Download PDF
ads:
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Centro de Filosofia e Ciências Humanas - CFCH
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais - IFCS
Programa de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia – PPGSA
AMOR, FAMÍLIA E SOCIEDADE BRASILEIRA:
LITERATURA E VIDA ÍNTIMA NO SÉCULO XIX
Heloisa Helena de Oliveira Santos
Rio de Janeiro
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
AMOR, FAMÍLIA E SOCIEDADE BRASILEIRA:
LITERATURA E VIDA ÍNTIMA NO SÉCULO XIX
Heloisa Helena de Oliveira Santos
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós
Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em Sociologia (com concentração
em Antropologia).
.
Orientadora: Profa. Dra. Mirian Goldenberg
Co-Orientador: Prof. Dr. André Pereira Botelho
Rio de Janeiro
2008
ads:
FICHA CATALOGRÁFICA
Santos, Heloisa Helena de Oliveira.
Amor, família e sociedade brasileira: literatura e vida
íntima no século XIX / Heloisa Helena de Oliveira Santos. Rio de
Janeiro: PPGSA / IFCS / UFRJ, 2008.
x, 140 f.
Orientadores: Mirian Goldenberg e André Pereira Botelho
Dissertação (Mestrado) Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS),
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA),
2008.
1. Amor. 2. Relações Íntimas. 3. Sociedade Brasileira
Oitocentista. 4. Literatura. 5. Pensamento Social Brasileiro. 6.
Antropologia dos sentimentos / Sociologia da Literatura Tese. I.
Goldenberg, Mirian. II. Botelho, André Pereira. III. Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. IV.
Amor, família e sociedade brasileira: literatura e vida íntima no século
XIX.
AGRADECIMENTOS
Algumas pessoas e instituições devem ser lembradas por terem contribuído nesta
caminhada e conquista chamada dissertação. Primeiramente, minha família. Jurema de
Oliveira Santos, Luiz dos Santos e Thereza Krystina, meus pais e irmã, que me
apoiaram das mais diferentes formas. À Dona Olívia, avó querida que, com seus “70 e
poucos” anos, me diverte e impressiona mais a cada dia. E ao meu tio-irmão Marcos
Antonio. Este trabalho é, em parte, produto do amor deles.
Agradeço a Mirian Goldenberg e André Botelho pela paciência em ler
“milhares” de versões do texto e serem orientadores no sentido mais amplo do termo. À
Mirian, por todo o acompanhamento e dedicação que prestou desde a graduação e por
ter me ensinado coisas que vão muito além da vida acadêmica: coisas que ela
certamente não imagina. Agradeço ao meu orientador e amigo André Botelho pelo
conhecimento, amizade, companheirismo, força, dedicação e apoio nestes últimos anos:
o “Amor” não estaria aqui sem você. À professora Luciana Villas-Bôas, pela amizade,
idéias e dedicação com esta pesquisa, seja pela fundamental participação em minha
qualificação, seja pelo excelente curso ministrado no ano passado e que contribuiu
profundamente com o desenvolvimento desta dissertação. Agradeço ainda a André
Cardoso (e aqui agradeço também a Luciana Villas-Bôas, por ter me apresentado a ele),
pelas conversas e pela solicitude e generosidade em ceder sua tese, antes mesmo de ter
defendido: material que foi fundamental para as reflexões aqui desenvolvidas.
Não posso esquecer de todo corpo docente do PPGSA que contribuiu com as
disciplinas, informações e nas conversas inspiradoras “pelos corredores”. Às
funcionárias Denise e Claúdia, que atendem com enorme paciência a todos os alunos.
Agradeço ainda à CAPES pelo apoio financeiro por meio da bolsa de Mestrado.
Aos amigos, pessoas cuja ausência teria tornado a escrita desta dissertação muito
mais difícil. Agradeço, pela troca de experiências e conhecimento e pela amizade e
apoio não apenas em sala de aula, mas também nos “becos e bares” da vida, a todos os
companheiros de turma no PPGSA e, em especial, a Bernardo Curvelano Freire, Marina
Cordeiro e Suzana Mattos. Aos queridos amigos do NUSC que, apesar de todas as
minhas loucuras, ainda me consideram sua “flor no lodo”: Antonio Brasil, André
Bittencourt, Alexander Eglander, João Paulo Martinez, Lucas Carvalho, Mauricio Hoelz
e Pedro Cazes. Ao grupo da Revista Habitus, aos atuais membros e aos antigos, que me
ajudaram a manter a RH - publicação de que muito me orgulho - neste período
conturbado e fazê-la permanecer – e crescer – não apenas agora, mas durante os últimos
cinco anos. Um agradecimento especial ao companheiro de Editoração Arthur
Bernardes, cuja contribuição tem sido fundamental para a consolidação da RH. Aos
amigos do Colégio Pedro II, em especial Thaíse Alves Galvão e Isabela Boechat, que
sempre apoiaram as minhas escolhas e comemoraram minhas conquistas. Finalmente,
um enorme “Obrigada” aos amigos que me deram muitos (e diferentes) prazeres antes e
durante a dissertação e que, com este amor, ajudaram a manter a minha sanidade:
Bianca Arruda Soares, Carolina Nascimento, Gustavo de Sá, José Luiz Soares, Julia
Leal, Orlando Calheiros, Paloma Malaguti, Sabrina Guergue e Thiago Vieira.
E, para finalizar, deixo um agradecimento especial a todos aqueles que também
participaram na constituição desta dissertação, seja com a amizade, seja com apoio
“técnico”, seja com apoio “físico” e que, eventualmente, esqueci de citar.
“O que a senhora deseja, amiga minha, é chegar já ao capítulo do amor ou dos
amores, que é o seu interesse particular nos livros.”
Narrador do romance Esaú e Jacó de Machado de Assis
RESUMO
Esta dissertação busca compreender, por meio da análise de romances, como as relações
íntimas amorosas foram codificadas na sociedade brasileira do século XIX. Partindo das
sugestões de Niklas Luhmann sobre o papel da literatura na formação da intimidade,
analiso três romances brasileiros do século XIX: A Moreninha (1844) de Joaquim
Manuel de Macedo, Senhora (1875) de José de Alencar e Dom Casmurro (1899) de
Machado de Assis, buscando mapear as concepções e comportamentos associados ao
amor e às relações afetivas entre homens e mulheres. A partir deste levantamento,
comparo os dados destas três narrativas com as teorizações sobre amor, romantismo e
sociedade brasileira do século XIX, dando ênfase às possíveis tensões entre os ideais de
amor romantizado disseminados pelos romances e a organização social familista que
caracteriza o Brasil do período. Compreende-se que estes romances estão sugerindo,
através das histórias dos protagonistas, novas formas de relacionamentos onde o amor é
a base da relação. No entanto, estes romances não conseguem responder às demandas de
uma sociedade que permanece predominantemente familista e que ainda exige os
direitos do proprietário sobre os seus dependentes. Assim, as relações afetivas
fundamentadas no amor apenas se sustentam quando a família é afastada do casal.
Quando esta família está presente, contudo, o amor é manipulado pelo chefe
patriarcalista e sucumbe diante da vontade e do arbítrio do mesmo. Deste modo, até o
século XIX, é possível afirmar que o amor não pode se sustentar como fundamento das
relações amorosas entre homens e mulheres na sociedade brasileira.
Palavras-Chave: Amor, Sociedade Brasileira Oitocentista, Relações Íntimas, Literatura,
Pensamento Social Brasileiro.
ABSTRACT
The main objective of this dissertation is to understand, by analyzing Brazilian novels,
how intimate relationships were codified in the Nineteenth´s Brazilian society. Starting
from Niklas Luhmann's suggestions about literature's role on the intimate formation, we
analyze three Brazilian novels from the XIX century: A Moreninha (1844) by Joaquim
Manuel de Macedo, Senhora (1875) by José de Alencar and Dom Casmurro (1899) by
Machado de Assis, in order to map the conceptions and behaviors linked to love and af-
fective relationships between men and women. With this material, we compare the in-
formation from these three narratives with the theoretical analysis about love, Romantic
Movement and Brazilian society of the nineteenth century, emphasizing the possible
tensions between the ideals of romantic love disseminated by the novels and Brazilian
social organization based on the family, model that characterizes the Brazilian society at
this time. We understand that these novels are suggesting, through the story of the pro-
tagonists, new models of relationships where love is the basis. Nevertheless, these nov-
els can't answer the claims from that (retirar) Brazilian society that remains based on
families' relations and that still demands properties' rights above their dependents. By
this hypothesis, we can say, after the analysis, that relationships based on love only
maintain themselves when the family is away from the couple. But when the family is
near, love is manipulated by the patriarchal owner and succumbs before the wish and
decision of this chief. Therefore, until the XIX century, it is possible to affirm that love
can't sustain itself as the basis for love relationships between men and women in Brazil-
ian society.
Keywords: Love, Nineteen's Brazilian Society, Intimate Relationships, Literature,
Brazilian Social Thought.
SUMÁRIO
Introdução 1
Capítulo 1 - Do amor: A Moreninha, Senhora e as primeiras definições
do sentimento 10
1.1 - Amores Volúveis: A Moreninha e o ponto inicial 10
O Romance 10
As relações íntimas e o amor 12
1.2 - O Amor vai às compras: Senhora e a regeneração da pessoa 33
O Romance 33
As relações íntimas e o amor 39
Capítulo 2 - Da família: Dom Casmurro e a crise do casal amoroso
57
2.1 - Destronando o amor: Dom Casmurro e o problema do indivíduo moderno em
contexto patriarcal 58
O Romance 58
As relações íntimas e o amor 60
Capítulo 3 – Amor e família no Brasil 83
Considerações finais 128
Referência Bibliográficas 138
Introdução
Esta dissertação versa sobre as representações de amor que se disseminaram por
meio de três romances no Brasil durante o século XIX: A Moreninha (1844) de Joaquim
Manuel de Macedo, Senhora (1875) de José de Alencar e Dom Casmurro (1899) de
Machado de Assis, buscando compreender como estas três narrativas relacionaram a
idéia de um amor baseado em escolhas individuais e a sociedade brasileira oitocentista,
tradicionalmente familista. O amor é uma noção que, no senso comum, se refere a um
“sentimento”, podendo ser entendido também como relações sociais que envolveriam,
predominantemente, fatores afetivos. Mas, por outro lado, o amor é uma construção
social, com significados variáveis histórica e culturalmente, sendo que, como
“sentimento”, talvez seja uma das relações sociais mais naturalizadas na sociedade
contemporânea. Pode-se argumentar que uma das formas de recuperar a condição de
construto social do amor - inclusive elucidando sua dimensão processual -, é investigar
as narrativas desenvolvidas ao longo do tempo sobre ele. Daí o recurso aos romances
para a sua investigação não ser aleatório.
Considerando que as diferentes representações sobre o amor nos romances estão
relacionadas com distintos modelos de subjetividade, as perguntas gerais que norteiam
esta dissertação são: Que representações do amor estão sendo disseminadas nos
romances? Quais são as concepções dominantes? Quais são as noções concorrentes?
Como estas formulações se relacionam com a organização da sociedade que estava em
processo de modificação? Como se a codificação da intimidade na sociedade do
século XIX? Deste modo, pretendo comparar os modos como o amor é experimentado
pelas diferentes personagens dos três romances escolhidos, tentando perceber possíveis
relações e tensões entre elas.
Como Niklas Luhmann (1991), compreendemos que a literatura teve papel
fundamental na fixação, codificação e disseminação entre os leitores
1
dos
comportamentos associados à vida íntima e aos relacionamentos amorosos que estavam
em ação na sociedade. O que torna as reflexões de Luhmann sobre literatura e amor
particularmente importantes é a sua visão sobre a modernidade. O autor não considera
1
de se considerar, no entanto, o pequeno número de letrados na sociedade brasileira oitocentista,
presentes, em significativa maioria, entre os membros da elite. No entanto, como aponta Meyer (1996),
era comum o empréstimo de jornais e outras literaturas. Por outro lado, era hábito, entre as classes mais
altas, ler para a família, como lembra um de nossos principais romancistas, José de Alencar (2005) e
como é demonstrado nos romances Senhora e Dom Casmurro que narram situações de leitura coletiva.
Assim, ainda que não lidos diretamente, a literatura não deixava de ser “lida”, experimentada pelos
ouvintes.
que a sociedade moderna seja, prioritariamente, uma sociedade de relações impessoais,
concepção somente compatível, para ele, com análises que tomam a sociedade moderna
centralmente por seu sistema econômico. Luhmann entende que o que caracteriza a
sociedade moderna é também, além deste aumento da possibilidade de estabelecer
relações impessoais, exatamente o seu oposto: a capacidade de fornecer aos indivíduos a
concretização de relações pessoalizadas cada vez mais “intensivas” onde um “maior
número de características individuais e particulares da pessoa ou em princípio todas as
características de uma pessoa individual sejam significativas”
2
.
É necessário enfatizar que, para Luhmann, o amor não é um sentimento, mas um
meio de comunicação que permite a troca de informações sobre o íntimo dos sistemas
psíquicos, os indivíduos. As características pessoais que virão a ser comunicadas são a
visão particularizada de mundo que cada um dos indivíduos possui e que compõem o
seu íntimo. Na sociedade moderna, onde as relações impessoais e pessoais se
intensificam, encontramos a dupla necessidade dos sistemas psíquicos em manter
relações onde este íntimo é preservado e outras onde aquelas informações são as mais
relevantes. Esta importância dada à comunicação do íntimo ocorre porque os sistemas
psíquicos querem ver suas informações pessoais confirmadas no mundo. Para que tal
processo aconteça, um outro particular é solicitado para fazer tal confirmação. No
entanto, trata-se de um problema, pois uma grande dificuldade está em este outro
processar tal confirmação, pois, a princípio, esta visão de mundo é particular, muito
diferenciada das demais, logo não óbvia para o interlocutor
3
. O meio amor funcionaria
codificando estas visões de mundo altamente pessoalizadas e permitiria sua
comunicação improvável
4
, evitando que os sistemas psíquicos, diante da dificuldade,
desistam de comunicar antes mesmo de tentarem. Com estas noções, Luhmann produz
uma teoria particular sobre o amor e sua relação com a sociedade moderna, não
destacando o amor da sociedade como se ele fosse uma criação particular de cada
indivíduo, mas revelando a necessária associação do amor a ela, que o utilizaria como
um meio de se manter a si mesma e, ao mesmo tempo, de permanecer conectada aos
sistemas psíquicos. Noutras palavras, o amor não destaca os indivíduos da sociedade,
mas é o que a ajuda a mantê-los unidos a ela.
A hipótese geral da dissertação é que concomitantemente às alterações que se
processavam na vida íntima da sociedade brasileira oitocentista, noções concorrentes de
2
LUHMANN, 1991: 12.
3
Embora a transmissão de nenhuma informação seja óbvia na comunicação.
4
Mais improvável exatamente por ser muito pessoal.
amor e possibilidades de se constituir o campo dos afetos estavam sendo ensaiadas
também nos romances brasileiros do século XIX. Estas concepções estão
majoritariamente relacionadas à ascensão de modelos de relações afetivas centradas no
amor, relações onde o sentimento passa a ser requisito para a efetivação do matrimônio.
No Brasil do século XIX, formas alternativas de relacionamento amoroso estavam
sendo ensaiadas nas narrativas, envolvendo novos modelos de constituição de casais
formados mais independentemente, resultado da redução da autoridade do patriarca, da
redistribuição de poder dentro da família e do afastamento da parentela extensa que
tinha papel fundamental na constituição do íntimo, especialmente entre as classes
abastadas. Ocorre, deste modo, um processo de reorientação dos valores onde a
literatura, que vinha crescendo em organização e importância em nossa sociedade,
possui papel fundamental. Como ressalta Candido (2006), é no século XIX que a
literatura no Brasil alcança uma melhor organização, sistematizando-se autores, público
e obras
5
. Pode-se lembrar ainda, a partir das reflexões de Freyre (2006b), que romances
"dissolutos" participaram desta mudança, posto que apresentavam padrões que se
distinguiam da prática, onde a decisão sobre os matrimônios dos jovens era conduzida,
prioritariamente, pelo patriarca. Estes romances representariam as “más influencias” das
novas gerações, pois apresentariam novos modelos de comportamentos
6
, subjetividade e
afeto para homens e mulheres. Estas narrativas se inseririam, por outro lado, em um
projeto mais amplo de redefinição da família
7
.
Mas ainda que muitas mudanças tenham se processado no campo dos afetos,
acreditamos que as novas formulações apresentadas por esta literatura de ficção não
conseguem, até aquele momento, resolver a relação tensa que estabelecem com a ainda
principal instituição social da sociedade brasileira da época, a família extensa e, mais
especificamente, com algumas de suas manifestações mais importantes, a autoridade e o
poder do proprietário. Porém, o fato mesmo de estes romances terem por tema relações
5
Lajolo e Zilberman (2002) destacam o impacto que a liberação da imprensa régia para documentos não
oficiais e, posteriormente, da permissão do funcionamento de impressões particulares produziu em nosso
sistema literário.
6
Freyre (2006b) lembra que José de Alencar foi acusado por criar, em seus romances, personagens
femininas cujos comportamentos não eram apropriados. Eram as “tendências românticas” que faziam
com que as moças fugissem com seus amados. “Os romances de José de Alencar, por exemplo, com
‘certas cenas pouco desnudadas’ e certos ‘perfis de mulheres altivas e caprichosas [...] que podem seduzir
a uma jovem inexperiente, levando a querer imitar esses tipos inconvenientes na vida real’” (FREYRE,
2006b: 249).
7
Muricy (1988) mostra como os primeiros romances de Machado de Assis possuíam narrativas
condizentes com as considerações médicas sobre a família que se disseminaram durante o século XIX.
Augusti (1998) revela o caráter pedagógico dos romances de Macedo, onde ideais de mulher e esposa
eram indicados por meio das narrativas.
conjugais cuja base é o amor, pode ser revelador de um esforço em apresentar uma
proposta de renovação para a esfera do íntimo. E, à medida que o romance se afirma
como forma e se aperfeiçoa esteticamenteevolução que pode ser percebida pela perda
do tom didático dos primeiros romances brasileiros
8
-, o papel da família como
componente essencial nas tomadas de decisão sobre as relações íntimas passa a ser
problematizado e acentua-se a tensão entre amor e família.
Muitos romances do período tratam de amor e vida íntima. Volobuef (1999)
ressalta como a “trama ou fábula do romance romântico no Brasil (...) é, em sua
esmagadora maioria, uma história de amor”
9
. Alguns elementos, contudo, tornam A
Moreninha, Senhora e Dom Casmurro, romances particularmente relevantes para a
análise proposta: nenhum dos romances parte do pressuposto “as pessoas amam”, como
se o amor fosse algo óbvio
10
, mas tentam ressaltar a viabilidade do sentimento como
integrante e mesmo fundamento das relações afetivas. Os três romances associam amor
e casamento e afirmam, desta forma, o amor como uma possível base ou fundamento
das uniões matrimoniais. Por outro lado, problematizam, em diferentes níveis, a
legitimidade de interesses extra-amorosos no estabelecimento dos casamentos, como a
valorização do dote ou outros critérios ligados à estratificação social
11
.
Os romances tratam em específico do nascimento e desenvolvimento do
primeiro amor das personagens, e embora difiram profundamente em termos estéticos,
estas narrativas são paradigmáticas na história literária brasileira. A Moreninha é
considerado nosso primeiro romance
12
, sendo que sua escolha se justifica especialmente
8
Lajolo e Zilberman (2002), Augusti (1998) e Cardoso (2008) ressaltam como a estrutura narrativa nos
romances de Macedo revela um esforço em conduzir o leitor pelo texto, instruindo este leitor dentro do
jovem romance brasileiro. Esta técnica foi adotada por diversos autores posteriormente e buscava
conquistar a confiança do leitor e, ao mesmo tempo, aproximá-lo da narrativa por meio de uma postura
amigável, conselheira e aduladora. Este recurso, segundo Seixas (2004) e Cardoso (2008), justifica a
extrema confiança que dotamos aos narradores que vieram depois, como o Dom Casmurro, narrador do
romance de Machado de Assis. Para Gledson (1999), “esse deleite e essa comoção [causadas pelo livro
Dom Casmurro] também fazem parte do plano de Machado e podem anuviar o julgamento [da obra]”
(GLEDSON, 1999: 19). A narrativa, iniciada com uma história de amor, só posteriormente inclui o ciúme
e as acusações, distraindo o leitor que “sem compreender de todo o que está ocorrendo, ou aonde está
sendo conduzido (...) quando começa a perceber, perdeu a capacidade para julgar como observador
imparcial” (Ibidem: 26).
9
VOLOBUEF, 1999: 253. Candido (2006) também destaca o esforço da literatura brasileira do período
em exaltar o sentimento.
10
Como ver-se-á nas análises, para alguns dos autores é possível que amor esteja nas pessoas, seja parte
delas, mas que elas não amem, não sintam o amor.
11
Segundo Luhmann (1991), a desvalorização de critérios associados à posição social é condição central
para a transformação do amor em código das relações íntimas na modernidade, para a autonomia do
mesmo.
12
algumas divergências sobre esse tema, alguns autores considerando O Filho do pescador de
Teixeira e Souza, lançado um ano antes, nosso primeiro romance. Candido (2006) argumenta que é com
Macedo, contudo, que temos “as primeiras obras apreciáveis pela coerência e execução” (CANDIDO,
2006: 439).
porque este livro fornece algumas das principais convenções temáticas e formais do
gênero para os romances seguintes
13
. Alencar inicia o processo de refinamento da forma
romance e também das personagens, que se tornam mais interiorizadas ou
psicologizadas a partir de sua obra
14
. Por esta razão, diferente de Macedo, Alencar
produz romances onde os obstáculos amorosos se tornam mais definidos
15
: é Senhora
que apresenta uma crítica melhor sistematizada à sociedade do período, valorizadora
dos relacionamentos de conveniência
16
. Dom Casmurro, por sua vez, está entre os
principais romances de Machado de Assis e é nele que a possibilidade do amor
constituir fundamento das relações afetivas é tratada mais a fundo, pois acentuam-se os
conflitos entre o sentimento e as ações das personagens. Dom Casmurro é ainda um dos
romances que representam a maturidade da forma romance no Brasil, pois Machado de
Assis “é herdeiro de Macedo, Manuel Antonio, Alencar, que foram no romance seus
mestres e inspiradores”
17
. Nele, ressalta-se o desnível entre a importância do amor e da
posição social dos amantes. Revela ainda, como demonstra Venancio Filho (2000), a
tensão entre o amor, que exige a distância da família, e a grande importância da mesma
na constituição da vida afetiva dos indivíduos.
Na dissertação, irei, primeiramente desenhar um mapa das representações de
amor a partir dos romances, procurando responder à questão sobre o que é o amor - ou
quais são suas possibilidades para a semântica brasileira do século XIX. Desafio
13
Cardoso (2008) destaca como Macedo teve papel central na formação do leitor no Brasil, apresentando
o tipo de narrativa que seria seguida amplamente nos anos seguintes e cujo elemento principal é a
confiança do leitor em um narrador que cria um ambiente intimista e receptivo. Esta influência não se dá,
contudo, apenas no que se refere aos aspectos formais. Em Como e porque sou romancista, Alencar
lembra ainda a influência que o sucesso do romance A Moreninha teve sobre sua carreira como escritor.
14
Candido (2006) e Cardoso (2008) ressaltam a influência que o autor teve na concepção das personagens
mais psicologizadas que viriam a ser fundamentais para Machado de Assis, tendo dado um passo
fundamental na exploração das motivações inconscientes dos mesmos.
15
Candido (2006) destaca que faltou a Macedo “gosto ou força, para integrar esses elementos num
sistema expressivo capaz de nos transportar, apresentando personagens carregados daquela densidade que
veremos nalguns de Alencar, antes que surgisse a galeria de Machado de Assis" (CANDIDO, 2006: 461).
16
De acordo com Candido (2006), “a vida comercial e seu reflexo nas relações domésticas e amorosas
(...), temas essenciais para compreender a época”, encontrarão, em Alencar e Machado, a integração que
não ocorrera em Macedo. Para o autor, o desnível revelado no conflito entre o dinheiro e o casamento por
amor é um dos temas fundamentais em Alencar, fator que se revela por meio da posição social distinta
das personagens. Segundo Candido, esta “diferença de condições sociais é uma das molas da ficção de
Alencar, correspondendo-lhe, no terreno psicológico, uma diferença de disposições e comportamentos,
que é a essência do seu processo narrativo (...), [ de modo que] se nos lembramos do conflito em Senhora,
do grande amor de Aurélia com a vergonhosa transação que põe Fernando à sua mercê, veremos que os
seus melhores livros são aqueles em que o conflito é máximo.” (CANDIDO, 2006: 542/3). Volobuef
(1999) lembra que os romances românticos denunciam com freqüência os casamentos de conveniência e
“é em Senhora (Alencar) que ele se torna a verdadeira espinha dorsal do texto.” (VOLOBUEF, 1999:
285). O amor deve ser romântico e santificado, sendo que esta idéia apareceria repetidas vezes nos
romances porque, para a autora, “essas repetições criam uma contraposição irônica e crítica ao
casamento de conveniência, que é o ponto central do romance.” (Ibidem: 282).
17
CANDIDO, 2006: 437.
central da dissertação é desenvolver este mapa do amor nos romances, de modo a
conhecer como o sentimento foi compreendido e produzir uma pequena história do
amor no Brasil oitocentista. A análise partirá de uma distinção presente nos três
romances escolhidos, a diferença entre o amor virtuoso, constante e único, e o amor
infiel, volúvel e permutável
18
, que corresponderiam às relações baseadas no afeto e
fundamentadas em interesses externos, respectivamente. Estas duas direções serão
discutidas a partir de dois pontos principais: a) a concepção hegemônica de amor ou que
se quer instituir; e b) as visões alternativas de amor que, em alguns momentos,
identificam-se com os obstáculos que o sentimento tem que enfrentar. As discussões
também têm como elemento central a relação entre família e amor, variável onde se
revelam algumas das principais tensões formuladas nos romances.
Esta distinção é resultante da análise das diferentes vozes que compõem as
narrativas. Como ressalta Culler (2000), todo enredo é apresentado a partir do ponto de
vista de uma das personagens ou do narrador, podendo variar no decorrer da história. O
foco narrativo se altera, modificando a apresentação do texto. Uma conseqüência desta
variação é a de que se torna fundamental, para uma boa análise, saber qual discurso é
escolhido e em que momento. Com base nestas observações, leremos as concepções que
narrador, protagonistas e personagens secundárias apresentam, de modo a estabelecer
um quadro com as representações deste amor que aqui se pretende avaliar. Tomarei as
narrativas separadamente a fim de tornar mais evidente as posições das diferentes
personagens, contrastando-as umas com as outras. Concomitantemente, serão inseridas
comparações entre os romances, visando abordá-los ainda como um conjunto de idéias
presentes no período, buscando então, captar, mudanças e permanências no tempo.
Assim, não apenas serão comparados personagens texto a texto, cada um dos mundos
19
destes romances, como também serão feitas algumas referências comparativas entre os
três textos. Decorrente desta forma de olhar o texto, considera-se que Augusto pode
experimentar o amor diferentemente de Carolina, ambos protagonistas do mesmo
romance, A Moreninha, mas ainda entendê-lo distintamente de Leopoldo, também
personagem deste romance. Mas podem ainda conceber as relações afetivas como
18
Estes pólos de ação não devem, entretanto, ser compreendidos de forma rigidamente oposta e sim como
modelos de comportamentos viáveis àqueles que empreendem relações amorosas.
19
Toda narrativa possui elementos estruturais básicos que participam em sua composição. De acordo com
Candido (2004a), quando o autor é capaz de manipular estes elementos de modo eficaz, um mundo se
desenvolve dentro da obra, independente de haver coerência com a realidade. Para o autor, uma análise
literária deve compreender os fatores externos à obra, mas nunca deixar de avaliar este mundo próprio da
narrativa.
Fernando Seixas ou José Dias, protagonista de Senhora e personagem secundária de
Dom Casmurro, respectivamente. Partindo das variadas maneiras que as personagens
compreendem o amor, este procedimento abre margem para que formas semelhantes de
sentir sejam resultantes de vivências muito distintas, mas também que diferentes
comportamentos amorosos sejam provenientes de experiências comuns, ampliando
consideravelmente as vias de análise. Esta metodologia segue a proposta de Niklas
Luhmann (1991), para quem “o significado da análise funcional está na pesquisa
comparada que relaciona entre si várias causas possíveis de um mesmo efeito ou vários
efeitos possíveis de uma mesma causa, descobrindo novas possibilidades na relação
entre fenômenos sociais e tratando causas e efeitos como simples variáveis
intermutáveis, não como estruturas ‘ontológicas’”
20
.
Esta reflexão de Luhmann me remete para uma última observação preliminar
relativa ao próprio gênero romance e sua pretensão de realismo. Utilizarei como
referência para essa discussão as sugestões sobre a forma romance de Ian Watt (1996),
para quem a questão básica para entender o romance é o realismo, compreendido como
uma maneira específica de, literariamente, se apresentar a vida. Segundo Watt, o século
XVIII é palco de uma transformação muito importante, pois neste momento ocorre um
aumento significativo na valorização da percepção individual de mundo, da unicidade
da experiência do sujeito, da originalidade, sendo que os grandes conceitos universais
imutáveis que até aquele momento regiam o pensamento Ocidental foram relegados a
segundo plano. O romance está inserido neste novo contexto onde o mundo deixa de ser
percebido como um espaço unificado como na Idade Média e passa a ser concebido
como provido de particularidades, onde pessoas específicas se encontram definidas por
experiências e vivências particularizadas. A forma romance adota a percepção
individual do autor, de modo que suas concepções sobre as condutas possíveis para as
personagens tornam-se relevantes. Mas esta mudança exige recursos narrativos
específicos, como definições detalhadas de tempo e espaço, das propriedades dos
ambientes, das personagens. As personagens deixam de ser tipos universais e tornam-se
pessoas com nomes próprios, memória e história de vida onde o passado define o
presente.
A pretensão do romance é, assim, elaborar um relato completo e autêntico das
experiências individuais por meio dos procedimentos narrativos, se concentrando nos
detalhes e descrições com o objetivo de imitar a vida, identificando e apresentando seus
20
Ver “Nota de Apresentação” In: LUHMANN, 1991.
particulares. Por estas características, o gênero romance é particularmente apropriado
para os objetivos desta dissertação. É importante ressaltar, no entanto, que afirmar que
uma literatura é realista não significa dizer que ela reflete a sociedade, que é uma cópia
fiel. Como ressalta Candido (2004a), “o sentimento da realidade na ficção pressupõe o
dado real mas não depende dele”
21
. O realismo é um recurso estético, uma forma de
recriar, na literatura de ficção, alguns dos princípios gerais que organizam a sociedade.
No entanto, esta recriação não é igual à sociedade, é um mundo em si mesma. Para
Luhmann (1991), a literatura, além de estabelecer esta relação com os elementos da
sociedade, também constitui a mesma, na medida em que codifica, fixa e dissemina
comportamentos.
É necessário ressaltar ainda que utilizar romances como objetos de estudo a fim
de compreender as sociedades do passado exige um esforço de distanciamento
semelhante ao de um antropólogo com seu objeto de estudo, sendo ele uma sociedade
estranha ou sua própria sociedade. Como ressalta Darnton (1996), interrogar textos
literários apresenta algumas dificuldades parecidas com a de uma entrevista direta com
um nativo, pois assim como o texto, uma conversa com o informante possui silêncios e
lacunas muitas vezes intransponíveis. Por outro lado, é necessário não confundir a
sociedade que se estuda com aquela em que o pesquisador está inserido, pois as
mentalidades que produzem materiais na sociedade brasileira do século XIX não são
idênticas às da sociedade atual simplesmente porque são brasileiras. Conseqüentemente,
deve-se ter cuidado e evitar analisar os textos como se houvesse uma identidade, como
se as sociedades do século XIX e atuais pudessem ser compreendidas como um nós”.
Como aponta Facina (2004), “interpretar um determinado fenômeno histórico é
reconstruir a teia de significados que o produziu, o que depende da imersão do
historiador em seu campo, onde os seus informantes ‘falam’” através dos textos
22
. Deste
modo, o pesquisador que trabalha com textos deve produzir este “efeito de
estranhamento”, a fim de captar os diferentes discursos presentes em seu objeto.
O amor e a família serão temas centrais da análise desta dissertação. Como A
Moreninha e Senhora se assemelham no esforço em tratar o amor mais autonomamente
e distanciar a família do casal, analisei estes romances conjuntamente no primeiro
capítulo. A mudança no status da família que ocorre em Dom Casmurro provoca
alterações na forma como o amor é apresentado. Se nos romances de Macedo e Alencar,
21
CANDIDO, 2004a: 39.
22
FACINA, 2004: 18.
a família, por meio de recursos narrativos, é excluída da narrativa e os protagonistas,
embora não sejam indivíduos completamente autônomos, não estão submetidos à
autoridade patriarcal, no romance de Machado de Assis, a família aparece como lócus
central dos acontecimentos e as personagens, ainda que individualizadas e
psicologizadas, estão completamente atadas à lógica de dominação pessoal. O capítulo 2
discute o romance de Machado de Assis e esta transformação, dando especial ênfase ao
diálogo que se estabelece entre amor e família. No último capítulo, farei uma
comparação entre os romances, enfatizando as semelhanças e diferenças entre eles no
que concerne a estes dois temas fundamentais. Associarei ainda estas análises com as
reflexões sobre o movimento romântico e a sociedade brasileira do século XIX. Desta
forma, o capítulo 1 da dissertação versará sobre os modos de ler o amor que aparecem
em Macedo e Alencar. O capítulo 2 discutirá o amor em Dom Casmurro e a relação
peculiar estabelecida, neste romance, entre o amor e a família. Por fim, no capítulo 3,
uma comparação será feita entre os três romances.
1 – Do amor: A Moreninha , Senhora e as primeiras definições
do sentimento
Como destacado, uma distinção geral funciona como princípio norteador nas
narrativas: a diferença entre amor virtuoso e amor interessado. A hipótese que
destacarei no primeiro capítulo é que esta divisão tem por objetivo fundamentar e
justificar as relações afetivo-sexuais baseadas no amor, no afeto mútuo entre os
amantes, em detrimento das relações de conveniência ou que envolvem interesses
estranhos ao amor, como o desejo de ascensão social ou a vontade da família. Com base
em evidências textuais, discorrerei, neste capítulo, acerca das concepções hegemônicas
de amor e das visões alternativas sobre as relações amorosas em A Moreninha e
Senhora, reencontrando frequentemente a distinção acima mencionada, de forma a
mapear as noções em torno do amor e do íntimo.
1.1 - Amores Volúveis: A Moreninha e o ponto inicial
“Assim como o grito tem o eco, a flor o aroma e a dor o gemido, tem o amor o suspiro; ah! o
amor é demoninho que não pede para entrar no coração da gente e, hóspede quase sempre
importuno, por pior trato que se lhe dê, não desconfia, não se despede, vai-se colocando e
deixando ficar, sem vergonha nenhuma, faz-se dono da casa alheia, toma conta de todas as
ações, leva o seu domínio muito cedo aos olhos, e às vezes dá tais saltos no coração, que chega
a ir encarapitar-se no juízo; e então, adeus minhas encomendas!...”
Narrador no romance A Moreninha
O Romance
A Moreninha narra a história de Augusto e Carolina, dois jovens que se
conhecem em uma ilha próxima ao Rio de Janeiro. O rapaz é estudante e amigo do
irmão da moça, Filipe. Augusto e Filipe e mais dois outros amigos apostam que
Augusto, jovem conhecido por não amar nenhuma moça por mais de três dias, não
conseguirá voltar da ilha sem estar apaixonado, devido aos encantos das moças que
estarão em uma festa que acontecerá. Augusto aposta que não se apaixonará. Na ilha,
conhece a avó e a irmã de Filipe, Carolina, moça que, a princípio, julga desagradável e
feia. No texto, percebemos a alteração dos sentimentos do rapaz com relação à moça e a
sua postura para com o amor. Se, no início da narrativa, Augusto é considerado
inconstante por gostar de todas as jovens, vemos que suas atenções, aos poucos, passam
a se centralizar em Carolina. Sabemos, posteriormente, as razões da volubilidade de
Augusto, conseqüência de freqüentes decepções amorosas, até que finalmente
descobrimos sobre seu caso de amor de infância, onde se casa
23
com uma menina
caridosa, de espírito puro e nobre que conhece na praia. Embora a narrativa enfatize as
mudanças que ocorrem com Augusto, sabemos que também cresce o interesse da moça
pelo rapaz. Quando ele volta ao Rio de Janeiro, sofre com a distância de Carolina e com
a incerteza sobre se ela também o ama. O mesmo se com ela que deixa de ser a
menina faceira de sempre e se torna abatida. O rapaz tem problemas com os estudos. O
pai descobre sobre sua paixão e decide impedi-lo de ver Carolina. O jovem adoece, fica
melancólico e o pai, temeroso de perder seu único filho, cede, deixando-o casar com a
moça. Carolina, no entanto, questiona a sinceridade do rapaz, pois diz não poder
acreditar em um moço que prometeu fidelidade a uma outra menina e que, agora, jura-
lhe amor. A história termina com a descoberta de que Carolina é mesma menina que
Augusto conheceu na praia e com o noivado dos dois. No fim, o rapaz declara que será
o autor do romance sobre este caso de amor.
Grande parte dos críticos considera o romance A Moreninha uma narrativa
pouco complexa, onde costumes da época são registrados por um autor cuja maior
preocupação é retratar, de modo fiel, a realidade que o cerca. Para eles, o autor não se
preocupou em analisar criticamente as condutas e a sociedade de seu tempo
24
. Esta
simplicidade narrativa, segundo Martins (1977-78), corresponderia às necessidades de
uma nação que se constituía e que esperava encontrar, na literatura, uma forma de
evasão. Na época de seu lançamento, contudo, o romance foi muito bem recebido, como
indica Augusti (1998), dado que se considerava que cumpria o papel moralizante que
um romance deveria ter
25
e porque respondia aos anseios dos brasileiros que
aguardavam a ascensão de uma literatura nacional.
Macedo busca informar sobre os possíveis tipos presentes na sociedade, mas não
usa o romance para fazer críticas profundas a seus comportamentos, não articula os
elementos da realidade de modo a constituir um “esqueleto de sustentação” para o
23
O casamento é uma benção dada por um moribundo, um homem doente e com fome que as crianças
ajudam. Para o velho, “a virtude se deve ajuntar". Nesta união, eles juram constância e fidelidade um ao
outro.
24
Coutinho (1986) associa o sucesso de Macedo a seu realismo. No entanto, este realismo é “superficial”
não busca criticar, apenas descrever - e restrito à visão de um homem de classe média urbana. Suas
personagens “não passam de simples transcrições da realidade, sem uma análise que empreste
profundidade aos seus sentimentos pessoais ou à sua condição social” (COUTINHO, 1986: 248). Não
preocupação em apreender o processo social, mas apenas registrar os aspectos cotidianos da sociedade e
fixar algumas formas de vida, como a da mulher. É o pequeno realismo de que fala Candido (2006).
25
Além dos críticos do século XIX, Augusti inclui Antonio Candido e José Veríssimo, ambos críticos do
século XX, entre os autores que concebiam os romances de Macedo como moralizantes. A autora conclui
que os romances de Macedo de fato teriam esta faceta moralizadora devido ao modo como o próprio
romance era concebido na época.
enredo, construindo-o “segundo o ritmo geral da sociedade”
26
. As personagens do
romance são pouco individualizadas e seus principais objetivos são estudar e galantear,
para os homens, e galantear e conseguir um noivo, para as mulheres. Suas personagens
são tipos e, para Cardoso (2008), haveria uma relação entre cada um destes tipos
representados pelas diferentes personagens e os movimentos literários romântico e
clássico. A estes movimentos, por sua vez, estariam relacionados padrões de ação,
modos de ser, inclusive os modos de ser afetivos. Joaninha, por exemplo, é a moça
pálida, logo romântica e muito exigente, que obriga o namorado a provar seu amor
constantemente por meio de cartas de amor. Ademais, faz com que o rapaz se comporte
segundo suas concepções, como ocorre quando o obriga a fumar apenas charutos
nacionais
27
. Entre rapazes e moças apenas o mundo de conquistas amorosas, pois,
isolados na encantadora ilha, outras preocupações deixam de ser importantes: é como
se, temporariamente, a realidade fosse suspensa
28
. Esta rotina de galanteria parece
obrigatória a todos aqueles que querem encontrar um par, fim que não deve ser
confundido com o anseio por uma relação fundamentada no amor. Nenhuma das
personagens parece esperar um amor como um acontecimento para a vida, como se o
amor não estivesse entre suas expectativas possíveis
29
. O que é, por um lado,
vaidade, pois as moças esperam ser admiradas e inesquecíveis e os rapazes, por outro,
esperam ser correspondidos e “premiados” com beijos e carinhos.
As relações íntimas e o amor
A concepção de amor do narrador parece ser diferente daquela sugerida por
quase todas as personagens, não se aliando a nenhuma delas, mas se conduzindo
individualmente e, de certa forma, de modo traiçoeiro. Assim, mesmo o foco narrativo
estando em Augusto, não é o amor romântico e idealizado deste, ou o clássico de
Fabrício, ou ainda o interessado das moças, que prevalecem, mas algo entre uma
entidade mística, um “demoninho” e um menino travesso, sendo ainda associado à
26
Seguir o ritmo da sociedade não deve ser compreendido como buscar proceder, nos romances, uma
duplicação da realidade.
27
Por meio desta personagem, associa-se ao tipo romântico uma das principais características do
movimento, o nacionalismo.
28
Cardoso (2008) ressalta como a posição da ilha entre a cidade e a natureza permite uma suspensão das
preocupações com o dinheiro e com as normas de conduta comuns à corte e abre espaço para um
ambiente amplamente regrado pelo sentimento. “The garden was a favorite metaphor for sentimental
intimacy, and its presence is also central in the utopian sentimental community of Clarens in La nouvelle
Héloïse”(CARDOSO, 2008: 70).
29
O que se quer ressaltar é que não falas como “Só queria ser amada” ou algo semelhante. Mas “-
Quem me dera casar...”, frase de Dona Clementina (MACEDO, 2003: 75) ou “(...) eu sempre acho
muito mais apreciável sorver os beijos voluptuosos por entre os postigos de uma janela, do que sorvê-los
em sonhos e acordar com água na boca” (Ibidem: 21).
benção de um moribundo e ao líquido encantado de uma fonte mágica. Estas facetas do
sentimento, que fazem com que ele possa ser caracterizado como desconhecido e
incontrolável, parecem querer justificar o amor como base das relações afetivas e
assinalar a que tipo de pessoa e de comportamentos se associa
30
.
O narrador que orientações para a leitura do texto também nos informa sobre
este amor que não é compreendido por nenhuma das personagens. Esta falta de
compreensão se revela quando percebemos que as sensações, os prazeres e dores
decorrentes do amor aparecem antes da consciência das personagens de que estão
amando deveras. O amor como um afeto mútuo que condiciona a união não é, na
narrativa, noção comum e cotidiana, diferentemente do casamento e das conquistas
amorosas. O amor é destinado a pessoas específicas e é capaz de transformar os
amantes, ainda que seja estranho mesmo para eles. Sendo um romance fundador, pode-
se sugerir que a narrativa pretende apresentar esta novidade aos jovens brasileiros que
conheciam o amor por meio de narrativas e de personagens estrangeiras.
Afirmando este “amor para os jovens brasileiros”, envolve-o em uma aura mística, a dos
filtros mágicos e ilhas encantadas e, da mesma maneira que apresenta o amor aos
brasileiros, também assinala o tipo de amante que deve ser valorizado: jovens de
comportamentos virtuosos, que possuem condutas incomuns Carolina é sincera e não
age afetadamente em suas conquistas amorosas, como o fazem suas primas, e Augusto é
sensível ao verdadeiro amor -, modos de ser que se opõem aos comportamentos galante
e infiel que representariam relações sem amor. Diferentemente daquilo que ocorre na
vida dos virtuosos protagonistas, não é óbvia a associação entre casamento, amor e
desejo, elementos que aparecem desconectados nas relações íntimas do restante das
personagens.
O amor virtuoso no romance corresponde à relação dos protagonistas,
identificando-se com as virtudes que representam. Para o moribundo que casa os dois
quando crianças, a “virtude se deve ajuntar”. Como indica Ribeiro (1987), Carolina é
“travessa, traquinas, irreverente quando necessário aparentemente irresponsável, mas no
fundo com perfeito sentido de justiça, da obediência e da gratidão; à primeira vista uma
imatura, desinteressada ou desconfiada do amor, mas na realidade sabendo muito bem o
que quer em matéria de compromisso sentimental e matrimonial, e com rara capacidade
30
O tipo de mulher merecedora do amor, no romance, é a mulher morena brasileira, jovem e virtuosa
(pura, inocente, caridosa): mulheres como Carolina. O mesmo vale para os rapazes. O amor é para os
homens que sabem apreciar o verdadeiro amor e que são altruístas e bons como Augusto.
de amar com todas as forças de seu ser”
31
. A moça encanta a todos os convidados da
recepção promovida por sua avó, como o fazia com os habitantes da ilha
32
,
seduzindo-os com sua alegria. Augusto, por sua vez, mostra ser um rapaz solidário com
a família pobre do velho doente, sabe apreciar o amor de Joaninha e ajuda Carolina a
cuidar de sua ama-de-leite. O rapaz esteve, temporariamente, fora do caminho “correto”
em sua vida amorosa, mas é reorientado por meio do contato com Carolina, como
veremos mais detalhadamente a seguir. Segundo Cardoso (2008), é típico das narrativas
sentimentais este contágio da virtude, os amantes se tornando idênticos por simpatia.
A fim de compreender a relação entre a virtude e as personagens, é necessário
apresentá-las em suas particularidades, demonstrando ainda os comportamentos
amorosos das outras personagens e que conformariam o tipo de amor não virtuoso.
nos primeiros capítulos conhecemos os caracteres gerais que as compõem. Por um lado,
jovens estudantes que embora estejam no mesmo grupo social
33
, diferem em suas
concepções sobre o modo de se relacionar - mas apenas no que se refere a eles mesmos,
homens, pois quanto às mulheres parecem, pelo menos a princípio, concordar. Os
rapazes são exemplificados nas figuras opostas de Augusto e Fabrício que representam
respectivamente as personalidades românticas e clássicas
34
que, embora contrárias em
seus ideais, se unem pelo desejo pelas moças, pela libertinagem ou pela permuta
constante, às vezes empreendendo namoros simultâneos com várias moças, dando
“batalha a dois e três castelos a um tempo”
35
. O amor para os homens está atrelado ao
desejo, mas o modo como se manifesta se diferentemente, ainda que para ambos não
signifique comprometer-se com uma moça apenas. Namoradas não são amantes eternas,
únicas, mas “trastes essenciais ao estudante”, qualquer uma desde que participe do
31
RIBEIRO, 1987: 43.
32
O encanto da ilha, a suspensão dos valores da sociedade que representa (Cardoso, 2008), é uma das
facetas do contágio das virtudes de Carolina: todo o ambiente vira ela. De acordo com a narrativa,
Carolina estava “acostumada desde as faixas a exercer um poder absoluto sobre todos os que a cercam”
(MACEDO, 2003: 113).
33
Filipe destaca que “reuniremos uma sociedade pouco numerosa, mas bem escolhida” (MACEDO, 2003:
15).
34
Cardoso (2008) apresenta uma interessante leitura destas personagens, revelando a associação que a
narrativa produz entre personalidades e literatura. Segundo o autor, as moças e os rapazes são lidos
segundo um código literário. Suas identidades seriam construídas a partir da aderência ou oposição a este
código. Carolina não é de pronto identificada, o que indicaria, para Cardoso, que “The students cannot
place her under an existing literary code.” (CARDOSO, 2008: 37). Ela, a mulher brasileira, livre dos
modismos da sociedade, não é romântica ou clássica, é algo distinto. A literatura é o código que orienta a
leitura dos rapazes sobre as mulheres: “Social interaction, then, is seen as a game that promotes the
circulation of codes represented here by literary paradigms and where identities are constructed
according to the adherence or opposition to those codes. And these codes, these literary paradigms, are
strangely eroticized, in accordance to the importance of love as a social binder in the novel.” (Ibidem: 40
– grifos meus).
35
MACEDO, 2003: 20.
mesmo grupo social - podendo ocupar este lugar, o que ressaltaria a escassa noção de
individualidade que pode ser evidenciada pelo desapego à personalidade das amantes.
O amor para os românticos está relacionado aos prazeres da imaginação, aos
deleites não-sensíveis, a cartas apaixonadas onde moças “derramam suas almas”.
Augusto, o jovem “ultra-romântico”, ama todas as moças porque considera que a Beleza
perfeita está distribuída em todas elas, daí a mudança permanente de amada. A
importância da alma deve ser lembrada: o amor deve atiçar as faculdades da alma,
faculdades que são ativadas pela imaginação. Daí não ser relevante a beleza física, pois
é do ideal de beleza que o apaixonado romântico se alimenta, recebendo, em troca do
amor ofertado, a alma da moça e não seu corpo. Mas a dimensão do desejo é clara: o
mancebo fica “ardendo em chamas, [e] é elevado nas asas de seu delírio” por meio do
qual se torna poeta do amor nas cartas
36
. O amor do tipo romântico é elitista e associado
aos estudos e às artes poéticas, sendo mesmo considerado por Augusto o amor
apropriado a um estudante. É, no entanto, ironizado, vulgarizado e “traduzido no código
da vida amorosa dos estudantes”
37
, ou seja, não está voltado para discussões filosóficas
e estéticas, como ocorrera no romantismo europeu. Aparece apenas como uma das
possibilidades de personalidade, sendo que estas diferentes posturas, elitistas e
prosaicas, refletem-se nas distintas condutas amorosas dos estudantes.
Fabrício se insere entre os ultraclássicos” e pode-se entender com essa
expressão que suas ações seriam consideradas tradicionais, correntes e distintas do amor
“à moderna”, dos “ultra-românticos”, como o amigo Augusto. Para ele, a imaginação
não é importante nas suas relações e o amor não deve satisfazer a alma, mas seus
sentidos, que seriam agradados por meio dos quitutes e dos beijos saborosos que ganha
em troca de sua “assiduidade amantética”. A aparência da amada é fundamental para o
amor
38
e o principal objetivo é o de não estabelecer compromisso, pois isto é custoso
financeiramente
39
. É relevante destacar que embora pertença ao grupo dos rapazes
36
Não é explícita a informação sobre se Augusto é adepto da sublimação do desejo físico, embora, diante
das acusações que direciona ao comportamento do amigo Fabrício, pareça ser um militante dos prazeres
da alma. De qualquer modo, sabemos que seus pensamentos se mantêm em seu amor de infância e daí sua
virtude. Suas colocações lembram as formulações romântico-platônicas e, em parte, cortesãs, da ascensão
moral por meio amor e da amada/senhora inspiradora. Em realidade, no capítulo 20, Carolina se torna
mestra de Augusto, ensinando-lhe a obedecer e a marcar tecidos. O rapaz, sentado a seus pés durante a
lição, chama-a frequentemente de “senhora”: posição que lembra bastante a situação entre os amantes do
amor cortês. Sobre as relações amor platônico, cortês e romântico em suas crenças de servidão ao
feminino, ROUGEMONT, 2003.
