito.
Tanto na obra “A Transcendência do Ego”, como em “O Imaginário” analisadas nesta
pesquisa, pode-se perceber a concepção de consciência, como totalidade do sujeito. As
emoções são formas de consciência, são parte integrante da consciência como estrutura global
do sujeito.
Pode-se afirmar que Sartre buscava uma psicologia concreta, abandonando as
preocupações metafísicas, até mesmo a imagem precisava ser concreta, partir da imagem
mesma e da diferenciação entre percepção e imagem. Não se trata de determinar o que é
verdadeiro ou falso, mas de percepção e imaginação diante do real. A psicologia parte de uma
nova ontologia do eu, como vimos em “A Transcenncia do Ego”, e tem por princípio os
fatos concretos. As bases metasicas, idealistas, se tornaram insuficientes na explicação do
real, e era preciso partir dos fatos, da dialética consciência/mundo. A fenomenologia abriu
caminho para pensar o real escapando às verdades prontas. A imagem passou a ser vista como
estrutura intencional da consciência, como consciência imaginante de um objeto do mundo,
deixando de ser conteúdo de consciência para ser consciência imaginante de um objeto
transcendente. A consciência e o objeto o dois fatos absolutos, e a consciência é sempre
consciência de alguma coisa. A consciência não é objeto, e o objeto não é a consciência. É
pela intencionalidade que a consciência se dirige às coisas.
43
Neste entendimento, a imagem se ocupa das estruturas fáticas de consciência, mas não
se trata de conteúdos de consciência. A imagem é uma relação entre consciência e objeto real.
A imaginação é um modo possível de relação, sua essência é a estrutura irreal. O objeto como
imagem é um aniquilamento do objeto como percepção. A consciência é fato absoluto de
espontaneidade, e o objeto é fato absoluto da passividade. A consciência como consciência de
alguma coisa é percepção ou consciência imaginante, e a diferença entre percepção e
imaginação se garante pelo modo como o objeto se à consciência. O objeto da percepção
ocupa lugar no espaço e no tempo, a imagem não apreende o objeto em percepção. Na
imaginação e percepção, acontecem duas atitudes específicas da consciência em relação ao
objeto, são dois fatos diferentes. O imaginário é o plano do nada, o real é a dinâmica do ser e,
em ambos, é o exercício da liberdade da consciência. No imaginário a consciência irrealiza o
objeto e a si mesma. A consciência imaginante é real, mas na qualidade de imaginário. Mas
seja na consciência imaginante ou na percepção, uma atitude de escolha por uma ou por
outra e nisso consistem a liberdade e a natureza de expressão da consciência. Assim, no
imaginário, a liberdade, bem como a função nadificadora da consciência se evidenciam.
A imaginação não é um poder empírico e, acrescentado à consciência, é a consciência
por inteiro na medida em que realiza sua liberdade; toda situação concreta e real da
consciência no mundo está impregnada de imaginário na medida em que se apresenta
sempre como uma ultrapassagem do real
(SARTRE, 1996, p. 243).
A consciência está sempre em situação, sempre em percepção e em condições de
contato com o real e de produzir o irreal. É próprio da liberdade da consciência perceber o
real e criar o irreal, como resultado também do real. Por isso dissemos que o irreal se ocupa
das estruturas fáticas da consciência.
Sartre, em entrevistas, argumentou sobre a questão do imaginário que trabalhara na
obra “O Idiota da Família”, sobre Flaubert:
O livro, tal como agora se apresenta, relaciona-se de certa
maneira com L´Imaginaire, que escrevi antes da guerra. Mas o que tento com o Flaubert é também utilizar os
métodos do materialismo histórico
” (SARTRE, 1977, p. 95).
Sartre argumentou que repensara na obra sobre Flaubert a obra “O Imaginário”,
porém, apesar das críticas, a obra continua verdadeira, especialmente no tocante à
imaginação, mesmo tendo sido repensada numa fase tão posterior à sua origem.
44
1.4 Teoria das Emoções
Em Sartre, primeiro se define a essência da condição humana para depois se pensar em
psicologia. vimos em “A Transcendência do Egoque, primeiro, se define a ontologia, e
esta automaticamente mostra os rumos de entendimento do psíquico. As reações, as vivências
do homem contra o mundo, fazem sua experiência e, para tratar dessas experiências, das
emoções, é preciso partir da ontologia fenomenológica. A noção de projeto, de liberdade,
estabelece, horizontes na compreensão da relação dialética do homem com o mundo.
Sartre questionou a forma como os psilogos trabalhavam com a realidade humana.
A psicologia trabalhava com a noção de objeto da sica, mas isso parecia perder de vista a
especificidade dos fatos humanos; portanto, era preciso partir da totalidade sintética que é o
homem.
A emoção acontece como conseqüência da relação da consciência com o mundo, com
um sujeito em situação, em choque com as adversidades. São a consciência e o corpo que
produzem os comportamentos como um fenômeno humano. A consciência é um objeto
transcendente, e, como transcendente, também sofre passividade. O homem está em choque
com o mundo, com os outros. Sartre entendia as emoções como o resultado de dois fatos: a
consciência como fato absoluto, como criação, como espontaneidade, e os objetos como fato
absoluto, porém, de inércia. Assim sendo, a psicologia fenomenológica nos levou à ontologia
fenomenológica. Sartre argumentava que a psicologia pretendia partir da experiência, pom,
partia da noção empírica de homem. Devemos partir dos fatos, contudo, o significado dos
fatos se busca numa investigação específica. A psicologia o pode partir de uma somatória
de fatos heterogêneos, nem tampouco podemos dizer que parte dos fatos, porque o que são
fatos? Que significação envolve o fato? Uma somatória de fatos não é suficiente para explicar
uma essência. Então busquemos a essência, e o os fatos pelos fatos. Os fenômenos
psíquicos devem ser estudados, compreendidos, a partir do homem, e não por construtos
lógicos organizados previamente. Sartre argumentava que a psicologia empírica tratava da
experiência humana de forma inadequada, partindo do modelo da sica e fazendo que os fatos
humanos perdessem sua especificidade:
Com efeito, os psicólogos não se dão conta que é tão impossível atingir a essência
por simples acumulação de acidentes como chegar a unidade juntando
indefinidamente algarismos à direita de 0,99
(SARTRE, 1972, p. 43).
45
Antes de explicar a emoção, devemos nos preocupar com a estrutura essencial da
realidade humana. Para a fenomenologia, a idéia de homem não pode ser um conceito
empírico, e a psicologia não pode ser o começo, porque os fatos psíquicos não são primeiros;
temos que partir do homem e do mundo. Então, chegamos ao psíquico partindo da
consciência do sujeito, da realidade humana como maneira de existir, como totalidade
sintética que é o sujeito em essência. Para a fenomenologia, todo fato humano, incluindo a
emoção, é significativo, por isso o fenomelogo estuda o significado da consciência
emocionada. A emoção não é efeito da realidade humana:
É antes a própria realidade humana,
realizando-se sob a forma de emoção
” (SARTRE, 1972, p. 52).
Partindo desse entendimento, a emoção passa a ter estrutura particular em essência e
significado. A emoção é expressão de cada existência humana, como realidade humana.
Assim,
“[...] a psicologia fica subordinada à fenomenologia, visto que um estudo verdadeiramente positivo do
homem situado deveria ter explicado em primeiro lugar as nões de homem, de mundo, de ser no mundo em
situação
” (SARTRE, 1972, p. 53).
A emoção não é um fenômeno corporal, não é produto do corpo, mas da experiência,
pois o corpo não produz emoção por si só. O corpo apresenta a configuração da consciência.
A alegria, por exemplo, se configura na expressão do corpo, é a consciência emocionada que
se expressa no corpo em forma de emoção.
A fenomenologia não procura os fatos apenas, mas as significações, e os métodos de
introspecção, de observação empírica, são deixados para trás para se concentrar na essência
dos femenos.
Nas teorias clássicas, se entendiam as emoções fazendo do fenômeno secundário o
fenômeno principal. Não se tratava da consciência dos fatos, mas da emoção em si. O caráter
essencial das emoções tinha leis próprias, e a espontaneidade consciente pouco contava, ou
o precisava muito dela, pois acreditava-se que as emoções eram produzidas empiricamente.
Na teoria fenomenológica da emoção, a consciência emocional é consciência do
mundo:
Toda consciência é consciência de alguma coisa
(SARTRE, 1997, p. 33). Este é um dos
princípios fundamentais de fenomenologia de Husserl. Portanto, quando se tem medo, se tem
medo de alguma coisa, a emoção é desencadeada por uma percepção ou imaginação, diante
dos fatos atuais e dos conteúdos psíquicos já existentes. Então, a emoção não pode ser
entendida como uma atitude interna que se afasta do objeto percebido:
o indivíduo emocionado e
o objeto causador desta emoção, estão unidos por uma síntese indissolúvel
” (SARTRE, 1992, p. 81).
Constantemente, estamos atuando no mundo, e essa relação com o mundo nos torna
consciências emocionadas diante dos fatos ou dos objetos. Temos fatos bons, alegres, ou
46
ruins, tristes, que nos fazem sentir ou nos emocionar. O mundo se transforma na ação sofrida
pelo sujeito que atua ao mesmo tempo em que se emociona. Ele se emociona porque tem
consciência dos fatos, do mundo. Diante do mundo, estamos diante de situações, de
exigências novas:
Na emoção, é o corpo que, dirigido pela consciência, altera as suas relações com o mundo
para que este mude as suas qualidades. Se a emoção é uma comédia, é uma comédia em que acreditamos
(SARTRE, 1972, p. 88).
Se temos medo de um objeto do mundo, nos apresentamos com a emoção do medo. Se
estamos tristes pelos fatos do mundo, nos apresentamos com emoções de tristeza. Realizamos
nossos desejos ou não, mas estamos sempre diante de um mundo como enfrentamento de
nossa realidade, de nossas vivências.
A estrutura funcional da emoção nos mostra uma grande variedade de emoções, ou de
consciências emocionadas. A consciência também pode simular emoções falsas, como por
exemplo, o sujeito fingir que gostou de um presente recebido quando de fato o odiou. São
qualidades intencionais que forjam uma emoção falsa, sendo que a expressão fisiológica
apresenta uma contradição entre emoção e consciência.
A origem da emoção é uma degradação espontânea e vivida da consciência em face
do mundo. Aquilo que ela o pode suportar duma certa maneira, tenta apreender
doutra, adormecendo, aproximando-se das consciências típicas do sono, do sonho e
da histeria. A perturbação do corpo não é mais do que a crença vivida, da
consciência, enquanto vista do exterior
(SARTRE, 1972, p. 101).
A função da emoção na vida do sujeito é poder fazê-lo mover-se, transformar-se para
transformar o objeto. Mas a consciência pode alcançar a si mesma e, então, move-se num
mundo mágico:
Todas as emoções possuem em comum a característica de fazerem aparecer um mesmo
mundo, cruel, terrível, sombrio, alegre, etc., mas no qual a relação entre as coisas e a consciência é sempre e
exclusivamente mágica
(SARTRE, 1972, p. 103). A consciência na sua relação com o mundo
pode alcançar a si mesma, não pode transformar o objeto. Por meio do corpo, altera suas
relações com o mundo para que o mundo altere suas qualidades. A perturbação do corpo não é
mais do que a crença vivida pela consciência.
A consciência não tem teticamente consciência de si própria, diante da degradação de
escapar à pressão do mundo:
tem consciência da degradação do mundo, que passa para um nível
mágico
(SARTRE, 1972, p.101). A finalidade da emoção é um ato de consciência no seio da
própria emoção, pois a consciência emociona-se com sua emoção. A consciência movida pela
emoção do medo fica aprisionada. Somente uma atitude de reflexão, ou o afastar-se da
situação que levou a emoção do medo, por exemplo, pode mudar os rumos da emoção.
47
A emoção de horror ou de alegria decorre da passagem de uma apreensão racional do
mundo para uma apreensão mágica desse mesmo mundo e depende da motivação que a levou
acontecer:
A magia priria e a significação da emoção surgem do mundo e não de nós
(SARTRE,1972, p. 109). Porém, uma cena de horror não pode vir do mundo determinista dos
instrumentos, é possível se os seus existentes forem mágicos por natureza contra recursos
também mágicos.
A consciência como ato espontâneo é uma consciência posicional da degradação do
mundo, e uma consciência como ato espontâneo produz também uma emoção espontânea.
Porém, espontânea o quer dizer inconsciente. A consciência se reconhece no mundo. A
emoção remete a um significado. O significado da emoção é explicado pelas reações entre a
realidade humana e o mundo.
A psicologia fenomenológica deve partir de posições progressivas, e não de posições
regressivas de entendimento psíquico. A faticidade da existência humana é o ponto de estudo
mais seguro da emoção; assim partindo da faticidade da existência humana se pode garantir o
entendimento de progressão da fenomenologia. A faticidade está no presente voltado para o
futuro, pois compreende-se o sujeito como passado no presente, e não retornando ao passado.
48
CAPÍTULO II
2. A ONTOLOGIA FENOMENOLÓGICA
A ontologia fenomenológica sartreana se ocupa da descrão da relação entre o ser e o
nada. A consciência é seu próprio nada que aparece em face do ser (SARTRE, 1997). O ser e
o nada são dois componentes do real. A ontologia de Sartre não se propõe ir além desses dois
absolutos, mas apenas a descrever a relação entre eles: o ser como coisa material em seu
determinismo e o nada como consciência em transparência e espontaneidade.
2.1 O Ser e o Nada
Como vimos no primeiro capítulo, nas obras que antecederam O Ser e o Nada”, em
“A Transcendência do Ego”, a consciência foi entendida como espontaneidade sem conteúdo,
sem eu. Em “O Imaginárioa consciência foi descrita como imaginação e percepção, como
percepção da realidade e como função irrealizante ou imaginação. O real e o irreal fazem
parte da realidade do mundo, e mesmo a imagem não é conteúdo de consciência.
A teoria das emoções mostrou a consciência como um dos componentes da realidade,
com uma estrutura de escolha, que motiva os comportamentos. As emoções são o resultado
das reações do homem contra o mundo (SARTRE, 1972), e é a consciência que se relaciona
com o mundo e se emociona. O homem vive em situação, num processo de liberdade,
experimenta-se no mundo e se emociona.
Em 1943, Sartre publicou O Ser e o Nada, Ensaio de Ontologia Fenomenológica”.
Em “O Ser e o Nada”, a consciência se mostra como um dos componentes da realidade, a
intencionalidade é um dos princípios fundamentais no entendimento da consciência, a
consciência é absoluto de transpancia e espontaneidade, e a coisa é um absoluto de
opacidade. As coisas não estão na consciência e a consciência não se dissolve nas coisas, são
dois absolutos. A consciência é um nada, um vazio total, o mundo todo está fora dela e a
consciência se faz, ou acontece, por meio de suas escolhas, no mundo objetivo.
A filosofia e a psicologia devem ser entendidas pelos fatos objetivamente concretos. O
homem passou a ser pensado como um ser no mundo, ou como um ser diante do mundo. A
intencionalidade é um princípio fundamental dessa relação para o pensamento
49
fenomenológico. A consciência não é substância, nem mesmo o ego pode habita-la. A
consciência é vazia, um nada que permite nos separarmos das coisas. Num movimento para
fora de si, a consciência existe diante do objeto, do mundo. Não consciência que não seja
consciência de um objeto transcendente, a consciência não escapa à condição de
intencionalidade e existe na medida em que aparece. A consciência é um absoluto de
aparência e existência, além de ser separada do mundo, desabitada de ego e de qualquer
conteúdo e existir em relação a um objeto transcendente. Por isso, se pode dizer que a
consciência é intenção:
A consciência é consciência de alguma coisa: significa que a transcendência é
estrutura constitutiva da consciência, quer dizer, a consciência nasce tendo por
objeto um ser que ela não é. Chamamos isto de prova ontológica
(SARTRE,
1997, p. 34).
Pela intencionalidade, chegamos à descrição fenomenológica da consciência como
sendo um nada em face do ser. A consciência é um nada que se apresenta também como
função nadificadora. Na percepção, a consciência se anula para constituir o real como mundo
e também se evidencia não sendo essa coisa, existindo totalmente separada do mundo
percebido. A consciência é o próprio nada diante do ser.
O homem é concreto como ser no mundo, como relação com o mundo, como um nada
humano e um nada transcendente. Sartre partiu da interrogação acerca do que é o homem e o
mundo para que seja possível uma relação, pois foi com base nas condutas humanas que fez a
análise do ser e do nada.
[...] acaba de surgir novo componente diante do real: o não-ser. [...] porque não
temos de tratar das relações entre o ser humano e ser-em-si, mas também entre
ser e não-ser e não-ser humano e não-ser transcendente
(SARTRE 1997, p.
46).
O ser e o “não-ser”, ou a afirmação e a negação, são sustentados pela realidade
objetiva. O ser e o nada aparecem como realidades objetivas. Uma conduta interrogativa
faz sentido porque pode haver uma afirmação ou uma negação como resposta. Ao se esperar
num bar um amigo, a presença ou a ausência deste é um dado de realidade objetiva, pois o
amigo está ou não está; existe, mas em outro lugar. A consciência expressa uma negação em
forma de consciência de negação, ela não produz a negação, mas apenas a constata. A verdade
objetiva é a verdade do ser e do nada.
50
Sartre chegou ao ser e o nada com a autonomia da consciência e do mundo, vendo a
consciência e o ser como dois absolutos. A ontologia fenomenológica de Sartre é a descrição
desses dois los, a consciência e o mundo, ou a consciência e o ser. A consciência não tem
interioridade, se constata no exterior dela mesma, uma vez que é sempre consciência de”, e a
subjetividade é um momento da realidade objetiva. O sujeito se reconhece por meio do
mundo, e a subjetividade se faz presente no momento objetivo. Em Sartre, no texto “Questão
de Método” (2002), podemos entender a subjetividade como um momento do processo
objetivo, como uma interiorização/exteriorização sucessiva e ininterrupta. Nós mesmos
estamos fora de nós, no mundo, e nossa interioridade é também nossa exterioridade. A
ontologia fenomenológica consiste nessa praxis, nessa objetividade, e é por isso que o
recorre a fundamentos metasicos. A realidade é a objetividade, seja da consciência ou das
coisas.
O homem é corpo e consciência, é pelo corpo que a consciência se faz realidade
objetiva. A consciência comanda todos os fenômenos psíquicos, as ações ou condutas, e cada
singularidade está no mundo, seres entre seres, coisas entre coisas. Corpo e consciência
constituem o psíquico. A consciência como nada não escapa à materialidade pelo corpo, pelo
homem em si. A consciência aparece como realidade objetiva por intermédio do homem.
Assim ser e nada são fenômenos objetivos e concretos.
O ser e o nada são componentes do real, e consciência e coisa, ou femeno, são
relações concretas. A consciência é singular assim como seus significados, e o mundo como
ser e como nada está sempre em devir, pelo determinismo das coisas e pela relação do homem
com o mundo. Assim tudo está em devir, tudo es em curso, a relação dialética
consciência/mundo é um fato singular e objetivo e não se absolutiza, permanece em curso.
Isso fez aparecer uma nova compreensão do mundo. O projeto fenomenológico de Sartre
apresentou um novo método para a filosofia dentro de uma expressão concreta, rompendo
com as concepções abstratas, subjetivistas e metasicas. Sartre propôs uma ontologia que
permite tratar da experiência coerente com os princípios da ciência, com o pensamento
moderno, que se volta para uma relação com a objetividade. O pensamento moderno faz uma
exigência de cientificidade. Sartre se opôs às teorias do absoluto, idealistas ou materialistas,
que desvirtuam a dialética da realidade. A fenomenologia apontou novos caminhos na questão
do conhecimento, e veio romper com o idealismo e realismo que dominavam a filosofia até
então. Isso levou à ruptura com as dualidades essência/aparência, potência/ato, alma/corpo.
Com a ontologia de Sartre, a filosofia passou a se sustentar numa verdade objetiva do
mundo. O ser e o nada estão objetivamente dados como ser e como consciência e com
51
autonomia de ambos. As coisas não estão mais na consciência e a consciência não se converte
em coisas. A ontologia de Sartre, descrevendo a relação entre o ser e o nada, fez isso fugindo
do problema dos dualismos, e quanto ao ser ao nada, um não se dissolve no outro,
caracterizando a supremacia da consciência e da realidade do mundo. A consciência em
perpétua relação com o mundo não pode coincidir consigo mesma, é totalidade destotalizada
ininterruptamente. A consciência acontece no mundo no processo de objetivação e é sempre
consciência de alguma coisa. O nada não pode ser concebido a partir do Em-si”, que é pura
positividade, a consciência não se sustenta em si mesma, mas num corpo, e se reconhece na
relação com o objeto. Pelo corpo, o homem é materialidade, é Em-si”, e pela consciência é o
que não é e não é o que é. O homem é corpo e consciência na faticidade da existência, o
objetivo passa pelo subjetivo e o subjetivo pelo objetivo, fazendo-se momento do processo
objetivo, se constituindo na relação homem/mundo. A realidade humana é um processo
objetivado em curso.
2.2 A idéia de fenômeno e de conhecimento
No pensamento moderno, a fenomenologia veio trazer a solução para o problema dos
dualismos da filosofia. A tese do existente que se apresenta por uma série de aparições
eliminou o dualismo interior/exterior. Não há exterior do fenômeno, também não interior
do objeto considerado. O femeno se apresenta por aparições que não são nem exteriores
nem interiores, mas cada aparição remete a outras aparições sem que nenhuma tenha caráter
privilegiado. Assim, o existente, o fenômeno, é o conjunto de suas aparições, e cada uma
delas remete às demais. Uma aparição remete a uma série de aparições que compõe o
fenômeno.
Para Sartre, não existe o “Ser-detrás-da-aparição”. Seu aparecer é sua essência. O ser
de um fenômeno é o que o fenômeno aparenta. O aparecer pressupõe sua essência. Seu
aparecer é indicativo de si mesmo. É indicativo do ser.
Sartre questionou o método fenomenológico de Husserl por trocar as dualidades acima
pelo finito e infinito: se a aparão do fenômeno é finita, a série de aparões é infinita; então,
como é possível ter certeza do conhecimento? Se o conhecimento científico se sustenta no
objeto e suas aparições são infinitas, então, somente podemos chegar próximo da verdade, e o
conhecimento objetivo é improvável. A essência das coisas seria a idéia que o sujeito faz
52
delas e, na ontologia sartreana, a essência das coisas está nas coisas mesmas (SARTRE,
1997).
Sartre concordava com Husserl que a realidade é objetiva e infinita. Porém,
diferentemente de Husserl, acreditava que, apesar da infinitude, o sujeito conhece a realidade.
Não é porque não é possível conhecer a totalidade do sistema solar, por exemplo, que não se
pode conhecer cientificamente o movimento dos planetas (SARTRE, 1997). o é porque não
se conhece todo universo que o que a ciência conhece não tem sustentação. A série será
sempre infinita, mas o é preciso conhecer a totalidade da série para conhecermos o
fenômeno objetivamente, os fenômenos que são singulares e finitos.
O existente é fenômeno, quer dizer, designa-se a si como conjunto organizado de
qualidades. Designa-se a si mesmo, e não seu ser. O ser é simplesmente a condição
de todo desvelar: é ser-para-desvelar, e não ser desvelado
(SARTRE, 1997, p.
19).
O ser a que temos acesso de imediato, aquilo que se nos aparece é parte do fenômeno
de ser. Porém, por meio do femeno singular podemos conhecer o ser ou a sua essência.
Então, para Sartre, qual a relação exata entre o fenômeno de ser com o ser do fenômeno? O
ser não se esconde atrás do femeno, o fenômeno não é uma aparência que oculta a essência.
Ao atingir o fenômeno, o sujeito atinge o singular e o universal, a essência e a existência. Em
Sartre, não são dois tipos de seres, é um ser . O ser do fenômeno, universal, o se reduz ao
seu aparecer, singular. Porém, o fenômeno de ser e o ser do fenômeno são co-extensivos
(SARTRE, 1997). Não para conhecer o ser distinto do fenômeno de ser, ou seja, o ser não
é exterior ao fenômeno. Para conhecer a essência de um objeto é preciso partir da descrão
dos seus vários perfis. Porém, aquilo que faz o ser que é o está em nenhum outro lugar
senão no próprio objeto. Sua essência não é diferente da que ele aparenta, mas o ser exige um
fundamento que seja transfenomenal. Não significa que o ser se encontre escondido atrás dos
fenômenos, nem que o fenômeno seja uma aparência que remeta a um ser distinto.
As precedentes considerações presumem que o ser do fenômeno, embora co-
extensivo ao fenômeno, deve escapar à condição fenomênica – na qual alguma coisa
existe enquanto se revela e que, em conseqüência, ultrapassa e fundamenta o
conhecimento que dele se tem
(SARTRE, 1997, p. 20).
53
As coisas se dão por perfis, sendo que cada perfil remete aos demais. É a relação entre
ser do fenômeno e fenômeno de ser. O ser se revela no fenômeno, embora o se reduza a ele.
O femeno exige a transfenomenalidade do ser (SARTRE, 1997). O ser é mais do que o seu
aparecer, mas o aparecer é o ser enquanto irredutível. O conhecimento é uma das formas do
ser aparecer, mas o ser não se reduz ao conhecimento.
As coisas existem, independentes do homem, formando a realidade indiferenciada. O
homem, ao se relacionar com ela, a diferencia como fenômeno produzindo conhecimento. O
ser “Em-si” existe independentemente do homem. Porém, ele aparece para alguém, se
organiza por alguém. Para que a realidade indiferenciada se organize como mundo é
necessário que exista uma consciência. A realidade do mundo, o ser “Em-si”, é um absoluto, a
consciência é outro absoluto, um componente da realidade, sempre em relação a um objeto
transcendente (SARTRE, 1997). A consciência é transcendência, é vazia e está em relação
com o mundo. A consciência é consciência posicional do mundo, uma vez que se transcende
para alcançar o objeto. Para Sartre, a consciência se esgota nessa relação com o objeto. Por
isso, a consciência é consciência na objetividade, a consciência se no mundo. A
consciência existe na medida em que aparece. A consciência surge no mundo numa relação
simultânea com o objeto que é exterior a ela. Para Sartre, as coisas o se dissolvem na
consciência, a consciência não contém o mundo. Os objetos do mundo não podem entrar na
consciência. A consciência, em Sartre, o tem interior, é pura relação com as coisas e, então,
é exterior a ela mesma, é pura transparência, não é substância. Não é “Em-si”, é “Para-si”,
pois o coincide consigo mesma. O Em-si” é opaco, o Para-si” é movimento.
Para Descartes, a consciência é substância pensante. Em Sartre a consciência é
transparência, é vazia de substância. A consciência está em relação e sempre em questão.
As filosofias cuja base está nas teorias idealistas e racionalistas reduziram a realidade
às iias. Assim, consciência da realidade é uma representação ou uma idéia da realidade, e
consciência e conhecimentos aparecem como sinônimo (SCHNEIDER, 2002).
Sartre distingue consciência de conhecimento. A consciência existe em relação a um
objeto, e o conhecimento é uma das formas possíveis de ser da consciência, mas não é a
única. A consciência pré-reflexiva, na percepção imediata, também é uma forma de
consciência e é anterior à reflexão. A percepção e a emoção são consciências autônomas em
relação à reflexão e ao conhecimento. A percepção imediata não precisa da reflexão para
perceber o objeto que se apresenta a ela. Toda consciência é consciência de alguma coisa, é
posicional de um objeto do mundo. Não consciência sem objeto, e o conhecimento é uma
das formas de relação do sujeito com o objeto:
Alcançamos assim o fundamento ontológico do
54
conhecimento, o ser primeiro ao qual todas as demais aparições aparecem, o absoluto em relação ao qual todo
fenômeno é relativo
” (SARTRE, 1997, p. 29).
Em Sartre, o ser é captado como ele é, como estrutura do ser “Em-si”, mas esse modo
de captação por si não é femeno de conhecimento. A consciência é o aspecto subjetivo
da realidade.
Existem duas regiões ontológicas que compõem a realidade: o “Em-si” e o “Para-si”,
que são dois absolutos relativos um ao outro. O “Em-si” independe do Para-si” para existir,
ele simplesmente é. O Para-si” existe pela relação estabelecida com o “Em-si”, embora seja
distinto dele:
A consciência é uma subjetividade real, e a impressão é uma plenitude subjetiva.
Mas esta subjetividade não pode sair de si para colocar um objeto transcendente
conferindo-lhe a plenitude impressionável. Assim, se quisermos, a qualquer preço,
que o ser do fenômeno dependa da consciência, será preciso que o objeto se distinga
da consciência, não pela presença, mas por sua ausência, não por sua plenitude, mas
pelo seu nada. Se o ser pertence à consciência, o objeto não é a consciência, não na
medida em que é outro ser, mas enquanto é um não-ser
(SARTRE, 1997, p.
33).
2.3 “Em-si”/“Para-si”
O ser do homem, a realidade humana, existe e se expressa dentro de uma condição do
existente dentro do universo. O homem está no mundo, no espaço que ele criar no exercício
de sua liberdade, com os limites que o cercam. Os limites são objetivos e subjetivos.
Objetivos porque, como ser individual, sempre está diante do outro e do mundo; subjetivo
porque é vivido pelo homem, que se escolhe diante da objetividade, como condição humana.
O homem é corpo e consciência. Como corpo é Em-si”, como consciência é “Para-
si”. A totalização do “Em-si”/“Para-si” define o homem em seu todo. É uma totalização
sempre em curso, pois o homem, pelo simples fato de existir, é um ser sempre em processo de
ser. Como corpo é Em-si” e como consciência é “Para-si”, porém não pode ser entendido
separadamente, pois não pode ser a consciência sem o corpo e não pode ser o corpo sem a
consciência. Corpo e consciência, objetivação e subjetivação, formam a estrutura do ser do
homem. Como consciência, o homem se escolhe numa trajetória de possibilidades através do
tempo. Como corpo, que é o que é, o tem possibilidades, a possibilidade existe como
consciência de um ser que coloca constantemente em questão seu ser. Como consciência, o
homem não pode coincidir consigo mesmo, é sempre processo, é curso. Como ser em
situação, se transcende para os possíveis, e a liberdade é possível ao ser “Para-si”. Se o
55
homem fosse “Em-si”, não haveria possibilidades, não haveria liberdade. A liberdade é o
nada que obriga o homem a se fazer em vez de ser. Não há como ser corpo, só coisa,
então a liberdade de escolha, de fazer-se como ser em processo de ser. Dentro de uma
estrutura de escolhas, com limites e possibilidades, o homem escolhe fazendo-se. Corpo e
consciência, Em-si” e Para-si”, passado e presente, coisa e consciência, colocam o homem
diante de um devir. E o “Ser-em-si”/“Para-si”, é a condição fática de estar no mundo, a forma
de ser para o outro.
O ser da consciência não coincide plenamente consigo mesmo. O ser é o que é como
ser Em-si”, é mesmo pleno. Não espaço para o nada, porém, para a consciência é o
contrário, pois não coincide consigo mesma:
A lei de ser do Para-si, como fundamento ontológico da
consciência, consiste em ser si mesmo sob a forma de presença a si
” (SARTRE, 1997, p.125).
Toda presença encerra uma separação. A presença do ser a si mesmo implica uma
separação do ser com relação a si mesmo:
A presença é uma degradação imediata da coincidência, pois
pressupõe separação
” (SARTRE, 1997, p. 126).
O que separa o sujeito dele mesmo é o nada. O “Para-si” é seu próprio nada. O ser da
consciência existe a distância de si, como presença de si, e essa distância entre consciência e
presença do ser, essa separação entre consciência e presença é o nada. Então, para existir um
“si” deve haver um nada como nadificação do idêntico. Assim,
O Para-si é o ser que se determina
a existir na medida em que não pode coincidir consigo mesmo
” (SARTRE, 1997, p. 127).
O Para-si” existe como um em outro lugar com relação a si mesmo. É um ser que
existe e ao mesmo tempo, sempre afetado pela objetividade da consciência, torna-se um ser
em aberto. “O “Em-si” é consistente, mas o “Para-sié constituído pela inconsistência, pelas
rupturas do ser que é o nada.
O nada é o ato pelo qual o ser se coloca em questão e isso é possível ao “Para-si”:
O nada é a possibilidade própria do ser e sua única possibilidade
” (SARTRE, 1997, p. 128).
O nada vem ao ser pelo ser singular na realidade humana. A realidade humana é o ser
e o nada no âmago do ser.
2.4 A faticidade do “Para-si”
O Para-sio é o que é e o que é o é, pelo fato de ser uma constante mutação, de
ser um ser e nadificação. O ser é fundamento para o nada, embora o ser o seja seu próprio
fundamento. Um ser que fosse o seu próprio fundamento não poderia sofrer mudanças, não
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poderia ser o que é e o que concebe. Assim, o Para-si” é, não sendo seu próprio fundamento,
mas é fundamento de seu próprio nada. O ser tem suas possibilidades para fora de si, é o
próprio ser que conjectura suas próprias possibilidades diante do mundo e de si mesmo. Suas
possibilidades fazem parte da continncia.
O ser da consciência, na medida em que se nadifica em “Para-si”, é contingente. O ser
se fundamenta como consciência no ato que nadifica, a consciência se fundamenta como
Para-si”, que nadificado, fundamenta a si mesmo. O nada, ou a nadificação, é o fundamento
da consciência e do Para-si”, e o “Para-sié contingente em seu próprio ser:
Assim, o Para-si
acha-se sustentado por uma perpétua contingência que ele retorna por sua conta e assimila sem poder suprimi-la
jamais
(SARTRE, 1997, p.132).
É a faticidade do “Para-si” que mostra que ele é, embora possa alcaá-la pelo
próprio “Para-si”. O Para-si”, como consciência de estar aí, é constantemente remetido a si
mesmo diante da sua faticidade, é consciência de sua faticidade. O Para-si” se fundamenta
como ser consciência e existência, mas não se fundamenta como presença. A consciência é,
o pode não ser e é responsável pelo seu ser.
De todas as negações internas, a que mais profundamente atinge o ser é a falta. A falta
o atinge o ser que é positividade, como o Em-si”, atinge o “Para-si”, a realidade humana.
A falta pressupõe uma desagregação do ser em relação à falta, e designa uma realidade que o
ser transcende, é uma alteração de projeto, ou seja, aquilo que o sujeito não é, mas busca sê-
lo, se conduzindo para fora de si para alcançá-lo. É preciso desagregar o todo para mudá-lo,
para buscar o que falta. A falta é presente porque o ser está em curso, em processo. Se o
projetar-se é constante é porque a falta também é constante. A dinâmica do “Para-si” é a
dinâmica do ser e da falta de ser, é do ser e do nada, é do ser e do constante vir-a-ser.
O desejo, na realidade humana, é uma prova da falta. Se o ser fosse o que é, não
haveria porque desejar. O desejo é a falta de completude. Somente o projeto transcende o ser
para o que ele não é. O não é, é falta do que deseja ser. Em Sartre, o desejo é falta de ser. Nas
suas próprias palavras:
Se aquilo que falta, em sua essência mesmo, acha-se tão profundamente presente no
âmago do existente, é porque o existente e o faltante são ao mesmo tempo captados
e transcendidos na unidade de uma só totalidade
(SARTRE, 1997, p.138).
O “Para-si” fundamenta um ser em processo, com uma certa maneira de ser. Nega o
ser que é em busca do que não é, no processo contínuo do existente.
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A origem do Para-si é transcendência e fundamenta-se apenas como nada. A
realidade humana transcende ao que falta. É como se o ser da realidade humana viesse ao
mundo incompleto e permanecesse incompleto por toda trajetória do existir. A realidade
humana se apresenta como ser e como falta, como ser e como nada:
A realidade humana é
perpétuo transcender para uma coincidência consigo mesma que jamais se dá
” (SARTRE, 1997, p. 140).
A realidade humana é uma consciência infeliz no sentido que não alcança seu ser
Em-si” como consciência, pois sempre se perde no ser Para-si” como infinito processo de
transcendência, de vir-a-ser do ser. O ser é ser e falta, é ser e nada, é ser e nadificação, ser e
nadificação, ininterruptamente. E esse ser é um projeto de fracasso no sentido que o pode
ser realizado, é sempre processo, porque a consciência só pode existir comprometida nesse ser
em situação.
A consciência concreta acontece em situação e é consciência singular da situação. O
Para-si” é singular, é experiência diferenciada para cada consciência. O valor singular é o
que Sartre chama “o ser do si”, o caráter singular de cada experiência, a vivência singular do
sujeito, consciência racional e emocional que faz cada experiência ser única.
O valor é incondicional e não é ser. É pela realidade humana que o valor acontece no
mundo. Porém, o valor é aquilo pelo qual um ser transcende seu ser. Todo ato valorizado traz
em si a vivência de um ser. O valor é uma unidade incondicionada dos transcenderes do ser.
Do ser e da falta, de modo muito particular do ser e de seu nada de ser.
A consciência é “revelação-revelada” do sujeito que é próprio do ser. O ser é
fundamento do sujeito e não se pode despojá-lo de seu ser. No entanto, a consciência sempre
ultrapassa o existente. É no fenônemo de ser que a consciência se revela, mas existe um ser
que fundamenta aquilo que se manifesta. O fenômeno de ser não é o ser, mas indica o ser. O
fenômeno de ser é o que se revela imediatamente à consciência. É o ser “Em-si” do fenômeno
e o ser “Para-si” da consciência. O ser é “Em-si”, a consciência é “Para-si”. O ser é o que é. O
ser da consciência, o que não é e não sendo o que é.
O Em-si” não pode derivar de um possível, o possível serve a estrutura do Para-si”.
O “Em-si” o é possível nem impossível, ele é.
A realidade humana é falta, e o que falta no “Para-sié coincidência consigo mesmo.
E a falta surge no processo de transcendência. O possível, por sua vez, surge como fundo de
nadificação do Para-si”, mas não diz respeito somente à subjetividade. O possível é uma
propriedade dos seres. Quando penso: será que meu amigo virá a este bar? Estou me referindo
a um fato, a existência do amigo. O possível poderá vir, ainda não é, mas a existência do
amigo que sustenta a possibilidade em termos de estado possível é.
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Os seres Em-si” são, mas a compreensão de um possível acontece por uma
consciência da estrutura objetiva do ser que compreende os possíveis. A relação entre o “Para-
si” e seus possíveis acontece pela transcendência que determina a falta, o que o “Para-si” não
é. Ou seja, o “Para-si” faltante é o possível:
Assim, o Para-si, na medida em que não é si mesmo, é
uma presença a si à qual falta certa presença a si, e, precisamente, é a falta desta presença que constitui o Para-
si
” (SARTRE, 1997, p. 153).
Importante dizer que o Para-sialcançado na realização do possível se constitui em
Para-si” um outro horizonte de possíveis. E isto é a estrutura do Para-si”: se constitui no
movimento, no transcender, está separado pelo que lhe falta que é seu possível próprio, e se
constitui em uma presença a certo estado do mundo. O mundo é onde o “Para-si” projeta sua
busca, ou sua coincidência com o si. O possível é o que falta ao Para-si” para ser ele próprio.
2.5 O corpo como “Para-si”
Na terceira parte de “O Ser e o Nada”, Sartre fala da dimensão ontológica do corpo. O
corpo como “Ser-para-sie o corpo como “Ser-para-outro”. A dimensão ontológica eu/outro
como realidade humana.
Os corpos são constituídos igualmente quanto a sua estrutura anatômica, com sistema
nervoso, cérebro, glândulas, óros digestivos, circulatórios, enfim, um corpo com a mesma
estrutura de outros corpos. Um corpo que é um ser Em-si” e que torna fato a existência de
um Para-si”. Meu corpo não é visto por mim tal como aparece no mundo. Posso tocá-lo,
senti-lo, mas não posso vê-lo como vejo o corpo de outro no mundo. o posso saber a exata
dimensão de meus órgãos internos porque não os vejo, olhando. O corpo é coisa entre coisas,
ou aquilo pelo qual as coisas se revelam a mim.
