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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP
José Rogério Beserra
A imagem no romance
Água Viva de Clarice Lispector
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS
EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
SÃO PAULO
2008
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JOSÉ ROGÉRIO BESERRA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
Mestre em Literatura e Crítica Literária sob a
orientação do Prof. Dr. Fernando Segolin.
SÃO PAULO
2008
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Banca Examinadora
__________________________________
__________________________________
__________________________________
A meus amados pais, Raimundo e Teresinha, pelo carinho e
amor incondicionais.
Às três Marias, minhas irmãs, tão presentes em minha vida.
A meus sobrinhos queridos: Alan, Anderson Ricardo, Andréia,
Bruna, Carlos Augusto, Felipe, Glauber e Robson (in memórian).
AGRADECIMENTOS
Lançar-me em um projeto de vida tão árduo como a realização deste trabalho
não seria viável sem o apoio e o afeto de pessoas especiais. A todos vocês,
meu sincero agradecimento:
Ao governo do Estado de São Paulo – Secretaria de Educação, pelo apoio
financeiro;
Ao Prof. Dr. Fernando Segolin, pela orientação segura e pelas observações
enriquecedoras;
À Professora Esther Schapochnik, pela revisão minuciosa do texto;
Aos professores do Programa de Literatura e Crítica Literária, pelo incentivo à
pesquisa;
Aos amigos Aloísio Ribeiro, Amarildo Pereira, Clerton Martins, Eduardo Soler,
Jesus Farias, Lucilene Moreira, Nivaldo Diógenes, Rita de Cássia, Scyla
Segundo, Thiago Cunha, Viviane Antunes, pela torcida carinhosa;
À Ana Albertina, pelo suporte acadêmico e pela paciência.
“Tente o novo todo dia.
o novo lado, o novo método,
o novo saber, o novo jeito,
o novo prazer, o novo amor.
a vida nova.”
Mudanças, Clarice Lispector
TÍTULO DA DISSERTAÇÃO
A imagem no romance ÁGUA VIVA, de Clarice Lispector
RESUMO
Esta pesquisa tem por objetivo analisar a superação dos paradigmas da
narrativa tradicional a partir do romance ÁGUA VIVA, de Clarice Lispector, que
articula as relações entre as linguagens da prosa e da poesia, num hibridismo
de gêneros. Para isso, fizemos um recorte em torno de alguns aspectos, como
a desfuncionalização dos elementos da narrativa em uma literatura atual, feita
de instabilidade; o lirismo como princípio construtor do ritmo; e a imagem
poética, ou seja, a palavra levada ao “grau zero”. As questões foram discutidas
nos três capítulos que compõem a dissertação, em que abordamos o processo
dialógico-discursivo da personagem no romance moderno, o processo de
construção do ritmo e a pluralidade da imagem, analisada pelo viés da palavra
esvaziada de significados. Mostramos que essas temáticas integram-se pelo
emprego das imagens metafóricas vinculadas à palavra polissêmica. Nesse
percurso analítico-interpretativo, recorremos, entre outros, a Bakhtin, Barthes,
Segolin, Santaella, Paz, Sá, além de trabalhos sobre a obra de Clarice
Lispector.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura, Romance moderno, Clarice Lispector,
Desconstrução, Imagem, Metáfora, Poesia.
The image in the novel called ÁGUA VIVA, by Clarice Lispector
Abstract
The objective of this essay is to analyze how the traditional narrative is
surpassed by the paradigms from the novel ÁGUA VIVA, by Clarice Lispector,
which provides the relationship between prose and proetry languages derived
from heterogeneous genders. This way we have to emphasize some features
(aspects) like the lack of narrative element functioning, which shows
unsteadiness, in the current literature; the lyricism as the rhythm builder
principle; the poetical image where the word is taken to “zero degree”. The
essay is composed by three chapters, in which the character´s dialogical-
discursive processing in the modern novel has been approached as well as the
rhythm builder processing and the plurality of the image, considering that the
words have no meaning (their meanings were ignored). We are have shown that
these thematic subjects are aggregated by their metaphorical images tied with
the multi-meaning words. For the analytical-interpretative passage, we based on
Bakhtin, Barthes, Segolin, Santaella, Pearce, Sá (and others) besides some
works on Clarice Lispector.
Key words: literature; modern novel; Clarice Lispector; desconstruction; image;
metaphor; poetry.
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................07
CAPÍTULO I –
A personagem dialógica e o eu no outro pela construção
de sua imagem no discurso do romance moderno.......10
CAPÍTULO II – O lirismo e a imagem no processo de construção do
ritmo no romance moderno.....................................36
CAPÍTULO III – A construção da imagem poética por meio do
silêncio...................................................................56
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................79
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................82
7
Introdução: do labor com a palavra
Contar histórias faz parte da existência humana, porque elas
nascem para que o homem entre em contato com o outro. As narrativas, de
início apresentadas de forma oral, o acompanham desde sempre. Roland
Bourneuf e Real Ouellet (1976) explicam:
antes de se constituir a literatura a narrativa escrita,
acumularam-se tesouros inestimáveis das literaturas
orais, de que provavelmente nenhum país é despro-
vido: lendas onde se misturam os animais, o comum
dos homens, os heróis, as forças da natureza, os
deuses, narrações de altos feitos guerreiros ou de
proezas rústicas, “forças e ditos espirituais”, ciclos
de canções de gestas germânicas, francesas, jugus-
lavas ou russas destinadas a serem cantadas. . .
As narrativas começam com a própria história da humanidade. Essas
histórias provocam, no homem, sensações que dialogam com questões acerca
de sua existência e de seus atos nos diversos estágios de sua trajetória.
Independentemente da forma, elas têm o poder de expressar os anseios, as
dúvidas e os questionamentos do homem. Visam a atender as reflexões
humanas sobre a existência.
A tessitura narrativa é composta de elementos que a estruturam para
que possa exprimir os mais variados objetivos a que se propõe. Entre esses
elementos, temos as personagens, “seres de papel”, portadores de universos
complexos, que se prestam aos propósitos da escritura. Esses “seres de papel”
merecem um estudo cuidadoso para que possamos entender as questões
envolvidas em sua construção, diante de sua função nas narrativas. As
8
peculiaridades do ato criativo os colocam em uma constante transformação,
que vai até a desfuncionalização. Entretanto, isso não significa que a
personagem seja destituída de seu papel no enredo, aquele que corresponde
às expectativas da narrativa tradicional, mas servirá como estratagema para
novas finalidades criativas.
Por esse viés, para a elaboração da dissertação, escolhemos como
“corpus” o romance ÁGUA VIVA (1973), de Clarice Lispector, e procuramos
investigar quais estratégias discursivas estão presentes na construção da obra
e, mais especificamente, como a personagem, o ritmo e a imagem poética
dialogam para questionar conceitos pré-estabelecidos na arte e na vida.
Detivemo-nos, também, na análise da impotência da palavra diante de seu
papel de referente convencional, a qual, ao ser levada ao seu “grau zero”, abre-
se em imagens múltiplas e polissêmicas.
Assim, o primeiro capítulo da pesquisa enfocou não só o discurso da
personagem, sob o ponto de vista da dialogia teorizada por Mikhail Bakhtin e
por estudiosos de sua obra no Brasil, mas também a suspensão dos elementos
constitutivos da narrativa e sua posterior reassunção. O segundo enfoque foi
pautado basicamente em Personagem e anti-personagem, de Fernando
Segolin (1999), e em várias obras de Lúcia Santaella, entre outras teorias
relevantes, explicitadas no corpo dos capítulos. Tratamos a personagem, no
curso do trabalho, como narradora-personagem e, por vezes, como narradora-
personagem-autora.
No segundo capítulo, foi enfatizado o rompimento dos modelos
canônicos, mostrando que a concepção moderna do romance leva o leitor a
uma leitura desautomatizada.Também foi analisado o lirismo, que, como
princípio construtor do ritmo, torna a narrativa uma prosa-poética. Para isso,
9
norteamos a análise, entre outras teorias, pela obra Signos em rotação, de
Otávio Paz, de 1996.
No terceiro capítulo, foi analisado o fazer criativo de Clarice Lispector,
destacando alguns recursos empregados: a pluralidade imagética da palavra
esvaziada de significados referenciais e a desconstrução-construção do próprio
enredo. Teóricos como Roland Barthes, Lúcia Santaella, Fernando Segolin,
entre outros, além de estudiosos da obra da referida escritora, ofereceram as
bases para nossa reflexão. A obra A escritura de Clarice Lispector, de Olga
de Sá (2000), serviu de base para o desenvolvimento deste trabalho.
Embora sabendo que nenhuma análise é completa, esperamos que
nosso estudo possa contribuir para a compreensão do texto ÁGUA VIVA aqui
enfocada. Os pressupostos críticos da modernidade tornam claro que a
literatura deixada por Clarice Lispector pede outras leituras ainda por fazer.
Afinal, o labirinto da escritura ficcional clariceana sugere uma viagem em busca
de significados.
10
Capítulo I: a personagem dialógica e o eu no outro pela
construção de sua imagem no discurso do romance moderno
Nosso intuito, neste trabalho, é analisar o processo criativo em ÁGUA
VIVA, um romance com suas características peculiares, seja pela construção
da narradora-personagem, seja pela superação do conceito de gênero
literário. Sua narrativa foge ao cânone vigente, oferecendo uma maneira nova
de contar histórias. O texto é cheio de cortes, suas frases são curtas, a
narradora-personagem é consciente de que a palavra deve ser usada na sua
força polissêmica, saindo do seu papel referencial para tornar-se múltipla.
Sua construção é feita na medida em que a narradora usa a palavra, ou a
pintura, tecendo relações analógicas para além do espaço textual.
A peculiaridade de ÁGUA VIVA está em conceber a narradora-
personagem sob uma ótica diferente: dessacralizada de si mesma. Ela é
apenas uma pintora, não tem nome e também não são apresentadas
características físicas que a identifiquem. Pouco se sabe sobre ela. Apenas
algumas pistas, ao longo da história, a relacionam com o texto, indicando-a
como parte integrante: “Para me refazer e te refazer volto ao meu estado de
jardim e sombra, fresca realidade, mal existo e se existo é com delicado
cuidado”. (AV, p. 17). Tal fato redimensiona a narrativa na perspectiva de
personagem principal. A escritura do romance não se propõe apenas a contar
uma trama de amor, mas faz um exercício com a palavra numa linguagem de
encontros e desencontros, de fragmentos do pensamento, das possibilidades
que a palavra oferece no eixo da similaridade. Como esclarece Décio
Pignatari (2005), o código verbal associa-se aos objetos designados por
contigüidade, resultando na forma convencional da palavra. Mas, quando ela
11
se desprende desse condicionamento, ganha dimensão múltipla. Assim, fica
diante de uma associação por similaridade, o que a torna analógica.
ÁGUA VIVA não se configura como uma narrativa, e sim como
objeto estético multifacetado, uma espécie de mosaico feito de figuras de
retórica como a metonímia e a metáfora (Roman Jokobson, 2001). No texto,
temos: a narradora, que também é personagem, seu amado e a carta que ela
lhe escreve. Trata-se de uma estratégia para dialogar com o leitor, utilizando
não apenas a palavra, mas também alusões feitas à música e à pintura.
O romance analisado não tem enredo, contrapondo-se aos padrões
estéticos vigentes e procurando estabelecer características próprias. O texto
age, por meio de fragmentos, na sua dimensão construtiva: “Há muita coisa a
dizer que não sei como dizer. Faltam as palavras. Mas recuso-me a inventar
novas: as que já existem devem dizer o que se consegue dizer e o que é
proibido. E o que é proibido eu adivinho.” (AV, p.27).
A linguagem em ÁGUA VIVA mostra a potência da palavra, que se
faz e refaz em fluxos, numa estratégia para se situar no mundo. Por outro lado,
isso explica as variações e intensidades dos momentos efêmeros da vida. A
narrativa é constituída por um enredo que absorve o movimento do mundo, da
vida. Quando a linguagem pensa sobre si mesma, temos a metalinguagem, que
propõe como pano de fundo o próprio texto. Ele nos convida a um mergulho
apaixonado na matéria da palavra. A narradora-personagem esforça-se na
busca pela forma. Portanto, isso já é linguagem pressupondo o espaço literário,
em que a forma faz a si mesma. É o texto ganhando importância como
personagem principal: “Não dirijo nada. Nem as minhas próprias palavras. Mas
não é triste: é humildade alegre.” (AV, p. 31)
12
A narradora-personagem escreve ao amado para falar de si. Ao iniciar
a carta, ela expressa o desejo de sair do racional, da harmonia em que as
palavras dizem o que se pretende. Mas o que ela deseja falar diz respeito a
seus sentimentos mais profundos, e isso, nem sempre, a palavra consegue
atingir com a linguagem convencional. Estabelece, então, um diálogo com a
pintura e com a música, duas maneiras de se aproximar desse eu inatingível,
de enveredar o pensamento por caminhos que exigem um esforço maior de
reflexão. Esses caminhos estão ligados ao pensamento em fluxo. O que diz ao
amado não é para ser ouvido, mas para ser vivenciado nesse fluxo do instante,
como num prolongamento de instante vivido:
O presente é o instante em que a roda do automó-
vel toca minimamente no chão. E a parte da roda
que ainda não tocou, tocará num imediato que ab-
sorve o instante presente e torna-o passado. Eu,
viva e tremeluzente como os instantes, acendo-me
e me apago, acendo e apago, acendo e apago. Só
que aquilo que capto em mim tem, quando está
sendo agora transposto em escrita, o desespero das
palavras ocuparem mais instantes que um relan-
ce de olhar. Mais que um instante, quero o seu
fluxo
. (AV, p. 15)
Há, no que a narradora-personagem escreve, uma mistura de
sentimentos, formada com frases autônomas, independentes e que não
estreitam a relação de contigüidade, mas se atam analogicamente pela
similaridade produzida no fluxo do pensamento. É como se esses sentimentos
fossem pingos de tinta numa tela para a qual o observador se transporta no
instante do acontecimento-coisa, aquele momento de simultaneidade, juntos,
num lapso, não na hesitação que acontece fora do corpo.
13
Para que o acontecimento-coisa seja sentido, é preciso atingir a
palavra “intocada”, aquela que é uma imagem-sensação. Para isso, o
estratagema foi desfazer a linearidade do ato de escrever e, assim, desarticular
o pensamento organizado, obrigando a mente a processar possibilidades de
apreensão da palavra em uma dimensão além dela mesma. Outra estratégia da
qual a narradora se vale é descrever como pinta seus quadros para atingir a
imagem daquilo que a pintura e a linguagem expressam, obrigando-nos a
construir, no fluxo do pensamento, a sensação do instante. Num instante tão
abstrato quanto a alegria, um grito de aleluia, elementos capazes de nos
transportar para o universo da imaginação simultânea: “aprofundo as palavras
como se pintasse, mais do que um objeto, a sua sombra”. (AV, p. 13)
Reside nisso uma concepção de escritura que se ensaia, mas de
uma maneira diferente, pois não fala de coisas nem para elas, ao contrário, vai
às coisas. Ir às coisas não significa uma fusão sujeito-objeto, já que,
paralelamente, há multiformas entre coisa e objeto, o que deixa aberto a
direção a seguir. Essa escritura não quer ser imobilizada em extratos
formalizados. Dessa forma, a enunciação anarquiza a determinação e se
desdobra numa multiplicidade de direções.
