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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP
Sandro Roberto Maio
A melancolia do Progresso: o elo alegórico sobre a modernidade em Os
condenados de Oswald de Andrade
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM
LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
SÃO PAULO
2008
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SANDRO ROBERTO MAIO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para a obtenção do título de Mestre
em Literatura e Crítica Literária sob a orientação da
Profa. Dra. Maria Rosa Duarte de Oliveira.
São Paulo
2008
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Banca Examinadora:
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______________________________________
______________________________________
DEDICATÓRIA
Em memória de Adílson Barbosa.
AGRADECIMENTOS
Aos professores do curso de Literatura e Crítica Literária pelas aulas que revelaram
caminhos e passagens do “texto”.
Ao professor Erson Martins de Oliveira, pela contribuição e dedicação no início do
percurso.
À professora Maria Rosa Duarte de Oliveira, pela generosidade, empenho e
compreensão que possibilitaram a realização da pesquisa.
À Janine.
“Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que
parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão
escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter este
aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de
acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, ruína sobre ruína e as dispersa a
nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos.
Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força
que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o
futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu.
Essa tempestade é o que chamamos de progresso”.
Walter Benjamin
RESUMO
MAIO, Sandro Roberto. A melancolia do Progresso: o elo alegórico sobre a
modernidade em Os condenados de Oswald de Andrade. 2008. 98 f. Dissertação
(Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.
A dissertação desenvolve uma reflexão sobre o primeiro discurso modernista a partir
da figura do poeta-autor. Repensa o papel da obra, considerada menor pela crítica,
na passagem do pré-modernismo e na própria poética de Oswald de Andrade. Tem
como chave teórica a leitura que Walter Benjamin faz de Baudelaire, o que torna
possível a caracterização de duas figuras centrais no imaginário moderno: o poeta-
símbolo e o poeta-alegoria. A partir daí, delineia-se a questão central desta
pesquisa: em que medida, na Trilogia, o elo alegórico sobre as imagens da
modernidade visa à projeção de um discurso de ruptura dos padrões simbólico-
burgueses de representação. A hipótese de resposta a esse questionamento é a de
que a narrativa constrói como estilo a ficção da leitura de Baudelaire para, por meio
da alegoria, por em crise a representação. Ao negar o discurso normativo por meio
de duplos, torna-se produto ficcional de leituras e, por isso, é texto citado, ficção de
uma leitura de modernidade. Os conceitos benjaminianos de alegoria e símbolo, em
conexão com a função do poeta na modernidade, foram determinantes para o
desenvolvimento da reflexão crítica sobre a Trilogia. A metodologia de análise fará a
aproximação entre o corpus e os fundamentos teóricos por meio da chave alegórica,
que torna viável a correspondência entre leitura e ficção no processo construtivo da
Trilogia. O romance rompe com a linearidade analítica da tradição ao incorporar
uma poética narrativa aos saltos, de modo a materializar o olhar andarilho, afeito à
flanerie, do poeta trapeiro. Como conclusão, evidencia-se a falsa épica da Trilogia,
que faz do poeta o herói, aproximando-o do olhar da prostituta: olhar atento à presa
poética para deduzir o singular em meio à uniformização da mercadoria. A Trilogia
do Exílio afirma-se, então, como uma escritura que transita não por símbolos, mas
entre símbolos, de modo a inscrever em seu corpo uma universalidade decomposta.
A voz narrativa, por sua vez, projeta nas demais vozes condenadas os estilhaços de
um Eu desfigurado, traduzido, no plano da enunciação, como uma experiência de
desintegração da aura por meio da vivência do choque.
Palavras-chave: Oswald de Andrade – Trilogia do Exílio – Símbolo – Alegoria –
Ruína.
ABSTRACT
Maio , Sandro Roberto. Melancholy of the Progress: the allegory linkage of
modernity in The Convict of Oswald de Andrade. 2008. 98 f. Essay (Master’s
degree) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.
The Essay develops a reflection on the first modernist speech from the figure of the
poet-author. It rethinks the role of the workmanship, considered lesser for critics, in
the passage from pre modernism and in the poetic of Oswald de Andrade. The
theoretical key is the way Walter Benjamin’s reading understands Baudelaire, which
makes possible the characterization of two central figures in the modern imaginary:
the poet-symbol and the poet-allegory. From this point it delineates a central question
of this research: What measured, in the Trilogy, the allegorical link on the images of
modernity aims a speech of rupture of the symbolic projection of -bourgeois
standards of representation. The hypothesis of replying this questioning is what the
narrative constructs as style of Baudelaire reading fiction to, by means of allegory put
in crisis the representation. When denying the normative speech by means of double,
it becomes fictional product of readings and, therefore, it is cited text, fiction of a
modernity reading. The Benjamin’s concepts of allegory and symbol, in connection
with the function of the poet in modernity, had been determinative for the
development of the critical reflection on the Trilogy. The analysis methodology will
make the approach between the corpus and theoretical fundamental by means of the
allegorical key, what makes viable the correspondence between reading and fiction
in the constructive process of the Trilogy. The romance ruptures with the analytical
linearity of the tradition when incorporating a poetical narrative skipping, in order to
materialize the wandering look, used to flanerie, the cheat poet. As conclusion, it
highlights the bogus epic of the Trilogy, what transforms the poet in hero,
approaching him to the prostitute eyes: to gaze intently the poetic prey to deduce the
singular in the middle of merchandise standardization. The Trilogy of the Exile is
affirmed, then, as a writing that transits not for symbols, but between symbols, in
order to inscribe in its body a decomposed universality. The narrative voice, projects
in the other convicted voices splinters of someone disfigured, translated, in the plan
of the enunciation, as an experience of disintegration of the aura by means of the
experience of the shock.
Keywords: Oswald de Andrade - Trilogy of the Exile - Symbol - Allegory - Ruin.
SUMÁRIO
Introdução..............................................................................................................12
Capítulo I: Ficção do poeta-símbolo – a aura artificial
1.1 Leituras do poeta-símbolo.................................................................................. 21
1.2 O precursor e a aura futurista do Progresso...................................................... 31
1.3 Crise da representação: experiência crítica das leituras.................................... 36
Capítulo II: Ficção do poeta-alegoria – a aura da lama
2.1 Benjamin-Baudelaire: alegoria e choque............................................................ 46
2.2 Modelo Baudelaire: poeta-herói da modernidade............................................... 61
Capítulo III: Modernidade, impasse e ficção
3.1 Leitura da modernidade: a voz narrativa e o modelo Baudelaire ....................... 73
3.2 A escritura condenada: ficção da modernidade.................................................. 85
Conclusão................................................................................................................ 92
Referências bibliográficas...................................................................................... 95
12
Introdução
A sondagem sobre a robusta figura escritural de Oswald de Andrade revela-se
fugidia ao mínimo enquadramento e quanto mais estreito o contato, maior será o
sobreaviso. Por isso, sua obra inaugural Os condenados – a trilogia do exílio
longe de prevalecer como a forma canônica mostra-se problemática, por não operar
conforme as referências vanguardistas do Oswald célebre, assim como, ser de difícil
reconhecimento estrutural, tendo em vista as múltiplas linhas construtivas que a
norteiam. Uma escritura deslocada representativa do próprio período que nasce: a
convivência entre as formas estabelecidas pela tradição passadista e a entrada das
novas formas de representação de um incipiente modernismo. Também, um índice
sólido do programa que acompanhará o autor nos tempos partidos do modernismo.
Apesar de sua oscilante estratégia narrativa, a obra mostra claramente as
contradições e os tópicos eletivos seguidos durante todo percurso oswaldiano. A
partir daí, tem-se a impressão de haver dois escritores absolutamente diferentes e,
no entanto, convergentes. Antonio Candido classifica sua escritura, ao abordá-la em
sua totalidade, como “problema literário”, o que se completa na idéia da existência
de dois Oswalds: “(...) como se dentro do iconoclasta irreverente da Semana
sobrevivesse o orador oficial (que de fato foi) do centro acadêmico da Faculdade de
Direito, o XI de Agosto” (CANDIDO, 1991, p.37). Também, “(...) como se
desdobrasse num modernista e num passadista (...)”, que “(...) nunca procurou
domar racionalmente o jogo das contradições” (CANDIDO, 1991, p.36). O próprio
autor se orgulhava igualmente de ter feito palestras tanto na Sorbonne quanto no
Sindicato dos Panificadores de São Paulo.
A Trilogia teve sua primeira parte lançada no calor da Semana de 22: Alma
funciona como a estréia de um texto divulgado como moderno. A segunda parte só
será lançada em 1927, apesar de anunciada no final da primeira parte – o que
demonstra a intenção primeira do autor quanto à estruturação do romance em três
partes – trilogia. Também consta, em estudos de Mário da Silva Brito e Haroldo de
Campos, a menção que situa a segunda parte já preparada desde a primeira, e
somente a terceira parte elaborada depois ou paralelamente à fase experimental de
Miramar-Serafim, essa intitulada A estrela do absinto. A terceira parte, A escada
13
é ponto de maior complicação; o lançamento somente ocorreu em 1934 e o título
sofreu diversas modificações até chegar à forma final: A escada de Jacó, depois A
escada vermelha.
Alguns temas são caros e constantes ao autor e talvez, sejam os traços de sua
criação: a idéia de utopia - o lugar ideal, o passado irrecuperável e o futuro pleno -
em estreito contato dialético com o sentido alegórico do éden enquanto origem
fundadora. Se por aqui não dispomos do arsenal paródico e sarcástico que o tornou
modernista de primeira ordem e nem mesmo a busca de um primitivismo que
justificasse uma origem destacada no universo modernista, percebe-se a quase
obsessão pelo ideário utópico, por um desejo de contínua recriação do presente.
Mas, o que se apresenta como substância constante, provável móvel de sua
produção ficcional, é a intensa busca por um ideário estético em permanente
devoração dos elementos configuradores da realidade. O “sentimento órfico” em
relação permanente com o mundo que se apresentava. Neste sentido, o intercurso
da Trilogia prefigura relações entre a camada espessa de uma escritura utópica¹ e
os deslocamentos figurativos sustentados pela aplicação alegórica sobre o objeto
ficcional. Tal duplicidade seria mediada por um horizonte de expectativa no qual a
relação autor-obra-leitor se confunde quando correlacionados. A movediça terra em
que a crítica costuma classificar Os condenados enquanto obra moderna, pré-
moderna ou mesmo penumbrista são adereços diacrônicos que não a lêem de fato.
O romance está situado no clima simbolista-decadentista, próprio dos literatos
boêmios do fin de siècle. Em seu tempo foi alvo de escândalo e certa indignação por
parte de público e crítica². Posteriormente relançado em um volume único (1941, sob
a orientação do próprio autor) serviu de polêmica e reflexão sobre o próprio papel do
modernismo por meio de novos instrumentos críticos.
Duas destas abordagens parecem centrais: a negativa, de Antonio Candido
(1944) e a positiva (usada como réplica por Oswald) de Roger Bastide (1941).
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1. Barthes diria que tal desejo permeia toda escritura, o anúncio de uma totalização frustrada que
a faz busca: “Ela acredita sensato o desejo do impossível” (BARTHES, 2004, P. 23).
2. Seria interessante ressaltar tal posição da crítica do período nos recortes que Mário da Silva
Brito disponibiliza no ensaio O aluno de romance Oswald de Andrade (ANDRADE, 2000). Ali, há
um trecho de artigo publicado no lançamento da primeira parte da Trilogia, Alma (1922), em que o
crítico Paulo Freitas se exaspera: “(...) E não haver quem se oponha à marcha desses vândalos do
mau gosto e da depravação literária e social! Não! Para trás, cabotinos cínicos (...)” (ANDRADE,
2000, p. 13).
14
Candido aponta falhas de composição como a ausência de profundidade
psicológica nas personagens e um certo ar parnasiano-católico. Já Bastide, insere a
narrativa nos parâmetros modernos de composição narrativa, a partir de uma nova
elaboração discursiva sobre a temática amorosa.
O certo é que a crítica estabelecida por Candido orientou boa parte, senão toda
crítica historiográfica posterior. Desta maneira, a Trilogia ficou marcada enquanto
obra menor, em detrimento dos romances Miramar-Serafim, estes entendidos como
representativos da experiência positivamente modernista. Porém, alguns aspectos
em torno de tal visão não indicam a natureza da obra em si. A falta, por assim dizer,
está justamente na caracterização deste momento inicial: a maneira como o
modernismo articulou seu primeiro discurso. Neste sentido, em que medida este
discurso segue seu propósito, ou seja, ser ruptura do discurso oficial? O romance Os
condenados é parte fundamental e reveladora deste estado de conflito? Também,
qual a relevância da narrativa hoje para os estudos em torno do modernismo?
A princípio, o romance pode ser considerado um índice da entrada das formas
modernas e, ao mesmo tempo, diluição de formas estabelecidas. Um aspecto
dissoluto perpassa o texto, que traz como centro de uma possível análise a voz
narrativa. É ela a condutora dos elementos construtivos da narrativa em busca de
representar a passagem de uma solidificada visão sobre a arte para o esfacelar de
tais convicções. O romance busca na ficção uma existência única (coletiva, padrão,
condenada) como figuração heróica do poeta.
A narrativa de Oswald entrevê o choque entre duas visões, duas leituras sobre a
modernidade que se ergue indefinida: uma simbólica, que visa à manutenção da
aura do poeta sob o signo do progresso e da apreensão técnica; e uma outra
alegórica, que propõe uma leitura crítica sobre o não-lugar do poeta, enquanto
mercadoria literária. De certa forma, interpretação do próprio período escritural em
que o romance se insere: a transferência da visão romântica (pública, acolhedora
das diferenças) para a da modernidade industrial (o liberalismo, domínio do privado).
A narrativa atravessa e repercute a problemática central do período: a crise de
representação da realidade, atestada por João Alexandre Barbosa como sintoma da
feição inicial do discurso modernista que ambicionava:
(...) a invenção de uma linguagem capaz de integrar, num nível a que se
poderia chamar de estrutural, significados e significantes que se articulam
para a configuração de um signo cultural específico. (BARBOSA, 1983,
p.85).
15
A procura de um signo capaz de representar a imagem da modernidade leva a
Trilogia a lançar mão de certas apropriações estéticas. A principal delas é a
presença figurativa e nuclear de Baudelaire. Inicialmente nota-se como tal
apropriação procura ser uma leitura que a escritura incorpora como visão da
modernidade. Diferentemente da leitura canônico-simbólica, predominante no
período, o texto busca agir por um outro viés, insuspeito, do poeta francês: o uso da
alegoria como método de representação da modernidade. O traço heróico³ da
atitude escritural faz com que o texto desenvolva-se sob a sombra-predicado do
poeta francês ao transferir os vínculos conceituais para atuar sobre a enunciação
textual: “E fora, baudeilairianamente, pelas ruas geladas(ANDRADE, 2000, p.57).
A imagem do poeta é a possível referência heróica da qual o texto se apropria
para formar sua própria tessitura. Desse modo, a figura de Baudelaire é
constantemente trazida para dentro do texto e destacada de seu templo (livro-
símbolo) para viver na escritura de Os condenados: “Sobre o leito, pendia uma
gravura destacada do livro. Era Charles Baudelaire” (ANDRADE, 2000, p.57). O
retrato busca ser voz de uma leitura, reescrita corporalmente: “Andou. Repetiu com
os punhos amarrados versos de Baudelaire” (ANDRADE, 2000, p.53). Porém, não
só como presença citada Baudelaire atua na narrativa. Parece transitar como leitura,
linguagem, diagrama do corpo textual que o espelha. Como imagem espectral que
rodeia os meandros do texto, impõe sua forma-linguagem sobre a voz autoral. A
personagem referencial presentifica-se: vive ficcionalmente sua própria ficção e a
ficção de seu leitor, a escritura condenada.
Walter Benjamin no livro Charles Baudelaire: um lírico no auge do
capitalismo (2000) busca caracterizar os fundamentos deste novo herói narrativo, o
poeta: “Baudelaire conformou sua imagem de artista a uma imagem de herói”
(BENJAMIN, 2000, p.67). O herói como poeta interpreta alegoricamente o transitório
e exerce seu heroísmo por se reconhecer, criticamente, mercadoria. Desvincula-se
de sua decaída função simbólica para atuar no papel vago que a sociedade
industrial lhe disponibiliza: “(...) tinha em si algo do ator que deve representar o papel
do ‘poeta’ diante de uma platéia e de uma sociedade que já não precisa do autêntico
poeta e que só lhe dava, ainda, espaço como ator” (BENJAMIN, 2000, p. 156).
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3. Mais à frente veremos como tal traço transita entre o simbólico e o alegórico, a partir do conceito
elaborado por Walter Benjamin como caracterização da lírica de Baudelaire.
16
Por meio da alegoria, o poeta expõe o discurso Outro, do que se excluí, assim
como ele, do processo de produção. Salta sobre o linear para representar o corte:
não suspende a aura, mas tropeça pela lama que a recobre. Recondiciona sua
imagem junto ao lixo, aos resquícios expelidos pela indústria. Não é mais símbolo,
pois herda um papel e uma fatalidade: carregar, como um condenado, a aura-
auréola em meio aos resíduos, ao danificado, ao corrompido.
Assim, buscamos traçar como objeto de pesquisa a leitura ficcional que a
Trilogia faz de Baudelaire, ao adotar o procedimento alegórico como forma
discursiva de ruptura dos padrões burgueses de representação. Tal leitura direciona
a escritura condenada para se autoformar como imagem descontínua, em ruínas, a
fim de se obter, por meio da alegoria, o desmonte do discurso da tradição,
essencialmente simbólico e a atualização da linguagem via o fragmentário e o
decomposto.
Neste sentido, o problema configura-se a partir da presença de Baudelaire. Em
que medida será ele, retirado do livro-templo da tradição, o correlato da voz autoral
como força alegórica desintegradora, refletida por uma consciência crítica do
presente? Assim, a partir da leitura benjaminiana de Baudelaire, como metáfora do
artista moderno, a narrativa de Os condenados torna-se a ficção da ficção de uma
leitura da modernidade, enquanto ruína e fragmentação do simbólico? Temos como
hipótese norteadora a possibilidade de o texto apresentar uma ficção sobre o estilo,
que ao romper com o espaço-tempo textual, põe em crise a representação. Por meio
da leitura do artista moderno, referência propiciada pela imagem modelar de
Baudelaire, evidencia o impasse vivido pela modernidade.
Ao ler Baudelaire sob o prisma da alegoria, a Trilogia redescobre uma
modernidade a partir de imagens transitórias. Os elementos textuais fragmentam-se
como forma do inorgânico sobre o simbólico, corrompido pela condição de
mercadoria que nivela todos os objetos. A narrativa almeja, desse modo, tensionar a
qualidade do poeta, como possível reflexão metalingüística sobre o período que
atravessa: ao ler Baudelaire ficcionalmente à luz da forma-metáfora benjaminiana,
propõe a ruptura com os padrões através do olhar alegórico. Exibe o duplo, o
oblíquo, a sombra-aparência que permeia todo o objeto, de forma a estilhaçar o
estabelecimento do sentido. Procura trazer para o seu corpo o presente do objeto.
Para isso, confrontam-se duas imagens ficcionais do período: o poeta símbolo e
o poeta alegoria. O primeiro atua como herói contextual de uma tradição acadêmica,
17
seguidora do modelo maior: as leituras francesas. Enquanto autor adota um caráter
acrítico, pois se beneficia da circunstância à luz de sua auréola. Justifica-se
modernamente ao formar sua imagem pela adequação e incorporação dos signos da
técnica e do progresso. Porta a aura ressequida como método de construção
representativa e a manutenção de um prestígio personificado. Também, mantém
uma distância perspectiva a fim de assegurar a preservação do símbolo, cuja aura
efetua-se na temporalidade da transcendência, sob uma referência clássica e
romântica de harmonia e organicidade que edifica a aparência de todo o objeto.
O segundo atua como herói de uma modernidade lida alegoricamente. O poeta
vê-se deslocado de seu lugar aurático e adere ao discurso dos excluídos. Incorpora
ao texto o andar trapeiro para reconhecer no lixo da indústria sua matéria poética:
sob a forma do fragmento e do danificado, exibe sua mercadoria literária em
alegorias. Destrói todo o simbólico a fim de caracterizar o corte e a ruptura que seu
olhar crítico reconhece como papel. Visa não brilhar a aura, mas a lama que a
recobre. Torna o objeto efeito do presente temporal: aproxima o olhar por meio de
uma percepção desintegrada e em choque para recolher a mutação que tudo corrói;
o salto e o caminhar errante como máquina de metaforização contínua: “Ele
determinou o preço que é preciso pagar para adquirir a sensação do moderno: a
desintegração da aura na vivência do choque” (BENJAMIN, 2000, p.145). A matéria
lírica não se interioriza na revelação do símbolo, mas no instante do choque. Do
progresso emerge a Melancolia: a modernidade como perda contínua sobre o que
se ergue em aparência. Ruína onipresente que faz o tempo escorregar em sua
própria construção-desconstrução. Instaura no discurso o descontínuo para
interromper a linearidade e reter o instante entrevisto como poética.
A mentalidade escritural cultivada entre os anos 10 e o início dos anos 20 apóia-
se em um pretenso traço de cultura civilizada neste Brasil da Primeira República. A
Trilogia insere-se neste momento de diluição que se traduz por uma literatura em
suspensão, ou seja, em confinamento estável de sua elevada aura. A linguagem, ao
obedecer a uma pretensa unidade, renuncia às reais tensões implicadas no período.
Tal vácuo é preenchido por situações ficcionais em que o escritor seja o olhar que
rege a organização interior da apreensão empírica sobre o real: este olhar é a
capacidade mágica da expressão. Linguagem e autor se encontram, pois são,
igualmente, o adjetivo que figura a linguagem para a expressão da aura – esta,
instrumento funcional para a resolução de uma imagem que traga internamente a
18
precisão do signo técnica. Não é mais o esteta, mas o ativista capaz de incidir sobre
a realidade por meio de sua ação escritural: a arte como moral e missão, tradutora e
mimese do progresso.
O romance Os condenados busca combater esta percepção sobre a técnica.
Encontra-se com Baudelaire para reler criticamente a linguagem antecedente: “(...)
campeões do utilitarismo social, no momento mesmo do triunfo de seu ideal, vêem-
se transformados em personagens socialmente inúteis” (SEVCENKO, p.107, 1983).
Baudelaire representa a decomposição dos significados de tal escrita. Estiliza a
desintegração da subjetividade poética, como forma de pensar o próprio papel da
linguagem literária condicionada aos padrões do mercado. Os pressupostos do Ideal
- desejo da fusão originária, o tempo imobilizado - e do Spleen - o tempo inimigo, a
catástrofe em permanência, a imagem da ordem destruída - percorrem a Trilogia
para traduzir-se no desencanto da arte substituível. O poeta condenado opera este
espaço em relação ao tempo para implodir a unicidade da palavra. O hiato que
atravessa, a lama em que caminha, produz no texto uma mobilidade eternizada por
bruscas interrupções sobre a sucessão transformativa da atualidade. É a partir da
aparência paradoxal do progresso – o sistema de produção que se movimenta para
estagnar – que arma sua poética.
A obra de arte, frente à reprodutibilidade técnica, perde sua referência simbólica,
construída entre a autenticidade e a experiência. Neste ponto, o conceito
benjaminiano sobre a queda da aura se desdobra no romance de Oswald: deslocado
da mediação contemplativa da distância, o poeta aproxima o olhar sobre o objeto
artístico. Lança-se à multidão, imagem primorosa do fragmentado: a massa uniforme
exteriormente, mas internamente múltipla e viva, corroída pela sua dispersão.
Contradiz a aparente uniformidade pelo choque para recolher imagens singulares.
Traz para sua aura a vivência do presente: uma leitura mediada não pelo símbolo,
mas entre símbolos. Mostra a ausência no edificado, o Outro do discurso, a sombra
que difunde espectros de uma unidade perdida.
A leitura de Benjamin sobre Baudelaire sugere uma noção de modernidade que
a Trilogia explora como forma de representação ficcional. Por meio de constantes
deslocamentos e saltos, a obra cria o desmonte dos contextos ficcionais da tradição
analítica do romance burguês. Pela alegoria, arranca os objetos de seus formatos
habituais para construir uma leitura sobre o indefinido, por imagens fragmentadas,
significantes de uma universalidade em ruínas. O poeta opõe-se pela utilização
19
analógica das várias fisionomias que coleta da paisagem industrial - proletário,
dândi, suicida, prostituta, etc - daqueles que vagam inúteis na produtividade da
circunstância.
Ao adotar Baudelaire, a escritura condenada tem por meta a digressão, que faz
espalhar os resíduos de um símbolo esfacelado. Por isso, parece rejuntar as ruínas
de uma arquitetura romântica, os destroços do texto Ideal escrito. Seguindo uma
tradição autoral, a estrutura narrativa molda as personagens como representações
funcionalmente estéticas, para atuarem como ficção da ficção maior, em que o
modelo Baudelaire, além de ser uma interpretação das transformações operadas
pelo tempo, seja também, uma forma de repercussão sobre as reais tensões da
modernidade.
Como projeção do desenvolvimento dissertativo da pesquisa buscaremos
caracterizar três movimentos que perpassam a Trilogia, assim dispostos:
O primeiro capítulo tratará da ficção simbólica sobre o poeta. Para isso,
analisaremos a situação contextual do primeiro modernismo e a articulação de seu
discurso a partir do conceito de crise da representação da realidade (BARBOSA,
1983) sob a interpretação de João Alexandre Barbosa e da mentalidade escritural do
período, seus modelos e verdades da linguagem (SEVCENKO, 1983). A aura
artificial, proposta a partir da apreensão técnica da linguagem e sua idéia de
progresso, reverbera-se na figura do precursor e para essa reflexão a contribuição
de Fabris (1994) será fundamental para auxiliar na caracterização desta leitura
conservadora e burocrática do poeta na modernidade. Além disso, utilizaremos
exemplos extraídos de Os condenados e excetos de artigos críticos de Oswald
(ANDRADE, 2004), de modo a confrontá-los com o material contextual e teórico
citado, tendo em vista o objeto de pesquisa.
O segundo capítulo terá como centro de desenvolvimento os conceitos sobre a
Modernidade e Baudelaire a partir da leitura de Walter Benjamin em Charles
Baudelaire – um lírico no auge do capitalismo (2000). Conceitos como a perda da
aura, o choque e a multidão auxiliarão na caracterização deste poeta como ficção
alegórica da modernidade. Como enfoque buscaremos caracterizar a visão crítica
deste poeta-mercadoria, a lama que recobre a aura e o trapeiro que polui o
progresso. Para a reflexão sobre o procedimento funcional da alegoria e sua
incidência na tessitura da escritura condenada, será significativo, também, o estudo
de Hansen sobre a alegoria (2006). Confrontaremos neste momento da pesquisa a
20
visão crítica que Oswald faz de Baudelaire em artigo de 1946 (ANDRADE, 1991)
com o material teórico citado e, também, como confirmação dos argumentos,
exemplos da Trilogia, a fim de pontuar as características mais salutares do poeta-
alegoria no texto.