O corpo como Para-si” é visto pela noção de ser no mundo. A realidade humana é
Ser-aí”. Existe uma necessidade ontológica. A partir de uma consciência e da existência, o
ser, o corpo e consciência, se reconhecem no mundo objetivo, na contingência. Portanto, ser
para a realidade humana é ser no mundo.
Sartre procurou redefinir o que o os sentidos. Para ele o conceito de sensação é um
sonho de psicólogo. O que existe são os fatos, o verde que vemos, a voz que ouvimos e não
sensações subjetivas. Eu toco numa superfície gelada e sinto. Tenho diante de mim uma
presença visível. A reflexão não pode agir sobre a atividade sensorial. Não é possível ver o
olho vendo, ou tocar a o enquanto ela toca. O que está em prioridade é o objeto tocado. O
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que se revela ao sujeito são os objetos do mundo. A atividade sensorial é o contato com os
objetos e não uma sensação interna do sujeito. A mão que escreve é inapreensível enquanto
escreve. Os objetos aparecem no campo perceptivo que são uma referência. Essa referência
o diz o que o sujeito vê, mas o que ele é. Na ordem do mundo, não podemos agir sem
sermos “agidos”. Porém, se focalizo minha percepção na mão que escreve, em vez da caneta
ou as letras, minha mão passa ser o foco de referência. Portanto, o corpo é conhecido a partir
de minha relação com o mundo. Toco e sou tocado, não agimos sem sofrer as conseqüências
desse mesmo ato. O corpo não é conhecido, mas vivido. O corpo aparece na relação com o
mundo, com as coisas. O corpo manifesta a individualidade e a contingência na relação
sujeito/mundo. Nesse aspecto, o “Para-si é todo inteiro corpo e todo inteiro consciência,
porque o corpo é a condição para que a consciência seja também no mundo. o conheço
meu corpo, mas vivo meu corpo. Eu sou meu corpo e, se sou, ele não pertence aos objetos do
mundo, os quais conheço e utilizo, pois o corpo também não é transcendente. A consciência
existe seu corpo como consciência, uma vez que não há consciência sem corpo.
É necessário examinar duas questões: o corpo como ser “Para-si” e como Ser-para-
outro”. São dois níveis diferentes do corpo e incomunicáveis, mas são também irredutíveis um
ao outro. O “Para-si” é todo inteiro, consciência, o “Ser-para-outro” é todo inteiro corpo.
Vejamos em primeiro lugar o corpo como “Ser-para-si”: a faticidade. Sabemos que o
Para-si” é relação com o mundo e, negando-se como ser, faz aparecer um mundo. É pela
realidade humana que o sujeito interage com o mundo. Ser para a realidade humana é Ser-aí”
no mundo em quaisquer circunstâncias. A necessidade existe entre duas continncias: de um
lado, o sujeito está no mundo como “Ser-aí” e, isso é contingência, porque o sujeito o é
fundamento de seu ser. Porém, está comprometido num ponto do mundo objetivo, excluindo
os outros e isto também é contingente. uma relação homem/mundo que é a faticidade do
Para-si”. Não há como se relacionar na totalidade, a intenção faz selecionar. O “Para-si” vive
e se sustenta na continncia. Nessa dialética o “Para-sinão se encontra em parte alguma,
porque a faticidade o transcende, e o nada aparece como tendo que ser. Nessa continncia, o
homem aparece como uma totalidade responsável por seu ser e como uma totalidade
injustificável pela condição doPara-si”. Existe uma ordem que come a estrutura do
sujeito, mas é contingente. Essa ordem é o corpo e o “Para-si”. Então o corpo é uma forma
contingente que o sujeito assume como sua expressão na continncia. Nesse aspecto o corpo
é um “Para-si”, ou viabiliza a existência do Para-sicomo ser contingente entre outros seres
contingentes. O corpo é a situação que permite a existência do “Para-si”, com a diferença que
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o Para-sinão pode ser visto no mundo, como espaço, expressão, é o corpo que torna visível
o sujeito na continncia. Por isso é “Em-si” e é uma característica necessária do Para-si”.
Corpo e “Para-si” são distintos, mas oPara-si” só aparece no mundo como um
escapar nadificador na expressão de um corpo. Então é da natureza do Para-sique ele seja
corpo. O corpo também expressa a continncia. Se o Para-sié individualmente num corpo
é por isso que, quando o corpo morre, o “Para-sitambém desaparece.
O corpo é co-extensivo ao mundo por meio das coisas, ao mesmo tempo em que
garante diante do mundo a existência de um ser singular. É pelo corpo que surgimos no
mundo. Para Sartre, são as coisas do mundo que, em sua aparição originária, indicam nosso
corpo e não o corpo primeiro que apreende depois as coisas do mundo.
O corpo manifesta uma individualidade e a contingência da relação originária com as
coisas, com o mundo. O corpo é um instrumento no meio do mundo pelo qual é possível a
ação de um “Para-si”. Somente em um mundo pode haver um corpo, e a relão corpo/mundo
faz com que o mundo exista para o homem como resultado dessa relação. Não se fala aqui de
depenncia homem/mundo, mas de relação, pois o mundo existe sem o corpo do homem,
o dependência. O corpo está no meio do mundo e se faz na relação com o mundo num
perpétuo transcender. O corpo é perpetuamente transcendido. O corpo como transcendido é o
passado, porque o Para-sié o centro de referência transcendido no corpo. Num projeto do
Para-si” ou numa percepção, o corpo está como o instrumento, o passado imediato que
aflora no presente que foge. Esse transcendido está sempre submetido a novos transcenderes,
que é uma necessidade contingente do homem como corpo e Para-si”. Ter um corpo, para o
Para-si”, é ser fundamento de seu próprio nada, mas não fundamento de seu ser. O “Para-si”
é aquilo que perpetuamente lhe escapa, o ser “Para-si” é transcender o mundo, é
comprometer-se nele para dele emergir. O corpo é a condição de possibilidade da consciência
como consciência do mundo, como possibilidade de fazer um projeto transcendente rumo ao
futuro. Assim, o mundo é para todos, contingente, não importam as condições de seu surgir no
mundo. O que faz diferença é o lugar do mundo em que o sujeito nasce com tais ou quais
possibilidades dentro de cada contingência. O sujeito não pode captar a contingência como
tal, somos escolha, ser é escolher. Essas limitações são escolha de liberdade, sem escolha não
liberdade. O corpo faz da consciência, consciência do mundo, mas uma consciência dentro
de um processo de liberdade. O corpo como “Em-si” torna possível oPara-si”, que é
vivenciado pelo próprio corpo, pela consciência, pelos sentidos, pela possibilidade de
estabelecer relação com as coisas, com o mundo, vivenciando-o e transcendendo-o.
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O corpo, para o sujeito mesmo, não é objeto do mundo dos quais manuseia. O corpo é,
para o próprio sujeito, inapreensível. A consciência existe como seu corpo. A relação entre
corpo e coisa é uma relação objetiva e a relação do corpo com a consciência é uma relação
existencial. O corpo é a totalidade das relações e significações que estabelece com o mundo.
A realidade humana é Para-si”, mas existem outros tipos de consciência. Por
exemplo, o sentimento de vergonha é um tipo de consciência “Não-posicional (de) si” e é
acessível à reflexão. O sentimento de vergonha é apreendido pelo sujeito pela estrutura
intencional de si. Na vergonha, o sujeito descobre uma característica sua. A vergonha aparece
no plano reflexivo, embora não seja somente um fenômeno de reflexão e é vivida diante de
alguém que censura, que adverte, que faz sentir a vivência da vergonha. Sem o outro, isso o
seria possível. No campo da reflexão, existe a consciência do sujeito. O sentimento de
vergonha o vem da atitude reflexiva, mas do valor da atitude diante do outro. O sujeito tem
vergonha de aparecer de tal maneira ao outro. É como objeto que o sujeito aparece ao outro.
Sentir vergonha é reconhecer o valor do objeto indesejável que sou diante do outro, o
sentimento de vergonha é coletivo.
Sentir vergonha de si diante do outro são duas estruturas: um Para-si” remete a um
outro “Para-sie a relação para ambos é um “Ser-para-outro”. A relação do corpo do sujeito
ao corpo do outro é uma relação de exterioridade.
O corpo do outro revela uma consciência de meu ato de vergonha vivido
externamente. O outro, na verdade, funciona como um eu que não sou eu. Existe uma negação
nessa estrutura, um nada de separação entre o eu e o outro. Como essência primeira da relação
existe originalmente um nada. Uma relação entre dois corpos que não têm relação entre eles
como objetos do mundo. Portanto, o único meio pelo qual um corpo pode se apresentar ao
outro é pela consciência.
Como primeira dimensão do ser, é válido dizer: Eu existo meu corpo. Como segunda
dimensão, meu corpo é conhecido pelo outro, ou outros. Sou para o outro um objeto assim
como o outro é um objeto para mim. Na terceira dimensão, Eu existo para mim como sou
conhecido pelo outro. Sob o olhar do outro, sou transcendência transcendida. No encontro
com o outro, é encontro de duas transcendências transcendidas. Existo em minha contingência
e transcendo rumo a meus possíveis. Meu corpo é vivenciado por mim diante do outro, numa
contingência que me escapa. Portanto, sou transcendência transcendida e transcendência
transcendente.
O corpo tem para mim o mesmo grau de realidade do que o corpo tem para o outro.
Comunico-me, sinto-me, identifico-me, porém, de forma inapreensível. Vale dizer: o outro
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revela-nos, por sua vez, o corpo existido, como o passado todo entra na comunicação com o
outro. Nosso ser se revela em todos os aspectos e nós nomeamos esse corpo tal como ele é
para nós. Por sua vez, o outro, diante de mim, também faz o mesmo papel, se revelando. Eu
sou objeto do mundo para o outro, o outro é objeto do mundo para mim, mas eu não sou
objeto de mim mesmo. Ambos, como objetividade, existem previamente: eis a comunicação
numa troca de linguagem. A expressão e a compreensão que o outro tem de mim faz de meu
corpo objeto para mim. É o outro que me como objeto o que sou para ele. A consciência
reflexiva faz desse processo uma estrutura de não passividade. É essa estrutura que propicia a
estrutura psíquica. Até que ponto o sujeito consegue ser ativo nessa relação do fazer-se? Pelo
processo de liberdade, o sujeito transcende a faticidade rumo a seus significantes próprios. O
outro pode trazer boas ou más informações para meu corpo, para meu ser. É a partir dessa
relação “Eu-outroque se constroem psiquismos prazerosos ou doentes, uma vez que é por
meio dos conceitos do outro que conheço meu corpo, embora sob o crivo de meu Para-si”. O
corpo já significado serve de núcleo aos novos significantes, um núcleo, às vezes, obscuro.
Como por exemplo: o mal padecido como psiquismo gera um problema psicossomático. A
doença nesse caso, é um mal que escapa ao próprio sujeito. Quando o médico um
diagnóstico de ulceração do estômago, por exemplo, obscurece ainda mais a doença psíquica.
A dor do estômago, ou outros sintomas psicossomáticos, passam a ser objetos do médico que
diagnosticou, e o sujeito doente, fazendo uso de má-fé, pode tornar o diagnóstico do médico
um subterfúgio das verdadeiras causas do adoecer. A cumplicidade do doente com o dico
obscurece ainda mais a realidade do adoecer, que pode ser mais ou menos obscura ao doente.
O corpo “agido” e percebido é o que é dado na percepção, mas a reflexão pode mudar,
nadificar os rumos do agido”, do psiquismo, com novas significações. Se podemos adotar
para o nosso corpo o ponto de vista do outro, isso significa que a natureza do nosso corpo nos
escapa inteiramente. O homem é um animal que passa longos anos de sua infância sem poder
de reflexão. Isso faz com que o outro tenha muito poder para aliená-lo, construí-lo a sua
maneira. Eis a complexidade de uma identidade, de uma individualidade. Diz Sartre que:
É por uma série de operações psicológicas e de síntese de identificações e
reconhecimento que a criança chegará a estabelecer tabelas de referências entre o
corpo-existido e o corpo-visto. Ainda é preciso que tenha anteriormente iniciado
seu aprendizado do corpo do outro. Assim, a percepção de meu corpo situa-se,
cronologicamente, depois da percepção do corpo do outro
(SARTRE, 1997, p.
449).
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Meu corpo é um instrumento que me revela, que me apresenta como Em-si” e “Para-
si”. Meu corpo é minha faticidade no meio do mundo e minha possibilidade de transcendê-la.
Apesar de tudo isso meu corpo é objeto único no mundo. Uma singularidade entre outros
objetos.
Nas relações concretas de nossa existência no meio do mundo, vemos que o corpo
constitui a significação e os limites dessas relações. É o corpo-em-situação que capta a
transcendência transcendida” do outro, e é como corpo-em-situaçãoque me experimento e
me alieno diante do outro. Nosso corpo é. O corpo representa as atitudes do Para-si” diante
do outro. “Para-si-para-outro”, “Em-si”, é a relação do Em-si” e Para-si” diante do outro.
vimos que o “Para-si” nadifica o “Em-si” e se temporaliza como fuga para. Com isso,
transcende o ser dado na busca de ser seu próprio fundamento, o que, porém, não ocorre. O
Para-si” procura o Em-si” ao mesmo tempo em que foge dele.
O “Para-si” é fundamento de toda
negatividade e toda relação; ele é a relação
(SARTRE, 1997, p. 452). Diante do outro, sou o que
sou, embora como liberdade de meu ser. Não posso ter domínio sobre o outro, que
irremediavelmente o ser que sou. O outro que me vê, sabe quem sou. Sendo assim, o
sentido de meu ser está no mundo, fora de mim. Dessa forma, o outro leva vantagem sobre o
conhecimento de meu ser. O que posso fazer é, por meio do “Para-si’ e do processo de
liberdade, negar esse ser que é confirmado de fora pelo outro. Na medida em que estou em
processo de relação com o outro, confirmo que sou projeto de objetivação e de assimilação do
outro e sou também a experiência do outro.
Nas relações eu/outro acontece uma reciprocidade de direito: se tento livrar-me do
domínio do outro, o outro tenta livrar-se do meu. No processo de liberdade, que é mútuo, o
outro é um problema ou mesmo um conflito. O outro que me olha me possui, detém o segredo
do que sou. No outro me reconheço objetivamente. Meu “Ser-para-outro” é algo dado, porém
contingente. Nessa dupla transcendência eu/outro, cada um se fundamenta em completa
liberdade, sou projeto de recuperação de meu ser que é fundamentado na liberdade do outro.
Nessa relação, afirmo o outro e nego que eu seja o outro. Se assumo o ponto de vista do outro,
confirmo sua alteridade. Porém, a unidade com o outro é irrealizável.
É fato originário que sou a experiência do outro. O surgimento de meu ser é
surgimento da presença de outro. Na relação eu/outro não dialética. Existe um círculo
vicioso, uma contradição, e jamais podemos sair desse círculo vicioso. As atitudes funcionam
em círculo, se produzem e se destroem numa estrutura existencial. Por ser uma relação de dois
corpos vividos, significados, um se revela ao outro, ao mesmo tempo que um aliena o outro,
apesar de confirmar. Eu nego o outro para que o outro se identifique comigo e para que eu
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possa negar que eu sou ele, me afirmando. A identificação tem que partir do outro para mim.
Essa relação viciosa acontece, porém, dos dois lados. Eis os conflitos: enquanto me
experimento como objeto para o outro, o outro me apreende como objeto do mundo e não
projeto que eu me identifique com ele. Então, isso quer dizer que o “Ser-para-outro” traz
dupla negação interna. Os dois seres, “eu/outro”, colocando-se na condição de eu, agem
negando que o outro transcende, mas ambos são transcendentes e interferem na liberdade do
outro. Como atrelar um “Para-si” a outro? Isso é impossível pela natureza do “Para-si”. A
tentativa passa pelo corpo significado, porém, fracassa também pela exisncia do “Para-si”
sobre o “Em-si”. É pelo processo de nadificação que a consciência forja ininterruptamente
sobre o dado já significado.
Para Sartre, o amor, por exemplo, é um ideal irrealizável, pois o sujeito que ama faz
um projeto que inclui o outro, e o outro não pode assimilar esse projeto, pois tem o próprio.
No ideal do amor, os projetos deveriam ser cumplicidade de empreendimentos, de forma que
o projeto de um o colocasse em conexão direta com a liberdade do outro. Como duas
liberdades implicam dois “Para-si”, o amor pode ser uma relação de conflitos, porque eu
existo pela liberdade do outro, coloco em risco minha liberdade e não tenho segurança
alguma. Este é um projeto irresponsável para a própria liberdade, pois a compromete em
diferentes maneiras de ser. O único caminho de recuperação dessa liberdade é fazer um
projeto para reduzir a liberdade do outro à minha, mas para isso seria necessário tomar posse
da consciência do outro, e quem ama toma posse, nesse caso, do outro em benefício de si
próprio, não em benefício do outro. É da liberdade do outro que é preciso se apoderar. O
tirano busca a obediência dos subordinados pelo medo e contenta-se com isso porque seu
projeto é de ter domínio sobre o outro. Amor que não é doença não pode querer a servidão do
amado. A servidão do amado serve ao opressor que não quer o amado como um objeto
apenas, mas quer possuir a liberdade do outro. Mas existem projetos de submissão, e aceitar o
cativeiro pode levar a uma relação psicológica doente ou mesmo a uma forma de loucura.
Quem está doente de servidão fez e cumpre automaticamente seu projeto de alienação. A
servidão voluntária é uma liberdade que assim se escolheu. Querer ser amado e exigir do
outro que compartilhe a mesma faticidade é constranger o outro e lhe tirar sua condição de
liberdade. Um “Para-si” não pode se submeter às leis de outro “Para-si”, salvo num projeto de
alienação voluntária que também é um projeto e uma escolha. O ser submisso faz tudo pelo
outro, mas não se encontra com ele jamais, porque se encontrasse o outro, tal qual, estaria
desfeita toda a trama.
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Diz Sartre, ou com ele podemos entender, que o problema da linguagem é exatamente
como o problema dos corpos: o sentido de nossas expressões sempre nos escapa, não sabemos
exatamente se significamos o que de fato queremos significar. Não podemos ler o pensamento
do outro, isso é inconcebível:
“[...] a palavra é sagrada quando sou Eu que a utilizo, e mágica quando o
outro a escuta. Não posso ouvir-me falar nem ver-me sorrir
” (SARTRE, 1997, p. 466).
O “Para-si” nos coloca como seres transcendentes, dentro de um projeto de liberdade
que se ressignifica ininterruptamente e nos torna seres, de certa forma, inapreensíveis.
O ideal amoroso é um projeto de liberdade alienado, ou um ideal contraditório do
Para-si’, em que um se aliena na medida exata em que exige a alienação do outro. A
subjetividade por si só é injustifivel.
Uma outra forma de postular a relação eu/outro” seria o projeto de ser absorvido pelo
outro se perdendo em sua subjetividade (do outro). Isso caracterizaria a atitude masoquista, na
qual minha própria liberdade nega minha subjetividade.
No amor, o sujeito constrói o cativeiro para a liberdade do outro. No masoquismo, a
liberdade do outro é querida como livre, e o cativeiro é para o próprio sujeito. O masoquista
projeta ser apenas um objeto do outro, mas o sujeito não deixa de ter consciência do fato. Por
isso, tanto o masoquismo como o sadismo produzem culpabilidade. O sujeito faz o projeto de
ser objeto e se culpa por isso, sabe que consente na sua alienação pelo outro, reduzindo seu
ser a um Em-si” e abdicando da própria subjetividade. O masoquismo é uma atitude de
fracasso de si mesmo, pelo fato de o sujeito se colocar em atitudes ou posturas ridículas.
Permite ser utilizado como um ser instrumento inanimado e condena-se à passividade para o
outro e para si mesmo.
O fracasso na atitude de alienar o outro pode levar a uma outra atitude, de ódio, de
indiferença. No ódio, o sujeito diz: na impossibilidade de me identificar com a consciência do
outro, eu o odeio. Então, fazendo uso de sua própria liberdade, parte para o ataque da
liberdade alheia. Portanto, ocorre um confronto entre duas liberdades.
O sadismo é um esforço para encarnar o outro pela violência, e esta encarnação “a
força” deve ser apropriação e utilização do outro. O sádico procura tal como o
desejo – despir o outro dos atos que o disfarçam. Procura descobrir a carne por baixo
da ação
(SARTRE, 1997, p. 496).
O sádico se realiza na dor do outro. Nesse processo de sadismo, entram em ação a
consciência reflexiva e a consciência irrefletida, pela faticidade da primeira (consciência
reflexiva) que leva à segunda (consciência irrefletida). O corpo do “Para-si” torturador é um
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instrumento para provocar a dor do outro. O “Para-sitem como único objetivo torturar. É o
corpo psíquico como transcendência transcendida que es em ão. O sádico age à força
sobre o outro, faz do outro instrumento em suas mãos, em suma, não permite a liberdade do
outro. O sádico encarna o corpo do outro como seu instrumento. A faticidade do outro tem
que ser suprimida, a liberdade tem que ser destruída. O sádico, inevitavelmente, expõe muito
sua maldade, apesar de tentar camufla-la. O sádico exige a humilhação do outro pela tortura.
É o domínio do outro pela força. Vimos anteriormente que no amor o sujeito não exige a
abolição da liberdade do outro, mas sua servidão. No sadismo, o sujeito não procura suprimir
a liberdade do ser torturado, mas obriga-o a identificar-se livremente com a carne torturada.
Quando a tima assume o papel de se humilhar, o sádico tem seu real momento de prazer.
Assim, tanto o sadismo como o masoquismo são dois graves obstáculos ao desejo prazeroso.
O sádico descobre seu erro quando a tima experimenta a alienação de seu ser na
liberdade do outro. O sádico não pode agir sobre a liberdade do outro, é um jogo que está
fadado a seu próprio fracasso, como liberdade. Cada “Para-si” tem direito a uma liberdade
absoluta. Tanto o torturador quanto o torturado pertencem a esse absoluto: a liberdade tem
muitos limites relativos, mas não são absolutos.
Seja no desejo sexual ou noutras formas de desejo, o sujeito tem um corpo e o
outro, que pelo desejo que está no mundo, faz o sujeito reagir de muitas maneiras, seja pelo
amor, ódio ou sadismo, que são expressões transcendentes do sujeito psíquico na
contingência. A sexualidade não está à parte do contexto global do sujeito, mas surge como
uma de suas formas de expressão diante de suas relações no mundo.
Para Sartre, o ódio é um projeto de fracasso, pois tenta suprimir a liberdade do outro.
Mesmo que elimine o outro ainda sobrará a verdade de que o outro existiu. Ser para o outro é
ser para o mundo e para si mesmo, o que mostra que cada Para-si”, irremediavelmente, é
responsável por seus atos. Com um futuro ressignificado ou não, tem o valor ético de uma
experiência. é possível compreender um sujeito com sua realidade global, ressignificada
ou o. Cada “Para-si” é em situação e em liberdade, um direito e um dever absoluto e
intransferível. Cada projeto conserva, independentemente de qual seja, a autoria de seu
criador. Isso é uma expressão de liberdade.
As atitudes discutidas até aqui mostram situações de conflito nas quais não
flexibilidade e não dialética nas relações. Entretanto, após a descrição das relações de
conflito “eu/outro”, vamos abordar agora a relação “ser-com-o-outro, o “nós”, relações
concretas de comunidade com os outros, relações dialéticas. Sartre mostra que “nós” pode ser
sujeito. Essa relação acontece entre transcendências transcendentes e não entre
67
transcendências transcendidas. A palavra “nós” “[...]
denota um conceito que agrupa uma infinita
variedade de experiência possíveis
(SARTRE, 1997, p. 512). No “nós” encontramos
subjetividades transcendentes, embora experimentadas por uma consciência particular.
O ser
para-o-outro precede e fundamenta a ser-com-o-outro
(SARTRE, 1997, p. 514). Com o “nós” temos
duas formas de experiência: a do “ser-olhador” e a do “ser-visto”.
Cada ser no mundo é um Para-si”, e, nas relações, temos duas existências, ou seja,
dois “Para-sisou duas liberdades. A relação “eu/outro” é uma mediação entre o sujeito e o
mundo e também entre os sujeitos. vimos no primeiro capítulo que, como Sartre concebe o
ego, como parte da exterioridade, refuta o solipsismo, em que tudo parte do eu, da
interioridade. O outro não é uma representação, mas uma relação concreta do mundo e no
mundo. Um confere ao outro qualidades objetivas. As relações acontecem de sujeito para
sujeito, o apenas de “Em-si” para “Em-si”. O sujeito é corpo e consciência no mundo, é
transcendência transcendida e transcendência transcendente.
Nas relações dialéticas existe uma troca entre os sujeitos, uma flexibilidade em que
todos são considerados processo de liberdade. Numa sociedade alienante, busca-se eliminar a
dialética. Para o ditador, o outro não é sujeito, é sempre outro. Portanto, existe na estrutura de
relação dialética o “nós”, em que há troca, em que a reciprocidade é possível, em que as
relações de conflito são secundárias e o outro é reconhecido como processo de liberdade em
curso. Um reconhece a liberdade do outro, sem um alienar o outro, a não ser a alienação que a
própria estrutura de relão impõe como mediação de espaços mútuos. A relação dialética
exige o “nós” o “ser-com-o-outro”. É um processo de transcendência transcendente entre
todos, o reconhecimento de todos os “Para-sis” e seus processos de liberdade, nos quais todos
são sujeitos. É na relação com os outros que acontece a experiência psicológica. A existência
do outro é um limite a minha liberdade, seja numa relação de alienação ou numa relação
dialética, conforme se realizar minha escolha. O sujeito sempre tem o outro como um limite,
como um empecilho à liberdade. O sujeito é um ser singular que vive em sociedade. O projeto
fundamental do sujeito é resultado dessa relação dialética entre os outros, com o mundo e suas
escolhas. O social é feito do entrelaçamento de projetos singulares. Um grupo não alienante é
feito de vários projetos singulares comuns, permitindo que todos tenham preservado o direito
à expressão e liberdade, no qual todos tenham direito ao ser como “Para-si”.
A realidade humana é dialética, portanto, o processo de formação da personalidade do
sujeito também o é. A interiorização da exterioridade resulta na constituição da personalidade
do sujeito. A personalidade é o resultado do processo de relações que o sujeito viveu e vive
dentro da objetividade concreta.
68
O sujeito nasce corpo e consciência, condições físicas e consciência que permitem
estabelecer relações com o mundo. A personalidade não é algo dado ao nascer, pois não há
essência a priori. Esta será constrda no seu processo de relação com o mundo. O homem é
resultado de sua hisria e é um ser sempre em questão, pois, enquanto existir, está se fazendo
junto ao mundo. O homem existe e depois essencializa-se. Corpo e consciência se significam
no mundo como singularidade única, como serEm-si”, “Para-si”, como transcendência
transcendida, como transcendência transcendente na dialética, no “nós”. Os “Para-sis” no
“nós” adquirem possibilidade de relação dialética, coisa que não era possível, como vimos, na
relação “eu/outro”. Somente nas relações em que aparecem o “nós”, os “Para-sis” livres e em
igualdade de condições podem propiciar relações dialéticas. Não é um círculo vicioso como
nas relações de conflitos “eu/outro”, mas uma relação de todos os “Para-sis”, de todas as
liberdades em igualdade de condições.
2.6 O “Em-si” e o “Para-si” podem sugerir um dualismo?
Na conclusão de “O Ser e o Nada” Sartre faz um questionamento sobre sua própria
ontologia. O “Em-si” e “Para-si” podem ser interpretados como uma dualidade? Um dualismo
que Sartre em toda sua obra refutou? O ser Em-si” é objeto da consciência, a consciência é
um apelo ao ser. Se não vínculo entre o “Em-si” e “Para-si”, então haveria uma dualidade.
Se o “Em-si” é o que é, e o “Para-sié o que não é e não é o que é, então é um dualismo? Os
dois seres “Em-si” e “Para-si” seriam incomunicáveis?
O Para-sise constitui como nadificação do ser. Nadificação do ser singular e não de
um ser em geral. Assim sendo, não cabe questionar como o “Para-sipode estar unido ao
Em-si”, porque o “Para-sinão é uma substância autônoma do “Em-si”. A consciência não é
nada, senão como subjetividade que se revela a alguma coisa do mundo, “[...]
e só uma
consciência pode constituir-se como negação interna
” (SARTRE, 1997, p. 754). O “Para-si” não existe
sem o “Em-si”, só pode ser concebido como relativo a um Em-si”, que, afetado pela
faticidade, é um absoluto. O “Para-sise fundamenta perpetuamente como um nada de ser. É
um absoluto não substancial, portanto, relativo a um “Em-si”. Sua realidade é puramente
interrogativa, está sempre em questão e está sempre separado pelo seu nada como alteridade.
Existe uma prioridade do ser sobre o nada.
69
Há ser porque o “Para-si” é tal que faz com que haja ser. O caráter de fenômeno vem ao ser pelo
“Para-si”
(SARTRE, 1997, p. 755).
Essa é uma questão que se coloca como ontológica, não metafísica. A ontologia não
pode responder o porquê do próprio ser, mas observar que o nada é tendo sido pelo Em-si” e
o é um vazio sem significação (SARTRE, 1997). O sentido do nada é fundamentar o ser. O
Para-si” sem o Em-si” seria uma espécie de abstração. O “Para-sinão pode existir sem o
Em-si”, assim como não se pode entender cor sem forma (SARTRE, 1997).
Para essa ontologia, o nada é tendo sido pelo Em-si” e não constitui um vazio sem
significações. O nada é tendo sido para fundamentar o ser. É pelo Para-si” que acontece a
possibilidade de um fundamento que vem ao mundo. A ontologia declara que tudo se passa
como se o ser “Em-si”, como projeto de se fundamentar a si mesmo, se concedesse a
nadificação do “Para-si”. O “Para-si” aparece como uma nadificação do “Em-si”, colocando-o
em desordem. O “Para-si’ é capaz de colocar questões, pois ele mesmo está sempre em
questão e seu ser jamais é dado, somente é interrogado. O problema ontológico é a prioridade
do Em-si” sobre o Para-si”. O ser é sem causa e sem necessidade, ele é. A questão do ser
está no terreno da ontologia, como “Em-si”, não cabe aqui um problema metafísico. Todas as
interrogações são posteriores ao ser. A definição do ser está em sua contingência originária.
Porém, como responder à pergunta sobre a origem do ser do “Para-si” e do mundo, suas
existências como tal? Essa questão não pode ser respondida pela ontologia, nem o Para-si”
interrogar-se sobre sua própria origem. Mas o “Para-si” pode voltar-se para sua própria
origem, afinal, ele é uma interrogação e um porquê. Diz Sartre que:
A esta questão a ontologia não poderia responder, pois se trata aqui de explicar um
acontecimento e não de descrever as estruturas de um ser. Quando muito, a
ontologia pode observar que o nada é tendo sido pelo “Em-si” o constitui um
simples vazio desprovido de significação. O sentido do nada da nadificação consiste
em ser tendo sido para fundamentar o ser
(SARTRE, 1997, p. 756).
A ontologia nos diz que o ser ‘Em-si” não pode se fundamentar, a menos que se
fizesse consciência. A consciência é projeto de se fundamentar, de chegar ao ser “Em-si-Para-
si” ou Em-si-causa-de-si”. A ontologia limita-se ao fato de que tudo se passa como se o
Em-si”, num projeto de se fundamentar, se concedesse a nadificação do “Para-si(SARTRE,
1997). A temporalidade vem ao ser pelo “Para-si” e não faz sentido perguntar o que era o ser
antes do surgimento do Para-si”. A existência do Em-si” é um acontecimento absoluto. O
Para-si” é nadificado em unidade a priori com o “Em-si”. O “Para-si” é um nada e nada
70
fora do “Em-si”, salvo um reflexo desse nada. Para um existente ser uma totalidade é preciso
que as partes de sua estrutura sejam mantidas como unitárias. Então, se considerarmos a
consciência como separada do Em-si”, ela é apenas uma abstração. O próprio Em-si” não
precisa da consciência para existir, ele é.
Tudo se passa, portanto, como se o “Em-si” e o “Para-si se apresentassem em
estado de desintegração em relação a uma ntese ideal. Não que a integração jamais
tenha tido lugar algum dia, mas precisamente o contrário, porque é sempre indicada
e sempre impossível. É o perpétuo fracasso que explica a indissolubilidade do “Em-
si” e do “Para-si” e, ao mesmo tempo, sua relativa independência
(SARTRE,
1997, p. 759).
A consciência é pura aparência, no sentido que ela existe à medida que aparece, é um
vazio total como mero existir. Nessa ontologia, o existencialismo explica os seres como
fenômenos, com relação ao “Em-si” e “Para-si”, mas somente como fenômeno da
objetividade concreta, no mundo. Diz Sartre que:
“[...] compete a metafísica formar as hipóteses que
irão permitir conceber esse processo como o acontecimento absoluto que vem coroar a aventura individual que é
a existência do ser
(SARTRE, 1997, p. 757).
2.7 O Nada
A consciência não coincide consigo mesma, ela é o que não é e não é o que é, no
sentido de que a consciência é sempre consciência de alguma coisa que ela não é. A
consciência é o nada, o não-ser” que surge no mundo (SARTRE, 1997).
Diante da dúvida, da interrogação, do questionamento, pode aparecer um “sim” ou um
“não” como resposta, como resultado da interrogação sobre um ser. O “não-ser” é um
componente do real. Se algo é, ao mesmo tempo não é outra coisa. Um homem é um homem,
ao mesmo tempo em que o é uma mulher.
Sartre diz que
se a negação não existisse, nenhuma pergunta poderia ser formulada, sequer, em
particular, a do ser
(SARTRE, 1997, p. 64). A negação nos remete ao nada como seu
fundamento. Para que possamos interrogar sobre o ser é preciso que o nada se de alguma
maneira. Assim, na estrutura ontológica do nada, encontramos a origem da negação.
O homem e o mundo são duas realidades apreensíveis objetivamente. O homem que é
e se apreende como ser no mundo, e como ser, está diante de uma interrogação: como ser
diante do mundo? Essa pergunta formulada pelo sujeito é objetiva e ao mesmo tempo, dotada
71
de uma significação. Se a pergunta foi formulada, existem dois fatos objetivos: o homem e o
mundo. Assim, a interrogação pressupõe dois seres, o ser que interroga e outro ser pelo qual é
interrogado. O ser consciência interroga outro ser sobre suas maneiras de ser. A interrogação
pressupõe uma resposta que vem do ser interrogado. E a resposta pode ser um “simou um
“não”, que corresponde à afirmação ou à negação.
Uma interrogação sempre pode ser respondida com um “nada”, “ninguém”, ou
“nunca”. É o próprio ser que revela a negação. O interrogador está sempre diante da
possibilidade objetiva de uma resposta negativa. Quem interroga está diante de algo
indeterminado, pode receber uma resposta afirmativa ou negativa. As interrogações são
sempre rodeadas de nada.
O ser é isso, e fora disso, nada
” (SARTRE, 1997, p. 46). Então, o “não-
ser” é um componente do real, o o-ser” do sujeito e o “não-ser” do objeto transcendente.
O “não-ser” surge da interrogação humana que busca uma resposta, de uma relação do
sujeito com o mundo, mas não é uma faculdade do juízo, e sim uma conduta interrogativa
diante da objetividade. Uma relação do ser com o “não-ser” numa transcendência original do
ser com o ser. O “não-ser” não se origina na faculdade do juízo que constata a negação
sustentada no “não-ser”. Ou seja, a negação existe independentemente do juízo. O fato, “não-
ser”, é constatado objetivamente pela consciência. Negação é não existência de ser. É partindo
da existência de ser, ou de um modo de ser, que, sendo colocado, pode ser confirmado ou
negado. A consciência não produz a negação, ela pode apenas ser consciência da negação,
consciência do fato, ou do ser o existente.
A condição necessária para que seja possível dizer não é que oo-ser seja presença perpétua, em nós
e fora de nós. É que o nada infeste o ser
(SARTRE, 1997, p. 52). O ser e o nada são dois
componentes necessários do real. Diante de muitas atitudes na realidade humana, o sujeito se
depara com o nada. O ser da realidade humana surge diante do mundo pela sua
transcendência. A aparição do “Si-mesmo” no mundo é uma realidade humana no nada.
Somente no nada pode transcender-se o ser. O nada é negação de ser, ele está na origem do
juízo negativo, na ação negativa. Para que uma ação interrogativa exista, o nada tem que estar
presente. Para Sartre, o nada está no miolo do ser. Porém, o “Ser-em-si” com plena
positividade não contém o nada.
Não é o nada que contém a propriedade de se nadificar, o ser pode se nadificar. É
preciso ser para nadificar. O nada não é, assim não se nadifica, é nadificado. Então, para
existir um nada deve antes existir um ser que não pode ser o "Ser-em-si", pois o “Ser-em-si”
o pode se nadificar. Deve ser um ser por meio do qual o nada venha às coisas. Diz Sartre
que:
72
O ser pelo qual o nada vem ao mundo deve ser seu próprio nada. E por isso deve-se
entender não um ato nadificador, que requisesse por sua vez um fundamento no ser,
e sim uma característica ontológica do ser requerido
(SARTRE, 1997, p. 65).
Mas, então, em que rego do ser está seu próprio nada? Interrogamos um ser, ou uma
maneira de ser, e fica em aberto a possibilidade de se revelar como nada. A resposta pode ser
um ser ou um nada. Em primeiro lugar, o interrogador nadifica em relação a si o interrogado,
que pode ser um ser ou um “não-ser”. A possibilidade de negação introduz a negatividade, e
assim o nada vem ao mundo e às coisas. Portanto, o homem é um ser que faz surgir o nada no
mundo, e afeta a si mesmo de “não-ser”.
O ser pode colocar-se fora do ser. A realidade humana não pode nadificar o ser na
condição de Ser-em-si”, pode nadificar sua relação com o ser. O ser do homem
condiciona a aparição do nada, ser que surgiu no mundo como liberdade de ser e que
condiciona a liberdade de ser ao surgimento do nada.
O ser humano é seu ser e pode desgarrar-se de seu ser num recuo nadificador. É uma
relação consigo mesmo ao longo de um processo temporal em que se desenvolve, concretiza
sua individualidade, sua subjetividade. Vemos então que o problema do nada deve ser tratado
no plano da consciência diante do real. É a consciência que pode constatar a positividade ou
negatividade do ser existente ou do ser ausente, de sua existência ou de seu nada, sendo que o
processo nadificador sempre está no ser mesmo. Porém, levando em conta que a consciência é
consciência da objetividade e que não há nada dentro da consciência, ela é translúcida.
Num processo psíquico de nadificação, existe uma ruptura entre o passado psíquico e
o presente, que é o nada. O desgarramento da consciência para que algo se nadifique é a
condição de negação. O que separa o anterior do posterior é precisamente o nada. A
nadificação faz com que o indivíduo se modifique, com consciência do que modificou, mas
que, a partir de então, vai se apresentar ao mundo como um ser modificado. O que foi
nadificado deixa de existir. O ser pela consciência se relaciona com seu passado nadificado,
separado dele como negação de ser, separado por um nada. Continuamente, a consciência
realiza esse processo de nadificação de seu passado.