O jogo de mostra-esconde proposto pela carta da narradora-
personagem só pode acontecer no nível do pensamento instantâneo, no
“dardo”, ou seja, na velocidade de uma flecha, como um brilho: “o que saberás
de mim é a sombra da flecha que se fincou no alvo.” (AV, p. 16). Há uma
necessidade de falar de si mesma, o que nos faz crer que seu questionamento
está à procura daquilo que sua mente é capaz de aludir e que lhe escapa à
reflexão: “E doidamente me apodero dos desvãos de mim, meus desvarios me
sufocam de tanta beleza. Eu sou antes, eu sou quase, eu sou nunca. E tudo
isso ganhei ao deixar de te amar.” (AV, p. 17)
14
A imagem dos instantes em fluxo e a fragmentação do pensamento
são formas que vão se apagando ou se sobrepondo em monólogos e em
diálogos com o amado, ou com o leitor. São questionamentos dessa colcha de
retalhos, que é o texto de Clarice. Nessa trilha, vamos nos encaixando na busca
pelo fruto da criação.
ÁGUA VIVA seduz em sua radical ambivalência, no paradoxo entre a
definição e a indefinição do que seja o texto: “Este não é um livro porque não é
assim que se escreve.” (AV, p. 11). O diferencial dessa escritura está em ser e
não ser, no sentido de algo pronto, acabado. Seu fazer se constrói
continuamente: “O que falo é puro presente e este livro é uma linha reta no
espaço.” (AV, p. 17). Tanto o romance, quanto a própria escritura de Clarice,
em geral, ora se mostram no subliminar da palavra, ora se escondem num
labirinto plurissignificativo, místico, reflexivo.
Uma escritora escrevendo uma carta a seu amado nos dirige para um
assunto que interessa, porque o amor é um sentimento que atinge a todos, eis
o ponto de partida do romance. Mas, a partir daí, o tema se confunde com
questionamentos em que se distingue, à distância, uma desordem, uma
assimetria feita de avanços e recuos da narradora-personagem. Nesses fluxos
e refluxos, as linhas do texto vão se formando, pois nos envolvemos no
processo de escrita, saímos da desordem e vislumbramos o sentido por meio
das metáforas do texto. São elas que nos reenviam para a tessitura
fragmentada ou para a “secreta redondez” do texto, que adquire relevância na
evocação da imagem vista de longe. Nessa distância, é possível perceber a
ordem da desconstrução:
Este texto que te dou não é para ser visto de perto: ganha
uma secreta redondez antes visível quando é visto de
15
um avião em alto vôo. Então adivinha-se o jogo das ilhas
e vêem-se canais e mares. Entende-me: escrevo-te uma
onomatopéia, convulsão da linguagem. Transmito-te
não uma história mas apenas palavras que vivem do som.
(AV, p. 25)
Na narrativa, a presença da personagem e as ações a que se propõe
delineiam o desenvolvimento do tema. Ela é sua única personagem e define a
dimensão do discurso: “Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero
apossar-me do é da coisa. Esses instantes que decorrem no ar que respiro: em
fogos de artifício eles espocam mudos no espaço.” (AV, p. 9).
Em ÁGUA VIVA, tempo e vida se confundem: “À duração de minha
existência dou uma significação oculta que me ultrapassa. Sou um ser
concomitante: reúno em mim o tempo passado, o presente e o futuro, o tempo
que lateja no tique-taque dos relógios.” (AV, p. 21). A narradora-personagem,
tenta flagrar o “instante-já”, mas tem consciência da fugacidade do tempo e, no
fim do romance, diz que o “agora é o domínio de agora. E enquanto dura a
improvisação eu nasço.” (AV, p. 87). Isso nos faz perceber que o tempo é um
sujeito puramente verbal.
A ficcionalidade
1
do romance de 1973, de Clarice Lispector, é
anunciada desde o seu título: ÁGUA VIVAFicção, dando margem à
imaginação presente na arte de escrever, um ato de criação. A criatividade do
escritor é inventiva, não segue um modelo. Cada escritor tem suas
peculiaridades. Em seu universo ficcional, é colocada sua visão de mundo e de
arte. No modernismo, movimento artístico que se propõe a repensar a arte, a
literatura passa por um processo de transformação, com o intuito de superar
normas e conceitos estabelecidos. Isso, entretanto, pode acontecer em
1
- Ficcionalidade, é usada como sinônimo de imaginação ou invenção. (MOISÉS, Massaud. Dicionário de
Termos Literários, p.229.).
16
qualquer época, como no romance Memórias de um Sargento de Milícias, de
Manuel Antônio de Almeida, escrito quando o Romantismo ainda estava em
desenvolvimento, mas sob outro foco bem diferente dos padrões da época.
Nele, o personagem principal é um malandro, um anti-herói. Trata-se de uma
crônica urbana com muito humor e realismo, liberando o enredo de fôrmas
estabelecidas.
Mais recentemente, autores como Graciliano Ramos e Clarice
Lispector privilegiam a própria palavra na estrutura das obras. Em Vidas Secas,
Graciliano faz com que a frase retrate a alma agreste do sertanejo sem
veleidades ou eufemismos. Clarice vai além de indagações individualistas,
porque parte em busca de respostas, respostas essas que nem sempre são
encontradas na realidade imediata. Assim, ela faz uma imersão nas camadas
mais profundas da alma humana, revolvendo a própria essência do ser e estar
no mundo. Em A Hora da Estrela, a linguagem enfrenta a “crise” da criação,
mostrando que a literatura está sempre num processo de transformação.
Falar de processo de transformação pede um retorno à questão dos
gêneros, cujo conceito etimológico, segundo Angélica Soares (2000), vem “do
latim genus-eris, que significa tempo de nascimento, origem, classe, geração”.
A visão da crítica abre caminho para discussões que alteram ou
superam conceitos, pois a criação artística é um processo. Assim, para
Aristóteles
2
(2001), “a arte imita os caracteres, as emoções e as ações”, além
disso,
não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas sim o
que poderia ter acontecido, o possível, segundo a verossimilhança ou a
necessidade”.
2
- Aristóteles (384 – 322 a. C.).
17
Não pretendemos fazer aqui um estudo crítico dos gêneros, apenas
nos valemos deles para deixar claras as transformações conceituais ocorridas
com eles ao longo dos séculos. A trajetória das narrativas orais, e mais tarde
escritas, sempre norteou a vida humana e manifestou-se de diferentes formas:
epopéias, fábulas, contos, crônicas e o próprio romance.
Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, costuma ser considerado o
primeiro romance moderno de envergadura. Surge numa época em que os
ideais cavaleirescos tornaram-se inviáveis. Mais tarde, o “século das luzes” foi
muito importante para o desenvolvimento do romance, pois mostrou o desejo de
agir sobre o mundo para produzir o novo.
A ampliação do público alvo do gênero impunha a concepção de
textos que atendessem a uma nova geração de leitores. O romance, quando
surgiu, contava histórias de cavaleiros em luta com feiticeiros, gigantes e
dragões. O romance continuou sofrendo transformações até o século XIX,
quando ocorre novo questionamento com as idéias divergentes entre Brunetière
(1849–1906), que atribuía o elo histórico à evolução dos gêneros.
O romance encontra, no século XX, o experimentalismo, revelando-se
um gênero em constante transformação. Surgem, então, muitas classificações,
dentre as quais o romance realista. A própria nomenclatura que o classifica
como moderno, contemporâneo, não deixa de considerá-lo um gênero em
constante mutação. Também contribuiu para essa mudança Benedetto Croce
(1886–1952), que acreditava que todo conhecimento ou é intuitivo ou é lógico,
produzindo imagens ou conceitos. Assim, o “intuir” estaria nas ações que nos
libertam da submissão intelectual, mas nos subordinam ao tempo e ao espaço
da realidade.
18
Embora nossa pesquisa não seja pautada na mimese, posto que não é
esse o tratamento que requer o romance em discussão, vale salientar aqui que
o pensamento de Croce gravita em torno daquilo a que se propõem às teorias
contemporâneas, como o New Criticism, de Allan Tate, e a teoria do
estranhamento, de Chklovski, nos estudos dos formalistas russos. Dentre eles,
temos Tynianov, que passou a idéia de que o gênero é um “fenômeno
dinâmico”, Propp e sua teoria das trinta e uma funções, e Bakhtin, que lança um
olhar mais atento à concepção de gênero por meio da percepção.
Bakhtin (2002) leva em consideração não apenas a recepção do leitor,
mas o processo de inacabamento do gênero, pois “o estudo do romance
enquanto gênero caracteriza-se por dificuldades particulares. Elas são
condicionadas pela singularidade de próprio objeto: o romance é o único gênero
por se constituir, e ainda inacabado”. Esse teórico, ressalta que o romance é o
único gênero a evoluir entre gêneros já formados há muito tempo. O romance
denuncia suas formas e sua linguagem convencional, elimina uns e integra
outros em sua própria estrutura, reinterpretando-os e dando-lhes outra
ressonância. Assim, o romance, ao reinterpretar os outros gêneros, renova-os,
tornando-os vivos.
Quando se cogitava do naufrágio do romance, isto é, do esgotamento
de todas as suas possibilidades de inovação, eis que surge o romance latino-
americano, que alcança notoriedade mundial por meio de Júlio Cortazar, García
Marques, Vargas Lhosa, Miguel Angel Astúrias, Alejo Carpentier, Carlos
Fuentes, Cabrera Infante, Guimarães Rosa e Clarice Lispector.
Nos últimos anos, quando o realismo mágico já não causa o impacto
do princípio, mencionam-se, com respeito, prosadores de Portugal, um país que
não se destacava desde a prosa de Eça de Queirós. Alguns nomes, como
19
Virgílio Ferreira, José Saramago, Augustina Bessa e Lobo Antunes conferem,
de fato, a romancistas portugueses lugar de destaque no elenco dos ficcionistas
da contemporaneidade.
O que notamos é que o romance se alimenta da busca constante do
homem pelo novo, pelo enigmático, pela realidade transfigurada. É por isso que
ele se mantém vivo, provocando reflexões que possibilitam a compreensão de
que a vida nada mais é do que nossos sonhos e ideais.
O romance que estamos analisando enfoca o procedimento criativo de
Clarice Lispector, que, por meio da narradora-personagem, desfuncionaliza os
elementos constitutivos da narrativa, o que é percebido pelo recurso utilizado de
escrever uma carta a um destinatário imaginário, seu amado: “é por causa do
mesmo segredo que me fez escrever agora como se fosse a ti”. (AV, p.11).
De acordo com Hênio Tavares (2002), o gênero epistolar, a espécie
genérica das cartas, classifica-se em amorosas, familiares, didáticas,
apreciativas ou críticas. A maneira como a narradora-personagem trata o
assunto, contudo, não assume nenhuma classificação do gênero, mas cria
outra perspectiva, a de enredar, pois essa carta
condensa ambigüidades, já que
desautomatiza o leitor quando suspende a linearidade do texto, levando-o a
fazer relações analógicas.
Ao longo da história, esse amado será confundido
com o próprio leitor, uma vez que os elementos da narrativa são subvertidos.
ÁGUA VIVA parte da estratégia de criar uma “carta” para metaforizar questões
como a forma, a própria escrita e o ser e estar no mundo.
A desfuncionalização dos elementos do romance é uma superação dos
modelos do gênero, ao longo da história. Nesse sentido, ÁGUA VIVA suspende
a lógica tradicional da narrativa, como explica Segolin (1999):
20
[...] há na narrativa moderna um esforço tão acentuado
no sentido de romper com posturas já consagradas e
uma tão grande riqueza de atitudes transformativas
destinadas a desvendar perspectivas relacionais inédi-
tas no âmbito da obra, que é muito difícil, senão impôs-
sível, pretender descobrir umas poucas marcas bási-
cas, capazes de definir globalmente o estágio atual da
atividade artística.
É pela desconstrução que este romance se reinventa, criando formas
paralelas. O termo desconstrução é aqui empregado no sentido usado por
Paulo Ottoni (2005,) e parece-nos apropriado para indicar a da superação do
paradigma do romance tradicional: “a palavra ‘desconstrução’, como qualquer
outra, não extrai seu valor senão de sua inscrição em uma cadeia de
substituições possíveis, naquilo que se chama, tão tranqüilamente, de um
“contexto”.
A narradora-personagem de ÁGUA VIVA estabelece um diálogo
com a própria escrita, com a pintura e com a música, sugerindo imagens que
flagram os instantes do pensamento: “Não pinto idéias, pinto o mais inatingível
“para sempre”. Ou “para nunca”, é o mesmo”. (AV, p. 12), “Quero a vibração de
Mozart”. (AV, p. 16). Dessa forma, instala-se uma multidiscursividade, um
procedimento próprio do dialogismo na concepção bakhtiniana. De acordo com
Irene Machado (1995), “o dialogismo é a possibilidade de entender o discurso
literário como representação de um discurso dentro de outro discurso”.
A personagem, por ser um elemento de importância na criação da
narrativa, vem sendo estudada em diferentes considerações teóricas. Em
contrapartida, faz-se necessário analisar a construção desses seres, pois,
21
muitas vezes, os trabalhos existentes não respondem ao processo de
composição de algumas obras.
A personagem, hoje, deixou de ser objeto de puro entretenimento,
para ser um signo com várias possibilidades de transformação. Ao pensarmos
na personagem como linguagem e, conseqüentemente, em seu caráter
dialógico, temos a possibilidade de estudá-la pelo enfoque bakhtiniano.
Para Bakhtin, dois planos devem ser considerados quando estudamos
a personagem: o plano monológico e o dialógico. Em Problemas da poética de
Dostoievski, ele esclarece que, na construção da personagem monológica, o
autor limita-a, isto é, a personagem não ultrapassa os limites impostos pelo
autor. Ela não tem voz própria, ficando restrita aos desígnios de um autor. A
personagem é fechada, pois só age ou pensa dentro dos limites dados pelo
autor. Ela se apresenta de forma a não perturbar o plano do autor. Entretanto,
ao considerar a obra de Dostoievski, Bakhtin postula o enfoque dialógico da
personagem, no qual interessa o que ela é e o que pensa sobre o mundo e
sobre si mesma. A personagem torna-se independente, pois todos os dados
que caracterizam a realidade passam a funcionar como material de sua própria
consciência. Nesse caso, ela está sempre por se construir, se reinventar e
nunca acabada. Em ÁGUA VIVA, a narradora-personagem esforça-se para
levar consigo seu interlocutor, direcionando-o e seduzindo-o para que aceite o
seu jogo.
Durante séculos a personagem não foi considerada uma produção, o
resultado de um trabalho artístico. Era compreendida apenas como uma
imitação do ser humano. A personagem era vista com o fim específico de
atender ao cânone da narração, como os outros elementos constitutivos da
narrativa tradicional.
22
Aristóteles, por exemplo, ao sistematizar a arte, foi o primeiro filósofo a
tentar encontrar respostas sobre a personagem. Para esse teórico, o conceito
de mimese coloca a personagem e a arte, em geral, como representação da
realidade. Assim, era vista em uma “estreita semelhança” com o ser humano.
Se Aristóteles enfatizava a personagem como imitação, na história
recente da narrativa, os estudiosos enfocam o destino da personagem com
outra ótica. Entre eles, Fernando Segolin (1999) procura acentuar a importância
do próprio texto, sem se preocupar com as relações referenciais entre ser
ficcional e ser humano. A partir do século XVIII, com a ênfase dada à
personalidade do artista no ato de criar, a visão da arte como simples imitação
entra em declínio. Segundo Segolin (1999), MH Abrams coloca a arte não como
imitação da natureza, mas como a criação de uma “segunda natureza”.