O terceiro capítulo trará uma análise da voz narrativa e os desdobramentos do
signo da condenação entre o simbólico e o alegórico. Buscaremos correlacionar a
estratégia narrativa com os procedimentos de descontinuidade e recorte sobre as
imagens construídas. Tais informações destacarão do corpo narrativo os estilhaços
de um Eu que conduz os elos, as passagens percorridas pelo caminhar errante do
poeta-alegoria como forma de leitura ficcional do modelo Baudelaire. Neste
momento cruzaremos as informações teóricas para confirmar dedutivamente os
procedimentos narrativos utilizados tanto no plano do enunciado quanto no da
enunciação. Desta maneira, visamos retirar do romance a forma mediada da leitura
de Baudelaire como incorporação do presente no discurso, orientador da
modernidade representada, de modo a comprovar a hipótese aventada. Assim,
poderemos sondar a ficção que a escritura condenada verte como estilo
fragmentário e em ruínas.
21
Capítulo I: Ficção do poeta-símbolo – a aura artificial
1.1 – Leituras do poeta-símbolo
Não há dúvida de que o primeiro romance de Oswald de Andrade tenha como
uma das principais linhas orientadoras de sua constituição o pressuposto autoral,
cujo produto final, a obra, corresponda às expectativas decorrentes da recepção
cultural. Por isso, a sondagem sobre a linguagem produzida no período é uma das
possíveis entradas para o romance em questão. O escritor, no início do século XX,
além de personalidade, traz em si um traço de personagem, já que sua própria
escritura busca conformar linhas que se encontrem na imagem final do autor.
Qual seria a imagem da escritura desenvolvida no período de criação de Os
condenados? De que maneira ela é operada e a quais exigências estava
submetida, levando-se em conta seu horizonte de expectativa? Como a Trilogia se
insere em tal perspectiva escritural? É certo que a idéia de texto literário vincula-se à
prática de uma ação que encontra nas transformações sociais o conteúdo de sua
imagem. Fruto de uma visão cultural oriunda de certo positivismo – a ciência como
símbolo máximo do saber – o escritor tem como tópico fundamental ser uma
assinatura associada à sua função social.
O advento da modernidade oferece o impasse como forma de significação do
signo literário. A imagem do escritor constrói-se pela assimilação dos motivos ditos
modernos, ao mesmo tempo que se mantém resguardada por uma situação
privilegiada: dizer as novas formas, no seguro palco que sua auréola, socialmente
reconhecida permitisse. Haveria, internamente a toda intenção escritural, a forma
simbólica que legitima a ação autoral. Um discurso de significação ideológica é
percebido como parte estrutural do poeta-símbolo, criador de mecanismos
propagadores de um imaginário, cuja literatura não ultrapassa a condição de
apêndice de signos sociais maiores. A convenção expressivo-simbólica da auréola
autoral reveste toda palavra. Escritura e escritor aliam-se, na mesma medida, sob
caráter mercadológico de entretenimento.
22
Uma maciça produção é manuseada placidamente em suas próprias
contradições. Produzem-se amenidades forradas por uma aparência modulada pelo
controle autoral. Como testemunha Antonio Candido:
(...) era, sobretudo uma conservação de formas cada vez mais vazias de
conteúdo; uma tendência a repisar soluções plásticas que, na sua
superficialidade, conquistaram por tal forma o gosto médio, que até hoje
representam para ele a boa norma literária. (...) As letras, o público burguês
e o mundo oficial se entrosavam numa harmoniosa mediania. (CANDIDO, p.
109,1992).
A idéia de estilização orienta a construção formal e acaba por fornecer uma
linguagem cuja variação adota uma forma conferida de antemão. Há, possivelmente,
uma idéia de universalidade prévia, com que o símbolo instrumentaliza a
representação de uma “classe” de escritores sustentados por um padrão auratizador
sobre o objeto artístico.
A produção literária empreendida entre os anos 10 e o início dos anos 20
movimenta-se por um sistema de solidificação hesitante entre uma moral estético-
impressionista e uma oposição por renovação. Essa coexistência reafirma um
pretenso traço de cultura civilizada em que a linguagem é apenas ressonância de
uma mentalidade. Tal período que antecede a ruptura moderna deve ser entendido
como traço contextual da narrativa de Os condenados, pois até ali, não havia
vestígios das obras fundadoras do Modernismo propriamente dito. Tal seria o
período interlocutor da obra: as diluições cênicas em torno dos emblemas da art
nouveau e da Belle Époque.
Apesar do período oferecer um contexto de transição, ou mesmo de diluição, seu
painel escritural não traz a mesma tensão e pertinência em relação às situações que
se abrem. Uma literatura em suspensão que recolhe do imaginário apenas
concessões sobre as reais tensões, de modo a obedecer a uma pretensa unidade
escritural, acadêmica e modelar.
O poeta, como símbolo representativo, tem como missão desempenhar um papel
social: assegurar politicamente a internacionalização da arte, a pasteurização da
linguagem como forma de afirmação civilizadora. Os modelos visam mimetizar as
circunstâncias à representação, o que assegura a legitimidade de sua voz padrão.
Recalques científicos conviviam com as imagens ficcionais, de forma a dar um
contorno crível e elevado ao que se entendia por realidade nacional e identidade em
construção. Como reflexo de “(...) um cosmopolitismo agressivo, profundamente
23
identificado com a vida parisiense” (SEVCENKO, 1983, p. 43), o modelo maior (as
leituras francesas) transpõe-se como uma imagem justificada pela nova ordem
liberal progressista: formas universalistas retiradas de uma civilização-modelo
presente ficcionalmente pelas leituras. Por isso, tais leituras de uma possível
modernidade são operadas como instauração de símbolos e, daí, o artificialismo; a
utilização de instrumentos que não operam a realidade como problema, mas
recursos propagadores de um status, vertidos sintomaticamente na figura do autor.
Os modelos não se disseminam digressivamente, mas em interpretações simbólicas
complacentes com “(...) uma sociedade altamente urbanizada e sedenta de modelos
de prestígio” (SEVCENKO, 1983, P.51).
Então, uma cumplicidade feliz e acabada entre o leitor e autor se estabelece. O
último não será ponto de tensão, mas o representante oficial desta sociedade que
vislumbra a modernidade: “Não era a literatura que reproduzia a realidade, porém a
realidade que reproduzia a literatura” (SEVCENKO, 1983, p. 272). Tal noção de
realidade é ponto redutor da criação ficcional, já que o literato buscava “(...) o
prestígio definitivo que só a literatura poderia lhes dar” (SEVCENKO, 1983, p. 274).
O poeta é símbolo de uma promessa de futuro centrada em uma tradição de
identidade passada.
O escritor ficcionaliza seu próprio papel ao assumir-se herói, pois se imbui de
uma missão reformadora ao representar uma nova ordem social. Sua perspectiva
triunfante adere a um modelo educador e filtra as diferenças expostas socialmente
para estabelecer uma verdade possível. A Literatura serve de utilidade pública,
espaço para subscrever sua própria consagração:
(...) (a literatura) representava a própria Redenção em si mesma. Eis a
razão pela qual Leonardo Flores podia suspirar ao fim, plenamente satisfeito
consigo e com sua realização: ‘porque cumpri o meu dever, executei a
minha missão: fui poeta’ (SEVCENKO, 1983, p. 284).
A idéia de remodelação permite que a escrita ocorra “(...) pela aura da ciência e
do progresso material, assomado como próprio amálgama promissor da máxima
racionalidade, fartura, paz e felicidades possíveis” (SEVCENKO, 1983, p. 96-97).
Desse modo, o poeta manipula a reforma dos símbolos - nunca a ruptura - de modo
a assomar-se sob a figura autoral, o integrante, o transformador e o intérprete.
Os literatos seriam, então, lumes que incorporariam à sua imagem um papel
institucional, propagador do intercurso histórico, ciente do símbolo que porta.
24
Entende-se a literatura como história, no sentido de eleger símbolos a partir do
transcorrer linear do tempo sob a idéia corrente de transformação. Forjada
ficcionalmente, exemplifica moralmente os eleitos históricos.
A trilogia do exílio insere-se no primeiro discurso modernista, enquanto
sintoma de uma crise, pois destaca da idéia de atualização o signo da Melancolia. O
próprio enredo elege temas que servem de apoio para variações que gravitam em
torno da imagem da condenação. Como anunciado na introdução, o romance está
estruturado em três partes lançadas em datas diferentes. O primeiro volume Alma
(1922) conta com um esquema traçado na relação entre três personagens centrais:
Alma, prostituta que vive o impasse entre uma pureza prometida na infância do
passado e um presente profano e transgressor, representação do estado
condenatório que seu tempo decadente estabelece. O amor é o tema central que a
correlaciona aos outros dois personagens: João do Carmo, telegrafista aspirante a
poeta, apaixonado e subserviente aos desejos da protagonista e Mauro Glade,
cafetão, caricatura do cafajeste, construído sob uma imagem máscula que a domina
emocionalmente. Além deles, há o velho Lucas, pai de Alma, pobre e anacrônico,
representante dos valores passados, pois, envergonhado pela condição da filha, não
encontra respostas para seus anseios morais.
Mauro e Alma mantêm uma relação instável e se separam constantemente.
Nestes intervalos, João, desde sempre apaixonado e inspirado pela leitura de
Baudelaire, consegue se unir à protagonista, mas é sempre interrompido devido aos
ímpetos de Alma: ora pelas voltas com Mauro, ora pela prostituição. Tais fatos
configuram ao telegrafista vários dissabores, o que propicia imagens interiores
dilaceradas pela idéia do suicídio.
No decorrer da trama, o velho Lucas morre (aparentemente decepcionado pelo
comportamento da filha e, até mesmo, por se perceber sem função), o que no
enredo abre passagem para outra personagem: Alma fica grávida de Luquinhas. O
menino nasce, mas isso não é capaz de submeter Alma a uma relação estável com
João, que tem como proposta o casamento, modelo que consagra os ideais
românticos e burgueses. Neste ínterim, volta a freqüentar as rodas de prostituição a
convite de sua amiga Camila.
A solidão de João é cercada por imagens da boêmia paulista, pela qual
potencializa a figura do incompreendido. Alma ressurge lançada à miséria e, mesmo
com o auxílio de João, Luquinhas morre por falta de cuidados. João e a protagonista
25
reatam. Reaparece Camila e a volta para a prostituição barata nos Jardins da Luz. O
redemoinho de emoções faz com que o estado aflitivo de João se intensifique. Alma
reencontra seu primo Jorge d’ Alvelos, escultor que retornava da Europa. A narrativa
tem fim com o suicídio de João do Carmo.
O segundo volume A estrela do absinto (1927) é o bloco mais extenso da
trilogia, agora protagonizada por Jorge d’Alvelos, artista de certo renome nos
círculos boêmios da cidade, que retorna de uma temporada de cursos em Roma.
Começa, então, o envolvimento amoroso com Alma. O narrador refaz a história da
família vinda do Amazonas, o passado rural, em contraste com a metrópole no
tempo presente do enredo. O romance entre os dois é entrecortado pelo
reaparecimento de Mauro e o retorno de Alma à prostituição. Entre brigas,
separações e traições, começa o martírio emotivo de Jorge, recortado pelas imagens
urbanas da São Paulo industrial, as rodas de amigos boêmios, a angústia no atelier
e a multidão no carnaval. O artista percorre sua via-crúcis interior, momento da
transformação da consciência. Irrompe na narrativa a morte de Alma, conseqüência
do espancamento feito por Mauro. Em seguida, Jorge tenta o suicídio em meio à
imagem do enterro de Alma, às visões narcotizadas e ao carnaval, junto da sombra-
personagem de um pierrô. O artista sobrevive e as transformações interiores se
materializam em reflexões sobre a existência de sua vida emotiva e material. Ao
final, a antiga namorada Mary Beatriz reaparece, mas logo morre, o que volta a
acentuar os conflitos religiosos e morais de Jorge.
O terceiro volume A escada (1934), bloco final do romance, aponta para a
transformação de valores de Jorge, que, como não poderia deixar de ser, dá-se pelo
amor, encarnada na figura de Mogol. A conversão ao comunismo substitui a antiga
fé cristã, patriarcal e de moral rígida. O artista irá expurgar seus desencantos e
dores no exílio, em uma ilha, onde encontra gente simples, de uma possível
honestidade sem máculas. Será o fim redentor de Jorge, que encontra a paz
emocional e a saída para seus conflitos morais na ideologia comunista.
A partir de temas procedentes da metáfora da queda e da condenação, o enredo
se desenvolve por ações que implicam uma representação estética, de modo a
figurar o poeta-alegoria. Alma, sob o signo da prostituta, refaz um caminho de
pureza anterior, éden de um passado configurado como promessa de felicidade,
para viver o fundo comum a todas existências retratadas. Da mesma maneira, João
do Carmo comete o suicídio a fim de demonstrar sua profunda inadequação ao
26
tempo em que vive: idealiza desejos em expressões emotivas que não encontram
par na transitoriedade efêmera das relações desenhadas. Mauro encarna o
contraponto, que evidencia o impasse vivido por Alma e a desilusão de João. Jorge
protagoniza, na narrativa, a consciência transformada por meio da passagem da
convicção cristã para a comunista. Caracterizado como o artista cuja sensibilidade
atesta a precariedade dos ideais de seu tempo, modifica-se pela convicção utópica
que, porém, não o livra do estado de condenação previsto no enunciado, fato
comprovado na frase final do romance: “No mundo do sofrimento” (ANDRADE, 2000,
p. 354).
O romance, em certa medida, reflete a posição antagônica de escritores-artistas
inseridos no valor de mercado, pressuposto evidente na emergente cidade urbana.
Deslocados de seu lugar de privilégio, pulverizam-se em posturas que são, ainda,
recortes de uma ficção, objetivação de um gesto simbólico, traduzido na figura do
boêmio. São, sobretudo, poetas-figura de contorno definido, sob a sombra da
inutilidade social que recai como uma fatalidade: um destino a ser cumprido com a
resignação de um herói. Porém, tais figuras trazem em si um duplo, pelo qual se
extraem e desdobram imagens deterioradas, de modo que tal generalidade instala-
se na própria concepção de linguagem.
À primeira vista, a transição no romance parte da idéia corrente de remodelação:
adere ao valor de fachada, como uma nova forma para a nova ordem. As próprias
personagens da Trilogia refletem tal postura: Alma, a prostituta; Jorge, o artista
incompreendido; João, o sensível admirador lírico etc. Porém, as imagens
melancólicas são construídas por um sentido de negação sobre a instauração do
novo que aponta para um presente escorregadio. Neste sentido, o olhar oscilante
acompanha o movimento do poeta em caminhada, o que lança sombras sobre a
fachada simbólica, ao fazer com que a linguagem duplique a significação. A cidade,
por exemplo, expõe não a harmonia decantada da renovação, mas o convívio
estreito entre o novo e o danificado, ao mesmo tempo em que apresenta o presente
não como forma de futuro, mas como anúncio do que não se realiza:
No Jardim Público (...) Atravessou-o em reta; saiu. Encaminhou-se por
esquinas populosas e pobres. Estava no Bom Retiro. (...) Bondes passavam
pejados de populares, garotos brincavam em bandos maltrapilhos, carroças
iam lentamente.
Chegara a uma rua sem calçamento que se perdia no campo. Penetrou
numa estrada terrosa aberta na relva pisada. Em sua frente, desenhou-se a
sinuosidade do terreno onde corria o Tietê. (...) Vacas paravam na distância.
Um cãozinho ladrou.
27
A cidade mudara de silhueta. Um vento ríspido agrediu-a. O grande Jesus
da torre tutelar do Sagrado Coração dava-lhe as costas. Pensou vagamente
em se matar (...)
As carroças enchiam-se lentamente de areia peneirada. O quadro simples
de rude trabalho atraiu-a. (ANDRADE, 2000, p.96).
O andar que acompanha o olhar poético nos dá uma cena exemplar dos duplos
de uma linguagem em ruínas. As imagens percorridas pelo espaço apreendem as
diferenças de modo a informar a modernidade no plano da enunciação. Convive o
maltrapilho e a carroça na contínua escavação das ruas; junto ao anacrônico, os
verbos dão um ritmo lento à cena, da mesma forma que aceleram a apreensão dos
dados em transformação. Configura-se, então, a cidade enquanto personagem a
criar o mecanismo de espelhamento entre as ações subjetivo-gestuais e as
transformações do espaço cênico.
Também, a própria condição do escritor é reavaliada a partir de uma posição
crítica. A tradição assegura-se visualmente nas feições da Belle Époque, na
impessoalidade que se ajusta ao gosto médios ao diversificar amenidades de uma
literatura que serve de “(...) instrumento particularmente eficaz de propaganda
intelectual” (SEVCENKO, 1983, p.275). Já a Trilogia busca expor a dualidade
exposta do presente pelo discurso fraturado da personagem Jorge:
Até a arte lhe negavam! Conseguira até agora vender somente aos amigos.
Com isso se mantivera. Uma tristeza cortante possuiu-o (...) O espírito do
poeta precisa de expectadores, mesmo que sejam búfalos (...) O lixeiro
entendera, o critico não. (ANDRADE, 2000, p.226).
Como se vê, o poeta aqui tem a consciência de seu papel na modernidade: sem
expectadores, procura junto ao lixo, ao desarmônico, uma possível comunhão. Tal
visão transforma o valor da impessoalidade em indiferença e a diversificação
temática em inadequação formal. Na verdade, a narrativa busca expor o outro do
discurso, de modo a tensionar a significação da linguagem e lançá-la em choque
com o modelo oficial.
Desse modo, a Trilogia procura lançar uma visão crítica sobre a produção
escritural de seu tempo. Munida de oposições, lê o imaginário em andamento a partir
de sua desfiguração, pois não o retém enquanto sistema ou processo. Já a escrita
da tradição preenche o vácuo exposto pela modernidade com situações ficcionais.
Os modelos franceses, tomados como referência de uma civilização presente
ficcionalmente, tornam a estilística ficção de uma leitura. O gênio deixa de ser um
predicado para transmutar-se em signo absoluto de uma instituição. A escritura de
28
Oswald incorpora tais figurações para colocá-las como sombra, tateando uma nova
conformação, demonstradas pela voz das personagens: “- É um delinqüente! É mais
um gênio!” (ANDRADE, 2000, p.229). O que provoca a resposta evasiva do escultor,
que recolhe do tempo as mutilações da eternidade simbólica: “- Esta vida anda
durando muito...” (ANDRADE, 2000, p.229). Desta leitura da figura do gênio emerge
o caminhar entrecortado do discurso “inútil”: “Hipocondríaco, quebrado de dores
absurdas, o escultor saiu à toa pelas ruas” (ANDRADE, 2000, p.229).
Vê-se, nesse contexto da art nouveau, a arte como protótipo submetido ao
advento da técnica, em posição acrítica. A escrita torna contemporânea a linguagem
como reflexo do presente. O conceito de inovação aproxima-se das imagens
circunstanciais ao incorporar motivos da técnica em ornamentos:
(o artista) preocupava-se em descobrir a estrutura interior das coisas, os
processos ocultos de criação das variadas formas de vida vegetal e animal,
para depois estilizá-los, processos e estruturas, em formas artísticas.
(PAES, 1985, p.67).
A aura traria a resolução em imagem estilizada, para que insurja a estrutura do
objeto em funcionalidade simbólica; o que significa a circunstância transformada e
corporificada como unidade representativa de uma verdade, desde sempre,
assegurada.
Já a Trilogia extrai o mesmo funcionamento de continuidade operacional da
imagem da multidão. A poética será invadida pelo olhar que revela a consciência da
passagem corrosiva sobre a máquina geradora de progresso. Tal proposição é vista
na construção da linguagem do romance como impossibilidade de unidade:
De fora, da rua asfaltada e larga, vinha um cascatear contínuo de veículo
rodando, arfar de motores, gritos, cornetas (...) Os dois artistas caminhavam
na busca inocente do maravilhoso que passava nos carros, com toaletes
estranhas, evocativas de sonho, restauradoras de épocas e países. (...) a
linha desmesurada de alegorias rolantes (...) E os dois amigos seguiram,
bebendo pelos olhos a sucessão de carros, automóveis, caminhões, que
faziam a exibição processional, sem máscara, da urbe cosmopolita e
milionária. (ANDRADE, 2000, p.238).
Na cena, o olhar mostra a multidão como “linha desmesurada de alegorias
rolantes”, de certa forma, máquina projetiva da modernidade. Nesse sentido, a
dispersão é a própria unidade que se orienta a “beber dos olhos”, para que o atual
se materialize na sucessão. Por isso, os carros, paradoxalmente, formam uma
procissão, como forma de proeminência metafórica do passado no presente. A
29
evocação do sonho, como promessa que o presente e o passado não são capazes
de cumprir.
Criam-se desvios da unidade pela visão corrosiva sobre o tempo, o que seria
mais um desdobrar alegórico, uma duplicidade: a paralisação interna sob a
mobilidade exterior aparente, o estático que não renova, mas decompõe e planifica:
“Percebeu através da cortina de lágrimas, ao seu lado, os circunstantes. Eles
permaneciam extáticos como modelos, em composição escultural, para um grupo da
Desgraça” (ANDRADE, 2000, p.206).
Baudelaire é visto, no período, como símbolo de uma ficção renovada, modelo
de oposição, porém aceito como integrante de uma tradição literária:
Reportando-se ao mundo cosmopolita e em franca industrialização –
enquanto se contrapunha ao universo rural que remetia ao passado -,
enquadrava-se no conceito de modernidade instituído por Baudelaire, na
idéia do efêmero, do fugaz, do passageiro. (CAMARGOS, 2002, p.29-30).
A modernidade intuída a partir de Baudelaire, neste período, traz uma leitura
pouco crítica ainda situada sob os paradigmas da tradição. Vê-se um satanismo
estereotipado, uma atitude afetada, preocupada em possibilitar uma ficção para o
imaginário boêmio. Por isso, a possível leitura que a Trilogia realizam de Baudelaire
ainda conta com uma perspectiva em que: “A imortalidade da palavra poética no livro
e a precariedade da anedota na imprensa estão intimamente associadas dentro do
sistema parnasiano (...)”(CHALMERS, 1976, p. 20). O peso da linguagem ainda
vigora sobre o conceito de obra mediada pelo prestígio do autor; o primeiro Oswald
teria que corresponder ao sistema ao qual estava vinculado:
Oswald começa, pois sua carreira na boêmia de café. O literato de futuro é
um jornalista já formado dentro dos preceitos da imprensa panfletária e
humorística, mas o jornalismo não é considerado uma atividade edificante
para um futuro escritor; a literatura a sério se pratica com vistas à glória
acadêmica. (CHALMERS, 1976, p.20).
A própria visão de Oswald pontua-se pelo compromisso com a tradição ao
associar a prática escritural à missão social, em conferência de 1944:
(os intelectuais) Se sua missão é participar dos acontecimentos. Como não?
Que será de nós, que somos as vozes da sociedade em transformação,
portanto os seus juizes e guias, se deixarmos que outras forças influem e
embaracem a marcha humana que começa? (ANDRADE, 2004, p.170).
O comentário acima se ajusta à descrição do poeta-símbolo. Este parece ser um
impasse permanente do autor, refletido na idéia de um escritor socialmente atuante
e participativo: “De fato, o escritor é que tem responsabilidade essencial do seu
30
tempo. Ele é a voz da sociedade. Por seu cérebro falam os anseios do futuro, as
lágrimas e as cóleras do presente (...)” (ANDRADE, 2000, p.86). Em artigo de 1943,
o destino grandioso em meio à expressão da personalidade reforça uma
singularidade forçosamente acentuada para um poeta concebido simbolicamente:
O destino de uma literatura está preso aos seus grandes homens. (...) sem
a força expressional de sua personalidade, outros podiam ser os caminhos
abertos para o futuro (...) A presença de um grande escritor impossibilita a
inflação dos valores medíocres e põe sempre no julgamento critico um
ponto alto de referência e de destino. (ANDRADE, 2004, p.118).
Como dito, se considerar a obra de Oswald em sua totalidade, vê-se no
mesmo escritor duas posturas que Antonio Candido coloca como eixo de
comparação entre o par Miramar-Serafim e Os condenados: “(...) os dois grupos
de obras foram compostos praticamente lado a lado, intercalando-se como se o
autor se desdobrasse num modernista e num passadista (...)” (CANDIDO, 1990, p.
36).
A Trilogia apropria-se da leitura simbólica e modelar como autolegitimação – o
que se atenua no próprio enredo, em que as personagens são consagradas como
símbolos heróicos:
Jorge d’Alvelos na sua magnanimidade de artista não se queixava da
cidade que o não soubera compreender e salvar. Era preciso haver
sacrificados como ele e como Alma, desastrados geniais, estupendos, que
fizessem a glória santa de metrópole atordoante, como outrora fora
necessário haver mártires e santos (...) (ANDRADE, 2003, p.248).
Aqui, as personagens encontram-se em posturas aparentemente transgressoras.
Na verdade, oscilam entre a infração e a adequação sob o código da tradição.
Reproduzem essencialmente o próprio discurso escorregadio do primeiro
modernismo: “E ele não compreendia, embevecido no idílio em que se lhe apodrecia
beneficamente a vida” (ANDRADE, 2000, p.89). Uma metáfora corrente, autenticada
pelo procedimento autoral - “idílio” – atravessada pelo apodrecer da ação do tempo.
Se não muda propriamente a construção, o romance, por alternações, almeja
desestabilizar o método das leituras educadoras. Um anseio digressivo é percebido
na dispersão interpretante para tornar-se uma unidade operacional a espalhar
resíduos da linguagem anterior. A forma textual mantém ainda uma filiação com a
escrita de expressão, mas também denuncia, no mundo de novidades sucessivas, a
ruína que produz o desencanto: “Ele caminhava sobre as ruínas do seu sonho
desfeito” (ANDRADE, 2003, p.90).
31
A mediação que unifica o interior ao exterior dos fenômenos é promovida pela
imagem do autor. O presente na arte ainda será a apropriação dos signos
emergentes como forma de condicionar a linguagem ao seu princípio mimético,
aliando-os como distanciamento do olhar simbólico. Este representa a realidade a
fim de assegurar a harmonia de uma verdade e de um sentido que só seu domínio
consagra.
De certa maneira, a Trilogia reproduz a estagnação que perpassa a mediação
consagrada do autor. Porém, alastra sobre este princípio alguns pressupostos
oriundos da leitura de Baudelaire. E é por este viés que encontra sua diferença.
