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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
JOSÉ RODRIGO PAULINO FONTANARI
A IMAGEM DO CHEIRO: O PARADOXO NA
PUBLICIDADE DE PERFUME
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
SÃO PAULO
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
JOSÉ RODRIGO PAULINO FONTANARI
A IMAGEM DO CHEIRO: O PARADOXO NA
PUBLICIDADE DE PERFUME
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial
para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e
Semiótica sob a orientação do(a) Prof.(a), Doutor(a) Norval
Baitello Júnior.
SÃO PAULO
2008
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Banca Examinadora
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---------------------------------------------------
---------------------------------------------------
DEDICATÓRIA
Aos meus pais
AGRADECIMENTO
Ao CNPq – Conselho de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico.
Ao Prof. Dr. Norval Baitello Jr., orientador sempre
presente e entusiasta com esse orientando.
Á grande amiga, Marcela Benvegnu que se tornou
figura mestre nesse percurso acadêmico com sua
leitura atenta e carinhosa com os meus delírios e
seu entusiasmo mesmo nos momentos mais
complicados desse percurso acadêmico.
Ás amigas inesquecíveis que fiz durante este
mestrado, Cymara Apostólico, Cynthia e Priscila
Magossi. A elas meu muito obrigado.
A Tânia Cosci Nascimento e Maria Elisa Granschi,
se cheguei aonde cheguei é porque me apóie sobre
ombros de gigantes.
Á profa. Dra. Leda Tenório da Motta, pelo
acolhimento e por proporcionar meu crescimento
acadêmico.
EPÍGRAFE
“Muitas filosofias referem-se à vista: poucas ao
ouvido; menos crédito ainda dão ao tato e ao odor.
A abstração recorta o corpo que sente, suprime o
gosto, o olfato e o tato, conserva apenas a vista e o
ouvido, intuição e entendimento. Abstrair significa
menos sair do corpo do que o partir em pedaços:
análise.” MICHEL SERRES.
RESUMO
FONTANARI, José Rodrigo Paulino. A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade
de perfume. Dissertação (Mestrado): Departamento de Comunicação e Semiótica,
Pontifícia Universidade Católica, 2008.
A presente pesquisa aborda a modalidade comunicativa que denominamos “comunicação
olfativa”. Compreendemos o perfume como forma de mídia. Investigamos a história do
perfume em diversas civilizações e seu uso nos rituais. Inserimos algumas descobertas a
respeito do olfato na comunicação do ser humano desde seus primeiros anos de vida. Uma vez
que a civilização contemporânea tem privilegiado os sentidos de distância (a visão e a
audição) em detrimento dos sentidos de proximidade (o olfato e o paladar), procuramos
verificar como se dá a tradução do perfume para o código visual. Para tanto, são analisadas
peças publicitárias veiculadas nas revistas femininas Claudia, Elle, Marie Claire e Nova no
período de 1993 a 2004. O trabalho apóia-se nos conceitos de “ecologia da comunicação”
proposto por Vicente Romano, de etologia da comunicação de Boris Cyrulnik e também de
mídia primária, secundária e terciária de Harry Pross. Na mesma proporção do padecimento
dos sentidos de proximidade, observa-se o esmaecimento dos vínculos do afeto. Para a
elaboração desta pesquisa, elegeu-se a Semiótica da Cultura, que entende o corpo, o perfume
e o olfato como textos da cultura possuidores de grande capacidade informativa em sentido
amplo. Por meio dessa semiótica, serão constituídos os paradigmas para focar o objeto de
estudo e alinhavar as três esferas de pesquisa (corpo, perfume e olfato). Essa tríade revela-se
como uma das possíveis maneiras de manter os vínculos comunicativos interpessoais de
proximidade.
Palavras-chave: Comunicação olfativa; Comunicação interpessoal de proximidade; Ecologia
da comunicação; Publicidade; Perfume; Corpo.
ABSTRACT
The current research approaches the comunicative modality we name: “olfactory
communication”. We understand the perfume as a media form. We have investigated the
history of the perfume in several civilizations and its use in the rituals. We have inserted some
discoveries regarding the smell in the communication of the human being since their early
age. As the contemporary civilization has privileged the senses of distance (the sight and the
hearing) to detriment of the proximity senses (the smell and the taste), we have attempted to
verify the translation of the perfume for the visual code. In such a way, therefore executives
advertising propagated in the feminine magazines Claude, Elle, Marie Claire and Nova in the
period of 1993 the 2004 are analaysed. The work is supported in the concepts of “ecology of
the communication” proposed by Vicente Romano, of the ethology of the communication by
Boris Cyrulnik, as well the concepts of primary, secondary and tertiary media of Harry Pross.
In the same proportion of the suffering of the proximity senses, we observe of the bonds of
the affection. To carry out of this research, Semiotics of the Culture was chosen, wich
understands the body, the perfume and the smell as cultural possessing texts of great
informative capacity in ample direction. Through this semiotics, the paradigms will be
constituted as object of study object and to tack the three spheres of the research (body,
perfume and smell). This triad shows as one of the possible ways to keep the interpersonal
communicative bonds of proximity.
Key-words: Olfactory communication; Interpersonal communication of proximity; Ecology
of the communication; Advertising; Perfume; Body.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................10
CAPÍTULO I UMA PEQUENAHISTÓRIA
DO PERFUME
1.1 Um pouco de história: do faro ao olor..................................................................14
1.2 A história do perfume...........................................................................................20
1.2.1 A Antiguidade .............................................................................................20
1.2.2 A Idade Média e o Renascimento................................................................26
1.2.3 Século XVIII ..............................................................................................28
1.2.4 Do Século XIX até os dias de hoje..............................................................29
1.3 Perfume e Religião ...............................................................................................34
CAPÍTULO II OS SENTIDOS NA COMUNICAÇÃO
2.1 Comunicação e seus sentidos ...............................................................................42
2.2 A ambiência comunicacional................................................................................49
2.3 Corpo e perfume: o perfume como mídia.............................................................51
2.4 Perfume e a imagem do cheiro.............................................................................58
CAPÍTULO III CORPO, PERFUME E OLFATO:
TRÊS FOCOS PARA UMA COMUNICAÇAO
INTERPESSOAL DE PROXIMIDADE
3.1 Comunicação olfativa...........................................................................................66
3.2 Por uma arqueologia olfativa................................................................................76
3.3 Fisiologia olfativa: o processo
de decodificação da mensagem olfativa...............................................................81
3.4 Olfato e sexo.........................................................................................................84
3.5 Olfato e civilização...............................................................................................98
CAPÍTULO IV A IMAGEM DO CHEIRO:
UMA ANÁLISE DA PUBLICIDADE
DE PERFUME
4.1 Das escolhas .......................................................................................................109
4.2 O que dizem as imagens? ...................................................................................111
4.3 Imagem: superfície refinada...............................................................................121
4.4 Metonímia: uma parte que fala pelo todo...........................................................124
4.5 O corpo reconhecido...........................................................................................129
4.6 A civilização do olfato........................................................................................131
4.7 O duplo...............................................................................................................133
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................138
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................................................149
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [10]
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa nasce de uma incessante observação deste pesquisador sobre
os textos publicitários que a mídia brasileira veicula. Tal olhar sobre esse mundo segue
motivado pela grande importância e desempenho da publicidade na sociedade contemporânea.
Atualmente, os meios de comunicação, juntamente com a publicidade, tornaram-se
verdadeiros balizadores do gosto e do desejo de uma sociedade e de uma cultura. Numa
investigação preliminar, constata-se que, na maioria das vezes, os anúncios impressos de
perfume contêm uma possível representação do cheiro. O cheiro propriamente dito, isto é, a
imagem olfativa que convida a conhecer a fragrância e a essência do perfume, não aparece. A
partir dessa observação, investigaram-se essas representações elaboradas pelos anúncios, na
busca de compreender esses cenários. Esta pesquisa também se preocupa em discutir se essas
representações são dotadas de algum traço mimético (verbo-visual) que as remetam ao cheiro,
ou se esses cenários surgem simplesmente como suscitadores para o consumo. Nesse sentido,
o projeto de pesquisa visa lançar luz sobre essa zona de opacidade, representação do cheiro
presente na comunicação contemporânea. Discute-se, sobretudo, a questão da comunicação
por meio de um sentido corporal de proximidade: o olfato. Direcionamos nossos estudos
sobre a olfação e sua capacidade comunicativa para o mundo humano e para o
estabelecimento de uma comunicação interpessoal de proximidade.
A dissertação órbita em torno de três esferas: publicidade, perfume e comunicação
olfativa. Uma vez que não há, até o presente momento, nenhuma pesquisa que trate
integradamente desses três temas, partimos dos estudos isolados sobre cada um dos assuntos.)
Quanto ao estado da arte da presente pesquisa, muito pouco ou nada se tem escrito
em relação à comunicação de proximidade, sobretudo no que se refere ao olfato e à
importância do papel que eledesempenha na comunicação humana. Sabemos que o tema só é
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [11]
mencionado por outras áreas do saber, como a Etologia, com destaque para Borys Cyrulnik,
de quem cito a obra Os alimentos do afeto. No entanto, não é somente nessa obra, que se
encontrarão vestígios capazes de sustentar a pesquisa. Entre outras, merecem também
destaque Do sexto sentido, Sob o signo do Afeto e Memória do macaco, palavra de homem.
Cabe ressaltar que nesta pesquisa não haverá referência à obra literária de Patrick
Süskind, Perfume – A História de um assassino. O livro é a odisséia de um anti-herói
convertida em uma questão de sentido: nascido em um mercado na Paris de 1738, em meio a
restos de peixe e dejetos diversos, Jean-Baptiste Grenouille não tem cheiro. Pelas inúmeras
pesquisas que se basearam nesse livro, entendemos desnecessário tratar dessa mesma obra.
Acreditamos que a opção por novos caminhos literários possibilitaram enxergar a matéria de
outro prisma. Esperamos, assim, contribuir mais para essa área multi-interdisciplinar de
pesquisa denominada Semiótica da Cultura.
Pretendemos lançar luz sobre a comunicação humana enfatizando um dos sentidos
de proximidade, o olfato. Portanto, este trabalho dedica-se a estudar o sentido do olfato e do
perfume para a comunicação interpessoal de proximidade e o sentido da comunicação no
texto publicitário de perfume. Para tanto, selecionamos 29 peças publicitárias de perfume
feminino veiculadas de janeiro a dezembro, ao longo dos anos de 1993 a 2004, em revistas
femininas brasileiras. A seleção de 29 peças dentro de um universo de mais de 1000 anúncios
de perfume feminino deve-se à sua representatividade, uma vez que os anúncios escolhidos
são aqueles que apresentam expressivo conteúdo de elementos icônicos e verbais que
possibilitam verificar um dos objetivos desta pesquisa, que é saber se há ou não uma justa
amarração entre o cheiro do perfume garantido pelos elementos químicos que o compõem, e a
representação imagética que a publicidade faz do perfume, ou seja, uma possível
representação do cheiro.
Levou-se em consideração também o fato de que elas dedicam a maior parte do
seu espaço interno à publicidade e, portanto, apresentam maior número de anúncios,
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [12]
sobretudo de perfume feminino. Optou-se por estudar a mídia impressa pelo seu caráter mais
intimista e pela permanência propiciada pelos tais veículos em comparação aos audiovisuais.
O método predominante na fase de observação empírica será o dedutivo, partindo
de vários princípios tidos como verdadeiros para chegar àquilo que se quer provar. A partir do
conhecimento de outros, buscaremos o conhecimento particular. Segundo esse método, as
explicações científicas devem ter uma forma de dedução lógica.
Entre os procedimentos metodológicos utilizaremos a documentação indireta
obtida através de pesquisa bibliográfica, a partir de referências publicadas em livros, revistas
especializadas e sites na Internet, analisando dados científicos existentes sobre a publicidade,
o perfume e o olfato como importante meio de comunicação de proximidade no ser humano.
Fez-se um mapeamento empírico dos textos publicitários a fim de revelar traços miméticos
das imagens do cheiro com o cheiro do perfume propriamente dito. Para tanto, utilizarmos
ferramentas conceituais apresentadas nos fundamentos teóricos para cortar, analisar, decifrar,
inquirir e, se possível, até interpretar os dados empíricos encontrados.
As representações dos cheiros veiculadas nos anúncios publicitários serão
analisadas como textos culturais, tais como os define Ivan Bystrina em Tópicos de Semiótica
da Cultura. O autor considera que “textos são complexos de signos com sentido”. Os textos
em si preenchem uma função comunicativa, uma função de participar, de informar, no sentido
amplo da palavra. Mas eles preenchem também outras funções, como por exemplo a função
estética ou emotiva, a expressiva, ou ainda outras funções sociais” (BYSTRINA, 1995, p.4).
Portanto os paradigmas norteadores deste trabalho virão da Semiótica da Cultura.
Será por meio dessa ciência que buscaremos concatenar as três esferas (publicidade, perfume
e comunicação olfativa).
Procuramos abordar, primeiramente, um pouco da história do perfume, e de como
os sentidos, em especial o olfato, têm servido como meio de comunicação para o homem).
Depois, buscamos demonstrar como o olfato se apresenta na cultura humana, mostrando as
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [13]
transformações e adaptações pelas quais esse sentido passou com a evolução da espécie
humana e a passagem para uma vida social.
No capítulo I, “Uma pequena história do perfume”, abordamos os principais
momentos históricos que marcaram a evolução e a transformação da elaboração dos odores
desde os sistemas mais rudimentares até os processos mais sofisticados e industriais.
Juntamente com essa evolução, procuramos demonstrar como a cultura humana vem
construindo sua relação com o mundo dos odores. Para tanto, revelamos como os
perfumes/odores servem de elo entre os mundos pagão e religioso
Em “Os sentidos na comunicação”, segundo capítulo da pesquisa, procuramos
expor os paradigmas da Semiótica da Cultura, que busca estudar o sentidos da comunicação e
os sentidos na comunicação. É nesse modelo que todo o texto se baseia, buscando demonstrar,
de acordo com o pensamento do semioticista Harry Pross, que o corpo é a primeira mídia,
servindo muitas vezes de suporte de significação para o perfume.
O capítulo III, “Corpo, perfume e olfato: a tríade para uma comunicação
interpessoal de proximidade”, traz um estudo do sentido do olfato desde o processo de
decodificação do cheiro pelo nariz até as transformações culturais pelas quais esse sentido
corporal passou com o processo de evolução da espécie humana para a vida em sociedade.
Por fim, no capítulo IV, “A imagem do cheiro: uma análise da publicidade de
perfume”, observamos como o texto publicitário lida com esse sentido corporal, que não
aparece de maneira explícita no anúncio, e como recorre de maneira indireta aos recursos
retóricos para tentar simular a presença de um cheiro por meio da imagem.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [14]
CAPÍTULO I
UMA PEQUENA HISTÓRIA DO PERFUME
1.1 Um pouco de história: do faro ao olor
Ao propormos fazer uma viagem à história do perfume e da higiene não
pretendemos ser totalmente fiéis à linha cronológica. Tomamo-la somente como base para a
elaboração de um panorama histórico sobre o assunto e como os costumes de banhar-se e
perfumar-se tornaram-se um ritual nas diversas sociedades. Para isso, elaboramos um recorte
em períodos, considerando os principais momentos que possibilitam pensar o perfume como
mídia do homem desde seus primórdios.
Nesse sentido, a questão do cheiro passa pela história da higiene do corpo. A
limpeza do corpo confunde-se com a utilização dos cosméticos, dos perfumes e das roupas,
pois consagra o olhar e o olfato. Seja em que período for a limpeza, a higiene tem como
objetivo privilegiar a aparência.
Durante vários séculos, especialmente entre os séculos XV e XVII, quando grande
parte da Europa era assombrada pela peste, a higiene do corpo era tida como meio facilitador
do contágio, pois acreditava-se que o corpo era um organismo poroso e que, à medida em que
fosse feita a higienização, os poros se abririam e facilitariam a contaminação do organismo.
Tinha-se a crença de que a água, principalmente a morna, abria os poros aos ares nocivos. E
mais: a água era acusada de tornar os órgãos frágeis. Durante muito tempo, a higiene esteve
intimamente associada a uma idéia negativa, muito diferente da que temos atualmente. Assim
nos apresenta Georges Vigarello, em sua obra O limpo e o sujo, a questão da limpeza: “(...) O
medo restringe a prática da água. A imagem do corpo permeável, com o seu contexto de
riscos mal dominados, torna o banho difícil de imaginar.” (1985, p. 28).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [15]
As práticas de higienização do corpo, durante grande parte do século XVII,
restringiram-se a uma limpeza a seco. Em vez da lavagem, utilizavam-se toalhas brancas
umidecidas que eram friccionadas pelo corpo. O que era permitido e higiênico um século atrás
era a utilização da água para lavar o rosto e as mãos. No século XVII, o líquido passou a ser
algo não-utilizado: a água prejudicava a visão, provocava dores de dentes, de garganta. De
certa maneira, ainda persiste a idéia de que a pele porosa é suscetível a males.
(...) O uso da água restringe-se. Mas em benefício de uma vigilância e de um
sentido do pormenor que preservam a norma e até a reforçam. A higiene
assim comentada pode, rigorosamente, constituir uma nova exigência. O
gesto de limpeza não foi abolido. Apenas se inflectiu e é diferente. A
representação do corpo influiu. Mas, para o ter em conta, é com certeza
necessário esquecer qualquer relação com critérios de hoje, admitir, em
particular, a existência de uma higiene que percorre vias diferentes da
ablução. (VIGARELLO,1985, p. 23).
É preciso ressaltar que, durante a Idade Média, o banho nas denominadas estufas
de banho não tinha a finalidade de limpeza; estava muito mais associado à transgressão, ao
jogo, à água como um elemento festivo. A água é explorada como um prazer, ligada à
sensualidade.
O banho é, sem dúvida, uma cena de divertimento social: ágapes em que os
convivas comem e se divertem. (...) A água permite fruir melhor dos
sentidos. (...) esta prática aproxima-se da arte da hospitalidade, da diversão e,
afinal, da sensualidade. Estas festas públicas ou secretas confirmam que a
água é explorada, em primeiro lugar, como um prazer. É calor e
comunicação mais ou menos sensual. (VIGARELLO, 1985, p. 36).
No século XVIII, o conceito de limpeza altera-se totalmente. Está intimamente
associado à idéia da aparência: o que importa é o que se vê. Nesse tempo, valorizam-se os
critérios aristocráticos da aparência e do espetáculo. Prevalecem as idéias de civilidade e não
as de saúde, e é inegável que a aparência prevaleça nesse jogo. As roupas deveriam ser
brancas, porque o branco se impregna da sujidade do corpo, servindo como uma esponja que
expurga toda a sujeira.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [16]
Quanto ao vestuário, a moda e a limpeza acabam por se confundir no século
XVII. A higiene é, em primeiro lugar, o respeito pelos cânones. Esta
sobreposição de sentidos entre linha e limpeza só se produziu porque a
aparência desempenhou um papel fundamental. Foi preciso atribuir um
privilégio sistemático ao exterior para alterar a própria definição. A limpeza
tinha de ser essencialmente a dos tecidos para que a palavra pudesse incidir
no vestuário até o próprio se modificar. O sucesso dessa nova definição não
vem senão confirmar a visão da higiene no século XVIII: esta participa de
uma arte da representação. Mais geralmente, integra-se num modelo social
circunstanciado: a corte como exemplo e espetáculo. Não se trata apenas de
oferecer sinais vestimentares ostensivos. Trata-se de cultivar, quase
conscientemente, uma prática de ilusão. A arte da corte é claramente uma
arte de representação. (VIGARELLO, 1985, p.69).
Já no segundo terço do século XVIII, os cenários, no que se refere à higienização
do corpo, mudam consideravelmente: os banhos ocorrem com a imersão total do corpo. No
entanto, isso não quer dizer que a higiene tenha se tornado seu objetivo primeiro, pois nem
mesmo ocorrera a familiarização com esse ato. Esse súbito interesse pelo banho, utilizando-se
da água, deve-se principalmente às inúmeras monografias médicas a seu respeito. O banho era
tido como um meio de aliviar os humores. Passa-se a exigir uma higiene setorial, segundo as
partes do corpo, em que o suor permanece e produz um odor desagradável. Neste período já
existe uma relação mais íntima entre o indivíduo e suas parte do corpo; isso se deve ao
aparecimento de espaços privados para efetuar a higiene pessoal e, principalmente, ao
aparecimento de objetos próprios à limpeza, tais como o bidê, a bacia e o jarro de porcelana
que ornamentavam os quartos de banho da época.
Dessa forma afirma Vigarello:
(...) Uma higiene íntima, discreta e pouco comentada conduz certamente a
outras vias. Mas a higiene continua a ser prisioneira do trabalho clássico
sobre a aparência. A sua razão de ser essencial ainda continua a ser a
ostentação. Ora, a renovação vai precisamente num sentido diferente. É o de
tornar-se mais funcional, ao encontrar, por exemplo, outras legitimidades,
como a da saúde e do vigor, em particular, e sobretudo as imagens
mecânicas de que a água é portadora, que a higiene vai mudar de sentido.
Um paradoxo reside no facto de uma parte das transformações futuras passar
pela ostentação do luxo, ainda dominante: uma higiene que se afirma contra
valores da aparência e que não carecerá da aparência, é preciso que se diga,
de conotações sociais. (1985, p.91).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [17]
Neste século, ainda ocorre uma delimitação entre a natureza e o artifício, que
demarcou uma crítica aos códigos aristocráticos de higiene que impunham os artifícios, os
trajes demasiadamente ostensivos, para uma condição mais espontânea, simples, contra aquele
excesso de simulação. “Só há fraqueza e vaidade nestes pós e pomadas odoríferas que a
presunção teve a infelicidade de inventar e que a sensualidade dos ricos emprega nos seus
preparos com a profusão tão perigosa quanto condenável. É também objeto de crítica social
que a cosmética significa moleza e debilidade.” (VIGARELLO, p.108).
Essa alteração da visão de higiene, mais voltada para o “interior” do corpo, fez
com que o conceito de higiene se modificasse, colocando em xeque a idéia de que a esta
correspondia somente a esfera do visível, da aparência e dos adornos.
(...) foi precisamente a transformação dos critérios que deslocou a visão de
higiene. Foi a atenção explícita ao interior da aparência que veio pôr em
causa a ligação durante muito tempo aceita entre a higiene e os adornos,
impondo ao vestuário outras referências que não as do espetáculo. A
superfície e o perfume não podem ser exclusivos. O cenário se altera. A
distinção clássica, a do século XVII e do início do século XVII, já não é
atingida unicamente nos seus perfis é-o também estruturas. (...) Altera-se o
próprio sentido do termo higiene. (...) A higiene não está ligada unicamente
aos sinais do ajustamento do vestuário. Diz respeito a um objecto mais
directamente corporal. (...) A higiene depende tanto menos da aparência
imediata quanto é capaz, precisamente, de alterar a sua composição.
(VIGARELLO, 1985, p.110).
No início do século XIX o termo higiene já adquire um significado mais
científico: não se refere somente à qualidade de ser saudável (hygeinos significa, em grego, o
que é sadio), mas “(...) Trata-se de realçar as suas ligações com a fisiologia, a química, a
história natural, insistindo nas raízes eruditas.” (VIGARELLO, 1985, p.134).
A partir de então, inicia-se a prática de uma higienização mais completa, em que
há a utilização do sabão como instrumento de limpeza. É por meio dele que se remove a
sujeira do corpo. O cosmético por excelência passa a ser o sabão. A higienização ganha
importância à medida que, cada vez mais, sabe-se a sujeira que obstrui os poros impede as
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [18]
trocas gasosas tão importantes para a pele. Vigarello aponta que “a pele mais limpa é mais
leve, funciona e respira melhor (...) e o sono, nessas condições, produz um repouso mais
reparador, que proporciona a todo o organismo um novo vigor, uma nova energia.” (1985,
p.135).
No início do século XX, quando das descobertas de Pasteur sobre os
microorganismos que não podem ser vistos a olho nu, o comportamento higiênico altera-se
muito. Os indivíduos passam a realizar não só a limpeza das partes externas, mas também das
as regiões mais secretas, tudo para se livrar do inimigo invisível. No fim do século XX, o
desenvolvimento científico que abarcou todo esse século configurou um novo panorama da
higiene corporal, que muito se aproxima da realidade atual. Nesse tempo, a limpeza atinge
toda pele, nas zonas mais invisíveis e ocultas, aprimorando aquela higiene da Idade Média,
que se concentrava somente nas partes visíveis (mão e rosto); é necessário limpar o oculto e o
visível também.
Por fim, é necessário dar voz mais uma vez ao autor que, de maneira clara e
concisa, define bem o comportamento higiênico que indiscutivelmente ainda se aplica ao
nosso tempo:
O espaço íntimo escavou-se até à vertigem, apoiado em publicidade de boa
forma, em fantasias consumistas, em desejos de mais bem-estar. Cuidados
pessoais cada vez mais interiorizados, e simultaneamente cada vez mais
explicitados, muito distantes, em todo o caso, do utilitarismo higiênico.
Promoção de práticas narcísicas em que a casa de banho permite secretos
relaxamentos. E também prazer que se anuncia. Por fim, multiplicação de
produtos e objectos, codificando esse mais bem viver para alimentar subtis
misturas entre ilusão e realidade. O banho é atravessado pela alquimia
complexa dos publicitários. É o seu objecto, sofrendo as suas modas e as
suas imagens. A insistência em valores personalizados, a afirmação de um
hedonismo, muitas vezes de encomenda, vieram substituir laboriosas
explicações higiênicas. Esta higiene actual necessária para ser bem
entendida, de um olhar atento sobre o individualismo contemporâneo e os
fenômenos de consumo. (VIGARELLO, 1985, p. 175-176).
Nesse trecho fica evidente como a publicidade contemporânea focou-se na vida e
na qualidade de vida dos indivíduos, ditando e determinando produtos e usos que não se sabe
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [19]
ao certo se se referem a um sonho, uma fantasia, ou se tratam da realidade e aplicabilidade à
realidade. Os meios de comunicação, sobretudo a publicidade, tornaram-se um grande
sincronizador da vida social, estabelecendo os parâmetros do bom, do bonito e do belo, como
se fossem mercadorias prontas na prateleira dos boticários e perfumarias. No pensamento de
Harry Pross (1987), tem-se que os meios de comunicação acabam por conferir uma violência
simbólica e criar um ritual que sincroniza o tempo de vida com o tempo da mídia.
Observando a história da higiene, percebem-se dois momentos distintos:
primeiramente, um todo voltado à luxúria e à aparência (o que importa é o que é visto); em
seguida, uma segunda fase em que o importante é a higienização, como um dispositivo do
saber que possibilita a conservação da saúde. Na atualidade, parece que isso se mesclou de tal
forma que é necessário estar limpo, estar cheiroso, estar em ordem. Porém o que prevalece e
qualifica o outro é aquilo que se vê nele e se reconhece como bom, bonito e belo. Nesse
contexto, é pertinente pensar no perfume, no quanto ele tem servido ao corpo, à luxuria, e
muito pouco à comunicação. O importante na era midiática é a marca, o valor de status
agregado ao produto por meio da publicidade. O cheiro propriamente dito muito pouco
importa. Afirma Renata Ashcar: “Nos dias de hoje, saturados de sexo com tanto consumo
erótico, talvez seja o tempo de voltarmos ao excitante universo do olfato: inalar
profundamente o rastro perfumado do amante, deixando que seu perfume excite o desejo e
crie imagens voluptuosas.” (2005, p.53).
Talvez seja conveniente retomarmos à história do perfume e resgatar os
significados associados à sua utilização.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [20]
1.2 A história do perfume
1
1.2.1 A Antigüidade
Na busca pelo resgate histórico do perfume, remontamos ao significado da palavra
perfume, que vem das palavras latinas per (através) e fumum (fumaça), e quer dizer: “através
da fumaça”. Segundo a crença, os incensos aromáticos produziam densas nuvens de fumaça
através das quais orações e pedidos viajariam mais rápido até os deuses, bem como evocariam
as almas dos mortos. Os incensos atraíam bons fluídos, da mesma maneira que conectavam os
humanos às divindades, encaminhando suas preces e agradecimentos aos deuses
2
.
É no Egito que se encontram registros escritos e pictóricos que relatam
informações a respeito dos costumes da época em que já existiam dados sobre a arte da
perfumaria. Os egípcios produziam aromas extraídos da maceração de pétalas e folhas que
serviam como aromatizadores que, misturados com óleos, leite ou mel, produziam pomadas e
loções que prometiam, já naquela época, eterna juventude ou simplesmente uma pele macia,
hidratada e protegida do sol escaldante do Egito. Para os egípcios, o perfume tinha
fundamental importância para o campo da higiene pessoal. O cuidado com a higiene do corpo
era muito valorizado. Usava-se maquiagem colorida, por meio da qual se realizavam
verdadeiras obras-primas de pintura cosmética.
Na Ilha de Creta, onde se desenvolveu por volta de 3000 a 1100 a.C. a cultura
cretense, foram encontradas pinturas que revelam uma sociedade bastante elegante. As
1
As informações foram extraídas dos livros:
ASHCAR, R.. Brasilessência: a cultura do perfume. São Paulo: Nova Cultural, 2005.
ARCKERMAN, D.. Uma história natural dos sentidos. Rio de Janeiro: Bertrand, 1996
.
BARRILLÉ, E.; LAROZE, C.. The book of perfume. Paris: Flammorion, 1995.
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Cabe aqui citar George Duby (2001) em sua obra Eva e os Padres, que lembra a aversão da Igreja do século XII
aos cosméticos, e o perfume não é senão um tipo de cosmético. Maquiagens, pastas depiladoras e tinturas
falsificam o corpo, enganam os sentidos e fazem com que Deus não mais reconheça as criaturas que criou. As
prostitutas romanas eram apelidadas de rufias por causa da cor exuberante dos cabelos tingidos. O latim rufus
significa ruivo. O uso de cosméticos (do francês cosmetique, deriva do grego Kosmetikós) e tinturas valorizava a
mercadoria dos prostíbulos romanos. Na Idade Média, rufia cai em desuso ante o avanço predatório de seu
equivalente masculino, rufião. É quando chega ao auge o ato de associar artifícios de embelezamento à vida
promíscua.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [21]
mulheres usavam jóias e vestidos finos e penteados bem elaborados, e os homens
comungavam dessa mesma apreciação, exibindo seus corpos com porte atlético. Essa
sociedade era conhecida por suas elaboradas toaletes, composta por banhos, depilação e unção
com perfumes e óleos. Esta cultura teve contato com os egípcios e gregos. No fim de seu
período, Creta recebia barcos com produtos de luxo do Egito. Esses barcos traziam perfumes,
dentre os quais os de lírios e rosas eram os favoritos dos habitantes da ilha.
A cultura grega também era apreciadora dos incensos e aromas, acreditando atrair
por meio desses artifícios a atenção dos deuses. Há várias passagens na “Ilíada”, de Homero,
em que há referência a perfumes e a deuses que recorriam a eles para fascinar outros deuses
ou outros homens. Um exemplo disso é a descrição que Homero faz do banho de Hera, esposa
de Zeus. Ela untava todo seu corpo com óleos aromatizados, na presença de Zeus, e o olor
expandia-se por “toda a terra e todo o céu”. A história da deusa Afrodite também está
intimamente interligada com o perfume, uma vez que, segundo a crença, ela emergiu nua das
espumas perfumadas do mar, dentro de uma concha, levitando sobre ervas fragrantes.
A história grega confirma muito daquilo que a mitologia conta a respeito da
importância do perfume para essa cultura. Por volta de 800 a.C., as cidades de Atenas e
Corinto exportavam óleos de flores e plantas maceradas. Desde então, os aromas tornaram-se
populares entre os gregos, que eram verdadeiros cultores da arte de misturar essências
perfumadas a resinas, gomas e bálsamos. Os aromas também influenciaram os atletas, que
adoravam impregnar seus corpos, bem como os poetas, que os amavam, e, por fim, as
mulheres, que se tornavam ainda mais atraentes e belas.
Por volta de 700 a.C., Sólon, legislador ateniense, tentou de maneira vã banir o
uso de perfumes, tido como sinal do luxurioso estilo de vida da Pérsia. Mais tarde, com a
conquista de Alexandre, o Grande, muito dessa cultura influenciaria a Grécia e seus costumes.
Ao conquistar a Grécia, Alexandre colecionou sementes e plantas, entregando-as a
seu professor Teofrasto, a quem foi atribuído a criação do jardim botânico. Ele foi também
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [22]
autor dos primeiros tratados sobre cheiros, escrito por volta de 330 a.C. Nesse livro ele
apresenta detalhadamente receitas de preparados aromáticos e perfumes, indicando prazos de
validade e a finalidade terapêutica à qual cada formulação se destinava, seja para fins
emocionais ou estados mentais. Relata-se ainda que os perfumistas gregos procuravam os
sótãos, que são lugares escuros e frescos, pois o calor e a luz solar despojavam os perfumes de
seu olor. Essa é uma lição válida até hoje. Na vida daquela época, os temperos e os
condimentos utilizados na culinária continham pétalas de rosas moídas. O vinho era
aromatizado com mirra, essências de flores e mel perfumado. As pessoas ungiam seus corpos
com perfumes antes e depois das refeições. Segundo a lenda, Dionísio, o deus do vinho,
adorava adicionar à bebida um buquê constituído de violetas, rosas e jacintos.
Os romanos não tinham o costume de utilizar cosméticos. Porém, quando
entraram em contato com as culturas: etrusca, fenícia e grega, passaram a apreciar seu uso. Na
era do Império Romano, o uso de perfumes excedeu todos os limites: o consumo de mirra e
incenso durante este período causou desequilíbrio na natureza. No século I a.C., importaram-
se da Arábia em torno de quinhentas toneladas de mirra e incenso, que eram utilizados em
todas as cerimônias importantes. O imperador romano Nero queimou a produção de um ano
de incenso no funeral da imperatriz Poppaea. Os famosos banhos romanos usavam muitos
perfumes. Estabelecem os registros que, no século IV d.C., Roma contava com onze banhos
públicos e oitocentas e cinqüenta casas de banho privadas. Os romanos banhavam-se e
utilizavam em abudância cremes, rouges e cosméticos para os cabelos. Alguns aplicavam
vários ungüentos para diferentes partes do corpo. Havia até para as solas dos pés.