O homem como ser consciente que é está diante de seu passado como Em-si” ou
como essência, e diante de seu futuro. Pela liberdade o homem se constata dentro de um
processo de existir, colocando-se em questão como ser. A angústia de ser um ser em processo
permanente de ser é a liberdade de estar submerso no ser e no nada. A consciência de ser é o
ser da consciência. A consciência que se angustia porque é seu próprio devir, porque não é
agora o que será depois. É um devir a maneira de não sê-lo. Essa é uma ruptura permanente
73
com o determinismo, estar sempre diante do nada que separa o ser de si mesmo. Não existem
conteúdos na consciência, o existe motivo na consciência, mas existe para a consciência.
Não existe nada na consciência, ela é vazia de conteúdo. A consciência é consciência de
alguma coisa. Ela existe diante de um passado, um futuro e diante de si-mesma; a consciência
é não sendo pelo processo de nadificação. O ser, como ser livre, nessa ontologia, se
caracteriza por uma perpétua renovação do ser, por uma condição de estar sempre em
processo de escolha, num constante vir-a-ser. O homem frente a sua situação de liberdade está
sempre separado de sua essência por um nada. A essência da realidade humana é tendo sido.
A angústia do ser é o reconhecimento da consciência que, se vendo livre diante de suas
possibilidades, se cortada de sua essência por um nada. A liberdade é o único fundamento
de todos os valores, e a escala de valores que o sujeito elege para si tem a ver com sua
liberdade de escolha como ser livre. Mas a escala de valores pode ser qualquer uma que o
sujeito escolher. O que está em jogo é o projeto de como ser livre e o o tipo de escolha, a
ética adotada. Os valores são possibilidades que se colocam em questão para o sujeito. A
liberdade se angustia por ser o fundamento como liberdade, porém sem fundamentos dos
valores. Assim, o ser deve se escolher como ser não pré-determinado, como um ser que está
constantemente diante do processo de ser e não-ser”, de nadificação pelas escolhas de suas
possibilidades, e que é responsável por seu destino. É um processo dinâmico aberto e,
conseqüentemente, livre.
Os valores preestabelecidos de uma cultura tendem dar ao sujeito certa tranqüilidade,
porque a cultura lhe diz o que está certo ou errado. Assim, o sujeito, aparentemente, não
precisa se responsabilizar por suas atitudes definidas como éticas ou não. Porém, o sujeito
abdica de sua condição de escolha pela reflexão e faz suas escolhas dentro daquele espaço de
valores já determinados. Sua angústia frente às escolhas pode ser menor, pois se todos
mentem sob um mesmo digo parecem sugerir certa legalidade nas escolhas, quando na
verdade o código coletivo não anula a escolha individual, apenas ameniza a angústia de ser
responsável por um projeto individual, uma espécie de eleição que o sujeito faz de si no
mundo. Porém, é a consciência que vai tirar o sujeito da suposta tranqüilidade de suas
mentiras e colocá-lo frente à angústia de se sentir sozinho diante de um mundo que o desafia e
o faz agir de algum jeito. Nada pode proteger o sujeito contra ele mesmo, contra sua
consciência. Separado do mundo e de sua essência pelo nada, o sujeito um sentido ao
mundo e a sua essência num constante projeto de vir-a-ser.
Então, com valores predeterminados culturalmente ou reflexivos, o sujeito faz suas
escolhas, realiza seus projetos de ser, e vir-a-ser, pelo processo de nadificação do ser. E a
74
angústia é a apreensão reflexiva da liberdade por ela mesma. O sujeito tenta escapar ao fato de
ser uma essência que se transcende e se nadifica, tentativa que se frustra pelo fato de ele
existir.
Em Heidegger (1973), o nada não se revela como objeto ou como ente, se revela
juntamente com o ente em sua totalidade na angústia. O nada se revela no processo de
remissão do ente. A remissão que rejeita o ente e faz surgir o nada é a nadificação. É o nada
que nadifica. A essência da nadificação em Heidegger é a remissão que rejeita o ente em sua
totalidade. O nada não como resultado de uma negação, mas está além de toda negação. A
angústia manifesta o nada, um nada extramundano. Em Sartre, o é o nada que nadifica, mas
a consciência. Trata-se de um nada de ser.
Em Heidegger, é o nada a origem da negação e não vice-versa. O nada é negação
radical da totalidade do existente, é o nada absoluto. O nada é o fundamento do ser do homem
como ser instável que é. E essa instabilidade do ser do homem é vivida na situação emotiva da
angústia. O nada se revela como e no existente na medida em que este nos escapa e se dissipa
de sua totalidade. O nada é a própria anulação, é o nada que anula e é a condição que
possibilita no “Ser-aí” a revelação ao existente como tal. O problema e a procura do ser
ocorrem porque o homem o é todo o ser, e seu ser é o nada da totalidade do ser. O ser é o
fundamento de todas as coisas. Os entes são as diversas realidades particulares, e o homem é
o que representa uma interrogação sobre o ser.
Em Heidegger (1973), o Ser-aí está suspenso dentro do nada. O homem é
considerado o lugar privilegiado para a manifestação do ser. E o ser se realiza ao homem pela
experiência do nada na angústia.
A existência humana o é igual ao mundo natural e se faz transcendentalmente. No
cotidiano, porém, o homem se isenta do exercício da transcendência. Mas Heidegger chama a
atenção para o problema do ser, que é a condição transcendental do homem e é buscado a
partir do nada. O nada em Heidegger é o “Véu do ser”. O problema metafísico é, assim,
colocado a partir do homem, mas não para nele.
O problema do nada é levantado a partir do homem, que se revela na sua existência
como expressão de transcendência. O homem é um ser privilegiado para a manifestação do
ser que se realiza pela experiência do nada. O nada heideggeriano não pode ser entendido
como o problema da negatividade na filosofia moderna.
Para Heidegger, a verdade do ser, a sua manifestação e a sua compreensão ultrapassam
a lógica dos entes. A dimensão transcendental vai em busca desse ultrapassamento. O “Ser-aí
pode ser pensado partindo de sua transcendentalidade.
75
O nada se revela com o ente em sua totalidade. Para Heidegger, a angústia revela o
nada. Quanto mais o sujeito se volta para o ente, mais se afasta do nada. A ruptura do ente no
nada é a nadificação, feita pelo nada, que não aparece como resultado da destruição ou
negação. A essência do nada é a remissão que rejeita o ente em totalidade. É o nada que
nadifica, ou o ente é nadificado pelo nada pela angústia que o desvela.
Em Sartre, não é o nada que nadifica, mas a consciência, o nada não é um nada
extramundano fora do ser, é um nada de ser que está na relação da consciência com o mundo.
O nada está na relação sujeito/mundo, nada em relação ao mundo.
Em Heidegger, o ente, nesse processo de remissão que rejeita, aparece como
absolutamente outro em face ao nada. O nada não é resultado de uma negação, o próprio nada
nadifica e seria um vazio indiferenciado, cercando ou rodeando o ser por toda parte, não no
ser, mas em torno dele. O nada, assim, se apresenta transcendental e não pode ser pensado
como objeto.
O nada aparece como possibilidade de revelação ao ente na angústia. Esse
ultrapassamento do ente no nada descrito por Heidegger, Sartre entende como vazio
indiferenciado e recusa o nada além-mundo de Heidegger, como alteridade que não se e
como alteridade. Um nada cingindo o ser por toda parte, ao mesmo tempo expulso do ser, e
que não pode ser assim pensado como objeto.
Então concluímos que em Heidegger, a angústia acontece ao ente e propicia seu
encontro com o nada que é o ser, encerrando uma questão metafísica. Sartre, por sua vez,
sustenta que a angústia afeta o ser (em Sartre não existe o ente, mas somente o ser), em sua
contingência, por ser o “Para-sium projeto de vir-a-ser constante e, conseqüentemente, a
realidade humana é um projeto de fracasso no sentido de que nunca pode ser realizado,
porque o ser é um constante vir-a-ser.
76
CAPÍTULO III
3 A LIBERDADE
Ter, fazer e ser são as categorias cardeais da realidade humana. Classificam em si todas as condutas do
homem. O conhecer, por exemplo, é uma modalidade de ter
(SARTRE, 1997, p. 535).
A liberdade não tem essência e não tem conceito, a essência de acordo com a visão
sertreana, é cada sujeito singular. A liberdade não está no plano moral, mas ontológico. Nessa
ontologia, não essência humana que preceda a existência, existir é estar e construir sua
marca sobre as coisas, sobre o mundo, pois a existência precede a essência.
O indivíduo se faz. O homem surge no mundo e nele imprime sua existência pelos
seus atos. Existir, segundo Sartre, é estar-aí num universo contingente e construir-se pela
experiência. O ser “Para-si” se caracteriza como movimento e projeto de ser. A noção de
projeto é central. O sujeito existe como projeto, se lança perpetuamente diante do mundo, para
um porvir, para o que ainda não é. O projeto é o ato pelo qual o sujeito tende a expressar sua
liberdade, para um futuro e para os possíveis. O homem define-se pelo projeto, as
significações vêm do homem e de seu projeto e se inscrevem na ordem das coisas. As
significações não nos aparecem senão na medida em que somos significantes. A relação
concreta entre os homens é feita de um entrelaçamento de projetos.
O projeto é também uma negação. Coloca em questão a realidade, ou seja, uma
negação de uma situação definida em nome de uma situação que não existe. O ato de projetar-
se contém também o ato de negar-se. uma nadificação do que existe, para se projetar ao
que o existe, mas que o homem busca na sua condição de liberdade. É assim que se lança a
um futuro, a sua criação.
O projeto de ser do sujeito se encontra nas raízes da vida social, no projeto singular de
seu ser no mundo. Na perspectiva psicológica de Sartre, o homem é uma totalidade e não uma
coleção de desejos ou comportamentos pré-determinados. Em cada conduta, o homem se
apresenta, ou se exprime, por inteiro. Assim, o sujeito está alicerçado na noção de projeto e
o no determinismo causal. A história de um sujeito se entende pela sua experiência desde a
infância, bem como pela sua inserção nos grupos sociais. O papel que a infância tem na vida
do adulto é fundamental para compreender a realidade humana. O homem faz a história ao
mesmo tempo em que é feito por ela. É um processo dialético que produz a realidade
sóciocultural. Pom, o homem, ao construir sua história, a faz no contexto em que se
77
desenvolvem também outras histórias singulares. Nesse jogo de possibilidades e
impossibilidades, o homem se objetiva, constrói sua história e a história social, se concretiza
ou se aliena.
O homem se caracteriza pela transcendência, a qual faz o sujeito ir além do que é
determinado pela sociedade, pelas condições materiais ou sociais. É pela transcendência que o
homem
[...] sempre pode fazer alguma coisa daquilo que fizeram dele
(SARTRE apud MACHADO,
1981, p. 14).
Sartre denomina projeto aquilo que faz definir o sujeito como ser, o que é de mais
próprio do sujeito que se faz aparecer entre outros seres. Pela subjetividade, o homem se
objetiva no contato, na interação com a objetividade. Assim, a compreensão da realidade
humana passa pelo movimento dialético entre objetividade e subjetividade, porque o homem é
um ser social. O projeto do sujeito é a forma como ele se objetiva no mundo concretamente. É
a subjetividade objetivada e a objetividade subjetivada diante das condições históricas e
políticas. Assim, compreende-se a liberdade como sendo a condição que o homem sempre
tem de fazer alguma coisa daquilo que a família, ou a sociedade fizeram dele, a possibilidade
de assumir a responsabilidade sobre sua condição dada, o movimento que consegue fazer
diante das forças concretas entre objetividade e subjetividade.
Livre em situação, o homem é responsável pelo projeto fundamental resultante das
forças materiais concretas e da subjetividade. O homem é condicionado, mas não pré-
determinado. É um processo dialético que o faz, por meio da existência, construir sua
essência. O movimento do condicionado em situação é a liberdade de o sujeito transcender-se.
Transcender-se para o que não é. Na obra biográfica “Saint Genet”, Sartre analisa a realidade
humana, quais as possibilidades do sujeito diante de sua formação básica de identidade na
infância, condições poticas e culturais, e como o sujeito ainda pode, apesar das forças
objetivas, reformular e fazer seu futuro. O sujeito é livre em situação para não reproduzir a
totalidade para a qual foi condicionado. Em Sartre, o sujeito sempre faz seu projeto, suas
escolhas, mesmo nas situações mais limites. O movimento das forças objetivas e subjetivas é
sempre possível, porém, a possibilidade desse movimento é muito variável. E o sujeito faz
assim suas escolhas, seu projeto e exercita sua condição de ser, pois que é um ser livre em
situação.
Diz Sartre que o conceito de ato através da hisria deve ser hierarquizado:
Agir é modificar a figura do mundo, é dispor de meios com vistas a um fim, é
produzir um complexo instrumental e organizado de tal ordem que, por uma série de
encadeamentos e conexões, a modificação efetuada em um dos elos acarrete
78
modificações em toda a série e, para finalizar, produza um resultado previsto
(SARTRE, 1997, p. 536).
Mas para Sartre não é isso que importa. Antes de tudo, agir tem por princípio um ato
intencional. A ão corresponde a um ato intencionalmente consciente, embora não se possa
prever todas as suas conseqüências. Dessa forma, um ato é uma projeção do “Para-si” rumo a
algo que não é, e o que é o pode determinar o que não é.
Um projeto, uma ação intencional, leva a consciência a se posicionar diante de um fato
ou circunstância. A condição indispensável e fundamental de toda ação é a liberdade do ser
atuante. Assim, toda ação deve ser considerada um ato intencional.
A intenção é o ponto de partida para a ação. Na concepção de um ato, a consciência
está no terreno do ser, mas pode também sair do ser para o “não-ser”. Uma ação é o projetar-
se de um ser, de uma situação consciente para um futuro, para um “não-ser”. A concepção de
uma ação intencional visa àquilo que não é diante daquilo que é. Parte da negatividade, do
abandono do ser em busca do “não-ser”. A experiência potica de um povo que é
marginalizado em seus direitos coloca a consciência individual diante de escolhas, de
aspirações, de mudanças do ser marginalizado ao não-ser que transcende o dado objetivo, o
sistema potico, e se lança a uma nova situação, criando novos espaços. É preciso transcender
ao que é para ser o que ainda não é. É preciso negativar o ser para entrar no “não-ser”.
Nadificar o presente, ao que é, para projetar-se na ação que deixa o que é para buscar o que
o é. A consciência intenciona em direção ao “não-ser”.
Quando o indivíduo diz: “eu estou marginalizado”, ele diz também que sua
consciência vislumbra um estado de ser que não é marginalizado, que pode viver bem, que
pode ser feliz. Não é o estado de privação que faz acontecerem as mudanças, mas a
consciência do que é com a intenção de mudar do que é para o que não é, do ser para o “não-
ser”. Só a consciência do fato que é pode conceber o que não é. O fato em si não pode
determinar o que não é.
Toda ação tem como condição à descoberta de um estado de coisas, bem como sua
negatividade: a presença de um estado e a privação de outro. É pela potência nadificadora do
Para-si que acontece a ação intencional que visa a mudança, que remete a consciência ao não-
ser. Se a consciência do sujeito marginalizado estiver em concordância com seu sofrimento,
ele não pode nadificá-lo. A nadificação é resultado da consciência reveladora de que está
sofrendo e pode, num ato de nadificação, projetar o não sofrimento. O projeto de o
sofrimento, esse “não-ser”, confere à consciência um significado e um projeto de ser. Assim,
79
é fundamental que toda ação seja entendida como a liberdade do ser atuante. A liberdade de
negativar com relação ao mundo e a si mesmo. A nadificação faz parte integrante do
posicionamento de um fim, que se coloca fora do sujeito que intenciona o ser e o “não-ser”. E
isso é possível porque o sujeito, pela consciência, escapa ao Em-si” nadificando-se rumo
as suas possibilidades na condição de ser-aí, que intenciona um valor, um motivo para a ação
e um fim. O projeto de ser do sujeito tem um sentido interior que é projetado ao não-existente,
uma condição de transcendência pela qual o próprio sujeito se projeta para fora dele mesmo.
A nadificação ao sujeito a condição de se colocar à distância com relação à situação dada
para projetar uma modificação desta. O ato se define pelos seus fins, é expressão de liberdade.
Na liberdade
[...] a existência precede e comanda a essência
(SARTRE, 1997, p. 541). A
liberdade o tem uma essência que seja comum a todos.“
A liberdade é fundamento de todas as
essências, posto que o homem desvela as essências intramundanas ao transcender o mundo rumo às suas
possibilidades próprias
(SARTRE, 1997, p. 542). O sujeito tem consciência de sua liberdade
como liberdade própria, experimentada e que não pode não experimentar diante de seu cogito.
O sujeito é um ser existente que, como tal, aprende sua liberdade por meio de seus atos.
Assim, a liberdade está sempre em questão no seu ser, não como natureza humana, mas como
realidade humana. A negação vem ao mundo pela realidade humana, porque o ser é capaz de
realizar uma ruptura nadificadora com o mundo, e nisso consiste a liberdade.
A possibilidade dessa ruptura identifica-se com a liberdade, mas essa nadificação
acontece no âmbito particular de cada ser. Está em jogo o ter sido do sujeito na ação
intencional. A realidade humana é seu próprio nada.
Ser, para o Para-si, é nadificar o Em-si que ele é. Nessas condições, a liberdade não pode ser senão
esta nadificação
(
SARTRE, 1997, p. 543).
É por meio da nadificação que o ser Para-si” escapa de seu ser e de sua essência, e
se nadifica porque é livre. A consciência que o sujeito tem de que algo fora dele, que
transcende a ele e a sua consciência, escapa por sua própria existência. O sujeito está
condenado a existir para além de sua essência, está condenado a ser livre. Os limites da
liberdade são a própria liberdade. A liberdade não é opção, nessa ontologia, mas condição.
Na medida em que o Para-si quer esconder de si seu próprio nada e incorporar o Em-si como seu
verdadeiro modo de ser, também tenta esconder de si sua liberdade
” (SARTRE, 1997, p. 544).
O determinismo em sua essência estabelece uma continuidade de existência do Em-
si”. A visão determinista é extinta diante da decisão e do ato como aqui concebidos. O fato
psíquico é realidade plena e dada.
80
O femeno psíquico como concebido na ontologia fenomenológica de Sartre
extingue todas as possibilidades de determinismo causal. O sujeito por meio da decisão e do
ato, cria e recria sua estrutura, sua realidade, sua subjetividade. A causa do ato e do efeito são
conseqüências da escolha. A cada instante o sujeito um sentido a sua experiência. Pela
transcendência, o sujeito extrapola o passado no presente, significando e ressignificando a sua
realidade:
[...] a liberdade coincide em seu fundo com o nada que está no âmago do homem. A
realidade-humana é livre porque o é o bastante, porque está perpetuamente
desprendida de si mesmo, e porque aquilo que foi está separado por um nada daquilo
que é e daquilo que será. E, por fim, porque seu próprio ser presente é nadificação na
forma do reflexo-refletidor
(SARTRE, 1997, p. 545).
A liberdade é o nada que é tendo sido no âmago do homem e coloca o homem em
constante fazer-se em vez de ser. A realidade humana é um constante fazer-se, não é pré-
determinada, e está condenada a escolher-se, na relação subjetividade/objetividade, nesse jogo
dialético, no qual o é o que vem de fora que a determina, mas a dinâmica
objetividade/subjetividade a cada escolha. A realidade humana está abandonada à
insustentável necessidade de fazer-se. Assim, a liberdade não é um ser, mas seu nada de ser.
Escravo ou livre, o homem é livre por assim fazer-se. Se assim não fosse, não seria livre.
A vontade nessa ontologia é autônoma, não pode ser considerada como fato psíquico
dado, como ser “Em-si”.
Diz Sartre que
a vontade é necessariamente negatividade e potência de nadificação
(SARTRE,
1997, p. 54).
A vontade é nadificação, assim como o conjunto do psíquico. A vontade é uma
maneira de ser em relação à nadificação, a decio refletida com relação a certos meios que
levam a certos fins. Diante de um mesmo fato, cada sujeito age e reage de forma própria,
tomando uma atitude subjetiva que intenciona tal fim transcendente. Esses fins transcendentes
o são pré-humanos, são projeções temporalizadas de nossa liberdade.
A realidade humana escolhe seus fins, e essa escolha tem como limite externo seus
projetos. A realidade humana define seu ser pelos seus projetos e fins. Assim, diz Sartre:
A
liberdade, sendo assimilável à minha existência, é fundamento dos fins que tentarei alcançar, seja pela vontade,
seja por esforços passionais
” (SARTRE, 1997, p.549).
A liberdade não se oe à vontade ou às paixões. A liberdade é a existência de nossa
vontade, de nossas paixões na medida em que essa exisncia é nadificação da faticidade, na
medida em que um ser se faz por ser obrigado a se fazer. A vontade está condicionada pelo
81
Para-si” em seu projeto transcendente de si mesmo. É diante do já existente como
subjetividade que se buscam os fins possíveis que devem ser decididos a cada instante, a cada
ação.
A vontade, a emoção é uma resposta adaptada à situação. É um sentido de uma
inteão da consciência do sujeito em situação. Desmaiar diante do medo tem como intenção
suprimir o perigo que se aproxima do sujeito. Em oposição, está a conduta voluntária e
racional que encara a situação e responde de determinada maneira.
Render-se ao medo ou ter uma atitude racional depende da escolha do sujeito, do que
intenciona seu projeto. A liberdade é colocada no medo ou na coragem, ou seja, o medo e a
coragem são manifestações da liberdade, da maneira de ser do sujeito e de seu próprio nada.
O motivo é a razão de um ato, são as deliberações racionais que explicam o ato. Por
exemplo: o sujeito, marginalizado politicamente, explica sua revolta como projeto de sair da
opressão. Faz suas considerações racionais sobre a opressão, o desejo e as estratégias para sair
dela. Diante da situação objetiva, visando alcançar um fim, o sujeito formula um projeto rumo
a esse fim.
Sartre chama de “móbil” um fato subjetivo, um conjunto de emoções, desejos e
paixões que levam o sujeito a executar um ato. Então, um ato pode ser explicado
racionalmente ou por um “móbil”. A explicação estaria, nesse caso, no estado psíquico do
indivíduo atuante. É tarefa do psilogo se ocupar dos “móbeis”. A atitude racional é aquela
em que os móbeis estão nulos, ou quase nulos, e tendo em vista uma atitude objetiva da
situação. Mas pode haver o ato motivado pela decisão racional e pelos móbeis ao mesmo
tempo: o sujeito pode ser simpatizante do Partido dos Trabalhadores porque, racionalmente,
acredita que seu programa de trabalho, sua proposta potica, visa a mudanças sociais
necessárias. Porém, tem emoções que entram no jogo da decisão, porque os sentimentos de
justiça social, de respeito humano, emocionam e então levam a luta. Nesse caso, a decisão
racional e por móbeis estão juntas, associadas, e uma impulsiona a outra. Enfim, o motivo é
objetivo, é um estado de coisas que se revela à consciência. Esse estado de coisas revela-se a
um “Para-si”.
Uma situação pode revelar-se a um Para-si” que se escolhe de alguma maneira e
que faz sua individualidade. Para que os motivos sejam organizados, racionalizados, é
necessário separá-los do conjunto e nadificá-los, transcendê-los rumo a um estado de coisas
que ainda não é, rumo a um nada. O projeto político do PT, que vislumbra novos horizontes
políticos, nadifica os problemas atuais em detrimento das perspectivas e lutas rumo a um fim
político que ainda não é.
82
É preciso determinar o fim almejado. O motivo aparece em detrimento do projeto
de ação, e isso é um ato de cada consciência individual que recorta dos motivos objetivos o
fato a ser nadificado e transformado. É preciso fazer a relação entre motivos, móbeis e fim.
O Para-sifaz um projeto rumo a um fim e parte de uma estrutura objetiva. O “Para-
si” é consciência do motivo, mas é consciência “não-tética” de si na qualidade de projeto
rumo a um fim. Tem consciência, mas é também apaixonado. Assim, motivo e móbil são
correlatos.
O móbil aparece ao psicólogo como conteúdo objetivo de um fato, o móbil é
consciência “não-tética” de si, consciência emocional, não racional. A consciência emocional
detém o passado, e o passado, é Em-si”, mas aparece no presente pela subjetividade. O
passado é um saber que pode ser reportado, porque ele é presente no sujeito atual, e se revela
ao sujeito pelas lembranças, pela consciência, pela sua subjetividade. O sujeito transcende no
presente. Assim, os móbeis estão presentes no projeto do sujeito quando este intenciona um
fim. A consciência e o motivo podem estar mais ou menos envolvidos nos móbeis. Os móbeis
e motivos anteriores podem comprometer a consciência atual, pois a essência do sujeito que
projeta é a essência do que ele é. É o que ele é tendo sido. Assim, o sujeito que faz seu
projeto, o faz com suas condições objetivas e subjetivas e só cabe a ele decidir o rumo de seus
projetos e de seu futuro.
Móbeis passados, motivos passados, motivos e móbeis presentes, fins futuros, se
organizam em uma indissolúvel unidade pelo próprio surgimento de uma liberdade
que é para-além dos motivos, móbeis e fins
(SARTRE, 1997, p. 556).
Motivos e móbeis têm um valor diante do projeto do sujeito. O projeto originário do
sujeito, por meio dos móbeis, está inevitavelmente presente nos motivos e fins do projeto
atual. Porém, há uma escolha e uma deliberação que não são somente o que o sujeito foi, mas
acima de tudo, aquilo que ele é. E essa escolha se organiza pela espontaneidade livre. O ato
voluntário é diferente da espontaneidade não-voluntária. O ato voluntário é consciência,
reflexão, e o involuntário, consciência irrefletida. O ato na condição de móbil é consciência
irrefletida. Diferencia-se pelo fato de captar o móbil e colocá-lo na reflexão voluntária, que o
mantém em suspenso diante do motivo. E assim, o móbil passa a ser tratado como conteúdo
de consciência reflexiva, permitindo, diante do motivo, uma nadificação mais profunda. O
motivo do ato, reflexivo e refletido, realiza uma totalidade do “Em-si” e do “Para-si” no
surgimento do seu ser como consciência e reflexão. O “Para-si” no ato voluntário busca
83
recuperar a si mesmo na medida em que decide e age pela reflexão. Nessa condição, quando o
sujeito está de posse do conteúdo refletido, sua escolha tem por fim recuperar-se como projeto
espontâneo e reflexivo. Importante compreender aqui o papel da intenção no contexto da
reflexão. A reflexão, no ato voluntário, tem como fundamento à intenção. Sartre diz que:
Ao mesmo tempo, a liberdade aparece como uma totalidade não analisável: motivos,
móbeis e fins, assim como a maneira de captar motivos, móbeis e fins, são
organizados de forma unitária nos quadros desta liberdade e devem ser
compreendidos a partir dela
(SARTRE, 1997, p. 558).
Vemos que existe uma grande complexidade nesse processo de motivos, móbeis e fins.
A liberdade se identifica com o ser Para-si, a realidade humana é livre porque é seu próprio
nada. Esse nada tem múltiplas dimensões:
- o pode se determinar por seu passado no momento de executar um ato;
- como consciência de si mesmo e de alguma coisa, e nada exterior à consciência pode
motivá-la;
- sendo transcendência, um ser que é originariamente projeto e que se define por seu
fim.
Um ser, como consciência, está separado de todos os outros, com um passado, uma
subjetividade, uma essência e está diante de outros seres com as mesmas condições que
projetam e determinam um presente à luz de um futuro. Cada um nessa realidade humana é
um existente livre. Cada ser é originariamente projeto que se define por seu fim. Assim, os
atos de cada existente não podem ser entendidos somente pelo passado ou pelo estado do
mundo de cada um.
Uma escolha só é considerada livre se houver a possibilidade de ser de outro jeito, que
num dado momento, diante de uma escolha, ou de uma definição que o sujeito precisa se
posicionar, possa tomar uma atitude e não outra. É o “Para-si” reflexivo que intenciona um
ato com vistas a um fim com a originalidade do ser existente. A maneira que o ser se coloca
diante da faticidade, é a escolha que o Para-si” faz de si mesmo pelo seu projeto originário. E
o projeto continua como nadificação que se volta para o Em-si”, que nadifica e se revela
numa valorização singular da faticidade.
Sartre concorda com Freud quando diz que um ato não pode se limitar, ou ser
entendido, por si mesmo, mas deve-se considerar as estruturas mais profundas do sujeito.
84
Uma ação realizada por um sujeito é digna de análise quanto aos motivos em cada caso
particular.
A psicanálise é o método que permite a investigação da estrutura psicológica do
sujeito. O ato não pode ser entendido somente pelo momento em que foi realizado. Porém, a
psicanálise de Freud e a psicanálise existencial de Sartre tomam caminhos de investigação
diferentes, tendo em vista o determinismo causal de Freud de compreensão do sujeito e o
todo fenomenológico de Sartre. Para Sartre, o sujeito é condicionado, mas não é pré-
determinado. Os condicionamentos fazem a subjetividade do sujeito, porém, o
determinismo causal. Para Freud, por outro lado, a afetividade está na base do ato, em forma
de tendências psicofisiológicas. Sartre argumenta que a afetividade do sujeito,
originariamente, é uma tábua rasa e são as circunstâncias em que o sujeito se desenvolve que
o decidir sua estrutura psicológica.
Na psicanálise de Freud, o sujeito é interpretado por uma regressão ao passado a partir
do presente, e a dimensão de futuro o existe. Sartre concebe todo ato como femeno
compreensível e o aceita como Freud o acaso determinista. O sujeito não é apenas acaso de
seu passado ou de sua estrutura. Porém, Sartre aceita o método da psicanálise, mas o aplica
em sentido inverso.
Para Sartre, a compreensão do fenômeno psíquico não deve partir do passado e sim
como um retorno do futuro rumo ao presente. O conflito do sujeito e as formas de escolha são
expressões do “Para-sino mundo em presença do outro. É sempre transcendência, é maneira
de escolher-se. O ato deve ser visto a partir do futuro e das potencialidades do sujeito. Toda
ação deve ser compreendida como projeto de si mesmo rumo a um possível.
É importante abrir aqui um parêntese para refletir sobre a questão da temporalidade: as
três dimensões temporais, passado, presente e futuro, são momentos estruturados na
consciência do sujeito como uma síntese. A temporalidade na fenomenologia, em Jean-Paul
Sartre, é abordada como totalidade, contendo significações em sua estrutura. Podemos
considerar as dimensões do tempo, porém, sempre sobre um fundo de totalidade. O passado
existe em função de um ser, pois como passado não é nada. O passado está em certo presente
e certo futuro e pode ser pensado como uma característica do presente. Um passado existe
porque pertence a alguém, mas no presente. É o presente que é o passado e não o contrário,
pois o passado existe experimentado no presente por uma singularidade. têm passado os
seres que trazem em seu ser seu passado, e somente a realidade humana pode manifestar, ou
ter, um passado, mas é pelo “Para-si” que o passado está na atualidade do sujeito. O sujeito
o tem um passado, ele é um passado. O passado como totalidade passada é “Em-si”; após a
85
morte, o “Para-sise converte em Em-si” para sempre, o sujeito é o que foi. Enquanto vive o
passado, o é “Em-si”, porque faz parte do sujeito real e está sujeito a ser ressignificado
mediante o futuro. O passado existe porque o sujeito é seu passado na atualidade. O
passado não existe porque o sujeito o representa, mas porque o passado é o sujeito a partir de
seu “Ser-no-mundo” e está presente em estado psicológico. O passado é o que é como
passado, mas, faz parte do sujeito como atualidade psicológica; pom, existe a possibilidade
de mudar a significação do passado, porque ele tem um futuro diante de si. Do conteúdo do
passado, nada se pode mudar, mas sua significação psicológica sim, pois está na atualidade
como processo dinâmico de ser e vir a ser do sujeito. A relação do sujeito com o fato passado
que foi é “Em-si”, mas com a atualidade que é se apresenta como “Para-si”. O sujeito é um
devir, não é o passado; porém, o é o que era, pois ele é em relação ao seu próprio ser. É
uma conexão interna que mostra o passado como não sendo o que é. O sujeito não pode ser à
maneira do que era, mas à maneira do que é. O passado e a faticidade estão juntos no agir do
Para-si”, propiciando sua nadificação e ressignificação. O passado é uma lei ontológica do
Para-si”. O presente é um instante, um limite entre o que é passado e futuro, entre o ser e o
nada. O presente é uma presença do “Para-si” ao ser “Em-si”, é uma estrutura ontológica
também do “Para-si”, que se faz presença ao ser, sendo “Para-si”. É a presença do “Para-si”
que torna possível a totalidade do ser “Em-si”. É pelo “Para-si” que o ser se torna presente no
mundo. O “Para-si” é presea ao ser, na medida em que se reconhece como ser e como não
sendo esse ser. Então, a presença do “Para-si” ao ser o coloca na condição de não ser o ser;
assim, nesse sentido, o presente não é. Não podemos dizer que o “Para-si” é, porque o Para-
si” não tem ser. O presente não é, já que o que chamamos de presente é o instante em que o
presente é presença, porém, é impossível captar o instante em que se faz presente em forma de
fuga. O presente como “Para-si” tem o seu ser adiante e atrás de si, no passado e no futuro, do
ser que era e do ser que será. Por isso, ele é fuga do ser que era e do ser que será por ser
Para-si”. O Para-si” pode constatar uma presença, por isto o presente faz parte do “Para-
si”, porém, constatar uma presença não é ser presente. O presente é uma fuga frente ao ser. No
futuro, não podemos encontrar o “Em-si”. O futuro existe como projeção, ele ainda o
existe. Não conteúdo nesta projeção. O futuro é o que posso ser ou o que posso “não-ser”.
O “Para-si” tem como futuro um ser para além do ser. O “Para-sinão é simplesmente, por
isso, tem que haver um futuro. O futuro é ao Para-si” como aquilo que ele ainda não é.
Somente um ser que está em questão para si pode ter um futuro. Tudo o que o “Para-si” é para
além de seu ser é o seu futuro. O futuro se diferencia do imaginário pelo fato de que o “Para-
si”, no futuro, emerge do mundo como ato nadificador. O sujeito busca no futuro aquilo que
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lhe falta. É da natureza do “Para-si” ser um vazio sempre futuro. O futuro é a possibilidade de
presença do ser para além do ser e mostra ao “Para-siuma constante possibilidade de ser e
“não-ser”. O ser tem um futuro problemático e angustiante, porque sua liberdade o coloca
sempre em questão, sua liberdade é seu limite. Assim, o futuro não tem ser como futuro, não é
Em-si”, e não tem modo de ser do “Para-si”, pois é apenas o sentido do “Para-si”. O futuro
são as possibilidades como sentido do “Para-si presente, mas que escapam ao “Para-si”
presente por estarem em contínua possibilização de um porvir sempre em aberto (SARTRE,
1997).
Voltando à questão da liberdade, a escolha oferece imediatamente um conteúdo
racional, intenciona um possível, ou os possíveis, dentro das possibilidades que o sujeito é.
Assim, a percepção do objeto não pode se limitar ao objeto propriamente dito, e sim
considerar as implicações e significações da totalidade do existente que percebe do “Em-si”.
E cada percepção de estrutura singular deve ser vista como ser no mundo e é interpretada em
relação à totalidade.
O ato fundamental da liberdade é o ato do ser particular numa situação dada como ser
no mundo, como escolha do sujeito no mundo, como subjetividade. A escolha não está sob o
domínio do inconsciente (como na psicanálise de Freud), mas na consciência do ser atuante.
A consciência é consciência de ser do sujeito, e a escolha parte do ser consciente, e não do
inconsciente. Essa consciência, porém, tem seus limites por englobar a estrutura geral da
consciência, racional e emocional, no momento da escolha. Uma escolha é uma deliberação
que contém uma interpretação a partir da escolha originária do sujeito, mas isso não significa
uma conduta inconsciente, ou por móbeis.
A escolha pode ter influência dos móbeis, mas é o posicionamento do sujeito como
consciência que a determina. Se motivo e móbil numa apreciação das coisas do mundo,
uma consciência que é objetiva e que está na estrutura da escolha. E a escolha é o sujeito em
relação com o mundo pela consciência e não determinada pelo inconsciente.
Para Sartre “[...]
é preciso ser consciente para escolher, e é preciso escolher para ser consciente. A
escolha e consciência são uma e mesma coisa
” (SARTRE, 1997, p. 569). A consciência é
nadificação. Assim sendo, ter consciência de nós mesmos e escolher é a mesma coisa. Porém,
ser consciência presente não significa ter consciência analítica total do que somos, mas
porque o mundo nos aparece como somos. É transcendendo ao mundo que podemos vê-lo
como ele é. Quando escolhemos, damos ao mundo e a nós mesmos uma significação.
A sensação interna que não somos o mundo faz, ao mesmo tempo, que o percebamos
como mundo que não é o ser que percebe. Sujeito e mundo, subjetividade/objetividade diante
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da consciência, ou como um dado de percepção e de consciência, o reconhecimento/absoluto
do ser e do mundo objetivo pela consciência. Assim, consciente, o sujeito se escolhe
perpetuamente, sabe que pode mudar a cada momento o rumo dos atos pelo seu projeto. Não
pode escapar a angústia da escolha quando gostaria de não fazê-la.
A liberdade existencial do ser o desafia a cada instante, a cada situação dada que
precisa ser assumida e nadificada. Temos consciência do futuro, de seu possível e da falta de
controle ou donio sobre ele. O sujeito tem apenas a certeza de que está submetido à escolha
perpetuamente, à nadificação do ser, às ameaças da escolha, às transformações que podem
acontecer por conseqüência desta. Essa mudança absoluta que acompanha o sujeito do
nascimento à morte é sempre imprevisível. Livre em situação, responsável pela escolha,
porém diante das adversidades. Numa atitude de transcendência, convivemos com a
exterioridade e, para compreendermos o mundo, fazemos escolhas. O significado que damos
ao mundo já parte de nossas escolhas:
Escolher-nos é nadificar-nos, ou seja, fazer com que um futuro venha a nos anunciar o que somos,
conferindo um sentido ao nosso passado
” (SARTRE, 1997, p. 574).
A escolha é contínua, com extensão finita, que separa a escolha original das sucessivas
escolhas, que fazem do sujeito sempre uma extensão modificada, ininterruptamente.
O sujeito se escolhe, se nadifica, se distancia de seu projeto original, se modifica, se
temporaliza como consciência e subjetividade, como ser livre em situação. O processo de
escolha e nadificação é contínuo, e o sujeito, dentro desse jogo, se movimenta conforme suas
escolhas. E é assim que a escolha tem por limite a própria liberdade. Numa continuidade
presente as escolhas e nadificações se seguem continuamente, numa significação vivida e
interiorizada do sujeito.
A consciência faz de seu passado imediato o objeto e por meio dele, identifica novas
escolhas e seus fins, faz a nadificação acontecer diante da nova escolha. Importante salientar
que sempre há infinitas escolhas frente as quais o sujeito pode se posicionar e se escolher
desde as situações mais reais e cabíveis às mais inusitadas. Porém, cada ser, ou cada
personalidade, tem seu comportamento de escolha diferente ou próprio, porque seu projeto
original é único.
É partindo da visão do projeto total e da escolha original que se pode compreender a
estrutura de cada escolha e não pelo mundo, pela faticidade. A liberdade é total e
incondicional. O fato de escolher um possível e não outro é responsabilidade do sujeito que
escolhe, nas características do seu projeto fundamental. Assim, o “Para-si” livre, ou na sua
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condição de liberdade, interpreta a situação, elege os possíveis e os fins. Os critérios de
escolha e dos fins são dados pelo sujeito, pelas suas atitudes reflexivas e/ou irrefletidas.
Sartre chama a atenção sobre os móbeis que podem interferir nas escolhas futuras,
como, por exemplo, o sujeito que, desconhecendo uma característica de seu projeto
fundamental, se opõe a ela reflexivamente e é surpreendido pela dificuldade interna na ação,
ou no ato de escolha.