Somente no século XX, os estudos sobre a personagem rompem com
seu caráter ético-pedagógico. Teóricos como Lukács, Forster e Muir realizam
novos estudos acerca da narrativa e, conseqüentemente, da personagem.
Assim, os elementos da narrativa passam a ser vistos como estruturais, e a
personagem torna-se um elemento estrutural, mas ainda mantém a sua
referencialidade.
São os formalistas russos, no início do século XX, que abrem novas
perspectivas para a análise de obras literárias e dos elementos que a
compõem. Surge, então, o conceito de literariedade, isto é, “aquilo que faz com
que a obra adquira qualidade literária”. Esse conceito é fundamental, pois
passa-se a considerar a obra em si.
23
Vladímir Propp, pertencente ao grupo dos formalistas russos, embora
não tivesse a intenção de analisar a personagem, acaba por conceituá-la, pois,
em seu estudo sobre os contos de magia, define-a de acordo com as funções
que desempenha na narrativa. Ao estudar os contos de magia, chega a um
esquema de trinta e uma funções para toda a trajetória da narrativa, desde a
situação inicial até o reequilíbrio. A partir dessas funções, ele distinguiu sete
personagens, definidas por um conjunto de ações, que determina a função de
cada uma dentro da narrativa.
Partindo dos estudos de Propp, Greimas tenta elaborar uma matriz
que não atendesse apenas à análise dos contos de magia, mas de qualquer
narrativa. Assim, chega ao seu esquema actancial, que é dividido em
categorias: sujeito x objeto, remetente x destinatário e auxiliar x oponente. Essa
divisão evidencia a oposição entre os actantes, sendo uma tentativa de conferir
ao conto popular um caráter paradigmático, em contraposição ao esquema de
Propp, que é essencialmente sintagmático.
A Teoria dos Modos, de Todorov, pretende analisar as ações virtuais e
as ações plenamente realizadas, que formam o texto. Todorov considera as
ações virtuais responsáveis pelo surgimento da personagem incompleta.
Diferentemente da personagem-função, esta tem um dos seus indicativos
anulados, quebrando a linearidade definida por Propp. De acordo com Segolin
(1999), “a personagem deixa, então, de ser exclusivamente a personagem que
faz e passa a ser também a personagem que quer fazer, que deve fazer”.
Dessa maneira, não apenas a personagem tem atualmente outro
enfoque. Outros aspectos do romance, um gênero complexo, têm adquirido
relevância como elementos que contribuem para a sua tessitura. Portanto, o
24
leitor tem se deparado com situações que exigem dele uma percepção
aguçada, para entrar nesse universo reinventado a cada instante.
Sem as garantias habituais, o leitor de ÁGUA VIVA é introduzido no
jogo textual pela narradora-personagem, que o convida a experimentar
sensações imagéticas, livres de nomeação, ou seja, as metáforas. Para tanto, a
narradora desdobra o discurso em três dimensões: o da personagem, o da
narradora e o da autora, ou seja, entra na dimensão dialógoca.
Para Bakhtin, o dialogismo pressupõe uma interação verbal do EU
com o OUTRO, por meio de questionamentos e elucidações. O dialogismo
acontece também no diálogo do EU consigo mesmo, nas suas reflexões e
inquietações acerca de todas as coisas. Assim, se estabelece o monólogo
dialogizado.
No dialogismo proposto pela narradora-personagem de ÁGUA VIVA,
que diz escrever “tosco e sem ordem”, ela conversa consigo mesma e busca
uma interação, uma vez que a palavra é sua “quarta dimensão”. Escrever com
o corpo é a maneira encontrada por ela para atingir uma reflexão sobre seus
questionamentos: “o próximo instante é feito por mim? Ou se faz sozinho?
Fazemo-lo juntos com a respiração. (...) Ouve-me então com o teu corpo inteiro.
(...) estou tentando escrever-te com o corpo todo...”.
(AV, p.9-12)
Em seu discurso, a narradora-personagem dá inúmeras pistas de que
seu propósito não é escrever uma história, mas criar uma similaridade por meio
do pensamento, aproximando-o ao sentido da música e da pintura pelas
imagens fugidias, instantâneas, entretanto possíveis de serem flagradas
sensorialmente: “Isto não é uma história porque não conheço história assim”.
(AV, p. 67)
25
O fluxo do pensamento é um labirinto vertical e, não sendo estático,
como flagrá-lo? Aí reside o desafio da personagem. Ela encaminha a linguagem
para o universo da sensação, cujo fluxo será sensorializado por meio de
imagens, com o intuito de alcançar a qualidade de um estado de primeiridade
3
.
A primeiridade forja sensações de pura qualidade, ou seja, é um
fenômeno. Fenômeno, segundo Santaella (2002), “é tudo aquilo que aparece à
mente, corresponda a algo real ou não”. A personagem de Clarice quer
experimentar sensações, para tanto, são desfuncionalizados os agentes
narrativos e a palavra é esvaziada de significados. Dessa maneira, a narradora-
personagem alcança uma totalidade só possível no nível de sensações, as
quais remetem à primeiridade. A pura qualidade é seu objetivo para fugir do
mundo e da linguagem fragmentados: “Agora eu quero o plasma – quero me
alimentar diretamente da placenta.” (AV, p. 9)
O estado completo do ser e da linguagem seria aquele em que a
palavra ainda não está em contato com o universo de conceitos empíricos, com
a fragmentação da vida e do mundo verbal, pois a personagem busca o retorno
à primeiridade, estágio em que não se formula nada, ou seja, de sensação e de
qualidade pura, que é:
“o modo mais imediato, mas já imperceptivelmente medializado
de estar no mundo. Sentimento é, pois, um quase-signo do
mundo: nossa primeira forma rudimentar vaga, imprecisa e
indeterminada de predicação das cosias”.
(SANTAELLA,
1983, p. 46).
3
- Primeiridade indica a qualidade da consciência imediata, é uma impressão (sentimento) in totum,
indivisível, não analisável, inocente e frágil. (SANTAELLA, Lúcia. (1983, p. 43).
26
Na escritura, a narradora-personagem de ÁGUA VIVA usa a pintura e
a música como disfarce. Desse modo, instala-se uma “luta corporal” para atingir
“o é da coisa”, pois ela tem consciência de que, ao pensar e falar o que sente,
seu pensamento já se transforma em outra coisa, porque a palavra nunca
expressa integralmente o que sentimos e pensamos:
“Estou consciente de que tudo o que sei não posso dizer,
só sei pintando ou pronunciando sílabas cegas de sentido.
E se tenho aqui que usar-te palavras, elas têm que fazer um
sentido quase que corpóreo, estou em luta com a vibração
última”. (AV, p.11)
A luta da personagem para atingir o “é das coisas” só é possível de um
modo intervalar, metafórico, que está entre ela e a consciência do que nela há.
Por isso, ela quer permanecer no estado de pura qualidade das coisas, para
alcançar a “quarta dimensão.”
Instala-se, então, uma interdiscursividade do “eu” e das relações que
são tecidas com seus outros “eus”, indo ao encontro do discurso dialógico como
processo polifônico de construção da personagem. Paulo Bezerra (2005)
explica que: “no enfoque polifônico, a autoconsciência da personagem é o traço
dominante na construção de sua imagem, e isso pressupõe uma posição
radicalmente nova do autor na representação da personagem”.
A narradora-personagem formula seu próprio processo de anulação,
cria maneiras de entrar em contato com a primeiridade, ao limpar a palavra de
significados pré-existentes: “tenho que me destruir para alcançar cerne e
semente de vida. O instante é semente viva. (...) Estou lidando com a matéria-
prima.” (AV:12-13). É instaurada uma tensão entre o pensamento, que é
impossível de ser flagrado em sua totalidade, e a tentativa de apreendê-lo no
27
“instante-já”. Assim, a narradora-personagem foge da palavra impregnada de
significados por meio de imagens que o representam.
A tensão criada para fazer a palavra chegar à sensorialidade
imagética passa, necessariamente, pelo processo de dialogização, que
acontece, segundo Irene Machado (1995), quando
[...] dois tons discursivos se confrontam na mesma enun-
ciação. (...) o principal recurso do diálogo é a palavra bi-
vocalizada, ou seja, o discurso dentro do discurso. Dia-
logia aqui não é uma reprodução imediata do diálogo
entre personagens, mas a internalização de diferentes
pontos discursivos.
A consciência de construir sua narrativa valendo-se de recursos
metafóricos cria um discurso figurativo em que a metáfora leva a perceber
alguma coisa semelhante, uma significação. Para Paz (1996),
a imaginação é, primordialmente, um órgão de conhe-
cimento, posto que é a condição necessária de toda
percepção; e, além disso, é uma faculdade que expres-
as, mediante mitos e símbolos, o saber mais alto.
O estado de primeiridade entra em contato com a secundidade
4
e
transforma a experimentação metafórica em processo dialógico. Desse modo, a
narradora-personagem de ÁGUA VIVA constrói seu discurso com camadas que
vão se sobrepondo, no intuito de aproximar a palavra do não habitual das
coisas, do não habitual de si mesma. Essa seria uma tentativa de resgatar o
seu “eu” qualitativo.
4
- Secundidade é aquilo que dá a experiência seu caráter factual, de luta e confronto, segundo Santaella
(1983, p. 51.).
28
Nessa perspectiva, podemos comparar a personagem de ÁGUA VIVA
com a personagem dostoiévskiana analisada por Bakhtin (1997), pois, para
ambas, “não importa o que a personagem é no mundo, mas, acima de tudo, o
que o mundo é para a personagem e o que ela é para si mesma”. O não
habitual de si e do mundo não interessa para a narradora-personagem. Importa-
lhe o mergulho no mundo qualitativo, o da primeiridade, cuja experimentação é
projetada pela similaridade de imagens no exercício da percepção.
No discurso da personagem, as metáforas rarefeitas, de caráter
extremamente poético, subsidiam as transferências dessa projeção:
Quero lonjuras. Minha selvagem intuição de mim
mesma. Mas o meu principal está sempre escon-
dido. Sou implícita. E quando vou me explicitar per-
co a úmida intimidade.
(AV, p. 23)
A densa selva de palavras envolve espessamente o
que sinto e vivo, e transforma tudo o que eu sou em
alguma coisa minha que fica fora de mim. A natureza
é envolvente: ela me enovela toda e é sexualmente
viva, apenas isto: viva.
(AV, p. 23)
A potência da linguagem em ÁGUA VIVA exige do leitor um sentido
agudo de percepção para apreender a imagem. Paz (1996) explica que “o
sentido da imagem é a própria imagem. Nada, exceto ela, pode dizer o que
quer dizer. Sentido e imagem são a mesma coisa.”
Acreditamos que o discurso da personagem, com suas múltiplas
artimanhas, sirva-lhe como meio catalizador de fenômenos do pensamento no
29
seu processar dialógico e criativo. Assim, conforme Bakhtin (1997) pode-se
dizer que esse tipo de discurso é:
uma particularidade de princípio e muito importante da per-
sonagem. Enquanto ponto de vista, enquanto concepção
de mundo e de si mesma, a personagem requer métodos
absolutamente específicos de revelação e caracterização
artística.
A narradora-personagem de ÁGUA VIVA faz um exercício inusitado
da palavra ao esvaziá-la de conceitos estabelecidos, repensando-a, assim
como repensa o mundo e a natureza das coisas e do ser pensante, todos em
formação contínua. Para isso, torna-se uma designer da palavra: “Escrevo-te
como exercício de esboços antes de pintar. Vejo palavras.” (AV, p.17)
O uso de outros códigos, como o da pintura e o da música forjam o
pensamento da narradora-personagem, preferindo o código não-verbal para
tentar captar o “instante-já”. Ela materializa a palavra por meio da imagem.
Esses recursos são dialógicos, pois palavra e pensamento são duas forças
distintas, mas que se aproximam para a apreensão do sentido que se quer
estabelecer, pressupondo um diálogo. Pela pintura e pela música, ela quer
experimentar as sensações do mundo primeiro, aquele anterior ao da palavra.
No entanto, o estado da primeiridade entra em contato com o pensamento
icônico, por isso as associações apenas aludem ao “instante-já” pretendido.
Ela faz várias performances com a palavra, pois tem consciência de
que a linguagem recorta, delimita e empobrece o pensamento. Cria, então, as
metáforas para atingir seu objetivo, que é não seguir as regras, mas criar outras
formas de percepção: “O que te falo nunca é o que eu te falo e sim outra coisa.
(...) um instante me leva insensivelmente a outro e o tema atemático vai se
30
desenrolando sem plano mas geométrico como as figuras sucessivas num
caleidoscópio.” (AV, p.14)
Em sua performance com a palavra, a narradora-personagem utiliza a
pintura para dar forma às idéias: “É também com o corpo todo que pinto os
meus quadros e na tela fixo o incorpóreo, eu corpo a corpo comigo mesma. Não
se compreende música: ouve-se. Ouve-me então com o teu corpo inteiro.” (AV,
p.10)
Para a própria personagem, a escrita é uma maneira de criar imagens
que possam remeter ao estado de primeirade, pois o atemático e o alógico são
a qualidade pura desse estado: “no atrás do pensamento está a verdade que é
a do mundo. A ilogicidade da natureza.” (AV, p.78)
No exercício da linguagem utilizada estrategicamente, a palavra se
contorce para atingir o “it”. Mas a consciência instantânea do pensamento da
narradora-personagem apresenta-se por fragmentos de instantes fugidios e não
em sua totalidade, pois, segundo Peirce (apud Santaella,1980).
pela natureza mesma da linguagem, sou obrigado a
quebrá-la em pedaços para descrevê-la. Isso re-
quer reflexão; e a reflexão ocupa tempo. Mas, a
a consciência de um momento, como ela é naquele
exato momento, não é reflexionada, e nem quebrada
em pedaços. Como eles estão naquele vero mo-
mento, todos esses elemento de impressão (‘feeling’)
tão juntos e eles são um sentimento indizível, sem
partes
.
Embora o signo próprio do primeiro seja o ícone, este não é primeiro,
mas capta o mundo do primeiro, pois, como signo, já deixa para trás a idéia da
31
primeiridade justamente porque se tornou uma tradução dela. Portanto, o ícone
existe e alude ao primeiro, mas apenas para transportar os ‘insight’s’ e se
aproximar da primeiridade, ou seja, sendo signo por similaridade, o ícone
representa seu objeto a partir do estado de qualidade pura, entretanto, ao
traduzir qualquer sensação, já se apresenta como algo consciente diante de si
mesmo.
A fala da narradora-personagem revela um diálogo híbrido, por meio
do pensamento icônico, pois ela já está consciente, “tentando captar a quarta
dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora se tornou
um novo instante-já que também não é mais.” (AV, p.9).
Isso remete à tradução
icônica do momento de sua consciência. Ao compararmos essa tradução, ao
lapso de consciência icônica podemos imaginar o homem diante do mundo
organizado e das representações simbólicas que lhe são impostas.
A relação pretendida por meio da metáfora do discurso do enunciador
é a da fragmentação do mundo moderno, do homem em busca de sua
identidade e de sua (in) consciência diante do dinamismo que já não é
abarcado por formas e leis cristalizadas. O homem depara-se com
transformações na vida, no espaço e no tempo, produzidas num dinamismo tão
violento, que já não cabem nos velhos hábitos. A arte moderna também
participa desses processos e os critica de maneira sui-generis.