Os perfumistas usavam essências naturais da própria Itália e, com a extensão do
Império, tiveram contato com produtos provenientes de outras regiões. A flor preferida dos
romanos era a rosa. Essa planta exerceu um enorme fascínio nesse povo. Com ela, Roma
enfeitava as ruas e casas. Os corpos também eram adornados e perfumados com rosas.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [23]
Roma, tal com a Grécia, preparava verdadeiros banquetes que deveriam, sem
dúvida, saciar todos os sentidos, privilegiando o do olfato. Nos banquetes, além de receberem
a oferta de alimentos, os convidados eram saudados com deliciosas fragrâncias de flores,
ungüentos perfumados e espirais de incenso. Recebiam, ainda, fragrantes grinaldas de flores e
folhas para colocar na cabeça, como uma coroa, ou no pescoço, como um colar. Antes e
depois das refeições,queimavam-se incensos. Durante o banquete, eram postas pequenas
tigelas de água-de-cheiro intercaladas entre os pratos para que os convidados pudessem lavar
os dedos entre uma iguaria e outra. Vale ressaltar que Roma contribuiu para a indústria do
perfume, estimulando a criação de rotas de tráfego comercial com a Arábia, a Índia e a China,
além de contribuir para o incremento da indústria de fabricação de vidros.
Na cultura indiana, a utilização do perfume permeou cada religião e cada faceta da
cultura. O país era o jardim do mundo, com vasta lista de aromas utilizados com fins
religiosos e medicinais. Os jardins, foram introduzidos no século XVI por Babur, primeiro
soberano mongol, cuja dinastia reinou na Índia de 1526 a 1858. O imperador Jahangir,
descendente de Babur, restaurou um antigo jardim indiano na Caxemira para sua esposa Nur
Jahan. O jardim foi nomeado Shalimar, que significa “residência do amor”. O ensinamento de
identificar odores faz parte até do Kama Sutra, célebre livro indiano a respeito da arte de viver
e amar que data do século IV, abordando a utilização de fragrantes bálsamos nos rituais de
banho e na arte da sedução.
É inegável a variedade de flores e fragrâncias indianas, devido às condições
geoclimáticas extremamente favoráveis das selvas úmidas que ocupam grande parte das
pradarias do Himalaia. Há vários cheiros associados à Índia: o sândalo, com seu óleo
fragrante e suave, que faz lembrar o delicado toque de uma rosa; o patchuli, considerado
ingrediente chave para a perfumaria moderna; o vetiver, muito presente nas fragrâncias
masculinas. O jasmim é uma planta típica do vale da Caxemira. Diversificou-se em mais de
quarenta espécies e ficou conhecido na perfumaria moderna como “a flor”.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [24]
Os árabes favoreceram muito a difusão de fragrâncias, devido ao talento para o
comércio com que os conhecimentos foram espalhados, favorecendo a perfumaria e
oferecendo ao mundo sua imensa variedade de inventos químicos e farmacêuticos. No século
II a.C., eventos coletivos, tais como jogos atléticos promovidos pelo rei sírio Antíocos
Epifanes, eram abertos com um desfile em que duzentas mulheres traziam ânforas com
perfume para ser borrifado na platéia e nos participantes. Foram eles os inventores do
alambique (árabe al-lanbīq), que fazia uso da serpentina de resfriamento. Esta foi criada pelo
alquimista Ibn-Sina, conhecido como Avicena (980-1073), que preparou a primeira água de
rosas do mundo, isolando o perfume das pétalas em óleo. Essa invenção representou um
grande avanço na história da perfumaria e culminou, na Idade Média, com o desenvolvimento
das técnicas de destilação de plantas em larga escala.
No século I a.C., os estudos avançados sobre química, principalmente os relativos
à destilação, foram registrados no Livro das Ervas assírio. Dele constam as matérias-primas
mais utilizadas na época: madeiras odoríferas que compunham a estrutura dos templos onde
eram realizadas as oferendas aromáticas aos mortos e aos deuses, com incenso e fumigação.
As fragrâncias faziam parte do cotidiano da cultura islâmica. Trata-se de um povo
que tinha uma notável higiene e cultivava o prazer pelos sentidos, principalmente pelo olfato.
Eram queimados incensos nas casas, nos palácios e nas tendas, e não podiam faltar em
comemorações.
Na busca comercial das especiarias revelou-se a rota da seda, que inclui a China
nas transações transcontinentais (século I a.C.), ligando-a ao Mar Negro. Essa cultura também
valoriza os aromas e seus efeitos terapêuticos e prazerosos. Como exemplo, tem-se a cânfora,
que era apreciada como estimulante gástrico, chá calmante, tempero culinário ou sachês para
perfumar as roupas. Os perfumes estavam presentes nos rituais religiosos e nos espetáculos de
dança. Os chineses também aromatizavam a comida das cortesãs com almíscar, para que,
quando sua pele fosse tocada e aquecida durante o ato de amor, exalasse seu perfume.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [25]
A sofisticação da cultura chinesa chegou ao Japão entre os anos 600 e 1300. Os
japoneses realizavam o koh-do (“caminho do cheiro”), ritual que elevava os odores à
categoria da arte no qual era associada uma seqüência de incensos a poemas. Ou seja, cada
um dos participantes criava versos perfumados a partir das memórias olfativas a que cada um
deles era remetido ao cheirar o incenso. Os japoneses acabaram por elaborar 54 ideogramas
que representam cheiros, criando uma linguagem escrita para os aromas.
No que se refere ao cotidiano, os quimonos eram aromatizados numa caixa
especial. As mulheres dormiam com uma touca cheirosa para os cabelos. Os incensos eram
utilizados como relógio, pois, pela sua qualidade, era possível calcular o tempo que levava
para queimar. As gueixas cobravam seus clientes pelo número de incensos queimados.
No período que corresponde à Alta Idade Média, entre os séculos V e X, a
perfumaria foi abandonada no Ocidente, depois do fim do Império romano. As ervas e aromas
eram utilizados nos mosteiros para fins medicinais e farmacêuticos. A Igreja Cristã condenou
o uso de incenso, considerado instrumento de idolatria, e os perfumes, como acessórios
frívolos da luxúria. Nesse período, portanto, as ervas eram utilizadas com fins medicinais. A
primeira faculdade de medicina da Europa foi fundada em 1220 em Montpellier, na Provence
francesa, cujo solo e situação climática eram perfeitos para o cultivo de ervas aromáticas.
Em 1320, os italianos aperfeiçoaram o processo de destilação do álcool. Assim,
logo surge a primeira destilaria de Módena. A partir disso foi possível a criação das spirituous
waters, “esplêndidas águas” ou “águas espirituosas”, como eram denominados os primeiros
perfumes e as bebidas alcoólicas. Em 1370, inspirada na beleza da rainha da Hungria, surge
aquela que seria a precursora da água-de-colônia: a chamada “Água da Rainha da Hungria”,
que originou o primeiro perfume batizado e à base de álcool.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [26]
1.1.2 A Idade Média e o Renascimento
O que restou da arte com a queda do Império romano no século V não foi a
perfumaria diretamente, mas vestígios de farmacologia e medicina preservados pelos monges
nos jardins dos mosteiros até o século XI. As ervas eram tinham uso na medicina, mas não na
perfumaria. Em 1220 em Montpellier, na Provence francesa, cujo solo e clima eram perfeitos
para o cultivo de ervas aromáticas, foi fundada a primeira faculdade de medicina da Europa.
O processo de destilação de álcool foi descoberto em Alexandria no século II.
Porém, em 1320, em Modena, os italianos, aprimoraram o processo a ponto de isolar o álcool
a 95%. Deram a esse líquido o nome de aqua mirabilis. Os primeiros perfumes verdadeiros,
essências diluídas em álcool e não mais em leite, mel ou óleo, surgiram nesta época.
Após cinqüenta anos da descoberta do álcool, Elizabeth da Hungria inspirou o
nome do primeiro perfume, o Hungary Water, feito com extrato de rosa e lavanda diluído em
álcool. Segundo a lenda, o eremita que fez o perfume garantiu que ele preservaria beleza da
rainha até a morte. Parece que funcionou, pois, aos setenta e dois anos, ela casou-se com o rei
da Polônia. Os métodos de destilação continuaram se desenvolvendo e possibilitaram a
extração das mais variadas essências. Por um longo período os perfumes à base de álcool
eram bebidos para refrescar o hálito.
A expansão do comércio com o Oriente resultou no aparecimento de muitos
produtos exóticos nos mercados europeus, inspirando artesões, tecelões e ceramistas.
Chegaram do Oriente informações sobre as ciências e sobre a saúde, renovando o interesse
pela higiene. Membros de classes mais abastadas da Itália adquiriram o hábito de tomar banho
e lavar seus cabelos uma vez por semana. Veneza tornou-se o berço dessas renovações graças
a seu privilegiado lugar geográfico, que centralizava as rotas comerciais. Nessa região,
encontravam-se as novidades aromáticas que se espalharam pela Itália e tornaram-se moda
entre os mais ricos. As mulheres carregavam consigo bolas de prata, conhecidas como
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [27]
pomanders, contendo essências. Leonardo da Vinci realizou experimentos como infusões de
flores e de ervas em álcool, botões de flor-de-laranjeira e óleo de amêndoa. A rosa voltou a
tornar-se popular. Nos jantares italianos, usava-se água de rosas com lavanda para as mãos até
que o garfo e a faca viessem a ser utilizados, no final do século XVII. As águas de rosas e
outros perfumes eram feitos nos monastérios.
Em 1533, Francis I, filho de Henrique II, casou-se com a florentina Cartarina de
Médici, que trouxe à França a arte e a sofisticação da Renascença italiana. Seu perfumista
particular Renato Bianco veio com ela para Paris, onde estabeleceu uma loja e ensinou à
França a arte da perfumaria. Nesse século a França, principalmente, a cidade de Grasse, na
Provence, especializou-se na arte dos perfumes mais do que qualquer outro lugar do mundo.
O interesse pela higiene e pelos cuidados com o corpo cresceram entre os franceses, que até
então os negligenciavam.
Luis XVIII (1601-1643) introduziu o hábito de usar perucas perfumadas com
talco e luvas aromatizadas. A peste só seria vencida no final do século, o que manteve em
voga os hábitos de higiene, além de profiláticas simpatias populares como usar laranja
recheada de alho para evitar doenças ou sair às ruas com um buquê de flores aromáticas ou
um lenço embebido de perfumes. Os jardins franceses eram elaborados para repelir os
sórdidos odores pestilentos. Luís XIV (1638-1715) era muito sensível a odores e seu
perfumista particular foi incumbido de criar um perfume para cada dia da semana. Assim, a
indústria de perfumaria crescia na França.
No século XV os ingleses apreciavam os aromas trazidos pelos mercadores de
Veneza. No século XVI, sob o reinado da rainha Elizabeth I, renasceu o interesse pelos odores
e outras artes renascentistas. As damas utilizavam sachês e pomanders de rosas secas nos
decotes. No palácio de Elizabeth, haviam quartos destinados à fabricação de fragrâncias e
muitas pessoas eram incumbidas dessa tarefa. A soberana banhava-se uma vez por mês. Num
livro de 1625, Francis Bacon descreve como o banho era praticado. Antes de se banhar, a
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [28]
pessoa devia esfregar-se com óleo e pomadas. Em seguida, devia ficar duas horas no banho, e
depois enxugar-se com uma toalha impregnada de aroeira, mirra e açafrão para provocar a
respiração dos poros. Após passar 24 horas enrolada nessa toalha, a pessoa aplicava pelo
corpo ungüento de óleo, sal e açafrão. Textos de Shakespeare focalizam com freqüência as
lavandas, violetas, mentas e outros aromas, principalmente as rosas. Com a fundação da
Companhia das Índias Orientais, a Inglaterra diversificou seu comércio de fragrâncias.
1.2.3 Século XVIII
Nos séculos XVI a XVIII, quando o Renascimento se expandiu, a perfumaria
pôde se desenvolver. A receptividade de coisas exóticas e dos aromas instigantes, que
simbolizam a luxúria e o prestígio, também propiciou o desenvolvimento do perfume.
A água de colônia foi o mais celebrado aroma do século. Sua origem está na
Itália e na Alemanha, mas sua reputação foi criada na França. Um barbeiro italiano nascido
perto de Milão mudou-se para Colônia, na Alemanha, para melhorar de vida. Em 1709,
começou a produzir a Aqua Admirabilis a partir de flores e ervas típicas da Itália. O produto
foi bem aceito pelos moradores de Colônia e o negócios começaram a prosperar, incentivando
que outros negociantes abrissem lojas de perfumes na cidade. As tropas francesas que
paravam na Colônia durante a Guerra dos Sete Anos levaram a água de colônia à França.
O século XVIII ainda foi marcado pelo estilo rococó que viu durante o reinado de
Luís XV e sua amante Madame de Pompadour a moda das saias armadas e dos cabelos
empoados. Pela influência que tinha, Madame Pompadour inspirou toda a corte de Versailles,
popularizando o banho com sabonetes de lavanda e outras flores com um toque herbáceo.
Com as novas técnicas de extração de essências, muitas fábricas desenvolveram-se na região,
premiada com um período de expansão e desenvolvimento. Também nesse século,
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [29]
desenvolveu-se uma técnica conhecida como enfleurge, por meio da qual era possível extrair
óleo de sementes como amêndoa e damasco. Na França, a literatura também privilegiou o
tema, dando lições de alquimia com receitas práticas e econômicas.
1.2.4 Do século XIX até os dias de hoje
Após a Revolução Francesa, a indústria de perfume e de outros produtos
cosméticos consumidos pela aristocracia sucumbe. Mas, quando Napoleão Bonaparte é
nomeado imperador da França e torna sua mulher Josefina imperatriz, os perfumistas,
vidreiros e artesãos, que fabricavam as mais finas iguarias, vendiam seus produtos tanto para
a aristocracia quanto para a classe média. Nesse momento, o país passa a ser o maior produtor
de artigos de luxo. O governo ainda deu incentivo para pesquisas científicas, incluindo estudo
de óleos essenciais. Josefina ditou tendências de moda feminina que remetiam à Grécia, com
seus modelos decotados, fluidos e de cintura alta. Ela gostava do aroma do patchouli, adorava
o perfume das rosas e apreciava o almíscar mais que qualquer outro. Napoleão ditava moda
também para os homens, com suas calças justas e seus casacos alongados. O imperador era
neurótico com relação à higiene. Colocou o banho na moda, bem como os cuidados com o
corpo.
Luís XVIII retoma ao poder, e a França entra em inúmeras crises internas. Mesmo
assim, as cidades francesas de Grasse e Paris, que eram cidades complementares da
perfumaria, foram ganhando reputação na produção de perfumes de alto estilo. Os perfumes
eram produzidos artesanalmente, desempenhavam sua fórmula social como parte do luxo
diário e necessário de toda mulher, encantando a nobreza e a alta burguesia européias com
doces fragrâncias e seus charmosos frascos.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [30]
Com a desastrosa queda do império de Napoleão III e com o fim da desastrosa
guerra franco-prussiana, em 1877, Paris se abala, mas recupera e inaugura a fascinante Belle
Époque. De 1870 até a Primeira Guerra Mundial, a arte de viver podia ser desfrutada por mais
pessoas do que em épocas anteriores. Essa era testemunhou o nascimento da aviação, a
invenção dos automóveis, do telefone, da energia elétrica e do cinema. Paris foi inundada com
visitantes, que vinham em luxuosos navios visitar a capital artística do mundo, que exibia
esculturas de Rodin, quadros de Monet e músicas de Debussy. Em 1830 haviam sido
descobertos os solventes químicos, que possibilitaram aos perfumistas compor aromas a partir
de essências florais nunca antes utilizadas, dando um toque especial à Belle Époque, com uma
variedade maior de aromas. Com o desenvolvimento da química orgânica, os perfumistas
puderam criar essências sintéticas.
No ano de 1868, o inglês William Perkin criou o coumarin, um aroma sintético
precursor de muitos outros que o seguiram mais tarde, como a baunilha, o almíscar, a cânfora,
a violeta e os demais aromas que podiam ser extraídos de flores naturais a partir de um
método conhecido de extração dos lírios do vale, da gardênia e da lilás.
O século XX foi marcado por dois grandes estilistas: François Coty, conhecido
pela sua impressionante capacidade de distinguir os elementos que compunham um perfume,
e Paul Poiret, que foi um dos maiores estilistas de Paris, realizando a associação entre moda e
perfumaria. Essa união propagou-se durante os anos 1920. Os grandes estilistas incluíam em
suas coleções uma fragrância exclusiva como o Channel nº. 5. Tendência que se mantém até
os dias de hoje.
Atualmente, a tecnologia tem auxiliado muito na sofisticação e no
desenvolvimento da perfumaria. Os computadores ajudam a analisar as moléculas
responsáveis pelo aroma das plantas, o que permite ao perfumista recriar aromas cada vez
mais parecidos com os da própria natureza.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [31]
Os parágrafos acima sintetizaram a história do perfume. Daqui em diante,
analisaremos o que mudou no imaginário do homem com a entrada em cena das mais
diferentes fragrâncias.
Observamos que no decorrer de toda a história da higiene do corpo e a do próprio
perfume, este tem a função de jogar com a aparência e encobrir a natureza, como que para
manipular melhor um resguardo entre o olhar e o corpo. “O perfume é um utensílio modelo
nesta arte da aparência: é tanto mais enganador quanto escapa às referências visíveis. (...) Este
uso permitia mesmo, em certas condições, adiar a mudança quotidiana da
camisa.”(VIGARELLO, 1985, p. 72).
Vigarello também aponta um pensamento de certo modo instigante, citando
Bomare em sua obra Dictionaire d’histoire naturelle (1964): o olfato limitado dos homens,
em comparação com os animais, deve-se aos “excessos de odores fortes de que os homens
estão constantemente rodeados.” (BOMARE, apud VIGARELLO, 1985, p.111).
Resta pensar que talvez seja pelo excesso de olores que tenhamos perdido, ou
melhor, amortecido, o nosso canal de comunicação olfativa com o mundo e, portanto,
tornamo-nos incapacitados de caminhar, semioticamente, pelo mundo do cheiro.
No século XVII, com as mudanças na higiene, as roupas brancas assumem
importância. O requinte e o bom gosto tornam-se os pilares de um paradigma social. Entram
em debate, portanto, os odores fortes, advindos de um costume da época de comer alho e
outros condimentos para espantar a fadiga e combater certas doenças. Esta crença es
encerrada. Cria-se nesse momento a distância entre os odores requintados e os outros tidos
como mais baixos. (VIGARELLO, 1985, p.73).
Essa passagem demonstra que o cheiro/olfato é um universo puramente cultural,
que em certa medida nos escapa, porque nem tudo que temos para sentir é culturalmente
aceito. “(...) todo sentido tem um sentido. O olfato é profundamente cultural e, no entanto,
esse sentido que nos escapa é o mais incontrolável dos sentidos.” (CYRULNIK, 1995, p.43).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [32]
É inegável o papel de simulador, de disfarce e de aparência, que o perfume
desempenha. Porém, também, é tido como purificação. Assim, afirma Vigarello:
O perfume desempenha (...) todas as funções. Está directamente associado a
um objecto de higiene. Seduz o olfato. Mas é ao mesmo tempo, purificador.
O inverso imediato de sujo e também correção. Todos os valores da
aparência passaram para os do operacional. O perfume limpa. Elimina e
apaga. A ilusão tornou-se realidade. (1985, p.74).
Os olores completam os jogos de aparência, tornam-se espetáculo, prolongam a
imagem da roupa e das partes visíveis da pele. Andar perfumado pelas ruas é questão estética.
Porém, revestir o corpo com um perfume, por exemplo, Yves Saint Laurent, cumpre um papel
de seguir a moda.
Na segunda metade do século XVIII, os critérios de distinção mudaram: “a
higiene não é feita só para o olhar”, diz Vigarello. “Foi a atenção explícita ao interior da
aparência que veio pôr em causa a ligação durante muito tempo aceita entre higiene e os
adornos, impondo ao vestuário outras referências que não a do espetáculo. A superfície e o
perfume não podem ser exclusivos.” (1985, p.110).
Portanto, nesse século o jogo da aparência perde força à medida que a crença de
que “os odores pertencem menos à higiene do que certos gostos depravados ou a um certo ar
da moda (...)” (VIGARELLO, 1985, p.111). Todo o poder mágico de dissimulação agregado
ao perfume é questionado. Até então, acreditava-se que os perfumes eram capazes de corrigir
os odores do corpo, mudando sua matéria íntima e, num certo sentido, até eliminando-os. Essa
crença chega ao fim. As práticas higiênicas requerem outros métodos. O perfume desempenha
a função de máscara. Além disso, ganha o significado de gosto para o prazer.
Acreditamos que, atualmente, o perfume assume a função de simulador, de
máscara do corpo, dos seus odores naturais, suprimindo nossa assinatura natural em
detrimento de uma assinatura cultural em que o odor exalado só é o do socialmente aceito, à
medida que o outro o reconhece como bom e bonito. É a cultura narcisista que perdura em
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [33]
nosso tempo e que a mídia, sobretudo a publicidade, tem sustentado e reforçado no imaginário
coletivo. O papel do perfume na sociedade contemporânea pode ser apresentado desta
maneira: “Vivemos hoje (...) em um mundo em que o perfume não desempenha um papel de
destaque, como ocorreu na história mais remota da humanidade. Emanações indefinidas de
odores se confundem, dificultando a interpretação da sutil linguagem dos cheiros – dotada do
poder de capturar a essência exata do momento (...)” (ASCHAR, 2005, p.15).
Essa passagem nos faz pensar como fica a questão dos cheiros nas grandes
metrópoles, como São Paulo, onde temos a incessante exalação de odores que advêm da
queima de combustível, das chaminés das indústrias, das próprias ruas, dos lixos e dos corpos
das pessoas aglomeradas. Pensamos na possibilidade da perda lastimável, nessas grandes
metrópoles, da capacidade comunicativa profunda dos cheiros, uma vez que sua “linguagem
é muito sutil e a exalação de diferentes odores acaba por confundir a recepção desse código
olfativo. Assim, é possível imaginar que nosso processo de civilização recalcou o sentido do
olfato, como veremos mais adiante com o auxílio de Freud (1997). cujo pensamento talvez
permita lançar a hipótese de que nos tornamos, num certo sentido, um ser anósmico.
O perfume não está associado somente ao paganismo, mas também ao mundo do
divino. Por isso, torna-se importante analisar os rituais humanos que buscam ligar o homem
ao divino por meio dos cheiros, para então analisar o papel do perfume na comunicação
humana.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [34]
1.3 Perfume e rituais
3
Não é só ao significado pagão e referente ao mundo baixo dos homens mortais
que tem servido o perfume. Nas mais diversas civilizações, tribos e povos, existem indícios
que atestam o uso do perfume, ou melhor, do olor exalado pela queima de ervas, plantas e
incensos em rituais religiosos. O perfume é o meio de religar o homem ao sagrado.
É fato que o perfume assume, em vários povos, a função de um canal de
comunicação com os céus, um verdadeiro aliado do homem na busca pelo divino. Mais do
que isso, é o próprio sinal da presença divina no mundo: “inalar um perfume corresponde a
nutrir-se espiritualmente com a força do cosmo.” (ASCHAR, 2005, p.15).
Essa presença do sinal do divino no perfume perpassa o imaginário de vários
povos de diversas épocas. Dessa forma, não é por acaso que as palavras “espírito” e
“essência” fazem parte da nomenclatura do perfume. Consultando os registros históricos,
entendemos o papel divino desempenhado pelo perfume nas mais variadas épocas e
civilizações.
Assim, retornamos ao período paleolítico e à descoberta do fogo, pois, é com o
domínio desse elemento se registram os mais antigos cheiros advindos da fumaça produzida
pela queima de madeira, especiarias, ervas e incensos. As sepulturas neanderthalesas indicam
que os mortos eram enterrados com todo um ritual com flores e outros ornamentos. É possível
pensar que, nesses rituais fúnebres, as flores tivessem a função de afugentar os odores do
corpo morto e conduzir a “alma” mais rapidamente aos céus, à esfera do divino.
Na civilização egípcia, que era politeísta, homenageavam-se as divindades em
ricos rituais. Nesses rituais, o perfume desempenhava uma função importante. Queimavam-se
3
As informações foram extraídas dos livros:
ASHCAR, R.. Brasilessência: a cultura do perfume. São Paulo: Nova Cultural, 2005.
MULLER, J.. GERMANY, H.. The book of perfume: understanding fragrance, origin, history, development,
guide to fragrance and ingrediente. Alemanha: H& R, 1992.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [35]
incensos, resinas e madeiras preciosas como meio de purificação dos altares. Também se
utilizavam óleos perfumados, que glorificavam as estátuas sagradas. Os egípcios
consideravam que “o perfume era o néctar dos deuses, e com ele a alma dos mortos podia ser
tocada.” (2005, p.21).
Seguindo a crença na eternidade, os corpos dos mortos eram mumificados e
envoltos por perfumes. Portanto, os olores eram reservados não só para os deuses, mas
também para os mortos.
Na história da cultura grega também encontramos intensa relação entre o perfume
e a religião. Acreditava-se que, por meio da utilização de incensos e fórmulas aromáticas,
podia-se atrair a atenção dos deuses. Na Ilíada, de Homero, faz-se referência a essa alusão de
que o perfume atraía a atenção dos deuses e também dos outros homens. Há uma passagem
belíssima em que Homero descreve o banho de Hera, esposa de Zeus: “ela untava seu
‘desejável corpo’ com óleos aromatizados; na presença de Zeus, o perfume expandia ‘por toda
a terra e todo o céu’” (2005, p.33). É ainda na mitologia grega que encontramos a deusa
Afrodite, cujo nome em grego significa “nascida da espuma”. Segundo o mito, essa deusa
surge da espuma do mar, considerada o sêmen do céu; sai de concha em forma de vulva,
levitando sobre ervas de intensa fragrância, que exalam intenso erotismo. É considerada a
deusa que desperta não o amor sublimado, mas o carnal, e que freqüentemente rouba os
sentidos dos homens mais sensatos. Por isso, denominam-se afrodisíacas as poções capazes de
despertar os desejos mais intensos.
A correspondente romana é a deusa Vênus, mãe de Cupido, que por sua vez
corresponde ao deus Eros, o deus do amor sublime. Conta a lenda que as fragrâncias mais
doces servem para atrair o amado e o próprio amor, representado por Eros.
Para os gregos, os aromas exerciam forte atração, pois eram entendidos como
ampliadores do canal de comunicação com o divino. Tanto que eles ungiam os mortos para
atrair bons presságios.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [36]
Na Índia, também nos deparamos com pontos em que há o cruzamento entre
perfume e religião. No Hinduísmo, a deusa Shiva ocupa o centro do panteão. Jasmim e
sândalo correspondem à sua identidade aromática. Usava-se para a construção dos templos o
gandhakuti (casa de fragrância). Essa madeira era muito usada na cultura hindu. As estátuas
dos deuses eram lavadas com sândalo e almíscar.
No ano de 1500 a.C., a religião védica foi introduzida na Índia. Seu nome deriva
de veda, palavra sânscrita que significa “saber sagrado”. Essa religião pregava a utilização do
perfume durante as orações para que as palavras alcançassem os deuses, envoltas por uma
atmosfera de intensos aromas.
Em 1560 a.C., o Budismo surge na região, impulsionando os banhos mais
freqüentemente, bem como os rituais de limpeza e de purificação por meio de pomadas e pós
aromáticos que eram aplicados ao corpo. Segundo o Budismo, a passagem para (a) outra vida
é como uma “montanha fragrante”.
Na Bíblia hebraica também se nota a relevância do perfume para a religião. O
maior exemplo pode ser encontrado no Cântico dos Cânticos, destinado ao rei Salomão. Esse
texto relata o encontro amoroso, repleto de referências aos cheiros mais íntimos:
Ela: Enquanto o rei repousa em seu leito, meu perfume exala sua fragrância.
Meu amor se assemelha a um sachê de mirra entre os meus seios. Meu
amado é como um ramo de henna colhido na vinhas de En-Gadi.
Ele: Os teus seios são como duas crias gêmeas de uma gazela, que se
apascentam entre os lírios. Antes que refresque o dia e fujam as sombras, irei
ao monte da mirra e ao outeiro do incenso.
Ele: Qual lírio entre os espinhos, tal é a minha querida entre as donzelas.
Ela: Qual a macieira entre as árvores do bosque, tal é o meu amado entre os
jovens; desejo me sentar à sua sombra e saborear o seu fruto, tão doce ao
meu paladar.
Ela: Levanta-te, vento morto! Desperta, vento sul! Sopra no meu jardim,
para que se derramem os seus aromas. Vem, oh meu amado, para o teu
jardim, e deleita-te com seus doces frutos!
Ele: Já entrei no meu jardim, minha irmã, noiva minha. Colhi minha mirra
com especiarias. Sorvi meu favo com mel. Bebi meu vinho com leite. Comei
e bebei, amigos! E ficai embriagados de amor!
Ela: Suave é o aroma dos teus ungüentos. Teu nome é bálsamo derramado;
por isso as donzelas te amam.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [37]
Ele: Melhor é o teu amor do que o vinho, e o aroma de teus ungüentos do
que toda sorte de especiarias!
Ele: Teus brotos são pomar de romãs, com frutos suaves, de flores de alfena
e nardo; nardo e açafrão, bambus aromáticos e canela, com todas as árvores
de incensos; mirra e aloés, com todas as principais especiarias aromáticas.
Ela: Tuas faces são como eira de espécies aromáticas, como fragrantes
flores; teus lábios, como lírios que destilam mirra fragrante.
Ele: Os teus lábios destilam mel, mel e leite escondidos sob tua língua. A
fragrância de teu vestido é como a do Líbano. Jardim fechado és tu, minha
irmã, noiva minha, manancial recluso, fonte selada. Teu jardim é fonte de
águas vivas, torrentes que correm do Líbano. (apud ASHCAR, 2005, p.23).
Na Bíblia também se encontram episódios profanos com a utilização do perfume.
Judite utilizou-se dos aromas com o intuito de matar Holofermes: “Lavou-se toda, ungiu-se de
preciosos cheiros (...), trançou os cabelos e enrolou um turbante na cabeça; então vestiu-se de
gala.” (Judite 10:3). Ainda nas Escrituras Sagradas, há outra passagem que faz referência ao
cheiro, quando Samuel aludia aos direitos dos hebreus: “Tomarás as vossas filhas para
perfumistas.” (Samuel, 8:13). Outro trecho elucidativo é encontrado em Ester, ao narrar o
preparo das virgens para o harém de um rei: “Seis meses com óleo de mirra e seis meses com
doces odores, para a purificação da mulher.” (Ester, 2:12-13).
A Igreja Cristã condenou o uso de incensos e de perfumes, considerados
instrumentos de idolatria e artigos de luxo, respectivamente. Porém, lentamente, os incensos
foram reincorporados aos rituais, passando a desempenhar um papel importante a partir do
século VI.
Tempos mais tarde, na Europa atingida pelo flagelo da peste, os templos da Igreja
impregnavam-se de um ar carregado de diferentes aromas de perfumes, bálsamos, sais e
ervas. O poema Apius e Virgínia descreve um banco de igreja reservado aos fidalgos: “O
banco de milady estava alegremente juncado de prímulas e doces violetas, cujos aromas se
uniam aos da alfazema, do cravo-da-índia e da manjerona.” (2005, p. 40).
O Cristianismo utilizou os perfumes como meio de comunicação entre Deus e os
fiéis. Alguns aromas foram popularizados durante a vida de Jesus Cristo. A propósito, a
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [38]
relação entre o perfume e a vida de Cristo pode ser observada já no episódio bíblico que narra
o nascimento do menino Jesus. (GRAU-DIECKMAN, 2006, p.2).
Segundo consta, os reis magos ofereceram como presente a Jesus os perfumes
mais valorizados. Assim está descrito em Mateus (2:11): “Entrando na casa, acharam o
menino com Maria, sua mãe. Prostrando-se diante dele, o adoraram. Depois, abrindo seus
tesouros, ofereceram-lhe como presentes: ouro, incenso e mirra.”
Ao menino Jesus foram ofertados os mais valiosos objetos da época. A
preciosidade do ouro, metal almejado e de valor para todas as culturas, é inegável. Mas
quanto ao incenso e à mirra é preciso fazer algumas considerações, sem que nos esqueçamos
dos valores existentes na sociedade antiga.
A palavra incenso advém do latim incendere, que significa “queimar” e designa
una substancia aromática que se obtém de certas árvores resinosas que ao serem queimadas,
exalam bom olor. (GRAU-DIECKMAN, 2006).
O próprio Deus prescreve a Moisés a fórmula do incenso, que foi considerado
algo consagrado ao Senhor. Assim, é narrado no “Livro dos Êxodos”:
O Senhor disse a Moisés: ‘Toma aromas: resina, cascas odoríferas, galbano,
aromas e o incenso puro em partes iguais. Farás com tudo isso um perfume
para a incensão, composto segundo a arte do perfumista, temperado com sal,
puro e santo. Depois de ter reduzido a pó, pô-lo-ás diante da arca da aliança
na tenda de reunião, lá onde virei ter contigo. Isto será para vós uma coisa
santíssima.’ (Êxodo 30: 34-37).
O incenso, desde a Antigüidade, era utilizado nas oferendas religiosas para
afugentar os espíritos malignos e as enfermidades, e, por fim, para servir como meio de
comunicação do homem com o divino (Deus), já que, segundo a crença, os perfumes
agradavam às divindades, e por isso, serviam como meio de elas atenderem mais rapidamente
às preces solicitadas durante as orações.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [39]
Quanto à mirra, trata-se da segunda substância aromática ofertada ao menino
Jesus, como menciona Mateus. Grau-Dieckman (2006) atesta que o nome mirra vem do árabe
murr e significa “amargo”. Antes de ordenar a Moisés quais seriam os ingredientes para o
incenso, Deus especifica a receita para a fabricação do óleo santo que os sacerdotes deveriam
usar para ungir e que, segundo o Êxodo, compunha-se de mirra:
O Senhor disse a Moisés: ‘Escolha os mais preciosos aromas: quinhentos
siclos de mirra virgem, a metade, ou seja, duzentos e cinqüenta siclos de
cinamono, duzentos e cinqüenta siclos de cana odorífera, quinhentos siclos
de cássia (segundo o siclo santuário), e um hin de óleo de oliva. Farás com
tudo isso um óleo para a sagrada unção, uma mistura odorífera composta
segundo a arte do perfumista. Tal será o óleo para a sagrada unção. Ungirás
com ele a tenda de reunião e a arca da aliança, a mesa e seus acessórios, o
altar dos perfumes, o altar dos holocaustos e todos os seus utensílios, e a
bacia com seu pedestal. Depois que os tiveres consagrado, eles tornar-se-ão
objetos santíssimos, e tudo o que os tocar será consagrado (...) Este óleo
servirá para unção santa, de geração em geração. Não derramará dele sobre o
corpo de homem algum; e não fareis outro com a mesma composição: é uma
coisa sagrada e deveis considerá-la com tal. (Êxodo 30:22-32).