Qualquer que seja a atitude do sujeito é escolha: honesto ou de má-fé, superior ou
inferior, é sempre escolha, como significação própria. Assim, o projeto fundamental muito
pode atrapalhar o sujeito nas suas escolhas futuras. Não tendo consciência do seu projeto
como estrutura psicológica, esses conteúdos podem, diante de um projeto reflexivo de
sucesso, ser conduzido ao insucesso por falta de atitudes espontâneas adequadas ao sucesso.
Ou seja, o sujeito tem complexo de inferioridade como conseqüência de seu projeto
fundamental e quando, reflexivamente, se projetar para o sucesso, pode ser surpreendido pelo
insucesso, pelas suas formas de agir com inferioridade. Mas Sartre o aceita chamar esses
conteúdos psicológicos de inconsciente, e sim de má-fé da vontade (SARTRE, 1997).
Sartre chama a atenção para as condutas de má-fé. O sujeito pode ter atitudes
negativas em relação a si mesmo. A má-fé é uma conduta, uma consciência, que volta sua
negação para si. Na mentira, o sujeito não mente para si mesmo. É uma consciência cínica, e a
disposição do mentiroso é positiva, não fere a translucidez da consciência. na má-fé o
sujeito mente para si mesmo. Existe um tipo de má-que faz parte da estrutura da mentira
que é mentir, negar um fato, para não ser responsabilizado por ele. Tudo muda quando o
sujeito tenta esconder a verdade para si mesmo. Nesse tipo de má-, não enganador nem
enganado. É uma atitude de consciência, não está na objetividade. Ela não é um estado. É uma
atitude pré-reflexiva de consciência afetando-se de má-fé, ela é um projeto do sujeito. Por isso
que Sartre não aceita a definição de inconsciente, porque na má-fé o sujeito precisa saber a
verdade para poder ocultá-la. Implica um estilo de vida. Na interpretação psicanalítica se
recorre aos mecanismos do inconsciente, do qual o sujeito não tem posição privilegiada em
relação ao consciente, mas para Sartre, toda consciência é consciência de saber, embora
existam várias formas ou níveis de consciência. Por meio do inconsciente/consciente, para
suprimir a má-fé, a psicanálise criou, segundo Sartre, uma consciência autônoma de má-fé.
Existe um psiquismo e não uma dualidade. Existe uma infinidade de condutas de má-fé. O
ser humano é faticidade e transcendência, que são aspectos de base da má-fé. Precisamos
entender a realidade humana como o ser que não é o que é. Se o sujeito é o que é, não pode
haver má-fé. O ser consciência não é Em-si”, é “Para-si”. Se assim o fosse, não seria
89
permitido como possibilidade uma atitude de má-fé. A má-fé é possível porque
consciência da atitude expressiva. Se um sujeito se diz não covarde e de fato ele sabe que é,
está agindo de má-fé. Uma atitude de má-fé pode revelar uma tentativa tanto de ser como de
o-ser sobre um dado em questão no ser. Para que um projeto de má-fé seja possível, é
necessário considerar que no “Para-si” não existe uma condição estática e até a sinceridade
pode ser um ato de má-fé. A má-fé existe como resultado da possibilidade da realidade
humana ser o que o é e não ser o que é. Diz Sartre que o problema da má-consiste em
que o sujeito tem na má-fé. O projeto de má- não é uma decisão reflexiva e voluntária, é
uma determinação espontânea do ser, mas a má-fé é consciente, porque o sujeito precisa
referendá-la como má-fé para que ela continue existindo. Na verdade, é um projeto do sujeito
ser de má-fé que, desde sua origem, conserva uma mal convencida. Nenhuma crença é
suficiente para iludir completamente uma consciência. A má-fé não consegue crer totalmente
no que deseja crer e é nisso que se caracteriza como -fé. A má-fé é um projeto que tenta
fugir do que é, e a consciência do ser humano tem a boa-e a má-como possibilidade de
ser e de “não-ser” (SARTRE, 1997).
A diferença não se coloca como consciente e inconsciente, mas como consciência
reflexiva ou consciência irrefletida. As escolhas de má-, no entanto, podem não ser fadadas
somente ao insucesso. A vontade se produz nos limites do projeto inicial, porém, a
consciência reflexiva pode, por um esforço contínuo, lutar contra as manifestações desse
projeto inicial, ou contra os conflitos, para sua superação.
A consciência do conflito original é a melhor saída para sua superação, para a sua
nadificação, libertando o sujeito para outras construções futuras, num ser modificado noutro
projeto. Porém, a atitude do sujeito de lutar conscientemente contra os móbeis que o
atrapalham é uma das formas de lutar contra, de encarar a situação, de se superar.
Na compreensão ontológica da liberdade, podemos entender que a realidade humana
se reduz ao fazer. O movimento do sujeito é ato, não existe algo dado na realidade humana
como princípios da razão que sejam adquiridos/herdados ou inatos.
A única consideração empírica do ser-humano mostra-o como uma unidade
organizada de condutas ou “comportamentos”. Ser ambicioso, covarde ou irascível é
simplesmente conduzir-se dessa ou daquela maneira em tal ou qual circunstância
(SARTRE, 1997, p. 587).
Assim, a realidade humana é fazer para ser, e ser é agir. Não como deixar de agir,
pois seria deixar de ser. Na realidade humana, a própria determinação para ação já é a ação
90
mesma. A existência do ato implica autonomia de ação, intenção que transcende o dado rumo
a um fim.
Diz Sartre que
“[...] a intenção, é a estrutura fundamental da realidade humana, não pode, portanto,
em nenhum caso, ser explicada por algo dado, ainda que se pretenda que dele emane
(SARTRE, 1997, p.
588).
O ato é interpretado pelo seu fim, a intenção posiciona seu fim fora de si. A intenção
faz a escolha que anuncia. É a escolha intencional que revela o mundo pelo fim escolhido. A
escolha é um estado do mundo a ser, mas que ainda não é. O fim pode ser qualquer
necessidade a se conseguir dentro dos possíveis existentes. O fim é outra estrutura do mundo,
e os possíveis, outra estrutura da subjetividade do ser que escolhe. A inteão pode impor
mudanças, alterando radicalmente o ser dado. O dado deve ser apreciado para se fazer uma
ruptura, para descontinuá-lo.
A apreciação condições de escolher um fim diferente. O dado é nadificado pela
inteão e pela apreciação. A realidade humana deve ser concebida como ruptura do dado em
seu ser. A negação interna do dado acontece na nadificação. A consciência não existe sem o
dado, mas a partir do dado, porém, não significa que o dado a condicione. Se assim fosse, não
haveria nadificação. A consciência é negação do dado rumo ao fim não existente. O ser é sua
própria negação, pode se colocar a distância em relação a si mesmo. O dado é aquilo que é. O
Para-si” é transcender ao “si-mesmo”. É um ser que é à luz do que será. A liberdade do
Para-si” constitui-se escolhendo-se. E a liberdade é sempre incondicionada. Ela pode se
escolher, não pode o se escolher, não pode se recusar a ser. A escolha é absurda porque não
permite não escolher.
[...] a liberdade não é pura e simplesmente a contingência na medida em que se volta
rumo a seu ser para ilumi-la à luz de seu fim; é perpétua fuga a contingência, é
interiorização, nadificação e subjetivação da contingência, a qual, assim modificada,
penetra integralmente na gratuidade da escolha
(SARTRE, 1997, p. 590).
O projeto fundamental é o projeto primeiro e é total, que Sartre chama de psicanálise
existencial. É o projeto de “Ser-no-mundo” em totalidade. O projeto é constantemente
renovado, é uma continuidade de escolhas. Uma escolha origina outras possíveis escolhas.
Sobre o desabamento de um projeto anterior, surge outro projeto. O surgimento de um novo
projeto nadifica o anterior. Não podemos entender cada escolha como resultado do projeto
global, mas cada escolha deve ser vista como a totalidade do “Ser-no-mundo”. A escolha não
é pré-determinada, mas o sujeito se revela em cada uma delas integralmente. A liberdade só se
91
como nadificação de algo dado, é negação interna e consciência, liberdade é liberdade de
escolha, mas não é liberdade de não escolher.
Outro aspecto da liberdade a ser analisado, seu reverso, é a faticidade, isto é, os limites
da liberdade.
3.1 Liberdade e faticidade: a situação
Quando olhamos o “reversoda liberdade, parece mesmo um equívoco. A impotência
do sujeito diante da faticidade parece transformar a liberdade num fato impossível. Como ser
livre já nascendo escravo? Como ser livre para fazer-se quando tudo parece estar feito? O
sujeito nasce dentro de uma classe social, potica, com condições materiais, hereditariedade
(no sentido biológico), educação familiar, condicionamentos negativos. Como falar em
condenado a ser livre se o sujeito já nasce cercado de limites? Mas Sartre coloca a
problemática da liberdade levando em conta tudo isso. O sujeito é livre porque, mesmo com
limites impostos, ainda assim deve escolher e lutar contra todas as formas de alienação.
O coeficiente de adversidade das coisas, em particular, não pode constituir um
argumento contra nossa liberdade, porque é por nós, ou seja, pelo posicionamento
prévio de um fim, que surge o coeficiente de adversidade
(SARTRE, 1997, p.
593).
O coeficiente de adversidade não elimina a condição da escolha, a intenção e os fins. É
a liberdade que constitui as formas de luta diante dos obstáculos e limites. A liberdade não é o
direito, ou o espaço, para fazer qualquer coisa à vontade. É a luta, o viver cada momento,
interagir de qualquer maneira, ou não interagir, dependendo da escolha.
A liberdade é poder se posicionar diante de”, é ter capacidade de movimento, de
opção, de ação.
Sartre diz que
pode haver Para-si livre enquanto comprometido em um mundo resistente
(SARTRE, 1997, p. 595).
O determinar-se diante do mundo, com escolhas e fins a alcançar, ter futuro possível
para acreditar e se posicionar é a condição de liberdade. A luta pelo fim escolhido, desejado,
as possibilidades “de” em aberto, autonomia de escolha. A escolha é diferente do desejo,
porque a escolha é fazer, e fazer é ação.
92
O Para-sié livre, ou seja, não escolha entre ser livre ou o ser livre. O sujeito é
condenado a escolher. Assim, a liberdade não é o fundamento do ser, mas uma condição de
ser. É liberdade somente de escolher, mas não é condição de escolha.
Escolher, ser livre para escolher, é a condição absoluta do homem. Temos que
reconhecer, então, a faticidade da liberdade. A liberdade tem um ser atrás de si que não
escolheu existir. Liberdade e faticidade se identificam. O sujeito tem que ser um ser no meio
do mundo.
Dissemos que a liberdade não é livre para não ser livre e que não é livre para o
existir. Isso porque, com efeito, o fato de não poder não ser livre é a faticidade da
liberdade, e o fato de não poder não existir é a sua contingência
(SARTRE, 1997,
p. 599).
O sujeito projeta uma escolha e um fim porque é liberdade. A situação como
contingência da liberdade coloca o indivíduo em condição de escolha; é um produto da
contingência do “Para-si” e da liberdade. O ato de escolher e projetar um fim é um ato de
liberdade. Não importam quais os obstáculos que irão surgir para viabilizar esse fim. Existem
adversidades, mas não existe obstáculo absoluto. O valor do obstáculo é dado pelo sujeito que
projeta, pelo seu projeto original, fundamental, na hora da escolha, e pela consciência
intencional.
o há liberdade a não ser em situação, e não há situação a não ser pela liberdade
(SARTRE,
1997, p. 602).
Assim, a realidade humana escolhe e encontra obstáculos à sua escolha. A liberdade é
também o caminho de luta contra as adversidades.
Todo sujeito tem um lugar no mundo onde vive e se define, onde a geografia do lugar
físico, os objetos, as outras consciências, ou as outras pessoas, fazem o contexto, ou as
circunstâncias de suas vivências. Assim, no nascimento o sujeito recebe um lugar que será
seu, que ocupará e que se projetará ao longo de sua vida. Ao nascer, o sujeito recebe um lugar
que será seu por intermédio de quem o colocou no mundo. Nascer num país em guerra ou
num lar em harmonia, e aconchego, certamente é nascer em circunstâncias diferentes. A
liberdade do sujeito começa neste ponto: as contingências do lugar de seu nascimento e a
realidade humana acontecem num espaço sico e lugar afetivo, numa reciprocidade. Mas para
Sartre o que conta mesmo nesse momento é o lugar que o sujeito ocupa como seu
absolutamente. Não existia nada antes dele, ele o inaugura como seu lugar de liberdade, e o
restante mais é sua faticidade. Esse lugar que o sujeito ocupa ao nascer não tem escolha, não
93
tem necessidade, é o espaço absoluto ocupado pelo “Ser-aí”. Esse é um fato absoluto para o
sujeito, é a pura continncia. O sujeito começa a experimentar um lugar no mundo e, ao
mesmo tempo, experimenta estar afastado de tudo o mais, ou seja, é a experiência da relação
com o mundo, com as coisas, que é a essência que começa acontecer pela existência. O
sujeito, ao nascer, não é livre nem não livre, é um puro existente. Porém, para que o sujeito
tome seu lugar como puro existente, deve também fazer, como conseqüência do existir, uma
relação entre ele e o que o é ele. E numa relação mesmo fundamental/original, significa
que o sujeito tem alguma autonomia no sentir e, conseqüentemente, no escolher, e a se
compreender como Ser-aí”. E há, então, a necessidade de definir-se como sujeito diante dos
outros, ou dos istos. Para que haja essa definição, o sujeito precisa escapar dele mesmo para
se colocar no mundo como um ser e uma nadificação de seu ser. O que ele é e o que ele vai se
definindo como ser. O que ele é e as estratégias de relação com os outros e os istos. Essas são
coisas e os objetos do mundo circundante. Assim, se inaugura também o processo de
transcendência do sujeito com relação ao mundo e com ele mesmo.
O sujeito está no meio do mundo, descobre o mundo e pode vivenciar também a
negação interna. Para que o sujeito escape ao objeto que se apresenta a ele como dado, é
preciso negá-lo. Com a negação interna, se faz acontecer o processo de nadificação. E é por
esse processo que o sujeito se anuncia e se anunciará sempre como ser individual e único. E o
mais importante ainda é dizer que o anunciar-se é nadificar-se, e a estrutura ontológica do
sujeito, então, consiste em o ser o que é e ser o que não é.
O sujeito se anuncia, se transcende, se nadifica ininterruptamente. Quando o sujeito
inaugura seu lugar no mundo, inaugura também seu processo de transcendência, e o faz
mediante uma significação. A significação acontece com relação a um fim. Então, se existe
um fim que o sujeito persegue, faz aí suas escolhas. Para definir seu lugar no mundo é
preciso significá-lo, ocupá-lo a cada instante, e esse processo que dura do nascimento à morte.
O seu lugar nunca está pronto e acabado. Ele é um processo de ser e “não-ser”, de ser e de
nadificação do ser, para ser um novo ser ininterruptamente.
E o sujeito reconhece a faticidade do lugar que ocupa pelas suas escolhas e seus fins.
Pelo processo de escolha, vive sua liberdade e descobre sua faticidade, pois, para fazer
escolha, é preciso entender, explorar a faticidade. Assim, vemos que o sujeito, ao nascer,
ocupa um lugar ao mesmo tempo em que se torna responsável pelo lugar que ocupa. A
liberdade e a faticidade juntas na situação definem a escolha pelo indivíduo. Sem faticidade
o poderia haver liberdade de escolha e nadificação. E sem liberdade a faticidade não seria
descoberta.
94
O sujeito tem um passado que também interfere no fenômeno subseqüente. A
liberdade não pode nadificar o passado, como passado. Seu passado é sua subjetividade como
resultado da existência, o sujeito é tendo sido. Reconhece-se como ser pela sua essência, que é
passado. O passado que se funde no presente. Porém, a liberdade sendo escolha é mudança e
define-se pelo fim que projeta e pelo futuro que deseja ser. O futuro é o que não é partindo do
passado que é o que é. É preciso nadificar o passado para que o futuro aconteça. Porém, nem
todo o passado, mas pontos que são alterados a cada momento. Sem o passado, o haveria
subjetividade, não haveria liberdade e escolha. A escolha do futuro é feita como conseqüência
do passado. O passado é irremediavelmente imutável. A nadificação muda o futuro, mas não o
passado. O que é passado, como, fato passado, não como mudar, mas como realidade
psicológica, o passado se ressignifica no presente frente a um futuro pela nadificação.
Importante salientar aqui que o passado na qualidade de fato, é imutável, como ter
morado em tal lugar. Porém, as significações do passado sempre vão se alterando em função
das experiências posteriores. Os significados são ressignificados nas escolhas posteriores. O
passado não tem um lugar para ser guardado intacto. O passado está ressignificado no
presente e no futuro. Nesse aspecto, é que é possível nadificá-lo. É o futuro que mostra se o
passado está vivo ou morto. É o futuro que permite ressignificá-lo. A liberdade, pelas suas
escolhas, decide se o passado deve continuar existindo em projetos futuros, ou se deve
nadificar e morrer. Existe o passado que deve morrer e o que precisa, pelo projeto futuro, ser
confirmado. Mas cada confirmação comporta escolhas, nadificações e ressignificações. Então,
o passado confirmado já é diferente, o que continua é submetido à ressignificação.
Um passado histórico existe, porque alguém se preocupou com isso. Seja por sistemas
políticos, ou por potências econômicas, fato é que um povo, que ressignifica seu passado o faz
por seus interesses, por seus projetos individuais. Isso vale para produzir as guerras ou para
criar melhores condições humanas de subsistência para um povo ou uma cultura. Um projeto
individual pode engajar outros projetos individuais, com as particularidades de cada um, mas
estar em sintonia com projetos sociais, poticos, coletivos, com a finalidade de alterar a
hisria coletiva daquela sociedade em foco. Portanto, as sociedades humanas, como as
pessoas humanas têm um passado em suspenso. Um passado que se coloca em questão, que
reaparece para ser nadificado. Um passado que, como fatos passados, é estático, mas como
sua expressão no presente é dinâmico, é vivo para morrer ou para continuar sendo
ressignificado. Para ser nadificado, ou para ser continuado.
E a historização perpétua do Para-si é
afirmação perpétua de sua liberdade
” (SARTRE, 1997, p. 616).
95
O passado é um dado que espera ser ratificado. Pela liberdade, o passado está sempre
em julgamento. O passado participa da livre escolha do sujeito atual, pois sem passado, este
ficaria sem subjetividade e não haveria condições de escolha. O passado aparece como um
fim do projeto essencial do sujeito no futuro.
Nesse aspecto, o projeto futuro que o sujeito faz hoje, pode muito bem dizer qual será
o seu passado amanhã, pelo menos em tese.
Assim como o passado permite estar no presente, também pode ser nadificado.
Permite estar separado do indivíduo, que pode rejeitar seu passado e tentar construir um
futuro totalmente diferente:
Assim, tal como a localização, o passado se integra à situação quando o Para-si, por
sua escolha do futuro, confere à sua faticidade passada a um valor, uma ordem
hierárquica e uma premência a partir dos quais essa faticidade motiva seus atos e
suas condutas
(SARTRE, 1997, p. 619).
Ser livre é ser possível de mudar. Liberdade para ser, para deixar de ser, para
ressignificar o ser. Ser livre para fazer, para transpor obstáculos ao se fazer. Para o sujeito se
reconhecer livre para ser no mundo, deve estar implícito o reconhecimento do dado que o faz
existir, num mundo contingente cercado de outros seres que ajudam ou dificultam seu projeto.
A liberdade mostra no sujeito que seu exercício em meio ao mundo está cercado pelos outros,
ao mesmo tempo em que ele não é os outros, ou seja, que existe uma separação entre o “Ser-
em-si” e os outros. E todo projeto está sujeito à imprevisibilidade por causa dos outros. O
sujeito não age num mundo isolado dos outros, os quais acabam sendo seu problema. E todo
projeto de liberdade é um projeto em aberto por contar com toda a dinâmica da faticidade, que
é imprevisível. Ainda que individual, o projeto não pode ser fechado, pois conta com as
adversidades. É pela liberdade que o sujeito está separado dos outros e das coisas. Porém, está
também vinculado às coisas sobre um fundo de nadificação, e é possível ser livre em
situação.
A liberdade está condenada a ser livre, não pode se escolher como liberdade. A
liberdade mesma é contingência. É pela contingência e seu transcender que pode haver
escolha. A contingência da liberdade e do “Em-si” se expressa em situação diante das
adversidades dos arredores que comem o universo circundante do sujeito. Porém, não é
o sujeito que sofre interferência dos outros, os istos, mas também reciprocamente, interfere
com sua presença, com seu projeto de ser no universo externo dos outros e dos istos. O
sujeito recebe um mundo já significado que ele pode aceitar ou não. Os projetos de outros lhe
96
oferecem situações prontas. A liberdade do sujeito de aceitar ou rejeitar o significado recebido
vai gerar um processo de aceitação ou rejeição por suas escolhas em situação. As condições
culturais ou morais que o sujeito recebeu ao nascer podem ser aceitas ou não, podem ser
questionadas, podem ser alteradas pelo projeto individual. As significações acontecem diante
de um mundo já significado. Um estado de mundo, ou de coisas, é imposto ao lugar do
sujeito no mundo.
Saber falar, por exemplo, significa se expressar por meio de uma língua que é coletiva,
é do país em que o sujeito aprendeu a falar como aquisição de sua linguagem. E o sujeito se
apropria desse digo de expressão como sua maneira de falar ou de se expressar, como sua
apropriação do mundo. É de grande complexidade a construção de aproprião do mundo
pelo sujeito diante dos dados que lhe são oferecidos. O sujeito vai selecionar, se adaptar ou
o às significações que recebeu de seus arredores e de outras consciências, de sua estrutura
material e potica e/ou familiar. É do mundo experimentado que o sujeito elege seu código de
identidade, aceitando ou rejeitando a complexidade que o rodeia com expressões as mais
diversas que comem sua cultura em foco. Existe o universo contingente da espécie humana
com sua significância em cada época, que oferece uma condição de vida ao sujeito que aí
acontece. Porém, são verdades oferecidas ao sujeito, mas não são verdades como algo dado no
sujeito. O “Ser-aíexposto é que vai eleger diante do mundo suas escolhas e seus fins. Como
espécie humana, encontra um mundo já significado, já dado como realidade objetiva, mas não
como subjetividade. Isso é sua existência que irá propiciar acontecer. Porém, a subjetividade é
a objetividade subjetivada. O ser se faz na sua relação com o mundo. Assim o “Para-si”é livre
em condição. Sartre chama de “situação” a relação entre condição e liberdade.
As significações que são oferecidas ao “Para-si” não podem ser um limite à sua
liberdade, ou seja, a liberdade não é questão do mundo, mas do ser, embora em situação. Não
existe natureza humana, somente realidade humana. A essência humana aparece como
projeto individual, como fundamento da livre escolha. Assim sendo, cada Para-si” é
expressão de uma realidade humana pelo seu ser. Um ser que aconteceu pelas escolhas para
além das significações que recebeu e de que não foi origem, ou seja, para além de sua
nacionalidade e de sua espécie. Isso confere ao “Para-si” o caráter de transcenncia. Ele
transcende como ser. O “Para-sisurge e se constitui num mundo diante de outros “Para-sis”.
E é diante desse mundo dado que se constitui como liberdade. A liberdade é fato com todas as
adversidades. É, pois, pelo olhar de outros “Para-sisque o “Para-si” se experimenta como
objeto. O sujeito como objeto torna-se um indicador de fins, pela expressão de seu projeto.
Assim, a relação entre os “Para-sis” é uma transcendência de fins. É por isso que para
97
entender uma obra, seja filofica, psicológica, ou mesmo uma obra de arte, precisamos situá-
la no tempo e no espaço, saber em que contexto da ciência esse sujeito viveu, quais as
técnicas faziam parte do mundo no momento de sua produção. Pois cada obra do sujeito
singular faz parte de seu projeto, de suas escolhas, porém, considerando a apropriação dos
caminhos que o sujeito que produziu a obra viveu:
O Para-si, para escolher-ser pessoa, faz com que
exista uma organização interna que ele transcende rumo a si mesmo, e esta organização técnica interna é, nele, o
nacional ou o humano
” (SARTRE, 1997, p. 637).
Sartre admite que a existência do outro é um limite à nossa liberdade, embora o a
inviabilize absolutamente. Sartre alega que nem mesmo a tortura despoja o sujeito de sua
liberdade. O verdadeiro limite à liberdade está no fato de que um outro capta o sujeito como
outro objeto. A objetivação do “Ser-para-siem Ser-para-outro” constitui os limites do ser. É
pela existência do outro que o sujeito se encontra numa situação que tem um lado de fora
como força que atua sobre sua presença. E a existência do outro é um limite à sua liberdade.
A interação de dois sujeitos é a interação de duas transcendências. E o limite da liberdade de
um é a liberdade do outro. A limitação interna é que não pode o ser liberdade, e a limitação
externa à liberdade só existe para outras liberdades à luz dos fins de cada um.
Ser livre é escolher ser no mundo frente aos outros. Assim, a liberdade do outro
confere limites a minha situação, e o sujeito experimenta esses limites na condição de “Ser-
para-outro” como transcendência. Diante do outro, o sujeito é condenado à liberdade e a
escolher-se. E apesar de construir sua subjetividade na relação, eu/outro, o sujeito é o que
de fato ele próprio escolher para si.
A identidade que lhe é oferecida pelo outro lhe confere um significado para si, mas
será de fato se concordar com tal escolha, ou seja, quem define a subjetividade é a própria
subjetividade, mesmo considerando o processo de transcendência mútua “Eu-outro”.
Os limites externos da liberdade não são um obstáculo real para a liberdade. Apesar de
a liberdade ter seus limites, diante do outro ela é total e infinita, pois os únicos limites com os
quais a liberdade se aliena, ou aos quais sucumbe, são aqueles que ela própria impõe a si
mesma. Então, o processo de liberdade é interno do sujeito e resultado de suas escolhas, e
embora o externo, ou seja, o outro coloque limites, jamais poderá anulá-lo. A liberdade é
projeto fundamental do sujeito, é subjetividade, é essência, é escolha de ser. Assim, a
liberdade é cada liberdade individual como resultado da escolha intencional do sujeito e da
faticidade. Da ação em situação.
Outro aspecto a ser considerado é a questão da morte. Sartre trata dessa questão como
um acontecimento da vida humana. A morte é um limite. Assim como o começo, o
98
nascimento, quando o sujeito acontece, a morte é um limite, um nada de ser que encerra um
processo, ou seja, uma vida. Um ser existente constitui uma significação que começa e
termina.
Diz Sartre sobre a morte:
Assim, o acorde final de uma melodia, por uma de suas faces, olha em direção ao
silêncio, ou seja, o nada de som que irá suceder à melodia; em certo sentido, tal
acorde é feito de silêncio, posto que o silêncio que se seguirá está presente nesse
acorde de resolução como sendo significação do mesmo
(SARTRE, 1997, p.
651).
A morte é o final da vida humana, e sempre sabemos disso. É uma situação que ainda
o podemos determinar, mas que faz parte da realidade humana. Para Sartre, a morte é um
fenômeno humano, o fenômeno último da vida, um termo da série da vida. A morte é um
fenômeno da vida pessoal do indivíduo que faz da vida uma individualidade única. Em Sartre,
o sujeito nasce e toma posse da vida, é livre e vive como individualidade e consciência única
em situação, e morre de posse única de seu processo de realidade humana, sua finitude como
o acorde final de uma melodia. E o sujeito vive toda sua vida sabendo que é perecível, que
morre, que um dia sua vida vai acabar. Mas esse é um acontecimento como os demais que
pertence à vida e à individualidade do sujeito. Como a característica única de amar, de ter
consciência, de experimentar o mundo, na mesma proporção, também pertence a ele o último
fenômeno da vida, que é a morte. A morte é um fato subjetivo e insubstituível, mas isso visto
de uma forma pré-reflexiva. Assim como, ao nascer, acontece a individuação do sujeito como
ser, diante da morte ele também está sozinho como fato seu, unicamente seu. Mas o sujeito
vive sabendo que é mortal sem esperar a morte.
O futuro é algo aberto como vida por tempo indeterminado. Sartre coloca a morte
como contingência da vida apenas. Diz que não há nada comprovado sobre o pós-morte e que
isso seria uma opção metafísica, a qual não cabe aqui discutir. Fato é que o homem é um ser
perecível como corpo e não há como negar isso. Existe uma estimativa de vida no planeta, e o
sujeito sempre leva em conta sua estimativa maior, mas pode morrer em qualquer idade,
embora não conte com isso.
Logo, a morte não é minha possibilidade de não mais realizar presença no mundo, mas uma
nadificação sempre possível de meus possíveis e que está fora de meus possíveis
(SARTRE, 1997, p.
658).
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Porém, é da natureza do “Para-si” temporalizar-se, estar sempre diante de um futuro,
de um porvir. E é assim que vive, salvo em situações de condenação, que podem ocorrer por
rios motivos: doenças, guerras, pena de morte, entre outras.
A morte é a junção do Em-si-para-si” como um fim total. Nesse momento, tudo se
encerra, e o sujeito é uma junção final daquilo que é tendo sido como expressão definitiva,
pois o vir-a-ser acabou.
A morte não sentido à vida, a morte não faz parte da liberdade, ela é uma
interrupção de tudo. E, enquanto estamos vivos, esperamos a morte como possibilidade
inegável, pom, salvo as exceções de condenação, ela está para além do viver, o limitando
os fins de quem os projeta, porque é próprio do ser temporalizar-se sempre enquanto existir.
Colocar a morte como limite é colocar um fim às escolhas, aos projetos e fins.
Diz Sartre que
o suicídio é uma absurdidade que faz minha vida soçobrar no absurdo
” (SARTRE,
1997, p. 662). O suicídio tem uma significação para quem o pratica. É um projeto diante de
uma situação considerada sem saída naquele momento, mas é um ato do sujeito, ainda que
carregado de absurdidade. E é absurdo porque a morte não faz parte da liberdade, embora o
suicídio, como única saída, pode conferir uma escolha do sujeito. O suicídio pode ser
entendido diante da faticidade do suicida. Além disso, o suicida estaria ligado às
circunstâncias da vida e o da morte, por isto ele é um ato do sujeito suicida.
Estar diante da morte é estar diante do fim de todos os projetos possíveis. Por isso, o
suicida encontra razões para a morte na vida que vive, não na própria morte. Isso vale também
para as situações de martírio ou heroísmo. O sujeito suicida sua significação à morte pelos
seus projetos de vida. O suicídio é absurdo, pois o próprio sujeito tira sua liberdade de
continuar existindo, porém diante de um último ato de liberdade de escolha, ou mesmo de
afirmação de seus propósitos. A morte não poderia ser uma possibilidade para o suicida, visto
seu aniquilamento, porém justifica-se, compreende-se, pela vida que vive, pelas
circunstâncias que o levaram ao ato.
A morte não poderia pertencer à estrutura ontológica do Para-si”, pois ela significa
uma aniquilação do existente e remete à existência do outro. Poderia-se dizer que, na
significação do suicida, a sua morte não seria em vão, mas seria um ato de sua existência
mesma contra sua possibilidade de existir:
A morte é um puro fato, como o nascimento; chega de fora e nos transforma em lado
de fora puro. No fundo, não se distingue em absoluto do nascimento, e é tal
identidade entre nascimento e morte que denominamos faticidade
(SARTRE,
1997, p. 668).
100
A realidade humana é finita como começo e fim. Temporaliza-se como liberdade, e
mesmo que tivesse outra chance, essa vida se temporalizou e acabou. Esse é um caráter de
finitude do sujeito. A morte, assim como o nascimento, é algo dado no qual o sujeito está
inserido como sua faticidade. A morte é o fim do sujeito como subjetividade. É o limite
externo à subjetividade. Só na morte o sujeito perde sua condição de liberdade.
Questionado sobre as condições poticas do mundo aos setenta anos, Sartre
argumentou que não se sentia muito otimista quanto à evolução dos fatos históricos no que se
refere à questão da liberdade. Num plano geral diante dos sistemas poticos do mundo, disse
Sartre:
Mas, efetivamente, ou o homem se desmorona e então tudo o que podemos
dizer é que, durante os vinte mil anos em que houve homem, alguns tentaram
criar o homem e fracassaram ou então essa liberdade triunfa e cria o homem
realizando a liberdade. Nada é menos seguro. Também o socialismo o é uma
certeza, é um valor: é a liberdade que se toma a si própria como fim
(SARTRE, 1977, p. 201).
A liberdade não é uma idéia ou uma abstração, ela é o homem como existência, como
fato de existir no próprio exercício da liberdade, como sujeito individual e histórico.
O homem é condenado a escolher, mas tanto pode escolher a liberdade quanto a
alienação e muito que se lutar contra a alienação para se chegar a uma sociedade de
homens livres, ou seja, de posse de si mesmos.
101
CAPÍTULO IV
4. A PSICANÁLISE EXISTENCIAL COMO MÉTODO
Faremos aqui, com referência ao texto sobre a psicanálise existencial da obra O Ser e
o Nada, uma reflexão sobre a formão de personalidade do sujeito diante de seu projeto e
suas escolhas, e para descrever no capítulo seguinte a concepção fenomenológica de sujeito.
A psicanálise existencial é um método de investigação da realidade humana. Sartre
propõe um todo por meio do qual seja possível investigar o projeto fundamental do sujeito,
bem como intervir na realidade humana. O homem é uma totalidade e não uma colão de
desejos e comportamentos. No entanto, ele se expressa por inteiro em cada atitude, pois cada
ação revela seu ser inteiro. A elucidação da escolha original ao sujeito uma compreensão
global de si mesmo.
A realidade humana se define pelos fins que persegue, pelo seu projeto fundamental.
Assim sendo, para entender o sujeito, é preciso entender quais são suas lutas e como se
inscreve seu projeto fundamental. Os fins fazem parte da subjetividade absoluta, bem como
seus limites objetivos de expressão (SARTRE, 1997).
Na psicologia empírica, o sujeito se define por seus desejos. Porém, segundo Sartre, a
psicologia empírica é tima da ilusão substancialista. O desejo assim concebido existe no
homem como um conteúdo de sua consciência. Para a psicologia empírica, o desejo é inerente
ao próprio desejo e isso evita a idéia de transcendência. Para Sartre, não desejamos algo que
está dentro de nós. e sim fora. Se desejamos uma casa, a casa não está no nosso interior mas
na objetividade.
O desejo é a consciência do objeto desejável. Não é uma entidade psíquica que habita
a consciência. Os desejos constituem a consciência original e transcendente, pois
“[...] toda
consciência é consciência de alguma coisa
(SARTRE, 1997, p. 33). Uma investigação psíquica não
pode ser alcançada pelo conjunto dos desejos empíricos. Não pode também ser alcançada por
leis abstratas e universais. A análise psíquica segue um caminho único, assim como cada
subjetividade é única. Ainda que a maneira de entender a consciência e a subjetividade seja
universal, não é plural. Na relação do sujeito com o mundo, tudo se processa de forma única.
Não se pode explicar, por exemplo, o comportamento de um adolescente partindo de
conceitos abstratos sobre a adolescência, e sim pela experiência do sujeito adolescente em
questão, considerando seu projeto originário e atual. Assim, as neuroses e as psicoses devem
102
ser entendidas por seus conflitos ou sintomas individuais e não generalizados. O delírio de
grandeza deve ser compreendido como estruturado naquela personalidade em foco e não
como um conceito construído independentemente do sujeito. A questão psíquica se busca nas
expressões concretas de cada sujeito e não em conceitos construídos previamente para
explicar os psiquismos em geral. O comportamento é significante. As condições do sujeito,
econômicas e de educação não podem explicar tal comportamento senão do ponto de vista
individual dentro do projeto do sujeito em foco. O método dialético fenomenológico é a
orientação na busca do projeto do sujeito como construção em curso. Por isso, numa mesma
sociedade, ou numa mesma família não se produzem seres iguais, pois cada sujeito processa
sua experiência diante do dado e de suas escolhas na qualidade de sujeito. O Para-si é
único, não se repete jamais.
Uma significação se fundamenta no sujeito, na sua relação com os fatos e o mundo. É
individual e contingente. Compreender o sujeito pela sua objetividade subjetivada sem
recorrer à iia de substância, ou a postulados metafísicos, e sim pelo seu processo de relação
com o mundo como uma unidade que comporta um projeto de ser. E esse ser do homem
surge depois da experiência que o unifica como ser. Todo desejo apresentado pelo sujeito
envolve a realidade humana em seu todo. O projeto o se apresenta fragmentado, e sim cada
fragmento representa seu todo. Portanto, o projeto original é o que deve ser buscado. Nele
está a plenitude original do sujeito. E em cada conduta do sujeito deve-se encontrar uma
significação que a transcenda e unifique a significação de seu todo. O método de investigação
para compreensão do sujeito deve ter o objetivo de buscar a significação do projeto
fundamental do ser como “Ser-no-mundo”. É diante das diversas atitudes do sujeito que se
pode chegar ao projeto fundamental, pela significação que é comum a todas as atitudes. E em
cada atitude se encontra o sujeito inteiro. Tantos são os projetos possíveis assim como tantos
são os sujeitos possíveis, mas cada projeto é individual e único. O projeto original de um
Para-si” só pode visar a seu próprio ser. O “Para-si” é unicidade por excelência.
O Para-si” é um ser que está em questão em seu projeto de ser. Ontologicamente, se
define o Para-si” como falta de ser. A liberdade identifica-se com a falta de ser, e o “Para-si”
escolhe porque é falta. O homem é desejo de ser. O desejo de ser deve ser entendido por uma
descrição do ser doPara-si” e não por uma dedução empírica, e a subjetividade é um
momento da objetividade.
As tendências do sujeito devem ser entendidas como resultado do projeto original de
ser. Em Freud, as tendências existem em relação aos complexos e à libido original, isto é, o
desejo de ser primeiro para depois se expressar pelos desejos posteriores como conseqüência.
103
Em Sartre, primeiro sentimos o mundo, depois existimos. É na objetividade que nos
reconhecemos, nos sentimos. Nessa ontologia, o desejo de ser existe e se manifesta nas
relações concretas como, por exemplo, pelo amor, pelo ódio, pela covardia, como as tantas
expressões contingentes que fazem com que a realidade humana apareça como manifestada
por um ser singular. O ser desse desejo é o “Para-si”, que é para si mesmo a sua falta de ser. A
realidade humana é desejo de ser “Em-si”. O ser que falta ao “Para-si” é o “Em-si”. A
nadificação assemelha-se a uma revolta do “Em-si”, que se nadifica contra sua continncia.
Os fins são perseguidos a partir de uma situação particular e em continncia (SARTRE,
1997).
O desejo de ser é então maneira de ser. Estamos diante de uma arquitetura simbólica
muito complexa: o desejo é uma simbolização concreta e fundamental do sujeito, e ele
representa o modo de ser que o sujeito escolheu para ser. Esse desejo fundamental se expressa
no mundo na situação singular que envolve o sujeito. É uma estrutura significante que é a
realidade humana daquela pessoa, uma concretude absoluta de uma existência como
totalidade.
O projeto fundamental é captado objetivamente por meio dos desejos. A estrutura
ontológica do desejo de ser é a estrutura da pessoa mesma. A nadificação é falta de ser, a
liberdade é o ser que se faz falta de ser, e o desejo é idêntico à falta de ser.
O ser que se faz falta de ser se faz como liberdade na “existência que precede a
essência”. Assim, pode-se dizer que o desejo é uma significação humana que se expressa
como liberdade de ser, é o projeto fundamental do sujeito que organiza essa significação. O
projeto fundamental norteia toda sua expressão nas mais diversas situações pelos seus desejos
na sua relação com o mundo.