Consegue, em certa medida, desestabilizar a relação entre leitor e autor ao romper o
horizonte de expectativa pela exposição de imagens em choque:
Nos passeios longos de bondes, pela noite à-toa, igualados na importância
que davam às minúcias heróicas das próprias batalhas inglórias, indagavam
se era possível que na vida não houvesse para eles os poemas
consolantes. (ANDRADE, 2000, p.145).
O poeta toma consciência da própria impossibilidade que é a escritura: não pode
mais parar o tempo, mas o passar ininterrupto das cenas que recortam seu olhar. A
criação artística deixa de ser consagração e se torna luta, o mergulho no choque,
“inglória”, pois não elege vencedores.
Desaloja o poeta de seu gabinete burocrático e o atira na rua: “Ia lendo um livro.
Esbarrou a uma esquina (...)” (ANDRADE, 2000, p.146). Adota o andar como
consciência desperta pela experiência do choque: o poeta sai da imersão da leitura
para vivenciar sua poética. Descarta a imobilidade de uma ficção idealizada para
movimentar sua ficção, e por isso pensa criticamente a experiência escritural-
contemplativa do passado. A partir de seu eixo contextual, a primeira narrativa
oswaldiana coloca em tensão dois dados fundamentais do texto: o autor e a leitura.
Tal diálogo torna-se mais explícito quando o advento do progresso surge como tema
eleito e recorrente da cisão do tempo.
1.2 - O precursor e a aura futurista do Progresso
32
São Paulo assume papel central na articulação do primeiro discurso modernista.
A cidade carrega em si elementos de uma atitude de combate ao nacionalismo
localista e, sob o advento da industrialização, da imigração em massa e do
emergente conceito de técnica, torna possível formas de atualização para a ficção.
Enquanto personagem da Trilogia, metaforiza uma posição de antecipação em
relação ao resto do país. Será palco da primeira expressão de vanguarda: o
futurismo.
O termo futurismo designaria, a princípio, os anseios de jovens ligados ao círculo
boêmio, que cultuavam uma possível renovação no mundo das artes e da literatura:
“Eles incorporaram a mística do artista-herói marinettiano – a do jovem agressivo,
cheio de fervor, destruidor e ao mesmo tempo criador de uma nova ordem”
(CAMARGOS, 2002, p.41). O termo é aplicado, portanto, para o sentido de certa
diversificação imagética em tintas retiradas do ritmo industrial instaurado:
(...) (os modernistas) constroem sua idéia de modernidade em volta de
alguns núcleos essenciais do futurismo – a consciência de uma vida
transformada pela técnica e a conseqüente necessidade de encontrar uma
expressão adequada aos desafios do novo tempo. (FABRIS, 1994, p.88).
Em Os condenados, a cidade espelha o jogo entre o individual e o coletivo, a
“vida transformada”, paralisada pelo tempo-espaço do olhar poético, para conceber a
consciência em alteração: “A cidade passava por eles na tarde longa e humilde”
(ANDRADE, 2000, p.121). O passar da cidade atravessa as personagens como
materialização dos caminhos que se abrem.
O sentido futurista aplicado no sentido de atualização visa destacar o futuro do
objeto artístico, antecipar formas. Fica claro um anseio em mimetizar as condições
européias, já que: “(...) os modernistas estavam inseridos no arcabouço institucional
da sociedade burguesa” (CAMARGOS, 2002, p.29). Vêem-se anseios de renovação
ainda compromissados com a tradição ou leitura simbólica. A própria Trilogia é
reflexo desta posição. Em vários momentos estende uma panorâmica construída
pelos elementos da atualidade emergente, de modo que os signos obedeçam à
apoteose oferecida pelos novos tempos: “Automóveis passavam buzinando; bondes
lá embaixo cruzavam-se. E desfilavam mulheres, escolares, prostitutas, mendigos –
era o seu drama de grande espetáculo” (ANDRADE, 2000, p.220).
A busca de adequação entre realidade e ficção faz com que o signo Progresso
seja potencialmente representativo. E também, será, em certa medida, o traçado que
33
alinha a técnica ao campo ficcional, incorporando-se à linguagem. A superação
estética e política intencionada pelos modernistas paulistas traz a busca pelo dado
diferenciador:
Na busca de um começo, de um evento primordial que justificasse o caráter
único de São Paulo no cenário brasileiro, os modernistas adotam duas
estratégias fundamentais: elegem símbolos destruidores do passado,
consubstanciados nas imagens mais vistosas da modernidade; dão vida a
um ‘mito tecnizado’, isto é, um mito intencional, finalizado em si mesmo,
fruto de uma comunidade particular, que busca em determinados momentos
do passado alguns valores congenitais a seus objetivos presentes.
(FABRIS,1994, p.8).
Percebe-se, então, a mesma fundamentação simbólica, o mesmo procedimento
de criação a partir das leituras antecedentes que os próprios modernistas anunciam
romper. A distinção efetua-se pelo caráter cosmopolita, constantemente pontuado na
escritura oswaldiana: “A cidade toda movia-se, rodava. Maníacos, sonhadores
vencidos, faziam também trotar na ciranda os esqueletos vergados e velhos sem
perceber a inutilidade de seus gestos de pressa” (ANDRADE, 2003, p.211).
A partir do exemplo, percebe-se na Trilogia uma diferenciação: a tríade
transformação-transição-diluição, implícita na idéia de progresso, sugere um hiato e
um viés a ser explorado. Se considerarmos o mito tecnizado uma forma de
exploração retórica e persuasiva, assumindo uma configuração simbólica do próprio
progresso, veríamos o romance numa posição de negação, presente a partir do
mesmo procedimento de continuidade, porém avalizada pela ruína alegórica. O
poeta exerce sua heroicidade na linguagem, por vivenciar uma ficção que se projeta
opositivamente aos valores utilitaristas da sociedade de mercado:
A sua credulidade excessiva, imutável, atávica talvez, talvez voluntária, feita
de ânsia de artista, seduzido pelo delírio do absurdo, não opunha
argumentos à fantasia perversa de Alma. (ANDRADE, 2000, p.196).
Desta forma, é construído um discurso pautado na caracterização heróica da
personagem, ao resistir pela fantasia e pelo delírio, aos apelos da sociabilidade da
linguagem.
De modo a formar uma imagem aurática para a cidade, os modernistas, neste
primeiro momento buscam eternizar o tempo presente. Mesmo a idéia de futuro será
uma forma de preservar um passado justificado miticamente. Assim, uma linguagem
acentuadamente épica e primordial irá acompanhar a formação deste discurso:
(...) Se definirmos a visão que os modernistas fornecem de São Paulo como
um “mito tecnizado” é porque ela é mais projetiva do que efetiva, sem que
isso implique o não-reconhecimento do processo de modernização
34
acelerado. (...) que leva em conta tão-somente seus aspectos positivos,
coincidentes com as conquistas da burguesia industrial. (FABRIS, 1994,
p.31).
Na verdade, os primeiros modernistas deixam escapar uma contradição
contextual: o acelerado desenvolvimento tecnológico em convívio com uma ordem
social estagnada. Ansiosos em representar o moderno e singular, acabam
reafirmando os traços de sua própria identidade, que ainda é a tradição. As novas
imagens e os centros disseminadores da ficção ficam, por isso, subjugados à velha
figura do poeta-símbolo, cuja heroicidade, agora, consiste em atuar sobre as formas
do presente: “(...) construir uma imagem heróica da modernidade de São Paulo,
usando toda sorte de recursos retóricos, não importa se nem sempre verdadeiros ou
enfocados a partir de uma ótica peculiar” (FABRIS, 1994, p.7).
O poeta, neste momento, faz-se herói no sentido de não apenas incidir sobre a
realidade, mas também antecipá-la. O ato heróico ergue uma defesa em prol do
futuro que sacrifica o artista, agora, ativista. Esta ação ocorre em um presente
diluído sobre um passado que se eternizará, pela palavra, num futuro triunfante. Por
isso, as imagens hiperbólicas, retumbantes e, sobretudo retóricas, permeiam tal
constelação escritural, preocupadas em atualizar um autor que porta a linguagem
como arma.
Neste sentido, a imagem do escritor conformada à do herói torna-se a ação
presente, de modo a obter a palavra máxima - última, a verdade. Enquanto agente
antecipa o curso, para ser, afinal, o precursor:
(...) o presente dos modernos é diferente daquela tradição que fazia
culminar o passado na atualidade: é um momento de transição que só tem
validade como matriz do futuro, como forja da história em contínua
metamorfose (...) o precursor funciona, entretanto, como um mito do
momento de transição (...) (FABRIS, 1994, p.83).
Este será outro ponto em que a escritura de Os condenados propõe um desvio.
O precursor detém o saber da palavra ímpar num mundo de realidades precárias
pela negação sistemática do passado e presente. Reafirma a aura simbólica ao
dispor o presente transitório na palavra eternizada da literatura. A Trilogia
correlaciona para desviar. A idéia de renovação se junta à idéia de destruição: o
presente traz o transitório como marca da eterna perenidade que reveste o tempo:
“À saída, escorregou na lama da calçada. A rua, em concertos de iluminação,
levantava ao seu longo pedras empilhadas e montes de terra solta; uma lanterna
35
vermelha indicava o começo da escavação humana”(ANDRADE, 2000, p.191). O
poeta não edifica, não projeta, não lança luz sobre o presente incerto, mas
“escorrega” na eterna “escavação” que é o progresso – elemento que concretiza o
hiato nas imagens, entre a “lama” e a “calçada”.
O progresso acentua uma visão de modernidade comprometida com a idéia de
atualização permanente. Traz para a linguagem o movimento de constante mutação
que rasga o presente, o que anula a distância subentendida na mediação simbólica:
“A dessacralização da figura convencional do artista (...) a procura de instrumentos
poéticos capazes de traduzir a nova dimensão da vida urbana, vazada na
simultaneidade e na multiplicidade (...)” (FABRIS, 1994, p.264). Por isso, o discurso
de representação ficcional incorpora, de certa maneira, o presente como abordagem
construtora do tempo-espaço textual. Novamente, a narrativa de Oswald lança luz
opaca sobre esta poética – o múltiplo e o simultâneo está na ação da ruína,
onipresente no novo, ao correlacionar duplos: “O Largo da Sé parecia dormir, junto à
Catedral, num silêncio de ruína em folha” (ANDRADE, 2000, p.193).
A linguagem deste modernismo inicial traz como protagonista ideológica a cidade
de São Paulo. Curioso perceber que Baudelaire serve de modelo, inicialmente, pela
abordagem temática urbanista e, posteriormente, pela idéia de “paraíso artificial”. Tal
linguagem empregada pelos primeiros modernistas (exemplares nas narrativas de
Menotti Del Picchia, ou até mesmo, no primeiro Mário de Andrade), ainda se pauta
pela retórica convencional, portadora de uma espécie de épica¹ recomendada para o
mito tecnizado. A programática ainda sustenta o discurso enquanto intenção e
afirmação de classe, o que fica claro nas polêmicas levantadas por Oswald,
reguladas por uma linguagem solene, como no famoso discurso do Trianon de 1921:
“São Paulo é já a cidade que pede romancistas e poetas, que impõe pasmosos
problemas humanos e agita, no seu tumulto discreto, egoísta e inteligente, as
profundas revoluções criadoras de imortalidades” (ANDRADE, 1991, p.27).
Percebe-se no trecho a cidade afirmada como linguagem da épica do poeta
precursor. Têm-se incorporado ao discurso o movimento do presente, mas ainda se
_________________________________________
1. Adorno lança uma perspectiva interessante para a abordagem aplicada aqui: “(...) a identidade
impiedosamente rígida que fixa o objeto épico serve justamente para alcançar sua própria
diferenciação, sua não-identidade com o meramente autêntico, como monotonia não articulada. As
epopéias desejam relatar algo digno de ser relatado, algo que não se equipara a todo o resto, algo
inconfundível e que merece ser transmitido em seu próprio nome” (ADORNO, 2003, p. 48).
36
vê a imortalidade como valor escritural. Da mesma forma, observa-se a escolha
vocabular que acentua tons heróicos em busca da consagração social: “(...) esse
tinir de armas heroicamente arengadas em pacífica consagração literária”
(ANDRADE, 1991, p.27).
Mesmo que situado numa linha opositiva da tradição, este primeiro modernismo,
do qual Oswald é figura central, ainda está vinculado ao próprio discurso que
contesta. Esta oposição será, de certa forma, não a remodelação anterior, mas a
atualização, como no artigo de 1922, que busca uma simbologia plausível ao que se
entendia por futurismo:
Queremos mal ao academicismo porque ele é o sufocador de todas as
aspirações joviais e de todas as iniciativas possantes. Para vencê-lo
destruímos. (...) Somos boxeurs na arena. Não podemos refletir ainda
atitudes de serenidade. Essa virá quando vier a vitória e o futurismo de hoje
alcançar seu ideal clássico (ANDRADE, 1991, p. 21).
Como se vê, trata-se de uma visão herdeira dos principais predicados do poeta-
símbolo: legitimidade social, ideal clássico e certo heroísmo triunfante. A diferença
começa a se estruturar quando se atenta para a elaboração sobre a linguagem.
Neste momento o discurso se filia à programática progressista, internamente
revestida do modo simbólico de apreensão representativa. A idéia de destruição da
tradição deste incipiente discurso inicia um movimento de desvinculação dos
símbolos – o que no modernismo será a efetivação de novos mecanismos de
construção ficcional. O romance Os condenados parece ensaiar uma nova
significação para a modernidade. Neste sentido, a leitura realizada de Baudelaire
será fundamental.
1.3 - Crise da representação: experiência crítica das leituras
Uma evidente crise da representação traz para o escritor a missão de
refuncionalizar os signos emergentes sobre o quadro planificado da tradição, neste
início do século XX. O primeiro discurso modernista caracteriza-se pela oposição
dialogal das leituras educadoras precedentes. E aqui se torna invariavelmente
37
crítico, sem, contudo, afirmar-se como presença distintiva. Cabe ressaltar as
oposições que a Trilogia realiza como estratégia, a fim de decompor os traços
unívocos de tais leituras simbólicas, mantenedoras do que se pode classificar como
escrita de representação burguesa.
O termo romance burguês é usado como referência à tradição romântico-realista
do século XIX. O escritor do período faz da escritura objetivo, ou seja, para manter
uma ordem interna de qualificação artística, lança mão de uma série de proposições
formais. Roland Barthes aponta, pelo uso do “passé simple”, uma ficção que tem
como intenção cultivar um discurso de classe: “Seu papel é reduzir a realidade a um
ponto e abstrair da multiplicidade dos tempos vividos e superpostos um ato verbal
puro (...)” (BARTHES, 2000, p.27). Seu molde de representação é estruturado pela
estabilidade simétrica em que o símbolo seja o modo de operação sustentador de
uma idéia antecedente, pois “(...) visa a manter uma hierarquia no império dos fatos”
(BARTHES, 2000, p. 27). Desta forma, o que concebe como dissecação ou retrato
da realidade, obedece de antemão a um molde fornecido pela tradição clássica. O
romance propõe-se como “imagem de uma ordem”, o que na verdade, nada mais é
do que afirmar uma resolução ao “alienar os fatos” (BARTHES, 2000, p. 29). Barthes
busca apreender da leitura dos romances do século XIX o molde discursivo inserido
ideologicamente, sob a falsa aparência de renovação, na estagnação social:
É por um procedimento desse gênero que a burguesia triunfante do século
pôde considerar os seus próprios valores como universais e transferir a
partes absolutamente heterogêneas de sua sociedade todos os Nomes de
sua moral. (BARTHES, 2000, p. 30).
O primeiro romance de Oswald está situado no limite de transferência, de
transição entre o romance burguês e o moderno. Afetado pelo compromisso com a
tradição que o legitima, a narrativa busca como forma de oposição demonstrar o
ultrapassado nas figurações personalistas: “(...) em meio daqueles inexpressivos
burgueses de mocidade extinta (...) Perambulava confuso por estéticas e religiões.
Compunha versos e tinha medo de mostrá-los (ANDRADE, 2000, p.58)”. Vê-se uma
recusa aos procedimentos classificados como “burgueses”, referência clara à
tradição, agora vista como modelo “inexpressivo”. O tema propicia à personagem a
vivência do hiato, em que “perambula” seu olhar em constante andar nas
transmutações da mercadoria estética. Seu contínuo atravessar, carregado da
vivência poética é a confirmação da inutilidade que “aborrece” o trabalho utilitário
38
que move a cidade: “(...) parte berrante da jovem literatura cosmopolita da cidade.
Atravessaram noites nos cafés, aborrecendo os garçons sonolentos e lendo”
(ANDRADE, 2000, p.58).
O primeiro modernismo os romances do período como reflexo de uma
mentalidade escritural, já que figurados a partir de uma leitura simbólica da
realidade, reiteram um compromisso com uma ordem que lhes promete um espaço
de prestígio e utilidade. O que é apontado como qualidade - o grau de
expressividade - muitas vezes nada mais é do que “expressão da convenção”
(BARTHES, 2000, p. 30). Por este viés os primeiros modernistas armam sua criação:
fazer uma releitura da tradição a partir da negação do discurso normativo.
As oposições fazem-se metodicamente: resquícios do discurso romântico,
presentes ideologicamente, amparam o caráter conciliador e acrítico sobre o tema
nacionalismo; então, o paraíso natural é desarmado pela perspectiva urbano-
cosmopolita da modernidade industrial. O tema amor reduzido ao sentimentalismo,
enquanto prática moral esteticamente burguesa, é uma das portas de tensão
discursiva. A mulher-musa, símbolo da pureza romântica idealizada, não encontra
figuração sob o referente urbano, já que seu lugar é recriado pelo advento do
mercado de trabalho e consumo. A realização do ato amoroso permanece central,
mas se esvai por outro viés, assim como as tintas que caracterizam a musa. Como
depõe José Paulo Paes, que coloca Os condenados em interlocução,
O tema do “eterno feminino”, que no art nouveau esplende no estereótipo
da mulher moderna, liberta dos preceitos de vida burguesa, ainda que o
preço dessa liberdade seja a prostituição mais ou menos de alto bordo,
gerou toda uma literatura de garconière (...) assim como nos dois primeiros
volumes da trilogia Os condenados, de Oswald de Andrade, com sua prosa
trabalhada a antecipar, malgrado “o entulho art nouveau” nela denunciado
por Haroldo de Campos, (...) (PAES, 1985, p.72-73).
O refúgio na natureza, típico exílio do poeta, incorpora gradativamente a leitura
estética do modelo Baudelaire – os paraísos artificiais, as vielas dos grandes
centros, indicadores do novo exílio em uma existência diferenciada na multidão. A
Trilogia expõe um olhar que coloca em tensão a exterioridade e a internalidade dos
objetos a fim de possuir sua estrutura, o fundamento tradutor do fenômeno. Isso faz
a linguagem recortar a cidade para expor não uma imagem acabada, mas em
construção:
Havia uma Estação da Luz panorâmica, na parede do fundo. E a alma
multifária do bairro cantava pelas cem goelas desafinadas de um orquestrão
39
de campainhas (...) Foi atravessar a noite silenciosa, rodando a rua de
lampiões (...) (ANDRADE, 2000, p.120).
A oposição mais agressiva concentra-se no ideal estético parnasiano, já que este
dispõe de uma unidade representativa, que é lida como estagnação pelos
modernistas. Por isso, a própria linguagem propõe uma representação do
fragmentado – não necessariamente uma linguagem fragmentada – a vida à
semelhança dos ruídos urbanos, sem uma unidade harmônica possível: “(...) E num
eco doloroso e profundo, batiam nele todos os barulhos da vida” (ANDRADE, 2000,
p.123). Ao mesmo tempo em que expõe índices da modernidade, a narrativa revela
uma visão pessimista desta. Como no trecho acima, tais índices agridem a
consciência poética, o que demonstra mais uma vez a dubiedade presente no
romance.
A presença do decadentismo francês e derivantes - a avant-garde - que irá
redundar na explosão das vanguardas – é coligada, indiretamente como leitura de
Baudelaire: “As últimas décadas do século XIX são os anos em que desabrocha a
modernidade definida por Baudelaire. (...) uma vaga idéia de algo que morre, de um
mundo em decomposição” (FULVIA, 1989, p.14). Encontra-se um molde de
representação da modernidade baseado na idéia de um poeta herói, imbuído de
uma missão moral: “(...) na segunda metade do século XIX, especialmente, que a
arte se torna uma moral, uma religião, uma metafísica” (FULVIA, 1989, p.15). Dentro
de tal perspectiva, Baudelaire repercute problematicamente para a Trilogia:
percebe-se sua presença, seja por meio da leitura simbólica e canônica, o que seria
um traço de afirmação acadêmica; seja como instrumento de interpretação sobre a
modernidade.
Em determinado momento do romance a personagem Alma, ao ver o retrato do
poeta francês no quarto de João do Carmo, diz: “Parece um santo”. Também, a
personagem Jorge vê sua condição de artista como “incompreendido” e,
naturalmente, um “condenado”. Estes momentos parecem auratizar o poeta modelo
ao buscar uma moralidade na arte. Porém, outros momentos revelam uma leitura
crítica de Baudelaire que repercute na incorporação de mecanismos funcionais da
modernidade. Por exemplo, quando a voz narrativa revê o material poético que seu
olhar traduz como linguagem: “Havia no céu distante, uma lua amorfa, entre nuvens
esfarrapadas. Do astro doente, caíam reflexos na terra morta” (ANDRADE, 200, p.
169). A desfuncionalização poética do elemento lua aponta para a representação de
40
um papel no cenário moderno. O poeta lê a lua como figura desprovida de
significação poética, já que a iluminação se dá pela luz elétrica. Não é mais símbolo
da representação subjetiva, mas “teatralizada” artificialmente, assim como o próprio
“papel” a ser representado pelo poeta: “(...) A serrania invisível e crestada parecia
constituir na distância infinita um fundo de palco. A lua sobre ela despencava
teatralmente” (ANDRADE, 2000, p.169).
A Trilogia parece vivenciar este momento de impasse do primeiro discurso
modernista. Encontra-se neste caminho mediado entre a tradição e a novidade,
produto do próprio hiato que opera. A partir das oposições inicia uma crítica da
tradição, o que estabelece a idéia da metalinguagem como princípio produtivo. Na
verdade, revela, segundo considera João Alexandre Barbosa, uma crise da
representação da realidade, o que potencializará o “direito à pesquisa estética”
(Mario de Andrade):
(...) pela impossibilidade de contar com uma linguagem para a objetivação
das experiências e que não apenas servisse aos desígnios de uma
‘permanência’ com relação ao conjunto da sociedade, como viesse a
problematizar a própria estrutura social dentro da qual existia. (BARBOSA,
1983, p. 82).
O romance de Oswald pontua seu narrar por meio de cenas recorrentes do
impasse vivido: materializa na “lama” seu próprio caminhar em solo instável e
movediço: “Estava na lama da rua, indeciso de novo” (ANDRADE, 2000, p.172).
Extraí-se desta visão uma situação cultural que parte do princípio da leitura como
potencialidade representativa, em que se nota uma correlação: antes de
estabelecer-se como forma, o Modernismo foi uma leitura da Tradição. Assim,
projeta-se não só uma idéia de futuro, mas um desmonte do passado como modo
operacional do presente:
(...) o modo como foi possível instaurá-lo a partir de uma experiência de
cultura anterior, codificada, criando deste modo um conjunto de relações
que solicita uma nova leitura – nova com referência à anterior e não apenas
como projeção de futuro (...) (BARBOSA, 1983, p. 75).
Por isso, a Trilogia demonstra no decorrer de sua própria construção, uma
possível reflexão sobre a linguagem, em que a personagem é exemplo da
consciência poética frente ao utilitarismo do mercado estético; a “boneca’, objeto
manipulável, como em um teatro de marionetes, metáfora do ultrapassado:
“Deixarás de ser a boneca que foste! Vê como é triste ser uma boneca... Que foste
até agora? (...) E a tua consciência, que é a minha consciência, morta, apagada,
41
inútil!” (ANDRADE, 2000, p.175). A cena demonstra dialogalmente a linguagem em
abismo: a poética no vácuo, no hiato, hesitante de significação.
O primeiro modernismo tem como princípio de inventividade textos que,
invariavelmente, evocam uma forma anterior impulsionada pela leitura: a instância
autoral praticamente determina a idéia de texto literário no período. O conceito
barthesiano sobre o texto-leitura é auxiliar para a apreensão dos procedimentos de
criação modernista, assim como para o próprio elo construtor da Trilogia, a sua
leitura baudelairiana da modernidade. O autor é aqui o organizador sumário do texto,
a voz que porta a verdade incondicional da realidade textual de modo a obedecer
não só a um padrão elaborador, mas, sobretudo à sua leitura:
(...) o autor é considerado o proprietário eterno de sua obra (...) um tema de
autoridade: o autor tem, assim se pensa, direitos sobre o leitor, constrange-
o determinado sentido da obra (...) (BARTHES, 2004, p. 27).
Por isso, obedece a uma condição forjada na acepção simétrica, desde sempre
associativa, pois “entremeia-se uma lógica do símbolo” (BARTHES, 2004, p.28).
Temos dois procedimentos simultâneos: uma leitura que legitima a escritura
enquanto representação autoral e outra que associa o texto enquanto tensão das
leituras anteriores, de modo a oferecer uma insatisfação produtiva sobre o material
primeiro.
A construção oscilante de Os condenados parece estar mediada pela leitura
que faz de Baudelaire. Oswald, em conferência realizada em 1949, atinge a
consciência em ruínas que norteia a poética do poeta francês, o que se reflete
intensamente no romance:
Mas não são só os amores de Baudelaire que se decompõe. O mundo que
ele vive também é uma infame charogne. É uma simples e nauseante
decomposição. Enquanto a burguesia exibe o seu triunfo bestial, e de outro
lado Marx a analisa, os poetas e os artistas refluem estóicos para a
infelicidade. E de lá agem. Não se exibem mais como no Romantismo em
gritos e lamentos (...) Esse isolamento, essa fuga, não representa abdicação
nenhuma. É apenas a retirada do caos (...) O poeta tem pudor do seu
estado de graça... ou de desgraça. (ANDRADE, 1991, p.114).
É pela incorporação deste modelo de poética que se configurará a interpretação
de modernidade da qual Oswald apropria-se, ficcionalmente, em seu primeiro
romance. A escritura condenada cria desvios do discurso simbólico, pois parece
compreender a idéia de texto como um “tecido de citações” (BARTHES, 2004, p.62),
passando a ser relato citado da crise escritural. O romance, em determinados
momentos, parece se apropriar dos temas baudelairianos, o que configura o poeta
42
como alegoria da modernidade, depositário do que é expelido pela sociedade de
produção: nega a lógica, o sentido comum - “Trancara todas as portas do cérebro
aos raciocínios” (ANDRADE, 2000, p.207) - para tornar a abstração movimento e
recolher na margem seu argumento poético:
E caminhava ao lado do mendigo como se levasse para o primeiro encontro
uma mulher amada. (...) Depois... o vagabundo voltaria, seria o seu modelo.