É com esse óleo, preparado com a doce mirra, que se deveria ungir o Messias, o
Cristo Jesus. Messias significa em hebraico (maschiah) “o ungido”, e foi traduzido para o
grego como khristós, “o ungido do Senhor”. A palavra grega khrisma expressa a ação de ungir
(GRAU-DIECKMAN, 2006, p.5).
Segundo os teólogos há vários significados estabelecidos para os presentes que
foram dados a Jesus. O primeiro motivo é econômico e se refere ao valor estabelecido às
oferendas. Embora atualmente o ouro tenha um preço altíssimo e o incenso e a mirra tenham
perdido seu valor, no tempo de Jesus, o ouro e o incenso tinham quase que o mesmo valor.
Porém, alguns teólogos sustentam outros significados, não-econômicos, aos presentes que os
reis magos deram ao menino Jesus. Segundo alguns teólogos, o ouro representa o metal
precioso próprio dos reis; simboliza a sua realeza. Já o incenso, que desempenha um
importante papel nos rituais religiosos, era um símbolo da divindade de Jesus, enquanto a
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [40]
mirra, pelo seu uso na unção dos mortos nos rituais fúnebres, simboliza a paixão e morte de
Cristo; ela representava um tributo ao seu componente humano.
Nesse sentido, o perfume, no decorrer da História, adquiriu uma conotação de
sagrado à medida que foi sendo incorporado, pelas diversas civilizações, como meio de
comunicação com o divino – ofertas de bons aromas (perfumes) para que as orações e os
pedidos fossem mais rapidamente atendidos, já que esses perfumes agradavam às divindades:
los perfumes pertenecen al Dios y no al hombre.” (ALBERT, apud GRAU-DIECKMAN,
2006, p.12). Deus permitiu aos eleitos Maria, Paulo, Madalena e Marcos compartilhar dos
olores deliciosos, obtendo o direito de “morrer em odores de santidade”, tornando-os objetos
mediadores, revestidos de sacralidade.
Os perfumes acabam por se revestir de algumas conotações místicas,
transcendentais de certo modo, verdadeiras, outras tantas, mero desejo da humanidade em
buscar consolo em suas divindades. Os aromas remetem ao mundo das emoções, talvez pela
sua raiz arcaica no cérebro humano, como observamos, não só referentes à religiosidade.
Helen Keller afirma que:
O olfato é um mágico poderoso que nos transporta, percorrendo a distância
de milhares de milhas e de todos os anos que vivemos. Os odores das frutas
fazem com que eu flutue para minha casa no sul, para minhas brincadeiras
infantis no campo cheio de pessegueiros. Outros aromas, repentinos e
fugazes, fazem meu coração dilatar de felicidade ou contrair-se a alguma
tristeza recordada. Mesmo quando apenas penso nos cheiros, as minhas
narinas ficam plenas de aromas, que despertam doces memórias de verões
passados e campos distantes. (apud ACKERMAN, 1996, p.23).
Esse percurso histórico nos leva a conceber os perfumes como odores que sempre
estiveram entrelaçados com a idéia de comunicação. O odor que exala de um corpo ou de um
ambiente nos quer sempre comunicar algo. Ao mesmo tempo em que serve como um canal de
comunicação com o divino, também aproxima ou distancia as pessoas. Essa duplicidade nos
estimula a considerar um texto cultural. Uma vez que a cultura se constrói por meio do
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [41]
processo de mediação, é válido pensar segundo essa corrente semiótica e questionar como o
perfume se torna mídia no seio de uma cultura. É essa idéia que servirá de base para o
desenvolvimento de todo próximo capítulo.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [42]
CAPÍTULO II
OS SENTIDOS NA COMUNICAÇÃO
2.1 Comunicação e seus sentidos
Para maior elucidação da relação entre comunicação e sentidos corporais, é
necessário que se faça um reposicionamento dos conceitos de comunicação, cultura e mídia.
Deve-se, primeiramente, expandir o conceito de mídia, não compreendê-la somente como os
meios de comunicação de massa tais como jornal, revista, televisão, rádio, cinema, Internet.
De maneira mais evidente, apoiamo-nos no pensamento de Harry Pross (1987), cientista
político alemão que afirma ser o corpo a primeira mídia do homem. Em outras palavras, o
corpo constitui o grau zero da comunicação. Toda comunicação parte de um corpo e termina
num corpo. A partir desse entendimento, para Pross (1987), é possível haver mediação. Esse
autor elabora uma classificação da mídia em primária, secundária e terciária. Como mídia
primária, entende-se a comunicação entres dois corpos, sem que para isso seja necessária a
presença de um elemento que faça a mediação entre eles. E, se não há nada entre esses dois
corpos, a mídia, nesse caso, são os próprios corpos, que produzem e recebem linguagem, seja
ela em forma de gestos, cheiro, sons articulados ou inarticulados e movimentos. Desse jogo
de linguagem é que nasce o que Pross (1987) denominou de mídia primária, que constitui um
grande terreno de investigação para a ciência da comunicação, uma vez que essa não pode
mais ser entendida e restringida somente àquilo que é veiculado e transmitido pelos meios de
comunicação de massa tradicionais. A mídia primária tem uma limitação espaço-temporal: ela
precisa do aqui e do agora para ter efeito. A mídia secundária surge à medida que o processo
de mediação se torna mais complexo, ou seja, quando um dos corpos utiliza um objeto
(pintura, máscara, roupa, megafone) para transmitir informação ao outro. Denomina-se mídia
terciária aquela em que é necessário que os corpos utilizem um aparato decodificador para a
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [43]
mensagem. A mídia terciária surge a partir da necessidade de expansão e de alcance cada vez
maior da mensagem, com o mínimo de esforço para isso.
Ao entender a mídia dessa maneira, abre-se a possibilidade de entender também a
comunicação não mais como um simples processo de troca de informação que, de certa forma
a funcionalizou, pois a reduziu a um esquema (canal-código-mensagem-receptor). Não
queremos afirmar que esse entendimento de comunicação não seja correto, mas é importante
aprofundar essa questão. A comunicação humana não pode ser reduzida a esse simples
sistema; ela é, sem dúvida, muito mais complexa do que isso.
É fato que todo o desenvolvimento e apogeu dos estudos de uma teoria da
comunicação surge de um período tumultuado de guerra. Esse período abrange todo o século
XX, quando há um claro desenvolvimento de aparatos bélicos para melhorar a comunicação.
Desenvolvem-se os telégrafos ópticos, que transmitem as mensagens a longa distância.
Também se desenvolve todo um modelo matemático da engenharia das telecomunicações,
com o objetivo de melhorar a velocidade e a transmissão da mensagem e da comunicação, em
que há, também, maiores estudos quanto ao conceito de ruído, a fim de diminuir as distorções,
visando a aperfeiçoar todo o processo de comunicação. Toda a teoria da comunicação
fundamentou-se no esquema bélico, reducionista, que acabou por funcionalizar as pessoas
(tornando-as simples números de audiência) e a voltar o olhar, principalmente para os efeitos
da mensagem sobre o indivíduo. Seu suporte teórico está no behaviorismo, teoria psicológica
do estímulo-resposta. Segundo esse ponto de vista, o sujeito é um quadro em branco, amorfo,
vazio, pronto para obedecer e responder cegamente a um esquema linear, esquecendo-se da
ontogênese e filogênese do ser humano, ou seja, de que o ser é constituído e construtor de
cultura. É, portanto, um sujeito esculpido pelo processo histórico humano, um elemento
impregnado e transformador de seu próprio tempo de vida. Ao pautar o pensamento nessa
forma, entendemos cada ser humano como ser único, singular, portador de cultura, fruto de
uma época, de um determinado espaço, e também de um conjunto de relações sociais. Dessa
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [44]
maneira, o sujeito é histórica e culturalmente constituído e traz para a comunicação todo esse
repertório adquirido. Então, a comunicação não pode ser entendida, simplesmente, como um
sistema determinista, tal como estipula a teoria behaviorista do estímulo-resposta. É preciso
entender essa comunicação como probabilística, ou seja, como um verdadeiro jogo de acerto e
erro.
Caso ainda se mantenha a idéia funcionalista de estrutura de comunicação, que os
meios de comunicação insistem teimosamente em adotar, temos que aceitar então que a
máxima universalizante da comunicação é expropriar o outro. A informação expropria o
outro, mas esse outro não se deixa expropriar à toa. Assim, o comunicador cria estratégias
para expropriar. Os meios de comunicação têm se apropriado do nosso “tempo de vida” da
maneira mais questionável, sem que ao menos nos demos conta disso. Entregamos nosso
“tempo de vida”, um recurso não-renovável, ao que quer sincronizá-lo ao seu tempo: o da
mídia. Prevalece aquilo que Harry Pross (1987) denominou “Economia do Sinal”
(Signalökonomie), em que, utilizando o emissor o menor esforço possível, busca atingir o
maior número de indivíduos em um maior espaço territorial e em um menor espaço de tempo.
Espera-se do receptor um maior esforço para captar esses sinais. Ele entrega grande parte do
seu “tempo de vida” possível ao emissor. Nesse contexto, a informação assume a função de
elemento e unidade expropriadora. Aceitar todo esse esquema funcionalista e reducionista de
uma comunicação estruturada com função bélica é renegar o passado, a história e o futuro (os
sonhos), enfim, toda a cultura. Cabe, nesse momento, retomar a expansão do conceito de
cultura que foi proposta no início deste capítulo: seguindo esse pensamento, é inegável que a
comunicação humana é cultura, uma vez que é sobre ela que o ser humano encena seus mais
diversos papéis, criando e recriando infinitas personagens, obras que se decodificam com
linguagem e, então, tornam-se partes indissociáveis da comunicação. A palavra “cultura” que
vem do latim colere, que significa plantar ou cultivar a terra, conceito que remete ao homem
neolítico, já que, anteriormente, esse hominídeo era nômade. Portanto, o conceito de cultura
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [45]
está intimamente conectado à idéia de cultivar a terra e domesticar os animais. Depois, esse
conceito é transposto para a esfera do pessoal, do próprio homem, quando, então, este passa a
cuidar do seu próprio corpo e da sua própria imagem. Toda essa idéia pertence a um primeiro
conceito de cultura, que a etnografia entende como cultura material, isto é, tudo aquilo que o
homem faz que não esteja dado na natureza. Mais tardiamente, o conceito expande-se e, no
século XX, consolida-se como tudo aquilo que pertence à atividade do espírito do homem.
Atualmente, é entendido como produção artística; no entanto, devemos incluir, também, toda
a produção midiática, pois ela também faz parte daquilo que podemos entender como
produtos da criatividade humana. A partir do século XX, há uma enorme polêmica,
novamente, em torno desse conceito. Frente a isso, propõem-se dois conceitos: o de cultura
material, objetiva, que visa à sobrevivência material humana; e o outro que tem a ver com a
cultura do “espírito” humano, com a sobrevivência psíquica, e que é entendida como inútil,
em oposição à primeira. Têm-se dois conceitos de cultura: um dito útil, ligado à terra, e outro,
batizado “cultura inútil” por Morin, ligado ao ar. Os termos útil e inútil, na realidade, apenas
separam) a cultura material da imaginária, porque queremos compreender qual o papel que o
imaginário desempenha sobre as pessoas. Assim, Edgar Morin apresenta o seu conceito de
cultura:
É preciso ter bem consciência de que a cultura não se assenta no vazio, mas
sim sobre a primeira complexidade pré-cultural que é a da sociedade dos
primatas e que foi desenvolvida pela sociedade dos primeiros hominídeos.
Desde então, a técnica e a primeira linguagem aparecem como produto de
uma alta complexidade. (...) a cultura torna-se não só produto altamente
complexo, mas também produtora de alta complexidade. A cultura não
começa por ser a infra-estrutura da sociedade, ela passa a ser a infra-
estrutura da alta complexidade social, o núcleo gerador da alta complexidade
hominídea e humana. (1999, p. 76).
Em sua obra O método 4, esse autor esclarece o sentido de cultura, norteador desta
pesquisa: “(...) A cultura está nos espíritos, vive nos espíritos, os quais estão na cultura e
vivem na cultura. O meu espírito conhece através da minha cultura, mas em certo sentido, a
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [46]
minha cultura conhece através do meu espírito. Assim, portanto, as instâncias produtoras do
conhecimento se co-produzem umas às outras (...).” (1998, p.19).
Tomando como base o conceito de cultura ora apresentado por Morin em sua obra
O paradigma perdido, é-se levado a crer que, a partir da constituição daquilo que entendemos
como cultura, o homem abriu-se a uma outra realidade, em que se torna possível concretizar
os mais diferentes anseios humanos. Essa abertura para o campo da cultura humana, em que
há, claramente, a separação entre a cultura útil, ligada à satisfação material, e a inútil, mais
desenvolvida no sentido da satisfação do prazer “espiritual”, estético, convida-nos a pensar
também no conceito de segunda realidade, estabelecido pelo semioticista Ivan Bystrina
(1995). Para esse autor, existe uma primeira realidade que se compõe da natureza biológica e
social do ser humano. A natureza biológica é regida pelos códigos hipolinguais, que não
chegaram a se constituir como linguagem, mas que regulam as trocas biológicas. Quanto à
natureza social, perduram os códigos linguais, códigos entre dois corpos, entre dois órgãos
diferentes. São verdadeiros códigos performáticos (visuais, sonoros, gestuais, olfativos,
gustativos) que envolvem toda a comunicação pragmática. No entanto, para Bystrina (1995) a
vida não se esgota nessas duas existências: para ele, há uma segunda realidade que leva em
consideração as duas outras naturezas (a social e a biológica) em que perduram os códigos
hiperlinguais, os códigos da cultura, que não são estritamente nem biológicos nem sociais.
Essa segunda realidade é constituída da imaginação, que leva em consideração as duas outras
naturezas, pois não há cultura sem corpo e sem sociedade. Para esse autor, a cultura tem suas
raízes no sonho, no jogo, no estado alterado de consciência e nas variantes psicopatológicas.
Do mesmo modo que essas raízes da cultura possibilitam a formação de uma segunda
realidade, elas também nos preparam para pensar a formação dos vínculos. Na primeira
realidade, o homem vincula-se com outros homens, animais, espaços e comunidade. Já na
segunda realidade, o homem se vincula com as imagens que ele mesmo cria e com aquelas
que os outros criam também. Elaboramos toda uma instância imaginária à qual nós mesmos
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [47]
nos subordinamos. Na segunda realidade, vinculamo-nos com tudo àquilo que seria, na
primeira realidade, entendido como impossível de ocorrer. Se considerarmos ainda a questão
dos vínculos como base nos códigos hipolinguais, linguais e hiperlinguais, observaremos que
o que ocorre na instância dos códigos hipolinguais é uma simples troca de informação. Por
exemplo, o fígado emite ao estômago um estímulo, um sinal ou simplesmente uma
informação, enquanto que os códigos linguais possibilitam a vinculação interindividual para a
formação de comunidades que garantem, em certa medida, a sobrevivência delas mesmas.
Não existem comunidades sem vínculo, do mesmo modo como não existe comunicação sem a
transmissão de mensagens entre humanos. Já nos códigos hiperlinguais, o que ocorre de fato
na segunda realidade é que tudo se torna vínculo, no sentido de participação, fusão. Ocorre
um fluxo complexo de imagens (textos da cultura) por meio dos quais nos vinculamos, na
medida em que, sem essa realidade cultural, seria impossível existirmos. Portanto, nesse
momento já não existe mais uma vinculação. O que há realmente é mais do que isso: nós nos
mesclamos com esses textos da cultura e, assim, esses vínculos tornam-se comunhão. A partir
de então, tem-se claramente que a comunicação é mais que vínculo, é comunhão. Comunhão
com a própria segunda realidade, com deuses e demônios, sonhos, enfim, com tudo aquilo que
a mente humana possa criar.
Mais uma vez fica demonstrado que comunicação é mais do que a simples troca
de informação, tal como (utilizando uma metáfora simples) uma bola num jogo de pingue-
pongue. Por meio dela, nós nos apropriamos do outro e sem dúvida, também, o outro se
apropria de nós. É fato que toda comunicação é invasiva do eu e, dessa maneira, nenhum dos
indivíduos saem iguais de um processo de comunicação. Porém, insistimos em vários
momentos que comunicação é vínculo. Então, afinal, o que é vinculo? Antes de responder a
essa questão, retornemos à origem da palavra vínculo, que é um diminutivo do termo latino
para “amarra”, “laço” e “elo”. Esse conceito foi retirado da biologia. Quando aplicado à
comunicação, muda um pouco o foco da informação para outro fluxo em que é mais do que
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [48]
simples informação, é troca de matéria não-passível de quantificações. Portanto, não é
funcionalizável. É algo que amarra, constitui elos entre os indivíduos, pois é formado de
histórias. É algo vivo, que precisa ser alimentado, cultivado. Tem um caráter arcaico, à
medida que é formado por camadas mais remotas e profundas que não estão mortas, que a
todo instante se projetam sobre as camadas mais recentes, transformando-as, de certa forma,
como entende Boris Cyrulnik (1995): vínculo é captura. Vale ressaltar que não é possível
entender tudo o que acontece num vínculo e, portanto, não se pode entender a comunicação
como determinista: ela é probabilística. É possível imaginar a forma de resposta que um
indivíduo terá frente a um estímulo, mas não é possível saber se aquela será realmente sua
forma de reação.
A formação do vínculo está na filogênese e na ontogênese da espécie humana.
Desde muito cedo nos vinculamos ao outro. Segundo Eibl-Eibesfelt (1983) em El hombre
preprogramado, os seres humanos se vinculam por três motivos: por proteção, por medo e por
motivações sexuais. Voltando à ontogênese do vínculo, que estuda a capacidade de
vinculação ao longo da vida, tem-se que o primeiro vínculo que estabelecemos é o maternal
4
.
Durante toda a vida acabamos sempre nos vinculando, seja positiva ou negativamente.
Corroborando o pensamento de Eibl-Eibesfelt apresentado acima, Harry Pross
(1987) acrescenta que passamos a nos comunicar, a nos vincular, porque somos seres
deficitários. Temos a necessidade de comunicar para preencher um “déficit”. É evidente a
necessidade do ser humano de ser aceito, de receber carinho, aconchego e proteção; por isso,
essa incessante vontade ou necessidade de vincular-se para suprir aquele vazio primevo (oco
vital) existente no interior de cada um. Para Diter Wyss (1976), comunicação é falta e
necessidade: o ser humano nasce já dependendo da mãe, e depois, ao longo da vida, essa
dependência vai se tornando mais complexa e se alastrando a outras pessoas e coisas. Essa
4
O biólogo Harry Harlow (1970), em um famoso experimento a respeito do conceito de amor materno entre os
chimpanzés, elabora os cinco sistemas afetivos de base: sistema maternal (mãe-filho); sistema filial (filho-mãe);
sistema fraternal (da mesma faixa etária); sistema sexual (heterossexual) e sistema paternal (mais complexo e de
maior distância).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [49]
carência surge da própria cultura, que, à medida que fica mais complexa, cria novas
necessidades. Portanto, novas faltas e “déficit” são programados, como num ciclo infinito.
Esse ciclo não é estático, mas dinâmico. Como todo fruto de uma cultura, o que está cheio e
preenchido depois de um tempo se esvazia e quer mais e mais coisas novas. O organismo quer
mesmo é perdurar, quer existir, e, para isso, ele sempre vai se vincular. E o alimento desse
vínculo não é a informação, não é a granularidade da informação que sustenta os vínculos,
pois essa informação não é suficiente para criar ambiência comunicacional, que é próprio da
cultura. O que alimenta o vínculo é a necessidade de troca/apropriação que cria um campo de
tensão entre os indivíduos, o que possibilita a “fagia”, que podemos traduzir como
apropriação para o nosso repertório, aquilo que nos interessa do outro e vice- versa.
Wyss define desta forma a comunicação: “não é troca de informação no sentido da
cibernética e todos os seus apóstolos (...) continuidade temporal de compartir (Mitteilung) e
dar respostas. E ela própria com fim da comunicação – morte – é uma espécie de resposta a
compartir anterior (...).” (1976, p.113)
5
.
Segundo esse conceito de comunicação comunicar é um processo contínuo de
compartir com outro, que gera um novo compartir em reposta ao primeiro. A palavra
compartir, no sentido em que esse autor a utiliza, é entendida como desempenho que implica
espaço, tempo e corpo, ou seja, um verdadeiro sistema complexo.
2.2 A ambiência comunicacional
Ao descrever a comunicação como vínculo, é inevitável pensar em uma ambiência
ou ambiente comunicacional que, por fim, nos faz pensar, baseado no pensamento de Vicente
Romano (2004), numa “ecologia da comunicação”, que nada mais é do que a criação de um
5
Conceito traduzido pelo Professor Dr. Norval Baitello Júnior, por ocasião do curso de Fundamentos da
Comunicação, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica (PUC-SP). Aula do dia 30 de
agosto de 2006.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [50]
ambiente que propicie o desenvolvimento dos vínculos de sentido, que leve em conta todo seu
contexto histórico, cultural, antropológico e psicológico, bem como toda sua complexidade,
sua potencialidade e suas necessidades. Realmente, é necessária uma “ecologia da
comunicação” que se questione sobre as raízes históricas, políticas e culturais da
comunicação, e que vislumbre futuros cenários para a comunicação, sem que se esqueça das
bases históricas dos vínculos aos quais estão amarrados todos os lastros culturais, seiva bruta
que jorra força para o mundo da vida. Esquecer isso é negar o próprio passado, a história, o
corpo e os sentidos. Por isso, é necessário um resgate dos sentidos, pois é por meio deles que
se confeccionam laços, amarras e vínculos com os outros. Renegar os sentidos corporais de
proximidade em detrimentos dos sentidos de distância acaba por gerar um desequilíbrio no
ambiente comunicacional e, dessa forma, um problema ecológico.
O universo da comunicação ficou reduzido a uma troca simbólica medida por
máquinas, que nos roubaram o tempo de vida, distanciaram-nos uns dos outros,
transformando a comunicação na “sociedade da informação”, afinal, em uma mera troca de
informação. É preciso estar bem consciente de que comunicação é vínculo, é partilhamento,
aproxima do outro e algema a ele. É um fluxo constante, de mão dupla. O que se tem feito
com a comunicação, na “sociedade da informação”, a não ser sedar os sentidos corpóreos e
estreitar o sentido da própria comunicação? “A comunicação não é mais uma relação capaz de
aumentar as trocas entre os membros de uma coletividade, mas uma categoria em si, quase um
ser dotado de razão, do qual se glorifica o desempenho e se escondem as falhas.”
(CHESNEAUX, 1996, p. 95).
É inegável a predominância, em nosso tempo, daquilo que Harry Pross (1987)
denomina de mídia terciária, em que tudo passa a ser mediado pelos aparatos tecnológicos
eletrônicos. Esperávamos, com isso, aumentar nosso tempo e espaço para a comunicação de
proximidade. Porém, esse quadro comunicacional contemporâneo acabou gerando um nítido
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [51]
privilégio dos sentidos de distância. Pergunta-se, então, a que ambientes comunicacionais
futuros aspiramos, quando permitimos a permanência desse desequilíbrio?
A partir dessa apresentação dos conceitos expandidos de comunicação, cultura e
mídia, podemos, sem erros epistemológicos, estabelecer uma relação entre corpo e perfume.
Demonstraremos que o perfume é uma mídia secundária do corpo e discutiremos sobre os
ambientes comunicacionais a que aspiramos. Sabemos que, para tanto, precisaríamos abordar
exclusivamente esse tema. Nesta pesquisa, contudo, ao mesmo tempo em que relacionamos
corpo e perfume, permitimos que os cenários comunicacionais da cultura se revelem.
2.3 Corpo e perfume: o perfume como mídia
Nossas reflexões teóricas conduziram-nos a acrescentar esse item, especialmente
para pensar num sentido mais aprofundo a relação que o perfume guarda na e para a
intercomunicação humana, sem que nesse momento da reflexão percamos de vista a
perspectiva do seu suporte midiático, o corpo e seus sentidos, que para toda essa pesquisa
desempenha um papel importante.
Para tanto, evocamos o pensamento do semioticista Harry Pross e a sua Teoria da
Mídia, pois talvez nesse contexto possamos encontrar a lente de aumento que nos possibilitará
melhor observar esse objeto de estudo. Nesse momento, portanto, retomamos mais
profundamente o que já fora exposto em “Comunicação e seus sentidos” sobre as
nomenclaturas de mídia primária, secundária e terciária. Desenvolvemos a uma reflexão mais
profunda acerca do conceito de Pross de mídia primária e sua importância para a comunicação
humana de caráter interpessoal. Como mídia primária entendemos as relações face a face,
pontuadas pelas trocas gestuais, olhares, sons e cheiros; e por mídia secundária, o emprego de
meios, de um dos lados do processo de mediação, que reforcem a expressão, que deve estar
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [52]
em consonância com a intenção e o objetivo pretendido. Harry Pross apresentou na obra
Medienforschung (“Investigações da Mídia”), publicada em 1971, uma classificação simples
do sistema de mediação da chamada mídia. A proposta de Pross é mencionada por Baitello
(2005) no texto O tempo lento e o espaço nulo. Mídia primária, secundária e terciária. Desse
último texto, retiramos uma importante afirmação elaboradas por Pross:
Toda comunicação humana começa na mídia primária, na qual os
participantes individuais se encontram cara a cara e imediatamente presentes
com seu corpo; toda comunicação humana retornará a esse ponto.
Nas mídias primárias juntam-se conhecimentos especiais em uma pessoa. O
orador deve dominar a gestualidade e mímica (...) o mensageiro deve saber
correr, cavalgar, dirigir e garantir, assim, a transmissão de sua mensagem.”
(2005, p.10).
Nesse mesmo sentido, citando Baitello, observamos o que Pross segue
descrevendo como as ricas possibilidades comunicativas da mídia primária, apontado a
expressividade dos olhos, da testa, da boca, do nariz, da postura corporal, dos ombros, do
tórax, do abdômen, dos pés e das mãos, dos odores, dos sons articulados ou não, das
cerimônias, dos rituais e, por fim, das línguas naturais (naturalmente inclusa a linguagem
verbal falada).
Na concepção de Pross, a mídia secundária ocorre quando há o desejo de se
vincular de maneira mais expressiva. O homem utiliza máscaras, pinturas, adereços corporais
e, por que não pensar aqui também, o perfume (olores químicos, propagadores de essências
multiplicadas que nada ou pouco lembram nossos odores naturais). Então, encontramo-nos no
campo da mídia secundária quando o corpo se utiliza de ferramentas, de aparatos ou suportes
para amplificar a força da mensagem no tempo e espaço. Já para que ocorra a mídia terciária
ocorrer é necessário que todos os corpos envolvidos no processo comunicativo tenham
ferramentas, equipamentos para emissão e recepção da mensagem. Cabe aqui apontar que,
nessa classificação ora apresentada, uma mídia não suprime a outra. Essas mídias sofrem ação
de uma lei cumulativa, o que torna impossível, num processo comunicativo, haver a supressão
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [53]
dos corpos. “Um sistema comunicativo conterá necessariamente em seu âmago a interação
entre dois corpos.” (BAITELLO, 2005, p.4).
Nesse campo teórico podemos, sem dúvida, classificar o perfume como uma
mídia secundária para o homem. Porém, esta ainda depende diretamente do corpo como
suporte para significação e decodificação do cheiro. O perfume, tal como a escrita, inaugurou
o tempo da virtualidade do corpo. Um corpo está virtualmente presente ou mesmo emitindo
mensagens no momento em que o olor é sentido por alguém. A partir do momento em que se
percebe o cheiro, estabelece-se um forte vínculo com o emissor, sem a necessidade de
nenhuma ferramenta ou aparato para a decodificação. Um dos traços que destoam e
distanciam-se do poder de permanência simbólica em relação à escrita é o tempo. Enquanto
que a escrita perdura vários anos, o cheiro não consegue se manter por muito tempo. O cheiro
se mistura e há a miscigenação dos cheiros, o que faz com que o perfume enfraqueça sua
capacidade de veiculação como mídia do e para corpo.
Possivelmente encontraremos na teoria semiótica da cultura, proposta por Ivan
Bystrina, um importante aliado para a leitura do perfume na cultura humana. Esse semioticista
classificou os códigos gerais da comunicação humana em lingüísticos, hipolingüísticos e
hiperlingüísticos. Os códigos lingüísticos são os códigos sociais, aqueles que envolvem toda a
comunicação em seu nível pragmático. Os códigos hipolingüísticos são os códigos
propriamente biológicos, anteriores à cultura. E os códigos hiperlingüísticos são os códigos
culturais. Levaremos em consideração, para a análise e interação prática com esses códigos
culturais, o odor. Esse código pode ser lido como um fator biológico inerente aos seres vivos
da ordem animal, e aí nos deparamos com um código hipolingüístico. Ao sentir um odor, o
indivíduo se põe em sinal de alerta e toma a decisão de fugir ou de se aproximar, por
exemplo. Isso constitui um código lingüístico. A aspersão de perfumes quimicamente
fabricados não é outra coisa senão um código hiperlinguístico, na medida em que essa atitude
constitui uma marca cultural.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [54]
Os códigos lingüísticos e hipolingüísticos constituem aquilo que Bystrina (1995)
denominou de primeira realidade, enquanto os códigos hiperlingüísticos fazem parte de uma
segunda realidade, isto é, de tudo aquilo que é criado pelo homem, e que tem relação estrita
com o universo da cultura, não sendo, por conseguinte, estritamente biológicos e sociais.
Essa classificação ora proposta constitui uma importante ferramenta de estudo à
medida que sabemos que todo código pode ter, certamente, elementos lingüísticos,
hipolingüísticos e hiperlingüísticos. É o olhar do semioticista que possibilitará observar mais
de pertodeterminados aspectos de um objeto. Portanto, quando nos referirmos ao cheiro,
ignoraremos alguns aspectos lingüísticos e hipolingüísticos, e nos ateremos, sobretudo, aos
aspectos hiperlingüísticos. Esse recorte teórico faz-se necessário para melhor observar a
relação perfume versus comunicação interpessoal de proximidade na comunicação humana.
Vale ressaltar que tal atitude não anula de maneira alguma o constante diálogo que há entre o
código hiperlingüístico e os códigos hipolingüístico e lingüístico. Nessa presente pesquisa
buscamos mapear o perfume, na segunda realidade de que falava Bystrina e com ele os textos
que se criam sobre o corpo que estão atrelados ao código hiperlingüístico.
Os perfumes, as roupas, os ornamentos corporais em geral são compreendidos
como códigos hiperlingüísticos no homem enquanto ser portador de cultura. Ao recompor o
corpo, seja a partir de roupas ou perfumes (os mais comuns nas culturas atuais), seja em
forma de adornos ou proteções com resinas, peles de animais, penas de aves e resinas
coloridas de plantas, encontramos aí uma segunda pele, uma camada que reveste o corpo, uma
pele da cultura. E que uma dada cultura, num dado tempo e espaço, avaliam como bom e
bonito.
O corpo e seus adornos, adereços, maquilagens, tudo isso se transforma segundo
Pross, em mídia secundária para o homem. No entanto, é notável a importância que o corpo
exerce sobre os voyeurs culturais, atribuindo e garantindo a eles uma significação. Todos
esses aparatos voyeuristas são um texto da cultura, texto aqui entendido não só como escrita
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [55]
verbal, mas num sentido ampliado, para todo e qualquer código da comunicação humana.
Podemos considerar que há textos olfativos, gustativos, auditivos, visuais, performáticos, e
ainda aqueles que combinam muitas linguagens e códigos. Contudo, como afirma Baitello, o
texto pode ser não só o escrito. Como texto, ele guarda em si um importante traço essencial da
escrita: a vitória sobre a morte. “Num certo sentido, o corpo, ao tornar-se texto, torna-se
também escrita e inscreve-se com isso em uma escala da imortalidade.” (BAITELLO, 2005,
p.5).
Do pensamento de Norval Baitello, retornamos a Ivan Bystrina, mais
precisamente ao campo teórico dos códigos hiperlingüísticos. É nesse ponto que estão as
nossas reflexões: o perfume, tal como a roupa, recobre o corpo. A palavra “vestir”, provém do
latim vestire, que significa “vestir, recobrir com roupa”. (FARIA, 1962). Está, portanto,
fortemente relacionada ao campo das vestimentas e da moda. De um certo modo, acreditamos
ter o perfume uma significação maior. Mais do que vestir o corpo, ele o investe, termo
oriundo do latim investire, “revestir, cobrir”. Na Idade Média, o sentido da palavra ampliou-se
para “pôr na posse de alguma dignidade”. Mais do que cobrir tal como a roupa o faz, o
perfume parece transformar o outro por dentro, como se se tratasse de um jogo de aparência e
essência. Enquanto a roupa transforma na aparência para o olhar do outro, o perfume parece
transformar a essência do ser. Na medida em que cada um tem um cheiro particular, inato, o
perfume é um artefato que entra pelo poro e introjeta no corpo e o modifica em sua essência.
Deparamo-nos, nessa inter-relação de campos semânticos da moda e do perfume,
com a aquilo que Campelo (1997) denominou de corpo-máscara, em que o eu se aloja.
Segundo a autora, desde sua fecundação, o corpo guarda em si marcas, informações do código
hipolingüístico e signos do código lingüístico que se tornam determinantes da história que vai
se desenvolver durante todo tempo de vida do corpo, constituindo assim as máscaras, os
textos que serão inscritos nesse corpo. E o perfume, como demonstramos acima, constitui
uma máscara, um texto cultural que se inscreve sobre o corpo. O perfume não é senão a
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [56]
máscara que confirma ao olfato do outro, o que uma dada cultura permite que o outro cheire.
Essa máscara esconde a verdadeira face do corpo; veda seus poros, suas saídas, transforma o
cheiro natural em um cheiro culturalmente construído e aceito.
É necessário refletir mais atentamente sobre o significado desse corpo-máscara,
que vai muito além da binariedade natural versus cultural, ou ocultar versus revelar. Do
corpo-máscara emerge o suporte antropológico para aquilo que Morin denominou de duplo. O
duplo retoma da consciência primeira da morte. Todas essas manifestações do duplo nada
mais são do que suportes através dos quais se manifesta o imaginário do homem. Suportes
simbólicos e materiais que aderem e contaminam com a idéia da morte e sua outra face
sombria a sobrevida simbólica.
Assim, mais claramente, Morin apresenta a questão do duplo:
(...) o tema do duplo que já emergiu a propósito da morte. A existência do
duplo é atestada pela sombra móvel que acompanha cada um, pelo
desdobramento da pessoa no sonho e pelo desdobramento do reflexo na
água, que dizer, a imagem. Desde então, a imagem não é só uma simples
imagem, mas contém a presença do duplo do ser representado e permite, por
seu intermédio, agir sobre esse ser; é esta acção que é propriamente mágica:
rito de evocação pela imagem, rito de invocação à imagem, rito de possessão
sobre a imagem (enfeitiçamento). (1999, p.98-99).