37
LAJOLO e ZILBERMAN, 2002: 92.
38
O rapaz ressalta sua incapacidade para imaginar. Enquanto os românticos vêem palidez em sua
romântica namorada, ele percebe apenas uma moça amarela.
39
Fabrício tem uma preocupação constante com dinheiro, ou melhor, em economizá-lo. A importância
dada por Fabrício ao dinheiro é tão grande que ele chega mesmo a cogitar, ainda que ironicamente, a
“clássicos”, Fabrício não es impedido de “entabular um namoro à romântica” como o
faz (afinal ele também é um estudante): vai ao teatro e escolhe uma moça qualquer, pois
a beleza não importa para um romântico, para ser alvo de seu amor. Como é possível
perceber, não se espera uma sensibilidade particular para se ser romântico, apenas uma
disposição
40
, e a capacidade de compreender os códigos idioma que o rapaz acredita
dominar -, códigos que, quando não compartilhados, podem resultar em desastre, como
de fato ocorre. Por não estar adaptado às exigências deste tipo de amor, acaba por se
considerar em apuros, condição que indica como os ideais de romantismo eram tratados
como frívolos, parte de um conhecimento adequado à elite e não como visões de
mundo, concepções para a vida
41
o que nos direciona mais uma vez para o caráter
tipificado das personagens do romance. Pode-se afirmar então que, para os homens,
dois tipos de comportamentos afetivos que se oporiam: as concepções românticas e
elitistas de Augusto e as visões comuns, tradicionais e clássicas de Fabrício. Ressalta-se,
por outro lado, que noções sobre o amor que convivem e que são tomadas
diferentemente por cada uma das personagens, de modo que a mesma formulação pode
compor o quadro de comportamentos comuns de uns e apenas aparecer como
possibilidade de ação para outros, sendo acionada quando considerada conveniente.
Estes “apuros referidos pelo personagem se relacionam com uma dificuldade
peculiar do jovem em compreender os códigos de um tipo de amor que ele mesmo
nunca tinha experimentado, mas que, de acordo com as palavras do moço, devido à
“maldita curiosidade de rapaz!... eu quis experimentar o amor platônico”
42
. A carta
relata a tentativa de Fabrício de namorar romanticamente. O curioso é que este
empreendimento não é naturalizado ou sequer percebido como corriqueiro pela
possibilidade de casar com a avó de Filipe, ou melhor, com o dinheiro dela (MACEDO, 2003: 15), o que
marca a importância deste fator para o matrimônio. Esta afirmação lembra ainda que o casamento com
mulheres muito mais velhas não era impedido ou mesmo indesejado. No entanto, em outra passagem, o
prazer da companhia de mulheres mais velhas é claramente negada: na recepção que Dona Ana oferece,
Augusto procura lugar perto das moças e é convidado a sentar-se perto de uma senhora, Dona Violante, o
que é considerado pelo narrador um castigo, um martírio. Nem mesmo um olhar carinhoso é desejado:
“Ela lançou-lhe um olhar de bondade e proteção e ele abaixou os olhos, porque os de D. Violante são
terrivelmente feios e os do estudante não se podem demorar por muito tempo sobre espelho de tal
qualidade.” (MACEDO, 2003: 29).
40
Cardoso (2008) ressalta como o romance trabalha as diferentes tendências comportamentais como
possibilidades abertas àqueles aptos a vivenciá-las, sem eliminar nenhuma delas e apresentando ainda
uma nova, a sentimental, juntamente com a nova mulher, a morena brasileira, livre e natural,
desconhecida pelos códigos literários europeus.
41
Lajolo e Zilberman (2002) demonstram como os ideais românticos eram vulgarizados pela elite
brasileira, tratados como bens de distinção mais do que como um estilo de vida. Daí os apuros de
Fabrício, que sem compreender os códigos e tratá-los como uma interessante curiosidade, acaba por
encontrar-se envolvido em um relacionamento indesejado.
42
MACEDO, 2003: 21 – grifo meu.
personagem, mas considerado avesso àquilo que ele entendia como algo comum, como
se o rapaz estivesse fazendo-o pela primeira vez e talvez mesmo produzindo um auto-
ritual de iniciação.
E é exatamente o que ele faz. Fabrício se coloca em uma situação onde acredita,
segundo os aprendizados daqueles que considera românticos, estar se envolvendo em
um relacionamento dentro dos moldes da “escola dos românticos”. Neste momento,
ficam explícitas as diferentes concepções de amor possíveis. A partir das indicações do
amigo Augusto, seu modelo em termos de romantismo, o moço parte para o teatro,
lócus aparentemente ideal para este tipo de aventura, a fim de colocar em prática todos
os comportamentos que associa com o papel de um rapaz que anseia ter uma namorada,
traste tão essencial ao estudante, como o chapéu com que se cobre ou o livro com que
estuda
43
, conquistada à romântica. Um trecho de sua carta é essencial para a
compreensão de sua percepção sobre tal relação:
Nessa noite fui para o superior; eu ia entabular um namoro romântico, e não
podia ser de outro modo. Para ser tudo à romântica, consegui entrar antes de
todos; (...) Consultei com meus botões como devia principiar e concluí que
para portar-me romanticamente deveria namorar alguma moça que estivesse
na quarta ordem. Levantei os olhos, vi uma que olhava para o meu lado, e
então pensei comigo mesmo: seja aquela!... Não sei se é bonita ou feia, mas
que importa? Um romântico não cura dessas futilidades. Tirei, pois, da
casaca o meu lenço branco, para fingir que enxugava o suor, abanar-me e
enfim fazer todas essas macaquices que eu ainda ignorava que estavam
condenadas pelo romantismo. Porém, ó infortúnio!... quando de novo olhei
para o camarote, a moça se tinha voltado completamente para a tribuna;
tossi, tomei tabaco, assoei-me, espirrei e a pequena... nem caso; parecia que
o negócio com ela não era. (MACEDO, 2003: 22 – grifos meus).
Nesta passagem percebemos o quanto o rapaz se considera inexperiente neste
amor dos românticos. Para ele, aqueles comportamentos que executava em nome dos
apaixonados platônicos não faziam sentido (macaquices) e, em diversos momentos, ele
escolhe aleatoriamente a ação seguinte, premeditando seus atos de modo pouco natural,
atos que, como ele ressalta, estavam condenados por aquela escola. A passagem
mostra ainda o quanto seus sinais, seu quadro de referências, não correspondem aos da
moça que não o compreende ou o ignora diante do que podemos chamar “seu atraso”,
promovendo um descompasso e quase produzindo a frustração de seu objetivo
43
Ibidem: 20.
galanteador
44
que é salvo pela inteligência do escravo da moça que, diferente do
rapaz, conhece tais conquistas à romântica. Diante da inacessibilidade da jovem,
Fabrício se utiliza dos serviços do cativo, pedindo a este que leve um recado à moça
onde revela sua paixão por ela. Aqui nos deparamos com uma surpresa: o escravo,
diante da incapacidade do estudante em proferir um discurso romântico coerente,
despreocupa Fabrício ao afirmar que “eu sei o que se diz nessas ocasiões: o discurso
fica por minha conta”
45
.
Mas a forma como se desenrolam esses comportamentos não é considerada
amor, pois o amor em si não pode ser um comportamento calculado, mas um estado de
espírito que, uma vez instalado, não se adapta à rotina, alterando o modo de ser comum
do envolvido. Augusto assinala que o sentimento que declara a várias moças não é, de
fato, amor
46
, enfatizando a diferença entre o ato de dizer que se ama e o fato de
efetivamente amar. O que fica patente é que ainda que não haja personagens
individualizadas, o amor provoca transformações nas pessoas, algumas paradoxais
como tornar “o velho criança”
47
: Carolina deixa de ser a menina travessa, agitada e se
torna melancólica; Augusto, o volúvel, possui uma dama nas lembranças. O amor de
que nos fala o narrador altera as pessoas temporariamente, no caso de Carolina que
volta a ser a moça feliz de antes, ou permanentemente, como ocorre com Augusto,
exemplo de restabelecimento da virtude operada por meio do amor e do casamento
(Cardoso, 2008)
48
.
Mas este amor parece ser diferente de todas as formas de amar das personagens.
Para tentar verificar esta idéia, vamos nos deter nas moças por alguns momentos. Nós as
44
Sua vontade em acreditar em tal romantismo que não conhece bem, como comprovam seus atos, mas
que de muito ouviu falar, chega a provocar invocações simbólicas que considera inegáveis: ao passar em
frente ao camarote de seu alvo de amor, observa que é o de 3 “número simbólico, cabalístico e fatal!
repara que em tudo segui o Romantismo” (MACEDO, 2003: 23). Mais uma vez, fica destacado o modo
leviano com que são tratados os ideais. Dentro de uma variada opção de supostas “idéias e condutas
românticas” que “conhece”, Fabrício aciona as que lhe parecem coerentes mesmo que não façam sentido
para ele. Do mesmo modo, as inutiliza quando acha necessário (Cardoso, 2008). Seu romantismo, como
o do amigo Augusto, é uma afetação, um “falso” romantismo (Cardoso, 2008).
45
MACEDO, 2003: 24. Não podemos afirmar com segurança quais as razões deste conhecimento do
escravo: esperteza, como salienta o próprio Fabrício ou experiência diante de oportunidades anteriores de
ser “leva-recados”, assim como de participar de conversas das moças, que teriam aprendido o código.
Podemos entender que está em Fabrício o problema, posto que prefere não acompanhar a moda e ser um
clássico (e aqui permanece a dúvida, pois é exatamente e apenas Augusto o ultra-romântico - quem, no
fim da história, se envolve na grande paixão romântica do enredo, revelando a possibilidade de o código
se referir ainda a um grupo isolado).
46
“Sim! Esse sentimento que voto às vezes a dez jovens num dia, às vezes numa mesma hora, não é
amor, certamente.” (MACEDO, 2003: 17).
47
Ibidem: 122.
48
Como ressalta Cardoso (2008), as personagens sentimentais são constantes e tendem a retornar a sua
situação inicial: Carolina volta a ser uma menina travessa e Augusto retoma suas qualidades de infância,
de pureza e altruísmo.
conhecemos especialmente pela opinião que delas têm os rapazes. Apresentadas por
meio de suas principais características físicas, Augusto delineia as personalidades desta
“coleção de belos tipos”: as pálidas seriam românticas, as louras, clássicas, logo belas e
as morenas que, embora um tanto indefinidas, seriam travessas, engraçadas,
interessantes e preferidas
49
. O grupo é ainda referido como os “três interessantes
volumes da grande obra da natureza”
50
, mais interessantes de serem estudadas do que
autores da Medicina, como o citado Velpeau, informação que confirma, como ressaltam
Lajolo e Zilberman, o aspecto frívolo com que a leitura e a literatura eram tratados no
Brasil e o grande interesse/desejo despertado pelas moças nos rapazes.
Mas além de serem interessantes objetos de estudo, as mulheres são ainda
denominadas por Augusto como “demoninhas”, referência que as ata também ao amor,
podendo oferecer-lhes as mesmas características que aquele: intruso, dominador,
transformador
51
. A esta associação feita pelo protagonista se juntam os atributos de
vaidade e ânsia por casamento, que, para os rapazes, resumiriam os fins da vida das
moças, confirmando as observações de Candido (2006) sobre as mulheres brasileiras do
período. Concebendo as moças bonitas como demônios, Augusto as aloca junto à esfera
do desejo e remete a concepções religiosas da mulher tentadora que desviaria o homem
das boas condutas. Por outro lado, as relegaria à esfera do místico, do desconhecido,
junto ao amor. É possível afirmar que uma tentativa de ressaltar a mulher como uma
figura sedutora que arrebata aqueles que elege. Mas será a mulher o amor?
Não. Embora as mulheres possuam qualidades demoníacas, as entidades
parecem ser de ordens diferentes. As mulheres são “feiticeiras” sedutoras, magas”
como indica Augusto; o amor se assemelha mais a um cupido. Para compreender
melhor tal associação, deve-se avaliar as outras características associadas às damas, a
vaidade e a quase obsessão pelo casamento, pois excluindo Carolina, a protagonista,
todas as moças querem casar e, curiosamente, é ela, Carolina, a personagem que
efetivamente se casa. De acordo com a percepção dos rapazes, as mulheres seduziriam e
49
Como indica Martins (1977-8), Macedo fornece a primeira expressão literária do modelo brasileiro de
beleza feminina em detrimento das belezas louras e pálidas, europeizadas. Carolina é o tipo desconhecido
a ser apresentado. O tipo encantador, atraente e virtuoso. Na abertura da obra, o autor identifica este novo
tipo de mulher, morenas como a brasileira Carolina, com o romance brasileiro que está ali surgindo e com
ele mesmo, o autor brasileiro de romances, que também está estreando.
50
MACEDO, 2003: 16. Embora, como veremos a seguir, as mulheres sejam associadas ao desconhecido,
não considero que a relação aqui feita entre elas e a obra da Natureza seja algum tipo de menção a uma
maior proximidade do sexo feminino à natureza em oposição ao par masculino/cultura. Ainda que de fato
seja um homem, estudante de Medicina, que se refira às moças como um objeto de estudos daquele
campo.
51
As moças, por Augusto, e o amor, pelo narrador e por Leopoldo, são alcunhados de “demoninhos” em
diferentes momentos da narrativa.
corresponderiam às propostas de todos os homens a fim de contrair o matrimônio: se
são demônios, é porque seduzem seja para serem admiradas ou para casarem. “Eu
confesso que me correspondo com cinco... isto é para ver qual dos cinco quer casar
primeiro”
52
, acentua uma das primas de Filipe, Senhorita Gabriela. O escravo de Joana
declara que ela “morre por casar”
53
. Esta concepção é compartilhada por uma senhora
amiga de Augusto, que lhe canta um lundu onde as mocinhas solteiras que desejam
casar são ensinadas a distribuir galanteios sem deixar notar sua “esquivança”, não
dispensar nenhum pretendente, mesmo que seja velho e, mais importante, o lundu
lembra à moça que não caia em amar”, não deixando escapar o primeiro “toleirão” ou
otário
54
. Não preocupação em ter afeto ou estabelecer uma relação por amor, mas
casar, sendo que o modo como estas moças são vistas em toda a narrativa pelos rapazes
revela que este comportamento não é bem visto, ainda que se encontre disseminado.
Mesmo Carolina, a mocinha que conhecerá o amor na narrativa, se envolve com
Augusto, em primeiro lugar, por vaidade, pois
acostumada desde as faixas a exercer um poder absoluto sobre todos os que
a cercam, não pôde ouvir o estudante vangloriar-se de não ter encontrado
ainda uma mulher que o cativasse deveras, sem sentir o mais vivo desejo de
reduzi-lo a obediente escravo de seus caprichos; ela pôs então em ação todo
o poder de suas graças, ideou mesmo um plano de ataque, estudou a
natureza e os fracos do inimigo. (MACEDO, 2003: 113)
Pode-se perceber que o amor para as mulheres é apenas um recurso, um meio
para adquirir um pretendente
55
. Como ressalta o narrador em tom acusatório, algumas
dessas moças são doutoras nas "ciências amatórias"
56
. Fabrício compartilha este
entendimento, relacionando a elas as atividades de “iscar, pescar e casar”, o que
corresponderiam às ações masculinas de “fingir, rir e fugir”, procedimento que, como
considera, é aplaudido e aconselhado pela sociedade. Esta colocação de Fabrício nos
remete novamente ao classicismo que o rapaz utiliza para se auto-classificar: o jovem
indica que es de acordo com a moral da sociedade, o que o diferiria de Augusto que
52
MACEDO, 2003: 75.
53
Ibidem: 24. Deve-se ressaltar o caráter acusatório da prática, pois o cativo usa metáforas negativas para
se referir ao desejo de Joana de casar: quando questionado por Fabrício sobre como tem certeza deste
anseio da moça, o escravo responde que “Pelos olhos se conhece quem tem lombrigas” (Idem).
54
Ibidem: 60.
55
A avó de Carolina ressalta, contudo, que a mulher apenas finge, mas que, na realidade, deseja ser
amada e ser senhora do mesmo que é escrava.
56
Ibidem: 26. A acusação do narrador o aloca, neste momento, junto aos clássicos, revelando que embora
tente se aproximar de Augusto e dos bons costumes (ver nota 59), a percepção sobre as mulheres parece
não se alterar.
considera atrasado nas teorias do amor, ciências as quais ele, Fabrício, se julga
conhecedor. Mesmo íntimo das teorias românticas em voga, o amigo é anacrônico, pois
“Apesar de todo o teu romantismo ou, talvez, principalmente por causa dele, não vês o
que se passa a duas polegadas do nariz”
57
, ou seja, que as mulheres querem, na
realidade, casar e que o amor que distribuem é apenas um recurso para conseguir um
noivo. Assim, Fabrício estaria mais próximo daquilo que seriam as concepções
correntes, comuns ao tempo, em oposição ao amigo que, com suas noções românticas,
faria parte de um grupo mais distanciado, menos afeito às práticas reais
58
.
Estas considerações demonstram ainda que o código de sedução está bastante
disseminado. Afinal, todos enganam, sabem que são enganados e dominam as técnicas
para reagir às encenações uns dos outros. Até mesmo Augusto, o romântico, conhece
perfeitamente as armadilhas das moças. Contudo, persiste a diferença que separa os
rapazes: os valores de Fabrício não permitem que ele se desapegue da moral que lhe
parece mais conveniente - a de que não deve gastar dinheiro com as namoradas e, por
esta razão, não deve comprometer-se com nenhuma delas -, ainda que considere ser
verdadeiro o amor de Joana, sua namorada romântica - e perceba que, caprichosa, a
moça não deixa de mostrar-lhe constante e desvelado amor. E produz uma lógica
particular: se o amor romântico se alimenta de imaginação e sonhos, elementos não-
tangíveis, porque não pode pagar toda dedicação da moça com gratidão? Augusto não
problemas nas exigências da moça, pois, no final das contas, ela ama
verdadeiramente, o narrador com ele concordando e percebendo crueldade no ato de
Fabrício
59
. Este conflito indica a coexistência das concepções de amor, pois dentro da
versão "clássica" de Fabrício, distinta dos “bons costumes”, não problema em
dispensar sem motivo uma moça à qual jurou constância e com a qual se comprometeu.
O “ultra-romântico” Augusto tem concepção oposta
60
.
57
Ibidem: 34.
58
Augusto, entretanto, entende que é inspirado pelos “bons costumes”.
59
O narrador se distancia dos clássicos e se aproxima dos “bons costumes”, noção que parece significar a
Virtude. Esta afirmativa faz com que sua noção de amor seja equivalente, em alguns pontos, aos ideais
românticos de inspiração européia que Augusto concebe como “bons costumes”, em oposição ao
classicismo de Fabrício. Como veremos, entretanto, o romantismo de Augusto não impede que ele seja
inconstante em seu amor. Mas apesar de a inconstância ser característica dos dois modelos de rapaz, é do
jovem romântico que se afeiçoa à virtuosa Carolina, pois ela se apaixona pelo moço que é capaz de
reconhecer um amor de verdade.
60
Augusto, todavia, também quebrará um jura de constância e fidelidade posteriormente, mas o fará por
amor.
A questão da constância remete a um outro problema do amor, ou melhor, para o
amor. Se as mulheres são volúveis porque visam casar
61
, os rapazes o são para satisfazer
seus desejos: são libertinos. Esta libertinagem, embora pareça ser um padrão para o
comportamento dos rapazes em suas relações com as moças, não é facilmente aceita
pelas mulheres. A avó de Carolina pistas da razão do porque este comportamento é
considerado um problema. Segundo Dona Ana, a volubilidade é prejudicial à felicidade
da família, afinal "onde iria assentar o sossego das famílias, a paz dos esposos, se lhe
faltasse a sua base - a constância?"
62
. Este argumento se segue à descoberta da
volubilidade de Augusto, um rapaz solteiro que se orgulha de seu modo de agir. A
crítica é feita diretamente ao moço que é interpelado sobre seus comportamentos pela
senhora. Mas um medo generalizado da inconstância: ao descobrirem que Augusto
troca de amada a todo o momento, todas as moças o evitam
63
, por medo de uma possível
paixão, pois dir-se-ia que receavam que de uma troca de olhares nascesse para logo o
sentimento que as devesse tornar desgraçadas.”
64
. O próprio Augusto aponta o
comportamento inconstante dos rapazes como um problema de caráter. Quando acusado
de amar diversas mulheres a um só tempo, lembra que, pelo menos, é sincero com as
moças, ao contrário de seus amigos:
eu a ninguém escondo os sentimentos que ainda pouco mostrei, e em
toda a parte confesso que sou volúvel, inconstante e incapaz de amar três
dias um mesmo objeto; verdade seja que nada mais fácil do que me
ouvirem um "eu vos amo", mas também a nenhuma pedi ainda que me desse
fé; pelo contrário, digo a todas o como sou e, se, apesar de tal, sua vaidade
é tanta que se suponham inesquecíveis, a culpa, certo, que não é minha. Eis
o que faço. E vós, meus caros amigos, que blasonais de firmeza de rochedo,
vós jurais amor eterno cem vezes por ano a cem diversas belezas... vós sois
tanto ou ainda mais inconstantes que eu!... mas entre nós sempre uma
grande diferença: - vós enganais e eu desengano; eu digo a verdade e vós,
meus senhores, mentis... (MACEDO, 2003: 17- grifos meus)
61
Não se deve entender que as mulheres não possam ser inconstantes também para satisfazer seus desejos
sexuais. Uma das jovens que troça do amor de Augusto afirma que mesmo tendo outro namorado, o
mantinha para se divertir nas horas vagas. Esta possibilidade é, no entanto, reduzida, posto que não é
amplamente discutida. Por outro lado, o desejo sexual feminino pode estar eficazmente disfarçado pela
presença da noção de vaidade, noção que qualificaria a vontade de ser desejada por vários rapazes, mas
que pode também indicar o anseio de ter vários amantes.
62
MACEDO, 2003: 47 grifo meu. Esta importância atribuída à família acentua, segundo Volobuef
(1999), o caráter conservador das nossas letras, onde dominaria “a apologia do casamento tradicional e da
família cristã e patriarcal.”.
63
Mesmo a brincalhona e aparentemente despreocupada Carolina assusta-se, mas logo acha graça ao
perceber a ironia de Augusto, qualidade que ambos compartilham, assim como a caridade e o respeito
pelo amor. Vale lembrar que ambos são virtuosos e apresentam, como ressalta Ribeiro (1987), as
qualidades desejadas para o par amoroso.
64
MACEDO, 2003: 41.
O romance parece querer assinalar esta oposição entre aqueles que
verdadeiramente apreciam ou são sensíveis ao sentimento amoroso e aqueles que não o
fazem e, ao mesmo tempo, ressalta a naturalidade dos comportamentos volúveis. A
narrativa revela que, embora com objetivos diferentes, moças e rapazes podem ser
inconstantes e, assim como elas, os homens juram amor a muitas moças com o fim de
conquistá-las. A inconstância, entretanto, tem sentidos opostos e complementares: os
homens querem amar muitas mulheres e as mulheres querem ser amadas por muitos
homens
65
. Mas, no fim, o resultado é o mesmo: todos são infiéis.
Como é possível perceber, todos desejam a todos seduzir: mesmo o temido
Augusto torna-se alvo de atenções de todas as jovens que se utilizam do desprezo como
tática para atrair o rapaz. Mas a apreensão de Dona Ana está associada a um objeto
maior, a família, e insere na discussão um tema ainda não debatido: a infidelidade. O
medo da inconstância é o medo de que este comportamento seja transferido para dentro
do casamento e termine com a estabilidade desta instituição. Em nenhum momento a
felicidade amorosa é questionada, mas, sim, o sossego da família
66
e a paz dos esposos.
Podemos afirmar que a libertinagem estaria em oposição ao amor, na medida em que
disseminaria o sofrimento nas famílias e, antes dele, talvez, o descaminho e a
infelicidade de uma jovem solteira traída em suas esperanças por um amante infiel. A
narrativa apresenta diversos exemplos dos efeitos da infidelidade. Augusto, antes de se
tornar um libertino, sofre muito por ter sido trocado e ludibriado por várias moças pelas
quais se apaixona; a avó de Carolina, quando sabe do sentimento de sua neta por
Augusto, o inconstante, teme pela felicidade da pessoa que mais ama no mundo;
Carolina também sofre quando o rapaz, ao retornar à capital, não volta à ilha como
havia prometido - sofrimento que também é remetido ao "temor da inconstância"
67
,
exemplos que ajudam a entender os problemas decorrentes de se amar uma pessoa que
não respeita o sentimento que diz devotar ao amado. Ressalta-se um tipo de relação que
possui como base a constância uma das manifestações da virtude
68
–, demonstrando
65
De fato é possível perceber que esta relação galanteadora das moças com diversos homens não se
apenas com fins de casamento. um prazer próprio, inerente à arte da sedução e que se resume bem na
frase de Joaninha quando questiona uma amiga e, ao mesmo tempo, pede de si mesma que “confessemos,
minha amiga, todas nós gostamos de ser conquistadoras.” (MACEDO, 2003: 77).
66
Costa (1999) ressalta que no século XIX a infidelidade era temida como um devastador das famílias,
tornando-se uma das razões para justificar a importância do amor entre os esposos.
67
MACEDO, 2003: 129.
68
Pena (1988) acentua que o pensamento ocidental associa o genuíno àquilo que perdura, de modo que o
amor verdadeiro seria o constante e acentua que “as mulheres exibem a virtude por excelência feminina
da permanência” (PENA, 1988: 56).
que o amor na narrativa exige este tipo de conduta
69
. O que podemos perceber é que a
problematização do amor nesta narrativa está intimamente associada às virtudes da
pessoa, ao modo como o sujeito se conduz e se comporta em suas relações. Pode-se
afirmar, daí, que questões não são colocadas ao amor, mas ao amado. O amor acontece,
e ainda que seja um desconhecido para os jovens amantes, ele está dado como
possibilidade e é tomado como elemento óbvio pela narrativa, bastando, para vivenciá-
lo, possuir as virtudes necessárias
70
. As relações entre o sentimento e a sociedade
patriarcal, a autoridade do proprietário, não são discutidos ou utilizados como elementos
para estruturar a narrativa. Considerando o amor como uma componente comum à
sociedade brasileira, o autor apenas discute os comportamentos dos amantes em suas
relações íntimas, particulares, e não nas relações que o casal deve estabelecer com a
sociedade, com os pais. Embora se utilize de diversos elementos da realidade, o
romance não segue o “ritmo geral da sociedade”
71
, pois deixa de abordar uma das
principais relações que o indivíduo, em contexto patriarcal, deve estabelecer: a relação
com a autoridade da família.
Retomando a discussão sobre a constância nos comportamentos amorosos dos
rapazes e moças no romance, é necessário assinalar a diferença entre libertinagem e
galanteria. A galanteria aparece como prática disseminada na obra. Embora associada à
volubilidade, não é, como aquela, tomada como ruim em essência, sendo considerada -
pelas moças, deve-se salientar uma forma legítima de constituir uma relação. A
galanteria faz parte da estratégia de sedução, sendo que seu problema pode estar na falta
de limites. Joaninha, uma das moças presentes na festa, afirma mesmo que, embora
galanteadora, sabe amar "até o extremo"
72
. Esta ambigüidade levanta a questão: será, de
fato, a galanteria um problema? Neste momento, podemos considerar como resposta
parcial que sim. Afinal, um jovem galanteador não hesitará em seduzir sempre uma
nova pessoa e brincar com os sentimentos de outra. O que se revela é que uma pessoa
pode usar a galanteria como técnica para seduzir, conquistar um casamento ou namoro,
mas não deve transformar-se em uma pessoa volúvel, desrespeitosa para com os
sentimentos alheios e, conseqüentemente, infiel. É, portanto, viável amar tendo sido
galante, localizar um desejo que foi difuso, vindo a ser constante e virtuoso para com o
69
Cardoso (2008) ressalta que uma das principais características das personagens em narrativas
sentimentais, como as de Macedo, é o virtuosismo. Quando mudanças em suas personalidades que os
retire de sua virtuosa jornada, são apenas temporárias, pois suas qualidades são constantes.
70
Ainda que óbvio para o enredo, o amor sincero só é viável para alguns.
71
CANDIDO, 2004b.
72
MACEDO, 2003: 103.
amor que escolher. Mas um libertino não pode amar, porque amar exige constância no
amor e o libertino é constante na permuta
73
, é infiel e ofende a moral das famílias ao
inserir o desregramento sexual no interior da instituição
74
. Concepções variadas e talvez
contraditórias sobre a galanteria estão presentes e dialogando: embora todos sejam
galanteadores, as moças acham uma verdadeira desgraça ser hoje moda ouvir com
paciência quanta frivolidade vem (...) aos lábios de um desenxabido namorado”
75
,
enquanto os rapazes a consideram recurso necessário para que satisfaçam seus desejos.
De maneira semelhante, os moços consideram vaidade o vício de galanteio entre as
moças e um problema a obsessão feminina em casar.
Não se deve entender, contudo, que a galanteria, por poder ser diferenciada da
libertinagem, seja bem vista, uma vez que é freqüentemente atacada no conjunto da
narrativa: 1) na repreensão de Augusto às moças galanteadoras
76
; 2) nos comentários de
Fabrício a Augusto sobre as moças loucas em agarrar um marido; e 3) na valorização de
Carolina, moça que se comporta de modo distinto, não se regulando pelo código
galante, sendo caridosa, sincera, nunca buscando a companhia de rapazes, não cedendo
a ninguém, nem procurando agradar. Comporta-se muito diferentemente das outras
moças, vaidosas e namoradeiras, mas acaba por seduzir a todos com sua simplicidade
77
.
Não tendo digressões explícitas sobre o amor, a narrativa não deixa de apontar os
comportamentos comuns e repreensíveis associados às relações afetivas, assim como
73
“(...) os libertinos procuram atingir a constância através da permuta, as preciosas através da recusa da
última vontade” (LUHMANN, 1991: 72). Daí talvez Augusto, o rapaz que não ama a mesma jovem por
mais de três dias, um libertino, poder afirmar que não é amor o sentimento que jura a várias moças todos
os dias.
74
Costa (1999) demonstra que as figuras do libertino e a do pai de família, homem que se submete às leis
e às regras morais, eram postas em oposição pelos médicos. O objetivo do pai é criar os filhos para a
Humanidade, os indivíduos da nova sociedade brasileira. Para tal, deve respeitar a pureza da família, não
trazendo para seu interior o mundanismo de prostitutas e mulheres perdidas, como faz um homem
libertino.
75
MACEDO, 2003: 77.
76
Augusto chega mesmo a acusar a Senhorita Gabriela de não acreditar no amor, apenas na galanteria,
exatamente porque se corresponde com vários rapazes, não se importando com os sentimentos, apenas
com um bom casamento - "Eu confesso que me correspondo com cinco... isto é só para ver qual dos cinco
quer casar primeiro;" (MACEDO, 2003: 75).
77
MACEDO, 2003: 93. Em um sarau, Carolina é a única moça que não passa horas no toucador, usa jóias
ou vestidos exuberantes. Sua beleza é natural, se baseia especialmente em seus dotes intrínsecos. Carolina
é a moça que mais se destaca, o que revela a exaltação, por parte da narrativa, da simplicidade. Mas esta
simplicidade não significa desleixo ou falta de malícia, pois somos informados que a moça também busca
seduzir: o vestido branco que usa no sarau acentua sua cor e o comprimento permite que seus belos pés
sejam vistos.
aqueles considerados corretos e mais atraentes
78
e que, sem dúvida, estão muito
associados a uma vida afastada das regras da Corte, da vida elegante da sociedade.
Ainda que não possa ser considerado um elogio à vida no campo, Carolina, a
moça caridosa e simples, vive perto da cidade, mas não está em um centro como o Rio
de Janeiro e não participa da vida agitada da Corte. Em um diálogo entre Leopoldo, um
dos estudantes, e seu amigo Augusto, o primeiro teoriza sobre as vantagens de se ter
uma noiva do campo, dizendo que o verdadeiro amor não se muito com os ares da
cidade”. A moça da cidade está exposta a diversas e mutáveis sensações que a tornam
volúveis. A jovem do campo recebe poucos estímulos, de modo que é mais apta a se
fixar em um objeto, fazendo com que “sua alma, quando chega a amar, é para nunca
mais esquecer, é para viver e morrer por aquele que ama”
79
.
Sua alma [da moça da cidade] tem de sentir ao mesmo tempo o grito de dor
e a risada de prazer, os lamentos, os brados de alegria e o ruído do povo;
depois, tem o baile com sua atmosfera de lisonjas e mentiras, onde ela se
acostuma a fingir o que não sente, a ouvir frases de amor a todas as horas, a
mudar de galanteador em cada contradança. Depois, tem o teatro, onde cem
óculos fitos em seu rosto parecem estar dizendo - és bela! e assim enchendo-
a de orgulho e muitas vezes de vaidade; finalmente, ela se faz por força e
por costume tão inconstante como a sociedade em que vive, tão mudável
como a moda dos vestidos. (MACEDO, 2003: 111)
Leopoldo inclui Carolina entre estas moças, mas é indiscutível que o ambiente
em que a jovem vive é distinto. Carolina cresce em uma ilha afastada da cidade com sua
avó
80
. É caridosa, não é vaidosa ou namoradeira e, mais do que isso, é constante e fiel a
seu marido”, pois não se interessa por qualquer um dos rapazes e, quando cede a
Augusto, já sabe que ele é aquele menino do passado
81
. Carolina exige que a promessa
de constância e amor feita na infância seja respeitada. O menino virtuoso com quem se
unira deve voltar a sê-lo. Mesmo sabendo que é amada por Augusto e consciente de que
78
Augusti (1998) ressalta a função como “guia de conduta” dos romances de Macedo. A autora
demonstra que o romance em sua fase inicial era associado com esta finalidade, sendo freqüentemente
lido desta forma pela crítica. Augusti afirma ainda que é provável que o autor fizesse do romance esta
mesma leitura. No entanto, destaca que A Moreninha não possui declarações diretas sobre os
comportamentos considerados incorretos, como ocorre com o segundo romance do autor, O Moço Loiro,
onde o narrador claramente acusa a galanteria. Mas ainda que sutis, em seu primeiro livro já há menções a
comportamentos considerados corretos. Esta hipótese, contudo, não contraria Roncari (1995) que
considera que se uma das possibilidades do romance é criticar a sociedade, Macedo teria optado por fazer
um romance que fica “na superfície das suas observações”, não havendo espaço para críticas. Como
ressaltado nesta dissertação, as críticas estão presentes no romance de Macedo, mas são, no entanto,
superficiais.
79
MACEDO, 2003: 111.
80
Para observações sobre a ilha, ver nota 28.
81
Ele descobre no capítulo 6, quando ouve Augusto contar a história de sua infância à Dona Ana, a avó.
ele é o menino com quem se casara na infância, ela questiona sua sinceridade e teme sua
inconstância, pois ele pede para que aceite ser sua noiva mesmo sabendo que para isso
virá a descumprir sua palavra, a promessa que fizera com a menina da praia. Como a
moça ressalta, Augusto esquece o dever por causa da paixão
82
, demonstrando-se adepta
das concepções de amor constante da avó e do velho doente que os casou
83
. Como
lembra Augusti (1998), Carolina é o tipo feminino eleito pela narrativa e revela um
padrão de comportamento correto para uma mulher que merece amar e ser amada. Para
a autora, Carolina, como todo o romance, é um guia de conduta para os jovens.
O comportamento dos rapazes também é comparado com o de Augusto que é
tomado como um parâmetro positivo. Sendo volúvel, não engana as moças, assumindo
sua posição. Amou verdadeiramente por três vezes, mas foi sempre vítima do amor que,
como o próprio acentua, com ele “cismou”, resolvendo que todas as moças deviam rir-
se e dele zombar
84
. D sua guerra com o sentimento que se expressou em sua
volubilidade/vocação para o desejo ou recusa ao amor e, ao mesmo tempo, em sua
fixação nas memórias da esposa de infância. Mas a virtude de Augusto é menor do que
a de Carolina e se ele pode ser feliz no amor é porque reencontra sua bela mulher”, a
menina com quem casara e que o conduz novamente para o caminho da constância e da
família.
É necessário analisar a concepção de amor apresentada pelo narrador do
romance e que, como já é possível perceber, é o tipo de amor de Carolina
85
. O narrador
define o amor como um invasor, um hóspede quase sempre importuno” que “faz-se
dono da casa alheia, [e] toma conta de todas as ações”. Estas referências são
fundamentais para se entender essa idéia: o amor é um hóspede que não pede licença,
um “demoninho” que entra nos corações, ou seja, está fora das pessoas, é estranho a
elas, os efeitos que causa são desconhecidos, é uma novidade. Este afeto não pode ser
controlado. Se é um invasor, não obedece às regras sociais e, como ocorrera com a
união da infância, não envolve a participação dos pais. Para os jovens, não outros
interesses além do amor que sentem e a certeza da constância deste sentimento.
82
“Porém passou o tempo do galanteio, e eu devo lembrar-lhe o dever que com a paixão esquece.”
(MACEDO, 2003: 133). A moça diz, anteriormente, que ele não é inconstante porque preservou “com
religioso empenho” seu amor de infância, mas que via ser logo, pois se apaixonará na ilha. Carolina
sabe que Augusto é seu amor de menina, mas não confessa. Ela deseja fazer com que seus
comportamentos corruptos sejam alterados e que ele a ame, assim como ocorre com todos aqueles que a
conhecem: ela quer disseminar sua virtude, fazendo com que ele deixe de desejar todas as moças.
83
“se tendes bastante força para ser constante e amar para sempre aquele belo anjo...”, são as palavras do
velho.
84
MACEDO, 2003: 56.
85
Ainda que o afeto que sente pelo rapaz seja novo para ela, a constância e a fidelidade não são.
Invadindo os corações de Carolina e Augusto, o narrador avalia as principais
características do amor
86
, ficando bastante evidente que o principal aspecto que pretende
destacar é a impressionante alteração “no juízo” e nos humores que o amor provoca
87
.
Mas o mais interessante é que, neste momento, as personagens ainda não sabem que
amam. Ainda que Carolina seja o modelo de virtude, “acostumada desde as faixas a
exercer um poder absoluto sobre todos”, os efeitos a alcançam de um modo novo, pois é
um tipo de afeto que nunca experimentara antes.
Mas o narrador faz mais intervenções acerca do amor. O amor não é apenas um
demônio, ele é uma criança como Carolina e o romance. Assim, a idéia de
“demoninho” aqui parece não estar relacionada ao Mal, a seus representantes ou ao
pecado, mas a “um menino doidinho e Malcriado” que quer fazer o que deseja, que,
se contrariado, se torna um incômodo para todos que estão a sua volta, pois faz com que
os amantes enlouqueçam os pais, os amigos e os escravos
88
. O narrador tem
recomendações aos pais: já que é um menino malcriado, trate-o como se deve tratar esse
problema, deixando-o fazer o que deseja, para que ele desgoste e deixe de lado a
fixação.
O amor é ativo enquanto os amantes são passivos, seja porque padecem quando
tentam controlar seu próprio amor, quando são impedidos de vivenciá-los ou porque em
relação a ele só podem obedecer
89
. O amor é extremamente voluntarioso e incontrolável,
pois é como um “um anzol que, quando se engole, agadanha-se logo no coração da
gente, donde, se não é com jeito destravado, por mais força que se faça mais o maldito
rasga, esburaca e se profunda”
90
. E quando afastados um do outro, os amantes sofrem e
86
Do mesmo modo que o amor, demoninho invasor, entra nos corações, o narrador também o faz o
capítulo XIX é intitulado “Entremos nos corações” para contar a seus leitores como se sentem e
comportam os apaixonados.
87
O amor domina para alterar. Os amantes perdem suas antigas identidades e ganham novos nomes de
amor que remetem a um novo universo que é construído para ele, sua comunidade sentimental – os novos
nomes são dados quando Carolina ensina Augusto a bordar, atividade tipicamente caseira e feminina.
Quando pequenos, são “meu marido” e “minha bela mulher”. Agora, no reencontro, “Eles não se
chamaram mais por seus nomes próprios, o amor lhes tinha ensinado outros, eram: ‘meu aprendiz’ e
‘minha bela mestra’.” (MACEDO, 2003: 118), passagem que lembra as reflexões de Viveiros de Castro e
Benzaquen de Araújo (1977) que demonstram este mesmo processo no Romeu e Julieta de Shakespeare.
88
A ansiedade do Augusto, inseguro em seu amor, é descontada em seu “moleque” que recebe punições
por qualquer erro que comete. O amor os torna sentimentais “e com seu sentimentalismo estavam
azedando a vida dos que lhes queriam bem. Os namorados são semelhantes às crianças: primeiro
divertem-nos com suas momices, depois incomodam-nos choramingando” (MACEDO, 2003: 127).
89
“o amor, mais forte que seu espírito, exercia nele um poder absoluto e invencível” (MACEDO, 2003:
125). E o poder do amor está acima do poder do pai que também cede, ainda que a outro amor, o familiar,
afinal “Que milagre não será capaz de fazer o amor dos pais?” (Ibidem: 127).
90
MACEDO, 2003: 125.
ficam doentes, melancólicos, emburrados, não pensam em mais nada, tudo desaprovam
e tudo lhes desagrada
91
.
O amor acontece, se apossa dos enamorados e altera suas personalidades sem
que eles sequer saibam que amam apenas no capítulo XXI do livro, quando
conhecemos todos os efeitos que o amor provoca nos apaixonados, é que Augusto passa
a crer que ama e deixa de ser aquele mancebo cheio de dúvidas e temores da semana
passada; é um amante que acredita ser amado”
92
, e tal se dá apenas após notar, por meio
de pequenos contatos físicos que provocam tremores na moça e da troca mútua de
olhares em chamas, uma resposta positiva para seu amor. Não há, a princípio, amor
como sentimento, apenas como sensações, o que não impede que este venha a se tornar
aquele, reafirmando e marcando a faceta de novidade que o amor parece ter para os
amantes na narrativa. Ademais, percebe-se que o amor dos românticos exaltado por
Augusto, não é o mesmo que agora experimenta. De certo modo, o amor de fato, como
o que sente por Carolina, não era descrito nas teorias românticas. Ele é novo para
Augusto como o romance nacional é novo para os brasileiros. Aparentemente, o
romantismo que prega não é suficiente para explicar o amor que vivencia. Esta posição
em que se encontra o romantismo não elimina, contudo, sua presença e influência em
nossa sociedade, como comprovam as reflexões de Augusto e também o esforço de seu
amigo Fabrício em “entabular um namoro à romântica” ou platônico
93
. Como o rapaz
enfatiza, ele decide experimentar este amor por causa das insistências de Augusto,
revelando a importância destas idéias que, contudo, eram freqüentemente ironizadas
94
.
O livro como um todo apresenta diversas características ou situações presentes
nos romances sentimentais e românticos. O amor dos protagonistas se inicia ainda
quando são crianças, remetendo o sentimento à pureza que contrariaria a perversão da
sociedade, corrupção que se temporariamente com Augusto durante sua juventude.
Outros exemplos podem ser assinalados: os meninos se conhecerem na praia, ambiente
natural, como os exaltados pelos românticos; a inserção da narrativa de amor entre
91
Efeitos que acometem Carolina e Augusto. O romance A Moreninha dissemina entre os leitores quais
os efeitos que o amor tem sobre os amantes. Os capítulos XIX a XXII descrevem os diferentes resultados
do amor, os bons e os ruins, desde os tremores de prazer com os toques acidentais até a febre que assola
um amante impedido de encontrar sua amada.
92
MACEDO, 2003: 118/9.
93
As idéias de amor romântico e platônico são associadas na narrativa.
94
Fabrício, por exemplo, não entende os prazeres provenientes dos “derramamentos de alma” que tanto
exalta Augusto e lembra que “em patologia se trata mui seriamente dos derramamentos”. E não via tantas
vantagens nos delírios e chamas da imaginação, pois estes quando “se desfazem, o poeta não tem, como
eu, nem quitutes nem empadas”, além do que “beijos por beijos, antes os reais que os sonhados.”
(MACEDO, 2003: 21).
índios - figura também explorada pelo movimento devido a sua inocência - e a
associação deste amor com o dos protagonistas, pois Augusto bebe da fonte localizada
na gruta da índia Aí, fonte que, no mito, são as lágrimas da jovem e que quando
ingeridas transmitem o amor, de modo que, inevitavelmente, aquele que bebe passa a
amar
95
. Como ressalta Cardoso (2008), a própria água da gruta, o mar que rodeia a ilha,
a fluidez e a transparência são imagens exploradas pelas narrativas sentimentais, na
medida em que o líquido seria um veículo de comunicação sem palavras
96
.
Mas este amor que se impõe aos amantes não deixa de contar com a participação
de Carolina. Augusto, que tinha classificado todas as moças como demoninhas,
esclarece que não pode esquecer Carolina porque a “menina não é como as outras: é
uma tentação... um diabinho...”
97
. Mas se todas as belas moças são demoninhas, porque
Carolina é diferente? Será uma característica particular a ela? Sabemos que ela também
se assemelha às outras, calculou a sedução, se esforça, provoca Augusto, quer
conquistá-lo. A menina que atualmente encanta Augusto, contudo, se caracteriza por
qualidades infantis: travessura, liberdade, simplicidade, pureza, sem contar a nobreza de
seus atos. No entanto, à medida que a moça se utiliza de estratégias para seduzir o
rapaz, acaba também o admirando. O texto tem tom de “quem brinca com fogo...”, pois
a mocinha que pensa dominar o amor, é derrotada por ele: “o combate foi fatal a ambos,
talvez, e no fim dele a orgulhosa guerreira apalpou o seu coração e sentiu que nele havia
penetrado um dardo; consultou a sua consciência e ouviu que ela respondia; se venceste
também estás vencida!”. Ela não pode controlar o amor.
É Carolina - a diabinha diferente - quem produz o amor? A moça quer
demonstrar ao rapaz que ele não é indefectível, mas ela que assim se considera, também
não o é. Entretanto, Augusto que acredita que a moça é diferente, ressalta também que o
95
As lágrimas são um filtro de amor, sendo que o poder dos filtros tem origem ainda mais longínqua: é só
pensar, por exemplo, no romance de Tristão e Isolda, onde os amantes passam a se amar após beberem
um filtro de amor preparado pela mãe da moça. Rougemont (2003) sugere que o filtro de amor simboliza
o tirânico e incontrolável desejo que é próprio dos corpos humanos. Além disso, ao trazer a idéia do filtro
que enfeitiça, a narrativa permite que os amantes deixem de ser responsáveis por seus atos, tudo é por
razão do feitiço do amor que é maior que eles. E mais: assim como no mito de Tristão e Isolda, é por
acaso que o filtro é bebido, afinal Augusto bebe da água da gruta como outra qualquer, ele está com sede
depois de ter narrado suas tristes aventuras de amor. Como destaca ainda Rougemont, o filtro representa
“a eleição de uma alma pelo Amor todo-poderoso, a vocação que a surpreende como que contra sua
vontade” (ROUGEMONT, 2003: 200), acaso que, para o autor, remete ao aspecto místico do mito do
amor, reforçando as reflexões aqui empreendidas que apontam para a noção de amor incontrolável e
dominador.
96
“Water stands for the ideal communication of feeling, a communication without language. Feeling is
transmitted by a physical medium a medium, however, that is limpid, transparent, and in constant
movement or circulation – creating an immediate bodily response.” (CARDOSO, 2008: 55)
97
MACEDO, 2003: 111.
amor é fruto de sua imaginação. O rapaz julga que a história contada por Dona Ana
sobre o amor dos índios ocorrida na ilha e o fato de ter bebido a água da fonte, foram
fatores que muito o impressionaram, pois aquilo que ele considerava uma mentira
influiu sobre sua imaginação e tornou-se verdade. As definições do amor são muito
variadas. É necessário retomar a história dos jovens para compreender melhor essa força
do amor sobre eles.
Carolina e Augusto se conheceram ainda crianças em uma praia. Tornaram-se
amigos e, no mesmo dia, socorreram uma família pobre onde o chefe estava prestes a
falecer. O moribundo agradecido casa os jovens
98
e faz com que troquem prendas como
símbolo de seu casamento. As crianças se despedem sem saber seus nomes e não mais
se encontram. O rapaz nunca esquece aquele dia. Augusto cresce, passa a freqüentar
reuniões “onde as belezas formigavam e os amores eram dardejados por brilhantes
olhos de todas as cores. Além disto, freqüentava as casas de meus companheiros de
estudos e os ouvia contar proezas de paixões, triunfos e derrotas amorosas.”
99
.
Freqüentando estes lugares e ouvindo as histórias, desperta para o amor e anseia viver
suas próprias aventuras. Mas Augusto é infeliz em todas as suas tentativas amorosas,
sendo trocado por todas as mulheres com quem se envolve. São todas namoradeiras que
se correspondem com mais de um homem. Como destaca Augusto, “Não sei (...) que
teve o amor comigo, para entender que todas as moças deviam rir-se de mim e zombar
de meus afetos!”
100
, ressaltando sua decepção
101
.
O romantismo de Augusto é conseqüência das decepções que vivenciou e que o
fizeram se apegar àquele ideal de mulher representado pela menina da praia. O rapaz
busca este ideal de Beleza e mulher em todas as moças, daí a permuta constante. Mas as
frustrações por que passa Augusto não parecem ser casos de azar. A hipótese que aqui
se considera é que o amor que se apresenta como virtuoso no romance é aquele amor
puro das crianças, mas que também é uma metáfora do amor conjugal, o que dotaria a
narrativa de aspectos morais bastante fortes. Augusto não é um rapaz solteiro, pois ele
casou-se com Carolina ainda criança e, mais, jurou-lhe constância e amor eterno. Como
conseqüência, qualquer relação com outras moças seria, na realidade, infidelidade, um
98
Como ressalta o velho, o “Eterno”, Deus, fala por ele. Há, efetivamente, um casamento, uma união de
virtudes que não é, contudo, o sacramento religioso que acontecerá, de acordo com os meninos, “quando
formos grandes”.
99
MACEDO, 2003: 56.
100
Idem.
101
Por outro lado, ao personificar o amor, o rapaz enfatiza o domínio do sentimento sobre sua vida e o
reduzido controle que percebe ter sobre ele.
desvio da promessa que estabelecera. O castigo que o rapaz considera ser cisma do
sentimento ganha ares de correção de um amor que exige seus direitos, afinal ambos
juraram serem constantes e amarem-se para sempre, trocando objetos como prova da
aliança e sendo “abençoados por Deus e unidos em nome d’Ele!”
102
. As menções
religiosas são claras, o casamento é sacramento abençoado por Deus, ainda que não
confirmado pela Igreja o que vai acontecer, como é sugerido no fim do romance. Por
outro lado, a afirmação da aliança, relega à esfera da ilegitimidade as outras relações de
Augusto. Daqui concluímos que o amor virtuoso se associa à conjugalidade, devendo
ser eterno, único, abençoado, fundamentado na pureza, na inocência e no afeto. Por
outro lado, se a narrativa acusa os casamentos interessados, mantém-se atrelada à idéia
do matrimônio cristão. O que aparentemente se coloca é que se a galanteria é comum,
para aqueles que encontraram o verdadeiro amor e o juraram ela não pode ser uma
possibilidade. Do mesmo modo, vemos que a conquista fácil ainda que não seja
reprovada não pode ser destino daqueles que estão comprometidos pelo amor, pois
o múltiplo desejo de Augusto é finalmente localizado e sublimado quando reencontra
“sua esposa”
103
.