Ele abrandar-lhe-ia a carne áspera, lavá-lo-ia, fá-lo-ia seu... (ANDRADE,
2000, p.232).
A noção de transição ou hiato possibilita ao primeiro modernismo uma intenção
discursiva em que os significados sejam transtornados pelos significantes
(desarticulação inventiva) por uma visão crítica (metalinguagem). Neste sentido, a
função mimética da literatura ganha espaço. A questão centraliza-se na passagem
entre duas sociedades: a passada, conservadora, e a nova, liberal progressista. Este
movimento denuncia os instrumentos simbólicos da tradição como incapazes de
problematizar a linguagem e, ao mesmo tempo, a realidade. A arte, de certa
maneira, mimetiza a idéia de progresso em meio ao processamento do recorte
técnico. Sintomatiza o desfacelamento dos modelos simbólicos de um período
histórico. O que em Os condenados surgirá como sintoma da impossibilidade da
arte ser compreendida como representação efetiva, simétrica e simbólica, já que
tudo é concebido por seu valor de mercado:
(...) viram um caixão sob um altar elevado, onde quatro velas, chorando as
suas últimas lágrimas de cera, se apinhavam ante um Cristo de latão. Entre
os castiçais, o Cristo, na cruz desmesurada de pau preto, parecia pregado
ali, inutilmente, ironicamente, havia vinte séculos. (ANDRADE, 2000, p.207).
A dessacralização invade o discurso no sentido de nivelar todas as imagens do
passado histórico e sacro para torná-las uniformes no fundo comum da condição de
mercadoria que tudo atravessa.
A crise escritural, empreendida como princípio pelo primeiro discurso modernista,
não visa somente a um desmonte dos signos do passado, mas a uma revisão sobre
o próprio papel do escritor. Por isso, a auréola que circunda o autor, este leitor
modelar da tradição, surge como sintoma da estagnação da linguagem. Percebida
como artifício, a apropriação conservadora de um significado a reverberar símbolos
mantenedores agora é afrontada por signos problematizadores que a própria
realidade transitória oferece. Não por acaso, a escritura condenada mostra a
convivência em choque entre estas formas de exprimir o atual: “Acendeu a lâmpada
43
elétrica. Sentia-se só no seu naufrágio” (ANDRADE, 2000, p.52). A seleção
vocabular expõe nitidamente o sentido de transição, já que, a “eletricidade” se
conforma à metáfora corrente e consagrada (a vida como naufrágio). Percebe-se
uma intenção enunciadora no sentido de produzir o choque e espalhá-lo pela
escritura como sintoma de uma convivência conflitiva, geradora de impasse.
O olhar mediador do autor aproxima-se da matéria de sua poética, a fim de
reconhecer o eu no outro que se espalha em fluxos de movimento: “Alma caminhava
como uma pessoa ferida. Não via ninguém nas ruas populosas. Carregava um
amargor de predestinada dentro do pequeno coração” (ANDRADE, 2000, p.54). A
personagem poeta não mais contempla, mas “caminha”, como símbolo deteriorado
(ferida). A rua, lugar onde o outro se espalha, estende um palco para que a
heroicidade poética se destaque como diferenciação. A passagem que lhe conforma
à condenação, logo depois, faz da personagem sua própria poética a contaminar o
outro: “Alma era o apoio poético da sua desgarrada existência” (ANDRADE, 2000,
p.54). O que se intensifica se levarmos em consideração a existência previsível de
João enquanto funcionário regular do telégrafo. Sua existência ficcional singulariza-
se pela poética que Alma instaura em sua figuração. Imagens que não chocam
necessariamente o coração (no texto adjetivado como antigo “O antigo coração
atropelou-se”, p. 59), mas os olhos.
A busca pela representação mimética do atual passa pela experiência crítica
das leituras, vista por Mário de Andrade como “realização da matéria afetiva” e
segundo Barbosa “detectável na trilogia vaporosa de Os condenados” (BARBOSA,
1983, p. 103). A modernidade baudelairiana é lida pelos parnasianos “segundo uma
interpretação redutora do seu ‘satanismo’ ao quadro de um hedonismo mais ou
menos vulgarizado (...)” (CHALMERS, 1976, p.36), o que na Trilogia surge
acentuadamente crítica enquanto reflexão estética. O que se evidencia quando
Oswald demonstra sua visão da escritura poética de Baudelaire, percebida como
instante singularmente crítico em relação à crise que corta seu tempo:
Que prodígio se fez para que Baudelaire se colocasse fora dessas colunas
de fogo do Romantismo? O seu lugar é único. Ele se situa no centro da
crise de um sistema mais vasto que o sistema burguês. (...) Baudelaire
coloca-se no centro da crise que atingiu a burguesia farisaica, acossada
pelo messianismo político de Marx. (...) o poeta chega a conclusão saída da
‘necessidade do mal’ (...) É a aceitação consciente do pecado contra Deus,
em plenas coordenadas cristãs. (ANDRADE, 1991, p.113-114).
44
Dentro desta visão compreende-se a correlação paradoxal que Oswald propõe
ficcionalmente em Os condenados: a redenção do herói (Jorge) se dará na
transposição messiânica do cristianismo para o comunismo: “Sentia-se místico. Ia
aos comícios como antigamente ia à missa” (ANDRADE, 2003, p.350).
O papel de Baudelaire é acentuado enquanto leitura da modernidade por meio
da caracterização heróica do papel exercido pelo poeta: “João do Carmo compôs um
livro todo de sonetos” (ANDRADE, 2000, p.127). A incorporação técnica surge não
só como mimese do atual, mas faz da multidão a máquina vocabular da linguagem
triturada: “De fora, da rua asfaltada e larga, vinha um cascatear contínuo de veículo
rodando, arfar de motores, gritos, cornetas”. De outra maneira, joga o olhar poético
pela “linha desmesurada de alegorias rolantes”, que o poeta vê no presente como
fantasmagoria²: “Os dois artistas caminhavam na busca inocente do maravilhoso que
passava nos carros, com toaletes estranhas, evocativas de sonho, restauradoras de
épocas e países” (ANDRADE, 2000, p.238).
A busca do singular no deteriorado, aqui referência clara à simbologia da
tradição, é recoberta pela falsa aparência que o tempo desmente:
Num corte de oiro sobre o negro soalho antigo, feito pela abertura de um
dedo da janela, a poeira da casa revolvida. E nas soleiras, nos buracos de
rato das portas, andavam manchas quentes de luz.
Fora um golpe teso no coração, um abalo geral de todos os nervos, de
todas as revoltas, de todas as maldições... E lágrimas pularam, pularam...
(ANDRADE, 2000, p. 60).
A solenidade discursiva convive com os elementos da visão trapeira do poeta, o
que nos dá a dimensão em que oscila a escritura de Os condenados: as metáforas
são rasgadas pela seleção vocabular que permite realçar, em meio ao estético do
fraseado, o deteriorado (soalho antigo, poeira, rato, manchava). Assim, propicia ao
olhar poético uma luz intermediária, parcial, frestas de caminhos que o andar
percorre nos espaços da cidade, bem como nos do texto. As lágrimas, expressão
corrente do sofrimento, exteriorizam-se como ação e vivência (o verbo “pularam”). O
poeta alegoria seria este andar, a consciência de transitoriedade plasmada na
sucessão expositiva dos elementos:
__________________________________________
2. O conceito de fantasmagoria de Benjamin
é assim interpretado por Kátia Muricy: “É um mundo que
se agarra a formas culturais que já não acompanham as transformações pelas quais passa e que se
recusa a representar a realidade impositiva da mercadoria. Este desequilíbrio determina uma
constante e intercambiável expressão do velho no novo: a construção de fantasmagorias” (apud
CARDOSO, 2002, p. 498).
45
E ele tinha partido num ímpeto de jogar cenas de dramalhão moderno como
vira nos teatros.
O centro esvaziou-se (...) Ia sem direção, andando, os olhos presos
inconscientemente nas luzes iguais das ruas.
Uma sola de botina envelhecida despregou-se, fez-lhe o acompanhamento
trôpego da marcha (ANDRADE, 2000, p.63).
A arte entra no cenário urbano como um fenômeno a ser “vivido”, em que a
representação toma corpo no presente, sem mediação ou distância. O centro da
cidade esvazia-se como um palco em que a representação da modernidade faz do
poeta um contraste frente à uniformização das “luzes iguais das ruas”. Da mesma
maneira, a narrativa parece acompanhar este andar trôpego, reforçado pela bota
“despregada” e desigual, enquanto sintoma do moderno.
Desta forma, a leitura que a Trilogia faz de Baudelaire insurge-se como possível
transgressão da norma literária. Mas, o que parece ser central neste procedimento
de leitura são os desdobramentos ficcionais reverberados no texto, como a utilização
da alegoria enquanto método construtivo. O desmonte do poeta-símbolo aproxima-
se da leitura que Walter Benjamin faz de Baudelaire: traçado estético do poeta-
alegoria, forma crítica de uma leitura da modernidade. O choque entre estas duas
visões – simbólica e alegórica – parece ser o movimento central de Os
condenados.
46
Capítulo II: O poeta-alegoria – a lama da aura
2.1 - Benjamin-Baudelaire: alegoria e choque
O eixo contextual de Os condenados e do primeiro discurso modernista
percebia a linguagem como incorporação simbólica dos novos instrumentos
oferecidos pela técnica. O discurso procurava o atual para a construção de uma
forma virtualmente moderna. O dado diferenciador da Trilogia é justamente seu
particular procedimento de leitura: em busca de uma crítica à tradição acaba por
encontrar em Baudelaire uma forma de resposta à estagnação escritural. Porém,
mais do que ler as significações temáticas do poeta francês, a escritura condenada o
incorpora como funcionalidade escritural pela alegoria. Transforma a incorporação
técnica em desencanto, o que potencializa uma imagem do poeta em crise. Não por
acaso, o signo da condenação vincula-se ao poeta-alegoria face à mercadoria
poética desvalorizada e, produtivamente, inútil.
Pode-se extrair do procedimento alegórico de construção a correlação entre
duplos que redunda em dualismos que percorrem o romance: “Na rua, claudicou
longamente, com moleques atrás, uma carroça de reclamo de circo (...) - Foi aqui
que conheci a minha desgraça e o meu amor” (ANDRADE, 2000, p.72). Há aqui a
exposição do antagonismo desgraça-amor, num cenário onde se reflete a morada
poética (a rua) e os instrumentos disseminados pela modernidade: a propaganda e a
carroça. O texto expõe o passado e presente sob a mesma oscilação deteriorizante,
o que culmina na potencialidade da ruína da linguagem.
De outra maneira, na descrição de personagens: “(...) a boca inchada de
lascívia, sentada numa seriedade de crime, os olhos fundos nas olheiras lutuosas, a
carne vencida de gozo” (ANDRADE, 2000, p.129). A personagem é caracterizada de
modo exemplar, pois o que a singulariza é a morbidez de seu rosto no qual se o
corrompido em paralelo à falsidade e ilusão das descobertas progressistas.
O conceito comum de alegoria – allós = outro; augorein = falar - baseia-se na
idéia de um discurso que quer significar outro; o desvio do discurso primeiro.
47
Comumente é visto como um “ornamento do discurso” que atua como “procedimento
construtivo” de “metáfora continuada” (HANSEN, 2006, p. 7). Inicialmente podem-se
destacar dois tipos de procedimento alegórico: o primeiro, de fundo retórico,
“expressão” da linguagem, utilizada pelo poeta; o segundo, de ordem interpretativa
ou hermenêutica - “(...) um modo de entender e decifrar” (HANSEN, 2006, p. 8) -
utilizada teologicamente. A alegoria dos poetas empreende em seu discurso a
criação estética, enquanto a alegoria dos teólogos baseia-se sobre os fatos bíblicos,
enquanto interpretação da escritura original em que “(...) o sentido próprio das coisas
comparadas é a vida eterna; a história, sua figura, o que implica circularidade e
repetição” (HANSEN, 2006, p. 12).
Na Trilogia, vemos estas posições relativizadas na própria construção
enunciadora do tempo-espaço: “(...) escutava passar nas horas imensas uma
procissão de enterro sem música” (ANDRADE, 2000, p.67). Tal perspectiva do
tempo se confirma na dualidade efêmero-eterno, que convive sob o olhar
transformador a matéria poética em morte (enterro) do tempo (horas), enquanto
sentença da condenação (sem música). A alegoria poética é utilizada como recurso
construtivo e formador da linguagem; já o plano teológico estende um fundo de
significação a partir da imagem da queda e da condenação. Desta maneira, as duas
se correlacionam pela narrativa: “Que bom correrem as horas! A terra andava
levando o enterro dos vivos. O enterro começava no dia do nascimento de cada um.
Um dia era um passo para a morte, para a libertação” (ANDRADE, 2003, p.99). A
imagem funciona enquanto sentido de “passagem”, fundamentada pelo olhar
alegórico: o tempo devorador a espalhar marcas no espaço comprimido.
A alegoria, enquanto método de construção artística, é comumente
desvalorizada pelos padrões clássicos de arte. Tais padrões são herdados e
utilizados pelo romantismo para eleger o símbolo como valor central para a produção
de suas imagens: “(...) romanticamente o símbolo é o universal no particular; a
alegoria, o particular para o universal” (HANSEN, 2006, p. 17). O símbolo solidifica a
expressão personalista do poeta, como modelo simétrico centralizado no absoluto:
“As noções românticas da arte como expressão incondicionada do artista gênio em
contato fulminante com potências cósmicas (...)” (HANSEN, 2006, p. 18). Já a
alegoria, “Como metáfora (...) é apenas um modo de formar entre outros, virtualidade
significante (...)” (HANSEN, 2006, p. 24). O primeiro Oswald busca pela alegoria o
presente debilitado, em imagens que desarticulam as descrições obliquamente,
48
como no exemplo, o verbo resignificado pelos adjetivos: “(...) sorriu com dois dentes
na boca trevosa o amarelo calvo (...)”; de outra maneira, traz um presente lacunar
que vivencia a morte como forma expressa de vida:
(...) as humilhações que precipitavam em vontades de chorar a circulação já
doente do ser convulso e magoado (...) Mas aquele homem também não
valia nada, era um nojento bem vestido, como um cadáver (ANDRADE,
2000, p.70).
A imagem alegórica da deterioração (amarelo calvo) irá redundar no valor-
mercadoria (nada), que antecipa o uniforme (cadáver). O poeta, então, não mais
expressa o simétrico, mas a assimetria que corrói o presente.
Se no romantismo o símbolo é o instrumento hegemônico – e por isso faz do
romance um gênero representante do discurso burguês – a alegoria estabelece um
desvio funcional sobre a arte: “O acontecimento, a coisa ou a personalidade histórica
do passado ligam-se a outros acontecimentos, coisas e personalidades do futuro
através de uma significação comum a todos” (HANSEN, 2006, p. 105). A Trilogia faz
da condenação um signo que condiciona todos os seres textuais a viver em a “lama
da vida”, ou seja, desmaterializa os significados para empregá-los como paradoxo:
(...) a poesia não pode exprimir nenhuma verdade essencial, pois toda a
verdade encontra-se do lado do sentido espiritual e este só existe na Bíblia,
sendo desvendado pela alegoria factual. A ficção é sentido literal do
figurado. (HANSEN, 2006, p. 123).
Como se em tal visão, a linguagem humana destituída de uma finalidade
primordial, demonstra a ausência: “(...) possibilidade de outras e novas expressões e
interpretações aplicadas a objetos diversos para revelar um Além – que ela só
expressa, no entanto, como inexpresso e inexprimível” (HANSEN, 2006, p. 158).
Por isso, mesmo que utilizada para dizer as coisas do mundo, carece
estruturalmente de uma forma fechada ou significadora como a visão simbólica.
Paradoxalmente, explora a linguagem para dizer não a materialidade significadora,
mas a materialidade de uma forma impossível: “(...) a alegoria torna-se
metaforização sistemática de uma ausência de vida que se faz mais insistente e
dolorida quanto mais material e pura é a linguagem” (HANSEN, 2006, p. 206).
Enquanto sistema percebe a linguagem como tentativa vã de um discurso efetivo.
Carrega um traço oscilante que parece impulsionar a própria força de sua produção:
“A alegoria é tropo de salto contínuo (...), pois funciona como transposição contínua
do próprio pelo figurado” (HANSEN, 2006, p. 31). A Trilogia utiliza a consciência
49
alegórica para atestar o próprio hiato - histórico e estético - que vive. Do aparente
contínuo do progresso extrai um mundo estático e, assim, “metaforiza a ausência” -
“Viu descer no escuro, num desequilíbrio sobre os ombros que tinha aconchegados,
um mundo bruto e apagado de formas” (ANDRADE, 2000, p.211) – paradoxalmente
como construção ficcional contínua.
Historicamente, a alegoria carrega o predicado de falso discurso a redizer
infinitamente a palavra original do paraíso adâmico. Na modernidade, a alegoria é
refuncionalizada para se aproximar da técnica que, sob o signo do progresso, gera
uma constante especulação que imobiliza papéis sociais sob a aparência da
transformação. Por isso, será operada enquanto consciência crítica pelo poeta-
alegoria que vê em sua auréola-linguagem uma camisa de força. É neste ponto que
o emprego da alegoria em Baudelaire, lido por Benjamin, encontra-se com as
imagens condenadas:
Walter Benjamin demonstrou como Baudelaire lança mão da alegoria
justamente devido a seu caráter convencional, como destruição do orgânico
e extinção da aparência. Fazendo da alegoria máquina-ferramenta da
modernidade e pensando-a como antídoto contra o mito, ao mesmo tempo
que a incorpora como método de escrita e de crítica, Benjamin a propõe
como o outro da história (...) (HANSEN, 2006, p. 19).
A leitura metafórica de Walter Benjamin sobre a lírica baudelairiana aplica-se ao
romance de Oswald como máquina de metaforização a difundir alegorias pelo texto:
A vida comprimia-se nas duas humanas caixas apaixonadas, onde se
musicava o futuro triste, o passado horrível, o presente sem remédio. Um
conforto, exigido mutuamente, enlaçava as duas almas aliadas, na luta
contra o inexplicável, na justificação comovida dos atos, na apoteose das
próprias transfigurações. (ANDRADE, 2000, p.149).
O trecho acima evidencia um dos principais alicerces da narrativa: sua
construção é estabelecida pelo jogo de duplos e, também, sustenta-se pela
gestualidade – o teatro onde o poeta vislumbra lançar a palavra. Desta maneira, se
não contamos com uma perspectiva material sobre a palavra, o que definiria o seu
sentido, vemos a ligação de “duas almas” sob o jogo do claro e escuro, entre o
“inexplicável” e a “justificação”, entre as instâncias temporais, que se absorvem no
delinear alegórico enunciador. Neste sentido, a voz narrativa amplifica a
“transfiguração” sobre a figuração orgânica da aparência.
A escritura de Os condenados lança formas distorcidas, apreendidas pelo olhar
poético que se move por meio da metáfora que é o próprio impulso de ação das
personagens. O olhar recorta e monta, em movimento contínuo, a própria
50
estagnação aparente da personagem “solene”: “Sem pinga de sangue no rosto
citronado, reconduziram-na cautelosamente para a maca horizontal. No cortejo de
irmãs e enfermeiras, Jorge ia, automático, solene” (ANDRADE, 2000, p.200). Tal
movimento espalha-se pela narrativa como forma e sintoma do moderno: “Pensava
na sua incapacidade invencível para as festas da terra” (ANDRADE, 2000, p.150). O
presente não revela a felicidade – apesar da multiplicidade das ‘ofertas’, mas sim
uma promessa de felicidade.
Alguns temas desenvolvidos por Benjamin nos ensaios sobre Baudelaire (2000)
correlacionam-se com a interpretação que a escritura condenada faz do poeta
francês. Enquanto referência escritural, dissemina-se ficcionalmente, o que produz o
poeta-alegoria, isto é, a lama que a modernidade lança no brilho anterior da auréola
simbólica.
Benjamin decifra o poeta francês como figura-metáfora interpretante da
modernidade. Um dos conceitos mais salutares, a perda da aura na era da
reprodutibilidade técnica¹, demarca o poeta na era do alto capitalismo industrial,
como mercadoria. A imagem conceitual de Baudelaire² – o momento em que o poeta
se curva para recolher sua aura lançada à lama - traduz-se na constituição da arte
moderna. A partir dela o poeta carrega a aura como uma cruz (a via-crúcis da
condenação) para atravessar os caminhos estreitos, constantemente renovados.
Daí, o cerne das imagens produzidas por tal postura: o poeta não verá em tais
paisagens a “novidade”, mas a “repetição” do velho. O tempo não congrega o eterno
aurático, porém demonstra a fragilidade do presente em que o passado e futuro se
interceptam na obscuridade da morte onipresente. O desencanto sombreia a
linguagem, de modo a anunciar a ruína que preexiste a toda construção. Neste
sentido, Baudelaire recupera e Benjamin retém, como metáfora crítica, a alegoria
enquanto procedimento potencial da lírica. Numa sociedade que não permite mais o
exercício da subjetividade, é a racionalidade utilitarista o mecanismo de finalidade
_________________________________________
1. Benjamin vê na arte um princípio imitativo. Porém, como expressão do Belo, percebe uma unidade
prefigurativa: a experiência. A modernidade explode tal unicidade através do advento da reprodução
técnica que, “(...) substitui a existência única da obra por uma existência serial” (BENJAMIN, 1996,
p.168).
2. Pequeno poema em prosa intitulado Perda de auréola: “(...) minha auréola, num movimento
brusco, escorregou de minha cabeça para a lama na calçada. Não tive coragem de juntá-la. (...) E
depois, pensei, há males que vêm para o bem. Posso agora passear incógnito, praticar ações vis e
me entregar a devassidão, como os simples mortais” (BAUDELAIRE, 2007, p.219-221).
51
que assegura o sentido.
A Trilogia reitera tal consciência sobre a modernidade na apreensão cênica dos
elementos da emergente tecnologia, que nada apresenta de novo, mas repetição
vazia, fantasmática – a “palidez” do presente:
E, pela avenida extensa, passavam vendedores de jornais, anunciando
tragédias, bondes chiavam nos fios elétricos, recolhendo massas
macambúzias de gente (...) Do alto, a noite caía numa palidez precoce de
inverno. (ANDRADE, 2000, p.117).
A multidão mantém o poeta sempre desperto ao oferecer, por meio do choque, a
consciência incessante do presente.
Desta forma, o poeta reflete-se como vítima de um contexto evolutivo da História.
A mecanização do processo produtivo proporciona a desestabilização da percepção
sobre a unidade que a obra de arte julgava portar. Havia nesta visão a magia do
objeto artístico, a dimensão do único, implícita na construção simbólica e clássica da
tradição. Por isso, a técnica e a reprodutibilidade são adotadas como símbolos do
progresso para o sistema da tradição e de fatalidade para o poeta baudelairiano: “O
sistema se constitui baseado na identidade e exclui o que não lhe seja adequado”
(KOETHE, 1978, p.54). Esta será a arma que utilizará alegoricamente: “Tinha a
consciência fatalizada dos condenados irremissíveis e monologava na sombra (...)”
(ANDRADE, 2000, p.227). O sistema de produção, ao excluir, abre um espaço: a
“sombra” será o palco de diferenciação deste poeta e, também, o espaço para o
monólogo da “consciência fatalizada”.
Seria importante ressaltar que a teoria benjaminiana assegura tal interpretação
ao propor a alegoria como modo destruidor do símbolo e induz, por esta vereda,
uma perspectiva transformadora do real e da visão histórica. Neste sentido, a visão
multiplicadora da alegoria concilia-se com a idéia de reprodutibilidade técnica:
instrumento dessacralizador do mito propõe uma ruptura com a origem e sua
reminiscência interiorizada na obra de arte. A modernidade produz encadeamentos
entre referenciais sob uma base dialética extraída do caminho desviante do duplo
discursivo alegórico. O que em Os condenados será indicador produtivo das
imagens fragmentadas da melancolia, da ausência de transcendência no olhar
quebradiço do narrador: “Num desamparo penetrante de tudo, Jorge d’Alvelos, com
gestos de polichinelo quebrado, mergulhou na noite sem Deus” (ANDRADE, 2000,
52
p.213). A personagem Jorge, configurada como escultor, remete ao homem do
trabalho artesanal, a aura do único da arte, anterior à reprodutibilidade técnica.
Usamos como referência conceitual de símbolo a visão exposta por Benjamin em
A origem do drama barroco alemão (1984), que redunda implicitamente em seus
textos sobre Baudelaire e a modernidade³. O símbolo pode ser entendido como uma
aplicação estética sobre a obra a partir do romantismo, que o vê como uma extensão
valorativa da visão clássica de obra de arte, embora reproposta por conceitos
atuantes no imaginário ideológico-burguês. Para Benjamin, o romantismo traz para o
universo estético um “(...) conceito de símbolo que exceto no nome nada tem em
comum com o conceito autêntico” (BENJAMIN, 1984, p. 181). Assim, “(...) numa obra
de arte a ‘manifestação’ de uma ‘idéia’ é caracterizada como um ‘símbolo’”
(BENJAMIN, 1984, p. 182). Parte desta utilização obedece a um predicado formal
para a configuração “(...) desse indivíduo perfeito, desse belo indivíduo, (que)
coincide com o círculo ‘simbólico’” (BENJAMIN, 1984, p. 182).
Benjamin como afirmação clássica do símbolo um modo de exclusão por “(...)
denunciar a alegoria vendo nela um modo de ilustração, e não uma forma de
expressão” (BENJAMIN, 1984, p. 184). Cita Creuzer como exemplo da essência do
símbolo, visão partilhada pelos românticos: “(...) o momentâneo, o total, o insondável
quanto à origem, e o necessário”, o que se traduz na concisão, fundamentalmente
contrária à temporalidade corrosiva da alegoria: “A medida temporal da experiência
simbólica é o instante místico, no qual o símbolo recebe o sentido em seu interior
oculto e por assim dizer, verdejante” (apud BENJAMIN, 1984, p. 181).
Para isso, Benjamin opera uma diferenciação que implica tanto a visão histórica
quanto a estética:
(...) no símbolo, com a transfiguração do declínio, o rosto metamorfoseado
da natureza se revela fugazmente à luz da salvação, a alegoria mostra ao
observador a facies hippocratica da história como protopaisagem
petrificada. (BENJAMIN, 1984, p. 188).