O duplo, na concepção moriniana, é a sombra. Esse autor aponta ainda o reflexo,
o eco (reflexo auditivo) e, por fim, o movimento do ar respiratório e intestinal como possíveis
formas de manifestação do duplo. Interessa-nos especialmente a última forma de
manifestação do duplo – movimento do ar respiratório –, pois, a partir desse conceito,
podemos pensar mais propriamente no perfume como uma forma singular da presença do
duplo. A invisibilidade própria do duplo encontra-se muito perto dessa natureza aérea.
Tomando como base sustentadora todo o pensamento de Morin acerca do duplo, podemos
afirmar que sua teoria possibilita entender que, o perfume/cheiro, nada mais são do que
partículas químicas de fragrância diluídas no ar, invadem o tubo nasal e, de maneira
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [57]
simplificada, são decodificadas pelo cérebro dão origem a uma “imagem olfativa”, imagem
endógena (Belting, 2005) capaz de evocar algo ausente. Fica claro, portanto, que o
perfume/cheiro tem em si e guarda para si o mesmo paradoxo semelhante ao mundo das
imagens: ele é capaz de ser ao mesmo tempo a presença de ausência, e a ausência de uma
presença. O paradoxo já aparece impregnado na própria semântica do termo “olor”, do verbo
latino olere, “exalar, rescender, perfumar, cheirar bem ou mal, cheirar a algo”. Em sentido
figurado, “indicar, deixar perceber”
6
. (NASCENTES, 1966). Quanto ao poder evocativo e
invocativo do duplo, podemos concluir:
Pela palavra, pelo sinal [o perfume/cheiro], pelo grafito, pelo desenho, o
objecto adquire uma existência mental mesmo fora da sua presença. A
linguagem já abriu a porta à magia: desde o momento em que toda a coisa
chama imediatamente ao espírito a palavra que a designa, a palavra chama
no mesmo instante a imagem da coisa que evoca, conferindo-lhe, mesmo que
esteja ausente, a presença. (MORIN, 1999, p.99).
Segue ainda o mesmo autor, referindo-se à capacidade evocativa do duplo:
Assim, o mundo exterior, os seres e os objetos do ambiente adquirem, com o
Homo sapiens, uma segunda existência, a existência sob a forma de uma
imagem mental, análoga à imagem que forma a percepção, visto que não se
trata senão dessa imagem relembrada. (...) todo o significante, incluindo o
sinal convencional, transportará potencialmente a presença do significado
(imagem mental) e esse último poderá confundir-se com o referente, isto é,
com o objecto designado. (MORIN, 1999, p. 99).
6
A palavra “indicar” remete a “índice”, que por sua vez transporta nosso olhar para o universo da semiótica
pierceana. Para essa semiótica, o signo tem uma classificação tríade (significante, significado e objeto). Nessa
classificação Pierce propõe ainda três variedades fundamentais de signo: o ícone, o índice e o símbolo. É no
caráter indiciário do signo que encontraremos mais claramente identificada a idéia paradoxal do cheiro/perfume
tal como na imagem, pois “o índice é um signo que está em contigüidade com o próprio objeto denotado. Existe
entre os dois termos uma relação de contigüidade vivida, de natureza essencial. (...) [É] impossível, citar um
exemplo de índice absolutamente puro, bem como encontrar um signo totalmente desprovido de qualidade
indicativa.” (1979, p.21).
De maneira mais direta, podemos afirmar, como fazem Peraya e Carotina, “um signo que se refere ao objeto que
denota em virtude do fato de ser realmente afetado (affected) por esse objeto.” (1979, p.21).
Nesse sentido, o perfume guarda em si um valor indiciário ao corpo e/ou indivíduo que se torna suporte desse
cheiro.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [58]
2.4 Perfume e a imagem do cheiro
Nesse momento, cabem algumas considerações acerca do fenômeno do duplo,
emerge da força mágica dos adornos, adereços, pinturas e esculturas que podem ter valor de
proteção e de sorte. Portanto, no Homo sapiens demens de que fala Morin, nasce uma
capacidade que nos possibilita interpretar e entender como uma atividade artística e uma via
estética. Nas próprias palavras do autor, temos “(...) que os fenômenos mágicos são
potencialmente estéticos e que os fenômenos estéticos são potencialmente mágicos.”
(MORIN, 1987, p.98).
Para compreender a existência das coisas na qualidade de duplo, e assim também
mágicas, devemos retornar à linguagem que abriu a porta à magia para o sapiens. O nome que
identifica a coisa tem, de certa forma, uma justa amarração, na medida em que a palavra
chama no mesmo instante a imagem mental da coisa que a evoca, conferindo a presença
mesmo em sua ausência.
Segundo Edgar Morin, que o Homo sapiens conhece e procura o prazer do gozo
estético.
A partir do momento em que toda a coisa tem uma dupla existência, uma
objectiva ligada às operações práticas, a outra subjectiva e mental, o homem
passa a poder tanto dissociar como associar o aspecto utilitário e prático das
coisas, por um lado, e, por outro lado, o sentimento agradável que as formas
delas podem suscitar, Mas isso só é possível porque a juvenilização humana
se traduziu, no adulto, pela manutenção de uma sensibilidade infantil e
lúdica, pelo alargamento e enriquecimento da sua afectividade. (1987,
p.102).
Ainda segue afirmando o mesmo autor:
A sensibilidade às formas visuais ultrapassa largamente o domínio
propriamente artístico da pintura, do desenho, da escultura, e estende-se
igualmente às formas naturais; a própria sensibilidade estética também
ultrapassa largamente o domínio das formas visuais e abre-se aos odores e
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [59]
aos perfumes, às formas sonoras (ritmos, música, canto) e a expressão
corporal (dança). (1987, p.102).
Isso tudo nos revela que a sensibilidade estética que nasce juntamente com a
consciência do duplo garantiu aos objetos, por um lado, a função clara da condição artística e,
por outro, uma função estética e mágica. Essa sensibilidade estética é o caminho para entrar
em “(...) harmonia, em sincronismo com os sons, odores, formas, imagens, cores que são
profundamente produzidos pelo universo, mas também, daqui por diante, pelo Homo
sapiens.” (MORIN, 1987, p.103).
Com essa sensibilidade estética, a cultura vai oscilar, ou seja, em certos momentos
atrofiar e em outros refinar, expandir entre todos ou limitar-se aos privilegiados. Fica claro,
portanto, que a condição estética acaba indo muito além de sua raiz biológica e passa a ser
uma característica fundamental da sensibilidade e da arte para esse indivíduo.
Nesse sentido, Morin abre a possibilidade de pensar as imagens não mais do
lugar- comum, a partir dos seus suportes, que é algo material que as acaba contaminando, mas
a partir de um olhar antropológico que se desloca para universo cultural e histórico que
constitui a matéria-prima fabricadora das imagens. Sobretudo com esse deslocamento do
sentido de pensar as imagens, retornamos ao corpo como suporte para o imaginário. É uma
importante ferramenta da cultura, pois não se ritualiza sem corpo. Nem mesmo há
transcendência. Só é possível imaginar porque estamos vivos e porque habitamos um corpo.
Portanto, é inegável que os códigos hiperlinguais só existam na medida em que os códigos
hipolinguais e linguais estejam em pleno funcionamento. No entanto, parece que nosso tempo
tem ignorado a importância do corpo como mídia, no sentido de mediação entre o homem e
mundo, transformando o corpo em imagem (bidimensional; nulodimensional). Podemos
pensar que essa estratégia de aspergir fortes perfumes sobre o corpo não é também uma
maneira arcaica de transformar esse corpo em cheiro, buscando uma permanência simbólica,
mesmo que sob a forma de espectro odorífero, pois essas substâncias quimicamente
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [60]
formuladas não são senão estratégias para se conquistar e para se obter mais visibilidade,
alimento para o olhar do outro. Ensaiamos por meio das roupas, dos gestos, dos perfumes,
armaduras que visam a esconder a verdadeira face de corpo pulsante em sentidos. Isso não
elimina a outra face dos odores, que é o estímulo para sentido do olfato. O corpo precisa de
estímulos para ser/ter a sensação de um corpo, mesmo que esse retorno ao corpo, essa
sensação corpórea, se dê na forma de simulacro, ou melhor, de um cheiro de corpo. Nas
palavras de Hans Belting, “Os corpos performatizam imagens (deles mesmos ou até contra
eles mesmos) tanto quanto eles percebem imagens externas. Neste sentido duplo, eles são uma
mídia viva que transcende a capacidade de suas próteses midáticas.” (2006, p.7).
Estendendo nossas reflexões a respeito do perfume e das imagens como textos da
cultura, podemos compreender que, tal como entende Belting, “A medialidade das imagens
transcende a esfera visual propriamente dita.” (2006, p.3). O perfume permite uma imagem de
cheiro quando o transformamos em imagens mentais próprias. Os cheiros/perfumes
estimulam a imaginação, a qual transforma os cheiros nas imagens que significam. Dessa
maneira, são os odores/olores que servem como meio para transmitir imagens. Mas ainda é
necessário que o corpo as preencha e lhes dê vida com as experiências pessoais e significados.
Essa tem sido a razão pela qual a imaginação tem geralmente resistido a qualquer tipo de
controle público.
Para que possamos compreender melhor a “imagem de cheiro”, evocamos o
pensamento de Belting, que sinaliza com propriedade a questão da imagem e do corpo. Como
insistimos em relacionar a presença somente àquilo que é visível, o cheiro também levanta
essa dualidade ausência versus presença, tão peculiar ao mundo das imagens. Assim,
apresenta-nos o autor:
As imagens tradicionalmente vivem da ausência do corpo, que é tanto
temporal (isto é espacial) quanto, em razão da morte, finito. Esta ausência
não significa que as imagens evoquem corpos ausentes e os façam retornar.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [61]
Na verdade, elas substituem a ausência do corpo com um tipo diferente de
presença. A presença icônica mantém a ausência do corpo e a transforma no
que deve ser chamado ausência visível. As imagens vivem do paradoxo de
operar a presença de uma ausência ou vice e versa (o que se aplica a
telepresença das pessoas nas mídias de hoje em dia). Este paradoxo por sua
vez, está enraizado na nossa experiência de relacionar a presença à
visibilidade. Os corpos estão presentes porque são visíveis (mesmo ao
telefone o outro corpo está ausente). (BELTING, 2006, p.7).
Porém, seguindo os caminhos da comunicação balizada pela mídia eletrônica, a
mídia terciária, questionamo-nos: que força cinestésica existe nessas imagens que são capazes
de transformar o cheiro em uma imagem?
Em André Leroi-Gourhan encontram-se possíveis vestígios a respeito da
capacidade de transmissão e mediação dessas imagens, transmitindo a idéia do cheiro.
Segundo esse autor:
O olfacto sendo meramente receptor, não dispõe de qualquer órgão
complementar de emissão de símbolos de cheiro. Permanece pois estranho
ao dispositivo mais caracteristicamente humano; a reflexão poderá vir a
codificar as suas percepções, não obstante, estas manter-se-ão
intransmissíveis. É este facto que situa a gastronomia, bem como toda a
estética olfactiva, à margem das belas-artes. (1983, p.98).
Leroi-Gourhan também afirma que a olfação é puramente receptora de odores;
não há como simbolizar, representar uma sensação olfativa. E, portanto, os odores não podem
ser transmitidos por meio das representações icônicas/imagéticas. Com isso, sustentamos
nossas hipóteses iniciais de que as imagens de odores apresentadas pela mídia são apenas uma
imagem conceitual, mítica do cheiro. A palavra mítica é empregada segundo o conceito de
mito de Roland Barthes: “(...) um sistema de comunicação, uma mensagem (...) ele é um
modo de significação, uma forma. (...) O mito não pode se definir pelo seu objeto nem pela
sua matéria, pois qualquer matéria pode ser arbitrariamente dotada de signifição.” (2006, p.
199-200).
O cheiro faz-se presente por meio da fabricação de uma imagem/representação
que o simula. Esse simulacro de imagem, para Jean Baudrillard, é “uma operação de
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [62]
substituição no real dos signos do real, isto é, de uma operação de dissuasão de todo o real
pelo duplo operatório, máquina sinalética metaestável. Programática, impecável. Que oferece
todos os signos do real lhes curto-circuita todas as peripércias (...) Dissimular é fingir não ter
o que se tem. Simular é fingir ter o que não se tem”. (1991, p. 9).
O pensamento de Belting lança luz sobre essa zona de opacidade que se forma
sobre a tríade imagem, corpo e mídia:
Os papéis designados à imagem, à mídia e ao corpo variam constantemente,
mas sua íntima interação mantém-se até os dias de hoje. A mídia, apesar do
seu caráter polissêmico e uso polivalente, apresenta a identificação mais fácil
e é, por esta razão, favorecida pelas teorias contemporâneas. O corpo vem
em seguida, mas em geral é cuidadosamente tomado em oposição às
tecnologias atuais e considerado com seu reverso. Por isso, é necessária uma
nova ênfase em corpos enquanto mídias vivas, capazes de perceber, lembrar
e projetar imagens. O corpo, como portador e destinatário das imagens,
operava as mídias como extensões de sua própria capacidade visual. Corpos
recebem imagens ao percebê-las, enquanto as mídias as transmitem aos
corpos. Com a ajuda de máscaras, tatuagens, roupas e performance, os
corpos também produzem imagens deles mesmos, ou no caso de atores,
imagens que representam outros – neste caso eles agem como mídia no
sentido mais pleno e original. Seu monopólio original na mediação de
imagens permite-nos falar de corpos como arquétipos de todas as mídias
visuais. (BELTING, 2006, p.9-10).
Se para Belting o corpo é o arquétipo de todas as mídias visuais, é realmente
importante retornar ao corpo como mídia viva que percebe, lembra e projeta imagens. O que
temos feito, então, com essa importante mídia do homem quando transformamos grande parte
do que é comunicação em ruído babélico, que parece existir somente para trazer maior
visibilidade e para que o ser humano seja cada vez mais notado? As transformações corporais,
os adornos, os adereços são ao mesmo tempo uma tentativa de resgatar esse corpo perdido,
sua tridimensionalidade, sua corporeidade, seus sentidos, mas na mesma medida revela a
saturação do mundo das imagens.
Tal fenômeno evidencia-se quando observamos que os sentidos estão
completamente anestesiados e domesticados, pois as formas de percepção estética exibidas
pelos meios de comunicação contaminam o nosso olhar e nos fazem aspirar continuamente
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [63]
àqueles modelos. Isso revela a insistente e constante transformação por parte do sistema
(meios de comunicação) do mundo da vida em simulacro dos modelos apresentados nessas
diversas mídias.
Esse quadro sóciocultural nos faz perguntar se terá sempre sido assim na história
do ser humano. Sabemos que espelhar-se em algo ou alguém faz parte da natureza humana.
Mas por que tal fenômeno tomou dimensões desmedidas? Seria tudo isso fruto do tempo dos
excessos, ou melhor, dos excessos do tempo que prefere a imagem à coisa e a elevou à sua
máxima exponencial? Vêm à baila ainda mais alguns questionamentos: o que tem acontecido
com os corpos e seus sentidos nesse tempo de exponencial inflacionamento de imagens?
Acreditamos encontrar resposta para essas questões no passado histórico. Pensar a
comunicação e semiótica da cultura requer um trabalho de pesquisa que saiba sobreviver,
reviver e ler as marcas que se imprimem sobre os suportes, as superfícies, sobre os corpos,
enfim, tudo aquilo que comunga e sofre a ação do tempo e, portanto, é fruto da história. Por
meio de uma perspectiva temporal e histórica, analisamos o corpo e seu desempenho como
suporte midiático do homem com o mundo. Observando esse fenômeno, esperamos encontrar
a verdadeira face do corpo e seus sentidos frente às mudanças históricas e culturais. É fato que
o corpo tem uma memória em si e uma memória de si, e que esse corpo se tece como textos
pessoais dentro de um macrotexto que é o da cultura, que dá origem à escritura da espécie por
meio do cruzamento de informações genéticas e somáticas. Trata-se de uma tentativa de se
adaptar aos contextos natural e simbólico-cultural que o indivíduo constrói.
O que percebemos é que nem sempre foi assim. Esta era marcada pela visibilidade
fez surgir a necessidade de transgredir as barreiras do tempo, da vida, e, portanto, do corpo.
Segundo Campelo,
(...) em épocas anteriores viemos para nos reproduzir (...) em outras viemos
para tentar permanecer para experimentar a resistência o mais que
pudéssemos às intempéries, às doenças, à toda sorte de impedimento. Houve
épocas em que viemos para ousar: atravessamos continentes, cruzamos
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [64]
desertos, lutamos com feras, navegamos oceanos desconhecidos, deixamos o
conforto do território. Houve tempo em que marcamos nossa vinda pela
nova invenção contínua, imitando a própria vida em sua experimentação
incessante. Em outros tempos, viemos para conhecer, quando desamassamos
a física, a química, a medicina, a matemática, as letras, as artes, a música, a
astronomia, a biologia. Parece que agora estamos aqui para exceder nossos
limites, o limite da Terra, o limite da vida, o limite do próprio tempo. (2006,
p.4).
Para compreender essa época que Cleide Riva Campelo denominou “tempo de
exceder nossos limites”, que não é senão aquilo que também Baitello chama de “tempo dos
excessos”, que por sua vez é resultado de um projeto da modernidade que visa à emancipação
do homem, é necessário retornar aos objetivos de tal projeto de emancipação, que também
remetem ao corpo como projeto de civilização. Segundo Kamper (2006), a disciplina do corpo
começa a aparecer no final da Idade Média. O homem passa a ser medido por regras e modos
que determinam a maneira de convivência, de relacionamento e de boa educação. Esse
conjunto de regras aprisiona a “natureza interna”, que é submetida a uma abstração social,
produz uma boa imagem aos outros: a de sermos polidos, a de sermos intocáveis e a de
sermos objeto de desejo.
.
As possibilidades de uma defesa simples mediante o corpo: a mobilização,
portanto, da sensibilidade ou de um “imediatismo natural, feita valer
positivamente, assim como se fez no início sobretudo no âmbito da “teoria
crítica, parecem agora escassas, desde quando isto é uma microfísica do
poder (Foucault), que colocou em evidência que a produtividade histórica
‘da autodisciplina’ e do autocontrole sobre o corpo é bastante penetrante e
tem efeitos em grande irreversíveis. Isso é motivo para se acreditar que justo
os atuais movimentos de emancipação (humanização do mundo do trabalho,
cidadãos em uniformidade, reforma da escola, moderno sistema penal,
liberação sexual, melhoria da assistência médica) faz somente adicionar,
conquanto sob o manto de uma “transformação emancipadora” do corpo em
imagens do corpo, a obtusidade do corpo classe no curso da história, não
sustando de fato os processos de separação em ação. (KAMPER, 2006, p.8-
9).
Esse processo contínuo de imposição de uma disciplina do corpo provocou o que
Kamper nomeou de transformação do corpo em imagem do corpo. Esse fenômeno é fruto do
processo civilizatório em que os indivíduos são ensinados a dominar o corpo, a sedá-lo, a
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [65]
senti-lo de forma não-intencional. Em outras palavras, vivemos a incorporeidade do corpo. À
medida que abdicamos do corpo, deixamos de nos relacionar (interpessoal), perdemos nossos
sentidos e, assim, paramos de comunicar. Tudo isso passa a ser feito por meio das imagens. E
A partir de então, passamos a nos confundir com as imagens e a agir como elas;
transformamo-nos, e de maneira inquestionável, propriamente em imagem. E é nas imagens
que está o desejo de imortalidade que pertence ao homem.
O que sobrevive, então, em nosso tempo, são formas natimortas de corpo que não
trazem em si nem de si sua história, mas são, acima de tudo, um amontoado de matéria-prima
condenado à “incomunicação”. Os corpos perderam sua característica mimética biocultural e,
por isso, tornaram-se eternamente saudáveis, jovens e belos, porém incapazes de comunicar-
se com o mundo, por serem formas preestabelecidas que não representam a singularidade de
cada corpo.
Com a expansão dos conceitos de comunicação, corpo e mídia que a Semiótica da
Cultura nos habilita fazer, buscamos situar o perfume como mídia para o homem. Essa
abordagem nos impele a pensar mais especificamente o sentido do olfato para o homem
contemporâneo e a sua importância para a comunicação interpessoal de proximidade. É,
portanto, essa a proposta do próximo capítulo dessa dissertação.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [66]
CAPÍTULO III
CORPO, PERFUME E OLFATO: TRÍADE PARA UMA COMUNICAÇÃO
INTERPESSOAL DE PROXIMIDADE
3.1 Comunicação olfativa
Para compreender o sentido do olfato como meio de comunicação do homem com
o mundo, retomamos a etimologia da palavra sentir, que provém do latim sentire, por sua vez
oriunda da raiz indo-européia sent, que significa “dirigir-se, ir, seguir mentalmente”
(ACKERMAN, 1996, p.18).
Somos conduzidos e norteados pelos nossos sentidos, vias de acesso do homem ao
mundo e do mundo ao homem. Possuímos uma percepção sensível que nos possibilita crescer.
Ao mesmo tempo, essa percepção nos ata ao aqui e o agora, como se observa nos sentidos de
proximidade.
Dada a importância dos sentidos para o homem e sendo eles uma importante via
de acesso do homem ao mundo, não podemos negar que os sentidos corporais desempenham
um importante papel de meio de comunicação do ser humano com o mundo, retomando, ainda
que indiretamente, o conceito de Harry Pross (1987) de mídia primária, já exposto.
Além dessa premissa, pautamo-nos ainda no conceito de Cyrulnik de que o corpo
é um organismo poroso e, portanto, somos seres que dialogam constantemente com o mundo
por meio dos sentidos de nossa pele. Quanto a esse conceito, assim o apresenta o autor: “O
indivíduo é um objecto ao mesmo tempo indivisível e poroso, suficientemente estável para ser
o mesmo quando o biótipo varia e suficientemente poroso para se deixar penetrar, a ponto de
se tornar ele mesmo um bocado de meio ambiente.” (1996, p.92).
Nessa idéia de organismo poroso está impressa claramente a noção de um
organismo que elabora vínculos com o ambiente e com o mundo, porque o ser humanoprecisa
do “estar-em, estar-com e fazer como se”. Fica evidente toda a teoria de Dieter Wyss (1976)
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [67]
sobre a comunicação com déficit e também da comunicação com vínculo. Como aponta
Cyrulnik (1996), quando o indivíduo está-em, deixa-se envolver pelo meio ambiente; quando
está-com, age sobre o corpo do outro e sobre suas emoções; e quando faz como se, passa a
agir sobre a psique do outro, por meio dos gestos, posturas e palavras que interferem sobre as
representações do outro. “De todos os organismos, o ser humano é provavelmente o mais
dotado para a comunicação porosa (física, sensorial e verbal), que estrutura o vazio entre dois
parceiros e constitui a biologia do ligante.” (CYRULNIK, 1996, p.92).
Ao entender o ser humano como organismo poroso, é preciso voltar o olhar para o
elemento ligante dos corpos. Segundo Cyrulnik (1996), existe um fluido, uma força animal
invisível, que comunica e atua entre os corpos. A substância ligante entre os organismos é o
olfato. Portanto, o pensamento do autor revela o papel desempenhado, ainda que
inconscientemente, pelo olfato na comunicação humana. Além disso, esse mesmo autor
afirma ainda que essa porosidade somente se fecha com o esgotamento da vida do corpo.
Enquanto estiver vivo, o corpo precisa da troca para se manter.
Com base no etólogo Boris Cyrulnik (1995), observa-se a existência de uma
comunicação intra-uterina, embora a criança não utilize a linguagem verbal. Com os sentidos
corporais que irrompem durante a gestação, é possível estabelecer um vínculo comunicativo,
pois não é só uma troca de informação mãe-bebê que ocorre nesse jogo de linguagem, mas
muito mais do que isso; é uma apropriação criança-mãe.
Não obstante, também é possível sustentar essa hipótese durante a gestação
humana. É ainda em Cyrulnik que encontramos a sustentação para isso, quando ele revela que
toda mãe sabe que o bebê recém-nascido se acalma na presença do seu cheiro, mesmo que
este esteja impregnado num pano. É por meio do cheiro que o bebê torna presente a mãe
ausente, ou seja, há um odor característico no líquido aminiótico intra-materno. O recém-
nascido tem em si e para si uma memória olfativa que vai carregar, mesmo que
inconscientemente, por toda a sua vida. Portanto:
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [68]
(...) todos os bebês do mundo adormecem com facilidade quando abraçados
com a mãe ou com um pano que conserve seu cheiro, comprovando assim
que, para além da palavra e da cultura, a sensorialidade funciona como uma
informação fonte de emoção que evoca e prova uma conduta.(CYRULNIK,
1995, p.20).
Dialogando de certa forma com Cyrulnik, a dissertação de Maria do Carmo
Oliveira, intitulada “Comunicação do recém-nascido: respiração”, trata da importância da
olfação para o bebê como fonte de prazer no momento da amamentação:
(...) Em geral, o recém-nascido, quando mama na mãe, fecha os olhos, funga,
e a respiração aumenta seu ritmo. Nesse momento ele denota prazer.
É um mundo fantástico, todo sensório, encantador! E tudo isso é expresso
pelo ritmo respiratório, que se revela ao observador atento, cada significado
com alteração desse discurso rítmico. (OLIVEIRA, 1992, p.13).
Mais adiante, afirma ainda a autora:
O recém-nascido esfrega o nariz na mãe, especialmente no seio quando
busca sugá-lo, e, nesse ato, ele faz uma ou mais respirações curtas e rápidas.
Isso, além de contribuir para tornar o ato de amamentar mais prazeroso,
transmite ao paladar também influências dos receptores olfativos. (1992,
p.35).
O que ocorre nessa relação mãe-bebê desde a fase intra-uterina não é um simples
jogo de informação, mas um jogo mais complexo de linguagem, que aqui denominamos
vínculo, porque é por meio da respiração do recém-nascido que se estabelecem relações. É
por meio desse vínculo que o recém-nascido estrutura o mundo ao seu redor. O bebê já nasce
como um ser deficitário, segundo os conceitos de Wyss e Pross. Por isso, precisa vincular-se
de alguma forma. Para sentir-se inserido no mundo, precisa do aconchego da mãe no início de
sua vida. Depois, ao longo do desenvolvimento, seus vínculos vão se tornando mais
complexos e se expandindo em direção a outros objetos e pessoas.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [69]
Essa constatação dá sustentação para analisar o que ocorre com os sentidos no
meio aéreo quando o bebê vem ao mundo.
Essa passagem do mundo líquido para o aéreo é assim apresentada:
É uma mudança ecológica. Ao mudar de meio, no dia do nascimento,
levamos conosco os nossos primeiros modos de comunicação, os nossos
canais sensoriais que, ainda no útero, nos tinham permitido familiarizar-se
com uma sensorialidade sonora, olfactiva e acariciadora oriunda do mundo
materno.
No exacto instante do nascimento, a vinculação muda de forma. Os nossos
sentidos que funcionavam num mundo líquido, de repente vão ter de
funcionar num mundo aéreo. O recém-nascido, que conserva a memória da
vida intra-uterina, deverá agora adaptá-la a uma vida aérea. (CYRULNIK,
1989, p.45).
Com a chegada ao mundo aéreo, o indivíduo entra em um mundo também
estruturado pelos valores culturais impregnados por essas estruturas. Pouco a pouco, seus
sentidos vão sendo corrompidos e, com isso, acabam reduzidos àquilo que é culturalmente
aceito. No entanto, nos primeiros momentos de vida, ainda não absorvidos pelas estruturas
culturais, os sentidos manifestam-se segundo a memória construída na fase intra-uterina. A
essa memória Cyrulnik (1995) atribui o nome “memória de curto prazo”. É ela a responsável
pela adaptação ao novo meio ambiente, desde o nascimento do bebê. Essa memória é
evocadamais por meio da olfação do que por qualquer outro sentido, pois a criança, por meio
dela, torna-se capaz de reconhecer e acalmar-se frente ao cheiro da mulher em que foi gerada,
tornando-se vigilante quanto a estímulos odoríferos que são diferentes.
O processo de aculturalmento desse pequeno ser vivo inicia-se na fase intra-
uterina, quando ele é bombardeado pelo líquido amniótico que o envolve e pelo perfume que
dele emana. Esse perfume, afirma Cyrulnik, provém dos alimentos ingeridos e também do
próprio meio ambiente:
É a mãe, portanto, que perfuma o líquido amniótico com seu próprio corpo:
ela adiciona-lhe açúcar (glicose e frutose), uma pitada de sal, um tiquinho de
ácido cítrico, algumas proteínas (creatinina, uréia) e muito ácido láctico, o
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [70]
que dá ao líquido amniótico um gosto de iogurte. A atmosfera olfativa da
mãe acrescenta ao leitelho um aroma circunstancial: o cheiro das cidades e
da vegetação rasteira dos bosques, o perfume do homem que ela ama, ou o
cheiro de seu cigarro (...). (1995, p.50).
É sobre esse amontoado de sabores e odores oriundos dos alimentos e do meio ambiente que
se assentará toda a memória a curto prazo. Trata-se de um verdadeiro centro culinário no qual
o pequeno indivíduo terá suas primeiras experiências sensoriais. Para Cyrulnik, os diferentes
aromas que compõem este líquido podem ser responsáveis pela comunicação bebê-mãe. Uma
vez que grande parte da memória de curto prazo se constitui de uma memória química que
impregna os sentidos do bebê durante boa parte do período de gestação e que serve de baliza
para os primeiros vínculos comunicacionais do bebê com o mundo, na transição do meio
aquoso (placentário) para o meio aéreo. No primeiro contato entre a mãe e o bebê, eles se
cheiram e se tocam. Pela alteração hormonal da mãe, o bebê passa a reconhecer esse ser em
"estado químico alterado" como mãe, já que os odores químicos percebidos já se encontravam
no útero materno.
Corroborando o pensamento de Cyrulnik, Ackerman menciona uma constatação
de Daphne e Charles Maurer na obra The world of newborn, que vem ao encontro do
pensamento desse autor: realmente, enquanto recém-nascidos, nossos sentidos estão todos
misturados; porém, o que predomina é o cheiro. Assim:
Seu universo [do bebê] tem cheiro muito semelhante ao do nosso mundo,
mas o bebê não percebe o olfato somente pelo nariz. Ele ouve os odores, vê
os odores e sente-os também. Seu mundo é uma mistura de aromas
pungentes – e sons pungentes, e sons amargos, e visões doces, e pressões,
contra sua pele de cheiro acre. Se nos fosse dado visitar o mundo de um
recém-nascido, acreditaríamos estar no interior de alucinógena perfumaria.
(1996, p.339).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [71]
Muito além dessa memória comparável à de um gourmet
7
, Cyrulnik crê na
existência de um padrão comunicativo que nos une. Ele descreve a experiência da filmagem
das mímicas faciais dos recém-nascidos, quando se coloca em sua língua uma gota de água
açucarada e, depois, uma gota de água amarga. O resultado foi que todos os recém-nascidos
experimentaram a água açucarada sorrindo, enquanto que a amarga revelou caretas de
aversão. “Os bebês confirmam a idéia etológica de que existe nos seres vivos um programa
biológico comum, cuja aculturação tem início no instante em que começa a funcionar.”
(CYRULNIK, 1989, p.36).
Dando voz ao pensamento do etólogo Boris Cyrulnik, temos:
Esta observação permite-nos concluir que os fetos teriam uma experiência
culinária intra-uterina, visto que nas horas que se seguiram ao nascimento, os
recém-nascidos marselheses reagiram diferentemente dos recém-nascidos
parisienses. A cultura culinária da mãe formou o seu gosto, quando ainda
estavam no interior do útero. (CYRULNIK, 1989, p.35).
Nesse sentido, o mundo do recém-nascido permanece igual até a trigésima
semana, quando se dá o reconhecimento visual da mãe; até então, somente reconhecia sua
mãe por meio do cheiro (entendido aqui como o reconhecimento químico semelhante ao qual
esse bebê se encontrava no útero materno), segundo o que evoca sua própria memória de
curto prazo. O vínculo mãe-bebê está todo norteado pelos sentidos de proximidade:
Agarra-se a um objecto vivo quente, cujo odor reconhece no próprio instante
do nascimento. Mais tarde, as percepções sensoriais vão aperfeiçoar-se: a
cor, a forma, o tamanho e o movimento acrescentarão outros elementos
sensoriais à constituição biológica desta familiaridade.
7
Cabem aqui ainda algumas considerações quanto a essa idéia apresentada por Cyrulnik (1995) de que, no feto e no recém-
nascido, os sentidos estão misturados e, de certa forma, essa característica caótica permanece no ser humano no que tange à
relação da gustação e da olfação, mesmo ainda na fase adulta, haja vista que muitos dos gostos que sentimos, da maior parte
das coisas que colocamos na boca, depende na verdade do seu cheiro (LENT, 2001).
Essa estreita relação que existe na primeira infância entre o sentido da gustação e da olfação está também sinalizada nas
línguas portuguesa, francesa e espanhola pelo verbo sentir que pode expressar tanto a idéia do sentido da olfação quanto da
gustação. O verbo ‘sentir’ indica mais de um sentido: sentir um cheiro (olfato), sentir um gosto (paladar), sentir um
toque/uma dor/calor/frio (tato). Esse verbo tem esse sentido “plurissensual”.
Para maiores esclarecimento, indicamos a leitura da obra:
LENT, R..Cem milhões de neurônios: conceitos fundamentais de neurociências, São Paulo: Atheneus, 2001.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [72]
(...) Em primeiro lugar recebida como objeto parcial [a mãe], sob a forma de
percepções sensoriais elementares (contacto, calor, odor, sonoridades),
tornar-se-á, mais tarde, na imagem visual materna, percebida de longe, e
diferente das outras. (CYRULNIK, 1989, p.104).
Será que, na fase adulta, o olfato ainda desempenha esse mesmo papel? O faro do
recém-nascido não se manifesta no adulto, uma vez que já estará revestido completamente
pelo ditames culturais. O corpo e seus sentidos tornam-se de certa forma adestrados. Ainda
assim, o olfato é capaz de fazer a ponte comunicativa do homem com o mundo. Quanto a essa
questão da “mediação olfativa” e a formação da “imagem olfativa” no ser humano, Leroi-
Gourhan apresenta uma importante constatação:
É-nos impossível conseguir ter uma idéia clara daquilo que possa ser uma
imagem olfativa do mundo, dado que o equipamento olfactivo dos Primatas
e dos Artrópídes desempenham, a nível das suas imagens espaciais, uma
mera função de complemento. No caso do homem, dentre os sentidos de
relação, o olfacto ocupa uma situação particular. Com efeito, a visão e a
audição, comprometidas com a linguagem à semelhança da mão, são os
únicos elementos do sistema de emissão e de recepção que torna possível a
troca de símbolos figurativos. O olfacto, sendo meramente receptor, não
dispõe de qualquer órgão complementar de emissão de cheiros. Permanece,
pois estranho ao dispositivo mais caracteristicamente humano; a reflexão
pode vir a codificar as suas percepções, não obstante, estas manter-se-ão
intransmissíveis. É esse facto que situa a gastronomia, bem como toda a
estética olfactiva, à margem das belas-artes. (1983, p.98).