O que é importante enfatizar é que as crianças virtuosas, abençoadas e casadas
ainda na infância, têm a oportunidade de se conhecer quando adultos, pois não são
obrigados a casar com algum pretende que não conhecem e que foi escolhido pelos pais.
O afeto que se desenvolve entre os dois pode ser efeito do encanto da ilha, mas são as
qualidades dos amantes que estão envolvidas e que confirmam a virtude da infância.
casados pelo velho, eles têm, no entanto, oportunidade de crescer e se conhecer após
aquela primeira união. Quando conhece Carolina, ainda na infância, Augusto a admira
pela nobreza das ações e pela pureza, mas, afastados, o rapaz conhece outras mulheres.
Contudo, aparentemente, não pôde amá-las e o amor que sente por Carolina não é
comparável a nenhum outro. O narrador acentua que Augusto ama deveras, e pela
primeira vez em sua vida”
104
, revelando uma problemática interessante. Por um lado, tal
afirmação confirma o que pensa o próprio rapaz sobre o amor, pois Augusto também
considera que o sentimento que agora vivencia é novo e tão distinto de tudo o que
102
MACEDO, 2003: 52.
103
Deste modo, os protagonistas são tomados como referências, embora não sejam modelos de perfeição:
passeiam pela galanteria, mas tendo contato com o amor, são por ele submetidos quando tentam fugir do
compromisso. Aquele que se casa por amor, nele deve ser constante. Mas a vida apresenta possibilidades
ao homem, devemos acentuar - e é quando a narrativa apresenta o mítico amor, intervindo, provocando
situações impossíveis.
104
Ibidem: 125 – grifos meus.
houve antes que não pode ser igualado e chamado de amor, “porque o amor é um nome
muito frio para que o pudesse exprimir!”
105
. Por outro, afirma que o sentimento que teve
pela menina da praia não é igual ao amor de que fala o narrador e que vivencia agora.
Portanto, mesmo sabendo que o amor que oferece às moças não é amor verdadeiro, ele
ainda não experimentou “o amor”, este sentimento distinto, pois ele está se dando pela
primeira vez com a Carolina moça. Esta passagem acentua as dissonâncias existentes
entre o amor vivido, o concebido e os ainda não experimentados, mas que se oferecem
como possibilidade. É possível que Augusto ame seu amor de infância e o guarde como
lembrança, que seja um rapaz adepto dos ideais românticos, mas também um jovem
galanteador que pensa nas moças como “divertimentos dos meus olhos e o passatempo
de minha vida”, e que, apesar de tudo, não tenha experimentado o amor verdadeiro o
do narrador, o que sente por Carolina
106
.
Independente das possibilidades do amor, entretanto, é necessário ressaltar que a
narrativa indica que, para que ele ocorra, a família não pode estar envolvida. A ausência
das figuras de autoridade é constante no romance: Carolina é órfã de pai e mãe e os pais
de Augusto vivem longe da Corte e da ilha onde se passam os acontecimentos. Este
afastamento aparece como um recurso narrativo fundamental para que haja o
desenvolvimento do amor em A Moreninha.
1.2 - O Amor vai às compras: Senhora, o dinheiro e a regeneração da
pessoa
“Representamos uma comédia, na qual ambos desempenhamos o nosso papel com
perícia consumada. Podemos ter esse orgulho, que os melhores atores não nos excederiam.
Mas é tempo de pôr termo a esta cruel mistificação, com que nos estamos escarnecendo
mutuamente, senhor. Entretemos na realidade por mais triste que ela seja; e resigne-se cada
um ao que é, eu, uma mulher traída; o senhor, um homem vendido.”
Aurélia Camargo, protagonista de Senhora.
O Romance
A partir da análise do romance anterior é possível afirmar que o amor que se
quer hegemônico se direciona para o casamento, como base dele, sendo sinônimo ainda
da constância, o fundamento da paz das famílias. As relações cuja base não é o amor são
desprivilegiadas, mesmo que comuns. Em Senhora, o problema representado pelas
105
Ibidem: 109. Este novo sentimento é, portanto, um novo amor.
106
O mesmo vale para Fabrício que, sendo um “ultraclássico” e se comportando segundo as regras desta
escola, não está impedido de ser um romântico e de se utilizar das idéias e comportamentos deste outro
grupo.
relações onde o amor não se configura como esta base da relação amorosa se revela
mais definido à proporção em que as personagens ficam mais psicologizadas e o enredo
se torna mais denso e estruturado. Estas pequenas diferenças produzem resultados muito
profundos. O romance de Macedo afasta as personagens de suas famílias e da
movimentada vida da Corte e seleciona um grupo específico de pessoas jovens e
senhoras de classe alta -, para construir sua narrativa. Esta escolha do autor produz
conseqüências ímpares. Praticamente retirando os homens adultos, não menções a
autoridade do pai e a questões de ordem econômica. Fora do grande centro e
circunscritos a seu grupo social e etário, todos os problemas se restringem à vida
afetivo-sexual. Como foi possível perceber, o principal problema enfrentado pelo amor
e o principal ponto de tensão do enredo é a inconstância de um dos rapazes. Este
reducionismo e a retirada da família do enredo provocam problemas para a consistência
do texto. Quando um autor se utiliza de dados da realidade, do ambiente que o cerca,
buscando produzir uma narrativa realista, estes dados devem seguir o ritmo da
sociedade”, compor a história, de modo que os elementos sejam formalizados para
estruturar o romance. Quando surgem desestruturados, não fornecem realismo à
história. Falta ao romance A Moreninha uma discussão mais densa sobre as relações
familiares que dê esta consistência ao enredo.
Diferentemente, Senhora, ainda que com alguns problemas similares, abre
espaço para a discussão de questões mais profundas, envolvendo uma crítica à
sociedade do período. A Moreninha também apresenta uma crítica à sociedade, ao
comportamento galante e interessado que desviariam as relações afetivas do amor,
fixando-as no casamento ou no desejo. Mas a crítica é superficial, não uma
problemática constituída, pois o amor é um dado, um elemento desconectado do todo.
Quando Macedo deixa de tratar dos problemas inerentes aos relacionamentos baseados
no amor em uma sociedade patriarcal, o romance perde em realismo. É o que ocorre
quando o autor se utiliza da eliminação ou afastamento da família, seja pela orfandade
ou pelo isolamento na ilha, como recurso estético a fim de permitir o desenvolvimento
livre do casamento por amor. Os namoros e o romance como um todo são descrições
sobre o período, um registro, sem que, todavia, capte os princípios que organizam a
sociedade, recriando-os na narrativa segundo a estrutura particular do enredo. Ainda que
com evoluções estéticas significativas, esta dificuldade em discutir a presença da família
se repete no romance de Alencar. No entanto, é possível considerar que muitos
problemas tenham sido enfrentados por Macedo pelo fato de A Moreninha representar
uma novidade. Como ressaltam Lajolo e Zilberman (2002), Macedo tinha que se
preocupar com os inexperientes leitores, de modo que parte de seu trabalho é ensiná-los
a ler um romance. Daí a narrativa conduzir os leitores através do texto, orientando-os
sobre o tempo e o lugar da narrativa, explicitando a continuidade da história:
A cena que se passou teve lugar numa segunda-feira. se foram quatro
dias, hoje é sexta-feira, amanhã será sábado. (MACEDO, 2003: 19)
Poucos momentos depois da cena antecedente... (Ibidem: 45)
Um autor pode entrar em toda parte e, pois... Não, não, alto lá! no gabinete
das moças... não senhor, no dos rapazes, ainda bem. (Ibidem: 88)
Como ressalta Candido (2006), a preocupação do autor é a “possibilidade
receptiva do leitor”:
sua força não provém da singularidade do que exprimem, mas do fato de
saberem fornecer ao leitor mais ou menos o que ele espera, ou é capaz de
esperar (CANDIDO, 2006: 453).
Macedo quer agradar este público que está aspirando a este tipo de literatura: a
falta de espaço para críticas, assim como apego aos temas leves, podem estar associadas
a esta juventude da forma romance na sociedade brasileira e a grande dependência que a
literatura ainda tem para com os proprietários. O autor está ciente de tal imaturidade e
pede ajuda do público a fim de que possa melhorar sua produção:
Eu, pois, conto que, não esquecendo a fama antiga, o público a receba [a
Moreninha, sua “filha”] e lhe perdoe seus senões, maus modos e
leviandades. É uma criança que terá, quando muito, seis meses de idade;
merece a compaixão que por ela implora; mas, se lhe notarem graves
defeitos de educação, que provenham da ignorância do pai, rogo que não os
deixem passar por alto; acusem-nos, que daí tirarei eu muito proveito,
criando e educando melhor os irmãozinhos que a Moreninha tem cá.
(MACEDO, 2003: 11/2)
O contexto em que o romance Senhora é publicado é distinto. Há, entre os dois
romances, mais de trinta anos: não apenas se alterou a sociedade, mas a forma em si. É
possível considerar que o romance, mais estabilizado, não precise mais orientar os
leitores dentro do texto, pois possui uma breve história e pode discutir os problemas
sociais com mais desenvoltura, respondendo questões que se apresentam à sociedade e
disseminando idéias e comportamentos. Com o passar dos anos, algumas idéias parecem
ganhar mais peso. Em A Moreninha, a crítica ao casamento sem afeto está se
constituindo como possibilidade, mas os problemas inerentes ou decorrentes deste tipo
de relação ainda não se encontram inteiramente formulados. Em Senhora, a vida galante
se torna um problema de fato. As personagens estão mais definidas e as conseqüências
de suas condutas se tornam um problema, motivo para reflexão, como o são as relações
da sociedade de modo mais amplo. Ainda que também restrito a personagens das
classes altas, Senhora discute a ascensão social e as tensões do enriquecimento. Neste
romance, o narrador e a protagonista Aurélia possuem concepções muito próximas
sobre as relações afetivas e, na maioria das vezes, semelhantes, como no que se refere
ao casamento de conveniência. A narrativa discorre sobre a corrupção da sociedade e do
indivíduo pelo dinheiro, discussão que fornece à narrativa mais consistência e realismo:
realismo que o afastamento da vida movimentada da cidade, encontrada no romance de
Macedo, não permitiu.
Senhora narra a vida de Aurélia Camargo, moça pobre de 18 anos que ascende
socialmente com a herança que recebe de um rico avô. É filha de Pedro e Emília, jovens
que se casam por amor, contrariando a vontade de suas famílias. Ainda moça, apaixona-
se por Fernando Seixas, rapaz que após noivar com a jovem, a abandona por outra
devido ao dote que virá a receber. Aurélia é uma moça simples, com valores familiares
fortes e com uma alma pura, o que a torna apta para amar de maneira particular: o amor
que se alimenta de ideais. Fernando não percebe a profundidade deste amor, pois a vida
da sociedade galanteadora o tornou insensível aos verdadeiros sentimentos. Mesmo
sendo abandonada, Aurélia deixa de amar Fernando quando descobre que o jovem a
trocou por um dote: até então permanecia amando o rapaz e, principalmente, o ideal que
dele mantinha, pois Aurélia, acima de tudo, ama o amor. Aurélia entende que amar
Fernando é uma missão designada por Deus. Quando fica rica, resolve vingar este amor
que julga desrespeitado, dando preços aos rapazes, fazendo-os de mercadoria. Arquiteta
um plano para se casar com Fernando sem que ele saiba quem é a noiva, oferecendo um
dote altíssimo. O rapaz aceita e fica extremamente contente ao saber que a noiva é a
moça que amou alguns anos antes. Aurélia, no entanto, o acusa de ser vendido. A vida
conjugal de ambos torna-se um martírio. Sequer se tocam, mas para a sociedade são um
casal muito feliz. Fernando não usa nada que Aurélia comprou para ele, a fim de manter
sua honra, conseguindo finalmente juntar o dinheiro para pagar a ela o valor que lhe foi
pago por si mesmo. Quando termina o contrato, Aurélia se rende, pedindo que Fernando
a ame.
A figura central que simboliza as relações conjugais monetariamente orientadas
é o protagonista Fernando Seixas, primeiro e único amor de Aurélia Camargo. no
primeiro capítulo do romance, conhecemos o desprezo que a jovem, com apenas dezoito
anos, sente para com a sociedade dos salões que freqüenta. Todos a admiram, mas a
moça não se engana, sabe que as homenagens que lhe prestam não são para a sua
pessoa, mas para o seu dinheiro. Aurélia considera o ouro um vil metal que rebaixava
os homens; e no íntimo sentia-se profundamente humilhada pensando que para toda
essa gente que a cercava, ela, a sua pessoa, não merecia uma das bajulações que
tributavam a cada um de seus milhões de cruzeiros”
107
. Como é possível perceber,
Aurélia é uma personagem diferente das anteriores, reflete bastante sobre o ambiente
que a circunda, não experimentando, como em A Moreninha, uma espécie de ausência
para com as coisas do mundo, não tendo apenas preocupações que se limitam a questões
amorosas - temas que, na época, eram considerados preponderantemente femininos ou
mesmo sua única preocupação, como mostra Pereira (1944)
108
.
Como afirma Coutinho (1986), esta é uma diferença profunda que separa
Macedo de Alencar, pois o primeiro autor se restringiria a avaliar superficialmente a
sociedade que o rodeava, sem se preocupar com outras questões que poderiam se
colocar aos indivíduos e que poderiam ser material para fomentar personagens e
situações narrativas mais consistentes, como ocorre em Alencar. Schwarz (2000), por
sua vez, tem concepção diferente de Coutinho e considera que as problemáticas
românticas tratadas em Senhora estariam deslocadas em relação ao período, fazendo
com que o enredo apresente sérios problemas de construção, na medida em que Alencar
não teria conseguido “reiterar esse deslocamento em nível formal, sem o que não fica
em dia com a complexidade objetiva de sua matéria”
109
. Cardoso (2008) possui posição
distinta de Schwarz e afirma que as idéias não estariam deslocadas, pois Alencar não
estaria buscando moralizar a sociedade, o que justificaria a idéia de que o enredo seria
inadequado. Para o autor, Alencar quer apenas evocar o modelo sentimental e não,
como aponta Schwarz, afirmar os ideais românticos europeus na sociedade brasileira.
107
ALENCAR, 1995: 18.
108
Segundo Pereira (1944), os romances de Macedo não faziam senão refletir um sentimento de ordem
geral daquela sociedade, onde o casamento era o objetivo único e exclusivo: condição que explicaria a
aceitação passiva por parte das moças diante de um casamento imposto. Para o autor, em Macedo temos
uma “interpretação fidedigna dos sentimentos da época no que concerne à situação da mulher”, que
refletiria, no fundo, a faceta sentimental das noções presentes em uma sociedade patriarcal. Candido
(2006) também destaca o quão comum era este objetivo para as moças. No entanto, acreditamos que esta
interpretação remete especialmente às suas personagens secundárias que, como ressaltado, se
diferenciariam da protagonista que apresenta novas condutas para as mulheres.
109
SCHWARZ, 2000, 36.
Independentemente da posição, é indiscutível o salto que Alencar empreende, elevando
o nível da forma romance em relação a Macedo, pois, como indica Candido (2006), é
sensível em Alencar a “percepção complexa do mal, do anormal, do recalque, como
obstáculo à perfeição e como elemento permanente da conduta humana (...) [que] Em
Teixeira e Sousa e em Macedo, aparece como luta convencional dos contrários, para
atingir, em Alencar, a um refinamento que pressagia Machado de Assis”
110
.
A característica do romance realista apontada como central por Watt (1996), a
descrição dos pormenores, sofre, em Senhora, uma ampliação e aperfeiçoamento,
permitindo que o narrador e as personagens evidenciem ao leitor o que ocorre em seu
interior com mais detalhes, oferecendo mais realismo à narrativa
111
. Esta sensibilidade
às características peculiares do gênero humano não apenas traz, no romance, novos
problemas para o amor, mas também possibilita que se apresentem formulações melhor
definidas sobre o próprio sentimento. O refinamento que a narrativa imprime às
personagens permite ainda uma melhor definição do íntimo, alteração que se reflete no
modo como as personagens ponderam sobre os mais diversos assuntos, provocando um
posicionamento mais crítico para com as condutas, escolhas, desejos, pensamentos,
enfim, com a forma como cada pessoa age em suas relações. Como ressalta o narrador,
ele não vai narrar a vida da moça na sociedade, mas seu “drama íntimo e estranho”, o
que acentua o valor dado na narrativa ao interior das personagens. Na medida em que
avalia mais detalhadamente os comportamentos dos indivíduos, abre margem ainda a
questionamentos mais precisos sobre possíveis influências da sociedade nas ações de
cada um deles. Assim, a narrativa amplia as modalidades da crítica e permite que não
apenas se julgue a forma como uma personagem orienta suas condutas, mas também a
sociedade, a moral e a educação, elementos que ainda não aparecem articulados no
romance de Macedo
112
.
110
CANDIDO, 2006: 545. Martins (1977-78) considera que essa superficialidade de Macedo está atrelada
ao fato do romance macediano ser brasileiro antes de ser romance na medida em que buscaria refletir
mais as peculiaridades e condições do Brasil oitocentista do que preocupações propriamente literárias.
Era, para o autor, a arte possível no momento, uma resposta à ânsia dos brasileiros em ver reproduzido
no plano da imaginação, a sociedade que todos conheciam no plano da realidade” (MARTINS, 1977-78:
300/301).
111
Ainda que melhor estruturada, esta descrição detalhada se restringe aos lugares freqüentados pelas
personagens, seus hábitos e vestimentas. Discute ainda a prática do casamento negociado, elemento que é
central para o romance e que torna o enredo orgânico e condizente com a realidade cotidiana. No entanto,
a ausência da “família” desestabiliza o enredo.
112
Como foi possível perceber, a “vítima” para a qual é produzida uma defesa mais consistente contra as
condutas inapropriadas é a família, crítica feita por Dona Ana, personagem mais velha e que o narrador
caracteriza como uma senhora de "espírito e alguma instrução". Críticas também são feitas às relações
não baseadas no amor, representadas pelo galanteio, e aos pais autoritários, mas em nenhum momento
questiona-se a moral da sociedade ou os indivíduos por ela moldados.
No entanto, Senhora não discute detalhadamente as conquistas amorosas dos
diferentes tipos de homens e mulheres, como ocorre em A Moreninha. Talvez porque a
narrativa de Macedo esteja iniciando o romance de amor, seja necessário detalhar
minuciosamente quais os tipos de amante presentes na sociedade e quais são os
comportamentos apropriados aos jovens amantes. Senhora não mapeia os tipos, mas
produz um padrão dual de comportamento que distingue os amantes sinceros dos
negociadores de casamento. Ainda que em A Moreninha a diferença entre amor sincero
e interessado esteja estabelecida, fica evidente que um dos objetivos do romance é
assinalar os diferentes tipos. Em Senhora estes tipos parecem estar definidos e o
romancista não se esforça em descrever como se comportam cada um deles em suas
relações, como o faz Macedo com Augusto e Fabrício, mas em acentuar os efeitos, na
vida íntima e conjugal, da intervenção dos interesses monetários no relacionamento e,
conseqüentemente, da instituição do dote e do mercado nupcial, elementos comuns à
sociedade patriarcal e à vida da Corte no século XIX.
As relações íntimas e o amor
Vamos nos deter agora nas concepções de amor presentes em Senhora. Se em A
Moreninha é perceptível a preferência pela personagem de Carolina, a jovem morena
brasileira sensível ao amor, mas que ainda não o compreende, em Senhora as
concepções de amor da protagonista e do narrador se assemelham a ponto de, no que se
refere a este tema, ele falar através dela. A experiência da jovem
113
e o modo como ela
o sentimento são tomados como modelos para definir os padrões de amor e de
amante. As concepções que se seguirão, portanto, se referem centralmente à vivência e
reflexões da moça.
Se em A Moreninha a questão do dinheiro sequer vem ao caso, em Senhora ela
conduz a narrativa. Apoiada pela opinião do narrador, a protagonista Aurélia entende o
mundo da galanteria como um mercado matrimonial, onde homens e mulheres estariam
interessados menos na pessoa com que se relacionam do que com sua riqueza
financeira. No romance de Macedo, esta questão não precisa ser discutida porque não há
113
O narrador ressalta que a “posição especial em que [Aurélia] se achara ao fazer-se moça” (ALENCAR,
1995: 97) justificaria as idéias singulares que tinha: pobre, bonita, assediada e obrigada a procurar um
marido, Aurélia possui concepção distinta sobre o amor. E a moça concorda com o narrador, pois crê que
as ilusões que vive o desejo de ver seu amor respeitado e reconhecido pela sociedade e que não
permitem que se conforme à realidade da vida têm a ver com a educação que recebera na infância, a
educação do amor baseada no exemplo dos pais. Relações como esta entre a história de vida e a pessoa
atual das personagens – não são feitas no romance de Macedo, possivelmente porque naquela narrativa as
personagens são tipos com características fixas, não passam por mudanças em suas personalidades.
espaço para o desenvolvimento de uma relação entre jovens de camadas diferentes. É
exatamente a inclusão das camadas médias empobrecidas que margem à discussão
sobre o interesse financeiro. É possível sugerir que Aurélia não problematizaria tal fato
se não tivesse antes sido pobre: sua virtude vem em parte daí
114
. Tal afirmativa pode ser
comprovada pelo fato de nenhuma outra personagem do romance fazer questionamento
semelhante. A figura de Aurélia se opõe a um todo uniforme de pessoas "da sociedade"
que tem por objetivo empreender um casamento vantajoso, sem se preocupar com o
verdadeiro amor
115
. Aurélia, diferentemente, foi educada tendo como exemplo o amor
de seus pais. Aparentemente, sendo filha de um casamento virtuoso Emília casa com
Pedro porque o amor é mútuo, não importando o fato de o rapaz ser pobre ou a pressão
da família -, Aurélia nasce virtuosa, uma pessoa boa e capaz de intuir sobre os
sentimentos sinceros.
O problema da intervenção do dinheiro na vida íntima aparece no romance e
surge representada centralmente pela imagem da degradação moral e da pessoa que se
subjugaria ao dinheiro em detrimento do amor. A certeza de Aurélia de que todos na
sociedade de elite em que vive se importam com sua riqueza se expressa no costume
da moça em “indicar o merecimento relativo de cada um dos pretendentes, dando-lhes
certo valor monetário”
116
, fazendo com que se aproximassem ainda mais do aspecto de
objeto que eram - concepção de Aurélia - no mercado matrimonial de que
participavam. Mas enquanto todos consideram a “brincadeira” de Aurélia, “gracinhas de
moça espirituosa”, o narrador percebe uma reação amarga, acentuando que muito “devia
a cobiça embrutecer esses homens, ou cegá-los a paixão, para não verem o frio escárnio
com que Aurélia se ludibriava nestes brincos ridículos”
117
. É perceptível a identificação
do narrador com o ponto de vista de Aurélia. Ambos não conseguem ser insensíveis a
estas condutas dominantes na sociedade, o que os distancia das outras personagens.
Mas esta capacidade crítica de Aurélia está intimamente relacionada com o fato
de seu primeiro amor, Fernando Seixas, tê-la trocado por um alto dote, preferindo o
dinheiro ao amor sincero que a moça lhe oferecia
118
. O rapaz se orientava por uma ética
114
Moraes (2005) acentua que Alencar percebe qualidades peculiares de virtude nas pessoas pobres cuja
educação se voltaria para a simplicidade e para o trabalho.
115
O narrador entende que estas pessoas criadas na sociedade sequer conheceriam o verdadeiro
sentimento, como ficará explícito mais adiante.
116
ALENCAR, 1995: 19.
117
Idem.
118
Embora a intervenção do dinheiro nos relacionamentos afetivos seja uma questão frequentemente
remetida ao romantismo, a inconstância era associada a tal fator anteriormente: em sua obra sobre o
amor, O Banquete, Platão traz esta discussão e confirma a idéia de que um amante que não ama a pessoa,
mas o dinheiro ou a posição social, tende a ser volúvel.
distinta, era insensível ao sentimento, e possuía uma personalidade fraca, conseqüência
da vida de salões e teatros que levava
119
. Como destaca o narrador, “já nele começava o
embotamento do senso moral, que o influxo de uma civilização adiantado, e no seio de
uma sociedade corroída (...) acaba por abordar aqueles monstros”
120
. A associação entre
sociedade moderna e degradação da pessoa é óbvia
121
e ainda que Aurélia não tenha
concepções tão claras quanto àquelas do narrador, a moça também percebe o problema,
como demonstra a acusação de “vendido” que utiliza para classificar Seixas.
É necessário avaliar mais atentamente a tensão expressa no romance entre
dinheiro/interesses materiais e relações amorosas. Ao casamento de conveniência,
negociado por meio do dote, não se opõe, como pareceria óbvio, o casamento por amor,
mas o amor em si mesmo. Em certo momento do romance, quando Aurélia desconfia
que Fernando está mudado porque está preocupado com o noivado, Aurélia afirma que
não é o casamento que importa, mas o amor, lembrando a Seixas que a promessa que
o aflige, o senhor pode retirá-la tão espontaneamente como a fez. Nunca lhe pedi, nem
mesmo simples indulgência, para esta afeição”, liberando-o do compromisso. Para
Aurélia importa a relação de amor, que seria mais relevante do que o sacramento,
definindo assim uma distinção entre homens e mulheres que anseiam casar antes de
tudo e aqueles que amam principalmente. O desejo de Aurélia é oferecer seu amor
mesmo que não posso ficar ao lado de seu amado
122
.
119
O mesmo se deu com Augusto, pois é durante a juventude de salões que ele esquece temporariamente
seu amor de infância, apaixonando-se pelas várias belezas que lhe eram apresentadas. É nesse momento,
freqüentando estes locais, que ele vê sua constância e virtude serem reduzidas.
120
ALENCAR, 1995: 95.
121
O narrador acentua que os comportamentos de Seixas são típicos de um amante “à moderna”. Esta
mesma denominação é utilizada para classificar Augusto. Mas Augusto não valoriza o dinheiro como
Seixas talvez porque Augusto seja rico -, de modo que os efeitos da “modernidade” o apego à Beleza
distribuída em todas as moças, a inconstância - parecem ser obstáculos menores no romance de Macedo.
122
Julia, protagonista de A Nova Heloísa de Rousseau, orienta-se pelo mesmo padrão. Tendo que
obedecer ao pai, se afasta de seu amor para se casar com o pretendente escolhido para ela e isso não
interfere na extensão e profundidade de seu amor, ainda que o modifique. Não se deve entender, contudo,
que em Senhora uma negação da religião, mas que o casamento ou a proximidade física dos amantes
não é uma condição para o amor, pois ele é maior do que a distância os pais da moça, por exemplo,
viveram grande parte da vida afastados um do outro devido à intervenção do pai de Pedro. O que importa
é a qualidade do amor que deve ser constante, logo virtuoso. O fato de o casamento não ser condição para
o amor não se repete para as relações sexuais que, claramente, devem estar associadas ao matrimônio. O
sexo é igual ao “santo amor conjugal”. Mas o casamento também não basta para que a relação sexual seja
“santa”. Aurélia, mesmo estando casada e desejando “beber na taça do amor” as menções ao desejo
sexual de Aurélia são diversas -, não cede aos anseios do corpo, pois fazê-lo seria “a profanação deste
santo amor”. Tal fato seporque Fernando ainda não é aquele rapaz de antes, ele não retornou à virtude
e não é merecedor do amor da moça. Como apontam Leite (1967), Martins (1977-8) e Moraes (1995), o
amor pode ocorrer quando termina o desnível entre os amantes. Como destaca Pena (1988), Alencar é
normativo, suas mulheres são modelos de virtude, de modo que só o amor legitima o sexo e só quando há
igualdade entre as partes ele pode se realizar.
Diferente de Aurélia, seus companheiros de salão querem casar com os melhores
pretendentes. Cortejar é um hábito. Conseqüentemente, apresentar-se nas festas e teatros
é essencial, buscando ser visto por todos. Para os rapazes, um bom dote é o preço das
damas. Para as moças, um rapaz “elegante”, “distinto” e bem posicionado são os
critérios. Como é possível perceber, as moças têm preços e os rapazes se vendem por
meio de suas qualidades. DAurélia dar-lhes preços, “cotando-os” de acordo com suas
características
123
. É uma empresa nupcial”, como denomina o narrador. O amor não é
discutido nestes locais, apenas as qualidades do indivíduo como pretendente. Mesmo
quando há amor, como ocorre entre Torquato Ribeiro e Adelaide Amaral, as questões de
classe contam: é pelo fato de o rapaz ser pobre que ela é impedida de casar com ele.
Este tipo de obstáculo es excluído em A Moreninha, pois todos pertencem ao mesmo
grupo social. Mesmo que o dote e a condição social de um jovem sejam questões
importantes para a sociedade do período, elas não são recriadas na narrativa e
problematizadas por Macedo. Senhora explora este tema e revela uma tensão profunda,
afirmando que onde interesses materiais, não pode haver espaço para os verdadeiros
afetos ou, como faz Seixas, eles serão deixados de lado quantas vezes for necessário por
causa do dinheiro, revelando um comportamento inconstante, volúvel. O amor não tem
esse tipo de preocupação. Aurélia, como sua mãe, sabe que o seu sentimento importa
mais do que a condição social do amado. É esta consciência do valor do amor que o
romance quer assinalar. A diferença entre Senhora e A Moreninha se estabelece. Se no
romance de Macedo, a volubilidade está associada ao desejo sexual dos homens e ao
anseio feminino em casar, em Alencar, é devido ao interesse financeiro que a
inconstância ocorre. Pode-se afirmar que a desvalorização do amor e da pessoa são, para
o romance, os efeitos do mercado matrimonial
124
.
Aurélia possui uma relação particular com o amor que remete às noções
românticas de bondade natural. A moça conhece o amor por uma intuição que parte de
dentro dela e que é própria a “mulheres de imaginação e sentimento” que acham “nas
123
O valor podendo variar se eles faziam agrados a ela ou satisfaziam alguma fantasia sua.
124
Esta tensão entre valor da pessoa e importância do dinheiro desvia da família o problema das relações
amorosas, ainda que não a elimine. Ao centralizar a questão no mercado matrimonial e nos jovens, a
narrativa acusa, especialmente, os comportamentos da sociedade e dos indivíduos. Ainda que demonstre a
intervenção do pai, como no caso de Adelaide Amaral, o principal obstáculo que o amor enfrenta são as
condutas interessadas dos amantes que preferem um casamento arranjado, desde que seja vantajoso, do
que esperar o desenvolvimento do amor. O papel da família praticamente não é discutido e ela é relegada
a segundo plano no romance, ainda que alguns parentes de Aurélia sua mãe, avô e, especialmente, seu
tio -, interfiram e tenham papel importante no desenvolvimento de suas relações íntimas.
cismas do pensamento, essa aurora d’alma que se chama o ideal”
125
. Como é possível
perceber, a moça intui sobre o amor, porque ele está dentro dela e, não sendo
corrompida pela rotina da vida galante, ela pode, mesmo sem nunca ter amado,
compreender o amor. A narrativa indica um modo particular de ler o sentimento, porque
Aurélia teve experiências únicas na vida. Como a moça não viveu, durante a mocidade,
a “sociedade”, não conhece o amor pelo que se ouve falar dele, como “romantismos”, o
que a lançaria na rotina comum, ansiando antes ser admirada e desejada por vários
homens, especialmente os ricos, do que ser verdadeiramente amada. Experimentando os
salões, esta intuição que a conecta com seu interior e com o amor não poderia se
manifestar, afinal, como ocorrera com Seixas, ela teria sido corrompida pela “empresa
matrimonial” que a todos afeta. A narrativa assinala a distinção básica entre os ansiosos
por um casamento vantajoso e aqueles que desejam amar e ser amados.
Há, em relação ao romance anterior, uma mudança na representação do
sentimento. Se em A Moreninha o amor possui um aspecto místico associado à ilha,
aqui, não deixando de possuir uma aura fantástica, posto que também fruto da virtude
encantadora de Aurélia, ele está marcadamente fundado nos seres, aparecendo
claramente como uma propriedade deles. Carolina, por meio de suas qualidades de
ingenuidade e pureza, altera o comportamento do amado. No entanto, o amor ainda é
uma novidade para Carolina e não está fundado nela. Aurélia possui “a vaga intuição do
pujante afeto”, percebe o sentimento dentro dela antes de conhecer Fernando Seixas,
desde sempre possuindo uma ligação com amor, experimentando dentro de si “essa
aurora d’alma que se chama o ideal”. Carolina espera Augusto não porque conhece,
mesmo que por uma intuição, o amor, mas porque, na infância, jurou ser constante e
fiel. Ainda que diante de virtudes distintas, é possível afirmar que ambas as moças estão
125
ALENCAR, 1995: 84. As associações com as noções européias de romantismos são mais que
explícitas: um ser não corrompido encontra em si, não pela razão apenas, mas pelo sentimento, pela
imaginação e por aquilo que é a principal faculdade da alma, o pensamento, as representações perfeitas,
ideais. É esse desenvolvimento solitário de concepções sobre o sentimento que permite que Aurélia não
se iluda com as aproximações dos rapazes, mantendo-se distante. No entanto, uma crítica na obra ao
romantismo como está disseminado na sociedade. Aurélia considera que os romantismos das moças atuais
seriam “exagerações” e não se enquadra entre estas “moças românticas e pálidas que se andam
evaporando em suspiros” (ALENCAR, 1995: 22), moças como Dona Joaninha, personagem de A
Moreninha. A noção de “romantismos” pode indicar ainda a idéia de idealizações baratas, como o
casamento “à romântica” de que fala Lemos, onde se expressa a relação em que o noivo casaria com
moça sem conhecê-la e sem se importar com sua aparência o tipo de comportamento afetivo que
Fabrício também associa à “escola dos românticos”. Assim, o amor distinto de Aurélia não é romântico
ou pelo menos não deste romantismo prosaico que se dissemina na sociedade e que muito lembra as
concepções de Augusto em A Moreninha. Lembremos ainda que este modo de amar é desvalorizado na
narrativa de Macedo. É possível entender, como Cardoso, (2008) que Aurélia se aproxima mais das
heroínas sentimentais do que das românticas, movimentos que, embora próximos, não são idênticos.
qualificadas para o amor. A diferença está em que Carolina não ama antes do amado
surgir, logo, distinto de Aurélia, não ama, em primeiro lugar, o amor.
O amor se transforma, na narrativa de Alencar, em "um pujante afeto, que funde
em uma existência o destino de duas criaturas, e completando-as uma pela outra,
forma a família”
126
, como destaca o narrador. Amor e família estão diretamente
conectados e não família e constância, como entendia a avó de Carolina. Embora
considere que toda mulher deseja ser amada, Dona Ana associa constância e felicidade
conjugal, mas não o amor, revelando que é possível haver um bom casamento sem a
presença do amor, na medida em que ele não é uma condição para o matrimônio feliz.
Mas esta é a concepção de uma senhora, cerca de duas gerações antes da neta. É
relevante ressaltar que, no entanto, apenas uma das personagens no romance de Macedo
faz uma associação explícita entre amor e casamento. Com a insistência de Augusto em
falar de Carolina, Leopoldo, amigo do rapaz, lembra que a “exaltação” de Augusto
“estava muito em ordem num moço que quisesse desposar d. Carolina”. Embora este
seja o caso de relação amorosa narrado, esta associação não é feita nem mesmo pelos
protagonistas. Distinto das noções presentes em Senhora, o amor não é um pressuposto
para a união, ainda que possa ocorrer. O narrador de Senhora, diferentemente,
compreende que é o amor que constitui o casal e funda a família. Não afirmações
deste tipo em A Moreninha. Esta ausência também fornece mais um elemento para a
análise e talvez ajude a compreender o porquê de as relações interessadas não serem um
problema no romance de Macedo. Em A Moreninha, o amor ainda é apenas uma
possibilidade, uma travessura, não uma necessidade. Em Alencar, o status do
sentimento mudou: ele é considerado a base da família pelo narrador e por Aurélia, daí
serem cabíveis críticas à sociedade e ao modo como se organizam os matrimônios na
mesma. A diferença principal está que no texto de Alencar a idéia do amor como
principal fundamento das relações está textualmente definida e as relações
fundamentadas no amor não são tidas como uma obviedade, um tipo de relação que não
enfrenta problemas quando desenvolvido em uma sociedade em que o casamento ainda
envolve, principalmente, interesses financeiros. Mas ainda que amplie a crítica e
incorpore o casamento negociado à história, o romance ainda não é capaz de resolver
esteticamente a tensão entre amor e família e, conseqüentemente, o amor ainda se
configura como um elemento deslocado no enredo. Casamentos feitos por interesse,
como os que ocorriam com freqüência em contexto patriarcal, são recriados na
126
ALENCAR, 1995: 84.
narrativa, mas associações entre este modo de estabelecer as relações e os proprietários,
os patriarcas, são relegados à segundo plano no romance.
O casamento, para Aurélia, não aparece como o objetivo principal da vida e,
“quando ocorria pensar nele alguma vez, apresentava-se a seu espírito como uma coisa
confusa e obscura; uma espécie de enigma”, de modo que, em “sua ingenuidade não
compreendia Aurélia a idéia do casamento refletido e preparado”
127
. Quando, por acaso,
pensa no assunto, a idéia desdobrava-se numa incrível sensação de felicidade. Aurélia e
o tipo de sentimento que pressente são únicos porque ela é parte daquele grupo de
mulheres singulares, as de “imaginação e sentimento”, noções que se contraporiam ao
conceito de “realidade” que englobaria as moças que entendem e vivenciam o
casamento “refletido e preparado”. Moças não-ingênuas, portanto, dado que Aurélia é
caracterizada pela ingenuidade exatamente por desconhecer este tipo de relação
negociada. Percebe-se que a jovem se torna o padrão de mulher na narrativa: a moça
pura que vivencia o ideal e não a realidade
128
, ideal que está em seu íntimo, em sua alma
e que permite que ela seja diferente das outras mulheres, na medida em que não se
orienta pela moral corrompida da sociedade.
A partir desta exaltação do íntimo, a narrativa acentua as reflexões em torno do
conceito de alma que estão pouco desenvolvidas no romance anterior. A alma aparece
como o espaço do íntimo, da reflexão solitária, dos sentimentos. Por outro lado, indica
também o poder deste íntimo sobre o corpo, entidade que refletiria este mundo
interior
129
: felicidade, tristeza ou qualquer outra sensação. Em A Moreninha, Leopoldo
também aponta a alma como espaço do íntimo quando reflete sobre a diferença entre a
127
Idem.
128
À realidade do mundo, corrompida, se opõe o interior de Aurélia, sua pureza de menina. É no mundo
“real” da sociedade que Aurélia se rende ao escárnio e à ironia, enquanto sozinha, em casa, volta a ser a
moça ingênua da época da pobreza (Cardoso, 2008). É quando pensa no casamento de feições “reais” que
vai estabelecer com Seixas, o vendido, que Aurélia torna-se fria e racional, uma estátua de mármore. A
noção de realidade também se assemelha à vulgaridade. Quando Lemos, o tio da moça, tenta seduzir a
sobrinha, lhe envia uma carta no estilo “de namoro realista”, como denomina o narrador, onde se
expressam “não os impulsos do sentimento, mas as seduções do interesse” (ALENCAR, 1995: 87). O real
está corrompido e só no interior, seja do ser, seja da casa, é que se manifesta a pureza.
129
A separação entre a esfera do íntimo e a exterior fica então melhor definida e as relações entre as duas
também estão melhor delineadas. Se, por um lado, o mundo interior se expressa na aparência: “Apagou-se
nos lábios de Aurélia o sorriso; e a expressão de um ardente anelo, ressumbrando do mais profundo de
sua alma, imergiu-lhe o semblante.” (ALENCAR, 1995: 66), por outro lado, a interioridade também pode
se resguardar do exterior. Quando Aurélia é cortejada por galanteadores fáceis, abandona o exterior e
interna-se em si mesma, de modo que “Não era a moça que ali estava à janela; mas uma estátua, ou com
mais propriedade, a figura de cera do mostrador de um cabeleireiro da moda.” (Ibidem: 85). Não se deve
compreender este íntimo, contudo, como associado à noção moderna de individualidade, como o espaço
do self (Cardoso, 2008). A intimidade, nas narrativas sentimentais, é o símbolo deste espaço da pureza
onde a pessoa verdadeira pode se revelar, em oposição àquilo que tem de apresentar quando está em
público, na “sociedade”.
moça do campo, cuja alma é exposta a poucas imagens, fazendo com que ame apenas
uma vez, e a moça da cidade que veria muitas imagens diferentes todos os dias, de
modo que “ainda que contra a vontade, tudo a obriga a ser volúvel”. As semelhanças
com a experiência de Aurélia são claras, mas altera-se o ambiente: a jovem não vive no
campo, mas deve se manter honesta na sociedade que oferece múltiplos prazeres e
perdições. A relação é com o que se pode ser como pessoa em um espaço e no outro,
pois na cidade um jovem deve conduzir-se segundo as regras da sociedade e, ao mesmo
tempo, evitar ser corrompido, o que exigiria um grande esforço
130
. Podemos concluir,
como Moraes (2005), que a narrativa de Alencar tenta enfatizar a mais freqüente
presença da sinceridade e da pureza da alma entre pessoas simples e afastadas da moral
da sociedade galante, como também se dá com o tropeiro do início do romance
131
.
Trazendo à discussão esta questão da alma, pretende-se ressaltar mais uma vez o
detalhamento da interioridade das personagens, pois se existe, em A Moreninha,
referências aos pensamentos das personagens, aos sentimentos, ao subjetivo, aqui a
separação é mais forte e acentuada por esta imagem do interior representada pela alma.
Um exemplo pode ajudar a entender. Quando Carolina sofre modificações por causa da
incerteza do amor, são suas maneiras que mudam: “Antes deles [dos festejos onde
conheceu Augusto], era essa interessante jovenzinha o prazer da ilha (...) ignorava o que
era estar melancólica (...) Hoje suas maneiras são outras (..) ela vagueia solitária pela
praia, perdendo seus belos olhares na vastidão do mar”
132
. Carolina se torna tristonha e
melancólica, seus comportamentos mudam temporariamente, sua virtude não é afetada.
Quando Aurélia é vítima da traição de Seixas, sente um “suplício infindo, de que só
podem fazer idéia os que sentiram apagarem-se os lumes d’alma, ficando-lhes a
inanidade”
133
: Aurélia está arrasada e sua tristeza invade seu íntimo deixando-lhe vazia
e, ainda que seu caráter e seus sentimentos continuem puros, Aurélia passa “a olhar o
mundo como um desses charcos pútridos”, suas concepções se alteram e sua
personalidade muda, pois ela deixa de ser a moça boa de antes. No entanto, esta
mudança se processa quando ela deve lidar com a sociedade, pois, solitária, ela volta
a ser ingênua e pura
134
. Ainda que o tipo de experiência seja muito distinto, pois
130
O próprio Fernando Seixas é percebido como um bom rapaz, mas que, fraco, foi corrompido.
131
Encarregado de levar grande soma em dinheiro para a mãe de Aurélia, o homem não desvia a quantia
para uso próprio e o valor chega a salvo.
132
MACEDO, 2003: 112
133
ALENCAR, 1995: 99
134
Como ressalta Cardoso (2008), as personalidades dos heróis sentimentais são constantes, únicas.
Manifestações de individualidade, como o orgulho obsessivo de Aurélia que faz com que a moça se torne
uma vingadora do amor, são momentâneas, a personalidade original sendo retomada em algum momento
Carolina não passa por decepção semelhante, devemos dar atenção para o tratamento
narrativo dispensado ao íntimo, à constituição e à transformação do ser interior.
Esta renovação na concepção do íntimo reflete-se na construção dos argumentos
narrativos sobre o amor. As personagens refletem sobre os problemas enfrentados em
sua vida íntima. Como exemplo, podemos citar o caso do ciúme. Em A Moreninha, o
ciúme se restringe a um “faniquito” da moça, mas é transformado em tema de discussão
entre os amantes em Senhora que sobre ele refletem e concluem que o mesmo não é
parte do amor, e sim “o desgosto de ver o rival possuir um bem que nos pertence (...) ao
qual julgamos com direito exclusivo”, enfim, o ciúme “é o zelo do senhor pela coisa que
lhe pertence”, é um capricho.
Esta possibilidade de experimentação e reflexão que as personagens têm permite
ainda entender porque as influências da sociedade podem produzir pessoas como
Aurélia e Seixas que têm idéias completamente distintas sobre o amor. As experiências
de Aurélia explicam o desprezo que sente pela sociedade e o desrespeito que dispensa
aos homens que aceitam ser tabelados e casam pelo valor do dote que recebem, como o
fez Seixas. Os galanteadores não conhecem o sentimento, a admiração pela pessoa, pois
filhos do mundo corrompido apreciam o galanteio, o amor como uma diversão e as
relações que podem trazer algum benefício financeiro. Desconhecem o sentimento
sincero e representam o tipo de amor que não se quer afirmar.
As reflexões do tio de Aurélia, Lemos, ajudam a compreender o tipo de homem
desprezado pela moça e pelo narrador e que se revela comum na sociedade moderna. Ao
propor um casamento arranjado a Seixas, onde o dote oferecido possui valor que
considera altíssimo, Lemos não tem qualquer dúvida de que o rapaz aceitará a oferta
que o tirará da pobreza e lhe levará ao luxo. Tinha pois como impossível que um
moço, em seu perfeito juízo, (...) repelisse a fortuna que de repente entrava pela porta da
casa”
135
. Considerava ser parte do trabalho de escritores ficcionistas, “para arranjarem
lances dramáticos e quadros de romance”
136
, caluniar sobre os homens, construindo
personagens honrados que negariam tal sorte. Para ele, a vida real não era como a dos
romances
137
, pois a vida é uma “quitanda” onde “Os ricos alugam os seus capitais; os
da narrativa. As personagens sentimentais teriam, para o autor, a capacidade singular de restaurar a
virtude inicial.
135
ALENCAR, 1995: 49.
136
Ibidem: 50/51.
137
Quando lembramos que o romance era considerado um modo de moralizar, um guia de conduta, este
momento da narrativa torna-se muito interessante: a personagem que é, de diferentes maneiras, acusada
de desonesta no romance, é exatamente a que acredita que a forma é incapaz de criar situações
verossímeis. Será este um discurso que deve ser desconsiderado pelos leitores?
pobres alugam-se a si, enquanto não se vendem de uma vez, salvo o direito do
estelionato”. Lemos considera que toda a sociedade é vendida, mas, diferente de Aurélia
e do narrador, não se refere a ela em tom de crítica. O tio de Aurélia compreende sua
realidade a partir das visões comuns que compartilha com a sociedade, noções que
entende e concorda e por meio das quais se orienta
138
.
Assim, Seixas é apenas um homem normal, o tipo cotidiano que não
problemas nos casamentos de conveniência. Como o próprio moço declara, “o modo
por que ajustara seu casamento não era nenhuma novidade; todos os dias estavam
fazendo dessas alianças de conveniência, em termos idênticos, senão mais positivos”
139
.
Mas esta concepção preocupa o narrador que considera que a instituição fundamental do
casamento que transforma o mancebo e funda a família está cada vez mais
desvalorizada, dado que as pessoas estariam se associando com completo descaso, “com
a mesma consciência e serenidade, com que o viajante aposenta-se em uma
hospedaria”
140
. Deste modo, o casamento e a família se apresentariam não como um
apreciado lar, mas como um espaço pelo qual se pára para descansar, sem que haja
qualquer apego afetivo. Ao analisar o desespero de Seixas, rapaz para quem o
casamento “desde que não lhe trouxesse posição brilhante e riqueza, era para ele nada
menos que um desastre”
141
, compreende-se as idéias do narrador:
“Encerrar-se no obscuro, mas doce aconchego doméstico; viver das afeições
138
Quando Aurélia passa a se expor e os rapazes começam a cortejá-la, o narrador acentua que muitos dos
rapazes apenas querem tirar a pureza da moça ou arrastá-la ao “turbilhão do mundo”. Quando Lemos
descobre que a jovem de que muito falam é sua sobrinha, entende que, “em sua qualidade de tio, cabia-
lhe certo direito de primazia sobre esse bem de família” (ALENCAR, 1995: 85). Ele pensa como os
jovens que cortejam Aurélia. Ela corresponde ao tio pensando que ele quer ajudá-la, mas quando sabe
das reais intenções, despreza-o profundamente. É possível imaginar que a narrativa configura uma crítica
das relações dentro da família e entre pessoas de idades muito diferentes, confirmando as hipóteses de
Costa (1999) sobre as influências higienistas no século XIX, que acusavam este tipo de relações íntimas.
No entanto, deve-se enfatizar que a narrativa lembra que todos ficam surpresos com o fato de Aurélia
responder ao tio. A surpresa ocorre não porque Lemos era velho, mas porque ele era pobre, demonstrando
que, para a sociedade, casar-se com um velho por interesse não era considerado um problema e
acentuando a importância do dinheiro no estabelecimento de uma relação conjugal. Por outro lado, é
possível que o tio também imaginasse que Aurélia queria ser lançada no mundo. O romance, talvez pelo
momento em que é escrito, não deixa claro quais são as intenções desse tio ou porque os jovens crêem
nisso. Freyre aponta que havia, na sociedade do século XIX, três tipos de prostitutas: a) as aristocráticas;
b) as de sobradinho ou rótula; e c) a “escória” (FREYRE, 2006b: 277). Acredito que Alencar tenha feito
referência, no caso de Aurélia, para um tipo de prostituição de “sobradinho ou rótula”, pois a rótula é um
dos meios pelos quais Aurélia entre em contato com os rapazes.
139
ALENCAR, 1995: 61.
140
Ibidem: 112. A preocupação do narrador com a família se assemelha à inquietação manifestada por
Dona Ana, avó de Carolina, no romance A Moreninha. Em Senhora ocorrem acusações aos casamentos
arranjados, como os comumente organizados pela família na sociedade brasileira do século XIX, mas
estas críticas não são direcionadas à instituição da família em si mesma.
141
Ibidem: 100.
plácidas e íntimas; dedicar-se a formar uma família, onde se reavivam e
multipliquem as almas que uniu o amor conjugal; essa felicidade suprema
não a compreendia Seixas. O casamento visto por este prisma aparecia-lhe
como um degredo, que inspirava-lhe indefinível terror.” (ALENCAR, 1995:
93/4)
Deus designou como missão para Aurélia amar Seixas e fazer de tudo para que
este amor seja respeitado. A missão de Seixas é a galanteria e a vida elegante e fácil
onde a existência pacata e familiar, cuja base é o amor, não está incluída. Esta relação
do rapaz com o casamento confirma a análise de Candido (2006), autor que considera
que a dedicação de um moço ao amor está fortemente ligada à oportunidade de posição
na vida que um bom matrimônio pode fornecer. Percebe-se, porém, que imersa na
crítica dos comportamentos dos rapazes está a valorização da família amorosa e baseada
no afeto em detrimento da galanteria - censura semelhante àquela feita em A
Moreninha. A ética de Seixas não permite que ele compreenda a moral da família nem a
de um amor verdadeiro. É por isso que dispensa a felicidade de um casamento difícil,
posto que pobre o oposto da atitude dos pais de Aurélia -, mas que é elevado pelo
sentimento puro, e é infiel ao amor da moça, preferindo o mundanismo das vantagens
de um casamento arranjado.