O leitor é envolvido pela magia do discurso da personagem, que
acende a chama de sua imaginação e cria imagens que aparecem-
desaparecem, fazendo com que ele apreenda o seu entorno multifacetado:
... isso tudo não acontece em fatos reais mas sim no domí-
nio de – de uma arte? Sim. De um artifício por meio do qual
surge uma realidade delicadíssima que passa a existir em
32
mim: a transfiguração me aconteceu. (AV, p.19)
Surge, então, a indagação: Como apreender a fragmentação do
mundo e das coisas? Para isso, simplesmente não há respostas, mas re-
perguntas. A própria narradora-personagem alerta:
sou obscura para mim mesma. Só tive inicialmente uma visão
lunar e lúcida, e então prendi para mim o instante antes que
ele morresse e perpetuamente morre. Não é um recado de
idéias que te transmito e sim uma instintiva volúpia daquilo
que está escondido na natureza e que adivinho. E esta é uma
festa de palavras. Escrevo em signos que são mais um gesto
que voz.
(AV, p. 22)
As sensações às quais são submetidos tanto a personagem quanto o
leitor, ao afastarem-se do habitual das coisas, dialoga com saídas do estado de
conformidade pela ficcionalidade da palavra materializada por imagens:
ouve apenas superficialmente o que digo e da falta de
sentido nascerá um sentido como de mim nasce inex-
plicavelmente vida alta e leve. A densa selva de palavras
envolve espessamente o que sinto e vivo, e transforma
tudo o que sou em alguma coisa que fica fora de mim.
(AV, p. 23)
Essas imagens, sugeridas pela pintura, conferem materialidade à
linguagem e insinuam ao leitor que ele pode interferir no mundo, libertando-se
da praticidade para observar valores não visíveis, mas necessários para o
equilíbrio do pensamento dialógico. Anna Hartmann Cavalcanti (2005) explica:
[...] isto reflete a representação da imagem ou o movimento
que vemos nos leva a produzir imediatamente uma respos-
33
ta ao estímulo, de modo que nos parece um movimento refle-
xo aquilo que, no entanto, é algo comunicado pela visão e re-
presentação consciente à vontade inconsciente.
Ao falar de seus vazios, de sua falta de identidade, a personagem
dialoga com o leitor, propondo sensações e imagens para que ele “levante a
cabeça”: “O que pintei nessa tela é passível de ser fraseado em palavras?” (AV,
p. 11). Ou ainda: “Não usar palavras é perder a identidade? é se perder nas
essenciais trevas daninhas?” (AV, p. 65).
Em todo o discurso da narradora-personagem, há uma perplexidade,
uma falta que se explica pelo “grau zero” da palavra, revelando sua busca de
identidade. E ela destrói para construir, pois tudo acontece no nível da
linguagem, que, superando-se, institui um modo de falar como estratégia para
se situar no mundo. Com isso, a forma, o enredo e a personagem são
subvertidos e cedem lugar à invenção de um novo discurso.
Essa estratégia discursiva possibilita ao leitor perceber que o homem
contemporâneo perdeu-se em seu labirinto interior à procura de sua própria
história. Resta-lhe buscar sua identidade diante de um mundo fragmentado,
como a personagem busca a sua por meio da linguagem simbólica.
Os questionamentos do “eu” em busca de um dizer “novo” traduz a
fragmentação da personagem, do homem no mundo moderno e do próprio
texto, que se dissolve em imagens simbólicas para rever-se. Anna Hartmann
(2005) explica que:
a linguagem é descrita como uma atividade produtora de
símbolos, formada por um processo de transposição que
consiste em engendrar uma imagem no lugar de uma coisa.
34
Esse processo é caracterizado como um fenômeno artístico,
pois a partir dele se formam imagens e hieróglifos, ou seja,
uma linguagem figurativa como modo de expressão da
experiência interna.
A perplexidade diante desse fenômeno está presente na cultura e na
arte. Em ÁGUA VIVA, ela aparece quando a personagem dialógica entra no
mistério da palavra, por meio de sua autoconsciência, num exercício de
comunicação metafórica e diante do dinamismo da vida: “(...) agora acho que
vai mesmo. Isto é: vou entrar. Quero dizer: no mistério.” (AV, p. 26)
Nesse sentido, Lucrécia Ferrara (1986) refere-se à imagem como:
[..] um simulacro do mundo a partir de um sistema de
signos, ou seja, em última ou em primeira instância,
toda representação é gesto que codifica o universo,
do que se infere que o objeto mais presente e, ao
mesmo tempo, mais exigente de todo processo de
comunicação é o próprio universo, o próprio real.
A pluralidade discursiva da personagem é um estratagema, uma vez
que a palavra poluída pelo convencionalismo sucumbe à lógica. Ao mesmo
tempo, entretanto, ela suscita questionamentos a respeito da objetividade,
diante de um mundo em constante mutação, em que a simultaneidade coloca
em cheque a estabilidade e o estado de repouso. O estado de repouso seria
condizente somente àqueles que, inconscientes do seu papel de agentes
transformadores, preferem acomodar-se a desbravar a lógica habitual.
Em ÁGUA VIVA, as estratégias discursivas fazem da narradora-
personagem um ser dialógico. Assim como sua comunicação, por meio da
metalinguagem e da experimentação com a palavra, os questionamentos, ao
35
longo do texto, mostram um “novo” olhar sobre o que está cristalizado. Dessa
maneira, vemos que a dialogia não se aplica apenas à criação artística, mas
também ao ser que habita o mundo real, pois, de acordo com Bakhtin (1997),
“no homem sempre há algo que só ele mesmo pode descobrir no ato livre de
sua autoconsciência e do discurso, algo que não está sujeito a uma definição à
revelia, exteriorizante.”
36
Capítulo II: o lirismo e a imagem no processo de construção do
ritmo no romance ÁGUA VIVA
O romance ÁGUA VIVA oferece muitas possibilidades de
interpretação, por isso nossa análise não foi feita de rígidas certezas, mas
procurou abordar o lirismo, instalado pela imagem, no ritmo da narrativa. Esses
dois elementos, lirismo e ritmo, permitem caracterizar a obra como prosa-
poética.
Para entender a concepção de modernidade desse romance, levamos
em conta seu rompimento com os modelos canônicos da narrativa, que provoca
um estranhamento, um desconforto no leitor, levando-o à desautomatização da
leitura. Em nossa reflexão, a obra Signos em Rotação (1996), de Otavio Paz,
foi significativa para o desenvolvimento teórico, servindo de apoio para o
desafio a que nos propusemos. Além de abandonar os modelos que, por muito
tempo, condicionaram a narrativa, Clarice subverte a própria técnica de
escrever quando, logo no início da obra, elimina o recuo do parágrafo e anuncia
um “eu” que emerge sem referencialização, partindo apenas da assertiva: “É
com uma alegria tão profunda ...” (AV, p. 9)
Apesar de não ser nossa intenção traçar um percurso histórico dos
estudos críticos da literatura, é importante ressaltar a contribuição de Chklovski
com sua tese sobre o estranhamento. Com “A Arte como Procedimento”,
Chklovski, um dos formalistas russos, propõe a desautomatização do leitor com
o intuito de conduzi-lo à percepção da arte pela apreensão das possibilidades
do código verbal como um jogo de significantes lingüísticos.
37
Ao dizer que “o objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão
e não como reconhecimento”, Chklovski chega à conclusão de que as
expressões na arte literária têm não só a função de mostrar imagens, mas
também a de construir percepções. A percepção aciona associações na mente,
sugerindo imagens que despertam a sensorialidade. É isso que possibilita ao
leitor, no romance que analisamos, acompanhar o ritmo dessa escritura anti-
convencional, que não está pronta, mas que se faz na medida em que se lê. É
como um labirinto, por onde se vai sem uma direção a seguir, já que o texto não
oferece forma, gênero e outros elementos da narrativa convencional. Trata-se
de um caminho a ser percorrido por quem está disposto a descobrir a saída.
Nesse sentido é que a imagem sugere a duração da percepção na
arte, provocando no leitor um efeito estético. O que nos leva a crer que as
estratégias da narradora-personagem, desde o início, já apontam para o efeito
estético, ou seja, para a duração da percepção por meio da imagem.
De acordo com o teórico russo (1976) há dois tipos de imagem: “a
imagem como um meio prático de pensar, meio de agrupar os objetos e a
imagem poética, meio de reforçar a impressão”, e a segunda, a imagem
poética, é a que melhor se insere em ÁGUA VIVA, em que qualquer vestígio de
identificação é eliminado.
O efeito de duração proposto por Chklovski serve para elucidar a
mudança de posição dos estudos literários, além de esclarecer o
estranhamento. Nesta pesquisa, o que está sendo privilegiado é imagem como
meio de construir percepções. Em ÁGUA VIVA, a proposta não é “pensar por
imagens”, mas percebê-las no objeto estético, o texto.
38
É dessa forma que o texto clariceano provoca um estranhamento,
uma vez que as imagens aguçam a percepção por meio de metáforas poéticas,
que se abrem num ritmo de multisensorialidade, transportando o leitor para a
cena do texto. Sobre a imagem, Deleuze (1992, p.53) comenta que “o plano de
imanência não é um conceito pensado nem pensável, mas a imagem do
pensamento, a imagem de que ele se dá do que significa pensar, fazer uso do
pensamento, se orientar no pensamento”.
Ao trazer o leitor para a cena, o texto é colocado no terreno poético,
posto que pré-sentir a sensorialidade é a primeira potência do imaginável, o que
significa uma provocação e um convite para o leitor participar da escritura. A
narradora-personagem questiona a si mesma ao falar do seu “it”, um
empréstimo do pronome neutro inglês ligado “a coisas e animais”, para
expressar a sua alma fugidia: “ [...] o ar é meu ‘it’ e não tem perfume.” (AV, p.
46). Ela, também, questiona o inacabamento do texto:
“Ah, este flash de instantes nunca termina. Meu canto do it
nunca termina? Vou acabá-lo deliberadamente por um ato
voluntário. Mas ele continua em improviso constante, criando
sempre e sempre o presente que é futuro.”
(AV, p. 86)
A provocação do enunciador que envolve o leitor na cena do texto é
suscitada por meio de imagens que exigem um esforço de percepção. Trata-se
da imagem “transfigurada”, aquela que cria o que poderia ser, partindo da
interação estabelecida entre texto e leitor, pois, segundo Otavio Paz (1996), “a
realidade poética da imagem não pode aspirar à verdade. O poema não diz o
que é e sim o que poderia ser.”
A sugestão é marca deste texto, uma vez que provoca a imaginação
do leitor. A pintura como metáfora da escritura sugere um questionamento do
39
ato de escrever. A busca da “palavra-coisa” não se encerra na palavra, mas,
pelas estratégias utilizadas pela narradora-personagem, nos sentidos inerentes
ao ser humano para verbalizar aquilo que a palavra não consegue atingir. Por
isso a imagem é recurso recorrente para captar o “é da coisa”, numa
perspectiva metafórica. Otávio Paz (1996) afirma que “a imagem constitui um
escândalo e um desafio, também viola as leis do pensamento”, exatamente o
que a escritura de Clarice quer: a ilogicidade, para fugir das classificações,
traçando sua própria lógica, à deriva e sem garantias.
Várias perspectivas se abrem nesse vai-e-vem de imagens que
constroem o ritmo da narrativa clariceana. Esse movimento exige a percepção
do leitor, levando-o a participar do texto, a “levantar a cabeça”. Para Barthes
(2004):
a escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. A
escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo pelo
qual foge o nosso sujeito, o branco-e-preto em que vem se
perder toda identidade, a começar pelo corpo que se
escreve.
A construção do lirismo, neste romance-prosa-poema, se incorpora ao
ritmo do texto, que, por analogias, está associado à pintura, à música. A prosa-
poética surge por meio de imagens que unem uma linguagem à outra, formando
um composto híbrido de significações. Essas linguagens se cruzam, dialogam,
dando à palavra o não-dizível, num trabalho que é da linguagem: “O que pintei
nessa tela é possível de ser fraseado em palavras? Tanto quanto possa ser
implícita a palavra muda no som musical.” (AV, p.11)
É o lirismo que afasta do romance moderno a idéia de enquadramento
da forma, pois a obra de arte em devir amplia o universo do romance em
40
direções infinitas. No texto clariceano, a sonoridade rítmica remete ao lirismo.
As palavras, em Clarice, “vibram”. Recortamos, a seguir, trechos em que o som
das sílabas e a vibração das palavras aludem ao ritmo:
[...] e se tenho que usar-te palavras, elas têm que fazer
um sentido quase que corpóreo, estou em luta com a
vibração última.
(AV, p. 11)
E canto a passagem do tempo: sou ainda a rainha dos
medas e dos persas e sou também a minha lenta evo-
lução que se lança como uma ponte levadiça num fu-
turo cujas névoas leitosas já respiro hoje.
(AV, p. 23)
Entende-me: escrevo-te não uma onomatopéia, convul-
são da linguagem. Transmito-te não uma história mas
apenas palavras que vivem do som.
(AV, p. 25)
Digo assim:
“Tronco luxurioso.”
(AV, p. 25)
Que música belíssima ouço no profundo de mim. É
feita de traços geométricos se entrecruzando no ar.
É música de câmara. Música de câmara é sem melo-
dia.
(AV, p. 43)
ÁGUA VIVA é uma obra que não admite uma classificação. Se admitisse,
não seria apenas uma, mas várias. É uma carta, um romance, uma pintura,
uma música, mas, sendo uma composição, é simplesmente arte. Clarice recria
o romance, utilizando uma multiplicidade de fazeres possíveis com a linguagem.
Octávio Paz (1996), explica que:
O romancista nem demonstra nem conta: recria um mundo.
41
Embora o seu ofício seja o de relatar um acontecimento – e
neste sentido parece-se ao historiador – não lhe interessa
contar o que passou, mas reviver um instante ou uma série
de instantes, recriar o mundo. Por isso recorre aos poderes
rítmicos da linguagem e às virtudes transmutadoras da ima-
gem. Sua obra inteira é uma imagem.
O ritmo em ÁGUA VIVA é como uma pauta musical e traz, em seu bojo, a
ambigüidade própria de um texto poético. Os trechos que seguem são
exemplos dessa pauta, mais que isso, complementam a expressão do lirismo
na construção do ritmo dessa obra. Uma obra que trilha direções insuspeitáveis,
mas possíveis em um texto-mosaico, isto é, metafórico:
E eis que percebo para mim o substrato vibrante da
palavra repetida em canto gregoriano.
(AV, p. 11)
Quero a vibração do alegre. Quero a isenção de Mo-
art.
(AV, p. 16)
poderia sofrer a fome dos outros em silêncio mas uma
voz de contralto me faz cantar – canto fosco e negro. É
minha mensagem de pessoa só.
(AV, p.40)
[...] meu cântico é profundo. Devagar. Mas crescendo.
Está crescendo ainda mais.
(AV, p. 40)
Isso que estou te escrevendo é um contralto. (AV,p.77)
O anel que tu me deste era de vidro e se quebrou e o
amor acabou.
(AV, p. 77)
42
O ritmo é intenso no texto. Nele, ouve-se música, e não apenas a da
água que escorre e, no seu murmúrio, vai para o infinito. Nele, as palavras são
ecos que flutuam no ar, e o movimento contínuo se perfaz nas quase cinqüenta
vezes em que se repete o refrão: “o instante-já” e o “é-já”.