Em outras palavras, a “memória olfativa” é constituída por imagens. Nas palavras
do autor, o cheiro, comparado às imagens espaciais, são “meros complementos”. É impossível
para o ser humano transmitir aquilo que foi percebido. O autor levanta a questão de que o
olfato e a gastronomia guardam uma relação com as belas-artes, pois, por meio delas, é
possível explorar visualmente, transformar experiências estéticas diante do quadro em
símbolos, transmitindo ao outro essa sensação. Já a gustação e a olfação não nos permitem
transformar em símbolos nossas experiências, sobretudo no que se refere às características
estéticas do reconhecimento gastronômico. “O gosto, o cheiro, a consistência, constituem
teoricamente a base real dessa estética sem linguagem.” (LEROI-GOURHAN, 1983, p. 99).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [73]
Pode-se afirmar que a culinária, assim como a alta gastronomia, tornou-se uma
grande arte capaz de elaborar não só deliciosos pratos, mas também maravilhosas e
verdadeiras obras de arte, que servem de convite à gustação. Entretanto, essa arte não
figuratiza o gosto:
A aliança do tomilho com o sal e a noz-moscada é intraduzível em
movimentos ou até mesmo em simples palavras. A arte culinária escapa à
característica específica de todas as outras artes: a possibilidade figurativa,
pois não emerge a nível dos símbolos. Tudo é teoricamente simbolizável,
mas, em gastronomia, tal como é possível através de uma autêntica prótese:
o ordenamento de uma refeição poder ser um símbolo da marcha do mundo,
mas trata-se apenas de um ritmo dos serviços e do sentido das iguarias, à
margem, portanto, das suas características gastronômicas; o cheiro do
tomilho pode ser o símbolo evocador do amanhecer na charneca, mas tal
tem apenas a ver com o que restou no homem no plano olfactivo enquanto
referência espácio-temporal; um prato poder ser um quadro, mas nesse caso
entra no campo das referências visuais, não sendo porém, sua representação,
figurativa do seu gosto. (LEROI-GOURHAN, 1983, p.99).
Devido à nítida prevalência da visão e da audição sobre o olfato, o paladar e o
tato, a visão passou a modificar muito a percepção que um indivíduo tem do mundo. Leroi-
Gourhan sugere que a percepção olfativa é alterada pelo sentido predominante, a visão.
(...) no homem, mamífero de olfacto pobre, o alimento começa por ser
objecto de um reconhecimento visual, de tal modo que, se se serve uma
refeição sob uma luminosidade violácea, parte importante do
reconhecimento olfactivo torna-se bastante duvidosa, além de que a absorção
em tudo aquilo que implica de participação viceral é alterada. Ora, já não se
trata do fenômeno existente quando se serve um frango de biscoito coberto
de caramelo, imitação bastante conseguida do verdadeiro volátil; o efeito
assemelha-se então ao de uma ilusão de óptica, sendo imediatamente,
objecto de uma transposição que não perturba o processo de aceitação, trata-
se dum efeito estético suplementar e não duma ruptura das convenções
normais. (LEROI-GOURHAN, 1983, p.100).
O cheiro é um elemento muito íntimo. Toda a atmosfera (sinônimos!) sob um olor
é própria para cada ser humano. No entanto, é fato que, como afirma Leroi-Gourhan, certos
odores estão de certa forma amarrados a uma determinada “ambiência olfativa” irreconhecível
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [74]
em torno de outra esfera de ambiência, o que acaba por isolar esses cheiros da existência
normal.
(...) os cheiros, através dos impulsos poderosos que provocam [tornam-se] o
elemento determinante do posicionamento do indivíduo. Basta imaginar um
santuário em que pairasse um insinuante cheiro de cozinha ou um campo de
batalha atravessado por suaves eflúvios primaveris para nos darmos conta
das rupturas de condicionamento que daí resultariam. Condicionamento,
porque, em definitivo, os cheiros permanecem profundamente
comprometidos com o fisiológico; assim, a devoção bíblica concentrava-se
num ambiente de carnes grelhadas, tal como a guerra por vezes entre campos
de mimosas, factos que permitem salientar simultaneamente a importância
das tradições adquiridas e o carácter flexível do comportamento olfactivo
enquanto referência situacional, já que um cão deixaria de acreditar na carne
se esta passasse a ter o cheiro do feno acabado de cortar e o homem deixaria
de acreditar no combate se o campo de batalha fosse atravessado por
imagens de festa popular.(LEROI-GOURHAN, 1983, p.102).
Cyrulnik (1995) menciona uma paciente sua que, sob grave crise emocional após
a perda do marido, decidiu limpar o armário. Da data da morte até a decisão da limpeza do
armário passaram-se três anos. Ela já se encontrava calma. Os primeiros dias de limpeza
transcorreram normalmente. Mas, em certo momento, ela abriu o armário e a imagem do
marido retornou à sua mente. Sentindo as lágrimas brotar, ela se espanta. Descobriu que, no
fundo desse armário, havia uma sacola de esportes fechada que conservava o cheiro do
marido. Observa-se nessa queixa clínica da paciente que o cheiro foi um importante vínculo
com o fato ocorrido.
Leroi-Gourhan estrutura de maneira clara como a relação entre os sentidos
corporais e as percepções que o ser humano tem do mundo. Demonstra, ainda, que existe no
ser humano um elo operatório resistente entre o campo operatório facial e manual e entre a
apreensão e a visão.
Dum ponto de vista estético, o olfato está estritamente ligado às cadeias
visual e auditiva; um determinado cheiro, não sentido há longos anos, evoca
bruscamente cenas ou sons esquecidos desde a infância, pois não possuímos
a lembrança do cheiro como podemos possuir de um determinado
acontecimento, mas a percepção olfactiva, precisamente por pôr em
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [75]
movimento zonas fisiológicas estranhas à reflexão, confere as imagens
reflectidas uma profundidade e uma intensidade consideráveis.
É nesse sentido que os cheiros podem ser um elemento determinante de
ruptura com as cadeias ordinárias, provocando estados de apaziguamento ou
contribuindo para uma sobreexcitação. Determinados meios, subtraídos ao
meio espaço-temporal corrente, prendem-se com uma ambiência olfactiva
que os isola da existência normal.(1983, p.101).
Isso remete ao profundo pensamento de Proust citado por Cyrulnik., Mesmo sob
estruturas culturais que nos submetem, os odores e o sentido do olfato continuam sendo um
importante meio de comunicação do homem com sua história, com seu mundo, constituindo,
ainda que de maneira recalcada culturalmente, o cheirar, a memória olfativa, a qual irrompe
com a emoção evocada pelo cheiro sentido.
Mas quando de um passado remoto nada subsiste após a morte dos seres,
após a destruição das coisas, apenas eles – mais tênues, porém mais vivazes,
mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis –, o cheiro e o sabor, perduram
ainda muito tempo, como almas a se lembrar, a esperar, a ansiar por sobre a
ruína de todo o resto, a carregar sem vergar, em sua gotícula quase
impalpável, o edifício imenso da lembrança. (CYRULNIK,1995, p.21).
O corpo é uma inteligência viva, capaz de perceber o mundo por meio dos
sentidos, que se tornaram verdadeiros canais de diálogo. Essa percepção ocorre
principalmente por meio dos sentidos de proximidade. Porém, nosso tempo tem
evidentemente recalcado a mídia primária em detrimento da mídia terciária. É o corpo que
não pode tocar, é o corpo que não pode cheirar. Sentir o mundo pelo faro pertence à esfera
dos animais macrossomáticos. Nós, animais racionais e simbólicos, utilizamos a visão.
Seguindo essa máxima esquecemos que o corpo sempre precisou do cheirar, do sentir e do
colocar tudo na boca. Esses canais serviram ao bebê como importante meio de comunicação e
compreensão do mundo. A visão foi um dos últimos sentidos a dar noção do mundo para o
bebê. No entanto, temos feito desse canal comunicativo o império da pós-modernidade, em
que as imagens ganham cada vez mais espaço. Nossa cultura impõe que é proibido tocar e
proibido farejar. O corpo adulto pune-se, pois precisa sentir por meio do toque e do farejar.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [76]
3.2 Por uma arqueologia olfativa
No mapeamento da olfação como meio de comunicação, constata-se que ela tem
uma estreita relação com a emoção. Investigamos, então, que tipo de relação há entre o
cérebro emocional e o olfato, o que o possibilita evocar uma emoção passada associada a um
cheiro.
Daniel Golleman (1995) afirma que o cérebro, complexo tal como o entendemos
atualmente, surgiu com pouco mais de um quilo de células que evoluíram ao longo de milhões
de anos, e que o desenvolvimento do cérebro no embrião refaz mais ou menos o mesmo
percurso evolutivo.
Esse cérebro mais primitivo, presente em todas as espécies que têm um sistema
nervoso minimamente desenvolvido, constitui-se de um tronco cerebral em torno do topo da
medula espinhal. “Esse cérebro-raiz regula funções vitais básicas, como a respiração e o
metabolismo dos outros órgãos do corpo e, também, controla reações e movimentos
estereotipados.” (GOLLEMAN, 1995, p.24).
Constata o auto, ainda, que o cérebro primitivo não pensa e aprende de maneira
contrária. É, antes, um sistema pré-programado para reagir de maneira a garantir a
sobrevivência da espécie. Essa morfologia cerebral predominou durante toda a era dos répteis.
Desse tronco cerebral, que é a raiz mais primitiva do cérebro, surgiram os centros
emocionais, deram origem ao cérebro pensante, denominado neocórtex, o grande bulbo de
tecidos ondulados que forma as camadas superiores. Então, constata-se que o cérebro é o
pensamento das emoções. Esse fato revela muito da relação entre pensamento e sentimento.
Sem dúvida, havia um cérebro emocional muito antes do racional. O mais instigante que se
pôde observar é que:
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [77]
A mais antiga raiz de nossa vida emocional está no sentido do olfato, ou
mais precisamente, no lobo olfativo, as células que absorvem e analisam o
cheiro. Toda entidade viva, seja nutritiva, venenosa, parceiro sexual,
predador ou presa, tem uma assinatura molecular distintiva que o vento
transporta. Naqueles tempos primitivos, o olfato apresentava-se como um
sentido supremo para a sobrevivência. (GOLLEMAN, 1995, p.24).
Portanto, o que mostra esse autor é que, a partir do lobo olfativo, deu-se a
evolução dos mais antigos centros da emoção. Nesse estágio da evolução, o centro olfativo
contava com apenas algumas camadas de neurônios para analisar o cheiro. Havia, portanto,
uma camada de células que recebia o que era cheirado e classificava-o nas categorias
relevantes: comestível ou tóxico, sexualmente acessível, inimigo ou comida. Já a outra, uma
segunda camada de células, enviava mensagens reflexivas a todo o sistema nervoso, passando
um comando ao corpo do que devia fazer: morder, cuspir, abordar, fugir, caçar.
(GOLLEMAN, 1995, p.24).
Nos mamíferos, surgiram novas camadas de células do cérebro emocional que
constituíram, no lugar onde se encaixa o tronco cerebral, uma nova estrutura que tem o
formato de um pastel mordido embaixo, que se denominou de sistema límbico, nome oriundo
da palavra latina limbus, “orla”. (GOLLEMAN, 1995, p.24).
A partir dessa conquista evolutiva, essa estrutura cerebral foi responsável pelo
aperfeiçoamento de duas importantes ferramentas: a memória e o aprendizado. Por meio dessa
estrutura, o animal tornou-se um pouco mais especializado, capaz de adquirir maior repertório
(memória), o que possibilitou o armazenamento de mais informações e o aprendizado frente a
situações novas, ao contrário da situação arcaica, em que somente havia um conjunto de
reações invariáveis e automáticas já pré-programadas.
Mais ainda: nesse contexto, o olfato tinha em si um importante papel nas decisões
quanto ao que comer ou o que rejeitar. A ligação entre o bulbo olfativo e o sistema límbico
contribuiu para “estabelecer distinções entre cheiros e reconhecê-los, comparando um atual
com outros passados, discriminando assim o bom do ruim. Isso era feito pelo ‘rinencéfalo’,
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [78]
literalmente, o ‘cérebro do nariz’, uma parte da fiação límbica e a base rudimentar do
neocórtex, o cérebro pensante.” (GOLLEMAN, 1995, p.25).
Segundo ainda o mesmo autor, o cérebro dos mamíferos tornou-se mais
complexo. Isso ocorreu há cerca de cem milhões de anos. Essas duas camadas de células que
constituíam o córtex eram responsáveis pelo planejamento, pela compreensão do que é
sentido e pela coordenação dos movimentos. Delas emergem novas camadas de células
cerebrais, denominadas neocórtex. O neocórtex ofereceu maior vantagem intelectual: “(...) é a
sede do pensamento; contém os centros que reúnem e compreendem o que os sentidos
percebem. Acrescenta a um sentimento o que pensamos dele – e nos permite ter sentimento
sobre idéias, arte, símbolos e imagens.” (GOLLEMAN, 1995, p.25).
É evidente que o surgimento do neocórtex dotou o Homo sapiens da capacidade
de planejar a longo prazo, além de outras complexidades mentais. No que tange à questão da
complexidade, é em Edgar Morin (1988), em O paradigma perdido, que se encontrarão
vestígios para entendê-la:
[O homem] é um ser de uma afetividade intensa e instável, que sorri, ri e
chora, um ser ansioso e angustiado, um ser gozador, ébrio, extático, violento,
furioso, amante, um ser invadido pelo imaginário, um ser que conhece a
morte, mas que não pode acreditar nela, um ser que segrega o mito e a
magia, um ser possuído pelos espíritos e deuses, um ser que se alimenta de
ilusões e de quimeras, um ser subjetivo cujas relações com o mundo objetivo
são sempre incertas, um ser sujeito ao erro e à vagabundagem, um ser úbrico
que produz desordem. E como chamamos de loucura à conjunção da ilusão,
do excesso, da instabilidade, da incerteza entre o real e o imaginário, da
confusão entre o subjetivo e o objetivo, do erro, da desordem, somos
obrigados a ver o Homo sapiens como Homo demens. (1988, p.109
).
Todo esse caráter de demência do Homo sapiens, que parece puramente negativo,
é ele quem o inaugurou para um mundo de imensa criatividade. Os sonhos, delírios e
patologias mais dolorosas contribuíram para o alargamento de seus horizontes perspectivos e
estéticos, propiciando o desenvolvimento de uma inteligência aberta ao imprevisto, à
incerteza, enfim, à desordem. No entanto, esse quadro de desordem e delírios, próprio desse
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [79]
Homo sapiens demens, ao mesmo tempo em que contribuiu para sua complexidade cultural,
revelou também a face obscura do Homo sapiens, que são as tendências mais regressivas e
socialmente pouco constitutivas, caráter próprio de ser demens.
(...) a conexão entre o cérebro límbico (memória e emoção) e o lobo pré-
frontal (antecipação) se fez à revelia da triagem neurônica do tálamo. Essa
conexão aparece em alguns mamíferos, desenvolve-se nos primatas não-
humanos e ocupa uma parte importante dos circuitos cerebrais no homem.
Em outras palavras, o cérebro humano, entre todos, é o mais apto a tratar e
articular informações relacionadas com coisas ausentes, como fenômenos
desaparecidos e com acontecimentos passados ou por vir.
Essa organização cerebral nos permite compreender que nossos sinais
olfativos são recalcados em favor dos sinais visuais, fortemente associados à
memória e à emoção, e nos leva a sustentar que o significado e o sentido
passam primeiro pela imagem, bem antes da fala. Podemos compreender,
imaginar e dar sentido ao mundo com imagens. (CYRULNIK, 1995, p. 24-
25).
Cyrulnik faz uma importante revelação sobre a morfologia e o funcionamento do
neocórtex, o que nos faz pensar que talvez seja por essa “organização cerebral”, e não só por
aquilo que Freud denominou de “recalque do orgânico”, que, para o Homo sapiens, os
estímulos olfativos não têm o mesmo poder de comunicação do organismo, por meio desse
sentido com o nosso corpo. Observa-se que as imagens assumem para o neocórtex a mesma
importância que os estímulos olfativos tinham para o cérebro mais arcaico, pois agora são as
imagens que estão mais associadas à memória e à emoção.
Outra hipótese que se pode associar à constatação de Cyrulnik (1996) é a de que
as imagens têm maior poder de cativar e hipnotizar, o que se deve ao momento em que o
cérebro adquiriu tal morfologia, enquanto as moléculas odoríferas, no instante em que são
decodificadas, põem-nos em ação, resultando numa classificação instantânea que nos faz
gostar ou repudiar um cheiro. Essa sobreposição da visão em detrimento do olfato deve-se
também à racionalização do mundo.
Leroi Gourrhan assinala as diferenças anatômicas do homem mais racional e do
cão mais emocional, comprovando a raiz do afeto com a olfação, apontada por Goulleman:
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [80]
(...) no homem, sendo a vista um órgão de exploração, assegura à mão o
exerecício de funções não apenas de preensão, mas também de construção
complexa. Enquanto que a resultante do processo evolutivo do cão tende
para territórios comuns ao olfacto e à afectividade, sem quaisquer soluções
figurativas, as resultantes humanas, no sentido da visão e da motricidade
manual, abrem o universo duma imaginação racional. (1983, p.101).
É fato que o lobo olfativo nos animais macrossomáticos ainda funciona da mesma
maneira observada na morfologia mais arcaica do cérebro humano. Para esses animais, o faro
serve nitidamente como meio de buscar a assinatura olfativa do indivíduo. Por isso, por
exemplo, o cão fareja a púbis de um indivíduo, para decodificar a assinatura do mesmo, saber
seu sexo, sua condição de receptividade e sua influência social. No entanto, o cheiro ou o
sinal olfativo cria um tempo de encontro diferente nesses animais em relação ao homem. Um
exemplo clássico: após a visita de um amigo à sua casa, este deixará para trás, no tapete ou na
poltrona, traços olfativos que perpetuarão no mundo do animal a sua presença, ainda que, para
o mundo humano, esse amigo já tenha partido. Portanto, “(...) Nesse cheiro remanescente, seu
cão perceberá um pouco de seu amigo no plano real, ao passo que você só conseguirá lembrá-
lo por imagens ou evocá-lo por palavras.” (CYRULNIK, 1995, p.19).
Tomando como base a observação feita por Cyrulnik quanto ao comportamento
animal em comparação com o do homem mediante o estímulo olfativo, vê-se que, para o
animal, o estímulo morre em seu sentido de informação para o organismo, tal como um aviso
ou chamariz, enquanto que para o homem esse estímulo não se esgota na provisão de uma
informação, pois o indivíduo tem a capacidade de interpretar, refletir sobre si e seus membros
(consciência de si e do mundo). Nesse sentido, aponta Plessner:
(...) Nosso ver e tocar, ouvir e cheirar se tornam “conscientes” para nós, são
“vividos” por nós. Isso fica evidenciado pelo significado lábil de sentir que
ainda guarda uma relação estreita com o sentido do tato quando utilizado
com significado de sentimento para ritmo, sentimento para boas maneiras,
sentimentos para boa forma. (1977, p.4).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [81]
No sistema cerebral, os sentidos corporais apresentam toda uma carga semântica,
armazenada pelo cérebro humano na sua fase mais complexa. A cada estímulo, essa carga é
capturada consciente ou inconscientemente e vinculada a ele em estado de “espírito”, no
sentido filosófico do termo: “(...) o dado puramente hilético, que não pode ser descrito,
somente dado aos homens, e ganha com isso uma dupla possibilidade: apresentar-se como tal
e despertar, fazer vibrar sentimentos, gostos e emoções.” (PLESSNER, 1977, p. 5).
Observa-se que o ser humano vive a pluralidade dos seus sentidos. Somos seres
sinestésicos: não somente percebemos, mas também temos sensações e atribuímos
significados a elas, transformando-as em algo diferente. Por fim, é inegável que os sentidos
corporais sejam um importante veículo de comunicação. Dentro do corpo, que é primeira
mídia do homem, para utilizar uma expressão cunhada por Harry Pross (1987), nascemos
ensaiando intensas relações dos nossos sentidos com o mundo, retirando deles o máximo de
força comunicativa que possa haver.
Como pessoa, o homem possui uma distância em relação a si mesmo, às
coisas e também ao campo intermediário das sensações, que medeia a
informação do próprio organismo ante o corpo e as sensações. Nessa
mediação se colocam ao homem que reflete, que conhece sua distância, as
questões da verdade e fidedignidade da representação sensorial e sua
relevância para o conhecimento. (PLESSNER, 1977, p.7).
3.3 Fisiologia olfativa: o processo de decodificação da mensagem olfativa
8
O processo para a percepção e decodificação do cheiro inicia-se com um estímulo
das células, encontradas na parte interna do nariz, a cavidade nasal, por substâncias
odoríferas. Estas substâncias têm caráter volátil e, por isso, penetram pelas cavidades nasais,
juntamente com o ar inspirado. Aderem às membranas ciliares das células, alterando sua
8
Todas informações referentes à olfação e todo processo de decodificação foram retirados das seguintes obras: DOUGLAS,
C. R.. Fisiologia oral . Vol. I São Paulo: Pancast 1998. LENT, R.. Cem milhões de neurônios: conceitos fundamentais de
neurociências. São Paulo: Atheneu, 2001.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [82]
formação. Na superfície das membranas ciliares há regiões rebaixadas, cuja estrutura química,
as moléculas odoríferas, encaixam-se em seu lugar determinado, tal como num processo de
chave-fechadura. Vale ressaltar que cada receptor pode responder a mais de um estímulo
odorífero, ou seja, a diversos tipos de odores. Portanto, não existem receptores moleculares
específicos para um determinado odor. Sabe-se que substâncias químicas semelhantes podem
causar sensações de odores diferentes. Esse fato mostra que a capacidade de uma molécula
estimular um receptor de uma determinada maneira independe do formato da molécula
odorífera
9
. E mais: sabe-se ainda que as moléculas que produzem odores semelhantes aderem
a receptores comuns.
Dessa forma, a maioria dos odores resulta da interação dos estímulos químicos,
em diferentes graus, com diversos receptores. Essa informação (substância odorífera) é então
transmitida a centros superiores pela extremidade axonial das células presentes na cavidade
nasal. É verdade que são pequenas quantidades de substâncias odoríferas que determinam a
sensação olfativa: bastam oito moléculas para que haja o estímulo.
De maneira um pouco mais simplificada, é possível afirmar que as células
sensoriais olfativas, encontradas na mucosa da cavidade nasal, enviam o sinal sobre a
existência de um estímulo odorífero, passando por algumas porções mais internas da mucosa
e alcançando o bulbo olfativo, onde ocorre a sinapse (transmissão) da informação. O bulbo é a
estrutura fundamental para os efeitos de excitação das substâncias odoríferas, que podem
determinar sensações conscientes ou determinar mudanças de conduta, como ocorre com os
feromônios. A partir do bulbo olfativo, a informação é enviada para o sistema límbico
(rinencéfalo), que é a região mais antiga e primitiva do cérebro, localizada na terminação do
9
Segundo a pesquisa Odorant receptors and the organization of the olfactory system, efetuada por Richard Axel e Linda
Buck, que recebeu o Prêmio Nobel de Medicina em 2004, descobriu-se que os receptores olfativos localizados na mucosa
olfativa permitem reconhecer e armazenar cerca de dez mil odores. Cada célula receptora do olfato possui somente um tipo
de receptor de odor e cada receptor pode detectar um limitado número de substâncias odoríferas. Por isso, as células
receptoras do olfato são altamente especializadas em alguns poucos odores. Eles descobriram uma grande família de gene,
compreendendo cerca de um milhão de diferentes genes (três por cento de nossos genes) que provocam um número
equivalente de tipos de receptores olfativos. Esses receptores estão localizados nas células receptoras, que ocupam uma
pequena área na parte superior da cavidade nasal e detectam as moléculas de odores. .(BUCK, L.; AXEL, R., 2006).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [83]
bulbo olfativo. Sabe-se que, atualmente, a função dessa região não se limita a sentir cheiros,
mas também é responsável por nossos sentimentos. O sistema olfativo está conectado ao
sistema límbico e à região do hipotálamo. Nessa região estão localizadas as estruturas
nervosas em que os sentimentos são processados e transmitidos. Muitas das transmissões
nervosas que constituem o trato olfativo estendem-se do bulbo olfativo ao cérebro. No
rinencéfalo, próximo à região do córtex cerebral, no interior do lobo frontal, há terminações
nervosas da massa celular da amígdala do cérebro. A amígdala é a segunda região em que há
a terminação nervosa que permite decodificar o cheiro. A primeira região é o bulbo olfativo.
Da região da amígdala partem estímulos que atingem o tálamo e outras partes do sistema
límbico e, finalmente, atingem a parte central do cérebro, o córtex.
Quando o bulbo olfativo detecta alguma coisa – durante a alimentação, o
sexo, um encontro emocional, um passeio no parque – manda um sinal para
o córtex cerebral, que imediatamente envia mensagem para o sistema
límbico, seção antiga, misteriosa e intensamente emocional de nosso
cérebro, por meio da qual sentimos e desejamos e inventamos. O olfato não
necessita de intérprete, o que não acontece com os outros sentidos. O efeito é
imediato e não diluído pela linguagem, pelo pensamento ou pela tradução.
Um aroma pode ser extremamente nostálgico, porque detecta imagens e
emoções poderosas, antes que tenhamos tempo para editá-las.
(ACKERMAN, 1990, p. 31-32).
Corroborando esse pensamento:
(...) tão logo é percebido, um cheiro se difunde no cérebro olfativo, que,
através de seu circuito límbico, funciona simultaneamente ao cérebro das
emoções e da memória. O que implica em dizer que uma informação
olfativa, ainda que não consciente, torna presente o ausente, (...) para o
homem este tornar presente ocorre na forma de lembrança. (CYRULNIK,
1995, p.20-2).
Por fim, ocorre a combinação da informação dos diversos receptores olfativos,
constituindo uma memória olfativa. Por isso, podemos experimentar conscientemente o cheiro
de uma flor na primavera e relembrá-lo em outras estações do ano. O olfato tem uma memória
em si: “não existe falta de memória em relação aos odores”.(MORRIS, APUD ACKERMAN,
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [84]
p.32), enquanto que aquilo que ouvimos ou vemos pode desaparecer rapidamente do caminho
de nossa memória.
A memória olfativa é apresentada por Michel Serres em sua obra Os cinco
sentidos:
O olfato parece o sentido singular. As formas se encontram invariantes ou
restauradas, as harmonias transformam-se, estáveis por variações, o perfume
atesta o específico. O olhos fechados, orelhas tampadas, pés e mãos
amarrados, lábios cerrados, distinguimos, anos depois, entre mil, certo sub-
bosque em tal estação ao pôr-do-sol, antes chuva, certa peça em que
armazenávamos milho forrageiro ou ameixas Agen cozidas, de setembro à
primavera, uma certa mulher. (SERRES, 2001, p.171).
3.4 Olfato e sexo
10
Seria o acaso que nos faz encontrar e seduzir a pessoa do sexo oposto? Talvez
não. Seríamos injustos com a capacidade simbólica que nos permite que nos aproximemos ou
nos afastemos do outro se reduzíssemos o campo comunicacional ao simples acaso.
Para que ocorra aproximação, há um conjunto de elementos sobre o corpo do
outro que podem ser “lidos”, tornando possível a identificação e a sincronia, e criando um
verdadeiro campo de subjetividade em que se dão os encontros, como aponta Cyrulnik: “Todo
ser vivo utiliza o espaço para torná-lo significativo, enviando-lhe sinais: o próprio espaço
torna-se então um objeto sensorial, estruturado como uma linguagem.” (1995, p.39).
10
Cabem, aqui, maiores esclarecimentos quanto à importância do olfato no organismo humano. Ele não tem só
um importante papel na comunicação inter-humana, mas também na comunicação interna do próprio organismo,
na medida em que a medicina nos revela que o desenvolvimento dos sistemas olfativo e vomeronasal são
importantes para a maturação sexual normal.
Como referência a esse assunto, aponta-se a seguinte obra: LALWANI, A. K.; SNOW Jr., J. B. Distúrbios do
olfato, da gustação e da audição. In: KASPER, D. L. et al. Harrison: medicina interna. v. 2. Rio de Janeiro:
Mc.Graw-Hill, 2006.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [85]
Esse espaço se preenche de significados emitidos pelos próprios corpos,
elaborando aquilo que Boris Cyrulnik (1989) denominou de “Cartaz etológico”. Quanto a esse
conceito, diz o autor:
O vestuário, os gestos, as mímicas e as decorações do corpo tomam parte da
corte, como um cartaz onde estão inscritas informações respeitantes ao estilo
sexual e à categoria social do cortesão. Esse cartaz etológico do encontro
sexual explica por que razão a escolha do parceiro deve tão pouco ao acaso,
ou melhor, por que razão o acaso do encontro só existe no interior de uma
seleção muito reduzida de parceiros possíveis, o grupo dos elegíveis. (1989,
p.207).
O “grupo dos elegíveis” a que se refere Cyrulnik são aqueles que, mesmo
inconscientemente, seduzem pela presença de sinais não verbais que fazem outra pessoa se
aproximar, reduzindo o espaço, a distância entre os parceiros, de tal forma a permitir que
entrem no jogo da sedução outros sentidos da comunicação, sentidos de proximidade, o olfato
e o toque principalmente.
Concordamos com Córdon (1995) quando ele afirma que, quando o homem passa
a viver em sociedade, os critérios de seleção já não são mais naturais, mas culturais. Dessa
maneira, o homem pauta as suas escolhas segundo os valores da moda, a qual passa a
colonizar o mundo da vida, ditando os gostos, sincronizando a vida segundo a imagem da
moda.
Dialogando com a idéia de cartaz etológico de que fala Cyrulnik, Michel Serres
estabelece, de maneira poética, o conceito de “Mapa da ternura”:
(...) do tato, e seus riachos de ouvidos, rios de paladar e lagos de escuta,
águas misturadas frementes de onde se ergue sua beleza, fiel. Torna visível
sua invisível carteira de identidade ou corpo impressionável. Seu mundo
sensível se recobre de um plano, na escala exata de sua superfície: traço a
traço, olho a olho. (SERRES, 2001, p.29).
Na concepção desse autor, o corpo se torna uma verdadeira tela de obra de arte,
sobre a qual se inscreve toda a nossa identidade, e, por meio dos adornos e dos cosméticos,
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [86]
torna “visível essa invisível carteira de identidade”. Quanto ao cosmético, aponta o mesmo
autor:
Dizemos de maneira equivalente cosmética ou arte da maquiagem. Os
gregos tiveram a requintada sabedoria de fundir numa mesma palavra a
ordem e o ornamento, a arte de ornar com a de ordenar. O cosmo designa a
arrumação, a harmonia e a lei, a conveniência: eis o mundo, terra e céu, mas
também a decoração, o embelezamento ou o arranjo. Nada é tão profundo
como o enfeite, nada é tão abrangente como a pele, o ornato e as dimensões
do mundo. Cósmico e cosmético, a aparência e a essência saem de uma
mesma fonte. A maquiagem iguala a ordem, e o embelezamento equivale à
lei, o mundo surge ordenado, em qualquer nível em que se considerem os
fenômenos. (2001, p.27).
Tomando como base os conceitos de cosmético mapa de ternura
11
, empregados
por Serres, abre-se também a possibilidade de refletir para que ele tem servido. Isso ocorre
porque, realmente, os cosméticos são utilizados para reforçar ou disfarçar. Cria-se uma
máscara impressa sobre a pele, que desperta e sincroniza o olhar do outro:
11
Os conceitos de “Cartaz etólogico” e de “Mapa da Ternura” alinhavados ao conceito de cosmético abre-nos a possibilidade de pensar a
questão propriamente dita do perfume no imaginário humano. Para isso, resgatamos o sentido da palavra cosmético, que também pode ser
usada para designar o mundo do perfume. Aprofundando-se mais um pouco, notar-se-á que o perfume também está intimamente relacionado
ao kosmo (cosméticos) que, segundo Hillman:
“(....) na palavra grega kosmos, de onde vem ‘cosmologia’, ‘cosmonauta’. Komos, ao ser traduzida do
grego para o latim, tornou-se universum, revelando a atração dos romanos por leis universais, o mundo
todo girando em nossa volta (unus-verto). Cosmo, no entanto, não significa um sistema que abrange;
trata-se de um termo estético, que melhor se traduz como ‘ajustado’, ‘apropriado’, ‘bem arranjado’, de
forma que se torna mais importante a atenção particular do que universal. Kosmo é também um termo
moral: kota kosmon (desordem) (...). Kosmo também abrange significados tais como ‘convenientemente’,
‘decentemente’, ‘honorável’. Juntam-se o estético e o moral, como em nossa linguagem diária
profissional, em que ‘direito’, ‘verdadeiro’, ‘certo’, ‘correto’ implicam em ‘bom’ e ‘bonito’. Um outro
grupo de conotações inclui ‘disciplina’, ‘forma’, ‘moda’. Kosmos era usado especialmente a respeito das
mulheres, referindo-se a seu embelezamento, decoração, ornamentos, roupas, e a palavra também pode
descrever canções, falas doces. ‘Cosmético’ está, na verdade, mais próximo do original que ‘cósmico’,
que tende ao significado de ‘vazio’, ‘gasoso’, ‘vasto’.” (HILLMAN, 1993, p. 135).
No trecho acima, constata-se claramente a relação entre o significado de kosmo e de cosmético; esse autor dá claras pistas para que se possam
retornar os olhares sobre os textos publicitários da mídia impressa e a suas imagens. Nessas imagens, depara-se, sem maiores
questionamentos, com a clara aplicação do conceito original da palavra cosmético, que está intimamente relacionado ao belo, ao bonito, à
disciplina, à forma, à moda, e ainda ao vazio e ao gasoso. Por isso, a presença marcante de modelos e cenários belos e perfeitos. Nas palavras
de Hillman: “Se o próprio cosmo implica em beleza, se vivemos num mundo estético, então o modo primeiro de nos ajustarmos ao cosmo
seria através de um sentido de beleza.” (1993, p.135). Depara-se aqui com a razão primeira pela qual a busca frenética pelo belo, pela beleza,
tenha ganhado proporções cósmicas, bem como o aumento exacerbado sobre aquilo que é visível, pela aparência, como se tivesse recaído
sobre nós toda a força da noção afrodítica de beleza. Somente cremos naquilo que vemos, a aparência do mundo revela a sua verdade.