É desta maneira que o símbolo reveste-se de uma textura transcendente e
concisa, de modo a efetuar a expressão de um humano clássico, simétrico em sua
________________________________________
3. A visão benjaminiana tem como proposta revelar o caráter convencional do símbolo. Uma
concepção de um todo diferente da visão arquetípica de Jung ou mesmo da semiótica de Pierce. Aqui
parece atender a uma “(...) oposição ao ideal de eternidade que o símbolo encarna” (GAGNEBIN,
2004, p.31), ou em termos de linguagem: “(...) a imediaticidade do símbolo corresponde a uma feliz
evidência do sentido, revelação da transcendência na nossa linguagem humana, graças à inspiração
do poeta” (GAGNEBIN, 2004, p.34).
53
constituição. O que reforça o antagonismo: o símbolo, face linear da história dos
vencedores, enquanto a alegoria é a sombra melancólica do vencido.
Como mostramos, o literato do início do século XX traz como substância heróica
esta face ordenadora e exemplar, como se a imagem significasse um arquétipo
absoluto da linguagem. A idéia de totalização de um sentido elaborado: “(...) o
romantismo, em nome do infinito (da forma e da idéia) intensifica em sua crítica a
força da obra de arte acabada” (BENJAMIN, 1984, p. 198). O que a alegoria opõe-se
categoricamente: “Na esfera da intenção alegórica, a imagem é fragmento, runa.
Sua beleza simbólica se evapora, quando tocada pelo clarão do saber divino. O
falso brilho se dissolve (...)” (BENJAMIN, 1984, p.198).
A imersão alegórica transmuta-se do símbolo a partir de uma estrutura temporal:
“O ‘ instante’ místico se converte no ‘agora’ atual; o simbólico se deforma no
alegórico. O eterno é separado da história da Salvação, e o que sobra é uma
imagem viva, acessível a todas as retificações do artista” (BENJAMIN, 1984, p. 204).
A alegoria separa-se do símbolo pela temporalidade como forma constantemente
transformada: “(...) a alegoria precisa desenvolver-se de formas sempre novas e
surpreendentes. Em contraste, como perceberam os mitologistas românticos, o
símbolo permanece tenazmente igual a si mesmo” (BENJAMIN, 1984, p. 205). É que
atenua a diferença central entre os dois procedimentos sobre a linguagem:
(...) a vontade de totalização simbólica, como o humanismo a venerava na
figura humana. Mas é sob a forma de fragmentos que as coisas olham o
mundo, através da estrutura alegórica. (BENJAMIN, 1984, p. 208).
Na modernidade, a perda da aura desfigura a aparência que recobre o objeto
artístico. O olhar não possui a distância contemplativa do Belo, pois sabe que aquilo
tido como instante único e irrecuperável será reproduzido e multiplicado. O olhar,
então, busca o singular, o recorte diferenciador do todo fragmentado. Por isso, no
fragmento, no particular, vê-se uma sugestão da totalidade. O que será na alegoria
uma forma de introduzir o choque, ao materializar a contínua mutação do tempo. Tal
aproximação do olhar transforma-se em carga inventiva para as personagens
condenadas: “Fora sempre um fragmentário. Em torsos quebrados, metades,
estudos largados, concentrava numa predileção alegre e constante a força
reveladora de sua arte. Era um criador de mutilações” (ANDRADE, 2000, p.180). Se
Jorge exterioriza na materialidade artística o fragmentado, a personagem Alma o faz,
também, por meio da subjetivação do olhar: “Era a alma vária e imprevista,
54
desencontrada e musical do bairro pobre, onde a sua vida se destroçara”
(ANDRADE, 2000, p.153).
O primeiro romance de Oswald incorpora a estrutura alegórica como espaço de
variações discursivas sobre a moldura da condenação que tudo abrange
emblematicamente: “Ela pode ainda ser caracterizada como uma moldura
obrigatória, na qual a ação, sempre variável, penetra intermitentemente, para nela se
mostrar como tema emblemático” (BENJAMIN, 1984, p. 220). Antes de se fixarem
como símbolo, as personagens disseminam-se, pulverizando possíveis faces
íntegras e simétricas: “(...) E ante a beleza que ficara naquelas linhas em ruína, teve
o ímpeto de cair de joelhos e suplicar misericórdia coletiva para a obra-prima
mutilada” (ANDRADE, 2003, p.227).
Neste mesmo sentido, a utilização alegórica faz com que “(...) a linguagem se
fracione, prestando-se, em seus fragmentos, a uma expressão diferente e mais
intensa (...)”, para reter “(...) o princípio dissociativo e pulverizador, que está na base
da concepção alegórica” (BENJAMIN, 1984, p. 230). Esse é o procedimento de
construção das imagens da Trilogia: fragmenta-se o corpo do poeta-escultor, assim
como o corpo da própria linguagem:
O escultor fora fortemente empurrado para trás (...) Numa ânsia, empurrou,
varou com os ombros. (...) desdobrara-se, multiplicara-se em seis, em dez,
em doze cusparadas serenas sobre a pobre honra póstuma de Jorge.
(ANDRADE, 2000, p.242).
A integridade simbólica faz das personagens exemplos de uma intenção
moralizadora, conferindo um caráter exclusivo de elaboração da individualidade
própria do romantismo. Já a escritura condenada, aparentemente, planifica as
personagens por meio da voz narrativa, o que parece ser um mecanismo de
coletivização. Encontra na alegoria o sentido de constante retomada, de modo a
adquirir uma singularidade figurativa: “Então, não era só sofrer? Pelo mundo,
anônimas, caladas, existiam outras almas sob o peso de outras tragédias. Almas
emudecidas como a sua e outras almas (...)” (ANDRADE, 2000, p.265).
O que para Benjamin caracteriza centralmente o aspecto fragmentário da
alegoria: “No contexto da alegoria, a imagem é apenas assinatura, apenas o
monograma do Ser, e não o Ser em seu invólucro” (BENJAMIN, 1984, p. 236). Daí,
“(...) a visão da transitoriedade das coisas e a preocupação de salvá-las para a
eternidade estão entre os temas mais fortes da alegoria” (BENJAMIN, 1984, p. 246).
55
Tal preceito é vertido paradoxalmente para a construção das imagens na Trilogia:
“Que bom correrem as horas! A terra andava levando o enterro dos vivos. O enterro
começava no dia do nascimento de cada um. Um dia era um passo para a morte,
para a libertação” (ANDRADE, 2003, p.99).
Neste sentido, vêem-se as próprias personagens não exatamente como exemplo
ou caricatura, mas como máscaras, cuja variação abisma dentro de seus próprios
limites reconhecidos: “Tinha a máscara torturada, franzida, lavada de pranto. Alma
olhava-o comovida, sorrindo” (ANDRADE, 2000, p.204). Por isso, a interpretação
benjaminiana sobre Baudelaire e a nascente modernidade torna-se não só uma
constatação crítica da história, mas, sobretudo, uma aplicação dialética sobre o
presente. Logo, o passado não é revelação do exemplar, mas recuperação do que
se excluiu. A linguagem reluz a potencialidade do silêncio que carrega toda palavra.
As máscaras transpõem-se como vozes nas personagens para reconhecer a
transitoriedade. O dilaceramento é determinante, não só como idéia de tempo, mas,
também, na revelação de seu impasse de significações: “Sinto um sofrimento que
chega à paradoxal surpresa de ser um ser despedaçado e vago que se sobressalta
e chora longe de mim” (ANDRADE, 2000, p.288). Esse impasse se completa pela
dimensão de um eu poético imerso em sua própria desconstrução, consciente de
seu papel e fantasia que lhe é atribuída: “A existência nesta terra mortal é bem isso
– a busca de uma coisa que está em nós e longe de nós, uma imagem ideal do
nosso eu, um céu sonhado e perdido” (ANDRADE, 2000, p.288).
A alegoria como escritura arranca das imagens suas próprias sombras fugidias:
“Expressa algo diferente, o outro daquilo que representa. (...) É este Outro que a
alegoria revela e esconde, vela e desvela, que Benjamin vai querer decifrar (...)”
(KOETHE, 1978, p.63). Por outro lado, ao ser recuperada como crítica, a
mentalidade de mercado expõe uma identidade que “(...) pode ser substituída ou
eliminada por outra. Nenhuma é significativa (...)” (KOETHE, 1978, p.63). A
incompletude significada socialmente invade o mundo dos signos e da linguagem
recuperada pela voz do poeta alegórico: “Mas a vida era uma tristonha
desigualdade” (ANDRADE, 2000, p.149). Então, “(...) corresponde à consciência da
perda da aura” (KOETHE, 1978, p.107). O hiato trazido pelo mecanismo de contínua
modificação do presente, sobretudo identificado na idéia de progresso, penetra a
expressividade lírica de Baudelaire e sobrevive por símbolos de sua própria
identidade despedaçada.
56
O caráter de não identidade essencial da alegoria deriva, teologicamente, da
imagem adâmica: reconhecimento da essência imediata e unicidade entre Deus e os
homens, interrompida pela queda. Esta desencadearia a linguagem, pois como
mediação infinita do signo desfila os cacos da língua superior. Fragmentos que
pulverizam o peso do sentido: “(...) a linguagem humana se perde nos meandros de
uma significação infinita, pois tributária de signos arbitrários” (GAGNEBIN, 2004,
p.18). Esse sentido é retomado, constantemente, como metáfora em Os
condenados: “Lá fora, na aridez das ruas, dos quartos humanos, das praças tristes,
os homens buscavam à toa os direitos caminhos de Deus” (ANDRADE, 2000,
p.297).
Haveria, então, não só uma oscilação entre duas possibilidades de alegoria (a do
poeta e a teológica), mas uma intersecção entre elas. A própria tessitura do romance
reconhece a arbitrariedade que reveste os signos emergentes. Tal constatação
aproxima a escritura condenada da incorporação interpretante de seu tempo. As
duas concepções tornam-se mais próximas se correlacionarmos a intermitência que
se propõe entre o Spleen e o Ideal baudelairianos: o evocar da palavra original na
lembrança de uma vida anterior, contudo a condenação em buscar eternamente,
pois nunca se completa. Tudo está submetido à destruição do tempo, o que
impossibilita uma representação verdadeira para a vida humana.
Baudelaire traça em tais princípios o afastamento da mimese e a adesão à
imaginação – subjetiva e pessoal - de modo a não representar um dado universal,
correlato internamente à natureza, mas o artificial. Contudo, tem como propósito
tocar o “(...) dilaceramento do sujeito poético, dividido entre a evocação da beleza
intemporal, a conquista do novo e a obsessão do Tempo devorador e destruidor”
(GAGNEBIN, 2004, p.49). O sentido da queda potencializa a enunciação oblíqua do
romance de Oswald: “Ela ia sair, serena, linda, acostumada à festa trágica da vida
(...) Era o ser humano na queda abismal, sem fundo” (ANDRADE, 2000, p.130). A
linguagem materializa o enunciado: o abismo é forma significante da reiteração do
hiato entre eternidade e temporalidade. A festa é trágica (duplos), como a queda
infinita e reflexo imediato das horas em eterna transitividade – “que não passam”:
Andara à toa pela cidade noturna e agora deixava-se ficar ali num banco
quieto da esplanada do Municipal, esperando, numa desorientação calma,
que as horas passassem. E as horas custavam a passar, como a vida.
(ANDRADE, 2000, p.132).
57
O paradoxo que fundamenta o Ideal e o Spleen é reflexo da inserção do escritor
na lógica produtiva do mercado. Reflete a temporalidade alegórica - o tempo como
expositor de ruínas - na modernidade, já que o valor novidade é a sucata anunciada.
A linguagem não reaviva o desejo de fusão originária, mas sim a evocação de uma
harmonia perdida. Da mesma forma, as personagens da Trilogia são interpretantes
desta mesma condenação: “João perscrutava a desolação de seu paraíso atingido”
(ANDRADE, 2000, p.144). Em sentido próximo, o “paraíso”, perdido para sempre, é
a essência que se retira do mundo. O que sobra é a aparência. Assim, o tempo
devorador corrompe qualquer possibilidade de beleza. A modernidade avulta como o
desejo e a impossibilidade de realização, desta volta a uma origem perdida. Neste
sentido, a alegoria serve de instrumento por velar esta lembrança, desde sempre
morta.
Se a aura confirma, por meio da experiência épica, um valor universal, a
modernidade traz a consciência de que a única experiência a ser ensinada é a da
própria impossibilidade frente a uma realidade funcional e inominável. O uso da
alegoria aponta para a descontinuidade, um princípio que falseia a cronologia, como
no andar tateante, ou aos saltos, dos poetas-linguagem de Os condenados: “E ao
subir as escadas, tateante na sombra, para o quarto desbotado onde vivia, molhou
de lágrimas os olhos, que tinha exageradamente abertos” (ANDRADE, 2000, p.64).
Para seguir o caminho do texto: “Na rua, junto a ele, varredores varriam folhas
mortas, como destinos” (ANDRADE, 2000, p.64). A incerteza conferida pela
consciência alegórica faz com que, tanto os movimentos quanto a significação do
olhar, encontrem-se na duplicidade que os perfazem: “tateia”, não retêm, não
possuem o movimento que os tornem inteiros, da mesma forma que o olhar conduz
sempre à sombra. Nesta mesma linha, revela-se um olhar como consciência sempre
desperta – atributo que Benjamin metaforiza em Baudelaire – já que
“exageradamente abertos”. O espaço do movimento poético, a rua, é invadido por
folhas “mortas”, aqui equivalentes a “destinos”, portanto ao próprio tempo, que não
mais “dura”, mas imobiliza uma perspectiva transformadora, ao informar um
desencanto sobre este tempo “varrido’, arremessado para fora da história – o tempo
dos excluídos.
A alegoria, ao adotar o duplo no discurso, instaura a visão da morte sobre a
existência – não é a sucessão, mas a catástrofe única que traz a ruína para o
constituído. Os objetos carregam em si toda a carga do presente ao recusarem o
58
sentido para o mundo terreno, pois tudo é e será substituível, sujeito à ação
inexorável do tempo. Seu movimento é centrífugo em relação ao objeto de
representação, já que este é impossível. Contrariamente, o procedimento simbólico
é usado para uma visão histórica linear e sucessiva, pois adota um movimento
centrípeto em relação ao objeto que procura representar. A alegoria busca expor “o
que poderia ter sido” guardado na potencialidade da promessa. A história como
perda é “(...) um processo de reconstrução dessas ruínas, uma ressurreição delas: a
descoberta de um dos sentidos que a alegoria pode guardar” (KOETHE, 1978, p.70).
Neste sentido, as alegorias da Trilogia revestem a narrativa com a significação da
ausência ao indicar a interrupção da continuidade, ou ao menos o indefinido e
desbotado das cores (o pálido): “Era um cemitério, o bairro, o clube aquático e o
emprego, com seres inexpressivos, inexistentes que lhe falavam (...) Os dias vinham
às vezes, pálidos, encontrá-lo chorando de olhos salsos” (ANDRADE, 2000, p.142).
Para Benjamin, a alegoria é retomada por Baudelaire para evidenciar o choque
entre o desejo de eternidade e a consciência da precariedade do mundo. Desta
maneira, torna-se dialética, pois a impossibilidade de um referente final acaba por
produzir condições para sentidos efêmeros. É isso que possibilita a Baudelaire uma
representação do poeta enquanto mercadoria, a partir da tematização fragmentada
do mundo aparente: imagens que despedaçam a arquitetura formal de um texto
sonhado – a ruína prescinde todo possível. A melancolia é a imagem potente da
alegoria por ser a tradução do sentimento situado entre a promessa e a perda;
cintilações de um corpo decomposto e eternamente transformado.
A procura torna-se a ação do poeta-alegoria, de modo a expressar a ruína:
Ele caminhava sobre as ruínas do seu sonho desfeito. Todos os seus
gestos eram desencontrados e pediam piedade para o alto. Oh! a idéia fixa
de jogar um dramalhão definitivo – matá-la e matar-se, encher de sangue os
jornais! (ANDRADE, 2000, p.90).
Cena que se completa com o antagonismo: “E caiu ao leito antigo e duro, até o
sol vir a espancar o pesadelo da terra” (ANDRADE, 2000, p.90). Reflexo da
consciência em ruínas que penetra todo sonho (ou projeção de futuro); não há céu
ou transcendência, mas a palavra do presente – o jornal – adesão preenchida pelo
espaço das incertezas – o “pesadelo” da terra. Neste sentido, a própria ficção torna-
se vivência virtual a ser explorada comercialmente. Assim, o andar é efetuado sobre
os estilhaços e fragmentos da idéia de futuro (ou esperança) que contamina o
59
espaço-tempo como melancolia do presente, consciente da ausência de
significações que suas ações possam ter.
Desta forma, a alegoria desfigura, despedaça. Mostra o equívoco do sentido de
evolução da história, já que não há progresso, mas a perda de uma promessa. Ao
propor a face da morte frente à ruína do que se constrói, abre uma nova perspectiva
para o sentido de história: o tempo como catástrofe, num movimento incessante de
degradação do instituído. Aplicada à arte, torna-se dessacralização a partir do olhar
movente sobre um objeto sem passado, mas presente: “Interrogou-a empalidecido
como um morto que falasse” (ANDRADE, 2000, p. 90). O símbolo permanece re-
ligação, utopia realizada em outro mundo. A alegoria nos dá um instante de
incerteza e inacabamento. O poeta repisa os sentidos integradores como um
“morto”, tecido de palavras inconsistentes.
O assombro que recobre a multidão é enfrentado para que o “eu insaciável do
não-eu” torne-se o mergulho no próprio espelho. O valor da novidade concentra em
si um mecanismo de construção e destruição, pois o encanto primeiro não é
sustentado, já que o velho está antevisto no novo. O que desencadeia imagens
melancólicas: “Ante a inconsciência festiva do mundo, vinham sufocá-lo, em ronda,
pálidas tristezas” (ANDRADE, 2000, p.125). Pela consciência em choque e cercada,
o poeta obtém a sombra vazia que se preenche como ilusão. Sabe da
impossibilidade de sua lírica no palco isolado do profano, em que tudo está
corrompido. Enquanto a lírica tradicional afirma-se na expressão do interior, a
alegoria opera a passagem entre interior e exterior para interromper o contínuo
linear. Em muitas cenas da Trilogia percebe-se a disposição em ruínas entre as
duas instâncias:
Alma trazia-lhe no escuro passado, no presente inquieto, minutos seculares
de angústia, de humilhação e de prazer (...) o dia caminhava lá fora, festivo
e calmo. Vinham de longe ruídos de pedra trabalhada, de bondes que
passavam, de carroções que estouravam o calçamento. (ANDRADE, 2000,
p. 164).
De modo recorrente, a imagem da multidão na modernidade materializa-se
como alegoria ao repercutir na linguagem o choque. Baudelaire atua na negatividade
para se opor à distância contemplativa da linguagem simbólica. O olhar é
aproximado e fraciona o tempo. A multidão é um instante de choque e perda, como
uma máquina que tudo recorta. Este olhar, não sobre, mas dentro da multidão, é
incorporado pelo romance de Oswald:
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Andara na multidão (...) Entrou esbarrando num negro caubói, hercúleo e
risonho, que levava nos ombros uma criança linda.
Gente cafuza espalhava-se no chão por cobertores vermelhos e pálidas
esteiras, rodeando os pilares quadrados. Um pandeiro invisível batia um
frêmito de asas metálicas. Uma dançarina preta, de olhos cerrados,
atravancava a passagem numa roda estabelecida por um grande bombo
reteso. Ao lado, um aleijado de cavanhaque sustido em muletas tinia o
caracaxá.
(...) passava a luxúria religiosa, esganiçando-se em bandos lúbricos, em
bandos ardentes, em bandos triunfais. (ANDRADE, 2000, p.171).
Cena da multidão que demonstra a multiplicidade de tudo “o que é vivo”; olhar-
andar que faz o poeta rompê-la para adquirir a consciência desperta pelo choque. O
olhar incorpora os objetos de modo fracionado para que seu andar monte uma
imagem a partir de verbos que não encadeiam, mas dispõem os elementos.
Tal gesto aponta para o que Benjamin lê como interiorização em Baudelaire: o
poeta desvia-se da circunstância para oferecer o cadáver que a alegoria vê de “fora”,
mas que, na modernidade, vê de “dentro”. As imagens harmônicas são oferecidas
aos pedaços; são ruínas potenciais que a História não realizou. O que desperta a
consciência do poeta para “a experiência da aura desintegrada pelo choque”. Assim,
incorporada pela Trilogia:
Desceu aos encontrões com a gente que se movia pelas ruas atravancadas
de bondes e veículos (...) Mocinhas de avental branco iam e vinham (...)
Jorge pensou que elas podiam ser desgraçadas um dia (...) o bairro negro
fumegava com recortes sobrepostos de casas, chaminés, fábricas,
gasômetros. (ANDRADE, 2000, p.212).
Na cena o poeta esbarra, choca-se com a multidão para que seu olhar
mantenha-se desperto e apreenda imagens recortadas, fragmentos potenciais de
sua poética. Como se vê, o olhar contemplativo fragmenta-se em “recortes
sobrepostos”, resíduos da linguagem recondicionados como produto poético. É
assim que o poeta devolve o olhar para a produção que o exclui.
Nisso consiste o heroísmo de Baudelaire: viver na aparência de mercadoria,
consciente dela, para assumir a condenação por ser inútil no processo produtivo. O
poeta expõe-se ao mercado sob tal valor e a originalidade será sua diferenciação.
Baudelaire anuncia o artista moderno e seu traço heróico: sem a auréola, abole a
distância mediadora entre a arte e realidade. Não incorpora propriamente a técnica,
mas lança sobre a realidade, em constante trânsito, uma oposição que, longe de ser
nostálgica, estabelece a negação sistemática para que o olhar retenha a imagem
poética.
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Em Os condenados encontra-se um procedimento semelhante. O olhar abole a
distância para viver o choque, como na aproximação do rosto, o cadáver da alegoria
por “dentro”: “E, numa mobilidade de puzzle imprevisto, a máscara cascateou um
riso desigual aos altos e baixos de animalidade lasciva, os dentes brancos e
perfeitos engastados até o fundo nas gengivas sadias” (ANDRADE, 2000, p.143). No
lugar da experiência coletiva da memória, a vivência solitária de uma consciência em
choque.
2.2 – Modelo Baudelaire: poeta-herói da modernidade
Benjamin lança mão de uma estratégia dialética e, também, alegórica para
extrair da linguagem baudelairiana imagens substancializadas do contexto histórico-
social. Para isso, dispõe as figuras-forma, os produtos da sociedade industrial – os
“excluídos” do linear histórico - para verter a tensão presente na escritura do poeta
francês. Baudelaire incorpora em seus temas o inorgânico como forma poético-
textual, constructo de sua heroicidade pelo imaginário moderno.
A Trilogia de Oswald de Andrade recondiciona em sua ficção, a partir do modelo
Baudelaire, parte desta interpretação sobre a modernidade industrial. O material
disponibiliza tipos-emblema como parte da caracterização geral do olhar do poeta-
alegoria. O narrador, pela consciência da personagem Alma, põe em desfile alguns
espectros alegóricos:
Oh! os homens! Ela conhecia-os bem! Tinha assistido, na sua crucificação,
ao desfile em pêlo de todos os exemplares. Diante dela, haviam-se
desbotado, numa confissão de torpezas, professores da cidade, chefes de
confrarias, zeladores de hospitais, grandes nomes, representativos da moral
citadina, da educação, da finança e da família. (ANDRADE, 2000, p.110).
O “desfile” compõe a via-crúcis que ela percorre rumo ao martírio: são
personagens emblemas que têm a função de convergir enquanto etiquetas
propositalmente imóveis, fantasmagorias impostas pela modernidade. O próprio
narrador as caracteriza como “exemplares”, mercadorias previsíveis expostas no
balcão do mundo-imaginário da modernidade construída na enunciação. O que se
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confirma posteriormente na idéia de “drama diário” - “Era um drama diário e obscuro,
com sangue vazado e lágrimas rolando” (ANDRADE, 2000, p.111) - ininterrupto em
que são tecidas variações em torno do movimento vazio de significação – rolando,
como um abismo profuso, paradoxalmente sempre-igual. Lógica do mercado, rótulos
desprovidos de significação transcendente, como peças funcionais para a produção
do imaginário moderno.
Baudelaire está, de certa forma, ligado aos propósitos da boêmia. Retira dela a
atividade oscilante, dependente do acaso, cuja finalidade é organizar a conspiração,
sem estar filiada a nenhuma proposta, a não ser aos efeitos que possam surtir. Daí a
apropriação da “metafísica do provocador”. Em Os condenados a boêmia está
presente em circunstância semelhante, de modo a filiá-la ao cenário de estagnação
que atravessa o período do qual será parte integrante e mero efeito circunstancial:
“(...) os demais boêmios imprecisos, revoltados à toa, todos sob o incubo de
maldições e desastres” (ANDRADE, 2000, p. 294). Muitos exemplos espalham-se
pelo texto: na primeira parte, são os amigos de João do Carmo, assim como na
segunda, os amigos de Jorge. Na terceira parte do romance, haverá uma posição
crítica da consciência da personagem em relação à boemia. Posteriormente, a
narrativa expõe exemplos de alienação frente ao ideal socialista do protagonista
Jorge. Sintoma que se espalhará pela própria consciência boêmia: “Ante as
modelagens, pararam na elevação religiosa dos compreendidos” (ANDRADE, 2000,
p.294).
Também o trapeiro será núcleo de identificação. Dono de um trabalho
intermediário, enquanto “ancestral dos deserdados”, recolhe o lixo que a indústria
devolve como inútil e o rearticula para o mercado da arte. O poeta adota tal figura
como compreensão de sua própria produção de desperdício – o que seria a escritura
neste universo utilitarista? Para isso, o flâneur será outra face a ser incorporada pelo
próprio sentido contestatório de sua função: “Ocioso, caminha como uma
personalidade, protestando assim contra a divisão do trabalho que transforma as
pessoas em especialistas” (BENJAMIN, 2000, p.50). Denuncia a vivência em que
“Cada um deles se encontrava, num protesto mais ou menos surdo contra a
sociedade, diante de um amanhã mais ou menos precário” (BENJAMIN, 2000, p.17).
Desta forma, o poeta sem herança, afastado da popularidade consagrada dos que
sustentam uma auréola por convenção, transforma sua ausência em utilidade
mercantil: reopera o lixo ao operar o inorgânico. Baudelaire identifica-se com as
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coisas corrompidas e danificadas e as utiliza como tema: aquilo que é expelido do
processo de produção para formar seu próprio corpo-texto.
A partir desta visão, a linguagem tece as figuras para vestir o texto maltrapilho.