ÁGUA VIVA é um ritmo à deriva, que expressa nas palavras, o sabor
da vida, que desfaz e refaz formas que excedem a sensorialidade das ações e
dos estados de ver-sentir, dizer-ouvir. Assim, Clarice distancia-se,
conscientemente, do enquadramento da prosa tradicional.
Segundo Octávio Paz (1996):
Ritmo e sintaxe de consciência, crítica e imagem, o romance
é ambíguo. Sua essencial impureza brota de sua constante
oscilação entre a prosa e a poesia, o conceito e o mito. Am-
bigüidade e impureza que lhe vêm do fato de ser o gênero é-
pico de uma sociedade fundada na análise e na razão, isto é,
na prosa.
Dessa maneira, o lirismo e as imagens superam os elementos que
representam. Como metáforas do real imaginado sugerem mudanças nos focos
de representação, dando ritmo à narrativa. Eleitas algumas imagens, embora
existam outras por toda a obra, com elas procuramos demonstrar a construção
do lirismo no ritmo de ÁGUA VIVA (AV, p.16;25;72):
[
...] estou envolvida por um vagueante desejo difuso
do de maravilhamento e milhares de reflexo do sol na água
que corre da bica na relva de um jardim todo maduro de
perfumes, e sombras que invento já e agora e que são o
meio concreto de falar neste meu instante de vida. Meu
estado é o de jardim com água correndo.
43
[...]
[...] este texto que te dou não é para ser visto de
perto: ganha sua secreta redondez antes invisível quando
é visto de um avião em alto vôo. Então adivinha-se o jogo
das ilhas e vêem-se canais e mares.
[...]
[...] espelho em que eu me veja já sou eu, só espelho
vazio é que é o espelho vivo. Só uma pessoa muito delica-
da pode entrar no quarto vazio onde há um espelho vazio,
e com tal delicadeza, com tal ausência de si mesma, que
a imagem não marca. Como prêmio, essa pessoa delicada
terá então penetrado num dos segredos invioláveis das
coisas: viu o espelho propriamente dito.
[...]
[...] Com cores de preto e branco recapturei na tela
sua luminosidade trêmula. Com o mesmo preto e branco
recapturo também, num arrepio de frio, uma de suas
verdades mais difíceis: o seu gélido silêncio sem cor. E
preciso entender a violenta ausência de cor de um es-
pelho para poder recriá-lo, assim como se recriasse a vio-
lenta ausência de gosto da água.
Esse enovelado de imagens mostra o ritmo do texto. Nele, as imagens
movimentam-se num processo de insinuação, de mostra-esconde, que subverte
44
os argumentos, porque só eles não bastariam para dar o ritmo da narrativa.
Assim, nos reportamos a Jorge Luis Borges (2001), quando diz que “qualquer
coisa sugerida é bem mais eficaz do que qualquer coisa apregoada.”
Em A imagem (1994), Eduardo Neiva Jr. diz que “a imagem
caracteriza-se por proliferar sem que haja um horizonte que limite sua
ocorrência” e, no texto clariceano, vemos que a imagem se sobrepõe à língua,
pois se esta tem seus limites, a imagem é um discurso-labirinto, e o ritmo, que
se desdobra em camadas de imagens aparecendo-desaparecendo num
movimento de tensão, é o clímax, não descrito, mas sentido: “O que escrevo é
clímax? Meus dias são um só clímax: vivo à beira.” (AV, p.12)
O texto é feito de períodos curtos, é uma linguagem de potência, em
fluxos de expressão, o que nos permite dizer que é uma criação em que
emergem imagens e não conceitos; são índices de encenação de um estar na
plenitude do sentir, num universo de sensações, sem, no entanto, precisar
nomear coisas e fatos.
Ao afirmar que se “obriga à severidade de uma linguagem tensa”, a
narradora-personagem transcende à idéia do romance como simulação da
realidade. Ela pretende criar um movimento presencial que se faz no agora, ao
dizer que “é a vida vista pela vida,” (AV, p.13). Alcança a sensação em si
mesma, pois isso é estar à beira do sentir-se vivo. Não há explicação. Não há
ponte. É vôo direto à captação do todo, é a perplexidade do mistério de apenas
ser.
Essa experiência é absolutamente indescritível, posto que é a tentativa
de materializar o pensamento. No entanto, ao pensar, corre-se o risco de julgar,
de nomear, e a obra poética não quer dizer, mas ser. Nesse jogo, a linguagem
45
alude ao estado de primeiridade, mas já sendo icônico, ou seja, a tensão
dialoga com duas fronteiras: a da qualidade e a da forma, pois “o ícone é o
lampejo de um sentimento de qualidade objetivado numa forma, ao mesmo
tempo em que é configuração produtora de sentimento de qualidade por
natureza impreciso”, conforme Santaella (1980, p.125).
É como se essas sensações fossem gestos puramente intuitivos, sem
consciência plena, perfazendo um acontecimento de impulso e busca, mas uma
busca do sentir sem um objetivo que a justifique. A imagem que se pode
apreender desse processo é poética, pois ela recria uma realidade possível.
Paz (1996) explica que:
Épica, dramática ou lírica, condensada em uma frase ou
desenvolvida em mil páginas, toda imagem aproxima ou
conjuga realidades opostas, indiferentes ou distanciadas
entre si. Isto é, submete à unidade e pluralidade do real.
A ficcionalidade permite que o “eu” da narradora-personagem saia de
si para se reconhecer no outro, visto que o homem é um ser dialógico, por isso,
é capaz de transcender e criar coisas que não existem. Nesse sentido, a
palavra, subvertida por imagens, se contorce para dizer o indizível, atingindo
seu grau zero, o silêncio. A impossibilidade da palavra é projetada na visão, e
sua suspensão é uma hesitação e não um esgotamento.
O recurso usado para dizer o indizível está em lugar da verdadeira
palavra, aquela que remete à alguma coisa fora de si, não para substituir, mas
para mostrar, pois, sendo uma metáfora, brilha porque é imagem, conforme
explica Otavio Paz (1996): “há que retornar à linguagem para ver como a
imagem pode dizer o que, por natureza, a linguagem parece incapaz de dizer”.
46
No texto, o ritmo se constrói por meio de metáforas imagéticas, que
caracterizam a essência do ato de criação poética. O discurso da personagem
dialoga com outros discursos, de onde extrai imagens que se desdobram em
sensações.
A escritura quer nos fazer sentir a força da imagem no mais íntimo de
seu ser, onde nada tem forma e tudo continua. Por isso, a narradora-
personagem quer a “experiência de uma falta de construção”, sugerindo um
mergulho na “matéria da palavra”. Há, sem dúvida, neste texto, o que Otavio
Paz (1996) chama de “fluxo e refluxo de imagens, acentos e pausas, sinal
inequívoco da poesia”.
Chamar ÁGUA VIVA de romance-prosa-poema não é classificar o
texto de Clarice, mas apenas apontar os recursos do seu fazer literário, onde
tudo é novidade, estranheza e efeito estético. Sua escritura nos encaminha
para questões que estão no subliminar da palavra.
ÁGUA VIVA parece estar sempre à espera de interpretações, pois, ao
“escapulir” de possíveis rótulos, mostra-se latente, em continuidade e, por que
não dizer, inclassificável. Ao que parece Clarice queria escrever algo fora de
todo convencionalismo, mesmo aquele ainda presente na modernidade. Daí ter
trabalhado neste texto por três anos.
Levando a palavra ao “grau zero”, destituindo o modelo das narrativas
tradicionais e subvertendo seus elementos constitutivos, Clarice transcende,
fazendo da escrita aquele “ato intransitivo” de que fala Barthes. De acordo com
Leyla Perrone (2005):
[...] esse tipo de escritura “inaugura uma ambigüidade”, pois
47
mesmo quando ela afirma, não faz mais do que interrogar.
Sua “verdade” não é uma adequação a um referente exterior,
mas o fruto de sua própria organização, resposta provisória da
linguagem a uma pergunta sempre aberta.
O texto é capaz de abarcar muitas possibilidades de leituras sem, no
entanto, se deixar rotular: “gênero não me pega mais”, diz Clarice, que se
preocupou em fazer cortes (durante três anos, várias das 280 páginas foram
eliminadas) e também mudou o título: Atrás do pensamento: monólogo com a
vida; Objeto gritante e, finalmente, ÁGUA VIVA.
Após entregar o texto para Alexandrino E. Severino traduzir para o
inglês com o primeiro título, Clarice resolveu publicá-lo com o título ÁGUA
VIVA. Segundo Nádia B. Gotlib (1995):
[...] o tradutor observa que houve uma grande redução
do número de páginas, já que cerca de cem delas
foram eliminadas, sobretudo as que já havia publicado
nas crônicas do JB. E houve também eliminação dos
dados de caráter pessoal.
Além das dúvidas no que diz respeito à publicação, Clarice parece ter
consciência de que sua obra revolucionaria o terreno da linguagem, como já
acontecera ao publicar seu primeiro trabalho, Perto do Coração Selvagem, em
que, segundo Benedito Nunes (1995), são “três os aspectos fundamentais que
se conjugam no romance: o aprofundamento introspectivo, a alternância
temporal dos episódios e o caráter inacabado da narrativa”. Lembrando que o
inacabamento, em ÁGUA VIVA, é o traço mais peculiar do texto: “O que te
escrevo continua e estou enfeitiçada.”
(AV, p. 87)
48
Diante desse inacabamento e a exemplo da própria vida, ÁGUA VIVA
é um texto que necessita da participação de um outro para adquirir um
significado. Esse outro é o leitor, pois a partir de suas percepções da obra, esta
passa a desejá-lo. De acordo com Barthes (2002): “não é a pessoa do outro
que me é necessária, é o espaço; a possibilidade de uma dialética do desejo,
de uma imprevisão do desfrute: que os dados não estejam lançados, que haja
um jogo.”
Em ÁGUA VIVA, o jogo de mostra-esconde de imagens possibilita, por
meio dos vazios potenciais da escritura, uma interação com o leitor, para que o
texto ganhe sentido. O ritmo do texto é mais um elemento feito em duas vias,
ou seja, na interação entre enunciador e leitor: “O próximo instante é feito por
mim? Ou se faz sozinho? Fazemo-lo juntos com a respiração.” (AV, p. 9).
Há sempre um lugar invisível, pois cada um, enunciador e leitor, têm
sua experiência, que abre esse lugar. É ali que está o vazio e o ponto de
interação, fazendo com que o leitor saia do automatismo habitual e interaja no
processo de construção do texto. De acordo com Iser (1999):
[...] os lugares vazios dos textos ficcionais estruturam esse
processo contra o pano de fundo do uso pragmático da
fala; omitindo suas referências, elas forçam o leitor a se
desfazer de parte de suas expectativas habituais. Por isso
o leitor precisa reformular o texto formulado para incorporá-lo.
O texto clariceano cria, de fato, um ritmo dialógico, no sentido da
construção interativa, pois os vazios potenciais são recursos para que o leitor
siga os sinais, ou seja, cabe a ele a tarefa de construir outro pensamento a
partir do ponto de “luminosidade” oferecido pelo enunciador. Essa construção
49
pede uma co-autoria, é como se o texto fosse uma colcha de retalhos que
precisa de muitas mãos para ser confeccionada.
Esse movimento de interação do texto afasta a linearidade,
provocando o leitor. O pensamento icônico estabelecido produz um ritmo de
construção-desconstrução contínuo em ÁGUA VIVA. Em vez da forma cânone,
temos vazios, que subvertem o prazer da leitura mecânica, pedindo a leitura de
“fruição”: “estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão
fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também não
é mais.” (AV, p. 9)
A escritura duplica as linguagens ao mostrar outras possibilidades
quando o processo criativo do autor rompe com as formas estabelecidas,
subvertendo a linearidade da narrativa. Dessa maneira, texto e leitor saem da
passividade, e o segundo constrói seu próprio texto. Conforme Barthes (2002),
“a língua se reconstrói alhures pelo fluxo apressado de todos os prazeres da
linguagem.”
O texto clariceano está sempre à deriva, mergulhado na polissemia da
palavra enquanto escritura inacabada, formada por elos que se ligam
continuamente, em sua imprevisibilidade. Nesse sentido, a escrita de Clarice se
debruça sobre si mesma, por meio da metalinguagem, buscando seu
desvelamento.
A escritura não pode ser instituição para não correr o risco de perder
seu devir e cair na ideologia, mas deve criar sentidos novos a partir dos
desdobramentos da linguagem, em qualquer época que possa ser lida. Essa é
a escritura de Clarice Lispector, a do inesgotável, em que se tecem fios
contínuos de sentidos nas leituras que ainda estão por vir.
50
Esta escritura aponta para o leitor, imprime um novo significado na
leitura, pois a suspensão dos elementos da narrativa tradicional leva o leitor à
desautomatização, dando um outro sentido à criação literária. De acordo com
Segolin (1999), esse processo na arte tem o intuito de:
[...] chamar nossa atenção para o modo de formar seus
significantes, para o processo de significação, verda-
deira raiz dos significados, a arte nos leva tanto para
além da estética, pelo menos da estética tradicional
empenhada fundamentalmente em definir o fenôme-
no artístico enquanto alvo de um relacionamento
“estético-perceptivo-fruitivo” que se estabeleceria
entre autor e leitor de um lado e a obra de outro,
como para além do aspecto de mundo pretendida-
mente neutro e inocente de seus signos
.
ÁGUA VIVA é a transmutação da narrativa, o que causa um ritmo
diferenciado na leitura, pois requer do leitor uma atenção maior para perceber
os atos simbólicos que o livram do automatismo. Segundo Anna Hartmann
(2005):
[...]
o fenômeno significado pelo símbolo ao mesmo tempo é
e não é idêntico a si mesmo, seu conteúdo não cabe em
um conceito, engendrando um tipo de linguagem de imagens,
que, graças à pluralidade, torna possível comunicar aquele
conteúdo não apreensível conceitualmente.
A leitura de ÁGUA VIVA requer um tipo de leitor que entre no jogo
textual. Esse modelo de leitor, de acordo com Eco (2003), “é uma espécie de
tipo ideal que o texto não só prevê como colaborador, mas ainda procura criar.”
O texto de Clarice possui estratégias para formar um novo leitor, aquele capaz
51
perceber e formar sentidos novos tanto para a obra, por meio da palavra
polissêmica, como para a vida.
Em ÁGUA VIVA, as imagens favorecem um jogo de mostra-esconde,
próprio da linguagem poética. Clarice, uma escritora-poeta, desloca
significantes, dando à palavra uma multiplicidade de sentidos ao esvaziá-la de
seu significado mais habitual. Mantém, assim, um jogo de sensações que
apenas são possíveis numa linguagem poética, pois segundo Anna Hartmann
(2005):
[...] o poeta busca objetivar a sensação em suas múltiplas
relações, deslocando a ligação da linguagem com signos
estabelecidos e procurando aquela emoção ou objeto não
nas associações presentes na linguagem, mas naquelas
que podem surgir de seu interior a partir de um jogo.
A linguagem simbólica de ÁGUA VIVA associa o imaterial às imagens.
Esta escritura sinestésica é, de acordo com Neiva Kadota (1999):
a inovação que se instaura como rápidos estilhaços de luz
que momentaneamente obliteram a visão e se diluem após
no campo da apreensão do cosmo. É o choque no espaço
do novo interrompendo a cadência simétrica do habitual.