Dessa forma, partindo de todos esses conceitos apresentados sobre o kosmo e sobre o cosmético, que já estão interligados
pela noção de beleza implícita da deusa Afrodite, somos levados a uma hipótese no mínimo instigante a respeito da ausência do cheiro e de
uma predominância das imagens de cheiro, pois já não importa mais o que cheira; importa a aparência, o que você é. Por isso, o perfume em
nosso tempo tem sido confundido muito mais com a roupa, com a moda do que com a questão do cheiro propriamente dito. Tem-se chegado,
então, ao cúmulo de perguntar ao outro “o que você está vestindo?” para se referir a que perfume ou a que marca de perfume a p
essoa está
utilizando.
Nesse sentido, essas questões levam-nos a pensar que o mundo do perfume é a porta de entrada do corpo para o mundo das
imagens; é propriamente a transformação, ainda que de forma ilusória, do corpo em imagem de corpo. O perfume tem em si a característica
da imagem visual, a de ser um paradoxo, ou seja, a presença de uma ausência bem como a ausência de uma presença. Além dessa figura de
linguagem, tudo isso convida a pensar ainda em outra figura de linguagem: a metonímia, que consiste no emprego de uma palavra por outra,
permitido pela proximidade da idéia que expressam
.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [87]
(...) a maquilagem das mulheres às vezes tão bem harmonizada com a
natureza delas que perdemos o fôlego, como diante do mundo; mas a
cosmética passa à estética, no sentido da sensação, por essa mesma
harmonia: a mulher nua no espelho tatua sua pele, na boa ordem e segundo
as leis, segue caminhos muito precisos: reforça o olho e o olhar, realça, com
a cor, o lugar do beijo, coroa a zona da palavra e do gosto, sublinha a orelha
com pingente, um brinco, traça pontos de ligações entre as cavidades ou as
proeminências dos sentidos, desenha o mapa de sua própria receptividade.
Pela cosmética a verdadeira pele torna-se visível, como que vivida por si;
pelo enfeite a lei singular do corpo aparece, como pelos traçados
convencionais, cores ou curvas no mapa-múndi, o mundo em sua ordem
mostra suas paisagens. O nu tatuado caótico e provocante traz sobre si o
lugar comum e instantâneo de seu sensorium próprio, planícies e relevos
onde se misturam os fluxos vindos dos órgãos da audição, da visão, do
paladar, do olfato ou atraídos por eles, pele chamalotada onde o tato totaliza
o sensível. A cosmética reproduz esta soma ou esta mistura, procura pintá-la,
variando quanto às convenções sociais, segue instintivamente essa tatuagem
temporária. Entendam assim, as máscaras entregues aos museus: a cada uma,
sua cartografia sensitiva, a cada uma sua cosmetografia se ouso escrever
assim, a cada uma sua impressão facial ou mais precisamente suas
impressões pessoais, outra maneira, em nossas línguas latinas, de dizer sua
máscara impressa. Não usamos argolas penduradas no nariz como outras
pessoas, decerto porque esquecemos o olfato. (SERRES, 2001, p.28-29).
O corpo é uma “linguagem silenciosa” na qual “os sinais não-verbais exprimem
uma comunicação sensorial imediata. Veiculam e transmitem a emoção, no contexto em que a
mesma se desenrola.” (CYRULNIK, 1989, p.212).
Essa linguagem não-verbal está interligada ao campo da estética, pois tem a
capacidade de despertar uma emoção agradável. “Este sentimento de beleza caracteriza um
grupo de pertença.” (CYRULNIK, 1989, p.210).
Esse autor aponta a beleza e a estética como elementos que despertam prazer.
Esse conceito de beleza tem a ver com o grupo de pertença, ou seja, à medida que passamos a
pertencer a uma cultura, tornamo-nos seres únicos, pautamos nossos gostos, nossas atitudes e
comportamentos segundo as regras do grupo para que, assim, possamos ser compreendidos e
aceitos por este grupo. Mas é inegável que aquilo que atribui a qualidade de assinatura natural
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [88]
do grupo não nasce no vazio, está sedimentado sobre a pilastra da moda
12
., pois, Como nos
afirma Cyrulnik: “[A moda é] espelho social, índice de reconhecimento, produção e sentido,
ela funciona como um sinal que permite aos indivíduos de uma mesma cultura seduzirem-se
entre si.” (1989, p.210-211).
Norteada pela moda, a mulher sempre soube melhor lidar com seu cartaz
etológico do que o homem. Ela soube produzir-se e transformar-se em engodo. Talvez essa
estratégia seja uma questão de gênero cultural e seja socialmente construída, como dá a
entender Cyrulnik:
As mulheres são atraídas pelo modo de vida, ao passo que os homens são
atraídos pelo físico de uma mulher. E ninguém se engana, porque uma
mulher que deseja torna-se atraente cuida do corpo e tem prazer em torná-lo
desejável, enquanto um homem que deseje implantar-se no mercado da
afectividade exibe o seu belo carro e expõe as marcas do seu sucesso social.
(1989, p.210).
Esse trecho, apresentado pelo etólogo, convence-nos de que o campo da
afetividade, numa civilização, tenha-se reduzido à esfera da aparência. Aquilo que se simula
ou se aparenta ser é o que realmente importa. Nesse jogo de aparências sociais, fica sempre
uma pergunta: como se comportam a parte biológica e os outros sentidos corporais, quando
foram todos reduzidos àquilo que se vê?
Cremos que ocorre o que ele afirma:
12
Essa questão conduz a pensar que parte desse impulso de autoplasmar-se tenha sua origem na própria biologia, devido à necessidade que a
pele frágil tem de proteção artificial da natureza física, mas, mais ainda, da simbólica. A possibilidade de se pensar nessa proteção mais
simbólica de que física abre a chance de pensar no perfume como objeto de significação, um signo da cultura, que apaga as marcas das
características animais do ser humano, para assumir um cheiro culturalmente aceito (reconhecido). Segundo Harry Pross (1983), o ser
humano confia nos signos. Da mesma maneira, os símbolos primitivos, que foram impressos sobre o corpo (textos), o perfume aspergido
sobre esse corpo também se faz linguagem, tornou-se parâmetro para reconhecimento interindividual, embora ainda pouco se conheça pelo
cheiro. Essa identidade surge do uso do objeto que nos leva a pensar na moda, ou melhor, no sistema da moda, que é um sistema de regras e
que surgiu em um contexto social, acabando por funcionalizar o cotidiano, à medida que tenha havido a racionalização dos instintos e, por
fim, a submissão da natureza à complexidade da vida social. A moda celebra o fetiche da mercadoria. O indivíduo, além de se vincular ao
mundo pelo signo (roupa, perfume, gestos, palavras, textos), tende a se apropriar do objeto como um outro eu ou como um prolongamento de
sua personalidade. Isso nos revela que, desde o homem primitivo, o símbolo, a imagem, mostrava-se como meio de superação da
transitoriedade e da temporalidade do homem. Então fica sempre entre esse sujeito consumidor e o objeto de desejo um déficit emocional,
pois esse sujeito nunca está saciado; precisa ser e ter mais, consumir, comprar, em busca daquele estereotipo midiático. E essa vontade
insaciável de ser ou de parecer aquilo que está exposto no texto publicitário, enquanto espelho midiático da cultura, segundo Lacan, acabou
“levando-o a retocar seu corpo de múltiplas maneiras: por deformações, por mutilações, por tatuagens, por escarificações, por maquiagem,
por vestimentas, por cirurgias estéticas, etc.” .(LACAN Apud VILLAÇA ET AL., 1999, p.9).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [89]
(...) o poder de apelo mudo do olhar continua sendo espantoso. Numa
multidão, freqüentemente basta olhar alguém que esteja a uma distância fora
do alcance da voz para que o observado logo mergulhe seus olhos no olhar
que entre tantos outros fixa. Num mundo olfativo, as moléculas estão
misturadas em um único cheiro; num mundo sonoro, o zunzum afoga as
palavras; num mundo de contato, é-se empurrado de todos os lados. Nesse
contexto de sensolarialidades misturadas, o olhar conserva uma comovente
precisão. (1995, p. 41).
O olhar é penetrante, pois, a partir do momento em que os sinais sociais dão
permissão de acesso ao outro, as emoções são sincronizadas, seja por meio dos gestos, da
pintura do corpo e ou pelo comportamento. Eles despertam uma sensorialidade e permitem,
ainda, comunicar uma emoção ao outro. Então, acessam-se todos os sentidos; a biologia toma
sentido e o encontro acontece. Assim apresenta Cyrulnik a questão do encontro:
Nos encontros amorosos humanos, os protagonistas nunca dizem o que
sentem, ou melhor, nunca dizem com palavras. É ainda muito raro uma
rapariga aproximar-se de um rapaz anônimo e dizer-lhe: ‘você agrada-me,
faça o favor de me penetrar’. A protagonista não pode verbalizar a sua
emoção íntima, porque as palavras possuem um grande poder de
amplificação emotiva. Isto explica o facto de a nossa protagonista poder
comunicar a sua emoção graças a alguns sinais do corpo, ao passo que dizer
esta emoção com palavras provocaria uma emoção tal que deixaria de poder
controlar a comunicação. A palavra sem corpo seria demasiado brutal.
(1989, p.212).
Os adereços criam um verdadeiro cartaz etológico capaz de despertar no outro um
vestígio de desejo, permitindo a aproximação. Fica evidente, portanto, que é pelo sentido do
olhar que os corpos se permitem ir ao encontro. É o momento em que o corpo se abre para o
mundo do outro. Cria-se um campo de subjetividade em que todos os sentidos são convidados
a ser explorados, para que o vínculo amoroso se estabeleça.
A proximidade dos parceiros permite agora a sincronização dos desejos. O
trabalho emocional torna-se possível graças às ofertas alimentares, às cores
estimulantes, às posturas e aos movimentos evocadores.
Finalmente, os parceiros acedem ao espaço íntimo. O odor, o calor, o toque,
a princípio fugaz, cada vez mais confiante, permitem chegar ao lugar dos
lugares, onde a sexualidade adquire o seu aspecto mais intenso, mais
conseguido e preciso. (CYRULNIK, 1989,p.227).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [90]
Mais adiante, o autor prossegue:
Todo o inconsciente etológico desta mulher se exprime pelos canais de
comunicação sensoriais. Quando olha para o vestido, quando respira o seu
perfume, quando se admira perante as jóias, num flash etológico, o
admirador recolhe infinitamente mais informações do que com um longo
discurso. Tanto mais que é difícil dizer por palavras aquilo que se pode
exprimir com os cabelos, as roupas e os gestos. (1989,p.227).
Observa-se, dessa forma, que nesse “cartaz etológico” existem dois momentos
cruciais. Para que o encontro ocorra, primeiramente, é necessário que o outro crie
mecanismos simuladores para chamar a atenção, evocar o olhar do outro. Depois de
sincronizados, a aproximação torna-se permitida e todos os sentidos entram no jogo da
sedução. O que realmente ocorre nesse campo de subjetividade é algo próximo de uma
química. É ela quem nos faz eleger o outro como nosso parceiro. Não descrendo que todos os
adornos e adereços sejam importantes, por ora nos ateremos ao estudo do odor para essa
sincronização.
O que aqui denominamos de química é o que a área da biologia, medicina e
etologia elegem com o nome de feromônio, considerado a porção animal do desejo. A palavra
feromônio vem do grego pherein, que significa “carregar”, e horman, “excitar”
(ACKERMAN, 1990,p.48).
Os feromônios são substâncias diferentes dos hormônios, uma vez que não se
expelem internamente no corpo, mas são expelidas fora do organismo. Por isso, são
denominados ecto-hormônios, pois provocam reações em outros indivíduos, alterando sua
fisiologia sem que se saiba por quê. Servem para delimitar territórios, estabelecer hierarquia
de influência e poder. Enfim, os feromônios aproximam-nos da condição animal em que
excitamos o parceiro por meio do cheiro, “estabelecendo-se assim, uma relação química entre
ambos.” (DOUGLAS, 1998, p.109).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [91]
Os feromônios são produzidos por glândulas específicas, geralmente anexas aos
genitais, ao reto ou à pele, que expelem essas substâncias de caráter químico, as quais
desempenham uma função social, pois atingem um outro organismo e suas condutas sociais e
sexuais (DOUGLAS, 1998, p.109).
Segundo Ackerman (1990), são as glândulas apócrinas as responsáveis pelos
odores corporais. Para ela, essa glândula também se localiza no rosto e no peito. Desenvolve-
se consideravelmente na fase da puberdade. Alguns pesquisadores concluíram que a alegria
que sentimos ao beijar alguém está no ato de cheirar e acariciar o rosto do outro, sentindo o
seu odor.
Para várias tribos em Bornéu, no rio Gâmbia (África ocidental), em Mianmar, na
Sibéria e na Índia, a palavra beijo designa cheiro. Para eles, o beijo é “uma aspiração
prolongada dos odores da pessoa amada, de um parente ou de um amigo.” (ACKERMAN,
1990, p.45).
Os estudos dos feromônios iniciaram-se por volta da década de 60, com
Butenandt. Ao estudar substâncias nos insetos, percebeu-se que as fêmeas tinham uma
glândula perigenital cuja secreção, quando exposta ao ar, atraía os machos. Para o sistema
receptor do macho, aquele odor percebido correspondia especificamente àquele produzido
pela respectiva fêmea; por isso, sentia-se atraído. (DOUGLAS, 1998).
Nos primatas não-humanos, os feromônios desempenham um papel importante. A
atividade sexual dos machos aumenta durante o período de ovulação da fêmea. Esse
fenômeno só se altera quando o ovário é retirado da fêmea, quando o macho perde a olfação,
ou ainda quando ocorre o ressecamento do bulbo olfativo do macho. (DOUGLAS, 1998).
No ser humano talvez ainda funcione da mesma forma. Porém, é difícil afirmar
que o comportamento sexual na espécie humana seja condicionado pelo cheiro. No entanto, a
história do perfume e do próprio comportamento da espécie humana faz supor que haja sim
uma relação. Os perfumes têm importância na atração sexual dos indivíduos. Afinal, as
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [92]
mulheres aspergem fortes perfumes sobre seu corpo principalmente para se tornarem mais
atraentes. Geralmente, os ingredientes desses perfumes são almíscar e algaria, que derivam de
glândulas de animais cuja atração sexual baseia-se no feromônio. (DOUGLAS, 1998).
Porém, não são somente os olores oriundos de glândulas animais que têm o poder
de encanto e de atração sexual, segundo Ackerman:
A fragrância de flor anuncia para o mundo que ela está fértil, disponível e
desejável, que seus órgãos sexuais estão cheios de néctar. Seu odor nos faz
lembrar, de maneira sutil, fertilidade, vigor, força vital, todo otimismo, a
esperança e a paixão da juventude. Inalamos seu aroma ardente e, seja qual
for a nossa idade, sentimo-nos jovens e prontos para o amor, em um mundo
incendiado de desejo. (1990, p.34).
Se a fragrância do perfume for de origem animal ou vegetal, guardará em si o
poder evocador da sensualidade. Ao analisar o comportamento sexual no ser humano por
meio do cheiro, não podemos ignorar que esse indivíduo é um ser cultural por excelência.
Numa sociedade, é necessário que se respeitem as convenções estabelecidas. Não
se pode transgredir nada, sob pena de retaliação segundo as sanções socialmente estipuladas.
A comunicação horizontal ocorrerá somente se houver distância entre os indivíduos. Sendo
assim, acredita-se que, pelas convenções e, principalmente, pelos valores morais e pela idéia
de tabu estabelecido pelo sexo e para a sexualidade, o sentido do olfato e, por conseqüência,
os odores, perderam o poder comunicativo.
No entanto, não se pode negar que os feromônios pertençam à espécie humana.
Embora ainda não se tenham identificado os feromônios humanos, eles existem e são capazes
de despertar desejo ou provocar reações ligadas ao sexo, pois “aparentemente existem
receptores específicos para os feromônios da mesma espécie (raça) e para o sexo oposto, em
particular. Estes receptores se localizam na mucosa olfativa (...), donde partem aferências para
o bulbo olfativo, núcleo da amígdala e núcleos hipotalâmicos.” (DOUGLAS, 1998, p.110).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [93]
No jogo social, os feromônios não desempenham o mesmo papel em nossa
consciência sensorial quando comparada aos estímulos auditivos e visuais. Sem dúvida,
acabamos sendo muito mais aferidos por aquilo que está registrado numa dada cultura, numa
determinada época. No balé amoroso da vida, o “visualmônio” é que nos faz escolher entre os
eleitos. Somente nos entregamos aos estímulos que cremos poderem ser controlados pelo
nosso próprio desejo. Perder o controle sobre si mesmo só é permitido no ato sexual, em
festas de misticismo religioso ou quando se faz uso de drogas. Ainda acreditamos manter o
controle ou, pelo menos, poder resgatá-lo rapidamente. Dessa maneira, os feromônios
evocarão conscientemente o desejo e a atração pelo outro, quando o campo de subjetividade
estiver reduzido e o encontro estiver acontecendo no mais secreto e sagrado templo, onde
todos os pudores e tabus não fizerem mais sentido. As convenções sociais terão ficado
trancafiadas do lado de fora, nas ruas, nos cafés, em qualquer outro lugar onde as normas
sociais e o olhar do outro nos impelem às pulsões da vida. Para Ackerman:
A evolução é coisa tão complexa e, às vezes, tão surpreendente, tão
semelhante a uma aventura, que muito poucos de seus aspectos ou
obrigações me assustam. Já nossa necessidade aparente de violência o faz, o
que não acontece com as possibilidades de mantermos conversações
elaboradas e sutis, sob o efeito dos feromônios. O livre–arbítrio pode ser
bastante elástico. (1996, p.53).
Todo processo de sedução passa por um canal de comunicação sensorial. Podem
ser os olhos, os ouvidos ou o nariz. É preciso encontrar no outro algo que nos dê a impressão
de encanto ou prazer, que nos faça olhar, ouvir e cheirar. “Estes canais de sedução sensorial
constituem uma semiótica do corpo, utilizada pelo homem.”(1989, p.204).
Vale a pena retomar o pensamento de Cyrulnik quanto a essa idéia da atração
entre os sexos:
Quando se observa nossa história, a quantidade inverossímil de dinheiro,
tempo e técnica consagrada às maquilhagens, ao vestuário e às jóias,
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [94]
concluímos que todos estes esforços devem ter um sentido, assumir uma
função!
Os ornamentos fugazes, tais como a maquilhagem, o pó-de-arroz ou a
pintura dos lábios permitem modificar rapidamente a nossa aparência
emocional. A mudança de vestuário, o uso de jóias, o perfume antes de sair,
revelam a nossa intenção de desencadear no outro uma emoção diferente.
(...) [Porém] Estes aparatos são fugazes. Algumas horas mais tarde, o
encanto do perfume evaporado, o vestido enrugado e a maquilhagem
desleixada não terão concedido a este contrato social senão um aparato de
algumas horas. (1989, p.204).
Além de integrar os indivíduos, o sistema olfativo possibilita uma maior
integração espácio-temporal. Quanto a essa questão, encontra-se em Leroi-Gourhan uma
importante constatação:
(...) o olfato desempenha um importante papel nas relações entre indivíduos.
Os perfumes, os óleos aromáticos e os desodorizantes constituem um
elemento bastante importante nas relações entre os indivíduos. Os perfumes,
os óleos aromáticos e os desodorizadores constituem um elemento bastante
importante nas relações entre os sexos, quer para ocultar os cheiros naturais
do corpo, quer para criar sua imagem idealizada. (...). O cheiro tornou-se o
símbolo de todo um desenvolvimento motor cujas referências já não se
situam no nível da mecânica digestiva impermeável à figuração, mas sim no
plano da dinâmica muscular, base comum ao comportamento afectivo e à
integração espacial. Neste estádio, o olfacto situa-se no limiar do imaginário
em sentido estrito.
Um tal limiar é ultrapassado quando o olfacto passa a estar ligado à
integração espácio-temporal, quando se torna base da percepção de uma
dada situação. (LEROI-GOURHAN, 1983, p.100).
Dando voz ao pensamento do etológo Boris Cyrulnik, fica sempre uma questão
em aberto: o que resta, no jogo da sedução, quando todo o aparato efêmero constituído pelo
indivíduo sobre seu corpo se desfaz? O que, ainda, atrai o outro?
O indivíduo não é limitado pelas paredes do seu próprio corpo. Qualquer ser
vivo possui em seu redor uma bolha espacial que intervém nos seus
funcionamentos fisiológicos e nas suas maneiras de estabelecer um
relacionamento.
Hall diz que em redor de cada corpo existe uma zona de 0,40 m de distância
íntima: zona dos odores inconscientes e dos odores indiscretos. É a zona das
proximidades sexuais, das violências intrusivas, das ternuras familiares.
(CYRULNIK, 1993, p.180-181).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [95]
Cyrulnik indica uma instigante brecha na comunicação extra-corporal, que é esse
universo ao redor do corpo que ele denomina de “bolha espacial”. Essa bolha interfere
consciente ou inconscientemente na capacidade de estabelecer vínculos e, portanto, de
estabelecer comunicação com o outro. As relações interpessoais dão sinal de ternura e afeto
ou agressão e desafeto a partir da reação que o corpo dispara. Podem servir para afetividade
ou para violência. Naturalmente, num primeiro momento em que temos a percepção do outro,
do diferente, a primeira reação é preparar-se para a agressão, a defesa ou para a aproximação.
O que determinará uma ou outra reação serão os rituais simbólicos deflagrados pelos corpos
de maneira consciente. Pela via inconsciente, aparecem os fantasmas de corpo-a-corpo, com
medo de efração ou de penetração. Desse modo, “o outro, assim que aparece no meu campo
de consciência, altera o meu mundo.” (CYRULNIK, 1993, p.183).
Cabem, nesse momento, algumas ressalvas acerca dessa “bolha espacial” ou
“espaço pericorporal” de que fala Cyrulnik. Seguindo a concepção desse autor, o eu corporal
não se limita às paredes do corpo, ou seja, não podemos apagar e ignorar o espaço físico ao
redor desse corpo que constitui um campo de imenso significado. O etólogo afirma, ainda,
que não há uma precisa cisão ou divisão entre o espaço exterior e o espaço interior. Para ele,
“Em nosso redor, no exterior, existe uma bolha que prolonga o nosso espaço do interior. E
dentro de nós existe uma zona do corpo que prolonga o espaço do exterior. O espaço boca, o
espaço ânus compõem estes espaços onde a junção se efectua.” (CYRULNIK, 1993, p.183).
O corpo é um organismo em constante processo de troca e comunicação com o
mundo, com os espaços ao redor. Em torno desse eixo é que se torna possível constituir
vínculos comunicacionais que permitam sua sobrevivência. O ser humano é uno com o
mundo; não é dissociável. Ele é marcado por momentos de intensa necessidade afetiva, de
proximidade com o outro, e momentos de necessidade de distância para não gerar
agressividade. Portanto, o ser humano oscila entre esses dois tempos, da proximidade e da
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [96]
distância. Ele é um indivíduo marcado não pelo seu caráter extremista, mas pela sua
capacidade de ponderação, de homotermia, de ordem.
Assim que me sinto observado por outro inquieto-me. A consciência do
outro em mim agride-me. A ausência do outro em mim faz-me morrer.
Quanto estou só, o mundo pertence-me, mas morro. Quando aparece outro
no meu mundo agride-me e permite-me viver. Aliás, a palavra agressão
contém a noção de espaço. Ad gredior, lembra Lorenz, significa ir em
direcção a, ao encontro de. (CYRULNIK, 1993, p.183).
O que sustenta esse vínculo é o feromônio sexual, presente no outro, que ainda
atrai. Sabe-se que o feromônio tem grande força de atração entre os indivíduos, visto que
inúmeros experimentos comprovam a presença desse ecto-hormônio nos comportamentos
sexuais das pessoas. A primeira pesquisadora a fazer um experimento dessa natureza foi a
psicóloga Martha McClintock. O experimento consistiu na exposição dos narizes de dez
mulheres ao suor de outras mulheres em intervalos regulares, enquanto que outras dez
mulheres tiveram seus narizes expostos ao álcool. Observou-se que, “nas mulheres que
tiveram seus narizes expostos ao suor de outras mulheres, depois de um período, os ciclos
menstruais eram idênticos, enquanto que nas outras, expostas ao álcool, nada se alterou.”
(ACKERMAN, 1996, p.51-52).
Há também experimentos que revelam que, em homens envolvidos
amorosamente, a barba cresce muito mais rapidamente do que antes. Além disso, mulheres
que vivem afastas dos homens, em colégios internos ou conventos, entram na puberdade
muito mais tarde do que as mulheres que convivem com os homens (ACKERMAN, 1996,
p.52).
Admitamos ou não a presença do feromônio, não é possível negar, segundo
Ackerman (1996), a importância do olfato para a relação sexual humana, sobretudo para as
mulheres. A sensibilidade para os cheiros é mais efetiva nas mulheres, talvez pelo elo com o
papel desenvolvido pelo olfato durante a evolução, sempre ligado ao acasalamento, ao
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [97]
namoro, à maternidade (cuidado com as crianças). Além do mais, as mulheres sempre
estiveram mais envolvidas com a comida e as crianças, tendo que “farejar” qualquer coisa que
estivesse fora de ordem, algo que muito pouco tinha a ver com o homem. Durante todas as
fases da vida, a mulher tem um olfato mais desenvolvido do que os homens. E, portanto, com
base na pesquisa feita por Robert Henkin, afirmamos que “um quarto das pessoas que
apresentam desordem olfativa perde o impulso sexual.” (HENKIN, APUD ACKERMAN,
1996, p.68).
Essa constatação leva crer que o olfato guarda uma certa relação com o impulso
sexual. Segundo Douglas (1998), quando perdemos nossa capacidade olfativa, também
diminuem os impulsos sexuais.
Em sua obra Fisiopatologia oral, Douglas (1998) registra que não há somente os
feromônios ligados à conduta sexual. Existem também aqueles que se comportam como
veículos informativos. Esse autor classifica esses feromônios em três categorias: feromônios
de agregação, que servem para unir indivíduos de uma colônia quando estes reconhecem o
feromônio receptivo; feromônios demarcadores, que delimitam o espaço territorial específico
do grupo; e feromônio de alarme, que indica e sinaliza perigo para outros indivíduos
pertencentes ao mesmo grupo ou clã.
A exposição do autor, com exemplificação biológica, não invalida nossa
transposição para a esfera da comunicação humana, pois, antes mesmo de sermos seres
culturais, somos seres biológicos e, por isso, acreditamos que talvez os feromônios de caráter
informativo sejam elementos impulsionadores de uma ontogênese do vínculo que, sem
dúvida, pode ser aplicado ao ser humano. Fica aqui um registro para aprofundamento dos
estudos da teoria do vínculo.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [98]
3.5 Olfato e civilização
O termo “civilização” está aqui empregado com o sentido freudiano, ou seja, um
conjunto de realizações e regulamentações que distinguem nossa vida da vida dos animais, e
que está a serviço de dois intuitos: o de proteger os indivíduos e o de regular as suas relações
mútuas. (FREUD, 1997, p. 42).
Dentre essas pilastras fundamentais de sustentação daquilo que se denomina
civilização, Freud elege como principal a beleza: “(...) constatamos que essa coisa não
lucrativa que esperamos que a civilização valorize é a beleza. Exigimos que o homem
civilizado reverencie a beleza, sempre que a perceba na natureza ou sempre que a crie nos
objetos de seu trabalho manual, na medida em que é capaz disso.” (1997, p. 45).
Porém, para esse autor, a questão da beleza não anula as outras exigências que
foram apontadas anteriormente. Seguindo esse pensamento, vê-se claramente que não é
somente pelo o que é útil que está pautado todo o desenvolvimento de uma sociedade. Freud
(1997) aponta algumas das exigências essenciais para a constituição da civilização. Dentre
elas, a limpeza e a renúncia aos instintos constituem as bases para a formação da civilização.
Quanto à limpeza, afirma que:
A sujeira de qualquer espécie nos parece incompatível com a civilização. Da
mesma forma, estendemos nossas exigências de limpeza do corpo humano.
Ficamos estupefatos ao saber que o Roi Soleil [Luís XV, da França] emanava
um odor insuportável, meneamos a cabeça quando, na Isola Bella, [a
conhecida ilha do Lago Maggiore, visitado por Napoleão poucos dias antes
da batlha de Marengo] nos é mostrada com a minúscula bacia em que
Napoleão se lavava todas as manhãs. Na verdade, não nos surpreende a idéia
de estabelecer o emprego do sabão como um padrão real de civilização.
(FREUD, 1997, p. 46).
É provável que a civilização tenha, de certa forma, expelido dos corpos os odores
naturais que se tornaram repugnantes. A utilização de elementos que apagam nossa assinatura
natural tornou-se fundamental
. Em nossa civilização é proibido cheirar. A cultura judaico-
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [99]
cristã impõe que nos distanciemos, cada vez mais, dos sentidos de proximidade (paladar, tato
e olfato), tudo para negar a existência corpórea.
A renúncia ao instinto parece ter se apoiado principalmente no fato de que os
odores se tornaram algo indesejável como fonte primeva do prazer libidinal no homem
civilizado, por conta da aparente necessidade de intensa limpeza. Dessa maneira, o processo
civilizatório acabou por alterar todo o desenvolvimento libidinal do indivíduo, fazendo com
que as condições para a satisfação dos desejos fossem deslocados, como aponta Freud. Em
alguns casos, “esse processo coincide com o da sublimação (dos fins instintivos), com que
nos achamos familiarizados; noutros, porém, pode diferenciar-se dele.” (1997, p. 52).
A sublimação de um instinto constitui um conjunto de eventos impostos pela
civilização. Esta, de certo modo, assenta-se na renúncia aos instintos, seja através da opressão,
repressão ou qualquer outro meio. Essa sublimação deve-se principalmente ao
desenvolvimento cultural. Por meio dele é que se constituiu a força emancipatória do ser
humano, a qual possibilitou as atividades psíquicas superiores, artísticas, científicas e
ideológicas. Recaímos sobre aquilo que Freud (1997) denominou “frustração cultural”, que
domina grande parte dos relacionamentos sociais entre os seres humanos. Essa parece ser uma
luta enfrentada por todas as civilizações. Porém, é do mesmo autor que advêm algumas
ressalvas para uma situação em que há a necessidade de privação da satisfação de um instinto.
Ocorre que, para ele, isso não se elabora impunemente. Se esse fato não for compensado,
pode gerar sérios distúrbios.
É conveniente perguntar a que se deve o desenvolvimento da civilização. Ainda
muito se trabalha no campo das hipóteses. A formação dos pequenos núcleos denominados
“famílias” deu-se, segundo Freud, a partir do momento em que a satisfação genital não estava
mais sincronizada com os odores expelidos durante o período menstrual da mulher. Todo o
faro sincronizador do encontro foi guardado, anestesiado, processo que ele denominou
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [100]
“recalque do orgânico”. Por causa desse processo, perdemos grande parte da noção da
importância do olfato para ser humano.
A periodicidade orgânica do processo sexual persistiu, é verdade, mas seu
efeito sobre a excitação sexual psíquica foi invertida. Parece mais provável
que essa modificação se tenha vinculado à diminuição dos estímulos
olfativos, através dos quais o processo menstrual produzia efeito sobre a
psique masculina. Seu papel foi assumido pelas excitações visuais, que, em
contraste com os estímulos olfativos intermitentes, conseguiram manter um
efeito permanente. O tabu da menstruação deve-se a essa ‘repressão
orgânica’ (...). (FREUD, 1997, p.53).
Lacan vai mais a fundo na questão do “recalque do orgânico” de que falava Freud:
para aquele psicanalista, o recalcamento social do olfato tornou-se um mecanismo facilitador
do encontro: “A regressão orgânica de seu olfato, no homem, está, para muitos, em acesso à
dimensão do outro.” (LACAN APUD CYRULNIK, 1995, p.20).
Enquanto éramos animais quadrúpedes e vivíamos nos arrastando com o rosto
muito próximo ao chão, o olfato desempenhava um importante meio de contextualização do
homem com o mundo, auxiliando com toda a percepção do entorno, seja para detectar
alimentos ou inimigos. De certa forma, quando pensamos na questão da olfação, do cheirar,
que, para Freud está muito mais próximo da nossa condição animal. Mas que pela ocasião da
obtenção da posição ereta do ser humano, quando este passou a mostrar sua genitália e
distanciou seu nariz do chão, o olhar, devido a essa postura adquirida, predomina como
sentido de preservação e de segurança, pois esse Homo erectus já consegue visualizar e
perceber seu inimigo a uma grande distância, por meio da visão, enquanto que, ainda na
posição de quadrúpede, seu instinto de preservação maior era o olfato. Essa diminuição dos
estímulos olfativos possibilitou a formação da civilização, pois começamos a nos aproximar
mais uns dos outros
13
:
13
Ao afirmar que a aquisição da posição ereta entre os nossos antepassados privilegiou a visão em detrimento do olfato, Freud talvez tenha
ido longe demais em seu determinismo. Acreditamos que nada na cultura morre, tem um fim, mas, em certos momentos, atrofia, retroage, e
em outros desenvolve-se e evolui. Na mesma esteira de pensamento, apoiamo-nos em Boris Cyrulnik, que afirma que é “a consciência do
nosso olfato que está atrofiado.” (1993, p.179).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [101]
O processo fatídico da civilização ter-se-ia assim estabelecido com a adoção
da postura ereta. A partir desse ponto, a cadeia de acontecimentos teria
prosseguido, passando pela desvalorização dos estímulos olfativos e o
isolamento do período menstrual até a época em que os estímulos visuais se
tornaram predominantes e os órgãos genitais ficaram visíveis e, daí, para a
continuidade da excitação sexual, a fundação da família e, assim, para o
limiar da civilização humana. Isso não passa de especulação teórica, mas é
sufucientemente importante para merecer uma averiguação cuidadosa a
respeito das condições de vida que predominam entre os animais
estreitamente relacionados ao homem.. (FREUD, 1997, p. 54).
Quando o homem passa a viver em civilização, dotado de postura ereta, é tomado
por uma imensa necessidade de limpeza, de se livrar das excreções desagradáveis ao sentido.