É necessário esclarecer o que é o amor para Aurélia a fim de acentuar quão
diferentes e aprofundadas estão as noções de amor neste romance. Obrigada pela mãe
que, doente, teme que a filha fique desamparada após sua morte, Aurélia passa a se
apresentar aos rapazes contra sua vontade visando conseguir um marido. Embora seja
muito admirada - é uma moça muito bonita - Aurélia se mantém fria para com todos os
rapazes, uma estátua de mármore como aponta o narrador
142
. Mas “coisa singular”
ocorreu quando vê Seixas pela primeira vez, pois embora não tenha conservado nenhum
traço de sua fisionomia e não se recorde dele, podia, ao recolher-se em seu íntimo, achá-
lo e ver sua imagem, "um vulto, quase uma sombra; mas ela o conhecia; e não o
confundiria com qualquer outro homem"
143
: mesmo sem lembrar dele, Aurélia o
conhecia no seu íntimo, como se a imagem dele se refletisse ou já estivesse dentro dela.
Sendo visitada pelo moço, Aurélia registrava cada momento com ele, embebendo-se de
sua alma: é pela pessoa de Seixas, pela imagem do jovem que é gravada dentro dela,
142
A aparência de mármore remete, como apontado, à separação interior/exterior, alma/corpo. Aurélia se
torna estátua de mármore para preservar sua pureza quando ofendida pelos galanteadores. Assim, recolhe-
se em seu interior, deixando apresentar-se apenas a beleza fria, sem sentimentos.
143
ALENCAR, 1995: 89 - grifos meus.
que Aurélia se apaixona. Nos momentos que ficavam afastados, Aurélia se utiliza, para
com ele permanecer, das memórias do período em que ficavam juntos, mantendo-se
unida a ele em sua imaginação. O prazer que sentia com esta presença imaginária é tão
forte que o narrador chega a afirmar que “Seria difícil conhecer a quem mais adorava a
gentil menina, e de quem mais vivia, do homem que a visitava todos os dias ao cair da
tarde, se do ideal que sua imaginação copiara daquele modelo”
144
. As virtudes de Seixas
são lançadas ao infinito, a ponto de Aurélia não amar mais o homem e sim o ideal que
dele produziu. Mas, como apontado, este ideal estava dentro dela, na aurora da alma,
pois este ideal é uma noção perfeita que está nos seres. Podemos concluir daí que
Aurélia, por meio de Seixas amava, em realidade, o amor.
Esta consideração é fundamental para compreender o desenlace da crise. Seixas
ama Aurélia, fica noivo da moça, mas se arrepende, pois não consegue perceber a
sinceridade deste amor: o que sente, quando pensa no amor de Aurélia, é orgulho de si,
de ser amado com tal dedicação. Quando entende o peso do compromisso que assumiu,
de apoiar uma moça pobre, Seixas se desespera e aceita um outro pedido de casamento.
Aurélia, percebendo a distância do rapaz, não se importa que ele tenha deixado de amá-
la ou que ele desfaça o compromisso. Para Aurélia, amor sem casamento, mas não
pode haver casamento sem amor, forma de relação que, no entanto, é comum. Vale
lembrar que, diferentemente de todos, para Aurélia não importa o matrimônio, mas o
amor e, mais do que isso, seu próprio amor, o amor que alimenta dentro de si. Ela sabe
que Seixas não a quer mais e acredita que ele ame outra - mas Aurélia se resigna porque
ela compreende o que é o amor e entende que se o rapaz ama outra, não pode controlar
este sentimento: ela mesma perdeu a autoridade sobre si, não se pertence mais, não pode
amar a mais ninguém, seu amor é único, imperioso, constante, sua missão no mundo é
amá-lo
145
. Percebe-se claramente a mudança no status do sentimento que adquire poder
transcendental, baseando-se em si mesmo, naquilo que constrói para si e para o outro.
Entretanto algo importante a ressaltar é que se o amor muda como sentimento de A
Moreninha para Senhora, ele permanece estranho à maior parte das personagens, como
é o caso dos rapazes que cortejam Aurélia. O amor de Aurélia só é afetado quando
descobre que Seixas não a abandonou porque amava outra, mas porque recebeu a oferta
144
Ibidem: 90.
145
Aurélia recusa o pedido de casamento de um rapaz rico porque não se pertence mais: “- Tinha
resolvido aceitar o primeiro casamento que minha mãe julgasse conveniente, para sossegar seu espírito e
desvanecer o susto que tanto a consome. Meus sonhos de moça, que bem mesquinhos eram, sacrificava-
os de bom grado para vê-la contente. Agora tudo mudou. Não posso dar o que não me pertence. Amo
outro.” (ALENCAR, 1995: 91 – grifos meus).
do dote, sendo que a dor e ofensa se encontram no fato de que o moço feriu seu ideal,
perdeu sua virtude: “Debalde Aurélia refugiou-se nos sonhos do seu primeiro amor. A
degradação de Seixas repercutia no ideal que a menina criara em sua imaginação, e
imprimia-lhe o estigma. Tudo ela perdoou a seu volúvel amante, menos o tornar-se
indigno do seu amor”
146
.
A diferença entre os modos de Fernando Seixas e Aurélia Camargo se
relacionarem com o íntimo é imensa. Fernando é filho da sociedade corrompida e assim
como trocou Aurélia por um dote e foi trocado por outro, poderia se vender a qualquer
valor mais alto, como o fez. O amor lhe importa menos do que uma vida luxuosa.
Aurélia, por sua vez, ama o sentimento que está nela, que não lhe foi ensinado, mas que
pode intuir de sua alma. Como sabe que amar Seixas é uma missão designada por Deus,
mantém-se constante e sente-se na posição, ao ficar rica, de fazer o rapaz valorizar este
amor. Aurélia é uma moça diferente de todas as outras, não foi corrompida e não se
deixou corromper mesmo rica e imersa na galanteria mundana. É uma moça virtuosa,
sabe amar. Seixas, não é um homem ruim, mas fraco, pois não teve o caráter necessário
para se manter íntegro.
A incapacidade de Fernando em notar a realidade do sentimento de Aurélia é
percebida pelo próprio rapaz que se diz incrédulo com um amor como aquele. Julga
que, nos tempos modernos, onde a mulher vive cercada de variados adoradores que se
ajoelham ante a beleza, o amor teria se tornado um capricho e a relação conjugal uma
questão de preferência da dama pelo rapaz; preferência que viria a se tornar, após o
casamento, uma amizade conjugal. Acrescenta que “Assim o imaginei [o amor] sempre,
assim o senti e me foi retribuído”
147
. Como fica evidente nesta frase, Fernando percebe
que seus comportamentos e a maneira como lê o amor estão disseminados na sociedade.
Ele não podia crer na força do amor de Aurélia, “Pensava que eram romantismo”, noção
que é compreendida como profundas efusões de amor, expressadas em juras de amor
eterno que se desfaziam no dia seguinte. A semelhança com as concepções presentes em
A Moreninha é clara, especialmente nas falas de Augusto, o romântico, que jura amor a
146
ALENCAR, 1995: 99. O narrador remete esta dedicação, e também a ofensa que Aurélia sofre, ao
misterioso coração que “ainda mais o da mulher que é toda ela, representa o caos do mundo moral.
Ninguém sabe que maravilhas ou que monstros vão surgir desses limbos”. assim entende-se porque
“Aurélia amava mais seu amor do que seu amante; era mais poeta do que mulher; preferia o ideal ao
homem” (ALENCAR, 1995: 97). Aurélia também acredita que as coisas do coração não são passíveis de
compreensão, não havendo ciência que pudesse explicar “aquilo que não entende o próprio que o sinta”
(Ibidem: 175). Os sentimentos são lançados à esfera do incompreensível, como também o é a mulher que
é toda coração. Mais uma vez identifica-se amor e mulher, assemelhando-os àquilo que não se pode
compreender.
147
ALENCAR, 1995: 115.
todas as moças, julgando que “não houve, não há, nem pode haver amor que dure mais
de três dias”
148
. Também como naquele romance, o galanteio aparece como uma das
explicações para a descrença no amor, pois do mesmo modo que Seixas julga que a
mulher não ama profundamente porque possui um variado leque de admiradores,
Augusto nos lembra em dado momento que para D. Gabriela, moça que se correspondia
com cinco rapazes, o amor não existe: é um sonho apenas, e olhais como real a
galanteria”
149
. Percebe-se que na concepção da maior parte das personagens a
compreensão do amor como fundamento do casamento não é óbvia ou comum,
diferente da galanteria que é tomada como comportamento normal para o
estabelecimento das relações.
Mas para compreender o amor que se quer definir, é importante se deter mais
atentamente no constantemente acusado comportamento de Seixas. O rapaz é um
galanteador que, segundo o narrador, conduzia-se segundo o “código da vida elegante”
onde “mentir a uma senhora, insinuar-lhe uma esperança de casamento, trair um amigo,
seduzir-lhe a mulher, eram passes de um jogo social”
150
. Seduzir é o código, não
importando quem, a moral que se infringe ou o compromisso que se desonra. A censura
é direta. A ética é outra, a da vida elegante e não aquela com a qual Aurélia foi educada,
de pessoas humildes que não vivenciam salões e teatros, mas ficam recolhidos,
trabalhando a fim de se manter
151
. Aurélia não participa daquele mundo e suas múltiplas
seduções, tampouco conhece seus códigos e “Os artifícios do galanteio com que muitas
realçam seus encantos; a tática de ratear os sorrisos e carinhos, ou negaceá-los para
irritar o desejo, nem os sabia Aurélia, nem teria coragem para usá-los”
152
. O ambiente
galante que o narrador considera desprezível não é seu meio e mais uma vez vemos,
como se deu em A Moreninha, a distância entre as concepções de amor e sedução da
148
MACEDO, 2003: 41.
149
MACEDO, 2003: 99. Vale destacar que como em Senhora a noção de realidade é associada com
concepções negativas.
150
ALENCAR, 1995: 95.
151
Talvez a mesma educação que a mãe de Fernando deu às irmãs, “a vigorosa educação brasileira,
bem rara em nossos dias, que, se não fazia donzelas românticas, preparava a mulher para as sublimes
abnegações que protegem a família e fazem da humilde casa um santuário.” (ALENCAR, 1995: 42) e que
se diferenciava daquela que Seixas recebia no mundo. Freyre (1952) ressalta o caráter reformador das
obras de Alencar onde as heroínas possuem um tipo de educação que favorecia comportamentos que as
aproxima da natureza, no sentido da pureza dos atos, noção que aparece como oposta à idéia de uma vida
à européia, regrada pela educação necessária à vida da Corte, comum à sociedade carioca da época. O
autor buscava “exaltar em homens civilizados, seus heróis, e em mulheres civilizadas, suas heroínas, o
natural, que conservavam no seu comportamento e sob seus modos e trajes elegantes, em contraste com o
artificial, o postiço, o convencional do comportamento de outros homens e de outras mulheres que
tinham de elegante a aparência.” (FREYRE, 1952: 14).
152
ALENCAR, 1995: 85.
protagonista virtuosa e aquelas da maioria das personagens, com uma evidente
exaltação para a moral incomum da primeira.
Diferentemente, Seixas está adaptado a uma vida mundana, de luxo e galanteio.
Para ele, apaixonar-se por uma moça humilde e desamparada, que dele vai depender, é
uma imprudência, posto que considera um “sacrifício” abandonar a antiga vida. Ele não
concebe a idéia de alterar esse comportamento e “sujeitar-se a esse suicídio moral, a
esse aniquilamento do eu
153
, passagem que ressalta também a individualização como
tema na narrativa alencariana. O narrador concebe que o indivíduo educado na
sociedade pode perder-se, mesmo que tenha uma essência boa. Fernando descreve a
educação que teve:
A sociedade no seio da qual me eduquei, fez de mim um homem à sua
feição; o luxo dourava-me os vícios, e eu não via através da fascinação o
materialismo a que eles me arrastavam. Habituei-me a considerar a riqueza
como a primeira força viva da existência, e os exemplos ensinavam-me que
o casamento era meio tão legítimo de adquiri-la, como a herança e qualquer
honesta especulação. (ALENCAR, 1995: 213).
Ainda que honesto, Seixas se moldou “às fantasias da vaidade e aos reclamos da
ambição”, preferindo esta moral cômoda, a um possível futuro de restrições ao lado da
amada. Este código se reflete nos comportamentos afetivos, onde “tudo é permitido em
matéria de amor; e o interesse próprio tem plena liberdade, desde que transija com a lei
e evite o escândalo”
154
. Mais uma vez problematiza-se o privilégio de noções e
preocupações individualizadas que empurram para segundo plano o sentimento. A
sociedade moderna cria homens como Seixas, pertencentes a esta classe “para os quais
o amor deixou de ser um sentimento e tornou-se uma fineza obrigada entre os
cavalheiros e as damas de bom-tom”
155
, marcando claramente a separação entre as
regras galantes da sociedade e o amor de verdade que delas se distancia. O amor é um
sentimento que é indiferente à maioria. Este comportamento não é apenas masculino,
pois moças que pertencem à mesma “escola” de Seixas. Adelaide Amaral, amiga de
Aurélia, mesmo estando noiva como também estava Seixas que a corteja - “recebia
com prazer o cortejo galante” e correspondia “sem o menor escrúpulo”
156
, apenas para
se divertir, não estando de modo algum o galanteio associado à expressão ou à realidade
153
Ibidem: 94 – grifos meus.
154
Ibidem: 55 – grifos meus.
155
Ibidem: 93.
156
Idem.
de algum tipo de sentimento, mas à sedução pelo prazer da sedução, à vaidade. Em
outro momento a mesma moça, estando casada, exibe seu colo para Seixas, também
já marido de Aurélia. Deve-se acentuar o quanto estes comportamentos correspondiam à
relação estabelecida na narrativa entre corrupção moral, sociedade mundana e
degradação da pessoa que permitiria este tipo de conduta desavergonhada de mulheres e
homens.
Mas esta personalidade corrompida é passível de modificação. Ainda que
sofrendo profunda humilhação ao lado de Aurélia, Seixas deixa de ser o rapaz que
valoriza bens materiais, o luxo e perde noites com salões e galanteios. Refina seu gosto
deixando, por exemplo, de admirar Byron para valorizar Shakespeare, autor preferido
de Aurélia. Estar casado com uma mulher respeitável, de bom caráter e que sabe amar
verdadeiramente - uma personificação da virtude
157
- é o que permite esta modificação,
pois Fernando passa a refletir a idéia que dele faz Aurélia, “Havia em Fernando uma
como que repercussão dela”
158
. Mesmo que este amor não se manifeste fisicamente, pois
eles não experimentam sequer um beijo, não conhecem o prazer do santo amor
conjugal, não são felizes, o amor da moça molda o rapaz aos poucos e a moral de
Fernando muda, pois como ressalta o narrador, uma assimilação de caráter. Seixas é
recriado pelas mãos de Aurélia:
Como uma cera branda, o homem de coração e de honra se formara aos
toques da mão de Aurélia. Se o artista que cinzela o mármore enche-se de
entusiasmos ao ver a sua concepção, que surge-lhe do buril, imagine-se
quais seriam os júbilos da moça, sentindo plasmar-se de sua alma, a estátua
de seu ideal, a encarnação de seu amor. (ALENCAR, 1995: 197/8)
Aurélia ama o Seixas de outrora, o rapaz que conhecera antes de ficar rica. O
jovem que ela reconhece algumas vezes no homem com quem agora está casada. É um
amor que não muda de objeto porque não é o amor das coisas passageiras, e sim de um
ideal maior. Aurélia viu em Seixas algo que outras pessoas não viam, havia um reflexo
157
CARDOSO, 2008. Em carta ao Jornal O Globo, Joaquim Nabuco acusa Alencar de criar personagens
irreais. No caso de Aurélia e Seixas, por exemplo, acredita que nenhum homem problematizaria o fato de
ter sido comprado como o faz Seixas e nem que uma moça cheia de desejo, como se mostra Aurélia em
vários momentos, recusaria durante tanto tempo onze meses aos anseios de seu corpo. Alencar
acredita, ao contrário, que sua personagem é muito real, pois “penso que não arrebatamento dos
sentidos nem ímpetos de paixão, que não os possa domar a vontade, fortalecida pela consciência do
dever”. (COUTINHO, 1978: 201). Esta discussão demonstra a crença do autor na possibilidade de o
virtuosismo da mulher honrada alcançar objetivos difíceis, mas ressalta, em outra direção, a
incompatibilidade para com a realidade aqui enfatizada por Nabuco.
158
ALENCAR, 1995: 196.
dele dentro dela. Aparentemente, como no romance de Macedo, um encontro de
virtudes que, posteriormente, é negado pelos comportamentos infiéis de Seixas. Mas um
amor sincero não se engana e Aurélia não tem dúvidas de que aquele rapaz ainda existe
dentro dele. Podemos confirmar esta certeza da moça por meio da análise de um dos
capítulos do romance onde é narrada a produção de um retrato do casal. Ao conhecer a
insatisfação de Aurélia diante do retrato “frio e seco” que pintara de Seixas, o retratista
diz: “Pintei o que vi. Se deseja um retrato de fantasia, é outra coisa”
159
. A moça
concorda. Desde então se torna cândida e singela, a Aurélia que realmente é. Seixas,
feliz com esta mudança, se tranqüiliza e também se torna o rapaz de antes. Com um
novo retrato, Aurélia “a sorrir-lhe o homem que ela havia amado”. Os
comportamentos amorosos da moça produzem o homem que ela guarda em seu interior.
O amor permite que Aurélia identifique a personalidade real de Seixas sob a máscara
que lhe colocara a vida galante, de modo que, em seu casamento com ela, Seixas é
reformulado dentro dos moldes que a moça o concebia (Leite, 1967; Martins, 1977-8;
Pena, 1988; Cardoso, 2008). O amor reforma, mas não apenas o amor e o casamento o
fazem. Como Seixas afirma, “a senhora regenerou-me e o instrumento foi esse
dinheiro”
160
. Como destaca Cardoso (2008), o mesmo dinheiro que corrompe a
sociedade se torna, quando nas mãos de uma mulher virtuosa, um instrumento capaz de
transformar o rapaz, fazendo com que ele se torne uma expressão de Aurélia. Quando
este processo de equivalência ocorre, o desnível que havia entre eles termina e eles
finalmente podem experimentar “o santo amor conjugal”
161
. Como é possível perceber,
a virtude de Aurélia contagia e flui, modificando Seixas, fazendo com que ele se torne
aquilo que ela sempre imaginou dele.
In becoming an instrument employed by Aurélia in Seixas’ education and
moral reform, money is turned into a shaping instrument that recasts Seixas’
character. In being bought by Aurélia, Seixas becomes one of her
sentimental possessions, and, as such, acquires some of her characteristics,
becoming an expression of her soul, an extension of her being and a
159
Ibidem: 160.
160
Ibidem: 213. A própria Aurélia pensa desta forma. Quando recebe a herança do avô, “seu primeiro
pensamento foi que era uma arma. Deus lhe enviava para dar combate a essa sociedade corrompida e
vingar os sentimentos nobres escarnecidos pela turba dos agiotas.” (Ibidem: 106). E é o que ela faz
quando reforma Fernando, transformando-o numa pessoa virtuosa e fazendo-o entender e respeitar o
sentimento. Assim, as atitudes da moça que poderiam parecer capricho de moça endinheirada, são, na
realidade, aversão à moral corrompida. Aurélia se esforça para humilhar o rapaz, lembrando sua condição
de vendido, sua falta de honra e esperando que seu amor fosse reconhecido e respeitado: o “sentimento
que animava Aurélia podia chamar-se orgulho, mas não vingança” (Ibidem: 152), era desejo de ver seu
amor respeitado antes de ser capricho.
161
Enquanto perdurou a diferença, Aurélia e Fernando não tiveram relações sexuais.
testimony of her presence. In their forced intimacy, as if through a sort of
contagion, Seixas increasingly becomes an image of Aurélia. (CARDOSO,
2008: 43)
A virtude amorosa, aqui mediada pelo dinheiro, se apresenta, desta maneira,
como um reformador de caráter, possibilitando que a felicidade se instale. É o mesmo
tipo de reforma que vimos se dar com Augusto, o mancebo de A Moreninha que deixa
de ser um rapaz volúvel, fixa seu desejo em uma única moça também modelo de
virtude - e se casa com ela
162
. O amor faz com que os rapazes sejam eles também
virtuosos, restabelecendo seu caráter de outrora, de modo que, mais do que uma crítica
deslocada ao dinheiro, como aponta Schwarz (2000), teríamos uma utilização do
dinheiro com o fim de afirmar o sentimentalismo literário (Cardoso, 2008),
demonstrando que uma jovem, quando virtuosa, pode perfeitamente fazer com que um
rapaz também o seja. É o moralismo tradicionalista, pois se não estão submetidas à
autoridade do pai e podem livremente escolher o alvo de seu amor reformador, as
mocinhas se rendem ao final da narrativa aos seus amados para serem esposas e,
certamente, mães. O amor da escolha é o amor que fundamenta a família, ainda que tal
formação retire do jogo a intervenção paterna ou da família, pois Aurélia é órfã de pai e
mãe e seu tio não tem qualquer autoridade sobre ela. E, mais uma vez, esta ausência da
família traz problemas à narrativa, pois o enredo perde em realismo quando dá todo este
poder de decisão a Aurélia, moça possuidora de uma racionalidade ímpar. Ainda que
com diferenças marcantes, permanecem, no entanto, os problemas de estrutura, pois
Senhora também não acompanha o ritmo social ao eliminar a família do enredo. No
entanto, a introdução do casamento interessado que, em Senhora, se apresenta como
uma problemática constituída, força ao enredo e difere o romance de Alencar de A
Moreninha, onde esta relação não é discutida.
162
É importante enfatizar, mais uma vez, que embora as reformas sejam similares, são de ordens distintas,
pois enquanto a mudança de Augusto significou ver seu desejo múltiplo ser localizado em apenas uma
moça, deixando de amar a todas as mulheres, de ser volúvel e inconstante, a alteração de Fernando Seixas
faz com que ele deixe de preferir a moral “cômoda e fácil” da vida elegante dos salões e de se importar
com o dinheiro das mulheres, com seu dote, apenas. Seixas deixa de ser também inconstante, pois
aprende a apreciar a amada em si mesma, não o dinheiro, que pode estar em qualquer mulher. O que se
quer enfatizar é que as formas de volubilidade são diferentes, ainda que, de certo modo, conduzam a fins
iguais: o amor por uma mulher pura, a inserção no casamento e a formação da futura família.
2 – Da família: Dom Casmurro e a crise do casal amoroso
Como indicado na introdução, analisarei, neste segundo capítulo, o romance de
Machado de Assis, Dom Casmurro. Este romance trata o amor como um sentimento
impregnado pela influência da organização patriarcal familiar, pois ele acontece
também e, talvez, principalmente - por causa de sua intervenção. Para Muricy (1988),
o tema preferido de Machado de Assis é o casamento, é ele que
preocupa o narrador, define os personagens e determina a ação. São, quase
sempre, as incursões do amor na placidez da família que lhe permitem
desnudar, na análise dos conflitos suscitados, tanto as conveniências da
moral tradicional do patriarcalismo, quanto os interesses da nova moral
burguesa relativa ao amor e ao casamento, que, gradativamente, ao longo do
século XIX, impuseram-se na sociedade brasileira. (MURICY, 1988: 13)
Para Venâncio Filho (2000), mais do que o casamento, são as distintas formas de
amor e, especialmente, deste amor que exige o distanciamento da família, os temas
centrais da narrativa machadiana. Para o autor, “o amor é um teste da verdade”, onde os
indivíduos se avaliam e se frustram. uma mudança no status da família no romance
de Machado de Assis, na medida em que esta instituição deixa de se localizar em plano
secundário, como ocorre nos romances de Macedo e Alencar em que sua influência é
pouco discutida, e se torna parte central do enredo, elemento que organiza as relações
sociais, lócus principal da ação no romance, espaço onde ocorre a grande maioria dos
acontecimentos da narrativa.
Esta mudança do lugar da família no enredo produz uma alteração na maneira
como o amor é representado. A posição social do protagonista de Dom Casmurro é,
essencialmente, a de filho e, posteriormente, patriarca. Quando avalia as narrativas de
Alencar, Pena (1988) lembra que se “é a ação amorosa que lhe interessa, tudo mais deve
subordinar-se a ela, e os personagens, embora aprisionados pelo amor, estão libertos de
constrangimentos mundanos, e são plenamente responsáveis por suas atitudes
amorosas”
163
, observações que podem se estender à narrativa de Macedo. Esta
formulação da autora pode justificar o fato de os protagonistas de A Moreninha e
Senhora, diferentemente de Bento Santiago, serem essencialmente amantes e não
elementos de uma estrutura social mais ampla.
163
PENA, 1988: 52.
2.1 - Destronando o amor: Dom Casmurro e o problema do indivíduo moderno
em contexto patriarcal
“Jantei fora. De noite fui ao teatro. Representava-se justamente Otelo, que eu não vira nem
lera nunca; sabia apenas o assunto, e estimei a coincidência. (...) Ouvi as súplicas de
Desdêmona, as suas palavras amorosas e puras, e a fúria do mouro, e a morte que este lhe deu
entre aplausos frenéticos do público.
- E era inocente, vinha eu dizendo rua abaixo; - que faria o público, se ela deveras fosse
culpada, tão culpada como Capitu?”
Bento Santiago, protagonista de Dom Casmurro.
O Romance
O fato de Augusto esquecer temporariamente seu compromisso de infância, não
impede que ele possa encontrar o verdadeiro amor. A insensibilidade de Seixas também
não é um obstáculo permanente para o amor e não impossibilita a reforma moral do
rapaz. Diferentemente, a infidelidade no romance Dom Casmurro fará sucumbir o amor,
pois, como antevisto por Dona Ana, a inconstância, quando dentro do casamento, retira
a paz e a felicidade dos esposos.
No romance são narradas, pelo próprio, as memórias de Bento Santiago, o
protagonista. Quando jovem, é denunciado a si mesmo por José Dias, o agregado da
casa, que revela que o rapaz está apaixonado pela vizinha, Capitu. Desde então, passa a
amá-la. Bentinho foi, no entanto, prometido por sua mãe à vida religiosa. Capitu busca
meios de fazer com que Bentinho não seja enviado ao Seminário, mas a moça não tem
sucesso. Bentinho vai para o Seminário com a promessa de que, caso não case com a
moça, não se casará com mais ninguém. Lá, conhece Escobar, moço que se torna seu
amigo. Capitu e Escobar são admirados por Bentinho por sua inteligência, capacidade
de sedução e raciocínio. No tempo em que Bentinho está no Seminário, Capitu seduz D.
Glória, mãe do rapaz, para quem se torna essencial. José Dias, o agregado
preconceituoso que não gostava da moça, passa a dar-lhe espaço, submetendo-se ao
desejo de Dona Glória, a proprietária. É Escobar quem acha uma solução para o
problema: lembra que a promessa da mãe é entregar um homem para a vida religiosa e
não necessariamente Bentinho. Escobar se casa com uma amiga de Capitu, Sancha, e
têm uma filha, Capitolina nome de Capitu. Capitu e Bentinho também se casam e têm
um filho, Ezequiel nome de Escobar. Muito amigos e morando próximos, visitam-se
freqüentemente e formam uma grande família. Inclusive, sonham que seus filhos se
casem. Seguem-se situações onde Bentinho revela seu ciúme, ciúme que apresentava
quando menino. Narra situações em que o leitor é levado a desconfiar da existência de
uma relação amorosa entre Escobar e Capitu. Quando Escobar morre, Bentinho começa
a acreditar que Capitu lhe era infiel, pois crê que a esposa olhou com os “olhos de
ressaca” para o corpo do amigo e que apresentou um sofrimento exagerado,
comportamento que lhe parece suspeito. Com o tempo, começa a achar que Ezequiel se
parece muito com o amigo falecido. Daí em diante, é consumido pela dúvida que, para
ele, torna-se certeza com o tempo: Ezequiel não é seu filho, mas fruto da traição de
Capitu e do amigo Escobar. Manda Capitu e o filho para a Suíça. Capitu morre, na
Europa, e, depois, Ezequiel adoece e também morre. Bento termina a vida sozinho,
tendo apenas alguns amigos e amantes.
Como as narrativas de Macedo e Alencar, Dom Casmurro narra uma história de
amor. Diferentemente daqueles romances, contudo, esta história é contada por uma das
personagens. Por se tratar das memórias de Bentinho, não sabemos o que pensam as
outras personagens e não há, por outro lado, um narrador onisciente, que saiba as razões
de todas as ações que ocorrem no enredo. Durante algumas décadas, no entanto, as
análises do romance não lograram perceber esta sutileza da narração, de modo que a
infidelidade de Capitu e a sinceridade de Bentinho não eram frequentemente
questionadas (Schwarz, 1997). Na segunda metade do século XX, uma pesquisadora
inglesa, Helen Caldwell, assinalou que não havia meios de comprovar o adultério de
Capitu, posto que ela não tem voz na narrativa. Como indica Schwarz (1997), a partir da
publicação deste livro, o homem ciumento de Dom Casmurro deixou de parecer correto
em suas dúvidas sobre a honestidade da esposa. Seu ciúme deixa de ser percebido como
inseguranças de um jovem apaixonado. As avaliações da personalidade da jovem uma
moça inteligente, racional, calculista e dissimulada -, eram, na realidade, as opiniões de
um homem que se julgava traído. A partir desta análise, a incontestável infidelidade de
Capitu incontestável especialmente para o marido - transformou-se em uma dúvida.
Na medida em que o interesse da presente análise é conhecer as representações sobre o
amor, não é nosso objetivo responder sobre a infidelidade de Capitu, especialmente
porque, como ressalta Candido (2004), “imaginária ou real, ela [a infidelidade] destrói a
sua [de Bentinho] casa e a sua vida”
164
.
Ainda que esta mudança na narração afaste Dom Casmurro de Senhora e de A
Moreninha, alguns aspectos importantes são mantidos e, pode-se dizer, melhor
trabalhados. Como ressaltou Cardoso (2008) e, também, Lajolo e Zilberman (2002), as
narrativas de Macedo instituíram, na sociedade brasileira, uma espécie de narrador
adulador, amigável e confiável, cujo objetivo era fazer com que o incipiente romance
164
CANDIDO, 2004: 25.
brasileiro fosse bem aceito pelos leitores. O Dom Casmurro é um narrador muito
convincente, possui todas as características acima citadas, mas também é um indivíduo
bem posicionado socialmente, um advogado respeitável, um homem sensível,
apaixonado por astronomia, admirador da mãe, da mulher e do melhor amigo, um
homem que ama profundamente. Não como dele duvidar. O velho Bento Santiago
está narrando sua vida, suas próprias memórias, o que mais veracidade ao enredo.
Afinal, não se trata de ficção ou de uma “história recebida”. É com a análise de
Caldwell que se torna evidente o quanto a narrativa é enviesada (Schwarz, 2007). As
análises posteriores passaram a perceber as diversas pistas fornecidas na história da
confusão do narrador sobre as suas memórias e pensamentos, assim como as freqüentes
ilusões criadas por sua imaginação fértil. Desconfia-se que, talvez, Capitu não seja uma
moça dissimulada, mas que os leitores tenham sido induzidos, pelo narrador, a duvidar
de sua honestidade. Seu ciúme deixa de ser insegurança de “primeiro amor” e passa a
ser visto como possível obsessão e paranóia, de maneira que Dom Casmurro, aos
poucos, deixa de ser percebido como um romance sobre amor e infidelidade e se torna
um “um estudo sobre o ciúme de Bento e as condições que o produzem”
165
.
As relações íntimas e o amor
A fim de convencer o leitor da existência da traição, o narrador nos informa
sobre as características que considera mais importantes para definir sua infiel esposa e
também o provável amante da mulher, seu amigo Escobar. Os “traidores” possuem
qualidades semelhantes e podemos acreditar que, como apontam Gledson (1999),
Schwarz (1997) e Leite (1967), o narrador tenta nos convencer que Capitu foi “feita”
para Escobar. Ambos são racionais, calculistas, dissimulados, propriedades condizentes
com sua ambição, seu desejo de ascensão social (Gledson, 1999). A narrativa associa às
práticas de cada personagem, suas histórias de vida e seus desejos: Capitu quer casar
com Bentinho enquanto Escobar quer ser um comerciante de sucesso. Daí seu carisma e
genialidade, características que permitem que os dois ajudem a livrar Bento da vida
religiosa. De forma semelhante, a certeza do narrador Dom Casmurro de que a esposa o
traíra pode ser, na realidade, mais uma das manifestações de sua personalidade
sonhadora, sendo a infidelidade uma possível fantasia, como muitas que teve durante
toda a vida. Contudo, podemos também estar diante de uma das facetas do caráter
dissimulado de Capitu. As características individuais têm grande relevância para o
165
GLEDSON, 1999: 12.
narrador e para a narração, em um nível que não se revelara até agora
166
, pois se em
Senhora a vida interior de Aurélia é importante para compreendermos a história e ela
demonstra uma consciência desta interioridade a jovem, por exemplo, deseja, mesmo
que temporariamente, ser diferente do que é e parecer-se com as outras moças
167
-, o
narrador Dom Casmurro revela algumas propriedades do indivíduo moderno,
apresentando dificuldades de se reconhecer a si mesmo, evidenciando um processo de
fragmentação do self
168
:
In Bento’s musings over the possibility of reconstituting his childhood, on
the other hand, the self seems to be so private as to become inaccessible to
anyone on the outside – or even to Bento himself.
Bento recognizes the existence of an inner self to which he does not have
full access. (...) Bento’s sense of self takes shape through an experience of
fragmentation which separates not only his present from his former self, but
also outward appearances from inner being. (CARDOSO, 2008)
Este descolamento do “eu” fará com que o Bentinho menino seja e não seja, ao
mesmo tempo, o Bento amante, personalidades que depois se agregam de modo ainda
confuso, pois, adulto, Bento não se reconhece no menino, ainda que não deixe de
prolongar sua infância em muitos de seus comportamentos
169
. O narrador se questiona
se esta fragmentação não teria se dado com Capitu: no final da história, indaga se “a
Capitu da praia da Glória [adulta] estava dentro da de Matacavalos, ou se esta foi
166
O detalhamento é cuidadoso. O narrador se preocupa em descrever todos a seu redor, demonstrando
qual é sua leitura sobre as pessoas que o circundam. Há, para cada uma das personagens, um capítulo
onde são descritas sua história e características.
167
“- Meu Deus, por que não me fizeste como as outras? Por que me deste este coração exigente, soberbo
e egoísta? Posso ser feliz como são tantas mulheres neste mundo, e beber na taça do amor, em que talvez
nunca mais toquem estes lábios. Não é o néctar divino que eu sonhei, não; mas dizem que embriaga a
alma, e faz esquecer!...” (ALENCAR, 1995: 73/4). É possível afirmar que, no entanto, todo seu interior,
as razões de suas ações, são muito claros pra ela. Como aponta ainda Cardoso, essa consciência dos
próprios atos é uma característica dos heróis sentimentais: “Sentimental heroes, independently of their
sex, act rationally, in the sense that they fully understand their motivations as well as the objective
consequences of their actions, which are always clearly present in their minds.” (CARDOSO, 2008). Para
Cardoso (2008), vê-se, em Dom Casmurro, serem desconstruídos os típicos personagens sentimentais
cujas personalidades são constantes e incorruptíveis.
168
Para Schwarz (1997), no entanto, “o ciumento da Glória existia pronto e acabado no menino de
Matacavalos” (SCHWARZ, 1997: 18), ele apenas não era ainda proprietário, um representante do
patriarcalismo. Estas duas leituras, ainda que pareçam contraditórias, se complementam, na medida em
que a afirmação da constância de Bento Santiago, feita por Schwarz, confirma a falta de conhecimento
sobre si mesmo, apontada por Cardoso: Bento sempre foi o mesmo rapaz paranóico e incapaz de se
compreender a si mesmo.
169
Venâncio Filho (2000) indica que não “é que adultos mais tarde reproduzam seus comportamentos de
criança e sim que o comportamento da criança mimada e prepotente correspondia às expectativas sociais
do homem adulto entediado”.
mudada naquela por efeito de algum caso incidente.”
170
. Sem poder responder à
pergunta, não dúvida de que os personagens de Dom Casmurro não são como os
personagens constantes das narrativas anteriores (Cardoso, 2008). As personagens são
mais individualizadas, sendo ainda melhor definidos os pormenores das histórias
individuais que definiriam as personalidades dos protagonistas do amor. Esta
importância dada ao comportamento e às características individuais do amado pode
estar ligada a uma preocupação cada vez maior com o sujeito da pessoa amada, com o
modo como ela conduz suas ações cotidianamente: preocupação que é resultante de um
crescente individualismo. Este conhecimento passa a ser considerado, pelo amante,
como um modo de avaliar o outro, são referências daquilo que se pode esperar do
amado. É também uma maneira de o amante definir a si mesmo e as reações que deve
ter na presença do amado, na medida em que sabe quais são suas expectativas
171
.
Cardoso (2008) afirma que é apenas nos romances de Machado de Assis que
encontramos, na narrativa brasileira, exemplos de indivíduos modernos, um tipo de
sujeito que experimenta a fragmentação do “eu”. Muricy (1988) ressalta que um
esforço por parte dos narradores-protagonistas machadianos, inclusive de Bento, em
cultivar uma interioridade, em buscar um “eu” que, todavia, está de todo ausente, daí
este investimento em recuperar as memórias, numa busca de “atar as duas pontas da
vida”
172
. Bento possui uma noção precária da própria identidade (Gledson, 1999), não é
constante como as personagens de Senhora e A Moreninha (Cardoso, 2008). Para
Venâncio Filho (2000), Machado de Assis se encontrava em uma posição privilegiada
para observar a “grande mutação histórica da interioridade”. Uma alteração se
processava na organização da sociedade brasileira que, no fim do século XIX, via o
poder patriarcal se diluir. A estrutura familista se em crise e produz homens “de um
novo tempo, precoces, imaturos e despreparados”
173
para enfrentar a decomposição do
prestígio de seu tipo social. São homens divididos entre dois tempos”: a modernidade
de uma burguesia individualista que se institui e a tradicional ordem da família
patriarcal que, embora em decadência, ainda os protege. Como ressalta Schwarz (1997),
Bento vivencia a crise do sistema que lhe dava base e se sente ameaçado, mas, por outro
170
MACHADO DE ASSIS, 2000: 183/4. Schwarz (1999) e Cardoso (2008) acentuam que esta pergunta é
mais um recurso para orientar o leitor na direção da condenação de Capitu. No entanto, acredito que a
dúvida sobre a possível constância da personalidade de Capitu não elimina a hipótese dos autores.
171
Para uma discussão mais detalhada sobre o manuseamento da informação pelo casal, assim como das
dificuldades dos amantes e da função do amor, ver LUHMANN (1991).
172
MACHADO DE ASSIS, 2000: 14.
173
VENÂNCIO FILHO, 2000: 14.
lado, ainda é apoiado por este sistema, a ponto de poder caminhar pelo descontrole e
exilar a família, “Bento pode fazer estragos porque está protegido pelo sistema
patriarcal” (Venâncio Filho, 2000). Como é possível perceber, Bento é um indivíduo
que mistura componentes modernasé um sujeito fragmentadoe tradicionais, pois se
pauta, em sua relações, nas regras da organização patriarcal que ainda se mantêm em
atuação.
O romance de Machado de Assis explicita as relações entre amor e família que
haviam sido deixadas em segundo plano pelos outros romances. A família, em Dom
Casmurro, deve lidar com uma nova forma de afeto que, a fim de poder se desenvolver,
afasta os amantes do grupo o amor romântico. Na realidade, este é um de seus
pressupostos, pois, como ressalta Venâncio Filho (2000), nos “tempos modernos, o
amor se distancia da esfera familiar, quando não entra em conflito com ela. A
autonomia do indivíduo exige esse afastamento, o que contraria e desestabiliza as
relações fundamentais de fundo sentimental e afetivo. Abre-se a perspectiva de
confronto com a esfera familiar”
174
. Distinto dos romances de Macedo e Alencar, em
Dom Casmurro a família e os indivíduos são testados. Na narrativa, seus
comportamentos em situações comuns, como diante do amor, são avaliados, pois é “aí
[nestas situações comuns] que os personagens demonstram o que poderíamos chamar de
deformações sociais de conduta, em situações genéricas, cotidianas e triviais”
175
. Neste
enfrentamento, o amor sai perdendo. Dom Casmurro revela que o amor, e não apenas os
indivíduos, pode ser manipulado por este sistema familista. Neste tipo de configuração
social, que mistura os ideais modernos europeus com as práticas tradicionais, a
hierarquia social acaba desestabilizando as possibilidades da livre vivência do amor.
É necessário definir o amor no romance. Acreditando na possibilidade da
existência do sentimento na relação entre Capitu e Bentinho, podemos definir o amor,
na narrativa, como dedicação, insistência, luta contra os obstáculos. Mas esta dedicação,
insistência e luta são demonstradas por meio da obediência e submissão. É assim que se
comporta Capitu, moça que se esforça para evitar que Bentinho para o Seminário,
buscando meios para evitar o destino do amado. A fim de se casar com Bentinho,
Capitu se torna o “braço direito” de Dona Glória, ajudando-a em todos os tipos de
necessidades, mostrando-se prestativa. O amor ou o desejo do casamento exigem uma
submissão permanente à proprietária, a constante prestação de favores, pois a jovem
174
Ibidem: 70.
175
Ibidem: 22 – grifos meus.
sabe quese casará com Bento se Dona Glória quiser. Capitu sabe que movimentar-se
de acordo com as regras do esquema patriarcal é a única forma de conseguir casar com
Bento (Schwarz, 1997), ainda que, a princípio, não tenha certeza que efetivamente o
fará, especialmente porque o filho de Dona Glória é incapaz de impor sua vontade ou de
mostrar que possui alguma. Ele, como todos aqueles que vivem na casa, sabem que a
vontade dominante e que exige ser realizada é a de Dona Glória. É por conhecer tal
lógica que ele sonha que o Imperador pede à mãe para que ele seja médico, e não padre:
alguém em posição mais alta pode evitar seu destino. É por compreender as regras
desta organização que ele entende que dizer que ama Capitu não será suficiente para
evitar o Seminário. O rapaz chega a desejar, mesmo que por um breve momento, que a
mãe morra. Mas a compreensão que Bentinho tem desta lógica é limitada, pois embora
saiba que deve respeitar o desejo da mãe, não conhece, como Capitu e Escobar, meios
para convencer Dona Glória de que pode ter um futuro distinto daquele que ela
desejava.
Dona Glória neste amor um modo de se livrar da promessa e evitar que o
filho para o Seminário (Gledson, 1999; Schwarz, 1997). No entanto, o temor a Deus
é maior do que sua vontade, daí não poder desfazer-se da promessa. O amor entre
homem e mulher não está acima de todas as coisas, como parecem indicar os romances
de Macedo e Alencar
176
. Tudo o que ela pode esperar é que o amor faça com que
Bentinho desista do Seminário por vontade própria. Assim, se o amor não está acima
das questões religiosas, ou, talvez, das pressões sociais resultantes de uma possível
quebra da promessa, ele pode ter força para provocar reações contra o arbítrio do
patriarca
177
. Ele pode ser um instrumento de revolta contra o sistema, como foi na
sociedade européia. Bentinho, contudo, parece saber obedecer mais do que amar, pois,
diferente de Capitu, que, dentro das possibilidades oferecidas pelo sistema patriarcal a
uma mulher, se utiliza de todos os meios para agradar à proprietária e tentar casar com o
rapaz, Bento apenas consegue amar de forma passiva, obediente. Ele se comporta dentro
das expectativas existentes para um bom filho e futuro herdeiro: ele se submete e
aguarda sua vez de mandar
178
. Ainda que exposto aos ideais modernizantes, como o
próprio amor, Bento se orienta pela lógica tradicional. O amor que enfrenta os
176
de se destacar que, nestes romances, não enfrentamentos religiosos, outro elemento que
organizava as relações sociais no Brasil do século XIX.
177
Freyre (2006b) e Del Priore (2005) lembram que, no Brasil do século XIX especialmente por
influência românticas -, algumas moças e rapazes enfrentavam o poder dos patriarcas e fugiam com os
amados.
178
Em certo momento da narrativa, Bento lembra que, quando for o dono da casa, expulsará o agregado.
obstáculos é apenas um sonho para o rapaz. Capitu também sabe disso e é por esta razão
que sua luta contra os impedimentos está dentro das regras patriarcais, pois ela faz
favores e obedece, mesmo sendo uma moça inteligente e racional. Deste modo, o amor
pode até existir como possibilidade viável, mas pode ser praticado se obedecer às
regras do sistema patriarcal.
Esta consciência das personagens sobre o poder do proprietário é uma das
principais diferenças entre Dom Casmurro, por um lado, e A Moreninha e Senhora, por
outro. O amor não é invencível e capaz de enfrentar qualquer impedimento, pois ele
deve se adequar ao contexto em que se desenvolve. Para haver amor romântico é
necessário ter liberdade, a liberdade dos indivíduos autônomos, liberdade ainda
inexistente em contexto onde a dependência pessoal e não o amor - é o principal
fundamento das relações sociais e, dentre elas, as relações íntimas.
O amor aparece, deste modo, como uma possibilidade viável, pois Capitu e
Bento estão apaixonados, mas ele não possui alguns dos elementos indispensáveis a sua
manutenção. A dedicação e inteligência da moça e, de modo distinto, a amizade e
inteligência de Escobar, são componentes fundamentais para que o relacionamento
amoroso possa continuar, mas mesmo estas características não são suficientes para que
o amor se afirme, pois, na realidade, estes fatores são mutações do favor ou da
obediência a esta lógica paternalista: Capitu recebe em troca da dedicação à Dona
Glória, o marido e a ascensão social e Escobar, por livrar Bento do Seminário, recebe
ajuda financeira. Apesar de todo o esforço e inteligência, é apenas porque eles estavam
orientados para satisfazer o desejo da proprietária e porque ela desejou o casamento que
a união ocorre. Não magia ou inspiração divina que altere as regras da organização
ou que modifique os seres. apenas o desejo do proprietário e a submissão dos
dependentes. também o amor que, como é possível perceber, deve obediência ao
poder e à autoridade do patriarca.
Quando casados, Bento revela todo o peso de seu ciúme, proibindo a esposa de
ir aos bailes com os braços descobertos, ou mesmo de ir recebê-lo na porta de casa
quando ele chega da rua. Mais uma vez, Capitu se mostra obediente diante do arbítrio.
Parece ser apenas deste modo que o amor pode acontecer em Dom Casmurro e não
como enfrentamentos ou reações bruscas, violentas. A mesma submissão que Capitu
prestou à Dona Glória por amor a Bento, ela deve prestar, durante seu casamento, ao
novo proprietário. Em contrapartida, o amor de Bento é um amor de dominação, um
amor que espera ver todos os seus desejos correspondidos e que, talvez por esta razão,
nunca está satisfeito. Bento espera que Capitu viva apenas para ele, daí o ciúme
constante, a necessidade de ter Capitu permanentemente sob seu controle.
A fim de compreender a tensão entre o amor, o “eu” e a família, é necessário se
ater ao modo como esta instituição aparece no enredo. O lócus dos acontecimentos está
praticamente restrito à família
179
, não havendo, neste texto - como ocorre nas narrativas
anteriores -, acusações a comportamentos que estariam disseminados na sociedade,
como a galanteria, ou críticas a uma moral corrente. As discussões sobre o amor se dão
em registro novo, pois não estamos em um ambiente de salões onde todos parecem
buscar um bom casamento, mas em um meio familiar onde este assunto pode surgir
como um tema dentre outros. A viuvez e a “solteirice”, além do certo destino religioso
de Bentinho, fazem com que, aparentemente, o amor não seja tema das conversas até o
surgimento do provável envolvimento de Capitu e Bentinho
180
. Portanto não temos, a
princípio, conhecimento sobre quais comportamentos amorosos são considerados
corretos, o que não impede que sejamos informados sobre eles. Afinal, trata-se de uma
história de amor e, como indica Venâncio Filho (2000), o “amor é um método de
conhecimento individualizado, empírico, arbitrário. Através dele, das suas reviravoltas,
ilusões, decepções, o indivíduo progressivamente vai se conhecendo ou se
desconhecendo”
181
. Deste modo, podemos considerar que, inevitavelmente, um romance
de amor permite conhecer os comportamentos dos amantes. também uma vida
conjugal, lugar onde, como indicou Muricy (1988), Machado de Assis encontrava um
espaço privilegiado para discutir as relações sociais. A história de amor em Dom
Casmurro, diferente de Senhora e A Moreninha, não busca afirmar uma forma de amor
alternativa um sentimento que não se importa com os laços familiares -, mas revela
que este amor moderno é um instrumento manipulado pela organização patriarcal, uma
ilusão. Esta percepção do amor na análise pode revelar o ceticismo de Machado de
Assis, ceticismo em que, segundo Muricy (1988), “reside a força demolidora da crítica
social na ficção machadiana”
182
.
Além da importância da família na constituição da vida amorosa, outro elemento
que não havia sido discutido e que aqui se torna central é a amizade. Estas alterações
179
As personagens, quase todas, fazem parte de uma mesma família, com seus parentes e agregados. Os
vizinhos, mais pobres, e que compõem a família de Capitu, mantêm relações de dependência com o
núcleo familiar mais rico: como bem indica Bentinho, vivem “ao pé” da casa. Há ainda o padre da família
e alguns amigos próximos, Escobar e Sancha.
180
Bento, ao falar sobre os membros da família, ressalta sempre a viuvez e a distância das relações
amorosas que parecem ser regra entre os moradores da casa.
181
VENÂNCIO FILHO, 2000: 67.
182
MURICY, 1988: 17.
temáticas podem ser remetidas ao fato de haver, no romance Dom Casmurro, uma
esfera do íntimo mais definida, impregnada pelo poder da família e que aparece como
ambiente fundamental para o desenrolar da narrativa o interior de Bentinho.
Diferentemente dos romances anteriores, a noção de intimidade como interioridade
aparece bastante definida, pois embora presente em Senhora, não uma clara vida
interior das personagens, nem ela se revela psicologizada, como ocorre no romance de
Machado de Assis. Esta imbricação entre interioridade e intervenção familiar possibilita
a ascensão de mais algumas novidades temáticas. Por um lado, vemos os resultados da
educação em uma família nuclearizada, onde o filho é o centro
183
e, ao mesmo tempo,
“propriedade”. Por outro, assistimos ao arbítrio do proprietário que privilegia e impõe
seu desejo sobre o afeto daqueles que estão sob seu domínio. A relação com a família se
altera e se torna mais complexa. Vemos ser combinadas questões de uma sociedade que
se moderniza, mas que também convive com elementos tradicionais de uma rotina
patriarcal. O poder familiar, o peso e as obrigações que um contexto patriarcal impõe
àqueles que estão sob seu domínio
184
– os herdeiros da educação patriarcal, como Bento,
cujos afetos estão atados ao desejo do representante da autoridade, no caso, Dona Glória
-, se vêem emaranhados com a ascensão de indivíduos autônomos, como Capitu e
Escobar, e de ideais modernos, como o de amor romântico. É este enfrentamento que
provoca a cisma no enredo, pois o poder de Dona Glória se evidencia não apenas sobre
seu filho, mas também sobre o destino de Capitu, que se casa com Bentinho porque
Dona Glória vantagens neste amor. Por outro lado, torna-se explícito que o amor
moderno pode não ser capaz de, numa sociedade hierárquica e preconceituosa como a
brasileira, eliminar as diferenças sociais, igualar os amantes e enfrentar a força e o
arbítrio do poder patriarcal. O papel desta instituição é avaliado e vemos a crítica dos
costumes ser reduzida, na medida em que a sociedade brasileira passa a ser analisada
183
Já há uma família afetuosa em A Moreninha – Augusto e seus pais -, mas ela não forma e define o “eu”
do sujeito amoroso. Costa (1999) demonstra que ocorre uma mudança profunda na estrutura da família.