A imagem desacelera o ritmo habitual. Constrói um ritmo fora de toda
e qualquer automatização, exigindo do leitor uma percepção maior da leitura.
Esse procedimento coloca a escritura de Clarice Lispector ao lado da poesia e,
portanto, ela própria ao lado dos grandes poetas, pois, segundo Deleuze
(2003), estes aprendem que:
o essencial está fora do pensamento, naquilo que força a
52
pensar. O leitmotiv do Tempo redescoberto é a palavra
forçar : impressões que nos forçam a olhar, encontros que
nos forçam a interpretar, expressões que nos forçam a pensar.
Em ÁGUA VIVA o leitor é convidado a participar do jogo de
construção do texto, pois o que será enredado não está pronto, o que provoca
uma estranheza: “o próximo instante é feito por mim? Ou se faz sozinho?
Fazemo-lo juntos com a respiração.” (AV, p. 9). Essa estranheza, também,
imprimirá ao texto um ritmo diferente, contrário ao da prosa vigente, que nega
um ritmo poético a uma forma não versificada.
Como comenta Chacon (1988): “Assim não haveria ritmo na prosa,
pois o ritmo, nessa concepção, é sinônimo de metro, e este, por sua vez, só se
define em função do verso”. Entretanto, Beveniste (apud Chacon, 1988, p. 13)
caracteriza o ritmo como:
disposição, configurações particulares do movimento, arranjo
característico das partes de um todo, forma do movimento, o
ritmo abandona uma definição congelada que o mantém pre-
so à medida. Não sendo mais uma subcategoria da forma,
ele pode ser visto, então como ‘uma organização (disposi-
cão, configuração) de um conjunto’. Não mais restrito ao
verso, não mais visto como metro, o ritmo está em toda a
linguagem, na ‘organização (disposição, configuração do
discurso.)
Na prosa do romance tradicional, o ritmo se define pelas repetições,
ou reforços, ou equivalências de tempo, caindo numa concepção que
circunscreve a linguagem à relações lógicas do pensamento. Em ÁGUA VIVA,
Clarice rompe essa concepção tradicional, ao trabalhar o texto de modo que o
pensamento, em seu anti-enredo, seja analógico. Ali, as relações são feitas
com imagens, por meio de metáforas, metonímias, paradoxos, antíteses.
53
Chacon (1998), ao estudar o ritmo em Meschonic, esclarece que, “se o
ritmo é um fluxo, ‘é também a estruturação sem sistema do que não é ainda
sistema.” Ou seja, “a idéia de que o ritmo se caracteriza por uma propriedade
antiestética, a continuidade/descontinuidade, e essa propriedade estaria
subjacente à organização de qualquer atividade lingüística.”
Em ÁGUA VIVA, os fluxos e refluxos que o texto promove levam a
crer que há, de fato, um ritmo poético compatível com o sentido intrínseco da
linguagem. O texto clariceano tem como um de seus princípios construtores a
imagem, a qual entendemos como um recurso lírico. Sendo sensível, ela, a
partir da subjetividade sugerida por seu ritmo, torna a linguagem do romance
poética.
Charles Morris (apud Décio Pignatari, 2005) distingue o signo-de, que
é o da similaridade, do signo-para, que é o que conduz a alguma coisa, a uma
ação, a um objetivo transverbal ou extraverbal. Ele classifica o signo-para como
o signo da prosa e alerta que o usamos automaticamente todos os dias. No
entanto, explica que o signo-para pode vir a ser signo-de:
Quando você foge desse automatismo, quando você começa
a ver, sentir, ouvir, pesar, apalpar as palavras, então as pa-
lavras começam a se transformar em signos-de. Fazendo um
trocadilho, o signo-de pára em si mesmo, é signo de alguma
coisa – quer ser essa coisa sem poder sê-lo. Ele tende a ser
um ícone, uma figura. É o signo da poesia.
Nesse sentido, a escritura de Clarice é um ideograma, pois nele, como
na poesia “procura-se mostrar a coisa e não dizer o que ela é. Mostrar um
sentimento e não dizer o que ele é – isto é poesia” Pignatari, (2005). A prosa de
ÁGUA VIVA abre-se em cadeia de multisensorialidade e como a poesia no
54
dizer de Pignatari (2005), “diz coisas imprecisas de modo preciso”. Alguns
trechos do romance justificam nossa afirmação:
Quero como poder pegar com a mão a palavra. A palavra é
objeto? E aos instantes eu lhes tiro o sumo da fruta. Tenho
que me destruir para alcançar o cerne e semente de vida. O
instante é semente viva.
O que te escrevo deve ser lido rapidamente como quando
se olha.
[...] cada coisa que me ocorra eu anoto para fixá-la. Pois
quero sentir nas mãos o nervo fremente e vivaz do já e que
me reaja esse nervo como buliçosa veia.
Estou ouvindo agora uma música selvática, quase que ape-
nas batuque e ritmo que vem de uma casa vizinha onde jo-
vens drogados vivem o presente. Um instante mais de um
ritmo incessante, incessante, e acontece-me algo terrível.
A beatitude começa quando no momento em que o ato de
pensar liberou-se da necessidade de forma. A beatitude no
momento em que o pensar-sentir ultrapassou a necessida-
de pensar do autor – Este não precisa mais pensar e em-
contra-se agora perto da grandeza do nada.
[...] acima da liberdade, acima de certo vazio, crio ondas mu-
sicais calmíssimas e repetidas. A loucura do invento livre.
(AV, p. 12,16,18,19,82)
O ritmo em ÁGUA VIVA é poético, pois a narrativa, além de
fragmentária, procura despertar sensações, visões e sentimentos próprios do
lirismo, do ritmo poético.
55
A escritura de Clarice é moderna, nova, em devir, pois não segue
regras, mas rompe com elas e encaminha o discurso para associações livres do
automatismo vigente, lembrando as palavras de Paz (1996), que:
As escrituras do mundo novo serão as palavras do poeta
revelando um homem livre de deuses e senhores, sem
intermediários diante da vida e da morte. A sociedade re-
volucionária é inseparável da sociedade fundada na pa-
lavra poética.
Portanto, o ritmo estabelecido no romance em estudo requer a
linguagem poética, aquela que exige a percepção do fenômeno literário como
“obra inacabada”, com a escritura em aberto: “O melhor ainda não foi escrito. O
melhor está nas entrelinhas.” (AV, p. 86)
Isso faz de Clarice um “sujeito da escritura”, conforme Leyla Perrone
(2005), quando se refere ao escritor que “faz explodir a linguagem num prazer
crítico que é propriamente irrecuperável.”
56
Capítulo III: a construção da imagem poética por meio do
silêncio
O estudo do silêncio como metáfora, em ÁGUA VIVA, caracteriza-se
pela construção da imagem poética na palavra esvaziada de seus significados.
É quando o tratamento do código verbal escrito é elevado a um nível mais
sensorial, mais visual, provocando a imaginação do leitor. Nesse processo, o
silêncio não significa mudez ou o esgotamento das possibilidades de leitura,
mas a saída da palavra do seu papel de metáfora comparativa ou dedutiva para
sugerir outras leituras no campo analógico: “Minhas desequilibradas palavras
são o luxo do meu silêncio. Escrevo por acrobáticas e aéreas piruetas –
escrevo por profundamente querer falar.” (AV, p. 12)
O intuito maior deste estudo foi analisar a construção do silêncio, pois
é dele que emerge a poeticidade, por meio de imagens rarefeitas, e a
polissemia, pela palavra esvaziada de seus significados convencionais. A
palavra que se faz silêncio é algo que provoca, por metáforas, o pensamento do
leitor, num ato de comunicação. Nessa interdiscursividade, ou seja, entre o
narrar e o mostrar aquilo que as palavras não conseguem dizer, co-habita um
paradoxo na escritura de Clarice: “este processo em Clarice, é como se em vez
de escrever, ela desescrevesse, conseguindo um efeito mágico de refluxo da
linguagem, que deixa à mostra o “aquilo”, o “inexpressivo.” (Sá, 2000, p. 52)
Na construção de ÁGUA VIVA, a imagem selecionada para mostrar
um acontecimento significativo não subverte o texto, mas funciona como uma
ponte para atingir a sensorialidade, a visualidade do instante flagrado. É pela
escolha dessa imagem-acontecimento que a palavra em Clarice atinge, pelo
silêncio, sua força polissêmica, que explode em imagens e significados:
57
“Fixo instantes súbitos que trazem em si a própria morte e
outros nascem – fixos os instantes de metamorfose e é de
terrível beleza a sua seqüência e concomitância.
(AV, p. 13)
E eis que aquela tela antes virgem, agora coberta de cores
maduras. Moscas azuis cintilam diante de minha janela aber-
ta para o ar da rua entorpecida. O dia parece a pele esticada
e lisa de uma fruta que numa pequena catástrofe os dentes
rompem, o seu caldo escorre. Tenho medo do domingo mal-
dito que me liquifica.
(AV, p. 17)
Quero um manto tecido com fios de ouro solar. O sol é a tensão
mágica do sol.
(AV, p. 38)
Em ÁGUA VIVA, a imagem-acontecimento não está na frase, mas na
estrutura do romance. A busca por significados anti-convencionais faz a palavra
roçar o sensorial, ou seja, aquilo que não está nela mesma, mas na imagem.
De acordo com Sá (2000):
A frase em Clarice se torna ininteligível ante as medidas com-
vencionais, porque ela quebra o convencional da lógica, sub-
trai um elemento intermediário do pensamento. O inusitado da
sua construção está no nível imagético, não no sintático.
Esse processo de desconstrução textual, na verdade, é uma nova
construção, que suscita “o nada” ao mesmo tempo em que o nega, pois é uma
espécie de silêncio, que explicita a superação dos paradigmas estabelecidos
para a narrativa tradicional. Segundo Segolin (1999), na literatura moderna: “a
negação do destruído, o texto, no caso, se propõe como um universo
desfuncionalizado, como um grau zero ou como um silêncio.”
58
É pelo silêncio e pela relação analógica, que se percebem as
possibilidades de significações do discurso adotado pela narradora-personagem
de ÁGUA VIVA, que se encaminha para uma perspectiva estética, provocando
uma estranheza, uma tensão no leitor, por não encontrar um esquema narrativo
tradicional, mas uma estrutura voltada para o próprio discurso. Por isso, como
já dissemos no primeiro capítulo, o texto se faz pela metalinguagem.
Em ÁGUA VIVA, a palavra descaracteriza-se da linearidade habitual,
que permeou as literaturas clássica, romântica e realista, criando uma forma
fragmentada, que tem como propósito a reavaliação da arte, levando o leitor a
reavaliar também sua posição diante dela e da vida. Essa arte, no discurso
criativo de Clarice, busca um diálogo sobre a existência e as possibilidades que
a palavra analógica oferece.
O discurso que se instala entre leitor e objeto estético não tem, em
ÁGUA VIVA, o intuito de oferecer respostas, mas visa a reperguntar, a
experimentar outras possibilidades de ver/ler o real. O leitor deve se inserir no
âmago da palavra, entendendo-a em um processo analógico que busca, por um
tratamento especial, até se tornar arte, pois, como explica Barthes (2003), “é
precisamente nessa zona de sobressignificação, de significação segunda, que
vai alojar-se e desenrolar-se a literatura.” Essa busca é incessante para quem
escreve e também para quem lê, especialmente no caso da escrita clariceana,
que se aproximando da metalinguagem, leva o leitor a apreender uma nova
maneira de ler a arte.
O discurso artístico de Clarice se constrói na medida em que
desconstrói o enredo tradicional. Ela capta os instantes fragmentados e fugidios
59
do pensamento, dando um outro sentido à linguagem, vista pelo viés da
metáfora:
A literatura mais “verdadeira” é aquela que se sabe a
mais irreal, na medida em que ela se sabe essencial-
mente linguagem, é aquela à procura de um estado
intermediário entre as coisas e as palavras, é aquela
tensão de uma consciência que é ao mesmo tempo
levada e limitada pelas palavras, que dispõe através
delas de um poder ao mesmo tempo absoluto e im-
provável.
(Barthes, 2003, p. 79)
A palavra escrita na linguagem literária é condensada,
plurissignificativa. Trata-se, como comenta Pound (1995), de uma “linguagem
carregada de significado até o máximo grau possível.” Portanto, ÁGUA VIVA é
um texto poético, que se concretiza por meio de imagens, ou seja, metáforas
que revelam seu caráter simbólico.
O discurso adotado por Clarice, em toda sua obra, encaminha-se para
o esvaziamento da palavra impregnada do convencionalismo da nomeação
exata das coisas, desembocando no silêncio, que leva o leitor a entendê-lo
como um estado de inquietação. Nesse discurso, a palavra:
cumpre então um estado que só é possível no di-
cionário ou na poesia, ali onde o nome pode viver
privado de seu artigo, reduzido a uma espécie de
grau zero, prenhe ao mesmo tempo de todas as
especificações passadas e futuras. A palavra tem
aqui uma forma genérica, é uma categoria. Cada
palavra é assim um objeto inesperado, uma caixa
de Pandora de onde saem voando todas as virtua-
lidades da linguagem; é portanto produzida e con-
sumida com uma curiosidade particular, uma es-
60
pécie de gulodice sagrada. Essa fome da palavra,
comum a toda poesia moderna, faz da palavra po-
ética uma palavra terrível e desumana. Institui
um discurso cheio de buracos e cheio de luzes,
cheio de ausências e de signos supernutritivos,
sem previsão nem permanência de interação e
por isso mesmo tão oposto à função social da lin-
guagem, que o simples recurso a uma palavra
descontínua abre a via de todas as Sobrenature-
zas.
(Barthes, 2000, p. 44)
O texto de ÁGUA VIVA não oferece apenas deleite. Sua
descontinuidade provoca o leitor, ao procurar estabelecer um jogo diferente
daquele da literatura tradicional, em que as respostas estão na superfície de um
texto com começo, meio e fim. A descontinuidade do texto clariceano desperta
os sentidos do leitor, sua inquietação.
Além disso, a palavra, ao ser esvaziada do significado tradicional,
sugere imagens que levam ao pensamento analógico e ao silêncio. Um silêncio
atravessado por outras linguagens, que requerem leituras novas, diversificadas.
A linguagem, abrindo-se em perspectivas, exige do leitor múltiplas leituras, pois
não é o único código usado na composição. Esse silêncio aguça os sentidos do
leitor. O sensorial perpassa pelo visível, que é a imagem, atingindo o indizível
inalcançável pela palavra. Isso é o que a narradora-personagem chama de:
harmonia secreta da desarmonia: quero não o que está
feito mas o que tortuosamente ainda se faz. As minhas
desequilibradas palavras são o luxo do meu silêncio.
Escrevo por acrobáticas e aéreas piruetas – escrevo
por profundamente querer falar. Embora escreve só
esteja me dando grande medida do silêncio.
(AV, p. 12)
61
Nesse silêncio, está implícito o momento de reflexão, aquele capaz de
estabelecer a epifania do discurso clariceano: “Cada coisa tem um instante em
que ela é. Quero apossar-me do é da coisa”. (AV, p. 9). Sobre a epifania, Sá
(2000) comenta: “Embora não exista em Clarice nem sequer a menção da
palavra epifania, contudo pode-se deduzir de sua ficção toda uma poética do
instante, essencialmente ligada à linguagem, enquanto questiona o próprio ato
de nomear os seres”.