A investigação da realidade humana deve seguir um todo, que Sartre chama de
psicanálise existencial. O método é uma possibilidade de investigação ao qual é possível
submeter a realidade humana. O entendimento do sujeito, segundo a psicanálise existencial,
consiste em ver o sujeito não por uma coleção de desejo, mas por uma totalização que se
expressa por inteiro em cada conduta singular.
Para Sartre, todas as expressões revelam o projeto fundamental do sujeito, cada
expressão, cada conduta revela o significado do seu todo. A psicanálise existencial tem por
princípio decifrar o comportamento e classificar as suas significações na compreensão de um
todo do ser. O método é comparativo, uma vez que é preciso avaliar cada conduta, desejos,
emoções, na busca da significação fundamental, simbolizada na escolha fundamental.
104
O método primordial de investigação está na psicanálise de Freud, e é preciso
esclarecer aqui quais as semelhanças e diferenças: as duas psicanálises, de Freud e de Sartre,
consideram as manifestações objetivas que revelam a vida psíquica do sujeito como
simbolização das estruturas fundamentais do sujeito. As duas consideram a inexistência de
dados primordiais como inclinações hereditárias, caráter etc. A psicanálise existencial nada
reconhece antes do surgimento da experiência da liberdade humana, pois como já vimos,
primeiro existimos depois constituímo-nos enquanto essência.
A psicanálise empírica considera que a afetividade primordial do sujeito é um
conteúdo virgem, mas que existe a priori à experiência. Tanto Freud quanto Sartre
consideram o sujeito como história perpétua e procuram descobrir a orientação dessa história.
Ambos consideram a situação em que o sujeito está inserido no mundo, a maneira como
vivenciou sua história, ou os fatos de sua história, bem como sua evolução psíquica e
simbolização interna. Ambas não partem de definições lógicas, pois entendem o sujeito em
situação, e isso antecede a qualquer lógica. A psicanálise empírica procura determinar o
complexo, a psicanálise existencial procura determinar a escolha original, que se constitui
frente ao mundo. A escolha é totalitária como o complexo.
Ambas consideram que o sujeito não está em posição de proceder às investigações
sobre si mesmo e apresentam um método objetivo. A psicanálise empírica parte da premissa
de um psiquismo inconsciente que se furta à intuição do sujeito.
A psicanálise existencial por sua vez rejeita o postulado do inconsciente, o fato
psíquico é co-extensivo à consciência. Porém, ter consciência, nesse caso, não significa ter
conhecimento. O projeto fundamental é vivido de forma consciente pelo sujeito, mas isso não
significa que seja conhecido por ele na sua totalidade. No trabalho de investigação
psicanalítica, o psicanalista procura extirpar os complexos do inconsciente. Na psicanálise
existencial a investigação procura evidenciar ou revelar o projeto de escolha original do
sujeito e seu projeto de liberdade.
divergência de caráter fundamental nos dois métodos de investigação psíquica:
diferença no embasamento ontológico e antropológico, aspectos em que Sartre critica a
psicanálise de Freud. A psicanálise existencial opõe-se às interpretações genéricas sustentadas
numa simbólica universal. Enfatiza o sujeito concreto, individual, e o método dialético
fenomenológico.
Uma realidade humana não se expressa obrigatoriamente pela vontade de poder ou
pela libido. A escolha, na psicanálise existencial, denuncia a continncia originária.
105
A escolha se fundamenta sobre a falta de ser como caráter fundamental do ser e recebe
legitimação como escolha apenas. Será sempre singular, não se pode alcançar um fundamento
de todos os comportamentos em termos abstratos e genéricos como é a libido. A escolha é
única, desde sua origem é a concretude absoluta. A escolha é o ser de cada realidade humana.
Existir e escolher é a mesma coisa para a realidade humana.
A psicanálise existencial não precisa se reportar ao complexo fundamental. O
complexo é escolha última, é escolha de ser. A libido e a vontade de poder o aparecem à
psicanálise existencial como caracteres genéricos comuns a todos os homens.
O desejo e a sexualidade expressam um empenho originário do “Para-siem relação
ao outro. Assim, a psicanálise existencial não tem como objetivo estabelecer leis empíricas ou
construir uma simbólica universal.
A psicanálise existencial é flexível, trata-se de compreender o universal individual. O
objetivo da investigação deve ser a descoberta da escolha e não de um estado. Seu objetivo
o está no inconsciente, mas numa determinação livre e consciente.
A psicanálise existencial é um método que busca elucidar, de forma objetiva, a escolha
subjetiva do sujeito. O método busca a escolha de ser, e um ser não pode se reduzir à
sexualidade ou vontade de poder. Os comportamentos singulares são expressões do ser e de
maneiras de ser. As condutas estudadas pela psicanálise existencial não são somente os
sonhos, atos falhos, obsessões e neuroses, mas também os pensamentos despertos, os atos
realizados, o estilo e outras expressões.
Para a psicanálise existencial, não existem desejos abstratos comuns a todos os
homens. desejos concretos como comer, dormir etc., que exprimem toda realidade
humana. Porém, o sujeito deve ser entendido como totalidade. Nesse entendimento, os
conhecimentos empíricos e parciais são desprovidos de significação.
O desejo é falta de ser e se sustenta no ser do qual é falta. A realidade humana é uma
relação vivida. O desejo é um existente concreto que se chama objeto do desejo. O objeto
pode ser um automóvel, um homem, uma mulher, um objeto não realizado, mas definido. O
desejo se exprime por vários objetos no mundo, como um aspecto do “Ser-no-mundo”.
Muitos poderiam ser os exemplos de objetos que desejamos, mas podemos dizer que
toda existência humana concreta se resume em fazer, ter e ser.
O desejo é relação do sujeito com o mundo. O desejo existe em um Ser-no-mundo”.
O “Em-si” concreto é objeto do desejo, o “Em-si /Para-si”, o ideal do desejo.
Possuir um objeto significa tê-lo, usá-lo, possuí-lo. O desejo pode ser originariamente
desejo de ser ou de ter. O desejo de ser recai diretamente sobre o Para-si”. O desejo de ter
106
visa ao “Para-si”, por intermédio do mundo. O projeto de ter tem como objetivo realizar o
desejo de ser. O desejo de ter e ser se acompanham, são duas direções com um mesmo
objetivo, intercalando o mundo entre o “Para-sie seu ser. Todo “Para-sié livre escolha, e
em cada ato traduz essa escolha. A isso Sartre chama de liberdade.
A escolha é escolha de ser e está implícita em todos os projetos do sujeito. A
psicanálise existencial tem por objetivo buscar nos projetos concretos a maneira original que
cada ser tem para escolher seu ser. A escolha original é a maneira como o ser se revela e se
faz possuir. A psicanálise existencial deve extrair o sentido antológico que define o ser como
totalidade e não por uma parte dele, como por exemplo, por qualidades, sobre a sexualidade.
Não são gostos que devem ser analisados, buscados, mas a escolha original que gera
os possíveis gostos, ou seja, os gostos se definem antes pelas escolhas de ser do sujeito. Os
desejos o são causas, e sim conseqüências, das escolhas.
A totalidade do Para-sie do Em-si” tem como característica o fato de que o “Para-
si” se faz outro em relação ao “Em-si”. Mas o Em-sinão é outro que o “Para-si” em seu ser.
O ser existe como fundamento dessa totalidade comprometido nela.
Não se pode separar o “Em-si” do Para-si”, por ambos formarem uma totalidade
inseparável. A psicanálise existencial deve revelar ao homem o objetivo real de sua busca,
que é a fusão sintética do “Em-si” com o “Para-si”, objetivando a significação de suas
escolhas, de seu projeto fundamental, como totalidade de seu ser. Assim, o projeto de ser do
sujeito é objetivo, se encontra na vida social, como subjetividade, mas como seu “Ser-no-
mundo”.
O sujeito é uma totalidade, e não uma coleção de desejos, e essa expressão de
totalidade exprime-se em cada conduta. A psicanálise existencial é o método que propicia
chegar à escolha original do sujeito, visa à estrutura psíquica e seu projeto de ser, porque o
homem é seu projeto de ser. Para Sartre, entender o sujeito é descrever suas ações, o contexto
no qual age, mas não se pode limitar essa compreensão tão abrangente ao discurso, como faz
a psicanálise de Freud. O sujeito não pode ser visto só pela subjetividade, mas em seu
contexto histórico material e social, no qual constrói sua personalidade. A subjetividade,
como já foi dito, é a objetividade subjetivada.
A objetividade é o contexto histórico, econômico e social, e a ação do sujeito é um
processo dialético. Um processo concreto, dialético e singular, mas no mundo. Para Sartre, o
sujeito concreto faz a história mesmo que em circunstâncias dadas. É assim que considera a
psicanálise como um método que permite compreender o sujeito desde sua infância, seu papel
diante do dado e como, com suas escolhas, chega a ser um sujeito dentro do processo dialético
107
no social, em que se faz e faz a história ao mesmo tempo em que é feito por ela. Assim, a
hisria é feita por muitas subjetividades e por muitos projetos, que formam um jogo de forças
que pode resultar num processo de alienação, pois o indivíduo não tem real controle de toda
complexidade dentro do meio, ou do grupo social, em que está inserido. As condições dadas
do sujeito já podem colocá-lo na infância dentro de um processo de alienação, embora isso
o o coloque em situação de vítima apenas,ou seja, ele sempre é capaz de fazer alguma coisa
do que fizerem dele, pois o que caracteriza o homem é sua transcendência. É a transcendência
que possibilidade de existência das condições de projeto do sujeito como sujeito único e
responsável pelo projeto que construir, seja ele qual for. O projeto é construído dentro das
condições materiais e sociais em que o sujeito viveu e vive objetivamente.
A questão aqui é como o sujeito faz suas escolhas dentro do contexto objetivo.
Existem muitas maneiras de agir/reagir, e cada um escolhe como fazer isso. A situação pode
estar objetivamente dada, mas é o sujeito que diante dela se posiciona, ou intenciona e realiza
uma ação concretamente. As escolhas são as apropriações da objetividade, e o projeto é uma
apropriação subjetiva da objetividade. A compreensão da realidade humana passa pelo
movimento diatico entre o objetivo e subjetivo. Para Sartre, a psicanálise existencial é um
novo caminho para a psicologia como ciência, na intervenção da realidade humana na
qualidade de sujeito social. Esse método permite investigar a realidade particular em que o
sujeito se faz como ser, como subjetividade, e qual o projeto específico que foi empreendido
na trajetória de vida existencialmente.
É na hisria existencial do sujeito, no seu processo de liberdade, que se pode entender
sua personalidade, como resultado de seu projeto original, sua trajetória de escolhas e quais as
características do processo de nadificações realizada, mas acima de tudo, qual o projeto de ser
do sujeito. Ser é unificar-se no mundo. O desejo transcende em direção ao projeto de ser, e as
escolhas, como expressão desse desejo, devem ser vistas como realização desse projeto que é
o ser. O lugar do sujeito, dentro da família, dentro dos grupos sociais, ou em suas relações,
revela seu projeto, suas escolhas; tudo é vivido e decidido em situação.
Para Sartre, a liberdade é absoluta no ser, mesmo considerando as adversidades da
faticidade, da situação. Assim, o sujeito é singular e universal e deve ser entendido como
singularidade em seu meio social, cultural, material que o compõe, ou seja, pela relação entre
hisria individual e história de seu meio entre sujeito e mundo.
Partindo dos aspectos concretos da vida, dos fatos, a psicanálise existencial se proe
a fazer psicologia com caráter de ciência, e o psiquismo passa a ser entendido como história
singular construída em situação. É da análise e compreensão do seu projeto atual que contém
108
sua história que se pode entender as condições psíquicas, bem como suas complicações, ou
mesmo a loucura.
A psicanálise existencial se proe a uma psicologia cnica científica, e chegar ao
esclarecimento do projeto essencial do sujeito é chegar à célula essencial desse ser como
psiquismo e como consciência. Porque a psicanálise existencial visa explicar, ou entender o
sujeito como totalização e não de forma fragmentada.
O objeto de análise é o sujeito singular, mas o contexto da objetividade que foi seu
percurso histórico está presente como resultado na subjetividade do sujeito atual. É
compreendendo as escolhas, o projeto de ser que o sujeito fez durante o percurso da sua
experiência que se chega à compreensão dessa singularidade em foco, levando-se em conta
que essa singularidade é também universal por ser compreendida objetivamente,
historicamente. Porém, é a análise da singularidade que prevalece como dado concreto e
único, a compreensão do sujeito como totalização única. A personalidade do sujeito é a
totalização que constantemente se “destotaliza” e “retotaliza” num processo dialético entre
sujeito/meio, e o sujeito é resultado do que ele conseguiu fazer do que fizeram ou fazem dele,
no exercício de sua liberdade.
Segundo Sartre, no sujeito tudo é comunicável e com os elementos necessários de sua
experiência é possível decifrar o seu projeto fundamental. Sartre, em entrevistas, “Situações
X”, argumenta sobre a obra de Flaubert dizendo:
[...] posso prever Flaubert, conheço-o, e é esse o
meu alvo, para provar que qualquer homem é perfeitamente conhecível desde que se utilize o método apropriado
e que se possuam os documentos necessários
” (SARTRE, 1977, p. 98).
Sartre trabalha com um novo entendimento de psiquismo, como já vimos desde “A
Transcendência do Ego”, porém, trabalha com os elementos de toda complexidade que esta
ciência exige.
Sartre não aceita a iia de inconsciente. O que seria inconsciente-consciente em
Freud, para Sartre é uma idéia de conjunto cuja superfície é consciente e que o resto é opaco a
essa consciência, está oculto, mesmo não sendo inconsciente.
Compreender um sujeito é compreendê-lo historicamente. O fenômeno psíquico deixa
de ser um fenômeno subjetivo apenas, para inscrever-se como objetividade subjetivada, como
expressão de um ser com seu projeto de ser diante do dado. O sujeito é visto no contexto de
suas relações e no movimento dialético com o mundo, ou seja, com o seu mundo.
Sartre construiu o método da psicanálise existencial num momento histórico da França
e do mundo, onde a psicanálise freudiana se apresentava como uma das primeiras descrições
da compreensão do sujeito psíquico e suas complicações.
109
Num momento histórico tão importante, a filosofia não poderia estar alheia aos
acontecimentos. E assim em Sartre, na apropriação de seu contexto histórico, a filosofia e a
psicologia se tornaram seu grande legado, pelos questionamentos a seus fundamentos na
compreensão do ser do homem. O homem passou a ser entendido como um ser em situação
concreta e não mais por dados abstratos e universais.
Na filosofia, pela fenomenologia, Sartre questionou os fundamentos do pensamento
ocidental, propôs uma nova ontologia e com os princípios dessa nova ontologia, mostrou
novas perspectivas para a psicologia. Juntas, filosofia e psicologia compreendem o ser do
homem como fenômeno na objetividade. A realidade humana é resultado da dialética entre
subjetividade e objetividade, sendo a subjetividade objetividade subjetivada. Assim, a
consciência rompe com a postura do idealismo e realismo e o sujeito passa ser sujeito do
conhecimento. A consciência é autônoma e a forma de o sujeito se relacionar com a realidade.
O sujeito é um ser no mundo, sua existência precede a essência”, e acontece
objetivamente. O homem é um ser dialético, condenado a uma liberdade absoluta, podendo
sempre transcender o seu destino diante do dado.
As semelhanças e as diferenças, bem como a ontologia que orienta cada uma entre a
psicanálise de Freud e a psicanálise existencial de Sartre, sem vida dariam assunto para
mais uma dissertação. O objetivo desta exposição foi apenas situar os fatos, ou as abordagens,
mesmo que sucintamente, e especialmente, com relação à psicanálise de Freud.
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CAPÍTULO V
5. SAINT GENET (uma concepção fenomenológica de sujeito)
Na obra “Saint Genet: ator e mártir”, Sartre usa a biografia do escritor Jean Genet
para, por meio de suas obras literárias, fazer uma análise do desenvolvimento e formação da
personalidade do sujeito na sua relão com o mundo.
Jean Genet nasceu em Paris em 19 de dezembro de 1910, filho de Gabrielle Genet e de
pai ignorado. Órfão, abandonado pela mãe, foi colocado aos cuidados do Estado. Com sete
anos, foi adotado por uma família de camponeses do interior da França, cidade de Morvan,
sendo cuidado por Charles e Eugénie Régnier. Genet, então, passou a viver numa família de
cultura religiosa, que valoriza muito a posse de terras, por serem camponeses, com valores e
regras morais muito gidos pela religiosidade. Genet não podia se sentir digno de tais valores
pela sua condição de filho rejeitado. Sobre essas bases começa ser constrdo o ser de Genet.
De fato, filho de ninguém. Desde a infância, preferia o isolamento, pois a solidão do
abandono já fazia parte integrante de seu ser. Suas posses econômicas eram de sua família,
mas não suas, não pertencia de fato àquela família, seu lugar era um lugar estranho que o o
pertencia e nunca de fato pertenceria, era apenas uma família posta, diferente. Em
contrapartida, admirava as hierarquias da igreja, do Exército, até mesmo do mundo do crime,
quando fez parte. Era importante ser o melhor, considerando também os aspectos dos valores
masculinos das suas vivências que marcaram sua época (SARTRE, 2002; GENET, 1968).
Genet era uma criança tímida, mas inteligente e gostava muito de ler e escrever.
Escrevia muito bem, tanto que uma redação sua certa vez foi premiada: Genet conquistou o
primeiro prêmio escolar por ter feito a melhor redação sobre o tema “Descreva o seu lar”. Os
colegas de aula zombaram de Genet porque ele não tinha um lar, nunca tivera um lar e então
sua redação era falsa (GENET, 1968; SCHNEIDER, 2002). Esse ato mostrou a Genet o
abismo que existia entre ele e os garotos de sua escola. Nada parecia normal, estava fora da
sociedade constituída dentro de determinados digos morais, onde um filho rejeitado,
adotado, não podia se sentir em aconchego. De que forma poderia se realizar se não pertencia
à sociedade “normal”? Qual era seu lugar?
É nesse contexto familiar, econômico, político e cultural que Genet vai fazer suas
escolhas diante do dado de sua realidade. Praticava pequenos roubos na infância, roubando
pequenos objetos de seus pais adotivos e vizinhos e fazia disto uma maneira de conseguir o
111
que queria, sem remorso ou vergonha, até que aos dez anos foi flagrado roubando e recebeu a
designação mais perversa e avassaladora que uma criança poderia receber: você é um ladrão.
Essa atitude destitui sua inocência, a brincadeira de roubar, e o colocou frente a um outro
caminho, o do roubo e depois do crime. Nesse momento, Genet sentiu-se excluído do mundo
dos “honestos”. Aconteceu o que Sartre chama de metamorfose, pois quando Genet condenou
a si mesmo, assumiu a identidade de ladrão, fez do mundo do crime seu refúgio e se exaltou
pela perversidade. Assim, foi humilhado e excluído da sociedade.
Seus pais adotivos, apesar de austeros, o tratavam bem e o incentivavam nos estudos.
Quando Genet foi flagrado roubando, poderia ter tomado outra atitude, ou feito outra escolha,
apesar de ter apenas dez anos, mas parece que a designação de ladrão foi assumida como a
única saída possível e, por isso, deveria ser o maior e melhor como ladrão, como vingança
diante da condição em que a sociedade o colocara, uma vingança sutil e requintada. A
escolha de Genet foi ser o que o crime fez dele. A família adotiva e todos os moradores da
comunidade onde morava passaram a tratá-lo como ladrão. Impuseram-lhe um estigma o qual,
sendo filho bastardo, era um veredicto.
Aos onze anos a mãe adotiva morreu e Genet passou a ser cuidado pela tia e seu
marido, que o colocaram em trabalhos forçados, mas Genet rebelou-se visto que o estava
acostumado trabalhar na família adotiva. Aos treze anos, por ordem do Estado, deixou a
família adotiva e foi para um centro de aprendizagem. Fugiu duas semanas depois de
instalado na École d’Alembert. Depois disso, Genet foi morar com um compositor de canções
populares, Re de Buxeuil, que o acusou de roubo e o devolveu às autoridades. Então, Genet
foi mandado para um reformatório, vivendo uma vida de criminalidade a partir desse
momento. Aos dezesseis anos, foi enviado para Mettray, colônia penal para menores, onde
estabeleceu a carreira no mundo do crime, da marginalidade e da homossexualidade.
De 1920 a 1930, viveu como marginal, visitou vários países da Europa, atravessando
fronteiras como clandestino e vivendo da medicância e da prostituição. Foi preso várias vezes,
passou fome e humilhação. Genet viveu no mundo da criminalidade, não tinha amigos, vivia
na mais perfeita solidão. Suas relações amorosas eram mais de uso e não havia compromisso.
Era o mundo da prostituição apenas. Genet retornou à França quando, com a ocupação alemã,
as cadeias estavam cheias de intelectuais que eram contrários ao nazismo. A influência desses
intelectuais o recolocou em contato com a literatura, ele voltou à leitura, coisa que já conhecia
desde a infância.
Em 1948, Genet foi condenado à prisão perpétua por um crime que não cometeu,
tendo assumido a culpa no lugar de um colega para protegê-lo moralmente. Jean Cocteau,
112
Jean-Paul Sartre e Albert Camus ficaram impressionados com Genet e pediram ao presidente
da República Vicent Auriol o perdão para Genet, que foi concedido, liberando-o da prisão.
Genet mostra com sua obra os falsos valores da sociedade dita normal e revela que
mais cios na alta sociedade do que nas prisões. Escrever foi uma necessidade que nasceu
nas prisões. Escrever para ele, é coisa de quem não vive.
os que não vivem podem escrever
(GENET, 1968, p. 14).
Em 1942, Genet, aos 32 anos, escreveu seu primeiro poema, “Le condamné a mort” (o
condenado à morte), em homenagem a um colega executado. Com esse poema Genet entrou
no mundo da literatura. Escreveu depois o primeiro romance, Notre-Dame des fleurs” (Nossa
Senhora das flores), uma obra que relata a vida nas pries, carregada de erotismo, crime e
homossexualidade. A partir de então, sua carreira de escritor decolou e se tornou cada vez
maislida.
Seus romances o: “Notre-Dame des fleurs” (1942); “Le miracle de la rose” (1943);
Querelle” (1946); “Pompe funèbres” (1947); “Journal du voleur” (1949).
A partir de 1955, escreveu peças teatrais. Escreveu também poemas, ensaios, e texto
para balé. Quando a peça “Les Paravents” foi encenada em Paris, em 1966, por Jean Louis
Barrault, num teatro subvencionado pelo governo, provocou violentas manifestações. O alvo
principal da peça era o exército francês, e os militares se sentiram insultados. Os
manifestantes chegaram a pedir o enforcamento de Genet. O ex-presidiário, ladrão e pederasta
viu a alta sociedade enfurecida com sua arte. Era uma revanche do menino bastardo dos
reformatórios.
A obra de Genet é um relato de sua experiência com a homossexualidade, e com o
mundo do crime. Sua obra apresenta o ser de Genet como personagem principal a ser
explorado na compreensão de sua personalidade.
Sartre usou a própria obra de Genet para escrever sua biografia à luz do
existencialismo em Saint Genet: Comédien et martyr”. A personalidade de Genet é
profundamente analisada nessa obra de Sartre, publicada em 1952.
Genet foi sempre um rebelde, um solitário, mesmo entre o grupo de intelectuais
franceses de que poderia ser parte, não se sentindo parte integrante de nenhum mundo ou
grupo.
Sua obra o colocou no mundo da legalidade, mas Genet parecia sentir-se mais à
vontade entre os marginais que é sua trajetória de vida. São dois mundos extremos, o dos
intelectuais e dos marginais, mas Genet pertencia aos dois, vivendo ora num, ora noutro,
como duas experiências suas.
113
Na década de 1970, saiu um pouco de seu isolamento e participou de movimentos
sociais contra discriminação racial e sexual. Genet morreu em 1986, de câncer, em Paris.
Genet é o resultado de uma singularidade que acontece no mundo, como qualquer
outra, bem como o papel de uma sociedade, de uma patologia coletiva, que o ajudou fazer
determinadas escolhas na sua apropriação do mundo e não outras. Um monstro se cria de uma
relação patológica entre sujeito e meio, uma patologia coletiva. Os “honestos” fizeram da
criança de Genet seu bode expiatório, em nome de uma moral institucionalizada e
institucionalizante. Assim, devido a pequenos roubos na infância e, em conseqüência, ao
estigma, de ladrão, Genet assumiu o projeto de ser ladrão e chegou ao mundo do crime, do
roubo, da pederastia, um desclassificado da sociedade que assim o concebia. Genet acabou
produzindo uma literatura complexa que o consagrou como um grande poeta e literato da
própria sociedade conservadora que o condenou. Sartre procurou nessa personalidade uma
explicação sobre como e por que o marginal, criminoso, depois escritor construiu sua
trajetória de vida com uma expressão tão conturbada, como construiu seu projeto de ser, suas
importantes escolhas diante do dado, ou seja, diante de suas condições sociais, materiais e de
origem familiar e potica, diante da sociedade, dita normal, que o condenou e depois o
imortalizou pela sua obra literária.
Sartre escolheu Genet para sua pesquisa, como poderia ter escolhido qualquer outra
personalidade. O interesse por Genet não o coloca em diferentes condições em relação a
outros personagens, pois qualquer sujeito tem sua formação de identidade, de personalidade,
independentemente da moral ou trajetória que tenha adotado como escolha. No caso de Genet,
sua obra literária, ao expressar todo o seu contexto da experiência do crime e da literatura,
estava tão bem colocada como a expressão de uma individualidade que se fez uma
privilegiada oportunidade para a pesquisa sobre a formação da personalidade de um sujeito.
Um sujeito concebido segundo a concepção existencialista. É o enigma do desclassificado
sem tradição cultural que se classifica pela sua literatura, de quem Sartre faz uma análise
existencial. A análise existencial do sujeito em sua totalidade é o objetivo de Sartre que o faz
pelo do método da psicanálise existencial. Em Genet, Sartre procurou mostrar o projeto
original, fundamental, que orienta uma personalidade em sua formação. Para Sartre, o sujeito
é conseqüência de um projeto livremente assumido na sua relão com o mundo.
Os dados de Genet, como datas, locais, nomes dos personagens que envolvem sua
hisria, foram colhidos de Sartre, (2002); Genet, (1968-1986-2003); Schneider, (2002).
114
5.1 A metamorfose
Eis o enredo desse drama litúrgico: um menino morre de vergonha, em seu lugar surge
um marginal; o marginal será possuído pelo menino
(SARTRE, 2002, p. 15).
Comecemos nossa reflexão pelo ponto que Sartre coloca como metamorfose, o
momento fatídico em que Genet se reconhece estigmatizado, como ladrão. A sociedade dos
“honestos”, dos “certos”, “corretos”, matou a criança Genet de apenas dez anos, marcando-o
como ladrão. Genet se reconhecia assim. Poderia ter se reconhecido de outro jeito? Poderia
o assumir a identidade de ladrão? Genet reconheceu a designação, o corte, assumiu ser um
ladrão. Diante de seu abandono poderia ter escolhido outra saída? Fato é que um momento
pode marcar uma personalidade, as vivências posteriores passam a ser constrdas em cima do
ponto marcante. Genet morreu para a sociedade dos “honestos” diante da acusação de ladrão
aos dez anos. Entendeu que sua vida deveria se construir por esse caminho, não vislumbrou
outro. Poderia ter vislumbrado? Por que o? Genet viveu os momentos posteriores à
condenação como se esse fosse o caminho que fora traçado por ele.
Basta um momento para destruir, para desfrutar, para matar, para ser morto, para
jogar o seu destino em um lance de dados. Genet carrega no coração um velho
momento, que nada perdeu da sua virulência, vazio infinitesimal e sagrado que
termina uma morte e começa uma horrível metamorfose
(SARTRE, 2002, p.
15).
Genet morreu como criança, mas como seu corpo não morreu, era preciso continuar.
Genet não escolheu ressuscitar, escolheu permanecer na morte. Uma experiência mortal pode
destruir, matar, a ponto de o sujeito continuar sua vida posterior repetindo a morte por não ter
encontrado, ou sequer buscado, outra saída para viver novamente como ser total, como
consciência nova, ressuscitada depois de um momento de experiência mortal. No caso de
Genet, quando deixou de ser criança inocente, digna, para ser o ladrão, houve uma
metamorfose do ser de Genet que o atingiu, ultrapassando-o por inteiro, e o ser de Genet
transformou-se no ladrão, na nova identidade, na nova pessoa. Uma pessoa que tem seu
passado inteiro, mas com uma transformação fatídica em determinado ponto de sua história
que propicia uma repetição como se o desejo maior fosse anular aquele momento, mas como
o é possível passar adiante, se detém à repetição, por vislumbrá-la como futuro.
A metamorfose que o ameaça sem trégua é essa revelação constituinte que se operou, um dia, pela
mediação de outrem, e que pode recomeçar a qualquer minuto
” (SARTRE, 2002, p.17).
115
Se o sujeito saísse dessa trajetória, se percebesse que tanto poderia seguir esse
caminho como outro, certamente teria que acontecer outra metamorfose se sucedendo à
anterior, e o sujeito que morreu, então, poderia renascer e estar vivo de outro jeito novamente.
Genet sucumbiu: morreu a criança, nasceu um monstro. No caso dele foi assim. O
momento mais temido por ele passa ser o das suas vivências. O horror de ser um bandido
passa ser o que lhe interessa. Genet é o projeto que propuseram para ele. Ele poderia ter feito
outro, mas não o fez, acatou o que recebeu e o fez seu, como se fosse seu. Não deixou de ser
seu projeto livremente assumido. A que limites? Não podendo transpor o lugar recebido, foi
preciso repeti-lo sob pena de continuar vivendo. Genet viveu o seu lugar de fora da sociedade
dos “honestos”, viveu uma vida profana em que tudo era permitido e se afundava cada vez
mais no horror de ser um criminoso. O fato originário, tão distante, tão modificado pela
repetição e pelas significações, lhe escapava a consciência como causa, mas as escolhas
mostravam o seu desenvolvimento.
Aos sete anos, Genet era uma criança inocente que vivia como os de sua idade. Genet
se percebia como os outros o percebiam. Ele pertencia á assistência pública, ele pertencia à
família adotiva, ele pertencia a alguém. Aprendera e apreendera com os outros na infância que
ter bom temperamento, ser piedoso era bom. Ser honesto, ser obediente à família, à pátria era
uma importante concepção do bem. Acreditou, na infância, ter natureza religiosa; como
depois poderia roubar, mentir, prostituir-se? Até que ponto a chamada inoncia da infância
poderia ser verdadeira?
Sartre chama atenção para os mitos da inocência na infância. Os adultos chamam a
criança de inocente e ela o é. Há que se considerar aqui a prioridade do objeto sobre o sujeito,
aquilo que o sujeito é para os outros e o que ele é para si mesmo. Genet recebeu os mesmos
valores de família de ser e de ter que os demais garotos de sua idade, mas era diferente dos
outros, não tinha família, não tinha herança, não pertencia de fato a ninguém. Seria Genet
inocente se não tinha família natural, se era diferente? Parece que estava fora da ordem
social. Ele não era um filho legalmente instituído, já ocupava um lugar falso. Uma sociedade
que se institucionaliza por inteiro como pode tratar os diferentes? Se os mata tirando-os da
legalidade instituída? Se todos nasceram tendo pai e mãe, por que as instituições condenam a
condição de um em detrimento da condição de outro? Como podemos então dizer inocentes
todas as crianças? Será que Genet estava preparado para pertencer às colônias penitenciárias?
Genet, desde o início de sua vida era contra a natureza, contra tudo o que está institdo como
curso normal”. Mas que normal era esse que condenava o percurso diferente? Sartre encontra
na rejeição materna de Genet seu conflito original, que vai ter continuidade nos momentos
116
que a sociedade lhe expulsa também de seu seio como ladrão. O menino, marcado pelo
abandono da mãe que o abandonara ao nascer, foi novamente abandonado, tornado
novamente diferente quando transgrediu a sociedade dos “honestos” e tornou-se ladrão. A
rejeição social tão cortante estava em germe na recusa materna. A mãe o jogou fora, ele
passou a ser um ser maldito, mal-amado, rejeitado. Seu ser era indesejado. É como não ter
direito à existência. Com a culpabilidade do abandono na infância como ser não desejado,
Genet recebeu o veredicto de ladrão. Novamente deveria ser jogado fora, não pertencia, não
tinha direito de ser aceito e amado. Sob que inoncia inicial Genet começou a construir sua
vida? Devia pagar pelo crime de ter nascido?
Filho de ninguém, ele não é nada; por sua culpa, uma desordem se introduziu na bela ordem do
mundo, uma fissura na plenitude do ser
” (SARTRE, 2002, p. 21).
Genet não pertencia à família adotiva; como poderia ter ou ser, em que bases seu ser
poderia se sustentar? Genet odeiava o lugar de filho do Estado, de filho adotivo, em que o
sujeito, Genet, vivia da generosidade dos outros. Isto é sentir-se como uma coisa qualquer.
Sentir-se aceito por obrigação não é se sentir à vontade para dar e receber, para amar e ser
amado. Ser tratado como coisa é ser devastado em seu bem maior: a espontaneidade de sentir,
ter consciência e ser, sem sentir que o tempo todo, deve ser de determinada maneira. É claro
que não o filho adotivo pode se sentir assim. Às vezes, também os filhos naturais são
programados e não exercem o direito sobre o ser, o sentir, o agir. Genet, como filho do Estado
e adotivo, não tinha e não era. Sartre nos diz que, se Genet tivesse sido adotado por um
operário, já poderia ter uma idéia do ter um pouco diferente, sem tanta diferença de sua
condição, mas sendo filho adotivo de proprietário de terras, sentia com mais frieza a sua
condição de diferente, de não herdeiro e de ser resultado apenas da generosidade dos outros.
Como esse menino abstrato reagirá ao seu duplo exílio? Imitando o ser e o ter, nas
suas brincadeiras, como todas as crianças. Terá dois jogos favoritos: brincar de santo
e de ladrão. A insuficncia de ser leva ao primeiro, a penúria de ter ao segundo
(SARTRE, 2002, p. 23).
A santidade fascinava Genet desde a infância. Sua mãe adotiva queria que ele fosse
padre. As atitudes extremadas dos santos o fascinavam. Os santos dependem somente de
Deus, vivem uma vida antinatureza, parecem superar a espécie humana. A sua condição de
órfão lhe dera uma vida interior o socializada. Não era de ninguém, mas também não
precisava ser íntimo de ninguém. Genet não teve união, entrega, com família nenhuma, assim
como também não fez sua união com o social, não era ligado a vivências de grupos; seu lugar
117
era o isolamento. Deus compensaria suas faltas, em especial, a ausência de afeto da mãe. Não
era filho de ninguém, mas poderia ser filho de Deus. Quando Genet roubava seus pais
adotivos e vizinhos, o se sentia menos santo por isso. Genet fazia de seus pequenos roubos
uma apropriação. Os roubos de Genet na infância eram uma forma de possuir, mas não para
cessar a fome, por exemplo. A busca obsessiva do ser que não alcançava, a relação originária
que falhara, o lançaram no mundo como busca desesperada de saciação do ser. O mundo lhe
dizia não, o lugar de Genet no mundo era ausência de lugar. Seu lugar era virtual ou
imaginário. Mas quem era o Genet real?
Quando se institucionaliza o sujeito para que pertença a determinado meio, se cria um
lugar para ele. Mas Genet, como filho adotivo, ficou fora dos padrões pré-estabelecidos. Seu
lugar dentro da instituição não existia, ou era virtual, não real. Onde fica o sujeito real? É
possível a crião de um espaço real, ou a satisfação é um ato imaginário? A solução estaria
na legitimidade da experiência do sujeito como tal, na realidade humana dessa individualidade
e na sua legítima relação com o mundo que é inevitável. É preciso superar o pré-estabelecido
e dar lugar à experiência real. As significações se obscurecem, a consciência obscurece, pois
as significações estão mais na irrealidade, nos conteúdos da falta, no caso de Genet.
Não foram necessidades como a fome que levaram Genet aos pequenos roubos na
infância, mas foram outras faltas de ser, mais que de ter. As faltas no ser de Genet não se
preenchem com satisfação de necessidades biológicas apenas. Mesmo com as necessidades
biológicas satisfeitas, seu ser busca incessantemente seu lugar como sujeito no mundo. Genet
o conseguia sonhar, sua expressão já era um ato mais imaginário que real, as suas
significações como ser caiam num emaranhado de irrealidades de tal porte que era muito
complexo apreendê-las e esclarecê-las. Quando o sujeito não partilha seu mundo, as
significações se obscurecem demais. Genet não poderia sonhar em conseguir os bens de sua
família, bem como não poderia sonhar em ter um lugar legítimo, seguro, afetivo nesse meio.
Tudo era irreal, ele mesmo vive de irrealidade. Qual seria o sonho possível? Nos pequenos
roubos, se tornava proprietário de um bem e por sua vez, também era um proprietário falso
pelo roubo. O real é somente como fato de que não imaginário, sem realidade. Qual a
realidade das faltas do ser de Genet? A que complexidade para ele mesmo conhecê-las? Como
se explica sua inquietação, suas angústias, sua miséria e sua falta original? Genet foi pobre,
filho rejeitado e, depois, filho ilegítimo. Essa era sua realidade associada a uma moral com
valores que não serviam para si, e sim somente para os outros: para os filhos legítimos, para
os proprietários, para os seres aceitos como são porque o código foi feito para eles e o para
as condições existenciais de Genet. No jogo imaginário de Genet, Deus substituiria a mãe
118
ausente, e o roubo, a propriedade, mas Genet, o ser da história, ignorava o valor de seus atos,
bem como seu triste destino pelos encaminhamentos de suas escolhas. Se tirarmos o código
moral, a atitude de Genet era apenas uma tentativa de ter e também de ser. Genet era um ser
de relação como qualquer outro, que buscava um lugar no mundo, uma expressão possível.
Até mesmo quando tecia comentários como este, em “Diário de um Ladrão”, quando se refere
a sua relação com a polícia:
Eu sempre tive paciência com a polícia. s nos entendemos: nada se parece
mais com um criminoso do que um polícia. Somos irmãos: em nossas veias corre a mesma sede de sangue e de
violência
” (GENET, 1968, p. 13).
Quando Genet foi flagrado roubando, objetivou no mundo a condição do seu ser. Foi o
mundo, os outros, que lhe designaram de ladrão. A criança conhecida antes de ser ladrão
cedeu lugar a uma nova criança, a um novo ser. Antes já se sentia isolado, separado do mundo
dos normais. Agora, além de isolado e separado, é também monstruoso. Passou a ser um
ladrão e estava estabelecido seu destino
7
. Essa era a sua essência, o que significa que era
conhecido como um ladrão e em todos os lugares, em todos os momentos deveria se sentir um
ladrão, porque o ladrão não estaria no momento em que roubou, mas em toda sua vida. Se
ele estava estudando na sala de aula, o professor sabia que estava dando aula para um ladrão.
Se Genet tinha uma expressão de carinho com alguém era o carinho de ladrão que alguém
recebia. O estigma acompanha o ser e o acusa, é seu veredicto, sua essência. Genet foi o
culpado, aceitou seu destino. Era livre para ser culpado, não o foi para se transformar em não
culpado, ou em um outro ser após ser ladrão. Por que a designação tem que ser total,
essencial? E por que o destino tem que ser esse e não outro?
Tinha onze anos e conhecia, nos menores detalhes, a vida que teria que degustar,
gota a gota:
A ordem deste mundo, vista pelo avesso, parece tão perfeita no inevitável, que a esse mundo só
resta desaparecer
” (SARTRE, 2002, p. 32).