Antes, em seu formato patriarcal, extenso, o desejo da família se centrava na vontade do pai. Aos poucos,
na organização nuclear, todos os membros da família passam a ser valorizados, com especial atenção às
necessidades dos filhos. Em Dom Casmurro, Bentinho é o centro das atenções da mãe obsessiva e, ao
mesmo tempo, é o desejo dela que se impõe, seja na decisão de enviar o filho ao Seminário quanto na
aceitação de retirá-lo para que se case com Capitu, moça que aceita para ser esposa de seu filho (Gledson,
1999).
184
Machado (1993) ressalta que, embora fale sobre os acontecimentos de sua vida amorosa, Bentinho
apresenta uma grande dificuldade em falar sobre os próprios sentimentos, o que seria conseqüência da
pressão exercida pelo império familiar patriarcal onde todos os elementos são levados a conter seus
afetos. Schwarz (1999) demonstra que uma lógica no sistema familiar que acaba por afastá-los de sua
vida íntima: “Os atores formam um sistema social rigoroso, dotado de necessidade interna, distante das
razões sentimentais e de pitoresco, ou seja, românticas, que levaram o Casmurro a lembrá-las com notável
precisão.” (SCHWARZ, 1997: 18).
através de sua célula e, ao mesmo tempo, ampliada, pois a partir desta unidade são
conhecidos alguns dos grandes problemas desta mesma sociedade
185
. O romance
enriquece em estrutura, compondo-se de metáforas mais delicadas. A descrição
detalhada que em Senhora permite que conheçamos, por meio das características das
personagens, a corrupção moral que a sociedade imprime nos indivíduos, torna-se aqui
mais sutil e direta, atingindo a base da cultura patriarcal hierárquica brasileira que
impunha à vida íntima a estrutura autoritária de sua organização. O preconceito de
classe é claramente ressaltado na narrativa: uma novidade em relação aos romances
anteriores.
A diferença social é elemento central para se compreender as relações afetivas
no romance. Se Senhora permitiu complicações sentimentais em função da interferência
do dinheiro na relação, em Dom Casmurro, a questão da diferença de classe torna-se
ainda mais importante, pois a família de Bentinho é rica, sendo o rapaz o único herdeiro
e a de Capitu não é, sendo o pai funcionário público e a mãe “do lar”, distinção que
abrirá margem para questionamentos sobre a sinceridade do afeto da moça, remetendo
mais uma vez para a problemática das relações conjugais cuja base não é o amor, na
medida em que a jovem poderia estar visando ascender socialmente por meio do
casamento.
Partindo da análise de Schwarz (1997), consideraremos que o romance Dom
Casmurro teria uma fração inicial dominada pelo espírito esclarecido de Capitu e uma
segunda parte, onde Bentinho e o tradicionalismo imperariam. Durante esta primeira
parte do romance, Capitu e Bentinho estão do mesmo lado, a favor de seu amor, em
uma luta contra os obstáculos representados ou relacionados à família
186
. Na segunda
parte, na nova família que se forma, são os defeitos” dos próprios amantes que
destroem a relação. O amor no romance toma dimensões diferentes, mas têm relação
com as narrativas anteriores. Uma associação importante é a de “aprendizado”, pois aos
rapazes ele está frequentemente relacionado à companhia de outros moços. De modo
similar aos jovens românticos e clássicos de Macedo, que têm aulas uns com os outros
sobre as possibilidades de amor, e a Seixas, que aprende com a sociedade corrompida
como se portar afetivamente, Bento Santiago assume que nunca aprendeu nada sobre o
185
Segundo Gledson (1999), Machado de Assis, por meio da família, faz um panorama da sociedade
brasileira do século XIX.
186
Até se tornar proprietário, seu ciúme não é um obstáculo para a relação, apenas sua família. Bentinho
demonstra ciúme de Capitu antes de casado, ciúme profundo que, em dado momento, ele associa ao
fato de serem estas emoções de um primeiro amor.
amor, ele não experimentou salões
187
, não vivia com rapazes, que me ensinassem
anedotas de amor”
188
, pois havia uma grande “diferença entre o estudante e o
adolescente. Conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar; tinha orgias de
latim e era virgem de mulheres”
189
. Observando a história do desenvolvimento de seu
primeiro amor, percebemos que o sentimento era por ele ignorado, posto que nunca
vivido. Mas essa ignorância é parcial e significativa para a análise, como veremos a
seguir.
Ouvindo uma conversa entre o agregado da casa, José Dias, e sua mãe, D.
Glória, Bentinho é denunciado a si mesmo que ama. O agregado diz que observou que o
rapaz e a vizinha vivem sempre juntos, “em segredinhos”, e que podiam pegar de
namoro”. A denúncia e preocupação que o agregado expressa são, na narrativa,
remetidas ao preconceito de classe de José Dias, que se sentia parte da família
190
. A
partir daí, Bentinho, que não sabia que amava, novo significado a seu passado e
constrói pra si uma história de vida amorosa com a vizinha, utilizando-se dos momentos
prazerosos que viveu com ela gestos, palavras, sonhos, perguntas curiosas, respostas
vagas, cuidados - como marcos deste amor que ele não sabia que existia mas que,
naquele momento, pareciam sinais óbvios e explícitos do sentimento é quando se
fundem seu eu-estudante com seu eu-amante. É, como aponta Seixas (2004), a
constituição do eu por meio do outro
191
ou, como o próprio Casmurro destaca, uma
“revelação da consciência a si própria”: é como se já experimentasse o amor, mas não
conhecesse que amava.
Pois, francamente, agora entendia a comoção que me davam essas e
outras confidências. A emoção era doce e nova, mas a causa dela fugia-me,
sem que eu a buscasse nem suspeitasse. Os silêncios dos últimos dias, que
me não descobriam nada, agora os sentia como sinais de alguma cousa, e
assim as meias palavras, as perguntas curiosas, as respostas vagas, os
cuidados, o gosto de recordar a infância. (MACHADO DE ASSIS, 2000:
28).
187
Gledson acentua que o excesso de cuidado que a mãe de Bentinho despendia com ele, evitou que o
rapaz experimentasse coisas comuns como participar da vida agitada da Corte ou cavalgar, hábito
comum entre rapazes – e impediu que aprendesse a lidar com algumas situações cotidianas.
188
MACHADO DE ASSIS, 2000: 63.
189
Ibidem: 31.
190
Gledson (1999) e Schwarz (1997) demonstram que intervir na relação, evitar este amor, era um recurso
do agregado para manter sua posição na família, lugar que era ameaçado por Capitu.
191
“Como ouvinte de uma narrativa construída no ambiente familiar, Bentinho entra em contato com um
eu que até aquele momento ele próprio desconhecia” (SEIXAS, 2004: 223). Esta leitura sugere ainda a
relação entre narrativa e formação do eu, percepção apresentada pelo próprio Casmurro quando enxerga
sua própria história em tudo o que lê, de modo a “reduzir essas leituras a ilustrações dos seus sentimentos
e conflitos” (Ibidem: 220).
Embora este aparente desconhecimento possa indicar que o sentimento era ainda
um mistério para Bentinho, o fato de ele poder identificar e conectar momentos de seu
passado ao amor demonstra que ele era conhecido como ideário. Assim como o passado
lhe é revelado, os acontecimentos posteriores também adquirem novo sabor, pois agora
ele sabia que amava Capitu e que ela o amava.
Ainda que possamos duvidar do narrador afinal, distante do amor, ele
facilmente identifica suas formas -, o que podemos apontar é que o amor é apresentado
com uma codificação desenvolvida, posto que um conjunto de comportamentos é
facilmente associado a ele. Mais, o amor não aparece como algo místico ou mágico, não
é um feitiço lançado no rapaz. Tampouco se evidencia como algo interior que a
sensibilidade romântica do rapaz tenha aflorado após ser influenciado por uma pessoa
especial. Ele ama porque o amor lhe é fornecido como possibilidade, ele está posto
como hipótese semântica do período e, especialmente, como relação provável entre dois
jovens que convivem intimamente: Bentinho ama porque é levado a amar, que se
nunca tivesse ouvido a conversa, talvez nunca viesse a se interessar por Capitu. Como
afirma Gledson (1999), o amor na narrativa é uma emoção impregnada de pressões
sociais. Esta concepção é fundamental, pois elimina a noção, presente em A Moreninha
e em Senhora, de que o amor é um sentimento liberto de problemas externos à própria
relação, de que não enfrenta outras questões além dos comportamentos incorretos dos
amantes
192
.
O amor de Bento Santiago e Capitu se assemelha, num primeiro momento, ao
ocorrido nos outros romances. Dois jovens se apaixonam, enfrentam alguns obstáculos
iniciais, mas conseguem ficar juntos. Não há, no romance, uma preocupação em
comparar a vida do casal Bento-Capitu com a de outros indivíduos, mas em revelar as
limitações deste amor em um contexto patriarcal. A crítica se direciona ao amor como
possibilidade viável na sociedade brasileira e, talvez, às ilusões disseminadas pela
literatura anterior. O que se quer ressaltar é que embora este amor pareça ser
conseqüência do desenvolvimento do afeto mútuo dos amantes, ele está ainda
submetido à organização familista e talvez nunca ocorresse se não tivesse sido
estimulado pelo agregado ou se o principal elemento da família, Dona Glória, não o
aprovasse. Bento é “propriedade” de sua mãe e o peso da posição materna interfere na
192
Ainda que Senhora associe as práticas de Seixas à sociedade, os problemas enfrentados pela relação
acontecem porque o rapaz foi incapaz de se manter incorruptível.
vida íntima do filho. O amor é resultado da confluência de pressões sociais, e não
apenas para Bentinho, pois também o é para Capitu, que se torna esposa porque é
aprovada pela mãe do rapaz.
O caminho do amor era, para as mulheres, o único ou o privilegiado. No
romance, não pistas de mulheres trabalhadoras, todas sendo esposas e mães, o
mesmo ocorrendo nas narrativas anteriores onde as mulheres ou já ocupavam algumas
destas posições, ou ansiavam por elas. Como afirma Candido (2006), “As mulheres (...)
percebem que, sendo o casamento a sua grande carreira, o amor é a técnica de obtê-lo
do melhor modo"
193
: diferente de Bentinho, Capitu sabe que ama e que o casamento
com o rapaz é uma possibilidade de melhorar sua condição social
194
. O que se quer
apontar é que ainda que não haja informações precisas sobre o amor, os
comportamentos de Capitu ou sobre seus pensamentos, é razoável afirmar que o amor
como um caminho para o casamento pode aparecer como possibilidade. Por meio da
narrativa, sabemos que a moça se imaginava esposa de Bentinho, como comprova a
inscrição feita no muro, pela jovem, dos nomes dos dois juntos e a ira que demonstra
diante da possibilidade de separação do casal por causa da promessa da mãe do rapaz
195
.
No entanto, não sabemos que tipo de sensações experimenta a moça, quais suas
intenções ou se ela verdadeiramente ama o rapaz, pois ela não tem voz na narrativa e
não temos acesso a suas concepções sobre o amor. Somente sabemos da influência
sedutora da moça e dos esforços que empreende para que Bentinho não para o
Seminário, fator que inviabilizaria uma possível união. O romance provoca dúvidas
sobre as reais finalidades das personagens devido a ambigüidade da narração. Por um
lado, sempre a possibilidade de que Capitu e suas artimanhas, a princípio muito bem
vistas por Bentinho
196
, decorressem de um interesse na ascensão social por meio de um
casamento vantajoso. Obviamente pode-se questionar se este interesse não é apenas
mais uma das fantasias de Bentinho, incitadas pelo preconceito de José Dias
197
. O desejo
de fazer um bom casamento é uma possibilidade real, principalmente se nos basearmos
193
CANDIDO, 2006: 459.
194
Schwarz (1997) ressalta a facilidade com que Capitu se move na sociedade de seu tempo.
195
Não fica evidente se esta raiva está relacionada com a separação do objeto de amor ou com o
surgimento deste obstáculo aparentemente intransponível vida religiosa - ao casamento e, logo, à
ascensão social.
196
As idéias de Capitu pareciam, ao jovem Bento, como táticas para ficarem juntos. Posteriormente, no
entanto, estas mesmas ações serão utilizadas para afirmar sua dissimulação e traição.
197
José Dias faz observações sobre a relação de Bento e Capitu e o interesse do pai da moça nesta união:
“A pequena é uma desmiolada; o pai faz que não vê; tomara ele que as coisas corressem de maneira,
que...” (MACHADO DE ASSIS, 2000: 16); sobre o desejo de Capitu em casar: “-Tem andado alegre,
como sempre; é uma tontinha. Aquilo enquanto não pegar algum peralta da vizinhança, que case com
ela...” (Ibidem: 94).
nas narrativas anteriores, onde um matrimônio “bem posicionado” era considerado, por
grande parte da sociedade, um modo comum e correto de manutenção da riqueza ou de
ascensão social. O próprio José Dias indica que a moça não estaria satisfeita enquanto
não conseguisse um noivo. Como ressalta Gledson (1999), é possível afirmar que
Capitu poderia estar desejando um casamento onde pudesse melhorar sua condição
social. Este objetivo não era um problema em si, como ficou evidente por meio das
análises das narrativas de Macedo e Alencar
198
. Entretanto era, definitivamente, um
problema para o amor. Mas, mais importante, era um problema para José Dias, que via a
chance de perder sua posição na família (Gledson, 1999; Schwarz, 1997).
Gledson (1999) afirma que Capitu possuía uma posição muito ambígua. Sua
família está associada à de Bentinho por alguns favores, ela é mais pobre e, de algum
modo, adotada pela família de Bento - uma agregada. A moça sabe que sua relação com
o rapaz estará sempre permeada pela possibilidade de acusação de que seu amor é, na
verdade, interesse financeiro - o que retomaria a problemática das relações não
fundamentadas em amor. Para Gledson (1999), esta posição inferior da moça explicaria
ainda o porquê de não poder falar tudo o que pensa para Bentinho, utilizando-se de
silêncios e insinuações, quando sabemos que a moça é muito inteligente e possui
capacidade de raciocínio mais avançadas em comparação com o moço
199
, ou de agir
sempre pensando em como convencer ou agradar alguém “melhor posicionado”.
Schwarz (1997) lembra, no entanto, que Capitu se destaca pela facilidade com que se
movimenta neste contexto hierárquico
200
, inclusive seduzindo Dona Glória e
convencendo-a, indiretamente, da possibilidade de seu casamento com Bento
201
. Para
Gledson, não como afirmar se Capitu age ou não por puro calculismo, ainda que não
198
O caso de Seixas é exemplar. O casamento de conveniência também aparece no romance Dom
Casmurro. Como indica a história, está era a realidade do casamento dos pais de Bento. No entanto, eles
“tiraram no bilhete comprado de sociedade” a sorte grande, imagem que parece remeter, pelo menos na
visão de Bento, a um casamento arranjado que deu certo.
199
Gledson (1999) insinua que a posição social de Bentinho, um herdeiro, faria com que não tivesse de se
esforçar como Capitu e Escobar, calculando suas ações para ascender socialmente.
200
Cardoso (2008) aponta que esta mobilidade que faz com que a moça se locomova com facilidade nas
estruturas hierárquicas revela sua fluidez, ou seja, sua facilidade de se adaptar, característica típica das
heroínas sentimentais. A fluidez “not only is a central aspect of the way the sentimental tradition is
articulated in Brazil, but it is an essential feature of the European sentimental novel as well, whose
heroines, in establishing a romantic attachment above their station, offer an imaginary escape from a rigid
social hierarchy, and whose marriage offers an acceptable form of social climbing based on personal
merit, defying the immobility imposed by one’s social standing.”. A semelhança com o modo de agir de
Capitu é clara.
201
Gledson (1999) ressalta que não haveria casamento se Dona Glória não desejasse, a narrativa
demonstrando claramente a presença da vontade da família sobre o casamento. Se a mãe aceita esta união
é porque era de seu interesse, pois a paixão de Bentinho o livraria da promessa sem que ela tivesse culpa
e, por sua vez, evitaria que tivesse de se afastar de seu único filho.
haja “dúvida de que Capitu aspira subir na escala social e está bem consciente das
diferenças sociais entre ela e Bentinho”
202
. No entanto, semelhante a Bentinho que
sofreu influências para amar o faz porque é informado que ama -, a moça pode ter
sido convencida de que estava apaixonada pelo vizinho rico por meio de comentários
ingênuos, ou não, das vantagens desta relação. Logo, não “é possível distinguir entre
ambição ou inocência”
203
.
A dúvida se o amor é a base do casamento persiste. Em nenhum momento
qualquer tipo de jura de amor eterno, e sim uma promessa de matrimônio:juremos que
nos havemos de casar um com outro, haja o que houver”
204
. Como é possível perceber, o
casamento é colocado antes do amor e se seguirmos as relações estabelecidas entre o
amor e o desejo de casamento desenhadas nas outras obras, inevitavelmente teremos de
ceder ao fato de que, embora aparecendo como possibilidade viável para fundamentar a
relação, talvez o amor como motivo da relação nunca tenha tido um lugar privilegiado
nesta narrativa. Assim, se considerarmos que Capitu casa-se por interesse, haverá a
conjunção de dois elementos tradicionais ou, usando a terminologia de Fabrício,
"clássicos", e a semântica que enfatizaria relações baseadas no amor se revelaria
ineficaz ou secundária. Por outro lado, não representaria a luta de uma forma moderna
de relação, o amor, contra o tradicionalismo
205
, como indica Schwarz (1997), mas a
astúcia de uma mocinha casadoira como todas as anteriores
206
, restringindo-se o
202
GLEDSON, 1999: 67.
203
Idem. Para o autor, o desejo de ascensão social e amor podem estar juntos. “Não dúvida de que
Capitu aspira a subir na escala social e está bem consciente das diferenças sociais entre ela e Bentinho.
(...) Mas como distinguir isso do amor?... É justo concluir que, bem como no caso de seu pai, não é
possível distinguir entre ambição e inocência. Afinal, não existe lei contra estar apaixonado e, ao mesmo
tempo, desejar subir na vida” (Idem).
204
MACHADO DE ASSIS, 2000: 77. Em A Moreninha também uma promessa de casamento antes
mesmo de haver amor, mas o afeto é infantil, puro, um encontro de virtudes. Como ressalta Cardoso
(2008), Capitu é o contrário da imagem de infância pura, pois apenas com quatorze anos, seus atos são
sempre remetidos aos objetivos racionais de união com Bentinho. Como o próprio Casmurro lembra
“Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem.” (MACHADO
DE ASSIS, 2000: 52). Nesta mesma idade, Carolina, protagonista de A Moreninha era uma criança
brincalhona, ainda que sagaz e impertinente, mas que agia com pureza e inocência. Esta diferença pode
ser resultado das distintas posições sociais da moça. Como ressalta Gledson (1999), os comportamentos
dissimulados de Capitu são as necessidades impostas por sua posição. Carolina, por sua vez, fala o que
pensa e todos respeitam e se divertem, pois “não há nada mais natural; ela era a neta da dona da casa além
de ser moça e rica.” (MACEDO, 2003: 40). Pode-se imaginar que Capitu, em uma posição social mais
alta, não evitaria comentários maliciosos como o de Carolina. Ao invés disso, seu lugar na hierarquia
social exige que, naquela idade, calcule sobre seu futuro e seus atos, a fim de mudar de posição nesta
hierarquia social.
205
Devemos salientar ainda que tal opção, de uma relação não fundamentada em amor, não é uma
negativa em si mesma, mas que ela é freqüentemente desvalorizada pelas narrativas que analisamos.
206
É inegável que Capitu é uma moça astuta cuja inteligência está muito acima da capacidade de
raciocínio de Aurélia, que também é freqüentemente lembrada por sua sagacidade. Mas também é
indiscutível que toda sua racionalidade e cálculo ficam margeadas pelo tradicional desejo de casamento.
Assim, embora concordemos com Schwarz (1997) que “A clareza na decisão supõe distância em relação
moderno ao fato de não haver impedimentos à relação entre as classes. No entanto,
mesmo este moderno, como ressaltou Gledson (1999) é, na realidade, outra
manifestação do tradicionalismo patriarcal, posto que o casamento se realiza por
causa do interesse da mãe de Bentinho em livrar-se da promessa religiosa. Para o autor,
“dona Glória, longe de merecer as palavras 'Uma santa', gravadas por fim no seu
túmulo, é uma mãe egoísta, pegadiça, superprotetora, extremamente dedicada ao
sentimentalismo religioso”
207
e que apenas ignora os obstáculos de classe porque lhe era
vantajoso, utilizando-se do amor do filho em seu próprio benefício.
Há, no entanto, uma forma de leitura alternativa sobre a promessa de casamento
de Bento e Capitu. É possível considerar que casamento e amor pudessem já estar
associados, fazendo com que a idéia de amor estivesse implícita no momento da
promessa. Esta hipótese transformaria profundamente o curso das interpretações até
aqui feitas e, ao mesmo tempo, confirmaria a leitura de Schwarz (1997). Para o autor, o
relacionamento de Capitu e Bentinho enfrentaria o preconceito social - trazido no
romance pela personagem do agregado José Dias que despreza a família do vizinho
pobre - e a tradição - representada pela superstição e religiosidade de Dona Glória que
decide sobre a vida do filho. Para estas pessoas, o amor não apareceria como alternativa
imediata, inclusive para o pai de Capitu que poderia realmente esperar as vantagens
deste casamento
208
. Se o amor é o fundamento da união dos jovens teríamos, como
destacou o autor, a luta do amor contra o tradicionalismo. Considerado por este prisma,
a vitória da relação dos jovens representaria, efetivamente, a ascensão de ideais liberais
frente ao tradicionalismo que, como demonstra José Dias, se esforçaria em impedir um
casamento como este, entre classes.
Mas, se em um primeiro momento, o amor e os esforços dos amantes conseguem
limitar o arbítrio familiar, ele não consegue vencer outros obstáculos. Durante a
infância, Bento Santiago não tinha poder para impor sua vontade e dar vazão ao seu
ao sistema de sujeições, obrigações e fusões imaginárias do paternalismo” (SCHWARZ, 1997: 25), esta
mesma racionalidade fica limitada a representações femininas típicas do mesmo sistema, qual seja, esposa
e mãe. Deste modo, ainda que saiba se mover com graça no ambiente patriarcal, como destaca o autor,
Capitu não utiliza sua racionalidade para se livrar dele ou, o que confirmaria a leitura de Schwarz, tem
raciocínio suficiente para saber que não havia outros meios de vida para uma mulher.
207
GLEDSON, 1999: 52.
208
Bentinho tem, em certo momento, um sonho onde vê Pádua, o pai de Capitu, com um bilhete de loteria
que possuía o número 4004 - número curioso, pois quatro compõem a confusa relação de amor e desejo
entre Capitu, Bentinho, Escobar e Sancha - e que considera de sorte, mas com o qual não ganha nenhum
prêmio. Ele lamenta. O curioso, no entanto, é que esta cena se após Bentinho ver, no sonho, Capitu à
janela conversando com um outro rapaz. Avaliando a metáfora, é como se o pai da moça lamentasse a
falta de sorte, ou a força do acaso, de ver a filha perder a chance de casar com Bentinho.
ciúme
209
. Neste momento, é o amor que impera. Quando se torna o chefe da família, o
proprietário
210
reproduz, na nova família que forma com Capitu, o mesmo tipo de
controle que era exercido por sua mãe
211
.
Bento agora é chefe de uma família abastada, advogado estabelecido, uma
figura de ordem. A desestabilização interior que a autoridade lhe causava
em criança não tem razão de ser, ou melhor, talvez haja mudado de
posição relativa, uma vez que a autoridade passou a ser ele mesmo. Nas
novas circunstâncias as velhas turvações do juízo, a incapacidade de traçar a
linha entre a vontade de quem manda e a própria, trocam de natureza. A
instância mais dramática está no ciúme, que havia sido um entre os vários
destemperos imaginativos do menino, e agora, associado à autoridade do
proprietário e marido, se torna uma força de devastação. (SCHWARZ,
1997: 30).
Bentinho descarta, ou trai, o juramento de confiança e igualdade que o moço
bem-nascido fizera à vizinha pobre
212
. Como o amor foi “denunciado” a ele, pode-se
considerar que Bento não fora treinado para estabelecer relações amorosas nos moldes
modernos, onde a igualdade entre as partes, e não a hierarquia, constitui a relação.
Bento não aprende nada sobre o amor. As experiências das relações que teve dentro de
sua família são de controle das emoções e dos afetos. Bento se orienta, em seu
209
As crises de ciúme de Bentinho se revelam desde a juventude. Com sua imaginação fértil, o rapaz beira
à paranóia, tendo ciúme não apenas de outros homens, mas dos pensamentos da esposa e até do mar (que
na narrativa está associado à sexualidade, sensualidade e sedução: é pensar nos “olhos de ressaca” que
tragam Bentinho para dentro da moça).
210
Deve-se ressaltar que não se trata de qualquer tirania, mas da figura de autoridade patriarcal
personalista, onde a vontade da pessoa não é limitada por direitos universais democráticos ou,
simplesmente, pela presença de um amor de características igualitárias (Schwarz, 1997).
211
Machado (1993) ressalta que Bentinho reproduz, confirma e legitima os valores que recebera de Dona
Glória e de José Dias, isto é, as noções de uma organização familista e patriarcal. Assim, quando se casa,
Bentinho se esforça para imprimir à vida afetiva do casal o mesmo arbítrio familiar de que fora vítima,
onde não podia impor suas vontades ou dirigir seus afetos, arbítrio que Capitu não vivenciara em sua
própria família. Capitu, aos poucos, deixa de aparecer à janela e de expor seus braços ao público, tudo por
ciúme do marido que tenta controlar sua ameaçadora sexualidade. A sensualidade de Capitu é o oposto
daquilo que acontecia na casa de Bentinho onde a mãe se fecha sentimentalmente após a morte do
marido, assim como sua prima Justina, também viúva e Tio Cosme, homem que “os anos levaram-lhe o
mais do ardor político e sexual, e a gordura acabou com o resto de idéias públicas e específicas”
(MACHADO DE ASSIS, 2000: 20). Quando cerceia a mulher e sua obsessão não termina, a única saída
para sua paranóia é imaginar que a mulher lhe era infiel com o único homem que mantinha contatos
constantes, o amigo Escobar (Machado, 1993).Como ressalta Cardoso (2008), Bentinho testa a
sinceridade da mulher e a condena.
212
SCHWARZ (1997: 33) grifos do autor. A noção de igualdade, moderna, sucumbe diante da escolha
de Bento em reproduzir os antigos valores herdados de sua mãe, a anterior personificação do poder
familiar (Machado, 1993). Como ressalta Schwarz “Trocando em miúdos, o amor entre a vizinha pobre e
o rapazinho de família, com o correspondente anseio de felicidade, de realização pessoal e mesmo de
saída histórica e progressista para uma relação de classe, anima a intriga até um ponto avançado do livro,
quando então a dimensão autoritária da propriedade rouba a cena e galvaniza o antigo nhonhô, que agora
se enxerga como vítima, desmerece e escarnece as suas próprias perspectivas anteriores de entendimento,
igualdade, lucidez, e afirma pela força a sua disposição de mandar sem prestar contas” (SCHWARZ,
1997: 34).
casamento com Capitu, por meio dos códigos tradicionais. Vivendo em uma nova
ordem social e em uma nova família, não é obrigado, no entanto, a se guiar por ela,
pois, como ressaltado, o sistema ainda o protege. Diante de uma esposa que sabia se
orientar por ambos os códigos, Bento, despreparado, sente-se ameaçado, pois percebe
que o mundo em que se encontra é instável. Entre o código íntimo moderno, o das
relações amorosas igualitárias, e a orientação tradicional que prega a hierarquia entre os
gêneros dentro do casamento, Bento escolhe o segundo. Quando se utiliza do arbítrio e
do poder, proibindo Capitu de ser vista por outros homens e exilando-a na Europa,
Bento se defende deste mundo que não compreende e reage a este amor que não é
submissão, que não se orienta apenas para satisfazer os desejos do patriarca. A mulher,
conhecedora dos códigos, aceita esta manipulação, pois
a mesma compreensão clara das relações efetivas que havia permitido as
manobras da menina agora faz que, diante dos ciúmes do marido, a mulher
trate de prevenir o enfrentamento por todos os meios, renunciando à rua e à
janela, terminando por viver auto-sequestrada, tudo naturalmente em vão. A
gaiola da autoridade patriarcal voltava a se fechar, sem apelação, conforme
sugere a resignação lúcida e comovente em que termina Capitu.
(SCHWARZ, 1997: 31).
É quando se torna o chefe da família, um proprietário, que Bento dá vazão a todo
seu descontrole e ciúme e passa a acreditar que o amor da esposa não é sincero e que o
amor, em si mesmo, não é suficiente para garantir a submissão da esposa. Neste
momento, torna-se violento e exila a família. Como ressalta Venâncio Filho (2000), “o
ciúme é o correspondente psicológico da dominação social não permite qualquer
distância”
213
. Vemos que quando o poder familiar não é eliminado da narrativa, ele
submete o amor, manipulando-o e o destruindo. Ao analisar o romance Quincas Borba,
Muricy (1988) mostra que Rubião, personagem que enlouquece na narrativa, não
compreende os códigos da vida moderna onde a mulher possui papel central na vida do
homem, participando de festas e recepções, muitas vezes se utilizando da sedução, ainda
que não haja fins sexuais. Rubião se apaixona pela esposa de um amigo, pois confunde
suas qualidades como anfitriã, que envolvem técnicas de sedução, com um efetivo
desejo sexual. Capitu é uma mulher moderna, atraente, sedutora, que se utiliza de sua
beleza e inteligência para casar com Bento e, quando casada, quer exibir sua
213
VENÂNCIO FILHO, 2000: 91.
conquista
214
e, talvez, ajudar na carreira do marido, recepcionando convidados, funções
da mulher na nova sociedade que se afirmava. No entanto, estes comportamentos não
são entendidos por Bento. Criado na ambivalente sociedade que se forma, Bento parece
não estar preparado para lidar com as novidades.
O amor possui, como fica evidente, uma posição ambígua na narrativa, pois ele
não tem respostas, não pode lidar com uma sociedade como a brasileira, onde a
liberdade é parcial, uma idéia, mais do que uma crença. Como indica Luhmann (1991),
o meio de comunicação simbolicamente generalizado amor codifica os comportamentos
e facilita a comunicação reduzindo a complexidade. Com isso, intensificam-se as
possibilidades de comunicação, de modo que novas questões são colocadas ao código.
Como vimos em Senhora, um problema se apresenta ao amor, mas o código responde à
demanda, os amantes renascem e o amor mantém sua estabilidade: após a rotina de
torturas que impôs a si e ao marido, Aurélia perdoa todas as faltas de Seixas e o amor da
moça, embora ofendido, vence. Diferentemente, em Dom Casmurro o amor não pode
enfrentar os problemas que a ele se colocaram. A luta em Senhora é contra a decadência
da virtude do amado, provocada pelo dinheiro e pela corrupção da sociedade. Em Dom
Casmurro, o arbítrio do proprietário se instala e o amor sucumbe, pois, se é
fundamentado na igualdade e na liberdade, não pode resistir ao mando e ao arbítrio. É
importante enfatizar esta distinção, pois se as deficiências na virtude de Seixas são
apontadas como um problema para o amor, elas puderam ser superadas pelo amor, na
medida em que o rapaz, porque convive com Aurélia, revê o mundo, alterando suas
concepções de vida e até mesmo seus gostos. Bento Santiago e Capitu são arrastados
por seus defeitos e o amor não pode sustentá-los: ele não possui respostas para estas
questões, é uma ilusão quando se desenvolve em contexto brasileiro.
Dom Casmurro oferece duas chaves de interpretação (e talvez muitas outras): a)
a vitória parcial do amor sobre o arbítrio, a religiosidade e preconceito, vitória que
depois é solapada por este mesmo arbítrio, agora personificado em Bento (Gledson,
214
Capitu se orgulhava de estar casada com Bento, de ser vista ao seu lado, de sua nova posição social. E
queria se exibir, o que traz desconfiança a Bento: “A alegria com que pôs o seu chapéu de casada, e o ar
de casada com que me deu a mão para entrar e sair do carro, e o braço para andar na rua, tudo me mostrou
que a causa da impaciência de Capitu eram os sinais exteriores do novo estado. Não lhe bastava ser
casada entre quatro paredes e algumas árvores; precisava do resto do mundo também. E quando eu me vi
embaixo, pisando as ruas com ela, parando, olhando, falando, senti a mesma cousa. Inventava passeios
para que me vissem, me confirmassem e me invejassem.” (MACHADO DE ASSIS, 2000: 78). Capitu
também gostava de estar em festas, lugares onde Bentinho percebe ou imagina - que a mulher é muito
observada: “quando vi que os homens não se fartavam de olhar para eles [para os braços da esposa], de os
buscar, quase de os pedir, e que roçavam por eles as mangas pretas, fiquei vexado e aborrecido” (Ibidem:
141).
1999); e b) o amor nunca foi o principal motor deste casamento, mas o desejo de casar
e, ainda e talvez especialmente -, o desejo de Bentinho em amar (ou de não seguir a
vida religiosa). De qualquer modo, a possibilidade do amor como motor da relação está
claramente afirmada e estabilizada
215
. Mas não constância no amor: 1) se Capitu
traiu, ela foi volúvel
216
; 2) se Bentinho deixou seu arbítrio e ciúme desestabilizarem seu
amor, faltou constância; e/ou 3) se nunca houve primazia do amor ou se a promessa de
eternidade foi relegada ao casamento, sequer foi acionada a possibilidade de constância.
É necessário lembrar que, na narração, Bento associa as características dos
amantes aos seus atos presentes e futuros, elemento fundamental para as análises.
Observemos, primeiramente, o caso da infidelidade. As análises de A Moreninha e
Senhora mostram que uma característica que frequentemente impossibilita, ou se opõe,
as relações baseadas no amor é a inconstância. Do amor que se declara, espera-se que
ele nunca mude de objeto, articulando-se desejo e sentimento em apenas uma única
pessoa. Como destacado, Capitu possivelmente se apaixona por Bentinho na infância e
utiliza todas as suas faculdades racionais, calculistas e dissimuladoras sinais de sua
flexibilidade e fluidez
217
- para viabilizar a união do casal, representando o ideal
encontrado nos romances anteriores onde os amantes buscariam efetivar uma relação
baseada no amor
218
. Mas surge a possibilidade da traição que redirecionaria esta
racionalidade para outro fim
219
. O curioso é que este objetivo pode ser um outro amor.
215
de se destacar ainda que não nenhum esforço de definição do amor por nenhuma das
personagens em Dom Casmurro. Não sequer a descrição de outras relações amorosas que pudessem
servir como objeto de comparação com a relação de Capitu e Bentinho. Não existe, como nos romances
de Macedo e Alencar, comportamentos considerados padrão ou que sejam indicados, pela narrativa, como
corretos. Ademais, não há um narrador externo ou outras vozes que pudessem criticar a relação.
216
A hipótese de que Capitu traiu abre margem para duas novas possibilidade: a) que a moça tenha
mudado de amores, apaixonando-se por Escobar ou; b) que revelasse um desejo fora do casamento,
acentuando a sexualidade que estaria acima do amor. Em ambas as hipóteses, um desvio da norma e o
casamento perde sua “base”, a constância.
217
Cardoso (2008) ressalta que a fluidez de Capitu, característica exaltada nas narrativas sentimentais, é
transformada, pelas concepções tradicionais da classe de Bento, em simples dissimulação, de modo a
retirar-lhe seu poder, enfraquecendo-a: “This reassertion of power takes place in Bento’s interpretation of
Escobar and Capitu, which fixes them in well-defined social roles: Escobar becomes a ruthless and
opportunistic upstart, who finds his counterpart in Capitu as a deceitful adulteress who has married Bento
in order to achieve her social ascension, and who delights in displaying her new status”. Schwarz (1997)
lembra também que “a vontade clara e a lucidez de Capitu são rebaixadas a provas de um caráter
interesseiro e dissimulado” (SCHWARZ, 1997: 17) como forma de lidar com as hierarquias sociais.
218
Capitu engana o próprio Bentinho com sua racionalidade e dissimulação. Embora contraditório, é com
estas qualidades que Capitu ganha a admiração de Bento. A capacidade avançada de refletir de Capitu
leva o narrador a dizer que a moça era “mais mulher do que eu era homem” (MACHADO DE ASSIS,
2000: 52), confundindo assim características tradicionalmente consideradas masculinas com a força
representada pela jovem.
219
Bentinho nos lembra freqüentemente desta capacidade de cálculo e raciocínio da jovem Capitu, nos
conduzindo, efetivamente, a crer que a moça poderia ter planejado o casamento e depois traído o marido
com seu melhor amigo.
No entanto, um segundo amor remeteria à inconstância, a volubilidade, especialmente
quando sabemos que o verdadeiro amor, como pudemos atestar por meio dos enredos de
A Moreninha e Senhora, é único. Esta hipótese da traição de Capitu confirma, deste
modo, a teoria de Dona Ana, personagem do primeiro romance, que indica que sem a
constância, não pode haver família feliz.
Mas a traição também inclui o melhor amigo de Bento, Escobar. A amizade não
deixa de ser uma relação de amor
220
. Escobar, por suas características, é muito parecido
com Capitu: calculista, racional, fugidio. Como a moça, encanta e seduz Bentinho,
empurrando “as portas” da alma do moço, entrando nele. Como enfatiza o narrador: “Cá
o achei dentro”
221
. Se recordarmos da metáfora utilizada por Macedo, lembraremos que
o amor é um demoninho que entra sem pedir licença. A semelhança é aparente. De fato,
a amizade muito se assemelha àquela noção de amor e mesmo referências ao
incômodo dos outros seminaristas e padres com as explosões de afeto entre os dois
amigos. Seguindo a hipótese da infidelidade de Capitu, esta relação de amizade também
seria minada pela inconstância de Escobar que moveria seu afeto, retirando-o de Bento,
para Capitu ou, lendo de outra forma, trocaria o amor que tem por Bento pelo desejo
que sentiria por Capitu
222
, afirmando não apenas uma relação baseada no sexo, como
ainda uma intervenção na instituição do casamento. Vale enfatizar que são aquelas
mesmas características modernas dos amantes - a racionalidade, calculismo e frieza de
Capitu e Escobar - que acabam por impedir a permanência do amor que havia lutado
para se impor
223
. A partir destas considerações é possível afirmar que o moderno
conceito trazido por Gledson (1999) e Schwarz (1997) como integrante da relação entre
os protagonistas -, não apenas teria permitido ao amor florescer, mas também facilitado
seu fim.
É necessário discutir um outro obstáculo enfrentado pelo o amor e que também
está relacionado a um defeito do amante, o ciúme. Como vimos, Bentinho tem ciúme
constante de Capitu desde o início de sua relação. Capitu chega, em certo momento, a
ameaçá-lo, dizendo que diante de mais uma suspeita, ela preferiria acabar com o
220
Luhmann (1991) indica que a amizade é o equivalente do amor entre pessoas do mesmo sexo.
221
MACHADO DE ASSIS, 2000: 86. Machado (1993) acentua a relação entre casa (lar) e afeto e a
relação que Bento estabelece entre si, sua alma e uma casa: “Escobar veio abrindo a alma toda, desde a
porta da rua até o fundo do quintal. A alma da gente, como sabes, é uma casa assim disposta”
(MACHADO DE ASSIS, 2000: 87).
222
É evidente que Bento menino sente desejo por Capitu, ele quer tocar seus cabelos, beijá-la. A diferença
é o lugar do desejo: fora ou dentro do casamento, ou talvez seria melhor dizer, a favor ou contra o
matrimônio.
223
Diferindo-se das outras narrativas em que os defeitos dos amantes eram apenas obstáculos temporários
à relação.
compromisso. Garante que não seria leviana para descumprir sua promessa de que se
casaria apenas com ele. Analisando as passagens que remetem ao ciúme, é perceptível
que todas as menções são a momentos em que a moça foge de seu controle. Seja quando
Capitu responde ao cumprimento de outro rapaz, seja quando não lhe atenção,
preferindo se ater aos próprios pensamentos, seja quando outros homens admiram os
braços da esposa, Bentinho parece temer o distanciamento da mulher de si e a perda do
controle sobre o objeto de amor. Para Venâncio Filho (2000), Bento, na “sua voracidade
de controle, de estender a dominação ao outro, é como se demonstrasse que aquele que
não consegue se dominar precisa dominar alguém”
224
. Daí o recurso ao ciúme.
Retomaremos a discussão sobre o ciúme em Senhora, pois ela ajuda a refletir sobre o
caso de Bentinho.
Quando Aurélia reflete sobre o ciúme, ela ressalta que este sentimento não é
produzido pelo amor, mas é uma questão de posse, o zelo do senhor pela coisa que lhe
pertence e que não quer ver ser desfrutada por mais ninguém. Essa concepção se
assemelha aos pensamentos de Bentinho. Quando José Dias insinua que Capitu não
ficará satisfeita enquanto não conseguir “um peralta da vizinhança” que a despose,
Bentinho afirma que nunca tinha pensado nisso porque vivia para Capitu, pensava
nela. Mas a chave para a compreensão deste sentimento e da associação com a narrativa
anterior é o senhoriato. Bentinho lembra que não tinha ciúme dos olhares dos rapazes
porque sentia que eles estavam, na verdade, olhando para ele, Bento, num misto de
admiração e inveja de sua pessoa. Tal fato se porque o rapaz “tão senhor se sentia
dela que era como se olhassem para mim”
225
. Bentinho, ainda jovem, pensa em Capitu
como coisa de sua pertença e possui sensações como aquelas descritas por Aurélia,
personagem que ressalta ainda que o ciúme é um capricho, noção que remete ao arbítrio
que parece dominar as relações amorosas em contextos patriarcais.
O ciúme de Bento é um modo de controlar a vida de Capitu nos momentos em
que não está com ela. Para Venâncio Filho (2000), o ciúme, nas memórias, preenche as
lacunas com certezas que lhe faltam.
[o] ciúme induz ao conhecimento de todo o passado da pessoa amada e a
transforma numa mercadoria de segunda mão: é preciso saber de onde veio.
O ciúme é o passado tornado atual, o ausente tornado presente, a
imobilidade no tempo e no espaço. o ciúme paralisa o volúvel e o
224
VENÂNCIO FILHO, 2000: 95.
225
MACHADO DE ASSIS, 2000: 94.
intermitente, coloca todo o empenho na destrutividade uma plenitude
negativa como ocorre com Bentinho. (VENANCIO FILHO, 2000: 71)
O ciúme, o capricho e o arbítrio substituem o amor na construção das memórias. O
amor não pode lidar com a dominação que é inerente ao ciúme.
Bentinho é um rapaz mimado que não consegue lidar com algumas situações que
lhe aparecem. Mas Bentinho torna-se o chefe da família, o proprietário, o marido de
Capitu, seu efetivo senhor
226
. Em situações que não pode controlar, como diante da
certeza que lhe domina de que a moça lhe traíra, o peso de seu poder e posição acaba se
impondo. Estamos falando da noção de capricho que Aurélia constrói e que, neste
romance, comprova ser um tipo de comportamento incompatível com o amor, pois ele
destrói o casamento por meios imperiosos o desterro e exílio de Capitu e Ezequiel na
Europa.
As narrativas configuram uma relação entre ciúme-capricho-(des)amor que
produz um obstáculo intransponível ao sentimento, na medida em que o amor que
possivelmente fundamentara a relação é relegado a segundo plano, sendo preterido em
favor de um outro sentimento, o ciúme, que não sendo proveniente daquele, lhe é
contrário e mais poderoso, a ponto de corroer o primeiro. A fragilidade do amor é
evidente diante do voluntarismo do indivíduo e, aparentemente, como destacou Moraes
(2005), o desenvolvimento do amor está atrelado à perfeição dos amantes, sem o qual
ele não pode se manter
227
.
Modo alternativo de ler o romance pode ser feito a partir das reflexões de
Rougemont (2003). Por meio de uma leitura que enfatiza o lado místico-religioso do
amor no Ocidente, o autor acentua a conexão existente entre o amor-paixão, Eros, e a
presença de obstáculos à relação, na medida em que faria parte da manutenção do amor
a existência de impedimentos ou elementos que não permitissem que o amor caísse na
rotina. Por meio desta conexão entre amor e morte se explica o fato de muitos romances
terminarem com a morte dos amantes, o maior dos obstáculos concebível, o inevitável,
mas que, ao mesmo tempo, permitiria o ápice do amor: a exceção dos corpos e a
ascensão do amor pela união das almas, uma espécie de divinização. O autor salienta
226
Ele lembra, no momento de seu casamento, a epístola de São Pedro onde é indicado que as mulheres
devem sujeitar-se aos maridos.
227
Os romances de Macedo e Alencar mostraram que, se desnível entre as virtudes dos amantes, o
amor não pode se manter. Leite (1967) lembra que falta identidade entre Bento e Capitu, identificação
que, para o autor, aparece como um pressuposto para o amor em outros romances de Machado de Assis.
Cardoso (2008) também ressalta que Bento e Capitu não podem se identificar, se ver um ao outro, como é
o caso de Aurélia que enxerga o verdadeiro Seixas.
ainda os problemas decorrentes da associação deste amor-paixão ao casamento,
instituição onde a rotina é a regra.
Lendo Dom Casmurro por esta via, é possível conceber duas hipóteses. Como
aponta ainda Rougemont, a modernidade eliminou os obstáculos do amor-paixão, mas
não o desconectou do casamento. Como conseqüência, os amantes tendem a buscar,
nesta relação, o tipo de experiência intensa, desrotinizadora e arrebatadora característica
deste amor-paixão, não o encontrando. Para o autor, tal configuração explicaria a
necessidade de buscar novos amores permanentemente e, conseqüentemente, a
infidelidade, como pode ter ocorrido com Capitu que, após ter se livrado de todas as
barreiras que impediam sua relação com Bentinho, enfrenta a redução de seu amor e,
diante da proximidade com Escobar, pode ter por ele se atraído
228
e experimentado o
amor novamente. No entanto, é possível que o esforço para manter as dificuldades do
amor pode ter partido de Bentinho que, casado com Capitu, imaginaria um novo
obstáculo ao relacionamento, a infidelidade da esposa. Por meio da crença na traição,
Bento permaneceria amando seu amor de menino, amor ingênuo, afastando de si a
esposa Capitu, quando a envia à Europa, “atando as duas pontas da vida” e vivendo das
memórias da juventude
229
.
228
Bentinho narra que também sentiu atração pela esposa do amigo e lhe pareceu ser correspondido. Ao
segurar os braços de Escobar: “Apalpei-lhe os braços, como se fossem os de Sancha. Custa-me esta
confissão, mas não posso suprimi-la; era jarretar a verdade. Nem os apalpei com essa idéia, mas ainda
senti outra cousa, achei-os mais grossos e fortes que os meus, e tive-lhes inveja; acresce que sabiam
nadar./Quando saímos, tornei a falar com os olhos à dona da casa. A mão dela apertou muito a minha, e
demorou-se mais que de costume./A modéstia pedia então, como agora, que eu visse naquele gesto de
Sancha uma sanção ao projeto do marido e um agradecimento. Assim devia ser, mas o fluido particular
que me correu todo o corpo desviou de mim a conclusão que deixo escrita. Senti ainda os dedos de
Sancha entre os meus, apertando uns aos outros. Foi um instante de vertigem e de pecado. Passou
depressa no relógio do tempo; quando cheguei o relógio ao ouvido, trabalhavam os minutos da virtude
e da razão.” (MACHADO DE ASSIS, 2000: 157).
Esta passagem revela ainda o modo confuso em que se desenvolvia o desejo do rapaz, a
proximidade dos casais era muito grande.
229
Não podemos esquecer ainda que Bentinho pensa em matar a esposa e a si mesmo, o que tornaria a
distância intransponível.
3 – Amor, modernização e família nos romances
Após tratar das noções de amor nos romances A Moreninha, Senhora e Dom
Casmurro, pretendo, neste capítulo, analisar o modo como família e relações amorosas
foram pensadas e vivenciadas durante o século XIX, período de intensas transformações
na sociedade brasileira e momento em que o romance nacional se afirmava no país.
É necessário retomar alguns dos elementos encontrados nos romances e que
ajudam a entender que tipo de amor está sendo ensaiado. Nos romances são narradas as
histórias de amor de jovens casais. O amor, ainda que possa estar impregnado de
pressões sociais, é o sentimento que orienta os pares nas suas relações íntimas e os
casamentos são essencialmente fundamentados na escolha mútua. O amor no romance
A Moreninha é o amor da constância, o oposto do comportamento volúvel, que se
interessa mais em conquistar um noivo ou muitas namoradas. Se relação afetiva,
deve haver amor e se há amor, ele pode enfrentar qualquer obstáculo, como a distância e
o tempo entre o primeiro encontro de Augusto e Carolina e o reencontro se passam
sete anos. Mas deve-se prestar atenção para o fato de que as questões acerca da
galanteria permeiam todo o romance, ressaltando que há aí um problema a ser resolvido,
problema que parece remeter às uniões sem amor, por um lado, e à possível manutenção
do comportamento volúvel dentro do casamento, a infidelidade, por outro. Daí ser
relevante apontar como agem os amantes em suas relações e acusar as moças vaidosas,
namoradeiras, casamenteiras e os rapazes libertinos. A preferência pelo amor puro,
casto, constante demonstra que um padrão está sendo sugerido, um modelo que está
intimamente associado a uma moral religiosa de monogamia e felicidade conjugal
baseada no amor e não em outros interesses. Mas a sugestão das relações
fundamentadas no amor e a crítica aos comportamentos volúveis apontam para uma
tensão entre os modelos que concomitantes, não deixam de ser concorrentes. Carolina é
o exemplo de amor virtuoso, claramente ingênuo, sem preocupações casadoiras que
“recupera” Augusto, contagiando-o com sua naturalidade e pureza, inserindo-o na
família amorosa e restabelecendo a harmonia de outrora.