Alguns temas configuram-se como emblemas deste discurso permeado de
negatividade. O suicídio, por exemplo, deixa o plano da renúncia romântica para
transformar-se em “paixão heróica”: nega o valor-trabalho exigido pela modernidade
para afirmar o gesto que devolve a propriedade da vida ao domínio do corpo:
As resistências que a modernidade opõe ao impulso produtivo natural ao
homem são desproporcionais às forças humanas (...) A modernidade deve
manter-se sob o signo do suicídio, selo de uma vontade heróica (...) Esse
suicídio não é renúncia, mas vontade heróica. (BENJAMIN, 2000, p.75).
Essa temática será explorada pela Trilogia como “vontade heróica” em certas
personagens. João do Carmo, por exemplo, na primeira parte:
Como? A molhada noite de relâmpagos apagados num instante... e a
cidade armada em capela mortuária, com as carroças nos viadutos...
O labirinto de Creta só tinha uma saída, só uma porta. E, na desvairada
Paulicéia, as carroças rodando nos viadutos, silhuetados em aço pelos
relâmpagos curtos...Silêncio! Um homem vai morre, voluntariamente,
vitoriosamente...
E as carroças nos viadutos...
Lá embaixo, um gato humano miou esfrangalhado.
Os embuçados que passam nas pontes a essas horas espiaram.
Um relâmpago silhuetou em aço o viaduto e o suicida estendido e calado.
(ANDRADE, 2000, p.154).
A imagem recorta todas as cenas fixas do percurso do herói para emoldurar-se,
sinteticamente, no ato suicida. A presentificação da idéia de morte traz do céu,
paraíso final e inicial. As vozes da natureza primitiva gritam ao poeta e, este, como
golpe final, faz do silêncio a palavra definitiva. Do mesmo modo, tema recolhido por
Jorge d’Alvelos, na segunda parte:
– Bruto destino! Ruídos surdos dentro da alma! São os últimos desaterros
que estrondam... Mas por que me doem tanto os olhos? Parece que querem
sair fora das órbitas...(...) O pierrô preto subiu tateando as escadas. Entrou
no atelier, riscando um fósforo. (...) Não temia o fantasma escorregadio que
não ousava enfrentá-lo senão nos momentos de via-sacra voluntária, pelo
calvário que Deus lhe instruía. (...) perdido nas suas lucubrações de
predestinado, ou então na fatalidade de uma súbita paragem do estafado
maquinário interior. Morreria, devia morrer... (ANDRADE, 2000, p.246-247).
Vê-se na caracterização heróica do suicídio a tendência para inserir, na
descrição, elementos da técnica (o aço, o maquinário, viadutos, etc.) que se refletem
nas personagens como forma destrutiva e de negação do progresso. Desta maneira,
o suicídio traz veladamente a intenção do “último choque”, momento de triunfo para
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a aquisição da autonomia poética: “Passou a esperar, diante de seus gestos
incoerentes, com uma serenidade de suicida, que o destino o rebentasse num último
choque” (ANDRADE, 2000, p. 152). O destino justifica a heroicidade do ato, a
desintegração do corpo como forma de protesto à submissão produtiva.
A poética quebra o contrato social para “catar” pelas ruas o periférico, o
deteriorado, aquilo sem significação social, o indigente. Como a lésbica, força que se
impõe sexualmente improdutiva; ou a prostituta, identificação corpórea desta
linguagem que humaniza a mercadoria – o olhar acuado e atento, na luta do viver-
presente: “(...) é a vida da fera espreitando a presa e simultaneamente acautelando-
se (Assim também a prostituta, espiando os transeuntes e, ao mesmo tempo,
vigilante devido à polícia (...))” (BENJAMIN, 2000, p. 142).
A prostituta recebe a consagração heróica e sacra de renovação, integrada nos
condenados oswaldianos:
Era o seu drama aquele, o drama obscuro de Maria em Jerusalém, de que
as gentes da terra, numa condenação de remorsos, fixada num calendário
implacável, renovavam o angustiado mistério por noites extáticas de lua
(ANDRADE, 2000, p.139).
De outra maneira, a heroicidade exercida pela mercadoria santificada, o que em
Benjamin será a interpretação de uma possível “humanização da mercadoria”: “Oh!
Se fosse possível tê-la afinal só para ele, mesmo assim, prostituída, desmoralizada,
vendida à cidade... (...) era santa, era santa, era santa!” (ANDRADE, 2000, p.88). A
identificação do poeta com a prostituta é a transferência do olhar anterior do flâneur:
não mais contempla, mas como mercadoria, busca o comprador; “a santa
prostituição da alma”, conforme diz Baudelaire (apud Benjamin, 2000, p. 53).
Na verdade, o poeta ao incorporar o deteriorado, fragmenta-se em vários papéis.
Seu próprio discurso alegórico lhe impõe sombras interpretantes: a modernidade o
condena à eterna ociosidade, o que denuncia sua inutilidade e fatalidade. O papel
vago faz com que se desloque para o anonimato, para o outro que a sociedade
excluí:
Como não possuía nenhuma convicção, estava sempre assumindo novos
personagens. Flâneur, apache, dândi e trapeiro, não passavam de papéis
entre outros. Pois o herói moderno não é herói – apenas representa o papel
de herói. A modernidade heróica se revela como uma tragédia onde o papel
do herói está disponível. (BENJAMIN, 2000, p. 94).
A escritura condenada deposita na voz das personagens essa consciência,
como ocorre no diálogo entre Jorge e Alma:
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- Fiz-te passar pela coisa mais bela da vida... – exclamou ela.
- Por quê?
- Pela desgraça (...)
- Que lindo teatro!(...)
- Representamos bem hoje. Toca para frente o nosso carro de ciganos!
(ANDRADE, 2000, p.176).
Será esta a singularidade heróica que podem obter: a consciência do papel a ser
representado, o que se opõe à autenticidade consagrada do poeta-símbolo. Assim, o
artista moderno herda uma tarefa heróica e sua missão é dar forma à modernidade.
Para isso, utiliza as várias faces dos produtos segregados (proletário, dândi, suicida,
etc), como falsa épica: “(...) como se todos os elementos pudessem encadear-se uns
aos outros no fluxo sem obstáculos da história universal” (GAGNEBIN, 2004, p.98).
Maquia-se ao afirmar a ausência do Belo a partir da denúncia da aparência.
O transitório revela-se nas personagens como forma caracterizadora de seu
papel:
Sem Alma, ficava como se estivesse incompleto, provisório, desarmônico,
partido pelo meio. (...) Pretendia apenas recobri-la, onde ela se santificasse
num sudário, os braços para o céu inútil, deixando adivinhar o corpo no
martírio dos últimos dias. O rosto gelava: era a morte (...) Mas ao consolo
trazido pelas reflexões vitalistas, foi-se sucedendo mansamente uma grande
sombra de tristeza. (ANDRADE, 2000, p.216).
A personagem Jorge traz mais nitidamente sua fragmentação para materializar a
melancolia do presente. Na sombra recolhe a incapacidade de realizações do
passado, na simbologia da transcendência “inútil” e daí a intenção fragmentária das
personagens, que destituem a forma simbólica precedente. Na verdade, denuncia-se
o eterno trânsito do mundo da mercadoria, já que nada permanece, nem mesmo a
condição antes intocável do poeta. Por isso, “Baudelaire era obrigado a reivindicar a
dignidade do poeta numa sociedade que já não tinha nenhuma espécie de dignidade
a conceder” (BENJAMIN, 2000, p.159). Seu valor estará no desvio do condicionado,
na incompletude que o resignifica como diferenciação.
O poeta identifica-se com o lixo, aquilo que a indústria devolve como inútil e caça
os fragmentos da ultrapassada aura. Por isso, a queda da experiência traduz-se na
crítica ao progresso, que não preserva a essência, mas se fixa na transformação de
superfície, em nome da renovação. O artista moderno consciente disso não se
submete à uniformização e por meio do excêntrico e do estranho desmonta a idéia
de totalidade simbólica.
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Baudelaire incorpora no texto o inorgânico, a matéria morta, posta fora de
circulação. As imagens formam a linguagem do dizer corrompido e danificado,
transformado em encantamento. O herói surge como o despossuído que somente
tem a: “(...) consciência da fragilidade dessa existência. Ela faz da necessidade uma
virtude e nisso mostra a estrutura que, em todas as partes, é característica da
concepção de herói de Baudelaire” (BENJAMIN, 2000, p.70). Na mesma direção, a
ação do trapeiro faz-se pela linguagem que recorre ao lixo social para construir a
afirmação heróica por meio da apreensão recortada, mutilada. O corpo do lixo
recondicionado torna-se sua própria imagem decomposta, desfigurada da aparência
anterior:
Os poetas encontram o lixo da sociedade nas ruas e no próprio lixo seu
assunto heróico. Com isso, no tipo ilustre do poeta aparece a copia de um
tipo vulgar (...) Trapeiro ou poeta – a escória diz respeito a ambos; o andar
abrupto de Baudelaire é o passo do poeta que erra pela cidade à cata de
rimas; deve ser também o passo do trapeiro que, a todo instante, se detém
no caminho para recolher o lixo em que tropeça. (BENJAMIN, 2000, p.78-
79).
Tal concepção reflete-se na Trilogia pela exposição dual que deteriora e orienta
as personagens: “João quis saber, numa volúpia de calvários (...) Ele obcecava-se
pelos ambientes prostituídos” (ANDRADE, 2000, p.122). A personagem sustenta-se
no degradante que converge para a melancolia – o que lhe confere prazer, numa
possível justificativa sobre o deteriorado da condição de mercadoria.
Negado o progresso, as ruínas da memória correspondem-se com as do
presente pelo signo da morte, que corrói de antemão o que está se erguendo.
Denuncia no novo a aparência que apenas quer camuflar a ação do tempo. O
desencanto do mundo traduz-se na consistência da verdade que se perdeu, dos
traços modelares que faziam do poeta exemplo. Daí deriva o seu andar titubeante e
cambaleante frente às noticias de jornal como um emblema, uma memória da
dignidade perdida: “Foi por travessas desertas tropeçando” (ANDRADE, 2000,
p.244). Mercadoria que não consegue mais seduzir enquanto imagem sagrada,
afinal, é substituível:
(...) tinha em si algo do ator que deve representar o papel do ‘poeta’ diante
de uma platéia e de uma sociedade que já não precisa do autêntico poeta e
que só lhe dava, ainda, espaço como ator. (BENJAMIN, 2000, p.156).
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Dessa forma, o poeta volta-se para a alegoria enquanto discurso daqueles que
nada têm a afirmar, nem a dizer enquanto exemplo, mas, apenas em contradizer e
pôr em questão. Para isso, destrói contextos orgânicos e aparências harmoniosas:
A madrugada surpreendeu-a, misteriosa, num jardim de chorões. Ficou
parada na ponte abaulada, sobre o lago sujo da Praça da República. De
repente gritou. Um vagabundo que bebia água na concha das mãos, entre
pedras, ergueu a cabeça apreensiva. Perceberam-se num mútuo receio. E
partiram em direção oposta, pela noite. (ANDRADE, 2000, p.80).
A cena acima demonstra o choque (grito) que a personagem exterioriza como
identificação com o deteriorado. Na verdade, o que parece ser o estranhamento,
construído por oposições, fundamenta a noção de ruína que constrói o enunciado:
apesar dos caminhos opostos, o encontro será uma fatalidade na uniformização
mercadológica.
Tal procedimento de apreensão e trabalho com a linguagem faz de sua auto-
imagem diferença: “Baudelaire conformou sua imagem de artista a uma imagem de
herói (...) desde o primeiro momento surge diante do público com um código próprio,
com preceitos e tabus próprios” (BENJAMIN, 2000, p.67). O poeta seria herói por
conseguir superar os obstáculos traçados pela sociedade que o renega e lhe é
indiferente. Desta forma, torna-se a ruína da própria escritura poética:
Precisava emprestar dinheiro a Carlos Bairão para pagar as despesas
ocasionadas pela morte de Alma. (...) E ante a beleza que ficara naquelas
linhas em ruína, teve o ímpeto de cair de joelhos e suplicar misericórdia
coletiva para a obra-prima mutilada. (ANDRADE, 2000, p. 228).
Sai em combate atrás de sua presa poética, alquebra-se na multidão, investe
contra a significação estável das coisas para ele que adquiram a vivência do agora:
O herói é o verdadeiro objeto da modernidade. Isso significa que, para viver
a modernidade, é preciso uma constituição heróica (...) Transfiguram a
paixão e o poder decisório; já o romantismo glorifica a renúncia e a entrega.
(BENJAMIN, 2000, p. 73).
Em Os condenados a imagem de Benjamin substancializa-se na Sombra:
“Tinha a consciência fatalizada dos condenados irremissíveis (...) entretanto, tua vida
poderia ser boa. (...) Vê como ficou tudo cinza...”. O que em seguida se torna criação
alegórica: “Faria O limbo – um quadro gigantesco de aspirações contrariadas, de
desejos inviáveis, de cóleras mortas no nascedouro, abortos de pensamento, de
vida, de ação, de poesia” (ANDRADE, 2000, p.228). Os elementos informam as
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características desta heroicidade: a obra mutilada, em convívio com uma
consciência fatalizada que é o reflexo do próprio artista.
Por isso, o poeta abandona a torre e lança-se à multidão pelo enfrentamento -
imagem primorosa do fragmentado: a massa uniforme exteriormente, mas é múltipla
e viva, internamente. Esta forma múltipla do movimento é incorporada ao discurso
poético: “Desenvolve formas de reagir convenientes ao ritmo da cidade grande.
Capta as coisas em pleno vôo, podendo assim imaginar-se próximo ao artista”
(BENJAMIN, 2000, p.38). Diferentemente do flâneur, que percorre com olhar
panorâmico a multidão, o poeta-alegoria retém o tempo no andar:
E o escultor incorporando insensivelmente ao batuque coletivo, na mesma
marcha automática de cem mil pessoas andando, na zanzarra
desencontrada, informe e constante, foi pensando. (ANDRADE, 2000,
p.236).
O andar é constantemente retomado para culminar no “nunca mais” como ápice
do encontro, choque entre o que surge inesperado e uma despedida para sempre:
“E pôs-se de novo a caminhar (...) Jorge, num súbito tumulto de rua, dera um
encontrão numa mocinha de cabelos fartos e desfizera-se nervosamente em
desculpas” (ANDRADE, 2000, p.245). Ao mesmo tempo, recorta a unidade
contemplativa pelo olhar que entrevê: “(...) é a multidão de fantasmas das palavras,
dos fragmentos, dos inícios de versos com que o poeta, nas ruas abandonadas,
trava o combate pela presa poética” (BENJAMIN, 2000, P.113). Ao penetrar na
multidão, encontra o que contradiz a aparente uniformidade; daí recolhe recortes
singulares para continuar a carregar a sua aura desintegrada, em luzes sombreadas:
“Foi aos encontrões (...) Num clarão de fachos, entreviam-se na distância confusas
alegorias. O povo coalhava-se nas calçadas: famílias defendendo crianças, mulatas
gordas contendo negrinhos espevitados” (ANDRADE, 2000, p.241). A narrativa, ao
propor o choque como instante de um tempo paralisado, instaura o movimento como
forma da melancolia. O hiato é incorporado à linguagem tensionalmente, de modo
que a perspectiva alegórica faça do poeta o trapeiro do progresso.
Em processo inverso à revelação simbólica, Baudelaire opera a linguagem no
instante único e brutal do choque – a apreensão imediata e fugidia das imagens
multiplicadas do real. O choque, então, é assumido como preceito para a tradução
de uma nova percepção: a vivência. É a condição do presente trazido para o corpo
da escritura: “(...) a emancipação com respeito às vivências. A produção poética de
69
Baudelaire está associada a uma missão. Ele entreviu espaços vazios nos quais
inseriu sua poesia” (BENJAMIN, 2000, p.110).
Por isso, convive no olhar poético o desejo de redizer uma harmonia corrompida
pela temporalidade destruidora. A própria conjuntura que o alto capitalismo impõe
como método de organização social sobreleva esta visão do tempo por meio de um
recondicionamento ininterrupto. A intenção alegórica, que vê na vida a “produção do
cadáver”, é análoga a esta estrutura, no seu maquiar constante de renovação da
mercadoria. Assim, expõe um homem sem experiência, identidade e sentido
histórico, a não ser o de incorporação constante de modelos renovados em
aparência. Na Trilogia, o enunciado expõe o falso brilho da novidade como o
espalhar de sombras:
A sala sussurrante caía em sombra. A enfermeira da noite veio (...) acender
as luzes centrais que espalharam dos abajures de vidro, sobre os leitos
inquietos, uma claridade ofensiva. Apagaram-na depois, para deixar
somente ao fundo uma lâmpada pressaga. (ANDRADE, 2000, p.201).
O poeta alegórico vê, nessa intenção, a falta de consistência no interior das
substâncias, o que sua ação-linguagem transforma: “A alegoria em Baudelaire traz,
ao contrário da barroca, as marcas da cólera, indispensável para invadir esse mundo
e arruinar suas criações harmônicas” (BENJAMIN, 2000, p.164). Opera o olhar em
aproximação para desfuncionalizar os elementos da imagem: “Vinham do interior da
casa risos macabros (...) O relogiozinho pulsava, regular, impressionante, como uma
voz de outro mundo. A noite andava lá fora de muletas” (ANDRADE, 2000, p.98). No
trecho observa-se este método de construção alegórica, em que o riso é adjetivado
opositivamente. Da mesma maneira, o relógio, objeto implacável, anunciador
constante e regular da morte, irá culminar na personificação do danificado no “andar”
da noite, de modo que os objetos da paisagem, como a cidade e a multidão,
conformem-se ao olhar alegórico da construção enunciativa.
A alegoria é resgatada para ser funcionalmente a inquietação, o desmontar de
imagens orgânicas e harmônicas, construtoras dos símbolos da circunstância social.
Arranca as coisas de seu contexto habitual e expõe o objeto em sua excentricidade.
Seu próprio fazer poético será uma apropriação do signo mercadoria: como uma
fábrica de imagens, dispõe no espaço, outrora sagrado do livro, um desfile de
efêmeras estampas sociais.
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Na Trilogia: “O cáften vinha, risonho, pálido das noitadas. Ela dava-lhe tudo – a
vida e a lama (...) e o dinheiro, o dinheiro à beça que lhe punha uma auréola de
super-humanidade entre os seus irmãos aduncos da seita (...)”. Ou, no desvio,
próprio da alegoria:
(...) o repulsivo gozador morto das migalhas da existência e das sobras do
amor, o burguês do dinheiro (...) posto de balandrau na cômica procissão
trágica dos gozos da terra, foi formando em Alma um desvio de dolorido
cinismo. (ANDRADE, 2000, p.69).
As personagens, por meio da voz narrativa, demonstram a consciência de
mercadoria que recobre e nivela todas elas – o que, também, as atira na “lama”,
imagem do progresso enquanto ato de transformação contínuo e solo indefinível que
os trapeiros exploram.
Baudelaire utiliza a alegoria como forma de seccionar o tempo e retirar do objeto
destruído o estranho de suas formas dilaceradas. Contra o mito, impõe o fragmento,
já que não vê o novo, mas o igual que atravessa toda a existência – esta
essencialmente mercadológica. Neste sentido, busca, heroicamente, humanizar a
mercadoria, dar-lhe um traço que a singularize contra a uniformidade exterior do
orgânico: “O empreendimento de Baudelaire foi o de trazer à luz, na mercadoria, a
aura que lhe é própria. Procurou, de maneira heróica, humanizar a mercadoria”
(BENJAMIN, 2000, p. 164). Na escritura condenada, o valor da existência está
submetido à metaforização da mercadoria. Em alguns trechos, a máscara alegórica
é molde para a consciência transitória das personagens: “A existência era isso: uma
torturada quermesse... Barracas ao vento, bandeiras, muitas bandeiras e a charanga
do fonógrafo de goela monstruosa na sala escura, encerada e vasta (...)”; já o
escorregadio será interrompido pela forma significadora do controle social: “O relógio
antigo marcou a hora em seis badaladas metálicas, regulares, intérminas
(ANDRADE, 2000, p.56).
A metáfora da existência aproxima-se da alegoria pela idéia de movimento. O
objeto apresenta-se em forma de abismo (“monstruosa”, “vasta”), de duplicação
lançada à “sombra”. Imprime pela figura do relógio o tempo em sua marcação
“regular”, contínua e implacável. O objeto é operado pela máquina enunciadora:
aproxima, corta, acelera a existência indefinível dentro de uma pragmática que exige
a repetição e regularidade, o que gera a duplicidade solidificada pela enunciação.
71
Neste sentido, o signo do Progresso representa um núcleo limitado de atuações,
um sistema que controla por completo as ações produzidas. Não há soberania
possível, mas uma aparência a ser mantida e constantemente restaurada por
pequenas variações. Esta é a ruptura proposta por Baudelaire ao deslocar a
tradição, o passado que resplandece em símbolos constituídos, para viver o
presente da linguagem, as configurações imagéticas que surgem por meio do
choque, que tudo secciona de sorte a colocar em questão o médio e retirar dele o
atípico como substância poética.
O movimento da poética baudelairiana é incorporado pela escritura condenada
como andar na multidão; o passo titubeante (o impasse) que, a todo instante, retém
o movimento como forma significante da linguagem:
O pierrô preto que tinha a cabeça cor-de-luar, pulando de um tufo rubro de
gaze e rodelas vermelhas de botões parou. (...) Voltou. Andou em tropelias,
em súbitas quietudes. Foi por travessas desertas tropeçando. (ANDRADE,
2000, p.243-244).
Esta é a forma seccionada do tempo alegórico, tateante do espaço, imprevista,
de modo a confrontar-se com a repetição rigorosa da máquina. Neste caminhar
trôpego e neste olhar enviesado, o poeta busca reter a cena e transformá-la em
imagens da modernidade.
Tal é o que ocorre no fragmento abaixo, no qual a sacralidade de Cristo é
corrompida pela dancing; a igreja tem sua fachada poluída pela mendiga que
profana o chão sagrado; tudo isso em convívio com os signos mais salutares do
progresso: as fábricas, o bonde, a eletricidade:
As fábricas anunciavam o fim da noite, um apito espevitava-se no azul
ferrete, passavam os primeiros bondes acesos, uma velha mendiga
vomitava de fome, sentada à soleira de uma igreja escura. Cometas do
quartel acordavam a cidade.
E Cristo subia do teto do dancing, alto, espectral, para o ninho das auroras.
(ANDRADE, 2000, p.294).
A cena demonstra a integração entre as vozes urbanas (a máquina e a técnica) e
as sagradas. A comparação funde a precariedade temporal, inerente à criatura
(igreja - mendiga), com a própria destituição da imagem sacra frente à condição de
mercadoria (Cristo – dancing).
O caminhar errante do poeta é instaurado no discurso de Os condenados, o
que faz de sua própria linguagem materialização deste andar que tropeça e esbarra
em sua própria matéria poética: “Voltou. Refez o caminho andado. (...) Não tornaria
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mais. Alcançou as ruas populosas. Estava perto do Jardim” (ANDRADE, 2000, p.97).
O andar poético aproxima-se dos principais postulados de Baudelaire: o choque, o
enfrentamento da multidão.
O poeta-alegoria sai à caça de imagens na rua para negar a existência
burguesa. Também, sua linguagem nega sistematicamente a composição normativa
ao estabelecer novas correlações imagéticas, pautadas pela exposição dos
elementos em choque. Desta maneira, a linguagem alegórica mostra a duplicidade
do presente, a busca daquilo que escapa, o que na modernidade se converte em
fantasmagorias: “E compreendeu como havia gente que falava sozinha pelas ruas e
gesticulava à toa, andando” (ANDRADE, 2000, p.217).
A leitura de Benjamin sobre Baudelaire sugere uma noção de modernidade que
Os condenados buscam conformar: a idéia de uma escritura que vê na alegoria a
possibilidade de tradução da via-crúcis do poeta-mercadoria na sociedade industrial.
73
Capítulo III: Modernidade, impasse e ficção
3.1 - Leitura da modernidade: a voz narrativa e o modelo Baudelaire
Temos como proposta para este capítulo a análise da voz narrativa em Os
condenados, a partir dos movimentos decorrentes da distinção teórica estabelecida
anteriormente entre o poeta-símbolo e o poeta-alegoria. Destacaremos exemplos do
romance que correlacionem o modelo Baudelaire como forma orientadora de
construção da linguagem e os possíveis espelhamentos sobre as personagens e
suas ações-gesto, para que se evidencie o trabalho de leitura ficcional suposto no
interior da narrativa.
A voz narrativa dispõe do espectro autoral como prefiguração da construção
textual. Em certa medida, o Eu narrativo faz das personagens e vozes que recortam
o romance, espelhamento de sua própria voz. Apropria-se da figura poética de
Baudelaire para montar um quadro ficcional que simule a modernidade. O próprio
título coletivo do romance sugere tal perspectiva. Porém, apesar da autoridade
autoral dominar o sentido da voz narrativa, o que se vê é o impasse construtivo, em
que este Eu toma várias formas, de maneira a corresponder à imagem do poeta-
alegoria baudelairiano.
Esta voz única, porém, não é capaz de reproduzir-se uniformemente ou seguir
um caminho de épica, de convergência ao centro, mas se espalha em ações
gestuais geram estilhaços sobre o reflexo do espelho. Desta forma, a narrativa toma
como pressuposto a descontinuidade, já verificada pela utilização da alegoria, como
forma de ruptura com o gênero romance consagrado pela escrita burguesa.
A Trilogia visa empreender, então, um painel social abrangente, justificado na
idéia de condenação que perpassa o enredo e a própria tessitura da linguagem. O
motivo parte, a princípio, do texto bíblico: a vida como condenação após a queda e o
exílio, lugar onde se desenvolverá, por ações exemplares, o ciclo de vida-morte das
personagens e da própria voz narrativa. Por outro lado, a modernidade é vista pelo
poeta, tal como em Baudelaire, do ponto de vista da “condenação”, tendo por
74
pressupostos a uniformização de comportamentos e procedimentos, presentes na
idéia de mercadoria. É daí que surgem os principais predicados para o papel de
herói a ser representado. A condenação é, também, metáfora da própria linguagem:
o homem condenado à mediação infinita, o que se confirma ainda mais graças à
utilização da alegoria.
De um modo geral, percebe-se pelo título uma busca por expressar a própria
representação do tempo, que, historicamente, dá-se na transferência da perspectiva
romântico-burguesa sobre o amor para o ritmo fatal e reformista do progresso. Como
atesta Roger Bastide:
É o fim de uma certa concepção de amor, e o ponto final de uma época que
começou com Machado de Assis. Machado é a introdução do amor
romântico no interior da família burguesa brasileira; Oswald é a
decomposição desse romantismo amoroso. (BASTIDE, 1941).
