Despertei com a discussão, os berros abafados, soluços de Helônia. “Morreu!”
Saí de pés descalços, ele ressonava. Ouvi então, na sala,o bater da muleta, Nassi
Latif ia embora e minha irmã seguia-o,em pranto, braços erguidos. Ao ver-me
sem sapatos, gritou que eu a espionava. Dei-lhe uma bofetada: “Não sou da sua
laia”. Nassi voltou-se: “Vocês enlouqueceram? Nunca mais venho aqui”. “É
melhor mesmo. Na certa, a vizinhança anda falando de nós. Não fica bem a duas
moças virgens, morando sós com o irmão que nunca sai da cama, um homem
cujas intenções ninguém conhece.” Nassi Latif levantou a muleta e começou a
rir,aquele riso rangente. “Quem está doido, pra falar mal de vocês? As duas já
caíram em exercício findo há séculos! Junto de vocês, Senhorita Hahn é uma
criança. Vão para o inferno. Velhas caducas!” (LINS, 1999, p. 57)
Os últimos dias de Hahn na cidade se convertem em dias de sofrimento para a
personagem que, simultaneamente, testemunha a mais devastadora das frustrações
amorosas da irmã e assiste ao irmão em seus últimos dias de vida. Os gritos de Hahn
pontuam a agonia da personagem-narradora diante da imagem devastada daquela família,
que, por décadas, esteve apoiada em valores cômodos como a virgindade das irmãs
solteiras e a formação religiosa do irmão. O auge da agonia coincide com o ruidoso cortejo
que os moradores fazem na despedida da elefanta. Só quando os gritos de Hahn já não
podem ser mais ouvidos é que a quietude, definitivamente, instaura-se na casa. Com os dois
irmãos mortos, a personagem-narradora respira aliviada. Ironicamente, o desfecho fúnebre
da trama reacende as esperanças da velha solteira. Alegoricamente, a passagem da elefanta
a ajuda redimensionar o tempo, certa de ainda restar “tanta vida ainda por viver” (LINS,
1999, p. 60). Para a velha, assim como para outras personagens de Pentágono de Hahn, a
elefanta é o meio de re-integração com o universo. A simples presença do animal mítico é
capaz de os re-orientar na busca pela unidade perdida, da qual não retorna reconhecido, o
que aproxima definitivamente a narrativa dos temas medievais.
A elefanta de Osman Lins é um exemplo de trabalho de criação em que prevalece o
alegorismo medieval. Parte de uma imagem incongruente (um animal amestrado de circo) a
função de re-orientação das personagens. Entender esta alegoria exige um esforço de
interpretação que parte, sobretudo, da estranheza do símbolo. Como diz ECO, “o medieval
é fascinado por este princípio” (ECO, 1989, p. 75), principalmente porque o homem
medieval acredita que as alegorias aguçam o espírito, reavivam a expressão, adornam o
estilo.
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