Em Senhora, ao passo que as concepções de amor se estreitam apenas duas
visões que se opõem, enquanto elas são mais variadas no romance de Macedo -, tornam-
se mais profundas, tanto nas particularidades que apresentam quanto na expansão da
interioridade que representam. Assim, a concepção de amor dominante e que se quer
afirmar está de acordo com as noções representadas por Aurélia, moça de origem
simples e filha de pais cuja relação, embora infeliz, foi constante em seu amor e nele
encontrava sua base. Longe da sociedade galante, Aurélia possui um amor particular,
próprio às moças de “imaginação e sentimento” que não vivenciam a realidade dos
galanteios fáceis, do amor de diversão e dos casamentos de conveniência. Fora deste
contexto, pode experimentar sensações que nascem de seu interior e não são aprendidas
na sociedade corrompida. É este amor da virtude, do íntimo, do ideal que quer se
revelar. O amor muda de status à medida que a narrativa constrói personagens mais
individualizadas, possibilitando que o amor seja parte delas e deixe de ser um
acontecimento inesperado. A sociedade produz rapazes que querem corromper moças,
homens e mulheres que anseiam ser os escolhidos pelos mais ricos e que privilegiariam
um casamento lucrativo a um amor verdadeiro. Estas pessoas são insensíveis ao
sentimento, não podem acessar seu interior, sua pureza está perdida, mas não
permanentemente. Seixas, o exemplo de rapaz que foi educado pela moral turva da
sociedade, não acredita em amor, mas aos poucos se modifica e se torna um homem
renovado pela influência de Aurélia e é apenas após essa modificação que vemos
configurar-se a possibilidade da felicidade conjugal: o verdadeiro amor pode se
manter quando os amantes são virtuosos. Moraes (2005) acentua que o amor recupera,
na narrativa alencariana, “a normalidade convencional” das personalidades. Os dois
reatam quando o fim do desnível que os separa, a relação deixa de ser mediada pelo
dinheiro e passa efetivamente a se fundamentar no amor. É apenas quando Seixas se
compra a si mesmo e Aurélia assume que prefere ser amada a manter sua herança que o
império do amor se instala, subjugando o poder do dinheiro. Sugere-se um modelo de
relação que deve basear-se no amor e se opor a qualquer manifestação de interesse
financeiro, tipo de relação que a narrativa demonstra ser comum. Com todas as
diferenças para com a obra anterior, é indiscutível que a crítica à vida galante e às
relações íntimas fundamentadas em questões que não o amor é mantida e que um
padrão de casamento e de família cuja base é o amor é sugerido.
Como é possível perceber, ambas as narrativas tratam de um amor autônomo e
que encontra no próprio relacionamento seus principais obstáculos. Este modo de
abordar as relações íntimas possibilita questionamentos sobre as tensões entre relação
amorosa e sociedade brasileira, sociedade que, ainda no século XIX, tinha na família
sua principal organização social. Encontramos, nestes dois romances, uma quase total
eliminação desta instituição. Consideramos que esta ausência da família é um recurso
narrativo para possibilitar a ascensão livre do amor. É relevante ressaltar que a família
vinha sofrendo transformações neste período. duzentos anos, mais precisamente em
1808, iniciaram-se, na sociedade brasileira, profundas mudanças associadas à vinda da
Corte portuguesa para o Rio de Janeiro. Diversos autores acentuam a importância das
transformações que se processaram na sociedade do período (Freyre, 2006b; Alencastro,
2001; Costa, 1999; Muricy, 1988), ressaltando o impacto causado na sociedade
patriarcal por novas idéias e hábitos provenientes da Europa, continente considerado
uma referência, um modelo a ser seguido. O sistema de poder da ex-colônia também
sofreu diversas modificações com a transformação do Rio de Janeiro em capital do
Império. A organização social centrada em patriarcas que comandavam a administração
dos municípios e a vida de todos aqueles que habitavam seus domínios não era
apropriada aos novos tempos, de modo que grandes investimentos foram feitos no
intuito de alterar o perfil do sistema patriarcal e modernizar o Brasil (Freyre, 2006b;
Costa, 1999).
Estas modificações no sistema patriarcal não significaram, contudo, que apenas
a organização política foi afetada. Até o século XIX, o poder dos patriarcas era sentido
pelo grande número de pessoas que dele dependiam e que viviam menos de acordo com
suas vontades do que segundo os anseios do senhor. A organização sócio-econômica
centrada em latifúndios escravocratas autônomos impedia a ascensão de profissões
médias. A falta de poderes públicos centralizados fazia com que a única forma de
proteção e, muitas vezes, de sobrevivência, se localizasse nestes proprietários. É a
“anarquia branca” de que fala Oliveira Viana (1987). Como decorrência desta
organização e da dependência dela proveniente, todos os aspectos das vidas dos
subordinados estavam submetidos ao desejo do proprietário. A vontade do pai era a
vontade de todos, constituindo uma rede de relações onde não havia espaço para
manifestações de aspirações concorrentes. Com a reorganização da sociedade ocorrida a
partir do século XIX, mudanças foram sentidas nesta organização, especialmente com a
centralização do poder e a ascensão de grupos concorrentes. De acordo com Candido,
Na sociedade brasileira do século XIX, a estratificação simples dos grupos
familiares, regidos por padrões uniformes e superpostos à escravaria e aos
desclassificados, não propiciava, no interior da classe dominante, a
multiplicidade das dúvidas e opções morais. O advento da burguesia (se
assim pudermos chamar ao novo estrato formado, nas cidades, tanto pela
imigração de fazendeiros, quanto pela ascensão de comerciantes e o
desenvolvimento da burocracia), o advento da burguesia criava, porém,
novos problemas de ajustamento da conduta. (CANDIDO, 2006: 432).
A ascensão desta burguesia produziu uma necessidade de diferenciação entre as
classes e, dentro delas, entre os indivíduos. Por sua vez, o Estado Imperial que se
formava procurou produzir um tipo de indivíduo e de população adequados ao estilo de
vida urbano que se desenvolvia (Costa, 1999 e Muricy, 1988). As pessoas deixavam de
ser “gente de alguém” e passavam a ser indivíduos com uma valorizada subjetividade. A
família moderna não tem mais seu desejo centrado no pai, mas dissolvido na família
nuclear, célula deste novo Estado. Para os autores, os médicos se ocuparão da criação
deste novo indivíduo, o cidadão identificado com a burguesia européia, o citadino de
elite. Ocorre uma medicalização do espaço urbano e da família, uma normalização que
neutraliza a influência da autoridade patriarcal.
A urbanização havia criado, para a família, um impasse. Ou ela se mantinha
fiel a sua estrutura patriarcal e, em face da nova realidade, declinava política
e economicamente, ou procurava transformar-se, adaptando-se às exigências
da urbanização, o que implicava um desequilíbrio profundo da sua
organização.
Foi nesse instante de desestruturação interna que o discurso médico pôde
propor e ver aceitas, pela família urbana brasileira, normas de regulação de
seu comportamento. A higiene ajudou a família a adaptar-se à urbanização,
dotando-a de uma nova ética formulada a partir da ciência médica.
(MURICY, 1988: 65).
A redução do poder dos proprietários significou uma reorientação da vida
íntima onde, como indica Costa (1999), a mulher e os filhos passam a ter fundamental
importância para a família
230
. Neste processo, a parentela extensa é reduzida, a
quantidade de parentes e agregados cai em número, a família diminui a extensão de seus
laços e interioriza-se. No entanto, também passa por um processo de exteriorização,
diminuindo a confinação dos seus membros – em especial, das mulheres -, expandindo a
rede de sociabilidade em teatros, recepções e outros eventos.
A personalidade das mulheres se torna importante para as relações do marido;
esposas e filhas devem ser agradáveis e bem educadas para recepcionarem convidados e
conseguir um marido bem posicionado
231
, o que altera não apenas o nível educacional
230
O autor ressalta ainda que esta alteração no perfil da família foi empreendida pela associação entre
higienistas e o Estado e que os propósitos de mudança estavam centrados nas famílias de elite.
231
Até aquele momento, havia um número reduzido de famílias de elite e os casamentos eram arranjados
entre os patriarcas de cada um delas. A personalidade da futura esposa não era relevante. Com a chegada
da Corte e das mulheres européias, a concorrência aumenta e as mulheres brasileiras devem se destacar
por diferentes atributos pessoais, não bastando, como anteriormente, a origem, a família (Costa, 1999).
das mesmas, mas também seu poder dentro do lar. Os filhos bacharéis também se
tornam fundamentais para o estabelecimento das relações do pai na nova sociedade.
Conseqüentemente, alterações nos modelos de afeto e casamento se processavam na
sociedade de modo amplo. Costa (1999) demonstra como intervenções médico-
higienistas propuseram novas formas de associação, onde se questionava, dentre outros,
uniões entre pessoas de idades muito diferentes. A intervenção do Estado, por meio da
medicina, condena antigos costumes, influindo na formação dos indivíduos da nova
família: o uso de amas-de-leite, a presença do escravo dentro do lar, a violência do pai
são frequentemente acusados, alterando a forma como se constituíam os desejos e
aspirações dos membros da família
232
, enquanto o amor entre os esposos e os filhos é,
por sua vez, incentivado (Costa, 1999).
um esforço em delinear as esferas do público e do privado de uma maneira
mais precisa. Como demonstra Freyre (2006b), a urbanização fez com que a noção de
intimidade que era praticamente inexistente no Brasil tomasse novas proporções a
idéia de lar começa a ser desenvolvida (Muricy, 1988) e a vida, a partir de então,
passa a ser controlada em diversos aspectos. As ruas deixam de ser espaço para a
dispensa de dejetos e controla-se a construção das residências. Por outro lado, antigos
instrumentos de controle se tornam ineficazes. Um exemplo interessante é o referente às
rótulas e gelosias
233
que mantinham as moças distantes do exterior e evitavam que elas
tivessem contato com rapazes. Aos poucos, estes elementos da arquitetura vão sendo
substituídos por grades e vidraças que permitiam um maior diálogo com a rua.
De acordo com Heilborn (2004), a modernidade no Ocidente imprimiu um
cultivo detalhado da interioridade e uma subjetivação compulsória que se revelam em
um “domínio dos sentimentos” particular à ascensão da noção de pessoa. A autora
destaca que uma “modelação dos corpos e das emoções” se processou e durou, no
contexto europeu, entre quatrocentos e setecentos anos. A redução da violência, o
autocontrole, o uso de modas à européia vestimentas muito quentes e apertadas - e o
próprio amor romantizado, que valoriza a personalidade e a interioridade dos amantes
(Freyre, 2006b) podem ser considerados sintomas de transformações semelhantes na
sociedade brasileira. É possível considerar que, no Brasil, este desenvolvimento tenha
se dado concomitantemente às alterações imprimidas pela transferência da Corte
232
O crescente desprezo pela presença do escravo no lar é um importante impacto (Costa, 1999),
especialmente quando se sabe que os cativos também tinham papel central na vida sexual dos meninos e
meninas brasileiros (Freyre, 2006a).
233
Silva (1998) mostra a relação entre as gelosias, o ciúme e a autoridade do patriarca sobre as mulheres
quando lembra a origem da palavra que vem do francês jalousie, ou seja, ciúmes.
Portuguesa para o Rio de Janeiro. Deste modo, podemos sugerir que se iniciou,
duzentos anos atrás, um movimento similar de controle dos corpos e pulsões, assim
como de alterações nas formas de sentir
234
.
Afirmar que ocorrem modificações na organização da sociedade brasileira e na
interioridade dos indivíduos não é o mesmo que dizer que as famílias perderam seu
poder. O modo como se efetivam os casamentos nos romances A Moreninha e Senhora
- apenas com a presença de obstáculos internos ao próprio relacionamento revela uma
imagem diferente das relações conjugais, pois o amor é o elemento mais importante
para o casal e não os interesses do grupo familiar. Mas este perfil de relacionamento
onde o amor é a base da relação é possível com o afastamento de todos os
impedimentos sociais, como a família e as hierarquias sociais. Nem mesmo o desnível
econômico é problema, pois embora Fernando Seixas seja mais pobre do que Aurélia,
ele tinha um padrão de vida similar, freqüentava os mesmos espaços que a jovem e era
bem visto na sociedade.
Retirada a possibilidade da morte - o maior obstáculo existente para o amor,
como ressalta Rougemont (2003) -, obstáculo que não aparece nos dois romances, o
principal impedimento para a livre decisão das moças ricas são os compromissos
familiares. Macfarlane (1990) avalia o caso inglês e ressalta que é apenas nas classes
privilegiadas que se percebia ressalvas por parte dos pais no momento da escolha das
filhas.
As filhas da pequena nobreza e da aristocracia, como vimos, são as maiores
vítimas dos casamentos arranjados uma situação que elas enfrentaram
durante pelo menos cinco séculos. À medida que se desce na escala até as
classes mais baixas da população, os filhos parecem gozar de maior
liberdade. (MACFARLANE, 1990: 151)
Tal intervenção se dava porque, nestes estratos, a questão política alianças que
aumentam o número de aliados na parentela –, e a procriação, são elementos
fundamentais para o casamento. O modelo Ocidental moderno de casamento se
diferencia exatamente pelo fato de os objetivos centrais do mesmo se tornarem os
propósitos afetivos e psicológicos do casal, ao invés dos filhos
235
e das alianças. Na
234
Não se deve entender, contudo, que as modificações foram conseqüência direta da vinda família real
portuguesa, ou que este tenha sido o único fator responsável por estas mudanças. No entanto, a
transformação do Rio de Janeiro em capital do Império acelerou o processo de “europeização” (Freyre,
2006b) que já se processava na sociedade brasileira.
235
Para Simmel (2006), o amor não teria um fim em si, daí não poder ser identificado à reprodução.
Segundo Simmel, o amor teria surgido como uma conseqüência das uniões entre homens e mulheres, é
maior parte das sociedades, no entanto, o parentesco dita as normas que determinam o
casamento, “com base nas relações familiares de seus pais”. Este tipo de união ocorre,
prioritariamente, onde a família tem papel central na vida política, econômica e social.
Na maioria das sociedades humanas, ao contrário, os indivíduos são meros
peões num jogo maior. Os sentimentos do jovem casal importam muito
pouco, e o papel que cabe a eles desempenhar é mínimo. O casamento é um
jogo de equipe, e o casal, especialmente a mulher, é mantido fora do time
até o dia do casamento. O ‘namoro’, a ‘vontade de te conhecer’, é
totalmente irrelevante. A própria idéia de um período de desejos e
sentimentos intensos, durante o qual duas personalidades supostamente se
fundem, parece incompreensível, ridícula e indecente. O amor é uma coisa,
o casamento outra. A idéia de que o poder da atração física individual, da
compatibilidade psicológica e social, deva ser canalizado para o casamento
é estranha e muitas vezes repulsiva, pois coloca o indivíduo acima do grupo.
(MACFARLANE, 1990: 299/300)
Del Priore (2005) lembra que, até o século XIX, no Brasil, a maior parte das
relações era de concubinato e por decisão das partes, pois os pobres da colônia não
tinham interesses econômicos ou sociais para preservar. Por essa razão, são recorrentes
os usos da sensualidade, freqüentes as carícias entre os amantes e uma maior liberdade
sexual antes do casamento. Estes contatos são restringidos nas classes mais altas, onde
as mulheres tinham pouca ou nenhuma relação com estranhos. Mas mesmo quando
estes contatos com o mundo exterior se ampliam, o casamento permanece um problema
para as elites, pois as alianças envolviam diversas vantagens. A autora lembra que desde
as origens portuguesas, o amor era condenado como motivação para o casamento.
O amor cantado em prosa e verso, vindo de Portugal com os primeiros
colonizadores, ficava muito distante do dia-a-dia. Com a presença da Igreja
e seu forte projeto de cristianizar a colônia, o que vem para é,
exatamente, o que estava por trás das representações poéticas. Ou seja,
práticas patriarcais e machistas que, ao transplantar-se para a colônia,
trazem em seu bojo a mentalidade de uma desigualdade profunda entre os
sexos. (DEL PRIORE, 2005: 107)
Ainda no século XIX, o casamento não era freqüentemente fundamentado no
amor. Como demonstra Mello (2001), o fato dos casamentos serem arranjados facilitava
casos de incompatibilidade entre os casais.
um produto da convivência entre os sexos, mas que teria sofrido um processo de inversão, de modo que o
amor teria passado a vir antes do casamento, processo que indicaria uma evolução, pois aos poucos a
procriação perde relevância e o amor se autonomiza. A “causa de semelhante evolução é que a
individualização crescente torna cada vez mais contraditórias e aviltantes as relações puramente
individuais estabelecidas por motivos que não os puramente individuais” (SIMMEL, 2006: 59).
É sabido que, no casamento pré-romântico, a felicidade do conjugal não
decorria predominantemente do relacionamento entre marido e mulher mas
do atendimento de outras necessidades práticas de que o casal era apenas
instrumento. À convivência conjugal bastava a estima e respeito mútuos, a
reciprocidade de serviços, sobretudo em caso de doença.” (MELLO, 2001:
397)
É no Brasil do XIX que os padrões começam a mudar e, pelo menos no
imaginário da cultura letrada”
236
, amor e casamento, antes opostos, passam a caminhar
mais próximos. Mas, na maioria dos casos, havia pouco espaço para “afinidade sexual
ou afeto”. Era de procriação e de aliança que se tratava e não de amor. Como afirma Del
Priore (2005), mesmo que o imaginário romântico se disseminasse no Brasil
oitocentista, perpetuavam-se as velhas regras, uma vez que “todos os esforços da
educação de uma jovem implicavam varrer a influência romântica, em prol dos bons
costumes”
237
. Mas não se deve entender que esta imposição era considerada pelas jovens
como um problema, pois, como narram os romances, o matrimônio era um objetivo
comum e ansiado. O casamento era um modo de ascensão, a entrada no mundo adulto.
Os ideais de amor parecem conviver com práticas mais tradicionais, revelando
consonâncias, mas também tensões, como demonstram os casos de moças que fugiam
com rapazes mulatos ou filhos que casavam por amor e eram deserdados (Freyre,
2006b; Del Priore, 2005).
Os romances de Macedo e Alencar, contudo, não apresentam qualquer tensão
entre amor autônomo e família. O amor em A Moreninha mostra que nada pode desviar
os verdadeiros amantes de seu destino, pois “as virtudes” devem se unir e não como
fugir deste compromisso. Durante a juventude, Augusto ama outras jovens, mas seu
amor não é correspondido. O moço se fixa, então, nas memórias de “sua bela mulher”,
sem amar mais moça alguma. Ademais, a narrativa revela que, para aqueles que amam,
apenas a certeza do amor mútuo é suficiente para que se sintam seguros, não havendo
referências à importância da decisão da família. Como ressalta Augusto, “se o marido
for amado por ela [a esposa]!... Quando se ama deveras e se está com o objeto do amor,
não se recorda, não se deseja, não se quer mais nada!...”
238
. Para ele, o amor basta a si
mesmo como justificativa para a relação. O jovem parece não se importar com qualquer
236
Para Del Priore (2005), estes ideais de amor romantizado se disseminaram especialmente nas culturas
letradas, nas classes mais altas.
237
DEL PRIORE, 2005: 180.
238
MACEDO, 2003: 110.
outro componente além do amor. Entretanto, a família ainda tinha papel fundamental na
constituição das relações afetivas de seus membros. Mas a forma como a narrativa
resolve a relação entre amor e família deve ser analisada mais consistentemente.
Augusto é estudante na Corte, está afastado dos pais
239
e, momentaneamente, o
casamento não está entre suas preocupações. Quando indagado por seu amigo Leopoldo
sobre suas pretensões com Carolina, Augusto se importa exclusivamente com o valor do
amor que sente. Quando lembrado sobre a importância do casamento, Augusto se
espanta, pois “Deveras que ainda não me passou pela mente a idéia do casamento, nem
chegará a tal ponto minha loucura”
240
. É curiosa a reação do rapaz, dado que demonstra
que toda a força do amor que experimenta, e que desvia seus pensamentos de tudo e de
todos, não lhe parece razão suficiente para o casamento, ainda que, para ele, além do
amor, nada mais importe. Mais uma vez, matrimônio e amor não aparecem conectados
para as personagens na narrativa.
No entanto, ocorre um enfrentamento com a figura paterna que interfere na vida
afetiva do filho, não permitindo o relacionamento com Carolina. O pai, que não é alvo
do amor
241
, tem uma concepção diferente do sentimento e não considera, como o filho,
que nada mais importa além do sentimento. Ao pai interessa especialmente que o filho
tenha problemas nos estudos
242
e, por esta razão, proíbe Augusto de ver Carolina.
Contudo, o modo como se utiliza de sua autoridade é repreendido pelo narrador que
fornece novas orientações, indicando que esse tipo de comportamento arbitrário e
autoritário não é moderno: “Mania antiga é essa de querer triunfar das paixões com
239
Todos os amigos do rapaz parecem viver longe das famílias. Apenas a família da personagem Joaninha
aparece: ela está acompanhada da mãe no teatro e sabemos que seu pai, um comerciante, está morto. Os
pais de Augusto também são mencionados.
240
MACEDO, 2003: 110.
241
O narrador considera que o pai de Augusto esqueceu o que é o ardor do amor. “Porém os homens, mal
passam de certa idade, se lembram do seu tempo para gritar contra o atual e esquecem completamente
os ardores da mocidade. O resultado disso é o mesmo que tirará o pai de Augusto da energia e violência
com que procura apagar a paixão do filho.” (MACEDO, 2003: 125). O amor é uma coisa para jovens, o
que pode justificar, em parte, a quase ausência de pessoas velhas nas narrativas.
242
As perspectivas daqueles que estão fora do amor remetem ao racional. Assim como pai de Augusto se
preocupa com a carreira do filho, o amigo Leopoldo acentua a importância do casamento e, mais do que
isso, de um bom casamento o que significa desposar moça do campo, como o é Augusto e o próprio
Leopoldo -, e não apenas, ou principalmente, a presença do amor entre o casal. Leopoldo, este amigo
“tradicional”, que nas moças do campo as melhores mulheres e, ao mesmo tempo, “racional”, posto
que lembra Augusto de suas responsabilidades, possui sua concepção sobre o amor: “Amor?... Amor não
é efeito, nem causa, nem princípio, nem fim, e é tudo isso ao mesmo tempo; é uma coisa que ... sim ...
finalmente, para encurtar razões, o amor é o diabo...” (MACEDO, 2003: 110). Para este amigo
“responsável”, não explicação racional para o sentimento. O amor depende apenas da confiança entre
os amantes quando são os próprios amantes que o avaliam. Mas ganha dimensões distintas quando
analisadas por pessoas externas à relação. São estas pessoas que trazem outras questões, como a formação
da família e a importância dos estudos.
fortes meios”
243
. O narrador destaca ainda que o amor deve ser deixado livre, que não se
deve intervir na relação e que não se deve impedir o filho de fazer o que quer.
Mas esta censura não é uma acusação, pois logo sabemos que o fazendeiro é um
“bom homem”, um “sensível velho”. Como se pode perceber, a família tradicional não é
desautorizada, apenas ensinada a se comportar de modo mais afetuoso, adequando-se
aos tempos modernos. Por outro lado, a nuclearização da família se confirma. Augusto é
o filho com o qual se investe dinheiro com os estudos um bacharel freyriano
244
,
educado à européia, como pode revelar sua adesão aos ideais românticos. Mas, mais do
que isso, ele é o único filho, o centro das atenções em sua família
245
. Como afirma
Augusto, “meus pais nada poupavam para me educar convenientemente: aprendia
quanto me vinha à cabeça”. Também era educado para a vida social, pois o rapaz é cedo
introduzido em reuniões e festas da sociedade. Todos os cuidados do fazendeiro e sua
esposa se voltavam para a criação deste filho, “a flor de suas esperanças”. É por isso que
o pai acaba por ceder ao desejo do rapaz quando ele fica melancólico, doente “de amor”
e existe a ameaça de que morra. Deixando de exigir que a vontade do pai seja
obedecida, a narrativa revela a mudança no status do patriarca dentro da família. Se a
figura paterna tinha um poder inquestionável sobre os filhos, não haveria sequer espaço
para doenças e fraquezas, pois a decisão estaria tomada e talvez o fim do rapaz fosse o
mesmo que o de Pedro - pai de Aurélia, personagem do romance Senhora -, que morre
ao ver-se obrigado a casar com uma esposa escolhida pelo pai. Ou, como ocorre com
Julia, protagonista de A Nova Heloísa de Rousseau, que cede ao desejo do pai,
reprimindo os próprios anseios, aceitando seu “destino” resignadamente e casando-se
com o homem indicado.
O caso de Carolina é ainda mais representativo das mudanças que o romance
quer imprimir, no que se refere ao amor e à família. A moça, com seus catorze para
quinze anos, certamente estaria, como suas primas, fazendo parte do mercado
matrimonial
246
. Mas Carolina é órfã e ainda que tenha a avó como responsável, não
figuras masculinas que possam representar ou conduzir sua vontade. À sua orfandade
corresponde um grande afeto por parte de sua avó, que se preocupa mais com sua
243
MACEDO, 2003: 125 – grifos meus.
244
FREYRE, 2006b.
245
Costa (1999) demonstra como o século XIX foi palco de intervenções médico-higienistas que teriam
reorganizado a estrutura familiar no Brasil, reorientando o interesse dos pais para os filhos, que passariam
a ser criados não para a reprodução da vontade do pai, mas para o Estado e para a Humanidade.
246
Com dezesseis anos, as primas de Carolina desejam casar. Como aponta Freyre (2006), era hábito,
ainda no século XIX, no Brasil, casar as moças muito cedo, algumas delas com doze anos apenas. Talvez
na Corte, centro de difusão dos novos hábitos, este costume já não vigorasse com tanta freqüência.
felicidade do que com um casamento bem posicionado. A pureza de menina, sua
ingenuidade contagiante, faz com que ninguém se importe com o fato de a jovem evitar
a companhia dos rapazes e se manter distante de qualquer possibilidade de
compromisso
247
. Deve-se destacar, no entanto, que há, entre o pai de Augusto e a avó de
Carolina, uma conversa sobre a união dos jovens. Mas, no final, a moça é consultada
sobre sua vontade antes de o pedido ser aceito. Desta forma, observamos que a narrativa
trata ambiguamente a questão da família, pois os parentes aconselham e conversam,
mais do que proíbem
248
, permitindo, portanto, que o amor se concretize sem que os
impedimentos comuns ao período interfiram na relação. A relação de Carolina e
Augusto com seus entes familiares é de extremo afeto e não de autoridade,
distanciamento e frieza.
Em todo o restante da narrativa, são os próprios jovens que organizam suas
estratégias de sedução e que decidem com quem querem se envolver. A menção à
autoridade dos parentes é reduzida a este breve momento entre Augusto e seu pai. A
questão da intervenção familiar não aparece sequer para as personagens secundárias -
como ocorrerá em Senhora -, que também se movem segundo seus próprios anseios. A
família, na sociedade recriada no romance, não está presente com toda sua influência.
Mais do que “pagar tributo à família”
249
, o romance considera a importância do amor. A
narrativa não analisa os interesses que poderiam estar envolvidos no estabelecimento
das relações conjugais e acaba por perder em realismo. Talvez, por esta razão, o amor
tenha freqüentemente imagens mágicas e efeitos que remetem à esfera do descontrole,
pois aparecendo como algo incontrolável, fora das regras da autoridade paterna, ele
pode se realizar livremente. A magia permite que o “mito sentimental” brasileiro, o mito
do amor autônomo, seja fundado, que sem esta figuração mágica o amor não poderia
ocorrer. Daí a importância em afastar o jovem do controle do pai, isolando-o na ilha. Na
cidade, toda a força e poder do patriarca se impõem
250
. É apenas quando relegada a
segundo plano que a família não se torna um peso para as relações íntimas.
247
Carolina preza por sua liberdade, noção que na obra é representada por uma borboleta. Ela se
assemelha a Augusto, pois o rapaz também é associado ao animal. A liberdade da moça permite que ela
não ouça os conselhos do único homem da família, seu irmão, “pois [é] inocente para não se envergonhar
de suas travessuras e criada com mimo demais para prestar atenção ao conselho de seu irmão”
(MACEDO, 2003: 46).
248
Este comportamento pouco autoritário da família é similar àquele percebido por Macfarlane (1990) no
caso inglês.
249
VOLOBUEF, 1999: 274. Volobuef ressalta que os romances românticos, ao tratar do amor romântico
como fundamento para o estabelecimento da família, pagam um tributo a esta instituição, pois não
questionam esta instituição, como ocorrera no caso alemão.
250
É na cidade, logo que Augusto volta da ilha, que seu pai descobre seu problema com os estudos e vai
até a Corte para encontrá-lo e proibir que veja Carolina.
O tratamento dado à família no romance Senhora também deve ser analisado. A
narrativa apresenta modificações bastante significativas, na medida em que a relação
dos filhos com os pais se altera e se torna mais complexa. A criação dos filhos passa a
interferir no modo como os mesmos conduzirão sua vida e organizarão suas ações.
Fernando é um rapaz mimado pela mãe e irmãs que fazem o que ele deseja e que
praticamente arruína a família por causa da vida de luxos que elas o acostumaram a ter.
a virtude de Aurélia parece ser resultado de um casamento baseado em um amor
eterno e profundo. O pai da moça é um estudante, filho não reconhecido de um
fazendeiro rico, Lourenço Camargo, que se apaixona por uma jovem simples, com ela
casando sem a permissão do pai, pois “Pedro Camargo jamais se animaria a confessar o
seu amor ao pai, que lhe inspirava desde a infância, pela rudeza e severidade da índole,
um supersticioso terror”
251
. As dificuldades de enfrentar a família aparecem como um
sério problema. Esta tensão, no entanto, é amenizada pela presença de autoridades
alternativas, que facilitam o desenvolvimento das relações baseadas no afeto: a união é
feita com a autorização da justiça, se dentro da lei, pois os jovens tinham idade
para contrair matrimônio. Esta passagem revela a ascensão de poderes públicos que
abalavam a estrutura de poder patriarcal (Freyre, 2006)
252
. Mas a família é chamada à
cena em outros momentos, como, por exemplo, quando o pai de Adelaide Amaral, um
comerciante, arranja por duas vezes seu casamento, sem fazer qualquer tipo de consulta
à filha ou se preocupar com o desejo da moça que, como sabemos, ama outro homem.
Para Emília, mãe de Aurélia, também não foi fácil casar. Seu irmão mais velho não
aprovou o casamento, imaginando que acabaria tendo que sustentar a família da irmã,
além da que era encarregado. Como no romance anterior, àqueles que estão fora da
relação amorosa importam outras questões que não o sentimento, que aparece em
segundo plano.
A narrativa configura uma estrutura que liberta Aurélia de qualquer juízo
familiar: vive apenas com uma parenta “de encomenda”
253
e é uma moça com muito
dinheiro, renda que controla sem ajuda de qualquer pessoa. Não necessita, em
251
ALENCAR, 1995: 77.
252
Freyre (2006b) destaca a ascensão dos poderes externos à família que passam a intervir na vida íntima
dos indivíduos e que enfraquecem o poder patriarcal. Indica ainda que, em 1831, houve a redução da
maioridade de 25 para 21 anos, o que permitiria que, na narrativa de Alencar, Emília e Pedro tenham se
casado sem o consentimento das respectivas famílias.
253
Dona Firmina é uma agregada típica, uma acompanhante que servia apenas para “condescender com os
escrúpulos da sociedade brasileira, que naquele tempo não tinha admitido ainda certa emancipação
feminina” (ALENCAR, 1995: 14). Emancipação que significa a ausência de parentes que conduzam sua
vida e decisões.
conseqüência, submeter suas vontades a nenhum intermediário. Mas a distância que
Aurélia mantém com relação à família não se justifica apenas pela morte dos pais. Ela
tem outros parentes que, no entanto, não a ajudam após a morte da mãe. Quando Emília
casou sem o consentimento do irmão, todos a abandonaram porque “ninguém acreditou
em semelhante casamento. Para a família, a moça não era senão a amante de Pedro
Camargo; e por conseguinte uma mulher perdida”
254
. Emília negou a presença da
família em sua vida e afirmou o lugar do amor. Rompe seus laços com a família extensa
e produz novos, os da família nuclear fundamentada no amor. É por este motivo que
Aurélia não é recebida por nenhum parente quando fica órfã: ela é abandonada por
todos os parentes porque é filha de um casamento não legitimado pela família o que
demonstra a importância e o peso desta instituição na vida dos indivíduos até aquele
momento -, embora esta união tenha sido feita dentro da religião e da lei.
Diferente de A Moreninha, Senhora apresenta alguns comportamentos que
remetem ao modo como se davam as relações familiares na sociedade brasileira do
período, evidenciando as tensões decorrentes desta estrutura organizacional. Pedro não é
filho legítimo e embora não seja reconhecido, seu pai o sustenta, paga seus estudos,
mantendo-o na Corte e parecendo visar, como muitos proprietários, fazer do seu filho
bastardo um bacharel (Freyre, 2006b). Por sua vez, o receio e a resistência ao casamento
de Emília se dão porque o irmão pensa que o sujeito [pai de Pedro] ainda estava
robusto e podia casar-se e ter filhos legítimos”
255
, fazendo com que Pedro fosse excluído
do testamento e não recebesse qualquer herança. Como fica claro, posteriormente,
Lourenço Camargo tinha casos com muitas de suas escravas
256
, de forma que o
fazendeiro deveria ter muitos filhos bastardos como Pedro
257
. No entanto, deve-se
salientar que o pai de Pedro permanecia solteiro, podendo revelar uma intenção por
254
ALENCAR, 1995: 78.
255
Ibidem: 77.
256
Ao reconhecer a neta, Lourenço Camargo comanda, visando receber esta e sua mãe em sua casa, uma
reordenação a fim de “coibir umas familiaridades antes toleradas (...) que dava às crioulas” (ALENCAR,
1995: 103). Tal preocupação está associada ao fato de a menina ainda estar envolvida numa “atmosfera
de altiva castidade”. Devemos nos ater um pouco mais na figura deste avô que representa a classe de
fazendeiros abastados, proprietário de escravas e representante de um patriarcalismo autoritário. É este
avó que, após uma seqüência de decepções familiares, vai conectar Aurélia ao “novo mundo”, permitindo
à moça comprar sua felicidade, pois, “(...) Deus compadeceu-se de mim, e enviou-me quando menos
esperava tamanha herança para que eu possa realizar a aspiração de minha vida. Não dizem que o
dinheiro traz todas as venturas?” (Ibidem: 33), afinal “- Não valia a pena ter tanto dinheiro, continuou
Aurélia, se ele não servisse para casar-se a meu gosto.” (Ibidem: 30). O elemento dinheiro sempre
interviera no estabelecimento de alianças matrimoniais, mas aqui não associa instituições, famílias, mas
realiza os anseios da mulher em sua missão reformadora.
257
No entanto, é possível imaginar que a mãe de Pedro não fosse escrava. Sobre ela, sabemos apenas que
era uma “infeliz rapariga, que morrera de desgosto da vergonha de seu erro” (Ibidem: 80).
parte do autor em enfatizar que, apesar de manter relações com as “crioulas”, o homem
não o fazia estando casado. Assim, embora práticas sexuais entre senhores e escravas
fossem atividade comum, a obra separa tal comportamento do casamento, criando uma
personagem “solteirona”
258
. Não contraria, portanto, o modelo de família católico
monogâmico que era norma entre as classes mais abastadas da sociedade.
É necessário enfatizar que, na relação entre Pedro e Emília, temos uma forte
presença da família e, mais especificamente, da figura masculina (pai e irmão mais
velhos), intervindo na contração do matrimônio das personagens. Embora o amor
sincero e virtuoso dos pais da menina se manifeste, ele ainda é reprimido pela
autoridade do pai de Pedro. Mesmo o moço tendo casado com Emília, ainda se submete
ao patriarca, na medida em que não consegue se impor a ele e declarar que escolhera
uma esposa e que já está casado com ela. Aceita, sem conseguir reagir, a decisão do pai
de casá-lo com a filha de um outro fazendeiro. Este modo de interferir nos
relacionamentos, contudo, é situado no passado, uma geração antes de Aurélia.
Podemos indicar que Senhora constrói novas modalidades de relação onde o amor é o
fundamento, relegando ao passado um modelo tradicional de intervenção da família nas
alianças matrimoniais. Neste passado, temos um exemplo daquelas relações
características, segundo as formulações de Candido (1951) e Queiroz (1976), da nossa
sociedade tradicional: casamento interessava para enriquecer ou para expandir a
riqueza, como parece querer o pai de Pedro
259
. Podemos observar que, como apontou
Bendix (1996), modernidade e tradição convivem, mas não estão em paradoxo, ainda
que ocorram tensões. A relação entre o pai e a mãe de Aurélia possui a presença do
amor que une dois indivíduos e que se revolta contra o arbítrio da família, mas que, por
outro lado, sofre com esta mesma autoridade.
Na geração seguinte, nesta sociedade que cria “monstros” como Seixas, são as
ações dos componentes do casal que produzem sua própria infelicidade, pois o amor e
os obstáculos que enfrentam são conseqüências da conduta dos amantes, não havendo,
como ocorre com os pais de Aurélia e em A Moreninha, uma força paterna que tentaria
258
É indiscutível, no entanto, que o comportamento do avô de Aurélia não é considerado correto. Costa
(1999) e Muricy (1988) lembram que o discurso médico do século XIX acusava os “solteirões”, pois estes
sujeitos negavam a importância do papel do homem na família. Pode-se considerar que Alencar
incorporou estes discursos médicos, como o fez Machado de Assis em seus primeiros romances (Muricy,
1988).
259
“Afinal, porém, o pai exigiu formalmente que ele se casasse, e indigitou-lhe a pessoa escolhida. Era
a filha dum rico fazendeiro da vizinhança; tinha ela completado os quinze anos. Antes que a notícia deste
dote sedutor chegasse à corte, tratou o velho Camargo de arranjá-lo para o filho” (ALENCAR, 1995: 80).
As discussões presentes no romance estão resumidas nesta passagem: intervenção do pai na vida íntima
dos filhos, altos dotes e casamentos arranjados sem amor.
impedir a relação
260
. Aurélia tem uma margem de ação e decisão que não são comuns a
uma mulher de sua idade
261
e que são possíveis em razão de sua completa
orfandade
262
. A jovem é amparada por instituições públicas que cerceiam o arbítrio
masculino, poder que aparece enfraquecido, mas que tenta se impor por meio da força
da tradição, como o faz Lemos. No entanto, este poder é relegado ao passado,
desconcertado pelo poder do dinheiro, da justiça pública, de Aurélia.
A narrativa estrutura uma complexa rede de relações familiares, com intrigas,
rejeições e pressões, que interferem no desenvolvimento das relações amorosas. Há, por
outro lado, intervenções que têm por fundamento um fim louvável, como é o caso da
pressão exercida pela mãe de Aurélia sobre a filha
263
. Deve-se destacar ainda a presença
de Lemos, tio da menina e seu futuro tutor, que ao saber que sua sobrinha, ainda quando
pobre, estava se expondo “à janela”, tenta abordá-la. Como apontaram Candido (1951) e
Queiroz (1976), os casamentos dentro das famílias eram bastante comuns. No entanto, a
narrativa mostra que não era esse o interesse do tio: ao saber da sobrinha, corteja-a,
acreditando que Aurélia tinha, como outras moças, descoberto os prazeres da
“sociedade” e, vaidosa, ansiasse à vida luxuosa. Lemos sente-se na posição de lucrar
com ela, depois de se “aproveitar”
264
. Aurélia neste tio a possível volta das relações
com a família e o fim do pesar de um matrimônio indesejado e sem amor. A moça
compreende as reais intenções de Lemos quando recebe uma carta grosseira deste. A
partir de então, despreza-o profundamente. O papel de Lemos na narrativa é
fundamental e não pode deixar de ser analisado de forma atenta. É ele quem proíbe o
casamento da irmã, não se importando com os sentimentos da moça e se preocupando
apenas com os problemas práticos, financeiros, que este casamento poderia trazer
265
. É
ele também quem destruirá todas as ilusões de Aurélia sobre Fernando Seixas
266
e que,
posteriormente, arranjará o casamento entre os dois. É uma personagem cujo caráter não
260
A inconstância de Augusto não chega a ser um obstáculo, pois a reação de Carolina negando o
pedido de casamento devido a promessa de infância que ele desfazia - é menos um impedimento do que
um esforço de confirmação da sinceridade e da constância do rapaz.
261
Talvez se o pai ou o avô fossem vivos, Aurélia teria, como o fez Julia de A Nova Heloísa, de se
submeter à decisão do pai.
262
Depois de perder o pai e o irmão mais velho, Aurélia perde o avô e a mãe. Todas estas mortes ocorrem
em pouco mais de um ano.
263
A mãe de Aurélia insiste para que a filha procure um marido apenas porque pressente sua morte e teme
que a filha fique sozinha, sem amparo de parentes ou marido.
264
Lemos usa o termo “bisca”, o que significa pessoa de mau-caráter, indicando que a percepção que se
tinha de uma moça que se expusesse publicamente aos homens tinha, necessariamente, intenções
maliciosas.
265
Caso Emília fosse enganada e abandonada, ele teria que sustentar a família desta irmã.
266
Lemos envia uma carta anônima onde conta que Seixas abandonou Aurélia por causa do dote. É a
partir daí que se dá o desenlace da crise.
é apreciável, mas também um parente que interfere na vida de todas as mulheres da
família, mesmo não tendo todo o poder de um patriarca.
No entanto, elementos da vida pública passam a interferir cada vez mais na vida
íntima: quando o tio de Aurélia lembra à moça, no momento com dezenove anos, de que
não é certo uma jovem decidir sozinha com quem vai casar - esta decisão sendo
percebida como competência da família, ou seja, ele mesmo -, é repreendido pela moça,
que enfatiza que, caso não concorde com sua decisão, ela pode recorrer ao juiz de órfãos
e requerer outro tutor
267
. Formas de poder alternativas são afirmadas no romance e
permitem que o amor se movimente sem o peso da autoridade da figura masculina,
desautorizando-a. Assim como em A Moreninha as relações familiares são afastadas a
fim de que o amor se desenvolva livremente, Senhora parece resolver as coisas de modo
semelhante, pois um poder como o de Lourenço Camargo, seu avô, que pudesse
interferir na vida da jovem, é completamente eliminado. Há uma diferença fundamental:
Aurélia está amparada por poderes públicos, fator que permite que a moça decida
sozinha sobre seu futuro. Esta nova possibilidade demonstra a importância da inserção
de novos modelos de gestão de poder na esfera da intimidade amorosa e da família,
poderes que questionam a autoridade do homem. Aurélia, vinte anos depois de seus
pais, tem domínio suficiente para reclamar seus direitos diante da única presença de
autoridade masculina que possui, seu tio Lemos. Quando recordamos ainda que é ele
quem proibira o relacionamento da irmã que, como Aurélia, amava verdadeiramente -
pode-se assinalar uma alteração nas possibilidades de ação das personagens, vinculadas
ao fator dinheiro: uma geração atrás, Emília, moça pobre, ignora a decisão familiar e
foge para casar, sendo rejeitada por sua família; sua filha também ignora seu tio, mas o
dinheiro possibilita que ela imponha sua vontade, fazendo com que um representante da
instituição familiar acate sua decisão sem espaço para recusa ou discussão.
O que gostaríamos de destacar é a construção, empreendida pelo romance, de
um enredo aonde as solidariedades familiares, primordiais, vão sendo substituídas por
condutas mais individualizadas. É o que podemos observar durante o casamento de
Aurélia. Após ficar rica com a herança de seu avô, ela escolhe seu marido e, na
realidade, o compra. Podemos afirmar que a narrativa estrutura as relações familiares de
forma a impor a Aurélia uma orfandade, justificando, deste modo, a falta de intervenção
familiar e abrindo a possibilidade da personagem decidir sobre seu casamento e seu
267
ALENCAR, 1995: 30; Sobre a intervenção de autoridades públicas na intimidade da família,
FREYRE, (2006b).
amor. Esta posição da jovem margem a uma percepção diferenciada das interações,
pois mesmo que não se desenvolva sempre como ocorre no romance por meio da
perda dos parentes próximos –, a narrativa abre espaço para o questionamento da
instituição do casamento arranjado e para a discussão sobre a intervenção da família na
vida dos indivíduos.
Estas observações permitem afirmar que Senhora e A Moreninha estão
centralmente preocupados em narrar histórias de amor onde se afirma um modelo de
casamento diferenciado do comum, mas ainda que discutam a presença da família e a
intervenção desta instituição na vida dos indivíduos, este tema é secundário no enredo,
de modo a permitir que o amor se desenvolva livremente. É como se a família não
existisse como um impedimento para as relações conjugais ou que, quando existe a
presença do amor, a família não pudesse ser um problema. Mas o fato de os romances
não discutirem a família, utilizando recursos para afastá-la, enfatiza a dificuldade que os
romancistas vivenciavam para tratar deste tema e não a inexistência da dificuldade. O
que se quer demonstrar é que a principal crítica feita nos romances é ao casamento
arranjado e à autoridade da figura masculina, elementos da sociedade patriarcal. Não é a
família o problema, mas a organização patriarcalista, pois o jovens que se amam não
deixam de se casar e de formar novas famílias. A principal instituição da sociedade
brasileira não é questionada em si mesma, mas a falta de autonomia dos indivíduos e a
autoridade centralizada no proprietário. Esta crítica é, todavia, superficial, pois a
autoridade da família é apenas um tema dentre outros, ela não é analisada em detalhes
por Macedo e Alencar, o que permitiria uma discussão mais aprofundada sobre as
relações familiares na sociedade brasileira.
Ao analisar o modo como estes romances abordam a família nos textos, é
possível observar uma tensão entre esta instituição e o tipo de amor que se está
enfatizando. Esta tensão não está evidenciada nos enredos, mas se revela no número
reduzido de menções à família. O amor presente nos romances se refere a um modo de
homens e mulheres se relacionarem sem que, para que este relacionamento se efetive,
haja intervenção de outros interesses além deste amor entre o casal. Este tipo de relação
corresponde a um ideal associado ao movimento romântico. O amor do tipo romântico
faz parte de um complexo cultural associado ao romantismo, movimento intimamente
ligado às classes burguesas européias que questionavam a ordem social hierárquica
existente. Ao analisar o romantismo alemão, Volobuef (1999) indica que, embora
freqüentemente associado a uma de suas manifestações, o sentimentalismo, o
romantismo é um movimento mais amplo, melhor caracterizado por sua exaltação da
liberdade e anti-tradicionalismo, renovação e questionamento dos padrões sócio-
culturais vigentes. Para Guinsburg (1985), o romantismo europeu está entre uma das
“séries de denominações (...) pelas quais designamos os vários agrupamentos de formas
e peculiaridades que são os estilos, os modos de formar, e que traduzem qualidades e
estruturas da obra de arte. Mas o Romantismo designa também uma emergência
histórica, um evento sócio-cultural
268
. O romantismo aparece como uma crítica e um
ataque ao princípio político absolutista e às velhas instituições que, já em crise, não
mais respondiam aos anseios da maior parte da população (Falbel, 1985). Pensadores do
período minavam os alicerces do Antigo Regime e propunham uma nova sociedade e
concepção de homem. Uma série de revoluções mobilizou a Europa e também algumas
colônias americanas. Os ideais de mudança se disseminaram e contribuíram para alterar
os padrões culturais das sociedades ao redor do mundo.
Segundo Volobuef (1999), a contribuição do romantismo alcançou todo
pensamento humano, mas “não foi dogmático nem restritivo, não especificou nem
determinou diretrizes”
269
, o que justificaria, para a autora, o fato de existirem
romantismos no plural. Sem definir um “ideário fixo e imutável”, cada nação teria
desenvolvido um caminho particular, um romantismo próprio. A identificação entre os
movimentos estaria em uma certa rebeldia para com as convenções e as formas de poder
do passado, sendo que esta identidade se expressava no desejo de produzir algo original
nos mais diversos campos. No Brasil, a sociedade patriarcal - sua composição
hierárquica e rígida que remetiam ao status colonial e à pátria portuguesa -, produziu
reações artísticas específicas
270
que visavam afastar nossa cultura do pensamento
clássico. Analisando a prosa do período, a autora percebe que, nos romances, o amor
como base das relações conjugais era freqüentemente apresentado como um substituto
para os argumentos racionais que, até então, eram utilizados como justificativas para os
casamentos. Este lugar do amor é compreendido, pela autora, como uma dos meios
encontrados pelo romantismo para trazer novidades à semântica do período.
Assim sendo, é no campo do sentimentalismo que se declara uma verdadeira
rebeldia por parte do romântico brasileiro: por meio da exaltação dos
268
GUINSBURG, 1985: 14 – grifos meus.
269
VOLOBUEF, 1999: 13.
270
Tal distanciamento não significa que houvesse necessariamente críticas diretas ao sistema patriarcal,
como veremos a seguir. No entanto, é evidente que a busca pelo novo produziu questionamentos a alguns
aspectos da organização patriarcal.
sentimentos, ele denuncia o materialismo das relações, especialmente
daquela que é o fundamento de toda a sociedade da época a família.
(VOLOBUEF, 1999: 242).
Antes de aprofundar as discussões sobre o amor, é necessário discutir mais um
aspecto relevante do romantismo. Segundo Elias (2001), embora associado à burguesia
dos movimentos revolucionários do século XVIII, o romantismo não é particular a este
momento ou a esta classe. Analisando a sociedade de corte francesa, o autor demonstra
que, aí, havia romantismo. Um aspecto central que caracterizaria esta semelhança
seria o autocontrole, conseqüência de formações sociais cada vez mais
interdependentes. Em contextos onde os homens necessitam conviver com diferentes
classes e delas dependiam para se reproduzir, o autocontrole e a internalização dos
impulsos aparecem como meios de se distinguir (Elias, 1993).
[Ainda que distinto do posterior, burguês,] o que liga essas tendências [dos
diferentes romantismos] entre si são as situações estruturalmente similares
de certas camadas sociais. A linha geral, a orientação comum das mudanças
estruturais globais tendendo a uma crescente interdependência de
associações humanas cada vez maiores e mais diferenciadas, produz
movimentos recorrentes e situações desse tipo. O desenvolvimento de
Estados cada vez mais centralizados, com funções diversificadas, e de cortes
reais cada vez mais extensas, ou, em estágio posterior, de centros de poder e
administração cada vez maiores e mais abrangentes, assim como o
crescimento das capitais e cidades comerciais, crescente monetarização,
comercialização e industrialização tudo isso são apenas aspectos diversos
da mesma transformação global. (ELIAS, 2001: 222/3).
Assim, o que caracterizaria o romantismo não seria apenas a burguesia ou o
período, mas certa estrutura social interdependente onde os indivíduos tendem a um
crescente autocontrole. A partir das observações de Freyre (2006b) e Costa (1999), é
possível considerar que o século XIX foi palco de transformações semelhantes. Uma
incipiente burguesia começa a se desenvolver e as unidades familiares deixam de
produzir quase todos os bens necessários à vida dos membros
271
. Deste modo, a
autonomia política e social dos grandes proprietários é reduzida. Como decorrência
destas mudanças, um processo de autocontrole semelhante àquele descrito por Elias
(2001) pode ter se dado entre os habitantes da ex-colônia, em especial entre os
271
Segundo Oliveira Viana (1987), as grandes propriedades rurais costumavam produzir praticamente
todos os bens necessários à sua sobrevivência e tal independência justificava o isolamento e a autonomia
destes proprietários. Por outro lado, explica a dificuldade do estabelecimento de uma classe burguesa no
Brasil. Este processo se altera no século XIX, onde os grandes proprietários não mais dependem apenas
de sua própria produção para se manter.
proprietários, que passam a depender menos de si mesmos e de sua produção apenas e
mais dos outros membros da família nuclear, dos poderes públicos e dos comerciantes.
Por outro lado, as famílias brasileiras, a fim de não serem niveladas às classes
mais baixas, tiveram de se adequar aos novos padrões de comportamento dos estratos
mais altos. Em muitos casos esta nova elite de Corte que se estabelecia não possuía
mais recursos financeiros do que as famílias dos patriarcas brasileiros, mas se
destacavam por sua educação e conduta.