Ter um futuro condenado pelo presente é, de certa forma, estar morto, pois tudo já
está decidido. É ladrão, será sempre um ladrão com o destino de um ladrão. O que varia é a
sentença conforme o crime.
Se Genet tivesse recebido o veredicto com mais idade, mais adulto, certamente poderia
ter alguma defesa maior, mas ainda criança como reagir a um destino traçado pelos outros? A
que complexa dificuldade isto se coloca aos dez anos? Como poderia reagir nesse momento?
Se fosse aos quinze anos, por exemplo, quão maiores seriam as chances de se impor? Mas aos
7
Durante o relato da experiência de Genet, neste capítulo, usamos a palavra destino. Isto não significa destino pré-concebido, mas o futuro
programado por escolhas do sujeito frente ao seu meio. Genet foi conduzido por valores e estigmas sociais a ser ladrão e ele assumiu o
veredicto. Poderia ter feito outras escolhas.
119
dez anos, educado dentro dos princípios religiosos onde deseja a santidade, a fortuna material
como camponês, como reagir? Genet era tima da própria moral que incutiram nele e que fez
corpo com ele. A moral e seus acusadores penetraram no mais íntimo de seu ser e ali
estabeleceram uma representatividade permanente que se parecia com ele, ou era ele próprio.
Visto assim, como era difícil para Genet reagir naquele momento! Se conseguisse escapar da
acusação dos outros, cairia na sua própria acusação, pois os códigos morais eram os mesmos.
Dizendo de outro modo, os acusadores encontraram no acusado um mplice, plano perfeito
para os falsos moralistas. Genet não teve tempo para se desenvolver e ser crítico de seus
valores e de seu futuro, a moral da infância parecia ser insupevel a vida toda. E enquanto
carregava consigo os códigos morais da infância, levava também consigo o estigma do
culpado, condenado por todos e por si mesmo.
O ser, quando age se modifica do que é em função do que não é. Esse movimento
acontece permanentemente, e todo processo de nadificação do que é caminha para o que não
é. Porém, há uma tendência a considerar o que é conservador, o que é antimudança. A
liberdade sofre com a ação do ser que se identifica com o que é e tende a negar o que não é.
Por uma questão de adaptação ou alienação, uma negação do novo ou das
mudanças que atingem diretamente o ser. Assim, valores internalizados tendem a ser
permanentes ou não violados. O bom para o ser é deixá-lo em paz do jeito que ele é. Porém, a
contingência exige o exercício da liberdade, da escolha, e o ser não tem lugar para o exílio de
sua própria liberdade. Está lançado no mundo. O ser quer ser o que é, mas também quer ser o
que o é. A liberdade impõe violação do que é em função da dinâmica do viver. O homem é
então, conseqüentemente, livre para fazer-se, mesmo que seja por um projeto de alienação.
Os valores não são parâmetros para definir o certo e errado. Uma sociedade toda
patológica não pode considerar errado seu transgressor. Um homem honesto pelas suas
tradições, pela obediência ao bem que rege e regula tal sociedade, faz de sua liberdade uma
prisão para seu ser; suas escolhas são a escolha coletiva, mas nem por isso deixaram de ser
suas. O homem não consegue negar totalmente a exisncia de um outro ser que é ele mesmo
e que tende a não ser tanto o coletivo, mas ser um ser em constante mudança, permitindo que
a contingência seja vivida pela consciência individual e escapando a uma existência
automática.
A consciência do homem exige a contingência, o exercício da liberdade e isso é
vivido, queiramos ou não. Sobre a dependência ou a obrigatoriedade da liberdade, diz Sartre:
120
É uma dependência, mas não uma dependência como a da escravidão. Porque penso
que esta dependência, em si, é livre. O que há de característico na moral é que a
ação, ao mesmo tempo que parece sutilmente forçada, pode também não ser feita. E
que, portanto, quando é feita, faz-se uma escolha, e uma escolha livre. O que esse
constrangimento tem de surreal é que o determina. A escolha apresenta-se como
forçada e faz-se livremente
(MACHADO, 2001, p. 33).
Os homens o lançados na contingência e até o mais obediente deles está sujeito ao
exercício da liberdade; por isso se ele é obediente é também por escolha própria.
A consciência que se escolhe não é sem sua contingência, assim como não é sem sua
individualidade. A contingência não coincide com o ser, e o ser não coincide com a
contingência. A consciência mesma não permite domesticação ou obediência em sua
totalidade. Isso adoece a consciência numa situação extrema. A loucura é uma alienação
extrema que o meio exerce sobre o sujeito, sobre sua expressão de ser, pelos mais diversos
motivos. Visto dessa forma, os conceitos de certo/errado, de honestidade, de saúde e doença
se tornaram sujeitos à explicação pela reflexão crítica da realidade dos fatos e não por
conceitos pré-estabelecidos. Responsabilizar o sujeito por suas escolhas é ver no sujeito a
orientação de sua consciência, mas não da sua obediência à contingência.
O projeto individual existe e o sujeito é responsável por ele. Ser bom ou ser mau, ser
um criminoso ou não, faz parte do projeto individual também. Assim, que se distinguir no
mal o objetivo de quem o pratica, ou seja, a que projeto o mal responde.
A consciência que se adapta, que se coloca no pré-estabelecido, na obediência, ou seja,
que faz essa escolha, parece mais tranqüilizante. O movimento é previsto de certa forma. Ser
agente passivo da história pode até parecer mais tranqüilo, e às vezes o é, mas é também uma
escolha, assim como o é ser ativo.
Genet não era mau por si só. Tinha uma história, uma trajetória de vida, um
encaminhamento desde o início de sua existência. Aos dez anos já tinha todos os pré-
requisitos para os moralistas se sentirem cheios de razão: abandonado, pai desconhecido,
ladrão e mais uma vez rejeitado.
O ser se conhece de duas maneiras: primeiro pelo que sente, ou seja, pelo prazer,
desprazer, atração, repulsa, afinidade, troca, comunicação, enfim, pela expressão do sujeito
para o mundo. Outra maneira de se conhecer é pelo que o mundo, e as pessoas que convivem
com o sujeito sentem. Essas duas realidades podem coincidir ou não. Pode ser que a
percepção exterior e o sentido interior do sujeito fiquem em acordo ou desacordo.
O sujeito é para o outro um objeto pelo que expressa objetivamente. As qualidades
objetivas do sujeito que os outros reconhecem o o resultado da troca entre o sujeito e os
121
outros. É resultado da relação entre ambos. É o sujeito e sua testemunha e a relação entre
ambos. O sujeito é uma presença, uma expressão objetivada, que interage e é interpretada de
determinada maneira.
É verdade, pois que essas qualidades que os outros reconhecem em nós escapam à
nossa consciência, mas não é porque elas estão ocultas num inconsciente situado
atrás desta; é porque elas estão diante de nós, no mundo, e são, originariamente, uma
relação com o outro
(SARTRE, 2002, p. 43).
O sujeito é um outro para outrem. A pessoa submissa mais crédito à definição do
outro do que a sua própria. mais valor à decisão de entendimento do outro. As
informações da própria consciência passam a ser obscuras. Assim, o sujeito prioridade ao
objeto que ele é para o outro sobre o sujeito que ele é para si mesmo.
O sujeito submisso se aliena ao objeto que ele é para o outro. Uma criança submetida a
grandes pressões sociais está sujeita a uma grande alienação. se pode observar o valor da
educação, dos preconceitos, numa sociedade. Submeter uma criança a um determinado código
de valores com grande pressão pode levar a grandes problemas de estrutura de personalidade.
Sartre reflete sobre os presidiários dizendo que, pela pressão permanente imposta,
pelos estigmas que adquirem como criminosos, a pena que lhes é incutida, objetivamente os
atinge de tal forma que seu ser subjetivo é atingido por inteiro. O sujeito não cometeu um ou
rios crimes, ele é um criminoso e passa a ser assim permanentemente, fazendo com que o
crime se transforme em destino (SARTRE, 2002).
A condenação faz o sujeito passar por uma transformação pela qual é acometido em
seu ser inteiro como uma definição única: ele é um criminoso para os outros e para si mesmo.
Se isso acontece na adolescência, então, a complexidade é ainda maior.
Genet sofreu essa metamorfose na adolescência. A sociedade o estigmatizou como o
desajustado, o mau, o diferente. E o ser de Genet acatou a sentença e a levou às últimas
conseqüências: ele era o mal, o mal estava nele. Ele acreditou nos adultos que disseram que
ele era mau, que tinha maus desejos, maus instintos, acreditou no projeto que lhe incutiram e
procurou fazer o melhor, ou seja, ser o mau.
O resultado mais imediato é que o menino é “falsificado”. Considera a existência
dos adultos como mais certa do que a sua própria e os testemunhos deles como mais
verdadeiros que o da sua consciência. Afirma a prioridade do objeto que ele é para
eles sobre o sujeito que ele é para si
(SARTRE, 2002, p. 46).
122
É claro que Genet não tinha conhecimento dessa trama que o levara a acreditar mais na
definição dos outros. Mas pelo que ele sentia, sua consciência passou a ter um valor de
aparência, para dar lugar aos outros como sendo a verdadeira realidade. Genet ouvia a voz
do cogito, no mais íntimo de si ele se desaprovava. Sua certeza era o ladrão, o criminoso,
intimidado pelos adultos, pelos juízes, pelos “honestos”. Um ser intimidado a esse ponto
parece procio a se transformar num monstro:
Entretanto, a sua certeza de si, solitária, contestada,
silenciada, cresce nele como uma erva daninha em um jardim abandonado
” (SARTRE, 2001, p. 47).
O cogito não morre, a consciência sempre existe, e é claro que Genet acreditou nos
outros, mas o deixou de ter conhecimento de que ele, o Genet, existia. Mas acreditava que
ele era o ladrão. Genet fez exatamente o que programaram para ele. Reproduziu a sentença,
fez dela seu projeto e suas escolhas.
Genet era objeto para os outros. As sentenças dos adultos fizeram de Genet um
estranho para si mesmo. Genet foi profundamente objeto para os outros, foi fiel demais às
suas sentenças. Sua subjetividade era a objetividade subjetivada por excelência. Genet era
tima de uma sociedade, ou dos outros, que, quando estigmatizam um sujeito, é para sempre.
Genet expressou-se como ladrão e pederasta para ser, para fazer seu lugar no mundo, para ser
reconhecido como ser no mundo. Ele decidiu ser o ladrão porque foi esse o caminho que
sobrara para ele, afirmando a prioridade do objeto que ele era para os outros. Assim o ladrão
foi uma tentativa de ser objeto para o outro como ser. O que ele mesmo era ou queria ser,
ficou para trás e o que os outros queriam passou a ter prioridade. Se os outros colocavam
como a única saída para sua identidade como ser, ser o ladrão, então ele assim respondeu. Já
vimos nesta pesquisa que existir é significar-se no resultado das relações com o mundo. Quais
eram as chances de Genet se significar por intermédio do mundo em tão tenra idade?
O objeto que Genet era para os outros estava calcado na hipocrisia de uma sociedade
de valores prontos e inquestionáveis. O ser são os costumes e as tradições, o Para-si” deveria
se acomodar. Porém, o Para-si” procura sua expressão e buscará seu espaço:
Com o mesmo
movimento, a sua liberdade lhe proe violá-la, pois é a mesma coisa impor leis e criar a possibilidade de
transgredí-las
(SARTRE, 2002, p. 36). O “Para-sié relação dialética com o mundo, é relação
para significá-la e ressignificá-la sem estagnações. Diz Sartre que
[...] o homem de bem se encerra
numa prisão voluntária, fecha as portas à chave, e sua obstinada liberdade o obriga a sair pela janela
(SARTRE, 2002, p. 36). Numa sociedade de valores prontos é proibido criticar, rejeitar, para
o questionar os demais “Para-sisa fazer o mesmo. A verdade dos fatos é tão forte que,
diante das crenças, ou das falsas leis, estas desmoronam sobrando a realidade objetiva dos
fatos. Genet encarnou o mal, o objeto que ele era para o outro, uma definição externa que ele
123
deveria seguir, uma definição que partiu do social, o do seu ser. Para os outros, o mal estava
fora; para Genet, entretanto, o mal estava nele, ou era ele próprio. O desejo dos outros
deveriam ser seus próprios desejos. Porém, isso não foi o suficiente para Genet ser somente o
objeto dos outros. A princípio sim, mas no decorrer da história de Genet, este ainda encontrou
alguma saída desesperada para se impor no mundo, embora dentro do mesmo paradigma de
valores.
O objeto para os outros é diferente do ser, é diferente de si, mas Genet,
[...] procura
conscienciosamente, na própria fonte da sua subjetividade, os maus desejos e os maus pensamentos das pessoas
honestas
(SARTRE, 2002, p. 46). Genet era um outro, mas diferente de si, diferente do bem,
pois estava condicionado a acreditar no mal.
Genet entendia a realidade pelo que ele era para os outros. O que Genet era para si
mesmo, ou seja, sua real história existencial ficou em segundo plano, ou nas aparências.
Genet escutava a voz do cogito, não fez mais sua defesa como ser, e se a fez foi
respondendo ao que os outros o nomeiavam. O bem e o mal, valores da sociedade que o
condenou foram considerados como verdade. Assim, as estratégias usadas, como ser ladrão,
homossexual, prostituto, foram tentativas de realizar a sua escolha originária de se fazer
objeto para o outro.
É a partir da submissão de Genet aos outros que Sartre vai explicar depois sua
expressão sexual:
Pode-se adivinhar que Genet, objeto por excelência, se fará objeto nas relações sexuais e
o seu erotismo se aproximará do erotismo feminino
” (SARTRE, 2002, p. 47).
A negação da experiência real de um sujeito é mesmo um crime, um jogo de forças em
que o maior, no caso de Genet, a sociedade dos “honestos”, suprime o sujeito sem a menor
chance de defesa. Foi roubado de Genet, à mais tenra idade, o direito de existir e de ter seu
lugar no mundo. Numa sociedade que vive de aparências tudo é possível. Um estigma numa
sociedade hipócrita tende a não se desfazer, e tem futuro garantido, pois a memória do
hipócrita é maior que a consciência. A sociedade que vive de aparências segue códigos
prontos, devidamente memorizados, mas muito pouco questionados.
A moral dos “honestos” é uma franca desonestidade, pois parece que o desejo de
serem desonestos é tão grande que, diante da desonestidade do outro, o acreditam mais na
sua recuperação. É tão tentador ser desonesto? Ou é medo da liberdade da consciência e dos
desejos próprios? Não se trata de confundir a responsabilidade dos fatos e dos valores, mas
desmistificar uma sociedade hipócrita que julga e condena no outro seus próprios desejos. A
imprevisibilidade do ladrão e dos seres “honestosparece ser a mesma. Difícil será o ladrão
124
o roubar quando todos esperam que ele roube. Difícil é acreditar em si mesmo quando se
vive o que os outros querem ou desejam.
Não existe, na disposição interna da consciência, como consciência, predisposição ao
roubo. O roubo é uma noção de origem social, é a sociedade que cria os conceitos e os valores
de tais conceitos. Não é o indivíduo particular que cria os valores de criminalidade; isto faz
parte do contexto em que ele emerge.
Genet está do lado dos objetos nomeados, o do lado daqueles
que os nomeiam
” (SARTRE, 2002, p. 50).
Nomear e ser nomeado são atos recíprocos entre as relações normais. Ser nomeado o
professor é ser reconhecido pelo que é. E quem é nomeado também nomeia, dando uma
definição ao outro. Mas quando é nomeado um defeito, como ladrão, por exemplo, nem
sempre quem nomeia pode ser nomeado. Ser nomeado como ladrão por um “honestoé ouvir
uma sentença sem direito à nomeação:
Tudo acontece como se, bruscamente, a página de um livro se
tornasse consciente e se sentisse lida em voz alta sem poder ler-se. Ele é lido, decifrado, designado
(SARTRE, 2002, p. 51).
Quando os garotos zombaram de Genet porque julgaram que sua redação era falsa, ele
o tinha como nomear suas situações em contrapartida, porque os colegas eram parte do
mundo normal, Genet era o diferente. Estava sempre nas situações difíceis e com sérios
limites. Assim suas escolhas aconteciam, nos limites mais escuros de sua liberdade. Assumiu
sua nomeação ao da letra: sou um ladrão! Quando a nomeação vem de fora, dos outros, é
uma nomeação para o sujeito; quando, porém, a nomeação é feita pelo próprio sujeito, eu sou
o ladrão”, a nomeação torna-se o ser.
A nomeação deixa de ser um indicador para ser um sujeito. O ser e a palavra são a
mesma coisa. Como Genet se viu sem defesa? Encurralado num único destino: ser o ladrão?
Os conceitos e os pré-conceitos numa expressão social são tão profundamente arraigados que
basta um olhar, um gesto, uma expressão social para nomear o outro. A comunicação verbal é
muito pobre diante da comunicação da consciência do sujeito em seu todo. Genet era sozinho,
parecia que o ladrão era sua única referência, logo tão forte que marcou seu ser inteiro. Como
afirma Sartre:
[...] sua aventura foi ter sido nomeado: disso resultou uma metamorfose radical da
sua pessoa e da sua linguagem. Por essa nomeação criminosa, que o transformava a
seus próprios olhos em objeto sagrado, dava-se a partida a essa lenta progressão que
faria dele, um dia, um “Príncipe dos ladrões” e um poeta
(SARTRE , 2002, p.
55).
125
Genet foi lançado dentro do mundo, estigmatizado, em uma sociedade tão bem
arrumada que ele não achou uma saída sequer. Para o ladrão, não há espaço possível,
aceitação possível, e ele era o ladrão. Ele era o culpado. Todos o acusavam.
Recusar a moral que o condenava era a única saída possível, mas Genet não enxergou
isso, era complexo demais, mas a orientação de sua liberdade que lhe restou no fim do túnel,
lhe permitia continuar existindo. Pensou em se matar, mas o o fez. Estava sozinho diante de
uma sociedade que o tornara profundamente infeliz pelo abandono, mas que não o abandonara
para mantê-lo no cárcere da exclusão e do culpado.
Se estivesse sozinho de fato, ele poderia olhar seu lugar no mundo, mas estava
acompanhado da sociedade dos “honestos” para mantê-lo sob a tortura da não legitimidade.
5.2 Serei o ladrão
Sob o olhar dos honestos” que o haviam transformado em ladrão era preciso viver:
Agora é preciso viver; no pelourinho, com o pescoço no garrote, é preciso viver: Não somos torrões de
argila e o importante não é o que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos com o que fizeram de nós
(SARTRE, 2002, p. 61).
Decidir viver para quem fora obrigado a ser ladrão em tão tenra idade era uma
grande escolha, porque nenhuma criança aos dez anos poderia defender-se de tal situação.
Mas era preciso viver. Poderia se matar, também seria uma escolha. No caso de Genet, essa
absurdidade de pôr fim à vida seria compreensível, senão previsível, mas Genet escolheu a
vida. Serei o ladrão”, decidiu para ser, para estar vivo. Essa decisão de viver fez de Genet,
nos próximos vinte anos, um ladrão, e após vinte anos se fez nascer o grande poeta. Quando
escolheu ser o ladrão, fez uma péssima escolha. Teria outras escolhas? Difícil dizer que sim,
ao mesmo tempo que é difícil dizer que não. Genet estava no limite,mas escolheu esta saída:
Decidi ser o que o crime fez de mim
” (SARTRE, 2002, p. 61).
Genet assumiu seu destino de ser o ladrão e tentou dar o melhor de si, fazer do mundo
do crime o seu mundo, a sua expressão. A sociedade o preparou cuidadosamente para isso e
foi isso que ele decidiu ser.
Genet fez sua escolha com o coração e com a alma, em “Diário de um Ladrão” Genet
escreve:
Neste diário eu o quero dissimular as outras razões que fizeram de mim um
ladrão, a mais simples sendo a necessidade de comer, todavia em minha escolha
jamais entraram a revolta, a amargura, a raiva ou qualquer sentimento idêntico. Com
126
um cuidado maníaco,“um cuidado ciumento”, eu preparei a minha aventura como se
arruma um leito, um quarto para o amor: eu tive tesão pelo crime
(GENET, 1968,
p. 23).
Genet deixou claro que escolhera, embora não pudesse ter claro, a princípio, o
significado e o significante que continham suas escolhas. Mas sabia, até certo ponto, que era o
resultado do que haviam feito dele. Genet poderia, adulto, ter feito o caminho contrário ao
crime, afinal ser o que a sociedade havia feito dele não era um caminho prazeroso, agradável.
Porém, assumiu o caminho traçado como se fosse uma provação, e tudo o que ele fez foi pelo
mundo da ilegalidade, pois isso que foi o que sobrou para ele, visto que do mundo dos
“normais”, dos “honestos”, fora expurgado como um ser que não pertencia a esse mundo. Mas
Genet sabia que nascera em Paris, que pertencia a um sistema administrativo do Estado. Não
era filho adotivo de camponeses. Pertencia à cidade porque lá nascera, mas estava ligado
também ao campo pela sua estadia na adoção.
A dificuldade de Genet era reivindicar o mal. Genet buscava a perfeição no mal, a
vontade do mal. A idéia de natureza má era uma concepção de sua cultura: os juízes
acreditavam nisso e Genet acreditava em seus juízes. Se sua natureza era , então é preciso
assumi-la. Suas ações levaram essa premissa em consideração. A prova da maldade era o
roubo. Genet era movido pela culpa, pela agressividade irônica, pela vergonha, ao mesmo
tempo em que procurava fazer de tudo isso um ato de perfeição. Lendo seus livros, é possível
sentir em Genet um ser vingativo, com agressividade requintada, e ao mesmo tempo, irônica,
em tom muito dissimulado.
Pelo menos, pensava eu, se a minha vergonha é verdadeira, dissimula um elemento
mais agudo, mais perigoso, uma espécie de dardo que há de ameaçar sempre aqueles
que a provocam. Talvez o fosse ela atirada sobre mim como uma armadilha, o
fosse intencional, mas sendo o que é Eu quero que ela me esconda e que debaixo
dela eu fique espiando
(GENET, 1968, p. 79).
É evidente que a interpretação de natureza má de Genet, ou de quem quer que seja,
serve a falsos conceitos ou preconceitos. Não havia o ser mau dentro de Genet como o quer a
sua cultura religiosa ou do mundo dos “honestos”. São falsos valores.
Conduziram a educação de uma criança de tal forma, tiveram um resultado e depois
acusaram a natureza de comportar um ser mau dentro de si? Assim o estigma passa a marcar
uma pessoa como se esta fosse irrecuperável diante de um ato. São valores, falsos
entendimentos sobre um sujeito. É claro que de se considerar a complexidade dos fatos,
nada pode ser negligenciado. Porém, em se tratando de conteúdos psíquicos, o que é adquirido
127
pode ser removido. E, se assim não fosse, de que valeria a possibilidade de nadificação da
consciência? É preciso dar ênfase à possibilidade de mudança, de nadificação, pois sem isso
de nada valeria o processo psicoterapêutico, a psicanálise existencial. Não se nasce monstro,
se produz monstros. Se nadifica a história monstruosa, se muda o curso dela, afinal:
O
importante não é o que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos com o que fizeram de nós
(SARTRE,
2002, p. 61).
As escolhas de Genet têm a ver com seu contexto, com seus valores internalizados de
seu meio. Noutra estrutura social, noutra cultura haveria outros encaminhamentos para sua
hisria de origem, e suas escolhas teriam chance de ser outras. Genet fez sua apropriação, e o
resultado de sua relação com o mundo foi essa história, mas bem que poderia ter sido outra, se
os valores fossem outros. Objetivamente era essa a cultura de Genet, mas e sua subjetividade?
Como Genet via os fatos? Qual sua estrutura intencional e suas escolhas e por que?
Enfocamos muito a objetividade que fez Genet; é preciso enfatizar agora o ser
consciente de Genet que decide ser o que o dado fez dele.
Em Diário de um Ladrão”, Genet se expressa desta forma:
Sem me crer nascido magnificamente, a indecisão de minha origem me permitia
interpretá-la. A ela acrescentava a singularidade das minhas mirias. Abandonado
pela minha família, me parecia natural agravar isso pelo amor dos rapazes e esse
amor pelo roubo, e o roubo pelo crime ou a complancia para com o crime. Assim
recusei decididamente um mundo que me havia recusado (GENET, 1968, p. 99).
Genet parecia ter conhecimento de sua origem, de seus significados, bem como é fácil
perceber, na leitura da referida obra como Genet viveu um sentimento de vingança
dissimulada, mas presente a cada ação, saboreando o gosto da vingança do que o mundo
fizera dele. Assumiu ser o que o crime fez dele. Em toda sua narrativa parece muito clara a
idéia de que nada de precioso tinha a perder, pois sua maior riqueza, a dignidade, havia
também sido roubada, então era necessário se vingar. Talvez esteja aí o ponto que Genet
deveria ter recusado; o confronto e a vingança contra a sociedade que o tornara ladrão. Mas é
como dizer que a sociedade deu a Genet a opção de ser ladrão, e ele fez disso a sua carreira, o
seu aprimoramento. A sociedade dizia que o mal estava nele, o caminho estava traçado para
ele. Se Genet acreditasse nisso de fato, não odiaria a sociedade que fez dele um ladrão, que foi
mais forte do que ele e seu poder de decidir a ponto de mudar seu destino. Decidiu, sim,
escolheu sim, mas dentro do que foi traçado, escolhido pelos outros. O mundo foi mais forte
que ele, e aí se justifica o seu desejo de vingança. Era como dizer: eu ainda sou eu, eu ainda
sou um ser.
128
O ser de Genet não poderia escapar à realidade a que todo ser pertence como realidade
humana: a ambigüidade da condição humana do ser que não é o que é por estar perpetuamente
em questão. Diz Sartre que
[...] nossa maneira de ser é estar em questão no nosso ser
(SARTRE,
2002, p. 71).
Genet não era um robô programado pela sociedade? Ele era o outro lado da história,
mas também o resultado de sua apropriação do mundo. O destino de Genet não foi escrito
previamente, mas constrdo por meio de suas vivências, de sua história. Ele não era mau por
natureza como queria a moral do seu contexto social, mas um ser em constante vir-a-ser.
Então, pelo menos teria o direito de fazer uso a seu modo de como ser o ladrão. Quando
Genet dizia que decidira ser o que o crime fizera dele, mostrava que também havia decidido,
que também dera o encaminhamento para sua vida. Se o caminho era esse, então poderia pelo
menos ser agente ativo dessa trajetória fazendo dessa apropriação o seu lugar do seu jeito.
Então há claramente duas forças em jogo: a sociedade, com seus valores de um lado, e
Genet de outro, cada qual com suas escolhas; pom, eis que todos estão dentro dos mesmos
valores. Se Genet estivesse fora dos valores de seu meio, se sua experiência não estivesse
calcada na mesma moral, certamente poderia vislumbrar outros encaminhamentos, outras
escolhas. Para a moral vigente, ele seria um ser “Em-si”. Porém, ele era um ser “Para-si”. Se
fosse programado apenas, seria um ser estável e fixo como os objetos. Se Genet era um ser
Para-si”, como é toda consciência na realidade humana, por que decidiu ser o que o crime
fizera dele? Seriam os valores internalizados de Genet também respondendo às mesmas
determinações da sociedade que o criara? Mas Genet não era uma natureza má, não era um ser
Em-si”, estático, Genet era um “Para-si” e, então, poderia não ter recebido o destino que a
sociedade/cultura/moral de sua época lhe atribuíra. Não existe natureza humana, existe a
realidade humana, e o sujeito é o que fizer de sua história diante do seu contexto de
possibilidades. Genet, influenciado pelos seus próprios valores, fez o mal porque acreditava
ser mau. Mas ele não era, eram apenas falsos valores.
Imbuído dos mesmos valores de seu meio social/cultural, ele acreditava ser mau e
escolheu seguir o destino do crime ao mesmo tempo em que agridia seu meio pela sua
ilegalidade:
Ser ao mesmo tempo Satã e uma filoxera; ser provido de um livre-arbítrio e de um servo-arbítrio,
ao mesmo tempo e sob a mesma relação
” (SARTRE, 2002, p. 72).
No entendimento de Sartre, Genet precisava assumir-se para, pelo menos, manter sua
integridade. Se o outro decidisse tudo por ele, ele estaria louco. Assumindo o crime como
sendo de sua vontade, em última instância, ele estava tomando posse de seu ser de alguma
maneira, e seu ser não se desintegraria totalmente. A decisão de Genet de ser o que o crime
129
fazia dele foi uma escolha dele e de seu ser como ser e, assim, salvou sua integridade
psíquica:
Sim, ele é livre, eles nunca conseguirão persuadi-lo do contrário; sim, ele é mau e mais ainda do que
eles pensam
” (SARTRE, 2002, p. 72).
Genet pensou o mundo como ser marcado e como ser livre. Com livre-arbítrio e servo-
arbítrio. Os seus valores e de seu meio o fizeram servo-arbítrio, e sua realidade humana, seu
ser “Para-si”, o fez livre-arbítrio.
É uma liberdade que luta contra uma fatalidade e, mesmo que não consiga se libertar
dela, não deixa de travar uma luta contra ela. É a vida se impondo à morte para salvar sua
integridade. Assim, Genet viveu uma contradição: era tima quando assumia o crime que a
sociedade programou para ele, mas era liberdade quando assumia ser o crime:
Fora do crime,
não existo. Dentro dele, justifico-me
” (GENET, 1968, p. 10).
Genet decidiu ser o ladrão, o ser mau que ele era, mas ele seria o melhor. Assim como
o santo que obstinadamente busca a Deus, ele buscou o crime, o mal.
O outro, o mau, que ele era estava acima da experiência cotidiana para ser a comunhão
com o crime. Genet fez do crime uma experiência religiosa: superou a própria natureza para
atingir o ser, o mau, que é seu ser, sua subjetividade maior. Seu objetivo era superar-se por
meio do crime. É ser o maior e melhor. Os “honestos”, “justos”, fizeram dele um ladrão;
então eles teriam um criminoso de grande requinte. Eles iriam se surpreender de sua obra. Isso
garantiu também a Genet ter algum domínio de sua vontade, o conseguindo ser outra coisa
senão ladrão, assim lhe restava tomar as decisões de como trilhar esse caminho, o que já lhe
garantia, no fim de tudo, decidir alguma coisa. Decidir ser feliz, ter outro destino parece que
o estava a seu alcance de forma alguma, sua existência estava presa a uma trama em que
sua vontade era insuficiente; então, restava apenas fazer do processo, do infortúnio, o produto
de sua vontade. Se tinha uma “natureza má”, devia ser mau premeditando seus crimes:
Essa
natureza, que lhe disseram preceder nele à vontade, agora ele quer provar a si mesmo que a desejou
(SARTRE, 2002, p. 79). Esse era o projeto de Genet e suas escolhas não sram desse
percurso, ele confirmou sua natureza de ladrão. A cada roubo, o ser de Genet se matava para
ressuscitar o ladrão, afinal era preciso confirmá-lo. Sua liberdade se preservava nesse
emaranhado, nessa estranha e complexa expressão, sendo livre para defender e confirmar seu
ser de ladrão. Ele dava aos outros os motivos para sua degradação como objeto. Era a sua
estrutura, a sua subjetividade, sua identificação como ser. Pela sua liberdade ele se fazia: o
ladrão, o fora-da-lei, a natureza , o ser maldito. Genet foi tomado por uma obsessão que o
levou a agir para ser, roubar para ser o ladrão, agir para preservar sua identidade de sujeito.
Estranho que, para confirmar sua natureza de mau, ele precisasse agir e ser mau. Então, se
130
agisse de outro modo, seria outra coisa? Se fosse mau, seria, mas era preciso fazer-se? Que
estranha obsessão ontológica era essa? Se Genet parasse de roubar, perderia a única referência
para a sua integridade psíquica? A que privação de referencial era submetido seu ser desde a
infância? Portanto, poderia novamente afirmar: Genet foi tima de seus valores, dos mesmos
valores dos que o condenaram e o excluíram. Genet e seu meio funcionavam com o mesmo
paradigma de valores morais.
5.3 Genet: um santo do mal
Qual é o segredo da personalidade de Genet?
O sentimento de amar e ser amado parece uma condição natural da realidade humana.
Mas e Genet? Onde estava o ser de Genet que amava e desejava ser amado? Ele existia?
Genet estava com quinze anos, e seu destino de ladrão estava muito bem traçado.
Nessa idade, foi para a colônia de Mettray. Estava assim, preso, encarcerado, todas as portas
se fecharam. Nesse contexto, Genet foi chamado de covarde, traidor, ladrão, bicha, e ele via
motivo para ser chamado de todos esses nomes. Como poderia ver a possibilidade de ser
amado ou mesmo de amar? Se escolheu o mal, onde e como haveria lugar para o amor? Nesse
momento, Genet decidiu amar os que o desprezavam. Faminto de amor, resolveu dá-lo.
Servilmente, decidiu ser o amante, submeter-se aos outros e assumiu um papel homossexual.
Ninguém nasce homossexual ou normal: cada um se torna um ou outro, segundo os
acidentes de sua história e a sua própria reação a esses acidentes. Defendo que a
inversão sexual o é o efeito de uma escolha pré-natal, nem de uma má-formação
endócrina, nem mesmo o resultado passivo e determinado de complexos: é uma
saída que uma criança descobre, no momento em que se sente sufocar
(SARTRE,
2002, p. 87).
Genet revelou ter seu primeiro desejo homossexual aos dez anos de idade. Genet foi
uma criança que sofreu profundas violências psicológicas desde o icio de sua vida. Não se
poderia pensar em uma sexualidade harmoniosa num ser tão sofrido e conturbado. A
sexualidade é um dos aspectos da personalidade de Genet, e seu ser todo foi vítima de um
estupro social. Certamente, não se está afirmando aqui que somente a sexualidade é resultado
do estupro social.
O culpado foi transformado em um objeto. Culpado, desmascarado, possuído, seus
desejos, suas emoções aconteceram pelo seu ser todo. Aos quinze anos, Genet estava preso
entre outros homens. Quais as suas chances de viver outras experiências? O desejo sexual
131
acontece num ser que tem valores de homem e de mulher que se estruturam num contexto de
sentimentos e emoções e para entender a expressão sexual de um sujeito, que se entender
sua expressão de ser total.
A prioridade do objeto sobre o sujeito leva à passividade e, se os valores de papéis
sexuais de passividade forem os femininos e isso acontecer com o homem, isso pode levar à
homossexualidade. Genet era um objeto como ladrão. Genet pôs sua verdade no seu Ser-
para-o-outro”. Foram os outros que o forjaram ladrão. o se quer dizer com isso que com
esse projeto fundamental o sujeito não poderia ter prazer com o sexo oposto. que se
considerar outras variáveis e os papéis em jogo.
Genet tinha sua relação originária marcada pela revolta e desprazer. Sua mãe o havia
abandonado. A sociedade o fizera sentir o instinto de morte mais que o de vida. Como desejar
a vida depois disso? Assim, Genet assumiu uma singularidade absoluta, não se ligando a
ninguém, e sua vida sexual fazia parte de seu ser todo, não estava separada dele, nem à parte.
Como um ser com as experiências de Genet poderia abandonar-se ao prazer? Seu ser era um
abismo. Sua sexualidade não pode ser vivida instintivamente à parte dos afetos e assim Genet
o viveu a entrega. A vida sexual de Genet era mais uma ilegalidade para seu meio social.
Genet viveu a pederastia na prisão como amante. Para Genet, “[
...] o amor é um cerimonial mágico,
pelo qual o amante rouba do amado o seu ser, para incorporá-lo a si próprio
” (SARTRE, 2002, p. 92).
Para Sartre, não é permitido dizer “Eu sou Eu”.
Os mais livres, podem dizer: “Eu existo”. E
é muito
(SARTRE, 2002, p. 92), pois cada sujeito tem suas identificações, as quais são as
mais diversas, variando nas mais diferentes simbioses. Genet carecia de encontros, pois ele
também nunca estava presente para encontro algum. Mais do que para qualquer sujeito, Genet
era para ele mesmo um outro. O marginal é um objeto exterior. Ele era o outro e era ele que
era amado no outro. Era a si mesmo como outro que Genet buscava incessantemente. O
criminoso era a projeção das qualidades que os outros lhe haviam atribuído.
Genet venerava os grandes bandidos e colocava suas fotos na parede da prisão para
adorá-los. Eram seus ídolos, seus intercessores, personagens que o ajudavam meditar e rezar,
pedir proteção, e por isso identificava-se com eles. Era uma possessão. Percebe-se nessa
atitude de Genet como ele acreditava no mal e como existem os grandes criminosos que são,
por assim dizer, a essência do mal. É como se ser a essência do mal fosse um privilégio a ser
buscado com aprimoramento na carreira do mal. Se o mal vence, os “honestos” são vencidos.
É uma guerra na qual o crime precisa vencer, na qual o mal supera o bem.
O ser criminoso era objeto puro do desejo de Genet. Seu ser é sadismo. Genet amava
tudo o que envolvia o crime, era um servo do grande mal. Ele não se considerava digno de ser
132
um grande criminoso; por isso, venerava os grandes criminosos, que eram a expressão do mal
por excelência. Genet amava a questão ser bandido, ser criminoso, era isto que ele ama nos
outros bandidos, como parte dele mesmo, como expressão do mal. Existe um mal absoluto,
um ser maior que é o mal; Genet era apenas um servo do crime, tinha uma carreira de
aprimoramento e se espelhava no mal maior, nos bandidos maiores. Foi o que sobrou para
Genet como identificação, o mundo do crime? O outro, o mal, em Genet pedia identificação
sob pena de continuar existindo, mas o verdadeiro ser de Genet, com sua verdadeira hisria e
seus significantes, nunca estava em cena. Este, o verdadeiro Genet, nunca aparecia, por mais
que conseguisse ser parceiro no mundo do crime, era o mal que tinha espaço. O ser de
Genet, sua individualidade inteira que não tinha espaço ou direito de ser e de existir. É claro
que, adulto ele poderia ter mudado seu destino, mas não o fez, foi simplesmente assim.
muito mais tarde é que veio a mudança. Diante de si e do outro, Genet tinha o direito de amar
seu destino apenas, não seu ser nem o ser do outro. Havia muitas possibilidades fora desse
caminho ou desse destino, mas nenhuma para ele. A vida de Genet era isso, o mundo do
crime, e era nisso que ele acreditava, era a sua práxis, as suas escolhas, a sua expressão como
exercício de sua liberdade. A que limites? A que continncia? Mas fez suas escolhas,
poderiam ter sido outras. Mas Genet via uma única possibilidade, não vislumbrava outras
escolhas, como se estivesse possuído por esse mundo com total impossibilidade de enxergar
outro.
Um ser que fez do horror seu exercício de liberdade. Até mesmo na pederastia Genet
buscava entrar em comunicação com o outro, mas o encontro parece ter fracassado na relação
originária, reforçando o fracasso dos dez anos quando excluído do mundo dos “honestos”, e
em o buscado durante a vida como expressão do mal. Diz Sartre que Genet [...]
por toda
parte, ele encontrou apenas conchas vazias, cadáveres, casas abandonadas
” (SARTRE, 2002, p. 141).
A experiência de Genet com o mundo fundamentou-se no fracasso do amor, do
encontro. Genet encontrou aparências e se submeteu a elas pela dependência. Todo ser
dependente faz mau uso de sua liberdade, pois a dependência é um buscar-se no outro por
falta de condições próprias de existir. É uma dinâmica de sair de si e buscar no outro um
modo de validar-se com ser. O sujeito dependente precisa dos outros para manter sua
integridade psíquica. O projeto do dependente nunca lhe confere integridade, pois ele não se
fortalece pela identidade do outro, apenas mantém o status da dependência. A dependência é
um exercício de liberdade calcada na escravidão voluntária de um ser em detrimento de outro.
Genet seguiu o mal, era sua referência. Sua singularidade se fortalecia no mal. Genet era
dependente do mal.
133
na idade adulta, Genet fez uma nova inversão e se opôs ser um objeto para si
mesmo. Desde a infância, quando foi expulso da aldeia, Genet levou consigo o Deus cristão
que lhe ensinaram a adorar e rezar. Aos dezoito anos, Genet viajou por toda Europa,
mendigando e se prostituindo, passando todo tipo de privação: fome, miséria, humilhação,
desprezo. Diante de tanto sofrimento, Genet passou a ver o mundo como se tudo conspirasse
contra ele, inclusive o frio de inverno. Genet sentia a punição da natureza física sobre ele.
Uma espécie de paranóia. Sentia que fora eleito por Deus para sofrer, quando deveria
entender que fora eleito sim, mas pela sociedade dos “honestos” para passar todo tipo de
privação. Diz Sartre que
Genet foi educado religiosamente, a sociedade o marcou com seu sinet , isto é,
imprimiu nele, como um selo, a idéia de Deus, fundamento mítico dos imperativos coletivos
(SARTRE,
2002, p. 146).
Assim, Genet se sentia condenado pela sociedade e Deus era como uma provação que
o elegera. Nesse entendimento, Deus visaria Genet por meio da condenação social. Diz Sartre
que Genet usava Deus para inverter seu projeto. Deus seria, então, o próprio Genet. Até aqui
Genet tinha uma natureza e fez dela um objeto. Agora Genet opunha-se a essa natureza e
passou a acreditar num Deus que pode ajudá-lo, pelo seu sofrimento, embora o tivesse a
proteção de nenhuma instituição religiosa. Assim como o mal é uma expressão da natureza, o
bem também é, e a expressão do bem é Deus.
Genet, numa desintegração de sua personalidade, buscava o ser do bem como uma
forma de dizer que a natureza de Deus também poderia fazer parte de sua natureza. Para ele
mesmo, talvez um grito de desespero para salvar sua identidade, sua integridade psíquica.
Genet considerava Deus como essencial e seu ser, como Genet, como inessencial. Mas tudo
o passava de uma falsa libertação, num processo dialético em que migrou de uma alienação
para outra numa busca desesperada por seu ser.
Voltando ao Genet menino que decidiu ser mau e fazer o mal, percebe-se que, no
momento da sua conversão para fazer o mal, ele assumiu sua liberdade no agir. Ele decidiu
agir para ser. Ele queria ser. É claro que queria o que sobrara para ele no labirinto em que o
colocaram, mas ele assumiu esse destino, pois ele poderia fazer verdade o que os
“honestos” haviam programado. Se ele dissesse não, se ele se rebelasse, o projeto dos outros
o se viabilizaria. Vemos assim a escolha, a decisão de Genet que buscou como fim o mal,
pois sua consciência estava no mal. O abandono, a depreciação do ser, a solidão absoluta,
faziam parte do projeto fundamental de Genet. Por mais que Genet tivesse capacidade para
agir, e tinha, ele lutava contra variáveis muito grandes, muito devastadoras, uma sociedade
instituída com valores arraigados e sua desproteção afetiva, econômica e social o colocava
134
muito aquém de suas possibilidades de luta. Mas Genet tentava e agia. Entre o agir e a solidão
absoluta que se alternavam, ele tentava resistir para não morrer. A busca pelo ser fez sua
existência. Na vontade do mal estava seu ser. As escolhas de Genet foram muito infelizes, o
envenenaram constantemente, o colocaram num labirinto em que tanto era difícil continuar
como sair. Genet viveu a contradição de agir para salvar seu ser, mas sua significação desse
agir, se fundamentava no objetivo. Sua consciência agia, mas era preciso que o mal a ele
imputado tivesse viabilidade.
Porque o mau é o Outro absoluto, vimos Genet tentar realizar o seu Eu como o
Outro-diferente-de-si, deslizar para o narcisismo e depois para a pederastia. Mas,
quando ele quer fazer o Mal, o se encontra mais favorecido: ordem e desordem,
relativo e absoluto, Ser do Não-Ser e Não-Ser do Ser, princípio e pessoa, esse é o
fim que ele deve realizar no mundo. Pode ele ao menos conceber este fim? Pode
reter ao mesmo tempo sob o seu olhar os diferentes caracteres do mal?
(SARTRE,
2002, p. 154).
Se Genet decidiu fazer o mal, ser o melhor, ele precisou fazer um projeto em que fez
suas escolhas. Seguiu o que mandaram? Foi dependente dos outros, dos “honestos”? Sim, mas
viabilizou o que esperavam dele. Acatou o que lhe foi imposto. Genet amou o mal, se tornou
viciado nele. Fez do crime sua arte.
O bem e o mal são dois encaminhamentos de consciência, não são, não fazem parte da
natureza do homem. O bem e o mal são institucionalizados na sociedade, e no caso de Genet,
pela igreja católica, pela sociedade dos “honestos” que julga existir a natureza boa e a
natureza má. Na verdade, é o sujeito que decide ser bom ou mau. O amor e o ódio são
atributos de decisão, de intenção do sujeito. Seja como intenção consciente ou reflexiva, ou
como resposta a instituições que estabelecem os valores. O bem e o mal não estão na natureza
do sujeito, e sim no encaminhamento das atitudes de uma consciência que escolhe e vive. Os
seres maus, os grandes criminosos, os santos, os sábios, os covardes, são escolhas
intencionais, reflexivas ou não, que levam o sujeito, pela sua consciência, a construir uma
expressão de vida. Genet aprendeu na infância que os santos superavam a própria natureza em
busca de uma causa. Chegavam ao martírio se fosse preciso. O mesmo fez Genet da sua opção
pelo crime, pois embora o fim seja diferente, a atitude não é diferente: buscar seu objetivo a
qualquer preço. Para seguir o bem ou mal é necessário que uma vontade faça a proposição de
querer. Quando Genet, criança, viu como solução seguir o mal, o crime, passou a construir
seu próprio suplício.
135
Ser mau não é agradável para ninguém. Porém, o criminoso procura o crime por um
critério subjetivo necessário. Sua experiência de vida o fez ser mau, então é essa a expressão
conseqüente.
O criminoso não é feliz por matar, porém mata como resposta a uma situação criada
anterior ao crime. Um criminoso pode sentir liberdade de sentimento ao matar, por ser este o
único sentimento possível em sua estrutura já construída como tal. Mas o mal não existe. O
que existe são os homens maus ou suas construções de vida nessa direção. O mal não é pré-
concebido com o sujeito. O mau é condicionado numa construção de cada sujeito particular e
como crenças institucionais que pré-concebem o bem e o mal como internos do sujeito e que
o fazem ser resultado de uma natureza do mal e do bem. São crenças que vão direcionar as
escolhas, as significações, caso o sujeito acredite nelas.
Se houvesse o bem e o mal como parte da natureza do sujeito, estaria pré-estabelecido,
e a luta contra o destino, perdida. Não existe natureza humana, existe a realidade humana.
Não existem o bem e o mal, existem a consciência e as suas relações com o mundo.
Genet se perdeu no labirinto do bem e do mal, labirinto que as pessoas “honestas”
construíram no dia em que cortaram em dois a liberdade. Dois pedaços, bem e mal, um envia
ao outro. A separação abstrata dos conceitos de bem e de mal exprime a alienação do homem.
Uma alienação justificada nos códigos morais, nos paradigmas de valores. Assim, Genet foi
um “homem-derrota”. O projeto de ser o mal o fez derrotado. Genet viveu o mal morrendo,
mas não estava morto, estava sonhando. Genet foi uma tima que fez um projeto de fracasso
em conseqüência de sua condição.
Genet quer fazer o mal, fracassa, decide querer este fracasso; com
isto transforma-se em traidor, seus atos se transformam em gestos e o ser em aparência
” (SARTRE, 2002, p.
191). Genet foi traidor o apenas com os outros, mas traiu assim ele mesmo. Genet viveu a
destruição de sua própria vida. Pela ação, buscou o processo de liberdade, mas a ação também
é morte. Era o projeto fundamental que precisaria ser mudado, reformulado, nadificado. Genet
continuava vivo e lutando.
5.4 A obstinação pelo mal
A obstinação de Genet para fazer o mal era tão exacerbada que é possível dizer que
Genet buscava ser um santo do mal. A mentalidade religiosa que Genet adquirira na infância
nunca foi abandonada. Pela sua decisão pelo crime, Genet se martirizou. O mau quer aquilo
que o horroriza. O mau se sacrifica ao mal. Seu sacrifício é uma forma primitiva de atribuir
136
força sagrada a seres exteriores a si. Genet precisava encontrar consolo no seu sofrimento.
Pela constituição de sua personalidade e seus fundamentos religiosos, Genet via no sofrimento
uma causalidade sagrada, até mesmo de santidade. O santo se priva de tudo, vive uma vida
miserável, mas assume lugar de privilégio porque se consagra pelo martírio que impõe a si
mesmo. A função de Genet na sociedade do crime não era diferente. Refletindo sobre que
contexto social e potico, Genet construiu sua trajetória de vida, observa-se que os valores
dessa sociedade, tem raízes nocivas, cheias de creas, carentes de consciência. Verdadeiros
sistemas alienantes, os santos do bem ou do mal, a “má-fé” está por toda parte e é preciso
parar de agonizar.
Penso, como muitos outros, que é preciso abreviar as convules de um mundo que
está morrendo, ajudar o nascimento de uma comunidade de produção e tentar
estabelecer, com os trabalhadores e os militantes, o quadro dos valores novos. É por
isto que a Santidade me repugna, com seus sofismas, sua retórica e seus mornos
deleites; ela tem apenas uma utilidade hoje: permitir aos homens de má-fé raciocinar
errado
(SARTRE, 2002, p. 200).
Genet tinha uma cultura religiosa refinada, mas em sua vida não havia espaço para o
amor. Tudo era um retorno à ordem do mal. Construiu sua hisria com os conceitos de bem e
de mal que aprendera na infância e não conseguiu passar disso.
O santo, para renunciar ao mal, renuncia à sociedade dos homens, a si mesmo e a tudo
para apegar-se somente a Deus. Ele passa a não ser nada, e Deus é tudo. O seguidor do mal,
determinado a fazer o mal, renuncia, por sua vez, ao bem, à ética, à honra, a si mesmo.
Apega-se somente ao seu objeto, que tem como fim a perversidade, passa ser o nada do seu
mal. Para o santo, Deus é tudo. Para o criminoso, seguidor do mal, o mal é tudo. São dois
lados da mesma moeda: bem e mal. Porém, ambos fazem uso de sua liberdade para destruir os
limites. Ambos são despojados. Importante lembrar aqui é que o santo do bem e o seguidor do
mal têm sua aprovação ou desaprovação fora deles. No caso do santo, permanece o ser que é
Deus. No caso do criminoso, seu rompimento com os limites o coloca limites ainda piores ao
seu ser. O ser do santo é venerado pelos outros. O ser do bandido, por outro lado, é banido.
São os valores externos pré-concebidos os responsáveis por tudo isso? Nos dois extremos
uma atitude premeditada, pré-concebida como estrutura de educação. Se ambos o santo do
bem e o santo do mal fizessem suas escolhas por consciência, ainda seriam dessa forma? Sem
esquecer os valores de suas obras, ambos estão respondendo ao bem ou ao mal. Se deixarmos
de lado os valores pré-concebidos e avaliarmos cada sujeito, estaremos mais próximos das
significações, pois mesmo que o sujeito responda a valores pré-concebidos, cada qual tem sua
dialética, suas significações. O santo do bem e o santo do mal seguem, no caso de Genet, o
137
mesmo ritual sagrado. Ambos se escolhem como um outro aos olhos dos outros, o outro que
se é para si. compreendemos isso quando falamos de consciência e ego. A consciência é o
caminho que o sujeito deveria percorrer e o a crença. Quando percorre a crença, aliena-se
de alguma forma.
O maior crime de Genet foi ter escolhido ser traidor. Este crime, a traição, a história
mostra como inexpiável. Genet escolheu o pior. Para Genet trair o mal é torná-lo mal pior.
Genet incitava os companheiros a roubar e depois os denunciava à pocia. Essa é a busca do
pior mal. Genet cometeu o pior crime para realizar o bem? Onde ficou sua vontade má? O mal
traiu o mal. A procura da santidade por Genet era uma defesa contra as traições do mal.
Quando Genet decidiu trair, passou a fazer o mal pelo mal. Quando preso, fez de seu
sofrimento uma tortura pela expiação. A trajeria foi assim: houve o momento da práxis, de
fazer o mal, e depois, quando preso, foi o momento da introspecção, um tempo para a
Santidade. Tudo isso se deduz do conceito de vontade má. O sofrimento se tornou um bem.
Com isso, a Santidade – ideal daquele que procura simultaneamente o sofrimento pelo
Mal que ele faz e o Mal pelo sofrimento que ele causa - é ao mesmo tempo boa e má,
aparência de Bem que se funde no Mal, aparência de Mal que se funde em Bem.
Genet pensa, pois, ter salvo o seu delito na sua própria contingência, preservando
também os direitos absolutos do Mal
(SARTRE, 2002, p. 232).
Genet chamava de santidade suas perversões demoníacas e dava a elas uma noção
sagrada. Mas o que Genet buscava era sempre a mesma coisa, ou seja, atingir-se. Seu agir
buscava o mal em seu fim supremo que era se tornar ele mesmo. Mas Genet afirmava-se
negando-se, ele era mau, e o agir mal destruía seu ser. Genet era a própria contradição, no não
havia o sim e no sim havia o não. Assim, ele atingiu o nada puro. Mas a consciência de Genet
era uma unidade de contradições, um paradoxo que remetia do nada à existência. Genet queria
ser, mas se anulava. Queria o mal para ser, mas o mal o aniquilava, viveu a lucidez de
contemplar o próprio fracasso:
Genet, se quiser descobrir o ser secreto da sua consciência, deve procurar saber aos olhos de quem
essa consciência é, secretamente, objeto
” (SARTRE, 2002, p. 234).
Desde a infância que a sua verdade lhe escapava, mas seu estado de ansiedade
denunciava: Genet o se via, mas os outros o viam. Enquanto Genet era visto pelos outros,
construía suas experiências até que passasse a ser um outro.
Como se entender no meio de um tão complexo labirinto? Como viver diante de tão
séria inquietação? Mas é preciso recuperar a verdade que escapa à consciência. Genet buscava
em algum lugar do absoluto um sentido para sua existência. Aqui ele traiu o próprio mal e
138
passou para o lado do bem. Esperança de aliviar seu sofrimento ou simplesmente loucura, mas
Genet passou de um extremo ao outro. Se sua vida foi sofrimento, um repouso eterno
poderia ser uma conseqüência. A contradição que viveu foi mesmo uma violência. Nasceu na
contradição, foi criado numa sociedade contraditória, com valores loucos, sua práxis foi
envolvida nos piores erros e contradições, que fizeram de seu ser um tormento, mas ele não
deixou de, pelo menos, sonhar com alguma quietude para seu ser.
O mal é uma explosão, não é um sistema, o pode exalar harmonia. É muito ruim
viver de maldade. Se alguém vive nela, que se buscar a verdade dessa expressão, porque
ela esconde uma significação importante para quem a vive. Genet tentou liquidar toda moral,
toda forma de humanismo, que ele fora relegado ao inumano, e a ética da santidade é o que
Genet via como saída. Diz Sartre:
[...] a originalidade de Genet é que ele quer ser e é a unidade não-
sintética das suas próprias contradições
” (SARTRE, 2002, p. 241).
O outro que se apresenta como o ego de Genet é uma grande loucura social, objetiva,
do mundo e dos valores éticos, religiosos e morais, do qual ele foi tima e se fez tima
também.
Deixando um pouco de lado o Genet tima social, ou a relação entre Genet e o mundo
externo, Sartre faz uma análise do escritor quando adolescente, como ele aparecia a si mesmo
aos dezoito anos. Se Genet não tinha nada e ninguém para amar, ainda lhe restava pelo menos
uma coisa: a sua própria vida. Estar vivo, em movimento de alguma forma. o coma pode
manter paralisado um ser vivo. Até mesmo o sujeito catatônico está ativo, pois seu mutismo e
sua falta de expressão já são uma grande forma de protesto. A catatonia toca profundamente
os outros. Ninguém consegue passar despercebido, alheio, ao paciente catatônico. O grito do
catatônico é um eco de ressonância de larga abrangência na realidade. Em se tratando de
Genet, ele sempre lutou, a seu modo, pela vida. Até afirmou estar morto, mas nunca perdeu a
paixão de viver. Experimentou a morte afetiva, moral, mas não morreu. Continuou a luta.
Genet conheceu todos os desprazeres da vida, mas desconheceu o tédio. Sua vontade e sua
consciência nunca desfaleceram.
Os sonhos de ser e de ter nunca morreram. O melhor de Genet está na consciência
reflexiva. Ele refletiu sobre sua realidade, tentou encontrar sentido. Mas o mundo é uma
linguagem estrangeira. O significado do seu nascimento, ser abandonado, rejeitado e confiado
a desconhecidos, para Genet, o era produto da continncia. Via em tudo isto uma pré-
destinação. Ele anulou a realidade contingente para dar significação a algo fora dela que lhe
impusesse um destino com um objetivo. Com isso ele via sua infelicidade com uma
contradição: sua tensão interior era de viver o horror dos fatos de sua vida com entusiasmo,
139
porque essa era uma resposta ao seu destino. Ele era um destinado. Nessa fase de sua vida,
Genet estava muito próximo da loucura, da desintegração. Não tinha clareza das suas
significações, acreditava que podia se entender fora da continncia, se colocava com os
outros ausente, secreto, e sua maneira de ser o isolava. Porém, a realidade lhe escapava, era
obscura, mas vivida de alguma forma, significa-se e ressignifica-se de alguma maneira. Mas a
que ponto de complexidade pode estar a capacidade de consciência, em função do ego, de
apreender claramente a realidade?
Para nós, a maioria dos objetos no nosso ambiente manifestam uma organização que
se refere a fins preciosos e afinal ao próprio homem: uma cidade não é mais do que
uma coleção de instrumentos dispostos em boa ordem, ela nos remete à imagem da
realidade humana. Para Genet, ela significa a sua exclusão do nero humano, as
coisas não lhe falam
(SARTRE, 2002, p. 248).
Se as coisas não lhe falavam era preciso criar significações, ainda que imaginárias.
Genet não conseguia distinguir o ser da aparência. O real, para ser real, deve ser
experimentado por meio da ação. A única ação com que Genet parecia se identificar era o
roubo que praticava para viver e para provocar uma forte expressão de destruição ao mundo e
aos outros. O mundo que o cercava com seus utensílios não era visto, mas anulado. A
recíproca é verdadeira, ou seja, o mundo o anulara primeiro, o matara.
Onde estavam seus vínculos, seus afetos? Sua relação com o mundo era destrutiva,
tudo girava em torno da destruição. É incrível como Genet era sozinho! E é mais incrível
ainda que sua personalidade, sua consciência não tenham se deteriorado totalmente. Até que
ponto um sujeito pode suportar a dor e a solidão absoluta? Genet tornou-se o lixo de uma
sociedade doente. Genet era destrutivo? Mas o mundo, as pessoas que o cercaram também.
Uma análise de Genet pode ter validade se descritos os dois lados: Genet com sua hisria e
os valores morais, as leis e tudo o que regia sua sociedade dos “honestos”, cheios de falhas, de
terríveis contradições e absurdos. Se uma criança que nasce abandonada, nasce marcada, se
pode dizer que nasceu numa sociedade doente. Na realidade humana, tudo se define em
sociedade. A natureza não passa de um mito social. Tudo se aprende e apreende do convívio
social desde o nascimento. Genet, expulso do social por ser diferente, foi também expulso da
natureza. Viveu no meio do mundo, mas expulso o tempo todo. Foi essa sua marca social e
humana de ser inumana.
Se a natureza é apenas um mito social e o social a anula, então Genet não fazia parte
da natureza, ele era a propriedade dos outros. Para Genet, tudo pertencia aos outros, nada
pertencia a ele. Não existia a ponte entre ele e os outros a não ser para excl-lo, torturá-lo
140
como um ser à parte, separado, o querido. Tudo passou a ser normal na sua exclusão, pois
ao nascer, foi excluído. A palavra máxima fora dita, este é seu destino. Para Genet, nesta
fase da vida, todos o vigiavam em tempo integral. Quando preso ou andando pelo mundo, ele
era vigiado porque era um excluído. Estava ali, mas não poderia estar. A repetição e a
fatalidade eram seu futuro. A repetição reproduzia simbolicamente a crise original. A
fatalidade reproduzia o momento em que foi surpreendido roubando. Nascimento, abandono,
exclusão. Roubo exclusão, repetição do ato de roubar, tudo seguia num ritual interminável.
Todo sujeito nasce e se desenvolve no mundo, dentro da história, e para que tenha uma
hisria própria, precisa deixar no mundo de alguma forma a sua marca. Assim, o sujeito se
conhece com uma singularidade que, por mais tímida que seja, é a sua. O sujeito, ao se
modificar durante sua história, dentro da hisria, modifica também a hisria pelos seus atos.
Nós mesmos somos nosso próprio risco, e o mundo é nosso perigo neste desenrolar da
hisria.
O sujeito não é uma totalidade atemporal, ele existe no espaço e tempo históricos.
Olhando por esse prisma, a identidade de Genet se desenvolveu numa complexidade quase
assassina de cortes, bloqueios e limites, de falta de direitos à história e a sua hisria. O
mundo lhe bloqueou esse direito ainda em tenra idade. Genet ainda irá conseguir dar uma
grande virada quando se tornar escritor.
A situação das relações de erotismo que Genet viveu não lhe conferiu história afetiva,
pois tudo se resumia a prostituição, a uma busca enganosa de encontro. As relações sexuais,
nem sempre necessitam de afetos, bastam os instintos. Para Genet, que tanto precisava de um
encontro, esse tipo de relação era uma sucessiva devastação. Na relação homem/homem,
Genet encontrava o erostismo apenas. Genet amava sem a menor pretensão de ser amado, pois
tinha em troca a indiferea. Mas como amar sem ser amado?
Entre os quinze e vinte e cinco anos, a vida de Genet é surpreendentemente cheia: é
admitido como aprendiz, foge, é pego; vivendo com burgueses, rouba-os, é enviado a
Mettray, foge novamente, mendiga, percorre a França, alista-se na legião, deserta,
foge para Barcelona , vive de esmolas e prostituição no Bairro Chino, rouba de novo,
deixa a Espanha , anda por toda parte, na Itália, na Polônia, na Tchecoslováquia, na
Alemanha, roubando e atravessando clandestinamente as fronteiras; suas aventuras
dariam assunto para vinte romances pitorescos. Ama, tem ciúmes, é desdenhado ou
escravizado, é infeliz. Entretanto, nada o marca e nada o muda, aos vinte anos
encontra-se como era aos quinze
(SARTRE, 2002, p. 313).
Genet, até essa fase de sua vida, se entendia como sujeito com o que fora programado
para ele. Aliás, é assim que vivem as pessoas dentro de culturas conservadoras em que o
sujeito se entende pelo que é como outro. Genet vivia a crise original a todo tempo, como se
141
o tivesse história a partir do fato originário. Vivia em círculo, o saindo do abandono, da
solidão absoluta, como se seu destino fosse imutável. Genet foi fabricado por uma cultura
camponesa tradicional, na qual o outro era mais que a singularidade, além de sua religião
também confirmar tudo isso. Assim, tudo o que aconteceu com Genet ocorreu em
movimentos circulares, suas emoções, vontades e sentimentos remetia sempre ao mesmo
significante. O movimento do pensamento em Genet era circular. Mas Genet viveu um
sistema de valores opostos que lhe mostravam fraco num momento e forte noutro. Ele era
forte como o destino, como o mal, como aparência. Mas era fraco porque, como criminoso,
o se dava bem. Tudo o que fez o levou a ruína. O fraco e o forte agiam como dois sistemas
implicados um no outro, mas não faziam síntese, pois eram duas dialéticas que não se unia,
permanecendo em contradição.
O projeto de Genet encerrava uma contradição fundamental. Na vontade primeira,
Genet queria ser o que o crime fez dele. Genet queria o ser, e foi viver esse mundo falsificado
que fora programado para ele. Mas querendo o mundo que o esmagava queria também o
“não-ser” e era preciso querer esse esmagamento até o fim. Ele queria o mundo, mas ao
mesmo tempo o recusava. Essas duas verdades contradirias eram imaginárias, pois não é
possível recusar o mundo nem aceitá-lo. Isso só é possível a quem sonha acordado, para quem
vive no imaginário. Para recusar o mundo, seria preciso destruí-lo ou cometer suicídio. Genet,
o pensava em se suicidar. Ele não de fazer seu percurso de vida, seu futuro foi roubado.
Sua vontade era apenas imaginária. Ele vivia como um ator obrigado a representar uma peça,
só que a peça era sua própria vida. E sob a condição de continuar vivendo, ele segue
consagrando o louco empreendimento de tornar-se o que era, bem como destruir o que
podia lhe impedir de ser. Assim, quando Genet escolheu querer seu destino, decidiu também
expressar-se pela simbologia e viver e de imaginário. No imaginário, roubava para fazer-se
ladrão. A ação de roubar é um ato real, mas esse real é ao mesmo tempo uma representação
dramática que sugere um duplo fim: rouba porque é ladrão e rouba para fazer-se ladrão.
Assim, o roubo para Genet representava uma dimensão do real e uma dimensão do
imaginário. Roubar era reviver a crise original. Mas quanto mais ele se obstinava em querer o
real, mais mergulhava no imaginário. E assim Genet chegou a uma segunda decisão: a de ser
um poeta. Então ele é o ladrão que se tornou poeta, mas um poeta do mal. O ladrão foi o
projeto das pessoas “honestas”, e o poeta do mal ainda estava dentro do mesmo projeto
fundamental, porém, com uma pequena diferença: por enquanto, os “honestos” não decidiram
que Genet seria um poeta mesmo que fosse para confirmar sua maldade prevista. Essa decisão
lhe conferiu um agir sobre si mesmo, embora ele não tenha escapado ao projeto fundamental
142
na qualidade de sujeito, mas mostrou uma decisão que dependeria apenas dele, embora não
tivesse desviado de seu fim, que é o mal. Era um poeta do mal, que transformaria um sonho
de vontade em ato real, a poesia.
5.5 A segunda metamorfose: o esteta
[...] esse futuro escritor não foi favorecido ao nascer; nada de “temperamento
artísticonem de talento de poeta”. Aos quinze anos pensava em fazer o mal.
Quando encontrou a beleza, foi uma evidência tardia, um fruto fora de estação
(SARTRE, 2002, p. 339).
A expressão de Genet começou se modificar como reflexo de uma atitude mais
espontânea que premeditada. Até então, o sonho, o imaginário, estavam no ser mau. A escolha
pelo mal estava calcada no imaginário, nos devaneios infantis, nas aparências. Suas escolhas
escondiam um projeto fundamental de responder ao mundo com maldade, já que foi assim
que foi recebido ao nascer e ao se desenvolver. O sonho de ser um grande mal parecia
também pouco favorecido, uma vez que Genet, era um marginal miserável, um mendigo,
frustrado na tentativa de ser um grande bandido, um forte ser do mal. Genet foi um grande
falsificador, uma grande aparência e é pela aparência que ele queria o mal para o mundo que
tanto lhe fez mal, que o agrediu ferozmente. Genet é uma expressão absoluta de artificialismo.
Até mesmo a pederastia, antes de ser contra a natureza, era uma forma de falsificação, tudo
deveria ser falso. Sendo ilusão, falsificação, Genet devolveu à sociedade a falsificação de
valores que a sociedade dos “honestos” é. Sendo traição, ele agredia dando o retorno a essa
sociedade e, sendo fracasso, ele confirmou seu conflito original e sua primeira metamorfose
aos dez anos. Assim, ele construiu suas obras e também peças teatrais, que foram o resultado
do que ele era. Em outras palavras, ele fazia teatro com a realidade imaginária que vivia. Os
personagens o eram fictícios, mas tirados de sua própria história. Genet fez um teatro
calcado na aparência irritante, demoníaca. Mas pode-se dizer que, na ficção Genet conseguiu
agredir irreverentemente. De forma teatral, apresentava escancaradamente a realidade.
Quando entramos em contato com a obra literária de Genet, se vê uma realidade: Genet é real
na obra literária que produziu a partir da vida imaginária que viveu. É como conseguir uma
forma de se apresentar de fato e de direito. que essa apresentação real é possível na
representação. Assim, Genet conseguiu a forma mais sutil de vingança, mostrando a
verdadeira realidade da sociedade dos “honestos”.
143
A única coisa real é a representação, a encenação. É possível dizer que o não-ser torna-
se, na representação, o ser. É uma grande contradição, mas seu grande poder de ser mau
estava calcado na sua impotência profunda.
o homem tem a capacidade do imaginário e somente ele produz as aparências.
Genet viveu a aparência e fez dela seu ser pelo imaginário. A busca incessante do ser não
parou, mas ele caminhava na aparência, no imaginário incansavelmente. Genet viveu o
imaginário como uma arma ofensiva contra os outros. Porém, a aparência o conduziu à
impotência, à solidão completa, aos limites do nada. Mas Genet encontrou a fórmula de trair o
real com o imaginário. Mais tarde, a matéria das falsas apancias seria encontrada nas
palavras escritas. O sonhador se transformou em esteta e se encontrou com a beleza, embora a
beleza ainda estivesse misturada com o mal.
A virtude é o hábito do bem, mas o hábito do bem é o dilaceramento da consciência. O
artista produz o belo, o homem “honestopratica a virtude. O artista cria, o homem de bem
copia, mas copia os valores prontos. O artista é original na sua inspiração e criação, mas o
homem de bem vive seu código moral assimilando o bem ao ser, pois tudo é ser, e suprime o
“não-ser”. O artista trabalha sobre as aparências, o homem de bem vive sob estruturas
objetivas da realidade. O artista trabalha na representação uma aparência organizada que diz
toda verdade por múltiplos ângulos. Foi assim que Genet levou ao teatro a sociedade dos
“honestos” para ver exibida sua obra.
Genet descobriu que a beleza poderia ser uma arma muito ofensiva que lhe daria
condições de combater os “honestos”. Por esse caminho, existia a possibilidade de atingi-los.
Então, o sistema de bem e mal que regia sua vida foi deixado para trás. Agora era o momento
de atacá-los pelo belo. O culpado recorreu a beleza e esta é um valor. Então, se Genet atacasse
pelo valor a sociedade dos justos, a questão ficaria: valor contra valor. A descoberta tardia da
beleza deu a Genet um recurso de socorro. O universo do esteta, da beleza, leva o justo à
prestação de contas. Quando Genet era expressão do bem e do mal ele era o culpado, o
inferior. No universo da beleza, ele se igualaria ao justo e ambos se separariam por uma
questão de valores. Diz Sartre que “[...]
a beleza é, antes de tudo, a peça que o marginal prega na
virtude
(SARTRE, 2002, p. 356). Ao invés de ser o culpado, o marginal mostrava com a peça
de teatro, montada com arte, o papel de quem exercia o outro lado, o daquele que condenava.
A arte e sua beleza foram uma revelação para Genet. Ele entendia que
[...] o ser é feito
para o nada. A intuição do belo é um desvanecimento em plena consciência
(SARTRE, 2002, p. 358). A
poesia também revelou a Genet o não-ser”. O projeto de Genet passou a ser investigar o
homem “honesto”, colocar em dúvida sua moral do bem, desconsertar os “justos”.
144
A beleza é uma virtude do pensamento. Genet não mudou o projeto de atingir os
“honestos”, mas passou pela arte a agir sobre eles com elegância.
Até esse momento, a beleza em Genet era falsa porque era criação fictícia e falsa
destruição. Se propunha eliminar o ser, a destruí-lo. Mas tudo era aparência e falsidade. Este
o conseguia criar nem destruir, pois trabalhava com o objetivo de eliminar o ser. Assim, se
era incapaz de criar, era incapaz de destruir, uma vez que sua obra-prima era a própria
destruição. Genet odiava a matéria e, por isso trabalhava com ela no plano da destruição.
Odiava a matéria porque odiava o mundo por ser excluído.
Genet começou a perceber o valor da linguagem, das palavras. Diz Sartre que
Genet
transformará, pelo poder das palavras, a sua vida de pária em uma “aventura original
”” (SARTRE, 2002, p.
377). Finalmente, parece que Genet havia começado a entender que poderia fazer algo por si
mesmo, por seu ser. Um caminho que pudesse ser traçado a seu modo, que pudesse ser sua
criação, embora estivesse ainda muito marcado pela sua história, suas tragédias. Mas Genet
encontrara até aqui alguma mobilidade.
Em 1936, Genet, com 26 anos, voltou à França depois de longo período de errância.
Agora era o momento em que Genet se abriria para o mundo e para a vida.
Genet fez uma mudança de grande proporção. Parecia olhar de fora o mundo que
habitara até então, o quanto era asqueroso, imundo. Não desejava mais os marginais, dizia se
sentir homem agora e parecia habilitado para começar a fazer sua própria história. Foi depois
do período de errância, em que se tornando arrombador profissional, que dizia ter se
encontrado amadurecido como ser e se transformado radicalmente.
Sartre desconfiava um pouco dessa profunda transformação de Genet. Mas até o ponto
em que aconteceu essa libertação vale dizer que Genet se libertou tanto do bem quanto do mal
e, daqui em diante, aderiu a um amoralismo cínico e positivo. Porém, em toda sua obra a
obsessão pelo mal nunca o deixou. Sartre confirmou sua desconfiança, mas Genet afirmou ser
este momento uma transformação radical. O que Genet chamou de transformação radical,
Sartre chama de reconhecimento de quem se é, uma familiarização com um reconhecimento
próprio, sem alterar tanto, ou radicalmente, o projeto original. Mas Sartre concorda que os
arrombamentos deram a Genet mais segurança, o que mudou também sua estrutura de
sexualidade, passando por uma verdadeira metamorfose, como pode se observar em “Notre-
Dame des Fleurs”. Uma mudança no agir não altera apenas uma área da personalidade, mas o
sujeito como um todo.
Genet foi um homem enquadrado nos valores dominantes, respondendo ao mesmo
paradigma. Foi um fora-da-lei, e, como tal ele foi o resultado da cultura do bem e do mal. Se
145
decidisse ser do bem, deixar o mal, certamente não seria o que são as pessoas que sempre
procuraram ser do bem (na cultura do bem e do mal). Teria que ser outra expressão
considerando sua experiência anterior.
Genet, nesse momento de seu percurso, não fez modificações importantes quanto ao
seu projeto original. Se não houve modificação na estrutura fundamental, então não foi radical
a sua modificação. Foi apenas algum despertar
Os arrombamentos não foram situações bem-sucedidas, pois o levavam à prisão e, no
isolamento, ele caía nos devaneios e perdia também o benefício de suas atividades de macho.
Mas mesmo assim Genet o era mais o mesmo, muita coisa mudara, sua personalidade
passara por modificações complexas, ele já se entendia de outro jeito. Se experimentou o
macho, a fêmea não tem mais o espaço psíquico de antes. Algo mudou, o momento era
outro. Mas como Genet continuava impossibilitado de viver o real, o que seria então? Qual a
saída? Seria realizar o imaginário? Uma saída seria colocar o imaginário na realidade. Num
mesmo projeto, Genet colocou sua intenção realista e sua intenção irrealizante. Mas como
fazer isso? Objetivando seus sonhos e colocando-os num lugar que fossem apreendidos pelos
outros fora dele. Os sonhos, imaginário de Genet, foram levados ao espírito objetivo nos fatos
culturais. Então seu imaginário tinha a chance de ser real. Genet passou a agir na consciência
dos outros, produzindo uma consciência imaginante que interferia nas consciências como tal.
E assim ele de objetivar as suas imagens. Genet queria atingir sua cultura e inseriu o
imaginário na trama do real:
O paradoxo do objeto de arte é que a sua significação permanece irreal, isto é, fora
do mundo, e que, entretanto, ela pode ser a causa e o fim de atividades reais. Um
quadro põe em jogo interesses econômicos; é comprado, vendido
(SARTRE,
2002, p. 398).
A trajetória de vida de Genet, de revolta, de culpado, de excluído, o poderia
encontrar uma saída melhor para revanche à cultura burguesa. Diz Sartre que Genet
[...] quer
contagiar os justos com suas imagens e, que não é nada mais além de seus sonhos, esse morto social decide
vir, em pessoa, “assombrara comunidade das pessoas honestas
” (SARTRE, 2002, p. 399).
A nova escolha de Genet, seu novo projeto de ser, o levou criar. Genet tornou-se o
imaginário em pessoa. Quando fez isso aconteceu o despertar da consciência de Genet, que o
levou à criação e à liberdade. Nasceu então um novo Genet. Ele o era mais vítima do bem e
do mal apenas. Foi além, tornou-se consciente. Estava tomada a decisão de escrever.
146
5.6 Terceira metamorfose – Genet/escritor
Genet tinha vinte e oito anos e para escrever, era preciso ainda passar por mudanças
importantes na sua comunicação com os outros, teria que reaprender a falar.
Quando Genet morou com um compositor de canções populares aos dezesseis anos,
ele escrevera caões. Quatro anos depois, escreveu seu primeiro poema. Quando escreveu
uma redação na escola, ainda criança, foi humilhado.Quando escreveu “Condamné a Mort” na
prisão, sua leitura lhe resultou ironia por parte dos outros presos. Mas agora era o momento de
se organizar numa linguagem que lhe tornaria escritor.
Genet escreveu na prisão, na solidão de sua cela, Notre-Dame des Fleurs”, que é
considerada uma obra-prima. Plenos de ambigüidade e fatalidade, os personagens o
conseqüência do seu destino, resultando numa obra pessimista.
Outro escrito de uma comunicação contraditória e excitante deu origem ao
“Condomné à Mort”. Genet a partir desse momento saiu de si mesmo para se voltar para o
outro.
Antes de Notre-Dame, Genet é um esteta depois, um artista; mas em nenhum momento foi tomada a
decisão de operar essa conversão
(SARTRE, 2002, p. 426). Estava em cena a nova metamorfose
de Genet se transformando no escritor. Sartre mostra com seu relato de “Saint Genet” que
Genet escreveu suas histórias com base na sua própria história. Seja dando roupagens
diferentes aos seus personagens, ao contrário do que o próprio Genet viveu, seja direta ou
indiretamente, era o próprio Genet a obra-prima das construções, das criações literárias. Genet
introvertido, com tanta complexidade de conflitos nas suas relações com os outros, criou
figuras vivas como Mignon, Divine e Mimosa. Devido a seu ódio contra as mulheres, por sua
frustrante relação com a mãe que o abandonou, sua feminilidade deu origem à criação de
Ernestine. São dois aspectos de uma mesma realidade: no real é o verdadeiro Genet; no
imaginário é Genet pintado noutros personagens construindo outras histórias. Figuras
inimitáveis, quanto inimitável é a história do próprio Genet. A imaginação, o sonho, se
apóiam nas palavras, que completam as fantasias produzindo as estórias, as construções
imaginantes, monólogos interiores.
Ora, a imagem, fugidia, imprecisa, individual, reflete principalmente a nossa
singularidade, mas a palavra é social, universaliza. Sem dúvida, a linguagem de
Genet sofre lesão profunda; é roubada, falsificada, poetizada. Pouco importa, com
as palavras, o Outro reaparece
(SARTRE, 2002, p. 432).
147
Para compreendermos a análise de Genet realizada por Sartre, precisamos entender as
formas de consciência do sujeito,vistas anteriormente. Consciência e ego estão interligados
durante todo o relato da obra “Saint Genet”.
Quando Genet começou escrever na sua cela, não previa até que ponto iria sua obra.
Ao que parece, mais escrevia, descrevendo-se, do que sonhava ser lido, mas a arte encontrou
seu caminho. Em meio a tanta turbulência, ainda achou seu lugar no mundo. Seus sentimentos
e atitudes contraditórias, como quietismo, passividade e existência, serviam de inspiração e de
necessidade de expressão, para Genet escrever:
Sonhador lúcido, esse “anjo mau” guarda em si, numa espécie de indiferenciação, o
masturbado, o criador, o masoquista que se faz torturar por procuração, o Deus
impiedoso e sereno que traça o destino de suas criaturas, o sádico que se fez escritor
para poder torturar mais e cujo desapego é apenas uma comédia
(SARTRE,
2002, p. 437).
É no jogo da imaginação que precisamos acompanhar Genet até sua descoberta como
escritor. A obra de Genet são seus desejos fundamentais, e as imagens que refletem o real
refletem também seu projeto fundamental. A estrutura, os esquemas que escreve mostram
suas máscaras. Diz Sartre que
[...] um aspecto pedestico e criminoso na sua imaginação
(SARTRE, 2002, p. 438).
Genet tornou-se escritor, mas não saiu do mundo do crime. Ele escrevia para as
pessoas honestas sonharem com o crime, sentirem o crime. Ele foi um poeta do crime.
Tentava afetar todas as consciências com a criminalidade. O arrombador trocou de atividade
sem trocar de atitudes, objetivando fazer de seus crimes o tema central de suas obras. Diz
Sartre que todos os livros de Genet deveriam se chamar execução capital”. Genet queria
instigar o assassinato, atingir as bases da sociedade “honesta”. Fazendo apologia ao crime,
como em todos os momentos da vida, ele queria o mau, o crime e com isso atingir os outros.
Os crimes de seus personagens são uma paixão. Era seu imaginário que agora fazia o papel de
bandido e dirigia o crime para a sociedade, em forma de poema ou de um livro, mas o que
importava era viver o crime de um jeito ou de outro, no real ou no imaginário, mas ser a todo
tempo o crime como expressão no mundo e, no caso do escritor, um crime de certa forma
legitimada, por ser apenas imaginário, literário.
Assim, poderia causar horror à sociedade inteira mesmo sabendo que esse horror era
virtual. Mas ele desejava ser para a sociedade um objeto de horror. Essa foi a única forma pela
qual conseguiu ser visto. Fora disso ele não era ninguém. O horror, diferente da indiferença, é
alguma relação. Genet não fez vínculos, pois desde o primeiro fora radicalmente cortado. A
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indiferença é uma arma poderosa de agressão. Produzir o horror a outros é fazer um vínculo
poderoso, embora não prazeroso. O mundo era indiferente para Genet. O horror fez com que
ele produzisse o vínculo, mas como ele odiava o mundo, fez o vínculo pela agressão. É aí que
Sartre entende Genet como alguém que fracassara em relação ao mundo porque produziu a
própria destruição sendo mau. Em suas obras como escritor não foi diferente. Para Genet
abandonar esse projeto original, teria que nadificá-lo radicalmente, precisaria ter uma grande
consciência de si próprio, bem como elaborar seu ressentimento contra o mundo que perpassa
toda sua história.
Acabamos de definir a obra de arte segundo Genet: é um objeto de horror, ou antes,
é o próprio Genet engendrando-se por um ato criminoso como objeto de horror
universal e fazendo desse horror a sua glória, porque ele se criou para provocá-lo. A
despeito de um poema diz em Notre-Dame des Fleurs,“Eu o caguei”. Tal é o seu
propósito estético: cagar-se, para aparecer como um excremento sobre a mesa dos
justos
(SARTRE, 2002, p. 461).
Genet como outro, objetivava atingir os outros. O crime e a pederastia só o levaram ao
fracasso. A arte foi seu último recurso, a última carta do jogo. Mas é no imaginário com sua
arte que atingiu os outros do jeito que ele queria. A sociedade criou nele o outro, o ladrão. É
como outro que foi criado e que é para os outros o horror. Genet conseguiu pela arte vingar-se
de todos em grande estilo. Como ladrão, ele servia à sociedade dos justos. Como poeta do
roubo, a destruiu. Seus delitos não questionaram a consciência dos justos, mas a
representação, pois o delito como arte imaginária os destrói. A verdade poética do crime ficou
às claras para ser vista. É o crime visto por dentro, pelo lado avesso. É o criminoso que fala
sua própria experiência.
Belas e agradáveis, perseguidas pela polícia e celebradas pela crítica, elas não
pertencem nem a “literatura especial” nem a literatura oficial. Clandestinos à luz do
dia, esses paradoxos o inclassificáveis e é por sua singularidade que o
inquietantes
(SARTRE, 2002, p. 466).
O código moral dos justos os faz acreditar na sua inoncia, e é preciso que o culpado
justifique a sua prisão. O bandido, está preso na cadeia, o justo, preso aos seus falsos valores.
Genet se vingou dos falsos honestos que o massacraram desde sua infância. Enfim, é nas
palavras que comem seus textos, que Genet encontrou sua liberdade, é uma liberdade
criadora que se dirige a outras liberdades. Genet não despertou desconfiança abertamente às
suas timas. É objetivo ao contar os fatos, como se não tivesse a intenção de abominar os
justos, mas de fato os queria atingir. Tocava-os pelo belo, sendo que o belo e o mal estão
149
juntos. A sociedade dos “honestos” classifica o ego de Genet como fictício e monstruoso, mas
Genet é um outro que escreve para os outros. Por trás de seus relatos, de sua arte, existe a
malícia de destruir a sistemática da ordem, essa ordem pela qual se organiza a sociedade dos
“honestos”. Numa atitude de vingança, Genet adormeceu a desconfiança do leitor com seu
discurso, sua prosa, para então dizer o que queria dissimuladamente. Quando o leitor percebe,
Genet o invadiu e lhe falou nos termos que quis falar. Nesse discurso, Genet transformou o
ser em aparência e a aparência em nada. Quem vai prender Genet por ser tão dissimulado e
feroz contra a pseudo-ordem dos valores estabelecidos? Ninguém. Afinal, é só uma poesia, ou
um discurso poético. Genet custou achar seu espaço no mundo, mas quando achou, soube
manuseá-lo.
Fazendo uma reflexão sobre os valores da sociedade em que Genet nasceu e que o fez
um outro, pode-se constatar que Genet poderia ser uma pessoa como qualquer outra pelo fato
simples de existir. Quando uma criança nasce, seja da forma que for, não tem porque inferir-
lhe qualquer culpa por ter nascido dessa ou daquela maneira. O destino de Genet foi
traçado com tamanha violência e para torná-lo violento porque uma sociedade hipócrita sabia
apenas viver dentro de determinados padrões e não noutros. Haveria outras oportunidades
para o ser de Genet se aprendesse desde cedo que um vínculo cortado não significa a
impossibilidade de outros, se os preconceitos de família e da sociedade não respondessem a
verdades prontas, absolutamente irrefletidas, que colocam uma vida, um sujeito, dentro de um
destino como se fosse o único.
Genet com sua obra de se sentir e se recriar. Pôde ir um pouco além de ser o outro
para ser um ser. Fez da poesia um instrumento de suas revelações. Se a prisão lhe colocava
todos os limites, escrever foi uma forma de superá-los.
[...] mas a poesia de Genet é rigorosamente individual; ela nasceu e morrerá com ele;
ele carregao seu segredo; por ela, Genet atinge os limites do humano e o extremo
do inumano. Inumano quando canta os seus heróis miseráveis pois tudo, no seu
canto, é roubo, distorção, perversão, truque e armadilha ele é o mais humano, por
essa recusa a todo uso natural da palavra, pois o humano é tamm, é principalmente
a antífisis e Genet inventa, para as suas necessidades, um artificialismo radical da
linguagem
(SARTRE, 2002, p. 482).
Ler Genet é pensar e sentir pelo espírito do mal. Seu objeto é o imaginário, ele surge
da autodestruição do real. Realiza o irrealizável e faz com que sua leitura seja o falso contra o
verdadeiro, o mal contra o bem. Ou ainda, o nada contra o ser. É contaminar os outros com o
mal, obrigar os outros a fazerem o mal.
150
A obra de Genet coloca ele mesmo fora dele, objetivando-se. Ele se tornou então, uma
consciência que contempla sua aparência. Genet não se preocupava com a estética ou a
imagem da obra que escrevia, sua obra tem como única regra compor para ele se recriar. Sua
obra é o próprio Genet. Sua técnica responde a questões objetivas.
Diz Sartre que a obra de Genet lhe conferiu uma psico análise, porque ao descrever
sua história, ao criar, fez uma espécie de psicodrama de sua própria história psíquica.
Sabemos que emoção comunicada é emoção modificada. Genet conseguiu uma grande catarse
com sua maneira de escrever. Seguiu sua experiência, pois ao criar, andou pelo seu imaginário
enquanto descrevia os fatos objetivamente e, enquanto contaminava os outros com seu mal, se
recriava e se livrava dele. Quando Genet escrevia na prisão, mostrava que a pocia conseguia
prender apenas o corpo de Genet, porque sua consciência não foi presa; pelo contrário, voou e
viajou o suficiente para mover-se de alguma forma.
A história de Genet é dramática, ele foi realmente muito forte para não ter sido tomado
pela loucura. É um sujeito que resultou da cultura do bem e do mal. Falando numa linguagem
sartreana, a sociedade em que Genet se desenvolveu e viveu foi uma sociedade mais
constituída pelos outros do que por capacidade de reflexão. Os falsos valores ganham muito
espaço quando a capacidade de reflexão é muito pequena. Genet é um outro entre uma
sociedade de outros.
Genet fez seu processo de mudança pela consciência à medida que escrevia suas obras
e conseguia elaborar também sua crise original. Brincou com as palavras e deu vazão às suas
emoções. O sonho deu lugar à lucidez, à ação, à consciência, e então Genet pôde finalmente
refletir criticamente. Lendo “O Diário de um Ladrão”, início de seu processo de escrever, e
Um Cativo Apaixonado”, obra autobiográfica, escrita no final da vida observa-se essa
diferença que é muito grande e muito profunda. Quando Genet descreve os sonhos, eles se
transformam em realidade objetivados nas palavras, nos conteúdos das narrações. Genet,
objetivando seus sonhos, criou a condição de se ver na reação que provocava nos outros. A
consciência do outro é seu objetivo, é colocar nas consciências seus desejos de destruição,
mas fazendo isso se objetiva, se reflete na contaminação da sensibilidade do outro.
“O sonhador,
o falso santo, o ladrão frico se eclipsan. Aparece um “horrível trabalhador”. Sua ferramenta, o verbo; sua
matéria, a consciência do outro; seu objetivo, pelo verbo transmitir loucura a essa consciência”
(SARTRE,
2002, p. 512).
Genet contava apenas a realidade sem se preocupar com uma ordem instituída, seja
com os valores ou mesmo com as regras que deveria seguir para escrever um texto com
beleza. Quando fazia isso rompia com qualquer forma programada de consciência para ver o
151
mundo de determinada maneira. Sua experiência de vida real foi programada como um fora-
da-lei e assim entendida dentro da cultura do bem e do mal. Quando colocava o mal na
consciência das pessoas, colocava também uma reflexão sobre como a sociedade funciona,
como se estabelecem os fora e os dentro da lei. É como se conseguisse misturar os fora e os
dentro da lei como uma coisa, uma expressão, sem perder de vista é claro, que cada
expressão tem seu mérito mesmo vista de fora da cultura do bem e do mal. Foi assim que
Genet saiu do imaginário para o real, produzindo no outro algo concreto, duradouro, que
ficasse de alguma forma instalado no outro. Por meio das emboscadas de seus personagens,
Genet exteriorizou seu ódio, seu veneno, e os jogou na consciência dos outros, mas à medida
que se via nos outros pela reflexão que produzia no outro, também se transformava. Em outras
palavras, Genet fez dessa forma seu lugar no mundo. Foi jogando seu mal para a consciência
dos outros que de se livrar um pouco de seu enorme fardo de ressentimentos da sociedade
dos “honestos”, vingando-se por uma vida tão violentada. Lendo Genet, se têm muitos
sentimentos contraditórios. Por trás de uma narrativa aparentemente simples, ele desperta os
mais possíveis sentimentos: agradáveis e desagradáveis, indo da solidariedade à repugnância.
Esta frase de Sartre revela a grandeza e o resultado da relação de Genet com o mundo pelas
suas obras literárias:
A frase que experimentava antes de escreve-la, repetindo-a a meia voz, era ainda
apenas um murmúrio irritado na sua boca; quando mil gargantas a repetem por sua
vez, ela volta a ele como um ruído de maré. Seus personagens eram apenas
ausências, a ácida irrealização dos seus gestos de onanista, eles voltam para ele sob
o aspecto de imaginários coletivos
(SARTRE, 2002, p. 513).
O objeto que a leitura de Genet produz às consciências é o próprio Genet. Ou seja, os
outros refletem para Genet ele próprio. Assim, Genet se exteriorizou, se viu fora dele, se
transformou pela sua exteriorização. Grande parte de sua vida ficou presa, bloqueada, mas
quando atingiu as consciências dos outros, experimentou uma libertação sem igual,
dificilmente mensurável, uma transformação psíquica que é possível nesse processo. Por
muito tempo, em grande parte de sua vida, o ser de Genet foi feito pelos outros. Somente
como escritor, ele de se fazer, impondo-se como vontade como ser que cria e é criado. É
claro que alguma coisa por si Genet fez a vida toda, mas muito pouco lhe foi permitido antes
de ser escritor. A troca “eu-mundo” aconteceu em grande alcance depois disto.
O erro de Genet foi ter querido que os outros o vissem como eles o queriam ver, como
ladrão, se libertando quando obrigou os outros a vê-lo como ele era. Como ladrão era
desprezado, humilhado, torturado, e a sociedade dos honestos” o via como um ser
152
desprezível. Ele respondia a esse apelo buscando cada vez mais o mal. Genet precisou
entender que ele deveria dar as cartas de seu jogo e o simplesmente engolir o jogo feito
(SARTRE, 2002). Era preciso criar a partir dele, fazer aparecer seu ser. Não era somente a
opção de ladrão que restou para Genet, existiam outras. Não se ao ser aquilo que ele é.
Não se tira do ser seu futuro. Isso é possível fazer com um sujeito morto. Se a sociedade
dos honestos” soubesse, ou refletisse sobre isso, talvez Genet tivesse mais sorte e não teria
feito do ladrão seu projeto. Ou se Genet mesmo tivesse feito outra escolha, tudo também
poderia ter sido diferente. Somente quando fez a escolha de escrever é que Genet descobriu a
saída genial para seu ser. Como ladrão ele era o bastardo. Como ladrão, escritor, ele construiu
sua arte. Sobre essas duas realidades, diz Sartre:
[...] a vida contingente e bruta de Genet é apenas
uma fina película que rne e separa duas liberdades absolutas, das quais uma cria para si o seu ser na outra
(SARTRE, 2002, p. 515).
Genet transformou-se, como escritor, num artista que produzia imagens nos outros. E
mesmo escrevendo para provocar o horror, se fazer amado era sua busca, seu alvo, ainda que
seja na forma de amar e ser amado de Genet: um amor infernal. O alvo da arte de Genet era
ser odiado com amor, ou seja, que os outros o amassem com horror.
Genet encontrou novos caminhos para buscar ser amado, mas sua experiência de amor
ocorre pela indiferea, pelo horror. O vínculo de sua arte com os outros reflete uma dialética
que é sua existência calcada numa experiência trágica, e apesar de conseguir a saída genial de
se tornar escritor, não fez a nadificação do crime em seu ser num todo. Foi, melhor dizendo,
uma mudança de estratégia, um jeito de dar revanche em grande estilo. Como seria difícil
Genet abandonar totalmente o crime se foi tudo o que sempre viveu? Mas diz Sartre que
Genet o amava aqueles que quis seduzir, que foram os burgueses, os ricos e os justos.
A consciência é uma perpétua superação do dado. Genet lançou-se inteiro nos poemas
e, com isso, arrancou-se do passado num ato de criação, num livre futuro. No ato de criação,
suas emoções tinham espaço e expressão. As perturbações do amor e do ódio passaram a ser
vistas de longe, no outro, enquanto o outro se fazia Genet. Assim, Genet sai da passividade
para a atividade, apresentou o mal no imaginário e produzia no ser uma liberdade pelo ato
criador. O poeta com consciência da condição de ladrão, ao fazer poesia, tomou consciência
também da sua condição de poeta.
Genet libertou-se, em grande parte, do bem e do mal pela liberdade da consciência, ou
pela consciência que levou à liberdade. Sua vitória foi imensurável: libertou-se da miséria, da
prisão, do horror, das pessoas “honestas”. Aqueles que o reprovaram foram obrigados a
aceitá-lo, pois ele entrou no espírito, no imaginário das pessoas. Sua obra é a aparência e a
153
denúncia da aparência, é a sua própria contestação. Sua maior vitória foi poder falar de si
mesmo. À medida que escrevia, se instalava na consciência das pessoas, se comunicava de
forma ímpar e, dessa comunicação, resultou uma libertação, fez-se a catarse e o novo Genet.
Ele se libertou nas consciências dos outros, nos jornais, nos livros. A obra de Genet é a face
imaginária de sua vida e sua condição genial é a vontade de lutar pela sua condição de mau
até o fim. Genet venceu, passou a viver como burguês, a ter amigos honrados e ser recebido
na sociedade parisiense. Diz Sartre que Genet tanto freqüentava a alta sociedade como os
arrombadores e as bichas e sentia-se em casa nos dois mundos. Mas a leitura de Genet mostra
uma ligação maior com o mundo dos marginais do que com os burgueses, pois ele é mais
marginal do que burguês. Se assim não fosse, ficaria apenas com seu novo mundo da
sociedade dos “honrados”. Conheceu os dois mundos, os experimentou, vivenciou. Mas
somente Genet poderia dizer em qual dos dois mundos ele era mais familiarizado depois de
ser escritor. Genet se fez marginal pelos valores burgueses e, quando tornou-se escritor, sua
hisria não permitia simplesmente fazê-lo mudar de lado. Era um burguês escritor e
marginal.
No talento de Genet estava seus crimes, mas a sociedade o consagrou pelo talento de
poeta. A sociedade aprovou o poeta sem considerar que poeta e criminoso, nesse caso, são
inseparáveis. Se Genet tem um grande mérito é que ele se fez sujeito por si mesmo. E então,
vale relembrar: [...] não somos torrões de argila e o importante não é o que fazem de nós,
mas o que nós mesmos fazemos com o que fizeram de nós” (SARTRE, 2002, p. 61).
Assim, concluímos o estudo sobre a obra “Saint Genet: ator e mártir”, tirando lições de
grande importância para entender a concepção de sujeito segundo a ontologia fenomenológica
de Jean-Paul Sartre e da sua essência da consciência como processo de liberdade.
Sartre usa a fenomenologia e dialética como método de análise, na psicanálise
existencial e na explicação marxista, que indicam que é pelo processo de liberdade que se
pode entender um sujeito, com seu projeto fundamental, suas escolhas, uma liberdade em luta
com o mundo na relação em que o sujeito se faz. Relação com sua história familiar, social,
cultural, potica.
Genet, esmagado por seu destino de filho bastardo, pôde ainda, depois de tanto
sofrimento, se libertar e fazer-se sujeito construindo sua obra, que segundo Sartre, não foi
conseqüência de sua genialidade, mas uma sda desesperada de toda uma situação
(SARTRE, 2002).
A análise da hisria de Genet mostra que a cultura do bem e do mal serve para criar
um paradigma de concepção de sujeito que serve a determinadas ideologias, mas que,
154
reflexivamente, não passam de falsos valores. Sartre quis mostrar nessa obra como se
constituiu a personalidade de Genet, como foi condenado pela sociedade dos falsos valores, e
como pelo processo de liberdade ainda de criar-se como sujeito pela consciência, pelo seu
processo de liberdade e não apenas por sua cultura.
O sujeito é subjetividade e objetividade. Não existe relação em que ambos coincidam.
O sujeito sempre está na solidão de alguma maneira. A subjetividade o consegue dissolver a
objetividade, porque podemos entender e participar da subjetividade do outro em parte. A
consciência, a experiência, as emoções conferem ao sujeito ser único. Na dialética “Eu-
mundo” cada experiência é única. Genet experimentou a solidão mais terrível. Nada dele
deveria ser aprovado: ladrão, traidor, somado ao seu conflito original e ao abandono, tudo era
para ser extirpado.
A pederastia como escolha de uma consciência é uma possibilidade humana. Difícil
para os “honestos” assim entenderem os fatos. E, vistos dessa forma, as virtudes e os crimes
são intercambiáveis. São possibilidades humanas que podem estar de formas diferentes em
muitas expressões e em muitas formas de roubo. O ladrão condenado nem sempre é o maior
ladrão. Na relação dialética entre o singular e universal, cada ser é único. A apropriação
subjetiva que Genet fez do mundo foi como vida vivida em limites muito estreitos. E mesmo
nesses limites tão massacrantes fez suas escolhas e a escolha mais acertada foi ser escritor que
usando como expressão seu próprio imaginário, de fazer-se real. Mesmo que seu
movimento tenha sido calcado na representação, foi a saída que encontrou. Do seu “não-ser”
ele pôde fazer-se ser.
A realidade humana é dialética, assim como o processo de construção de
personalidade do sujeito. A subjetividade é a objetividade subjetivada. O processo de
liberdade em luta com o destino é uma reflexão importante que Sartre faz em Saint Genet”.
A liberdade é um aspecto essencial do sujeito, um ser Para-si” como consciência, lançado no
mundo numa constante ruptura nadificadora. A liberdade é uma condição de ser do homem.
Genet tem uma hisria singular, assim como todo sujeito é singular. A reflexão sobre
a hisria de Genet tem como objetivo mostrar que ele é o resultado das condições materiais,
afetivas, culturais, sociais e poticas e de seu processo de liberdade. Se suas condições
tivessem sido outras, certamente também teria sido outro Genet. O ser de Genet pode ser
entendido como o que ele conseguiu fazer da sua relação com o mundo, da sua apropriação da
objetividade no seu processo de liberdade. Sobre o processo de liberdade e dos limites da
liberdade, diz Sartre:
155
A idéia que eu jamais deixei de desenvolver é que, ao fim das contas, cada um é
sempre responsável por aquilo que foi feito dele mesmo se ele o puder fazer
mais que assumir essa responsabilidade. Eu acho que um homem pode sempre fazer
alguma coisa daquilo que fizeram dele. É a definição que eu daria, hoje em dia, de
liberdade: este pequeno movimento que faz de um ser social totalmente
condicionado, uma pessoa que não reproduz mais a totalidade daquilo que recebeu
em seu condicionamento; o que faz de Genet um poeta, por exemplo, enquanto ele
tinha sido, rigorosamente condicionado para ser um ladrão?
(SARTRE apud
SCHNEIDER, 2002, p. 05).
156
CONCLUSÃO
A análise da obra “Saint Genet” de Sartre, bem como das obras do próprio Genet, é
uma análise baseada em textos, diferente da análise de Sartre, que conviveu com o próprio
Genet. A análise bibliográfica impõe sérios limites à investigação de uma personalidade, uma
vez que os horizontes se limitam às informações ali contidas. Diferente de estar diante do
sujeito a ser investigado nas suas condições humanas reais. Porém, sem esquecer essas
limitações, a análise sobre a personalidade de Jean Genet é uma demonstração do método de
investigação da realidade humana, bem como da compreensão fenomenológica de sujeito
segundo o existencialismo francês de Jean-Paul Sartre.
Sartre se preocupou com os problemas da psicologia empírica de sua época e elaborou
um novo método de investigação da realidade humana, a psicanálise existencial, segundo o
qual o sujeito deve ser entendido na sua totalidade e não por uma coleção de desejos e
comportamentos. O projeto fundamental que origem às escolhas do sujeito precisa ser
compreendido para que possa ser modificado. As condutas do homem indicam seu projeto, a
compreensão de sua totalidade. Sartre criou uma nova psicologia, uma compreensão de
sujeito pela sua escolha original ou seu projeto de ser. A compreensão do sujeito está na sua
hisria, nas suas vivências, no seu lugar no mundo. Seu lugar na família, no social, no
contexto hisrico potico e material em que o sujeito se fez e se faz. Pelo método
comparativo, busca compreender as condutas do sujeito pelas mais diversas expressões e
chegar ao projeto de ser.
vimos anteriormente, no capítulo sobre a psicanálise existencial, que Sartre
fundamenta sua metodologia na psicanálise de Freud, que era a análise psicológica de forte
expressão em sua época, bem como alvo de suas maiores críticas ao mesmo todo. Se, de
um lado, concorda com o princípio de que podemos entender um sujeito considerando sua
hisria, por outro, faz duras críticas à visão de Freud sobre o entendimento humano, partindo
de perspectivas ontológicas radicalmente diferentes. Sartre critica Freud por fazer da
consciência uma substância e pelos conteúdos psíquicos serem conteúdos da consciência ou
do inconsciente e pertencerem à estrutura mental. O método fenomenológico de investigação
da realidade humana não visa à libido e aos complexos, mas a realidade humana no seu
projeto original e suas escolhas. O sujeito é realidade humana e não natureza humana
concebida a priori. Não podem haver interpretações genéricas para a realidade humana. O
psíquico se constrói pela experiência. A ontologia fenomenológica em Sartre se opõe às
157
filosofias e também às psicologias substancialistas. O sujeito deve ser entendido pela sua
experimentação psicosica de ser, pela relação dialética com o mundo. A subjetividade é
objetividade subjetivada. O determinismo presente em Freud não se sustenta na compreensão
de sujeito do existencialismo em que ele (o sujeito) é entendido como fenômeno objetivo no
mundo, como já visto anteriormente neste trabalho. O sujeito é entendido não pelo seu
passado, mas pelo futuro no presente, ou seja, o passado está na atualidade presente como
síntese, visando ao futuro como uma totalidade de significações e ressignificações. O sujeito é
constante vir-a-ser, um projeto que jamais estará acabado, porque o processo de liberdade é
dialético e constante enquanto o sujeito existir, sempre analisando a escolha subjetiva pela
objetividade em que a pessoa se faz. Análise esta que busca a questão central do ser e não os
estados ou qualidades separadamente. Ao contrário da psicanálise de Freud, que explica os
complexos, o existencialismo explica a sexualidade, por exemplo, dentro do contexto de ser
do sujeito como um todo. A sexualidade é uma das expressões do sujeito como totalidade e
o pode ser vista separadamente. O sujeito se exterioriza no mundo, as dimensões
intrapsíquicas estão , na sua expressão como um todo, não como fatos isolados. Ele é seu
projeto de ser, e é este projeto que devemos buscar para compreendê-lo. Deve ser
compreendido como existência, como realidade humana. É preciso abandonar as descrões
prontas que definem o sujeito a priori, escapar aos subjetivismos e apreender o sujeito no seu
contexto hisrico dialético e pela sua estrutura de vida desde a infância, em que ele se faz e
se refaz em sua hisria, vivenciando uma experiência singular na objetividade.O seu lugar no
mundo é uma escolha de luta constante com os outros que podem facilitar ou dificultar sua
construção na história. A ação do sujeito dentro das condições hisricas dadas é resultado de
como ele consegue se colocar no mundo, seja fazendo seu espaço ou se alienando,
dependendo da escolha que fizer. O subjetivo é colocado na ação objetiva e é aí que está a
expressão de um projeto de ser que o sujeito constrói desde o início de sua vida. Como vimos
em Genet, o projeto do homem começa quando ele nasce, no lugar ou nas condições em que
ele acontece. Um projeto aos vinte anos pode ter raízes e significações, que embora no
presente, remontem ao início da vida, sempre considerando que o passado não mais existe, o
que existe são significações em síntese dadas em objetivação em curso.
A análise de Genet busca compreender uma personalidade que se faz à luz da
psicanálise existencial como método. Esse método de intervenção da realidade humana
uma nova compreensão para as ciências humanas como um todo. A compreensão de sujeito
demonstrada por Sartre visa apreender o homem como agente de sua hisria, como processo
de liberdade feito de contradições, encontros e desencontros, mas que é sempre o resultado de
158
uma liberdade em curso. Compreender um sujeito é buscá-lo numa análise fenomenológica de
sua hisria. Para Sartre, a experiência de um sujeito acontece em espirais, volta a passar pelos
mesmos pontos, porém, com diferentes níveis de significações. Na experiência psíquica, não
espaços em branco, uma seqüência de significações e ressignificações ininterruptas.
Viver é estar constantemente experimentando o mundo. No caso de Genet, a espiral que
formava o eixo fundamental de sua experiência era a crise original que seguia significando e
ressignificando sua experiência. A análise existencialista mostra uma concepção de sujeito
como ser global e não como era visto na psicologia empírica por suas tendências. É a história
objetiva que explica seu ser e o leis universais pré-concebidas. Como vimos, nossos
desejos existem em fuão do mundo que experimentamos, pois compreendemos o sujeito no
mundo, objetivamente. Ser é significar-se no mundo. É por isso que o ego não é habitante da
consciência, é transcendente, é do mundo. O ego o está nem formalmente nem
materialmente na consciência, está fora, é um ser do mundo, como o ego do outro. O sujeito
está colocado objetivamente no mundo sem desconsiderar o movimento entre mundo e
subjetividade. Ele também não é objetivo como fato, há que se considerar sua
singularidade. Sua apropriação do mundo é vivenciada como única, porque sua experiência
singular é única. Por isso, a análise passa pelo movimento dialético sujeito/mundo, ambos
objetivados. A realidade humana se inscreve na dialética entre subjetividade e objetividade. A
psicologia fenomenológica existencialista está calcada numa proposta ontológica de
consciência, por isso, o existencialismo precisa ser visto como um novo entendimento
filofico e psíquico que um novo entendimento às ciências humanas. O sujeito é visto
como subjetividade que é objetividade subjetivada. A consciência é translúcida, o Ego não faz
parte dela como substância. Assim, a concepção subjetivista, ou seja, a noção de mundo
interno do sujeito, não mais se sustenta. O sujeito não é determinado por dinâmica interna,
mas por sua relação com a objetividade. As concepções mentalistas e subjetivistas não mais se
sustentam nessa ontologia, como vimos no transcorrer de toda esta pesquisa. O homem é visto
como um ser no mundo, como uma relação da subjetividade com a objetividade, como objeto
do mundo. A personalidade é vista, assim, como uma história singular na relação com o
mundo, como uma realidade humana, não como natureza humana pré-concebida. A
personalidade o está definida ao nascer, o sujeito a constrói na sua relação de apropriação
de seu lugar no mundo, no seu contexto social, afetivo, político e material. O processo de
liberdade, com as escolhas, vai definir cada personalidade, cada sujeito como ser no mundo.
O entendimento de psiquismo nos novo entendimento da personalidade, que pode ser
entendida na sua construção como movimento dialético entre sujeito e mundo. o processo
159
de liberdade pode tornar compreensível um sujeito em sua totalidade, mesmo sendo um
processo de liberdade em luta com o destino. Assim, abandonamos a noção de natureza
humana para entender um sujeito como realidade humana, como liberdade e faticidade, uma
liberdade como movimento do sujeito no mundo.
Sartre ao homem uma responsabilidade pelo seu fazer, como um compromisso
ontológico. A responsabilidade de ser está no processo de liberdade do sujeito, considerando a
faticidade. Como vimos no decorrer da pesquisa, o sujeito faz sua hisria ao mesmo tempo
em que altera a história social e dos outros. Na compreensão de sujeito em Sartre toda e
qualquer construção singular tem uma responsabilidade além de si para com o mundo, uma
vez que o sujeito se faz no mundo. Viver em luta com o destino ou em processo de alienação
é fazer parte do processo histórico de alguma maneira. Não como fugir de ser no mundo,
pois seja qual for a expressão humana, há aí uma implicação, um compromisso ontológico de
ser no mundo. O projeto de um indivíduo implica a tecitura da realidade social, seja como
uma expressão positiva, que gera o bem a todos, ou uma expressão negativa que se reflete
também para o social. A escolha de um pode interferir na escolha do outro. Assim, a hisria
humana é construída por todos. O projeto político de cada um nos obriga a acrescentar, de
alguma forma, no projeto político da sociedade em que vivemos. Por exemplo: ser criminoso
ou ser contra o crime é um projeto singular que vai ter reflexos necessariamente no social. O
compromisso ontológico é parte do sujeito, não como fugir dele. O que varia é apenas o
tipo de responsabilidade que o sujeito tem com sua hisria e com a história do mundo. A
hisria de Genet, por exemplo, mostra o significado da luta de um sujeito com seu destino e
como ele pode alterar ou interferir no social.
Importante enfatizar que toda compreensão de sujeito se altera no contexto
compreendido pela psicologia da época de Sartre porque a noção de consciência também, e
principalmente, mudou radicalmente. A consciência, como vimos no decorrer de toda
pesquisa, é sempre consciência de alguma coisa, é relação com o mundo e é intencionalidade.
A consciência é transcendência, é sempre relação com o objeto, diferente do ser Em-si”,
pois as coisas não são conteúdos de consciência. Essa concepção de consciência rompe com o
entendimento filosófico idealista e racionalista, que foi o que Sartre se propôs fazer desde o
início de seus contatos com a fenomenologia de Husserl.
No existencialismo, a subjetividade é um momento da objetividade. Assim entendida,
a subjetividade não é uma estrutura mental, mas um processo dialético do sujeito com o
mundo. É uma interioridade que se apropria da exterioridade. Por isso, como já dissemos no
transcorrer deste trabalho, a subjetividade é a objetividade subjetivada e existe em relação
160
ao processo objetivo. O sujeito inserido no mundo, na sua contingência, faz de seu processo
de relação seu processo de apropriação. Isso se pelo fato de o sujeito ser corpo e
consciência. O corpo em contato com o mundo e a consciência com condições de estabelecer
relações. Não podemos conceber o homem se não como inserido num mundo material
concreto. Nascer num país rico ou num país pobre significa que já estão colocadas para o
sujeito as condições para suas escolhas, que, entretanto, não podem ser limites absolutos para
a liberdade, mas são condições dadas que implicam algum tipo de luta e de apropriação, ou
o, pelo sujeito. O mundo material traz também a esfera potica e moral que compõe um
contexto. A questão ontológica que se e aqui é que o sujeito, ao nascer, é colocado diante
de determinadas condições de escolha por ter simplesmente nascido naquele contexto. Mas a
maneira como o sujeito faz essa apropriação é que implica o seu projeto de liberdade. É esse
ponto que, como liberdade de ser no mundo, define o que o sujeito é. Não por ter nascido
dentro de determinadas condições, mas por ter se apropriado dessas condições de um jeito ou
de outro. Qual foi, ou é, seu processo de liberdade construído pelo próprio sujeito em questão.
Não se pode ignorar o contexto natural e político em que o sujeito foi colocado ao nascer,
assim como não se pode deixar de responsabilizá-lo pelo seu projeto de liberdade, pela sua
apropriação do mundo como ser. É das reais condições ou contradições do contexto histórico
do sujeito que se faz o cenário de seu projeto singular. Mas isso não é determinante absoluto.
Para Sartre, somente a liberdade pode dar conta de uma pessoa em sua totalidade. O ser de
um sujeito se define pelo processo contingente constante de totalização, destotalização e
retotalização. O ser do homem é ser no mundo como atualização constante. O ser é o que não
é e não é o que é, por estar em constante fazer-se no exercício de sua liberdade. O ser do
homem, assim colocado, não pode coincidir consigo mesmo. O homem é liberdade de ser e
ruptura nadificadora com o mundo. O homem é um ser que rompe com o determinismo, o
tem natureza humana, é realidade humana. A liberdade é uma condição ontológica do homem.
O ser “Para-si” é totalmente livre em sua continncia, embora não seja seu próprio
fundamento, pois não pode o escolher. É condenado a escolher, é da condição humana.
Toda liberdade é dada em situação. O homem não pode não ser livre, é sua faticidade, assim
como não poder não existir é sua contingência. Não liberdade, assim como não
alienação, a não ser de um homem livre.
Assim, demonstramos nesta pesquisa como compreender o sujeito dentro da
perspectiva da ontologia fenomenológica de Jean-Paul Sartre, além da concepção de
consciência e psiquismo como um ser em totalidade.
161
Essa ontologia coloca a constituição de sujeito sob novas perspectivas de
entendimento psíquico, sendo a relação dialética consciência/mundo ou
consciência/objetividade concreta que propicia a constituição de sujeito como objetividade
subjetivada. O psiquismo, assim entendido, coloca a psicologia fenomenológica como um
novo referencial trico e metodológico segundo o qual psiquismo e consciência não podem
ser vistos separadamente, mas sim em sua totalidade como constituição de sujeito que resulta
da relação dialética consciência/mundo.
Assim, concluímos nossa pesquisa mostrando que Sartre questionou as bases da
filosofia e psicologia e contribuiu com as ciências do homem, com um questionamento sobre
os valores da cultura ocidental, contribuindo com a evolução do pensamento de seu contexto
hisrico. O questionamento aos entendimentos abstratos e metafísicos, que desvirtuam a
dialética da realidade, forjou uma severa crítica aos valores da cultura ocidental, aos conceitos
de bem e mal.
No transcorrer desta pesquisa, partindo de uma nova ontologia do eu a partir de “A
Transcendência do Egomostramos um novo entendimento de consciência e ego, fazendo da
subjetividade um momento da objetividade, e o ego como um ser do mundo, o que levou a
uma nova ontologia e, como conseqüência, a uma nova psicologia. O desejo de reformular a
psicologia levou a uma nova ontologia.
Depois de “A Transcendência do Ego”, O Imaginário”, “Teoria das Emoções”, “A
Náusea” e por fim “O Ser e o Nada”, o homem passa a ser entendido como parte da
objetividade concreta, da dialética consciência/mundo, ou consciência/objetividade.
A personalidade é entendida dentro de um processo de construção, um processo de
liberdade, partindo da premissa de que a existência precede a essência”. Para Sartre, primeiro
vivenciamos a objetividade, depois existimos. Primeiro sentimos o corpo do outro, o mundo,
depois somos. O “Para-si” é um projeto de ser, em constante vir-a-ser que jamais se completa,
pois está sempre em devir.
A análise da personalidade de Jean Genet nos mostra que o sujeito deve ser entendido
pela sua relação dialética com o mundo e não por constrões teóricas abstratas. Sem a
experimentação psicofísica de ser o temos nada para entender o sujeito. Sem história
existencial não sujeito, há somente abstração.
A descrição e a análise da personalidade de Genet seguem o todo dialético
fenomenológico, o qual nos mostra que entendemos o sujeito por sua hisria concreta, seu
projeto de liberdade concreto. O sentido de uma hisria se encontra na história mesma.
Mostrou-se com esse método que é possível fazer ciência, uma psicologia científica, pois ele
162
está calcado na objetividade, nos fatos concretos. A intervenção psíquica está, assim calcada
no fenômeno objetivo. A psicanálise existencial é um método de investigação da realidade
humana que responde às condições de cientificidade.
A ontologia fenomenológica de Sartre nos permite investigar o sujeito em seu projeto
de liberdade e, conseqüentemente, sua moral e sua ética.
Esta pesquisa pretende colocar uma reflexão para se pensar o saber e o fazer da
psicologia na compreensão de sujeito como história singular, universal, mas não plural.
Esperamos colaborar com a pesquisa acadêmica no que se refere ao método
fenomenológico, na compreensão da constituição de sujeito e com o método de investigação
da realidade humana para uma psicologia científica.
163
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Dissertação (Mestrado), Centro de Filosofia e Ciências Humanas
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Orientadora: Profª Drª Claudia Drucker