Paradoxalmente, o título, mais do que expressar a uniformização, visa
endereçar-se para a vigorosa visão progressista, o Outro da história e, é daí que os
condenados ficcionais podem se coletivizar, exprimindo-se como ausência,
fragmentos deteriorados de significação: “E de sua dor ver nascerem milhares de
dores anônimas...”(ANDRADE, 2000, p.292). Tal postura atingirá a consciência das
personagens como perda do paraíso: “O crime? O próprio Mauro talvez ignorasse as
conseqüências da queda. Era inocente. Todos eram inocentes e cúmplices”
(ANDRADE, 2000, p.214). É esse sentido da queda que percorre todo o romance
como insuficiência de sentido trazida pela vivência do presente.
Por esta acepção, a narrativa adota um ponto de vista que agrega o precário e o
dissoluto à imagética moderna do provisório. A visão da condenação denota não só
uma perspectiva religiosa do destino, mas também um sentido estético, já que o
exilado do tempo é o poeta, antes portador da palavra consagrada, e que, agora, vê-
se submetido às forças que o excluem desta aura perdida.
O subtítulo Trilogia do exílio expõe assumidamente os excluídos, além da
referência ao pecado original numa apropriação baudelairiana. Este sentido estará
inscrito na escritura condenada como forma de crítica ao progresso, já que não há
progresso verdadeiro, na medida em que o conhecimento humano estará sempre
subjugado ao destino e à fatalidade da morte: “Ela sabia que não se pode parar com
a mão a roda gigante do destino” (ANDRADE, 2000, p.105). O destino é a presença
que recorta a enunciação com uma miríade de imagens que antecipam a
75
condenação sobre aquilo que se movimenta pelo texto, de modo a interromper o
fluxo linear. Por isso, o exílio é o espaço de uma existência em suspenso, já que:
“Era isso mesmo a vida humana – uma série de quedas físicas e de provações
morais, em torno de uma grave e íntima ascensão” (ANDRADE, 2000, p.282).
Como alegoria, a condenação traça para o poeta um embate com sombras e
duplos, que se multiplicam em ações heróicas: “Jorge d’Alvelos sentou-se entre uma
mocinha de luto e um mendigo” (ANDRADE, 2000, p.283). Tem-se ao lado do herói
o luto, máscara da perda contínua, como a própria visão sobre o tempo; também há
aí o condenado social, portador da degradação que tudo diferencia. No espaço do
texto eles confluem em direção à uniformização condenatória, o comum a todos ou
de um caminho que presume a via-crúcis: “Na via-crúcis do melancólico as alegorias
são as estações” (BENJAMIN, 2000, p.157). Destas estações, os condenados de
Oswald destacam suas passagens. Ora sob a heroicidade do suicídio convertido em
moldura cadavérica – a morte na vida – “E fatalizado, imóvel, olhou a mão (...)
Parecia de cera e de pano – mão de cadáver, mão de suicida” (ANDRADE, 2000,
p.248), ora como substancialização da “sombra”, dos excluídos em uma possível
redenção apoteótica: “(...) do outro, num desabafo de vitória, todos os crucificados
da terra” (ANDRADE, 2000, p.266). As epígrafes, que abrem as três partes da
narrativa, prefiguram as estações das personagens condenadas.
As epígrafes exercem função estrutural. Por meio de metáforas bíblicas
anunciam as ações do enredo. Na primeira parte (Alma), vê-se o recorte da Gênese
bíblica, que promulga a queda que se estruturará o enredo: “Expulsou Adão. E
colocou ante o paraíso das delícias um Anjo com uma espada de fogo, para quer
guardasse o caminho da árvore da vida” (ANDRADE, 2000, p.48). Na verdade,
expõe pela metáfora do “guardião do caminho” a fatalidade instaurada no percurso
das personagens: condenadas à duplicidade, que exibe entre o corpo e a sombra, o
verdadeiro e o falso. Percebe-se na protagonista Alma a oscilação entre João e
Mauro, como forma de revelar a “alma” que reveste o papel da prostituta. Vê-se aí
uma “concepção religiosa do bem e do mal” com “uma nitidez quase maniqueísta”
(CANDIDO, 1945, p.39), o que, por outra via, se traduz no impasse de significação
que a alegoria espalha como ruína.
A segunda parte (A estrela do absinto) acompanha o andar do escultor Jorge
d’Alvelos sob a epígrafe do livro bíblico Apocalipse de S. João. O trecho alude
sobre a queda de uma “estrela” na “terceira parte dos rios e nas fontes das águas”;
76
daí surge a “estrela do absinto” que acarreta a morte e o amargor a “muitos
homens”. O trecho aponta o percurso das personagens: predomina nesta parte “a
‘revelação de coisas passadas presentes e futuras’, contaminadas pelo amargor do
absinto” (ANDRADE, 1991, p.6). Vê-se no enredo a experiência de Jorge com o
álcool e, na mesma medida, com a multidão. Mais do que citar o trecho bíblico como
incorporação moral, o texto parece apropriar-se de mais um dos temas de
Baudelaire, que diz:
O poeta goza o inigualável privilégio de poder ser, conforme queira, ele
mesmo ou qualquer outro. Como almas errantes que buscam um corpo,
penetra, quando lhe é apraz, a personagem de qualquer um. (apud
BENJAMIN, 2000, p. 52).
Aqui se tem o desdobrar da personagem nas mutilações que cria. Sua criação
também é vivência, intensificada pela presença da multidão: “(...) é a própria
essência da ebriedade à qual se abandona o flâneur na multidão” (BENJAMIN,
2000, p. 52). Tal ebriedade repercute no romance como alterações vislumbradas
pelo olhar fragmentário e a consciência imagética:
E ficou ali, no divã, a pensar no pequeno cemitério que guardava na alma,
sagrado, invilável à torrente da vida. A amante morta jazia no fundo
subterrâneo de seu ser, no inacessível fundo – imortal, perene companheira
para noites de solidão, para as horas amargas. (...) a miséria fisiológica, um
apodrecimento disfarçado de células, a lutar contra o inexorável caminho
que as havia de desagregar em sebos pestosos e gases e liquefações e pó
no escuro de um jazigo.
(...) a sugestão teológica de que o corpo, como a semente, precisa
apodrecer na terra para florir e frutificar. (ANDRADE, 2000, p.222).
A imagem da ruína é como a morte presente no corpo vivo. O poeta retém o
tempo para o desenvolvimento de sua consciência, que será o Spleen, derivação da
queda e revivido no presente enquanto imagem da modernidade.
A terceira parte (A escada) apóia-se na idéia de utopia, futuro gerado no
presente, que no texto bíblico parte da metáfora da purificação: “Então ele viu em
sonho uma escada cujos pés estavam apoiados na terra” (ANDRADE, 2000, p. 286).
Na Trilogia, será a redenção de Jorge em sua conversão para o comunismo. O
sentido político e teológico aproximam-se no plano do significado: “Sentia-se místico.
Ia aos comícios como antigamente ia à missa” (ANDRADE, 2003, p.350). E, de certa
maneira, na justificação poética, que refaz o sentido da condenação: “Nunca seria
um estrangeiro entre os condenados sociais e os oprimidos pelo capital”
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(ANDRADE, 2000, p.354). Neste momento, o romance faz uma aproximação com a
estruturação simbólica, segundo Jackson:
O que se sacrifica com essa imposição é precisamente o conceito de
modernidade e de transformação, ou seja, a transição orgânica de um
mundo para outro pela simbologia da morte e do nascimento. (apud
ANDRADE, 1991, p.7).
No texto, a compreensão se dá por meio da inscrição da metáfora no enredo:
“Jorge compreendeu que devia fugir. Procurou a escada, saiu” (ANDRADE, 2000,
p.310).
Se no signo da condenação reside, por um lado, a simbologia cristã, por outro
determina uma ação heróica em relação à modernidade que aponta para a
construção alegórica dos enunciados. Este é um dos motivos centrais do poeta-
alegoria. A apropriação da figura de Baudelaire como forma-modelo não é
possibilitada somente pelas personagens, mas pelas alegorias lançadas pela voz
narrativa. O texto procura materializar por meio do olhar trapeiro, que veste
funcionalmente as personagens, gestos que se disseminem no coletivo. Também,
por meio da operação alegórica, busca imprimir no tempo-espaço textual vozes que
atuem convergentemente para exibir os signos derivantes da condenação.
Neste sentido, a sombra-signo do poeta francês conduz as ações poéticas das
personagens, como João do Carmo, que corporifica na voz o discurso modelar de
seu drama: “Andou. Repetiu com os punhos amarrados versos de Baudelaire”
(ANDRADE, 2000, p. 53). No exemplo, a personagem recorre à poética extraída de
sua leitura para efetuar seu caminhar pelo texto. O movimento disseminador da
poética é incorporado ao andar. A violência de tal poética é encarnada pela
personagem, de modo a fazê-la viver a ficção de sua leitura. Repete os versos para
vivenciar a palavra poética e não somente tomá-la como experiência cumulativa de
leituras, o que poderia ser parte de uma intenção simbólica. Os punhos, antes
presos, são libertados pela voz que atravessa a consciência como modelo do olhar
poético.
Baudelaire destaca-se do templo simbólico (o livro) para irromper na ficção
escritural, de modo a formar uma estrutura cênica para a atuação da personagem:
“Sobre o leito, pendia uma gravura destacada do livro. Era Charles Baudelaire. Tinha
um velho retrato da mãe morta, sobre a mesa desordenada” (ANDRADE, 2000,
p.57). O narrador introduz, zelosamente, a cena para armar a imagem como
78
totalidade consagradora: o condenado destaca o poeta para fazê-lo viver em sua
ficção. Em seguida, o retrato de um tempo morto, inútil (a mãe, o passado) sobre a
mesa desordenada: a própria imagem baudelairiana do escritor deslocada da
simbologia cristã para “a solidão literária” do papel que representa (ANDRADE,
2000, p.57). A moldura instaura o retrato de Baudelaire como signo do livro, fora do
lugar-símbolo no qual uma leitura convencional o colocaria. Desta forma, o poeta se
inscreve na voz narrativa, configurando o desenho do poeta-alegoria, herói escritural
em espaços desordenados.
Baudelaire transita como leitura e diagrama do corpo textual. Imagem espectral
que penetra os meandros narrativos e estabelece sua forma como presença: “E
foram em silêncio, baudelairianamente, pelas ruas geladas” (ANDRADE, 2000,
p.87). Aqui, o poeta francês transforma-se em qualidade da ação: sua poética é
operada de modo a significar as imagens não só como olhar, mas do andar; o
aparente adjetivo funciona como ação, o que o desvia funcionalmente da
contemplação ociosa e embriagada do flâneur, para encarnar o romper heróico. Do
mesmo modo, João o “repete” e o lê, incorporando-o à sua própria representação:
E repetia fitando Baudelaire (...) Quando percebia Alma, num procurado
encontro, sentia cem trombones funerários tocarem-lhe aos ouvidos
escancarados. Tinha um sincero pasmo pela coragem lendária de Otelo. Se
fizesse um fim de drama como ele! (ANDRADE, 2000, p.81).
Na cena, observamos o diálogo entre duas instâncias discursivas: se Baudelaire
será o espectro, a linguagem-fantasma que conduz a linguagem-presente da voz
narrativa, Otelo será um outro referencial, ator da cena. A voz autoral despede-se de
sua própria ficção para refugiar-se em outra: apropria-se das leituras, dos gestos
heróicos da linguagem, das formas flutuantes em decomposição.
Por isso, a ficção condenada é móvel, transita por entre os referenciais que são
seus objetos de leitura. O texto parece não só querer significar, mas também ser
outro. Tal apropriação estará espalhada por toda mobilidade da voz narrativa e por
fim, impressa no corpo do próprio texto. A personagem torna-se presença: vive
ficcionalmente sua própria ficção e a ficção de seu leitor na escritura condenada.
Baudelaire instaura-se fisicamente no primeiro volume da Trilogia e espalha sua
sombra (o Spleen) nas demais partes. Sombra-alegoria do narrador que faz das
personagens estilhaços, ou mesmo máscaras fugidias, que escondem o incógnito.
Constrói uma estética interpretante da modernidade como condenação (não há
79
progresso, mas a lenta e inevitável queda) e dispõe pelo texto as fantasmagorias da
modernidade: o passado espectral. Esse é o código transposto para o movimento
fragmentário próprio do poeta-alegoria no qual convivem o desejo de eternidade e a
precariedade do mundo.
Neste sentido, o texto lança os fragmentos de sua leitura como interpretação.
Incorpora o andar do poeta trapeiro no sentido de disseminar para o campo da
observação o descontínuo, a metáfora como sistema. É o que acontece com a
auréola em queda, a instabilidade que a poética provoca no caminho linear: “Jorge
d’Alvelos mergulhou os pés numa poça de lama” (ANDRADE, 2000, p. 240). Além
disso, a própria impossibilidade de caminhar frente à multidão que o recorta e
imobiliza: “A multidão tumultuava. Jorge quis passar (...) viu-se contido, agarrado,
preso ao carnaval monstruoso dos outros” (ANDRADE, 2000, p. 237). Como se vê, a
continuidade é constantemente interrompida como forma discursiva para imprimir a
figura do poeta na caça pela sua matéria poética.
O poeta torna-se o trapeiro para configurar o sentido de decomposição no texto:
a palavra incapaz de comunhão, mas em dispersão inevitável frente à mutação
incontrolável: “Era assim a vida, a procissão do Desencontro (...)” (ANDRADE, 2000,
p.307). De outra forma, os objetos submetidos ao valor de mercadoria perdem a face
inteiriça e simbólica para se transformarem, sob o olhar estilhaçado do narrador, em
resquícios sem autonomia ou totalidade. A intermediação reveladora espalha-se na
impureza dos objetos incapazes de transcendência. Por isso, como em Baudelaire,
eleva-se ao âmbito do poético a prostituta, mercadoria-signo reinventada
poeticamente na modernidade. Na Trilogia, as personagens disponibilizam sua
imagem como criação que o escultor transforma em fragmentos:
O cadáver nu, de cabelos atados numa toalha, foi levado, cautelosamente,
até a parede do imaginário atelier. (...) Depuseram-na no estrato de pau,
inerte e dura (...) Depois, começaram a crucificação. (ANDRADE, 2000,
p.209).
Aqui, percebe-se a criação de Jorge que acontece no presente do romance,
espaço-tempo no qual recolhe a matéria “alma” para torná-la ficção de sua vivência.
A ambivalência situa Alma entre o sacro e o profano. Traz em si um mesmo traço
que desvela a aparência simbólica, já que alegoricamente nada é essencial, mas
repetição derivante de uma mesma categoria. Seu próprio nome – Alma - carrega
essa duplicidade ao trazer para si a deterioração que se confronta com o seu sentido
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original de imortalidade. É por isso que a prostituta será, em Baudelaire, a linguagem
que resignifica a mercadoria, pois: “Celebra sua humanização na puta (...) Procurou,
de uma maneira heróica, humanizar a mercadoria” (BENJAMIN, 2000, p.163-164).
Alma atravessa os diferentes momentos da narrativa para que, de sua condição
corrompida, extraia-se o caminho da humanização.
Desse modo, a prostituta-mercadoria exibe a própria circunstância da linguagem,
inclusa no processo produtivo como representação da vida doméstica. De certa
forma, contesta sua condição pequeno-burguesa, não aceitando a conformação que
lhe imputam. A subjetividade amorosa, tema literário por excelência, é deslocada de
seu contexto habitual de leitura – a romântica idealização no mundo eternizado do
amor para modular-se como transitoriedade, busca do poeta por seus assuntos e
temas.
Da mesma maneira, a cidade-personagem incorpora o andar textual: “A
madrugada lá fora andava” (ANDRADE, 2000, p.275). A metáfora inverte o caminhar
para demonstrar a continuidade do progresso que o poeta insiste em reter em seu
andar poético. As próprias personagens representam o signo da transição por meio
de cenas moventes, que lançam o sentido individual para o coletivo: “Pela rua, ia
longe uma mulher de branco. Uma carroça passou, tilintando. A tarde descorava (...)
a máscara alva cascateou um choro desigual (...)” (ANDRADE, 2000, p. 50).
Em outro momento: “Vinha-lhe à cabeça uma tonteira gostosa e sentia as
pancadas sublimes do seu amor... sim... não... sim... não... (...) alongou-se pela rua
e pelo céu, um pregão triste da cidade: - Pi...nhão quente!” (ANDRADE, 2000, p.51).
As montagens cênicas percorrem todo o texto ao fazer com que o trânsito da
paisagem exterior atravesse o espaço interior das personagens. Uma interlocução
entre a tradição (carroça) com seus ruídos anacrônicos e a modernidade (rua).
Nesta intermediação (sim/não) os objetos desfiguram-se de sua materialidade inicial
(descorava), o que produz o sentido da melancolia pela apreensão de uma
paisagem indefinida (desigual). Neste momento, a personagem revela um impasse,
diluída em seu próprio tempo-espaço, o que lhe confere uma lógica de
espelhamentos: a mobilidade da cidade desestabiliza as certezas e convenções,
tidas como sagradas. O “pregão” nada mais é do que eco fantasmático da cidade, o
grito que desperta a personagem, em choque pela modernidade.
Da mesma forma, um sentido de uniformização aproxima as personagens da
idéia de modernidade: “E na sala de telégrafo, o toc-toc-toc de cem vozes anônimas
81
e dispersas falou (...)” (ANDRADE, 2000, p.62). A frase informa o nivelamento da
personagem como consciência da voz narrativa; tem-se no telegrafista um coletor
das vozes “anônimas” que se perfazem, também, em discursos anônimos, sem uma
significação relevante. Tal fato revive a consciência de mercadoria que a linguagem
poética do romance introduz como forma de modernidade. A dispersão informa a
impossibilidade de significação frente a tal nivelamento.
Assim, as personagens são ruínas de uma voz narrativa que se dispersa frente à
uniformização dos dias, o que reafirma o cotidiano baudelairiano como padronização
e aparência. Na verdade, a renovação dá-se por meio do próprio deteriorado, o
corroer contínuo do tempo alegórico:
Era um estupro diário, um desvirginamento de todas as horas (...) Mauro
oferecia-lhes o defloramento sem complicações, sem conseqüências, a bom
preço (...) esperava a hora do leito como um doente que esperasse a hora
inadiável da morte. (ANDRADE, 2000, p. 68).
A personagem Mauro atua como ruína do destino de Alma. Apesar da aparência
maniqueísta, a relação mostra a dissolução simbólica do conceito de amor para uma
sexualidade sem perspectivas, em que se abandona a visão romântica para uma
que se informa modernamente – por isso, o leito é a concretização da morte, no
sentido da ausência de perspectivas idealizadoras.
Paradoxalmente, as oposições uniformizam-se pela voz narrativa, que atira as
personagens em sua trilha de condenação, já prevista no enunciado: “Agora, tudo
predizia a aliança imortal dos dois desgraçados destinos” (ANDRADE, 2000, p.92).
As personagens e suas ações são condicionadas pela máquina-metáfora do
narrador, ao expor situações múltiplas de sofrimento sob o mesmo rótulo, como
mercadorias ficcionais: “E ela sentiu a consoladora vontade de avistar o ser
martirizante que ia vir. Ia nascer o seu filhinho... (ANDRADE, 2000, p.107). Em outro
momento: “E uma figurinha convulsa, numa sufocação congestionada, lançou o
primeiro grito terrível da vida. (...) E sorriu indizivelmente na sombra, onde grandes
asas estacavam” (ANDRADE, 2000, p.108).
A personagem Luquinhas surge ao mesmo tempo em que seu avô, o velho
Lucas, metáfora contínua do passado, morre. Para Antonio Candido, as
personagens são “pequenos turbilhões de lugares comuns morais e intelectuais”,
que “não passam de autônomos, cada um com sua etiqueta moral pendurada no
pescoço” (CANDIDO, 1945, p. 39). Sob um outro aspecto de leitura, as passagens
82
que percorrem o texto têm a função de materializar a fatalidade da uniformização e
planificação das personagens, auxiliares da enunciação condenatória da voz
narrativa. O nascimento prevê desde sempre a vida corroída, que se traduz no grito
lançado no parto – a vida como “sufocamento”, congestionada pela imprecisão do
tempo, e forçada a desdobrar-se em sombra.
A Trilogia constrói-se por signos portadores de sentidos indefinidos ao trazer
dentro de um só corpo os fragmentos de todos os outros corpos, que morrem no
percurso traçado de antemão. Assim, o próprio título justifica a intenção alegórica:
condenados desde sempre à transitoriedade e incerteza. O romance ficcionaliza
uma existência única e coletiva, emblemática a partir da figura do poeta, que propõe
um ciclo de alegorias. Para isso, oferece uma estrutura cujas variantes formais
abrem este Eu por vozes e gestos, como na duplicidade das máscaras: “As duas
fantasias correram, procuraram o caminho, enveredaram por ele” (ANDRADE, 2000,
p. 250). Isso ocorre mesmo na caracterização das personagens, como significantes
do despedaçamento do Eu: “Em contraste, a vida de Jorge desnudara-se”
(ANDRADE, 2000, p.185). O resultado é, então, um discurso deformado para expor
as gradações do individual ao universal, da ação ao gesto, mediado pela presença
da metáfora:
Alma trazia-lhe no escuro passado, no presente inquieto, minutos seculares
de angústia, de humilhação e de prazer (...) O dia caminhava azul lá fora,
festivo e calmo. Vinham de longe ruídos de pedra trabalhada, de bondes
que passavam, de carroções que estouravam o calçamento. (ANDRADE,
2000, p.164).
O Eu, como fio condutor a tecer as passagens em metáforas, elabora a alegoria
unificada pela figura do autor. O olhar estético é o princípio formal que representa a
subjetividade das personagens, de modo que a narrativa busca evocações que
orientem as relações entre o interior e o exterior e estabeleçam as correlações
imagéticas traduzidas em gestos poéticos. As personagens atuam a favor da voz
heróica do narrador, que imprime seus traços na assinatura autoral.
O narrador orienta a voz das personagens para reciclar os resíduos que fazem
parte da matéria corpórea de sua “escultura” lingüística; sua mão conduz os elos de
ligação entre as partes desmembradas ao fazer da decomposição o próprio sentido
da linguagem. As vozes são índices da ruína e do desfacelamento do discurso
burguês, enquanto romance analítico. Como “criador de mutilações”, o texto afasta
de si o constituído e indica novas conexões por ruínas resplandecentes do tempo
83
transitório. Assim, os elementos da modernidade vivem no sentido de significar sua
própria ruína, seu assombro inesgotável entre o que se ergue e o que se corporifica
na queda: o desfile espectral. A multidão absorve a individualidade e recolhe os
pedaços do eu desfigurado:
Um ajuntamento colorido de feira gralhava na lama extensa da rua principal.
Mulheres mascaradas de gesso, prostitutas de São Paulo, famílias
ingênuas, negras de trunfa. E o batuque guerreiro na sombra do samba
media, por cima de tudo, o tambor seco, igual, com o caracaxá e o ribombo
longínquo do bombo. (ANDRADE, 2000, p.170).
As personagens são expostas ao protagonista no sentido de passagem, mas ao
mesmo tempo para expor a multiplicidade que redundará no ritmo musical que fecha
a cena. As metáforas, recorrentes da construção alegórica, tornam a linguagem
espaço de fulguração. Por isso, as personagens atuam como partes dilaceradas do
corpo textual, índices de variação da voz autoral e disseminam os pontos de tensão
ao amplificar as significações condenadas.
Nos limites do quadro-máscara, a consciência dilacera-se e seus resíduos
constituem o corpo textual. O eterno dizer da linguagem, fixada pela alegoria, serve
para dizer a impossibilidade do símbolo. Tudo isso de modo a criar
correspondências entre a própria escritura alegórica e a figura da mercadoria: “A
depreciação do mundo das coisas na alegoria é sobrepujada dentro desse próprio
mundo pela mercadoria” (BENJAMIN, 2000, p.154).
O Eu busca o elo entre o discurso da tradição e o da modernidade, em quadros
desmembrados, como uma possível ficção sobre o estilo, de modo a corresponder
não somente ao princípio moderno de compreensão e organização textual via
cinema, mas também a corroborar com o sentido alegórico de pequenos quadros
simultâneos, com o mesmo princípio de sentido emblemático. Frases como: “Na
manhã do céu sombrio, Jorge ficou pensativo, olhando a cidade, num desconcerto
de idéias e caminhos” (ANDRADE, 2000, p.305); bem como: “Olhou o cenário
noturno. Havia uma grande lua brincando com esfarrapamentos de nuvens”
(ANDRADE, 2000, p.302). Essas situações percorrem o texto como construção
orientada pela poética em constante quebra da continuidade narrativa.
Estruturalmente, a narrativa é distribuída em blocos, de modo a armar o
enunciado. Procedimento recorrente no interior das frases, que montam a imagem:
Jorge voltou de novo. Estacou a dois passos do outro. Ele tinha a voz
metálica e lenta. Um apito cortou a estação. Uma lanterna verde oscilara. O
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trem ia sair. Vagaroso, sem perder Mauro Glade com os olhos, Jorge subiu
ao primeiro degrau do carro. (ANDRADE, 2000, p.167).
A cena é um dos exemplos de montagem: as ações são recortadas, relacionadas
em saltos que suprimem elos conectivos; o narrador-poeta monta a ação como
costura, a partir de partes independentes que irão relacionar-se ao final, no encontro
entre as duas personagens.
A fita de sangue enrubescia, amarelando-se de tons novos. E, por cima, o
céu era todo azul-claro. A terra girava como ela no espaço sem apoio (...)
Ele era uma pobre sombra no colchão emprestado. Trapos e carne...
sofrimento. (ANDRADE, 2000, p.133).
O movimento conduz o olhar, que brota de um fio de sangue transmutado em
nascentes de cores “mortas”, até atingir a cor definida do céu, horizonte sagrado. Tal
movimento faz da personagem sombra, espectro fugaz de um giro, que redunda no
desmembramento do que é sólido e uno, decomposto por sua própria subjetividade:
a perda da harmonia atestada pela onipresença do signo ruína.
As personagens da Trilogia são as faces pulverizadas em busca da
reconstituição do Eu, espelhos partidos de um corpo. Próximo do herói, por encarnar
um momento de crise, a voz narrativa busca confrontar outras vozes para reconstruir
a unidade maior de sua identidade dilacerada. O efeito criado pelo poeta-alegoria
aponta para um desejo de unidade inscrito na escritura.
Na verdade, a voz autoral funciona como ruína do simbólico. As personagens,
enquanto fragmentos do corpo textual, são agentes de desintegração entre
linguagem e ação e representam o gesto coletivo de heróis e poetas. É o que
acontece com João do Carmo, quando incorpora a heroicidade de Baudelaire:
“Deixava o velho aposento de solteiro. Descera Baudelaire da parede”. Para, “Um
gesto, uma frase, repunham-no no calvário passado. E não se sabiam dar a
prometida festa do amor” (ANDRADE, 2000, p. 144). O poeta desce da parede como
modo de materializar-se no corpo ficcional da personagem e da própria escritura.
O olhar caminha pelo texto “baudelairianamente”, em sua forma corporalmente
estética. Tal ação se faz heróica: enquanto tudo dorme, o poeta pode encontrar, no
silêncio ruminante dos excluídos, a matéria para sua poética. Porém, tais objetos
teriam de estar correlacionados ao que lhe é significativo alegoricamente, ou seja,
significar eternamente tal diluição. A imagem mostra o próprio impulso da linguagem
em sua significação alegórica, desdobrada em sombras:
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No toucador, estava junto à botelha de cristal esvaziada a garrafa de
absinto, bojuda e aberta. Ela tinha bebido tudo, depois que ele partira;
apenas o copo guardava um resto de droga opalina, fazendo sobrenadar
uma mosca morta (...) Do escuro, foram saindo, pouco a pouco, as formas
dos quadros, das cortinas, da cama. (ANDRADE, 2000, p.194).
Vemos o emergir do quadro enunciador correspondente ao que apodrece.
Avultam, progressivamente, figuras do imaginário escritural em contínuo ato de
expansão expressiva; o encanto dá-se pelas provas do transitório, do corrompido e
da harmonia danificada.
O texto decompõe-se, expõe seus nervos dilacerados, ao desmembrar o corpo
textual em busca da significação inalcançável. As frases prolongam-se de modo a
perceber a não-resistência dos objetos textuais, interrompidas pelo caminhar
poético: “Na garoa vermelha, acesa em focos irregulares nos bicos de luz dos
combustores, o artista caminhava” (ANDRADE, 2000, p.230).
Temporalmente, a beleza transitória é o próprio presente que subtrai do objeto
lírico sua pretensa atemporalidade simbólica. A narrativa recorta a linearidade por
meio do olhar em perene transformação. Os significados decompostos
correspondem à desintegração da aura: a unidade inicial da linguagem só pode ser
experimentada por uma vivência em confronto, heróica, no entanto, despida de um
sentido simbólico superior. Por isso, a Melancolia é instaurada no discurso como
sintoma do hiato oferecido pelo presente, sob a forma-signo de uma leitura que
sombreia a aparência próspera do progresso: “Melancolias começaram, no entanto,
a baixar sobre aquela imóvel paz” (ANDRADE, 2000, p.115).
A imagem materializa “o trabalho incessante de luto”, a visão da vida a partir da
perspectiva da morte. A Trilogia busca alastrar o centro disseminador da linguagem
como precariedade, incapaz de dizer a palavra definitiva que a leitura da tradição
julgava oferecer. É quando o poeta-alegoria invade o texto para dizer sobre o
regresso à escritura, como na cena-metáfora: “Jorge sentia comovido o regresso à
luminosa poeira da vida. (...) Um carrossel cheio de luzes punha melancolia na noite,
onde bonecos desengonçados se extasiavam” (ANDRADE, 2000, p.335).
3.2 – A escritura condenada: ficção da modernidade
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A tessitura da escritura condenada faz-se muito mais por uma procura do que
efetivamente por traços reconhecíveis do modernismo, ou mesmo, da obra cubista-
metonímica que consagrou Oswald. Parece haver em Os condenados um “esforço
de fazer estilo” (CANDIDO, 1945, p.38), ou como classifica Mário da Silva Brito o
“aluno de romance Oswald de Andrade” (apud ANDRADE, 2000, p.7). Acentua-se,
na narrativa, a expressão de um hiato, estético e histórico, em que a própria
linguagem derrapa em sua construção, como concepção e realização. Não por
acaso muitos adjetivos rodeiam o romance: penumbrista, vaporoso, transitório,
fragmentário, etc. O que procuramos enfocar até aqui é justamente um viés que se
completa e, de certa maneira, até confirma tais predicados: uma escritura que
materializa o próprio impasse que vive. E este parece ser seu principal mérito.
O romance lança várias questões idealizadoras procedentes da idéia de
modernidade. Uma das que mais evidenciam tal momento é o seu próprio trabalho
com a linguagem. Há um evidente reposicionamento do narrador que desloca seu
olhar do campo da observação para o campo metafórico. Isso traz como sintoma a
expressão da obliqüidade, do duplo, pautado pelo discurso alegórico, que faz da
escritura o caminhar errante do poeta-alegoria nas novas passagens que se abrem
pelo texto, explorado poeticamente. De outra forma, inserido dentro de seu contexto
de produção, o romance busca significar a própria ausência de significações, da qual
emerge uma figura central, tanto no plano do enunciado, quanto no plano da
enunciação: a Melancolia. Esta servirá como base para a exposição do vão, do
vácuo que avulta da metáfora. E é justamente este o espaço para que sombras se
espalhem pelo texto como estilhaços do Eu narrativo. Se o romance clássico supõe
a solidão do autor, herói e leitor, na Trilogia há o coletivo – a personagem
fundamental é o signo condenação, ou o que deriva como sintoma do moderno.
Neste sentido, pode-se apontar para uma narrativa em ruínas orientada para a
unidade, por meio do espalhamento do Eu em vozes, gestualidades retiradas do
trabalho espacial do poeta-alegoria. Será esta uma das prefigurações benjaminianas
que fazem de Baudelaire a metáfora-linguagem da modernidade: em meio aos
resquícios, o poeta busca o excêntrico, o singular. Em vários momentos este sentido
de aproximação, ou de olhar “por dentro” está presente na Trilogia. Este
procedimento toma corpo no texto em duas instâncias: primeiro, na voz individual do
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narrador e das personagens que buscam a universalidade projetada para a voz
coletiva, como sintoma do tempo; segundo, do movimento do subjetivo para o
objetivo, como forma de trânsito e constante espelhamento dos fenômenos, já que a
unidade prefigurada do símbolo desaba pela queda da aura.
A imagem baudelairiana do poeta em seu isolamento, ou “encapsulamento do
indivíduo em sua diferença” (BENJAMIN, 2000, p.78), projeta a voz como
representante heróica de um tempo. Porém, esta voz, na verdade, desempenha um
papel e por isso atravessa o discurso épico como farsa. O poeta dispõe as alegorias
sob a categoria do jogo: a repetição do sistema que encontra a variedade como
solução figurante. Por meio deste aparelho, encontra o destino, o salto, o lance
decisivo que faz do presente enfrentamento. É por este viés que a escritura
condenada insere a circunstancialidade histórica como força construtiva da escritura.
E, também, a metáfora como passagem da crise individual para o gesto social.
Por isso, a procurada universalidade chega à Trilogia como máquina metafórica,
que, ao modo dos processos industriais de produção, tudo secciona, recorta,
fraciona e disponibiliza como linguagem. É justamente o momento da transição que
a arte faz em relação à técnica: no lugar de tomar por empréstimo seus termos, ela
incorpora seus procedimentos. É o momento em que o poeta se reconhece
mercadoria e se aproxima do lixo para devolver o olhar que contempla indiferente
sua aura enlameada. Não é de outra maneira que as personagens condenadas se
apresentam: poetas, artistas, prostitutas, suicidas, trapeiros, todos eles buscam no
discurso do Outro suas faces desintegradas e imprecisas, o que prefigura a própria
poética do poeta-alegoria.
Ao aproximar a mercadoria da idéia de alegorização, esse poeta incorpora como
crítica a funcionalidade reprodutiva. Seus objetos destacam-se da uniformização
generalizante para tornarem-se ruínas do simbólico, índices de renovação que
trazem o velho no novo, as fantasmagorias da modernidade. De outra forma, o
próprio discurso estético burguês desintegra-se para ser a consciência crítica do
presente, em que a arte adquire seu caráter efêmero, de passagem, assim como a
cidade, entre o passado e o futuro, em que o alegorista antecipa a ruína sobre o que
se ergue. Esta é a crítica central tendo em vista a idéia de progresso.
A crítica de um modo geral procura enquadrar Os condenados como obra
decadentista. Tal rótulo permite atenuar uma significação também transitória, ou
muitas vezes nostálgica sobre um ideal passado que se perdeu. De outra forma, ao
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cultivar as imagens diluídas, a escritura condenada tece imagens envelhecidas,
motivadas pela ausência de uma forma redentora. Porém, se considerar a
perspectiva benjaminiana sobre a História, encontra-se na narrativa um
encadeamento entre o teológico e o escritural. Decadência e progresso são faces da
mesma moeda. Willi Bole aponta na idéia de progresso uma “(...) adaptação secular
de conteúdos religiosos” (apud BENJAMIN, 2007, p. 1156), pois, segundo Benjamin,
a teologia “(...) pode transformar o inacabado (a felicidade) em algo acabado e o
acabado (sofrimento) em algo inacabado” (apud BENJAMIN, 2007, p. 1156). Se a
Trilogia expõe a metáfora teológica do mito da condenação como reflexo
significador do impasse vivido, também reorienta este preceito para o plano da
linguagem. Tem-se, aqui, uma correlação entre o acabado do instante simbólico e o
inacabado da alegoria. Sincronicamente, o inacabamento empregado como
linguagem torna-se reflexão sobre a própria escritura, como promessa de felicidade,
utopia. O que condiciona e substancializa uma crítica à compreensão sobre o
progresso por meio do desmonte de sua aparência acabada.
O conceito exposto acima é um entrever construtivo de Os condenados. A
descontinuidade narrativa, constituída por desvios do simbólico, intui a felicidade da
linguagem por incorporar o inacabamento como forma potencial e que converge
para a idéia de mercadoria como objeto fantasmático. Para Baudelaire, o mundo
moderno é aquele dominado por fantasmagorias, pois o presente está condenado a
se repetir como o progresso – continuidade, destino naturalizado. O trabalho
submetido a uma fiscalização compulsiva, assim como os próprios mecanismos de
repetição rigorosa de organização social, é a morte não só da experiência, mas,
também, da vivência.
Por isso, Baudelaire penetra a escritura condenada como força desintegradora,
modelo de uma modernidade possível, ou melhor, reconhecida no próprio impasse
que relega como forma. Desta maneira, o poeta-símbolo é substituído pelo poeta
herói – os dois carregam uma missão, porém diferentes: enquanto o primeiro faz de
sua missão reforma, o segundo intui como missão dar forma à descontinuidade que
é o moderno. Daí o passado ser refletido negativamente no presente, como forma
decomposta, em busca de um elo entre os discurso clássico e o discurso da
modernidade.
Benjamin reconhece em Baudelaire a “desintegração do sujeito clássico”, para
que de seu repisar de fragmentos da tradição, avulte a natureza diacrônica do
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objeto. O poeta-alegoria, como resultado dialogal entre o símbolo e a modernidade,
é figura substancial destas questões, pois surge pelo olhar-caminhar trôpego e
escorregadio, no constante abaixar para recolher na lama sua aura. A lama, matéria
singular e recorrente do progresso, será o espaço que o poeta explorará em um
tempo não nivelado: sua poética dá-se por saltos ao desvencilhar-se da multidão,
dos fragmentos lançados pelas passagens citadinas; de outra forma, precisa aplicar
a interrupção do fluxo para reter sua matéria poética – daí seu andar descontinuo. É
o que, de certa maneira, Benjamin invoca pela alegoria: a constante interrupção, o
caminhar recortado, seja pelos caminhos da cidade, seja pelo desviar constante do
poeta, que se congelam em imagens alegóricas.
Desta forma, a escritura condenada torna-se uma falsa épica no sentido de
imprimir oscilações pelo fluxo narrativo. Ao mesmo tempo em que busca a unidade,
nega-a como forma. É, sobretudo uma escritura que transita, não por símbolos, mas
entre símbolos, de modo a estender um painel decomposto, falsamente universal.
Ao negar o discurso normativo – no sentido de estabelecer duplos sobre a
linguagem acabada – promove a divisão estrutural entre texto e escritura, tornando-
se produto ficcional de leituras. Por isso é ficção de uma leitura de modernidade,
texto citado, que na expressão do entrever da alegoria, faz-se tecido em crise
escritural.
Roger Bastide aponta a apreensão de “um mundo recortado em pedaços”, pois
Os condenados, eram, pois primeiramente a entrada da sensibilidade moderna na
literatura brasileira” (BASTIDE, 1940). Em outro momento, confirma a idéia de
transição presente no romance: “Os sentimentos são invocados, não são descritos.
Isso significa a ruína de uma certa literatura (...) que se poderia chamar de literatura
burguesa” (BASTIDE, 1940). Desta maneira, o crítico francês correlaciona o
emprego da metáfora na circunstância do romance o que significa o desmonte da
linearidade do romance de análise. Como já fora exemplificado, em muitos
momentos o romance impõe o salto, o descontínuo nos eventos narrados – Bastide
chama este procedimento de “cinematográfico” – a imagem como a montagem que
incorpora ao movimento as fotografias. Convergentemente, a idéia de alegoria como
emblemas: quadros estáticos, que irrompem o gênero romance como abismo da
linguagem, intuída na idéia de eterna comunicabilidade que se condena o ser
humano.
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O certo é que a Trilogia oferece uma percepção nova procedente de um olhar
que apreende os objetos pela rapidez e visualidade. Esta operação, trazida para o
corpo do texto, congrega os procedimentos da técnica como negação do olhar
contemplativo-simbólico. A pintura literária é substituída por uma linguagem próxima
ao cinema, pois o objeto não pode ser fixado, já que a associação é constantemente
interrompida por alterações cênicas. O que para Benjamin é efeito do choque e
movimento: “No filme, a percepção sob a forma de choque se impõe como princípio
formal. Aquilo que determina o ritmo da produção na esteira rolante está subjacente
ao ritmo da receptividade, no filme” (BENJAMIN, 2000, p.125).
Neste sentido, a crise da representação aponta para uma nova leitura da técnica
que a Trilogia faz: incorpora seus processos – leitura-processo - e rompe com o
espaço-tempo do texto tradicional. A metáfora como máquina utilitária desautomatiza
a percepção simbólica e produz ruínas, duplos, pelos efeitos do choque. Por isso, os
heróis textuais, os poetas são reconstruídos como linguagem, signos novos
igualados em assinaturas autorais, o que confere ao texto o espelhamento quebrado
de seu próprio eu construtivo e autoral. Se não é a “morte do autor” como diria
Barthes, em busca do “grau zero da escrita”, é pelo menos sua expiação, seu
despedir-se da teatralidade ornamental da linguagem.
O poeta-símbolo, como representação da continuidade, é atravessado pelo
descontínuo do poeta herói textual. Este interrompe o fluxo linear-cronológico como
um herói para instaurar uma nova ordem. Daí surge o poeta-alegoria como memória
histórica, papel a ser representado como coleta das ruínas da história. Como ator,
exprime o Outro do discurso, reconstituído por meio de uma narrativa em pedaços,
citações em ruínas do texto original. Pelo movimento centrífugo, desvia-se do
simbólico para reverberar as sombras de um texto: as leituras.
Desconstrói a idéia de progresso entre o passado e a promessa de futuro pela
visão instaurada no presente. A Trilogia busca refletir o papel da arte e do artista na
sociedade deste período. Quer representar o corte da estética com o social de modo
a estabelecer novas relações entre arte e realidade. O narrador individual do
modernismo, por meio da aparência da pluralidade, apenas mostra o impasse de
sua própria história. Neste sentido, a ausência faz-se o presente a ser vivenciado e a
Melancolia instaura-se na falsa aparência reformadora do progresso.
A alegoria enquanto signo expressa, por um lado, a assinatura do divino
comentada pela linguagem humana e, por outro lado, como tecido de citações,
91
igualada como assinaturas autorais ou ruínas do texto ideal. O que em Os
condenados aponta para uma dialética, que estabelece uma pragmática dos meios
e não dos fins, cuja estrutura faz a mimese do progresso como forma de negá-lo.
Daí expressa, centralmente, a ausência do sentido de totalidade – a Melancolia – e
resigna-se com o transitório. Destrói a reprodução de formas harmônicas para
entrever, em escombros, o esboço de uma realidade redimida. Paradoxalmente, é
uma destruição produtora, pois se desliga da transcendência e não se limita a
evocar a perda, mas produzir outras imagens de sentido.
Por isso, criam-se precursores anônimos autorais, personagens que vivenciam
as circunstâncias históricas como forma de avivar a consciência no choque do
presente. A universalidade das imagens sociais é falseada pelo processo de
reciclagem ficcional como discurso indireto, oblíquo. A Trilogia vale-se da idéia de
exposição - livro-museu – em que preserva o estado bruto do objeto, unicidade e
excentricidade, de modo a prefigurar outra lógica associativa. Os caminhos textuais
apresentam-se como passagens, frestas, de modo que o salto do olhar retenha a
dimensão do irredutível. Desejam a totalidade no próprio objeto, em que o passado
seja resgatado no atual, como leitura não precedida de um ordenamento ideal.
Em saltos, o romance busca reintegrar o elo entre os objetos da realidade e sua
verdade perdida. Vê no extremo aquilo que escapa à representação. Retira da
exclusão o outro: a escritura condenada como promessa e potencialidade
inacabada. Ficcionaliza a modernidade para materializar a imagem do impasse.
92
Conclusão
O romance Os condenados – a trilogia do exílio de Oswald de Andrade
demonstra facetas múltiplas e reveladoras da instauração da modernidade na
Literatura Brasileira. Apesar de relegada a um segundo plano pela crítica
historiográfica, a narrativa oferece as contradições e procedimentos escriturais de
um modernismo incipiente, filiado a uma programática da tradição ficcional. O que, o
romance busca reverter como inventividade e quebra de paradigmas.
A leitura que Walter Benjamin faz de Baudelaire orienta o imaginário moderno
que a Trilogia almeja como forma ficcional. A diferença da primeira narrativa
oswaldiana está justamente neste ponto: em meio à uniformização ficcional de seu
contexto, ela demonstra ser uma ruptura com os padrões recorrentemente
legitimados. Buscamos destacar no decorrer da pesquisa realizada, os pontos em
que a narrativa encontra-se com a visão de Baudelaire, o que faz dela uma ficção da
metáfora interpretante de Benjamin sobre o artista moderno.
A partir do modelo Baudelaire, a narrativa de Os condenados encontra uma
possibilidade de consciência crítica a partir do presente. Incorpora o poeta francês
para a construção de alegorias que desintegram o tempo-espaço simétrico do
simbólico. A ruína e a fragmentação invadem o romance como forma destruidora da
linearidade épica e instauram o descontínuo como forma de representação do
universal. O olhar deixa de ser observação e se interioriza na máquina metafórica
construtora da enunciação. Desta maneira, põe em crise a própria representação e
nos oferece uma ficção sobre o estilo ao assumir-se texto citado, fruto de recortes
duplicados a partir de uma percepção centrífuga sobre os objetos.
Dessa forma, a voz narrativa decompõe o discurso para a vivência das
personagens. Estas são os próprios estilhaços do espelho monologal do Eu
enunciador. São poetas representando o papel de um herói que rompe com a
experiência para viver o presente em transição, concretizada pela mudança
referencial de uma voz individual em direção ao gesto coletivo. Por meio de uma
leitura do artista moderno, referência propiciada pela imagem modelar de
Baudelaire, evidencia-se o impasse vivido pela modernidade. O poeta, na
modernidade, não pode oferecer imagens do Belo, pois sua missão é carregar a
93
consciência da existência do tempo: sabe que ele corrompe toda visão de beleza na
vivência do instante.
A representação da modernidade não pode ser mais que uma releitura –
fantasma do eterno retorno dos fatos e objetos da História. O poeta-símbolo, então,
é desintegrado pelo reflexo negativo do passado no presente. O poeta-alegoria
conduz a busca de um elo perdido entre a tradição e a modernidade. De outra
forma, o próprio hiato que a idéia de progresso oferece: tudo está passível de
modificação e deslocamento, inclusive o passado e a tradição. Emerge, por isso, a
figura da Melancolia que atravessa o romance e abre suas passagens. O hiato e a
expressão da queda da experiência são reorientados para significar a condenação
do presente. O passageiro e a eterna transformação do progresso são recortados no
texto para o sentido da própria linguagem: o andar do trapeiro é materializado no
olhar do poeta, que atravessa tais passagens aos saltos; impõe o descontínuo como
forma de negação ao normativo e, entre os objetos danificados, faz viver a poética
do singular.
A singularidade atenua-se pela idéia do não-procedente. Os objetos não existem
em função dos eventos passados, mas na continuidade desfuncionalizada do atual.
É desta maneira que o poeta faz de seu andar-olhar um ritmo trôpego, um derrapar
ininterrupto na imagem de falsa permanência que reveste o progresso – na verdade,
há um fundo de estagnação, que apesar da aparência guarda um fundo
conservador. É o espaço das incertezas e do deslocamento constante da história e
do saber: como o futuro é a meta, a ação, o presente é a lacuna.
É por este viés que a escritura condenada exibe seus produtos: recolhidos à
margem, ruminam os restos de um sentido redentor. É quando o poeta apropria-se
da consciência de mercadoria. Daí seu olhar não será mais a panorâmica do flâneur,
mas aquele que, vigiado, procura em espaços entrevistos o comprador para sua
mercadoria poética. É neste sentido que a Trilogia aproxima-se da leitura de
Benjamin: as personagens, como fragmentos de um Eu partido – talvez, o homem
clássico desmontado por Baudelaire – são incorporadas na linguagem serialmente
por metáforas, de maneira a trazer para o presente do texto o procedimento e não
somente a incorporação ornamental dos motivos, da técnica.
No entanto, o que podemos apontar como substancial é a forma do andar que
reveste a escritura condenada. Caminha, como Baudelaire, por duplos alegóricos – a
linguagem lança sombras que descaracterizam uma possível uniformidade poética.
94
Mais: a uniformização dá-se pela exposição do corroído, do inacabamento como
forma construtiva. Por isso, seu olhar retém o excêntrico ao parar e tropeçar na
matéria poética; faz do texto saltos sobre o linear e ruína do simbólico. A alegoria
retira do objeto a sombra, o Outro do discurso, para tornar a imagem indefinição,
dejetos em forma de aura.
O romance não é mais que a queda, o salto entre eventos simbólicos – estes
geradores das personagens ou produtos marginalizados pela indústria do consumo.
Atravessa a multidão como forma de choque, o que reaviva a consciência poética e
lança a aura na lama do instante. Retém por este caminhar imagens do próprio
enfrentamento que propõe como heroicidade.
A modernidade em Baudelaire afirma o desejo e a impossibilidade de volta a
uma origem perdida para sempre. O Spleen, como consciência de um tempo que
tudo condena, gera as alegorias que guardam pela lembrança a morte deste
passado imemorial e Ideal. Se considerar a obra de Oswald como uma forma de
utopia que resgata o passado no presente, percebe-se uma correlação central. A
crença no pecado original – como conhecimento do bem e do mal - que leva
Baudelaire a construir sua poética de ceticismo frente à eterna novidade da
sociedade industrial, é o mesmo centro metafórico da condenação da Trilogia de
Oswald. Não por acaso, as imagens apontam para uma unidade metalingüística: a
queda como felicidade da linguagem e utopia da escritura.
Enquanto leitura da tradição, o romance Os condenados estabelece o
inacabamento como inventividade ficcional e produção utópica. Tal procedimento é
repetido por Oswald como refinamento paródico no par Miramar-Serafim, ou
mesmo no ideário utópico da Antropofagia. O que seria uma outra forma de reviver
a Melancolia que a escritura condenada proporciona como materialização da
linguagem. Ou, buscar uma fascinação possível nesta mercadoria obscura,
esquecida nas prateleiras, que é a Trilogia do exílio.
“A imagem da esfinge com que se fecha o poema tem a beleza sombria dos artigos
sem saída que ainda são encontrados nas galerias”.
Walter Benjamin
95
Referências bibliográficas:
I – Obras do autor:
ANDRADE, Oswald de. Estética e política, São Paulo: Globo, 1991.
______ Feira das sextas, São Paulo: Globo, 2003.
______ Ponta de lança, São Paulo: Globo, 2003.
______ Obras completas, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971/1974, 11v.
______ Os condenados, São Paulo: Globo, 2000.
II – Obras sobre o autor:
BOAVENTURA, Maria Eugênia. O salão e a selva. Uma biografia ilustrada de
Oswald de Andrade, São Paulo: Editora da Unicamp, 1995.
BRITO, Mário da Silva. As metamorfoses de Oswald de Andrade. São Paulo:
Conselho Estadual de Cultura, 1972.
CAMPOS, Haroldo de Campos (ed. e introd.). Oswald de Andrade. Trechos
escolhidos, Rio de Janeiro: Agir, 1967.
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Cidades, 1976.
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Girondo e Oswald de Andrade, São Paulo: Perspectiva, 1983.
III - Revistas
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Cult, Revista Brasileira de Literatura, ano V, n° 55 “Oswald de Andrade e os 80 anos
da Semana de 22”, pp. 41-63.
Remate de Males, n°6, Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, IEL –
UNICAMP,1986.
Revista de Letras, n°30, São Paulo, UNESP,1990, pp. 1-81.
IV - Artigos de jornais
BASTIDE, Roger. Os condenados de Oswald de Andrade, O Estado de São
Paulo, 07 de junho de 1942.
O ESTADO DE SÃO PAULO. Resenha, 28 de dezembro de 1941.
V - Ensaios em livros
BRITO, Mario da Silva. O aluno de romance Oswald de Andrade. Os
condenados, São Paulo: Globo, 2000, pp.9-29.
CAMPOS, Haroldo de. Estilística miramariana. Metalinguagem e outras metas,
São Paulo: Perspectiva, 1978.
CANDIDO, Antonio. Estouro e libertação. Brigada ligeira, São Paulo: Martins,
1945, pp. 36-49.
______ Digressão sentimental de Oswald de Andrade, São Paulo: Martins, 1945,
pp.59-87.
______ Oswald viajante, São Paulo: Martins, 1945, pp. 51-55.
______ Os dois Oswalds. Recortes, São Paulo: Companhia das letras, 1990, pp.
35-42.
______ O diário de bordo. Recortes, São Paulo: Companhia das letras, 1990, pp.
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1991, pp. 5-10.
MANFIO, Diléia Zanotto. Alma de absinto. A estrela de absinto, São Paulo: Globo,
1991, pp. 5-9.
VI - Obras de apoio teórico
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2003.
BAKTHIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski, Rio de Janeiro: Forense
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BALAKIAN, Anna. O simbolismo, São Paulo: Perspectiva, 2000.
BARBOSA, João Alexandre. A metáfora crítica, São Paulo: Perspectiva, 1983.
______ Ilusões da modernidade, São Paulo: Perspectiva, 1986.
BARTHES, Roland. Aula, São Paulo: Cultrix, 2004.
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______ A modernidade, São Paulo: Paz e Terra, 2004.
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