Com a implantação da aristocracia e dos representantes da burguesia
industrial européia este sonolento poder ‘latifundiário’ foi sacudido. Face
àqueles grupos, comerciantes nativos e potentados rurais passaram a
equivaler-se em rudeza e estupidez culturais. A Corte era mais exigente.
Para participar de seus favores já não bastavam dinheiro, escravos, terras,
brancura de pele, catolicismo da alma ou outra qualquer tradição de
importância ligada aos costumes locais. A condição para introduzir-se junto
à aristocracia era aristocratizar-se. (COSTA, 1999: 106).
A exaltação de modos de vida libertos de restrições seria uma das
conseqüências, segundo Elias (2001), deste crescente processo de autocontrole. Assim,
entende-se o bucolismo romântico de alguns versos de membros da corte francesa e,
posteriormente, da burguesia setecentista. O mesmo pode ser dito das manifestações
indianistas brasileiras, pois a exaltação da natureza que, por um lado, indicava o anseio
por construir um passado brasileiro, distanciado do português (Candido, 2006;
Schwarcz, 2000), também parece querer se opor à crescente pressão exercida pelos
novos costumes. Ao discutir a narrativa alencariana, Freyre (1952) afirma que Alencar
tinha prazer em constituir personagens mais próximas da vida natural, menos expostas à
artificialidade dos hábitos aburguesados da Corte, livres das coerções sociais e dos
“europeísmos do interior de sobrados mais afrancesadamente burgueses”, em espaços
onde a vida decorria mais “brasileiramente”
272
. Carolina, protagonista de A Moreninha,
também é um bom exemplo de personagem que vive em ambiente menos regrado, mais
livre dos controles exercidos sobre os moradores da capital do Império. Todos estes
elementos ajudam a entender o tipo de romantismo que se configurava no Brasil.
O amor romântico está inserido neste esquema, reorientando as relações afetivas
que deixariam de se importar com a posição da pessoa e sua relação com o grupo e
exaltariam a liberdade do indivíduo em escolher seus parceiros baseado no afeto que
272
FREYRE, 1952: 15.
experimenta. Ao movimento romântico burguês também está associado um crescente
individualismo que se manifesta, no que se refere à vida íntima, na importância
concedida à escolha livre do parceiro e ao amor como pressuposto das relações e do
casamento. Segundo Ariés (1985), é apenas no século XVIII, com a ascensão do
romantismo e do individualismo, que a reserva que caracterizava a relação conjugal é
submetida ao amor-paixão, e, com o passar dos séculos, são cada vez mais identificados
amor conjugal e amor-paixão. Conseqüentemente, o amor torna-se um critério para o
casamento. Para Costa (1998), o amor romântico é uma proposta típica e particular das
sociedades modernas individualistas. Difere-se, portanto, das sociedades holistas, onde
os vínculos afetivos estão ligados à rede cultural mais ampla, as imagens de amor estão
associadas à tradição e não permitem variações significativas, são mais rígidas. As
sociedades modernas possibilitam que seus integrantes acessem as esferas da
privacidade
273
e interioridade, permitindo ao indivíduo idealizar um destino próprio e
fomentar, de modo particularizado, seu “eu”, podendo ainda imaginar um “eu” para o
amante. Costa (1998) afirma que o amor romântico foi, posteriormente, incorporado à
família burguesa e ao casamento, constituindo um romantismo mais conformista que
associa amor romântico e alguns aspectos do amour passion. Ressalta ainda que este
amor não é o mesmo dos romances do período, considerados rebeldes e passionais. O
autor enfatiza o caráter socializador das histórias de amor que moldariam o sentir, uma
vez que o Eros não existe sem os discursos sobre o sentimento. Tal processo de
aprendizado do amor se constituía nos romances pastoris, no período medieval
274
.
Mas é com as narrativas românticas que o amor se dissemina entre as mulheres de
diferentes classes. Costa considera que as principais características do amor romântico
já se encontravam no momento de desenvolvimento do amor cortês
275
.
Giddens (1993) destaca a quase universalidade do amor apaixonado - amour
passion - e o caráter histórico e localizado do amor romântico Europa a partir do
século XVIII. Para o autor, os indivíduos buscariam um outro na expectativa de
confirmar sua própria identidade, o amor romântico se validando por meio desta
273
Aqui entendida a partir da definição de Solomon como a “capacidade do indivíduo de conduzir sua
própria vida e o direito de dois indivíduos definirem um ao outro em seus próprios termos” (COSTA,
1999: 203).
274
Embora, como destaca Giddens (1993), as narrativas medievais se diferenciarem das românticas pelo
caráter das heroínas, mais passivas naquelas.
275
Rougemont (2003) considera que diferenças profundas entre as narrativas medievais e românticas.
O autor demonstra que duas das principais características do amor cortês, a negação da satisfação do
amor e a busca pelo distanciamento do objeto amado, são eliminados pelo romantismo francês, ainda que
tenham se mantido no movimento alemão.
“busca”. Daí a importância do conceito de projeção: a busca e a idealização do outro são
particulares de um amor que se estabelece em torno de uma identidade a ser completada
em um momento vindouro, por meio de um projeto estabelecido para o futuro. Esta
capacidade de projeção estaria intimamente relacionada ao crescimento da veiculação
das narrativas e, especialmente, dos romances. Nestas obras são relatadas histórias de
mulheres que lutam por seu objeto de amor, ansiando um futuro não controlado pela
família. Estas heroínas tornam-se modelo para as leitoras que desejam para si uma
narrativa semelhante.
É importante ter clara a distinção entre o amour passion e o amor romântico. O
amor apaixonado é freqüentemente encontrado em sociedades diversas. Suas
características, comumente, remetem ao descontrole, a um estado de separação da vida
cotidiana e a liberação da rotina e do dever sociais (Rougemont, 2003; Giddens, 1993).
Este descontrole justificaria, para Giddens (1993), o fato de este tipo de amor não ser
associado ao casamento
276
e a existência de vários mitos que condenam os casais que
contraem matrimônio por causa do amor-paixão. O amor paixão se refere ao ardor
sexual, ao desejo, à sexualidade. Este amor se oporia ao ideal de casamento presente até
o século XVII, onde a união era, em geral, um contrato comercial entre grupos.
O amor romântico se desenvolve no século XVII e é decorrente dos ideais
religiosos de unificação mística do ser. Esta união mística fazia parte da filosofia
platônica. Para Platão (1986), a transcendência do ser se dava por meio do
conhecimento dos ideais de Bem e do Belo. O amor seria o meio através do qual o
conhecimento destes ideais ocorreria. Este acesso ao Bem e ao Belo conduziria também
ao autoconhecimento. Estas idéias são reformuladas pela filosofia cristã que substitui o
amor ao Belo e ao Bem pelo amor a Deus, mantendo as noções de unidade mística
transcendental por meio do conhecimento, amor sublime e ideal. Posteriormente, com a
secularização do amor iniciada com a cortesia medieval e ampliada pela Sociedade de
Corte moderna, é a Dama que se torna o objeto do amor e do anseio de conhecimento,
necessidade que fomenta a busca pela intimidade entre os parceiros, pois, agora, o
conhecimento do amado é o objetivo supremo.
276
Rougemont (2003) acentua que o mito fundador de Tristão e Isolda teve papel central na ordenação da
do descontrole representado pela paixão no Ocidente, pois “o mito age onde quer que a paixão seja
sonhada como um ideal, e não temida como uma febre maligna” (ROUGEMONT, 2003: 34). O autor
demonstra o quanto este amor apaixonado, Eros, é contrário aos objetivos dos grupos sociais, pois seu
objetivo, sua ascensão, está na morte. O amor cristão e, de modo diverso, o amor romântico, eliminariam
esta relação amor-morte.
O que singulariza o amor romântico é que ele se apropria de algumas
características do amour passion, convertendo-as para uma aceitação social. Se os
apaixonados eram libertos do dever e das regras sociais, o amor romântico transfere
esse ideal de liberdade para a escolha do parceiro e o associa ao casamento na produção
do ideal de auto-realização
277
. Insere também a sexualidade, que é incluída no
casamento, retirando, contudo, a centralidade que tinha para ao amor-paixão e lhe
fornece um papel secundário, valorizando aquela união mística dos amantes que permite
que eles se conheçam e juntos ascendam: distancia-se, então, o amor romântico da
luxúria do amor apaixonado.
Viveiros de Castro e Benzaquen de Araújo (1977) mostraram, por meio da
análise da obra Romeu e Julieta de Shakespeare, a lógica das relações sociais
compreendidas pela categoria amor. Os autores analisaram o contexto sócio-histórico
em que a narrativa envolve
278
, revelando que o amor seria uma relação de caráter íntimo
entre dois indivíduos que valorizaria de forma prioritária as decisões de se unir e os
sentimentos destes atores. Acentuam ainda a não-submissão dos amantes para com as
escolhas feitas pelas famílias. Percebe-se que uma concepção particular de indivíduo é
necessária, o amor pressupondo uma pessoa autônoma e liberta de laços sociais
autoritários. Deste modo, a escolha estaria submetida apenas à decisão das partes
envolvidas na relação amorosa, que negariam, a fim de estabeleceram tal relação, sua
ligação com instituições como a família. De acordo com os autores, o amor entre
Romeu e Julieta inauguraria um novo mundo, onde se revelaria uma concepção
alternativa das relações entre o indivíduo e a sociedade. A peça trataria da “origem do
indivíduo moderno sob um aspecto essencial: este indivíduo é tematizado, sob a espécie
de sua dimensão interna, enquanto ser psicológico que obedece a linhas de ação
independentes das regras que organizam a vida social em termos de grupos, papéis,
posições e sentimentos socialmente prescritos”
279
. Macfarlane (1990) enfatiza que o
277
Esta mudança é fundamental. Como aponta Rougemont (2003), o amor apaixonado e o casamento
estão em margens opostas, pois paixão onde impossibilidade de consumação: daí a valorização
da morte, que durante muito tempo foi associada ao amor. Com a morte, ocorre a união mística, a
verdadeira união que nega a relação terrestre. Para o autor, é com os românticos franceses que se dispensa
essa mística negativa da morte e transforma-se os obstáculos em impedimentos morais seculares.
278
A obra de Shakespeare se passa na Itália e narra o anseio do príncipe em centralizar o poder em suas
mãos, pois ainda o divide com famílias, instituições privadas que permanecem manipulando o uso da
violência, mesmo com o fortalecimento do poder público. Esta violência das famílias é apaziguada após o
suicídio dos jovens que apenas servem a seus sentimentos, o amor aparecendo como um sentimento que
contesta a autoridade do grupo familiar, valorizando um indivíduo autônomo. Vale acentuar então que,
embora ambientado na Itália, a obra remete a características do processo de modernização que ocorreu em
algumas sociedades do Ocidente: valorização do indivíduo, formação dos Estados modernos, redução do
poder das famílias.
279
VIVEIROS DE CASTRO e BENZAQUEN DE ARAUJO, 1977: 142.
Ocidente Moderno estabeleceu a primazia da relação entre marido e mulher em
detrimento daquela entre filhos e seus pais, pois no “Ocidente uma ‘forte família
nuclear’ com poucas obrigações para com os parentes imediatos; um profundo afeto
entre os cônjuges; crescentes gastos com os filhos; ‘acompanhados de um declínio no
discurso moral sobre o que é bom pra eles’”
280
.
A escolha - associada a um indivíduo autônomo e ao amor romântico - estaria
vinculada a um reconhecimento mútuo dos amantes e a uma identidade de gostos onde
os padrões de classe ou a interferência de pessoas externas à dupla são desconsiderados,
ou melhor, sem que tais componentes sejam condições indispensáveis ao
estabelecimento da relação. Para Campbell (2001), o romantismo apareceria como uma
reação a um falso sentimentalismo, onde a exaltada empatia teria se tornado um esforço
gratuito de parecer sensível. Era necessário que aqueles que “verdadeiramente sentiam”
reagissem a esta evidente dissimulação que se encontrava generalizada. É neste
momento que se passa a considerar virtuosos aqueles indivíduos que agem contra as
convenções em defesa dos próprios sentimentos. Com o romantismo, a convicção da
capacidade intuitiva do indivíduo se amplia. Como indica Campbell, o romantismo é
um movimento onde a valorização da individualidade possui dimensões inéditas, onde a
singularidade e a interioridade de cada ser são exaltadas. Acessando este íntimo, a
pessoa sensível seria capaz de sentir que encontrou um outro, também virtuoso. Esta
concepção ajuda a compreender, por exemplo, o amor à primeira vista, como o de
Aurélia por Fernando, que estaria associado a essa capacidade do amante em
reconhecer, sensivelmente, a natureza boa do amado: a sensibilidade não se engana e o
prazer diante do amado é imediato. Mas ao romper com a visão tradicional, retirando a
pessoa do grupo em que está inserida e valorizando-a por si mesma, o amor passa a
fazer cada vez mais exigências à pessoa do amante. Ao analisar o discurso amoroso em
Alencar, Moraes (2005) aponta que a perfeição do par romântico era essencial, que o
“amor romântico não permite sentimentos escusos ou ambíguos entre seus pares
amorosos: enquanto todas as pendências externas não forem resolvidas, não haverá
espaço propício para o desenvolvimento do mundo interior das personagens em direção
ao ‘final feliz’ da narrativa.”.
Desta maneira, é possível compreender o amor romântico como um modo de
amar particular a um contexto sócio-histórico específico, onde se exalta a importância
da escolha autônoma do par afetivo pelo indivíduo. O amor é o fundamento da relação.
280
MACFARLANE, 1990: 53
A família recebe novo papel neste contexto, não devendo interferir autoritariamente na
vida dos membros. Como resultado, vê-se a interioridade e o desejo do indivíduo se
tornarem os elementos mais valorizados no desenvolvimento da vida amorosa dos
sujeitos.
É este amor associado ao romantismo que surge nos romances A Moreninha e
Senhora. Mas ainda que experimentasse uma série de transformações que alteravam sua
organização, a estrutura social brasileira no século XIX ainda se encontra marcadamente
patriarcal e personalista. Cada pessoa não era reconhecida a partir de si mesma, como
um indivíduo autônomo, mas especialmente por meio das relações que estabelecia com
o grupo familiar. Este aspecto relacional é considerado, por alguns autores que
refletiram sobre a sociedade brasileira, uma de suas características centrais (Freyre,
2006; DaMatta, 1997). Este elemento, entretanto, não se manifestaria apenas na
necessária relação de dependência que cada indivíduo deveria manter com um poderoso,
representante de alguma grande família. O fator relevante a se considerar é a
importância que as relações e não os pólos rígidos possuem como princípio ordenador
em nossa sociedade (DaMatta, 1997; Candido, 2004a). A rede de relações de um
indivíduo era fundamental para sua manutenção e segurança, sendo que estas ligações
orientavam as pessoas sobre as suas identidades. A posição do sujeito em relação à
família proprietária, de acordo com Freyre, formava o homem.
Quando a família dominante num meio é a patriarcal e, além de patriarcal,
escravocrata, não o sexo como o indivíduo quase interior se forma ou se
deforma sob a influência familial. (...) O social deforma no indivíduo o que
é ou se supõe natural. Tudo no indivíduo nascido e crescido em meio
patriarcal e escravocrata, é marcado ou afetado pela sua situação de filho ou
de homem de família. Pela sua origem: status da família antes mesmo de
nascer o indivíduo. Pela presença – ou ausência – do pai. Pela presença – ou
ausência da mãe. Pela posição do indivíduo na família: livre ou escravo;
senhorial ou servil; filho ou filha; filho primeiro ou filho segundo; o último
filho ou filho único. (FREYRE, 1952: 5/6)
Diante destas reflexões, é possível indicar que um indivíduo na sociedade
brasileira não podia ser compreendido em si mesmo, mas a partir das relações que
mantém com o grupo. A autonomia do indivíduo, a despreocupação com suas origens
ou rede social, características do amor romantizado, estariam, deste modo, impedidas na
sociedade brasileira. Mas A Moreninha e Senhora se utilizam de um recurso estético, o
distanciamento da família, a fim de viabilizar o desenvolvimento do amor de feições
românticas, o amor autônomo, que, a partir deste recurso, pode se desenvolver sem que
qualquer interesse externo à relação seja considerado mais importante que o próprio
amor entre o casal. Este recurso se revela na orfandade de Carolina e Aurélia e na
afetuosidade dos pais de Augusto e da mãe de Fernando Seixas. É curioso que, para as
mulheres, personagens sobre as quais a autoridade do patriarca costuma ser indiscutível,
não bastaram recursos como o afastamento ou o afeto entre os membros da família: para
que possam amar livremente, é necessário eliminar toda forma de presença masculina
em suas vidas. Lemos, o tio de Aurélia, também tem sua autoridade reprimida, mas por
decisão da jovem. Para os rapazes, o recurso é menos extremo. Há, deste modo, uma
tensão entre as narrativas e a sociedade em que se inserem, na medida em que estes
romances não podem resolver a tensão que se estabelece entre a autonomia do indivíduo
e do amor e a família.
Esta tensão também é proveniente da adoção do romance como forma na
sociedade brasileira. O romance respondia às aspirações de artistas imbuídos do espírito
de construção da nação independente. A recusa dos meios tradicionais de expressão
levou os autores a buscar um gênero novo. Como ressalta Candido, o “romance, com
efeito, exprime a realidade segundo um ponto de vista diferente, comparativamente
analítico e objetivo, de certa maneira mais adequado às necessidades expressionais do
século XIX”
281
. Nesta sociedade que queria se construir, o romance era a forma
adequada, pois sua estrutura mais livre aceitava a descrição detalhada como técnica e o
cotidiano como tema (Candido, 2006) e permitia a interpretação da sociedade. Para
Candido (2006), nosso romance tendia para a descrição dos tipos humanos e formas de
vida social, dentro de um projeto de descrever e criar um país, é a “tomada de
consciência da realidade brasileira no plano da arte” e, compreendida nesta realidade, “o
Rio familiar e sala de visitas”
282
. Para Volobuef (1999), o objetivo do romance
romântico era registrar a nação e instruir a sociedade e não apenas entreter. Esta
finalidade se expressa na busca freqüente por verossimilhança, através de recursos
narrativos como a menção a locais conhecidos ou a cartas.
Esta adequação do romance deve ser melhor avaliada. Como indicado, o Estado
Brasileiro investia na afirmação de uma nova sociedade, especialmente após a
independência. Segundo Schwarcz (2007), desde a década de 40 do século XIX, D.
Pedro II incentivou os artistas brasileiros, em especial os literatos, a desenvolver uma
281
CANDIDO, 2006.: 429.
282
Ibidem: 433.
memória e cultura nacionais. O romance, este forma privilegiadamente descritiva, teve,
como ressalta Candido (2006), papel predominante nesta missão nacionalista da
literatura. A descrição dos costumes, das condutas associadas ao amor eram temática
central dos romances urbanos, como os que a dissertação compreende. Não deixa de
causar curiosidade, este privilégio do amor como temática dos romances (Volobuef,
1999). É freqüentemente ressaltada a importância do indianismo como propulsor da
formação da memória no Brasil (Candido, 2006; Schwarcz, 2007; Volobuef, 1999). No
que concerne à repetida temática do amor, a influência dos romances e folhetins
estrangeiros aparece como importante justificativa para esta recorrência temática
(Candido, 2006; Meyer, 1996). Outro fator que pode justificar esta freqüência é a
posição da mulher na sociedade, onde o casamento acaba por ser seu principal objetivo
de vida (Candido, 2006; Pereira, 1944). Mas o amor era também um meio de os
romancistas trazerem às narrativas a principal instituição brasileira, a família, ainda que
apresentando tipos incomuns, como as mulheres superiores aos homens ou formas de
vida distintas (Volobuef, 1999) e de questionarem a ordem social. Esta liberdade
proporcionada pela forma romance, quando o tema é o amor, associada ao momento
ambíguo que se vivenciava, parece ter possibilitado a criação de narrativas em que a
estrutura conjugal era questionada.
A partir destas observações, deve-se ponderar brevemente sobre as implicações
da adoção desta forma especificamente burguesa de literatura na sociedade brasileira. O
que é necessário indicar é que nenhuma formulação é recebida em um vazio de relações
e não poderá se desenvolver de maneira idêntica à sua sociedade de origem (Schwarz,
2000). Na medida em que a cultura que está exposta a influências externas possui
modos de ser particulares, qualquer noção recebida tende a ser reformulada a fim de se
articular com este novo meio, devendo lidar com a estrutura social do local. Ao analisar
o surgimento do romance na sociedade brasileira, Schwarz (2000) demonstra como
ideologias advindas da Europa eram aqui incorporadas sem que tivessem
necessariamente uma coerência com a nossa realidade. O mesmo ocorreu com o próprio
gênero romance, que tendo seu modelo adotado, viabilizou que, naquele período, a
imaginação nacional se fixasse “numa forma cujos pressupostos, em razoável parte, não
se encontravam no país, ou encontravam-se alterados”. Por outro lado, abraçar uma
forma é também acatar a maneira como se tratam as ideologias. É este tipo de tensão
entre a organização social brasileira baseada no poder do pai e um tipo de forma
literária que se desenvolvera na sociedade individualista burguesa européia e que
comporta ideologias associadas aos grandes temas desta semântica, como as da força
degradante do dinheiro ou as do antagonismo entre amor romântico e o casamento de
conveniência, que experimentam os romances de Macedo e Alencar: a temática do amor
na forma romance invoca o ideal de indivíduo autônomo.
A fim de melhor compreender esta relação entre romance, amor e família, é
necessário retomar a discussão no romance Dom Casmurro, pois é neste romance que
esta relação tensa entre poder patriarcal e amor autônomo é melhor analisada, revelando
a movimentação da sociedade brasileira oitocentista tradicional quando tem de lidar
com os ideais românticos que se disseminavam. O romance acentua um tipo de amor
que não se configura em torno dos ideais românticos. Mesmo quando narra a luta dos
jovens em busca da união, não parece configurar-se umaescolha” amorosa, no sentido
de decisão individual para “casar-se com”, pois o protagonista é “levado a amar” Capitu
quando denunciado pelo agregado. A partir daí, constitui para si uma narrativa amorosa
e uma identidade de amante a partir de suas experiências com a moça. A noção de que o
amor do rapaz não provém dele mesmo, mas desta indicação externa, não deve ser
compreendida como uma inexistência do amor. No entanto, é distinto deste amor
romântico que tem no sentimento proveniente do indivíduo, e apenas dele, um de seus
sinais mais importantes. Capitu, por sua vez, conhecia que amava Bentinho e que
com ele queria ficar, lutando por isso, dentro dos moldes de um amor à moderna. Mas é
possível pensar que a moça buscava uma relação interessada ao casar com o rapaz o que
revelaria um comum anseio feminino de fazer um bom casamento, ou seja, uma relação
que lhe trouxesse vantagens materiais e não afetivas.
O amor não se afirma na narrativa. Fundamentando a relação dos jovens, o amor
acaba se revelando como um instrumento de Dona Glória para executar sua vontade de
não deixar o filho no Seminário e, ao mesmo tempo, de se expiar da culpa de ter
rompido com a promessa religiosa. Esta postura de Dona Glória é uma das chaves do
enredo. Como nas narrativas de Macedo e Alencar, o patriarca de Dom Casmurro é
eliminado da história. No entanto, tal afastamento não busca, como ocorre nos outros
romances, deixar livres os indivíduos para que possam decidir autonomamente sobre
suas vidas. Dom Casmurro demonstra que pode haver poder e arbítrio familista sem que
haja a figura do pai. Como ressalta Gledson (1999), esta ausência permite que as facetas
dos indivíduos que comumente estão em posições subordinadas, como Dona Glória,
sejam reveladas, pois “embora permaneçamos dentro do mundo dos subordinados
(viúva, filhos, criados, etc.), esse mesmo fato não elimina o poder patriarcal, mas o
distribui e mostra como ele funciona”
283
. É esta possibilidade que permite evidenciar a
ilusão deste amor, afinal ele ocorre mais pelo desejo da proprietária que possui o poder
de mando, do que em função dos anseios do casal. O amor é uma justificativa para que
o poder familiar exerça, mesmo que indiretamente, sua vontade.
O interesse de Dona Glória, contudo, não impede que, efetivamente, haja um
rompimento da hierarquia social. No entanto, da mesma forma que esta hierarquia é
eliminada apenas por interesse da proprietária, ela pode ser acionada quando necessário.
Quando se torna, ele mesmo, proprietário, é a autoridade e o arbítrio aprendido com a
mãe que Bentinho manipula e não o amor, o moderno, ensinado por Capitu. Se, por um
lado, a criação dos filhos modifica a relação destes com sua vida amorosa, por outro, a
autoridade do chefe se mostra um fator de interferência na relação. O poder familiar que
em Senhora e em A Moreninha aparece como intervenções agressivas, ainda que
amenizadas pelo afeto que os pais m pelos filhos, ou como a ausência das figuras de
autoridade familiar, seriam apresentados, em Dom Casmurro, de modo claro, embora
contornado temporariamente pela inteligência de Capitu, a representante da
modernidade.
O amor é também um recurso utilizado pela bela Capitu para ascender
socialmente, possibilidade que, no entanto, não significa ausência do afeto por parte da
moça. Havendo infidelidade ou não
284
, o amor, quando em presença da família, revela-
se ineficaz como fundamento das relações amorosas. Esta instituição demonstra todo o
seu poder de mando sobre a vida dos membros que a compõem, pois, fruto da efetiva
traição de Capitu ou da imaginação de Bento, imperou a inconstância no amor que, em
ambos os casos, é substituído por outros interesses. O modo do romance relacionar-se
com os amantes se altera profundamente, o amor deixando de ser a união de virtudes
que se processaria após reformas morais. A narrativa abre margem para a
incompatibilidade dos amantes e a falta de virtuosismo, que impediria o nivelamento
das partes e, daí, o desenvolvimento do amor. Além disso, o anseio por evitar a relação
de Bentinho e Capitu, representado por José Dias, a busca da aceitação de Dona Glória,
visada pela moça, assim como o possível desejo por parte da família de Capitu de que o
283
GLEDSON, 1999: 58.
284
Há, ainda, a sempre possível hipótese de que Capitu efetivamente tenha traído Bentinho. Decorrente de
tal fator, a hipótese do amor abre margem pra duas novas possibilidade: a) que a moça ou tenha mudado
de amores, se apaixonando por Escobar ou; b) que revelasse um desejo fora do casamento, acentuando a
sexualidade que estaria acima do amor. Em ambas as hipóteses, um desvio da norma e o casamento
perde sua “base”, a constância.
casamento se concretizasse
285
, demonstram a importância da parentela para o
estabelecimento das relações amorosas, importância que não tinha sido afirmada pelas
outras narrativas. O que se evidencia é que, ainda que sugerida a possibilidade de uma
relação baseada no amor, a narrativa aponta para as inviabilidades da mesma, o amor se
configurando em registro ambíguo que mistura tradicionalismo e modernidade,
mostrando que, quando mediada pela família, a relação parece não poder se estabelecer
sem cismas e tensões.
Senhora e A Moreninha, ao apresentar relações que se aproximam dos ideais de
amor romantizado e do sentimentalismo europeu, se posicionam diferentemente. De
formas diversas, a família é afastada a fim de que o amor possa acontecer sem
impedimentos, a autoridade familiar não é um obstáculo aos protagonistas, deve-se
ressaltar e é enfatizada um tipo de relação que se fecha no casal e que permite o
renascimento do indivíduo – o homem, em especial – não como um elemento da família
extensa, subjugado aos desejos do pai, mas como uma parte fundamental do casal, um
sujeito que se recria pelo relacionamento amoroso.
Podemos dizer que Dom Casmurro, em um primeiro momento, segue na mesma
direção dos romances de Macedo e Alencar. Bento e Capitu se amam e este amor é
razão para que busquem meios para ficarem juntos e se casarem. Neste aspecto, as três
narrativas se assemelham entre si e, ao mesmo tempo, se distanciam das teorizações
produzidas sobre vida íntima e sociedade brasileira onde, como apontado, o amor não
costumava ser privilegiado.
Contudo, os obstáculos enfrentados pelo amor se diferenciam nos romances. A
Moreninha possui como principal impedimento a falta de virtude do Augusto, rapaz
que, embora saiba reconhecer um amor sincero, é volúvel, incapaz de manter a
promessa feita na infância onde jurou constância e amor eterno. Nos anos que se
seguiram à promessa, o jovem amou diversas moças, ainda que não tenha esquecido a
criança com quem se comprometeu. Quando conhece Carolina, no entanto, deixa de ser
fiel à menina da praia e comprova sua volubilidade, característica que, para Carolina, é
imperdoável. Mas este obstáculo é superado quando Augusto descobre que, na
realidade, encontrara a “bela mulher” buscada e que este novo amor era o mesmo de
outrora, ainda que o sentimento fosse diferente
286
.
285
É interessante lembrar que não conhecemos a relação que Capitu mantém com sua família depois de
casada ou mesmo o modo como os pais da moça reagem ao matrimônio, fatores que perpetuam a dúvida
sobre as possíveis intenções da jovem e de sua família.
286
Como ressaltado, Augusto amava “pela primeira vez em sua vida”.
Senhora possui impedimentos diferentes. Fernando Seixas também é um amante
volúvel, mas sua permuta de mulheres se justifica pelo interesse financeiro. É pelo dote
da moça que Fernando se interessa, não importando a personalidade da jovem. Este
modo de pensar o casamento é o oposto daquele pregado pelos ideais românticos de
amor e se aproxima mais das negociações comuns à sociedade brasileira do período,
onde casamento era um negócio, um “empreendimento nupcial”, segundo o narrador do
romance. Mas Fernando sofre modificações e deixa de ser um jovem insensível aos
verdadeiros sentimentos. Como ressalta Cardoso (2008), o amor, por meio do dinheiro,
provoca a reforma moral de Fernando, de modo que o jovem passa a valorizar a esposa
e o lar e não mais a vida agitada da Corte.
As amantes e os casamentos arranjados são dois elementos que podem ser
associados ao sistema patriarcal que se desenvolveu no Brasil. O homem proprietário
casava seus filhos por interesse, visando manter ou aumentar as riquezas da família.
Ainda como decorrência da estrutura social brasileira, o homem detentor de terras e
escravos podia ter quantas amantes quisesse amantes que se encontravam
especialmente entre as cativas - e podia casar os filhos com quem fosse de seu interesse
(Freyre, 2006). Mas este tipo de relação não aparece nas narrativas de Macedo e, em
Alencar, é remetida ao passado. Localizadas na capital do Império ou em suas
redondezas, estas narrativas não discorrem sobre a vida do patriarca ou dos membros da
família inseridos neste sistema. No entanto, sem que ocorram críticas à família,
acusações, nos romances, à postura masculina de ter diversas mulheres e a uniões
matrimoniais onde são os interesses racionais que conduzem a relação. A família parece
não poder ser diretamente atacada.
Entretanto, estas críticas feitas ao sistema patriarcal não o desautorizam. É
possível sugerir que os romances “pagam tributo” à família, na medida em que não
fazem acusações diretas a sua estrutura. As narrativas, todavia, incorporam a esta
família algumas das novidades que se apresentam - como o amor fundamentando as
relações e a reforma moral dos homens pela mulher, reforma que os reorienta para a
nova família nuclear (MÜCKE, 1991). A estrutura não é desautorizada, pois os filhos
não enfrentam os pais, não desobedecem
287
. Como mostra Muricy (1988), a literatura
parece incorporar o discurso médico do período, discurso que normatizava as relações
amorosas, tentando dissipar o poder dos patriarcas, mas, ao mesmo tempo, incorporando
287
Se há reação, ela é passiva: Augusto fica doente, melancólico e Pedro Camargo, por medo de enfrentar
o pai, morre em decorrência de uma meningite que o leva ao falecimento porque seu “robusto
organismo” estava enfraquecido pelas “convulsões morais” que o pai lhe impusera.
estes homens à família, dando-lhe o novo papel de chefe da família nuclear. Figuras
autoritárias que interferem arbitrariamente nas relações dos filhos são excluídas ou suas
formas de atuação são desestabilizadas: os romances preferem não discutir o ainda
presente poder do patriarca e afastar as figuras de autoridade de suas personagens
protagonistas ou fazer com que razões diversas impeçam que o pai demonstre seu
poder, seja de violência, seja de influência.
Mas, como ressaltaram Freyre (2006b) e Del Priore (2005), este poder não
deixou de se manifestar. Ainda que filhos e filhas ganhassem mais liberdade nesta
sociedade que se modificava, a família ainda interferia na decisão sobre os casamentos.
O que muda é o papel destes filhos, que passam a ser fundamentais para a manutenção
do poder do proprietário. Os romances parecem, deste modo, encontrar um via
intermediária para apresentar as relações familiares, abrindo a possibilidade de os
jovens participarem na decisão sobre seus relacionamentos como se revela pela
liberdade com que circulam pelas ruas e eventos que ocorrem na Corte -, sem discutir,
contudo, a presença do poder paterno. A partir das reflexões destes autores, é possível
perceber que A Moreninha e Senhora afirmam algumas mudanças que se processavam
na sociedade brasileira, mas que omitem, ou não reconhecem, algumas das
permanências, como a intervenção familiar.
Este posicionamento da família que se desenha nos dois primeiros romances se
distancia muito dos padrões delineados em Dom Casmurro. Não apenas a parentela
interfere na relação do jovem casal Dona Glória, com a religiosidade, José Dias, com
o preconceito, os pais de Capitu, com as possíveis insinuações das vantagens do
casamento -, como também manipula o amor em seu próprio beneficio. Ademais, a
instituição familiar em seu formato patriarcal se repete no casamento de Bento,
impossibilitando a reforma que ocorre nos romances anteriores, mudança associada ao
amor. Como ressalta Cardoso (2008), esta possibilidade do renascimento é viável
quando igualdade entre o casal. No entanto, Bento acaba com a equivalência que se
estabelecera entre os meninos na infância
288
(Schwarz, 1997).
A importância que a família tem na constituição do destino de Bento e Capitu é
evidente. Ainda meninos, Bento e Capitu já conhecem a força deste poder: o rapaz
insinua que quando for dono da casa expulsará o agregado. Capitu, por sua vez, conhece
a importância de José Dias na família e lembra que ele pode ser um bom aliado. O
288
Se é que se pode afirmar que, em algum momento, houve igualdade. Bentinho sempre se considerou
muito diferente de Capitu e sempre percebeu com clareza esta distinção.
preconceito de José Dias é decorrente da classe social e da posição ambígua da família
de Capitu, especialmente do pai que, embora honesto, “tem uma tendência para gente
reles”. Não é sem razão que Capitu se esforça para se tornar indispensável a Dona
Gloria, a fonte do poder na casa, sendo mesmo acusada por Justina de interesse
289
. O
reconhecimento do domínio da família não se apresenta da mesma forma nas narrativas
de Macedo e Alencar, o papel da parentela sendo pouco lembrado e, na realidade, sendo
alterado por estes romances, pois o elemento pedagógico se localiza na mulher amada e
não mais no detentor da propriedade
290
. Capitu, junto a Escobar, parece iniciar um
processo de reforma semelhante, afastando Bento do tradicionalismo operado por sua
família e da vida religiosa que esta instituição lhe impunha e alterando as regras sociais
que imperavam
291
. No entanto, essa reforma é apenas momentânea, pois Bento, adulto,
prefere se associar aos ideais tradicionais do sistema patriarcal representados por sua
mãe e por José Dias. A reestruturação moral não pode se completar.
É necessário avaliar mais detalhadamente esta mudança do perfil da família
entre os romances, na medida em que este recurso imprime as diferenças entre os modos
de tratar o amor e revela a problemática experimentada pelas narrativas para associar
elementos modernos individualistas em enredos cujas histórias se dão em contexto
tradicionalmente patriarcal. Como visto, a autoridade paterna em A Moreninha surge
apenas uma vez, quando o pai de Augusto o proíbe de ir à ilha e encontrar Carolina. A
maneira de lidar com a paixão do filho é criticada pelo narrador que indica o caráter
antiquado de tais comportamentos. As mães, embora acompanhem suas filhas nas
diversos espaços de sociabilidade que o romance apresenta, não intervêm na decisão das
jovens e não fazem julgamentos sobre seus comportamentos. A família como instituição
não merece, na narrativa, um papel de destaque, sendo relegada a segundo plano em
prol da narração dos comportamentos dos jovens bacharéis e das moças casadoiras.
Existe apenas uma família completa pai, mãe e um filho único, Augusto. É nesta
família que se manifesta autoridade do patriarca. Todas as outras personagens jovens
289
Quando percebe que Capitu é muito solícita e se esforça demais para atender todas as necessidades de
Glória, estando sempre à disposição na casa, Prima Justina faz declarações acusatórias, ainda que
indiretamente: “Um dia, [Prima Justina] perguntou-lhe [a Capitu] se não tinha que fazer em casa; outro
dia, rindo, soltou-lhe este epigrama: ‘Não precisa correr tanto; o que tiver de ser seu às mãos lhe há de ir.”
(MACHADO DE ASSIS, 2000: 99)
290
O pai de Augusto não exige que o filho lhe obedeça e Fernando sequer possui uma figura de autoridade
que pudesse lhe impôr alguma vontade.
291
Schwarz (1997; 2000) demonstra que, nas primeiras narrativas de Machado de Assis, a agregada que
se apaixona pelo filho dos proprietários nunca consegue com ele se casar, pois a família sempre encontra
meios de impedir esta relação: adotar uma mulher de classe diferente é distinto de deixá-la entrar na
família.
aparecem livres de qualquer espécie de autoridade familiar. A única personagem idosa
que opina sobre as relações íntimas é Dona Ana, a avó de Carolina. Uma opinião que
deve ser assinalada, pois se refere exatamente à importância da constância para a
manutenção da família. Como é possível perceber, todavia, não discussões sobre o
poder do pai na vida da família.
Senhora segue caminho similar, ainda que empreenda críticas mais extensas
sobre o comportamento dos parentes. Neste romance, surgem algumas famílias mais
definidas, inclusive uma família extensa
292
, que se localiza na geração anterior a de
Aurélia: sabemos que seu tio Lemos é responsável pela irmã e mais doze pessoas que
tinha às costas”, parentela que discriminará Emília após ela se casar sem o
consentimento do irmão. Emília é representante da juventude que se casa por amor,
escapando das amarras que lhe prendiam ao grupo. A família que forma, por sua vez, é
nuclear, mas mantém-se por pouco tempo, sendo desestruturada pela autoridade do pai
de Pedro, modelo de grande proprietário. Como na história anterior, a manifestação
deste poder traz infelicidade e, ainda que de modo diferente, este tipo de prática
autoritária é relacionada com o passado. Mesmo quando ocorre no presente da narrativa
o pai de Adelaide Amaral, personagem secundária, arranja seu casamento sem se
importar com o amor da filha por um rapaz pobre
293
-, o amor acaba prevalecendo no
final
294
. Por sua vez, o tio de Aurélia é impedido de controlar o destino da sobrinha.
Assim, embora Senhora tenha críticas mais enfáticas à conduta da família, a autoridade
das figuras masculinas aparece como um obstáculo secundário, posto que
frequentemente é impedida de atuar, sendo submetida à força do amor do casal ou ao
dinheiro que aqui aparece como um instrumento de reforma moral.
292
ainda alguns parentes do avô de Aurélia. Em ambos os casos, as famílias extensas são percebidas
como aproveitadoras. Os laços de afeto que deveriam unir os membros são minimizados diante de outros
objetivos e interesses, fazendo com que haja um esforço de afastamento destes grupos por parte de
Aurélia e de seu avô. A narrativa desautoriza, portanto, a família extensa que só se interessa pelo dinheiro
do proprietário.
293
Aqui também não existe figura materna. No entanto, a narrativa acentua a importância da presença de
mulheres da família acompanhando as jovens. Aurélia possui uma “mãe de encomenda, para
condescender com os escrúpulos da sociedade brasileira, que naquele tempo não tinha admitido ainda
certa emancipação feminina.” (ALENCAR, 1995: 17), emancipação como a que possui Aurélia, que
decide sobre todos os aspectos de sua vida, sem intervenção familiar. Estes comportamentos de Aurélia
são alvos de crítica de outras mães “que tinham filhas moças, [e que] não cansavam de criticar esses
modos desenvoltos, impróprios de meninas bem-educadas.” (Ibidem: 19). As críticas se referem
especialmente ao fato de Aurélia dar preços aos homens.
294
Neste caso, é também o dinheiro o instrumento utilizado para efetivar a união entre o casal que se
amava: Aurélia empresta o dinheiro a Torquato Ribeiro a fim de que ele possa oferecer um dote alto e
seja aceito pelo pai de Adelaide Amaral.
O papel da família em Dom Casmurro, em comparação com os outros romances,
é diferente já que a instituição é o principal obstáculo para os relacionamentos amorosos
e é um impedimento que não é capaz de ser vencido pelo amor. A Moreninha e Senhora
não tratam deste tema ou se esforçam para demonstrar que a família, como participante
nas decisões sobre a vida íntima dos indivíduos, não deve estar presente, pois este tipo
de comportamento é comum no passado e não na modernidade, em um Brasil que se
construía após a Independência e que buscava se distanciar da tradição colonial. O
romance de Machado de Assis enfatiza não apenas as dificuldades do amor ante a
família, como revela que a atuação da mesma não é mania antiga”, mas que, quando
está presente, pode ser, e em geral é, extremamente forte, não deixando de mobilizar
esforços quando anseia concretizar seus interesses.
Deste modo, busca-se afirmar que, embora a sociedade tenha vivenciado muitas
mudanças, a família não perdera seu poder, daí o recurso ao desaparecimento da família
nos romances de Macedo e Alencar. Este recurso evidencia uma tensão entre os
romances e a sociedade brasileira. É importante ressaltar que quando indicamos que os
romances A Moreninha e Senhora vivenciam uma tensão quando tratam de um tipo de
amor individualista em contexto patriarcal, não pretendemos afirmar que um romance
deva ser totalmente fiel à realidade. Devemos lembrar, todavia, que nosso romantismo é
conhecido por seu realismo e fidedignidade na descrição dos costumes (Candido, 2006;
Moraes, 2005)
295
. Verificamos, nestas narrativas do século XIX, mulheres que convivem
com rapazes, passeiam nas ruas, lêem e galanteiam livremente e não moças aprisionadas
em sobrados sem contato com o mundo exterior; jovens bacharéis provenientes do
interior estudando na Corte, experimentando e divulgando os recentes ideais
românticos; empregados e instituições públicas e outras manifestações da modernização
que se processou em nossa sociedade. Entretanto, a forma romance, própria à
organização social individualista, pode experimentar tensões quando inserida em
contexto social distinto, como ocorreu no caso brasileiro. O modo como Macedo e
Alencar articularam tais elementos - relações fundamentadas principalmente no amor
entre o casal e que se afastam de interesses como a procriação ou as alianças familiares,
e uma organização social como a brasileira, baseada em laços familiares fortes onde os
295
São diversos os recursos utilizados para indicar que as narrativas seriam reais ou muito próximas ao
cotidiano dos leitores. O principal deles é a descrição detalhada dos costumes, hábitos, modas, assim
como a menção a lugares conhecidos. A Moreninha nos fala do hábito de ir a teatros e dos estudantes da
Corte, muito comuns na época. Senhora também nos lembra das recepções, dos teatros e ainda, em sua
introdução, menciona que a história teria sido contada por pessoas envolvidas nos acontecimentos. Dom
Casmurro faz referências ao Imperador do Brasil e à guerra da Criméia, fatos da história.
anseios do casal, mesmo no contexto mais moderno do século XIX, não eram
privilegiados na constituição das relações afetivas - é questão central para as análises
que aqui desenvolvi. O que as narrativas revelam são as dificuldades para conectar estes
dois elementos. O amor romantizado é parte de um contexto histórico que, aos poucos,
liberou os indivíduos do grupo, privilegiando a experiência de cada indivíduo,
entendendo que era única a vivência de cada um. Uma relação íntima deveria ser
conseqüência de uma escolha, parte daquilo que o indivíduo experimenta em relação a
outro indivíduo, dois seres únicos e inigualáveis (Simmel, 2006). Mas, como ressalta
Del Priore (2005), o casamento, no Brasil do século XIX, era prioritariamente uma
negociação, “não envolvia gostos pessoais (...) As esposas eram escolhidas na mesma
paróquia, família ou vizinhança. Ritos sociais organizavam, então, o encontro de jovens
casais que logo chegavam ao casamento. Namoro: pouco ou nenhum. Noivado,
rápido”
296
. Há, como é possível perceber, um desnível entre estes elementos nas
narrativas de Macedo e Alencar.
Este modo de construir as narrativas pode ser compreendido a partir de Volobuef
(1999). De acordo com a autora, o amor apareceria como uma alternativa para os
argumentos racionais que eram utilizados para justificar o casamento, sendo que esta
seria uma das inovações propostas pelos românticos. Candido (2006) destaca este
esforço para introduzir novos elementos que, no Brasil, visavam romper com o passado.
A literatura buscava contribuir para a grandeza da nova nação que se formava,
utilizando-se, para tal fim, de formas e sentimentos renovados”
297
. Para Schwarcz
(2007), o romantismo empenhou-se em construir, especialmente por meio do
indianismo, uma memória e cultura essencialmente brasileiras, à literatura
correspondendo um papel fundamental no processo de constituição do Brasil pós-
independência, processo que revela uma crença no efeito das palavras sobre os leitores.
É possível imaginar que buscou-se, através da literatura, disseminar um ideal de
conjugalidade onde o amor seria o fundamento da relação, de modo a estabelecer um
novo padrão para a vida íntima. No entanto, não havia meios de associar este amor
individualista romantizado com o modelo de família brasileiro. A Moreninha e Senhora
afirmam o amor como fundamento das relações conjugais, pressupondo um indivíduo
autônomo. Para que tal associação ocorra, todavia, recursos estéticos ambíguos são
296
DEL PRIORE, 2005: 120
297
CANDIDO, 2006: 312.
necessários, como a ausência da família, pois esta autonomia ainda não tinha se
afirmado, até aquele momento, na sociedade brasileira do século XIX
298
.
Este papel da literatura como um elemento de constituição, fixação e
disseminação dos sentimentos deve ser melhor analisado, a fim de compreendermos as
relações entre o modo como a literatura era concebida no período e a estrutura da
sociedade brasileira. No capítulo 1, vimos que durante o século XIX o romance era
entendido como um meio de instrução e educação (Augusti, 1998). A literatura como
instrumento de socialização aparece também em Rousseau (1994) que, no prefácio ao
romance Julia ou a Nova Heloísa, não apenas ensina a ler o livro como acredita que a
leitura produz efeitos nos leitores e pode educá-los, pois se “os romances oferecessem a
seus Leitores apenas descrições de coisa que os rodeiam, apenas deveres que podem
cumprir, apenas prazeres de sua condição, os Romances não os tornariam loucos, torná-
los-iam sábios.” O autor acreditava que o romance interferiria na vida dos casais e podia
imaginar “dois esposos lendo juntos esta coletânea, dela extraindo uma nova coragem
para suportar seus trabalhos comuns e talvez novas idéias para torná-los úteis.”
299
.
Rougemont (2003) também indica, a partir de La Rochefoucauld, que a literatura tem
um papel central na difusão do amor, na medida em que a linguagem convencional
“suscita e favorece naturalmente a eclosão dos sentimentos” e lembra, como Luhmann
(1991), que, sem os romances, muitos nunca sequer se apaixonariam
300
.
Diferentemente da sociedade européia, no entanto, a leitura no Brasil era restrita
ao meio intelectual e às classes médias altas (Lajolo e Zilberman, 1996). Os romances
amorosos divulgavam os ideais de amor romantizado, voltados para os interesses dos
indivíduos. Del Priore (2005) lembra que o amor romantizado era algo para o
“imaginário da cultura letrada”. Podemos afirmar que é exatamente nos estratos mais
altos, classe onde a leitura era mais comum, que estas noções de amor mais livre eram
disseminadas. As narrativas analisadas mostram que nestas classes, a leitura era uma
forma de lazer: Joaninha e Carolina lêem autores nacionalistas e feministas,
respectivamente; Aurélia um outro romance de José de Alencar, José Dias Walter
298
É indiscutível que a sociedade brasileira atravessava, no século XIX, a crise da organização patriarcal
e, também, da família. Mas é justamente em Dom Casmurro, romance do fim do século, que a família
está mais presente. Esta centralidade da família no romance de 1899 torna ainda mais questionável a
ausência da mesma nos romances anteriores.
299
ROUSSEAU, 1994: 34/5.
300
A idéia de que a literatura participa na formação dos sentimentos também aparece em Debret. Em
viagem ao Brasil, o autor ressalta que os “livros [no Brasil], que se tornaram clássicos, interessam pela
sua novidade, ornam o espírito e formam o coração das jovens alunas brasileiras.” (DEBRET, Jean
Baptiste apud LAJOLO e ZILBERMAN, 1996: 242 – grifos meus).
Scott em voz alta para a família
301
e Capitu lia todos os romances que havia na casa do
vizinho. No entanto, segundo Lajolo e Zilberman (1996; 2002) , um dos objetivos dos
romancistas era exatamente instruir os leitores para a nova sociedade que se formava,
incutindo neles a imagem da leitura como atividade comum e prazerosa. A leitura era
um dos hábitos que se queria incorporar aos costumes das moças
302
, pois, como
informam as mesmas autoras, a ignorância feminina era generalizada, como registraram
muitos visitantes estrangeiros. Esta informação pode indicar que a leitura ocorria menos
na sociedade do que nos romances, na medida em que os textos apresentavam a leitura
como uma prática rotineira. No entanto, é indiscutível que é neste grupo que se
encontrava o principal público do romance e para quem eles eram destinados
303
. Assim,
o amor romantizado era uma questão das elites
304
, o que se confirma pelo fato de, entre
as classes mais baixas, as relações amorosas se desenvolverem mais livremente (Del
Priore, 2005). Era nas classes mais altas que a leitura ocorria mais freqüentemente e são
nestas mesmas elites que os casamentos são frequentemente arranjados. É possível
supor que as narrativas, ao tratar do amor como base das relações, estariam propondo
novas formas de relacionamento entre os homens e mulheres destas classes
305
. O amor,
na literatura, parece ser uma proposta alternativa ao modo como os casamentos
301
Este era hábito comum entre as classes mais altas, como demonstra José de Alencar em Como e
porque sou romacista. Em certa passagem de Senhora, o marido para ela as notícias do jornal, ainda
que a moça saiba ler.
302
Na primeira metade do século XIX, Debret, em viagem ao Brasil, ressalta que a ignorância feminina, o
analfabetismo, era uma tática masculina que evitava que as moças se correspondessem com rapazes. De
acordo com o pintor, “Pais e maridos favoreciam essa ignorância a fim de destruir pela raiz os meios de
correspondência amorosa.” (DEBRET, Jean Baptiste apud LAJOLO E ZILBERMAN, 1996: 241). A
crítica de estrangeiros era freqüente e, segundo Lajolo e Zilberman, a literatura romântica, ao criar
personagens leitoras evitam “imagens que poderiam denegrir as personagens femininas, como as que
denunciam a ignorância, o embrutecimento e a opressão doméstica feminina, [assim] os romancistas
românticos brasileiros abolem do texto (ou retocam, pela via da narrativa) o quadro que tanto escândalo
causava aos olhos exigentes, sobretudo dos estrangeiros.” (LAJOLO E ZILBERMAN, 1996: 254). Esta
era uma forma de estimular a leitura e “possibilita à literatura esboçar uma utopia para as mulheres
brasileiras do século XIX” (Ibidem: 255). Mas apenas para algumas mulheres, pois estas personagens são
majoritariamente ricas ou das classes médias.