Desde o início, é anunciada, no texto de ÁGUA VIVA, a fuga da
palavra condicionada ao convencionalismo. Para a narradora-personagem,
importam apenas as palavras ligadas ao pensamento por analogia: “Estou atrás
do que fica atrás do pensamento.” (AV, p.12). Esse procedimento aguça o leitor
a buscar outros recursos expressivos, como a imagem. Sobre seu emprego,
Eco (1962), explica que é “onde a palavra é o ato do artista que revela alguma
coisa, por meio de uma elaboração estratégica da imagem.”
Em ÁGUA VIVA, Clarice usa a metalinguagem, ao mesmo tempo em
que metaforiza sua incessante busca pela palavra. A referência à pintura e à
música é, por analogia, a continuidade dessa busca. O recurso da escrita de
uma carta é um disfarce para revelar sua angústia de viver, como a própria
narradora-personagem diz ao destinatário: “Parece com momentos que tive
contigo, quando te amava, além dos quais não pude ir pois fui ao fundo dos
momentos. É um estado de contato com a energia circundante e estremeço.”
(AV, p. 13)
O questionamento da palavra se intensifica de tal modo que o texto
fica voltado para ele próprio. A narradora-personagem vive um embate:
escrever sobre o escrever e desarticular a forma habitual de narrar. O texto
recebe um tratamento especial, tornando-se um objeto estético pela tensão
62
resultante da fragmentação do enredo. A fuga do previsível senso comum faz
com que o texto passe do segundo para o primeiro plano, como um agente
ativo: “Entro lentamente na escrita assim como já entrei na pintura. É um mundo
emaranhado de cipós, sílabas, madressilvas, cores e palavras – limiar de
entrada de ancestral caverna que é o útero do mundo e dele vou nascer.” (AV,
p. 14)
O monólogo dialogizado instaura-se no romance pela narradora-
personagem que, escrevendo ou aludindo à pintura, vai esvaziando de sentido
a palavra até que apareça uma imagem que aproxime o leitor daquilo que não é
possível ser dito, mas apenas sentido, visto:
é desta forma que o monólogo continua a ser um diálogo,
ao menos implícito, pois subentende a presença do leitor,
real ou virtual. A própria personagem, que monologa, se
desdobra entre o
“eu” e o “outro”, um “eu” que fala e o
mesmo “eu” que se ouve, como se fosse um “outro”
.
(Sá, 2000, p. 142)
O que mais intensifica a tensão causada pelo texto é a narração
estratégica da ação da narradora-personagem tentando dar à palavra o não-
dizível, o silêncio. Em seu trabalho com a linguagem, há recursos como:
“escrever uma carta”, usada como um disfarce, a imagem empregada no lugar
da palavra, ou seja, a palavra sendo pintura e a pintura sendo palavra. A
narradora-pintora não quer neutralizar o texto e explica: “É tão curioso ter
substituído as tintas por essa coisa estranha que é a palavra. Palavras – movo-
me com cuidado entre elas que podem se tornar ameaçadoras.” (AV, p. 21). E
também: “Ouve-me, ouve o silêncio. O que te falo nunca é o que eu te falo e
sim outra coisa”. (AV, p. 14)
63
Segundo Paz (1996):
imaginação e razão, em sua origem uma e mesma,
terminam por fundir-se em uma evidência que é in-
dizível exceto através de uma representação sim-
bólica: o mito. Em suma, a imaginação é, primor-
dialmente, um órgão de conhecimento, posto que
é a condição necessária de toda percepção; e,
além disso, é uma faculdade que expressa, medi-
ante mitos e s símbolos, o sabor mais alto.
O silêncio no discurso clariceano é, segundo Maria Lucia Homem
(2004), “uma espécie de buraco negro que engole as palavras e gestos das
personagens e, ao mesmo tempo, ponto luminoso de onde se irradia a
escritura.” Nesse sentido, o silêncio instaurado em ÁGUA VIVA leva à reflexão
sobre a poeticidade por meio da palavra metafórica, quando a palavra passa do
estado de dicionário para o campo poético.
O “rompimento” de ÁGUA VIVA em relação à prosa tradicional dá-se
pelos elementos da narrativa (tempo, espaço, personagens, enredo), como: o
suposto amado, a suspensão da seqüência dos acontecimentos e a própria
palavra metaforizada, como se também buscasse uma identidade.
A desfuncionalização dos elementos feita pela narradora-personagem,
com estratagemas simbólicos, mostra questionamentos sobre o texto que
permitem alcançar aquilo que a palavra não alcança. A materialização dessa
busca se esboça em imagens, como podemos ver nos trechos que seguem:
Atrás do pensamento atinjo um estado. Recuso-me a
dividi-lo em palavras – e o que não posso e não que-
ro exprimir fica sendo o mais secreto dos meus se-
64
gredos. Sei que tenho medo de momentos nos quais
não uso o pensamento e é um momentâneo estado
difícil de ser alcançado, e que, todo secreto, não usa
mais as palavras com que se produzem pensamen-
tos. Não usar palavras é perder a identidade? é se
perder nas essenciais trevas daninhas?
(...)
Perco a identidade do mundo em mim e existo sem
garantias. Realizo o irrealizável mas o irrealizável
eu vivo e o significado de mim e do mundo e de ti
não é evidente. É fantástico, e lido comigo nesses
momentos com imensa delicadeza.
(AV, p. 65)
A narradora-personagem tenta fazer com que o leitor enxergue o
indizível pelas sensações, pelo silêncio. Essa é uma experimentação com a
linguagem voltada para ela mesma com as palavras em suspense, roçando o
indizível. No subliminar da palavra, a sua mudez é o silêncio, mas aquele que
explode em imagens. Segundo Sá (2000), na escritura de Clarice, essa
experimentação “é o lugar onde a linguagem trai o ser; ela é o único esforço
possível ao homem, o único modo de se atingir o que jamais se consegue dizer,
isto é, o indizível. O indizível é, finalmente, a posse do silêncio pela linguagem”.
A narrativa cria uma expectativa em torno de uma história
fragmentada, que não se realiza, e de uma carta que não é enviada a ninguém.
Entretanto, isso não significa que não desperte o interesse do leitor, pois a
maneira como o discurso se constrói leva-o a experimentar a sensação de
estranhamento, prolongada pelo tratamento estético. Isso significa que o texto
de ÁGUA VIVA é uma literatura de estranheza, que exige do leitor um esforço
65
maior de reflexão. Conforme explica Chklóvski (1976), a literatura que usa esse
procedimento tem:
[...]
como objetivo dar a sensação do objeto como visão
e não como reconhecimento; o procedimento da arte é
o procedimento da singularização dos objetos e o proce-
dimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar
a dificuldade e a duração da percepção
.
Em ÁGUA VIVA, o convencionalismo da forma é substituído pela
quebra de paradigmas. A fragmentação do enredo, a desfuncionalização dos
elementos narrativos e a destemporalização do tempo-espaço provocam uma
tensão e uma intensidade tão fortes na leitura, que o leitor é levado à
desautomatização.
O romance moderno aponta uma desmistificação de conceitos
estabelecidos na prosa tradicional. Em vez do deleite que busca um leitor
automatizado, ele oferecerá uma leitura em que tensão e intensidade
provocarão um efeito desautomatizador. Isso poderá levar o leitor a uma
reflexão crítica da obra. Em ÁGUA VIVA, o leitor é conduzido à interação desde
as primeiras páginas, ele passa para dentro do texto: “Inútil querer me
classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega
mais.” (AV, p. 3).
As marcas temporais em ÁGUA VIVAo destemporalizadas, o que
reforça o efeito estético no leitor. A narradora-personagem conflui o tempo. Sua
duração é apenas um recurso do discurso para atingir o efeito estético. Ela é
puramente verbal, pois o que menos importa é definir quando:
66
À duração de minha existência dou uma significação oculta
que me ultrapassa. Sou um ser concomitante: reúno em mim
o tempo passado, o presente e o futuro, o tempo que lateja
no tique-taque dos relógios.
(AV, p. 21)
Escrevo-te na hora mesma em si própria. Desenrolo-me ape-
nas no atual. Falo hoje – não ontem nem amanhã – mas hoje
e neste próprio instante perecível.
(AV, p. 24)
Benedito Nunes (2002) explica que: “este é um tempo lingüístico,
tempo do discurso, que não se reduz às divisões do tempo cronológico, revela a
condição intersubjetiva da comunicação lingüística”.
Portanto, no romance, tempo e espaço associam-se ao sensorial, à
imagem. A narradora-personagem não se restringe ao tempo-espaço, nem ao
disfarce entre ela e o destinatário de sua carta, pois toda a narrativa é
conduzida por sua imaginação, quando monologa, dialogicamente, com todas
as situações: “Escrevo-te na hora mesma em si própria. Desenrolo-me apenas
no atual. Falo hoje – não ontem nem amanhã – mas hoje e neste próprio
instante perecível.” (AV. p. 24)
Dessa maneira, a imagem poética suscitada pela narradora-
personagem atinge sensorialmente o leitor, pois o tempo-espaço da narrativa
vai sendo construído no discurso, se fazendo e se desfazendo. E o monólogo
dialogizado, que sustenta a duração do efeito estético no romance, ocorre na
interação com o leitor.
Em ÁGUA VIVA, a construção da imagem poética está por trás da
palavra que silencia, para expressar elementos como:
o tempo: “a invenção do hoje é o meu único meio de instaurar
67
o futuro”; (AV, p. 12)
a palavra: “Estou lidando com a matéria-prima. Estou atrásf e
d do que fica atrás do pensamento” (AV, p. 12)
a sensação: “Eu venho da dor de viver”a. “Quero a vibração do
alegre ” ; ( AV , p . 13 ) f
a natureza:“neste instante-já” estou envolvida por um vagueante
desejo difuso de maravilhamento e milhares de reflexos
do sol na água que corre da bica na relva de um jardim
todo maduro de perfumes, jardim e sombras que in-
vento já e agora e que são o meio concreto de falar
neste instante de vida. Meu estado é o de jardim com
água correndo”. (AV, p. 16).
“Sinto então que estou nas proximidades de fontes, la-
goas e cachoeiras, todas de águas abundantes”. (AV,
p. 16)
a claridade da lua: “Hoje é noite de lua cheia. Pela janela a lua
cobre a minha cama e deixa tudo de um branco leitoso
azulado. O luar é canhestro. Fica do lado esquerdo de
quem entra. Então fujo fechando os olhos”; (AV, p. 29)
a luminosidade do sol: “Ouço címbalos e trombetas e tamborins
que enchem o ar de barulhos e marulhos abafando
então o silêncio do disco do sol e seu prodígio. Que-
ro um manto tecido com fios de ouro solar. O sol é a
tensão mágica do silêncio”; (AV, p. 38)
o som: “Ouve-me, ouve meu silêncio”. “Lê a energia que está
no meu silêncio”. [...] Bem atrás do pensamento tenho
um fundo musical. Mas ainda atrás há o coração ba-
tendo. Assim o mais profundo pensamento é um cora-
cão batendo”, “Música de câmara e sem melodia. É
68
modo de expressar silêncio. O que te escrevo é de câ-
mara”; (AV, p. 42-3)
a dor: “Não gosto quando pingam limão nas minhas profun-
dezas e fazem com que eu me contorça toda”, (AV, p.
28-9) ... “o que te escrevo é fogo como olhos em bra-
sa”; (AV, p. 43)
o erótico: “Idade Média, és a minha escura subjacência e ao cla-
rão das fogueiras os marcados dançam em círculos
cavalgando galhos e folhagens que são o símbolo da
fertilidade: mesmo nas missas brancas usa-se o san-
gue e este é bebido”, (AV, p. 28-9) “De mim no mundo
quero te dizer da força que me guia e traz o próprio
mundo, da sensualidade vital de estruturas nítidas, e
das curvas que são organicamente ligadas a outras for-
mas curvas”. “O erotismo próprio do que é vivo está es-
palhado no ar, no mar, nas plantas, em nós, espalhan-
do na veemência de minha voz, eu te escrevo com mi-
nha voz”. (AV, p. 37) “Uma relação íntima estabeleceu-
se entre mim e a flor: eu a admirava e ela parecia sen-
tir-se admirada. E tão gloriosa ficou na sua assombra-
cão e com tanto amor era observada que se passavam
os dias e ela não murchava: continuava de corola toda
aberta e túmida, fresca como flor nascida”.(AV, p. 47)
O mistério da palavra em ÁGUA VIVA está no retorno dela ao seu
estado primitivo, uma volta ao limbo, longe da mácula dos significados
estabelecidos, ou a uma espécie de primeiridade, conforme explica Santaella
(1983):
Tudo o que está imediatamente presente à consciência
69
de alguém é tudo aquilo que está na sua mente no ins-
tante presente. Nossa vida inteira está presente. Mas,
quando perguntamos sobre o que está lá, nossa perg-
gunta vem sempre muito tarde. O presente já se foi, e
o que permanece dele já está grandemente transfor-
mado, visto que então nos encontramos em outro pré-
sente, e se pararmos, outra vez, para pensar nele, ele
também já terá voado, evanescido e se transformado
num outro presente.
Acreditamos que, ao fazer da literatura um objeto estético, Clarice
demonstra sua leitura de mundo. Pelos códigos usados, o texto clariceano
carrega em seu bojo uma plurissignificação. Portanto, o romance ÁGUA VIVA
transforma o discurso narrativo na medida em que o desconstrói, visto que, ao
fugir da norma, cria formas paralelas, imprimindo-lhe uma intersubjetividade.
Assim, o desmascaramento do elemento tradicional está presente em toda a
obra.
Essa é uma proposta de reavaliação do mundo social, sobretudo no
que diz respeito ao trabalho com a linguagem. Clarice parecia sempre
preocupada com o fazer artístico, em sua cosmovisão: “ela sonda o homem,
circunstanciado ontem e hoje, mas imprevisível sempre. O mundo moderno
representa um agudo momento cultural da opacidade do cotidiano, da
mecanização da vida que a todos consome”, explica Sá (2000, p. 137).
Assim, em ÁGUA VIVA, Clarice faz uma abordagem artística diferente:
opõe a síntese à análise, partindo do mesmo tema, ou seja, a linguagem.
Segolin (1999), comenta que o romance moderno traz “uma linguagem cujo
frescor, por uma espécie de antecipação ideal, representaria a perfeição de um
novo mundo adâmico, em que a linguagem não seria mais alienada”. Tal
70
afirmação remete, no texto que aqui analisamos, à palavra em estado de
poesia, condensada, sendo uma elipse que pode ser preenchida pela
imaginação diante das imagens que oferece.
O discurso em ÁGUA VIVA é construído pela combinação da contínua
transitoriedade do pensamento com a linguagem que se explica como tal,
perpassando pela metalinguagem. A narrativa é permeada por um jogo de
palavras, feito de metáforas sensoriais.
Assim, em ÁGUA VIVA, o silêncio quer calar a frase, e o que se extrai
passa do plano costumeiro para o transcendental:
a frase em Clarice se torna ininteligível ante as medidas
convencionais, porque ela quebra o convencional da lógica,
subtrai um elemento intermediário do pensamento. O inusi-
tado de sua construção está no nível imagético e semântico,
não no sintático.
Sá (2000, p. 78)
No romance ÁGUA VIVA, o silêncio é a passagem para o poético.
Nele, o silêncio alude à poesia e tem caráter valorativo. Realmente, a prosódia
moderna condensa prosa e poesia, como explica Barthes (2000):
Na poesia moderna, as relações não são mais do que
uma extensão da palavra, é a Palavra que é a “morada”,
é implantada como uma origem na prosódia das funções,
ouvidas mas ausentes. Aqui as relações fascinam, é a Pa-
vra que alimenta e cumula como o desenvolvimento súbito
de uma verdade; dizer que essa verdade é de ordem poé-
tica nunca pode ser falsa porque ela é total; brilha como
uma verdade infinita e se propõe a irradiar em direção a mil
relações incertas e possíveis.
71
A busca da comunicação desmistifica o estigma da literatura intimista,
que sempre se atribuiu à escritura de Clarice Lispector. Presumimos que a
superestimação desse aspecto deixou um vácuo na análise de sua obra.
Entretanto, ao contrário, a palavra que mergulha no silêncio estabelece
relações de sentidos e valores que estão além daquilo que ela pode expressar,
no indizível, que se encaminha para o signo.
É da impossibilidade de dizer com a palavra e paradoxalmente
fazendo uso dela para tecer imagens que Clarice apresenta, em ÁGUA VIVA,
o é” das coisas. Dali emerge a poeticidade, pois é a palavra poética que lhe
permite ficar próxima da primeiridade, por meio do signo icônico. Essa
linguagem fragmentada, que alude à poesia, permeia o discurso da narradora-
personagem, permitindo-lhe experimentar o mundo qualitativo, o do estado
primeiro, aquele em que a palavra co-habita com a emoção, lugar de onde brota
a poesia:
O instante é de uma iminência que me tira o fôle-
go. O instante é em si mesmo iminente. Ao
mesmo tempo em que eu o vivo, lanço-me na
sua passagem para outro instante.
(AV, p. 69)
(...)
A palavra apenas se refere a uma coisa e esta é
sempre inalcançável por mim. Cada um de nós é
um símbolo que lida com símbolos – tudo ponto
de apenas referência ao real. Procuramos deses-
peradamente encontrar uma identidade própria e a
identidade do real. E se nos entendemos através
do símbolo é porque temos os mesmos símbolos
e a mesma experiência da coisa em si: mas a rea-
lidade não tem sinônimos
. (AV, p. 73)
72
ÁGUA VIVA apresenta um exercício da experimentação do estado de
qualidade que só pode ser mediado pela palavra simbólica, ou seja, aquela que
é subvertida pelo ícone para atingir a imagem. De acordo com Pignatari (2005):
a função poética da linguagem se marca pela projeção
do ícone sobre o símbolo - ou seja, pela projeção de
códigos não-verbais (musicais, visuais, gestuais, etc.)
sobre o código verbal. Fazer poesia é transformar o
símbolo (palavra) em ícone (figura).
Nesse sentido, a narradora-personagem desenvolve o poético no
discurso narrativo, por isso, como já dissemos, ÁGUA VIVA é um romance
poema. Nele, o eixo da similaridade é uma projeção da seleção para o eixo da
contigüidade. Portanto, o romance tem características de uma poética moderna,
tornando prosa e poesia híbridas, pois, na similaridade do (pré) enunciado do
discurso, oferece a imagem, elemento da percepção.
Estudada numa perspectiva semiológica, vemos que a narradora-
personagem do romance coloca sua palavra enquanto signo dentro de um
sistema de signos. Desse modo, ela é, como explica Brait (2002): “esta
instância narrativa que vai conduzindo o leitor por um mundo que parece estar
se criando à sua frente”. Em ÁGUA VIVA, a palavra foge do convencional, para
ser usada como ‘isca’ e aludir ao simbólico.
Nessa perspectiva, a existência humana caracteriza-se pela
incompletude do ser, das coisas, do mundo, do romance, da literatura. A
narradora-personagem faz um paralelo entre a existência humana e o fazer
literário, e essa reflexão torna os processos da escritura e da criação mais
73
importantes que a própria história. O texto torna-se a personagem, que se
afirma e afirma que:
o verdadeiro pensamento parece sem autor. E a be-
titude tem essa mesma marca. A beatitude começa
no momento em que o ato de pensar liberou-se da
necessidade de forma. A beatitude começa no
momento em que o pensar-sentir ultrapassou a
necessidade de pensar do autor – este não precisa
mais pensar e encontra-se agora perto da grandeza
do nada.
(AV, p. 82)
O processo criativo, em ÁGUA VIVA, resulta da palavra polissêmica,
da fragmentação do ser, da quebra de paradigmas do romance tradicional, da
desconstrução do gênero, do tempo puramente verbal e da palavra levada ao
grau zero. Para isso, foram empregados recursos como a imagem, para
demonstrar, na escrita,o instante-já”, isto é, o pensamento. Assim, a vida é
revelada pelos fatos, reais ou imaginários, narrados no momento em que
ocorrem.
No texto, a busca pela comunicação precede a própria palavra tanto
que a personagem não tem nome, ela é apresentada apenas como uma
pintora, como se isso fosse o suficiente para o leitor identificá-la: “Basta-me que
meu coração bata no peito. Basta-me o impessoal vivo no it. (...) Perco a
identidade do mundo em mim e existo sem garantias.” (AV. p, 61-5
)
O ‘instante-já’ que a narradora quer exprimir com imagens e a
inconformidade das relações que envolvem o homem, costurados pelos traços
da pintura e da música, mostram a impotência da palavra convencional. São
fragmentos que, se comparados ao ‘ser’ do homem e ao ‘ser’ da linguagem,
74
atingem o cerne da existência como uma experiência do estado de repouso
livre de nomeação.
Contrapondo-se ao convencionalismo que coloca a arte numa fôrma, a
narradora-personagem despreza a memória e privilegia a sensação, buscando
uma saída para prolongá-la: “na pintura como na escrita procuro ver
estritamente no momento em que vejo – e não ver através da memória de ter
visto num instante passado”. (AV, p. 81)
Os questionamentos criados pela narradora-personagem esvaziam-na
da pessoalidade, uma vez que a inconformidade com a cristalização das
formas, dos conceitos, da arte e do ser, está emaranhada no mistério do seu
íntimo, que denomina “it”. Ela pretende mostrar o mundo e a linguagem se
formando e se transformando como a vida, em devir, num entrecruzamento
dialogado, que se encaminha para o inacabado: “o melhor ainda não foi escrito.
O melhor está nas entrelinhas.” (AV, p. 86)
Essa preocupação de Clarice liga-se à essência do ato cíclico da
criação, bem como à vida em interação com o universo. Sobre isso, Kadota
(1999) comenta:
esta é uma busca também metafísica de compreensão do
mundo da existência, assim como dos problemas que a
cercam, que, para o leitor menos atento, configura-se como
sinuosa na qual costumeiramente ele se perde em seus
imaginários contornos.
Pela fragmentação do texto e pela rarefação da palavra, Clarice
chega à imagem. Delimitando a realidade por meio de elementos que forjam
uma ordenação, ela constrói algo artificial, que é a maneira como vai tecendo a
75
imagem poética a partir do silêncio. Esse processo, segundo Maria Lucia
Homem (2004), “é construído a partir do fora, fôrmas externas à personagem,
no limite de um fingimento necessário.”
Assim, é possível ter-se uma visão em vez da palavra. Trata-se de um
movimento de suspensão da fala, e o silêncio é uma hesitação e não o
esgotamento da palavra. A imagem cumpre, então, um movimento intervalar,
pois a palavra, emergindo do silêncio como uma luminosidade, aponta os
questionamentos feitos pelo imaginário e flagrados como se fossem
fotografados.
Para Kadota (1999):
... toda busca em Clarice é feita através do olhar, semelhante
a um fotógrafo e sua câmara. Como ele, Clarice cristaliza o
instante. Para o fotógrafo, um leve toque e... clic. Um instante
do mundo sensível é retido em toda sua magia no mecanismo
da câmara escura. Para o olhar de Clarice, também, em relação
à escrita, num processo de inversão reflexiva da informação
“luminosa
”.
O nível de consciência da narradora-personagem, revelado pela
desconstrução e desfuncionalização dos elementos constituintes do romance,
mostra, por analogia, a incompletude da palavra, do homem e da arte, pois
como explica Lourival Holanda (1992): “o que nossa carência da palavra traduz
é que, mesmo infeliz, o homem quer a consciência dessa infelicidade – que é a
consciência mesmo do que lhe falta. E, ao homem, é sempre uma falta o que o
funde.”
Tal fato remete à consciência, ao estado de terceiridade, que prevê a
incompletude da palavra, do homem e do processo de criação. Assim, na
76
personagem, a consciência do outro, formulando uma consciência moral,
interliga os três estados do signo semiótico peirceano. Segundo Pignatari
(2004):
Todo raciocínio liga aquilo que se acaba de aprender com
o conhecimento já adquirido, de modo que, dessa forma,
aprendemos o que antes era desconhecido. E assim que
o presente de tal modo se funde com o passado recente
que torna o que vem vindo como que inevitável.
Essa consciência expressa-se pela sensorialidade, por meio da
imagem metafórica, e leva à percepção da limitação palavra e ao
descomprometimento com a sintaxe linear:
estou tentando escrever-te com o corpo todo, enviando uma
seta que se finca no ponto tenro e nevrálgico da palavra.
(...) Já entrei contigo em comunicação tão forte que deixei
de existir sendo. Você tornou-se um eu. É tão difícil falar e
dizer coisas que não podem ser ditas. É tão silencioso.
(AV, p.12-49)
As metáforas são responsáveis pelas imagens lampejantes que tocam
a poesia, e a polissemia do texto revela uma escritura que se abre em diversas
possibilidades de leitura. Assim, estabelece-se um convite à dialogia entre texto
e leitor, já que se trata de um romance em que o final não se realiza: “O que te
escrevo é um “isto”. Não vai parar: continua. (...) O que te escrevo continua e
estou enfeitiçada.” (AV, p. 87)
Nesse sentido, ÁGUA VIVA é uma “obra aberta”, pois, como diz Eco
(1997):
77
uma obra aberta enfrenta plenamente a tarefa de oferecer
uma imagem da descontinuidade: não a descreve, ela
própria é a descontinuidade. Ela se coloca como mediadora
entre a abstrata categoria da metodologia científica e a
matéria viva de nossa sensibilidade quase como uma espécie
de esquema transcendental que nos permite compreender
novos aspectos do mundo
.
É do tratamento dado à palavra que brotam as imagens em ÁGUA
VIVA. Dessa maneira, o silêncio se faz imagem para que continue sendo ponto
de partida e nunca de chegada, de indefinição e jamais de certeza, em uma:
[...] tentativa de materializar a imagem através da palavra
precisa (ainda que em paradoxo), do recurso da justa-
posição, da economia e de uma nova sintaxe é uma
busca experimental e contínua de Clarice, assim como
uma prática de transgressão sistemática e consciente
em nível temático e de discurso e que, por isso, não po-
de ser vista como uma perda da capacidade de manipu-
lar a linguagem ou as personagens ou, ainda, a narrativa,
mas sim como uma contribuição inegável à moderna lite-
ratura e ao processo lingüístico que o enriquece ainda
mais pela aproximação imagem-palavra na busca de uma
nova semântica, engendrada também por uma nova sintaxe.
(Kadota, 1999, p. 43)
Assim, em Clarice, as linguagens duplicam-se, quando ela rompe com
as formas estabelecidas, torna híbridos os gêneros, subverte a linearidade do
texto, fazendo com que o leitor saia da passividade e o discurso se despedace
78
e se reconstrua, pois, segundo Laporte (apud Barthes, 2004): “Uma leitura que
não suscite uma nova escritura é para mim algo incompreensível”.
É no aparecimento-desaparecimento da imagem que a escritura de
Clarice cria cenas por onde passam múltiplos olhares, que se entrecruzam e
vão tecendo encadeamentos, muito além do que se vê. Essa escritura,
mergulhada na plurissignificação da palavra, cria signos que se ligam
continuamente.
79
Considerações finais: o final que remete ao labor inesgotável
com a palavra
ÁGUA VIVA, superando os cânone tradicionais, transforma o gênero
romanesco e revela características da narrativa moderna. Embora transgrida
suas próprias leis, o romance não perde sua identidade, Clarice lhe dá novas
formas para cumprir seu destino de fenômeno artístico.
No romance, a autora possibilita aos elementos constitutivos da
narrativa experimentarem funções diferentes daquelas do modelo canônico,
criando um paradoxo, ou seja, o texto assume o papel principal e transforma-se
em “anti-personagem”:
O texto agora passa a impor suas próprias leis, é o texto
que fala , é o texto que age e não a personagem pelo tex-
to. Ou seja, sujeitos desta vez a uma lógica que tem suas
raízes no próprio movimento de produção textual, os agen-
tes submetem suas ações ao agir básico do texto, anulando-
se como entidades funcionais específicas e iluminando a fun-
cionalidade deste.
(Segolin, 1999, p. 84)
Em ÁGUA VIVA, o processo criativo de Clarice é permeado de
sutilezas e de reflexões. O tratamento dado à palavra cria linguagens que vão
além do código escrito. A desfuncionalização e a refuncionalização dos
componentes textuais provocam a suspensão da narrativa tradicional e da
palavra referencial, que assim atinge seu grau zero. Trata-se de uma
experimentação feita com um trabalho da própria linguagem, que se explica
com imagens que permitem uma leitura polifônica de mundo.
80
Foram os conceitos de dialogia, de prosódia moderna, que hibrida
prosa e poesia, e de imagem que tornaram possível nossa análise das
estratégias discursivas utilizadas em ÁGUA VIVA. Como a autora, tentamos
alcançar o “it”, ou seja, perceber a imagem como um código, em que a palavra
torna-se analógica. Pudemos, então, associar esse movimento de suspensão
da fala à primeiridade, quando a palavra é levada ao lugar da poesia, tornando-
se pura, imaculada, sígnica. Além disso, percebemos que, no romance, a
palavra silenciada não está fadada a um fim, mas que, do seu estado de
mudez, emerge uma metáfora conceitual, uma construção mental especial,
percebida no nível cognitivo.
As analogias presentes no jogo textual, aquele do mostra-esconde de
imagens, nos levaram a uma reflexão que não se limita à linguagem. Ao
contrário, remete à vida, no seu processo cíclico, e ao homem, em sua
inquietação diante do que lhe exige um esforço de percepção.
Em ÁGUA VIVA, a narrativa tradicional é superada quando a
linguagem constrói seu ritmo por meio do lirismo. Trata-se de um jogo de
palavras, uma construção que alude a outros códigos, tornando polissêmica a
palavra. Assim, o silêncio, a imagem, a criação, a vida e a poesia brotam do
texto. Esse movimento dinâmico, no qual existência e criação são personagens,
é feito de maneira singular, confluindo prosa e poesia num ritmo ambíguo.
Nesse tratamento, a palavra singularizada condensa idéias, ambigüidades e
percepções possibilitando à linguagem leituras múltiplas.
Dessa maneira, o leitor torna-se parte integrante do texto, passando
de simples observador a participante da escritura. Ele se insere na cena e
interage na medida em que percebe a dinâmica de ÁGUA VIVA, uma “obra
81
aberta”, aquela que, em vez de cristalizar uma história, deixa abertas novas
possibilidades de leitura.
Percebemos que, no subliminar, as palavras deixadas por Clarice
Lispector permitem uma reflexão sobre a forma, o gênero, o conteúdo, o ritmo e
a palavra. Percebemos, também, que seu propósito de pensar na arte, na vida,
no homem e no código leva à desautomatização do leitor.
82
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