“(...) a beleza, a limpeza e a ordem ocuparam uma posição especial entre as exigências da
civilização.” (FREUD, 1997, p.47). Os excrementos são valiosos para as crianças, pois, para
elas, são parte do próprio corpo que se separou. À medida que ela vai se revestindo do seu
meio cultural, seus cheiros naturais passam a repugná-la. Por isso, existe a necessidade
extrema de limpar-se. Porém, a repúdia pelo cheirar está estritamente relacionada ao cheiro do
outro. Não se aceita o cheiro do outro, mas dificilmente se tem essa atitude em relação aos
seus próprios odores. Observa Freud, referindo-se a essa questão:
O incentivo à limpeza origina-se num impulso a livrar-se das excreções, que
se tornaram desagradáveis à percepção dos sentidos. Sabemos que, no
quarto das crianças, as coisas são diferentes. Os excrementos não lhes
despertam repugnância. Parecem-lhes valiosos, como se fossem parte de seu
próprio corpo que dele se separou. A partir disso, a educação insiste com
especial energia em apressar o curso do desenvolvimento que se segue e que
tornará as excreções desvalorizadas, repugnantes, odiosas e abomináveis.
Essa inversão de valores dificilmente seria possível se as substâncias
expelidas do corpo não fossem condenadas por seus intensos odores a
partilhar do destino acometido aos estímulos olfativos depois que o homem
adotou a postura ereta. O erotismo anal, portanto, sucumbe em primeiro
lugar à “repressão do orgânico” que preparou o caminho para a civilização.
(FREUD, 1997, p.54).
Segundo esse mesmo autor, um terço do nosso cérebro está consagrado ao circuitos olfativos. Todos esses circuitos funcionam e mantêm
relações com outras zonas do cérebro. Vale ressaltar que essa “zona cerebral” é responsável por toda a regulação das emoções, das cargas
afetivas, circuitos de memória, estimulação endócrina que comanda as glândulas sexuais de tal maneira que os neurologistas a denominam de
cérebro afetivo.
Partindo dos pressupostos culturais, talvez, essa atrofia olfativa se deva, sobretudo, a esse aculturamento que nos tornou mais polidos,
recobrindo-nos com um segunda pele (pele da cultura), as roupas que geraram um ruído na força comunicativa dos odores. “O nossos odores
actuais são fermentados, degradados pelo vestuário, não possuindo qualquer valor estimulante, ao passo que os odores naturais possuem um
grande valor erótico.” .(CYRULNIK, 1993, p.179).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [102]
Complementando esse pensamento, Zurique Plessner afirma, que a libertação do
conjunto olhos-mão deve-se irrefutavelmente à condição ereta. Essa posição, supostamente,
apareceu nos primatas pré-humanos, que, com a retração das florestas dos seus territórios e
com o desenvolvimento das savanas, com grandes regiões de clareiras, foram forçados a uma
adaptação do campo visual e, com isso, também foram levados a uma posição ereta.
(PLESSNER, 1977, p.8).
Com a posição ereta, torna-se cada vez mais necessária a utilização das mãos e
dos olhos. O mesmo autor demonstra que, com essa postura, o Homo eretus desenvolveu
maior capacidade de objetivação, de abstração, pois a audição e a visão tornaram-se sentidos
de distância e, assim, tornaram-se necessárias maiores abstrações:
Na família dos sentidos, o olfato (ele exclui o tato) perdeu seus direitos de
primogenitura. A visão e a audição assumiram o comando. Visão e audição
se tornaram agora verdadeiramente sentidos de distância. A visão, enquanto
percepção que antecede o contato prático com as coisas, se sobrepõe
principalmente ao tato. A visão como apresentação da distância e o tato
como apresentação da proximidade, fenomenologicamente segundo suas
qualidades experienciais e em sua distribuição de papéis para a compreensão
e o conhecimento, são pólos opostos. A necessidade de empregar metáforas
provenientes do visual para tudo que se refere ao conhecimento e a outros
aspectos nessa linha é conhecida. A terminologia filosófica estabelecida
pelos gregos demonstra isso claramente, e com certeza não é uma
decorrência do fato de serem os gregos um povo visual por excelência. As
expressões de conhecimento na língua grega (...) mostram claramente uma
preponderância da esfera visual, que tem suas raízes na coisa. (PLESSNER,
1997, p.9).
Segundo esse psicanalista, o olfato tem sido recalcado pela própria condição do
ser civilizado, como se fosse o mais baixo e repugnante dos sentidos, supérfluo, assim como
pensava Immanuel Kant. Se não o possuíssemos, seríamos poupados de ter sensações
desagradáveis. Como afirma Restrepo, “O odor não permite exterioridade nem distância.
Estamos imbuídos nele como estamos na existência diária acossados por forças que nos
envolvem e comprometem corporalmente, sobre as quais, sem mediação de separação
possível, é imperativo tomar decisões”.(1998, p.33).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [103]
É inegável que, com a adoção da postura ereta e a suplantação do sentido do
olfato, não foi só o erotismo anal que sucumbiu, mas também, como afirma Freud, toda a
sexualidade, uma vez que os odores estão intimamente relacionados à sensorialidade, à
sensualidade e à sexualidade. São claros vetores da sexualidade que podem ser investidos de
afeto, prazer, ira, cólera. Com isso, toda a função sexual fora acompanhada de uma
repugnância que acabara por impedir a satisfação completa, forçando a desviar o objeto
libidinal. E, sem dúvida, o afeto e o prazer podem utilizar o odor como modo de se manifestar
à consciência: “(...) a raiz mais profunda da repressão sexual, que avança juntamente com a
civilização, é a defesa orgânica da nova forma de vida alcançada com o porte ereto do homem
contra a sua primitiva existência animal.” (FREUD, 1997, p.62).
Contudo, existem na Europa povos cujos fortes odores genitais que consideramos
repulsivos são recebidos como estimulantes sexuais. É realmente um foco libidinal que esses
povos recusam a abandonar. Quanto a isso, Boris Cyrulnik registra que “Em certas regiões
melanésias deve-se passar a mão sob a axila do amigo que está de partida e depois levar os
dedos ao nariz, significando assim que conservamos ainda seu traço olfativo.” (1995, p.20).
Em nossa civilização, o olfato é claramente repulsivo. Para Freud, os estímulos
olfativos foram submetidos aos visuais, pois estes conseguiram manter um efeito permanente,
ao passo que aqueles tinham respostas estimulantes durante o período animal. Portanto,
Cyrulnik mostra como se dão, não ao acaso, os encontros:
(...) com um outro homem capaz como eu de inventar um mundo de signos e
convenções lingüísticas, observo em seu corpo os signos sexuais e sociais
que ele lhe terá imprimido, porque vivo num universo mais visual que
olfativo. Depois, interesso-me por suas palavras, que vão apresentar nossos
universos mentais e nossas histórias passadas. Nosso encontro será presente
e impregnado de outros lugares. Para podermos estar juntos, nossos rituais
utilizarão coisas presentes para criar signos, traçando mundos ausentes.
(1995, p.113).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [104]
Esse reconhecimento mais visual que olfativo, que predomina em nossa
civilização, desenvolverá aquilo que Boris Cyrulnik, na obra Sob o signo do afeto, denominou
de “cartaz etológico”:
Os vestuários, os gestos, as mímicas e as decorações do corpo tornam parte
da corte, como um cartaz onde estão inscritas informações respeitantes ao
estilo sexual e à categoria social do cortesão. Esse cartaz etológico do
encontro sexual explica por que razão a escolha do parceiro deve tão pouco
ao acaso, ou melhor, por que razão o acaso do encontro só existe no interior
de uma seleção muito reduzida de parceiros possíveis, o grupo dos elegíveis.
(1989, p.207).
O pensamento desse autor leva a refletir um pouco mais sobre a questão das
relações inter-humanas no mundo civilizado. A aquisição da postura ereta liberta, como
aponta Plessner (1988), o conjunto olho-mão, viabilizando o surgimento daquilo que se
classifica como sentidos de proximidade (paladar e olfato) e sentidos de distância (visão e
audição). Como estes últimos requerem mais abstração, o evento pode ter colaborado para a
manifestação da linguagem. Isso fundamenta, mas não explica. E, a partir do momento em
que o indivíduo passa a viver no mundo da linguagem, os sentidos parecem ser anestesiados.
Essa anestesia é poéticamente trabalhada por Michel Serres em seu livro Os cincos sentidos.:
“O verbo ocupa e anestesia a carne, até escreveram que ele se fazia carne. Nada insensibiliza
mais a carne do que a palavra.” (2001, p.54).
Mais adiante ainda dirá: “O conhecimento eficaz presta homenagem à
linguagem, sua linhagem direta, apaga sua história oblíqua e a mensagem na anestesia do
esquecimento. Com isso perdemos os cinco sentidos.” (2001, p.200). Por fim, ele revela
ainda: “O sentido começa e pára na linguagem. Anestesia, boca paralisada. Poção.” (2001,
p.224).
Talvez tenhamos exigido do Homo sapiens muito mais do que ele pode dar. O
organismo quer viver e perdurar, e isso leva-o “a filtrar, selecionar e organizar o percebido em
função do que é necessário para viver.” (CYRULNIK, 1995, p.17).
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [105]
O que mostra Cyrulnik, sem dúvida, corrobora o pensamento dos autores
mencionados durante essa discussão. É evidente que a partir do momento em que o homem
primitivo adquire a postura ereta, os sentidos predominantes e essenciais para a sua defesa
foram assumidos pela audição e pela visão. Em conseqüência dessas transformações, esse
indivíduo passou a interpretar e abstrair os estímulos recebidos. Ou seja, dá-se aí o ato
propulsor da linguagem. E com o mundo da linguagem, o tempo do encontro e do vínculo
ocorre primeiramente em outra esfera que não a dos sentidos de proximidade, pois para o
indivíduo que cercado por um caos psíquico de informações visuais e auditivas, são essas
imagens e sons que mais chamam a atenção. Desse caos psíquico, retiram-se as informações
que, para ele, sejam importantes. Com essas informações, ele elabora seu meio externo e seu
mundo interior. Afirma Cyrulnik: “Antes de conversarmos, é preciso nos aproximarmos;
antes de trocarmos nossos mundos internos e contarmos nossas histórias, precisamos ver,
saber a quem nos dirigimos, para escolher a parte de nosso mundo interno comunicável ao
outro.” (1995, p.23).
A partir dessa constatação, é preciso repensar um pouco mais seriamente o que
aponta Serres:
Esquecemos depressa demais que o Homo sapiens designa quem reage à
sapidez, quem a aprecia e a procura, quem dá importância ao sentido do
gosto, bicho de sabor, antes de significar homem falante. Ascensão da boca
de ouro em detrimento da boca que saboreia. Além de aceitação da primeira,
escondida em uma língua morta, aceitação da primeira na boca morta: a
sabedoria vem depois do sabor, ela não pode advir sem ele, mas o esquece.
(2001, p.155).
Nesse sentido, não se pode olvidar que “(...) nosso mundo humano é tanto um
mundo de sentidos quanto um mundo dos sentidos, um mundo onde nossos sentidos ganham
sentido, um mundo onde nossa sensorialidade se impregna de história, ela que governa tanto
nossa emoção quanto nossa percepção.” (CYRULNIK, 1995, p.10).
É ainda esse autor quem escreve algo muito instigante:
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [106]
Mas desde que o homem se tornou capaz de história, ele se tornou culpado
de histórias. O passado não morre jamais para um homem que dele faz
relatos (...). À força de narrá-lo, acaba-se dando consistência ao mito que nos
proporciona um sentimento de verdade tão autêntico quanto a percepção de
um objeto. Nossas culturas alucinadas confundem o real com a idéia do real.
Habitamos um mundo inventado por nossas palavras sem suspeitarmos do
poder delas. (1995, p.223).
Sendo assim, é inegável que nossos sentidos estão anestesiados, nas palavras de
Michel Serres (2001). Para Boris Cyrulnik, os sentidos corporais tornaram-se seletivos para
informações que esse caldo caótico do mundo sensório revela.
Talvez, tenhamos nos tornado seletivos demais, adentrando o mundo das palavras,
mundo ausente, que torna presente o objeto por meio da palavra evocada, e, por isso,
tenhamos nos esquecido de que nossos sentidos comungam desse mundo e buscam sobrevida
nele. E é por meio desses sentidos que captamos o mundo, e por meio deles que o mundo se
revela verdadeiramente.
O conhecimento eficaz presta homenagem à linguagem, sua linhagem direta,
apaga sua história oblíqua e a mergulha na anestesia do esquecimento. Com
isso perdemos os cinco sentidos.
Eles voltam na amnésia de uma sabedoria ou de uma cultura perdidas.
(SERRES, 2001, p.200).
A partir do pensamento de Michel Serres, percebemos que a linguagem amortece
e seda os sentidos. Impregnados da razão, que faz prevalecer a falsa idéia de que a linguagem
alcança o efeito de prazer que os sentidos proporcionam ao corpo, os sentidos se entregam à
sociedade que fabricou essa razão.
O verbo triunfante encobre com sua aquisição o que poderia dar perfume ou
sabor e o transubstancia em visto e lido e ouvido, seus canais próprios.
Isto que comes e bebes é o corpo e o sangue do verbo.
Aqui, onde compras, jaz o túmulo do pão, do vinho, do corpo e do sangue,
mortos e ressuscitados em forma de mensagem.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [107]
O verbo proíbe o sentido, sobretudo aqueles em que ele não tem o que fazer.
Triunfante, impõem a proibição, essa organização social da anorexia e do
dessabor.
A língua que mata na boca a língua que saboreia. Mata-a no coletivo, na que
diz entre nós. Isto, que se diz, reduz-se a um preço. Comerás palavras, mas,
com mais freqüência, de agora em diante, o código e a cifra. Portanto, ficarás
muito, e mais ainda, e sempre mais, enfunado deles. Nada é tão aceito como
um código, nada cresce tanto como um número. Engolirás contas. Teu corpo
invadirá o espaço, como o próprio verbo levado pelo vento, como a
sociedade fundada sobre o verbo. (SERRES, 2001, p.189).
Portanto, a linguagem (verbo) permite a abertura da consciência humana a um
mundo de metáforas, evocando um mundo simbolizado que se constrói segundo a história do
indivíduo, comportamento esse muito distante do macrossomático, que somente encontra
segurança no mundo por meio dos seus sentidos, o que demonstra a pouca importância
atribuída pelo ser humano aos sentidos, quando a ele foi dado o dom do verbo.
No homem, a palavra, assim que percebida enquanto sonoridade, evoca, sem
qualquer precisão, uma representação intensamente ouvida, sentida e mesmo
vista. O que significa que num gato ou num mamífero macrossomático não
pode haver contra-senso pela percepção de um indício olfactivo. A menos
que o sistema olfactivo seja alterado, originando, assim, perturbações
diferentes de acordo com a história dos indivíduos, explicando deste modo a
possibilidade de simbolização não partilhada e de loucura. (CYRULNIK,
1996, p. 281-282).
O universo cultural, impregnado pelo mundo civilizado, balizou os sentidos
corporais. O olfato é, por excelência, culturalmente determinado. “(...) No entanto, esse
sentido que nos escapa é o mais incontrolável dos sentidos.” (CYRULNIK, 1995, p.43).
Cyrulnik insiste em mostrar o mundo por meio dos cheiros. Porém, continua-se a
renegá-lo como se ele fosse o mais baixo dos sentidos que o homem civilizado pudesse obter.
Por isso, insiste-se em não lhe dar atenção. “Dos cincos sentidos, este ou estes é que nos
parecem os menos estéticos, o olfato e o paladar.” (SERRES, 2001,p.154).
Realmente, o olfato tornou-se o “anjo caído”. Recebem-se informações por meio
dele, tal como ocorre com os animais inferiores, porém não temos a resposta imediata, como
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [108]
os animais. “Somos conscientes do aroma, mas não reagimos automaticamente de maneiras
específicas, como a maioria dos animais.” (ACKERMAN, 1990, p.61).
É como se toda a idéia freudiana do “recalque do orgânico” tivesse recaído sobre
nós e, como numa fatídica maneira de nos esquecermos de nossa condição próxima de animal,
negamos os cheiros. Por isso, aspergimo-nos grandes quantidades de perfume, geralmente
com estonteantes aromas que, no mínimo, fazem-nos esquecer de nosso passado não muito
distante, apagando nossas imagens endógenas de origem olfativa que nos remetem à nossa
condição primeva, animal, que nada ou muito pouco tem a ver com esse homem racional e
simbólico que somos.
Toda essa explanação sobre o olfato, desde suas raízes mais arcaicas no cérebro
humano até o seu papel naquilo que se denominou de civilização, leva-nos, neste momento,
para uma análise das mídias, mais especificamente, do texto publicitário de perfume.
Explanaremos como o olfato se apresenta no plano da imagem.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [109]
CAPÍTULO IV
A IMAGEM DO CHEIRO: UMA ANÁLISE DA PUBLICIDADE
DE PERFUME
4.1 Das escolhas
Divulgadas entre 1993 e 2004 em revistas brasileiras ditas femininas, em
campanhas que se estendem por meses e têm o estatuto de texto publicitário, as imagens que
analisaremos a seguir constituem um conjunto homogêneo, sobretudo no que se refere à
maneira como é apresentado ao público. Em função desse critério seleção, todas imagens
exploram um único tema: a beleza feminina. Num primeiro olhar sobre elas, vemos como
cenário, ou mesmo como ponto fulgurante do anúncio, um corpo, um rosto, uma silhueta.
Muitas vezes, um fragmento de mulher: uma mão, lábios, um torso, uma cabeleira, mas
sempre reconhecíveis como uma parte que vale pelo todo.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [110]
Sem dúvida, a maneira como esses elementos são figurados, o modo como são
utilizados e dispostos na superfície desses anúncios de perfume, não é neutro. Essas imagens,
portanto, traduzem os papéis convencionais que são atribuídos às mulheres. Trata-se de um
discurso em imagens que, em conjunto, não traz surpresas, mas convida a uma análise, a uma
crítica, a uma denúncia. No entanto, neste momento, não nos interessa tal abordagem de certo
modo até um pouco convencional sobre as mídias. Nossa abordagem partirá de outro
princípio. O que realmente merece ser analisado, neste momento, é como o texto publicitário
de perfume transcodifica a linguagem dos cheiros/odores para o mundo das imagens visuais, e
de que estratégias iconográficas se utilizam para tal efeito.
Na medida em que será analisado um pequeno número de anúncios selecionados a
título de amostragem, deixaremos de fora o que a publicidade afirma a respeito das mulheres,
voltando-nos exclusivamente à compreensão de como a encenação publicitária nos faz olhar
os simulacros que constrói e o que ela nos faz ser ao contemplá-los.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [111]
4.2 O que dizem as imagens?
Nosso compromisso é trazer a teoria que explanamos nos capítulos anteriores e
transportá-la ao mundo das imagens midiáticas, mais especificamente às peças publicitárias
de perfume. Nesse sentido, procuraremos então, a partir desse momento, num olhar
panorâmico sobre a amostra selecionada desses anúncios, que elementos evocativos da teoria
anteriormente exposta elas trazem.
O que salta aos olhos nas imagens publicitárias de perfume é que todas elas nos
remetem a idéia de higienização perfeita, sempre com o conceito de que o perfume limpa e
serve de meio para jogar com a aparência do indivíduo, tendo ainda a capacidade de construir
vínculos com as outras pessoas, de aproximar e de atrair esse outro pelo cheiro que exala
desse corpo ungido. Esse cheiro permite o acesso a outro sem que isso seja um tabu
civilizatório. Em sua grande maioria, os cenários desses anúncios contêm corpos nus
entrelaçados que remetem à idéia de relação mais íntima, de proximidade e contato físico de
um corpo com o outro, seja do mesmo sexo, o que não é uma figura muito recorrente nesse
universo dos cheiros, ou do sexo oposto. Esta é a proposta primeira dessas peças: a relação
sexual, a sensualidade por si só. Observando a presença ou não da aliança, símbolo de amor
mais estável, vê-se que essa relação pode ser fugaz ou duradoura. Ainda perseguindo essa
idéia do corpo limpo e purificado, a publicidade de perfume apresenta uma oposição
semântica básica: a relação caos/cosmos, reforçando a idéia de que o perfume retira o corpo
do caos da vida mundana impura e suja para transportá-lo diretamente para o mundo do
cosmos, relação que estabelecemos no capítulo III dessa dissertação no item “olfato e sexo”,
em que explicamos que esse termo do mundo estético se traduz como ‘ajustado’, ‘apropriado’,
‘bem arranjado’, de forma que se torna mais importante a atenção particular do que universal.
É sempre em torno dessa perspectiva que as imagens publicitárias giram.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [112]
Dois anúncios servem como exemplo da relação caos/cosmos. Primeiro, um da
BLV-Bvlagari que nos remete à metáfora de que o perfume BLV é uma jóia italiana
contemporânea, idéia retirada do slogan da marca: “Contemporary italian jewellers”.
Portanto, quem utiliza o perfume/a marca torna-se essa jóia, simbolizada também pelo colar
que tem as mesmas cores do vidro do perfume.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [113]
O outro exemplo é a peça publicitária de Carolina Herrera em que a modelo se
encontra num lugar bucólico, incomum, mas que remete aos templos e castelos dos contos
infantis. Isso é destacado pelo slogan do anúncio: “O perfume que veste seus sonhos”. Joga-se
com o campo do onírico, fazendo crer que o perfume transporta quem o usa para o mundo dos
sonhos, tornando-o real. A temática caos/kosmos se coloca nesse anúncio pela composição do
cenário, em que tudo é simétrico para ser fotografado.
Aproveitando a temática do amor, analisaremos dois anúncios muito díspares do
texto publicitário de perfume que explora o erotismo. Podemos observar no anúncio da
Fórum 40 que o produto que exala do frasco do perfume não é senão algo que envolve os
corpos, por um instante contagiados pela sensualidade que o cheiro do perfume evoca. De
outro lado, ainda na mesma temática de amores, sensualidade e erotismo, a peça publicitária
da Eternity – Calvin Klein retira o perfume da esfera dos amores passageiros, jogando com a
própria palavra que dá nome ao perfume: eternity. O cenário é um casal contagiado pelo
amor, mas que não é aquele de uma noite só e nada mais, mas aquele que se une para
constituir uma família, algo que sugere, de uma certa forma, também uma durabilidade maior
ou uma eternidade.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [114]
Esse ideal de corpo limpo e purificado pelo odores é bem explorado por esses
textos publicitários, que ostentam corpos sem manchas, marcas ou cicatrizes. Pode-se dizer
sem história, já que tudo que se põe sobre o corpo e no corpo compõe uma história. A idéia de
pureza é obtida não apenas pela ausência de marcas nos corpos, mas também pelo excesso de
luz e claridade nos cenários, algo que tem o poder de penetrar nas entranhas e purificá-las,
realizando uma higiene profunda que nada ou muito pouco tem a ver com o corpo biocultural.
É inegável que o corpo utilizado pela publicidade serve de suporte semântico para
sua própria linguagem, estabelecendo a comunicação por meio de representações do corpo
idealizado sempre portadora de uma excelência vital, por uma certa cultura. A publicidade,
portanto, trabalha com um corpo específico, que difere totalmente do corpo humano vivo, que
não tem como escapar da ação do tempo-espaço, e, por conseguinte, vive de seu próprio
desgaste.
Dessa forma, o corpo da publicidade representa um modelo que o corpo
biocultural deve desejar para receber o reconhecimento social. Esse corpo que deflagramos no
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [115]
texto publicitário brasileiro, com o qual esta pesquisa trabalha, parece estar congelado no
melhor, guardando para si somente as qualidades consideradas de excelência: a vitalidade da
infância, a força muscular da juventude, a maturidade da idade adulta, a sabedoria da velhice.
Um corpo verdadeiramente mítico que nada lembra as ameaças que a sombra da morte
imprimem sobre as células vivas. É um corpo que parece negar a segunda lei da
termodinâmica: não transpira, não tem uma mecha de cabelo fora do lugar. Isso é, sem
dúvida, algo que está muito mais conectado ao mundo do cosmos, como afirma Hillman, do
que do caos.
Essas peças publicitárias em sua maioria revelam o perfume como mídia. Em
alguns momentos, resgata o pensamento de Harry Pross sobre a mídia primária, quando se
põe no cenário publicitário com único elemento da composição, auto-referindo-se e valendo-
se da força discursiva que a marca do produto, reforçada pela assinatura do anunciante,
emprestam a esse cheiro.
Nessa mesma corrente de pensamento, entendemos que essas imagens levantam a
hipótese de que o perfume realmente assume no imaginário das pessoas a idéia de uma
segunda pele ou roupa, algo que reveste esse corpo. Muito mais do que revestir, parece
investir, impregnar e amalgamar essa pele através dos poros, querendo alterar até o corpo
biológico. Esse pensamento foi apresentado no capítulo II desta dissertação.
Os cenários expostos nesses textos publicitários contam muito a respeito da
transcodificação do mundo dos aromas/perfumes para o mundo das imagens. Essas imagens
asseguram a idéia tão recorrente de caos/cosmos, os atores, modelos que se apresentam nesses
espaços como deuses, quase sempre captados em repouso. Empregam-se como imagem de
fundo: prédios, casas e outros elementos que remetem ao mundo urbano das cidades.
Naturalmente, trata-se de uma cidade ideal, onde há apenas festa e amores. É preciso esquecer
que tudo que lembre trabalho. Os corpos que estão ali são imagens, cuja função é representar
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [116]
o ideal do divino, daí emergindo um rosto, um corpo ideal liberto das impropriedades da
esfera do mundano.
Tudo nesse espaço parece calado, silencioso, ou seja, misterioso, cheio do segredo
profundo que se atribui a toda a beleza que não fala. Raras vezes isso acontece, mas nada mais
simples do que pela via do simulacro.
Reduzindo tudo a um rosto, um ombro, cabelos, corpos esquartejados, cujos
pedaços expressam a virtude e irrealidade de seus sexos devido à dificuldade de atribuir a
esses pedaços uma casa genérica segura. Esses cenários publicitários fazem crer que aquilo
que o leitor/consumidor contempla passivamente é realidade, é a cidade em que vive. Assim,
a cidade é na verdade mito, sonho e maravilha. É uma audácia não colocar esses corpos no
alto do pedestal tal como deuses embonecados, lânguidos, angelicais ou virilizados. A
publicidade não representa, mas teatraliza em tal grau que se torna uma farsa publicamente
aceita.
Para exemplificar tal façanha publicitária sobre o corpo, tomamos o anúncio da
Opium-Yves Saint Laurent. Sabemos que existem inúmeras peças publicitárias que remetem a
essa temática, mas esta apresenta um corpo perfeito que pouco ou nada lembra esse corpo
biocultural que insiste em suar, cheirar, sujar. Ao colocar um corpo em repouso, como se se
negasse/recusasse ao mundo do trabalho, entrega-se ao mundo dos prazeres, torna-se um
exemplo fulgurante.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [117]
Retomando um pouco da história do perfume, no capítulo I desta dissertação no
item do “Século XIX até os dias atuais”, apontamos o cruzamento da história da moda com a
história do perfume, mais precisamente o século XX, quando grandes estilistas começaram a
realizar a associação entre a moda e a perfumaria. Ou seja, as marcas consagradas das altas
costuras transferiram para o mundo dos perfumes todo o requinte e a elegância que suas
marcas já inspiravam no imaginário do consumidor. Em alguns anúncios em que a marca do
perfume está associada também a um grande nome do mundo da moda e da alta costura, as
modelos são colocadas nos cenários publicitários vestindo roupas que são verdadeiras obras
de arte. A composição desses cenários cria uma relação entre aspergir um “bom” perfume e
vestir uma roupa de alta costura. Veja-se, como exemplo, os seguintes anúncios da Opium-
Yves Saint Laurent. Observa-se que o vestido da modelo compõe numa semelhança de cores
com o frasco do perfume Opium. A mesma metáfora ocorre nos anúncios da Organza
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [118]
Indécence-Givenchy e da So Pretty-Cartier, estabelecendo uma relação clara entre perfume e
roupa, como se aquele tivesse a força metafórica de vestir/recobrir o corpo.
A transcodificação da linguagem do cheiro para o mundo das imagens parece
querer afirmar que o olhar se sobrepõe aos outros sentidos corporais. Contudo, no caminho
oposto dessa escalada dos sentidos, o anúncio da Moschino-Couture aponta que o mais
importante nesse mundo dos perfumes não é a aparência ou o que se vê. Tanto é assim que os
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [119]
olhos estão cobertos pelos cabelos, deixando o nariz e a boca em destaque, mostrando ao
leitor que o mais importante do mundo do perfume advém das experiências do olfato e do
paladar, o que, por sua vez, abre uma brecha para pensar que esses dois sentidos, olfação e
gustação, confundem-se e complementam-se em vários momentos, como foi discutido no
capítulo III desta dissertação.
A modelo do anúncio Inspiration-Charles Jourdan posa de olhos fechados,
explorando olfato e gustação como os sentidos mais importantes para compreender o mundo
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [120]
dos perfumes/cheiros. E a cobra que tem grande semelhança ao vidro do perfume Inspiration-
Charles Jourdan, toma a face da modelo, encobrindo todo nariz como se somente a ela
importasse a sensação de farejar a essência do perfume. Numa tentativa de capturar também
algo da esfera da gustação, a modelo aparece com a boca entreaberta, como se, num golpe de
inspiração, pudesse sentir o gosto daquele perfume e contagiar-se com os odores através dos
sentidos de proximidade.
Unindo os anúncios da Moschino-Couture e da Inspiration-Charles Jourdan ao da
Rubylips-Salvador Dalí, vêem-se, instigantemente, três modelos. Duas encontram-se em
estado lânguido, como se estivessem tomadas de uma forte emoção. Já a terceira, do anúncio
da Moschino, apresenta-se frontalmente, com total despudor por parecer nua e cobrir somente
olhos, como se tudo ali naquele mundo fosse prazer. O que chama atenção são os lábios
vermelhos das modelos, que são verdadeiros pontos de fulga do olhar do leitor, como se o
resto dos elementos dos cenários fossem secundários. O que se almeja com esse anúncio é
transportar o leitor direto para o mundo dos prazeres do contato e das emoções, pura evocação
da proximidade. Não se trata de um prazer como outro qualquer, mas de um prazer sublimado
e bem afastado, pelo menos no imaginário, dos odores da atração animal.
As questões da aproximação e do vestir o corpo podem ser encontradas nos
anúncios da Eternity Moment-Calvin Klein, em que a mulher quase nua se deixa envolver
pelos braços do homem completamente vestido no modelo ternário. O perfume serve aqui de
metáfora para algo que veste e aproxima os indivíduos. O slogan do anúncio diz: “Just one
moment can change everything” (Um só momento pode mudar tudo). No layout da peça, lê-se
a palavra “Introducing”, que conecta a frase para a marca do perfume. Portanto, um momento
pode mudar tudo, introduzindo o perfume Eternity, como se este tivesse o poder de mudar os
rumos da vida amorosa de uma pessoa.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [121]
4.3 Imagem: superfície refinada
As imagens fixas são por natureza a construção por meio da redução do mundo do
sensível a apenas duas de suas dimensões. A fotografia se constitui pelo simples arranjo de
formas e superfícies de sombras, de luzes e de cores. Ela é efetivamente capaz ainda, se
necessário, de aplanar as anatomias e cristalizar as posturas, bem como de figurar qualquer
coisa, graças ao mínimo de refinamento, que pertença à ordem do inapreensível e do
instantâneo. A imagem ganha tanta expressão que imediatamente faz “viver” e “falar”; o
corpo e o olhar fixados no papel dão a impressão de se animar e se tornar diante de nós algo
além de morfologias.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [122]
Passamos da superfície do visível à do sensível, da superfície do papel à textura
da pele, da “representação” à “presença”, assim como da abstração esquemática ao semblante
vivo. Muitas vezes é o olhar (aquele que a imagem cria) que é conjugado a outros elementos
cenográficos, produzindo a idéia de um simulacro de uma presença.
Observando essa seqüência de anúncios em que a modelo se encontra de frente,
encarando o leitor, observa-se que a capacidade simuladora das imagens faz crer, pela “força
emotiva” desses olhares, que ali há um corpo e que em sua face simulacra parece querer
pulsar uma vida real. A imagem de um olhar intimidativo encara o observador, convidando-o
a entrar no mundo mágico da publicidade, no qual tudo parece amor, perfeição e pulsação em
formas simuladas.
A composição dos olhares entreabertos com faces vívidas e olhares pungentes
convidam o leitor a adentrar ao universo dos cheiros, e a uma comunicação de maior
proximidade. A proposta fica mais evidente no anúncio da Hugo Boss, em que a modelo se
encontra totalmente tomada nos braços de uma pessoa do sexo oposto.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [123]
Tomando o cenário todo do anúncio, a cor vermelha, que é também a cor do
frasco do perfume, parece envolver os dois modelos. O fato nos leva a pensar que o perfume
está a serviço da aproximação do envolvimento dos corpos. Essa mesma proposta é
apresentada no anúncio do Dolce & Gabbana light blue, porém em menor intensidade de
conotação de vínculo amoroso pela ausência da figura de um outro personagem. Talvez
possamos deduzir que esse outro ausente seja o próprio leitor do anúncio.
Vale ressaltar que o que nos credencia a ler tais imagens assim é a presença da luz
de mesma cor do frasco dos perfume vermelho e azul, respectivamente, referindo-se ao Hugo
Boss e ao Dolce & Gabbana light blue. No anúncio da Calvin Klein, a cor sobre o corpo da
modelo é pálida, uma metáfora para o perfume que reveste. Mas, pela ausência de qualquer
elemento concreto que remeta ao perfume propriamente dito, permanecemos no campo das
hipóteses no que se refere a esse anúncio.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [124]
4.4 Metonímia: uma parte que fala pelo todo
Tomando pelo espantoso número de peças publicitárias que recorrem à estratégia
de utilizar uma parte do corpo para representá-lo como um todo, atentamo-nos para essas
“imagens fragmentadas”. O que se observa na maioria delas é um pescoço que se expõe e se
oferece ao leitor para ser possuído e devorado por esse outro que, atraído pelo “cartaz
etológico” de que fala Cyrulnik, ou o “mapa da ternura” de Michel Serres, no capítulo III, no
item olfato e sexo. Não se pode esquecer de que o perfume compõe um dos elementos
atrativos para o outro. Assim como a região do pescoço se oferece ao outro como zona de
acesso, ao se aproximar do pescoço, ao cheirá-lo, estamos de certa forma dominando o corpo
desse outro. Nesse sentido, pode-se dizer que o pescoço é uma zona erógena do corpo. As
imagens oferecem uma pontuação interessante: especialistas em perfume afirmam que se deve
aplicar o produto no pescoço, pois seu aroma tem maior tempo de permanência quando
aplicado em pontos onde a circulação sangüínea é mais intensa, como umbigo, nuca ou atrás
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [125]
dos joelhos. Se voltarmos uma atenção especial ao universo da cultura, mais especificamente
ao mundo tropical, essas imagens que exploram o pescoço também reforçam um fetiche, pois,
nesses países não se costuma recobrir essa região. É realmente uma zona do corpo que se
expõe. Quando se transporta a análise novamente para o mundo das imagens publicitárias que
nos oferecem corpos cortados, nota-se que, de fato, geralmente se vê um busto em que o
pescoço está acessível. Quando as vemos, logo nos vem à mente um corpo totalmente nu e
pronto para vincular-se ao outro. Tal constatação pode ser observada no anúncio da Carolina
Herrera-Flore, em que a mulher é fotografada de perfil, com o rosto virado e acentuando a
região do pescoço para o leitor do anúncio. Essa idéia é reforçada pela posição das mãos, que
apontam para o pescoço.
Ainda devemos ater ao cabelo amarrado em forma de coque. O que mais salta ao
olhar do leitor é a de alguém que está se oferecendo completamente. Parece dizer a esse leitor:
“Venha e fareje-me. Sinta meu aroma.” Essa mesma idéia se repete nos anúncios da Dolce &
Gabbana. Porém, nessas duas peças publicitárias, o corpo aparece quase que em plano
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [126]
completo na imagem e um pouco mais recoberto por roupas, que de certa forma também são
evocativas de uma sensualidade, cumprindo a promessa de permitir que o corpo se aproxime,
cheire e se envolva completamente.
Na mesma sintonia temática se apresenta o anúncio do Narciso Rodriguez. Nessa
peça, a modelo oferece o pescoço para o leitor cheirar. No entanto, ela não parece
dissimulada. Seu olhar, voltado para a frente, parece encarar o leitor e perguntar se ele é
capaz de tomá-la nos braços. É diferente do anúncio da Dolce & Gabbana, em que a modelo,
embora se encontre de frente, tem o olhar perdido no horizonte, remetendo a uma idéia de
sensualidade e prazer imediato. O contraste de luz e sombra também revela muito, na medida
em que a parte iluminada é a mesma em que se encontra o frasco do perfume, o que faz alusão
a algo transcendental, que ilumina e reveste o corpo e o torna mais atraente.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [127]
Numa proposta um pouco menos ousada, em que a modelo não parece se oferecer
ao leitor, está o anúncio da Flower by Kenzo. O corte que desconfigura a face da modelo e a
torna irreconhecível só permite ao leitor desconfiar que ela seja uma mulher tomada por uma
sensação de plena segurança, que caminha livremente em um lugar qualquer, totalmente
limpa e fresca. Tal idéia é traduzida pelo movimento dos fios de cabelo e pela blusa branca
que forma um contraste com a pele, igualmente limpa, clara, sem marcas e manchas.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [128]
Já o anúncio da Dior-J’adore parece propor que esse corpo envolvido em
aromas/perfumes e investido de um poder de sedução que o torna objeto de desejo atrai o
outro para um envolvimento amoroso. Os braços que o envolvem revelam-nos a capacidade
de aconchego e de carinho que ocorpo oferece quando aspergido pelo perfume. O olhar
frontal e entreaberto sugere uma mulher que precisa de carinho e atenção. A peça que envolve
o pescoço da modelo, dourada como o frasco do perfume e todo o cenário desta peça, chama
ainda mais atenção para a idéia do perfume como algo que envolve que estabelece vínculos e,
portanto, aproxima.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [129]
4.5 O corpo reconhecido
Retomemos a idéia de que o perfume recobre um corpo como se fosse uma roupa
que o outro reconhece como “boa”, “bonita”, “cara”, “barata” etc. Isto pode ser observado no
anúncio do Carolina Herrera 212, em que os corpos presentes no plano da imagem
encontram-se nus, em posição recostada, como se se entregassem um ao outro para o ato
sexual. Tem-se a impressão de que o que torna esses dois corpos atraentes não é outra coisa
senão o perfume que os envolve. A idéia de reconhecimento não só pelo perfume que utiliza,
mas também por meio do cenário de fundo do anúncio que se compõe de uma cidade,
provavelmente uma grande metrópole, a julgar pelo estilo das construções. Reconhecido
também pelo outro que os observam, tanto os habitantes que os vêem em um plano interno
como o próprio leitor, externo a esse plano. Atendo-se ainda à questão do plano, os corpos
num plano mais elevado da cidade levam-nos a pensar, mais uma vez, que o perfume os retira
do mundo do caos urbano, para transferi-los ao mundo do cosmo, mais próximo do céu.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [130]
A mesma interpretação pode ser dada à peça publicitária da Thierry Mugler-
Angel, em que a modelo também parece ter sido retirada do plano mundano, da cidade grande,
para adentrar o mundo do cosmo, da perfeição. Seu corpo está revestido de uma roupa com
uma cauda enorme, que a torna uma estrela e reproduz frasco do próprio perfume.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [131]
4.6 A civilização do olfato
Como vimos no capítulo III desta dissertação, certos odores são empregados por
alguns animais, entre os quais o Homo sapiens, para atrair o parceiro sexual. Na medida em
que se substituem os odores naturais do corpo por outros artificiais, fica implícita a idéia de
que aqueles são indesejáveis, e exalá-los pode levar um indivíduo a ser repelido. A fragrância
possivelmente artificial do perfume faz seu portador cheirar a frutos cítricos, entre outras
substâncias. É a esse olor que se atribui a eficácia da atração erótica. O que ocorre no discurso
desse anúncio da Dolce & Gabbana é a naturalização do artifício, um dos mecanismos mais
eficientes da publicidade: se você consumir “isso” se tornará “isso” que anunciamos, ou seja,
mais atraente.
Numa perspectiva de análise mais freudiana, traremos à tona todo o
desenvolvimento exposto no capítulo III, no item “Olfato e civilização”. Ali, tratamos
especificamente do mal-estar da civilização ante certos odores corporais que devem ser
“civilizados” pela supremacia perfumada da cultura, pois os odores naturais do corpo podem
nos fazer regredir à mesma condição dos homens primitivos, que eram atraídos pelos fortes
odores emanados das partes baixas das mulheres, fazendo com que esse “ser primitivo”
agarrasse sua parceira por trás. Nesse período, a ativação do prazer concentrava-se mais no
nariz do que no olhar. Em outras palavras, a esse homem primitivo era negado “ver” o prazer
nos olhos do outro, diferentemente do que é considerado erótico atualmente.
Analisando o anúncio propriamente, seguimos o percurso do olhar (de cima para
baixo e da esquerda para a direita), e interpretamos que esse homem civilizado é atraído
primeiramente pelo cheiro que exala do pescoço, uma das zonas do corpo que geralmente se
encontram recobertas pelo perfume. Segundo a análise de Freud, esse homem tornou-se
atraído não mais pelo cheiro natural, mas pelo cheiro artificial e pela “força” erótica e sensual
do corpo feminino. Tanto isso é verdade que as zonas de tabu para o homem civilizado, que
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [132]
são as partes baixas e também, muitas vezes, os seios, encontram-se devidamente recobertass
e inacessíveis. Esse tabu também pode ser bem observado quando nos atemos a imagem do
anúncio em que os corpos do casal somente se aproximam por completo, havendo realmente o
contato do quadril para cima. As partes baixas não se encontram, sinalizando que o sexo
precisa ser suavizado, domesticado, de maneira a desfazer-se da concepção original e recusar
o chamamento animal, que é totalmente olfativo. A partir da leitura desse anúncio,
compreende-se que primeiramente é preciso curvar-se ao mundo dos perfumes civilizados,
artificialmente construídos, para depois dirigir-se às partes baixas, que remetem ao seu lado
mais primitivo. Essa idéia de “curvar-se ao mundo dos perfumes civilizados” pode ser
entendida, na cena, pelo contato direto da face do modelo sobre o pescoço da mulher e,
metaforicamente, pelos vidros de perfume à direita na parte de baixo do anúncio, em que eles
aparecem totalmente próximos, tocando-se de corpo inteiro. Ou seja, na medida em que se
curva aos odores culturais pode se aproximar do outro.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [133]
4.7 O duplo
A questão do duplo de Morin, apresentada no capítulo II, no item Corpo e
perfume: perfume como mídia, também está presente no anúncio da True Love-Elizabeth
Arden. O corpo e cheiro estão metaforicamente sinalizados pelas rosas que circundam o vidro
de perfume e pelas alianças que se entrecruzam na tampa da embalagem, indicando que o
produto é capaz de unir e atrair as pessoas. Como observamos também no capítulo I, que se
refere à história do perfume, a maioria das fragrâncias equivale a uma flor.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [134]
Nesse sentido, pode-se dizer que o perfume exalado pelas rosas nesse cenário
publicitário remete a dois corpos atraídos um pelo outro.
No campo do verbal, o duplo se faz presente no anúncio do perfume Burberry:
“When we’re apart, I still feel your touch” (Mesmo de longe, sinto seu toque.). Diz-se
textualmente que o perfume/cheiro da amada é de tal forma evocativo de sua presença que,
mesmo na ausência corpórea dela, seu toque ainda pode ser sentido. Esse toque, que vem por
meio do perfume e do ar (portanto, do duplo), torna presente o corpo ausente.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [135]
Outra peça publicitária também remete à idéia do duplo. Desta vez, porém, é
evocada por meio de um objeto qualquer: um lenço impregnado do perfume da pessoa amada
que a torna ainda mais saudosa. Tal como verificamos no capítulo III, nos itens Comunicação
olfativa e Por uma arqueologia olfativa, observa-se primeiramente que há uma relação entre o
cheiro e o sentimento. Ou seja, um determinado aroma pode ser associado a uma perda, a um
amor, ou ainda servir de vínculo social. Cada um de nós pode reconhecer o filho, a mãe ou a
pessoa amada pelo cheiro. Nesse sentido, a percepção do cheiro dependerá tanto da sensação
que ele provoca como da emoção que resgata.
Na imagem do anúncio a seguir, a atriz italiana Mônica Belucci aparece triste,
cabisbaixa, como se sentisse a ausência de uma pessoa amada cuja reminiscência olfativa lhe
provoca uma emoção forte. Há ainda a emoção e a explosão tradicionalmente associadas aos
italianos, que seriam mais sensíveis que os outros povos do mundo.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [136]
De maneira geral, podemos afirmar que as imagens publicitárias de perfume, cuja
finalidade última é vender o produto, cumpre seu papel na medida em que elabora em seu
plano imagético um discurso que transporta da sensualidade e do erotismo, que representam o
mundo do caos, para o mundo do kosmos, da beleza, do sexo sublimado, muito distante da
idéia animal. Outro tema abordado é a emoção, sempre vinculada à idéia de perfume/cheiro
capaz de evocar uma emoção ou despertar uma sensação. Jogando com a efemeridade do
perfume, com o modo como ele se dissipa rapidamente, as relações amorosas encenadas no
plano das imagens são passageiras. No entanto, a publicidade também demonstra que os
perfumes não despertam só os amores fugazes, mas também os amores eternos ou duradouros,
exibindo mãos com alianças ou até mesmo cenas do cotidiano de uma família comum feliz. A
relação do perfume com a roupa, com algo que recobre e que veste, está presente na maioria
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [137]
dos anúncios apresentados, justificando a questão da necessidade do perfume como objeto que
torna a outra pessoa “bonita” e “reconhecida” para quem a observa.
A maioria dos anúncios que compuseram essa amostragem tinha em seu
enquadramento um corpo que, embora não tenha nenhuma referência real, essas imagens são
formadas por pequeninos grânulos que devem ser desejados, tocados e observados pelos
leitores. Portanto, podemos lançar a hipótese de que a passagem da linguagem dos
cheiros/perfume para o plano das imagens dá-se por meio da exposição de corpos-imagens
que evocam o desejo do leitor de tocá-la. À medida que esse desejo simbólico se constrói,
surge a falsa idéia de poder sentir o cheiro do perfume, tal como numa fantosmia, que é um
distúrbio do olfato em que o indivíduo tem a percepção de um odor que não existe.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [138]
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Da visão saturada ao olfato esquecido
O mundo da visão saturada é o mundo da visibilidade exacerbada, em que há o
nítido predomínio da visão. A visão é um sentido de distância que, ao contrário dos sentidos
de proximidade (olfato, tato e paladar), não requer a presença, possibilitando sem grandes
déficits a substituição pelas imagens, enquanto os demais sentidos exigem sempre a presença
e a corporeidade. À medida que das imagens visuais são mais valorizadas, somente assume
status de valor aquilo que se pode ver. Esse fenômeno gera um desequilíbrio comunicacional
dos sentidos, próprio do tempo da tecnologização dos discursos e, nesse sentido, percebe-se,
um empobrecimento da comunicação, pois o equilíbrio comunicacional do homem requer
uma certa presença distribuída de distância e proximidade, uma vez que a visão prepara os
corpos para a proximidade e os sentidos de proximidade preparam esses corpos para a
afetividade.
A era da visibilidade fez com que tudo e todos se transformassem em imagens.
Em conseqüência, acabamos por inverter o vetor da interação humana. A visão satisfaz-se
com a sua própria criação, as imagens visuais. A partir dessa inversão, em que distância se
sobrepõe à proximidade, os vínculos comunicativos entram em crise também, pois, quando
abandonamos nossos sentidos de proximidade, a comunicação interpessoal, fraternal, fica em
crise. São esses os dispositivos responsáveis pelo equilíbrio das tensões e conflitos pessoais
que adormecem e são suprimidos paulatinamente pelas relações escravizadoras da era da
visibilidade. Não temos nos dado conta do ambiente comunicativo ao qual estamos sendo
conduzidos: uma era de violência não somente física, mas também simbólica. É a violência
bruta prevalecendo para que haja um contato físico entre os corpos.
Caminhamos para um ambiente comunicativo desfavorável ao abdicar dos
sentidos corporais de proximidade e gerar horizontes comunicativos obscuros devido ao
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [139]
excesso de luzes de holofotes que nos conduzem a um falso presente, sem corporeidade, sem
presença. É o corpo transformado em efígie.
Vivemos a era dos superlativos e das megalomanias, daquilo que Harry Pross
(1987) chama de “verticalismo”. Como afirma Baitello: “A obsessão da vertical transformada
em vida e da vida transformada em vertical impõe a cada um de nós a luta permanente em
direção ao mais alto.” (2005, p. 03).
Voltando-nos ao mais alto, buscamos o nada, o vazio, o inóspito, o espaço
inabitável, um local inatingível, geralmente reservado aos deuses, seres celestiais, imateriais.
Portanto, sem corpo e sem vida (imortais). A transformação da vida em uma linha vertical tem
provocado enormes efeitos. Segundo Baitello (2005), o primeiro efeito refere-se à demolição
da corporeidade e dos espaços que (a) abrigam, ou seja, a destruição da realidade
tridimensional por meio da transformação dos corpos em traços verticais abstratos. O segundo
é a perda dos vínculos com o indivíduo ao lado, pois os vínculos que constroem a natureza
humana estabelecem-se na horizontal. Isso mostra que o ser humano abdicou da sua
capacidade de se comunicar, inaugurando uma escalada rumo à (in)comunicação.
A verticalização da vida leva o ser humano à perda das três dimensões do seu
espaço de comunicação. Assim, entende Vilém Flusser que essa escalada da abstração, que
nas mais remotas origens da espécie humana, bem como de outras espécies animais, havia
uma comunicação com o corpo, seus gestos, seus sons, seus odores, seus movimentos:
tratava-se de uma comunicação tridimensional. Ao passar a utilizar objetos como suporte
sobre os quais deixava seus sinais, o homem abriu-se para um mundo das imagens, em que
ocorre uma comunicação bidimensional. Algumas dessas imagens transformaram-se em
pictograma, depois em ideograma, e por fim em letra, inaugurando a escrita, o que se
denominou de comunicação unidimensional. E, por fim, com essa escalada, tem-se o
desenvolvimento das tecno-imagens. Alcançamos a comunicação nulidimensional, uma vez
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [140]
que essas imagens técnicas, produzidas por aparelhos eletrônicos, são fórmulas abstratas e
algorítmicas, um número (FLUSSER, 2002).
Ao concordar com Flusser quanto à existência de uma crescente perda das
dimensões, atamos o pensamento desse pesquisador ao de Kamper (2003), que aponta como
grande sacrificado nessa escalada o espaço tridimensional do corpo, pois “em seu lugar
entram as imagens bidimensionais, a escrita unidimensional e as tecno-imagens, virtualidades
nulodimensionais” (BAITELLO, 2003, p.81).
Nesse jogo de abstração no qual se insere, esse corpo tridimensional foi
transformado em imagem, revestindo-se daquilo que Kamper (2003) denominou “armadura
de imagem”, ou seja, uma verdadeira sobreposição de imagens sobre imagens do corpo. A
cultura das imagens (transformação de toda a natureza tridimensional em planos e superfícies
imagéticas) abre a possibilidade para uma crise da visibilidade, pois a exacerbação da
exposição agrega às imagens um desvalor, já que, como entende Baitello (2004), não se trata
de uma crise das imagens, mas de uma rarefação de sua capacidade de apelo.
Para que possamos compreender a crise da visibilidade do nosso tempo,
primeiramente precisamos entender que, para a nossa sociedade, já não há uma diferença
entre o corpo do homem e a sua própria concretude. Parece-nos particularmente instigante o
pensamento de Kamper, ao indagar a respeito desse fenômeno. Dessa forma, ao abrir mão
daquilo que é concreto, transformamos nossos corpos em imagens, “des/encarnamos” em uma
cadeia de imagem e simulação que nada tem a ver com a capacidade simbólica do homem,
mas com os modismos do mercado. Esse desencadeamento de imagem revela a obsessão da
nossa sociedade pelo o corpo, o que nos faz pensar que faltam situações que solicitem ou
estimulem a participação direta do corpo e que o convidem a experimentar sua concretude
espaço-temporal.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [141]
Apóia-nos o psicólogo J. Hillmam (1993, p.40), que afirma: “Tudo nos olhos e na
cabeça. O sentido corporal de orientação está perdido.” Receamos, então, que esse processo
de abrir-se e transformar o mundo em imagem seja o próprio corpo e seus sentidos
proprioceptivos (o sentido do corpo para a percepção de si mesmo) que são atingidos.
Portanto, “quanto mais imagem, menos visibilidade, e quanto mais visão, menos
propriocepção, sentido por excelência do aqui e agora” (BAITELLO, 2000, p.81).
Baitello nos convida a pensar que, em nosso tempo, no qual perdura a cultura do
olhar, das imagens visuais, não perdemos lentamentema sensação do próprio corpo, do tempo
e do espaço habitado pelo nosso eu e, assim, anestesiando nossos sentidos corporais?
Todo nosso encadeamento reflexivo, exposto neste capítulo, é resultado do
diálogo com autores de diversas áreas que parecem apontar para uma importante deflagração
epistemológica, a perda dos sentidos, do distanciamento do corpo, da privação de experiências
sensoriais que sofremos em nossa sociedade tecnológica.
Se nos esquecemos dos sentidos de proximidade, esquecemo-nos também do
nosso corpo. O corpo precisa do tempo e do espaço, pois é por meio dessas noções que ele
dialoga com o mundo. O corpo sente e tem prazeres e, muitas vezes, muito mais desprazeres,
principalmente com os sentidos de proximidade. A era das imagens, ao contrário, não nos
proporciona essas sensações, uma vez que uma imagem não tem cheiro, nem sabor, nem pode
ser sentida pelo tato. Então, questionamos: se a visão predomina sobre os outros sentidos, não
estaríamos deflagrando um corpo que agoniza por não ter mais o prazer e, por fim, também
ocorreria um “esmaecimento do afeto”
14
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Apropriamo-nos do termo “esmaecimento do afeto” empregado por Fredric Jameson (2004), como a terceira característica que diferencia
a passagem da alta modernidade para a pós-modernidade. Emprega-se esse conceito não no sentido que todos os afetos, todo sentimento ou
emoção, toda a subjetividade tenha desaparecido na pós-modernidade. Ocorre a transformação dos objetos em mercadorias, bem como a
transformação das figuras humanas, que se transformam em mercadoria e se transformam na própria imagem. O esmaecimento do afeto é “o
fim do ego burguês, ou da mônada, sem dúvida, traz consigo o fim das psicopatologias desse ego. (....) No que diz
respeito à expressão de
sentimentos e emoções, a libertação de qualquer sociedade contemporânea, da antiga anomie do sujeito centrado (...) libertação de qualquer
sentimento porque não há mais a presença de um ego.” (2004, p.43).
Para maiores esclarecimentos sobre a temática, indicamos a leitura da obra: JAMESON, F.. Pós-modernidade: a lógica cultural do
capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2004.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [142]
A primeira e incisiva resposta que vem à tona é positiva. A prova cabal que
sustenta nossa afirmação provém de um lide da reportagem de O Estado de S.Paulo sobre os
ataques ao reduto do Hezbollah, no sul de Beirute, que adverte: “Para quem entra, um aviso:
aguce os ouvidos e a visão e ignore o olfato”. Destacamos um trecho da reportagem:
Quem entra no bairro de Haret Hreik deve aguçar a audição e a visão. E
ignorar o olfato. (...) Os objetos no chão coberto de pó, dentro das casas, dos
pátios, entre os destroços, são mais reveladores que a destruição em si – que
o tempo banaliza. O cheiro de cadáveres exalado dos escombros produz
primeiro náusea, depois dor de cabeça, até secar completamente a garganta.”
(SANT’ANNA, 2006, p.A9).
Essa reportagem evidencia, sem sombra de dúvida, a fadiga dos sentidos de
distância e como eles são sempre evocados e explorados pelos meios de comunicação de
massa: as imagens, sejam elas visuais ou sonoras, já não chocam mais, não só pela exacerbada
utilização desses sentidos, mas também pela rarefação da capacidade de apelo. Concordamos
com Roland Barthes (1978) em sua obra La chambre claire, que afirma que as imagens de
grande apelo, com explícita força emocional, já não mais chocam nem comovem, porque já
sofreram por nós. O olfato, por mais que queiramos, é o sentido que nos escapa pelo fato de
não ser convidado ao banquete dos sabores e dessabores do mundo. Se as imagens já não nos
envolvem e comovem, e o sentido do olfato é ignorado, o que nos resta de afetividade do
mundo, se os poros fabricadores dessa afetividade estão em crise?
Resta perguntar como fica o sentido do olfato diante da predominância do olhar.
A primeira hipótese é a de que ele esteja esquecido, amortecido, lacrado, trancafiado. No
pensamento de Cyrulnik, “(...) entre os seres vivos, ao erguer-se, teria podido submeter-se
menos ao olfacto, especializar-se num mundo visual (...).” (1996, p.66).
Talvez, e dizemos talvez, pois nesse campo pantanoso somente formulamos
hipóteses, a prevalência da visão em detrimento do olfato, além de ser uma questão
estratégica biofisiológica do Homo eretus, é também uma questão de estratégia de cativação e
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [143]
hipnose desse indivíduo. Como afirma Cyrulnik (1996), os odores colocam em movimento,
enquanto que a visão (as imagens) hipnotiza e imobiliza.
(...) no homem o odor é uma transmissão de matéria. Aquele que cheira,
palpa com o nariz uma amostra da matéria do outro, um indício que o
penetra tal como entre os animais. (...) A palpação olfativa que nos penetra
provoca uma apetência ou uma aversão, uma intenção de movimento, tal
como qualquer penetração. Porém sobretudo, assim que o cérebro do nariz
palpou uma amostra do odor do outro, a informação estimulante não é
enviada para o córtex, mas de imediato para circuitos da emoção e da
memória. À informação que nos põe em movimento, acrescenta-se a
evocação de emoções e de recordações. Pode-se influenciar com o odor,
atrair, rejeitar ou evocar, mas não pode hipnotizar, imobilizar. O olfacto dá
impulsão: palpa-se, evita-se, mentaliza-se, mas não se pode cativar. (1996,
p.94)
Mais adiante, acrescenta:
Com o olfato podemos comover e fazer agir sobre o outro. Ao passo que
com os outros órgãos dos sentidos o podemos cativar, tomar a sua
consciência e pô-lo na expectativa. Se cativar, por uma sonoridade, uma
imagem, uma encenação ou uma palavra, concentro as suas actividades
físicas e mentais na sensoridade que organizei, em sua intenção, na sua
direção....para tomar! E o outro está de acordo com essa intrusão sensorial,
porque é delicioso ser cativado. É um acontecimento sensorial e afectivo
intenso que nos torna cúmplices daquele que nos cativa. É muito diferente de
uma captura, em que o outro se apodera de nós quando nos opomos. (1996,
p.95).
As imagens visuais e as auditivas cativam a atenção do outro com mais eficiência,
já que:
(...) a molécula move e comove, a pressão física capta tocando, ao passo que
a gustação e o olfacto afloram a boca e o cérebro do nariz. Estas
estimulações sensoriais imobilizam por um breve instante, exactamente o
tempo de provocarem um movimento de atracção ou de fuga, de cheiro ou
de mastigação. O que não acontece com as imagens visuais e auditivas que
captam e põem na expectativa. (1996, p.98).
Esse esquecimento do olfato revela, então, que a cultura judaico-cristã convenceu-
nos da impureza e do pecado que o corpo representa. Cada vez mais, acatamos os valores
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [144]
apregoados pelo sistema, negando o corpo e suas formas, em favor de um corpo-imagem, que
já não quer e não precisa mais sentir. Como demonstra Restrepo, “o interdito que separa a
intelecção da afectividade parece ter origem em que, frente a uma percepção mediada pelo
tato, gosto ou olfato, o Ocidente preferiu o conhecimento dos exteroceptores, ou receptores à
distância, como são a vista e o ouvido. Nossa cultura é uma cultura audiovisual.”(1998, p.32).
Quando expulsamos a problemática dos sentidos, queremos demonstrar o que o
nosso tempo tem feito com o corpo e seus sentidos. Em nenhum momento pretendemos
pregar um regresso, um retorno à condição humana mais arcaica, mas compreender um tempo
em que a visão foi extremamente explorada. Há uma exacerbação da visão e, assim, uma
fadiga do olhar, que já não vê mais, uma vez que essas imagens perderam muito da sua
capacidade de apelo.
Nesse jogo de linguagem, fica sempre o gosto amargo de um corpo que não é
suscitado por inteiro, um corpo em que a razão se torna pilastra de sustentação. Não se requer
os sentidos de proximidade para si, na angústia primeva de não ter que sentir em si aquilo que
está impregnado no outro. É um corpo que padece de uma patologia e ainda não há um nome
que se possa atribuir às deficiências contemporâneas: padecemos de uma cegueira, apesar dos
olhos; de uma falta de tato, apesar dos dedos, mão e pele; uma inexpressiva olfação, apesar do
nariz para farejar ou cheirar.
O que realmente salta aos olhos é que a mídia primária, o corpo, está em plena
agonia. Somos seres que não conseguimos lidar com a mídia primária, embora nos
vangloriemos de ser uma das mais competentes e complexas máquinas que medeiam a
comunicação humana.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [145]
Pode-se dizer que essa deficiência recai sobre a mídia primária, e, neste trabalho,
concentramo-nos na olfação. Essa é a forma de nos tornarmos anósmicos
15
, denominação que
vem da combinação greco-romana “sem + cheiro.” (ACKERMAN, 1990, p. 65).
Restrepo (1998) embora construindo seus conceitos calcados e voltados para a
educação, oferece uma brecha para pensar e aplicá-los aos fenômenos midiáticos
contemporâneos, em que há a clara predominância da ambiência comunicacional, nitidamente
voltada à comunicação vertical (verticalismo). Quando se deflagra esse direcionamento
vetorial da comunicação, crê-se que a ausência e a não-solicitação do olfato fazem pensar que
já nenhuma ou muito poucas escolhas são realmente feitas pelos sentidos; escolhe-se por meio
de um conceito estabelecido segundo a razão de nosso tempo, que se apresenta bondosa e
soberana. “Ao excluir o tato e o olfato do processo pedagógico, nega-se a possibilidade de
fomentar uma intimidade, uma proximidade afetiva com o aluno, perpetuando-se uma
distância corporal que reforça a posição de poder do mestre, que agora se torna verdade
incontestável.” (1998, p.34).
Diagnosticamos, neste momento, que é preciso reposicionar essa mãe soberana do
nosso tempo, a razão, pois:
Esta razão universal, incapaz de perceber a singularidade, não entende que
aprender é sempre aprender com o outros, pois as estruturas de pensamento
são mais do que relações entre corpos que se interiorizam, afeições que, ao
se tornarem estáveis, nos impõem um certo modelo de fechamento ou de
abertura para o mundo. (RESTREPO, 1998, p.33).
15
Aplicando uma outra denominação médica ao fenômeno midiático, no que se refere principalmente aos anúncios
publicitários de perfume, não nos tornamos anósmicos, mas sofremos de fantosmia, que é a percepção de um odor que não
existe. O que fazem os meios de comunicação, como aponta Susan Sontag (2004), quando se refere a compulsão de
fotografar, ou seja, “a necessidade de confirmar a realidade e de realçar a experiência por meio de fotos é um consumismo
estético em que todos, hoje, estão viciados. As sociedades industriais transformam seus cidadãos em dependentes de
imagens; é a mais irresistível forma de poluição mental. (...) Que nos impeliu em “transformar a experiência em si em um
modo de ver.” (SONTAG, 2004, p.35).
Para maiores elucidações sobre o assunto, recomendamos a leitura das seguintes obras: LALWANI, A. K.; SNOW Jr., J. B.
Distúrbios do olfato, da gustação e da audição. In: KASPER, D. L.. et al... Harrison: medicina interna. v. 2. Rio de
Janeiro: Mc.Graw-Hill 2006.
SONTAG, S. Sobre a fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [146]
Por isso, é fundamental pensar numa semiótica do corpo. Para isso, é necessário
pensar primeiramente numa pedagogia dos sentidos. É o corpo saindo de seu labirinto
sensorial, desnudando-se para o mundo e fazendo-se vivo por meio dos seus próprios
sentidos.
Pensar numa semiótica do corpo, numa estética, é pensar antes naquilo que James
Hillman denominou aisthesis. A idéia já está bem definida no próprio sentido da palavra: a
faculdade de sentir por meio dos sentidos, “um faro para a inteligibilidade aparente das coisas,
seu som, cheiro, forma de falar para e através das reações do nosso coração, respondendo a
olhares e linguagem, tons e gestos das coisas entre as quais nos movemos.” (1993, p.21).
Permitamo-nos cheirar, sentir o cheiro, movermo-nos pelo mundo dos sentidos
para que tenhamos realmente a percepção do mundo e do outro, de nottia, ou seja, “formar
noções verdadeiras das coisas a partir da observação atenta – notar” (1993, p.21), “notar” aqui
entendido como extrair verdadeiramente as qualidades sensíveis do objeto, que não se
encontram nos arquétipos ou modelos que o representam e nem nos objetos, mas nas
percepções de nossa mente sobre esse objeto. É realmente necessário insistir no titanismo
midiático e resistir a ele, para não permitir que a razão titânica do “não sentir” prevaleça, mas
apenas o engolir e o ver.
O titanismo midiático, fenômeno, que tomou conta da cultura de massa, amortece
os sentidos corporais. Cada vez mais, não queremos mais sentir o mundo no sentido de nottia,
ou seja, ter as acepções reais do produto. Ao resgatar a idéia de organismo poroso de
Cyrulnik, crê-se que os poros estão fechados, anestesiados. Sentimos, cheiramos, ou melhor,
percebemos aquilo que o Grande Titã quer que percebamos. Utilizando uma expressão
habermasiana (1990), o sistema tem colonizado o mundo da vida. E o mundo da vida tem-se
deixado apropriar pelo sistema, que suga energia desse mundo e devolve excrementos.
Estabelece-se uma verdadeira relação paranóica entre eles, criam-se “relações enganosas entre
o produto e o que se fala sobre o produto.” (Hilman, 1993, p.16). Sem dúvida, esse
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [147]
bombeamento de energia do fluxo contínuo, num único sentido (mundo da vida para o
sistema), acaba por patologizar o mundo. Percebemo-lo claramente no consumo, que se
tornou maníaco: “(...) instantaneidade de satisfação, descartabilidade, intolerância para
interrupção (consumismo), a euforia de comprar sem pagar (cartão de crédito) e o vôo das
idéias que se tornam visíveis e concretas nas revistas e anúncios de televisão.”(Hilman, 1993,
p.16).
É preciso haver consciência de que não podemos jogar para debaixo do tapete
toda a afetividade, a aisthesia do mundo, nem levantar a bandeira do sentimentalismo contra o
excesso de razão, mas antes: “(...) compreender que há sempre na emoção algo de razão e na
razão um tanto de emoção, embora se tente, a partir de diferentes óticas, afirmar o contrário.
(...) Os sentimentos não podem continuar confinados ao terreno do inefável, do inexprimível
(...)” (RESTRESPO, 1998, p.37).
Além disso, já não é possível separar a razão da emoção: não podemos deixar que
a grande sombra, a (in)comunicação, manifestada por meio do titanismo midiático, rompa
com os vínculos comunicativos, para que os sentidos de proximidade na comunicação de
massa prevaleçam.É preciso sair da anestesia e do entorpecimento dos sentidos de distância,
abrindo nossos sentidos para o mundo,ou seja, “Pensar de acordo com uma lógica do sensível,
aberta à captação de diferença, é prestar atenção a esses vaivéns afetivos que dão conta de nossos
toques e nossos encontros.” (RESTREPO, 1998, p.38
). Por fim, damos voz ao pensamento de
Hillman, que nos revela uma nítida brecha para rompermos com o titanismo midiático e que
nos convida a sentir o mundo sem os excessos desenvolvidos pelos meios de comunicação de
massa.
Somos antiestéticos, estamos anestesiados, psiquicamente entorpecidos.
Além disso, existe um império imenso, feio e maligno trabalhando dia e
noite para nos conservar dessa forma. A diversão e a televisão maniacamente
saturadas, excessivas, sonoras e fortes, as informações da mídia, (...)
desenvolvimento e melhorias, consumismo, compra, compra, compra. (...)
Não somos nem mesmo múmias ou zumbis em nosso entorpecimento
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [148]
psíquico, porque não estivemos no Mundo das Trevas, a terra dos mortos.
Estamos simplesmente na caverna de Platão, drogados pelo que está em
nossas próprias cuias, paralisados, entorpecidos.
Meu alerta não é bem aquele clássico: acorde e veja; mas, em vez disso, o
dos sentidos, o senso comum. O inimigo não é invisível, intangível.
Podemos cheirar o titanismo, tem gosto, fere os ouvidos, as membranas e o
globo ocular, os dedos. Nossos sentidos tocam e recuam e se fecham para o
mundo, o mundo comum está insensível aos sentidos e, também, à
linguagem do sentido, à linguagem comum e descritiva de adjetivos e
advérbios. .(HILLMAN, 1993, p.151).”
A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [149]
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