303
No entanto, Lajolo e Zilberman (1996) lembram que, ainda que lendo pouco, o hábito de leitura de
“romances açucarados e folhetins tidos por tolos” era uma “tendência”. Daí talvez o sucesso dos nossos
primeiros romancistas.
304
Aurélia e Seixas, inclusive, lêem juntos alguns romances e poemas, leitura que participa na
aproximação do casal e que recebe um papel no desenvolvimento do amor. A literatura registra, deste
modo, a função da literatura como um instrumento do amor, incitando o afeto entre os esposos. Os
romances apresentam ainda alguns casos de identificação entre leitores e personagens da literatura que
liam: Aurélia se compara a Desdêmona de Shakespeare e Bento Santiago faz freqüentes menções aos
livros que leu, identificando sua vida com as narrativas e personagens. Dom Casmurro revela ainda o
quanto este processo de identificação pode ser manipulado e duvidoso, pois muitas das leituras que Bento
faz das obras são confusas e errôneas. Quando assiste ao Otelo de Shakespeare, Bento compara o texto a
sua vida, mas ignora o fato de que talvez Capitu seja tão inocente quanto a protagonista da obra. Estes e
outros exemplos se encontram em SEIXAS, 2004.
305
Costa (1999) acentua que as intervenções médicas que se disseminaram no século XIX visavam,
especialmente, as famílias brancas, a elite.
ocorriam. Para Del Priore,
O que se observa na literatura romântica desse período [século XIX] são
propostas de sentimentos novos, nas quais a escolha do cônjuge passa a ser
vista como condição de felicidade. Mas isso ficava para os livros ou para os
novos códigos amorosos que lentamente se instalava. A escolha, na vida
real, era, todavia, feita segundo critérios paternos. (DEL PRIORE, 2005:
129)
Há, desta forma, indicações de que a literatura romântica brasileira buscava
imprimir novos padrões de conduta, mostrando aos amantes, leitores de romances
sentimentais estrangeiros, que as práticas europeizadas eram possíveis para os casais
brasileiros. No século XIX, festas e bailes invadem a rotina dos habitantes da ex-colônia
(Schwarcz, 2007), imprimindo um novo modo de viver, especialmente para as
mulheres, que vêem seu isolamento ser substituído por passeios freqüentes e
praticamente obrigatórios àquelas que quisessem fazer parte da nova rotina que se
firmava. A mulher recebe um novo papel: torna-se fundamental nas negociações dos
maridos, deve recepcionar os convidados e ser vista nas ruas, daí merecer mais atenção
e sua educação ser ampliada (Costa, 1999). Este acréscimo de poder permitiu que as
moças passassem a ser valorizadas não apenas por meio dos laços familiares de que
fazia parte, mas também por elas mesmas, por sua educação, beleza, qualidades
individuais, pois a
diferenciação social iniciada no período joanino complicou sobremodo esta
situação. A oferta de bons partidos aumentou e a disputa por eles ganhou
uma complexidade notável. O casamento já não dependia exclusivamente da
escolha do pai. Ser rico ou aristocrata não assegurava incondicionalmente ao
jovem o casamento mais vantajoso. (...) A aparência física, as boas
maneiras, o requinte na educação, a sofisticação do gosto, etc., ingressaram
na contabilidade do poder, quase em de igualdade com o dinheiro e os
títulos de nobreza. (COSTA, 1999: 107/8)
A mulher ganha a rua. Como destaca Freyre:
Com esse tipo semipatriarcal de vida mais mundana para a gente de
sobrado, alargou-se a paisagem social de muita iaiá brasileira no sentido de
maior variedade de contatos com a vida extradoméstica. Este alargamento se
fez por meio do teatro, do romance, da janela, do estudo de dança, de
música, de francês. (FREYRE, 2006b: 228)
Para Azevedo (1986), esta novidade nos comportamentos altera as regras do
namoro e do casamento que vão sendo invadidos pelas normas do amor romantizado.
As características psicológicas das partes começam a ser levadas em consideração e a
decisão sobre a união passa a ver a intervenção do pai ser subtraída. Mas apesar destas
alterações, não se deve compreender que o poder dos patriarcas é eliminado, na medida
em que os casamentos permanecem sendo negociações. Ainda que as partes que virão a
se casar passem a ser mais valorizadas e que as individualidades ganhem em
importância, a família ainda organiza estas relações.
Por isso que, em última análise, é a parentela da moça, mais que aos
candidatos, que competem aqueles julgamentos e a ‘última palavra’ na
matéria. (...) do mesmo modo que as filhas, também os filhos de maior
idade e com autonomia profissionais continuam residindo no lar paterno,
dando aos pais alguma satisfação de suas decisões mais sérias ou
assumindo-as de acordo com aqueles, sobretudo no tocante ao casamento.
(AZEVEDO, 1987: 82)
Esta passagem parece indicar que as mudanças ocorridas no século XIX não
impediram a intervenção familiar, pois ela não deixa de se fazer presente. É assim que
se processa o casamento em Dom Casmurro. No entanto, é perceptível que o poder do
proprietário sobre os filhos sofre alterações, tornando-se menos autoritário ou mais
difuso. O poder dos patriarcas é reduzido, a violência característica de muitas de suas
ações passa a ser cerceada, tanto por poderes públicos, quanto pelo crescimento do
autocontrole. A mulher e os filhos se tornam mais livres e o afeto parece se impor,
formando a família nuclear (Costa, 1999). Mas se as regras estabelecidas para as
relações íntimas são invadidas pelos afetos, não se pode afirmar que a autoridade da
família tenha sido eliminada. Como ressalta Freyre (2006b), o poder dos senhores
poderosos encontrou meios de se difundir e manter sua atuação de modo mais indireto e
menos tangível: é o que nos parece revelar o romance Dom Casmurro.
O romance de Machado de Assis fornece informações que nos levam a acreditar
na impossibilidade deste tipo de associação mais livre e igualitária na sociedade do
século XIX: o fato de o romance não utilizar o afastamento da família como um recurso
narrativo e de, diante desta circunstância, o amor sucumbir à autoridade patriarcal,
permite mostrar que existe uma incompatibilidade entre relações amorosas e familiares
na sociedade brasileira do período. É o distanciamento da família que permite que o
amor se desenvolva nos dois primeiros romances e é a presença dela, em Dom
Casmurro, que impede que o amor se estabeleça. A modernidade produz a crise do
sistema patriarcal, mas a autonomia do indivíduo é ambígua, pois embora possa haver
desenvolvimento e crise do self, não a possibilidade de haver escolha
individualizada. O poder da família, assumindo novas formas na modernidade, se
mantém atuante.
Nos três romances ocorrem reformas morais nos protagonistas masculinos. Até
mesmo Bentinho sofre alterações, questionando a decisão da mãe em torná-lo padre.
Ainda que não declare sua vontade, o jovem procura meios junto a Capitu para se livrar
da situação. Mas o romance demonstra também que diante da ascensão do homem, da
aquisição do poder como chefe de família, a figura masculina deixa de lado a igualdade
e retoma os comportamentos comuns aos patriarcas. É de se considerar o fato de A
Moreninha e Senhora não narrarem a vida dos maridos como detentores da propriedade.
Provoca curiosidade imaginar quais seriam os comportamentos de Fernando Seixas
depois de saber que é o proprietário de toda a fortuna da esposa, agora que ela lhe
passara por testamento todos os seus bens
306
. Dom Casmurro narra esta mudança de
lugar do homem, revelando as dificuldades que o amor poderia enfrentar em um
contexto patriarcal.
Todo o enredo de Dom Casmurro enfatiza os efeitos do sistema patriarcal na
intimidade e na interioridade dos indivíduos, argumento que não foi trabalhado nas
narrativas de Macedo e Alencar porque a família, e não apenas a patriarcal, não é uma
personagem na história. Em Dom Casmurro surgem as tensões entre os ideais modernos
de amor igualitário e a tradicional autoridade patriarcal. Bentinho é um menino rico
cujo futuro foi traçado pela mãe e este destino é ser celibatário (Gledson, 1999). O
jovem descobre que a vida religiosa não é seu destino quando o agregado
indicações de que ele ama. A descoberta do amor novos rumos para a sua vida,
alterando os limites impostos pela tradição, abrindo possibilidades antes excluídas,
como o casamento e a procriação, a continuação da família. Mas, como visto, este
casamento ocorre porque é do interesse da proprietária. Dona Glória não que ver seu
único filho longe dela. O amor por Capitu e a idéia de Escobar são as soluções para seus
problemas. A agregada, adotada pela família, cumpre seu papel de servir à proprietária
em seus interesses quando se apaixona e casa com Bentinho. Escobar, por sua vez,
306
No final da narrativa, sabemos que Aurélia, em um testamento onde “confessava o imenso amor que
tinha ao marido” (ALENCAR, 1995: 215) lhe deixara todos os bens, documento que lavrara
imediatamente após seu casamento. Como seria a reação de Seixas aos comportamentos de Aurélia se
desde o início soubesse que era seu herdeiro universal?
contribui para a família e é recompensado, pois Bento pede que Dona Glória invista nos
“primeiros tentamens comerciais” do amigo. Todas as personagens são instrumentos da
proprietária que, no entanto, sai ilesa da acusação de ter quebrado a promessa religiosa e
morre como “uma santa”, para Bento.
Na nova família que se forma, Bento se insere em novo contexto, o moderno,
representados por Escobar e Capitu. Um mundo moderno que não domina como os dois,
o amigo e a esposa. Esta falta de controle é resultado, segundo Venâncio Filho (2000),
do despreparo destes homens da elite criados na sociedade brasileira do período, que
enfrentam a dissolução do sistema patriarcal e ascensão de novas idéias, mas, ao mesmo
tempo, ainda são amparados por aquele sistema patriarcal
307
. É exatamente por ter este
suporte que Bento pode retomar, quando acha necessário, os antigos hábitos dos
patriarcas. Mas estes hábitos estão reformulados, pois, apesar de exilar a esposa, como
também faziam os antigos patriarcas com suas filhas, ele o faz diferentemente, na Suíça,
e não em algum convento. O objetivo desta manobra está explicitado no texto: ele quer
“enganar a opinião”. Como ressalta Muricy (1988), em “uma sociedade que
apressadamente enfeita-se com os véus de recente civilização, é a aparência o que
conta”
308
. Talvez não haja personagem mais “fantasiado” do que o Dom Casmurro:
como lembram Muricy (1988), Venâncio Filho (2000) e Cardoso (2008), na confusão
de personalidades que possui nesta modernidade ambígua, Bento não se reconhece a si
mesmo.
Dom Casmurro demonstra as dificuldades que os ideais de autonomia e
liberdade do indivíduo, de igualdade entre as pessoas e do amor como o sentimento
capaz de superar qualquer hierarquia, podem ter na sociedade brasileira. Se parece ser
falha a possibilidade de haver igualdade entre homem e mulher dentro do casamento,
igualdade proposta em A Moreninha e Senhora
309
, algumas alterações não deixam de se
processar no íntimo, alterações que estão relacionadas às mudanças provocadas pela
vinda da Corte para o Brasil. A maior centralização do Estado provoca um maior
autocontrole dos impulsos individuais, na medida em que a violência passa a ser direito
restrito ao poder público (Elias, 2001). É o que parece revelar o romance de Machado
307
Escobar, não sendo um herdeiro como Bento, deve se adaptar aos novos tempos e se utilizar do
raciocínio e do cálculo para ascender socialmente. Bentinho, pela posição em que se encontra, não
necessita de tais recursos.
308
MURICY, 1988: 106.
309
Não se deve aqui compreender a igualdade a partir da concepção moderna do termo, como aquela
proposta pelos ideais da Revolução Francesa, mas como um espaço para manifestação equivalente dos
anseios, homem e mulher trabalhando juntos pelo bem maior da família, mas cada um exercendo seus
papéis de gênero.
de Assis. Embora proprietário, Bento Santiago, ao supor a traição da mulher, não usa
meios de violência direta, como poderiam fazer os antigos senhores de terras. Ainda que
imagine matar a mulher e o filho, ele não o faz, pois há um poder maior do que o dele, o
do Estado. Ele é um cidadão do Império e parece ter internalizado esta autoridade. Ao
invés de matá-los, os exila na Europa e, assim, mantém as aparências.
Mas para Costa (1999), as mudanças que se processam na estrutura do poder do
patriarca, são mais profundas. O autor afirma que, como compensação da perda do
poder sobre diversos homens e terras, foi concedido ao proprietário o poder sobre a
mulher por meio do machismo
310
, pois se a mulher ganha liberdade, não deixa de se
submeter ao homem. É a manipulação dos ideais modernos em contexto patriarcal, as
mutações do poder do proprietário. A permanência do poder do proprietário não é,
como revela o romance Dom Casmurro, impedimento para que o amor ocorra, pois o
amor se torna um objeto de manipulação. Conjugam-se fatores tradicionais e modernos,
pois aos poucos, como indica Costa (1999), o homem é “premiado com um novo tipo de
submissão das mulheres, (...) a submissão, pelo amor, ao marido, aos filhos e ao lar”
311
.
O romance Dom Casmurro parece evidenciar esta passagem: em um primeiro momento,
Dona Glória manipula o amor em função de seus interesses de proprietária. Os jovens se
casam por causa do desejo de Dona Glória, mas quem recebe “as glórias” pela união é o
amor. Alguns anos depois, Bentinho, homem que foi “premiado” com o amor da esposa,
recebe ainda o direito de manifestar seu autoritarismo por meio do machismo
evidenciados em seu ciúme, desconfiança e no exílio que impõe à mulher:
O homem, expropriado de terras, bens e escravos, [recebeu em]
contrapartida (...) o direito de concentrar sobre a mulher toda a carga de
dominação antes distribuídas pelo grupo familiar e demais dependentes da
propriedade. A esposa passou a ser sua única propriedade privada. De
propriedade jurídico-religiosa, a mulher passou a propriedade higiênico-
amorosa do homem.” (COSTA, 1999: 252).
O tipo de reforma do indivíduo implementada nos dois primeiros romances não
é passível de ser completada em um contexto ainda patriarcal que agora aparece
310
É relevante ressaltar que Costa atribui não apenas à centralização do Estado esta perda de poder, mas
ao trabalho de médicos-higienistas que colocaram seus serviços a favor do Estado e empreenderam uma
política higienizadora das famílias, atacando a família extensa, a presença dos escravos no lar, e a
autoridade dos pais. Daí a necessidade de compensação. A intervenção dos médicos tinha sido
apontada por Freyre (2006b): o autor destaca que o padre aos poucos, foi substituído pelo médico de
família e assim “marcar fase nova na situação da mulher”. Para Freyre, o “médico de família passou a
exercer influência considerável sobre a mulher.” (FREYRE, 2006b: 237). Costa demonstra que esta
influência do médico não se restringiu à mulher, aos poucos se disseminando por toda a família.
311
COSTA, 1999: 147.
substituído pelo machismo. Em contexto social em que a autoridade que se impõe ainda
é a do homem, a educação social não pode transitar completamente para a mulher, como
ocorre em A Moreninha e Senhora, tendo que possuir, como um intermediário
compensatório, o machismo. O século XIX não elimina a autoridade do pai, apenas a
altera, tornando-a mais localizada. O amor e a submissão da esposa aparecem como
compensatórios para a restrição do poder (Costa, 1999) e éassim, pela obediência da
mulher ao marido, que o amor pode se afirmar em ambiente patriarcal. O amor também
cumpre seu papel quando abre caminho para que o jovem amante, um filho subjugado
ao proprietário, se case e se torne ele mesmo o chefe de família. É o que ocorre com
Bentinho. Ele é o novo patriarca para quem o amor possibilitou a ascensão na hierarquia
e que espera poder manipular este amor posteriormente. Bento é um modelo de
proprietário mais próximo do machismo indicado por Costa (1999), na medida em que
perdeu o domínio sobre diversos homens e terras e controla apenas os familiares do
núcleo
312
.
A codificação do amor, em nossa sociedade, não aparece concluída no século
XIX, período analisado neste trabalho, pois a autonomia do sentimento não ocorre. O
amor na sociedade brasileira, diferentemente daquilo que ocorre na sociedade européia
e, em especial, na França, fonte das principais influências ideológicas do Brasil, não se
basta a si mesmo como justificativa para o estabelecimento e manutenção das relações
afetivas, necessitando prestar contas com a instituição familiar e o poder do homem que,
ainda que se alterem em suas formas, se nuclearizando e se reduzindo, respectivamente,
permanecem sendo dois poderosos alicerces da sociedade oitocentista. A sociedade
brasileira não é a sociedade do amor autônomo, mas a do amor subjugado ao poder do
homem.
Volobuef (1999) afirma que o amor é uma proposta de um movimento que se
esforçou em traçar novos rumos para a sociedade que se constituía. As críticas eram
mais ao autoritarismo patriarcal do que à família em si, ainda que ambas estivessem
intimamente relacionadas. Daí os problemas em sugerir modificações, pois desconectar
estes fatores gerava tensões profundas nas narrativas, que tinham que apelar para o
312
Embora Bentinho seja mais rico que Escobar e que ele tenha prestado favores ao amigo, ele não pode,
como faziam os proprietários na Colônia, controlá-lo. Na sociedade moderna, Bentinho controla sua
família. No entanto, nem este núcleo parece estar sob seu domínio. Este completo descontrole sobre
aqueles que estão ao seu redor pode justificar o fato de Bento acusar o amigo e Capitu de traição e de
imaginar que a esposa de Escobar, Sancha, o deseja: foi esta a forma encontrada por Bento para
aproximar todos de sua pessoa, fazendo com que ele se tornasse, pelo menos para si mesmo, o centro das
atenções.
desaparecimento quase total das figuras de autoridade a fim de poder indicar um novo
padrão de família que se fundamentava no amor entre os esposos e na reorientação do
homem para o lar amoroso. Mas a modernização que se processou na sociedade
brasileira se caracteriza pela manutenção do poder do proprietário e do pai, como
demonstrou Freyre (2006b). Os filhos que se formavam bacharéis reproduziam os
valores da antiga família patriarcal, ainda que imbuídos dos ideais provenientes da
Europa. Dentro de uma sociedade que ainda dependia largamente dos senhores de
terras, estas noções modernas disseminadas pelos romances tinham que lidar com os
padrões patriarcais, padrões diversos daqueles do contexto do qual provinham
(Schwarz, 2000). Tradição e modernidade se confundiram e os ideais de amor
romantizado que inspiraram os romancistas tiveram que conviver com o poder
remanescente dos patriarcas. Desta forma, pode haver amor, mas apenas se a esposa se
submeter à vontade do marido e, muitas vezes, tal submissão não basta, como se deu
com Capitu. Bento era um advogado de sucesso, mas confuso com relação aos seus
impulsos
313
, pois ainda convivia com a disseminada concepção de que quem manda é o
proprietário e, se ele for homem, possui ainda mais direitos. A confusão não deixa de
existir, pois é visível que amor e dominação se entrelaçam em sua relação com Capitu,
como a modernidade e a tradição dentro dele. Talvez Dom Casmurro tenha sido o único
romance, dentre os três aqui analisados, que efetivamente pagou seu “tributo à família”.
313
Bento não controla seus ciúmes porque é respaldado pelo sistema patriarcal (Venâncio Filho, 2000),
mas não mata a esposa ou Ezequiel, o que demonstra os limites do arbítrio.
Considerações finais
Nesta dissertação, busquei compreender, por meio da análise dos romances A
Moreninha (1844) de Joaquim Manuel de Macedo, Senhora (1875) de José de Alencar e
Dom Casmurro (1899) de Machado de Assis, como as relações amorosas foram
codificadas na sociedade brasileira do século XIX. Analisei e comparei as concepções e
comportamentos relacionados ao amor e à vida íntima presente nestas narrativas,
visando refletir sobre as relações entre o amor romântico e a sociedade brasileira
patriarcal do período que, caracterizada pelo familismo, vivenciava profundas alterações
em sua estrutura.
A dissertação buscou entender como as personagens se comportam em suas
relações amorosas, como agem nas situações amorosas, suas práticas, mas também
analisar as representações sobre o amor, o modo como o sentimento e as ações
amorosas são concebidas. Estes comportamentos e representações foram relacionados
aos ideais de amor romântico oriundos do contexto europeu. Ao analisar as narrativas,
foi possível perceber que algumas das noções de vida íntima associadas ao movimento
romântico europeu - especialmente a compreensão do amor e do casamento como uma
escolha autônoma do parceiro amoroso, decisão que é tomada pelo indivíduo sem a
participação de pessoas externas à relação - são recriadas nos romances. As três
narrativas apresentam casais cuja decisão sobre o casamento não é feita por meio de um
arranjo ou negociação familiar. No entanto, outros interesses além do amor mútuo entre
as partes surgem como razão para a efetivação da união e são estes interesses externos
que provocam as crises nos relacionamentos.
A sociedade brasileira oitocentista atravessou mudanças profundas em sua
estrutura, relacionadas à modernização que se processou durante o século XIX. Ainda
que tenha se modificado, a organização patriarcal permaneceu atuante. Este poder se
manifestava, dentre outras formas, nas decisões sobre a vida dos dependentes do
patriarca, de modo que as resoluções sobre as alianças matrimoniais seguiam os anseios
do chefe da família. As vontades das partes diretamente envolvidas na relação, por sua
vez, não eram consideradas no momento da decisão.
Esta estrutura predominou ainda no século XIX, momento em que o romance
brasileiro iniciou seu desenvolvimento. As análises dos romances revelaram, contudo, a
afirmação de formas de relação distintas deste modelo de intervenção familiar no
relacionamento amoroso. Um levantamento dos comportamentos e representações
associados ao amor e às relações íntimas foi desenvolvido a partir da análise das vozes
no romance, de modo a desenhar um mapa das concepções sobre o sentimento. Nas três
narrativas, o amor apareceu em seu processo de desenvolvimento, sendo que em Dom
Casmurro, adicionou-se a possibilidade do amor feliz da juventude não terminar na
união eterna do casal. O final da história não está baseado na idéia, existente nos
romances de Macedo e Alencar, de que os pares serão “felizes para sempre”. Dom
Casmurro revelou ainda algumas das possíveis tensões que se apresentam à vida íntima,
como o ciúme e a desconfiança.
A análise dos textos se preocupou com a posição daqueles que têm propriedade
sobre o discurso, pois é fundamental conhecer o lugar de cada personagem na narrativa.
Quando desejamos saber sobre o amor, devemo-nos perguntar quem é o falante a fim de
saber qual é a possível intenção da narrativa, na medida em que a autoridade de uma
personagem influi na percepção do leitor. A relação que o narrador estabelece com as
personagens é fundamental, especialmente em função da autoridade que esta voz possui
nas narrativas.
O modo como os narradores se posicionaram nos textos foi fundamental para se
conhecer o amor em cada um dos romances e este posicionamento revelou três modelos
diferentes. Em A Moreninha, temos um narrador externo que conta a história
predominantemente por meio do olhar de Augusto, é sensível às sensações do rapaz,
mas não necessariamente concorda com ele no que se referem as suas concepções sobre
vida íntima e seus comportamentos com as mulheres. O narrador tem noções
particulares sobre o sentimento que se identificam com as concepções da protagonista
Carolina. No entanto, o fato de a narrativa salientar o desenvolvimento do amor do
rapaz é expressivo. Por que o romance não tratou do amor de Carolina? Como foi
possível perceber a partir das análises, a moça não precisava, como o rapaz, de um
corretivo em suas condutas. Carolina, apesar de o amor ser uma novidade para ela,
sabe ser fiel. A escolha do autor parece querer sugerir que um homem pode também ser
uma vítima do amor.
O narrador de Senhora também é externo, mas ele claramente compartilha das
idéias da protagonista e é sensível aos seus sentimentos. Deve-se ressaltar, entretanto,
que ainda que explique a situação de Aurélia e que compreenda suas atitudes, o narrador
assume que não pode entender profundamente a moça, posto que considera o coração da
mulher um mistério não explicável. Mas a simpatia por Aurélia revela a preferência pelo
tipo de amor da moça em detrimento daquele manifestado por seu amado: amor que o
narrador pode explicar, mas não compreende, ou melhor, não aceita e considera
incorreto, ainda que seja este o modo de se comportar na sociedade da época: o
galanteador.
Dom Casmurro é narrado por uma das personagens. No entanto, trata-se do
protagonista relembrando sua infância. Ele não é a mesma pessoa do passado e concebe
os fatos ocorridos a partir de um ponto de vista novo, adulto, distinto daquele que tinha.
Se, quando jovem, Bentinho olha para o passado e compreende os momentos que tivera
com Capitu como uma história de amor, o velho Bento Santiago reconstrói suas
memórias e conta a vida das pessoas que estavam a seu redor a partir de uma leitura
particular. O que se deve ter em mente é que, assim como um narrador externo,
Bentinho se posiciona na história, emitindo e omitindo fatos e opiniões. Mas, distinto de
um narrador externo, não lhe é evidente quais são as sensações das outras personagens:
ele apenas as imagina. Em certo momento, considera que a Prima Justina revive as
próprias sensações de moça por meio de seu (de Bentinho) relacionamento amoroso
com Capitu. O mesmo acontece quando entende que Escobar está ressentido por não ter
uma esposa como Capitu. Não é sem razão que a dúvida sobre a infidelidade de Capitu
permanece, pois ela não tem voz e tudo o que sente e o que nos é relatado são as
percepções que Bentinho - um marido que se julga traído - tem sobre as ações e
sentimentos da esposa. Como ressalta Caldwell (1960), Bento Santiago é Otelo e Iago
ao mesmo tempo. Deve-se ressaltar ainda que se, por um lado, é costumeiro dar
credibilidade ao narrador, é ainda mais comum que confiemos em um narrador em
primeira pessoa, pois ele está contando fatos que viveu” e não uma história recebida,
como acontece com o narrador em Senhora, ou claramente ficcionais, como salienta o
autor de A Moreninha. Como aponta Bal (1997), somos levados a duvidar
especialmente deste tipo de narrador, pois ele tem menos pretensões de objetividade do
que um narrador onipresente.
Quando lemos as descrições de Dom Casmurro devemos lembrar que, ainda que
ele esteja certo de que só diz verdades, são narradas suas percepções sobre as visões dos
outros. Trata-se do Bento Santiago maduro concebendo sobre os sentimentos de Capitu
ou de sua mãe na época de sua infância. Todas as opiniões sobre o amor são
interpretações deste olhar, a autoridade é apenas dele e tal fato é de grande importância.
Bentinho declara: “Deste modo, viverei o que vivi”, passagem que sinaliza que a versão
da história narrada corresponde às lembranças do narrador. Outras observações do
narrador sobre a literatura destacam como os posicionamentos na obra são enviesados.
Primeiramente, remete a Montaigne: “‘Eu confessarei tudo o que importar à minha
história’”. “Ora, um modo de escrever a própria essência, é contá-la toda, o bem e
o mal. Tal faço eu, à medida que me vai lembrando e convindo à construção ou
reconstrução de mim mesmo”. Bento reconhece ainda sua falha seletiva de memória e
enfatiza sua preferência por livros omissos, pois nestes “tudo se pode meter”. Nas
reflexões que aqui realizei, o lugar das personagens, sua capacidade persuasiva, foram
elementos fundamentais para a análise, pois associadas às características das mesmas
São bons? Aproveitadores? Justos? revelaram quais concepções sobre o amor
deveriam ou não ser consideradas.
As discussões sobre o sentimento foram iniciadas com análises sobre as
concepções de amor dominantes. Esta noção não deve ser compreendida como
“disseminada” ou “comum”, mas como a visão de amor “preferida”, aquela que é
considerada correta na narrativa. Ainda que as discussões em todos os textos se
localizem em torno do favorecimento das relações íntimas baseadas no amor, a maneira
como o sentimento surge em cada um dos romances é diferente. Em A Moreninha
aparece com um caráter mágico, desconhecido e de efeitos inesperados. O romance
origem ao “mito sentimental” brasileiro (Candido, 2006) ao associar as histórias de
Augusto e Carolina com a de indígenas que teriam vivido na ilha séculos antes. O
sentimento aparece descolado dos protagonistas, posto que, embora sintam seus efeitos,
não o entendem. O modo como o amor surge, pouco interiorizado, pode ser
conseqüência do fato de as personagens não possuírem um íntimo desenvolvido, não
havendo, no romance, uma preocupação em detalhar este espaço de subjetividade, o que
justificaria a exterioridade do amor que, não sendo compreensível, mais parece se
apossar dos indivíduos. A protagonista de Senhora, Aurélia Camargo, possui um amor
distinto, próprio das almas sensíveis ao sentimento, pois o amor é parte dela, está dentro
dela. A noção de íntimo fica melhor definida, sendo perceptível a mudança de status do
amor que, para se manifestar, necessita, principalmente, do ideal que está dentro dos
indivíduos. Do exterior espera apenas um estímulo, estímulo decorrente do
reconhecimento do objeto de amor. O amor é constituído dentro da pessoa que ama: ele
pertence ao amante e é estimulado a florescer quando encontra o amado, sendo que este
último alimenta o ideal do amante, passando a existir dentro dele. Mas, principalmente,
o amor faz com que os amantes se tornem iguais. O amor de Bento, personagem-
narradora de Dom Casmurro, lhe é um completo desconhecido, embora já aconteça para
ele. Sua relação de amor com Capitu é uma relação que ele não compreendia até ser
denunciado a si mesmo pelo agregado José Dias. O amor revela outra faceta, pois se
apresenta como passível de codificação, na medida em que Bentinho consegue
reinscrever sob a semântica do sentimento, após a declaração do agregado, todo seu
passado com a moça - e aqui finalmente uma individualização se revela em um definido
ainda que confuso – íntimo. O romance mostra que o amor, em contexto patriarcal,
se desenvolve se estiver submetido ao desejo do patriarca. Dom Casmurro antecipa
algumas das reflexões que foram desenvolvidas no século XX sobre a sociedade
brasileira, revelando que não há, na sociedade patriarcal, indivíduos autônomos. O
romance evidencia que, com a modernização da sociedade brasileira, o poder patriarcal
não desaparece, mas que ocorre umaacomodação” (FREYRE, 2006b) entre elementos
tradicionais, como a autoridade do proprietário, e elementos modernos, como o amor.
Estas observações permitem perceber que o amor surge de diferentes maneiras
durante o período analisado, mudança que também está relacionada com a alteração da
constituição das personagens que, aos poucos, têm sua esfera do íntimo mais definida.
As observações demonstram ainda um processo de interiorização do amor, pois ele
deixa de ser uma espécie de entidade mística que se apossa dos seus escolhidos para se
tornar uma criação altamente particularizada de uma personagem cada vez mais
individualizada e que muito se distancia dos tipos caracterizados que encontramos no
romance de Macedo.
Como é característico da narrativa romanesca, algumas (ou muitas) dificuldades
interferem na felicidade do casal, impedindo que o desejo de estarem juntos seja logo
alcançado. Estes impedimentos são de fundamental importância para se compreender o
perfil de amor que se quer apresentar, na medida em que ajudam a definir o próprio
amor. As três narrativas apontam como defeitos do amor a falta ainda que
momentânea de virtude nos amantes e as relações baseadas em interesses que não o
próprio amor. Proveniente de personagens diferentemente posicionadas nos romances,
as opiniões acerca das relações íntimas parecem querer afirmar a validade das ligações
fundamentadas no amor mútuo entre amantes qualificados. Em A Moreninha, desenha-
se uma codificação cujo parâmetro é a inconstância, comportamento que se revela na
libertinagem para os homens e na ânsia pelo matrimônio para as mulheres. Senhora
lembra o problema do desinteresse pela pessoa ou pelo amor na condução da relação
afetiva, elementos que seriam desvalorizados ante o interesse pelo dinheiro,
representado pelo dote e pelo valor social que o pretendente tem no mercado
matrimonial. Dom Casmurro menciona menos diretamente a possibilidade de um
casamento baseado em interesse quando abre margem à provável infidelidade de Capitu
que, ao trair Bentinho, revelaria que seu casamento com o rapaz não foi por amor, mas
talvez por anseios de ascensão social; aborda ainda o fracasso do amor quando outros
fins - como o desejo de que o amante se submeta ao amado, a hierarquização no interior
da relação amorosa -, têm mais peso do que o sentimento. Percebe-se, deste modo, que
freqüentemente problematizaram-se, no período abordado, a falta de virtude e as
relações sem amor ou onde ele não é considerado o mais importante, ainda que esta seja
a semântica corrente.
Como conseqüência ou parte daquele processo de individualização, os
obstáculos enfrentados pelo amor vão se tornando também mais particularizados, de tal
modo que em Dom Casmurro não discussões explícitas sobre a moral da sociedade,
as críticas sendo direcionadas aos indivíduos/personagens. Não se deve entender,
contudo, que, nos outros romances, as acusações não sejam direcionadas a personagens
particulares, mas estabelece-se uma relação contínua entre estes comportamentos e uma
ética comum ao grupo, seja às mulheres ou aos rapazes, seja à sociedade como um todo.
Em Dom Casmurro surge ainda a família com toda a sua influência, outro tema
fundamental para a dissertação. A sociedade brasileira, durante muitos séculos, teve na
família sua principal instituição social. Sua participação se estende às relações amorosas
e conjugais dos membros que a compunham e os interesses do grupo eram mais
importantes do que os anseios do casal (Del Priore, 2005). Os três romances discutem a
presença da família e a intervenção da mesma na vida dos indivíduos. No entanto, a
diferença no tratamento é nítida. A Moreninha e Senhora deixam em segundo plano a
relação dos amantes com a parentela, construindo narrativas onde pais e demais
parentes estão afastados das decisões do casal. Dom Casmurro, entretanto, centraliza-se
na família, ressaltando o peso da autoridade da mesma na vida íntima das personagens.
Sem a figura paterna presente, pois o pai de Bentinho é falecido, a influência do poder
patriarcal ainda se faz sentir, revelando-se disseminado entre os membros da família
(Gledson, 1999). Aparentemente, é quando a forma romance alcança sua maturidade no
Brasil que encontramos um esforço em discutir mais a fundo os efeitos da instituição
sobre a vida dos indivíduos e, paralelamente, em discutir o processo de individualização
em si. À medida que a forma evolui e esta individualidade e psicologização se
aperfeiçoam, o amor, como elemento fundamental das relações conjugais entre homens
e mulheres, tem sua validade questionada pelos obstáculos que surgem na narrativa,
impedimentos que têm na família seu representante principal. Desta maneira, uma
conexão entre o desenvolvimento do romance como forma - especialmente no que se
refere às mudanças nos recursos e possibilidades narrativas e constituição das
personagens e o entendimento que os textos fornecem sobre o amor, a família e a
intimidade.
A Moreninha apresenta uma relação onde o amor entre os protagonistas não
sofre intervenções de figuras de autoridade. A interferência ocorre apenas após a
certeza, por parte do casal, de que o amor é mútuo e, para eles, a verdade deste
sentimento é suficiente para a relação. A autonomia da decisão faz com que não se
importem com a vontade da família. O único impedimento enfrentado pelo casal é o
comportamento volúvel do jovem Augusto. Ademais, a narrativa afasta as figuras de
autoridade, pois a única parente de Carolina que pode representar este papel, a avó da
jovem, é uma senhora afetuosa, para quem a felicidade da neta importa mais do que
seus interesses que, como proprietária, poderia exigir. O pai do rapaz, por outro lado,
aparece no fim da narrativa, personagem que, embora seja um obstáculo à relação,
sucumbe diante de uma outra forma de amor, o afeto entre pai e filho. Deste modo, o
amor romântico forma de afeto onde se privilegiam os desejos do casal -, pode se
desenvolver, de acordo com a história, quando a família é afastada ou quando a
autoridade do pai é desvalorizada e considerada menos importante do que seu amor pelo
filho.
Esta concepção das relações amorosas presente no romance de Macedo contrasta
com as concepções sobre a sociedade brasileira do século XIX, onde é comum encontrar
menções ao peso do interesse e da vontade do chefe da família. Senhora, ainda que com
diferenças fundamentais, segue caminho similar ao do romance A Moreninha no que
concerne ao tratamento dado à família. Ambos os protagonistas são órfãos de pai e a
mãe de Seixas não exerce qualquer tipo de autoridade sobre ele. No entanto, a forma
romance está mais desenvolvida e esta maturidade permite que novos obstáculos sejam
criados, o amor sendo obrigado a enfrentar o interesse financeiro. A negociação dos
casamentos era comum na sociedade patriarcal brasileira, pois o matrimônio era uma
forma de ampliar o poder e a riqueza dos patriarcas. Esta forma de organizar as relações
amorosas e a exagerada valorização do dinheiro são criticadas no romance de Alencar,
seja na acusação do mercado matrimonial em que estão inseridos os protagonistas ou na
crítica dos comportamentos de Seixas, que prefere se casar motivado pelo dinheiro,
dispensando o amor verdadeiro de Aurélia. Deste modo, ainda que sem remeter
diretamente aos patriarcas, o próprio sistema patriarcal é acusado, na medida em que
este sistema estimulava as relações interessadas. É importante ressaltar que fazer críticas
ao sistema patriarcal é distinto de criticar o casamento e a instituição familiar,
instituições que permanecem reproduzidas, ainda que diferenciadas do modelo
patriarcal, no romance. Ao afastar a família dos protagonistas e criar espaço para que
eles tomem decisões de modo autônomo sobre suas vidas, o romance acusa o modo
autoritário com que se estabelecem as relações até aquele momento, de forma que é
possível afirmar que o amor romântico, as relações fundamentadas no afeto e a família
nuclearizada estão sendo ensaiados no romance e que estes elementos aparecem como
um modo alternativo de realizar os casamentos. A autoridade do chefe patriarcal é
remetida ao passado, pois é percebida como um tipo de atitude característica das
gerações anteriores àquela de Aurélia Camargo e Fernando Seixas. Assim, pode-se
afirmar que A Moreninha e Senhora se utilizam de um recurso estético para permitir o
livre desenvolvimento do amor: a ausência da família.
Desta forma, menos do que uma impropriedade temática (Schwarz, 2000), a
autonomia que as protagonistas têm em suas decisões sobre as relações amorosas pode
ser considerada, em A Moreninha e em Senhora, como um esforço para delinear novos
modelos de relação afetiva, distinto daquele comum ou preponderante nas classes mais
altas. Mas ainda que proponham esta forma alternativa de união, estas narrativas, ao
retirar a família das histórias e não discutir seu papel na sociedade brasileira e na vida
íntima, não resolvem a tensão existente entre a decisão autônoma dos indivíduos sobre
sua vida amorosa e conjugal - a proposta romântica -, e a autoridade familiar própria ao
contexto patriarcal.
Dom Casmurro indicações de que este problema não é, até aquele momento,
passível de resolução. Quando a família está presente e armada de seus instrumentos de
autoridade e persuasão, o amor pode até existir, mas ele está impregnado pelas pressões
do grupo e pelos interesses do proprietário. Ainda que o objetivo do casamento mediado
pelo proprietário não seja a manutenção ou ampliação do poder e riqueza, ele é uma
forma de realizar os interesses do chefe da família. A concepção presente no romance
de Machado de Assis demonstra que o amor entre as partes não é suficiente para a
manutenção da relação, pois não existe, em ambiente patriarcal, a igualdade necessária
ao desenvolvimento pleno do amor romantizado. Liberdade e igualdade se revelam
conjugados, nos romances analisados, quando não a presença do interesse e da
autoridade da família. Quando a família não é afastada, o amor ocorre porque é
vontade do proprietário que, do mesmo modo que pode garantir que o amor exista e que
a união se dê, pode destruir a relação em decorrência desta mesma autoridade. No caso
de Bentinho e Capitu, o descontrole representado pelo ciúme extermina os vestígios da
ambígua igualdade que havia sido estabelecida na juventude.
Ao recriar, no romance Dom Casmurro, a influência da autoridade patriarcal
sobre a vida íntima, Machado de Assis empreende uma crítica aos ideais modernos que
eram propagados na sociedade oitocentista e que foram utilizados pelos romances que o
antecederam, como é o caso de A Moreninha e Senhora. O romance revela que não
bastam ideais modernos de amor, liberdade e igualdade para que haja modernidade
efetivamente. É preciso mais e Machado de Assis não parece ter, como Macedo e
Alencar, respostas para esta equação. Na realidade, não é possível afirmar se ele
buscava estas respostas, ou se ele apenas considerava que o amor não era suficiente para
enfrentar o peso da instituição familiar. A Moreninha e Senhora oferecem novas
possibilidades para os relacionamentos entre homem e mulher e mostram que o amor
pode lidar com problemas como a volubilidade, seja ela em função do difuso desejo
masculino ou do interesse financeiro. No entanto, limitam-se a criticar a autoridade
familiar, sem fornecer respostas aos leitores que vivenciavam as tensões entre o amor
romântico e o sistema patriarcal. É por isso que se utilizam de um recurso estético como
a quase total orfandade de todos os protagonistas a fim de possibilitar que o amor entre
o casal ocorra livremente. Dom Casmurro parece ser mais cético ao mostrar que
autonomia verdadeira para os proprietários, pois apenas eles m a liberdade de
manipular os ideais românticos modernos - e qualquer outro ideal -, de acordo com sua
vontade.
O que é possível perceber é que esta vontade se adapta aos novos tempos, pois
se mantém, com alterações, em uma sociedade que reduz o poder destes proprietários.
Mas a autoridade e o descontrole encontram meios de se manifestar dentro destas
condições, como exemplifica o caso do ciúme de Bentinho. Se o governo se centraliza e
a justiça pública se afirma tentando reduzir o poder dos patriarcas, um proprietário “à
moderna” participa deste novo mundo, se tornando, como faz Bentinho, um advogado,
conhecendo e manipulando as leis que deveriam limitar seu poder e permanecendo,
desta forma, apoiado pelo sistema patriarcal que cada um dos proprietários sintonizado
com a modernidade ajuda a reproduzir e manter.
A codificação da vida íntima que se desenha nestes romances demonstra que o
amor romantizado, que se basta a si mesmo como justifica para o estabelecimento das
relações íntimas, é ensaiado nas narrativas e aparece como uma possibilidade para a
semântica do período. No entanto, até aquele momento, este amor parece não responder
às demandas do sistema patriarcal que, na sociedade brasileira, exige que seu poder seja
respeitado ou que, como se no caso de Dona Glória, determina que compensações se
apresentem como uma contrapartida pela aceitação do sentimento. Deste modo, a
codificação da vida íntima que se estabelece no século XIX, representada nos romances
analisados, não é a do amor autônomo, liberto dos laços sociais, fundamentado apenas
no desejo dos indivíduos, mas a do amor balizado, que se desenvolve pressionado,
intermediado e limitado pelo interesse do proprietário, deste chefe que se utiliza dos
meios necessários, sejam eles claramente autoritários ou não, para fazer sua vontade ser
obedecida e realizada.
Referência Bibliográficas
ALENCAR, José de. Senhora. São Paulo: Ática, 1995;
________________ . Como e porque sou romancista. Biblioteca Virtual do Estudante
de língua Portuguesa, 2005. Link:
http://www.bibvirt.futuro.usp.br/content/view/full/1857;
ALENCASTRO, Luis Felipe de. “Vida privada e ordem privada no Império”. In:
ALENCASTRO, Luis Felipe de (Org.). História da vida privada no Brasil: Império: a
corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das letras, 2001;
AUGUSTI, Valéria. O romance como guia de conduta: “A Moreninha” e “Os Dois
Amores”. Campinas, 1998. Dissertação (Mestrado em Letras) - Instituto de Estudos da
Linguagem/IE - São Paulo, UNICAMP, 1998;
AZEVEDO, Thales de. As regras do namoro à antiga. Coleção Ensaios, nº. 118. São
Paulo: Ática, 1986;
BAL, Mieke. Narratology: Introduction to the Theory of Narrative. Toronto: University
of Toronto Press, 1997;
BENDIX, R. Construção nacional e cidadania. São Paulo: EDUSP, 1996;
CALDWELL, Helen. The Brazilian Othello of Machado de Assis: a study of Dom
Casmurro. Berkeley: University of California, 1960;
CAMPBELL, Colin. A ética romântica e o espírito do consumismo moderno. Rio de
Janeiro: Rocco, 2001;
CANDIDO, Antonio. The Brazilian Family”. In: SMITH, T. Lynn & MARCHANT,
Alexander (Eds.). Brazil: portrait of half a continent. New York: Dryden Press, 1951;
_________________. “Dialética da Malandragem”. In: O discurso e a cidade. Rio de
Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004a;
_________________. “Esquema Machado de Assis”. In: Vários Escritos. São
Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro Sobre Azul, 2004b;
_________________. Formação da Literatura brasileira: momentos Decisivos. Rio de
Janeiro: Ouro sobre azul, 2006;
CARDOSO, André. C. de Almeida. “Children Playing by the Sea”, “The Price of a
Happy Ending”, Undertow”. New York: Tese (Departament of Comparative
Literature) – New York University, a ser defendida em 2008. Mimeo;
COSTA, Jurandir Freire. “Utopia sexual, utopia amorosa” e “Sobre a gramática do amor
romântico”. In: Sem Fraude nem favor: estudos sobre o amor romântico. Rio de
Janeiro: Rocco, 1998.
___________________. Ordem Médica e Norma Familiar. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1999;
COUTINHO, Afrânio (Org.). A polêmica Alencar-Nabuco. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1978;
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. Rio de Janeiro/Niterói: Livraria José
Olympio/UFF, 1986;
CULLER, Jonathan. Literary Theory: A Very Short Introduction. Oxford University
Press/USA, 2000;
DARNTON, Robert. “Apresentação”. In: O grande Massacre dos gatos e outros
episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1996;
DEL PRIORE, Mary.Ritos da vida privada”. In: MELLO E SOUZA, Laura de (Org.).
História da Vida Privada no Brasil: Cotidiano e vida privada na América Latina. São
Paulo: Companhia das Letras, 2001;
_________________. História do amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2005;
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993;
_________________. A sociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001;
FACINA, Adriana. Santos e canalhas: uma análise antropológica da obra de Nelson
Rodrigues. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004;
FALBEL, Nachman. Fundamentos Históricos do Romantismo. In: GUINSBURG, J.
(Org.). O Romantismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1985.
FREYRE, Gilberto. José de Alencar”. In: Os cadernos de cultura. Rio de Janeiro:
MEC/Departamento Imprensa Nacional, 1952;
_______________. Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Global, 2006a;
_______________. Sobrados & Mucambos: decadência do patriarcado rural e
desenvolvimento do urbano. Rio de Janeiro: Global, 2006b;
GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor & erotismo
nas sociedades modernas. São Paulo: Editora da UNESP, 1993.
GLEDSON, John. Machado de Assis: Impostura e realismo. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999;
GUINSBURG, J. Romantismo, Historicismo e História. In: GUINSBURG, J. (Org.). O
Romantismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1985.
HEILBORN, Maria Luiza. Dois é par: Gênero e identidade sexual em contexto
igualitário. Rio de janeiro: Editora Garamond, 2004;
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia da Letras, 1995;
LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo:
Ática, 1996;
__________________________________. A Leitura rarefeita: Leitura e livro no
Brasil. São Paulo: Ática, 2002;
LEITE, Dante Moreira. Psicologia e Literatura. São Paulo: Editora Nacional/EDUSP,
1967;
LUHMANN, Niklas. O amor como paixão: para a codificação da intimidade. Lisboa:
DIFEL/ Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1991;
MACEDO, Joaquim Manuel de. A Moreninha. Rio de Janeiro: Ática, 2003;
MACHADO, Elizabeth C. Menezes. As relações afetivas em Dom Casmurro. Rio de
Janeiro, 1993. Dissertação (Mestrado em Letras) Programa de Pós-Graduação em
Letras Vernáculas – Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1993;
MACHADO DE ASSIS, J. M.. Dom Casmurro. São Paulo: Ática, 2000;
MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. Volumes 1-4. São Paulo:
Cultrix, EDUSP, 1977-8;
MACFARLANE, Alan. História do Casamento e do amor. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990;
MELLO, Evaldo Cabral de. “O fim das casas-grandes”. In: ALENCASTRO, Luis
Felipe de (Org.). História da vida privada no Brasil: Império: a corte e a modernidade
nacional. São Paulo: Companhia das letras, 2001;
MEYER, Marlyse. Folhetim: Uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996;
MORAES, Vera L. A. de. Entre Narciso e Eros: a construção do discurso amoroso em
José de Alencar. Fortaleza: Editora da UFC, 2005;
MÜCKE, Dorothea E. von. Virtue and the Veil of Illusion: Generic Innovation and the
Pedagogical Project in Eighteenth-Century Literature. Stanford: Stanford University
Press, 1991;
MURICY, Kátia. A Razão cética: Machado de Assis e as questões de seu tempo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1988;
OLIVEIRA VIANA, F. J. Populações meridionais do Brasil Volume 1. Belo
Horizonte: Itatiaia/ Niterói: EdUFF, 1987;
PENA, Maria Valéria J. “As moças de José de Alencar”. In: Ciência Hoje, Volume 9,
Número 49, Dezembro/1988;
PEREIRA, Astrojildo. Interpretações. Rio de Janeiro: Edição da livraria-editora Casa
do Estudante Brasileiro, 1944;
PLATÂO. Banquete ou Do Amor. São Paulo: Difel, 1986;
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira e
outros ensaios. São Paulo, Ed. Alfa-Omega, 1976;
RIBEIRO, José A. Pereira. O universo romântico de Joaquim Manuel de Macedo. São
Paulo: Roswitha Kempf Editores, 1987;
RONCARI, Luiz. Literatura brasileira: dos primeiros cronistas aos últimos
romancistas. São Paulo: Edusp, 1995;
ROUGEMONT, Denis de. História do amor no Ocidente. São Paulo: Ediouro, 2003;
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Julia ou a Nova Heloísa: carta de dois amantes habitantes
de uma cidadezinha ao dos Alpes. São Paulo: Hucitec/Campinas: Editora da
UNICAMP, 1994;
SCHWARCZ, Lilia M. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos
trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007;
SCHWARZ, Roberto. “A poesia envenenada de Dom Casmurro”. In: Duas Meninas.
São Paulo: Companhia da Letras, 1997;
__________________. Ao vencedor as batatas: Forma literária e processo social nos
inícios do romance brasileiro. São Paulo: Livraria Duas Cidades/Editora 34, 2000;
SEIXAS, Hélio de. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o
público de literatura no século 19. São Paulo: Nankin Editorial/Editora da Universidade
de São Paulo, 2004;
SILVA, Terezinha V. Z. “Mulheres, cultura e Literatura Brasileira”. In: Ipotesi – revista
de estudos literários – Volume 2, nº2, Jul-Dez, 1998;
SIMMEL, Georg. Filosofia do Amor. São Paulo: Martins Fontes, 2006;
VENANCIO FILHO, Paulo. Primos entre si: temas em Proust e Machado de Assis.
Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 2000;
VIVEIROS DE CASTRO, E. e BENZAQUEN DE ARAUJO, R. “Romeu e Julieta e a
Origem do Estado”. In: VELHO, Gilberto. Arte e Sociedade: Ensaios de Sociologia da
arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1977;
VOLOBUEF, Karin. Frestas e Arestas: a prosa de ficção do romantismo na Alemanha
e no Brasil. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999;
WATT, I. A ascensão do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo